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Desde sempre o crime despertou, nos britânicos, um profundo interesse, de ordem intelectual. Esse fato tem justificativa. Já no tempo de Jack Estripador, e depois, na época de doutor Crippen, o primeiro homem a ser preso graças à comunicação radiofônica, como se disse então, era habitual, na Grã-Bretanha, se cometer crime extravagante. Essa é uma das razões por que as histórias policiais naquele país, começando pelas de Conan Doyle, se tornaram autêntica ficção de primeira qualidade.
Muitos dos crimes dessa época (envenenamentos com arsênio, por exemplo) foram inspirados pelo sistema econômico então vigente. O divórcio era difícil de obter. Um homem que não conseguisse se divorciar procuraria se ver livre da mulher do modo mais sutil possível. Mas hoje os crimes, no seio da família, são em menor número, pois o divórcio é acessível. A pensão paga ao cônjuge e aos filhos é dedutível do imposto.
Representantes do corpo editorial do Reader's Digest me pediram pra selecionar algumas das histórias de mistério e de suspense minhas favoritas. As quatro escolhidas nesta seleção devem estar, talvez, entre as que, ao longo dos anos, mais me agradaram.
Mas acho que devo salientar uma grande diferença entre suspense e mistério: No suspense o leitor sabe, desde o início, quem é o assassino mas numa história de mistério só no fim conhecerá a identidade do criminoso. A essência do mistério reside na própria palavra: Mistifica. Se trata de exercício intelectual que consiste em procurar descobrir qual personagem envolvida na narrativa é a culpada. Ao ler uma história policial o leitor é, por natureza, sempre tentado a dar uma olhada na última página.
No caso do suspense a palavra exprime a ansiedade no estado de espírito do público. Dando a conhecer, antecipadamente, o assassino o autor mantém o leitor em suspense a ponto do deixar dominado por uma terrível expectativa relativamente ao destino do possível suspeito. Por exemplo: Se explodir uma bomba, subitamente, no meio dum grupo de pessoas que conversam, o público que assiste a cena sente choque e surpresa que dura cerca de dez segundos mas, invertendo a situação, se dermos a entender ao público que dali a cinco minutos, uma bomba explodirá no meio daquele grupo de pessoas, se lhe mostrarmos a dita bomba e depois desviarmos sua atenção durante esse intervalo de tempo, o público ficará dominado por uma expectativa decorrente da necessidade que sente de avisar as pessoas do grupo ameaçadas por uma explosão iminente. Assim, em vez dum choque-surpresa de dez segundos, proporcionaremos a esse público cinco minutos de tensão e suspense.
Sempre tive o costume de estabelecer uma comparação entre o conto policial e o filme porque ele é a única forma literária que nos obriga a ficar sentados e a assistir ininterruptamente, até o final, o desenrolar da ação. Conseqüentemente existe uma semelhança estrutural entre a forma do filme e a do conto, exceto que o filme é projetado durante duas horas e um conto podemos ler em vinte minutos ou meia hora.
A maioria dos filmes e das histórias de suspense tentam evitar os clichês comuns na ficção de horror: A escuridão da noite, a casa em ruína, o gato preto que cruza o caminho, o rosto que espreita na janela. Pra evitar esses clichês sempre preferi aquilo a que chamo crime em ambiente bucólico: O crime perpetrado, por exemplo, à radiosa luz solar, sem casa ou árvore perto. Do mesmo modo, tanto no filme como na história, o que não se vê pode, muitas vezes, ser mais aterrador que o que está à vista. Acima de tudo o leitor ou o espectador deve ser estimulado a sentir a mesma emoção de suspeita e de terror que a experimentada pelo herói. Foi por isso que sempre preferi, pra herói, pessoa comum. Numa situação de terror se estabelece maior identidade do público com um homem comum que com um super-homem.
Desde que todos esses pormenores sejam corretamente tratados o leitor ou espectador de história policial deverá atingir o clímax que, pra mim, se concretiza em palmas das mãos úmidas e ansiedade. Espero que estas quatro histórias proporcionem a todos vós tais sensações. Com isso me resta desejar ótima leitura.
O ESCRAVO
Sentindo a iminência dum pedido de casamento Inger se preparou pro jantar com cuidado especial e sem sacrificar da pontualidade. Corey gostava que suas mulheres fossem bonitas, pontuais e, normalmente, alguns anos mais jovens que Inger podia alegar ser. Mas, ainda beirando os 30 anos, ela se recusara a sofrer pontada de desespero durante o namoro de dois meses.
Como um bom presságio, Corey a levou ao Windward. Era caro e íntimo. Velas bruxuleavam. Os martínis foram servidos em copos gelados. Depois da refeição, enquanto tomavam café e conhaque, os olhos dele se fixaram afetuosamente nos dela, sua voz baixou uma oitava. Se não fosse pelo fato da atenção dela se desviar subitamente a um homem de boca larga e sorridente, o momento poderia ter chegado. O sorriso do homem era tão efusivo e tão obviamente dirigido a Corey que ela teve certeza duma interrupção. Estava certa. O homem se aproximou da mesa e cortou o ânimo de Corey.
— Olá, Core. Pensei ter te reconhecido antes mas está muito escuro aqui dentro.
Ele presenteou Inger com uma exibição dos dentes brancos e compridos, alongando o rosto atarracado. Os olhos eram dum azul bem claro, o cabelo louro se encurvava no final de cada mecha. Inger olhou a Corey e sentiu um choque quase elétrico pelo que viu. Os músculos em torno da boca de Corey relaxaram, estavam tremendo.
— Olá, Ray. — Disse Corey, balbuciando depois de breve hesitação. — Esta é Inger Flood. Inger, Ray Chaffee.
Inger murmurou:
— Como vais?
— Que maravilha! — Disse Chaffee, com uma exclamação de admiração. — Tens muito bom-gosto, Core. Imagino que tiveram um jantar íntimo e extremamente agradável. E uma pena que tenhas de ir embora agora?, hem, Core.
— Pelo-amor-de-deus!, Ray.
— Mas tiveste sorte, Core. Eu poderia ter te reconhecido antes do filé. Foi filé, não é?, senhorita Flood. Core nunca teve muita imaginação para comer.
— Ambos comemos um filé. — Declarou Inger, decidida a se manter controlada. — Também não tenho muita imaginação.
O sorriso se desvaneceu, deixando uma expressão de malícia afável.
— Vamos logo, Core. — Disse Chaffee, a voz musical. — Trates de ir embora. Deixes o conhaque. O terminarei por ti. Ainda tens crédito aqui. Não é? Pois passes na caixa e avises para porem a nota em tua conta. Vamos, Core, te mexas!
O choque de Inger se transformou em perplexidade. Corey estava se levantando.
— Inger, lamento muito...
— Lamentas? Mas o que está acontecendo?
— Tenho de ir embora. — Murmurou, desesperado. — Telefonarei a ti mais tarde. A tua casa.
— Nada disso! — Interveio Chaffee, bruscamente. — Chega de telefonema nesta noite, Core. Pares de financiar a companhia telefônica. Vás a casa e te deites. Amanhã... Ora! Veremos o que se poderá fazer amanhã.
Inger começou a se levantar também mas, inacreditavelmente, a mão do estranho estava em seu ombro, a empurrando de volta à cadeira.
— Ficarás aqui, senhorita Flood. Não precisas ter pressa.
— Mas o que é isso?! — Disse Inger, finalmente sentindo raiva. Corey, queres fazer o favor de dizer a esse homem...
— Não precisas fazer onda. — Disse Chaffee, suave e zombeteiro.
Se sentou ao lado de Inger. Corey hesitou mais um instante, até que Chaffee lhe sacudiu a mão bruscamente, num gesto autoritário. Corey se virou, como se atingido por um chicote invisível e se encaminhou à porta, a tensão estampada nas costas. Inger fez outra tentativa de se levantar mas Chaffee a segurou no cotovelo.
— Fiques, por favor. Não vás ainda. Não é agradável ficar sentada aqui sozinha.
— Não ficarei sentada sozinha. — Disse, rispidamente. — Nem contigo. E tires a mão de meu braço ou começarei a gritar. Poderás descobrir o que isso significa para teu crédito.
Não havia sinal de Corey na rua. Inger esperava que surgisse de repente num portal e explicasse a brincadeira. Mas, exceto por um táxi parado a alguma distância, a rua estava deserta. Fez sinal ao táxi.
Na manhã foi despertada pelo telefone e não pelo despertador.
— Inger?
— Vás ao Inferno!
— Não posso te culpar por estar tão zangada. — Murmurou Corey. — Não posso te explicar agora mas prometo que ainda o farei. Eu não sabia que Chaffee estava no restaurante. para ser sincero, nem sabia que estava na cidade. Pensei ter me livrado do filho-da-puta durante seis semanas, que sua companhia o tivesse enviado à América do Sul numa missão especial.
— Ó, Corey, te cales! — Exclamou Inger, se sentando na cama. — Foi uma brincadeira de mau-gosto e ainda não estou completamente desperta para ouvir um pedido de desculpa.
— Queres almoçar comigo?
— Não.
— Por favor!, Inger.
O encontrou num restaurante do qual nunca ouvira falar antes, num bairro fora de mão. Não fez conexão entre a obscuridade do restaurante e Ray Chaffee até que tateou o caminho no interior escuro para alcançar a mesa isolada de Corey, no fundo.
— Quero que me digas uma coisa, Corey. Estás te escondendo daquele homem?
— Como assim?
— Este buraco que escolheste parece ser freqüentado apenas por curtidores portugueses e gente parecida. O escolheste apenas por causa de teu amigo?
— Não digas bobagem. — Corey sorriu. — É um restaurante agradável e sossegado. Muito bom para namorar.
Ele a beijou na boca, obtendo uma retribuição apenas parcial. Depois pediu os drinques e, sem esperar a pergunta, tratou de responder: — Claro que foi uma brincadeira o que aconteceu ontem na noite. Mas é uma coisa tão estúpida que quase desafia explicação.
— Mas tentes explicar.
— É uma espécie de aposta, uma brincadeira permanente que tenho com Chaffee.
— Mas quem é? Trabalhas para Chaffee? É teu patrão?
— Não. É apenas um amigo, usando a palavra no sentido mais amplo. É engenheiro de computador. Estivemos juntos na universidade. Chaffee, eu e mais alguns outros tínhamos uma roda de pôquer que acabou sendo dissolvida por dois ou três casamentos. Sabes como são essas coisas.
— Não. Não sei. A maneira como aquele homem ordenou que saísses. E a maneira repulsiva como obedeceste...
Corey se recostou nas sombras e riu. O divertimento parecia genuíno mas Inger não estava convencida.
— Devo ter parecido um idiota. Mas tinha de ser assim, meu bem. Não posso esperar que compreendas. Tudo o que espero...
Abruptamente parou de falar.
— O que é?
— Não espero alguma coisa agora. Mas dentro de dois minutos...
— O que mudará em dois minutos?
— Talvez muita coisa.
Corey meteu a mão no bolso e tirou uma caixa pequena, revestida de veludo.
Inger prendeu a respiração, enquanto ele acrescentava:
— Te lembras do que te falei daquela débil mental de quem estava noivo?
— Leila?
— Isso mesmo, Leila. E te lembras de que falei que devolveu o anel de noivado?
Inger ficou rígida enquanto ele levantava a tampa, mas a caixa estava vazia.
— Não estou entendendo.
— Eu não permitiria que usasses o maldito anel daquela mulher. Passei na joalheria nesta manhã e acertei uma troca. Podes passar lá a qualquer hora e escolheres o anel que quiseres. Isso é, se quiseres.
Inger olhou da caixa vazia ao rosto dele mas outra imagem se interpôs.
Era um garção, carregando um telefone vermelho.
— Mas o que é isso? — Resmungou Corey. — Deve ser um engano.
— Não, senhor — declarou o garção. — É mesmo para ti, senhor Jensen.
Corey pegou o fone e disse um alô perplexo. A centímetros de seu ouvido, Inger ouviu a voz metálica de Ray Chaffee:
— Passarinho, passarinho, por que fugiste de casa? Ela está pegando fogo e teus filhos morrerão.
— Ray, seu miserável!
— Estás sendo insolente, meu velho. E sabes que não tolerarei insolência.
— O que queres? Como soubeste que eu estava aqui? Estás me seguindo de novo?
— Caias fora daí, Corey. Tua presença num lugar assim me ofende. Estou no outro lado da rua, numa cabina telefônica. Espero te ver passar a porta dentro de dois minutos. Não, serei camarada: Dou três minutos.
— Corey, desligues esse telefone! — Interveio Inger, a cabeça zumbindo.
Foi exatamente o que Corey fez. Inger pensou que a brincadeira terminara mas estava enganada. Corey estava largando o guardanapo em cima da mesa e empurrando a cadeira a trás.
— Escutes, Inger...
— Não! Não me digas! Irás mesmo embora?
— Tenho de ir, meu bem. É uma coisa que não posso evitar. Tomes aqui! — Pôs a caixa de veludo na mão dela. — O nome da joalheria está escrito na parte de dentro da tampa. Talvez possas passar lá ao voltar a casa nesta noite.
— Corey. — Disse ela, incisivamente — Se saíres daqui agora e não me explicar por que...
— Peças algo para comer. — Ele lançou um olhar nervoso à porta e largou uma nota de 10 dólares em seu prato. — Peças rosbife. É muito bom aqui. Ligarei a ti mais tarde.
— Se fores embora agora, não quero que me telefones mais tarde!
Mas ele foi.
Inger não pediu o almoço. Usou o dinheiro para pagar os drinques e foi embora sem se impressionar com o grunhido de insatisfação do garção. Chegou faminta ao escritório às 3h e comeu uma torta horrível comprada no carrinho de café.
?
Corey apareceu no apartamento dela, sem avisar, em volta das 22:30h. Inger já se vestira para deitar, com uma camisola tão transparente que a situação poderia ser provocadora. Mas o ânimo de Corey e também o dela, se diga de passagem, impediam qualquer coisa além de conversa e uísque. Se sentaram na pequena sala de estar, um tanto desarrumada.
— Muito bem, Inger. Contarei toda a história. Não o podia fazer antes, pois isso fazia parte do acordo. Mas estive com Ray e concordou. Até gostou da idéia de saberes, o que proporcionou uma emoção vulgar ao desgraçado.
Parou de falar, terminou o escocês que tinha no copo. Inger esperou recomeçar:
— Sou seu escravo, Inger.
Ele se levantou para tornar a encher o copo, usando a ação como pretexto para não a fitar.
— Sei que parece absurdo, mas não é tanto assim. Não estou querendo dizer que me comprou num leilão de escravo ou que temos alguma relação sexual maluca no estilo de Krafft-Ebing. Ambos somos corretos, embora essa seja uma maneira um tanto exagerada de descrever Ray Chaffee. O que estou querendo dizer é que tenho de fazer tudo o que mandar, praticamente tudo. Claro que nada faria que me causasse um mal físico. Não pode me mandar, por exemplo, pular duma janela. Isso não estaria nas regras.
— Regras?
— Sou escravo há quase 10 meses. Restam menos de 10 semanas para que tudo acabe. Mas não precisas ficar preocupada. Pensei muito em ti, pensei em nós, nesta situação, decidi que não deveria te encontrar, até que este maldito ano chegasse ao fim. Mas com Chaffee viajando, pensei que poderia correr o risco.
— Correr o risco de quê?
— Afinal, estava na América do Sul. Deve ter morrido de raiva por ser enviado até lá justamente agora. Estava começando a gostar de ter um escravo, de poder mandar nalguém e ser sempre obedecido. E se tornava mais mesquinho a cada dia, pensando em novas maneiras de me fazer sofrer.
— Não posso estar ouvindo direito, Corey. Devo ter me deitado há uma hora e tudo não passa dum sonho.
— No caminho a cá — continuou Corey, muito tenso — tentei decidir o que era pior: Contar a ti ou nada dizer. Qualquer que fosse a decisão eu poderia te perder.
Não queres outro drinque?
— Não.
— Pois quero.
Corey foi encher o copo mais uma vez. Quando voltou estava disposto a enfrentar os olhos dela.
— Inger, contarei toda a verdade. Há cerca de 10 meses, Chaffee, eu e mais dois caras tínhamos uma roda de pôquer e garotas.
— Não mencionaste as garotas antes.
— Elas jamais atrapalhavam o pôquer. Seja como for, estávamos todos sentados em torno duma mesa numa noite, bebendo. Começamos a falar sobre escravidão. Isso é, a escravidão nos dias atuais. Ainda existe, sabes. Há muito tráfico de escravo no Oriente Médio e lugares assim. Houve uma coisa em que, todos concordamos. Ou melhor, duas. A primeira foi: A escravidão não é horrível? Nada há de original nisso, é claro, mas é o primeiro sentimento de quem sempre viveu à sombra da bandeira ianque. Mas também concordamos que a escravidão podia ser terrível pro escravo mas era, certamente, algo muito bom pro amo. Pondo de lado todas as considerações morais, o que há de tão ruim em ter dois ou três escravos? Encaremos a verdade: Devia ser uma coisa maravilhosa. Era o que fez a escravidão tão popular durante muitos séculos, mesmo em civilizações supostamente esclarecidas, como a grega e romana. Sabiam que era moralmente errado o que faziam mas não dispunham de máquina para tornar a vida confortável e por isso justificavam a prática. Mesmo hoje, penses em todas as pessoas que vivem disputando criados. Te lembres das mulheres gordas nos clubes femininos, passando a metade da vida dando ordens às criadas e a outra metade falando delas. E quando uma delas diz Minha Bernice é uma jóia preciosa, está se referindo à criada mais como uma escrava, mais como se fosse uma preta escrava sulista dos velho tempo do que como empregada remunerada. Não estou certo?
— Por favor, Corey, me poupes os comentários sobre a injustiça social.
— Está bem. Está bem. O que estou querendo dizer é que a escravidão é atraente. Chaffee até encontrou uma citação de Tolstói a respeito, embora eu ache que só a procurou depois da aposta.
— Aposta?
— É sobre isso que quero falar: A maneira como tudo começou. Sabes quem foi Tolstói. Uma espécie de santo russo, defensor da liberdade individual. Só que escreveu, em seu diário, que a escravidão é um mal, mas um mal extremamente agradável.
— Mas ainda continua a ser um mal. Não é?
— Por que é involuntária. Os escravos não escolhem ser o que são. São arrebanhados por traficantes ou vendidos pelos próprios pais, como acontecia com as meninas na China antiga. Ou eram capturados em guerras, como no caso dos gregos e romanos. Mas se a escravidão fosse voluntária, se fechando o vazio moral...
— Foi isso o que fizeste? Voluntariamente te ofereceste para ser escravo?
— De certa forma, Inger. De certa forma. Foi assim que a noite terminou, numa espécie de aposta que Chaffee e eu fizemos. Bebêramos muito, mas mesmo, assim definimos os termos, as regras e condições. Uma das regras era o sigilo e é isso o que está me permitindo violar nesta noite.
— Estás falando sério? Não é brincadeira?
— Não, Inger, não é brincadeira. Infelizmente, é a pura verdade. Chaffee apostou que eu não poderia sobreviver como seu escravo durante um ano. Mas o prazo está quase acabando. Eu ganho, ele perde e as coisas voltam ao normal. Mas eu não poderia desistir agora. Entendes? Depois de 10 meses eu seria louco se desistisse, mesmo que me pedisses, mesmo que impusesses uma condição para encher aquela caixa que dei a ti.
— Não achas que estás querendo demais?
— Eu não poderia desperdiçar esses 10 meses, Inger. Chaffee me fez conhecer o Inferno e pode se tornar ainda pior, mas não lhe darei a satisfação de desistir antes que o ano termine.
— Pareceis duas crianças estúpidas! Deveríeis levar uma boa surra!
— Não foi tão terrível assim no começo. — Disse Corey, olhando o teto. — Chaffee não estava acostumado a ter um escravo. A princípio me pedia para fazer as coisas, era polido, sempre usava por favor. E todas as ordens eram ínfimas, como fazer pequenos serviços, ir à biblioteca, chamar táxi. Era um trabalho fácil.
— E depois mudou?
— Não podia me pedir para fazer algo que pusesse em risco minha saúde, emprego ou dinheiro...
— Mas podia te humilhar. Eis algo que podia fazer. Não podia me obrigar a fazer coisas malucas em público. Nada que pudesse fazer com que a polícia me prendesse. Mas qualquer outra coisa. Sou obrigado a fazer ou não seria seu escravo. Entendes? Um escravo obedece sem questionar. Isso é a própria essência, a incapacidade de recusar as ordens do amo. Mas Chaffee levou muito tempo, quase meio ano, para descobrir alegria nisso.
— Alegria?
— Isso mesmo. — Corey revirava o copo entre as mãos, interminavelmente. — Há uma alegria nisso, quase um êxtase. É mais do que a conveniência de ter alguém para executar todas as ordens. No fundo há algo de poder. É por isso que as pessoas se digladiam buscando poder político, social, financeiro. Qualquer um. É o prazer de dominar as pessoas, a fazer obedecer pelo simples ato de estalar o chicote.
Inger deixou escapar um muxoxo de repulsa.
— É verdade, meu bem. Sou o escravo e é o amo, mas posso perceber o que faz. O poder total sobre outro ser humano. Depois de seis meses Chaffee começou a sentir que o tempo se escoava rapidamente e foi ficando desesperado e mesquinho. As ordens se tornaram mais brutais e mais freqüentes. Foi nessa ocasião que deixamos de ser amigos e nos tornamos o que somos agora: Amo e escravo. Apenas isso, nada mais que isso. E foi também nessa ocasião que começou a gostar.
Inger se aproximou dele, parecendo inebriada e linda.
— E não desistirias? Nem mesmo que eu pedisse?
— Já te disse. Se tivéssemos nos conhecido há cinco ou seis meses, antes de Chaffee começar a estalar o chicote, talvez eu estivesse disposto a desistir, a perder todos os meses que já investira. Mas não agora.
— Corey, me amas?
— Por-deus-do-céu! Ainda não disse isso?
?
Mais tarde, ela pediu de novo.
— Não, Inger, não é possível. Achas que aquelas situações nos restaurantes foram horríveis? Pois já houve outras bem piores. Tenho feito todos os tipos de serviço sujo. Já fui seu valete, mordomo, faxineiro. Já abri mão de muitas noites, de fins de semana, até das horas de almoço, sempre que assim quis. E então passou a me seguir em toda parte, me obrigando a renunciar a hábitos, prazeres, amigos.
— E às mulheres também?
— Me obrigou a romper com todas as namoradas. Houve uma ocasião, quando procurou a garota com quem eu saía e contou o que eu era.
— Pensei que as regras básicas.
— Só se aplicam a mim. O amo não precisa guardar segredo. Só o escravo está
obrigado. E naquela noite contou a ela. E a débil mental...
— Foi Leila?
— Isso mesmo. E talvez Chaffee me tenha feito um favor nesse caso. Mas não esquecerei a maneira como nos abordou.
— E disse a ela que eras seu escravo?
— Disse e provou. Me obrigou a rastejar na frente dela. E aquela débil mental riu. Achou que era engraçado, hilariante. Pediu a Chaffee que a deixasse ter um pouco de ação, queria brincar também. E no resto da noite fui também escravo dela, porque isso é parte do acordo. Se tens um amo passas a ser escravo de toda a raça humana.
— Oh, Corey! — Inger pressionou o rosto contra o ombro dele. — Como pudeste agüentar isso? Por que não o mataste? Eu teria esmagado a cara dele e a dela também!
— Tens razão, Inger. Os escravos se revoltam. E isso faz parte da diversão. Só que eu não o podia fazer. Entendes? Havia investido demais.
O telefone tocou. Já passava de meia-noite e o telefone de Inger era normalmente silencioso naquela hora.
— Devo atender? — Sussurrou ela. — achas que é...
— Tenho certeza que é.
Inger atendeu e a voz de Ray Chaffee disse, suavemente:
— Como vais?, boneca. Estás com o ouvido doendo? Nosso garotinho já chorou todas as mágoas?
— Estou contente, que tenhas ligado, senhor Chaffee. — Disse Inger. — Muito satisfeita. Assim tenho a oportunidade de dizer o que penso a teu respeito.
— Poupes teu fôlego. — disse Chaffee, friamente. — Me deixes falar com o rapazinho.
— Só depois de me ouvires.
— Me enches o saco e eu descarregarei em cima dele. Estás entendendo?, boneca.
Inger hesitou um instante mas acabou passando o fone a Corey. E o ouviu dizer:
— Está certo. Já entendi. Está bem. Está bem. Eu disse que faria e farei.
Suspendeu o telefone, na direção de Inger. Mas não a olhou, enquanto dizia, a voz sem inflexão:
— Ray quer que eu vá embora agora, meu bem. Mas não quer que fiques solitária. Disse que terá o maior prazer em vir até aqui para fazer companhia a ti. Disse que conhece uma maneira de te manter quente e satisfeita.
— Corey!
— Eu agradeceria se concordasses, Inger. Não posso te obrigar, é claro, mas consideraria um grande favor a mim se deixasses Ray subir agora.
Via fone ela podia ouvir o risinho seco e musical de Chaffee.
— Saias daqui! — Gritou Inger. — Sumas da minha frente, Corey!
— Por favor, Inger. Poderia ao menos falar com ele?
Ele estendeu o fone a mais perto mas Inger recuou. Corey engoliu em seco e tornou a aproximar o fone de sua boca, dizendo: — Com todos os diabos, já fiz o que mandaste! Mas ela não quer falar contigo e isso é uma coisa que não posso controlar!
Desligou e se virou a Inger, com os olhos marejados de lágrima.
— Prometi que diria isso, meu bem. Era o preço por te contar a verdade.
— Não me ouviste? Sumas daqui, Corey. Não te quero aqui. E nunca mais quero tornar a te ver. Nunca mais!
Corey deu de ombros. Não era um gesto de indiferença mas de resignação. E depois saiu, fechando a porta sem fazer barulho.
?
Inger não tornou a ter notícia dele até o fim de semana. Corey telefonou na tarde de sábado e falou cum sussurro de conspirador:
— Estou na galeria Frederick. Na Médisson. Inverti as posições desta vez e passei a o espionar. Seu apartamento fica no outro lado da rua e acabei de o ver saindo com o carro. Assim, podemos nos encontrar em segurança.
— Pode ser seguro mas não significa que eu queira te ver. — Disse ela, friamente.
Mas Inger acabou indo à galeria. Estava cheia de paisagem ondulante. Corey a recebeu cum sorriso triste e disse:
— Esqueci de pedir que trouxesses dramamina.
Em vez de rir Inger começou a chorar, embora não alto demais que incomodasse os demais freqüentadores da galeria. Corey a levou a um canto, protegendo a ambos com o cardápio{1}, enquanto dizia.
— Tenho uma idéia. Meu acordo com Chaffee durará mais nove semanas. Não quero te ver até lá. Nem tentarei te encontrar. Acabaria descobrindo. E isso só serviria para piorar a situação.
— Nove semanas? Mas isso é terrivelmente injusto!, Corey.
— Mas é o único jeito. É melhor o fazer pensar que rompemos, pois só assim nos deixará em paz. Te deixará em paz. Depois disso, caso não tenhas conhecido outro homem que te interesse, até lá...
— Seu idiota! — Disse ela, tragicamente, o segurando nas lapelas. — Achas que eu poderia querer algum outro?
— Vamos até a joalheria, Inger. Agora. Se estiveres com meu anel no dedo, talvez isso faça uma grande diferença.
Ela escolheu um diamante solitário, sem baguete{2} ou engaste fantasioso. Corey achou que o anel era desnecessariamente austero, mas Inger queria assim mesmo.
Voltando a casa o lembrou de que ainda não fizera um pedido de casamento formal. Ele disse que queria o cenário romântico apropriado. Assim, subiram a rua 59 e pegaram uma charrete, entrando no parque. Inger chorou durante a maior parte do tempo, mesmo depois do pedido de casamento. O abraçou freneticamente, sussurrando: — Corey, vamos juntos até minha casa. Não me deixes agora. Viste aquele homem horrível se afastando. Talvez não nos incomode. Venhas comigo, por favor, Corey.
Foram ao prédio de apartamento em que Inger morava. Um pequeno conversível marrom estava estacionado perto do toldo da frente. Ray Chaffee não estava ao volante mas Corey conhecia o carro.
— Está aqui, Inger. É melhor eu ir embora.
— Não, Corey, por favor! Pode estar esperando no saguão ou no corredor, lá em cima. E tenho medo dele!
— Não precisas ter. Não tem como te dominar. Se tentar algo digas que chamarás a polícia. Se ameaçar contra mim digas que não te importas, que já rompemos.
— Isso é horrível!
— Telefonarei a ti mais tarde.
Corey se virou e se afastou rapidamente. Exatamente como receara, Inger encontrou Chaffee esperando, sentado numa poltrona azul bastante velha, no saguão.
— Boa noite, senhorita Flood. Por acaso viste nosso amigo, senhor Jensen?
— Não, não tenho visto teu amigo e também não quero ver. Nunca mais!
— Nesse caso não estarias procurando um novo amigo? — Ele sorriu. — Não sou uma mercadoria tão desprezível assim. Talvez um pouco suja mas ainda capaz de prestar bom serviço.
— Boa noite. — disse Inger, quando elevador chegou. Mas ele pôs a mão na porta.
— Não comeces com brincadeira, senhorita Flood. Onde estás escondendo o rapazinho? O meteste no armário ou debaixo de tua cama?
Inger ficou parada. Havia um porteiro nas proximidade, provavelmente lendo o Daily News na frente do elevador de serviço. Pensou em o chamar mas acabou mudando de idéia.
— Está bem. Por que não sobes e verificas pessoalmente? De qualquer forma, preciso perguntar uma coisa.
Ele ficou surpreso. Durante um momento Inger o deixou desequilibrado mas, entrando no apartamento, se recuperou e passou o braço na cintura dela. Inger deu um passo de dança para se desvencilhar e disse:
— Quero que me faças um favor. Canceles essa aposta que fizeste com Corey.
Ele ficou desconcertado e divertido.
— Queres que eu liberte o escravo? Que emita uma proclamação de emancipação?
— Isso mesmo. Já está cansado da brincadeira e acho que o mesmo acontece contigo.
Por mais estranho que pudesse parecer, o sorriso se desvaneceu.
— Queres saber duma coisa? Tens toda razão. Se tornou um fardo terrível, não apenas ao pobre Corey mas também a mim. Sabia que dá muito trabalho ter um escravo? É uma responsabilidade e tanto. É como herdar uma grande fortuna. A pessoa fica na obrigação de ter sempre de fazer algo a propósito. Acordo, às vezes, durante a noite, tentando imaginar como poderei usar Corey no dia seguinte. Parece doentio. Não é? Mas provavelmente estás pensando que sou doente. Corey deve ter dito que sou mesquinho e brutal.
— E não é verdade?
— Todos os amos parecem mesquinhos e perversos a seus escravos. Mas não te preocupes. O velho Corey terá o que merece.
— Quanto vale?
— Como?
— Quanto vale vossa aposta? Estou disposta a fazer um acordo, senhor Chaffee.
— Não sei do que estás falando.
— Estás apavorado com a possibilidade de Corey completar um ano de escravidão. Não podes deixar de tentar imaginar as coisas mais horríveis para o obrigar a desistir. Mas também tenho direito a Corey. E se fizeres o que eu disser, darei um jeito para que fiques com teu dinheiro.
Tornando a sorrir, ele perguntou:
— É uma proposta?
— É, sim. Se suspenderes a aposta, imediatamente, prometo que receberás até a última moeda que Corey ganhar.
— Achas mesmo que podes controlar o rapazinho à vontade? Mas que coisa interessante!
Chaffee passou a mão no cabelo louro e liso. Então foi avançando, lentamente, em direção a Inger.
— Queres saber duma coisa? Recomendo que experimentes outra forma de persuasão. Não podes compreender como tenho pouco interesse por dinheiro.
As mãos dele estavam em cima de Inger, que deu uma volta com o corpo e se descobriu nos braços dele. Chaffee era mais forte do que parecia e ela ficou apavorada. O golpeou com a mão esquerda, no rosto. Bateu com toda força e sentiu a ponta do diamante cortar a carne. O olho se avermelhou e inchou quase que no mesmo instante. Chaffee soltou um berro de dor e cobriu o rosto cuma das mãos.
— Me machucaste! — Gritou ele, furioso. — Sua estúpida! Por que tinhas de fazer isso?
Ele tirou do bolso um longo lenço impecavelmente dobrado e o comprimiu contra o rosto. Olhou depois o vestígio de sangue no lenço. Empalideceu e Inger chegou a pensar que ele desmaiaria.
— Sua estúpida! — Repetiu Chaffee.
Ele tornou a comprimir o lenço contra o rosto e saiu pela porta. Inger olhou o anel de noivado em seu dedo, tocou no diamante e disse em voz alta: — O melhor amigo duma mulher.
?
Ela não sabia que horas eram quando as batidas começaram! Sabia apenas que não era uma hora oportuna para alguém fazer todo aquele tumulto na porta de seu apartamento. Olhou o mostrador luminoso do relógio no criado-mudo. Já passava de três horas da madrugada. Pegou o roupão no pé da cama e foi à sala, querendo apenas silenciar aquelas batidas terríveis e obscenas em sua porta. A abriu e deparou com os dois, Chaffee e Corey. Chaffee sorria horrivelmente. Havia algo disforme no sorriso, algo no rosto que pertencia ao nevoeiro dum pesadelo. Inger levou um momento para descobrir que o problema estava no rosto. A face estava inchada, meio arroxeada, a pele lustrosa e esticada. Desviou a cabeça e olhou a Corey, imaginando por que romperiam o sossego de sua noite.
Depois que todos foram à sala de estar, Corey encontrou o interruptor que inundou a tudo com uma claridade desagradável.
— O que aconteceu?, Corey.
— Inger... — A voz era sufocada, os punhos estavam cerrados. — Que deus-me-ajude agora, Inger. Não deverias ter feito o que fizeste...
— Digas a ela. — Ordenou Chaffee.
Corey estendeu o braço e tocou no braço dela.
— O machucaste, Inger. E poderia ter sido um ferimento muito grave.
— Diga a quem ela machucou. — Ordenou Chaffee.
— Ao mestre. — Disse Corey, os dentes cerrados. — Olhes o que fizeste com ele, Inger. Estás vendo?
— Me largues!, Corey. — Disse Inger.
— E agora digas a ela. — Acrescentou Chaffee. — Vamos, Corey, diga à senhorita Flood o que tem de fazer.
— Não te zangues comigo, querida. Depois desta noite não irei. Prometeu que nada mais haveria depois desta noite. Te deixaremos em paz. Nós dois. Mas tens de o fazer.
— Fazer o quê?
— Dar um beijo. — Disse Corey. — Sinto muito, Inger. Beijes o olho. O machucaste. Está realmente muito ferido. Beijes o olho, Inger!
A empurrava em direção a Chaffee, forçando o rosto dela a encontro do olho ferido. Chaffee estava sorrindo. Só que não era um sorriso mas uma máscara de morte, um risus sardonicus. Inger gritou e bateu em Corey, que tentou segurar suas mãos. Inger podia ver o sofrimento estampado no rosto dele. O detestava e ao mesmo tempo sentia pena. Corey conseguiu finalmente imobilizar os pulsos dela e estava gritando alguma coisa a Chaffee. Inger ficou inerte, enquanto Corey a conduzia ao sofá. Ela fechou os olhos e ouviu Corey dizer outras coisas a Chaffee, meio irado, meio apaziguador. Ela não abriu os olhos até ouvir Chaffee dizer:
— Muito bem, rapazinho. Já cumpriste teu dever.
Inger virou a cabeça e divisou Chaffee se encaminhando à porta. E Corey o seguiu. O escravo, obediente, cumprida a tarefa, acompanhava o amo. Saíram, deixando Inger sozinha.
?
Setembro passou e depois a maior parte de outubro.
Inger só teve notícia de Corey uma vez. Era uma carta, mal datilografada no papel timbrado do escritório. E dizia:
Inger
Sei que agora me odeias. Faz sentido dizer que eu te amo?
Os grilhões se rompem no domingo, 28 de outubro. Então ligarei a ti. E não te culparei por algo que possas me dizer.
Corey
Ela conhecera um homem com quem simpatizara no início de outubro. Era atraente e parecia ter dinheiro. Saiu com ela três noites numa semana e tentou a seduzir no fim de semana seguinte, embora sem muito empenho. Quando Inger começou a chorar, ele a levou a confessar que estava apaixonada por outro homem.
Ela tentara pensar em Corey como morto, desaparecido, alguém que fora embora a sempre. Mas sabia que nenhuma dessas coisas era verdade. Ele ainda estava perto e 28 de outubro, o dia da libertação, estava próximo. Inger disse ao homem que não o veria mais.
Na sexta-feira anterior ao dia 28 uma amiga chamada Sílvia foi à casa de Inger, a fim de lá passar o fim de semana. Seu apartamento estava sendo pintado e ela era alérgica ao cheiro de tinta. Ela passou a maior parte do tempo falando sobre um homem chamado Leonardo, que era casado, pedindo conselho a Inger, em voz queixosa, e ficando emburrada sempre que ouvia a opinião de que devia o largar.
Na noite de sábado, estimulada pelo álcool, Inger perdeu o retraimento normal e falou a Sílvia sobre Corey Jensen. A amiga ficou escutando, fascinada, seus próprios problemas românticos momentaneamente esquecidos. Concordou efusivamente com a conclusão de Inger:
— Terrível! Pavoroso! Podes estar certa de que ficas muito melhor sem ele!
Quanto mais falava a respeito de Corey, no entanto, quanto mais Sílvia concordava, mais Inger compreendia o quanto sentia saudade dele.
— Achas que telefonará? — Indagou Sílvia, de olhos arregalados. — Achas que terá essa coragem?
— Não sei.
Sílvia ainda estava dormindo, na manhã de domingo, quando Inger acordou e começou a olhar o telefone. Ainda não tocara às 2h, quando Sílvia foi embora, ansiosa em não perder um encontro vespertino com Leonardo.
Às 3h, Inger chegou à conclusão de que seu orgulho não valia o suspense. Ligou ao apartamento de Corey. O telefone estava ocupado e ela desligou apressadamente, na esperança de que fosse Corey tentando lhe falar. Nada aconteceu. Quinze minutos depois já discara o número tantas vezes que o dedo estava doendo. Se forçou a esperar meia hora antes de tornar a discar. O telefone, tocou muitas vezes mas ninguém atendeu. Inger se censurou por tomar uma decisão errada.
Vestiu uma capa pouco depois das 4h e saiu. Pegou um táxi para ir ao apartamento de Corey, tentando não pensar no certo ou errado, em orgulho ou vergonha.
Inger esperava ter de enfrentar a necessidade de acampar na porta dele mas teve sorte. Corey abriu a porta, carregando o telefone como se fosse uma valise.
— Espero que seja a mim que estás ligando. — Disse ela, jovialmente. — Ou já esqueceste que prometeras telefonar?
Ele retorceu o fio do telefone entre os dedos.
— Juro que eu ligaria a ti, Inger. Só que aconteceu um problema. Me dês só um minuto.
— Está certo. Eu não estava mesmo esperando que te jogasses a meus pés. Mas ainda estou com teu anel e precisava descobrir se deseja que o conserve.
— Claro que é justamente isso o que estou querendo! As palavras deveriam ter sido acompanhadas por um abraço, mas Corey ainda estava ocupado com o telefone.
— Te sentes, meu bem. Esperes só um minuto, enquanto dou este telefonema.
Ele pôs o telefone na mesa e discou.
Alô? Aqui é Corey Jensen de novo. Já sei. Já sei. Mas pensei que poderias ter sabido algo desde... — A voz se alterou, furiosa. — Mas trabalhas para ele! Está bem. Está bem... Basta dar meu recado.
Desligou, batendo o fone com toda força.
— O que foi?, Corey. Pareces não estar muito bem.
— Inger, faças o favor de esperar.
Estava discando outra vez, o rosto molhado de suor. Precisava fazer a barba, os fios brilhavam com a umidade.
— Marta? Sou eu, Corey. Sei que é muito difícil, mas viste Ray?... Não, não estou querendo insinuar algo. Queria apenas saber se o viste. Sabes se Ronnie está em casa? Não, não precisas te incomodar. Se não sabes onde Ray está, com certeza não vai aparecerá aí. Não posso falar agora. Já estou atrasado. Adeus, Marta.
Ele desligou. Antes que pudesse discar de novo, Inger interveio:
— Já chega!, Corey. Se não podes dispor dum minuto para mim entre telefonemas, então é melhor eu ir embora!
Ele reagiu suavemente à ameaça:
— Não entendes, meu bem. Estou tentando o encontrar. Não está no apartamento e a criada não sabe onde.
— Quem?
— Ray Chaffee. Sumiu! — Corey esfregou as mãos na calça, nervosamente. — Acho que o desgraçado está tentando fugir!
— Por causa da aposta? Por que venceste?
O telefone tocou e ele saltou para atender.
— Isso mesmo, sou senhor Jensen. É verdade, pedi a ligação. Alô? Senhor Valdez!... Isso mesmo. É urgente localizar senhor Chaffee. Acho que está embarcando num avião da Panagra hoje mas não sei qual é o vôo... É, sim, uma questão de vida ou morte... Uma pessoa de sua família está muito doente... Sei que é contra o regulamento, mas... Como?
Ele fez uma pausa, os olhos faiscando.
— Já entendi. Vôo 33, decolando às 6:30h... Não, um recado não adiantará. Poderá pensar que é um engano... Posso chegar ao aeroporto a tempo... Muito obrigado, senhor Valdez.
Desligou, exalando fúria e triunfo.
— É mesmo verdade! Está tentando trapacear indo à América do Sul!
— Não estou entendendo, Corey.
— A viagem em junho. Estava arrumando um emprego lá, preparando a fuga.
— Mas por quê? Ele perdeu tanto dinheiro assim?
— Tenho de sair agora, Inger. Preciso chegar ao aeroporto a tempo.
Se encaminhava ao armário mas Inger se postou na frente.
— Dinheiro? — Gritou Corey. — Achas mesmo que apostamos dinheiro?
— Mas apostastes!
— Só que nunca falei em dinheiro. Essa foi tua conclusão. E também não foi propriamente uma aposta. Foi uma troca, um acordo, uma barganha. Entendes agora?
— Corey!
— Agora pensa realmente que estou doente. Não é? Pois podes pensar o que bem quiseres. Mas uma coisa posso garantir, Inger: Não conseguirá escapar. Teve seu ano e agora terei o meu!
— Um ano? Está querendo dizer que é teu escravo agora, durante um ano?
— Isso mesmo, meu bem. senhor Chaffee pagará sua dívida. Me obrigou a pagar e agora é sua vez. Estou com o chicote na mão e terá de pular quando eu mandar, mesmo que eu tenha de o arrancar a força daquele avião!
Fez menção de seguir à porta e Inger o segurou no braço.
— Pelo-amor-de-deus!, Corey. Não faças isso! O deixes ir embora. Não podes fazer consigo o que fez contigo. Seria horrível demais. Não é humano!
— Pares com isso!, Inger. É uma longa viagem até o aeroporto e preciso...
— Corey, eu não poderia suportar outro ano assim!
— Mas será que não entendes que desta vez não será a mesma coisa? Desta vez é o escravo e eu o amo...
— Isso não faz diferença! Não há diferença entre as duas coisas! Eu não poderia me casar contigo nessa circunstância. Não poderia suportar! Não me casarei contigo, Corey!
Durante um momento a respiração dele se aquietou, os olhos perderam um pouco do brilho febril. Então disse:
— Sinto muito, Inger, mas não posso evitar. Nada posso fazer agora. Já é tarde demais.
Saiu rapidamente, fechando a porta. Inger se adiantou e tornou à abrir, gritando enquanto ele se afastava no corredor, a caminho do elevador, uma voz tão estridente como ela nunca imaginara que possuísse: — Vás logo! Podes ir! Vás procurar teu precioso escravo! Espero que sede mui felizes um com o outro!
Inger fechou a porta, sentindo que devia chorar, mas incapaz de produzir lágrima. E pensou:
— Aposto que serão mesmo muito felizes. Tenho certeza de que serão.
OS DENTES NO CASO
Carl Henry Rathjen
Ninguém desconfiava de que ele fosse um assassino. Era apenas uma parte da multidão, postada a alguma distância de McCabe, o chefe do departamento de polícia, de três homens, de Vista do Vale, enquanto aguardavam o início solene da escavação para construção da nova fábrica de processamento alimentício. Ele até acrescentou seus comentários aos gracejos dirigidos ao prefeito Bronson, que não realizaria a cerimônia com sua tradicional pá de placa de ouro e enfeitada com fita.
— Será que ninguém confia mais em ti com uma pá na mão?, prefeito.
— Acho que estás ficando mole de te sentares, na prefeitura, fazendo nada!
Sorrindo jovialmente, prefeito Bronson subiu na escavadeira. Se sentando, estendeu as mãos aos botões de controle, reluzindo. A caçamba da escavadeira se estendeu para cravar os dentes de aço na terra macia: Enquanto recuava, abrindo uma trincheira, McCabe percebeu que desenterrara ossos humanos.
— Esperes um instante!, prefeito. — Gritou McCabe. Atrás dele a expressão do assassino não estava diferente, exteriormente, dos outros rostos aturdidos que se inclinavam a diante, ansiosos, querendo ver mais de perto. Os olhos castanhos e a voz de McCabe assumiram jeito autoritário. Gritou o nome dum de seus guardas:: — Tratai de recuar! Knapperman, mantenhas todo mundo longe desta área!
Depois que a multidão estava sob controle, McCabe se adiantou. A escavadeira atingira o meio do esqueleto, desenterrando vértebras e costelas. Um osso pélvico estava parcialmente encravado na parede esquerda da trincheira. Disse o prefeito Bronson, a voz trêmula: — Não há sinal de roupa. Deve ser um índio, que já está enterrado aqui há mais de 100 anos.
— Está aqui há muito tempo. — Concordou McCabe. — Não há carne nos ossos.
Apontou à parede direita da trincheira, onde a terra caíra e expusera um maxilar, antes de acrescentar:
— Mas aquela placa dentária não sugere que a morte ocorreu há 100 anos. — McCabe falou a trás, sem virar a cabeça: — Knapperman, chames o médico legista. E depois faças um cordão de isolamento nesta área. Vasculhes tudo, procurando possíveis pistas, assim que ele acabar.
McCabe abriu o canivete e começou a remover a terra, cuidadosamente, até deixar completamente expostas as dentaduras superior e inferior. Não eram de plástico rosado, como as modernas. A cor básica era escura, quase como a terra, exceto pelo rosa para imitar as gengivas.
— Dentaduras vulcanizadas. — Murmurou.
Cautelosamente, McCabe descobriu mais uma parte do crânio. No frontal, logo acima e entre as órbitas dos olhos, encontrou um buraco de bala. Estava bem situado demais para ser considerado tiro acidental. E o fato do corpo ter sido enterrado também indicava que não fora um acidente.
— Aconteceu, provavelmente, há muitos anos. Alguém pode lembrar o desaparecimento inexplicado dum homem que usava dentadura diferente das que se fazem atualmente?
Se empertigando lentamente, McCabe olhou os rostos curiosos da multidão, particularmente os de meia-idade e mais velhos. Todos os olhos se encontraram com os seus.
Durante um momento todos os olhares na multidão foram vazios. E depois alguém mencionou um nome. Alguém mais comentou que o homem possuía dentes como os dum cavalo.
Mais recordações e discussões se seguiram. McCabe quase desejou não ter perguntado.
— Está bem. Está bem. — McCabe suspirou. Talvez pudesse ter uma noção da época em que acontecera. Se virou a Jess Parkinson, que vendera o terreno para construção da fábrica.
— Quando foi a última vez que araste esta terra, Jess?
— Nunca a arei, nos 20 anos em que me pertenceu. A usava como pasto. Às vezes revolvia um pouco a terra mas nunca arei de verdade.
— De quem era a terra antes?
— Não sei. Perguntes a ele. — Jess sacudiu o polegar em direção ao grisalho Verne Warner, que tinha uma agência imobiliária e um escritório de corretagem de seguro na cidade.
— Fui eu mesmo quem vendeu a propriedade a ele, Mac. — disse Warner. — Era parte dum espólio que estava sendo liquidado, tendo o banco como executor. Pertencera à família Hammond:
— Hammond? — Repetiu McCabe, tentando situar o nome. Warner sacudiu a cabeça.
— Foram todos mortos num acidente de carro. Foi antes de te mudares a cá com teus filhos, depois que tua esposa...
McCabe acenou com a cabeça tristemente, ao se lembrar, desolado, de que Joan fora a vítima inocente dum assalto a banco na cidade grande.
— Há quanto tempo Hammond possui este terreno?
— Tanto quanto posso me lembrar. — Respondeu Warner. — E olhes que já estou aqui há 40 anos.
Tornou a sacudir a cabeça, enquanto McCabe olhava a trincheira.
— Não, Mac, não foram eles. Os Hammond eram trabalhadores e respeitáveis, freqüentavam a mesma igreja que eu. Nunca soube que tivessem dito uma palavra mais rude a alguém.
Vários dos espectadores mais velhos assentiram. A esposa de Warner, Agnes, baixa, gorda e grisalha, interveio na conversa: — Os conheci muito bem. Imogen, a filha, foi minha melhor amiga. Eu seria sua dama-de-honra. Eram ricos e seria um dos maiores casamentos...
— Podes te lembrar se alguma vez araram este terreno? — Perguntou McCabe.
O prefeito Bronson se encarregou de responder:
— Então o esqueleto não estaria esperando que eu o desenterrasse.
McCabe se virou quando o carro do médico legista chegou. Atrás dele as pessoas recomeçaram a discutir.
— Não me importo com o que os outros possam dizer. Talvez aqueles ricos Hammond soubessem e por isso nunca araram este terreno.
McCabe foi interceptado pelo presidente da companhia de processamento alimentício:
— Quanto tempo esperas retardar o início da construção?, chefe.
— Até que eu tenha certeza de que disponho de todas as pistas possíveis para reconstituir o que aconteceu.
O executivo soltou uma risada.
— Depois de 20, 30, 40 ou mais anos? Por que simplesmente não tornas a enterrar o esqueleto e...
