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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


HORA DO ESPANTO 2 / Edgar J. Hyde
HORA DO ESPANTO 2 / Edgar J. Hyde

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Billy apoiou os cotovelos no peitoril da janela e olhou para fora. O dia estava lindo. O sol brilhava direto sobre o senhor McKenzie, que juntava meticulosamente a grama recém-aparada.
Na casa seguinte, os gêmeos de 4 anos de idade do senhor e da senhora Pringle entravam e saíam da piscina, gritando de alegria toda vez que se molhavam na água fria. Benji, o cão labrador dourado da família, eventualmente abria um olho para vigiá-los e verificar se tudo estava bem, mas na verdade ele também estava sonolento demais para fazer qualquer coisa além disso. Ele se esticava para se aquecer ao sol e bocejava satisfeito.
Ao olhar além dessas duas casas, em direção ao resto da cidade de Glosserton, Billy podia ver os outros vizinhos, sentados em cadeiras de jardim que ficavam sempre guardadas e eram redescobertas nos meses de verão. Alguns liam jornal, enquanto outros, protegidos com um chapéu, cochilavam sob o sol.
Muitas crianças brincavam na beira da calçada, e lambiam apressadas seus sorvetes que derretiam rapidamente com o calor do sol.
Billy suspirou, olhou para cima e contemplou o céu sem nuvens. Era um dia perfeito. E pensar que apenas poucos meses antes ele nem poderia imaginar que tanta paz e contentamento fossem possíveis. Parece que tudo tinha começado com a chegada da nova família na próxima rua...

 


 


Billy descia a ladeira para casa, depois de visitar Alex. Os dois amigos tinham discutido a tática para o “amistoso” da próxima semana contra a equipe de futebol da cidade vizinha, e Billy simplesmente não percebeu o tempo passar. Agora provavelmente já era tarde demais. A mãe dele trabalhava meio período no supermercado local, e ficava maluca se Billy não estivesse presente para tomar conta da irmã pequena até o pai chegar em casa.

Pedalando impetuosamente, ele se distraiu ao avistar uma grande caminhonete com mobília estacionada no fim da rua. Ele parou um pouco antes para verificar o trânsito contrário mais claramente.

Billy conteve um sorriso quando percebeu bisbilhoteiros observando a mobília sendo descarregada da caminhonete. Isso acontecia na rua próxima àquela onde ele morava, e ele sabia muito bem que os recém-chegados eram alvos preferenciais dos curiosos.

Mas Billy não pôde deixar de perceber que a mobília parecia pertencer a outra época. Eram móveis muito pesados e escuros, ao contrário da brilhante mobília de pinho que sua mãe preferia. Agora um carro se aproximava, então, ele teve de esperar um pouco mais antes de seguir viagem.

Duas crianças desceram da caminhonete. O garoto, provavelmente quase da mesma idade do próprio Billy, foi logo seguido por uma garota, que Billy presumiu ser a irmã mais jovem.

Foi só depois de observar melhor que Billy reparou algo estranho nas crianças: era o jeito apático como elas se comportavam. Nem uma única palavra foi trocada enquanto elas percorriam o caminho para a casa nova. Nem uma exclamação sobre o tamanho do jardim, nenhum pulo nos degraus da escada, enquanto a porta era destrancada pelos pais!

Quando Billy e Alice se mudaram para uma nova casa, ele lembrava claramente como haviam ficado agitados. Nenhum deles conseguia se conter e corriam de uma sala para outra, gritando e chamando um pelo outro, rindo enquanto suas vozes ecoavam pela casa sem carpete, como permaneceu.

Os pais também desceram da caminhonete e Billy achou que ambos pareciam criaturas estranhas.

A mãe era pequena e mirrada, com um enorme nariz recurvado. O pai era alto e abatido.

Billy tratou de desviar, pois já ouvia a mãe brigando com ele por espionar, saindo de trás da caminhonete com sua bicicleta. Ao ver que o caminho agora estava limpo, ele pedalou para o final da rua e virou à esquerda, onde morava.

A mãe o esperava na cozinha, casaco numa das mãos, as chaves do carro na outra, quando ele entrou correndo.

– Bem na hora, rapazinho – ela disse, curvando-se para beijar Alice na testa. – O pai de vocês chegará em casa no horário de sempre, então, coloque a pizza no forno cerca de 10 minutos antes.

– Tudo bem, mãe, nos vemos mais tarde – ele falou, abrindo a geladeira para ver o que tinha para beliscar nesse meio-tempo.

– Ei, Billy!

– Sim – ele olhou para ela.

– Leia as instruções dessa vez! – ela sorriu, enquanto fechava a porta.

Ele nunca faria isso, não é mesmo? Da última vez que fizeram pizza no jantar, Billy a deixou no forno por cerca de 80 minutos, em vez de 30, e estava de fato totalmente queimada na hora em que o pai chegou em casa.

(Embora não tivesse contado nem para a mãe e nem para o pai, ele estava tão concentrado para poder alcançar o próximo nível em seu novo jogo de videogame, que mal leu as instruções da caixa, colocou a pizza no forno, e voltou correndo para seu quarto, no andar de cima.)

– Eu quero um pouco disso – disse Alice, olhando para o irmão da mesa da cozinha.

– Mas você não gosta de creme de amendoim crocante – ele disse, colocando um pouco na boca.

– Não é crocante, é liso – a irmã argumentou.

– Então, o que são todos esses pedacinhos? – ele replicou, botando a língua para fora para demonstrar.

– Nossa, como você é nojento! – Alice fez uma careta. – Engula a sua língua de volta. Vou contar para a mamãe que você me fez sentir enjoada de propósito.

Ela se levantou e colocou o cabelo atrás da orelha. – Vou lá fora para ver o que Ricky está fazendo. Vejo você depois.

E, assim, ela deu meia-volta e saiu.

“Você me fez sentir enjoada de propósito – essa é muito boa!” – pensou Billy, enquanto tampava o pote de volta.


Capítulo 2

A Senhora Millfield em Ação

Alice era uma menina muito peralta e, de fato, a verdadeira nojenta era ela! Desde que começou a engatinhar, ela seguia o irmão para fora da casa até o jardim, pegava insetos de todo tipo, trazia perto do rosto e os examinava de cada ângulo. Nada escapava das garras dela. Seus dedinhos fofos se fixavam em volta de lagartas gorduchas e cabeludas. Ela era tão curiosa que lambia reluzentes besouros pretos com sua linguinha rosada. Minhocas que tentavam dar o fora para se esconderem embaixo de pedras eram capturadas e esticadas em todas as direções. E ela ainda dizia que ele era nojento!

Billy seguiu seu caminho para o andar de cima, parando na janela para olhar o lado de fora. Com certeza lá estaria Alice, vestida num macacão azul, sentada no topo do ramo mais alto da árvore ao lado da porta. Ricky, porém, que era um ano mais velho do que Alice, ficava sentado no ramo logo abaixo, e sem dúvida recebia ajuda da garota supostamente mais fraca para chegar lá.

Billy entrou no quarto, ligou o computador e entrou em outro mundo. Ficou ali, absolutamente feliz, até ser interrompido pelo barulho da campainha da porta da frente. Correu escada abaixo, abriu a porta e viu a senhora Millfield.

– Olá, senhora Millfield, posso ajudá-la em alguma coisa? – ele perguntou.

– Claro que pode – ela disse zangada –, basta ficar do seu lado da rua da próxima vez que passar pela minha casa de bicicleta. Estou cheia de crianças como você que pensam que são donas da rua. Gritam, berram, jogam futebol prá lá e prá cá, e ficam esperando pessoas idosas como eu só para esbarrar na gente. Bem, já aguentei demais, Billy Thomson, e você pode dizer para a sua irmãzinha que se eu pegá-la no meu jardim novamente, não serei responsável pelos meus atos... – e, com isso, ela deu meia-volta e foi embora.

Billy ficou tão pasmo que parou atônito na soleira da porta observando a vizinha voltar para casa. Seria possível? Mas que desaforo! Ele não conseguia acreditar no disparate que tinha acabado de ouvir da senhora Millfield, justo ele que a considerava uma adorável senhora. Ele e Alice às vezes lhe prestavam favores, e ela sempre se mostrava muito agradecida, dava-lhes balas e os convidava para tomar refrigerante na casa dela. Mas agora ela vinha com essa!

“Fique do seu lado da rua.”

Com que direito ela dizia isso? Ela que esperasse até ele contar para o pai, que ficaria tão chocado quanto ele.

Billy voltou para o andar de cima. Talvez a senhora Millfield não estivesse se sentindo muito bem naquele dia, ele pensava enquanto entrava em seu quarto.


Capítulo 3

Papai Muda de Personalidade

Quando seu pai chegou em casa, Billy já tinha arrumado os pratos na mesa e acabava de tirar a pizza do forno.

– Oi, pai. Vou só terminar de servi-lo e depois vou buscar Alice.

Antes que ele tivesse tempo de fazer alguma coisa, porém, a porta de trás se abriu e Alice entrou, aos prantos, e com lágrimas escorrendo pelo rosto.

– Algum problema, Alice?

Billy soltou o cortador de pizza e foi atrás da irmã. Alice dificilmente chorava, e ele sabia que deveria ter acontecido algo muito ruim para aborrecê-la daquela forma.

– O que aconteceu? – ele perguntou atenciosamente, curvando-se para a menina. – Você se machucou?

– Não, não me machuquei – ela engoliu em seco entre soluços. – Foi a senhora Millfield, Billy. Você devia ter ouvido as coisas que ela disse para mim, e tudo porque eu fui até o jardim dela pegar a minha bola de tênis.

Ela fungou o nariz com força e o enxugou na manga da camiseta.

– Inacreditável! – disse Ricky, que tinha seguido Alice até a cozinha. – Ela gritava e agitava as mãos. No começo, nós não achamos que ela estivesse falando conosco. Ela nunca fez algo assim.

Billy sentou-se num banquinho da cozinha e apertou com força a mão de Alice.

– Isso é mesmo bem estranho, porque ela veio aqui antes me dizer para não passar nem perto do jardim e da casa dela, e eu comecei a achar que talvez ela estivesse ficando um pouco biruta. Esse episódio todo não combina com a personalidade dela.

Alice mexia na alça de seu macacão.

– Ela disse que se me visse outra vez no jardim dela, não seria responsável por seus atos. Disse ainda que estava cansada de me ver representar o papel de bobona que prestava favores a ela, que sentia ódio de me ver, e que talvez eu devesse me lembrar que já sou moça e que não deveria mais usar esse macacão estúpido!

A voz dela estremeceu com estas últimas palavras e Billy olhou para Ricky.

– É verdade, Billy, ela disse todas essas coisas e muito mais.

Billy olhou em volta procurando pelo pai, mas não havia ninguém ali.

“Ele deve ter ido para a sala de estar” – ele pensou.

– Tudo bem, Ricky, você pode ir para casa agora. Obrigado por trazer Alice de volta em segurança. Alice, venha cá.

Ele tentou novamente segurar a mão da irmã, mas ela enfiou ambas nos bolsos, tentando parecer corajosa.

Sabendo que Alice estava tentando manter o papel de moleca, e não perder a pose na frente de Ricky, Billy soltou a mão dela e seguiu para a sala de estar.

O pai estava afundado na poltrona, com o controle remoto na mão e os olhos fixos na televisão.

“Isso não é normal” – pensou Billy. “Deve estar passando alguma luta de boxe mais cedo para o papai estar aqui antes de comer...”

– Pai, precisamos conversar com você – ele começou. O pai sequer desviou a atenção da tela.

– Cadê o jantar? – ele perguntou.

– Ainda não servi – falou Billy. – Pai, escute, nós achamos que a senhora Millfield está com algum tipo de problema. Quando voltei da escola hoje...

– Traga a minha pizza – disse o pai, com os olhos ainda fixos na TV. – Trabalho duro no escritório o dia inteiro e, quando chego em casa, espero que o meu jantar seja servido imediatamente.

Billy e Alice olharam um para o outro. Aquele não era o mesmo pai. O que estava acontecendo com todo mundo?

Alice se adiantou e ficou na frente do pai, com seu cabelo loiro cacheado e o rosto sujo, manchado pelas lágrimas.

– Pai, a senhora Millfield não foi muito legal comigo hoje, e o Billy e eu achamos que talvez ela não esteja muito b...

– Calada, Alice – o pai se exaltou –, e saia da minha frente. Você não é transparente.

Apesar de não machucá-la, ele a empurrou com as mãos, antes de atirar longe os sapatos e aumentar o volume da TV.

Alice virou-se para o irmão, que estava paralisado como um poste, atordoado com o que tinha visto e ouvido. Alice era a queridinha do papai, sempre tinha sido e sempre seria, ainda que ele tivesse acabado de tratá-la como se não gostasse dela! Os olhos de Alice se encheram de lágrimas.

– Pai, algum problema? – o garoto falou.

– Traga-me a porcaria da pizza, Billy. Quantas vezes vou ter que repetir isso? E traga também uma cerveja. Já! Traga isso agora mesmo. E depois saia da sala e me deixe sozinho.

Alice, embora tivesse tentado se controlar, começou a choramingar e a mexer impaciente na alça do macacão, um hábito que vinha com ela desde muito pequena. O pai abaixou o som da televisão e se inclinou diante do rosto da filha. Seus lábios formaram um lento sorriso.

– Alice – ele disse delicadamente.

Então, quando a menina olhou para ele confiante, ele esbravejou:

– Calada! E pare com essa choradeira! Agora, saia de perto de mim.

Ele disse isso com tanto ódio que Alice se afastou do pai, o mais longe que podia.


Capítulo 4

Uma Noite Longa

Magoado, zangado e confuso, Billy agarrou a mão da irmã e a retirou da sala rapidamente. Agora a menina chorava mais do que antes, pois o pai nunca tinha falado com ela daquele jeito. Ela acompanhou Billy até a cozinha e deixou que ele a sentasse num banquinho.

– Sente-se, Alice. Vou levar o jantar do papai e nós jantaremos aqui. Se ele vier para a cozinha, vamos para o meu quarto. Não sei o que deu nele esta noite, mas de uma coisa estou certo: assim que a mamãe souber como ele agiu, ela não vai ficar só um pouquinho incomodada...

Realmente zangado pelos eventos que tinham acabado de acontecer, Billy pôs uma fatia de pizza em um prato e pegou uma cerveja na geladeira. Colocou tudo em uma bandeja e foi para a sala de estar, onde podia ouvir o pai rir-se a valer de uma reportagem que falava de pessoas com terríveis problemas financeiros. Deixando a bandeja ao lado da poltrona do pai, Billy deixou a sala.

– Ah, Billy – disse o pai.

– Sim? – Billy se virou.

– Não quero ouvir a madame choramingando!

Billy bateu a porta com força e voltou para a cozinha. Ele não estava certo se a gargalhada alta que o pai soltou em seguida foi por ter achado graça dele ter batido a porta, ou apenas pelo prazer de ver mais alguém financeiramente arruinado na televisão.

Alice tinha parado de chorar e beliscava lentamente sua pizza. Billy verificou o relógio. Faltava apenas meia hora para a mãe voltar para casa. Que dia mais estranho! Primeiro, a senhora Millfield, que já tinha sido estranha o bastante, mas agora o pai também. Ele nunca o tinha visto se comportar desse jeito, e especialmente com Alice. Ele sempre tinha sido um pai incrivelmente paciente, gentil e amoroso, e essa recente explosão de raiva era tão estranha e distante da personalidade dele que preocupava seriamente.

Meia hora se passou, depois uma hora, e nenhum sinal da mãe. Billy colocou os pratos sujos na lava-louça e subiu com a irmã.

– Vá tomar banho, Alice. Estarei no meu quarto quando você estiver pronta. A mamãe virá logo, ela deve ter se atrasado no supermercado por alguma razão. Vou continuar esperando ela chegar em casa – ele sorriu, reconfortando a irmã. – Vá, e não esqueça de escovar os dentes.

Billy foi para o seu quarto e olhou pela janela. Tinha escurecido, e ele procurava na rua os faróis do carro da mãe. “Ela não costuma chegar tão tarde” – pensou, enquanto sentava em frente ao computador. Com o canto do olho, ele viu um movimento na rua. Alguma coisa, ou alguém, estava agachado na calçada ao lado do carro do senhor Pringle. Quem quer que fosse, começou a se mover de uma ponta do carro à outra e, embora não tivesse certeza, ele achou que tinha visto um reflexo de aço.

Será que alguém estava furando os pneus do senhor Pringle? Ele mal havia acabado de apagar a luz de seu quarto para poder enxergar melhor, quando o senhor Johnston, outro vizinho, levantou-se do chão ao lado do carro e tomou o caminho de sua casa. Mais uma vez, Billy achou que viu um reflexo de aço quando o senhor Johnston colocou alguma coisa no bolso, mas ele estava longe demais para saber exatamente o que era. Quando o senhor Johnson se aproximou da porta, Billy ficou chocado com o sorriso maldoso e familiar que ele estampava no rosto. Era familiar porque parecia com a gargalhada que seu pai havia dado um pouco depois de ter gritado tão cruelmente com Alice.

Billy pulou de susto com o som de sua porta rangendo e girou-se em sua cadeira.

Era Alice, de pijama, cheirosa pelo banho. O próprio Billy a elogiou.

Será que ele andava assustado ou o quê? Com certeza não existia essa coisa de “sorriso maldoso” e, imagine só, pular de susto quando a irmãzinha entra no quarto!

E quanto a espiar o senhor Johnston, ele agia feito os bisbilhoteiros que havia visto antes, no mesmo dia, quando a nova família estranha se mudara. E por falar nisso, o que o senhor Johnston fazia lá fora, arrastando-se no escuro pela calçada? Talvez o coitado tivesse simplesmente deixado cair algum objeto na calçada e estava na escuridão tentando encontrá-lo.

– Essa passou perto, Ali – ele usou o apelido carinhoso da irmã e se levantou. – Venha, vou ler uma história, se você quiser, e aposto que antes de terminar a mamãe estará de volta e o papai vai subir para se desculpar.

Mas a mãe não chegou nem depois do final da segunda história. E, embora tentasse bravamente permanecer acordada, Alice pegou no sono um pouco antes do capítulo final e Billy a cobriu antes de sair na ponta dos pés e fechar a porta do quarto dela.

“Isso não é coisa da mamãe”– ele pensou enquanto voltava para o próprio quarto. Ele sabia que o pai não tinha saído da sala de estar, pois ainda ouvia a televisão em volume alto. Ele imaginou se seu pai não achava estranho que a mãe nem tivesse telefonado para avisar que se atrasaria.

Ele consultou o relógio: eram 10 da noite. Agora, ela estava atrasada pelo menos duas horas. Ele se deitou na cama e pegou um livro. Esperaria até às 11. Depois, desceria e procuraria o número do telefone do supermercado para fazer a ligação. Ele sabia que existia um turno da noite, que começava quando a mãe saía. Com certeza alguém seria capaz de lhe informar se ela ainda estava lá. Ele desabou em cima dos travesseiros e começou a ler. Dez minutos depois, ele havia dormido.


Capítulo 5

Mamãe Muda de Personalidade

Billy acordou na manhã seguinte com a luz do sol rompendo pela janela e a irmã sacudindo-o com força.

– Billy, acorde, vamos nos atrasar para a escola!

Ele bufou e virou de lado. “Só mais cinco minutos” – ele pensou, incapaz de abrir os olhos.

Mas junto com a luz do sol que penetrava no quarto, também vieram as lembranças da última noite. Ele sentou, esfregou os olhos e olhou para Alice.

– O que aconteceu? A mamãe voltou para casa? Onde está o papai?

– Não sei – falou Alice. – Fiquei com tanto medo de ir ao quarto deles que achei melhor acordar você primeiro.

Billy sentou-se na beira da cama. Ele ainda usava as roupas da noite anterior.

Droga! Ele não podia ter dormido, deveria ter ficado à espera da mãe. Aquela coisa toda era muito absurda. A irmã agora estava com medo de entrar no quarto dos pais! Ele precisava se levantar e esclarecer tudo.

Ele sentiu, porém, que seus passos vacilaram um pouco enquanto caminhava rumo ao quarto dos pais. Não conseguia esquecer o jeito como o pai tinha se comportado na última noite. Alice caminhava lentamente atrás. Ele bateu na porta dos pais. Não houve resposta. Bateu novamente, depois empurrou a porta ligeiramente entreaberta.

Era ela ali, sua mãe estava em casa, dormindo na cama, ao lado de seu pai. Billy virou as costas rapidamente e sorriu para Alice, depois entrou pelo quarto e se ajoelhou ao lado da cama, perto da mãe. Ele tocou no ombro dela delicadamente.

– Mãe – ele cochichou. – Acorde, por favor. A Alice e eu precisamos conversar com você antes de irmos para a escola.

A mãe resmungou e virou as costas para o filho.

– Mãe – ele sussurrou novamente. – Acorde, por favor, é realmente importante.

Sem responder, a mãe empurrou a colcha para trás e se levantou. Pegou o roupão, passou pelos filhos e foi ao banheiro.

Embora sem ter certeza, Billy achou ter sentido um forte cheiro de bebida alcoólica. Alice olhou para a mãe, depois arregalou os olhos para o irmão com desespero e lágrimas nos olhos. Ele tentou tranquilizá-la.

– Está tudo bem, Ali, ela está apenas sonolenta. Vamos descer para tomar café da manhã. Tenho certeza de que ela estará lá embaixo em um minuto.

Ele queria se sentir tão confiante quanto suas palavras soaram. Não fazia ideia do motivo pelo qual a mãe não tinha dito uma palavra. Ela era definitivamente uma pessoa “matinal”, sempre cantando, sempre brilhante, a desgraça da maioria das manhãs da vida de Billy.

Ignorar a ambos, sem uma palavra sequer, especialmente depois de chegar em casa tão tarde na última noite, era incomum, para dizer o mínimo.

Billy entregou para Alice o leite que estava na geladeira, que ela misturou com o cereal antes de devolver a ele.

Eles comeram em silêncio, esperando ouvir os passos da mãe descendo a escada, ou (menos provável) a voz carinhosa chamando-os no andar de cima. Mas, nada.

Por fim, Billy retornou ao andar de cima, desanimado, aborrecido e um pouco assustado. Ele encontrou o banheiro vazio e, quando foi até o quarto dos pais pela segunda vez naquela manhã, viu que a mãe tinha voltado para a cama!

– Quer fechar essa droga de porta e parar de fuçar pela casa? – disse o pai bruscamente.

– Mas, pai... – Billy gaguejou. – Você não vai ao escritório hoje?

Como resposta, o pai pegou um pé de sapato e atirou no filho. Errou por pouco, e em vez de Billy, acertou a porta que ele acabara de fechar.

Bem, não foi preciso dizer duas vezes! Assim que tomasse um banho bem rápido e se vestisse, ele sairia de lá. Estava quase pronto para sair, e Alice também. O quanto antes eles se vestissem e dessem o fora dali, melhor.

Cerca de 15 minutos depois, as duas crianças deixaram a casa.

– Vamos para a escola, Billy? – Alice perguntou.

– Sim, vamos à escola. Não se preocupe, vou lhe dar dinheiro para o lanche, e podemos ir à lanchonete tomar suco e comer batatinha frita no recreio.

Billy achou que era melhor manter as coisas da maneira mais normal possível, e faltar à escola certamente não ajudaria muito.

– Encontro com você às quatro horas. Não se preocupe, você não vai voltar para casa sozinha.

Ao fazer esta última afirmação, Billy pensou como soava ridículo dizer “você não vai voltar para casa sozinha”. O lar sempre é um porto seguro, embora eles estivessem fugindo da casa deles naquela manhã. Ele jurou que iria fundo para saber o que estava acontecendo quando voltassem para casa, e apertou a mão de Alice para tranquilizá-la antes de ir para sua classe.

Billy puxou sua cadeira perto de Alex e se virou para cumprimentar o amigo.

– Caramba, Alex, você parece quase tão mal quanto eu. Não dormiu a noite passada?

Alex deu de ombros.

– Péssima noite, Billy. Minha mãe e meu pai tiveram uma briga muito feia, horrível, e não consegui pegar no sono. E tem mais: eles ainda brigavam de manhã, e tentaram me envolver! Quase não consegui dar o fora a tempo.

Ele balançou a cabeça, lembrando. – As coisas que eles disseram um para o outro, eu nunca tinha ouvido minha mãe e meu pai conversarem assim antes. Foi realmente feio, uma baixaria. E depois, no caminho para a escola esta manhã, eu vi os novos moradores que se mudaram no final da rua. São muito esquisitos. Mesmo assim, achei que as crianças talvez viessem para esta escola. Então, ofereci-me para acompanhá-las, se quisessem companhia, alguém para lhes mostrar as coisas básicas, entende o que eu quero dizer?

Billy concordou.

– Então, a mãe deles me olhou como se eu estivesse falando uma língua estrangeira e depois chiou comigo: “Vá embora” – foi isso o que ela disse – “Vá embora, garoto, não queremos gente do seu tipo por aqui. ‘‘ Então, o menino, Rufus, eu acho que ela o chamou assim, chutou a minha canela! Ele me chutou, acredita? E quando eu me virei, vi que a garota e a mãe estavam rindo!

Ele sacudiu a cabeça.

– Eu só estava tentando ser agradável. Eu juro, Billy, tem alguma coisa estranha acontecendo por aqui. Talvez alguém tenha colocado alguma coisa na água... Mas o que quer que seja, não estou gostando.

Billy não sabia o que dizer. Contou a Alex que também estava tendo problemas estranhos, mas nesse exato momento a porta da sala de aula abriu e o professor chegou.

– Converso com você no recreio – ele disse, abrindo a mochila e pegando seus livros.

O professor Stirling sentou-se em sua cadeira e olhou para os meninos e as meninas que haviam sentado antes dele. Em vez do habitual “bom-dia”, ele não disse nada. Colocou as mãos atrás da cabeça e os pés em cima da mesa.

Alguns garotos começaram a rir, achando que ele estava fazendo alguma brincadeira, mas muitos alunos ficaram um pouco confusos. Em seguida, ele pegou um maço de cigarros do bolso do casaco e acendeu um.

– Quem não gostar pode sair – ele anunciou, surpreendendo a quase todos.

Ele estava fumando em plena aula! Os professores não podiam fumar em parte alguma da escola, ainda mais dentro da sala de aula...

Billy e Alex, que vinham presenciando eventos estranhos desde a noite anterior, provavelmente foram os menos afetados pelo que o senhor Stirling estava fazendo. Ambos simplesmente guardaram seus livros nas mochilas e saíram da classe.

Nos corredores, reinava o tumulto. Em vez de estarem calmamente sentados em suas salas de aula, os alunos estavam por toda parte.

Alex procurou recolher bastante informação com alguns deles, e ficou sabendo que apenas 4 de 26 professores tinham comparecido ao trabalho naquela manhã, que o diretor estava cambaleando bêbado em sua sala, e basicamente todas as crianças estavam livres para fazerem o que quisessem.


Capítulo 6

O Caos se Espalha

Billy foi para o corredor onde ficava a sala de aula de Alice. Ele a encontrou perambulando sem destino, tomando suco e comendo batatinha. Então, buscou-a, e as três crianças deixaram a escola juntos.

Ricky estava do lado de fora, no parquinho, mas estava bastante agitado.

– Algo errado com você, Rick? – perguntou Alex.

– O que há de errado? – balbuciou Ricky. – Olhem isto... – e ele mostrou uma mochila esfarrapada, detonada. – Minha mãe comprou uma mochila nova para eu começar o semestre, e algumas outras crianças da classe acharam que seria uma grande diversão arrancá-la de mim. Eles me deixaram com este lixo! Todo o meu dinheiro estava nessa mochila. Minha mãe vai me matar. Mas, na verdade, não havia nada que eu pudesse fazer. Eles me dominaram.

– Quem fez isso? – perguntou Alice, com as mãozinhas na cintura.

– Esse é o problema – replicou Ricky. – Os dois líderes eram os meus melhores amigos até esta manhã. Acho que parte da razão para eu não revidar foi o choque, a surpresa...

Nesse momento, os agressores passaram correndo, puxaram a mochila de Ricky por cima da cabeça de todos eles e seguiram dando gargalhadas.

– Ei, Ricky, obrigado pela mochila – um deles gritou. – Mas não vamos precisar disso.

Ele pegou uma lata de refrigerante de dentro da mochila e atirou-a na cabeça de Ricky. Ela acertou o alvo: a dura lata atingiu o supercílio do garoto.

– Ai! – ele gemeu, colocando a mão na cabeça.

O sangue jorrou do corte. Billy procurou desesperado um lenço nos bolsos para estancar o sangue, enquanto Alex corria atrás dos garotos, gritando para eles pararem. Mas eles só riam e gritavam palavrões.

– Vai querer levar o mesmo? – gritou um deles. Alex decidiu que era melhor se afastar, caso eles tentassem algum outro tipo de truque.

Ele desistiu e se juntou a seus amigos.

– Está tudo bem, Ricky? – perguntou, notando que o lenço estava repleto de sangue.

– Sim, estou bem. Talvez seja melhor falar com o diretor ou com um dos professores sobre este assunto.

– Nem pensar – disse Billy ironicamente. – Afinal de contas, o diretor está bêbado, e os professores que deveriam dar aula esta manhã nem se importaram com o que acontecia conosco.

Ele olhou para o relógio. Eram nove e meia da manhã. Desde às quatro da tarde de ontem parecia que a cidade toda tinha ficado completamente maluca.

Ele realmente não sabia o que fazer, mas sabia que o pequeno grupo ao redor dele estava precisando de orientação. Eles precisavam de um líder e, gostando ou não disso, ele estava começando a liderá-los, embora sem ter absolutamente nenhuma ideia do que fariam ou para onde iriam.

Por fim, foram para o parque local, depois de pararem no meio do caminho para comprar mais batatinha e suco. Na hora em que chegaram, todos estavam de volta à vida normal. As pessoas brincavam e riam, e se comportavam quase como se nada de inconveniente tivesse acontecido.

O parque estava cheio. Obviamente, outras crianças tiveram a mesma ideia que eles.

A área de balanços do parque, destinada às crianças menores, ficava isolada do resto. Mas naquele dia isso não impediu a entrada de crianças mais velhas. Elas brincavam nos balanços construídos para crianças com menos da metade da idade delas. A gangorra quebrou porque ao menos dez crianças subiram nela, e dois garotos iam pintar o escorregador com tinta vermelha, para que a próxima criança que escorregasse ficasse toda manchada.

O barulho da bagunça das crianças era absolutamente insuportável.

– Acho que não foi uma boa ideia – disse Alice, olhando para Billy.

Ele concordou acenando com a cabeça.

– Vamos para outro local. Deve existir algum lugar um pouco mais tranquilo.

E então, seguiram para o museu, e se reuniram em um canto ao lado de uma exposição de fósseis.

Não havia nenhum atendente do museu quando eles chegaram (mas isso não surpreendeu. Na verdade, quase nada mais os surpreendia) e nenhum outro morador da cidade tinha achado necessário visitar o museu naquele dia (também não foi surpresa). Então, eles simplesmente caminharam para um lugar calmo, onde não seriam incomodados.

– Certo – disse Billy –, aqui estão os fatos desagradáveis:

1. A nossa mãe e o nosso pai – ele olhou para Alice – ficaram inexplicavelmente malucos.

2. Os pais de Alex também ficaram malucos, e ele foi chutado na canela pelos novos vizinhos.

3. Tanto a senhora Millfield como o senhor Johnston agiram de modo estranho.

4. A escola também virou uma completa piada, onde animais selvagens circulam livremente e atiram latas de refrigerante na cabeça das pessoas.

5. Nenhum de nós faz qualquer ideia do que esteja acontecendo e nem do que temos a ver com isso.

– Eu reparei em mais uma coisa – afirmou Alice.

Os garotos olharam para ela.

– Pelo que sabemos, parece que só nós quatro estamos nos comportando normalmente. Se vocês olharem bem, todas as demais pessoas estão agindo de forma espantosa desde ontem à tarde, como o Billy disse, exceto nós.

Os garotos digeriram esse pedaço de informação, e concordaram com o que Alice dizia.

– Então, no que você está pensando? – perguntou Ricky.

– Como é mesmo aquele ditado? – ela olhou para o irmão. – Vamos dançar conforme a música...

– Você quer dizer para também nos comportarmos como lunáticos? – Billy olhou para ela interrogativamente.

– Bem, sim! Quer dizer, pelo menos até descobrirmos o que está acontecendo.

Ela olhou para os outros, que permaneceram em silêncio. Abriu um pacote de batatinha e atirou uma na boca.

– Isso é, claro, a não ser que alguém tenha alguma ideia melhor.


Capítulo 7

Mais Confusão

As coisas estavam piorando cada vez mais.

Quando as crianças voltaram para casa, o pai delas estava tendo uma briga séria no jardim com o pai de Ricky. Sabendo que provavelmente só pioraria a situação se tentasse pacificar os dois adultos, Billy simplesmente passou por eles e entrou na casa, levando Alice com ele. A mãe estava sentada na sala com as pernas cruzadas.

“Obviamente ela não foi ao trabalho hoje...” – Billy pensou, achando melhor não expressar seus pensamentos.

Ela ignorou os filhos quando eles surgiram na sala. Em vez disso, concentrou-se na revista que segurava nas mãos.

Em volta da cadeira havia ao menos quatro xícaras de café, e pacotes vazios de biscoitos. O cigarro que segurava nas mãos (ela tinha parado de fumar há mais de dez anos) ela rebatia despreocupadamente no tapete, e um montinho de cinzas já começava a surgir bem na frente de onde ela estava sentada.

Alice virou-se, saiu da sala e foi para a cozinha. Billy a seguiu.

Eles fizeram um monte de sanduíches de queijo, tomate e creme de amendoim, prepararam copos de leite e pegaram alguns biscoitos de chocolate, empilharam tudo em uma bandeja e subiram.

Ao chegarem lá, perceberam que no quarto quase não havia espaço suficiente para se mexerem. Por onde olhavam, eles viam pilhas de CDs, vídeos, caixas de livros e uma ampla variedade de relógios atirados despreocupadamente em um grande saco plástico e, ainda, xícaras e xícaras de café.

As coisas se espalhavam a ponto das crianças não saberem mais para onde olhar.

– Mas que diabos...? – resmungou Billy.

Eles trataram de ir para o quarto de Billy e, pela janela aberta, puderam escutar que a briga entre o pai deles e o pai de Ricky ainda continuava feroz. Alice olhou para fora, por trás da cortina, e notou que o nariz de seu pai estava sangrando.

Uma pequena multidão de vizinhos tinha se formado, mas, em vez de tentarem parar a confusão, as pessoas gritavam palavras de incitamento e provocação para os dois homens.

O pai de Ricky estava furioso.

– Esses relógios eram meus – ele gritava.

– Eu os vi primeiro. Você não tinha o direito de pegá-los dos Lawsons.

– Os Lawsons! São os joalheiros da cidade, não é mesmo? – Billy olhou para a irmã em busca de confirmação.

Alice concordou, ainda sem entender o que estava acontecendo.

– Quem chega primeiro é atendido primeiro – gritou de volta o pai de Billy e Alice, empurrando o pai de Ricky de modo a fazê-lo tropeçar e cair em cima de uma pequena cerca que separava os dois jardins.

– Se não estivesse tão decidido a saquear a loja de câmeras, você podia ter chegado antes de mim, mas eu fiquei com tempo de sobra nas minhas mãos, e você, não.

Ele riu a valer da própria piada.

O pai de Ricky se recuperou em seu próprio jardim e socou o chão furiosamente. A multidão vibrou, parecendo gostar mais da briga quanto pior ela ficava.

– Haverá um dia frio no inferno antes que eu volte a falar com você, Ritchie Thomson! – disse-lhe o pai de Billy.

E com isso ele se virou e caminhou para sua casa.

Alice olhou para Billy com os olhos arregalados.

– Eles roubaram todas essas coisas? – ela perguntou. – Isso significa que eles estavam brigando pelo saque que fizeram nas lojas?

Billy concordou.

– É o que parece, Ali. Venha cá, saia da janela, temos que conversar a respeito disso.

Quando puxou Alice de volta, Billy percebeu que Rufus, sua irmã e seus pais estavam no meio da multidão. Eles se destacavam dos demais, principalmente por duas razões:

1. Estavam vestidos de preto da cabeça aos pés, apesar do calor do verão, e

2. Eram os únicos membros da multidão que não zombavam. Eles apenas ficavam sorrindo em silêncio.

Billy achou que a família podia ter olhado na direção deles, mas não tinha certeza. Ficou tão incomodado a ponto de puxar as cortinas da sala antes que ele e a irmã sentassem e tentassem comer.

Alice fez uma última tentativa corajosa de acabar com seu sanduíche.

– Isso não é bom, Billy – ela disse. – Eu simplesmente estou sem nenhum apetite.

Billy terminou de tomar seu leite. – Sei o que você quer dizer – ele disse, embora tivesse conseguido devorar três sanduíches e dois biscoitos de chocolate!

– O que vamos fazer agora? – ela perguntou, olhando para o irmão.


Capítulo 8

Surge um Plano

Eles ficaram em silêncio durante a refeição, se é que aquilo poderia ser chamado assim, e Billy foi capaz de colocar ordem em seus pensamentos.

– O que eu percebo – ele começou – é que todas essas coisas malucas começaram no dia em que Rufus e sua família esquisita mudaram para a cidade. Eu acho que existe alguma conexão entre isso e o que está acontecendo, e também acho que se quisermos algumas respostas, teremos que ir até lá e verificar a casa deles.

Alice arregalou os olhos.

– Você quer dizer dentro da casa? – ela perguntou. – Não podemos fazer isso, eles podem nos pegar.

Billy balançou a cabeça. – Vamos antes fazer o reconhecimento em volta do local, para ver se conseguimos encontrar alguma pista. Quem sabe. Vamos aqui do lado chamar Ricky, depois seguimos para a casa do Alex.

No caminho, as crianças foram paradas no corredor pela mãe.

– Onde é que vocês pensam que vão? – ela perguntou. – No Clube da Juventude da Igreja?

O rosto dela se retorceu quando ela jogou a cabeça para trás e riu histericamente sem nenhuma razão aparente.

– Guia de garotas? Escoteira? – ela riu novamente.

– Não vou a lugar nenhum com ela, pode ter certeza – disse Billy.

Ele empurrou Alice.

– É mesmo boazinha demais para o meu gosto, sempre esperando para fazer boas ações e realizar sua missão com pessoas velhas e desamparadas. Ela é patética.

Alice olhou para o irmão, chocada.

Quando a mãe jogou a cabeça para trás e riu novamente, Billy piscou rapidamente para Alice, que de repente entendeu o que ele estava fazendo.

– Não escute esse idiota, mãe. Ele não sabe o que está falando. Esses dias têm sido demais. Vou até a cidade para ver se não sobrou nenhum tênis decente do meu tamanho. Isto é, se a loja de sapatos já não tiver sido saqueada!

A mãe sorriu e afagou o braço da menina.

– Essa é a minha garota... Eu sabia que você não me decepcionaria! Faça um bom passeio, e boa caça!

Billy piscou novamente para a irmã, enquanto a mãe os deixava para voltar a sentar-se na mesma posição na sala.

– Parabéns, irmãzinha – ele cochichou. – Ganhou o dia.

Alice sorriu e seguiu caminho entre o lixo espalhado no chão da cozinha.

Normalmente uma pessoa muito certinha, a mãe parecia ter sofrido uma completa reversão em todos os aspectos de sua personalidade. Embalagens vazias que antes guardavam refeições para serem aquecidas no micro-ondas simplesmente tinham sido descartadas e atiradas de forma aleatória no chão. Garrafas vazias se juntavam à confusão, assim como a louça imunda que transbordava da lava-louças.

As duas crianças saíram o mais rápido que podiam e seguiram para a casa ao lado. Eles bateram duas vezes sem obter qualquer resposta. Por fim, a mãe de Ricky respondeu.

– Quem é? – foi só o que ela disse quando viu as crianças na entrada.

– Queremos falar com o Ricky – disse Billy.

Os olhos dela estavam frios.

– O Ricky está de castigo – ela disse antes de bater a porta na cara deles, quase prendendo os dedos de Alice no batente.

– De castigo! Bem, essa é uma grande notícia – disse Billy sarcasticamente enquanto deixavam a soleira da porta. – Gostaria de saber o que ele fez para merecer isso.

– Psiu – disse Alice. – Eu ouvi alguma coisa.

As duas crianças ficaram paradas e, então, ouviram o barulho novamente. Era uma batida fraca, podia ser ouvida no jardim. Mas de onde vinha? Alice olhou rapidamente para a janela do quarto de Ricky. Não havia ninguém ali.

– A garagem do jardim, Billy, o barulho está vindo da garagem do jardim.

Felizmente, a chave havia sido deixada na fechadura e eles destrancaram a porta depressa. Embora estivesse muito escuro ali, eles conseguiram perceber que Ricky estava sentado no outro canto da garagem, com os olhos cheios de lágrimas, ainda batendo na parede com o sapato. Alice correu e se ajoelhou ao lado do amigo.

– Oi, Ricky, você está bem? O que aconteceu? Quem trancou você aqui?

Ricky olhou para ela.

– Estou contente que você esteja aqui, Alice. Achei que ficaria trancado para sempre! – ele arrepiou-se. – A minha mãe e o meu pai me trancaram aqui. Vocês acreditam que eles fizeram isso comigo? E sem nenhum motivo.

Ele enxugou os olhos.

– Eu sei que vocês estão me achando um bebê – ele disse para ambos –, mas estou com muito medo. Além da escuridão, quando está tudo calmo eu posso ouvir nitidamente as coisas que estão acontecendo.

Ricky estremecia só de pensar nos escaravelhos, essas horríveis criaturas pegajosas que podiam estar à espreita na garagem, apenas aguardando para formigar pelas pernas de suas calças compridas, por seu nariz ou por seus ouvidos. Ele se preparou e continuou.

– Resolvi bater na parede, pois esperava espantar esses insetos assustadores para longe de mim. Mas sabem o que é o pior?

Ele olhou para ambos com olhos desesperados.

– O pior de tudo é que minha mãe sabe o quanto eu tenho medo de bichos assustadores, seja pela aparência, seja pela forma. Ela sabe disso e ainda assim deixou meu pai me trancar aqui. Na verdade, ela o ajudou a fazer isso.

Billy ofereceu a mão para o garoto se levantar.

– Sua mãe não está sendo ela mesma, Ricky. Eu não acho que ela, nem ninguém mais na cidade, sabe exatamente o que está fazendo. Venha, vamos dar o fora daqui antes que eles nos encontrem. Temos que ir fundo nessa história antes que alguém realmente se machuque.

Eles saíram da garagem escura e trancaram a porta. Billy caminhou na frente e Alice ficou na ponta dos pés para cochichar no ouvido do amigo.

– Eu não acho que você seja um bebê, Ricky. Acho que você é uma das pessoas mais corajosas que eu conheço.

Ele sorriu agradecido e, então, os três caminharam para a casa de Alex.


Capítulo 9

O Livro

Ainda não estava totalmente escuro, mas o crepúsculo havia começado, e isso dava uma aparência misteriosa à fachada da casa dos novos vizinhos. A placa que havia sido afixada na porta, bem em cima da campainha, dizia: “Grimaldi”.

– A família Grimaldi – disse o Billy. – Gri-mal-di, é claro, eles têm maldade até no nome.

Ele abriu a mochila que tinha levado e esvaziou todo o seu conteúdo.

– Máscaras de Dia das Bruxas! – exclamou Alex. – Vamos brincar de gostosuras ou travessuras com os Grimaldi?

Cada um deles pegou uma máscara, olhando curiosos para o Billy.

– Não, Alex, não vamos brincar de gostosuras ou travessuras. Nós vamos nos disfarçar, é isso o que faremos. Como você pode perceber, somos as únicas pessoas na cidade não afetadas pelo que está acontecendo. Ficando anônimos, nós temos muito mais chances de descobrir o que está fazendo todo mundo ficar tão malcriado, e provavelmente ainda dar um jeito de parar de vez com isso. Colocando estas máscaras, podemos ser qualquer um, entendeu? Podemos apenas ser algumas crianças bagunceiras que saíram à noite para assustar as pessoas ao pularmos em cima delas. Só nós, é claro, sabemos muito bem quem somos. Nós somos os vigilantes!

– Os vigilantes! – Alice suspirou. Ela adorou como isso soou, tão romântico. O quarteto não apenas salvaria a cidade, mas possivelmente até o próprio mundo!

A voz de Alex trouxe-a de volta à realidade.

– Tudo bem, então, Billy. O que você quer que a gente faça?

– Precisamos espionar, por enquanto, eu acho – replicou Billy. – Vejam primeiro o que podem encontrar no chão, depois tentem as janelas. Alice e eu vamos ver os fundos da casa e vocês dois vão pela frente. Em 15 minutos nos reunimos de novo na casa do Alex. Tudo bem?

Todos concordaram.

– Máscaras no rosto, e tomem cuidado.

Billy e Alice foram furtivamente para trás da casa. Ele colocou a cabeça de um homem de 70 anos de idade, junto com peruca e barba totalmente brancas, e ela ostentava uma deslumbrante cabeça de palhaço com peruca roxa encaracolada. Por alguma razão o sorriso no rosto do palhaço parecia só um pouquinho fantasmagórico sob a enfraquecida luz do crepúsculo.

Ao chegarem no jardim dos fundos, alguma coisa se esfregou na perna de Billy e o fez ficar ofegante. Foi difícil não gritar. Brilhando abaixo dele, dois olhos verdes arregalados o olhavam fixamente. Era um gato preto, de pelo eriçado, garras afiadas e pronto para atacar. Tudo aquilo era assustador demais para ser expresso em palavras: casas escuras, gatos pretos, qual seria a próxima surpresa? Ele apertou as costas contra a parede e continuou caminhando pela beirada para os fundos da casa. O gato permaneceu imóvel, sem desviar seus olhos verdes de Billy nem por um instante.

O chão e os jardins que rodeavam a casa dos Grimaldi pareciam bastante inocentes, mas Billy não sabia realmente o que devia procurar. Cadáveres? Imaginou se talvez não estavam fazendo um pouco de melodrama a respeito de todo o caso, mas depois lembrou do comportamento dos pais e de todas as mercadorias roubadas que estavam em sua casa, e concluiu que não estava mesmo.

Ele podia ver Alice na ponta dos pés entrando em um dos quartos. Olhou para o outro quarto, mas todas as luzes estavam apagadas e não era possível ver nada. Ele caminhou para se juntar a Alice.

– Não enxergo nada – ela cochichou –, mas ouço vozes.

Billy também escutou e, nesse exato momento, uma luz foi acesa no andar de cima, iluminando até a parte mais distante do jardim. As crianças fizeram um silêncio mortal, morrendo de medo até de respirar. A janela do andar de cima estava ligeiramente entreaberta, mas eles não conseguiram escutar exatamente o que estavam dizendo.

Eles podiam ouvir as vozes da mãe e do pai, mas tiveram que se esforçar para entender algumas palavras estranhas.

– Quase pronto... Vire essa página... Mais quatro...

– Isso não é bom, Billy – disse Alice calmamente. – Vou ter que subir para ver.

Billy olhou para ela apavorado. Alice não estava mais olhando para ele, mas em vez disso olhava fixamente para o cano que subia de onde eles estavam até o topo da casa.

– Nem pensar, Alice – o irmão respondeu. – Não existe jeito de você subir por aí. Eu sei o quanto você gosta de escalar, sei como você é ágil, mas não estamos falando de árvores. Estamos falando de canos, estamos falando da família Grimaldi. Como você acha que eles vão reagir quando virem uma criança usando uma máscara de palhaço bisbilhotando na janela?

Alice não respondeu imediatamente. Ela retirou a atenção da calha e virou para o irmão.

– O que você sugere então, Billy? Chegamos até aqui. Acha justo desistir e voltar para junto da mamãe e do papai, em nossa casa cheia de mercadorias roubadas? – ela falou. – Somos vigilantes! Será que você não vê? Temos a chance de descobrir já o que está acontecendo com a nossa família e com os nossos amigos. Talvez, Billy, esta seja a nossa chance de fazer a diferença. Talvez possamos fazer com que toda essa maldade pare de se espalhar.

Billy pensou por um momento, primeiro olhou para a irmã, para o cano, e depois virou-se para Alice de novo.

Ela estava certa, é claro, e ambos sabiam disso. Talvez aquela fosse a única chance que eles teriam de tentar recolocar as coisas nos eixos.

– Tudo bem, Alice, se você tem certeza de que consegue fazer isso. Vou ficar bem atrás de você. Dando o maior apoio, na verdade – ele sorriu, porém ela não conseguiu ver esse sorriso atrás da máscara. – Vá em frente – ele afagou o ombro dela –, mas tome cuidado.


Capítulo 10

A Investigação de Alice

Alice virou-se e colocou ambas as mãos no cano. Então, usando a habilidade que ela tinha praticado tantas vezes antes, mas em missões muito menos perigosas, como fugir do Ricky, ela enrolou os pés em volta do cano o máximo possível e começou a subir.

Billy ficou observando com a respiração acelerada, admirado, como sempre, com a agilidade e a força de sua pequena irmã, e cruzou os dedos da mão direita fortemente. Agora, as vozes eram mais altas, e Alice estava quase no nível da janela. O cano passava ligeiramente à direita dela, e Alice tinha que se curvar para ter uma visão clara do interior do quarto.

Os filhos dos Grimaldi não estavam ali, só os adultos, sentados lado a lado, junto a uma grande mesa de carvalho. Em cima da mesa estava o maior livro que Alice já tinha visto. Era encadernado em couro preto, e exibia as palavras “A Colheita das Almas”, e depois, embaixo, “Glosserton”, o nome da cidade deles.

Quando os esqueléticos dedos do senhor Grimaldi abriram o livro, Alice pôde ver que cada página estava cheia de colunas com palavras manuscritas.

Ela não pôde deixar de notar que o casal ainda estava completamente vestido de preto, e imaginou se eles não achavam o ar da noite quente demais para se vestirem daquele jeito.

O senhor Grimaldi virava as páginas do livro “avidamente”, como Alice depois descreveria a ação para Billy, porque de fato essa parecia a única palavra adequada para ela usar. Com o dedo, ele percorria cada coluna, apontando coisas para a esposa. Ela também parecia muito animada, quase virando as páginas do livro por si mesma, como se o marido não fizesse muito rapidamente.

A princípio, Alice não conseguia entender o que estava sendo dito, nem encontrar qualquer sentido para aquilo. Para ela parecia, porém, que o senhor Grimaldi estava falando a respeito de agricultura, por causa das palavras que usava.

– E então, como você pode ver, minha querida, nós aramos o campo, as sementes foram lançadas, e agora estamos quase na época da colheita.

Alice aproximou o rosto ainda mais perto da janela e conseguiu ver que cada coluna continha uma longa lista de nomes, alguns dos quais lhe eram familiares.

A senhora Millfield estava lá, assim como o senhor Johnston, Alice também reconheceu o nome de alguns professores da escola, e então, chegou a vez do nome do pai dela. O senhor Grimaldi pegou a caneta. Ele usava uma daquelas longas penas enfeitadas, que mergulhava em um tinteiro, antes de acrescentar o nome de Jennifer Thomson, a mãe de Alice, ao livro.

A senhora Grimaldi bateu palmas animadamente.

– Agora só falta pegarmos aquelas duas crianças impertinentes desse casal e estamos quase lá! – ela disse satisfeita.

Alice viu que faltavam apenas quatro espaços em branco a serem preenchidos no livro.

“Eles devem estar esperando por nós quatro, então, o livro vai estar completo!” – ela pensou apreensiva.

A senhora Grimaldi se levantou e Alice afastou a cabeça, esperando não ser percebida. A mulher escancarou a janela, quase atingindo um dos cachos loiros de Alice, e contemplou feliz da vida o céu noturno.

– Veja, querido – ela disse ao marido. – Eles estão aguardando pacientemente a colheita, esperando e assistindo, enquanto nós os ajudamos a ceifar mais almas.

De sua posição no chão, Billy podia ouvir cada palavra que a voz da senhora Grimaldi pronunciava naquela noite. Acompanhando a contemplação dela, ele olhou em direção ao céu e ficou tão ofegante que teve medo de ter sido ouvido. Ali, pairando acima do chão, como se realmente estivesse aguardando para colher a safra, as almas daquelas pessoas do bem, estava o Ceifador.

O rosto que Billy só tinha visto em livros e filmes era ainda mais repulsivo do que na representação. Ele estava mais aterrorizado como jamais estivera em toda sua vida. O capuz do manto preto do Ceifador emoldurava um rosto grotesco com profundas olheiras enegrecidas, pálido e esquelético como uma caveira. A princípio, seus olhos pareciam pretos e cegos, mas o Ceifador dirigiu seu olhar implacável para o trêmulo garoto, e Billy viu que as demoníacas pupilas dele eram de cor escarlate e ardiam feito brasas brilhantes.

Os olhos pareciam queimar direto na alma de Billy. Ele estremeceu: aquilo era muito pior do que ele poderia ter imaginado. Ele olhou para o lado. Alice ainda mantinha sua posição no cano e, quando a senhora Grimaldi entrou novamente, ela teve a oportunidade de escorregar de volta para baixo, para a relativa segurança do chão.

Lá embaixo, Billy segurou a mão dela.

– Corra! – ele cochichou com urgência. – Depressa, Alice, temos que dar o fora daqui, agora!

Alice seguiu o olhar do irmão quando ele olhou para cima. Da calha, ela não tinha visto o Ceifador, mas agora sim, e logo compreendeu tudo. Um gritinho de pavor escapou de seus lábios e Billy a puxou para longe da casa. Ao olhar para trás rapidamente para verificar se a família Grimaldi não os tinha visto, ele viu que o céu estava cheio de Ceifadores, assistindo e esperando. Ele nunca teve certeza se fora imaginação ou não a visão daquelas caveiras sorrindo.


Capítulo 11

A Procissão

As duas crianças se atiraram na varanda de Alex, quase sem fôlego, e desabaram. Alex e Ricky já estavam lá. Billy e Alice tiraram suas máscaras.

– Vocês estão bem? – Alex perguntou.

Billy meneou a cabeça.

– Mais ou menos – ele replicou. – Você viu alguma coisa lá fora?

Agora que podia ver o amigo mais claramente sob a luz da varanda, Billy viu que ele estava tremendo. Ricky também não parecia bem.

– Quer saber se também vimos o que você viu no céu? Como estamos apavorados!

Alex concordou com a cabeça.

– Não vou mais sair hoje à noite, por motivo de segurança. Na verdade, todos vocês são muito bem-vindos para passarem a noite aqui, isto é, se não se importarem de dormir no chão.

– Um chão duro é muito mais atraente do que o que há lá fora... – disse Ricky. – Definitivamente eu vou aceitar a sua oferta.

Acho que seria melhor se todos nós ficássemos juntos essa noite. Simplesmente não é nada seguro sair daqui – Billy falou.

– Será que ainda vamos encontrar alguma coisa lá fora? Será que sabemos o que tudo isso significa? – perguntou Alex.

Alice, tremendo não só por causa do frio, mas também pelo medo, relatou o que tinha visto no quarto do andar de cima da casa dos Grimaldi.

– Então, como vocês podem ver – ela concluiu –, esse livro parece conter o nome de todas as pessoas que foram afetadas pela propagação da maldade. Elas se tornaram desagradáveis, no mínimo, e a alma delas já está pronta para os Ceifadores colherem. Só tem um problema: parece que eles não podem fazer nada enquanto os nomes de todos os moradores não estiverem no livro, e isso significa que eles precisam de nós quatro.

Ricky automaticamente verificou se a porta da varanda estava trancada.

– Então, o que podemos fazer? – perguntou Alex.

Billy suspirou.

– Não deixar que eles nos persigam, no mínimo – ele disse. – E nós também temos que pensar em como vamos impedir que essa tragédia destrua a nossa cidade. Pelo que eu entendo do assunto, o Ceifador só aparece quando alguém está prestes a morrer. Mas a alma de uma pessoa só pode ser levada (ou colhida, como eles dizem), se ela já estiver morta. Então, será que é isso o que eles planejam fazer: aniquilar toda a cidade?

Essa reflexão muito sensata mergulhou todos em um silêncio profundo, e eles ficaram calmamente sentados por um tempo, cada um perdido em seus próprios pensamentos.

Mas um forte estrondo vindo do lado de fora logo quebrou o devaneio de todos. Eles escancararam a porta, ousando ver o que estava acontecendo.

– Uau! – exclamou Billy. – Parece uma cena do Flautista de Hamelin.

Os dois pequenos Grimaldi marchavam no meio da rua seguidos praticamente pelo que parecia ser a cidade inteira. As duas crianças mantinham os olhos fixos em um foco na frente, enquanto os moradores que os seguiam cambaleavam sob o peso das mercadorias que carregavam.

O barulho da multidão era incrível. Alguns gritavam, outros falavam palavrões para pessoas que antes eram seus amigos, outros ainda brigavam pelo conteúdo das caixas. Alguns se separavam da multidão e calmamente atiravam grandes pedras nas janelas ou na porta das casas. Às vezes, passavam pelos vidros quebrados e roubavam tudo o que conseguiam carregar com as próprias mãos, se gostassem de alguma coisa.

– Essa não! – disse Alex, cobrindo os olhos. – Os meus pais estão ali.

– Isso não é tudo – disse Billy, apontando para o homem que caminhava bem atrás dos filhos dos Grimaldi na procissão. – O padre!

Embora achassem que já estavam chocadas o bastante, as crianças ficaram mais atordoadas. Se aquelas pessoas tinham o padre em suas garras, que chance elas teriam de escapar?

Alex fechou a porta para o bizarro carnaval e a trancou.

– Bem – ele disse –, vamos olhar para o lado bom. Se os meus pais estão na procissão, então, parece que teremos algumas camas vazias hoje à noite. Podem esquecer o chão duro!

Agora que era seguro fazer isso, as crianças foram para a parte principal da casa e trancaram todas as portas e janelas. Eles levaram sacos de dormir para baixo e decidiram que seria melhor se todos ficassem juntos no mesmo local. Eles sentaram para conversar por um tempo, porém Billy não parecia ter muita coisa para dizer.

– Algo errado, Billy? – perguntou Alice. – Você parece muito calmo.

– Tudo bem – ele respondeu. – Estou apenas tentando pensar no que podemos fazer.

– E então? – perguntou Alex.

– Tudo o que me ocorre é que precisamos nos livrar do livro de qualquer maneira. Vocês sabem, o livro que a Alice viu. Parece que ele tem um papel importante nisso: assim que estiver cheio, os Ceifadores podem agir, e os nossos nomes não podem ser acrescentados enquanto não tivermos sido “infectados” pelos malvados à nossa volta. Acho que se conseguirmos nos livrar do precioso livro dos Grimaldi, então, os Ceifadores vão desistir e irão embora para outro lugar onde as pessoas estejam prontas para ceder suas almas com um pouco mais de boa vontade do que nós.

– Mas como conseguiremos fazer isso? – perguntou Alex. – Como vamos entrar naquela casa, e ainda roubar o livro?

– Eu não disse que vamos roubar – falou Billy. – Eu disse que vamos nos livrar do livro, talvez queimá-lo.

– Eu vou fazer isso – disse Alice calmamente.

Os três garotos se viraram e olharam para ela.

– O que você acabou de dizer? – perguntou Billy.

– Eu disse que vou fazer isso – ela repetiu.

– Não vai mesmo! – protestou seu irmão. – Isto é definitivamente perigoso demais para você. Já fiquei muito mal da última vez que permiti que você escalasse o cano e observasse pela janela. Mas entrar na casa, você deve estar brincando!

– Billy – Alice falou num tom de voz mais firme desta vez –, diga-me, como vocês pretendem entrar lá sem os Grimaldi os verem? Como estou lhes dizendo, é impossível, e todos nós sabemos por quê. Só existe um jeito de entrar na casa, e é pela janela que eu fiquei olhando. Você pode até ficar lá fora e esperar por mim, se isso faz você se sentir melhor, mas estou dizendo que eu vou entrar.

Ela levantou a mão para interromper os protestos do irmão.

– Billy, eu vi o nome do nosso pai nesse livro, lembra? E depois eles acrescentaram o nome da mamãe. Isso significa que eles estão prontos para levar a alma deles, e eu simplesmente não posso deixar isso acontecer. Tudo o que eu puder fazer para evitar que isso aconteça, vou fazer, e você não tente me impedir.

Alice terminou de falar e mordeu os lábios para não chorar.

– Ela está certa, você sabe – disse Ricky. – Ela tem todo o direito de ficar preocupada e de querer ajudar.

– Eu sei, eu nunca disse que ela não devia ajudar. Só estou preocupado com ela, com o perigo que existe lá fora.

Alice olhou nos olhos do irmão sem nenhum sinal de emoção. Muito pelo contrário, mostrava no rosto uma determinação de aço. Billy já tinha visto esse olhar antes, e sabia que Alice havia tomado uma decisão. Quando ela ficava assim, nada poderia fazê-la mudar de opinião.

– Tudo bem, Alice – ele levantou as mãos rendendo-se –, você venceu. Mas sabe que terá que ser realmente muito rápida, entre e saia, não temos muito tempo.

Isso porque, embora as crianças tivessem visto os Ceifadores e os Grimaldi seguirem a tortuosa procissão, não sabiam quanto tempo eles demorariam para voltar.

– Temos que ir agora – continuou Billy –, antes que seja tarde demais. Alex, você consegue encontrar uma caixa de fósforos para nós usarmos?

Menos de dez minutos depois, as crianças estavam prontas para deixar a casa. Mais uma vez vestiram as máscaras e correram pela rua afora até onde ficava a casa dos Grimaldi.


Capítulo 12

A Queima do Livro

Embora estivesse morrendo de medo, Billy olhou de relance para cima e viu que o céu estava limpo. Eles ficaram juntos no jardim.

– Agora, Alice, não esqueça: direto para o cano, depois para a janela. Queime o maior número de páginas que puder, o mais rapidamente possível. Então, dê o fora. Pena que o livro pareça tão pesado, senão você poderia atirá-lo pela janela e nós o queimaríamos aqui fora.

Alice colocou a caixa de fósforos no bolso do macacão.

– Esse é o jeito mais fácil para mim, Billy – ela garantiu ao irmão. – Jamais seria capaz de carregar o livro por conta própria.

Ela virou-se e começou a escalar o cano mais uma vez, mas agora um pouco mais apreensiva do que antes, já que sabia o que estava enfrentando.

A escalada foi bem fácil para ela, porém a janela estava emperrada, o que bastou para causar alguns problemas. Ela empurrou, puxou, resmungou e rosnou. No chão, os garotos prendiam a respiração e rezavam.

Por fim, a janela se abriu, e eles viram Alice desaparecer no interior da sala. Assim que ela fez isso, os garotos escutaram um grito de alguém que passou correndo pela frente da casa. Eles olharam uns para os outros.

– O que foi isso? – cochichou Alex imediatamente.

No mesmo instante, veio outro grito.

– Ricky, onde está você, querido?

Ricky gelou. Era a voz da mãe dele. Mas ela participava da procissão. Será que isso significava que a procissão estaria voltando?

Mantendo-se perto da parede, escondidos nas sombras, os três garotos circularam pela lateral ao redor da casa para tentarem ter uma visão mais clara do que estava acontecendo.

– Ricky! – ela chamou novamente.

– Venha cá, meu querido, quero ver você. Sinto muito se eu tranquei você na garagem. Não vou fazer isso de novo, prometo. Venha para cá, por favor, vou lhe mostrar como estou arrependida.

Ricky começou a andar para a frente. Rapidamente, Billy segurou o braço dele.

– Não, Ricky, é mentira, será que você não percebe? Essa que está falando não é a sua mãe de verdade. Eles vão fazer qualquer coisa para nos pegar. Estão apenas brincando com as suas emoções. Você tem que ficar aqui, senão vai colocar tudo a perder.

– Mas...

Ricky começou a protestar, mas parou quando ouviu uma voz diferente chamando-o. Desta vez era seu pai.

– Ricky! – ele gritou. – Venha cá agora mesmo. Você está preocupando a sua mãe. Venha cá filho, nós amamos você. Por favor, diga onde está.

A procissão serpenteava seu caminho rua acima, agora com algumas pessoas carregando tochas que espalhavam um misterioso brilho ao redor.

Na liderança, os quatro Grimaldi pareciam observar tudo. Os olhos deles sondavam em cada direção, tentando encontrar as crianças que faltavam.

Alguns moradores murmuravam bem baixinho, e gradualmente mais pessoas se juntavam a eles.

O padre, que ainda caminhava bem no começo da procissão, entoava alguma coisa que Billy não conseguia entender de jeito nenhum. Ele escutou as palavras mais de perto.

– Céu no estás que Nosso Pai.

Ele recitava a oração do Pai Nosso ao contrário! Billy estava certo de que já tinha visto alguém fazer isso em algum filme. Achou que isso teria alguma conexão com o oculto, ou até com Satanás!

Ele engoliu em seco. Os Ceifadores, de olhos brilhantes bem abertos para encontrar as almas que eles desejavam tanto mal, pairavam em cima da procissão o tempo todo, apavorando os garotos ainda mais. O murmúrio da procissão, agora, transformava-se em palavras, em nomes, e as crianças não podiam deixar de ouvir.

– Billy, Alice, venham para nós. Venham para nós, agora.

Billy escutou as vozes de seus pais misturadas com as dos outros e, totalmente contra a vontade, sentia-se compelido a seguir com eles. Ainda segurando Ricky, ele pegou a mão de Alex com o outro braço.

– Não – ele disse a si próprio. – Preciso ser forte. Se eu for, estamos perdidos. Tenho que esperar pela Alice. Tenho que retirá-la daqui em segurança.

A procissão fez uma parada bem na frente da casa e os cânticos ficaram mais altos.

Os pais de Alex tinham se juntado aos outros na frente e suas vozes aumentaram a súplica. Algumas pessoas faziam buscas nos arredores, todas chamando pelo nome das crianças.

– Ricky, venha conosco, filho, venha.

Billy achou que sentia Alex empurrar o ombro dele como se quisesse seguir rumo à multidão. Estava difícil resistir.

– Não, Alex – disse o amigo –, temos que ficar aqui, por favor, temos que ser fortes.

Ele se virou para olhar para o amigo, mas não foi o rosto de Alex que seus olhos arregalados viram.

O rosto branco feito caveira do Ceifador estava tão perto que quase o alcançava. O olhar penetrava direto no coração do garoto.

Os dois amigos o soltaram, e caminharam em direção aos pais.

– Não! – gritou Billy. – Não, voltem!

O Ceifador empurrou-o para a frente com a foice com tanta força que Billy tropeçou e caiu na grama. Ele podia ver que outros Ceifadores começavam a descer do céu para cercar seus dois amigos. Ele se debateu para ficar em pé, pois sabia que teria que correr. Mas, para onde?

– Onde ela está? – o Ceifador perguntou a ele, chegando mais perto.

– Quem? – Billy gaguejou, sua voz estava quase irreconhecível de tanto medo.

– Alice, é claro – ele respondeu, ríspido. – Não importa se você vai ou não nos contar. No final, nós vamos encontrá-la.

O Ceifador colocou sua mão esquelética, cadavérica em cima do braço de Billy e ele estremeceu.

– Venha, junte-se aos seus amigos. Não vai querer ficar de fora da colheita, vai?

Billy sentiu que dava passos indesejados rumo à multidão. Podia ver Alex e Ricky, cada um com Ceifadores ao lado deles, como se montassem guarda. Quando Billy alcançou a procissão, o cântico começou a mudar.

– Alice, venha para nós, queridinha. Alice, estamos esperando.

Billy sentia-se completamente desamparado. Não podia fazer nada para ajudar. Fechou os olhos com força e começou a rezar.

– Por favor, Alice, não os ouça, não os escute. Eles significam o seu mal. Continue escondida, vou voltar para ajudar você. Não sei como, mas vou.

Ele abriu os olhos bem na hora em que viu a senhora Grimaldi cair no chão, com o marido ajoelhando ao lado dela.

– O que aconteceu? – ele perguntou. A esposa segurou a garganta, como se estivesse sufocando.

– O livro, alguém pegou o livro. Você precisa impedir isso.

Erguendo-se, o marido abandonou a procissão e correu para a casa. Mas ela já estava toda em chamas.


Capítulo 13

O Resultado

O calor do incêndio fez com que as janelas estourassem, espalhando vidro quebrado em volta da casa. Algumas pessoas na procissão se machucaram com os cacos que voavam aleatoriamente pelo ar da noite.

Billy, protegendo os olhos das chamas, tentou encontrar o caminho de volta para a casa. Ele tinha que alcançar Alice. Jamais se perdoaria se ela se ferisse de qualquer maneira.

Ele tentava forçar o caminho para a casa no meio da multidão, mas logo depois outra violenta explosão sacudiu a casa. Houve ainda mais gritaria quando cacos de vidro e pedaços de escombros atingiram o resto da procissão que se dispersava.

Por toda parte havia muitas crianças chorando, e alguns adultos deitados no chão, obviamente feridos e angustiados, enquanto outros tentavam oferecer-lhes algum alívio. As pessoas cujas casas ficavam por perto correram para lá em busca de cobertores, curativos e outros itens semelhantes que estivessem facilmente ao alcance das mãos.

– Billy! – a mãe dele chamou. – Volte, não se aproxime da casa.

Ela tentava ajudar um homem idoso caído no chão. A perna esquerda dele tinha sido atingida por um caco de vidro e ele estava perdendo muito sangue. Ela fez um torniquete e tentava desesperadamente estancar o sangramento.

Billy virou-se para a mãe:

– Você não entende, mãe – ele gritou. – Alice ainda está dentro da casa. Foi ela que ateou o fogo!

O rosto da mãe mudou de figura. Ela rapidamente examinou o homem ferido para ter certeza de que ele sobreviveria e depois correu com o filho para a casa, que agora estava completamente incendiada, e era óbvio que não havia nenhum jeito de alguém entrar lá.

Ela começou a gritar descontrolada, com grandes lágrimas escorrendo pelo rosto até o queixo. Sentiu um braço envolvê-la. O pai de Billy tinha se juntado a eles, mas ninguém falava nada. Não existiam palavras que fizessem justiça para a situação.

A família Grimaldi tinha desaparecido por completo, deixando para trás incríveis cenas de choque, dor e devastação.

Ao que parecia, os Ceifadores também tinham sumido.

– Então, ela conseguiu destruir o livro – disse Billy em voz alta. – Embora com um pouco de exagero, pois ao que parece também destruiu a casa.

Alex e Ricky apareceram ao lado da família Thomson. Alex estava bem, apesar do corte profundo que teve ao ser atingido por um pedaço de pedra afiado.

Ricky também tinha sobrevivido intacto. Ele olhou para o rosto de Billy manchado de lágrimas.

– E a Alice? – ele perguntou.

Billy balançou a cabeça.

Foi então que alguém gritou o nome dele. Billy virou-se, olhou para a procissão e viu uma pequena criatura que vestia um macacão azul imundo, com a cabeça cheia de cachos loiros desalinhados, correr rapidamente em direção a ele no meio dos escombros.

– Alice, você conseguiu! – ele gritou, correndo para ela, de braços abertos.

– Você está bem, eu nem acredito! Achei que você tivesse...

– Eu fiz o que você disse, Billy – ela falou, chorando e rindo ao mesmo tempo. – Você lembra? “Direto para o cano, depois para a janela. Queime o maior número de páginas que puder, o mais rapidamente possível. Então, dê o fora.” Essas foram as suas palavras, Billy, e foi isso o que eu fiz.

Ele a abraçou, levantando-a do chão para alegria dela.

– Com certeza você fez isso, garota. E fez bem feito! Olhe, não há nenhum Ceifador à vista. Eles não têm mais nada para colher, graças a você. Você é a nossa heroína.

A mãe e o pai agora tinham se juntado a eles, e o pequeno grupo ficou reunido. Todos se beijavam e se abraçavam. O pai acariciou o cabelo de Alice.

– Gostaria de poder dizer que entendo o que aconteceu aqui – ele disse pesaroso –, mas nos últimos dias tudo parece estar completamente embaçado! É muito estranho, muito estranho mesmo.

A mãe sorriu: – Acho que sei o que você quer dizer – ela comentou.

Ao caminharem para casa um pouco depois, enquanto faziam o que podia ser feito pelas pessoas que estavam feridas, Billy viu a placa com o nome dos Grimaldi caída no meio da rua.

Após pegá-la, ele a atirou na pilha de escombros que ainda ardia em chamas e ficou assistindo, até que o nome Grimaldi desaparecesse por completo.

– Espero nunca mais ouvir esse nome novamente – ele disse.

O pai colocou os braços em volta do ombro de cada um de seus filhos.

– Venham, crianças, vamos devorar uma pizza!


