Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


HORAS MÁS / Gabriel García Márquez
HORAS MÁS / Gabriel García Márquez

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

HORAS MÁS

 

Com um esforço solene, o padre Ángel acordou. Esfregou os olhos com os nós dos dedos, afastou a cortina do mosquiteiro e permaneceu sentado na esteira lisa, por um momento pensativo, o tempo indispensável para verificar que estava vivo e para se lembrar da data em que se encontrava e da sua relação com o santoral.

Terça-feira, quatro de Outubro", pensou, pronunciando em voz baixa: São Francisco de Assis.

Vestiu-se sem se lavar e sem rezar. Era alto, sanguíneo, com uma figura pacífica de boi manso, e movia-se como um boi, com gestos lentos e tristes. Depois de rectificar a abotoadura da sotaina com a atenção lânguida dos dedos com que se verificam as cordas de uma harpa, retirou a tranca e abriu a porta do pátio. Sob a chuva, os nardos trouxeram-lhe à memória as palavras de uma canção.

- O mar crescerá com as minhas lágrimas" - suspirou.

O quarto comunicava com a igreja por meio de um corredor interior com vasos de flores, o chão coberto com ladrilhos soltos por cujas juntas começava a crescer a erva de Outubro. Antes de se dirigir à igreja, o padre Ángel entrou na retrete. Urinou com abundância, contendo a respiração para não sentir o intenso cheiro amoniacal que lhe fazia saltar as lágrimas. Depois saiu para o corredor, recordando: Este barco me levará ao teu sonho. Ao passar a estreita porta da igreja sentiu o cheiro dos nardos pela última vez.

Lá dentro, cheirava mal. Era uma nave comprida, também atapetada com ladrilhos soltos, e com uma única porta que dava para a praça. O padre Ángel dirigiu-se directamente para a base da torre. Viu os pesos do relógio a mais de um metro acima da sua cabeça e pensou que ainda tinha corda para uma semana. As melgas assaltaram-no. Esmagou uma na nuca com uma palmada violenta e limpou a mão na corda do sino. Logo a seguir ouviu, em cima, o ruído visceral da complicada engrenagem mecânica e, surdas, profundas, as cinco badaladas das cinco dentro do próprio ventre.

Esperou até ao final da última ressonância. Agarrou então a corda com as duas mãos, enrolou-a nos pulsos, e fez soar os bronzes rachados com uma convicção peremptória. Tinha feito sessenta e um anos. O exercício dos sinos era violento de mais para a sua idade, mas havia convocado sempre a missa pessoalmente e esse esforço reconfortava-lhe o moral.

Trinidad empurrou a porta da rua enquanto os sinos tocavam e dirigiu-se para o canto onde tinha posto, na noite anterior, ratoeiras para os ratos. Encontrou um es pectáculo que lhe causou ao mesmo tempo repugnância e prazer: um pequeno massacre.

Abriu a primeira ratoeira, pegou no rato pela cauda com o indicador e o polegar e atirou-o para dentro de uma caixa de cartão. O padre Ángel acabou de abrir a porta que dava para a praça.

- Bom dia, padre - disse Trinidad.

Ele não registou a formosa voz de barítono. A praça desolada, as amendoeiras adormecidas sob a chuva, o burgo imóvel no inconsolável amanhecer de Outubro causaram-lhe uma sensação de desamparo. Mas quando se acostumou ao ruído da chuva, apercebeu-se, no fundo da praça, nítido e um pouco irreal, do som do clarinete de Pastor. Só então correspondeu ao bom-dia.

- O Pastor não estava com os da serenata - disse o padre.

- Não - confirmou Trinidad. Aproximou-se com a caixa dos ratos mortos. - Eram guitarras.

- Estiveram umas duas horas com uma cançãozinha disparatada - disse o padre. - O mar crescerá com as minhas lágrimas." Não é assim?

- É a nova canção de Pastor - disse ela.

Imóvel diante da porta, o padre padecia de um instantâneo fascínio. Tinha ouvido durante muitos anos o clarinete de Pastor, que a dois quarteirões dali se sentava a ensaiar, todos os dias às cinco horas, com o banquinho encostado à viga do seu pombal. Era o mecanismo da povoação a funcionar com precisão: primeiro, as cinco badaladas das cinco; depois, o primeiro toque para a missa, e depois, o clarinete de Pastor, no pátio da sua casa, purificando com notas diáfanas e articuladas o ar carregado da porcaria das pombas.