— Não há prescrição para homicídio. — Declarou McCabe abruptamente.
McCabe ficou esperando, impacientemente, enquanto Bigbee, o médico legista, cantarolava baixinho, examinando o esqueleto. Estava pensando se aquele caso seria mesmo tão antigo e sem esperança de solução como parecia. Bigbee finalmente se ergueu e se virou para o fitar.
— Há alguns fatores bem estranhos, chefe.
— O que descobriste? — Indagou McCabe. — Já posso mandar peneirar a terra ao redor?
Bigbee assentiu.
— Mas duvido muito de que encontres algo. Não vi resquício de roupa, como metais ou botões, que não entrariam em decomposição tão depressa quanto a carne. — Olhou a trincheira. — Eu diria que foi enterrado nu.
— Provavelmente como um recurso para evitar a identificação. — Concordou McCabe. — Mas não me digas que achas que era um índio, com essas dentaduras.
— Direi tudo o que penso, à minha maneira, se parares de me interromper. para começar, a estrutura dos malares é caucasiana e não índia. Homem. Não há indício de calcificação articular, artrite para ti. Portanto. Devia estar abaixo da meia-idade. E dependendo de testes no esqueleto, calculo que está enterrado aí ao menos há 30 anos. O tipo de dentadura também tende a confirmar esse fato. E dês uma olhada aqui.
Foi até a vala e pegou o maxilar inferior.
— Vejas esta mandíbula. Foi quebrada uma vez e o osso não consertou direito. Isso também reflete na gengiva, porque a dentadura inferior é ligeiramente torta. Se puder localizar o dentista que fez as placas, a deformidade poderia ajudar a identificar a vítima. — Bigbee soltou uma risada. — E agora, chefe, trates de cravar os dentes no caso.
McCabe embrulhou cuidadosamente as dentaduras. Jess Parkinson, parado perto, junto com outros espectadores, exibiu uma expressão de dúvida.
— Pode ter vindo do centro-oeste, como fiz. E já chegou com as dentaduras. Se for o caso, como esperas encontrar o dentista que...?
Aquele era o trabalho da polícia, pensou McCabe, se afastando. Todas as pistas, por mais vagas que fossem, deviam ser investigadas, na esperança de que uma levasse à solução do mistério. Seguiu na caminhonete oficial ao centro da cidade e encontrou, na rua Principal, um dos dois dentistas de Vista Vale, o jovem e ruivo doutor Collier, saindo ao almoço. Disse McCabe, entregando as dentaduras: — Doutor, eu gostaria que, assim que pudesses, me forneças uma descrição técnica destas dentaduras, prum boletim a ser enviado a todas as associações odontológicas do país.
O jovem dentista examinou as peças, curioso.
Essas peças vulcanizadas deixaram de ser usadas mais ou menos na ocasião em que me formei e assumi o consultório de doutor Schmidt aqui. Te ajudarei, é claro.
Mas por que não procuras também o velho doutor Schmidt, se não estiver pescando? Poderá dizer muito mais do que eu sobre este trabalho.
McCabe assentiu.
— Obrigado. Irei até sua casa e...
O gemido alto da sirene dos bombeiros, se elevando estridente, o interrompeu.
Relutantemente, McCabe foi obrigado a pôr o caso de lado. Um chefe de polícia de cidade pequena, carecendo de homens, tinha de ser e fazer todas as coisas. Teria de acompanhar os bombeiros voluntários para impedir que os curiosos atrapalhassem.
Chegou ao posto dos bombeiro no momento em que o chefe dos voluntários comunicava o local aos motoristas:
— Maple Grove, 5km a norte da estrada. A casa de doutor Schmidt.
McCabe ficou subitamente tenso. Talvez o caso não estivesse posto de lado.
Geralmente seguia os caminhões dos bombeiro mas dessa vez se antecipou, as luzes vermelhas piscando, a sirene estridente. Avançou rapidamente em direção à fumaça preta que subia a nordeste da cidade. Logo pôde ver a casa antiga, as chamas saindo em todas as janelas, do porão ao sótão. O estábulo adjacente, onde era guardado o carro do dentista aposentado, também se transformara num inferno de fogo.
Duas horas depois, preto de fuligem e recendendo a fumaça, McCabe voltou ao consultório do jovem doutor Collier.
— Não mais despacharei aquele boletim. Estou convencido de que foi doutor Schmidt quem fez aquelas dentaduras. Foi morto. Sua casa foi encharcada de gasolina e completamente destruída pelo fogo.
Doutor Collier ficou atordoado.
— Então o assassino ainda está aqui na cidade! Alguém viu...?
— Ninguém viu algo. Mas o descobrirei, mais cedo ou mais tarde. — McCabe limpou um pouco do suor fuliginoso do rosto — Quando assumiste o consultório, doutor, o que aconteceu com as fichas dos pacientes de Schmidt?
— Deixou tudo comigo. Estão guardadas aqui.
— Ótimo — McCabe baixou a voz. — Acho que o assassino não sabe disso. Portanto, nada fales a respeito das fichas.
— Claro. — Doutor Collier franziu o rosto. — Mas há várias caixas, Mac, talvez duas mil fichas dentárias, em ordem alfabética. Onde devo começar?
McCabe deixou o ar escapar dos pulmões, lentamente.
— E ainda terás de cuidar dos pacientes. Mandarei um homem ajudar a procurar e também ficar de olho nas coisas, pro caso do assassino calcular...
— Digas para proteger o assassino, se eu o descobrir primeiro. — Comentou doutor Collier, sombriamente. — Doutor Schmidt era um homem maravilhoso. Fez tudo o que era possível para facilitar meu começo na profissão.
McCabe voltou ao local onde o esqueleto fora encontrado. Knapperman acabara de peneirar a terra. Descobrira apenas um pedaço de chumbo distorcido.
— Estava dentro do crânio. Parece que era de calibre 22. Não será de muita ajuda.
— Vás te lavar e depois almoces. — Disse McCabe. — E vás em seguida ao consultório do doutor Collier. O mais depressa possível.
Experimentava um senso de urgência que não conseguia reprimir. De volta à sala da polícia, no prédio da prefeitura, se sentou a sua mesa, muito tenso. A busca às milhares de fichas dentárias poderia levar muito tempo. Poderia, no final, revelar a identidade da vítima. Até então os moradores da cidade tentariam recordar os velhos desaparecimentos inexplicados. Se alguém chegasse perto da verdade e o assassino desconhecido soubesse...
O punho de McCabe bateu violentamente na mesa. Precisava dalguma espécie de atalho. Revisou o pouco que sabia a respeito da vítima, o esqueleto. Homem. Idade entre 20 e 40 anos. Perdera todos os dentes. Quebrara um maxilar. Estava morto ao menos há 30 anos.
McCabe olhou o calendário, subtraindo 30 do ano. Seria mais ou menos 1940. O que acontecia na ocasião? O começo da segunda guerra mundial na Europa. Eua ainda não entrara. As indústrias de guerra prosperavam. Naquela manhã, no entanto, ninguém informara sobre um desaparecimento misterioso em volta de 1940.
McCabe tornou a olhar o calendário e subtraiu 40 anos. Em volta de 1929, início da década de 1930. McCabe ainda não nascera, mas podia lembrar os pais e avós falando sobre aqueles dias difíceis. A grande depressão. Não havia emprego. Fila de pão, a sopa de graça. Bancos fechando. Tempestades de areia arruinando fazendas e fazendeiros do centro-oeste.
Se levantando subitamente, saiu até seu carro e seguiu a rua Principal. Entrou no escritório de Verne Warner. O idoso corretor imobiliário repôs o fone ao gancho.
— Estava fazendo uma ligação interurbana ao filho de doutor Schmidt. Estará aqui amanhã. Foi um choque terrível para ele. Terrível para todos numa cidade tranqüila como a nossa.
O rosto de Verne parecia mais velho, pálido e preocupado, enquanto olhava na janela.
— Deixa um homem pensando qual de nós, veteranos, será o próximo, porque talvez saibamos algo. Tens progresso nas investigação?, Mac.
— Toda pista representa algum progresso, até prova em contrário.
McCabe se postou diante da mesa.
— Verne, como era a situação aqui em volta de 1930? Como foram os anos de depressão?
Warner fez uma careta ao recordar.
— Os preços dos cereais e do gado baixaram a quase nada. Fazendas eram vendidas para pagamento de imposto, as lojas na cidade fechavam porque não conseguiam obter crédito nem receber o que vendiam fiado aos moradores sem dinheiro. Mas por que perguntas? Tem alguma relação com o que se descobriu nesta manhã?
— É apenas um palpite. — McCabe hesitou um instante — Verne, nesta manhã defendeste os Hammond. Não quero discutir contigo mas talvez ajude saber mais alguma coisa a respeito deles. Eram ricos. Não é?
Warner assentiu.
— Tinham uma grande fazenda de laticínio. Só gado holandês{3}. Eram os maiores produtores do vale.
— E não sentiram a pressão do tempo difícil em volta de 1930?
— Ninguém escapou, Mac. Mesmo assim, creio que se pode dizer que não sofreram tanto quanto a maioria. E ajudaram muito as pessoas que estavam em situação pior. — Mesmo assim — insistiu McCabe —houve ressentimento porque se saíram melhor que a maioria? — Warner lançou um olhar furioso.
— Estás querendo te agarrar a qualquer coisa, Mac. No fundo, queres insinuar que alguém os provocou, o mataram e enterraram, a fim de manter a posição respeitável na comunidade. — Warner levantou as mãos, as deixou cair um instante depois. — Talvez não seja tão improvável assim. Quem pode saber? Mas parece muito difícil acreditar.
McCabe acenou com a cabeça, sombriamente.
— E sempre poderiam alegar legítima defesa, a menos que evitassem publicidade. — Suspirou. — De qualquer forma, Verne, obrigado pela ajuda.
— Ajudei nalguma coisa? — Indagou Warner, ironicamente.
?
McCabe saltou do carro e desceu a rua até o consultório de doutor Collier.
Piscou a um garoto de olhos arregalados que estava na sala de espera agarrado a uma mulher.
— Não será tão difícil como estás pensando, filho.
Desejaria poder dizer o mesmo em relação a seu próprio problema. Olhou inquisitivamente a recepcionista, que acenou com a cabeça em direção ao corredor.
Encontrou Knapperman folheando fichas empoeiradas, enquanto da sala mais adiante vinha o zumbido duma broca.
— Esse barulho me está deixando nervoso, com os dentes rangendo. — Resmungou Knapperman, que bateu numa pilha de ficha. — E essas coisas me deixam com dor de cabeça só de pensar em todos os problemas com os dentes que as pessoas podem ter.
McCabe sorriu debilmente.
— Talvez passes a se lembrar de escovar os dentes depois de cada refeição. — Ele apontou subitamente. — Ei, nem ao menos examinaste essa ficha!
— Mac, o Doe me disse para verificar a data da primeira visita do paciente. Se tem menos de 25 anos, posso esquecer.
— Desculpe.
— Foi nada. — Knapperman sorriu. — Vieste me ajudar?
— Estou procurando ajuda. — Tirou um lápis e um bloco de anotação do bolso.
— Podes me ajudar a fazer uma lista de todas as pessoas de meia-idade e mais velhas que reconhecemos no local nesta manhã. Tenho certeza de que o assassino estava lá. Tinha de estar perto para saber que encontramos as dentaduras. Foi por isso que imediatamente entrou em ação contra doutor Schmidt.
A lista ficou bastante comprida. McCabe levou o resto da tarde para investigar os nomes. Cada homem que entrevistou não estava na cidade há 30 anos ou mais ou então tinha um álibi pro momento em que doutor Schmidt fora morto. Com isso só restavam as mulheres na lista. Suspirando, McCabe resolveu ser mais meticuloso e recomeçou do princípio. Soube que muitas das mulheres estariam na sala da legião, preparando uma reunião social praquela noite.
Todas se concentraram em torno dele, querendo lhe oferecer uma fatia de bolo, um sanduíche, uma xícara de café. Aceitou o café mas teve muita dificuldade em as isolar individualmente prum interrogatório informal. Obteve respostas similares às que os homens deram. As mulheres não viviam ali há ao menos 30 anos ou mais, estavam no hospital tendo um filho ou fazendo uma operação, que queriam descrever meticulosamente. No final só restava um nome a conferir. Era estranho não a encontrar ali, pois se tratava duma ávida participante de todos os acontecimentos sociais. Já saía quando ela entrou, esfuziante como sempre.
— Desculpai o atraso, garotas, — gritou Agnes Warner — mas tive de arrumar o quarto de hóspede. O filho do pobre doutor Schmidt se hospedará conosco amanhã. Não é terrível o que aconteceu ao pai?
— Senhora Warner. — Interveio McCabe.
— Olá, Mac. Até pareces excitado. Mas não estamos todos, depois do que aconteceu hoje? Espero que descubras o patife que...
— Posso falar um momento a sós?
— Se não te importas que eu vá cuidando de minhas tarefas da festa enquanto conversamos.
— Claro que não me importo.
McCabe ficou esperando, com uma exibição exterior de paciência, enquanto ela se instalava numa mesa no canto. Outras mulheres encontraram motivo para ficar perto. McCabe tratou de falar em voz baixa: — Disseste, nesta manhã, senhora Warner, que conheceste os Hammond.
— Isso mesmo. Imogen e eu crescemos juntas. Éramos amigas inseparáveis, apesar das diferenças entre nossas famílias.
— Diferenças? — Indagou McCabe, a ajudando a arrumar os copos de papelão.
— Não é o que estás pensando, Mac. Tudo corria muito bem enquanto estávamos prósperos. Mesmo assim havia algo diferente nos Hammond. E quando o tempo difícil chegou partilharam o que tinham conosco, sem nos fazer sentir que era caridade.
McCabe assentiu, resignado. Era mais ou menos a mesma coisa que o marido dela dissera. Os ricos Hammond eram simpáticos e prestativos.
— Eu disse também que seria dama-de-honra no casamento de Imogen Hammond. Mas fiquei com a impressão de que o casamento não aconteceu.
O rosto de senhora Warner assumiu uma expressão sombria, enquanto despejava amendoim num copo de papelão.
— Isso mesmo. Imogen nunca mais foi a mesma. Ficou retraída, não queria ver as pessoas, nem a mim. Não porque ficaria embaraçada. Ninguém saberia, porque o noivado ainda não fora anunciado. Mas eu soube, porque sempre fora amiga íntima de Imogen até aquele momento.
McCabe manteve a voz calma:
— Por que o casamento não foi realizado?
— Bom... — Contraiu os lábios. — O tempo era difícil e o pai soube que Jack queria se casar com ela pelo dinheiro da família.
— Jack quem? — Insistiu McCabe, tenso.
— Jack Tilliman. Conhecera Imogen desde pequeno. Não apareceu aqui procurando trabalho, como aconteceu com Verne.
— Senhor Hammond o interrogou sobre o motivo para se casar com Imogen? Houve briga?
Senhora Warner sacudiu a cabeça.
— Não haveria cena, pois ninguém seria capaz de acreditar que Jack pudesse fazer isso.
— Não teria havido uma cena? Jack Tilliman não foi questionado?
— Não. — Senhora Warner suspirou, enquanto continuava despejando amendoim — Mas, no final de conta, acho que havia um fundo de verdade. Porque deixou Vista do Vale e mandou a Imogen um telegrama de Seattle. Dizia que lamentava muito mas que Imogen nunca poderia ser feliz a seu lado, agora que conhecia a verdade. Imogen se recusou a acreditar, mesmo assim. Ficou desolada, se afastou de todo mundo. Não saiu, nem para ser a dama-de-honra em meu casamento.
McCabe continuava controlando firmemente a paciência e o pensamento.
— Como o queixo de Jack foi fraturado? Como perdeu todos os dentes?
— Aconteceu quando tinha 19 anos. Um cavalo lhe desferiu um coice na cara e infeccionou. Teve de usar dentes postiços. Sendo muito jovem, era sensível a respeito e preferia manter segredo. — Parou de falar de repente, os olhos e a boca se arregalando. — Santo-deus! Não podes estar pensando que aqueles ossos encontrados nesta manhã...
McCabe se apressou em a interromper:
— Senhora Warner, eu agradeceria se não comentasses enquanto não houver certeza.
Hesitou por um instante, antes de indagar:
— Por que te mantiveste calada nesta manhã, no local?
— Porque não me ocorreu. Afinal, houvera aquele, telegrama de Jack, como se ele estivesse vivo. Achas mesmo...
— Não tenho certeza sobre os ossos. — Disse McCabe, esperando que seu rosto não denunciasse a mentira — A possibilidade acaba de me ocorrer agora. Não tinha pensado antes algo nesse sentido?
As feições rechonchudas e simpáticas de senhora Warner ficaram coradas.
— Quem não está falando e especulando sobre os Hammond e tudo o que aconteceu hoje? Acho que não deveríamos, pois não estamos a par dos fatos. Acho que não posso culpar Verne por ter me chamado de velha fofoqueira quando tentei puxar conversa a respeito, na hora em que foi almoçar, um pouco atrasado. Ele está bastante transtornado com essa história. Envelheceu 10 anos. Gostava muito dos Hammond. Depois que chegou aqui, procurando trabalho, antes de ficarmos noivos, muitas vezes saíamos os quatro juntos: Jack e Imogen, ele e eu...
— E não quer falar a respeito. — Disse McCabe. — Obrigado pelo favor, senhora Warner.
— Mas não te prestei favor!
Ela riu, oferecendo um copo de papelão cheio de amendoim. O pensamento de McCabe estava bastante confuso quando saiu ao carro.
Foi descendo lentamente na rua Principal. O escritório de Warner estava escuro mas havia uma luz acesa no consultório de doutor Collier, um pouco mais adiante.
McCabe entrou. O dentista e Knapperman, entre caixas de fichas dentárias, pareciam tão cansados quanto ele se sentia.
— Experimentes Tilliman, Jack. — Disse McCabe. Doutor Collier leu rapidamente os nomes na frente das caixas. Encontrou o nome procurado e removeu as caixas de cima. Folheou rapidamente as fichas e retirou uma. A examinou rapidamente e depois exclamou: — Bem na mosca! Knapperman descansou, acocorado.
— Obrigado por nos poupar todo o trabalho, Mac. Mas aonde iremos agora?
— Procurar Verne Warner.
— Posso te poupar a viagem. — Disse Verne Warner, do corredor escuro.
McCabe se virou rapidamente.
— Não te preocupes, Mac. — Acrescentou Warner, a voz cansada. — Sei que não posso dominar vós três.
Se encostou na soleira da porta, respirando fundo.
— Observei do escritório durante toda a tarde e princípio da noite, sentindo e sabendo que estavas te aproximando. Eu não deveria ter perdido a cabeça nesta manhã. Seria melhor que deixasse Fred Schmidt em paz. Afinal só poderia falar sobre os dentes de Jack. Ele... ninguém poderia adivinhar algo, não com todos os Hammond mortos.
— Com exceção talvez duma pessoa. — Sugeriu McCabe.
Verne Warner murmurou e sacudiu a cabeça.
— Agnes poderia adivinhar que foi Jack quem encontraste nesta manhã. Mas nada mais descobriria. Somente Imogen poderia adivinhar mas está morta. Deveria ter me lembrado de tudo isso. Não podia perder a cabeça.
McCabe respondeu a sua própria pergunta com outra:
— O que Imogen poderia ter adivinhado? Estavas esperando te casares com ela?
Verne Warner fechou os olhos.
— Era tempo difícil. Eu estava sem dinheiro, não tinha emprego que durasse. Seus pais tinham dinheiro. Pensei que sentisse algo por mim, mas acho que estava apenas me usando para se certificar de Jack, a quem conhecia desde criança. Jack e eu acabamos tendo uma discussão por causa dela. Ficamos cada vez mais furiosos. Saíramos para caçar coelho e...
— Deste um tiro nele e depois removeste tudo o que pudesse permitir a identificação. — Interveio McCabe. — Mas não sabias das dentaduras. O enterraste num dos campos dos Hammond, sabendo que dificilmente seria arado.
— Há mais de 30 anos. — Murmurou o corretor. — Esqueci onde o pusera, até que o desenterraram nesta manhã. Sabia que era ali, mas esperava...
Tornou a sacudir a cabeça.
— Há mais de 30 anos. Acho que Imogen nunca falou a Agnes a respeito de meu sentimento. Mas também não tinha do que desconfiar, depois que enviei o telegrama com o nome de Jack, de Seattle. E nada do que fiz adiantou. Ela parou de me ver, parou de ver Agnes. Nem foi a nosso casamento. Fiquei com medo, até Imogen morrer, de que retomasse a amizade com Agnes. E se elas somassem dois mais dois...
McCabe se sentia extremamente cansado.
— Acabei de conversar com tua esposa. Nada desconfia ainda.
— Eu torcia para que não desconfiasse. — Verne Warner fitou McCabe nos olhos. — Poderias deixar assim, Mac?
— Verne, cometeste dois assassínios. — Disse McCabe, falando bem devagar. — Talvez eu não pudesse fazer muita coisa em relação a Tilliman sem tua confissão. Mas serás levado a julgamento por ter matado doutor Schmidt.
Doutor Collier assentiu, sombriamente.
— Não, Mac. Não teu tipo de julgamento. — Murmurou Verner Warner. — Já me submeti a meu julgamento.
Respirando com dificuldade, levou a mão à barriga e começou a cair. McCabe o segurou, o ajudando a descer até o chão.
— Que veneno tomaste? Knapperman, chames doutor Coolidge.
— Não. — Balbuciou Verne Warner, a voz engrolada. — Tarde demais para ele. Mas Mac, tentes, por favor, por Agnes.
Uma e meia hora depois terminou uma conferência no consultório apinhado de doutor Collier. Além de McCabe, o dentista e Knapperman, lá estavam o prefeito, o médico legista e doutor Coolidge.
— Nunca se conhece direito as pessoas. Não é? — Comentou prefeito Bronson, suspirando. — Um cidadão eminente, esteio da igreja e...
— E Agnes. — Murmurou doutor Coolidge. — Feliz no casamento e nunca desconfiando. Será um choque e tanto.
— A morte, sob qualquer forma, é sempre um choque. — Disse McCabe. — Então estamos todos de acordo? Foi demais para Verne Warner, ajudando a esclarecer o caso?
— Agnes sabe que há algum tempo insisto para ele descansar. — Lembrou doutor Coolidge.
McCabe olhou, inquisitivo, a Doe Bigbee, o médico legista.
— No que nos diz respeito, os dois crimes estão solucionados. Divulgar os fatos só causará prejuízo a pessoas inocentes. Sendo assim... hum... Está certo. Declararei, publicamente, que o esqueleto encontrado nesta manhã não pode ser reconhecido. E quanto a doutor Schmidt...
McCabe interveio:
— Provavelmente estava enchendo o lampião com gasolina para sair numa pescaria. A gasolina pegou fogo de repente e aspirou o vapor. Quando os bombeiros chegaram a casa inteira já estava em chama.
Knapperman falou, hesitante:
— Conseguiremos manter todos os fatos em segredo, em benefício de senhora Warner?
Doutor Collier assentiu. McCabe presenteou Knapperman com um rápido sorriso.
— Quem não se mantiver calado poderá descobrir que o caso lhe proporcionou alguns dentes quebrados.
Rangendo os próprios dentes, mas não se sentindo muito cansado, McCabe saiu para transmitir a Agnes Warner a notícia de que seu marido sofrera um ataque cardíaco fatal.
A ESSÊNCIA DA JUSTIÇA
Hal Ellson
O caixão era simples, rematado na oficina de Carlos Martínez, sem enfeite, a madeira nua, pinho macio. A implacável luz solar o fustigava enquanto os homens o carregavam na rua miserável, pisando a poeira, as pedras e a luminosidade dispersa das cascas de tangerina murchando ao sol.
Um dia de fogo mas naquela terra de sol permanente era comum. Não mais que a morte, os pobres, nos barracos e cabanas de adobe, sofriam o flagelo com terrível freqüência. Os enterros eram comuns e todos do mesmo tipo. Um caixão de pinho simples pro falecido, quatro homens para o carregar e um pequeno grupo de gente acompanhando.
Uma vasta multidão acompanhou o caixão de Rosa Belmonte, a terceira garota na cidade a morrer violentada. Cachorros famintos, com as costelas expostas, crianças e mendigos, entre a multidão, emprestavam ao cortejo um ar carnavalesco que se diluía nos rostos sombrios dos adultos e no silêncio abafado sob o qual a raiva aguardava a erupção.
A polícia o pôde sentir, um fotógrafo de jornal o fixou com sua objetiva. O detetive Fiala estava consciente do fenômeno mas despreocupado com a multidão como tal. Seus olhos procuravam apenas um homem, o assassino, que podia estar espreitando ali, por sentimento de culpa ou disposição mórbida.
Nenhum rosto lhe atraiu a atenção, até que divisou a limusine, com a multidão se dividindo em torno. O chefe de polícia, José Santiago, estava sentado ao lado do motorista, o rosto estufado e moreno, óculos escuros escondendo os olhos azuis incongruentes, que pareciam pedras gêmeas e refletiam a natureza básica do homem.
Sem o uniforme poderia ser o homem que estou procurando, pensou Fiala, se virando e seguindo com a multidão soturna, que se recusava a tomar conhecimento da violência extrema do sol.
O funeral transcorreu sem incidente e a polícia ficou aliviada, o chefe Santiago satisfeito. Seu motorista o levou de volta ao prédio da municipalidade, onde ficava a prefeitura.
O telefone tocou no instante em que entrou na sala, acompanhado por capitão Torres. Atendeu, escutou um momento e depois dispensou capitão Torres, com um aceno de mão. Franzindo o rosto agora, falou com o interlocutor, Vítor Quevedo, prefeito da cidade e aquele que o fizera. Os dois eram, de certa forma, amigos mas a conversa foi rigorosamente profissional.
O assassínio de Rosa Belmonte, com o assassino solto, como acontecera nos dois casos anteriores, acarretara severas críticas à polícia, que refletiram em Quevedo, o expondo às maquinações dos inimigos políticos. Era essa a essência da queixa de Santiago, junto à exigência brusca de que fizesse algo depressa.
— Fazer o quê? — Perguntou Santiago.
— Encontres o assassino antes da meia-noite.
Atônito, Santiago hesitou, balbuciou algo incompreensível e finalmente conseguiu dizer:
— Mas, Vítor...
Quevedo o interrompeu rudemente:
— Estou ficando embaraçado, politicamente e de todas as outras formas. Se queres continuar chefe de polícia descubras o assassino. Se não, estarás liquidado.
Suando profusamente, Santiago desligou e se arriou na cadeira. Lentamente, as mãos trêmulas, acendeu um cigarro e dispersou uma nuvem de fumaça. O pensamento eram um caos, o rosto moreno parecia inchado a pique de estourar.
Mas, pouco a pouco, a agitação interior foi se reduzindo. Atrás dos óculos escuros os olhos frios se iluminaram, enquanto um rosto entrava em foco em sua mente.
Esmagou o cigarro, se levantou, abriu a porta, chamou capitão Torres e lhe deu a ordem:
— Prendas Manuel Domingo pelo assassínio de Rosa Belmonte.
As atividades criminosas de Manuel Domingo eram há muito conhecidas da polícia... mas assassínio? Capitão Torres franziu as sobrancelhas em surpresa.
— Tens certeza de que é o homem certo?
— Está duvidando de mim ou de minha fonte de informação? — Indagou Santiago, confirmando a autoridade e insinuando que o telefonema que acabara de receber fora a voz dum informante de confiança.
Capitão Torres corou e recuou até a porta, donde disse:
— Prenderei Manuel Domingo pessoalmente.
Às 9h daquela noite um céu negro ameaçava a cidade e os jacarandás se agitavam a um vento irregular que soprava das montanhas, onde os relâmpagos amarelados riscavam os céus vazios. Atrás do prédio da municipalidade, quatro bares estavam virados à praça, vozes elevadas emergindo de cada um.
A noite de sábado estava começando e os músicos se refestelavam nos bancos da praça, garotos descalços engraxavam sapato, vendiam rosa vermelha como sangue e branca como pomba, em bandeja de papelão, esquecendo Rosa Belmonte, como todo mundo.
Foi nesse cenário que capitão Torres chegou com três de seus homens, depois duma busca intensa e infrutífera em todos os pontos habituais do criminoso Manuel Domingo.
Capitão Torres estava convencido de que Domingo fugira da cidade quando seus olhos, por acaso, se viraram na direção dum banco em que dois garotos disputavam o privilégio de engraxar o sapato de detetive Fiala.
Concedendo um sapato a cada engraxate, Fiala levantou os olhos para confrontar capitão Torres e seus três homens.
Os homens eram inócuos, enquanto capitão Torres era um garotinho arrogante.
Só que não era essa sua atitude agora. Ele precisava de ajuda e Fiala, a quem desprezava e que o desprezava, poderia fornecer a informação de que precisava tão desesperadamente. Torres anunciou: — Estou procurando Manuel Domingo. Sabes, por acaso, o paradeiro?
Com um sorriso desdenhoso, Fiala acenou, com a cabeça, a um bar no outro lado da rua.
— Manuel Domingo está lá dentro. O prenderás?
— Pelo assassínio de Rosa Belmonte. — Respondeu capitão Torres, se virando em seguida.
Fiala continuou sentado onde estava. Meio minuto depois, Manuel Domingo passou a porta do bar, no outro lado da rua, acompanhado por capitão Torres e seus três homens. Todos os cinco atravessaram a praça e entraram no prédio da chefatura.
Contrafeito, Fiala jogou longe o cigarro e olhou o grupo de homem que saíra do bar no outro lado da rua. A ira ressoava em suas vozes, a notícia se espalhou rapidamente na praça: Manuel Domingo fora preso pelo assassinato de Rosa Belmonte.
Sob o céu negro e furioso uma multidão começou a convergir à chefatura de polícia. Mas era tarde demais para dar vazão ao sentimento, pois o breve interrogatório de Manuel Domingo já fora concluído. Protegido pela polícia, saiu à calçada e foi rapidamente introduzido num carro esperando.
Chefe de polícia Santiago e o capitão Torres embarcaram num segundo carro.
Com uma escolta de 10 motociclistas os dois carros partiram ruidosamente ao local do crime, no deserto, a vários quilômetros da cidade.
Os veículos não demoraram a o alcançar, os faróis ofuscantes dos carros e motocicletas focalizados numa iúca{4} alta ao lado da estrada. Fora ali que Luís Espina, que colhia fibra de planta do deserto, encontrara o corpo de Rosa Belmonte.
Quando Manuel Domingo saiu do carro o rosto assumiu expressão fantasmagórica, talvez por causa dos faróis, talvez por medo, estando no local do crime. O que quer que sentisse, nada disse. Parecia atordoado.
Uma ordem brusca de capitão Torres fez os guardas se espalharem num semicírculo, empunhando as armas, a fim de prevenir tentativa de fuga. Isso feito, capitão Torres foi avançando na beira da estrada, junto a Santiago e Manuel Domingo. Se postou ali, obedecendo a uma ordem, enquanto o prisioneiro e Santiago continuavam até a iúca.
Manuel Domingo se virou e falou em primeira vez desde que entrara no carro.
Estava apavorado, o céu negro parecia cada vez mais ameaçador, não confiava em Santiago.
— Me tires desta enrascada!
— Cales a boca, seu idiota! Isto não passa de rotina. Foste acusado.
— Quem me acusou? Digas quem foi!
— Cales a boca e prestes atenção.
Manuel Domingo obedeceu. Seu peito arfava, o queixo estava erguido. De repente, saiu correndo, numa tentativa de escapar. Calmamente, Santiago disparou da altura do quadril.
Domingo parecia estar correndo no ar. O peso do corpo o levou a diante, depois as pernas vergaram e se estatelou no chão do deserto.
Momentos depois Santiago estava postado por cima dele, disparando outro tiro, enquanto os demais se aproximavam.
A noite negra envolveu o cenário desolado, enquanto os veículos voltavam à cidade. Santiago olhou o relógio no painel e se recostou. Ainda era muito cedo, o problema já estava acertado. O prefeito não mais teria motivo para ficar embaraçado. Enquanto Santiago sorria a si mesmo, capitão Torres se virou e disse: — Oficialmente, sabemos agora que Manuel Domingo era culpado de assassinar Rosa Belmonte. Mas...
— Achas que não matou a garota?
— O senhor acha?
— Não.
— Então por que a tentativa de fuga?
— Eu lhe disse que não poderíamos o proteger da multidão, que eu daria cobertura para fugir, pois sabia que era inocente.
— Mas atiraste nele.
Santiago ajeitou um cigarro nos lábios.
— Não tive opção.
Acendeu o cigarro, enquanto o comboio prosseguia às luzes da cidade.
No início da manhã o corpo do assassino Manuel Domingo, nu, a exceção do lençol que cobria a parte inferior, estava estendido numa mesa comprida, sob uma árvore, numa pequena praça, perto do centro da cidade, para que todos vissem e se acautelassem. As moscas chegaram com o calor, a claridade trouxe as multidões.
Durante o dia inteiro os habitantes da cidade desfilaram junto ao cadáver. O corpo foi retirado ao anoitecer, sem ter alguém para o chorar.
O caso poderia ter acabado ali, enterrado com Manuel Domingo, se não fosse detetive Fiala, que tinha certeza duma coisa: Domingo não matara a garota. Com o assassino ainda solto, Fiala intensificou a investigação, que logo provou ser frutífera. Foi ao prédio da municipalidade e pediu para falar com prefeito Quevedo.
Foi informado de que o prefeito saíra para almoçar com vários homens de muita importância.
Obtendo o nome do restaurante, Fiala foi até lá, se sentou à mesa ao lado e se inclinou, dizendo, em voz baixa, para que somente Quevedo ouvisse: — Precisamos falar por um momento. Tenho um assunto que pode ser de grande importância pessoal para ti.
A atitude era tão solene que Quevedo prontamente assentiu. Depois que ele e seus companheiros terminaram de comer, o prefeito arrumou uma desculpa para permanecer no restaurante e foi se sentar à mesa de Fiala.
— Mas qual é essa questão tão importante que me diz respeito pessoalmente? — Perguntou ele, na maior ansiedade.
— É importante demais para ser discutida aqui.
— Neste caso, vamos a meu gabinete.
Fiala assentiu. Os dois se levantaram e saíram na porta. Poucos minutos depois estavam sentados frente a frente, nos dois lados da mesa de Quevedo, toda esculpida a mão. O prefeito ofereceu um cigarro. Fiala recusou e apresentou o caso, informando bruscamente que o chefe de polícia assassinara Rosa Belmonte.
— Uma acusação muito grave. — Disse Quevedo, empalidecendo. — Podes provar?
Fiala assentiu e relatou como fora procurar Luís Espina, o colhedor de fibra que encontrara o corpo da garota morta. Com uma sucessão de perguntas hábeis, conseguira fazer com que o velho acabasse revelando que testemunhara o crime.
— Se isso é verdade, por que Espina não se apresentou antes para fornecer a informação?
— Não podia porque não reconheceu Santiago no momento do crime. Sabia apenas que o assassino guiava um Cadillac azul e branco. Isso era significativo. Continuei o interrogando e deu uma descrição nítida do motorista, embora não fornecesse a identidade. Só chegou a isso depois, quando o pressionei. Confessou que presenciou o espetáculo da noite passada. Viu Santiago matar Manuel Domingo. Foi nessa ocasião que o reconheceu como o assassino de Rosa Belmonte.
Quevedo assentiu e disse:
— A palavra dum velho confuso. O depoimento não resistiria num julgamento. Além do mais, Domingos admitiu a culpa no local do crime, ao tentar escapar.
— Admitiu sua culpa? — Fiala sorriu e sacudiu a cabeça. — Esse era o único fato que eu sabia com certeza desde o começo: Que não era culpado. Manuel Domingo não poderia ter matado Rosa Belmonte. Não estava na cidade naquele dia. Sei disso porque o segui até São Rafael, na tentativa de o prender numa de suas atividades ilegais, o tráfico de marijuana. Ficou num bar em São Rafael até a noite mas seu contato não apareceu. Talvez soubesse que eu o seguira. Seja como for, a operação não se consumou. Voltou à cidade às 9h. Nessa altura Rosa Belmonte já estava morta.
Quevedo já estava convencido da veracidade da acusação de Fiala, mas ainda havia algo que não estava muito claro.
— Por que Santiago escolheu Domingo para vítima?
Fiala tornou a sorrir e esclareceu a questão.
— 1, — Disse, erguendo um dedo. — A reputação de Domingo era péssima, a acusação correspondia a seu caráter. 2, Santiago e Domingo eram sócios. Domingo controlava a zona do meretrício, com a ajuda de Santiago. Discutiram por causa de dinheiro. Santiago disse que Domingo o estava roubando. E provavelmente estava mesmo. Assim, Santiago achou duplamente conveniente o eliminar.
Quevedo assentiu mais uma vez. Estava tudo claro agora. Claro até demais.
Franziu o rosto, empalideceu. Se revelado, o ato terrível de Santiago ameaçaria sua própria posição. Apavorado, seus olhos se encontraram com os de Fiala. O detetive lera seus pensamentos e compreendia sua situação difícil.
— Claro que Santiago deve ser levado à justiça mas o prender o deixaria numa situação terrível.
Bastante abalado, Quevedo assentiu. Mas ainda estava alerta. A declaração de Fiala insinuava mais do que dizia.
— O que sugeres? — Indagou Quevedo.
Fiala passou a língua no lábio inferior.
— Fales com Santiago. Apresentes os fatos.
— E se os negar?
— Se isso acontecer, digas que será preso. Depois do que aconteceu... — Fiala fez uma pausa, dando de ombros. — não poderás garantir sua segurança contra a multidão. Tenho certeza de que entenderá.
— Entender o quê?
— O chames e verás.
Quevedo olhou o telefone e hesitou, dando a Fiala a oportunidade de se levantar.
— Tomarei um café. Estarei de volta daqui a pouco.
Deixou Quevedo sozinho para transmitir o terrível recado. Fiala voltou 10 minutos depois ao escritório do prefeito. Quevedo ainda estava transtornado. Nada disse. Fiala se sentou e estendeu a mão ao maço de cigarro. O telefone tocou nesse momento. Quevedo atendeu, escutou um momento, repôs o fone ao gancho e anunciou:
— Santiago acaba de se matar com um tiro.
Tendo previsto isso, Fiala se limitou a dar de ombros e comentar:
— Era óbvio. Não tinha opção.
Nessa altura Quevedo via Fiala sob uma nova luz. O homem era excepcionalmente esperto e o salvara de seus inimigos.
— Sou agora teu devedor. — Disse ele.
— Foi nada. — Murmurou Fiala.
— Claro que sou. — Insistiu Quevedo. — Além do mais, não tenho um chefe de polícia. Aceitarias o cargo?
Fiala sorriu e, para consternação de Quevedo, sacudiu a cabeça.
— Mas por que não? — Disse o prefeito. — Não estou entendendo. Penses no que significa ser o chefe de polícia.
— Nesta cidade significa ter muito poder... e o poder corrompe.
— Poderia te corromper?
— Sou feito de carne e osso. Talvez pudesse, embora eu duvide muito.
— Então por que recusas?
— Porque o trabalho não me interessa. É apenas isso. Nada mais.
Fiala se levantou e acendeu um cigarro, encaminhando se à porta. Ainda aturdido, Quevedo o observou em silêncio um instante, antes de dizer: — Mas deves querer algo. O que estou devendo?
A mão na maçaneta, Fiala se virou.
— Nada. Apenas sejas mais cuidadoso ao escolher o novo chefe de polícia.
UM FAVOR
Stephen Wasylyk
— Escutes, senhor Stoneman. — Disse a voz. — Soube que alguém está pagando um bom dinheiro para cuidar dum cara chamado Scott, que trabalha no aeroporto. Não me disseste que era teu amigo?
Meus dedos começaram a rabiscar e desenhar um crânio e ossos cruzados, no bloco de anotação. Era extremamente improvável que alguém quisesse matar Scott, mas a voz arquejante e pontuada de fungadela jamais errara.
— Digas quem, Fanhoso.
— Não sei. Te devo um favor e estou pagando. É só isso. Continues a partir deste ponto, cara.
O telefone ficou mudo. Me recostei na cadeira, os nervos do estômago contraídos. O veranico chegara à cidade, o sol convertia o nevoeiro perpétuo numa neblina dourada. Até o telefonema de Fanhoso, fora um dia sossegado e agradável.
Agora, eu tinha de entrar em ação depressa, mas me sentia como um cego solto de repente numa sala que não conhecia.
Um pombo pousou no peitoril da minha janela, esticou a cabeça em minha direção alguns segundos, concluiu que um advogado de aparência preocupada, na meia-idade, não era tipo que costumava distribuir milho e se afastou voando. O observei descrever uma curva graciosa para descer.
Há 22 anos, numa tarde ensolarada e nebulosa similar, eu mergulhara tão graciosa e estupidamente como aquele pombo. Jorge Scott abatera um ME-109 que estava em minha cauda, uma dívida que eu nunca tivera a oportunidade de pagar.
Se Fanhoso Grogan me devia um favor o mantendo fora da prisão, eu certamente devia outro favor a Scott por algo muito mais importante.
Apertei o botão de minha linha particular e disquei a Scott Flying, no aeroporto municipal. A voz de Scott estava divertida:
— A telefonista disse que és John Stoneman mas não posso acreditar. Conheci outrora um John Stoneman, mas há mais de um ano que não falo consigo. Acho que foi abatido a tiro por um marido irado.
— A mulher com quem te casaste não quer o marido se relacionando com um solteirão indecoroso. — O crânio e os ossos cruzados no bloco me fitavam. — Como vão as coisas, Scott? Alguma novidade?
— Não. A mesma rotina de sempre: Um dia após outro. Se o tempo está bom voamos. Se não está vamos até casa e fico me preocupando com o dinheiro que estou perdendo.
— Nada aconteceu de excepcional?
— O que chamas de excepcional?
A voz de Scott estava agora um tanto perplexa.
— Aconteceu na semana passada algo que nunca ocorrera antes?
— Aconteceu mesmo. Um idiota quis me comprar a companhia. Não há possibilidade. Passei 20 anos desenvolvendo a firma e só agora, que a situação está boa, posso me sentar e desfrutar o lucro sem muito trabalho.
— Quem queria comprar?
— Não sei. A oferta foi apresentada por intermédio dum advogado chamado C.J. Mathews, um homenzinho gordo e careca, de olhos astuciosos.
— Conheço o homem. Mais algo fora do normal?
— Tive lucro na semana passada, embora o tempo estivesse ruim.
— Não saias daí. Voltarei a telefonar a ti.
— Ei, esperes um pouco! Não podes ligar a mim uma vez por ano, fazer uma porção de perguntas estúpidas e depois desligar!
— Claro que posso. Escutes só.
Desliguei e depois chamei minha secretária.
— Me ligues a um advogado chamado C. J. Mathews.
Me recostei para pensar. Scott era um homem tranqüilo e popular. Um herói de guerra recompensado pela cidade, há muito tempo, com um arrendamento a longo prazo para operar seu serviço de vôo no aeroporto municipal. Um cidadão trabalhador e compenetrado. Um improvável candidato a ser assassinado.
O telefone tocou e me apresentei a Mathews como o advogado de Scott. Não estava autorizado a revelar o nome do cliente interessado na Scott Flying e a oferta fora retirada. Anotei mentalmente um ponto para Stoneman, sabendo que uma oferta legítima jamais seria retirada tão depressa.
O relógio na mesa passou das três e meia. Empurrei a cadeira a trás e me encaminhei à sala ao lado.
Mathews não podia me revelar quem era seu cliente, mas nada havia que me impedisse de descobrir por conta própria.
Bati de leve e abri a porta. O velho cavalheiro se virara à janela e ao sol quente, se refestelara confortavelmente na cadeira, cruzara as mãos sobre a barriga e acabara adormecendo. Bati em seu ombro. Um olho se abriu.
— Não podes provar, além duma dúvida razoável, que eu estava dormindo.
— Mas posso oferecer uma forte argumentação.
O nome era Martin Chetkos, o homem que me pegara diretamente na faculdade de direito e me ensinara tudo o que sabia sobre direito criminal, o que não era pouca coisa. Como recompensa por eu ter aprendido tão bem, me fizera seu sócio e me deixava cuidar de todo o trabalho, enquanto repousava seus 70 anos na confortável cadeira de couro e fazia crítica.
— C. J. Mathews, de Mathews, Crane etc. O culpes por isso. É um grande homem?
— É, sim.
— O cliente teria de ser importante para que procurasses pessoalmente um amigo meu, com uma oferta para comprar sua firma. Não é?
Os olhos de Martin Chetkos se estreitaram, brilhando de interesse.
— Seria razoável supor que se trata do cliente mais importante da firma, um homem chamado Bessinger. Tentou comprar a firma de teu amigo?
— É essa a pressuposição.
Falei do telefonema de Fanhoso Grogan e de minha conversa, via telefone, com Scott. Se empertigou e coçou o nariz, um gesto automático quando está satisfeito ou excitado.
— Creio que tua pressuposição é válida. Pegues teu chapéu. Meu motorista nos levará. Me recuso a andar nessa atrocidade estrangeira desconfortável e espalhafatosa que chamas de automóvel.
— Aonde iremos?
— Falar com Scott. Creio que está numa encrenca mas provavelmente não quererá te ouvir, já que é teu amigo. Mas me escutará e sempre me recuso a contar a mesma história duas vezes.
Durante a viagem de meia hora ficou sentado com um vestígio de sorriso no rosto, murmurando, em determinado momento, algo que parecia Tudo acontece a quem espera.
Chetkos foi quase rude no escritório de Scott. Se acomodou na cadeira dele, assumiu o comando da conversa, as mãos cruzadas sobre a bengala, os dedos tamborilando incessantemente. Fez um gesto a mim.
— Digas a senhor Scott por que estamos aqui.
Dei a informação e Scott riu. Chetkos ergueu um dedo encarquilhado.
— Não rias, senhor Scott. A fonte de senhor Stoneman é de confiança. Alguém tenciona te matar. Alguma vez já te encontraste com senhor Bessinger?
Scott sacudiu a cabeça.
— Penses bem, senhor Scott. Bessinger é um homem baixo, de cabelo preto e liso, olhos pretos e bem chegados, voz estridente. Parece ter tua idade, embora seja 20 anos mais velho. A roupa é sempre dum cinza-escuro.
Scott estalou os dedos.
— O cara da semana passada! — Olhou a mim. — Te lembras de que falei que o tempo estava péssimo? Estava tão fechado numa manhã que nada podia sair do solo. Mas ele queria voar a algum lugar, de qualquer maneira. Tentei explicar que não podia, mesmo que conseguisse encontrar a pista. Mas era como se eu estivesse falando a uma parede. Ficou dizendo, o tempo todo, que eu indicasse o preço que queria.
— O que disseste a ele?, senhor Scott.
Chetkos dava a impressão de que já conhecia a resposta.
— O que mais eu podia dizer? Falei que ele estava doido. Chetkos deixou escapar um longo suspiro.
— Eu sabia que devia ser algo assim. Te direi a respeito de Bessinger, senhor Scott. A família Bessinger tem uma longa história de distúrbio mental. O pai foi internado num sanatório e a mãe se matou quando ele ainda era pequeno. Ele cresceu com o apelido de Louco Bessinger. Um dia brigou e matou outro menino que o chamara assim. Foi considerado homicídio involuntário e acidental. A esposa morreu há 20 anos, em circunstância que nunca foi muito bem explicada.
O dia quente estava quase terminando, as nuvens bloqueando o sol. O ar na janela do escritório parecia subitamente frio.
— Houve muitas histórias a respeito dele, ao longo dos anos. — Continuou o velho, calmamente. — Nunca foram confirmadas, é claro. Contarei uma, já que a situação é similar. Bessinger e eu outrora pertencemos ao mesmo clube. Numa noite, no calor duma discussão sobre política, um homem chamou Bessinger de maluco. Poucos dias depois recebeu uma oferta para vender sua companhia. Era tão atraente que não podia recusar. Mas jamais recebeu toda a quantia acertada. O comprador era Bessinger. Se recusou a pagar, obrigando o homem a o levar ao tribunal. Era justamente o que Bessinger queria. Podia se dar ao luxo de sustentar uma batalha judicial durante anos e foi o que fez. O homem finalmente ganhou o julgamento, cinco anos depois mas foi morto na noite seguinte, por um assaltante, quando atravessava um estacionamento.
— Estás querendo me dizer que esse homem sai matando as pessoas que o chamam de maluco?
Scott estava obviamente cético.
— Estou dizendo apenas que acontecem coisas às pessoas que chamam Bessinger de maluco.
— Como consegue escapar impune?
— Planejamento e dinheiro. — Respondeu Chetkos. — Senhor Stoneman te poderá dizer que há uma grande distância entre suspeita e prova.
— Ora, senhor Chetkos, se o que dizes é verdade, ele seria responsável por muitos assassínios. Acho isso muito difícil de acreditar.
— Não falei que era necessário que Bessinger matasse essas pessoas. Tenho certeza de que na maioria das vezes se contentou em as arruinar. Mas mesmo que as tivesse matado, isso não deveria te espantar. Costumas ler jornal. Sabes que houve caso em que alguém, sem motivo aparente, matou seis ou oito pessoas inocentes, às vezes até uma dúzia. Bessinger é tão diferente assim?
Scott sacudiu a cabeça.
— Ainda não posso acreditar.
— Examines teu caso, senhor Scott. Acreditamos que Bessinger tenciona mandar te matar. Contudo não formulou ameaça aberta, não efetuou ato para te fazer desconfiar. Suponhamos que te acontecesse um acidente. Quem o poderia ligar a um homem que te falou apenas uns poucos minutos, um homem cujo nome nem sequer sabias?
Scott nada respondeu. Disse Chetkos, gentilmente:
— Estás vendo? Agora acreditas em mim.
— O que devo fazer? O procurar e pedir desculpa? Chamar a polícia?
— Nenhuma das duas coisas. Um pedido de desculpa seria ignorado. Além do mais as engrenagens já foram acionadas. A polícia não pode ajudar, pois nenhum crime foi cometido até agora.
— O homem deveria ser internado num manicômio. — Murmurou Scott.