Capítulo 14

A Apresentação de Grimey

Glosserton lentamente retornou ao normal. Os pais ainda castigavam seus filhos, mas ficaram para trás os dias em que alguém se aborrecia por ficar trancado em uma garagem! Billy e Alice sabiam que Glosserton tinha passado bem perto de ser destruída. E eles tinham derrotado as forças do mal.

Porém, alguma coisa incomodava Billy.

– O que foi? – perguntou Alice a um Billy preocupado certa noite em casa.

– Quer saber o que estive pensando? Será que Glosserton realmente foi a única cidade a sofrer tudo isso? Por que isso aconteceu conosco? E se estiver acontecendo em outro lugar? E se...

– Não seja tolo, Billy – replicou Alice. – Os Grimaldi estão acabados, eles não existem mais. Você até viu a placa com o nome deles pegar fogo e queimar até o fim. Não há mais nada que eles possam fazer contra nós agora.

– Eu sei, eu sei. Os Grimaldi não podem. Mas e se existirem outras famílias, em outras cidades? Como você sabe, Alice, o Ceifador realmente existe. Todos esses pequenos Ceifadores eram apenas ajudantes dele, seus subordinados.

Será que o mal foi mesmo completamente derrotado?

– Veja, Billy, se você está pensando em seguir a carreira de caça-fantasmas, então, trate de fazer isso por conta própria! Nós estamos seguros, a cidade está segura. O que mais importa? Além disso, eu realmente não nasci para viver pendurada em canos e me infiltrar na casa dos outros!

Billy olhou para ela, ainda perturbado. Alice podia perceber que havia alguma coisa que ele não tinha revelado para ela. E ele sabia da desconfiança da irmã.

– Não faça isso comigo, Billy.

– Está bem, mas não dá para contar. Tenho que lhe mostrar. Vamos lá – Billy colocou seu casaco.

– Vamos? Aonde?

– Vamos. Não envolve queima de livros. É verdade. Pelo menos, ainda não.

Hum... Ainda não? Alice não gostou da conversa. Instintivamente, ela percebeu que os dias de andar pendurada em canos, em desespero, provavelmente não tinham acabado. Pelo menos, ainda não!

Billy levou Alice a uma construção abandonada perto de onde os Grimaldi moravam. Era um local escuro, com portas que rangiam, teias de aranha por toda parte e um som de mastigação ruidosa!

– Que barulho é esse? – Alice esbravejou.

– Silêncio! Não grite! Você vai assustá-lo!

– Espere um minuto. Assustar quem?

– Você vai ver – disse Billy, enquanto pegava na mão dela e a levava até a cozinha da casa. Então, ele baixou as persianas com cuidado e verificou se ninguém podia espionar dentro da casa, com toda aquela decoração mofada, em ruínas.

Billy, então, acendeu uma grande vela. Ao fazer isso, o som da mastigação parou de repente. Lentamente, a claridade revelou uma figura no canto. Uma figura encapuzada! Alice não se abalava com figuras encapuzadas, logo ela que havia acabado de salvar a cidade das forças do mal. Sendo assim, a figura encapuzada falou com Billy.

– Oi, são só vocês. Por um momento me assustei. O que mais você trouxe? Estou faminto!

– Eu não trouxe nada.

– Exceto essa outra criança, eu acho.

– É a minha irmã.

Alice olhou de perto a figura na escuridão. Parecia a voz de um garoto, não era muito mais alto que a menina. Ela se acalmou. Em comparação ao que tinha acabado de passar, aquela figura boba, com manto e capuz, parecendo um pequeno Ceifador, não conseguiria assustá-la. “Espere um pouco”– ela falou para si mesma. “Vamos pensar! Ceifadores, pequenos ou grandes, nunca são bons!”

– Quem é você? – ela perguntou.

– Tudo bem, queridinha. Eu tenho um manto e um capuz de Ceifador. Essa coisa brilhante aqui é a minha foice. E se olhar mais de perto, você vai ver que eu não tenho pele, mas apenas ossos. Então, com essas poucas pistas, qual seria a sua forte intuição?

Se aquele era o Ceifador, então, ele estava sendo quase agradável, embora um pouco grosseiro. Mas isso ela até podia enfrentar. Ela olhou para Billy, pois sabia que ele jamais a teria levado até lá se houvesse qualquer tipo de perigo. Billy sorriu sem graça.

– Este é o Grimey – ele disse, afinal.

– Grimey em inglês significa encardido. Eu sou encardido por causa do nome, não pela natureza, isso eu lhe garanto, mocinha.

Houve uma pausa. Por fim, Grimey prosseguiu.

– Tudo bem, Billy, então vou ter que dar uma explicação?

Billy confirmou que sim.

– Veja, mocinha – continuou a miniatura de Ceifador na frente dela –, eu fui meio que deixado para trás. O meu coração nunca esteve realmente nessa coisa de Colheita das Almas. Mas você conhece as regras: quando alguns tontos malfeitores endemoninhados começam a escrever um Livro das Almas, bem, eu tenho que cuidar da minha própria carreira. E então, eles nos conjuram lá em cima, e cá estamos nós. Ou melhor, cá estou eu. Mas graças a vocês, todos os outros foram embora, por enquanto.

– Foram embora? Você quer dizer como os mortos? – perguntou Alice.

– Está brincando comigo? – disse Grimey. – Não, você acha que nós, os Ceifadores, morremos para sempre? Não. Nós simplesmente caímos em um cochilo invisível, esperando o nosso próximo “bico”.

– “Bico”? – estranhou Billy – Isso mesmo. Você sabe: é assim, tipo um serviço, uma tarefa, o que quer que seja. Agora, vocês têm certeza de que não trouxeram nada para eu comer? Continuo com fome. Só comi aquele pedaço de pão que você me trouxe de manhã. Não sei onde isso vai parar. Estou só pele e osso – sem pele, é claro!


Capítulo 15

Um Serviço para Grimey

– Então, por que você não está adormecido como os seus amigos Ceifadores? – perguntou Billy.

– É como eu lhe disse hoje de manhã, Billy, o meu coração nunca esteve nessa coisa de ceifar. E as forças desse tipo, endemoninhadas, como a dos Grimaldi, são muito ingratas. Não, muito obrigado, por favor, nada de tapinhas nas costas. Ei, eu tenho sentimentos! Só porque sou um Ceifador, não quer dizer que eu seja sem coração! Bem, na verdade, de fato, eu não tenho coração, no sentido físico, entende?

E então, ele abriu sua capa para mostrar sua caixa torácica, que com toda certeza não continha um coração.

– E algumas das coisas que eles pediram para que a gente fizesse... – ele continuou – ... eu tenho consciência, você sabe. A maioria de nós tem. Os Ceifadores têm muita má fama. Para mim, a culpa é da mídia.

Alice olhou para Billy, sem se impressionar:

– Ei, Billy, parece que você me colocou em uma cena do filme E.T., o extraterrestre! Com certeza agora você vai querer “telefonar para casa”, como no filme?

– Para casa? Está brincando! Minha casa é um cochilo eterno, a menos que você seja invocado por alguma criança no Dia das Bruxas, ou por tipos como os Grimaldi. A verdadeira Colheita é feita pelo próprio Grande Ceifador. Claro, se fizer favores para Ceifadores muito importantes, você consegue colher alguma alma estranha decente. Eu fiz um “bico” desses só uma vez. Gostei. A pessoa cuja alma eu controlava tinha sido um herói de guerra. Cada história que ele contava! Ele ficou irritado comigo só por causa do pedido final. Como reclamou... Acho que foi isso que prejudicou a minha carreira. O E.T. pode ficar em casa. Eu? Eu só quero ficar por aqui!

Alice olhou para ele: – Para fazer o quê?

– Não sei. Acho que eu podia ser uma espécie de guarda de segurança, para proteger vocês de gente como os Grimaldi.

– Mas agora eles foram embora – disse Billy.

– Claro, claro. Com certeza eles foram, garoto. Pense bem: será que eles nunca, jamais, voltarão? Será que gente ruim desiste de vingança? Pessoas endemoninhadas simplesmente aceitam a derrota e voltam para casa dizendo que, afinal de contas, venceu a melhor equipe? É claro que não!

– Mas os Grimaldi não podem voltar. Podem?

– Veja, as forças dos endemoninhados são muito mais importantes do que a dos Grimaldi. Eles eram só um belo grupo de pessoas. Mas os espíritos endemoninhados os possuíram. É claro, os Grimaldi foram embora. E os espíritos que mandaram fazer o que eles fizeram ficaram ofendidos e estão cuidando das feridas deles. Mas eles vão voltar. Pode não ser aqui, mas em algum lugar.

Alice olhou para Billy. Então, foi por isso que Billy fez aquelas perguntas a ela antes deles saírem de casa. Ele havia dado ouvidos àquele Ceifador espertalhão, rude e inexpressivo. Alice olhou para ele e disse:

– Quer saber o que eu penso? – ela disse.

– Não – disse Grimey.

– Bem, acho que você está tentando nos assustar para que possamos protegê-lo e para deixá-lo ficar aqui.

– Claro. É isso mesmo, garota. Você entendeu tudo direitinho, não é? Vou lhe mostrar uma coisa.

Ele acendeu outra vela e de dentro de seu manto retirou um livro enorme. Colocou-o na mesa e pediu para Alice olhar.

Billy já tinha visto aquilo, ele garantiu a ela. Então, Alice foi até a mesa e olhou o livro. Havia uma lista escrita do lado esquerdo de cada página.

– O que é isso? – ela perguntou.

Se o Grimey tivesse olhos nas órbitas, eles teriam girado dentro da cabeça dele. Depois de um longo suspiro, ele disse: – É uma lista!

– Mas o que tem? – gritou Alice.

Grimey olhou para Billy e disse: – Veja, essa é outra razão para eu largar esse negócio de ceifar. Os Ceifadores deviam assustar meninas pequenas, e não deviam ser tratados aos gritos por elas!

Ele se virou de volta para Alice e disse: – É uma lista de livros, do mesmo tipo que você queimou. O quê? Você pensava que aquele era o único que existia? Claro, claro. De todas as cidades do mundo, Glosserton era uma exceção, a única visada pelas forças dos endemoninhados. NÃO! Querida, esses malvados não se preocupam com a sua cidadezinha! É o mundo inteiro que eles querem! A sua cidade é apenas uma entre milhões, e eles vão voltar algum dia. A única coisa que pode impedi-los de voltar é um bom fantasma, como a alma daquele herói de guerra que eu contei para vocês. A guerra nunca termina! Mas esta cidade deve ficar mais segura do que a maioria por um tempo, até que eles se reagrupem.

– Então, é por isso que você quer ficar aqui, por ser um lugar seguro?

– Isso, e porque tem pizza. E por falar nisso...

Alice e Billy estavam agora sentados na mesa. Pizza era a última coisa na mente deles.

Billy olhou para Grimey e disse:

– Você está dizendo que essa coisa toda jamais terá fim? Isso vai continuar para sempre?

– O que você quer de mim, garoto? Sou totalmente contra finais felizes. Pode esquecer isso! O que você acha? Que será como quando você tinha 4 anos de idade? Que vai ser como a história dos irmãos João e Maria? Aquela em que eles vivem felizes para sempre? Aposto que existe alguma continuação que ainda não foi contada, do tipo: eles comeram a casinha feita de doces e morreram sem teto e obesos. Contos de fadas não são a realidade, crianças. Mas isto aqui é.

Os irmãos ainda estavam digerindo tudo aquilo.

– Mas...

Billy e Alice se entreolharam.

– Mas o quê? – perguntou Alice.

– Quando os endemoninhados correram para escapar daqui, depois que você tão bravamente os derrotou, eles se esqueceram de mim. E eu não fiquei triste com isso. Mas, eis a questão: esse livro que vocês estão vendo, essa lista das listas, contém cada casa onde os endemoninhados podem florescer no país. Agora, qualquer bando de caras maus como os Grimaldi vai precisar dele. Só que o livro não está com eles. Está comigo! – Será que eles vão procurá-lo?

– É claro que vão.

– E agora? Isso significa que eles virão procurá-lo por aqui!

– Isso aí!

– O que vamos fazer? – gritou Billy.

– Isso me leva de volta à minha proposta inicial – disse Grimey.

– Qual era? – perguntou Alice.

– Guarda de segurança.

Billy e Alice olharam um para o outro. Grimey acrescentou:

– Agora vocês estão entendendo. Demorou um pouco, mas afinal de contas vocês são apenas seres humanos, que têm seus problemas, especialmente quando se trata de proteger uma cidade contra fantasmas. Por outro lado, eu, que sou um fantasma, não tenho essas limitações.

Billy e Alice olharam para ele. Precisavam esclarecer as coisas aos poucos. Ele era bom.

– Mas você é apenas um, e eles são muitos – disse Billy.

– Na verdade, não. É claro que sou o único aqui. Mas não estou sozinho no mundo real.

– Mas este é o mundo real! – disse Billy.

– Será? Então, deve ser por isso que vocês ficam à mercê de fantasmas e espíritos! Acordem, crianças, o mundo dos espíritos é o mundo real. E eu tenho uma rede de espiões do outro lado, que vão me avisar se souberem de qualquer destruição iminente.

– E por que eles fariam isso? – perguntou Alice.

– Vamos apenas dizer que existem alguns Ceifadores que podem ficar muito preocupados quando se derem conta que se esqueceram de mim e deste livro, que é uma espécie de manual para a dominação do mundo. Afinal de contas, isso não deveria ter sido deixado por aí.

– Guarda de segurança... Acho que pode ser! – falou Billy, pensando melhor na ideia. – E o que vai querer em troca?

– Pizza!

 

 

 


A Fuga de Edgar

Edgar J. Hyde


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Hyde, Edgar J.

A fuga de Edgar [recurso eletrônico] / Edgar J. Hyde; traduzidopor Silvio Antunha. - Jandira, SP: Ciranda Cultural,2021.

112p.; ePUB ; 604KB.–(Hora do espanto)

 

ISBN 978-65-5500-714-5(Ebook)

 

1. Literatura juvenil. 2. Ficção. 3. Terror.I. Antunha,Silvio. II. Título.III. Série.

2021-862 CDD-028.5
CDU 82-93

Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva -CRB-8/9410

 

Índices para catálogo sistemático:

1.Literatura juvenil 028.5

2.Literatura juvenil 82-93

 

 

© 2009 Robin K. Smith

Esta edição de Hora do Espanto foi publicada

em acordo com Books Noir Ltd.

Título original: Edgar escapes

 

© 2012 desta edição:

Ciranda Cultural Editora e Distribuidora Ltda.

Tradução: Silvio Antunha

 

1ª Edição

www.cirandacultural.com.br

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, arquivada em sistema de busca ou transmitida por qualquer meio, seja ele eletrônico, fotocópia, gravação ou outros, sem prévia autorização do detentor dos direitos, e não pode circular encadernada ou encapada de maneira distinta àquela em que foi publicada, ou sem que as mesmas condições sejam impostas aos compradores subsequentes.

 

Livro digital: Lucas Camargo e Gabriela Fazoli


Sumário
A fuga de Edgar

O Escriba
A Fase de Crescimento
A Formação do Preceptor
Uma Jornada Perigosa
A Nova Família
O Aviso
Os Meus Pupilos
O Meu Dilema
A Maldição
Obras Malignas
A Vingança de Edgar
As Minhas Inspirações
De Volta à Vida
O Acordo do Livro
A Desforra
A Volta de Edwin
A Próxima Fase


Capítulo 1

O Escriba

Esta é a minha história e vou contá-la a você. Eu sou Edgar J. Hyde, narrador de tenebrosas histórias de além-túmulo. Há muito, muito tempo, eu era um estudioso aplicado. E também fui tutor. Querido leitor, vou revelar a pessoa que existe por trás destas histórias, de onde eu vim e qual o meu propósito.

Agora, peço-lhe que a leia, se tiver coragem!

 

* * *

 

Depois de trazer muitas histórias fantasmagóricas e desprezíveis ao seu conhecimento, eu decidi que precisava contar a minha própria história. Tenho certeza de que você está ao menos um pouco interessado em saber quem foi Edgar J. Hyde e quem ele é hoje. Diante dessa busca por informação, senti que a melhor maneira de atendê-lo seria contar-lhe a minha história. Querido leitor, eu não seria nada sem a sua atenção.

Produzir as minhas histórias em forma escrita não é uma tarefa fácil para alguém como eu, que alcança vocês de além-túmulo. Hoje em dia, você tem computadores poderosos, e-mails e Internet, mas essas coisas são de pouca utilidade para mim. E preciso confessar que não entendo como essas máquinas funcionam. Assim, esta história chega até você pelo trabalho do Hugo, o meu mais dedicado servo e escriba.

Foi uma noite longa e escura para Hugo quando me aproximei dele, cheio de pensamentos perturbadores e maldosos. Era como se o encontro de nossas mentes estivesse predestinado. Se eu não tivesse aparecido nos pensamentos dele, acho que ele teria enlouquecido e se matado naquela noite. Hugo estava muito perto do limite.

Entrei nos pensamentos de Hugo quando ele cochilou. O meu objetivo era fazer com que ele contasse a minha história. Ele, felizmente, aceitou o meu pedido e escreveu tudo o que lhe contei de além-túmulo. Este livro foi publicado como de minha autoria e não dele. Ninguém acreditaria que um homem como o Hugo pudesse aparecer com uma história dessas, fosse verdade ou ficção. Embora ele tenha escrito livros, jamais escreveu algum como esse.

Hugo ouviu a minha voz e fielmente escreveu tudo o que eu falei. Só por esse trabalho, eu agradeço a ele do fundo da minha alma.

A princípio Hugo não tinha certeza do que faria comigo e com aquilo que eu dizia a ele. Ele achava que eram apenas indícios de que estava perdendo a razão. Alguém lhe disse, ou ele tinha escutado em algum lugar, que ouvir vozes na cabeça era um sinal seguro de doença mental. Por um momento ele se desesperou acreditando nisso. Ele pensou: será que tudo terminaria em loucura?

Entretanto, ele começou a ouvir mais nitidamente e passou a acreditar que eu falava a partir do mundo dos espíritos. Todo pensamento de loucura desapareceu de sua mente. Ele começou a perceber que experimentava alguma coisa especial, algo único, que bem poucas pessoas conseguem entender. Os nossos pensamentos pareciam combinar e entendíamos um ao outro perfeitamente bem. Eu queria que Hugo escrevesse a minha história, e ele queria ouvir o que eu tinha para contar. De muitas maneiras, para ambos, foi o ajuste perfeito.

Fiquei muito feliz de ter topado com Hugo naquela noite. Ali estava um homem que ouviria sem questionar o que eu tinha para contar. Ele era dotado de um cérebro ágil, que durante anos ficou adormecido pela falta de confiança em si mesmo e pela autopiedade. Eu girei a chave e liberei o poder de sua mente para realizar a tarefa de ouvir e publicar a minha história. Que sorte eu tive!

Hugo não era um homem de boa aparência. A perda do cabelo, ainda jovem, serviu apenas para destacar suas orelhas e seu enorme nariz. Ele também era um homem alto, e isso significava que a maioria das pessoas que o conheciam ficavam incomodadas e se assustavam com ele. O fato de aqueles que não o conheciam acharem que ele era uma figura perturbadora e ameaçadora sempre foi motivo de preocupação e de frustração pessoal.

Um talento que Hugo possuía, mas que ninguém apreciava, era escrever. Ele tinha redigido e enviado alguns romances a editoras, mas as únicas respostas que recebia eram cartas de recusa. Isso minou a confiança de Hugo a respeito de sua capacidade de escrever e o levou à profunda depressão. Ele arrumou vários trabalhos temporários para dar conta das despesas, mas isso só o deixava ainda mais deprimido.

Eu tinha uma história para contar e Hugo se mostrou um ouvinte muito atento e um ótimo escritor. Na noite em que entrei em seus pensamentos, ele estava desesperado. Encontrava-se no limite da sanidade e à beira de decidir acabar com a própria vida. Felizmente, ele me escutou e eu escutei-o. Ele me contou suas angústias e seus problemas, em troca, contei-lhe os meus.

Parece que ele tirou um peso dos ombros quando me contou sua vida. Eu o escutei atentamente e isso permitiu que ele se sentisse calmo e confiante na minha presença. Logo, nós chegamos a um ponto em que confiávamos um no outro. Da minha prisão no mundo espiritual eu tinha encontrado um aliado vivo na Terra. Fiquei muito contente com isso.

Na escuridão de uma noite tempestuosa ele começou a escrever a minha história para mim.


Capítulo 2

A Fase de Crescimento

A minha história começa há muitos séculos, na Idade Média. Eu nasci em uma data tempestuosa: All Hallows Eve (agora conhecida como Halloween, o Dia das Bruxas, ou véspera do Dia de Todos os Santos) no ano de Nosso Senhor de 1396. O meu pai, Joshua, era preceptor na casa do poderoso barão de La Rochelle. A minha mãe, Eve, ficou encantada, como fui bem informado, de ver o nascimento de seu único filho. Eles decidiram me chamar de Edgar Joshua, e assim fui batizado.

As minhas primeiras lembranças são de ter me assustado na escuridão dos gélidos salões do castelo do barão onde nós morávamos. Eu me lembro de ficar lá sentado, paralisado de medo pelo que acontecia do lado de fora, na escuridão.

Os cães de caça do barão uivavam, e os portões de ferro fundido que levavam às masmorras eram trancados no meio da noite. Às vezes, gritos de dor podiam ser ouvidos dos infelizes que acabavam trancafiados nas masmorras do barão de La Rochelle.

Ele era conhecido na região pelas terríveis torturas que infligia aos prisioneiros. Diziam que uma vez que um homem fosse parar nas masmorras do barão, ele jamais seria visto com vida novamente.

Nós morávamos no imenso castelo do barão porque o meu pai era preceptor dos filhos dele. Ele ensinava principalmente Francês, Latim, Matemática, História e a Bíblia.

Naqueles tempos antigos, só os membros das famílias abastadas, como os descendentes do barão, recebiam algum tipo de educação. As outras pessoas, com exceção dos monges, dificilmente sabiam ler e escrever. Felizmente, pelo fato de ser filho de um preceptor, pude me dar ao luxo de receber alguma educação.

Sempre me lembro de ouvir o meu pai dizer: – Para nós, é a educação que faz a diferença, filho.

Com isso ele queria dizer que tínhamos muita sorte por sermos educados e, portanto, respeitados por causa disso.

Até mesmo o próprio barão, Guy de La Rochelle, com toda sua riqueza e poder, sentia uma certa admiração, misturada com inveja, pelo meu pai e seus conhecimentos. O barão sabia que sem a educação, seus filhos arruinariam todo o trabalho que ele dedicou ao castelo e às suas terras.

Meu pai era um homem severo, mas justo. Com ele, você sabia até onde podia ir. Os garotos do barão também sabiam. Se eles não se comportassem, o meu pai engrossava com eles.

Ele batia a cabeça deles uma na outra, ou prendia os dedos deles com uma vareta. De nada adiantava eles reclamarem para o barão. Ele acreditava na disciplina rígida e toda vez que os filhos se queixavam do tratamento administrado pelo meu pai, ele mandava que a punição fosse aplicada em dobro.

A minha infância me pareceu absolutamente comum, já que quando era pequeno não pude desfrutar dos benefícios que a educação proporciona. Eu consegui não pegar peste, varíola e outras inúmeras doenças fatais que eram muito comuns naquela época.

A guerra e a fome também foram ameaças reais nos meus primeiros anos. Raramente passávamos um ano sem uma colheita ruim ou sem o castelo ser atacado pelos inimigos do barão. A morte levou vários meninos e meninas que eu conhecia e com quem tinha brincado. Ela nos rondava constantemente e ameaçava nos atacar a qualquer momento.

Enquanto eu estava saindo da minha infância, os outros garotos da minha idade eram criados para trabalhar nos campos, e dependiam do próprio juízo e dos próprios músculos. Eles deveriam se tornar soldados, pastores e servos. Eu era um garoto muito estudioso e não tinha tempo para as brincadeiras brutas deles. Com o tempo, passei a ficar cada vez menos na companhia deles e a seguir as pegadas de meu pai e de outros adultos.

Na verdade, comecei a não gostar mais das outras crianças por causa dos modos e da falta de educação delas. Eu detestava jogos bobos e risadinhas tolas. As crianças podiam ser muito cruéis e grosseiras umas com as outras sem motivo algum.

Elas simplesmente me aborreciam tanto que eu desejava crescer rapidamente para escapar delas de uma vez por todas.

Mas me dei conta de que estava em uma posição estranha. Era praticamente certo que eu seguiria os passos de meu pai, e também me tornaria um preceptor. Só que você não pode ser preceptor sem ensinar crianças. Eu imaginava que se fossem apenas uma ou duas dessas pequenas criaturas insanas, provavelmente conseguiria aguentar. Se perseverasse, eu estava certo de que poderia lidar com algumas crianças terríveis.

Eu não tinha nenhuma outra ideia a respeito do que gostaria de ser e apenas aceitei esse caminho de me tornar preceptor como meu destino.

Acho que eu poderia ter trabalhado na casa real ou no governo da região, negociando tratados ou redigindo as novas leis. O meu pai me garantiu que as pessoas que sabiam ler e escrever eram sempre solicitadas. Porém, segui o caminho mais fácil e apenas me baseei no meu pai.

Acho que ele ficou contente quando escolhi segui-lo ao me tornar preceptor.

Os anos se passaram e a minha educação prosseguiu. Eu me tornei tão fluente, tanto em latim como em francês, que às vezes o meu pai e eu só conversávamos nessas línguas durante vários dias. Era o nosso joguinho. Mas isso levava algumas pessoas a nos verem como suspeitos, como se achassem que éramos espiões estrangeiros conspirando para desgraçar a região.


Capítulo 3

A Formação do Preceptor

Eu sabia que não poderia ser aluno do meu pai para sempre. Quando completei 18 anos, senti que havia chegado para mim o momento de encontrar um emprego de preceptor longe da minha família e da segurança do castelo do barão. Era tempo de entrar no mundo dos adultos e de ganhar a vida por conta própria.

Foi quando meu pai me disse: – Chegou a hora de você decidir o que vai fazer, Edgar.

Eu engoli em seco e uma tremedeira me tomou dos pés à cabeça diante do futuro que se apresentava diante de mim. O meu pai tinha dito que falaria com o barão de La Rochelle sobre a possibilidade de me indicar para um emprego em um castelo de algum amigo ou aliado dele. Agora, muito rapidamente, tudo começava a se encaixar. Eu estava no meu caminho.

– Se não estiver pronto agora, jamais estarei, pai – repliquei.

Meu pai então disse: – O barão espera você.

Acenei e me dirigi para o imenso salão onde o barão podia ser encontrado. Ao me aproximar do grande salão, a porta estava entreaberta. Uma enorme lareira crepitava e, diante dela, a imponente figura de Guy de La Rochelle, o barão, aquecia as mãos.

Eu tossi de leve na entrada para despertar a atenção dele. Em todos os anos que passei no castelo, jamais tivera a oportunidade de falar com ele diretamente. Eu imaginava se ele ainda saberia quem eu era...

O barão sequer se virou para ver quem havia chegado: – Aproxime-se, Edgar!

Caminhei decidido até a lareira onde ele estava e disse: – Queria me ver, barão de La Rochelle?

– Na verdade, sim – ele respondeu enquanto se virava para me encarar.

O barão coçou a espessa barba preta por alguns momentos, olhando-me de alto a baixo.

– Você é um rapaz bem magricelo – ele observou seriamente.

Esse comentário me deixou muito nervoso e os meus joelhos começaram a tremer.

Ele fungou e disse: – O seu pai disse que lhe ensinou muita coisa e que agora você está pronto para assumir um emprego de preceptor.

– É o que eu pretendo ser – repliquei, tentando parecer o mais calmo e controlado possível.

– Ótimo – declarou o barão e espalmou a mão enorme sobre o meu ombro.

Essa pancada seca me atirou para a frente. O barão de La Rochelle zombou por um momento da minha falta de força. Ele realmente não gostava de estudiosos como eu, mas sabia que a educação era uma ferramenta poderosa para ter em seu arsenal.

Ele continuou: – O seu pai é um sábio e estudado que ensina muito bem os meus filhos. Como recompensa, encontrei para você um emprego para ensinar os filhos do barão de Montford. Eles moram a cerca de 20 léguas daqui.

– É muita gentileza da sua parte, barão – eu disse.

– Já ouviu falar do barão e de seu castelo? – ele me perguntou.

– Sim, barão. Vou me preparar para seguir o meu caminho e assumir o meu emprego.

– Você pode sair daqui amanhã e se apresentar ao barão de Montford em três dias – ele concluiu.

O barão de La Rochelle então me dispensou dizendo: – Tenho assuntos mais importantes para resolver agora, Edgar.

Eu me curvei e disse: – Obrigado, barão.

Quando eu caminhava para a porta, o barão gritou:

– Espero que você se torne um preceptor tão bom quanto o seu pai!

Estive pensando ao longo destas mesmas linhas como seria meu futuro trabalho no castelo do barão de Montford. Mas, lá estava ele. O meu destino já havia sido decidido.

Fui treinado para ser preceptor, e preceptor eu seria!

Ao anoitecer, arrumei os meus pertences em uma trouxa para a jornada até o castelo do barão de Montford. Eu realmente não apreciei muito a ceia de despedida com os meus pais, pois estava nervoso com a perspectiva da viagem.

– Vinte léguas é uma longa viagem, Edgar. Tem certeza de que vai dar tudo certo? – perguntou a minha mãe preocupada.

Antes que eu respondesse, meu pai disse: – Ele vai ficar bem. É uma grande oportunidade para ele.

– Mas como é esse barão de Montford? Será que vai tratar Edgar bem? – minha mãe perguntou.

O meu pai pareceu um pouco embaraçado com aquilo.

– Eu nunca o vi, mas se o barão de La Rochelle recomendou o Edgar, então acho que não haverá nenhum problema – ele disse.

O fato de ninguém saber nada a respeito do barão de Montford e suas maneiras me deixava nervoso e eu quase não disse mais nenhuma palavra pelo resto da noite.

– Você vai voltar logo para nos ver, não é mesmo, Edgar? – disse a minha mãe.

– É claro que vou – repliquei –, assim que o barão deixar.


Capítulo 4

Uma Jornada Perigosa

Despertei no raiar do dia seguinte para uma linda manhã de primavera. Os pássaros cantavam docemente e a neblina estava apenas começando a se dispersar nos campos que rodeavam o castelo.

Parecia um bom dia para começar uma nova vida. Depois de uma grande tigela de aveia e um pouco de pão, montei no meu pônei e acenei despedindo-me dos meus pais.

– Não tema, meu filho. Você vai ficar bem, tenho certeza disso – meu pai falou.

Isso me tranquilizou, pois não importava o que eu pudesse pensar a meu próprio respeito, pelo menos meu pai não tinha dúvidas da minha capacidade.

– Cuide-se! – gritou minha mãe enquanto eu deixava o pátio do castelo, passava pelo grande portão e atravessava a ponte levadiça.

Agarrei a minha adaga quando ela falou assim comigo. De fato, muitas coisas desagradáveis poderiam ocorrer no caminho para o meu novo emprego. Vinte léguas (60 quilômetros em termos atuais) era uma distância imensa naquela época.

A jornada no meu pônei demoraria pelo menos três ou quatro dias. Eu via isso como muito tempo para ficar por conta própria e vulnerável para ser atacado.

Além dos vagabundos que perambulavam pela região procurando exatamente pessoas como eu para roubar, também havia a ameaça dos animais selvagens. Naqueles tempos antigos, matilhas de lobos ainda viviam à solta e, quando muito famintos, dizia-se que eles preferiam a maciez da carne humana. Enormes ursos com garras afiadas como navalhas e mandíbulas salivando caminhavam a esmo pelos bosques.

Era possível ainda tropeçar em algum javali selvagem e ser atacado por ele!

O primeiro dia de viagem foi o pior, a minha rota atravessava uma grande floresta. Eu tinha que alcançar uma pousada antes do anoitecer.

Eu ficava apavorado com cada ruído que vinha das árvores. O medo me levou a pensar que existiam milhares de olhos a me vigiar, pertencentes a feras e ladrões, que aguardavam apenas o momento certo para saltarem sobre mim.

Então, de repente escutei vozes bem à minha frente. Era um nobre montado a cavalo, seguido por seu servo a pé. O meu coração pulava quando nos encontramos no caminho.

– Quem poderia ser a sua pessoa, garoto? – o cavaleiro perguntou.

– Eu sou Edgar Hyde – repliquei com a minha voz mais grossa, tentando não deixar o meu medo transparecer.

– Nunca ouvi falar de você. Para onde vai? – ele me questionou.

– Para o castelo do barão de Montford. Serei o novo preceptor – respondi.

– Ah, de Montford. Conheço bem – ele disse e fez uma pausa. – Boa sorte! – ele acrescentou com um riso.

Eles passaram por mim e me deixaram imaginando por que o cavaleiro teria rido depois de ter feito aquela observação. Será que existia alguma coisa que eu deveria saber a respeito do barão de Montford ou de seus filhos?

Quando a claridade começou a enfraquecer no fim do dia, eu me senti animado com o cheiro da fumaça da lenha e da carne sendo assada. A pousada onde eu deveria passar a noite estava por perto.

O corpulento dono do lugar me recebeu com alegria e disse: – Temos a melhor carne e a mais fina cerveja destes lados, meu caro jovem.

Durante a ceia, expliquei para o dono que seria o novo preceptor no castelo do barão de Montford.

Ele ergueu as sobrancelhas quando mencionei o nome.

– Existe alguma coisa a respeito do barão que eu deveria saber? – perguntei.

– Só boatos. Nada com que a sua jovem cabeça deva se preocupar – disse ele.

Era tarde e eu me retirei para dormir. Por um tempo me revirei agitado na cama, com os pensamentos voltados para o que poderia significar a insinuação do dono a respeito de “boatos”. Depois, caí num sono profundo.

Acenei para me despedir do dono da pousada e parti para a segunda etapa da minha jornada. Mais uma vez o caminho seguia basicamente pelas sombras de uma densa floresta. Já menos apreensivo com os arredores, fiquei antevendo o meu dia de viagem. No fundo da minha mente, porém, eu notei que não haveria pousada para dormir a próxima noite. Eu teria que enfrentar todas as horas de escuridão a céu aberto. Era algo que eu nunca tinha feito.

O dia passou de maneira bastante agradável, com quase ninguém no caminho que me despertasse qualquer interesse. Foi só quando a noite começou a cair que eu comecei a me sentir pouco à vontade. O que a escuridão reservaria para mim naquela noite? Cada bater de asas ou cada sopro de vento nos ramos chamava a minha atenção instantaneamente. Eu estava uma pilha de nervos.

Fiz uma fogueira bem depressa e sentei recurvado perto dela. Depois de depenar um frango que havia comprado na pousada, assei-o na fogueira. Um delicioso aroma era liberado conforme a gordura escorria e regava a pele.

A perspectiva da refeição me acalmava.

Quando estava prestes a comer, reparei que o meu pônei estava ficando muito agitado. As orelhas dele estavam eriçadas e ele raspava o chão com os cascos das patas dianteiras. Haveria alguma coisa lá fora? Será que o cheiro da comida teria atraído algum visitante indesejado?

Foi então que aconteceu.

Um terrível uivo de fome, de gelar a espinha, veio de um lobo que estava por perto! Fiquei paralisado de medo. Então, houve um momento de silêncio e eu respirei aliviado.

O lobo uivou novamente. Desta vez, pude ouvi-lo bem mais próximo. Eu me levantei e segurei o meu punhal com uma mão e um galho em brasa com a outra.

Será que haveria mais de um lobo? Talvez houvesse uma matilha inteira deles aguardando para me rasgarem em pedaços. Pela minha mente passaram imagens de presas enormes, horríveis caninos pingando sangue, olhos ensandecidos fixados em mim com fúria assassina, focinhos distorcidos com dentes medonhos à mostra, ganindo pela minha carne.

Quando espiei na escuridão, com a ajuda do galho em brasa, pensei ter visto movimento. De repente, a luz captou um par de olhos. Engasguei com o medo. Será que a fera se preparava para me atacar?

No instante seguinte, o lobo sumiu novamente. A fogueira devia tê-lo assustado. Ele não voltou a uivar

naquela noite, embora eu tenha permanecido acordado a maior parte do tempo, aguardando o pior acontecer.

Por fim, eu já não aguentava mais ficar acordado, e caí em sono profundo. Despertei assustado com o calor da manhã. A minha fogueira estava apagada, mas eu imaginei que nenhum lobo tentaria atacar um homem em plena luz do dia. Naquela manhã eu era um jovem muito aliviado.

Depois de juntar as minhas coisas, voltei para a trilha rumo ao castelo do barão de Montford. Ficaria contente quando chegasse ao meu destino. Os perigos da vida do lado de fora de um castelo seguro não eram para mim.


Capítulo 5

A Nova Família

Na tarde do meu terceiro dia de viagem, cheguei à cabeceira de um vale, de onde avistei um castelo a distância. Era o castelo do barão de Montford. Um calafrio de repente me percorreu a espinha como se alguém pisasse na minha sepultura.

Seria mau augúrio o meu destino ficar nas mãos do barão?

Conforme eu me aproximava do castelo, ele parecia se destacar dos arredores causando uma impressão sombria e agourenta. Reparei que a ponte levadiça estava abaixada e me aproximei dos guardas que estavam perto da porta.

Enquanto me aproximava, olhei em cima da porta, também levadiça. O meu estômago embrulhou quando avistei duas cabeças espetadas apodrecendo em estacas acima da entrada do castelo. Um corvo voou baixo, aterrissou sobre uma delas e começou a bicar o que restava do rosto.

– De que assunto veio tratar, rapaz? – um dos guardas perguntou.

Fiquei atordoado com a horrível visão acima de mim e não respondi.

O guarda bruscamente repetiu: – Rapaz, você é surdo? De que assunto veio tratar no castelo do barão de Montford?

Eu me apresentei dizendo: – Sou Edgar Hyde, o novo preceptor dos filhos do barão.

Os guardas me examinaram e, não pressentindo ameaça alguma, levantaram a porta levadiça para permitir a minha entrada no castelo.

– Venha comigo – ordenou um deles.

Eu desmontei do pônei e o puxei pelo movimentado pátio do castelo. Alguns porcos e algumas galinhas se dispersaram com a nossa passagem. As pessoas que trabalhavam no pátio arregalavam os olhos desconfiadas de mim e cochichavam enquanto eu passava.

– Deixe o pônei aí – o guarda disse, apontando para uma estaca.

Amarrei o pônei e em seguida subi alguns degraus rumo a um corredor. O guarda bateu em uma imensa porta de carvalho com a parte de baixo de sua espada e empurrou-a para abrir. Eu estava com a boca completamente seca pela ansiedade do encontro com o barão.

Numa fração de segundos escutei o som de uma gargalhada e dois garotos passaram correndo pela soleira da porta e me jogaram no chão. Por um segundo fiquei sentado ali mesmo, chocado e atordoado. O guarda então me estendeu a mão e me levantou.

Com um sorriso irônico no rosto, ele cochichou: – São eles que você vai ter que ensinar, rapaz!

– Mas que alvoroço é esse? – gritou um voz rouca na escuridão da grande sala.

– É um garoto que afirma ser o seu novo preceptor, senhor – o guarda respondeu.

– Ah – disse a voz –, é melhor que vocês o acompanhem até aqui.

Nós caminhamos pela sala em direção a uma figura debruçada sobre uma mesa repleta de rolos de pergaminho que pareciam importantes.

– Então, você é Edgar Hyde? – disse o homem atrás da mesa.

– Sim – repliquei –, filho de Joshua Hyde, preceptor do barão de La Rochelle.

A figura surgiu de trás da mesa e disse: – Eu sou o barão de Montford.

Ele era outro homem gigantesco, com uma juba de cabelos negros e uma longa cicatriz que se estendia pelo queixo do lado esquerdo. Houve uma pausa, que pareceu durar uma eternidade enquanto ele me olhava de alto a baixo.

O barão quebrou o silêncio e disse: – Você já conheceu os meus garotos. Eles atiraram você no chão.

– Não me machuquei – respondi, tentando desesperadamente agradar o barão.

Colocando seu imenso braço em volta do meu ombro, o barão caminhou comigo pela sala até uma janela com vista para um pátio. Os garotos brincavam abaixo de nós.

– Os meus garotos precisam de uma boa educação, Edgar – ele disse.

– Com certeza, barão... – respondi.

– Como você pode ver, são uns moleques que esbanjam energia, mas que precisam ter algumas arestas aparadas – ele continuou.

Acenei concordando, enquanto imaginava no que eu estaria me metendo.

O barão então gritou pela janela:

– Meninos, subam para conhecer o novo preceptor.

Alguns segundos depois houve uma tremenda algazarra quando os garotos voaram para a sala. Eles pareciam selvagens, esfarrapados, com os rostos imundos, coisas que eu achei que não eram adequadas para os filhos de um barão.

– Quero lhes apresentar Edgar Hyde – ele disse aos meninos.

Os garotos olharam um para o outro e riram.

– Este é Richard – disse o barão apontando para o garoto mais alto – e este é Thomas.

Eu podia dizer sem medo de errar que na frente do pai os garotos encenavam com perfeição o papel de crianças ingênuas e inocentes.

Richard tinha um topete de cabelos claros, enquanto Thomas tinha cabelos castanhos. Ambos agora me fitavam, tentando me avaliar.

– Prazer em conhecê-los! – eu disse. – De hoje em diante vou educar vocês.

Richard então disse para o barão: – Espero que ele fique mais tempo do que o último!

Thomas deu um chute na canela do irmão, e os dois voaram para fora da sala novamente, aos gritos e berros.

O barão riu e disse: – Garotos adoráveis!

Fiquei feliz que ele pensasse assim, pois por aquelas primeiras impressões eu não tinha gostado nada deles. Após as apresentações, uma criada muito jovem foi chamada e me levou aos meus aposentos.

Ela trouxe um pouco de pão, queijo e cerveja para que eu almoçasse.

– Está tudo certo, senhor? – a criada perguntou.

– Tudo bem – repliquei –, mas por favor, me chame de Edgar, você não precisa ser tão formal comigo.

Ela enrubesceu, embaraçada, e abaixou a cabeça. Não se admitia que os servos tratassem pelo primeiro nome pessoas educadas como eu. Mas eu tinha simpatizado com ela e precisava fazer amizades no meu novo ambiente.

– Qual é o seu nome? – perguntei a ela.

– Gertrude – ela sorriu.

Quando ela estava prestes a sair da sala, perguntei:

– Bem, Gertrude, você pode me contar o que aconteceu com o último preceptor?

Pela expressão dela, eu devia tê-la colocado numa situação complicada, mas ela respondeu:

– Ele chegou num dia e sumiu no dia seguinte.


Capítulo 6

O Aviso

Na hora, não dei importância ao que a criada Gertrude tinha dito. Os preceptores quase sempre vêm e vão, então, quais razões eu teria para levantar suspeitas? Tinha acabado de chegar ao castelo e havia sido apresentado àquela dupla de criadores de confusão que seriam meus pupilos. Será que realmente eu deveria esperar alguma coisa mais?

Naquela mesma tarde, fui apresentado ao conselheiro-chefe do barão. Ele era um homem robusto, baixo, com o nome de Godfrey. A primeira impressão que tive dele, com seu olhar atirado e suas maneiras agitadas, foi que ele era um homem sempre em estado de alerta. Ele sabia de tudo o que estava acontecendo em volta do barão e certamente sabia como cuidar de si mesmo. Ele era um bisbilhoteiro.

– Venha, vamos dar uma volta por aí – disse Godfrey.

Caminhamos ao longo das fortificações e conversamos sobre o barão e suas terras.

Olhamos a distância os montes verdes que se estendiam por muitas milhas.

– Tudo isso é do barão? – perguntei.

– Oh, sim! Tudo isso e além do horizonte também! – gritou Godfrey. – Ele é um dos homens mais ricos da região.

Godfrey me mostrou o celeiro, o poço, o curral dos animais, a sala da guarda e, o mais desagradável de tudo, as masmorras.

O cheiro de morte e desespero estava por toda parte quando ele me mostrou o lugar onde eram lançados os convidados do barão que caíam em desgraça. Quando ficamos em cima da entrada de uma masmorra, eu pude escutar os lamentos de uma pobre alma lá dentro.

– Água! Água! – dizia a voz nas trevas.

Senti muita piedade da voz patética. Em simpatia, eu disse a Godfrey:

– Não devemos lhe dar um pouco de água?

– Certamente que não – disse Godfrey, torcendo o nariz para o meu pedido –, ou o barão vai ter que jogar você lá embaixo com ele.

– Ora, entendi – eu disse e engoli em seco com o pensamento de terminar numa horrorosa masmorra úmida, morrendo de fome e de sede.

– Reparou nos pobres coitados em cima da porta levadiça na entrada? – Godfrey acrescentou.

Acenei que sim, enquanto a imagem das cabeças podres giravam na minha mente de novo.

– O barão não é um homem para ser questionado ou colocado em dúvida. Você já viu o que acontece com quem ousa fazer isso – Godfrey continuou.

O meu sangue gelou só de pensar no que eu estaria me metendo ao me tornar preceptor daqueles meninos. Assim, Godfrey me deu um belo aviso a respeito do barão e cabia a mim não deixá-lo zangado. Obviamente, Godfrey sabia como lidar com o barão e acho que eu também teria que aprender.

Naquela noite, Godfrey e eu jantamos juntos. Eu queria conseguir mais algumas dicas sobre como lidar com o barão e ficar bem com ele. Devoramos um delicioso leitão assado e bebemos um pouco de cerveja. Gertrude ajudou a servir a refeição e sorrimos discretamente um para o outro.

Godfrey percebeu a nossa troca de sorrisos.

– Ah, vejo que vocês já são amigos – ele disse com um olhar malicioso.

Olhei ingenuamente para o chão e Godfrey riu tanto que engasgou com um pedaço de carne. Isso me fez começar a rir e ambos rimos desenfreadamente por alguns minutos. Por fim, comecei a me sentir relaxado. Entupido de comida, encostei na cadeira e cocei a minha barriga cheia.

Godfrey sorriu.

– Veja! Essa é a vantagem de trabalhar para um dos homens mais ricos da região.

Eu ri e concordei acenando com a cabeça.

Estava ficando tarde, aquele tinha sido um dia longo e agitado para mim, eu estava exausto. Ao me recolher em meus aposentos, senti-me muito sonolento. Estava bem a ponto de pegar no sono quando escutei um ruído no meu quarto. Seriam ratos? Ou algum ladrão viria roubar as poucas coisas que eu possuía? Talvez algum louco quisesse me matar para saciar sua sede de sangue? O meu coração disparou de medo. A minha adaga estava caída no chão, no outro lado do quarto. Eu estava sem defesa no meio da escuridão.

– Silêncio, Edgar, não faça barulho – cochichou uma voz de mulher.

Então, eu pude perceber o rosto de Gertrude com um xale enrolado em volta da cabeça. Ela se aproximou e sentou perto de mim.

– Vou ser açoitada se eles me pegarem aqui, então fale bem baixinho – ela cochichou.

– O que faz aqui? – eu perguntei da forma mais silenciosa possível.

– Vim avisar você – ela disse.

– Veio me avisar?

– Sim, é a respeito dos garotos do barão. Tome muito cuidado. Eles podem causar a sua desgraça.

Eu sorri e brinquei: – Eu consigo lidar com essa dupla de garotos ignorantes. É o barão que me preocupa.

– Então, você deve ficar – disse a criada –, mas dobre os garotos, que você dobra o barão!

Como um raio, percebi o que deveria ter acontecido com o preceptor anterior, e provavelmente com todos aqueles que vieram antes dele também. Eles devem ter aborrecido os garotos de alguma maneira, o fato chegou ao conhecimento do pai deles e providências enérgicas foram tomadas. Providências enérgicas naquele lugar quase certamente significava alguma atitude implacável, algo fatal.

Ambos pulamos quando ouvimos vozes distantes.

– Preciso ir agora – disse Gertrude apreensiva.

– Muito obrigado por me avisar – eu disse enquanto ela partia silenciosamente na escuridão.

Passei a noite inteira pensando seriamente em como lidar com a situação. No que será que eu estava me metendo?


Capítulo 7

Os Meus Pupilos

Os dias que se seguiram tornaram-se um completo choque para mim. Eu jamais tinha me deparado com dois garotos tão terríveis e importunos. Eu tinha pouco tempo para crianças mimadas e seus modos, mas eles eram inacreditáveis. Eram completamente patrocinados pelo pai, e por causa dessa posição de poder, ninguém jamais ousava reclamar da maneira como os garotos se comportavam.

Richard e Thomas tinham recebido uma educação limitada, mas que parecia apenas ter abordado as áreas de mentir, enganar, roubar e desrespeitar. Eles eram especialistas em todos esses campos. Provavelmente, não havia nada mais que eu pudesse lhes ensinar.

Eu me lembro de uma vez em que apliquei-lhes uma lição. Eles entraram na sala arrastando os pés com um terrível mau-humor. Adivinhando o que tinha acontecido com os preceptores antecedentes, eu estava um pouco nervoso sobre a melhor maneira de abordá-los e conseguir a atenção deles.

– Certo, garotos! – eu disse. – Eu sei que nós não começamos muito bem, mas eu sou pago para ensinar vocês, e é o que vou fazer.

Richard imediatamente soltou um imenso bocejo para indicar que não se importava com o que eu pudesse fazer ou dizer.

Senti um estalo. Aquele bocejo tinha ido longe demais para este preceptor. Ele precisava ser colocado em seu lugar.

Olhando para Thomas eu disse: – Você não vai querer terminar sendo um idiota ignorante como o seu irmão, não é?

Richard olhou admirado porque eu tinha ousado fazer aquele comentário. Seria possível?

Um sorriso demoníaco surgiu no rosto de Thomas.

– Eu vou contar ao meu pai o que você acabou de dizer a respeito do meu irmão.

Desapontado com o meu fracasso em atingi-los, eu levantei a voz.

– Você não quer aprender nada? – contestei.

– Um dia eu serei o barão, e tudo isto será meu – Richard respondeu.

– Sim, e eu vou ajudá-lo a governar essas terras – acrescentou Thomas.

Tentei raciocinar com eles.

– Mas vocês não serão capazes de governar adequadamente se não tiverem uma boa educação.

Os garotos zombaram do meu comentário e fizeram caretas para mim. Com isso, eles se viraram e saíram da sala rindo.

Eu gritei com eles em desespero.

– O pai de vocês vai saber disso!

O que eu deveria fazer? Se eu não levasse adiante a minha ameaça de informar o pai, os garotos teriam ainda menos respeito por mim. Mas se tentasse contar ao barão que seus filhos eram aquele horror, como ele reagiria com a notícia? Ficaria furioso e puxaria a espada contra mim?


Capítulo 8

O Meu Dilema

Jamais imaginei que as coisas tomariam esse rumo. Eu desistiria do emprego ou simplesmente seguiria em frente?

Agora começava a fazer sentido por que o último preceptor dos garotos tinha desaparecido misteriosamente.

Eu decidi que precisava pensar sobre algumas coisas. Como estava uma tarde agradável, resolvi sair para cavalgar na floresta e organizar meus pensamentos por lá. Ao olhar meu pônei amarrado no pátio, achei que cavalgar nele fora do castelo pouco melhoraria a minha autoestima. Então, abordei o capitão dos guardas para saber se poderia usar um dos cavalos deles durante a tarde.

– Algo errado com o seu pônei? – perguntou o capitão.

– É que eu gostaria de sair para um bom e velho galope, só isso – repliquei.

– Está bem – disse o capitão, dando de ombros.

– Pode pegar o grande, à esquerda.

Ele me levou até o animal.

– Tem certeza que consegue lidar com um desses? – ele indagou.

– É claro que consigo – respondi apressadamente, embora a minha experiência com cavalgadas não fosse grande.

Afaguei o animal na lateral do pescoço e imaginei sua força. Achei que seria bom me afastar do castelo por um tempo.

Inclinando-se e formando um suporte com as mãos, o capitão disse: – Pois então, monte!

De repente eu estava fora do chão encarapitado em um imenso cavalo. Já comecei a me sentir melhor.

– Cuidado com ela, Edgar – disse o capitão –, essa daí pode ser um pouco caprichosa!

O cavalo atendia às minhas ordens pelas rédeas, pelas esporas e pela voz. Ali estávamos, posicionados no meio do pátio, prontos para sair para uma cavalgada na floresta. Então, pelas costas eu ouvi aquelas risadinhas demoníacas tão familiares do Richard e do Thomas. Eu me virei e vi Richard com uma grande vara de madeira nas mãos. Ele veio correndo na direção do meu cavalo com a vara levantada.

– Não, Richard! – gritei.

Tarde demais.

Ele fustigou o pobre cavalo com força na anca direita. O animal reagiu instantaneamente e empinou sobre as patas traseiras, soltando um relincho de susto.

Agarrei as rédeas com firmeza tentando recuperar o controle. O animal passou a pinotes ao redor do pátio algumas vezes e eu senti que a batalha para manter o controle estava perdida.

Tudo isso parecia acontecer em câmera lenta. Eu me soltei da companhia do cavalo e reparei que estava voando no ar. Ao atingir o topo do meu caminho para cima, vi os rostos risonhos dos dois garotos apontando para mim. Também notei a Gertrude aflita levando as mãos ao rosto. Então, caí no chão, percebendo que a minha cabeça ia se espatifar numa laje de pedra.

Ao aterrissar na pedra com um baque mortal, não pude lembrar de mais nada além de ver as crianças rindo do meu destino e de Godfrey retirando-os da cena do crime.


Capítulo 9

A Maldição

Despertei quase um dia depois, largado em uma cama. Os meus braços e as minhas pernas não se mexiam. Eu estava à beira da morte. Os meus ouvidos e a minha visão estavam enfraquecidos, mas eu ainda conseguia falar. Tive a impressão de que havia muita gente no quarto, mas de repente reparei nas risadinhas que denunciavam a presença de Richard e Thomas. O meu sangue ferveu furiosamente. Outras crianças tentavam entrar no quarto para contemplar o homem que estava morrendo. Coisa típica de crianças, eu pensei.

– Esses garotos! – resmunguei. – Vejam o que fizeram comigo...

A minha cabeça se encheu de pensamentos nefastos, demoníacos, quando vi os garotos insanos e medonhos que tinham me deixado naquela situação. O que eu, Edgar J. Hyde, tinha feito para merecer aquele final de vida tão precoce?

Foi então que eu decidi lançar uma terrível maldição em cima dos garotos, e pensando bem a propósito, uma maldição sobre todas as demais crianças, para sempre! Eu definitivamente detestava crianças e aquela era a minha última chance de jogar uma maldição em cima de todas elas.

– Vocês crianças! Vocês garotos! – gritei. – Eu vou me vingar de vocês todos! Vocês custaram a minha vida e agora eu juro que vou arruinar a vida de vocês. Vou jogar uma maldição sobre todos vocês de modo que a maldade e o medo os persigam o tempo todo. Toda noite eu vou entrar em seus pensamentos e em seus sonhos. Vou voltar para assombrá-los e fazê-los enlouquecer!

O esforço que fiz para pronunciar a maldição me deixou muito cansado, e eu caí num sono tão profundo que não sabia se voltaria a acordar novamente.

Os meus olhos então estremeceram e se abriram. Diante de mim estava de pé um homem velho com uma longa barba branca, vestido com uma capa roxa, cheia de símbolos intrigantes. Mas que visão mais estranha! Será que eu estaria vendo coisas?

– Edgar, você está muito perturbado, mas por favor, retire a maldição que lançou – disse o velho homem.

Eu fiquei zangado com o pedido dele.

– Quem é você para fazer um pedido desses a um homem moribundo? – questionei.

– Eu sou o Edwin – ele disse.

Ainda furioso, eu esbravejei: – Como você pretende que eu retire a maldição lançada sobre as crianças?

– Você é um homem estudado, Edgar – ele replicou. – Eu também estudei muito, durante muitos anos. Mas o meu conhecimento é antigo e místico. Eu sei sobre a Terra e seus poderes naturais, a vida e a morte, o amor e o ódio, a vingança e o perdão.

– Vá direto ao ponto, homem – resmunguei.

– Eu sou o que algumas pessoas chamam de bruxo – disse Edwin.

Um bruxo? É claro que eu tinha ouvido a respeito, mas jamais havia falado com um homem que afirmava ser um deles.

– O barão soube da sua maldição e a encaminhou para mim – ele continuou. – Ou você retira a maldição ou eu vou lançar um feitiço sobre você que vai banir a sua alma para uma eternidade de aprisionamento nesta Terra.

Sem me impressionar, eu ridicularizei Edwin.

– Faça o que for pior, velho, eu vou mesmo morrer de qualquer maneira. Vou amaldiçoar todas as crianças daqui! Um bruxo, é claro, bah!

Edwin respirou fundo e olhou firme nos meus olhos. Em seguida, bateu sua longa vara de metal no chão de pedra, produzindo um toque estranho, incomum, que repercutiu por todo o quarto.

– Eu, Edwin, o bruxo, lanço um feitiço em você, Edgar Joshua Hyde. Que a sua maldição seja anulada enquanto as crianças tiverem bons pensamentos em suas mentes. A sua alma deve permanecer aqui na Terra, solitária, no limbo, pelo tempo que o poder do meu feitiço perdurar.

Então, ele borrifou uma poção sobre o meu corpo e eu senti um repentino calafrio vir sobre mim. Eu dei o meu último suspiro e a minha vida terminou no dia 1º de maio de 1414.

Eu estava morto!


Capítulo 10

Obras Malignas

Ser morto não é nada divertido. Isso pode parecer óbvio para vocês, leitores, mas eu posso lhes garantir que é a mais pura verdade. E o pior, é estar sob o poder de um feitiço que o impede de buscar a vingança que cada grama do seu ser deseja ansiosamente. O feitiço de Edwin tinha condenado a minha alma a perambular sem descanso por esta terra. Eu caí numa armadilha. Nem o céu e nem o inferno, fiquei preso no meio do caminho.

Você consegue imaginar o que é isso? Todos os dias são iguais. Eu existia no mundo dos espíritos, mas não podia agir no mundo dos vivos, do qual fui tão cruelmente enxotado por aquelas crianças desprezíveis.

O que eu mais desejava era poder escapar do mundo dos espíritos para voltar à vida e me vingar de Richard, Thomas e de todas as outras crianças medonhas que habitam o mundo.

Godfrey e o barão de Montford decidiram se livrar do meu corpo perto do rio. Eles não queriam chamar atenção para o que os garotos tinham feito e decidiram acobertar todo o incidente. Era como se eu jamais tivesse estado no castelo do barão de Montford.

O meu corpo foi levado por alguns guardas e atirado no rio, sem a menor cerimônia. Entrei no mundo dos espíritos enquanto o meu jovem e inocente corpo boiava rio abaixo e começava a apodrecer. Os meus pais jamais souberam o que acontecera comigo, e ambos foram para o túmulo de coração partido com o meu desaparecimento.

Assisti, da prisão da minha alma, Richard e Thomas se transformarem de garotos horríveis em homens horríveis. Eles jamais receberam alguma educação adequada e ainda conseguiram se livrar de outros preceptores no decorrer dos anos. Eu sentia pena dos pobres coitados que, como eu, chegavam com expectativas tão generosas, só para serem trucidados pela maldade que existia na mente e nas atitudes daqueles dois pequenos garotos.

Embora ainda fossem apenas rapazes, Richard e Thomas morriam de inveja da posição de poder do próprio pai. Em uma fatídica noite de inverno eles assumiram os negócios com as próprias mãos.

O barão de Montford estava sentado sozinho em sua grande mesa, lendo alguns documentos à luz de velas. Os filhos entraram na sala calmamente com intenções assassinas.

– Ah! Os meus garotos – disse o barão afetuosamente.

Os filhos olharam um para o outro sem saberem o que dizer.

– O que posso fazer por vocês nesta noite escura? – o pai perguntou.

– Eu vim reclamar o que é meu por direito! – Richard gritou.

Como um raio, espadas foram puxadas e golpes choveram para cima do barão. Eles cortaram e esfaquearam o indefeso homem até ele se aquietar.

Com seu último suspiro, o barão só conseguia murmurar:

– Por quê? Por quê?

Continuando com o criminoso plano que tinham em mente, os filhos então gritaram:

– Assassinato! Assassinato! Alguém matou o barão! Fechem o portão! Levantem a ponte levadiça!

Os guardas do castelo foram correndo para encontrar o barão morto. Em estado de pânico e confusão, eles acreditaram na história de Richard e Thomas, de que um invasor teria assassinado o pai deles. Em meio a um caos, eles iniciaram no castelo as buscas pelo assassino fictício.

Richard sabia que recentemente um novo tratador de cavalos havia sido contratado no castelo. Ele se dirigiu, com alguns guardas, para o quarto onde o rapaz dormia.

Invadindo o quarto, ele gritou:

– Aí está, ele deve ser o assassino!

Apavorado, o empregado não teve como se defender quando os guardas bateram nele e o arrastaram para uma masmorra, onde ele ficaria acorrentado. Eles torturaram o pobre rapaz com ferro em brasa, para tentar fazê-lo confessar o crime, mas em vão.

Godfrey percebeu que havia algo estranho na história do assassinato do barão. Por que um simples tratador de cavalos o mataria? Mas, como sempre, Godfrey pensou em seu próprio emprego e não ousou questionar a versão contada por Richard e Thomas.

No dia seguinte, o rapaz foi enforcado sem um julgamento, apesar de alegar inocência. Foi uma morte repulsiva, pois ele se debateu durante horas, com a vida lentamente se esvaindo enquanto ele sufocava.

Richard assistiu em pé, com um ligeiro sorriso cínico no rosto, enquanto a execução prosseguia. Atrás dele, Thomas parecia ter pensamentos mais invejosos e funestos na cabeça. Ele agora queria o poder que o irmão mais velho tinha herdado.

Thomas não teve que esperar muito para que pudesse agarrar sua chance. Uma disputa surgiu entre barões rivais, o que finalmente levou-os a declarar guerra uns contra os outros. Thomas decidiu fazer seu jogo.

A batalha aconteceu num dia triste de chuva torrencial. As forças rivais se confrontaram em uma clareira da floresta. Conforme o combate avançava, tanto Richard como Thomas desmontaram de seus cavalos para entrarem no fragor da luta. O tempo todo, embora preocupado com a própria segurança, Thomas mantinha um olho gordo onde o irmão estava.

Richard acabou se separando de seus guardas e foi perseguido na floresta por dois homens. Thomas foi atrás deles esperando ver o irmão ser assassinado. Mas, em vez disso, Richard se virou e com golpes violentos derrubou os dois agressores, embora tenha recebido uma forte pancada no braço que manejava a espada.

Ao ver Thomas se aproximar, Richard sorriu e exclamou:

– Vejam! Hoje é o nosso dia!

Thomas chegou ainda mais perto e replicou:

– Hoje é o meu dia!

Ao dizer isso, ele enfiou a espada no coração de Richard. Ao sorrir achando que tinha matado o irmão, e que portanto estava com o caminho aberto para se tornar barão, também chegou a vez de Thomas. O dardo de uma balestra atingiu sua cabeça em cheio, e ele morreu instantaneamente.

Bom descanso para ambos! Eles tiveram o que mereciam, mas como me agradaria ter cuidado do destino deles pessoalmente...

Quanto a Edwin, o bruxo que condenou a minha alma a perambular eternamente, ele simplesmente sumiu num determinado dia. Ninguém sabe como ou por que ele desapareceu. Foi como se tivesse evaporado em pleno ar.


Capítulo 11

A Vingança de Edgar

A minha alma se alegrou de ver o terrível fim dos garotos que tinham causado a minha morte precoce. Mas, no entanto, eu ansiava ser levado de volta ao mundo dos vivos para desencadear a minha vingança sobre todas as crianças horríveis da face da Terra. O problema era como neutralizar o feitiço de Edwin. Eu teria que fazer as crianças pararem de ter bons pensamentos e depois, um dia, poderia ser capaz de voltar do túmulo para a terra dos vivos.

Não se passaram muitos anos até que eu tivesse uma ideia. Bastava apenas encontrar um jeito de incutir os pensamentos demoníacos contidos em fantasmagóricas histórias de terror na cabeça de cada criança. Assim eu teria uma chance de anular o poder do feitiço do bruxo. O que eu precisava fazer era encontrar um método de saturar as mentes das crianças com ideias escabrosas.

Foi simples. Livros!

No começo do século XV, quando eu morri, as histórias de terror eram contadas boca a boca e assim eram passadas de geração a geração. Os contos de fadas que você conhece também eram muito mais repulsivos e assustadores na minha época. Infelizmente, com o passar do tempo, eles se tornaram muito água com açúcar e já não assustam mais ninguém.

Outro jeito das pessoas contarem a respeito das obras diabólicas e das assombrações fantasmagóricas era por meio das peças de teatro. O mais famoso escritor dessas peças foi um homem chamado William Shakespeare. Ele começou sua obra no século XVI e escreveu grandes peças como Hamlet, Macbeth e Otelo. Algumas delas tratavam de temas obscuros como fantasmas, assassinatos, ciúmes e vingança.

Como expliquei antes, bem poucas pessoas eram suficientemente educadas para ler. Quase não havia livros no começo do século XV, e os que existiam eram principalmente de textos religiosos. Todo livro era ornamentado e copiado à mão, e isso demorava séculos! Não seria maravilhoso se houvesse um jeito de produzir milhões de livros com histórias demoníacas para que as crianças pudessem ler? Então, as mentes se encheriam de pensamentos demoníacos e o feitiço de Edwin seria quebrado. Eu estaria livre!

Na China, durante séculos as impressões eram feitas com blocos de madeira individuais, mas esse método era muito lento. O que eu precisava era de alguém que descobrisse um jeito de produzir livros rapidamente. Perambulando pelo mundo dos espíritos, em 1450, fiquei sabendo de alguns eventos interessantes que aconteciam na Alemanha. Eu bisbilhotei uma conversa entre Johann Gutenberg e Johann Fust na cidade de Mainz.

Gutenberg disse para Fust: – O que acha disto?

Ele mostrou uma página impressa que usava letras individuais, as quais ele chamou de “tipos”, organizadas em fileiras para formar palavras e sentenças. O método de Gutenberg significava que cada página de um livro poderia ser composta e impressa rapidamente. Muitas cópias de um mesmo livro também poderiam ser produzidas. Era muito mais rápido do que escrever à mão.

– Como você fez isso? – disse Fust. – Não parece que foi escrito à mão.

– E não foi, foi feito por um processo que eu chamei de impressão – Gutenberg respondeu.

Então, apontou para uma enorme prensa de madeira que ele próprio tinha feito.

Fust olhou aquilo e exclamou: – Isso é incrível!

Era exatamente o que eu precisava: um jeito de produzir facilmente muitos livros!

Johann Gutenberg explicou para seu companheiro o que era a impressão e falou das possibilidades de eles ganharem dinheiro com a produção de livros. Eu desejei com toda a minha força que Fust concordasse em emprestar algum dinheiro a Gutenberg para que trabalhasse mais no novo processo chamado de impressão. Felizmente, ele aceitou. A primeira Bíblia impressa foi produzida em 1455.

Para minha surpresa e alegria, a impressão se espalhou por toda a Europa. Um homem chamado William Caxton levou-a para Londres, na Inglaterra, por volta de 1470. Ele conseguiu produzir 100 livros durante a vida útil da prensa. Isso pode parecer uma quantidade muito pequena, mas para mim, foi um começo incrível. A bola estava em jogo e eu sentia que as coisas estavam mudando a meu favor.

A produção de mais livros significava que muitas pessoas poderiam ser educadas e que seriam capazes de ler. Assim, elas poderiam passar suas habilidades de leitura para mais gente. Eu ansiava pelo dia em que houvesse muitos milhões de leitores de livros. Talvez então muitas cabeças de crianças fossem preenchidas com muitos pensamentos diabólicos, para que eu pudesse escapar da prisão da minha alma e voltar à vida.

O feitiço que Edwin lançou em mim dependia das crianças terem bons pensamentos. Eu pretendia algum dia mudar tudo isso e escapar. Eu voltaria a viver e poderia me vingar de todas as crianças da Terra.

Demorou uns poucos séculos, mas a impressão se tornou cada vez mais rápida. A introdução da energia a vapor e dos teclados para compor os tipos no século XIX permitiu que muitas cópias de livros diferentes fossem produzidas. Agora, o que eu precisava era de gente que criasse histórias de terror fantasmagóricas para que as pessoas lessem.


Capítulo 12

As Minhas Inspirações

Em 1818, uma jovem senhora chamou a minha atenção. Embora tivesse apenas 21 anos de idade, Mary Shelley escreveu um dos mais arrepiantes romances de todos os tempos, que ela chamou de Frankenstein. A história era a respeito de um brilhante médico de Genebra, chamado Victor Frankenstein, que ficou obcecado pela ideia de trazer um morto de volta à vida. Ele conseguiu fazer isso, mas imediatamente enxergou a possibilidade de ir mais longe, com a criação de um novo ser, incrivelmente poderoso.

Ele deu vida a uma criatura gigantesca, montada com pedaços de corpos roubados de sepultamentos recentes. Em vez de fazer melhorias na forma humana, a criatura que ele criou era indescritivelmente repulsiva e terrível de ser vista. O verdadeiro horror é que ela vivia atormentada com a miséria e o desgosto de seu próprio ser. A criatura se enche de ódio pelo seu criador porque é rejeitada por ele e passa a ter uma terrível sede de vingança. Ao contrário do monstro que pode ser visto nos filmes antigos, o monstro de Mary Shelley era capaz de ter sentimentos e emoções, e ansiava pelo afeto de seu criador, algo impossível de se realizar por causa de sua repugnante aparência. Essa era a verdadeira história de terror de Frankenstein.

A criatura procurava destruir tudo que o médico gostava e por fim provocou a própria desgraça de Frankenstein. Com mais histórias assim, eu achava que poderia ter boas chances de voltar a viver!

Também ouvi falar de um jovem dos Estados Unidos que batalhava para ser um escritor de sucesso. O nome dele era Edgar Allan Poe. Espionei por trás dos ombros dele enquanto ele escrevia uma história fantasmagórica chamada A Queda da Casa de Usher.

Foi como se eu tivesse contado a ele pessoalmente como escrever a história. Uma incrível história a respeito de fantasmas e loucura ocorrida em uma velha casa. Ele também escreveu outras histórias assustadoras, inclusive Os Assassinatos da Rua Morgue, sobre um louco que matava pessoas em Paris, na França. Uma coisa maravilhosa!

No final do século XIX foi escrita uma das mais famosas histórias de terror de todos os tempos. Eu tive um grande sentimento de antecipação quando Bram Stoker escreveu Drácula. Ali estava uma história que milhões de pessoas leriam e depois releriam mil vezes. Era baseada em lendas da Transilvânia a respeito de vampiros sanguessugas que apareciam durante a noite e sugavam a vida das pessoas! Histórias como essas ajudaram a fazer de mim, Edgar J. Hyde, uma alma muito feliz no decorrer dos anos.

Então, perto da virada do século XX, toneladas de histórias medonhas foram escritas e lidas. O que eu precisava então era que as crianças começassem a lê-las.

Pais preocupados temiam que as histórias fantasmagóricas prejudicassem as mentes de seus pequenos amores. Como eles sabiam? Era exatamente isso o que eu queria. Essa era a chave para a minha liberdade e para a minha vingança!


Capítulo 13

De Volta à Vida

Quando nós passamos o milênio, eu tive a impressão de que o meu dia estava chegando. Já havia esperado mais de 500 anos pela chance de ser levado de volta à vida. Foram longos e solitários anos perambulando incansavelmente nesta Terra, tendo por companhia apenas as minhas odiosas e medonhas crianças e aquele louco Edwin, o bruxo.

Para minha grande alegria, as crianças estavam lendo cada vez mais histórias de terror. Histórias horrorosas eram contadas em revistas em quadrinhos, em desenhos animados e ainda nas brincadeiras. Como as mentes delas se enchiam dessas diabólicas histórias, eu tinha a impressão de que o poder do feitiço de Edwin começava a enfraquecer.

De todas as crianças da Terra, eu topei com duas em particular que me ofereceram uma grande esperança na minha busca de retornar à vida e realizar a minha vingança: Bobby e Ruth Harrison.

Eles pareciam ser apenas crianças comuns, com pais comuns, que moravam em uma casa comum em uma cidade comum. O que as tornava especiais para mim é o fato de que elas eram absolutamente malucas em relação a tudo o que tivesse a ver com fantasmas, terror e coisas macabras. Era a obsessão delas.

