Biblio VT
Alfred Hitchcock, o mestre dos filmes de suspense, na escolha de material para um livro do gênero deste que a Record agora oferece ao público leitor brasileiro. Trabalhando em seu elemento, o genial diretor de cinema fez uma seleção de histórias, a maioria de crimes, seguindo o estilo clássico dos contos policiais; outras fugindo a esse padrão, e até ao gênero, mas todas apresentando uma qualidade comum: são emocionantes, de "gelar o sangue" dos leitores!
Difícil seria destacar qualquer das 13 diferentes histórias contidas neste livro, embora algumas possam ser citadas pela originalidade dos temas abordados pelos seus autores ou pela hábil maneira como os desenvolveram. Em O Amuleto de Charley, por exemplo, há um final absolutamente imprevisto para a aparentemente simples história de um vendedor sem sucesso que transforma a sua vida com o poder que adquiriu, graças ao amuleto, de submeter todas as pessoas à sua vontade. Ou o que acontece ao casal de americanos, que sem possibilidades de adotar um filho em seu país vai "comprá-lo" na Itália e procura leválo de contrabando para a América.
E é surpreendente que a pessoa que se empenha em salvar da cadeia um assassino esquizofrênico, que mata seis mulheres, seja exatamente ... Bem, leiam o excelente conto Um Elemento de Risco.
Treze Histórias de Gelar o Sangue é um título que sugere bem o que este livro é capaz de fazer - prender, do princípio ao fim, a atenção dos leitores tanto quanto os filmes de Hitchcock mantêm em suspense os expectadores.
A MÁQUINA DE FAZER DINHEIRO - Frank Sisk
CONTRABANDO - James Holding
LIVRAI-NOS DO MAL - Douglas Farr
NÃO SE CONSEGUE GANHAR (EM) TODAS - Ed Lacy
O CRIME NA MENTE - C.B. Gilford
O AMULETO DE CHARLEY - Alice-Mary Schinirring
ASSASSINATO DE PORTA EM PORTA - Robert Colby
PEDIDO DE RESGATE - Jeffrey M. Walman
APOSTO QUE VOU CHEGAR a SUA FRENTE - Fletcher Flora
NÃO SOU LADRÃO, SR. KESTER - Gilbert Ralston
RATOEIRA - Edwin P. Hicks
O ASSASSINO TRANQÜILO - Elijah Ellis
UM ELEMENTO DE RISCO - Richard Deming
Ultimamente, algo me tem intrigado: é o bip, esse ruído que de vez em quando ouvimos na televisão, indicando que uma palavra ou frase, que poderia ferir nossos ouvidos de telespectadores, foi intencionalmente extirpada... ou bipada. É claro que sou a favor do bip. Sempre tive medo de ser corrompido por alguma palavra ou frase fortuita, que me seja impingida no momento em que estou hipnotizado pela fascinante fala de um programa de fim de noite.
Contudo, sinto que o bip possui um potencial ainda não explorado, que não tem sido utilizado ao máximo. A mesma coisa aconteceu outrora com a eletricidade.
Depois que Benjamin Franklin demonstrou que poderia ser utilizada para queimar os barbantes das pipas, não teve outra utilidade por anos a fio. E talvez até hoje não estivéssemos fazendo nada de mais produtivo com a eletricidade, se Marconi não tivesse percebido o absurdo de tal situação e fizesse a mesma enviar flores por um fio.
Pensem em mim como Marconi do bip. Minha idéia é empregá-lo não apenas como um espaço vazio no contexto de uma declaração que fora disso é perfeitamente boa, mas como um substituto para algo significativo e, segundo espero, também útil.
Por exemplo: não vejo motivo pelo qual os bips não possam ser usados como substitutos para palavras ou frases pronunciadas por políticos, no auge de uma campanha.
Ao invés de prometer-nos menos impostos e melhores serviços, paz duradoura e um exército mais forte, maiores salários e preços mais baixos, os candidatos poderiam simplesmente oferecer-nos bi-p, bip e bip, com os bips representando qualquer uma ou todas as benesses prometidas. As vantagens práticas são óbvias. Os eleitores da esquerda poderiam pressupor que os bips representam tudo aquilo que desejam, o mesmo fazendo os eleitores da. direita. Dessa forma, o atrito entre as forças em oposição poderia ser reduzido a um mínimo. E o resultado final seria o mesmo de agora, já que, ao que me lembre, nunca soube de nenhum candidato que cumprisse as promessas da campanha, depois de eleito.
Quantos entre nós costumam ler os rótulos nas embalagens de alimentos ou as garantias que recebemos ao comprarmos eletrodomésticos? Levantem as mãos, por favor.
Era o que eu pensava: apenas, uma em sete pessoas. Sendo assim, não acham que é um desperdício de papel imprimir a relação de ingredientes nos rótulos? E para que nos oferecer aquelas garantias em jargão legal, as quais, quando compreendidas, informam-nos meramente que, no instante em que o aparelho quebra, a garantia se torna nula e sem efeito?
Em vez disso, por que não manter as informações dos rótulos e garantias arquivadas em algum lugar (ofereço o meu sótão), substituindo-as por uma única palavra: Bip.
O bip indicaria, à pessoa em cada sete que realmente deseja saber o que tem em sua lata de corned beef ou por que não pode receber de volta o dinheiro que pagou por sua torradeira que não funciona, que pode descobrir tudo isso por uma simples verificação no arquivo central '(se for no meu sótão, não é permitido visitantes depois das nove horas da noite). E o papel que se economizaria com a condensação das palavras nos rótulos e garantias poderia ser usado para... Ora, deixemos isso de lado. Só se deve cuidar de um potencial inexplorado de cada vez e no momento estou me dedicando ao desenvolvimento do bip.
Parece-me também que as manchetes de jornais oferecem amplas oportunidades para que o bip realize o seu milagre de economia de espaço. Já perdi a conta das vezes em que vi nas manchetes palavras como CONFERÊNCIA DE PAZ, GUERRA DE QUADRILHAS e NINHO DE AMOR. CONFERÊNCIA DE PAZ COMEÇA, ECLODE GUERRA DE QUADRILHAS, NINHO DE AMOR INVADIDO. Já cheguei ao ponto em que pressuponho que qualquer começo se refere a uma conferência de paz, tudo o que eclode é guerra entre quadrilhas e qualquer invasão não pode deixar de ser de um ninho de amor. Assim, por que desperdiçar espaço com expressões tão longas? Por que não escrever simplesmente: BIP COMEÇA, BIP ECLODE, BIP INVADIDO? Contem, por gentileza, só nesses três exemplos, quantas letras foram eliminadas. Acrescentem a isso o espaço economizado com a dispensa das garantias e a redução dos rótulos. Com tudo isso, talvez tenhamos espaço suficiente, no final das contas, para fazermos aquele acréscimo na casa.
Imaginei até um uso bem melhor para o bip na televisão. Ao invés de fazê-]o durar, como acontece atualmente, apenas por uma fração de minuto, por que não deixá-lo soar durante uma meia hora inteira? Estou querendo dizer, com isso, que poderíamos utilizá-lo para substituir os programas. O conteúdo certamente não seria um problema.
Alguns dos programas que tenho visto tinham muito menos do que isso como base.
Mas admitindo a possibilidade de que um bip de meia hora possa se tornar monótono, sugiro que o tom seja variado, subindo e descendo, produzindo-se assim um quase efeito do melodia. Chamaremos a isso de "música". E já tenho o nome ideal para o receptor de televisão, depois que for modificado para proporcionar-nos essa música. Iremos chamá-lo de O Rádio.
Agora, se me dão licença, está na hora do meu bip. Enquanto me retiro, fiquem à vontade para folhear este livro de contos de mistério. Posso lhes garantir que irão achá-los cheios de suspense, desses que dão calafrios na espinha... e com bips pavorosos.
A MÁQUINA DE FAZER DINHEIRO
A maioria das pessoas jamais guardava por muito tempo, mas o sobrenome de Julian era TenEyck. Julian TenEyck, uma promessa de grandeza aristocrática que não chegava a ser correspondida pelo jovem em questão. Seus atributos mais notáveis pareciam ser as sobrancelhas muito louras, os óculos sem aros de lentes muito grossas, uma gravata borboleta axadrezada e, quando estava trabalhando no Patterson's, um colete vermelho de belbutina. Quase todos o chamavam de Julian nas primeiras vezes, passando depois, jocosamente, a tratá-lo por Julie. E era como sempre passavam a pensar nele.
Mas Julian não ficava ressentido. Apesar de estar beirando os trinta anos, pensava em si mesmo como muito mais jovem, exceto na escola, onde se sentia, normalmente, confuso e inseguro. Dava aulas de ciências sociais numa escola secundária, cinco dias por semana. Duas noites por semana ele trabalhava no Patterson's, como bartender extra. Era nas noites de segunda e terçafeira, quando o movimento era menor, fora da temporada.
Quando lhe perguntavam, ele contava que trabalhava no bar para juntar dinheiro para o seu casamento, embora não tivesse muita certeza se era esse mesmo o motivo.
E também não tinha muita certeza com relação à moça. O nome dela era Lydia e ensinava francês no primeiro ano da escola.
Às vezes, secretamente, Julian admitia para si mesmo que os verdadeiros motivos de seu trabalho noturno no Patterson's eram a visão do rio, pelas janelas altas e lustrosas de gordura em frente ao bar, e o cheiro forte de água salgada, quando a brisa soprava do Estreito. Ele também gostava das pessoas que ali encontrava, da diferença existente entre elas e as outras que conhecia como professor, no seu ambiente previsto e esperado. No Patterson's, convivia com cavadores de ostras e pescadores, homens que possuíam simples barcaças e homens que possuíam iates, homens que ficavam junto à água, para dela arrancarem sua sobrevivência, homens que dela se aproximavam por esporte. Eram homens de todos os tipos, ricos e pobres, com muito poucos na escala intermediária naquela época do ano, antes dos veranistas começarem a chegar. Mas todos possuíam uma coisa em comum: apreciavam boas comidas e bebidas. E todos bebiam muito bem.
Entre os fregueses habituais, havia apenas um homem de um drinque só. Ninguém parecia saber o seu verdadeiro nome, mas todos o chamavam de Golias. Ele era um homem de um drinque só (e, diga-se de passagem, era sempre cerveja) pois que, como Julie não tardou a perceber, era também um homem de um-quarto. Todas as tardes, às cinco e cinco em ponto, Golias aparecia no Patterson's, sentava-se num dos banquinhos do bar e abria a mão imensa, soltando uma moeda de um quarto de dólar sobre o mogno escuro e antigo.
Isso significava que ele queria uma cerveja. Nunca a pedia com tantas palavras assim, esperando sempre que o homem por trás do balcão soubesse exatamente o que estava desejando, sem que fosse preciso dizer-lhe. O primeiro encontro de Julie com a taciturnidade silenciosa de Golias resultara em alguma confusão.
- Pois não, senhor, o que vai querer?
Golias limitara-se a ficar olhando para a sua moeda de um quarto de dólar.
Pensando que o homem talvez fosse surdo, Julie alteara um pouco a voz:
- O que vai ser, senhor?
Talvez o cara fosse retardado mental, pensara Julie. Ou surdo. Ou então mudo.
Talvez até as duas coisas.
Golias continuara sentado no banquinho, impassível, olhando por baixo das pálpebras para a sua moeda de prata, sobressaindo na madeira escura. ...,.
Julie apanhara uma caneca de cerveja na prateleira e a suspendera, como que convidando Golias a algum comentário. Os olhos inexpressivos de Golias haviam contemplado a caneca sem demonstrarem a menor compreensão. Ele piscara depois de alguns segundos e murmurara uma palavra que soara como "Quarr".
Um dos pescadores de ostras, do outro lado do balcão, interrompera a conversa de seu grupo o tempo suficiente para dizer:
- O que ele está querendo, garoto, é um copo daquela cerveja forte e amarga, daquela torneira de bola dourada. É melhor servir logo de uma vez, antes que o pobre pateta termine estourando.
Depois desse incidente, Julie iniciara, nas segundas e terças-feiras subseqüentes, um estudo superficial e nada metódico de Golias. Percebera que o grandalhão sempre concentrava a sua atenção total na moeda de um quarto de dólar, até que a cerveja fosse servida. A moeda parecia ser o ponto focal de sua vida. Assim que o copo cheio de espuma era colocado à sua frente, Golias dividia a atenção, com um esforço considerável, entre a cerveja e a moeda a caminho da caixa registradora. Quando a moeda de dez canis, o troco, era colocada ao lado do copo, estampava-se em seu rosto uma carranca que poderia ser um sorriso, contraindo momentaneamente os lábios frouxos e sempre úmidos. Depois, Golias ficava sentado ali, num estado de catalepsia babos-a durante as duas horas seguintes (- isso mesmo, duas horas inteirinhas - como Julie enfatizara para Lydia), contemplando o copo de cerveja e a moeda de dezcents. Era, em suma, a vida de um retardado mental. Julie jamais conhecera antes um retardado mental adulto (pelo menos ao que se lembrasse) e achava aquele espécime ao mesmo tempo fascinante e terrível.
Lydia resumira o problema em determinada ocasião:
- II est nuit dans cês sombres Mvers.
- O que exatamente significa isso, querida?
- Sabe, não é bem isso...
No início, Julie ainda tentara entabular conversa com Golias, sempre que não havia outros fregueses no bar, o que acontecia com bastante freqüência nas noites de segunda-feira. De vez em quando, Golias respondia, mas respostas sempre limitadas.
- Você trabalha por aqui?
- Peixeiro.
- Interessante... Eu sou professor na escola, durante o dia. Mora aqui por perto?
- Celeiro.
- Entendo... E sozinho? Isto é, não tem parentes?
- Nada.
- Por falar nisso, Golias, qual é o seu verdadeiro nome? E o nome de sua família?
- Sammich.
- Sammich? Sam o quê? Diga novamente.
Era inútil. O pouco que Julie veio a saber de Golias proveio de outras fontes, outros fregueses, outros bebedores. Ele morava com uma família chamada Nickerson, de pescadores tradicionais, que possuía dois barcos considerados de bom tamanho, naquela área. Eles vendiam a maior parte de seu pescado comercialmente, mas também mantinham uma pequena barraca de venda a varejo, onde Golias trabalhava, limpando peixes com muitas espinhas. Isso explicava a faca comprida e fina que Golias sempre trazia, numa bainha de couro presa ao cinto.
Golias não morava na casa dos Nickersons. Vivia num quartinho que haviam construído para ele, no celeiro atrás da casa. Se por acaso era parente deles, os Nickersons jamais haviam admitido. Tudo o que se sabia era que eles lhe davam abrigo, comida, emprego e 25 cents por dia. Julie considerava isso quase como trabalho escravo e foi o que ele disse a Lydia.
Ela suspirava.
- N'en parlom plus.
Era nesse pé que as coisas estavam na noite em que apareceu no Patterson's o homem da máquina de fabricar dinheiro.
Ele já estivera ali antes, mas nunca numa segundafeira. Gostava de multidões.
Afinal, a máquina de fabricar dinheiro sempre dava um bom dinheiro junto a uma multidão e ninguém ficava aborrecido. Encaravam o ato como entretenimento. Naquela noite de segunda-feira, Julie teve a impressão de que o homem da máquina de fazer dinheiro (ninguém também jamais soubera o nome dele) parecia um tanto alto, como se estivesse em meio a uma comemoração qualquer. Mas trazia a sua máquina. Era do tipo que misturava negócios com prazer tão freqüentemente que já não sabia separar as coisas.
Olá, garoto - disse ele, alegremente. - Não, não precisa me dizer. Eu vou me lembrar. Mas qual é mesmo o seu nome? Não diga, espere um pouco que vou adivinhar.
- Julian TenEyck.
- Eu pedi para não me dizer! Mas agora não há problema, o mal está feito. Não adianta chorar pelo leite derramado, é o que sempre digo. Está certo, Julie, vamos aos negócios. Pode preparar-me um rum collinft daqueles bem intoxicantes.
O homem colocou a máquina de fazer dinheiro em cima do balcão. Parecia uma dessas antigas máquinas de moer café. A manivela estava ligada a engrenagens na parte de cima, assentadas sobre uma pequena cúpula de madeira. Na frente da caixinha de madeira, havia uma fenda grande o suficiente para nela se inserir uma moeda de dez cents, conforme era explicado por um aviso logo acima: "Somente Dez Cents". Por baixo, havia uma base maior, com uma gaveta, na qual se via duas maçanetas de cobre em miniatura.
- Rum claro ou escuro? --"perguntou Julie.
- Um pouco dos dois. Por que não?
- Quarr - disse Golias, que era a única outra pessoa presente.
- Ei, temos um cara vivo por aqui! - disse o homem da máquina de fazer dinheiro.
Ele empurrou a máquina por cima do balcão, na direção de Golias, acompanhando-a.
- Não gostaria de examinar a maior invenção que o mundo já conheceu?
Ele deu uma pancadinha afetuosa na máquina, antes de continuar:
- Não existe outra igual em qualquer canto deste nosso velho globo terrestre.
Trata-se de um aparelho ao mesmo tempo original e único.
Ele empurrou a máquina mais alguns centímetros na direção de Golias.
- Não precisa ser tímido e delicado, garotão. Pode aproximar-se e examinar este fabuloso aparelho. É inteiramente grátis.
Golias continuou olhando fixa e talvez defensivamente, para a sua moeda de dez cents em cima do balcão, ao lado do copo de cerveja que já ali estava havia uma hora.
- Peço licença, garotão - disse o homem da máquina de fazer dinheiro, levando as mãos em concha à boca, num gesto bem-humorado -, mas será que não tem uma certa dificuldade em ouvir? Não será por acaso um tantinho surdo?
Golias tomou um gole de sua cerveja, engolindo-a com visível satisfação. O homem da máquina de fazer dinheiro notou a moeda de dez cents em cima do balcão.
- Estou vendo que tem os meios, garotão, mesmo que não tenha mais nada além disso. Não precisa ouvir, para desfrutar dos benefícios do meu extraordinário invento. Não precisa de muita inteligência nem de roupas elegantes. Não precisa ter sangue azul nem descender de reis. Esta minha máquina não faz distinção de raça, credo ou cor, meu amigo. Suas engrenagens só tomam conhecimento, meu caro amigo, de uma única coisa em todo este imenso mundo de Deus. E tal coisa é simplesmente, nada mais do que isso, uma mísera moeda de dez cents. E somente de dez cents. E noto que uma delas está neste exato momento em seu poder.
A voz do homem da máquina de fazer dinheiro era insinuante. Naquele momento, Julian colocou o drinque em cima do balcão, no lugar onde eslivera pousada inicialmente a máquina de fazer dinheiro.
- Aqui está seu drinque, senhor.
- Espere um minuto, filho.
- Ele não é do tipo a quem possa demonstrar sua máquina, senhor.
- Não é? E por que não?
- Não é coisa que possamos discutir em público. Por que não vem tomar o seu drinque aqui e me dá uma chance de experimentar a máquina?
- Claro, claro - disse o homem, puxando de volta a máquina, até chegar junto do drinque. - Está querendo me dizer que nunca investiu nela antes?
- Não pessoalmente. Mas estava aqui numa sextafeira, há poucas semanas, quando andou fazendo uma demonstração. Mas ainda não investi pessoalmente.
Um som parecido com um grunhido saiu da boca de Golias.
- Acho que o garotão está querendo investir também.
- Não, ele não quer.
Julie olhou para o lado e ficou surpreso ao perceber uma centelha de interesse nos olhos normalmente mortiços de Golias.
- Ele está apenas arrotando, nada mais. Não é... acho que pode me entender... muito certo, um cara normal...
Julie pronunciou as últimas palavras a sotto você, significativamente.
- Que se faça a sua vontade - disse o homem, levantando o copo, expansivamente.
- Aqui está a minha moeda de dez cents, mister.
- Coloque-a você mesmo. Esta moeda lhe dá o direito de controlar toda a operação, do princípio ao fim. Sempre foi essa a minha política.
Julie enfiou a moeda na fenda.
- E agora, o que faço? Apenas giro a manivela?
- Exatamente. Na direção dos ponteiros do relógio, dez vezes.
Julie se pôs a girar a manivela, contando, enquanto a máquina emitia um assovio asmático.
- Mais depressa ou não terá um resultado satisfatório - disse o homem.
Julie girou mais depressa e o assovio se tornou mais estridente. À contagem de dez, ele parou. O assovio cessou. Procurando ocultar a excitação infantil que sentia, ele perguntou então:
- Devo agora abrir a gaveta?
- Exatamente. É só o que falta.
Ele pronunciou as palavras com a segurança de um oráculo. Julie abriu a pequena gaveta. Lá dentro, havia uma nota de dez dólares. Ele a pegou, com uma alegria desproporcional aos fatos que já conhecia.
- Pegue-a pelo canto - recomendou o homem. A tinta ainda está úmida.
Com todo cuidado, Julie tirou a nota nova de dez dólares da gaveta e depositou-a numa parte seca do balcão. Depois, tirou os óculos e começou a limpar as lentes com um lenço, pensando: Não seria maravilhoso se fosse de verdade (apenas uma ou duas vezes, talvez dez, no máximo.? Alguns homens ganham dinheiro com essa mesma facilidade. No mercado de ações, por exemplo. Ou com poços de petróleo.
- Convenhamos que não é um mau retorno pelo seu investimento - estava dizendo o homem.
Lyãia acharia que ele estava doido, se algum dia lhe contasse. Julie tornou a pôr os óculos.
- Nada mau mesmo - disse ele, soltando uma risadinha.
Inclinando-se, examinou esperançoso o retrato de Alexander Hamilton. Por baixo do retrato, ele leu, como já esperava, a palavra "Contrafação".
O homem da máquina de fazer dinheiro parecia estar acompanhando-lhe os pensamentos, pois disse neste momento:
- É justamente isso o que torna o negócio legal, garoto, esta palavra aí, em vez do nome de Hamilton. Não pretendo me tornar um criminoso, um cara que fabrica dinheiro falso. Sou sincero e honesto, apenas um brincalhão. E um pouco mais abaixo eu acrescento uma proteção extra, para mim e para você também. Dê uma olhada.
Julie olhou. Ao invés do "Se pagará ao portador desta, contra apresentação", estava escrito "Não se pagará ao portador desta, contra apresentação", sendo que o "Não" estava grifado.
- Isso nos deixa ao abrigo da lei - disse o homem, terminando de tomar seu drinque. - Assim fica tudo legal. E é sempre divertido.
Ainda um tanto inebriado, Julie disse:
- É, acho que tem razão... Quanto tempo demora para a tinta secar?
Amanhã de manhã já deverá estar seca. Bom, garoto, agora tenho que ir.
Ele pegou a máquina de fazer dinheiro e despediu-se: Mais uma vez, adeus.
Saiu rapidamente. Um segundo depois que a porta se fechou, Julie compreendeu que o homem da máquina de fazer dinheiro não pagara pelo drinque. Deu alguns passos para contornar o balcão e ir chamá-lo quando algo de inesperado aconteceu.
Golias levantou-se e se encaminhou para a porta. E o que era mais estranho: estava deixando para trás meio copo de cerveja e a sua amada moeda de dez cents, o troco da moeda de um quarto. O acontecimento era tão inacreditável que, por um momento, deixou Julie completamente imobilizado, física e mentalmente. Somente depois que a porta se fechou pela segunda vez é que ele voltou para o seu lugar habitual entre a caixa registradora e o telefone.
Dez minutos depois, quando já ia derramar o resto da cerveja de Golias na pia e se dispunha a guardar a moeda de dez cents, o grandalhão voltou, carregando a máquina de fazer dinheiro.
Aturdido, Julie ficou observando Golias sentar-se outra vez em seu lugar costumeiro. Viu-o colocar a máquina de fazer dinheiro em cima do balcão. Viu-o esvaziar o resto da cerveja num último interminável gole. Incrédulo, viu-o inserir a sua moeda de dez cents na máquina e girar a manivela rapidamente, arrancando um assovio estridente da máquina. Viu os dedos imensos e vermelhos de Golias puxarem as maçanetas da pequena gaveta. Viu a nota de dez dólares ser tirada da gaveta, desajeitadamente, e colocada descuidadamente em cima de uma poça de cerveja. E imaginou que a imagem úmida de Alexander Hamilton estava franzindo o cenho.
- Uísque - disse Golias. - Uísque.
Ele falava num tom inteiramente novo, um tom autoritário, desvairado, arrancando Julie do estupor em que estivera mergulhado.
- Como foi que conseguiu a máquina, Golias? Vamos, diga logo! Não machucou aquele homem, não é mesmo?
- Uísque - disse Golias, batendo com o indicador grosso em cima da nota falsa- - Uísque. Agora.
- Só depois que você me contar como conseguiu a máquina - disse Julie, arrependendo-se imediatamente ao perceber que falara como um mestre-escola.
Golias levantou-se, lentamente, batendo na bainha de couro em que estava a sua faca de peixeiro. Depois, passou um dedo pela garganta. E tornou a sentar-se.
Julie levou alguns segundos para compreender.
- Está querendo dizer... Oh, não! Não pode... Suas dúvidas foram dissipadas pela expressão insana de satisfação no rosto de Golias.
- Mas isso é terrível! Estou envergonhado de você, Golias. Meteu-se numa encrenca. E das grandes! Não pode entender isso, mas é uma encrenca das grossas. Vou ter que chamar alguém. A polícia ou alguém mais.
- Uísque - repetiu Golias. - Agora.
Ele pegou a nota toda manchada que estava em cima do balcão e estendeu-a para Julie.
- Além do mais, Golias, esse dinheiro não tem nenhum valor - disse taxativamente, encaminhando-se para o telefone. - É dinheiro de brincadeira.
Não vale nada.
Julie tirou o fone do gancho e discou para a telefonista. No momento em que a campainha de chamada começou a soar em seu ouvido, ele virou-se para Golias, a fim de explicar-lhe em termos mais simples o que significava uma contrafação. Mas teve tempo apenas de ver o brilho do aço cortando o ar e pensar: Mas que maneira mais estúpida de...
James Holding
CONTRABANDO
Eles se registraram no Hotel Excelsior, em Nápoles, no fim de uma tarde de sexta-feira. O vôo de Zurich até lá transcorrera sem qualquer incidente, apesar dos vagos presságios de Arme.
O recepcionista do hotel examinou superficialmente a ficha de registro, depois que Arthur a preencheu.
- Ah, sim, Sr. e Sra. Arthur Benson, de Davenport, lowa..
Benson assentiu.
- O quarto já está preparado, Signor Benson. É o número 52. Reservei-o especialmente para o senhor. Fica na frente do hotel, com uma linda vista da baía.
Ele bateu numa campainha que estava em cima da mesa, chamando um carregador. Os Bensons ficaram esperando que ele dissesse algo mais, algo que lhes desse uma orientação sobre como deveriam proceder. Mas tudo o que o homem disse foi:
- Estou vendo que trazem bastante bagagem. Talvez seja melhor eu chamar dois carregadores.
Os dois empregados de meia-idade pegaram as malas. Os Bensons seguiram-nos. Já se haviam afastado alguns passos quando o recepcionista subitamente estalou os dedos, com o ar de um homem que censura a si mesmo. E erguendo a voz, até o limite da gentileza, chamou-os:
- Scusi, Signor Benson! Um momento, por favor. Tenho uma mensagem para o senhor.
Com uma expressão embaraçada, ele pegou um maço 'de correspondência, com uma etiqueta de "esperar a chegada", folheando-o rapidamente. Tirou um envelope branco, entregando-o a Arthur.
- Desculpe. Eu já ia me esquecendo. Benson sorriu aliviado e disse:
- Obrigado.
Depois, voltou para junto da esposa. Um rápido olhar mostrou-lhe que o envelope tinha seu nome escrito, em tinta violeta, com letra firme, tipicamente masculina.
A vista da baía, na pequena varanda do quarto, era espetacular. A água parecia inacreditavelmente azul. O Vesúvio dormitava pacificamente, ao crepúsculo avermelhado, à esquerda deles, além do Gastel del Ovo. Os acordes de um acordeão chegaram até lá em cima, vindos de um dos cafés da Santa Lúcia, à beira do cais.
Depois que os carregadores partiram exultantes com a gorjeta exagerada, Anne Benson disse: - Não é maravilhoso, Arthur? Ela jogou o chapéu em cima de uma das camas gêmeas e saiu pela porta aberta para a varanda, com um ânimo novo a se refletir nos gestos e expressão. - Então é este o lugar? Finalmente!
- Sim, querida, é este o lugar. Arthur Benson sorriu, contemplando o vulto esbelto da esposa, de costas. Com as duas mãos apoiadas na grade da varanda, o corpo empertigado sobre os sapatos de saltos altos, ela continuava tão linda quanto anos atrás pensou Benson. Continuava tão jovem e desejável quanto vinte anos atrás, quando se haviam apaixonado. Benson sentiu-se invadido por uma onda de ternura.
Mas logo a determinação voltou a sobrepor-se sobre suas emoções. E ele disse calmamente:
- Creio que a carta que estava à minha espera na portaria é um comunicado do contato, Anne.
Ele apanhou a carta, pensativo, antes de acrescentar: - Não creio que ele tenha esquecido o assunto. Provavelmente esperou apenas o tempo suficiente para avaliar-nos e assegurar-se de nossa discrição e integridade.
Anne virou-se abruptamente para o interior do quarto. Sua voz soou angustiada:
- Não abra, Arthur! Por favor, não abra! Ela parecia estar abatida. Todo o excitamento se desvanecera, sendo substituído pela angústia.
- Mas o homem em Zurich disse...
- Não quero saber o que ele disse! Fomos loucos em dar-lhe ouvidos! Como pudemos vir para este hotel, fazer uma coisa dessas, por recomendação de um completo estranho?
É perigoso demais, Arthur!
- Talvez seja, Anne, mas agora é tarde demais para recuarmos.
Ele acenou com o envelope para ela. Anne aproximou-se e enlaçou-o pelo pescoço.
Arthur notou, preocupado, que os olhos dela estavam marejados de lágrimas.
- Oh, Arthur, estou com tanto medo! Você nunca fez nada errado antes. Sempre foi honesto e correto. E me dói terrivelmente ver você planejando deliberadamente uma coisa dessas!
- Ora, Anne, afinal não é tão horrível assim! Arthur afagou as costas da esposa, consolando-a, embora ele próprio se sentisse estranhamente trêmulo.
- Não passa de contrabando, Anne. E o contrabando é uma coisa muito antiga, já existia nos tempos do Velho Testamento. E era praticado por pessoas respeitáveis.
No fundo, é mais uma manifestação de independência do que um crime, querida.
Será que não entende?
Ele precisava da tranqüilidade de tal sofisma tanto quanto ela. Anne enxugou os olhos e foi sentar-se numa das poltronas pouco confortáveis do quarto.
- Vamos descer e tomar um coquetel antes do jantar, Arthur. Estou precisando muito de um drinque.
- Está certo. Espere só um minuto.
Arthur abriu o envelope com a unha do polegar. Tirou o pedaço de papel que havia lá dentro e examinou-o.
- O que diz aí?
- Tem apenas um número de telefone.
- Nenhum nome?
- Só o número. Mas acho que é assim mesmo que eles trabalham... de forma um tanto tortuosa.
- É terrível! - murmurou Anne, a voz novamente demonstrando sua tensão. -
Gostaria que não tivéssemos nos envolvido nisto, Arthur!
- Mas agora já nos envolvemos, Anne. E vou ligar para este número. Depois desceremos para um coquetel e o jantar.
Ele pediu à telefonista do hotel que o ligasse para o número. Esperou um momento e logo uma voz rude disse:
- Pronto!
O fone na mão de Benson tremeu ligeiramente.
- É Arthur Benson quem está falando.
- Benson? Ah, sim...
Subitamente um tom cordial suavizou a voz rude.
- Onde está hospedado?
- No Excelsior.
- Um excelente hotel.
O inglês do homem não tinha o menor sotaque e era bastante americano em suas inflexões.
- E como foi que descobriu meu telefone?
- Dentro de um envelope que me entregaram na portaria.
- Perdoe-me a pergunta, mas de que cor era a tinta com a qual seu nome estava escrito?
- Violeta.
- Está certo - disse a voz, um tanto alegre agora.
- Então é mesmo o nosso Sr. Arthur Benson, que nos foi encaminhado gentilmente por um amigo comum de Zurich.
- E quem é você? - perguntou Benson, imprudentemente.
O homem soltou uma risada.
- Eu faço as perguntas, signor, por favor. Não precisa de meu nome para nada. Tudo o que precisa é do dinheiro. Já o tem?
- Já, mas...
- Então encontre-me dentro de quinze minutos no Café Mazzini, na Galleria Umberto. Sabe onde fica? Não? Pode ir a pé até lá. Qualquer um lhe dirá onde fica.
Benson falou com voz sumida:
- Minha esposa e eu íamos descer neste momento para tomarmos um coquetel.
- Pois deixe-a bebendo sozinha. Não queremos mulher nenhuma metendo o bedelho em nossa conversa desta noite, Signor Benson. Venha sozinho, se realmente quer fazer o negócio. Estarei sentado na terceira mesa, na frente do café.
Estarei usando uma suéter vermelha, por baixo de um casaco axadrezado. Dentro de quinze minutos, Signor Benson!
Houve um clique no momento em que ele desligou. Benson repôs o fone no gancho, torcendo para que a telefonista não tivesse escutado a conversa. E disse para Anne:
-- Lamento, querida, mas terá que tomar o seu coquetel sozinha.
Anne estava muito pálida e disse em voz baixa:
- Pude ouvir o que ele disse, Arthur. Não se preocupe comigo.
Estou bem, agora que já começou. E você só tem quinze minutos para chegar lá.
O homem de voz rude, suéter vermelha e casaco axadrezado era baixo, gordo e de rosto vermelho, quase sem pescoço, os cabelos grisalhos eriçados, cortados rente.
Benson sentou-se na outra cadeira da terceira mesa na frente do Café Mazzini.
Estava em cima da hora.
O homem gordo comia ravióli. Levantou os olhos para Benson, mastigando ruidosamente, mas nada disse. Benson esperou até que ele terminasse de engolir, murmurando então:
- Eu sou Benson.
O homem gordo comia ravióli. Levantou os olhos apertando a de Benson.
- Prazer em conhecê-lo.
Logo depois, ele meteu na boca outra porção de ravióli. Se tivesse estado na América durante a Lei Seca, pensou Benson, provavelmente teria sido um contrabandista de bebidas. Mas tinha rugas em torno dos olhos, o que talvez indicasse uma extrema cordialidade. Embaraçado, sem saber como começar, Benson falou:
- Nosso amigo em Zurich disse-me...
- Espere um pouco! - disse o homem, erguendo a mão. - Já sei o que nosso amigo de Zurich lhe disse, que negocio com uma mercadoria rara e que geralmente não se consegue obter. Não foi isso mesmo? E é verdade. Mas não devemos gritar tais coisas em público, signor. Nada disso.
Ele correu os olhos pelas mesas ao redor, quase todas vazias, com um exagero teatral de cautela.
- E também não concordamos em fornecer-lhe a mercadoria, enquanto não estivermos satisfeitos quanto às suas qualificações.
- O que deseja saber agora?
O homem baixo limpou os lábios, brilhando do molho do ravióli, com um guardanapo branco. Não ofereceu a Benson nada para comer ou beber. Largou o garfo dentro do prato, acendeu um cigarro e disse:
- Há quanto tempo está na Europa?
- Quase um ano. Estamos fazendo uma extensa excursão turística. Nem minha esposa nem eu jamais tínhamos estado na Europa antes e achamos que seria melhor ficarmos bastante tempo, para ver tudo direito, já que não temos pressa de voltar para casa.
- Muito sensato. Quando se faz uma viagem rápida ao exterior, eles ficam logo desconfiados. Mas um ano é perfeito.
Sacudiu a cabeça, lentamente, antes de acrescentar:
- Já manipulou a nossa mercadoria alguma vez antes?
- Não.
- Um amador - disse o homem, desdenhosamente.
- Eu não sabia disso. Não tem absolutamente a menor experiência?
- Nenhuma. Mas não é tão difícil assim, não é mesmo?
Benson descobriu que estava na defensiva. E isso o deixou furioso. Pensou: aqui estou eu, praticamente implorando a esse sujeito que me deixe praticar um crime.
Subitamente, sentiu-se envergonhado, um homem furtivo. Começou a levantar-se, mas o homem gordo, calmamente, fez um gesto para que se sentasse novamente. Por alguma razão, Benson voltou a sentar-se, submissamente. Estava pensando em Arme, sozinha no Excelsior. E perguntou:
- Quanto está pedindo? O homem deu de ombros.
Mil dólares é o mínimo que posso fazer. Em liras, é claro. Terei que dividir em diversas partes.
Mil dólares! - exclamou Benson, fitando-o de olhos esbugalhados, incrédulo.
Ficaria surpreso se soubesse como é difícil localizá-los - reagiu o homem, visivelmente irritado com o espanto de Benson. - Afinal de contas, não crescem em árvores.
E deve compreender que os poucos proprietários não podem anunciar sua disposição de vender pelos jornais.
- Claro, claro - disse Benson, apressando-se em acalmar o italiano. - Posso perfeitamente pagar os mil dólares.
Ele estava disposto a pagar bem mais do que isso.
- Em liras - repetiu o homem. - E leva a mercadoria sem olhar. Terá que confiar em nós.
- Eu confio - disse Benson, agora ansiosamente. O italiano sorriu pela primeira vez, mostrando um dente de ouro. E disse suavemente:
- Mas não confiamos em você. Sou apenas um agente, amico. Espero que compreenda isso. O proprietário que represento deverá também concordar com a transação.
- Isso não deve ser difícil de providenciar.
- Poderá almoçar amanhã no Cesare's, na colina Volmero, entre uma e duas da tarde?
- Sozinho? Ou posso levar minha esposa?
- Não faz diferença. Prometo que não iremos deixá-lo constrangido.
- Está combinado então. E se o proprietário concordar?
- Farei a entrega amanhã à tarde, às cinco horas, na esquina da Via Morelli com a Via Partenope.
- Não é público demais?
- Não há problema. Posso assegurar-lhe que a mercadoria está bem acondicionada. Ninguém olhará duas vezes.
- Está certo.
Benson ficou em silêncio por um momento, antes de acrescentar:
- Depois que me tiver passado a mercadoria, estará a salvo. Mas o que irá me acontecer? Como conseguirei voltar para casa em segurança?
O italiano deu de ombros.
- Ainda não foi registrada, entende? Oficialmente, não existe. Vai ficar em Nápoles por mais algum tempo?
- Depende.
- Pois fique até segunda-feira. É o conselho que posso lhe dar. Na segundafeira, todos os escritórios estarão abertos. Poderá então tomar todas as precauções necessárias, contra possíveis acusações das autoridades americanas. Não precisará de mais de meia hora para isso.
O homem gordo tomou um gole grande do vinho tinto, que aparentemente estivera guardando para comemorar a barganha, se acaso o negócio fosse fechado. Tornou a exibir rapidamente o dente de ouro e declarou:
- Pagamento contra entrega. Apertou mais uma vez a mão de Benson.
- Em liras, por favor. Não se esqueça disso. - Benson inclinou-se e voltou para o hotel, ao encontro de Anne.
Arthur e Anne almoçaram no Cesare's no dia seguinte, conforme as instruções. O restaurante ficava na encosta da colina, muito acima da cidade. De lá, a vista era ainda mais espetacular que da varanda do quarto deles no hotel. Era um dia claro, de sol forte, deslumbrante. Arthur convenceu-se até de que ele e Anne podiam ver, no horizonte, os contornos azulados e vagos da península sorrentina.
Benson não viu o menor sinal do italiano gordo, de cabelos eriçados, embora olhasse ao redor, a intervalos. Mas ele e Anne devem ter sido devidamente inspecionados, sem que o soubessem, passando no exame. Porque, exatamente às cinco horas daquela tarde, quando ele esperava na esquina indicada, procurando controlar o seu nervosismo e apertando um bolo de liras no bolso lateral do casaco, viu novamente o italiano gordo e de rosto vermelho com quem conversara no Café Mazzini, aproximando-se rapidamente. O homem se desviava despreocupadamente do tráfego intenso de carros e pedestres, ao atravessar a rua, levando debaixo do braço um cesto de vime, desses que se usam para guardar roupas sujas. Sem dizer nada, Benson adiantou-se e interceptou o homem, entregando-lhe o bolo de liras. O italiano aceitou o dinheiro polidamente, sem contá-lo, enfiando-o imediatamente no bolso. Depois, entregou o cesto de vime a Benson e afastou-se rapidamente. Virando a cabeça ligeiramente, ele ainda deu uma piscadela e murmurou em tom de conspirador:
- Vá bene, signor. Mille grazie!
Dez minutos depois, Benson pôs o cesto de vime em cima da cama da esposa, no quarto que ocupavam no Excelsior. Desajeitadamente, ele começou a desfazer o nó que prendia a tampa. Anne ficou observando-o, com extrema concentração. Depois de um momento, não mais se contendo, ela disse:
- Depressa, Arthur, depressa!
Arthur finalmente tirou a tampa do cesto. Afastando rapidamente o resto do invólucro, os Bensons contemplaram a mercadoria que tencionavam levar para os Estados Unidos.
Um lindo bebê italiano, de olhos arregalados, fitava-os.
Finalmente, depois de nada terem conseguido pelos canais normais de adoção, os Bensons tinham um bebê. Nunca mais, como nos primeiros anos, eles seriam rejeitados como pais adotivos por não terem rendimentos adequados. E nunca mais, como acontecera nos últimos anos, seriam julgados velhos demais, pelas agências de adoção, para tomarem conta de um bebê recém-nascido.
Nunca mais... Pois, na segunda-feira, eles iriam registrar aquele bebê no consulado americano em Nápoles, como Arthur Benson Jr., um novo cidadão americano, filho de Anne e Arthur Benson, de Davenport, lowa, nascido durante a estada de um ano deles no exterior.
O bebê deixou escapar um ruído que se assemelhava a um riso e seus novos pais sorriram, extasiados.