— Há 40 anos, senhor Scott, que eu e uns poucos outros procuramos alguém para proporcionar o motivo e assinar os documentos.
— E por isso devo me apresentar como um pato para ser abatido numa galeria de tiro-ao-alvo? — Comentou Scott. Chetkos se virou a mim.
— Posso presumir que teu cérebro analítico já está em funcionamento?
— Até certo ponto. — Respondi. — 1º: Se Bessinger contratou alguém, as chances são de que tenha determinado que deve parecer um acidente. Não quereria um homicídio ostensivo e a conseqüente investigação. 2º: Mesmo que fosse lógico fazer Scott cair durante um vôo, há três problemas nisso. Ele precisaria dum especialista, a administração federal de aeronáutica se envolveria e, quase certamente, a cidade ficaria muito interessada no caso, já que Scott opera dum prédio municipal. Creio que podemos excluir tudo acontecendo aqui ou relacionada a vôo, pois seria perigoso demais para Bessinger. 3º: A outra base fixa da qual Scott opera e onde pode ser sempre encontrado é sua casa. Não creio que assassino em potencial disponha de tempo ou vontade para seguir Scott em toda parte, esperando a melhor oportunidade. Portanto, eu diria que procurará Scott em sua própria casa. Quarto, uma projeção lógica seria a de que tentará o mais depressa possível, já que não há sentido em esperar. Talvez mesmo nesta noite.
Parei um instante para respirar e depois rematei:
— Achas que foi uma análise penetrante?
— Superficial no máximo. — Disse Chetkos. — Pessoalmente, não creio que será nesta noite. Tanta pressa não é característica de Bessinger.
Ele se levantou, acrescentando:
— Não vejo motivo para minha presença continuada. Sugiro que senhor Stoneman passe esta noite em tua companhia, senhor Scott. Tomará todas as precauções que se tornarem necessárias. Amanhã providenciaremos uma proteção mais profissional.
Se virou a mim.
— Sempre esperei que a oportunidade de deter Bessinger chegasse enquanto eu ainda era bastante jovem para aproveitar plenamente. Mas terás de me substituir agora. Não confies nalguém. Bessinger não sobreviveu tanto tempo por ser indiferente ou estúpido.
O acompanhei até o carro. Chetkos parecia cansado, as rugas se aprofundavam em seu rosto. Comentei:
— Podemos usar o mesmo plano que elaboramos no ano passado, em circunstância similar, se houver necessidade. Podes dar um jeito para que meu revólver seja enviado à casa de Scott? Estou ficando velho presse tipo de coisa. Precisarei dalgum apoio sólido.
Os olhos cansados me sondaram.
— Tens certeza de que poderás controlar a situação? Sei que tens talento à violência mas eu preferia que não o usasses para satisfazer meu próprio desejo de acabar com Bessinger. Podemos levar senhor Scott a minha casa nesta noite e arrumaremos um guarda-costa amanhã.
Pensei na minha dívida antiga com Scott.
— Estou fazendo isso por mim. Se fosse qualquer outro que não Scott, a firma de advocacia Chetkos e Stoneman se comportaria como tal, não como detetives amadores.
Soltou uma risada desdenhosa.
— Amadores. Não me agrada pensar que algum empreendimento a que eu possa estar associado seja mesclado de amadorismo.
O observei partir. Em cima um bimotor descia. Alcançou a pista, deslizou suavemente, diminuiu a velocidade, taxiou em direção a Scott Flying, entrou na fila. O filho de Scott saltou, obviamente voltando até casa dum vôo fretado.
Meia dúzia de pessoas estavam debruçadas na cerca de arame, ao crepúsculo que se adensava, observando os aviões. Uma delas olhou a mim, deixou a cerca, se encaminhou a um carro e foi embora. Algo era vagamente familiar na maneira como o homem se movera.
Eu ainda estava tentando o situar quando entrei no escritório de Scott.
— Estamos com sorte — comentou Scott.
— É uma declaração irônica, se ainda sou capaz de reconhecer essas coisas.
— Carol não está na cidade. Só voltará amanhã na noite.
— Tens razão. Isso torna tudo mais fácil. A última coisa de que precisamos é de tua mulher fazendo pergunta.
Um rapaz alto, de 20 anos, passou a porta. Scott acenou a ele.
— Deves estar lembrado de meu filho Bill.
Estendi a mão.
— Tinha 15 anos e era muito menor na última vez em que o vi.
— Como vais?, senhor Stoneman.
O aperto do garoto foi superficial, os olhos permaneceram frios. A opinião que tinha a meu respeito era, provavelmente, tirada da mãe. Disse ao pai: — Sairei. Angie e eu temos um encontro e não voltarei a casa depois. Ficarei em sua casa, a fim de não ter de fazer a longa viagem de volta.
— Está certo — disse Scott. — Precisas de dinheiro?
Uma sombra se insinuou no rosto do garoto, que disse, bruscamente:
— Não. Voltaremos a nos falar na manhã.
Me certifiquei de que já se afastara antes de comentar a Scott:
— Estás tendo problemas consigo.
Scott assentiu.
— Desde que essa tal de Angie e mais duas amigas alugaram um avião para voltar à universidade, na primavera passada, faz o que quer com Bill.
— Fala como se não gostasses dela.
— E não gosto. Não sou exatamente pobre, mas em comparação com seu pai não passo dum indigente. O garoto está fora de sua classe. Estava drenando meu recurso tentando acompanhar o ritmo dela. E tive de pôr um freio na coisa. Tentei explicar que se ela fosse uma mulher conscienciosa não gastaria tanto o dinheiro do namorado. Mas ele não encara a situação desse jeito. Assim sou o sovina no caso. Mas o que faremos agora? Um assassino profissional está supostamente atrás de mim e tenho um advogado como guarda-costa. O que tencionas fazer? Jogar teus livros de direito nele?
— Nunca se sabe. — Sorri. — Mas, no final, é o que pode acontecer. Jantaremos e depois iremos a casa.
Trancamos cuidadosamente a casa de Scott, fechando as cortinas. Só uma janela, num quarto no primeiro andar, ficou destrancada. Eu queria que alguém tentando entrar na casa usasse aquela janela, pois armara um alarme anti-ladrão improvisado: Algumas tachas e um barbante comprido levando a um papel no chão do escritório de Scott. Se a janela fosse levantada, o papel seria deslocado e Scott e eu poderíamos chegar lá mais depressa do que alguém conseguiria entrar.
O motorista de Chetkos entregara um embrulho, contendo meu magnum 44, de cano curto. Scott olhou, aturdido, a arma.
— Por que precisas desse canhão?
— Intimidação. — Examinei a arma e cuidadosamente baixei o cão da arma a uma câmara vazia. — Um dia um amigo, na polícia, me disse que havia duas armas que um homem experiente nunca desafia a curta distância: Uma espingarda de cano cortado, pois é praticamente impossível errar o alvo, e um revólver de grande calibre, pois a vítima é derrubada mesmo que atingida apenas de raspão. Quando se dispara esta arma, é sempre para valer. Espero não ter de usar.
Preenchemos as horas com uma conversa sobre o tempo em que voáramos juntos e nos anos transcorridos desde então. A conversa minguou quando o relógio passou de meia-noite. Pouco sono na noite anterior acabou me fechando as pálpebras. Fiquei parado logo abaixo da vigília, cego mas não surdo, ouvindo sons familiares, sons amistosos, nenhum prenunciando alguém tentando entrar na casa.
Scott se arriou na cadeira atrás da mesa, olhando fixamente o papel, seu horário regular como homem casado proporcionando mais resistência ao sono. Mergulhei num sono um pouco mais profundo, um mundo de sonhos, em que observava Scott, Chetkos e a mim desempenhando nossos papéis, Scott se recusando a acreditar e eu lhe gritando que Chetkos sabia o que fazia e que 20 anos de prática na justiça criminal me ensinaram que pessoas como Bessinger podiam existir, que não hesitavam em contratar alguém como Deeker Jensen.
Acordei abruptamente, trazendo o nome do sonho, agora sabendo por que me parecera familiar o homem que eu vira naquela tarde, encostado na cerca, perto do escritório da Scott Flying.
Deeker Jensen. Eu o vira uma vez, apontado num bar no centro. Um homem para se contratar. Um profissional caro, perfeito para alguém como Bessinger.
Não havia motivo razoável para que Deeker Jensen estivesse naquela cerca, a não ser que fosse para vigiar Scott. Liguei a Chetkos e transmiti a informação, que disse: — Podes deixar, pois não esquecerei se algo acontecer.
— É melhor fazer algo mais.
Scott gesticulou freneticamente nesse momento, apontando ao papel se deslocando lentamente no chão. Falei baixinho:
— Lá vamos nós. Estás pronto?
Ouvi um estalido, quando Chetkos ligou o gravador.
— Vão em frente.
Ajeitei o fone no gancho, sem cortar a ligação. Scott e eu avançamos nos tapetes grossos, em direção à janela do quarto. Se ainda restava dúvida em Scott, agora se dissipou, a convicção acentuada pelo rosto contraído e duro, na penumbra.
Ouvimos a janela deslizando a cima e o suave estalido quando a veneziana foi aberta. Um gato miou subitamente na noite silenciosa, um barulho que me congelou o sangue e fez o coração palpitar. Amaldiçoei todos os gatos que nasceram desde o princípio dos tempos.
A cortina se avolumou quando alguém passou ao lado de dentro da janela.
Calculando onde estava a cabeça, bati com a magnum e puxei a cortina ao lado. A arma estava levantada, para bater de novo, se fosse necessário. O ar da noite entrou no quarto, bastante frio em contato com meu rosto suado. Estava arriado no peitoril, imóvel. O agarrei pela gola e o levantei.
Mesmo na penumbra, não foi difícil reconhecer Bill Scott.
Scott me presenteou com algumas palavras seletas, enquanto eu o ajudava a carregar o garoto ao escritório e o acomodar numa poltrona confortável.
— Poderias o ter matado. — Disse Scott, furioso. Sacudi a cabeça.
— Não com aquela cortina. Mas se tem o hábito de entrar furtivamente nas janelas, ainda acabará sendo morto.
Eu estava parado atrás da poltrona quando o garoto se remexeu, olhou o pai e disse:
— Seu velho idiota! Precisavas me quebrar a cabeça só porque esqueci a chave? Se ele fosse meu filho eu lhe teria arrebentado a cabeça para valer.
— Não foi ele. — Intervim. — Fui eu.
O garoto se virou bruscamente, segurou a cabeça, gemeu. Sacudiu o polegar para mim.
— O que ele está fazendo aqui, agredindo as pessoas desse jeito?
Scott olhou a mim com uma expressão inquisitiva. Sacudi a cabeça. E falei:
— Estávamos conversando sobre o velho tempo. Ouvi alguém entrar furtivamente na janela e achamos que era melhor não correr risco. Como poderíamos saber que eras tu? Não deverias passar a noite aqui. Não é? Por que voltaste a casa?
— Se achas que é de tua conta, Angie e eu tivemos uma briga e resolvi não passar a noite lá. Algo errado nisso?
— Estás te sentindo bem?, filho. — Indagou Scott, gentilmente.
— A não ser pela dor de cabeça disse, asperamente. — Me servirei um drinque.
— Um drinque só contribuirá para piorar a dor de cabeça. — Adverti.
— Cales essa boca, Stoneman! Não tens de te meter aqui!
Se me olhara com desdém naquela tarde, o olhar furioso que me lançou agora estava impregnado de ódio.
— Por que não? — Perguntei suavemente. — Que diferença isso faz para ti?
Se virou rapidamente, empunhando um revólver de cano comprido, com um silenciador na extremidade.
— Esta é a diferença. Agora terei de matar a ti também.
Scott, o sangue se esvaindo inteiramente do rosto, os olhos sombrios, fitou o filho, aturdido. Eu daria qualquer coisa que possuía no mundo para alterar aquela situação, para fazer com que fosse Deeker Jensen quem passara naquela janela.
— Calma!, garoto. — Murmurei. — Os filhos não saem matando os pais. Te importas de me explicar por que a idéia te ocorreu? Deve ao menos isso a ele.
Os olhos do garoto se deslocaram, irrequietos. O suor escorria no rosto.
Convivendo com a idéia, se obrigara a acreditar que seria fácil. Mas encontrar nós dois ali o deixara completamente transtornado.
— É por dinheiro?
Lhe joguei as palavras gentilmente. Não seria necessário muita coisa para o fazer entrar em ação. Respondeu , a voz rouca:
— Isso mesmo: Dinheiro. O testamento deixa a companhia para mim. Eu a vendo. Só isso.
— Não é tão fácil assim vender uma companhia.
— Já tenho um comprador.
— Aceites a palavra dum advogado, garoto. Nada tens enquanto não estiver no papel e assinado.
— Tenho a palavra do homem.
— Nada tens. — Insisti, incisivamente. — O levarás aos tribunais se mudar de idéia? Dirás que mataste teu pai porque o homem prometeu que compraria a companhia e depois recuou?
— Não há motivo para desistir. — Declarou o garoto, desdenhosamente. — Pode comprar a Scott Flying com os trocados que leva no bolso.
Eu precisava arrancar o nome do garoto dalguma forma e naquele ritmo ficaríamos ali durante a noite inteira.
— Esqueça, Bill — Falei suavemente. — Não matarás alguém.
O garoto sorriu, tenso.
— Ainda estou com a arma.
— Não te mexas, garoto. Apenas olhes a baixo, ao longo da poltrona. Encontrarás um magnum 44 apontado a tua barriga. Se prestares atenção descobrirás que está engatilhado, pronto para disparar. Se teu dedo tremer posso disparar. Não há possibilidade de me venceres. E esta arma arrancará uma parte considerável de tua anatomia, não importa onde acerte.
— Podes errar — Balbuciou ele, trêmulo.
— Não é provável. Mas mesmo que isso aconteça, aquela linha telefônica aberta te enforcará.
Os olhos do garoto se arregalaram quando viu que o fone não estava direito no gancho.
— Uses a cabeça. A idéia era matar teu pai, dar a impressão de que foi um assalto, descobrir o corpo na manhã, com o falso álibi de que estavas na casa de tua namorada, se fosses capaz de fazer tudo isso, o que duvido muito. Mas agora está tudo perdido e é melhor desistires.
Scott não se mexera, o choque ainda o pregando ao chão. Os músculos dos maxilares do garoto se contraíram. Suspendi um pouco o magnum. Os ombros dele vergaram, ele largou o revólver.
Respirei fundo, baixei gentilmente o cão da arma, soltei o gatilho.
— Não querias realmente o matar. — Murmurei, gentilmente. — É preciso mais do que dinheiro para alguém como tu. É preciso paixão, ódio ou raiva, mas nada disso tens com a intensidade suficiente. A garota está te puxando num lado e 20 anos também puxam noutro. Se queres mesmo o dinheiro tanto assim, sabes muito bem que venderia a companhia e te daria até a última moeda. Foste tolo demais durante uma noite. Mas agora me digas quem te deu a idéia.
Houve um silêncio prolongado, até que o garoto finalmente murmurou: — Bessinger.
Me adiantei e levantei o fone, perguntando a Chetkos:
— Gravaste tudo?
— Até a última palavra. Mas não adiantará. Qualquer garoto que cogita matar o pai está obviamente precisando dum psiquiatra. Assim, nenhum júri aceitará a palavra dele contra um esteio da comunidade como Bessinger. Como soubeste que era o garoto?
— O acertei na cabeça quando estava entrando na janela. E senti o revólver quando o carregamos a cá.
— Fantástico. Bessinger possui um talento excepcional para escolher o homem certo. Como achas que Jensen entrará na cena?
— Acho que foi pura coincidência.
— Não fiques tão certo assim. Pode ter contratado Jensen pro caso do garoto falhar.
Corri os olhos na sala. Scott se refugiara atrás da mesa e estava acendendo um cigarro, as mãos trêmulas. O garoto não se mexera. Tive a impressão de que nem sabia onde estava.
— Deixarei os dois aqui resolverem seus próprios problemas, se não te incomodas. Scott precisará dum médico pro garoto, e não quero atrapalhar.
— Minha única preocupação agora é com Jensen. Deixei escapar um suspiro.
— Está bem. está bem. Se eu conseguir ficar acordado tempo suficiente darei uma olhada em torno da casa, só para te agradar.
— Boa idéia. Podes não ser o melhor advogado do mundo mas darias um ótimo policial.
Sorri e disse para desligar. Destranquei a porta do fundo, deixei que meus olhos se acostumassem à escuridão noturna e comecei a contornar a casa silenciosamente, me sentindo ridículo. Não estava brincando ao dizer a Chetkos que estava ficando velho demais àquele tipo de coisa. Lutar com palavras era muito mais fácil e menos perigoso. Parei no canto da casa. A luz das estrelas mostrava o caminho curvo que terminava na rua. A simetria dos arbustos nos dois lados interrompida por uma sombra mais escura, no meio indefinida, a cerca de 10m de distância. Me agachei, apoiei o magnum na casa, mirei o vulto da melhor forma possível e chamei, cautelosamente: — Jensen?
O vulto se mexeu, um dedo amarelado apontou a mim, uma bala ricocheteou na casa de pedra, sobre minha cabeça.
Hesitei um momento. A última coisa que eu queria era disparar o magnum naquela rua residencial. Se eu errasse não havia como saber onde a bala poderia parar.
Jensen resolveu o problema para mim. Outra bala sussurrou sobre minha cabeça, alguns centímetros mais baixo dessa vez. Soltei um gemido e se adiantou para terminar o trabalho. Me comprimi contra a parede, o deixei percorrer a metade da distância e depois murmurei: — Já chega!
Ele caiu, atirou outra vez, se agachou. Foi nesse instante que disparei. O magnum explodiu sonoramente, o balaço o arrancou do chão. Pela maneira como caiu compreendi que não precisava me adiantar para verificar o que acontecera.
Me levantei lentamente, me sentindo nauseado, recordando agora: Jensen deixara o aeroporto depois que o jovem Scott desembarcara do avião. Depois de ver o homem que devia liquidar. Ao que eu sabia, o próprio Scott não deixara o escritório.
Passei por Scott na porta e fui transmitir a informação a Chetkos, furioso.
— Ele tencionava matar os dois. Pensamos que Grogan estava falando sobre Scott, mas na verdade ele falava sobre o filho. Percebes agora como aquele maluco formulou o plano? Se o garoto matasse Scott e Jensen matasse o garoto, seria o ideal. Se o garoto não conseguisse chegar ao fim Bessinger ainda puniria Scott, fazendo com que Jensen matasse o garoto. Não podia perder.
— Mas perdeu. — Disse Chetkos, gentilmente. — Scott e o garoto ainda estão vivos.
— Mas claro que não perdeu! — Gritei, bruscamente. — Os dois terão de viver com o conhecimento de que o garoto tentou matar o pai. Chamas isso de perder?
Chetkos suspirou.
— Talvez não. É melhor desligares. A polícia estará aí a qualquer momento. E precisarás de minha presença para confirmar tua história. Não demorarei.
Pus o fone no gancho, sentindo o choque e o desespero ainda estampados no rosto de Scott. E me perguntei se realmente lhe prestara um favor ao salvar sua vida. Sabia agora que nunca sossegaria enquanto não agarrasse Bessinger, dum jeito ou doutro.
A VÍTIMA DO ANO
Jack Ritchie
— Gostaríamos de te assassinar. — Disse Freddie Thompson.
Eu não esperava a honra e me senti lisonjeado. Mesmo assim encenei resistir.
— Não sei realmente se posso dispor de tempo.
— Não será necessário mais que poucos momentos de teu tempo, professor.
Professor Harding e eu estávamos empenhados numa partida de xadrez quando Freddie batera à porta de meu aposento na universidade. Ele representava o comitê designado para promover o assassínio. Harding acendeu o cachimbo.
— Qual a arma que tencionais usar em professor Ranier?
— A maioria de nós prefere cortar a garganta. — Disse Freddie. — Mas depois nos lembramos de que uma faca foi usada para liquidar professor Elbert no ano passado. Não queremos repetir. Decidimos que um revólver serviria perfeitamente.
— E quando serei assassinado?, Freddie. —Freddie usava lentes muito grossas e seus olhos penetrantes eram quase tão grandes quanto os óculos.
— No futuro próximo, professor. Talvez amanhã, talvez depois de amanhã. Preferimos que o momento exato seja surpresa. Achamos que, se souberes de antemão, podes te sentir tentado a... como podemos dizer... bancar o canastrão.
— Eu não faria isso. — Protestei, irritado.
— Mesmo assim — insistiu Freddie — preferimos que seja surpresa.
Todo ano a última turma de direito de nossa universidade encena um falso assassínio e um falso julgamento. O assassínio é, geralmente, cometido na presença de tantas testemunhas espantadas e insuspeitas quanto possível. O princípio é mostrar aos estudantes, através de julgamento, que o depoimento de testemunha visual nem sempre merece confiança. No ano passado, por exemplo, professor Elbert foi apunhalado quando os alunos estavam trocando de roupa no ginásio. O assassino, como sempre, é o que, parece, conseguiu escapar do local mas foi preso e levado a julgamento. O incidente foi testemunhado por 28 alunos e três professores. Não chegou a haver exatamente 31 descrições diferentes do assassino mas basta dizer que o réu foi declarado inocente.
— Quem foi escolhido para me assassinar?
Freddie tornou a sorrir.
— Ainda não chegamos à decisão final. Mas já há alguns voluntários.
— Devo providenciar um saco de plástico com suco de tomate e esmagar contra o peito quando for baleado?
— Não. Resolvemos que não será necessário neste ano.
Eu pensava que sabia por quê. Quando professor Elbert morrera com seu macabro suco de tomate, a equipe feminina de handebol estava no corredor, a caminho do ginásio. Sete garotas desmaiaram. E o mesmo acontecera com Tanker Flanagan, o grande astro de nosso time de futebol americano.
Não pude conter um sorriso.
— Sendo assim, terei de recorrer a melhor representação.
— Achamos que tudo correrá naturalmente. — Freddie olhou a Harding. — Somente o comitê e a vítima devem saber. Guardarás segredo?
— Nada direi. — Garantiu Harding.
Depois que Freddie se retirou, Harding e eu voltamos à partida de xadrez.
Harding estava atacando na coluna do rei.
— Freddie Thompson é um dos estudantes mais brilhantes que esta universidade já teve.
Acenei com a cabeça, comentando:
— Teve as melhores notas. Quase tudo A.
— Quase?
— Isso mesmo. Durante todo o curso, recebeu apenas um B.
— É mesmo? E quem deu?
— Eu.
Harding moveu o cavalo.
— Uma pena estragar a ficha dele assim. — Harding bateu a cinza do cachimbo.
— Terão de atirar no corpo, é claro. Não na cabeça.
— Por quê?
— Há alguns tipos de cartucho de pólvora seca que expelem um pedaço de papelão com força considerável. O peito seria o lugar mais seguro para se apontar o revólver.
— Usarão, certamente, um cartucho de pólvora seca, que nada projeta.
Harding estava em dúvida.
— Acho que não. Afinal, querem aquela expressão genuína de surpresa em teu rosto quando a arma for disparada. O que seria obtido pelo impacto da bala de papelão.
Por algum motivo a perspectiva de sofrer o impacto dum pedaço de papelão me deixava ligeiramente apreensivo. Harding tomou um peão.
— Sabes quem mais está no comitê de homicídio neste ano? No momento, pude me lembrar apenas doutro estudante.
— Roy Wickens.
— Um rapaz alto? O que teve de fazer mais um semestre porque não passou num de teus cursos?
— Não conseguia entender os princípios do direito imobiliário. Fui obrigado a dar uma nota baixa.
— És um tanto duro com tuas notas. Não é, Alfredo?
— Acho que não se deve ser indulgente com os estudantes. Estamos numa universidade e não num jardim-de-infância.
Harding ganhou aquela partida e a seguinte. Quase nunca ganha duas partidas na mesma noite mas minha mente parecia às vezes divagar.
Eram 10:30h quando paramos. O acompanhei até a porta. Ajeitou o cachecol.
— Sabes, Alfredo, ouvi dizer que o lugar mais seguro para assassinar é a grande estação Central, na hora de maior movimento. Imagino que um campus universitário apinhado possa ser uma boa segunda opção.
Saiu, fiquei lendo algum tempo e me deitei.
?
Eu estava descendo os degraus da biblioteca. Era um dia bonito e ensolarado. Lá embaixo havia ao menos uma centena de estudantes, espalhados em pequenos grupos. As moças empenhadas no motivo básico para cursar uma universidade, que era o de arrumar um marido.
E, subitamente, um jovem de cabelo desgrenhado, usando óculos, subiu correndo os degraus em minha direção. Os lábios estavam contraídos em fúria, os olhos exibiam uma expressão desvairada. Apontou um revólver imenso a meu peito. Houve um clarão ofuscante...
?
Me sentei na cama, esperando que as batidas cardíacas se tornassem inaudíveis.
Depois dum ou dois minutos, forcei um sorriso. O subconsciente tem uma imaginação pérfida.
Já devia passar de três horas da madrugada quando voltei a cochilar.
Dessa vez sonhei com um enterro de muitas pessoas, no qual eu era a atração principal.
Voltei apressadamente ao consciente e acendi a luz. Eram apenas 4h da madrugada mas o tipo de sono que eu estava tendo não seria capaz de revigorar meus tecidos cansados.
Pus o roupão e fui ao gabinete. Me sentei para ler mas, inevitavelmente, me descobri absorvido com a pilha de trabalho dos alunos, à qual teria de dar nota e devolver na sexta-feira.
O trabalho de James Branner me provocou um suspiro. Como conseguira sobreviver à cadeira de inglês no curso preparatório e ainda mais se tomar um aluno exaltado no último ano da faculdade? Obviamente, merecia um C e até isso era caridade, em minha opinião.
Passei ao trabalho seguinte mas o pensamento permaneceu com Branner. Não integrava também o comitê de homicídio?
Branner era um rapaz grande, imenso mesmo. E não fora punido com uma suspensão condicional, durante todo um semestre, ao participar dum motim estudantil?
Não havia como prever o que uma personalidade tão instável faria. Risquei o C e lhe dei um B.
Trabalhei até sete e meia e depois fui tomar café. Cheguei ao prédio da faculdade 20 minutos antes de minha primeira aula e fui à sala dos professores.
Professor Lasson, lendo um jornal numa poltrona de encosto alto, era a única pessoa presente.
Acenei com a cabeça, me sentei no outro lado da sala e acendi o cachimbo.
Desde que eu rejeitara sua tentativa de fazer com que um de seus livros se tornasse obrigatório no curso, nosso relacionamento se limitava a acenos de cabeça, bem frios.
Se conseguisse introduzir seu livro medíocre no currículo duma faculdade de tanto prestígio como a nossa, 90% das outras faculdades do país certamente o adotariam também.
Assim, seu prejuízo financeiro fora considerável. Em conseqüência, a expressão que Lasson me reservava era tão hostil quanto a que se encontra no rosto dum dono de farmácia quando se compara apenas um selo de quatro centavos. Dessa vez, porém, Lasson me falou: — O que achas ser a vítima do assassínio neste ano?
Franzi o rosto.
— Sempre pensei que a identidade da vítima fosse um segredo para todos, a não ser pros membros do comitê de homicídio.
As pontas de seus dentes afiados ficaram à mostra.
— Pode ser um segredo pros outros mas não é para mim.
— Por que não?
— Porque sou o guardião da arma.
Talvez fosse a iluminação da sala, mas tive a impressão de que seus olhos adquiriram, lentamente, um brilho maligno.
— Evidentemente, não podemos permitir que os estudantes carreguem arma de fogo no campus. — Explicou Lasson. — Por isso a arma ficará em meu poder até o momento em que se tornar necessária.
Um pensamento me ocorreu de repente. Tinha de ser obrigatoriamente um estudante para cometer o assassínio? Corrigi prontamente: para cometer o assassínio simulado.
Lembrei que em 1957 professor Jacobson fora golpeado na cabeça por uma assistente, a professora Mabel Watkins, no momento em que dava aula sobre direito conjugal. A violência do golpe fora atribuída ao nervosismo dela, mas também me lembrei de que duas semanas antes Jacobson rompera o contrato de seis anos de Mabel. Tirara uma licença de uma semana, por motivo de saúde.
Lasson enfiou a mão no bolso e tirou um revólver. Fechei os olhos.
— Esta é a arma.
Tornei a abrir os olhos. E pensei:
— Precisavam escolher uma arma tão grande?
— Um magnum 38. — Acrescentou Lasson. — Um tiro arrebenta o bloco de motor dum carro.
Por que isso seria de interesse a alguém? Tornou a meter a mão no bolso.
— Estes cartuchos são de pólvora seca.
Fiquei satisfeito ao constatar que os cartuchos não tinham ponta. Meteu a mão no outro bolso.
— E estas balas são de verdade. Não achas lindas? Dependia do gosto de cada um.
— As balas que as pessoas usam para arrebentar bloco de motor?
Assentiu.
— É claro que não gostaríamos que se misturassem com os cartuchos de pólvora seca.
Eu era a última pessoa do mundo disposta a discutir aquela possibilidade.
— Podes não estar percebendo, — comentei, muito tenso — mas a verdade é que estás me apontando esse revólver. Soltou uma risada.
— Não está carregado.
Eu suava ligeiramente. Suponhamos que queira realmente...
Mas isso era absurdo. Só porque seu livro medíocre fora rejeitado...
Recuperei o controle. A base de toda a coisa, o homicídio simulado, era a presença de muitas testemunhas.
Enquanto estivéssemos a sós eu estaria perfeitamente seguro.
Lasson tornou a guardar o revólver e as balas nos bolsos. Menos as verdadeiras.
As contemplou com expressão pensativa.
— Gostaria de saber se um colete a prova de bala seria capaz de deter uma destas.
Resolvi que estava na hora de ir a minha primeira aula.
Como sempre, Freddie Thompson ocupava uma das cadeiras da frente, invariavelmente alerta e preparado para qualquer pergunta. Roy Wickens estava perto das janelas. Ia à universidade todos os dias apenas para aparecer naquela aula.
James Branner, a testa baixa sugerindo mais o neandertal que o cro-magnon, rabiscava no caderno com o coto dum lápis. Parecia estar mal-humorado.
E Emelina Grogan.
Por que é necessário que as alunas pensem que sua educação é um fracasso a menos que se apaixonem por um dos professores?
O curso e seu grau da adoração seguira o padrão habitual. No início do semestre achava que a última fila era bastante confortável. À medida que as semanas foram passando, no entanto, gradativamente foi chegando mais perto de mim.
E quando chegara à primeira fila, eu fora obrigado a lhe dizer que era velho demais para ela e que, além disso, fizera uma promessa à cabeceira duma moribunda de manter um celibato eterno.
O amor de minha juventude, Lucinda, uma criatura frágil, sensível e condenada pelo destino, gradativamente se consumira com algo que parecia tísica, me deixando sozinho para enfrentar o mundo, dominado pelo sofrimento, mas aguardando o momento no futuro em que me juntaria a ela.
Mas não sei como Emelina encarou minha rejeição.
Ainda estava na primeira fila.
Quando soou a campainha das 9:20h suspendi a aula e os estudantes se retiraram. Mas não Emelina.
Me fitou com o que parecia ser uma compaixão irresistível e disse:
— Não adianta ficar te lembrando de Lucinda, professor. A vida continua.
Não pude conter um suspiro.
— Não para mim. Simplesmente existo.
Havia mesmo uma lágrima no olho dela?
— Sentes muita saudade dela. Não é?
Meu sorriso traía a maturidade do sofrimento.
— Mais do que posso exprimir com palavra. Mas cada hora que passa me aproxima dela. Minha existência neste mundo nada significa. Cortejo o perigo.
Tocou meu braço, gentilmente.
— Talvez a vejas em breve. Muito mais depressa do que imaginas.
Enxugou a lágrima do olho e saiu da sala.
O que queria dizer com aquilo?: Talvez a vejas em breve. Muito mais depressa do que imaginas.
Um pensamento me ocorreu.
Também integrava o comitê de homicídio.
Será que sabia algo?
Eu não tinha outra aula até 10:30h. Fui à biblioteca para realizar a pesquisa do estudo que estava escrevendo pruma revista especializada.
Devolvi os volumes de referência às 10:20h e deixei o prédio. Parei um momento no alto dos degraus.
O dia estava lindo e ensolarado. Embaixo ao menos uma centena de estudantes estava reunida em grupos, as moças empenhadas em seu motivo básico.
Um calafrio me percorreu o corpo.
Freddie Thompson estava examinando um caderno de anotação mas levantou os olhos em minha direção. O sorriso nos lábios seria de cumprimento?
O soturno James Branner estava ali, assim como o comprido Wickens. E professor Lasson. Seus olhos não estavam se estreitando na gloriosa expectativa dalguma coisa?
E Emelina Grogan, que podia, por misericórdia... Fugi de volta ao interior da biblioteca.
Enxuguei o suor da testa e fui até a janela.
Era verdade, todos estavam esperando. Eu sabia disso, tão certamente quanto estava parado ali, apavorado.
Como um homem podia ter tantos inimigos? Talvez eu tivesse sido um pouco cáustico demais em minhas relações com os outros. Talvez meus cursos fossem um pouco rigorosos demais. Talvez o mundo precisasse dos maus advogados tanto quanto dos bons. Talvez eu devesse ter enterrado há muito a história de Lucinda. Mas o que um homem pode fazer? Deve viver, deve ser si próprio. E quando chega o momento...
Me empertiguei. Um homem deve ser um homem. Deve ser honesto consigo, deve se ater a seu caminho, até o último momento. Fui até a escrivaninha e falei a senhorita Hendricks, a bibliotecária: — Tens um envelope e um papel?, por favor.
Me deu e me sentei a uma mesa. Enderecei o envelope ao reitor da universidade.
Datei o papel em branco e comecei a escrever:
À mesa, em meu gabinete, encontrarás o trabalho dum estudante chamado James Branner.
Lhe dei um B mas é um erro. Deve ser um C.
Atenciosamente
Alfredo Ranier
Era a minha última vontade mas nunca se deve deixar as coisas a fazer. Levei o envelope fechado a senhorita Hendricks.
— Por favor, seles e despaches no correio, quando puderes. Fiz uma pausa e me senti impelido a acrescentar:
— Senhorita Hendricks, quero que saibas que diriges uma das melhores e mais tranqüilas bibliotecas do país.
E depois passei na vasta porta da frente.
Parei apenas um momento, empertiguei os ombros e saí. Era um dia lindo e ensolarado. Lá embaixo.
Mas eu já passara tudo isso duas vezes.
Desci lentamente os degraus, a cabeça erguida.
Emergiu abruptamente dum grupo de estudante. Levantou o magnum 38 que podia arrebentar um automóvel. Fiquei aturdido.
Era professor Harding!
Mas o que eu já fizera...
O cano do revólver relampejou e senti o impacto no peito. Tudo ficou escuro.
Recuperei o sentido quando estavam me carregando à biblioteca. Senti um impulso intenso de gemer, mas me contive. Morreria como um bravo.
Me acomodaram cuidadosamente num sofá.
— Podes abrir os olhos agora, professor Ranier. — Era a voz de Emelina Grogan. — Está tudo acabado.
Abri os olhos.
— Foi magnífico. — Comentou Freddie Thompson. — Nunca vi algo mais natural.
Olhei o peito. Não havia sangue. Freddie parecia um pouco preocupado.
— Estás te sentindo bem?, professor Ranier.
Me sentei lentamente, desabotoei o paletó. Também não havia buraco na camisa e meu coração estava batendo. O podia ouvir. Não havia dúvida de que estava vivo e em perfeita condição. Dei graça por conseguir escapar.
— Eu sabia que não cometêramos um erro te escolhendo. — Disse Freddie Thompson. — És nosso professor predileto.
Minha testa franziu, em perplexidade e espanto. Freddie assentiu.
— Alguns professores me deram A apenas porque não queriam estragar minha ficha. Mas o senhor me deu um B quando mereci. Admiro tua integridade e coragem. Me ensinaste a humildade.
É claro que tínhamos de trocar um aperto de mão. Era o que Freddie esperava. O soturno James Branner sorriu.
— Me dás C. Todo mundo me dá C-.
O alto Rod Wickens também tinha algo a dizer:
— Eu precisava dos seis meses extra que passei aqui. Além do mais, não conseguia passar, do jeito que estava, nos exames da ordem dos advogados.
Emelina Grogan me afagou o ombro.
— Professor, já estudou o espiritismo? Já estiveste numa sessão? Tenho uma tia que é positivamente psíquica e com muita empatia. Talvez consiga te pôr em contato com Lucinda. Também és meu professor predileto e não gosto de ver alguém sofrendo. Não cachorro nem pessoa.
Eu ainda sentia alívio e gratidão pela reviravolta no acontecimento quando professor Harding entrou na biblioteca na porta do fundo, com expressão radiante.
— Todos ficaram tão aturdidos que não tive dificuldade para escapar. Alguns dos estudantes me reconheceram, é claro, e assim teremos o julgamento. Mas tenho a impressão de que se eu me disfarçasse um pouco poderia escapar impune dum assassínio de verdade.
Foi nesse instante que percebi a presença de professor Lasson. Estava encostado numa estante, a mão direita no bolso do paletó, o mesmo bolso em que estavam as balas de verdade.
Os olhos brilhavam enquanto me observava e um tênue sorriso de censura se insinuava nos lábios.
Tive o pressentimento terrivelmente forte de que as palavras de Harding lhe deram uma idéia.
De repente a sala ficou mais fria.
O assassínio poderia ocorrer a qualquer momento, compreendi subitamente. A qualquer momento mesmo.
Mas poderia também ocorrer num dia lindo, ensolarado.
E lá embaixo ao menos uma centena de estudantes estaria reunida.
TESTEMUNHA INOCENTE
Irving Schiffer
O detetive esperava quando ela saiu do prédio de escritório, às 5h. Subitamente, no meio das pessoas que voltavam apressadamente a casa, estava parado em sua frente, jovem, muito alto, voz surpreendentemente gentil e atitude cortês.
— Olá, Júlia.
Tinha 20 anos, uma moça de cabelo escuro, que trabalhava como secretária no centro financeiro de Nova Iorque. Uma entre muitas, não muito diferente, à primeira vista, das moças que trabalhavam nas mesas ao redor, bastante bonita, não muito sofisticada, uma moça de quem todos gostavam, acostumada ao anonimato.
Acima de tudo não estava acostumada a ser abordada por detetive. Olhou ao redor, constrangida, enquanto as outras moças passavam, convencida de que algumas reconheceram sargento Ruderman, da visita que fizera ao escritório naquela manhã.
— Há algum lugar onde possamos conversar em particular? — Indagou, como se percebesse seus pensamentos. Júlia assentiu, agradecida.
— Há uma lanchonete aqui perto.
A Bill's era uma dessas lanchonetes no formato de vagão, com um balcão comprido, uns poucos reservados e ótima comida. Se sentaram num reservado, Júlia virada ao fundo. O sargento pediu dois cafés. Ela olhou as cabines telefônicas e pensou em ligar à mãe, se fosse chegar atrasada pro jantar. Ele nada disse antes do café chegar.
— Júlia... senhorita Stevens... uma coisa ficou me perturbando durante o dia inteiro. Nesta manhã, quando falei contigo no escritório...
— O que é?
— Tive a impressão de que querias me dizer algo. A respeito de teu chefe, senhor Turner, e de sua esposa.
Ela sacudiu a cabeça. Tomou um gole do café, a fim de desviar os olhos.
— Já te contei tudo, sargento Ruderman.
— Contaste mesmo?
Se não fosse policial a voz suave poderia ser considerada a dum amigo, talvez um amante. Era um homem simpático, pensou Júlia, provavelmente muito eficiente na profissão.
— Queres saber o que penso? — Disse, sorrindo por cima da caneca com café fumegante. — Acho que és uma moça muito confusa. Talvez estejas te equivocando por senso de lealdade. Pensando bem, gosto duma pessoa que é leal.
Ela não caiu naquela armadilha.
— Francamente, não consigo me lembrar de algo que já não tenha contado.
— Em relação aos Turner, não estavam vivendo muito bem. Alguns amigos do casal nos deram essa informação. Tiveram uma briga ou uma discussão mais séria nos últimos dias?
Júlia deu de ombros. Podia perceber que não acreditava mas também não estava zangado. Era um homem controlado e estava calmo quando terminou de tomar o café sem desviar os olhos dela durante todo o tempo. Abruptamente olhou o relógio e pôs algumas moedas na mesa ao garção. Entregou um cartão a Júlia.
— Aqui está meu telefone na delegacia. Podes me ligar a qualquer hora. — O sorriso foi uma surpresa agradável. — Isso é, caso te lembres de ter algo para me contar. E agora, por gentileza, podes escrever teu nome e endereço neste outro cartão?
— Meu endereço? — Repetiu Júlia, cautelosamente.
— Isso mesmo. Por acaso já saíste com um detetive?
Ela pensou nos motivos que ele tinha, em seu trabalho.
— Não te preocupes. — Acrescentou o sargento — Não te procurarei enquanto o caso não estiver encerrado. Não misturo negócio com prazer. E não me encontro com moças assim todos os dias.
Júlia simpatizava com ele, um fato a que não podia escapar. E a maneira franca e quase vulnerável com que ele a olhava era bastante convincente para qualquer moça. Escreveu no verso do cartão e o devolveu.
— Terás notícia minha. — Garantiu ele. — Ou talvez, quem-sabe? Talvez eu tenha notícia tua primeiro. Boa noite, Júlia.
Depois que ele saiu Júlia mal se mexeu. Uma mulher passou e entrou numa das cabinas telefônicas. Distraidamente, Júlia ficou observando os lábios da estranha, através da porta de vidro. Pensou de novo que devia telefonar à mãe. Mas não podia se mexer.
Havia mesmo uma coisa. O detetive estava certo. Não era apenas o problema entre senhor Turner e a esposa. Ela mentira sobre isso. Havia também outra coisa.
Mas o quê?
Júlia suspirou. Lhe ocorreu que sargento Ruderman podia até pensar que havia algo entre ela e senhor Turner. Só que não havia. Nada demais. Maria vivia insinuando que havia mas Maria estava sempre falando, como na manhã do dia anterior, quarta-feira, no escritório, pouco antes de senhora Turner ligar.
Maria era a secretária de senhor Cassidy, um dos vários vice-presidentes da Empire Investment, casado, mas um conquistador incorrigível. Às vezes parecia que a própria Maria, loura e exuberante, o controlava, ao menos um pouco. Na manhã de quarta-feira houvera muita conversa irreverente antes que senhor Cassidy passasse nas mesas adjacentes de Júlia e Maria para entrar em sua sala.
— Às vezes me sinto propensa a esquecer que é casado. — Comentou Maria, depois que a porta se fechou.
— Falas demais. — Disse Júlia.
— Não tenhas tanta certeza assim. Os homens casados são apenas homens que por acaso estão casados. Não sejas tão ingênua, Júlia. Todos esses vice-presidentes, com suas linhas particulares. Aposto que não é só de negócio que falam atrás das portas fechadas. E aposto que se teu senhor Turner te desse uma prensa não resistirias até o fim. Posso perceber quando uma garota está gamada. Ei, trabalhemos, pois teu chefe está chegando!
Senhor Turner era tão diferente de senhor Cassidy quanto se podia conceber.
Com trinta e poucos anos, o vice-presidente mais jovem da companhia, era elegante, metódico e 100% profissional. Passou rapidamente nas mesas das moças, ofereceu um bom-dia brusco e desapareceu em sua sala.
— Não posso deixar de admitir que é atraente. — Maria suspirou. — Mas já viste sua mulher? É 10 anos mais velha, no mínimo. E dá a impressão de que foi atropelada por um caminhão.
— Não concordo. — Protestou Júlia.
— É a pura verdade. E aqui todo mundo sabe que se casou exclusivamente por dinheiro. Lembro quando ela não passava duma cliente rica, há apenas seis meses, uma solteirona nata, se é que já conheci alguma.
— Também me lembro perfeitamente dela. Era apenas uma mulher infeliz e solitária.
— Tens razão. Mas depois o garoto bonito assumiu a conta dela e, pam!, acabaram se casando. Verás como, um dia desses, ele largará o trabalho, se aposentará ao resto da vida, com o dinheiro dela, é claro.
O telefone de Júlia tocou. Salva pelo gongo, pensou, estendendo a mão. Mas foi um choque e tanto. Por falar no demônio, descobrir quem estava ligando.
— Júlia, aqui é senhora Turner.
— Bom dia. Um momento, por favor. Já avisarei, a senhor Turner, que estás na linha.
— Não faças isso, Júlia. Não quero que saiba que telefonei. É contigo que quero falar. Podemos nos encontrar para almoçar? Preciso ter uma conversa.
— Comigo? — Não havia possibilidade de equívoco quanto ao tom de urgência da mulher, pensou. — Pois não, senhora Turner. Mas desejas me falar sobre...
Uma explosão de estática a interrompeu, quando a caixa do interfone em sua mesa adquiriu vida. A luz estava acesa.
— Júlia!
A voz de senhor Turner parecia crepitar. Durante um momento terrível Júlia experimentou um pânico inexplicado. Ficou olhando, aturdida, o interfone e depois o fone em sua mão, compreendendo que senhor Turner ouviria se a esposa tornasse a falar. Rapidamente pôs a mão sobre o bocal do fone. Igualmente depressa, percebeu que cobrira o lado errado para impedir a voz de senhora Turner de ser ouvida e mudou a posição.
— Júlia, queres me trazer a pasta da companhia Sloban? — Ordenou a voz de Ricardo Turner.
— Pois não, senhor.
Esperou ele desligar o interfone e disse, apressadamente, ao telefone:
— Tenho de desligar.
— Ouvi tudo.
— Telefonarei daqui a alguns minutos. — Prometeu Júlia. — Será melhor eu usar um telefone externo. Estás em casa?, senhora Turner.
— Estou, sim. Não te esqueças, por favor. Ficarei esperando.
As sobrancelhas de Maria eram dois pontos de interrogação mas Júlia não tinha tempo para explicar. Foi aos arquivos, atrás das mesas das datilógrafas, e localizou rapidamente a pasta de Sloban. Se sentindo estranhamente conspiradora, imaginou senhora Turner no apartamento na praça Washington, uma mulher gorda, um tanto deplorável, aguardando seu telefonema. Sem deixar que sua expressão revelasse um desses pensamentos, bateu na porta de senhor Turner.
Quando entrou na sala Ricardo Turner estava falando no telefone particular. Os olhos castanhos mal piscaram na direção da secretária, enquanto continuava a falar com um charme insinuante à cliente viúva, senhora Sloban: — Isso mesmo, Vera. Sei que não queres correr risco com o principal. E a Empire Investment não permitiria tal imprudência. Claro que aconselharíamos a não fazer isso.
Júlia olhou o perfil firme e bonito. Como sempre, afetava seu equilíbrio duma forma que preferia não reconhecer. Havia dois telefones na mesa, uma extensão do aparelho na mesa dela e o outro para contato confidencial com os clientes. Júlia podia recordar quando senhora Turner era uma das clientes, uma herdeira solitária, que merecia conversas prolongadas, como a que ele tinha agora com senhora Sloban. Pensou: — O casamento, , pondo a pasta na mesa, pode certamente esfriar o ardor dum homem. Se houve ardor para começar.
— Estás esperando algo? — Ele suspendera a conversa e franzia o rosto a Júlia, irritado. — Mas já que estás aqui...
Ele encostou um dedo na pasta, antes de acrescentar:
— Os relatórios aqui estão atualizados? Estou falando com senhora Sloban e talvez precise preparar um relatório detalhado para amanhã.
Júlia explicou que precisava ainda tabular os últimos dividendos mas poderia atualizar tudo até a manhã do dia seguinte. Ele a interrompeu com um gesto irritado: — Se em vez de ficar sonhando de olhos abertos junto a minha mesa, Júlia, prestasses mais atenção ao trabalho...
Ele empurrou a pasta na mesa, a dispensando. Um momento depois, Júlia saiu, furiosa, da sala. O olhar de Maria a acompanhou até sua mesa, comentando: — É evidente que não te ofereceu um aumento de salário.
— Digas uma coisa, Maria: Costumo ficar sonhando durante o trabalho?
— Foi o que disse o bonitão?
Júlia abriu a gaveta e tirou sua bolsa.
— Devo ser uma masoquista para encontrar algo atraente num homem assim. Se ele perguntar sobre mim digas que eu estou sonhando aí.
— Ligarás a senhora Turner?
Júlia assentiu.
— Prometi. Quer almoçar comigo. Quer apostar como pedirá para ajudar a escolher um lindo presente de surpresa para seu adorado marido? Arsênico. É isso o que recomendarei!
O ascensorista estava loquaz e isso ajudou a esfriar Júlia, enquanto descia os cinco andares até o saguão. O homem atrás do balcão na Bill's, ao lado, lhe acenou jovialmente. A fé na natureza humana foi momentaneamente restaurada. Júlia entrou numa das cabinas telefônicas no fundo da lanchonete e ligou a senhora Turner.
Combinaram o encontro para 12:30h, num restaurante que estava relativamente segura de que seu chefe não freqüentaria. Além do mais estava sendo esperado, naquele dia, num almoço de negócio.
Quando Júlia chegou ao restaurante senhora Turner já estava tomando um drinque à mesa, as feições rudes, uma máscara de determinação e amargura.
Não demorou muito para que Júlia compreendesse o motivo daquele semblante sombrio. Logo depois que a garçonete trouxe o pedido senhora Turner pegou as mãos de Júlia, através da mesa.
— Júlia, quero que sejas franca comigo. Não tenhas medo de me magoar com a verdade.
— Tentarei, senhora Turner. Mas o que...
— Quero saber uma coisa: Meu marido está tendo um caso com outra mulher?
Júlia ficou surpresa demais, até para negar tal conhecimento. Senhora Turner se inclinou a diante, tensa.
— Preciso saber, Júlia. O deixarei, de qualquer maneira. Entendes? Mas preciso saber quem é.
— Senhora Turner, de nada sei, realmente.
— Sabes, sim. És sua secretária. Todos no escritório sabem quem é. Quero me desforrar, Júlia. Tenho certeza de que podes compreender. Quero desgraçar os dois!
