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Fui intimada. Quinta-feira, dez em ponto.
Sou intimada cada vez mais vezes: terça-feira, dez em ponto, sábado, dez em ponto, quarta-feira, segunda-feira. Como se coubessem anos numa semana. Por este andar bem me espanta que, chegado o fim do verão, possa de novo em breve ser inverno.
No caminho para o carro elétrico, os arbustos vergam-se de novo sob o peso das bagas brancas, trespassando as cercas. Como botões de madrepérola, cosidos pela base, quem sabe até às entranhas da terra, ou como bolinhas de pão. As bagas são demasiado pequenas para cabeças brancas de pássaro, de bicos voltados para trás, mesmo assim é em cabeças brancas de pássaro que sou obrigada a pensar. Dá uma sensação de vertigem. Prefiro então pensar em salpicos de neve sobre a relva, mas uma pessoa sente-se perdida. E de pensar em giz, sonolenta.
O carro elétrico não tem horários fixos.
Parece-me que ouço o seu rumorejar, se é que não são os choupos de folhagem dura. Olha, já aí vem, hoje está apostado em levar-me logo consigo. Tinha decidido deixar o senhor idoso do chapéu de palha subir à minha frente. Quando cheguei já estava na paragem, sabe-se lá há quanto tempo. Não é que ele seja decrépito, mas é magro como a sua sombra, corcovado e baço. Dentro das calças não há traseiro nem quadris que se vejam, só a protuberância dos joelhos. Mas se, logo agora que a porta se abriu, ele precisa de escarrar para o chão, entro mesmo à sua frente. Quase todos os lugares estão vazios, ele passa-os em revista com os olhos e depois fica de pé. Um enigma que gente desta idade não ande cansada e não se guarde para ficar de pé onde não há possibilidade de sentar-se. Às vezes são os velhos que dizem: Já chega o tempo que se fica deitado no cemitério. Não é que estejam a pensar na morte, no que aliás têm toda a razão. As coisas não acontecem por ordem cronológica, também morre gente nova. Eu cá sento-me sempre que não tenho de ficar de pé. Viajar num assento é como caminhar sentado. O homem mira-me de cima a baixo. Uma pessoa pressente-o logo nestes carros vazios. Não estou com a cabeça livre para conversas, se não perguntaria o que há tanto em mim para olhar. Ele pouco se importa que a sua mironice me incomode. Lá fora passa meia cidade a correr, alternando entre casas e árvores. Diz-se que a gente desta idade pressente mais as coisas do que a gente nova. Talvez até que trago hoje na carteira uma toalhinha, escova e pasta de dentes. Mas nenhum lenço, porque não pretendo chorar. O Paul não pressentiu o medo que tenho que o Albu me possa conduzir à cela que fica por baixo do seu gabinete. Eu não lhe disse nada. Se acontecer, ainda vai saber muito a tempo. O carro elétrico avança devagar. O chapéu de palha do idoso tem uma fita com nódoas, provavelmente do suor, ou da chuva. Quando me cumprimentar, o Albu vai dar-me como sempre um beijo na mão, com cuspo.
O major Albu levanta a minha mão pela ponta dos dedos e aperta-me tanto as unhas que sinto vontade de gritar. Beija-me os dedos com o lábio inferior, o superior ele mantém livre para poder falar. Dá-me o beija-mão sempre do mesmo jeito, mas quando fala diz sempre uma coisa diferente:
Bem, bem, hoje tens os olhos inflamados.
Parece-me que te está a crescer um bigode, um pouco cedo de mais para a tua idade.
Ai, a mãozinha hoje está gelada, espero que não seja da circulação.
Oh diabo, as tuas gengivas estão a mirrar, já pareces a tua avozinha.
A minha avozinha não chegou a velha, disse eu, não teve tempo de perder os dentes. O que aconteceu com os dentes da minha avozinha o Albu saberá, já que fala deles.
Uma mulher sabe que aspeto tem todos os dias. E que um beija-mão, primeiro, não dói, segundo, não é molhado, terceiro, dá-se nas costas da mão. Que aspeto deve ter sabem-no os homens melhor que as mulheres, o Albu também de certeza. A sua cabeça toda cheira a Avril, um perfume francês que também o meu sogro comunista usava, que aliás de comunista também só tinha o cheiro. Nenhuma das outras pessoas que conheço o compraria. Custa no mercado negro mais do que na loja um fato. Até lhe podem chamar setembro, que nunca hei de confundir aquele odor amargo, fumoso, de folhagem a arder.
Quando me sento em frente da mesinha, o Albu vê que esfrego os dedos na saia, não só para voltar a senti-los, mas também para limpar o cuspo. Ele dá voltas ao anel de sinete e deita um sorrisinho irónico. Não interessa, o cuspo a gente pode limpá-lo, até seca por si e não é veneno. Cuspo todos trazem na boca. Há outros que cospem para cima do passeio e raspam com o sapato, porque até no passeio é uma indecência. Na cidade o Albu não cospe de certeza para cima do passeio, onde ninguém o conhece dá-se ares de senhor fino. As minhas unhas doem, mas ele ainda nunca as apertou até ficarem pisadas. E elas voltam a descongelar, como se de repente as mãos geladas se aproximassem do calor. A sensação de que o cérebro se me escorrega para a frente, para a cara, isso é que é um veneno. A humilhação. Que outra palavra se poderá usar quando uma pessoa se sente descalça no corpo todo. E que fazer, quando com a palavra não é possível dizer muito, quando até a melhor palavra pouco diz.
Desde as três da madrugada de hoje que escuto o tiquetaque do despertador: Intimada, intimada, intimada... A dormir, o Paul atravessa a cama com um pontapé, recuando depois com um estremeção, tão repentino que, sem acordar, ele próprio se assusta. Já se tornou hábito. Foi-se-me o sono. Fico deitada, desperta, e sei que devia fechar os olhos para voltar a adormecer. Mas não fecho. Já tantas vezes desaprendi o sono e fui obrigada a reaprender como funciona. E funciona muito naturalmente ou não funciona de todo. Tudo dorme pela madrugada, até os cães e os gatos só metade da noite vagueiam pelos latões do lixo. Quando se sabe que não se consegue dormir, é mais fácil pensar em algo luminoso no quarto às escuras, do que em vão cerrar os olhos com força. Com neve, troncos de árvores branqueados, salas brancas, muita areia, foi assim que espantei o tempo, mais vezes do que gostaria, até o dia clarear. Hoje de manhã podia ter pensado em girassóis, o que também fiz, mas não consigo esquecer que estou intimada para as dez em ponto. A partir do momento em que o despertador se pôs a tiquetaquear intimada, intimada, intimada, vi-me compelida a pensar no major Albu, ainda antes de pensar em mim e no Paul. Hoje, quando o Paul estremeceu, eu já estava acordada. Quando a janela alvoreceu, já eu tinha visto no teto do quarto, em ponto grande, a boca do Albu, a ponta da língua rosada por detrás da fileira dos dentes inferiores, e ouvido a sua voz trocista:
Porquê tantos nervos, estamos só a começar.
Só quando fico duas, três semanas sem ser intimada é que sou acordada pelas pernas do Paul. Então fico contente, é sinal de que já reaprendi como funciona o sono.
Quando já reaprendi o sono e pergunto ao Paul de manhã: O que é que sonhaste, ele não consegue lembrar-se de nada. Eu mostro-lhe como é ele a dar um coice com os dedos dos pés em leque, depois num ápice a recolher as pernas e a apertar os dedos para dentro. Puxo a cadeira de ao pé da mesa para o meio da cozinha, sento-me nela, sustenho as pernas no ar e faço-lhe uma demonstração completa. Então o Paul consegue rir e eu digo:
Estás a rir de ti.
Pois é, talvez no sonho estivesse a andar de mota e trazia-te comigo na garupa, diz ele.
O estremeção é semelhante a um arranque para a frente e, a meio, retirada súbita, imagino que seja da bebida. Mas não digo nada. Nem que a noite ao partir leva consigo o entorpecimento das pernas que o fazia cambalear. Deve ser assim, ela agarra o torpor à altura dos joelhos, puxa-o primeiro para os dedos dos pés, depois para o quarto escuro como breu. E pela manhã, quando a cidade dorme alienada, para o negrume da rua lá fora. Se assim não fosse, o Paul não conseguiria manter-se direito de pé ao acordar. Se de todos a noite levasse a borracheira, a sua grossura pela manhã chegaria até às estrelas. São tantos os que bebem na cidade.
Pouco depois das quatro, na rua das lojas, em baixo, chegam as carrinhas da distribuição. Rasgam o silêncio, ronronam muito e distribuem pouco, algumas caixas com pão, leite e legumes, e muitas com aguardente. Se a comida lá em baixo se esgota, as mulheres e as crianças resignam-se, as filas dispersam, os caminhos conduzem a casa. Mas se as garrafas se esgotam, os homens amaldiçoam a vida e deitam a mão à faca. Os vendedores lá os acalmam, mas só dura até se verem na rua. Partem à procura, vagueiam por toda a cidade. As primeiras pancadarias são por não encontrarem aguardente, as que se seguem por estarem bêbados que nem cachos.
A aguardente cresce no Hügelland, a região das colinas entre os Cárpatos e a planície estéril. Erguem-se aí tantas ameixieiras que mal se veem as minúsculas aldeias de permeio. Florestas inteiras, pintalgadas de azul no verão tardio, os ramos arqueados de tanto peso. A aguardente tem o mesmo nome da região das colinas, mas ninguém usa a designação que vem no rótulo. Nem precisava de nome, só existe uma aguardente na terra e as gentes nomeiam-na a partir da imagem do rótulo: «Duas ameixas». A dupla de ameixas, de face encostada, é tão familiar aos homens como a Virgem Maria com o Menino às mulheres. Dizem que as ameixas retratam o amor que existe entre o bebedor e a garrafa. Cá para mim, as ameixas de face encostada assemelham-se mais às fotografias de casamento do que à Maria com o Menino. Não há nenhuma imagem na igreja em que a cabeça do Menino esteja à mesma altura da de sua mãe. O Menino encosta a sua testa à face da Virgem, a face ao seu pescoço e o queixo ao peito. Além disso, a relação que existe entre o bebedor e a garrafa é a mesma dos casais na fotografia da boda. Destroem-se um ao outro e não se largam da mão.
Na fotografia do meu casamento com o Paul não trago ramo nem véu. O amor brilha-me novo nos olhos, embora nela esteja a casar pela segunda vez. As nossas faces encostam-se como duas ameixas. Desde que o Paul bebe tanto, a nossa fotografia de casamento é um prenúncio. Quando o Paul anda pela cidade até noite dentro no giro da borracheira, fico com medo de que nunca mais volte para casa e fixo os olhos na fotografia do casamento que está na parede até a imagem se desfocar. Então os nossos rostos nadam, a posição das nossas faces muda, entre elas faz-se um pouco de ar. Na maior parte das vezes, a face do Paul nada para longe da minha, como se ele voltasse tarde para casa. Mas volta. O Paul ainda conseguiu sempre voltar para casa, até mesmo depois do acidente.
Às vezes fazem distribuição de vodka de erva-búfalo, vinda da Polónia, daquela agridoce, amarela. É a primeira a vender-se. Em cada garrafa está afogado um talo comprido, que treme ao deitar para o copo, mas nunca cai ou sai na enxurrada. A gente dos copos diz:
O talo de erva permanece na garrafa como a alma dentro do corpo, por isso protege a alma.
Esta crença é inseparável do sabor que arde na boca e da borracheira que lateja na cabeça. Os beberrões abrem a garrafa, o líquido gorgoleja para o copo, o primeiro golo corre pela garganta. A alma que sempre treme, nunca cai e nunca deixa o corpo, começa a ficar protegida. Também o Paul protege a sua alma e nunca terá de dizer a si próprio que a sua vida não tem jeito. Talvez sem mim ela fosse boa, mas nós gostamos de estar juntos. A aguardente varre o dia, e a noite a borracheira. Daquele tempo em que ainda de madrugada tinha de ir para a fábrica de confeção, sei que os operários diziam: A engrenagem das máquinas de costura lubrifica-se pelas rodinhas, o realejo das pessoas pela garganta.
Nessa altura eu e o Paul saíamos todos os dias de mota para o trabalho às cinco em ponto. Víamos as carrinhas da distribuição diante das lojas, os motoristas, os carregadores das caixas, os vendedores e a lua. Agora só ouço o barulho e não vou à janela, e também não olho para a lua. Ainda sei que ela deixa a cidade de um lado do céu, como um ovo de ganso, e que do outro chega o sol. Nisso nada mudou. Também antes de eu conhecer o Paul e ir a pé para o carro elétrico acontecia o mesmo. Pelo caminho, inquietava-me haver lá em cima no céu uma coisa tão bonita e cá em baixo na terra nenhuma lei que proibisse levantar os olhos. Era por isso permitido colher alguma coisa do dia, antes de ele se tornar miserável na fábrica. Eu sentia frio por não conseguir fartar-me de observar as coisas, não por estar mal agasalhada. A essa hora a lua apresenta-se carcomida e, no extremo da cidade, não sabe para onde ir. O céu tem de soltar-se do chão quando clareia o dia. As ruas sobem e descem abruptas sobre a terra plana. Os carros elétricos andam para cá e para lá como quartos iluminados.
Também os carros elétricos eu conheço por dentro. Quem neles entra a esta hora traz manga curta, uma pastinha de couro coçado e em ambos os braços pele de galinha. É olhado e medido com preguiçoso desdém. É gente da igualha, é classe operária. Gente de melhor qualidade vai de carro para o trabalho. E fazem-se comparações: Aquele está melhor na vida, aquele pior. Igualzinho na vida como nós próprios não está ninguém, nem pensar. O tempo aperta, a seguir vêm as fábricas, depois de vistoriados saem uns atrás dos outros. Sapatos engraxados ou cheios de pó, tacões direitos ou cambados, um colarinho acabado de passar ou engelhado, unhas, braceletes de relógio, fivelas de cinto, risco de cabelo, tudo pulsa de inveja ou de desprezo. Nada se consegue esconder de olhares estremunhados, nem no meio do aperto. A classe operária está à cata das diferenças, não há igualdade de manhã. O sol viaja com ela dentro do elétrico e puxa lá fora as nuvens, brancas e vermelhas, para cima, para o braseiro do meio-dia. Ninguém veste casaco, rapar frio de manhã significa ar fresco, porque ao meio-dia chegam a poeira espessa e o calor infernal.
Por esta altura, quando não estou intimada, ainda temos direito a mais umas horas de sono. O sono do dia, em vez de negro profundo, é superficial e amarelo. Dormimos desassossegados, o sol cai-nos sobre a almofada. Em contrapartida, é possível encurtar o dia. Mas ainda fica tempo de sobra para sermos vigiados, o dia não foge. Arranjam sempre qualquer coisa de que nos acusar, mesmo que durmamos quase até ao meio-dia. Seja como for, acusam-nos sempre de alguma coisa que já não se pode mudar. Dormimos, mas o dia espera por nós, e depois uma cama não é outro país. Só nos vão deixar em paz quando já estivermos deitados ao lado da Lilli.
Claro que o Paul também precisa de curar a bebedeira com um bom sono. Só por volta do meio-dia a cabeça lhe assenta firme no cachaço, a boca consegue outra vez falar e não sorve as palavras com a voz que lhe foi emprestada pela carraspana. Só a respiração ainda cheira. Quando o Paul vem à cozinha, é como se eu tivesse de passar pela porta aberta do bar lá em baixo. Desde a primavera, a lei regula o horário de venda ao público de bebidas alcoólicas e só depois das onze é que se pode beber. Mas o bar continua a abrir às seis e até às onze a aguardente aparece em chávenas de café, depois disso há copos.
O Paul bebe e já não é o mesmo, cura a bebedeira a dormir e volta ao seu normal. Pelo meio-dia já tudo novamente teria passado, mas novamente tudo se irá estragar. O Paul protege a minha alma até a erva-búfalo sentir securas e eu ponho-me a matutar quem somos, eu e ele, até se me esgotar a sabedoria. Quando nos sentamos à mesa da cozinha pelo meio-dia, é má política falar na bebedeira de ontem à noite. Mesmo assim, ora digo uma coisa, ora digo outra:
A aguardente não resolve nada.
Porque é que me fazes a vida difícil.
A tua bebedeira, ontem, era maior que esta cozinha toda.
É verdade, a casa é pequena e eu não quero evitar o Paul, mas quando ficamos em casa, ficamos demasiadas vezes sentados na cozinha durante o dia. À tarde ele já está bêbedo e à noite ainda mais. Eu adio a conversa porque ele fica rabugento. Espero a noite inteira até ele se sentar outra vez sóbrio na cozinha, com os olhos de cebola pregados na testa. O que então lhe digo ele nem ouve. Gostava que por uma só vez o Paul me desse razão. Mas quem bebe não faz declarações de culpa, nem sequer silenciosas a si próprio, e tiradas a ferros por outros que estão à espera, ainda menos. O Paul pensa na bebida logo que acorda e nega-o. Por isso não existe verdade. Quando ele passa por mim, me ouve e não emudece, diz-me para o dia inteiro:
Não te preocupes, não bebo por desespero, mas porque me sabe bem.
Pode ser, digo eu, tu pensas com a língua.
O Paul olha para o céu pela janela da cozinha, ou para dentro da chávena. Toca ao de leve com o dedo as gotas de café no tampo da mesa, como se precisasse de se convencer de que são molhadas e ficam maiores quando se esborracham. Pega-me na mão, eu olho para o céu pela janela da cozinha, para dentro da chávena, toco também ao de leve com o dedo numa ou noutra gota de café no tampo da mesa. A lata vermelha de esmalte fica a olhar para nós, eu devolvo o olhar. O Paul não, ou teria de fazer hoje planos diferentes dos de ontem. Será então força ou fraqueza ele calar-se, em vez de dizer: Hoje não bebo. Ontem o Paul voltou a dizer:
Não te preocupes, a tua criatura bebe porque lhe sabe bem.
As pernas carregaram-no pelo corredor, ora pesadas de mais ora leves de mais, como se tivessem dentro areia e ar em grande reboliço. Pousei-lhe a minha mão à roda do pescoço, acariciei-lhe a aspereza da barba, que tanto gosto de tocar de manhã, por ter crescido durante o sono. Ele puxou a minha mão para cima até debaixo do olho, esta escorregou-lhe pela face abaixo até ao queixo. Eu não retirei os dedos, pensei só com os meus botões:
Não se deve encostar nada à face, quando se conhece a imagem das duas ameixas.
Gosto de ouvir o Paul falar assim pelo fim da manhã, e isso não me agrada nada. Precisamente quando recuo para lhe fugir, ele encosta-me o seu amor, que se avizinha tão nu, que nem precisa de dizer mais nada. Nem esperar por nada. O meu consentimento está ali à mão, já não me pousa na língua qualquer censura. E a que na cabeça existe logo desaparece. Ainda bem que não me vejo, devo ficar com cara de parva, e iluminada. Também ontem de manhã, daquele bicho ressacado do Paul surgiu sorrateiro e inesperado um nariz de bichano sobre patinhas de lã. A TUA CRIATURA, só fala assim quem não tem muita coisa dentro da cabeça, mas muito orgulho nos cantos da boca. Embora a ternura do meio-dia aplane o caminho para a bebedeira da noite, não posso passar sem ela, e não me agrada o tanto que dela preciso.
O major Albu diz: Consegue-se ler os teus pensamentos, não vale a pena negar, só estamos a perder tempo. Eu é que estou, não nós, afinal aquele é o seu trabalho. Ele arregaça a manga e olha para o relógio. As horas, bem que as pode ler no mostrador, mas não os meus pensamentos. Se já o Paul não os consegue ler, ele nem por sombras.
O Paul dorme do lado da parede e eu do lado de fora, porque muitas vezes não consigo dormir. Mesmo assim, quando acorda, repete sempre a mesma coisa:
Dormiste no meio da cama e empurraste-me contra a parede.
E eu respondo:
É impossível, o meu espaço no lado de fora era estreito como a corda da roupa, quem ficou no meio da cama foste tu.
Um de nós poderia dormir na cama e o outro no sofá. Foi o que experimentámos. Uma noite deitei-me eu no sofá, na noite seguinte foi o Paul. Nas duas fartei-me de dar voltas para a esquerda e para a direita. A minha cabeça fartou-se de resmoer pensamentos e pela manhã, meio acordada, tive pesadelos. Duas noites cheias de pesadelos que, encadeados uns nos outros, me perseguiram todo o dia. Quando estava deitada no sofá, o meu primeiro marido pôs a mala na ponte sobre o rio e agarrou-me pelo cachaço rindo às gargalhadas. Depois olhou para a água e assobiou aquela canção em que o amor se despedaça e a água do rio fica negra como tinta. Não era como tinta, que eu bem vi, e dentro de água estava a sua cara, a pique e do avesso até ao fundo, onde jazia o cascalho. Depois foi um cavalo a comer damascos no meio do denso arvoredo, levantava a cabeça a seguir a cada damasco e cuspia o caroço como uma pessoa. E quando eu estava sozinha, deitada na cama, alguém pelas costas me agarrou nos ombros e disse:
Não olhes para trás, eu não estou aqui.
Eu não virei a cabeça, olhei só de viés pelo canto dos olhos. Os dedos da Lilli agarravam-me, a sua voz era uma voz de homem, portanto não era ela. Ergui a mão para lhe tocar. Então a voz disse:
O que não se vê não se toca.
Os dedos eu vi, eram os dela, só que outra pessoa tinha ficado com eles. Essa não a vi. E no sonho seguinte o meu vovô podava um arbusto de hortênsias coberto de neve e chamou-me para junto de si: Vem cá, tenho aqui um cordeiro.
A neve caía-lhe sobre as calças, a tesoura podava os rebentos que o gelo tisnara de castanho-ferrugem. Eu disse:
Mas isso não é um cordeiro.
Uma pessoa é que também não é, disse ele.
Os seus dedos estavam perros e só lentamente conseguiam abrir e fechar a tesoura. Não consegui saber ao certo se era a tesoura se a mão que rangia. Atirei a tesoura para cima da neve. Afundou-se nela, não se conseguia ver onde tinha caído. Ele andou à procura por todo o pátio, de nariz rente à neve. Junto ao portão do jardim, pisei-lhe as mãos, para ele levantar o nariz e não passar além do portão, procurando pela estrada branca fora. Eu disse:
Para com isso, o cordeiro morreu de frio e a lã queimou-se no gelo.
Junto à cerca do jardim ainda se erguia uma hortênsia toda rapada. Apontei para lá:
O que é que se passa com aquela.
Essa é a pior de todas, disse ele, vai ter crias na primavera, que grande descaramento.
Depois da segunda noite, o Paul de manhã deu a sua opinião:
Se uma pessoa incomoda a outra, é porque tem companhia. Só no caixão se dorme sozinho e nunca falta muito para chegar o dia. Devíamos continuar a dormir juntos. Sabe-se lá o que ele terá sonhado e logo esquecido.
Falou de dormir, não de sonhar. Hoje de madrugada, às quatro e meia, vi o Paul adormecido no meio da luz cinzenta, uma cara retorcida com duplo queixo. E na rua das lojas, em baixo, ouvia-se praguejar e rir às gargalhadas, ainda tão cedo. A Lilli dizia:
Praguejar afugenta o mal.
Ó bacoco, tira o pé. Agacha-te, ou tens merda nos sapatos. Arrebita essas orelhas de abano que já ouves, mas vê lá não te leve o vento. Larga o penteado, que ainda estamos a descarregar. Uma mulher gorgolejou uns sons breves e roucos de galinha. A porta duma carrinha bateu com estrondo. Agarra aí, se queres descanso vai para o sanatório.
A roupa do Paul estava caída pelo chão. No espelho do guarda-vestidos era o dia de hoje que se me apresentava pela frente, e nele eu estou intimada. Então levantei-me, pousando primeiro o pé direito no chão, como sempre que estou intimada. Sei lá se acredito nessas coisas, mas mal também não há de fazer.
Gostava de saber se nas outras pessoas o cérebro é responsável pelo bom senso e a felicidade. Comigo o cérebro chega só para construir uma espécie de felicidade. Para construir uma vida não chega. De qualquer modo, não chega para construir a minha. Com a felicidade eu já me acomodei, mesmo se o Paul diz que não é felicidade. De tempos a tempos digo:
Eu estou bem.
A cabeça do Paul, quieta e direita à minha frente, olha-me espantada, como se nada contasse o facto de nos termos um ao outro. Ele diz:
Estás bem porque te esqueceste do que isso significa para outras pessoas.
Outras pessoas referem-se talvez à vida quando dizem: Eu estou bem. Eu refiro-me só à felicidade. O Paul sabe que com a vida eu não me acomodei, e também não queria dizer «ainda não».
Olha bem para nós, diz o Paul, e não estejas para aí a falar de felicidade.
A luz do quarto de banho lançou um rosto no espelho. Foi tão rápido como uma mão cheia de farinha atirada contra uma vidraça. Depois transformou-se numa figura com rugas de sapo no sítio dos olhos e parecia-se comigo. A água correu-me quente pelas mãos, a cara estava fria. Já não é a primeira vez, a lavar os dentes, que a pasta sai a espumar pelos olhos. Fico agoniada, cuspo e paro. Desde que sou intimada, faço uma distinção entre vida e felicidade. Quando vou para o interrogatório, a primeira coisa que faço é deixar a felicidade em casa. Deixo-a no rosto do Paul, em redor dos seus olhos, à volta da sua boca, na aspereza da sua barba. Se se pudesse ver, o rosto do Paul ficaria envolvido em algo transparente. Quando é hora de sair, tenho sempre vontade de permanecer em casa, assim como permanece o medo que não consigo arrancar do Paul. Assim como a minha felicidade, que lá deixo quando estou fora. Ele não sabe, não o conseguiria suportar, que a minha felicidade se apoia no seu medo. Mas ele sabe, o que é bom de ver, que visto sempre a blusa verde e como uma noz quando sou intimada. A blusa é herança da Lilli, mas o nome que lhe dou é meu: a blusa que ainda cresce. Se levar a felicidade comigo, fico com os nervos demasiado frágeis. O Albu diz:
Para quê tantos nervos, estamos só a começar.
Tantos, de mais, e não vejo por onde possam aumentar, se é só o começo. E já todos zumbem em mim como um carro elétrico em movimento.
Dizem que as nozes, comidas em jejum, fazem bem aos nervos e à inteligência. Qualquer criança sabe, mas eu tinha esquecido. Não é porque sou intimada tantas vezes que voltei a lembrar, foi só por um acaso. Como hoje, que tinha de me apresentar ao Albu às dez em ponto e às sete e meia já estava pronta para sair. Para o caminho precisa-se no máximo de uma hora e meia. Fico com duas horas pela frente e, quando chego cedo, prefiro andar ainda a passear pelas redondezas. Nunca cheguei tarde, não posso imaginar que tolerem gente relaxada.
Veio-me a ideia de comer a noz porque às sete e meia já estava pronta. Era o que sempre acontecia quando estava intimada, mas nessa manhã havia uma noz em cima da mesa da cozinha. O Paul tinha-a achado no elevador um dia antes e tinha-a metido ao bolso, porque uma noz não se deixa ficar no chão. Era a primeira do ano, ainda tinha uns fios húmidos colados na casca verde. Pesei-a na mão, para uma noz nova era ainda demasiado leve, como se fosse oca por dentro. Não consegui achar um martelo e bati-lhe em cima com a pedra que antes estava no corredor e que desde então se encontra no canto da cozinha. Tinha o miolo solto. Sabia a natas amargas. Nesse dia o interrogatório acabou mais cedo que o costume, eu consegui controlar os nervos e quando me vi outra vez na rua pensei com os meus botões:
Foi graças à noz.
Desde então acredito que as nozes dão uma ajuda. Acreditar mesmo não acredito, mas quero sentir que faço tudo o que é possível fazer, tudo o que possa ajudar. Por isso fico-me pela pedra como ferramenta e pela madrugada como tempo certo. Se durante a noite a noz ficar por aí aberta, a sua ajuda já se gastou. Não só para os vizinhos e o Paul, também para mim era mais fácil suportar as marteladas da pedra à noitinha, mas nessa altura não consigo mentalizar-me do tempo certo.
A pedra, tinha-a trazido dos Cárpatos. O meu primeiro marido estava na tropa desde março. Escrevia-me uma carta todas as semanas a choramingar e eu respondia com um postal a consolá-lo. Era princípio de verão e já se podia contabilizar ao certo o número de cartas e postais que ainda tinham de vir e ir até ele voltar. Como o meu sogro o queria revezar em funções e dormir comigo, tornou-se um desassossego estar no jardim ou em casa. Fiz a mochila e, depois de ele partir para o trabalho de manhã cedo, meti-a no meio dos arbustos à frente de uma brecha da cerca. Ao fim da manhã, saí de casa de mãos vazias. A minha sogra estendia roupa e não leu na minha cara os meus intentos. Eu não disse palavra, peguei na mochila pelo buraco da cerca e fui para a estação. Parti para as montanhas e juntei-me a um grupo de finalistas do conservatório. Todos os dias até escurecer tropeçáva-mos de um lago gelado para o outro. Nas margens, entre os pedregulhos, erguiam-se cruzes de madeira com a data da morte dos afogados. Cemitérios submersos e cruzes por todo a parte, advertindo da vinda de perigosos dias. Como se os lagos redondos estivessem esfaimados, tivessem todos os anos, nos dias das datas inscritas nas cruzes, necessidade de carne. Ninguém aqui mergulhava em busca de cadáveres, a água ceifava a vida de um golpe, o congelamento era imediato. Os finalistas cantavam, apesar de o lago os espelhar de pé, de cabeça para baixo, testando se dariam bons cadáveres. Cantavam em coro, a andar, a descansar e a comer. Não me teria espantado se eles à noite, a dormir, tivessem cantado a várias vozes, como faziam nos cumes mais despidos, onde o céu nos soprava pela boca dentro. Eu tinha de me colar ao grupo, porque a morte não devolve nenhum caminhante que por ali se perca solitário. Por causa dos lagos, os olhos ficavam cada dia maiores, há muito invadindo as faces, e as pernas cada dia mais curtas. E mesmo assim, no último dia, eu quis levar alguma coisa comigo para casa e apanhei no meio daqueles calhaus todos uma pedra que parecia um pé de criança. Os finalistas procuravam pedrinhas achatadas para trazer na mão, pedras de cura. As suas pedras de mão pareciam botões de sobretudo e deles eu já tivera todos os dias mais do que a minha conta na fábrica de confeções. Mas nessa altura os finalistas acreditavam em pedras de cura como eu hoje acredito em nozes.
Não tenho outro remédio: visto a blusa verde que ainda cresce e martelo duas vezes com a pedra, a louça estremece na cozinha e a noz está aberta. E enquanto a como, o Paul, que acordou estremunhado com as pancadas, aparece de pijama e bebe um ou dois copos de água, se apanhou uma de caixão à cova como a de ontem, dois. Não tenho de perceber todas as palavras, mesmo assim sei o que ele diz ao beber a água:
Tu não acreditas mesmo que a noz tenha algum efeito. Claro que acreditar mesmo não acredito, como não acredito mesmo em todas as coisas a que me habituei. Estou até mais casmurra.
Deixa-me cá acreditar no que quiser.
A isto o Paul nada mais acrescenta, porque ambos sabemos que antes do interrogatório se tem de ter a cabeça fresca e não se deve discutir. Mesmo com a noz, a maioria dos interrogatórios são um tormento, de tanto que duram. Só que não tenho meios de saber se sem a noz não seriam piores. O Paul não percebe que ainda fico mais dependente das coisas a que me habituei, se ele as menospreza com a boca molhada e o copo já vazio, antes de o pousar.
Quando uma pessoa é intimada, habitua-se a coisas que surtem algum efeito. Se é real ou não, não interessa. Uma pessoa, não, eu habituei-me a estas coisas que foram chegando sorrateiras umas atrás das outras.
O Paul diz:
Com isso estás a perder o teu tempo.
Em contrapartida, põe-se a magicar nas perguntas que me esperam quando sou intimada. É o que é preciso fazer, acha ele, e o que eu faço é tolice. Seria preciso se as perguntas para que me prepara estivessem realmente à minha espera. Até agora foram sempre outras as que fizeram.
Seria pedir de mais que as coisas a que me habituei me servissem de alguma coisa. Elas até servem de alguma coisa, mas não a mim. Quer dizer, servem quando muito à vida, a vencer o dia. Mas não se espere que elas nos encham a cabeça de felicidade. Há muito a dizer sobre a vida. Sobre a felicidade, nada, ou já não é felicidade. Nem sequer a felicidade que nos passou ao lado suporta que se fale dela. No caso das coisas a que me habituei, a questão são os dias, não a felicidade.
Claro que o Paul tem razão, a noz e a blusa que ainda cresce só servem para provocar mais medo. E depois, porque é que uma pessoa há de querer construir a sua felicidade, se a única coisa que consegue é provocar medo a si própria. Fico serena a matutar nestas coisas e não me ponho com tantas exigências como as outras pessoas. E, além disso, ninguém cobiça o medo que um outro provoca a si próprio. Com a felicidade é ao contrário, por isso não é um bom projeto, seja qual for o dia.
A blusa verde que ainda cresce tem um grande botão de madrepérola que eu outrora escolhi na fábrica, entre muitos botões, e trouxe para dar à Lilli.
Durante o interrogatório fico sentada na mesinha, rodo o botão e respondo com calma, mesmo que todos os nervos zumbam dentro de mim. O Albu anda de um lado para o outro. A preocupação de fazer as perguntas certas corrói a sua calma, como também corrói a minha de dar as respostas certas. Enquanto eu me mantiver descontraída, há alguma coisa, talvez tudo, que ele não consegue apanhar direito. Quando regresso a casa vinda do interrogatório, visto a blusa cinzenta. O seu nome é: a blusa que ainda espera. Pertence ao Paul. Claro que muitas vezes tenho reticências quanto a estes nomes. Mas mal ainda não fizeram, nem sequer nos dias em que não fui intimada. A blusa que ainda cresce ajuda-me a mim e a blusa que ainda espera talvez ajude o Paul. O medo que sente por mim chega até ao teto, assim como o meu por ele quando ele fica sentado em casa à espera e a beber, ou anda pela cidade no giro da borracheira. É mais fácil quando é a gente que tem de sair, levando o medo consigo e deixando a felicidade em casa, e é o outro que fica à espera. Ficar sentado em casa, à espera, estica o tempo até à sua rutura e atiça o medo até ao insuportável.
O poder que confio às coisas a que me habituei não está nas mãos de um ser humano. O Albu grita:
Vês, as coisas ligam-se.
E eu rodo o botão da minha blusa e digo: Para si, para mim não.
O velho do chapéu de palha despregou de mim os olhos aguados pouco antes de sair. Agora é um pai com uma criança ao colo que está no banco da frente e estende as pernas no meio do corredor. Olhar pela janela e ver a cidade passar não está nada nos seus planos. A criança mete-lhe o indicador pelo nariz. A dobrar o dedo e a procurar macacos é coisa que se aprende cedo. E mais tarde ensinam que só se procuram macacos no próprio nariz, e só quando ninguém vê. Para o pai ainda não é mais tarde. Sorri, talvez lhe seja agradável. O carro elétrico para sem placa de paragem à vista, o guarda-freio sai. Sabe-se lá o tempo que vamos ficar aqui parados. Ainda é de manhã cedo e ele já faz uma pausa clandestina a meio do percurso. Afinal, aqui, cada um faz o que quer. Vai até às lojas do outro lado, ainda ajeita a camisa e a calça para ninguém ver que abandonou o carro elétrico no meio do caminho. A sua atitude é a de quem, enfastiado de estar sentado no sofá, levasse o nariz à rua a passear. Mas se quiser comprar alguma coisa na loja, vai ter de dizer quem é, ou então tem de esperar na bicha. Se for só tomar um cafezinho, espero bem que seja de pé. Aguardente é coisa a que não se pode permitir, apesar de levar a janela aberta. Todos nós, que vamos cá dentro sentados, teríamos direito de cheirar a aguardente, só ele é que não. Mas ele comporta-se como se fosse ao contrário. Tendo hora marcada para as dez em ponto, no caso da aguardente, estou na mesma situação dele. Preferia renunciar à aguardente pelos seus motivos do que pelos meus. Vá-se lá saber quando é que ele volta.
Desde que deixo a minha felicidade em casa, já não fico tão tolhida com o beija-mão como acontecia antes. Dobro os nós dos dedos para cima, para o Albu não poder falar sem estorvo. O Paul e eu ensaiamos o beija-mão. Como queríamos saber se o anel de sinete, no dedo médio do Albu, é importante para esmagar os dedos durante o beija-mão, costurei um anel com um bocado de borracha e um botão de sobretudo. Enfiamo-lo no dedo, ora eu ora ele, e rimo-nos tanto que já nem sabíamos a razão do ensaio. Sei desde aí que devo arquear a mão para cima, não de repente, mas um bocadinho de cada vez. Então, os ossos dos dedos ficam colados à gengiva dele e impedem-no de falar. Às vezes, durante o beija-mão do Albu, lembro-me do ensaio com o Paul. Aí, as dores nas unhas e a saliva já não me conseguem humilhar tanto. A gente vai aprendendo, mas pode descair-se, então rir é que está mesmo fora de questão.
No bloco em forma de torre onde o Paul e eu moramos, para quem vai na rua a passear a pé ou de carro, só se consegue observar bem a entrada e os andares inferiores. Do quarto andar para cima, os apartamentos ficam altos de mais, são de certeza necessários requintes técnicos para se verem coisas ao pormenor. Para além disso, a torre faz uma curva para fora a meio da altura. Quando se olha para cima muito tempo, os olhos até se nos enfiam pela testa dentro. Experimentei muitas vezes, cansa o pescoço. O prédio já está assim há doze anos, desde o início, diz o Paul. Quando quero explicar a alguém onde moro, só tenho de dizer «na torre abaulada». Todos na cidade sabem onde é que fica e perguntam:
Não tens medo que desabe.
Eu não tenho medo, é feita de betão por dentro. Como as pessoas olham logo para o chão quando se fala nisso, como se a minha cara lhes fizesse vertigens, eu digo:
Antes, desaba tudo o resto nesta cidade.
Então eles dizem que sim com a cabeça, para suster o latejar das veias do pescoço.
O facto de morarmos alto é para nós uma vantagem, mas também tem o inconveniente de o Paul e eu não podermos ver bem o que se passa lá em baixo. Do sétimo andar não se consegue distinguir com clareza objetos que sejam mais pequenos que malas, e quem é que anda sempre por aí com uma mala atrás. As roupas esbatem-se, as suas cores são manchas grandes, as caras, entre o cabelo e as roupas, manchas pequenas. A gente podia pôr-se a adivinhar o aspeto do nariz, dos olhos ou dos dentes no meio das manchas pequenas, mas qual o interesse. Os velhos e as crianças reconhecem-se pelo andar. Entre a torre e a rua das lojas estão os latões do lixo no meio da relva e ao lado deles corre o passeio. E, partindo do passeio, dois caminhos estreitos, que por pouco não se tocam, em torno dos latões. De cá de cima, os latões são armários revirados sem portas. Uma vez por mês deitam-lhes fogo, o fumo sobe no ar, o lixo devora-se a si próprio. Se as janelas não estão fechadas, fica-se com os olhos a arder e a garganta arranhada. A maior parte do movimento acontece na rua das lojas, infelizmente só vemos as portas das traseiras. Por muito que as contemos, nunca conseguimos saber quais das vinte e sete portas traseiras correspondem às oito portas da frente da mercearia, da padaria, da hortaliceira, da farmácia, do bar, do sapateiro e do jardim-escola. Uma parede das traseiras cravejada de portas e, mesmo assim, muitas das carrinhas de distribuição param na rua da frente.
O velho sapateiro queixou-se de falta de espaço e ratazanas. A sua oficina está toda revestida com tábuas pregadas à volta da banca de trabalho.
Foi o meu antecessor que instalou a oficina, na altura isto era construção nova, disse o sapateiro, as paredes de tábuas já cá estavam. O meu antecessor não teve melhor ideia, ou era trabalho de mais, e não dava uso às tábuas. Eu martelei lá uns pregos e desde que os sapatos ficam pendurados por atacadores, tiras ou tacões, já não aparece nada roído. Só faltava essa, as ratazanas empanturram-se e eu é que pago. Principalmente no inverno, quando a fome mais aperta. Por detrás das tábuas, o espaço é do tamanho de um salão. Logo no início, vim uma vez à oficina num feriado, soltei duas tábuas em baixo, por trás da banca, e enfiei-me por lá com uma lanterna de bolso. Não há sítio onde se ponha os pés, todo o chão corre e guincha, dizia ele, tudo cheio de ninhos de ratazanas. Elas não precisam de porta, bastam os buracos na terra. Nas paredes há um número disparatado de tomadas e na parede das traseiras, quatro portas que dão para os latões de lixo. É impossível abri-las, nem sequer uma nesga para enxotar as ratazanas, ao menos por umas horas. Na oficina, as portas são meros pedaços de chapa, na parede traseira da rua das lojas, mais de metade das portas são pedaços de chapa trilhados nas paredes. Queria-se poupar no betão e as tomadas eram provavelmente para um caso de guerra. Guerra haverá sempre, riu-se ele, mas cá no país nem pensar. Os russos têm-nos na mão através dos tratados, esses não vêm cá. Aquilo de que precisam eles mandam despachar para Moscovo e empanturram-se com o nosso cereal e a nossa carne. A fome e a porrada eles deixam para nós. Quem é que nos há de querer conquistar, era só despesa. Qualquer estado dá graças por não nos ter, até os russos.
O guarda-freio aproxima-se. Está a comer um croissãzinho salgado. Não tem pressa nenhuma. A camisa desentalou-se outra vez das calças, como se ele tivesse vindo a conduzir o tempo todo. De croissãzinho na mão e uma bochecha inchada, penteia o cabelo com os dedos, a cara mais retorcida, como se fosse indispensável à mastigação. Aqui na escada ajeita-se todo, mas não para nós. Para nós põe cara de poucos amigos, para que ninguém no carro ouse abrir a boca. Sobe, na outra mão um segundo croissãzinho salgado, um terceiro a espreitar do bolso da camisa. O carro elétrico arranca devagar. Afinal o pai com a criança acabou agora de retirar as pernas do corredor para o espaço entre os bancos. A criança lambe o vidro, ele segura-lhe a nuca com a mão, para aquela linguazinha vermelha lá chegar melhor, em vez de a puxar para trás. A criança roda a cabeça, olha para ele, agarra-lhe na orelha e fica a palrar. Ele não lhe limpa o queixo molhado. Talvez esteja atento ao que diz. Mas com os pensamentos bem longe dali, olha através da saliva, como se fosse da natureza dos vidros escorrerem. Na parte de trás da cabeça, o cabelo é curto e cerrado, uma verdadeira pelagem. Pelo meio, a marca escalvada de uma cicatriz.
Quando chegou o verão e apareceram por aí as primeiras pessoas de manga curta, o Paul e eu andámos uma semana inteira desconfiados de um homem que até hoje vem todos dias às dez para as oito da rua das lojas, de mãos vazias, deixa o passeio, dá a volta aos latões do lixo, regressa de novo ao passeio e mete outra vez pela rua das lojas. Foi então que o Paul se fartou, atafulhou com papel um saco de plástico, pegou nele e foi atrás do homem. Só regressou à tarde, por volta da uma, com um pão claro e comprido, que dava para carregar bem debaixo do braço. Foi com ele que saiu para a rua na manhã seguinte, às sete e um quarto, e às dez para as oito, depois de o homem ter dado a volta aos latões do lixo, estava outra vez em casa, com o pão meio quebrado. O homem anda pelos quarenta, traz uma corrente de ouro com uma cruz, tem uma âncora tatuada no interior dum braço e no outro, o nome Ana. Mora numa casa verde-clara, na enfiada de outras casas da rua das Amoreiras e todos os dias, antes de dar a volta aos latões do lixo, entrega no jardim-escola um menino a chorar. Não teria nenhuma necessidade de passar pelo nosso bloco no caminho do jardim-escola para casa, a não ser que quisesse variar. Se bem que a um desvio diário já não se possa chamar variação. Diz o Paul:
Esse vem até aos latões porque o bar fica perto. Passou-lhe há pouco sorrateiro à porta e resistiu a entrar. O cheiro do lixo fermentado a aguardente alivia-lhe a consciência pesada e ele já consegue dar meia volta aos calcanhares e pedir no bar a primeira aguardente. Todos os copos que se lhe seguem já sabem o caminho de cor. Lá pelas nove senta-se um tipo ao pé dele, que só toma duas chávenas de café, mas fica sentado na mesa até às cinco para o meio-dia, a hora de ir buscar a criança. A criança também chora ao meio-dia, quando o vê à espera.
Para mim os latões do lixo não fedem a álcool, para os que bebem é capaz de ser diferente. Mas porque é que o homem ainda hoje levanta a cabeça e olha para cima, ao passar lá em baixo. E que tem a ver o homem de cinquenta, fato de verão castanho e mangas curtas, que lhe faz companhia. Acho que o Paul está a falar de si próprio, quando pensa que alguém estica o pescoço para o céu a caminho de casa, para decidir, contra todos os sentimentos de culpa, se vai apanhar uma borracheira. E porque chora esta criança quando o vê, talvez seja um estranho para ela. O Paul não faz a mínima ideia quando diz:
Mas quem é que pede uma criança emprestada.
Ele nunca vai às compras, senão sabia que há pessoas que as pedem emprestadas para conseguirem nas lojas mais rações de carne, leite e pão.
Como é que o Paul diz que o homem dos copos vai todas as manhãs e todos os meios-dias aqui e ali, se só o seguiu pela calada uma manhã e um meio-dia. Pode ser tudo uma coincidência, não um hábito. O Albu é que é experimentado nestas coisas. Em intervalos curtos ou longos, espalhados à sorte para me confundir, pergunta pelo menos três vezes a mesma coisa, antes de se dar por satisfeito com a resposta. Só depois é que diz:
Vês, agora as coisas ligam-se.
O Paul acha que, se não estou satisfeita com o que descobriu, devia ser eu mesma a seguir o rasto do homem dos copos. É melhor não ir. Com um saco na mão ou o pão debaixo do braço, a gente não fica invisível, antes se pode denunciar.
Também já não me ponho à janela às dez para as oito, embora todas as manhãs me lembre que o homem passa lá em baixo e fica com o pescoço comprido. Também já não digo mais nada, porque o Paul fica turrão, como se o homem dos copos lhe fosse indispensável à vida, e não eu. Como se a nossa vida ficasse mais fácil se o homem, dividido entre o filho e a bebedeira, não fosse mais que um pai atormentado.
Pode ser tudo verdade, digo eu, mas entretanto vai espionando.