Douglas Farr
LIVRAI-NOS DO MAL
Deve ter ficado claro para todos que assistiram à briga naquela noite, no bar de Sam Jessup, quem era o vilão e quem era o bom sujeito. Em primeiro lugar, havia a questão do tamanho. O homem menor é sempre o oprimido. Todo mundo sempre torce pelo oprimido, o que inevitavelmente o transforma no bom sujeito da história.
Charley Ames não tinha mais de 1,65m e, numa balança, o ponteiro não devia passar além dos 50 quilos. Tinha mãos pequenas, que, fechadas, não se transformavam em punhos muito convincentes. O nariz era pontudo, do tipo que ninguém deve levar para uma briga. Os cabelos louros rebeldes, a pele pálida e os olhos azuis inocentes eram feições típicas de um menino, muito embora Charley já tivesse trinta e oito anos.
Por sua vez, Frank Kasten tinha toda a aparência de um homem. Ou, para ser mais preciso, de um gorila. Era grande, largo, cabelos pretos, mãos enormes, o nariz achatado e belicoso. E ainda tinha uma disposição beligerante.
Ninguém se lembrou depois como começara exatamente a coisa, muito menos o próprio Charley Ames. Ele aparecera no bar do Sam, como sempre o fazia, depois de deixar o trabalho no banco. O que não era um hábito censurável, já que Charley era solteiro. Ele tomava uma dose dupla de bourbon, sempre puro. As vicissitudes de seu dia de trabalho no banco começavam então a perder sua amargura dolorosa e a desvanecer-se num passado sem importância.
Foi então que, subitamente, Frank Kasten apareceu, ocupando e obscurecendo o horizonte de Charley. Frank parou no bar, ao lado de Charley, pondo-se a desfiar os seus problemas.
Em primeiro lugar, lamentou-se Frank, havia o garoto. Tinha quinze anos de idade e era completamente inútil, não valia nada. Não queria saber de estudo, era grosseiro com os pais, dirigia o carro da família sem habilitação e sem permissão. Como se podia tratar um garoto assim? Somente surrando-o, é claro, acrescentou Frank.
O que, provavelmente, provocou o comentário de Charley:
- Não se deve bater num garoto.
Charley não estava fazendo qualquer referência específica ao garoto de Frank, mas recordando-se dos castigos físicos que sofrera durante a sua juventude. A velha correia de amolar a navalha, devidamente administrada em seu traseiro magro e exposto, no banheiro, era uma recordação triste e vergonhosa.
Mas Frank encarou o comentário como algo pessoal. Fixou um olho injetado em Charley e perguntou ameaçadoramente:
- Quem pediu a sua opinião?
Possivelmente Charley nem o ouviu. Sob a influência de suas próprias recordações desagradáveis, ele pediu outro bourbon duplo e bebeu-o tristemente.
Frank Kasten tinha também o problema da esposa. Ela sempre ficava do lado do garoto. Do jeito que ela falava, dava a impressão de que tudo era culpa do próprio Frank.
Vivia atormentando-o, espicaçando-o, censurando-o. E quando o idiota do garoto estava recebendo o que merecia, ela se punha a chorar e a gritar histericamente.
O que se podia fazer com uma mulher assim? Ora, só havia uma solução: surrá-la também. Sempre que se batia no garoto.
- Mas que vergonha! - disse Charley.
Frank virou-se novamente, os olhos semicerrados, os ombros curvados ameaçadoramente.
- O que foi mesmo que disse?
- Eu disse que é uma vergonha.
Charley estava vendo a sua própria mãe, o rosto inchado e pisado, enquanto o pai, embriagado, a xingava furiosamente.
- O que você pode saber da minha vida?
- Sei de tudo - respondeu Charley prontamente.
- Sou uma autoridade.
- Pois não meta o bedelho no que não é da sua conta!
O bourbon corria livremente pelo sangue de Charley, tornando-o magnificamente bravo, heroicamente furioso.
- Tudo é da conta de todo mundo - declarou ele, em voz mais alta do que o normal. - Todos integramos a mesma humanidade. Nenhum homem é uma ilha. Se você espanca a sua esposa e o seu filho, Frank Kasten, então está espancando também a mim. E lhe ordeno que pare com isso. É um monstro cruel, perverso e degenerado. Devia ser açoitado...
Frank também já tomara dois drinques. Além do mais, não era homem de admitir críticas ou interferências. Reagiu instintivamente, de acordo com a sua natureza. A imensa mão direita dobrou-se subitamente, transformando-se num punho gigantesco.
Desferindo um jáb, não um swing, ele acertou em cheio o queixo de seu algoz.
Mesmo sem toda a força de que era capaz, o golpe poderia ter quase decapitado Charley, se não fosse pelo fato de que nem sua cabeça nem seu corpo ofereceram qualquer resistência.
Como uma bola de tênis impulsionada por uma raquete, ele voou ao longo do bar, colidiu com uma mesa, deslizou junto com a mesa até o outro lado, onde desabou no chão.
Mas com a mesma elasticidade de uma bola de tênis, Charley no mesmo instante levantou-se, quase como se quicasse. O sangue lhe escorria pelo queixo pálido, de lábio cortado. Apesar disso, ao ficar de pé, ele partiu prontamente na direção de Frank.
Havia uma dúzia de outros homens no bar. Dois deles interceptaram Charley e o contiveram. Todos os outros se jogaram em cima de Frank. Mesmo, assim, por um momento o resultado foi incerto, devido à fúria com que os combatentes procuravam se lançar um contra o outro.
Sam Jessup, um buda imenso e gordo, de rosto vermelho e furioso, gritava de trás do bar, para ambos:
- Vou chamar a polícia!
E numa ameaça mais imediata, ele agarrou duas garrafas pelo gargalo e levantou-as, dando a impressão de um homem que estava disposto a quebrar dois crânios, para evitar qualquer destruição de suas instalações. Provavelmente foi Sam Jessup quem restaurou a ordem.
- Está bem, está bem - resmungou Frank, endireitando as roupas, depois que o largaram. - Mas digam àquele inseto para se manter longe de mim!
Sam e todos os demais fregueses ofereceram ajuda a Charley, mas ele recusou altivamente. Enxugou o sangue do queixo e garantiu que não estava machucado.
Continuou no bar por muito tempo, negligenciando o jantar, consumindo muito além da sua quota normal de bourbon. O uísque ardia no corte em seu lábio, mas ele mal sentia a dor. Lá no fundo, ele sentia outra dor ardendo, muito mais intensamente, ímpetos primitivos e quase esquecidos atormentavam sua alma. Vergonha, ressentimento contra Frank Kasten, mas também contra pessoas já mortas. E um desejo de vingança.
Algumas pessoas, as mortas, estavam além do alcance de sua vingança. Mas Frank Kasten não estava...
Foi o destino, não qualquer plano ou premeditação, que novamente reuniu os dois cohtendores. Nenhum dos dois procurara o outro. Frank Kasten provavelmente já havia esquecido o incidente. E Charley Ames simplesmente se debatia em seus desejos sanguinários, sem capacidade para tomar qualquer iniciativa.
Assim, foi o acaso, tão-somente o acaso, que tornou a colocá-los frente a frente, numa noite escura, uma semana depois. É claro que, morando ambos na mesma cidadezinha, era inevitável que um dia voltassem a se encontrar. Mas não necessariamente a sós. Não necessariamente no escuro. E não necessariamente no momento em que Charley Ames voltava para casa, saindo do bar do Sam, onde bebera bem mais do que a sua antiga quota, como recentemente passara a fazer.
Ambos estancaram bruscamente na calçada, separados por alguns passos, reconhecendo-se mais por instinto do que pelas feições. E por um longo momento trocaram olhares furiosos e silenciosos. Finalmente, Frank perguntou:
- Tem mais algum conselho para me dar, inseto?
A ânsia de vingança ressurgiu intensamente dentro de Charley, estimulada e alimentada pelo bourbon de Sam Jessup. Mas um ou dois germes de sensatez azedaram a fermentação.
Ele sabia que não era adversário para Frank. Seu queixo ainda doía do soco que levara, uma semana antes. Apesar disso, ele não foi sensato o bastante para dar uma resposta conciliatória.
- Ainda conservo minha opinião a seu respeito. Frank começou a caminhar lentamente na direção de Charley, bamboleando como o gorila que era. Charley ainda ficou firme por alguns segundos. Depois, seu bom senso disse-lhe que, por mais sede de vingança que tivesse, não poderia saciá-la naquele momento, naquelas circunstâncias. Ele virou-se e correu.
Tal retirada abrupta deveria ter deixado Frank satisfeito. Mas, por algum motivo, isso não aconteceu. Charley ficou aterrorizado ao ouvir os passos pesados de Frank, correndo atrás dele. O terror proporcionou-lhe energias para aumentar a velocidade. E o terror era em parte uma recordação. Ele lembrou-se de ter corrido assim, há muito tempo, ao ser perseguido.
Sua mente funcionou agora com a astúcia instintiva e automática de um animal ou de uma criança, uma astúcia que funciona sob e independente do medo consciente.
Ele correu por todo um quarteirão, virando em seguida à direita. Os passos também viraram. Charley se esgueirou por uma travessa estreita, onde a escuridão era mais profunda. Mas os passos implacáveis o seguiram.
Ele saiu da travessa e começou a atravessar uma sucessão de pátios nos fundos de diversas casas. Na terra macia, não podia ouvir os passos atrás dele. Mas não se atreveu a parar e virar-se, para ver se Frank ainda o perseguia. Um novo terror, o da incerteza, invadiu-o.
Mas foi nesse momento que o destino novamente interveio. Charley viu a cerca de estacas à sua frente, relativamente baixa, porque estava pintada de branco.
Apesar de a cerca não ser muito alta, era um salto prodigioso para um homem com a idade e capacidade atlética de Charley. Mas ele tinha que pular ou voltar. E conseguiu, embora não soubesse como. Estava a apenas três ou quatro passos da cerca quando ouviu o estrondo e o baque às suas costas. E desta vez ele parou e virou-se.
Havia luar suficiente para que percebesse o que acontecera. Frank tentara saltar o mesmo obstáculo, mas não tivera a agilidade ou a sorte de Charley. Algumas estacas estavam deslocadas na cerca, empurradas pelos pés de Frank. E lá estava o próprio Frank, a cara caída na relva, aparentemente atordoado pela queda.
Charley Ames ficou imóvel por um momento, a respiração saindo em arquejos torturados, o coração batendo descompassadamente no peito. Ele escutou atentamente, olhou ao redor. Havia fileiras de casas dos dois lados, com uma ou outra janela iluminada. Mas nenhum dos moradores daquelas casas parecia ter sido atraído pela perseguição implacável, nem mesmo pelo estrondoso encontro de Frank com a cerca. Não havia qualquer outro ruído além dos produzidos pelos pulmões e coração do próprio Charley, funcionando freneticamente.
Tomadas todas as precauções necessárias, a decisão de Charley veio rápida e inevitável. Ele não hesitou por um instante sequer, não questionou o acerto da decisão.
Agora que o inimigo jazia à sua frente, impotente, ele podia exercer a sua vingança. Frank Kasten é um homem mau, decidiu a mente de Charley Ames. Ainda vai molestar terrivelmente à sua família e a mim, a menos que...
Os olhos de Charley vasculharam o quintal rapidamente, à procura de um objeto apropriado. E encontrou-o imediatamente, uma pedra das muitas que contornavam um pequeno canteiro de flores. Charley abaixouse e suspendeu-a. Caminhou com a pedra até o corpo prostrado, mas vivo, de Frank Kasten. Levantou a pedra e mirou. Depois deixou-a cair.
Seguiu então para casa. Forçou-se a andar, ao invés de correr, pois o terror de Frank fora agora suplantado por um novo terror.
Na manhã seguinte, porém, ele sentiu-se um pouco melhor, com um novo dia começando, o sol brilhando. Comeu bastante no café e foi até até o banco, como era seu hábito. Cumprimentou os colegas de trabalho com a maior calma. E ao passar diante da sala do presidente, onde o próprio estava postado, contemplando os seus servos a se reunirem para mais um dia de trabalho, ele fez a pequena reverência habitual.
- Bom dia, Sr. Lenker.
- Bom dia, Charley.
O presidente era um homenzinho pomposo e enfatuado, de óculos sem aros. De trás das lentes, os olhinhos pretos e lustrosos avaliaram Charley astutamente.
- Sente-se bem esta manhã, Charley? Charley ficou paralisado.
-- Claro que sim, Sr. Lenker. Por que eu não deveria...?
- Ouvi rumores de que tem andado bebendo um pouco além da conta, Charley.
O alívio de Charley foi tão grande que ele conseguiu até mesmo um sorriso. E confessou:
- É verdade que tomo um drinque de vez em quando, senhor. Mas nunca em quantidade exagerada, que possa vir a afetar o meu trabalho aqui no banco.
Sid Lenker não sorriu, mas relaxou um pouco.
- Isso é a única coisa que importa, Charley.
E com essas palavras, o presidente virou-se e desapareceu dentro de sua sala. "O velho e miserável feitor de escravos!", pensou Charley. "Ele só está interessado em saber se estou ou não em condições de desempenhar as minhas tarefas no banco.
E certamente irá me despedir, no momento em que isso deixar de acontecer".
Charley ainda estava pensando no velho Lenker quando viu Tom Madden entrar no gabinete do presidente, por volta das nove e meia. Tom Madden tinha o título de Chefe de Polícia local e Charley não podia imaginar o motivo que o trouxera ao banco.
Um momento depois, os dois homens saíram da sala e Lenker apontou para a mesa de Charley, a um canto.
Charley continuou sentado, imóvel, enquanto Tom Madden se aproximava. Mas não havia sentido em fingir que não estava vendo. E assim ele ficou observando Tom Madden se aproximar. Tom era um homem corpulento, de cabelos grisalhos e olhos bondosos. Naquela manhã, porém, a expressão dele era sombria. Não era sempre que Tom tinha de lidar com assassinato.
- Olá, Charley.
Tom puxou uma cadeira e sentou-se ao lado da mesa de Charley.
- Olá, Tom. Em que posso servi-lo?
Charley ouviu o som de sua própria voz. Parecia calma, perfeitamente inocente.
- Onde esteve ontem à noite, Charley?
Por trás dos óculos, os olhos de Tom Madden eram frios e penetrantes.
- Passei algum tempo no bar de Sam Jessup. Por quê?
- E por acaso encontrou-se com Frank Kasten?
Charley já pensara antes no que iria dizer, se algum dia lhe fizessem essa pergunta, de forma assim direta. Chegado o momento, ele respondeu suavemente, sem a menor hesitação:
- Não.
- Frank Kasten foi morto ontem à noite. Assassinado. Encontraram-no no quintal dos fundos de uma casa. Alguém esmagou a cabeça dele com uma pedra.
Charley deixou passar o intervalo apropriado, antes de dizer:
- E está pensando que fui eu, Tom?
- Todo mundo sabe da briga que você teve com ele há uma semana, Charley.
- Vou lhe dizer uma coisa, Tom. Não lamento que Frank Kasten tenha sido assassinado. Mas está mesmo acusando-me de ter sido o autor do crime?
Tom Madden remexeu-se, inquieto, afastando os olhos por um momento. O fato de o suspeito tomar a iniciativa parecia deixá-lo um pouco nervoso.
- Somos amigos há muito tempo, Tom. Portanto, diga-me a verdade. Acha que fui eu?
Tom hesitou por um minuto, depois finalmente voltou a olhar para Charley com um sorriso embaraçado.
- Céus, Charley, claro que não! Desculpe! Eu nem deveria ter vindo aqui. Você não é o tipo de homem capaz de cometer um assassinato.
Ele levantou-se e estendeu a mão. - Continuamos amigos, Charley? Charley levantou-se também e apertou a mão do Chefe de Polícia.
- Claro que sim. Por que não?
Ele ficou de pé, observando Tom ir embora. E pensou: "Tom agora acredita em mim.
Mas o que irá pensar quando não aparecer nenhum outro suspeito? Provavelmente começará
a pensar novamente que talvez tenha sido eu."
"Mas não estou arrependido"!, pensou Charley, subitamente, com uma veemência estranha. "Tive a oportunidade de destruir algo diabólico e aproveitei-a. Faria a mesma coisa outra vez".
Charley Ames estava sentado à sua mesa no banco, olhando para os documentos que tinham vindo parar em suas mãos, para serem devidamente processados. Execução da hipoteca. Sra. Earnshaw. Sessenta e dois anos. Viúva. Atrasada nos pagamentos.
Sem dinheiro. Executar a hipoteca.
Deve ter ficado assim por muito tempo, sem fazer nada, simplesmente olhando para baixo. Porque não viu nem ouviu nada até que a voz trovejou praticamente em seu ouvido:
- Qual é o problema, Charley? Não está se sentindo bem esta manhã?
Assustado, Charley levantou os olhos e deparou com o patrão. Sid Lenker parecia muito próspero naquela manhã, muito importante. As duas mãos estavam comprimidas contra a barriga volumosa e na boca havia um charuto que combinava com sua corpulência. Em algum momento do passado, a visão daquele monstro, pairando acima da mesa, poderia ter infundido terror a Charley Ames. Mas não agora.
- A casa da Sra. Earnshaw, vendida no mercado, não dará o dinheiro suficiente para cobrir o que é devido pela hipoteca, Sr. Lenker. Mas se a deixarmos ficar na casa, talvez ela encontre meios de fazer pagamentos ocasionais. O que temos a perder?
O charuto de Sid Lenker quase lhe explodiu na boca.
- O que temos a perder? Ora, temos a perder a nossa integridade! Não podemos destruir a nossa reputação de instituição financeira para sermos conhecidos como instituição de caridade!
Inclinou-se então sobre a mesa de Charley e disse mais suavemente:
- Acho que esteve ontem à noite, mais uma vez, naquele bar. Se é lá que apanha idéias tão desatinadas como a que acabou de expor, sugiro que deixe de freqüentar aquele lugar durante as noites ou deixe de vir aqui pelas manhãs.
O Sr. Lenker empertigou-se, muito satisfeito consigo mesmo. Ele parecia imenso.
Na mente de Charley, porém, as imagens eram um turbilhão incontrolável, contorcidas, confusas, transformando-se inesperadamente. Charley estava se lembrando de outro banqueiro. Há muito, muito tempo atrás. E também de uma mulher, a sua própria mãe, não a Sra. Earnshaw, não tão inocente quanto a Sra. Earnshaw. Mas mesmo assim...
- Não deveria expulsar as pessoas de suas casas disse ele, em voz alta e clara.
O Sr. Lenker não era o mesmo tipo de homem que Frank Kasten. E talvez fosse mais perspicaz. Talvez tivesse visto algo na expressão de Charley que Frank Kasten não percebera ou ignorara. Sid Lenker recuou, depois virou as costas e bateu em retirada para seu gabinete, ignominiosamente. E não voltou a incomodar Charley durante o resto do dia...
Charley Ames estava sentado à sua mesa no banco, na manhã seguinte, esperando. O mais estranho, no fato de Charley estar sentado à mesa, era que ninguém mais estava sentado, todos andavam de um lado para outro, conversando sem parar, ninguém se ocupando absolutamente do trabalho.
Em primeiro lugar porque o chefão, Sr. Sidney Lenker, não aparecera naquela manhã. Não estava parado à porta de seu gabinete, cumprimentando a todos os funcionários, à medida que iam chegando. E em segundo lugar porque, por volta das nove e meia, Tom Madden e dois dos seus guardas uniformizados tinham aparecido. E Tom anunciara que o Sr. Lenker estava morto. Tinha sido assassinado.
Era esse o motivo de todo aquele rebuliço. Tom Madden tinha arranjado uma chave e entrara no gabinete do Sr. Lenker. Depois, conversara com a secretária do Sr. Lenker. Em seguida, conversara com algumas outras pessoas. Charley Ames estava sentado à sua mesa, esperando que chegasse sua vez.
Talvez fossem dez e meia para onze horas quando a vez dele chegou. Como o banco não tinha condições de funcionar naquele dia, a maioria dos funcionários recebera permissão para voltar para casa. O rebuliço diminuíra um pouco, embora ainda houvesse bastante. Por fim, como era inevitável, Tom Madden aproximou-se da mesa de Charley. Parecia vir contra a vontade, como se isso lhe fosse profundamente doloroso. E sentou-se com uma expressão cansada.
- Em que posso servi-lo, Tom?
- Onde esteve ontem à noite, Charley?
- Passei pelo bar de Sam Jessup.
- Foi a algum outro lugar, antes de voltar para casa?
- Como por exemplo, Tom?
- Eu lhe perguntei simplesmente se tinha ido a algum outro lugar.
- Não.
- Alguém esteve ontem à noite na casa de Sid Lenker. Deve ter sido alguém que Sid conhecia, pois aparentemente ele o deixou entrar. E o visitante acabou batendo na cabeça de Sid com um peso de papel que havia em cima da escrivaninha dele.
- Não posso dizer que lamento que Sid tenha sido morto...
Tom Madden mastigou lentamente o lábio inferior.
- É estranho, Charley... Sempre que alguém é assassinado nesta cidade, trata-se de uma pessoa cuja morte você não lamenta.
Charley não ficou nervoso. Nem mesmo sentiu medo.
- Tenho as minhas opiniões sobre as pessoas. E tenho também o direito de expressá-las.
Tom remexeu-se na cadeira, inclinando-se na direção de Charley.
- Sabe o que aconteceu ontem, Charley? Sid Lenker ditou um memorando para o departamento de pessoal do banco, determinando sua demissão.
- Eu já esperava que ele fizesse isso.
- Mas por que ele ia despedi-lo?
- Discordamos sobre a execução de uma hipoteca. Charley fitou o amigo nos olhos e acrescentou:
- Ei, Tom, não me diga que está pensando que matei o velho Sid só por causa desse meu emprego nojento?
Desta vez, porém, Tom não se deixou intimidar com tanta facilidade.
- Se estivesse no meu lugar, Charley, o que iria pensar?
- Tem alguma prova, Tom?
- Nenhuma.
- Então podemos continuar amigos até que você descubra alguma?
Mas Tom Madden não estendeu a mão, como acontecera na vez anterior.
O banco deu um aviso prévio de um mês. Mas ao invés de pegar o salário do mês e não mais aparecer, como poderia fazer, Charley Ames continuou a ir sentarse à sua mesa todas as manhãs. E, à noite, invariavelmente ele passava pelo bar de Sam Jessup, bebendo como sempre.
- É uma vergonha! - comentou Sam Jessup. Eles não precisavam acatar a ordem do velho Sid, agora que ele está morto.
- Foi o último desejo dele - respondeu Charley, calmamente. - É como se fosse algo sagrado.
- O que vai fazer para arrumar o dinheiro do uísque quando estiver desempregado, Charley?
- Ainda não pensei nisso.
- Pois é melhor começar a pensar. Está começando a ficar viciado em uísque.
- Está querendo dizer, Sam, que depois de me ter como tão bom cliente durante todos esses anos, não iria me fiar por algum tempo?
Para Sam, isso era uma piada. Ele jogou a cabeça para trás e a risada saiu do fundo de seu imenso corpo, sacudindo-o. Quando parou de rir, ele disse:
- Charley, não estou neste negócio porque gosto.
Charley ficou olhando-o em silêncio por um momento, atônito. Nunca antes vira Sam à luz pela qual o estava vendo agora.
- Por que então está neste negócio, Sam?
- Estou simplesmente procurando ganhar a vida, meu caro Charley - respondeu Sam, com um sorriso jovial.
- E não quer saber como, nem se importa com mais nada.
- O que está querendo dizer com isso?
- Não se importa com as pessoas a quem serve seu uísque. Não quer saber quem elas são.
- Tem toda razão, meu caro Charley. Isso não me interessa, contanto que elas paguem.
- E não quer nem saber o que seu uísque pode causar às pessoas.
- Claro que não. O problema é deles. Todo mundo que aparece no meu bar tem mais de vinte e um anos...
"Não, nem todos têm mais de vinte e um anos", pensou Charley, silenciosamente.
Ele estava recordando novamente. O outro bar não era tão diferente daquele, o homem que servia os drinques não era tão diferente de Sam. E houvera um garoto chamado Charley que lá aparecia muitas vezes, à procura do pai, apenas para ouvir o bartender dizer que você está louco, garoto, se pensa que vou ajudá-lo a tirar o seu pai daqui, enquanto ele tiver dinheiro para pagar seu drinque e enquanto conseguir ficar de pé para bebê-lo.
- O uísque é uma desgraça... - murmurou Charley.
- Você fala com conhecimento de causa. Sam Jessup continuava sorrindo.
- E as pessoas que o servem não prestam. Você devia ser expulso da cidade...
Sam tinha um amplo senso de humor, abrangendo um amplo campo, mas no qual ele próprio não estava incluído. O sorriso desapareceu no mesmo instante.
-- Charley, não preciso tanto do seu dinheiro que precise aturar as coisas que está dizendo.
- Você não devia ganhar dinheiro à custa das fraquezas da humanidade!
Sam Jessup saiu de trás do balcão, segurou Charley Ames com as duas mãos imensas e escoltou-o pessoalmente até a porta.
E Charley estava esperando novamente, mas desta vez em seu pequeno quarto de solteiro. Ouviu os passos subindo a escada e compreendeu que eram os de Tom Madden.
Quando soou a batida pesada na porta, ele disse:
- Entre, Tom.
O homem que entrou no quarto era mesmo Tom Madden. Mas seu rosto estava sombrio, encovado. Os olhos duros fixaram-se inteiramente em Charley.
- Você teve uma discussão com Sam Jessup há duas noites atrás, Charley. E ontem à noite, depois de fechar, Sam estava sozinho no bar e alguém lançou algumas bananas de dinamite lá dentro. O bar ficou totalmente destruído e Sam está morto. Também está contente com a morte dele, Charley?
- Não a lamento.
- Então é melhor vir comigo, Charley.
- Para onde?
- Para a cadeia.
- Tem alguma prova de que eu matei Sam Jessup?
- Não tenho a menor prova, Charley. Mas tenho certeza absoluta de que foi você.
Assim, como medida de segurança, vou metê-lo na cadeia, Charley. Pensarei numa acusação qualquer mais tarde.
Charley Ames levantou-se e vestiu o casaco.
- Acha que estou louco, não é mesmo, Tom?
A expressão sombria de Tom Madden abrandou-se um pouco.
- Não sou psiquiatra, Charley. Talvez Frank Kasten merecesse morrer. E talvez Sid Lenker e Sam Jessup também merecessem. Mas não sou o juiz deles, Charley. E você também não é.
Charley Ames estava sentado sozinho em sua cela, esperando, sem saber muito bem o que esperava. Tom dissera que ele podia chamar um advogado, mas até agora Charley não via por que precisava de um. Tom o trancara na cela e o deixara.
Era uma cadeia pequena. Havia apenas duas outras celas. Uma estava vazia, mas a outra estava ocupada por um camarada com a barba por fazer, dormindo no catre, a quem Charley não reconheceu. Era provavelmente um pobre bêbado. Havia um corredor diante das celas, levando a uma sala grande na frente do prédio, onde havia diversas escrivaninhas. A porta da sala estava aberta e Charley de vez em quando ouvia vozes vindas de lá.
Mas não estava prestando muita atenção às vozes. Tinha os seus próprios pensamentos para fazer-lhe companhia . Na verdade, tinha muitas coisas em que pensar.
Ele não era louco. Tinha certeza disso. Em termos legais ou criminais, ser louco significava não saber a diferença entre o certo e o errado. E ele a sabia perfeitamente.
Sabia que Frank Kasten, Sid Lenker e Sam Jessup eram todos homens diabólicos.
Fora por isso que os matara.
Não, o problema não era esse. Tratava-se de saber se ele, Charley Ames, tinha o direito de julgar e punir aqueles homens. Era nisso que ele e Tom divergiam. O problema era que Tom não sabia realmente o que era o mal. Tom não compreendia. Tom não vira o mal em ação, como acontecera com Charley.
Não, decidiu Charley finalmente, ele não estava arrependido. Quando um homem encontra o mal, tem que fazer tudo para extirpá-lo. Não se pode fazer qualquer concessão ao mal. Pois o mal deve ser punido e o agente do mal deve ser destruído, para que nunca mais possa causar o mal a quem quer que seja. Onde quer que o mal esteja, por quem quer que seja personificado.
Talvez tenha sido no momento em que chegou a tais conclusões, reencontrando a paz de espírito, que Charley começou a prestar atenção nas vozes que soavam na sala lá da frente. Mas talvez tenha sido levado a isso porque eram vozes novas, vozes mais altas.
- Larguem-me! Larguem-me! - gritava uma das vozes.
Era uma voz jovem, voz de menino.
- Joey! Joey!
Uma voz de mulher, chorosa, suplicante.
- Não vai adiantar nada! - gritou o menino. Vou fugir de novo. Continuarei fugindo. Não importa quantas vezes eles me tragam de volta, eu sempre fugirei novamente.
Não quero viver com você...
- Joey... Joey... você é tudo o que me resta! Era a mulher novamente, talvez de joelhos, talvez como uma mendiga.
- Não pode me deixar sozinha, Joey... preciso de você...
Charley Ames pôs as mãos nos ouvidos, abafando as vozes terríveis. Mas era tarde demais. Ele ouvira demasiado. As engrenagens dentro de seu cérebro já estavam girando, revolvendo novamente as recordações. Sempre as recordações... Havia tantas! Se ao menos a sua mente pudesse algum dia esquecer, completamente...
- Charley... Charley... você é tudo o que tenho... por favor não me deixe...
- Não quero, mais ficar aqui... por que não me deixa em paz... deixe-me ir embora...
Charley bateu com os punhos fechados na própria cabeça, mas as vozes não cessaram. As recordações recusavam-se a ir embora. Acotovelavam-se dentro do seu cérebro, lutando para atrair sua atenção, sempre se alterando, cada vez mais altas, mais insistentes, mais acusadoras, mais condenatórias...
- Mas não fiquei longe tanto tempo assim, Tia Mary...
- Acha que não foi muito tempo, Charley? Três anos é um bocado de tempo. Ou pelo menos foi, para sua mãe...
- Mas por que ela não me falou nada? Eu teria voltado imediatamente 'para casa...
- Como é que ela podia saber disso, Charley? Depois da maneira como você foi embora...
- Mas por que ela fez isso? Por que, Tia Mary? Por quê?
- Depois da maneira como seu pai a tratou... e você abandonando-a ainda por cima... o que restava a ela para ter vontade de viver, Charley?
Charley Ames olhou ao redor, desvairado. Estava encurralado. Não tinha como escapar às vozes que berravam dentro de sua cabeça. Agora teria que enfrentá-las, finalmente teria que enfrentá-las...
Tom Madden enxugou a testa, com uma sensação de alívio. Acabara de despachá-los, mãe e filho, num estado de trégua. Mas ele duvidava muito que o problema tivesse sido resolvido permanentemente.
- Maldito garoto! - disse ele a seu assistente. Sinto pena daquela pobre mulher.
Tem sido maltratada por toda a sua vida. Não entendo por que ela não prefere ficar sozinha. Conseguiu livrar-se do marido. E o garoto não é melhor do que o pai.
Ela não deveria ternos pedido que fôssemos procurá-lo. Anote as minhas palavras: esse Joey Kasten ainda vai dar muitas dores de cabeça à mãe, antes de se acabar de maneira trágica.
Tom levantou-se, sacudindo os ombros, como que a afastar o cansaço.
- Acho que é melhor eu ir ver como Charley está se saindo - disse ele, encaminhando-se para a porta aberta.
Não precisou chegar até o final do caminho. Pôde ver, ainda longe, o corpo de Charley Ames, na cela ao final do corredor. Fê-lo pensar numa boneca de trapos, pendurada pela gola num gancho na parede.
Ele não podia deixar de ser louco, pensou o Chefe de Polícia.
Ed Lacy
NÃO SE CONSEGUE GANHAR (EM) TODAS
O cassino municipal de Nice, na França, é um desses prédios antigos e feios, como algo saído de um filme de horror. O que estou querendo dizer é que há um século atrás talvez tivesse dois salões de concertos e fosse chamado de gratnd.
Atualmente, o andar superior tem cores berrantes, com o cassino propriamente dito, um nightclub extravagante e um restaurante caríssimo. Mas o grande saguão do andar térreo é escuro e mal cuidado, de cores sombrias, dividido por cortinas velhas, escuras e pesadas, caindo do teto alto. A sala do boule fica nos fundos. O boule é a roleta dos pobres.
Os números vão de um a nove, usa-se uma bola de borracha comum e as apostas são pagas a sete por um. Pode-se entrar sem uma gravata, até mesmo de shorts.
Para dar uma idéia de como minha sorte andava terrível, basta dizer que me encaminhei para a sala do boule, entrei num corredor mais escuro e menor e descobri que estava perdido. É verdade que eu andara tomando umas bebidas francesas, mas não estava tão embriagado assim. Acendendo um fósforo, descobri que estava num pequeno corredor empoeirado, formado pelas cortinas. Ouvi ruídos à minha frente.
Entreabri uma cortina, queimando os dedos antes de conseguir acender outro fósforo, e vi uma pequena porta. Abrindo-a, ouvi nitidamente todas as conversas na sala do boule, da qual estava separado apenas por outra cortina velha. Espiando por uma fresta dessa cortina, vi a sala do boule. Só que não era uma entrada. De alguma forma, eu fora parar atrás da mesa de troco, do caixa.
Imprecando silenciosamente, virei-me e voltei tateando para o corredor principal, conseguindo finalmente chegar à sala do boule. Paguei meu franco para entrar. Não vi Frankie em parte alguma. E também não esperava encontrá-lo. Joguei alguns francos e perdi, como sempre. Os drinques que eu tomara haviam-me deixado um pouco enjoado.
Assim, voltei para o nosso quarto no hotel. Frankie também não estava lá, o que não contribuiu para melhorar meu ânimo.
Naquela tarde, na praia rochosa de Nice, Frank e eu fizemos uma aposta para ver quem pegaria uma loura holandesa, num biquíni mínimo. Eu tinha certeza de que ia ganhar, pois Frank é um saco de ossos dentro de um calção, enquanto eu tenho 105 quilos de sólidos e bem distribuídos músculos. É claro que nem Frankie nem eu falamos holandês. Mas quando a loura se encaminhou para as águas azuis do Mediterrâneo, andando cautelosamente sobre as pedras, obviamente precisando de ajuda, nós dois nos levantamos imediatamente. Frankie, o esquelético, correu pelas malditas pedras como um nativo e alcançou-a primeiro. Aquelas malditas pedras estavam matando meus pés. Quando me aproximei dela, levei um tombo feio. A loura virou-se, assim como todas as demais pessoas que estavam na praia, e riu de mim, enquanto Frankie passava o braço pela cintura dela, ajudando-a a descer pela encosta rochosa, até a água.
Não gosto que riam de mim e a vontade que tive foi de dar uma coça naquela loura. Em vez disso, fiquei de pé, como um lutador de boxe esmurrado, conseguindo finalmente alcançar o nosso vestiário. Fui embora da praia, deixando a loura com o sortudo do Frankie.
Deviam ser duas horas da madrugada quando Frankie chegou ao nosso quarto no hotel, acendendo a luz do banheiro para tirar a roupa, assoviando baixinho.
Quando sentei-me na cama, Frankie perguntou:
- Por onde é que andou, Mike? Procuramos você por toda parte. Ela tinha uma amiga, outra loura espetacular e igualmente solitária. Puxa, nunca vi duas louras tão sensuais! É uma pena que elas tenham de ir embora esta manhã, pois estão aqui numa excursão.
Estão vendo como anda a minha sorte? É demais!
A minha ida à França parecera a princípio uma mudança na minha sorte. Talvez eu não tenha o direito de reclamar. Afinal, estou vivendo aqui da melhor maneira possível.
Tudo começou há um mês atrás, lá nos Estados Unidos. Eu estava no prado e na altura do quarto páreo já tinha ficado "duro". Fui postar-me junto ao guichê pagador das pules de vencedor de dez dólares, na esperança de esbarrar em algum amigo que tivesse acertado uma boa tacada. Tive a impressão de que já conhecia o cara esquelético que se aproximou, seguido por um tipo bronco e imenso que ia desfiando uma conversa de camelô. Quando o magrela sacudiu a cabeça, o cara bronco tentou arrancar umas pules da mão dele. Olhando para mim, o magrela gritou:
- Ei, Mike, me ajude!
Acertei o cara bronco com um soco na boca do estômago. Quando os guardas começaram a se aproximar, o magrela disse:
- Vamos nos mandar, Mike!
As corridas tinham terminado e nos perdemos no meio da multidão. Assim que saímos do prado, o magrela disse:
- Obrigado, Mike. Não está lembrado de mim, Frankie Dill?
- Claro que me lembro - declarei, embora o nome não fizesse soar nenhuma campainha no meu cérebro.
- Quando você chefiava os Turbantes, Mike, eu ficava sempre com a turma.
Foi só então que me lembrei. Já se tinham passado onze anos. Eu tinha dezesseis anos naquela época e os Turbantes eram a turma mais braba da cidade. Frankie Dill era um garoto raquítico que eu costumava mandar à drugstore para nos comprar sodas ou cigarros, um simp'es garoto de recados, a quem ninguém dava maior importância.
- O que anda fazendo atualmente, Mike?
- Nada de muito importante. Trabalho nas docas, faço um bico em algum bar nos fins de semana, como leão-de-chácara. Você acertou no último páreo, Frankie?
Ele sorriu.
- Acertei na dupla e ganhei 2.194 dólares. Aquele pilantra estava tentando me convencer a deixá-lo receber, alegando que tinha uma carteira falsificada da Previdência Social e assim não haveria necessidade de pagar o imposto. Eu disse a ele para parar com aquela conversa mole e...
- Frankie, você está com 2194 dólares na mão?
- Estou. Tenho tido alguma sorte ultimamente, ganhando uns 500 a 600 dólares por semana, nas cartas, no prado. No mês passado, acertei um vencedor de mil dólares.
Frankie era a calma em pessoa.
- Vamos pegar um táxi para voltarmos à cidade, Mike. Irei até o escritório do prado pela manhã e receberei meu dinheiro.
- E vai ter que pagar o desconto do imposto? Frankie deu de ombros.
- Não me importo de dar a parte de Tio Sam. Tenho uma licença de jogador, pela qual paguei 50 dólares, faço tudo de acordo com a lei, pagando inclusive os impostos.
É a melhor maneira de ficar livre de encrencas.
No táxi, Frankie perguntou subitamente:
- Quanto tempo você pegou por aquele carro roubado, Mike, há anos atrás?
- Seis meses. Por quê?
- Esteve em cana outra vez, depois disso? Sacudi a cabeça.
- Mas por que está querendo saber disso, Frankie?
- Estou pensando em tirar umas férias. Aquele cara que você acertou pode querer ajustar contas comigo. Estou com uma boa grana e sempre desejei conhecer a Europa. Mas não gosto de viajar sozinho. Não tenho ficha na polícia e se você pegou apenas seis meses não terá dificuldade em tirar o passaporte. Falo um francês da escola secundária e podemos ir ver o que está acontecendo por Paris, Mike.
Eu pago a sua viagem.
Seis dias depois, estávamos a bordo de um jato da Air France. Frankie não é um cara muito sovina com o seu dinheiro. Comprou dois ternos para mim e, em Paris, nos hospedamos num hotel todo cheio de coisas. Frankie meteu 200 dólares na minha mão, explicando:
- Dinheiro para as despesas miúdas, Mike. Se precisar de mais, basta dizer.
Uma coisa eu posso dizer: Paris era um pé no saco. Chegamos lá numa quintafeira, debaixo de uma chuva fria. Ainda estava chovendo no domingo, quando Frankie me disse:
- Já vimos os nightclubs daqui e todos os botequins de striptease. E já não agüento mais esta maldita chuva. Vamos para o sul, até a Cote d'Azur. Dizem que lá sempre tem sol.
Cinco horas depois estávamos tomando um banho de sol numa praia de Nice, contemplando as bonecas de biquíni. Nice é o fino do lugar e era de se pensar que, com tudo aquilo na mão, eu devia estar feliz da vida. Mas acontece que eu não estava.
Frankie se encarregava de todas as contas, mas eu me sentia agastado por ficar dependente dele. Quando eu mandava nos Turbantes, Frankie teria ficado feliz em engraxar meus sapatos. Agora eu me sentia como seu lacaio. E afinal de contas, eu sempre soubera cuidar de mim. Queria mostrar a Frankie que podia sobreviver sem ele.
Mas nada dava certo para mim. Jogamos boule algumas vezes, sem que nenhum dos dois ganhasse. Mas Frankie disse que havia gostado do jogo e estava bolando um esquema para vencer, infalivelmente. Na noite de segunda-feira, fomos a um prado de corridas de trote, fora de Nice, num lugar batizado em homenagem a Jimmy Cagney, a quem eles pronunciavam como Cagnes. Os cavalos são cavalos em qualquer língua, mas perdi 60 dólares em francos, enquanto o sortudo do Frankie não parava de dizer para que seguisse os palpites dele, ganhando 800 francos, o que dá em torno de 160 dólares.
Em Paris, eu tinha comprado um par de bilhetes de loteria, a três francos cada um. Todas as quartas-feiras corria a loteria nacional da França. Na manhã de quintafeira, passei os olhos por um jornal francês, enquanto tomávamos o café e comíamos os pãezinhos que o hotel classifica de desjejum. Não vi o meu número na relação e já ia rasgar meus bilhetes quando Frankie disse:
- Deixe-me dar uma olhada, Mike. Ei, seu trouxa, você ganhou 100 francos. Eles também pagam pelo último número e o dos seus bilhetes é cinco, igual ao do vencedor.
Cem francos dá apenas 20 dólares, mas aquilo me deu alma nova, como se a minha sorte finalmente começasse a mudar.
- E como posso receber, Frankie? Será que teremos de voltar a Paris?