— Ele lhe disse que estava apaixonado por outra mulher? — Indagou Júlia, sentindo o rubor de culpa na face.
— Apaixonado? Ricardo ninguém ama. Usa as pessoas. Se casou comigo apenas por dinheiro. — A mulher feia sorriu tristemente. — Mas agora está zangado comigo. Como ficou furioso, ontem na noite, porque me recusei a transferir parte de meu dinheiro a sua conta! Transferir meu dinheiro? Que espécie de idiota pensa que sou? E quer saber o que disse quando me recusei? Escarneceu de mim.
Declarou que arrumaria outras mulheres, mulheres bonitas, para afastar seus pensamentos dos problemas de dinheiro.
— Mas não disse já ter outra mulher. Não é?, senhora Turner. Apenas ameaçou.
A mulher mais velha sacudiu a cabeça, judiciosamente.
— Não conheces Ricardo. Nunca ameaça se não tem certeza do que pode fazer. A filosofia do pássaro na mão. Mas quero estragar tudo pros dois. O quero deixar antes que me deixe. Então nada terá. Ao mesmo tempo quero promover um escândalo tão grande que perderá, a sempre, toda possibilidade de se casar com outra mulher rica. Nunca mais sequer falarão consigo depois que eu acabar. Quem são suas clientes Júlia? Quais as mulheres livres?
Júlia estava bastante alarmada.
— Não posso fornecer os nomes de clientes.
Senhora Turner se recostou na cadeira, com uma aparência de derrota. Podia sentir a determinação de Júlia e definhou.
— Está certo. Compreendo. É claro que não podes fazer isso. Creio que foste o mais prestativa que poderia ser. E não te preocupes, Júlia. Nada direi a Ricardo a respeito de nosso encontro. Mas nesta noite direi que está tudo acabado entre nós.
Tornou a sorrir, antes de acrescentar:
— E gostarei de dizer isso . Será interessante ver como tentará me convencer de que não teve a intenção de me ameaçar, que me ama de verdade. Será uma noite e tanto.
De volta ao escritório, foi praticamente impossível trabalhar. Senhor Turner passou a maior parte da tarde ausente, com um cliente, mas Maria não deu sossego até contar tudo o que lhe acontecera. Foi um alívio partilhar o incidente com alguém. Foi um alívio ainda maior quando deu 5h, deixou o escritório e seguiu, de metrô, ao Bronx.
Somente quando estava à mesa do jantar, naquela noite, é que se lembrou da conta Sloban. A mãe estava censurando sua irmã caçula por não fazer o dever de casa, por viver sonhando. E compreendeu, de repente, que, na aflição naquela tarde, esquecera de atualizar a pasta Sloban. A perspectiva de enfrentar senhor Turner no dia seguinte com aquela negligência era terrível, especialmente depois da crítica naquela manhã e, levando em consideração o ânimo dele, depois da conversa naquela noite com a esposa...
Verificou que ainda eram 7h. Podia voltar ao escritório, pegar a pasta e trabalhar na noite em casa, terminando tudo antes de se deitar. Apesar da objeção da mãe, pôs o casaco e saiu. O ascensorista noturno no prédio de escritório estava quase adormecido atrás da mesa. A reconheceu e sorriu, contrafeito.
— Podes me levar até lá em cima e ficar esperando um pouco? — Perguntou Júlia, enquanto assinava o livro de registro. Ele sacudiu a cabeça e pegou as chaves.
— Não será possível. Tenho de ficar de plantão aqui embaixo. Mas basta tocar a campainha do elevador quando estiveres pronta para descer.
O elevador parecia muito barulhento quando o prédio estava vazio. Ele a levou a cima, abriu a porta do escritório com uma chave-mestra e voltou ao posto. Júlia se sentiu abandonada. Assobiando, acendeu a luz e avançou, entre as mesas vazias, à sala de senhor Turner.
A pasta Sloban ainda estava sobre a mesa dele. O telefone tocou no instante em que ela a pegou. Júlia retirou a mão bruscamente.
O efeito do segundo toque da campainha no escritório deserto não foi menos desconcertante. Quem poderia estar ligando ao telefone particular de senhor Turner naquela hora?
Ao terceiro toque da campainha se controlou o suficiente para atender.
— Alô.
— Como? Quem... Quem está falando?
Era a voz de senhor Turner. Dominando rapidamente a surpresa, Júlia se identificou. Explicou a presença no escritório.
— Tem problema se eu levar a pasta para trabalhar em casa?
— Não. Não. Já estás de saída?
— Sim, senhor Turner.
Podia imaginar o rosto compenetrado dele. Nunca antes experimentara tal sensação de intimidade com aquele homem. Talvez fosse simplesmente por ser noite. E mais que qualquer outra coisa, queria prolongar a conversa.
— Estavas querendo algo?, senhor Turner. Alguém...
— Não. Claro que não. — A risada foi curta, forçada.
— Apenas disquei o número errado. Tomei alguns drinques num bar e fiquei confuso. Boa noite.
— Boa noite, senhor Turner.
Júlia desligou e ficou olhando fixamente o telefone. Gostaria de saber se senhora Turner já falara que deixaria ele, deserdando e todo o resto que ameaçara.
Se isso acontecera podia compreender por que andara bebendo. Mas por que telefonara ao escritório naquela hora? Alguém deveria estar ali? Será que sua presença afugentara essa outra pessoa? Não podia acreditar que ele discara o número errado.
Pegou a pasta Sloban e foi ao centro da sala grande. Quase esperava encontrar alguém espreitando atrás das mesas das datilógrafas. Qualquer que fosse a explicação, precisava satisfazer a curiosidade. Por que deixar que ele a tangesse até casa? Poderia fazer o trabalho ali mesmo. Não é? Se sentou a sua própria mesa e abriu a pasta. Podia terminar de registrar os dividendos em menos de uma hora.
Foi necessário pouco mais de uma hora. Com um senso de realização fechou a pasta e a levou de volta à mesa de senhor Turner. Em sua própria mesa pegou a bolsa e o casaco. E nesse instante ficou paralisada.
Como um grito estridente na noite, o telefone na mesa de senhor Turner tocou.
Primeiro uma vez, depois outra e mais outra.
Se virou e olhou a porta de entrada de vidro fosco. Sabia que, a qualquer momento, alguém entraria abruptamente naquela porta, a fim de atender à campainha imperiosa do telefone. Mas nenhuma silhueta se aproximou do vidro.
Muito tensa, resistindo ao magnetismo da campainha, Júlia foi atravessando o escritório. Olhando a trás, Júlia apagou a luz, abriu a porta, saiu, fechou. Parada diante, do elevador, ouvia a campainha do telefone ainda tocando, como uma criança impertinente, chamando alguém. Finalmente, um momento antes de o elevador chegar, a campainha cessou.
Na manhã Maria ouviu os acontecimentos da noite anterior com um espanto de olhos arregalados.
— Estás querendo dizer que ligou ao escritório? Puxa, devia estar mesmo num porre e tanto. Mas queres saber duma coisa? Não posso imaginar um homem como ele ficar num porre assim.
Senhor Turner chegou com apenas uns poucos minutos de atraso e parecia calmo e controlado como sempre. Dava a impressão de ter esquecido que o dia anterior existira. Depois dum brusco bom-dia, entrou na sala e fechou a porta. O interfone na mesa de Júlia entrou em funcionamento às 9:20h.
— Júlia, queres ligar à senhora Turner?
— Senhora. Turner?
Estava surpresa em descobrir que senhor Turner ainda falava com a esposa.
— Isso mesmo, senhora Turner. Não me ouviste direito? O que ouviu, pouco antes de senhor Turner romper a ligação, foi um som desconcertante.
— Isso é estranho. — Murmurou Júlia, se virando a Maria.
— O que é estranho?
Júlia acenou com a cabeça em direção à porta fechada.
— Está ligando a alguém via telefone particular. Pude ouvir discando.
— A outra mulher. — Comentou a loura Maria, estalando os dedos. — Será que não percebes que quer que ela escute enquanto fala com a esposa? Ou talvez seja o advogado dele. Podem estar querendo fazer uma gravação como prova no processo de divórcio.
Júlia ficou irritada consigo por acreditar em Maria, mesmo que apenas um segundo. Tirou o fone do gancho, pediu uma linha à telefonista e discou. O telefone de senhora Turner estava ocupado. Maria disse:
— O que esperavas? Está ocupada a falar com o advogado.
Júlia apertou o botão do interfone e ficou esperando que senhor Turner atendesse.
— O que é Júlia?
— O telefone de tua esposa está ocupado, senhor Turner.
— É mesmo? Está bem. Obrigado.
— Devo testar de novo daqui a alguns minutos?
— Não precisas te incomodar. É nada de importante.
Ficou pensativa pondo papel na máquina de escrever e começando a bater um relatório mensal prum cliente. Estava imaginando seu futuro, como freqüentemente fazia quando vislumbrava a vida particular alheia. Te casarias com alguém, de boa-fé, apenas para descobrir que mal o conhecias? Se pode confiar no sentimento doutra pessoa?
Absorvida, nem notou os dois estranhos que se aproximavam de sua mesa. Era pouco antes da hora do almoço. Datilografava quando surgiu em seu campo de visão a manga dum sobretudo masculino, a mão aberta exibindo uma carteira com o emblema da polícia.
Foi a primeira vez que viu sargento Ruderman.
— Desculpes te surpreender. Acho que não me ouviste chegar por causa da máquina. Perguntei se podia falar com senhor Turner, por favor.
Junto outro detetive, um pouco mais baixo e mais velho. Júlia olhou dum a outro e acenou com a cabeça, vigorosamente.
— Queres me acompanhar? Por favor.
Os levou à sala de senhor Turner. Não entrou atrás deles. Podia imaginar por que estavam ali.
Quando saíram, com senhor Turner, Júlia quase pôde sentir o que ele sentia.
Nunca o vira tão pálido.
— Júlia, senhora Turner sofreu um acidente. Sairei. — Ele lançou um olhar inquiridor aos detetives. — Estarei ausente no resto do dia.
— Um acidente? É grave?
Ele assentiu bruscamente.
— A criada a encontrou.
Sargento Ruderman interveio:
— Podes deixar. Explicarei tudo a tua secretária, senhor Turner. É melhor ir agora com detetive Wilson. Irei depois.
Depois que saíram o sargento pediu a Júlia o acompanhar até a sala de senhor Turner. Ele fechou a porta e acenou para que se sentasse. Júlia percebeu, pela maneira quase imperceptível como os olhos castanhos do policial se estreitaram, que ele sentiu o ressentimento involuntário dela o vendo ocupar a cadeira atrás da mesa.
— Senhora Turner está morta. Não é?
Ele se limitou a inclinar a cabeça, a observando.
— Como aconteceu? Quando?
Ele manteve a expressão impassível.
— A criada chegou ao apartamento em volta das 10h desta manhã. A hora em que sempre chega. Encontrou senhora Turner na banheira. Obviamente batera a cabeça e... Mas não queres, realmente, ouvir os detalhes. Não é?
Júlia virou o rosto.
— Claro que não. Foi um acidente?
— É o que parece. Falaste com ela, via telefone, nesta manhã. Certo?
— Não cheguei a falar. Mas quem te disse isso?
— Senhor Turner. Disse que ligaste a ela hoje na manhã.
— Me pediu para ligar. Mas não cheguei a falar. O telefone estava ocupado.
— Entendo. — Os lábios do detetive se contraíram num humor espontâneo. —
Foi o que nos disse. Por falar nisso, a que horas senhor Turner chegou ao escritório nesta manhã?
— Acho que às 9:20h.
— E não deixou o escritório desde então?
Júlia estava satisfeita por ter atrapalhado o interrogador e disse lealmente:
— Passou toda a manhã aqui.
— Isso é ótimo. — Ele também parecia satisfeito. — Já calculamos que morreu por volta das 9h. Se foi antes ou depois das 9: Eis a questão. Mas nenhum do telefone no apartamento estava fora do gancho quando lá chegamos ou quando a criada chegou. E disseste que a linha estava ocupada às 9:20h. Portanto, a probabilidade é de que estava viva nessa hora e sofreu o acidente pouco depois.
Ele sorriu, enquanto acompanhava Júlia até a porta.
— Não pedirei desculpa por te afastar do trabalho. Posso assegurar que foi um prazer. — A expressão se tornou subitamente ansiosa. — Admito que tive uma espécie de pressentimento. Como era o relacionamento entre os dois? Se davam bem?
Júlia quase contou nesse momento tudo o que acontecera. Ele parecia um homem afável e de confiança, fácil de se falar. Mas se conteve a tempo. Tinha certeza, no entanto, de que ele percebera todas as transições.
Enquanto ele abria a porta a expressão era de dúvida e perplexidade. Júlia sabia que ele não acreditou em sua resposta murmurada de que nada sabia a respeito dos Turner.
E fora por isso que naquela noite ele a esperava na calçada do prédio e a levara à lanchonete. Contudo, nem ele podia sondar o quanto ela aprendera nos últimos dois dias sobre o casamento infeliz. O próprio senhor Turner ignorava que ela conversara com sua esposa e sabia tanto. Seria possível ganhar algo com essa informação? Só serviria para magoar senhor Turner.
— Mas então por que — Júlia se perguntava — tinha aquele impulso de querer falar com sargento Ruderman de novo, de lhe contar tudo?
— Júlia.
Era Maria, que se metera no mesmo lugar que o detetive acabara de desocupar.
— Não fiques tão espantada. — Disse Maria, fazendo um muxoxo. — Vi quando se encontrou contigo na calçada e fiquei esperando. E sabes que não consigo resistir a uma fofoca. O que te disse? O que aconteceu?
— Nada aconteceu. Tornou a me interrogar sobre os Turner e nada contei.
— Mas isso é sensacional!
Júlia ficou surpresa.
— Sensacional? Por que dizes isso?
— Qual seria o sentido de criar mais problema ao pobre senhor Turner?
Ela se inclinou a diante, confidencialmente, antes de acrescentar:
— E agora me fales sobre o detetive. Te convidou para sair?
A mudança na cor de Júlia respondeu à pergunta.
— Eu sabia, até pela maneira como te olhou no escritório, nesta manhã. para minha grande surpresa, menina, fiquei com inveja daquele olhar. E na próxima vez em que eu te disser que não estou interessada nessas baboseiras sentimentais, que só o dinheiro conta e que não faz diferença se teu namorado é casado, depois de tudo o que aconteceu, por favor não acredites em mim.
Júlia pôs a mão na de Maria.
— Nunca acreditei em ti. Mas uma coisa em que quase acreditei foi que tu e senhor Turner... que vós...
— Senhor Turner? Estás falando sério?
Júlia deu de ombros.
— Teria explicado muita coisa. Mas sei que não é verdade. Mesmo assim, alguma coisa...
Franziu o rosto, enquanto olhava, além de Maria, as cabinas telefônicas vazias.
Estalou os dedos subitamente.
— E se ele não estivesse, ligando ao advogado ou a outra mulher?, Maria.
— Ele quem?
— Senhor Turner. Te lembras desta manhã, quando eu disse que ligava a alguém via outro telefone? E se estivesse ligando ao telefone da esposa? Eu teria um sinal de ocupado se tentasse ligar naquele momento. Não é?
Maria não tinha certeza. Júlia foi até o balcão e pediu que fosse trocada uma nota de 1 dólar. Entrou depois numa cabina telefônica.
— Preciso descobrir se é isso mesmo.
— A quem ligarás? — Perguntou Maria.
— Ligarei à casa de senhor Turner neste telefone e deixarei tocar. Depois discarei o mesmo número da outra cabina e verei se tenho sinal de ocupado.
Estendeu uma moeda de 10 centavos à fenda mas retirou a mão abruptamente.
— Não posso ligar à casa de senhor Turner, que pode atender. Ou a polícia pode ainda estar lá. Tem alguém em teu apartamento?, Maria.
Sua amiga teve um sobressalto.
— A família inteira.
— Minha família também está em casa. Precisamos dum telefone que ninguém atenda. Que tal o escritório? Maria franziu o rosto.
— Pode ser, mas acho que o automático da mesa telefônica transfere uma segunda ligação a outra linha. Assim, não seria um bom teste. Por que não ligas a um dos telefones particulares? A linha particular de senhor Turner não passa na mesa.
Júlia já largara a moeda na fenda. Discou cuidadosamente. Podia ouvir o telefone tocando no outro lado da linha. Subitamente, Júlia ficou boquiaberta.
Desligou lentamente, com uma expressão atordoada.
— O que aconteceu? — Maria entrou na cabina. — Por que desligaste? Pensei que deixarias tocar e depois ligar da outra cabina...
Júlia estava sacudindo a cabeça.
— Não há necessidade. Senhor Turner já fez o teste, ontem na noite! Foi por isso que ligou ao escritório. Agora compreendo por que ficou tão chocado quando atendi.
— Então foi mesmo ele? Assassinou a mulher? Ela estava, provavelmente, morta antes que ele chegasse ao escritório nesta manhã?
Júlia estremeceu.
— É inacreditável que isso possa acontecer com pessoas em seu próprio escritório. Pessoas que vemos todos os dias. Sabes o que me deixa arrepiada?, Maria. É saber que testemunhei tudo. Fui parte do que aconteceu mas não compreendi na ocasião.
Meteu a mão na bolsa para pegar o cartão do detetive.
— Sargento Ruderman disse que eu tinha um senso de lealdade mal-orientado.
Acho que estava certo. — Júlia discou o número no cartão. — É da delegacia?
Sargento Ruderman já chegou? Isso mesmo. Eu gostaria de falar consigo.
PRISÃO NA ESTRADA DO SUL
Robert Colby
Acabaram de deixar um trecho de alta velocidade da rodovia interestadual.
Agora, o caminho ao sul, em direção à Flórida, prosseguia numa estrada estreita, de mão dupla, passando em várias cidades pequenas. Determinado a alcançar o ponto de parada habitual entre Nova Iorque e a Flórida, antes de meia-noite, Stanley Sherwood ignorou o reduzido limite de velocidade e acelerou ainda mais o sedã novo e luxuoso.
Stanley e a mulher, Bárbara, viajavam sem parar desde o amanhecer. Era uma viagem familiar e monótona. Sempre com pressa de escapar ao inverno, geralmente paravam apenas prumas poucas horas de sono.
Stanley Sherwood fora um executivo de conta duma grande corretora de valor de Nova Iorque. Suas especulações pessoais eram muitas vezes mais arrojadas que as dos clientes. Assim, com 38 anos, acumulara uma fortuna grande o bastante para passar o resto da vida fazendo nada, se o desejasse. Mas vendera tudo, exceto algumas blue-chips, ações de primeira ordem, e estava a caminho de acumular outra fortuna em negócio imobiliário na Flórida.
A seu lado Bárbara, 31 anos, casaco de pele e atraente, embora às vezes parecesse enganadoramente altiva, serviu café duma garrafa térmica. Estendeu a xícara de plástico.
— Não, obrigado, meu bem. Pelo gosto, tenho certeza de ainda é o mesmo café
que nos serviram no ano passado, apenas um pouco requentado. Aqui todas essas espeluncas na beira da estrada costumam oferecer o mesmo café.
Bárbara riu.
— E devem ter também o mesmo cozinheiro, pois toda a comida tem um gosto igual.
— Não se chama de comida nesta parte do país, meu bem. Não leste as placas? Comes e gasolina. Dá um toque doméstico. Apenas uma comida simples e uma gasolina também simples.
— Também não costumam temperar a gasolina?
— Às vezes acrescentam um pouco dágua.
Bárbara acendeu um cigarro. Stanley perguntou a hora.
— Quase 10h. Está com sono?
— Não. Apenas cansado.
— Queres que eu dirija?
— Teremos de parar, para abastecer, daqui a pouco. Então trocaremos.
Passaram uma ponte e uma placa informou a mudança de condado. Outra placa lembrou que o limite de velocidade na noite era de 80km/h. Stanley estava guiando a pouco mais de 100km/h e novamente ignorou o aviso.
Momentos depois um clarão vermelho surgiu no espelho retrovisor e ele praguejou baixinho, enquanto o carro da patrulha emparelhava e um guarda fazia sinal para que parasse. O dinheiro não seria problema, a multa apenas um aborrecimento. Mas com a placa doutro estado, certamente o levariam até o posto.
Pela maneira como aqueles guardas matutos cuidavam das coisas, o processo talvez fosse lento. Já exaustos, a demora impediria que alcançassem o luxo e o sossego do melhor motel em todo o percurso.
— Provavelmente nos custará quase uma hora. — Disse a Bárbara, enquanto freava e parava no acostamento.
— Talvez se contentem com uma advertência. — Sugeriu ela, esperançosa.
Ele soltou um grunhido.
— Não há possibilidade. Darão uma olhada no carro e outra em ti. Com esse casaco de pele, tratarão de dobrar a multa. Esses caipiras vivem do sangue dos turistas que passam a toda em seus matagais, em carros imensos, rumo a Flórida.
— Falas como um cético profissional, Stanley. Tenho certeza de que não passa dum trabalho para eles e que não se importam com o lugar em que vivemos.
Com um suspiro, Stanley desligou o carro e ficou esperando. Havia dois guardas e um, o companheiro do motorista, saltou e se aproximou da janela de Stanley, com uma atitude arrogante. Era alto e corpulento, estava de bota. Algo no uniforme e na postura rígida fazia com que sua arrogância parecesse digna da Gestapo.
Stanley apertou o botão e a janela elétrica baixou, deixando entrar uma lufada de ar gelado.
— Tua carteira de motorista, senhor. — Exigiu o guarda. Stanley pegou a carteira e entregou. O guarda examinou rapidamente, à luz da lanterna, e devolveu.
— Teremos de te levar ao posto, senhor Sherwood. — Declarou, a boca contraída, o rosto uma mancha pálida na escuridão.
— Admito que estávamos em excesso de velocidade, mas é que, estávamos muito atrasados. — Disse Stanley, tirando da carteira uma nota de 50 dólares. — Por que não pegas este dinheiro e pagas a multa por mim?, seu guarda. Eu ficaria profundamente grato.
O guarda olhou a nota, sem a tocar. Os lábios se entreabriram desdenhosamente.
— Devias saber que isso não resolverá, senhor. E acho que tem muito mais com que te preocupar além duma simples multa por excesso de velocidade.
— Por favor, seu guarda, não me ameaces. — Protestou Stanley, guardando a nota na carteira. — Te limites a dizer o que estás querendo.
— Não demorarás a descobrir.
Os olhos do guarda correram o carro, entraram se fixando em Bárbara. Fez sinal, ao companheiro, para seguir na frente e entrou, arrogantemente, no banco de trás do sedã.
— Sigas nosso carro até o posto.
Stanley ligou o sedã e seguiu as luzes traseiras da radiopatrulha. Não adiantava argumentar com um guarda caipira, concluiu. Mantenhas a calma e converses com algum superior.
— Por que não nos contas qual é o problema? — Perguntou Bárbara, irritada, se virando ao guarda, com um rosto tenso, furioso. — Insinuas que cometemos algum crime grave, quando estávamos apenas em excesso de velocidade.
— Fiques calada — Interveio Stanley, suavemente. — Obviamente é um equívoco e esclarecerei tudo com o oficial que estiver no comando.
Deixaram a estrada pouco depois, entrando num caminho com o asfalto todo quebrado, que se transformava em terra batida até o portão dum prédio de madeira.
Havia um globo verde sobre a porta e uma placa que informava Sub-delegacia do xerife. O prédio era pequeno e sombrio.
Acompanhados pelos dois guardas, entraram numa sala retangular, com duas mesas escalavradas atrás duma grade e algumas cadeiras, uma máquina de escrever antiga e um arquivo.
O motorista do carro da polícia apertou um botão na parede, logo além da porta.
Ficaram esperando, de pé, desconfortavelmente, antes da grade.
Depois do que parecia tempo suficiente para reunir um regimento, um homem surgiu duma porta no fundo. Estava abotoando o casaco do uniforme de xerife e alisando o cabelo preto com a mão calosa. Os olhos castanhos profundos sob sobrancelhas espessas indicavam que acabara de ser acordado. Era corpulento, de nariz grande, rosto quadrado. Os olhos contemplaram Stanley e a mulher de casaco de pele com uma especulação ociosa.
— Ora! Ora! Floyd. O que temos aqui? — Indagou, jovialmente, ao guarda que efetuara a prisão e cujo companheiro estava no canto, todo arriado, fumando um cigarro.
— Temos encrenca, xerife. — Disse Floyd, passando ao outro lado da grade.
O xerife se sentou a uma mesa e os dois conferenciaram em voz baixa, as feições rudes do xerife se franzindo gradativamente. Floyd entregou a folha de seu bloco de anotação, no qual estivera escrevendo à luz da lanterna, no banco traseiro do carro dos Sherwood. O xerife foi vasculhar o arquivo e voltou com um papel, que pôs na mesa, ao lado das anotações do guarda. Comparou os dois papéis um momento. Levantou os olhos, com uma expressão soturna.
— Excesso de velocidade. Não gosto de gente que ultrapassa a velocidade permitida. Este condado pode ser duro com gente assim. Damos um jeito para que não nos esqueçam tão cedo. Mas tinha um bom motivo pro excesso de velocidade. Não é?, senhor.
— Não, senhor. — Disse Stanley, submisso. — Não tenho motivo razoável e lamento muito. Terei prazer em pagar a multa.
— Não tens motivo razoável?, hem! Pois discordo. Quando um homem está guiando um carro roubado, que vale 10 mil dólares, tem todos os motivos do mundo para seguir na estrada como um louco. Porque está, naturalmente, com pressa de escapar da polícia. E chamo isso um motivo mais do que razoável.
— Carro roubado? — Murmurou Stanley, incrédulo. — Que carro roubado? Comprei este carro em Nova Iorque há três meses e tenho o registro para provar que é meu.
Tirou a licença da carteira e estendeu sobre a grade. O xerife a examinou, depois olhou o papel em cima da mesa. Levantou os olhos a Stanley.
— É o mesmo carro do aviso de roubado.
— Portanto, é um engano. Não é?
— Nada disso. Ao que eu imagino, tu e a mulher roubaram o carro desse tal de Sherwood. Talvez fora alguma vigarice, não diz aqui. Mas tiraste o carro do cara, junto com carteira e documento.
— Fantástico! — Exclamou Stanley. — Absolutamente fantástico! Meu nome é Sherwood e esta é senhora Sherwood!
— Isso mesmo. — Interveio Bárbara, indignada. — Sou a senhora Sherwood e este é meu marido. Parecemos uma dupla de ladrão de carro?
— Devo admitir, dona, que mesmo neste casaco de pele roubado pareces muito boa para mim. — Respondeu o xerife. — Mas na penitenciária estadual feminina temos algumas donas com a mesma classe.
Soltou uma risadinha maliciosa, antes de acrescentar:
— Mas não tão elegantes, é verdade.
O xerife sorriu, enquanto Stanley dizia, rispidamente:
— Não estou interessado em teu senso-de-humor, xerife sei-lá-o-quê.
— Xerife Clyde Hamlin, senhor. E é melhor te acostumares a meu senso-de-humor, porque talvez tenhas de o suportar algum tempo.
Se recostou na cadeira e acendeu um charuto, com movimentos suaves, indolentes.
— Achas mesmo? — Indagou Stanley.
— Hum, hum... — Murmurou Hamlin, acenando com a cabeça, uma expressão de felicidade, formando um círculo com os lábios e soprando a fumaça a eles, através da grade. — O que estou dizendo é a pura verdade.
— Sou acusado de roubar meu próprio carro?
Hamlin estreitou os olhos.
— O que me dizes de minha assinatura? Posso assinar meu nome exatamente como está em meus documentos.
— Um bom vigarista é também um bom falsificador. Não é?, Bart. — disse, olhando o segundo guarda. — Foste guarda na penitenciária estadual e deves saber.
— É isso mesmo, xerife. Podes aceitar minha palavra.
— Se o carro é teu — interveio Floyd — mostres o título de propriedade ou a nota de venda.
— Achas que eu andaria com tais documentos? Estão guardados em minha casa.
— É uma pena. — Comentou o xerife. — Em nada ajudarão tão longe.
— Eu gostaria de chamar meu advogado. — Disse Stanley. Hamlin assentiu.
— Está certo? Ele é daqui?
— Claro que não! Nem sei o nome da cidade mais próxima. Meu advogado mora em Nova Iorque.
— Não permitimos ligação interurbana.
— Pagarei a ligação.
— Não faz diferença. É uma regra. E uma regra é uma regra. De qualquer forma, um advogado de Nova Iorque de nada adiantaria. Provavelmente não conseguiria chegar aqui antes dum ou dois dias. O tribunal indicará um advogado.
— Está certo. — Disse Stanley, resignado. — Quanto nos custará para superar essa falsa acusação?
O xerife se inclinou a diante, abruptamente.
— Está me parecendo uma oferta de suborno. E já tens uma acusação de tentativa de suborno. O guarda me disse que tentaste o subornar com uma nota de 50 dólares. Te aconselho a ficar de boca fechada antes de te estrepar todo, senhor.
— Eu gostaria de pagar a fiança. — Disse Stanley, se controlando.
Hamlin sacudiu a cabeça.
— Não será possível nesta noite. Roubo de carro é um crime que somente o juiz pode determinar a fiança.
— E quando o juiz estará disponível para fixar a fiança?
— Não posso dizer exatamente. Tem uma porção de caso para cuidar, o bastante para encher um celeiro. Com alguma sorte poderá resolver o assunto amanhã. Mas eu não contaria com isso.
— E até lá? — Indagou Stanley, fazendo se esforçando para manter o controle.
— Até lá este lugar é como um motel gradeado. Temos bons quartos no fundo, grátis. A comida não é grande coisa mas também não é das piores. E agora venhas e esvazies os bolsos nesta mesa!
Stanley hesitou. Floyd o agarrou no braço e o levou num pequeno portão até a mesa. Além da carteira com bastante dinheiro Stanley pôs na mesa as chaves, um lenço, um talão de cheques de viagem no valor total de 1500 dólares e seu talão de cheque. Também foi obrigado a entregar o relógio e um anel de ouro. O xerife pôs uma folha de papel na máquina datilográfica.
— Teu nome?
— Stanley Sherwood.
— Teu verdadeiro nome?
— Stanley Sherwood.
— Nome desconhecido. — Disse o xerife, datilografando.
Uma pausa e continuou:
— Endereço?
— O mesmo que está na carteira de motorista.
— Endereço desconhecido. — Murmurou o xerife, tornando a bater.
Outra pausa.
— Ocupação?
— Investimento imobiliário e mercado acionista.
Hamlin continuou datilografando. Relacionou as coisas na mesa, contando o dinheiro e os cheques. Entregou o papel a Stanley, que o leu com raiva e frustração, certo de que despertaria daquele sonho sórdido a qualquer momento.
Olhou a mulher, parada além da grade, boquiaberta. De olhos arregalados, ela dobrou a mão metida numa luva preta, levando à boca e mordendo. Parecia terrivelmente inepta e frágil. Stanley sentiu pena e ao mesmo tempo ficou ressentido com sua atitude tola, desejando que ela rompesse o silêncio com uma explosão em sua defesa.
— Se está tudo certo, podes assinar. — Disse Hamlin, estendendo uma caneta.
Stanley assinou o papel e o xerife o guardou numa gaveta da mesa. Os olhos se fixaram em Bárbara.
— É tua vez agora, dona.
Como ela permanecesse parada, Bart a agarrou no pulso e puxou, cambaleando, até a mesa do xerife.
— Tires as mãos da minha esposa! — Berrou Stanley.
— Tentes me obrigar. — Respondeu Bart, com um sorriso ameaçador, pondo a mão na coronha do revólver no coldre.
— Não penses que não irei. — Murmurou Stanley, contraindo os músculos, perigosamente.
— Não precisas ficar nervoso. — Disse o xerife, removendo o charuto dos lábios úmidos, num gesto indolente. — Isso não adiantará.
Tornou a olhar Bárbara, acrescentando:
— Muito bem, dona, ponhas tudo na mesa. — Como ela continuasse imóvel, atordoada, o xerife arrancou a bolsa de suas mãos. — Ficaremos com o relógio e o anel. A lei diz que não podes ficar com algo. A cela é grande e aconchegante, também não precisarás da pele.
Embora percebesse que tudo levava a isso, Stanley não acreditara que fossem mesmo prender Bárbara.
— Ela nada tem a ver com isso!, xerife. Não meterás minha esposa numa cela imunda!
— Pode chamar de esposa, se quiseres. A lei diz que é uma cúmplice e irá a uma cela como qualquer outro.
— Prestes atenção, Hamlin. — Ameaçou Stanley, se inclinando sobre a mesa.
— Se tu e teus guardas matutos insistirem em meter minha esposa numa cela, sob essa acusação forjada, quando sair daqui darei um jeito de espalhar tua carcaça gorda em todo o condado!
O xerife tirou o charuto da boca, calmamente, contemplou a ponta em brasa um instante e a comprimiu, selvagemente, no rosto de Stanley, o agarrando no cabelo.
— Talvez nunca mais saias daqui. — Disse ele, quando o grito de Stanley se desvaneceu a um gemido baixo, a mão cobrindo o rosto ardendo.
O xerife abriu a bolsa de Bárbara e a virou. Meia dúzia de coisas caíram ruidosamente na mesa, um batom rolando ao chão. Se levantando abruptamente, agarrou o casaco de pele na gola e o arrancou com um puxão violento. Tirou a luva da mão de Bárbara e estava tentando arrancar o diamante grande do dedo relutante, com uma energia frenética quando Stanley o empurrou e acertou um soco em cheio na boca, dando ao golpe todo o peso de seus 90 quilos e mais a intensidade de sua fúria.
Hamlin se estatelou no chão. Se levantou meio desajeitado, o sangue escorrendo entre os dedos com o qual comprimia a boca. Quando baixou a mão ao coldre, deixou à mostra um buraco irregular de dentes quebrados.
Levantou o revólver rapidamente e disparou. A pequena chama pareceu se projetar diretamente ao meio da testa de Stanley, mas o tiro foi sem direção e apenas arranhou a orelha esquerda.
Floyd desferiu uma cutilada no pulso do xerife, antes que pudesse apertar o gatilho no segundo tiro, agora mirado com todo cuidado. Bart bateu na cabeça de Stanley atrás e a escuridão o envolveu.
Quando recuperou o sentido Stanley descobriu que estava deitado no beliche inferior duma cela tão estreita que quase parecia possível estender o braço e tocar na parede do outro lado. Aparentemente, a cela não tinha janela, embora houvesse um tubo de ventilação no teto, ao lado da lâmpada nua.
A cela tinha uma porta de aço, com uma janelinha grande o bastante para se passar comida e observar os presos. Na parede do fundo havia um balde grande e coberto, que Stanley calculou ser uma concessão à higiene.
Observou tudo com apenas um pequeno movimento da cabeça. Tinha a sensação de que despertava com uma ressaca monumental. A cabeça latejava e tinha uma pequena bandagem presa na orelha. A face estava dolorida ao contato e começara a empolar. Lhe tiraram o sobretudo e a luva mas, excetuando isso, estava vestido como antes. A cela era desconfortavelmente quente, o ar parado estava impregnado com o cheiro forte de desinfetante.
Pensando agora que talvez houvesse outro preso na cela, se levantou cautelosamente. Mas não havia alguém no beliche superior. Verificou os bolsos, mas estavam vazios. Tirando o paletó, olhou ao redor, consternado. Era uma cela estranha, pouco mais que um caixão grande. Estariam mantendo Bárbara numa tumba semelhante? O pensamento o deixou insuportavelmente deprimido. E foi acometido por uma assustadora sensação de claustrofobia.
A única claridade provinha do outro lado da porta, era reduzida pelo tamanho do vasculhante e mal dava para dissipar a escuridão na cela. Quanto tempo já teria passado? Num lugar como aquele não se podia distinguir a noite do dia.
Ele foi até a porta e espiou na abertura, na altura do peito. Divisou um corredor estreito, com três outras portas, todas idênticas. As celas eram em fila, exceto a que ficava na extrema direita, no fundo do corredor, o cruzando. No final do corredor, à esquerda, um guarda estava sentado, de pernas cruzadas, numa cadeira de madeira, fumando um cigarro. Uma espingarda estava na parede, a seu lado.
Conseguiu passar a cabeça na abertura e chamou o guarda, que se aproximou com o cigarro na boca. Era jovem e magro, alto, os ombros meio encurvados, o rosto de camponês.
— Qual é o caso? — O cigarro balançando entre os lábios finos.
— Que horas são?
O guarda olhou o relógio.
— Passam 10 minutos de 11h.
— Da noite?
— Claro. O que mais poderia ser? Não ficaste apagado mais de meia hora. Estás te sentindo bem?
— Estou vivo, ao menos.
— Tens muita sorte, amigo. O xerife e seus homens não são de brincadeira. — Tirou a ponta de cigarro da boca, largou no chão e pisou, acrescentando, deliciado: — Cara, lhe acertaste um direto, para valer, no mastigador. Terá de providenciar ao menos dois dentes para voltar a comer direito.
— Parece que não gostas muito do xerife.
— Hamlin? — Sorriu, meio torto. — Não vou com sua cara. E tenho tantos motivos para isso que precisaria dum ano para contar tudo. Não concordo com o que está fazendo contigo. E quero que te lembres disso quando chegar o momento de saíres daqui.
— E quando achas que isso acontecerá?
— Não há como saber. Pela porrada que lhe destes, podes ficar apodrecendo aqui um mês ou mais, até que esfrie o bastante para pensar no caso.
— E minha mulher?
— A mesma coisa.
— Mas não pode fazer isso! A lei é clara! E diz que...
— Clyde Hamlin é a lei... sua própria lei. Ao menos aqui.
— Há gente acima dele, que podemos procurar.
— Quando? Já estarás com a barba descendo até a barriga. Além do mais, encobrirá tudo e seus homens jurarão qualquer coisa que mandar.
— É o que veremos. Qual é teu nome?
— Sam.
— Podes nos ajudar?, Sam.
— Não vejo como.
— Poderia falar com alguém por nós.
— Nada disso. Descobriria e me arrebentaria a cabeça. Não posso me arriscar.
— Eu faria com que valesse a pena, Sam.
— Um homem morto não precisa de dinheiro. E ninguém trai Hamlin. É pirado. Completamente doido. Aconteceu alguma coisa consigo, há tempo, que o deixou assim.
— O que foi?
— Talvez eu conte algum dia. Agora tenho de ir.
— Então não podes nos ajudar?
Sam ficou calado, as feições rudes se contraindo, enquanto pensava.
— Talvez eu possa encontrar algum meio de ajudar. — Disse, finalmente. — Mas não com a lei.
— Como então?
— Não sei. Me deixes pensar um pouco.
— Onde está minha mulher agora, Sam?
Apontou.
— Lá no fundo. Tem uma cela especial feminina. É mesmo tua esposa?
— É, sim. A cela é igual a esta?
— É, sim. Todas as celas são iguais. Só que a sua é maior. Dá para quatro mulheres, até cinco, quando o movimento está bom e ficamos cheios de freguês.
Stanley ficou consternado.
— Nunca viu o interior duma cadeia. Muito menos uma como esta.
— Deveria ser temporária. — Comentou Sam. — Uma cadeia provisória. Iam construir uma das boas mas nunca começaram. Queres uma fumaça?
— Como?
— Um cigarro.
— Bem que estou precisando. Obrigado.
Sam entregou um cigarro e riscou o fósforo para que Stanley o acendesse.
Pensou, instante, e entregou o resto do maço.
— Tenho mais. Se quiseres acender, basta gritar. Os presos não têm permissão para ter fósforo.
Se afastou. Além da porta que dava às celas, na área de recepção, um homem alto e grisalho, na casa dos 60 anos, elegantemente vestido e exibindo um ar de dignidade endinheirada, tinha uma confrontação com o xerife Hamlin e seus dois guardas, Floyd e Bart.
— Mas isso é um absurdo! — Disse o homem, veemente, embora a voz tremesse de emoção. — É falso e injustificado! Não tens o direito de me reteres aqui mais um minuto! Que provas tens? Onde está tua testemunha?
— Não me digas o que posso fazer. — Murmurou o xerife Hamlin, que estava outra vez atrás da mesa, de rosto franzido, o lábio inchado, o que ao menos tinha a vantagem de ocultar o que acontecera recentemente com seus dentes da frente. — Temos um aviso para pegar um motorista que atropelou e matou uma inocente mulher, atravessando a rua numa cidade 100km a norte daqui. Pois seguraremos esse homem aqui até que a lei daquela cidade mande alguém para o buscar.
Uma pausa e o xerife acrescentou:
— Isso mesmo. Nem que demore até o dia do juízo final, estarás aqui quando chegarem. E providenciarão as provas. Não preciso doutra prova além da que está neste pedaço de papel. — Baixou os olhos e começou a ler: — Um sedã 1968, verde claro, com pneus de banda branca. O pára-choque traseiro tem o emblema do automóvel clube e o pára-lama direito da frente está um pouco amassado. Parece teu carro. Não é?
— É verdade. Mas meu pára-lama foi amassado quando um homem deu marcha-ré e...
— Testemunha identificou a placa como a seguintes: — Continuou Hamlin, lendo. — ID-82347. O que achas disso?, senhor. Não é a placa de teu carro? E o carro não está registrado em teu nome... Howard W. Stoneman?
— Está, sim. Mas...
— E não serias descrito como — o xerife tornou a olhar o papel — caucasiano, sexo masculino, em torno de 60 anos, cabelo grisalho, magro, aparenta ser alto...Se parece contigo. Não é?
— Sim. Mas estou dizendo que é um erro! Nunca, em toda a minha vida...
— Já chega!, Stoneman. Venhas até esta mesa e esvazies os bolsos. Vamos logo! Floyd, esse homem está pregado no chão? O tragas!
Três dias se passaram e, presumivelmente, três noites também, embora ninguém pudesse distinguir uma coisa da outra, no confinamento imutável das pequenas celas.
Na noite seguinte a sua prisão, Stanley Sherwood ganhou um companheiro relutante para esquentar o beliche superior. Dennis Kinard era um homem pequeno e quieto, de 52 anos, despretensioso atrás dos óculos de aro de aço, apesar de ser vice-presidente duma corporação nacional de produto alimentício. Como Stanley, viajava à Flórida, em companhia da esposa, num carro que acabara de sair da revendedora.
Estava ultrapassando o limite de velocidade ao ser preso. Posteriormente, uma garrafa de escocês aberta foi encontrada no carro. A esposa fora manobrada a admitir que se revezaram ao volante. A garrafa servira como prova à acusação absurda de que guiavam embriagados. Estavam sob custódia, até que o juiz arrumasse tempo para fixar a fiança.
— É claro que se trata duma manobra, alguma fraude que ainda não imaginei. — Raciocinou Kinard. — Ou esse xerife caipira é um maníaco revoltado contra o mundo, especialmente o mundo das pessoas que têm alguma posição e riqueza. Não sei que outros pobres otários meteram nesta lata-de-sardinha, mas sou capaz de apostar o relógio de ouro de meu avô como possuem carros novos e luxuosos, como raramente são vistos nesta banda, a não ser quando passam a toda rumo sul.
— Não posso prever como ou quando tudo isso terminará. — disse Stanley. — Mas o guarda das celas, que parece um amigo no acampamento inimigo, insinuou que Hamlin é um psicótico que pode estar querendo se vingar dalguma coisa que sofreu no passado.
— Quando eu sair daqui — prometeu Kinard — esse homem tomará conta de sua própria cela, mesmo que eu tenha de procurar até o governador!
Depois da chegada de Kinard o guarda Sam se recusou a falar outra vez sobre a sua oferta de possível ajuda.
— Estou trabalhando nisso. — Era tudo o que dizia, num sussurro, quando Stanley estava sozinho na porta da cela. — Mas não comentes com alguém. Nada digas a teu companheiro de cela.
Na manhã do quarto dia, com Stanley num frenesi de raiva e frustração, Sam destrancou a porta da cela e levou Dennis Kinard ao chuveiro. E piscou a Stanley, atrás das costas de Kinard.
Stanley não compreendeu a piscadela até que chegou sua vez de tomar o banho de que tanto precisava.
O chuveiro era um pequeno cubículo no final do corredor. Tinha apenas um chuveiro de metal, uma pia e um espelho em cima. Embaixo do espelho, numa prateleira, havia um sortimento de artigo de barbear.
Sentando num banco, com a espingarda no colo, Sam esperou até que Stanley tomasse banho e começasse a fazer a barba antes de falar:
— Te deixei a último de propósito. Assim poderemos bater um papo um pouco mais longo, sem alguém nos interromper. Primeiro, falarei tudo sobre o xerife Hamlin. Como já disse antes, é um doido. E posso contar como isso aconteceu. Há cinco ou seis meses tinha uma filha. Uma coisinha linda, com quase nove anos. A mãe morrera há muito tempo.
Sam coçou a cabeça.
— O xerife vive aqui, na beira da estrada, neste lado da cidade, a uns 5km a sul, na estrada principal. Um cara da cidade grande e sua mulher apareceram a toda na estrada, a mais de 140km/h, de cara cheia, num desses carros bonitos de Nova Iorque, mais compridos que o carro fúnebre de senhor Peabody. O limite de velocidade era de 50km/h mas não deram importância.
— E imagino que atropelaram a menina. — Disse Stanley, se virando do espelho, com o rosto ensaboado.
— Isso mesmo. Não é preciso muita cabeça para adivinhar. Bateram com tanta força que foi esmagada como um percevejo contra o radiador. Depois seguiram em frente e nunca mais foram apanhados. Um motorista de caminhão viu tudo mas não conseguiu registrar a placa naquela velocidade. O carro simplesmente sumiu, como fumaça numa tempestade.
— Como podiam saber que as pessoas no carro estavam embriagadas? —indagou Stanley, raspando a barba de quatro dias com a navalha, mas olhando Sam no espelho.
— Qualquer pessoa que voa nessa velocidade, numa zona de 50km/n, só pode estar chumbada. — Insistiu Sam.
— E agora Hamlin esfola os turistas ricos que seguem ao sul em carros grandes e luxuosos. É isso?, Sam.
— Não entendi.
— Se vinga prendendo as pessoas como nós, sob qualquer acusação que puder forjar.
— É isso mesmo. E quanto mais tempo as detiver aqui, mais gostará.
— E como consegue escapar impune?
— Clyde Hamlin pode estar doido mas continua muito esperto. Sempre dá um jeito de contornar tudo.
— Lamento muito o que aconteceu com a filha mas isso não quer dizer que o desculpo. — Stanley lavou o resto do sabão do rosto e se virou, enxugando a pele com uma toalha de papel. — Nos ajudará, Sam?
— Depende.
— Depende do quê?
— Depende do quanto molhareis minha mão.
— Não me digas que também estás na conspiração, Sam. Isso te torna quase tão terrível quando Hamlin e seus rapazes.
Stanley vestiu a camisa suja e começou a abotoar. Sorria um pouco. Não estava realmente ofendido ou surpreso.
— Não podes me incluir na mesma pocilga que Hamlin e seus meninos. — Sam coçou o queixo pontudo. — Mas também não sou de fazer as coisas por pura caridade. E ainda mais do jeito como terei de fazer as coisas neste caso.
— E como seria, Sam?
— Já que não posso conseguir a ajuda de alguém lá em cima, o que nada adiantaria, o único jeito é vos ajudar a fugir da cadeia.
— E poderia fazer isso?
— Na madrugada, quando Hamlin está dormindo e seus homens estão patrulhando.
— Agora estás fazendo sentido, Sam!
— Mas é claro que saberiam que fui eu. Não poderia ser outra pessoa. Só tem um guarda nas celas, que sou eu. Durmo lá na frente, neste lado da porta, Estou sempre de serviço. Um dia de folga. Bart fica em meu lugar. Já trabalhou na penitenciária. Não tenho casa e fiquei contente em encontrar até mesmo este buraco para me abrigar.
Stanley meteu a camisa dentro da calça, pensativo.
— E se souberem que nos deixaste fugir o que te acontecerá?
— Eu estaria liquidado. Aqui jaz Sam, assim...
Passou um dedo na garganta.
— Mas deves ter uma solução pro problema, Sam, ou não estaríamos conversando. Não é?
— Só tem uma solução. Quando eu vos soltar terei de me mandar junto. Talvez só até o outro estado. Ou talvez até a Flórida. Até que seria uma boa. O sol do verão e cocos, mulheres bonitas, areia sob os pés...
As feições rústicas se iluminaram num sorriso de muitos dentes.
— Muito bem, Sam, o negócio está fechado.
— Não tão depressa, amigo. Fiques calmo até eu pôr as coisas na balança.
Precisarei dalgo mais além duma viagem de graça ao sul. Precisarei duma parada grande. Bem grande. Perderei um bom emprego, um lugar para me abrigar da chuva, uma comida para me esquentar a barriga. O que eu sempre quis foi abrir um pequeno negócio por conta própria. Talvez uma pequena lanchonete. Ou mesmo um estande de cachorro-quente.
— Estou ouvindo mas continuas muito longe. Sejas mais objetivo. Quanto?
— Acho que 10 mil resolveria o problema.
— Dez mil? Sam, estás exagerando. Desças das nuvens. Ponhas os pés no chão. Está bem?
Sam acendeu um cigarro, aspirou fundo.
— 10 mil. — Repetiu. — É pegar ou largar. para mim é a grande chance da vida. Para ti apenas uma insignificância. Prum homem importante como tu, o que representam 10 mil dólares? — Se levantou. — Penses nisso, se quiseres. 10 mil contra o quê? Dois meses, talvez seis, nesta lata fedorenta. Acho que será mais que seis, para pagar os dentes quebrados do xerife. Pode ser que agüentes. Mas tua mulher não resistirá. Outra semana e estará subindo nas paredes.
Stanley acenou com a cabeça, gravemente. Era verdade. Bárbara não seria capaz de suportar tal experiência. Ficaria irremediavelmente abalada. E não se podia dizer que Stanley não dispunha de dinheiro...
— Mas acontece que não tenho tanto dinheiro assim comigo, Sam. Onde poderia arrumar?
— Faças um cheque. — Disse Sam, um sorriso sonhador pairando nos lábios finos — Pode ser em meu nome, Sam Packer. Levarei ao banco onde tenho uma conta pequena e depositarei. Ficaremos esperando. Quando o cheque for compensado, tirarei todo o dinheiro e depois nós três nos mandaremos em teu carro espetacular, a toda velocidade.