Bobby tinha 13 anos de idade e era dois anos mais velho que a irmã. Eles eram muito parecidos em tamanho, ambos tinham cabelos pretos na altura dos ombros e grossos óculos de aros pretos. Ruth e Bobby eram muito próximos um do outro e unidos no amor ao terror e às coisas sanguinolentas. As outras crianças da vizinhança achavam que eles eram esquisitos e os evitavam, mas os dois não se importavam com isso. Bastava que tivessem alguma coisa fantasmagórica para ler ou assistir que eles ficavam contentes.

Bobby e Ruth passavam o tempo todo lendo histórias terríveis, assistindo a filmes fantasmagóricos ou se divertindo com jogos assustadores. As paredes dos quartos deles eram completamente cobertas com cartazes e quadros dos personagens macabros das histórias que eles liam e dos filmes aos quais assistiam. Para combinar com o fascínio por todas essas coisas, eles sempre se vestiam de preto.

Apesar do meu ódio por crianças em geral, descobri que simpatizava com essa dupla por causa das possibilidades que eles me ofereciam. Eu via neles a minha chance de ser livre novamente. Suas mentes viviam cheias de pensamentos horríveis e obscuros. Era uma alegria assisti-los da minha casa no mundo dos espíritos.

Uma noite, Bobby invadiu o quarto da irmã.

– Consegui o novo livro do doutor Morte! – ele gritou enquanto balançava o livro no alto.

– Como se chama? – perguntou Ruth, pulando animada da poltrona.

– Maldade na Cripta – Bobby respondeu com um risinho.

– Nossa, parece ótimo – disse Ruth. – Você acha que vai ser tão bom quanto A Masmorra do Terror?

Acenando com a cabeça, Bobby respondeu: – Sim, é claro, o doutor Morte tem um verdadeiro talento para o terror.

– O último livro dele foi tão bom, não consegui pensar em outra coisa durante semanas! – disse Ruth.

Com um cruel sorriso cínico, Bobby puxou outro exemplar do livro de baixo de seu casaco preto.

– Eu sabia que você não aguentaria esperar para ler, então lhe trouxe uma cópia também.

Ruth, pulando de alegria, ficou encantada com a surpresa.

– Puxa, obrigada Bobby, agora podemos ler juntos! – ela se entusiasmou.

– Sim, isso vai ser fantástico! – disse Bobby.

– Que tal começarmos agora mesmo? – Ruth sugeriu.

– Por que não? – replicou Bobby.

Após concordarem em ler o terrível livro do doutor Morte juntos, Bobby sentou na cama perto de Ruth. Ela acendeu a luz na cabeceira, que vinha de um abajur preto com uma lâmpada verde. O efeito deixava o quarto com um misterioso brilho esverdeado. A dupla gostava desse tipo de clima no quarto.

Imediatamente eles começaram a ler. Ambos se concentraram totalmente no texto sem nada para atrapalhar a atenção, a não ser um estranho sorriso sinistro que rapidamente passava pelos rostos deles quando alguma coisa repulsiva acontecia na história.

Conforme ficavam mais envolvidos na trama do livro, eu podia sentir que o meu dia logo chegaria. Eu conseguia sentir que me tornava cada vez mais forte com a cabeça deles completamente cheia de pensamentos horríveis e obscuros. O feitiço de Edwin estava começando a enfraquecer. Eles liam um pouco mais, e eu sentia que a minha hora chegava. A cabeça deles estava completamente cheia de pensamentos obscuros e demoníacos.

Reunindo todas as minhas forças, consegui voltar por conta própria à terra dos vivos. Num instante voltei à vida novamente, ressurgindo no quarto de Ruth. Mais uma vez, eu era de carne e osso.

Engasguei quando o ar entrou em meus pulmões pela primeira vez em 500 anos. O sangue corria pelas minhas veias e o meu coração batia como um tambor dentro de mim. Ali, eu podia ver todas as coisas, sentir todos os cheiros e escutar todos os sons que há séculos eu suplicava. Era ótimo me sentir vivo novamente!

Esticando as minhas mãos e depois apertando-as de novo para sentir o poder dos meus músculos, eu quase não acreditava naquilo. Eu tinha voltado da morte. Eu tinha escapado da minha prisão!

O meu aparecimento no quarto de Ruth, porém, não chamou a atenção deles, de tanto que estavam concentrados no livro. Isso me desagradou e me fez lembrar do motivo por que eu detestava as crianças e da razão pela qual eu queria me vingar de cada uma delas. Ali estava eu, respirando novamente depois de 500 anos, e eles nem repararam em mim!

Mas que droga!

– Não se importem comigo – eu disse.

Ambos estremeceram e olharam para cima instantaneamente. Por um tempo, ficaram mudos e de queixo caído. – Gostaria de me apresentar. Sou Edgar J. Hyde – contei a eles.

Bobby arriscou-se a falar com uma voz trêmula.

– Como entrou aqui? O que você quer?

– Ora, quero apenas tomar um pouco do seu tempo e pegar algumas das suas ideias, é só isso – respondi.

Ruth arregalou os olhos com cara feia para mim e me questionou.

– Por que se veste assim?

– Assim como? – perguntei.

Foi só então que eu reparei que estava usando roupas do século XV. Ali estava eu vestindo um sobretudo, botas e um capuz. Não imaginei que quando voltasse ao mundo dos vivos, estaria usando as roupas com as quais tinha morrido.

Eles devem ter achado que eu estava arrumado para alguma festa à fantasia.

– Eu posso explicar...


Capítulo 14

O Acordo do Livro

O medo causado pelo meu aparecimento repentino logo começou a se dissipar. Ruth e Bobby sentaram-se em silêncio e escutaram com grande interesse quando eu comecei a contar a minha história a eles. Contei-lhes como morri nas mãos daqueles horríveis garotos, Richard e Thomas. Porém, não contei a respeito do meu ódio por todas as crianças, nem como eu carinhosamente queria me vingar delas. Também não falei da maldição lançada e nem da lamentável interferência de Edwin, o bruxo.

Poupei-os desses detalhes, pois queria usar o gosto deles pelo terror para alavancar o meu plano de vingança.

O meu plano era simples. Eu encheria a cabeça das crianças com tantas histórias ignóbeis e fantasmagóricas que, de forma absolutamente simples, elas enlouqueceriam!

A mistura dos pensamentos obscuros das crianças que leem livros aumentaria cada vez mais, até que todas elas se tornassem insanas pelo puro peso da maldade dentro de suas cabeças. Depois de contar a eles sobre a minha morte, Ruth se solidarizou.

– Mas que jeito terrível de morrer. Você tinha a vida inteira pela frente...

– Sim, foi muito triste – repliquei. – Mas agora, graças a vocês, fui capaz de reviver e respirar novamente.

– Mas como pudemos ajudá-lo a voltar da morte? – perguntou Bobby.

Eu menti a eles e disse: – Bastou vocês se dedicarem ao saber e à leitura. A grande concentração de vocês me trouxe de volta.

– Verdade? – Ruth gritou.

Enxugando uma falsa lágrima no canto do olho, eu disse: – Sim, minhas queridas criancinhas, vocês me salvaram de perambular eternamente sem sentido.

Isso os enganou. Eles engoliram a minha história com anzol, linha, chumbada, vara e tudo o mais.

Então, expliquei a eles: – Temos muitas coisas para fazer.

– Nós? – disse Bobby.

– Sim, meus caros amigos – eu disse. – Tenho muitas histórias para contar de todos esses séculos na escuridão de além-túmulo.

– Então, você quer escrever e publicar histórias de fantasma? – Bobby me perguntou.

– Bobby, foi por isso que escolhi você e Ruth – eu disse a eles. – Vocês são muito inteligentes, atenciosos e compreensivos.

Era muito divertido vê-los acreditar em cada palavra que eu dizia. Eles realmente achavam que prestavam um grande favor ao me ajudarem. Mas não sabiam de nada! A minha vingança seria tão doce!

– Quero que crianças de toda parte leiam as minhas histórias e as apreciem do mesmo jeito que vocês dois apreciam uma boa história de fantasmas – continuei.

– O que podemos fazer para ajudá-lo? – Ruth perguntou.

– Bem, você pode escrever o que eu disser e talvez consiga colocar essas narrativas no seu computador – respondi.

– Essa é uma grande ideia! Depois podemos enviá-las a uma editora para publicá-las. – Bobby comemorou.

– Vamos ficar ricos em pouco tempo – gritou Ruth.

Dinheiro! Eu nem havia pensado nisso. Como poderia esquecer a isca que o dinheiro representava? Quando a sua alma fica no limbo por 500 anos, você perde qualquer noção do valor do dinheiro. É claro que ele também era importante no século XV, mas bem pouca gente tinha algum naqueles tempos antigos.

Por isso, eu me permiti um sorriso malicioso ao pensar que Ruth e Bobby imaginavam que ficariam ricos e que seriam felizes ao me ajudarem a publicar as minhas histórias macabras. A minha intenção era usá-los e depois deixá-los insanos!

Eu devo admitir que Ruth e Bobby foram muito bons comigo. Tolinhos. Eles me deram dinheiro para encontrar algum alojamento e me entregaram algumas roupas velhas do pai, para que eu não destoasse da multidão. E o melhor de tudo, eles me dedicaram tempo e atenção, permitindo que eu lhes contasse algumas das minhas histórias. Eles adoravam cada minuto disso!

Nas semanas seguintes nós conseguimos produzir os rascunhos de seis livros. Eu enviei trechos a uma editora, que quase imediatamente respondeu pedindo para ver mais. Um encontro com o senhor Tolstoy, da Globalmania Books foi acertado. Eu podia perceber pela sua carta que ele estava desesperado para fazer negócios comigo.

A Globalmania era uma das maiores editoras infantis do mundo. Eles tinham escritórios por toda parte e seus livros eram vendidos em diversos lugares. Se eu conseguisse persuadi-los de que os livros seriam um sucesso, estaria no caminho certo para executar a minha vingança.

– Entre, senhor Hyde – disse o senhor Tolstoy.

Eu atravessei o escritório acarpetado e me sentei em uma confortável cadeira.

O senhor Tolstoy falou rapidamente.

– Essa coisa é pura dinamite!

– Eu sei – repliquei com ar de confiança.

– Vai vender feito água no mundo inteiro! – ele acrescentou.

Dei um sorriso largo.

– Espero que sim – eu disse.

– Se você assinar este contrato agora, mando colocar os livros em produção imediatamente – disse o entusiasmado senhor Tolstoy. – Eles estarão nas livrarias do mundo inteiro em poucas semanas.

– Onde eu assino? – perguntei.

Tolstoy olhou para mim, estranhando.

– Não vai ler o contrato? Não está interessado em saber quanto vai ganhar com este acordo?

– Tenho certeza de que vou ganhar muito dinheiro, senhor Tolstoy. Apenas me mostre onde assino – repliquei.

Tolstoy pulou da cadeira e disse: – Fabuloso! Basta assinar nesta linha pontilhada – e apontou para baixo na folha do contrato. Ele não conseguia acreditar na sorte de ter feito uma negociação assim tão fácil.

Depois da assinatura, o senhor Tolstoy me cumprimentou e exclamou: – Eu vou, quero dizer, nós vamos ganhar uma fortuna com isto!

Eu sorri novamente e disse: – Espero que os livros alcancem o efeito desejado.


Capítulo 15

A Desforra

As semanas que antecediam o lançamento do livro pareceram uma eternidade. Bem, eu tinha passado cerca de 500 anos no limbo, então sabia uma coisa ou outra sobre ter de esperar. Mas cada minuto de cada dia parecia não ter fim. Eu não via a hora de executar a minha vingança.

Ruth e Bobby também estavam tornando a vida irritante para mim. Eles eram tão gentis e tão felizes que quase me deixavam doente. Em muitas ocasiões eu queria contar o que realmente pensava deles e que eles não me escapariam.

Aliás, eu ainda tive que esperar por mais um tempo. Telefonei para o senhor Tolstoy para saber como estava a produção dos livros. Ele ainda continuava cheio de entusiasmo pelo projeto. Isso alegrou meu impaciente coração.

– Estamos nos preparando para um lançamento mundial no dia 31 de outubro – ele disse.

Eu ri do agendamento e respondi: – Só mesmo um cara bom como você para lançar os livros no Halloween.

– O lançamento vai acontecer em Londres, Nova Iorque, Paris, Sydney, Hong Kong, Tóquio, Johanesburgo e por toda parte mais onde você puder imaginar.

– Parece então que teremos muitos leitores – acrescentei.

– Pode apostar! – ele riu. – Vamos fazer propaganda na TV, em cartazes, competições e distribuir brindes. Está tudo acertado para o lançamento.

Fiquei comovido com o esforço feito para o lançamento dos livros. Todo mundo estava tão ansioso e entusiasmado com aquilo, que eu quase chorei. Eles não tinham ideia de qual era o meu objetivo. Se eu quisesse fazer fama e fortuna, poderia ter escrito livros sobre a história do mundo, já que tinha presenciado um bocado dela no decorrer dos séculos. Mas eu queria vingança.

O que eu precisava fazer era esperar o Halloween e tudo então daria certo. Todas as crianças do mundo ficariam malucas por causa dos meus pequenos livros macabros. Eu quase não aguentava esperar!

Os dias se arrastaram até chegar 30 de outubro. Só faltava um dia e então eu desencadearia o caos nas mentes de crianças ao redor do mundo. Será que alguma coisa poderia dar errado com o meu plano?

Naquela manhã, recebi um recado do senhor Tolstoy para ir ao escritório acertar alguns detalhes de última hora a respeito do lançamento. Não achei nada de mais no pedido, já que o lançamento de um livro desse porte estava sujeito a ter algum acerto imprevisto aqui e ali. É claro que eu queria que tudo corresse da forma mais tranquila possível, mas admitia que problemas podiam ocorrer.

– É apenas para marcar algumas entrevistas e coisas assim – disse o senhor Tolstoy.

– O que acha de eu levar os meus dois pequenos companheiros, Ruth e Bobby? – perguntei a ele. – Será que eles não ajudam?

– Sem problemas, senhor Hyde, traga-os junto com você – ele respondeu.

Naquela tarde, pegamos um táxi para o escritório da Globalmania Books. Bobby e Ruth estavam muito agitados por se encontrarem com um homem tão importante e poderoso como o senhor Tolstoy.

Eu também fiquei agitado, mas por causa da minha vingança pessoal. A hora estava cada vez mais próxima e o meu plano estava começando a se concretizar.

Assim que entramos no prédio da Globalmania, Bobby e Ruth ficaram impressionados com o tamanho do lugar.

O piso e as paredes do saguão eram de mármore e imensas poltronas de couro estavam espalhadas por toda parte. O lugar parecia uma selva, com muitas plantas tropicais e fontes estranhas aqui e ali.

– Uau, que lugar imenso! – disse Ruth.

– Sim, é uma das maiores editoras do mundo – eu disse a eles.

– Os nossos livros serão vendidos em toda parte, Edgar? – perguntou Ruth.

– Com certeza, é isso o que eu espero – repliquei com um sorriso cínico. – Na verdade, espero que cada criança do mundo consiga ler logo um deles.

Fomos admirando o prédio e subimos para o escritório do senhor Tolstoy.

Ele nos cumprimentou com um imenso sorriso e disse: – Como vai, Edgar? Vocês dois devem ser Ruth e Bobby. Venham cá e sentem-se à vontade.

Ansioso para saber como o lançamento estava se desenvolvendo, perguntei rapidamente: – Está tudo saindo conforme o programado?

– Sim, é claro, sem problemas, relaxe, Edgar – ele disse confiante.

– Bobby e Ruth têm me dado uma grande ajuda. Eu não conseguiria fazer nada sem eles.

As crianças ficaram radiantes com o meu comentário. Mas que idiotas elas eram!

Depois de ligar a TV e pôr um DVD para rodar, Tolstoy disse: – Aqui está a propaganda que vai ao ar amanhã no mundo inteiro. – Vocês vão gostar disto!

A tela ficou em branco por alguns segundos antes da propaganda começar. Estávamos ansiosos com a pré-estreia.


Capítulo 16

A Volta de Edwin

Para a minha mais completa decepção, um velho rosto familiar apareceu na tela. Imediatamente reconheci aquelas rugas, a longa barba e os cabelos brancos.

– Essa não! Por favor, isso nunca! Esse é o velho Edwin! – gritei.

Cada parte de meu ser gelou ao avistar o bruxo. O que ele achava que estava fazendo?

– Isso não está certo! – gritou Tolstoy.

Ruth e Bobby riram por um momento com a confusão e depois rapidamente se calaram quando repararam no meu rosto aterrorizado.

Eu virei para eles e gritei.

– Calem-se crianças bobas e horríveis. Eu odeio vocês!

Tolstoy olhou chocado para o meu acesso de raiva.

– Calma Edgar, isso não é jeito de se comportar.

– Ora bolas, cale-se você também, exibido!

O meu sangue congelou quando escutei a voz do velho Edwin. Lembrei da época em que ele colocou o feitiço em mim, muitos séculos antes. Como aquilo podia estar acontecendo?

– Edgar, você não toma jeito – disse Edwin.

– Eu vou! Eu vou! – gritei furioso para a imagem de Edwin na tela.

Visivelmente assustado, Tolstoy me perguntou: – Conhece esse homem na tela?

– É claro que sim. É Edwin, o bruxo do século XV – gritei em resposta.

Tolstoy ergueu as sobrancelhas.

– Não está se sentindo bem, Edgar?

– Não... Não mesmo! – gritei quando senti que os meus planos estavam evaporando.

A voz do velho Edwin continuou:

– Edgar, você não toma jeito.

Enfurecido, gritei para Tolstoy:

– Desligue, não posso com isso!

– Não, deixe ligado, senhor Tolstoy! – gritaram Bobby e Ruth juntos.

Eu avancei para desligar a TV, mas Tolstoy me agarrou e me empurrou para trás.

– Francamente, senhor Hyde! – ele disse decepcionado com o meu comportamento.

Agora eu estava tendo um ataque de pânico, pois achava que os meus planos tinham sido frustrados pelo repulsivamente bom Edwin. Peguei um cinzeiro pesado e atirei-o na tela da TV. A tela explodiu em milhares de pequenos pedaços.

Tolstoy correu para o telefone.

– Mandem a segurança aqui para cima, já! Esse tal de Edgar J. Hyde ficou maluco. Ele é perigoso!

Então, para o meu mais completo terror, reparei que embora a tela da TV estivesse espatifada, a imagem de Edwin ainda persistia ali no meio da fumaça.

Ele ainda estava falando:

– Você não toma jeito, Edgar.

– Você não perde por esperar! – gritei de volta para ele.

Tolstoy protegeu Ruth e Bobby sob seus braços enquanto as desgraçadas criaturas se lastimavam.

– Isto é muito constrangedor, crianças. Vamos esquecer essa coisa toda.

– Nada disso, jamais! – gritei. – Eu vou me vingar!

– Você não terá nada publicado por nós! – disse Tolstoy com um tom de voz autoritário.

Enraivecido com o comentário, parti para cima dele e dei-lhe um soco no nariz. Ele cambaleou para trás ainda com as crianças embaixo dos braços.

– Certo! Que assim seja. Nunca mais quero ver ou ouvir falar de você, Hyde – ele gritou.

No momento seguinte, dois guardas da segurança invadiram a sala.

– Esse é o louco! – Tolstoy gritou, apontando para mim. – Levem-no para fora!

Os guardas me agarraram, mas não conseguiram segurar com firmeza o meu corpo que se contorcia, e assim escapei pela porta do escritório. Corri por um corredor e encontrei um sinal que apontava para uma saída de emergência. Com os guardas no meu encalço, eu me precipitei 17 lances de escada abaixo e caí no chão do saguão, no andar térreo. Outro guarda da entrada se aproximou de mim, mas eu o desloquei para fora do meu caminho.

Furioso e em estado de pânico total, saí correndo para atravessar uma avenida com vários carros freando em cima de mim para evitar o atropelamento. Eles buzinavam e me xingavam, mas a minha mente girava em um turbilhão, só de pensar que Edwin mexeria comigo novamente.

Então, olhei para o imenso cartaz acima de mim e gelei. Era um daqueles lugares onde um gigantesco pôster deveria anunciar os meus livros. Senti o meu espírito enfraquecer quando contemplei a imagem. Havia uma figura enorme de Edwin com o dedo apontando para mim. A legenda dizia: “Edgar, você não toma jeito!”.

Mostrei os meus punhos cerrados em fúria e comecei a cambalear ao longo da rua. Como tudo podia ter dado errado tão rapidamente? O que eu faria agora?

Ao passar por uma série de lojas, eu via meu reflexo nas vitrines.

Eu podia ver que o meu corpo começava a desaparecer aos poucos. Não, não podia ser! O feitiço de Edwin devia estar fazendo efeito novamente. Eu estava sendo puxado de volta ao mundo dos espíritos.

Sentindo-me cada vez mais fraco, percebi que estava perto de uma livraria. Ali, na janela, havia uma vitrine onde deveriam estar os meus livros. Percebi que a brincadeira tinha acabado para mim quando olhei a capa dos livros. Todos tinham a mesma figura na frente: Edwin, o bruxo!

Notei que o fim estava próximo para mim novamente quando olhei o meu reflexo na vitrine. O meu corpo sumia a cada segundo que passava. De repente, outro reflexo apareceu. Era o velho Edwin.

– Preciso enviar você de volta para o mundo dos espíritos – ele disse. – Essas crianças não fizeram nada de errado para você.

Só então percebi que se tratava da minha própria desforra. Eu tinha escolhido Ruth e Bobby para me ajudarem porque eles estavam com a cabeça cheia de pensamentos obscuros e demoníacos.

Como eu depositei tanta confiança neles, eles também começaram a gostar muito de mim. A mente deles começou a se encher de bons pensamentos em relação a mim e assim Edwin teve a chance de relançar o seu feitiço. Crianças! Por que não podem ser dignas de confiança?

Com isso, exalei o meu último suspiro e evaporei completamente.


Capítulo 17

A Próxima Fase

Mais uma vez eu estava na terra dos mortos!

No mesmo instante fui transportado de volta para o espaço vazio de onde eu tinha acabado de escapar. Novamente fiquei condenado a vagar pela inexistência sem fim na qual Edwin tinha injustamente me aprisionado.

Aquilo simplesmente não era justo!

Eu não podia sentir o chão embaixo dos meus pés e nem o ar nos meus pulmões. O sol não aquecia a minha pele e nem o vento desmanchava o meu cabelo.

Não sentia sede nem fome. Mais uma vez fiquei privado de todos os prazeres e sensações de estar vivo.

No decorrer de longos e tortuosos séculos, eu tinha esperado a minha chance de ser livre de novo, e exatamente no momento em que eu achava que a vingança era minha, fui detonado por Edwin mais uma vez. O oportunismo do velho louco era deplorável.

Como ele soube o que estava acontecendo?

Ele deve ter sentido que eu tinha interrompido o feitiço e estava pronto para a minha vingança. Talvez Edwin tivesse ficado me observando o tempo todo.

Naquele exato momento, tomei conhecimento da presença de outro espírito no meu espaço. Era um sentimento que causava calafrios na minha alma não existente. Só poderia ser o espírito do homem que tinha aprisionado a minha alma.

Era Edwin!

– O que você está fazendo aqui? – gritei. – Será que já não me causou bastante confusão?

– Para um homem supostamente estudado, Edgar, você às vezes é ridículo – replicou Edwin, em um tom de voz complacente.

Enfurecido pelo insulto, gritei: – Como você ousa? O que você quer dizer com isso?

– Edgar, eu sou um bruxo. Você deve saber que eu posso viajar entre os vivos e os mortos. Eu tenho a sabedoria. É isso o que os feiticeiros fazem, seu tonto! – ele replicou.

– Está tentando me dizer que você ficou de olho em mim esse tempo todo? – indaguei.

– Eu dava um pulo para observá-lo de vez em quando – o bruxo disse.

Confuso, indaguei: – Se é verdade, então como nunca senti a sua presença no mundo dos espíritos?

Edwin balançou a cabeça ao ouvir essa pergunta, como se estive entristecido com a minha embaraçosa falta de entendimento.

– Sou um bruxo poderoso. Tenho poderes místicos que você jamais vai entender, Edgar. Você gosta de pensar que é mais inteligente e melhor do que todo mundo, mas a verdade é que você não passa de um preceptor de crianças do século XV – ele disse.

Fiquei ofendido com essa explicação e afirmei:

– Isso não é justo!

Edwin balançou a cabeça.

– Não tem nada a ver com justiça. Eu precisava proteger as crianças.

– Vou encontrar um jeito de acabar com você de uma vez por todas – eu disse em tom ameaçador.

Edwin sorriu de um jeito convencido.

– Vai ter muito tempo para trabalhar essa ideia. Adeus, Edgar, preciso ir agora – ele disse.

Zangado com o fato de que a aparição dele iria embora exatamente quando eu tinha tantas perguntas para fazer, ralhei com ele.

– Por que vai me deixar?

O bruxo suspirou.

– Edgar, você não é o centro do universo, acredite ou não. Tenho outros assuntos para tratar que são muito mais importantes do que vigiar você.

Essa resposta realmente me incomodou. Quem poderia ser mais importante do que eu?

Com essas irritantes palavras finais ele sumiu, e mais uma vez me deixou sozinho na prisão da minha alma.

Pois bem, agora eu estava novamente de volta ao limbo, sem ter aonde ir e sem nada para fazer. Os espíritos como o meu apenas flutuam em volta da terra sem os sentimentos e sem as sensações das pessoas vivas. É existência atormentada. Tragédia é a única palavra que serve para descrever o que aconteceu comigo.

Mais uma vez, o tempo passa lentamente, enquanto o meu espírito perambula no vazio. Eu preciso imaginar algum outro esquema para escapar da prisão da minha alma, pois continuo determinado a desencadear a minha vingança.

Edwin, o bruxo, ainda vai se arrepender do dia em que ousou interferir nos meus negócios. Ele pode ter me prendido no momento, mas eu voltarei, e da próxima vez, vou prevalecer. A minha alma clama por vingança contra ele e todas as crianças da face da Terra. Como eu as detesto!

Foi assim que me ocorreu algo como um raio fulminante: eu teria que contar as minhas terríveis histórias de além-túmulo. Usando pessoas do mundo real, como o dedicado Hugo, eu ainda poderia mandar imprimir as minhas histórias macabras. Então, quando as crianças estiverem com a cabeça cheia de histórias demoníacas, eu terei novamente a chance de voltar dos mortos.

Sempre vai existir a chance de Edwin retornar e estragar tudo, mas esse é um risco que tenho que correr.

Pois bem, novamente, como ele disse que eu não sou muito importante, então talvez eu consiga escapar da prisão da minha alma enquanto ele estiver ocupado fazendo qualquer outra coisa. Eu até sonhei que ele seria aniquilado por outro inimigo poderoso e que o feitiço jogado sobre mim seria quebrado.

Ah, esses sonhos! Bastava um deles se tornar real... Até que isso aconteça, eu vou continuar semeando as minhas maldosas histórias para encher a mente das crianças com pensamentos escabrosos ao invés de coisas boas.

Obrigado pela leitura deste livro. Espero que você tenha gostado da minha história e que arranje mais tempo para ler outras obras minhas.

Você tem me ajudado muito na minha busca para voltar a viver. Um dia retornarei à terra dos vivos. Edwin, o bruxo, vai ser derrotado pelo meu poder e eu me vingarei de todas as crianças que existirem.

 

CUIDADO COMIGO!

 

 

 


O doutor morte

Edgar J. Hyde


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Hyde, Edgar J.

O Doutor Morte[recurso eletrônico] / Edgar J. Hyde; traduzidopor Silvio Antunha. -Jandira, SP: Ciranda Cultural,2021.

112p.; ePUB; 504KB.–(Hora do espanto)

 

ISBN 978-65-5500-713-8(Ebook)

 

1. Literatura juvenil. 2. Ficção. 3. Terror.I. Antunha,Silvio. II. Título.III. Série.

2021-863 CDD 028.5
CDU 82-93

Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva -CRB-8/9410

 

Índices para catálogo sistemático:

1.Literatura juvenil028.5

2.Literatura juvenil82-93

 

 

© 2009 Robin K. Smith

Esta edição de Hora do Espanto foi publicada

em acordo com Books Noir Ltd.

Título original: Doctor Death

 

© 2009 desta edição:

Ciranda Cultural Editora e Distribuidora Ltda.

Tradução: Silvio Antunha

 

1ª Edição

www.cirandacultural.com.br

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, arquivada em sistema de busca ou transmitida por qualquer meio, seja ele eletrônico, fotocópia, gravação ou outros, sem prévia autorização do detentor dos direitos, e não pode circular encadernada ou encapada de maneira distinta àquela em que foi publicada, ou sem que as mesmas condições sejam impostas aos compradores subsequentes.

 

Livro digital: Lucas Camargo e Gabriela Fazoli


Sumário
O Doutor Morte

Heróis Esportistas
Uma Espinha Preocupante
O Doutor Popular
O Doutor Perfeito
Diferença Espinhosa
Mudança para Pior
Um Plano em Desenvolvimento
Curar ou Matar
Volta à Normalidade
O Doutor Nojo
O Retorno do Doutor
O Encontro de Josh
O Doutor em Ação
Karen Entende a Situação
Quem Ri por Último...


Capítulo 1

Heróis Esportistas

Alguma vez você já foi ao médico para depois piorar em vez de melhorar? Bem, pois foi exatamente isso o que aconteceu com Josh Stevens e alguns de seus melhores amigos quando o dr. Morte, como ele rapidamente se tornou conhecido, passou a clinicar na cidade deles. Vou contar o que aconteceu...

– Vai, Josh! – gritou Simon para seu melhor amigo quando passou por ele, mudando ligeiramente de ritmo, para devolver a bola na direção de Josh, que pegou a bola, conseguindo se esquivar da defesa do Vale Merton. Ele saltou, visando diretamente a cesta. Quase em câmera lenta, quando todo mundo no ginásio prendeu a respiração, a bola circulou com delicadeza no aro da rede. Josh viu, com o canto do olho, o técnico Barnes se levantar do banco e parar, olhando a bola fixamente, quase a forçando a cair na rede. Isso funcionou, ou pelo menos alguma coisa sim, pois no minuto seguinte parecia que a escola inteira tinha explodido quando a bola finalmente parou de girar e caiu direto na cesta.

Eles ganharam! A equipe deles batia o Vale Merton pela primeira vez em sete anos e Josh marcou a cesta vencedora. Simon e o resto do time comemoraram orgulhosos, socando o ar pelo sabor da vitória, sorrindo de orelha a orelha.

– Brilhante, Josh, simplesmente brilhante – cumprimentou o técnico Barnes com um tapinha nas costas de Josh. – Todo mundo ficou na ponta do assento... Quase que o apito final soou antes de você marcar. Bela jogada, Josh, bela jogada!

Quando a equipe perdedora se retirou para chorarem uns nos ombros dos outros no vestiário, os rapazes comemoravam a vitória. Todo mundo no ginásio permanecia de pé, aplaudindo o primeiro time a trazer a taça de volta em muitos anos. Josh foi carregado nos ombros pelos companheiros de equipe. Eles o levaram em volta olímpica cantando Ele é um bom companheiro em uma algazarra ensurdecedora – e Josh gostou disso. Cada minuto... Nunca havia se sentido tão especial em toda sua vida, e estava determinado a saborear cada momento. Ele brincou com a multidão, acenou e sorriu para todos, sem se importar com o cabelo colado na testa ou o rosto em brasa e encharcado de suor. Quando começaram a segunda volta olímpica, Josh notou Karen com alguns amigos. Karen Summers, o amor de sua vida! E ela havia acabado de presenciar seu momento de glória, seus cinco minutos de fama. Josh abriu um sorriso especial quando passou por ela. Agora, ela teria que sair com ele. Como poderia se recusar a sair com o herói do ensino médio? Tudo o que Josh precisava fazer era criar coragem e pedir, então teria um encontro na noite de sábado com a garota mais cobiçada da escola. A equipe parou na outra ponta da quadra e os rapazes baixaram Josh no chão. Ainda eufóricos, mas mais calmos agora, eles se alinharam orgulhosos ao lado do técnico, enquanto o diretor, o sr. Jenkins, colocava neles as medalhas de vencedores.

– Bela jogada, filho – e felicitou Josh. – É um dia memorável para todos nós.

Em seguida, passou para o próximo garoto na linha. Josh espiou o técnico Barnes, que piscou para ele e acenou com a cabeça positivamente, sem pressa, do jeito que as pessoas fazem quando estão contentes a respeito daquilo que você acabou de fazer. Josh retribuiu sorrindo, endireitou os ombros e estufou o peito com orgulho. Ele queria que esse momento durasse para sempre.

Mais tarde, no vestiário, a alegria era geral e as brincadeiras estavam por toda parte, com todos muito naturalmente espirrando água uns nos outros. Camisetas, calções e tênis fedorentos atirados nas sacolas de esportes, os amigos atravessaram os portões da escola e começaram a percorrer o caminho de casa. Cada segundo do jogo era dissecado, discutido e examinado de todos os ângulos. Cada ponto que eles marcaram era exagerado, com os jogadores saltando mais alto, driblando mais rápido e marcando pontos com muito mais facilidade do que qualquer outra equipe jamais vista. Por fim, embora muito longe da verdade, pois as outras equipes eram adversários mais do que respeitáveis, os rapazes chegaram à conclusão de que os rivais nem precisavam ter estado lá, tão grandes foram os círculos que tiveram que correr em torno deles.

Conforme os rapazes se aproximavam de casa, a animação do grupinho diminuía.

– Adeus, Kev! A gente se vê amanhã – berrou Simon quando Kevin os deixou e atravessou a estrada para sua casa. Em resposta, Kevin levantou o braço em saudação de vitória e correu feliz pela trilha adiante.

– Caras, a gente se vê – disse Charlie, abaixando- -se para amarrar o cadarço do tênis.

– A gente se vê, Charlie – retribuiu Josh, enquanto ele e Simon continuavam a caminhada.

– Você viu a Karen Summers? – perguntou Josh quando virou para olhar o melhor amigo.

– Vi, com certeza! – respondeu Simon. – Impossível não reparar nela. Foi uma das que mais aplaudiu quando você marcou o ponto da vitória.

– É mesmo? – perguntou Josh, olhando para ver se o amigo estava ou não brincando, mas o rosto dele permaneceu impassível.

– Olha, Josh... – ele parou e encarou o amigo. – Você tem que convidar essa garota para sair. Quer dizer, todo mundo sabe que você é louco por ela, todo mundo exceto ela própria. Vou falar uma coisa, se você não se mexer depressa, alguém mais vai sair com ela bem debaixo do seu nariz. Essa garota é bonita demais para ficar sozinha por muito tempo.

– Eu sei, Simon – suspirou Josh. – Mas, e se ela disser não?

Mal recomeçaram a andar e Simon parou novamente. – Josh, rapaz, você está de brincadeira? Olha, quantas vezes já falamos disso? Sai dessa, você é um cara bacana, eu nunca vi nenhum motivo para ela dar um fora em você, ainda mais agora, depois de hoje! – Em uma rara demonstração de afeto, ou talvez de pura irritação, Simon bateu no ombro do amigo. – Vai firme, cara – ele sorriu. – Ei, qual a pior coisa que pode acontecer?

Josh retribuiu o sorriso, tentando se sentir tão confiante quanto Simon parecia. Eles haviam parado bem na frente do portão de Josh, que soltou o trinco e se despediu do amigo. – Obrigado, Si! A gente se vê amanhã. E lembre-se: Thornton High é a melhor. – Eles se cumprimentaram, batendo as mãos espalmadas no ar, e Josh entrou em casa pela porta da frente.


Capítulo 2

Uma Espinha Preocupante

– Mãe! Sou eu... – ele berrou, jogando a mochila na sala. – Adivinhe só? – continuou enquanto seguia para a cozinha. – Ganhamos a taça, pela primeira vez em sete anos. Sabe quem marcou a cesta da vitória?

Ouviu a mãe começar a descer a escada quando pegou uma lata de refrigerante na geladeira.

– Josh, é você? – ela começou. – Espero que não tenha deixado seu uniforme imundo na mochila. Coloque tudo na máquina de lavar se você quiser suas coisas limpas. Parece que vocês, crianças, acham que as roupas limpas surgem por magia nas gavetas, depois de alguns dias jogadas no chão. Nunca pensou para que servem a máquina de lavar, a máquina de secar e o ferro elétrico?

Josh deu uma mordida em uma barra de chocolate e nem se dignou a responder. Nem precisava, já que, no final das contas, a mãe respondia às próprias perguntas. Carregando a terrível mochila, a mãe entrou na cozinha.

– O que é isso, então? – ela perguntou, agitando a mochila por toda parte, esfregando-a na cara de Josh. – Um uniforme imundo, isso sim.

A mãe respondia às próprias perguntas! O garoto virou para olhar para ela, vagamente curioso para saber se teria autorização para responder alguma coisa naquele dia.

– E o que está comendo? Chocolate! Depois você não janta, Josh. Não sei porque precisa beliscar antes das refeições. Não tem comida suficiente na escola? Oh, eu sei, nem me conte, você nem podia imaginar o cardápio, então foi com o Simon até a padaria e fizeram um lanche.

Ela realmente olhou para o filho nessa hora para confirmar. Infelizmente, Josh tinha ainda chocolate demais na boca para responder sim ou não, então apenas ficou quieto. Depois de encher uma pequena esfera de plástico com sabão em pó, ela girou o seletor na parte de cima da máquina de lavar e clicou liga no interruptor. Aprumando-se, ela reparou na lata meio vazia na mão de Josh.

– Josh! – advertiu. – Quando você vai aprender? Chocolate e refrigerante! As suas espinhas nunca vão sumir se você não parar de comer tanta comida cheia de calorias.

– Eu sei, mãe – disse Josh, tomando o que restou na lata. – Mas de qualquer forma, apenas um pedaço de fruta e um copo de água não têm o mesmo efeito, sabia?

A máquina de lavar começou o ciclo e Josh subiu para trocar a roupa da escola. “Gostaria de saber porque a pequena esfera de plástico nunca derrete...” – ele pensou enquanto alcançava o topo da escada.

– Josh! – chamou a mãe, gritando com ele. – Não ouviu o que eu disse? Amanhã vou levar você para consultar-se com o nosso novo médico, o dr. Blair, eu acho que esse é o nome dele, para ver se ele pode fazer alguma coisa para melhorar a sua pele. Vou levar você direto depois da escola, ok? E, pelo amor de Deus, não conte que você se entope de barras doces e latas de refrigerante. Eu vou ter essa conversa com ele, se você não se importa.

“Pode deixar que eu falo” – Josh falou para si mesmo. Será que ela estava brincando? Com a mãe por perto, ninguém jamais tem a chance de falar qualquer coisa, e ainda menos ele. Atirou-se em cima da cama e espreguiçou-se até alcançar com a mão o pequeno espelho na mesa de cabeceira. Estava bem melhor das espinhas, pensou, quando se examinou no espelho. Claro, a testa parecia um desastre, mas se deixasse o cabelo um pouco mais comprido, e lembrasse de pentear de um certo jeito, praticamente cobria todas as espinhas. Calma, não faria mal nenhum passar pela consulta com esse cara novo. Talvez ele viesse com alguma novidade desconhecida pelo velho dr. Feldman. O velhote havia parado de clinicar, bem mais tarde do que deveria, de acordo com a mãe, e esse novo cara devia estar chegando para substituí-lo.

– Dr. Blair, não é? – ele falou. – Bem, então, vamos ver se você sabe das coisas.


Capítulo 3

O Doutor Popular

No dia seguinte, Charlie não foi à escola.

– A mãe dele disse que ele estava... Como foi mesmo que ela disse? – Kevin riu.

– Oh, sim, com a barriguinha desarranjada... – ele concluiu, fazendo uma imitação jocosa da voz da mãe de Charlie.

– Quando eu o chamei hoje de manhã, foi o que ela disse! Ela não falou: Sinto muito, Kev, ele não sai do assento da privada do banheiro, nem: Sinto muito, Kev, ele está derretendo até o fim, mas exatamente: Sinto muito, Kev, ele está com a barriguinha desarranjada! Provavelmente depois de tantas emoções ontem...

Josh e Simon também riram, lembrando do quanto tinham se divertido quando Charlie voltou para a escola, soltando fortes ruídos de gases na aula, colocando rolos de papel higiênico na mochila escolar, e assim por diante.

Josh sentou sozinho durante a aula de Geografia, pois normalmente era o ausente Charlie quem sentava ao lado dele nessa aula. Mas não se importou nem um pouco, pois passou a aula inteira olhando fixamente atrás da cabeça de Karen Summers. Ele havia escolhido especialmente aquele lugar no começo do semestre. Era a única aula que frequentava junto com Karen, e ele estava determinado a sentar perto dela pelo menos meia hora duas vezes por semana. Quando o sinal tocou anunciando o fim da aula, ela se levantou para guardar os livros e virou para ele.

– Parabéns. Jogou muito bem ontem, você foi brilhante. Deve estar orgulhoso.

Ela sorriu, e esperou para ver o que o garoto diria.

– Puxa, obrigado – ele murmurou, colocando-se de pé.

Ele forçou o cabelo conscientemente, jogando-o para frente, para esconder as horríveis espinhas na testa. Quando se levantou, tombou a cadeira, que por sua vez tombou a cadeira de trás que então empurrou a mesa.

– Sinto muito, sinto muito – ele gaguejou, enrubesceu violentamente e virou-se para ajudar quem tinha tombado atrás dele.

A mesa e a cadeira estavam vazias, um fato que antes ele tinha percebido muito bem, mas que esqueceu com a atrapalhação. Ao endireitar a mesa e a cadeira, tossiu para disfarçar o mal-estar e virou-se de novo para Karen, tentando desesperadamente pensar em algo inteligente e engraçado para dizer. Ela tinha sumido.

Ele foi praticamente o último a sair da sala, além do patético Jones, o bichinho de estimação, o queridinho do professor, que ficava sempre na frente da turma para perguntar aos professores uma coisa ou outra. Karen, a bela, a perfeita Karen, tinha ido embora.

Lamentando muito, ele pegou seus livros e saiu. Queria chutar a si mesmo. Mas que idiota! A chance de sua vida queimada! Achou melhor não contar ao Simon, ou ele ia ficar maluco. Depois de tudo, não era isso o que merecia? Sexta-feira à tarde, penúltima aula, e ele detonava o que poderia ter sido seu primeiro encontro de sábado à noite com Karen. Ficou sem a menor ideia do que o professor de História disse na aula seguinte, pois não parou de se martirizar inúmeras vezes.

Finalmente, depois do que pareceu uma eternidade, o sinal tocou e ele pôde sair da escola. Quando chegou aos portões, ficou surpreso ao ver o carro da mãe estacionado lá fora. Ela buzinou ruidosamente, avisando para ele se apressar. Ele tinha esquecido: a consulta do médico.

Se bem que, considerando a maneira como ele havia se comportado com Karen, pouco importava se estivesse coberto de espinhas da cabeça aos pés.

Ele imaginava muitos furúnculos imensos, quando atravessou a estrada. Alguns com cabeças brancas, outros com grandes cabeças verdes vazando pus, por causa do excesso. O rosto inteiro podia também ser uma enorme espinha, com veneno verde e amarelo escorrendo dele.

– Oi, mãe – ele disse quando abriu a porta do carro. Verificando o espelho e ligando o motor do carro, a sra. Stevens ganhou distância.

– Oi, também para você – ela sorriu. – E o que o deixou tão infeliz num dia tão bonito?

Josh não se importou e olhou para fora da janela.

– Falei com a mãe do Charlie hoje. Você não me contou que a sua equipe ganhou o troféu de basquete ontem, nem que você marcou o ponto da vitória...

– Contei, mãe – retrucou Josh. – Só que você não escutou...

– Eu disse à Marjorie esta manhã, que isso agora é típico do meu filho. Nunca me conta nada que pode ser importante, passa todo o tempo trancado no quarto, hibernando, fazendo visitas ocasionais à cozinha para assaltar a geladeira. Marjorie disse que provavelmente ela própria também não teria sabido de nada se Charlie não tivesse chegado na noite passada com a barriguinha desarranjada, como ela disse, e que aparentemente isso acontece quando ele fica superagitado. Ela disse que vocês todos ganharam medalhas, e que era a primeira vez que recebiam a taça em... quanto tempo? Ah! sim, sete, isso mesmo...

Josh levantou os olhos para os céus e continuou a olhar para fora da janela. Ele se questionou por um instante se Karen seria capaz de rosnar daquele jeito. Horrorizado, afastou tal pensamento muito rapidamente. Não, decidiu, essa característica era exclusiva da mãe dele, com certeza, era simplesmente a mãe sendo mãe.

Ao chegar no consultório, nem Josh nem a mãe podiam acreditar no que viam. O estacionamento estava lotado, e havia carros estacionados em fila dupla em ambos os lados da estrada.

– Céus! – respirou fundo a sra. Stevens quando circularam o estacionamento pela terceira vez. – Deve ser algum tipo de epidemia. Nunca vi um consultório tão cheio na minha vida...

Josh teve que concordar, nem mesmo o evento anual de verão que acontecia nas dependências da escola atraía tanta gente quanto aquilo. Gostaria de saber onde todo mundo estava indo.

– Olha, mãe, bem ali – apontou.

– Ah! sim, querido, bem pensado. A dona da padaria havia acabado de sair do consultório e estava se preparando para retirar o carro do estacionamento. – Gostaria de saber o que foi que houve com ela... – a sra. Stevens pensou em voz alta.

– Ela não parece doente, devo dizer.

Josh e a mãe ficaram confusos quando abriram a porta do consultório. Não havia um lugar para sentar!

Mães com crianças esperneando no colo sentavam-se junto de moças com bebezinhos, que por sua vez estavam sentadas ao lado de senhoras idosas, artríticas, que se agarravam em suas bengalas como se fossem alavancas de câmbio.

A recepcionista, normalmente calma, estava muito atarefada, com o telefone que não parava de tocar, a campainha disparada, e pessoas solicitando consultas ininterruptamente. Quando Josh e sua mãe se aproximaram do balcão, a recepcionista terminava uma ligação.

– Sim, tudo bem, sra. Collins, daqui a duas semanas, na segunda-feira às 9h30. – Ela procurou a caneta freneticamente. Josh apontou para sua orelha, ela olhou para ele achando engraçado. Levantou a agenda e olhou embaixo, antes de verificar no bolso. Josh novamente deu uma pancadinha ao lado da cabeça, um pouco acima da orelha.

– Sinto muito, sra. Collins, só um momento, acho que perdi a caneta.

Ela tocou com a mão no lado da cabeça e afinal localizou o objeto desaparecido. Sorrindo, ela agradeceu ao garoto, marcou a consulta, despediu-se da pessoa que chamava e recolocou o fone de ouvido. Empurrando o cabelo da frente dos olhos, ela olhou intrigada para a sra. Stevens.

– Ah!... Josh Stevens – disse a mãe. – Temos uma consulta com o dr. Blair às 16h30.

A campainha disparou. A recepcionista verificou a agenda e então se inclinou para a frente para chamar pela divisória de vidro.

– Sra. Burns, o dr. Blair vai atender você agora. – Ela acompanhou a mulher até a sala do médico e então virou em direção a Josh.

– Estamos atrasados, correndo um pouco atrás do horário. Estamos muito ocupados, como pode ver, mas você pode se sentar, se encontrar uma cadeira vaga. Estou certa que o doutor não vai demorar muito.

Josh estava a ponto de dizer que voltaria outro dia, mas pelo jeito a mãe, é óbvio, gostou da ideia de ficar ali sentada durante horas a fio lendo revistas antigas, já que apenas sorriu, agradecendo a recepcionista e foi procurar uma cadeira.

Josh nunca ficou tão entediado em toda a vida. Tentou passar os primeiros 15 minutos de espera sem precisar respirar o mesmo ar que os gêmeos que sentaram do lado direito. Eles pareciam ter um caso grave de catapora, e Josh seguramente não queria ser atormentado com aquilo. Ele tinha espinhas em quantidade mais que suficiente contra as quais lutar.

Depois disso, ele tentou fazer a média para ver se tinha comido mais barras de chocolate Snickers ou Hershey’s na semana (estava aprendendo tudo a respeito de médias na aula de Matemática nessa ocasião e apresentava a tendência de praticar a teoria exatamente a respeito de tudo, inclusive quantas visitas fazia ao banheiro no período de uma semana). Mas não deu muito certo, pois não conseguia lembrar se na quarta-feira foi Hershey’s, ou se nesse dia houve um desvio para Milky Way.

Observou a mãe e perguntou-lhe se não era válida a sugestão de irem embora. Ela estava roendo a unha do polegar esquerdo, do jeito que sempre fazia quando se concentrava em algo. Inclinando-se mais perto, Josh conseguiu ver que ela estava imersa em um artigo intitulado: Será Que o Seu Parceiro Realmente Presta Atenção? Nem pensar na sugestão de irem embora. Ele suspirou, remexendo-se desconfortável na cadeira.

O lugar também começou a ficar quente. Ele puxou a gola do blusão de moletom. Logo teria que tirar a jaqueta.

– Não fique irrequieto, Josh – disse a mãe conscientemente ausente, sem desviar os olhos da revista.

– Sra. Stevens! – chamou a atarantada recepcionista de rosto vermelho.

– Sra. Stevens, o dr. Blair vai atendê-la agora.

– Oh! Certo... – A mãe levantou-se com um solavanco, cravando os dentes da frente direto na unha do polegar esquerdo quando isso aconteceu.

– Droga! – ela murmurou involuntariamente.

Depois, alisou a saia, sorriu para se desculpar com os pacientes que esperavam nos quais esbarrou quando passou e, com Josh seguindo logo atrás, entra na sala do dr. Blair.


Capítulo 4

O Doutor Perfeito

– Sra. Stevens, imenso prazer em conhecê-la! – O dr. Blair se levantou e caminhou em direção a eles, com a mão estendida para a mãe de Josh. – Você deve ser Josh – e sorriu para o garoto, ainda segurando na mão da sra. Stevens. Josh olhou para a mãe, notando que ela não parecia estar tentando muito se livrar do cumprimento do médico.

– Por favor, sentem-se... – continuou o médico, quando finalmente soltou a mão da sra. Stevens e fechou a porta.

Barbara Stevens ficou perplexa. Agora sabia porque a sala de espera estava totalmente repleta de mulheres. O cara era lindo de morrer! Pelo menos 1,90 de altura, um cabelo castanho um pouco desarrumado, e os mais penetrantes olhos azuis para os quais ela já tivera o prazer de olhar.

Josh cutucou-a bruscamente com o cotovelo.

– O que houve? Oh, sinto muito, dr. Blair. Você me perguntou alguma coisa?

Trocando de cadeira, a sra. Stevens limpou a garganta e tentou se concentrar no que o médico dizia, em vez de olhar fixamente os profundos olhos azuis dele.

O médico sorriu, um sorriso lento, indolente, que iluminava seu rosto inteiro. Então, ele pegou a caneta antes de abrir a ficha de Josh.

– Como posso ajudá-los hoje? – repetiu, olhando da sra. Stevens para Josh, depois voltando novamente para a sra. Stevens.

Reunindo sua compostura, a sra. Stevens se inclinou sobre Josh e afastou o cabelo dele do rosto.

– É a pele, dr. Blair. Espinhas, sabe, em grande quantidade...

– Nem são muitas, mãe – Josh corou, embaraçado. Ignorando-o, a mãe continuou: – Elas podem ficar muito pior que isso, e às vezes o rosto inteiro é afetado. Eu só gostaria de saber se existe algum creme que você poderia recomendar que ele usasse, diferente daquele que ele tem usado atualmente. Ele pode ser um pouco sensível, você sabe, na idade dele, começa a se interessar pelas meninas, embora fingindo o contrário, não é mesmo, filho?

Ela sorriu e piscou para Josh, como se compartilhassem algum tipo de segredo especial. Era isso. A suprema humilhação. Josh queria morrer. Para começar, a mãe ficou toda boba para cima do novo médico, depois teve que sentar ali para expor todas as espinhas dele, e agora revelava o novato que ele era com garotas! Josh corou até os ossos, sabendo que aquilo só fazia as espinhas se destacarem ainda mais, como pústulas vermelhas e irritadas agrupadas em conjunto em sua testa.

O médico se levantou e foi olhar mais perto, embora Josh achasse que ele poderia perfeitamente ter visto muito bem do outro lado da mesa, tão grandes ele imaginava que suas espinhas agora pareciam. Ele se curvou e examinou atentamente a testa do mortificado garoto.

– Ah, sim! – ele resmungou. – Apenas uma forma leve de acne. Nada que possamos tratar aqui.

Acne... pensou Josh. Acne! O velho dr. Feldman não tinha dito que era acne. Apenas algumas espinhas de adolescente, ele disse. Não acne! Que coisa horrível. Ele não podia contar isso aos colegas. E se Karen descobrisse? Ela nunca sairia com um garoto com acne, herói do basquete da escola ou não! Precisava manter isso em total segredo.

Ele virou-se para ouvir o que o médico dizia, ao mesmo tempo em que fazia para si mesmo a promessa silenciosa de jamais comer chocolate, e nem tomar bebidas gaseificadas novamente, nunca mais!

– Nem precisa ir até a farmácia. Eu tenho uma pomada já pronta aqui, sra. Stevens – disse o dr. Blair. Ele pegou um pequeno pote de pomada clara na gaveta e colocou-o sobre a mesa de trabalho na frente do garoto.

– Aí está, Josh. Basta esfregar isso nas espinhas toda noite antes de deitar e logo você sentirá a diferença, isso eu posso lhe garantir.

A sra. Stevens pegou o pote e o colocou na bolsa. – Muito obrigada, dr. Blair, foi muito gentil. Devemos marcar outra consulta de retorno, quem sabe, só para ver como ele está progredindo?

Ela colocou a cabeça de lado quando se levantou, e a voz parecia boba e sibilante quando ela falou. Josh queria estar doente. A mãe paquerava o médico! Era a mais completa confusão. Ela sempre fazia esse jogo de cabeça-de-lado e voz-um-pouco-sibilante quando gostava de alguém. Já tinha visto aquilo antes e toda vez ele queria sumir.

– Não deverá ser preciso, acredito que não – respondeu o médico. – Mas se sentir necessidade de outra visita, nesse caso, então, sim, ficarei encantado de vê-los.

Ele abriu a porta e novamente apertou a mão da sra. Stevens.

– Foi realmente um prazer – ele disse. – A gente se vê novamente dentro em breve.

– Obrigada, dr. Blair, eu lhe agradeço – a mãe cumprimentou quase tropeçando em um brinquedo deixado no chão da sala de espera. Recuperando o equilíbrio, ela sorriu agradecendo mais uma vez e eles se retiraram.

“Todo mundo vai pensar que ele realizou uma cirurgia de coração que salvou a minha vida no consultório, do jeito como ela se comportou” – Josh pensou quando também saiu da sala.

– Espinhas, Josh? – o médico falou baixinho. Josh virou para olhar para ele. – Você ainda não viu nada...

Em seguida, pressionando a campainha, pediu para o próximo paciente entrar.

– O que foi que você disse? – perguntou Josh, que imaginou estar ouvindo coisas.

Com um rosto de pedra agora, o sorriso galanteador bem distante, o dr. Blair espiou o garoto de relance.

– Feche a porta, foi o que eu disse. Está causando uma corrente de ar.


Capítulo 5

Diferença Espinhosa

Josh arremessou um miolo de maçã na lixeira. Em sua mente, ele resolveu firmemente que estava virando uma nova página. Nunca mais comida cheia de calorias, e aplicação de pomada toda noite. Estava decidido a se livrar de uma vez por todas das espinhas, e determinado a jamais fazer outra visita ao consultório do dr. Blair. Aquele dia tinha sido a suprema humilhação para ele, e se a mãe quisesse ver o bom médico novamente, teria que ir por conta própria.

Josh seguramente não queria ser acompanhado por ela, com certeza. E aquela observação final, isso sim foi estranho. Ele não sabia se estava imaginando coisas ou não, mas mesmo que tivesse imaginado as palavras de despedida do médico, seguramente não imaginara aquele olhar no rosto dele.

“Uma mudança completa de quando minha mãe estava por perto” – o garoto pensou quando abriu a tampa do pote e enfiou o dedo na pomada. – E vamos nessa, então – disse ao reflexo quando começou a esfregar o creme na testa. – Quanto a você, dr. Blair, faça o pior!

Ao pular da cama na manhã seguinte, calou a voz de Bart Simpson do despertador. Bocejou sonolento e se aconchegou de volta sob os cobertores.

“Só mais dez minutos” – pensou, como fazia todas as manhãs, sabendo muito bem que a mãe o acordaria se não aparecesse para o café a tempo.

Escondido feito uma lagartixa embaixo do acolchoado, ele se permitiu acordar lentamente, deixando que os pensamentos do que prometia aquele dia fluíssem em sua cabeça.

– Sábado – ele pensou feliz.

– Entregar jornais, depois voltar para um enorme café, daí encontrar Simon e o resto da turma para matar o tempo no shopping. Talvez até espiasse Karen por lá, se tivesse sorte. – Espiar... Espinhar! – associou, de repente alerta. Tinha esquecido do creme de espinha. Queria saber se tinha funcionado. Pulou para fora da cama, tropeçando e fazendo a mãe engasgar na mesa do café no andar de baixo, e correu para o espelho da penteadeira para dar uma olhada.

Respirou fundo. – Caramba! Não posso acreditar nisso. Não, não! – berrou.

– Mãe, vem cá, você tem que me ajudar. Mãe, venha depressa, por favor.

Babs Stevens subiu dois degraus da escada de cada vez. Ele devia ter caído quando ela ouviu o estrondo, e ela achou que ele estava apenas querendo chamar a atenção como de costume.

Senhor, ele provavelmente rachou a cabeça na mesa de cabeceira!

– Josh – ela voou para o quarto. – O que foi, querido, o que há de errado? – Ela parou onde estava. O garoto parecia bem, ajoelhado na frente do espelho da penteadeira sem um arranhão visível.

– Josh Stevens – ela advertiu, sentando na beira da cama dele para recuperar a respiração. – Quase me matou de susto! Pensei que algo estivesse errado, que você tinha caído e se machucado...

– Deu errado! Deu errado! É claro que há algo errado. Veja o meu rosto, ou o que sobrou do meu rosto. Conhece a expressão: não é possível ver as árvores no meio da floresta? Pois bem, que tal: não é possível ver o rosto no meio de tantas espinhas!

A sra. Stevens olhou o filho mais de perto. – Oh, sim – ela concordou. Sei o que você quer dizer. Tem um pouco mais nesta manhã. E isso na ponta do seu nariz é mesmo pus verde ou amarelo?

Ela se curvou para a frente para tocar no rosto de Josh e ele afastou-a rapidamente.

– Não toque nelas, mãe, você vai espalhá-las ainda mais. – Ele virou-se de novo para o espelho, horrorizado.

– Um pouco mais! Bem, essa foi a subestimação do século. O enxame de bolhas vermelhas de ontem agora se multiplicou, e não só a testa foi afetada. – Eram algumas isoladas nas bochechas, uma terrível na ponta do nariz, e as da testa haviam dobrado de tamanho e alternavam-se com bolsões cheios de pus verde ou amarelo. Ele simplesmente não podia acreditar no que via.

– Não posso sair desse jeito, mãe. As crianças vão tomar um susto, os cães e os gatos vão fugir apavorados, meus amigos não podem querer serem vistos comigo, e se eu encontrar a Karen?

Horrorizado com a perspectiva de dar de cara com a garota que ansiosamente almejava ver de frente apenas poucos minutos antes, Josh balançou a cabeça consternado. A mãe se aproximou para dar- -lhe um tapinha de consolo nos ombros.

– Josh, Josh, vamos com calma, agora. Não é tão ruim quanto você pensa. Depois de lavar o cabelo e secar a testa do jeito que faz normalmente, não vai parecer tão ruim, sinceramente.

– É esse novo creme – Josh disse aborrecido. – Eu jamais devia ter ouvido você e o novo médico. A minha pele não estava tão ruim ontem, e olhe para mim agora: parece que passei horas me maquiando para participar de um filme de Freddie Krueger!

A sra. Stevens reprimiu um sorriso e pegou o pote de creme.

– Ouça, Josh – ela disse com delicadeza. – Aqui diz de um lado do pote que pode levar a uma pior condição antes de qualquer melhora ser vista. Veja bem: precisa piorar antes de melhorar. Sua vó costumava dizer isso, não lembra?

– Claro, eu lembro – Josh disse irritado. – Só que eu achava que eram apenas histórias de gente velha.

– Bem, pode existir alguma verdade nisso – disse a mãe ao recolocar o pote sobre a penteadeira. – Olha, filho, tente ver o lado positivo da coisa. É sábado, certo? Você aplica o creme hoje à noite novamente e então vai ter o domingo inteiro para se lamentar pela casa parecendo espinhoso e sentindo-se horrível. Depois, você aplica o creme no domingo à noite e, pronto, na manhã da segunda-feira você vai se levantar para ir à escola com a pele mais limpa e mais sem espinhas do mundo. Então, você passa os dias piores no fim de semana em casa e os melhores dias de volta à escola com seus amigos onde realmente importa.

O garoto olhou para ela confiante. – Acha realmente isso, mãe? Acha que isso vai mesmo acontecer?

– Bem, tudo é possível, não é mesmo? – a mãe respondeu, escondendo os dedos cruzados nas costas. – Venha, vamos, você tem uma entrega de jornais a fazer. E sem reclamar! – E colocou os dedos nos lábios do filho, interrompendo seus protestos.

– Você não parece tão mal quanto pensa, querido, e, de qualquer modo, meio mundo ainda está dormindo. Vamos lá, tome um banho e saia. Vou fazer um enorme café para esperar você na volta, então, vá abrir o apetite!

Josh girou a torneira do chuveiro e começou a cantarolar uma melodia. A sua mãe estava certa. Ele teria o fim de semana inteiro para se livrar das espinhas, e a perspectiva de se livrar totalmente delas quase não podia ser expressa por palavras.

Talvez ele devesse aplicar o creme com mais fre- quência que apenas uma vez à noite. Sim, era o que ele devia fazer: aplicá-lo de poucas em poucas horas só para acelerar o processo continuamente. Ele deixou a água quente escorrer no cabelo e nas costas. Puxa, quase não podia esperar até segunda-feira de manhã.

Ao chegar no shopping mais tarde naquele dia, Josh ficou ao mesmo tempo surpreso e satisfeito de ver Charlie junto com Kevin e Simon por lá.

– Ei, Charlie! – chamou. – E aí?

Charlie virou em direção ao amigo e sorriu sem graça.

– Caramba, você está horrível! – afirmou Josh, consternado.

Ele também ficou. O rosto parecia mais fino, de certa forma seus olhos pareciam enterrados nas órbitas, e a palidez do rosto tendia inconfundivelmente para o lado cinza.

– Obrigado, Josh, você sabe fazer um cara se sentir melhor, com certeza...

– Sinto muito – disse Josh. – Eu não queria dizer que... É só que você normalmente parece...

Charlie segurou na mão do amigo para acalmá- -lo. – Está tudo bem, Josh, é sério, tudo bem! Eu sei o que pareço. Não é grande coisa, devo admitir. Mas não contem para a minha mãe que eu falei isso. Já foi uma missão muito difícil convencê-la a me deixar sair hoje...

Josh e os outros confirmaram que sim, acenando com a cabeça, compreensivos. Acima de tudo, sabiam como eram as próprias mães.

– De qualquer forma – Charlie continuou –, ontem foi horrível. Na verdade, fiquei tão mal ontem à noite que minha mãe me colocou no carro às pressas e me levou ao médico, esse cara novo, você sabe, o dr. Blair. Então ele me examinou e me deu uns sachês de umas coisas para eu tomar três vezes ao dia. Disse que resolveria. Estranhamente, porém, já tomei dois sachês hoje, mas posso dizer que estou me sentindo bem pior!

– Pois o que é estranho vem agora... – começou Josh. – Porque ontem eu também me consultei com o dr. Blair. Muito estranho, cara, eu pensei, não sabia se tinha gostado dele ou não, embora a minha mãe não pareça ter o mesmo problema.

– Oh, não, a sua também! – disse Charlie. – Eu queria vomitar no balde mais próximo do jeito que a minha mãe queria agradá-lo. Soltava o cabelo, fingia ser mais jovem, e nem conseguia parar quieta na cadeira.

– Sei exatamente do que você está falando – Josh concordou. – O tipo de comportamento que você espera de uma adolescente. Bem, de qualquer modo, esse dr. Blair me deu uma pomada para passar nas minhas espinhas, e disse para aplicar toda noite. Acontece que quando acordei hoje de manhã... – teve que parar.

– Charlie, está tudo bem?

– Estou bem, Josh – Charlie conseguiu falar entre os dentes, com o rosto se contorcendo de dor. – Eu só quero ir até o banheiro, só isso. Vou ficar bem.

Apertando o estômago, Charlie começou a se dirigir à escada rolante que o levaria aos banheiros localizados no andar inferior. Infelizmente, os rapazes foram atingidos pelo fedor de algum gás indesejável que escapou um pouco antes de Charlie mudar de direção.

– Ah! Cara... – disse Kevin, segurando o nariz dramaticamente. – Vamos dar o fora daqui.

Alguns ruídos altos também se desprenderam, vindos da direção de Charlie, quando ele tentou se apressar rumo à escada rolante.

– Vamos nos encontrar no quiosque de rosquinhas Donut – berrou Simon quando os três se afastaram. Virando para Josh, ele acrescentou: – Não é por nada, mas acho que sua mãe estava certa a respeito de você ficar longe do açúcar, Josh. Hoje o seu rosto está um desastre.

– Obrigado, Si! Que bom que eu posso contar com você para melhorar a minha autoestima sempre que preciso...


Capítulo 6

Mudança para Pior

Na segunda-feira de manhã, quando Simon chegou na casa de Josh, este enterrou a cabeça com firmeza embaixo dos cobertores e se recusou a descer ao andar inferior.

– Ele ainda está na cama, Simon – disse a sra. Stevens. – Suba para vê-lo se quiser.

– Obrigado, sra. Stevens, eu vou – disse Simon, passando por ela para subir a escada. A sra. Stevens recuou contra a parede. Que diabos era aquele cheiro?

– Simon, você pisou em sujeira de cachorro? Deixe-me ver os seus sapatos.

Simon parou e exibiu as solas de ambos os pés dos sapatos. Limpas. Afastando o rosto, ele murmurou: – Não são os meus sapatos, sra. Stevens, quem me dera que fosse...

Aconteceu novamente, o mesmo cheiro. Talvez viesse de fora. Ela abriu a porta maior para verificar, e Simon aproveitou a oportunidade para subir a escada rumo ao quarto de Josh, que ainda estava debaixo dos cobertores quando o amigo chegou.

– Vá embora, Simon. Eu não vou a lugar nenhum hoje, e nem pelo resto da minha vida por esse motivo. Agora eu realmente pareço alguma coisa que saiu de um filme de horror.

Simon sentou na cama ao lado do amigo.

– Sei exatamente o que você quer dizer, Josh. E acredite em mim, o melhor lugar que você poderia estar, neste momento, é debaixo dos cobertores e longe do cheiro do meu hálito!

Essa afirmação fez Josh se mover ligeiramente, embora não o suficiente para colocar a cabeça para fora do esconderijo. A voz dele saía abafada.

– O que você quer dizer com isso, Simon? Que cheiro é esse?

– Se eu mencionar o nome do dr. Blair, você vai entender o que estou querendo dizer.

Mais agitação embaixo dos cobertores.

– Minha mãe ia ao médico no sábado à tarde, e eu fui com ela, mais por curiosidade depois do que você e Charlie disseram a respeito dele. E vocês estavam certos sobre o sr. Perfeito, aos olhos da minha mãe pelo menos. Ela achou-o totalmente lindo e eu acredito que, a julgar pelo número de mulheres na sala de espera, metade da população da cidade também. De qualquer forma, ele tratou do problema da mamãe, e depois prestou atenção em mim: – E a respeito de você, rapaz, está com a saúde perfeita, ou há alguma coisa que eu possa ajudá-lo? – ele disse. Então, quando eu estava prestes a dizer que comigo ia tudo bem, a minha mãe se intrometeu e contou a respeito da verruga no meu pé. Quer dizer, eu tenho essa coisa há séculos, estou tratando por conta própria com pomada de verruga, e simplesmente não havia problema nenhum. Cá entre nós, porém, eu acho que a minha mãe só queria prolongar a visita e ficar mais tempo se babando para aquele cara.

– Quando contei a ele como estava tratando o meu pé, ele disse que tinha um remédio melhor e me deu um pequeno frasco de comprimidos: Tome dois desses por dia, ele me disse, e antes que perceba, o seu problema estará resolvido. Foi o que fiz, sábado e domingo. Mas, ontem à noite, comecei a reparar nisso, quer dizer, a sentir esse cheiro. – Ele suspirou entediado. – Vamos, Josh, coloque a cabeça para fora dos cobertores. Prometo que não vou rir. Tenho problemas mais sérios, pode crer.

Lentamente, Josh sentou na cama, revelando o rosto agora quase totalmente coberto por enormes espinhas vermelhas, amarelas e verdes. Simon deixou escapar um longo assobio.

– Uau, rapaz, com certeza ele fez um ótimo serviço em você.

Josh mergulhou de volta nos cobertores.

– Ei, Simon, você não estava brincando sobre o fedor. Será que pode abrir a janela, por favor?

Ofendido, mas compreendendo totalmente o pedido de Josh, Simon abriu a janela o mais rápido que pôde.

– Ok, Josh, está aberta. Assim o cheiro vai embora, e você pode sair daí de novo.

Josh tirou a cabeça para fora dos cobertores.

– Vá em frente, então – ele instigou –, e explique a observação com certeza ele fez um ótimo serviço em você. Exatamente o que você quer dizer com isso?

– É o dr. Blair, Josh, é isso o que eu quero dizer. Não pergunte o motivo, já que não sei a explicação, mas esse cara está querendo nos pegar. Você, eu, Charlie, olhe para nós. Cada um atormentado com algo horrível e embaraçoso logo depois de passar pelo consultório dele. O meu hálito está tão ruim que é quase como se tivesse transferido o chulé dos meus pés depois de pendurar os meus tênis após um jogo inteiro de basquete para a minha boca. A sua mãe pensou que eu tivesse pisado em alguma meleca, isso é muito ruim.

Josh não podia contestar isso. Apesar da janela totalmente aberta, ficou contente quando o amigo parou de falar e, portanto, de espalhar aquele cheiro ruim de mau hálito por toda parte no quarto. Logo ele também ficaria muito agradecido.

– E tem mais – continuou Simon. – Encontrei o Jones, o bichinho de estimação, o queridinho dos professores, no caminho para cá, e ele exalava cê-cê, cheiro de corpo, sabe. Ele até pode ser insuportável, mas nunca antes sofreu de cê-cê. E eu o vi no consultório do dr. Blair no sábado à tarde, então se isso não diz nada para você, nada mais vai dizer!

Josh balançou a cabeça incrédulo.

– Mas por que, Simon? Porque um médico quer pessoas doentes, em vez de tentar curá-las?

Simon deu de ombros – Não sei, Josh. Isso não faz o menor sentido para mim também. O que eu sei, porém, é que o nosso dr. Blair não é o gentil cavalheiro que nossas mães acreditam que seja. Enquanto elas estão desmaiando pelos cantos, o dr. Blair vai distribuindo todo tipo de poções estranhas que cause mais complicações do que alguém poderia imaginar. E ele tentou prender os meus dedos na porta quando eu estava saindo, mas fui mais rápido que ele.

Josh olhou para o amigo em dúvida. – Vamos, Si, isso é um pouco de infantilidade, não é mesmo? O médico tentando prender os seus dedos na porta?

– Sei o que parece, Josh – disse Simon, esquecendo de falar em direção à janela, e fazendo Josh cambalear contra a cabeceira –, mas estou lhe dizendo que ele fez isso. E o olhar no rosto dele na hora que eu estava me retirando não era nada agradável, posso lhe garantir.

Josh lembrou das palavras de despedida do médico para ele no final da consulta, quando imaginou que teria ouvido mal. E repetiu as palavras para Simon.

– Espinhas! Você ainda não viu nada... E, cara, ele estava mais certo que nunca! – disse Josh, dando uma olhada rápida em si mesmo no espelho. Os dois amigos sentaram em silêncio por uns minutos, cada qual com seus próprios pensamentos.

– Fala sério! – disse Josh afinal. – Minha mãe determinou que eu fosse à escola hoje. Ela está brincando... Então vamos fingir que estamos indo para a escola, mas vamos visitar o dr. Blair, e ver se conseguimos descobrir exatamente o que ele está tramando. Só vou tomar uma ducha rápida e saímos.