*
O guarda-freio raspou as pedras de sal do seu segundo croissãzinho. As pedras grossas picam na língua e também riscam o esmalte dos dentes. E o sal faz sede. Talvez ele não queira estar constantemente a beber água, porque não pode ir à retrete no meio do percurso e porque a gente sua mais quando bebe muito. O meu vovô contou que no campo de detenção as pessoas lavavam os dentes com o sal da água evaporada. Punham-no na boca e esfregavam-no por cima dos dentes com a ponta da língua. Mas o sal era fino como pó. O guarda-freio já comeu o primeiro croissãzinho e a seguir bebeu da garrafa, espero que seja água. No cruzamento passa um camião aberto com ovelhas na carga. Vão tão apertadas no atrelado que é impossível caírem com as sacudidelas. Não se vê uma cabeça, uma barriga, apenas lã, preta e branca. Só agora, na curva, reparo lá pelo meio numa cabeça de cão. E à frente, junto ao guarda-freio, num homem de chapeuzinho montanhês verde-abeto, dos que usam os pastores de ovelhas. O rebanho está provavelmente a mudar de pasto. Para o matadouro não é preciso cão.
Há coisas que só se tornam graves quando se fala nelas. Eu habituei-me a calar a tempo e, contudo, a maioria das vezes já é tarde de mais, porque tenho desejo de me afirmar por um instante. Sempre que o Paul e eu não compreendemos o que atormenta os outros, sobe-nos a briga à cabeça. Sobe num ápice, e cada palavra reclama por outra que mais estrondo provoca. Acho que nós vemos no homem dos copos aquilo que a nós próprios mais atormenta. E que, apesar de nos amarmos, não se trata da mesma coisa para um e para outro. A bebida atormenta mais o Paul do que o facto de eu ser intimada. Nesses dias é quando ele bebe mais, e é precisamente então que não tenho o direito de censurá-lo, mesmo que o facto de ele estar bêbedo me atormente mais do que...
Também o meu primeiro marido tinha tatuagens. Quando regressou do exército, trazia no peito uma rosa enfiada num coração. Por baixo do pé da rosa, o meu nome. Mesmo assim, deixei-o.
Porque desfiguraste a tua pele, essa rosa com o coração ficava bem quando muito na lápide da tua campa.
Porque os dias eram longos e eu pensava em ti, disse ele, e porque todos o faziam. Tirando os cagarolas, de que também havia uns tantos, como em toda a parte.
Eu não queria fugir para os braços de outro, como ele pensava, mas para longe dele. E ele queria que lhe passasse uma fatura, com todas as razões discriminadas. Eu não tinha uma única para lhe apresentar.
Ou tu te iludiste comigo, comentou ele, ou fui eu que mudei.
Não, estamos iguaizinhos a quando nos conhecemos. O amor marca passo se não sai do sítio, o nosso já não saía há dois anos e meio. Ele olhou para mim e, como fiquei calada, disse:
Tu és daquelas que precisam que lhes assentem a mão de vez em quando, e eu não fui homem para tanto.
Estava a falar a sério, porque sabia que nunca seria capaz de me levantar a mão. Eu também acreditava nisso. Até àquele dia em cima da ponte, ele nem de raiva conseguia bater com a porta.
Eram já sete e meia da noite. Ele pediu-me para ainda ir depressa com ele comprar uma mala, antes que as lojas fechassem. Queria partir por duas semanas para as montanhas, na manhã do dia seguinte. Queria que eu sentisse falta dele durante esse tempo. Duas semanas não teriam sido nada, nem sequer os nossos dois anos e meio são grande coisa.
Saímos da loja e caminhámos pela cidade sem dizer palavra. Ele carregava a mala nova. Com a loja quase a fechar, a empregada nem chegou a esvaziar a mala, que vinha atafulhada de papéis, a etiqueta do preço ainda pendurada na asa. No dia anterior, tinha-se abatido sobre a cidade uma chuva torrencial e no rio a enxurrada barrenta arrastava consigo as pastagens. Ele estacou no meio da ponte e apertou-me o braço com os dedos. Trilhou-me a carne até aos ossos, que até me arrepiei, e disse:
Olha quanta água. Se eu vier das montanhas e tu me deixares, salto daqui abaixo. A mala pendia entre nós dois e, por detrás dos seus ombros, era a água cheia de ramos e espuma suja. Eu gritei:
Salta já aqui à minha frente, assim poupas a ida às montanhas.
Ao recuperar o fôlego, inclinei para ele a cabeça. Não tive culpa de ele pensar que eu queria um beijo. Ele abriu os lábios, mas eu repeti:
Salta, eu assumo a responsabilidade.
Depois, desprendi o meu braço com um arrepelão, para ele ter os dois braços livres e poder saltar, e fiquei atordoada com medo de que o fizesse. Só depois, sem olhar para trás, com passo pequeno me afastei dali, para ele não se acanhar e eu estar suficientemente longe do afogado. Quando eu tinha chegado quase ao fim da ponte, ele apareceu ofegante atrás de mim, atirou-me contra a balaustrada e esmagou-me a barriga. Pegou-me pelo cachaço, empurrou-me a cara na direção das águas em baixo, tão fundo quanto dava o comprimento do braço. Todo o meu peso se debruçou na balaustrada, os meus pés ergueram-se-me do chão, ele entalou-me a barriga das pernas entre os seus joelhos. Fechei os olhos à espera, antes da queda, de uma palavra derradeira. Ele disse-a curta:
Toma.
Sabe-se lá porquê, em vez de me soltar dos joelhos, ele afrouxou a mão no meu pescoço, deixou-me voltar ao chão e recuou um passo. Abri os olhos, que lentamente escorregaram da testa, regressando à cara. O céu descaiu azul-avermelhado, não mais fixo e preso nas alturas, e o rio rodopiou em bobinas de água castanha. Então comecei a correr, antes que ele notasse que ainda estava viva. Não queria parar nunca mais, o pavor saltitava-me por baixo do céu da boca. Estava com soluços. Passou por mim um homem com a bicicleta pela mão, tocou a campainha e exclamou:
Ó querida, fecha a boca, olha que o coração arrefece.
Parei a cambalear, as pernas bambas, as mãos pesadas. Ardia de calor e gelava de frio e nem tinha andado muito, só um lanço de caminho, mas dentro de mim dera meia volta à Terra. A tenaz da garra doía-me no cachaço, o homem entrou no parque a empurrar a bicicleta, dois sulcos estriados de mangueira seguiam-no rastejando pela areia, o asfalto à minha frente completamente vazio. O parque subia escarpado, verde-negro, porque o céu estendia a mão para agarrar as árvores. A ponte não me saía da cabeça, tive de olhar para trás. Bem no meio dela, a mala ainda continuava no lugar de onde eu tinha abalado. E naquele de onde fugira da morte a correr, estava ele de cara posta na água. Por entre o compasso dos meus soluços, ouvi-o assobiar. Muito melodioso, sem solavancos, assobiava uma canção que tinha aprendido comigo. Os meus soluços pararam, de susto para susto enregelados. Deitei a mão à garganta, senti a laringe avançar e recuar debaixo dela. Foi tudo tão rápido, o tempo de alguém fazer muito mal a outro. E aquele ali na ponte a assobiar:
Sim a árvore tem folhagem
e água o chá
o dinheiro papel
e o coração uma neve caída ao deus-dará.
Hoje fico a pensar, foi uma sorte ele ter-me pegado pelo cachaço. Assim não me tornei a instigadora de um crime, mas ele quase se tornou num assassino. A causa de tudo era ele não ser capaz de me bater e desprezar-se por isso.
*
O pai deixara-se dormitar e segurava a criança tão relaxado que pensei: É agora que cai. Foi então que a criança lhe enterrou os sapatos pela barriga. O pai acordou sobressaltado e puxou a criança para o colo. As minúsculas sandálias bamboleiam como se os pais lhe tivessem calçado hoje de manhã uma peça dos seus brinquedos. Solas novinhas, que ainda nem um passo na rua andaram. O pai deu um lenço à criança para o manter quieto. O lenço tem um nó e dentro do nó deve estar atada alguma coisa dura com que a criança bate contra o vidro. Talvez moedas, chaves, pregos ou parafusos, que o pai não quer que se percam. O guarda-freio já ouviu a bateria, olha à sua volta e grita: Dá-lhe com força, olha que um vidro desses custa dinheiro. Não tenhas medo, diz o pai, a gente não o quebra. Bate com a ponta do dedo no vidro, a apontar para a rua, e diz: Olha ali dentro um bebé que ainda é mais pequenino do que tu. A criança deixa cair o lenço e diz: Mamã. Vê uma mulher a empurrar um carrinho de bebé. E o pai diz: A nossa mamã não usa óculos de sol, senão não via como os teus olhos são tão azuis.
Quando o Paul me pergunta pelo meu primeiro marido, eu digo:
Esqueci isso tudo, já não sei de mais nada.
Acho que tenho mais segredos para o Paul do que ele para mim. A Lilli disse uma vez que os segredos não desaparecem quando se contam, o que se pode contar são só as cascas, não o miolo. Talvez seja verdade para ela, mas quando eu não escondo nada, já estou no miolo.
Chamas a isso cascas, disse eu, quando se chega ao que aconteceu na ponte.
Mas tu contas como te dá jeito, disse a Lilli.
Como é que me há de dar jeito, não me dá jeito mesmo nenhum.
Claro que joga contra ti e também contra ele, disse a Lilli, mas dar-te jeito, dá-te, porque podes falar do assunto à tua maneira.
Foi como aconteceu, não é à minha maneira. Tu não acreditas é que eu te diga coisas que tu esconderias de mim, por isso falas de cascas.
A questão é que o segredo com o meu padrasto não muda um milímetro, mesmo que eu fale nele todos os dias à minha maneira.
Não estou para matar a cabeça pensando ainda no homem dos copos junto aos latões de lixo. E sabe-se lá também o que ele pensa, afinal via-me dias e dias seguidos lá em cima à janela. Como durante este tempo todo não chegámos a acordo quanto ao homem, o Paul e eu desabituámo-nos de deitar a adivinhar sobre as pessoas lá em baixo. Se andam em quadrado, em círculo ou em linha reta. A gente não as conhece. Afinal o que é que se vê, quando caminhamos ao seu lado lá em baixo na rua. Que passam por nós como se tivessem os dedos atrás e os calcanhares à frente, mas isso não tem nada a ver com os pés deles, só comigo. Mesmo assim, é claro que estamos constantemente a olhar pela janela. Não há nada para adivinhar sobre um carro que por ali está parado e inútil nas portas traseiras das lojas, ou à frente do bloco residencial meio em cima do passeio, onde uma pessoa normal não pode estacionar. Apesar disso, estamos mais do que ocupadíssimos a fazê-lo.
Gosto mais de olhar pela janela da cozinha. Aí, as andorinhas atravessam um grande pedaço de céu, voando em torno do próprio círculo. Hoje de manhã voavam baixo e eu mastiguei a minha noz, descobrindo ao observá-las que lá fora começava um dia. Porque fui intimada, será só um dia a olhar para a janela, mesmo que ao lado da mesa do major veja uma metade de árvore. Em largura, cresceu seguramente o comprimento de um braço desde que sou intimada. No inverno a passagem do tempo conta-se pela madeira, no verão pela folhagem. A folhagem diz que sim ou que não com a cabeça conforme o vento. Não me posso guiar pelo que diz. Quando o Albu me faz uma pergunta curta, quer resposta imediata. Perguntas curtas não são as mais fáceis.
Preciso de pensar.
Engendrar uma mentira para uma rápida, diz ele, exige uma inteligência que tu infelizmente não tens.
Está bem, então sou burra, mas não tanto que diga seja o que for que me prejudique. E não sou suficientemente burra que sucumba à pressão, quando o Albu testa da verdade ou mentira pela minha cara. Às vezes os seus olhos são frios, outras ardem sobre mim, que até...
Às vezes é a Lilli que está dentro de mim e fixa o Albu nos olhos mais do que deve.
Arrasto os sapatos debaixo da mesa e já não fica tudo tão silencioso.
Sim a árvore tem folhagem
e água o chá
o dinheiro papel
e o coração uma neve que cai ao deus-dará.
Uma canção de inverno e de verão, mas para cantar lá fora. Com folhagem e neve a ocupar a cabeça, cá dentro depressa se cai na esparrela. Não sei o nome da árvore, senão na minha cabeça estaria a cantar freixo, acácia, choupo, e não árvore. Rodo o botão da blusa que ainda cresce. Da mesinha, nunca chegarei tão perto dos ramos como o major. Olhamos para a árvore ao mesmo tempo. Gostaria de perguntar:
Que árvore é esta.
Seria uma manobra de diversão. Ele de certeza não ia responder, mas puxar a cadeira à frente e, enquanto as pernas das calças roçam os tornozelos para cá e para lá, talvez rodar o anel de sinete ou brincar com o coto do lápis e devolver a pergunta:
Para que é que precisas de saber.
Que resposta poderia eu dar. Ele também não sabe porque ponho sempre a mesma blusa, como ele o anel de sinete. Ele não sabe porque rodo o botão grande. E eu, porque está sempre em cima da sua mesa aquele lápis roído do tamanho de um fósforo. Homens usam anéis de sinete, mulheres brincos. Alianças de casamento tornam as pessoas supersticiosas, nunca mais se tiram da mão até morrer. Quando morre o homem, a viúva herda o anel e trá-lo dia e noite ao lado do seu no dedo médio. Como todos os casados, o Albu traz a sua aliança estreita no dedo durante o serviço. Só o anel de sinete, parece-me a mim, não combina lá muito com o seu trabalho de martirizar bijutaria e pessoas. Até que não é feio. Se não fosse dele, era bonito. E também os olhos, as faces, os lobos das orelhas na cabeça dele. A Lilli teria seguramente gostado de estender as mãos para o acariciar. Talvez mo tivesse apresentado um dia como amante.
O tipo é jeitoso, eu seria obrigada a dizer.
A beleza de Lilli não tinha contestação. Não se podia culpar o que os olhos viam do assombro que causava. O nariz, a curva do pescoço, a orelha, de repente, no meio do assombro, queríamos protegê-los, cobri-los com a mão, ficávamos preocupados, pensávamos na morte. Mas nunca me passou pela cabeça que um dia aquela pele poderia enrugar. Entre juventude e morte, com a Lilli nunca me ocorreu a velhice. Já na pele do Albu ela está presente, e como se não proviesse da carne. É como um posto a que foi promovido pelos bons serviços prestados. Depois desta idade, para ele nada mais se segue, fica-se tudo por esta superioridade, só falta o golpe da morte. Como eu o desejo. A beleza do Albu é talhada para interrogatórios. Ele é uma figura irrepreensível, cuja imagem não se quer beliscada quando a saliva viscosa fica presa na minha mão. Talvez seja exatamente essa diferença que o proíbe de mencionar a Lilli. O lápis roído em cima da sua mesa não combina com ele, com ninguém na sua idade. E de certeza que ele não precisa de poupar nos lápis. Talvez ele sinta orgulho de estarem a nascer os dentes ao neto. Uma foto do neto podia bem substituir o coto do lápis sobre a mesa, só que também aqui, como em todas as repartições, deve ser proibido exibir retratos de família. Talvez um coto dê mais jeito à sua caligrafia escarpada, ou um lápis comprido faça atrito no anel de sinete. Ou talvez o coto pretenda mostrar-me o quanto se escreve sobre gente da minha laia. Nós sabemos de tudo, diz o Albu. Pode ser, nisso concordo com a Lilli. Sobre as cascas dos mortos, talvez. Mas nada sobre os seus segredos, sobre a Lilli, que o Albu nunca menciona. Nada sobre felicidade e inteligência, capazes de fazer amanhã algo que eu própria hoje ainda ignoro. E nada sobre o acaso, que talvez nos visite depois de amanhã, afinal eu ainda estou viva...
Não é nada do outro mundo que o Albu e eu olhemos ambos para a árvore. Também olhamos ao mesmo tempo para a minha ou para a sua mesa, para um bocado de parede ou para o chão. Ou ele para o seu lápis e eu para os meus dedos. Ou ele para o seu anel e eu para o meu botão grande. Ou ele para a minha cara e eu para a parede. Ou eu para a cara dele e ele para a porta. Olhar constantemente para a cara um do outro cansa, sobretudo a mim. Aqui só tenho confiança nos objetos que não se modificam. Mas a árvore cresce e a blusa recebeu dela o nome. É verdade que deixo a felicidade em casa, mas a blusa que ainda cresce está comigo.
Quando não fui intimada, caminho pelas ruelas até à avenida e vou a pé até à baixa. Debaixo das acácias chovem flores brancas ou folhas amarelas. E se nada deixam cair, só cai vento. Quando ainda trabalhava na fábrica, conseguia ir à baixa no máximo duas vezes por ano à hora do meio-dia. Não fazia a mínima ideia que a esta hora havia tanta gente que não está no trabalho. Ao contrário de mim, andam todos por aí, e a ser pagos. No emprego, inventaram canos rebentados, doenças, enterros e ainda por cima recebem antes do passeio a comiseração de superiores e colegas. Eu inventei uma única vez a morte do meu vovô, porque queria ir comprar uns sapatos cinzentos de salto alto, logo às nove, ao abrir das lojas. Tinha-os visto na montra no dia anterior, à noitinha. Preguei uma mentira, estive na cidade, comprei os sapatos e a mentira tornou-se verdade. Quatro dias depois o meu vovô caiu morto da cadeira durante a refeição. Quando chegou o telegrama de madrugada, meti os meus sapatos cinzentos, só com três dias, debaixo da torneira até ficarem ensopados. Calcei-os, fui ao escritório e disse que tinha de faltar nos dois dias seguintes porque estava com inundações na cozinha. Quando prego uma mentira maldosa, torna-se verdade. Fui para o enterro. Os sapatos secaram-me nos pés ao longo das pequenas estações de comboio, só na décima é que desci. O mundo estava de pernas para o ar. Com a minha mentira levara o enterro àquela pequena cidade e agora ali estava eu perante a inundação da cozinha no cemitério. Os aglomerados de terra ressoaram sobre a tampa do caixão como antes os sapatos cinzentos, atrás do caixão, sobre o passeio.
Nesse tempo, eu ainda sabia mentir bem. Ninguém me apanhava. Mas a emergência que originava a mentira tomava à letra as minhas palavras. Desde então, prefiro deixar-me apanhar na mentira do que pela emergência. Exceto com o Albu, aí eu minto bem.
Vou para a cidade sem destino certo. Para a fábrica eu ia sem sentido aparente. Incrível, nessa altura era mais fácil esconder a falta de sentido. Quando me sento como ontem numa esplanada de café e peço um gelado, logo a seguir quero um pedaço de bolo. A falar verdade, eu só quero sentar-me, nem isso, só não andar por um instante. Puxo a cadeira mais para o pé da mesa para estar confortável. Quando a cadeira se me ajusta ao corpo, já me apetece levantar de um salto e desaparecer dali, mas não ter de andar outra vez. De longe, as mesas da esplanada são um destino, convidam a ficar, nas toalhas esvoaçam os cantos. Só depois de me sentar confortavelmente é que a impaciência se espraia. A seguir, é quando já a boca não se me ajusta à cara que chega o sorvete. É redonda a mesa, a taça do gelado, as bolas do gelado. Depois vêm as vespas, impertinentes, procurando onde fartar-se, as cabeças também são redondas. Embora seja obrigada a controlar os tostões, não consigo comer aquilo que pago.
Com a falta de sentido posso eu melhor do que com a falta de um destino. Em vez de mentiras na fábrica, invento destinos na cidade agora. Sigo as mulheres da minha idade. Passo horas em lojas de confeções a provar roupa de que elas gostam. Ontem mesmo, pus de propósito um vestido às riscas com as costas para a frente, repuxei para cá e para lá, pus as mãos a fazer de gola à volta do decote, deixei pender os dedos a fazer de laço. O vestido começou a agradar-me. Com uma coisa não tinha contado, senti que me ausentava de mim. Pelo ar do vestido, era como se fosse urgente despedir-me de mim própria. Então a minha boca ficou amarga, não me lembrei de nada que pudesse dizer-me no pouco tempo que ainda me restava. Não me quis render perante o meu desaparecimento e disse:
Porquê logo agora, olha que sem os meus pés não vais longe.
Disse-o em voz alta, o meu rosto ruborizou-se, não quero ser como aquelas pessoas que têm um ar desfigurado, porque falam alto sozinhas. Algumas cantam. Que sacudam a cabeça ao pé de mim, porque confundo falar com pensar, isso não quero. Ser ouvida por gente completamente estranha ainda é mais constrangedor do que ser invisível ou empurrada na rua. Embora me deva ter ouvido, uma mulher, para quem eu nem sequer lá estava, abriu a cortina da minha cabine, pousou o saco na cadeira sem cerimónias e perguntou:
Está ocupada.
Não está a ver, está a falar comigo, não é com o ar.
No meio da irritação, perdi de vista a mulher que vinha seguindo. Vou então provar roupa para ficar bonita e passar a existir. Nada encontraria no meio da roupa que as outras mulheres querem comprar, muito menos a mim própria. A roupa castiga-me, fico mais feia do que as outras quando vestimos a mesma coisa. Na fábrica, eu punha os vestidos mais lindos no pavilhão de embalagem e desfilava para cá e para lá até à porta como uma galinha pintada. Quando se costurava roupa para um país do Ocidente, eu ia sempre ter com a Lilli ao andar de cima antes de cada entrega. Vestia dois ou três modelos uns atrás dos outros.
Agora já chega, dizia a Lilli.
Porque era absolutamente proibido. Não tão absolutamente para saias, calças e casacos como para blusas e vestidos. Antes do 1.o de maio, o dia internacional do trabalho, e outra vez ainda em agosto, antes do dia da libertação do jugo fascista, podíamos comprar roupa diretamente da fábrica. A gente do escritório comprava a maior parte. A roupa é mais elegante e não é mais cara que na loja, infelizmente tem defeitos no tecido e nódoas de óleo das máquinas de costura, senão seriam demasiado boas para a nossa pele. Muitos chegavam a comprar um saco cheio. Mais vale roupa chique com defeitos no tecido e nódoas de óleo que nunca mais saem, do que roupa de péssima qualidade de lojas maltrapilhas. Eu não suportava os defeitos e as nódoas, ainda por cima sabia como são bonitas as roupas que não nos deixam comprar. Vestir bem, em cada estação, italianos, canadianos, suecos, franceses, na sua bela vidinha, cortar, pespontar, dar acabamento, passar a ferro, empacotar e ao mesmo tempo saber que não se vale o preço de uma peça pronta. Claro que havia lá muitas pessoas que pensavam:
Mais vale uns defeitos grosseiros e umas nódoas pretas de óleo do que nada.
Eu não comprava roupa nenhuma por causa dos defeitos e das nódoas e porque não queria ter a fábrica, onde passávamos todo o dia, dentro do armário de casa. Passear aos domingos pelo parque, comer gelado no café, vestindo o refugo da fábrica. Os olhares de inveja lançados à roupa, uma pessoa dá nas vistas, todos sabem onde se trabalha, de onde a roupa vem.
Quando eu e a Lilli rumávamos à avenida depois do trabalho e eu, em vez de passear, entrava nas lojas, ela esperava cá fora. Eu não tinha de me apressar, nem lhe convinha a ela que eu voltasse depressa de mais. Ficava de costas para a montra e olhava o céu, as árvores, o asfalto, de certeza também os homens mais velhos. Eu tinha de lhe puxar pelo braço, como se tivesse eu esperado por ela, não ela por mim. Eu dizia:
Então, vamos.
Estás com pressa, perguntava ela, isto é um passeio.
Podemos ir devagar, mas para longe daqui.
As roupas não te agradaram.
E a ti, o que é que te agrada neste lugar.
Ela dava um estalido com a língua:
Um andar suave e costas um pouco curvadas, é isso que me agrada.
E.
E o quê.
Quantos é que viste, perguntava eu.
O seu desinteresse pelas lojas não tinha nada a ver com a fábrica. Já antes a Lilli não dava nada por roupa. Mesmo assim os homens seguiam-na com os olhos. E se eu tivesse nascido homem, a Lilli também não me escapava. Quanto pior ela vestia, mais linda ficava e mais dava nas vistas. Sorte a dela, cá eu era criança e já era vaidosa. Tinha cinco anos e chorava se o casaco novo ficava grande de mais. O meu vovô dizia:
Ainda vais crescer, veste mais roupa que já te serve. Antigamente, se as coisas corriam bem, tinham-se talvez dois, três casacos durante a vida inteira, e isso eram as pessoas ricas.
Enfiava-me nele porque era obrigada. E tirava-o ao virar da primeira esquina, junto à panificadora. Durante dois invernos, trouxe-o mais tempo no braço do que vestido. Preferia andar constipada do que feia. Dois anos depois, no tempo da neve, quando o casaco finalmente me servia, tirava-o porque estava velho e demasiado feio.
Se estivesse a ir para a minha cabeleireira, teria de descer agora entre as residências universitárias. Ia preferir fazer uma permanente, ou o carrapito das secretárias velhas. Qual quê, ia preferir a máquina zero e não me reconhecer a mim própria às dez em ponto do que ir bater à porta do Albu. Ou perder o juízo e durante o beija-mão ficar completamente tresloucada. Uma mancha de sol aquece a face do guarda-freio, a janela ao seu lado está aberta, não corre pinta de vento. Ele limpa as pedras de sal do painel de comando e não toca no segundo croissãzinho. Porque é que comprou três, se ao fim do primeiro já está satisfeito. Deixar o carro elétrico parado no meio da rua, correr pelas lojas e exibir ao voltar, para quem ficou à espera, uma grande fome que afinal não tem. A criança adormeceu com o lenço na mão. O pai encosta a cabeça ao vidro, o seu cabelo pegajoso e bacento, apesar de há dias não ser lavado, brilha. O sol ateia nele um resplendor. Será que nem se apercebe que o vidro ainda está mais quente que o sol lá fora. A mim o sol deixa em paz até à curva. Talvez mesmo então se fique pelo outro lado da janela, que eu não quero chegar ao Albu toda suada. Não sei se deveria trocar de assento, com tão poucos passageiros vão ficar todos a olhar. Era preciso ter um motivo. O pai poderia a qualquer altura sentar-se à sombra, uma criança pequena é um motivo. Se chorasse, o pai poderia trocar de lugar para ver se a criança chorava por causa do sol. Num carro cheio já não resultava, qualquer lugar livre seria precioso. A criança bem podia chorar à vontade que ninguém ia pensar no sol, ia só perguntar se o palerma do pai não tem uma chupeta para dar ao cagãozinho esgoelado.
No verão, o que me dava mais prazer era brincar com o filho do porteiro da panificadora, no caminho esburacado por detrás da avenida, onde o pó do chão era mais espesso. O rapaz era manco de nascença e arrastava-se lentamente atrás de mim. Sentávamo-nos no buraco mais fundo, ele dobrava a perna direita e esticava para a frente a esquerda, delgada e rígida. Ficava feliz quando podia sentar-se. Tinha mãos ágeis, cabelo aos caracóis e o rosto amarelado. Nós concentrávamo-nos na brincadeira e amontoávamos o pó, moldando serpentes que rastejavam umas sobre as outras.
É assim que os alicranços rastejam pela farinha, disse ele, é por isso que o pão tem buracos.
Não, os buracos são do fermento.
Das serpentes, pergunta ao meu pai.
Durante meio dia, até o pai regressar a casa com a sua malinha, vindo da panificadora, muitas mais serpentes podiam sempre ter rastejado por aquele buraco da estrada. Mas se o meu vestido se sujava, eu ficava infeliz e ia para casa. Deixava o rapaz sozinho com os seus alicranços. Na panificadora, durante duas semanas, esteve outro porteiro sentado à entrada. Depois, o pai regressou e não trouxe consigo o rapaz. Tinham-lhe operado a perna rígida e anestesiaram-no de mais. Nunca mais acordou. Fui sozinha até à estrada velha, onde as árvores da alameda se posicionavam sempre lado a lado, e tive uma sensação estranha, como se elas tivessem prometido que o rapaz, embora morto em casa, ali viria para brincar. Sentei-me no meio do pó e amontoei uma serpente, tão fina e comprida como a sua perna esticada. As franjas de erva debruavam o caminho, as lágrimas escorreram-me do queixo sobre a serpente e formaram um desenho. Tinham-me roubado o rapaz. Talvez do céu ele agora visse que eu queria continuar a brincar.
Quando vagueio de manhã pela cidade, foi a Lilli que me roubaram. Os dias em que estou intimada parecem-me curtos. Mesmo que não saiba o que o Albu quer comigo, ele tem alguma fisgada para mim. Eu cá só preciso do botão grande da minha blusa e da mentira astuta, nada mais. O que tenho fisgado para mim, quando vagueio por aí, é um enigma ainda maior do que aquilo que o Albu quer comigo.
Foi uma patetice ficar a olhar para as andorinhas hoje de manhã antes das oito, se o Albu está à minha espera às dez em ponto. Não quero pensar em andorinhas. Não queria pensar em nada, porque mais nada sou, para além de intimada. Às vezes imagino que as andorinhas não voam, mas rodam na estrada ou nadam. No verão passado o Paul ainda tinha a mota vermelha, uma Java checa. Todas as semanas íamos uma ou duas vezes para fora da cidade, até ao rio. E o caminho que atravessava os campos de feijão, aquilo é que era felicidade. Quanto mais céu se derramava sobre o caminho, mais leve ficava a minha cabeça. À esquerda e à direita corria uma miscelânea de flores vermelhas que estremeciam ao passarmos. Não se via que cada flor tinha duas orelhas redondas e lábios abertos, mas eu sabia-o. Era feijão trepador que não mais acabava, não alinhado em fileiras como nos campos de milho. Mesmo se cada uma das hastes já se mostra seca e as folhas quebram com o vento, no fim do verão os campos de milho parecem sempre acabados de pentear. Em campos de milho nunca a cabeça me fica leve, mesmo que o céu voe. Só nos campos de feijão eu conseguia ficar tão pateta de felicidade que de tempos a tempos tinha de fechar os olhos. E quando os voltava a abrir, já muita coisa tinha perdido, há muito que as andorinhas voavam noutra rota.
Eu agarrava-me com força às costelas do Paul, assobiava a canção da folhagem e da neve, mas só ouvia a mota, não a mim. De resto, nunca costumo assobiar, porque é preciso ter aprendido em criança, e eu em criança nunca assobiei. Nem sei mesmo assobiar. E desde que o meu primeiro marido assobiou na ponte, encolho a cabeça quando alguém o faz. Mas nos campos de feijão era eu que assobiava. E era felicidade porque tudo o que eu sabia fazer não saía nem metade tão bem como nos feijoais o assobio. No meio do feijão trepador sentia-me rigorosamente tão pateta como quando se está feliz. Nunca consegui estar feliz junto ao rio. A água lisa deixava-me calma, até quando me lembrava da ponte. Impossível chegar à felicidade através da calma. Quando chegávamos à margem, eu ficava constrangida e o Paul impaciente. Ele alvoroçava-se com o rio, eu com o regresso pelo meio dos feijões. Uma vez ele meteu-se na água até aos tornozelos e mostrou-me uma libélula negra. A barriga dela pendia entre as asas como um parafuso de vidro. Eu apontei para as amoras silvestres na margem ao pé de mim. Luziam negras em molhos. Na outra margem, os estorninhos negros pousavam sobre os pálidos fardos retangulares, no meio do campo ceifado. Para esses eu não apontei, porque estava a pensar nas manchas de andorinhas no céu e não entendia a distribuição do negro nesse dia de verão crestado de amarelo. Ri perturbada, apanhei um pedaço de casca de árvore no meio da erva e atirei-o para a frente do Paul. Depois disse: Ouve, é impossível que as andorinhas voem tão rápido como parece, é um truque delas.
O Paul pescou a casca com os dedos dos pés e empurrou-a para debaixo de água. Quando a largou, ela voltou automaticamente à superfície, negra e luzente. Ele disse:
Ahá.
Levantou os olhos por um breve instante, o suficiente para eu ver as pintas escuras dentro deles. Para quê perguntar que fruta negra traz alojada nos olhos, se ele nem das andorinhas quer falar e os seus pensamentos andam por outras bandas, bem longe de onde tem os dedos dos pés. O vento não largava os freixos, eu escutava a folhagem e o Paul porventura a água. Ele não queria que falássemos.
No dia seguinte, experimentei o ahá com o Nelu na fábrica, quando ele veio à minha mesa segurando uma lista entre o polegar e a chávena de café. Falou do tamanho dos botões para os casacos de senhora que este mês estávamos a costurar para a França. As pontas do bigode moviam-se na sua boca como as asas das andorinhas. Deixei-o dizer na minha cara algumas frases. Quando chegou ao plano de produção semanal, contei-lhe no queixo os pelos que ele se esqueceu de barbear. Levantei os olhos e procurei os seus com persistência. Quando as nossas pupilas se encontraram, disse com rapidez fulminante:
Ahá.
O Nelu calou-se e foi para a sua mesa. Também experimentei outras palavras, como por exemplo: Táá e humm. Mas nada conseguiu superar o ahá.
Quando fui apanhada com os bilhetes escritos, ele negou que me tivesse denunciado. Negar qualquer um pode. Eu tinha-me separado do meu primeiro marido quando os fatos brancos de linho estavam a ser empacotados para Itália. Depois da nossa viagem de dez dias em serviço, o Nelu queria continuar a ir para a cama comigo. Mas eu tinha decidido casar num país do Ocidente e enfiei em dez bolsos traseiros um bilhetinho: Ti aspetto, o meu nome e o endereço. O primeiro italiano que se apresentasse seria o tal.
Numa reunião em que não me foi permitido estar presente, os meus bilhetes foram condenados como prostituição no local de trabalho. A Lilli contou-me que o Nelu defendera uma condenação por traição à pátria, mas que não conseguira convencer. Não sendo membro do Partido, e este era o meu primeiro delito, decidiram dar-me uma oportunidade de regeneração. Não fui despedida, para o Nelu uma derrota. O responsável pelo trabalho ideológico trouxe-me ao escritório duas repreensões por escrito. Tive de lhe assinar o original de como tomei conhecimento, a cópia ficou em cima da minha secretária.
Para emoldurar, disse eu.
O Nelu não achou grande piada. Ficou sentado na sua cadeira a aguçar um lápis.
O que é que queres dos italianos, vêm dar-te uma foda, oferecem-te collants e desodorizante e voltam para casa, para as suas fontes com repuxo. Se os chupares, dão-te um perfume adicional.
Vi folhos ondulados de madeira e farinha preta a cair do apara-lápis e levantei-me. Segurei a repreensão por cima da cabeça dele e larguei-a. A folha esvoaçou e caiu-lhe sobre a mesa por baixo do queixo, sem um ruído. O Nelu virou para mim a cabeça e tentou sorrir, pálido como um verme. Depois, sem querer, deu uma cotovelada no lápis acabado de aguçar. Este rolou da mesa e ficámos a olhar os dois, a ouvir o seu tilintar quando embateu no chão. O Nelu baixou-se para eu já não lhe ver os malares que rangiam. O bico tinha quebrado. Ele disse:
Caiu para o chão, não foi para o teto.
Também estou espantada, disse eu, com um tipo como tu pode-se esperar tudo.
No dia seguinte aos três dias de interrogatório, eu estava outra vez na fábrica. O Nelu não perguntou patavina. Ele era capaz de muito mais do que eu pensava. Nos três bilhetes que mais tarde encontraram nas calças para a Suécia estava escrito: Muitos cumprimentos da ditadura. Os bilhetes eram iguaizinhos aos meus, mas não eram meus. Fui despedida.
Mesmo com muita neve, íamos de Java para o trabalho. O Paul andava de mota há onze anos e nunca tivera um acidente, apesar da bebida. Conhecia as ruas e estradas como a palma da mão, até de olhos fechados teria achado as nossas fábricas. Eu ia atabafada até às orelhas, as luzes dos lampiões e das janelas cintilavam, a geada mordia-nos a cara, os lábios estavam como côdea de pão gelado, as faces lisas, glaciais como porcelana. Nevados o céu e a estrada, corríamos para uma bola de neve. Encostava-me às costas do Paul, apertava o queixo contra o seu ombro, para que a bola de neve pudesse inundar-me os olhos. De pupilas fixas, não há estradas mais longas, árvores mais altas, nem céu mais próximo. Apetecia-me acelerar eternamente, nem a piscar me atrevia. As orelhas ardiam, os dedos das mãos, dos pés. A geada engomava como um ferro quente, só os olhos e a boca continuavam frios. A felicidade não tinha tempo, precisávamos de chegar antes de enregelarmos e estávamos todas as manhãs às sete e meia em ponto no portão da fábrica de confeções. O Paul deixava-me descer. Com um dedo roxo eu empurrava-lhe para cima o gorro, beijava-o na testa como a um cão de porcelana e voltava a puxar-lho sobre as sobrancelhas, antes de ele continuar viagem para a sua fábrica de motores na periferia. Se havia geada nas sobrancelhas, eu pensava:
Isto somos nós em velhos.
Depois dos primeiros bilhetes, eu tinha riscado a Itália completamente da cabeça. Não era através de roupa de exportação que se conseguia arranjar um Marcello, eram precisos contactos, mensageiros e intermediários, não bolsos traseiros. Em vez de um italiano, caiu-me na rifa o major. A minha burrice gritava-me de dentro, eram autoincriminações como bofetadas, sentia-me um boneco atafulhado de palha. Estava farta de mim, era a única forma de conseguir continuar a sentar-me todos os dias com o Nelu no escritório, com os olhos pregados nos mapas, a preenchê-los, até aparecerem os segundos bilhetes. Mas ainda sentia carinho por mim. Era a única forma de conseguir com prazer andar de elétrico, cortar o cabelo curto, comprar roupa nova. E também tinha pena de mim própria. Era a única forma de conseguir aparecer diante do Albu com a pontualidade do minuto. E ao mesmo tempo, parecia-me, era como se eu tivesse merecido aqueles interrogatórios, como castigo da minha burrice. Mas não pelas razões que o Albu apresentava.
O teu comportamento transforma em putas no estrangeiro todas as mulheres do nosso país.
Transforma, como, os bilhetes nem chegaram a Itália.
Graças ao zelo dos teus colegas.
Puta, como, eu só queria um italiano, e era para casar, putas querem dinheiro, não querem casar.
O fundamento do matrimónio é o amor, só o amor, fazes alguma ideia do que isso é. O que tu querias era vender-te aos Marcellos, como um lixo.
Lixo, como, eu tê-lo-ia amado.
Tinha conseguido ultrapassar aquilo, voltei a sair à rua. Lá fora, a luz intensa do verão e o ruído característico de todas as coisas. Dentro de mim, a palha rangia. Provavelmente não teria amado esse italiano, mas ele ter-me-ia levado para Itália. Teria tentado amá-lo. Se não, teria aparecido outro no meu caminho, italianos é coisa que lá não falta. Quando se procura, encontra-se sempre algum, que então se ama. Agora, em vez disso, era o Albu que me intimava sempre que lhe apetecia. E no trabalho era o Nelu que me tinha debaixo de olho. Tirei todos os homens da minha cabeça. Foi precisamente na fase defensiva que fiquei presa ao Paul. Acho que em mim a defensiva está mais próxima do desejo do que a procura. Deve ter sido esse o caso, por isso me agarrei a ele. Não seria um qualquer, mas também algum outro que não o Paul me poderia ter mostrado como a defensiva espicaça o apetite. Farta, mas desaustinada, assim devo ter andado à deriva, porque num domingo conheci o Paul e na segunda-feira já fui ficando. E na terça mudei-me com armas e bagagens para a casa dele na torre abaulada.
De manhã, custava-me cada vez mais ir para o escritório. Diante do portão da fábrica, o Paul segurava a sua Java com ambas as mãos, por força de hábito esperava com um sorriso pelo meu beijo na testa e dizia:
Tens de fazer de conta que o Nelu não está lá.
Sim, era fácil dizer. Mas fazer de conta durante oito horas que estão só duas pontas de bigode suspensas no ar atrás da secretária, como é que se consegue.
O Nelu tem tanto lixo por dentro, dizia eu, que é impossível vê-lo à transparência.
E a moto roncava, rodopiava neve em volta das rodas, ou poeira. O Paul já ia a meio da rua e eu queria puxá-lo outra vez para o portão com os olhos, dizer-lhe todas as manhãs mais alguma coisa que se possa levar para o dia inteiro, no meio das máquinas. Mas dizíamos sempre o mesmo.
Ele: Tens de fazer de conta que o Nelu não está lá.
Eu: Penso em ti. Não te arrelies se te roubarem a roupa.
A partida acelerada, o lombo de gato da sua jaqueta enfunada pelo vento, quando virava na esquina. Todas as manhãs era contra mim própria que entrava naquela fábrica. Só de ver o Nelu ficava tresloucada. De manhã não nos cumprimentávamos. Porém, passadas uma ou duas horas, o Nelu entendia que precisávamos de dizer qualquer coisa, já que ficávamos oito horas ali sentados na mesma sala. Eu bem dispensava, mas ele não aguentava o silêncio. Ele falava do plano de produção, eu dizia:
Ahá.
E táá e humm e ahá.
Quando nada disso resultava, tornava-me mais faladora. Erguia-lhe a jarrinha de cima da mesa e, através do fundo grosso, percorria com os olhos o pé verde-avermelhado da rosa dentro de água e dizia:
Caramba, o que é que o plano te interessa, ele não é para cumprir. Se um dia puder ser cumprido, no dia seguinte estão a exigir mais. Esse teu plano é uma doença estatal.
O Nelu arrepelou o bigode, como de costume, e esfregou entre os dedos um pelo arrancado, deixando-o todo crespo. Ele disse:
Isso dá-te gozo.
Se arrancares um todos os dias, a tua cara em breve vai parecer um pepino, disse eu.
Controla-te, vê-se logo que estás a pensar em pentelhos.
Mas não nos teus, disse eu.
Sabes porque é que os italianos andam sempre com um pente no bolso. Porque não encontram a pila no meio dos pentelhos, quando precisam de mijar.
Tu também andas com um, mas não te serve de nada. Para italiano falta-te o nervo.
Esse nervo já vi eu, que já estive em Itália, ao contrário de ti.
Ahá, estiveste lá também como espião, perguntei eu.
Sim, eu pensara em pentelhos. Ele forçara-me a pensar nos seus, quando falava do plano. Aquele pelo, o Nelu pousou-o também em cima da minha secretária, mesmo no meio, onde entretanto havia um sulco na madeira que não era obra minha. Tinha provavelmente medido a mesa e procurado o ponto mais longe da beira do tampo. Eu não queria tocar no seu pelo enrolado, não tinha a régua ali à mão para o empurrar da mesa. Por isso repeti aquilo que ele mais gostava de ver e soprei o pelo da mesa. Aí ele teve motivo para rir, porque eu fiz bico com a boca. Só depois do terceiro, quarto sopro, o pelo caiu da mesa. O Nelu tornava-me obscena.
Um dia a mulher da limpeza chega ao escritório depois do expediente e o que tem para limpar é um salpicado de sangue em vez do pó, dizia eu à Lilli, um dia passo-me dos carretos e mato aquele lixo de gente.
A Lilli sacudiu o braço atirando com a mão e disse:
Deixa-te disso. Põe-lhe antes a faca em cima da mesa e diz-lhe que bem lhe ficaria no pescoço e que não dói nada. Afasta-te um pouco como na ponte, para ele não se acanhar. O que ele quer é atiçar a tua raiva e tu deixas, estás mesmo morta que aconteça. Quando a gente se controla, não perde a cabeça. É coisa que se aprende.
O seu olhar de abrunho silvestre penetrou nos meus olhos, impondo-se-me. Por baixo estava o seu pescoço liso. Eu sabia, por mim e pelo meu marido na ponte, como é fácil a gente passar-se da cabeça e enviar o outro para a morte, se demasiado nos pesa e nos sufoca. E que com o Nelu não vai ser diferente.
Quando a Lilli me rebaixou com aquele sacudir de braço, subiu-lhe o rubor às faces. O nariz contorceu-se, continuou branco e frio. Enquanto odiava cada centímetro da Lilli, ali assim à minha frente, não pude deixar de pensar:
Este nariz é lindo como uma flor de tabaco.
Para a Lilli eu não passava de uma instigadora. Tinha-a assustado e ela virou a ponte contra mim. Preferia nunca ter sabido como a Lilli era parecida com a mãe no que respeita ao ódio. No enterro, ouviu-se ressoar a terra no caixão. Quando a Lilli ficou coberta, aquela mãe desatou a descompor-me, era a boca chapada da Lilli. Sim, a gente controla-se, é coisa que se aprende. No meu desmazelo, ela via melhor do que eu a direção dos fios. E eu acreditava ver com mais clareza na sua confusão. Às vezes deveríamos trocar por um tempo, ela e eu. Em vez disso, foram a mãe e ela que fizeram a troca. Uma pessoa não se passa da cabeça e consegue atravessar a fronteira, pensara ela. A gente tem de se controlar, durante a fuga as balas só acertam na pele assustada. Ela queria aprender. Precisamente nessa altura, em que recomendava que eu me refreasse diante do Nelu, a Lilli começou a dormir com um oficial de sessenta e seis anos. Umas semanas depois, lembraram-se de fugir pela fronteira húngara. Ele foi preso e ela abatida a tiro, a Lilli insensatamente esperta.
Uma vez a Lilli levou-me com ela ao jardim de verão da messe militar e apresentou-me o seu oficial. Estava à paisana, com uma camisa de manga curta e riscas finas, as calças cinzentas de verão chegavam até debaixo dos braços, costelas e quadris nem vê-los. Com a sua voz profunda e baixa, disse: Muito prazer, minha menina.
Deu-me um beijo na mão. Um beija-mão vezes sem conta exercitado dos velhos tempos da monarquia. Era seco e macio e depositado mesmo no meio da mão. Sentados nas mesas em redor estavam homens novos de uniforme. Ali, a Lilli dava naturalmente nas vistas, os homens fardados mordiam-se por mulheres bonitas, atiravam-lhe cabeças de fósforos. Sentiram logo que era nela que o velho tinha posto as garras, não em mim.