- A música é boa - comentou o padre -, mas a letra é um disparate. As palavras podem-se voltar do direito e do avesso e é sempre o mesmo. Este sonho me levará ao teu barco.

Deu meia volta, sorrindo do seu próprio achado, e foi acender o altar. Trinidad seguiu-o. Vestia uma bata branca e comprida, com mangas até aos punhos, e a faixa de seda azul de uma congregação laica. Os olhos dela eram de um negro intenso, sob as sobrancelhas muito cerradas.

- Estiveram toda a noite por aqui perto - disse o padre.

- Na Margot Ramírez - disse Trinidad, distraída, fazendo soar os ratos mortos dentro da caixa. - Mas ontem à noite houve coisa melhor que a serenata.

O padre parou e fixou na mulher os seus olhos de um azul silencioso.

- Que foi?

- Pasquins - respondeu Trinidad.

E soltou uma gargalhada nervosa.

 

Três casas adiante, César Montero estava a sonhar com elefantes. Tinha-os visto no domingo, no cinema.

A chuva havia-se precipitado meia hora antes do final, e agora o filme continuava no sonho.

César Montero voltou todo o peso do seu corpo monumental contra a parede, enquanto os indígenas espavoridos se escapavam em tropel diante dos elefantes. A esposa empurrou-o suavemente, mas nenhum dos dois acordou. Vamos embora", murmurou ele, recuperando a posição inicial. Então acordou. Nesse momento soava o segundo toque para a missa.

Era um quarto com grandes espaços gradeados. A janela que dava para a praça, também gradeada, tinha uma cortina de cretone com flores amarelas. Na mesinha-de- cabeceira havia um rádio portátil, um candeeiro e um relógio de mostrador luminoso. No outro lado, contra a parede, um armário enorme com portas de espelho. Enquanto calçava as botas de montar, César Montero começou a ouvir o clarinete de Pastor. Os cordões de couro cru estavam endurecidos pela lama. Esticou-os com força, fazendo-os passar através da mão fechada, mais áspera que o couro dos cordões. Depois procurou as esporas, mas não as encontrou debaixo da cama. Continuou a vestir-se na penumbra, tentando não fazer barulho para não acordar a mulher. Ao abotoar a camisa olhou as horas no relógio da mesinha e tornou a procurar as esporas debaixo da cama. Primeiro procurou-as com as mãos; depois pôs-se de gatas e começou a rastejar debaixo da cama. A mulher acordou.

- Que procuras ?

- As esporas.

- Estão penduradas atrás do armário - disse ela.Tu mesmo as puseste lá, no sábado.

Afastou o mosquiteiro para o lado e acendeu a luz. Ele sentiu-se envergonhado. Era monumental, de ombros quadrados e sólidos, mas os movimentos eram elásticos, mesmo com as botas de montar, cujas solas pareciam duas bases de madeira. Tinha uma saúde um pouco selvagem. Parecia ser de idade indefinida, mas pela pele do pescoço notava-se que já ultrapassara os cinquenta. Sentou-se na cama para colocar as esporas.

- Ainda está a chover - disse ela, sentindo que os seus ossos adolescentes tinham absorvido a humidade da noite. - Sinto-me como uma esponja.

Pequena, ossuda, de nariz comprido e adunco, tinha a virtude de não parecer acabada de acordar. Tentou ver a chuva através da cortina. César Montero acabou de ajustar as esporas, levantou-se e bateu várias vezes com os tacões no chão. A casa estremeceu com as esporas de cobre.

- O tigre engorda em Outubro - disse ele.

Mas a esposa não o ouviu, extasiada com a melodia de Pastor. Quando voltou a olhar para ele, estava a pentear-se diante do armário, com as pernas abertas e a cabeça inclinada, pois não cabia nos espelhos.

Ela seguia, em voz baixa, a melodia de Pastor.

-Estiveram a ensaiar essa canção durante toda a noite - disse ele.

- É muito bonita - acrescentou ela.