E Sam fez com a mão o gesto do carro deslizando a longe.
— Pode demorar três ou quatro dias antes que o cheque seja compensado, Sam.
— Sei disso. Mas posso pedir uma compensação especial, mais rápida.
— E onde eu arrumaria o cheque?, Sam. Meu talão foi confiscado com todas minhas outras coisas.
— Ficou tudo guardado num armário. Posso pegar a chave.
— Podes também pegar o resto de nossas coisas? Os cheques de viagem, minha carteira, relógios, anéis e casacos?
— Por 10 mil dólares, por que não?
— E as chaves do carro?
— As chaves serão a primeira coisa. Afinal, não poderemos ir a alguma parte sem roda.
— Como saberei que posso confiar em ti depois que receberes o dinheiro?
— O que quereres? Uma nota promissória minha? Tens outra pessoa em quem possas confiar aqui?
— Está certo, Sam. Mas devo advertir...
— Não me venhas com advertência ou não fecharemos o negócio, meu chapa.
— E quando começaremos?
— Nesta noite mesmo, o mais tardar. Te tirarei da cela e te levarei até meu cubículo, para preencher o cheque. Faremos isso quando o tal de Kinard estiver dormindo. Ele pode contar a Bart depois. E Bart contaria a Hamlin. Não confies em alguém. Entendes? Fales com Kinard e estarás liquidado.
Stanley assentiu.
— Podes me deixar ver minha esposa um momento?
— Não tem possibilidade. Poderia provocar confusão. As outras mulheres também quereriam falar com seus homens. Mas tentarei transmitir uma palavra tua a ela, sem que as outras percebam. — Com o cano da espingarda, apontou à porta.
— Estás pronto? Então vamos embora.
Já passavam de duas horas da madrugada, no relógio de Sam, quando foi buscar Stanley. Enquanto os roncos suaves de Kinard confirmavam estar profundamente adormecido, Sam chamou baixinho e abriu a porta da cela. Avançaram em silêncio no corredor, até o quarto de Sam, que não passava dum armário embutido um pouco maior. Continha uma cama, uma mesa minúscula e uma cadeira. Um uniforme e outras roupas estavam penduradas nas paredes. Sam pôs a espingarda na mesa e abriu uma gaveta da mesa.
— Peguei o talão de cheque. — A mão vasculhando o interior da gaveta — Tornarei a guardar no armário ainda nesta noite e nunca saberão a diferença. Sei que tenho uma caneta aqui.
Stanley estivera olhando a espingarda. Estava a seu fácil alcance, com Sam de costas. Era uma decisão assustadora, a ser tomada numa questão de segundos. Se os outros estivessem perto, poderia haver um tiroteio e talvez alguém saísse ferido, inclusive Bárbara, depois que a tirasse da cela. Por outro lado, se Sam o traísse...
Stanley pegou a espingarda e a apontou.
— Te vires, Sam. E tomes cuidado com o jeito como o fazes. Sam ficou paralisado um instante, antes de olhar atrás e se virar, lentamente.
— E essa a boa-fé que tens em mim, hem? — Falou com expressão aturdida, sacudindo a cabeça. — Pensei que fôssemos amigos.
— Jamais comprei um amigo que não me traísse. Não é pelo dinheiro, que pode ser substituído. Penso em minha esposa. Quero que saia daqui e prefiro confiar nesta arma do que em ti. Ao menos é um processo mais rápido.
Sam acendeu um cigarro sem pedir permissão, se encostou na mesa. Estava perfeitamente calmo, controlado. Mesmo atrás da arma. Stanley se sentiu aturdido com a confiança dele.
— Quero as chaves, Sam. Das celas, de meu carro e do armário.
Sam soprou a fumaça.
— Me amarrarás ou baterás para me deixar sem sentido?
— Nenhuma das duas coisas. Espetarei esta espingarda em tuas costas, enquanto me ajudas.
— E se eu não quiser te entregar as chaves? E se eu pular em cima de ti neste momento, disputando a espingarda? Me darias um tiro?
— Não, Sam. Isso seria ruidoso demais. Prefiro quebrar alguns ossos em tua cabeça, sem fazer barulho.
Sam sorriu jovialmente.
— Eu estava apenas te testando, para saber do que és capaz. Vamos logo trabalhar no cheque. Esta espingarda não está carregada.
Se virou e desta vez tirou o talão de cheque e uma caneta da gaveta. O que dissera não era mentira. Stanley descobriu que a arma estava mesmo descarregada.
A jogou em cima da cama, furioso.
— Eu não deixaria uma arma carregada a alcance de minha própria mãe. — Comentou Sam, desdenhosamente. — Além do mais, não tinhas chance. Eu estava com a mão embaixo da mesa, no botão dum alarme que poderia despertar um cadáver no próximo condado. Mas nada de ressentimento. Gostei de tua coragem. E agora te sentes e faças logo o cheque.
Stanley deu de ombros. Se arriou na cadeira e preencheu o cheque.
— O tempo está se escoando depressa. — Disse Sam, guardando o cheque no bolso. — Voltemos à gaiola, passarinho.
Outro dia se arrastou, a monotonia interrompida apenas pelas refeições, que não eram boas nem más, apenas insossas. Logicamente, a noite se seguia ao jantar, embora não houvesse outra indicação além do relógio de Sam e do apagar da luz na cela às 9h.
O dia fora como todos os outros. Hamlin não aparecera, nem para se vangloriar.
Seus assistentes, Floyd e Bart, também não apareceram. Só foram vistos nas duas primeiras noites, ao passarem na porta da cela escoltando presos bem vestidos e mortificados, de ambos os sexos.
Depois do blecaute, Stanley adormeceu imediatamente. Despertou horas mais tarde, ao que parecia, embora a manhã ainda não fora assinalada pela claridade incômoda da lâmpada no teto. Inquieto, ficou deitado, de costas, olhando a dentro, à teia emaranhada de seus pensamentos. Estranhamente, quando ouviu o barulho, estava envolvido no problema absurdo de tentar recordar a cor exata dos olhos de Bárbara. Seria possível que realmente não soubesse?
O som foi criado pela abertura furtiva da porta da cela. Levantou os olhos a tempo de ver Kinard entrar silenciosamente, enquanto Sam se afastava, depois de trancar a porta cum estalido mínimo de metal contra metal. Stanley se levantou num pulo. Kinard parou abruptamente, se encolhendo todo.
— Onde estiveste? — Murmurou Stanley, embora já soubesse a resposta.
— Ti... tive uma conversa com Sam. Queria que avisasse as autoridades superiores que estamos sendo detidos aqui sem processo.
— É mesmo? E o que disse?
— Disse que não havia possibilidade. O risco era grande demais.
— E foi então que fizeste o cheque. Hem?
— Que cheque?
— És um bom sujeito, Dennis, mas é também o pior mentiroso que já conheci.
Como se estivesse em confissão, Dennis se arriou exausto no beliche de Stanley e começou a retorcer as mãos.
— Quando fez o pedido? Quando te levou ao chaveiro?
Na escuridão, a cabeça de Kinard balançou afirmativamente.
— E depois disse para não me contar ou o negócio não seria feito. Certo?
Kinard virou a cabeça, com um sorriso triste de resignação. E murmurou:
— Ao que posso perceber, a mesma coisa aconteceu contigo.
— Fomos enganados! — Disse Stanley, alteando a voz, temerariamente. — Fomos enganados juntamente com todos os outros otários que agarraram na estrada e trouxeram a este suadouro!
— Tens razão. Parece que é a manobra deles. O que faremos agora?
— O que faremos? Ficar sentados, esperando darem a próxima cartada?
— Acabarão nos soltando. — Balbuciou Kinard. — Não?
— Mas pode demorar até seis meses. E quando se pensa bem a respeito, por que nos soltariam nalgum momento, nalguma circunstância? Sabemos demais e somos muitos para podermos ser contestados. Além disso haveria prova, nos cheques descontados. Até o fato de que estivemos desaparecidos confirma nossa história. Nesta altura somos as pessoas que desapareceram misteriosamente na estrada ao sul. Devem estar vasculhando todo o país nos procurando.
— Mesmo assim, não têm opção além nos soltar. — Insistiu Kinard. — Nos libertam ou...
— Ou o quê?, Dennis. És um policial desonesto, envolvido numa manobra de extorsão tão suja que podes ser condenado à prisão perpétua se um promotor esperto der um jeito de converter a acusação em seqüestro para obtenção de resgate. No final, tudo se resume a seqüestro... Simplesmente pagamos nosso próprio resgate. O que farias com esses cidadãos considerados honestos e de confiança, que se apresentarão para te acusar, se por acaso os soltar?
Uma expressão horrorizada surgiu no rosto de Kinard, evidente mesmo na escuridão da cela.
— Pre... prefiro não responder a essa pergunta, se não te importas.
— Já respondeste.
Os cinco dias subseqüentes foram ainda mais aterradores porque transcorreram num vácuo inquietante de insinuação, sem ser aliviado por indicação do que estava a acontecer. Durante um dia e uma noite Sam sumiu e foi substituído por Bart.
Depois houve quatro dias de Sam Silencioso, pois não respondeu às perguntas e ignorou as acusações que lhe foram lançadas por meia dúzia de vozes, ressoando no corredor.
Empurrava as bandejas de plástico com a comida nas aberturas, sem dizer palavra, o rosto impassível aparecendo um momento, antes de sumir, para só voltar a ser visto na refeição seguinte.
No quinto dia depois que Stanley descobriu a trama, Sam não apareceu com o jantar. Nenhuma bandeja foi entregue mesmo quando as luzes das celas foram apagadas. E Sam não estava em seu posto habitual, no final do corredor, a espingarda encostada na parede, ao lado, fumando um cigarro atrás de outro.
Stanley trocou algumas especulações com Kinard, os dois gritaram da porta da cela e foram respondidos por gritos doutras celas, um deles identificado como sendo o de Bárbara, meio estrangulado, histérico. Todos os sons finalmente cessaram, numa morte antinatural. Nada restou além da pulsação distante do que Stanley identificara recentemente como um gerador acionado a gasolina.
Quando até esse som cessou abruptamente, todas as luzes se apagaram. Houve um período de pânico, com murros nas paredes, portas sendo sacudidas, se seguindo um silêncio ainda mais alarmante.
— Será que não percebes? — Disse Stanley a Kinard, que totalmente estava batendo com o ombro na porta da cela. — Foram embora. Todos foram embora.
Kinard ficou ainda mais apavorado.
— Está querendo dizer que foram embora e nos deixaram trancados aqui para morrer de fome?
— Exatamente.
Stanley experimentou uma profunda melancolia. Com Bárbara a apenas alguns passos de distância no corredor, era possível que nunca conseguisse a alcançar. Se postou ao lado de Kinard, na porta, e gritou:
— Não entres em pânico, Bárbara! Fiques calma! Encontraremos um jeito de escapar!
Não houve resposta, mas ouviu um soluço abafado. Desesperado, se afastou da porta e voltou ao beliche. Kinard se sentou ao lado, atordoado. Depois dum minuto, fungou e disse:
— Sentes cheiro de fumaça?
Stanley levantou a cabeça e respirou fundo.
— Não. Só o mesmo ar parado de sempre. Nada de fumaça. A única coisa em fogo é tua imaginação.
— É possível. Mas senti o cheiro de fumaça e acho que são capazes duma coisa assim. Nos deixar morrer queimados, dar a impressão de que foi um incêndio acidental. Será que não percebes? É a solução perfeita!
A voz se alteou num alarme trêmulo. Stanley foi forçado a farejar o ar outra vez. Agora era imaginação ou podia também sentir o cheiro de fumaça?
— Fumaça ou não, não comeces a gritar fogo!. As pessoas aqui acabariam se matando entre si na tentativa de escapar.
— Está esfriando. — Murmurou Kinard. — Desligaram o aquecimento, a fim de congelarmos até a morte. Talvez não tenhas te ocorrido, Stanley, mas todos morreremos na escuridão. O que quer que aconteça, nunca saberemos se foi no dia ou na noite.
— Cales a boca!, Kinard. Estás me deixando nervoso.
Cruzando os braços para se manter aquecido, Stanley fechou os olhos. E, surpreendentemente, dormiu. Quanto tempo? Seria um minuto ou uma hora? Algo o despertou. Um som que não podia situar. E houve um claro retinir metálico no chão da cela. O reconheceu imediatamente. Se levantou num pulo, colidindo com Kinard, que descia do beliche superior
Stanley se abaixou e tateou no chão. Se levantou com uma chave grande na mão. Estendendo o braço na abertura da porta e tateando a baixo, conseguiu inserir a chave na fechadura e girar. A porta da cela se abria.
— Está acabado, Dennis. — Disse ele, baixinho. — Estamos livres.
Tornou a pegar a chave e, segurando Kinard no braço, seguiu no corredor em direção à frente do prédio.
— Temos de encontrar alguma luz, Dennis. — Disse, na porta de ligação entre a área das celas e o escritório. — Até um fósforo ajudaria.
Stanley descobriu que a porta não estava trancada e a empurrou. Foram saudados pelo clarão suave dum lampião a querosene sobre a mesa de Hamlin.
Projetava sombras bruxuleantes na sala vazia.
— Um ótimo toque. — Murmurou Kinard. — No último segundo ficaram moles e passaram a destilar o mel da bondade humana.
— Provavelmente foi Sam, antes de fugir. — Disse Stanley, soltando uma risada desdenhosa. — Mas o lampião deve ter sido apenas um esquecimento.
Nada encontraram nas mesas. Não havia papel nos arquivos. Um armário grande estava aberto, vazio. Mas numa mesa estavam empilhados casacos e luvas. Até o casaco de pele de Bárbara, dos mais caros, fora deixado, por alguma ironia da natureza humana.
Stanley saiu e esquadrinhou a escuridão. Era um local remoto, cercado por mata. A distância divisou um estábulo arruinado, um barracão pequeno. Deu a volta no prédio e voltou, informando:
— Estamos numa fazenda abandonada. Eram falsos policiais. E escaparam com tudo: Carros e todo o resto. Estamos a pé.
—Não tem importância. — Respondeu Kinard. — Estamos livres!
Parecia quase feliz. Stanley pegou o lampião e disse:
— Vamos logo soltar os outros!
Estavam parados, sob o brilho frio das estrelas, seis homens e cinco mulheres, na escuridão do inverno. Stanley segurava o lampião e abraçava Bárbara, enquanto olhavam o prédio, que parecia pequeno, desolado e abandonado.
— Devemos o queimar. — Disse Howard Stoneman, o homem que fora falsamente acusado de ter atropelado uma mulher e fugido.
— Estaríamos apenas queimando uma prova. — Protestou Stanley. — E seríamos como os próprios animais que estamos caçando.
— A polícia cuidará do caso. — Disse Dennis — Se conseguirmos encontrar um policial de verdade num raio de 150km.
— A cidade fica muito longe? — Perguntou Stoneman.
— Sam falou em 5km, após chegarmos à estrada principal. — Respondeu Stanley. — Se não estava mentindo, a distância até a cidade deve ser 8km.
— Uma caminhada terrível com este tempo. — Resmungou Kinard, mais a si.
— Jamais conseguirei chegar lá de salto alto. — Lamuriou uma mulher.
— Conseguirás, nem que eu tenha de te carregar em todo o caminho. — Disse um homem.
— Pois partamos logo, duma vez. — Decidiu Stanley.
?
Dentro do estábulo antigo, o falso xerife Hamlin e seus três cúmplices, Floyd, Bart e Sam, estavam parados na escuridão, observando nas frestas das tábuas carcomidas. O uniforme já substituído por macacão e blusão, que usavam quando as operações policiais estavam suspensas. Hamlin observava o clarão do lampião se afastando. A seu lado o ganancioso Sam indagou quanto fora o lucro.
— Já calculei tudo na cabeça. — Anunciou Hamlin. — São 60 mil dos seis cheques que Sam conseguiu descontar no banco e 5800 dólares em dinheiro, se incluirmos os cheques de viagem que podemos falsificar. Relógios, anéis e o resto do saque darão mais 5000, calculando o mínimo que um receptador pode nos dar.
Tirando o aluguel desta velha fazenda, diria que dá mais de 70 mil. Levamos nove dias. Portanto, dá oito mil por dia.
— Puxa, isso é que é colheita! — Exclamou Sam, na maior alegria.
— É uma pena que não possamos nos livrar daquelas banheiras reluzentes —comentou Floyd. — Acho que daria para se chegar perto de 100 mil.
— Mas é muito arriscado. — Objetou Hamlin. — Além do mais, roubar carro não é nossa linha.
— Detesto deixar os carros aqui no estábulo. — Disse Bart, pesaroso. — Voltarão e, com certeza,os encontrarão.
— A verdade é que eu só queria ganhar um pouco de tempo extra, obrigando os otários a saírem daqui a pé. — Murmurou Hamlin.
Correu os olhos na escuridão, onde o brilho distante do lampião surgiu mais uma vez e desapareceu numa curva da estrada. Disse:
— Muito bem. Já sumiram e podeis apostar que demorará ao menos 2h antes de conseguirem despertar a polícia naquela cidadezinha miserável. Nessa altura já estaremos no outro estado. Vamos embora!
A porta do estábulo foi aberta e Floyd saiu com a falsa radiopatrulha, desprovida das marcas. Sam fechou a porta do estábulo e embarcou junto aos outros. Floyd seguiu à subdelegacia, onde Hamlin mandou parar. Sam entrou com uma lanterna. Não demorou a voltar.
— Está completamente limpa. Não deixamos pista. — Fez uma pausa. — É uma cadeia simpática e aconchegante a que construímos aqui. É uma pena. Todo esse trabalho por nada.
Hamlin soltou uma risada desdenhosa.
— Chamas 70 mil de nada? Além do mais, podemos converter outra velha casa de fazenda numa linda cadeia. Vamos logo, Floyd! Tem uma porção de condado perdidos aí, e ainda mais otários da cidade grande esperando para ser depenados!
NÃO SOMOS ESSE TIPO DE GENTE
Samuel W. Taylor
Me lembrei que numa tarde de domingo Pretinho foi envenenado, que a manhã fora fria, com um forte nevoeiro, como pode acontecer na região da baía de São Francisco mesmo em pleno verão. Peggy e eu convidáramos os de Kadt prum churrasco e a expectativa do acontecimento era algo sensacional para Sue, nossa filha, que ficou desapontada como somente uma criança de oito anos pode ficar na perspectiva dum churrasco dentro de casa. Mas o nevoeiro acabou se dissipando em volta de meio-dia e ficou o clima apropriado prum churrasco, não quente nem frio. O tipo de dia no qual nós, californianos, gostamos de receber os turistas. Um lindo dia?, repetimos, com indiferença. Não notara. É sempre assim, durante o ano inteiro.
Lucila e Carl de Kadt eram nossos vizinhos, além da cerca de parreira, no lado sul. Formavam um belo casal. Carl era bonachão, um pouco gordo e indolente, enquanto Lucila era uma ruiva esguia, determinada e bonita, embora pessoalmente eu prefira uma mulher como Peggy, com um pouca mais de carne em torno dos ossos e uma disposição que lhe permite relaxar ocasionalmente.
Carl e Lucila levaram Herb Berry pro churrasco. Herb era primo de Carl, de Sacramento, que estava passando o fim de semana. Herb fazia visita freqüente mas sempre achei que não era para ver Carl. Lucila era uma cozinheira excepcional e Herb era um sujeito grandalhão, com apetite voraz e, ainda por cima, solteiro.
Depois de comer fomos a junto da cerca, a fim de jogar uma partida de malha, Lucila e eu contra Herb e Carl. Estávamos empatados em 12 pontos quando Sue se aproximou correndo.
— Papai, Pretinho está doente! Mamãe quer que vás dar uma olhada nele!
— Já irei. Assim que terminar a partida.
Lucila e eu estávamos na frente, com 18 a 16, quando Peggy se aproximou.
— Jorge, acho melhor vires logo dar uma olhada em Pretinho.
Havia um tom de urgência na voz e por isso tratei de atender sem esperar que a partida terminasse. Pretinho estava deitado em seu canto da garagem. Era um cachorro pequeno, mistura de púdol e pêlo-de-arame, feio o bastante para ser simpático. Estava ofegante e a intervalo se contorcia e deixava escapar um gemido.
Estivera mordendo a língua.
Quando cheguei com o cachorro ao hospital veterinário em El Camino, o veterinário sacudiu a cabeça.
— Não se pode fazer mais. Cuidaremos apenas para que sofra o mínimo possível.
Tínhamos Pretinho desde que Sue nascera. Deixei escapar um suspiro longo, cansado.
Já passava de 10h quando cheguei a casa. No instante em que entrei, Peggy me fitou nos olhos e baixei a cabeça. Comecei a praguejar, o que é a reação impotente dum homem diante da lágrima duma mulher. E exclamei:
— Eu só gostaria de saber quem é capaz de fazer uma coisa dessa!
— Não, Jorge. — Protestou Peggy. — É melhor não sabermos.
Talvez ela estivesse certa. Peggy geralmente estava. Não queríamos saber quem eram tais pessoas. Pessoas como nós não queriam saber que gente assim existia.
Pretinho fora um cachorrinho amigo, era impossível o manter em forma, porque todos na vizinhança lhe davam comida.
Contamos a Sue, na manhã seguinte, que Pretinho devia ter sido atropelado por um carro. Peggy e eu decidimos que não queríamos outro cachorro, ao menos durante algum tempo, especialmente enquanto houvesse um envenenador na proximidade. Pensamos que talvez pudéssemos dar um gato a Sue. Um gato daria um jeito nos geômios{5}, que insistiam em esburacar os canteiros de flor de Peggy.
Olhando a trás, pensando a respeito durante as noites acordado, cheguei à conclusão de que envenenar o cachorro foi o primeiro passo dum plano para me matar. Mas se alguém me dissesse tal coisa na ocasião eu teria rido em sua cara.
Logo eu? O que eu fizera para que alguém pudesse querer me assassinar? Qual o proveito que alguém poderia ter com minha morte? Era absurdo. Coisas assim não aconteciam a gerentes das unidades locais da cadeia de sapataria Fit-All Shoe. Eu não estava perseguindo a esposa de alguém. Não jogava em cavalo nem enchia a cara habitualmente. Não estava envolvido no tipo de coisa que podia levar à violência nem conhecia pessoa que estivesse. Jorge Granger, avenida Colégio, 1138, Picos do Bosque, era apenas um homem comum, com uma esposa simpática e uma hipoteca razoável, com uma filha e uma fossa séptica problemática, pagando prestação dum carro, móvel, geladeira, cortador de grama elétrico, seguro e conta de dentista, com investimentos mínimos e geômios entre as petúnias. Havia mil homens como eu somente em Picos do Bosque. As pessoas não saem assassinando os homens comuns.
Mas se não fosse eu e sim Peggy a vítima visada? A serena e adorável Peggy.
Mas isso também era absurdo. Claro que era absurdo. E era isso que me mantinha acordado na noite. Talvez até fosse Sue a vítima visada. Qual a pessoa insana que podia estar tramando a morte da esposa ou duma menina de oito anos? Eu ficava acordado, recordando cada detalhe, tentando descobrir o fato significativo que talvez ajudasse a enfrentar a situação.
Lembrei que, ao chegar a casa no sábado, Peggy me contou que Lucila finalmente conseguira persuadir Carl a começar a pintar a casa. Há um ano ou mais que Lucila o vinha pressionando mas o indolente Carl podia se mostrar teimoso quando se tratava de fazer esforço desnecessário. Mas não estava fazendo muita coisa, explicou Peggy. Cada vez que olhava em cima da cerca via Carl descansando no alto da escada, fumando um cigarro e remexendo lentamente o balde de tinta.
— Nenhum fio de cabelo está fora do lugar, os sapatos continuam engraxados, a calça bem passada. — Comentou Peggy, rindo — Lucila gasta mais energia o pressionando que ele pintando. Jamais conseguirá mudar o marido. Por que continua tentando?
Carl era um ótimo corretor de seguro. Possuía um ar de serena confiança, somada a ausência de senso-de-humor, o que lhe permitia oferecer um prato cheio de chavões com absoluta sinceridade. Não tinha muito ímpeto mas Lucila dispunha do bastante pros dois. Era ela quem mantinha um registro de todos os chamados e obrigava Carl a responder.
— Lucila deve chamar Herb para ajudar ou Carl passará o verão inteiro nesse trabalho. — Comentei.
— Disse que o carro de Herb está com algum problema. Ele virá mais tarde, de ônibus.
Herb Berry chegou naquela noite e Lucila foi, de volkswagen, o buscar na estação rodoviária. Peggy comentou:
— Com Herb aqui acabarão de pintar a casa amanhã.
Herb era um grandalhão que gostava de exercício mas não tinha muita chance de o fazer. Há 10 anos ou pouco mais fora um jogador de beisebol profissional e passara duas temporadas atuando numa equipe da liga principal. Agora corretor imobiliário em Sacramento.
Começaram a trabalhar na manhã seguinte, antes da alvorada. Os ouvi fazendo barulho com os andaimes e baldes, enquanto ainda estavam na cama, as vozes claras e estridentes, no sossego da manhã. Ao nos sentarmos pro desjejum já pintaram quase todo o lado da casa que dava a nós. O cabelo louro de Carl estavam agora desgrenhados e a roupa salpicada de tinta, na medida em que tentava acompanhar o ritmo de Herb e Lucila. Ela estava no andaime com os dois homens, pintando também.
Eu estava servindo café quando Herb Berry soltou um grito. Levantei os olhos no instante em que Herb caía, de cabeça, do andaime, com o principal balde de tinta na mão. Lucila gritou. E depois Herb se levantou do chão, coberto de tinta da cabeça aos pés, desatando a rir. Nessa altura descobri que despejara café na toalha limpa de Peggy.
— Estás sensacional! — Gritei, à janela, a Herb.
Ele tornou a subir no andaime e começou a se esfregar no lado da casa, usando a roupa e o cabelo como uma brocha. Carl uivava de tanto rir. Lucila disse a Carl que fosse ao centro para comprar mais tinta, vendida na farmácia Plaza, que sempre abria nos domingos, enquanto lavara a tinta do cabelo de Herb. Carl se aproximou de minha casa pouco depois.
— Meu VW não quer pegar. Posso tomar emprestado teu carro para ir ao centro?
Entreguei as chaves.
— Isso te ensinará a não querer mais saber desses carros estrangeiros.
— Nunca aconteceu antes. Mas agora o carro se recusa a pegar.
Foi à garagem e eu voltei a meu desjejum. Peguei a xícara de café no instante em que Carl batia a porta do carro. Tomei um gole e estava baixando a xícara quando houve um ronco alto e algo me empurrou. Era como ser apanhado por uma onda imensa. A mesa foi levantada e projetada de cabeça a baixo através da sala.
Vi a cafeteira errando por pouco a cabeça de Peggy, enquanto ela caía a trás. Fui arremessado contra o fogão, os calcanhares mais altos que a cabeça. Todas as janelas da cozinha foram espatifadas e o teto levantado, deixando entrar alguns raios solares. Toda a parede que dava à garagem desmoronou a dentro. Apesar de tudo isso, porém, Sue continuou sentada exatamente onde estava, a colher erguida na metade do caminho à boca. Uma explosão pode fazer coisas estranhas e, naquele caso, não tivera efeito sobre a criança.
Minha memória não é muito clara sobre os poucos minutos subseqüentes.
Estava completamente tonto, meus ouvidos zumbiam. Peggy me ajudou a me levantar e havia um filete de sangue começando a escorrer em sua face (apenas um arranhão. A verdade é que tivéramos muita sorte). Lá fora, soavam gritos e pés correndo, com vizinhos se aproximando. Alguém começou a sacudir a porta da cozinha, mas a explosão a deixara emperrada.
— Todos bem aí dentro, Jorge?
Era o rosto redondo e a basta cabeleira crespa de Berto Miles na janela. Nosso vizinho do outro lado.
— Acho que sim. Como estás, Peggy?
Peggy parecia muito jovem naquele momento. Era a mesma mocinha esguia, de cabelo e olhos castanhos, muito grandes, que se sentara a meu lado durante um trimestre inteiro em psicologia 61 (nos sentávamos em ordem alfabética, seu nome era Greve e meu Granger), antes que eu reunisse coragem suficiente para convidar a sair.
— Estou bem — disse ela a Berto Miles. — E graças-a-deus Sue nem foi.
— Estão bem aqui dentro. — Gritou Berto Miles, virando a cabeça. — Jorge, Peggy e Sue.
— Jorge, Peggy e Sue? — Indagou alguém. — Então quem estava no carro quando explodiu? Quem foi explodido em pedacinho?
Nesse instante, dalgum lugar, ouvi Lucila gritar:
— Carl!
O caixão estava fechado no funeral. Acho que não restava muita coisa do corpo de Carl de Kadt. Senhor Wheeler, do gabinete do xerife, encarregado da investigação, concluíra que uma carga de dinamite fora colocada embaixo do banco dianteiro, ligada, por um fio, ao motor-de-arranque. Carl entrara, batera a porta, inserira a chave, virara para ligar o motor-de-arranque e fora morto instantaneamente. Ao menos não sofrera. Pobre Carl. E se não fosse por puro acaso, pensei, enquanto baixavam seu caixão à sepultura, eu é que morreria. A carga de dinamite não era destinada a ele. Obrigado, Carl, mas por que uma coisa assim tinha de acontecer?
Esse é o tipo de coisa que pode interferir com o sono da gente. Mais duas horas e todos teríamos saído ao carro, Peggy, Sue e eu, vestidos para ir à igreja. Mas Lucila finalmente conseguira persuadir Carl a começar a pintar a casa, o carro de Herb estava na oficina e o VW de Carl não queria pegar, Herb caíra do andaime com a tinta e Carl pegara meu dodge emprestado para comprar mais.
Voltando a casa, depois do enterro, Peggy disse subitamente:
— Foi por isso que envenenaram Pretinho. Se livraram do cachorro, a fim de poderem colocar a dinamite no carro durante a noite, enquanto estávamos dormindo.
Voltei a casa o mais depressa possível, preocupado com Sue, a quem deixáramos com uma babá. Foi maravilhoso descobrir que Sue estava bem.
Fora uma coisa planejada com antecedência. Não havia como prever o que aconteceria em seguida.
No dia seguinte, Peggy foi ao centro e comprou outro cachorro, pequeno e agitado, tão vira-lata quanto Pretinho fora. Sue ficou deliciada com seu novo cachorro, especialmente porque poderia o ter dentro de casa. Tínhamos um motivo para permitir isso. Um cachorro dentro de casa não pode ser envenenado na noite.
No dia seguinte, na loja, recebi uma carta. Fora remetida da própria cidade. O envelope parecia uma coisa que Sue poderia ter feito, com tesoura e cola, meu nome e endereço composto com letras e números recortados dum jornal. O bilhete dentro era do mesmo tipo de colagem. E dizia:
Tiveste sorte. Mas na próxima vez serás tu, mulher e filha.
Senhor Wheeler, do gabinete do xerife, disse que duvidava muito que houvesse outra tentativa da mesma forma. Era um homem magro, com uma ponte de quatro dentes na frente, não das melhores. Tinha o hábito de chupar pastilha de hortelã e uma paixão por pergunta que pudesse revelar um motivo para alguém querer me matar. Mas eu lhe disse uma dúzia de vezes:
— Não há motivo. É, simplesmente, um louco. Alguém fugido do hospício.
Senhor Wheeler insistia em dizer que duvidava dessa possibilidade e continuava a meter pastilha de hortelã na boca.
— Penses bem, senhor Granger. Não se trata dum crime de impulso. Alguém tem um motivo muito forte.
Um idiota! Era essa a avaliação que eu fazia de senhor Wheeler no momento.
Alguma vez já viste tua fotografia na primeira página e teu nome numa manchete de jornal? Alguma vez já foste apontado na rua, atormentado por curiosos, evitado por pessoas que não querem chegar perto até que a poeira assente? Alguma vez já experimentaste a sensação de estar apartado do resto do mundo, pensando que aquele homem não és tu, não pode ser, porque não é igual a ti e não se ajusta a teu lugar na vida?
Só que era real. Especialmente na noite, quando se acordava.
Os operários estavam consertando a casa. Eu tinha de enfrentar o pessoal do seguro a respeito e também da aquisição dum novo carro. Já era o suficiente para interferir com o sono duma pessoa. E enquanto permanecia acordado na noite, eu recordava cada detalhe do que acontecera, voltando, insistentemente, ao passado, tentando encontrar o incidente que fizera tudo aquilo acontecer. Todo mundo tem inimigo, dissera senhor Wheeler. Todo mundo tem algo que outra pessoa quer. Ou queria. Todo mundo já prejudicou e magoou alguém.
Tom Stone? Fora meu rival por Peggy e a competição fora das mais acirradas.
Tom ameaçara dar um jeito em mim, nem que fosse a última coisa que fizesse.
Mas também prometera esperar Peggy e seis meses depois acabara se casando com Alice Duke. Isso acontecera 11 anos antes. Tom e Alice tinham agora quatro filhos.
Henrique Traut fora assistente da gerência na primeira loja Fit-All, onde eu trabalhara. Nunca esquecerei seu sorriso furtivo na noite em que me mostrou como roubar a loja. Com nós dois trabalhando juntos, disse, poderíamos fazer uma limpeza em regra. Quando rejeitei a proposta compreendi que não me perdoaria.
Apresentou ao chefe relatórios desfavoráveis a meu respeito mas mesmo assim não fui capaz de o denunciar. Já estava pensando em largar o emprego quando Traut foi apanhado em flagrante. Jurou que se vingaria de mim por o denunciar, mas isso acontecera há muito tempo, antes de eu me casar. Na verdade pedi Peggy em casamento porque ficara com o cargo de Traut. Será que uma coisa assim está fermentando tanto tempo? Eu nunca mais tornara a ver Traut desde que fora despedido.
Na loja local tive de tomar uma providência cuma das mais respeitáveis donas-de-casa da cidade, Lídia Primrose, cujo marido pertencia ao conselho municipal, por causa de roubo. Eu não via por que deveria fornecer sapatos grátis a toda sua família. O incidente fora resolvido discretamente mas, certamente, tanto ela quanto o marido ficariam contentes se eu morresse.
Eu tivera também alguns atritos no clube de serviço comunitário, onde presidia o comitê de admissão. Em particular, impedira que Phil Buckwalter ingressasse no clube, ano após ano, apesar de sua preeminência, riqueza, influência e desejo intenso de ser associado, apesar das acusações de que assumia essa atitude por rancor pessoal. O fato puro e simples era que a casa noturna de Buckwalter não passava duma espelunca desonesta, algo que eu não podia provar nem abertamente acusar mas que me obrigava a impedir seu acesso, dum jeito ou doutro.
Ficando acordado na noite e começando a pensar a respeito, se fica espantado ao descobrir em quantos calos já se pisou. Desfeitas, afrontas, discussões, brigas.
Coisas que prontamente afastamos do pensamento, até que se começa a vasculhar a memória, procurando alguém que deixou a ofensa fermentar ao longo dos anos.
Os comerciantes que passavam para me cumprimentar, os membros da associação de melhoramento da rua Principal, as pessoas que freqüentavam minha igreja, os associados do clube, os vizinhos. Nenhum podia imaginar que a os cumprimentar eu sempre me perguntava se seria aquele. O caixa da lanchonete, o zelador do prédio, meu contador, assinante da gerência, vendedores. Alguém entre vós está a fim de me matar e a minha família. Senhor Wheeler, do gabinete do xerife, estava tentando descobrir por quê. Mas tudo o que me importava era quem.
Eu descobriria o porquê depois.
Eu tivera uma discussão com o vizinho do outro lado da rua, que tinha o hábito de sair de marcha-ré de sua entrada de carro e entrar na minha, a fim de facilitar a curva na rua estreita. Eu não me importava que aproveitasse minha entrada mas objetava a que sempre errasse e passasse sobre meus canteiros. Assim, Fred Lacey e eu trocáramos algumas palavras ásperas. Eu atropelara o gato dum sujeito que vivia no final do quarteirão e isso provocara uma discussão. O ressentimento poderia ter fermentado nele, se transformando em ódio assassino, apesar de haver se mudado há muito tempo e eu ter até esquecido seu nome? E é claro que não falávamos com Lóris Neilsson desde que ameaçara dar um tiro em Pretinho por andar em seu gramado novo. Mas a verdade é que ninguém na vizinhança falava com Lóris.
Mas tais coisas não poderiam se avolumar para virar homicídio premeditado. Ou poderiam? Ao que eu lera, a maioria das pessoas é morta por coisas banais: Uma desfeita, uma discussão, uma humilhação, uma afronta, a cobiça por uns poucos dólares. Vendo a situação nesse ângulo, podia haver muitas pessoas tramando minha morte, inclusive Peggy, que poderia a querer para receber o dinheiro do seguro.
Peggy também não estava conseguindo dormir. O rosto estava ficando vincado, os olhos castanhos ainda maiores. Tentáramos evitar que Sue tomasse conhecimento mas ela soube por intermédio das outras crianças, a partir do momento em que o assunto chegou às manchetes de jornal. O que representaria, para ela, saber que alguém estava planejando sua morte ou a morte de sua mãe e pai? A verdade é que a infância está sempre repleta de terror.
— Não sei o que fazer, Jorge. — Disse Peggy, falando baixinho, os dois acordados em plena madrugada.
— Pedi transferência. Não deve ser difícil. Muitos gerentes sonham com uma loja na Califórnia.
— Mas o que isso pode significar para tuas futuras promoções?
— Não ajudaria.
— Acho que isso não tem importância neste momento.
— Deves retirar esse pedido de transferência, Jorge. Deves.
— Não sou um herói, meu bem. Quero apenas fugir de toda essa terrível confusão.
— Mas aqui, ao menos, estamos entre pessoas que conhecemos. E todas as pessoas aqui estão se perguntando quem anda fazendo essas coisas.
— Tens razão. E uma sabe.
— E a polícia também está agindo. Todos trabalham no caso. O gabinete do xerife, a polícia municipal, porque recebeste a carta na loja. E agora é também um assunto federal, porque usaram o correio. Nossa proteção é justamente ficar aqui, Jorge, onde há tanta gente ajudando. É tudo o que temos. Não podemos perder a confiança em toda essa gente.
— Está certo, meu bem. Retirarei o pedido de transferência.
Estava certa. E, pensando bem, era inadmissível tentar fugir. Tratamos de nos adaptar, da melhor maneira possível. Eu ia almoçar em casa todos os dias, só para conferir a situação, em vez de comer no centro. Sue não mais usava o ônibus escolar. Peggy a levava à escola e a buscava todos os dias. Eu mantinha meu rifle de caça carregado e pronto, na prateleira superior do armário embutido no vestiário. Notei que Sue não mais assistia os filmes de oeste, policiais e outros programas de violência da televisão, aos quais se mostrara extremamente fascinada apenas uma semana antes. Não sei se isso acontecia porque era uma comparação pálida com a coisa real ou se estava nervosa demais para querer a coisa real. Uma criança não costuma revelar o que a está atormentando.
Quando cheguei a casa para almoçar, no sábado, os vizinhos estavam reunidos em torno da casa, todos falando sobre os chocolates envenenados.
— Eu disse a Peggy que não havia necessidade de te incomodar via telefone. — Informou Lucila.
A ruiva que enviuvara recentemente parecia em péssima condição. De qualquer forma, Luci era do tipo nervoso, que exagera em tudo. Estava vivendo de café e cigarro desde que Carl morrera, seis dias antes. A tragédia a abalara profundamente. O primeiro marido de Lucila fora morto num acidente de carro. O segundo levara um tiro durante uma caçada a veado. E agora Carl. Todos os três mortos acidentalmente. Eu sentia muita pena dela ao pensar que Carl morrera com a bomba que me era destinada.
Os vizinhos me informaram sobre os chocolates, todos falando ao mesmo tempo. Peggy estava ajudando Lucila a separar as coisas da casa. Havia coisas que o camnhião da mudança levaria a Sacramento, onde Herb Berry lhe arrumara um emprego no escritório imobiliário no qual trabalhava. Outras coisas seriam dadas ao exército de salvação e muitas ficariam na casa, que Lucila ainda tinha de pôr a venda. Havia também muitas porcarias acumuladas, que precisavam ser separadas e levadas ao depósito de lixo.
As duas fizeram uma pausa no meio da manhã e tomavam café em minha casa quando o carteiro chegara. Havia um pacote endereçado como a carta que eu recebera, letras e números recortados e colados. Lucila advertira a Peggy para não abrir, temendo uma bomba ou algo parecido. Ela telefonara a senhor Wheeler, no gabinete do xerife, que viera imediatamente e levara a pacote. Pouco antes de eu chegar a casa para almoçar, ele ligara para informar que o pacote era de bombom com uma espécie de arsênico. Liguei a Wheeler e descobri que não estava muito impressionado.
— Uma tosca tentativa. — Comentou, profissionalmente. Tudo aquilo lhe acontecia num dia de trabalho. — O endereço foi feito no mesmo estilo da carta que recebeste. E devia ter visto os bombons. Estão completamente melados, o pó branco se derramando dalguns. Não enganariam um bebê.
— Grande dedução. — Falei asperamente. — Mas já imaginaste se Peggy estivesse na casa de Lucila e Sue abrisse o embrulho? A menina estaria morta então!
— Não adianta gritar, senhor Granger.
— Idiotas, incompetentes, parasitas do dinheiro público!
Eu lhe disse exatamente o que pensava a seu respeito e de todo o gabinete do xerife. Depois de ter desligado, é claro.
Era como a vida na selva. Nunca se ficava na direção do vento. Se aproximava de cada moita na expectativa de que ali estivesse a emboscada.
O problema era que eu não estava acostumado à selva. Não sabia sobreviver.
Herb Berry chegou de Sacramento na tarde, a fim de ajudar Lucila a arrumar as coisas para mudança. Como a casa estava uma confusão foram jantar conosco. E Herb passou a noite conosco. Foi bom o ter ali. Era alto e corpulento, um antigo atleta, perfeitamente capaz de enfrentar qualquer situação. Tomara todas as providências pro enterro e cuidara dos detalhes para venda da casa de Lucila.
Depois que Sue foi se deitar, abri uma garrafa e relaxamos. Todos estávamos precisando. Tomei duas doses a mais, para dizer a verdade, mas foi maravilhoso me sentir bem e não me importar com algo, mesmo que isso implicasse uma ressaca na manhã. Eu não sabia que Herb podia ser tão engraçado quando bebia demais e Lucila riu e relaxou de verdade. Ela já tivera seu período de lágrima e estava agora rompendo a tensão com o riso. Quando a ruiva e o ex-jogador de beisebol engrenaram, ri tanto que cheguei a ficar com as costelas doídas. Peggy não gostou muito da maneira como estávamos nos divertindo, mas também nunca toma mais que um drinque. Pessoalmente, eu estava contente em ver Lucila se desvencilhar da tragédia. Ficara tensa como uma corda de violino e eu receara que pudesse arrebentar.
Na manhã seguinte, eu estava ajudando Lucila e Herb a embalar as coisas quando Peggy chamou da cerca. Ela e Sue iam à escola dominical e deixara o irrigador ligado nas petúnias. Eu poderia desligar dentro de 15 minutos?
Eu disse que sim. Mas esqueci a água ligada até cerca de 1h depois. Ora, pensei, não haveria mal em deixar as petúnias bem encharcadas.
Entrando em casa resolvi esquentar o café que sobrara. Me sentia indisposto da noite anterior. Acendi o gás embaixo do bule de café e procurei o jornal da noite anterior, que ainda não tivera a oportunidade de ler. Peggy nunca deixa os jornais espalhados e, como sempre, o encontrei na cesta de papel. O peguei e abri... e uma chuva de papel picado, como confete, flutuou até o chão. Alguém andara rasgando o jornal com uma tesoura. Parecia a obra duma criança, apenas recortando o jornal.
Mas eu sabia que não fora Sue e que não fora um simples recorte.
O jornal estava intato ao desjejum. Eu esperava dar uma olhada enquanto Herb fazia a barba, mas Lucila aparecera nesse momento. Eu sabia que o jornal só fora cortado depois que eu estava com Lucila e Herb na outra casa, ajudando a embalar as coisas. E compreendi tudo no mesmo instante. Fora Peggy.
A última pessoa no mundo que eu poderia imaginar. Peggy. Por quê? Pelo seguro? Um amante? O quê? Um romance com o líder do coro na igreja?
Encontros clandestinos no supermercado, vagueando entre os corredores com seus carrinhos? Beijos roubados atrás da porta fechada da sala da escola dominical, encontros entre os carvalhos e sequóias nas colinas? Tudo era possível. O amor sempre encontra um meio. Mas não condizia com Peggy. De jeito nenhum.
Ou será que condizia?
O que eu sabia realmente a respeito de Peggy? O que um homem realmente sabe a respeito de sua esposa? Era meiga, amorosa, mas isso também acontece com as esposas que tinham ligação clandestina e temperavam o desjejum do marido com arsênico. Nenhum marido seria envenenado ou liquidado pelo amante da esposa se desconfiasse que tal coisa podia acontecer.
Houve um silvo súbito no bule de café. Peggy. Me servi uma xícara. Peggy.
Acabei despertando, depois que tomei um gole do café escaldante. Tornei a pôr o jornal na cesta de papel e atravessei a cerca para continuar a ajudar Lucila e Herb.
Estavam no sótão, separando coisas. Fiquei trabalhando lá embaixo. Estava tirando os quadros das paredes da sala de estar e guardando numa caixa quando a campainha da frente tocou.
— Podes atender?, Jorge. — Gritou Lucila do sótão.
— Está certo.
Fui à porta da frente.
— Entrega especial para senhor Herbert Berry.
— Podes deixar que entregarei.
A carta estava endereçada com letras recortadas dum jornal e coladas no envelope. Fora despachada da própria cidade, o carimbo tinha menos de 1h. Eu sabia que Peggy a remetera, no caminho à escola dominical. Mas por que a Herb?
— Podes trazer aqui a cima, Jorge?
Era Herb, gritando lá de cima. O que significava que ouvira tudo. Eu teria de entregar a carta. E por que não? Nada sabia de Peggy. Eu era o único que sabia.
Fui ao fundo da casa, subi a escada e passei no alçapão que dava acesso ao sótão. Herb e Lucila estavam num canto, separando o conteúdo dum baú.
— Talvez o chefe vendera a propriedade Gresham. — Disse ele, enquanto estendia a mão ao envelope.
Ficou imóvel, abruptamente, ao ver como o envelope estava endereçado. Lucila prendeu a respiração, visivelmente mais tensa que em qualquer outra ocasião. Se entreolharam, lentamente, os rostos terrivelmente pálidos. A barba preta de Herb em contraste, as sardas de Lucila ressaltando. Subitamente ela pegou o envelope, rasgou e desdobrou a carta do interior.
— É mentira! — Gritou.
A voz de Herb estava rouca de tensão:
— Quem mandou?
— Peggy... quem mais poderia ser?
Então ela também sabia. Em breve estaria nas manchetes, para que todos tomassem conhecimento: Esposa trama a morte do marido.
— Peggy sabia a nosso respeito — Lucila estava dizendo. — Carl era um imbecil confiante. Jorge jamais poderia adivinhar. Os homens são uns tolos. Mas não se pode enganar uma mulher numa coisa assim. Se Peggy não sabia antes, deve ter percebido ontem na noite, quando bebemos demais. Sabe como nos sentimos um pelo outro.
E também percebi nesse instante. Toda a coisa.
— Te cales, sua idiota!
Herb a agarrou nos ombros e compreendi que não era a primeira vez que punha as patas imensas nela. Herb Berry não estivera fazendo aquelas viagens desde Sacramento nos fins de semana apenas pelos talentos culinários de Lucila.
Por que eu fora tão cego? O fim de semana é melhor período prum corretor imobiliário. Costuma realizar a maior parte dos negócios nos sábados e domingos.
— Fiques de boca fechada! — Herb advertiu Lucila.
— Se ela sabe então ele também. — Disse Lucila, bruscamente. — São casados.
Furiosa, ela jogou a carta ao chão. Vi o bilhete, com as letras recortadas do jornal: Carl foi o terceiro marido dela. És o próximo, seu idiota.
— Tramaram tudo isso juntos! — Gritou Lucila a Herb, estridente.
Herb se virou a mim. Ainda não me ocorrera, até aquele momento, como era realmente grande. Era uma cabeça inteira mais alto e devia pesar ao menos mais 40kg.
— O que tens a me dizer?, companheiro.
Eu poderia ter lhe contado tudo naquele momento. Carl de Kadt fora um corretor de seguro e um corretor de seguro é sempre seu melhor cliente. O mataram por dinheiro. A bomba no carro nunca fora destinada a mim. A primeira carta e os bombons envenenados visavam a dar a impressão de que eu era a vítima desejada, que a morte de Carl fora puramente acidental. Tudo fora planejado: A morte de Pretinho, a queda de Herb do andaime, o VW que não queria pegar. Os bombons nunca visaram nos causar mal. O endereço colado já era advertência suficiente e além disso estavam mal preparados, o arsênico se derramando em vários. E Lucila ainda estava de vigia, na ocasião da entrega, para intervir em qualquer emergência.
Era tudo perfeitamente claro, mas confrontando com um homem muito maior, ex-atleta, não pude deixar de dizer:
— Não tenho idéia do que estais falando, Herb.
— Sabem. — Disse Herb a Lucila. A verdade deve ter transparecido em meu rosto. — Falei que algo aconteceria!
Lucila era agora a mais forte.
— Mas o que podem provar? As pessoas sabem de muitas coisas sobre as quais não falam. — Ela apontou a mim. — Lembres a ele para não falar, Herb. Dês uma lição que não esquecerá tão depressa. O faças saber que não estamos brincando.
Era um tanto difícil acreditar, mesmo enquanto eu contornava as caixas e baús, me abaixava atrás duma pilha de jornal velho, me refugiava atrás da máquina de costura, corria a um fogão a lenha, que Herb Berry estava me perseguindo implacavelmente, os braços compridos estendidos, tentando me acuar num canto.