Há muito que já não havia guerra, a instrução militar ia-se relaxando com a ociosidade. Era preciso mantê-la de pé com um trabalho esmerado que em todos e cada um espicaçasse a audácia: a conquista de belas mulheres. O grau de beleza era calculado pelo rosto, pela curva do traseiro, da barriga das pernas em conjunto, dos seios. Os seios chamavam-se maçãs, peras e fruta caída, conforme a altura a que estavam os mamilos. Conquistar mulheres é um substituto de manobras militares, é o que se diz aos soldados. Entre o pescoço e as coxas, o material tem de ser de primeira. As pernas ficam afastadas e diante da cara, no calor da batalha, fecham-se os dois olhos. Às pernas e cara dá-se um desconto, mas os seios são importantes. Maçã vale a pena, pera vá que não vá. Fruta caída, para os soldados está fora de questão. As conquistas, diz-se, lubrificam as dobradiças do corpo e o equilíbrio da alma. Também melhoram a harmonia no casal. A Lilli recebera sessões de esclarecimento do velho oficial sobre o combate da ociosidade em tempos de paz. Também ele andara sempre em manobras até a mulher morrer, disse a Lilli. Ela tinha cinquenta e ele mais seis do que ela. Já não havia mais ninguém de quem esconder que o adocicado cansaço do seu gratificante trabalho provinha de cama alheia e não das casernas. Depois da sua morte, visitava o cemitério todos os dias. A caça às mulheres perdera o picante.
Todas as mulheres que eu conhecia ficaram de repente com uma voz esganiçada e o sabor de uva amarga, disse ele, especialmente as muito jovens. No asfalto, entre a caserna e a messe, a vida corria a toque curto de barriga de perna e tacão alto. Sobre os lençóis de linho elas ficavam descalças, languinhentas e gemebundas, a qualquer segundo capazes de morrer. Ele temia que o fizessem debaixo dele.
Individualmente, os homens fardados daquele jardim de verão até para as peras e a fruta caída não passavam de uns falhados. Mas a Lilli tinha umas maçãzinhas estivais bem duras. Teria levado cada um deles à parede com uma simples frase. Eles pressentiam-no, por isso exercitavam a conquista da Lilli todos juntos no regimento. Na sua opinião, o oficial da Lilli já não precisava de lubrificar as dobradiças, tinha ultrapassado o prazo do esmerado trabalho, estava na hora da sua rendição. Pressionavam-no a sair de cima da bela carne de Lilli. Nos dedos que atiravam cabeças de fósforos, reluziam ao sol as alianças e nos olhos que seguiam o trajeto dos dedos reluziam olhares que pareciam balas molhadas. O velho colocou o cinzeiro junto da mão e disse:
Estão doentes, devíamos ir para outro lugar.
Recolheu as cabeças de fósforo de cima da mesa e atirou-as para dentro do cinzeiro. As suas mãos eram brancas e esguias como as de um farmacêutico. Nem ele nem a Lilli se exaltaram e não estavam a fingir calma, era de paciência que usavam. Não entendi nada, tanta calma só se tem quando se sabe que não se precisa dela por muito mais tempo. Mas o rosto dele ainda continuava liso, embora as têmporas latejassem como papel manchado à sombra do guarda-sol. Aquela forma de a Lilli olhar para ele de peito aberto eu não conhecia. O olhar dela e o olhar dele, como abrunhos caindo sobre águas mansas, era assim que se mostravam. Estando sentado, a barriga puxou-o para a frente quando pegou na mão de Lilli. Pensei, agora vai ficar furioso, porque mais dois fósforos voaram para cima da mesa. Com a mão livre, recolheu-os também e estava tão seguro da mão da Lilli que de repente começou a cantar para ela baixinho:
Entra um cavalo no pátio do campo
tem na cabeça uma janela
vês como se ergue azulada a torre de vigia...
O simples facto de ele cantar, num tom tão grave e ao mesmo tempo sem deixar adivinhar o seu íntimo, já causava espanto suficiente. Que conhecesse aquela canção foi uma estocada no peito. O meu vovô também a cantava e tinha-a trazido do campo de detenção. A Lilli e eu éramos novas de mais, o velho confiava nisso. Bem, ia-lhe cair o queixo se eu tivesse cantado com ele. Mas a canção só provocava constrangimento aqui à mesa porque eu estava sentada entre ele e a Lilli e também estava a ouvir. Fiquei a olhar para os pontos coçados junto às varetas do guarda-sol. Estávamos ali sentados como varetas, raios da mesma roda, e eu como intrusa num segredo. A Lilli não era um mero entretimento nas mãos do oficial, ele amava-a. Quando interrompeu a canção, deixei a Lillli sentada com ele na messe e calcorreei a cidade, meio confusa. Já nessa altura deviam estar a pensar na fuga. Ele tinha dois filhos adultos no Canadá, era para lá que queria ir com a Lilli.
O sol queimava. Nas tílias, as folhas verdes tremulavam ao vento com as amarelas, no chão só as amarelas caíam. Quer eu quisesse quer não, o verde remetia para a Lilli, para ele o amarelo.
Este homem é demasiado velho para a Lilli.
Eu esbarrava nos transeuntes, via-os quando já estava em cima deles. Estava a cair de solidão nessa tarde e assim continuei até à manhã seguinte, na fábrica, quando a Lilli me chamou para o pé de si para falar do oficial.
Desde a história dos bilhetes, nunca mais me foi permitido entrar no pavilhão de embalagem. Quando subi as escadas, a Lilli esperava-me no corredor. Fomos para um canto lá no fundo, ela sentou-se sobre os calcanhares, eu encostei os ombros à parede e disse:
Ele é jovem de cara, mas de barriga parece a bola redonda do sol poente.
A Lilli levantou bem a cabeça, colocou as pontas dos dedos no chão e arregalou os olhos. Tinha-a melindrado. Inchou-lhe uma veia pelo pescoço acima, a boca endureceu pronta para gritar. Mas, em vez disso, a Lilli puxou-me para baixo pela mão, para junto de si, até eu ficar também meia acocorada à sua frente, amparando-me na sua anca. E porque nesse momento, arrastando os pés, passou por nós um homem com um braço cheio de cabides, fazendo de conta que não nos via, a Lilli sussurrou:
Quando está deitado, o sol poente é raso como uma almofada.
Olhei para os pés dela. Quando o segundo dedo é mais longo que o grande, chama-se dedo de viúva. Era o caso da Lilli. Ela disse:
Ele chama-me Cereja.
Não combinava nada com os olhos azuis dela. E depois de o homem dos cabides se ter afastado até ao fundo e fechado atrás de si a porta do pavilhão de embalagem, ela disse:
O vento colhe a cereja do ramo, então não é lindo, tu é que tens os olhos escuros e eu é que me chamo Cereja.
A luz do sol batia no corredor, no teto ardiam as lâmpadas de néon. Aninhadas daquele jeito, éramos duas crianças exaustas.
Ele esteve no campo de detenção, perguntei eu.
A Lilli não sabia.
Perguntas-lhe.
Disse que sim com a cabeça.
Estranho, nem um ruído se sentia vindo do pátio da fábrica, e no corredor o silêncio era tão grande que se ouvia o zumbido das lâmpadas.
Hoje acredito que o velho oficial não pôde deixar de procurar a Lilli, porque o pacto com a morte dela já estava selado antes de ele a conhecer. E que estacou como um cronómetro quando a viu pela primeira vez: Agora tenho a mulher certa. Depois de reformado, continuava a ser atraído para a messe, para o meio dos uniformes. Pendurara o seu, mas já lhe estava entranhado na pele. No desejo, continuava soldado. Queria levar a Lilli a um lugar onde, a despeito da camisa de verão de fino riscado, o viam como antigamente, de uniforme. Mostrar a sua conquista no jardim dos soldados e, quando a sós com ela, levar aquela tardia sofreguidão amorosa até um limite que superasse a beleza de Lilli. Um homem como ele tinha conhecimento de sobra de soldados, cães e balas da fronteira. O seu medo de que a morte sentisse por ela a mesma sofreguidão empolou-se em crença de que a Lilli intimidava a morte, também por ele. Via demasiado e ficou cego, arriscou a vida da Lilli, que lhe era mais cara do que a razão poderia suportar.
Todos os que entram na idade lembram o passado. Quando o velho lembrava o passado, o ranhoso que disparou sobre a Lilli era parecido com ele. O guarda da fronteira era um jovem camponês, ou operário. Ou alguém que alguns meses depois se tornou estudante e mais tarde professor, médico, padre, engenheiro. É lá com ele, no que se tornou. Quando disparou, era alguém que desgraçadamente patrulhava a céu aberto, enquanto o vento dia e noite assobiava a solidão. A carne da Lilli, viva, fê-lo estremecer sobre a terra, e morta, foi um presente do céu, com dez dias de licença em perspetiva. Talvez tivesse escrito cartas infelizes, como o meu primeiro marido. Talvez o esperasse uma mulher como eu, que na verdade não se podia comparar com a morta, mas que, possuída de amor, podia rir e acariciar até ele se sentir um ser humano. Disparou naquele segundo, talvez em nome da sua felicidade, e ela detonou. De longe ouviram-se latidos e depois gritos. O oficial da Lilli foi algemado, conduzido a uma barraca de chapa e vigiado pelo atirador, que rebentava de felicidade pela sorte que o bafejara. A Lilli continuou caída no chão. A barraca não tinha parede da frente. No chão havia uma cisterna de água, encostado à parede um banco, no canto uma maca. O vigia bebeu muita água, lavou a cara, puxou a camisa para fora das calças, enxugou-se e sentou-se. O algemado não teve licença para se sentar, mas para olhar lá para fora, para a erva onde a Lilli estava caída, para isso teve. Apareceram cinco cães a correr, a erva subia-lhes até ao pescoço, as pernas voavam por cima. Ainda longe, atrás deles, corria uma trupe de soldados deitando os bofes pela boca. Até chegarem ao pé da Lilli não foi só o vestido que ficou estraçalhado. Os cães tinham-lhe desventrado o corpo. A Lilli jazia debaixo dos seus focinhos, tão vermelha como um canteiro repleto de papoilas. Os soldados enxotaram os cães e formaram um círculo. A seguir vieram dois à barraca, beberam água e levaram a padiola.
Foi o que me contou o padrasto da Lilli. Como um canteiro repleto de papoilas, disse ele, no momento eu pensei em cerejas.
A criança adormeceu ao sol. O pai retira-lhe o lenço, os dedos cedem, o sono não se interrompe, ainda que o pai vergue para trás o braço e enfie o lenço no casaco. Ainda que abra completamente as pernas, rode a criança para a pôr de costas para a frente, se levante e encoste ao seu ombro a boca escancarada da criança. A seguir é a paragem diante da estação central dos correios. O pai carrega a criança até à porta. O elétrico para. Sem ruído o carro ainda parece mais vazio. O guarda-freio deita a mão ao segundo croissãzinho salgado, depois hesita e bebe da garrafa. Porque é que bebe antes de comer. Diante dos correios está a grande caixa azul para as cartas. Quantas não caberão lá dentro. Se fosse eu que tivesse de enchê-la, nunca seria esvaziada. Desde os bilhetes para Itália, nunca mais escrevi a ninguém, só aqui e ali contei a alguém qualquer coisa. É preciso falar, escrever não. O guarda-freio come o seu segundo croissãzinho. Pelas migalhas, já deve estar seco. Lá fora, com a criança a dormir, o pai atravessa a rua onde não há passadeira. Vai demasiado devagar, se vier um carro. Como há de ele andar depressa com uma criança ao colo, ainda por cima a dormir. Talvez se tenha assegurado de que não vem nenhum, antes de atravessar. Mas para a direita tem de olhar por cima da cabeça da criança e pode ter visto mal. Se acontecer um azar, o culpado é ele. Afinal foi ele que disse à criança, antes de ela adormecer: A mamã não usa óculos de sol, senão não vê como os teus olhos são tão azuis. Agora dirige-se ao correio. Carrega a criança como se fosse uma encomenda. Se não acordar, despacha-a mesmo. Pela porta aberta, pergunta uma velhota: Esta linha vai para o mercado. Lê o que está escrito em cima, diz o guarda-freio. Estou sem óculos, diz ela. É seguir sempre na direção do nariz, diz ele, se o mercado lá estiver, lá chegaremos. A velhota sobe e o guarda-freio arranca. Um rapaz novo salta para o carro já em andamento. A sua respiração é tão ruidosa que até me tira o ar.
Tinha visto o padrasto da Lilli numa mesa à frente do café. Queria fingir que não me conhecia, mas eu cumprimentei-o antes que pudesse virar a cabeça para o outro lado. Estava com cara de chuva nessa tarde e havia muitas mesas vazias na esplanada. Sentei-me na mesa dele. Cá fora, pode-se importunar as pessoas. Ele pediu café e ficou calado. E eu pedi café e fiquei calada. Desta vez ele trazia um guarda-chuva no braço e eu, um chapéu de palha na cabeça. Estava com um aspeto diferente do que tinha no enterro da Lilli. Como atirava para dentro do cinzeiro as folhas murchas de acácia que juntava da toalha, pareceu-me o oficial da Lilli. Mas tinha as mãos grossas. Quando as nossas chávenas já estavam na mesa e a empregada se foi embora, rodou a chávena na direção do polegar com a asa, fazendo-a guinchar. No polegar, tinha grãos de açúcar colados. Tirou-os, esfregando com o indicador, ergueu a chávena e sorveu com ruído.
Este é ralo e fino como as meias de senhora, disse ele.
Quererá ele que eu pense no amor que fazia na cozinha. Eu disse: Também há grossas.
Ele respondeu com uma curta risada, levantou os olhos, como se estivesse resignado com a minha presença:
De certeza que a Lilli lhe disse que também fui oficial, já lá vai algum tempo. Consegui que me deixassem visitar o oficial da Lilli na prisão. Não o conhecia, só de nome, de antigamente. Você conheceu-o.
De vista, disse eu.
Ele teve mais sorte do que a Lilli, disse ele, ou talvez não, depende. O homem está em maus lençóis.
Depois alisou uma folha de acácia enrugada com o indicador, rasgou-a pelo meio, atirou-a para o chão, engasgou-se, tossiu, pigarreou, olhou para o cinzeiro e disse:
Está a chegar o outono.
Sobre isso sei falar com qualquer um, pensei eu e disse:
Está aí à porta.
No enterro você perguntou em que estado ficou a Lilli. Tem a certeza de que quer saber.
Agarrei-me à chávena, para ele não ver tremer a minha mão. Cada vez mais gotas caíam na toalha da mesa. Ele empurrou o chapéu de palha para a testa e não se deixou perturbar:
O oficial tinha pago uma fortuna. Deveria estar alguém à espera do lado húngaro com uma motorizada e um side-car. E também esteve, mas uma semana antes, para receber o dinheiro. Depois foi a correr à polícia e ganhou mais uma boa molhada. Veja, disse o padrasto da Lilli, ali por trás do parque está outra vez a clarear.
A Lilli amou um porteiro de hotel, um médico, um comerciante de artigos de couro, um fotógrafo. Velhos de mais para mim, pelo menos vinte anos mais velhos do que ela. Nunca disse sobre nenhum deles que era velho, dizia:
Já não é propriamente novo.
Nenhum dos homens, antes do velho oficial, se meteu entre mim e a Lilli. Todos me deixaram indiferente. Só por causa dele ela me deu menos atenção, pela primeira vez fiquei sozinha, como já outrora no jardim da messe era previsível, por muito tempo. Um emplastro qualquer, que já tinha escorrido o mel da vida, pôs o cabresto à Lilli. Cresceu em mim uma inveja triste, mas às avessas. Não era o velho que eu invejava, mas a Lilli, e por causa dele. Apesar de o velho não me agradar nem um bocadinho. Ele tinha qualquer coisa que nos fazia lamentar que ele não nos agradasse. Lamentar até mesmo não lhe agradarmos nós. Com o velho oficial e comigo pairava no ar uma certa pena por qualquer coisa que eu não teria querido, nem permitido, se estivesse para acontecer. Ele era o tipo de homem que não provocava desejo, mas não te dava sossego. Por isso eu tinha de falar na bola redonda do sol poente, para atingir a Lilli, não a ele. Por isso também eu estou hoje envolvida no seu pacto com a morte dela.
A Lilli gostava de homens velhos, o padrasto foi o primeiro. Era obstinada, queria dormir com ele, e dizia-lho. Ele deixava-a espernear, ela não desistia. Um dia, quando a mãe foi ao cabeleireiro, a Lilli perguntou-lhe quanto tempo ainda ele ia fugir-lhe. Ele mandou-a ir ao pão. Não havia fila na loja, ela recebeu o pão e voltou logo para casa.
Onde me queres mandar agora para te conseguires refrear, perguntou ela.
E ele devolveu-lhe a pergunta, se ela tinha a certeza de aguentar um segredo tão pesado.
Uma criança não é uma caixinha vazia, disse-me a Lilli, e eu já era crescida. Pousei o pão em cima da mesa da cozinha, tirei o vestido pela cabeça tão depressa como se fosse um lenço. Tudo começou ali. Foram dois anos quase todos os dias, exceto aos domingos, e sempre à pressa, só na cozinha, nunca tocámos nas camas. Ele mandava a minha mãe à loja, umas vezes a fila era comprida, outras, curta, apanhar-nos ela nunca apanhou.
Da fábrica, para além de mim, só três pessoas se atreveram a ir ao enterro da Lilli. Duas vieram espontaneamente, raparigas da secção de embalagem. As restantes não quiseram ter nada a ver com o desfecho de uma fuga. A terceira pessoa foi o Nelu, que veio em representação. Uma das duas raparigas mostrou-me o padrasto da Lilli. Trazia um guarda-chuva preto no braço. Não estava com cara de chuva nesse dia, o céu abria-se num arco azul, as flores do cemitério tinham o odor do vento leve, não daquele pesado e sufocante que antecede uma descarga. E as moscas aproximavam-se das flores e não nos voavam impertinentes à roda da cabeça, como antes das trovoadas. Eu não conseguia decidir-me se o guarda-chuva, com aquele tempo, tornava um homem elegante ou lhe dava um ar de vigarista. Mas que ficava estranho, ficava. Parecia um ocioso em passeio, mas também, percorrendo os seus caminhos rotineiros, tortuosos, um burlão, cuja caminhada diária, e não por causa das flores, conduz sempre ao cemitério à mesma hora.
O Nelu trazia consigo um ramo de ervilhacas, umas flores brancas amarrotadas. A neve do caule ficava tão deslocada nas suas mãos como o guarda-chuva preto. Fui ter com o padrasto da Lilli e não me apresentei. Ele pressentiu quem eu era.
Você conhecia bem a Lilli.
Eu disse que sim com a cabeça.
Talvez ele lesse no ar diante da minha testa que eu estava a pensar no amor que ele fazia na cozinha. Sentiu-se mais perto de mim do que eu dele e inclinou-se para o abraço. Fiquei hirta, ele voltou a endireitar-se. O seu guarda-chuva bamboleou ao recuar. Então estendeu a mão para o cumprimento, o braço manteve-o dobrado. A mão era seca e áspera. Perguntei:
Em que estado ficou a Lilli.
Ele esqueceu o guarda-chuva e deixou-o escorregar para o pulso. Travou-o no último instante com o polegar.
Dentro do caixão de madeira há um de zinco, disse ele, e estava soldado.
Levantou só o queixo, deixou descer as pálpebras sobre os olhos e sussurrou:
Olhe ali, a quarta da direita é a mãe da Lilli, vá ter com ela.
Fui até junto da mulher vestida de preto, a quem ele, muito no espírito do amor que fazia na cozinha, chamara mãe da Lilli, não minha mulher. Partilhara o marido três anos com a Lilli. Ela ofereceu logo as faces amarelas uma atrás da outra, beijei-as bem atrás, com a boca quase no lenço preto da cabeça. Também ela pressentiu quem eu era:
Você sabia de tudo, não sabia. Um oficial, e não teve por isso mais juízo.
Eu pensava na cozinha. E ela em quê. Na ronda dos enlutados, o Nelu atirou as suas ervilhacas brancas sobre o caixão e uma bola de terra a seguir. Eu queria ter-lhe pelo menos arrancado o torrão da mão com um sopapo, antes de ele acertar no caixão, pelo menos isso. Ele cumprimentou-me com um aceno de cabeça. Não sei o que a mãe da Lilli sentiu naquele momento.
A si, a Lilli teria dado ouvidos. Agora é melhor que se vá.
Tinha-se-lhe soltado o ódio. Ele manda-me ir ter com ela, e eu vou. Ela atira as culpas para cima de mim e manda-me embora, e eu vou. Como é que têm ambos a desfaçatez, porque é que eu não digo:
Ouça lá, eu fico o tempo que quiser.
No chão ressaíam os sapatos de veludo bordados com desenhos de folhas, dos parentes da Lilli vindos da aldeia, as meias brancas emporcalhadas de terra nas pontas e nos calcanhares. E por trás deles, o Nelu, que ceceou:
Psss, tens lume.
Segurava o cigarro na mão fechada, o filtro espreitava pelo polegar.
Aqui não se fuma, disse eu.
Porquê, perguntou ele.
Parece que estás nervoso.
Tu não estás nervosa.
Não.
Deixa-te disso, estas coisas dão sempre para a lágrima.
Que coisas, perguntei eu.
Ora, a morte.
Mas a tua área de competência é a Itália, a Lilli queria ir para o Canadá.
Não estás bem da cabeça.
E tu, consegues aguentar isso tudo na tua, até terra fresca.
A troca de palavras subiu de tom, já estávamos a falar alto.
Então senti uma bengala subir-me pelo tornozelo e o senhor de idade com sapatos de veludo disse:
Com mil diabos, será possível. Se querem brigar, que não seja aqui.
O coração latejava-me na cabeça. Respirei fundo para mudar de tom e disse como se fosse a calma em pessoa:
Lamentamos muito.
Deixei o Nelu onde estava e fui-me embora. Sobre uma sepultura, na fileira da Lilli, a terra ainda não tinha acamado. Uma cruz nova de madeira e um prato engordurado por trás, e eu não podia acreditar que também me desculpara pelo Nelu.
As pessoas dão comida aos mortos para levarem no caminho para o céu, a fim de apaziguarem os maus espíritos. Na primeira noite, a alma passa-lhes sorrateira por trás, evitando o inferno, e vão em direção a Deus. Também a Lilli receberá da mãe um prato. À noite, sobre o seu monte de terra retangular, virão comer os gatos do cemitério. O eco no empedrado do caminho principal era mais forte do que o barulho das pás nas sepulturas. Tapei os ouvidos e apressei o passo até ao portão. A minha recusa em compreender o amor da Lilli pelos homens velhos tinha a ver com...
Estava um autocarro ao portão do cemitério. O meu papá estava sentado ao volante e dormia com a cara deitada nas mãos. Só que o meu papá tinha morrido há anos. Apanhara-o desde então muitas vezes ao volante, em autocarros parados e em movimento. Morrera para poder conduzir sem ser incomodado, para escapar de mim e da minha mãe em todas as estradas, em vez de ter de se esconder de nós. Caiu diante dos nossos olhos e morreu. Sacudimo-lo, os seus braços bambolearam, mas depois ficaram rígidos. As faces colaram-se aos ossos, a testa era de linóleo frio, um frio que não deveria existir no ser humano, porque não se esquece. Afaguei-o insistentemente e arregalei-lhe os olhos revirados, para a luz penetrar neles e o obrigar a viver. Todos aqueles movimentos se tornaram obscenos. Eu ainda o sacudia quando a mamã o largou, como se ele nunca lhe tivesse pertencido. A sua queda era a ilustração perfeita de alguém que renega ajuda e se deixa esfriar sem a mínima consideração. A mamã e eu tínhamos ficado ali de um momento para o outro penduradas. Depois veio o médico. Deitou o papá sobre o canapé e perguntou:
Onde está o senhor de idade.
O avô está na aldeia, na casa do irmão, disse eu, lá não há telefone e carteiro só uma vez por semana. O avô só volta depois de amanhã.
O médico escreveu apoplexia num formulário, carimbou, assinou e foi-se. Já de porta na mão, disse: Vá-se lá entender, o seu marido é fisicamente saudável, mas o cérebro apagou-se como uma lâmpada.
Um copo de água que o médico pedira e não bebera ficou em cima da mesa a soltar bolhinhas. Ao cair, o papá arrastara consigo a cadeira, o encosto estava no chão, na vertical o assento forrado de tecido, com um padrão vermelho e cinza aos ziguezagues. A mamã levou o copo para a cozinha. Foi em bicos de pés e espreitou para o canapé por cima do ombro, como se o marido estivesse a dormir uma sestinha. Não entornou uma gota de água. Na cozinha só se ouviu um ruído breve de pousar de copo. Depois regressou ao quarto e sentou-se à mesa onde o copo estivera. Naquele quarto estavam agora duas pessoas não completamente vivas e uma morta. Três que há muito tempo mentiam quando diziam «nós» referindo-se a si próprias e «nosso» referindo-se a um copo, uma cadeira ou uma árvore do jardim.
Com um ar tão estranho como outrora no canapé, era assim que eu encontrava o meu pai nas ruas desde então. Era assim que o reconhecia em toda a parte, também diante do cemitério. A palavra «Transportes» estava escrita em todos os autocarros do país. E todos eles tinham escadas tortas, para-lamas enferrujados, no tejadilho o pó farinhento e fino há meio ano ou mais a viajar com eles. Os encostos vazios dos bancos, por detrás dos vidros, depressa se transformavam em passageiros quando para eles olhava. Também o para-brisas do autocarro tinha sardas coladas, que era como o papá chamava aos insetos secos e amarelos ali esborrachados. Aquelas mulheres de meias brancas e sapatos bordados e aqueles homens de rostos crispados e bengalas eram os parentes da Lilli. O pai vinha de um vale na região do Hügelland, de uma aldeiazinha onde por esta altura as ameixieiras se sarapintavam de azul e os ramos se vergavam. O motorista teve de esperar até a Lilli estar completamente soterrada. Enquanto os gatos do cemitério se vão ocupar da alma da Lilli, ele vai ter de conduzir metade da noite com os rostos extenuados dos seus camponeses até às ameixieiras.
Quando andava no liceu e ainda morava com os meus pais na cidade de província, à noite, gostava de fazer com o meu papá o último percurso até à recolha, no autocarro vazio. Não precisávamos de dizer palavra no crepúsculo das ruas, o autocarro matraqueava. Os bancos, as portas, os varões, as escadas, tudo estava desengonçado, mas o autocarro não se desconjuntava. Depois de tantas viagens, o papá apertava todas as noites os parafusos mais importantes e reparava o motor para o dia seguinte. No último percurso, buzinava nas esquinas e passava com vermelho os cruzamentos. Nós ríamos quando nos safávamos por um triz e os faróis de um camião se aproximavam de mais ao desviar-se. Quando chegávamos à recolha, ele mandava-me descer no portão de ferro. Eu ia para casa, ele entrava no recinto, ainda tinha que fazer, e vinha hora e meia mais tarde.
Uma noite, no regresso a casa pela alameda, entrou-me uma mosca para o olho. Parei debaixo de um candeeiro, puxei a pálpebra por cima do olho segurando-a pelas pestanas. Depois assoei o nariz. O meu vovô conhecia esta receita do campo de detenção. Só posso ter feito corretamente. Depois de me assoar, a mosca ficou colada no canto do olho e eu tirei-a. O olho lacrimejou, precisei de um lenço. Então reparei que me tinha esquecido da carteira no autocarro. O papá só tem o motor na cabeça, nem vai reparar nela. Voltei para trás.
Entrei pelo lado no recinto. Já conhecia o caminho, mas não no escuro. Por isso guiei-me pelo edifício principal, onde junto às escadas do terraço estava um candeeiro aceso com floreados e quebra-luz. Encontrei logo o autocarro. Junto à roda da frente, no meio da erva, estavam dois cestos de vime vazios. E do assento ao lado do condutor caía uma trança que balouçava. Depois vi faces, um nariz, um pescoço. O meu papá beijava o pescoço, estava sentado por baixo da mulher. Ela erguia a cabeça como se fosse subir pelo pescoço até ao teto. E retorcia as costas como uma vergasta. Eu conhecia a mulher, tinha andado comigo na escola, numa outra classe. Era da minha idade. Nos três últimos anos, desde que entrei para o liceu, vendia hortaliça no mercado. A sua trança batia de um lado para o outro, até que o papá colou a boca dela contra a sua. Quis correr dali à velocidade do vento e ali ficar eternamente a olhar. Um enxame de mosquitos rodava em torno do candeeiro e do quebra-luz como um pano molhado. O choupo era até ao beiral do telhado uma árvore. Daí para cima, onde a caleira cortava a luz, uma torre negra, que rumorejava no seu balouçar. Mas mais barulho faziam os grilos, da erva até ao céu, para que só me fosse permitido ver, e não ouvir, a boca aberta do papá. Não sabia há quanto tempo eu já ali estava, nem há quanto durava este pecado. Queria sair dali a tempo, chegar antes dele a casa com conveniente intervalo. Havia um buraco na cerca por trás do edifício principal, era o caminho mais curto.
Na rua, os andares da alameda diluíam-se na luz. Os grossos troncos, caiados de cal, resplandeciam e cambaleavam, ou era eu que não andava a direito. Depois do que tinha visto, não era permitido, entre as árvores, ter medo da noite. Além disso, eu sabia que no cemitério, em dias de luz intensa, as lápides brancas do talhão das crianças cambaleiam tanto ao sol, como de noite, à luz da lua, os troncos caiados de branco. Porque no cemitério, por detrás da panificadora, jazia o rapaz das serpentes de poeira. Quando abrasavam as horas de calor infernal e não era aconselhável as crianças andarem na rua, a sua lápide ficava tão bêbeda como de noite a alameda. As lápides à sua volta bamboleavam, especialmente as fotografias das campas em que havia crianças de chupeta na boca e animais de peluche nas mãos. O rapazinho com a lápide maior estava às cavalitas de um boneco de neve.
Antes de eu vir ao mundo, os meus pais tiveram um menino que ficava roxo quando se ria muito. Não chegou a ser um filho em toda a aceção da palavra, morreu antes do batizado. Sem má consciência, os meus pais puderam desistir da campa ao fim de dois anos. Foi só quando eu tinha oito anos e vinha sentado à nossa frente no elétrico um rapazinho com os joelhos esfolados que a mamã me disse, colada à orelha:
Se o teu irmão tivesse vivido, já não tinhas vindo ao mundo.
O rapazinho chupava um pato de caramelo que lhe nadava na boca, para dentro, para fora, e as casas desfilavam por detrás dos vidros, subindo enviesadas. Eu ia sentada no carro elétrico ao lado da mamã, num banco de madeira quente pintado de verde, no lugar do meu irmão.
Havia duas fotografias minhas da maternidade, do meu irmão, nem uma única. Numa fotografia, estou deitada na almofada junto à orelha da mamã. Na outra, no centro de uma mesa. Do segundo bebé, os meus pais quiseram um retrato para si e outro para a lápide do cemitério.
Eu era crescida de mais para ter medo de troncos de árvore caiados de branco no caminho da recolha para casa. Mas sentia-me agora mais rebaixada pelo meu papá do que outrora pela minha mamã no carro elétrico. Eu sou mais refinada do que aquela da trança, pensei eu, porque é que o meu papá não me prefere a mim. Ela é porca, tem as mãos verdes da hortaliça. O que é que ele quer com ela, ela tem um bom marido. Vejo-o de manhã, quando vou para o liceu. É novo, os cestos pesados é ele que os carrega da paragem do autocarro até à banca do mercado e ela só um saco de plástico. E ela tem uma criança sossegadinha que fica debaixo do telhado de betão, atrás da banca, a brincar com um cão de trapo sujo em cima de um caixote de madeira virado ao contrário, para passar o tempo. Parva que eu sou, que lhe comprei anteontem uma braçada de rabanetes. Meteu o dinheiro num bolso grande do avental que trazia à frente da barriga e acariciou o cabelo da criança. Sabia quem eu era e de certeza pensava no pecado. Vi-lhe no lábio superior um herpes vermelho rebentado há pouco e nem me passou pela cabeça que fora o meu papá que lho pegara. Na boca dele estava a desaparecer, estivera vermelho e assanhado duas semanas antes. Mas quanto ela gostaria de ter deixado a criança em casa, mais o cão de trapo sujo, para se poder divertir com o meu pai ao cair da noite, era coisa que não se lhe via na cara.
O papá chegou com a minha carteira a tiracolo, pousou-a à minha frente e perguntou:
Diz-me lá, desde quando és tão descuidada.
Quem é que é descuidado, devolvi a pergunta.
Ele fez orelhas moucas, sentou-se à mesa debaixo da luz e ficou à espera do jantar. Cortou o salame da grossura de um dedo e comeu quatro pimentos bicudos que tinha trazido, picantes que nem fogo, provavelmente dela. Com certeza ainda os pagou. E a acompanhar, comeu seis fatias de pão e uma porção de sal. A da trança comprida dá mesmo cabo dele. Talvez do cheiro a gasolina no autocarro o sangue lhe corresse rápido de mais ao coração e lhe acicatasse os brios como outrora na guerra. O vovô tinha-me mostrado um pequeno retrato e dissera:
Este é o blindado dele.
E quem é essa, perguntei eu.
No meio da erva, deitada ao pé do papá, estava uma mulher nova, descalça, os sapatos ao pé de um arbusto, atirados cada um para seu lado, o dente-de-leão floria entre a barriga das pernas e ela erguia a cabeça apoiada no cotovelo.
Uma rapariga muito musical, disse o vovô, tocava na flauta dele. O teu papá na guerra atirava-se a tudo o que tivesse ovários e não comesse erva. Depois eram só cartas a chegar. Rasguei-as todas para a tua mamã não as ver. Eu cá fiquei espantado pela rapidez com que ele a apanhou. Ela não era nada por aí além, mas tinha fibra e pôs-lhe logo o cabresto.
Ainda fui com ele mais dez vezes até à recolha à noite, contei as viagens pelos dedos. Eu agarrava o papá pelo braço, pelo joelho, ele só olhava para a estrada. Eu agarrava-o pela orelha, ele olhava na minha direção a sorrir, depois só para a estrada. Eu pousava a minha mão na dele ao volante. Ele dizia:
Assim não se pode conduzir.
Na última vez dei-lhe uma pera a morder, a que eu tinha dado uma grande dentada. Queria poupar-lhe o esforço com a espessa casca amarela. Ele mastigou, rilhou, tinha o sumo a espumar nos dentes, e engoliu com o olhar distante. O papá estava a gostar da pera e eu só comia para o aliciar. Quando eu já não conseguia comer mais e ele virou para mim a boca, para outra dentada, eu disse:
Fica com ela toda, já não quero mais.
Bem podia ter perguntado porquê. Buzinava nas esquinas porque estava feliz, ia-se encontrar com a da trança comprida. Acelerava o seu autocarro pelos sinais vermelhos porque tinha pressa, não para nos fazer rir.
Também no fim da décima viagem, em frente ao portão da recolha, abriu a porta do autocarro com um ímpeto que já era o prenúncio do seu pecado. Tinha até comido o caroço da pera e, ainda antes de eu descer, atirou o pezinho que restava pela porta aberta. Era pela carne alheia que agora ansiava.
Depois disso, fiquei sempre em casa à noite. Ele bem que podia ter perguntado se não queria voltar a acompanhá-lo. Os dez dedos já tinham sido contados, mas podia-se recomeçar a contagem. Talvez os cigarros tivessem melhor efeito do que as minhas mãos ou a pera mordida. Podia ter-lhe ensinado a travar o fumo. Ele deitava o fumo pela boca e só fumava cigarros estrangeiros, para se fazer importante. Não tinha dinheiro para eles, raramente fumava, mas ficava-lhe a matar. Enquanto ele fazia sozinho a última viagem da noite, eu colhia um pêssego dumas árvores escuras como breu junto da cerca e sentava-me no banco do jardim. Os grilos chirriavam a canção de um autocarro que à noite, na socapa de uma dupla solitária e da carne pecadora, se transforma em cama. Na verdade, de uma tripla. Eu comia e engolia, para manter o segredo.
Quando cheguei a casa depois da minha última viagem, em que a pera não tivera o efeito pretendido, a mamã perguntou:
Estiveste a chorar.
Sim, tinha estado.
Um cão que andava a remexer os latões de lixo seguiu-me da alameda até à panificadora, contei eu. A mamã disse:
Anda no cio e tu assustaste-o.
Só pensas em cio, gritei eu, anda é escanzelado e embrutecido com a fome.
O meu coração ficou tão duro que a tinha matado se lhe tivesse atirado com ele. Secou-se-me a língua de tanto que a odiei quando, sem pingo de vergonha, acrescentou:
Ah, por isso ouvi aqueles uivos lá fora.
Lá fora, da terra até ao céu, como sempre que no verão seco caía a noite, só se ouvia o chirriar dos grilos. Mas nem um único cão. Ela enfeitou a minha mentira com o susto de um cão no cio. Mentiu, para que, na minha aflição, não acabasse ainda por dizer que é o meu pai que anda no cio, que eu lhe podia ter pregado um susto, se tivesse querido.
Quantas vezes tive de mentir ou calar a boca, para que os meus mais queridos, precisamente quando não os suportava, não tivessem de enfrentar a sua desgraça. Quando desejava que o meu ódio fosse eterno, a náusea amaciava-o. Entre uma réstia de amor e um rol de auto-recriminações, já me entregava ao ódio seguinte. Para poupar os outros, nunca me faltou o bom senso. Exceto quando se tratava da minha própria desgraça.
Uma noite, a mamã pôs o vestido de verão com a fileira cerrada de botões de madrepérola e a racha atrevida no rabo, penteou o cabelo em forma de cornija inclinada, prendeu com ganchos por baixo e enfiou um rebuçado de caramelo na boca. Sempre que chupava rebuçados enquanto se arranjava, era porque tinha algum assunto delicado em mente. Calçou as sandálias brancas e disse:
Está fresquinho lá fora, depois do calorão que fez. Vou um bocado à alameda.
Não sei se com aquele vestido apertado conseguiu esgueirar-se pela brecha da cerca. Quando chegou ao recinto da recolha, o marido estava a consertar a refrigeração do motor. Ele deve ter segurado os cavalos, como dizia a Lilli, quando viu a racha atrevida, o penteado e as sandálias brancas. Talvez a tenha sentado ao volante e a tenha feito esperar até a refrigeração estar arranjada. No resplendor de sandálias e troncos brancos, chegaram a casa pendurados um no outro. Durante a ceia, ela disse:
Olha que ninguém te paga para ficares ainda a fazer consertos todas as noites, depois de um longo dia de trabalho.
Como assim, sou eu que faço a maior parte dos trajetos, disse ele, por isso é que recebo o bónus depois do Ano Novo, porque pensavas que era.
A mamã ergueu as sobrancelhas, levantou-se mesmo da cadeira para cortar pão para ele e para si, embora o pão e a faca estivessem junto do prato dele. Nós tivemos de cortar o nosso próprio pão, o vovô e eu.
Depois da morte do papá, a minha mamã punha um prato a menos na mesa com a maior naturalidade. Tinha o mesmo apetite e, ao que parecia, dormia melhor. As olheiras desapareceram. Não ficou mais nova, mas permanecia na mesma à medida que o tempo passava. A indiferença faz as pessoas desleixarem o seu aspeto exterior, não era o caso dela. O que ficou foi despenteada por dentro, de tão orgulhosa na sua solidão, ou totalmente fora de si de tanta liberdade. Nem contente nem triste, avessa a qualquer variação das expressões faciais. Um copo de água estava mais vivo do que ela. Confundia-se com a toalha quando se enxugava, com a mesa quando a levantava, com a cadeira quando se sentava. Passado um ano sobre a morte do meu papá, o vovô disse:
Tens tempo livre, vai mais vezes à cidade, talvez encontres um homem de que gostes. E para o trabalho na quinta, bem fazia jeito alguém mais novo do que eu.
Se eu fizesse isso, o seu dever era impedir-me, disse a mamã, afinal o meu marido era seu filho.
Mas eu não sou assim.
Tu também não voltaste a casar.
Eu não, mas o teu marido não morreu no campo de detenção, disse o vovô.
Não serviu de nada. A mamã nunca mais fez um penteado em forma de cornija e pendurou para sempre no armário o vestido justo com a racha no rabo. Não queria ser mulher de fibra de mais ninguém. Toda a curiosidade era coisa do passado, também sobre a filha, que tinha voado de casa e raramente voltava.
Quando o vovô morreu, só fiquei uma noite lá em casa. Na tarde seguinte, voltei para a cidade grande. Ela bem podia ter dito para eu ficar mais um tempo, eu tirara dois dias de licença. Em cima da minha cama havia sacos de plástico com a sua roupa de inverno, eu dormi no canapé e ela nem se preocupou com isso. Antes de eu ter de sair para a estação, pôs a mesa. Colocou dois pratos e comeu, sem reparar que eu apenas fazia de conta. Dantes, quando eu não tinha fome, ela dizia que eu era muito esquisita de boca. Agora, nem ligava.
Houve quatro pratos na mesa durante muitos anos. Parecia coisa normal, pois vivíamos quatro em casa. Até a mamã me confessar que eu só existia porque o meu irmão tinha morrido. A partir daí passámos a ser cinco, um de nós comia no prato do meu irmão. Não sabia quem. O irmão nunca tinha comido nele.
Segurava o mamilo na boca, mas já não bebia, disse o vovô, nós não vimos logo que não estava a dormir, que ele...
Como o quinto prato nunca chegou à mesa, os outros quatro também não se aguentaram muito tempo. O primeiro tornou-se supérfluo com a morte do papá. A minha ida para a cidade grande removeu da mesa o segundo. Com a morte do vovô, o terceiro perdeu a serventia.
O carro elétrico fica enviesado. Talvez os trilhos tenham entortado com o calor. A velhota tem problemas nervosos, a cabeça estremece para a esquerda e para a direita como se estivesse sempre a dizer que não. Quando é o mercado, pergunta. O guarda-freio diz: Ainda falta. O rapaz novo vai de pé na parte de trás, junto à porta. Ainda só estamos no tribunal, diz ele, a senhora não é de cá. Sou, sou, diz a velhota, partiram-se-me os óculos ontem. Fui à loja, não têm lentes, nem cola, nem nada. Agora tenho de ficar quinze dias à espera. Tivesse eu a idade dela, mas não se pode trocar, nem sequer com a Lilli ou com o Paul. Quem me dera nunca ter de descer no tribunal. Isso vai-se esclarecer no processo, lá, tu vais soltar a língua, diz o Albu quando não está satisfeito com uma resposta. O guarda-freio tira o seu terceiro croissãzinho salgado do bolso da camisa, dá-lhe uma mordidela e pousa-o. O bocado mordido escorrega-lhe pela garganta. Se isto demora tanto, já não arranjo ovos para hoje, diz a velhota. O carro elétrico para. Entra um homem de fato com uma pasta. Senão, compro é ameixas, diz a velhota. Olha para ele e dá uma risadinha: As malandras eu consigo levar inteiras até casa, que não se quebram. Para o bolo também precisas de ovos, diz o guarda-freio, um pouco de rum e muito açúcar. É, é, diz a velhota, os homens gostam de coisas doces.
Quando a mamã e eu estávamos a comer, depois do enterro do meu vovô, caiu a vassoura no canto da sala. O pau fez estrondo no chão. Foi o papá que eu vi cair, e com o vovô deve ter acontecido do mesmo jeito. Levei a mão ao copo de água. Se a mamã tivesse tido curiosidade em saber como eu vivia, ter-lhe-ia contado da mentira na fábrica, da morte que trouxera comigo nos meus sapatos novos cinzentos de salto alto. Ela meteu um pedaço de côdea na boca antes de se levantar e colocar a vassoura outra vez no canto.
Quando caía ao chão um cabide na fábrica, um guarda-chuva no carro elétrico, uma bicicleta estacionada na rua, eu sentia um vinil frio que me corria de ambas as têmporas até ao meio da testa. A mamã mastigava e bebia muita água, não tinha qualquer dúvida de ser minha mãe, eu nem tanto. Olhou para o prato e disse:
Sabes, uma vez comecei a escrever-te. Estava sentada no café, lembrou-me. Deve ter sido em maio ou junho, já estamos em quê, ah sim, setembro. Depois fui ao correio. Já tinha colado os selos, mas esquecera a tua morada.
Olhei-a nos olhos e deixei-me levar sobre aquele gelo.
Tu ainda tens a minha morada, perguntei.
Num papelinho, é só procurar.
Não lhe chamei mamã, só disse «tu», como se falasse como uma criança, porque «você» soava mal. Era enfadonho ouvi-la, e eu falar ou estar calada tão indiferente como outrora, quando bati as asas e saí de casa sem motivo, como também sem motivo poderia ter ficado. Empregos de escritório, havia-os também suficientes naquela cidade de província, até na panificadora. Como hoje se diz: Olha, aconteceu.
Quando fui para a estação, o ar cheirava a farinha. O porteiro estava à entrada da panificadora e escovava a caspa com a mão de cima do casaco do uniforme. Levantou o boné e cumprimentou, eu não o conhecia. Depois de eu passar, bocejou alto. Olhei à minha volta, como se tivesse escapado por um triz, como se atrás dos sapatos cinzentos de tacão alto bocejasse uma placa solta de betão. Deste lugar podia-se esperar tudo. Ele era até capaz de fazer vir a noite antes da tarde, para que o sol logo aqui chegasse, se erguesse a arder por trás da panificadora e se afundasse pouco antes da madrugada, escuro como uma lata do pão. Pensei no anoitecer depois do enterro do papá. Tínhamos chegado a casa vindos do cemitério, o vovô atravessou o pátio, abriu a torneira e puxou a mangueira do jardim para junto dos pessegueiros. A mamã gritou:
Com esse fato não, vai trocar de roupa.
Corri atrás dele. É por causa do chão seco, disse ele, como se os pêssegos pudessem ter morrido de sede no quarto de hora seguinte. A água esparrinhou, ficou à volta dos troncos em bolhas chocas, cheias de formigas afogadas. A terra bebia devagar. Então o vovô disse:
Esticam-se as pernas uma vez e o mundo abre-se à nossa frente. Esticam-se outra vez e o mundo fecha-se. Daqui até ali, um peido na lanterna, e chama-se ter vivido. Para isto, nem vale a pena calçar sapatos.
O vovô tinha agora esticado as pernas pela segunda. Eu queria entrar no comboio, atravessar todos os campos de milho antes de ficarem negros. Viajar ao longo de todas aquelas estaçõezinhas que pareciam casotas de cão. Estar já muito longe, quando a mamã puser na mesa o último prato. É do prato e da fome do meu irmão que ela se deve ter alimentado durante todos estes anos. Por isso conseguia estar tão bem sozinha, como se sempre tivesse havido somente aquele prato sobre a sua mesa.
Quando olhei para o meu bilhete azul-claro, tive a certeza: Que sorte o papá não me ter atrelado ao seu amor. A sua desfaçatez foi mais inteligente que os seus miolos. Que sorte ele ter preferido a sombra da carne alheia ao gosto molhado da minha pera mordida. A mamã nem em sonhos merecia que eu a substituísse em versão jovem e transportasse o papá aos verdes anos de amor com ela, só para barrar a nossa família à da trança comprida.
Com a Lilli foi diferente, o segundo homem da mãe foi o primeiro que ela conseguiu arranjar.