Assim que pulou da cama, a porta do quarto abriu, e Charlie e Kevin entraram. Charlie estava mais pálido que nunca e sentou-se bem devagar na cama. As muitas visitas dele ao banheiro haviam deixado suas partes baixas um tanto inflamadas, como a mãe dele disse. – Vermelho puro – era o mais próximo que Charlie conseguia descrever.

– Que cheiro estranho é esse por aqui? – e olhou para Josh. – Não sou eu! Acabei de chegar...

Simon virou-se da janela. – Acho que sou eu, caras, e receio que teremos de conviver com essas coisas até encontrarmos remédios para nossas doenças.

– Vou para o chuveiro – disse Josh quando saía do quarto.

– Vou deixar Simon colocando vocês a par do que estávamos conversando. – Quando ele passou pelo Kevin, parou para olhar mais perto. – O que é isso na ponta do seu nariz, Kev, um tumor?

Consciente no tocante ao novo furúnculo em desenvolvimento na ponta de seu nariz, Kevin acenou com a cabeça, confirmando.

– Rinite alérgica – ele disse. – Foi só por isso que fui até lá. Alguns comprimidos para rinite e, agora, olhem para mim!


Capítulo 7

Um Plano em Desenvolvimento

Os quatro rapazes seguiram rumo ao parque local, fazendo um longo desvio em torno da escola, esperando não serem notados pelos professores, ou pelos pais por causa disso. O funcionário do parque não pareceu se importar quando eles foram para a trilha. Como frequentavam o parque há anos, todos sabiam exatamente o caminho a seguir, e também sabiam que a trilha seria bastante segura para escapar de olhares indesejáveis dos curiosos. Sentaram-se de pernas cruzadas. Charlie fez uma careta quando se sentou ao lado dos amigos. Quando antes eles estariam caçoando do infortúnio dos amigos, agora tendo sido eles próprios atingidos estavam um pouco mais simpáticos.

– Ok, caras – começou Josh. – Temos que bolar um plano para descobrir exatamente quais são as intenções do bom médico. E para nos livrarmos dessas doenças. Eu quero dizer, olhem para nós: somos a turma mais estranha que alguém já viu. Embora ache que está tudo certo, Simon, seria bom você aprender a linguagem dos sinais para manter a boca fechada pelo resto da vida.

Simon arriscou um sorriso atravessado. – Sim, certo, Josh. Sei que isso é ruim. E quero resolver essa parada. Temos que descobrir o que esse cara pretende fazer, que tipo de mixórdia medicinal ele deu a cada um de nós, e se existe alguma forma de reverter o processo.

Os rapazes acenaram com a cabeça, confirmando que estavam de acordo.

– Ok – disse Kevin. – Eis o que eu acho que devemos fazer. Nem pensar em irmos até o consultório agora. Vocês sabem como fica movimentado durante o dia. Nós precisamos mesmo é ir até lá quando a clínica estiver fechada, entrar sorrateiramente de algum modo e ver exatamente o que acontece.

– Você tem razão – concordou Charlie. – Vamos ter que ir mais tarde, à noite, quando as coisas estiverem um pouco mais calmas. Quero devolver ao dr. Blair tudo o que ele fez, quero que ele pague por todo esse sofrimento.

– É o que vamos fazer então – disse Simon. – Só sei que se vamos ficar aqui o dia todo, vamos precisar de mantimentos. Ou vamos passar fome.

– Eu vou buscar – disse Charlie, aproximando-se. – De qualquer modo, tenho que ir ao banheiro, então vou até as lojas quando estiver fora, para comprar batatas fritas, suco de frutas, essas coisas.

Os garotos esvaziaram os bolsos e deram o dinheiro que tinham ao Charlie.

– Odeio ter que lhe contar, Kev – disse quando virou-se para sair –, mas acho que acabou de crescer outro furúnculo no seu queixo!

Então, depois de passarem o dia todo no parque, com o pobre Charlie fazendo frequentes viagens de ida e volta ao banheiro (de onde trazia relatos de ter visto adolescentes que ele conhecia das atividades esportivas com enormes orelhas couve-flor que não possuíam antes), os quatro rapazes deixaram as mochilas em casa, fingindo para as mães que tiveram um dia perfeitamente normal na escola. Encontraram-se novamente no topo da estrada que levava ao consultório e caminharam em silêncio rumo à clínica do dr. Blair.

A recepcionista atarantada acabava de sair, e de trancar as portas de fora, quando viu os rapazes se aproximarem.

– O doutor continua lá dentro? – perguntou Josh, ansioso.

– Sim, ele ainda está lá, mas acho que não vai atender mais pacientes hoje à noite. Ele teve um dia muito cansativo, como eu também tive. Talvez vocês, rapazes, possam voltar amanhã?

Simon não se importou. – Está bem, nada que não possa esperar. Vamos voltar outra hora, não é, caras? – e piscou conspirador para os outros.

A recepcionista sorriu e terminou de trancar as portas principais.

– Adeus então – ela disse, andando em direção ao carro dela.

Ela destravou a porta, sentou-se e verificou as solas dos sapatos cuidadosamente. – Estranho! – ela pensou consigo mesma. – Há um forte cheiro de sujeira de cachorro lá atrás. Poderia jurar que pisei em algo.

– A luz do consultório continua acesa – disse Kevin.

– É ele, provavelmente planejando mais horrores para as pessoas que o procurarem amanhã. Temos que descobrir um jeito de ir até lá.

Ao rodearem o prédio, os rapazes não acreditaram na sorte que tiveram de encontrar uma janela aberta.

– Rápido! – disse Josh. – Ajudem... Vou entrar e esperar que ele vá embora. Depois, vou vasculhar por toda parte e ver se não encontro nada. Vocês ficam aqui e vejam se descobrem qualquer coisa quando ele sair. Verifiquem se ele sabe que estamos atrás dele. Talvez se o colocarmos contra a parede ele entre em pânico e cometa alguma estupidez.

Os três amigos, depois de assistirem a Josh saltar dentro do consultório, caminharam pelas redondezas, conversando bobagens, chutando latas vazias aqui e ali, tentando de maneira geral se comportar normalmente como fazem os adolescentes. Eles caminharam ao redor, até a frente do prédio, e viram que agora a luz estava apagada no consultório do dr. Blair. Os três saracoteavam por ali, e se apoiavam no carro dele, parecendo despreocupados, quando o médico fechou a porta do consultório.

– Afastem-se do meu carro – ele advertiu logo que os viu. – Desordeiros. Soube disso no instante em que coloquei os olhos em vocês.

Aproximando-se dos rapazes, arreganhou os dentes para Kevin, ou para os furúnculos de Kevin.

– Vejo que está dando certo – ele disse, visivelmente satisfeito. – E Charlie, como tem passado? Ainda depende do banheiro, meu garoto? – Ao pegar as chaves do carro no bolso, ele murmurou quase para si mesmo: – Isso aí nunca me deixa na mão, sempre funciona que é uma beleza...

– Então você admite, não é mesmo? – perguntou Simon. – Fez isso conosco deliberadamente. Mas, por quê? Por que haveria de fazer uma coisa dessas?

– Ah! – o médico recuou. – Esse também vai bem... – ele disse, tampando o nariz e dando um passo atrás. – É realmente o pior mau hálito com que me deparo há muito tempo. Você não deve ser muito popular com quem gosta de bons aromas, não é, Simon?

Charlie puxou-o pela manga. – Você tem que nos dar alguma coisa para neutralizar esses efeitos, doutor, por favor. Não vê que estamos sofrendo muito?

Com desdém, o dr. Blair soltou a mão de Charlie da manga do paletó.

– Como se atreve a me tocar? – ele sibilou para o garoto. – E não me diga que eu tenho de ajudar você! Por que acha que fiz isso, afinal de contas? Gosto de ver o sofrimento de vocês. Acham que realmente vou estragar a minha diversão e reverter o processo? Não podem estar falando sério!

– Vamos contar aos nossos pais. Vamos denunciá-lo à polícia! – gaguejou Kevin, furioso.

O dr. Blair olhou fixo para o garoto.

– Kevin! Ah sim, a sua mãe está vidrada por mim, se me lembro bem, assim como a sua, Simon, e a sua, Charlie. Será que vocês realmente acham que elas acreditariam que eu faria alguma coisa para prejudicar esses preciosos adolescentes, especialmente atormentá-los com doenças tão peculiares quanto essas? Acho que não, crianças chatas e mal-educadas, mas eu posso dizer, de coração, que o efeito das poções vai passar, em poucos anos.

Ele riu, uma risada arrepiante que ficou suspensa no ar.

Depois de girar a chave na ignição, ele abriu a janela.

– Acreditem, rapazes, sou a prova viva disso. Eu costumava ser feio quando jovem, coberto de todos os tipos de bolhas e furúnculos, mas olhem para mim agora! As mulheres que sequer reparavam em mim quando adolescente, agora desmaiam no meu consultório! Calma, rapazes. Tirem o pé do acelerador – e olhou cada garoto, um por um. – Afastem-se, jovens, aceitem isso como um aviso. Eu posso mesmo me tornar desagradável, e, acreditem, vocês não vão querer ver isso...

– Se eu fosse vocês, simplesmente agradeceria esses pequenos incômodos. Eles não representam exatamente risco de vida, por enquanto! – ele riu novamente e pisou na tábua.

– Risco de vida! Risco de vida! Como ele se atreve! – explodiu Kevin.

– Calma – disse Simon, batendo nos ombros do amigo para tranquilizá-lo. – Vamos resolver essa coisa toda, não se preocupe. Mas temos que manter a calma, precisamos pensar direito. Venham, vamos ver se o Josh está bem. Talvez ele tenha encontrado algo que nos ajude.

Os três rapazes passaram perto da janela aberta, que, felizmente, o médico não tinha notado.


Capítulo 8

Curar ou Matar

Enquanto isso, Josh, lá dentro, havia encontrado alguma coisa. Encontrou vidrinhos e frascos que exibiam etiquetas que alegavam fazer coisas que iam além dos sonhos mais extravagantes.

Depois de saltar pela janela, ele descobriu que estava na pequena cozinha onde a recepcionista preparava suas agora raras xícaras de café, e furtivamente prosseguiu rumo ao consultório.

Como ainda havia um pouco de claridade do dia escorrendo pela janela, ele conseguiu ver as coisas claramente na sala. Tudo parecia normal. A mesa de trabalho diária do médico não exibia nada incomum, embora Josh tivesse alguma dificuldade para decifrar algumas anotações rabiscadas às pressas.

“Típico de médico” – ele pensou, sorrindo, atravessado. Aquele médico podia ser tudo menos típico!

Os arquivos de metal cinza alinhados nas paredes ainda estavam com as chaves nas fechaduras. Josh abriu as gavetas à vontade. – Archer, Black, Dixon – leu os nomes na gaveta de cima. Depois de fechar essa gaveta, ele puxou uma aberta no meio. A letra M e os Macs pareciam ocupar a maior parte do espaço nessa área, então ele foi para baixo. – Ramsay, Smith, Stevens... É isso! – E retirou a pasta: Josh Stevens, dizia na frente. Sim, ali constava o endereço, definitivamente era o arquivo dele. Puxou uma cadeira ao lado da mesa de trabalho do médico, abriu a pasta e começou a ler. – Mas só tem coisa velha – ele pensou.

Como a vez que levou pontos no joelho quando caiu da bicicleta (a mãe insistiu para retirar as rodinhas, embora ele dissesse que era cedo demais). Depois veio a vez que teve uma reação alérgica a uma nova marca de sabão em pó que a mãe comprara. Puxa, aquilo tinha sido horrível: ficou coberto de pintinhas da cabeça aos pés. Ele sentia comichões só de pensar naquilo! E, olha só, tinha até esquecido, a vez que empurrou um minúsculo tijolinho verde de Lego dentro do nariz, que o dr. Feldman removeu com pinças. Como já estava começando a gostar, recostou-se na cadeira e cruzou as pernas sobre a mesa de trabalho diante dele. Então ouviu um barulho.

– O que foi isso? – ele se assustou e se aprumou na cadeira. Depois, percebeu que aquilo que antes considerava apenas uma parede era na verdade uma porta de correr, uma porta que tinha sido impecavelmente coberta com papel de parede para disfarçar atrás dela um enorme compartimento reservado. Ele devia ter inadvertidamente acionado a tecla que abria a porta quando colocou os pés sobre a mesa. Ele levantou-se e caminhou rumo ao compartimento agora revelado.

Uau! A visão que se apresentou foi assombrosa. Quando andou ao longo do lado direito da sala (já que aquele ambiente merecia muito mais ser chamado de sala, pois era bem maior do que um simples cômodo), ele viu mais vidrinhos, frascos, garrafas e outros tipos de recipientes que alguém jamais poderia imaginar. Ao olhar de relance para o lado esquerdo, viu que pareciam quase idênticos. Estavam ambos arrumados em estantes. Os vidros na prateleira do alto eram os maiores, e estavam totalmente cheios de líquidos coloridos. Os recipientes na segunda e na terceira prateleiras eram um pouco menores, e novamente estavam cheios com líquidos de diferentes cores. Concentrando-se na parede do lado esquerdo, então, Josh notou que a prateleira final acomodava recipientes vazios, em lotes de diferentes tamanhos, alguns dos quais similares ao creme de acne que levou para casa.

– Então esse é o dispensário do médico – pensou Josh, olhando mais de perto os vidrinhos, todos etiquetados de forma muito clara e precisa. Os olhos dele percorreram a estante superior: Coceira Insuportável leu na primeira etiqueta. Solvente de Cabelo dizia o seguinte. Depois vinham Caspa Escamosa e Extremamente Grande, Diarreia Crônica, Mau Hálito, Incontinência (Josh arrepiou-se quando leu essa), Sovaco Fedorento, Tocos de Dentes Cariados, Espinhas Cheias de Pus Verde, Espinhas Cheias de Pus Amarelo, Cabelos Grisalhos Compridos e, finalmente, Tripla Combinação de Espinhas.

– É isso! – ele parou. – Tripla Combinação... Foi o que ele me deu!

Olhando rapidamente mais um pouco, Josh viu um cartaz grande acima das prateleiras que dizia AFLIÇÕES E PADECIMENTOS. Virando para o outro lado da sala, ele notou que o cartaz em cima dessas prateleiras dizia REMÉDIOS E MEDICAMENTOS. Os vidros na prateleira de cima também estavam etiquetados. Cabelo Brilhante e Macio, Movimentos de Evacuação Saudáveis, Bom Hálito, Dentes Brancos de Verdade, Pele Limpa e Perfeita. Ele parou a leitura e releu. Pele Limpa e Perfeita... O sonho virando realidade! Ele verificaria mais tarde. Por ora, no entanto, precisava se concentrar em tudo o que podia descobrir na sala.

Voltando para o lado de AFLIÇÕES E PADECIMENTOS, começou a ler as etiquetas nos vidros alinhados na segunda estante. Sarampo, Caxumba, Catapora, Coqueluche e assim por diante.

– Bem mais grave – pensou Josh, balançando a cabeça. – Esse dr. Blair realmente deve ser meio desequilibrado. Ele deve ter descoberto, de algum modo, o jeito de engarrafar essas doenças e depois passava o resto do tempo infectando o corpo dos adolescentes. Mas que demente!

Procurando a respectiva estante no lado de REMÉDIOS E MEDICAMENTOS da sala, ele viu seringas colocadas ao lado de vidrinhos que simplesmente tinham o nome da doença impresso na etiqueta, com a palavra vacina acrescentada embaixo. Um pouco mais ansioso agora, Josh estava quase com receio de olhar na terceira estante.

Ele engoliu em seco, e olhou para baixo. Primeiro leu: Paralisia Total ou Parcial. Josh empalideceu. Perda de Visão veio depois. Josh podia sentir a pele começando a formigar em volta do pescoço. Em terceiro lugar: Doença Terminal. Ele sabia, mesmo antes de olhar, o que veria quando olhasse na respectiva prateleira da mão direita. Ela estava completamente vazia.

Ouviu o ruído de alguma coisa ranger. O médico teria voltado e estava quase capturando Josh em flagrante, bisbilhotando no dispensário dele? Tentou se achatar contra a parede, na tentativa de acalmar a respiração.

– Josh? – ouviu chamar. – Josh, você está aí?

Aliviado, Josh soltou totalmente o ar dos pulmões. Era Simon, agradeceu aos céus por isso.

– Aqui, Simon, mas prepare-se para ficar chocado. Esse cara é um verdadeiro dr. Morte, não estou brincando. Você jamais acreditaria no que acabei de encontrar.

Simon entrou no dispensário, seguido de perto por Kevin e Charlie. Josh apontou os cartazes em cima de cada parede de estantes e deixou os rapazes lerem o que estava anotado em cada frasco, enquanto ele voltava para o consultório do médico para sentar-se tranquilamente na mesa de trabalho. Simon foi o primeiro a se juntar a ele, depois de ter visto tudo o que era preciso na câmara dos horrores na porta ao lado. Nenhum dos garotos falou nada, esperando, em vez disso, que os dois outros amigos absorvessem tudo o que tinham acabado de ver. Kevin e Charlie juntaram-se a eles logo depois.

– Sabia que o cara era esquisito – disse Josh –, mas eu não esperava descobrir tudo isso. – Visivelmente chocados, seus três amigos podiam apenas concordar com a cabeça. – Como alguém poderia fazer coisas tão terríveis assim? Quero dizer, o que ele pretendia fazer ao injetar moléstias em adolescentes, e depois se mostrar interessado em saber se eles realmente estavam doentes? Será que ele curava no último minuto ou será que ele simplesmente... – Josh não conseguia terminar a frase. Aquilo era muito horrível de contemplar. Os rapazes sentaram em silêncio, cada qual com seus próprios pensamentos separados. – Alguém tem alguma ideia, então? – perguntou Charlie. – O que vamos fazer?

Levantando-se e empurrando a cadeira de volta, Josh se aprumou. – Já sei! – anunciou, olhando determinado. – Vamos trocar as etiquetas, é isso o que temos que fazer. Vamos trocar as etiquetas para que da próxima vez que dr. Morte prescrever Tripla Combinação de Espinhas para alguém ele realmente esteja dando Pele Limpa. E da próxima vez que ele prescrever Caspa Escamosa e Extremamente Grande, ele na verdade estará prescrevendo Cabelo Brilhante e Macio. Vamos, caras, é melhor começar a trabalhar, temos muita coisa a fazer!

– Mas, Josh – o que faremos com a terceira estante? Não temos nenhum vidro para trocar... – disse Charlie.

– Eu sei, e já pensei nisso. Um de nós vai até o supermercado, que ainda deve estar aberto (e verificou no relógio), para comprar alguns frascos de corantes alimentícios. Vamos simplesmente jogar fora o conteúdo dos vidros e depois misturar os corantes alimentícios com água e preencher os frascos. Só precisamos realmente ter cuidado e verificar se o médico não suspeitou de nada.

Simon se ofereceu como voluntário para buscar os corantes alimentícios e, quando saiu pela janela, verificou com cuidado para ter certeza se ninguém o viu sair, pois os amigos haviam voltado ao trabalho. Eles executaram a tarefa em silêncio, removendo delicadamente cada etiqueta e afixando-a no novo local.

Antes de terminarem o serviço, Josh pegou quatro pequenos frascos e colocou-os com cuidado na mesa de trabalho. Pegou o maior recipiente, marcado Pele Limpa e Perfeita, e despejou apenas o suficiente para encher o primeiro frasco. Recolocou o recipiente grande sobre a prateleira, e então pegou o que marcava Bom Hálito e encheu um pote com aquilo também. Repetiu o processo duas vezes mais, enchendo os dois frascos remanescentes com remédios para Charlie e Kevin. Atarraxou as tampas dos quatro frascos, marcando cada um com detalhes do conteúdo, e colocou- -os em uma sacola.

Quando Simon voltou, a maior parte do trabalho estava pronto, e os rapazes, então, começaram a jogar fora o conteúdo dos vidros da terceira estante. Misturaram cuidadosamente os corantes alimentícios com um pouco de água, para garantir exatamente o mesmo tom antes de jogá-los nos vidros apropriados. Por fim, tudo voltou aos devidos lugares, e os rapazes se afastaram e inspecionaram a obra realizada.

– Bela jogada, rapazes, bom trabalho. Vamos ver o grande prejuízo que o dr. Morte pode causar agora!

Saindo do dispensário, Josh pressionou novamente a tecla sobre a mesa de trabalho e fechou a porta. Colocou sua pasta na devida posição na gaveta do arquivo, e então levantou a sacola contendo os remédios roubados. Ele e seus três amigos abriram a janela e se esgueiraram noite adentro.

Estava mais escuro agora, e os rapazes tiveram que parar sob um poste de iluminação, usando essa luz para ver as palavras apressadamente rabiscadas no topo dos frascos.

– Aí está, turma. Se eu fosse vocês, começava a tomar assim que chegasse em casa. É o que eu vou fazer. Na verdade, acho que vou tomar duas colheres de chá antes de ir para a cama – disse Josh.

– Sou capaz de tomar o pote inteiro hoje à noite – disse Simon. – Qualquer coisa, faço qualquer coisa para me livrar desse fedor.

Charlie e Kevin sorriram e pegaram seus frascos com Josh.

– O que você acha que vai acontecer – perguntou Kevin – quando ele começar a perceber que as pessoas não estão mais ficando doentes?

Josh não se importou. – Quem sabe? Talvez isso demore um pouco a acontecer, mas por enquanto acho que fizemos bem.

– Sim, você tem razão, Josh – concordou Charlie. – Vamos para casa dormir um pouco. Estou acabado... E vamos chegar juntos de manhã para ver como nossos remédios estão progredindo.

Parabenizando-se eles próprios pelo que tinham conseguido fazer, embora ainda ansiosos para saber o resultado final, os rapazes cansados se despediram e pegaram o caminho de volta para casa.


Capítulo 9

Volta à Normalidade

– Está vendo, o que foi que eu falei? – disse a mãe de Josh quando desceu ao andar de baixo na manhã seguinte para o café. – Piora antes da melhora. A sua avó e o dr. Blair estavam ambos certos apesar de tudo.

Josh sorriu mostrando os dentes, parando novamente para se admirar no espelho. A pele dele, embora não totalmente limpa ainda, parecia a três quartos do caminho para estar curada. Ele ainda tinha algumas bolhas vermelhas na testa mas, mesmo assim, parecia e sentia-se ótimo.

Ao encontrar com os rapazes mais tarde naquela manhã a caminho da escola, descobriu que eles também estavam progredindo bem de volta à normalidade.

– O melhor remédio que o médico já receitou! – anunciou Charlie.

Poucas horas antes, o dr. Blair tinha chegado em seu consultório. Ele sempre passava por lá no início da manhã, bem antes da recepcionista e dos pacientes, e foi direto ao dispensário. Depois de trancar a porta do consultório, removeu vários frascos do dispensário, colocando-os com cuidado em uma fila ordenada em cima de sua mesa de trabalho. Em seguida, pegou uma pequena colher na gaveta, desatarraxou a tampa do primeiro pote e engoliu uma colherada. Fez o mesmo com o segundo pote e repetiu o processo por todo o caminho abaixo da linha. Se os rapazes pudessem tê-lo visto agora, eles ririam às gargalhadas ao verem o “bom” médico prontamente engolir seus padecimentos e aflições.


Capítulo 10

O Doutor Nojo

Era de Inglês, a última aula da sexta-feira à tarde. Um mês havia passado desde os eventos ocorridos no consultório, e os quatro garotos estavam completamente curados. O sol brilhava pela janela da sala de aula e, enquanto os garotos ouviam a professora resumir a cena final de Macbeth, Simon empurrou um bilhetinho para Josh.

“O que vão fazer hoje à noite?” – Josh sorriu antes de escrever: Encontrar com a Karen às sete para ir ao cinema. Você e a Cindy estarão lá?

Antes que Simon tivesse tempo de rabiscar a resposta, o sinal tocou e os dois garotos agarraram livros e mochilas antes de saírem correndo alegremente para fora da sala, rumo ao sol de verão.

A recepcionista tomou outro gole de café e foi virando as páginas do jornal até os classificados de empregos. Foi surpreendida pela campainha e suspirou.

– Sim, dr. Blair?

– Poderia trazer o meu café? – disse ele, ríspido.

– Com certeza, doutor.

Levantou da cadeira e andou até a cozinha. Colocou um pouco de café e uns biscoitos em uma bandeja e caminhou para a sala do médico. Ela sempre temia essa parte. Respirando fundo, bateu duas vezes à porta, girou a maçaneta e entrou. O fedor a atingiu assim que abriu a porta. O doutor, sentado atrás de sua mesa de trabalho, mal lembrava o polido e sofisticado dr. Blair com quem ela originalmente foi trabalhar. O homem agora sentado atrás da mesa de trabalho era totalmente calvo, os olhos embaçados e sem vida, e seus dentes, outrora brancos e alinhados, estavam reduzidos a pequenos tocos marrons. Ele parecia ter encolhido no tamanho, e parecia muito mais magro do que tinha sido antes. “Provavelmente devido às frequentes visitas ao banheiro” – pensou a recepcionista enquanto colocava o café na frente dele. “O pobre homem parece estar sofrendo um surto de diarreia crônica.”

Ele murmurou um agradecimento e ela deixou a sala. Realmente precisava encontrar outro emprego logo, pensou enquanto lentamente voltava à recepção passando pela sala de espera vazia. Não havia nenhum paciente há semanas, e de quem seria a culpa? A mudança do doutor em tão curto espaço de tempo era inacreditável.

Ele parecia horrível, tinha um cheiro horrível, e estava tão rude em suas maneiras que assustava as pessoas. Ela se sentou e começou a digitar: Prezados Senhores. Estou escrevendo em resposta aos seus recentes anúncios...

O dr. Blair pressionou a tecla em sua mesa de trabalho e lentamente caminhou para o dispensário. Ele destampou um pote etiquetado Cabelo Brilhante e Bem Condicionado e avidamente engoliu uma grande colher de chá. Parou para coçar o rosto, quando as unhas sujas acidentalmente acertaram uma espinha, fazendo com que pus verde jorrasse e escorresse pelo rosto até cair no colarinho. Levantando o pote etiquetado Movimentos de Evacuação Saudáveis, pensou em voz alta.

– Se eu tomar duas colheres de chá hoje, talvez ajude...


Capítulo 11

O Retorno do Doutor

Dr. Blair estava de volta ao trabalho depois de se recuperar do que considerou como um desarranjo grave na barriga. Mas, como pegou isso?

Não tinha comido nada arriscado. Não tinha visto nenhum paciente com esse tipo de coisa. Ficava pensando no armário secreto. Será que suas poções tinham perdido o efeito?

Ele as estudou. Coçou o queixo. Hum. O que é isto? Segurou uma garrafa contra a luz. Parecia gosmento e repulsivo.

Pois bem, mais uma vez, era assim mesmo que devia parecer.

Espere aí: uma mancha na etiqueta! Acontece que o dr. Blair sempre vestia luvas especiais quando colocava alguma coisa nos frascos, por motivos óbvios. Então, havia uma adulteração ali!

“Ok” – ele pensou. “Então Josh, Simon e o resto estavam um pouco melhores do que deveriam...” – Em vez de ficar zangado ou com medo, ele sorriu realmente saboreando o desafio.

“Então” – ele pensou –, “esses garotos querem brincar, não querem?”

Com isso ele se preparou para trabalhar em novas fórmulas, para novas poções. Fazia muito disso ultimamente, tentando se livrar das doenças que agora entendeu que eram causadas pela troca de rótulos e frascos feita por Josh e seus colegas.

– Engenhosos! – ele murmurou para si mesmo, impressionado pela astúcia deles. Quem sabe talvez trabalhassem para ele algum dia...

– Ah, rá!

Ele conseguiu! A nova poção...

Olhou para todos os seus trabalhos em seus apontamentos, impressionado com a própria inteligência.

– Sou mais que um adversário para essas crianças intrometidas de nariz ranhento! Com quem pensam que estão lidando?

Mas não cometeria o erro óbvio de dar a poção a eles. Não! Eles deveriam esperar por isso. Talvez tivessem até preparado antídotos. Afinal, eles tinham revistado minuciosamente todo o material secreto, então, quem poderia saber o que eles sabiam?

“Então, o jovem Josh teria um encontro na semana que vem, não é?” – pensou o dr. Blair, lembrando-se de uma conversa que teve com a mãe de Josh.

“Sabe o que eu acho? Acho que a garota desse encontro é uma gracinha. Aliás, eu acho que ela gostaria de se sentir superespecial nessa noite. Um encontro é um encontro e uma garota tem que cheirar o melhor perfume possível, ainda mais agora que a acne de Josh parecia ter sumido.”

“Que tal essa nova linha de perfumes que eu desenvolvi?” – pensou o diabólico doutor. – “Aposto que ela vai adorar...”

Fez um repasse mental para verificar se teve algum motivo para ligar para a mãe de Karen. Ele se esforçou para descobrir o número do telefone. Deu-o à recepcionista e orientou-a para ligar para a mãe de Karen Summers e outras da mesma rua, para dizer que a enfermeira precisava fazer uma inspeção de saúde nas famílias da área devido às estranhas falhas que pareciam estar ocorrendo por toda parte.

Bastante seguras, as crédulas mães obedeceram cegamente e levaram as famílias junto. Isso o ajudou a novamente ser considerado o médico de melhor aparência na cidade, agora que tinha recuperado o visual!

– Ah, sra. Summers. Encantado de vê-la. Espero que essa inspeção não a tenha incomodado muito, mas acho que precisamos tentar ir fundo em todos os surtos dessas moléstias horríveis e embaraçosas que parecem estar nos infestando.

– Sim, doutor, de acordo – disse a sra. Summers.

– E quer saber de uma coisa? O mais estranho é que até você chegar, não tínhamos problemas dessa natureza por aqui. Desculpe. Sinto muito doutor, se nem tudo saiu direito, não é?

– Não tem problema nenhum, sra. Summers. Agora, vamos verificar algumas coisas. A Karen tem sido um pouco temperamental ultimamente?

– Não! De modo algum...

– Compreendo. Era o que eu imaginava. Veja, a questão é essa sra. Summers, se uma garota na idade dela não é temperamental, então algo deve estar errado, não concorda? – o sorriso dele era envolvente.

A sra. Summers acabou proferindo palavras que sequer faziam sentido para ela, como: Sim, doutor. Você tem razão. Entendo o que quer dizer. Bem, que mal haveria em concordar com um médico?

– Então, sra. Summers, recomendamos o novo tratamento de aromaterapia que pode fazer a diferença. É como um perfume, mas é natural. Por favor, leve esta amostra grátis. Poderia testar para mim?

– Aqui tem um vidrinho para você – e ofereceu uma substância inofensiva, com um cheiro levemente agradável. – E este aqui é para a Karen – e ofereceu um vidrinho que parecia o mesmo, à primeira vista, inclusive com o mesmo cheiro. Mas a semelhança terminava aí...

– Não sei como agradecer, doutor. Foi muito gentil. Em breve Karen terá um encontro e então ela vai ficar realmente muito grata!

“Não por muito tempo” – pensou o dr. Blair. Não que ele se importasse. Depois de se vingar de Josh, ele desapareceria para sempre. E se a cidade já achava que sofria uma minipraga, então não tinha visto nada ainda!


Capítulo 12

O Encontro de Josh

Josh esperou Karen na cafeteria. Seria o terceiro encontro deles e o primeiro a sós, sem Simon e Cindy. Josh vinha se preparando todo dia em grande estilo. Agora, pela primeira vez, estava um pouco nervoso com o encontro.

“Espero não cometer nenhuma asneira” – ele pensou e verificou o reflexo na janela. Calma, pelo menos não existiam espinhas para atrapalhar. Graças a Deus, o dr. Blair havia aprendido a lição e estava se escondendo. Ah! Agora a Karen estava chegando.

A voz interior de Josh começou a falar. – “Ok. Fica frio. Você é o cara. Cabe a você manter essa coisa ótima que estão tendo com maravilhosos comentários engraçados e anedotas divertidas. Mas e se eles acabarem antes de terminarmos nosso sorvete de chocolate? Pânico! Fica frio? Frio! Foi o que você disse. Isso mesmo. Você disse: fica frio. Nem afobado, nem preocupado, ansioso, mas frio, calmo, relaxado. Entendido? Ótimo.”

Josh continuou a papear com ele mesmo em sua cabeça, quando observou a garota de seus sonhos chegar.

– Oi! – ele disse, parecendo calmo.

– Oi! – ela respondeu.

Entraram. Josh imaginou ter sentido um cheiro meio desagradável. A porta fechou atrás deles, eles sentaram-se e pediram o sorvete de chocolate que estava no pensamento deles o dia inteiro. O verão estava realmente ótimo.

Mas, ainda, aquele cheiro. Ah! Céus, essa não! A voz interior de Josh entrou em pânico na cabeça dele. – ”Frio, nós combinamos! Nada de sofrer com sujeira de cachorro... Frio, apenas realmente fica frio. Ninguém precisa de sujeira de cachorro!”

Josh quase respondeu ao ser interior em voz alta, mas felizmente parou a tempo. No entanto, a perturbação interna por causa da sujeira de cachorro no sapato continuou. Por quê? O que mais poderia ser? Devia ser sujeira de cachorro!

– Bem... – disse Karen sorrindo.

Com suor escorrendo pela testa, Josh estava cada vez mais distraído pela própria estupidez. Por que não prestou atenção onde estava pisando? Justamente naquela noite, a noite de todas as noites!

– Bem, o quê? – ele respondeu, finalmente.

– Bem, o que você achou do meu novo perfume?

O perfume... O perfume dela! Que diabos, como ela podia falar de perfume com todo aquele turbilhão de aroma de sujeira de cachorro por toda parte, obviamente estacionado ao redor deles! Talvez ela estivesse com resfriado de verão ou algo assim. Como ela não sentia o cheiro? Calma, mesmo assim ele não podia dar bandeira.

– Ora, o perfume? Ah! Isso... É muito agradável.

– Sério? Estou tão contente. Achei que as pessoas estavam rindo de mim no ônibus quando vim para cá. Tinha certeza de que não gostaram dele. Era isso ou então alguma outra coisa os incomodava. De qualquer forma, ainda bem que você gostou. E é isso que importa. Aqui está, experimente um pouco.

Karen pegou um frasco da bolsa e enfiou-o no nariz de Josh. Era o frasco de perfume. Ela o destampou e ofereceu para ele inalar. Mas Josh se afastou, pois era repugnante, igual a sujeira de cachorro, mas muito pior que isso! Sujeira de elefante! Ele se sentiu doente. E logo percebeu que Karen, o perfume da Karen, estava empestando o lugar! Mas como não sabia? Outras pessoas na cafeteria estavam agora olhando para eles. Alguns tapavam o nariz. Uma senhora que segurava o nariz de seu bebê esbravejou horrorizada com o cheiro! E lá estava Karen, a garota dos sonhos dele, sentada ali. O sorriso dela sumiu. Parece que ela queria saber o que estava errado com o perfume dela. E lá estava Josh, calmo e bem-educado, que teria de contar para a garota de seus sonhos que ela fedia feito um gambá! Sim, é melhor ficar frio, Josh...

Josh deu a notícia, sentindo que ela entenderia e talvez até lhe agradecesse. Só que ela não esperou para agradecer a ele. Ela apenas derrubou a cadeira quando se retirou indignada. Josh ficou sentado ali sozinho. Mas o cheiro havia desaparecido. As pessoas respiraram fundo novamente.

Mas, pobre Karen! Josh não conseguia entender aquilo. Por que ela era a única pessoa que não sentia o cheiro daquele perfume?


Capítulo 13

O Doutor em Ação

Nesse exato momento, o dr. Blair entrou.

– Meu Deus, que noite adorável, não é mesmo, gente?

As pessoas reunidas continuavam a admirar o dr. Blair da mesma maneira que alguns reverenciam um líder religioso. Era quase como tirar o chapéu coletivamente para ele.

Josh estava passando mal. O que ele fazia ali? Tinha andado por baixo por causa de seus padecimentos, mas agora estava lá, cheio de felicidade. E a pobre Karen corria de volta para o ponto de ônibus, chorando. E Josh ali sentado, confuso. Aquilo não era justo, mesmo. Só então o dr. Blair cumprimentou Josh quando passou pela mesa dele.

– Noite agradável, Josh?

– Não! – ele rosnou.

– Bom! Lembre-se, não entre em disputas com quem é mais forte que você, rapaz!

E então ele retribuiu os cumprimentos, e conversou com os clientes.

Josh levantou os olhos, viu o “bom” médico sentado com algumas mães, e observou todo mundo sorrindo. Reconheceu uma das mulheres como a mãe de Cindy.

Todo mundo estava se divertindo em toda parte e então a mãe de Cindy exibiu um frasco, não diferente daquele que Karen tinha acabado de mostrar para Josh. O médico começou a ficar bravo. De fato, pôde ouvir o doutor dizer claramente: – Jogue isso fora, mulher! – A mãe de Cindy parecia desconcertada. Afinal de contas, quem era ela para perturbar aquele grande homem? – Sinto muito, doutor, eu apenas fiquei muito agradecida pelo perfume que você deu para mim e para ela. Na verdade, ela está usando o dela hoje no encontro com Simon.

A mente de Josh apenas estalou! Se o frasco de perfume que Karen mostrou foi dado a ela por aquele verme, então mistério resolvido!

Ele se levantou rapidamente e saiu correndo da cafeteria antes que o dr. Blair notasse. Mas o dono da cafeteria gritou: – Ei, Josh! Você não vai embora sem pagar, não é? Pague a conta, por favor!

A mente do dr. Blair também estalou! De repente ele entendeu o porquê da correria de Josh. E ficou imaginando como detê-lo sem parecer estranho. Josh jogou o dinheiro e correu para sair, mas ouviu a voz do dr. Blair chamar: – Ei, Josh, como está a noite?

A paciência de Josh tinha se esgotado para aquele cara. E ele queria alcançar sua garota para explicar que ela não havia feito nada de errado.

– Eu perguntei como está a noite... – repetiu o dr. Blair.

– Você sabe muito bem como está sendo a noite! – gritou Josh na cafeteria.

Os clientes se levantaram e um oh coletivo percorreu o local. O médico sentiu que era a luta final.

– Ah, eu devia saber? Sou um bom médico, mas não leio pensamentos, garoto!

Todo mundo riu, e murmúrios de: – Ah! sim, ele é um bom médico – puderam ser ouvidos.

– Mas eu sei que você é um químico!

– Como assim?

– Um químico. Você sabe, alguém que...

– Sei bem o que é um químico, filho. Mas caso você não saiba ler, o letreiro em cima da minha porta diz doutor e não químico.

– Qual porta? – perguntou Josh.

– O que você quer dizer com qual porta?

– Oh, eu achei que você poderia estar se referindo à porta secreta dentro do seu consultório, não à externa. Você sabe, aquele compartimento secreto?

Mas o dr. Blair não era bobo. Ele já havia estado nesse cenário várias vezes. Já havia passado a perna em muitas crianças, em muitas cidades, e não deixaria aquele moleque prestes a ficar espinhoso novamente embaraçá-lo. Blair conhecia todos os truques.

– Ah sim, o meu compartimento secreto. Por favor, conte. Como você poderia saber a respeito de uma coisa dessas, se é que existe? Acho que não.

Josh conseguia perceber a armadilha que o doutor acabava de armar habilmente, mas só que Josh não conseguia deter a si mesmo para não cair nela.

– Foi o que vimos na noite que invadimos aquele lugar.

O oh coletivo na cafeteria se tornou mais alto!

Aquilo estava mais perto de um drama no tribunal como o dr. Blair sempre desejou. Então ele realmente partiu para isso.

– Ah, vamos recapitular. Quer dizer que você entrou no meu consultório quando eu não estava lá?

– Sim – respondeu Josh, enrubescendo, ao perceber de repente que agora estava errado aos olhos da multidão na cafeteria.

Nesse momento o dono da cafeteria interveio: – E esse ladrãozinho também tentou escapar daqui sem pagar!

Josh sabia que era tempo de cair fora. O “bom” médico tinha aquele júri na palma da mão. E Josh precisava sair dali, a despeito de quanto incriminador esse fato pudesse parecer. Precisava encontrar Karen. E depois, teria de se esconder. Aquela noite prometia... “Sim” – disse a voz em sua cabeça –, “era só ficar frio!”

Josh foi obrigado a usar seus melhores movimentos de desvio de corpo, aprendidos nos esportes da escola, para sair da cafeteria, esquivando-se dos clientes que se achavam no direito de tentar detê-lo.

– Espere só a sua mãe ouvir a respeito disso, rapaz! – berrou alguém.

– Espere só a polícia ouvir a respeito disso, rapaz! – berrou Blair, sorrindo. Meu Deus, dessa vez ele teve um belo desempenho. Josh tinha muito a aprender sobre como ser um cara malvado.


Capítulo 14

Karen Entende a Situação

Josh estava na rua. Nenhum sinal de Karen no ponto de ônibus. Ele perguntou a um casal que esperava o ônibus se tinham visto uma garota por ali há pouco.

– Sim, ela estava chorando. Perguntou se estávamos aqui há muito tempo, eu disse que o ônibus ia passar em alguns minutos, mas mesmo assim ela foi andando – disse a moça.

– Em qual direção?

Josh correu na direção que a moça apontou. Alguns minutos depois, a mesma moça viu um homem correndo até ela, sem fôlego. – Em qual direção? – ele respirou fundo e a moça apontou na mesma direção.

Josh finalmente alcançou Karen. Ela estava sentada em um banco de jardim. Não estava chorando agora, mas era óbvio que tinha chorado antes. Seus olhos estavam vermelhos.

Mas pelo menos ela não fedia como antes. Ele notou o frasco de perfume na lixeira ao lado do banco.

– Sinto muito, Josh.

– Por quê? Não foi culpa sua. Na verdade, foi minha. – Ele sentou-se ao lado dela, ignorando que, atrás dele, um homem o seguia da melhor maneira que podia, pois como estava fora de forma, ele era lento para acompanhá-lo.

– Como pode dizer que a culpa é sua?

– Olha, você não vai acreditar em mim. Mas sabe aquele dr. Blair? Ele deliberadamente lhe deu um perfume fedorento para boicotar o nosso encontro. Veja bem, não é a você que ele odeia, mas a mim!

Karen olhou para ele com uma notável falta de surpresa.

– Aquele verme! A minha mãe se derrete toda vez que o nome dele é mencionado. Ele é apenas um impostor barato.

– Você... Você sabe? Mas, como você sabe?

– Entendi tudo quando ele olhou para o perfume. E então comecei a pensar em todas as coisas erradas que vinham acontecendo com as pessoas. Elas estavam bem antes de irem ao médico. Em seguida, ficavam doentes. Nunca fedi a sujeira de cachorro antes, e então ele me deu o perfume e de repente eu estava com esse cheiro repugnante. Isso não é nenhum mistério, não é mesmo? Mas o problema é que os adultos jamais vão acreditar em nós.

– Eu sei. Na verdade, graças a ele, agora estou na lista dos mais procurados da cidade. Eu ficaria surpreso se não estiver sendo caçado por uma multidão querendo me linchar. Olha, até a cidade saber, o que talvez nunca aconteça, temos que nos manter fortes, você, eu, os rapazes, Cindy. Nesse meio tempo, em que ponto mesmo foi que interrompemos o nosso encontro?

– Bem, eu acho que você estava pensando em me dar um abraço...

– Será? Meu Deus, nem sei se teria coragem para tanto... Já estávamos assim? Bem, vamos ver se podemos retomar a partir daí!

Karen olhou por cima dos ombros de Josh e disse: – Com certeza podemos sim, embora talvez você seja linchado assim que a multidão chegar!

E com isso, ambos levantaram-se para correr. Mas não havia nenhuma multidão, apenas um homem, o que havia seguido o garoto até o ponto de ônibus e depois prosseguiu na direção apontada pela moça que lá estava. Josh imediatamente pensou que poderia ser o dr. Blair, correndo atrás dele com alguma poção obscena ou algo parecido. Mas não era o médico. Talvez fosse um cliente indignado da cafeteria, esperando capturar o jovem jogador para entregá-lo à mãe, e denunciá-lo como alguém que havia arrombado o consultório do médico. Josh parou, decidido a enfrentar tudo o que aconteceu com dignidade. Preferia ter seu dia no tribunal, logo. – “Isso mesmo” – disse a voz interior, dessa vez sem sarcasmo –, “fica frio, muito frio!”

O homem os viu e voltou a correr novamente até alcançá-los.

– Espere aí!

Mas o garoto já esperava, e disse: – Sim? O que você quer?

O homem correu até ele e levantou as mãos para o alto. – Relaxa, rapaz, relaxa. – Era óbvio que o homem queria apertar a mão de Josh, que agradeceu.

– O que está acontecendo?

– Eu estava na cafeteria. Hoje à noite eles odeiam você, mas amanhã cedo, você será um herói!

– Não entendo!

– Pois é, nem nós. Até a sua cena na cafeteria! Sinto muito – disse o homem, sem fôlego, ofegante. – Quero me apresentar... Sou o inspetor Crook, da polícia. Estamos na pista desse sujeito há anos. Mas ele continua alterando a aparência, a identidade, tudo! E sempre que descobrimos é tarde demais, pois ele muda para uma nova cidade, deixando para trás um rastro de devastação. Estávamos chegando cada vez mais perto e hoje à noite ouvimos o que precisávamos ouvir na cafeteria.

– O que foi então? – perguntou Josh perplexo, intrigado.

– O compartimento secreto. Normalmente, os consultórios dele incendiavam um pouco antes de ele sair da cidade. Mas cá estamos nós, desta vez um pouco antes de ele planejar sair, e temos uma testemunha do fato de que existe um compartimento secreto no consultório dele: você! E tudo o que precisamos fazer é levar você até lá. E então vamos denunciá-lo. Os meus colegas o prenderam na cafeteria. Eles tiveram que usar a força para retirá-lo de lá, pois todos os clientes gostam dele!

– Conte-nos tudo a respeito disso! – disseram Karen e Josh ao mesmo tempo.

– Com prazer, meninos, mas preciso que você, Josh, nos mostre onde fica o estabelecimento do diabólico doutor.


Capítulo 15

Quem Ri por Último...

Uma hora depois, Josh, o inspetor Crook e dois colegas dele, estavam no compartimento secreto. Mas o local estava vazio!

– Ele deve ter sido avisado! – lamentou o inspetor.

Nesse momento, um policial chegou trazendo um café para os detetives.

– Ora, muito obrigado!

Todos engoliram o café. Em seguida, algo muito estranho aconteceu. O inspetor Crook colocou a xícara de lado, e disse para os outros que ainda estavam tomando os deles: – Ok, rapazes, vamos!

Assim que terminaram o café eles se escafederam. Josh e Karen se entreolharam, pasmos! Depois, correram atrás da polícia.

– Aonde vocês vão?

– Como? – respondeu Crook, acrescentando: – Ei, o que vocês, crianças, estão fazendo na rua até essa hora? Vão embora... Já para casa!

Josh e Karen se entreolharam. E então ambos exclamaram ao mesmo tempo: – O CAFÉ!!!

Eles correram de volta para o consultório do médico e só encontraram xícaras vazias, sem café. Pegaram as xícaras, sem cheiro de café em nenhuma delas! Eles se entreolharam novamente.

– Reparou aquele policial? Sabe, o que trouxe o café? – perguntou Josh.

Karen, olhou pela janela, e disse: – Não, mas ele está entrando no carro da polícia!

Correram para fora para ver o carro partindo. A mente de Josh estalou como havia feito na cafeteria. Ele bateu na janela do motorista. O carro estava cheio. Crook e os outros estavam dentro. O policial estava dirigindo.

– Pare! – gritou Josh.

O carro parou como Josh queria, mas dessa vez ele não tinha tanta certeza se era uma coisa boa de acontecer. A janela do motorista se abriu. O policial olhou para eles lá fora. E, sorriu.

– Não me pareço com ninguém? – perguntou, maldosamente.

– Blair! – gritou Josh.

– Policial Blair, para você! Agora, vocês, crianças, escutem bem: vou acabar com essa folga por aqui. Coloquei uma poção na água potável da cidade. Nada de pânico, é uma boa poção. Vai fazer todo mundo esquecer todo esse aborrecimento. Não acham isso uma coisa boa?

Uma voz no banco de trás perguntou como estava o assalto. Era o inspetor Crook. O policial Blair apenas olhou para Josh e Karen enquanto gritava para a parte de trás do carro: – Tomem todo o café, rapazes, tomem tudo, agora – e sorriu para eles.

– Vejam, pombinhos, fiquei com pena desta cidade triste e boba. Sempre acontece. Ninguém sai machucado, não é? Ninguém. Não mesmo. É apenas o meu jeito de ficar acordado em um mundo aborrecido. Mas vocês, garotos, me deram um susto. Não me importo com isso, fico animado. Estava para ser preso. Não sentia isso há anos! Então, o meu pequeno agradecimento a vocês é que ninguém vai lembrar de nada, e tudo poderá voltar a ser tedioso por aqui! Agora, Josh, não me diga que você não ficou nem um pouco animado de desafiar uma inteligência como a minha...

O garoto se calou. O médico estava errado. Pelo menos, Josh queria que ele estivesse. Karen também desejava isso. Em seguida Josh revidou: – Então, a cidade inteira esquece você. Estes policiais palermas aqui com certeza já esqueceram, graças ao seu café especialmente preparado, eu presumo. No entanto, você está esquecendo uma coisinha só.

– Ah! sim... – suspirou Blair, entediado, como se já soubesse o restante daquela conversa de trás para frente. Ele já tivera essa discussão com os Joshes e as Karens do mundo inteiro, muitas vezes, em muitas cidades, normalmente na mesma situação de agora, momentos antes de sumir com o pôr do sol, mais uma vez rindo dos trouxas que deixava para trás no espelho retrovisor da vida.

– Sim! Karen e eu vamos lembrar de tudo. Nós não tomamos nenhum café, não vamos beber a água da cidade, e vamos contar para todo mundo o que você acabou de confessar... Não tomamos nenhuma das suas poções de esquecimento!

A janela do carro começou a subir. Blair olhou para eles pela última vez.

– Gostaram do sorvete de chocolate da cafeteria? Pois bem, é uma das minhas receitas favoritas!

Ele sorriu e piscou. A janela se fechou por completo e o carro arrancou com a sirene ligada e as luzes acesas, deixando para trás Josh e Karen. Eles sentiam-se confusos, cansados, esquecidos.

 

 

 


Feliz Dia das Bruxas

Edgar J. Hyde


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Hyde, Edgar J.

Feliz dia das bruxas [recurso eletrônico] / Edgar J. Hyde; traduzidopor Silvio Antunha. - Jandira, SP: Ciranda Cultural,2021.

112p.; ePUB ; 532KB.–(Hora do espanto)

 

ISBN 978-65-5500-718-3(Ebook)

 

1. Literatura juvenil. 2. Ficção. 3. Terror.I. Antunha,Silvio. II. Título.III. Série.

2021-864 CDD-028.5
CDU 82-93

Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva -CRB-8/9410

 

Índices para catálogo sistemático:

1.Literatura juvenil028.5

2.Literatura juvenil82-93

 

 

© 2009 Robin K. Smith

Esta edição de Hora do Espanto foi publicada

em acordo com Books Noir Ltd.

Título original: Happy Halloween

 

© 2009 desta edição:

Ciranda Cultural Editora e Distribuidora Ltda.

Tradução: Silvio Antunha

 

1ª Edição

www.cirandacultural.com.br

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, arquivada em sistema de busca ou transmitida por qualquer meio, seja ele eletrônico, fotocópia, gravação ou outros, sem prévia autorização do detentor dos direitos, e não pode circular encadernada ou encapada de maneira distinta àquela em que foi publicada, ou sem que as mesmas condições sejam impostas aos compradores subsequentes.

 

Livro digital: Lucas Camargo e Gabriela Fazoli


Sumário
Feliz dia das bruxas

Começa a Preparação
Algo Sinistro
A Descoberta
Apresentando Kate
Esclarecendo o Caso
O Mago
A Fuga
Depois da Batalha


Capítulo 1

Começa a Preparação

Era quarta-feira de manhã e Samanta, Tiago e Mandy se preparavam para o sábado. Sábado era 31 de outubro, o Dia das Bruxas. Os três adolescentes passariam alguns dias fora, em uma pequena aldeia, e deveriam partir no dia seguinte, mas isso não os impediria de brincar de travessuras ou gostosuras, motivo pelo qual eles agora faziam suas fantasias, em vez de deixarem tudo para o último minuto, como nos outros anos. A escola estaria fechada para reformas urgentes nas próximas semanas, então eles queriam aproveitar ao máximo esse período de descanso.

Samanta (conhecida como Sam), a mais velha, tinha 13 anos e um chumaço de cabelo loiro indisciplinado. Mandy e Tiago eram gêmeos, mas pareciam muito diferentes entre si, já que Mandy era loira, de cabelos compridos até os ombros, e Tiago tinha cabelos castanhos claros e curtos.

– Eu realmente não sei que fantasia usar, não quero parecer idiota – suspirou Tiago.

– Não importa – respondeu Sam –, você parece idiota de qualquer maneira.

– Você é tão engraçada que até me dá vontade de gargalhar – retorquiu Tiago, sarcástico.

– Muito obrigada, Tiago – disse Sam, fingindo não ter ouvido o sarcasmo no tom de voz do irmão. – É que só de olhar para você eu já fico histérica.

– Calem a boca vocês dois – disse Mandy. – Estamos ficando velhos demais para fazer isso, então esse será o último ano em que ganharemos docinhos de graça.

– Bem, eu vou junto só para olhar os dois – acrescentou Sam.

– Não vai, não! – gritou Tiago, indignado. – Você vai com a gente, pois gosta de doces e coisas de graça tanto quanto Mandy e eu.

– Bem, quando eu não vou, você nunca me dá nada – disse Sam, na defensiva.

– Tanto faz – disse Mandy rapidamente, antes que os dois começassem a discutir de novo. – O que vocês dois vão vestir?

– Como já disse, eu não sei – respondeu Tiago.

– Só vou colocar um par de dentes de vampiro, e me vestir de preto – prosseguiu Sam. – Jamais me sujeitaria a brincar de travessuras ou gostosuras com uma máscara esburacada na cabeça.

– Eu estava pensando em algo assim, por isso, vou exagerar na sombra preta no olho – disse Mandy.

– Eu vou de Drácula. Vou colocar um pouco de tinta facial verde, vestir uma capa, colocar umas presas na boca e pentear o cabelo igual ao dele – disse Tiago.

Sam e Mandy olharam para ele com descrença. Por fim, Sam disse:

– Tem certeza de que quer brincar de gostosuras e travessuras sozinho?

– Como sozinho? Eu vou com vocês – retrucou Tiago.

– Não, vestido assim, não vai mesmo – disse Mandy com firmeza. – Pelo amor de Deus, você disse que não queria parecer idiota!

– Tudo bem, então. O que devo vestir? – perguntou Tiago.

– O mesmo que eu – respondeu Sam.

Tiago não se importou e disse:

– Tudo bem, se isso deixa você feliz, sua chata.

Foi só Tiago fazer uma careta que envolvia empurrar os dedos no nariz e botar a língua para fora, que a mãe dos adolescentes entrou na sala.

– Eu sempre digo para as pessoas que você é o mais charmoso da família, Tiago – ela disse.

Tiago ficou vermelho e tirou os dedos das narinas.

– Vocês já tomaram o café da manhã?

– Ainda não, mãe – retrucou Mandy.

– Eu estava mesmo pensando por que sentia tanta fome – disse Sam. – Vamos fazer nosso café da manhã.

– Certo! – disse Tiago – estou faminto.

– Bom, mas não façam bagunça – disse a mãe.

Na cozinha, no andar de baixo, os três adolescentes rapidamente pegaram as frigideiras e logo o delicioso cheiro de bacon subia no ar. Em pouco tempo, Sam, Tiago e Mandy estavam devorando ovos com bacon e torradas. Eles avançaram como corvos, e logo se sentavam nas cadeiras, de barriga cheia.

– Essa valeu! – disse Sam, satisfeita. – Nada como um bom café da manhã quentinho para animar alguém.

– É, nada como um bom café da manhã como esse! – retrucou Tiago.

– Você se acha engraçado, né? – disse Sam ao irmão. – Mas na verdade, você é muito, muito chato.

– Na sua opinião – respondeu Tiago.

– Então, o que faremos hoje? – perguntou Mandy mudando de assunto.

– Bom, primeiro eu vou arrumar as minhas roupas na mala, para o fim de semana – disse Sam.

– Tudo bem, então vamos todos fazer isso agora, enquanto pensamos no que fazer o resto do dia – retrucou Mandy.

Os três levaram apenas uma hora para fazerem as malas. Às onze e meia, estavam na sala de estar assistindo à televisão.

De repente, Sam deu um pulo e disse:

– Foi isso o que eu esqueci.

– O que você esqueceu? – perguntou Mandy.

– Os meus dentes de vampiro. Esqueci de colocar na mala. É melhor fazer isso agora ou esquecerei de novo.

Cinco minutos depois ela estava de novo no andar de baixo, segurando algo.

– O que é isso? – perguntou Tiago.

– São os meus dentes, acho que eles mofaram...

– Eca! – disse Mandy. – Como isso aconteceu?

– Tentei comer lasanha com eles no ano passado e esqueci de limpá-los – respondeu Sam.

– Você vai usá-los? – perguntou Tiago.

– Claro que não! – disse Sam. – Mas, se quiser, pode ficar com eles.

Sam jogou os dentes embolorados no colo de Tiago.

– Eca! – gritou Tiago, jogando-os em Mandy.

– Tiago! – berrou Mandy, atirando os dentes pela janela.

– Vocês vêm comigo para arranjar outros? – perguntou Sam.

– Agora não! – disse Tiago. – Você deve estar brincando. Vai começar Poderosos Ninjas Supersônicos!

– Vamos lá – insistiu Sam. – Você também pode conseguir dentes novos.

– Tudo bem. Eu vou pegar algum dinheiro e vamos embora.

– Também vou – disse Mandy seguindo o irmão e a irmã para fora da sala. – Não tenho nada melhor para fazer.

Ela fingia que já era adulta demais para fantasias, guerras de travesseiros, espumante de açúcar, bombas de fedor, pinturas e todo o resto. Mas, enquanto os outros se distraíam com algumas máscaras assustadoras e brigavam para saber quem teria os caninos de Drácula mais longos, ela sorrateira comprou alguns truques bobos e algumas cápsulas de sangue falso, para ser a melhor vampira.

Depois disso, os três adolescentes passaram o dia em casa. Não foram deitar muito tarde, para poderem levantar cedo na manhã seguinte.


Capítulo 2

Algo Sinistro

Na manhã seguinte, por volta das sete horas, a família já estava de pé, e pegava as últimas coisas para o longo passeio. Eles tomaram o café da manhã às nove horas, e partiram meia hora depois. A jornada era longa e, na maior parte, um tédio. Os três adolescentes tentaram jogar Banco Imobiliário na parte de trás do carro, mas como as peças caíam do tabuleiro, eles desistiram e conversaram entre si.

– Mal posso esperar para chegar – disse Sam. – Fico imaginando como será a aldeia...

– É meio antiga, eu acho – disse Mandy. – Sabe, um desses lugares onde só existe um telefone para toda a aldeia.

– Parece mesmo empolgante – disse Tiago, sarcástico. – Espero que tenham ouvido falar do Dia das Bruxas por lá.

– E eu espero também que não se importem de brincarmos de travessuras ou gostosuras com eles – afirmou Sam.

– Lá não é tão atrasado – disse a mãe, virando-se. – Tenho certeza de que existe mais de um telefone na cidade.

– Bem, espero que sim – retrucou Sam.

Quando eles chegaram, a aldeia, apesar de velha, de fato tinha mudado com o passar do tempo. A cabana que alugaram estava situada no limite da cidade e tinha eletricidade, água encanada e telefone. Até que era uma aldeia grande, usada por trabalhadores que voltavam para a cidade todos os dias. Na verdade, a aldeia tinha até uma pequena estação.

– O que você dizia sobre a aldeia ser atrasada? – Tiago perguntou para Mandy, zombando.

– Tudo bem, eu estava errada – retrucou Mandy.

– Então, essa é a cabana? – perguntou Sam, enquanto se aproximavam de uma casa de sapé em ruínas, situada ao largo de uma estrada enrugada e esburacada.

– Sim, aqui estamos – respondeu o pai.

A cabana parecia muito antiga, com paredes cobertas de liquens, feitas de pedra de diferentes formas e tamanhos. As janelas eram chumbadas. Embora a cabana parecesse bem pitoresca, Sam não pôde evitar um sentimento estranho. Não sabia explicar por que sentia isso, já que a cabana parecia tudo, menos sinistra. De repente, pelo canto do olho, Sam viu um movimento atrás de uma janela escura. Olhou diretamente para a janela, mas nada mais aconteceu.

Sam arrepiou. “Só estava sendo tola” – disse para si mesma, ninguém mais tinha notado nada, provavelmente era só o reflexo de alguém da família.

– Vamos, Sam, tire sua mala do porta-malas – disse o pai. – Vamos entrando, a menos que você queira ficar do lado de fora a noite toda.

Sam se mexeu e arrastou a mala para fora do porta-malas do carro do pai. Depois de pensar um momento, ela disse a ele:

– Pai, tem mais alguém na cabana?

– Mal há espaço para nós cinco, Sam. – replicou o pai.

– Nem mesmo um caseiro, nenhuma outra pessoa?

– Não que eu saiba. Por quê?

– Ah, nada não! – respondeu Sam.

Dentro, a cabana tinha o cheiro de móveis antigos mofados. Em alguns quartos, havia paredes divididas em painéis, que pareciam muito antigas. Era estranho que uma cabana daquele tamanho tivesse algo como painéis em paredes que não pareciam se encaixar no todo. Sam comentou isso com o pai.

– Aparentemente, anos atrás, um homem viveu aqui, e era muito rico – disse o pai. – Era também meio excêntrico, e construiu o lugar como se fosse uma mansão por dentro.

– Mas o que ele fazia morando em uma cabana, se era rico? – perguntou Sam.

– Bem, como eu disse, ele era um excêntrico – disse o pai. – Você sabe como esses boatos se espalham. Dizem por aí que se interessava por ocultismo e coisas do gênero.

– E o que aconteceu com ele? – perguntou Sam.

– Eu conversei com uma senhora no correio e ela disse que ele desapareceu acidentalmente com a própria magia – respondeu. – Mas é claro que não se pode acreditar em tudo o que se ouve, não é?

A mãe, que estava na cozinha com Tiago e Mandy, foi até o corredor e disse para Sam e o pai:

– Tiago está fazendo café, vocês não querem uma xícara?

– Estou seco por uma – disse o pai.

– Eu também quero – intrometeu-se Sam.

Eles a seguiram até a cozinha, que tinha uma viga baixa, no forro do teto. Mandy estava sentada na mesa da cozinha e Tiago derramava água quente na cafeteira.

– Mais dois cafés, Tiago – disse a mãe.

– Certo – concordou Tiago. – Só vou dar mais uma mexida e deixar por alguns minutos antes de servir.

– Não faça o meu muito forte.

– Ui! Não gostaria que Jamesy Wamesy viesse assoprar o seu também?

Sam não mordeu a isca. Ela estava muito preocupada com a história do velhote excêntrico.

– Não, obrigada, meu irmão mais querido. Apenas duas colheres de açúcar e um pouco de leite.

Ela se sentou no banco da mesa da cozinha, visivelmente muito antigo, que era de madeira e desnivelado.

– Não é uma cabana encantadora? – disse a mãe, entusiasmada.

– É mesmo, não é? – concordou Mandy.

– Temos muita sorte de tê-la conseguido tão em cima da hora – disse o pai.

– Estou ansioso pela noite de amanhã – disse Tiago.

– Eu também – replicou Sam.

– A que horas vocês acham que devemos sair? – perguntou Mandy.

– Eu calculo que pelas oito – respondeu Sam. – Assim poderemos aproveitar umas duas horas.

– Concordo – disse Tiago. – Devemos conseguir um bom tesouro nesse horário.

– Então, qual será a travessura que faremos? – perguntou Mandy.

– Ainda não pensei muito nisso – admitiu Sam. – Acho que poderíamos colocar arroz nas caixas de correio das pessoas.

– Em se tratando de travessuras, eu devo dizer que colocar arroz na caixa de correio é uma bobagem – disse Tiago. – Que tal jogar ovos nas casas?

– Isso é horrível, Tiago – disse Mandy. – Que tal balões de água? – acrescentou com um riso maldoso.

– Acho que deveríamos manter o arroz – disse Sam.

– Quando esse café vai chegar, Tiago? – perguntou o pai.

– Tudo bem, tudo bem, estou fazendo – retrucou Tiago.

Depois de uma breve xícara de café, os membros da família escolheram seus quartos. As garotas dividiram um quarto, enquanto Tiago teve um só para ele. Os quartos ficavam todos no térreo, já que a cabana não tinha mais andares, apenas um sótão, que os três adolescentes pretendiam explorar no dia seguinte.

Depois de desfazerem as malas e guardarem as roupas, Sam, Tiago e Mandy sentaram-se em um pequeno cômodo, lendo revistas. Após alguns minutos, a mãe veio e disse:

– Um de vocês não poderia dar um pulo e comprar pão antes que a mercearia feche? Eu vi uma no caminho, não vai levar mais do que cinco minutos.

– Sim, mãe – disse Sam.

– Obrigada, Sam – replicou a mãe, antes de lhe dar algum dinheiro e sair do quarto.

– Vamos, vocês dois – disse Sam. – Vamos lá.

– Achei que a mãe tinha perguntado se um de nós iria – afirmou Tiago.

– Então você não tem certeza! – disse Sam. – Vamos lá.

– Tudo bem, estou indo – disse Tiago, encolhendo os ombros.

– Mandy, vamos...

– Ah, desculpe! – disse ela, fingindo não ter ouvido. – Não tinha escutado você.

– Tá certo – retrucou Sam.

A caminhada demorou apenas dez minutos. A mercearia era até que moderna e parecia vender de tudo o que alguém pudesse querer.

Sam pegou um filão de pão e foi ao caixa para pagar.

– Nunca vi vocês antes, são novos por aqui? – a operadora do caixa perguntou a Sam.

– Estamos hospedados na cabana estrada abaixo por alguns dias – disse Mandy.

– Ah, qual delas? – perguntou a mulher enquanto Sam pagava. – Não é a cabana do velho mago?

– Cabana do mago? – perguntou Tiago.

– É assim que nós a chamamos por aqui, pois dizem que o cara que costumava viver lá praticava magia, e um dia... Ele simplesmente desapareceu!

– Ouvimos falar disso – revelou Mandy.

– Eu não acredito nisso, é claro – afirmou a mulher sem convencer. – Então vocês vão ficar por lá?

– Sim, até segunda – respondeu Sam.

– Bem, como eu disse, não costumo acreditar em velhas histórias tolas como essa – a mulher disse. – Mas, eu não gostaria de ficar por lá durante a noite do Dia das Bruxas. Não com as coisas que dizem que costumam acontecer nessa cabana – acrescentou com uma expressão preocupada nos olhos.

– É só conversa – disse Tiago. – Dia das bruxas ou não, nada a ver.

– Bem – retrucou a mulher do caixa, ligeiramente incomodada. – Existem histórias de coisas estranhas que acontecem ali, especialmente nesta época do ano.

– Que coisas estranhas? – perguntou Mandy, com os olhos arregalados de medo.

– Ora, eu não quero preocupar vocês. Mesmo assim, antes vocês que eu.

– Obrigada pelo pão – disse Sam, terminando a conversa. – Melhor irmos agora, tchau.

– Adeus, então! – retrucou a mulher virando-se para longe da mesa. Será que Sam notou um olhar assombrado no rosto da mulher?

Na rua, os três começaram a conversar.

– Você não precisava ser rude, Tiago – disse Sam.

– Ela só estava tentando nos assustar – respondeu o irmão. – Não somos crianças!

– Bem, ela me apavorou um pouquinho – disse Mandy, sentindo um calafrio. – Gostaria de saber quais seriam as coisas estranhas sobre as quais ela falou...

– Foi o jeito de ela fingir que não acreditava nisso que me intrigou – disse Sam.

– Vocês duas são patéticas, ela não me assustou nadinha – bufou Tiago.

Logo os três estavam de volta à cabana. Eles passaram o resto do dia arrumando coisas, disputando jogos de tabuleiro e assistindo televisão antes de irem deitar, às onze e meia. Com as luzes apagadas no quarto, as garotas papearam.

– Estou ansiosa pela noite de sábado – disse Mandy.

– Eu também! Eu poderia fazer muitas travessuras – retrucou Sam.

– Você vai comer feito um porco os doces e coisas do tipo, tudo de uma só vez? – perguntou Mandy.

– Bem, provavelmente eu vou tentar juntar doces por meia hora, depois vou me empanturrar! – respondeu Sam.

As garotas repousaram um tempo antes que Sam dissesse a Mandy:

– Não seria legal se você pudesse conhecer um fantasma de verdade ou coisa assim, Mandy?

– Se você acha... – retrucou Mandy. – Mas, para ser sincera, eu provavelmente iria morrer de medo!

As garotas deitaram no escuro ouvindo o vento assobiando levemente nas beiradas do telhado, e o gotejar da chuva batendo nas tábuas da janela. Lá fora, o céu estava tingido de preto, com algumas estrelas aparentes.

– Boa-noite, Mandy – disse Sam.

– Boa-noite, Sam – respondeu Mandy, bocejando.

Em alguns minutos, tudo que podia ser ouvido no quarto, além do vento e da chuva lá fora, era o suave ronco das duas irmãs.


Capítulo 3

A Descoberta

Na manhã seguinte, a luz que brilhava pela janela no quarto das garotas era fria, áspera e sem alma, e caiu sobre as figuras sonolentas de Sam e Mandy. De repente, o despertador de Sam tocou. A insistente campainha eletrônica afinal acordou Mandy, que atirou travesseiros pelo quarto para acordar a irmã. Sam grunhiu um pouco, antes de virar e murmurar qualquer coisa para ela mesma em seu sono. Continuou roncando...

Mandy foi forçada a subir na cama e ir até o criado-mudo de Sam para desligar o despertador da mesma. Depois de desligar o alarme, Mandy pegou seu travesseiro do chão e socou-o na cabeça de Sam, acordando-a de vez.

– Bom-dia, esse é seu alarme das nove da manhã – disse Mandy, numa voz robótica, enquanto ela golpeava novamente Sam com o travesseiro.

– Não ouvi o alarme tocar! – exclamou Sam.

– Eu percebi – disse Mandy, pulando na cama e co- brindo-se, tentando recuperar um pouco de calor. – Não caia no sono de novo.

– Nem pensar – retrucou Sam, bocejando.

As duas voltaram a dormir.

Uma hora depois, às dez horas, Tiago entrou.

– Acordem! – gritou, sorrindo para si mesmo enquanto as irmãs esfregavam os olhos irritados e vesgos na direção dele.

– Saia daqui, seu garoto horroroso! – rosnou Sam.

– Não se eu puder evitar – disse Tiago. Tiago tinha comprado um presente da loja enquanto as garotas procuravam máscaras de Dia das Bruxas. Era uma pistola de água, que ele esguichou no rosto das duas.

– Tiago, eu te odeio – disse Sam. – Eu me lembrarei disso da próxima vez que você estiver dormindo.

– Sim! – acrescentou Mandy. – Vou até o seu quarto jogar um balde de água em você.

– Você é realmente malvado – disse Sam atirando um travesseiro nele.

– Eu adoro ver minhas irmãs sofrendo – disse ele rindo.

– Bem, você certamente conseguiu o que queria – disse Sam, agora completamente acordada. – Se quiser ser perdoado, você poderia fazer uma xícara de café para mim.

– E para mim – disse Mandy, intrometendo-se debaixo do acolchoado.

– Tudo bem, fofas, não voltem a dormir então – ele disse.

Quando Tiago retornou com as duas xícaras de café fumegantes, as irmãs já tinham levantado e estavam se preparando para o dia. Sam agarrou uma xícara das mãos dele e correu o mais rápido que pôde sem derrubar o café até o banheiro.

– Eu primeiro no chuveiro.

– Droga! – exclamou Mandy. – Eu ia fazer isso.

– Quando você terminar o café, ela já vai ter saído – disse Tiago.

– Como? – perguntou Mandy.

– Ela vai beber umas cinco vezes mais café do que beberia na banheira.

– Vai? – ela disse sem entender a piada. – Como assim?

Tiago olhou para ver se ela estava fingindo não entender. Não estava.

– Mandy, era uma... – começou Tiago e achou melhor explicar a piada.

– O que, era o quê? – perguntou Mandy. – O que é que era isso, e o que é que você estava tentando dizer que isso era?

Tiago repassou a frase na cabeça para ver se fazia sentido pela segunda vez. Não, não fazia mesmo o menor sentido.