Frankie tentou decifrar a notícia, dizendo-me finalmente:
- Não. Você pode receber aqui mesmo em Nice. Depois do café, saímos do hotel e paramos num café de cadeiras na calçada, para o meu habitual presunto com ovos. Em seguida, Frankie levou-me a uma tabacaria, onde vendiam bilhetes de loteria. Entreguei os meus bilhetes e eles me deram uma nota de 100 francos. O meu bom ânimo quase acabou, quando Frankie entregou um bilhete de loteria que também comprara. Ele tinha acertado os três últimos números iguais ao do primeiro prêmio e recebeu mil francos!
Estendendo-me as notas ao sairmos, Frankie me disse:
- Está precisando de mais algum dinheiro para as despesas miúdas, Mike? Se estiver, terei o maior prazer...
- Não!
Só me sobravam em torno de 50 dólares, mas eu não ia aceitar mais nada dele.
Compramos outros bilhetes de loteria, para a semana seguinte, seguindo depois para a praia, onde o sortudo do Frankie também ganhou a loura holandesa.
Deitado na cama, olhando para a escuridão, ouvindo Frankie respirar regularmente na cama ao lado, comecei a pensar sobre como me perdera no cassino, indo parar atrás da caixa. Ali, naquela mesa, trocava-se dinheiro por fichas e fichas por dinheiro, para quem saísse ganhando. Calculei que o pessoal devia perder pelo menos 200 mil por noite no cassino. E ficava tudo ali naquela mesinha!
Seria uma barbada vir por trás, derrubar o cara que ficava ali, pegar a grana e sair pelo mesmo caminho pelo qual se viera. Havia três leões-de-chácara na sala do boule, mas eles estavam sempre olhando para as mesas. Ninguém ficava de olho na caixa.
Fiquei remoendo a idéia na cabeça, suando um bocado, sentindo como se estivesse de ressaca. Há anos que eu não dava nenhum golpe e absolutamente não queria passar uma temporada numa cadeia francesa. Mas com 200 mil meus, eu me sentiria gente novamente, ao invés de um simples gorila de estimação de Frankie. Embora Frankie jamais dissesse coisa alguma, eu sabia que ele gostava de me dar uma mãozinha, para compensar o fato de ser um saco de ossos e pelas broncas que eu lhe dera, nos tempos da nossa turma de adolescentes. Não havia outro jeito. Eu ia surripiar os 200 mil, dizendo que fora a Mônaco e os ganhara no Cassino de Monte Cario. Mas eu sabia que era muito arriscado. Numa cidade estranha, seria um golpe duvidoso, mas num país estranho era uma estupidez. Na verdade, a única razão pela qual Frankie e eu não jogávamos lá em cima, no cassino de verdade, era porque não compreendíamos o chemin de fer e os outros jogos de cartas.
Dormi com a idéia do assalto na cabeça e acordei com uma bruta dor de cabeça.
Era outro dia de sol e Frankie sugeriu que pegássemos um ônibus até Cannes, que tem uma praia de areia.
Gostei da areia, exibi as minhas qualidades de nadador e estava me sentindo maravilhosamente bem. Disse a mim mesmo que o assalto seria um golpe errado.
Quando estávamos nos vestindo, na cabine, reclamei de não limparem o lugar, chutando alguns jornais velhos para baixo de um banco. Frankie, que estava sentado na cadeira, pondo os sapatos, perguntou:
- Que negócio amarelo é aquele ali, Mike?
- Deve ser alguma caixa de papelão suja. Frankie meteu a mão debaixo do banco e tirou uma carteira suja, de pele de porco. Era de um cara de Lincoln, Nebraska, e continha mil dólares em travelefs, checks, cerca de 700 francos e quinze notas verdinhas de dez dólares!
Entregando-me duas notas de dez dólares e alguns francos, Frankie disse-me suavemente:
- Falei para você olhar, Mike. Os travélefs checks não servem para nós, por isso vamos jogá-los numa caixa dos correios, juntamente com a carteira.
Aquilo foi a gota dágua! Eu estava cansado de bancar o palhaço. Tive certeza então de que iria assaltar o cassino, quanto menos não fosse para recuperar o autorespeito.
Voltamos a Nice e comemos um bom filé e uma salade-miçoise, num desses pequenos restaurantes, não destinados a turistas, que Frankie estava sempre descobrindo.
Ele sugeriu que fôssemos a um cinema, que traduziria tudo para mim. Eu ]he disse que fosse sozinho. Os cinemas franceses me deixam confuso e sentindo-me idiota. Como acontecera em Paris, quando foramos assistir a um western americano, só que dublado em francês.
Indo ao cassino, não tive maiores dificuldades para encontrar o corredor entre as cortinas. Tinha menos de 60 metros de comprimento. Abri a porta silenciosamente e espiei por uma fresta na cortina para as costas do cara que estava na caixa. Era um cara gordinho, num smoking azul. Numa prateleira por baixo da mesa havia pilhas de notas de 10, 20, 100 e 500 francos, com as bandejas de fichas arrumadas a um canto. Estudei a sala do boule, verificando que estavam todos grudados em torno da mesa, inclusive os leões-de-chácara. Do outro lado havia um bar, mas o bartender estava absorvido a limpar os copos. Sessenta metros... Eu poderia percorrer essa distância em poucos segundos. Mais alguns segundos para acertar uma cacetada no homem que ficava na caixa, segurando-o pelo colarinho, a fim de evitar que fizesse algum barulho ao cair ao chão. Não haveria a menor dificuldade em estender a mão, sem sair de trás da cortina, recolhendo os francos. Eu usaria um casaco, metendo o dinheiro por baixo da camisa. O único risco verdadeiro era alguém se aproximar da mesa para comprar ou trocar fichas ou então alguém me vir saindo do corredor principal, ao invés de seguir para a sala do boule. Ninguém iria se esquecer de um palhaço do meu tamanho.
Era esse o risco. Mas eu entraria distraidamente e pararia para acender um cigarro, se houvesse alguém por perto. Menos de três minutos depois, tornaria a sair, como quem não quer nada, cheio de francos por baixo da camisa.
Seria um imenso prazer jogar o dinheiro em cima da cama e me gabar para Frankie da sorte que tivera no Cassino de Monte Cario, que fica apenas a meia hora de viagem de ônibus.
Senti-me tentado a executar o trabalho naquele mesmo instante, mas decidi deixar para a noite seguinte. Gosto de prever todos os ângulos, nunca realizando um trabalho depressa demais.
Na tarde seguinte, encontramos um par de universitárias americanas na praia. Eu sabia que aquilo não daria em nada, mas Frankie disse que era um prazer conversar com elas, sugerindo que lhes pagássemos o jantar.
- Leve-as para jantar sozinho, Frankie, já que você é que sabe falar francês. Eu vou ver como estão as coisas lá em Monte Cario.
- Lá você vai perder até a camisa, Mike. Acho melhor ficar mesmo no boule.
Ei, tenho uma idéia! Amanhã à noite poderemos ir novamente às corridas de trote.
- Quero poder dizer, pelo menos, que estive no Cassino de Monte Cario. E fique tranqüilo, Frankie, que não vou exagerar em nada. Talvez até eu me encontre com a Princesa Grace.
Frankie lançou-me um olhar pesaroso.
- Os cidadãos de Mônaco não têm permissão para entrar no cassino. São espertos demais para jogar. Está certo, Mike. Divirta-se. Vai precisar de dinheiro?
- Não.
Comi sozinho numa dessas arapucas para turistas, onde me cobraram 25 francos por um jantar que ficava muito longe das refeições pelas quais pagávamos 8 francos, nos restaurantes descobertos por Frankie. Comprei um grande pedaço de sabão e meti-o dentro de uma meia. Comprei também uma lanterna pequena. Fui então sentar-me na praia, contemplando as ondas. Calculei que a mesa da caixa deveria estar com o máximo de dinheiro por volta da meia-noite.
Faltando cinco minutos para meia-noite, tomei um drinque rápido e segui para o cassino de Nice. No andar térreo as coisas pareciam quietas demais, embora lá em cima, no mgMclub, estivesse tocando um bom conjunto de jazz. Entrei pelo corredor entre as cortinas sem que ninguém me visse. Quando abri a porta atrás da última cortina, achei tudo tão quieto que a princípio pensei que a sala do boule estivesse fechada. Mas olhando pela fresta na cortina, vi a multidão habitual em torno das mesas. O bartender, no outro lado da mesa da caixa, estava lendo um jornal. Ninguém parecia estar conversando muito. Respirei fundo e enfiei a mão esquerda pela abertura na cortina, agarrando o cara da caixa pelo colarinho e puxando-o para trás. A cabeça dele e o meu cassetete, um sabão enfiado numa meia, bateram de encontro à cortina no mesmo instante. Com a mão esquerda, baixei o cara até o chão, gentilmente. Ninguém havia notado coisa alguma.
Mas quando estendi a mão esquerda para recolher o dinheiro, tive um choque terrível. Havia bem poucas notas na prateleira! Sem saber o que fazer, agarrei-as e saí correndo pela passagem. Enfiando as notas no bolso, juntamente com a lanterna e a meia, saí para o corredor principal. Estava vazio. Deixei o cassino e atravessei a rua, atravessando o pequeno parque, muito bem cuidado, deixei cair o sabão numa lata de lixo. Em seguida fui para a praia, apaguei todas as possíveis impressões digitais na lanterna, meti-a dentro da meia e joguei tudo no mar, o mais longe possível. Suando como um touro, parei num café de cadeiras na calçada para tomar uma cerveja. Contei as notas que tinha no bolso: onze notas de 10 francos, três de 20 francos e uma de 50 francos. Um total de 220 francos!
Tomei mais algumas cervejas para acalmar meus nervos e à uma hora da madrugada voltei para o nosso quarto no hotel. Frankie já estava na cama, lendo uma revista.
- Como é que foram as coisas no Cassino de Monte Cario, Mike?
- Nem cheguei a entrar. Fiquei passeando pela cidade e depois peguei um ônibus, voltando para Nice. E você, foi a algum lugar com aquelas garotas? Conseguiu alguma coisa?
Frank sacudiu a mão magra.
- Deixe disso, Mike. Eu não esperava mesmo conseguir alguma coisa. Eram apenas duas boas meninas.
Ele puxou para trás a coisa que estava no pé da cama, deixando à mostra pilhas e mais pilhas de notas de franco.
Mas meu sistema funcionou que foi uma beleza no boule, Mike. Foi uma moleza! Cheguei ao cassino por volta das onze horas da noite e logo compreendi que ia dar tudo certo. Por volta da meia-noite, eu já tinha quebrado a banca e fui embora. Ganhei 1.763 dólares em francos Nunca tive tanta sorte. Apanhe todos os francos que quiser, Mike... Ei, qual é o problema, Mike?
Parece que está querendo gritar comigo ou algo assim...
C. B. Gilford
O CRIME NA MENTE
Cheryl Royce se recordou de que tudo havia começado como uma espécie de jogo de salão, um jogo ligeiramente perigoso, é verdade, embrenhando-se pelo desconhecido.
Mas o perigo e a incursão pelo desconhecido é que o haviam tornado interessante.
Hipnose.
- Claro que posso hipnotizar pessoas - disse Arnold Forbes.
À exceção dos anfitriões, os Cunningham, ninguém na festa conhecia Forbes muito bem. Evidentemente, alguém desafiou-o, alguém lhe suplicou por uma demonstração, até que Liz Cunningham interveio, suavemente, como sempre:
- Arnold costumava apresentar um número num nightclub. Não gostaria de fazer uma demonstração, Arnold querido?
E, assim, Arnold Forbes fez uma demonstração. Era um homem baixo, rechonchudo, muito jovial... e capaz de iludir a qualquer um. Os olhos azuis podiam subitamente transfixar alguém, um olhar penetrante e dominador. Por algum motivo, talvez porque a achasse bonita ou talvez porque ela parecesse zombeteira, ele acabou escolhendo Cheryl Royce.
Com os olhos azuis de Forbes fixados nos seus, Cheryl "dormiu" em cerca de trinta segundos. Só que ela não dormiu de fato. As pálpebras se fecharam, mas ela estava longe de ficar inconsciente. Podia ouvir a voz de Forbes com toda clareza:
- Suas pálpebras estão muito pesadas... seus braços estão pesados... todo o seu corpo está muito pesado... relaxado, muito relaxado... você agora está começando a sentir sono... sono... muito sono... está mergulhando num sono profundo...
Não, não estou, respondeu Cheryl, silenciosamente. Não vou dormir, porque posso ouvi-lo. Além disso, sei que não estou dormindo. Estou sentada aqui, nesta poltrona, todo mundo reunida ao meu redor, e...
Não obstante, ela teve que admitir que era muito estranho o estado em que se encontrava. O corpo dava a impressão de estar muito pesado e, ao mesmo tempo, de praticamente não ter peso algum. Ela não quisera fechar os olhos, mas acabara fechando-os.
Agora queria abrir os olhos, mas não conseguia.
Estava inteiramente à mercê do hipnotizador. Ele deu-lhe ordens - ler um livro, bater à máquina uma carta, tomar um copo de água - e Cheryl obedeceu, muito embora soubesse perfeitamente que os referidos objetos não existiam e muito embora ficasse ressentida por estar executando todos aqueles movimentos tolos. Forbes passou os dedos pelos pulsos dela, "amarrando-a" na poltrona. Cheryl descobriu que não conseguia se mexer, mesmo sabendo perfeitamente que não havia corda alguma a amarrá-la.
A brincadeira continuou, interminavelmente. Durante todo o tempo, Cheryl sentia-se ridícula, por estar sendo usada, por se achar impotente. Mas no momento em que Arnold Forbes finalmente a despertou, estalando os dedos, Cheryl riu e brincou, como se levasse tudo na esportiva.
Forbes encontrou outra vítima, e Cheryl afastou-se para segundo plano, contente por deixar de ser o centro das atenções.
Wint Marron seguiu-a. Era um homem moreno e bonito, de trinta e poucos anos, com uma linda esposa loura. Cheryl comparecera a umas três ou quatro festas em que os Marron também tinham estado presentes.
- Como foi que se sentiu sendo hipnotizada? perguntou Wint.
- Foi divertido.
- Não, não foi. Você detestou. E lutou contra aquele sujeito durante todo o tempo.
Cheryl ficou perplexa.
- E como sabe disso?
Wint Marron sorriu, exibindo dentes brancos e perfeitos.
- Sei alguma coisa sobre hipnose. Uma das coisas que muitas vezes acontece é o aumento considerável da capacidade telepática da pessoa que está sob hipnose. E talvez você e eu estejamos no mesmo comprimento da onda. Seja como for, li sua mente durante todo o tempo em que esteve sentada ali. E você não parou de dizer a Forbes que não ia fazer o que ele estava mandando, que não tinha um copo com água na mão, que não estava amarrada por nenhuma corda. E você ficou também furiosa.
- Você percebeu tudo isso pela expressão do meu rosto.
Ele sacudiu a cabeça, sem parar de sorrir.
- Sua expressão era perfeitamente serena. Pergunte a qualquer um.
Wint ficou esperando por uma resposta, que não houve.
- Não acha que é interessante?
- Sei lá...
- Não se preocupe que não poderei ler sempre seus pensamentos. A coisa não funciona desse jeito.
Ele se inclinou mais ainda para junto de Cheryl. Achavam-se praticamente a sós.
Todos os outros estavam concentrados em Arnold Forbes e no espetáculo que ele oferecia.
- Os poderes telepáticos aumentam sob hipnose, como eu disse. Mas posso ler algum pensamento seu, ao acaso, de vez em quando. Por falar nisso, você é capaz também de ler um ou outro pensamento meu. A telepatia geralmente funciona nos dois sentidos. Como eu falei antes, parece que emitimos no mesmo comprimento de onda.
- Em que estou pensando agora?
Ele hesitou, fitando-a direto nos olhos. Com algum esforço, Cheryl sustentou o olhar dele.
- Não está gostando do que eu acabei de falar disse Wint finalmente. - Acha que sua intimidade está sendo invadida. E toda essa história a perturba bastante.
Agora, você terá que pagar na mesma moeda. Em que estou pensando?
Cheryl não queria, mas continuou a olhar para ele, firmemente. Estaria tentando ler a expressão daqueles olhos castanhos escuros? Ou será que estava indo além dos olhos dele... até seus pensamentos? Foi então que Cheryl descobriu que estava dizendo, involuntariamente:
- Acho que você quer me beijar.
Wint riu suavemente e piscou para ela, maliciosamente.
- Não sei o que está usando neste momento, meu bem. Não sei se é telepatia ou não. Mas chegou perto. Muito perto, mesmo...
Cheryl não tornou a ver Wint Marron durante meses. Talvez, subconscientemente, ela estivesse procurando evitá-lo. Durante esse tempo, ela talvez tenha pensado nele uma ou duas vezes. Mas não recebeu qualquer mensagem telepática dele, pelo que sentiu-se agradecida. E também não lhe enviou nenhuma mensagem. Ou pelo menos pensou não tê-lo feito.
Certa ocasião, ela encontrou-se com Paula Marron, a linda esposa loura de Wint, no canto escuro de um bar. Paula estava com outro homem, comportando-se de uma maneira que uma mulher casada não deve fazer com nenhum outro homem quê não o próprio marido. O incidente deixou Cheryl bastante chocada, por diversas razões. Em primeiro lugar, pela própria infidelidade óbvia de Paula. Em segundo lugar, pelo fato de ela estar sendo infiel a um homem tão atraente quanto Wint Marron. Wint era bonito, simpático, estava indo muito bem na publicidade. Por que Paula haveria de se achar insatisfeita?
Foi um pouco depois desse incidente, talvez um mês, que Cheryl começou a ter estranhas sensações. Sensações... ela procurou uma palavra melhor para descrever suas experiências: pressentimentos... sentimentos de inquietação... que lhe ocorriam nas horas mais inesperadas e estranhas, sem qualquer razão aparente.
E tais sensações não tinham motivo aparente porque tudo parecia estar indo muito bem na vida dela.
Conhecera Alan Richmond e já quase decidira que ele era o homem dos seus sonhos, há tanto esperado. Alan era alto, de aparência atraente, ambicioso, gostava muito dela, era-lhe bastante dedicado. Estavam saindo juntos freqüentemente. Cheryl estava com ele quando vira Paula Marron naquele bar, em companhia de outro homem. Cheryl, em suma, sentia-se feliz, sabendo que sua vida encerrava agora promessas de uma felicidade ainda maior.
Mas havia aquelas sensações estranhas, o pressentimento que lhe surgia de vez em quando de que havia uma ameaça à espreita, em algum lugar. Era mais do que isso.
Uma reação emocional a essa ameaça... uma raiva meio vaga... ou ódio... ou ciúme...
Ciúme. Ela quase que podia rir diante de tal idéia. Não tinha qualquer motivo para sentir ciúme. Alan lhe propusera casamento. Ela poderia tê-lo integralmente, na hora em que bem o desejasse. E sabia também que Alan não estava saindo com outras mulheres. Por que então haveria de ter ciúme dele?
Pois bem: ela não podia ter e não tinha. Ela não estava com ciúme... não estava com ciúme... por que então sentia...?
A resposta surgiu-lhe subitamente.
Ela tivera um dia difícil no trabalho e recusara-se a ir ao cinema com Alan.
Estava muito cansada. E aconteceu quando estava na cama, o quarto escuro, caindo no sono, talvez até já adormecida. E no momento em que lhe ocorreu, ela despertou, com um sobressalto.
Por um momento súbito, doloroso, Cheryl sentiu que não mais estava em seu quarto. Estava naquele bar mal iluminado. E lá estava também Paula Marron, sentada a um canto com aquele estranho, encostada no estranho, afagando-lhe o queixo com os dedos, sussurrando-lhe no ouvido, os lábios muito perto da orelha dele. Paula virou-se então, a atenção atraída por alguma coisa. E Paula ficou de frente para ela, Cheryl, a expressão vazia por um momento, os olhos se arregalando, os lábios se entreabrindo.
Paula disse uma única palavra, bem alto, num tom de completa surpresa:
- Wint!
A visão se desvaneceu. Cheryl Royce estava novamente na escuridão de seu quarto.
O bar, o estranho, Paula Marron, tudo havia desaparecido.
O que restava - e tudo estava dentro de Cheryl Royce - era uma violenta erupção de raiva... ódio... ciúme! As mãos agarrando a coberta, a boca contorcida, Cheryl ficou olhando para o espaço vazio. Passou-se mais de um minuto antes que os sentimentos se dissipassem. Depois, ficou estendida na cama, inerte, exausta, o corpo pegajoso de transpiração.
Ela sabia exatamente o que significava a experiência. Wint Marron descobrira a esposa em companhia daquele outro homem. Wint Marron ficara desvairadamente furioso e ciumento. Ela, Cheryl Royce, sabia de tudo isso porque estivera naquele bar, junto com Wint Marron. Ela lera os pensamentos dele, estivera dentro da mente dele.
Ela e Wint Marron tinham o mesmo comprimento de onda.
Cheryl não contou nada a Alan nem a qualquer outra pessoa. Pensou em procurar Arnold Forbes, o hipnotizador, para pedir a ajuda dele. Queria sair do comprimento de onda de Wint Marron. Não queria partilhar os pensamentos dele. Mas acabou não indo procurar Forbes. A história parecia muito ridícula, embaraçosa demais - em suma, totalmente inacreditável.
Cheryl não queria acreditar. Não era bem possível que tivesse apenas sonhado?
Ela vira Paula Marron naquele bar e assim podia sonhar com isso. O sonho a colocara no lugar de Wint Marron, mas havia também uma explicação para isso: o poder da sugestão. Wint Marron sugerira que ambos estavam "no mesmo comprimento de onda".
Assim, ela não disse nada a ninguém - do que iria arrepender-se.
Apenas três semanas depois, numa quinta-feira, ao anoitecer, sua consciência novamente instalou-se dentro do crânio de Wint Marron, vendo através dos olhos dele, sentindo as emoções dele, preparando-se para entrar em ação.
Cheryl estava outra vez sozinha, sentada diante da penteadeira, escovando os cabelos, a se mirar no espelho. Alan deveria apanhá-la dentro de meia hora. Os pensamentos dela estavam concentrados em Alan, não em Wint Marron. Mas, subitamente, os pensamentos foram violentamente afastados de Alan. O próprio rosto de Cheryl desapareceu do espelho. Ela estava olhando não para o espelho, mas através do pára-brisa de um carro.
À sua frente, havia uma estrada, cheia de sombras e imersa na semi-escuridão do fim de tarde. Os faróis iluminaram uma fileira de árvores, à margem da estrada.
Os faróis eram muito fortes. As árvores ficaram bem definidas, mas não a estrada. A estrada continuava escura...
Algo apareceu na estrada... ou ao lado... bem perto... no lado direito. Algo branco, muito brilhante sob as luzes dos faróis, fazendo contraste com a superfície negra da estrada. Algo branco, agitando-se... um vestido de mulher.
Uma mulher estava parada ao lado da estrada, como se esperasse por alguém que viria buscá-la. Isso mesmo, ela esperava que alguém viesse apanhá-la, pois a mão direita segurava uma pequena valise. Uma valise azul, um azul muito brilhante, destacando-se contra o vestido branco.
Mas não era pelo motorista daquele carro que ela estava esperando. Quanto a isso, não podia haver a menor dúvida, pois, ao ver o carro, ela fez um gesto estranho de surpresa, erguendo a mão esquerda, os dedos bem espalhados. O rosto também registrou extrema surpresa. O carro estava perto o suficiente para que o motorista visse o rosto dela.
O rosto de Paula Marron, quase tão branco quanto o vestido. Emoldurado pelos cabelos louros muito claros. Os olhos azuis, arregalados, eram muito azuis, tão azuis quanto a pequena valise. Emoção nos olhos. Medo.
Emoção no motorista também. Um ódio implacável, uma sensação de triunfo. Ali estava Paula, o objeto do ódio, surpreendida em flagrante. Para onde é que está indo, Paula? Pensei que, se confiscasse as chaves de seu carro, você teria que ficar em casa. Mas está esperando o seu motorista, não é mesmo? Ele. Para onde estava pensando em ir com ele? Por quanto tempo? Vejo que está levando a valise pequena. Sendo assim, deve ser apenas por uma noite. Ou talvez não. Talvez esteja indo embora para sempre e decidiu não se dar ao trabalho de levar todos aqueles "trapos" pendurados em seu armário. Pois saiba que não vai a lugar nenhum, boneca. Ou pelo menos agora, com ele!
O carro estava indo agora cada vez mais depressa. O motor reagia à pressão no acelerador com um rugido furioso. Subitamente, Paula pareceu compreender. Tentou recuar, afastar-se da estrada, embrenhar-se por entre as árvores. Ela estaria segura entre as árvores. O carro não poderia segui-la até lá.
Mas ela não foi rápida o suficiente. Não havia compreendido com a antecedência necessária. Largou a valise, virou-se e correu. Mas os saltos faziam com que ela tivesse dificuldade em correr pelo cascalho ao lado da estrada. Não estava trajada para disputar uma corrida com um carro e parece que compreendeu que não podia ganhar.
Virou-se novamente na direção do carro. Abriu os braços, num gesto de súplica.
Não me mate, Wint!
O gesto dos braços se alterou. Eles se levantaram, tentando proteger aquele rosto pálido e macio do metal que avançava velozmente. O rosto foi ficando maior, quase que enchendo totalmente o pára-brisa. A boca vermelha se escancarou e urrwgrito competiu com o rugido do motor, superando-o por um momento.
No mesmo instante, houve o impacto, tão forte que o vidro tremeu. As árvores, todo o cenário que se avistava pelo pára-brisa, também tremeram, como que sacudidos por um terremoto. O rosto pálido e o vestido branco desapareceram da paisagem. O único que se via de Paula eram as mãos muito brancas, de dedos compridos... bem erguidas... suplicantes...
O carro não parou. Continuou avançando implacavelmente, os pneus protestando ao passarem sobre o cascalho ao lado da estrada. Por que o carro estava aos solavancos?
Por que a paisagem bucólica do pára-brisa subia e descia freneticamente? Será que as rodas do carro estavam passando por cima de alguma coisa? Haveria um obstáculo na estrada? Ah...
A estrada logo voltou a ficar suave, os solavancos cessaram. O carro voltou para a pista de superfície negra, fez a curva rapidamente...
E no momento em que isso aconteceu, a cena do pára-brisa desvaneceu-se. Ou melhor, fundiu-se num rosto no espelho. O rosto de Cheryl Royce, contorcido, numa horrível máscara de ódio.
As mãos subiram para o rosto, as mãos de Cheryl Royce, cobrindo os olhos fixos, desesperadamente tentando apagar a visão. O que acabei de ver?
Depois de algum tempo, as mãos baixaram e Cheryl tornou a olhar para o seu próprio rosto. Os vincos horríveis haviam se desvanecido, mas havia gotas de suor na testa, as mãos estavam tremendo.
Cheryl cambaleou da penteadeira até o telefone e conseguiu discar o número de Alan.
- Não posso sair esta noite - disse ela, a voz trêmula. - Estou com uma terrível dor de cabeça.
E estava mesmo.
Não havia nenhuma notícia no jornal da manhã, mas a edição da tarde contou toda a história.
Paula Marron, de vinte e oito anos, aparentemente fora vítima de um motorista que fugira, após tê-la atropelado. O acidente ocorrera no final da tarde anterior, na Morton's Mill Road, quase em frente à casa dos Marron. A Sra. Marron fora derrubada, o carro passara por cima dela e arrastara o corpo por cerca de dez metros.
Segundo o médico-legista, ela tivera morte instantânea. Não houvera testemunhas.
Os Marron moravam num subúrbio elegante, de casas luxuosas, cada uma construída numa propriedade de cinco ou seis acres. A casa dos Marron ficava a algumas dezenas de metros da estrada. De lá, não se podia ver a estrada. O Sr. Marron, que estava em casa na hora do acidente, havia declarado não ter ouvido qualquer barulho estranho.
Não soubera também explicar por que a esposa estava andando pela estrada àquela hora. A polícia estava interrogando os vizinhos, esperando encontrar alguém que tivesse visto o carro responsável pelo acidente.
Cheryl Royce leu o relato do jornal com crescente horror. Ela realmente vira Paula Marron morrer. Num acesso de ciúme, o marido a atropelara com seu próprio carro.
Ele cometera assassinato. Cheryl o vira fazê-lo. Ela praticamente estivera ao volante, com ele.
É claro que devia procurar imediatamente a polícia.
Foi então que ela estacou bruscamente, bem no meio daquela rua apinhada do centro da cidade, onde comprara o jornal. O que iria dizer à polícia? Aquelas histórias sobre telepatia, transferência de pensamentos, ondas mentais? Será que ela, Cheryl Royce, que estava em seu apartamento na hora do acidente, poderia ser considerada como uma testemunha válida? Ela sentiu que deveria pelo menos tentar.
Na chefatura de polícia, levaram-na finalmente à presença de um sargento-detetive, chamado Evatt, que ouviu a história dela, com uma expressão impassível. Quando Cheryl terminou, ele disse:
- Espero que compreenda, Sita. Royce, que precisamos de mais provas do que apenas a história que acaba de me contar.
Evatt era um homem magro, de aparência cansada, mas bastante polido.
- Eu sei. Mas achei que, ao saber da minha história, poderia começar a procurar provas da culpa de Wint Marron. Um carro geralmente não fica com o pára-lama amassado, o farol quebrado ou algo assim, ao atropelar uma pessoa? Podem dar uma olhada no carro de Wint Marron.
Evatt assentiu.
- Tem razão, posso alertar o pessoal que está investigando o caso - disse ele, sem muita convicção. Não disse que, numa das cenas que imaginou... desculpe, numa dessas ocasiões em que viu a mente do Sr. Marron... havia outro homem com a Sra. Marron? Quem era ele?
- Não era ninguém que eu conhecesse. Para dizer a verdade, não olhei direito para o homem. Durante quase todo o tempo, não desviei os olhos da Sra. Marron.
- Isso ajudaria bastante, Srta. Royce. Se soubéssemos alguma coisa a respeito desse sujeito, poderíamos determinar um possível motivo.
- Compreendo perfeitamente. Mas não creio que o homem fosse alguém que eu conhecesse.
- Seja como for, passarei a sua informação ao pessoal que está investigando o acidente.
Evatt anotou o nome, endereço e telefone de Cheryl. Mas ela notou que ele chamara o caso de "acidente", não de crime ou assassinato.
Ao deixar o minúsculo gabinete do detetive, Cheryl agradeceu-lhe, parando por um instante à porta e dizendo:
- Eu posso estar enganada, é claro...
Ela sentia-se forçada a fazer tal admissão.
- Talvez tenha sido apenas a minha imaginação. Evatt tornou a assentir.
- Essas coisas acontecem.
- Não estou acusando Wint Marron de... Eyatt parecia estar compreendendo.
- Se os rapazes fizerem perguntas a Marron ou derem uma busca, pode ficar tranqüila que não irão mencionar seu nome.
Cheryl saiu, sentindo-se melhor. Fizera o que estava ao seu alcance. Agora, tudo estava nas mãos da polícia. Se Wint Marron cometera um homicídio, era a polícia que tinha de levá-lo à justiça e não ela.
Jantou com Alan naquela noite. O restaurante era sossegado, a música discreta, a iluminação suave. Ela nada contou a Alan. Aparentemente, ele nem mesmo lera o jornal, não sabia que Paula Marron estava morta.
Cheryl passou a noite inteira inquieta, como se estivesse tentando pensar em alguma coisa, lembrar-se de algo, um fato indefinível, que lhe escapava, a todo instante.
Finalmente, contudo, após um longo tempo, a mensagem chegou.
Cheryl disse a eles. As quatro palavras ficaram martelando no cérebro dela, insistentemente. Cheryl disse a eles.
Foi então que ela compreendeu que Wint Marron sabia de tudo. Ou as suspeitas dele haviam sido despertadas por uma nova visita da polícia e mais perguntas ou então ele estava vendo diretamente na men-te dela, como Cheryl vira na dele.
Ela voltou para casa ainda cedo, desjpedindo-se de Alan. Passou o resto da noite remexendo-se na cama, sem conseguir dormir. De manhã, telefonou para o Sargento-Detetive Evatt.
- Sua história interessou bastante ao policial que está encarregado das investigações, Srta. Royce. Ele voltou à casa dos Marron, arrumando um pretexto para ir à garagem. Havia dois carros lá, mas em nenhum dos dois foram encontrados sinais de um atropelamento. Mas o carro que o Sr. Marron normalmente dirige é um jipe.
Possui um pára-choque grande, reforçado. É possível que um pára-choque assim pudesse bater violentamente em alguém, sem que ficasse a menor mossa. Mas uma possibilidade não constitui uma prova.
- Encontraram a pequena valise azul?
- Nem sinal.
- Wint Marron deve tê-la tirado da cena do crime. Talvez haja sangue na valise.
E poderia ser constatado, mesmo que ele a tivesse lavado ou até queimado...
- Srta. Royce, já contei toda a história ao tenente. Ele acha que as provas que nos apresentou não são suficientes para pedirmos um mandado de busca. Não temos, na verdade, nenhuma base concreta para qualquer suspeita. Afinal, não foi propriamente uma testemunha de vista.
- Então quer dizer que não vão fazer nada?
- Não há nada que possamos fazer no momento.
- Acha que eu sou doida?
- Ninguém disse isso, Srfâ. Royce. Mas já investigamos o caso ao máximo possível... pelo menos por enquanto.
Finalmente, Cheryl contou tudo a Alan. E Alan escarneceu. Não, ele não tentaria esgueirar-se até a garagem de Wint Marron para examinar o jipe dele. E não iria entrar furtivamente na casa de Marron, para procurar a valise azul ensangüentada.
Talvez ela tivesse recebido sinais ou vibrações telepáticas de Marron. Mas se Marron assassinara a esposa realmente, o problema era da polícia, não dele ou dela. Cheryl ficou furiosa.
Foi essa uma das razões pelas quais ela deixou a cidade. Outra razão era que estava com medo de Wint Marron.
Não tinha qualquer explicação lógica para seu medo. Já se comunicara com a polícia e Wint sabia disso. Portanto, ele não se atreveria a cometer qualquer violência contra ela. O que ele poderia fazer então? Poderia importuná-la, ameaçá-la.
Cheryl tinha quase certeza de que ele faria exatamente isso. Assim, quisera escapar, ir para longe, deixar o tempo passar. Talvez ela parasse de ver na mente de Wint Marron. Talvez pudesse esquecer.
Pediu uma licença na agência e partiu naquela mesma tarde, de carro. Para nenhum lugar em particular, sem qualquer direção especial. Apenas para fora da cidade.
Para algum lugar diferente.
Terminou, ao pôr-do-sol, no Northway Motel, numa cidadezinha, pouco maior que uma aldeia, chamada Northway. O motel era um prédio comprido, típico, com os quartos lado a lado, um espaço na frente para o carro do hóspede. Um restaurante anexo.
Cheryl comeu um sanduíche. Ao voltar para seu quarto, a noite já caíra e as estrelas brilhavam. Ela verificou o carro, para certificar-se de que estava trancado, entrando em seguida no quarto.
Prevendo que iria precisar, tomou duas pílulas para dormir, tomou um banho quente de chuveiro, bem demorado, recostou-se nos excelentes travesseiros do motel e tentou ler um pouco. Mas era inútil.
As horas se passaram. Cheryl se remexia na cama, inquieta. O livro não lhe interessava. Ela finalmente apagou a luz e ficou olhando para a escuridão.
Não conseguia tirar Wint Marron dos pensamentos. Ele sabia que ela sabia... mas será que ele sabia até que ponto ela sabia? Evidentemente, a mente dela não poderia ser um livro inteiramente aberto para Wint. Será que ele estaria com medo de que ela soubesse mais do que na verdade acontecia? Como ele se livrara da valise azul, por exemplo. Ou a identidade do companheiro de Paula naquele bar.
Já que ela não queria mais partilhar nenhum dos segredos criminosos de Wint Marron, será que poderia enviar-lhe a mensagem de que nada mais tinha a temer dela, que desistiria de bancar a cidadã dotada de espírito público, a denunciar um crime?
Mas será que ele acreditaria nela, será que confiaria nela...?
Na escuridão daquele quarto estranho, Cheryl sentou-se na cama, abruptamente.
Ele não confiava nela! Wint Marron estava lhe dizendo isso, naquele exato momento!
Cheryl quase que entrou em pânico. Pois ela sabia também de mais alguma coisa.
Se foi telepatia ou uma espécie de instinto animal pela proximidade do perigo ou se realmente ouviu algum ruído. Cheryl não teve certeza. Mas de uma coisa sabia: Wint Marron estava ali!
Cheryl saltou da cama. Na parede da frente do quarto, ao lado da porta, havia uma janela grande, coberta por uma cortina. Ela entreabriu-a ligeiramente, apenas uma fresta. Encontrou uma persiana e abaixou uma das ripas.
A princípio, não viu nada lá fora. O caminho estava muito bem iluminado. O carro dela estava parado ali, uma massa grande e informe de sombra.
Ouviu então um barulho, desta vez inconfundível, solas de sapato raspando na calçada, ao lado de seu quarto. Um vulto passou diante da janela, indo parar ao lado do carro.
Um homem. Wint Marron. Não podia ser mais ninguém. Se Cheryl ainda estava agarrada a alguma dúvida desesperada, contudo, tal dúvida se dissipou, quando o homem foi postar-se atrás do carro e a luz incidiu diretamente sobre a cabeça e os ombros dele. Cheryl Royce viu neste momento o rosto magüe, moreno e bonito de Wint Marron.
Ele a seguira. Com a maior facilidade, é claro, porque ela lhe enviara a mensagem. Northway Motel.
Agora ele estava interessado no carro dela, certificando-se de que era o carro certo. E já que o carro estava parado ali, verificando qual era a porta certa, o quarto certo, ele ia fazer alguma coisa com o carro ou tentar entrar no quarto... ou talvez simplesmente esperar que ela saísse.
O pânico afetou a capacidade de julgamento dela. Poderia ligar para a portaria do motel, pedindo-lhes que chamassem a polícia de Northway. Mas a polícia jamais iria acreditar nela. Não haviam acreditado antes, não iriam acreditar agora. Enquanto Wint Marron não fizesse alguma coisa. E quando tal acontecesse, seria tarde demais. Além do mais, os policiais eram inimigos dela. Fora a sua ida à polícia que levara Wint Marron a temê-la, depois a persegui-la. Sua única esperança era convencer Wint de que jamais tornaria a procurar a polícia.
Mas naquele momento, quando Wint estava furioso com ela, tinha que escapar de qualquer maneira. Como? Não planeje. Não planeje, advertiu uma parte do cérebro dela.
Será que não percebe que Wint pode ler sua mente? Se planejar para onde vai, ele estará, à sua espera. Assim, procure deixar a mente em branco... use o instinto... aja às cegas... não fique em pânico...
Cheryl vestiu-se rapidamente, procurando as roupas no escuro. Recusava-se a pensar. Estou me vestindo... não, nem mesmo isso devo pensar, recordou-se ela.
Não devo pensar nem no futuro nem no presente.
Ela estava agora parada no meio do quarto às escuras, inteiramente vestida. Era difícil, quase impossível, manter a mente vazia. O mecanismo simplesmente não é construído para tanto. Mas Cheryl tentou.
O quarto tinha também uma janela nos fundos. Ela teve que abrir a cortina, levantar a veneziana. A janela propriamente dita resistiu por um momento, mas acabou se deslocando. Houve um pequeno rangido no momento em que a janela se abriu, talvez não audível na frente do prédio. Sem a menor hesitação, sem considerar a possibilidade de ser vista, sem sequer concentrar-se no problema, Cheryl passou uma perna pela abertura, depois o tronco, finalmente a outra perna.
Ela estava parada num gramado. Para onde deveria ir agora? Não, ela não devia pensar. Apenas agir, pôr-se em movimento.
Ouviu ruídos de tráfego na estrada. Embora tivesse passado bastante tempo na cama, ainda não era muito tarde. Havia pessoas por ali, não precisava ter medo.
Ela passou pelos fundos do restaurante do motel. Lá dentro, havia uma garçonete e uns poucos fregueses, mas o lugar parecia prestes a fechar. Não havia ali qualquer refúgio. Além do mais, Wint poderia segui-la facilmente.
Ela continuou em frente, procurando até não reparar na paisagem, tentando não refletir sobre as imagens sensoriais que seus olhos estavam recebendo. Algo grande surgiu à frente dela: a traseira de um caminhão. Cheryl contornou-o, pelo lado onde as sombras eram mais densas. Não era um caminhão muito grande. Não era um desses caminhões de reboque.
Um homem estava parado quase na frente do caminhão, fumando um cigarro. Talvez o motorista. Ele ouviu os passos e virou-se, para observá-la se aproximar. Nenhuma luz incidia sobre o rosto dele e só dava para ver a ponta reluzente do cigarro.
Cheryl parou perto dele.
- Esse caminhão é seu?
Aparentemente surpreso, ele ficou em silêncio por um momento, antes de finalmente responder:
- É, sim.
- Vai a algum lugar ou ficará por aqui mesmo?
- Estou de partida - disse o homem, depois de outra breve hesitação. - Vou embora assim que acabar este cigarro.
- Pode me dar uma carona?
A ponta do cigarro brilhou mais intensamente, quando o motorista deu uma tragada demorada.
- Para onde está querendo ir? - perguntou ele,
- Isso não tem a menor importância.
- Estou indo para...
Ele não continuou a frase, ficando a olhar para Cheryl, desconcertado. Mas o rosto dela estava tão imerso nas sombras quanto o dele. Ele largou a ponta de cigarro no chão e não se deu ao trabalho de apagá-la. Era óbvio o que ele estava pensando, como se também estivesse no mesmo comprimento de onda que Cheryl. O homem não podia imaginar o tipo de risco que estava assumindo, mas a coisa o atraía...
- Entre - disse ele finalmente, depois de um longo momento, abrindo a porta do caminhão.
Numca andei antes num caminhão tão grande, pensou Cheryl, ao subir na cabine. No mesmo instante, ela disse à sua mente que ficasse quieta. Não 'pense palavras... fique quieta... vá dormir. Isso mesmo, dormir... hipnotize a si mesma.