Com o tempo ele não se tornou repulsivo, disse a Lilli, só corriqueiro. Ter com ele alguma coisa, quando a minha mãe não estava em casa, era mais natural que usar o mesmo puxador da porta.
O segredo da Lilli tornou-se coisa do passado quando conheceu o porteiro da noite com a cicatriz de guerra no cachaço. Até ele se reformar, a Lilli deitava-se com ele a partir da meia-noite atrás do tabique onde se penduravam as chaves na receção. Depois, ia à noite para a arrecadação de uma loja que estava atulhada de roupa até aos puxadores das janelas, até que o comerciante se mudou com a mulher para o campo. Depois para o hospital, até que o seu médico de plantão foi visitar o cunhado em Buenos Aires e não voltou. Depois daí, a Lilli transferiu o amor para a tarde e para a câmara escura do seu fotógrafo.
A pressa aumenta o prazer, dizia a Lilli.
O pecado com o padrasto já lá ia há muito tempo, mas os olhos da Lilli nunca perderam um brilhozinho de vidro polido quando dizia:
A minha mãe vai para a cama com o segundo marido e cobre-se com a morte do primeiro.
O segredo e a pressa eram mais importantes que o sentimento. Tirando o velho oficial, todos os homens com que ela começara alguma coisa tinham a mulher em casa. O primeiro ano com o padrasto foi o mais arriscado e o mais lindo. A Lilli confessava: Ora adeus, tanta coisa com o segredo. Para mim era o prato do dia. Por que razão o amor primeiro tem garras como o gato e com o tempo desaparece como o rato pela goela, isso sim é um segredo, dizia a Lilli.
Ela era alemã. O pai, acabado de casar, foi recrutado e morreu na guerra despedaçado por uma mina. A mãe da Lilli estava grávida de dois meses. Sendo viúva de guerra, recebia todos os anos um pacote de ajuda da Cruz Vermelha Alemã. Num deles vinha o edredão com que desde então se cobria. Num dos outros, a saia azul com as pregas de ouriço-cacheiro, que a Lilli usava porque ficava demasiado apertada à mãe. Embora mais ninguém tivesse uma saia com pregas de ouriço-cacheiro, bonita ela não era. De fazenda fina e dura, brilhava como se tivessem acabado de a tirar da água. Ficava-se à espera que pingasse da bainha. Eu dizia:
Talvez coisa para velhotas, chapa canelada à volta das ancas, para esconder as banhas da viuvez.
Ora adeus, a saia é prática e o azul combina com os meus olhos, dizia a Lilli. Quando falava da mãe, também mencionava o soldado morto que não teve tempo de ser seu pai. Quando eu estava com a Lilli na cidade e ela mexia na carteira do bolso, via sempre aparecer o rebordo branco serrilhado de uma fotografia. Uma vez perguntei:
Quem é que tens aí nesse compartimento.
Primeiro meteu a carteira no casaco, depois disse:
O meu pai.
Ele é segredo, perguntei eu.
É.
Então porque contas coisas dele.
Porque tu fazes perguntas abelhudas.
Primeiro contaste tu, eu só perguntei depois.
Não contei nada do retrato.
Mas agora podes mostrar-mo, se o teu pai está nele.
Como queres que esteja nele, se está morto, disse ela.
Abanei a mão em frente da testa:
Estás tantã.
A Lilli tirou o retrato da carteira e segurou-o à minha frente. O nariz e os olhos dela eram os dele, que ali nem tinha vinte anos, sorria de viés e trazia uma margarida de dentes brancos numa botoeira do casaco da farda. Quis pegar no retrato, a Lilli afastou a minha mão:
Vê e não toca.
Bati com o indicador na testa dela:
Não bates bem.
Já viste tudo o que querias.
Não, estás sempre a mexer.
Então a Lilli pôs a fotografia de cabeça para baixo, parecia que o pai estava pendurado pelas pernas. As pontas dos colarinhos e o boné à frente tinham sido retocados com tinta da china, as marcas brilhavam, enquanto o retrato era baço. Reparei logo nesse pormenor, que de cabeça para baixo também se notava. A vergonha faz os olhos pequenos, mas os dela tornaram-se grandes e esqueciam-se de pestanejar. A Lilli estava à procurava de briga, mas não por causa das marcas de retoque no uniforme.
Podes guardar, disse eu.
Porquê, se estás a devorá-lo com os olhos.
Desculpa, berrei eu.
Desculpa porquê, perguntou ela.
Estarás com ciúme.
Só se fores tu, para mim ele é novo de mais.
Agora estaria na conta certa.
Nunca tinha pensado nisso.
Eu já, disse eu.
Todos os dias depois do serviço eu ficava feliz por já não ter de olhar para a cara do Nelu. Na paragem, ficava a andar de um lado para o outro diante das casas baixas e sujas. As janelas ficavam suspensas um palmo acima do passeio. No inverno, por trás das cortinas, já à tarde as luzes estavam acesas. O pouco gelo que se via brilhava como leite derramado nos buracos da rua. Os camiões passavam a trepidar. Atrás das rodas, no meio do redemoinho levantado, emergia o rapaz morto com as suas serpentes de poeira. Conseguia correr melhor desde que estava morto, e o meu papá também conduzia melhor. Depois de engolir o ruído e a poeira de neve, a rua perdia a direção. Eu deixava passar um elétrico, dois, três. De qualquer modo o Paul trabalhava uma hora e meia a mais do que eu. Nada me puxava para casa. Entretanto vinham outros camiões. Se eu tivesse sorte, pelo meio viria também um autocarro. Um dia, o rapaz das serpentes de poeira e o meu papá vingaram-se por serem obrigados a aparecer vezes de mais. Apareceu um homem com uma mala para apanhar o elétrico.
No verão anterior, depois do trabalho, o Paul foi de novo obrigado a meter-se na mota de tronco nu e calça emprestada. Tudo o que tinha vestido desaparecera enquanto estava no chuveiro: camisa, calças, cuecas, meias e sandálias. Embora o vestiário fosse vigiado desde a primavera, era já a quarta vez este verão que, depois do chuveiro, o Paul ficava só com a pele do corpo. Na fábrica, roubar não é um ato condenável. A fábrica pertence ao povo e a gente faz parte do povo e toma posse da sua propriedade popular, ferro, chapa, madeira, parafusos e arame, o que houver para pegar. E a gente diz:
De dia pega-se, de noite rouba-se.
E como quem não quer a coisa, desaparecem a um as meias, a outro a camisa, ao terceiro os sapatos. Também antes de haver vigilância ninguém era tantas vezes roubado como o Paul. E só a ele tudo era roubado de uma assentada. Ele não tinha roupa que desse nas vistas. O ridículo de ficar nu no meio da fábrica era mais importante para o ladrão do que as coisas que levava. Alguém estava a querer humilhar o Paul. Ele observava todos com muita atenção, o jeito de conversar, rir, comer, os gestos no trabalho, o arrastar dos pés para um lado e para o outro no pavilhão. Todos faziam o mesmo de sempre, mas um dia o indivíduo implicado iria distrair-se e cometer um erro, pensou o Paul. Então ajustaria contas com ele diante de toda a gente.
Como, perguntei eu.
Com porrada, até ele chiar que nem um rato.
Há uns que gritam para a gente saber que já chega. Mas outros calam-se e a gente dá-lhes porrada até os matar. Eu tinha medo que o Paul se descontrolasse até à cegueira e disse:
Um ladrão de roupa a gente despe-o e enxota-o nu pela fábrica até ele ficar mais pequeno do que o rato. Assim não fizeste nada de errado e não tens culpas para carregar.
Sim, e há que contar que pode ser qualquer um. Se for um dos velhos, ou um rapazinho raquítico com as orelhas maiores que os pés, faço-lhe companhia quando for a arejar.
Roupa por aí não falta, imagina que tinham roubado a tua preciosa pele, disseram os colegas do Paul. Ouvi dizer que ontem apanhaste um resfriado nos mamilos. Outra vez ensaboado à espera e nem uma massagista nas redondezas.
O Paul também se riu com eles. Preferia aqueles poucos galhofeiros à horda silenciosa de línguas preguicentas e olhos mortiços. Esta destrinça não o deixava mais esperto quanto à cara com que o ladrão circulava. Ou ele não cometia erros, ou o Paul não dava por nada. Também as roupas de reserva, que estavam guardadas no armário das ferramentas para o caso de roubo, tinham desaparecido depois do duche.
O nosso socialismo até põe os seus trabalhadores a sair da indústria em pelota, dizia o Paul na fábrica, de tantas em tantas semanas é como se nascêssemos de novo, o que só nos mantém jovens.
Quando os galhofeiros chegavam ao pavilhão de manhã, cumprimentavam:
Bom dia em pelota.
À refeição desejavam:
Bom apetite em pelota.
Antes de saírem para casa:
Até amanhã em pelota.
Nas sessões do partido, então é que a destrinça se apagava por completo, dizia o Paul. Ficavam todos sentados como uma cerca de estacas na penúltima fila. O suor pingava-lhes das fontes, o cabelo colava-se-lhes ao toutiço e não se sabia se por causa do calor ou do medo. Para não levantarem a mínima suspeita de querer pedir a palavra, nem tiravam as mãos do colo. Lá jaziam sujas, duras e quedas, ou escorregavam para debaixo dos joelhos. Na sala das sessões, à frente, as cortinas estavam corridas, a mesa e as primeiras filas de cadeiras tinham sombra, mas as cadeiras ficavam vazias. Só o Paul tinha de fazer aí a sua autocrítica pública, de pé, e sentar-se depois sozinho na fila da sombra, numa daquelas cadeiras que, só de a gente respirar, rangiam. E ele tinha de respirar fundo, porque até o ar se encolhia diante do nariz.
Ainda era um fedelho ranhoso, dizia o Paul de si próprio, quando entrou para o partido. Andava no décimo ano da escola técnica e estudava mecânica. A mãe do Paul dizia:
Nesta terra, por muito inteligente que seja, quem não tem livro vermelho bem pode fazer o pino e peidar-se a fossar no pó como a codorniz.
Era uma rapariga da aldeia que largara os campos de beterraba e abalara para a cidade, para uma indústria pesada com cinco vezes mais homens que mulheres. Foi nas camas, pelo baixo-ventre, que se tornou comunista.
A via da formação e ascensão, dizia o Paul. Afinal o que é que ela sabia. Sabia sachar, semear, colher, pespontar peúgas, sapatear um pouco na máquina de costura, dançar bem e ordenhar ovelhas. A sua prática partidária terminava à borda da cama. Em compensação, sabia muito bem a partir de quando a roleta dos homens podia prejudicar uma rapariga fisicamente dotada. Fez bom uso desta intuição e casou, a uma unha negra do prejuízo, com o pai do Paul, um herói do trabalho socialista. Tornou-se fiel e assim se manteve. O marido quis ensinar-lhe a língua do partido. O cérebro dela era inteligente, mas a boca demasiado folgada para uma língua em que nunca se falava de cheirar e saborear, nunca de ouvir e ver. Não importa o que o pai do Paul lhe dissesse, quando ela repetia, palavra por palavra, soava a deboche: Na nossa força reside o progresso.
Fala mais baixo, dizia ele.
E soava chocho.
Um pouco mais alto soava extravagante.
Estás a falar do cerne da questão, tens de deixar a tua pessoa de fora.
Como, perguntou ela, se também eu sou a nossa força.
Podes falar essas coisas quando levas as ovelhas lá do monte para o vale, mas na sessão do partido tu vais manter o bico calado.
A instrução durou todo o mês de janeiro. A mãe do Paul disse que preferia remover a neve de todo aquele monte enorme lá fora, a exercitar aquela língua. O marido desistiu.
Três dias depois de eu ter mudado para a casa do Paul na torre abaulada, já se sabia na fábrica, apesar de o Paul não ter contado a ninguém. A mãe dele também veio a saber com a mesma rapidez. Com letra tremida e muitos erros, escreveu ao filho uma carta com o cabeçalho:
Ó luz dos meus olhos, minha vida.
E a seguir: Há raparigas que parecem flores e anjos. Mas tu, meu filho, estás a enrolar-te num pano em que todos já se limparam. Essa mulher não te ama a ti nem à terra dela. Vai envenenar o teu coração. Ela que não cruze a soleira da minha porta. Estás a jogar a tua vida na lama. Peço-te, meu filho, acaba tudo com ela.
Por baixo dos beijos não estava: Tua mãe, mas a assinatura dela, floreada e exercitada, como se a mulher fosse letrada. O Paul tinha a certeza de que alguém lhe ditara a carta. Conhecia as suas palavras carinhosas, assim como a caligrafia.
E quem é que desenhou a assinatura.
É a dela, disse o Paul.
Aprendera a assinar com o pai, saía-lhe naturalmente da mão como passajar meias ou ordenhar ovelhas. O pai do Paul achava que as assinaturas são o espelho do ser humano e que se leem mais coisas numa assinatura do que se consegue ler nos olhos. Como a mulher dele raramente era obrigada a escrever, mas tinha frequentemente de assinar impressos na fábrica, ele ensinara-lhe, depois daquele fracassado janeiro, pelo menos os floreados, que exercitou com ela em papel de jornal, usando as margens. Esta carta foi a razão por que até hoje não conheci a mãe do Paul. Há uma fotografia que o Paul recebeu num envelope, um ano depois da morte do pai, quando ela levantou o luto. Cabelo com permanente, cara redonda inchada da idade, a parecer bondosa. Uma serralheira mecânica reformada que, após o período de luto, se volta pela primeira vez a sentar na confeitaria e a comer bolo. As carnes saem-lhe das mangas curtas e caem flácidas em torno dos cotovelos. Traz um relógio de homem no pulso e agarra a colherzinha com todos os cinco dedos. Com a mão esquerda, aperta a carteira contra o regaço.
O Paul conta que um dia, numa sessão do partido, ela não ficou calada e pediu a palavra por causa da corrente de ar dentro do pavilhão.
Os homens têm sorte, disse ela, vestem dois pares de calças compridas e não se constipam, mas a nós, mulheres, sopra cá um vento pela pássara. Desataram todos a rir, ela olhou assarapantada e corrigiu-se:
Quer dizer, sopra-nos um vento pela coisa.
Depois da sessão, a caminho de casa, o pai do Paul esbofeteou-a com estas palavras:
Não compreendes que também arruínas por completo a minha vida.
Descarregou a sua fúria no meio da rua, não conseguiu esperar até casa. Talvez também porque aí já não se teria atrevido. Foi a única vez que lhe bateu. A partir do dia seguinte ela tinha uma alcunha: a Coisa. Até à reforma, foi só assim que lhe chamaram na fábrica.
Antes de eu e o Paul casarmos, o engenheiro chamou-o e disse: Olha bem a peça que tu pescaste, essa senhora está a confundir-te com os seus Marcellos. Ainda vais a tempo de recuar.
O que aquele disse pouco me esquentou. O que o Paul lhe respondeu foi, como sempre que uma coisa é completamente justa, de enorme ousadia:
Eu pedi a filha do Estaline em casamento, infelizmente já estava comprometida.
A seguir à resposta casámos, o engenheiro ficou à espera do próximo deslize do Paul. E se o Paul não tivesse dito que os trabalhadores saem da indústria em pelota, tinha arranjado outro motivo de repreensão. Deslizes encontravam-se sempre, roupa roubada é que nunca.
*
Graças a Deus não há paragem na ponte. Não me apetece nada ver o rio, desagrada-me o que arrasta na água. Quer apresente em seu espelho aquilo que ele viu, quer o leve em ondas sempre na mesma direção, a todos dá volta à cabeça, a mim até ao gorgomilo na garganta. Mas não resisto a olhar. As pastagens parecem maiores, com o calor a água tem pouca altura. Agora o sol passa-lhes por cima, ergue-se em labaredas, faísca em agulhas. O homem da pasta está sentado de viés, pisca os olhos. Então descobre a utilidade da pasta, coloca-a contra o vidro. Para mim também dá jeito, se não estivesse meio aluada com o rio, ficaria só a olhar para a pasta. A balaustrada corre dos dois lados do elétrico e é num deles que está fixa a pasta como uma porta de emergência. Há folhas entre as divisórias da pasta, provavelmente papéis de tribunal com nomes, carimbos, assinaturas e um crime. Tribunal nunca tem a ver com nada de bom. Não estará o homem implicado no caso e quererá ainda ler tudo em paz outra vez, ou será ele o acusado e deram-lhe uma pausa para respirar antes da última audiência. De uma forma ou de outra, tem sorte, sabe de que consta o processo. Eu estou intimada para as dez em ponto e ele já pode ir para casa antes das nove. A roupa dele está impecável. Será que um réu que se arranja de manhã tão cedo consegue ainda dar atenção aos botões de punho a condizer, à barba escanhoada, aos vincos das calças e aos sapatos engraxados. Motivos não lhe faltariam naturalmente. Ao contrário de um juiz, o interesse dele, mesmo que isso nada mude quanto ao crime, é causar a melhor impressão. Ou será o homem da pasta vaidoso e anda todos os dias, vá para onde for, como se tivesse saído da embalagem. Para isso é preciso ter um trabalho em que uma pessoa não se suje. Ele também poderá ser as duas coisas, de certeza que existem também juízes acusados. Há motivos tão ligeiros para pesados deslizes, de certeza que também há pessoas acusadas com os botões de punho a condizer. Até juízes, que conhecem de cor tudo o que é proibido por lei. Quando os filhos, por exemplo, fazem algo que não é permitido. Estes também crescem, deixam a casa dos pais, e não são diferentes da Lilli ou de mim. A minha mamã não conta para o caso, ninguém quis saber dela quando escrevi os bilhetes. O papá estava morto, o padrasto da Lilli já na reforma. Se ele ou o meu papá tivessem sido juízes, o que é que isso importaria à Lilli antes da fuga, ou a mim antes de escrever os bilhetes. Os filhos dos juízes também ouvem falar do mundo lá fora, fazem como todos neste país uma viagem ao Mar Negro. Olham para além das fronteiras e algo irresistivelmente os atrai, como a todos os outros, para algum lugar distante. Não é obrigatório viver em condições difíceis para se pensar: Isto aqui não pode ser sempre a minha vida. Como eu e a Lilli sabemos, também os filhos dos juízes não ignoram que o céu continua para lá da fronteira, até à Itália, ou até ao Canadá, onde se está melhor do que aqui. Que a sorte me acompanhe, pedem eles todos, mas nunca aos guardas da fronteira. Ora um a Deus, ora outro ao céu vazio. Seja a quem for, às vezes acaba bem. Outras vezes, vermelho como um canteiro repleto de papoilas, ou solitário e excrescente como o oficial da Lilli, ou então desnorteado como eu. Mais cedo ou mais tarde, de uma forma ou de outra, a gente tentou.
O Paul veio para casa descalço, os sapatos de reserva dos colegas não lhe serviram. Desta vez não precisou de camisa, estávamos no pino do verão. Teve de pedir umas calças emprestadas. Ficavam-lhe duas mãos travessas acima dos artelhos, à largura cabiam lá dentro três do Paul, à volta da cinta ele tinha atado um arame. Em casa, o Paul gozou com o seu aspeto e dançaricou pelo corredor fora. Os fundilhos caíam-lhe até à dobra dos joelhos. Estendeu os braços e pôs-me a girar em seu redor, aumentando cada vez mais a velocidade. Eu tinha o ouvido colado à sua boca, ele sussurrou uma canção, fechou os olhos e apertou a minha mão contra o seu peito. Senti na mão o palpitar acelerado e disse:
Abranda um pouco, tens o coração disparado como um pombo selvagem.
Dançámos mais devagar, pusemos os cotovelos entre nós, espetámos os rabos bem para fora, a barriga e as pernas tinham espaço para bambolear. O Paul dava-me um toque na anca esquerda e balanceava, depois na direita, depois a sua barriga afastava-se de mim a dançar e as minhas ancas balanceavam sozinhas. Na cabeça nada mais havia para além deste ritmo.
Os velhos dançam assim, disse ele. Sabes, as ancas esquinadas da minha mãe, quando era nova, o meu pai chamava-lhes ossos do tango.
Dei um toque nos pés empoeirados do Paul com os meus, de unhas vermelhas envernizadas, e cantei:
Mundo mundo irmão mundo
quando me fartarei de ti
quando meu pão for pão seco
e a mão esquecer meu copo
quando os pregos do caixão troarem em meu redor
talvez então de ti me farte
desespera quem nasceu
apodrece quem morreu...
Que momento de cumplicidade, rimo-nos pelo resto da canção em que a morte chega como a parte oferecida de uma vida já paga. Engolimos a canção a rir e nem saímos do ritmo. De repente, o Paul empurrou-me para longe de si e gritou:
Ai, entalei-me no fecho das calças.
Tentei abri-lo, não consegui. Quando ele puxou o arame das presilhas do cinto e o atirou para um canto, os fundilhos caíram-lhe até aos tornozelos e à frente a calça ficou pendurada. Mandou-me cortar os pentelhos entalados, mas eu não estava em condições de o fazer, de tanto que me ria. O Paul tirou-me a tesoura das mãos a tremer:
Safa daqui, criatura.
Para onde, perguntei eu.
E deixei que fosse o Paul a fazer o serviço, mas não consegui parar de rir, com gargalhadas cada vez mais presas, como se fosse um ataque. Continuei a rir o tempo que foi preciso até me passar. A inspirar e expirar fundo ao mesmo tempo, a rebentar de tanto ar e a ter falta dele, foi assim que tudo acabou. Mas no princípio foi a felicidade. Poder dançar ao som do riso, romper a rédea curta que constantemente nos amarra. Deixar que uma canção macabra nos aqueça as fontes a partir de dentro com o seu bafo, só pode ter sido felicidade. Até nos envergonharmos um do outro, até a rédea se tornar mais curta que o nariz, até aí foi felicidade. Depois o Paul enterrou os dedos pelo cabelo, num gesto compulsivo, e eu encolhi os meus, cravando as unhas na mão como uma criança castigada.
Aquele silêncio, depois da felicidade, aproximou-se como um arrepio dos móveis. Caímos outra vez de cara no chão, no impasse, o Paul primeiro que tudo. Sempre teve medo que nos habituássemos à felicidade. Enquanto eu ainda ria, ele tinha-se aparado os pelos, a tesoura já estava pendurada na tabuleta das chaves, a enorme calça de reserva jazia no canto. O Paul saiu do quarto para o corredor em cuecas e ficou de pé, ao sol, dentro de um longo retângulo que lhe quebrava, entre o chão e a parede, a sombra das pernas acima do joelho.
Porque ris sempre da desgraça alheia até ao deboche, perguntou ele.
Foi como se o Nelu dissesse:
Aí tens de novo a tua felicidade sórdida e retorcida.
No caso do Nelu, havia alguma verdade, e eu tinha-a porque precisava. O Nelu era insuperável a causar a desgraça alheia. Mas a minha língua era mais rápida, as minhas mãos eram mais habilidosas do que as dele. A barbear-se, ele deixava pelos no queixo, a fazer café, a varinha de ferver água caía do recipiente. A apertar os atacadores, atrapalhava-se todo, demorava um tempo infinito e nunca conseguia um laço decente. De botões ele sabia falar, mas não sabia pregar um.
Olha para a borrada que voltaste a fazer, dizia eu quando alguma coisa lhe saía mal.
De tantos em tantos dias esbarrava com a testa na porta do armário. Quando o seu lápis acabado de afiar caía ao chão, baixava-se e esquecia que por cima da cabeça havia uma gaveta aberta. Sobre a mossa fresquinha, eu dizia:
Hoje já cá canta um novo galo.
E ria até ele, fugindo ao meu desprezo, correr para o pátio da fábrica, procurando recuperar junto dos outros alguma da sua dignidade. Independentemente do tempo que lá ficasse, quando voltava, eu ainda continuava a rir, ou então recomeçava. Ele massajava o seu galo fresquinho, a que as nódoas negras esverdeadas de outros dias faziam companhia.
Talvez os meus ataques de riso por causa do Nelu se parecessem com os que tive com o Paul. Mas com o Nelu o desprezo era importante, era prazer na desgraça dele, desde o princípio. O Nelu merecia cada revés por que passava. O que lhe acontecia ainda era pouco. Eu gostava quando o Nelu não conseguia suportar a minha felicidade retorcida, mas ela não era sórdida. Sórdida era a sua, que só me trouxe dificuldades até ser despedida. Escanhoar-se bem, apertar sapatos, pregar um botão são delicadezas para consumo pessoal. Isso não chega para avalizar ninguém numa fábrica, lá são outras coisas que contam...
É claro que ainda exercitei mais a minha felicidade retorcida depois de o Nelu me meter em sarilhos. Desde os primeiros bilhetes, o meu riso saía como se estivesse nas tintas para os sarilhos. Mas isso não me livrou deles.
Depois da dança, o Paul saiu de Java e foi à cidade comprar dois pares de sapatos. Um par para usar e um par de reserva para o armário das ferramentas. Fiquei a vê-lo partir. Lá em baixo, na rua, a Java vermelha era tão bonita como a lata de esmalte vermelho na mesa da cozinha. Atravessei a mancha de sol no corredor e não sabia para onde ir. Então encontrei na arrecadação os meus primeiros sapatos de casamento, que eram brancos. Os meus segundos eram castanhos. Por cima estavam as sandálias do Paul do último verão, com buracos nas solas. O outono chegara de repente, um céu baixo, a chuva a repisar a folhagem apodrecida pela terra dentro. De um dia para o outro, atirámos as coisas de verão para o canto mais fundo e precisávamos do nosso dinheiro para roupas de inverno, não para meias-solas caras em sandálias. Já por causa do tempo, nunca teria ido ao sapateiro com sapatos de verão. Até chegar o seu tempo, ainda faltava muito.
A mancha de sol tinha-se estendido completamente pelo chão, mas ainda não tocara as calças emprestadas. Eu também não lhes toquei. Em casa reinava aquele silêncio que nos dilata do chão até ao teto, onde é impossível estar. Até um prato a cair da mesa, uma fotografia a cair da parede, como se o papá tivesse morrido outra vez, seria menos penoso. De mãos hesitantes, atravessei a mancha de sol até dentro do quarto e fechei a janela, mas antes ainda olhei para a rua: Em cima do passeio, onde uma pessoa normal não tem licença de estacionar, estão duas pessoas sentadas num carro vermelho. Uma gesticula com as mãos, a outra fuma. Saí do quarto para o corredor, para a cozinha, para o corredor. Conheço este passarinhar de autómato, que esquece o que ia fazer, antes de realmente se lembrar. Para cá e para lá, com passo arrastado ou demasiado pedante, fugindo apressado do lugar onde o nariz se encontrava. Atirei os sapatos de noiva para dentro da arrecadação e fechei a porta. Peguei nas sandálias do Paul e limpei as teias de aranha. Havia uma amora esmagada presa à sola direita. Por causa dela, mas também do carro vermelho, tudo de repente me saltou à memória: o último verão no rio, a nudez do Paul depois do chuveiro na fábrica, a nossa dança no corredor, a forma bruta como o Paul me arrancou a tesoura da mão.
Era bem melhor que tivéssemos os próprios objetos na cabeça e lhes pudéssemos tocar, em vez dos pensamentos que eternamente ruminamos. As pessoas que queremos ter ou de que nos queremos livrar e os objetos que ainda conservamos ou já perdemos. Haveria uma ordem: No meio da cabeça está o Paul e não este meu agarrar-me ou furtar-me a ele com igual amor. Nas têmporas correm os passeios da rua, tão longos quanto quiserem, e nas faces estão talvez as lojas com as vitrinas, não os meus despropositados destinos pela cidade. Na nuca, isso é inevitável, na nuca encontra-se o estafeta do Albu, que está porventura sentado lá em baixo no carro vermelho, antes de vir tocar à porta para me intimar. Verbalmente, para me fazer ter medo de trocar a data, porque eu ou o Paul não ouvimos direito. Sim, era bem melhor que o estafeta estivesse em pessoa dentro da minha nuca quando de novo se apresentasse à porta, em vez da sua voz de surdina, que mina, corrói e que ainda tenho entranhada desde a última vez. No cachaço estão ainda a ponte do rio e o meu primeiro marido com a mala, mas não o incitamento a saltar. E no cerebelo, de onde dizem que vem o equilíbrio, uma mesa onde repousa, em vez da ceia, uma mosca sem fome. Tudo coisas sólidas que, na cabeça, só carecem do espaço onde estão pousadas. Superfícies e arestas que se podem classificar como apoio ou como fardo e distinguir sem dificuldade. E nos interstícios fica espaço para a felicidade.
Embrulhei as sandálias num jornal, acabei por metê-las depois num saco de plástico. Não queria passar pelo carro vermelho com um embrulho feito de jornal. Fazer alguma coisa pelo Paul, depois de ter rido além da conta, era aquilo que eu queria. E saber qual o aspeto das duas caras que estavam dentro do carro. Depois já não sabia se eram as duas caras que me levavam à rua ou as sandálias do Paul.
Muitas pessoas não distinguem só entre objetos e pensamentos, distinguem também entre pensamentos e sentimentos. Pergunto a mim própria como o fazem. Não consigo compreender que as fiadas de andorinhas a voar nas nuvens sobre o campo de feijões tenham nas asas as mesmas pontas do bigode do Nelu, mas deve tratar-se de um erro. Como acontece com todos os erros, não consigo descobrir se são os objetos ou os pensamentos que querem que assim seja. Como assim é, o intelecto deveria estar à altura dos erros, poder comportar tantos quantas as árvores que a terra comporta. Dobrei duas notas de cinquenta lei em pequenos quadrângulos e segurei-as na mão juntamente com o saco de plástico. O elevador abriu, a minha cara saltou para dentro do espelho antes de eu poder lá chegar com os pés. O chão rangeu, a viagem tomou seu rumo.
Aproximei-me muito do carro vermelho, queria que ambos vissem que o mundo não é isento de erros e que sou eu a descer em vez de eles subirem. Pela janela aberta, pergunto para dentro do carro:
Têm lume.
Depois gostaria de ter dito:
Muito obrigado, não fumo, só queria saber se tinham lume. Pensei que os dois iam logo dar-me lume, para se verem livres de mim. Pois enganei-me nas contas. Saiu tudo ao contrário. O homem sacudiu a cabeça e a mulher resmungou:
Não, não estás a ver que não fumamos.
Ele pousou a mão em cima do volante e riu-se como se ela tivesse arrancado a maior chalaça. No seu anel de sinete brilharam duas letras, um A e um N, e o cabelo negro da mulher luziu ao sol como asa de corvo quando ela lhe disse algo ao ouvido. A cara dela tinha o moreno gorduroso dos banhos de sol, do pescoço pendia-lhe um colar de conchas pintalgadas. Eu disse:
Podia ser que tivessem fumado antes e depois de eu me ir embora voltassem a fumar. Ou estarei a confundir com marmelar.
He, ó madame, disse ela, se estás hoje mal fodida porque o teu homem anda nas putas depois do trabalho, vai ao bar e arranja um com o rabanete bem grande. Tira-te logo essas minhoquices.
Qual quê, disse eu, prefiro esperar que o meu chegue a casa, tem cá um poste telegráfico, que até me guinda ao céu.
Claro que não é aqui que marmelam, mas em algum outro sítio. Ela esticou logo as garras, sentiu-se apanhada por mim. Ele também, ou não se tinha deixado ali ficar, enfiado e mudo como um monte de esterco. Com certeza estava de serviço e ela adoçava-lhe o turno. Antes de ela subir o vidro, eu ainda disse:
Parece-me que as mal-fodidas este verão usam colares de conchas, ou isso aí é merda seca de pomba.
Era mesmo esse o aspeto do colar de conchas. Ouvi os meus passos ao afastar-me, senti-me um pouco enjoada. A porta do bar estava aberta, não olhei para dentro, olhei para as tílias, que sabia não estarem bêbedas. Mas as vozes bêbedas, eu conseguia ouvi-las. O cheiro de aguardente, café, fumo, desinfetante e poeira de verão seguiu no meu encalço.
Pela primeira vez na oficina do sapateiro não havia música. Em cima da banca faltava o gravador de cassetes com as pilhas atadas à caixa por um bocado de elástico das calças. Atrás da banca estava sentado um rapaz novo com dentes tão sobressaídos que, quando fechava a boca, os lábios não se juntavam. Como não tinha avental, pensei que fosse o genro do sapateiro, o tocador de acordeão. Perguntei pelo velho sapateiro. O rapaz novo fez quatro sinais da cruz e disse:
Morto.
Onde foi enterrado, perguntei.
Ele esgravatou numa gaveta, à procura de um papel, pensei eu, mas tirou um cigarro.
Vem trazer sapatos ou à procura de sepulturas.
Desembrulhei os sapatos do jornal, ele soprou o fumo a direito e olhou-me para os dedos como se pudesse ser morto a tiro por uns sapatos dentro do papel.
O sapateiro estava doente, perguntei.
Acenou com a cabeça.
O que tinha.
Falta de dinheiro, disse o rapaz.
Então matou-se.
Como assim.
Pergunto, eu não sei.
Sacudiu a cabeça.
Se morre um velho, um novo não tem culpa, pensei eu, mas um pouco de compaixão não lhe ficava mal. O boca-torta está de certeza radiante que tenha vagado uma oficina no meio destas lojas onde entram fregueses de manhã à noite.
Enquanto esmagava a pirisca numa lata de conserva, ele disse:
A sepultura fica na rua das Amoreiras, chega ou também tenho que saber a fila.
Chega sim, há mais tempo do que imagina.
Para mim também, disse ele, desde março que aqui estou e obrigam-me sempre a falar do velho sapateiro.
Pensei que fosse o genro, disse eu.
Deus me livre. Estava aqui eu no primeiro dia, entrou-me um tipo com um olho esmurrado de verde e roxo, que até parecia um canário, e esvaziou-me a oficina mesmo à frente do nariz. Couro, martelos, formas, fivelas, pregos, levou tudo, até as folhas de lixa, a graxa e as escovas. Não faziam parte da oficina, contou-me ele. Como não, caramba, eu não trouxe nada da outra, deixei tudo ao meu sucessor em Josefstadt. Se eu quisesse, podia comprar-lhe as coisas, disse ele. Sabe, em casa estavam à minha espera, já nem dinheiro para o pão havia. Mas eu não sou otário, eu não vou comprar aquilo que me pertence.
O sapateiro tinha muita freguesia, disse eu, por isso também tinha dinheiro.
A filha estourou tudo na bebida, disse o rapaz, e encheu o genro de porrada, por isso é que vinha naquele estado. Quando ele estava a esvaziar a oficina, perguntei-lhe se também era sapateiro. Ele esticou em leque aqueles dedos lamentáveis muito branquinhos e disse: O quê, vês alguma parecença contigo. Então o que ia fazer com aquela tralha toda, perguntei eu. Tocar acordeão, disse ele. Ah pois, daí as nódoas às cores, disse eu. Não, disse ele, essas são um presente da minha mulher. Há sempre dois polícias sentados pelo bar e eu pensei se não devia chamá-los. Mas os daqui ainda não me conhecem muito bem e eu acabava por arranjar mais complicações. O acordeonista ainda ia afirmar que fui eu que lhe pus o olho à canário. Na verdade era o que devia ter feito, amarrotar-lhe também o outro olho, agora em azul, bem que o merecia.
Na rua das Amoreiras só há acácias. O homem dos copos mora no princípio da rua. No fim da rua jaz a Lilli. E agora também o sapateiro. O velho sapateiro era seco e pequeno, mas tinha mãos grandes e unhas recurvas, tingidas de castanho pelo couro, belas como dez pevides de abóbora esturradas. Quando eu ia à oficina, ele passava a mão pela cabeça como se lá houvesse cabelo. A careca transpirava ao som da música popular que tocava baixinho no gravador de cassetes e brilhava como as bolas de vidro nos canteiros em frente das casas. Parecia que se quebrava se ele fosse contra alguma coisa.
Bem, os sapatos dançaram até romper as solas, gracejou ele. Não sei se gracejava. Só sei que, pouco antes de vir à oficina e antes de encontrar o novo sapateiro, dançara pela primeira vez a sério ao som de uma canção em que a morte chega como a parte oferecida de uma vida já paga. Desde a noite de dança no restaurante com o meu primeiro marido, eu nunca mais tinha dançado, e com o Paul ainda nunca. Não devia ter ido ao sapateiro depois da dança com o Paul, devia ter esperado pelo menos um dia e o sapateiro ainda estaria vivo. A sua morte foi culpa minha.
Até a mulher ir parar ao manicómio, o sapateiro era músico, como o irmão, o cunhado e o genro, que ainda hoje tocam todas as noites no restaurante da avenida. Não músicos a sério, tinha-me ele dito, os músicos a sério tocam da pauta, os amadores tocam da alma.
Eu não gosto de dançar e nunca mais queria ter um marido que gostasse. Quando conheci o Paul, puxei logo a conversa para a dança. É assim tão importante, eu não gosto de dançar, as mulheres gostam mais. Eu só conheço homens que dançam obrigados, disse o Paul. É, ficam metade da noite a dançar com a mulher, para terem depois licença de foder com ela um quarto de hora.
Como assim, o meu primeiro marido gosta de dançar, disse eu, pela-se por uma dança. Se achas que é uma questão irrelevante, é porque nunca foste casado. Sempre que tocavam música, eu deixava de entender o meu marido. Com a sua febre de dançar e a minha aversão à dança, havia algo entre nós que se rasgava, mais do que só um pouco. Quando tocavam música, eram mundos que nos separavam. Eu recolhia-me dentro de mim, saía de cena, ficava insonsa, e ele soltava-se todo, ficava traquina como um macaco a que acabaram de dar corda. Quando brigávamos, melhor seria que nos tivéssemos calado, para não abrir mais o rasgão. Mas se nos calávamos, qualquer grosseria teria sido melhor, pois é mais fácil perdoar-nos a briga já descarregada do que as humilhações ruminadas em silêncio. Deve ter sido no princípio de setembro, tínhamos os dois tirado férias. Não havia dinheiro para viajarmos até ao Mar Negro ou aos Cárpatos. Quisemos então conceder-nos o prazer de uma noite e fomos no fim de semana ao restaurante. O meu marido queria ir ao Palace, na avenida, onde a orquestra da família do sapateiro toca a melhor música da cidade. Cá para mim, era caro de mais. Então restava o Central, onde por duzentos lei se pode comer e dançar. Como nós, parece que havia mais gente apertada de dinheiro: o restaurante estava cheio. A carne tinha um travo azedo, a salada de couve cheirava ao pó com que se extermina o escaravelho-da-terra. Como o vinho branco se pode batizar com água, porque é transparente e continua a sê-lo, só havia desse. As pessoas, na sua maioria, gostavam da comida, limpavam os pratos com o pão, para que nada voltasse para a cozinha. Mastigavam como coelhos para poderem ir dançar depressa. E eu enrolava a comida na boca a esticar o tempo. O meu marido comia mais rápido, mas em comparação com os outros bastante confortavelmente. Dava-me jeito a orquestra ser coxa, não me apetecia dançar. E isso não incomodou o meu marido, porque a ele qualquer música o arrebata. Olhei para a pista, os dançarinos sentiam o mesmo que ele. Como todos aqui estavam apertados de dinheiro e a noite tinha de compensar cada tostão, soltavam foguetes. Os homens grasnavam, as mulheres ora zumbiam um brrr, brrr em grave, ora um ihú, ihú em agudo. Quando terminava um medley musical, gargalhavam de olhos revirados para cima e cambaleavam como passarões em aterragem de emergência. O meu marido acabara de comer e limpar a boca com o guardanapo. O nariz gingava-lhe ondulado através do vidro do copo. Ele balouçava com as pernas, acima da mesa continuava hirto, debaixo da mesa tremia o chão. Eu disse:
Até parece que fomos mesmo de viagem, o chão treme como no vagão-restaurante. Para vocês até o ranger das portas e o chirriar dos grilos serviam para dançar. Não, não devia ter dito «vocês», incluindo-o também a ele, já que afinal havia um bom bocado que ali estava só a olhar e a sofrer. Empurrou o seu copo de vinho para o meio da mesa, deitou-me uns olhos alongados e rígidos, os cantos endureceram como buracos de fechadura. Afunilou os lábios, assobiou e começou a bater o ritmo na mesa com as mãos. Eu disse:
Agora está pior que no vagão-restaurante, serão sintomas de abstinência. Em breve precisou de mim para dançar. Em breve era agora. Desafunilou os lábios, sorriu por uns segundos, voltou logo a assobiar, naquela compulsão garbosamente cavalheiresca. Aquele autodomínio, e nada de brigas, para eu reagir em conformidade. O empregado levantou a mesa, só ficaram os dois copos. Estremecendo transparentes, como se não estivessem realmente sobre a mesa vazia, e nós sentados atrás deles, prontos a saltar, eu mordendo-me por uma briga, ele emboscado para a dança. Venceu ele, porque soube dominar-se e desperdiçou todos os momentos incendiários, e eu perdi a paciência para aquilo. Para que gastamos nós este dinheiro que nos vai fazer falta amanhã. Ao menos ele que compense a porcaria da comida com a dança. Puxei-o pela mão para dentro da pista. Abrimos caminho a dançar pelo meio dos pares até à frente da orquestra. Ele fez-me rodopiar, as teclas do acordeão esvaíram-se-me diante dos olhos como uma persiana.
Que pesada que tu te fazes, já tenho o braço dormente, disse ele.
Não me posso fazer mais leve do que sou.
A dançar até as mulheres mais gordas ficam leves, tu não danças, penduras-te.
Ele apontou para a mulher mais gorda no restaurante, uma matrona em que já tinha reparado enquanto comíamos. À mesa, do seu vestido branco com peças pretas de xadrez eu não tinha visto grande coisa, somente que ela tinha de empurrar o prato até ao meio da mesa para conseguir olhar para dentro dele por cima dos seios. Então a faca e o garfo, na extremidade dos seus braços curtos e gordos, mal chegavam à comida.
O vestido esvoaça nela porque tem pregas fundas e farfalhudas, não por ela ser leve. De vestidos eu entendo alguma coisa, disse eu.
Mas não de mulheres, disse ele.
As figuras de xadrez evadiam-se das pregas brancas a esvoaçar. Neve e cabelo de cardo, o cavalo branco do meu sogro, o bolo de noiva, cuja cobertura nevada me arranhava o nariz ao comer. Sentia a cabeça pesada. Mesmo obrigada a dançar, eu não tinha o direito de criticar o meu marido só porque o comunista perfumado era pai dele. Contive-me, mas já estava a fazer aquilo que queria evitar. É fácil proibir coisas aos outros, principalmente aos que nos são próximos, mas não a nós próprios. Enquanto o meu cérebro, dançando diante das teclas ondeantes do acordeão, me atormentava com o passado, o meu marido saboreava a proximidade da matrona. Tocou com o dedo no homem que conduzia as figuras de xadrez e que nesse momento cacarejava: A sua parceira dança muito bem, disse o meu marido.
Claro, e eu conduzo muito bem, disse ele.
Depois o dançarino da matrona cacarejou de novo, a matrona ronronou e o meu marido cacarejou no coro.
Cacarejas outra vez, disse eu, meto-me nas minhas tamancas e ponho-me a léguas daqui.
E ele cacarejou outra vez e eu deixei as minhas tamancas onde estavam e a matrona ronronou brrr e eu não saí do sítio.
A troca de pares era cada vez mais intensa. Acontecia sem uma palavra. Ou obedecia a leis de natureza íntima entre homem e mulher, ou ao súbito acaso. Combinação prévia não se via nenhuma. Perdi o compasso.
Tu que és uma meia-leca, ficas com os ossos pesados quando danças, disse o meu marido.
Então atraca-te a essa cisterna, disse eu, tens muito a que te agarrar.
*
A velhota com tremeliques na cabeça chuça-me com o dedo: Ouve, não tens uma aspirina. Não. Mas o guarda-freio tem água, não tem, ou fui eu que vi mal, ele tem uma garrafa, não tem. Sim, tem uma garrafa, digo eu. Os olhos dela já um dia foram maiores. Como acontece muitas vezes nas pessoas idosas, vão diminuindo com uma pele muito fina, como clara de ovo cru, que avança a partir das fontes. Os pendentes dos brincos, duas pedras verdes ovais, abanam com a cabeça. De tanto sacudir, os furos das orelhas abriram para baixo, até quase rasgar. Pasta e escova de dentes, isso eu podia dar-lhe. Talvez o guarda-freio tenha aspirina, digo eu. O senhor da pasta mete a mão ao bolso: Acho que ainda tenho uma. Crepita uma tira de celofane engelhado, que ele alisa: Está vazia, agora me lembro, tomei a última hoje de manhã. No mercado há uma farmácia, diz o rapaz novo junto à porta. A velhota vira a cabeça, eu precisava da pastilha para agora, quando é que chegamos ao mercado. Vai andando de banco em banco, segurando-se com as duas mãos aos encostos até chegar ao meio do elétrico. O guarda-freio vê-a pelo espelho retrovisor, senta-te avozinha, que ainda acontece um azar. Devias ter tomado o elétrico na direção contrária, que era mais perto. A velhota cambaleia até junto dele. Homem, mas eu perguntei-te, disseste que estava no elétrico certo. Tens ao menos aspirina.
Quando a gente não se ama, dançar é ainda mais detestável do que o aperto no carro elétrico, dissera eu ao meu sogro. E quando a gente se ama, tem coisa melhor para fazer, há outra maneira de se esticarem as pernas para conseguir a vertigem na cabeça.
O que é que significa coisa melhor para fazer, disse ele, dançar não é trabalho, é divertimento, senão mesmo um talento nato, uma predisposição. E uma marca de cultura. Nos Cárpatos há danças diferentes das da região do Hügelland, e na costa marítima diferentes das do Danúbio, e nas cidades diferentes das da aldeia. Aprende-se a dançar com os pais e os parentes quando se é criancinha. Nisso a tua família foi irresponsável. Se não aprendeste, foi uma coisa que perdeste.
Não, a minha família era mais taciturna do que irresponsável. Depois do campo de detenção, nenhum de nós voltou a ser tão reinadio.
Isso já lá vai, levado na enxurrada de mil águas, isso foi antes de a tua vida começar, disse ele. Muitas pessoas não conseguem vencer na vida e inventam desculpas. Tiveram azar uma vez e atribuem-lhe a razão de tudo o que acontece. Desculpa lá, tu ainda és muito nova, mas eu já cá ando há muitos anos. Acredita em mim, mesmo sem o campo, a vida deles também não teria tido sucesso.
Era noite de Ano Novo e a pandilha, era assim que o meu sogro chamava à família alargada, festejava na sala de estar dos sogros. Nunca hei de saber ao certo o que significa pandilha. A mim soava-me a bando, porque a família era tão grande e cada um, a seu jeito, pouco digno de confiança. E embora não se suportassem uns aos outros, estavam sempre a reunir-se. Já só o meu sogro contava pelo menos como duas pessoas dentro da pandilha. Primeiro fazia o ninho no peito de um desgraçado e depois quebrava-lhe por dentro as costelas a pontapé.