– Mandy – ele disse.

– Sim? – ela retrucou.

– Cale a boca.

Sam saiu do chuveiro e Mandy finalmente teve a chance de se lavar. Logo, os três estavam na cozinha com seus pais, tomando o café da manhã.

– Nós estávamos pensando em ir ao centro de jardinagem pelo qual passamos no caminho para cá hoje – disse o pai.

– Parece... divertido! – retrucou Sam procurando por uma descrição apropriada.

– Vocês virão junto?

– Desculpe, pai – disse Tiago. – Eu adoraria, mas tenho que...

Ele vacilou, mas felizmente Sam veio ajudar.

– ... fazer o projeto de um trabalho de escola, e eu estou ajudando-o, já que fiz o mesmo projeto ano passado.

– Você vem, Mandy? – perguntou o pai.

– Não, eu estou no mesmo projeto do Tiago já que estamos na mesma série e acho que Sam poderia me ajudar bastante – foi uma resposta na ponta da língua.

– Mas é impressionante como de repente todos têm um projeto de escola que precisa ser feito, logo quando estamos prestes a ir ao centro de jardinagem – disse o pai em tom de brincadeira.

– Eu imagino que eles devem estar planejando isso há séculos – retrucou a mãe, fingindo falar com o marido como se Sam, Tiago e Mandy não estivessem lá.

– Antes de fazer o projeto, os três podem limpar as coisas do café da manhã – disse o pai.

Os três adolescentes rosnaram.

– Tchau, tchau! – disseram os pais.

– Tchau! – disseram os três irmãos, enquanto os pais deixavam o quarto.

– É inacreditável que eles achem o centro de jardinagem tão fascinante – disse Tiago. – Eu acho uma chatice.

– Eu sei o que você quer dizer – concordou Sam. – Quer dizer, eles na verdade passeiam por lá com sorrisos no rosto enquanto veem, sei lá, a begônia da moda dessa estação, ou o rododendro da Mongólia Exterior quase sem pintas em tom azul elétrico com linhas corridas e topo macio.

– Tanto faz – disse Mandy, lançando um olhar bizarro à irmã. De qualquer maneira, vamos terminar logo a limpeza e aí nós poderemos dar uma olhada pela casa.

Logo os jovens tinham terminado e estavam planejando o que fazer durante o dia.

– Já sei – começou Sam. – Vamos dar uma olhada no sótão. Tenho certeza de que deve haver algo lá em cima.

– Vamos – disse Mandy. – Vamos usar um banquinho para chegar lá em cima. O forro do teto não é tão alto.

Sam pegou um banquinho e seus irmãos a seguiram pelo corredor onde havia o buraco do sótão no teto.

Sam colocou o banquinho debaixo do buraco e subiu. Ela alcançou e empurrou para o lado o quadrado de madeira e se atirou para dentro do sótão.

– Mandy, você pode pegar os fósforos e as velas na despensa da cozinha? Está escuro como piche aqui em cima.

Tiago foi em seguida, e depois Mandy com as velas.

Eles acenderam três velas, o sótão era bem pequeno. E também bem vazio, com apenas algumas caixas perto do buraco. Sam foi até uma das caixas, seguida por Tiago e Mandy. Ela abriu a caixa, mas tudo que havia dentro era a tradicional sucata de sótão, porcelana, que não podia ser da China, diversos enfeites medonhos e coisas similares. A outra caixa tinha o mesmo tipo de conteúdo que a primeira.

– Nada – disse Sam desapontada. – Bem, nada interessante, de qualquer maneira.

– Li em algum lugar que antigamente todo tipo de coisa ficava escondida no telhado – disse Tiago. – Este telhado aparenta ser muito antigo. Que tal darmos uma olhada?

– Como não há nada mais interessante para fazer, eu concordo – retrucou Sam.

Os três jovens passaram cerca de 15 minutos fuçando em toda parte no sótão sem sucesso. Por fim, Tiago disse:

– Nada. Acho melhor desistirmos. Vamos fazer outra coisa. É óbvio que quem morava aqui não queria esconder nada no sótão.

– Eu concordo – disse Mandy.

– Tudo bem – concordou Sam, embora relutante. – Vamos só olhar aquele canto, e podemos descer de novo.

Enquanto cruzava o sótão ela disse:

– Na verdade, é uma vergonha. Eu achei que íamos encontrar algo relacionado ao velho ocultista.

– O quê? Algo parecido com um livro de feitiços? – perguntou Tiago.

Sam captou algum movimento com o canto do olho, perto de onde ela estava procurando, enquanto Tiago dizia isso.

– Sim – disse Sam, enquanto alcançava a área onde tinha visto o movimento. Ela inspecionou ao redor um pouco até que, de repente, sentiu um objeto quadrado sólido, embaixo da mão que apalpava.

– Achei algo! – ela gritou.

– Até parece! – retrucou Tiago.

– Não, é sério! – disse Sam, puxando para fora da fenda onde estava procurando um livro gasto, com capa de couro.

– O que é isso? – perguntou Mandy, indo até onde Sam estava.

– Não! Esperem, tem mais... – disse Sam, puxando para fora uma pequena e antiquada bolsa de couro de guardar dinheiro. Ela estava recheada.

Ela abriu a bolsa. Dentro havia três grandes, coloridas e transparentes pedras lapidadas.

Sam olhou para o livro. Não havia título na capa, mas dentro, a primeira página marcada, proclamava o livro como sendo: Das Místicas Artes da Magia & Muitos Populares & Interessantes Feitiços.

– Um livro de feitiços, Tiago – disse Sam. – Imaginava algo assim?

– Nem consigo acreditar, um livro de feitiços de verdade! – disse Tiago pela centésima vez.

– Gostaria de saber se eles funcionam... – matutou Sam.

– Esperem vocês dois, eu não gosto disso. Isso pode ser intrometer-se no ocultismo – disse Mandy.

– Não seja boba, Mandy, isso não funciona de verdade. Você realmente não acredita que existem coisas como a magia? – zombou Tiago. – Continue, diga uma delas, Sam.

– Não! – disse Mandy.

– Continua... – apoiou Tiago.

– Só vou experimentar um pequenininho então – disse Sam, tentando agradar os dois ao mesmo tempo.

– Eu não faria isso, se fosse você, mas é você quem decide – disse Mandy, brincando instintivamente com uma das pedras da bolsa.

– Certo, vamos ver... – Sam começou. – Certo, aqui tem um, uma ilusão...

– Uou-uou-uou... – disse Tiago, zombando da irmã.

– Addi, cysti, adonis, crytis, chi – pronunciou Sam. Nada aconteceu.

– Viu, Mandy, nada para se preocupar – riu Tiago.

– Espera aí... – disse Sam. – Está meio difícil ler. Ah, entendi. Eu preciso usar a pedra da Runa, desenhar um pentágono no ar com ela e nomear o objeto cuja imagem quero criar quando tiver terminado.

– Vamos lá, Sam – disse Tiago. – Você está agindo como se acreditasse nessas coisas.

– Psiu! – fez Sam. – Agora, qual é a pedra da Runa? Que tal a verde?

Ela pegou a pedra e pronunciou as palavras novamente, enquanto desenhava a forma de um pentágono no ar com a pedra verde. A pedra deixou um rastro verde até formar um pentágono. Sam então disse:

– Vaso.

Sam imaginou o vaso em sua cabeça.

De repente, uma flecha surgiu do nada, com um clarão verde, pairou no ar por um segundo e depois voou direto para a cabeça de Sam. Ela colocou o livro de feitiços sobre o rosto como proteção. A flecha acertou o livro e desapareceu com outro clarão verde. Sam olhou para o livro. Não havia marcas nele.

– Eles não funcionam de verdade, você realmente não acredita que existem coisas como a magia! – rosnou Sam, imitando o irmão. – Então, o que foi isso?

– Foi incrível, Sam – gritou Tiago. – Eu não sabia que você tinha isso em você.

– Ela quase foi morta, Tiago – disse Mandy. Mas de qualquer modo, eu pensei que você tivesse dito “vaso”, Sam, não flecha.

Mandy balançou a cabeça com descrença antes de finalmente dizer:

– Uau! Você fez mágica!

Sam abriu o livro no começo e leu a primeira página.

– Ao praticante da arte da magia, uma palavra de aviso. A magia é uma arte em que a absoluta concentração é necessária, e erros podem se tornar fatais ao estudioso imprudente. Existem muitas coisas que você não deve tentar, que estão destacadas neste volume, mas algo que você nunca deve fazer é usar as pedras incorretas em um feitiço, pois os resultados podem ser desastrosos e, se você tiver sorte, morrerá rapi- damente. Até mesmo o menor feitiço pode ter consequências drásticas se usado com a pedra errada. Você foi avisado: a magia é uma arte perigosa e deve ser abordada com toda cautela.

– Eu acho... – disse Mandy vagarosamente. – Acho que temos muita, muita sorte, então.

– Eu acho que você está certa – disse Sam. – Gostaria de saber qual pedra é que... Oh! Há uma explicação aqui nos dizendo o que é o quê. A pedra verde é a pedra de Talis, a vermelha é a da Runa, a azul é a Pikez. Eu acho que nós devíamos abordar isso com cuidado e ler o livro antes de tentar qualquer outra coisa.

– Você vai tentar mais? – gritou Mandy. – Eu achei que o fato de quase ser morta poderia ser um aviso para que você não fizesse mais magia!

– Não seja boba, Mandy – disse Tiago. – Sam sabe o que está fazendo e, além disso, eu também quero tentar.

Mandy não conseguia pensar em algo para dizer. Finalmente, ela simplesmente disse:

– Vocês são dois loucos, mas por enquanto estou com vocês. Além disso, não posso negar que tudo isso seja muito intrigante. Não acham que eu poderia tentar?

Sam sorriu mostrando os dentes e disse:

– Eu sabia que era esse o motivo, Mandy.

– Certo! Então, para onde vamos? – perguntou Mandy.

– Vamos todos ler agora – sugeriu Tiago.

– Então vamos para a mesa da cozinha, desse modo todos poderemos ler – disse Sam.

Os três adolescentes passaram a hora seguinte lendo e discutindo o começo do livro de feitiços. Uma coisa os intrigou muito.

– Aqui diz que em se tratando de magia, você precisa ter um talento natural em primeiro lugar – disse Sam.

– Eu estava lendo isso – concordou Tiago. – E você sabe o que isso significa?

– O quê? – perguntou Mandy. – Que Sam tem um dom natural para magia?

– Acho que sim – disse Sam sorrindo. – Por que não tentamos aquele feitiço de novo?

– Tudo bem então, Sam. Mas desta vez, eu quero uma chance – disse Tiago.

– Se você tiver talento para isso! – avisou Sam.

– Addi, cysti, adonis, crytis, chi – disse Tiago, desenhando a forma de um pentágono no ar, desta vez com a pedra vermelha. Um pentágono vermelho brilhou no ar, enquanto Tiago dizia: bola.

Em sua cabeça, ele imaginou uma bola, mas nada aconteceu.

– Deixa que eu faço – disse Sam, pegando a pedra. Ela fez o ritual novamente, terminando com a palavra: bola.

Sam também imaginou a bola no ar, e dessa vez uma brilhante bola amarela apareceu na frente dela, onde o pentágono estava. Ela tentou tocar a imagem, mas sua mão passou direto por ela, que rapidamente se dissolveu em nada.

– Parece então que eu tenho talento – disse Sam, presunçosa. – Que azar, Tiago!

– Agora, deixem-me tentar – disse Mandy, agarrando a pedra de Sam. Ela também repassou os movimentos e terminou com o mesmo resultado que Tiago.

– Ah! Tudo bem, Mandy – disse Sam. – Bela tentativa, por pouco você não conseguiu.

– Ah, cale a boca, Sam – disse Mandy. – Você tem sorte, só isso.

– Sorte? – disse Sam. – Não é sorte, só pura habilidade!

– Sim, tanto faz – murmurou Tiago amargamente.

– Falando sério, então... – disse Mandy. – O que você vai fazer agora?

– Não sei, vou praticar um pouco, eu acho – retrucou Sam.

– Tem certeza? – perguntou Mandy. – Lembre-se do que aconteceu com aquele outro cara.

– Eu serei cautelosa... – respondeu Sam.

– Tudo bem, desde que você se lembre disso – Mandy disse para ela. – Agora, não sei quanto a vocês dois, mas eu estou faminta.

Sam olhou para o relógio dela. Era uma e meia e ela percebeu de repente que estava com fome. Enquanto Mandy foi até o armário ver se havia alguma coisa para comer, Sam parou-a e disse:

– Eu vou fazer o almoço para nós, tudo bem?

– Tem certeza? – perguntou Mandy, de repente assolada por uma dúvida.

– Preciso tentar alguma coisa – retrucou Sam.

Ela abriu o livro e explorou o índice.

O índice relacionava muitos feitiços, e levou um tempo para ela encontrar algum que parecesse apropriado.

– Criando objetos com magia bruta – leu.

– Página 117.

Sam abriu na página certa e leu o feitiço. Ela assobiou com os dentes e disse:

– Tudo isso só para conseguir um almoço?

– Deixe-me ver isso – disse Tiago arrancando o livro das mãos da irmã.

– É como uma receita – disse.

– Eu nem sei o que são metade dessas coisas – disse Sam. – Não estou preparada para fazer metade do que desejaria.

– Passe o livro – disse Mandy, sentando do lado contrário a eles.

Enquanto Tiago passava para ela, o livro caiu de repente das mãos dele sobre a mesa de cozinha. Enquanto pousava, um pedaço de papel, amarelado pelo tempo, tremulou dentre as páginas e flutuou rumo ao chão. Sam chegou antes.

– O que é isso? – perguntou Tiago.

– É um lista de instruções – retrucou Sam.

– O que diz aí? – perguntou Mandy.

– Olha, vamos sentar e eu leio isso para vocês, ok?

– Certo! – retrucou Mandy.

Os três sentaram-se, e Sam começou a ler: – Ao Meu Sucessor. Até agora você encontrou o livro de feitiços e a bolsa de pedras mágicas. Os ingredientes para todos os feitiços contidos no livro estão escondidos, triplamente protegidos das pessoas erradas. Se realmente se dedicar à pratica da Arte da Magia, e se tiver habilidade, você descobrirá os ingredientes escondidos em lugares que somente você, pode encontrar, mas apenas quando estiver pronto para usá-los. Pratique os feitiços menores primeiro, você saberá quando estiver pronto para feitiços maiores e mais perigosos.

Finalmente, você terá ouvido que eu me matei por causa da magia. Isso não é verdade, eu só fui para outro lugar. Boa sorte, e seja cuidadoso ao seguir o caminho da magia.

Atenciosamente, Winston Bellingford.

Sam parou a leitura.

– Uau! – disse Tiago. – Parece que ele esperava por você, Sam.

– Bem, sendo assim, parece que o almoço será aquilo que encontrarmos nos armários – suspirou Sam.

– Estou satisfeita – disse Mandy. – Conhecendo você, Sam, você teria feito um suspiro de cianureto.

– Obrigada pelas palavras de confiança, Mandy.

– Tudo bem... – ela retrucou sorrindo.

Depois do almoço, os irmãos foram para o saguão estudar um pouco mais o livro de feitiços.

– Tente mover algo com magia – sugeriu o irmão.

– Certo, mas o quê? – perguntou Sam.

– Que tal a almofada do sofá? – disse Mandy.

– Vou tentar, se conseguir achar o feitiço correto – respondeu a irmã.

Ela procurou no índice do livro de feitiços e encontrou a palavra levitação. Folheou até a página apropriada e leu o feitiço. Felizmente não exigia nada além de algumas palavras e uma pedra mágica. Sam leu o feitiço novamente antes de levantar e preparar- -se para dizê-lo.

– Para trás – ela disse. – Lá vai!

Ela pegou a pedra correta, a pedra azul de Pikez, e desenhou um pentágono no ar enquanto expressava as palavras:

– Chelon, levita, greyshun, avatar.

Apontando o dedo para a almofada, lentamente ela levantou o braço. A almofada levantou no ar. Sam moveu o braço para cima e a almofada o seguiu. Sam ergueu o braço e a almofada flutuou mais alto. Querendo a almofada mais próxima dela, Sam fez a almofada vir para perto, até ficar pairando na frente de seu dedo.

– Certo, como paro isso? – ela perguntou para Tiago.

Tiago pegou o livro e disse:

– Aqui não diz.

– Deve dizer em algum lugar – retrucou Sam.

– Não consigo encontrar.

– Tente não apontar para a almofada – sugeriu Mandy.

A garota, então, fez isso, mas a almofada permaneceu onde estava.

– Como paramos a ilusão? – perguntou Tiago.

– Talvez ela caia se Sam tocar nela – disse Mandy.

Sam tocou na almofada. A almofada amassou onde o dedo a tocou, mas continuou levitando.

– Tente empurrar – disse Tiago.

Sam tentou empurrar a almofada no ar, mas ela permaneceu imóvel. A almofada amassava cada vez mais, porém continuava no mesmo lugar. Sam a deixou e ela retomou a forma.

Logo em seguida, o som da porta da frente, aberta pelo pai, fez com que os adolescentes se entreolhassem alarmados.

– O que devemos fazer? – perguntou Sam com os olhos arregalados.

– Rápido, levite-a para o sofá – disse Mandy.

Sam apontou para a almofada e moveu a mão para baixo, apontando para o sofá. A almofada continuou no mesmo lugar. Sam moveu a mão para trás para apontar novamente o dedo para a almofada, porém, quando ela fez isso, o sofá levantou a um pé do chão.

– O que você está fazendo? – gritou Tiago enquanto ouvia o som dos pais conversando no corredor do lado de fora do saguão.

Rapidamente, Sam moveu o braço para baixo, descendo o sofá até o chão. Ela apertou a mão e se afastou do sofá. Felizmente, o sofá não se moveu, mas também não se mexeu quando Tiago tentou empurrá-lo.

– Demais! Parabéns, Sam... – murmurou Mandy, enquanto ela em vão brigava com a almofada.

Naquele momento, o pai adentrou, seguido pela mãe.

– Só entramos para pegar minha carteira – ele disse. – Esqueci de levá-la comigo, então o centro de jardinagem está guardando as plantas que estamos comprando até eu voltar.

O pai olhou para Mandy, fingindo que segurava a almofada.

– O que você está fazendo Mandy? – perguntou.

– É, bem... é... O Tiago disse que as garotas eram mais fracas que os garotos, e eu disse que não eram; ele falou para provar, e eu disse que tudo bem. Aposto que consigo carregar essa almofada na minha frente por mais tempo que ele.

– Se você diz – falou o pai, hesitante. – De qualquer maneira, estamos saindo de novo, tudo bem?

– Tudo bem – disse Sam. – Tchau.

– E almocem alguma coisa – disse a mãe enquanto saía.

– Já fizemos isso – falou Tiago.

– Certo, tchau! – retrucou a mãe, fechando a porta da frente por detrás dela.

Depois de alguns segundos eles ouviram o carro dando partida e saindo. Alguns segundos mais se passaram antes que Mandy dissesse:

– Essa foi por pouco!

– Então as almofadas são tão pesadas que as garotas tem problemas para segurá-las? – perguntou Tiago.

– Bem, foi melhor do que o que você disse – retrucou Mandy.

– Eu não disse nada – contestou Tiago.

– Foi o que eu quis dizer – replicou Mandy.

– O que eu quero saber – disse Sam mudando de assunto –, é como fazer a almofada baixar.

– Leia o livro – disse Mandy.

– Tiago disse que não havia nada nele – respondeu Sam.

– Leia a introdução dessa seção do livro – disse Mandy. – Olhe no índice. Levitação está sob o título de “Interagindo com objetos”.

– Certo – retrucou Sam.

Sam passou os minutos seguintes lendo a introdução da seção, até alcançar o parágrafo sobre como terminar os feitiços.

– Aqui diz que alguns dos feitiços da seção exigem uma palavra adicional para completá-los – afirmou.

– É meio difícil de dizer. Genimi? Denimi? Djenimi?

Durante a última palavra, a almofada caiu do ar e o sofá que Tiago tentava inclinar, caiu no chão com um estrondo.

– Ufa! – exclamou. – Muito obrigado, Sam.

– Desculpe – disse Sam. – Mas pelo menos descobri como terminar o feitiço da levitação.

– Acho que basta de feitiços por hoje – disse Mandy.

– Eu não – retrucou Sam. – Estou vendo que a magia será muito divertida.

– Mal posso esperar que a escola comece de novo – disse Tiago.

– Escola? Que tal fazermos levantamento de peso? – gritou Sam. – Você levanta os pesos e eu os levito, seremos famosos.

– Que tal futebol ou basquete? – disse Tiago.

– Brilhante! – os dois gritaram, dando altos vivas.

– Tudo para vocês é um jogo, não é? – disse Mandy.

– Não acha que poderia fazer algo bom com essa magia?

– Como o quê? – perguntou Sam.

– Que tal levantar árvores caídas de cima dos carros, pedras que caem nas minas, apagar incêndios.

– Apagar incêndios? – perguntou Sam, confusa.

– Você poderia levantar uma carga de água e jogá- -la no fogo – disse Mandy, entediada. – Honestamente, se vai ser tão estúpida, você não deveria fazer magia.

– Olhe bem quem você está chamado de estúpida, eu poderia transformá-la em um sapo.

– Ou transformá-la de sapo em humana – disse Tiago com um sorriso maligno.

– Ora, cale a boca, Tiago.

– Ou você vai fazer o quê? – perguntou Tiago.

– Tiago, cale a boca!

Mandy pegou a almofada a atirou-a em Tiago.

Tiago se abaixou e a almofada voou na direção de um quadro pendurado na parede mais distante. Enquanto isso, Sam tentava novamente o feitiço da levitação. Ela terminou de dizer Avatar no momento em que Mandy atirou a almofada. Apressada, Sam apontou o dedo para a almofada, que parou no meio do ar. Ela trouxe, com determinação, a almofada para perto, antes de rapidamente mover sua mão e apontá-la para o irmão. A almofada acertou Tiago, batendo nele no meio do caminho. Sam então balançou o braço no ar em círculos apontando para Mandy, enquanto ao mesmo tempo dizia: djenimi.

A almofada de repente voou, fora do controle de Sam pelo ar e bateu no rosto de Mandy.

– Parem de discutir vocês dois – disse Sam serenamente.

– Sam, se você alguma vez fizer isso de novo, eu pessoalmente devo... fazer alguma coisa realmente horrenda com você – disse Tiago.

– Eu também – concordou Mandy. – Honestamente, Sam, isso é tudo que você vai fazer com a magia?

– É, não é justo usar magia para fazer coisas assim – disse Tiago.

– Ok, acalmem-se – disse Sam. – Eu só estava brincando.

– Não gostei... – retrucou Mandy.

Sam passou o dia inteiro lendo coisas no livro de feitiço, mas também, assistiu à televisão com os irmãos. Veio a noite, e ela estava cansada de tudo que ocorreu durante o dia. Além disso, embora ela não pudesse explicar o motivo, ela sentiu que praticar magia a deixara muito cansada. Todavia, isso não a impediu de acordar nas primeiras horas da madrugada.

Para começar, Sam apenas ficou lá deitada imaginando o que teria a acordado. Um barulho, talvez? De repente ouviu uma tosse rouca em algum lugar à sua esquerda, perto da janela. Sam prendeu a respiração.

De repente, a voz que tossia disse: – Eu posso ver que você está acordada, Samanta. Eu tenho uma boa visão noturna, como você sabe.

– Quem é você? – perguntou Sam, tentando conter a tremedeira na voz.

– Eu vim visitar você, Samanta – retrucou a voz. – É sobre um encontro de todas as entidades sobrenaturais do país inteiro.

– O que é isso? – disse Sam.

– Vai acontecer aqui, nesta aldeia – respondeu a voz. – E agora que começou a praticar magia, você também terá o privilégio de assistir.

– Quando será? – perguntou Sam.

– Amanhã à noite na grande e velha casa abandonada no limite do prado da aldeia – retrucou a voz. – Estarão presentes apenas 100, há muito menos sobrenaturais no país do que você pensa, e alguns de nós somos fantasmas.

– Fantasmas?

– Sim, principalmente fantasmas de magos falecidos que escolheram permanecer na Terra – disse a voz. – Como eu.

O dono da voz deu um passo pra frente, revelando a figura semitransparente de um homem, vestindo o que parecia um manto. – Espero que você participe, Samanta – ele disse. – Em geral, é uma ocasião divertida e alguém jovem como você pode aprender muito.

– Sou uma feiticeira? – perguntou Sam.

– Certamente – retrucou o mago fantasmagórico –, com um potencial muito grande, se é que eu posso julgar.

Havia o som de murmúrios vindos da direção da cama de Mandy, quando Mandy se virou. Sam segurou a respiração por um segundo antes de relaxar novamente.

– Por que um evento como esse ocorrerá aqui, em uma cidade pequena como essa? – perguntou Sam.

– Bem... – disse o feiticeiro fantasmagórico. – Vários grandes magos saíram desta área e arredores, além disso, o encontro não ficará só na casa.

– Então, para onde irá? – retrucou Sam.

– Para onde nossa imaginação nos levar – disse o feiticeiro. – Mas o palestrante vai fazer a maioria dos feitiços de viagem.

– Quem será o palestrante? – perguntou Sam.

– Um grande mago, líder de nossa classe – retrucou o feiticeiro. – Ninguém sabe o nome dele.

– Sobre o que é o encontro? – perguntou Sam.

– Um resumo dos últimos anos de alguns bruxos e bruxas, a demonstração de novos feitiços de nossos feiticeiros pesquisadores, e a apresentação de novos membros do clã.

– Não sei. Vou sair com a minha irmã e o meu irmão amanhã.

O feiticeiro se concentrou em alguma coisa por um momento antes de dizer:

– Você vai brincar de travessuras ou gostosuras? Este encontro é muito mais importante!

– Você leu a minha mente? – perguntou Sam.

– Não, eu não posso ler a mente de um feiticeiro, mas eu posso ler a de sua irmã.

– Eu posso fazer isso?

– Claro – retrucou o mago, mas isso requer prática.

– Como consegue se não usou palavras ou pedras mágicas?

– Pedras mágicas são usadas para fortalecer um feitiço, não são necessárias quando você é avançado na arte. E também, as palavras não precisam ser ditas quando sua mente é forte o suficiente para dizê-las mentalmente.

– De qualquer modo – disse Sam –, como eu disse, não tenho certeza se posso...

O mago a interrompeu nervosamente: – Você age como se tivesse escolha! Para praticar magia, você precisa fazer parte do clã, ou você não praticará mesmo.

– Como? – perguntou Sam.

– O clã detém as regras da magia que cada praticante deve aceitar. De outra forma, quem vai impedi- -la de dominar o mundo?

– Entendo – disse Sam. – Terei que explicar isso para meus irmãos.

– Eles não devem saber! – gritou o mago.

– Eles já sabem sobre a minha magia.

O mago pareceu muito aborrecido.

– Muito bem, mas eles devem jurar segredo – retrucou o feiticeiro. – Isso é muito irregular, mas nós do clã não temos o hábito de apagar a mente das pessoas.

– Eles podem ser um tipo de... assistentes – sugeriu Sam.

– Isso parece bastante justo, a maioria de nós tem assistentes para nos ajudar com certos feitiços, eventualmente – disse o feiticeiro. – Mas eles não podem assistir ao encontro.

– Ok.

– Agora eu devo ir, o encontro começa às nove horas em ponto.

– Não é à meia-noite?

– Por que seria à meia-noite?

– Ah! Não sei... Mas, como devo chamar você?

– O meu nome? Sou Cornelius Brown.

– Prazer em conhecê-lo, Cornelius Brown.

– O prazer foi todo meu – respondeu Cornelius.

Ele estralou os dedos e desapareceu, com um estouro.

Sam sentou em silêncio por alguns segundos, pensativa.


Capítulo 4

Apresentando Kate

Na manhã seguinte, Sam acordou cedo, apesar da noite turbulenta. Primeiro, apesar de saber que algo lhe tinha acontecido durante a noite, ela não conseguia relembrar o que era. Lentamente, lembrou o encontro com o feiticeiro. Será que aquilo foi um sonho? Afinal, tinha pensado muito em magia ontem, por ter encontrado o livro de feitiços e tê-los testados. Talvez aquilo fosse um sonho. Houve um suspiro vindo da cama de Mandy, quando ela acordou e sentou-se esfregando os olhos.

– Que sonho! – disse com voz de sono. Olhou para Sam e viu que ela estava acordada.

– Eu sonhei que você tinha aprendido a fazer magia, Sam.

Mandy deu umas risadinhas de si mesma, mostrando que ela ainda não tinha vínculo nenhum com a realidade depois de dormir.

– Eu aprendi – retrucou Sam. – Não foi um sonho.

– Há, há... – retrucou Mandy bocejando novamente.

– É verdade! – disse Sam.

– Ok! – retrucou Mandy. – O que aconteceu?

– Fiz uma ilusão de bola e levitei uma almofada – respondeu Sam.

– Como você... – Mandy começou, antes de parar e olhar para Sam. – Isso realmente aconteceu?

– Sim – disse Sam. – Mas Mandy, tenho algo importante para lhe dizer.

– O que é? – perguntou Mandy.

– Alguém veio ao nosso quarto na noite passada...

– Quem?

– Deixe-me terminar; um feiticeiro fantasmagórico veio ao nosso quarto e disse que para continuar praticando magia eu tenho que me juntar ao clã.

– O que é o clã?

– Um tipo de... um tipo de grupo de todas as pessoas mágicas do país.

– Como se faz parte dele? – perguntou Mandy.

– Vou ao encontro anual deles.

– Quando é isso e onde?

– Esta noite, numa velha casa nos limites da aldeia.

– Você vai?

– Não tenho muita escolha, se quiser ser uma feiticeira.

– Mas isso não parece um pouco suspeito?

– Um pouco – retrucou Sam –, mas se é assim, por que o mago não me fez nada na noite passada?

– É verdade – disse Mandy. – Mas o encontro vai ocorrer em uma casa antiga.

– E daí?

– Você nunca viu os filmes de terror, quando eles vão para uma casa, a porta range e abre sozinha, e fantasmas saltam de lá?

– É, mas isso não acontece na vida real.

– Espero que você esteja certa.

– Sei que estou certa – disse Sam, embora estivesse com um sentimento de mau agouro. – Vamos lá, tomar o café da manhã.

Na cozinha, elas foram as primeiras a chegarem. As garotas prepararam seus cafés da manhã e foram para a sala de estar assistir televisão.

Uma hora depois, Tiago apareceu com seu café da manhã e sentou para comer na frente da televisão.

– O que vamos fazer hoje? – perguntou.

– Eu quero tentar mais daqueles feitiços – disse Sam.

– Conte a ele sobre a noite passada – disse Mandy.

– O que aconteceu na noite passada? – perguntou Tiago.

Sam contou-lhe sobre o encontro e todas as implicações de ser uma feiticeira.

– Você tem certeza de que quer isso? – ele perguntou.

– Claro! – Sam retrucou. – E como estaremos fora brincando de travessuras ou gostosuras, a mãe e o pai nunca saberão.

– Vamos com você então – disse Mandy.

– Não podem. Ele disse que vocês não poderiam.

– Você não pode ir sozinha!

– Posso e vou!

– O que vamos fazer?

– Brincar de travessuras ou gostosuras.

– Quando o encontro vai acabar?

– Não sei, tarde, eu acho.

– O que diremos para a mãe e o pai?

– Não sei ainda.

– Eu sei o que você poderia fazer... – disse Tiago, lentamente.

– O quê? – perguntaram Sam e Mandy juntas.

– Bem, sabe aquele feitiço da ilusão que você fez?

– Sim?

– Você poderia fazer uma ilusão de você mesma que nos seguisse.

– Brilhante! – gritou Sam.

– Espere aí... – disse Mandy. – E se a mãe e o pai falarem com você?

– Não sei, e se eu a fizesse falar?

– Se você pode fazê-la falar, que tal tocar coisas?

– O que você quer dizer?

– Lembra o que aconteceu com a bola quando você a tocou? Ela desapareceu! – disse Mandy. – E se eles lhe pedissem para passar o sal na mesa de jantar ou coisa do tipo, e aí?

– Não sei se posso pegar coisas – retrucou Sam. – Mas a imagem desapareceu quando eu a toquei, talvez quando outra pessoa a tocar, não desapareça.

– Por que não tenta? – perguntou Tiago.

– Ok! – disse Sam. – Mas antes, cheque se eles ainda estão na cama.

Tiago foi até o quarto dos pais e ouviu à porta, silêncio total. Voltou para a sala.

– Sem barulhos, acho que estão dormindo.

– Certo, lá vai – disse Sam, puxando a bolsa de pedras do bolso. Ela ergueu a pedra vermelha da Runa da bolsa e prosseguiu, fazendo um pentágono no ar, enquanto dizia:

– Addi, cysti, adonis, crytis, chi.

– Bem lembrado – disse Tiago, impressionado.

Sam fechou os olhos e imaginou a si mesma. Lentamente uma imagem apareceu na frente dela. Parecia similar a Sam, mas:

– Sam, a mamãe e o papai vão saber que não é você – disse Mandy.

– Por quê? – perguntou Sam, abrindo os olhos.

– É tão... Não sei, tão perfeita.

– Perfeita?

– É provavelmente a imagem de você que você tem na cabeça, com todos os pontos ruins removidos, tente de novo.

Sam de repente notou um espelho alto, na parede.

Ela andou até ele e, focando no reflexo de si mesma, tentou novamente projetar sua própria ilusão. Lentamente, a ilusão desapareceu e reapareceu. Ela parecia exatamente com Sam.

– Pronto, eu fiz – disse enxugando o suor da testa.

– Está muito... bom! – disse Mandy gargalhando.

– O que há de errado? – Sam perguntou.

– Nada, nada – retrucou Mandy. – É sua imagem perfeita no espelho.

– Então, por que está rindo?

– Não consegue ver? É uma imagem espelhada de você. É você ao contrário.

– Ao contrário?

– Bem, você é destra, certo? Bem, ela é canhota, você entende o que eu quero dizer?

De repente, Sam percebeu o que estava errado. – Entendo, minha mente fez o que vi no espelho.

– Até que enfim ela entendeu – disse Tiago.

– Sinceramente, você é muito burra, Sam.

– Cuidado com isso, ou vou transformá-lo num sapo – disse Sam. – De qualquer modo, acho que sei o que fazer.

– O quê? – perguntou Mandy.

– Veja e aprenda.

Sam focou na ilusão que lentamente derreteu, antes de reaparecer novamente, dessa vez do lado certo.

– Sam, está tudo ótimo – disse Mandy. – Mas as costas estão erradas, não parece muito com você, tente mais uma vez.

Sam suspirou e parou de costas para o espelho e olhou para trás de si mesma.

– Não consigo ver a parte de trás da minha cabeça – disse.

– Deixa comigo – disse Mandy saindo da sala e voltando um minuto depois com um espelho portátil. Ela o entregou a Sam, que viu no reflexo a parte de trás de sua cabeça antes de voltar-se para a ilusão que estava parada no mesmo lugar, piscando ocasionalmente. Sam novamente imaginou sua própria imagem, depois de se concentrar por alguns segundos, até que a ilusão se mudasse novamente ficando quase igual a Sam.

– Pelo menos está certa – disse Mandy com alívio. – Mas posso tocá-la?

Mandy estendeu a mão para tocar a imagem, mas atravessou-a. Felizmente, a mesma não dissolveu como a bola quando Sam a tocou.

– Toque-a, Sam – disse Tiago, depois de sua tentativa.

Sam foi à frente e tocou a própria imagem. A imagem permaneceu a mesma.

– Acho que eu preciso realmente querer fazê-la desaparecer – disse. – Mas de qualquer modo, sou uma garota bem bonita, não?

– É, tanto faz – disse Mandy.

– Então, como você vai movê-la – perguntou Tiago.

– Eu sabia que você iria perguntar isso, e felizmente notei que há uma seção do livro de feitiços sobre animação – retrucou Sam. – Pode ser uma de duas coisas, um é uma seção sobre como fazer uma animação, ou dois, é uma seção sobre como animar objetos com magia.

– Eu fico com a número um – disse Tiago.

– Bem, você ficaria, não é, Tiago? – retrucou Mandy. – Continue Sam, mostre-nos o feitiço.

Sam abriu o livro de feitiços na página correta e começou a ler o feitiço. Depois de um tempo ela disse:

– Há muitas variantes, mas a de que precisamos é aquela que explica como dar qualidades humanas a objetos.

– Você pode chamar uma ilusão de objeto? – perguntou Mandy.

– Aqui diz que você pode misturar feitiços até certo ponto, então, acho que eu poderia dizer que sim – continuou Sam.

– Continue – disse Mandy.

– Para mim, parece que o feitiço que dá qualidades humanas a objetos é bem avançado e, felizmente, você não precisa dos ingredientes.

– É um alívio – disse Tiago.

– Eu posso copiar minha personalidade para coisas também – continuou Sam –, o que significa que esta ilusão pode ser um clone perfeito de mim.

– Brilhante – disse Tiago, sarcástico. – Duas Samantas, eu não vou aguentar...

– Esse pensamento também me assusta – disse Mandy.

– Mas qual o problema, vá em frente, Sam.

Sam puxou a pedra azul de Pikez da bolsa e recolocou a pedra da Runa ao mesmo tempo. Ela desenhou o pentágono, completou o feitiço e de repente a ilusão sacudiu, balançou a cabeça e disse:

– Não achei que isso fosse funcionar.

– Nem eu – disse Sam.

– Parabéns, Sam – retrucou o clone. – Manterei nossos pais fora do caminho enquanto você vai ao encontro hoje à noite.

– Obrigada – disse Sam.

– Não posso acreditar – disse Mandy. – Isto é incrível!

– Eu sei – disse Tiago. – Tenho a sensação de que isso se tornará um pesadelo, quero dizer, uma já é ruim o bastante, mas duas? Falei demais!

De repente, eles ouviram o som dos pais abrindo a porta.

– Rápido, livre-se do clone – cochichou Mandy.

– Você não vai se livrar de mim logo agora! – disse o clone de Sam. – Vou ficar mais um pouco.

– Então se esconda – disse Tiago.

O clone se escondeu atrás do sofá, pouco antes do pai entrar. Sam felizmente já tinha guardado o livro de feitiços e a bolsa de pedras nos bolsos da roupa.

– Bom-dia – disse o pai. – Alguém quer tomar alguma coisa?

– Sim, por favor, pai – disse Sam.

– E eu também – disse Tiago.

– Não quero nada, obrigada – disse Mandy.

Enquanto o pai entrava na cozinha, o clone saía de trás do sofá.

– Eu não ganho nada? – perguntou.

– Não – disse Tiago –, você é uma ilusão.

– Não sou mais. Acho que eu existo.

– É verdade – disse Sam –, ninguém vai se livrar de mim.

– Mas ela realmente não é real – disse Mandy.

– Agora é – retrucou Sam –, embora um nome diferente não fosse ruim.

– Que tal Sam Número Dois – sugeriu Tiago.

– Que tal o meu nome do meio, Katerine? – disse o clone.

– Certo, então você é a Kate.

– Quer que eu faça uma ilusão de bebida para você, Kate? – perguntou Sam.

– Sim – disse Kate –, obrigada.

– Isso é tão esquisito – disse Mandy.

– Eu sei – retrucou Tiago.

– Bem, como você acha que isso é para mim? – perguntaram Sam e Kate juntas.

– Entendo o que dizem – disse Tiago.

– Você não pode me fazer parecer um pouco diferente amanhã? – perguntou Kate.

– Amanhã você vai embora... – disse Tiago.

– De jeito nenhum! – disse Kate.

– Diga isso para ela, Sam – disse Mandy. – Ela vai embora assim que você voltar do encontro.

– Eu? – perguntou Sam. – Eu vou mantê-la.

– Sim, e depois de nos aperfeiçoarmos nesse velho negócio de magia, talvez, você pudesse me fazer mais sólida.

– Com certeza – disse Sam.

– Não posso acreditar nisso – disse Mandy –, ela não pode ficar.

– Posso e vou – disse Kate.

– Tudo bem, se você insiste – disse Mandy. – E quanto a você, Tiago?

– Não podemos impedi-las. Então, que escolha temos?

– Onde ela vai ficar então? – perguntou Mandy.

– Em qualquer lugar – retrucou Kate.

– Qualquer lugar?

– Sim, numa caixa de fósforos, numa caixa de sapatos, numa gaveta.

– Se você está feliz com isso, então tudo bem – disse Mandy.

– Olhe – disse Sam saindo pela porta. – Vocês três entendam-se, preciso ir ao banheiro.

Apenas uns 30 segundos depois que Sam saiu da sala, o pai apareceu carregando dois copos.

– Aqui está – ele disse segurando um copo para Tiago. – E aqui está o seu, Sam.

O pai estendeu o copo para Kate. Kate foi pegar o copo quando se lembrou de que não poderia.

– Eu, bem... Tenho que ir ao banheiro – ela disse, e rapidamente deixou a sala. – Deixe sobre a mesa.

O pai colocou o copo sobre a mesa, antes de sair de novo e retornar à sala dizendo:

– Seja rápida, Sam, eu preciso tomar banho.

– Certo, pai – disseram Sam e Kate juntas.

– Como você fez isso? – perguntou o pai, parando no batente da porta.

Houve silêncio enquanto Sam e Kate esperavam a outra responder.

– Sam?

Ela saiu do banheiro e o clone escondeu-se num canto. Sam pôs os dedos nos lábios e disse:

– O que foi, pai?

– Ah, nada – retrucou o pai. – Apenas soou como duas pessoas, só isso.

– O que você quis dizer com isso? – perguntou Sam inocentemente.

– Apenas soou como se... – começou ele antes de pensar melhor sobre isso e dizer: – Não importa.

– Certo, tanto faz – disse Sam indo para a sala, seguida de perto por Kate.

– Essa foi por pouco – disse Mandy.

– Com certeza, concordou Sam. – Não podemos deixar nada assim acontecer de novo. Precisamos tomar cuidado.

Ela virou-se para Kate.

– Quando a mãe ou o pai chamarem, não responda, Kate.

– Certo, certo – retrucou Kate. – Desculpe, força do hábito, continuo me esquecendo que agora me chamo Kate.

– Tudo bem, mas de qualquer forma, sobre hoje à noite, o que devemos fazer?

– Nós temos um plano, não temos? – disse Mandy.

– Kate finge ser você e você vai para seu encontro estúpido.

– Sim – disse Sam, ignorando o estúpido. – Mas lembre-se do que disse mais cedo sobre tocar coisas?

– Sim, mas o que podemos fazer?

– Talvez Kate consiga levitar coisas bem perto das mãos dela, fazendo parecer que está tocando as coisas.

– Mas Kate não pode tocar as pedras, como ela pode fazer os feitiços?

– Fazendo feitiços sem pedras.

– Mas você precisa das pedras – disse Mandy.

– Quem disse? – perguntou Sam.

– O livro.

– Na verdade o livro não diz – retrucou Sam. – Apenas enfatiza o perigo. Acho que as pedras estão ali apenas para dar força às palavras.

– O mago te disse isso, não disse?

– Ele talvez tenha...

– O que mais ele disse?

– Ele disse que para fazer isso você deve estar avançado na arte e você também pode dizer mentalmente as palavras quando estiver bastante forte.

– Impossível! – disse Mandy.

– Por quê?

– Você só está fazendo magia há um dia, e dificilmente estaria em nível avançado.

– Calculo que eu conseguiria fazer isso hoje à noite, se praticarmos – retrucou Sam. – Além do mais, o mago disse que tenho potencial.

– Potencial sim, anos de experiência, não.

– Bem, eu acho que posso fazer isso.

– Se você diz...

– Eu digo, e sendo uma bruxa, minhas palavras têm poder, se digo, posso e consigo.

– Certo, Kate, vamos lá.


Capítulo 5

Esclarecendo o Caso

Então Sam e Kate começaram a praticar a magia da levitação. Elas decidiram fazer isso na privacidade do quarto das meninas, já que não queriam que os pais entrassem e vissem duas Samantas, uma delas praticando levitação.

Primeiro, elas praticaram levantar coisas sem a pedra de Pikez. Embora fosse uma força mental, tanto Kate como Sam estavam levantando coisas com cada vez menos esforço consciente, até que se sentiram prontas para fazer o feitiço sem pronunciar as palavras.

– Certo então, Kate – disse Sam. – Tente o feitiço sem dizer as palavras.

– Tudo bem, Sam – retrucou Kate, antes de fechar os olhos e dizer o feitiço para si mesma. Ela abriu os olhos e focou no CD sobre a cama de Sam, para onde apontou o dedo, mas nada aconteceu.

– Djenimi – ela disse, finalizando o feitiço, só para o caso de ele continuar ativo.

– Tente novamente, Kate.

– Certo.

Novamente Kate disse as palavras em sua cabeça “Chelon, levita, greyshun, avatar” e mais uma vez nada aconteceu.

O CD permaneceu em cima da cama, exatamente no mesmo lugar.

– Que azar! – suspirou Kate.

– Devemos continuar tentando – disse Sam. – Deixe-me tentar.

Sam tentou da mesma maneira que Kate, afinal, elas eram a mesma pessoa, e nada aconteceu.

Depois de uma hora falhando nas tentativas, não tinham avançado quase nada. Na verdade, elas estavam muito cansadas.

– Preciso de comida – disse Sam. – Estou completamente exausta.

– Eu também – disse Kate. – O que temos para comer?

– Bem, Kate, como você sou eu, você deve saber que eu não sei o que comer e que, aliás, você não pode comer mesmo.

– O que devo fazer para adquirir um pouco de energia de volta?

– Posso tentar fazer uma ilusão de comida – sugeriu Sam.

– Será que isso vai funcionar?

– Eu fiz aquela bebida, não fiz?

– Sim, mas não sei se isso de fato me alimentou, ou coisa do gênero.

– O que você quer dizer?

– Eu apenas bebi a ilusão do gosto de uma bebida.

– Como você sabia disso e eu não? – perguntou Sam.

– Porque eu o bebi.

– Certo – disse Sam, não querendo prolongar ainda mais o problema. – Mas talvez eu possa fortalecer o feitiço, redizê-lo, ou qualquer coisa assim.

– Possivelmente – retrucou Kate. – Mas você também terá que fortalecer o feitiço da ilusão de comida para eu o comer com a área certa da mente, ou talvez você pudesse me dar ilusão de nutrição.

– Qualquer coisa que você precise para te dar energia, eu terei que comer antes – disse Sam. – Caso contrário, entrarei em colapso por exaustão.

Nesse momento, Tiago entrou.

– Oi! Vamos almoçar agora, Sam, você vem?

– Como você sabia quem é quem? – perguntou Sam.

– Porque... – começou Tiago. – Não sei, você pareceu mais real, eu acho.

– Mais real?

– Sim – retrucou Tiago, antes de subitamente perceber o que estava errado com Kate e dizer: – É porque ela é sutilmente transparente.

– Meu Deus, é mesmo! – disse Sam alarmada. – Você não estava assim mais cedo.

– Acho que toda a magia que fiz, me deixou exausta de um jeito diferente do que você ficou – disse Kate. – Aliás, acho que estou enfraquecendo o feitiço.

– Olhe, acho que posso tentar outro feitiço – disse Sam. – Mas apenas com a pedra mágica.

Ela puxou a pedra da Runa da bolsa e preparou-se para o feitiço, enquanto Kate ficava mais e mais clara. Naquela hora, suas mãos já eram quase inexistentes.

– Addi, cysti, adonis, crytis, chi – disse Sam desenhando o pentágono no ar com a pedra. Ela olhou para o corpo de Kate que rapidamente desaparecia e desejou que ele ficasse aparentemente mais sólido.

– Rápido – gritou Kate –, posso sentir que estou indo...

Agora Kate quase já não podia ser vista e Sam brilhava de suor a testa, concentrada em fazer com que mais uma vez seu clone não fosse transparente. De repente, Kate parou de desaparecer e lentamente começou a voltar ao normal.

– Ufa! Achei que fosse um caso perdido – disse Kate.

– Obrigada, Sam.

– Você teria feito o mesmo.

– Eu sei, eu sou você.

– Sim – começou Sam. – Acho que as pedras mágicas estão aqui para que você use a energia delas em vez da sua.

– Profundo – disse Tiago, sarcástico. – Muito profundo e interessante, mas é hora do almoço, Sam.

Relutante, Sam saiu do quarto, deixando Kate praticando o feitiço da levitação, agora que ela tinha sua energia de volta.

Depois do almoço muito necessário, Sam voltou para o quarto, para encontrar Kate ainda tentando fazer o feitiço da levitação mentalmente.

– Sem sorte? – perguntou Sam.

– Sim – retrucou Kate. – É impossível, realmente é.

– É humilhante, pois teremos um problema se alguém quiser que você pegue alguma coisa.

– Eu sei.

Só então Tiago e Mandy entraram.

– Conseguiu fazer funcionar? – perguntou Mandy. – Estava morrendo de curiosidade para saber isso durante o almoço.

– Conseguimos fazer sem a pedra, mas não conseguimos fazer o feitiço sem falar.

– Eu disse... – comentou a irmã mais nova.

– Isso não ajuda, Mandy.

– Certo, mas eu sei o que você pode fazer de maneira que não precise ficar falando as palavras na sua cabeça.

– Kate não pode ficar falando o feitiço toda vez que tiver que segurar algo, mesmo se ela sussurrar, nossos pais vão notar.

– Eu disse para continuar fazendo o feitiço? – perguntou Mandy.

– Bem, o que mais há para fazer, então?

– Não continue fazendo o feitiço.

– Hein?

– Diga o feitiço antes de você ir embora essa noite, mas não diga o encerramento do feitiço, gemini ou coisa do tipo, cada vez que quiser largar algo.

– Sabia que isso poderia funcionar – disse Sam.

– Entendo o que você quer dizer – disse o clone.

– Só tem um problema – ponderou Sam.

– O quê? – perguntou a irmã.

– Como você permite que alguém mais mova o objeto depois que ele está levitando?

– Fácil, com o feitiço já começado, basta encerrá- -lo quando a mãe ou o pai quiserem a coisa. Eles não vão notar uma palavra – disse Mandy. – Quando eles saírem, ou quando você tiver um momento só, você pode dizer as palavras de novo até a próxima vez que precisar delas.

– Brilhante ideia – disse Kate. – Só a minha irmã poderia vir com um plano tão estupidamente brilhante.

– Tudo bem, tudo bem, Kate, não precisa exagerar.

– Venha, Kate, vamos praticar agora – disse Sam. – Pegue o CD como você normalmente o pegaria.

– Ok! Vamos ver se consigo... – retrucou Kate, – Chelon, levita, greyshun, avatar.

Ela inclinou-se para frente e pôs as mãos ao redor do CD de maneira que parecesse que ela estivesse carregando-o. Tinha a mão posicionada de maneira que seu indicador estivesse apontando para o objeto. Kate levantou a mão, com o CD aparentemente agarrado nela. Ela moveu a mão para longe e deixou o CD flutuando no ar.

– Muito bem, Kate – disse Tiago –, pareceu quase real.

– Isso foi um gracejo? – perguntou Kate.

– O quê? Quem? Eu? – perguntou o menino inocentemente. – Claro que não.

– O livro diz que apenas a pessoa que faz o feitiço pode terminá-lo – disse Kate.

– E se a pessoa que faz o feitiço for a mesma pessoa que o estiver terminando? – perguntou Sam.

– Certo, então vá em frente e diga.

– Djenimi – disse Sam.

O CD oscilou no ar e balançou violentamente e o plástico começou a quebrar e estilhaçar-se em lascas que começavam a balançar e oscilar por si mesmas enquanto continuavam suspensas em pleno ar.

– Você confundiu o feitiço ou coisa assim – gritou Mandy.

– Kate, diga a palavra, rápido!

– Denimi, não djemini, desculpe, djenimi!

De repente, o despedaçado CD parou de balançar e caiu, e os fragmentos dele voaram em todas as direções. Felizmente, todos, exceto Kate, tinham deitado atrás da cama de Sam, evitando serem metralhados por plástico.

– Bem, agora eu sei que não se deve fazer isso de novo – disse Sam. – Sorte que não fizemos isso acidentalmente hoje mais cedo.

– Gostaria de saber por que o feitiço aconteceu assim – disse Kate. – Mandy disse que nós o confundimos, talvez porque o som de sua voz seja o mesmo da minha, o feitiço respondeu, mas acabei trocando a mágica.

De qualquer forma, vamos torcer para que não aconteça de novo – disse Sam. – Talvez depois eu possa mudar a sua voz ou coisa do tipo...

– Possivelmente... embora eu goste da minha voz – disse Kate.

– Não seria a mesma coisa com outro som no tom de voz.

– Talvez você também queira mudar a sua aparência – sugeriu Sam. – Afinal, é muito parecida com a minha, e é estranho falar comigo mesma.

– De jeito nenhum – retrucou Kate. – Não poderia suportar parecer outra pessoa.

– Faça como quiser – disse Sam. – De qualquer modo é melhor continuar praticando pegar as coisas.

O resto da tarde foi gasto praticando o feitiço para que parecesse que ela estivesse segurando coisas, até que Kate transformou isso em arte. Seus pais tinham saído para uma volta pela aldeia, então nenhum tumulto lhes tirava a atenção.

Pelas sete horas, os pais já tinham voltado e o jantar já estava pronto. Depois do jantar Sam, Mandy, Tiago e Kate estavam se preparando para sair e brincar de travessuras ou gostosuras. O plano era os quatro brincarem por uma hora, enquanto faziam o caminho para o prado da aldeia e para a casa onde o encontro deveria acontecer. Quando Sam fosse, o plano era que Kate, Mandy e Tiago continuassem brincando, e fossem para casa, onde Kate fingiria ser Sam. Se o plano ocorresse bem, Sam entraria mais tarde pela janela.

Sam e os irmãos gêmeos saíram pela porta da frente, enquanto Kate saiu sem ser vista pela parede do quarto das meninas. Sam e os irmãos encontraram o clone, um pouco à frente na estrada. Sam e Kate agora plenamente capazes de fazer levitação, estavam pensando em algumas boas travessuras que elas poderiam fazer, como levitar a peruca da cabeça das pessoas e levantar gnomos de jardim para o topo dos telhados.

Os três começaram a brincar as oito e dez.

Enquanto suas bolsas se enchiam, o tempo passava mais e mais, aproximando-se das nove horas. Até cinco minutos antes das nove horas, eles ficaram do lado de fora da casa, que parecia deserta. As janelas eram escuras e pareciam absorver a luz das lâmpadas da rua em vez de refleti-las. Mandy, Tiago e Kate observaram Sam enquanto ela andava pelo longo e crescente caminho para a assombrosa porta da frente.

– Tem certeza de que é esta a casa? – sussurrou Mandy para Kate.

– Sim, é a única que se encaixa na descrição – retrucou Kate.

Os três esperaram no portão e observavam Sam enquanto ela puxava o batedor de porta, mas a porta abriu-se visivelmente sozinha. Eles a viram entrar antes da porta fechar-se por trás dela.

– É isso! – disse Tiago. – Não há nada a fazer agora.

– Vamos esperar um pouco aqui – disse Mandy.

– Certo – concordou Kate.

Os três esperaram perto do portão por cinco minutos, mas nada aconteceu.

– Eu acho que devemos ir agora – disse Kate. – Não consigo ver nada acontecendo.

– Certo – retrucou Mandy relutante. – Vamos continuar a brincar de travessuras ou gostosuras.

Os três foram brincar de novo, mas eles só pensavam naquilo, sentindo que estavam perdendo a verdadeira diversão.

– Sam tem sorte de ser mágica – disse Tiago. – Gostaria de ser também.

– É um maravilhoso dom para se ter – concordou Kate. – Mas não fique muito chateado com isso, Sam tem que ir a esses encontros e coisas do tipo.

– Bem, acho que eu também iria – disse Tiago. – Se eu tivesse a chance de fazer mágicas.

– Como é o poder de fazer magia, Kate? – perguntou Mandy.

– Brilhante, absolutamente fantástico – retrucou Kate. – Mas eu ainda preferia ser capaz de tocar as coisas.

– O que você quer dizer com ainda? – perguntou Mandy. – Você nunca foi capaz de tocar.

– Continuo sendo a Sam. Eu tenho as mesmas memórias que ela, até o momento em que ela me fez. Parece que de repente eu me separei de Sam e me tornei uma pessoa diferente.

– Como você consegue lidar com isso? – perguntou Mandy.

– Nem é tão ruim, ainda posso tocar ilusões e coisas do tipo e, um dia, ainda me farei sólida.

– Vamos lá – disse Tiago. – Aqui temos outra casa para ir.

E assim os três continuaram com travessuras ou gostosuras até que finalmente fossem para casa um pouco depois das dez horas.


Capítulo 6

O Mago

Sam ouviu a porta fechando atrás dela. O silêncio era total, exceto pelo estalar da madeira da casa. Estava escuro feito piche ao redor de Sam e a luz que vinha das janelas mal iluminava qualquer coisa. Atrás dela, Sam começou a perceber o som regular de respirações fundas. De repente, uma mão pousou sobre seus ombros. Sam grunhiu e virou-se pulando para trás. Ela bateu em outra figura, que tentava agarrá-la. Então soltou-se e pulou para frente novamente, nos braços da primeira figura que já a esperavam. Em tudo a volta, havia o som de figuras não visíveis subindo caoticamente o largo corredor. Havia o som de muitas vozes gritando e chorando antes que Sam ouvisse alguém gritar:

– Para que o pranto cresça, alguém faça com que a luz apareça!

Rapidamente um brilho embaçado iluminou o corredor, onde estavam amontoadas cerca de 100 pessoas, muitas vestidas com mantos. Assim que a luz apareceu todos se acalmaram um pouco. A pessoa que colocara a mão sobre seu ombro era o mago da noite anterior, Cornelius Brown.

– Ah, jovem Samanta – ele sorriu radiante. – Criando um pequeno tumulto, como posso ver.

– Desculpe-me – retrucou Sam. – Fiquei um pouco assustada com o quão assombrado é este lugar. Por que estamos todos esperando no escuro?

– Estamos esperando o líder do clã, que vai destravar as portas para entrarmos na sala de cinco lados.

– Você não pode abrir as portas com magia? – perguntou Sam.

– É por causa da tradição, jovem feiticeira – ele disse. – E porque elas estão protegidas pelos mais fortes e impenetráveis feitiços conhecidos por todos os magos.

– Alguém se livre da luz! – disse alguém. – Vocês sabem que ele gosta que nós o esperemos na escuridão.

– Santa aflição, sim! – disse o mago que tinha feito o feitiço da luz. Ele ondulou as mãos no ar e a luz minguou, deixando o local completamente escuro novamente.

A sala aguardou em silêncio antes de subitamente uma forte voz ecoante bradar para o grupo reunido: – Bem-vindos novamente, para o 1500º encontro anual do clã. Como a maioria de vocês sabe, eu, o líder do clã, devo resumir as conquistas do nosso grupo no último ano, bem como apresentar a agenda do ano vindouro. Além disso, devemos fazer o passeio pelas cinco dimensões mágicas e apresentar os novos membros ao clã. Por favor, dirijam-se para a sala de cinco lados e sentem-se.

Os 100, ou tantos magos, começaram a preencher a sala, vagamente iluminada por velas, que possuía uma velha mesa de madeira de cinco lados que corriam paralelos às paredes. A mesa não era sólida em toda sua extensão, mas, mais que isso, formava a linha externa de um pentágono e Sam começava a imaginar se o número cinco tinha algum significado especial para essas pessoas. Ela seguiu Cornelius Brown até seu assento. Cornelius apontou para Sam sentar-se perto dele e ela o fez. A mesa estava preparada para um magnífico banquete e a prataria era abundante. No espaço no meio dos cinco lados da mesa, havia outra mesa, também com cinco lados, com todo tipo de comida. Sam imaginava como um cômodo tão grande, e de forma tão esquisita, poderia existir em uma casa que embora ampla, não parecia grande o suficiente para acomodá-la. Ela cutucou Cornelius, esquecendo-se de que ele era um fantasma. Não obstante, Sam sentiu seu cotovelo tocar a imagem fantasmagórica, que se virou para ela.

– Você quer alguma coisa, Samanta? – ele perguntou.

– Sim – retrucou. – Não entendo como um cômodo tão grande pode caber nesta casa. São duas vezes maior que o piso térreo, e o forro do teto parece tão alto quanto a própria casa em si.

– Ah – retrucou Cornelius –, o que você está testemunhando é a manipulação dimensional de Heindelburg.

– Magia? – perguntou Sam.

– Claro – disse o mago.

– Não acredito que não pensei nisso – disse Sam –, afinal de contas, é um encontro de magia.

Ela sentou na macia e confortável cadeira, olhando pela sala, para todos os membros do clã. Eles variavam de fantasmas a pessoas vivas, mas todos com a habilidade comum da magia. Ela gostaria de saber quem serviria a comida, que continuava sobre a mesa central.

De repente, por uma porta diferente daquela pela qual os membros do clã entraram, veio uma figura alta, vestida de preto, com uma máscara branca ocultando a face. Ela tomou seu lugar na ponta superior da mesa pentagonal e anunciou na mesma voz estrondosa que Sam ouvira no corredor:

– O jantar será servido em breve. Aproveitem a refeição, membros do clã, antes de começarmos com o primeiro item da agenda da noite, que é o resumo dos feitos do ano, com diversas contribuições de outros membros, seguido pelos eventos do ano que vem. A segunda parte da agenda são as boas-vindas aos novos membros, em seguida, o passeio pelas cinco dimensões mágicas, onde devemos nos lembrar mais uma vez do verdadeiro espírito da magia. Então, aproveitem a suntuosa refeição.

Da mesa de comida, as enormes louças e pratos, subitamente, levantaram no ar, dividindo-se em cinco grupos que consistiam da mesma seleção de comida, e flutuaram pelos pontos da mesa principal, movendo-se de um em um em sentido horário. Enquanto elas paravam em cada pessoa, amontoavam as diferentes comidas do cardápio no prato, e quando terminavam, as louças e os pratos se moviam. Algumas pessoas até colocavam a comida em seus pratos usando magia. Antes que as comidas de seu lado da mesa os alcançassem, Cornelius Brown sussurrou para Sam: – Falando nisso, antes de você sequer pensar em colocar a comida no prato usando magia, lembre-se de que isso só é atendido quando realmente as palavras são pronunciadas e as únicas pessoas que conseguem fazê-lo são as suficientemente experientes para levitar sem dizer as palavras.

– Obrigada por me dizer – disse Sam.

Enquanto a procissão se aproximava da menina, Cornelius encheu seu prato antes, usando magia. Logo, era a vez de Sam. Ela encheu o prato, embora tivesse jantado apenas algumas horas antes, e começou a afundar-se na comida.

Às dez e meia, o líder anunciou o final da refeição. Ele estralou os dedos e a magnífica refeição desapareceu, deixando a madeira da mesa descoberta, exceto por algumas velas movendo-se ao longo de sua extensão. A mesa central também se limpou e, acima dela, de repente, apareceu um globo branco opaco que começou a formar uma imagem em movimento.

– Na retrospectiva do ano passado – começou o líder –, podemos ver que o senhor Jackson Jones finalmente se livrou da criatura que habitava seu celeiro, usando o próprio feitiço, o Feitiço Jackson Jones Rompedor de Celeiro. Infelizmente, ele teve de usar o feitiço Goldenstein de Limpeza Instantânea logo depois, já que não conseguiu um ajuste perfeito de seu feitiço.

Ao redor da sala, ouviram-se educados risos e Sam sentiu que tinha sido deixada de fora de alguma grande piada.

– Agora, falando sério, Jackson merece elogios por ter inventado seu próprio feitiço. Tenho certeza de que vocês todos já tiveram algum tipo de monstro persistente vivendo na sua casa, e sei que vocês têm consciência do problema desses monstros ficarem cada vez mais resistentes aos atuais feitiços ofensivos. Sendo assim, uma nova forma de controlar os monstros é bem-vinda.

Assim que tivermos testado o Rompedor de Celeiro de Jackson Jones, estaremos atualizando os seus livros de feitiços.

Sam ouvia enquanto o líder continuava falando sobre feitiços que rompiam as defesas inimigas e as façanhas do ano passado. O líder então começou a falar da agenda do ano seguinte e os alvos que teriam que alcançar. Enquanto o mestre falava, o globo se atualizava para mostrar as imagens daquilo que ele descrevia: – Nos últimos séculos, novos membros vêm sendo menos frequentes, então quando um novo membro realmente entra, é motivo para celebração. Deixem-me dar as boas-vindas à Samanta ao clã.

Os membros atuais aplaudiram educadamente, enquanto Sam era subitamente iluminada por um círculo de luz, já que havia um holofote sobre ela.

– Tenho certeza de que você se tornará uma valiosa parte do clã – afirmou o líder. – E Samanta já vem se mostrando como uma promessa, mantenham seus olhos nela!

A luz apagou e o mestre continuou.

– Agora que vocês conheceram Samanta, é hora de revisitar as cinco dimensões mágicas.

O líder estralou os dedos e, de repente, a cena desapareceu, mas em vez de aparecer em algum estranho novo mundo, Sam permaneceu no mesmo lugar, mas sem o resto do clã por lá. A mesa tinha sumido, substituída por uma pesada jaula de ferro que cercava Sam completamente, tanto acima como abaixo dela. O líder continuava onde estava antes e Cornelius também permanecia do lado de fora da jaula em que Sam estava.

– Parece que a jovem feiticeira caiu na nossa armadilha – tagarelou o líder. – Ela caiu mais facilmente do que eu imaginava.

– Parabéns – disse Cornelius. – Com os poderes dela, poderemos fazer o que desejarmos de novo.

– A armadilha do livro de feitiços foi muito esperta – disse o líder numa voz não mais estridente. – Nem mesmo necessitamos recorrer a outros meios para capturar nosso pequeno prêmio.

– O que está havendo? – suplicou Sam.

– Você é nossa prisioneira – disse o líder. – Nós vamos usar os seus dons mágicos para nossos próprios propósitos.

– Mas achei que você tivesse magia suficiente! – disse Sam.

– Sim, mas quanto mais nova, mais poderosa é a magia, embora, infelizmente você não saiba como usar isso. Mas nós sabemos, e é o que temos feito esse tempo todo – retrucou o líder. – Agora que temos você no bolso, podemos fazer o que quisermos – disse Cornelius. – E você não tem poderes para nos impedir.

– Particularmente, me agrada o fato de que você não tentou os feitiços com ingredientes – disse o líder. – Eles teriam funcionado, entretanto, você não precisa de coisas como ingredientes para fazer feitiços, apenas conhecimento.

– Então por que incluir esses feitiços? – perguntou Sam.

– Para fazer você se sentir mal sobre si mesma depois de tudo, sabendo que tinha todo aquele poder à sua disposição e você não o usou – e o líder gargalhou, maligno.

– Se você não é o líder do clã – disse Sam –, quem é você?

– Ah, mas eu sou o líder do clã, mas o clã não é o grupo legal que você conheceu – retrucou o líder. – Não, o clã é um grupo de viciados e malignos feiticeiros que há muito tempo liquidou todos os bruxos bons.

– Então, por que vocês não governam o mundo? – perguntou Sam.

– Porque nosso poder é muito fraco comparado com o que uma vez foi na época que todos os bruxos e bruxas bons foram derrotados. Nós não tínhamos mais poderes suficientes para dominar o mundo – disse o líder.

– Decidimos então ficar escondidos até que outra poderosa noviça viesse de maneira que pudesse ser manipulada por nós. Esperamos séculos para encontrar outra pessoa que tivesse o potencial para ser não só um mago ou feiticeira, mas um dos poderosos.

– Séculos? – perguntou Sam. – Quantos anos vocês tem?

– Com a idade, você esquece algumas coisas – disse o bruxo velho. – Mas lhe garanto que sou velho.

– Como então vocês derrotaram os bruxos bons? – perguntou.

– Usamos a lei contra eles e os revelamos como bruxos. Eram centenas e foram mortos por dinheiro, que nós pagávamos.

– E como vocês não foram caçados? – indagou Sam.

– Porque os bruxos e bruxas bons nunca abusavam da magia, e só fazem o bem com ela. Por outro lado, nós alcançamos posições de poder e ficamos a salvo.

– E o que vocês vão fazer comigo agora? – perguntou a menina.

– Vou deixar você na mais escura e úmida masmorra que encontrar, onde sugarei todo poder que você tem até que ele acabe. Depois vou matar você lenta e dolorosamente.

– E nem pense em escapar – bradou Cornelius. – Você está em uma jaula magicamente protegida. Não pode escapar!

– E, agora, devo levá-la à minha masmorra – tagarelou o líder. Ele estralou os dedos, mas em vez da jaula de súbito virar magicamente uma masmorra, as sombras ao redor da sala de repente animaram- -se, conforme as criaturas das sombras riam e gargalhavam malignamente, e escoavam lentamente pela jaula. Elas eram quase humanas na forma, mas totalmente pretas e pareciam bidimensionais. A única cor delas eram os ardentes olhos vermelhos, que brilhavam malévolos como brasas fumegantes. Enquanto levantavam a jaula, ainda gargalhando e tagarelando malignamente, o líder gritou:

– Finalmente, nossos séculos de espera acabaram! Agora podemos, pela primeira vez, libertar nosso poder sobre o mundo e ninguém poderá nos deter, ninguém! Samanta, bruxa novata, observe meu clã de bruxos das trevas beber do seu poder, com você incapaz de nos controlar, nem mesmo um pouquinho.

– Você nunca vai conseguir e sabe disso! – gritou Sam. – Você nunca dominará o mundo se eu puder evitar.

– Ah, mas você não pode, então eu dominarei o mundo e todos nele, vocês todos serão meus escravos! – gritou o mago. – E quando controlar as pessoas, eu escolherei a dedo meus aprendizes de maneira que nada possa nos deter!

– E o que vai acontecer quando você tiver todo esse poder? – perguntou Sam. – Além de eu morrer dolorosamente nos anos vindouros, enquanto meu poder se esvai...

– Você continuará alimentando-me com seu poder, de modo que eu nunca seja superado por bruxos jovens ávidos por derrotar-me com seus poderes – retrucou o líder. – E você também será meu exemplo do que acontecerá com quem me desobedecer.

A menina foi levada para o corredor, carregada em sua jaula pelas pessoas das sombras. Carregaram-na por uma outra porta que levava a um porão. Então, lembrou-se de que o líder mencionara uma masmorra escura e úmida, e suspirou profundamente. Ela não conseguia ver nenhuma forma de escapar, enquanto estivesse na jaula que era carregada por alguns degraus de pedra molhada para um quarto muito escuro. Para Sam, a jaula parecia ser carregada por corredores invisíveis, durante muito tempo, o que significava que ela seria levada ao calabouço apropriado, não para uma cela imunda. Ela reconheceu que a masmorra espalhava-se por uma boa parte da aldeia, pela distância que pareceu ser percorrida. Subitamente, fizeram uma parada enquanto Sam caía sem cerimônia no chão e as falantes pessoas das sombras saíam de cena, seus risos ecoando pelos corredores. A jovem bruxa estava sozinha e no escuro. Ela tentou elaborar um plano de fuga, mas não conseguia imaginar como poderia passar através das grossas e magicamente protegidas barras da jaula.


Capítulo 7

A Fuga

Depois de apenas alguns minutos, a escuridão pareceu envolver Sam e ela começou a imaginar coisas na escuridão fora da jaula, indizíveis horrores à espreita, esperando para avançar a qualquer minuto. Finalmente, não conseguiu mais aguentar.

– Addi, cysti, adonis, crytis, chi – gritou dizendo o feitiço da ilusão. Ela se concentrou até que uma suave bola de luz brilhante surgiu sobre a jaula e iluminou o calabouço ao redor com uma fria luz branca. Sam olhou em volta e estremeceu. As paredes estavam cercadas de um grosso limo verde, que escorregava para o chão e se acumulava em poças lamacentas. Ratos do tamanho de cães passeavam pelo chão coberto de esqueletos de camundongos mortos e lodo. A distância, no final de um dos muitos corredores, Sam podia ver outra jaula, contendo esqueletos humanos amontoados no interior, com as mãos ainda agarradas às barras, como se ainda tivessem esperança de escapar da prisão. Sam desejou não ter criado a luz, mas agora não queria apagá-la, pois sabia que sua imaginação iria lhe pregar peças, dizendo-lhe que existiam ruídos fora da jaula que não estavam de fato lá.

Ela teria que bolar um plano, ou passaria a eternidade ali, enlouquecendo de solidão e terror. As horas passavam lentamente até que, de repente, Sam pensou em uma coisa estupidamente simples que não conseguia acreditar não ter pensado antes. Ela poderia criar outro clone de si mesma, ou usar a Kate, projetando sua imagem na frente dela, e movendo Kate de onde quer que ela estivesse para lá, agora.