Retirou uma fita da cabeceira da cama, apanhou o cabelo na nuca e suspirou, completamente acordada: Ficarei no teu sonho até à morte." Ele não prestou atenção. De uma gaveta do armário onde tinha também algumas jóias, um pequeno relógio de mulher e uma caneta de tinta permanente, retirou uma carteira com dinheiro. Pegou em quatro notas e voltou a pôr a carteira no mesmo sítio. Depois meteu no bolso da camisa seis cartuchos de espingarda.

- Se a chuva continuar, não venho no sábadodisse ele.

Ao abrir a porta do pátio, demorou um instante no umbral, respirando o sombrio odor de Outubro enquanto os olhos se habituavam à obscuridade. Ia fechar a porta quando no quarto soou a campainha do despertador. A esposa saltou da cama. Ele permaneceu em suspenso, com a mão na aldraba. Olhou-a então, pela primeira vez, pensativo.

- Ontem à noite sonhei com os elefantes - disse ele.

Depois fechou a porta e foi aparelhar a mula. A chuva estiou antes do terceiro toque. Um vento baixo arrancou às amendoeiras da praça as suas últimas folhas apodrecidas. As luzes públicas apagaram-se, mas as casas continuavam fechadas. César Montero meteu a mula na cozinha e sem desmontar gritou à mulher que lhe trouxesse o impermeável. Tirou a espingarda de dois canos que levava ao ombro e amarrou-a na horizontal com as correias do selim. A esposa apareceu na cozinha com o impermeável.

- Espera que a chuva passe - disse-lhe, sem convicção.

Ele vestiu o impermeável em silêncio. Depois olhou para o pátio.

- Não vai passar até Dezembro.

Ela acompanhou-o com o olhar até ao outro extremo do corredor. A chuva caía sobre as oxidadas lâminas do telhado, mas ele ia partir. Esporeando a mula, teve de se dobrar no selim para não esbarrar na trave da porta ao sair para o pátio. As gotas do beiral rebentaram-lhe nas costas. Do portão, e sem voltar a cabeça, gritou:

- Até sábado.

- Até sábado - disse ela.

A única porta aberta na praça era a da igreja. César Montero olhou para cima e viu o céu espesso e baixo, a dois palmos da sua cabeça. Benzeu-se, esporeou a mula e fê-la girar várias vezes sobre as patas traseiras, até que o animal se firmou no escorregadio do chão. Foi então que viu o papel colado na porta da sua casa.

Leu-o sem desmontar. A água tinha dissolvido a cor, mas o texto escrito a pincel, com maiúsculas mal desenhadas, mantinha-se suficientemente legível. César Montero encostou a mula à parede, arrancou o papel e rasgou-o em pedaços.

Com um movimento das rédeas imprimiu à mula um trote curto, igual para muitas horas. Saiu da praça por uma ruela estreita e tortuosa, com casas de adobe cujas portas soltavam, ao abrir, o rescaldo dos sonhos. Sentiu cheiro de café. Só quando deixava para trás as últimas casas do povoado fez girar a mula e, com o mesmo trotezinho curto e regular, voltou à praça, parando diante da casa de Pastor. Ali apeou-se, tirou a espingarda e amarrou a mula ao esteio, fazendo cada gesto no seu tempo justo.

A porta estava destrancada, apenas bloqueada por baixo. César Montero entrou na penumbra da salinha. Sentiu uma nota aguda e depois um silêncio de expectativa. Passou ao lado de quatro cadeiras dispostas em torno de uma mesinha com uma cobertura de lã e um frasco com flores artificiais. Por fim deteve-se diante da porta do pátio, lançou para trás o capucho do impermeável, moveu cuidadosamente o cão da espingarda e com voz calma, quase amável, chamou:

- Pastor.

Pastor apareceu no vão da porta, desapertando a embocadura do clarinete. Era um rapaz magro, direito, com um bigode incipiente alinhado à tesoura. Quando viu César Montero com os tacões firmados no chão de terra e a espingarda à altura do cinturão apontada para ele, Pastor abriu a boca. Mas não disse nada. Empalideceu e sorriu. César Montero apertou primeiro os tacões contra o chão, depois a culatra, com o cotovelo contra a cadeira; a seguir apertou os dentes e ao mesmo tempo o gatilho. A casa estremeceu com o estampido, mas César Montero não soube se foi antes ou depois do abalo que viu Pastor do outro lado da porta, arrastando-se com uma ondulação de verme sobre um rego de minúsculas penas ensanguentadas.