Estavam presentes o David, o Valentin, a Maria, o George e mais alguns outros. Sei lá que nome pertencia a quem. Todos tinham tirado os sapatos, contei dez pares junto à porta. Tinham vindo o irmão mais novo e o mais velho do meu sogro, com uma esposa gorda e outra ressequida. O irmão do meio ficara em casa doente, mas a mulher estava lá com o irmão dela e a filha mais velha, não sei se dele se dela, e um genro. O genro estava bêbedo como um cacho. O meu sogro mal acabara de lhe pegar no sobretudo e já ele vomitava no quarto de banho, de chapéu e cachecol. Nessa noite fixei dois nomes: Anastasija e Martin. Anastasija, o nome da minha avozinha morta, era como se chamava a prima do meu sogro. Andava pelos cinquenta, ao que diziam ainda virgem e há trinta anos guarda-livros na fábrica de bolachas. O Martin era o jardineiro viúvo e colega do meu sogro. A missão do Martin era seduzir a Anastsija nessa noite de Ano Novo.
Ela é feita de carne fria, comentava o meu sogro, mas há sempre um dia em que os botões não se conseguem manter apertados.
Sete ou oito vezes por ano, quando vinha a parentela, o meu sogro virava com a parte de trás para a frente o retrato que estava na sala de estar. Podia-se então ver toda a pandilha: os seus pais com os seis filhos. Mãe e pai sentados na boleia do cocheiro, cada um com uma menina ao colo. Os rapazes estavam aos pares em cima dos dois cavalos castanhos. No resto do ano, era um cavalo branco que se via pendurado na sala, sobre o qual se sentava um rapaz novo com chicote curto e botas luzidias de montar. Era o meu sogro e não era, pois nessa altura tinha outro nome.
Dancei com o meu marido, pedi-lhe que não me fizesse rodar e ficámo-nos só a balançar para um lado e para o outro. Quando o pai estava presente, ele mantinha-se calmo. Dancei com o genro, que depois de vomitar já não estava tão bêbedo como quando chegou. Os pés tropeçavam-lhe, no foxtrot perdeu uma meia. O Martin apanhou-a do chão e pendurou-a num braço do lustre. Depois foi a dança com o sogro dele, ou tio, depois com os irmãos do meu sogro, depois com o Martin. Os homens velhos agarravam com força, dançarinos sem palavras, e eu tinha de me deixar rodopiar calada. Quando o meu sogro se pôs diante de mim, de braços abertos e gravata desapertada, eu disse:
Senta-te à mesa comigo, também é bom conversar.
Qual carapuça, disse ele, dançar é remoçar.
Tinha estado há pouco no quarto de banho, o perfume dele deixava rasto. Da tacinha que estava no canto da mesa tirou uma das cerejas de licor que sabem a compota e põem a gente bêbeda. Eu já tinha umas a mais no estômago e os respetivos vapores na cabeça. O meu sogro enfiou a cereja na boca e chupou o suco vermelho do indicador. A outra mão fez sinais até eu me levantar. Ficou a chuchar no caroço da cereja e apertou-me a mão contra os rins até eu sentir o que ele tinha dentro das calças. Não tive curiosidade nenhuma de saber, nem um ano depois, quando o filho foi fazer o serviço militar. Eu estava a arrumar toalhas no armário e ele ajoelhou-se atrás de mim e beijou-me a barriga das pernas.
Anda lá, vais ver que ajuda a suportar a ausência dele.
Apertei as pernas uma contra a outra, fechei o armário e disse:
Não posso nem ver-te.
Ele bem podia ter perguntado porquê e eu tinha-lhe contado umas coisas. Mas ele disse:
Ora faz favor, a gente aqui a matar a cabeça, a querer ajudar os filhos, e esta é a paga.
Ele queria revezar o filho na cama. Outrora, quando me ofereci ao meu papá, para revezar a da trança comprida, foi por urgente necessidade, e até teria sido possível. Não desta vez. O meu marido e a minha sogra nunca chegaram a ter conhecimento de nada, nem do que eu sabia sobre o cavalo branco, o comunista perfumado e a sua mudança de nome. Ele já um dia se revezara a si próprio, nisso ele tinha muita experiência. O armário ter-me-ia matado se eu tivesse esquecido. Não levantei ondas, também então calei o bico, para poupar toda a pandilha a uma grande infelicidade.
Pelas três da madrugada já a noite de reveillon nos tinha encarquilhado os rostos como se tivéssemos estado aqui trancados um ano inteiro. A luxúria de atentar contra a carne da parentela por afinidade desandou em bocejo. Os casais, que na virada da noite, em espírito de mútua confiança, se tinham perdido de vista, voltaram a juntar-se. A minha sogra brigou com o marido porque a garrafa de cristal estava quebrada. A filha mais velha com o seu bêbedo porque tinha feito dois buracos nas calças com o cigarro. O meu marido acusou-me de ter brindado ao Ano Novo primeiro com o Martin e só depois com ele e que eu nem sequer dera por isso. A esposa ressequida lamuriou-se porque o marido perdera um botão de punho de ouro. Mostrou-nos a todos o botão ainda restante na manga direita, nós procurámos no quarto de banho, na sala, no corredor, encontrámos botões velhos de calças, moedas, travessões de cabelo, tampas de perfumes e pusemo-los uns ao lado dos outros em cima da toalha da mesa. O irmão mais novo brigou com a sua mulher gorda por ela não saber da chave do carro. Ela despejou a carteira em cima da mesa. Caíram de lá um lenço, duas aspirinas e um minúsculo Santo António de ferro enferrujado. Ele vai ajudar-nos, disse ela e beijou-o.
Olha, come-o, disse o marido, pode ser que faças um milagre e abras a porta do carro com o dedo.
O Martin pousou o queixo na mesa e pôs-se mais uma vez a admirar o friso de pernas das mulheres. Ninguém reparava nele, àquela hora deixara de pertencer à família. A luz encandeava, no seu couro cabeludo reluzia prateado meio centímetro de raízes a crescer, fio a fio. O cabelo dele estava pintado de castanho.
Ninguém encontrara o botão de punho, todos pararam de procurar e no corredor vestiram casacos, sobretudos e calçaram os sapatos. A Anastasija apareceu vinda do quarto de banho com uma pinça enferrujada. As mãos pingavam, o cabelo à volta da testa estava molhado e do queixo pendia uma gota de água.
Porque é que tu bebes da mão, perguntou a minha sogra, não faltam aí copos.
A Anastasija começou a chorar:
Eu tenho de vos contar agora, o viúvo veio esta noite atormentar-me no quarto de banho, é o cúmulo, não se admite.
A pinça ficou em cima da mesa junto dos outros objetos achados, até se confundia com o minúsculo Santo António de tão parecida, mas ninguém a beijou. A Anastasija enfiou o casaco e abriu a porta de rompante.
Espera um pouco, disse o meu sogro, os outros também já estão quase a sair.
Não preciso de companhia, disse ela.
O irmão do botão de punho extraviado apontou-lhe para os pés: Não vais sair de meias, pois não.
A Anastasija encontrou as chaves do carro dentro do sapato dela.
Afinal o Santo António deu sorte, disse o meu sogro à cunhada ressequida.
Mesmo assim ninguém acredita, disse ela.
E depois abraçou a Anastasija:
O Martin tentou a sua sorte, não leves tudo tão a peito. Até podia ter dado certo.
E já o Martin tinha saído, ninguém sabia como nem quando. Esquecera o cachecol pendurado no corredor.
Depois de todos terem partido, o meu sogro virou o retrato do lado correto. A minha sogra puxou a meia do lustre, abriu portas e janelas entre a rua e o pátio. Soprou pela casa dentro uma noite fria e nevada. No meio da corrente de ar, balançou o lustre, esvoaçou a gravata do meu sogro e o cabelo do filho. Então o cavalo branco da parede deu um passo na minha direção. Vinha para levar no primeiro dia de janeiro aquela gente gasta de tanta celebração. Recuei para o corredor. O meu sogro bocejou e tirou a gravata pela cabeça. A mulher apanhou do tapete migalhas de pão e de bolo e caroços de cereja, que juntou na mão.
Antes de irmos dormir, a louça tem de ficar toda na cozinha, disse ela.
Nem me passou pela ideia ajudar. O marido pousou a gravata na mesa e remexeu o nó até a deixar num primoroso círculo como na montra da loja.
Eu disse um rápido boa-noite.
Aquilo que se sonhar hoje realiza-se, disse ele.
No novo ano, todas as conversas da pandilha começaram com o botão de punho extraviado. Aqui em casa não está, quando muito caiu à retrete, às vezes acontece. Eu tinha outro conhecimento da verdade e disse ao meu marido que o botão de punho de ouro estava na mesinha de cabeceira dentro do guarda-joias dos pais.
Porque é que andaste a cheiricar, perguntou ele.
Porque um botão de punho não tem pernas, disse eu. Quando voltei a ver no guarda-joias, tinha desaparecido. Na Páscoa, o meu sogro exibia-se com um alfinete de ouro na gravata:
Foi a minha querida esposa.
Ela não era assim tão querida e sabia disso. Ele mantinha no estabelecimento de horticultura uma amante da minha idade, que se ocupava da luta contra os ácaros e os pulgões. Como ninguém conseguia pronunciar sem rir o seu título completo Camarada-Engenheira para a Luta Antiparasitária das Plantas de Cultura, chamavam-lhe camarada-inspetora das pulgas. Todos os domingos, a minha sogra ficava feliz por o marido não poder ir ao horto. Mas na Páscoa o seu rosto estava molenguinho como massa de folhados e ela não se cansava de olhar para ele, tão ocupado com o seu alfinete de gravata que nesse domingo nem levou o telefone para o quarto de banho às escondidas, para telefonar à amante. A minha sogra respirou fundo e disse:
Levei o meu anel velho ao ourives, já me estava muito apertado.
A garganta aperreou-se-me. O meu marido deitou-me uns olhos alongados e rígidos como sempre que me obrigava a calar. Então eu disse-lhe ao ouvido:
A tua mãe fala verdade a mentir, o botão de punho não chegou mesmo para o alfinete de gravata, o anel dela também já não está na caixa.
Uma mosca gorda zumbe em círculos escarpados à volta da cabeça do guarda-freio. Pousa-lhe em cima do braço, ele dá-lhe um safanão. Pousa-lhe no pescoço, ele dá-lhe um safanão. Depois dá um safanão no próprio cachaço, que até se ouve o estalo. A mosca escapa e pousa no caixilho da janela. Ele quer enxotá-la para a rua pelo vidro aberto. Ela escapa-se a sibilar. Não se ouve o zumbido, os carris fazem mais barulho. O que foi, pergunta a velhota, estás mesmo desesperado. É uma mosca, diz o guarda-freio. Ah, sem óculos não consigo ver coisas tão pequenas. Ela já vai ter contigo, diz ele. Porque é que não a mataste, pergunta ela. Não a consegue apanhar, diz o homem da pasta, o trabalho dele é conduzir, não é matar moscas. Era o cúmulo, descarrilar por causa de uma mosca. Para o pé de mim ela não vem, ri a velhota, da maneira como eu tremo. Olha que sorte, diz o guarda-freio, assim as moscas não te chegam. Não, diz ela, não é sorte nenhuma, vais saber quando chegares a velho. Mesmo assim, não me livro das melgas, claro, e das pulgas. O meu tipo de sangue é o A, o melhor para as pulgas, disse o médico. O meu é AB, diz o da pasta. E o da menina, pergunta a velhota, que fecha a boca com o queixo torto e fica à espera. O, digo eu. Isso é sangue de cigano, diz a velhota. O grupo O pode dar sangue a toda agente, mas só pode receber do seu grupo. O guarda-freio dá um sopapo na própria cabeça. Grande puta necrófaga, grita ele, vai mas é chatear outro, que eu ainda não estiquei o pernil, nem sou um monte de merda. E enxota a mosca para nós. Nós também ainda não esticámos o pernil. Eu sou a mais nova daqui, sou a última da fila quanto a esticar o pernil. Eu também sou O, diz o guarda-freio. A mosca zumbe no vidro como o tremeluzir dos olhos. A barriga brilha verde e grande como as pedras tremelicantes dos brincos da velhota.
Eu gostava de ir à oficina do velho sapateiro, porque ele era conversador.
A música é a minha vida, dizia ele, mas aqui também me faz falta, para não se ouvirem as ratazanas. Em casa também ouço música até adormecer. Dantes, a minha Vera acompanhava-me o dia inteiro a cantar. À noite, muitas vezes estava tão rouca que tinha de beber um chá quente com mel.
Todos os verões, a mulher plantava dálias ao longo da cerca de arame, onde de manhã dava o sol.
A minha Vera tinha uma mão abençoada, dizia ele, tudo o que punha na terra florescia. Contudo, no seu último verão em casa, as dálias dela, a meio do crescimento, germinaram folhas estranhas de aurora-laranja, zínia, esporeira e flox. O mesmo aconteceu depois com as flores, em cada caule reinava a confusão. As dálias eram um milagre, mas tresloucado. Na rua, as pessoas paravam junto à cerca. Antes de murcharem, a minha filha cortou todas as dálias, para o vento não espalhar as sementes do desvario. A Vera sempre fora uma pessoa calada, mas desde que as dálias floresceram, mal dizia uma palavra. Como estava fisicamente saudável e dentro de casa não tinha serventia, a minha filha mandava-a às compras todos os dias. Quando a Vera saía da loja, trazia feijões em vez de batatas, vinagre em vez de água mineral, fósforos em vez de papel higiénico. Como a situação não tinha melhoras, a minha filha dava-lhe uma lista de compras. A minha Vera mostrava a lista na loja, distraída, mas regressava outra vez a casa com atacadores de sapatos em vez de pasta de dentes e pioneses em vez de cigarros. A minha filha ia logo a correr à loja. O empregado e a menina da caixa lembravam-se da senhora da lista. Não, diziam eles, ela não comprou atacadores de sapatos nem pioneses, mas pasta de dentes e cigarros, como estava na lista. Nós nem temos atacadores de sapatos, estão encomendados há semanas, mas ainda não chegaram. E pioneses é coisa que não vendemos. Então a gente só mandava a Vera à rua para um passeio de uma hora todas as manhãs. Muitas vezes regressava com uma carteira diferente. Na sua maioria tinham a identificação dentro. Com base na morada, a minha filha conseguia devolver a carteira alheia e recuperar a da mãe. Quando já não se conseguiu reencontrar a carteira da Vera e continuaram a chegar a casa cada vez mais carteiras alheias, só deixámos sair a Vera de mãos vazias. Quando regressou, trazia um chapéu em vez do lenço da cabeça. Nesse inverno não a deixámos sair por causa do frio. Na primavera seguinte ainda saiu à rua três vezes de vestido e voltou de saia e blusa, já sem fôlego. Depois disso, consenti em internar a Vera num manicómio. Não havia lojas de roupa léguas em redor, disse o velho sapateiro, mas nada daquilo tinha a ver com roubo, e uma coisa é certa, a Vera seria incapaz de roubar. A gente da vizinhança também dizia que a Vera na rua sempre parecera uma pessoa normal, quase discreta de mais. Mas quando a cumprimentavam, não correspondia ao cumprimento. Dizia, sem sequer parar:
Estou com pressa, tenho o arroz ao lume.
O velho sapateiro colocou o polegar e o indicador nos cantos da boca. Hoje isso já não tem importância, é coisa de somenos, como tantas na vida.
Também eu contei ao velho sapateiro da minha falecida vovó e que, depois da morte do papá, o vovô dissera que a vida é um peido na lanterna, que nem vale a pena calçar os sapatos.
Nisso ele tem razão, comentou o sapateiro, tem raça de filósofo, um pateta não diz coisas dessas.
Depois apontou para a parede de madeira, onde em cada prego havia sapatos pendurados:
Olhe para aí, já quanto aos sapatos, eu vejo a coisa de forma diferente, ou não teria pão para a boca.
Esticada debaixo dos lábios, a pele do sapateiro entre o polegar e o indicador, amarelada por causa da cera do couro, transformou-se numa membrana de pato.
Pelo menos a minha Vera chegou só por si àquele estado. Mas no manicómio, com ela, estão duas mulheres novas que enlouqueceram na polícia e não tinham feito nada. Uma roubou cera de vela na fábrica, a outra, um saco de espigas de milho no campo. Agora diga, qual é a importância disto.
Eu não tenho nem borracha nem couro para meias-solas, disse o sapateiro novo. Enfiou as mãos por dentro das sandálias do Paul, como em luvas de boxe, virou-as com a sola para cima e olhou para a amora esmagada. Os dentes sobressaídos abriram-se e fecharam-se, o meu pensamento estava longe. O rapaz das serpentes de poeira estava morto porque eu não tive paciência para brincar. O meu papá, porque já não queria esconder-se de mim. O meu vovô, porque eu menti sobre a sua morte. A Lilli, porque eu disse sol redondo como uma bola. O velho sapateiro, porque dancei ao som da canção em que a gente se farta do mundo. O boca-torta voltou a embrulhar as sandálias no jornal.
Apareça cá daqui a dez dias e então veremos. Eu já tinha visto que chegasse, disse que sim com a cabeça e fui-me embora.
O vento soprava pela rua das lojas, as tílias soltavam molhinhos verdes de ervilhas. Em cada molhinho, duas folhinhas de couro. Não tinham nada a ver com as folhas da ramagem, serrilhadas em forma de coração. Lá em cima no céu, naquele entardecer de estio, havia um canapé de nuvens brancas. Uma mulher esgueirou-se pela porta da farmácia com um frasquinho na mão. O líquido, a rolha de gaze e o polegar da mulher tinham a cor azul-anil. Perguntei as horas. A mulher disse:
Quase oito e meia.
Não era dali a dez dias, como sugeria o sapateiro novo, mas nesse mesmo dia, entre as sete e as oito e meia, que eu queria fazer alguma coisa pelo Paul. Não consegui. A farmacêutica estava sentada descalça dentro da montra, de costas para a rua, ao lado de um monte de caixinhas etiquetadas em chinês, em que nem um botão de sobretudo cabia. Pareciam caixinhas de preservativos, que além do chinês ainda tinham escrito Butterfly. A Lilli tinha dito uma vez:
Os chineses são espertos, as borrachinhas sem defeito exportam-nas para a América, para os chineses de Chinatown, um bairro de Nova Iorque. As furadas, eles mandam-nas para os búlgaros e para nós.
As caixinhas da farmacêutica tinham em cada uma delas um tufo de algodão e em cada tufo um olho de vidro. Em fila sobre a madeira nua, ela colocava agora olhos de vidro castanho-claros e escuros, mosqueados de verde, azul-claros e escuros. Os olhos castanho-claros ficavam bem na cara do Paul, eu contei quantos havia. Depois contei os castanho-escuros para mim. Para o Paul havia ainda mais olhos na farmácia. Por trás do vidro, ao sol vermelho intenso, a farmacêutica começou a expor a segunda fila. Estava sentada num aquário. Eu bati no vidro, ela virou a cabeça, afastou o cabelo da testa e continuou o que estava a fazer. Os olhos verde-cinza mosqueados eram perfeitos para ela.
O canapé branco no céu, a farmacêutica no aquário, as ervilhas nas tílias, as sandálias do Paul a fazer de luvas do sapateiro novo, a rua das Amoreiras com acácias: depois da morte do sapateiro velho anda tudo por aí à rédea solta. O vento não espalhou pela cidade a semente do desvario que se acoitava nas dálias de Vera, mas semeou o delírio entre atacadores de sapatos e pasta de dentes, cigarros e pioneses, lenço da cabeça e chapéu. Neste entardecer vermelho da cidade, o que agora se recomenda é a cegueira, há olhos de vidro para todos. Mas os pregos do caixão troam especialmente por aqueles que querem construir a sua felicidade dançando ao som de uma canção em que a gente se farta do mundo. Sim, era como gostaríamos que fosse, que usássemos uma coroa na cabeça e nos fartássemos do mundo. Mas não será ao contrário, que o mundo se farta de nós e não nós dele, pergunto eu.
Nós não significa, nem de longe, todos. Nem todos enlouquecem, assim como nem todos são intimados. A Lilli não foi intimada, embora eu, depois dos meus primeiros bilhetes, esperasse durante semanas que pudesse acontecer. Quis prepará-la para o primeiro interrogatório, em que o céu da boca sobe e se mete pelo cérebro dentro com um sabor adocicado. Acontece o mesmo no segundo, e em todos, mas a gente já não se assusta. A Lilli não tinha medo.
Mas eu nem sequer vi os teus bilhetes.
Como se isso fosse razão para não ser intimada. Como se não fosse aquele que nada sabe, a não ser como o coração dispara de medo, a presa mais fácil. Com o céu da boca metido pelo cérebro, a gente assina depressa. O Nelu e as raparigas do pavilhão de embalagem foram provavelmente interrogados por minha causa. O Nelu odiava-me e as raparigas mal me conheciam, estavam-se nas tintas para mim. Eu também para elas, mas se a fala se lhes estacava na garganta, mal uma porta se mexia lá fora no corredor, isso não era bom sinal.
A Lilli tinha razão, nunca foi intimada. Uma sorte, mesmo sabendo que teria tomado a minha defesa. A si própria, ela teria sido incapaz de se defender. A única coisa que a Lilli me perguntou sobre os interrogatórios foi:
Então que idade tem o teu major.
Essa é boa, meu como, disse eu.
E tirei-lhe uns dez anos à idade:
Anda pelos quarenta.
Credo, disse a Lilli, agora que para ela o major estava fora de questão. Aí eu soube que, logo da primeira vez, os dedos do Albu teriam chegado à carne da Lilli. Ela teria permitido, ou posto travão, das duas ele se teria vingado impiedosamente. Uns dias depois desta conversa, a Lilli contou que os pais tinham tido uma briga. A mãe não queria deixar o padrasto sair de casa. O motivo era um rendez-vous, mas não com uma mulher. Falaram de um quiosque de jornais no parque, onde o padrasto devia aparecer às cinco da tarde. Dizia a mãe da Lilli:
Hoje não sais daqui, eu telefono para a firma e digo que estás doente. Para que serve tanta criança a crescer aí por todo o lado, tu tens de te impor, eles que procurem gente mais nova.
E barrou-lhe o caminho. O padrasto enfiou a carteira ao bolso e empurrou-a da frente:
Impor-me, e com que força, diz lá, fazes alguma ideia. Em casa não te falta bazófia, gritou ele, mas no mercado enfias-me logo a melancia na mão, para ficares com a pata direita livre e o camelo do tenente ta poder beijar. E ainda por cima, sendo tu a mulher, dizes: A honra é toda minha. Aqui dentro de casa és muito valente, mas quando um deles te aparece pela proa, nem consegues engolir a saliva, do medo que tens. Vai mas é tomar as gotas para o coração.
A caminho de casa, vinda do sapateiro, deu-me curiosidade de saber como funciona a vida e pus-me a rever todas as possibilidades de a gente se fartar neste mundo. A primeira e a melhor: Nunca ser intimada e nunca enlouquecer, como a maioria. Nunca ser intimada, mas enlouquecer, como a mulher do sapateiro e a Sr.ª Micu de lá de baixo junto à entrada, é a segunda. A terceira: Ser intimada e enlouquecer, como as duas mulheres que eles levaram à loucura no manicómio. Ser intimada e nunca enlouquecer, como o Paul e eu, é a quarta. Não é especialmente boa, mas, no nosso caso, é a melhor. Em cima do passeio havia uma ameixa esmagada cheia de vespas, recém-nascidas e velhas, a comer e a fartar-se nela. Uma família inteira que cabe em cima de uma ameixa, qual será a sensação. A face do sol foi atraída para fora da cidade em direção aos campos. À primeira vista, estava maquilhada de cores berrantes para a noite, à segunda, atingida a tiro: vermelha como um canteiro repleto de papoilas, dissera o oficial da Lilli. Sim, essa é a quinta possibilidade: Ser muito jovem, linda até não poder mais, não estar louca, mas morta. Para estar morta não é preciso chamar-se Lilli.
Voltei a levar para casa as sandálias esburacadas. O carro vermelho já não estava em cima do passeio, no asfalto vazio não deixara nem sinal, as piriscas de nada sabiam. Os gatos remexiam-se barulhentos dentro dos latões do lixo em busca de comida, antes que a noite abolisse todas as coutadas e outros chegassem, forasteiros, de luz verde nos olhos, e se servissem, até a lamúria da fome e os uivos da cópula se tornarem uma e a mesma coisa. Comparada com aquele entardecer de verão, a minha cara estava ligeiramente fria. Do bloco residencial ao lado ouviu-se um tilintar de louça, alguém deixara cair alguma coisa. As pessoas jantavam àquela hora. Na meia-lua foi-se desenhando o rosto de uma cabra e outro de um cão. Era preciso que ela decidisse qual o rosto mais adequado àquela noite, o tempo escasseava. Do primeiro andar pingavam floreiras. Um cata-vento girava ronronando no meio das petúnias, que tinham água de sobra para crescer quando a lua se decidir por um dos rostos. Eu tinha feito muitas coisas naquele dia, apesar de todos os reveses, e tinha encontrado para nós a melhor possibilidade:
Nós os dois não vamos ficar loucos.
A minha felicidade retorcida latejava-me descarada nas fontes, afinal eu não era a mais pateta de todas. Àquela hora as lojas já estavam fechadas e as janelas da nossa cozinha com luz. O Paul vai estar à espera com dois pares de sapatos novos e a pergunta de quais deve calçar primeiro e quais deverá deixar no armário das ferramentas. Digo-lhe que calce os mais bonitos. Talvez os seus mais bonitos sejam para mim os mais feios, como na fotografia da Lilli. Tenho só uma fotografia dela, confesso que fico a contemplá-la muitas vezes. Quando falo da sua beleza, de que ninguém duvida, o Paul franze a testa.
O que é que ela tinha de tão bonito. Eu gosto mais de ti, e não minto. O mais bonito que ela tinha era tu gostares muito dela.
Nem me apetece mais ter cara, quando ouço estas coisas, e já muitas vezes me senti obrigada a dizer:
Paul, tens bom coração, mas muito mau gosto.
Mas naquela noite, enquanto o Paul provasse os sapatos, queria contar-lhe sobre os olhos de vidro na montra e da possibilidade de não enlouquecermos e principalmente do facto de eu não ser a mais pateta de todas.
Junto ao bloco de habitação estava uma mota com o espelho e o farol quebrados, o assento rasgado, o guiador e os pedais retorcidos. A Java vermelha do Paul. Correu-me um arrepio pelo couro cabeludo. Enquanto esperava pelo elevador, tive a impressão de não estar dentro da minha pele, mas distribuída pelas caixas do correio na parede. Mas as caixas do correio continuaram lá penduradas quando o elevador subiu e quem nele entrou fui eu, a mais pateta de todas.
Quando regressa da loja, o Paul tem atrás de si um camião cinzento que não larga o espelho retrovisor o tempo todo. O Paul quer deixá-lo passar e mete-se pela berma. Há pouco trânsito. Guia muito devagar, o camião chega-se rente a ele, tão rente no meio do tráfego circular, como se quisesse passar por baixo da Java. Então a mota voa pelo ar, o Paul voa sem mota e cai como o ramo morto de uma árvore. Quando se atreve a abrir os olhos, vê erva e ouve vozes. À sua volta estão sapatos, calças, saias, e muito em cima dele, rostos. Então o Paul pergunta:
Onde está a mota. Está na borda do passeio.
Onde está o camião. Ninguém o viu.
Onde estão os meus sapatos.
Nos teus pés, diz um velho de calça curta.
Os do saco no guiador, onde estão.
Com mil diabos, diz o velho, só por milagre ainda tens dentes na boca, precisas agora de sapatos. Olha que tens um anjo da guarda, isso não te chega.
O meu anjo da guarda vai no camião cinzento, diz o Paul, para onde é que ele foi.
Qual camião, vê é se deixas de andar por aí a acelerar.
As pernas dentro da calça curta parecem de mármore, todas raiadas de veias, sem um único pelo. Quando a gente em redor vê que o Paul ainda tem os dentes todos e até o juízo no lugar, vai outra vez à sua vida. O velho ajuda-o a pôr-se de pé, depois a levantar a mota. Depois dá-lhe o seu lenço:
Limpa pelo menos o sangue do queixo.
O senhor viu o camião cinzento, pergunta Paul.
Vi muitos.
Viu o número da matrícula.
O destino não tem número.
Mas o camião.
Fiquemos antes pelo destino, senão o teu anjo da guarda ofende-se, diz o velho.
Entretanto o Paul vai limpando o sangue do queixo com o lenço acabado de passar a ferro.
No quarto às escuras, o Paul estava agora deitado em cima da cama e perguntava-me, depois de me ter contado o acidente:
A gente devolve um lenço sujo ou fica com ele.
Eu encolhi um ombro. Quanto mais o Paul contava do velho, menos parecia ele lá ter estado por acaso. Depois da manobra de diversão sobre o comportamento correto com um lenço, seguiu-se uma outra.
Irrita-me mais terem-me voltado a roubar dois pares de sapatos do que o acidente em si.
Olhei pela janela, a rua muito lá em baixo, silenciosa, vazia, e a lua, essa decidiu-se hoje pelo rosto de cabra. Se não cometeu erro nenhum, ele será o adequado para esta noite. Meio para fora da janela, eu disse:
Quando fui intimada pela última vez, o Albu deitou um sorrisinho irónico durante o beija-mão: Tu e o teu marido costumam viajar muito até ao rio, não é, olha que os acidentes também acontecem.
O rosto de cabra mantinha-se e o céu continuava a correr. Quando já não estava a olhar para fora, o quarto estremeceu. Talvez as pessoas saibam mesmo do que falam, quando me perguntam se não tenho medo que o bloco entre em derrocada.
O Paul tinha acendido a luz.
E como é que só agora me dizes isso.
Que explicação dar a uns olhos que flamejam.
Porque não acreditei. O Albu inventou um acidente, para variar. Os olhos inflamados, as gengivas mirradas, as mãos geladas já não estavam a fazer efeito, foi nisso que acreditei.
Lá fora noite negra e dentro claridade, de tanto falar no escuro nem sequer tínhamos tocado nas feridas do Paul, na testa, no queixo, nas articulações das mãos, nos joelhos, nos cotovelos. O sangue tinha secado, encardido na sujidade. Trouxe algodão e álcool do quarto de banho. Quis abraçar o Paul, mas não me atrevi, os ferimentos ter-nos-iam incomodado por fora e nada nos teriam dado por dentro. Ele meteu os dedos pelo cabelo e retorceu o rosto, como se até isso já doesse.
Deixa que eu faço, disse ele.
Foi limpando as feridas com toques rápidos e firmes, nos joelhos, nos cotovelos e nos nós dos dedos. Quando ardia e lhe vinham as lágrimas, pouco antes de já não conseguir ver nada, enxugava os olhos com o interior do braço. A testa e o queixo ele deixou que fosse eu a limpar, porque não se queria ver ao espelho. Os meus toques eram diferentes, eu hesitava, ele ria-se mortificado, até que fui obrigada a dizer-lhe:
Estás a fazer de herói para quem. Quando dói a gente grita.
E ele gritou, mas não foi Ai, foi:
Olha para a minha cara e vê bem o que andaste a esconder de mim.
Agarrou-me pelo pescoço e apertou com a força de uma tenaz. E eu fiz o que ele ordenou, atirei-me a ele com os olhos. A ferida que eu tratara no queixo brilhava descarnada, senti-a nos meus olhos como um pedaço de melancia cuspida. Mas depois vi a mala do meu primeiro marido em cima da ponte. Agora eu deveria ter dito, tinha de ter dito, tinha de poder ter dito:
Nunca mais ninguém me há de agarrar assim no ódio do amor, percebeste, nunca mais na vida. Em vez disso, arranquei-lhe a mão do meu pescoço. O que começa com este gesto, termina de cabeça para baixo contra a balaustrada. Oxalá eu não tenha de repetir o passado. Oxalá eu não tenha de sentir um dia tanto desprezo por mim diante do Paul, como o que o meu primeiro marido sentiu por si diante de mim.
A partir de amanhã andamos de autocarro e carro elétrico, disse o Paul, esses malabaristas vão ter a vida um pouco mais dificultada.
Foi à cozinha às apalpadelas. A porta do frigorífico abriu-se, fechou-se, ouviu-se gorgolejar, era o Paul a beber da garrafa, desejo que não seja aguardente, mas água de certeza não é. Tilintou um copo na prateleira, pousou na mesa. Ouvi-o encher-se, não era grande. Ele sorvia e eu esperava. Não voltou a pousar o copo e não arrastou nenhuma cadeira para se sentar. Com o copo numa das mãos feridas, o Paul estava então de pé, do lado de lá da parede, na cozinha. E se a lua para lá caminhara, contemplava-o impotente com rosto de cabra, e o rosto dele respondia-lhe na mesma moeda, desfigurado pelas escoriações.
Junto de mim, no caixilho da porta, estava pousado um mosquito, apanhado imóvel no meio da luz como um alfinete de peito. Estava totalmente desprevenido, podia tê-lo esmagado. Quando apagarmos a luz, irá cantar e fartar o bandulho. Tem sorte, esta noite não precisará de picar, só de sugar o sangue com pequenos toques da tromba. Por azar, tem o faro bem apurado e vai preferir o meu, de certeza que o sangue do Paul lhe cheira demasiado a aguardente.
Aquele velho do lenço é muito suspeito, gritou o Paul da cozinha, deve estar morto de tanto riso. E eu, feliz por estar vivo, nem percebi nada, quase nada.
A aguardente ou o rosto de cabra tinham feito passar o susto do Paul, o mosquito não tinha feito passar o meu. Perguntei:
Vê-se a lua pela janela da cozinha.
Na manhã seguinte, o sol entrou pela cama na ponta dos dedos, duas picadelas de mosquito faziam-me comichão no braço, outra na testa e outra na cara. Na noite anterior, a aguardente mergulhara o Paul em sono profundo e o cansaço vencera-me antes de o mosquito vir ter comigo. Tinha-me desabituado de perguntar, antes de dormir, como é que se consegue manter a cabeça assente para ela aguentar os dias, porque eu não sabia. Mas sabia que, se uma pessoa faz essa pergunta, corre o perigo de desaprender o sono. Na primeira semana depois dos bilhetes, quando fui intimada três dias seguidos, não consegui pregar olho durante a noite. Os nervos, esses tremeluziam em franja. Eu pairava, a carne perdera o peso, só restava a pele esticada e os ossos cheios de ar. Na cidade eu tinha de ficar alerta para não me evadir de mim, como o bafo no inverno, ou não me engolir a mim própria durante o bocejo. Não conseguia abrir tanto a boca quanto por dentro gelava. Comecei a sentir-me transportada por algo mais leve do que eu e a ter tanto prazer na sensação quanto mais surda por dentro ficava. Por outro lado, tinha medo de que a fantasmagoria se tornasse ainda mais bela, e eu contra ela nem um dedo mexesse, nem para regressar. No terceiro dia, quando vinha do Albu, o caminho de casa impeliu-me para o parque. Deitei-me de rosto para baixo na relva e não a sentia. Tão apaticamente gostaria de me achar morta debaixo dela, eu que tão diabolicamente gostava de viver. Quis chorar, dasafogar-me, e só consegui o meu ataque de riso em vez de lágrimas. Que bom a terra ter um som abafado, ri-me até ficar exausta. Quando me levantei, estava vaidosa como há muito tempo não acontecia. Sacudi bem o vestido, ajeitei o cabelo, vi se tinha talos de erva metidos nos sapatos, se as mãos estavam verdes e as unhas sujas. Só depois deixei o parque, saída de um quarto verde para o meio da calçada. Logo a seguir ouvi restolhar no meu ouvido esquerdo, tinha-me rastejado um besouro lá para dentro. O ruído era claro e forte, em toda a cabeça matraqueavam pernas de pau por uma sala vazia.
Sim, o mosquito tinha-me preferido e eu tinha-me rendido. Não havia necessidade de nos indispormos um com o outro. O rosto, eu devia ter-lho proibido. À luz do dia, na testa e no queixo do Paul, a crosta das feridas parecia uma peneira suja, de que ninguém sabia ao certo o que passa e o que fica retido.
Esta noite as feridas arderam, disse o Paul, estava com a boca seca, tive de ir constantemente à janela para não sufocar.
Esfregou os olhos. Na rua das lojas parou o ruído dos automóveis, em breve tilintaram as garrafas. Fui à janela: Às portas das traseiras chegara uma carrinha da distribuição e, em cima do passeio, o carro vermelho estava no mesmo lugar de ontem, só não tinha ninguém dentro. Completamente vazio, ao sol, a pergunta sobre o que faz aqui seria tão descabida como querer saber o mesmo das árvores, das nuvens ou dos telhados. Eu já estava a ponto de conceder aquele lugar ao carro vazio. Cá em cima, o Paul estalou os dedos dos pés no soalho, lá em baixo no passeio uma mulher entrou pela sua sombra dentro. As nuvens de verão estavam luminosas e altas, melhor dizendo, macias e próximas, o Paul e eu numa falsa prateleira cá em cima, demasiado cansados, demasiado longe do solo. Ninguém, no nosso caso, sente desejo de impedir as derrotas. Acho que nem mesmo o Paul. O fracasso da felicidade avança sem falhas e conseguiu vergar-nos. A felicidade tornou-se um atrevimento e a minha felicidade retorcida uma cilada. Se nos queremos poupar um ao outro, a intenção falha. Como agora, quando o Paul veio ter comigo à janela e eu lhe passei a ponta do dedo pelo queixo, para ele não pôr a cabeça de fora. Ele pressentiu no carinho um obstáculo e debruçou-se na janela: Então viu o carro vermelho. O carinho tem as suas malhas. Quando lhe quero tecer os fios como a aranha, eu própria fico presa neles, a minha rede forma grumos. Deixei a janela livre para o Paul, o carro vermelho vazio também só lhe mereceu uma daquelas pragas de rotina. Mas a seguir, sem uma palavra, desceu à rua de pantufas e trouxe para cima a Java no elevador. Arrastámos a mota para dentro de casa. E dois dias depois, no domingo, o Paul empurrou-a pela rua das Amoreiras até à feira da ladra.
Eu tinha decidido ficar em casa. Nunca iria à rua das Amoreiras sem passar pela sepultura da Lilli e procurar a do sapateiro. E isso podia demorar algum tempo. Não ia de bom grado à sepultura da Lilli. Para ela e para mim eu ainda tinha paciência, mas não para as suas flores vermelhas de cemitério. O meu sogro tinha-lhes chamado tradescantia. No mercado, davam-lhes o nome de vienenses e para mim eram carnívoras. Eram vermelhos os caules, as folhas, as flores, cada planta até às pontas, uma mão-cheia de farrapos de carne. Era a Lilli que as alimentava e eu colocava-me a seus pés e atapulhava a boca com os dedos para os dentes não baterem. Depois do acidente do Paul, não havia no mundo sepultura que me atraísse. Além disso, eu queria ficar com a Java, mesmo que não se pudesse mais andar nela.
O nosso amor dera uma volta de 360 graus, tínhamo-nos conhecido na feira da ladra e a mota fazia parte do cenário. Agora, pela primeira vez desde então, o Paul ia à feira da ladra para se livrar da Java. Disse o Paul:
Se ficarmos com a mota, ficamos prisioneiros da maldade. Prisioneiros ou não, eu queria mantê-la em casa, porque o acidente é que tinha a ver com maldade, não a mota. Mas ter o Paul e a mota plantados na feira da ladra, no meio da poeira à espera, ambos acabados de machucar-se, isso também seria uma grande maldade. Disse eu:
Não vás para a feira com a cara cheia de crostas.
O Paul não ligava a essas coisas:
Vamos ver, talvez a tua bola de praia ainda regresse a casa.
Mas quem regressou foi o velho das pernas de mármore. Muito janota, de fato domingueiro, chapéu de palha leve e gravata de seda. E o Paul vendeu-lhe a Java e comentou que o velho não era da Polícia Secreta, ou não teria pago mais que todos os outros. Isso eu não sei. Nessa noite o Paul chegou bêbedo a casa, já tarde, vindo da feira da ladra. Tirou salsichão do frigorífico e pão da gaveta. A cada bocado que agarrava ao comer, perguntava:
O que é isto.
Isso é salsichão, dizia eu.
E isto.
Tomate.
E isto que vem a ser.
Pão.
E o que é isto.
Sal e faca, a outra coisa, um garfo.
O Paul mastigava e olhava para mim como se precisasse de me procurar.
Salsichão, tomate, sal e pão, disse ele, mas tu também aí estás.
E tu estiveste onde, perguntei eu.
Ele apontou para si com o cabo da faca:
Dentro da minha camisa e contigo.
Enfiou um pedaço de côdea de pão no bolso da camisa:
Se eu em breve for preso..., se tu em breve... A comida mastigada puxou consigo as palavras pela garganta abaixo. Quando acabou de comer, arrumou o talher no lava-louça, o pão na gaveta e limpou as migalhas da mesa:
Se ainda aparecerem hoje visitas estranhas à casa, há de estar tudo limpinho.
Alguns minutos depois, entrou no quarto e sentou-se na beira da cama junto de mim:
Então hoje não se come nesta casa.
Mas tu já comeste.
Quando.
Há cinco minutos.
O que é que eu comi.
Repeti-lhe a lista.
Ele dizia que sim com a cabeça.
Então a criatura está bem farta.
Aqui disse eu que sim com a cabeça.
Ainda bem que ele não disse A TUA CRIATURA. Para dizer a verdade, não é da minha conta que ele tivesse estourado o dinheiro da Java na bebida. Nem quis saber quanto. Que nunca mais possa ficar pateta de felicidade a andar de mota, que o céu nunca mais voe, nunca mais me possa agarrar às costelas do Paul, isso é que é da minha conta. Que não tenhamos ido juntos com aquele dinheiro ao restaurante no Jagdwald, a antiga tapada, como fizemos depois da feira da ladra quando nos conhecemos. O Paul teve o acidente sem mim, a moto fora-se e ele talvez quisesse evitar uma atmosfera de comezaina pós-funerária. A preocupação do Paul era limpar tudo da memória, como fez com as migalhas de pão na mesa da cozinha. Como também fora minha preocupação limpar tudo da memória, depois de me separar do meu primeiro marido.
Nessa altura eu estava na feira da ladra para me livrar de objetos que me atiravam para o passado. A minha aliança era por causa do dinheiro, eu tinha dívidas. O Paul estava ao meu lado a vender antenas de fabricação própria para os programas de televisão de Budapeste e Belgrado. As antenas eram proibidas, mas toleradas, e estavam em muitos telhados da cidade. Aqui na feira, tocadas pelo vento sobre o oleado do Paul, lembravam hastes de veado. Descalcei os sapatos para calcar as pontas do jornal em que expunha as minhas tralhas. Tinha os pés sujos e depressa fiquei tão infeliz como outrora, entre a alameda e a panificadora, com as serpentes de poeira do miúdo que anestesiaram de mais. Qualquer um que por aqui vagueasse podia vender por tuta e meia o que trazia sobre a pele, pegar num trapo do chão de olhos fechados e vesti-lo. Só se fossem militares e polícias é que dariam nas vistas, porque não havia oferta de uniformes pelo chão. Nem um talo de erva, nem uma árvore, só um monte de gente e um verão de pobres na poeira do vento. E eu aqui a vender ouro.
Podia ter recebido o triplo do dinheiro pelo meu cachecol de lã. Com as pulseiras de plástico e os pregadores, um chapéu e a bola de praia só se podiam arranjar uns trocados. De saia curta apertada, de aliança presa ao cordel que tinha pendurado no pulso e ia até ao chão, eu sentia-me uma boa mistura de duas artimanhas. Metade vendedora arruinada de mercado negro, que decide expor a carne para valorizar a mercadoria através da volúpia. E metade uma daquelas putinhas cheias de pó de arroz a atirar ao rosa, que na melhor oportunidade, durante o sexo, deitam também a mão ao ouro do amante. A depravação teria aqui bom impacto, rápido e limpo como dois e dois íamos conseguir uma pipa de massa. Em imaginação, agradava-me ser depravada e voluptuosa. Abri um ligeiro ângulo com a perna direita, apoiei o calcanhar no pé esquerdo, soltei o cabelo pela testa com os dedos em leque, pus um olhar provocador e lânguido a partir daquilo que tinha. Mas aqui não havia dúvidas: A saia curta perdia todo o nível por causa das minhas pernas tortas, faltava ao meu pescoço o resplendor do copo de leite e ao meu olhar a frieza que deita os homens por terra. O que havia em mim de mais frívolo era o vento enrolado em poeira. Na verdade nem sequer sabia quantos gramas pesava o anel, nem quanto custava um grama de ouro. Eu era propriedade do anel, não ele minha. Tenham piedade desta parva condizia mais com aquilo que eu era capaz de mostrar. Mas não era o lugar apropriado.
Um velho testou na mão o peso da aliança, conferiu com uma lupa o contraste no interior.
É ouro, pois que havia de ser, disse eu.
Quanto queres por ela. Dois mil, ’tá.
Não sei se venda.
Dois mil e cem, vá lá, e fazemos negócio.
Dizer é fácil.
Está bem, eu dou mais uma volta.
Aí quanto tempo.
Bem, um quarto de horita.
Então a aliança já se foi.
Então passa-a para cá.
Não com essa pressa toda.
Quanto quer que lhe dê.
Tem o dinheiro consigo.
Com mil diabos e mafarricos, queres que ande com ele colado na testa.
A última oferta.
Dois mil e duzentos, ’tá. Afinal queres vender ou saltar para o colo do vovô.
Ainda vou pensar.
O que é que uma gatinha tão nova espera caçar por aqui, gritou o velho.
Enquanto eu fingia que ele já lá não estava, o velho meteu a lupa ao bolso e hesitou em afastar-se. Teria preferido fechar negócio a dar uma volta em seco. De camisa às riscas azuis acabada de passar, o que eu tinha ali à minha frente, no meio daquele pó, não era um vovô desconhecido que se lhe pudesse sentar no colo. A barriga, as mãos e as fontes eram emprestadas do oficial da Lilli. Naquele dia, o sol redondo como uma bola estava envolto em algodão.
O Paul tinha muita freguesia, mostrava as suas antenas e distribuía folhetos com os pontos cardeais apontando para Budapeste e Belgrado. Eu estava de cócoras e a saia tinha escorregado para cima, por muito que a tentasse travar. O velho tinha razão, eu espreitava o Paul de baixo, como os gatos observam as pessoas. Ao lado do Paul estava a mota, às vezes alguém esbarrava nela. Eu estremecia com medo que ela caísse e eu visse outra vez morrer o meu papá. O Paul pediu dois mil lei por uma antena e só recebeu metade. Diante de um jovem casal que achava o preço demasiado alto, o Paul fez uma vénia:
Elevem então os corações na direção de Bucareste como fizeram até agora e divirtam-se muito.