Herb era um amigo. Nosso relacionamento envolvera jogar malha, comer churrasco, beber uísque, contar história. Ríramos juntos na noite anterior, enquanto tomávamos uma garrafa de uísque. Dormira em nossa casa, um hóspede. Mas agora estava me perseguindo, me tangendo a um canto do sótão, enquanto eu disparava duma coisa a outra.
Fora um atleta profissional e estava relaxado agora, como um atleta sempre fica, aguardando a oportunidade, enquanto eu me desgastava correndo dum lado a outro.
É claro que Peggy não poderia saber que sua pequena manobra, iniciativa própria, levaria a uma situação como aquela. Tudo o que certamente tencionava era se livrar de dois assassinos. Fiquei tenso, sabendo que estaria perdido depois que Herb desse o bote.
Mas eu não ficaria acuado num canto. Quando tentei escapar, no entanto, ele estava esperando e arremeteu a cima de mim, com a rapidez e agilidade do atleta.
Eu sabia que não poderia alcançar o alçapão que dava acesso ao sótão. Então recorri à manobra que costumava usar quando era pequeno e me via perseguido por um garoto maior. Me joguei ao chão, ao lado, e estendi a perna para o fazer tropeçar.
O pé imenso de Herb bateu em minha panturrilha e pensei ter quebrado a perna. Gritou, um único grito, rouco, estridente, enquanto se projetava ao alçapão aberto. O ouvi bater na escada de mão e depois se estatelar no chão. Rastejei até o alçapão. Quando olhei a baixo, cheguei à conclusão, a julgar pela maneira como o corpo estava caído, de que Herb morrera.
Ajoelhado ao lado dele estava senhor Wheeler, do gabinete do xerife. E fiquei surpreso ao divisar dois guardas uniformizados um pouco além.
— Foi uma sorte eu não estar subindo a escada quando ele caiu. — Comentou senhor Wheeler. Ele se levantou e pôs uma pastilha de hortelã na boca. — Isso poupa ao estado a despesa do julgamento dum deles. Ela está aí em cima?
— Está.
— O que as pessoas são capazes de fazer por dinheiro. Tens uma esposa esperta, senhor Granger. Quando ela telefonou, nesta manhã, para informar que os dois estavam apaixonados, compreendi tudo no mesmo instante. Meu pensamento entrou em foco. Estavam fazendo com que nos concentrássemos em ti, enquanto escapavam impunes. Estás te sentindo bem?
— Estou, sim.
Ou ao menos eu pensava estar.
PROBLEMA DE PESO
Duane Decker
Fatstuff, o Gordo, pôde sentir com os dedos que o terno que a enfermeira trouxera era de tecido canelado. Isso significava que não era seu terno.
— Está havendo um erro. — Disse, contrariado. — Estas não são minhas roupas.
— Tens razão. — Confirmou a enfermeira. — Mas tuas roupas ficaram completamente rasgadas no acidente. Terás de te contentar com estas até comprar outras. Uma cortesia, se diga de passagem, do exército da salvação.
— Ã? — Murmurou Fatstuff, apaziguado. — E quando as ataduras serão removidas de meus olhos?
— Assim que o médico chegar. E chegará a qualquer momento.
— Ótimo. Acho que esperarei e só me vestirei depois que puder ver o que estou fazendo.
Se recostou na cabeceira levantada do leito de hospital. Podia se lembrar nitidamente do acidente. No final daquela manhã começara a atravessar a campina atrás da casa de Berta. Sabia o que fora sua desgraça: Tomara três talagadas de uísque de centeio para encontrar coragem, depois saíra ao sol terrivelmente quente.
Em seu estado físico precário, abatido como estava, fora péssimo.
No outro lado da campina, na beira do bosque, alcançara o poço seco, o lugar onde escondera o dinheiro, muitas semanas antes. Metera o dinheiro num balde galvanizado, que estava esperando no fundo seco do poço.
Tinha na mão um cabide de arame, a parte triangular achatada, parecendo um gancho na extremidade dum pepino. Prendera uma corda no outro lado. Formava um instrumento simples, destinado a ser manobrado dum lado a outro, até que o gancho prendesse na alça do balde. Então poderia levantar o balde e pegar o dinheiro, todos os 30 mil dólares.
Mas quando chegou no poço o sol quente e o uísque, o corpo debilitado, tudo se juntou. Um momento antes de desmaiar, se lembrava ter batido a cabeça e o corpo no cimento áspero do exterior do poço.
?
Agora, olhando o relógio sobre a entrada da enfermaria, Fatstuff constatou que eram quase 5h. Isso significava que já perdera 6h e que Berta estava, certamente, andando dum lado a outro da rodoviária de Pomerói, crescendo a suspeita de que ele pegara o dinheiro e fugira, a abandonando. Se ficasse furiosa, vingativa, podia muito bem telefonar e lançar a polícia em cima de Fatstuff. Tinha de sair dali o mais depressa possível, pegar o dinheiro e encontrar Berta na rodoviária de Pomerói, antes que ela perdesse a paciência. Perguntou à enfermeira:
— Como vim parar aqui?
— Um caçador passou lá. Te encontrou inconsciente. Meio te carregou meio arrastou até o carro. Foi assim que suas roupas ficaram estragadas. E te trouxe.
Se sentiu grato ao caçador. Podia recordar tudo claramente. compreender como tudo saíra errado desde o começo. Mesmo assim ainda não era tarde demais. O dinheiro continuava lá, esperando ser recolhido apenas por ele.
O começo até que fora bom. Estava vagabundeando, pedindo carona rumo Nova Iorque. Meses atrás, no anoitecer, se descobrira no arredor duma cidadezinha insignificante, Appleton.
A luz da casa da fazenda, a 100m da estrada, o chamava alegremente. Berta abrira a porta. O convidara a entrar, a jantar, sugerira que passasse a noite ali. E bem que estava precisando.
Era uma viúva pobre e solitária, tendo apenas uma casa de fazenda infestada de cupim. Fatstuff, no entanto, experimentara a maior alegria em passar uma semana ali. E depois que passara a confiar nele Berta lhe falara do plano que fizera há muito tempo, esperando apenas o parceiro certo.
Explicara que mais adiante, a caminho da estrada Postal, a cerca de 0,5km de distância, havia uma trilha de terra que só levava a um lugar: A fábrica de ferramenta Macklin. Todas as sextas-feiras, às 3h em ponto, o velho Macklin passava na casa de Berta e entrava na trilha de terra levando o dinheiro do pagamento mensal dos operários. Sempre fazia o trabalho sozinho. Sempre fora um individualista ferrenho, E agora estava velho, fraco, confiante. E indefeso.
Tudo o que Fatstuff precisava fazer, explicara Berta, era estar na trilha deserta antes das 3h, depois se deitar no meio do caminho, quando ouvisse o barulho dum carro se aproximando. Senhor Macklin, que era diácono na igreja local, certamente pararia o carro e saltaria para oferecer ajuda a um homem doente ou ferido. E Berta tinha uma velha luger com que Fatstuff poderia ameaçar senhor Macklin, enquanto o aliviava do dinheiro. Ela deixaria seu cupê escondido na beira da estrada Postal, a 50m de distância. Depois de pegar a dinheiro, Fatstuff seguiria até o carro e fugiria à rodoviária de Pomerói, embarcando num ônibus a Nova Iorque. Como ninguém veria o carro em conexão com o assalto, Berta pegaria um ônibus a Pomerói, entraria em seu carro e se encontraria com Fatstuff em Nova Iorque.
— É de fato muito simples. — Dissera Berta.
E Fatstuff concordara. Aceitara o plano integralmente.
Mas acontecera que o velho Macklin estava armado e houvera uma troca de tiro.
Mas Fatstuff vencera.
Dera o velho Macklin por morto. Parecia morto a Fatstuff, que não perdera tempo em verificar e fora pegar o cupê escondido de Berta. Mas agora, com um caso de homicídio em cima, não se sentira seguro em ir a Pomerói. Em vez disso, voltara à casa de fazenda, buscando refúgio. Sabia que teria de passar algum tempo escondido. Por isso pensara em esconder o dinheiro no poço seco. Enquanto Berta não soubesse onde estava o dinheiro teria de o esconder, o cuidar.
Mais tarde, via rádio, souberam que o velho Macklin morrera, mas não antes de fornecer uma descrição detalhada e terrivelmente acurada de Fatstuff.
— O homem baixo mais gordo que já vi. — O velho Macklin disse. — Um desses baixinhos que costumam chamar de Meia-Tonelada. Bochechas imensas. As coxas tão grossas que quase rasgavam a calça quando se mexia. Uma barriga estufada. Não se pode deixar de perceber. O tipo de homem que se destaca na da multidão.
Fatstuff e Berta compreenderam que isso significava que não poderiam exibir o rosto e corpo fora da casa. Em Appleton todos notariam e se lembrariam. Fora então que tivera a grande idéia: Ficaria escondido no sótão e faria dieta, até se transformar num homenzinho esquelético, anêmico.
Passara quase dois meses no sótão em solidão. Berta só lhe servia alface, leite desnatado, toranja, coisas assim. Os quilos foram se evaporando, até que finalmente parecia um esqueleto ambulante. E, finalmente, se sentira seguro para voltar a agir.
?
Se virou de lado no leito hospitalar. Estava pensando que fora a dieta de fome, os tragos de uísque e o sol quente que causaram o desmaio junto ao poço. Mas, sem saber disso Berta pegara o ônibus a Pomerói. Estava esperando. Se ficasse furiosa demais... Perguntou à enfermeira:
— Tenho de assinar algo para sair daqui?
— Não. Estás gozando de boa saúde. E tua mente... A concussão foi apenas temporária. Ora, eis o médico chegando!
Fatstuff se sentou na beira da cama. Sentiu um contato no ombro e ouviu a voz vigorosa do médico:
— Olá!
Fatstuff apalpando o terno.
— Doutor, claro que agradeço a roupa de presente, mas não achas que deveriam ser um pouco mais justas?
— Tenho certeza de que descobrirás que te cabem perfeitamente.
— Está brincando? — Insistiu Fatstuff. — Este terno parece tão grande quanto uma barraca!
— Acontece que tens comido um bocado desde que apagaste.
— Mas isso aconteceu nesta manhã!
Sentiu o médico removendo as ataduras dos olhos, cuidadosamente. E o ouviu dizer:
— Nesta manhã? Ora, mas que engano! Estamos no dia 17 de setembro e foste trazido no princípio de agosto. Tua mente e olhos estiveram inócuos desde então, desde que bateste a cabeça naquele cimento.
As ataduras foram retiradas. Fatstuff se levantou, lentamente. Em passos firmes, foi até um espelho grande, no outro lado da enfermaria. Chegou lá e ficou espantado ao se contemplar.
Não conseguia deixar de olhar.
Era outra vez o Meia-Tonelada. Lá estavam de novo as bochechas enormes, as coxas grossas, a barriga protuberante. Se alguma diferença havia, era a de estar ainda mais gordo do que fora antes da dieta de fome. Sabia que, no momento em que saísse do hospital seria apanhado pela polícia. Antes que pudesse pegar o dinheiro ou deixar a cidade. A suas costas ouviu o médico dizer:
— Já estás pronto? Podes ir embora agora.
Fatstuff tentou encontrar a voz mas tudo o que pôde foi pensar:
— Não! Não! Não!
ALGO ESTRANHO
James Michael Ullman
Assim que entrou na movimentada rua do centro, saindo da garagem, Herb Crain compreendeu que algo estava errado.
O carro parecia inexplicavelmente lento. Além disso as molas pareciam mais flexíveis que o normal, o motor barulhento demais e no primeiro sinal vermelho o pé desceu demais no pedal de freio.
— Mas que diabo!
A seu lado, a esposa Rosa, uma mulher baixa e atarracada, franziu o rosto.
— Qual é o problema agora?, Herb. Passaste a noite inteira reclamando. No restaurante a carne estava fria, no teatro tinha corrente de ar, e quando fomos tomar um drinque o serviço estava péssimo. Já não agüento mais e não me importo de dizer. Afinal, este é nosso 34º aniversário de casamento. Por que estás estragando tudo para mim? Acho...
— Claro, claro... — Murmurou, distraidamente.
Era um homem magro e pequeno, de cabeça branca, beirando os 60 anos, com uma atração pelas gravatas-borboleta que usara na juventude. Ao longo dos anos se acostumara de tal forma às críticas de Rosa a seu comportamento que não mais lhe causavam impressão.
— Mas há algo estranho neste carro. Não está reagindo da maneira certa.
— Não digas bobagem. És meticuloso demais. Sempre regulando o carro, passando um tempo exagerado remexendo embaixo do capô. Se passasses a metade desse tempo pensando no que o futuro nos reserva...
O sinal mudou. Herb calcou o acelerador mas outra vez a reação foi lenta demais.
—... estaríamos numa situação muito melhor. — Continuou Rosa. — Te aposentarás em breve. E tua pensão não será grande coisa. Nunca iniciaste aquele programa de investimento de que sempre falaste e agora teremos...
— Pararei um minuto.
— Que absurdo! Não é permitido estacionar aqui!
— Não me importo. Quero examinar este carro, porque de repente não tenho certeza se é mesmo nosso carro. Rosa estava incrédula.
— Mas do que estás falando? Deixamos o carro há cinco horas naquela garagem e nos deram um talão. Há cinco minutos entregamos o talão e devolveram o carro. A mesma marca, modelo, ano, cor, tudo enfim. Aqui...
Ela fez uma pausa, abrindo o porta-luva.
— Aqui estão todas nossas coisas, exatamente como as deixamos. Mapas rodoviários, o estojo de pronto-socorro, a lanterna, moedas para parquímetro... —
Ela fechou o porta-luva e olhou o banco traseiro. — E lá está o cobertor velho, para que o cachorro não suje o estofamento.
Com uma expressão sombria, Herb parou sob um lampião e desligou o motor.
Rosa sacudiu a cabeça, exasperada, enquanto Herb acendia a luz do teto e examinava o interior do carro. Era verdade, parecia o mesmo. Mas não se lembrava daquela mancha no teto.
Ele saltou. As placas eram mesmo as suas, lá estava o amassado no pára-lama dianteiro esquerdo, que alguém fizera num estacionamento. Mas o lugar seria exatamente o mesmo? Ao que podia se recordar, era um pouco mais alto.
E depois encontrou duas marcas que não existiam antes de levar o carro à garagem: Um arranhão comprido no porta-mala e um amassado grande no pára-choque traseiro.
Tomando uma decisão, voltou ao volante, ligou o carro e deu partida.
— Satisfeito? — Indagou Rosa.
— Estou, sim. Não é nosso carro. O porta-mala está arranhado e o pára-choque traseiro está amassado. Voltaremos.
— Mas isso é demais! Não quereres dizer que te lembras de todos os arranhões! E mesmo que não estivessem no carro antes de deixarmos, podem ter acontecido enquanto estava na garagem. Além do mais, por que alguém se daria ao trabalho de fazer com que um carro se parecesse com outro?
— É o que tenciono descobrir.
Poucos momentos depois encostou o carro no meio-fio, numa área de estacionamento proibida, no outro lado da garagem, uma estrutura de concreto, de quatro andares, parecendo um caixote.
— Se eu entrasse na rampa de entrada levariam o carro até o alto. Mas não pretendo lhes dar este carro enquanto não devolverem o nosso. Portanto, pararemos aqui. E se a polícia rebocar não me importo. Vamos embora.
Abriu a porta, mas Rosa se recostou no assento, cruzando os braços sobre o peito.
— Nem por 1 milhão de dólares eu te veria bancar o idiota. Eu sabia que não deveria te deixar tomar aqueles uísques e os drinques depois do teatro. O álcool sempre te sobe direto à cabeça mas nunca antes te comportaste assim.
— Está bem! Fiques esperando aqui. Na verdade, é até melhor. Se um guarda pedir que te afastes, digas onde estou e por quê.
— Farei nada disso! Tenho certeza de que te meteria numa cela junto com outros bêbados.
Deixou Rosa furiosa, atravessou a rua e entrou na sala de espera, onde havia cerca duma dúzia de pessoas.
Atrás do guichê da caixa uma moça corpulenta, de cabelo escuro, óculos de aros grossos, observou a aproximação, sem interesse.
— Com licença. Tenho uma queixa a apresentar.
— Sobre o quê?
— Peguei um carro aqui, há poucos minutos, mas o manobreiro me deu o carro errado.
A caixa piscou os olhos, aturdidos. Diversas pessoas se viraram para olhar.
— O carro errado? — Repetiu a moça. — Não estou entendendo. Se o manobreiro trouxe o carro errado, por que o aceitaste?
— Porque parecia meu carro. Tinha até minhas placas e minhas coisas no porta-luva. Mas não é meu carro.
— É a coisa mais absurda que já...
— Não é brincadeira! — As conversas na sala cessaram. — Sou um cidadão responsável, caixa dum banco importante. Eis...
Entregou o cartão de visita.
— Onde está o carro que te demos?
— No outro lado da rua. Minha esposa está lá, me esperando.
Enquanto falavam diversas pessoas entraram na sala e formaram uma fila atrás dele.
— Já me disseram que muitas coisas estranhas acontecem em garagens como esta, pneu trocados, até motor. Mas esta é a primeira vez, ao que eu saiba, que um carro inteiro é trocado.
Os olhos se estreitando atrás das lentes grossas, a moça o estudou um momento.
Seria a imaginação ou ela parecia, de repente, apreensiva com algo? A moça chegou a uma decisão e disse:
— Está bem, senhor. Nada posso fazer. Chamarei senhor Bland.
— Quem é?
— O proprietário. Tem vários negócios nesta parte da cidade e provavelmente está em seu escritório agora.
Virou as costas, pegou um telefone e discou. Herb não pôde ouvir o que ela disse. Atrás as pessoas na fila se remexiam impacientemente. A caixa levantou os olhos a ele e disse:
— Senhor Bland quer saber se podes discutir o problema em seu escritório. Fica num restaurante que possui perto daqui e...
— Não irei a alguma parte. — Declarou Herb, obstinado.
Lhe ocorrera que sua grande vantagem era a multidão na sala de espera. Quanto mais pessoas o ouvissem formular a bizarra queixa mais depressa alguma providência seria tomada. A caixa trocou mais algumas palavras com Bland e anunciou:
— Estará aqui dentro de 5min, senhor. E agora, por favor, te afastes um pouco para que eu possa atender essas outras pessoas.
Herb se recostou num banco. A caixa falara 5min mas 10min, 15min, 20min transcorreram e senhor Bland ainda não aparecera. Enquanto isso, quando não estava atendendo os fregueses, a moça de óculos na caixa parecia excepcionalmente ocupada ao telefone.
Finalmente, quase meia hora depois da moça ter chamado, um carro grande, último modelo, parou na rampa de entrada. Um homem alto, de corpo bem feito, na casa dos 40 anos, saltou. Usava um casaco azul-marinho e calça bege, o cabelo preto elegantemente arrumado.
Entrou na sala de espera e olhou a caixa, que acenou com a cabeça em direção a Herb.
— Sou Phil Bland. — Disse o homem, suavemente. — Tens certeza de que não podemos resolver o problema em meu escritório? Estaríamos mais confortáveis.
— Não. Prefiro conversar aqui.
— Está certo. — Bland sorriu e estendeu a mão. — Te importas de me dizer quem és?
Aturdido com a cordialidade de Bland, Herb apertou a mão e balbuciou uma apresentação.
— Muito bem, Herb. Comecemos a conversa. Tento dirigir um negócio honesto mas admito que de vez em quando acontecem coisas, lá em cima, das quais não tomo conhecimento. Qual é o problema?
Herb repetiu a história. A sala de espera ficou novamente em silêncio.
— Parecia teu carro mas não era. — Disse Bland — Não estou duvidando de tua palavra, mas como podes ter certeza?
— Já contei! Não estava reagindo da maneira certa. As molas, o freio, uma porção doutras coisas.
— E chegaste a essa constatação napenas uns poucos quarteirões?
— Isso mesmo. As coisas mais importantes, porém, foram o arranhão no porta-mala e o amassado no pára-choque.
— Amassados e arranhões? — Bland correu os olhos na sala, com expressão tolerante, conspiratória — As pessoas geralmente reclamam essas coisas com nossa companhia seguradora. Mas essa história sobre a troca dum carro inteiro é tão extraordinária que abrirei uma exceção em teu caso. Quanto queres pelos arranhões e amassados?
— Mas que diabo! Não estou tentando te enganar. Voltei até aqui porque o carro que me devolveram não é o mesmo carro que deixei.
Bland assumiu uma expressão sombria.
— Não estás brincando. Não é? Tentarei ser razoável. Mas o que exatamente estás querendo que façamos? Isto é, presumindo que tenha realmente acontecido o que disseste.
Uma boa pergunta. Herb compreendeu subitamente que não sabia exatamente o que Bland ou outra pessoa na garagem poderia fazer naquela hora e que sua volta tão cedo talvez fosse um erro impetuoso mas já chegara àquele ponto e tinha de persistir.
— No mínimo, quero que alguém me explique satisfatoriamente o que está acontecendo. Ou então subirei à garagem e procurarei meu verdadeiro carro.
— Para tua própria proteção não posso permitir que faças isso. Esta é a hora mais movimentada da noite. Os manobreiros sabem o que fazem nas rampas mas um estranho acabaria, quase certamente, sendo atropelado.
— Se não quer me deixares subir, talvez permitas que a polícia o faça.
— Claro, claro... Mas, primeiro, onde está esse carro errado que dizes que te entregamos?
— Como já informei a tua caixa, está no outro lado da rua. Minha esposa está lá e...
— Eu gostaria de dar uma olhada.
Herb e Bland saíram. Uns poucos curiosos da sala de espera foram atrás.
A área de estacionamento proibido, no outro lado da rua, onde Herb deixara o carro e a esposa, estava agora vazia. Incrédulo, Herb ficou olhando fixamente o lugar, enquanto murmurava:
— Não estou entendendo...
— Tua esposa guia?
— Claro. Mas geralmente não vai além da estação do metrô em nosso subúrbio.
Jamais guia com um tráfego tão intenso.
— Mas pode guiar. Não é? Tem as chaves do carro?
— Sempre leva na bolsa. Mas...
— Se sua chave funcionou, então só podia ser teu carro. Não é? Quanto tempo ela levaria para ir daqui até casa?
— Uns 20min ou 25min.
— E há quanto tempo a deixaste sentada no carro?
Herb olhou o relógio.
— Há quase 40min.
— Nunca te ocorreu que possa ter se cansado de esperar? Talvez seja melhor ligar a tua casa dentro dalguns minutos, a fim de verificar se chegou lá sã e salva.
Bland pegou o braço de Herb e o levou de volta à sala de espera. Herb notou, vagamente, que parecia agora haver muito mais gente ali do que antes.
Anunciou:
— Pessoal, parece que o carro misterioso se foi. A mulher de Herb o ligou com sua própria chave e foi embora.
— Não faria uma coisas dessa. — Disse Herb, tentando pensar direito. — Não nesta noite.
— Há algo especial nesta noite?
— É nosso aniversário de casamento.
— O que fizestes?
— Jantamos fora. E depois...
— Bebeste algo no jantar?
— Dois uísques. Mas...
— Sempre tomas dois uísques antes do jantar?
— Claro que não. Fomos ao teatro e... fomos tomar um drinque depois. Mas foi só um.
— Estou entendendo. Normalmente, nunca bebes. Mas nesta noite...
O telefone tocou no guichê. A moça de óculos atendeu, escutou um momento e disse:
— É para senhor Crain. Uma mulher. Diz que é tua esposa. Enquanto a moça entregava o fone a Herb todos os olhos estavam fixados nele.
— Herb? — Não podia haver dúvida de que era a voz de Rosa. — Estou em casa. E quero que venhas logo.
— Rosa? Mas por que não...
— Peguei um táxi, mas venhas imediatamente. Não quero mais falar a respeito.
Ela desligou. Atordoado, Herb ficou olhando o fone. Seria possível que estivesse enganado desde o início? Poderia alguns drinques ter alterado tanto seu julgamento? Tinha antes certeza absoluta de que era o carro errado, mas agora...
— O que disse?, Herb.
— Voltou a casa. E quer que eu volte também.
— Claro, claro... O 34º aniversário de casamento, um jantar de gala, uísque, teatro, um drinque depois... — Bland piscou sorridente às outras pessoas na sala de espera. — Disseste que foi apenas um, mas talvez esqueceste os outros.
— Ei, esperes aí! — Começou Herb, furioso.
— Está bem. Está bem. — Bland irradiava uma tolerância afável. — Chamaremos um táxi para ti. E até pagaremos a corrida. Na manhã dês outra olhada no carro. Se achares que foi danificado aqui, poderemos chegar a um acordo. Combinado?
Subitamente, Herb compreendeu o que devia fazer. O próprio Bland lhe oferecera a resposta. Respirou fundo, ajeitou a gravata-borboleta e puxou as mangas, se preparando pro esforço que faria.
— Desculpe. Talvez eu tenha bebido mais do que deveria. Não criarei mais problema. E obrigado pelo oferecimento, mas há um ponto de táxi na esquina. Pegarei um táxi lá. E só posso dizer uma coisa: Realmente pensei que era o carro errado.
Enquanto Herb saía da sala de espera, um carro parou na rampa de entrada.
Um casal saltou, de costas a Herb. A porta do carro estava aberta, o motor ligado.
Rapidamente, Herb se instalou ao volante do carro esperante, fechou a porta e pisou fundo no acelerador. O carro disparou a diante.
Atrás se elevou um clamor da sala de espera e alguns homens saíram correndo a seu encalço. Herb os ignorou. O coração disparado, num ritmo alarmante, foi subindo a toda velocidade ao segundo andar.
Ali, havia uma parede coberta com setas e indicações confusas. Herb não dispunha de tempo para tentar compreender. A opção era simples, virar à esquerda ou à direita. Resolveu virar à esquerda.
Foi um erro. Concluiu a curva para se descobrir avançando no caminho errado, através dum corredor comprido, entre carros estacionados. E outro carro, em sentido contrário, avançava a toda em sua direção.
Herb freou bruscamente. E o mesmo fez o manobreiro que guiava o outro carro. Pararam a poucos centímetros duma colisão de frente. Mas, no processo, o carro de Herb derrapou e bateu de lado nalguns carros estacionados.
Enquanto o manobreiro o fitava, espantado, Herb saltou. Ainda tonto do impacto, olhou ao redor. Isso mesmo, lá estava, metido num canto, a cerca de 30m, o carro verdadeiro, com a frente toda amassada e o pára-brisa estilhaçado.
Mais além, se afastando dum telefone na parede, havia dois homens, ambos de terno, arrastando Rosa.
Herb gritou. Eles se viraram.
Rosa estava amordaçada e tinha uma equimose na testa.
Herb contornou o carro do manobreiro, tornou a gritar e correu aos homens.
Um tirou uma pistola da cintura e mirou. Herb parou e abriu a boca para gritar de novo, mas a arma foi disparada, a escuridão o envolveu.
?
Uma mulher perguntou:
— Como te sentes?
Herb abriu os olhos. Estava deitado num leito de hospital. O fitando, atrás dos óculos de aros grossos, estava a caixa da garagem.
— O pior possível.
— A bala roçou teu crânio mas os médicos dizem que não foi muito grave. Tua esposa também está bem. A verás daqui a pouco. Antes devo me apresentar.
Ela mostrou um emblema e acrescentou:
— Sou a detetive de segunda classe Sue Marino. E em nome do departamento, quero te agradecer por ter sido alerta bastante para perceber que o carro não era teu e voltar para reclamar. Se não o tivesses feito a quadrilha de Bland poderia escapar impune.
— Impune? — Repetiu Herb. — Impune do quê?
— Do assassínio do manobreiro que levou teu carro a cima, quando o deixaste, no início da noite. O manobreiro e eu éramos agentes secretos. Seu nome era Gowan e se infiltrara na quadrilha de Bland. A garagem era um ponto de transferência de grandes cargas de narcótico. A mercadoria era escondida em carros dirigidos por mensageiros. Todos os manobreiros pertenciam à quadrilha. Antes dos acontecimentos da noite passada estávamos prontos para explodir toda a operação quando chegasse o próximo grande carregamento.
— Mas o que saiu errado ontem na noite?
— Um novo membro da quadrilha reconheceu Gowan. Dois homens estavam esperando em cima quando ele subiu com seu carro. Gowan os avistou e tentou escapar. Lhe estouraram os miolos com espingardas. O pára-brisa de teu carro ficou todo estilhaçado, o interior cheio de sangue, a frente toda amassada quando bateste contra a parede. Não estava em condição de ser devolvido ao proprietário.
— Por que não disseram simplesmente que meu carro fora roubado?
— Isso levaria a polícia à garagem. A quadrilha precisava de tempo para limpar a sujeira lá em cima, se livrar de teu carro e do corpo de Gowan. Assim usaram os contatos no submundo para determinar o roubo dum carro igual ao teu. Nesta cidade isso não demora muito. Esperavam que, no escuro, não percebesses a diferença. Planejavam te seguir e roubar o carro mais tarde, a fim de que nunca soubesses o que acontecera. Comunicarias à polícia um roubo de carro de tua residência e não duma locadora donde desaparecera um agente secreto da polícia.
— Assim, quando voltei com o carro, resolveram me matar e também a Rosa.
— Isso mesmo. A qualquer custo queriam te impedir de procurar a polícia ontem na noite. Seqüestraram tua esposa e depois tentaram te atrair a longe com o telefonema. Mas eu já estava preocupada com Gowan. Normalmente, eu o via freqüentemente do guichê. Mas havia horas que não aparecia. E quando apareceste, com tua história absurda, e Bland concordou em vir à garagem para falar contigo, tive certeza de que o incidente estava relacionado com o desaparecimento de Gowan. Dum modo geral Bland ignorava todas as reclamações dos fregueses.
— Os telefonemas que deste enquanto eu esperava Bland foram à polícia?
— Exatamente. Enchemos a sala de espera com policiais à paisana. Mas ainda não sabíamos o que acontecera a Gowan ou como agir na situação. Assim, não poderíamos ficar mais felizes quando entraste naquele carro e subiste na rampa. Isso nos permitia tudo. Nossos homens saíram atrás de ti, salvaram tua esposa e prenderam toda a quadrilha. Muitos já falaram o suficiente para garantir condenação.
Fez uma pausa.
— Só tem uma coisa. Depois que tua esposa telefonou, por que não pegaste um táxi para voltar a casa, como sugeriu? Nos contou que tinha um revólver encostado na cabeça durante o telefonema e só pôde dizer umas poucas palavras. Não teve possibilidade de te avisar de que era uma armadilha.
— Foi justamente por isso que receei que algo lhe acontecera. — Herb sorriu.
— Se tivesse realmente ido até casa sozinha diria mais que poucas palavras. Mas o que finalmente me levou a tomar a decisão de roubar um carro e subir foi uma coisa que Bland disse. Sabia que era nosso 34º aniversário de casamento mas eu não lhe dera essa informação. Obviamente, ele ou alguém trabalhando para ele soubera disso por intermédio de Rosa. O que significava que estava envolvido até o pescoço em tudo o que acontecia naquela garagem.
A GRANDE CAÇADA
Talmage Powell
Não é difícil compreender por que não posso determinar a localização da ilha. É uma dessas centenas de ilhas que se desprenderam da massa continental, ao longo do perímetro do golfo do México, do leste do Texas ao oeste da Flórida.
Incontáveis dessas ilhas permanecem como foram criadas, selvas de mangues subtropicais, enxameando de vida venenosa, separadas da civilização por pequenas baías, estreitos, braços-de-rio. Tais ilhas apresentam um padrão e por isso têm muita coisa em comum.
Os incorporadores têm se instalado em inúmeras dessas ilhas da costa do golfo, abrindo a selva com trator, bombeando, drenando, aterrando, plantando grama e palmeira, fazendo rua, marina, campo de golfe, lote para casa, escola e condomínio luxuoso. Dedicadas à bela-vida, essas ilhas também têm muita coisa em comum.
Aquela da qual estou falando, no entanto, é usada prum propósito que a torna singular.
Contemplei a ilha em primeira vez dum helicóptero em vôo baixo, num dia quente, abafado. Parecia pacífica e convidativa, nadando em nossa direção num golfo cintilante, dum azul-esverdeado. O formato era o dum dedo estendido no mar sereno, com 7km ou 8km de comprimento e 3km de largura.
A extremidade norte fora suntuosamente preparada para habitação humana. Entre gramados e jardins tropicais, uma casa moderna, de vidro e sequóia, projetava suas três alas ao sol. O gramado se inclinava suavemente a uma praia branca e a marina, onde flutuavam uma lancha de alto-mar e uma pequena escuna, com as velas ferradas.
A sul da casa havia uma imensa piscina, no formato de rim, quadras de tênis, uma pista de pouso com um cessna estacionado. Ao lado, havia duas construções de cimento, que calculei alojarem as bombas, geradores e outras coisas indispensáveis para manter a ilha em perfeito funcionamento.
Aquele paraíso artificial ocupava apenas a extremidade norte da ilha. Menos de 1,5km a sul da casa, a selva se estendia, um emaranhado verde, criando o próprio crepúsculo, intemporal, sempre se renovando. Parecia com paciência de Jó, aguardando o momento em que reivindicaria de volta a pequena parte que as pessoas subtraíram.
LaFarge, o xerife, estava pilotando o helicóptero e até então se limitava a grunhir cada vez que eu perguntava aonde me levava e por quê.
Consciente do peso das algemas nos pulsos, estudei seu perfil, de ossos salientes, trigueiro, cruel. Um brilho nos olhos escuros, sob as sobrancelhas espessas, uma contração dos músculos no corpo imenso, me advertiram que a ilha era nosso destino.
?
A cidadezinha de LaFarge, Ogathalla, era um pontinho sem importância no mapa, uma encruzilhada de prédios carcomidos, no meio dos pinheiros, pouco mais que uma placa de limite de velocidade e um sinal de trânsito na rua principal, para deter a grande kawasaki que eu estava guiando.
Antes que o sinal mudasse, uma radiopatrulha vermelha e branca, empoeirada, emblema no lado e luz piscando na capota, encostou diante de minha motocicleta.
O vulto grande e indistinto atrás do volante se inclinou em minha direção e acenou com o polegar ao meio-fio.
Obediente, empurrei a motocicleta até o meio-fio. O homem que eu conheceria como LaFarge saltou do carro da polícia e avançou a mim. Me estudou atentamente, meu rosto um tanto esquelético, o corpo em brim, o cabelo louro e crespo sob o capacete, os olhos atrás dos protetores, as sandálias de couro, o saco-de-dormir preso atrás do assento.
— Qual é teu nome?, garoto.
— Rogers, seu guarda.
— Aonde ias?
— Descendo a costa.
— Descendo a costa aonde?
— Talvez Tampa. Ou Sarasota, Forte Myers... Qualquer lugar para trabalhar e passar o inverno ao sol.
— Donde vens?
— El Passo.
— E antes disso?
— Fênix, Los Angeles, Las Vegas.
— Tens gente? — Os olhos escuros e profundos fazendo com que a pergunta ficasse importante.
— Gente?
— Família. Alguém que possa responder por ti.
Tirei os óculos protetores e o fitei, franzindo o rosto.
— Por que preciso de alguém para responder por mim?
— Não costumamos dar boa-vinda a vagabundos que aparecem em Ogathalla de motocicleta.
— Não sou exatamente um vagabundo de motocicleta, seu guarda. Tenho dinheiro. Pago tudo o que consumo.
Chutou o pneu da frente quase gentilmente.
— Apenas passeando aí, conhecendo o país, desfrutando a liberdade, trabalhando quando te dá na veneta?
— Mais ou menos isso.
Mas era mais profundo. Remontava a questões difíceis, indagações cristalizadas em minha mente na ocasião em que fui um dos últimos soldados a voltar do Vietnã. Perguntas simples, sem resposta imediata: Quem sou, onde está a verdade entre as falsidades, o que significa viver, o que fazer com a minha vida.
Eu estava tentando definir uma porção de dúvidas que me dominavam mas duvidava de que aquele rufião de uniforme pudesse compreender, mesmo que estivesse interessado. E, por isso, acrescentei:
— Resumiste tudo com perfeição, seu guarda.
— É o que veremos. Podes estar certo de que descobriremos tudo a teu respeito. — se deslocou ao lado, com passo curto. — E agora saias dessa motocicleta, garoto. A cadeia local fica ali adiante. Dá para ir a pé.
Fiquei atordoado de surpresa. A expressão em meu rosto lhe arrancou um riso brusco.
— Ultrapassar o limite de velocidade ao atravessar a cidade já servirá, para começar. Queres acrescentar também uma acusação de resistir à prisão?
Senti o ímpeto de o agredir e fugir na motocicleta. O percebeu em meus olhos e baixou a mão ao revólver.
— Faças isso. — Convidou, suavemente. — Gosto de pisar em gente de tua laia, esmagar com o calcanhar. Faça isso e te acertarei antes que os outros tenham chance.
A referência aos outros não fazia mais sentido que o resto da situação. Mas senti claramente o sadismo e não sobrevivera até aquela altura da vida para oferecer a um xerife pré-histórico uma desculpa para descarregar seus recalques.
?
Passei o resto do dia numa cela de 2×3m2, na cadeia de Ogathalla. As celas perto de mim, no prédio velho e decrépito, estavam vazias, me deixando suspenso num calor sufocante e aos resquícios dos cheiros de 10 mil ocupantes anteriores.
Eu não estava ainda sentindo muito medo. Calculava que LaFarge era um rufião entediado, querendo reforçar a auto-imagem como homem forte. Me prendera sob falso pretexto mas não poderia ir além disso. Afinal, estávamos em Estados-Unidos da América.
Não podia perceber outra possibilidade. Eu vinha do nada, seguia ao nada.
Tinha dinheiro para viagem: O suficiente, esperava, para satisfazer LaFarge e um juiz desonesto, num tribunal irregular.
Acabei dormindo, numa poça de suor azedo e com o fedor do beliche incômodo.
?
Na manhã seguinte LaFarge apareceu na cela, me sorrindo através das grades da porta. Passou um pequeno prato de estanho na abertura na base da porta.
— Desjejum, Rogers.
Segurei as barras, as articulações embranquecendo.
— Quero um advogado.
— Já tens idade suficiente para não te preocupares com essas coisinhas. Relaxes e aproveites a hospitalidade de Ogathalla, enquanto podes.
Pareceu não se importar com as coisas que gritei, enquanto se afastava.
?
Voltou no final da tarde, com outro prato de lavagem. Depois do vazio do dia, o som doutro passo humano era bem-vindo, ou quase.
— Não podemos ser razoáveis, Xerife? — Ignorando a comida.
— Claro. Sou o homem mais razoável e compreensível de todo o condado.
— Então qual é a acusação contra mim?
— Ainda não me decidi. Mas estou o investigando como nunca foste investigado antes. Posso ser um xerife caipira mas tenho um telefone que fala ao resto do país, um emblema e um título. Antes de eu acabar, saberei se, algum dia, cuspiste na praça Eras.
Fiquei sem saber o que dizer durante um momento. Parado ali, o observando no espaço entre as grades, senti os primeiros calafrios de apreensão se espalharem no corpo. Murmurei, passando a língua nos lábios:
— Xerife, tenho alguns direitos.
— Aqui, garoto? Quem disse isso?
— Não podes me manter aqui a sempre.
— Quem disse isso? Tem alguém para vir te tirar?
O sol foi gradativamente mergulhando ao horizonte, como sempre fazia, a noite chegou, com sua sombra opressiva e indesejável. As dúvidas que me atormentaram tanto tempo adquiriam uma estranha intensidade ali, na escuridão da cadeia de LaFarge. Mas eu não podia me angustiar com qualquer coisa, inclusive as horas na frente, e não podia admitir a perspectiva de LaFarge dar a última palavra.
Fiquei parado junto à janela única, pequena e gradeada, escutando os ruídos noturnos do pântano próximo. LaFarge não poderia me deter mais seguramente se tivesse me posto numa tumba, embora eu soubesse, amargamente, de minha passagem no Vietnã, que prisioneiros podiam derrubar paredes antigas e apodrecidas sem muita dificuldade.
Finalmente me virei e me sentei na beira do catre, a cabeça entre as mãos.
Depois dalgum tempo me estendi de costas, sentindo as depressões do catre, o ouvindo ranger a cada vez que respirava. Parecia preste a arrebentar e cair. Com esse pensamento meus olhos se abriram abruptamente.
Me sentei rapidamente e olhei o pé do catre. As molas e suportes ressaltavam ao luar. Minhas mãos exploraram e testaram a estrutura. Um suporte diagonal no canto, um pedaço de metal velho, com cerca de três centímetros de largura e 15 de comprimento, parecia resistir no lugar apenas com a ajuda da ferrugem. A ferrugem se desprendeu em fragmentos quando peguei o suporte e torci dum lado a outro.
Foi um trabalho mais difícil que parecia. As beiradas do metal deixaram minhas palmas esfoladas. O esforço e o calor úmido da noite arrancavam de minha pele um suor pegajoso. Mas eu dispunha de tempo suficiente. Pacientemente, continuei a torcer o suporte, dando puxões ocasionais. Finalmente, quando a lua deslocara as sombras no chão, senti... ou imaginei... que o suporte cedia um pouco mais.
Depois o rebite numa das pontas saiu do buraco corroído pela ferrugem. Com esse pé-de-apoio desprendi a outra extremidade. Meu coração bateu mais forte quando levantei o suporte e desferi dois golpes contra um LaFarge imaginário, pairando na escuridão.
?
Apareceu na cela duas horas mais tarde que o habitual, na manhã seguinte.
— Conversaremos um pouco antes de comeres.
Enquanto metia a chave na fechadura, me observou através das grades, como a determinar como eu estava reagindo. Naquela altura eu estava maduro, todo amarfanhado, sujo, barbudo, uns poucos quilos tendo se derretido dum corpo que não poderia suportar a perda. LaFarge sorriu de satisfação com o que viu. A arma de metal ficou um pouco mais quente contra meu antebraço, escondida dentro da manga.
LaFarge abriu a porta. Enquanto retorcia a chave para retirar da fechadura antiga, o pedaço de metal escorregou até minha mão.
LaFarge baixou os olhos à fechadura e nesse momento entrei em ação. Se virou bruscamente, vislumbrando o metal avançar em sua direção. O medo lhe vergou os joelhos e o empurrou contra a porta. O reflexo o salvou. O tirante de metal errou a cabeça e resvalou no ombro. Ainda segurando a porta, recuou cegamente. O tirante de metal bateu na beirada da porta em movimento. Antes que eu pudesse recuperar o equilíbrio e desferir um terceiro golpe, LaFarge estava fora da cela, puxando a tranca. A porta era uma barreira entre nós.
Houve um momento de silêncio, em que ficamos nos fitando. LaFarge esfregava o ombro mas se doía. Parecia não se importar.
— Fizeste agora com que se tornasse um caso pessoal, Rogers. — Disse, suavemente. — Gostarei de te levar aos outros. E gostarei de verdade, podes ter certeza.
Olhei o pedaço de metal em minha mão, agora inútil. Abri os dedos e deixei o metal cair no chão de cimento sujo, ruidosamente. Finalmente levantei os olhos e fitei LaFarge através das grades.
— Quem são esses outros? O que está acontecendo?, afinal. Por que logo eu, LaFarge?
— Porque estavas no lugar certo na hora certa.
— Mas isso é loucura!
— Podes pensar em muitas coisas no mundo que não sejam? — Tirou as algemas do cinto. — Esfries enquanto podes, garoto. Não mais correrei risco contigo. E agora estendas as mãos a fora. As duas mãos, na mesma abertura, a fim de que não o prendas na porta, e ajustemos as algemas. E depois faremos uma pequena excursão no heliporto atrás da cadeia e daremos um passeio aéreo. Ficarias surpreso com a quantidade de crime nesta região: Caçador ilegal, fabricante de uísque clandestino, ladrão e assassino. O helicóptero é o único meio de caçar alguns.
A viagem não foi tão pequena assim. LaFarge voou ao sul, até que a praia apareceu embaixo. Seguimos a costa a leste. Sobrevoamos uma estrada cheia de veículo parado, cortamos a esteira dum petroleiro que vinha, provavelmente, do Irã ao movimentado porto um pouco além do horizonte, em nossa retaguarda.
Lá embaixo desfilavam casas ns beira da praia, com atracadouros particulares, hotéis cor-de-rosa e brancos, quilômetros e mais quilômetros de praias brancas, com velas ao largo.
A estrada virou ao norte, através duma floresta de pinheiro e cipreste. Viramos ao sul, acompanhando a curva duma praia, onde já não se viam mais vestígio de ocupação humana.
Entre 8min a 10min LaFarge se afastou da praia e sobrevoou diversas ilhas, repletas de vegetação luxuriante. Nenhuma interessou a LaFarge. Então surgiu o dedo, um quarto de puro luxo artificial, três-quartos de selva. O helicóptero começou a baixar.
Enquanto nos aproximávamos da propriedade três pessoas saíram da ala oeste da mansão e começaram a correr ao sul, através do gramado.
— Estão indo nos receber. — Comentou LaFarge.
— Os outros?
— Isso mesmo. — LaFarge soltou uma risada curta. — Ganho 10 mil cada vez que lhes trago um tigre. Ajuda um pobre xerife do interior a sobreviver. Mas é verdade que não encontro todos os dias um ninguém numa motocicleta que atende às exigências rígidas. Te sentes melhor sabendo que vales 10 mil dólares?
LaFarge pousou o helicóptero a uma distância considerável da casa e a não mais de 100m do ponto em que começava a selva.
Enquanto LaFarge me cutucava com a arma os três homens pararam, formando um semicírculo a meu redor e me examinando atentamente.
Eram todos jovens, bem próximos de minha idade, vestindo bermuda cáqui, blusão de caça e bota. Cada um tinha uma carabina pendurada no gancho do braço.
Tive a vaga impressão de que já os vira antes, de os conhecer dalgum tempo ou lugar, o que parecia impossível.
O homem a minha direita era alto e magro, músculos rijos, rosto encovado, o crânio corrugado, careca, embora tivesse apenas vinte e poucos anos.
Diretamente em minha frente estava um homem corpulento, cujo rosto moreno e compleição me lembravam LaFarge. O terceiro membro do grupo, a seu lado, era alto, de ombros largos, rosto redondo, cabelo louro arrumado no mais puro estilo afro que eu já vira. LaFarge disse: — Rogers, este é o clube de caça Quixote. O careca é Hepperling. O corpulento é McMurdy. E o pantera com a flor de cabelo louro é Convers.
Ouvindo os nomes compreendi por que não me pareceram totalmente estranhos.
Eu e milhões doutras pessoas já os conhecera, a distância, na televisão e nos suplementos dominicais.
Hepperling representava milhões em açúcar, McMurdy em navegação e Convers em petróleo. Os três eram descendentes de famílias que, em todos seus ramos, sempre representaram mais de 1 bilhão de dólares em riqueza econômica e muito poder. para cada um a maioridade significara fundo de investimento, subsídio e herança com que o resto dos mortais jamais sonhara. Os três poderiam reunir os recursos e comprar um pequeno país subdesenvolvido em vez duma simples ilha.
Como quixotes freqüentemente alcançaram as manchetes jornalísticas: Caindo de avião e desaparecendo no Alasca durante uma semana, na ocasião duma caçada a urso; caçando jaguar em áreas tribais vedadas aos brancos na América do Sul; criando um incidente internacional quando as autoridades quenianas os prenderam por caça ilegal a elefantes machos e depois fazendo questão de insultar o governo queniano perante câmaras de televisão do mundo inteiro. LaFarge estava dizendo:
— Rogers é completamente seguro, pessoal. Não tem laço familiar, não tem amigo íntimo. Ninguém para fazer a primeira pergunta sobre um desaparecimento.
— Sabemos disso. — McMurdy ignorou LaFarge como ser humano — Sempre fazemos nossa investigação quando seguras alguém. Temos os agentes e os meios.
LaFarge suportou o tom insultuoso de McMurdy como um cachorro bem treinado. McMurdy me contemplou da cabeça aos pés.
— Pareces ser bem duro, Rogers. Teu pai foi embora quando tinhas seis ou sete anos e nunca mais tiveste notícia. A mãe tornou a se casar. Uma vagabunda. Os dois morreram num desastre automobilístico quando saías da escola secundária. Trabalhaste, enquanto cursavas a universidade, durante dois anos. Partiste ao Vietnã. Lá a coisa não foi fácil. Ferido uma vez. Foi um dos últimos a voltar.
— Não tinha muita coisa pela qual voltar.
— Mas sobreviveste. — Interveio Hepperling. — Pareces sobreviver a qualquer coisa. O que é um bom presságio. Deves dar um dos bons.
— Torçamos para que isso aconteça. — Comentou Convers — Há meses que não temos uma boa caçada na ilha.
Acho que eu já desconfiara da verdade quando cercaram o helicóptero com carabina. Agora, no entanto, a realidade se tornava mais terrível, a cada segundo que passava. Mas eu ainda me recusava a acreditar. Não podia. Depois os olhei, a selva, de novo eles, e tive de acreditar. Convers sacudiu a vasta cabeleira em direção à selva.
— Receberás um cantil e ração, antes de te embrenhares na selva, Rogers. Quanto tempo de vida comprarás dependerá de tua astúcia e força.
Não fui capaz de me mexer.
— Estás entendendo, Rogers? — Perguntou Hepperling.
— Claro. — A palavra saiu rouca como um sussurro — Caçareis tudo, em toda parte, até esgotardes o prazer normal. E agora, quando surge a oportunidade, nesta ilha, caçais a nata entre todas as presas.
— Até que ponto estás com medo, Rogers? — Perguntou Convers, como se o assunto realmente o interessasse.
— Se eu caísse de joelhos ajudaria?
— Na última vez — comentou Hepperling — a presa quase enlouqueceu antes de sair correndo à selva, gritando que estávamos doidos, que não era verdade.
— Sei que é verdade. Em 27 anos de vida descobri que tudo é possível neste planeta. Adolf Hitler. Cientistas que vivem falando em dedicação e devotam suas vidas a inventar bombas maiores e germes mais mortíferos. Charles Manson. A Máfia. Não tenho dúvida de que vós três sois reais, relativamente brandos, em comparação com algumas coisas que acontecem.