O motorista sentou-se ao volante, ligou o motor e deu partida no caminhão.
Cheryl manteve os olhos fechados. Mas embora tentasse desesperadamente não fazê-lo, sentiu que haviam virado à esquerda na estrada. Será que Wint havia notado a partida do caminhão?
Talvez não. Certamente ele não podia ler todos os pensamentos dela. Talvez não soubesse que ela estava no caminhão.
- Não sei se deveria estar fazendo isso... - murmurou o motorista do caminhão. -
Você está envolvida com drogas ou algo assim?
- Não, não tenho nada a ver com drogas.
- E também não é do outro tipo. Sendo assim, deve estar fugindo. De quem? De seu marido?
- Não. Sinto muito, mas não posso explicar.
- Eu não posso estar fazendo algo ilícito.
- Não, não está. Posso garantir-lhe.
Eles seguiram em silêncio por algum tempo. Cheryl tentou manter os olhos fechados, não reparar nas placas da estrada. Percebeu que o motorista olhava em sua direção, volta e meia. Mas o que quer que ele estivesse pensando, ela tinha menos medo dele do que de Wint Marron.
- Há algum carro nos seguindo? -- perguntou ela subitamente.
Cheryl arrependeu-se da pergunta no mesmo instante, pois o motorista ficou alarmado. Ele olhou pelo espelho.
- Não há ninguém lá atrás neste momento. Mas quem você está esperando que nos siga?
- Ninguém.
- Você pode estar fugindo da polícia.
- Não estou.
- Não quero me envolver em nenhuma encrenca.
- Tudo o que precisa fazer é levar-me a algum lugar. Qualquer lugar serve.
- Estou indo somente até Jackson Harbor. Cheryl deixou escapar um grito estridente, pondo as mãos nos ouvidos. Mas já era tarde demais. O nome do destino deles martelava em seu cérebro... Jackson Harbor... ela não podia impedir. E sabia, sabia com certeza absoluta, que o nome estava vibrando pelo éter, indo direto de volta a Northway, indo direto para Wint.
- Mas qual é o problema? - indagou o motorista.
- Deixe-me saltar! - gritou Cheryl. - Apenas me deixar saltar!
- Escute, eu disse que a levaria...
- Deixe-me sair ou pulo do caminhão mesmo em movimento!
Cheryl entreabriu a porta.
- Espere um instante! Deixe-me chegar a algum lugar onde possa parar no acostamento.
O homem tinha pisado no freio e o caminhão estava diminuindo a velocidade. Por isso, Cheryl esperou. Finalmente ele encontrou um lugar apropriado e foi parar no acostamento. Antes mesmo que o caminhão parasse de todo, Cheryl já abrira a porta e estava de pé no estribo.
- Obrigada - gritou ela para o homem, saltando em seguida.
Aterrissou de pé, cambaleou por um momento, mas não chegou a cair. Somente então, quando estava segura, é que olhou ao redor, para ver onde estava. Uma placa era iluminada pelos faróis do caminhão. Entroncamento... K.
Wint saberá exatamente onde estou, pensou ela. E gritou para o motorista. Queria voltar ao caminhão. Mas o motor já estava trovejando e as imensas rodas traseiras cuspindo as pedrinhas do acostamento em sua direção. Antes que Cheryl conseguisse alcançá-lo, o caminhão já voltara para a pista. Um momento depois, tudo o que restava dele era um par de luzes traseiras, que não demoraram muito a sumir também.
Cheryl estava completamente sozinha, a pé e no escuro, sua localização exata indicada para Wint Marron, como o entroncamento da Rodovia K com a estrada principal.
O primeiro instinto de Cheryl foi tentar pegar outra carona, até ela pensar na possibilidade de o primeiro carro a parar ser o de Wint. Ou talvez ele não parasse.
Wint tinha outro método de lidar com caronas do sexo feminino que lhe desagradavam.
Um par de faróis apareceu na estrada, aproximando-se dela. Cheryl escondeu-se rapidamente atrás das moitas à beira da estrada. Ficou lá até que os faróis e o carro passassem.
A estrada principal era perigosa, pois havia muitos carros. Ela saiu de trás dos arbustos e correu para o único lado que restava aberto, a Rodovia K.
No mesmo instante, Wint, evidentemente, soube para onde ela estava indo. Rodovia K. O nome martelava em seu cérebro no mesmo ritmo que os pés a baterem no chão.
Mas ela iria se perder. Era essa a única solução para seu problema. Se ela não soubesse onde estava, Wint também não saberia. Ela encontraria uma estrada menor, de terra, seguiria por ela. Ou simplesmente correria pelos campos ou através do mato.
Mas ela hesitou em embrenhar-se pela escuridão. Tinha apenas uma vaga idéia da geografia da região. Sabia aproximadamente onde ficava Northway. Mas a que distância de Jackson Harbor teriam chegado? Jackson Harbor ficava no lago, é claro. Mas havia outras massas de água antes, conforme ela se recordava do mapa que vira.
Alguns pequenos rios... E não haveria brejos e pântanos? Talvez areias movediças?
Estaria ela fazendo a coisa certa, afastando-se da civilização, embrenhando-se por uma região escassamente povoada, semidesértica? Talvez ela devesse ter continuado no caminhão, procurado a companhia de outras pessoas. Mas agora era tarde demais.
Era uma noite clara, com a lua e as estrelas brilhando intensamente. Ela podia ver o caminho ao longo da estrada. No meio do mato, nos bosques, estaria muito mais escuro. Ela não tinha coragem de sair da estrada. Haveria de encontrar a estradinha de terra, sem qualquer placa.
Mas não encontrou. Ofegante, teve que diminuir a velocidade. E depois parou de todo.
Para onde está indo, Cheryl?
Foi como se a pergunta tivesse sido formulada em voz alta, de tão clara, de tão precisa. Mas ela estava sozinha naquela estrada. Mas sabia exatamente de onde partira a pergunta.
Wint Marron estava parado junto à janela aberta nos fundos do quarto dela, no Northway Motel. Não fora um erro ter deixado aquela janela aberta? Wint estava parado ali e Cheryl estava com ele, olhando pela janela através dos olhos dele.
Ele virou-se e ela o acompanhou. Com a ajuda de uma lanterna, Wint examinou rapidamente o quarto,
iluminando as paredes, focalizando por um momento a cama vazia e desfeita.
Não estamos nos comunicando, Cheryl? Como uma voz falando a Cheryl de dentro do seu próprio cérebro. Você sabe que estou aqui. Houve uma longa pausa. E eu sei onde você está.
Ele estaria mentindo? Cheryl fechou os olhos e cerrou os dentes, num esforço mental desesperado para não pensar na erma estrada em que se encontrava, nas árvores escuras em ambos os lados.
Não tente esconder-se de mim, Cheryl. Ela comprimiu os lábios, para sufocar um ofego. Pediu carona, não é mesmo?
Ele estava tateando, adivinhando. Não sabia tanto quanto queria dar a entender.
Cheryl continuou a tentar manter sua mente vazia.
Você foi à polícia. E eu soube disso, não é mesmo, Cheryl? E também não descobri o Northway Motel?
Ele estava espicaçando-a, tentando levá-la a entrar em pânico. Se conseguisse, ela talvez se traísse e revelasse seu paradeiro.
Você sabe que a culpa foi toda sua, Cheryl. Intrometeu-se num assunto particular. Levei algum tempo para compreender que você estava se intrometendo.
Creio que eu deveria, ter sido mais cuidadoso. Afinal, fui eu quem descobriu que podíamos partilhar os nossos pensamentos. Até mesmo disse a você que a telepatia podia funcionar em ambos os sentidos. Mas é uma pena que as coisas tenham transcorrido desta maneira. Você é uma garota esperta, Cheryl. Eu queria beijá-la naquela noite.
Depois que me livrei de Paula, ia esperar que a poeira assentasse um pouco e então poderia voltar a procurá-la. A culpa foi toda sua, Cheryl. Mesmo depois de Paula, você não tinha que ir à polícia. Não tinha que se virar contra mim. Especialmente porque somos tão, íntimos. Será que não podia, compreender? Será que não podia ter um pouco de compaixão por mim? Nunca sentiu ciúmes? Quando vi Paula com aquele Don Bruno,...
Cheryl deixou escapar um grito repentino, logo sufocado. Don Bruno não era um nome muito comum. Aquele detetive dissera que, se ela pudesse identificar o outro homem do caso, a polícia teria algo em que basear suas investigações.
Agora ela sabia quem era o outro homem - mas não queria saber! Cheryl!
Wint não devia saber que ela ignorava quem era o homem. Mas agora ele certamente sabia que cometera um pequeno deslize fatal, que dera a Cheryl uma trama poderosa.
Por isso, tinha de desarmá-la de qualquer maneira, silenciá-la para sempre.
Cheryl recomeçou a correr pela estrada, a Rodovia K. Embrenhar-se pelos bosques.
Não, não agora. Wint poderia correr pelos bosques mais depressa do que ela. Não, ela tinha que continuar pela estrada, encontrar alguém, encontrar ajuda, encontrar um telefone. E tinha que ser naquela estrada. Voltar para a estrada principal seria correr na direção de Wint. Aquele era o único caminho que restava a ela.
Aquela estrada tinha que levar a algum lugar. E quando ela finalmente encontrasse um telefone, ligaria para o Sargento Evatt e lhe gritaria:
- O nome do homem é Don Bruno! Localizem-no! Obriguem-no a confessar que ia buscar Paula Marron, que ela o esperava com uma valise! Don Bruno pode dizer-lhes o suficiente para que prendam Wint Marron como assassino!
Ela continuou correndo. Se as pedrinha da estrada machucavam seus pés, através das solas finas dos sapatos, não o estava sentindo. Tinha agora um novo ânimo.
Poderia conseguir. Wint ainda estava a muitos quilômetros atrás, entrando no carro dele, examinando o mapa, à procura da Rodovia K.
Cheryl concentrou-se em não pensar, em não permitir que a paisagem ao redor se gravasse em sua mente. Não dê a Wint a menor pista. Não lhe dê qualquer referência. Não o deixe saber se esta estrada passa através de bosques ou de pântanos, se passa junto a um córrego ou perto de um lago. Não veja nenhuma dessas coisas. Procure apenas por uma coisa. Uma luz. Uma luz que indique uma habitação humana.
Quanto tempo se passou? Cheryl não o sabia, em seu estado de suspensão da consciência. Minutos... quilômetros... nada disso tinha qualquer significação.
Até que duas sensações lhe chegaram, exatamente no mesmo instante. Uma delas foi bem recebida, a outra a encheu de medo. Uma à frente, a outra atrás. Uma visão e um ruído.
À frente, ainda distante, ela viu um clarão mínimo, por entre as folhagens. E simultaneamente, atrás, ouviu o ronco distante de um motor de automóvel.
Ela acelerou a corrida, ao ouvir o ruído. Sabia que o carro estava entrando na Rodovia K. À medida que o ruído se aproximava, ela julgou reconhecê-lo. Já ouvira antes, uma vez, na noite em que Paula Marron fora atropelada, por um auto não identificado. Wint estava perseguindo-a no jipe, aquele jipe com o pára-choque dianteiro reforçado, no qual não ficava a menor marca, quando batia num corpo humano.
Mas a luz também estava ficando mais perto. A estrada fez uma curva e a luz deslocou-se para uma nova posição, agora quase em frente, em linha reta. Uma luz amarelada, ficando cada vez maior e maior. A luz num alpendre? Não fazia diferença.
Qualquer luz significava pessoas, segurança.
O motor do jipe estava agora mais alto, penetrando fundo nos ouvidos de Cheryl.
Ela pensou ouvir também o raspar dos pneus na estrada. Mas a luz também estava mais perto, mais brilhante.
Ela via outras coisas agora. Um reflexo da luz, uma barra amarelada e vertical, refulgente. Na água, um córrego ou um braço estreito do lago. A luz estava do outro lado.
Por um momento pavoroso, Cheryl pensou que estava perdida, isolada da ajuda na outra margem. Até que a luz iluminou... ligeiramente, é verdade, um pouco à esquerda do lugar em que a estrada fazia uma nova curva... uma ponte!
Não uma ponte grande. Era de madeira. Velha. Raquítica. Mas mesmo assim uma ponte, levando ao outro lado da água, à luz que havia do outro lado.
Por trás dela, a poucos metros agora, o rugido do motor e o ranger dos pneus, unindo-se num crescendo ensurdecedor.
Os pés de Cheryl tocaram na primeira tábua da ponte. Foi então que os faróis do jipe, dando a volta na última curva da estrada, iluminaram subitamente o mundo inteiro... ela própria... o chão da ponte... a água escura e brilhante, bem à frente do seu pé estendido.
Ela não podia parar. Era tarde demais para isso. O pé saltou na frente dela para o espaço vazio. Não havia mais nada por baixo, até que a superfície escura da água ergueu-se ao encontro dela.
No momento em que ela afundou, os pneus do jipe alcançaram as tábuas da ponte. E o jipe logo encontrou o mesmo vazio à sua frente. Voou por cima da cabeça de Cheryl, escurecendo o céu, no momento mesmo em que ela afundava de todo.
Na água, Cheryl sentiu a pressão das ondas explodindo, no instante em que o monstro de metal mergulhou um pouco além. Ela voltou à tona.
Não havia mais nada ali. O céu estava vazio. O rugido silenciara. Nada, a não ser imensas ondulações na superfície, quase ondas, espalhando-se a partir do lugar em que o jipe caíra.
Wint!
Ela pronunciou o nome dele silenciosamente, dentro do cérebro. Mas não houve resposta, não houve a menor comunicação. A ligação fora cortada. A linha estava morta, na outra extremidade.
Isso mesmo, morta... ou morrendo. Cheryl sentiu que a cabeça de Wint Marron batera em algo duro, como o pára-brisa. Inconsciente, impotente, preso no assento, ele estava agora se afogando.
Ela deu uma ou duas braçadas na direção do centro das ondulações. Gritou em voz alta:
- Wint!
Um torpor a dominou. Uma frieza. Ela tinha certeza absoluta de uma coisa: Wint estava morto.
Assim, ela nadou de volta, na direção da ponte...
Ponte? Ela olhou para a estrutura de madeira, iluminada pelo luar. Não era absolutamente uma ponte. Apenas um píer.
Estremeceu então, mas não porque a água estivesse fria. Ela o matara. Ela matara Wint. Se ele soubesse que era diferente, teria parado o jipe. Mas o cérebro de Cheryl enviara-lhe a mensagem errada. Não um píer. Mas uma ponte.
Alice-Mary Schinirring
O AMULETO DE CHARLEY
Charley estava deprimido, muito deprimido. Não queiram saber o nome de Charley.
Irão compreender mais tarde por que é desaconselhável mencioná-lo. Afinal, seria um terrível constrangimento para o patrão dele.
Charley era e continua a ser um vendedor, um dos melhores que existem atualmente. Mas houve um tempo, pouco mais de um ano atrás, em que a maré de sorte de Charley andava na vazante, em que ele precisava passar a calça por baixo do colchão de seu quarto de pensão, comia chop suey em duvidosos restaurantes "chineses" e ia a cinemas de 25 cents, quando ia, a título de recreação. Charley era um vendedor que ganhava por comissão. E, de acordo com o costume injusto dos fabricantes, as comissões só eram pagas pelos pediddS expedidos. A fim de conseguir com que um pedido fosse expedido, o vendedor precisava primeiro obter o pedido. E Charley... vocês podem compreender, não é?
Por motivos que ficarão patentes mais tarde, não iremos mencionar o artigo que Charley procurava vender. Por um lado, é um produto hoje conhecido nacionalmente.
Assim, vamos dizer tão-somente que era um abridor de garrafas patenteado. Está bem próximo da realidade. Era o que se costuma chamar no mercado de um bom artigo para presente, mas Charley não conseguia convencer os compradores, ou pelo menos não muitos, desse fato incontestável.
No dia em que a minha história começa, Charley acabara de sair de sua quinta visita ao Sr. Nieuwelpost, comprador da Seção de Artigos Domésticos da Loja de Departamentos McCord. O Sr. Nieuwelpost era o que se costumava chamar no mercado de um osso duro de roer.
Para agravar a situação, esse osso em particular encarava Charley como a um verme. E o verme, abalado por uma ordem taxativa de nunca mais aparecer, estava caminhando pela Quinta Avenida, sentindo-se, como eu disse no início, muito deprimido.
Ele caminhava lentamente, olhando para a calçada, as mãos enfiadas nos bolsos, os ombros caídos, muito diferente do jovem ativo, jovial e bem vestido, de passos lépidos e olhar ávido, a que os fabricantes costumam considerar como seu vendedor ideal. Não, Charley mais se parecia, naquele momento, com o vendedor típico que esses fabricantes de artigos domésticos conseguem arrumar.
Dos lábios de Charley saiam imprecações, levando vários dos transeuntes mais tímidos a fitarem-no nervosamente e a se afastarem para um lado, ficando mais próximos do meio-fio do que é saudável, sendo o tráfego da Quinta Avenida o que é.
Charley atravessou a Rua 39. Ao pisar no meio-fio, seu pé esbarrou em algo metálico. Uma moeda?
Abaixando-se como um gavião, Charley pegou o objeto metálico, só para descobrir que, embora parecesse de fato uma moeda, de nada lhe adiantaria ali na América. Estava coberta pelo que pareciam ser caracteres arábicos. Era grande demais para caber numa roleta do metrô. Mesmo assim, Charley meteu-a no bolso. Há sempre cabines telefônicas.
Ele retomou a sua caminhada mal-humorada, murmurando e praguejando ainda mais consternado do que antes. Na altura da Rua 42, suas imprecações se consubstanciaram numa frase coerente, se bem que nada agradável. Charley disse com paixão:
- Velho desgraçado! Ele bem que podia dar um mergulho no lago!
Falando em lago, Charley pensou no Central Park. Era uma tarde maravilhosa, o ar estava impregnado da sensação inebriante de setembro em Nova York. Onde mais um vendedor desapontado poderia gastar seu tempo, de melhor forma? Afinal, o Central Park é gratuito.
Assim, Charley seguiu até a Rua 59, entrou no Central Park e seguiu até o lago, onde ficou contemplando as crianças dando de comer aos patos. Era um cenário tranqüilo e assim permaneceu por cerca de meia hora. Só depois é que Charley percebeu gritos ásperos e distantes, aproximando-se cada vez mais, a cada minuto. Pés corriam, muitos pés, na verdade, em direção àquele cenário antes tranqüilo. Subitamente, para horror, incredulidade e pavor de Charley, apareceu um vulto solitário, seguido por uma multidão heterogênea de policiais, crianças e vendedores de balões. O vulto solitário estava em excelente forma e ofegava apenas ligeiramente, levando-se em consideração a distância que percorrera. Charley sabia perfeitamente qual era a distância, pois o atleta determinado era nada mais nada menos que o Sr. Nieuwelpost, saltando do banco numa tentativa irracional de esconder-se (o primeiro pensamento de Charley, um tanto obscuro, foi de que o Sr. Nieuwelpost, irritara-se a tal ponto com as repetidas visitas dele que resolvera vir até ali, para aniquilá-lo de uma vez por todas), Charley conseguiu apenas cambalear até quase ficar no caminho do comprador. Nieuwelpost, contudo, ignorou-o completamente, limitando-se a empurrá-lo para o lado, com um braço nada enfraquecido pela vida sedentária que levava.
E continuou o seu caminho, que não terminava muito longe dali.
Enquanto Charley se levantava, o Sr. Nieuwelpost deu um salto em plena corrida, esticando os braços, a cabeça abaixada, e mergulhou no lago do Central Park.
Charley não ficou por perto para fazer perguntas. Mas, para o constrangimento do Sr. Nieuwelpost, vários repórteres ficaram. (A única declaração que o Sr. Nieuwelpost fez, não aos repórteres, mas a um psiquiatra consultado às pressas, foi a de que sentira subitamente uma compulsão inexplicável, no momento em que entrevistava um vendedor de produtos para cozinha, de correr até o Central Park e mergulhar no lago. O psiquiatra recomendou uma mudança total de paisagem e o Sr. Nieuwelpost, mais tarde, voltou à McCord's como um homem mais atencioso.) Charley se afastou do lago a toda velocidade, rindo como um louco. Na verdade, ele sentia-se tão exultante que decidiu fazer mais uma visita. "Se não conseguir "vender nada quando estou me sentindo tão bem", disse 'Charley a si mesmo, ainda às gargalhadas, "então é melhor desistir de uma vez por todas. Vou visitar... deixe-me ver... já sei! Hanneman, da R.D. Swift & Co. Aposto que conseguirei vender-lhe uma grosa, talvez duas!"
A R.D. Swift era a maior loja da cidade e Hanneman era - e ainda é - o "Mr. Big" entre os compradores, encontrado apenas com hora marcada e mesmo assim não com muita freqüência nem por muito tempo. Charley, é claro, não tinha hora marcada.
Ninguém jamais marcava uma hora para receber Charley. Mas, naquele momento, ele não estava absolutamente preocupado com isso.
Ele entrou na ante-sala, passou pelas cadeiras ocupadas pelo bando habitual de pacientes vendedores e seguiu direto para a porta do gabinete de Hanneman. A secretária pulou à frente dele, com um grito estrangulado.
- Não pode entrar aí! - gritou ela, indignada, no momento em que Charley girava a maçaneta. - O Sr. Hanneman não irá recebê-lo sem hora marcada!
- Ele vai me ver, sim! - disse Charley, confiante. Neste momento, a porta se abriu e "Mr. Big" em pessoa apareceu, olhando para Charley.
- Pode entrar - disse "Mr. Big", cordialmente. Um silêncio sepulcral, como o que se abateu sobre Pompéia, depois da erupção do Vesúvio, baixou sobre a sala de espera enquanto Charley entrava tranqüilamente no santuário interior, fechando a porta atrás de si.
Charley, que ainda estava inebriado pela alegria que experimentara pouco antes, foi logo dizendo:
- Sr. Hanneman, há algum tempo que venho pensando que deveria ter em estoque o nosso abridor de latas Dândi. Estou aqui para pegar o seu pedido inicial.
O Sr. Hanneman parecia estar ali também, mas a resposta dele não fez o menor sentido, porque, sem qualquer outro estímulo além dessa débil conversa de vendedor, anêmica e nada convincente, ele disse imediatamente:
- Mas claro que sim! Eu estava pensando numa grosa. Ou duas?
- Era exatamente o que eu estava pensando!
Só então é que Charley começou a compreender o que estava acontecendo, vendo todas as peças se ajustarem em seu lugar, faltando apenas a mais importante de todas: por quê? (Vocês sabem e eu sei também que era por causa do Amuleto que ele pegara na rua. Mas Charley ainda não sabia.) Cautelosamente, experimentando um pouco, ele disse, enquanto seu excitamento ia aumentando incontrolavelmente:
- O que me diz de três grosas? Hanneman respondeu, categoricamente:
- Mas claro que não!
- Devia ficar com três grosas - disse Charley mais à guisa de justificativa do que por qualquer outra razão.
- Mas claro que devo - disse Hanneman prontamente. - Preencha um pedido de três grosas.
Foi assim que Charley começou a descobrir como o Amuleto funcionava. Uma declaração direta, sim; um desejo sob forma de interrogação, não. Não adiantava, por exemplo, dizer: "Será que fulano-de-tal não poderia fazer isso-assim-assim?" Tinha que ser algo positivo, como no caso de Nieuwelpost: "Ele bem que podia dar um pulo no lago."
Charley saiu do gabinete de Hanneman com um pedido assinado de três grosas do Abridor de Latas Dândi, despachando-o imediatamente para a matriz. O pedido foi recebido por um espantado gerente de vendas, que já há algum tempo deixara de esperar qualquer coisa vinda de Charley, considerando-o provavelmente um mongolóide e no mínimo um cretino. O gerente tratou de expedir a encomenda.
Em nenhum momento Hanneman tentou cancelar o pedido, apesar da estranheza do gerente de merclwnãising. Ao contrário, Hanneman defendeu bravamente a sua decisão, insistindo:
- Tenho um pressentimento com relação a esses abridores de latas. Sinto que devemos tê-los. Guarde as minhas palavras: encontramos algo realmente grande!
O gerente de merchandising, aturdido, murmurou que de fato tinham alguma coisa grande: tinham três grosas de um produto que lhe parecia invendável, como o próximo levantamento do estoque iria confirmar. Mas para surpresa dele, surpresa aliás muito feliz, os incríveis abridores venderam muito bem, a tal ponto que Hanneman teve que fazer uma encomenda adicional de cinco grosas. Mas isso não se relaciona ainda com a nossa história.
Naquela noite, Charley repassou os acontecimentos do dia, sentindo-se invadido por um crescente excitamento. Deliciado, ele recordou o vulto executivo do Sr. Nieuwelpost, com uma determinação inabalável, a dar um mergulho no lago do Central Park. Ora, pensou Charley, alegremente, tenho esse verme na palma da minha mão! Amanhã, vou procurá-lo e ajustar contas, obrigando-o a comprar dês, grosas do abridor de latas, para começo de conversa. Num acesso de prudência, Charley pensou em seguida:
Não devo forçar muito minha sorte.
Na manhã seguinte, vestindo o seu melhor terno (o que ele estava guardando para o caso de algum comprador aceitar o seu convite para almoçar, coisa que jamais acontecera, o que até era bom, tendo em vista o atual estado de suas finanças), Charley encaminhou-se diretamente para a porta do gabinete do Sr. Nieuwelpost. Como acontecera no caso de Hanneman, Charley tinha passado pelos outros vendedores e a secretária de Nieuwelpost interceptou-o.
- Não pode entrar aí!
E, como antes, Charley disse confiantemente:
- Ele vai me receber agora!
E também, como antes, a porta se abriu e apareceu o Sr. Nieuwelpost em pessoa.
- Saia daqui! - convidou o Sr. Nieuwelpost. Charley, aturdido, foi recuando, enquanto o comprador avançava, numa atitude ameaçadora.
- Eu tentei mantê-lo longe, - disse a recepcionista, quase em lágrimas -, mas ele não quis ir embora!
- Pois ele vai e agora mesmo! - rosnou o Sr. Nieuwelpost. - Ele vai sair daqui tão depressa que parecerá o cometa de Halley. E se por acaso voltar antes do cometa de Halley aparecer novamente, então ele vai se ver comigo!
Charley foi embora.
Naquela noite, ao tirar as suas escassas reservas monetárias do bolso, a atenção de Charley foi atraída para o Amuleto. Ficara o dia inteiro em cima da velha e escalavrada cômoda de carvalho. O dia inteiro! Algo como uma campainha começou a tocar no cérebro de Charley.
Ele pegou o Amuleto, pensou por um momento e depois disse:
- Há uma nota de dez dólares em cima da cômoda. Olhou para a cômoda. Não havia nota alguma.
- Para o diabo com isso! - disse Charley, jogando a moeda na cesta de papéis.
Outro pensamento ocorreu-lhe neste exato momento e ele foi buscar o Amuleto dentro da cesta de papéis. E lentamente, as palavras bem claras, disse então:
- O Sr. Fineman virá até aqui... dentro de trinta segundos, para me dar uma nota de dez dólares.
O Sr. Fineman era o senhorio de Charley, um cavalheiro de idade avançada, a quem os anos haviam abrandado como a uma pistola velha.
Charley ficou esperando durante trinta segundos, o coração batendo forte. Ou pelo menos ele pensou que fosse o seu coração. Mas quando a porta se abriu repentinamente, ele compreendeu que o barulho fora dos pés do Sr. Fineman a subir a escada. O pobre homem correra como um louco desde o porão, incitado pelo prazo limite de trinta segundos. Ao chegar ao quarto de Charley (no terceiro andar, de fundos, com uma visão sem qualquer obstáculo do depósito de lixo da cidade), o Sr. Fineman estava tão sem fôlego que mal conseguiu balbuciar:
- Mister... aqui estão os dez dólares que estou lhe devendo.
- Obrigado, Sr. Fineman - disse Charley, com uma dignidade serena, exultante ao mesmo tempo pelos dez dólares e pela confirmação de sua teoria. - Boa noite.
E desça a escada bem devagar.
Charley compreendeu, naquele instante, que o Amuleto funcionava apenas 1) com uma declaração positiva;
2) com pessoas e suas ações; e 3) não sobre objetos inanimados, por mais que ele tentasse. Sabendo disso, era uma barbada para Charley subir na vida.
E foi o que ele fez. Mas isso não é justificativa suficiente para o que ele fez com o Sr. Watt, presidente da Companhia de Abridores de Latas Dândi (e lembrem-se de que esse não é seu verdadeiro nome!)
Charley logo se tornou o principal vendedor da Dândi. No dia seguinte à sua gloriosa descoberta, voltou à McCord's. Mas será que ficou esperando no Muro das Lamentações, junto com os outros vendedores? Já podem imaginar que não. Outra vez encaminhou-se confiantemente para a porta do gabinete do Sr. Nieuwelpost. E novamente ele disse, desta vez com convicção absoluta:
- Nieuwelpost vai me receber! (Notem que já não era mais Sr. Nieuwelpost.) E desta vez a porta se abriu e o Sr. Nieuwelpost cumprimentou Charley quase que com lágrimas de afeição. Charley passou por ele, fechou a porta e disse:
- Nieuwelpost, você está precisando de quinze grosas dos nossos Abridores de Latas Dândi.
E Nieuwelpost disse... mas vocês já devem estar imaginando o que Nieuwelpost disse.
E isso foi apenas o princípio. Finalmente - e pensem que isso se deveu exclusivamente a Charley, embora os abridores de latas evidentemente fossem um bom produto, caso contrário não seriam adquiridos pelo consumidor final -, finalmente, repito, o Sr. Watt decidiu que Charley estava ganhando dinheiro demais com um artigo que se tornara, àquela altura, um produto "em grande demanda", como se costuma dizer no mercado. Assim, o Sr. Watt tomou uma decisão que iria provar ser um tremendo equívoco. Fez com que as vendas à McCord's, à R.W. Swift e a meia dúzia de outras grandes organizações passassem a ser vendas diretas.
Deixem-me explicar-lhes: nas vendas assim consideradas, não há qualquer comissão para o vendedor. A "casa", isto é, a companhia vende o produto direto e fica com os dez por cento da comissão.
Quando Charley recebeu a carta que lhe comunicava a notícia, ficou furioso. Saiu para embriagar-se. E por que não? Não, não posso culpar Charley por isso. Mas eu o culpo por...
Ele não estava sozinho. Sempre gregário, levou um comprador consigo. Na verdade, foi "Mr. Big" em pessoa. (O que demonstra como Charley havia progredido.) Charley estava bêbado, é verdade, mas não tão bêbado que não soubesse o que estava dizendo. Portanto, não há a menor desculpa para ele.
Em seu oitavo bourbon, (e para que o relato seja completo, devo informar que "Mr. Big" também estava no oitavo), Charley teve uma explosão de raiva e disse veementemente:
- Aquele Watt! Mas que pavão metido a besta! Quer saber de uma coisa?
Charley inclinou-se na direção de Hanneman, sacudindo o dedo furiosamente.
- Sabe o que Watt pode fazer com seu Abridor de Latas Dândi? Pode enfiá-lo no...
Não vou continuar. Não há qualquer desculpa para o que Charley fez. Isso aconteceu na semana passada. Hoje, peguei um jornal e vi a seguinte notícia: NOTAS PESSOAIS NO MERCADO DE ARTIGOS DOMÉSTICOS
O Sr. W. Watt, presidente da Abridores de Latas Dândi, está se reawperando de recente doença, que exigiu a sua internação no Hospital Samaritano. A natureza da operação não foi revelada.
Robert Colby
ASSASSINATO DE PORTA EM PORTA
Eram quase onze horas da manhã de segunda-feira. Judy cabara de voltar do supermercado para o apartamento na Cypress Way, onde morava com o marido. Ela se casara com Tom Ralston apenas sete meses antes, assim que ele tivera baixa do Corpo de Sinalização do Exército, depois de prestar serviço na Alemanha.
Tom a persuadira a deixar o emprego que ela ocupava, como hostess num restaurante do centro da cidade. Mas isso fora um erro. Judy sentia-se agora muito sozinha e inquieta, sem ter nada o que fazer, a não ser zanzar pela casa, lendo e assistindo a televisão, até Tom voltar, na hora do jantar.
Judy, com vinte e três anos, tinha lindos cabelos ruivos e um rosto atraente, que não chegava a ser estragado pelo nariz irregular e pelos dentes ligeiramente salientes.
Quando se casara com Tom, seu corpo era sedutoramente bem proporcionado. Mas agora, com o tédio da ociosidade, ela começara a engordar e já havia a sugestão de abundância em excesso.
Judy separou as compras da semana que fizera no supermercado, guardando as carnes e outros artigos perecíveis na geladeira, pondo os demais produtos nas prateleiras habituais. Estava ajustando um rolo de toalhas de papel no suporte da parede quando a campainha da porta tocou.
Espiando pelo olho-mágico da porta da frente, Judy viu que a visitante era uma mulher ainda jovem, elegantemente vestida, com um vestido vermelho de jérsei.
Tinha uma pasta debaixo do braço, segurando-a com a mão enluvada. As feições eram extraordinariamente bonitas e ela parecia alta e orgulhosa, com um ar de autoridade.
Judy abriu a porta.
- Bom dia, querida - disse a mulher, com um sorriso encantador, embora não dissesse coisa alguma dela. - Meu nome é Sheila Newberry e estou lhe trazendo um magnífico presente da Global Electric, a fábrica que produz os melhores rádios portáteis do mundo.
A voz era cheia de confiança. A mulher fez uma pausa, os lábios rosados entreabrindo-se, expectantes, enquanto os olhos grandes, que não piscavam, fixavam-se em Judy.
- Os aparelhos da Global Electric são realmente muito bons - disse Judy. - Mas...
- Não estou vendendo nada, querida. Estou trazendo o novo rádio Espacial.
Tenho certeza de que seu marido ficará interessado.
- É possível. Mas ele está agora trabalhando. Além disso, não há sentido em desperdiçar seu tempo, pois no momento não dispomos de dinheiro para comprar nenhum artigo de luxo.
- Mas que estupidez a minha, querida! Será que não deixei bem claro? Não há nada para comprar, não terá que gastar um tostão. Queremos lhe dar de presente um dos nossos pequenos rádios. É uma idéia estritamente promocional. Distribuímos esses novos rádios portáteis a pessoas especiais, aqui e ali, pedindo em troca apenas que mostrem o Espacial a seus amigos, dizendo-lhes onde podem comprar um igual.
- Ora, isso é muito diferente! - disse Judy, deixando escapar um pequeno suspiro de alívio. - Mas será que sou tão especial assim? Por que escolheram logo a mim?
Sheila Newberry soltou uma risadinha deliciada. Num gesto zombeteiro de vergonha, ela cobriu o rosto com a mão enluvada, graciosamente.
- Nesta você me pegou, querida! E direitinho! A verdade é que escolhemos as pessoas mais ou menos ao acaso. Mas assim que você tiver um Espacial, torna-se uma pessoa muito especial, não é mesmo?
- Acho que sim - respondeu Judy, rindo afavelmente. - Posso ver o rádio?
- Deus do céu! Eu fiquei mesmo parada aqui esse tempo todo, sem deixar que você visse a nossa pequena maravilha? Pois pode vê-lo, usá-lo, ficar com ele! É assim que nós agimos, querida!
Sheila abriu rapidamente a pasta e, metendo a mão lá dentro, tirou o rádio, levantando-o com um pequeno floreio.
O rádio portátil era preto, brilhante, com frisos de metal cromado. O ãiál tinha números verdes e dourados. Ao lado, havia um pequeno relógio de rubis.
- Mas que lindo! - exclamou Judy.
- É exatamente essa a palavra, querida. Um rádio lindo e perfeito. Tem ondas médias e freqüência modulada, além de um despertador para despertá-la suavemente, com música, e uma antena embutida. E ainda por cima é tão compacto que pode ser carregado numa dessas bolsas grandes que se usa atualmente. E o som é espetacular.
Não gostaria de ouvi-lo?
- Mas claro que gostaria!
- Ótimo, querida. Se me mostrar onde tem uma tomada...
- Não toca também na base de pilhas?
- Toca, querida, mas eles não fornecem as pilhas quando é um presente. Sinto muito.
Sheila fez uma careta cômica. Judy deu um passo para o lado e Sheila entrou no apartamento, olhando ao redor.
- Mas que lindo apartamento! São só vocês dois,, querida? Não têm filhos?
- É que estamos casados há pouco tempo.
- Ahn, entendo...
- Há uma tomada ao lado daquela mesa.
Sheila ligou o rádio na tomada, colocou-o em cima da mesa e girou o botão de controle. Passando de uma estação para outra, ela se virava continuamente para olhar Judy. Sheila tinha no rosto um sorriso estranho. Afora isso, a expressão dela parecia agora inteiramente alheia a todo o negócio, como se sua atenção tivesse se desviado abruptamente para outro centro de interesse.
A mulher tinha olhos estranhos, decidiu Judy. Eram olhos que sugeriam algum propósito dissimulado, algo maior que aquele momento.
Embora Judy tivesse permanecido de pé, Sheila afundou numa poltrona, mesmo sem ser convidada, ajeitando-se confortavelmente. Por trás dela, o rádio portátil enchia a sala com a antimúsica do roc7c.
Sheila cruzou as pernas compridas, enfiadas na meiacalça azul-marinho muito justa. No pescoço, usava uma echarpe azul e branca, que se derramava pelo vale dos seios amplos. Os cabelos pretos caíam por seus ombros, ressaltando a pele pálida e imaculada das feições delicadas.
- Qual é o seu nome, querida? - perguntou ela, construindo uma pirâmide com os dedos enluvados, num tom agora mais pessoal, realmente impertinente.
Judy sentou-se na beira de uma cadeira em frente, um tanto insegura. Queria livrar-se da mulher e ficar com o rádio. Tinha que fazê-lo de maneira delicada, se bem que rapidamente. Porque havia algo de hostil em Sheila Newberry, algo que representava uma ameaça furtiva, deixando-a nervosa, intimidada.
- Meu nome é Judy Ralston.
Ela sorriu debilmente, a voz quase inaudível por baixo da música antimusical que saía do rádio. Sheila sacudiu a cabeça.
- Judy, hem? É um nome ridículo para uma mulher. Não diz nada, não leva a lugar nenhum.
- É mesmo? - disse Judy, procurando esconder sua irritação. - Infelizmente, não temos a capacidade de batizar a nós mesmos, quando nascemos.
Sheila contraiu os lábios.
- E desde o dia em que nasceu nunca fez nada insensato e pecaminoso, algo realmente excitante, Judy? Ah, estou vendo que não! É uma boa menina, que sempre fez o que sua mamãe e seu papai lhe mandavam. E acreditou em todas as mentiras idiotas, de classe média, sobre a vida e sobre como deveria vivê-la de maneira pura e decente, além de monótona, é claro, na insipidez e conformação da classe média. Depois, casou-se com algum pateta ignorante, com a mesma falta de imaginação que você. E certamente irá morrer sem ter sabido o que é realmente a vida. Pobre Judy!
Judy também contraiu os lábios.
- Basta! Não estou interessada na sua opinião pessoal a meu...
Fazendo um gesto autoritário para que ela se calasse, Sheila continuou:
- Por outro lado, talvez eu esteja sendo precipitada. Nunca se deve fazer julgamentos apressados sobre as pessoas, como minha mãe costumava dizer. E minha mãe sempre estava certa.
Sheila fez nova pausa, sacudindo a cabeça para reforçar a declaração categórica.
- É isso mesmo. É bem possível que, por trás da vida insípida de dona-de-casa haja uma outra Judy escondida, a Judy má, com segredos fascinantes. Sou uma ouvinte compulsiva, querida. Adoro desmascarar o pecado e a depravação. Vamos, querida, conte a Sheila todos os seus tenebrosos segredos. Deixe Sheila ver a menina muito malvada que está procurando se libertar da pequena Judy de olhos tímidos.
Judy levantou-se, alisando a saia com as mãos trêmulas.
- Quero que vá embora! Agora! Neste instante! Não sei o que está querendo, mas tenho certeza de que é louca. No mínimo, deveria manter-se longe das ruas e fora das casas das pessoas normais. Vá embora e não volte mais ou terá que lidar com alguém mais além de mim. E leve o seu rádio! Não o quero mais!
Sheila levantou-se também.
- Fico contente por saber que não quer o rádio, querida. Eu não tinha mesmo intenção de deixá-lo. Afinal, custou-me trinta e dois dólares e meio, mais o imposto.
Ela tornou a meter a mão dentro da pasta, que havia deixado sobre os joelhos.
- Mas, para dizer a verdade, tenho um outro presentinho para você, querida.
Ela ergueu uma faca de caça, o cabo lavrado, a lâmina larga e brilhante.
- E este é um presente caro, querida. Feito do melhor aço que existe. Não acha lindo? E é tão prático!
Sheila fez uma pausa, sorrindo.
- E desta vez, meu anjo, não vou desapontá-la. Deixarei que você tenha esta maravilhosa faca. Todinha! E para sempre!
O sargento-detetive do Departamento de Homicídios, ao lado de seu companheiro, ficou olhando para o corredor, enquanto o corpo de Judy Ralston, enrolado num lençol, era levado para o elevador. Repórteres e fotógrafos corriam por toda parte.
Alguns conseguiram se espremer dentro do elevador e desceram juntos com o corpo.
Outros desceram correndo pela escada.
O sargento sacudiu a cabeça, tristemente.
- Já tinha visto alguma coisa assim antes, Nate?
- Não. Uma vez vi uma mulher que tinha sido atropelada por um trem de carga. Mas acho que ela ficou em melhor estado.
O sargento deu uma tragada no cigarro.
- Faria um pouco mais de sentido se tivesse havido estupro. Mas isso não aconteceu. O Doe diz que a sua primeira impressão é de que o maluco apenas retalhou a pobre moça. Foi um crime de extrema crueldade. Provavelmente por vingança. Gostaria de chegar em casa e encontrar o corpo de sua mulher todo ensangüentado e retalhado em cima da cama?