 

O alcaide começava a adormecer no momento do tiro. Tinha passado três noites sem dormir, atormentado por dor de dentes. Naquela manhã, ao primeiro toque para a missa, tomou o oitavo analgésico. A dor cedeu.

O tamborilar da chuva no telhado de zinco ajudou-o a adormecer, mas a gengiva continuou a palpitar, embora sem dor, enquanto dormia. Quando ouviu o tiro acordou em sobressalto e agarrou o cinturão das cartucheiras com o revólver, que deixava sempre numa cadeira junto da rede, ao alcance da mão esquerda. Mas como só ouviu o ruído da chuva, pensou que teria sido um pesadelo e voltou a sentir a dor.

Tinha um pouco de febre. No espelho viu que a face estava inchada. Destapou uma caixinha de vaselina mentolada e untou a parte dolorida, tensa e por barbear. De repente percebeu, através da chuva, um ruído de vozes longínquas. Saiu para a varanda. Os habitantes da rua, alguns em roupa de dormir, corriam para a praça. Um rapaz voltou a cabeça para ele e gritou, sem se deter e levantando os braços:

- César Montero matou o Pastor.

Na praça, César Montero dava voltas, com a espingarda apontada à multidão. O alcaide reconheceu-o com dificuldade. Sacou o revólver com a mão esquerda e começou a avançar para o centro da praça. As pessoas abriam-lhe passagem. Do salão de bilhar saiu um agente da polícia, com a espingarda carregada, apontada a César Montero. O alcaide disse-lhe, em voz baixa: Não dispares, animal." Meteu o revólver no coldre, tirou a espingarda ao polícia e seguiu até ao centro da praça com a arma pronta a ser disparada. A multidão acumulou-se contra as paredes.

- César Montero - gritou o alcaide -, dá-me essa espingarda.

Até então, César Montero não o tinha visto. Voltou- se para ele, com um movimento brusco. O alcaide premiu levemente o gatilho, mas não disparou.

- Venha buscá-la - gritou César Montero.

O alcaide segurava a espingarda com a mão esquerda, e com a direita secava os olhos. Calculava cada passo, com o dedo tenso no gatilho e o olhar fixo em César Montero. De repente parou e começou a falar com uma cadência afectuosa:

- Atira a espingarda ao chão, César. Não faças mais disparates.

César Montero retrocedeu. O alcaide continuou com o dedo tenso no gatilho. Não se lhe moveu um só músculo do corpo até que César Montero baixou a espingarda e a deixou cair. Então o alcaide reparou que estava vestido apenas com as calças do pijama e que, sob a chuva, estava a suar, e a gengiva tinha deixado de lhe doer.

As casas abriram-se. Dois polícias, armados com espingardas, correram para o centro da praça. A multidão precipitou-se, atrás deles. Os agentes saltaram numa meia volta e gritaram com as espingardas apontadas:

- Para trás.

O alcaide gritou, com voz tranquila, sem olhar para ninguém:

- Evacuem a praça.

A multidão dispersou. O alcaide revistou César Montero, sem o obrigar a tirar o impermeável. Encontrou quatro cartuchos no bolso da camisa e, no bolso traseiro das calças, uma navalha com incrustações de corno. Noutro bolso encontrou um livrinho de apontamentos, uma argola com três chaves e quatro notas de cem pesos. César Montero deixou-se revistar, impassível, com os braços abertos, movendo apenas o corpo para facilitar a operação. Quando terminou, o alcaide chamou os dois polícias, entregou-lhes as coisas e recomendou-lhes César Montero.

- Levem-no agora para o quartel. Respondem por ele.

César Montero despiu o impermeável. Deu-o a um dos polícias e caminhou no meio deles, indiferente à chuva e à perplexidade das pessoas concentradas na praça. O alcaide viu-o afastar-se, pensativo. Depois voltou-se para a multidão, fez um gesto de espantar galinhas, e gritou :

- Dispersem.

Secando a cara com o braço nu, atravessou a praça e entrou na casa de Pastor.

Caída numa cadeira, estava a mãe do morto, entre um grupo de mulheres que lhe abanavam os leques na cara com uma impiedosa diligência. O alcaide puxou de lado uma das mulheres.

- Dêem-lhe ar - disse ele.

A mulher voltou-se para o alcaide:

- Tinha acabado de sair para a missa.

- Está bem - concordou o alcaide -; mas agora deixem-na respirar.