Era bom a negociar e atrevido no falar, mas sem ofender. Eu, em contrapartida, dei à primeira que apareceu com um dente a menos e duplo queixo o meu chapéu de praia e com as pulseiras nem ao braço peludo da menina nem à quantia dei atenção. Na fábrica, como por obra e graça, o envelope do ordenado aparecia duas vezes por mês sobre a secretária, correio de uma mão desconhecida. Todos enfiavam o dinheiro no bolso e deitavam fora o envelope sem dar atenção às contas. O que lá estava escrito não se podia mudar, a gente ficava quietinha e calada. Eu precisava urgentemente de dinheiro, mas não sabia deitar preço à tralha de que me queria livrar, nem como se ganha dinheiro neste despique de narizes.
Junto à cerca do recinto jazia um cano rachado de betão. Numa das pontas estava sentado um homem que despejava o seu vinho tinto de um bidão de lata para uma bola velha de candeeiro, de vidro leitoso, bebendo-o depois até esvaziar. Na ponta oposta encontrava-se outro, enlevado em amor com uma criança sentada no colo a quem beijava o cabelo. Entre os dois, havia arame ferrugento que saía da fissura do cano. Troquei-nos de posição aos três dentro da minha cabeça. O da criança esvaziava o abajur do candeeiro pela goela, isso também eu sabia fazer. Depois foi a vez de beijar a criança o homem do bidão, que já tinha desaprendido, e eu, com a aliança presa por um cordel, nunca aprendera. E a aliança, ambos a venderiam mais depressa do que eu. A poeira levantava o chão em direção ao céu, o dia nascera torto. Naquele momento, o único freguês diante das duas últimas antenas era o vento. O Paul tinha os olhos piscos.
Isso é a tua aliança, perguntou.
Ou foi o meu aceno pouco convincente que me traiu, ou ele há muito sabia que eu era uma gatinha à caça.
É pedir seis mil, disse ele, e nunca descer abaixo dos cinco.
Pousou uma mosca no dedo grande do meu pé e picou. Eu observei-a pelo canto do olho e tive vergonha de a matar, porque tive logo de dizer:
O meu casamento não valia tanto.
Quem é que diz, tu ou o teu marido, perguntou o Paul.
A seguir precisei de ir à retrete, duas casinhas de madeira ao fundo, no extremo do recinto.
Deixa aqui a aliança, disse o Paul.
Que ele pensasse nisso, se preocupasse comigo. Desatou-me do pulso o nó do cordel, eu estendi o braço e desviei o olhar como as crianças quando as despem. Não totalmente, porque onde a pele é mais fina a minha pulsação quase lhe saltava para as mãos. O intento delas eram os nós, o meu, ser agarrada. Quando já estava solta, enfiei-me com cuidado nos sapatos. O Paul ficou com a minha aliança no dedo mindinho e ergueu-o por cima das antenas, fez balançar a ponta do cordel e rimou, em toada monótona, um provérbio:
Um beijo na mão
Com ouro à feição
Dá volta à razão.
O espetáculo era cómico, mas ele levava-o a sério, era um saltimbanco e as pessoas paravam. Eu afastei-me a rir pelas longas filas. Para lá da cerca, ao fundo do recinto, reinava a tranquilidade insegura de uma construção esquecida. Entre gruas, canos, betão esmigalhado, trepavam daturas, campainhas-do-monte, ervas-feijoeiras. Na cabeça bailava-me já há algum tempo um dedo trepador muito diferente.
Quando depois dos bilhetes fui intimada pelo segundo dia, logo depois do beija-mão não conseguia pensar noutra coisa a não ser que tinha de ir urgentemente à retrete. O Albu disse:
Faça o favor, o corredor à esquerda, penúltima porta, mas sem carteira.
Segui pelo corredor à esquerda, não queria andar depressa de mais nem exagerar na lentidão. Duas portas à frente tocou um telefone que no caminho de volta ainda tocava, ninguém foi atender. No pátio interior havia um posto de combustível, duas colunas de pressão, uma de diesel, outra de gasolina, e uma bomba de água. Dois camiões cinzentos, um autocarro com cortinas verdes, um minibus, um carro azul, um branco. E dois vermelhos. No fim do corredor, do outro lado da porta, alguém chorava. Em cima do lavatório, um pedaço de sabão doméstico com dois cabelos pretos agarrados, no cesto de lixo por baixo um lenço ensanguentado. O coração já me batia na garganta, a pressa tomou conta dos meus passos, voltei de certeza mais depressa do que era preciso.
Agora soa a campainha do carro elétrico. É um cão que atravessa a rua na diagonal, um esqueleto alto e malhado de rabo entre as pernas, as patas grudadas de lama meia seca. Onde foi ele desencantá-la, com o calor que está. Tem espuma a cair do focinho, o barulho da campainha já de nada serve, mais lhe valia estar morto, podia finalmente esticar as patas. Há cada vez mais à solta por aí, diz o rapaz novo junto da porta. O da pasta diz que sim com a cabeça: E a quem foi mordido, resta-lhe só o tempo de se confessar, como aconteceu a uma criança na minha rua. Deitava espuma pela boca, como esse aí pelo focinho. Cão a espumar, mais nada a fazer, é raiva e acabou-se. Diz a velhota com tremeliques na cabeça: Os cães ficam empeçonhados com tanto químico nos campos. As pessoas adubam e o que cresce são ratazanas gordas, aves estropiadas e erva rija. Fica tudo uma lástima e esquecido por Deus. Que posso eu fazer se um cão destes me morde, vocês os novos ao menos podem correr. Uns anos atrás eu ainda era a mais rápida, o meu filho costumava dizer: Pareces um furacão, devagar, devagar. Desatar a correr só piora as coisas, diz o rapaz novo. Deve-se ficar parado, quando nos aparece um cão assim, e mostrar segurança, olhar o bicho nos olhos com firmeza como no hipnotismo. Quando se tem bons olhos, mas não através das lentes, ri a velhota. Ai meu Deus, eu sem óculos não consigo distinguir o rabo da cabeça. Talvez ajude se olhar o rabo com firmeza, ri o guarda-freio, é preciso experimentar. Mas recentemente vi no parque uma ave com três patas, diz a velhota, eu posso jurar, não estou a mentir, e estava com óculos. Eu nem queria acreditar e perguntei a dois jovens se era mesmo verdade. E era. Como estão as dores de cabeça, pergunta o da pasta. Mal, diz a velhota, a gente esquece os anos, ficaram para trás, mas os olhos, os pés, a vesícula, não param de os contar e então aparece tudo. O guarda-freio desabotoa a camisa de cima até baixo. Mas para já, o que está aí a aparecer é o mercado, diz ele, estamos quase a chegar.
Ora então sentes-te atraída pelo sul, disse o Albu, olha que aqui em frente da ópera também há uma fonte com repuxo e pombas. Mas as raparigas como tu adoram as laranjeiras, e onde é que acabam, hã, hã, onde é que acabam, no motel com ladrões de banco, com grossos fios de ouro e saltos altos, com chulos de cara cravejada de espinhas cheias de pus, dentes compridos e, rematou ele segurando o lápis roído diante do nariz, e picinhas deste tamanho.
Se o Albu tem uma assim, o coto é a medida.
O que é que eu roubo ao país, se for para outro, perguntei eu.
O Albu balançou o coto entre o polegar e o indicador e disse baixinho, como se falasse consigo aquilo que eu não devia escutar: Quem não ama a sua pátria, não entende. E quem não sabe pensar tem de sentir.
A Lilli apreciava muito as mãos dos seus homens. Seria incapaz de ver o balançar daquela mão esguia sem puxar para si os dedos do Albu. Independentemente do que tivesse acontecido dentro deste gabinete, a Lilli nunca esqueceria que ninguém lhe resiste e tê-lo-ia intimado para um encontro na cidade e já o teria possuído. Encontra-se sempre um soalho, um banco, um tufo de erva para deitar, quando o coração se rasga de tanta urgência. Despido da patente e da razão, o Albu deixar-se-ia alucinar pela bela carne da Lilli. Regressado à sua secretária grande, e de novo major, ter-se-ia primeiro penteado, de tão aturdido que estaria, enquanto pensava numa boa desculpa para o chefe. Teria de mentir, tolhido por um medo descabelado, como eu. Era o que eu lhe teria desejado, e não teria compreendido a Lilli. Com aquele par de olhos em que os abrunhos silvestres se tingem de escuro por homens mais velhos, a Lilli ter-me-ia dito como foi. Descascando algumas camadas do segredo, calando o cerne da questão, com a tão apreciada flor de tabaco no rosto. Ter-nos-íamos ferido, eu a ela e ela a mim. Contudo, visto de fora, teríamos estado confortavelmente sentadas no café. Ou teríamos ido passear.
Assim nunca mais acabamos, disse o Albu.
Para esclarecimento dos factos, eu devia escrever o nome de todos os italianos que conheço. Os factos já me davam vómitos, o tempo entrava pela noite dentro, eu não conhecia nenhum italiano e de nada servia dizê-lo. Ele ficou furioso:
Mentes.
E ele que se vangloriava de saber tudo. Era óbvio que um tipo como ele sabia que eu não minto. Por isso obrigava-me a permanecer ali mais tempo com os seus factos, até ao fim do dia de serviço. Esticou as pernas, aliviou a gravata, atirou a cabeça para trás. Penteou-se nervoso, verificou se ficaram cabelos no pente, meteu-o no bolso traseiro das calças. Deu um murro na mesa e colocou-se à minha frente. Empurrou-me a cabeça contra a folha vazia, levantou-me da cadeira pela orelha, que ardeu como brasa. Depois foi-se-me ao cabelo dos lados, enrolou-o enviesado para cima no dedo indicador e, como se puxasse uma borla, arrastou-me pelo gabinete até à janela e de volta à cadeira. Quando fiquei de novo sentada diante da folha escrevi.
Marcello.
Mordi os lábios, tirando o Mastroianni e o Mussolini, não me vinha outro nome à cabeça e esses ele também conhecia.
O nome de família não sei.
E de onde conheces este Marcello.
Do mar.
Do mar onde.
De Constança.
Foste lá à procura de quê.
Do porto.
Daquele porto sebento. E ele.
Ele era de um navio.
Como se chamava o navio.
Não o cheguei a ver.
Não chegaste a ver, disse ele, mas viste o uniforme.
Ele trazia roupa normal de verão.
Mas era marinheiro, isso tu cheiraste logo.
Foi ele que disse.
O Albu sabia que eu estava a mentir e obrigava-me a fazê-lo. E eu acreditava no que dizia, tanta era a solidão. Então ele meteu o lápis roído na gaveta, olhou para dentro antes de a fechar e disse:
Vai para casa e pensa bem. Até amanhã às dez em ponto, mas em ponto. Os bilhetes para a França e para a Suécia também ainda aí estão. Para mim, houve mais gente a ajudar à escrita, tudo junto vai sair coisa gorda. Dez em ponto.
Bilhetes para a França, era a primeira vez que ouvia. Ter-lhe-á o Nelu mentido, ou mesmo escrito bilhetes por duas vezes, ou uma rapariga do pavilhão de embalagem. Tê-los-á o Albu na sua gaveta e vai mostrá-los amanhã. Ou só inventou aquilo antes de eu me ir embora, para eu ficar de cabeça perdida até amanhã. A minha língua gelou, será que isto nunca mais acaba.
Quando voltei para a rua, já o vermelho do sol desbotara, tudo se posicionara para a noite, todas as sombras na cidade se tinham deitado. Eu carregava o meu turbilhão na cabeça, por baixo da pele solta do crânio, e por cima, o cabelo, era o vento que o carregava. O vento fez-se para voar, os semáforos para luzir, os carros para rodar, as árvores para estar de pé. Haverá nisso um sentido, ou será uma mera ocupação. A língua varreu-me o cérebro adocicada, vi um quiosque e imaginei que estava ou devia estar com fome. Pedi uma fatia de bolo de papoila e procurei o porta-moedas na carteira. A mão esbarrou num papel duro. Que não era meu. Andei poucos metros até um banco, pousei o bolo no colo e tirei o papel da carteira. Um rebuçado de papel cinzento amarelecido, as pontas energicamente retorcidas, algo duro lá dentro, folgadamente embrulhado. Abri o pacotinho e esforcei os olhos. O que vi não foi cigarro, nem galho, pé de salsa, garra de pássaro, foi um dedo com uma unha de cor negra azulada. Rápido, voltei a atafulhá-lo na carteira. Na parte de trás do quiosque esgueiravam-se raios de sol pelas fendas das tábuas. Eu segurei o bolo de papoila diante da boca como se alimentasse uma doente. O quiosque deslizou na minha direção, puxado para a frente pelos raios de luz. Mastiguei devagar, os grãos de açúcar rangiam-me até à testa. Não pensava em nada, ou de repente nada mais me dizia respeito. Afinal eu tinha saúde e quem comia o bolo era uma mulher enfermiça que julgava ter de comer e que comia para salvar a vida. E consegui convencê-la de que era delicioso, até não haver mais bolo na minha mão. Depois enrolei o dedo no papel de embrulho, voltei a torcer as pontas, por dentro eu estava rasgada em duas. A morte com que espaçadamente namoriscamos para a afugentar atrevia-se a investir, a espionar uma data, caso ela não estivesse já marcada com um círculo no calendário do Albu. O quiosque ficou parado, o banco ficou vazio e eu andei, andei. Vi as mortes magras e gordas, de cabeleira farta e risca, de tonsura e careca, à procura da minha data pela cidade. Vi camisas abotoadas e abertas, calças curtas e compridas, sandálias e chinelos, sacos, carteiras, redes, mãos vazias. De formas muito diversas, os passantes ajudavam a morte a procurar a minha data.
Junto de cinco postes de candeeiro, aproximei-me, espreitei para dentro dos cestos de lixo, dois deles estavam meio vazios. As pessoas deitam o lixo fora à pressa e sem cuidado. A unha do dedo era negra, a pele transformada em frio linóleo. Há quanto tempo viajaria o dedo na minha carteira. Porque queriam que fosse logo eu a deitá-lo fora. O asfalto de verão tresandava a alcatrão quente, eu sentia náuseas do bolo de papoila, do ar da noite, do canavial, dos salgueiros na margem do rio. A água lambia-os e gorgolejava, mas não era suficientemente funda. Alguns transeuntes, mergulhados na noite, iam na direção contrária, a cabeça baixa, os indivíduos em duplicado, os pares em número de quatro contra a corrente da água, a caminho da outra ponte. E em cima da ponte, junto à balaustrada, onde um dia estivera a mala cheia de papéis, era o lugar certo para o dedo. Eu não queria, mas fui lá, segurei o embrulhinho sobre a água e deixei-o cair. O papel não se soltou do dedo, bateu na água e fez ricochete. A água cedeu, agitou-se e não quis engoli-lo. O rio teria preferido uma pessoa inteira. Para mim era já de mais aquele pedacinho, e também não saber a quem pertencia. E se a pessoa inteira estava morta, ou só o seu dedo.
O Albu nunca menciona o dedo. Eu também não. Esta amnésia transparente do dia seguinte às dez em ponto sempre à espreita. Pisca os olhos a cada beija-mão, até hoje. A partir do dedo, nunca mais vou à retrete quando estou com o Albu.
A náusea deixa-me mole, só quando quero contagiar os outros com ela é que eu endureço. Houve uma pessoa a quem contei sobre o rebuçado cinzento amarelado, a Lilli. Depois de três dias com o Albu, voltei à fábrica pela primeira vez. Ninguém perguntou onde estive. O Nelu preenchia o tempo com olhares furtivos, a fazer café, a abrir janelas, a amontoar papéis. Eu já tinha um parecer sobre os modelos de botão que ele me deixara à tarde em semicírculo sobre a secretária. Mas não fui capaz de dizer que os brancos são bonitos como o esmalte dos dentes, os castanhos como meias cascas de noz, os cinzentos como a chuva sobre a poeira.
Depois do trabalho, sentei-me no café com a Lilli e contei-lhe sem rodeios. Deixei completamente de lado as cascas e comecei pelo miolo. Por isso a Lilli pôs-se a enroscar uma madeixa de cabelo no indicador e afastou de mim a cadeira. Discretamente, pensava ela, mas aquele espaço enorme, eu não era cega. Os olhinhos de maldade que me deitou, ao perguntar:
Tens a certeza que era um dedo humano.
A flor de tabaco, obstinadamente fria, negava-se a ser corroída pela náusea. Fechei a mão em punho sobre a beira da mesa e estendi o indicador.
Então o que é isto.
Tira o dedo, disse ela.
Será possível confundir.
Já vi, tira para lá o dedo.
O que é que tu viste, um cigarro ou uma garra de pássaro.
Tenho mesmo de dizer ou contentas-te se eu acreditar.
Ah, então acreditas em mim. Que sorte eu tenho por seres tão magnânima.
Porque eu era tão magnânima e não queria torturar mais a Lilli, encolhi o dedo e não perguntei se ela achava que um gato comeria um dedo se o encontrasse nos latões do lixo. Nem perguntei quanto tempo demora uma unha a ficar negra. E também não contei à Lilli o medo que tinha da erva-dedal, de pé alto e esguio, que florescia nos jardins. Guardei também só para mim que, nauseada pelo bolo de papoila, decidira devolver o pacotinho ao Albu. E que, ao vê-lo boiar no rio, achei que na manhã seguinte, às dez em ponto, ele ia exigir que lho devolvesse.
No inverno passado, comprei na Alimentara ao pé da fábrica um pequeno frasco de pepinos em vinagre, disse a Lilli, e comi-os em duas vezes. Os últimos, pesquei-os do frasco com o garfo. No garfo veio espetado um pepino e depois um rato. Então não é mais horroroso que um dedo.
Mas o rato foi parar sozinho ao meio dos pepinos, disse eu. E se alguém o meteu no frasco de propósito na fábrica de conservas, não foi para ti. Qualquer um podia ter comprado os pepinos.
Qualquer um podia, mas fui eu que os comprei.
Como se quisesse defender o Albu, a Lilli meteu os dedos pelo cabelo na região da nuca. O cabelo enfunou e nós permanecemos em silêncio, os rostos enfrentando-se, mas não os olhos. De repente, sem qualquer ligação, a Lilli disse:
Amanhã sem falta tenho de ir pagar a conta da luz.
A Lilli e eu tínhamo-nos habituado a passar mais tempo caladas uma ao lado da outra do que poderia passar despercebido. E quando uma recomeçava a conversa, dizia o que lhe viesse à cabeça. Quando a gente se conhece bem, o rato depois do dedo e o silêncio depois do rato e a conta da luz depois do silêncio significam o mesmo: continuar a falar de uma coisa que não se nomeia. Afinal, também no rosto, a testa e a boca, tanto quanto é possível, encontram-se distantes uma da outra.
Junto às casinhas de madeira, na feira da ladra, havia duas filas de espera e um jovem polícia a tomar conta para que ninguém fizesse as suas necessidades cá fora junto à cerca. A primeira retrete não estava ocupada, não tinha porta, mas filas de espera havia duas. E da segunda retrete saiu um homem com a porta nas mãos. Entregou-a a um outro que já há algum tempo pisava uvas miudinhas diante da primeira retrete e que entrou de costas, pousando a porta à sua frente. Só então, já aliviado, fechou a braguilha. Tinha os sapatos esparrinhados.
Porque é que não o deixam passar à frente, perguntou uma mulher de óculos de sol, ainda é só uma criança. Um rapazinho de calças curtas e sandálias levantava-lhe o vestido a chorar, ela deu-lhe uma sapatada nas mãos:
Deixa-me o vestido em paz, para com isso.
Deixe-o lá chorar, disse um, assim já não precisa de mijar tantas vezes.
Tirou uma caixa de fósforos do bolso das calças e chocalhou-a diante da cara do menino:
Ofereço-ta.
A criança sacudiu a cabeça.
Como é que te chamas.
Pulguinha de mel, disse a criança.
Claro que não te chamas pulguinha de mel, disse o homem e chocalhou a caixa de fósforos. E para a mãe disse:
Não se preocupe, só tem sementes de girassol.
A mulher segurou a criança pela nuca:
Vá, diz lá como te chamas.
A criança levantou o braço para proteger a cara. E então foi tarde de mais, a água escorreu-lhe pelas pernas abaixo para dentro das sandálias. Dei meia volta e regressei para junto do Paul:
Não vou conseguir arranjar porta.
Estava escarranchado na mota, as duas últimas antenas tinham sido vendidas. Atirou o cordel vazio pelo ar.
Que estás a dizer.
O dinheiro do meu anel, ele tinha-o guardado no bolso das calças, lá estava seguro. O Paul acompanhou-me. Continuava a haver duas filas junto das casinhas de madeira. A porta era um pedaço de chapa do tamanho de um tampo de mesa. As moscas zumbiam, as pessoas discutiam à espera mostrando os molares, pretos e de ouro, os tocos de dentes e a falta deles. O Paul abriu caminho até à frente. Ajustavam-se acordos:
Tu ficas com a minha porta. Depois fico eu com ela. Depois ele.
Sempre que um acabava de satisfazer as suas necessidades e saía de porta na mão, os acordos eram esquecidos. Muitos já estavam apertados e havia gritaria. O polícia deixava-se ficar encostado à cerca, comia biscoitos e com os dentes de um pente de plástico vermelho palitava as unhas do polegar ao mindinho, cada uma na sua vez, já não era sem tempo.
Parem com a gritaria, berrou ele, sem sequer olhar.
Venha mas é ajudar os mais fracos, disse uma mulher de rabo-de-cavalo, eu estou grávida, já não me aguento nas pernas, até se me racham as solas dos pés.
Estás grávida onde, perguntou uma velha e olhou para o polícia, trazes a criança no cu, nem barriga tens.
Eu cá não sou árbitro, disse o polícia.
E a grávida: Santo Deus do Céu, é mais fácil parir gémeos que apanhar essa porta.
Gémeos sempre são mais bonitos que dois pés de pau, riu-se o polícia, deixa-me cá tratar que não venhas a precisar deles.
Meteu o pente no casaco, enfiou um pedaço de biscoito na boca e postou-se à frente da retrete ocupada.
Pronto, grávida ou não, agora é ela que fica com a porta. Já está aí há séculos.
A grávida prometeu a porta ao Paul. Quando saiu da retrete, largou o pedaço de chapa, sem sequer ver que mãos a puxavam. O gordo atrás do Paul esbracejou, praguejou e ficou com a porta. O Paul não despregou olho da retrete e quando a porta começou a mexer do lado de dentro agarrou nela e levantou-a.
Hei, não a meio da devoção, aguenta aí, disse o gordo, recebe-nos Deus cá dentro na cagadeira, mas aí fora anda o diabo à solta.
Deus, disse o polícia, só se for um burro com a tua cara que entrou pela cagadeira.
O Paul empurrou-me para dentro da casinha e pôs-me o pedaço de chapa à frente. Dentro não havia telhado, o céu enviava a praga das suas moscas verdes. Para os pés, duas tábuas todas borradas por cima de um buraco na terra. Era fácil a gente escorregar, eu procurei dois apoios secos. Na parede estava escrito a tinta de óleo vermelha:
A vida é uma grande cagada
Só falta eu dar-lhe uma mijada.
Eu ouvia a gente lá fora, também a voz do Paul gritava. Estava-se bem cá dentro. Menos do que aquilo que tresanda debaixo dos pés não podemos tornar-nos. Será que o gordo quis dizer, ao falar de Deus, que a gente aqui dentro fica embriagada pelo fedor. Inspirei e expirei fundo, sem pressas, apesar do perigo de escorregar, fechei os olhos. Só lá fora voltei a ser um pedaço de esterco humano. Caminhei ao lado do Paul, as filas de tralha e gente foram-se dissolvendo no recinto. Viam-se pontas de cigarro por entre os desenhos impressos de solas caneladas. O pó arrastado pelo vento entrava-nos pela nuca. Eu devia ter agradecido pela porta da retrete, a minha língua não se ergueu na boca. O meu ouro fora vendido no meio deste esterco, seis mil lei eram para mim uma fortuna. O pó fazia o mesmo caminho dos nossos pés e corria à nossa frente. O vento ganhou lanço, projetou-se em longos laços e deixou-se cair de novo. Na cerca de arame em redor do recinto emaranharam-se pedaços de papel e roupas velhas. O Paul dobrou o seu oleado, que foi encolhendo até se tornar numa pasta azul, e entalou-o sobre a bagageira. Depois contou-me o dinheiro para a mão, o meu cotovelo esqueceu-se de si e cedeu. O Paul cuspiu nos dedos. Enquanto ele contava as notas, eu esperava que os seus dedos se distraíssem do negócio e me tocassem o pulso.
A minha bola de praia e a pregadeira ainda continuavam em cima do jornal, ninguém quisera saber delas. Por minha vontade ia-me embora e deixava-as ali. O Paul encheu a bola de praia e lançou-a ao ar. Ela voou afastando-se de mim, do chão, daquele esterco de domingo, como um melão descascado que busca a liberdade. Era tão bela agora que já não me pertencia. E eu, eu queria ter-me posto de cócoras naquele instante, rido com os olhos e chorado com a boca. Foi a primeira felicidade retorcida que vivi com o Paul. E no meio de tudo isto ele perguntou:
O que é que se faz num domingo de bolsos cheios e corações vazios.
Pegou também na pregadeira, poliu-a na perna da calça, um gato de vidro com bigode em fio de cobre enrolado. Prendeu-o na camisa. Quando empurrava a mota junto a si, o bigode tremeu e o gato começou a respirar.
Se quiseres vamos até ao Jagdwald, disse ele, podemos ficar lá sentados na esplanada do restaurante, se quiseres.
Só se deitares o gato fora, disse eu, pareces um vadio.
Não acredito, disse ele, mas atirou-o para trás das costas, para o meio do pó, quase acertando num homem, que só levantou os olhos por um segundo, dirigindo-se para a saída com a passada larga dos retardatários.
A sogra está à espera dele com a canja de galinha, disse o Paul, não vale a pena correr que a sopa já está fria.
Ele tinha vendido a minha aliança no meio daquela poeira de vento, será que me tomava por uma galdéria caridosa, com quem iria estourar na farra aquele dinheiro todo. O pequeno jardim botânico junto ao Jagdwald e alguns nomes de plantas em latim, eu conhecia-os dos passeios com o meu marido e os seus pais. Nessa altura morava com eles em baixo, no pátio. Entrava-se do caminho do jardim diretamente para o quarto. No inverno, em vez de calor, o fogão a carvão soprava para o teto um ar espesso como incenso. Da primavera até ao fim do outono, havia cordões de formigas ao longo das paredes e dos caixilhos das janelas, torrões de formigas nos cantos dos quartos e das gavetas, e algumas mais individualistas atarefadas por cima da mesa e entre os lençóis. Também na cozinha. A minha sogra era quem servia a sopa. Quando o marido empurrava o prato para a frente dela, revolvia longamente a concha no fundo da panela como se procurasse bocados de legumes. Estava a remover as formigas para os bordos. Mesmo assim, algumas iam parar ao prato do marido. Ele pescava-as para o bordo com a colher, como se fosse um acontecimento estranho.
Mas de onde é que estas saíram.
A minha sogra dizia:
Não te exaltes, isso é pimenta.
Se isto é pimenta, eu sou um rouxinol.
É pimenta moída, meu querido.
E desde quando é que a pimenta tem pés, perguntava ele.
Depois da separação, saí de casa com dois sacos de roupa e alguma tralha. Desde a ponte, nunca mais peguei numa mala. A pedra dos Cárpatos, veio o meu marido trazer-ma ao portão num saco de plástico. Tê-la-ia esquecido, e agora é tão importante para as minhas nozes. Sentia-me sem idade e, na maioria das vezes, entre livre e solitária, não conseguia definir ao certo o meu estado de espírito. Viver só não era nem fardo nem gosto. Eu não me arrependia de nada a não ser, de três anos de casamento, ter ficado dois a mais do que devia. Cortei o cabelo curto, comprei roupa. E para a casa acabada de alugar, roupa de cama, o frigorífico e dois tapetes às prestações. Queria mudar depressa, enquanto os novos tempos apontavam a direção. A Lilli, essa nunca precisou de se transformar, não tinha um nariz vaidoso, porque a uma fria flor do tabaco nada pode acontecer. Quando o amor acabava, permanecia no rosto bem-amada. Não ignorava a sua boa conta de sentimentos desbaratados, mas também que a seguir haveria outros dois olhos morrendo de amores por ela. Eu queria transformar-me com as mãos, mas nas mãos era preciso ter um porta-moedas e lá dentro um monte de notas. Comprei tudo de impulso, sem refletir. Comparando com hoje, as minhas preocupações eram mínimas. Foi antes dos bilhetes. Estourei o meu salário em duas ou três tardes e pedi dinheiro emprestado. Não só ao Nelu, também a pessoas que mal conhecia. Também esse dinheiro me voou das mãos e seguiu o caminho da roupa. Eu chegava de manhã ao escritório e a primeira coisa que fazia era pôr o espelho de bolso em cima da minha secretária. Estava sempre a olhar para mim por entre as listas de botões. Todos os dias o Nelu me elogiava mais. Cortar o cabelo mais curto todos os dias era impossível. Para reavivar a convicção de que não me sentia mal, só restava a roupa nova. Pelo menos por um dia, ela era mais nova do que a minha cara. Naturalmente pensava nas minhas dívidas. E ainda comprava mais. Tinha os olhos grandes, febris, só a garganta se me apertava. O instante era sempre mais forte do que a minha má consciência. Ao sol da tarde, na avenida, as pessoas viravam-se por causa da Lilli, porque era bonita, e por minha causa, porque ia pendurada nela e cantava alto:
Sim a árvore tem folhagem
e água o chá
o dinheiro papel
e o coração uma neve caída ao deus-dará.
Fazíamos de bêbedas, eu cambaleava e cantava, a Lilli cambaleava e ria até às lágrimas. Até que eu disse:
Um vestido não faz dívidas, nem um sapato. Eu também não, mas o dinheiro faz. Em algumas pessoas elas crescem como pelos da barba e eu, eu continuo desprovida. Quando tenho dinheiro no bolso, tenho alguma coisa. A seguir, de repente, não tenho nada, porque ele já está na caixa da loja. Mas lá dentro continua a ter absolutamente o mesmo valor. Sim, está lá e eu vejo-o. E já não tenho nada só porque ele está a vinte centímetros do meu bolso, compreendes uma coisa destas.
Quando a gente envelhece, ele acumula-se, disse a Lilli, queres só por isso ser velha. Ora adeus, nenhum deles vive agarrado às míseras notas que te emprestou. Afinal tu não vais fugir.
A Lilli confundia com independência a minha vaidade insaciável dos últimos tempos. É verdade que não ia fugir. Não da fábrica, mas do meu bom senso, da bonequinha de ferro que tinha dentro da cabeça, que se parecia com o Santo António ferrugento que estava sobre a toalha da mesa no fim da noite de Ano Novo.
Enquanto morei em casa dos sogros, quando estava no jardim, era assaltada de um medroso espanto ao ver que as rosas bravas, enxertadas pelo meu sogro em alguns minutos, floresciam todos os verões como novelos de veludo. Nunca sofriam recaídas na madeira acabada de crescer. Enxerto de rosas soava-me a plástica facial realizada nas ancas. No meu quarto, eu punha toda a espécie de flores, nunca uma rosa enxertada. Quem me garantia que, ao cortá-la, não se ia modificar um pouco mais. O que consegui modificar em mim depois da separação, com muito esforço, foi só a folhagem. Depois das longas brigas conjugais, vieram dias em que ninguém gritou comigo. Os dias mantiveram-me isolada das pessoas, colocada longe de todos os olhares, como dentro de um armário, e eu desejei que assim continuasse. A predisposição para esta solidão descabelada permaneceu em mim e desapareceu antes de se manifestar na minha mamã. Então a minha mamã apresentou-se diante de mim sem segredos, completamente só e excrescente em sua casa, quando a visitei pela última vez. E não senti pena. Ao contrário dela, não empurrei para o futuro esta predisposição. Não sou tão cabeça dura e, principalmente, não estou tão avançada na vida como ela, a quem todos morreram, e eu também batera as asas. Como se eu fosse a mãe e ela a filha, foi assim que eu me revi na sua resignação de outrora. À luz da janela, era de enlouquecer como ela me parecia estranha, e diante da louça na prateleira, era de fugir, tão familiar se me apresentava. Assim andava ela pela casa. Compreendi que esta predisposição está guardada para uma fase adiantada da vida e que me apanhara demasiado nova, demasiado cedo.
Morei de aluguer na casa de um homem muito magro e sempre sorridente. O sorriso parecia um traço do rosto, não uma expressão. Atrás, ombros corcovados, à frente, clavículas salientes, uma autêntica gaiola diante da minha porta, quando vinha cobrar a renda. Uma pele transparente no rosto, como se fosse rasgar-se no atrito dos ossos, sem uma ruga e, contudo, muito velha. Fui empatando até chegar à quinta vez e depois convidei-o a entrar no quarto para um chá. Recusou com um gesto, disse que sim com a cabeça e pipiou, e eu perguntei a mim própria quanto tempo ainda o cabeça-de-pássaro iria ter paciência comigo. Se não iria zangar-se, por a pele se rasgar no meio da irritação.
Aquela solidão descabelada não era de certeza o que mais me convinha. Mas o que eu tive com o Nelu foi um enguiço, e acabei a patinhar na escuridão do seu ódio. O Nelu e eu tínhamos ido dez dias numa viagem de serviço a uma cidadezinha entre o Danúbio e os Cárpatos. Ele estava escalado para esta viagem, podia escolher com quem queria viajar e propôs-me a mim. Achei boa ideia uma pequena viagem. Não imaginava grandes atrativos na Central dos Botões, como na fábrica chamavam à cidadezinha, mas ainda menos que fosse só aquele descampado, constituído por dez fileiras de casas sujas rodeadas de componentes de betão pré-fabricados e cavoucos cobertos de erva, onde nada se construía e nada se removia do sítio. Por causa da maior fábrica de botões do país, a localidade não se chamava aldeia. Uma estrada de asfalto serpenteante de três quilómetros ligava o hotel ao portão da fábrica. Atravessava um campo de urtigas verde-negro que subia e abatia com o vento, como se nos convidasse a nadar. Fazíamos de manhã cedo esta estrada que constantemente se perdia e logo recomeçava. Ainda no nono dia eu me poderia ter enganado no caminho, as urtigas davam-nos por cima da cabeça. O Nelu não estava aqui pela primeira vez, orientava-se bem no meio das urtigas e o mesmo acontecia na fábrica de botões. Os nossos sapatos ficavam emporcalhados do pó e do orvalho. Às oito estávamos a limpá-los diante do portão com o lenço do Nelu e circulávamos depois por gabinetes e secções com listas e amostras de tecido. Às cinco da tarde já eu estava cegueta de olhar botões de plástico, madrepérola, osso, retrós, com dois, três, quatro furos e botões forrados de linho e veludo com um pequeno pé. Era tanta a quantidade que até pareciam comprimidos numa fábrica de remédios. A gente devia era empacotá-los em caixinhas e enviá-los para as farmácias, para serem tomados, por exemplo, três vezes ao dia depois das refeições, não para as fábricas de confeção, para serem pregados. À tarde, a estrada de urtigas era tão verde-negra como de manhã. O orvalho secara, a poeira era branca. Pássaros gritavam sabe-se lá de onde, no ar não se via nenhum. No caminho de volta ao hotel, falávamos de botões da saison, de preços e prazos de entrega.
Dos quartos da frente do hotel via-se a estação vermelha de um só piso. Presa a uma estaca perto dos carris, pastava uma cabra branca. No círculo do baraço comia flores azuis de chicória e erva crestada. Ou ficava simplesmente ali a olhar para os carris. A noite engolia o chão, a estaca e o baraço. Só ficava a cabra, uma mancha reluzente. E muito acima, no frontão do telhado, brilhava o relógio da estação.
Era já a segunda noite que eu ficava a olhar da cama para o mostrador do relógio. Os comboios de mercadorias cruzavam o céu, dormir estava fora de questão. Desde o primeiro dia que o tempo aqui era de serviço, e também a noite, a abarrotar de comboios. Quando por uns momentos não passava um, o corredor enchia-se de estrondo e vozes de homem, e todas falavam russo. Já na segunda noite, à cautela, eu pusera debaixo da almofada a pesada jarra de flores, de cristal polido. A água da torneira sabia a cloro, e o cloro sabia a sono, de que eu sentia falta. Bebia sem sede, só para ter uma desculpa de me levantar e deitar de novo. À noitinha comíamos no restaurante. Junto da nossa mesa redonda, encostada à parede, havia uma mesa comprida para os dias de festa. À volta dela contei trinta e quatro homens baixinhos com ossos largos do rosto, olhos e cabelos negros como a noite, fatos de verão de pano cinzento e camisas brancas sem colarinhos.
À noite querem sentar-se todos numa mesa só, disse o empregado, para poderem conferenciar sobre como se mija a cavalo e prega botões com a foice. É uma delegação do Azerbaijão, há já uma semana em intercâmbio técnico aqui na fábrica de botões e, a seguir, ficam mais uma em visita de confraternização.
Onde, perguntei eu.
Também na fábrica de botões, disse ele e piscou o olho. Mas a confraternização começou logo no primeiro dia. Desde que chegaram, depois da meia-noite, recebem a visita de cinco meninas da fábrica de botões, lá nos quartos do rés do chão ao fundo. Há ajuntamentos diante das portas e atrás delas, uma gemideira de gaita de foles. Só de a gente ouvir, é de caixão à cova. É um que se esvazia o ranho, é outro que se lhe monta em cima. A cidadezinha tem novos rebentos a caminho, sou eu que lhe digo, e vão sair uns semiasiáticos ranhosos de narizinho achatado.
Na mesa comprida era sempre um e o mesmo que falava, frases roucas, rápidas, como se ralhasse sem irritação no rosto. Os outros escutavam, aqui e ali riam todos, ele também, que mesmo agora acabara de ralhar. Muitas vezes olhava na minha direção. Deixei que olhasse para dentro dos meus olhos, porque não tinha coisa melhor para fazer. O Nelu revia comigo os botões da saison. Eu gostava de ter feito alguns comentários sobre os azerbaijanos, mas só por dizer quantos ali estavam tive de ouvir o responso do Nelu:
Não se contam as pessoas, elas dão por isso.
E se derem, porque é que não se hão de contar, afinal elas estão lá. O campo das urtigas ou a cabra da estação seriam assuntos mais inofensivos, mas o Nelu não tinha olhos para essas coisas. Parecia-me bem descansado. Pelos vistos consegue dormir com o barulho dos comboios, pensei eu, ele e a cabra. Um indivíduo que anda a toque de relógio, que dorme de noite para trabalhar de dia, foi feito para viajar em trabalho. A razão desta viagem mostrara-se ridícula desde o primeiro dia. Encomendar botões na estrada das urtigas, onde até os olhos se nos põem em bico e as montanhas de roupa da nossa fábrica ficam lá tão longe. Era já a terceira noite que eu ficava a olhar para o relógio da estação desde as onze horas. Entretanto eram duas em ponto. Vindos de muito longe, os comboios reboavam como árvores, depois como ferro no céu, para finalmente explodirem dentro da cabeça. Deixavam feridas no silêncio, os cães ladravam até passar o comboio seguinte. O meu cérebro deixou-se esvaziar. Não passava no momento nenhum comboio, quando alguém bateu à porta do quarto. Tirei a jarra de debaixo da almofada e gritei:
Pachiol tovarich.
Sou eu.
O Nelu estava na soleira da porta, de pijama e descalço.
Estou a bater há um bom bocado.
Pensei que conseguias dormir, eu não consigo pregar olho junto desta estação.
Ele sentou-se na cama com a cabeça entre as mãos. Abri a janela e vi a mancha luzente da cabra a dormir no escuro, o semáforo vermelho muito para lá do relógio e, já nos arrabaldes, um verde. O Nelu deitou-se.
Não consigo adormecer por tua causa.
A janela ficou aberta, nós cobrimo-nos. Eu sabia que se seguiam os nossos gemidos famintos, como o dos comboios sobre os carris. Não tinha nada contra. Depois de um dia e uma noite neste descampado, estava por tudo, teria recebido qualquer azerbaijano de jarra na mão, para depois o aceitar entre as pernas. O Nelu arfou, agarrou-se com força aos meus peitos, pele contra pele nos deitámos junto a uma estação, e ele falou de amor. Deixei-o falar.
Deixa lá, posso contradizê-lo depois da viagem terminada. Comigo talvez os sentimentos precisem de algum tempo.
O Nelu veio todas as noites por volta das onze. A luz do teto ficava apagada, a lâmpada por cima do lavatório, acesa. Uma curva de pescoço que continuava para o ombro, as linhas das pernas e dos braços arqueados a esbater-se, dois olhos brancos presos, isto era o Nelu. Tudo o resto estava no escuro. O que o descampado daquela cidade arrasara, o amor devia redimir. Ele queria-me a noite toda, a sua carne e o seu cérebro convergiam, encontravam-se lá onde uma pessoa já não pensa. Eu não conseguia nada, gania sem esquecer onde estava. Olhava para o relógio da estação e ele devolvia-me o olhar. Mantinha o pensamento claro na cabeça, como o mostrador dividido no frontão. Só por mim não teria dado este passo contra o descampado. E a dá-lo, seria com um azerbaijano. Ter-me-ia encurtado a noite, um ou todos os que ainda viessem. Mas depois, no restaurante, não o reconheceria na mesa comprida. Todas as noites, à ceia, teria a impressão de procurar um botão específico entre trinta e quatro idênticos. Por isso, todas as noites podia vir outro qualquer, por fora não havia diferença. E a haver, só o teria notado pelo seu jeito especial. Ou também eram idênticos na cama. Depois da viagem de serviço, nunca mais teria encontrado o homem das dez noites, ou os dez homens de uma noite. Quem começou foi o Nelu, não fui eu a instigadora. Todas as noites, por volta das duas, eu mandava-o para o quarto dele. Até na última noite ele foi contra vontade, mas obedeceu conformado, para não estragar o arranjo.
Antes do regresso a casa, às cinco da manhã, a cabra zanzava em torno da estaca. Dei-lhe um pedaço de pão. Ela pôs-se a comer sem antes o cheirar. Mal me sentei no comboio, adormeci. Recuperei de todas as noites anteriores, deixei de ouvir qualquer reboar ou o que fosse à minha volta. Quando o comboio entrou na estação e o Nelu me acordou, tinha a minha cabeça no seu ombro. Como é que isso foi acontecer. Caminhámos na manhã ruidosa da cidade até à paragem do autocarro. O Nelu levava o saco de um lado, eu o meu entre nós, para ele não me poder pôr o braço livre por cima. Já diante da estação vermelha, quando a cabra comia o pão no frio da manhã e o Nelu punha o casaco pelas costas, eu sabia: Muito tempo ainda temos pela frente, mas amor, nenhum.
Nos dias seguintes, antes de sairmos do trabalho, eu dizia no escritório:
Não, não vou contigo para tua casa. Não, também não vens para minha casa.
Porquê, perguntava o Nelu.
Dez dias ou três anos, os homens precisam sempre de um motivo. O Nelu dizia que era impossível não haver um. Depois da separação do meu marido, eu queria ter uma vida que combinasse com o meu cabelo curto. Partir enquanto ainda fosse suficientemente jovem para um país bonito, para onde mandam a roupa de exportação. Queria fazer valer aquela roupa, e mais bonita ainda, e um homem generoso que ma comprasse. Três raparigas do estabelecimento de horticultura foram casar a Itália. O meu sogro fizera-lhes muitas perguntas e contou-nos em casa como aconteceu. São homens que querem carne de rapariga de cá, na maioria solteirões, reputados na profissão, que só vêm para casar, depois de morrerem as mães. Senhores carinhosos, cheios de mesuras, de quem não se sabe dizer se são atenciosos se estão caducos, homens bem cuidados na madureza da idade. Para sair desta cepa torta, talvez acabe por me converter aos gostos da Lilli. O requisito não é forçosamente ser bonita, apenas viçosa. E ter um ar discreto. Os casamentos recebem autorização dois anos depois de requeridos. A gente muda-se com a roupa do corpo para o ninho acolhedor de uma família. Tem-se faca e garfo, com um pouco de sorte até de prata, e uma jarra de mármore em cima da mesa. Eu queria matar os dois anos que me separavam desse momento. Queria ir para Itália, ele não tinha nada com isso.
Tu não és o motivo, disse eu, não teve nada a ver contigo. Nem comigo, nós fomos só uma viagem de trabalho.
O rosto dele gelou. Depois aquelas pupilas cintilaram, quadradas. Levantou o braço e deu-me uma bofetada em que se mostrou mais competente do que a fazer café, apertar os atacadores ou aguçar o lápis. Assentou em cheio e a cabeça zuniu. Ri-me, embora tivesse perdido a vontade. Pronto, até pode ter sido justo eu ter caído com a cabeça contra o caixilho da porta. Mas ele ter-me denunciado uma semana depois com os bilhetes para Itália foi uma injustiça. E ainda ter repisado com os bilhetes para a Suécia, que ele próprio escreveu e enfiou nos bolsos traseiros para eu ser despedida, isso foi perseguição. E os bilhetes para a França...
Avozinha, já cá estamos, disse o guarda-freio. A velhota só tem de se levantar, tremelicar com a cabeça umas dez ou quinze vezes, e já está junto da porta. Na porta de trás chocalham vasilhas, arrastam-se sapatos. Eu gostaria de sair aqui, comprar qualquer coisa, pagar uma maçã à peça, que não exige estar na bicha. Se me despachasse, ainda podia apanhar outra vez o elétrico. São quase nove horas, mas ainda falta para as dez em ponto. O Albu não ia dar por uma maçã dentro da carteira. Uma maçã de verão, verde como erva, se bem que as primeiras sejam na maioria bichadas e cheias de manchas parecidas com sinais da pele. Quando se morde, o suco espuma e faz retesar a boca. Uma maçã destas combina com a blusa que ainda cresce. Podia comê-la durante a viagem, ou logo quando descer, pouco antes das dez. Também posso guardá-la. Se o Albu me retiver, vou ficar muito tempo de estômago vazio. Mas, e se a maçã estragar o efeito da noz e o Albu me retiver lá por causa dela. Além disso, mesmo com fome, não deixarei de me lembrar que a maçã na carteira se pode ter misturado com as coisas de lavar os dentes. Irei comê-la muito contrariada, a fome não pode ser tão grande que me vá saber bem. O da pasta salta do lugar e vai ter com o guarda-freio: Vou também depressa comprar aspirina, ainda paras aqui um bocado. Já não muito, diz o guarda-freio, também precisava de tomates, mas estamos atrasados. Se esperares, eu trago-tos, diz o da pasta. O guarda-freio abre a sua garrafa: Não, na próxima volta apresso mais um bocado e eu mesmo vou ter tempo. Antes de beber, limpa o gargalo com a mão, como se da última vez tivesse bebido outro pela garrafa que não ele.