- Não sei se eu conseguiria agüentar, Ben, se fosse a minha esposa.
- Tom Ralston não agüentou. Está sentado num canto, olhando para o vazio. Um verdadeiro vegetal.
- Judy Ralston, uma cordeirinha para o matadouro. O sargento apertou os lábios.
- Talvez ela não fosse tão cordeirinha assim.
- Acha que ela tinha algum segredo? Talvez um amante?
O sargento deu de ombros.
- Talvez. Afinal, o cara não arrombou a porta. E ela deixaria um estranho entrar no apartamento, num momento em que estava sozinha? Vamos verificar essa possibilidade.
Uma coisa, porém, é certa: o cara é um psicótico. Um ser humano normal não é capaz da mutilação que ele fez. Isso mesmo, só pode ser um cara cuja cabeça não funciona direito. E muito esperto, apesar disso. Não deixou nada para trás. Nenhuma arma, nenhuma pista.
- Ainda temos que verificar todas as impressões digitais que encontramos.
- Só com muita sorte encontraremos alguma coisa, Nate. Se esse cara é coerente, nenhuma das impressões é dele.
- Então só temos uma esperança, Ben: aquele carrinho esporte vermelho que o gerente viu estacionado lá na frente. Não pertencia a nenhum dos inquilinos e não era de nenhuma das pessoas conhecidas que naquele momento estavam visitando os inquilinos. O gerente diz que sabe que é um Triumph porque a irmã tem um igualzinho, só que verde.
O sargento escarneceu.
- O único problema é que ele não reparou no numero da placa. E quantos automóveis como esse existem numa cidade deste tamanho? Pode ser uma pista quase impossível.
Mesmo assim, vamos tentar investigar todos os proprietários de Triumphs vermelhos. E se tudo correr bem, talvez cheguemos ao final da lista antes que nos mandem para o pasto, aposentados.
Passava um pouco das onze horas, na manhã da sexta-feira seguinte: Sheila Newberry, alcunhada na manchete de um jornal como "O Assassino Louco" e corretamente conhecida em alguns círculos como Bobby De Marco, bocejou, espreguiçou-se e saiu das cobertas aconchegantes de sua cama de casal.
Bobby vestiu um elegante roupão de seda por cima do pijama. O roupão tinha delicados desenhos orientais, por cima de um vermelho chinês muito forte. O vermelho era a sua cor predileta. O vermelho era vibrante, vivo, sugeria a própria essência da qual era feita a vida.
A única possessão vermelha de que precisava se desfazer era o pequeno Triumph esporte. A mente de Bobby sabia que Sheila era um gênio, mas um gênio não deixa de ser mortal e pode dar-se ao luxo de cometer uma tolice de vez em quando. E aquele carrinho vermelho era de fato uma tolice.
Algum repórter idiota apontara o dedo imundo para o Triumph vermelho. Era uma insinuação sugestiva, bem na primeira página. Assim, ele teria que se desfazer daquela doçura sobre rodas, substituindo por algum outro carro, mais tarde. Por enquanto, que fosse de ônibus, que fosse de trem... que fosse até a pé! Mas chegue lá, boneca, simplesmente chegue lá! Não é isso mesmo o que tem de fazer, Sheila?
Bobby enfiou os pés muito bem cuidados em chinelas felpudas. Foi até uma parede envidraçada e puxou o cordão da cortina. O sol inclinado penetrou no quarto, iluminando o rosto bonito de Bobby. Franzindo o olhos, ele contemplou o parque que margeava aquela parte exclusiva de Glenview. O parque se estendia para o norte ao longo de vários quarteirões, as folhagens verdes por toda parte, semeado de árvores centenárias e imensas, com moitas intermináveis, salpicadas de flores de todas as cores.
E tinha ainda quadras de tênis, playgrownãs e um anfiteatro. Um lugar maravilhoso para se morar, pensou Bobby.
Um endereço divino! Não é mesmo, Sheila?
Estimulado pelo sol, Bobby estendeu-se no chão e fez uma série de flexões, seguidas por diversos exercícios de curvar-se e esticar-se. Embora jamais ficasse cansado com essa rotina diária, Bobby normalmente parava depois de alguns minutos. Era fundamental manter aquele seu corpo maravilhoso sempre esguio e ágil. Mas flexões e exercícios demais poderiam proporcionar-lhe Um bíceps volumoso. E então, Sheila, você quer ficar parecido com um halterofilista?
No banheiro, Bobby raspou a penugem loura do rosto com uma atenção meticulosa, inspecionando a pele aveludada minuciosamente, com um espelho de aumento.
Em seguida, escovou vigorosamente os dentes pequenos e uniformes, pérolas preciosas. Tomou um banho de chuveiro, passou água-de-colônia pelo corpo, um pouco de perfume.
Depois, ainda de roupão, mas protegendo-o com um avental estampado, de cores berrantes, franzido embaixo, ele preparou um desjejum espartano. Era uma refeição em que não havia nenhum desses alimentos ricos em calorias, os quais poderiam fazer com que Sheila se tornasse gorducha ou balofa.
Depois, Bobby foi sentar-se numa poltrona da sala de estar, onde ficou completamente imóvel. A cabeça ligeiramente abaixada, os olhos fechados, seu olhar voltou-se para dentro, fixando-se em si mesmo. Imagens vividas surgiram em seus pensamentos, ao mesmo tempo violentas e sensuais, projetadas sobre a parede escura de sua mente. Eram como pequenos atos dramáticos, completos, inclusive sonoros. Especialmente o som de vozes. E um grito distante.
E com as imagens veio a ânsia insuportável. Ele sentiu que tinha de entrar em ação novamente. A ânsia, contida por anos demais, tornara-se agora incontrolável. E para satisfazer essa ânsia, outra sedutora tinha que ser sacrificada, precisava ser punida.
Bobby abriu o armário especial de Sheila e verificou a fileira de vestidos muito caros, com um olhar experiente. Não, aquele vestido não. Para aquela ocasião, o ideal seria aquele costume beje, de tricô. Isso mesmo. E com o casaquinho verde e as luvas combinando. Simplesmente maravilhoso! Perfeito!
Contemplando-se ao espelho, Bobby completou a aparência de Sheila com uma peruca preta sobre os seus cabelos louros, selecionando depois diversos artigos de uma ampla variedade dos melhores cosméticos. Poucas mulheres seriam capazes de igualá-lo na arte da maquiagem. Se se excedesse, ficaria com uma aparência ridícula, uma caricatura de Sheila. Se a maquilagem fosse de menos, a imagem de Bobby poderia ser decoberta por trás da máscara de Sheila.
Quando tudo chegou ao fim, havia apenas Sheila, uma única Sheila, de corpo e alma. Mirando-se ao espelho de corpo inteiro, Sheila sorriu e pestanejou, achando-se extremamente feminina, deliciosa.
Sheila pegou numa prateleira do armário a pasta e o precioso rádio portátil.
Depois, de uma gaveta trancada da escrivaninha, saiu a linda faca de caça, a lâmina implacável muito limpa, parecendo indiferente, quase um instrumento cirúrgico.
Com aqueles instrumentos de sedução e dissecação dentro da pasta, Sheila vestiu o casaco e as luvas e partiu à procura de uma segunda vítima.
Susan Brundy, uma loura mignon, de minissaia e botas que subiam até os joelhos, saiu do shopping center e subiu rapidamente o Grand Boulevard, virando na Logan Street. Caminhando sob o sol forte e intenso do início de tarde, Susan jamais poderia imaginar que alguém a estivesse seguindo - e muito menos que a pessoa que a seguia era uma mulher.
Assim, ao entrar na sua metade de uma casa de dois andares, na Logan, ela não percebeu Sheila a observá-la secretamente, da esquina.
Susan tinha acabado de acomodar-se numa poltrona e estava lendo o jornal que comprara quando a campainha da porta tocou. Ela largou o jornal sobre uma mesinha e foi atender.
Susan achou que a visitante devia ter quase trinta anos. Um costume beje de tricô envolvia o corpo atraente. Sobre o vestido, a mulher vestia um casaco verde, com luvas da mesma cor. Os cabelos pretos compridos formavam um contraste marcante com a pele clara do rosto bonito. As pestanas eram compridas, os olhos deslumbrantes, a boca rosada, parecendo ligeiramente zombeteira.
Susan viu a pasta de couro e no mesmo instante preparou-se para uma conversa de vendedora.
- Boa tarde, minha cara - disse a mulher, com um sorriso de anúncio. - Meu nome é Sheila Newberry e trabalho para a Global Electric, fabricante do rádio portátil Espacial, o mais moderno e o melhor do mundo. Oh, estou reparando que não conto mais com a sua, atenção! Mas não tire conclusões precipitadas, minha cara, pois não estou vendendo nada. Estou dando vários desses maravilhosos rádios portáteis, como parte da nossa campanha para promover esse novo produto na comunidade.
Sheila Newberry meteu a mão dentro da pasta e tirou o rádio, erguendo-o dramaticamente.
- Aqui está! O que acha? Não é espetacular? Susan assentiu.
- É, sim. Mas tenho certeza de que há algum truque. Não pode deixar de haver.
- Não há nenhum truque, querida. Vou tocar o rádio para você e mostrar-lhe todos os maravilhosos dispositivos embutidos, elementos extras que não encontrará em nenhum outro rádio portátil tão pequeno. E se ficar completamente atraída pelas maravilhas deste fantástico rádio portátil, estaria disposta a mostrá-lo a todas as suas amigas, convencendo-as de que deveriam comprar um igual? Porque é justamente esse o nosso plano, querida: distribuir alguns rádios gratuitamente, para que as felizes contempladas possam espalhar as maravilhas do Espacial.
- Eu sabia que tinha de haver algum ardil! - disse Susan. - Mas nunca é demais perguntar se o rádio não iria me custar algum dinheiro. Terei o maior prazer em recomendar o rádio a todas as pessoas que conheço. E irei mais longe, recomendando também o seu nome.
- É mesmo? Mas isso é maravilhoso! Basta que suas amigas digam que foi Sheila Newberry quem as mandou, na hora em que forem comprar os seus rádios nas lojas.
Está certo assim? E agora, já que os rádios portáteis distribuídos gratuitamente não vêm com pilhas, gostaria que me mostrasse uma tomada, a fim de que eu possa fazer uma demonstração. Concorda, minha cara?
- Claro. Não quer entrar, Srta. Newberry?
Sheila entrou e a porta se fechou. Cerca de 45 minutos depois, ainda impecável e aprumada, as roupas imaculadas, exceto por algumas pequenas manchas avermelhadas nas luvas, agora escondidas na pasta, Sheila Newberry saiu para a calçada diante da casa e percorreu rapidamente a Logan Street. Com uma sorte dos diabos, um quarteirão além, do Grand Boulevard, Sheila pegou um ônibus, depois de uma espera de apenas poucos segundos.
Alguns dias depois, Sheila sentiu-se novamente tentada. E a terceira "sedutora" foi "punida" ainda mais brutalmente. A jovem sacrificada ao estranho deus que presidia à ânsia de Sheila foi uma enfermeira noturna de vinte e quatro anos, retalhada em seu apartamento. Não havia suspeitos, não havia qualquer pista, nem mesmo um pequeno Triumph vermelho.
A enfermeira chamava-se Louise Hemming. Era moça solteira, que morava sozinha, sendo, de longe, a mais atraente das três vítimas. E para confundir mais ainda a multidão crescente de policiais, criminologistas e psiquiatras empenhados em deslindar o caso, ela tinha sido violentada.
Na noite do assassinato de Louise Hemming, a apresentação de Bobby De Marco no Cherchez La Femme não teve o seu padrão de excelência habitual. Bobby tinha bebido demais entre suas apresentações. A barragem incessante dos meios de comunicação, projetando indignação e pânico pelo terceiro assassinato brutal de jovens inocentes, destruíra a calma e acabara com a atitude de desafio sorridente de Bobby.
O Cherchez La Femme era um nightclul) de segunda,, onde travestis se apresentavam, conseguindo fazê-lo melhor e mais convincentemente do que em qualquer outra casa da cidade. Anunciada como Sheila Rose, Bobby De Marco era a estrela do espetáculo. Quando as pessoas diziam que Bobby era "lindo", não estavam absolutamente referindo-se a seu caráter, que era ao mesmo tempo dúbio e misterioso. O elogio dizia respeito exclusivamente à simetria clássica de suas feições e à graciosidade de seu corpo - como homem - além da excelência de suas apresentações noturnas como mulher.
Todos os seus colegas de trabalho, tanto os amigos como os inimigos, diziam que ninguém, fora do métier, era capaz de descobrir o homem por trás da mulher, quando Bobby estava se apresentando.
O espetáculo básico do Cherchez La Femme era simples, uma tosca imitação dos espetáculos semelhantes com mulheres verdadeiras a exibirem seus talentos. Bobby De Marco tinha o papel de destaque, apresentando-se um pouco à frente dos demais"
Ele cantava solos, fazia atos satíricos e contava piadas picantes. Ao final, fazia um admirável striptease, pela metade, que era ao mesmo tempo engraçado e estranhamente provocante.
Os acordes finais da última apresentação soavam à uma e meia da madrugada. Pouco antes das duas horas, servia-se a última rodada de drinques. Comumente, Bobby ficava pelo nightclub, tomando um único coquetel, até a hora do fechamento. Naquela noite, porém, ele ansiava desesperadamente por ir embora, para o refúgio de seu suntuoso apartamento, decorado com algum espalhafato, completamente emasculado. Na distorção de seu medo, ele imaginava que, além dos refletores do palco, havia uma multidão de detetives atentos, descobrindo as outras personificações dele, os crimes secretos cometidos por Sheila Newberry, aqueles três atos proibidos de terror.
Assim, Bobby foi correndo para seu camarim, no instante mesmo em que as cortinas se fecharam. Ele já decidira não vestir uma calça comprida e um casaco-esporte, porque os jornais estavam noticiando com alarde a caçada em larga escala a um perigoso homem-animal, que se dizia ter uma compleição poderosa.
Ele vestiu um casaco debruado de peles por cima do vestido de cetim, meteu a carteira numa bolsa e seguiu apressadamente para a porta dos fundos. Estava quase chegando à porta, sem que ninguém o visse, quando uma das "meninas" do coro saiu do banheiro dos homens e interpôs-se diretamente em seu caminho.
- Bobby! - gritou o dançarino. - Aonde é que Vai com tanta pressa? Escute, amor, você sabe que a polícia anda vasculhando as ruas, pegando todo mundo. Se o braço forte da lei segurar você; não me chame, Bobby querido. Não se esqueça disso.
- Ora, cale essa boca e vá brincar com as suas bonecas! - resmungou Bobby, em sua voz sonora de barítono, empurrando o outro para o lado e saindo pela porta.
Ele estava no estacionamento, mas ali não havia nenhum Triumph vermelho para levá-lo até sua casa. Bobby levara o carro para uma oficina numa cidade vixinha, a fim de que o pintassem, com um azul-marinho mais conservador. Ele pretendia levar o carrinho esporte para a sua cidade natal, mais de 500 quilômetros a leste dali, trocá-lo por algum carro maior, ficar com a mãe por alguns dias e voltar em seguida.
Ele desejou poder contar tudo à mãe, pois ela seria a única pessoa do mundo a compreender sua confusão torturada. Bancando a menina desde pequeno, ele se tornara uma mulher no coração. Contudo, desprezava as mulheres naquelas ocasiões em que o atraíam, com a sedução diabólica que a mãe sempre denunciara.
E porque aquelas mulheres diabólicas o tentavam, elas tinham que ser punidas.
Era como a mãe sempre dizia:
- Quando a árvore do mal da sedução feminina começa a dar frutos, tem que ser imediatamente cortada e destruída!
E a mãe de Bobby estava sempre certa.
Bobby atravessou o estacionamento, esgueirou-se por uma travessa e saiu para a rua principal, a um quarteirão de distância. No quarteirão seguinte, viu um ponto de táxis, mas estava deserto. Assim, Bobby parou no ponto de ônibus e ficou esperando num frenesi de impaciência, olhando para o nightclub, para verificar se não fora seguido por algum tira de olhar perspicaz, que estivera entre os espectadores.
O Cherchez La Femme era um ponto de encontro de tipos incertos e volta e meia a polícia aparecia por lá.
No disfarce de Sheila, Bobby pensava como Sheila. E quando Sheila estava esperando pelo ônibus, um seda velho e avariado encostou no meio-fio.
- Vai para o mesmo caminho que eu, boneca?
O homem tinha olhos de velho num rosto de jovem.
- Não, creio que não. Mas qual é o seu caminho, amor?
- O meu caminho é o seu caminho, boneca. Apesar do seu nervosismo, Sheila sentia-se ligeiramente divertida com a situação.
- Lamento, mas minha mãe disse para jamais aceitar carona de estranhos. E você me parece muito estranho.
O homem arrancou, com um guinchar dos pneus.
Sheila viu que dois homens, de terno escuro, aproximavam-se do ponto de ônibus, a pé, vindos da direção do niglitcliib. Ela reconheceu um deles imediatamente. O proprietário do Cherchez apontara-o certa ocasião, dizendo que era tira, do Departamento de Costumes. Ele aparecia no bar de vez em quando, onde ficava sentado por algumas horas, tomando cerveja. O outro homem, obviamente o companheiro do detetive, era desconhecido.
Sheila se perguntou se, em missões especiais, os tiras sempre saíam aos pares, um do Departamento de Costumes e outro do Departamento de Homicídios. Quando os dois policiais pararam, acendendo cigarros, trocando olhares mudos e significativos, Sheila ficou à beira da histeria.
Naquele momento o ônibus apareceu, com o suspiro queixoso dos freios. Depois de um momento angustiante de indecisão, Sheila subiu no ônibus. No último instante, os tiras subiram também, com a agilidade graciosa de profissionais disciplinados fisicamente. Depois, como se fosse um procedimento predeterminado, ambos foram para o fundo do ônibus, onde se sentaram. E ali ficaram os olhos atentos, em silêncio, aparentemente sem se fixarem em coisa alguma, mas em posição de observarem tudo o que acontecia dentro do ônibus.
Sheila afundou no banco mais próximo da porta de saída, na frente do ônibus. Ela fazia os típicos gestos femininos, aconchegando-se no casaco e alisando a saia de cetim por cima do coUant preto.
No momento em que o ônibus partiu, Sheila lançou um olhar de esguelha para os policiais, percebendo que eles estavam agora simulando uma conversa, completa, inclusive com sorrisos e risadinhas. Era muito estranho. Por que eles tinham resolvido pegar o ônibus, assinalando sua presença a Sheila de forma tão óbvia? Por que não haviam seguido o ônibus num daqueles carros pretos e ordinários da polícia, sem qualquer identificação? Poderiam então lançar-se sobre Sheila à vontade, no momento em que ela descesse.
O que Bobby pensaria naquela situação?, perguntouse Sheila. Talvez Bobby pensasse que a polícia o considerara suspeito e queria agora observar o comportamento dele no ônibus, antes de efetuar a prisão.
Mas se Sheila fosse presa assim, a suspeita seria de prostituição. O caso não teria a menor gravidade. Provavelmente apenas uma multa, paga na hora, e algumas palavras de advertência. Mesmo assim, a última coisa que Sheila desejava era atrair sobre si a atenção da polícia. Eles poderiam descobrir tudo sobre os segredos de Sheila Newberry, se é que já não haviam descoberto.
Sheila teria que escapar, de qualquer maneira. Se não permanentemente, pelo menos o tempo suficiente para poder aquilatar o grau de perigo. Talvez nunca tivesse outra oportunidade.
Assim, quando o ônibus parou em Glenview, cerca de dois quarteirões antes de sua casa, Sheila desceu rapidamente do ônibus, no momento em que o motorista estendia o braço para fechar a porta.
O ônibus estava contornando Glenview Park. Sheila correu para o parque, virando-se em seguida para observar o ônibus.
Era surpreendente! Ou os policiais estavam cochilando no momento em que ela saltara ou haviam pegado o ônibus por algum outro motivo, além da compreensão dela. Seja como for, eles não saltaram. E logo as luzes traseiras do ônibus desapareciam na distância, dissipando suas apreensões.
Ela ficou esperando por mais um minuto, avaliando a situação, enquanto apalpava cuidadosamente a peruca, para verificar se estava no lugar.
Subitamente, uma sombra surgiu no canto de seu campo de visão. Sheila virou-se rapidamente e ainda vislumbrou um rosto jovem, com olhos de velho, antes que um braço lhe enlaçasse o pescoço.
- Eu lhe disse que íamos para o mesmo lado, boneca. Poderia ter economizado o dinheiro da passagem do ônibus.
Sheila desapareceu e Bobby De Marco lutou freneticamente, dando socos e pontapés, com a força muscular de um homem, estimulada pela raiva e pelo medo.
Mesmo apertado por aquele braço que o sufocava, Bobby estava começando a vencer a luta, a derrotar o oponente. Até que o homem meteu a mão no bolso e tirou um pedaço de cano de chumbo, erguendo-o acima da cabeça de Bobby, enquanto apertava mais ainda o braço que enlaçava o pescoço dele.
Naquele segundo final, o grito estrangulado de um homem saiu da boca de uma mulhgr: era Bobby tentando negar Sheila.
O crânio de Bobby foi esmagado. Bobby De Marco estava morto.
Jeffrey M. Walman
PEDIDO DE RESGATE
Francês Bartlett estava sentada na poltrona do marido, as mãos grandes cruzadas frouxamente sobre o Colo, uma mulher gorducha de quase quarenta anos, usando um roupão acolchoado sobre a camisola rosa.. Estava assistindo ao programa "Hoje", na televisão, depois de haver despachado as crianças para a escola. Mas naquela manhã em particular ela não se sentia relaxada, como sempre acontecia.
Estava preocupada. Queria saber o que acontecera com Paul.
O marido deveria ter chegado a casa por volta das duas horas da madrugada, depois que o avião dele, procedente de Chicago, aterrissara. Francês acordara às três e meia da madrugada, despertada pelo instinto nascido de dez anos de casamento com um gerente de vendas, ficando a se remexer na cama, inquieta, por mais de uma hora, antes de ligar para o aeroporto. Um funcionário no balcão da empresa aérea informou que o avião chegara no norário, mas que ela teria de esperar até de manhã, quando o escritório abria, para verificar se o nome do marido dela constava da relação de passageiros ou se ele transferira sua passagem. Sinto muito...
Impelida por um principio de histeria, Francês dera um telefonema interurbano para o hotel em que Paul se hospedara. Ele saíra na noite anterior, sem deixar qualquer recado. Sinto muito...
Francês não conseguira mais dormir, pelo resto da noite.
Pelo menos não houvera nenhum acidente aéreo, disse ela a si mesma, enquanto assistia ao programa de televisão. Se tivesse ocorrido, ela certamente já teria ouvido falar. E teria sido avisada, se Paul tivesse sofrido um acidente pessoal, ficado doente repentinamente ou tivesse sido internado num hospital. Provavelmente não era nada, apenas uma confusão qualquer. Mas Paul não iria deixá-la assim no ar, sem informá-la do que estava acontecendo. Onde estaria ele agora? Oh, Deus, onde está Paul?
Francês olhou para o relógio. Mais uma hora e poderia ligar para o escritório da companhia aérea. Se eles não pudessem ajudá-la, esperaria pelo próximo avião procedente de Chicago. Se Paul não estivesse também nesse avião, ela... Francês estremeceu, não querendo pensar no que teria de fazer então. A polícia, o patrão de Paul, a publicidade, perguntas, embaraço geral. A perspectiva parecia terrível demais para que pudesse ser formulada em palavras.
Teve início um comercial na televisão e Francês foi até a cozinha, para tomar outra xícara de café. Estava mexendo o café, distraidamente, quando o telefone tocou.
Ela pôs a xícara em cima da mesa e atendeu, na extensão que havia na cozinha.
- Alô?
- Sra. Bartlett? Sra. Paul Bartlett?
- Ela mesma. Quem está falando?
- Temos o seu marido, Sra. Bartlett.
- Como? O que disse?
- Temos o seu marido.
- Não estou entendendo. Vocês estão com Paul?
Mas por quê?
- Este é um pedido de resgate. Compreende agora, Sra. Bartlett?
- Oh, Deus!
Francês perdeu a respiração, tentando firmar-se com a mão livre. Derrubou a xícara, o café se derramando por cima da mesa. Ela nem percebeu.
- Paul está bem?
- Está ótimo. Mas só continuará assim se fizer exatamente o que eu lhe mandar.
- Deixe-me falar com ele! Por favor, deixe-me...
- Não. Escute, Sra. Bartlett, e escute com toda atenção.
A voz do homem soava baixa, mas bem nítida.
- Queremos dez mil dólares em notas não marcadas, tudo em notas de vinte dólares para baixo. Está bem claro?
- Está. Mas eu não tenho...
- Ponha as suas jóias no prego, se for preciso. Mas arrume os dez mil dólares até o meio-dia, se quer ver seu marido vivo novamente. Leve o dinheiro numa marmita, para o McKinley Park. Sabe onde fica?
- No centro da cidade, fica no centro da cidade!
- Isso mesmo. Há uma estátua de McKinley no meio do parque. Exatamente ao meio-dia e quinze, aproxime-se da estátua pelo lado norte e deixe a marmita ao lado do terceiro banco, antes de chegar lá. Entendeu direito? Terceiro banco, lado norte.
- Eu... eu acho que não vou encontrar...
- O lado norte é o que dá para Woolworth's. Depois de deixar a marmita, siga em frente e não olhe para trás.
- Não olharei. Meio-dia e quinze, terceiro banco, o lado que dá para a Woolworth's. Quando... irei ver Paul?
- Amanhã à noite.
- Tanto tempo assim? Não poderiam...
- Não chame a polícia, Sra. Bartlett. Estaremos vigiando-a. Se tentar nos trair, não terá outra oportunidade de rever seu marido com vida.
- Compreendo. Mas não podem soltá-lo mais cedo? Por favor!
Só então ela percebeu que estava falando com um telefone mudo. O homem havia desligado. Francês ficou segurando o fone por mais um momento, completamente atordoada, antes de repô-lo no gancho, lentamente, automaticamente.
- Não! - gritou ela, para a casa vazia e silenciosa.
- Não!
Francês ainda não conseguira sentar-se desde que voltara do McKinley Park.
Agora, com as aulas terminadas e as crianças brincando no quintal, ela andava a esmo pela casa, jamais se afastando muito do telefone. Ia até o living e entreabria as cortinas, olhando para fora. Depois, deixava cair as cortinas, atravessava o vestíbulo e subia a escada, olhando distraidamente para seu quarto, o quarto dela e de Paul. Descia novamente a escada, fumava um cigarro, tomava um café, sem chegar ao fim da xícara. Voltava novamente para junto do telefone, fitando-o em silêncio, de vez em quando tocando no plástico brilhante.
Ela sabia que aquele dia ficaria gravado em sua mente por muito tempo, dolorosamente nítido. Não iria esquecer seu pânico inicial, quando quase ligara para a polícia, seguido pelo pavor maior e mais terrível do risco que estaria assumindo, se assim o fizesse. Não esqueceria como se mostrara nervosa no banco, encerrando as contas e vendendo as ações que possuíam. Ou como tivera que fazer todo o esforço de que era capaz para controlar-se, depois que deixara a marmita no parque e simplesmente continuara, andando em frente. Ou do desespero que estava sentindo agora, esperando ter tomado a atitude correta e rezando para que Paul fosse libertado, ileso.
Ela não parava de perguntar a si mesma: Por quê? Eles não eram ricos nem famosos, apenas uma família comum da classe média, igual a milhões de outras.
Por que logo eles haviam sido escolhidos?
O telefone tocou novamente. Francês correu para atender, segurando o fone com toda força.
- Alô? Alô?
- Meu bem?
- Paul!
Lágrimas de alívio escorreram pelo rosto de Francês, toldando-lhe a visão.
- Oh, Paul! Você está bem?
- Um pouco cansado. Afora isso, no entanto, estou bem. Qual é o problema?
- Onde você está?
- Em Filadélfia
- Filadélfia?
- Claro. A reunião acabou há poucos instantes. Durou mais tempo do que eu previa.
- Reunião?
Francês estava aturdida, não entendia mais nada,
- Paul, eu... eu não estou compreendendo. Que reunião?
- Com os responsáveis pela nova conta que nos foi entregue inesperadamente.
Tentei ligar para você Ontem à noite, mas o telefone estava ocupado. Não recebeu meu telegrama?
- Não, não recebi nada. Está querendo dizer que está bem, que nada aconteceu?
- Já disse que estou bem. Mas o que está acontecendo aí afinal?
- Está querendo dizer... que não foi seqüestrado?
- Seqüestrado! - repetiu Paul, soltando uma risada. - O que a leva a pensar que fui seqüestrado?
Francês pensou no telefonema e no pedido de resgate, depois pensou nos dez mil dólares... e desmaiou.
Lew Sieberts estava recostado na cadeira giratória, os dedos grossos tamborilando sobre a velha e escalavrada escrivaninha de carvalho. Estava surpreso com a facilidade do trabalho. Teve que olhar dentro da terceira gaveta da escrivaninha para certificar-se de que a marmita cheia de dinheiro não era apenas uma fantasia de sua imaginação.
Ele a recolhera na hora do seu almoço e a marmita continuava no mesmo lugar em que a guardara. Se ele tinha que ser despedido, não podia haver indenização melhor do que aquela. O emprego era o melhor que já tivera, embora fosse também o mais curto. Ele esperaria para receber a indenização normal na manhã seguinte e depois sairia da cidade, antes que o tal de Bartlett voltasse. Talvez fosse para a cidade de Nova YorJfT Lá, teria um amplo campo de trabalho, uma multidão em que poderia se perder, sem jamais ser apanhado. Isso mesmo, Nova York era o melhor lugar, uma cidade grande e excitante...
O teletipo do outro lado da sala começou a matraquear novamente. Quando a campainha soou, Lew Sieberts levantou-se e foi até lá, arrancando a mensagem, que dizia:
BLTMR XLT1960 JS DL PD KANSAS ClTY MO 6/21
xxx CAROLE WILSON MAXWELL 424 CT BAL-110
TIMORE MD 4&1 9073 XXX TENHO QUE IR SPRINGFIELD POR DOIS DIAS PT NEGÓCIO
INESPERADO SINTO MUITO PT NÃO SE PREOCUPE AMOR PETER PT FIM XXXX.
Sieberts tornou a sentar-se atrás de sua escrivaninha, estudando a mensagem. Era muito parecida com o telegrama que Bartlett enviara no dia anterior. Ele recostou-se na cadeira, contemplando a janela empoeirada do escritório dos telégrafos.
Sorriu ligeiramente, perguntando-se se poderia dar o mesmo golpe duas vezes seguidas.
Bom, vinte mil dólares era o dobro do que ele tinha naquele momento...
Sentou-se direito na cadeira e pegou o telefone, discando o número indicado no telegrama. A campainha tocou por um momento e uma voz de mulher logo atendeu:
- Sra. Wilson? Sra. Peter Wilson? Temos o seu marido...
Fletcher Flora
APOSTO QUE VOU CHEGAR A SUA FRENTE
A Srta. Malin, do quarto 912, queria um balde com gelo e uma garrafa pequena de gim. O gelo e o gim foram levados até o quarto dela por um empregado do hotel chamado Fritz. Ao chegar à porta do quarto, ele verificou, por puro acaso, que eram onze horas da noite. Ela deixara a porta entreaberta, mas ele fez questão de bater e esperou que ela o autorizasse a entrar.
Era visível que a Srta. Malin estivera bebendo. Não que ela estivesse descabelada, falando alto ou comportando-se de forma ofensiva, como faziam muitas mulheres quando bebiam. Pelo contrário. Ela estava usando um vestido preto muito elegante, a saia curta, como mandava a moda atual. No pescoço, tinha uma única fieira de pérolas cultivadas. Nas orelhas, brincos de ouro, com pérolas iguais. Os cabelos castanhos curtos estavam bem escovados e lustrosos. Ela desprendia aquela fragrância delicada e encantadora que as mulheres meticulosas invariavelmente possuem, logo depois de um banho quente e de se arrumarem cuidadosamente. A Srta. Malin, na verdade, era uma mulher de alta classe. Dava a impressão, naquele momento, de que se vestira para uma ocasião muito especial. O fato de que ela andara bebendo só se tornou evidente, para os olhos e ouvidos experientes de Fritz, depois de alguns momentos, por causa do excessivo comedimento dos gestos dela e da precisão exagerada de sua fala.
- Ponha o gelo e o gim na mesinha ao lado da cama
- disse a Srta. Malin.
A única iluminação que havia no quarto era proporcionada por um pequeno abajur na mesma mesinha em que Fritz colocou o balde de gelo e a garrafa de gim. A Srta. Malin estava de pé além do perímetro de luz, junto às portas de vidro que davam para um pequeno terraço. Ela voltou para o interior do quarto e sentou-se na beira de uma cadeira, com os joelhos e os tornozelos unidos, as mãos cruzadas sobre o colo. Ficou olhando para as mãos. Fritz demorou-se deliberadamente, à espera de uma gorjeta.
- Isso é tudo o que deseja, Srta. Malin?
Ela virou a cabeça e fitou-o. O rosto dela ficou iluminado pela luz do abajur e Fritz pôde notar que parecia cansada, com olheiras fundas. Talvez ela não tivesse ouvido sua pergunta ou então, por motivos pessoais, preferisse ignorá-la. Seja como for, ao invés de responder, ela fez outra pergunta:
- Como é o seu nome?
- Fritz, Srta. Malin.
- Fritz... É um bonito nome.
Ela sacudiu a cabeça, com uma expressão muito séria.
- Tive um cachorrinho chamado Fritz, quando era menina. Um fox terrier. Foi atropelado e morto.
- Lamento muito, Srta. Malin. Os fox terriers são excelentes cachorros.
- Chorei quando aconteceu, mas isso de nada adiantou, é claro. Chorar nunca adianta coisa alguma. Sempre aconteceu alguma coisa com tudo que amei. Com as coisas e as pessoas. Morreram, desapareceram ou se perderam. E chorar nunca me adiantou coisa alguma. Já se sentiu alguma vez sozinho, Fritz?
- Claro. Acho que todo mundo de vez em quando se sente solitário.
- Você está enganado, Fritz. Não estou falando de sentir-se solitário de vez em quando. Mas sempre. Permanentemente solitário. Você ou eu, Fritz.
Qualquer pessoa. Inteiramente só, em todo o universo. É o que acontece com todos nós.
- Pensa realmente assim, Srta. Malin?
- Claro. É assim mesmo que acontece, sem a menor dúvida. Pensei e pensei no assunto e finalmente absorvi. Foi uma espécie de revelação. A solidão é a única realidade.
Tudo o mais é ilusão. Os amantes, os amigos e os cachorros chamados Fritz não passam de ilusões.
- E eu, Srta. Malin? Também sou uma ilusão?
- Você é real no seu universo e eu sou real no meu. O problema é que não podemos alcançar um ao outro. Você está aí e eu estou aqui, não há nada no espaço intermediário.
E não há meios de passarmos de um universo para o outro.
- Se é assim que pensa, Srta. Malin, então está certo.
- Obrigada, Fritz. Fico contente por ter concordado comigo. É simplesmente uma questão de enxergar a verdade, de ter consciência da realidade. Algumas pessoas têm consciência disso apenas de vez em quando, em curtos lampejos. Assim, sentem-se solitárias apenas de vez em quando. Está compreendendo o que quero dizer, Fritz?
Está? Quando as pessoas se sentem tristes, desanimadas ou deprimidas com alguma coisa, têm esses breves lampejos, esses momentos da verdade, descobrindo então que estão sozinhas, inteiramente sozinhas, por toda a sua vida, em todo o universo.
Mas normalmente elas vivem com a ilusão da companhia e do amor, coisas que realmente não existem. É esse o problema, Fritz. A companhia e o amor são as grandes mentiras de nossa existência.
- Não pense mais nisso, Srta. Malin. Irá se sentir melhor amanhã de manhã.
- Acha mesmo? É muita bondade sua, Fritz. Fico feliz por ver que está tentando confortar-me. Mas o conforto é uma mentira, nada mais que uma mentira. E as mentiras, ao final, são as coisas mais cruéis que poderiam nos acontecer.
- Eu não seria capaz de mentir-lhe, Srta. Malin.
- Não deliberadamente. Não para ser cruel. É um rapaz por demais generoso, Fritz, e jamais seria deliberadamente cruel. Tenho certeza disso. Não é por sua culpa que não tem consciência da realidade. Ou pelo menos não a tem com uma freqüência maior, apenas de vez em quando. Não é por sua culpa que diz mentiras, de pura bondade. Sabe onde estou neste momento, Fritz?
Poderia dizer-me?
- Está aí mesmo, sentada nessa cadeira, onde posso vê-la e ouvi-la, até mesmo tocá-la, se quisesse. Está aí e eu estou aqui.
- Está vendo o que eu disse, Fritz? Você simplesmente não sabe. Não pode compreender que tudo não passa de ilusão. Mas deve compreender que eu não estou aqui. Não estou, na realidade. Estou nua, tremendo de frio e solitária num universo que foi criado comigo, no instante do meu nascimento, e que terminará comigo, no instante da minha morte. Não posso escapar deste meu universo e você não pode entrar nele. Eu estou sozinha no meu universo particular.
- Claro. Mas junto com Deus.
- Não!
Ela sacudiu a cabeça, tornando a baixar os olhos para as mãos, ainda cruzadas no colo.
- Só eu, eu sozinha...
Fritz estava se sentindo inquieto. Começava a pensar que se metera em algo que teria sido melhor evitar. Em sua própria defesa, assumiu uma atitude ligeiramente condescendente.
- Sabe o que está precisando, Srta. Malin? Precisa de outro drinque. Gostaria que eu abrisse a garrafa e o preparasse? Serviço da casa...
- Não, obrigada, Frita. Não tenho muita certeza agora se quero tomar outro drinque. Se eu tomar mais um, certamente tomarei diversos outros em seguida.
Depois, simplesmente, irei dormir e acordarei pela manhã. O que eu estou pensando é em ir dormir e não acordar pela manhã. Considerando tudo, parece-me que essa é a atitude mais satisfatória.
- Não está falando sério, Srta. Malin. Não deveria dizer uma coisa dessas.
- Alguma vez já desejou morrer, Fritz?
- Não.
- Alguma vez já chegou ao menos a pensar em morrer?
- Não de forma séria e objetiva. E quando pensei no assunto, não posso dizer que a idéia me tenha atraído.
- Pois eu penso muito nisso, Fritz. Sou viciada em pensar em morrer. Sabe que morrer é algo muito complicado? É mesmo. Há muitos detalhes a serem resolvidos.
Há muitas maneiras de fazê-lo. Você acreditaria se eu lhe contasse como é difícil tomar uma decisão?
Ela passara a fitar Fritz, enquanto falava. Agora, virava a cabeça lentamente, olhando para as portas de vidro e para o pequeno terraço que ficava além.
- Eu estava parada ali, pensando nisso, quando você chegou, Fritz.
Ela voltou a olhar para Fritz e viu que ele havia começado a recuar na direção da porta para o corredor.
- Para onde está indo, Fritz?
- A noite está com muito movimento. É melhor eu voltar para o meu trabalho.
- Não gostaria de fazer amor comigo, antes de ir embora?
- Não posso fazer isso, Srta. Malin. Poderia me meter numa tremenda encrenca.
- Eu não esperava que você aceitasse. Mas não importa. De qualquer maneira, seria mesmo apenas mais uma ilusão.
A esta altura, Fritz já tinha recuado até a porta. Parou ali, com a mão na maçaneta, olhando para a moça.
- Siga o meu conselho, Srta. Malin. Tome um ou dois drinques bem fortes e vá para a cama. Irá se sentir melhor pela manhã.
- Vai descer agora, Fritz?
- Vou.
- Aposto que vou chegar na sua frente.
Fritz saiu, fechando a porta. Começou a percorrer o corredor, na direção dos elevadores. Sentiu uma compulsão de correr, mas não o fez. Sabia que, por mais que se apressasse, ela chegaria lá embaixo antes dele.
Gübert Ralston
'NÃO SOU LADRÃO, SR. KESTER'
Sr. S.J. Kester Fazenda Kester Elmira, Illinois 21 de agosto
Caro Sr. Kester:
Não sou ladrão. Estou lhe escrevendo esta porque comprei um jornal da Califórnia e li o pedaço em que diz que acha que eu e sua filha Millie fugimos com o seu dinheiro, na semana passada,. É uma afirmação inverídica, que me apresso em corrigir.
Posso não valer muita coisa, mas certamente não sou um ladrão, Sr. Kester.
Acho melhor lhe contar o que aconteceu. Lembra-se de como Millie sempre falou um bocado? Toda vez que eu chegava em casa ela falava um bocado, mesmo quando eu estava procurando pensar em alguma coisa do jornal que ela lera para mim. Eu disse a ela uma porção de vezes para que calasse a boca, mas acho que ela não podia fazer uma coisa dessas. (Algumas pessoas não conseguem parar de fazer as coisas com a mesma facilidade que outras.) Uma ocasião, ela cortou algumas das flores que eu tinha no jardim, uma porção de camélias, que eu mesmo tinha plantado. Fiquei furioso quando cheguei em casa e vi um prato em cima da mesa cheio de camélias, todas cortadas e mortas. Dei uma surra em Millie com uma vara, a fim de que ela nunca mais fizesse uma coisa dessas.
Aposto que há uma porção de coisas que não sabe a meu respeito e de Millie. Como o fato de que eu a conheci num concurso de beleza em Santa Monica, na praia. Eu tinha então um lindo caminhão velho e estava morando ali. Eles fizeram o concurso do outro lado da estrada, em Santa Monica. Eu estava morando na praia há uns dois meses e todos os surfistas e banhistas foram ver, para se divertirem. Foi assim que vi Millie pela primeira vez. E como ela sabia encher direitinho o maiô! No dia seguinte, fui nadar com ela, comemos cachorros-quentes e tudo o mais. Naquele fim de semana, fomos dançar no baile gratuito que dão lá no píer e ficamos muito quentes com a música.