Pastor estava no corredor, de barriga para baixo, contra o pombal, sobre um leito de penas ensanguentadas. Havia um cheiro intenso de excremento de pombos. Um grupo de homens estava a levantar o corpo quando o alcaide apareceu no umbral.

- Deixem - disse ele.

Os homens voltaram a colocar o cadáver em cima das penas, na mesma posição em que o tinham encontrado, e retrocederam em silêncio. Depois de examinar o corpo, o alcaide voltou-o. Houve uma dispersão de penas minúsculas. Na altura do cinto havia mais penas que tinham aderido ao sangue ainda morno e vivo. Afastou-as com as mãos. A camisa estava rota e a fivela do cinto destruída. Sob a camisa viu as vísceras a descoberto. A ferida tinha deixado de sangrar.

- Foi com uma espingarda de matar tigres - disse um dos homens.

O alcaide endireitou-se. Numa trave do pombal, limpou as penas ensanguentadas, sem deixar de contemplar o cadáver. Acabou de limpar a mão nas calças do pijama e disse ao grupo:

- Não o tirem daí.

- Vai deixá-lo assim? - perguntou um deles.

- É preciso fazer a diligência do levantamentodisse o alcaide.

No interior da casa começou o pranto das mulheres. O alcaide abriu caminho através dos gritos e dos cheiros sufocantes que começavam a tornar pesado o ar do aposento. Na porta da rua encontrou o padre Ángel.

- Está morto! - exclamou o padre, perplexo.

- Como um porco - respondeu o alcaide. As casas estavam abertas em redor da praça. A chuva tinha parado, mas o céu denso flutuava por cima dos telhados, sem uma aberta para o sol. O padre Ángel deteve o alcaide pelo braço.

- César Montero é um bom homem. Este deve ter sido um momento de desvario.

- Bem sei - disse o alcaide, impaciente. - Não se preocupe, padre, não lhe vai acontecer nada. Entre aí, que é onde a sua presença está a ser precisa.

Afastou-se com uma certa violência e ordenou aos polícias que suspendessem a guarda. A multidão, até então contida em respeito, precipitou-se para a casa de Pastor. O alcaide entrou no salão de bilhar, onde um polícia o esperava com uma muda de roupa limpa: o seu uniforme de tenente.

Normalmente, o estabelecimento não estava aberto àquela hora. Naquele dia, antes das sete já estava apinhado. À volta das mesinhas de quatro lugares, ou encostados ao balcão, alguns homens tomavam café. A maioria ainda se encontrava em pijama e chinelos.

O alcaide despiu-se diante de todos, secou-se um pouco com as calças do pijama, e começou a vestir-se em silêncio, atento aos comentários. Quando saiu do salão estava perfeitamente a par dos pormenores da ocorrência.

- Tenham cuidado - gritou da porta; - se alguém não se portar bem, meto-o no xadrez.

Desceu pela rua empedrada, sem cumprimentar ninguém, mas muito atento à excitação do burgo. Era jovem, de gestos fáceis, e em cada passo revelava o propósito de se fazer notar.

Às sete, as lanchas que faziam o transporte de carga e passageiros três vezes por semana, lançaram um apito de sereia, abandonando o molhe, sem que ninguém lhes prestasse a atenção de outros dias. O alcaide desceu pela galeria onde os comerciantes sírios começavam a exibir as suas mercadorias coloridas. O doutor Octavio Giraldo, um médico sem idade e com a cabeça cheia de caracóis luzidios, via descer as lanchas, à porta do seu consultório. Também ele se encontrava de pijama e chinelos.

- Doutor - disse o alcaide -, vista-se para ir fazer a autópsia.

O médico observou-o, intrigado. Revelou uma extensa fieira de dentes brancos e sólidos.

- Então agora fazemos autópsias - disse, acrescentando: - Evidentemente, isso é um grande progresso.

O alcaide tentou sorrir, mas a sensibilidade da face impediu-o. Tapou a boca com a mão.

- Que tem? - perguntou o médico.

- Um filho da mãe de um dente.

O doutor Giraldo parecia disposto a conversar. Mas o alcaide tinha pressa.

No final do molhe bateu à porta de uma casa com paredes de cana sem reboco, cujo telhado de palma descia quase até ao nível da água. Abriu-lhe a porta uma mulher de pele esverdeada, grávida de sete meses. Estava descalça. O alcaide afastou-a para o lado e entrou para a penumbra da salinha.