Me afastei alguns passos do helicóptero e fiquei olhando a selva. Me sentei na relva fria.
— Mas acontece que eu também sou real, companheiros. E só me deixardes uma opção. Não pode ser doutra forma. Me recuso a participar. A caçada está suspensa.
Se aproximaram, suas sombras me envolvendo.
— É justamente esse o ponto. Nada mais há para vós. Sem uma presa em fuga, tentando sobreviver mais algumas horas na selva, nada mais há para vós. Pegastes o tigre errado desta vez.
— LaFarge. — Chamou McMurdy, suavemente. LaFarge se aproximou de mim. Sacou sua arma.
— Queres ser abatido aqui mesmo, Rogers?
— Claro que não. Não quero ser abatido aqui ou noutro lugar, por muitos e muitos anos. Mas estás jogando contra um inimigo que nada tem a perder, LaFarge. Não importa o que faças, a caçada está encerrada. E não creio que receberás algum dinheiro por mim ou merecerá muita confiança no futuro.
Disparou a arma quase em minha cara. O clarão me ofuscou. Senti a bala me beliscar o couro cabeludo. Reprimi a necessidade de vomitar em toda parte.
— Terás de fazer algo melhor do que isso, LaFarge. Encostou o cano em minha têmpora e lentamente engatilhou o revólver.
— Esse é o meio mais seguro de garantir que não haverá caçada, LaFarge.
Dando um passo a trás, arriscou um olhar aos rostos de seus jovens empregadores. Não gostou da maneira como o estavam fitando. A impressão era de que o estavam avaliando. E isso não o agradaria. Juntou meu nome e um palavrão.
— Te levantes!, Rogers. Te obrigarei a correr! Terás de sumir na selva!
Explodiu o pé metido na bota em direção a minha cara. Mas não tinha a coordenação ou rapidez dum vietcongue. Minhas mãos algemadas escoraram o tornozelo em movimento. Fiz um movimento brusco, o derrubando de costas.
Antes que ele pudesse recuperar o fôlego, eu já arrancara o revólver e me virava aos outros. Ordenei:
— Esperai!
Nenhuma carabina se mexeu. Tinham cérebro além de dinheiro. Sabiam que poderiam me vencer, mas não com total segurança.
Foi uma dessas encruzilhadas na vida para mim, não por causa dalgo externo mas por causa do pensamento que me surgiu, plenamente desabrochado. Pensei em minha vida difícil, desde o nascimento. Parecia que já tardava o momento de fazer algo por um cara chamado Rogers. As perguntas básicas não mais incomodavam.
Tive certeza, naquele momento, do rumo que minha vida tomaria. Deixei que um sorriso se avolumasse em meus lábios.
Em reação, a tensão inicial dos quixotes se desvaneceu. Se entreolharam, me fitaram. Na verdade havia muito mais aproximação entre os quixotes e eu que entre qualquer um de nós e LaFarge. Declarei: — Companheiros, ser xerife dum condado nesta região é uma atividade das mais arriscadas. Se LaFarge aparecesse nalgum canto de pântano, morto a tiro, todos pensariam que fora abatido por um fabricante ilegal de uísque ou um caçador clandestino.
Virei o cano da arma na direção a LaFarge.
— À selva, grandalhão.
— Estás maluco!, Rogers. Pessoal, digas a ele...
Parou de falar abruptamente ao olhar os quixotes. E não pôde mais desviar os olhos. Deu um passo a trás, depois outro. E o que quer que fosse que usara como coragem, durante toda a vida, morreu de repente. Perdeu o controle e saiu correndo, desaparecendo, rapidamente, na selva.
McMurdy era o que estava mais perto de mim. Cuidadosamente, virei o revólver e o estendi, segurando no cano.
— Senhores, acho que a caçada recomeçou. E não vos esqueceis de pegar a chave das algemas quando o abaterdes.
Foi assim que começou minha ligação com os quixotes. Ganho agora 25 mil dólares por ano, mais as despesas. Freqüento os balneários mais elegantes. Tenho um carro-esporte de 12 mil dólares. Consumo as melhores comidas e vinhos, tenho um guarda-roupa sob medida.
Não é de surpreender que eu tenha praticamente de fugir das mulheres.
Geralmente escolho os mais bem-apessoados e saudáveis da colheita de rapazes de cabeça vazia, de famílias boas e ricas, que largaram o estudo e foram embora, nunca mais dando notícia. São mais fáceis de enganar e depois que chegam à ilha já é tarde demais para compreenderem que enfrentam algo inteiramente diferente do fim de semana romântico e emocionante que lhes fora prometido. Figuram entre os jovens que fogem de casa todos os anos e nunca mais são encontrados. É impossível acompanhar seus rastros até a ilha. Cuidarei disso.
Mulheres, a suprema presa. Os quixotes acharam que a sugestão era sensacional quando lhes apresentei. Acrescentei a oferta de atuar como agente deles, vasculhando o país procurando a presa ideal, levando cada uma à ilha. Já demonstrei que sou de absoluta confiança e os quixotes respeitam meu conselho.
Recapitulando minha nova vida, acho que se pode dizer que devo a LaFarge um voto de agradecimento.
A LATA DE SALSICHA
Joyce Harrington
Eu estava no supermercado, na quinta-feira, e vi o velho meter no bolso uma lata de salsicha.
Não tive a intenção de reparar. Não observaria uma coisa assim se pudesse evitar. Não é o que todo mundo faz? Mas lá estava eu, contornando a gôndola de picles e condimento, e ele, um velhinho num velho e grande capote, com a lata na mão. E logo a lata estava no bolso. Acho que devo ter parecido surpresa, porque foi assim que me senti. Se não ficasse tão surpresa nunca teria olhado a ele. Mas não tive tempo de ajustar minha vista e fingir que estava procurando uma boa oferta na prateleira de atum.
Me olhou de volta, furtivo, assustado e furioso ao mesmo tempo. Estava sujo também. As roupas estavam imundas, havia uma linha preta no pescoço e o cheiro não era dos mais agradáveis. Registrei tudo isso na fração de segundo em que fiquei parada. Pensei: Não te preocupes, meu velho, pois não contarei a alguém. Mas não podia dizer isso a ele. Não é?
Olhei seu carrinho de compra, enquanto empurrava o meu no corredor. Tinha um pão amanhecido e um pacote de leite desnatado, grande demais para pôr no bolso. Pensei. Aproveites para levar, também, um sabonete, meu velho. E depois me perdi em consideração sobre a variação do espaguete semanal num rigatone ou talvez lasanha. Quando se cozinha pruma família de sete pessoas, cinco das quais estão abaixo dos 12 anos, a única coisa de que se pode ter certeza é de que espaguete uma vez por semana deixará todo mundo feliz, especialmente minha bolsa.
Tornei a avistar o velho no balcão de carne, onde debatia os méritos da oferta especial de três galinhas inteiras contra a pechincha da semana, um rosbife redondo por um preço que deveria ser suficiente para comprar uma vaca inteira, com casco, rabo e tudo o mais. Estava inclinado sobre as costeletas de carneiro, vermelhas, brancas e lustrosas, em seus invólucros da plástico transparentes, como se fossem diamante, expostos a pessoas como si (e como eu) se espantarem e desejarem. Acho que estava babando mas não esperei para descobrir se planejava um grande assalto às jóias da coroa da seção de carne. Peguei um saco de galinha e fui à seção de alimento congelado e vegetal fresco. Seria bastante arriscado, pensei, tentar levar algo da seção de carne. Por tudo o que sabíamos era que os guardas da Brink's podiam estar enfileiradas a cada dois metros no outro lado, as metralhadoras prontas para entrar em ação contra os fregueses com ânimo de gatuno.
Depois de pegar banana e suco de laranja segui à saída. Se aproximava a hora do jantar e a multidão da quinta-feira especial começava a diminuir. O escritório do corpo de bombeiro, onde cuido a contabilidade e despacho cobrança, ficava a dois quarteirões do supermercado. Minha casa ficava a três, logo depois da esquina, na outra direção. Eu ia a pé ao trabalho e nas manhãs de quinta-feira rebocava meu velho e barulhento carro de compra. Jimmy já teria voltado das docas antes que eu chegasse a casa com a compra. As crianças o estariam ajudando no preparativo de nosso tradicional jantar de panqueca de quinta-feira. Tudo funcionava perfeitamente, com Jimmy e as crianças trabalhando, enquanto a vizinha, senhora McIntyre, tomava conta do pequeno Kelvin, que tinha apenas três anos e era pequeno demais para freqüentar a escola. Contudo, mesmo com nós dois trabalhando, se tornava cada vez mais difícil encher o carrinho de compra.
Havia apenas dois caixas funcionando quando cheguei à frente do supermercado. Uma era caixa-rápido, para pequena compra, por isso tive de entrar na outra, logo atrás duma mulher do tipo estacionar-e-comprar. Creio que todo mundo conhece: Param o carro no caixa e depois se afastam, apressadamente, correndo no corredor, enchendo os braços com latas e caixas, despejando no carrinho, voltando para pegar mais. Pensam que estão passando alguém a trás mas tudo o que fazem é desperdiçar energia e deter a fila. Algumas vezes se metem em briga. Parece que sempre são mulheres gordas, o cabelo em rolo. Aquela não era exceção. Chegou, apressada, com um saco de batata, de 5kg embaixo dum braço e uma embalagem de seis latas de leite-em-pó no noutro, dizendo a mim: — Estou quase acabando. Não passes em minha frente.
E se afastou. Resolvi que não valia a pena me exasperar com a situação e me acomodei para esperar a minha vez. O caixa estava atendendo a uma compara grande e eu era a terceira na fila depois. Calculei que teria de esperar cerca de 15min ou 20min e comecei a ler o Daily news, que eu guardara desde a manhã, a fim de que Jimmy pudesse ler também. O velho se encaminhou ao caixa-rápido e notei que acrescentara um saco de ração canina ao leite e ao pão em seu carro. Fiquei imaginando o que mais teria acrescentado à lata de salsicha nos bolsos do capote volumoso.
A coluna de Cartas dos leitores estava muito engraçada, como sempre. Eu estava lendo a carta dum homem de Ilha Staten, que queria despachar todos os viciados em tóxicos ao Alasca, os obrigando a trabalhar no oleoduto, a fim de que pudéssemos receber petróleo de lá e assim nos livrarmos dos árabes. Por isso não reparei quando os quatro garotos entraram a se espalharam na frente do supermercado. Ninguém sabia que eram apenas garotos naquele momento, é claro, pois todos usavam máscaras de esquiar e três empunhavam revólver. Até um garoto parece adulto quando tem um revólver na luva.
A primeira indicação que tive de que algo estava errado foi quando os dois caixas pararam de retinir e toda a loja ficou estranhamente silenciosa. Um dos mascarados estava à porta, outro se encaminhava ao cubículo do gerente. Um terceiro ficou postado no final dos caixas, brandindo o revólver, a fim de que todos pudessem constatar que era real. O quarto pegou uma bolsa de compra, a abriu e disse, bem alto:
— Todo o dinheiro a esta bolsa! Entendido?
Nós entendemos. Os caixas começaram a retirar notas das gavetas das registradoras, largando na bolsa. O gerente saiu do cubículo onde estava dormindo ou sonhando com os aumentos de preço da semana seguinte. Esbarrou num mascarado, que comprimiu o revólver contra a pança e o obrigou a voltar, em direção ao cofre de aço no interior do cubículo.
— Carteiras e bolsas também, senhoras e senhores. Esvaziai os bolsos. Tudo a minha bolsa de compra.
Abri minha bolsa e tirei a carteira velha com os 40 dólares que mal dariam para pagar a compara em meu carrinho. A mulher estacionar-e-comprar chegou com uma alface e um saco de cebola bem a tempo de participar da diversão. Tentou recuar, na ponta dos pés, à segurança dos balcões de legume mas o mascarado na porta gritou: — Fiques onde estás!, dona.
Soltou um pequeno guincho mas parou. O velho, que acabaria de pôr o leite, o pão e a comida canina no balcão da caixa, tremia como um doente. Eu também estava bastante abalada mas sentia pena do velho que tivera coragem bastante para encher os bolsos com comida e agora perderia o pouco dinheiro disponível.
Observei a mão trêmula se encaminhando ao bolso, esperando que puxasse um par de notas velhas e amarrotadas de 1 dólar. O que saiu foi a lata de salsicha e o velho não tremia quando a arremessou. A lata atingiu o mascarado no final das caixas entre os olhos, que cambaleou a trás, caindo sobre a pilha de caixas vazias ao longo da janela.
O velho não parou aí. Devia ter bolsos do tamanho de bolsas de compra. Uma lata de feijão saiu voando ao mascarado que dominava o gerente, o acertando atrás da orelha. E depois todo mundo entrou no espetáculo. O que estava com a bolsa de compra, recolhendo o dinheiro, caiu de joelho quando o caixa-rápido o acertou, a curta distância, com uma lata de suco de abacaxi. Garrafas de soda deslizaram no ar e algumas explodiram no contato, disparando gêiseres de espuma. Arremessei duas latas de cerveja. Jimmy devia me ver em ação, pensei, e acompanhei com um saco de açúcar de 2kg. Estávamos todos tão entusiasmados, no ardor da batalha, que acho que esquecemos que aqueles brincalhões estavam armados.
O mascarado na porta não esqueceu. Disparou um tiro a esmo entre a saraivada de mercadorias voando e depois atravessou a porta. Foi o bastante. O cara era um exímio atirador ou apenas deu um tiro de sorte: O fato é que o velho arriou entre os balcões de caixa, como se tivesse apagado subitamente.
Os outros três mascarados estavam gemendo no chão, no meio dos escombros de latas amassadas e garrafas quebradas. Um tinha sangue escorrendo na abertura do nariz na máscara. O gerente segurava os dois revólveres restantes, um em cada mão, dando a impressão de que estavam em brasa.
O velho continuava estendido no chão, muito pálido sob a sujeira, o capote grande aberto, deixando à mostra os muitos bolsos que acrescentara ao interior.
Um dos caixas foi ao cubículo do gerente e acionou o alarme.
Quando o Guarda Kenny Regan entrou no supermercado, dois minutos depois, todos nos sentimos profundamente tristes e deprimidos. O velho ainda estava caído, parecendo morto. Não podíamos ver sangue mas por tudo o que sabíamos fora atingido nas costas e sangrava no chão, embaixo do capote.
Kenny se aproximou dos três mascarados encolhidos no chão, seus sapatos imensos esmagando cacos de vidro, açúcar e soda derramada, numa mistura repulsiva.
— Muito bem! — Gritou— Agora veremos suas caretas horríveis!
Um a um os mascarados foram se revelando e foi quando soubemos que não passavam de garotos. O mais velho não podia ter mais de 15 anos e os outros eram tão parecidos que deviam ser irmãos. Três pares de olhos assustados se deslocaram no círculo de rostos atentos.
— O que achais disso? — Falou Kenny. — Um bando de assaltantes infantis!
O gerente interveio, estridente:
— O que farei com isso?
Estendeu os dois revólveres como se fossem duas dúzias de ovos podres. Um dos caixas indagou:
— Seu guarda, o que faremos com o velho? Pode determinar se está morto ou o quê?
Percebi que Kenny estava começando a ficar nervoso com todas aquelas perguntas. Por isso, fiquei aliviada, e ele também, quando as duas radiopatrulhas pararam diante do supermercado, logo seguidas por uma ambulância municipal.
Em poucos minutos a loja enxameava de homens de expressão duras e todos apresentávamos nossas versões da tentativa de assalto. Mais carros de polícia chegaram e os três garotos foram algemados e levados. Kenny Regan providenciou para si um posto sossegado, alheio aos interrogatórios. Impávido e silencioso, ficou guardando a porta, impedindo os curiosos de entrarem e as testemunhas de saírem.
No meio de toda confusão e barulho ouvi, de repente, a voz excitada e estridente do gerente:
— Eu sabia que o velho estava roubando coisas daqui mas juro que o deixaria levar o que quisesse se isso lhe devolvesse a vida!
— Estás falando sério, Jack?
O supermercado ficou quase tão silencioso quanto no momento em que os revólveres nas mãos dos mascarados tornavam a conversa difícil. Os atendentes da ambulância, que tentavam manobrar uma maca com rodinha no espaço apertado no final dos balcões dos caixas, pararam enquanto observavam, atônitos, o freguês se levantar.
— Está mesmo falando sério? — Insistiu o velho. Ficou de pé, se apoiando no balcão e apalpando todo o corpo com as mãos trêmulas e sujas.
— Pensei que tivesses levado um tiro! Pensei que estivesses morto! — Balbuciou o gerente, indignado.
— E isso faz alguma diferença? — O velho soltou uma risadinha. — Levei um tiro mas não estou morto.
Meteu a mão no bolso superior do capote surrado e tirou uma lata de carne moída. A lata tinha um buraco, por onde saía um filete de carne. Ergueu a lata e mexeu com os pés, como se fosse uma estranha dança da vitória e gritou: — Doravante sempre levarei uma lata de carne moída junto ao coração! E agora quero que me digas, Jack: Tua oferta ainda está de pé?
?
Meia hora depois, eu ia rumo casa, empurrando o carrinho, a solavanco, levando a compara e uma história e tanto para contar a Jimmy e às crianças. O velho estava a caminho de sua casa ou do quartinho miserável onde vivia, com o dinheiro minguado da pensão, levando um carrinho abarrotado de mercadoria, tudo de graça. Infelizmente, tenho de admitir, todos os fregueses precisaram pressionar o gerente para o obrigar a cumprir a promessa, enquanto Kenny Regan e os outros guardas sorriam e olhavam o outro lado. Minha nota de caixa flutuava sobre uma das bolsas no carrinho que eu rebocava. Quarenta dólares e 39 centavos. Eu tivera de dar ao caixa um passe do metrô e quatro moedas de cinco centavos que vasculhara no fundo da bolsa. Se a situação se tornar ainda pior, provavelmente terei de tomar uma providência, como aumentar os bolsos de meu casaco.
TUDO COMEÇOU CUM ESPIRRO
Donald E. Westlake
Albert sentiu as primeiras fungadas e teve o primeiro espirro na segunda-feira, dia da agência de correio. Mas não se preocupou. Em sua experiência as fungadas surgiam e passavam com a mudança de estação, não grave o suficiente para exigir uma visita ao médico da família. Como poderia saber que aquelas fungadas eram o prenúncio dalgo além da primavera? Não havia motivo para pensar que dessa vez...
Seja como for, segunda-feira era o dia da agência de correio, como acontecia em todas as segundas-feiras, há mais de um ano. Com ou sem fungada, Albert passou sua rotina normal do dia da agência de correio como de hábito. Ou seja, 5min antes de meio-dia tirou da gaveta superior esquerda um envelope grande, tamanho ofício, colocou na máquina de escrever e endereçou a si:
Albert White
A/c Agência postal
Monequois, Nova Iorque
Em seguida, depois de olhar cuidadosamente ao redor, para ter certeza de que senhor Clement não estava à vista, acrescentou um endereço para devolução, no canto superior esquerdo: Depois de cinco dias devolver a
Robert Harrington
Monequois Herald-Statesman
Monequois, Nova Iorque
Tirando o envelope da máquina datilográfica Albert pegou um selo na gaveta do meio e o afixou! Guardou o envelope, ainda vazio, no bolso interno do paletó.
Era um de seus pequenos prazeres, mas intenso e muito secreto, o fato de que o próprio senhor Clement, sem o saber, estava fornecendo os selos para manter o sistema em operação.
Datilografar os dois endereços no envelope absorvera a maior parte dos últimos 5min antes de meio-dia, arrumar a mesa consumiu os últimos segundos. Assim, exatamente no meio-dia, Albert pôde se levantar, virar à direita, se encaminhar à porta e deixar o escritório para almoçar, fechando a porta na qual se lia Jason Clement, advogado Sua primeira parada, naquele dia e em todas as segundas-feiras na hora do almoço, foi na agência de correio, onde pediu o volumoso envelope branco que o esperava na entrega geral.
— Aqui estamos, senhor White! — Exclamou Tom, o funcionário, como de hábito. — O escândalo semanal!
Albert e Tom passaram a se conhecer relativamente bem no curso dos últimos 15 meses. O que era compreensível, já que Albert aparecia todas as segundas-feiras para buscar sua carta. A fim de dissipar, antecipadamente, suspeita que pudesse passar na cabeça de Tom, Albert explicara, logo no começo, que Robert Harrington, o famoso repórter de cruzadas cívicas do jornal de Monequois, o empregara como uma espécie de investigador para conferir denúncia e informação confidenciais enviadas pelos leitores do jornal.
— É um trabalho em horário parcial, além de minha função com senhor Clement. E é absolutamente confidencial. Por isso Robert me envia o material aos cuidados da agência postal. E também por isso fingimos não nos conhecer.
Tom, o funcionário postal, sorrira, piscara um olho e garantira:
— Palavra de escoteiro!
Mais tarde, porém, Tom, o funcionário postal, devia ter refletido no assunto, pois numa segunda-feira perguntara a Albert:
— Por que deixas o material ficar aqui tanto tempo? Quase uma semana, na maioria das vezes. Devo pegar a carta na segunda-feira, não importa quando Robert a envie. Se eu vier aqui todos os dias do ano posso levantar suspeita.
— Tens razão. — Tom, o funcionário postal, assentira, doutamente, mas acrescentara: — Não quererás perder a correspondência. Não é? E aqui, neste canto, está escrito, Devolver depois de cinco dias. Pois significa exatamente o que diz. Não pegando até cinco dias estará acabado.
— Devolverias mesmo a carta?
— Não há outro jeito. É o regulamento, senhor White.
— Acho ótimo. Tenho certeza de que Robert não gostaria que as informações ficassem abandonadas aqui tanto tempo. Se eu deixar uma carta aqui mais de cinco dias podes a devolver. Robert e eu ficaremos gratos.
— Está certo.
— E jamais entregues uma dessas cartas a alguém que se apresente em meu nome.
— Podes ter certeza de que isso jamais acontecerá, senhor White. És tu ou ninguém.
— Não entregues, mesmo que receba um telefonema dalguém dizendo que sou eu e que está enviando um amigo para pegar a carta por mim.
Tom, o funcionário postal, piscara e dissera:
— Sei o que estás fazendo com senhor White e compreendo tua preocupação. Mas fiques tranqüilo. O correio de Estados-Unidos não te deixará na mão. Jamais alguém receberá uma dessas cartas que não tu e senhor Harrington. Posso garantir.
Nos meses seguintes Tom, o funcionário postal, não fizera mais pergunta e a vida seguira risonha e feliz. É claro que era necessário que Albert lesse a coluna de Robert Harrington no Herald-Statesman. É que Tom, o funcionário postal, sempre comentava os escândalos incríveis que Robert Harrington incessantemente descobria e denunciava, querendo saber se Albert tinha relação com aquele caso em particular. Albert dizia que não, na maioria dos casos, explicando que quase todas as informações recebidas provavam ser infundadas. Quando admitia que sim, de vez em quando, que tal e tal reputação arruinada ou crime denunciado foram parte de seu trabalho secreto para Robert Harrington, Tom, o funcionário postal, ficava radiante como o vencedor dum programa de pergunta na televisão.
Tom, o funcionário postal, era, obviamente, um conspirador nato, que nunca encontrara, até então, uma vazão para sua inclinação natural.
Hoje, no entanto, Tom, o funcionário postal, nada tinha de secreto para conversar. Em vez disso observou Albert atentamente e perguntou: — Estás resfriado?, senhor White.
— Estou apenas fungando um pouco.
— Pareces estar com os olhos remelentos.
— Já disse que estou apenas fungando.
— Deve ser o tempo.
Albert concordou que era o tempo, deixou a agência postal e foi à lanchonete no prédio da municipalidade, onde disse a Célia, a garçonete:
— Acho que comerei o rosbife hoje.
A esposa de Albert, Elizabeth, prepararia o almoço para ele com a maior satisfação e Albert o comeria com igual satisfação. Só que senhor Clement não admitia que funcionários dum escritório de advocacia, mesmo de 40 anos, com óculos de aro de aço, cabelo recuando e barriga estufando, ficassem sentados a suas mesas no escritório e comessem sanduíche dum saco de papel. Daí a excursão diária à lanchonete, que servia comida conveniente, embora não fosse tão esplêndida quanto o cardápio sugeria.
Enquanto Célia, a garçonete, se afastava para pedir o rosbife, Albert foi ao banheiro lavar as mãos e também prosseguir a rotina normal do dia da agência de correio. Tirou do bolso lateral direito do paletó a carta que Tom, o funcionário postal, acabara de lhe entregar, a abriu cuidadosamente e retirou o volumoso maço de documento. Transferiu tudo ao envelope novo que datilografara antes de sair do escritório. Albert fechou o novo envelope e guardou no bolso interno do paletó, depois rasgou o envelope velho em pedaços bem pequenos e jogou ao vaso, puxando a descarga. Lavou as mãos, saiu para se sentar a sua mesa normal e comeu um passável almoço de ervilha, batata frita francesa, pão de centeio, café e rosbife.
Descobrira os originais daqueles documentos oito anos antes. Senhor Clement estava no tribunal e Albert precisava duma informação que estava num documento determinado. Sem outro motivo, vasculhara a mesa de senhor Clement. Reparara que uma gaveta parecia um pouco mais curta que as outras.
Tirara a gaveta para ver o que havia atrás e encontrara uma caixa metálica verde, despertando sua curiosidade. Dentro da caixa descobrira que senhor Clement era um homem muito rico, mas muito rico mesmo, obtendo a fortuna por meios altamente desonestos.
Senhor Clement era um velho terrível, magro, de cabeça branca, que ainda incutia o pavor nos conhecidos. E muitas vezes esse pavor tinha razões concretas, pois sempre andava com uma bengala e se sabia que já a usara contra pessoas que o trataram com grosseria nas ruas, ônibus, lojas ou onde estivesse. Sua banca de advocacia cuidava basicamente de negócio imobiliário e dos problemas de pequenas corporações locais. Os documentos na caixa provavam que senhor Clement roubara sistematicamente de espólios e corporações, escondera a maior parte do dinheiro em contas bancárias sob nomes falsos e era várias vezes milionário.
Uma miscelânea confusa de pensamento passara na mente de Albert ao descobrir tais documentos. Primeiro: Ficara aturdido e desapontado em saber da perfídia de senhor Clement. É verdade que a irascibilidade do velho sempre impedira que Albert realmente gostasse dele mas ao menos sempre o respeitara e admirara. Descobria agora que o respeito e admiração eram imerecidos. Segundo: Ficara apavorado com a perspectiva do que senhor Clement faria se soubesse da descoberta de Albert. Aqueles documentos retratavam um homem implacável o bastante para diante de nada se deter, se pensasse que a denúncia era iminente. E terceiro: Se espantando, pensara em chantagem.
Naqueles primeiros momentos caleidoscópicos Albert White se descobrira ansiando coisas de cuja existência antes ignorara: Acapulco, lindas mulheres, esmuques, carros-esporte, drinques espetaculares, apartamentos de cobertura.
Senhor Clement pagaria todas essas coisas a fim de manter fechada a boca de Albert?
Claro que pagaria. Se não houvesse um meio melhor de calar a boca de Albert.
E Albert estremecera ao pensar nos meios melhores.
Apesar disso ainda queria todas aquelas coisas. Luxo e tranqüilidade, viagem, aventura, pecado. Uma vida intensa.
A intervalo, ao longo dos meses subseqüentes, fora tirando documento da caixa verde de metal e fazendo cópias fotostáticas. E assim continuara até dispor de prova suficiente para pôr senhor Clement atrás das grades até o século 22.
Escondera as provas na garagem atrás da pequena casa que partilhava com a esposa Elizabeth. E nada fizera nos quatro anos seguintes.
Precisava dum plano. Precisava arrumar as coisas de tal jeito que as provas fossem parar nas mãos das autoridades caso algo lhe acontecesse. Também precisava dar um jeito de convencer senhor Clement de que dispunha das provas e as autoridades as receberiam, que o velho não teria possibilidade de se apoderar delas. Não era fácil. Durante quatro anos Albert não encontrara um jeito.
Então lera um conto dum escritor chamado Richard Hardwick, descrevendo o método que Albert acabara adotando, com os documentos despachados a si e devendo ser apanhados na própria agência postal, um repórter investigador famoso indicado como endereço para devolução. Albert prontamente pusera o plano em prática, aparando os documentos a proporções razoáveis e pondo em circulação no sistema postal. Descobrira que tudo funcionava exatamente como Hardwick descrevera.
Agora, tudo o que restava era abordar senhor Clement, detalhar as provas e precauções, acertar termas satisfatórios e desfrutar uma vida de luxo eterno.
No mesmo dia em que largara o envelope numa caixa de correio na primeira vez, também fora enfrentar senhor Clement no covil dele. Ou seja, na sala particular. Albert batera na porta antes de entrar, como fora ensinado anos e anos antes, ao conseguir o emprego. Entrara na sala e dissera: — Senhor Clement...
Senhor Clement levantara o rosto ossudo e lançara um olhar furioso a Albert.
— O que é?, Albert.
— Aqueles arrendamentos Duckworth. Queres presta tarde?
— Claro que quero presta tarde. Eu ontem disse que quero presta tarde.
— Sim senhor.
Albert batera em retirada. De volta a sua mesa, se sentara e ficara piscando, atordoado. Abrira a boca na sala de senhor Clement com a intenção de dizer: Senhor Clement, sei de tudo. Mas fora com uma consternação espantada que se ouvira dizer em vez disso: Aqueles arrendamentos Duckworth. Além do fato de que não tinha intenção de dizer isso, havia o fato adicional de que já sabia que senhor Clement queria os arrendamentos Duckworth praquela tarde. Não apenas fora uma pergunta errada mas também inútil. Albert pensara: — Fiquei com medo e mais nada. E não há razão para ter medo. Tenho todas as provas e não se atreveria a me fazer algo.
Mais tarde, no mesmo dia, Albert tentara outra vez.
Fora no momento em que levara os arrendamentos Duckworth. Os pusera na mesa, ficara imóvel alguns segundos, tossira hesitante e dissera:
— Senhor Clement...
Senhor Clement ficara ainda mais furioso do que na vez anterior.
— O que é desta vez?
— Não estou me sentindo muito bem, senhor Clement. Gostaria de tirar o resto da tarde de folga, por favor.
— Já datilografaste os documentos Wilcox?
— Ainda não, senhor.
— Pois então datilografes tudo e depois podes ir.
— Sim, senhor. Obrigado. Um Albert entristecido deixara a sala de senhor Clement, sabendo que fracassara de novo e sabendo também que não haveria sentido em tentar outra vez naquele dia, pois continuaria a fracassar. Assim, datilografara os documentos Wilcox, arrumara a mesa e voltara a casa uma hora mais cedo, explicando a Elizabeth que se sentira um pouco enjoado no escritório, o que era verdade.
Nos 15 meses seguintes Albert efetuara freqüentes tentativas de comunicar a senhor Clement que estava no processo de o chantagear. Mas quando abria a boca era sempre uma outra frase que saía. Às vezes, na noite, praticava diante do espelho, definindo a situação e sua exigência com admirável clareza e brevidade.
Noutras ocasiões escrevera os discursos e se empenhara em decorar. Mas os discursos preparados eram sempre muito verbosos e pesados.
Era perfeitamente óbvio, em sua mente, o que tencionava dizer. Falaria da descoberta e do plano de usar o sistema postal. Explicaria o desejo de viajar, como tencionava remeter as provas a cada semana a um novo local: Cannes, Praia Palmeira, Cataratas de Vitória... Ressaltar que precisaria de dinheiro suficiente para recolher a correspondência antes de expirar o prazo fatal de cinco dias. Diria que achava que Elizabeth talvez fosse caseira demais para desfrutar a vida que o marido tencionava levar doravante mas ainda sentia afeição por ela e preferia pensar que senhor Clement cuidaria dela devidamente, durante sua ausência.
Diria tudo isso. Algum dia. Estava convencido de que ainda restava esperança.
Chegaria o dia em que teria coragem suficiente ou um desejo de boa-vida bastante forte. E nesse dia o faria. Só que tal dia ainda não chegara.
Enquanto isso, remeter, receber e tornar a remeter os documentos da chantagem virara uma parte normal da rotina semanal de Albert, integrada em sua vida ordenada, como se nada tivesse de estranho. Todas as segundas-feiras, a caminho do almoço, pegava a carta na agência postal. Todas as segundas-feiras, no banheiro da lanchonete, transferia os documentos ao novo envelope, rasgava e jogava no vaso o envelope usado. Todas as segundas-feiras, saindo do almoço e voltando ao escritório, largava a carta numa caixa de correio no caminho.
A carta chegaria a Tom, o funcionário postal, na terça-feira. Quarta-feira seria o primeiro dia, quinta o segundo, sexta o terceiro, sábado o quarto, o domingo se pulava e segunda era o quinto, o final dum ciclo e começo doutro.
Aquela segunda-feira, em particular, não foi diferente doutras, a não ser pelas fungadas. Célia, a garçonete, comentou o fato, dizendo, ao servir o rosbife: — Parece que estás ficando doente, senhor White.
— Estou apenas fungando.
— Provavelmente é uma dessas gripes de 24 horas que andam aí.
Albert concordou com o diagnóstico, tratou de comer, pagou, deixou a gorjeta habitual. Voltou ao escritório, fazendo duas paradas no caminho. A primeira foi na caixa do correio, onde largou o envelope pruma nova rodada no sistema postal. A segunda foi numa farmácia, onde comprou uma caixa de lenço de papel.
Preferia pensar que Célia, a garçonete, estava certa sobre a extensão das fungadas e espirros, só durante 24 horas, mas duvidava de que isso acontecesse.
Pelas experiências passadas sabia que ficaria assim ao menos três dias. Teria coriza e ficaria com os olhos remelentos até quinta-feira, quando começaria a melhorar.
Só que não foi assim que aconteceu. A segunda-feira chegou ao final sem novidade. Terça e quarta passaram. A quinta-feira amanheceu nublada e abafada, tanto no mundo exterior como no interior da cabeça de Albert. Saiu de casa de capa e galocha, o guarda-chuva pendurado no braço. Fungou e espirrou durante toda a quinta-feira, consumindo uma caixa inteira de lenço de papel no escritório.
E a sexta-feira foi ainda pior. Elizabeth, o tipo de mulher que parece mais natural quando está usando um avental e preparando uma torta de maçã, deu uma olhada em Albert na manhã de sexta-feira e declarou: — Nem precisas te levantar. Telefonarei a senhor Clement e avisarei que estás doente demais para trabalhar hoje.
E era verdade. Albert estava doente demais para trabalhar, doente demais para protestar por ter de ficar na cama, tão doente que até esqueceu a carta esperando na agência postal.
Permaneceu tão doente e igualmente alheio a tudo durante todo o fim de semana, passando a maior parte do tempo num cochicho irrequieto, se sentando, de vez em quando, para tomar canja, chá com torrada e se deitando para dormir mais um pouco.
Em volta das 11h da noite de domingo Albert despertou dum sono profundo, cuma visão do envelope na mente. Era como se sonhara: O envelope muito branco e solitário em seu compartimento, uma mão se estendendo para o apanhar. Uma mão que pertencia a Robert Harrington, o repórter dos grandes escândalos.
— Santo Deus! — Elizabeth estava dormindo no quarto de hóspede enquanto Albert estava doente, por isso não o ouviu. — É melhor eu estar bom amanhã.
Se recostou no travesseiro e ficou acordado mais algum tempo, pensando a respeito. Mas ainda não estava curado na manhã. Acordou na segunda-feira com o barulho da chuva batendo na janela do quarto. Se sentou na cama, compreendeu que estava tão tonto e fraco quanto antes. Sentiu o pânico começar a o envolver como uma manta de fogo. Mas lutou para o reprimir, embora não o extinguisse. De qualquer forma tinha de permanecer calmo.
Quando Elizabeth entrou no quarto, a fim de perguntar o que quereria pro desjejum, Albert disse:
— Preciso dar um telefonema.
— A quem?, querido. Podes deixar que ligarei.
— Não! — Protestou Albert, firmemente. — Eu é que tenho de ligar!
— Querido, terei o maior prazer...
Albert raramente ficava irritado mas se tornava insuportável quando isso acontecia.
— O que te deixaria feliz agora não me interessa. — O tom sardônico de voz um pouco abafado pelo bloqueio do nariz. — Preciso dar um telefonema e tudo o que peço é que me ajudes a ir até a sala.
Elizabeth protestou, pensando estar sendo cuidadosa. Mas acabou compreendendo que Albert não cederia e concordou. Estava muito fraco. Se apoiando nela, desceram a escada ao primeiro andar e foram à sala de estar.
Albert se arriou na poltrona ao lado do telefone e ficou ofegando ali alguns minutos, exausto do esforço. Enquanto isso, Elizabeth foi à cozinha, a fim de preparar um lindo ovo pochê, em suas palavras.
— Um lindo ovo pochê... — Murmurou Albert.
Se sentia vil, infame. Nunca estivera fisicamente tão fraco e, ao mesmo tempo, nunca experimentara desejo tão violento de quebrar os móveis, gritar, provocar algazarra, espancar as pessoas. Se senhor Clement estivesse ali Albert lhe teria falado tudo sem hesitação. Nunca fora tão brutal.
Nem tão fraco. Mal conseguiu levantar a lista telefônica, e virar as páginas foi um verdadeiro suplício. E depois, como já era de se imaginar, procurou no lugar errado para começar, na letra C de correio. Finalmente encontrou o telefone num dos subtítulos, sob a indicação geral de Governo federal. Discou e disse à pessoa que atendeu:
— Quero falar com Tom, por favor.
— Tom o quê?
— Como é saberei?
— Tom!
— Senhor, temos três Tom aqui. Queres falar com Tom Skylozowsky, Tom...
— Tom! — Gritou Albert. — No guichê de entrega geral!
— Á, sim. Esse é Tom Kennebunk. Esperes um instante.
Albert esperou três minutos. A intervalos dizia alô mas não obteve resposta.
Pensou em desligar e discar de novo mas podia ouvir voz no fundo, o que significava que o fone ainda estava fora do gancho no outro lado, o que significava, provavelmente, que se cortasse a ligação agora e discasse de novo teria um sinal de ocupado. Sua impaciência foi finalmente recompensada pela voz de Tom, o funcionário postal, dizendo: — Alô. Queres falar comigo?
— Sou eu, senhor White, Tom. — Disse Albert, se esforçando a imprimir um tom de jovialidade à voz. — Albert White. Tenho certeza de que te lembras de mim.
— Mas é claro! Como vais?, senhor White.
— É justamente esse o problema, Tom. Não estou muito bem. Passei todo o fim de semana na cama, doente, e...
— E uma pena, senhor White. Mas eu bem que comentei, na agência, que não estavas bem.
— Estavas certo.
— Percebi logo quando te vi. Estás lembrando? Comentei até que parecia estar com os olhos lacrimejando.
— E verdade, Tom. — Disse Albert, refreando a impaciência. E se apressou a acrescentar, antes que Tom, o funcionário postal, pudesse oferecer mais alguma reminiscência médica: — Mas estou telefonando para falar da carta que tens para mim.
— Me deixes verificar. Esperes um instante.
Antes que Albert pudesse impedir ele largou o telefone na mesa e se afastou.
Enquanto Albert ficava sentado, numa raiva impotente, esperando que Tom, o idiota, voltasse, Elizabeth apareceu com uma xícara de chá fumegante e disse:
— Bebas isto, querido. Te ajudará a recuperar a força.
Ela pôs a xícara na mesinha do telefone e ficou parada ali, as mãos cruzadas sobre o avental. Hesitou um instante mas acabou acrescentando:
— Esse telefonema deve ser muito importante.
Ocorreu a Albert que teria de explicar tudo a Elizabeth, mais cedo ou mais tarde. Ainda não tinha idéia de qual seria a explicação que inventaria mas esperava que uma idéia ocorresse antes de precisar a usar. Até lá uma atitude um tanto mais cordial de sua parte poderia servir como substituto adequado. Ajeitou a feição num simulacro de sorriso, levantou o rosto e disse: — Sabes que estou tratando de negócio. Uma coisa que devia ser feita hoje, de qualquer maneira. Como vai o ovo pochê?
— Estará pronto num minuto.
Ela voltou à cozinha. Tom, o funcionário postal, tornou a falar no telefone um minuto depois:
— Há mesmo uma carta, senhor White. E já sabes de quem.
— Tom, escutes com atenção. Estou doente mas espero estar melhor amanhã. Guardes essa carta. Não a mandes a Robert Harrington.
— Esperes um instante, senhor White.
— Tom!
Mas já se afastara.
Elizabeth voltou à sala e fez a pantomima de que o ovo pochê já estava pronto.
Albert acenou com a cabeça, exibiu a careta de sorriso e fez sinal, com a mão, para que se retirasse. Tom, o funcionário postal, voltou ao telefone e disse:
— Senhor White, estamos com a carta desde a terça-feira passada.
Elizabeth estava outra vez parada junto. Albert disse ao telefone:
— Estarei de pé e a buscarei dentro dum ou dois dias.
Acenou vigorosamente para Elizabeth se retirar.
— É melhor telefonar a Robert Harrington. — Sugeriu Tom, o funcionário postal. — Digas para reenviar a carta assim que a receber de volta.
— Tom, guardes a carta para mim!
— Não posso fazer isso, senhor White. Deves estar lembrado de que já conversamos sobre isso. E tu mesmo disseste que eu a despachasse de volta, se não aparecesse para buscar em cinco dias.
— Mas estou doente!
Elizabeth insistia em ficar parada ali, parecendo preocupada com o bem-estar de Albert, quando na verdade estava louca de curiosidade para saber o que acontecia.
Tom, o funcionário postal, disse, com calma irritante:
— Se estás doente, senhor White, não deves estar fazendo serviço secreto. Exceto embaixo do cobertor, hem? Ha-ha-ha!
— Me conheces, Tom! Não és capaz de reconhecer minha voz?
— Claro, senhor White.
— A carta não está endereçada a mim?
— Senhor White, o regulamento postal...
— Que se dane o regulamento postal!
Elizabeth parecia chocada. O silêncio de Tom, o funcionário postal, parecia chocado. O próprio Albert também estava um pouco chocado. E acrescentou:
— Desculpes, Tom. Estou meio transtornado, doente, de cama e tudo o mais.
— Não é o fim do mundo, senhor White. — Disse Tom, o funcionário postal, tentando, obviamente, ajudar. — Senhor Harrington não te queimará numa fogueira por isso, se estás doente.
Albert, com uma nova idéia sugerida pela presença permanente de Elizabeth em sua frente, disse:
— Já sei o que fazer, Tom. Mandarei minha esposa buscar a carta. — Isso implicava contar a verdade a Elizabeth ou, ao menos, uma versão abreviada da verdade, mas não podia mais ser evitado. — Mandarei que leve uma identificação minha, como a carteira de motorista, juntamente com um bilhete meu.
— Não será possível, senhor White. Te lembras de que me disseste a não entregar a carta a outra pessoa, não importavam telefonema ou outra coisa?
Claro que Albert se lembrava. Só que aquela situação era diferente.
— Por favor, Tom. Não podes compreender?
— Ora, senhor White, me obrigaste a dar a palavra.
— Cales a boca! — Gritou Albert, finalmente admitindo a si, que nada conseguiria, bateu o fone.
Elizabeth perguntou:
— O que aconteceu, querido? Nunca te vi agir assim.
— Não me perturbes agora. — Murmurou, sombriamente. — Só te peço que não me aborreças agora.
Tornou a folhear a lista telefônica, encontrou o número do Monequois Herald-Statesman, discou e pediu para falar com Robert Harrington. A telefonista disse:
— Um momento, por favor.
Nesse momento, Albert imaginou como poderia ser a conversa. Diria ao repórter que uma carta que ele nunca remetera seria devolvida? Logo prum repórter como ele? Pedir a alguém como Robert Harrington para não abrir um envelope que chegara a suas mãos pelo método mais estranho e misterioso seria o mesmo que jogar um pedaço de carne crua numa jaula e pedir ao leão fazer o favor de não comer.
Antes que o momento se esgotasse Albert desligou o telefone. Sacudiu a cabeça dum lado a outro, tristemente, murmurando: — Não sei o que fazer. Simplesmente não sei o que fazer.
Elizabeth indagou:
— Devo chamar doutor Francis?
Doutor Francis fora consultado via telefone na sexta-feira, dera uma receita e se encarregara pessoalmente de ligar à farmácia e pedir que entregassem os medicamentos à casa dos White. Se dizia, com alguma razão, que doutor Francis não fazia uma visita domiciliar se o paciente ainda estivesse vivo. Mas Albert, subitamente incendiado por uma nova idéia, gritou: — Isso mesmo! O chames! Digas para vir imediatamente! Enquanto espero comerei aquele ovo pochê!
Doutor Francis chegou em volta das 14h, tirou a capa encharcada. Era a pior tempestade da primavera, até então. Disse, irritado como sempre:
— Muito bem. Vejamos essa emergência.
Albert permanecera no primeiro andar, estendido no sofá da sala, sob cobertores. Se ergueu e gritou:
— Estou aqui, doutor!
Doutor Francis entrou na sala.
— Estás com uma virose. Te receitei na sexta-feira.
— Doutor, preciso ir hoje à agência postal de qualquer maneira. É uma questão de vida ou morte. Quero que me dês algo, uma injeção ou algo parecido, algo que me manterá de pé tempo suficiente para chegar à agência de correio.
Doutor Francis franziu o rosto.
— Mas que história é essa?
— Tenho de ir até lá!
— Andas vendo demais os filmes de espionagem na televisão. Não importa o que queres. Estás doente e ponto-final. Tomes os medicamentos que receitei, fiques na cama e talvez já possas te levantar no final da semana.
— Mas tenho de ir até lá hoje!
— Mandes sua mulher.
— Não!
Em fúria e frustração, Albert se levantou. Deixou o sofá numa confusão de cobertores espalhados, cambaleou até o vestíbulo, pegou o sobretudo no armário e o vestiu sobre o pijama, meteu um chapéu na cabeça e, de chinela, e se encaminhou à porta da frente. Elizabeth e doutor Francis estavam gritando mas ele nada ouvia. A dois passos além da porta, as chinelas de Albert deslizaram na calçada molhada. Caiu, braços e pernas se agitando. E foi assim que desmaiou.
Elizabeth e doutor Francis o carregaram à cama. E ali ficou, depois que doutor Francis o examinou, silencioso e soturno, furioso com o mundo.
Ainda estava lá na tarde de quarta-feira quando Elizabeth entrou com uma estranha expressão no rosto e disse: — Alguns homens desejam falar contigo, querido. Albert sabia quem eram.
— Quero falar com ninguém! — E acrescentou, numa explosão: — Com ninguém! Será que não compreendes que perdi meu emprego?
A PROVA NO BOLSO
Harold Q. Masur
Há uma pequena máxima judicial, um tanto cínica, que diz: Se não podes suportar a sentença não cometas o crime.
Juiz Edward Marcus Bolt, um juiz federal de Estados Unidos, não deu importância a essa exortação. Cometeu um crime e, quando foi descoberto, a perspectiva de passar algum tempo numa penitenciária federal o deixou transtornado. Afastado do cargo, expulso da ordem dos advogados, repudiado pelos colegas, o ego abalado, privado de sua linda esposa. Tudo isso era mais do que podia suportar. Por isso encostou o cano dum revólver na têmpora e puxou o gatilho.
Isso acabou com os problemas do juiz mas criou alguns novos à viúva, Laura Bolt. Alta, loura, inocentes olhos azuis, dentes perfeitamente encapados para seu trabalho como modelo de moda, interrompera a carreira ao se casar com o juiz.
Mas a retomou após a viuvez. Agora estava sentada junto de minha mesa, pálida, apreensiva, trêmula.
— O homem quer o dinheiro de volta.
— Que dinheiro?
— O dinheiro que alega ter dado a meu marido.
— O suborno de 50 mil dólares?
— Acho que sim. Me disse, via telefone, que pagou 50 mil dólares a Edward, para fazer determinado serviço mas isso não aconteceu. — Me lançou um olhar de súplica desesperada. — Vim te procurar, senhor Jordan, porque eras o advogado de Edward e foste muito prestativo depois... Ã... depois de seu acidente.
Ignorei o eufemismo. Eu fora realmente o advogado de juiz Bolt. Talvez cerca de meia hora. Na ocasião em que me contratara presidia o julgamento de Ira Madden, presidente da união dos metalúrgicos.
Madden era acusado, pelo governo, de desviar 1 milhão de dólares dos cofres da organização sindical. Embora não fosse possível provar, se desconfiava de que guardara o dinheiro numa conta numerada na Suíça.
Quando o julgamento ainda estava em andamento, o departamento de justiça começara a investigar o rumor de que um dos lacaios de Madden, um homem chamado Floyd Oster, oferecera ao juiz um suborno de 50 mil dólares. Justamente essa quantia fora encontrada escondida, com adesivo, sob um pára-lama do carro do meritíssimo, as notas identificadas, pelos números de série, como duma retirada recente duma conta de Madden. Em pânico o juiz me enviara um SOS, me convocando a sua casa pruma conversa. Mas devia estar na beira dum colapso, porque se matara antes deu chegar.
O julgamento fora anulado. Agora, o governo se preparava para levar Madden a julgamento outra vez. Floyd Oster, o responsável pelo suborno, estava indiciado.
Houvera diversas outras complicações que eu conseguira resolver para viúva.
Agora, aparentemente, precisava de novo minha ajuda.
— Contes exatamente o que aconteceu, senhora Bolt.
Engoliu em seco, respirou fundo.
— A ligação foi ontem, tarde da noite. Um homem telefonou e disse: Prestes muita atenção, dona, porque só falarei uma vez. Pagamos 50 mil ao juiz.
Prometeu nos ajudar numa coisa mas se acovardou e estourou os miolos antes de cumprir sua parte. Queremos nosso dinheiro de volta. Estás me entendendo?, senhora Bolt. Queremos os 50 mil. Estejas com toda a grana na mão depois de amanhã e voltaremos a entrar em contato. E não te esqueças de ficar longe da polícia ou te arrependerás do dia em que nasceste.
— Puro blefe! — Declarei. — Ameaça vazia.