No dia seguinte, mandei Cario Benson '(é o meu amigo que estava morando no caminhão comigo) embora e Millie foi morar comigo. Aposto que ela nunca lhe contou isso.
Ah! Ah! Ah!
Seja como for, ela contou a alguém, pois cerca de uma semana depois apareceu uma velha megera, que parou o carro no posto de gasolina, onde eu tinha deixado o caminhão naquela manhã, e começou a berrar comigo, até que fiquei com dor de cabeça. Ela disse que era a tia de Millie e que eu tinha de casar com,' Millie. Finalmente consegui fazer com que ela calasse a boca por tempo suficiente para que eu dissesse que estava certo, que eu me casaria com Millie. E foi assim que nos casamos. Seja como for, Millie conseguiu fazer com que a bruxa velha prometesse que não 3he contaria nada, que seria uma surpresa. (E como aquelas duas conseguiram me agarrar direitinho!)
Antes que eu soubesse o que tinha acontecido, estava morando numa casa alugada na Mason Street e saindo de casa todas as manhãs para trabalhar num horto em Tyrone, onde criam todos os tipos de plantas. No princípio até que gostei, mas depois o velho careca que dirige aquele negócio começou a implicar comigo, brigando porque eu chegava atrasado e coisas assim. E tivemos uma briga que não foi brincadeira.
Ele correu como o diabo fugindo da cruz, para escapar de mim, quando resolvi dar uma lição nele.
Um dos outros camaradas que trabalhava lá no horto ficou na minha frente e não me deixou passar, enquanto o careca fugia no carro dele. Depois, eu desatei a rir e perdi toda a raiva.
Seja como for, fui despedido. Voltei para casa e contei a Millie. Ela não disse quase nada, para variar, apenas saiu na manhã seguinte e arrumou algum emprego maluco.
Mas ganhava um bocado de dinheiro, considerando que era uma mulher. Podíamos viver à larga com o dinheiro que ela ganhava.
Lembra-se do jardim que eu fiz durante esse tempo? Enchi todo o quintal dos fundos com plantas que tinha surrupiado do horto e guardado para quando chegasse a ocasião de plantar direito. Tinha flores e tudo o mais. Gosto mais das flores.
Foi quando Millie começou a choramingar em cima de mim, dizendo que eu tinha de voltar a trabalhar, Eu disse a ela que não estava pronto para trabalhar, mas Miilie insistiu que eu tinha de ir trabalhar, de qualquer maneira. Fiquei furioso, mas não disse nada. Afinal, eu tinha feito as coisas todas certinhas, casando com ela e tudo o mais. Foi então que começou toda aquela história que já sabe. Uma noite, fiquei cansado de ouvir a boca de Millie sempre gritando comigo e dei alguns tabefes nela, para que ficasse calada. Foi quando os vizinhos apareceram. Não acha que é impressionante como algumas pessoas não conseguem cuidar apenas do que é da sua conta? Acertei um soco no nariz do palhaço da casa ao lado e a velha dele chamou a polícia. Fui em cana e o senhor telefonou daí de Elmira.
Não posso culpá-lo pelo que disse quando apareceu em pessoa na manhã seguinte.
Ficou bastante furioso quando viu o lugar e depois falou com Millie. Admito que fiquei zangado quando tentou levar Millie para longe de mim. Mas, afinal de contas, onde é que estava a minha percentagem? Fizemos um trato. Eu ficava com mil dólares, se assinasse alguns papéis e sumisse. E o senhor ficaria com Millie. Era um bom negócio. Eu disse que estava certo. Aquela Millie! Como ela berrava! Mas acho que está na hora de dar a explicação sobre o dinheiro. Assinei os tais papéis. E recebi um cheque. Fui embora, com todo mundo feliz. Menos Millie. Naí quela noite, quando cheguei ao quarto que tinha alugado, encontrei um recado de Millie, pedindo que telefonasse para ela. Telefonei, como ela tinha pedido. E o que Millie queria? Ela me convidou para jantar. Um banquete. Um grande jantar de despedida.
Aí eu pensei: o que tenho a perder? Fui para a casa, como sempre ia. Entrei. E quer saber de uma coisa? Por todo canto da casa lá estavam as minhas flores, todas cortadas, todas morrendo! Havia copos cheios de flores. Em cima da mesa, nas caixas de maçãs onde a gente punha as lamparinas. Até mesmo na pia!
Depois de um minuto, Millie saiu do quarto dos fundos, toda vestida. E tinha camélias do meu jardim na cabeça, camélias morrendo!, mais algumas na frente do vestido.
Fiquei olhando para ela, sem conseguir dizer nada. Foi aí que apareceu diante dos meus olhos um nevoeiro vermelho e não consegui ver mais nada.
Seja como for, Sr. Kester, não fiquei para jantar. Não podia comer naquela casa, com todas aquelas coisas mortas lá dentro. E não levei seu dinheiro.
Respeitosamente,
Chuck
P. S. Posso provar que não fiquei com seu dinheiro. Cave no canteiro das camélias. Millie está com o cheque na mão.
P.P.S. Quando cavar, tome cuidado para manter úmidas as raízes das plantas. As camélias não suportam serem transplantadas de qualquer maneira.
P.P.P.S. Estou agora com uma mulher viúva. É ótima pessoa, mas fala um bocado, como Millie.
Edwin P. Hicks
RATOEIRA
Estavam batendo à porta da rua. Joe Chaviski acendeu a luz. O relógio da mesinha de cabeceira marcava duas horas da madrugada, uma hora antes do momento em que o despertador deveria tocar, acordando-o para ir pescar. As batidas na porta continuaram. Quem diabo poderia ser, àquela hora?
- Já vou, já vou! - gritou Joe, enquanto os seus 120 quilos entravam em movimento.
Os pés imensos bateram no chão com uma leveza surpreendente. Ele olhou para um gigantesco urso de pelúcia ao acender a luz do teto, encaminhando-se em seguida para a porta da rua. Depois de acender a luz do alpendre, espiou pelo vidro da porta para o rosto apavorado de Frank Waverly, o principal empreiteiro de Fort Sanders.
Abriu a porta.
- Entre, Frank. Mas que diabo...
Waverly passou pela porta rapidamente, como se tivesse o demônio a persegui-lo.
- Qual é o problema, Frank?
- Estou metido na maior encrenca, Joe!
- Que tipo de encrenca?
- Assassinato!
Waverly estava tremendo violentamente, com uma expressão desvairada nos olhos pretos. O rosto queimado de sol estava bem mais claro que o habitual.
- Sente-se, Frank.
Waverly afundou num diva de couro.
- Tome este cigarro e me conte o que aconteceu, Frank.
- Joe, vim pedir seu conselho... e sua ajuda. A polícia começará a me procurar assim que o assassinato for descoberto.
- Assassinato de quem, Frank?
- De Sally Caviness.
Waverly tirou um lenço do bolso e enxugou os olhos.
- Sally Caviness!
Joe sabia de muitas coisas a respeito de Sally Caviness. Era uma ruiva bonita, divorciada, amante de Frank Waverly.
- Vou fazer um café, Frank. Garanto que ambos nos sentiremos melhor.
Enquanto o café estivesse sendo feito, Waverly teria tempo para recuperar a calma. La ser uma confusão dos diabos!, pensou Joe. Ele e Frank Waverly sempre tinham sido amigos. O que um homem faz em sua vida particular é tão-somente da sua própria conta e por isso Joe jamais mencionara Sally para Frank. Mas Joe e Wanda Waverly eram também bons amigos e Wanda era a esposa de Frank. Wanda é quem tinha o dinheiro, de herança. Ela é que financiara os primeiros trabalhos de construção de Frank, até que ele atingisse o estágio atual, de empreiteiro bem sucedido, responsável pela construção de inúmeros prédios, pontes e rodovias.
Frank tinha perto de quarenta e cinco anos e Wanda, era sete anos mais moça.
Estavam casados há quinze anos e não tinham filhos. Sally Caviness? Joe sacudiu a cabeça.
Era a mesma velha história de sempre, um próspero homem de negócios bancando o tolo com uma mulher muito mais jovem. Sally ainda não tinha trinta anos e era bonita, muito bonita, com um corpo que levava os homens a se virarem e olharem, quando ela passava na rua.
Joe desligou o despertador, marcado para tocar às três horas. Lá se ia a sua viagem de pesca até o Cove Lake. Era o dia 10 de outubro, a época do ano em que os peixes pulavam para fora das águas, tentando pegar a isca ainda no ar.
Ele levou o café para a sala. Waverly continuava sentado no divã, com o rosto escondido por trás das mãos. parecia extenuado, um homem extremamente velho.
- Tome um pouco desse café quente e vai se sentir melhor, Frank.
Muito devagar, frase a frase, Frank contou toda a história. Deixara o apartamento de Sally no Superior Arms às nove e meia daquela noite. Ela estava feliz quando ele fora embora, porque, segundo Frank, prometera que iriam se casar, assim que se divorciasse de Wanda. Depois de uma longa pausa, Waverly continuou:
- Quando voltei lá, pouco depois de meia-noite, levando uma boa notícia, encontrei-a morta. Sally estava caída no chão, de costas. Tinha sido baleada.
Joe pôs a xícara vazia em cima da mesa.
- Alguém viu você entrar ou sair do apartamento?
- O ascensorista que trabalha até o início da noite. Ele me levou até lá em cima quando cheguei na primeira vez, por volta das oito horas da noite. Mas ele já tinha deixado o trabalho quando desci, às nove e meia.
- E na segunda vez?
- Ninguém me viu. O elevador é automático e o ascensorista larga o serviço às nove horas.
- Disse que voltou depois da meia-noite, levando uma boa notícia. Que notícia era essa?
- Acho que deviam passar quinze minutos de meianoite. Fui até lá para clizer que tinha surpreendido Wanda, minha esposa, você bem sabe, numa situação comprometedora.
Assim, Wanda não poderia negar-me o divórcio.
- O que está querendo dizer com "situação comprometedora"? - perguntou Joe, asperamente.
Ele conhecia Wanda Waverly desde que ela ainda era garotinha. Um policial com trinta anos de carreira sempre conhece muito bem tudo o que acontece em sua cidadezinha, tanto o que há na superfície como o que existe por baixo. Wanda era estourada, é verdade, ninguém podia negá-lo. Mas ele nunca ouvira a menor palavra desabonadora sobre seu caráter.
- Apenas o que eu lhe disse, Joe. Nós a encontramos numa situação comprometedora. Quero que guarde tudo isso para você, Joe. Não conte nada a ninguém. Nós a seguimos até o Picardy Hotel. E ela estava lá com um homem.
- Que homem? - perguntou Joe, friamente.
- Harry Vallery.
- Aquele filho... Você concebeu um plano para incriminá-la, Frank. Tenho certeza disso.
- Tem razão, Joe. Mas fiz isso porque ela se recusava a me dar o divórcio, para que eu me casasse com Sally.
- E o que está querendo agora de mim?
- Joe, não tenho mais ninguém a quem possa recorrer.
- E Wanda?
- Eu não matei Sally, Joe! Juro que não matei. Mas assim que o corpo for descoberto, a polícia sairá atrás de mim. Interrogarão o ascensorista e descobrirão que estive lá ontem à noite. E toda a cidade sabe do meu caso com Sally.
- Quem mais teria interesse na morte de Sally, excetuando você... ou Wanda?
- É justamente esse o problema, Joe! - gemeu Waverly. - E Wanda tem um álibi perfeito. Ela registrou-se no hotel pouco depois das nove horas e lá ficou o tempo todo, até que nós a surpreendemos com Vallery, entre 10:30 e 10:45 horas. Depois que partimos, Vallery ainda ficou com ela, andando de carro, por cerca de trinta minutos. Wanda parecia bastante transtornada.
- Quando fala em "nós", Frank, a quem mais está se referindo?
- Meu detetive particular, Choc Churchill. E havia também um fotógrafo, Jim Durnell, e o gerente do hotel.
- O que aconteceu depois?
- Fiquei esperando por Vallery na frente do Superior Arms, como havíamos combinado. Ficamos sentados no carro, conversando e acertando os ponteiros, para que não houvesse qualquer divergência no processo, caso Wanda resolvesse contestar o meu pedido de divórcio. Só depois é que subi para falar com Sally.
- Viu alguém entrar ou sair do Superior Arms, enquanto estava lá esperando?
- Não.
- Onde está o marido divorciado de Sally?
- Na penitenciária de Leavenworth, por violação da Lei Dyer. Ele era reincidente. Ainda tem um ano de sentença a cumprir.
- Por que veio me procurar?
- Você e eu somos amigos há muito tempo, Joe. Você sabe que não sou nenhum santo, mas sabe também que eu não mataria ninguém. Acompanhei-o na sua carreira durante os muitos anos em que esteve na polícia. Sei que é um homem inteligente e correto. Os rapazes que estão agora na polícia vão me pressionar. Mas sei que eles o respeitam.
Você ainda tem muita influência. Por favor, Joe, ajude-me!
- A primeira coisa que vou fazer, Frank, é telefonar para a polícia e informar que Sally foi assassinada.
- Espere um pouco, Joe. Devo contar tudo à polícia, é claro, mas gostaria primeiro que fosse até o apartamento, dar uma olhada. Veja se consegue descobrir alguma pista que leve ao assassino. Você é o melhor detetive que já existiu nesta cidade. Os rapazes que estão agora na polícia não sabem nem o que procurar.
- Vá para casa, Frank.
- Ir para casa? Não tenho mais casa para onde ir, depois desta noite.
- Então vá para um hotel.
- Ficarei no Wardlqjr.
- Está certo. Não saia de lá. Fique esperando até o procurarmos.
Joe estendeu a mão para o telefone.
O chefe dos detetives Marty Sauer e o detetive Frank Hoop estavam esperando à frente do Superior Arms, quando Joe chegou. Johnnie Brooksher, o encarregado da identificação, saltou de um carro estacionado junto ao meio-fio, carregando sua máquina fotográfica e o equipamento de impressões digitais.
- Sally Caviness não era a garota de Frank Waverly? - perguntou Sauer.
Joe sorriu. Fora ele quem preparara Sauer para o cargo. Não contara quem tinha sido seu informante, mas Sauer já estava relacionando Waverly com o crime.
Brooksher espalhou um pouco de pó sobre a maçaneta da porta do apartamento de Sally, soltando uma imprecação em seguida.
- Não tem nada. A maçaneta está limpa.
Joe abriu a porta com a chave de Waverly. Eles entraram ... e lá estava Sally caída no chão, diante de um divã. Ela estava usando uma camisola azul e um negligê transparente. Havia três buracos de balas em seu peito.
- Calibre 25, automática - disse Brooksher, recolhendo as três cápsulas vazias que estavam no chão.
Uma vitrola estereofônica dispendiosa estava tocando uma trovejante sonata de Beethoven.
- Parem com essa barulheira - disse Sauer. - Ela me dá arrepios.
- Acha que um rock-amã-roU soaria melhor numa ocasião como esta? - resmungou Joe, desligando o aparelho estereofônico.
- Alguém deve ter planejado uma comemoração comentou Sauer. - Mas se estavam tão felizes assim, por que ele teve que matá-la?
Joe ficou satisfeito. Que a mente do jovem policial funcionasse. Dez anos atrás, quando Sauer deixara o carro da patrulha, a última coisa de que alguém poderia acusá-lo seria de não pensar.
Hopp estava agora examinando uma fotografia emoldurada, que encontrara sobre a penteadeira de Sally, no quarto. Era uma fotografia recente de Frank Waverly e tinha uma dedicatória embaixo: "A minha querida Sally".
- É uma vergonha que um homem como Frank Waverly perdesse a cabeça por causa de uma garota desse tipo - comentou Hopp. - Mas ela era certamente muito bonita... e que corpo!
Eles deixaram Brooksher fotografar o corpo e a sala, os copos em cima da mesinha, a garrafa de champanha no balde de gelo. Depois, começaram a procurar coisas. Debaixo de uma almofada do divã, Sauer encontrou uma automática calibre 25, de cabo de marfim.
Brooksher examinou-a, sacudindo a cabeça em seguida, com uma expressão desgostosa.
- Não tem impressão alguma. Limparam-na completamente.
- É uma pena - disse Sauer. - E agora, Joe, poderia nos contar o que ainda não disse. O que mais sabe sobre o caso?
Joe relatou então a visita de Waverly.
- Pois vamos pegá-lo agora - disse Sauer, assim que Joe terminou. - Ele é o provável culpado. E se não foi ele, pelo menos deve saber mais alguma coisa sobre o caso.
- Está certo - disse Joe. - Só há uma coisa que não compreendo. Se Frank Waverly teve uma discussão Com Sally e a matou, por que ele deixaria aqui a arma do crime, supondo-se que foi essa realmente a arma do crime E se ele foi tolo o suficiente para deixar a arma aqui, por causa de algum impulso subconsciente que o levava a querer ser preso, por que se deu ao trabalho de limpar todas as impressões digitais?
- Vamos fazer essa pergunta a Frank Waverly - disse Sauer.
- Podem ir. Ele está no Wardlow Hotel - disse Joe. - E aqui está a chave do apartamento de Sally. Eu vou voltar para casa.
Chegando a casa, Joe preparou alguma coisa para comer. Estava pensando em Frank Waverly e na deplorável visão da linda SallyJDalviness, caída no chão de seu apartamento, morta. Mas, principalmente, ele estava pensando em Wanda Waverly.
Conhecia Wanda muito bem e tinha certeza de que ela era uma das melhores mulheres da cidade de Fort Sanders. Era uma mulher rica. E sabia ser dura. Tinha a reputação de dirigir as organizações femininas a que pertencia com mão de ferro. Mas, pelo que todos sabiam, ela era uma esposa fiel e devotada. Não havia a menor sombra de escândalo envolvendo o nome dela, embora a cidade fervilhasse de comentários a respeito de Frank e Sally. Há dois anos que Frank vinha se encontrando com Sally, mais um homem tolo a se deixar atrair por uma linda cavadora de ouro.
Estavam aventando a possibilidade de Frank e Sally terem discutido, que talvez Sally o tivesse ameaçado com chantagem. Mas poucos homens atiram numa mulher chantagista. Podem esbofeteá-la, talvez dar-lhe uma surra, talvez até mesmo a estrangulem, num acesso de raiva.
Mas se Waverly fizera o que não era normal e atirara em Sally, por que limpara tão cuidadosamente as impressões digitais da arma, deixando-a num lugar onde seria facilmente encontrada?
Havia um outro problema. A pequena pistola de cabo de marfim, calibre 25, era uma arma típica de mulher. Um homem usaria uma arma maior, de calibre 32 ou 38, no mínimo. O cabo de marfim também apontava para uma mulher. Mas que mulher? Até aquele momento, as duas únicas mulheres envolvidas no caso eram a pobre Sally, a vítima, e Wanda Waverly. Mas Wanda estava no Picardy Hotel na hora em que o crime devia estar sendo cometido. E ela tinha testemunhas para prová-lo, as melhores testemunhas: o próprio marido, um detetive particular, um fotógrafo, o gerente do hotel e Vallery.
Joe Chaviski acabou decidindo ir pescar, apesar de tudo. Queria chegar ao Cove Lake ao nascer do sol. Estava partindo uma hora depois do que planejara. Mas, seguindo depressa, talvez conseguisse chegar a tempo.
O carro, com o barco e o reboque, seguiu a 110 quilômetros horários pela Rodovia 22, virando em seguida para o sul, depois de Paris, subindo pela sinuosa estrada da montanha, a uma velocidade menor. O alto do MountMagazine estava envolvido por um nevoeiro, mas o céu a leste parecia em chamas. A superfície do lago ainda estava imersa nas sombras no momento em que Joe recuou com o reboque até a margem. Ele descarregou o barco, Lucy, juntamente com seus caniços, a caixa com os molinetes, iscas e anzóis, o cantil com a água, a cesta com um almoço ligeiro e dois salvas-vidas. Pôs gasolina no motor do barco, ajustando-o devidamente. Depois, afastou-se da margem, remando.
Joe seguiu para diversas tocas espalhadas pelo lago, arremessando o anzol diligentemente. Naquela época, ao longo dos dois últimos anos, ele se encontrava com o Velho John, uma perca imensa que havia no lago. Naquela manhã, porém, o Velho John não estava em sua toca. Por alguns momentos, Joe simplesmente ficou sentado no barco, desfrutando a tranqüilidade do lago. A superfície ondulava suavemente. Quando o sol passou por cima da colina, a praia do outro lado transformou-se num caleidoscópio de cores: o vermelho do sumagre, dos caquis, de uma infinidade de outras plantas, misturando-se com o verde dos pinheiros e dos cedros, de arbustos rasteiros, com a neblina azul e com o cinzento dos penhascos. Joe pescou até o meio-dia, pegando alguns peixes pequenos e no mesmo instante jogando-os novamente na água. Devorou seu lanche avidamente, junto com uma garrafa de leite, que deixara guardada na caixa de gelo. Depois, virou o barco na direção do ancoradouro. Logo estava voltando para a cidade. A pescaria fora um desapontamento, mas ele tivera tempo bastante para pensar, examinando todos os ângulos do assassinato de Sally Caviness.
Chegando a casa, separou o carro do reboque, mudou de roupa e seguiu para a delegacia. Brooksher tinha novidades a lhe contar. As balas removidas do corpo de Sally, na autópsia, tinham sido disparadas da automática encontrada debaixo da almofada, no divã. E Frank Waverly admitira que comprara aquela arma, três anos antes. O promotor pretendia apresentar a acusação de homicídio contra ele na manhã seguinte.
- Waverly por acaso confessou o crime? - perguntou Joe.
- Ainda não. Nós o informamos de seu direito de não responder a nenhuma pergunta, mas ele disse que isso não o preocupava. Passamos horas seguidas interrogando-o.
Ele jurou que nada sabia sobre a morte de Sally até o momento em que entrou no apartamento dela e encontrou-a caída no chão. Disse que foi imediatamente procurá-lo, esperando que pudesse ajudá-lo.
Joe foi até a cela de Waverly e sentou-se com ele no catre.
- O que me diz da arma, Frank? Segundo eles me falaram, a arma lhe pertence.
- Claro que é minha. Comprei-a na loja de ferragens Star, há três anos.
- E como explica o fato de sua arma ter sido usada no crime?
- Não tenho explicação. Só posso dizer que a arma foi roubada do meu chalé no Sugar Loaf Lake há pouco mais de uma semana. Comuniquei o fato ao xerife.
- E o que a arma estava fazendo no chalé?
Waverly hesitou por um momento, antes de responder:
- A arma era de Wanda. Comprei-a para ela.
- E como foi que entraram no chalé?
- Quebraram a janela com uma pedra e depois entraram por ela.
- Ainda é capaz de me jurar que não matou Sally?
- Joe, você sabe muito bem que não fui eu. Estou inocente. E peço que me ajude.
Joe saiu da cela. No corredor, deu de cara com Frazier Amanda, um dos melhores advogados criminais da cidade. Amanda cumprimentou-o com um aceno e seguiu direto para a cela de Waverly. Lá se iam pelo menos dez mil dólares do dinheiro de Waverly, disse Joe para si mesmo.
Ao se aproximar da casa dos Waverly, Joe viu uma mulher sair e entrar num táxi.
Ela parecia bastante transtornada e não lhe dirigiu a palavra, embora se conhecessem bastante bem. Era Elizabeth Andrews, a última sobrevivente de uma das mais antigas famílias de Fort Sanders e amiga de Wanda desde a infância. Talvez ela tivesse ido até lá para oferecer seus préstimos a Wanda. A história do assassinato de Sally e da prisão de Frank Waverly já devia ter sido amplamente divulgada.
Uma criada veio abrir a porta. Wanda Waverly apareceu no living quase em seguida.
- Estou contente por vê-lo, Joe.
- Wanda, que história absurda é essa de você ter ido ao Picardy Hotel com Harry Vallery?
Ela ficou vermelha, mas recuperou rapidamente o controle.
- Joe, meu marido, Frank... não tem... O Sr. Vallery é um homem encantador.
- E você é uma mentirosa encantadora, Wanda. Vamos, deixe-me ajudá-la. Você é uma mulher inteligente e tenho certeza de que não faria uma tolice dessas.
Ela riu.
- Para quem você está trabalhando, Joe? Para Frank?
- Exatamente. Mas não por dinheiro. Ele foi procurar-me ontem à noite, depois que encontrou o corpo da Srta. Caviness.
- Já sei de toda a história. A televisão não falou de outra coisa durante o dia inteiro. A polícia veio procurar-me esta manhã, mas eu não sabia de nada que pudesse ajudá-los. Pobre Frank! Eu já receava que ele fosse se meter numa encrenca qualquer, envolvendo-se com Sally Caviness.
- Frank contou-me que preparou uma armadilha para você ontem à noite, tendo tramado tudo com Harry Vallery.
Wanda tornou a rir, mas não disse nada.
- Vim procurá-la primeiro, Wanda. Se não for sincera comigo, irei procurar Harry Vallery. Há sempre meios legais de obrigar um rato como Vallery a falar.
Frank admitiu que tinha preparado a armadilha para você. E tenho certeza absoluta de que você jamais iria se apaixonar por um tipo como Harry Vallery. É uma mulher sensata demais para isso. Sei também que não foi ao hotel apenas para despertar ciúmes em Frank. Você jamais quis conceder o divórcio para que ele se casasse com Sally.
Não condigo entender por que você subitamente resolveu ir para um hotel com Harry Vallery.
Wanda fitou Joe em silêncio por vários segundos, sorrindo em seguida.
- Está bem, Joe. Eu compreendi logo, no instante mesmo em que você entrou nesta sala, que não descansaria enquanto não descobrisse a verdade. Não fui seduzida por aquele galante jovem Casanova, Harry Vallery. Ele é dez anos mais moço do que eu, uma mulher casada. Além disso... ora, simplesmente não sou desse tipo de mulher!
- Então por que...
- Era óbvio, desde o início, que Frank tinha contratado Harry para me seduzir.
Frank passara a fazer viagens para fora da cidade com uma freqüência cada vez maior, dando mais oportunidades para que Harry se encontrasse comigo. Harry levou-me para jantar fora por diversas vezes. Foi ficando cada vez mais ardente e finalmente convidou-me para acompanhá-lo a um hotel, com a maior delicadeza, é claro, insinuando que Frank andava se divertindo com Saliy, coisa que eu já sabia há muito tempo.
Wanda respirou fundo, antes de continuar:
- Subornei Harry com algum dinheiro e soube que Frank estava lhe pagando mil dólares para levar-me a um hotel. O objetivo de Frank era evidente: comprometerme, de forma a que eu não contestasse o pedido de divórcio que ele faria.
- E você então resolveu se colocar de pés e braços atados nas mãos dele?
- Exatamente. Mas eu também tinha um plano. Pagando mais do que Frank, arranquei de Harry a promessa de que ele contaria toda a sórdida história no tribunal, durante o processo de divórcio. Eu tinha certeza de que, quando a história fosse contada ao juiz, poderia fazer, juntamente com meu advogado, que Frank odiasse o dia em que conhecera Harry Vallery... ou Sally Caviness.
Joe assoviou.
- Eu detestaria ter que jogar pôquer com você, Wanda.
Ela riu.
- Não sou nenhum anjo, Joe. Meu pai não me deixou seu dinheiro para que um homem como Frank Waverly o levasse. E muito menos uma mulher como Sally Caviness.
Quando se trata de lutar com golpes baixos, posso ser tão ruim quanto qualquer outra pessoa. E até pior. Sempre fui capaz de odiar, Joe. Nunca esqueço, nunca perdôo.
- Está certo, Wanda. Ia perguntar-lhe o que deseja que eu faça com Frank. Afinal de contas, deve ter algum afeto por ele, depois de quinze anos de casados.
Por um momento, Wanda perdeu a serenidade e a atitude de desafio.
- Amei Frank profundamente, Joe. Dei a ele tudo o que eu tinha. Fui-lhe inteiramente fiel, tanto em pensamentos como em atos. Foi então que essa sem-vergonha da Sally Caviness apareceu na vida dele. Tudo o que ele queria de mim, ao longo dos dois últimos anos, foi que lhe concedesse o divórcio. Isso dói, Joe. Mas, além disso, ele queria também a parte do leão nos nossos bens comuns. Para Sally, Joe!
Ela agora estava rindo novamente. Joe teve a impressão de ela estava à beira da histeria.
- Gostaria de ter visto o rosto de Frank, quando entrou no apartamento dela e encontrou-a caída no chão, morta!
Naquela noite, Joe encontrou-se com Harry Vallery. Cinco minutos depois, Harry estava contando tudo o que sabia, como Frank Waverly realmente o contratara para seduzir a esposa dele, como Wanda desconfiara da trama e o convencera, oferecendo mais dinheiro, a trair Waverly.
- E quando foi que isso aconteceu, Harry?
- Há cerca de duas semanas atrás. Foi na noite em que o marido dela deveria estar em St. Louis. Ela disse que me acompanharia a um hotel, num falso encontro amoroso.
E realmente era falso.
Depois do jantar, Joe ficou andando de um lado para outro, desferindo socos no ar, volta e meia, e coçando os cabelos grisalhos e cortados rente. Assim ficou por mais de uma hora, murmurando de vez em quando:
- Mas que diabo! Mas que diabo!
Ele raciocinava que deveria haver uma quarta pessoa envolvida no crime. Não poderia ser Harry Vallery, pois os movimentos dele eram explicáveis, em todos os minutos, na noite do assassinato de Sally Caviness. Entre o momento em que Frank Waverly deixara o apartamento de Sally pela primeira vez e o instante em que voltara, encontrando-a morta, Harry Vallery estivera com Wanda Waverly, em seu próprio apartamento, a esperar um telefonema dela, ou então em companhia de Frank. Não poderia ter sido Wanda, embora Joe soubesse agora, desde o momento em que ela perdera a calma, da agonia que Wanda sentira por causa do caso entre Frank e Sally e também de sua amargura e do ódio que acalentara, não apenas por Sally, mas também por Frank. Ele sabia que Wanda era uma mulher impulsiva o bastante para matar Sally e que poderia tê-lo feito se a oportunidade se apresentasse. Mas o álibi de Wanda era incontestável, pois, na ocasião provável do crime, estava no hotel, com Harry Vallery. Hopp e Sauer haviam verificado no hotel, constatando que Wanda ali chegara às 9:15 horas, não mais saindo. Mandara subir café para o quarto às 9:30 e devolvera a bandeja às 10 horas.
E certamente não tinha sido Frank Waverly. Isto é, não havia qualquer razão para que ele tivesse cometido o crime, antes da incursão ao hotel, onde pensara ter surpreendido Wanda em flagrante de adultério. A armadilha fora preparada com o objetivo de permitir a Frank e Sally se casarem, deixando Wanda em tal posição que não mais pudesse negar o divórcio. Se Frank matara Sally quando fora ao apartamento dela pela segunda vez, então qual era o seu motivo? Por que ele apagara as impressões digitais da arma do crime, cuidadosamente, deixando-a em seguida no local do crime, escondida debaixo de uma almofada no divã, onde seria inevitavelmente descoberta? Não, não era plausível que Frank tivesse sido o assassino. A garrafa de champanha no balde de gelo indicava que Frank e Sally tinham planejado comemorar, se tudo corresse bem com a armadilha a Wanda, no Picardy Hotel.
Tinha que haver alguém mais, uma quarta pessoa envolvida naquele caso, uma pessoa que odiava Sally Caviness. Poderia ser um amante desprezado? Nunca se sabe quando um homem ciumento pode tornar-se violento. Mas se fora isso, como a arma de Waverly entrara na história? Uma coincidência? Seria possível que o amante desprezado tivesse arrombado o chalé de Waverly, roubado a arma e depois atirado com ela em Sally? Uma coincidência dessas era grande demais para ser possível.
Decididamente, alguém pretendia incriminar Frank Waveriy, prendê-lo numa ratoeira. Ratoeira? Joe parou abruptamente de andar e ficou coçando a cabeça.
Ratoeira... Joe sabia que, na concorrência comercial, uma firma às vezes simulava um movimento oposto às suas intenções, fazendo em seguida exatamente o inverso que estava simulando. Um criminoso esperto poderia também colocar uma isca na ratoeira, atraindo e prendendo a vítima inocente. Mas será que isso ocorrera no assassinato de Sally Caviness? Como um amador - ou amadora - esperto teria operado? Joe sentia que havia algo errado no assassinato de Sally Caviness, mas não conseguia ajustar todas as peças do quebra-cabeças.
Decidiu seguir a rotina das investigações policiais.
Foi até o hotel, fazendo as mesmas investigações que Sauer e Hopp já tinham efetuado. As informações sobre a estada de Wanda Waverly ali, o horário em que se registrara, o momento em que chamara a copa, a hora em que devolvera a bandeja, eram corretas. Em seguida, Joe foi até a sede da companhia de táxis da cidade. Será que Wanda fora para o Picardy em seu próprio carro ou pegara um táxi? Warverly contara que Vallery e Wanda haviam andado de carro durante cerca de meia hora, depois do flagrante no hotel. Mas ele não dissera se, após essa meia hora, Vallery levara Wanda diretamente para casa ou de volta ao hotel, onde o carro dela poderia estar, talvez estacionado na rua.
Não havia qualquer registro, na companhia de táxis, para um chamado do endereço dos Waverlys. Joe começou a verificar os chamados dos táxis para o Picardy, naquela noite. Tinha havido oito chamados. Cinco deles tinham sido no início da noite, entre seis e nove horas. Houvera um às 10:10 horas e mais dois por volta de meia-noite.
A chamada das 10:10 horas era interessante. O táxi que atendera era o n' 150, dirigido pelo motorista Chuck Frambers. O assistente do despachante localizou-o em casa. Claro que ele se lembrava da chamada. Era uma mulher bonita, em torno dos quarenta anos. Estava usando uma roupa azul. Ele a levara do hotel até a casa dela, na Rua 16 Norte, 201. Ele sabia o nome dela, mas não conseguia se lembrar naquele momento. Não, ela não estivera bebendo nem parecia uma prostituta. Ela loura e "realmente bonita", na opinião do motorista.
Uma verificação das chamadas entre 8:30 e 9:15 horas daquela noite não apresentou nenhuma para a Rua 16 Norte, 201. Mas isso nada significava. A mulher poderia ter ido para o hotel com outra pessoa, voltando depois de táxi, sozinha. Ou poderia ter saído de casa e seguido a pé, por uma curta distância, até a Main Street, pegando ali um táxi para o hotel. Ou poderia ter jantado em algum restaurante e de lá seguido para o hotel.
Nos velhos tempos, Joe poderia dizer os nomes de todas as pessoas que moravam na Rua 16 Norte. Era o melhor lugar da parte antiga do Fort Sanders. Ele resolveu passar o carro pelo número 201 da Rua 16 Norte. Estava intrigado com aquela mulher loura e bonita que voltara para casa sozinha, saindo do Picardy às 10:10 horas da noite, sem que lá tivesse ocorrido qualquer reunião feminina.
Antes, porém, Joe resolveu dar um pulo à outra companhia de táxis da cidade.
Teve sorte. Os registros dela mostravam que o táxi n" 235 recebera uma chamada para a Rua 16 Norte, 201, às 9:08 horas daquela noite. O motorista, Lem Johnson, foi chamado ao escritório.
- Claro que me lembro - disse ele. - Era uma mulher muito bonita, que peguei na casa de tijolos, muito antiga. Estava usando um vestido azul-claro. Não era dessas garotas enfeitadinhas que a gente vê por aí, mas uma mulher bonita de verdade.
Um pouco alta, mas com um corpo bonito. Nunca a tinha visto antes. Mas é que sou novo nesta cidade. Ela era morena, os cabelos tão pretos que chegavam a brilhar. Levei-a Para o Picardy Hotel. Ela parecia um pouco excitada. Mas posso garantir que não era nenhuma vigarista. É tudo o que posso dizer.
Loura... morena! Uma morena indo para o hotel, uma loura saindo do hotel! Afora isso, as descrições eram idênticas. Um daqueles motoristas devia ser cego para as cores. Joe foi até a Rua 16 Norte, 201. No caminho, lembrou-se subitamente.
Sabia quem morava ali. Mudou de rumo, indo para a delegacia.
Marty Sauer estava entrando em seu carro, dando por encerrado o dia de trabalho.
Joe guiou seu próprio carro até junto de Sauer.
- Entre no meu carro, Marty.
- Para quê?
- Vamos conversar com alguém.
- Sobre o quê?
- Você vem logo comigo ou prefere que eu chame o xerife?
Sauer acomodou-se ao lado de Joe.
- Para onde vamos, Joe?
- Vamos ter uma conversinha com a Srta. Elizabeth Andrews, sobre o caso Caviness.
Sauer assoviou.
- Nunca ouvi dizer que Frank Waverly estivesse também se engraçando com ela, Joe.
- Eu também não.
ele parou o carro diante de uma velha casa de tijolos, com colunas brancas, aparentemente precisando de reparos urgentes. Na frente da casa havia duas magnólias gigantescas. O jardim estava coberto de folhas mortas. O sol estava quase se pondo e um melro cantava numa das magnólias. Por cima da porta da frente havia uma placa quase apagada onde se lia: "Escola Dramática".
Joe tocou a antiquada campainha. Elizabeth Andrews veio abrir a porta, usando um casaco azul de uso caseiro. Era uma mulher de beleza expressiva e o penteado dos cabelos platinum Wonãe aparecia como uma verdadeira obra de arte.
- Oh, Sr. Chaviski! Quase não o reconhecia! Estou tão excitada que nem mais sei o que faço. Vou fechar minha escola, Sr. Chaviski.
- Fechar a escola?
Os olhos de Elizabeth estavam vermelhos. Ela estivera chorando. Levou os dois policiais para o living e só depois explicou:
- Isso mesmo, vou fechar a escola. Sairá um comunicado no jornal de domingo.
Voltarei para Hollywood. Masxsentem-se, cavalheiros, por favor. Em que posso servi-los?
- Vai voltar? - perguntou Joe.
- Exatamente. Estou certa de que ainda se lembra. Estive lá há muitos anos atrás. E é maravilhoso poder voltar.
- Foi contratada para outro filme?
- Não exatamente. Vou passar lá o inverno e conversar com meu agente. Tenho vontade de entrar para a televisão. Mas, Sr. Chaviski, esse é...
- Marty Sauer. Detetive Marty Sauer, da polícia.
- Da polícia? Oh, meu Deus! Acho que passei muito tempo sem acompanhar o que estava acontecendo ao meu redor. Mas por que vieram me visitar?
- Para falar sobre o caso Frank Waverly - disse Joe, abruptamente.
O rosto de Elizabeth empalideceu subitamente, ficando em seguida muito vermelho.
- É muito amiga de Wanda Waverly, não é mesmo? Eu a vi saindo da casa dela, ontem à tarde.
- É uma amiga muito querida, Sr. Chaviski. Fiquei abalada quando soube pela televisão da morte de Sally Caviness e da prisão de Frank Waverly. E fui imediatamente
procurar Wanda. Ela não merecia uma coisa dessas. Foi ela quem fez Frank ser o que ele é hoje. Frank não era ninguém, até se casar com Wanda.
- Sei disso.
Joe correu os olhos pela sala. Num dos cantos do teto estava faltando um pedaço do reboco, do tamanho de sua mão. Havia diversas rachaduras no reboco da parede do outro lado. O forro da poltrona em que ele estava sentado tinha alguns rasgões e estava bastante puído. O tapete estava gasto demais junto à porta e diante das poltronas.
- Viemos buscá-la para irmos todos conversar com Wanda - disse Joe.
- Mas Wanda não quer mais conversar comigo. Já fiz tudo o que podia.
- Creio que ainda falta alguma coisa.
Joe sorriu, embora sem a menor disposição. Ela o examinou atentamente por um momento.
- Está bem, Sr. Chaviski. Espere por um instante, enquanto me arrumo.
Elizabeth ficou calada durante toda a viagem até a casa dos Waverlys. Ao vê-los, Wanda ficou muito pálida, mas manteve a cabeça erguida.
- Você de novo, Joe? E você também, Liz? Joe foi direto ao ponto:
- Este é o detetive Marty Sauer, da polícia, Wanda. Estivemos verificando os movimentos da Srta. Andrews na noite em que Sally Caviness foi assassinada.
Elizabeth soergueu-se da poltrona, levando as mãos à boca.
- Wanda, eu não contei nada a eles!
- Não quer nos contar logo o que aconteceu, Wanda? - perguntou Joe.
- Contar o que, Joe?
- Até que ponto a Srta, Andrews está envolvida neste caso com você, Wanda.
Seria uma pena que ela perdesse a oportunidade de voltar para Hollywood.
Pela primeira vez, Wanda baixou a cabeça. E começou a falar, em voz quase inaudível:
- Sei que não adianta querer negar. Você não estaria aqui, Joe, se já não tivesse imaginado tudo. E eu julguei estar sendo tão esperta!
Ela fez uma rápida pausa, tornando a levantar a cabeça. Ao voltar a falar, a voz tinha novamente o mesmo tom de desafio anterior:
- Elizabeth é totalmente inocente, Joe. Mas que diabo!
Ela abrandou a imprecação com um sorriso, antes de acrescentar:
- Ela somou dois mais dois, ao ouvir na televisão a notícia da morte de Sally, vindo imediatamente procurar-me, Eu disse a ela que ficasse de boca fechada, que esquecesse o que não sabia, apenas desconfiava. Em troca, eu pagaria as despesas de estada dela em Hollywood, pelo menos durante seis meses.
- Eu não contei nada a eles, Wanda! - repetiu Elizabeth.
Wanda sorriu.