-Juiz - chamou.

O juiz Arcadio apareceu na porta interior, a arrastar os tamancos. Tinha umas calças de dril, sem correia, sustentadas sob o umbigo, e o torso nu.

- Prepare-se para o levantamento do cadáver - disse o alcaide.

- E de onde saiu agora essa novidade?

O alcaide continuou até ao quarto.

- Isto é diferente - disse ele, abrindo a janela para purificar o ar carregado de sono. - É melhor fazer as coisas bem feitas. - Limpou às calças passadas a ferro a poeira das mãos, e perguntou sem o menor indício de sarcasmo: - Sabe como se faz a diligência do levantamento ?

- Evidentemente - respondeu o juiz.

O alcaide olhou para as mãos, diante da janela.

- Mande chamar o seu escrivão,para o que tiver de

ser escrito - disse ele,novamente sem qualquer intenção na voz. Depois voltou-se para a rapariga, com as

palmas das mãos estendidas. Tinha manchas de sangue.

- Onde posso lavar-me?

- No tanque - respondeu ela.

O alcaide saiu para o pátio.A rapariga procurou na arca uma toalha limpa e envolveu nela um sabão de cor.

Saiu para o pátio no momento em que o alcaide já reressava ao quarto,sacudindo as mãos.

- Ia levar-lhe o sabão - disse ela.

- Assim já está bem - afirmou o alcaide.

Voltou a olhar as palmas das mãos.Pegou na toalha e secou-as pensativo,olhando o juiz Arcadio.

Penas de pombo - Estava cheio delas - acrescentou.

Sentado na cama,tomando com sorvos espaçados uma chávena de café,esperou que o juiz acabasse de se vestir.A rapariga seguiu-os através da sala.

- Enquanto não tirar esse dente,não lhe diminuirá o inchaço - disse ela ao alcaide.

Este empurrou o juiz Arcadio para a rua,voltou-se para a olhar e tocou-lhe com o indicador no avultado ventre.

- E este inchaço,quando vai diminuir?

- Falta pouco - respondeu ela.

O padre Ángel não deu o seu habitual passeio vespertino. Depois do enterro parou para conversar numa casa dos bairros inferiores, e ficou por ali até ao entardecer. Sentia-se bem, apesar das chuvas prolongadas lhe provocarem habitualmente dores nas vértebras. Quando chegou a casa já estavam acesos os candeeiros das ruas.

Trinidad regava as flores do corredor. O padre perguntou-lhe pelas hóstias ainda não consagradas e ela respondeu que as tinha colocado no altar-mor. A exalação dos mosquitos envolveu-o ao acender a luz do quarto. Antes de fechar a porta deitou insecticida no aposento, sem uma só trégua, espirrando por causa do cheiro. Quando acabou estava a suar. Trocou a sotaina negra pela branca e remendada que usava em privado e foi dar o toque das ave-marias.

De regresso ao quarto, pôs uma sertã ao lume e começou a fritar um pedaço de carne, enquanto cortava uma cebola às rodelas. Depois colocou tudo num prato onde havia um pouco de mandioca e de arroz frio que tinham sobrado do almoço. Levou o prato para a mesa e sentou-se a comer.

Comeu de tudo ao mesmo tempo, cortando pedacinhos e misturando tudo no garfo com a ajuda da faca. Mastigava conscienciosamente, triturando com os seus dentes chumbados com prata até ao último grão, mas com os lábios apertados. Enquanto o fazia, pousava o garfo e a faca na beira do prato, e examinava o aposento com um olhar contínuo e permanentemente consciente. Em frente dele estava o armário com os volumosos livros do arquivo paroquial. No canto, uma cadeira de baloiço de espaldar alto, com uma almofada cosida à altura da cabeça. Atrás dela havia um biombo, com um crucifixo pendurado junto de um calendário de propaganda de um xarope para a tosse. Do outro lado do biombo encontrava-se a cama.

Ao terminar a refeição, o padre Ángel sentiu-se asfixiar. Tirou um pouco de doce de goiaba, encheu o copo de água até aos bordos e comeu a pasta açucarada olhando o calendário. Entre cada bocado bebeu um sorvo de água, sem desviar a vista do calendário. Por fim, arrotou e limpou os lábios com a manga. Durante dezanove anos tinha comido assim, sozinho no seu escritório, repetindo cada movimento com uma precisão escrupulosa. Nunca sentira vergonha da sua solidão.