Sam fechou os olhos e concentrou-se por alguns segundos, manipulando o feitiço que tinha criado Kate que continuava ativo mesmo depois de tantas horas. De repente, houve um breve grito com o som da voz de Sam. Sam abriu os olhos.

– Psiu! – ela disse.

– Onde estou? – gritou Kate. – E o que você está fazendo nessa jaula, Sam?

– Serei breve! – disse Sam. – Mas, basicamente, o clã era tudo uma enganação, o encontro era uma ilusão e lá pela metade acabou. Eu estava nesta jaula à prova de magia e o verdadeiro clã se mostrou, consistindo de risadinhas sórdidas, aparentemente feitas de sombras. O líder me quer pelos meus poderes mágicos, pois aparentemente está perdendo os dele enquanto envelhece.

– Uau! – disse Kate. – Você é realmente fácil de enganar, Sam.

– Tanto quanto você – retrucou Sam.

– Então, como vim parar aqui?

– Eu te trouxe aqui, pois ainda esperava que você trouxesse o livro de feitiços.

– Desculpe-me, você devia ter pedido – disse Kate, meio jocosa. – Então, o que quer que eu faça?

– Eu mandarei você para casa por 15 minutos, para encontrar um feitiço apropriado, e levito você para cá de novo.

– Certo – concordou Kate. – Encontrarei alguma coisa.

Sam fechou os olhos e se concentrou em colocar Kate de volta na cabana, em seu quarto, e quando abriu os olhos novamente, Kate tinha ido.

Os 15 minutos seguintes pareceram ser os minutos mais lentos de toda história de 15 minutos que Sam já havia experimentado. O esqueleto na jaula estava realmente começando a incomodá-la, e quando virou de costas para ele, pôde sentir que o mesmo olhava para ela. Era apenas imaginação, ela dizia para si mesma olhando para o relógio novamente. Ela virou para dar mais olhada no esqueleto, mas para sua surpresa e horror, ele tinha sumido, a jaula estava vazia.

Ainda havia cinco minutos restantes para que Kate voltasse, e Sam teve vontade de trazê-la de novo agora. Resolveu fazer isso e torceu para que seu clone tivesse encontrado o feitiço certo. Ela tentou concentrar-se com os olhos arregalados para trazer Kate de volta, mas não conseguiu, ela estava muito tensa e muito nervosa para se concentrar. Ouvindo um som de clique ecoando, semelhante ao que Sam imaginava que o esqueleto faria ao andar, pois deveria estar andando pela masmorra, Sam decidiu pronunciar as palavras do feitiço da levitação, só para o caso de alguma coisa acontecer. O clique ficava mais e mais alto, e Sam não sabia de onde vinha. Ela girou ao redor de si mesma várias vezes, procurando pelo esqueleto se aproximando, mas não conseguia vê-lo. Parou de girar e recuperou o equilíbrio quando o clique cessou e uma voz logo atrás dela falou:

– Procurando por mim?

Ela virou-se para ver que o esqueleto do calabouço distante estava bem atrás dela, na mesma jaula.

– Arre! – a menina gritou apontando o dedo para o esqueleto, levantando-o para o topo da jaula, usando o feitiço felizmente já preparado.

– Como fez isso? – perguntou Sam.

O esqueleto, embora incapaz de fazer expressões faciais, parecia chocado.

– Ponha-me no chão! Ponha-me no chão! – ele gritava. – Você é louca, ponha-me no chão!

– Não até você explicar quem é, porque está na minha jaula e como entrou aqui!

– Eu sou um prisioneiro, como você! – retrucou freneticamente. – Fui deixado aqui para morrer por ser o último bruxo bom vivo, e usei um pouco de minha magia para manter-me vivo, mas não consegui impedir meu corpo de apodrecer, restando apenas meu esqueleto.

– Continue – disse Sam. – Por que está na minha jaula?

– Você é a primeira criatura que vejo há séculos que não é um ser das sombras. Não quis te assustar.

– E como entrou? – perguntou Sam.

– Durante séculos treinei como escapar da jaula, derrotando feitiços de proteção – retrucou o esqueleto. – Mas até hoje, não fui capaz de derrotá-los por não ter mais magia suficiente.

– Então, você entrou na minha – disse Sam. – Por que cada bruxo talentoso que eu conheço quer um pouco da minha magia?

– Se você realmente quer uma reposta para isso, então é porque você é uma das últimas jovens bruxas restantes, pelo que pude sentir do mundo exterior no decorrer dos anos – retrucou o esquelético mago. – Além disso, você torna mais fácil para outros bruxos usar seus poderes já que não os controla devidamente, transformando-a numa espécie de farol mágico.

– Como controlo o poder então? – perguntou Sam.

– Você precisa ser ensinada – retrucou o mago. – Eu posso ajudá-la assim que tiver um novo corpo.

– Como vai fazer isso? – perguntou Sam.

– Ó céus, você é nova nisso, não é mesmo? – murmurou o mago. – Vou ensiná-la.

– Só faço magia há alguns dias – disse Sam.

– Alguns dias? – perguntou o mago surpreso. – Então você é realmente poderosa, não deveria ainda dominar a levitação, mesmo com alguém ensinando, até pelo menos muitos meses de prática.

– Quanto tempo então vou levar para criar um novo corpo? – perguntou Sam, com um toque de orgulho na voz.

– Quanto tempo vai levar para me colocar no chão de novo? – perguntou o esqueleto.

– Ah, sim, claro! – disse Sam. – Djenimi!

O mago caiu no chão com um estampido medonho, como um chocalho de ossos e metal.

– Eu devia tê-lo abaixado antes? – perguntou Sam.

– Sim – retrucou o mago trêmulo. – Acho que devia...

Enquanto o mago se levantava, Sam já podia ver a carne crescendo de volta e os órgãos do mago crescendo dentro de sua caixa torácica. Uma rede de veias e artérias cresceu, ligando-se ao agora pulsante coração. Sam virou-se com desgosto, essa talvez fora a coisa mais repulsiva que já vira na vida.

– Pode se virar agora – disse o mago.

Sam virou-se temendo o que poderia ver. O mago parecia ter uns 60 anos, com cabelos grisalhos e uma longa e fluida barba. Felizmente, ele também havia criado um manto para cobrir o corpo recentemente reconstruído.

– Sabe, eu costumava liderar os bruxos e bruxas bons – disse o mago, – até que a caça às bruxas começou e os bruxos bons pereceram nas mãos dos caçadores, pagos, ironicamente, pelos bruxos malvados.

– Qual o seu nome? – perguntou Sam.

– Henry – respondeu o mago –, Henry Balcombe.

– Bem, Henry, se importaria de me tirar desta jaula?

– Eu quebrei os feitiços dela, pode fazer o que quiser para sair.

– Como você entrou?

– Eu me teletransportei.

– Teletransportou?

– Sim, eu me teletransportei para dentro da jaula.

– Acho que vou apenas curvar as barras – disse Sam.

– Vá em frente, então. Mas seja rápida.

Sam disse as palavras do feitiço da levitação, pensando com ela mesma o quão útil elas tinham se tornado, e apontou as barras da jaula. Ela moveu o braço para a direita e torceu as barras para trás, depois apontou para a barra adjacente e moveu o braço para a esquerda, deixando um vão entre as duas barras, grande o suficiente para ela passar apertada.

– Certo, e agora? – perguntou Sam.

– Nós nos teletransportamos para cima – disse Henry.

– Então, como eu me teletransporto?

– Diga: telepi, juanetti, ourteri e imagine aonde você quer ir, fora dessa casa horr...

De repente, o mago desapareceu no meio da frase, deixando Sam sozinha no calabouço. O que foi que ela devia dizer? Certo, ela sabia.

– Telepi, juanetti, outeri – ela disse, imaginando estar no lado fora comum da casa. Enquanto sentia o calabouço esvair-se dela, ouviu a respiração do líder, quando ele virou no corredor e a viu desaparecendo.

De repente, Sam estava do lado de fora, a uns 20 metros da casa. Ela viu Henry olhando ao redor, procurando por ela ali fora.

– Ele me viu – gritou Sam. – Temos que fugir!

– Para onde? – perguntou Henry olhando ao redor.

– Qualquer lugar! – berrou Sam.

Ela correu na direção do bruxo e os dois escaparam.

– Se tivermos sorte, ele não saberá para onde fomos – disse Sam.

– E se formos azarados?

– Ele vai nos teletransportar para onde estávamos momentos atrás.

– Deixe-me lutar com ele – desejou o mago.

– Não, os seus poderes são muito fracos para isso – disse Sam. – Você estará usando minha magia ao lutar contra ele, ele usará a minha, mas a dele também.

Quando eles viravam uma esquina, ouviram o berro de raiva do líder enquanto aparecia fora da casa.

– Venham meus demônios! – ele gritou. – Sigam- -me para caçar esses patifes! – ele saiu em perseguição aos fugitivos, com pessoas das sombras seguindo-o da escuridão. Enquanto Sam e Henry Balcombe corriam, eles sentiam os dedos das pessoas das sombras saindo e tentando pegar suas pernas.

– Você me teletransporta para casa! – gritou Sam.

– Onde fica?

– Tudo bem, na rua acima.

O mago pensou nas palavras e desapareceu, seguido de perto por Sam que teve que dizê-las alto. Ela apareceu na ponta errada da rua, mas logo teletransportou-se para o outro lado.

– E agora? – grunhiu Henry.

– Não sei, mas pelo menos conseguimos algum tempo – disse Sam.

Naquele momento Tiago, Mandy e Kate entraram na rua acima, vindos de uma estrada lateral.

– Tiago! Mandy! Kate! – chamou Sam. – O que estão fazendo aqui?

Os irmãos e o clone correram para acudir Sam e Henry. – Resolvi checar se estava tudo bem quando você não me levou de volta ao calabouço – disse Kate. – Eles insistiram em vir junto.

– Quem é ele? – perguntou Tiago.

– Outro mago – respondeu Sam.

– Não deveríamos estar correndo, então? – perguntou Tiago.

– Não, ele é do bem – disse Sam. – Você achou um feitiço?

– Não tive tempo de percorrer todo livro, mas encontrei um feitiço de bola de fogo – retrucou Kate. – Não achei nenhum feitiço para escapar, mas parece que você já fez bem essa parte.

– Feitiço bola de fogo, ele nem vai ligar para isso – disse Henry. – Quer dizer que você é um clone da Samanta?

– Temo que apenas a ilusão de um clone.

– Consegue lutar com ele? – Sam perguntou para Henry.

– Farei meu melhor, mas não sou tão poderoso quanto ele.

– Não posso impedi-lo de usar meu poder? – perguntou Sam.

– Você pode tentar – disse Henry. – Mas duvido que esteja apta, você precisa dos feitiços de proteção que eu não tive tempo de lhe ensinar.

De repente, o líder apareceu do outro lado da rua, agora acompanhado por Cornelius.

– Mandy, Tiago! Escondam-se – gritou Sam.

Mandy e Tiago pularam numa cerca viva, enquanto o líder atirava bolas de fogo e raios rua abaixo em Sam, Henry e Kate.

– Vejo que tem companhia, Samanta – riu maldosamente o líder. – Duvido que isso ajude. É apenas um clone seu.

– Veremos – respondeu Sam.

– Use as mãos assim para desviar as bolas de fogo, Samanta – disse Henry.

– Henry, que bom vê-lo vivo e bem novamente – zombou o líder. – Veio morrer de novo, não é?

Henry fez um complexo movimento com as mãos, mandando um dardo de luz na direção do líder.

O líder desviou-o facilmente e devolveu uma bola de fogo verde que foi direto para Kate.

Kate disse uma palavra mágica que mandou um feitiço de bola de fogo na direção do descuidado Cornelius, que desviou em cima da hora. Cornelius lançou um feitiço para despejar chumbo derretido nos ossos de Kate, sem perceber que Kate não tinha osso nenhum. Henry, lançou um feitiço que fez 100 corvos aparecerem e abaterem-se sobre o líder com a intenção de secá-lo até a morte. O líder disparou uma grande bola de fogo neles, cozinhando-os vivos. Então o bruxo do mal soltou uma risada maníaca, enquanto as carcaças dos pássaros caíam como chuva. Depois, lançou um feitiço que criou outra jaula sobre Sam. A jaula desceu como um portão vertical, e Sam esgueirou-se para fora bem a tempo. Parecia óbvio para ela que ele a queria viva.

Ao longo da rua, luzes se acendiam à medida que as pessoas ouviam os barulhos na rua. Os moradores da aldeia assistiam aterrorizados à batalha dos bruxos. Alguém, obviamente, telefonou para a polícia, e a distância se ouviam sons de sirenes.

Uma enorme bolha mágica cercou os feiticeiros enquanto eles lutavam com feitiços cada vez mais poderosos. O ar fervia e estranhas criaturas eram brevemente trazidas à vida por explosões aleatórias de magia.

A primeira viatura da polícia chegou quando a jovem bruxa destruía um grupo de pessoas das sombras que tentava subir neles, com o feitiço da bola de fogo que aprendera de Kate. O motorista da viatura estava tão pasmo que bateu o carro em um poste de iluminação, arremessando-o na direção da bola mágica. Assim que o poste atingiu a bolha, derreteu-se em um monte de metal que ferveu e evaporou.

Mais carros de polícia chegaram, muitos com policiais armados. Um bravo, porém tolo, policial tentou entrar na bolha mágica e foi instantaneamente cozinhado vivo e queimado, transformando-se em nada. Esse foi o sinal para os policiais abrirem fogo contra os ostensivos exibidores de magia. Muitas balas derreteram ao atingir o mágico campo de energia. As balas restantes ou transformavam-se em alguma coisa diferente ou eram magicamente desviadas de volta para onde vieram, ferindo muitos policias que lá estavam.

Os policias encarregados do ataque, que estavam abaixados atrás de suas viaturas, pediam freneticamente ajuda para o exército, pelo rádio.

Sam começou a sentir-se drenada enquanto lutava contra os magos da maldade. Ela sentia como se toda a magia usada na vizinhança estivesse vindo dela, o que era verdade. Sentia que não mais poderia fornecer energia. Procurou pela Kate, que estava atirando bolas de fogo com total dedicação. O clone de Sam bruxuleou, deformou-se e subitamente desapareceu com um estouro. Sam pegou o livro de feitiços que Kate estava levitando, enquanto esse caía.

Nos arbustos, Mandy disse para Tiago:

– Kate se foi!

– Eu sei, mas você viu Sam?

– Meu Deus, ela está ficando cada vez menos real, mas não posso explicar.

– Não acho que ela consiga suportar ainda mais isso, fornecer a magia que todos eles estão usando.

Sam balançou a cabeça, tentando se livrar da embriaguez que parecia tomar conta dela. As pessoas das sombras, que estavam prestes a fazer um ataque em massa, subitamente desapareceram, enquanto a magia de Sam falhava. Sam cambaleou para trás e caiu no chão, incapaz de se levantar, deixando Henry para lutar contra os outros dois bruxos. Ela levantou a mão trêmula, apontou para o líder e disse a palavra mágica que lançou uma bola de fogo da ponta de seu dedo. A mão de Sam tremia tanto que seu tiro saiu muito fora do alvo. Sam gemia enquanto via que tinha errado o líder, mas subitamente ouviu-se um grito de tortura, enquanto Cornelius, que não mais esperava feitiço algum da figura caída da menina, era atingido pela bola de fogo direcionada ao líder. Os gritos de Cornelius continuavam enquanto ele caía no chão e as chamas engoliam seu corpo. Eles foram abruptamente cortados quando o fogo pareceu penetrar no corpo de Cornelius, transformando-o numa labareda gigante, vermelha e ardente de forma humana, que esmigalhou como pó.

Sam olhou para Henry cuja carne parecia estar descascando do corpo, enquanto o poder de Sam, em decadência, falhava em manter o feitiço que tinha criado a nova carne de Henry. A pele era quase inexistente e Sam conseguia ver os órgãos dele, segurados no lugar apenas pela fraca magia.

Os feitiços com os quais os dois magos se enfrentavam começaram a ficar mais fracos e menos espetaculares à medida que a magia de Sam falhava. A bolha mágica era menos potente do que já tinha sido, mas continuava poderosa.

Os dois magos duelistas estavam batalhando reciclando a magia ao redor, mais do que usando as fracas reservas de Sam.

Enquanto a magia estava ficando mais fraca, os dois magos em luta também ficavam mais fracos, o que significava que eles já não reagiam tão rapidamente aos ataques mágicos, e que as defesas estavam falhando. Os dois bruxos remanescentes, um bom e um malvado, combateram em seus campos, até que o asfalto onde estavam borbulhou e esguichou. O líder mirou e atirou uma magra e concentrada linha de fogo quente e branco na cabeça de Henry. O bruxo vagarosamente levantou a mão em defesa, e por sorte defletiu o fogo em direção a uma sebe, que irrompeu em chamas. Enquanto o líder preparava seu próximo feitiço, o bom mago terminou de pronunciar as palavras de seu feitiço que queimou o bruxo inimigo por dentro.

Espetaculares espirais vermelhas semitransparentes rasgaram o ar na direção do líder, que facilmente as defletiu para longe de si, na direção de uma viatura que explodiu enviando policiais pelos ares em todas as direções.

O líder logo concluiu um feitiço particularmente sórdido que, se bem-sucedido em atingi-lo, inverteria de fora para dentro o corpo do bruxo bom. Ele levantou a mão e enviou o feitiço gritando na direção de Henry, que se defendeu com a mão direita, enviando o flamejante feitiço para a direita e para cima, infelizmente acertando um espectador da batalha, logo acima, na janela de seu quarto.

– Eca! – disse Tiago, desviando rapidamente o olhar do acidente antes de vomitar em uma flor. Mandy olhou para onde Tiago tinha olhado e fez o mesmo. Henry, depois de defender o mais recente ataque do líder, enviou 100 lâminas de propulsão a jato ardentes, em forma de navalhas, voando com intuito sanguinário na direção do líder; este, ao encontrar uma última explosão de velocidade, fez movimentos rápidos como um relâmpago e reverteu o feitiço que Henry tinha acabado de lhe mandar. Henry foi pego completamente de surpresa quando as lâminas afiadas atingiram o resto de sua carne, arrancando-a dos ossos. Cambaleante, mas ainda capaz de fazer seu próximo feitiço, Henry ainda conseguiu levantar as mãos na direção do líder, tentando levantar o chão sob o inimigo. Nesse momento, o nível da magia de Sam subitamente despencou por alguns segundos, fazendo com que o feitiço terminasse como uma coluna de fumaça no dedo do mago. O líder, aproveitando essa chance de continuar sua deflexão de lâminas ardentes, levantou as mãos para arremessar uma bola de fogo simples na cambaleante forma de Henry. Esse, que tinha se mantido de pé graças à sua grande força de vontade, parou para ver a bola de fogo vindo em sua direção. Gastar força para manter em pé seu corpo novamente esquelético dessa vez foi demais para Henry.

À medida que ele reduziu a magia que segurava seus ossos juntos, eles foram caindo e se amontoando na rua. A bola de fogo superaqueceu os restos do esqueleto de Henry, estilhaçando-o, enquanto lentamente voava pela estrada, deixando uma linha de asfalto borbulhante, antes de desaparecer 50 metros adiante.

Nos minutos seguintes, houve silêncio. O asfalto parou de ferver à medida que esfriava. Todos os espectadores esperavam algo mais, aguardavam, com a respiração suspensa, que o líder fizesse alguma coisa, mas o bruxo vitorioso simplesmente ficou lá ofegante, balançando, exaurido pelo uso excessivo de magia. Enquanto a bolha mágica se tornava cada vez menos intensa e era parcialmente reabsorvida pelo corpo restante de Sam, ficou claro que nada ia acontecer por enquanto.

O burburinhos das conversas se espalhou pelas ruas, enquanto as pessoas começavam acaloradas discussões. Quando consideraram a bolha de magia segura, Tiago e Mandy correram para acudir a irmã, evitando o líder, e ajoelhando-se ao lado dela.

A pele de Sam estava pálida e gélida e os gêmeos temiam o pior.

– O esforço deve ter sido demais para ela – disse Tiago em um tom de voz calmo.

– Tem certeza? – perguntou Mandy.

– Acho que sim – suspirou Tiago, triste.

De repente, os olhos da menina abriram-se um pouquinho. Ela piscou uma ou duas vezes, e abriu os olhos completamente. Tiago sorriu agradecido, e então pigarreou quando viu que os olhos da irmã, normalmente castanhos-escuros, tinham se transformado numa pálida penumbra acinzentada.

– Como se sente, Sam? – perguntou Tiago.

– Es-estou fra-fraca – tremulou Sam. – Nó-nós vencemos?

Sam leu a resposta nos olhos de Tiago e lamentou num suspiro.

– Como vocês dois ainda po-podem estar aqui? – perguntou Sam.

– O líder está logo ali, ninguém vai chegar perto dele – disse Tiago. – Ele acabou com o seu amigo no final.

– O poder dele é fra-fraco – disse Sam. – Matem-no agora, enquanto ainda podem.

– Não podemos – disse Mandy. – Ele ainda tem o poder de atirar bolas de fogo, e o fará contra nós.

– Vocês precisam, é nossa única esperança – resmungou Sam.

Repentinamente, surgiu o som de risadas enquanto o líder se recuperava.

– Eu venci! – ele gritou. – Ninguém vai me deter!

– Matem-no... – disse Sam, antes de apagar mais uma vez.

Os gêmeos observaram aterrorizados quando o líder veio a passos largos em direção a eles. Contudo, levantaram e correram, sabendo que o líder não iria ferir Sam se pudesse evitar, sabendo que a irmã ainda tinha a magia que ele poderia usar.

– A força vital dela está baixa, mas ela vai se recuperar – disse o líder. – Mas os dois não têm nada de que eu precise. Provavelmente, tentaram salvar a irmã, por isso acho que devo matá-los agora.

– Espere aí – gritou Tiago, pulando fora do caminho de uma bola de fogo. – Força vital?

– Sim, é o que a mantém viva.

– Mas certamente é a magia dela que está baixa – disse Tiago.

– Você não percebe – disse o líder. – A magia dela vem do excesso de força vital que é gerado e que o corpo dela não precisa. Isso que é magia.

– Força vital?

– Conforme a pessoa com muita força vital vai envelhecendo, ela a produz numa taxa menor. Pessoas normais morrem quando seus corpos não têm força vital suficiente.

– E quanto aos magos?

– Eles continuam vivendo, mesmo depois de muitas décadas mais do que uma pessoa normal viveria, até mesmo séculos – respondeu o líder. – Eles ainda produzem o excesso por muito tempo, mas, infelizmente, não tanto quanto a alta magia exige.

– Foi por isso que você usou Sam? – perguntou Tiago.

– É comum os praticantes mais velhos de magia usarem os estoques dos mais novos – disse o líder. – Nos tempos antigos, quando os magos eram mais comuns, a razão pela qual tínhamos clãs era para que os bruxos mais velhos e experientes pudessem utilizar-se da magia dos mais novos e inexperientes.

O líder, que tinha parado de atacar Tiago e Mandy, começou a atacar de novo, dizendo:

– Já conversamos demais – preparem-se para morrer!

– Mas certamente usar a magia de Sam vai matá-la quando você tiver usado toda a força vital dela? – gritou Mandy.

– Esse é um risco que estou pronto para correr – disse o líder lançando bolas de fogo nos dois.

– Por que escolher a maldade então? – perguntou Tiago.

– Poder! – respondeu o líder. – E a liberdade de fazer o que eu quero com a magia, sem nenhuma lei para me impedir de governar o mundo.

– Mas certamente há contrapartidas – gritou Mandy. – Certamente a maldade não pode ter apenas benefícios.

– Onde quer chegar? – perguntou o bruxo do mal.

Tiago e Mandy perceberam que deveria existir um modo de derrotar o líder agora, depois de ouvir o quão terrível ele era.

– Se estão preocupados com a força vital de sua irmã – disse o líder com vigor renovado – sugiro que me deixem acertá-los!

Os gêmeos corriam, enquanto o bruxo, meio louco, os perseguia estrada abaixo.

Nesse momento, o sol raiou no horizonte, espalhando a aurora na paisagem. Assim que a fraca luz solar pousou sobre o líder, ele gritou agonizante e lentamente minguou até parar. Enquanto os horrorizados espectadores assistiam, o corpo do mago começou a ficar cinza e rígido.

– Arre! – ele gritou. – O maldito feitiço do bem, nããããoooooo!

– O que está acontecendo? – perguntou Tiago.

O líder olhou para ele com aversão.

– O feitiço... Se alguma vez for exposto à luz do dia, eu serei transformado em pedra. Ele... – o líder apontou os ossos estilhaçados –, ... fez isso, séculos atrás.

A pele do líder começou a endurecer à medida que seu corpo se transformava em pedra. Ele berrava, mas depois silenciou, com a face contorcida e o corpo rígido.


Capítulo 8

Depois da Batalha

A rua estava silenciosa novamente e os espectadores aguardavam o próximo incidente. Eles voltaram a conversar, seguros de que nada mais aconteceria.

Tiago aproximou-se do líder com cautela. Enquanto se aproximava, ficou claro que o líder tinha se transformado em pedra, e até parecia um pouco ridículo ainda vestido em suas roupas. Tiago tentou empurrá-lo, o que foi inútil, já que o mesmo estava duro como uma estátua.

De repente, Tiago lembrou-se de Sam, e correu para o corpo inerte da irmã. Mandy o seguiu, apressada.

– Será que ela...? – perguntou Mandy, incapaz de completar a frase.

Tiago sentiu o pescoço de Sam com dois dedos, procurando um sinal de vida. Tentou fazer uma massagem cardíaca e encontrou um pulso, fraco, mas ainda existente.

Mandy viu o olhar aliviado de Tiago e sorriu agradecida.

– Vamos lá – disse ela. – Vamos levá-la para casa.

– Espere um momento – disse Tiago. – E o papai e a mamãe?

– Só precisamos saber se eles já souberam de tudo isso – disse Mandy.

– Duvido que tenham perdido... – disse Tiago. – Acho que todo mundo na aldeia e nas imediações ouviu.

– Vamos levá-la de volta, de qualquer forma.

– A um hospital? – sugeriu Tiago. – Não seria melhor levá-la para um antes?

– Você acha que ela está em condição tão ruim assim? – perguntou Mandy.

– Não podemos ter certeza se está tudo bem. Por causa de toda essa força vital que ela perdeu, como o líder falou, ela pode até não ser a mesma pessoa quando acordar – disse Tiago. – Se ela acordar...

– Não quero nem pensar nisso – disse a irmã gêmea.

Inesperadamente, Sam abriu os olhos. Ela tentou olhar para o rosto de Tiago, mas tudo estava desfocado.

– Eu me s-s-sinto t-t-terrível – disse Sam.

– Não se preocupe Sam – disse o irmão. – Vai dar tudo certo.

– O-o que aconteceu?

– Nada, você só precisa descansar.

A menina tentou sentar. Mas não conseguia se sustentar. No fundo, de repente, surgiram sons de sirenes de ambulância. Provavelmente alguém tinha contatado o hospital. Muitos habitantes da cidade e agentes da polícia começaram a ajudar os feridos e a encontrar pessoas entre os destroços causados pela batalha de magia. Ao longo do círculo betuminoso que a bolha mágica tinha derretido, alguns agentes da polícia começaram a abrir caminho cautelosamente, examinando algumas coisas que a magia tinha conjurado para a existência. Alguns abaixaram para examinar os cacos de ossos que foram deixados por Henry. Um dos policiais se aproximou de Tiago e Mandy.

– Ela está bem? – perguntou o policial, olhando para Sam.

– Está com problemas para se mover e tem dificuldade para lembrar-se do que aconteceu – disse Tiago. – Acho que ela deve ser levada para o hospital.

– Você a conhece? – perguntou o oficial.

– Ela é nossa irmã – respondeu Tiago.

– Nesse caso, você tem que me dar o seu nome e o número de telefone. Vou entrar em contato com os seus pais e dar a notícia a eles.

Mandy deu-lhe o número do telefone da cabana. O responsável falava no rádio, solicitando à estação para irem logo à cabana para informarem aos pais o que tinha acontecido. O policial olhou em volta e disse:

– Vocês dois vão ficar bem aqui até a ambulância chegar? Existem outras pessoas feridas que precisam de toda ajuda possível.

O policial saiu, sem esperar resposta. Depois que ele foi, Sam tentou sentar-se novamente, mas não podia. Ela continuava deitada no chão e disse ao irmão e à irmã:

– Vocês têm que me tirar daqui antes da mamãe e do papai chegarem.

– Por quê? – perguntou Mandy.

– Eu tenho um plano – disse Sam.

– Lembra-se de tudo, então? – perguntou Tiago.

– Sim, você tem que ser rápido.

– Você precisa ir a um hospital, não acha?

– Leve-me para longe daqui, antes deles chegarem e tudo ficará bem – disse Sam. – Depressa!

Os gêmeos entreolharam-se.

– Vamos? – disse Tiago.

– Não sei – retrucou Mandy.

– Não falem mais! – chorou Sam. – Acreditem em mim!

– Você está sentindo dor? – perguntou Tiago.

– Não. Por quê? – indagou Sam.

– Porque não poderei mover você se algo estiver quebrado.

– Não fui atingida – disse Sam. – Eu tive toda a magia de meu corpo sugada, por isso estou assim.

– Por mim está tudo bem – disse Tiago. – Pegue as pernas dela, Mandy.

O menino pegou a irmã mais velha pelos braços e os dois a levantaram do chão e a conduziram até a esquina de uma rua lateral, atrás de uma sebe.

– Agora estamos todos aqui – disse Tiago. – Felizmente todos estavam muito preocupados para nos ver levando-a embora.

– E agora? – perguntou Mandy, olhando para a irmã, que disse:

– Eu preciso descansar, estou tão... cansada.

– Não há tempo para isso! – disse Tiago.

Sam balançou a cabeça um pouco e disse:

– Não, você está certo. Deixem-me pensar alguns momentos.

Ela fechou os olhos por cinco minutos até que o irmão disse:

– Não durma, Sam.

– Eu não estou dormindo. Eu estou tentando fazer algum feitiço.

– Você quer o livro? – perguntou Tiago.

– Eu não preciso do livro – retrucou Sam. – Preciso pensar.

Após mais tensos cinco minutos, a menina abriu os olhos e disse:

– Ok! Estou pronta para o feitiço.

– Você decorou? – perguntou Mandy.

– Não – sorriu. – Mas vou fazê-lo assim mesmo.

Sam, com os olhos fechados, mais uma vez, começou a recitar uma longa corrente de palavras aparentemente sem sentido. Fez isso por alguns minutos até que de repente o tempo voltou. Sam, Tiago e Mandy foram rodeados por outra bolha mágica, cor-de-rosa.

O mundo fora da bolha estava correndo para trás cada vez mais rápido, até que horas se passaram em minutos.

Depois do que pareceu uma eternidade, mas foi de fato apenas um quarto de hora, a bela bolha cor-de-rosa desapareceu com um forte ruído e o tempo parecia correr normalmente de novo. O céu estava escuro, com estrelas dependuradas. Do outro lado da estrada, passou um grupo de adolescentes fantasiados de bruxas e fantasmas.

Tiago olhou para baixo e Mandy olhou para a irmã, que mal conseguia manter os olhos abertos. Ela dizia as palavras mágicas de teletransporte, com uma ligeira variação, levando os irmãos de volta para a cabana, para seu quarto. O relógio na parede marcava oito horas.

– Voltamos antes da hora prevista para a reunião começar – Tiago disse a Mandy. – Bem depois do jantar.

– Será que vamos nos reunir?

– Não acho que Sam permitiria isso.

Os dois olharam para Sam quando Tiago mencionou o nome dela. Sam tinha se teletransportado para sua própria cama, mas, infelizmente, parece que esse feitiço tinha sido demais para ela.

– Acho que desta vez ela realmente está... – Tiago começou. Ele foi parado por Mandy, que agitava o braço. Olhou para baixo e ficou espantado de ver como Sam estava.

– Mas agora ela parece tão... – começou a falar, mas foi interrompido por Sam, que bocejava como se tivesse apenas dormido e acordou. Ela pareceu perdida por um momento, mas depois sorriu.

– Então, funcionou! – ela disse.

– O que você fez? – perguntou Mandy.

– A minha última magia.

– O teletransporte?

– Não! A restauração da força vital.

– Quer dizer que você sabia que isso aconteceria? – perguntou Tiago.

– Claro, mas não tive tempo de dizer nada.

– Como você restaurou sua força vital? – perguntou Mandy.

– Ao abrir um buraco de tempo antes da minha magia ser drenada, eu a suguei – disse Sam. – Não tinha certeza se teria o poder...

– Como você sabe como fazer tudo isso? – questionou o menino.

– Enquanto os bruxos esvaziavam a minha magia, eu tratei de esvaziar o conhecimento deles! – retrucou Sam.

– Sam – disse a irmã –, estive pensando.

– Sobre o quê?

– Se voltamos antes da reunião, significa que tudo vai acontecer novamente – disse Mandy.

– Não se preocupe, eu sei disso – sorriu Sam. Ela se inclinou para a gaveta ao lado da cama e pegou uma lata de refrigerante. Abriu o refrigerante e levantou no ar, oferecendo um brinde.

– Feliz Dia das Bruxas! – disse, tomando um gole da lata.

Em uma sala, em algum lugar profundo, oculta sob a aldeia, há uma estátua. A estátua veste roupas que a tornam por demais natural. Seu olhar e sua expressão sugerem que é a estátua de um homem apavorado. Bem distante acima da sala, caminhando na superfície ao longo da rua de cima da aldeia, há um homem, que veste um manto chamuscado de fogo e roupas enlameadas, que se arrasta na sarjeta pedindo esmolas. O homem é, claramente, um mendigo. Ele não se lembra mais do seu nome, apenas sabe que começa com uma determinada letra, a letra C.

 

 

 


O Soldado Fantasma

Edgar J. Hyde


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Hyde, Edgar J.

O Soldado fantasma[recurso eletrônico] / Edgar J. Hyde; traduzidopor Silvio Antunha. -Jandira, SP: Ciranda Cultural,2021.

112p.; ePUB ; 568KB.–(Hora do espanto)

ISBN 978-65-5500-717-6(Ebook)

1. Literatura juvenil. 2. Ficção. 3. Terror.I. Antunha,Silvio. II. Título.III. Série.

2021-865 CDD-028.5
CDU 82-93

Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva -CRB-8/9410

 

Índices para catálogo sistemático:

1.Literatura juvenil028.5

2.Literatura juvenil82-93

 

 

© 2009 Robin K. Smith

Esta edição de Hora do Espanto foi publicada

em acordo com Books Noir Ltd.

Título original: The Ghostly Soldier

 

© 2012 desta edição:

Ciranda Cultural Editora e Distribuidora Ltda.

Tradução: Silvio Antunha

 

1ª Edição

www.cirandacultural.com.br

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, arquivada em sistema de busca ou transmitida por qualquer meio, seja ele eletrônico, fotocópia, gravação ou outros, sem prévia autorização do detentor dos direitos, e não pode circular encadernada ou encapada de maneira distinta àquela em que foi publicada, ou sem que as mesmas condições sejam impostas aos compradores subsequentes.

 

Livro digital: Lucas Camargo e Gabriela Fazoli


Sumário
O soldado fantasma

O Campo de Batalha
Uma Luz Estranha
Os Visitantes
Papai é Cético
Outra Noite Estranha
O Escocês
A História de Jamie
O Incrédulo
A Visita do Ancestral
A Verdade é Revelada
Um Enterro Decente
A Escavação
Ainda Não Foi o Fim
Epílogo


Capítulo 1

O Campo de Batalha

– Depressa, crianças, vamos – gritou a senhora Martin tentando manter todos os alunos juntos. – Venham cá vocês dois, não queremos perdê-los – ela acrescentou, chamando Alan e Isabel, que tinham ficado ainda mais atrás.

Eles estavam contemplando um pequeno monte de pedras. A senhora Martin tinha dito que aquilo era um moledro. No meio dele havia um pedaço de pedra liso e plano com a palavra “MacLeod” esculpida.

As duas crianças ainda imaginavam as cenas de 200 anos antes, quando quase todo o clã MacLeod tinha sido morto na Batalha de Culloden. A senhora Martin tinha acabado de contar algumas histórias a respeito da batalha.

Quando Alan olhou em volta, pôde ver os muitos moledros que foram erguidos no campo onde a batalha havia ocorrido, em homenagem a todos os outros clãs que lutaram ali. Alan olhou para o lado mais extenso do campo. A distância ele podia notar a grande bandeira branca que marcava o ponto onde o exército inglês dos Casacas Vermelhas tinha se alinhado na manhã da batalha. Ele fechou os olhos e tentou compor a cena. Imaginou que estava no meio dos clãs dos escoceses, vestindo seu kilt, o saiote que os escoceses usam, coberto de lama porque havia dormido ao relento na noite anterior. Ele tinha sua espada escocesa em uma das mãos, e sua adaga na outra. Imaginou os ruídos e os odores do campo de batalha e tentou sentir o que um jovem soldado escocês teria experimentado naquela manhã. A senhora Martin tinha descrito isso como uma mistura de medo e excitação.

Alan teria adorado estar ali naquela manhã do mês de abril. Ele tinha sido criado ouvindo a história e as lendas de Culloden, e a luta ancestral entre escoceses e ingleses. Desde quando sua família tinha se mudado para uma pequena aldeia bem perto do local da batalha, ele fora cativado pelas histórias de bravura, galanteria, mistério e romance que seguiam de mãos dadas com a própria história escocesa. Mesmo sabendo que a Batalha de Culloden tinha sido um desastre para o exército escocês e seu líder, Bonnie Prince Charlie, Alan teria feito de tudo para se alinhar com os clãs reunidos naquele dia para enfrentar o exército inglês. Ele ainda sonhava que, de alguma maneira, teria feito a diferença, teria realizado alguma incrível façanha de bravura que mudaria o resultado da batalha e teria obtido uma famosa e histórica vitória para os escoceses. Teria ficado orgulhosamente ao lado de seu rei, o íntegro rei de seu país, com sua espada escocesa erguida.

Ele abriu os olhos novamente e contemplou a bandeira a distância. Foi ali que o duque de Cumberland se instalou para ordenar o avanço do exército inglês. Foi ali que ele permaneceu quando mandou seu exército passar a espada em cada homem escocês, mesmo os feridos e os desenganados. Ele não ganhou o apelido de “o açougueiro” sem merecer.

– Vamos, Alan. É melhor a gente correr! – Isabel gritou, tentando tirar o irmão do seu estado de devaneio.

– Veja, os outros já foram embora. Vamos, depressa – ela acrescentou.

Alan olhou para a irmã e sorriu.

– Não se preocupe, Isa, eles não saem sem nós – Alan replicou, afastando-se do campo de batalha e pegando o caminho que levava de volta ao Centro dos Visitantes.

Alan e Isabel eram gêmeos, tinham 14 anos de idade, e estavam na mesma classe. Embora fossem muito parecidos fisicamente, eles eram muito diferentes.

Alan era muito emotivo e cheio de energia, e estava sempre em movimento. Era também um sonhador, e gostava de se imaginar participando de aventuras de todo tipo. Isabel, por outro lado, era mais comportada e controlada. Sua inteligência era completada pelo bom senso, uma coisa que fazia falta ao irmão. Ela compartilhava com o irmão o amor pela história da Escócia, mas possuía uma visão mais equilibrada do passado de seu país, reconhecendo tanto a tragédia quanto a glória. Conhecia bem todas as histórias da gloriosa derrota que o irmão parecia esquecer tão facilmente. Ambos gostavam de visitar o campo de batalha. Ficava muito perto da aldeia e a escola quase sempre fazia excursões até lá, não só para falar da famosa batalha ocorrida, mas também para ensinar sobre o modo de vida de seus antepassados.

– Então, por qual clã você lutou hoje, Alan? – Isabel perguntou, só para brincar com o irmão e sua mania de sonhar acordado. Ela sabia o que ele tinha imaginado. Acontecia sempre o mesmo com ele.

– Será que isso importa, Isa? Ainda vamos vencer! – Alan replicou, fingindo investir sua espada escocesa imaginária contra ela.

– Vencer? Como seria possível? Você teria que correr mais de 1 quilômetro, e quando o “açougueiro” o pegasse, viraria picadinho, picadinho de escocês! – Isabel zombou, afastando o braço esticado do irmão.

– Ele me pegar? Nunca me pegaria! Os Casacas Vermelhas obesos jamais alcançariam este guerreiro veloz! – Alan afirmou, parando a caminhada e, em seguida, sondando de lado a lado para mostrar como ele podia ser astuto.

– Bem, vamos ver se esse guerreiro é mesmo tão veloz. Aposto uma corrida com você até o centro! – Isabel desafiou, tirando uma boa vantagem sobre o irmão, que continuava ocupado se safando dos Casacas Vermelhas.

– Você trapaceou! – exclamou Alan, enquanto corria atrás da irmã.

Mas era tarde demais. Ela já estava umas boas dez jardas na frente dele, e era difícil batê-la, até saindo da mesma largada.

Os dois chegaram ao centro com alguns segundos de diferença, quase sem fôlego, e apenas a tempo de ouvir a senhora Martin anunciar que o ônibus estava pronto para sair.

– Veja, Isa, falei que eles não sairiam sem nós – Alan afirmou, ignorando sua recente derrota, e sorrindo para Isabel.

– Venha, vamos embora, Alan. Voltamos para ver os Casacas Vermelhas outro dia.

Alan olhou para trás e viu as bandeiras e o velho campo de batalha a distância. O som de um tocador de gaita de foles nos degraus do centro enriquecia a atmosfera do lugar. A mente de Alan foi tentada a devanear novamente.

– Tudo bem, Isa, desta vez eu vou sentar na janela – afirmou Alan, correndo para lá, tratando de garantir a vantagem na largada desta vez.

“Mas que grande guerreiro!” – pensou Isabel ao ver o irmão se esgueirar no meio das pessoas.


Capítulo 2

Uma Luz Estranha

– Oi, crianças, como foi o passeio? – perguntou a senhora MacDonald, ao ouvir os gêmeos chegarem correndo pela porta da frente.

– Ótimo, mãe. Você sabia que o tataravô do Jimmy MacLeod lutou em Culloden? – afirmou Alan, ainda muito entusiasmado com a excursão daquele dia, atirando sua mochila na mesa da cozinha.

– Quem contou isso para você, Alan? O próprio Jimmy, eu imagino! – perguntou a senhora MacDonald, sorrindo ironicamente.

– Eu conheço o pai do Jimmy, e se os antepassados forem um pouquinho parecidos com o pai dele, a única batalha de que eles podem ter participado ocorreu na taberna ou na estalagem local... E se não me engano, foi numa sexta-feira à noite!

– É verdade, mãe! Nós vimos o moledro dos MacLeod – rebateu Alan, sem perceber que a mãe estava brincando.

– Moledro? O pai do Jimmy provavelmente construiu isso uma noite para impressionar os colegas de copo! – a senhora MacDonald continuou, caçoando do filho.

– Ah, mãe! – Alan exclamou, finalmente reparando na brincadeira dela. Isabel sacudiu a cabeça. O irmão era muito ingênuo.

– Vamos em frente. Vocês dois, façam a lição de casa. O jantar fica pronto em uma hora – a senhora MacDonald ordenou, mudando de assunto. A rotina da família exigia que a lição de casa fosse feita antes de mais nada.

– O papai ainda está em casa? – Alan perguntou, procurando pelo carro do pai na entrada da garagem.

– Ele está consertando o carro na garagem. Essa coisa velha está caindo aos pedaços. Hoje foi a vez do escapamento cair. É um transtorno – replicou a senhora MacDonald.

– Não, mãe, é um clássico – Isabel afirmou, zombando do pai, que continuava a acreditar que o veículo de 35 anos de idade, que ele possuía desde a adolescência, era uma preciosidade.

– Vamos lá, Alan, matemática hoje à noite. Tenho certeza de que logo você saberá de cor a tabuada do três! – Isabel provocou.

– Ha, ha, Einstein. Vamos – Alan retrucou, arrastando a irmã pelo braço e subindo a escada.

Por fim, o barulho da conversa dos dois desapareceu, e a senhora MacDonald ficou satisfeita porque a lição de casa estava a caminho.

A noite passou depressa, com o senhor MacDonald só aparecendo brevemente para jantar. Ele ficou o resto do tempo escondido na garagem tentando dar vida nova ao seu adorado carro.

Depois do jantar, os gêmeos ficaram assistindo televisão, entre ocasionais rodadas de brincadeiras bem-humoradas. Finalmente, a senhora MacDonald anunciou que era tempo de irem para a cama.

– Vocês dois, vão lá fora dar boa-noite para o pai de vocês. E falem para ele entrar, ele tem ficado lá fora a noite toda. Digam que o cafezinho está pronto. Isso vai fazê-lo se apressar – disse a senhora MacDonald, desligando a televisão e seguindo para a cozinha.

Alan e Isabel pularam do sofá e foram para a garagem, que ficava ao lado da casa. A garagem era outro trabalho artesanal do senhor MacDonald. Ele próprio a tinha construído logo depois que eles compraram a casa.

Assim que os gêmeos saíram pela porta da frente e viraram para a garagem, uma estranha luz azul os atingiu. Tudo na frente deles foi iluminado por um clarão azulado. Eles olharam um para o outro, um pouco confusos com a visão “azul” do jardim da frente. Da lateral da casa, eles podiam ouvir o barulho de um assobio alto. Tanto o barulho como a luz vinham claramente da garagem.

– O que está acontecendo? – indagou Alan, esperando que a irmã tivesse alguma resposta razoável na palma da mão.

– Não me pergunte – disse Isabel, segurando o braço do irmão.

Alan percebeu que aquela era uma das vezes em que deveria agir como homem e assumir o controle da situação. Porém, com os joelhos trêmulos ficava difícil fazer algum movimento. Ele se recuperou.

– Sem essa. Nenhum marciano passa por aqui há tempos. Provavelmente foi apenas um carro da polícia que fez alguma manobra errada!

Isabel apreciava o senso de humor do irmão, mas podia dizer que ela também estava confusa e um pouco apreensiva.

Alan pegou no braço da irmã e eles caminharam lentamente em direção à lateral da casa. Os dois pararam e se entreolharam. A questão de quem viraria primeiro estava claramente colocada diante dos olhos deles.

A aparente coragem de guerreiro de Alan no início do dia era uma lembrança distante. Afinal de contas, Isabel era a irmã mais velha. Quase dois minutos mais velha.

– Sigo você depois – Alan insistiu, empurrando para a frente o braço da irmã.

Isabel sacudiu a cabeça.

– Que belo chefe de clã você daria! – ela falou debochando.

Isabel colocou a mão na lateral da casa e foi em frente.

Ela moveu a cabeça lentamente, ficando pronta para espiar rapidamente quando virasse. Podia sentir o irmão encostado atrás dela, com a respiração rápida e curta. A cabeça de Isabel começou espiar a lateral. Ela mantinha os olhos fechados, com medo demais para olhar.

– O que está vendo? – perguntou Alan. Isabel abriu os olhos.

– Meu Deus! – ela gritou. Na frente dela, no meio de uma nuvem de luz azulada, havia um estranho ser que parecia usar uniforme de astronauta. Ou foi o que ela pensou que viu. Mas Isabel não teve chance de olhar mais. Alan tinha ficado com medo por causa do grito dela, e no esforço para avançar, acabou derrubando-a no chão. A perna dela enroscou na dele e Alan também acabou tropeçando, e os dois caíram em cheio na entrada da garagem, bem perto da porta.

– O que houve com vocês dois? – O senhor MacDonald gritou, tirou o equipamento de proteção do corpo e da cabeça, com o maçarico de acetileno ainda assobiando, a chama azul na outra mão.

Isabel e Alan olharam um para o outro e começaram a rir sem parar. Era um riso nervoso e aliviado.

– Viemos apenas dar boa-noite, pai – ambos disseram em uníssono.

– O que você está fazendo? – Alan perguntou, tentando recuperar a calma.

– Estou apenas tentando juntar com solda alguns pedaços velhos desta beleza, filho. O meu amigo Jim me emprestou este conjunto de oxiacetileno por uns dois dias. Funciona às mil maravilhas – o senhor MacDonald respondeu, fechando a válvula do bujão de gás e desligando o maçarico.

– Vamos lá, é tarde, está na hora dos dois irem para a cama – ele acrescentou, baixando a porta da garagem e girando a chave na fechadura.

Em alguns minutos, Alan e Isabel estavam em seus quartos, bem cobertos na cama. Ambos se enfiaram embaixo dos cobertores, rindo da própria tolice. Com o som dos pais conversando lá embaixo, eles rapidamente pegaram no sono.

Alan não fazia ideia de quanto tempo ficou dormindo. Também ainda não sabia porque estava acordado.

A princípio ele não notou o estranho brilho alaranjado que entrava no quarto pelo pequeno espaço das cortinas.

O quarto de Alan ficava na lateral da casa e a janela do quarto dava para o telhado da garagem.

Gradualmente, Alan voltou a si. Ele olhou em volta no quarto, com o brilho alaranjado sugerindo que já havia amanhecido. O garoto olhou o relógio. Eram apenas duas da manhã. Alan não acreditou.

O que estava acontecendo? Ele sentou-se na cama e foi abrir as cortinas.

As chamas brilhantes alaranjadas estavam quase atingindo o parapeito da janela de Alan. A garagem estava em chamas! O fogo já saía pelo teto de madeira da garagem. Desta vez, Alan agiu sem hesitação. Ele correu para o quarto dos pais e em poucos segundos o pai dele estava em pé, mandando todo mundo dar o fora da casa.

Em poucos minutos, todos estavam fora da casa. Na rua logo se juntou uma pequena multidão de curiosos moradores locais. Não demorou muito para que os vizinhos percebessem o que estava acontecendo. A multidão era composta tanto de gente preocupada como de intrometidos.

Quando os carros dos bombeiros chegaram, a garagem estava completamente tomada pelas chamas. O perigo das chamas também incendiarem a casa dos MacDonalds era real. Bem na hora em que os bombeiros saltavam dos carros e começavam a montar seus equipamentos, houve uma explosão tão forte que sacudiu toda a rua e uma bela bola de fogo saiu do teto da garagem e subiu alto no céu noturno. Os bombeiros hesitaram, aguardando para ver se mais explosões ocorreriam.

O comandante dos bombeiros teve uma conversa séria com o senhor MacDonald. Era provável que a causa da explosão fosse o bujão de gás que ele estava usando antes. Os bombeiros, então, agiram rapidamente e em poucos segundos parecia que as chamas tinham sido reduzidas a pequenos focos. Dez minutos depois os bombeiros começaram a recolher seus equipamentos. Centenas de litros de água haviam reduzido a garagem em chamas a um monte de escombros fumegantes.

Alan ficou admirado pela rapidez com que tudo terminou. A casa estava a salvo. Ele olhou para a mãe e a irmã, paradas um pouco adiante. Elas se abraçavam fortemente, com o pânico anterior da mãe tendo agora passado, ao ver que a família e a casa estavam seguras. Nos olhos dela ainda havia lágrimas. Ela também estava em estado de choque por causa dos eventos da última meia hora.

A multidão começou a se dispersar e em menos de uma hora, Alan e Isabel voltaram para a cama. Desta vez eles ficaram na casa de um vizinho. Eles não tiveram permissão para voltar para a própria casa por motivo de segurança.

Quando Alan se preparava para dormir, teve certeza de que podia ouvir uma música. Era um toque suave de gaitas de foles. Mas seus olhos estavam pesados e ele também havia passado por agitação demais num só dia. Rapidamente pegou no sono.


Capítulo 3

Os Visitantes

Alguns dias se passaram depois que a garagem ardeu em chamas. Assim que os nervos da família voltaram ao normal, os pensamentos do senhor MacDonald se preocuparam com a perda de seu amado carro. A senhora MacDonald, apesar de ter ficado aterrorizada com a experiência, estava contente porque o velho “calhambeque” agora estava perdido e a família poderia afinal ser vista circulando em alguma coisa mais normal.

A investigação do incêndio confirmou que o fogo provavelmente tinha sido causado por vazamento de gás. A queda do bujão provavelmente teria provocado uma faísca que, então, incendiou o gás que tinha vazado. Eles tiveram muita sorte. Alan foi aclamado um herói.

O comandante dos bombeiros tinha dito que, se ele não tivesse dado o alarme a tempo, a casa dos MacDonalds também teria sido inevitavelmente devorada pelas chamas. A família, que havia corrido real perigo, foi salva pela insônia dele.

A senhora MacDonald proibiu todas as atividades do tipo “faça você mesmo” do marido por tempo indeterminado. O senhor MacDonald, sentindo-se um pouco intimidado com o episódio todo, concordou de bom grado.

Alan não se furtou a bancar o herói e a irmã não gostou de ter que aturar vê-lo desfilando sua glória fugaz. Porém, secretamente ela se orgulhava da rápida ação de Alan. Ela só não podia deixá-lo saber disso. Seu nariz estava tão empinado que quase alcançava o teto. Ele podia não ter salvo Bonnie Prince Charlie na Batalha de Culloden, mas salvou a família MacDonald.

Por tempo indeterminado, cada pedido de Alan era atendido, cada vontade suprida. Tanto assim, que quando Alan pediu uma nova barraca, o pai trouxe uma no mesmo dia, do modelo mais recente da loja de camping local. O pai inclusive concordou quando Alan perguntou se ele e Isabel não poderiam passar a noite dormindo na barraca por alguns dias.

Era sexta-feira e o senhor MacDonald prometeu que assim que Alan e Isabel saíssem da escola, na mesma tarde montaria a barraca para eles, para que pudessem usá-la naquela noite.

Na escola, como não podia deixar de ser, Alan tinha embelezado e exagerado tanto a história da garagem que até os amigos dele estavam ficando aborrecidos. Embora tivesse sido uma grande notícia logo que ocorreu, depois de alguns dias os garotos da classe de Alan estavam a ponto de dar um basta. Alan compreendeu o recado e por uns dias mudou seus pensamentos para a barraca. Ele sempre gostava quando seu pai o levava para acampar com a irmã nas colinas perto da cidade. No começo, Isabel tinha detestado, mas depois que se acostumou com todos os ruídos estranhos que perturbavam a calma da noite na região, ela também começou a gostar.

Quando se encontraram na hora do almoço, os gêmeos começaram a planejar a aventura das próximas noites, e fizeram uma lista das “gulodices” que levariam para a barraca com eles. Sanduíches, livros, doces, lanternas, músicas, etc. Embora um acampamento fosse considerado adequado para se experimentar a tranquilidade da vida natural, o moderno camping, para Isabel, permitia algumas extravagâncias pessoais. E isso incluía alguns dos CD’s favoritos dela.

– É só para abafar alguns ruídos da noite – Isabel insistiu, quando o irmão tentou tirar a música da lista.

Os dois voltaram da escola cheios de animação e de expectativas com relação àquela noite. Era o início das férias escolares. Com os pais trancados em casa, eles poderiam fazer o que quisessem. Nada de horário para apagar as luzes naquela noite. O senhor MacDonald estava ocupado retirando o entulho da garagem incendiada, enchendo uma enorme caçamba que tinha chegado no dia anterior. Os gêmeos passaram correndo por ele, com os mais breves agradecimentos, e foram para o jardim para ver se a barraca estava montada.

E estava! Uma grande estrutura azul, com uma cobertura alaranjada para proteger do clima, e oito longos cabos esticados para fora que apoiavam a barraca firmemente no chão. Os gêmeos mergulharam pelo zíper da entrada e começaram a lutar lá dentro.

– Calma, os dois. Vocês vão derrubar essa coisa toda em cima de vocês! – gritou o senhor MacDonald, chegando no jardim do quintal. Ele enfiou a cabeça na abertura da barraca.

– Bem, o que acharam? Gostaram? – ele perguntou.

– Muito bom, pai. Muito, muito obrigado – Alan falou, passando a mão no cabelo do pai, despenteando-o por completo.

– Genial, pai – acrescentou Isabel, inclinando-se para beijar a bochecha do pai.

O senhor MacDonald levantou-se e tomou o caminho de casa.

“Bem, os dois que se cuidem. Agora, nada como descansar ao lado da esposa!” – ele pensou, enquanto entrava na cozinha pela porta dos fundos.

A senhora MacDonald ainda o fazia sofrer por ele quase ter queimado a casa inteira. Há anos ela vivia inconformada com os esforços de “faça você mesmo” dele. Muitos foram desastrosos, mas o episódio mais recente tinha sido a gota-d’água. Depois dessa, levaria um tempo para ele poder sair da casinha do cachorro. Bem, então ele decidiu preparar o jantar daquela noite e, com as crianças fora de casa, talvez conseguisse fazer as pazes com ela, com algumas flores e uma garrafa de vinho. Ele pensava de maneira otimista.

Enquanto isso, Alan e Isabel acalmaram-se na barraca e começaram a planejar a noite que vinha pela frente. Antes, Isabel teria que ir à aula de dança, e Alan marcara encontro no parque com alguns colegas para um jogo de futebol. Mas assim que terminaram de jantar e começou a escurecer, eles concordaram que já era hora de se instalarem na barraca. Alan tinha emprestado um novo livro de histórias de fantasmas na biblioteca local e estava ansioso para dar um susto na irmã. Isabel, por outro lado, tinha comprado um novo CD na hora do almoço e estava ansiosa para escutá-lo, enquanto se aconchegava no saco de dormir com uma grande barra de chocolate. Ela só esperava que seu irmão não passasse a noite toda agitado.

Exatamente às nove da noite, quando o senhor MacDonald foi assistir ao noticiário, as crianças desceram a escada com todas as suas “gulodices”, e foram para a barraca no jardim.

– Agora, nada de ficarem acordados a noite toda! – a senhora MacDonald gritou do quarto da frente.

– Alan, não assuste a sua irmã – o senhor MacDonald acrescentou. – A sua mãe e eu queremos passar uma noite tranquila.

Os gêmeos não responderam. Sorrindo um para o outro, eles abriram a porta da cozinha e foram para a barraca.

Depois de cerca de uma hora dentro da barraca, as histórias de fantasmas de Alan não faziam mais efeito, e depois de comerem muitas barras de vários tipos de chocolate, cada um deles tratou de ficar em seu próprio canto da barraca, Isabel para escutar suas músicas, e Alan para ler sua mais nova revista.

Era uma noite escura, mas sem nuvens, e o jardim estava pouco iluminado pelos dois fachos das lanternas dentro da barraca.

Alan olhou para a irmã. Era difícil saber se ela estava acordada ou se dormia, pois ficava de olhos fechados, e só o chiado de seus fones de ouvido quebrava o silêncio na barraca.

De repente, Alan sentou-se. Ele podia ouvir outro barulho. A princípio achou que era apenas uma nova faixa do CD de qualquer coisa que Isabel estava escutando. Mas ao prestar atenção, ele percebeu que não era bem isso.

Ele não conseguia identificar que barulho era aquele. Era um zumbido muito alto, constante, melódico. Mas conforme o barulho ficava cada vez mais alto, ele começou a reconhecer o inconfundível toque das gaitas de foles. E não era apenas uma gaita de foles, mas umas 10 ou 20, a distância, mas que se aproximavam cada vez mais.

Alan sacudiu a irmã. – Isabel, acorde. Ouça, você está ouvindo isso? – ele perguntou, balançando o ombro dela.

Isabel abriu os olhos e tirou os fones do ouvido. Ela havia adormecido.

– O que foi, Alan? Estava quase dormindo – ela se queixou.

– Silêncio, escute. O que você consegue ouvir? – Alan perguntou novamente.

Isabel virou a cabeça para o lado, esforçando-se para ouvir.

– São só gaitas de foles.

Somente após terminar a frase, ela se deu conta do que acabara de dizer. Passava das dez da noite. As pessoas não deviam ficar tocando gaitas de foles nesse horário.

– O que você está aprontando, Alan? Mais uma de suas brincadeiras? – Isabel perguntou, lembrando que tinha adormecido, permitindo que o irmão aprontasse alguma coisa. Mas o olhar no rosto do irmão dizia que aquilo não era uma brincadeira.

Ela não esperou a resposta e começou a abrir a barraca para sair para o quintal. Os dedos dela se atrapalharam com os nós.

Quando conseguiu desatar o último nó, Isabel colocou a cabeça para fora da barraca.

– Alan, veja só isso – disse Isabel, com sua voz traindo o nervosismo.

Ele se ajeitou perto da irmã, e os dois se ajoelharam, com as cabeças esticadas para fora da barraca.

A cena do lado de fora era como uma noite nevoenta de inverno. O jardim inteiro, até onde eles conseguiam enxergar, estava coberto por uma neblina espessa, cinza e misteriosa. O barulho das gaitas de foles estava ficando cada vez mais próximo. O som estava se tornando ensurdecedor, como se estivesse bem ao lado da barraca. Isabel e Alan olharam um para o outro e imaginaram se tudo não passava de um sonho. Eles não conseguiam ver nada, e ainda assim o barulho estava quase em cima deles. Ambos sentiam medo. Eles arregalaram os olhos na neblina, tentando enxergar algo através dela e entender o que estava acontecendo.

Então, de repente, ao alcance da vista, kilts esvoaçantes ficaram claramente visíveis, e passaram marchando perto da abertura da barraca, quase como se estivessem marchando para dentro dela. Alan começou a contar... quatro... seis... dez... doze pares de pernas. A neblina estava tão grossa a ponto de impedir ver acima da cintura, mas foi possível reconhecer que 24 tocadores de gaita de foles vestidos de kilt estavam marchando bem no jardim deles.

Depois, quase tão de repente quanto veio, o barulho das gaitas de foles, e com ele a visão de seus músicos, desapareceu na noite.

Isabel e Alan não sabiam o que dizer. O medo congelou-os no local. Eles não conseguiam acreditar no que tinham acabado de ver. De repente, o medo que os paralisava sumiu, e os dois pularam da barraca e correram a toda velocidade para casa. O grito de “Socorro!” de Alan abafou a gritaria da irmã.


Capítulo 4

Papai é Cético

– Calma, crianças. Calma! – insistiu o senhor MacDonald, tentando compreender por que os gêmeos estavam gritando.

Até então, ele tinha entendido coisas como: “neblina”, “gaita de foles”, “tocadores de gaita de foles”, “desapareceram”, mas nada disso fazia nenhum sentido. Os gêmeos tinham invadido a sala bem na hora em que o senhor MacDonald estava começando a cochilar no sofá. Sua raiva rapidamente se tornou preocupação quando ele viu que as crianças estavam claramente desnorteadas. Isabel foi a primeira a se recuperar e a contar para a mãe e o pai exatamente o que havia acontecido.

Quando ela terminou de falar, o senhor MacDonald sentou calmamente e olhou para os dois filhos um pouco confuso. Depois, ele se levantou, seguido pela família toda e caminhou silenciosamente para a porta dos fundos, que dava para o jardim. Quando ele abriu a porta, todos olharam para fora. A grande barraca podia claramente ser vista no centro do jardim. Não havia nenhuma neblina, e nem tocadores de gaita de foles, com certeza.

– Certo, crianças. Certamente foi um pesadelo – insistiu o senhor MacDonald, sem perceber que, para isso, as duas crianças precisariam ter sonhado exatamente o mesmo sonho, ao mesmo tempo.

– Mas, mas, pai – balbuciou Alan.

O senhor MacDonald não lhe deu tempo para novas explicações.

– Nada de “mas”, Alan. Venham, já para cima, os dois. E traga esse livro de histórias de fantasmas para mim. Todos nós já levamos sustos demais para uma única noite.

O senhor MacDonald fechou a porta dos fundos e acomodou todos dentro de casa. Sua raiva tinha voltado e os gêmeos puderam ver que seria inútil continuar discutindo.

Quando os gêmeos foram para cima, o senhor MacDonald foi conversar com a esposa.

– Mas que semana... Como se já não tivéssemos passado por tantas emoções! – ele disse.

– Não seja duro com eles, querido, você conhece a imaginação infantil – a senhora MacDonald comentou. – Eles ainda são muito jovens.

– Eu podia esperar isso do Alan. Mas da Isabel? – o senhor MacDonald acrescentou. – Venha cá, foi uma semana difícil. Vamos todos para a cama.

No andar de cima, os gêmeos espiavam pela janela de Isabel. Eles sabiam o que tinham visto e que não era sonho e nem pesadelo. Só não conseguiam entender o que acontecera. Tocadores de gaitas de foles no meio da neblina! Não admira que o pai tivesse zombado. Era mesmo ridículo!

– O que vamos fazer agora? – Isabel perguntou, ainda contemplando a barraca pela janela.

– Não há mais nada a fazer. Vamos ter que ficar na barraca amanhã à noite para ver o que acontece – disse Alan, voltando para a cama e tentando imaginar o que poderiam fazer para os pais acreditarem neles. Talvez tivesse sido apenas um sonho, ele pensou.

– Mas o que vamos fazer se virmos os tocadores de gaita de foles novamente? – Isabel continuou.

– Vamos cuidar disso quando acontecer. Talvez nunca mais os vejamos novamente. Não vamos nos preocupar com isso agora. Vamos, precisamos dormir um pouco – Alan falou, levantando-se e indo para a porta do quarto. – Não se preocupe, Isa. Vamos resolver esse mistério – Alan sorriu quando passou pela porta. Ele gostaria de ter algum plano. Mas não tinha nenhum.


Capítulo 5

Outra Noite Estranha

O dia seguinte passou lentamente. Alan e Isabel não conseguiam se concentrar. Embora tentassem não pensar na noite seguinte, era impossível conter a ansiedade.

Alan jogou futebol com seu time, que perdeu a partida, e Isabel foi fazer compras com a mãe, e não comprou nada. O fato de ele haver perdido o jogo não era estranho, mas quanto a ela não ter comprado nada, isso sim, era muito estranho.

Por fim, o jantar passou, e depois de assistirem um pouco de TV, os gêmeos começaram a se preparar para irem para a barraca.

– Vocês dois têm certeza de que querem ficar lá fora hoje à noite? – a senhora MacDonald perguntou.

– Não se preocupe, mãe. Sem dramas esta noite, eu prometo – disse Alan, sem ter certeza de que era mesmo aquilo que ele queria.

– Nada dessas histórias bobas de fantasmas, Alan. Vamos passar uma noite tranquila hoje, depois da semana que tivemos...

– Tudo bem, pai, eu prometo – Alan replicou, saindo do quarto da frente.

Enquanto os gêmeos seguiam para o jardim, Alan parou e olhou em volta. Novamente, era uma tarde clara, sem nuvens. Estava apenas começando a escurecer e com certeza não havia o menor sinal de neblina ou cerração.

– Tome nota, Isabel. Nada de nuvens, cerração ou neblina à vista! – afirmou Alan, como se quisesse registrar formalmente que a noite estava limpa.

Dentro da barraca, eles estavam inseguros e não sabiam exatamente o que fazer. Alan tentou algumas piadas, mas nem ele e nem Isabel estavam realmente no clima. Depois de uns 15 ou 20 minutos, os dois ficaram em silêncio e se enfiaram em seus sacos de dormir, atentos para os ruídos externos. Novamente, Isabel começou a relembrar seus primeiros dias de acampamento e mais uma vez ela passou a ficar preocupada com cada som e com cada movimento lá fora. Ela tentou escutar suas músicas, mas receava perder a oportunidade de ouvir os ruídos que o Alan tinha ouvido na noite passada. Olhou para o irmão. Ele parecia estar apenas contemplando o teto da barraca, esperando.

Não ficou claro, desta vez, qual deles tinha sido o primeiro a ouvir o ruído. Ambos pareciam tão alarmados que sentaram-se exatamente ao mesmo tempo.

– Lá vamos nós, Isabel! – Alan cochichou, olhando para a irmã, e sua voz era uma mistura de excitação e medo. Ele lembrou da maneira como a professora descrevera os sentimentos dos jovens combatentes no campo de batalha de Culloden. Agora ele sabia o que ela queria dizer.

Os gêmeos sentaram-se calmamente e escutaram com atenção. Como antes, a melodia começou discreta e, aos poucos, foi ficando cada vez mais alta. Alan rapidamente colocou a cabeça para fora da barraca e, tão logo voltou para dentro.

– Tudo nublado outra vez. Quase não consegui enxergar nada – ele confirmou o que ambos esperavam: a estranha neblina estava de volta.

Eles esperaram até que o som das gaitas de foles ficassem fortes como se estivessem bem ao lado da barraca. Quando a música se aproximou bastante, eles rapidamente colocaram a cabeça para fora.

A princípio, não conseguiram enxergar nada no meio da obscura cerração, que parecia ainda mais espessa do que na noite anterior. Alan colocou o braço para fora para tocar na neblina, quase como se quisesse provar que era real. As pontas de seus dedos ficaram invisíveis quando eles foram devorados e desapareceram na mágica neblina. Foi só quando recolheu o braço que ele sentiu alguma coisa tocar sua mão. Ele teve a impressão de ser um kilt.

Então, o exército de tocadores de gaita de foles foi mais uma vez para cima deles. As pernas deles apareciam de ambos os lados da barraca e passavam marchando diante dos irmãos. O barulho das gaitas de foles era ensurdecedor.

Antes que Isabel tivesse a chance de reagir, Alan pulou para fora da barraca. A irmã tentou agarrá-lo, gritando:

– Alan! Pare! Não...

Mas era tarde demais, ele havia sumido. Seu corpo inteiro desapareceu instantaneamente na neblina quando ele saiu da barraca. Isabel olhava por todos os lados tentando encontrar algum vestígio do irmão.

– Alan... Alan... não me abandone! – ela gritou.

Mas foi tudo em vão. Ele havia desaparecido. Quando o som dos tocadores de gaita de foles desapareceu, levando junto a neblina, Isabel viu que estava sozinha na barraca, rodeada pelo silêncio. Um silêncio que foi gradualmente interrompido pelo som de seu próprio choro.

Alan não acreditou em seus olhos quando ficou diante dos tocadores de gaita de foles. A neblina tinha desaparecido instantaneamente, e agora ele estava no meio de uma fileira completa de tocadores de gaita de foles das montanhas. Ele tinha que pular de um lado para o outro, para evitar que eles o pisoteassem.

Quando se esquivou do exército de pernas que o cercava, viu atrás deles outro grande número de homens uniformizados com a roupa de batalha das montanhas, todos correndo para a frente, gritando, acenando com suas espadas acima de suas cabeças. Alan virou-se. Na frente dos tocadores de gaita de foles e atacando os membros do clã, havia uma pequena linha de homens, vestidos com o uniforme dos Casacas Vermelhas que os caracterizava como soldados ingleses.

– Meu Deus! – pensou Alan, confuso. – Mas o que está acontecendo? Onde estou?

Ele olhou para os lados, tentando encontrar algum sentido para o que havia acontecido com ele e entender onde estava. Mas não havia tempo para pensar. Imediatamente, foi surpreendido pelo som de uma bala que passou zunindo por sua cabeça e espatifou uma pedra na sua frente. Alan percebeu que precisava sair dali. Corria perigo de ser baleado ou de ser pisoteado até a morte. De qualquer jeito ele tinha que dar o fora daquele lugar.

Olhou em volta e avistou um rochedo grande, a poucos metros adiante e à direita dele. Correu para lá, e mergulhou atrás do rochedo bem na hora em que os montanheses de kilt passaram correndo, numa gritaria digna de uma cena do mais absoluto terror. Alan esperou alguns segundos agachado atrás do rochedo. Reunindo toda sua coragem, levantou a cabeça acima do rochedo e arregalou os olhos para os eventos que se desenrolavam diante dele.

O grupo dos escoceses tinha alcançado a linha dos Casacas Vermelhas e a cena era de uma massa de corpos em combate. Alan percebeu que o espaço entre o rochedo e a batalha estava entulhado de músicos caídos.

Alguns músicos tentavam se reerguer e recomeçar a tocar suas gaitas de foles com o resto de fôlego que lhes restava.

A própria cena da batalha tinha se desintegrado em um grande número de escaramuças individuais, em combates corpo a corpo; as espadas dos escoceses contra os sabres dos ingleses. Os gritos já não eram mais de terror, mas sim de dor. Homens tombavam por toda parte, com o sangue jorrando de ferimentos fatais.

Alan não conseguia acreditar em seus olhos. Procurou a segurança do jardim, a barraca, a irmã. Mas foi inútil. De alguma maneira ele tinha sido transportado para aquele lugar horrível. Ele não sentia nada além de terror. Desolado, levou as mãos ao rosto.

Porém, ele não teve tempo de sentir pena de si mesmo. Quando se ajoelhou para se esconder atrás do rochedo, segurando as mãos no rosto, sentiu uma bota afundar bem no seu flanco, e a dor se espalhou por todo seu corpo.

– Aha! Veja o que temos aqui, um jovem assustado. Você merece morrer, seu escocês covarde.