Tudo rodava em turbilhão na minha cabeça quando naquele domingo, depois da feira da ladra, fui pela primeira vez sentada atrás do Paul em cima de uma mota. As ruas faziam um arco ascendente. No centro da cidade, famílias numerosas deixavam a porta da igreja e dispersavam sem arredar pé. Os adultos tinham muito que falar uns com os outros depois dos cânticos e das orações, as crianças podiam de novo rir e espernear. Uma velhota de roupas negras e meias brancas atravessava a alameda de plátanos como se atravessasse um vale e chamava:
Georgiana.
E ninguém vinha ter com ela. Mas algumas árvores mais adiante estava uma menina com um laço vermelho no meio da cabeça junto a um cesto de lixo, batia com o sapato de verniz vermelho no asfalto e cantava uma canção. Entre os adultos que tinham continuado o seu caminho no trotar da conversa e a criança que não vinha, estava a velhota que não sabia o que fazer. Olhei para trás ao passar, até o pescoço não dar mais. As roupas negras perderam-se à distância e a mota zumbiu-me por todos os dedos.
Toda a sua vida o papá foi à igreja ao domingo. Quando a mamã, o vovô e eu não íamos com ele, ia sozinho. No caminho de volta, permitia-se uma aguardente e um cigarro estrangeiro, de pé, na tasquinha por trás do parque. À uma em ponto estava sentado à mesa para o almoço. Até nos últimos anos ele ia à igreja, quando estava enterrado em pecados até aos ossos. Com aquelas montanhas de pecados, no lugar dele, eu tinha ficado em casa. Não posso imaginar que ele ao domingo prometesse a Deus acabar tudo com a da trança comprida, se já tinha marcado encontro para o dia seguinte. Eu verificara que a da trança comprida, às segundas-feiras, vinha sem a criança para o mercado. Porque, como o meu papá fazia com a sua mulher, ao domingo ela contava as horas que passava com o seu marido. Segunda, à noitinha, não havia Senhor Deus nem Diabo que os conseguisse manter afastados. Domingo ao almoço, tínhamos duas galinhas na mesa e o que sobrava comíamos à ceia. Das duas cabeças, o papá comia os pentes da crista, porque precisava deles na segunda-feira para o pecado. E eu dividia os miolos com o vovô, para aprender com ele a calar-me. É bem possível que o papá tivesse pedido licença a Deus para o pecado, porque o Senhor devia saber que com a mamã já não se passava grande coisa. Junto da porta da igreja, à direita, estava Jesus pendurado à altura da boca, para os crescidos lhe beijarem os pés nas idas e vindas. As crianças eram levantadas pelos quadris. Enquanto foi necessário, eram o vovô ou a mamã que me levantavam, o meu papá nunca. Jesus já não tinha dedos dos pés, foram-se todos com tanto beijo. O papá disse, era eu criança:
Estes beijos perduram. Quando se morre e se está perante o Juízo Final, eles brilham à volta da boca. Então somos reconhecidos e entramos no Paraíso.
Em que cor brilham, perguntei eu.
Amarelo.
E os beijos que damos uns aos outros.
Esses não brilham porque não perduram, disse ele.
Todos os que viviam em redor da Igreja de S. Teodoro traziam nos lábios uns pozinhos dos dedos dos pés daquele Jesus. Quando quis revezar a da trança comprida e o meu papá não se desaferrou da carne dela, desejei que também os beijos deles perdurassem. Que perante o Juízo Final brilhassem escuros entre os beijos dos pés e denunciassem o impostor.
Uma vez a Lilli disse que a mãe dela já não ia à igreja, porque agora a missa começa com uma oração pelo chefe de Estado.
É justo, disse eu, mas que o marido vá todas as semanas passear os ossos àqueles encontros no quiosque dos jornais, isso ela aceita.
Aceita, disse a Lilli, porque é obrigada.
A minha cabeça ainda chocalhava da viagem, embora o Paul e eu já estivéssemos há algum tempo sentados no Jagdwald. No último troço do caminho, pela mata, os ramos mais baixos metiam-se-nos pelo cabelo. As árvores zumbiam, verdes, o céu inteiro era de folhagem. Eu suplicava, de pescoço encolhido:
Mais devagar.
O Paul empurrou a cadeira dele até ficar colada à minha e beijou-me na boca com espuma de cerveja. Eu ainda estava atordoada da viagem, agora acrescentava-se-lhe o beijo. O coração bateu descompassado, preso por um fio. Quis manter a lucidez, mas a felicidade não me deu tempo. Fui demasiado lenta a entender que uma feira da ladra imunda, cheia de tralha e de gente, de quem eu nada mais queria do que dinheiro, podia trazer felicidade. Que a felicidade na cabeça não precisa de tempo, mas do bom acaso. Dos meus dedos, ora na garganta morna do Paul por baixo do queixo, ora no frio da garrafa de cerveja. Como sabíamos tão pouco um do outro, falámos muito, e quase nada sobre nós. O Paul tinha bebido seis garrafas de cerveja e ainda aguentou mais quando chegaram as famílias à mata para o fim da tarde. Depois do almoço nos blocos de habitação e antes da próxima semana fechados na fábrica, queriam deixar o céu entrar nas suas cabeças mais um instante. Um casal de certa idade, de grossas alianças gravadas com padrões de flores, como era nova moda, ocupou as duas cadeiras vagas na nossa mesa.
É a última vez que te pergunto, disse a mulher.
Eu não sei, disse o homem.
Então quem sabe.
Eu é que não.
Como, tu não, não te faças mais parvo do que és.
Para de deitar perdigotos, esqueci-me, c’os diabos.
Esqueceste foi o juízo, e logo à nascença.
Foi, senão não vivia ao lado do teu cérebro de ervilha.
Vivias numa cabana de lama, junto com a tua mãe.
O que tu precisas destas cenas, minha querida.
Tua querida, não há mais nenhuma que te pegue.
Achas, ainda hás de chorar por mim.
Em que é que estás a pensar agora.
Queres que te diga o quê.
Estavas de certeza a pensar noutra coisa.
Não estava nada a pensar noutra coisa.
Não acredito.
É verdade.
Não é, a gente pensa que estás a respirar e estás mas é a mentir.
É, é, até quando te estou a foder.
Aí, nem tem dúvida.
Para quem se queixa, até que te apetece muitas vezes.
Porque também não serves para mais nada.
Tu falas, mas não passas de um buraco com permanente.
Então, dizes como foi ou não.
Para, não sei de nada.
Então quem sabe...
E tudo recomeçou como um redemoinho na água, o tom azedou, de cabana de lama para galinheiro, de buraco com permanente para colchão com tufos. Os olhos destilavam veneno. A mulher interrogava-o como se ali estivessem só os dois, o homem fixava ferozmente o ar como se estivesse sozinho. O sol continuava leitoso, ouvia-se o rumorejar das grandes árvores, o céu era opressivo, quase não encontrava espaço no meio de tanta folhagem, os sapatos rangiam no cascalho. Ele estava farto da mulher e não podia passar sem ela. E ela tinha-nos aos três debaixo de olho. Também o Paul e eu estávamos ali cativos, calávamo-nos sem nos olharmos, para ela não poder insinuar que fazemos sinais entre nós. Isolados um do outro, escutando, mas como surdos, não chegámos a perceber o que ela queria dele. O Paul tirou a mão de cima da mesa, a mulher esquadrinhou o movimento, olhou para mim e ficou à espera da minha reação. Curvei-me para o Paul, ele agarrou-me no joelho e disse:
Anda.
Voltei a endireitar-me, mas ela ficou à espera que a mão do Paul aparecesse em cima da mesa. O Paul deve tê-lo pressentido e deixou-a em cima do meu joelho. Com a outra chamou o empregado.
Deixa-me pagar, a aliança vendida vai ficar muito feliz, disse eu.
Eu queria disfarçar um pouco a felicidade, os dois estavam de momento calados e à escuta, como o Paul e eu estivéramos até então, e eu estava feliz porque também eles finalmente ouviam alguma coisa e não entendiam nada. O Paul tirou o seu dinheiro do bolso, não quis tocar no meu. A mulher olhou para a sua aliança de casamento e o Paul e eu dissemos ao mesmo tempo:
Então adeus.
Parecíamos dois bonecos de corda a falar. Ela levantou a mão da mesa num gesto curto. O homem olhou como se dependesse do nosso amparo e disse:
Boa sorte.
Na sua situação, precisava dela bem mais do que nós. Partimos por entre as árvores até à torre abaulada. Pela primeira vez nessa noite eu dormi na casa do Paul e fiquei.
Até a carne envelhecer e mais do que nós rejuvenescer, a respiração surda ou assanhada, quase rasgando, assim nos amámos nessa primeira noite. A seguir ouvi ladrar, como se os cães vagueassem pelo céu. Depois a rua adormeceu no tiquetaque do relógio, o chão ficou silencioso. O dia clareou cinzento, o mostrador ainda não recebia luz de fora. Em breve chegaram à rua do comércio as carrinhas da distribuição. Saí da cama e, com as roupas na mão, esgueirei-me do quarto. Parei com pele de galinha no corredor e vesti a roupa sobre a pele morna da cama. Queria enfiar-me rapidamente nos sapatos e desaparecer antes que o Paul acordasse. Depois não o fiz. Poder ficar aqui como esses sapatos no chão, o armário de parede na cozinha, uma faixa de sol resplandecente no espaldar da cadeira, que cresce e mais tarde aparece sobre a mesa. Ficar aqui porque nos papéis que há muito se escrevem na fábrica depois de cada sábado é segunda-feira. Peguei num copo de água e bebi o sabor farinhento da língua. Não ficar aqui como uma compra já feita de feira da ladra, pensei eu, melhor escapulir-me. Quem parte pode sempre voltar. Em cima da mesa estava uma lata vermelha esmaltada, abri-a, cheirei o café moído, fechei a tampa, pousei-a e vi as minhas impressões digitais gordurosas e aquilo que sonhara durante a noite:
O meu papá está em casa, deitado numa mesa de madeira no pátio, de camisa branca domingueira, e junto da orelha esquerda está um pêssego de uma das árvores que ele próprio plantou há alguns anos. Um homem de tórax arqueado e cara de pássaro, que no sonho, contudo, não é o meu senhorio, corta um quadrado do papá através da camisa entre as pontas do colarinho e o estômago, do terceiro ao quinto botão, tão certinho com se tivesse sido traçado à régua. E levanta uma pequena porta de carne esbranquiçada.
Eu digo: Vem aí sangue.
O homem diz: Vem da melancia da mulher dele. Estás a ver, saiu aleijada, não cresce mais e não é maior que um ovo. Vamos tirá-la e pôr lá um pêssego.
Ele levanta a melancia do peito e coloca o pêssego no seu lugar. O pêssego está maduro, com as bochechas vermelhas, mas não está lavado, vê-se pelo pelo.
Pertence à da trança comprida, digo eu, nunca mais cresce, a da trança não o mantém fresco.
Uma coisa tem a favor dela, entende de legumes.
Isto aqui é fruta, digo eu.
Veremos, diz ele.
O homem repõe a portinha no peito, que se ajusta ao milímetro. Vai à parede da casa, abre a torneira da água e lava as mãos com a mangueira do jardim.
Não se cose a porta, pergunto eu.
Não, diz ele.
E se cai.
Está bem vedada, vai cicatrizar, não é a primeira vez que o faço, diz ele, afinal sou um marceneiro qualificado.
Depois de o Paul e eu nos termos amado para além de todo o cansaço que vai e vem, apoderou-se dele um sono calmo e de mim um que semeia imagens. A portinha de carne talvez tenha aparecido por causa da porta ambulante da retrete, o senhorio como cirurgião porque eu agora tinha dinheiro para a renda em dívida. O meu papá e a da trança comprida não tinham razão nenhuma para lá aparecer. O meu desejo de substituir a da trança comprida não tinha o direito de se intrometer na minha primeira noite com o Paul. A lata de esmalte vermelho do café tem demasiada luz. Inexplicavelmente, era ela que fantasiava ao sol, não eu.
Por trás de mim, o Paul tapou-me os olhos.
Estive a pensar, tu mudas para cá.
Não ouvira os seus passos e senti-me como se tivesse sido apanhada com o meu pai.
Não, disse eu.
Mas estava de acordo, como se não tivesse alternativa. Quando tirou as mãos dos meus olhos, estava uma mulher a sacudir duas almofadas brancas na janela obliquamente em frente e eu disse:
Sim.
E tive dúvidas. E no momento seguinte tirei da lata para um recipiente quatro colheres cheias de café e o Paul disse:
Boa.
Era uma palavra bonita porque não podia ser má. O Paul pôs na mesa um frasco de compota de alperce e cortou pão. Um exagero de fatias.
De manhã eu como de pé e a andar, para meter algo no estômago sem tomar o pequeno-almoço. Mas aqui fiquei sentada. Contei do papá e da portinha de pele, da melancia e do pêssego. A da trança comprida eu deixei de fora. Também omiti que a lata vermelha de café refletiu o sonho. E que tive com ela uma sensação de constrangimento. Com as pessoas que não me agradam à primeira, o constrangimento é menor se eu não falar no assunto, como aconteceu com o Nelu quando fui para a fábrica. Contudo, com os objetos, o constrangimento vem de eu gostar deles. Ponho neles pensamentos que são contra mim. Se não disser nada, desaparecem, como o constrangimento com as pessoas. Acho que com o tempo se entranha pelo cabelo.
Depois da separação do meu marido, nos dias de sossego em que mais ninguém gritava comigo, chamava-me a atenção o constrangimento dos outros nestas situações. Na fábrica, na cidade e nas ruas, nos elétricos, autocarros e comboios, nas filas diante dos balcões, ou para o pão e o leite. No cinema, antes de apagarem as luzes, as pessoas penteiam-se, e até no cemitério. No pentear da risca ao meio, em direção à testa, lê-se o constrangimento nos pentes. Só o constrangimento mudo se pode eliminar com o pente, e o pente fica gorduroso. Quem tem um pente limpo fala no assunto e não se livra do constrangimento. Recordei o passado: a mamã, o papá, o vovô, o sogro, o marido, todos tinham pentes sujos, também o Nelu, também o Albu. A Lilli e eu, umas vezes limpos, outras, pegajosos. Sim, esta era a situação do constrangimento entre nós, do falar e do silêncio.
O Paul e eu bebemos o café, o sol estava sobre a mesa. Eu tinha contado o meu sonho e depois não disse mais nada, e sobre os pentes nem uma palavra. O Paul sentiu-se desconfortável com o meu sonho, evitou a minha cara e olhou pela janela.
Nervos frágeis, disse ele, em todo o caso o teu cirurgião prometeu que a porta volta a cicatrizar.
Para lá do vidro da janela, três andorinhas atravessaram um pedaço de céu a voar. Ou voavam a bater caminho ou eram só as três e não tinham nada a ver com as outras que vinham depois e ainda não se podiam contar. Eu devia perder o hábito de contar, mas já os meus lábios se abriam.
Queres saber quantas são, perguntou o Paul.
Há muitas coisas que eu conto. Pontas de cigarros, árvores, ripas de cerca, nuvens ou ladrilhos entre postes de telégrafo, as janelas de manhã até à paragem, os peões entre duas paragens quando vou de autocarro, gravatas vermelhas durante uma tarde na cidade. Os passos do escritório até ao portão da fábrica. É assim que se mantém o mundo ordenado, disse eu.
O Paul trouxe um retrato do quarto, que não estivera na parede, senão eu tinha visto. Mas tinha moldura e uma barata espalmada debaixo do vidro.
Quando o meu pai morreu, emoldurei a fotografia e pendurei-a no quarto. Esteve lá dois dias e depois apareceu a barata, que entrou para a família. A barata está cheia de razão, quando alguém morre, temendo por si próprias, as pessoas fingem ter amado mais o morto do que aqueles que ainda estão vivos. Então tirei o retrato da parede.
Além da barata, vi também a mãe do Paul, de covinhas no rosto, com um braço apoiado na anca esquerda do vestido de verão, o outro pousado na anca do marido. O pai do Paul estava de boné, camisa aos quadrados, mangas arregaçadas, calças largas pelo joelho, meias pela barriga da perna e sandálias. Tinha um braço pousado à volta dos ombros da mulher, o outro apoiado na anca direita. Ambos da mesma altura, muito atracados, os braços nas ancas como duas asas de louça. Nessa altura eu ainda não associava nada às faces encostadas. À frente dos pais, um dos primeiros carrinhos de bebé com persianas que se podiam fechar. As do retrato estavam abertas e no carrinho estava o Paul sentado, a pala engomada da touca como uma meia-lua sobre a testa, um laço por baixo do queixo, caindo-lhe sobre a barriga. A orelha esquerda a sair-lhe pela touca. Ele tinha a mão esticada para cima, segurando uma pá de brinquedo. E a cair do carrinho, pontapeado para os fundos, o cobertor. Atrás da família, uma colina, ameixieiras de flores brancas e, bem em cima, o consórcio metalúrgico, desfocado como o fumo que saía das chaminés. A família operária na felicidade da indústria, uma fotografia digna de jornal. Nesse momento, ali à mesa e ao sol, tive de contar do meu sogro perfumado em cima do cavalo branco. A fotografia também era dos anos cinquenta.
O teu pai é completamente diferente do que está a cavalo, disse eu, e contudo, são os dois comunistas. Um nos altos-fornos da cidade, o outro de luzidias botas de montar pelas ruas da aldeia. Um trabalha como um mouro e mantém o aço incandescente mais alto que o próprio discernimento, o outro cavalga, trama as pessoas e cheira a perfume.
No dia do meu casamento, o meu vovô só dançou uma valsa comigo. Encostou a boca contra o meu ouvido e disse: Já em 1951 esse cão tresandava a perfume, e é um desses que nos vai entrar para a família. Quer repetir a sua pandegazinha connosco, não é. Quer comer aqui connosco, não é. Pois bem, irá ter o seu prato de honra. Nem sabe o que o espera lá em casa, meto-lhe veneno na comida. A calma com que o disse, a facilidade com que respirava e conseguia manter o compasso da valsa, como alguém que faz o que promete. Por fora, o meu vestido comprido ondeava, por dentro, eu era uma estaca. Várias vezes ele me pisou a bainha e pediu desculpa. Eu só dizia:
Não faz mal.
Estar com o vestido comprido pelos cabelos muito contribuiu para o meu desejo de que ele continuasse a pisar até eu deixar de estar lá dentro. Depois da dança, conduziu-me pelo salão até ao meu lugar na cabeceira da mesa, junto do meu marido. Três cadeiras adiante, o meu sogro inclinou-se sobre o ombro da filha, o brinco dela estava aberto. O meu vovô acariciou a minha manga.
E é com esse que queres ficar.
Já não consegui perguntar se se referia ao sogro ou ao meu marido. Ele afastou-se pelo salão, referia-se aos dois. Procurei-o com os olhos. O meu marido puxou para si a minha mão, para que também os meus olhos para ele se voltassem. E quando os meus olhos o encontraram e os dedos lhe pousaram nas calças pretas entre as suas mãos, senti que a manga branca se estendia para muito longe. Ainda mais ardentemente desejei que para sempre ele segure os meus dedos e comigo viva, como se fossem suas as três mãos. O que aperreia o meu vovô não é culpa nossa. Depois a música voltou a tocar e serviram a comida. Os empregados avançaram com as travessas por entre as mesas, entrando pela porta por onde saíra o vovô, que não voltara, nem sequer para comer.
O meu sogro já tinha comido, as mãos brilhavam de gordura, as unhas como se tivessem verniz, faces acaloradas, olhos vivos, nem sinal de veneno. No prato, estavam os ossos de galinha chupados e limpos. Depois a música voltou a tocar. Com ar de marinheiro, jaqueta branca, lenço azul ao pescoço, barrete branco, o cozinheiro avançou para a mesa com o bolo de noiva. Era uma casa em filigrana, três andares com janelas e cortinas de açúcar, duas pombas de cera no telhado. O cozinheiro deu-me a faca para a mão. Tive de cortar a casa atravessando a cobertura branca, penetrando as paredes castanhas, até todos à volta terem um pedaço no prato. Também à frente do meu sogro tinham sido limpos um prato fundo e um prato raso. Ele estendeu o prato de sobremesa:
Só uma fatia fina, por favor.
Mas com o polegar e o indicador mostrava uma grossa. Como se tivesse eu tomado o veneno, ouvia mal e sufocava, o coração entorpecia. Fui à procura do vovô. Não estava lá fora na rua, nem na cozinha em frente, nem ao pé dos instrumentos na arrecadação dos músicos. Estava sentado ao pé das barricas de vinho e aguardente, à espera de nada e ninguém, e disse quando me quis sentar junto dele:
Aqui vais sujar o vestido.
Encostei-me à escada de incêndio no canto.
Enquanto ele se perfumava, fomos conduzidos em manada para a estação. Seguiram-se duas semanas dentro do comboio, depois parámos cerca de quatrocentas e cinquenta famílias diante de um poste, perdidas no mundo. Filas de postes em linha reta, em cima o céu, em baixo o barro, no meio nós e aqueles cardos disparatados. O sol tudo crestava. Dias a fio, a tua vovó e eu escavámos um buraco na terra onde estava o poste e tapámo-lo com cardos. A pele rasgava ao colhê-los. O vento leste apagava-nos aos poucos, e aquela sede, nem uma gota de água no raio de três quilómetros. Púnhamo-nos a caminho do rio com tachos e alguidares, mas até chegarmos outra vez ao buraco, tínhamos entornado a água toda. Tivemos sarna e piolhos, a tua vovó teve de ser rapada, eu também. Mas com as mulheres é diferente, até os cardos tinham aqueles cabelos brancos que voavam por todo o lado, o vento não dava descanso. A tua vovó dizia: Vês, está aí o cavalo branco, vem atrás de nós, vamos ganhar pelo. Batia no ar à sua volta e gritava: Vai-te embora. Começou a deambular, nos dias mais longos também já não encontrava o caminho de volta pelo meio dos buracos. Eu gritava: Anastasija, Anastasija. O seu nome ouvia-se atrás de cada folha de cardo e ela não respondia. A sede ainda piorava mais com os gritos. Quando depois a encontrava, ela estava a comer barro, como se sorvesse a água. Muitas vezes ainda se ria com os dentes castanhos partidos. A gengiva ficava uns tempos rasgada, depois mirrava, depois sumia. Nada mais sangrava. Olhos de coruja e aquele ranger de dentes, era um fantasma aninhado no barro. Eu morria de sede, ela nem se incomodava, agarrava terra e sorvia. Eu batia-lhe nas mãos, na boca. Com medo do cabelo dos cardos, ela arrancara as sobrancelhas e as pestanas. Nus como a cabeça estavam também os olhos, duas gotas de água. Meu Deus, com a sede que eu tinha, como desejaria bebê-los. Fiz da minha missão impedir que morresse, prendê-la à vida com toda a força, porque com amor já não era possível. Batia-lhe cada vez com mais fúria, porque ela já não sabia o seu nome, nem a idade, de onde vinha, nem com quem. Estávamos os dois a um passo de espichar as canelas, ela impiedosamente louca e boa e eu danadamente lúcido e mau. Ela desertou de si mesma e deixou-me num mundo deserto. Também a morte gritou pela Anastasija, mais alto do que eu. Aquela falsa morte, a que ela se entregava toda. Quem é que consegue aceitar sem reagir, eu tinha de bater, e muita gente assistia e ninguém se metia de permeio. Havia outros que não estavam melhores do que eu, mas isso não era da minha conta. Eu era bruto e ela continuava boa, era essa a situação. Eu não estava bom da cabeça. Empurrava-a pelo cachaço exultante de alegria e gritava: Nem vais acreditar, nós vamos secar como vagens de feijão, aqui ninguém se transforma em cavalo. Compreendeste, aqui não cresce nem sequer uma árvore para fazer um caixão. Já estou a ver, nós vamos ser os nossos próprios caixões. Umas vezes ela arrastava os pés e cerrava os olhos com força, outras vezes ficava ali dependurada, de olhos pregados em mim e perguntava: És o guarda, eles pagam-te. Graças a Deus não pensava que o canalha era seu marido. Mal repousou na cova, chegou o primeiro inverno. Ela é que estava bem, já não teve de ver quanto cabelo branco agora caía. A neve flagelava, nunca nenhuma cobrira a terra com tanta crueldade. Não pousava, só a víamos correr. O sol afiava-a, eram ondas e ondas como facas. No verão, também o barro corria com o calor, ora amarelo, amarelo-rubro, cinzento. Às vezes branco-azulado, como se tivéssemos nadado até aos confins do céu, e ficávamos mais atordoados do que já estávamos. Mas a neve queima de modo diferente do barro, mesmo quando se lhe viram as costas, deixa os olhos vazios. Muitos de nós perdemos o juízo, sozinhos ou a dois, já não importa. Pouco depois de ela morrer veio um trator e arrasou os nossos buracos na terra. Agora tínhamos de construir, afinal éramos seres humanos, disseram-nos, e que tirássemos da ideia que íamos voltar para casa. Talvez fosse melhor assim, tive de pisar muito barro e secar muito tijolo, o tempo estava molhado, logo chegou o inverno. Não sobrava tempo para pensar. Troquei as roupas dela, cheias de bolor, e arranjei sete tábuas. Construí uma casa como todos os outros, consegues imaginar, 8 metros de comprimento, 4 de largura, eram as medidas obrigatórias, 2300 tijolos faziam uma casa. Cada tijolo 38 centímetros de comprimento, 20 de largura e 12 de espessura. E cada parede com espessura equivalente ao comprimento do tijolo. Com o tempo que fazia, ficou tudo cambado e torto. E para o telhado, palha, cardos, erva, que o vento constantemente arrancava. Na parede exterior a gente pintava um sinal, um quadrado, bicos, um círculo, uma espécie de número da casa, porque os algarismos estavam proibidos. Para vencer a morte, pintei um cavalo. Eu soube até ao fim que nenhum de nós se transformaria em cavalo. Só aquele sítio se transformava num em cada inverno, porque a neve não parava de correr. Ainda fiquei mais quatro anos na casa, não me perguntes como. Agora é melhor ires, disse o meu vovô, se amas o filho dele, é melhor ires agora.
Que pode ele fazer, perguntei eu.
Ele levantou os olhos.
A pergunta está mal feita.
Que posso eu fazer, perguntei.
Que pode ele desfazer, disse o vovô, nada, não pode.
Quando voltei ao salão, desejei que alguém me arrancasse para fora da minha pele. Como ninguém o fez, atafulhei eu lá para dentro qualquer coisa. No bolo de noiva ainda se mantinha de pé meia parede com duas janelas, comi uma cortina. O meu marido dançava com a mãe e respetiva carteira branca de verniz, que bamboleava nas costas dele. O meu papá dançava com a cornija de cabelo branco da minha mamã. O meu sogro dançava com a filha e seus sapatos brancos. Olhei por mim abaixo, aquela cor estava a tomar conta da família. Quem poderá desfazer o enguiço, alguém tinha de poder.
Entra um cavalo no pátio do campo
tem na cabeça uma janela
vês como se ergue azulada a torre de vigia...
cantava às vezes o vovô a trabalhar no jardim, e não era uma canção nupcial.
O carro elétrico está parado nos semáforos. Outra vez vermelho, diz o guarda-freio, mas para quem. Passa uma semana inteira sem que alguém aqui atravesse a rua, mas esses gajos plantam os semáforos e nem o cu gordo levantam dos gabinetes. Não há um que venha à cidade ver onde os seus semáforos ficaram. Ainda recebem prémios pelo lindo serviço e a mim cortam-mos pela demora nos trajetos. Os passageiros de pé olham para os semáforos e calam-se. Um deles não aguenta e espirra. Uma vez e duas e três. Mas não é por causa dos semáforos que alguém espirra, é por causa do sol que espirra, e quatro e cinco vezes. Não suporto quando espirram tantas vezes, sempre homens pequenos, magricelas que não conseguem parar e não têm maneiras. São uns rafeiros, põem a mão à frente quando muito da primeira vez, depois nunca mais. De todas as vezes se deseja que aquele seja o último e mesmo assim não se consegue deixar de esperar pelo próximo. Fica-se doido da cabeça, mas não se para de contar e fazer força com ele. Agora espirra pela sexta vez. Tem é de tapar o nariz e inspirar fundo sete vezes, contar também outras tantas, que passa logo. Então ele não sabe isso, vou ser eu a gritar-lho para a outra ponta do carro. Não, engolir o ar não é a receita para os espirros, engolir o ar sete vezes é para os soluços. Tem é de massajar as narinas até não sentir piquinhos por dentro, essa é que é a receita dos espirros. Os olhos dele já estão inchados como duas castanhas, se não parar em breve, saltam-lhe das órbitas. Que tenho eu a ver com isso. O pescoço está vermelho do esforço, as orelhas a arder. Agora espirra pela sétima vez, atchim, já tenho ar no cérebro só de olhar. Vê se espirras outra coisa que não seja atchim. Pronto, mas agora acabou, não, espirra pela oitava vez. Daquele não vai sobrar nada, vai desfazer-se em espirros, mingar até ficar uma bola de ranho.
O Paul meteu a fotografia na gaveta e perguntou:
O que era o teu sogro naquele tempo, nos anos cinquenta.
Ativista do partido, disse eu, responsável pela expropriação. O meu vovô tinha vinhas nos montes de uma aldeia próxima. O comunista perfumado confiscou-lhe as moedas de ouro e as joias e inscreveu-o a ele e à minha vovó na lista de deportação para o Baragan. Quando o meu vovô regressou, a casa dele era propriedade do Estado. Interpôs uma série de processos até o deixarem morar lá outra vez. A panificadora tinha instalado nela os seus escritórios. Sobre a casa falava-se muito, principalmente às refeições, sobre a vovó só aqui e ali se dizia:
Decidiu morrer depressa, não aguentou aquele primeiro verão maldito. Não conseguiu esperar e não conheceu a casa de argila. O comunista perfumado voltou pela primeira vez à pequena cidade no dia do meu casamento. Irrefletidamente, como se veio a verificar. Deve ter pensado que ninguém mais o reconheceria, ou nem isso. Para ele, a gente daquela terra não passava de uma praga. Talvez tivesse fixado na memória alguns dos que lhe estavam ao serviço. Os nomes da escumalha, ele conhecia-os das listas, mas não as caras. A minha vovó foi só mais uma morta da sua escolha, e houve muitas. Ele quis festejar o regresso. O meu vovô reconheceu-o logo pelo andar e pela voz, apesar de ele se ter apresentado com outro nome. O seu nome de então era o de serviço, o atual é o de batismo. Era filho de um carroceiro que depois da guerra ganhava a vida fazendo carretos com dois cavalos castanhos. Acarretava madeira e carvão para as casas, também cimento e cal. Ocasionalmente também caixões até ao cemitério, quando as pessoas não tinham dinheiro para a carruagem funerária elegantemente entalhada. Nos dias da sua vida, foi mais a bosta de cavalo que varreu que o dinheiro que viu. Para poupar os cavalos, os filhos eram obrigados a correr atrás da carroça apinhada e, quando a carroça parava, a descarregar, também com as pás, ou então a carregar sacos. O cavalo branco significou para o meu sogro uma despedida dos animais de carga. Subiu-lhe para o lombo e tirou o pé do esterco. Atravessava a aldeia escangalhado sobre a sela e odiava todos os que eram mais ricos que um carroceiro. O perfume era a sua segunda pele. Um comunista perfumado, como é que pode existir, perguntei ao Paul. O que é mesmo um comunista.
Eu, disse o Paul. Eu era um menino bem-educado, estava a fazer os trabalhos da escola e o meu pai chamou-me à cozinha. A sua tigela da barba estava em cima da mesa e havia água quente no fogão. Pincelou-me o sabão na cara até entrar pelos buracos do nariz e pegou na navalha de barbear. Nessa altura nem sete pelos na barba eu tinha. Fiquei tão orgulhoso de mim, comecei a barbear-me e ingressei no partido, para o meu pai as duas coisas andavam juntas. Dizia que ele tinha nascido antes do tempo e que não lhe restava senão manter-se a par. Primeiro fascista, depois anarcoilegalista. Mas que eu tinha nascido dentro do tempo e que devia andar à frente dele. Não é sem razão que os poucos verdadeiros anarcoilegalistas hoje dizem: Éramos poucos, mas ficámos muitos. Eram precisos muitos e eles irromperam como vespas da sua antiga vidinha. Quem era suficientemente pobre tornava-se comunista. E também muitos ricos, que não queriam ir para os campos de trabalhos forçados. Agora o meu pai está morto e, tão verdade como o céu existir, lá em cima ele diz que é cristão. A mota era dele. A minha mãe era serralheira mecânica. Agora está reformada e encontra-se todas as quartas-feiras com os camaradas já encarquilhados da sua brigada, lá na confeitaria ao pé da casa de ferragens, na praça do mercado. Quando eu era criança e atravessava a cidade com o meu pai, ele mostrava-me a sua fotografia de melhor operário no quadro de honra do Parque do Povo. Eu preferia olhar para os esquilos, que se chamavam todos Mariana e tasquinhavam pevides de abóbora porque as pessoas não tinham nozes. Podia-se comprar pevides de abóbora à entrada do Parque. É uma exploração, dizia o meu pai, uma patinha de pevides por um leu. E não me comprava nenhuma.
Os esquilos alimentam-se sozinhos, dizia ele.
Eu tinha de chamar as Marianas de mãos vazias e elas vinham, afinal para nada. Quando chamava, metia as mãos aos bolsos. Diante do quadro de honra, no caminho principal, o meu pai dizia:
Rapaz, não se olha para a esquerda nem para a direita, sempre para a frente, mas manter jogo de cintura.
Depois enfiava-me o boné pela cabeça abaixo, que ficava na orelha esquerda mais enterrado que na direita, e continuávamos a andar. No cruzamento, ele piscava os olhos e dizia:
Primeiro olha-se para a esquerda e para a direita, meu rapaz, não venha aí algum carro. Quando se caminha é necessário, quando se pensa só prejudica.
Visitou-me aqui na cidade uma única vez, orgulhoso por eu viver numa torre. Muito diferente de uma casa lá na terra com o monte à frente do nariz, aqui tem-se ar e uma vista. Foi lá fora à varanda, mas já não chegou a apreciar a vista. Esbarrou nas ferramentas e nas antenas e perguntou:
O quê, fazes aqui trabalho clandestino.
Quanto às antenas serem para apanhar programas estrangeiros, ele acrescentou como se falasse com um terceiro:
O meu filho gosta de dinheiro, mas assim o socialismo torna-se numa chalaça. E o que vem a seguir, capitalismo puro. Uma pessoa pode montar antenas até cair para o lado, nunca pertencerá ao grupo dos que nadam em dinheiro.
Eu disse: Ganhar dinheiro não é nenhuma chalaça e não é proibido.
Então ele opinou: Permitido também não é, ou a quem é que foste perguntar.
Qual capitalismo, disse eu, eu não ganho em dólares, e na Jugoslávia e na Hungria vigora o socialismo como aqui, também na televisão.
Nos últimos tempos há no Partido mais aproveitadores do que lutadores, disse ele, bem vistas as coisas o dinheiro corrompe o caráter.
Mas estás a falar do teu filho, disse eu, e só tens um, que sou eu. E tu, também conseguiste alguma coisa que se veja. Uma carreira a fundir ferro para forquilhas de estrume e tratores. Só isso. O Céu ainda não se realizou na Terra. Mas o teu cérebro só floresce em vermelho. Quando te apresentares diante do Senhor Deus, ele vai ver a tua luzinha na testa e perguntar: Então, meu pecador, que me trazes aí. Dois pulmões carcomidos, discos da coluna espatifados, inflamação crónica dos olhos, surdez e um fato coçado, dizes tu. E que deixaste para trás, lá na Terra: A minha cartilha do Partido, um boné de pala e uma mota, dizes tu.
O meu pai riu: Ui, ui, então é aí que chegamos, se te tornares o Senhor Deus. Mas sabes que no Céu também vou ter de me envergonhar por tua causa, porque lá de cima veem o teu trabalho clandestino pelos telhados como se fosse num tabuleiro de xadrez.
Eu já estava farto da conversa, ele não. Olhou para o relógio e disse: Espero que nesta cidade só uma percentagem mínima precise de canais estrangeiros. Quando esses pintassilgos tiverem as suas antenas, acaba-se o negócio.
Eu disse: Tu és mau, velho e invejoso, até de mim.
O meu pai calou-se, resfolegou e enterrou o boné de pala sobre a orelha esquerda. Ficou exatamente como quando eu era criança diante do quadro de honra. Só que agora foi nele próprio que enterrou o boné, depois olhou para o relógio e disse: Isto é uma perda de tempo, e agora estou com fome.
O teu pai estava ressentido, disse eu, ou não tinha sido tão duro nas palavras, mas não era perigoso para os outros. O meu sogro guindou-se aos píncaros e jamais confessará a criatura alguma a razão da sua queda. Existem apenas boatos. Mas que o comunista perfumado ia de casa em casa montado no seu cavalo branco, o prendia à sombra das árvores, e o chicote à volta da crina, isso sabem as pessoas muito bem. E que o cavalo branco se chamava Nonjus. O meu vovô contou que os camponeses eram obrigados a trazer feno e um balde de água fresca. O cavalo comia e bebia, o cavaleiro entretanto espiolhava as casas em busca de ouro e cereal. O traçado dos campos estava numerado nos papéis que trazia. Depois de cada expropriação, voltava para o cavalo branco, tirava-lhe do pescoço o chicote, uma corda multicolor de couro entrançado. Na extremidade da corda havia uma borla de seda e na extremidade do cabo uma tampa de chifre aparafusada. Ele desaparafusava-a, lá dentro tinha um lápis. Tirava do casaco uma folha de papel e riscava um número. Quando cavalgava pela aldeia, seguia-o o ladrar dos cães. Estes pressentiam que o homem do cavalo roubava a paz da aldeia. Ele odiava aqueles cachorros, o chicote estalava no ar e ainda os acirrava mais. Pequenos como eram, gatos ladradores, davam cambalhotas junto dos cascos. O terceiro, quarto, às vezes décimo estalar de chicote acertava-lhes no cachaço ou entre as orelhas. Depois picava a cavalo, os cascos mal se ouviam no meio da poeira. Só se retiravam os cachorros da rua quando era noite avançada e se sabia que ele já não saía a cavalo. Entretanto eles ficavam por ali deitados como mortos, as barrigas descoradas inchando ao sol, os olhos e os focinhos entregues às moscas. Aos Serviços de Segurança ele entregava grandes lavradores, médios, depois pequenos. Era muito aplicado, com o tempo eram já demasiados e demasiado pobres. Os senhores da cidade devolviam vários deles à aldeia logo no primeiro comboio.
Uma manhã o cavalo branco apareceu morto no estábulo, envenenado com farelo. Dia e noite os homens das redondezas foram interrogados e espancados nas instalações administrativas, dois lacaios, dois salafrários da aldeia, revezaram-se no cumprimento da tarefa. Três homens foram incriminados e presos. Todos os três estão mortos, mas não foi nenhum deles. Durante a noite, o cavalo branco foi carregado num trator pelos dois salafrários e enterrado num vale entre a aldeia e a cidadezinha, para lá dos vinhedos. O meu sogro acompanhou-os. Ele e um dos salafrários iam sentados no atrelado, ao lado do cadáver, com a lanterna à prova de vento. Tiveram de beber aguardente porque o fedor do cavalo era insuportável. O outro escroque ia sóbrio ao volante, rumo às colinas. Tinha chovido muito, o trator ficava atolado na terra mole. O sujeito ao volante contou no dia seguinte que os grilos, as rãs e outra bicharada noturna gritavam à porfia nas ervas lavadas de fresco e que o cadáver do cavalo fedia até à lua. Estivemos numa apertada dos diabos, disse ele. O grande comunista ficou possesso esta noite. Andava à deriva pela lama, soluçava, praguejava. Não parava de vomitar, os olhos quase rebentavam, já não tinha nada no estômago. Depois de aberta a cova e descarregado o cavalo do trator, atirou-se ao chão e pendurou-se no cachaço do bicho. Não o queria largar. Os dois facínoras tiveram de arrastá-lo para dentro da cabina e amarrá-lo ao banco. Foi lá que ficou sentado na viagem de regresso, amarrado, sujo, vomitado e mudo. Quando o trator, a meio do caminho, chegou outra vez ao cimo da colina, o motorista desamarrou-o e perguntou: Quer que façamos uma pequena pausa. O desamarrado abanou a cabeça com ar ausente. O brilho da lua penetrou nos seus olhos, que luziam mortos como a neve. Começou a rezar por entre os roncos do trator. Gaguejou um padre-nosso atrás de outro até se avistarem as casas na orla da povoação. Na aldeia ainda hoje se acredita que aquele enterro foi o seu fim. Naquela noite, o medo que habita em cada um de nós não se apossou só do comunista aristocrata. Naquela apertada dos diabos, também os seus dois facínoras ouviram tocar o sininho da morte. O motorista começou a ir à missa e contava a todos os que quisessem ouvir sobre a noite do enterro. O comunista perfumado foi transferido de zona. Nunca desvaneceu o boato de que o motorista não só enterrou o cavalo como ele próprio o envenenara. Desapareceu por algum tempo, na aldeia acreditava-se que tinha sido preso como merecia. Mas voltou a aparecer e, uns dias mais tarde, só lhe restava a mão esquerda. Como todos o conheciam, ele quis desaparecer do mapa e candidatou-se ao lugar de sacristão numa outra aldeia, onde foi aceite. Lá, a versão que contava era que tinha perdido a mão na guerra. Depois de ele se mudar, encontraram-na dentro da lata da farinha, na cozinha dele. Como alguns anos a seguir à guerra só aceitavam aleijados como sacristães, ele próprio decepara a mão.
O Paul estava a fazer café, a água assobiava ao lume, diante da janela da cozinha voou um melro e pousou no peitoril de zinco a bicar a própria sombra.
Durante um tempo vinham dois, disse o Paul, depois apareceu um no chão junto da entrada, cheio de formigas.
O Paul mexeu o café, a colher chocalhou, levei o dedo indicador à boca.
Chhh.
Podemos continuar a falar, de qualquer modo ele voa já daqui.
Mesmo assim pousou a colher sem ruído. Sobre a mesa, diante das minhas mãos, a lata vermelha de café, a compota amarelo-ovo e as fatias brancas de pão. Lá fora um céu a prumo, o bico amarelo-pálido e as penas de alcatrão. Cada objeto tinha o outro debaixo de olho. O Paul deitou o café nas chávenas, o vapor roçou-lhe pelo pescoço. Tamborilei na chávena e apontei com o dedo quente para a janela. O melro fugiu, o café ainda estava demasiado quente.
O comunista perfumado, disse eu, foi transferido para a horticultura, foi por lá que ficou. O efeito do cavalo branco resiste até hoje e ele continua a não pertencer à ralé apeada. Desde então que nunca precisou de trabalhar. Como não tinha serventia, nem como chefe nem como operário, tornou-se supervisor e assim permaneceu. Aprendeu a debitar fluentemente nomes de plantas em latim como se fosse uma oração. Aos domingos ia passear com a mulher, a filha e o filho, e mais tarde também eu fazia parte do grupo. Quebrava um ramo pequeno dos arbustos, sempre um direito, arrancava-lhe as folhas e apontava com a sua varinha para as sempre-vivas e dizia vinca minor e tudo o que sabia sobre elas. Junto a um banco dizia aruncus dioicus e tudo o que sabia sobre a ulmária. E no caminho seguinte epimedium rubrum e plumbagum. Junto a uma vala crescia a sua hosta fortunei. A gente tinha de parar e escutá-lo. O meu marido dizia que antigamente ele ainda era mais severo. Se ele ou a irmã riam, ficava dias sem lhes dirigir palavra. No último verão, quando eu ainda morava com eles, quis ir buscar margaridas para a jarra ao jardim das traseiras. Vi o meu sogro a falar alto sozinho junto à nogueira, não só com a boca, também com os pés e com as mãos. Estava tão compenetrado que só quando cheguei ao pé dele reparou em mim. Ele sabia que o devia ter visto o caminho todo até lá, sorriu sem embaraço e fez-me a pergunta que devia ter sido eu a fazer-lhe:
O sol faz-te dores de cabeça.
Não, venho apanhar margaridas.
Estás mesmo bem.
Estou e tu.
Eu, porquê. Ainda tenho o nariz no meio da cara.
Eu também, e mesmo assim perguntas.
Não posso queixar-me, disse ele.
Pus-me a pensar se não haveria dele dois exemplares. Um calmo de perto, e de longe outro, no qual os mortos taramelam. Para os afugentar, precisa de sacudir a sobrecarga. Às escondias, se possível. Se não, em público, mas de forma a que o admirem, não que o lamentem. E a melhor forma de o conseguir é a dançar. Estávamos sós em casa, eu e ele. O meu marido e a minha sogra tiveram que fazer na cidade. Eu não colhi mais margaridas, não por medo dele, mas, é claro, das margaridas brancas...
Já nesse tempo, debitar nomes em latim não fazia nascer as folhas. Tirando o enxerto de rosas, as mãos dele não tinham aprendido nada. Há dois anos, o horto teve de providenciar coroas de flores para o funeral de Estado de um diretor fabril, vinte coroas do tamanho de rodas. O meu sogro queria evidenciar-se e mandar compor algo de especial. Encomendou lírios-laranja e feto, em vez das eternas coroas de cravos e hera. No cemitério dos heróis, em vez de coroas de flores foram tufos de melena castanha que a carrinha descarregou. Ao fim de vinte anos, ele ainda não fazia ideia nenhuma de que os lírios-laranja murcham em meia hora. Quiseram despedi-lo, mas ele tinha as costas quentes da engenheira-chefe. Vinte e oito anos mais nova do que ele, bem constituída e acabadinha de se formar, conseguia correr sem parar de um lado para o outro e comandava melhor do que ele. Os dias de trabalho eram longos, o céu quente, o verão verde. O meu sogro tinha começado a agarrar-se à engenheira-chefe quando o mês de junho entrava pelo de julho dentro e a folhagem crescia densa na madeira dos arbustos. Ela não se mostrou nada avessa desde o princípio. Nesse ano não houve muito pulgão nem ácaro, ambos tiveram tempo livre. A inspetora das pulgas assegurou ao diretor que os lírios-laranja são geralmente duradouros. Que este verão, nos círculos especializados, se fala muito do míldio da França meridional, que ataca os cemitérios, porque não se combatem os parasitas nas campas, para não perturbar o sossego dos mortos. Quando as plantas recentemente cortadas são trazidas para perto, a flor seca no momento, não se salva uma. Com os cravos teria acontecido a mesma coisa, disse ela ao diretor. E o diretor acreditou na ciência dela, porque a sua, embora ele estivesse em cima da reforma, não ia muito além da distinção entre o cravo e a camomila.