— Não! — A voz se alteou histericamente e se inclinou a diante, segurando na beira da mesa e apertando com toda força — Uma coisa terrível aconteceu no caminho a cá. Saí de meu prédio e quando dei um passo além do meio-fio, para atravessar a rua, um carro arrancou subitamente e disparou em minha direção.
Pensei: É agora! Eles sabem que telefonei prum advogado e me punirão, matarão ou aleijarão. Fiquei paralisada. Incapaz de me mexer. No último instante o carro desviou bruscamente e passou por mim a toda.
A recordação fez com que o sangue se esvaísse do rosto, o deixando alvo.
— Poderias identificar o motorista?
— Não sei. Aconteceu muito depressa.
Peguei um recorte de jornal num de meus arquivos.
— Olhes esta fotografia. Parece o homem que viste?
Observou a fotografia atentamente, a testa franzida.
— Hum... Não tenho certeza. Esse homem é Floyd Oster?
— Isso mesmo. Ao que sabemos desse inseto em particular, é nosso alvo mais provável.
— Mas não sabe que não estou com o dinheiro, que a polícia o confiscou como prova?
— Não se importaria com isso. Sabe que tens o seguro do juiz.
Estava na beira da lágrima.
— Mas não têm direito a isso! É minha única segurança!
Parecia ignorar seus predicados. Com aquele corpo exuberante e irresistível, tinha toda a segurança de que poderia precisar, muito e muito tempo.
— Fiques tranqüila, senhora Bolt. Estás sob meus cuidados.
Ela conseguiu exibir um débil sorriso.
— Não quererás um pagamento inicial?
Nunca recuso pagamento. Parecia ansiosa em preencher um cheque, como se a transferência de dinheiro pudesse garantir o sucesso. Depois ela se retirou me recostei na cadeira e pensei um pouco no caso.
Floyd Oster, indiciado, estava solto sob fiança. Seu advogado, Edward Colson, era o assessor jurídico da união dos metalúrgicos. Normalmente, um homem como Oster nunca seria capaz de pagar um advogado tão caro. Eu podia presumir que o sindicato, sob pressão de Ira Madden, estava pagando o honorário de Colson.
Por coincidência o escritório de Colson ficava três andares acima do meu, no centro Rockefeller. Liguei até lá e fui informado de que estava em audiência e só voltaria ao escritório no dia seguinte. Não vi impropriedade em passar em cima de Colson e entrar em contato com Oster diretamente. Certamente Oster tinha instrução para manter a boca fechada. Mas eu não estava interessado em dialogar com o homem. Queria apenas que escutasse. E admito que era uma posição quixotesca.
?
O prédio de apartamento era uma casa antiga adaptada, que em nada diferia dos vizinhos, na zona oeste de Manhattan. Quando toquei a campainha pediu, cautelosamente, que eu me identificasse. Depois abriu a porta até o ponto em que a corrente de segurança permitia. Floyd Oster, homenzinho rude, de rosto afilado, com sorriso que parecia uma cimitarra e igualmente letal, era o braço-direito de Ira Madden. Se lembrou de mim sem satisfação, de nosso último encontro.
— Posso entrar, Floyd?
— Não.
— Preciso dizer uma coisa.
— Digas a meu advogado.
— Se Ed Colson souber o que estás tentando fazer abandonará teu caso e terás que arrumar um novo advogado.
— Ed Colson trabalha pro sindicato. Faz o que mandam.
— Tens certeza?
— Digas logo o que queres e depois sumas.
— Nunca aprendes. Não é?, Floyd. Neste momento estás sob a mira dum promotor federal, sob a acusação de suborno. Mas isso não é suficiente. Estás procurando mais encrenca acrescentando uma acusação de extorsão a teu indiciamento. Pois direi uma coisa: Fiques longe de Laura Bolt. Mais um telefonema ameaçador, outra tentativa de intimidação como a história do automóvel nesta manhã, e prometo que acabarei contigo.
— Estás me falando grego.
— Não tentes blefar, Floyd. Entregues os pontos. Sabes exatamente do que estou falando. E não acredito que estejas agindo por instrução de Ira Madden. Com o que escondeu, 50 mil é uma ninharia. Portanto essa é tua pequena operação particular. Mas acho melhor a suspender. Não importunes mais a dona. Porque se alguma coisa acontecer à senhora Bolt pode estar certo de que o telhado cairá em tua cabeça.
Ficou visivelmente perturbado. Me gritou um palavrão e bateu a porta.
?
Talvez estivesse precisando desesperadamente de dinheiro. Talvez a ganância lhe dissipasse o bom-senso. O que fosse, a viúva do juiz estava de novo ao telefone, no final da manhã seguinte, transtornada, na beira do pânico. Recebera outro telefonema. Os bancos fechariam pro fim de semana e assim segunda-feira seria seu último prazo, a voz indagando se gostaria de comparecer a meu enterro antes do seu e lembrando o automóvel que quase a fizera voar ao ar como uma boneca de trapo.
Tratei de a acalmar, desliguei, marchei ao elevador e subi três andares até o escritório de Edward Colson. O advogado de Oster teria de ler para ele a lei que tratava de casos assim. A secretária de Colson me disse que ele estava de saída pro almoço e que sem um encontro marcado...
— Pois digas que Scott Jordan está aqui.
Ainda hesitou mas acabou falando via telefone. Dez segundos depois Colson apareceu. Um homem alto, de andar desajeitado, fumante de cachimbo, feição rude, vasta cabeleira castanha. Edward Colson era um orador de tribunal da velha escola, um tanto espalhafatoso mas duro, inteligente e profundo conhecedor dos meandros da lei.
— Prometeste que me convidarias para almoçar um dia, colega. — A voz retumbante, usando as duas mãos pro aperto. — Deve ter sido ao menos há um ano. Mas entres, entres.
Me segurou no cotovelo e me conduziu a sua sala, Tinha companhia. Uma mulher do tipo solteirona, magra e reta, cabelo emaranhado e olhos suaves, que pareciam passar a maior parte do tempo idolatrando Colson. Fez a apresentação:
— Minha noiva, Lili Madden.
— Filha de Ira Madden?
— Isso mesmo. Conheces meu pai?
— Não pessoalmente.
— Lili e eu ficamos noivos na semana passada. — Informou Colson.
Ela levantou a mão, exibindo orgulhosamente uma pedra azul-branca que devia ter no mínimo cinco quilates. Absorveu a claridade do meio-dia e faiscou. Não representava um grande fardo financeiro para Colson, pensei, se levando em consideração o honorário que recebia da organização sindical. De qualquer forma Lili Madden estava tão obviamente apaixonada que, com certeza, se contentaria com um anel de fantasia de qualquer loja de departamento.
Eu já vira algumas vezes Colson comboiando lindas mulheres na cidade. Era, de fato, conhecedor. Então por que se satisfazer com uma mulher tão feia como Lili Madden? Por uma questão de segurança, provavelmente. Colson gostava da boa vida e como genro de Ira Madden sua posição como assessor jurídico da organização estaria garantida.
— Queres um conhaque?
— Não, obrigado. Poderíamos conversar em particular um momento?
— Temos uma mesa reservada pro almoço. Precisas muito tempo?
— Dez minutos deve ser suficientes.
— Esperes um pouco, por favor, Lili. Há revista na sala de espera.
Ela sorriu, os olhos perdurando no rosto dele algum tempo, antes de se retirar.
Colson murmurou:
— Uma garota maravilhosa.
— Tantos anos solteiro, Ed. De repente resolveste te amarrar?
— Não achas que já era tempo? Não estou ficando mais jovem.
Se acomodou atrás da mesa, cruzou as mãos.
— Sobre o que desejas falar?, colega.
— Sobre um de teus clientes, Floyd Oster.
Fez uma careta.
— Não posso separar o joio do trigo. Como advogado do sindicato tenho de o defender também.
— Nada de mais. Mas deves estar sugando o homem implacavelmente.
— Como assim?
— Oster está se arriscando, tentando conseguir uma grana alta.
— Isso é impossível. Oster não está gastando com a defesa. O sindicato pagará a conta.
— Nesse caso está envolvido num pequeno empreendimento particular, altamente ilegal. Ou talvez esteja sendo estimulado por teu futuro sogro.
O sorriso de Colson se desvaneceu.
— Aonde estás querendo chegar?, Jordan.
Relatei tudo, do princípio ao fim.
— És advogado de Oster. Conheces os antecedentes. Aqueles 50 mil que deu a juiz Bolt...
— Correção: Falta um advérbio. Supostamente deu.
— Duvidas da culpa?
— Todo acusado conta com uma presunção de inocência.
— Uma frase eloqüente, Edward. para Oster, no entanto, não passa dum aspecto técnico. Se juiz Bolt estivesse vivo e pudesse testemunhar o governo não teria problema em meter o cliente na prisão durante alguns anos.
— Talvez sim, talvez não.
— De qualquer forma alguém entregou 50 mil, em dinheiro vivo, ao meritíssimo, enquanto Ira Madden estava em julgamento por desviar recurso do fundo sindical. Não foi uma doação de caridade. E quem mais precisava do favor do juiz, de tratamento preferencial, uma recomendação tendenciosa ao júri? O fato é que Floyd Oster tenta recuperar o dinheiro.
— O que te faz ter tanta certeza de que é Oster?
— Chega de conversa, Ed. Tudo aponta ao homem. E o promotor federal adoraria o incriminar. Certamente esse incidente não ajudará Ira Madden ao voltar ao tribunal.
Colson sacudiu a cabeça.
— Não posso acreditar que Oster seja tão estúpido.
— Se tivesse algo que não um vácuo na cabeça não estaria metido nessa encrenca.
— Achas que me escutará?
— És seu advogado.
— E isso representa alguma força de pressão?
— Conhece o valor de teus serviços. Podes ameaçar o abandonar.
— É justamente o que não posso fazer. Mas esquecerei as regras um momento e conversarei consigo. Te lembres de que o pessoal do sindicato às vezes pede meu conselho mas nem sempre o adota.
— Talvez tenham aprendido a lição. Tanto Madden como Oster estão enfrentando sérias acusações.
— Madden acha que pode escapar.
— Como? Subornando os juízes?
— Foi uma absurda tolice. Não participei.
— Seja como for, parece que querem acrescentar acusações extra ao indiciamento. Na próxima vez terás um jurista meticuloso presidindo o julgamento.
Parece que teus clientes estão mesmo dispostos a liquidar qualquer possibilidade de absolvição.
Colson se levantou. Foi até a janela, se virou, ficou me olhando, os músculos dos maxilares contraídos.
— Está certo, Jordan. Terei uma conversa com Oster. Deixarei tudo bem claro. E tens minha promessa solene de que...
A campainha o interrompeu. Voltou à mesa e atendeu
— Quem? Quem? Á, sim. Podes pôr na linha. — Ficou escutando e vi a tensão e o choque estampados no rosto, antes de acrescentar, num sussurro abafado: — Ó, não! Quando aconteceu? Claro, claro... Irei imediatamente.
Desligou e levantou os olhos a mim, a tensão ainda maior.
— Ira Madden morreu.
Deixei escapar um assovio baixo.
— Como aconteceu?
— Acidente automobilístico. Madden estava ao volante, seguindo ao norte, na rodovia Franklin D. Roosevelt. Perdeu o controle na saída da rua 42 e bateu numa coluna de concreto. Era confiante demais para prender o cinto de segurança e ficou quase empalado no volante.
— Estava sozinho?
— Não. Floyd Oster estava consigo.
— Ã!? Ficou muito ferido?
— Teve o pulso quebrado. Parece que levantou a mão para proteger o rosto contra o pára-brisa. — Colson sacudiu a cabeça. — Como darei essa notícia a Lili?
Adorava o velho tirano.
O que precisavam era privacidade. Colson exibia uma expressão angustiada quando passei na porta. Pensei que sabia o que o preocupava. Há sempre facções dissidentes dentro dum sindicato, lutando pelo controle total. Um novo grupo poderia afastar todos os velhos companheiros de Ira Madden, inclusive o assessor jurídico Edward Colson.
?
Madden teve um esplêndido bota-fora: Caixão de bronze, um cortejo de 200m, oferenda floral mais apropriada a um casamento. Compareci nos últimos rituais por curiosidade mas não tive prazer nisso. Os funerais constituem um ritual pagão, saboreados apenas pelos agentes funerários, os inimigos e, possivelmente, alguns herdeiros do falecido.
Lili Madden, a filha, única parente sobrevivente, os ombros vergados, o rosto oculto por um véu preto, conseguia se manter empertigada com a ajuda do forte braço direito de Ed Colson. Floyd Oster não estava entre os homens que carregaram o caixão. Seu braço esquerdo, engessado, estava apoiado numa tipóia que passava no pescoço. Não havia expressão identificável no rosto.
Num tom untuoso o clérigo que presidiu a cerimônia entoou uma ladainha sobre as virtudes e realizações incomparáveis de Ira Madden, a tal ponto que o próprio falecido ficaria espantado. As palavras arrancaram soluços convulsivos de Lili Madden.
As pessoas se afastaram da beira do túmulo pouco antes do plantio final.
Observei Ed Colson conduzir Lili até uma limusine e depois voltar a uma rápida conversa com Floyd Oster. Havia uma carranca no rosto de Oster. No final Colson levantou os braços num gesto de frustração e voltou a junto da noiva. Oster embarcou no carro seguinte.
?
Telefonei a Laura Bolt assim que voltei a meu apartamento. Seu serviço telefônico informou que fora passar o fim de semana fora. Pensei: Por que não?
Manhattan não era, propriamente, um lugar bem-aventurado durante o verão sufocante. Eu também ansiava uma folga. Dois dias de pescaria num lago sossegado nas montanhas era uma boa idéia. Emalei umas poucas coisas essenciais e pedi meu carro.
Depois, seguindo até a alameda Henrique Hudson, meio por impulso meio porque ficava no caminho, resolvi parar proutra conversa com Floyd Oster.
Estacionei diante do prédio e toquei a campainha. Sem resposta. Mantive o dedo no botão longo tempo mas acabei desistindo. O encontrei ao deixar o prédio, avançando em minha direção, carregando uma embalagem de seis cervejas.
Bloqueei seu caminho na entrada. Me lançou um olhar frio, reptiliano.
— Saias da frente, Jordan.
— Não gostas de escutar! Hem, Floyd. Não a mim nem a teu advogado.
Estúpido, teimoso, ganancioso. As palavras não conseguem penetrar em teu crânio e por isso tentarei outra coisa.
— O quê, por exemplo? — Indagou, desdenhosamente.
— Te meter atrás das grades. Meu projeto pessoal, Floyd. Acabarei contigo. Ira Madden não está mais aqui para te proteger. Gente nova assumirá o controle do sindicato. E Colson também te abandonará. Portanto, Floyd, estás sozinho. E se...
Parei de falar de repente, por causa dum brilho súbito nos olhos e um ligeiro deslocar do peso do corpo. E quando a ponta do sapato pesado de Oster disparou acima, me virei rapidamente, agarrando seu tornozelo e torcendo a perna numa curva de 90º. O arranquei do chão e, quando o larguei, se estatelou na calçada, agitando os braços. Oster aterrissou sobre o braço quebrado e relinchou como um cavalo num estábulo em chama.
Me abaixei, contrito, para o ajudar. Se esquivou, cuspindo palavrão. Tinha o vocábulo dum carroceiro.
— Deixes esse pobre homem ferido em paz! — Gritou uma voz estridente, atrás de mim.
Era uma mulher pequena e encarquilhada, mal-vestida, um chapéu de flor branca, rosto firme, brandindo um guarda-chuva.
— Não estás envergonhado do que fizeste? Um homem do seu tamanho! Como tiveste coragem de agredir senhor Oster? Um homem ferido e desamparado! — Os lábios estavam tão comprimidos que eram invisíveis. Me ameaçou com o guarda-chuva. — Te afastes! Vamos logo! Se não o largares agora, efetuarei uma prisão de cidadã por agressão criminosa!
Reprimi um sorriso. Aquela mulherzinha espalhafatosa mal conseguiria levantar a agulha da balança até os 40 quilos mas não duvidei de que estava mesmo disposta a me agarrar o braço e levar à delegacia mais próxima. Abaixei os olhos a Oster.
— Desculpes por teu pulso, Floyd. Foi inevitável. Mas doravante não haverá diálogo.
Me virei rapidamente, voltei ao carro e fui embora. Parei de pensar em Oster depois de passar na Ponte Jorge Washington e começar a seguir ao norte na rota 17.
Foi um fim de semana dos mais proveitosos. Peguei seis trutas de tamanho médio. Limpei, temperei, cozinhei e comi com a maior satisfação. Ia à cama cedo e me levantava cedo, pensando como seria maravilhoso passar todo um mês empenhado naquele saudável esforço. Voltei a Nova Iorque na manhã de segunda-feira.
Um visitante me esperava no saguão do prédio de apartamento: Sargento-detetive Wienick, muito sério, barrigudo e calvo.
— Tiveste um bom fim de semana?, advogado. — Perguntou polidamente.
— Um comitê de recepção do departamento de polícia de Nova Iorque. — Murmurei. — Muito bem, sargento. Qual é o problema?
— Quero oferecer um passeio de graça num veículo municipal. O tenente deseja falar contigo.
Se referia a tenente John Nolan, da delegacia de homicídio, que estava sentado em sua sala. Moreno, magro, preciso, abrupto a ponto de descortesia, provavelmente o melhor policial de Nova Iorque. Embora não mantivéssemos contato recentemente, dispensou todas as amenidades.
— Passaste o fim de semana fora, advogado. Por que não comunicaste a tua secretária onde poderias ser encontrado?
— E ficar à mercê do telefone? De jeito nenhum.
— Talvez houvesse uma emergência.
— As emergências são pros médicos e não pros advogados. — Alteei uma sobrancelha. — Qual é teu problema, tenente?
— Nós dois temos um problema. E o teu pode ser maior que o meu. Wienick, deixes a dona dar uma olhada nele.
O sargento saiu e voltou um momento depois, introduzindo na porta a mulherzinha com o guarda-chuva. Estacou abruptamente, me olhando. Apontou um dedo trêmulo e anunciou, com voz estridente:
— É ele! É esse o homem! O vi atacar o pobre senhor Oster. Vi com meus olhos. — Deu um passo a trás. — É perigoso. Não o deixai chegar perto de mim. Não se permite que um homem assim ande solto na rua.
— Não tens dúvida? — Perguntou Nolan.
— Tenho uma visão perfeita, tenente. Deveis determinar a pena capital. A prisão é boa demais pra...
Nolan a interrompeu:
— Providencies que a senhora seja levada de volta a sua casa, sargento.
Wienick a segurou no braço e conduziu, firmemente, à porta. Nolan se recostou na cadeira, sacudindo a cabeça tristemente.
— Nada digas. — Falei. — Me deixes adivinhar. Algo aconteceu a Oster.
— Isso mesmo.
— Uma prensada?
— O suficiente para o levar ao necrotério.
— Não posso dizer que estou desconsolado, tenente. A sociedade sobreviverá à perda. Quando aconteceu?
— Na tarde de domingo.
— Enquanto eu estava lá nas montanhas, pescando.
— Tens prova?
— Se for necessário.
— Uma questão de rotina, advogado. Insisto.
— Então terás. Dês a informação, por favor. Quem encontrou o corpo?
—Senhora Scrimshaw.
— Quem?
— A velha. Holy Scrimshaw.
— Estás brincando...
— É esse mesmo o nome, Advogado. — Um sorriso se insinuou no rosto do tenente, incipiente, rápido. — Teve a impressão de ouvir um tiro e desceu para investigar. A porta de Oster estava aberta. Estava arriado numa poltrona, com uma bala na têmpora esquerda. Por volta de duas horas da tarde. Senhora Scrimshaw voltou correndo a seu quarto e nos telefonou. Chegamos em poucos minutos. Contou a briga que tiveste com Oster na sexta-feira. Disse que entraste em teu carro e que se lembrava da placa.
— Extraordinário!
— É mesmo extraordinária. Não conseguimos te encontrar e calculamos que foste passar o fim de semana fora. Está tudo aí. E agora vamos ao outro lado. O que aconteceu entre tu e Oster?
— É uma história comprida, tenente.
— Tenho tempo para escutar. Podes começar.
Deixei escapar um suspiro, me recostei e relatei a tentativa de Oster de extorquir dinheiro da viúva Bolt. Escutou atentamente, os olhos se estreitando.
— Seriam os 50 mil dólares supostamente pagos a juiz Bolt para decisões favoráveis no julgamento de Ira Madden?
— Exatamente.
— Tens certeza de que foi Oster?
— Tudo aponta a ele.
— Por que tu? Por que ela não procurou a polícia?
— Porque ele a advertiu a não procurar a polícia e a dona ficou apavorada.
— Sexta-feira foi a última vez que viste Oster?
— Foi.
— Não conseguiste o demover e resolveste recorrer a um pouco de força.
— Sabes muito bem que não sou disso, tenente. A violência não é meu estilo.
— Oster ignorou minha primeira visita. Pedi a Ed Colson que interviesse, mas Oster continuou irredutível.
— E então?
— Eu tencionava o entregar à polícia.
— És bem alto e corpulento, advogado. Estás querendo me dizer que Oster tentou te enfrentar mesmo com um braço na tipóia?
— Tenente, Floyd Oster era um demônio selvagem. Se o chute me acertasse, eu ficaria no estaleiro durante semanas. O derrubar foi um ato puramente defensivo. Raramente perdia uma altercação. Te lembres do que aconteceu naquele acidente. Matou Madden e apenas fraturou o pulso de Oster.
Nolan me estudou em silêncio longo tempo. Finalmente chegou a uma decisão e anunciou:
— O acidente não matou Ira Madden.
Me empertiguei na cadeira.
— Como?!
— Madden já estava morto quando o carro bateu na pilastra. Como vítima dum acidente foi levado ao necrotério. Um atendente encontrou um medicamento em seu bolso. Tabletes de nitroglicerina. Sabe para que servem?
— Endurecimento das artérias. Geralmente receitadas para arteriosclerose.
— Correto. Encontraram também um anti-coagulante. Obviamente, Ira Madden era candidato a um infarto. Houve uma autópsia e o médico legista encontrou um coágulo bloqueando uma das principais artérias do coração. O médico legista disse que isso o matou num piscar de olho e foi por isso que perdeu o controle do carro.
— E Madden manteve seu estado em segredo.
— Naturalmente. Não queria que os inimigos no sindicato soubessem.
— Havia o nome dalgum médico nos frascos de medicamento?
— Certo doutor Lewis Bukantz.
— Já o interrogaste?
— Se mostrou relutante em falar mas arrancamos o bastante para esclarecer a situação. Madden tinha antecedente de hipertensão, pressão alta. Sofreu o primeiro infarto há um ano. Recusou a hospitalização. Bukantz o aconselhou a pedir ao governo um adiamento do julgamento, alegando que a tensão e ansiedade poderiam exacerbar seu estado.
Alteei uma sobrancelha.
— Exacerbar?
— Linda palavra. Não é? A aprendi com o médico. Significa exagerar ou intensificar a doença. Madden recusou.
— Não poderia fazer outra coisa. Haveria necessidade duma petição do advogado de Madden, apresentando um motivo para solicitação.
— Então o médico lavou as mãos da responsabilidade.
Sacudi a cabeça.
— Parece que a lei é um tanto estranha nesses casos. O problema cardíaco é, presumivelmente, uma questão particular, que não afeta o público. Só que devem cancelar a licença do paciente para guiar um carro. É que se tiver um ataque numa rua apinhada pode a matar pedestres inocentes.
— Tens razão, Advogado. E isso já aconteceu no passado. — Fez uma pausa, os olhos fixos em mim, se estreitando. — Como vais de história?
— Essa não dá para entender. De que história estás falando? Moderna, medieval, antiga?
— Antiga.
— Quanto?
— 896 BC{6}.
— 9 séculos antes de Cristo. Não é minha especialidade. Sou um entusiasta da guerra civil americana. Mas por que perguntas?
— Dês uma olhada. — Estendeu um pedaço de papel pequeno, com os vincos de dobra — Encontramos na carteira de Oster.
Ali estava, escrito a lápis: 1 – 896 BC. Nada me dizia. Nada me recordava.
Levantei os olhos.
— Por que não verificas com um historiador especializado na era?
— Foi o que fiz. Professor Bernard Buchwald, de Colúmbia. Tentou encontrar algo. — Nolan fez um gesto desolado. Mas quem mantinha registro naquele tempo? Talvez uns poucos hieroglifos em cavernas. Nada que pudéssemos usar.
— Achas que a data é significativa?
— Esse papel estava na carteira de Oster, advogado. O homem foi assassinado.
— Podemos ignorar? Muito bem, me deixes testar outra vez. Aqui tem outra coisa. — Estendeu um segundo pedaço de papel. — Também estava na carteira de Oster. O nome dum homem. Já ouviste falar nele?
Estudei atentamente o papel, como uma das manchas de tinta de doutor Herman Rorschach. Dizia: CH Jorge, NAS. Não havia ponto depois das iniciais.
Esquadrinhei fundo mas o nome não desencadeou reação. Finalmente declarei:
— O nome é estranho para mim. Mas reparei que a letra neste papel é diferente da que está no outro.
— Correto. A data foi escrita com a letra de Oster, o nome por Ira Madden.
Comparamos as caligrafias com outras amostras.
— CH Jorge... Já o descobriram?
— O nome não consta nas listas telefônicas dos cinco distritos. Uma pergunta, Advogado: Conheces alguma organização, título ou órgão do governo que tenha as iniciais NAS?
— Não, ao que posso me recordar neste momento, mas o fundo de pensão da união dos metalúrgicos, a suposta fonte do saque de Ira Madden, investiu amplamente no mercado acionário. Alguns dos títulos provavelmente não estão relacionados e foram negociados fora do mercado. Assim, NAS pode ser uma abreviatura da National Assocation of Security Dealer (Associação Nacional dos Distribuidores de Valor).
— Se CH Jorge estivesse no negócio seu nome não constaria na lista telefônica?
— Claro. Mas em qual lista? Suponhamos que tenha um escritório em Newark, Passaic, Jersey City, Hoboken... Podes continuar daí.
Nolan parecia contrafeita.
— Ou qualquer uma entre mil outras cidades. Madden negociaria com qualquer palhaço que lhe desse uma parte substancial da comissão.
— Por que não ligas à NASD e perguntas se CH Jorge é um de seus membros?
Nolan bateu a mão na testa e no instante seguinte pegou o telefone e gritou uma ordem. No momento em que desligava a porta se abriu e Wienick voltou.
— Nem precisas tirar o chapéu. — Disse Nolan, bruscamente. — Vás buscar Laura Bolt.
— Ei! Esperes um pouco! — Protestei. — Por que a incomodar? Não podes a deixar em paz?
— A culpa é tua, advogado. Disse que Oster tentava extorquir dinheiro de senhora Bolt. Oster vira um cadáver de repente. Portanto, temos de apertar a dona para saber se ela tem culpa no cartório.
— Então terás de a interrogar em minha presença. Sou o advogado.
— E a aconselharás a nada dizer.
— Não te preocupes, tenente. Senhora Bolt nada tem a esconder. Estava fora da cidade quando aconteceu.
— Muito conveniente. Todas as partes interessadas dão um jeito de deixar a cidade quando um crime ocorre.
— Nem todas, tenente. Apenas Laura Bolt e eu. Ao que parece, alguém ficou para fazer o trabalho.
— Sei disso. Ou talvez tenha voltado furtivamente o tempo suficiente para apontar uma arma.
— Laura Bolt nunca disparou um revólver. Não seria capaz de acertar uma parede no interior duma sala.
— Sabes disso com certeza, Advogado?
Exibi um sorriso.
— Não. Posso conversar cinco minutos com senhora Bolt antes de começar à espremer?
— Eu preferia que não.
— Tenente, o supremo tribunal federal concede a todos os acusados o direito de permanecer em silêncio até que consultem um advogado. Já ouviste falar das comunicações privilegiadas. Onde está o privilégio se não posso falar com ela em particular?
— Quem consegue argumentar com um advogado? Muito bem. Podes fazer a consulta aqui mesmo, em minha sala.
— Tem microfone escondido?
— Faças um favor, advogado. Vás...
— Não termines, tenente. Não seria distinto. Se... — A campainha soou. Ele levou o fone ao ouvido, escutou, alteando uma sobrancelha. — O homem não pode esperar? Está certo, mandes entrar.
Ele desligou, me olhou e acrescentou:
— Fiques aqui. Deve ser interessante.
O visitante de Nolan era um primata magro, calvo, compenetrado, com olhos de computador e uma boca tão fina que parecia uma navalha. Se apresentou com uma voz sem inflexão, exibindo também as credenciais: Senhor Harry Prime, divisão de fraude, serviço da receita federal. Queria informação sobre Floyd Oster e soubera que tenente Nolan estava encarregado da investigação do homicídio. Nolan perguntou: — Oster estava marcado pruma investigação especial?
— Nada disso, tenente. Oster entrou em contato com meu departamento há alguns dias e iniciou negociação preliminar. Queria saber do honorário de informante.
Nolan franziu o rosto.
— Honorário de informante?
— Recompensa a dedo-duro. Um aviso aos cavalheiros do SRF sobre a sonegação de imposto dalguém e a recompensa do governo ao dedo-duro, uma porcentagem do dinheiro recuperado, se houver.
O Senhor Harry Prime me fitou com evidente aversão.
— Não me lembro de ter ouvido teu nome.
— Scott Jordan.
— Á, sim. Já ouvi falar de ti. para tua informação, senhor, preferimos não chamar de recompensa a dedo-duro. Honorário de informante é muito mais apropriado. Um indivíduo que nos ajuda a recuperar dinheiro que legitimamente pertence ao governo é um patriota que está cumprindo o dever cívico.
— Senhor Prime, qualquer momento em que Floyd Oster cumprisse um dever cívico por motivos patrióticos devia ser declarado feriado nacional.
Nolan abriu os braços.
— O que exatamente queres de mim, senhor Prime?
— Talvez seja melhor eu te dar, antes, alguma informação, tenente. Quando entraste em contato conosco, Floyd Oster disse que tinha informação valiosa sobre um sonegador de imposto. Não identificou o homem nem forneceu informação sobre onde se encontraria o fundo ilegal. Disse que a quantia era considerável, mais de 1 milhão de dólares. Queria saber qual a percentagem que poderia esperar. Na conclusão de nossa conversa, marcou um encontro comigo pro final desta semana. Já sabes o que aconteceu: Oster foi morto, impedindo nova declaração. O serviço de receita federal gostaria de saber se tua investigação já encontrou algo que possa nos ajudar.
— Ainda não. Não estamos cuidando do caso há tempo suficiente.
— Podes nos dizer algo das pessoas a quem estava ligado?
— O único nome que me ocorre é o de Ira Madden. Mas não há indício de que traíra seu antigo patrão. Posso dar uma sugestão?
— Claro.
— Oster era processado pelo departamento de justiça. Há meses que o investigavam. Parece provável que o promotor federal preste distrito disponha de informação mais ampla a respeito dele do que eu.
— És o próximo de minha lista. — Prime virou a cabeça, bruscamente, para me fitar, com súbita recordação. — Scott Jordan... Não deverias ser o advogado de juiz Bolt naquela acusação de suborno pela qual Oster era processado?
— Isso mesmo.
— Sabes algo sobre o caso?
— Não no momento. Mas tenho uma cliente que será interrogada sobre o assassínio de Oster e por isso tenho um motivo especial para investigar. Se eu descobrir algo que envolva sonegação de imposto não me tornaria um candidato a honorário de informante?
Ele exibiu uma expressão consternada.
— Cada caso possui mérito específico. És advogado, atuas em nome da lei.
— Só que, no caso, não estaria sendo assalariado mas apenas um cidadão tentando cumprir um dever cívico. Paguei ao governo toda minha vida. Não me importaria em recuperar um pouco. Tudo estritamente legal, é claro, de acordo com as vossas próprias regras. E agora, senhor Prime, não tentes te esquivar. Terei direito a uma participação?
Ele teve de limpar uma obstrução na garganta. Falou com dificuldade, como se qualquer pagamento saísse de seu próprio bolso: — Senhor Jordan, se nos forneceres informação que ajude materialmente o governo a efetuar uma recuperação, então terás direito a honorário.
— Quanto?
— Não creio que ficaria desapontado.
— 10%?
— Por aí. 10% de 1 milhão não é de se desprezar.
— Muito bem. Verei o que posso fazer.
Prime tirou um cartão do bolso.
— Ligues a este número.
Se levantou e apertou a mão de Nolan. Omitiu a formalidade comigo. Depois que se retirou, Nolan me lançou um olhar inquisitivo.
— Conheço essa expressão, advogado. Sempre me perturba. Sabes algo.
— Apenas uma vaga noção, tenente. Uma teoria sem prova.
— Talvez eu possa ajudar.
— Mais tarde, talvez. Depois que eu definir melhor as coisas.
Assentiu, resignado, sabendo que seria inútil insistir. A porta se abriu e sargento Wienick voltou, acompanhado por uma indignada Laura Bolt, se queixando amargamente. A silenciei com a mão levantada. Falei: — Esse simpático cavalheiro é tenente John Nolan. Nos permitirá usar sua sala pruma conversa e garante que não há microfone escondido.
Nolan reprimiu um comentário e saiu, levando Wienick. Fiz muitas perguntas a Laura Bolt e não fiquei especialmente impressionado com as respostas. Fora a Montauk de carro, hóspede de amigos no fim de semana. Também convidaram um homem, solteiro, um companheiro possivelmente apropriado para Laura. Mas fora impossível: 10min depois da apresentação já o detestava. Na manhã seguinte, bem cedo, se desculpara aos amigos e voltara à cidade.
Portanto estava na cidade na ocasião em que Floyd Oster fora liquidado.
É verdade. Soubera da morte de Oster. Não estivera perto do apartamento dele.
Sua reação? Não lamentava. Ao contrário, estava até exultante. Terminara o fim de semana assistindo televisão. Não recebera telefonema.
Compreendi que Nolan adoraria aquela situação. Com a presunção anglo-saxônica de inocência precisaria dalgo mais que coincidência antes de a deter como testemunha material. Finalmente abri a porta e chamei:
— É toda tua, tenente.
A atitude dele, durante os 30 minutos de interrogatório, foi de ceticismo polido.
No final nos dispensou, ainda insatisfeito. Eu sabia que antes de uma hora estaria com uma equipe em campo, vasculhando a vizinhança de Oster, mostrando fotografia da sedutora senhora Bolt. A meti num táxi.
As teorias precisam dum período de maturação, o tempo necessário para desabrochar. Por isso ignorei os táxis e fui andando, pensando em tudo no caminho. Destino: Segundo andar da biblioteca pública, uma sala devotada exclusivamente a finança e economia. Quase todos os habitantes da sala estavam debruçados sobre mesas compridas, estudando, atentamente, boletins do mercado acionário, procurando a oportunidade esquiva de ganhar um dólar fácil, sem ter de derramar o suor do rosto.
Pedi um manual volumoso sobre bancos estrangeiros e refúgios fiscais no exterior. Procurei durante muito tempo, cansando os olhos, virando as páginas, até que senti um alvoroço de excitação. Algo me atraíra a atenção. Examinei meticulosamente, conferindo e confirmando, uma suposição lógica se seguindo a outra.
Tenente Nolan e eu fôramos precipitados e arbitrários ao concluir dos fatos disponíveis. Estávamos errados em duas coisas: 896 BC não era uma data e CH Jorge não era um homem. Minha pista inicial fora fornecida por senhor Harry Prime, ao nos informar que Floyd Oster procurara o serviço da receita federal querendo saber qual era o honorário de informante. Por que Oster faria tal coisa? Muito simples: Sabia que alguém cometera uma fraude fiscal. Quem? E quem mais poderia ser além de Ira Madden, suspeito de remeter à Suíça fundo desviado de sua organização sindical?
Oster sempre estivera perto de Madden, um lacaio leal, mas Madden morrera e não há lucro em ser leal a um cadáver.
Agora estava morto e o promotor federal pro distrito sul de Nova Iorque provavelmente não sentia pesar. Já tinha caso em andamento em quantidade suficiente para o ocupar até o próximo milênio. Sendo assim não lamentava limpar sua área dos processos contra Ira Madden por peculato e contra Floyd Oster por subjugar um juiz federal, consignando os casos ao arquivo morto.
O que já não acontecia com tenente Nolan. Um homicídio fora cometido em sua jurisdição. Assassínio é assassínio, mesmo a liquidação dum espécime tão ordinário como Floyd Oster.
O caso também permanecia aberto para senhor Harry Prime, da receita federal.
Enquanto achasse que havia possibilidade de engordar ainda mais as burras do governo, tencionava insistir, investindo contra o espólio de Madden, se fosse necessário. Soubera que Ed Colson fora indicado no testamento de Madden como o executor.
Depois de deixar a biblioteca tentei uma forma de isometria mental, com fragmentos da memória, ao acaso. Senti que determinadas conclusões deviam ser transmitidas às autoridades. Nolan não estava disponível. Liguei a Harry Prime e me convidou para comparecer a uma conferência em seu escritório, na manhã seguinte, com Ed Colson e o tenente.
O escritório do serviço da receita federal em Manhattan, na rua Igreja, é um prédio que nunca deixou de me parecer inóspito. Prime se sentou atrás de sua mesa e presenteou cada um com o típico olhar vigilante do coletor de imposto. Disse:
— Uma declaração preliminar, apenas para definir a situação. Há quatro homens nesta sala. Cada um tem objetivo diferente. Tenente Nolan quer pegar um assassino.
— Quero receber até o último centavo do que nos é devido do espólio de Ira Madden.
— Senhor Colson, como testamenteiro de Madden, gostaria de manter o espólio intato. E senhor Jordan quer um pouco de ação.
— Correção! — Intervim. — O dinheiro seria um bônus periférico, bem recebido mas não essencial. Meu objetivo principal é inocentar Laura Bolt de suspeita de homicídio.
Prime se mostrou cético.
— Mas não recusarias os honorários de informante.
— Recusarias?
Pareceu surpreso e se apressou em mudar de assunto:
— Senhor Colson, foste o advogado de Madden. Eras também o advogado de Floyd Oster. Sabias que Floyd Oster entrara em contato com este escritório antes de sua morte, informando que tinha informação sobre uma fraude fiscal envolvendo 1 milhão de dólares.
Colson sacudiu a cabeça.
— Eu não sabia disso, senhor Prime. Floyd Oster fazia muitas coisas que eu não sabia.
— Se uma fraude fora cometida e Oster sabia: Podes imaginar a identidade de quem a cometeu?
— Sou advogado. Prefiro os fato a palpite.
— Não é verdade que Ira Madden fora acusado de desviar recurso do fundo de pensão da união dos metalúrgicos?
— E verdade que fora acusado. Mas um processo não é prova. Estava muito longe de ser condenado.
— Somente sua morte evitou que isso acontecesse.
— Estás enganado. Uma carência de prova alcançaria o mesmo efeito.
— Pois bem, senhor Colson. Nós, da receita federal, estamos convencidos de que Oster se referia a Ira Madden. Gostarias de comentar a respeito?
— Não especialmente, senhor Prime, mas farei. Suponhamos, apenas como argumento, que Ira Madden estivesse vivo, fosse julgado e condenado, que o dinheiro desviado do fundo de pensão fosse localizado. Onde a receita federal entraria nesse quadro?
— Madden não pagou imposto sobre esse dinheiro.
— Estás enganado, senhor Prime. Outra vez nada admitindo, a que impostos te referes? Esse dinheiro, se roubado do fundo de pensão, pertence à organização sindical. E como assessor jurídico da união dos metalúrgicos, tenciono providenciar para que qualquer recuperação vá direto a nossos cofres. A receita federal não tem direito a um centavo.
Prime ficou aturdido, piscando os olhos várias vezes. Dum modo geral, na presença de autoridades fiscais, a maioria dos cidadãos fica apreensiva, humilde, contrita. Uma alteração nesse padrão sempre provoca sobressalto. Harry Prime ficou subitamente desorientado, sem saber o que dizer. Mas tenente Nolan tinha o que falar: — Como advogado de Floyd Oster, senhor Colson, deves ter conversado consigo em numerosas ocasiões.
— Só nos preparativos pro julgamento por suborno. Eu gostaria de deixar uma coisa bem clara, tenente: Acho que Floyd Oster era um leproso moral. Em circunstância normal não permitiria que um verme como Oster passasse na porta de minha sala. Só aceitei seu caso porque era empregado da união e porque Ira Madden pediu.
— Encontramos um pedaço de papel, no cadáver de Oster, com o nome CH Jorge. Alguma vez mencionou alguém com esse nome?
Colson franziu o rosto.
— Não me lembro.
— O nome estava escrito com a letra de Ira Madden. Madden mencionou um CH Jorge?
— Não. Quem é?
— Não sabemos. Depois do nome estavam as letras NAS. Resolvi declarar nesse instante:
— CH Jorge não é o nome dum homem.
Um súbito silêncio. Todos os olhos se fixaram em mim. Nolan perguntou, a voz suave:
— Podes explicar, por favor, advogado?
— É um endereço em Bahamas, tenente. Mais especificamente, na ilha Nova Providência.
— Continues falando.
— CH Jorge é uma abreviatura que significa Caribe House, rua Jorge. E NAS representa Nassau.
— Quem vive lá?
— Ninguém. É a sucursal dum banco suíço com matriz em Zurique.
— Como descobriste isso?
— Deves estar lembrado que também encontraste um número no bolso de Floyd Oster: 896 BC A princípio pensaste que fosse uma data. Depois, tendo em vista a informação de senhor Prime sobre a sondagem de Floyd Oster, me ocorreu que poderia se referir a uma conta numerada secreta num banco suíço. Assim, consultei um livro de referência na biblioteca e entre os bancos relacionados estava um com sede em Zurique, banque Credit.
Nolan percebeu no mesmo instante.
— Banque Credit, BC.
— Exatamente. 896 BC O número duma conta no banque Credit. Verifiquei que o banco tinha uma sucursal em Caribe House, na rua Jorge, em Nassau. Tudo combinava. Era óbvio demais para que se pudesse considerar coincidência.
— E a quê se ajusta o número 1 antes de 896?
— Se ajusta ao número 1 na união dos metalúrgicos, Ira Madden.
— E Oster descobriu tudo?
— Encontrou a prova no bolso dele.
Prime disse, bruscamente:
— Jamais alguém me mencionou isso.
— Pois tomas conhecimento agora. E não me surpreenderia se aquela conta foi recentemente transferida da matriz em Zurique à sucursal em Bahamas, a fim de a tornar mais rápida e facilmente acessível.
— Por que Madden não cancelou a conta? — Perguntou Prime. — Saberia que o governo recentemente negociou um tratado com a Suíça sobre informação a respeito de fundo ilegal.
— Meu palpite é de que se preparava para fazer isso e o faria se o infarto não o liquidasse primeiro. Nolan interveio:
— Madden estava morto. Quem mais tinha motivo para matar Oster?
— Me parece que todos estavam propensos a apontar Laura Bolt.
— Isso é história passada.
— Ótimo. Porque não foi a única vítima. Floyd Oster estava chantageando também outra pessoa.
— Quem?
Apontei.
— Nosso amigo advogado, senhor Edward Colson.
A cadeira de Colson foi bruscamente empurrada a trás e caiu quando se levantou.
— De que diabo estás falando?, Jordan.
— Estou falando de chantagem. Extorsão. Floyd Oster pode ter sido um verme mas seu cérebro funcionava muito bem. Sabia o que estavas querendo. Percebeu tua manobra antes de qualquer outra pessoa e te pressionou para receber uma parte do lucro.
— O que insinuas?
— Não estou insinuando mas afirmando claramente. Na presença de testemunhas. Eras o advogado pessoal de Ira Madden. Eras o testamenteiro. Sabias que deixara tudo para Lili, do estado cardíaco de Madden e que poderia morrer a qualquer momento.
Colson ficou ainda mais tenso.
— E daí?
— Então procuraste a moça. Despejaste todo teu charme. Ela nunca recebera cantada e ficou radiante. Se apaixonou. E como! A vi em teu escritório, fascinada. Planejavas te casar com a moça e depois seria fácil roubar a herança. Especialmente o dinheiro nas Bahamas. 1 milhão de dólares livres de imposto.
— Mas por que eu precisaria do dinheiro de Lili? Sou um advogado bem-sucedido.
— Tentes outra história, Colson. Essa não colará. Há 10 anos que estás limitado a um só cliente: A união dos metalúrgicos, o feudo pessoal de Ira Madden. Agora Madden está morto e quando a oposição assumir o comando serás, provavelmente, despedido. É tarde demais para recomeçar uma banca. Por isso estavas desesperado. Todos sabem que és um grande gastador e não poderias suportar uma mudança de vida. Por isso estava ansioso em meter as mãos naquele dinheiro que Madden escondia numa conta numerada.
O suor cobriu o rosto de Colson.
— Como eu podia saber onde guardava o dinheiro?
— Sabias porque Madden te contou. Uma providência essencial para que a filha recebesse o dinheiro. Esse é o procedimento na transferência de contas secretas. O banco tem registrado o beneficiário do depositante, que quando morre, o advogado deve comunicar ao banco e apresentar um atestado de óbito, permitindo a transferência da conta. Nesse caso para Lili Madden. Mas seria apenas durante pouco tempo, já que no final assumirias tudo. Não sobraria um centavo à união dos metalúrgicos. E sabendo disso tudo, Oster queria arrancar uma parte de ti.
Linhas brancas emolduravam a boca de Colson.
— Se estava fazendo chantagem comigo por que procuraria a receita federal?
— Para te pressionar. A fim de que aceitasses o negócio. Por isso é que Oster tinha de ser liquidado.
Colson encostou a mão em seu peito.
— Insinuas que matei Floyd Oster?
— Não insinuo mas acuso diretamente. Conhecias Oster e sabias que te arrancaria até o último centavo. Não havia opção. Visitei o homem. Sei que não abriria a porta para visitante. Mas abriria a porta para ti, especialmente se pensasse que seria para tratar de negócio.
Colson se virou, olhando a Nolan e Prime, os braços abertos num gesto de apelo, a voz impregnada de sinceridade.
— Algo aconteceu a Jordan. Acho que enlouqueceu. Sou um advogado respeitável. É um absurdo pensar que eu poderia matar um homem por dinheiro.
— Dinheiro é o motivo de sempre. — Comentei. — Neste caso, 1 milhão de dólares. Muitos homens já saquearam por muito menos. Mas ainda tinhas outro motivo, Colson. Acho que foi a força atrás da tentativa de Oster de subornar juiz Bolt. Tramaste tudo. Conhecias bem os tribunais para saber que juiz Bolt era vulnerável. E estavas apavorado com a possibilidade de Oster perder o controle no tribunal e te incriminar. Isso seria teu fim: Cumplicidade, conspiração, expulsão da ordem, desgraça, prisão. O que achas disso como motivo?
Uma veia escura ressaltou em diagonal sobre seu olho esquerdo.
— Não tens prova.
— Talvez não. Mas tu sim, Colson. E estás com ela, em tua mão direita suada. Oster foi morto com uma bala na cabeça. Portanto o assassino disparou uma arma. A polícia realizará um teste de nitrato para verificar se há resíduo de pólvora na pele de tua palma. E se o teste for positivo, como poderás explicar? Exercício de tiro-ao-alvo em teu escritório?
Levantou a mão e a contemplou, aturdido.
— E isso não é tudo. Não creio que tiveras o tempo ou a lembrança de largar a arma no mar, na barca de Ilha Staten. A polícia saberá onde procurar. A encontrará e fará o teste balístico.
Colson transferiu o olhar a mim, passando a língua nos lábios.
— Queres mais?, Colson. Pois eis: Tenente Nolan lançará um verdadeiro exército em campo, localizando testemunha para provar que estiveste na proximidade do prédio de Oster no momento crítico. É uma área densamente povoada. Alguém deve ter te visto, chegando ou partindo.
Encontrou a voz, só que muito rouca:
— Irei embora. Não sou obrigado a ficar aqui, escutando os delírios desse louco.
Quando se encaminhava à porta, os passos apressados, um tanto desajeitados, Nolan se levantou depressa e bloqueou o caminho.
— Não tão depressa, advogado. Temos coisas a discutir na chefatura.
Ed Colson piscou, os olhos perdidos. Dobrou o corpo e vomitou, ali mesmo, no escritório de Manhattan do serviço da receita federal.
{1} No texto em papel está protegendo a ambos com um programa, o que não faz sentido. Programa significa programa mas também roteiro, prospecto. No caso só pode se tratar do cardápio.
{2} Baguete: sf Ornato da meia, na altura do tornozelo. Diamante de face superior retangular, lapidado com 25 facetas. Pão comprido, de farinha de trigo.
{3} A holstein, também referida como holstein-frísia e popularmente conhecida como gado holandês, é uma raça de gado bovino originária da Europa. Surgiu, primitivamente, entre a Frísia (norte de Países Baixos) e o Holstein (Alemanha), há cerca de vinte séculos. É uma das raças de maior aptidão leiteira conhecida, sendo comum no Brasil, em especial no centro-sul. Também conhecida em Portugal como turina, é de elevada estatura e facilmente identificada pelo padrão malhado.
{4} Iúca, iúca ( Yucca filamentosa): sf Gênero de plantas ornamentais da família das liliáceas, da América. Permanece sempre verde e não perde as folhas a cada ano. Existem muitas variedades de iúca. Arbusto perene do gênero iúca ( Yucca), com cerca de 40 espécies, nativa da América Central e do sul de Eua. As folhas sempre verdes, em forma de espada, nascidas em verticílios terminais, são resistentes, macias e geralmente têm um espinho agudo no topo, como seus parentes da família agaviácea ( Agavaceae), o sisal e a pita. As flores brancas, em forma de sino, que formam espigas densas que chegam a 2m de comprimento, têm associações simbióticas notáveis cum tipo de inseto ( Tegeticula maculata).
{5} Geomióidea ( Geomyoidea) são uma superfamília de roedor que inclui geômio, rato-canguru e parentes fósseis. Atualmente esses roedores habitam somente as Américas.
{6} BC, em inglês, é Before Christ (antes de Cristo). Nota do tradutor. Em português é AC mas a tradução não pode ser feita porque a sigla interage com o enredo.
Alfred Hitchcock
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