Alan olhou para cima e viu o soldado barbudo de pé ao seu lado. Seu casaco vermelho escuro estava coberto de placas de sangue dos inimigos. O soldado abriu um largo sorriso. O garoto congelou no local, com as costas e o flanco ainda doendo por causa da pancada recebida.

– Bem, meu pequeno guerreiro, eu quero ouvir você gritar. Isto é por todos os meus companheiros mortos! – o soldado rosnou.

Alan viu o Casaca Vermelha erguer o rifle acima de sua cabeça. O punhal da baioneta na ponta do rifle reluziu ao luar. Ainda sorrindo, o Casaca Vermelha começou a empurrar o rifle no jovem desamparado. Alan fechou os olhos e gritou. Sentiu um peso desabar sobre ele. Mas, em vez da dor aguda que esperava, houve um baque colossal. Ele abriu os olhos. Estendido junto a seu corpo, com a cabeça bem próxima da sua, jazia o soldado inglês. Estava morto. Os olhos dele ainda estavam abertos e o rosto congelado com o mesmo sorriso diabólico.

Alan olhou para cima. De pé, no topo do rochedo estava um jovem escocês, coberto de lama e sangue. De sua espada ainda gotejavam pingos vermelhos do golpe recente.

– Bem, esta é pelo menos a centésima vez que o vejo fora – disse o jovem escocês, limpando sua espada na casaca do soldado morto. – Este Brian Campbell é de matar! – ele acrescentou, com um sorriso largo e a brancura de seus olhos e de seus dentes contrastando com a sujeira no rosto.

Alan não sabia o que pensar. Mas o sentimento de alívio era irresistível. Embora estivesse confuso, ele sabia que tinha passado perto do desastre, da morte. E ainda não tinha certeza se estava em segurança.

O escocês chutou o corpo do Casaca Vermelha para o lado, de modo a permitir que o garoto se levantasse. Não foi um movimento fácil, pois Alan sentia suas pernas como se fossem pedaços de elástico. Ele cambaleou e se agarrou no rochedo em busca de apoio.

– Puxa, Alan, deixe-me ajudar você. Eu sou Jamie MacLeod – disse o jovem guerreiro, segurando Alan. – Vamos levá-lo para casa.


Capítulo 6

O Escocês

Isabel sentou-se sobre os joelhos, as lágrimas brotavam em seus olhos. Ela estava muito assustada. Tinha visto o irmão desaparecer bem na sua frente. Mas antes que ela tivesse chance de planejar o que faria ou como explicaria o desaparecimento do irmão para os pais, a entrada da barraca começou a se mexer. Isabel pulou para o fundo da barraca em estado de choque.

Alan apareceu na abertura.

– Oh, Alan, graças a Deus você está bem! – Isabel exclamou, arrastando-se para a frente da barraca, onde abraçou o irmão.

Mas quando Alan entrou, Isabel percebeu que outra figura seguia o irmão na barraca. Ela olhou novamente para Alan e percebeu que seu rosto estava muito pálido. Ele parecia ter visto um fantasma. Ela virou-se rapidamente para a estranha figura que o seguia e que agora estava quase dentro da barraca. Isabel viu que não era nenhum conhecido. Depois de reparar na expressão de Alan, e de ver esse estranho enigmático, o alívio inicial de Isabel começou a se transformar em preocupação. Ela passou a imaginar o que teria acontecido nos poucos segundos em que seu irmão ficara desaparecido. O estranho agora estava dentro da barraca, mas não falou nada. Isabel olhou para fora. A neblina tinha voltado. Ela começou a sentir medo novamente.

Isabel olhou para o irmão, que tinha se enfiado em um canto no fundo da barraca enrolado em um saco de dormir, em estado de choque.

– Alan, o que está acontecendo? O que houve? Onde você foi? – Isabel perguntou, com a voz ao mesmo tempo nervosa e preocupada, os olhos alternando-se entre o irmão e o estranho.

Alan não respondeu. Ele olhou para a irmã e simplesmente meneou a cabeça, parecendo confuso.

– Alan, diga alguma coisa! – exclamou Isabel, começando a ficar zangada.

– Silêncio, Isabel, seja gentil com o seu irmão – o estranho falou calmamente. – Ele tomou um grande susto, coitado.

Isabel virou-se para o estranho e o olhou. Na mal iluminada barraca era difícil decifrar seus traços. Mas a voz do estranho parecia amigável e sem ameaças. Ela, então, reparou pela primeira vez na maneira como ele se vestia. Parecia aquelas pessoas que ela tinha visto em velhos desenhos e pinturas de escoceses de 200 anos atrás. Camisa de algodão cru com faixa xadrez do ombro até a cintura. Kilt de lã grossa, na cor verde principalmente, com um largo cinto de couro em volta da cintura. Nos pés, ele calçava sandálias de couro. Por alguma razão, Isabel percebeu que ele não usava meias, e a sujeira nos pés e nos dedos parecia ter 2 centímetros de espessura. Enfiada no cinto preto, ele tinha uma grande espada e, ao lado, uma pequena adaga.

Isabel reuniu toda a sua coragem.

– E quem é você? – ela conseguiu dizer antes que a coragem desaparecesse.

– Eu? Sou Jamie MacLeod, o melhor lutador do clã MacLeod – o estranho afirmou ousadamente, endireitando o corpo para destacar sua importância. Um amplo sorriso iluminou seu rosto.

Isabel examinou-o na escuridão. Por alguma razão, ela não se sentia ameaçada por ele. O medo dela começou a diminuir.

– Ele acabou de salvar minha vida.

Isabel viu o irmão sentado, a expressão dele começava a voltar ao normal.

– Você não vai acreditar no que eu acabei de ver, Isabel – continuou Alan.

– Bem, é melhor alguém me contar o que está acontecendo, antes que eu saia daqui e vá para o meu quarto – Isabel pediu impaciente.

O bom senso dela lhe dizia que existia uma explicação racional para todos aqueles estranhos acontecimentos.

– Escute, Isabel, e por favor, não interrompa – insistiu Alan, recuperando a calma.

Alan passou a contar a ela tudo o que tinha visto, e tudo o que tinha acontecido desde o momento em que ele saiu na neblina. Os tocadores de gaita de foles, a gritaria dos membros do clã, os Casacas Vermelhas e a batalha que ocorreu. Isabel escutou sem interromper, atônita demais para dizer uma palavra. Se não fosse pelo estranho sentado na frente dela, teria lhe dado um tapinha na cabeça e mandado que parasse de desperdiçar seu tempo.

A presença de Jamie era uma prova física de tudo o que o irmão estava dizendo. Quando Alan chegou na parte da história em que a morte dele parecia inevitável, o rosto de Isabel começou a mudar para a mesma cor que estava o do irmão momentos antes. Ainda assim, ela não interrompeu, concentrada como alguém que lê um livro desesperada para saber o final.

Quando Alan terminou, todos na barraca permaneceram em silêncio. Isabel não sabia o que dizer.

– Mas... mas você desapareceu por apenas alguns segundos – Isabel balbuciou.

– O tempo não é nada no meu mundo – o estranho afirmou solenemente.

Alan sentiu um misto de alívio e excitação quando começou a perceber em que aventura tinha se metido.

– Foi incrível, Isabel, incrível – Alan disse, balançando a cabeça, ainda em estado de choque.

Então, o escocês falou: – Oh, não foi nada especial. Faço isso toda noite – ele disse, gesticulando, como se quisesse enfatizar a insignificância do recente episódio de Alan.


Capítulo 7

A História de Jamie

Agora, tanto Alan como Isabel olhavam para o jovem escocês. Alan, já mais calmo, percebeu que o estranho na frente dele provavelmente não era muito mais velho do que ele. Dois ou três anos a mais.

– Jamie, quem é você? O que está fazendo aqui, em nosso jardim, em nossa barraca?

– Bem, acreditem se quiserem, meus amigos, mas estou aqui no jardim de vocês há 250 anos, mais ou menos – respondeu Jamie, com o sorriso desaparecendo e um olhar de tristeza surgindo em seu rosto.

Os gêmeos permaneceram em silêncio, aguardando o jovem estranho continuar.

– Eu não sou do tempo de vocês. Venho de uma época muito remota. Nasci no ano de nosso lorde, em 1730.

– Mas isso é impossível... – Isabel interrompeu.

– Não é impossível. Nem um pouco impossível mesmo – Jamie afirmou, fazendo sinal com a mão para deter novas interrupções. – Sou membro do clã MacLeod. Nós morávamos numa pequena cidade nas margens do lago Carron, no oeste. Meu pai, meus tios, meus primos e meus amigos seguiram o estandarte de Charles Stuart, o “Bonnie Prince”. Era uma causa nobre. Nós o seguimos até Derby, na Inglaterra, e comemorávamos sempre, quando assistíamos aos Casacas Vermelhas saírem correndo a cada avanço nosso. Éramos invencíveis. Então, alguns lordes covardemente o persuadiram a voltar. Seríamos deixados em paz, eles disseram. Que nada! Eles não contavam com o “Açougueiro”. Ele nos perseguiu. Jamais permitiu que voltássemos em paz. Ele seguiu cada movimento nosso, nos saqueou, nos perseguiu, nos empurrou cada vez mais para o norte, até que tivéssemos apenas o mar pela frente. Lá nós lutamos, e lá todos nós morremos.

Jamie fez uma pausa. Seu rosto enrijeceu, o brilho de seus olhos sumiu. Ele abaixou a cabeça.

– Então, você estava em Culloden? – Alan perguntou, agitado, insensível diante da óbvia dor do jovem.

Jamie ergueu a cabeça: – Nós nunca fomos para Culloden. O grupo em que estávamos se separou do exército principal, em busca de comida. O príncipe ordenou isso pessoalmente. O exército vinha marchando há muito tempo. Éramos cerca de 30 ao todo. Fizemos uma coleta de grãos nas fazendas locais, colhendo um pouco de cevada e aveia, e estávamos voltando para nos juntarmos aos nossos camaradas em Culloden. Percebemos que os homens de Cumberland estavam por perto. Foi o meu pai quem suspeitou deles primeiro. Era um pequeno grupo de Casacas Vermelhas, em número similar ao nosso, em torno de 30 ou 40. Eles estavam fazendo o mesmo que nós, coletando comida. Não havia escolha. Tínhamos que lutar com eles para alcançar Culloden. Foi inútil. Eles estavam mais bem armados do que nós. Lutamos bravamente. Eles lutaram bravamente. Por um homem, nós lutamos até a morte. Todos morreram. Bem, quase todos. Quando eu caí na lama, com o meu sangue jorrando, olhei nos olhos do meu pai. Posso lembrar das palavras dele: “Seja corajoso, filho, MacLeod para sempre”.

– Quando os meus olhos se fecharam pela última vez no mundo real, eu o vi desaparecer nas árvores em direção a Culloden.

Alan e Isabel arregalaram os olhos para o jovem escocês, perdido nas palavras. A cabeça de Jamie estava abaixada, seus pensamentos aparentemente em outro lugar. Quando a ergueu, seus olhos estavam cheios de lágrimas.

Jamie continuou: – Depois da grande batalha, quando o exército do Cumberland nos alcançou, éramos 60 ou 70 cadáveres. Ele simplesmente mandou seus homens nos enterrar na vala mais próxima. Nenhum enterro decente. Mesmo seus próprios soldados mortos eram jogados lá conosco, sem enterro cristão em solo sagrado. Sem benção. Nada. Desde então, nós jamais descansamos em paz. Por quase 200 anos as nossas almas penadas levantam-se toda noite para reviver o dia da nossa morte, cada homem morrendo mil vezes de novo. Há alguns anos, estas casas foram construídas sobre o nosso sepultamento pagão, e as nossas almas ficaram trancadas nelas. Bem aqui, no terreno de vocês, continuávamos sem descansar, mas éramos incapazes de levantar e lutar a nossa antiga batalha. De repente, sem aviso, as nossas almas foram novamente liberadas e a nossa batalha continuou. Esse é o nosso destino.

Imediatamente, Alan lembrou que a explosão na garagem de seu pai provavelmente teria sido provocada por essa misteriosa e fantasmagórica liberação.

Isabel sentiu a tristeza nas palavras do jovem membro do clã. Ela podia ver a dor claramente estampada no rosto dele.

Para Jamie, a aventura e a glória da batalha haviam desaparecido há muito tempo. Ele era, na verdade, uma alma penada, que vivia um pesadelo real e recorrente.

Ele se levantou para sair da barraca. Virou-se para olhar os gêmeos, sério e com o rosto abatido.

– Tomem cuidado. Nunca entrem na neblina. Eu posso morrer toda noite. Vocês ainda têm que passar pela primeira morte. Brian Campbell e seus soldados não vão poupar vocês. Fiquem longe da neblina.

Com isso, Jamie disparou para fora da barraca e desapareceu na neblina. Alan fechou a abertura sem demora. Só conseguia ouvir os toques melódicos das gaitas de foles a distância. A neblina se dissipou e as gaitas silenciaram.


Capítulo 8

O Incrédulo

Alan e Isabel sentaram-se silenciosamente na barraca, confusos e assustados. Jamie tinha ido embora há poucos minutos e nenhum deles ainda tinha falado nada. Ambos estavam com medo demais para reconhecerem o que tinham acabado de ver e ouvir. Aceitar que aquilo era verdade seria dizer que eles estavam envolvidos em alguma coisa muito estranha, espantosa, fantástica. Era algo que só podia ser visto em filmes ou lido em livros.

De qualquer maneira, ambos perceberam que estavam no meio de alguma coisa que eles não conseguiam lidar por conta própria.

Isabel começou a se mexer.

– Venha cá, Alan. Temos que conversar com a mamãe e com o papai. Precisamos de ajuda para resolver isso.

– Mas eles vão achar que ficamos loucos, completamente doidos – insistiu Alan, balançando a cabeça.

– Bem, vamos ter que tentar convencê-los. Não podemos ficar com uma antiga batalha sendo disputada no nosso jardim toda noite – Isabel disse, com um sorriso nervoso estampado no rosto. – O que os vizinhos vão dizer?

– Ei, Isabel, isso é sério. Se você tivesse visto o rosto daquele Casaca Vermelha, e se tivesse encarado aquela baioneta... – Alan falou.

– Eu sei, eu sei. Estou apenas tentando controlar os meus nervos. Venha, vamos pegá-los antes de irem para a cama – Isabel interrompeu, colocando o braço em volta do irmão.

– Certo, acabou, a barraca será desmontada amanhã – o senhor MacDonald avisou assim que Alan e Isabel terminaram de contar a história deles.

Ele tinha escutado a tal história com um sorriso no rosto, aguardando que um deles o deixasse entrar na brincadeira. Quando os gêmeos insistiram naquilo novamente, dizendo que não era brincadeira, a paciência dele finalmente se esgotou.

– Ou vocês dois estão tramando algo, ou os livros que andam lendo estão enchendo a cabeça de vocês com essas histórias que ninguém sabe se estão sonhando ou não – ele continuou. – Chega de acampamento para ambos!

Isabel e Alan continuaram a implorar ao pai. Por fim, Isabel teve uma ideia.

– Pai, talvez você esteja certo. Talvez tenhamos imaginação muito fértil. Afinal de contas, estávamos em Culloden há pouco tempo. Mas seria uma pena a gente se desfazer da barraca. Acho que ainda somos jovens demais para ficarmos fora por nossa conta. Fique na barraca conosco amanhã à noite. Tenho certeza de que desse jeito todos poderemos ver que tudo não passou de um pesadelo – ela disse em seu mais persuasivo tom de voz.

O senhor MacDonald concordou prontamente. Ele não queria mesmo se livrar da barraca, por causa do dinheiro que tinha gasto nela. Se passasse a noite nela e nada acontecesse, sem neblina e sem soldados, o assunto estaria resolvido de uma vez por todas.

– Certo, vocês venceram. Amanhã à noite estarei lá. Agora, já para a cama antes que eu dê umas palmadas em vocês dois! – disse o senhor MacDonald, levantando o braço e apontando-o para o traseiro de Alan. A ameaça das palmadas não se concretizou, pois os gêmeos escapuliram escada acima e foram se refugiar em seus quartos.

Alan achou excelente a ideia de Isabel. Quando o pai ouvisse a gaita de foles e visse os músicos, ele teria que acreditar neles. Então, eles poderiam começar a fazer juntos alguma coisa para dar um jeito em tudo aquilo.

Isabel e Alan passaram o dia seguinte na biblioteca local. Estavam decididos a descobrir se nos livros havia qualquer referência a respeito da batalha que Jamie tinha descrito na barraca na noite anterior. Ele disse que havia ocorrido um dia antes da batalha principal de Culloden e que a própria casa deles ficava apenas cerca de 3 quilômetros do local da famosa batalha.

Mas eles procuraram em vão. Examinaram quase uma centena de livros em busca de qualquer detalhe ou história que provasse que aquilo que Jamie tinha descrito realmente acontecera. Mas não conseguiram encontrar nada. Não havia referência em nenhum livro de uma pequena batalha que tivesse ocorrido no dia anterior ao da batalha principal. Eles voltaram para casa um pouco decepcionados, mas ainda animados e apreensivos com a noite que viria.

– Venha, pai, vamos – disse Isabel, tentando tirar o pai do sofá. O entusiasmo anterior do senhor MacDonald pela ideia de Isabel havia diminuído bastante. Agora, a proposta de deitar em uma barraca gelada em vez de dormir em sua cama aconchegante não era nada atraente. Ele se levantou, relutante, e pegou o saco de dormir que Isabel tinha deixado a seus pés.

Alguns minutos depois, os três estavam amontoados em seus sacos de dormir na barraca. As fracas tentativas do senhor MacDonald de imitar o som de fantasmas não tinham impressionado os gêmeos e logo a barraca ficou em silêncio. Alan e Isabel permaneceram imóveis, como garantia para que eles não perdessem os primeiros sons das gaitas de foles. Porém, o que eles ouviram não foram as melodias das noites anteriores, mas o som do pai roncando.

– Vamos deixá-lo assim por enquanto. Vamos acordá-lo quando os tocadores de gaita de foles chegarem – Isabel cochichou, apoiada em um cotovelo.

Alan concordou e voltou a se deitar. Uma hora se passou, sem a ocorrência dos eventos estranhos da noite anterior. Os olhos de Alan começaram a ficar pesados. Ele começou a se cansar de ficar concentrado para ouvir cada ruído. A lenta e rouca respiração de Isabel confirmava que ela já tinha perdido a batalha contra o cansaço.

Foi, então, que a coisa começou. A princípio, Alan não se mexeu, esperando ter certeza de que não estava enganado. Mas conforme ouvia a música ficar mais alta, ele soube que eles estavam de volta. Ele foi até a entrada da barraca e a abriu. A neblina também tinha voltado.

– Pai, Isabel, acordem. Eles estão aqui – Alan exclamou, puxando os sacos de dormir.

Isabel acordou imediatamente e rolou até a entrada. O senhor MacDonald bufou e sentou-se, esfregando os olhos enquanto voltava do sono profundo.

– Alan, eu vou esganar você. O que é isso? – o senhor MacDonald resmungou.

O barulho da gaita de foles enfim era claro. Tanto Isabel como Alan olhavam para o pai, aguardando a sonolência desaparecer para que a percepção do que estava acontecendo surgisse no rosto dele. Mas, por mais que eles arregalassem os olhos diante dele, seu rosto permanecia impassível.

– Pai? – queixou-se Alan. – Não está ouvindo?

– O quê? – questionou o senhor MacDonald, movendo-se para a frente da barraca.

A música da gaita de foles, agora, estava no mais alto volume. Alan puxou de volta a abertura da barraca, a neblina encobria completamente o jardim.

– Olhe a neblina, pai! Você vai vê-los a qualquer momento – Isabel acrescentou, certa de que o pai veria tudo, ainda que não conseguisse ouvir as gaitas de foles.

– Isso é ridículo. Que neblina? Vejam só, eu enxergo até a cerca lá no fundo, está claro como o dia! – o senhor MacDonald contestou, agarrando seu saco de dormir e puxando a aba de entrada.

– Estou cheio. Atenção, os dois: eu quero vocês em suas próprias camas em dois minutos. Essa bobagem foi longe demais.

O senhor MacDonald saiu da barraca no meio da neblina no exato momento em que as imagens difusas dos tocadores de gaita de foles apareceram marchando perto da barraca. Alan lembrou do aviso de Jamie a respeito da neblina enquanto assistia seu pai sumir do campo de visão.

– Pai, não! Volte! – Alan gritou, temendo que a neblina transportasse o pai para longe, como tinha acontecido com ele na noite anterior.

A abertura foi fechada imediatamente. Tanto Alan como Isabel hesitaram, até que o som da música diminuiu e depois desapareceu completamente. Isabel puxou a abertura. O jardim estava claro e calmo. A neblina tinha sumido. Os gêmeos olharam para fora da barraca, ainda com medo de falar. Na noite anterior, Alan voltara instantaneamente da neblina, em segundos. Eles espiaram o jardim com pouca claridade.

– Muito bem. Vocês dois, o que acabei de dizer? Para dentro. Já!

O senhor MacDonald esperava nos degraus da porta dos fundos, olhando para a barraca.

Alan e Isabel olharam um para o outro. Não funcionou. O pai não viu e nem ouviu nada. Por algum motivo, todos aqueles estranhos acontecimentos só eram visíveis para eles.

Se ninguém mais podia ver aquilo, então, eles não conseguiriam ajuda. Eles estavam por conta própria.


Capítulo 9

A Visita do Ancestral

Naquela noite, deitado na cama, os pensamentos de Alan estavam agitados. O tempo todo tentava se convencer de que de alguma maneira ele e Isabel estavam imaginando tudo aquilo. Com certeza, se fosse real, o pai teria visto ou ouvido alguma coisa.

Mas cada vez que relembrava seu encontro com Brian Campbell e Jamie MacLeod, ele sabia que só poderia ter sido real. Ele também lembrava, intensamente, da bota do Casaca Vermelha afundando em sua costela. Colocou a mão onde havia sido o chute: ainda estava sensível e dolorido. Aquilo havia sido real.

Na manhã seguinte, logo após todos terminarem o café da manhã, a campainha tocou. A senhora MacDonald foi atender.

– Alan, é para você. É o Jimmy chamando para uma partida de futebol – a senhora MacDonald disse, voltando para a cozinha.

Jimmy, Jimmy MacLeod. Alan sorriu, e em seguida o sorriso desapareceu.

– Isabel – Alan cochichou, pois não queria aborrecer os pais novamente.

– Isabel, é o Jimmy MacLeod.

Isabel olhou para o irmão, intrigada.

– Sim! E daí? – ela disse.

– Lembra do que ele disse a respeito de seus ancestrais que morreram na Batalha de Culloden? – Alan continuou, inclinando-se sobre a mesa da cozinha.

Isabel ainda olhou intrigada.

– Jimmy MacLeod, Jamie MacLeod.

Alan repetiu os nomes, para permitir que a conexão fosse notada pela irmã.

– Jimmy MacLeod, Jamie MacLeod.

Isabel hesitou, e depois finalmente entendeu. Ela começou a acenar com a cabeça, parecendo concordar com a mais nova teoria do irmão. E depois, quase no mesmo instante, sua expressão mudou e ela começou a retorcer o rosto.

– Não pode ser, Alan. Não pode ser. Jimmy MacLeod está sempre inventando histórias. Não é possível que ele tenha alguma coisa a ver com o Jamie. Isso é ridículo – Isabel afirmou, ficando de olho nos pais, que arrumavam a cozinha.

– Pode ser ridículo, mas pode não ser. Vamos descobrir – disse Alan levantando-se e seguindo para o salão.

Jimmy MacLeod era um dos melhores amigos de escola de Alan. Ele era um palmo mais alto que Alan, embora fossem da mesma idade. Não era o mais inteligente dos garotos, mas era um verdadeiro atleta. Ele era simplesmente o melhor em tudo o que os garotos tentavam fazer na escola. Além de ser alto, também era bem encorpado para sua idade.

Ele era o melhor lutador na escola, mas agora que o conheciam bem, os outros garotos tinham desistido de desafiá-lo. A senhora Martin sempre se referia a ele como “o grande escocês”.

O pai de Jimmy era dono da empresa local de aluguel de equipamentos. Foi ele quem emprestou o conjunto de oxiacetileno para o senhor MacDonald trabalhar no carro. Isso provocou brincadeiras na escola no dia seguinte ao incêndio da garagem.

Jimmy estava sentado nos degraus do saguão, jogando a bola de uma mão para a outra, enquanto esperava por Alan.

– Oi, Jimmy, vamos – disse Alan, pegando a bola em pleno voo.

Jimmy percebeu que Isabel seguia atrás do irmão.

– Ela não vai jogar conosco, não é? – ele questionou, olhando com um certo desdém para Isabel.

– Não, não, Jimmy. Não se preocupe. Só temos algumas coisas para contar a você. Vamos até o meu quarto – Alan falou, agarrando Jimmy pelo braço e levando-o escada acima.

Alan olhou para o andar de baixo, para ter certeza de que seus pais não estavam rondando por ali, antes de fechar a porta de seu quarto.

Ele começou: – Jimmy, primeiro de tudo, você tem que prometer que não vai contar a ninguém o que vamos lhe dizer. Em segundo lugar, não interrompa até eu terminar.

Jimmy olhou intrigado, mas concordou com a cabeça. Ele gostava de um bom mistério, e tinha certeza, pela expressão séria dos dois à frente dele, que estava prestes a ouvir um dos bons.

Alan contou toda a história, desde o incêndio da garagem, até a noite em que seu pai se juntou a eles na barraca. Isabel só interrompeu eventualmente, com comentários e observações para dar mais peso à história.

Alan procurou não se esquecer de nada, de nenhum detalhe. Quando terminou, ele sentou-se e sorriu para Jimmy.

– Bem, o que acha disso tudo? – ele perguntou.

Jimmy não sabia o que dizer. Ele sabia que Alan era um pouco brincalhão, mas e quanto a Isabel? Ele tinha sempre achado que Isabel era uma garota sensata e séria.

O fato dela confirmar tudo o que Alan estava dizendo quase tornava a estranha história verídica.

Antes que Jimmy tivesse a chance de dizer alguma coisa, Alan falou novamente:

– Jimmy, o cara que salvou a minha vida, o que foi até a barraca, o nome dele era Jamie MacLeod, como você. Jamie e Jimmy são ambas formas de James, não são? Ele pode ter sido seu ancestral.

Agora, Jimmy estava começando a ficar realmente agitado. O pensamento de que aquele fascinante mistério pudesse estar ligado a ele e a sua família era um pouco mais atraente.

– É isso o que vocês acham, Alan? Acham que ele pode realmente ser meu ancestral? – Jimmy perguntou, e a excitação em seu rosto era evidente.

– Bem, Jimmy, o que você sabe a respeito desse parente que morreu em Culloden? É verdade? Quem lhe contou a respeito disso? Será que ele realmente morreu lá? Qual era o nome dele? – Isabel falou.

Ela encheu Jimmy de perguntas, exigindo respostas rápidas.

Mas a expressão de Jimmy mudou. Ele olhou para o chão, seus ombros caíram, e ele arregalou os olhos, pasmo. Alan começou a achar que Jimmy tinha inventado toda a história de seu ancestral em Culloden.

Jimmy começou a falar: – Para ser sincero, eu realmente não sei nada a respeito disso. Apenas lembro que quando era criança, o meu avô costumava me contar um monte de histórias a respeito dos velhos tempos. Eu não sabia se alguma delas era verdade ou não, esqueci a maioria. Mas sempre lembro dele dizer que eu deveria me orgulhar do nome da nossa família, MacLeod. Ele costumava dizer sempre: “Seja corajoso, filho, MacLeod para sempre”.

Os irmãos olharam um para o outro. Alan sorriu e meneou a cabeça. Aquelas palavras eram as mesmas que Jamie havia dito naquela noite na barraca. Eram as palavras que o pai de Jamie tinha usado quando estava morrendo no campo de batalha.

– Por acaso o seu avô ainda está vivo, Jimmy? – Alan perguntou sutilmente.

Jimmy olhou para cima: – É claro que está. Ele mora na próxima cidade – ele disse incisivamente.

– Bem, Jimmy, acho que precisamos visitá-lo. Ele pode ser a pessoa que irá entender tudo isso – afirmou Alan.

– Mas o mais importante é que ele pode ser a pessoa capaz de nos ajudar a resolver essa história toda – Isabel acrescentou, levantando-se e seguindo para a porta.


Capítulo 10

A Verdade é Revelada

Bastava uma curta viagem de ônibus para chegar à casa do avô de Jimmy. No caminho, Jimmy pediu aos gêmeos que contassem a história várias vezes, especialmente a parte em que Alan saiu na neblina e foi parar no meio da batalha. Jimmy teria gostado de estar com Alan naquela noite. A ideia de combater os Casacas Vermelhas o agradava muito. Ele tinha certeza de que teria sido capaz de cuidar de si mesmo. Brian Campbell não seria problema para ele.

Alan apenas sorriu para o amigo. Agora ele sabia a grande diferença entre brincar de soldado e ser soldado. Não havia jeito dele querer topar com nenhum daqueles Casacas Vermelhas novamente.

Quando o ônibus parou, os três amigos desceram e Jimmy guiou-os pelo caminho. A casa do velho senhor MacLeod ficava no final de uma pequena travessa. Era a última de uma fileira de pequenos chalés.

Isabel reparou que o jardim era bem cuidado. A grama estava aparada e os canteiros estavam cobertos de belas plantas e de flores de todos os tipos.

Jimmy tocou a campainha. Não houve resposta.

– Provavelmente ele está nos fundos, trabalhando no quintal – Jimmy afirmou. – Vamos entrar pela lateral.

Ele estava certo. O velho senhor estava ajoelhado, com uma espátula na mão, trabalhando no fundo do pátio. Quando ele se virou, ao ouvir o barulho de pessoas chegando, seu rosto se iluminou.

– Jamie, meu garoto, que bom ver você – ele exclamou, levantando.

Alan percebeu imediatamente que o avô de Jimmy tinha usado a versão mais escocesa do nome do amigo. Aquilo tudo estava ficando muito interessante.

– E quem são esses que vieram com você, filho? – o senhor MacLeod perguntou olhando para Isabel e Alan.

Jimmy apresentou os dois amigos enquanto ajudava o avô a sentar-se no banco do jardim. Ele parecia um homem robusto, mas seus velhos ossos ficaram tensos depois de ter passado algumas horas trabalhando no jardim.

Não demorou muito para Jimmy tocar no ponto da visita.

– Vô, temos que conversar com você, precisamos da sua ajuda – Jimmy disse, sentado na grama, junto aos pés do avô. Os gêmeos se juntaram a ele.

O senhor MacLeod olhou para os rostos sérios que o fitavam atentamente. Ele imaginou que grande catástrofe teria sucedido àquelas crianças. Provavelmente tinham quebrado a janela de algum vizinho e queriam dinheiro emprestado antes que seus pais descobrissem, foi o que pensou. As crianças dos dias de hoje davam o maior trabalho por causa de coisa nenhuma.

– Vamos logo, desembuchem, porque ainda tenho canteiros de plantas para molhar – ele disse incisivamente, prestes a perder a paciência.

Mais uma vez, Alan começou a contar sua história. O velho senhor escutou atentamente, com o rosto impassível, sem demonstrar nenhuma emoção. Alan relatou todos os eventos dos últimos dias, com a preocupação de não deixar nada de fora. Quando terminou, ele esperava a mesma reação que tinha recebido de seu pai. Ele temia que o velho senhor apenas risse, tocasse-os para fora e lhes dissesse para que não fossem tão bobos.

Mas o velho senhor não fez nada disso. Ele se levantou.

– Fiquem aqui um minuto – ele disse, e entrou na casa.

Depois de pouco mais de um minuto ele reapareceu, trazendo algo que, para Alan, parecia um velho pedaço de pano. O senhor idoso sentou-se novamente no banco.

– Você reconhece isto? – ele perguntou colocando o pano na frente dele.

Alan e Isabel observaram. Era um pedaço esfarrapado de tecido xadrez. Parecia muito velho. A estampa estava bem desbotada, mas as linhas da lã xadrez ainda podiam ser observadas. O pano era principalmente de cor verde com linhas vermelhas e brancas.

Isabel reconheceu-o primeiro. Era a mesma estampa do kilt de Jamie.

– O kilt dele era assim? – o velho senhor perguntou.

Isabel concordou com a cabeça. Ela olhou para o velho homem. Seus olhos estavam começando a marejar. Isabel imaginou o que aquilo significava.

O senhor MacLeod ficou em silêncio por alguns momentos. Estava claramente emocionado. Tossiu e, então, começou a falar.

– Este pedaço de pano tem ficado aos cuidados da minha família de geração a geração. O desenho é da antiga lã xadrez MacLeod. A moderna lã xadrez MacLeod é totalmente diferente. Depois da Batalha de Culloden, em que tantos membros do nosso clã morreram, a antiga lã xadrez foi abandonada para nunca mais ser usada, em honra de todos aqueles que morreram. Acreditava-se que ninguém jamais seria digno o bastante para usá-la novamente.

– A história dessa época tem sido passada de geração a geração. Este foi o único pedaço de pano que sobrou. Foi tirado do campo de batalha e confiado ao meu... deixe-me ver se consigo lembrar novamente... tataravô... Ele tinha 9 anos de idade na época, e apenas lhe contaram que seu pai e seu irmão tinham morrido na grande batalha. Ele era jovem demais para ir com eles. O corpo de seu pai tinha sido enterrado com os outros membros do clã no próprio campo onde eles tombaram. Mas o corpo do irmão dele e de muitos outros que deixaram a cidade para lutar com o príncipe jamais foram encontrados.

O velho senhor parou. Novamente seus olhos começaram a se encher de lágrimas. Ele olhou firme para Alan e continuou.

– Acho que vocês os encontraram, filho. Acho que vocês resolveram um mistério que esteve na minha família durante 200 anos. A mulher que seguia o exército tentou por vários dias encontrar os membros do nosso clã para enterrá-los adequadamente, para que eles pudessem ser abençoados e ter suas almas despachadas para o céu. Mas muitos dos nossos rapazes e homens não puderam ser encontrados. Acho que o seu Jamie MacLeod é um dos nossos parentes perdidos, o irmão do meu antepassado avô.

Alan ficou perturbado com o olhar fixo do velho senhor. O garoto queria que ele tivesse acreditado neles, mas de certo modo, ficar sabendo como tudo era real foi um pouco assustador.

Alan nunca tinha acreditado em fantasmas e lá estava um velho senhor confirmando o fato de que ele podia ter sentado perto e falado com um deles alguns dias antes. Na verdade, era a confirmação de que o jardim da casa dele era invadido toda noite.

– Mas por que o meu pai não consegue ver nada? – Alan perguntou ao velho homem, ainda um pouco confuso.

– Às vezes só os escolhidos conseguem ver a vida após a morte, filho. Quem sabe por que essas almas se revelam e como elas escolhem para quem vão se revelar? Não é incomum crianças serem capazes de ver o que os adultos não conseguem – o senhor MacLeod respondeu, sorrindo de um modo que tranquilizou Alan.

– Mas por que eles não estão em descanso como todos os outros? – Isabel perguntou.

– A resposta estava na própria história de vocês, garota, nas próprias palavras do Jamie. Eles foram enterrados onde caíram, sem o sepultamento cristão, sem um padre, sem uma bênção. O “Açougueiro” não tinha tempo para eles. As almas foram lançadas na meia vida, no limbo, entre o céu e a terra – o senhor MacLeod respondeu.

A voz dele estremeceu quando ele considerou o destino dos antigos membros de seu clã.

– Mas nós temos que fazer alguma coisa. Não podemos deixar tudo assim. Deve existir algo que possa ser feito – ela continuou. – Não podemos abandoná-los, temos que ajudar.

Isabel começou a chorar. A compreensão de tudo o que estava acontecendo foi demais para ela. Aquilo realmente estava acontecendo. Era tudo verdade.

– Ora, ora, querida. Venha cá – o senhor MacLeod disse calmamente, puxando a menina para perto dele, e colocando seu braço em volta dela.

– Alan, filho, você disse que foi a explosão na garagem de seu pai que começou tudo isso? – o senhor MacLeod perguntou, olhando diretamente para o garoto.

– Sim, senhor, acho que foi – Alan replicou.

– Bem, então, é por lá que vamos ter que começar – o velho homem acrescentou.

Os três amigos se olharam. – Começar? – Jimmy perguntou.

– A procurar os ossos – replicou o senhor MacLeod. – Procurar ossos, centenas deles.


Capítulo 11

Um Enterro Decente

O velho homem sorriu quando viu a expressão intrigada dos jovens.

– Espero que vocês não tenham muito nojo, especialmente você, mocinha, pois temos um grande serviço a fazer – ele afirmou, com o sorriso desaparecendo do rosto.

– Do que se trata, vô? – Jimmy perguntou, imaginando se o avô tinha noção do que estava falando.

– Ouçam primeiro. O único jeito de fazermos essas almas descansarem é desenterrando seus ossos e mudando-os para solo sagrado – replicou o senhor MacLeod, um pouco irritado com a maneira impertinente do neto questionar.

– Mas se os ossos já estão lá, não bastaria chamarmos um padre para fazer uma prece e abençoar o chão? – Isabel perguntou.

– Quem mais acreditaria nessa história de vocês? Se nem os seus próprios pais acreditaram, como acham que um padre reagiria? Eu posso chamá-lo agora mesmo.

– “Sim, claro crianças, já estou indo, só vou pegar um pouco de água benta”. Bah! Não sejam tolos. Cabe a nós fazer algo. Nós mesmos teremos de agir – replicou o senhor MacLeod, zombando da sugestão de Isabel.

– Mas de que maneira? Devem existir centenas de ossos para serem desenterrados. Não temos equipamento. Como vamos fazer isso? – Alan perguntou.

– Pode deixar comigo, rapaz. O meu filho, pai deste Jamie aqui, tem equipamento de sobra. Vamos apenas ter que emprestar algumas poucas coisas, não é, Jamie? – o senhor MacLeod falou, afagando e desalinhando o cabelo de Jimmy.

– Mas, vô, você é muito velho, não pode... Não há como... – gaguejou Jimmy.

– Segure a língua, Jamie, meu rapaz. Não sou tão velho assim. De quem era esse negócio antes de ser do seu pai? Hein? Eu ensinei ao seu velho tudo o que ele sabe. Lembre-se disso! – o senhor MacLeod replicou, repreendendo o neto.

Alan e Isabel sorriram. O velho senhor não era de brincadeira. Por fim eles tinham alguém que estava do lado deles. Alan gostou de ouvir o plano do velho homem. Mas era uma tarefa importante. Eles tinham muito trabalho a fazer.

– Vamos precisar de algumas horas sozinhos, sem a presença dos seus pais por perto. É possível? – perguntou o senhor MacLeod aos gêmeos.

– Eles vão jantar fora hoje, por volta das sete horas da noite. É o aniversário de casamento deles – Isabel replicou, lembrando ter escutado a mãe agendar uma mesa há alguns dias.

– Perfeito! – exclamou o senhor MacLeod. – Estarei na casa de vocês no mais tardar às oito. Jimmy, venha comigo. Vou precisar da sua ajuda para pegar as coisas e me mostrar o caminho – ele acrescentou.

Com isso, o velho senhor se levantou e foi para casa. Alan, Isabel e Jimmy assistiram-no se afastar a passos largos, o primeiro sinal de que sua rigidez estava desaparecendo.

– Seria melhor ir atrás dele, Jimmy – Alan sugeriu. – Ele parece estar pronto para entrar em ação!

Jimmy riu, concordou e seguiu o avô. Alan e Isabel voltaram para o ponto de ônibus. Não tiveram que esperar muito pelo ônibus, e logo estavam de volta a casa. Quando caminhava em direção à porta da frente, Alan olhou para o local onde a garagem ficava. O pai tinha trabalhado para limpar todo o entulho de lá. A explosão provocou a formação de uma espécie de cratera, que lembrava o efeito de um morteiro ou de um míssil que tivesse atingido a lateral da casa deles.

Ele caminhou pela cratera. Isabel o seguiu.

– Vamos dar uma olhada – o garoto sugeriu, puxando a irmã pela camisa e pulando na cratera. Isabel perdeu o equilíbrio e caiu atrás dele. Incapaz de se manter em pé, ela acabou deitada de costas na terra. Alan riu: – Desculpe, Isa – ele disse, tentando controlar o riso irônico estampado em seu rosto.

Ela não se mexeu, indiferente ao irmão ou às desculpas, e olhou para ele.

– Tire-me daqui! – ela reclamou.

Alan andou até a irmã e lhe estendeu a mão. Isabel levantou a mão esquerda para se agarrar no irmão e se apoiou com a outra no chão, querendo pegar um pouco de terra para atirar nele. De repente, ela gelou. A mão dela tocou em alguma coisa comprida e dura, que ela puxou rapidamente da terra solta. Ela pegou o objeto. Era indiscutível: um osso comprido, um osso humano...

– Alan! – Isabel gritou, atirando o osso para o lado e pulando fora da cratera. – Vamos dar o fora daqui.

Isabel desapareceu correndo para o canto da casa. Alan olhou para o osso. Ele se ajoelhou ao lado e começou a escavar a terra com as mãos. Não demorou muito para descobrir mais um, e depois outro. Em pouco tempo ele tinha uma pequena pilha de ossos. O chão estava cheio deles. O senhor MacLeod estava certo. Alan achou que era melhor esperar pelo velho homem antes de desenterrar mais alguma coisa. Ele pegou os ossos e os levou para a lateral da casa. Encontrou um cobertor velho e os cobriu. Eles estariam seguros ali até mais tarde. Olhou o relógio. Uma hora. Aquele seria um longo dia de espera.


Capítulo 12

A Escavação

Fora uma breve visita lá embaixo para jantar, Alan e Isabel passaram o dia em seus quartos. Nenhum deles parecia querer conversar a respeito da noite que viria. Alan folheou todos os seus livros de história da Escócia e começou novamente a encher a cabeça com histórias de batalhas gloriosas, clãs, espadas, Casacas Vermelhas e rifles. A sensação de medo da aventura de algumas noites antes estava começando a enfraquecer.

Isabel fez de tudo para evitar pensamentos relacionados com a história escocesa. Ela pegou cada CD que possuía e os escutou, duas e três vezes.

Por fim, os gêmeos ouviram os pais se prepararem para ir ao restaurante.

– Atenção, vocês dois: nada de bobagem. Vamos voltar às onze horas, e é melhor vocês estarem na cama – a senhora MacDonald afirmou, enquanto vestia o casaco.

Alguns minutos depois o táxi chegou e eles foram embora. Alan e Isabel passaram a hora seguinte sentados no sofá, alternando entre espiar a janela e o relógio.

O relógio marcou: 7h30, 7h45, 8h00, 8h10. Nem sinal de Jimmy ou de seu avô.

De repente, o barulho foi ensurdecedor. Alan olhou para a rua. No final dela, acabando de virar a esquina, apareceu uma enorme escavadeira. Sentados na cabine do motorista, estavam Jimmy e seu avô ao volante.

– Mas o que é isso! – Isabel exclamou, escancarando a janela.

– É uma escavadeira, para a remoção e o transporte de terra – o irmão replicou pulando do sofá e correndo para a porta da frente.

A escavadeira estacionou próximo à garagem dos MacDonald, e o senhor MacLeod saltou. Ele caminhou até a cratera, arregalou os olhos e balançou a cabeça.

– Tragam algumas pás e se afastem até eu chamá-los – o senhor MacLeod ordenou, apontando para a escavadeira. Alan caminhou até a gigantesca caçamba denteada da imensa escavadeira. Dentro da caçamba, encontrou três pás. Ele as pegou.

– Vou usar a caçamba da escavadeira para afofar a terra da cratera. Depois disso, vocês pulam lá dentro e começam a cavar. Coloquem todos os ossos que encontrarem aqui deste lado – disse o senhor MacLeod, voltando para a escavadeira.

A imensa máquina foi levada até a entrada da garagem e parou em frente à cratera. A caçamba alcançou o solo, escavou fundo na cratera, levantou a terra e depois remexeu o solo novamente. O senhor MacLeod fez isso várias vezes antes de dar instruções para os jovens começarem a cavar.

Em poucos minutos, eles tinham acumulado uma enorme pilha de ossos. Por cinco vezes, a escavadeira entrou em ação e escavou fundo no chão. Depois de cada vez, os três amigos pulavam lá dentro e procuravam todos os ossos que podiam encontrar. A pilha ao lado deles, então, tornou-se imensa. Isabel começou a contá-los, mas logo desistiu.

Depois de cerca de uma hora, os três saíram da cratera. Nos últimos dez minutos, não tinham conseguido encontrar mais nenhum osso.

– Parece que é isso aí – declarou o senhor MacLeod. – Acho que terminamos.

Alan se inclinou para a lateral da casa e olhou a pilha de ossos.

– Espero que estejamos fazendo a coisa certa, senhor MacLeod – disse o garoto, um pouco pesaroso.

– Confie em mim, rapaz. É a coisa certa. Agora, venha aqui. Temos que nos apressar antes que os vizinhos comecem a se interessar pela nossa pequena escavação. Vocês dois, comecem a arrumar. – Jamie, ajude-me a empilhar os ossos na caçamba da escavadeira – pediu o senhor MacLeod, tentando manter todos trabalhando.

Alguns minutos depois, a caçamba da escavadeira estava cheia de ossos, e a cratera e o local em volta tinham sido arrumados da melhor maneira possível.

Isabel e Alan pularam em cima e se juntaram a Jimmy e seu avô na cabine do motorista. Ficou um pouco apertado, mas ninguém se incomodou.

Quando a escavadeira desceu a rua, Isabel teve certeza de que cada vizinho estava assistindo tudo de suas janelas. Ela não ousou olhar, e manteve os olhos firmes no caminho à frente.

– Para onde vamos agora, senhor MacLeod? – Alan gritou mais alto que o barulho do ronco do motor.

– Aonde você acha, rapaz? Para o cemitério, é claro, o solo sagrado. Isso deve resolver tudo – o senhor MacLeod replicou, confiante.

O cemitério ficava perto de uma igreja, cerca de 1 quilômetro fora da cidade. Felizmente, eles não cruzaram com muita gente no caminho. As poucas pessoas que encontraram olharam para eles achando aquilo muito estranho. A visão de uma escavadeira lotada, circulando pela cidade às nove e meia da noite, não era algo muito comum.

Depois do que pareceu uma eternidade, a escavadeira chegou ao cemitério. Imediatamente, Alan viu o que tinha atrasado Jimmy e seu avô uma hora antes.

Do outro lado do cemitério, havia um imenso monte de terra e, ao lado dele, um enorme buraco havia sido cavado. Obviamente, a escavadeira também havia sido utilizada ali.

Quando a imensa máquina se aproximou do buraco, a caçamba começou a se levantar. Assim que as rodas da escavadeira chegaram na beira do buraco, a caçamba girou e soltou a estranha carga. Os ossos caíram. Depois, a escavadeira deu ré, com a caçamba abaixada, e começou a empurrar o monte de terra no buraco e em cima dos ossos. Dois minutos depois, o buraco tinha sumido, estava completamente preenchido. Todos saltaram da escavadeira e caminharam para o túmulo recém-concluído. Eles ficaram em silêncio.

Finalmente, o senhor MacLeod falou com uma voz calma:

– Essas pobres almas não descansaram por centenas de anos. Esperamos que agora elas encontrem paz. Fizemos uma coisa boa aqui, hoje à noite. Vamos todos fazer uma oração silenciosa para eles.

Todos abaixaram a cabeça e silenciosamente fizeram uma prece.

Minutos depois, eles voltaram para a escavadeira e foram para casa. Quando Isabel e Alan chegaram em casa, o senhor MacLeod gritou para eles:

– Não se preocupem, crianças, vai dar tudo certo agora. A alma deles ficará em paz. Durmam bem.

A escavadeira roncou e foi embora. A rua ficou em silêncio.

Os gêmeos entraram em casa. Nenhum deles reparou no cobertor velho e nem na pequena pilha de ossos sob ele quando entraram pela porta da frente.


Capítulo 13

Ainda Não Foi o Fim

Alan acordou sobressaltado. Não tinha certeza do que fizera com que ele se lembrasse. Certamente não tinham esquecido dela, ele pensou. Jimmy ou Isabel deveriam ter visto a pilha de ossos e juntado com o resto. Ele olhou para o relógio de cabeceira: três da manhã.

Vestiu a calça jeans e o moletom, e abriu a porta. Ele podia ouvir a pesada respiração do pai que vinha do quarto. Ele ainda estava acordado quando eles voltaram do restaurante.

Calmamente, ele desceu a escada, tentando não acordar ninguém. O barulho da chave girando na porta dos fundos parecia ensurdecedor, mas ninguém se mexeu. Alan saiu pelos fundos e foi para a lateral da casa. O entorno estava claro, mesmo na escuridão. Ele caminhou até o cobertor e o levantou. A pequena pilha ainda estava ali. Eles tinham esquecido aquilo. O garoto bufou. O que devia fazer agora? Não poderia levar aquilo ao cemitério naquela hora. Ele voltou para os fundos da casa novamente e sentou-se na soleira da porta.

Apoiou a cabeça com as mãos e começou a pensar no que fazer. Deveria entrar em contato novamente com o senhor MacLeod pela manhã, ou simplesmente levar a pequena pilha para o túmulo?

Quando sentou-se ali, olhando para o chão, ele não notou a neblina que se formava ao seu redor. A princípio era fina, mas em segundos tornou-se espessa. Quando Alan prestou atenção, não pôde acreditar em seus olhos. Seu jardim havia desaparecido e ele estava de volta ao campo, o campo de batalha da outra noite. Ele olhou em volta. Estava diferente, em silêncio. Não havia som das gaitas de foles, nem escoceses gritando, nem a linha dos Casacas Vermelhas. Todos tinham ido embora.

Ele se levantou e começou a andar ao redor, tentando quebrar o feitiço que o tinha colocado ali e voltar ao seu quintal. Encontrou o rochedo atrás do qual tinha se escondido na outra noite. Saltou para o topo dele, como quando viu Jamie MacLeod pela primeira vez e este lhe salvou a vida. Ele olhou em volta, nada, ninguém.

E, então, ouviu um tiro. A bala estilhaçou um pedaço de rochedo, aos pés de Alan. Olhou à direita e, a distância, avistou uma única figura, a figura de um solitário Casaca Vermelha, recarregando a arma. Dele deveriam ser os ossos embaixo do cobertor. Alan não podia acreditar que tinha sido tão bobo. Ele começou a correr. O segundo tiro zuniu e passou perto do ouvido dele, atingindo o chão alguns metros a sua frente. Ele olhou em volta. Agora, o Casaca Vermelha corria atrás dele. O garoto correu o mais rápido que pôde, mas sentia como se suas pernas fossem feitas de chumbo. Não ousou olhar para trás outra vez. Conseguiu ver um pequeno grupo de árvores à frente. Ele tinha que ir para lá. Talvez conseguisse despistá-lo ali, pensou. Podia ouvir o som dos passos do Casaca Vermelha alcançando-o.

As árvores não pareciam estar tão perto e Alan estava cada vez mais cansado. Quase não conseguia respirar. Agora estava arrastando as pernas no meio da densa vegetação de urzes. Olhou para trás. O Casaca Vermelha estava quase em cima dele e começava a puxar o sabre do lado de fora do cinto. Ele agora reconhecia os traços grisalhos do atacante. Era Brian Campbell. Enquanto olhava para trás, Alan não notou o grande galho que havia caído das árvores em frente a ele. Quando tornou a olhar para a frente de novo, era tarde demais. Sua perna tropeçou no galho e ele voou longe, batendo no chão na beira das árvores. Ele girou rapidamente de costas e agarrou o galho para usar como arma para defender-se da iminente pancada de Brian. Agora a distância era de alguns metros, e Alan viu o demoníaco sorriso cínico surgir no rosto de Brian quando percebeu que tinha a presa à sua mercê.

O garoto recuou até que sua cabeça ficasse bloqueada pela primeira árvore. Viu o Casaca Vermelha correr os últimos passos rumo a ele.

Alan ouviu alguma coisa. Um barulho soou. Parecia uma flecha atirada de um arco. O baque que atingiu o peito do Casaca Vermelha era igual ao de um dardo atingindo o alvo. O Casaca Vermelha parou de repente onde estava. Sua mão segurava a adaga, já fora da bainha. O rosto dele se contorceu de dor. O sangue começou a escorrer pelos dedos dele. O ferimento era fatal: a arma perfurou seu coração.

O Casaca Vermelha caiu no chão, morto aos pés de Alan. Ele se reergueu e olhou em volta. Um rosto que conhecia bem apareceu atrás das árvores. Era Jamie MacLeod. Seu amplo sorriso foi uma visão bem recebida por Alan.

O jovem escocês saiu de trás da árvore e caminhou atônito até Alan. Ele colocou a mão no ombro do garoto e riu ruidosamente.

– Como pôde se esquecer de nós?! – exclamou Jamie, balançando o ombro do jovem.

O rosto de Jamie ficou sério, e o sorriso desapareceu.

– Você fez algo bom, Alan. Os membros do meu clã estão em paz agora, graças a você – Jamie disse solenemente. Em seguida, o sorriso retornou ao rosto dele. – Mas seria melhor você terminar o serviço. Vai ser mais seguro para você se livrar de nós também. Na sua próxima visita, talvez eu não vença – ele acrescentou.

Ele passou por Alan, inclinou-se, pegou o Casaca Vermelha morto e jogou-o sobre o ombro. Enquanto se afastava, Alan viu a neblina que os envolvia se dissipar.

A neblina sumiu e ele olhou em volta. Ele estava no meio de seu jardim novamente.


Epílogo

Quando Alan sentou no ônibus, ninguém podia adivinhar o conteúdo da mochila a seus pés. Só Isabel, sentada ao lado dele, sabia. Ela fez questão de acompanhá-lo na conclusão do serviço que eles tinham começado na noite anterior.

Ao descerem do ônibus, Jimmy e seu avô estavam esperando por eles nos portões do cemitério.

O velho senhor sorriu. Alan havia telefonado para Jimmy e contado sobre os ossos que eles tinham esquecido na noite anterior. No segundo encontro com Brian Campbell, ele tinha escapado por um triz, quase como no primeiro. E Alan não queria um terceiro.

O pequeno grupo caminhou para o outro lado do cemitério, desfrutando da paz do silêncio. A mancha escura no túmulo fresco ficou claramente visível quando eles se aproximaram.

O velho homem entregou ao Alan a pá que tinha levado. Ele cavou cerca de três pés de terra no chão diante dele. A terra ainda estava fofa do trabalho da noite anterior. Ele pegou a mochila, esvaziou o conteúdo no buraco e depois rapidamente jogou a terra de volta, apalpando o novo monte com a parte de trás da pá.

Ele recuou e olhou para o senhor MacLeod.

O velho homem sorriu novamente e disse: – Que agora todos possam descansar em paz.

Alan replicou delicadamente: – Que assim seja. Amém!

 

 

 


Sangue na Torneira

Edgar J. Hyde


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Hyde, Edgar J.

 

Sangue na torneira[recurso eletrônico] / Edgar J. Hyde; traduzidopor Silvio Antunha. -Jandira, SP: Ciranda Cultural,2021.

112p.: il.; ePUB ; 620KB.–(Hora do espanto)

 

ISBN 978-65-5500-716-9(Ebook)

 

1. Literatura juvenil. 2. Ficção. 3. Terror.I. Antunha,Silvio. II. Título.III. Série.

2021-879 CDD 028.5
CDU 82-93

Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva -CRB-8/9410

 

Índices para catálogo sistemático:

1.Literatura juvenil028.5

1.Literatura juvenil028.5

 

 

© 2009 Robin K. Smith

Esta edição de Hora do Espanto foi publicada

em acordo com Books Noir Ltd.

Título original: Blood on Tap

 

© 2012 desta edição:

Ciranda Cultural Editora e Distribuidora Ltda.

Tradução: Silvio Antunha

 

1ª Edição

www.cirandacultural.com.br

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, arquivada em sistema de busca ou transmitida por qualquer meio, seja ele eletrônico, fotocópia, gravação ou outros, sem prévia autorização do detentor dos direitos, e não pode circular encadernada ou encapada de maneira distinta àquela em que foi publicada, ou sem que as mesmas condições sejam impostas aos compradores subsequentes.

 

Livro digital: Lucas Camargo e Gabriela Fazoli


Sumário
Sangue na Torneira

Mais Espaço
O Casarão
Conhecendo Davina
Estamos de Mudança!
O Plano
Avenida Blackday, nº 13
A Mudança
Ruídos Estranhos
O Banheiro
Alguém Quer Tomar um Banho de Sangue?
O Sótão
O Porão
O Açougueiro Mestre
O Amanhecer


Capítulo 1

Mais Espaço

Na hora do jantar, éramos seis pessoas sentadas e espremidas em volta da mesa na pequena cozinha estreita. Minha mãe e meu pai sentavam-se nas pontas da mesa. Gary, o meu irmão caçula, sentava-se ao meu lado. A propósito, eu sou o Alex, Alex Todd. Do lado oposto ficavam Beth e Karen, as minhas duas irmãs mais novas. Os nossos cotovelos se tocavam quando tentávamos comer.

– Isto é ridículo – disse meu pai.

A mãe concordou, dizendo: – Sei que logo vamos precisar de um lugar maior.

Quando nos mudamos para essa casa, oito anos antes, ela parecia grande o bastante para nós. Desde então, nossa família foi crescendo, vieram Karen e Gary.

Agora, Karen tinha 4 anos e Gary 8 anos de idade. Beth estava com quase 12, e era dois anos mais nova do que eu.

Com apenas três pequenos quartos, uma sala de estar e a cozinha minúscula, era óbvio que tínhamos esgotado a capacidade da casa.

– Acho que economizamos o suficiente para fazer a mudança logo – meu pai disse.

Minha mãe duvidou.

– Mas nós raramente economizamos alguma coisa. Como vamos conseguir um lugar maior com tão pouco dinheiro?

– Ah! – disse o pai, com seu conhecido sorriso de esperteza.

Todos sabíamos e reconhecíamos o que aquele sorriso significava. Devia ser mais uma de suas grandes ideias. Meu pai era famoso por elas.

Normalmente, cada uma delas virava um desastre. Porém, isso não o impedia de aparecer com alguma delas de tempos em tempos. Acho que pelo menos isso nos mantinha entretidos.

Ele continuou: – Ouvi falar de uma casa imensa que fica só a alguns quilômetros daqui. Dick me falou a respeito dela lá no escritório. Ele disse que, pelo tamanho, até que estão pedindo um preço razoável.

– Você quer dizer barato? – a mamãe perguntou, com seu conhecido olhar de descrença.

Meu pai deu de ombros.

– O Dick disse que talvez seja preciso reformar alguma coisa, mas tenho certeza de que sou capaz de dar conta disso.

– Ora, então você tem certeza, não é mesmo? – disse a mãe com um olhar sério.

– Bem, será melhor do que ficarmos prensados aqui feito sardinhas em lata – ele argumentou.

Olhamos uns para os outros e acenamos concordando. A casa atual era pequena demais. Algo precisava ser feito, e se isso significava mudar para um novo local, frequentar novas escolas e fazer novos amigos, então que fosse...

– Pelo menos vamos todos até lá para ver – meu pai sugeriu.

Minha mãe suspirou.

– Acho que olhar não vai fazer mal a ninguém – ela disse sem muita convicção. – Crianças, o que vocês acham?

– Dou o maior apoio. Quero ter o meu próprio quarto! – eu gritei.

Beth concordou e disse, olhando para os mais jovens: – Sim, seria ótimo termos alguma privacidade em casa.

– Será que tem mais de um banheiro? – Gary perguntou. – Odeio esperar para ir ao banheiro de manhã cedo.

– Eu espero que sim, mas é melhor irmos até lá para verificar – meu pai replicou.

Mamãe virou para Karen, que era a pessoa mais jovem da nossa família.

– E quanto a você, Karen? Não vai dizer nada?

Karen pensou um pouco antes de falar, como era típico dela.

Por mais simples que fossem as perguntas, ela levava séculos para responder. Às vezes isso me deixava louco.

– Desde que não seja fantasmagórica. Odeio fantasmas – ela falou.

Todos riram e o pai disse:

– Não se preocupe, pequenina. Fantasmas só existem na imaginação. Se aparecer algum, o papai vai botá-lo para correr!

– Quem é o corretor que está vendendo o lugar? – mamãe perguntou.

– É uma venda direta a ser tratada com a senhora Davina Metz – ele disse.

– Ela parece estrangeira. Nunca ouvi falar desse nome – mamãe disse com ar de quem não estava gostando.

Meu pai se levantou e anunciou: – Vou ligar para ela agora mesmo. Não queremos perder a grande oportunidade da nossa vida, não é?

Beth e Karen se espremeram na mesa para que ele pudesse passar. Mesmo assim, como não podia deixar de ser, ele ainda se enroscou na perna de uma cadeira e tropeçou ao sair da sala.

Quase não consegui abafar o riso com o meu desajeitado pai. Minha mãe olhou para mim, também tentando esconder um sorriso.

Da cozinha, ouvimos o telefonema.

– Alô. Davina Metz? Aqui é o Bill Todd. Estou interessado em dar uma olhada na sua grande propriedade fora da cidade – ele disse. – Sim, sim, está bem, ótimo! Então, até lá – ele concluiu e desligou o telefone.

Meu pai pulou de volta para a cozinha esfregando as mãos de contentamento.

– E então? – perguntou a mamãe.

– Podemos todos ver o lugar amanhã, no final da tarde – meu pai respondeu.

Meu irmão e minhas irmãs olharam uns para os outros incrédulos. Papai tinha conseguido novamente. De todos os finais de tarde para visitar uma casa, o de quarta-feira era o mais ocupado de todos, para todos nós. Eu tinha treino de futebol, Beth ia passear a cavalo e Gary tinha aula de natação. Até a Karen, com apenas 4 anos, normalmente ia para a casa da vovó com a mamãe às quartas-feiras.

Eu fui o primeiro a objetar e disse:

– Se perder o treino de futebol, vou ficar fora do time.

Meu pai brincou: – Você joga tão bem que não precisa treinar.

“Que bom seria se isso fosse verdade” – pensei comigo mesmo.

– O Sammy vai sentir minha falta se eu não for amanhã – Beth acrescentou.

– Ele tem muitas outras crianças para distraí-lo – meu pai replicou para Beth.

– Se não aprender a nadar posso me afogar – disse o Gary entrando na conversa.

O pai sorriu. – Eu sempre estarei por perto para salvar você, Gary – ele disse.

Mamãe e Karen não se impressionaram com os acertos que papai fazia com todo mundo.

– Você sabe o quanto ela gosta de ver a avó – disse minha mãe.

Papai ergueu as mãos para o alto em um gesto de rendição e suspirou.

– Sim, já sei. Sei que escolhi a tarde errada para visitar a casa. Mas só estou tentando fazer o que é melhor para todos nós. E isso significa ter uma casa maior, com mais espaço. Pode ser um ótimo lugar para nós morarmos e vamos nos arrepender muito se perdermos a chance de ver a casa e de fazermos uma oferta por ela.

Aquele argumento fez sentido para nós todos. Embora tivesse escolhido o pior final de tarde possível para visitar a casa, ele só estava tentando fazer o melhor para nós. Ele sempre fazia isso.

Quase sempre ele era desajeitado, mas carregava sempre os nossos melhores interesses no coração.

Naquela noite, fomos para a cama com o excitante pensamento de que iríamos ver a casa para onde poderíamos nos mudar. Poderia ser o começo de uma nova vida para todos nós.


Capítulo 2

O Casarão

Na quarta-feira, às seis da tarde, nós nos amontoamos no carro. A casa ficava apenas alguns quilômetros adiante e demoraria cerca de 15 minutos para chegarmos lá. Normalmente, esse era o tempo mais do que suficiente para as crianças começarem a brigar. Viagens de carro envolvendo a família inteira eram sempre eventos tumultuosos.

– Comportem-se bem agora, crianças! – disse a mamãe.

Nos entreolhamos enquanto ela falava. Eu imaginava qual seria o primeiro estopim de confusão desta vez.

Depois de alguns minutos, perguntei: – Qual é o nome da parte da cidade onde a casa fica?

– Oddville – replicou o pai.

– O quê? Odd... Ville? Em inglês significa “bairro bizarro”! – eu disse incrédulo.

– Eu sei que o nome é um pouco estranho, mas logo vamos nos acostumar – o pai respondeu.

– Nunca estive nesta parte da cidade antes – minha mãe comentou.

– Nem eu – meu pai respondeu.

Se meus pais nunca tinham estado antes em Oddville, então também era certeza de que nós crianças jamais teríamos passado por lá.

– É a parte mais tranquila da cidade, pelo que me disseram – meu pai contou.

Mamãe continuou: – Marion, a vizinha do lado, disse que tem muito dinheiro em Oddville. E que as escolas também são melhores.

– Talvez o Gary bobalhão tenha uma chance melhor assim! – gritou a Beth.

Pronto, tinha começado. Estava declarada a III Guerra Mundial no banco traseiro do carro. A única surpresa foi que demorou mais de cinco minutos para estourar.

Gary gritou de volta para ela: – Cala boca!

– Crianças! Comportem-se! – gritou a mamãe.

Gary mostrou a língua para Beth, mas ela o ignorou e empinou o nariz. Ela quase sempre o ignorava desse jeito e isso o incomodava ainda mais. Felizmente, estávamos chegando ao nosso destino.

Papai virou o carro e entrou em uma alameda chamada avenida Blackday.

– Belo nome! – ironizei, já que em inglês Blackday significa “dia negro”.

O pai explicou: – É em homenagem a Arthur Blackday, um empresário local... A casa deve ficar por aqui, em algum lugar do lado esquerdo.

Conforme avançávamos um pouco mais pela estrada, as árvores se aproximavam mais de nós, até que tudo ficou na mais completa escuridão. Pude notar que meus irmãos ficaram assustados com a repentina perda de luz. Quem gostaria de viver num lugar sombrio assim?

– Com certeza essas árvores precisam ser podadas – mamãe falou.

– Eis uma tarefa para você, Alex! – meu pai brincou.

Eu resmunguei quando ouvi. Meu pai sempre queria que eu fizesse as tarefas mais estranhas no jardim para ganhar a minha mesada.

– Não aborreça o garoto – disse a mamãe.

O carro parou de repente diante de um portão.

– Chegamos. O lugar é aqui! – meu pai exclamou.

Passamos entre dois imensos portões de ferro e seguimos por um longo acesso arborizado.

Eu me senti incomodado quando olhei para o número na entrada: 13!

– Mais podas por aqui, Alex! – meu pai gritou, rindo para si mesmo.

Porém, no carro, ninguém mais ria. O vulto da casa surgiu diante de nós bem pouco iluminado. A construção era maciça, bem maior do que qualquer um de nós tinha imaginado. Tivemos que descer do carro para ter uma visão melhor do lugar. Feita de pedra escura e com vários torreões, a casa parecia muito imponente – quase um castelo. (O que eu quero dizer é que ela parecia assustadora!)

– Estranho, o carro da corretora da imobiliária não está aqui? – meu pai comentou.

– Será que ela se atrasou? – minha mãe perguntou.

– Em todo caso, vou bater na porta – disse o pai.

Caminhamos em direção à gigantesca porta preta que possuía gárgulas no alto em ambos os lados. Os rostos diabólicos nos vigiavam. Quem gostaria de morar nesse lugar e ser recebido por aqueles rostos horrorosos toda vez que voltasse para casa?

Depois de tocar a campainha, nós esperamos.

– Parece fantástica, não é mesmo? – meu pai comentou.

Eu não conseguia acreditar naquilo. Ele realmente parecia gostar dali!

Minha mãe replicou com pouco entusiasmo: – Com certeza parece bastante grande para nós.

Esperamos e esperamos, mas ninguém atendeu à porta.

– Será que ela confundiu a data? – imaginou o pai.

Mamãe riu: – Será que não foi você quem confundiu a data e o horário?

– De jeito nenhum! – replicou o pai com uma ponta de mágoa na voz.

Ele parecia de fato muito aborrecido porque não poderia ver a casa que achava maravilhosa. Nós, porém, não estávamos nada incomodados por ir embora daquele lugar. Eu podia sentir que os outros tinham a mesma impressão que eu a respeito do local. Era de arrepiar!

Demos meia-volta diante da porta e começamos a caminhar na direção do carro.

De repente, ouvimos a mais ruidosa e a mais rangente abertura de porta que existe. Todos nós ficamos paralisados quando isso aconteceu.

Uma voz rouca então disse: – Boa-noite, senhor Todd.

Eu me virei e vi uma figura alta e magra na soleira da porta mal iluminada.


Capítulo 3

Conhecendo Davina

– Ah! Você deve ser Davina Metz! – exclamou meu pai.

Era uma mulher que imaginei que estivesse na casa dos 30 anos de idade, embora fosse difícil de avaliar. Vestida de preto da cabeça aos pés, com a pele branca como marfim e longos cabelos negros, ela era uma visão assustadora. Era exatamente como um personagem que você espera ver em um filme de terror.

– Por favor, entrem – ela disse.

Olhamos uns para os outros, sabendo que realmente ninguém queria entrar na casa com aquela nossa guia de aparência estranha e misteriosa. Infelizmente, não tivemos escolha.

Papai nos conduziu.

– Venham! O que há com vocês?

As tábuas do piso rangiam conforme avançávamos por um grande corredor escuro. O lugar cheirava como alguma coisa velha e abandonada. Algo com cheiro de mofo úmido e uma pitada de naftalina.

A senhora Metz disse: – Desculpem pela falta de luz. Algum fusível deve ter queimado. Receio que precisaremos ver a propriedade à luz de velas.

– Tudo bem. Estou certo de que isso dará à casa um certo ar romântico – disse o pai.

Mamãe bufou quando ele disse isso. Será que ele já estava mesmo gostando daquele lugar?

A senhora Metz apontou para o andar de cima com um longo dedo branco esquelético e disse: – Vamos começar pelo alto.

– Como preferir – meu pai disse cheio de entusiasmo.

Subimos por uma longa escadaria rangente, iluminada apenas com algumas velas colocadas aqui e ali. Nas paredes viam-se troféus de animais selvagens, como cabeças de ursos e alces.

Karen olhou para os bichos e cochichou para mim: – Eles são de verdade, Alex?

– Sim, receio que sejam – repliquei.

– Então, onde está o resto do corpo deles?

Era uma pergunta típica da Karen. Ela tinha apenas 4 anos e não entendia nada de caça e de troféus.

– Não interessa – repliquei energicamente.

Fazendo uma parada no patamar, a senhora Metz apontou para o alçapão do sótão.

– Eu deveria baixar a escada para mostrar o sótão a vocês, mas não vai dar para ver muita coisa com essa luz fraca – ela explicou.

Percebi que mamãe queria dar uma olhada em tudo, mas meu pai pulou na frente dela e disse: – Tudo bem. Basta nos mostrar o resto da casa.

No andar de cima, existiam seis quartos e um banheiro grande. O banheiro parecia antigo, com grandes acessórios de latão. Mas era muito grande. Na verdade, era maior do que qualquer um dos quartos da nossa casa atual.

A mamãe cochichou: – Isso não ficaria mal em algum museu.

– Sim, mas tem um aspecto bem real, não é mesmo? – replicou o pai.

Eu ainda não conseguia acreditar no que estava ouvindo. Ele parecia estar apaixonado por aquele lugar assustador!

Descendo as escadas, vimos quatro grandes salas de estar, uma vasta cozinha, novamente com encanamento antigo, e outro banheiro. Ao chegarmos de volta ao corredor, a senhora Metz ficou na frente de uma porta situada embaixo da escadaria.

– Isto leva ao porão – ela anunciou.

Entusiasmado, meu pai perguntou a ela: – Também é imenso?

– Sim, é bastante grande. Porém, como não temos eletricidade, acho muito perigoso descer neste momento – ela afirmou.

Meu pai concordou, acenando com a cabeça e dizendo: – Tudo bem.

– Vou deixar vocês olharem ao redor – disse a nossa guia, que depois virou e desapareceu na cozinha.

Animado, meu pai perguntou: – O que acham disso, crianças?

Olhamos uns para os outros imaginando o que dizer. Era óbvio que meu pai estava apaixonado pela casa e nenhum de nós queria ferir seus sentimentos.

Beth começou: – Com certeza é bem grande.

– Vejam, foi como eu disse a vocês. Tem todo o espaço do mundo! – ele exclamou.

Tentando ser diplomático, eu disse: – É um pouco velha. Não seria melhor procurarmos um lugar mais moderno?

– Sim, pelo dobro do preço! – ele respondeu rispidamente.