Bem gostava de saber quantos da nossa torre, das lojas lá em baixo, da fábrica, ou da cidade inteira foram já intimados. Deve acontecer diariamente muita coisa por trás de cada porta dos corredores do Albu. O da pasta, que foi a correr buscar aspirina, não o vejo no carro. Talvez tenha perdido o elétrico, ou então estava cheio de mais para ele. Se tiver tempo, pode esperar pelo próximo. Ao meu lado sentou-se uma mulher, o traseiro mais largo que o assento, ainda por cima instalou-se com as pernas abertas e um saco no meio delas. As coxas esfregam em mim. Remexe no saco e tira um cone em papel de jornal com uns papos amolecidos cor de sangue. Pega numa mão-cheia de cerejas, logo cerejas. Os caroços, cospe-os para a outra mão. É um atrás do outro, nem sequer os chupa até ao fim. Cada caroço leva polpa agarrada. Para quê tanta pressa, ninguém lhe come as cerejas. Será que já foi intimada, ou algum dia será. Em breve terá a mão tão cheia de caroços que nem poderá fechar os dedos. Por mim podia cuspi-los para o chão ou deixá-los cair discretamente, não me incomodava nada. Há gente de pé até junto do guarda-freio, com certeza também não os incomodava. O guarda-freio só vai dar por eles à tardinha e vai irritar-se porque vai ter de varrer o carro, mas haverá também outros restos do dia pelo chão. Que raio foi passar pela cabeça do velho oficial com a Lilli. Todos os anos há e haverá uma estação das cerejas, das cerejas de maio às de setembro, enquanto o mundo for mundo, quer a gente queira quer não. De que lhe serviu aquilo, agora na cadeia não vê nenhuma. Que bom o carro elétrico estar tão cheio, já tenho espaço de sobra quando estou com o Albu. E na viagem de regresso, se ainda houver hoje. Quando fica tarde, há menos elétricos. Lá terei eu de esperar, subir para junto dos raros passageiros dentro daquela absurda luz amarela. A essa hora da noite, se algum deles sentir apetite de cerejas, quem sabe a seguir ao jantar, pois que as coma à vontade.
Só dois dias depois é que fui ter com o meu senhorio. Paguei as dívidas, dois mil lei. A pele que lhe cobria as mãos era tão fina como a da cara. Eu contei-lhe as notas para a mão e ele disse que acompanhava a contagem só em pensamento, mas eu ouvia-o murmurar. Uma nota amarrotada caiu ao chão, eu apanhei-a, mas não a alisei, estava retorcida e a mão do senhorio não a agarrou direito. O velhote a receber era pior do que eu na feira da ladra. Em que estaria ele a pensar quando disse:
Meu Deus, tenho as mãos sujas de descascar batatas, hoje vou fazer puré. Gosta.
Eu já comi.
Com escalopes e salada.
Naquele momento vejo-lhe a sair do bolso um cabo de madeira, e é de uma faca. Não deixou a faca das batatas na cozinha quando lhe toquei à porta, enfiou-a no bolso. Ou porque espera alguém e a quer ter consigo. Ou porque se esqueceu da faca na mão e só ao abrir a porta descortinou que uma faca assusta qualquer visita. Conto-lhe depressa o dinheiro na mão, para sair logo dali. Mas afinal acabámos por fazer um negócio. Ele sorriu e pipiou e comprou-me o frigorífico e os tapetes e deu-me uma nota de cem a mais do que aquilo que tinha recebido. Para a ir buscar, regressa à cozinha. E quando volta com outra nota de cem, continua com a faca no bolso da jaqueta, ou porque se tornou a esquecer ou a manteve de propósito.
Mudo-me para ir viver com um homem e uma mota, disse eu.
O da feira da ladra, disse ele.
Conhece-o, perguntei eu.
Se for o mesmo.
Também esteve na feira da ladra.
E no Jagdwald, disse ele. Agora só volto a alugar no inverno, quando o aluguer é mais caro. Não para si, se alguma coisa correr mal, volte para cá.
Foi por isso que comprou o frigorífico e os tapetes.
Porque me faz falta.
No momento não tive a certeza se se referia às coisas ou a mim e disse:
Eu moro na torre abaulada.
Ele sabia onde ficava.
Na primeira manhã da torre abaulada, o Paul e eu ficámos a falar até o sol chegar ao meio-dia. Fiquei espantada de quanto é preciso recuar até às mães e aos pais, só para dizer de onde um de nós veio antes de encontrar o outro. Lenços, bonés, carrinhos de bebé, pessegueiros, botões de punho, formigas, até a poeira e o vento tinham o seu peso. Não falta assunto sobre os anos que passaram, se o passado foi mau. Contudo, se tivéssemos de dizer quem somos neste momento de respiração, a todo o comprimento da língua nada mais restaria que um duvidoso silêncio.
À tarde o Paul foi à loja comprar uma garrafa de aguardente amarela de erva-búfalo. No céu da tarde subia o sol e a aguardente subia à cabeça do Paul. Uma formiga corria apressada pela mesa da cozinha, o Paul agitou sobre ela um fósforo.
Para onde vão as formigas, para a mata.
Para onde a mata, para a madeira.
Para onde a madeira, para o fogo.
Para onde foi o fogo, para o coração.
De repente o fósforo acendeu-se num passe de magia negra, pois o Paul segurava a caixa na outra mão debaixo da mesa. O fósforo retorceu-se, a chama lambeu-lhe o polegar. O Paul soprou e ficou a olhar o veio de fumo.
E então o coração parou de bater,
E as formigas seguem seu caminho.
O Paul não estava bêbedo, só tocado. Tinha um grãozinho na asa, uma embriaguez mais externa do que interior. Se as formigas atravessam o coração, não me dá vontade de rir, mas o Paul soltou uma risada e eu também senti cócegas na língua. A sua embriaguez contagiou-me, a aguardente não tinha nessa altura qualquer traço de escuridão e eu ainda nenhum medo de o Paul beber. No primeiro meio ano o Paul não bebia tanto, à noite o talo de erva ficava mergulhado até metade. E nas primeiras semanas, quando regressava do trabalho, ia para a varanda. Cuspiam faíscas quando soldava, e como se apagavam depressa. Para onde foi o fogo, eu via sempre o fósforo e as formigas no coração. Às vezes o Paul assobiava uma cantiga, havia nela mais limar de ferro do que som de música, soava tão desafinada. Todas as semanas terminava uma armação completa de chifres de antena. Já quase chegavam para um domingo na feira da ladra e um monte de dinheiro. Mas o Paul não voltou a vender. Bateram à porta dois rapazes novos.
Trabalho clandestino e infiltração do Estado por canais estrangeiros, disseram eles.
Sem quaisquer perguntas, empacotaram ferramentas e tubos de ferro nos sacos que traziam consigo, desceram no elevador e meteram-nos num pequeno camião que se via da janela da cozinha. As antenas prontas, colocaram-nas no vão da escada. O Paul disse:
Quando já tiverem tudo, não se esqueçam de fechar a porta.
Levou a garrafa de aguardente para a cozinha e fechou-se por dentro. Eu encostei-me à parede no vão de escada para não empecilhar e fiquei a observar os dois. Com uma antena em cada mão, carregaram-nas a pé pela escada toda até à porta. Passos apressados, matraqueados e com o eco respetivo, caça envergonhada com armações de chifres roubados. Nunca se separaram, foram e vieram juntos três vezes. Da última, um deles encheu as bochechas de ar, cansado, eu vi-lhe a camisa colada às costas, e comentou:
Somos obrigados.
Despacha, disse eu, e poupa-me às desculpas piedosas.
Deixei que se fossem com os chifres todos e depois que partiram fui obrigada a dar murros na porta da cozinha até o Paul abrir. A aguardente também tinha ido toda e o Paul, com mais pés do que os que tinha, atravessou o quarto até à varanda e gritou:
Aquela espia, ali está ela sentada a assistir.
No bloco habitacional do outro lado, dois andares mais abaixo, estava uma mulher sentada a costurar.
Deixa-a lá costurar, ela nem está a olhar cá para cima.
Que vá costurar para onde quiser, mas não na varanda.
Mas a varanda é dela, ela não tem nada a ver contigo.
É o que já vamos ver, disse o Paul.
Cambaleou até ao quarto e trouxe uma cadeira. Pôs-se em cima dela como um menino desastrado. E enquanto eu me perguntava porquê e o segurava para ele não cair, arriou as calças e começou a mijar da varanda para a rua. A mulher juntou o material de costura e foi para o quarto.
Houve uma reunião na fábrica de motores por causa das hastes de ferro roubadas pelo Paul e ele foi demitido. Os compinchas do pavilhão dele ficaram sentados e mudos nas últimas filas, como poias de merda no meio do silvedo, disse o Paul. Já naquele tempo todos roubavam, e continuam a fazê-lo até hoje. Montam em casa regadores, moedores de café, fervedores de imersão, ferros de engomar, frisadores de cabelo, rolos de permanente, e vendem-nos bem. Um em cada dois dos compinchas é um Nelu, nem precisa de escrever bilhetes, assim consegue o mesmo efeito.
O Paul não é intimado, mas também não o poupam. Eu invadi a paz dos seus dias quando mudei para casa dele. Junto de mim todos seriam sacudidos na sua vida, por muito sossegada que ela fosse, ninguém que me pertencesse seria ignorado. O Paul é castigado junto comigo. Pisam o meu coração, mesmo nos dias em que não estou intimada, porque perseguem o Paul. Foi ele que teve o acidente, não eu. Quer ponham a sua vida em risco para me dar um sinal, ou por sua causa, porque estava a pedi-las, o desfecho pode ser o mesmo. Mas nunca será a mesma coisa. Antes do acidente, o Paul tinha mais dificuldade em esperar do que eu. Quando ia dar as suas voltinhas de bebedeira pela cidade, era eu que esperava até ele chegar. Mas quando eu era intimada, o que ele esperava era que eu chegasse mesmo. Desde o acidente, a minha espera é como a dele. Quando dou voltas à cabeça e penso em toda a gente com pentes, só tenho a certeza de duas pessoas em quem confio. No caso da Lilli já caducou, só resta o Paul. Consegue-se ler os teus pensamentos, diz o major. A ser verdade, eu também devia poder ler nas pessoas se elas foram intimadas, pelo menos nos vizinhos. Talvez eles vejam em mim a presença do Albu, mas não queiram mostrar.
O velho Micu, que vive lá em baixo junto à entrada, disse-me uma vez no ano passado, em setembro, que tinha sido intimado em abril.
Por tua causa, disse ele.
Como se eu tivesse culpa. Quando mudei para casa do Paul no bloco da torre, ele tratava-me por você. Desde que foi intimado por culpa minha, trata-me por tu. Foi chofer do diretor da fábrica de calçado e, com aquele físico, de certeza também uma espécie de guarda-costas, acha o Paul. A Sr.ª Micu era secretária no liceu feminino de música. Têm dois filhos homens, que raramente escrevem e nunca os visitam. O Paul fala muitas vezes com o Sr. Micu, mais sobre a Sr.ª Micu do que sobre si e ele. Ela anda na mesma faixa de idade que ele e, desde que se reformou, sempre por casa. E ele passa o dia inteiro de um lado para o outro junto à entrada, ou na rua das lojas, em busca de gente para conversar.
Estava sentado na escada à entrada, a comer uvas pretas acabadas de lavar, quando cheguei a casa. Levantou-se e acompanhou-me até dentro, as suas uvas pingaram até ao elevador. Só quando carreguei no botão e o elevador desatou aos solavancos lá em cima é que ele me disse que tinha sido intimado por minha causa.
Porque é que lá foi, disse eu. Eu tenho de ir porque sou intimada por questões minhas. Se fosse por outros não ia.
E quem é que acredita, disse ele.
Depenicava os bagos com o polegar e o dedo médio, mais depressa do que eu conseguia contar, e tinha a boca tão perto da minha orelha que os bagos esguichavam quando ele mordia. Esticava o dedo mindinho num gesto afetado que torna um homem como ele, a quem a dentadura range na mastigação, ainda mais feio. Se eu queria uns baguinhos, perguntou ele, porque eu não lhe tirava os olhos das mãos.
Não te estou a acusar de nada, disse ele.
Então que pretende.
Eu também tenho filhos.
Aos filhos não se contam segredos, disse eu.
Quando o elevador chegou e a porta se abriu, ele enfiou a cabeça lá dentro, como se, estando o chão vazio, ainda pudesse haver alguém no teto. Meteu o pé dentro da porta aberta.
Estava aqui à tua espera porque nunca se sabe quando chegas. Tenho de tomar nota.
Um dos seus olhos espelhou a última caixa de correio da parede por trás de mim, ou então foi a pupila que sem pedir licença ficou branca e quadrada. Não consegui ver no outro olho porque ele sussurrou:
Já enchi dois cadernos de contas e quem tem de os comprar sou eu.
Tinha acabado de depenicar as uvas todas, cada ponta fina do cacho tinha ainda agarrado um farrapo de pele preta. Passou então os olhos pelas caixas do correio até à entrada.
Eu cá não te disse nada. Olha que eu jurei, qual jurei, foi tudo por escrito, preto no branco.
A Sr.ª Micu jogou no totoloto durante metade da sua vida. Depois de ir para a reforma, o jogo intensificou-se. Ela sempre soube que um dia na sua vida uma grande fortuna lhe irá cair no colo. E como já vai tardando, mais ela acredita nisso. Todas as quartas-feiras, quando se anuncia a extração, ela fica à espera de vestido domingueiro às flores vermelhas. No hall estão os sapatos castanhos de verniz, para se enfiar neles quando o anunciador do totoloto lhe tocar à porta. Na maioria das vezes a campainha não toca a quarta-feira inteira, porque entretanto a gente do bloco sabe do caráter melindroso do dia. E a acontecer, é quando muito o carteiro ou algum vizinho distraído que se atreve a aparecer-lhe. Quando a Sr.ª Micu, em seus atavios domingueiros, volta a fechar lentamente a porta por dentro, é uma vez mais que foi defraudada. Então tudo se desmorona, ela enterra a cara na poltrona e soluça. O Sr. Micu estilhaça alguns pratos contra a parede e varre os cacos. Agora já se controla e vai consolá-la. Em breve passa o programa dos êxitos musicais na rádio local. Tudo acalma no decorrer da semana, até chegar quarta-feira e a mulher estiver preparada para outra. O Paul ouviu-a chorar muitas vezes atrás da porta e perguntou ao Sr. Micu como é que ele aguenta. Que se tinha habituado à sua cruz, foi o que ele disse. Assim como se habituou, quando era ainda chofer e ela secretária, a que ela andasse na escola e pela cidade a recolher rubis, pedacinhos de vidro vermelho. Ela sempre teve uma quedazinha para as artes, disse ele. Quando a primeira caixa de vidrinhos ficou cheia, a mulher levou-a ao museu da cidade e depois a um ourives. Como ameaçava suicidar-se, o Sr. Micu mandou-a ao relojoeiro, a quem antes pagara umas aguardentes no bar, para alguém finalmente dizer à mulher que a caixa tinha rubis. Com o vestido domingueiro nada vai mudar, quarta à noite volta a ser pendurado no armário, em silêncio, aqui e ali acompanhado de choro. Com o suicídio, contudo, temos paz. O relojoeiro foi um bom investimento, diz o Sr. Micu, ter-me-ia poupado muita aflição se tivesse pensado nisso mais cedo.
Pouco tempo depois de me mudar para a torre, encontrei a Sr.ª Micu encostada à parede a seguir à entrada. Estava de meias, com um vestido de andar por casa todo abotoado. Nas suas faces luzia uma penugem, em torno do queixo uma peliça desgastada, ao longo dos lábios um escasso bigode que subia ondulado sob cada narina. A Sr.ª Micu chupava o dedo indicador e passava a saliva à volta dos olhos como um gato a lavar-se. Dirigi-me ao elevador. Sem se mexer do sítio, chamou:
Menina.
Mostrou-me um vidrinho vermelho.
Alguma vez viste um rubi tão grande.
Nunca, disse eu.
Era até coisa para a rainha de Inglaterra, acho que lho vou mandar, o que é que dizes.
E se o roubam no correio.
Tens razão, disse ela, e meteu-o no vestido.
Deve ter ouvido alguma coisa sobre as observações escritas do Sr. Micu. Muito tempo antes de o Sr. Micu me ter feito confidências, uma tarde, quando regressei da cidade, encontrei-a no meio da entrada com um pano da louça a fazer de cachecol. Barrou-me o caminho com o braço e disse:
Primeiro saíste tu, depois o Paul. Mas só o Paul é que veio.
Mas agora já cá estou, disse eu.
Depois dele, disse ela. Comigo veio primeiro o Radu, com três quilos e dez, e a seguir o Emil, com três quilos e quinze. A Mara eu deixei de fora, o meu marido não quis que ela viesse. E depois veio o Emil outra vez. Duas vezes, isso não pode ser, ah, mas dantes podia-se ter gémeos repartidos.
Já não sabia a diferença entre um pano da louça e um cachecol. Mas debitava o peso dos seus bebés como o meu vovô a medida dos tijolos de cimento no campo de detenção.
Metade por maldade, porque ele anotava as minhas idas e vindas e sabe-se lá mais o quê, e metade por gratidão, por ele me ter contado, comprei um caderno de contas para o Sr. Micu. Queria que ficasse inseguro quando tivesse de anotar as suas observações num presente dado por mim. Queria paralisá-lo com cortesias, porque brigas não levavam a nada. Não era quarta-feira, portanto toquei à campainha. O Sr. Micu abriu de pão com banha na mão, já comido até metade. As pedrinhas de sal reluziam. Ele sacudiu a cabeça.
Grande de mais.
Não sabia.
Os meus são pequenos e mais grossos.
Experimente lá escrever num maior, disse eu.
Tem de caber no bolso do casaco, disse ele, não, não.
Desde aí escrevo no caderno de contas o que o Albu me diz durante o beija-mão, ou quantos paralelepípedos, ripas de cerca, postes de telégrafo, janelas existem daqui até ali à frente. Não gosto de escrever, porque o que está escrito pode ser descoberto, mas tem de ser. As mesmas coisas, no mesmo lugar, mudam tantas vezes o seu número de um dia para o outro. Na aparência está tudo como estava, mas não quando se conta. E também não quando se brinca ao dedo emprestado. Fecham-se os olhos e copia-se com o dedo o desenho das nuvens, os beirais dos telhados, folhas trémulas nas árvores ou forquetas enquanto a madeira se apresenta nua. Quanto mais altos os beirais, melhor se move o dedo. Já muitas vezes segui sorrateria a torre da igreja, percorrendo-a a pique de baixo até à ponta, e as torres das casas sob os cata-ventos. As antenas do Paul, que também nos telhados são armações de chifres, eu decalco até às pontas mais finas, sem deixar nada de fora. E não toco nas outras antenas que estão ao lado. Dantes agarrava pedrinhas da berma do caminho para ajudar no decalque. Desde o rebuçado em papel de embrulho, só uso o dedo indicador e curvo-o ao longo dos mínimos pormenores. Se o dedo cortado também se pode curvar, isso eu não experimentei.
Uma vez decalquei o desenho da Lilli. Ela estava no patamar de cima, no corredor da fábrica, virou-se até ficar de perfil e eu mostrei-lhe como o movimento da testa era reto, o nariz distante, o queixo e o pescoço de copo de leite quente. O meu dedo sentia, abstraindo de todos os degraus, a diferença entre a pele da Lilli e os objetos. Quando cheguei à extremidade do ombro, a Lilli colocou as mãos sobre os seios:
Faz-me transparente, disse ela, de certeza que consegues.
Não consegui, desenhei só o arco da frente, o braço de trás estava escondido quando a Lilli disse:
Agora é a tua vez.
Não deu tempo, ouviram-se passos no corredor, a Lilli correu pelas escadas abaixo. As sandálias tinham só duas presilhas finas, os tornozelos saltitavam, o vestido esvoaçava. De cá de baixo, as coxas da Lilli chegavam-lhe até lá cima ao pescoço. No pátio demos risadinhas, ela mais alto do que eu, mas logo chorou, provavelmente já durante as risadas. Quando engoli em seco, ela riu a sério, limpou as lágrimas e disse:
É só água. Ainda te lembras do Anton, o negociante de artigos de cabedal.
O da verruga na asa do nariz.
Não, esse era o fotógrafo.
O que foi viver para o campo.
Esse. Tinha água nos pulmões e nunca mais lhe passou. Morreu aqui no hospital anteontem e eu não soube de nada. Ainda te lembras, quando fomos apanhados.
Não, nem que ele se chamava Anton.
Bateram à porta, estavam dois inspetores na soleira, e eu em trajes menores. Eles engoliram em seco, como tu há pouco. Sentou-se cada um numa pilha de casacos de couro, o queixo apoiado na mão, e cochicharam entre si. O Anton segurou algumas saias à minha frente, como se eu fosse uma freguesa. Uma saia maior que a outra, para que nenhuma me servisse. Depois mediu-me a largura das ancas aos palmos, o traseiro e o comprimento até meio do joelho. Quando se é tão elegante, chega uma vitela para uma saia sem emendas, disse ele, piscando o olho para os inspetores. Assentou as medidas em centímetros numa caixa de bombons que por ali andava desde que o conhecia e enfiou o lápis atrás da orelha. A menina não tem barriga, duas pregas atrás, e é tudo, não são precisas mais costuras. Depois serviu bombons. Um dos inspetores pegou nuns poucos e o colega mandou o Anton passear uma hora. E eu, eles queriam que ficasse. Aí, o Anton fechou a caixa de bombons e meteu os dois pela porta fora, dizendo:
Antes vos mato à porrada.
E foi por isso que teve de se mudar para o campo.
Gostavas de lá ter ido vê-lo.
Gostava.
Mas na altura disseste até que enfim, livrei-me dele.
E foi isso mesmo.
Mas sentiste-lhe a falta.
Nem um bocado, disse a Lilli.
*
A comedora de cerejas ao meu lado esvaziou a mão, deixou cair todos os caroços numa nesga da sua carteira atulhada, amarrotou o cartucho vazio e atafulhou-o por cima. Esfregou as mãos besuntadas uma na outra e depois no vestido. No padrão de flores vermelhas não se veem as nódoas. Vejo um braço esticado com a pasta, também vejo a cabeça. Onde é que ele se meteu até agora, então sempre acabou por entrar no mercado. Pelos vistos não tem tanto tempo como eu pensava. Ou os apertos não o incomodam. Muitos gostam de andar no aperto, à procura de briga. E ainda têm sorte, porque há uns bananas que consentem e calam. A comedora de cerejas levantou-se e agora espreme-se pelo corredor fora. Também tenho de sair na próxima paragem, onde sai muita gente. Os autocarros inter-regionais são ao virar da esquina. As pessoas com cestos, sacos e vasilhas saem todas ali e embarcam na estação de camionagem para as suas aldeias. Também o da pasta ali sai e continua viagem para o campo, ou então mora aqui perto. Quem sabe temos o mesmo caminho, talvez ele trabalhe onde fui intimada. Talvez ainda ande mais algumas paragens, há pessoas que ficam coladas às portas e não fazem tenções de sair na paragem que vem. A comedora de cerejas sorri-me com as gengivas azul-escuras. Vai forçando caminho na direção da porta de trás. Se for preciso, forço caminho na direção da porta da frente, que fica um pouco mais perto. Será que a mulher vai plantar os caroços de cereja. O meu vovô disse que no Baragan há sementes silvestres que só germinam depois de comidas e cagadas pelos pássaros. Mas os caroços de cereja, antes de cair à terra, têm de secar ao sol, só depois é que crescem árvores. Se todos os caroços crescerem, ela carrega para casa, na carteira, um verdadeiro cerejal. As pessoas desequilibram-se para trás e para a frente, todas ao mesmo tempo. A carteira com os caroços vai lá no meio. O guarda-freio faz tilintar a campainha de aviso e grita para fora, contra o vidro: A morte da bezerra à espera no quarto e tu a vadiar em cima dos carris. Depois grita para dentro do carro: Não há palerma que não se levante de manhã para ir à vida. Estará o guarda-freio a falar para os botões dele ou para todos nós. Nem ele sabe. Não, eu por exemplo preferia ficar na cama, mas o Albu é dos que se levanta.
Todas as noites, quando ia da recolha para casa, de início não conseguia ver nada na escuridão por detrás da alameda, depois os olhos habituavam-se à noite e começavam a ver cada vez melhor. Eu contava os portões das casas. Desfilavam juntando-se, separando-se, daqui até ali as mesmas casas, mas os seus portões tinham sempre números diferentes. Quando virava para a nossa rua, com uma pedrinha na mão apanhada na noite, desenhava o telhado da panificadora, cada chaminé e galo de cata-vento, para reverter a tramoia dos portões. Porque se prefere a confusão ao conforto, eu brincava ao jogo de contar. É preferível a confusão, diz-se, quando a gente está entediada. Depois de contar, brincava ao dedo emprestado, para que nem tudo estivesse contra mim no sítio onde moro. Depois de ver a da trança comprida no autocarro, parei de contar portões naquela zona. E o tempo não parou de correr por causa disso. Mas um dia, quando a minha partida da cidadezinha para a cidade estava tão distante que já nem reconhecia os galos dos cata-ventos na panificadora, meti por uma travessa atrás do correio e disse-me só na cabeça:
Clarinetes na mesa.
Começou a chover. À minha frente ia um homem que abriu o guarda-chuva, eu fiquei parada. Quando o guarda-chuva ficou pequenino como um chapéu, na outra ponta da rua, eu desenhei-lhe os contornos. O dedo emprestado voltou outra vez. Põe os clarinetes na mesa, dissera o Albu, por eu rodar o botão grande da blusa. Eu pousei as mãos em cima da mesa, depois esqueci-me, ele repetiu. Nesse dia o Albu encontrou um cabelo no meu ombro. Passou-me os dedos pelo rosto depois de o tirar. Senti-lhe muito perto o cheiro do perfume, os poros bem barbeados no pescoço, subindo as faces com um sarapintado cada vez mais pequeno, como madeira polida. Segurou o cabelo com dois dedos, afastando os outros três, e queria deitá-lo ao chão. Ele que se apodere dos cabelos que tenho agarrados à cabeça, os enrosque no indicador e me puxe para que lado quiser. Mas os caídos devem ficar onde estão. De certeza que o Albu pretendia outra coisa quando se levantou e puxou o punho da camisa para cima do relógio. Da sua mesa, nem sequer no ombro da Lilli ele teria alguma vez visto um cabelo. Será que acabou por esquecer o seu objetivo, como eu o nome do seu perfume amargo, ou terá desistido dele. Mas a fragrância eu nunca a confundiria, fosse Avril ou setembro, dei outra vez voltas ao meu botão grande e disse:
Ponha o cabelo onde estava, ele é meu.
Como se me arrepiou a testa com o som da minha própria voz, como fiquei certa do castigo, depois do que dissera. Ele recolheu os dedos que tinha afastado para trás, acho que observou o padrão dos furinhos na ponta dos sapatos, para decidir o que fazer. Eu fiquei de olhos cravados na luz que vinha da janela. Do outro lado estava o lápis roído, e o dedo do Albu no meu ombro. Ele pôs mesmo o cabelo onde estava. Depois gritou:
Clarinetes na mesa.
Ficou de pé à janela, de costas viradas, baloiçou a nuca, os cabelos entrelaçaram-se com o brilho da luz, uma bela pelagem no cachaço, e ele soltou uma gargalhada para a árvore lá fora, virou-se para mim e alapou o rabo no peitoril da janela. Fincou um sapato no tacão, a ponta na vertical a mostrar a sola limpa, e não conseguiu parar de rir. Um ataque de riso assim como os meus. A orelha dele luzia esverdeada, as folhas apoderaram-se do fino arqueado da cartilagem. Qualquer que fosse a razão da gargalhada, era a sua saída deste mundo que a coloração verde anunciava, não a minha. Um pouco de vento e já a árvore teria engolido aquele ataque de riso. Eu no lugar dele teria pouca vontade de rir.
O elétrico para agora junto da estação de camionagem, desatam todos a empurrar e eu estou no meio do carro. O da pasta gritou para o guarda-freio por cima das cabeças: Meu Deus, quanta gente estúpida. O homem atrás dele coça o queixo e diz: Cuidado aí, ó borboleta, ou apanhas com um tacão no bigode, que até levas os dentes para casa embrulhados no lenço. Nem sequer tem bigode o da pasta, mas o que falou tem. Desceram ambos. O da pasta ainda se virou outra vez para o mata-sete, que levanta o dedo como se faz para ameaçar as crianças, soltando uma gargalhada boçal. Os braços são compridos e musculosos, os dentes brancos, ele não está a brincar. Ainda hoje encontra alguém que possa mandar para o hospital. O da pasta não está interessado, pensa com certeza que é melhor sair dali com a humilhação, mas perfeitinho e de pele inteira, a ter de sujar a roupa de sangue. Seria o seu próprio e a coragem da raiva só lhe traria a derrota. De ombros encolhidos, bateu o pé na direção contrária. Não fazemos portanto o mesmo caminho. Não trabalha no lugar para onde fui intimada. Que pena, assim iria conhecer outro da casa, embora não de perto, mas diferente do Albu. Um homem ridicularizado, pisado no pó e que não reage. O guarda-freio grita: Toca a apressar, senão é Natal e nós ainda aqui estamos. A comedora de cerejas já saiu, vai à lata do lixo e deita fora o cartucho de papel amarrotado. Voa um barrete pela janela direto à cara do guarda-freio, foi um homem que o atirou. Tem o cabelo esguedelhado, as calças mijadas, a camisa cheia de sangue. Tem uma ferida recente na testa. Junto dele está um saco amarrado a espernear. O guarda-freio devolve o barrete pela janela: Fica lá com os teus piolhos. Fica com o barrete que já aí chego, ri o homem, eu vou entrar. Não no meu carro, diz o guarda-freio, que eu não sou limpa-retretes, isto aqui é um elétrico. Desde as duas horas e sete minutos da madrugada que sou pai, diz o homem a cambalear, tenho um filho, a minha mulher está na maternidade. E que tens aí no saco, pergunta o guarda-freio. Um cordeiro, diz o homem, vou oferecê-lo ao médico e beijar-lhe aquela mão de ouro. Tenta enfiar o barrete, mas não acerta com a cabeça. Mete-o no bolso das calças. Nem pensar, diz o guarda-freio, se o teu filho mija no meu carro, pode continuar viagem porque ainda não anda. Mas tu, nem pensar. O homem cruza os trilhos a arrastar o saco e faz força para entrar no elétrico. Os passageiros que saem forçam-no a recuar. Ele coloca um pé no meio do degrau. O guarda-freio levanta-se e empurra-o para baixo. Ele cai. Ei, chefe, mas tu vais-me levar, se me deixas aqui, que o teu filho fique ceguinho... O guarda-freio cospe para a escada, fecha a porta e arranca. O cordeiro no saco soltou um berro curto. Com certeza as rodas passaram-lhe por cima. À minha frente ainda havia gente para sair, e atrás de mim, mas ninguém abre a boca. Diz o guarda-freio: Não é longe, na próxima paragem deixo-vos sair a todos. Não é longe, fala como se não fosse nada o Sr. guarda-freio, mas quem tem de voltar na correria sou eu. Quando chegar à próxima paragem é um quarto para as dez.
Eu sei que se pode alargar o passo, andar e respirar com o mesmo ritmo. E não olhar para os sapatos, nem para um ponto fixo no ar, para as coisas não ficarem tremidas. É preciso variar para onde se olha, como quando se anda devagar, conseguindo-se avançar quase tão depressa como a correr e sem se estafar. Mas para isso era preciso que o caminho estivesse livre e os dois à minha frente finalmente desamparassem o espaço. Trazem um carregamento de melancias, a sua rede baloiça sobre a passagem. O vendedor cortou um pedacinho triangular em cada uma delas. De certeza que levou cada pedacinho à boca com a faca, para provar, e voltou a meter o tampão na melancia. Esses dois só têm melancias maduras dentro da rede. Melancias cortadas azedam depressa, é preciso comê-las no mesmo dia. Será que os dois da rede têm uma família tão grande. Ou será que vão fazer um dueto só com melancia às refeições, ao meio-dia, à tarde, à noite, cinco melancias frias a acompanhar com pão, para não apanharem diarreia e calafrios. Melancias quentes sabem a lama, é preciso refrescá-las. Não há frigorífico onde caibam cinco melancias, quando muito uma banheira. O meu vovô dizia:
Antigamente deixavam-se as melancias nos poços. A água aguenta-as bem, porque flutuam. Uma hora depois, podem-se pescar com um balde e comer. À primeira dentada a boca dói, como com a neve, mas a língua habitua-se. As melancias demasiado frescas são uma armadilha, uma doçura farinheira, come-se de mais, o estômago gela. Todos os verões morria gente por causa das melancias de poço, até na cidade. Das melancias de banheira não morre ninguém, mas há muitos que morrem na banheira. Sim, sim, uma pessoa pode lavar-se com água quente de manhã, refrescar melancias ao meio-dia, matar cordeiros e gansos à tarde, enxaguar o sangue pelo ralo e à noite voltar a lavar-se com água quente. Tudo na banheira. E quando uma pessoa já está farta de melancias, cordeiros, gansos e de si própria, pode afogar-se nela, disse o meu vovô, sim, sim, não era nada impossível.
Melhor no rio, disse eu.
Aqui nas proximidades não temos nenhum, ainda é preciso viajar à procura de água, e até se ser encontrado por essas lonjuras, com certeza já ninguém reconhece a gente. Cadáveres de rio são horripilantes. Quem estiver mesmo cansado, melhor é pôr pela última vez uma roupa lavada em cima da mesa e morrer confortavelmente em casa, dentro da banheira.
Se contarmos com as sombras destes dois, são quatro a carregar. Às vezes as pessoas só precisam de uma melancia e levam muitas porque estão baratas, depois deixam-nas estragar e mesmo assim acham que pouparam dinheiro. Coloco-me muito junto da rede, faço barulho para darem por mim, mas os automóveis sacodem-me por cima o seu ruído até ao sol. Porque esticam tanto a rede para cada lado, não fica mais leve.
Licença.
Não ouvem nada, a palavra é curta de mais.
Por entre as casas trepam rosas, nos canteiros de legumes floresce ao vento, irrequieto, o aneto alto e as coroas imperiais, indolentes, preparadas para o calor do meio-dia, deixam-se adormentar pela poeira. Cordas de roupa esticadas entre as árvores de fruto, muitos pessegueiros e marmeleiros. Roupas caseiras e aventais, ainda molhados nos pontos escuros, retêm a poeira antes de secar. Nunca por aqui passei, nem sequer sem destino certo. Este lugar, onde os jardins são demasiado acanhados para grandes árvores, combina com a saia azul da Lilli com pregas de ouriço-cacheiro. Ele que se irrite se quiser, agora puxo mesmo o homem das melancias pela manga.
Desculpe, deixe-me passar.
Ele vira a cabeça, ainda dá dois passos a trote e volta a olhar para mim. Depois solta a pega do seu lado.
Então, grita a mulher, não podes avisar quando largas daí.
Puxa o sapato de baixo das melancias, depois o pé de dentro do sapato, depois um pedacinho de penso adesivo que escorregou do dedo mindinho do pé:
Pronto, a bolha rebentou.
Ei, diz o homem, olha aqui, nós conhecemo-la. O cabelo dele, tingido de castanho, reluz prateado junto ao couro cabeludo, como outrora quando a luz encandeava e o Martin, depois da noite a dançar, deixou de pertencer à pandilha. E a cara dela está tão torta como outrora, quando o Martin a atormentou na casa de banho.
Ah, disse a Anastasija, tens o cabelo curto.
O que fazem vocês com as cinco melancias.
Já as contaste, ri ele, vamos festejar, tu sabes onde.
E tu como estás, pergunta ela.
Bem, digo eu.
Nós também, diz ele, é, talvez a gente se veja por aí.
Talvez, digo eu.
Passa um camião com estrondo. Diz a Anastasija:
Temos de ir.
Então o Martin ainda me pregou na mão um beijo de despedida e eu olhei lá para fora, porque diante da testa de um motorista esvoaçavam dois sapatinhos de bebé presos pelos cordões. E quando o carro passou, do outro lado da rua estava uma Java vermelha, dentro da garagem aberta um velhote de calça curta. E lá atrás, quem vinha a sair do quintal, encolhia a cabeça ao passar pelo estendal da roupa e entrava na garagem, era o Paul. No relógio da Anastasija eram dez e cinco.
O Paul e o velhote riem, eu procuro-lhe as veias de mármore nas pernas finas e vejo a antena em cima do telhado. É do Paul. Ele pega numa chave de parafusos, nem sequer procurou, foi só meter a mão na prateleira. Quando andava à noite pela cidade, nas suas voltinhas da bebedeira, eu acreditava que era verdade. Como não, a bebedeira era genuína, o que é que havia ali para enganar. Nunca perguntei com quem bebia e quem pagava. Afinal em casa o Paul também bebe sozinho. Depois do acidente, foi ele próprio que disse:
A gente dos copos reconhece-se instantaneamente de uma mesa para a outra pelos olhares, os copos dialogam entre si. As amizades da pinga, eu dispenso-as. Bebo a minha aguardente com os outros, porém, na mesa quero estar sozinho.
Mas depois o Paul atirou a roupa da cama pela janela fora, para o meio da noite, as nossas almofadas foram as primeiras a voar. Vi-as lá em baixo no chão, brancas e pequenas como dois lenços. Desci de elevador, descalça, e trouxe-as para cima. E quando cheguei com as almofadas, já estavam lá em baixo os edredões. E quando os trouxe para cima de elevador, tive de chorar, porque eram tão grandes e eu me via submetida aos caprichos noturnos de um louco. Com as almofadas ainda me tinha rido. Na casa do Sr. Micu, a janela do quarto estava ainda foscamente iluminada pelo candeeiro da mesinha de cabeceira. Era tarde, mas ainda quarta-feira, dia de infortúnio do totoloto. Sabe-se lá que artes de consolação o Sr. Micu ainda àquela hora experimentava para habituar a sua mulher à ideia do dia seguinte, talvez o coito, o amor físico.
Com os homens novos a gente fica cansada, dizia a Lilli, os mais velhos, pelo contrário, sabem deixar a carne das mulheres lisa e leve durante o coito.
Também atirar a roupa de cama pela janela era físico, sem ser amor, mas mais físico do que fazer voar roupa de vestir. O vestido de domingo com que a Sr.ª Micu esperara ficar rica esta quarta-feira estava de novo pendurado no armário. Mas o corpo, ela não o despiu. Quando a Sr.ª Micu se encosta na entrada, já sem saber quem é no presente, mas cada vez melhor quem foi há vinte anos, apetece-me fugir dela. A sua carne decrépita não contempla o sol esquecida de si mesma, como na minha mãe, mas pronta para ser agarrada. Uma vez o Sr. Micu disse ao Paul:
Cada coito é uma colher de açúcar para os seus nervos na reforma, a única coisa que me ajuda a manter o siso da minha mulher.
O siso, perguntou o Paul.
O siso, eu disse o siso, não o juízo.
Se o candeeiro da mesinha de cabeceira não alumiava o coito, mas o último registo do livrinho de notas, era preciso que a roupa de cama escapasse ao lápis. Não acendi a luz na porta da rua e carreguei a roupa até ao elevador como se fosse uma ladra. Quando cheguei lá cima com os edredões, o Paul estava deitado de pijama em cima da almofada branca como um papel às riscas. Puxou os joelhos para a barriga e perguntou:
Alguém te viu.
Cobri-o, o segundo edredão eu estendi do meu lado e alisei as dobras como se naquele pano estivesse deitada a mulher que eu queria ser a partir de amanhã de manhã, uma mulher que não aceitasse aquelas bebedeiras disparatadas nem mais um dia. O Paul olhou para o teto do quarto e disse:
Desculpa.
Não me lembro de alguma vez lhe ter ouvido a palavra. Nem mesmo quando esta lhe remoía dentro da boca e lhe retorcia o queixo. Ele deixava as desculpas retidas atrás do rosto, nem perante si próprio dava parte de fraco. Não sei o que isto teve a ver, nem como, mas no dia seguinte eu engendrei uma mentira e, quando saí da rua das lojas com uma saca de rede cheia de batatas, entrei no silêncio da farmácia e disse:
O meu avô estava a rachar lenha e disparou-se uma lasca que lhe vazou o olho. Ficou sem o olho direito. Mora muito longe daqui e não pode vir à cidade. Desde então que não sai de casa, nem sequer para ir à igreja ou ao barbeiro. Tem vergonha das pessoas e eu queria comprar um olho para ele.
Com os mortos a gente pode mentir à vontade, já nada poderá realizar-se. As boas mentiras, com o Albu, eu sinto que resultam, porque acredito em cada palavra que digo. Mas a de rachar lenha foi mesmo infeliz. Tanto menti por medo e para os outros que já nem sei mentir sem medo e para mim própria. A farmacêutica, de vestido de passeio por baixo da bata branca, estava ali como se fossem duas, uma mais velha e uma jovem encaixadas uma na outra. A de vestido de passeio sabia como a dor é uma tortura, a da bata como tratar dela. Mas nenhuma das duas tem uma bitola para boas mentiras. Mesmo assim a farmacêutica deitou os olhos ao chão e disse:
Pode comprá-lo mesmo sem receita, imagino que deve servir, mas trocar já não pode. Tire um da montra, também pode levar dois.
E riu-se.
Ou três. Há aí, sabe Deus, que cheguem e só estão a ganhar pó.
Peguei num olho de vidro azul-escuro, na montra fez-se o primeiro espaço em branco. O meu vovô tinha olhos azul-escuros com um brilho embaçado que o vidro não é capaz de dar porque não sofreu. O meu olho comprado deitava um abrunho à água, mas a água era gelo. Um olho que se quisesse medir com o da Lilli não conseguiria criar nada que assombrasse. Não havia mão nem máquina capaz de reproduzir o seu nariz de flor de tabaco.
Antes de comprar as batatas, tinha estado na Alimentara, na secção das doçarias. Nos frascos sobrepostos, vi rebuçados vermelhos com vespas mortas coladas, depois lâminas de barbear com ferrugem, depois biscoitos partidos, depois caixas de fósforos, depois rebuçados verdes pegajosos com vespas. E na prateleira da parede as garrafas alternavam as suas cores, licor de ovos amarelo, sumo de groselha cor-de-rosa, linimento alcoólico esverdeado, acetona transparente como água. Do que ali estava, não se tinha a certeza de não ser outra coisa. O vendedor parecia uma pessoa feita de fósforos, lâminas de barbear, bombons pegajosos e biscoitos prestes a desintegrar-se.
Cem gramas de lâminas doces de barbear, disse eu.
Vê se desapareces, gritou ele, pede na farmácia que te aviem, o que tens é pancada na cabeça.
E tinha, a mercadoria girava-me à volta do juízo. Fui à hortaliceira e fiquei feliz porque as batatas, ao passar do caixote para o prato da balança, não se transformaram em sapatos ou pedras. Trouxe dois quilos de batatas na mão e na cabeça o caráter incontornável das coisas. Fui assim à farmácia e comprei o olho de vidro. Quando deixar de ser intimada, quero que o Paul me cole nele uma argolazinha, para eu o usar como adorno ao pescoço, pensei na altura.
Quando se ouve descer o elevador no poço de escada com o estafeta do Albu, a sua voz soa-me baixinho dentro da cabeça: Terça-feira, dez em ponto, sábado, dez em ponto, quinta-feira, dez em ponto. Quantas vezes, depois de fechar a porta, eu disse ao Paul:
Nunca mais lá vou.
O Paul abraçava-me:
Se tu não vais, vêm eles buscar-te e levam-te para sempre.
Eu dizia que sim com a cabeça.
Agora o Paul estende o lenço no chão ao lado da mota, senta-se em cima e aparafusa. E eu estou atrás de um arbusto e não quero ir-me embora, toque-toque pelo asfalto, até à torre abaulada que todos conhecem. Com exceção da Sr.ª Micu, que dá no máximo dez passos da porta de casa até ao elevador e dez até à entrada, e nem mais um, porque se esquece do caminho. Disse ela:
O mundo é grande, ali fora como é que eu ia cheirar onde fica a nossa casa aqui dentro.
Sobre o elevador, disse:
Vais entrar neste carro, que anda com uma corda e sem gasolina. Tens bilhete. Hoje é o primeiro dia do mês, de certeza que aparece o revisor. Lá em cima no telhado morre-se de fome.
Deu-me um alperce, eu entrei no elevador. O caroço palpitava através da polpa aquecida pela sua mão. Lá em cima atirei o alperce pela janela, para o mais longe que ele conseguiu voar. Não me deixei apanhar no ardil do alperce, mas neste momento gostaria de ser como a Sr.ª Micu, que palreia o inconcebível com uma voz doce. Então não foi ela que disse acerca de vir:
E depois veio outra vez o Emil, duas vezes...
Quando vim pela segunda vez, no meio da noite, carregando a roupa de cama, compreendi que me começa a afetar o que ela me conta.
Se ainda assim for agora para o bloco da torre, vou vestir a blusa que ainda está à espera e vou sentar-me na cozinha. Quando alguém sai do elevador, no andar de cima ou de baixo a porta faz um estrondo como o bater de pedras. E aqui no andar como o bater de ferro. Quando ouço o ferro vou espreitar às escadas. Hoje é o Albu que vem. Quando fui intimada pela primeira vez, ele mostrou-me o documento de identificação. Eu fiquei extasiada a olhar para a fotografia dele, em vez de ler como é que um homem que esmaga os dedos enquanto beija a mão é chamado pela mãe, ou pela mulher. Deviam lá estar dois ou três nomes próprios, tarde de mais, já tinha metido o documento ao bolso. Se o Albu achar que devo desaparecer, vou dizer-lhe a verdade:
O meu avô pintou o cavalo na parede da casa, eu espero à porta.
E quando o Paul sair do elevador, vou-lhe dizer o mesmo. Assim não precisa de começar logo a contar mentiras, antes de lhe perguntar:
Onde estiveste.
Como tantas vezes, dirá:
Dentro da minha camisa e contigo.
A Java vermelha reluz pintada de fresco. Por fastio, por lapso, o velhote olha para o arbusto na minha direção e inclina-se para o ouvido do Paul. Agora o Paul levanta-se e vê-me. Porque é que está a abotoar a camisa.
Ah, ah, enlouquecer, não.
Herta Müller
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