- Não se preocupe, Elizabeth. O nosso pequeno acordo continua de pé. Se quer saber, Joe, a única coisa que Elizabeth tinha feito por mim, até ontem, fora passar cerca de uma hora no Picardy, representando o papel de Wanda Waverly. Eu sabia que ela precisava desesperadamente de dinheiro e prometi que lhe pagaria 200 dólares, se se registrasse no hotel com o meu nome. Eu disse a ela que Frank estava querendo me armar uma armadilha e que precisaria, para evitá-la, estar em dois lugares naquela noite, ao mesmo tempo. Ela aceitou. Foi cedo para o hotel, vestindo roupas iguais às minhas, com uma peruca de cabelos pretos, igual aos meus cabelos naturais.
Ligou para a copa vinte minutos depois, como eu a havia instruído, pedindo que lhe mandassem alguma coisa para o quarto. O objetiva era comprovar que eu estava no quarto naquela ocasião. Algum tempo depois, ela mandou a bandeja de volta, dando uma boa gorjeta ao garçom, para que ele não esquecesse. O homem da portaria não conhecia nenhuma de nós duas. Isso é tudo o que Elizabeth sabe ou fez.
- Não vamos apresentar nenhuma acusação contra a Srta. Andrews - disse Joe, embora soubesse que ela seria uma testemunha-chave, no caso de um julgamento.
Wanda continuou:
- Quando o ódio domina uma pessoa, ela se torna cega à luz da razão. Aos meus olhos, Frank tornou-se desprezível. Na verdade, passei a odiá-lo mais do que odiava a Sally. Não se tratava apenas de proteger o meu dinheiro, o dinheiro que meu pai me deixara. Eu queria ferir Frank, da pior maneira possível.
- E por isso armou uma ratoeira para ele - disse Joe. - Entrou no acordo com Harry Vallery, preparando-se assim um álibi perfeito. Combinou com a Srta. Andrews para que ela se registrasse no hotel, com seu nome. Tinha acertado com Vallery que ligaria para o apartamento dele, assim que estivesse pronta. Ele iria ao seu quarto no hotel, sendo seguido, quinze minutos depois, por seu marido, o fotógrafo e outras testemunhas.
- Foi isso mesmo, Joe. Enquanto Elizabeth se registrava no Picardy com meu nome, eu estava esperando na rua, a meio quarteirão do Superior Arms, que Frank saísse do apartamento de Sally. É claro que eu sabia há meses onde ficava o ninho de amor deles. Tinha comigo a pequena automática, a mesma que fora dada como roubada do nosso chalé nas montanhas. Frank saiu por volta das nove e meia, entrou em seu carro e foi encontrar-se com Harry, no apartamento dele. Entrei imediatamente no Superior Arms, usando uma peruca loura, para o caso de cruzar com alguém, o que não aconteceu. Sally não me reconheceu com a peruca, ao entreabrir apenas uma fresta da porta. Eu disse que tinha um recado de Harry Vallery e ela me deixou entrar.
Tirei então a peruca, para que ela soubesse quem eu era, liguei a vitrola e dei três tiros nela, enquanto me suplicava por misericórdia. O resto, você já sabe.
Joe assentiu.
- Você foi para o hotel, Wanda onde tomou o lugar da Srta. Andrews, telefonando em seguida para Harry Vallery. Imaginava que tinha o álibi perfeito, que todos pensariam que passara a noite inteira no hotel, chegando lá muito antes de seu encontro com Harry Vallery. E seu marido e os outros intrusos seriam as testemunhas de que você não poderia ter cometido o crime.
Wanda levantou a cabeça, num gesto digno de uma rainha.
- Matar Sally proporcionou-me mais satisfação do que qualquer outra coisa que já fiz na vida - disse ela.
Elijah Ellis
O ASSASSINO TRANQÜILO
O suspeito do assalto parecia ser a pessoa mais calma entre todas as que se encontravam no gabinete do xerife. Era um homem baixo, magro, de meia-idade, de cabelos grisalhos. Havia algo que se assemelhava a uma centelha em seus olhos mortiços, enquanto examinava lentamente as testemunhas, depois o xerife Ed Carson, e finalmente a mim. Ele ignorou completamente os dois assistentes do xerife, que também estavam na sala.
Ed Carson estava sentado atrás de sua escrivaninha, examinando as anotações que fizera, enquanto as testemunhas, um homem chamado Jess Harper e sua esposa, Selena, tinham prestado seus depoimentos.
- Vamos ver se confere - disse o xerife. - Esse homem entrou na sua loja, na Rodovia Oeste, por volta das oito horas, cerca de uma hora atrás. E...
- Vi logo quem ele era - interrompeu Jess Harper. Era um homem barrigudo, parcialmente oculto por trás da nuvem de fumaça do charuto que tinha na boca.
- Reconheci-o pela descrição que saiu nos jornais.
- Entendo. Mas vamos à história. Não havia nenhum freguês na loja naquele momento. O homem foi direto ao lugar em que você estava, Jess, atrás do balcão, e sacou uma arma. E mandou que lhe entregasse todo o dinheiro que havia na caixa registradora.
- Foi isso mesmo. Tentei ganhar tempo, à espera de uma oportunidade de desarmá-lo.
Harper passou o charuto para o outro canto da boca, lançando um olhar duro para o prisioneiro.
- Fui até a caixa registradora, fingindo que estava apavorado. Ele me seguiu. A arma estava um pouco baixa, mais ou menos escondida pelo casaco. Mas apontava-a diretamente para mim.
O xerife esperou pacientemente que Harper contasse outra vez toda a história. Só depois é que disse:
- Vamos ver se eu entendi direito, Jess. Você tirou o dinheiro da caixa registradora e o estendeu para ele. Nesse exato momento, sua esposa veio dos fundos da loja e soltou um grito. O assaltante virou-se para ela...
- E foi nesse instante que eu o agarrei - disse Harper, jovialmente. - Arranquei a arma da mão dele e joguei-o ao chão. Disse-lhe que, se mexesse um só músculo, eu pularia com os dois pés em cima dele.
O prisioneiro mudou de posição na cadeira, encostada à parede, com um assistente do xerife de cada lado. Não tinha os dentes superiores da frente e falava com um cicio acentuado:
- O Sr. Harper é um homem muito forte. Houve um breve momento de silêncio. Ed Carson olhou para Selena Harper. Era uma mulher magra e encurvada, usando óculos sem aros, que volta e meia escorregavam do nariz. Raramente tirava os olhos do marido.
- Foi assim mesmo, Sra. Harper? - perguntou Carson. - Foi exatamente isso o que aconteceu lá na loja?
Ela ssentiu, timidamente.
- Foi, sim, senhor. Assim que Jess derrubou aquele homem no chão, mandou que eu ligasse para a polícia.
Restavam ainda mais alguns pequenos detalhes para serem esclarecidos e depois o xerife disse aos Harpers que podiam se retirar. Jess Harper estava ansioso mesmo para ir embora.
- Ainda falta mais de uma hora para o fechamento da loja - disse ele, encaminhando-se para a porta, deixando uma nuvem de fumaça em sua esteira. - E estamos na noite de sábado, a melhor da semana para os negócios. Vamos indo, Selena.
A esposa seguiu atrás dele, submissa. Parou à porta, sacudiu a cabeça para Carson e para mim, lançou um olhar rápido para o prisioneiro e depois saiu da sala.
O prisioneiro, que declarara chamar-se Roy Falk, disse suavemente:
- Foi a mulher quem me desarmou, se isso faz alguma diferença. Ela veio por trás de mim e começou a me bater com uma vassoura. Até esse momento, aquele boca mole estava verde de medo. Só depois que a mulher derrubou a arma da minha mão é que ele me atacou.
Fiquei observando Falk, enquanto ele levantava as mãos algemadas para o rosto, enxugando o suor. Era uma noite de verão e o ventilador antigo do teto não fazia muita coisa para atenuar o calor úmido e sufocante. Era difícil de acreditar que aquele homenzinho de aparência suave praticara mais de uma dúzia de assaltos a mão armada na região, nos últimos dois meses. Mas era verdade. Não restava a menor dúvida de que se tratava do mesmo homem.
Os olhos azuis desbotados sustentaram o meu olhar. Ele me deu um sorriso desdentado e disse:
- Como é o promotor do condado, Sr. Gates, calculo que deve ser o encarregado de levar-me a julgamento. Mas acho que nem é preciso um julgamento. Acho que está na hora de me aposentar. A gente sabe logo que deve parar, quando se é derrotado por uma mulher esquelética.
O Xerife Ed Carson disse:
- Eu gostaria de saber como é que você conseguiu escapar por tanto tempo. Como pôde sumir inteiramente, depois de todos os assaltos que praticou?
Ao invés de responder, Falk levantou as mãos algemadas até a cabeça e deu um puxão. Os cabelos grisalhos saíram no mesmo instante. Era uma peruca. Vimos então que ele tinha a cabeça calva como um ovo, exceto por alguns fios por cima das orelhas. Ele jogou a peruca em cima da mesa de Carson e depois meteu uma das mãos no bolso do casaco de sarja, tirando um objeto brilhante, que ajustou na boca. E sorriu para nós, desta vez com todos os dentes da frente. Parecia radicalmente diferente e também familiar.
- É isso mesmo - disse ele, sacudindo a cabeça. Vocês todos me conhecem. Venho trabalhando durante o dia no Café do Tribunal, do outro lado da praça.
Ele soltou uma risada e acrescentou:
- Xerife, já lhe preparei muitos hctniburgers. E para o Sr. Gates também.
Carson deixou escapar um gemido. Buck Mullins, um de seus assistentes, deixou escapar uma gargalhada súbita, no que foi acompanhado pelo outro assistente.
- Esperem só até que o jornal saiba disso! - murmurou Mullins. - Não vai ser fácil!
Estremeci involuntariamente. O editor do jornal de Monroe, o Heráld-Gozette, não morria de simpatia pelo Carson e por mim. Eu nem queria pensar no que ele faria com aquela revelação.
Interrogamos Falk por mais algum tempo. Ele prontamente confessou sua culpa, chegando mesmo a esclarecer dois assaltos que praticara contra postos de gasolina num condado vizinho, dos quais não tínhamos conhecimento. Ao final, o xerife levantou os braços, num gesto de desespero.
- Buck, leve-o para a cela. Voltaremos a interrogá-lo amanhã de manhã.
Cumprimentando-nos cordialmente, Falk saiu da sala, seguido pelo assistente do xerife, um homem grandalhão e desajeitado. Suspirei, comentando:
- Falando em anticlímax, lá vai um incomparável. Carson mordiscou a ponta inferior do bigode grisalho.
- Não sei não, Lon. Ele se saiu muito bem, até agora. Fico imaginando...
O telefone tocou. A um aceno de Carson, seu outro assistente, Jack Avery, atravessou a sala para atender, numa extensão em outra mesa. Pelo que ouvi da conversa dele, calculei que era alguém se queixando de um cachorro que latia demais.
Olhei para meu relógio. Ainda faltavam quinze minutos para nove horas. Tinha tempo para levar minha esposa a tomar uns drinques, em algum canto. Levantei-me.
- De uma coisa tenho certeza, Ed: esse sujeito tem um descaramento como eu nunca vi. Que coragem a dele, trabalhando a menos de 200 metros daqui!
O xerife teve um sorriso amargo.
- Tem razão, Lon. Até amanhã.
Foi nesse momento que ouvimos passos em disparada pelo corredor. Um instante depois, Buck Mullins entrou correndo pela porta aberta da sala do xerife, esfregando o lado do pescoço.
- Xerife, aquele sujeito conseguiu escapar!
Por alguns segundos, pensei que o imenso e musculoso assistente do xerife estava querendo caçoar de nós. Ele baixou a mão. Vi então o vergão roxo em seu pescoço,
um pouco abaixo da orelha direita, as lágrimas em seus olhos. E vi também o coldre vazio, preso ao cinto.
Carson ergueu-se de um pulo.
- O que aconteceu?
- Estávamos atravessando o estacionamento, na direção da cadeia - balbuciou Mullins, engolindo em seco, - No meio do estacionamento, ele apontou para a rua e perguntou: "O que é aquilo?" E eu... eu olhei! A coisa seguinte de que me lembro é de estar caído no chão, de costas. Ele me acertou com as algemas. Depois arrancou minha arma e sumiu.
- E para que lado fugiu? - perguntei.
Mullins sacudiu a cabeça, com uma expressão desolada.
- Não sei. Não cheguei a desmaiar, mas fiquei como se estivesse paralisado, por um minuto inteiro. Pude ouvi-lo correndo, mas não sei para que lado ele foi.
Carson deixou escapar uma sucessão de palavrões,, dizendo ao final:
- A culpa foi minha. Fiquei sentado e deixei que ele me enganasse, como...
- Ele enganou a todos nós - disse eu. - Mas não faz mais de dois minutos que Buck levou-o daqui. Ele não deve estar muito longe.
Enquanto Carson comunicava apressadamente a fuga a toda a polícia de Monroe, o assistente Avery abria o armário das armas e entregava espingardas de motim carregadas a Buck Mullins e a mim.
Nós quatro saímos em seguida da sala, atravessando rapidamente o corredor do andar térreo e saindo pela porta às escuras do tribunal. Um caminho de carros cortava a praça naquele ponto. Logo depois ficava o estacionamento, um retângulo coberto de cascalho, margeado por sebes altas dos dois lados. O prédio de tijolos da cadeia, com dois andares, ficava na extremidade mais distante do estacionamento, a cerca de cem metros de distância.
- Não se esqueçam de que ele está armado - avisou Carson.
Separamo-nos então, cada homem seguindo para um lado da praça. Era uma noite escura e nublada, o vento soprando, com relâmpagos riscando o céu de vez em quando, bem longe. As árvores espalhadas pelo amplo gramado curvavam-se ao vento.
Eu estava coberto de suor quando cheguei à minha extremidade da praça. Os dedos doíam de tanto apertar a coronha da espingarda de cano curto. E Roy Falk passara de um homenzinho calvo e insignificante para um ogro de três metros de altura. Parei na esquina da praça, um cruzamento profusamente iluminado, com o tráfego intenso típico das noites de sábado, muita gente andando pela calçada, entrando e saindo das lojas que ficavam do outro lado da rua. Encostei a espingarda numa árvore e acendi um cigarro. Bem que estava precisando.
Um carro da polícia passou por mim. Freou mais adiante, com um ranger dos pneus, dando marcha à ré rapidamente. O farolete incidiu sobre meu rosto. Uma voz resmungou do interior do carro:
- Ei, é o promotor do condado! Encontrou-o, Sr. Gates?
Sacudi a cabeça.
- Ele não deve estar muito longe, atrapalhado como anda pelas algemas.
Concordei e o carro partiu novamente. Falk ainda poderia estar com as algemas nos pulsos, mas estas não iriam atrapalhar sua capacidade de disparar uma arma.
Eu torcia para que o recapturássemos, antes que ele matasse alguém. Especialmente se esse alguém fosse eu mesmo.
Suspendendo outra vez a espingarda, tornei a atravessar o gramado, de volta ao prédio do tribunal. A sala do xerife estava vazia quando cheguei lá, mas Carson apareceu um momento depois.
Ele também não tivera sorte. Os dois assistentes continuavam a procurar Falk pela praça.
Carson pegou o telefone. Os policiais da cidade nada tinham a informar. A patrulha rodoviária, sediada em Monroe e que também se juntara à busca, igualmente nada tinha a comunicar.
Carson desligou finalmente. Soltou um suspiro. Cerrou o punho, fitando-o pensativo, antes de desferir um murro em cima da mesa.
- Concordo plenamente - disse eu.
Eram nove horas da noite. Falk conseguira escapar há quinze minutos apenas. Não poderia deixar de ser recapturado em breve. Até onde ele conseguiria ir, algemado, em pleno centro da cidade, numa movimentada noite de sábado?
Fora essa a nossa única e minguada sorte: Falk não encontrara a chave das algemas, ao revistar Mullins rapidamente, depois de tê-lo derrubado. Buck Mullins metera a chave na carneira do chapéu.
O telefone tocou e Carson atendeu. Sua expressão de expectativa transformou-se numa máscara de raiva amargurada.
- Não, não tenho nenhuma declaração a fazer. Absolutamente nenhuma. O quê? Tem razão, tenho certeza de que encontrará alguém que lhe contará o que aconteceu.
Sempre o consegue.
Ele bateu com o telefone, furiosamente.
- Jeremiah Walton? - perguntei.
- Quem mais podia ser? Ele estava transbordando de alegria.
- Pelo menos não conseguirá dizer o que pensa de nós até segunda-feira. O jornal dele não sai aos domingos.
Carson franziu o rosto, amargurado.
- Está esquecendo que ele é também o proprietário da emissora de rádio. E pode ter certeza de que vão começar a transmitir a notícia da fuga daqui a pouco, falando sobre o caso de minuto em minuto.
Eu imaginara antes que não poderia me sentir pior. Mas agora eu me sentia pior ainda. E quando os minutos foram se escoando lentamente, quando as nove e meia chegaram e passaram, eu me senti muito pior. Minha esposa telefonou. Tinha ouvido a notícia pelo rádio, em casa. Prometi-lhe que não cometeria suicídio sem avisá-la antes.
Houve outros telefonemas, mas todos, somados, indicavam apenas uma coisa: Roy Falk conseguira realizar outro dos seus fantásticos atos de desaparecimento. E não havia a menor pista de como ou para onde ele fora. Não tínhamos a menor idéia do lugar em que provavelmente fora se esconder.
- Ele deve ter encontrado um carro com as chaves na ignição, numa das ruas próximas do parque - comentei. - Não demora muito para que alguém ligue para nós, informando que seu carro desapareceu.
Carson assentiu, distraidamente.
- Só pode ter sido isso. Mas com um sujeito escorregadio como ele, não há condição...
Ele parou de falar no momento em que seus dois assistentes entraram. Buck Mullins dava a impressão de que iria começar a uivar a qualquer momento. Ainda estava esfregando o vergão inchado no pescoço.
- Não encontramos a menor pista - disse Avery, a voz cansada. - Ele só pode ter-se evaporado no ar.
- Estou quase acreditando nisso - declarei.
Mullins repetiu a mesma teoria que eu enunciara um momento antes, de que Falk devia ter-se apoderado de algum carro estacionado perto da praça ou detido algum carro
que passava, obrigando o motorista, sob a ameaça do revólver, a tirá-lo da cidade o mais depressa possível.
Depois, com o rosto muito pálido, o imenso assistente do xerife formulou em voz alta a apreensão que dominava a todos nós:
- Será que, a esta altura, ele já atirou em alguém? Ninguém se deu ao trabalho de responder, até cinco minutos depois, quando o telefone tocou. Carson atendeu. Escutou por um momento e em seguida disse, a voz estridente:
- Já estamos indo para aí.
Ele repôs o fone no gancho e levantou-se rapidamente. Fitando-o, perguntei:
- O que aconteceu?
Carson estava olhando para Buck Mullins no momento em que respondeu:
- Você acertou em cheio. Ele atirou em alguém. E há poucos instantes, lá na loja do Harper.
Era apenas a quinze minutos de carro do prédio do tribunal, na parte oeste de Monroe, já na estrada, que ficavam a mercearia e o posto de gasolina de Jess Harper.
Conseguimos chegar lá em oito minutos.
Selena Harper estava recostada num balcão de mercadorias, logo depois da porta.
Ao entrarmos correndo, ela se virou, piscou para nós, com uma expressão vaga, balbuciando:
- Ele... aquele homem... ele voltou...
Jesse Harper estava caído no chão, com o rosto virado para baixo, entre duas estantes repletas de latas. O xerife foi até lá, ajoelhou-se e levantou a cabeça de Harper. Depois, rapidamente, Carson ergueu-se, murmurando para mim:
- Ele levou um tiro bem na testa. Morreu antes de bater no chão.
A mulher nos seguira. E repetiu:
- Ele voltou. Parece que não faz mais que um minuto. Jess e eu estávamos nos preparando para fechar a loja.
Tiramos a mulher dali e a sentamos numa cadeira de madeira, que encontrei atrás do balcão, carregando-a para fora. Ela estava por demais aturdida. Eu e Carson ficamos conversando com ela, enquanto os dois assistentes vasculhavam a loja e o terreno ao redor.
- Jess estava indo para a porta da frente, a fim de trancá-la - balbuciou a mulher, contemplando as mãos calosas, cruzadas sobre o colo. - Tivemos muito movimento,
como sempre acontece nas noites de sábado. Foi quando ouvimos no rádio que aquele homem tinha escapado que Jess decidiu fechar mais cedo. O homem apareceu de repente, apontando um revólver para Jess e obrigando-o a recuar. E quando Jess chegou ao lugar em que está agora, o homem levantou o revólver e atirou. Disse alguma coisa como "Você fala demais". E depois acrescentou: "Agora vou levar seu dinheiro, pode ter certeza". E atirou em Jess...
Notei que o queixo da mulher estava machucado e perguntei:
- Você foi ferida?
Ela piscou repetidas vezes para mim, por trás dos óculos.
- Eu? Ah, sim! Está falando disto?
Ela tocou na escoriação no queixo, sacudindo a cabeça.
- Não. Machuquei-me assim quando aquele homem me empurrou, para que eu não ficasse em seu caminho, depois de ter atirado em Jess. Caí, batendo no balcão, ao lado da caixa registradora.
Carson perguntou gentilmente:
- E o que aconteceu em seguida?
- Ele abriu a caixa registradora e tirou as notas. Devia haver pelo menos 200 dólares. Meteu o dinheiro no bolso e recuou até a porta. E sempre apontando o revólver para mim. Eu... eu...
A mulher enterrou o rosto nas mãos. Seus ombros magros foram sacudidos por soluços. Olhei para Carson, por cima da cabeça abaixada da viúva. Ele afastou-se e foi até o lugar em que estava Avery, telefonando para chamar o médico legista de Monroe. Eu disse então:
- Sra. Harper, procure se controlar por mais um pouco. Ele estava de carro?
Ela assentiu, sem levantar a cabeça.
- Ouvi-o partir de carro, depois que saiu da loja. Seguiu para oeste, correndo muito.
- Tem certeza de que era o mesmo homem? Tem certeza de que era Roy Falk?
Ela tornou a assentir.
- Claro que era. Eu o reconheci no momento em que ele entrou. Por que ele tinha de voltar e atirar em Jess? Talvez Jess falasse um pouco demais, talvez adorasse um dólar um pouco em excesso, mas não fazia mal a ninguém.
Desajeitadamente, dei umas pancadinhas no ombro dela. Carson voltou, o rosto ainda mais enrugado do que o habitual.
- O doutor disse que virá assim que puder, Lon. Ele ficou olhando para a mulher frágil a soluçar e depois suspirou.
Doe Johnson chegou numa ambulância, alguns minutos depois. Examinou o corpo rapidamente e depois fez um gesto, chamando ao xerife e a mim para um canto da loja.
- Ele levou dois tiros, um no pescoço e outro na cabeça. Quase todo o sangue provém do ferimento no pescoço, mas foi o tiro na testa que o matou. As balas ainda estão na cabeça dele. Vou retirá-las quando fizer a autópsia.
Doe afastou-se, para supervisionar o trabalho dos homens da ambulância, que puseram o corpo numa maca e depois levaram-no para fora da loja. A Sra. Harper parecia não perceber o que acontecia ao seu redor. Não levantou a cabeça até que o gemido da sirene da ambulância cortou a noite, na volta para a cidade.
Só então ela se levantou. Como um robô, subiu, por uma passagem entre as prateleiras, descendo por outra, parando para rearrumar algumas latas ali, endireitando uma fileira de caixas mais adiante. Estava, visivelmente, em estado de choque.
Eu já ia me encaminhando na direção dela quando Carson pôs a mão em meu braço, murmurando:
- Não há nada que você possa fazer agora por ela. Quando terminamos tudo e estávamos prontos para partir, ela a princípio recusou-se a acompanhar-nos, repetindo em tom monótono que o lugar dela era ali, que pretendia continuar ali.
Mas o xerife insistiu:
- Não quero assustá-la, Sra. Harper, mas Falk pode voltar mais uma vez. É a única testemunha de que ele assassinou seu marido. Compreende agora? É melhor ir conosco.
Ela arregalou os olhos vermelhos, balbuciando:
- Eu não tinha pensado nisso, xerife. Está bem, eu vou com o senhor.
A viagem de volta à cidade e ao prédio do tribunal transcorreu em silêncio quase total. Chegando à sua sala, Carson acomodou a mulher numa cadeira e arranjou um copo com água para ela. Eu continuava esperando que ela desmoronasse a qualquer momento. Mas tal não aconteceu. Era muito mais resistente do que eu imaginara.
As informações começaram a chegar, de todos os cantos. Todo o Estado estava agora em estado de alerta, à procura do homem. Mas ainda não havia o menor sinal de Roy Falk.
Conversamos mais um pouco com a Sra. Harper, Na verdade, depois de algum tempo, comecei a pensar que Carson estava exagerando, com a sua insistência em continuar a interrogá-la.
Depois, uma série de impressões desconexas, que estavam roendo um canto da minha mente, ajustaram-se subitamente umas às outras, formando um quadro compreensível Cheguei a ofegar, ao compreender a verdade. Mas o espetáculo era do xerife e continuei de boca fechada.
- Deixe-me ver se compreendi tudo perfeitamente, Sra. Harper - disse Carson. - Falk voltou a entrar na loja por volta das 9:45 horas. Ainda estava de algemas e empunhava o revólver com as duas mãos. Hum, hum... Bom, depois disso...
Selena Harper interrompeu-o:
- Sr. Carson, estou muito cansada. Não agüento mais. Quero voltar para o hotel e me deitar. Quero ver se consigo dormir um pouco, tentar pensar no que vou fazer, agora que... agora que estou sozinha no mundo.
- Claro, claro - disse o xerife, gentilmente. - Só mais um minuto, Sra. Harper.
Há uma última coisa que ainda não compreendi muito bem. Gostaria que me dissesse, exatamente, por que matou seu marido, Sra. Harper.
Por um longo momento, ela ficou olhando para o xerife em silêncio, aturdida.
- Não vai adiantar negar, Sra. Harper - disse Carson, ainda gentilmente. - Em primeiro lugar, denunciou todo o seu plano ao dizer que reconheceu Falk imediatamente, que ele estava exatamente igual como quando o vira pela última vez, aqui nesta sala. Mas isso absolutamente não podia ter acontecido, Sra. Falk. Viu nesta sala um homem de cabelos grisalhos e sem os dentes da frente. Mas os cabelos eram uma peruca, que neste momento está em cima de minha mesa. Falk era inteiramente calvo. E quando ele escapou, tinha acabado de pôr na boca os dentes postiços da frente. E ele não tinha qualquer motivo para tirá-los em seguida.
A mulher começou a levantar-se. Mas mudou de idéia, tornando a afundar na cadeira. Os olhos pálidos dardejavam de um lado para outro.
- Está completamente doido, xerife! - balbuciou ela. - Doido mesmo...
Carson continuou, como se ela não tivesse falado:
- Em segundo lugar, Sra. Harper, afirmou que Falk apontou a arma diretamente para a cabeça do seu marido e disparou. Mas o revólver que Roy Falk tirou do meu assistente era de calibre 45, Sra. Harper. Disparada de perto, uma arma dessas teria praticamente arrancado a cabeça de seu marido. Não, Sra. Harper, tenho certeza de que as coisas não aconteceram da maneira como contou.
Silêncio. Depois, Selena Harper respirou fundo e deu de ombros.
- Está bem, está bem...
Os lábios finos assumiram uma expressão furiosa. Quando ela voltou a falar, a voz era dura, muito clara:
- Ele já estava merecendo isso há muito tempo. Obrigava-me a trabalhar como um burro de carga, tratava-me ainda pior. Foi assim que me machuquei no queixo, quando ele bateu em mim, esta noite. Só porque eu queria fechar a loja mais cedo, por uma única vez. Mas Jess Harper não era homem de admitir tal coisa. Não se ele ainda podia ganhar um dólar, continuando com a loja aberta.
Os dois assistentes do xerife entraram na sala e formamos um semicírculo irregular diante da mulher, que estava sentada na cadeira, agora muito ereta, destilando seu ódio.
- Ouvi pelo rádio a notícia de que aquele homem tinha conseguido escapar de vocês. Senti então o que ia fazer. Havia uma arma que guardávamos nos fundos da loja, uma arma pequena. Não conheço nada de armas, apenas o suficiente para mirar e puxar o gatilho...
Ela falou muito mais ainda, mas a maior parte foi repetição. Depois de matar o marido, ela escondera a arma e o dinheiro da caixa registradora num- buraco no tronco de uma árvore, no quintal atrás da loja, antes de nos telefonar.
O caso estava resolvido.
Continuamos parados no mesmo lugar, fitando-a, uma mulher esquelética e apagada, que não parava de ajeitar os óculos, sempre a escorregarem por seu nariz.
Finalmente, Ed Carson suspirou.
- Bem, isso deixa Roy Falk de fora, pelo menos com relação a este assassinato.
- É a melhor notícia que tive esta noite - disse uma voz da porta que dava para o corredor.
Todos nós nos viramos imediatamente. Roy Falk estava parado à porta, as mãos algemadas pendendo à frente do corpo, a cabeça calva reluzindo à luz do teto.
- Com todos os diabos! - resmungou o xerife. Falk soltou uma risada desdenhosa, - Andei pensando e cheguei à conclusão de que não havia lugar algum para onde fugir... ou coisa alguma que pudesse fazer lá, se existisse e eu conseguisse alcançá-lo.
- Mas onde é que você estava metido? - gritei.
Falk entrou na sala.
- Não é mistério nenhum, Sr. Gates. Assim que me desvencilhei daquele sujeito ali, voltei para este prédio e subi até o terceiro' andar. E fiquei lá desde então, no banheiro dos homens. Irá encontrar seu revólver lá em cima, Sr. Mullins.
Ficamos olhando para o homenzinho, perplexos. Ele era, sem a menor dúvida, a pessoa mais calma no escritório do xerife.
Richard Deming
UM ELEMENTO DE RISCO
Quando soube que meu cunhado ia sair da cidade por uma semana inteira, fiquei bastante preocupado com a idéia de que minha irmã iria passar sete noites sozinha, quando havia um assassino psicótico à solta na cidade. Eu estava almoçando com eles, no domingo, quando Lyle declarou que iria para Chicago de avião na manhã seguinte.
- E quanto tempo vai demorar lá? - perguntei.
- Estarei de volta na outra segunda-feira.
- Sete dias! - exclamei, em voz tão alta que assustei o pequeno Tod, levando-o a derramar a colher cheia de purê de batatas e molho em cima da bandeja de sua cadeira alta. - Vai deixar Martha sozinha nesta casa durante sete dias?
No instante em que pronunciei as palavras, arrependi-me de haver alteado a voz.
Eu gostava de Lyle, mas ele era tão sensível que se tinha de tomar cuidado na maneira como se lhe falava. Eu já o vira omitir-se abruptamente em alguma conversa, diante de uma pequena ofensa imaginária, sem pronunciar mais uma única palavra durante horas a fio.
Martha estava pensando a mesma coisa que eu, porque lançou um olhar preocupado para Lyle. Desta vez, porém, ele permaneceu imperturbável. Aliviada, ela disse, em tom alegre:
- Terei Tod para me proteger.
Grande coisa. Meu sobrinho e xará estava com dois anos e meio. O menino, cuja cadeira alta estava colocada entre mim e minha irmã, olhou para mim e para a mãe, perguntando em seguida:
- Por que Tio Tod fala tão alto?
- Porque ele tem uma imaginação muito grande disse minha irmã. - E agora trate de comer.
Mas minhas apreensões nada tinham de imaginárias. O fantasma conhecido como Assassino da Meia já havia estrangulado seis mulheres da cidade, com as próprias meias das vítimas. Chegara mesmo a inspirar outro par de malucos a imitá-lo, um em Kansas City e outro em Chicago, cada um matando uma vítima. Todas as seis mulheres assassinadas em St. Louis eram casadas, jovens e bonitas. Estavam sozinhas em casa no momento em que tinham sido mortas. Em dois casos, os maridos tinham saído da cidade, mas nos outros quatro estavam simplesmente fora de casa.
Em todos os casos, o modus operandi fora o mesmo. O assassino entrara depois que a vítima estava dormindo, vasculhara a casa até encontrar um par de meias recentemente usado pela mulher, mas ainda não lavado, estrangulando-a em seguida com uma das meias e levando a outra.
Não houvera qualquer indício de violência sexual em nenhum dos casos. Tampouco haviam encontrado impressões digitais, levando a polícia a acreditar que o assassino usava luvas. A única pista fora fornecida por uma testemunha, uma mulher, que vira um homem, provavelmente o assassino, logo depois que ele deixara a casa de uma das vítimas.
Infelizmente, a mulher o vira apenas de costas e iluminado somente pelo luar. A vítima e seu marido moravam no apartamento térreo de um prédio de dois andares.
A testemunha morava no segundo andar. Às duas e meia da madrugada, a testemunha descera a escada dos fundos, para abrir a porta para seu gato, que miava sem cessar.
No momento em que abrira a porta de serviço, ela vira um homem desaparecendo pelo portão dos fundos, saindo para o beco.
Além de descrever as roupas e a altura aproximada do suspeito, a mulher não pudera prestar mais informações à polícia. Ela dissera que o homem estava todo vestido de preto, calça, suéter e boné. Calculara sua altura entre 1,80m e 1,85m, com um peso aproximado de 80 a 90 quilos.
Em tom mais comedido, falei:
- Estou falando sério. Um dos crimes ocorreu a pouco mais de um quilômetro daqui.
Ainda em tom jovial, Martha comentou:
- Pois ele poderia ter uma surpresa, se tentasse me agarrar. Não se esqueça de que fiz um curso de judô, como enfermeira do Exército.
- Eu já ia me esquecendo. Foram duas lições, não é? E como sabe que o Assassino da Meia também não conhece judô?
Martha ergueu o queixo na minha direção, num gesto de desafio.
- Treinamos uma hora por semana, durante doze semanas. Eu poderia arremessá-lo para o outro lado da sala com a maior facilidade, irmãozinho.
- Comigo não vale. Estou fora de forma de tanto comer a minha própria comida. A única testemunha que viu o assassino descreveu-o como sendo quase tão grande quanto Lyle, enquanto você não tem mais do que 50 quilos.
- Quarenta e nove - disse Lyle. - Mas ela trancará a porta depois do anoitecer e já a avisei para que não abra para ninguém, enquanto não se certificar da identidade da pessoa.
Inclinei-me para a frente, a fim de aumentar a ênfase de minhas palavras:
- Olhe, Lyle, estou trabalhando no caso desde a primeira morte e sei de algumas coisas que o público em geral ignora. A polícia pediu à imprensa que não noticiasse, com receio de provocar um pânico generalizado. Mas o laboratório da polícia, examinando as fechaduras de duas das vítimas, chegou à conclusão de que o assassino é perito no uso de gazuas. Parece que uma gazua deixa certas marcas características, que aparecem ao microscópio.
Martha olhou para o marido. Lyle franziu o rosto e admitiu:
- Talvez fosse bom instalar um trinco de segurança em nossa porta. Mas terei que pegar o avião amanhã bem cedo, antes de qualquer loja de ferragens abrir.
Depois de uma curta pausa, ele acrescentou:
- Será que você poderia fazer isso por mim, Tod?
- Claro que posso. Mas mesmo isso não será proteção suficiente. Num dos casos, em que a mulher trancara a porta por dentro, com trincos de segurança, o Assassino da Meia usou um cortador de vidro para abrir um buraco na janela, ao lado do trinco. Foi o caso em que os jornais disseram que ele havia arrombado uma janela. A polícia ficou com receio de que, se fosse revelado como o homem é um exímio arrombador, alguma mulher nervosa poderia acabar atirando no próprio marido, quando ele chegasse tarde em casa e estivesse abrindo a porta tranqüilamente. Essa sua viagem é realmente importante, Lyle?
- A companhia é que está me mandando. É a convenção anual dos fabricantes de artigos eletrônicos e todos os novos produtos serão apresentados.
Lyle trabalhava como comprador de peças para uma firma de eletrônica, sendo obrigado periodicamente a sair da cidade, embora geralmente por um ou dois dias apenas, de cada vez. Ele complementava seu salário consertando aparelhos de televisão, à noite. Fizera um curso por correspondência de consertos de televisão, dentro do programa educacional dos veteranos, depois de dar baixa. Ao fazer o curso, sua intenção fora dedicar-se a esse ramo, mas terminara no emprego em que agora estava.
Apesar disso, o curso lhe proporcionava agora um meio de ganhar algum dinheiro extra. Embora seu salário fosse de quase dez mil dólares por ano, a inflação fizera com que tal quantia mal desse para sustentar uma família de três pessoas, com os preços altos como andavam. Em tom decidido, declarei:
- Já sei qual é a solução. Vou me mudar para aqui, ficando com Martha e Tod, enquanto você estiver viajando, Lyle.
Lyle deu de ombros.
- Por mim, não há problema, se você se conformar em dormir no sofá-cama do escritório.
- Os repórteres conseguem dormir em qualquer lugar, Lyle.
O pequeno Tod perguntou neste momento:
- Vai ficar para uma visita, Tio Tod?
- Vou, sim. E ficarei aqui por uma semana inteira. Martha disse:
- Para dizer a verdade, Tod, se não for incômodo para você, confesso que me sentiria melhor se passasse a semana aqui. Não que esse assassino pense em me escolher como a sua próxima vítima, pois até agora ele só pegou mulheres bonitas.
Erguendo uma sobrancelha para ela, meu cunhado falou:
- E você está incluída nessa categoria, querida. Minha irmã lançou-lhe um olhar afetuoso. Mas sabia que, se Lyle estava realmente dizendo o que pensava, ela era bonita apenas aos olhos dele. O melhor adjetivo para descrever minha irmã é dizer que se trata de uma moça comum. Ela certamente não é feia, mas somente um homem cego pelo amor pode considerá-la bonita. Ela é magra, com pernas que parecem palitos, tendo ainda por cima o infortunado nariz Conner. Trata-se de um nariz magro e pontudo, comprido demais, fazendo-a parecer quase como um passarinho.
Em suma, ela se parece comigo, com a única diferença que sou vinte centímetros mais alto. No jornal, sou conhecido como Nariz Conner. O editor, que me deu o apelido, alega que o fez por causa da minha habilidade em farejar notícias, mas desconfio de que a maioria dos colegas associa a alcunha à minha principal característica física.
Mas Martha era uma mulher extremamente meiga e compreensiva. Não havia a menor dúvida de que Lyle era louco por ela. Assim, talvez ele julgasse realmente que minha irmã fosse bonita.
Embora tenham feito esforços para não demonstrar, tenho a certeza de que a maioria dos nossos amigos ficou espantada quando Martha voltou para St. Louis trazendo a tiracolo um marido tão bonito. Lyle Barton era alto e musculoso, com cabelos louros encaracolados e as feições de algum mítico herói grego. Ele possuía também uma extrema simpatia, que levava todos os homens e mulheres a gostarem dele imediatamente, apesar de um mau humor ocasional e da tendência a ser supersensível com os comentários dos outros.
Por mais que gostasse da minha irmã caçula, devo confessar que também fiquei surpreso, até tomar conhecimento de alguns detalhes do romance.
Martha estava trabalhando como enfermeira psiquiátrica no Hospital do Exército em Fort Ord, quando o soldado Lyle Barton viera do Vietnã, com fadiga de combate.
Ele fora também ligeiramente ferido. Mas havia se recuperado inteiramente do ferimento físico, antes de chegar a Fort Ord.
Ao que parece, muitos pacientes emocionalmente perturbados têm a tendência a procurarem desesperadamente por amor e compreensão. Segundo Martha, os pacientes de psicanálise geralmente desenvolvem um complexo de paternidade ou maternidade, em relação aos analistas, se são do mesmo sexo. Se são de sexos diferentes, é quase rotina para os pacientes passarem por períodos, durante o tratamento, em que ficam apaixonados pelos analistas. Nos hospitais militares, igualmente segundo Martha, os casos psiquiátricos normalmente são tão grandes e numerosos que os médicos são obrigados a dedicar a maior parte do seu tempo aos casos mais graves, tratando dos problemas menos sérios apenas superficialmente, nas visitas periódicas às enfermarias. O resultado é que tais pacientes jamais estabelecem um contato mais profundo com seus médicos, como normalmente acontece durante a análise. Mas como a necessidade subsiste, esses pacientes tendem a se apaixonar por suas enfermeiras.
Embora Lyle estivesse bastante desorientado ao chegar ao hospital, o psiquiatra encarregado do caso dele decidira que precisava apenas de repouso e tranqüilizantes, ao invés de tratamento psiquiátrico. Martha era a enfermeira que cuidava dele durante o dia.
Ela me contou, confidencialmente, que tinha consciência dos motivos que haviam levado Lyle a pensar que se apaixonara, Ela já tivera experiências semelhantes com outros pacientes, que haviam perdido a paixão declarada ao recuperarem o equilíbrio mental. Mas Martha sentira uma estranha e perturbadora premonição de que os sentimentos de Lyle por ela não iriam se alterar, depois que ele melhorasse.
Ela não sabia explicar por que, mas confessou-me com toda sinceridade que talvez tivesse sido apenas o seu desejo intenso de que tal acontecesse, pois se apaixonara perdidamente por Lyle.
Mas havia esperado que Lyle ficasse bom, para ver como ele se sentiria então, antes de resolver aceitar qualquer compromisso.
Depois de receber alta do hospital e baixa do Exército, Lyle continuara a dizer que a amava. Na ocasião, Lyle tinha vinte e seis anos, a mesma idade de Martha.
Por isso, ela calculou que não poderia jamais ser uma simples paixão de adolescente.
Não obstante, ainda receosa de que pudesse ser meramente um prolongamento do relacionamento comum entre enfermeira e paciente, ela insistira para que esperassem mais um pouco.
Lyle não tinha pais. Mas o tio e a tia que o haviam criado ainda estavam vivos, morando no Winsconsin. Depois que Lyle dera baixa, Martha insistira para que fosse visitar os tios durante trinta dias. Ao final desse prazo, se Lyle continuasse a sentir a mesma coisa, ela se casaria com ele.