Era visível que estava aborrecido comigo. Ele realmente parecia ver alguma coisa onde nenhum de nós conseguia enxergar. Mamãe ficou paralisada e com um ar de desânimo no rosto.

– O que achou, querida? – ele perguntou a ela.

Mamãe suspirou: – Tem muito trabalho a ser feito aqui.

– Posso dar um jeito nisso.

– No encanamento e na eletricidade também? – ela duvidou.

Meu pai deu de ombros: – Talvez eu não faça esses serviços. Mas tenho muitos contatos de gente que só faz esse tipo de coisa.

Mamãe balançou a cabeça e disse: – Eu simplesmente não sei. A casa é muito escura e sombria. Não estou certa se gosto de um lugar assim.

Parecendo otimista, meu pai disse: – Espere para ver na luz do dia e quando a energia tiver voltado. Tenho certeza de que vai mudar de opinião a respeito de tudo.

Meus irmãos olharam para mim com expressões irônicas no rosto, deixando claro seus pensamentos de que nosso pai estava delirando um pouco. Como ele esperava convencer uma pessoa tão sensível como a mamãe para que fosse morar em um lugar velho e assustador como aquele?

Ele se voltou para nós e disse: – Vocês também vão adorar quando puderem ver lá embaixo com melhor iluminação.

Não houve resposta para esse entusiasmo óbvio pela casa.

– Então, tudo certo! Vou voltar e procurar essa Davina Metz para dizer que estamos interessados! – meu pai anunciou, enquanto caminhava a passos largos em busca da corretora da imobiliária.

Quando ele saiu à procura da senhora Metz, a mamãe se voltou para mim.

– Como você sabe, o seu pai tem um sentimento real a respeito desta casa.

– Isso é visível. É realmente sério? – perguntei.

Ela suspirou: – Bem, crianças, vai ser por um preço muito atraente.

– Você quer dizer uma porcaria barata – disse Beth.

– Se você quiser colocar dessa maneira, sim! – mamãe sorriu.

Karen resolveu se manifestar: – Mas ela é tão fantasmagórica, mãe. Papai não vai fazer a gente morar aqui, não é?

Ao ver que a minha pequena irmã Karen se aborrecia com o simples pensamento de nos mudarmos para lá, a mamãe procurou tranquilizá-la.

– O lugar não é mal-assombrado, Karen. Não existem essas coisas de fantasmas.

– Achei que essa Davina Metz fosse um fantasma quando a vi pela primeira vez – Gary disse.

– Fale baixo! Ela pode ter ouvido esse comentário – mamãe ralhou com ele.

Um minuto depois, meu pai reapareceu: – Eu não a encontrei em lugar algum. Será que ela foi para o andar de cima?

– Não, nós a teríamos visto – repliquei.

Ele coçou a cabeça: – De qualquer forma, vou só dar uma olhada no andar de cima.

A mamãe preveniu: – Tome cuidado, pois a casa está mal iluminada e você pode tropeçar.

– É claro que vou tomar cuidado.

Quando começou a subir a escada, ele fez exatamente o que todos achavam que faria: tropeçou no primeiro degrau. Tentamos não rir. Era tão típico do nosso pai...

– Está tudo bem? – minha mãe perguntou.

Ele não respondeu e subiu a escada em busca da evasiva senhora Metz. Onde estaria a estranha mulher?

Meu pai desceu alguns segundos depois e disse: – Não consegui encontrá-la em parte alguma. Estranho!

– Não podemos perambular por aqui a noite toda aguardando por ela – a mamãe falou.

Meu pai concordou com a cabeça, dizendo: – Vou tentar ligar para ela. Alô, senhora Metz!

Depois de aguardar alguns segundos, ele ligou de novo: – Senhora Metz, gostaríamos de falar com a senhora, agora!

Ainda assim não conseguiu resposta. Como ela poderia ter desaparecido?

– Espero que ela não tenha rolado escada abaixo no porão – Gary disse, tentando ser engraçado.

Meu pai franziu a testa: – Nada de gracejos, Gary. Ela não ficou perto dessa porta, ficou?

– Não, ela seguiu para a cozinha quando nos deixou – respondi.

Com um olhar intrigado no rosto, meu pai disse: – Talvez ela tenha sido chamada por alguém em outro lugar. Você sabe como são essas pessoas com seus telefones celulares.

Mamãe concordou com ele e sugeriu: – Basta apenas fecharmos a porta quando sairmos.

Caminhamos de volta ao ar livre da noite. Meu pai fechou a porta, que fez um longo rangido e um baque surdo. Eu me senti bem por estar do lado de fora novamente. Meu pai deu uma última olhada ao redor em busca da senhora Metz, mas foi em vão.

Ela simplesmente tinha sumido.

Dirigindo o carro no caminho de volta para casa, meu pai estava muito bem-humorado. Sempre sabíamos quando ele estava feliz por causa de seu terrível jeito de assobiar. Ele realmente tinha gostado da casa.


Capítulo 4

Estamos de Mudança!

Naquela noite, quando caí na cama, pude ouvir meus pais conversando a respeito da casa. Eles falaram por horas a fio. Às vezes as vozes subiam de tom, e às vezes eles riam. Com certeza ele não conseguiria convencê-la de que aquela casa servia para nós!

Peguei no sono e acordei cedo na manhã seguinte. Depois de tomar banho e me vestir, desci para o café da manhã. Só os dois estavam acordados. Olharam para mim como se não tivessem dormido a noite inteira.

– Café da manhã de sempre, Alex?

– Sim, obrigado mãe.

Meu pai então se levantou da mesa e correu para o telefone dizendo: – Vou ligar para a tal Davina Metz.

– Ainda é um pouco cedo, não é? – disse a mamãe.

– Ela disse que eu poderia ligar neste número a qualquer hora, noite ou dia – ele retrucou, já segurando o telefone.

Ele discou e esperou alguns segundos.

– Alô, senhora Metz? Aqui é Bill Todd, da família que foi ver a casa ontem à noite. Parece que nos desencontramos no final da visita, mas eu gostaria de deixar registrado o meu interesse pela propriedade.

A senhora Metz deve ter falado em seguida, pois meu pai não disse absolutamente nenhuma palavra por alguns minutos.

– Tudo bem, com certeza, estamos interessados. Vou manter contato – ele confirmou.

Ele desligou o telefone e bateu palmas de alegria. A mamãe desviou o olhar para o chão quando olhei para ela pedindo uma explicação para o que estava acontecendo. Será que ela tinha acabado concordando com aquela ideia?

– Sinto muito por não ter conseguido contar a você antes, mas seu pai e eu resolvemos tentar comprar a casa.

O meu queixo caiu. Eu não conseguia acreditar no que tinha escutado. Como ela poderia querer mudar para aquela casa? Seria um lugar medonho para a gente morar.

– Mas é um lugar velho e horrível! – gritei.

– Não é tão ruim – meu pai retrucou. – Vai ficar ótima com uma demão de tinta. Você vai gostar.

Mamãe ainda acrescentou:

– Alex, ela é bastante grande para todos nós e fica em um bom local, com boas escolas. Também está na nossa faixa de preço.

– Não podemos tentar ver outros lugares? – sugeri.

– Pelo preço que a senhora Metz está pedindo não vai ficar à venda por muito tempo. Precisamos agir rapidamente desta vez ou vamos nos arrepender – meu pai explicou.

Como ele tinha conseguido?

O que ele teria dito para convencer a mamãe que a mudança para aquela velha monstruosidade era uma boa ideia?

Quer dizer, o meu pai é bem conhecido por ser um pouco bobo, mas a mamãe sempre foi considerada uma pessoa de muito bom senso. Será que afinal ela também tinha enlouquecido?

Não fiquei muito contente com a atitude dela, mas me conformei com o fato de que poderíamos mudar.

– Talvez não seja tão ruim afinal de contas.

– Esse é o espírito da coisa, Alex – meu pai sorriu.

Um por um, meus irmãos desceram para o café da manhã e ouviram a notícia a respeito da nossa possível mudança.

Cada um que ouvia a explicação ficava de queixo caído como eu. Todos, menos Karen, que imediatamente se derramou em lágrimas.

– Nem pensar! É um lugar assustador, horrível, com fantasmas e coisas nojentas!

Com um abraço, a mamãe tranquilizou-a: – Não existem fantasmas naquela casa. Se por acaso existir algum, então o seu pai vai botá-lo para correr para sempre!

– Sim, é só olhar para mim! – alardeou o pai dobrando os braços para exibir os músculos.

Todos rimos com essa demonstração de força boboca.

Beth olhou para a mamãe e perguntou: – O que convenceu você de que tentar a compra daquele velho lugar seria uma boa ideia? Na verdade, nós sequer demos uma boa olhada em tudo, e aquela mulher era muito esquisita...

Mamãe suspirou: – Temos que mudar logo, caso contrário este lugar vai implodir. Trata-se de uma casa bem maior e o preço é muito atraente.

– Tem certeza? – Beth disse, parecendo insatisfeita.

– Bem, o seu pai me garante que desta vez tudo vai dar certo.

Incrédula, Beth ergueu as sobrancelhas e concluiu: – Vamos ver no que dá.

Meu pai, que, como de costume, não havia prestado nenhuma atenção na conversa ao seu redor, de repente gritou:

– Estou feliz porque estamos todos de acordo de que a mudança é uma boa ideia. Vou telefonar para o banco e o advogado assim que eles abrirem o expediente de trabalho.

Com isso, saiu da sala assobiando uma melodia alegre sem se preocupar com o mundo. Ele parecia muito feliz consigo mesmo.

Eu balancei a cabeça e achei que ele deveria estar louco. Mas o pior de tudo era que a mamãe também já não parecia mais totalmente sã.


Capítulo 5

O Plano

No começo da tarde o telefone tocou. Como de costume, houve uma formidável correria entre Gary, Beth e eu para ver quem conseguia atender. Em nossa casa, quem tivesse o controle do telefone era o rei. Gary parecia na liderança para atender, mas no último segundo escorregou no capacho, permitindo que eu o ultrapassasse e pegasse o fone. Eu sorria de prazer com a minha vitória quando atendi o telefone.

– É você, Alex? – disse o meu pai, do outro lado.

– Sim. Posso ajudar?

– Ótimas notícias! Falei com o banco e com o advogado e vamos fazer uma oferta pela casa ainda hoje.

Fiquei mudo. Como as coisas podiam acontecer tão rapidamente?

– Alex, você ainda está aí? – ele perguntou. – Não é uma ótima notícia?

Tentando demonstrar entusiasmo, repliquei: – Maravilhosa, pai, simplesmente maravilhosa.

– Sua mãe está? Quero contar a ela a fantástica notícia.

Gritei para chamar minha mãe. Ela correu para o telefone para ouvir a terrível notícia que meu pai tinha me contado. Mas poderia ter sido pior ainda. Ele poderia ter telefonado para dizer que a oferta de compra da casa tinha sido aceita. Isso teria sido de arrasar!

Chamei meu irmão e minhas irmãs para lhes contar a terrível novidade: – O pai fez uma oferta por aquele lugar.

– Essa não! Como ele foi capaz de fazer isso? – disse Beth.

– Não sei. Ele até parece estar apaixonado por aquela casa velha e fantasmagórica – respondi.

– Talvez devêssemos ter contrariado mais os planos dele – Gary comentou.

Dei de ombros: – Não acho que faria grande diferença. Você sabe como ele é quando coloca uma ideia na cabeça.

Karen, surpreendentemente, falou calmamente e com muito clareza:

– Então, vamos ter que fazê-lo mudar de ideia por conta própria!

Não era do feitio da Karen estar assim segura a respeito de nada. Afinal de contas, ela tinha apenas 4 anos!

– O que você que dizer com isso? – indaguei.

Um sorriso travesso se abriu no rostinho dela.

– Vamos espantá-lo daquele lugar.

Todos rimos da ideia dela. Diante de nós estava uma criança de 4 anos de idade propondo afugentar nosso pai da casa dos sonhos dele! Isso jamais daria certo. Ou será que daria? Um a um, Beth, Gary e eu começamos a perceber o potencial do plano da Karen. Nosso pai era do tipo que podia ser facilmente assustado!

Por fim, às cinco horas da tarde, o telefone tocou novamente. Todos já sabíamos quem era e o que ele teria para nos contar. Pela primeira vez em séculos, não houve a grande correria para atender o telefone, que tocou e tocou sem parar, enquanto eu e meus irmãos nos entreolhávamos. Ninguém queria se apressar para atender o telefone.

A mãe esbravejou: – Será que ninguém atende esse telefone? Eu estou ocupada!

Como eu era o mais velho, resolvi que seria melhor eu fazer isso.

Levantei o fone, respirei fundo e, sem esperar, eu disse: – A casa é nossa, pai?

– Sim, é, Alex! Como sabia que era eu, e como sabia o que eu tinha para contar a vocês? – meu pai indagou.

– Oh, foi só uma forte intuição.

– Fantástico! – ele continuou. – Podemos mudar tão logo a nossa casa atual seja vendida. Pode contar a grande notícia para a sua mãe? Preciso desligar agora.

Recolocando o fone no lugar, virei para Beth, Gary e Karen. Pela minha expressão de desespero, eles já sabiam qual era a notícia que eu daria.

– Conseguimos a casa – resmunguei para eles.

Beth acenou com a cabeça.

– Tudo bem! Então vamos ter que pensar em maneiras de espantar o papai de lá – ela disse.

– Mãe! – gritei. – Era o pai. A oferta foi aceita e podemos mudar assim que esta casa atual for vendida.

A mamãe entrou na sala e nos deu um forte abraço. Ela entendeu que não estávamos realmente contentes com a ideia de mudar para aquele lugar velho.

– É para o nosso bem, crianças. Tenho certeza de que vocês vão acabar gostando da casa tanto quanto seu pai gosta.

Nos dias seguintes, muita gente foi ver a nossa casa. A nossa última esperança era que ninguém quisesse comprá-la. Se não conseguíssemos vender a casa atual, então não poderíamos nos dar ao luxo de comprar aquele lugar velho e fantasmagórico. Apesar da ordem para mantermos a casa arrumada e para sermos educados com todos os visitantes, demos o melhor de nós para impedir a compra da propriedade.

Tentamos deixar brinquedos e revistas em quadrinhos espalhados por toda parte para fazer a casa parecer uma espelunca. Isso foi um fracasso total. Todo mundo que via a nossa bagunça caprichosamente articulada apenas sorria e dizia: – Crianças!

Mesmo sabendo que não podíamos ser rudes com ninguém, mostramos a língua e prendemos o nariz para as pessoas. Embora tentássemos escandalizar e desapontar aquela gente que pretendia comprar a nossa casa, nada deu certo.

Depois de apenas alguns dias à venda, meu pai recebeu várias ofertas. Ele estava radiante de alegria. A mudança estava evoluindo muito tranquilamente para ele.

Certa noite, com um imenso sorriso, ele anunciou para a mamãe: – Conseguimos um preço muito melhor do que eu poderia esperar...

Ela, por sua vez, sorriu e afirmou: – Desta vez você está fazendo as coisas do jeito certo!

Eles se beijaram.

– Ei, crianças! Vamos mudar no final da próxima semana – meu pai anunciou.

Nós não sabíamos o que dizer. Nossos pais pareciam tão felizes entre eles que não quisemos estragar aquele momento.

– Maravilha! Não vejo a hora de mudar – Karen gritou.

Sabíamos que o que ela queria dizer realmente era que não via a hora de começarmos a assustar o papai para fazê-lo mudar de ideia a respeito daquela casa velha e assustadora.


Capítulo 6

Avenida Blackday, nº 13

Como a nossa nova casa precisaria de vários ajustes, meu pai começou a telefonar para seus contatos nos dias seguintes. Tinha ficado óbvio, quando visitamos o lugar, que era preciso trocar o encanamento e a fiação elétrica, e que havia muito trabalho a ser feito nos jardins.

Então, meu pai ligou para um eletricista chamado senhor Kruger e convidou-o para conversar a respeito do que precisava ser feito na nossa nova casa. Ele se apresentou no dia seguinte.

– Onde será, exatamente, seu novo lar, senhor Todd? – ele perguntou.

– Em Oddville – meu pai respondeu –, mais precisamente, na avenida Blackday.

Ao ouvir aquilo, o rosto do senhor Kruger ficou branco. O que havia de errado?

– Não é o número 13, é? – perguntou o senhor Kruger.

Surpreso pelo fato de o homem conhecer a casa, meu pai brincou:

– Você não quer comprá-la também, não é?

– Com certeza, não! – gritou o senhor Kruger.

– O que significa esse tom de voz? – meu pai perguntou, agora parecendo um pouco preocupado.

– Já trabalhei lá antes e não gosto do aspecto do lugar. Não é normal – disse o senhor Kruger.

Com um olhar intrigado no rosto, meu pai pediu ao eletricista para que se explicasse.

O senhor Kruger se inclinou para mais perto do meu pai e falou em voz baixa.

– Coisas estranhas acontecem naquela casa. Escutei ruídos espantosos lá dentro. Parte de meu equipamento também foi perdido.

– Você está tentando me dizer que a casa é mal- -assombrada? – meu pai riu.

– Não é assunto para rir. Não vou trabalhar nessa casa para você. Boa-noite!

Olhamos uns para os outros, admirados com o que tínhamos acabado de ouvir. Será que a casa era realmente mal-assombrada?

– Ele é ridículo – meu pai falou, tentando nos tranquilizar. – Vou chamar outra pessoa para fazer o trabalho.

– Acha que ele sabia o que estava falando? – Beth perguntou.

– Não existem essas coisas de fantasmas, como vocês verão. Quando mudarmos, tudo vai ficar bem – a mamãe retrucou.

– Sim, a mãe de vocês está absolutamente certa. Não deixem esse eletricista esquisito assustá-los. Provavelmente ele é muito preguiçoso e não quer fazer o serviço – acrescentou meu pai.

Alguns minutos depois, chegou o encanador que tinha marcado um horário com meu pai. Era um homem modesto, de meia-idade, chamado senhor Lennox. A mamãe mostrou-lhe a sala de estar e fez ele sentar-se na frente de todos nós.

– Já trabalhou muito em Oddville, senhor Lennox? – meu pai questionou.

– Sim, é claro. Ganhei um bom dinheiro nessa região.

– Muito bom! Acabamos de comprar um imóvel por ali e precisamos que o encanamento seja modernizado.

– Parece justo. Qual é o nome da rua? – perguntou senhor Lennox.

– Avenida Blackday, número 13.

O senhor Lennox sorriu desconsolado e disse:

– Você não vai puxar a minha perna, não é mesmo, senhor Todd?

Meu pai olhou perplexo, sem entender a pergunta. – É claro que não. Qual o seu problema?

– O problema não é meu, é seu! – exclamou o encanador.

– Explique isso, por favor, senhor Lennox.

– Essa casa ficou com má fama, senhor Todd. Nenhum construtor que eu conheço quer colocar os pés nesse lugar. Circulam muitos boatos sobre o local...

– Boatos! – meu pai gritou. – Você quer dizer fantasmas e coisas que se arrastam durante a noite?

– É o que dizem – o senhor Lennox retrucou.

– Mas isso são superstições sem sentido!

– Podem até ser – disse o senhor Lennox. – Mas eu não vou trabalhar lá!

Meu pai ergueu as mãos no ar.

– Bem, obrigado por não fazer nada, senhor Lennox. Eu esperava contratar um encanador, mas em vez disso ouvi um covarde falar de seu medo de fantasmas. Boa-noite.

Quando o senhor Lennox saiu de nossa casa, ele ainda falou: – Você vai levar um bom tempo para encontrar alguém disposto a fazer algum trabalho naquela casa!

Batendo a porta com força, meu pai gritou: – Loucos supersticiosos! Estamos no século XXI. Como alguém pode acreditar em fantasmas?

– Parece que os construtores desta cidade acreditam – disse a mamãe.

– Não deixem esses caras aborrecerem vocês – meu pai disse, reconhecendo os nossos temores a respeito da casa.

– Provavelmente, eles se aproveitam dessa lenda da casa mal-assombrada como um jeito de aumentar os preços. Não vou ficar surpreso se esses dois pilantras ligarem de volta depois oferecendo-se para fazer o serviço sob protestos, porém, por mais dinheiro. É desse jeito que a coisa funciona, crianças.

Achei que meu pai estava certo. Trabalhar em uma casa mal-assombrada seria uma boa desculpa para aumentar o preço. Mas e se eles não estivessem brincando?

– Então, ainda vamos nos mudar? – perguntei.

Ele esfregou as mãos e comentou.

– É claro que vamos! E vai ser a melhor mudança que já fizemos. É esperar para ver e para crer!


Capítulo 7

A Mudança

O dia da mudança chegou. Tudo foi encaixotado e estava pronto para seguir viagem. Jamais saberei como tínhamos conseguido espremer tanta coisa em nossa pequena casa. Talvez fosse realmente uma boa ideia nos mudarmos para um lugar maior.

Meu pai escolheu uma companhia de mudanças de fora da cidade. Ele argumentou que qualquer empresa local poderia tentar se aproveitar da história da casa mal-assombrada para superfaturar o preço. Eles carregaram tudo no caminhão baú com calma e eficiência e logo seguíamos o nosso caminho sem nenhum contratempo.

– Finalmente a caminho! – meu pai exclamou para nós no carro.

Mamãe deixou cair uma lágrima e disse: – Despeçam-se da casa velha.

Todos acenamos e por um instante pensei nos momentos felizes que passamos ali. Mas aquele era o dia da grande mudança e tínhamos que estar preparados. Ninguém queria morar na nova casa, e tinha chegado a hora de espantar a vontade do pai de morar lá. Seria muito divertido fazer o que tínhamos planejado!

Mesmo em um belo dia ensolarado faltava claridade na avenida Blackday. A escuridão parecia aumentar conforme nos aproximávamos do número 13. A visão da nova casa me causou um calafrio espinha abaixo. Senti o mesmo efeito nos meus irmãos. Havíamos esquecido como a construção parecia imponente e assustadora.

– Todo mundo para fora! – meu pai gritou com alegria.

O pessoal da mudança estava pronto e aguardava meu pai abrir a casa.

Eles pareciam bastante ansiosos para fazerem o serviço, apesar da fama da casa.

Quando meu pai foi colocar a chave na porta, ela rangeu e lentamente abriu por conta própria. Tremendo, todos arregalamos os olhos ao vermos o corredor escuro. Talvez o lugar fosse mal-assombrado!

Então, avistei a estranha figura de Davina Metz. Mais uma vez ela surgiu totalmente vestida de preto.

– Pensei em dar boas-vindas a vocês na nova casa – ela disse.

– O que você nos deu foi um belo susto... – disse meu pai, visivelmente aliviado. – Teria sido melhor se tivesse avisado dessa ideia de nos dar boas-vindas. As crianças estão um pouco assustadas com relação a esta casa e ver a porta abrir assim não ajudou muito.

O rosto de Davina Metz não registrou o menor embaraço. Em vez disso, ela sorriu o sorriso mais medonho e sem graça que eu já tinha visto.

– Aceite as minhas desculpas, senhor Todd – ela disse. – Mas, realmente, não há nada a temer. Como você sabe, essas coisas de fantasmas não existem.

– Mas ela causa a mesma impressão de um! – Gary cochichou no meu ouvido.

Tive que abafar um riso depois que Gary fez essa observação. Mamãe nos olhou com cara feia indicando que não deveríamos provocar qualquer novo embaraço.

– Eu vi que vocês ainda não mexeram na casa – a senhora Metz notou.

– Não, tivemos problemas em contratar pessoas para trabalharem aqui. Circula uma história maluca de que a casa é mal-assombrada – meu pai disse ingenuamente.

– Bem, a casa está cheia de velas que você pode usar até conseguir restabelecer a energia elétrica – disse a senhora Metz.

– Isso não vai demorar muito, não é, querido? – minha mãe afirmou, encarando meu pai.

– Vamos ter luzes em um instante! – ele respondeu.

Então a senhora Metz partiu dizendo: – Desejo tudo de bom na casa nova.

– Agradecemos pela ajuda, senhora Metz – meu pai disse, enquanto ela deixava a casa.

Por um momento, ficamos todos no meio da escuridão do corredor sem luz. Um segundo depois, voltei a olhar para o lado de fora.

Os meus olhos saltaram quando reparei que ela tinha sumido.

– Aonde ela foi? – gritei.

O resto da minha família também se voltou para olhar para fora. Davina Metz tinha, mais uma vez, desaparecido misteriosamente.

– Tudo bem, ela foi embora – disse meu pai. – Qual é o grande caso? Vamos, temos toneladas de coisas para fazer.

Alguns minutos depois o pessoal da mudança começou a trazer a nossa mobília. Em seguida houve uma romaria de centenas de caixas. Todos passamos a fazer o trabalho de desembalar.

Depois de aproximadamente uma hora o baú da mudança estava descarregado. O pessoal da companhia de mudanças sentou para descansar um minuto. Uma garrafa de refrigerante foi passada entre eles.

– Trabalho que dá sede... – disse o pai.

– Ora, foi uma mudança muito fácil, sem nenhum problema – um dos rapazes retrucou.

Meu pai deu uma gorjeta a cada um deles e disse: – Muito obrigado pela ajuda.

Quando estavam saindo, um dos carregadores parecia procurar algo.

– Perdeu alguma coisa? – minha mãe perguntou.

– Não consigo encontrar o meu boné de beisebol. Eu podia jurar que deixei bem ali – o homem respondeu.

Ele apontou para uma caixa no canto do corredor.

– Talvez tenha deixado no caminhão – lembrou a mamãe.

O homem foi até o caminhão baú lá fora e retornou um minuto depois.

– Não está no baú. Tenho certeza de que deixei naquele canto.

Meu pai nos interrogou:

– Algum de vocês viu o boné deste senhor?

Olhamos uns para os outros e balançamos a cabeça. Eu tinha certeza de que nenhum de nós havia sequer reparado no boné, e que muito menos o teria escondido em outro lugar.

– Vocês têm certeza disso, crianças? – disse a mamãe.

– Também estávamos todos ocupados demais para nos preocuparmos com um boné – Beth comentou.

– Tudo bem – disse o homem. – Talvez eu esteja começando a perder o juízo.

– Se você trouxe o seu boné de beisebol, tenha certeza de que ele será devolvido – meu pai o tranquilizou.

Quando o caminhão da mudança partiu, meu pai anunciou: – Vou precisar ver o que posso fazer a respeito da energia aqui. Alguém viu a minha lanterna nova?

– Deve estar onde você a deixou, junto com o resto das ferramentas – replicou a mãe.

Depois de remexer tudo em busca da sacola de ferramentas durante um minuto, meu pai gritou: – Muito bem, quem guardou a lanterna na mudança?

– Não fui eu – disse Beth.

– Não vi nada – Gary replicou.

Karen balançou lentamente a cabeça de lado a lado em resposta.

– Será que você não a deixou na casa velha? – sugeri.

– Tenho certeza de que foi encaixotada junto com as outras ferramentas – disse a mamãe.

Meu pai já estava ficando zangado: – Pois bem, não está aqui agora.

Em seguida, ele saiu feito um furacão direto para o porão dizendo: – Felizmente, eu trouxe a velha de reserva que deve ajudar a fazer o serviço.

Olhei desconfiado para Karen. Ela teve a ideia de assustar o pai do lado de fora da casa. Será que já havia começado a trabalhar nisso? Chamei-a de lado e perguntei:

– Karen, você já começou a fazer os seus truques?

Karen olhou surpresa e replicou: – O que foi que eu fiz?

– Escondeu as coisas, não foi? – eu disse.

– Eu não fiz nada.

– Verdade?

– Claro, Alex, juro por Deus – Karen replicou, beijando os dedinhos cruzados.

Talvez os desaparecimentos, primeiro do boné e agora da lanterna, fossem apenas coincidências. Quero dizer, não poderiam ser fantasmas, certo?


Capítulo 8

Ruídos Estranhos

Quando a tarde deu lugar à noite, o interior da casa começou a ficar totalmente escuro. A mamãe e eu saímos acendendo as velas que a senhora Metz tinha deixado para nós. Meu pai tinha descido ao porão há horas, para tentar restabelecer a energia elétrica. Mas não era surpresa para ninguém que ele ainda não tivesse conseguido resolver o problema.

Ele reaparecia de tempos em tempos para dizer coisas como: “A caixa de fusíveis é muito antiga”, ou então: “Não tenho as peças necessárias”, ou ainda: “Não tenho as ferramentas adequadas”.

Mas todos nós já tínhamos ouvido isso antes. Qualquer serviço que ele tentava realizar na casa normalmente terminava assim. Ele ficava fuçando durante horas e normalmente transformava em uma bagunça o serviço que deveria fazer.

O típico final de um conserto feito por meu pai era uma ligação para um faz-tudo profissional para reparar o estrago que ele tinha feito. Mas não havia como pará-lo.

A boa notícia era que pelo menos tínhamos gás e poderíamos cozinhar. A mamãe preparou uma refeição simples que comemos na cozinha à luz de velas. Apesar do fracasso em religar a energia, meu pai estava feliz naquela noite.

– São as coisas simples que nos fazem apreciar a vida – ele disse com um sorriso sereno no rosto.

– Com você como o nosso consertador, temos que aceitar as coisas simples! – a mamãe brincou.

– Daqui a pouco será hora de ir para a cama, crianças – meu pai nos disse.

Pisquei para Karen quando ela sorriu para mim. Estava na hora de tentarmos dar um susto no meu velho e de fazê-lo perder o juízo.

– Vamos explorar um pouco a casa antes de ir para a cama – eu avisei.

– Tudo bem, mas não demorem muito e fiquem longe do porão e do sótão. Está escuro demais, vocês podem cair e se machucar.

– Não se preocupe, pai, tomaremos cuidado – Beth falou.

Subimos correndo a escada para o quarto onde passaríamos a nossa primeira noite.

– O que vamos fazer? – perguntei aos outros.

Karen viu toda a roupa de cama no quarto. – Vamos todos nos cobrir com estes lençóis brancos e avançar para cima dele.

– Grande ideia! – Gary exclamou.

Rindo enquanto jogávamos os lençóis por cima das nossas cabeças, escutamos o pai subindo a escada. O som dos passos se tornou cada vez mais próximo enquanto nos escondíamos dele no mais completo silêncio.

Então, eu cochichei para os outros: – Quando eu disser “três”. Um... dois... três!

Saltamos em cima dele gritando com vozes fantasmagóricas: – Uuuuuh!

Nada aconteceu. Ele só arregalou os olhos para nós, sem emoção.

Novamente esvoaçamos os lençóis em volta de nossas cabeças e gritamos: – Uuuuuh!

– Isso é o melhor que vocês conseguem fazer? – ele perguntou.

Enquanto tirava os lençóis de cima de nós, eu me senti realmente bobo. Meu pai não tinha se assustado nem um pouco. Era quase como se ele estivesse esperando que nós aprontássemos algo assim.

Beth tentou explicar: – Só queríamos pregar uma peça em você.

Tinha sido um longo dia e ele estava cansado, mas pelo menos manteve o senso de humor.

– Vocês não conseguem fazer tremer nem um pudim de tapioca!

Quando ele saiu para fazer outra tarefa, Gary cochichou para mim: – Espere e verá!

De volta ao quarto, guardamos os lençóis no lugar onde os encontramos. Precisávamos ter outra ideia rapidamente.

– Já sei – disse a Beth. – Quando o papai for lá embaixo, vamos dar umas pancadas nos canos e fazer gemidos fantasmagóricos.

Karen sorriu maliciosamente.

– Sim, pegue uns jornais para fazermos uns canudos. Então nossas vozes ficarão mais roucas e assustadoras – ela disse sorrindo.

Quando meu pai desceu a escada, nós nos infiltramos no banheiro, cheio de canos velhos, que só estavam ali esperando para receberem pancadas. O som seria facilmente propagado para baixo, até o outro banheiro e a cozinha.

– Com o que podemos bater no encanamento? – Gary perguntou.

Olhei em volta, mas não havia nada sólido para aplicar uma boa surra nos canos. Karen sumiu por um momento e no instante seguinte reapareceu trazendo um suporte de parede metálico.

– Onde achou isso? – perguntei.

– Estava no chão do quarto – ela respondeu.

– Você pensou em tudo! – Beth disse.

– É claro que sim – Karen replicou, muito contente consigo mesma.

Eu comecei a bater levemente nos canos, enquanto os outros gemiam fraquinho nos canudos de jornal: – Uuuuuh! Uuuuuh! Uuuuuh!

Não houve resposta lá embaixo.

– Mais alto – disse Gary.

Bati mais forte nos canos e os outros começaram a gritar nos canudos de jornal. Paramos por alguns instantes e tentamos escutar alguma resposta lá embaixo.

– Será que eles são surdos? – Beth cochichou.

– Vamos tentar mais um pouco – eu repliquei.

Quando a nossa brincadeira estava esquentando, tivemos o maior choque de nossas vidas.

– Bu! – gritou uma voz na escuridão. Quase caímos no chão com o susto. Era meu pai. Enquanto estávamos ocupados fazendo barulho, ele deve ter subido a escada sorrateiramente.

– Vocês realmente vão ter que fazer melhor do que isso – ele sorriu.

– O que pretende fazer assustando a gente desse jeito? – Gary disse.

– Hum, está tudo bem quando vocês tentam me assustar, mas eu não posso tentar assustar vocês? – meu pai replicou.

– Isso não é justo, você é adulto – Karen argumentou.

Meu pai mostrou a língua para Karen e rebolou o traseiro. Ele era uma criança grande como nós. Mas a atitude bizarra dele não agradou Karen, que ficou de braços cruzados e fez um bico enorme.

– Agora, turma, chega de brincadeiras. Comportem-se e preparem-se para ir para os seus quartos, direto para as suas camas. Quero ver se consigo acender as luzes antes da noite acabar, então, não me perturbem mais! – meu pai advertiu.

Ainda não estávamos sentindo sono, então voltamos para um dos quartos e discutimos a nossa situação encrencada. Porém, não parecia que seríamos capazes de assustar o pai a ponto de fazê-lo mudar de ideia a respeito da casa. Ele parecia antecipar as nossas pobres tentativas de assustá-lo.

– O que podemos fazer agora? – Beth disse. – O papai parece saber o que queremos fazer e não fica nem um pouco impressionado.

– Sim, talvez seja melhor deixar as coisas assim até amanhã e teremos mais tempo para pensar como podemos fazê-lo mudar de ideia sobre a casa – eu disse.

– Mas ele não parece se assustar com nada – afirmou a Karen.

– Ora, vamos pensar em alguma coisa – eu disse.

Então, no momento seguinte o som dos passos dele subindo a escada e percorrendo o patamar chegou até nós. Ele foi até o quarto e pela sua expressão não estava para brincadeiras.

– O que eu acabei de dizer? – ele esbravejou.

Olhamos uns para os outros intrigados com a pergunta dele. Seria mais uma terrível brincadeira novamente?

– Achei que havia pedido para vocês pararem de me aborrecer enquanto estou tentando consertar a eletricidade.

Não consegui entender o que significava aquilo e falei: – O que você quer dizer, pai? Ficamos aqui em cima o tempo todo.

– Verdade? – disse o pai. – Bem, então, por que fiquei escutando um monte de ruídos estranhos lá embaixo?

– Que tipo de ruídos? – Beth perguntou.

– Vocês devem saber. Certamente foram vocês que os fizeram! – bradou o pai.

Quando olhei para meu irmão e minhas irmãs, todos demos de ombros para indicar que não tínhamos nada a ver com o que o pai estava falando. Aquilo não parecia uma brincadeira dele. Ele estava falando sério.

Pedi a palavra em nome de todos nós, e disse: – Não fizemos nada, pai. Sinceramente!

– Bem, eu ouvi ruídos espantosos lá embaixo e não foi a mãe de vocês quem fez isso – ele disse.

– Não fomos nós, pai. Ficamos neste quarto desde a última vez que você falou conosco – a Karen reafirmou.

– É verdade, pai. Diga que tipo de ruídos você ouviu – Gary perguntou.

Meu pai pareceu acreditar em nós, por fim, e disse: – Eram ruídos do tipo que alguém faz ao cortar e triturar. Era como se a pessoa estivesse cozinhando ou preparando uma comida.

– Isso é espantoso! – afirmou a Beth. – Você deve estar ouvindo coisas. Será que esta casa não está afetando você, pai?

– Bem, tenho certeza de que ouvi ruídos. Talvez haja alguma explicação simples, do tipo que a responsabilidade é de vocês.

– Sinceramente, não fomos nós, pai – eu repeti.

Ele se virou para descer e disse: – É tarde. Já para a cama. Sem desculpas.

– Sim – respondemos em uníssono.

Seria possível que alguma outra coisa, além de nós, estivesse importunando meu pai? Eu não passava muito tempo cismando com esse pensamento sem que um calafrio me percorresse a espinha.


Capítulo 9

O Banheiro

O banheiro estava na escuridão enquanto permanecíamos do lado de fora. Achei que nenhum de nós gostaria de pensar em passar um tempo ali sozinho, então decidimos que todos entraríamos e ficaríamos juntos. Tínhamos ali apenas uma vela. Entramos no banheiro e eu a coloquei na borda da pia onde nos lavávamos e escovávamos os dentes.

Quando Gary abriu a torneira, um repentino vento gelado varreu o banheiro. A chama da vela tremulou por um tempo ao vento e depois apagou. Afora a luz de vela muito fraca que vinha do patamar, estávamos na escuridão. Eu me sentia incomodado ali e o meu cabelo começou a eriçar na nuca.

– A janela deve estar aberta – Beth explicou.

Eu estava certo de que ela havia sido fechada antes e repliquei: – Tenho certeza de que estava fechada quando chegamos no começo da noite e demos a nossa primeira olhada na casa.

– Bem, alguém deve tê-la aberto depois, bobo! – Beth gritou.

Eu me sentia muito incomodado ali. – Vamos depressa com isso para voltarmos logo para a cama.

– Sim, vamos dar o fora daqui rapidamente, é assustador – Karen disse.

Gary teve que se esforçar para fazer a água correr na pia, mas finalmente o encanamento começou a expelir o ar que estava retido nele. Então, depois de mais alguns segundos, ouvimos a água corrente jorrar na pia.

Estava tão escuro no banheiro que Gary teve que tatear em volta da pia para encontrar o tampão e o ralo. Por fim, conseguiu encaixá-los e o som da água escorrendo pelo ralo cessou.

– Esta água dá uma sensação engraçada – ele falou.

– O que você quer dizer com sensação engraçada? – perguntei.

– Nem parece água. Dá a sensação de um líquido grosso.

– Deixa disso, Gary. Só deixe correr e vamos cair fora daqui o quanto antes – disse a Beth agitada.

– Talvez a água só esteja suja e cheia de limo – argumentei.

– Ajudaria se pudéssemos ver melhor a água – disse Gary.

– Bem, no momento isso não é possível, então é bom se apressar! – Beth exclamou.

Eu coloquei as minhas mãos na água e imediatamente percebi algo estranho. Era um líquido espesso e pegajoso. Comentei que a água devia estar imunda. Será que estava cheia de lama ou algo assim?

– Não parece mesmo água limpa – afirmei.

Levamos outro susto enorme quando meu pai gritou lá de baixo – Consegui! Vou acender as luzes, crianças.

Alguns segundos depois uma luz brilhante iluminou a casa. Ficamos muito aliviados quando a escuridão foi embora. Todas as luzes da casa deviam ter sido deixadas acesas, pois repentinamente a casa toda se iluminou. Achei estranho nenhum fusível ter queimado com a repentina volta da energia. Por um momento, esfregamos os olhos e piscamos com a luz intensa que havia invadido o banheiro.

Então, alguns segundos depois, quando os nossos olhos se acostumaram novamente com a claridade, nós gritamos horrorizados. Eu não conseguia acreditar no que estava vendo.

– Ahhhhh! É sangue!


Capítulo 10

Alguém Quer Tomar um Banho de Sangue?

As minhas mãos estavam cheias de sangue vermelho-escuro. Sangue também pingava das mãos e do rosto de Gary. Na pia havia uma poça de sangue vermelho grosso. Havia sangue por toda parte!

– Pai! Mãe! Socorro!

Do nada, uma horrível voz, rouca e fantasmagórica, falou:

– Alguém quer tomar um banho de sangue?

Essa frase foi seguida da mais cruel e demoníaca gargalhada que eu jamais ouvi. Isso assustou até a parte mais íntima do meu ser.

– Vamos dar o fora daqui! – Beth gritou.

Quando corremos na direção da porta, ela bateu com um estrondo e se fechou com uma força tremenda. Agarrei e tentei girar a maçaneta, mas ela não se movia. Era como se alguma força demoníaca invisível estivesse me impedindo de abrir a porta.

A voz fantasmagórica repetiu:

– Alguém quer tomar um banho de sangue?

As mãos de Gary se engancharam nas minhas quando tentamos freneticamente abrir a porta do banheiro para escapar. A maçaneta não se mexia não importa quanta força fizéssemos.

– Socorro, pai! Por favor, ajude, depressa! – Karen gritou.

Ouvimos a voz do pai por perto quando ele disse:

– É melhor que não seja mais nenhum truque. O meu senso de humor está bastante desgastado.

– Não conseguimos abrir a porta! – gritei.

Quase instantaneamente a maçaneta girou e a porta se abriu. Lá estava nosso pai com a cara amarrada.

– É sangue, pai! – Gary gritou, mostrando as mãos encharcadas de sangue.

Meu pai olhou sem achar graça e disse: – Não seja tão bobo. Deixe-me ver.

Ele examinou as nossas mãos e depois a pia cheia de sangue. Por um segundo ele ficou confuso até que a cor começou a se esvair de seu rosto. Ele começou a ficar muito pálido e parecia doente.

O pai estava começando a cambalear quando disse: – Vocês estão certos. É sangue!

Com essas palavras ele fechou os olhos e desmaiou no chão, com um formidável baque.

– Mãe! Mãe! Venha depressa! – Beth gritou.

Como um raio, mamãe subiu correndo a escada até onde o pai estava caído.

– O que aconteceu? – ela gritou enquanto sentia o pulso dele.

– Por que você tem sangue nas mãos? Por acaso você se cortou?

Eu tremia enquanto explicava: – O pai desmaiou quando viu que era sangue.

– Sangue na torneira? – a mamãe disse com um tom de incredulidade.

As luzes então começaram a piscar e enfraquecer.

– Mas que diabos está acontecendo? – minha mãe gritou.

A energia acabou novamente enquanto a voz fantasmagórica repetia:

– Alguém quer tomar um banho de sangue?

Karen, de repente, gritou:

– Olhem! Na escada!

Ficamos sem ar quando olhamos para a escada: envolto em uma estranha e misteriosa luz nós vimos um vulto sem cabeça vestido com um avental de açougueiro ensanguentado. Ele trazia uma imensa faca que pingava sangue. Recuamos quando o vulto começou a vir em nossa direção.

– Corram! – gritou a mamãe.

Nós corremos ao longo do patamar e entramos em um dos quartos. A mamãe foi a última a chegar e trancou a porta atrás de si. Nós nos apertamos fortemente uns contra os outros sob a fraca luz de velas, orando pelas nossas vidas.

O som dos passos daquela figura sem cabeça nos seguiu lentamente ao longo do patamar. Com um baque, a porta sofreu uma pancada. A ponta da faca ensanguentada do açougueiro perfurou a porta.

– Ha ha! Então, ninguém vai querer tomar um banho de sangue, não é mesmo, meus amiguinhos? – gritou o vulto sem cabeça do outro lado da porta.

– O que você quer conosco? – Beth gritou.

A voz demoníaca replicou:

– Eu quero todo o sangue que escorrer das suas veias!

Então, uma longa gargalhada fantasmagórica ecoou em nossos ouvidos durante um momento que pareceu demorar séculos, e só foi interrompida pelas luzes que se acenderam. Será que meu pai tinha acordado e religado a energia novamente?

– Ei! A energia voltou! – Gary gritou. – Será que alguém virá nos salvar? Talvez o papai!

Minha mãe foi até a porta e escutou por um tempo. Ela acenou para mim, para que eu também escutasse. Não consegui ouvir nada.

– Agora parece calmo lá fora, crianças – disse a mãe. – Vamos ter que ver se o pai de vocês está bem.

– Não quero sair agora – Karen falou entre soluços. – O horrível vulto sem cabeça vai pegar nós todos.

A mamãe tranquilizou-a e disse: – Acho que o fantasma já foi embora. Está tudo bem, Karen. Prometo que todos vamos ficar juntos.

– Mas você disse que não existiam essas coisas de fantasmas! – Karen gritou.

Com as mãos trêmulas, minha mãe lentamente destrancou a porta e espiou pela pequena fresta.

– A barra está limpa, crianças. Vamos! – ela cochichou.

Um por um, nós nos arrastamos nervosos pelo patamar. A qualquer momento eu esperava ser atacado pelo vulto sem cabeça. O que ele queria conosco?

– Ele não está aqui! – gritou a mamãe.

Meu pai já não estava mais onde tinha desmaiado. E não podia ser visto em parte alguma. Será que ele tinha perseguido o vulto sem cabeça e religado a energia? Eu daria a minha vida para que fosse assim.


Capítulo 11

O Sótão

– Aonde ele foi? – Beth indagou.

– Será que está tentando nos encontrar? – a mamãe replicou.

– Talvez ele tenha ficado desorientado depois que desmaiou, ou saiu para nos procurar pela casa – eu disse. – Será que está nos procurando lá fora?

Gary então disse o que nenhum de nós queria ouvir: – O fantasma deve ter levado ele embora.

– Essa não! Pobre papai! – Karen soluçou.

– Ele deve estar bem – eu disse, abraçando minha irmã caçula. – Basta esperar para ver.

– Vamos tentar encontrá-lo – mamãe falou.

Uma fração de segundo depois de ela dizer essas palavras, as luzes começaram a enfraquecer e a piscar novamente. Mais uma vez estávamos ficando em quase total escuridão. O cabelo da minha nuca começou a eriçar ainda mais do que antes.

– Essa não! De novo não! – Beth gritou, apontando para a escada.

Mais uma vez, nos degraus, estava o ensanguentado vulto sem cabeça. Ele avançava passo a passo em nossa direção com sua arma mortal. Imediatamente nos viramos para novamente retornarmos à segurança do quarto. Mas para nosso total desespero, outro espírito nos aguardava do outro lado.

– Estamos cercados! – Gary gritou.

O outro espírito só tinha um braço e o rosto pálido horrivelmente marcado com cicatrizes. Ele nos deu um sorriso maroto, expondo dentes pretos podres, enquanto avançava para cima de nós. Segurava, na única mão, um machado de cortar carne ensanguentado.

Sua voz rouca demoníaca exclamou:

– Vou fazer picadinho de vocês!

Apavorados, estávamos como que pregados no chão enquanto observávamos as duas aparições se aproximarem cada vez mais de nós. Como conseguiríamos escapar daquela morte horrível?

– O que vamos fazer, mãe? – Beth gritou.

– Segurem-se firme em mim.

Nós nos abraçamos uns nos outros, como se aqueles fossem os nossos últimos segundos de vida, quando Karen gritou, de repente: – Depressa, para o sótão!

Estávamos tão petrificados que a escada para o sótão tinha passado despercebida. A mamãe pulou como um raio e puxou a escada para baixo.

Os fantasmas estavam quase nos alcançando quando subi a escadaria e tentei abrir o alçapão do sótão. Empurrei várias vezes, mas o alçapão não se movia.

– Isto não se mexe! – gritei.

Gary subiu a escada e empurramos juntos. Com um supremo esforço, o alçapão se escancarou e nós voamos para dentro do sótão. Rapidamente, puxamos Karen e Beth para o alto. A mamãe era a última na escada. Por poucos centímetros os fantasmas não a agarraram enquanto nós grudávamos nas mãos dela e a puxávamos para cima. Batemos a porta do sótão e sentamos sobre ela.

Com um profundo suspiro de alívio, achamos que o pior havia passado. Então, o alçapão começou a ser empurrado por baixo.

– Eles estão tentando entrar! – gritei.

– Depressa, todos sentados no alçapão! – a mamãe ordenou.

Houve uma série de empurrões vindos de baixo. Será que conseguiríamos parar aqueles fantasmas sanguinários?

– Vocês vão virar carne de açougue! – um deles anunciava.

O som daquela gargalhada demoníaca penetrou em nossos ouvidos, mas conseguimos impedi-los de abrirem o alçapão. Depois de algum tempo, as tentativas de forçar a entrada para o sótão cessaram. Não se ouvia mais nenhum som.

A princípio o sótão parecia absolutamente escuro. Mas havia uma imensa claraboia, e depois de um tempo a claridade da lua que se esparramava por ali nos permitiu enxergar o espaço sem muito problema.

Olhando em volta, reparei em dois objetos familiares sobre uma mesa.

– Vejam, a lanterna do pai está aqui, em cima desta mesa – eu disse.

– E o boné do homem também – Beth acrescentou.

– Como vieram parar aqui em cima? – Gary perguntou.

– Não sei – repliquei –, mas quando nós tentamos abrir o alçapão eu senti como se isso não fosse forçado há séculos.

– Devem ter sido os fantasmas! – Karen exclamou.

– O que vamos fazer agora? – Beth perguntou.

– Não sei – replicou a mamãe.

Karen soluçou e disse: – Eu queria que o meu pai estivesse aqui...

– Nós todos queríamos, Karen. Mas está tudo bem com ele – minha mãe falou.

Parecia idiotice todos nós ficarmos sentados sobre o alçapão, então eu sugeri: – Vamos empurrar aquele baú até aqui. Ele parece bastante pesado para mantê- -los do lado de fora.

Gary e eu arrastamos o baú para perto do alçapão, enquanto a mamãe e as meninas continuavam sentadas nele. Então, com um movimento rápido, nós empurramos o pesado baú para cima do alçapão, e a mamãe e as meninas saíram dali.

– Isto deve ficar seguro por enquanto – disse a mãe.

O sótão estava lotado de lixo. Ao luar eu comecei a examinar tudo aquilo e encontrei um cartaz imenso que dizia:

 

CARRASCO & FILHOS

AÇOUGUEIROS

ODDVILLE

 

– Vejam só isso – eu disse.

– Talvez eles tenham sido os últimos donos da casa – disse a mãe.

Perto do cartaz encontrei uma pilha de jornais marcados com tinta vermelha: “Última Chance”.

Junto da pilha, havia uma caixa cheia de cartas de um advogado. Acendi a lanterna do meu pai e comecei a ler as cartas.

– O que quer dizer falência, mãe?

Minha mãe suspirou e olhou zangada.

– Mas que pergunta para fazer numa hora dessas...

– É sobre isso que todas estas cartas tratam – repliquei.

– É quando um negócio não tem dinheiro suficiente para se manter em funcionamento e para pagar as pessoas a quem deve – mamãe explicou.

– Então, essa tal de falência deve ter acontecido com Carrasco & Filhos – eu disse. – Talvez isso tenha alguma coisa a ver com os fantasmas.

– É possível – Beth falou. – Mas como alguém vai poder nos ajudar neste exato momento?

– Venham cá, crianças – disse a mamãe. – Todos vocês se espalhem pelo sótão, coloquem os ouvidos no chão e escutem os ruídos.

Obedecendo a orientação dela, todos fomos para diferentes partes do sótão e nos ajoelhamos. Prestei atenção durante algum tempo, mas não consegui ouvir som algum.

– Alguém ouviu alguma coisa? – cochichou a mãe.

Todos balançamos a cabeça negativamente. A casa estava em silêncio total.

– Nós não podemos ficar aqui em cima para sempre. Vamos ter que descer e procurar o pai de vocês, tudo bem? Parece que os fantasmas foram embora.

Tomando o maior cuidado possível, retiramos o pesado baú de cima da porta do sótão. Ajoelhei e levantei um pouquinho o alçapão. Iluminado pela fraca luz de velas, o patamar parecia estar livre de qualquer fantasma à espreita.

– Para mim parece livre – avisei a mamãe.

– Depressa crianças, desçam a escada – ela falou. – Gary, não esqueça a lanterna.

Puxei o alçapão e desci a escada com a respiração presa de tanto medo. O meu coração batia forte quando cheguei embaixo. Em um momento os outros se juntaram a mim.

– Fiquem alertas, crianças. Vamos descer para procurar seu pai.


Capítulo 12

O Porão

Tentando manter a calma, nós caminhamos na ponta dos pés ao longo do patamar e da escadaria. A mamãe estava com a lanterna e iluminava a nossa frente para evitar o perigo. Na metade da descida da escada, as luzes piscaram novamente.

– Será que o pai religou a energia, de novo? – Beth sugeriu.

Estávamos nos sentindo um pouco menos assustados quando chegamos ao fim dos degraus. O pai não era visto em parte alguma. Imaginei que isso significava que teríamos que procurar por ele em todos os cômodos.

– Primeiro, vou verificar se ele está no porão – mamãe anunciou.

Apreensiva, ela abriu a porta do porão seguida por nós. O porão estava mergulhado na escuridão.

– Você está aí embaixo, Bill? – mamãe cochichou.

Não houve resposta.

Ela perguntou novamente, em um tom de voz ligeiramente mais alto: – Bill! Você está aí embaixo?

Nem assim houve resposta. Se ele não estava lá embaixo, onde estaria? Seguimos em direção a uma porta que levava a uma das salas de estar. Estava escuro, mas acendi a luz imediatamente. A sala estava vazia.

Porta por porta, examinamos todos os cômodos do primeiro andar. Nenhum sinal do meu pai.

– Não sairemos desta casa antes de encontrá-lo – mamãe afirmou.

Ainda havia uma última porta. Era a porta do banheiro do andar térreo.

Com muita esperança de encontrar meu pai lá dentro, girei a maçaneta e lentamente empurrei a porta. Nesse mesmo instante as luzes tremularam e enfraqueceram novamente.

– Oh! – gritei.

O meu corpo gelou quando abri a porta totalmente. Não consegui dizer sequer uma palavra para a minha família. Ali, no banheiro, havia dois vultos de aparência horrível. Um deles era uma mulher de vestido, coberta de sangue. As mãos e cabeça dela também estavam ensanguentadas. Além dela, havia um vulto mais jovem nas mesmas condições.

Os dois viraram seus horríveis rostos demoníacos, olharam para mim e disseram juntos:

– Alguém quer tomar um banho de sangue?

– Corram! – Beth gritou.

Para onde ir? A princípio, tentamos a porta da frente. Gary puxou a porta, mas lá estava o vulto sem cabeça, com sua reluzente faca de açougueiro. Nós viramos e fugimos pela escada.

– Essa não! – Karen gritou.

No topo dos degraus estava o vulto com um só braço, com o machado de cortar carne erguido acima de sua cabeça, como se estivesse pronto para nos atacar a qualquer momento. O que faríamos? O nosso estado de pânico não nos permitia pensar direito.

Então Karen forneceu a resposta. Sua voz infantil bradou: – Depressa, para o porão!

Rápidos como um raio, descemos correndo os degraus para o porão. A mamãe bateu a porta atrás de nós e jogou seu peso contra ela. Felizmente, Gary ainda tinha a lanterna, que ele acendeu imediatamente. Eu avistei uma cadeira embaixo da escada e corri para pegá-la.

Os fantasmas estavam espancando a porta. Agarrei a cadeira e subi correndo para onde a mamãe estava. Juntos, nós calçamos a maçaneta da porta com a cadeira presa no degrau superior para impedir a entrada deles.

– Caramba! Essa foi por pouco – eu disse.

Do outro lado da porta os fantasmas continuavam gritando:

– Alguém quer tomar um banho de sangue? Alguém quer tomar um banho de sangue?

Depois de um tempo, eles fizeram silêncio. Todos respiramos aliviados, já que eles pareciam ter desaparecido novamente. Então tive a impressão de ter ouvido um barulho. Era muito fraco, mas estava certo de ter escutado alguma coisa.

– Silêncio! – pedi.

O barulho foi ficando cada vez mais alto. Era um barulho de raspagem, um som de metal raspando contra metal. O barulho se tornou mais alto ainda até ficar ecoando nos meus ouvidos. Então, horrorizado eu percebi que barulho era aquele.

– Mãe, eles estão afiando as facas!

Os fantasmas então soltaram gargalhadas demoníacas e um deles disse:

– Vamos tirar uns filezinhos de carne fresca!

– Precisamos ver se conseguimos sair daqui pelo jardim – Gary disse.

A mamãe franziu a testa para ele e disse: – Eu disse a vocês que não deixaríamos esta casa sem seu pai.

– Mas talvez ele esteja perambulando lá fora confuso e sem rumo – eu acrescentei.

– Você pode estar certo – ela reconsiderou.

Gary tentou forçar a porta que levava ao jardim. Mas ela não se mexia.

– Deve estar trancada – disse Gary. – E nem sinal da chave!

– Então, vamos ficar presos neste porão imundo até os fantasmas desistirem! – Beth disse.

– Ou até nos pegarem – Karen completou.

Mas a mamãe ralhou com Karen.

– Não pense assim. É claro que vamos conseguir escapar. E o seu pai vai estar bem!

De repente, o barulho das facas parou. O som da gargalhada demoníaca também cessou. Subi até a porta do porão e escutei.

– Parece que a barra está limpa lá fora – cochichei.

– Vai ser na base do salve-se quem puder, crianças. Saiam correndo sem confusão direto para a porta da frente – a mãe disse.

Retirei a cadeira de baixo da maçaneta e abri a porta. Em um segundo, corri pelo corredor e agarrei na maçaneta da porta da frente. Eu sequer olhei em volta para ver se os fantasmas ainda estavam por lá. Girei a maçaneta e abri a porta.

Imediatamente gritei: – Socorro!

Ali, na soleira da porta, havia um vulto alto e esguio com um capuz na cabeça. Devia ser outro fantasma! O vulto levantou as mãos e removeu o capuz, que revelava o cabelo grisalho de um homem velho.

– Desculpe-me. Assustei você?


Capítulo 13

O Açougueiro Mestre

Por um instante, todos arregalamos os olhos diante do vulto do velho grisalho. Olhando um pouco mais, ele não parecia como os outros fantasmas.

– Você é algum fantasma? – Beth disse.

– Claro que não! De onde veio essa ideia? – ele perguntou.

– Sinto muito, mas você não acreditaria no que estamos passando – mamãe confessou.

– Sou Alfred Hale, e moro no outro lado da rua. Eu vi as luzes piscarem e achei que poderia estar acontecendo alguma coisa errada. Posso ajudar em algo? Vocês parecem ter visto um fantasma!

– Nós vimos! – eu gritei. – Vários deles!

O senhor Hale entrou no saguão e explicou.

– Bem, dizem que este lugar é mal-assombrado. Pessoalmente, nunca vi fantasma algum aqui, mas é o que dizem por aí.

– Prossiga – mamãe pediu.

– A família que morava aqui chamava-se Carrasco – ele explicou. – Eles tinham um açougue na cidade, mas o negócio passou por dificuldades.

– Isso explica todas aquelas coisas no sótão – acrescentei. Ele continuou.

– Uma noite, eles convidaram todas as pessoas a quem deviam dinheiro. Disseram que queriam renegociar as dívidas ou alguma coisa assim. De qualquer forma, assim que reuniram todos dentro da casa, eles trancaram as portas. Deviam estar completamente fora de si.

Ele fez uma pausa nesse ponto e olhou para a minha mãe como se não quisesse contar o resto da história na frente das crianças.

– Por favor, conte-nos o resto – mamãe insistiu. – Essas crianças já passaram por muitas coisas essa noite.

– Muito bem – disse o senhor Hale. – Com as portas trancadas, os membros da família Carrasco puxaram suas facas e machados. Eles retalharam os convidados até a morte e esconderam os corpos na caixa d’água. Alguns dias depois, quando a polícia chegou para investigar, disse que a água corria vermelha e com sangue.

– Isso explica muita coisa – disse a mamãe.

O senhor Hale prosseguiu: – Quando a polícia tentou prendê-los, os membros da família se viraram uns contra os outros. Armaram-se com as ferramentas de açougueiro e se agrediram. Antes que a polícia pudesse fazer alguma coisa, o pai foi decapitado e o braço do filho mais velho foi arrancado.

– Havia uma esposa e um filho mais jovem? – Beth perguntou.

– Sim, eles morreram pela perda de sangue, junto com o filho mais velho cujo braço foi amputado – replicou o senhor Hale.

– Que história pavorosa. Não me admiro que o lugar seja mal-assombrado – a mãe disse.

– Sim, é absolutamente repulsivo, não é mesmo? A casa ficou deserta durante anos, até a sua família comprá-la – disse o senhor Hale.

– Bem, graças a Deus está aqui, senhor Hale. Por acaso não viu o meu marido por aí? – a mamãe perguntou.

– Não, está tudo tranquilo lá fora – o senhor Hale replicou.

– Então, ele ainda deve estar na casa! – Karen gritou.

– Sim, precisamos encontrá-lo para dar o fora daqui! – acrescentei.

Imediatamente, após estas derradeiras palavras, um vento gelado soprou no corredor, deixando todos arrepiados. A porta da frente bateu com tanta força que fez a casa toda estremecer.

Gary agarrou a maçaneta da porta da frente, mas ela se recusava a abrir. O senhor Hale se juntou a ele para ajudar.

– Está emperrada – ele disse.

Em um instante os fantasmas reapareceram. Estavam prontos com suas facas e seus machados.

– Deus do céu! – o senhor Hale gritou.

Os fantasmas gargalhavam:

– Alguém quer tomar um banho de sangue?

Nós formamos um bando apertado no centro do corredor. Os fantasmas circulavam em volta de nós exibindo suas reluzentes lâminas de metal e rindo de uma maneira horrorosa e demoníaca. Quem nos salvaria agora?

Pelo canto do olho, eu vi um quinto fantasma se aproximar vindo da cozinha. Era de uma palidez inacreditável, e também vestia avental e boné de açougueiro. Ele chamou a atenção da mulher fantasma e acenou para ela ir até ele.

Quando ela se aproximou, o quinto fantasma disse:

– Eu sou o Mestre Açougueiro. Não tenho medo de vocês. Voltem para o inferno de onde vieram.

Por alguma estranha razão, com todo aquele medo e no meio de todo aquele tumulto, a voz do fantasma me soou estranhamente familiar. Será que a minha mente estava pregando peças em mim?

Instantaneamente, houve um terrível lamento da mulher fantasma e ela evaporou sem deixar rastros.

– Mas que diabos está acontecendo? – eu me admirei.

Ao ver uma brecha entre os fantasmas, Gary gritou:

– Depressa! Para a escada.

Nós subimos a escada correndo até o patamar. Os fantasmas cambalearam escada acima logo atrás de nós.

O fantasma mais jovem se virou para encarar o novo fantasma, que o perseguia, e gritou:

– Vou fazer salsichas de vocês!

– Você não consegue fazer salsichas nem de mentira. É por isso que você vai sair desse negócio! – disse o recém-chegado. – Agora saia daqui, criatura insana. O Açougueiro Mestre não tem medo de tipos como você. Fora!

Com um terrível gemido o fantasma menor evaporou. Agora, restavam apenas três fantasmas a enfrentar. O vulto sem cabeça e o vulto de um só braço estavam cada vez mais próximos de nós, com o outro fantasma bem atrás deles.

– Para o sótão ou para o quarto? – Beth perguntou.

Subi a escada e tentei abrir o alçapão do sótão, mas ele nem se mexeu. Minha mãe e o senhor Hale freneticamente tentaram forçá-lo para abrir, mas não se movia.

Os fantasmas estavam quase em cima de nós quando eu gritei: – Salve-se quem puder! Já para o quarto.

Nessa hora, eu vi que o fantasma de um só braço tinha sido atraído pelo novo fantasma estranho. Ele se virou, começou a se arrastar em direção ao recém-chegado acenando o machado de cortar carne e falou:

– Por que está se metendo entre nós? Vou tomar um banho no seu sangue!

O novo fantasma o enfrentou: – Você não me assusta. Eu sou o Mestre Açougueiro. Se alguém vai fazer uma carnificina por aqui, esse alguém sou eu! Volte para o lugar infernal de onde você saiu!

Houve um choro doentio quando o fantasma de um só braço sumiu da nossa vista.

– O que está acontecendo? – disse a mamãe. – É como se o novo fantasma estivesse tentando nos salvar.

Ficamos reunidos no quarto enquanto o fantasma sem cabeça se aproximava cada vez mais. Ele brandia sua faca numa agitação frenética.

– Vou matar todo mundo! – bradou o vulto sem cabeça.

Batemos a porta com força e a trancamos por dentro. Os fantasmas poderiam brigar à vontade lá fora.

– Não se atreva a interferir! – gritou o fantasma sem cabeça para o recém-chegado.

– Você não está preparado para ser açougueiro! – replicou o novo fantasma.

A porta balançou várias vezes, todas as vezes em que a faca era enfiada nela.

A madeira estava começando a rachar. Eu tinha certeza de que a porta não aguentaria por muito tempo.

– Eu nunca deveria ter vindo ajudar vocês – disse o senhor Hale.

– Agradecemos assim mesmo – Karen replicou.

O novo fantasma gritou: – Você não serve para ser açougueiro. Foi por isso que o negócio faliu. Você não é bom o bastante para merecer esse título!

– Não é culpa minha! – gritou o vulto sem cabeça.

– Você não vale nada! – disse o novo fantasma. – Eu não tenho medo de você. Sou o Mestre Açougueiro. O que eu digo é o que vale!

No meio de um riso histérico horrível o vulto sem cabeça gritou: – Nãããooo!

Então, houve um silêncio profundo. O que seria de nós agora? Devíamos ficar quietos e esperar o amanhecer? Tinha sido uma longa noite. Olhei para o meu relógio, eram quase cinco e meia. A partir daquela hora, o amanhecer chegaria a qualquer momento. Será que a luz da manhã nos salvaria do fantasma que estava do outro lado da porta?


Capítulo 14

O Amanhecer

O fantasma bateu na porta e disse: – Está tudo bem, vocês podem sair agora.

A minha mente não cansava de me pregar peças. Aquela voz era exatamente igual a do meu pai. Olhamos uns para os outros por um momento, perplexos. Será que o fantasma era ele?

– Realmente, essa parece a voz do pai de vocês, não é mesmo? – a mamãe disse.

Nós concordamos acenando com a cabeça, mas Gary nos alertou.

– Pode ser algum truque demoníaco para abrirmos a porta. Talvez o fantasma invada o quarto e acabe com todos nós!

– Você pode estar certo – Beth confirmou.

– Turma, venham cá! Abram a porta... O lugar está seguro agora! – o fantasma gritou.

Espiei para fora da janela do quarto e reparei que a primeira luz do amanhecer já aparecia no horizonte.

A chegada da luz do dia deveria nos salvar do fantasma.

– Vejam! – eu disse. – Amanheceu. Tudo deve ficar bem conosco agora.

A voz do outro lado da porta disse:

– Sou realmente eu, o pai de vocês. Eu espantei todos esses horríveis fantasmas para sempre.

– Abram a porta! – minha mãe ordenou.

O senhor Hale não parecia muito seguro.

– Você tem certeza do que está prestes a fazer?

– Acho que sim – replicou a mãe.

Com um sentimento de dúvida, lentamente girei a chave na fechadura e abri a porta.

– Ahhh! – gritei quando a porta se abriu no patamar.

Ali, diante de nós, estava o pálido fantasma branco que usava o avental e o boné de açougueiro. Tudo não passava de um truque fantasmagórico para nos fazer abrir a porta!

– Buuu! – ele gritou. – Vejam, sou somente eu!

No mesmo instante os meus temores se transformaram em uma descontrolada alegria. Era meu pai. Eu podia reconhecer as feições dele.

Ele me envolveu com seus braços, e eu o abracei com toda a minha força.

– Você não é um fantasma, é? – perguntei.

– É claro que não sou.

Então, reparei que ele estava coberto de uma substância clara e branca.

– O que é isso?

– Farinha! – ele gritou.

– Mas faz você parecer um fantasma! – a mamãe gritou.

– Eu sei. Muito convincente, não é mesmo? – ele disse.

– Com certeza os outros fantasmas ficaram mesmo convencidos – Beth comentou.

Reunimo-nos em volta do papai e lhe demos um forte abraço. O senhor Hale permaneceu no quarto com um sorriso intrigado no rosto.

– Alguém poderia me dizer exatamente o que está acontecendo? – ele disse.

– Você viu os fantasmas que rondavam por aqui? – meu pai perguntou.

– Sim, é claro. Eles me deixaram petrificado. Achei que acabaria virando picadinho – disse o senhor Hale.

O pai continuou: – Eu pensei que as crianças estivessem brincando quando mencionaram o sangue. Sempre fui muito sensível para isso e, ao avistar sangue no rosto dos meus filhos, eu desmaiei.

– Disso nós já sabemos – Karen disse. – Mas aonde você foi?

– Acordei confuso e com uma sensação de tontura. Não encontrei vocês por perto e acabei tropeçando e rolando pela escada. Enquanto eu estava lá embaixo, os fantasmas da mulher e do garoto foram para cima de mim. Então, corri e me tranquei na despensa perto da cozinha.

– Como fez para se cobrir de farinha? – Gary perguntou.

– Devo ter tropeçado na despensa no meio da escuridão e um pote de farinha caiu na minha cabeça. Isso me deixou bem fantasmagórico, não é?

– Foi bem convincente! – afirmou a mãe.

– Na despensa eu ainda encontrei este velho uniforme de açougueiro, com avental e boné. Para nos salvar, resolvi tentar combater esses fantasmas com o mesmo jogo deles. Decidi que seria o Mestre Açougueiro e que diria a eles o que fazer. Foi assim que mandei todos para longe!

– Caramba! Você foi muito corajoso, pai – Beth sorriu.

O peito do meu pai estufou com o comentário dela, mas rapidamente murchou quando a mamãe disse:

– Pena que não seja o tempo todo assim...

– Eu tenho os meus momentos – meu pai disse.

– Como imaginou algo que assustaria os fantasmas e os levaria a se afastarem de nós, pai? – Karen perguntou.

– Não sei, filha. Eu precisava tentar alguma coisa que salvasse todo mundo. Pareceu uma boa ideia brigar com eles usando a ideia de que eles tinham fracassado quando eram açougueiros. E deu certo!

– Foi uma grande ideia – o senhor Hale acrescentou. – Você tocou na ferida deles, dizendo que eram fracassados. Você não mostrou ter medo deles e disse exatamente o que eles eram.

– É isso aí. Parti para cima da bizarrice fantasmagórica deles e mandei que sumissem.

Eu não conseguia acreditar que tinha sido assim tão simples: – Foi só o que aconteceu? Ficamos assustados a ponto de perder o juízo!

– Bem, alguém tinha que fazer alguma coisa – meu pai falou.

O senhor Hale o elogiou: – Estamos muito felizes com o que você fez.

– E eu estou faminto – meu pai disse. – Alguém quer tomar café da manhã?

– Desde que seja na minha casa. As emoções que eu tive aqui vão durar para o resto da vida – replicou o senhor Hale.

Reunimos algumas coisas e atravessamos a rua até a casa do senhor Hale. Olhando de volta para a casa enquanto seguíamos pela entrada da garagem, ela ainda tinha uma aparência sombria e demoníaca. O que o pai tinha visto naquele lugar terrível?

Meu pai se virou e olhou atentamente para a casa. Em seguida, começou a balançar a cabeça.

– Talvez vocês estejam certas, crianças. Esta casa não é muito acolhedora, não é?

– Estou feliz porque você afinal concordou! – Karen gritou.

– Vamos imediatamente chamar corretores de imobiliárias e colocá-la à venda – a mamãe sugeriu.

Mas que alívio! Não acho que nenhum de nós conseguiria passar outra noite naquele lugar demoníaco.

O senhor Hale nos mostrou a casa dele e nos fez sentar em sua grande cozinha. Ele foi até a geladeira e trouxe várias guloseimas para o café da manhã.

– Do que vocês gostam mesmo? De um excelente café da manhã? Com bacon, salsicha? – disse o senhor Hale.

Olhamos uns para os outros em volta da mesa do café da manhã. Tenho certeza de que havia um único pensamento em nossas mentes: açougueiros! O meu estômago embrulhava só de pensar. Será que o senhor Hale não tinha nenhum sentimento?

– Vou querer apenas suco e torradas – eu disse.

Acho que todos estavam se sentindo do mesmo jeito, pois também pediram apenas suco e torradas.

A exceção foi o meu pai. Nada poderia detê-lo de devorar um bom café da manhã.

Ele coçou a barriga e disse:

– Por favor, vou aceitar as iguarias. Você comprou de um bom fornecedor, um bom açougueiro, não é?

Todos juntos gritamos:

– Pai, sinceramente!

– Qual é o problema de vocês? – ele replicou.

Bem, isso era típico do meu pai. Ele simplesmente não pensa como o resto dos mortais. Acho que é por isso que nós gostamos tanto dele.

Ele é o cara!

 

 

                                                   Edgar J. Hyde         

 

 

 

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