Lyle voltara a Fort Ord no 29° dia e eles se casaram uma semana depois. Lyle tinha apenas instrução secundária. Mas dentro do programa educacional dos veteranos, ele podia ir para uma universidade, com todas as despesas pagas, além de 200 dólares mensais para o seu sustento. Mas Lyle preferira começar a trabalhar imediatamente, arrumando um emprego civil na agência postal local.
Como Lyle não quisesse entrar numa universidade, Martha não insistira. Mas não lhe agradava vê-lo desperdiçar completamente os benefícios oferecidos aos veteranos.
Foi em grande parte devido à insistência dela que Lyle fizera um curso por correspondência de consertos de televisão, já que sempre tivera interesse por eletrônica.
Lyle mal terminara o curso quando Martha pediu baixa do serviço ativo, porque estava grávida. O emprego dele não era importante o suficiente para que não o deixasse.
Assim, os dois tinham vindo para St. Louis, onde Lyle procuraria outro emprego.
Enquanto isso não acontecia, hospedei-os no único quarto do meu apartamento de solteiro, passando a dormir no sofá da sala.
Lyle não demorara a descobrir que o campo dos consertos de televisão só era lucrativo para quem possuísse sua própria oficina. Ninguém queria oferecer um salário decente a um assistente.
Assim, ele alargara seus horizontes e quase que imediatamente arrumara um emprego em outro campo, no departamento de compras de uma das maiores firmas de eletrônica de St. Louis.
Eles tinham ficado comigo apenas por um mês. Desde então, Lyle já fora promovido duas vezes e eles haviam comprado uma casa de dois quartos, no Bellerive Boulevard, na parte sul de St. Louis.
Lyle ainda conservava um pequeno problema emocional, como se podia constatar por sua sensibilidade e pelos acessos ocasionais de depressão. Mas não parecia ser algo sério. Era apenas o suficiente para lhe proporcionar uma ajuda de custo de dez por cento, como compensação por sua incapacidade parcial, mas sem afetar o trabalho dele ou a vida familiar. Ele não estava mais sob tratamento, a menos que se considerasse como tal a visita anual, para um checkup, que fazia ao Hospital dos Veteranos, no Quartel Jefferson, ao sul de St. Louis. Ele precisava fazer tal visita, a fim de continuar a receber a ajuda, pela incapacidade parcial.
Afora isso, eles pareciam não ter quaisquer problemas. Eu tinha a impressão de que os dois continuavam profundamente apaixonados, como no dia em que se haviam casado.
Compreendi isso por uma conversa que tive com Martha, na primeira noite após a partida de Lyle para Chicago.
Tod já estava deitado e nós dois estávamos bebendo e conversando, na sala. O álcool afrouxou a língua de Martha o suficiente para que me contasse coisas de seu relacionamento com Lyle que nunca antes mencionara. Com alguma indiferença, perguntei se o estado emocional de Lyle estava melhorando. Martha demorou a responder, o que fez com que eu me empertigasse na cadeira, fitando-a atentamente.
- Não é provável que ele venha a ficar totalmente curado - disse Martha finalmente. Franzi as sobrancelhas.
- Sei que ele passou por maus momentos no Vietnã, mas pensei que todo mundo terminasse se recuperando de fadiga de combate.
- A maioria se recupera, quando não existe nenhum dano físico. Mas o problema de Lyle não se limita a fadiga de combate.
- Não?
- Como eu era a enfermeira dele, conheço bem o seu caso médico. Lyle teve um grave problema emocional, antes mesmo de entrar para o Exército. Na verdade, ele passou um ano internado num hospital para doentes mentais de Winsconsin.
Eu estava perplexo.
- E o que ele tinha?
- Esquizofrenia branda.
- Esquizofrenia? - repeti, incrédulo. - Mas como foi que ele conseguiu entrar para o Exército?
- Lyle não mencionou o fato e o Exército só veio a descobrir depois que ele retornou aos Estados Unidos. Pelos regulamentos do Exército, ele poderia ter sido dispensado como mentalmente incapaz para o serviço militar ou receber baixa por algum outro motivo, uma baixa não considerada honrosa. Não se trata da baixa com desonra, pois ele manteria todos os seus direitos como veterano. É como se formar com a média mínima. Mas Lyle havia recebido a Purple Heart e a Estrela de Bronze em ação e os generais tendem a ignorar as falhas menores dos heróis de guerra. E como ele seria dispensado de qualquer maneira, decidiram dar-lhe uma baixa honrosa.
- Mas a esquizofrenia não é algo perigoso, Martha?
- Claro que não. Os casos agudos de esquizofrenia podem ser perigosos, mas eu lhe disse que a esquizofrenia de Lyle foi diagnosticada como branda. Ele está longe de ser psicótico. Você provavelmente conhece uma dúzia de pessoas a quem considera normais, mas que possuem tendências esquizofrênicas. Não se trata de um problema raro.
- E se ele piorar?
- Não é provável que isso aconteça, assim como também não é provável que ele melhore. É apenas uma questão de aprender a conviver com as retiradas ocasionais dele para seu pequeno mundo particular.
Tomei um gole demorado de meu drinque, antes de declarar:
- Não me leve a mal, mana, porque gosto muito de Lyle. Mas sabendo desse diagnóstico, como pôde casar-se com ele?
- Porque eu o amo.
- Isso não é resposta, Martha. Você teria se casado com Jack o Estripador, mesmo que o amasse?
- Mas que comparação!
- Não fique zangada. Não estou querendo falar mal de Lyle. Quero apenas compreender como uma moça com seus conhecimentos psiquiátricos pôde assumir o risco de casar-se com um esquizofrênico positivado.
- Mas que diabo, Tod! Já lhe disse que Lyle não é um esquizofrênico, apenas tem tendências esquizofrênicas.
- Está bem, está bem. Mas apesar de você ter dito que não é provável que o estado dele se agrave, devia saber, antes do casamento, que isso era possível.
Parece-me que assumiu um risco grande demais.
Martha não disse nada durante quase um minuto, tempo que aproveitou para tomar diversos goles de seu drinque, furiosa. Depois, acalmou-se um pouco e lançou-me um sorriso embaraçado.
- Sei que está apenas procurando me proteger, Tod. Por isso, não tenho o direito de ficar zangada com você. Especialmente porque você está certo. Mas saiba que considerei o risco e decidi pelo casamento, porque ele também me amava.
- E o que tem isso a ver com elemento de risco?
- Nada, na verdade - disse Martha, dando de ombros. - Mas Lyle foi o único homem que jamais se interessou por por mim.
Quando franzi o rosto, ela se apressou em dizer:
- Não me leve a mal, Tod. Não foi apenas o caso de uma solteirona faminta de amor, a aproveitar sofregamente a única oportunidade que teve. Eu não estava simplesmente me conformando com qualquer coisa que pudesse agarrar. Mesmo que eu fosse a beldade do hospital, teria escolhido Lyle, pois ele é o homem mais bonito, encantador e maravilhoso que já conheci.
Fiquei calado, limitando-me a tomar um gole de meu drinque. Martha acrescentou suavemente:
- Você nunca se apaixonou, Tod. Mas sentindo o que eu sinto por Lyle, tenho certeza de que continuaria a amá-lo, mesmo que ele se tornasse um maníaco desvairado.
Eu faria qualquer coisa no mundo por Lyle.
Os drinques também já estavam me afetando, caso contrário eu não teria falado o que disse então:
- Até mesmo ficar esperando por uma bala, quietinha, caso ele decidisse matá-la?
Martha piscou por diversas vezes. Mas não voltou a ficar zangada. Em vez disso, caiu na defensiva:
- Você não está sendo justo, Tod. Ele não vai piorar.
Depois de uma pausa, pensativa, Martha acrescentou:
- Mas, se quer saber, até isso eu faria.
Senti um calafrio percorrer-me a espinha, tendo uma visão mental súbita de Martha parada, imóvel, com uma expressão de perdão apaixonado no rosto, enquanto Lyle, com o rosto contorcido, descarregava bala atrás de bala em cima dela. Sacudindo a cabeça, para me livrar da visão, eu disse então:
- Talvez seja melhor esquecermos o assunto, Martha. Você o ama e eu gosto muito dele. Com essa conversa, estamos apenas ficando preocupados. Quer um último drinque antes de irmos deitar?
- É uma boa idéia.
Martha olhou para o seu relógio de pulso e disse, em tom de surpresa:
- Mudei de idéia, Tod. Já são quase onze horas. Você não tem que se levantar às seis?
- Nunca durmo mais do que seis horas, mana. Só mais um drinque não fará mal a nenhum dos dois.
Fui para a cozinha e coloquei os copos vazios em cima da pia. Estava me virando para a geladeira, a fim de tirar o gelo, quando algo do outro lado do beco atraiu minha atenção. Numa janela iluminada de um segundo andar, a de um quarto, havia uma loura jovem e bonita começando a se despir.
Não creio que eu seja mais voyeur que o comum dos homens. Não me ocorreria fazer qualquer tentativa deliberada de espiar pela janela de uma casa vizinha. Mas duvido muito que qualquer homem normal vire as costas, deliberadamente, quando se lhe é oferecido um espetáculo assim, inesperadamente. Assim, fiquei parado na cozinha, observando.
Ela demorou bastante a se despir, porque era meticulosa. Pendurou o vestido num cabide e guardou-o no armário. Depois de tirar as meias, desapareceu da minha vista por algum tempo. Reapareceu sem as meias nas mãos. Devia tê-las lavado e pendurado para secar no banheiro.
Não demorou muito a tirar o restante de suas roupas. Estava inteiramente nua quando Martha entrou na cozinha, para ver o que estava me retardando. Ao descobrir, desatou a rir, ao invés de ficar chocada com a minha depravação.
- Você também, Tod? Surpreendi Lyle aqui, apreciando o espetáculo, na semana passada.
- Ela nunca fecha a janela? - perguntei, sem tirar os olhos da loura, que estava vestindo uma camisola transparente.
- Somente nos fins de semana, quando o marido está em casa. Ele trabalha à noite. Pelo que calculo, é o marido que fecha a janela, nos fins de semana. Mas Lyle e eu concluímos que ela não é uma exibicionista, pois jamais demonstra qualquer constrangimento, como inevitavelmente aconteceria, se desconfiasse de que estivesse sendo observadas Além disso, tivemos uma rápida conversa de vizinhos e descobrimos que ela é apaixonada pelo marido. Assim, é pouco provável que ela faça isso por estar procurando alguma coisa. Achamos que ela é simplesmente descuidada e nunca se lembra de fechar a janela.
A luz do quarto apagou-se subitamente. Um pouco atrasado, comecei a preparar os drinques.
- Não ficou aborrecida quando viu Lyle observando a loura?
- E por que eu deveria ficar? - disse Martha, alegremente. - É comigo que ele vai para a cama, não com ela. E o espetáculo sempre o deixa com disposição para o amor.
Na manhã seguinte, a caminho do trabalho, tive um pensamento inquietante. Eu avisara no jornal que iria passar uma semana com minha irmã, para que soubessem onde me encontrar no caso de uma emergência. E uma emergência poderia ser alguma missão especial em plena madrugada, antes de Lyle voltar de Chicago.
Isso não acontecia com freqüência. Mesmo assim, como medida de segurança, decidi seguir a sugestão de Lyle e instalar os trincos de segurança, tanto na porta da frente como na dos fundos.
Voltando para o jornal, depois de uma reportagem, parei numa loja de ferragens e comprei dois trincos de segurança.
Assim que terminei o trabalho no jornal, segui direto para a casa de Martha, onde cheguei por volta das cinco horas da tarde. Embora ainda estivéssemos no final de março, a primavera começara cedo e o tempo era agradável o bastante para que as pessoas pudessem ficar sentadas nas varandas. O pequeno Tod estava andando de velocípede na calçada, enquanto Martha estava sentada na varanda, observando-o.
- Olá, Tio Tod! - gritou o menino. - Veja só o que eu faço!
Fiquei parado, contemplando-o por alguns momentos, enquanto suas perninhas gorduchas pedalavam furiosamente e o velocípede atingia a velocidade estonteante de uns três quilômetros horários. Meu aplauso fê-lo sorrir de felicidade.
Subindo os degraus da varanda, suspendi o embrulho para que Martha visse.
- No caso de eu ser convocado para alguma missão especial, à noite, durante a semana que passarei aqui, resolvi seguir a sugestão de Lyle e instalar os trincos de segurança. Onde Lyle guarda as ferramentas?
- A oficina dele fica no porão.
Entrei em casa, deixei o paletó e a gravata no pequeno escritório e desci para o porão. Todo um lado do porão era utilizado como oficina por Lyle. Por cima de uma bancada comprida, havia ferramentas de todos os tipos penduradas na parede.
Havia de tudo, desde martelos a um par de alicates de cortar metal. Em cima da bancada, estavam as entranhas de um aparelho de televisão desmontado. No chão, havia dois outros aparelhos.
Peguei uma chave de parafusos do tamanho necessário e depois comecei a abrir as gavetas à procura de uma furadeira. Na gaveta de cima, onde havia ferramentas para trabalhar em madeira, encontrei uma pua e uma coleção de brocas. Eu poderia usar a pua, mas tinha certeza de que Lyle possuía uma furadeira elétrica, o que facilitaria meu trabalho. Assim, comecei a revistar as outras gavetas.
Numa das gavetas de baixo, havia apenas um estojo de couro e uma caixa de metal.
Quando descobri que a caixa de metal estava trancada, resolvi abrir o estojo de couro.
Continha cinco coisas. Havia um alicate com as extremidades finas e compridas, um cortador de vidros, uma pequena borracha côncava de sucção presa a um arco de metal, grande o suficiente para caber o dedo de um homem, um par de luvas pretas de rapaz e um objeto de metal, fino e comprido, que parecia uma mola de aço.
Fiquei intrigado com o último objeto e com a borracha de sucção. Examinei primeiro o objeto de metal fino e comprido e cheguei à conclusão de que era uma gazua.
Compreendi em seguida a serventia da borracha de sucção. Comprimida contra o vidro de uma janela, podia-se cortá-lo tranqüilamente, sem que caísse para dentro, talvez se espatifando.
Gosto de pensar que sou pelo menos tão rápido quanto o comum das pessoas para compreender as coisas. Mas a minha reação inicial foi de perplexidade. Não podia compreender por que Lyle possuía os equipamentos que pareciam ser os de um assaltante comum.
Mas desconfio que essa seja uma reação normal. Com base em indícios tão escassos, seria anormal que alguém tirasse conclusões precipitadas e monstruosas, sobre alguém tão próximo quanto um cunhado. Na verdade, a reação normal é rejeitar tal pensamento, nem mesmo deixando que ele se forme.
Se foi por intuição, suspeita subconsciente ou simplesmente minha bisbilhotice de repórter, até hoje não sei, mas o fato é que decidi experimentar a gazua na caixa de metal. Como era uma fechadura comum, consegui abri-la, depois de cinco minutos a remexer de um lado para outro.
Na caixa só havia oito meias de nykm..
Como isso era algo mais que um simples indício, o pensamento monstruoso ocorreu-me então. Mas como eu realmente gostava de Lyle, comecei imediatamente a procurar, mentalmente, alguma explicação menos monstruosa para ele estar escondendo aquelas meias.
Quase que imediatamente pude pensar em algo que mostrava ser altamente improvável que Lyle fosse o Assassino da Meia. Segundo Martha, Lyle observava por diversas vezes a loura da casa ao lado a despir-se. Ela era tão atraente quanto qualquer uma das vítimas do Assassino da Meia e Lyle sabia que o marido dela trabalhava de noite. Se Lyle era o assassino, por que ela ainda não se tornara uma de suas vítimas?
A resposta depressiva surgiu-me na mente quase tão rapidamente quanto a pergunta. As pessoas insanas não são necessariamente estúpidas. A loura simplesmente estava perto demais da casa dele para que corresse o risco.
Voltei a procurar algum outro motivo para que alguém mantivesse um esconderijo secreto de meias de mulher.
Não consegui encontrar nenhum outro motivo, especialmente depois que examinei as meias. Pelo menos quatro delas não tinham par. Uma era mais comprida que todas as demais, outra era mais curta e duas eram de cores totalmente diferentes. As outras quatro eram do mesmo tamanho e da mesma cor e podiam ser pares. Mas era igualmente possível que fossem meias independentes, separadas de seus pares originais.
Encontrei alguma esperança no fato de haver oito meias, embora só tivessem ocorrido seis assassinatos. Depois lembrei-me dos assassinatos em Kansas City e Chicago, que haviam sido considerados pela polícia como de autoria de outros fanáticos, simplesmente imitando o Assassino da Meia, de acordo com as notícias publicadas pelos jornais.
Lyle fazia visitas de negócios periódicas às duas cidades. Resolvi descobrir se ele estivera em uma delas ou em ambas por ocasião dos assassinatos lá ocorridos.
Eu tinha de agir com todo o cuidado. Tinha que estar absolutamente certo, antes de procurar a polícia. E tinha que estar igualmente certo de que eles garantiriam o meu anonimato, como informante. Não queria que minha irmã continuasse a viver com um maníaco homicida, mas também não queria que ela me expulsasse de sua vida. Mesmo que Lyle fosse culpado, eu sabia que Martha jamais me perdoaria por tê-lo denunciado.
Felizmente, eu tinha tempo para fazer algumas investigações. Ainda estávamos na terça-feira e Lyle só voltaria daí a seis dias.
Guardei as meias na caixa e tornei a fechá-la, com a gazua. Vasculhei mais algumas gavetas, até encontrar a furadeira elétrica. Subi e instalei os dois trincos de segurança.
Durante o jantar, perguntei a Martha, em tom indiferente:
- Lyle está sempre indo a Chicago, não é?
- Somente duas vezes por ano. Na última vez, ele teve que ir até lá no Dia de Ação de Graças. Não está lembrado?
Agora que Martha falava no assunto, eu me lembrava perfeitamente, pois ela me convidara para almoçar no Dia de Ação de Graças e Lyle não estava em casa na ocasião.
Procurei me lembrar quando o assassinato de Chicago ocorrera, mas consegui apenas situá-lo como tendo acontecido no último inverno. Mas no dia seguinte poderia verificar, ao chegar ao jornal.
- Estou lembrando agora, Martha. A última viagem dele a Kansas City também foi num feriado, não é mesmo?
- Não foi, não. Foi no verão passado, em meados de junho.
Mudei de assunto.
Na manhã seguinte, assim que cheguei ao jornal, desci para os arquivos, no porão. O assassinato de Kansas City ocorrera numa quarta-feira, 16 de junho do ano anterior.
O assassinato de Chicago fora numa sexta-feira, 26 de novembro, o dia seguinte ao de Ação de Graças.
Subi para a redação, sentei à minha mesa e telefonei para a casa do Dr. Sam Carter. Passavam poucos minutos das oito horas e eu sabia que ele só chegava ao consultório por volta das nove horas.
Sam era agora um psiquiatra que cobrava cem dólares a hora. Mas, na juventude, quando ele se preparava para estudar medicina e eu jornalismo, pertencêramos à mesma fraternidade da Universidade de Washington. Ainda nos procurávamos e continuávamos bons amigos.
Assim que atendeu, declarou que não poderia se encontrar comigo antes do final da tarde. Quando eu disse que era urgente, Sam falou que cancelaria a primeira consulta e estaria me esperando no consultório, às nove horas.
Cheguei pontualmente às nove horas e a recepcionista levou-me à sala particular de Sam. Ele tinha a mesma idade que eu, trinta e cinco anos, mas com uma aparência muito melhor. Era alto e magro, feições um tanto rudes, mas formando um conjunto cordial, os cabelos abundantes e ligeiramente grisalhos.
Ele apontou para uma poltrona de couro diante de sua mesa.
- Sente-se, Tod. Ou será que prefere ficar no divã?
- Não se trata de um problema pessoal, Sam. Quero apenas algumas informações.
- Pois então diga o que está querendo saber.
- Seria possível que o Assassino da Meia fosse um homem bem casado, um bom pai e apaixonado pela esposa?
Sam ficou imediatamente interessado.
- É possível. Já houve casos em que homens aparentemente normais, com casamentos que pareciam felizes, tornaram-se terríveis criminosos sexuais. Eu diria que o Assassino da Meia é um homem solitário, mas é bem possível que ele seja justamente um homem como você descreveu.
- Vamos à próxima pergunta, Sam. Se o cara em que estou pensando é o Assassino da Meia, ele guarda o outro pé das meias que usou para estrangular as mulheres numa caixa de metal. Por que faria uma coisa dessas?
Sam deu de ombros.
- Sou psiquiatra e não clarividente. Se quer palpites, posso dar alguns. Talvez ele guarde as meias como recordações de suas vitórias, algo assim como escalpos.
Talvez ele seja apenas maníaco por meias. Pode estar guardando-as, para fazer um travesseiro.
- Está na profissão errada, Sam. Deveria ter sido comediante, com colarinho de palhaço. Poderia fazer-me um favor?
- Claro, desde que seja legal e não exija que eu viole a ética médica.
- É e não é. Mas primeiro eu queria dizer que tudo o que vou dizer aqui é estritamente confidencial.
Ele assentiu.
- A maioria das coisas que me contam aqui é confidencial.
Respirei fundo.
- Acho que Lyle Barton é o Assassino da Meia. Sam me fitou espantado.
- O marido de Martha?
- Exatamente.
- E em que se baseia para apresentar essa incrível teoria?
Contei tudo, em detalhes, inclusive a história da doença mental de Lyle. Quando acabei, Sam não mais estava espantado, mas apenas pensativo.
- E qual é o favor que está querendo, Tod?
- Gostaria que descobrisse a história psiquiátrica de Lyle. Como ele faz um checkup anual no hospital de veteranos daqui, para poder continuar a receber sua pensão por incapacidade parcial, a ficha médica dele deve estar aqui. Como psiquiatra, você teria mais facilidade de acesso do que eu.
- Não há problema. Inclusive pertenço à equipe do hospital de veteranos. A ficha dele deve incluir não apenas os registros do Exército, mas também um relatório detalhado do hospital de doentes mentais de Winsconsin.
- E quando poderia obtê-la?
- Não antes do final da tarde. Não posso cancelar mais nenhuma consulta hoje e estarei ocupado até as cinco horas da tarde.
- Está certo. Ainda tenho cinco dias para trabalhar no caso. Você poderia me telefonar, para a casa de Martha. quando saísse do hospital?
- Precisarei de algum tempo para estudar a ficha médica de Lyle. Preferia voltar a conversar com você amanhã de manhã.
- Está bem. Mas eu não gostaria de que cancelasse mais nenhuma consulta.
Poderia se levantar mais cedo, a fim de se encontrar aqui comigo às oito horas da manhã?
- Farei o sacrifício, se é assim que você prefere.
- Para mim não será nenhum sacrifício, Sam. Eu começo a trabalhar no jornal às sete e meia.
Chegamos simultaneamente ao consultório dele, na manhã de quinta-feira.
Novamente ocupei a poltrona de couro e ele sentou-se atrás da escrivaninha, com as mãos cruzadas sobre a barriga.
- Havia algumas informações bem interessantes na ficha médica de Lyle, Tod. Você sabia que o pai dele estrangulou a mãe e depois matou-se com um tiro na cabeça?
-- Martha nunca me contou isso. Quando foi que aconteceu?
- Quando Lyle tinha doze anos. Segundo ele disse ao médico que o tratou no hospital de Winsconsin, a mãe mereceu. Ele a odiava e adorava o pai. Descreveu-a como uma mulher muito bonita, mas sem-vergonha. Aparentemente, ele começou a perceber ainda muito cedo que a mãe tinha numerosos amantes. Pelo que li na ficha, tenho a impressão de que a mãe não fez o menor esforço para esconder dele, limitando-se periodicamente a ameaçá-lo de uma surra, deixando-o sem sentidos de tanta pancada, se alguma vez contasse ao pai. Lyle jamais contou coisa alguma. Mas um dia, deliberadamente, ele deixou de dar à mãe um recado que recebera pelo telefone, na esperança de que o pai a apanhasse em flagrante. O pai havia telefonado de outra cidade, informando que chegaria em casa um dia antes do previsto, por volta de meia-noite.
Porque Lyle não deu o recado, o pai, ao chegar, encontrou a esposa na cama, com outro homem.
- E matou-a?
- Não no mesmo instante. Expulsou o amante de casa, a pontapés, e saiu também de casa, passando cinco dias embriagado. Voltou para casa, ainda embriagado, estrangulou a esposa e depois matou-se com um tiro.
- Quer dizer que Lyle desenvolveu um complexo de culpa por ter sido o causador da tragédia?
Sam lançou-me um olhar ligeiramente irritado.
- Vocês, psiquiatras amadores, têm a mania do complexo de culpa, Não conseguem pensar em outra coisa. O que o faz pensar que toda pessoa mentalmente transtornada deve obrigatoriamente ter um complexo de culpa com relação a alguma coisa? Nem o relatório de Winsconsin nem os relatórios, consideravelmente mais sucintos e superficiais, dos diversos psiquiatras do Exército que examinaram Lyle, indicam que ele tenha algum dia sentido a menor culpa pela morte dos pais. É verdade que ficou profundamente abalado com a morte do pai, mas lançou a culpa à mãe e não a si próprio. E sentiu-se bastante feliz por ter sido o responsável, indiretamente, pela morte da mãe.
Ele achou que fora um instrumento para a eliminação do mal.
- Se não é um complexo de culpa, então o que é?
- Provavelmente uma mistura de emoções desencontradas. Tais coisas jamais são simples como a maioria das pessoas imagina. Mas uma coisa parece bastante evidente:
Lyle tem uma desconfiança instintiva das mulheres bonitas. Correndo o risco de magoar seus sentimentos, Tod, eu diria que talvez tenha sido justamente por isso que ele escolheu Martha para esposa. Talvez sentisse que poderia ter certeza de que Martha jamais o enganaria.
- Não está magoando os meus sentimentos, Sam. Nenhum Conner jamais ganhou um concurso de beleza. Mas toda essa conversa é para dizer que ele odeia as mulheres bonitas?
Cada vez que ele mata uma, está matando, em sua fantasia, a própria mãe?
A expressão irritada voltou ao rosto de Sam.
- Não ponha palavras em minha boca, Tod. Se eu conseguisse pôr Lyle no divã por meia dúzia de sessões, talvez pudesse descobrir os motivos dele, se é que se trata realmente do Assassino da Meia. Mas não faço diagnósticos a longa distância.
Digo que pode ser e talvez até seja mesmo, mas estou dando apenas um palpite.
Psicologicamente, o caso tem uma grande falha. Se ele escolhe as vítimas como imagens da mãe, elas deveriam ser não apenas bonitas, mas também infiéis.
Depois de pensar um pouco, eu disse lentamente:
- Talvez elas fossem. Eram todas casadas. Sam deu de ombros.
- E como Lyle poderia descobrir que elas andavam enganando os maridos? Não há qualquer ligação entre as diversas vítimas. Sendo assim, como ele poderia ter conhecido
seis mulheres bonitas, que não se conheciam entre si, descobrindo em seguida que todas estavam enganando os maridos?
A resposta ocorreu-me num lampejo súbito de inspiração.
- Nas visitas para consertar os aparelhos de TV!
- Como?
- Nas horas de folga, depois do trabalho, Lyle conserta aparelhos de TV, para ganhar um dinheiro extra. Talvez essas mulheres tenham sido freguesas dele. E ele é o tipo de homem que esposas descontentes tentariam conquistar. Tem o corpo de um gladiador e o rosto de um ídolo das matinês.
Sam contraiu os lábios por um momento, logo voltando a dar de ombros.
- Se assim é, por que ele não as matou, no momento em que elas tentaram conquistá-lo?
- Um problema de oportunidade. Talvez os maridos estivessem em casa, mas em outro cômodo. Talvez as crianças estivessem por perto. Ou então, o que é mais provável, porque era ainda muito cedo e os vizinhos poderiam vê-lo entrando e saindo.
Lembre-se de que Lyle costuma fazer essas visitas no fim da tarde. Não estou querendo dizer que as vítimas o convidaram abertamente para ir para, o quarto delas.
Talvez elas tenham feito apenas insinuações de que estariam disponíveis, numa ocasião em que os maridos não estivessem em casa. Isso não seria suficiente para fazer Lyle entrar em ação?
- Parece possível, Tod. Mas eu não quero admitir que seja isso mesmo, sem ter Lyle no meu divã.
- Você é pregador intransigente do ceticismo científico - disse eu, levantando-me. - Mas, para mim, já é o suficiente para ir procurar o Sargento Burmeister. E é o que pretendo fazer, agora mesmo.
O Sargento Fritz Burmeister era o detetive encarregado do caso do Assassino da Meia. Encontrei-o sentado atrás de sua escrivaninha, no Departamento de Homicídios.
Era um homem corpulento, de sobrancelhas espessas, em torno dos cinqüenta anos, com uma expressão invariavelmente azeda, característica dos policiais que trabalham há muito tempo no Departamento de Homicídios.
- Olá, Nariz - disse-me ele, com a sua cordialidade sorumbática. - Sente-se e descanse os ossos.
Sentei-me na cadeira ao lado da mesa.
- Gostaria de deslindar o caso do Assassino da Meia?
Ele ficou instantaneamente alerta.
- Adoraria.
- Posso dar-lhe uma pista. Talvez não dê em nada, embora eu ache muito difícil que isso aconteça. Há uma condição, porém.
- Está bem - disse ele, impacientemente. - Você terá a reportagem exclusiva.
Sacudi a cabeça.
- Não é essa a condição. Quero a garantia de que jamais irá revelar a quem quer que seja onde descobriu a informação e de que não serei chamado a depor no julgamento, como testemunha.
Ele franziu as sobrancelhas.
- Precisaremos do seu depoimento para condenar o culpado?
- Não.
- Então está combinado. Contei-lhe toda a história.
E baseado no meu relato, o Sargento Burmeister voltou a interrogar os maridos das seis vítimas. Três deles informaram que técnicos de TV tinham sido realmente chamados às suas casas. Infelizmente, em dois casos, os arranjos haviam sido feitos pelas esposas e os maridos não estavam em casa quando o técnico chegara nem tinham a menor idéia de quem fora chamado. Os dois homens que estavam fora da cidade, por ocasião do assassinato das respectivas esposas, estavam sempre viajando. Nenhum dos dois sabia de qualquer conserto de TV em suas casas, mas ambos admitiram que as esposas poderiam ter chamado um técnico, esquecendo-se de mencioná-lo. O sexto homem tinha certeza de que nenhum técnico de TV fora à sua casa. Mas o homem que providenciara pessoalmente o conserto disse ter falado com Lyle Barton, tendo inclusive um cheque descontado para confirmá-lo.
Depois da prisão de Lyle, foi feito um apelo público para que se apresentassem os técnicos que haviam consertado as TVs nas casas dos dois homens que ignoravam quem havia sido chamado. Mas ninguém apareceu. Antes disso, porém, muitas coisas aconteceram.
Na sexta-feira, o Sargento Burmeister apareceu na casa de Martha, com um mandado de busca. Em deferência a mim, ele explicou que ali estava porque fora informado de que Lyle fizera um conserto na TV da casa de uma das vítimas do Assassino da Meia. Como ele poderia também ter estado nas casas das outras, a polícia queria dar uma olhada em seus registros. Mas além da autorização para dar uma olhada nos registros de Lyle, Burmeister tinha também um mandado para procurar quaisquer instrumentos para arrombamento ilegal e "objetos que possam ter sido ilegalmente removidos das residências de qualquer uma das vítimas".
Martha ficou consideravelmente transtornada com a busca, mas não desconfiou de que eu estava por trás de tudo.
O estojo de couro e a caixa de metal foram encontrados no mesmo lugar que eu mencionara a Burmeister. Mas os registros de Lyle não indicavam nenhum serviço nas casas das vítimas, além daquela que Burmeister já sabia.
Seis das meias encontradas na caixa de metal combinavam com as outras meias que haviam sido usadas como armas dos crimes. Mas o laboratório da polícia declarou que não havia a menor possibilidade de afirmar, sem qualquer sombra de dúvida, que se tratavam do par das outras meias. Aquelas meias eram fabricadas aos milhões.
As outras duas meias foram enviadas para Kansas City e Chicago.
Lyle foi preso na tarde de segunda-feira, assim que desembarcou do avião procedente de Chicago.
Martha quase desmoronou. Senti que ela estava prestes a sofrer um colapso nervoso. Decidi que ela não podia ficar sozinha e continuei em sua casa, ao invés de voltar para o meu apartamento.
Evidentemente, eu não estava trabalhando no caso. Mas mantinha-me em contato permanente com Fritz Burmeister, sabendo assim de tudo o que acontecia.
O sargento estava convencido de que Lyle era culpado, mas seu caso estava longe de ser irrefutável. Um dos fatos que o perturbava era que os registros de Lyle indicavam uma visita à casa de apenas uma das vítimas. Burmeister estava convencido de que ele fora consertar as TVs de pelo menos mais duas casas e talvez tivesse ido também às casas dos homens que estavam viajando. Ele achava que Lyle fora esperto o suficiente para não registrar nenhuma daquelas visitas, a não ser a que recebera com um cheque e poderia ser facilmente comprovada.
Mas ele não teria base suficiente para fazer tais especulações no banco das testemunhas.
Os relatórios de Chicago e Kansas City foram negativos. Nenhuma das duas meias enviadas combinavam com as que tinham sido usadas para estrangular as vítimas daquelas cidades. Ficou também provado que Lyle voltara para St. Louis, vindo de Kansas City, no dia anterior ao assassinato ali ocorrido. Aparentemente, a teoria original da polícia, de que os crimes naquelas duas cidades haviam sido cometidos por outros psicóticos, imitando o Assassino da Meia, era certa, se é que Lyle era realmente o Assassino da Meia.
Burmeister também tinha uma explicação para isso, se bem que também não fosse admissível num tribunal. A teoria dele era que Lyle arrombara casas em Chicago e Kansas City, tencionando cometer o crime. Chegara a pegar as meias que usaria, mas depois fora afugentado por algum motivo e levara as meias.
Apesar de todos esses buracos, Burmeister ainda achava que tinha um caso bastante sólido.
Ia ser difícil para a defesa explicar o equipamento de arrombador e as seis meias escondidas por Lyle, iguais às que tinham sido usadas como armas dos crimes. Com um segundo mandado de busca, a polícia descobriu no armário de Lyle uma calça preta, uma suéter preta de mangas compridas e um boné preto. A testemunha que vira o Assassino da Meia saindo da casa de uma das vítimas foi chamada a identificar Lyle, de costas: ela declarou que não havia condições de identificá-lo, sem qualquer sombra de dúvida, como o homem que vira naquela noite, mas estava disposta, a testemunhar de que pelo menos a altura e a compleição eram as mesmas. Além de tudo isso, os antecedentes psiquiátricos de Lyle iriam certamente influenciar o júri.
Para a promotoria, foi uma alegria descobrir que Lyle não tinha qualquer álibi para as noites dos diversos crimes. Não tenho a menor dúvida de que Martha seria capaz de jurar que Lyle estivera o tempo todo a seu lado, mesmo que isso não tivesse acontecido. Mas acontece que ela não podia fazer tal declaração.
Porque Tod ainda era muito pequeno, Martha não estava trabalhando regularmente, preferindo ficar em casa com o filho. Mas continuava a prestar serviços no Hospital Barnes, substituindo as enfermeiras que estavam em férias ou simplesmente de folga. Mas só trabalhava à noite, quando Tod poderia ser deixado com Lyle, economizando-se assim a despesa com uma baby-sitter.
E por acaso Martha estava trabalhando em todas as noites nas quais o Assassino da Meia atacara. O Sargento Burmeister tinha certeza de que não fora "por acaso", que Lyle deliberadamente escolhera aquelas noites para cometer os crimes, sabendo que a esposa não estaria em casa.
Apesar da minha preocupação, Martha recuperou-se rapidamente do seu colapso emocional inicial, Na terçafeira ela já havia recuperado totalmente o controle, embora continuasse pálida e tensa, recusando-se a comer qualquer coisa. Uma amiga levara Tod para sua casa, até que Martha se acalmasse.
Mesmo diante das provas circunstanciais esmagadoras contra o marido, Martha continuava a negar qualquer possibilidade de que ele fosse culpado. Contratou George Brinker, o maior advogado criminal de St. Louis, para defendê-lo.
Acompanhei-a quando ela foi visitar o advogado, a fim de acertarem a estratégia para o julgamento, depois que ele entrevistara Lyle e examinara as provas.
Brinker era um homem de quarenta e poucos anos, gorducho, aparência suave, com um considerável encanto pessoal. E foi logo dizendo:
- As provas contra seu marido são totalmente circunstanciais, Sra. Barton. A promotoria tem que comprovar que ele é culpado acima e além de qualquer dúvida.
Não nos cabe provar que ele é inocente. Tudo o que precisamos fazer é lançar dúvidas sobre a sua culpa.
- E como planeja fazer isso? - perguntei.
- Vamos começar com o suposto equipamento de arrombamento. É como a promotoria o está chamando. Mas nós vamos dizer que é um equipamento para consertos de emergência em aparelhos eletrônicos. Seu cunhado explicou-me como a suposta gazua é usada como um instrumento para testar os contatos elétricos. E explicou também que, nessas ocasiões, as luvas são necessárias,' como isolantes.
Notei que ele não havia mencionado o cortador de vidro e a borracha de sucção.
Perguntei então:
- E como vai explicar as meias?
- Não precisamos explicar, Sr. Conner. Cabe à promotoria provar que elas são os pares das que foram usadas nos crimes. As duas meias extras certamente irão confundir o júri. Não temos que explicar por que o réu guardava meias de nylon trancadas numa caixa. Não me importo que o júri pense que ele é um homem excêntrico. Só não quero é que o considere um assassino.
Ele achava também que poderia lançar dúvidas sobre as supostas visitas anteriores de Lyle às vítimas, como técnico de TV. Planejava impedir que a promotoria fizesse qualquer referência às duas visitas nas quais não se conseguira determinar a identidade do técnico. A acusação teria assim, para apresentar ao júri, apenas uma visita reconhecida por Lyle. E o advogado achava que poderia convencer o júri de que fora pura coincidência.
Quando saímos do escritório de Brinker, eu tinha a impressão de que ele não acalentava muitas esperanças de absolver Lyle, mas mostrara-se otimista simplesmente para animar Martha. Pela expressão aflita de Martha, desconfiei de que ela tivera também a mesma impressão. Mas não falamos nisso.
A esta altura, Martha já parecia estar bem o bastante para que Tod voltasse para casa. E eu voltei para o meu apartamento, pois não queria continuar a constrangê-la com a minha presença. Volta e meia eu ia visitá-la. Embora Martha estivesse bastante deprimida, estava resistindo muito bem, para se arrumar sozinha.
O início do julgamento foi marcado para seis semanas após a prisão, em meados de maio. Uma semana antes, eu estava por acaso na redação quando um telefonema informou que houvera um assassinato na Dover Place, na zona sul da cidade. Ofereci-me para ir fazer a reportagem e fui incumbido da missão.
Só quando cheguei lá é que compreendi que a Dover Place ficava ao sul do Bellerive Boulevard. A casa era a mesma que fazia fundos com a casa de Lyle e Martha.
Havia diversas pessoas na sala da frente: uma dupla de guardas uniformizados, um homem do laboratório da polícia, um homem de aparência aturdida, em torno dos trinta anos, afundado numa poltrona, e o Sargento Fritz Burmeister. O homem do laboratório estava de saída, aparentemente depois de haver terminado seu trabalho.
Quando olhei para o homem sentado, curioso, Burmeister explicou:
- É o marido. Vamos até lá em cima.
Subi a escada atrás dele. No mesmo quarto que eu certa vez observara, através da janela da cozinha de Martha, lá estava a mesma loura que eu vira despir-se, deitada na cama, usando uma camisola transparente. O rosto dela estava roxo e horrivelmente inchado, porque uma meia de nylon estava amarrada em sua garganta.
- O marido a encontrou assim, ao chegar a casa esta manhã - disse Burmeister, a voz cansada. - Ele trabalha à noite. É a mesma história de antes. Não houve violências sexuais, não há impressões digitais. Ambas as portas têm trincos de segurança por dentro. Foi cortado um buraco no vidro, na porta dos fundos, ao lado do trinco de segurança. Como sempre, a segunda meia está desaparecida.
Afastei os olhos da mulher morta em cima da cama.
- E o que isso significa para Lyle, Sargento?
- Isso o absolve. Como diabo ele poderia ser o Assassino da Meia e ter cometido este crime, se estava trancado numa cela?
É quase o fim da história. Lyle foi solto, com muitos pedidos de desculpas. Ele e Martha ficaram radiantes de alegria.
O Assassino da Meia não cometeu mais nenhum assassinato. Ultimamente, no entanto, tenho começado a pensar numa porção de coisas. Estou sempre me lembrando de uma coisa que Martha me disse:
- Sentindo o que eu sinto por Lyle, tenho certeza de que continuaria a amá-lo, mesmo que ele se tornasse um maníaco desvairado. Eu faria qualquer coisa no mundo por Lyle.
E tenho me lembrado também de que Martha aprendera judô quando fora enfermeira do Exército. Se não me engano, ela dissera que tinha sido uma. hora por semana, durante doze semanas. Certamente não era suficiente para que Martha se tornasse faixa-preta, mas talvez fosse o bastante para dominar outra mulher, não muito maior do que ela.
Qualquer pessoa pode comprar um cortador de vidro. Estão à venda em qualquer loja.
Martha não mais trabalha à noite no hospital. Agora só aceita trabalhos durante o dia e sempre arranja uma baby-citter para cuidar de Tod, quando está de serviço.
A última vez em que eles me convidaram para almoçar, o pequeno Tod levou-me ao porão, para mostrar-me uma coisa. Já não havia mais a oficina de consertos de TV.
Não quis perguntar a Lyle por que ele desistira do negócio de consertos de TV.
Mas não posso deixar de imaginar se não terá sido por insistência de Martha, simplesmente para evitar futuras tentações.
Alfred Hitchcock
O melhor da literatura para todos os gostos e idades