Depois de passar o rosário, Trinidad pediu-lhe dinheiro para comprar arsénico. O padre recusou-o pela terceira vez, argumentando que as ratoeiras colocadas eram o bastante. Trinidad insistiu.

- É que os ratinhos mais pequenos levam o queijo e evitam as ratoeiras. Por isso é melhor envenenar o queijo.

O padre admitiu que Trinidad tinha razão. Mas antes de o poder expressar, irrompeu na tranquilidade da igreja o ruidoso altifalante do cinema: no passeio em frente. Primeiro ouviu-se um ruído abafado. Depois o raspar da agulha no disco e, em seguida, um mambo que se iniciou com o som de um estridente trompete.

- Há espectáculo? - perguntou o padre.

Trinidad disse que sim.

- Sabes o que dão?

- Tarzan e a Deusa Verde - respondeu Trinidad.A mesma fita que não puderam acabar no domingo por causa da chuva. Boa para todos.

O padre Ángel dirigiu-se à base da torre e deu doze toques espaçados. Trinidad estava espantada.

- Enganou-se, padre - disse ela, agitando as mãos e com um brilho de comoção nos olhos. - É uma fita boa para todos. Lembre-se que no domingo não deu nenhum toque.

- Mas é uma falta de consideração para com as pessoas desta terra - retorquiu o padre, secando o suor do pescoço. E repetiu, arquejante: - Uma falta de consideração.

Trinidad compreendeu.

- Era preciso ter visto esse enterro - disse o padre.

- Todos os homens lutavam para transportar o caixão.

Depois despediu a rapariga, fechou a porta que dava para a praça deserta e apagou as luzes do templo. No corredor, de regresso ao quarto, deu uma palmadinha na fronte ao recordar que se esquecera de dar a Trinidad o dinheiro para o arsénico. Mas antes de chegar ao quarto já se tinha esquecido novamente.

Pouco depois, sentado na sua mesa de trabalho, dispunha-se a terminar uma carta iniciada na noite anterior. Tinha desabotoado a sotaina até ao estômago e punha na mesa o bloco de papel, o tinteiro e o mata-borrão, enquanto procurava os óculos no bolso. Depois lembrou-se que os tinha deixado na sotaina preta que levara ao enterro e levantou-se para os ir buscar. Tinha relido o que escrevera na noite anterior e começado um novo parágrafo, quando bateram três pancadas na porta.

- Entre.

Era o dono da sala de cinema. Pequeno, pálido, muito bem barbeado, tinha uma expressão de fatalidade. Estava vestido de linho branco, sem uma nódoa e calçava sapatos de duas cores. O padre indicou que se sentasse na cadeira de baloiço, de verga, mas ele tirou um lenço do bolso das calças, desdobrou-o cuidadosamente, sacudiu o pó do banco, e sentou-se com as pernas abertas. O padre Ángel viu então que não era um revólver, mas sim uma lanterna de pilhas o que ele trazia no cinturão.

- Às suas ordens - articulou o padre.

- Padre - disse o empresário, quase sem alento -, desculpe meter-me nos seus assuntos, mas esta noite deve haver um engano.

O padre acenou com a cabeça e esperou.

- Tarzan e a Deusa Verde é classificada como uma fita boa para todos - prosseguiu o empresário. - E até o senhor o reconheceu no domingo.

O padre tentou interrompê-lo, mas o empresário levantou a mão em sinal de que ainda não tinha terminado.

- Eu aceitei a questão dos toques - disse ele porque é verdade que há fitas imorais. Mas esta não tem nada de especial. Pensávamos passá-la no sábado em sessão infantil.

O padre Ángel explicou-lhe então que, efectivamente, a fita não tinha qualquer classificação moral na lista que recebia pelo correio todos os meses.

- Mas dar cinema hoje - prosseguiu - é uma falta de consideração, havendo aqui um morto. Isso também faz parte da moral.

O empresário olhou para ele.

- O ano passado, a própria polícia matou um homem dentro do cinema e a sessão continuou logo que retiraram o corpo.

- Agora é diferente - disse o padre -, o alcaide é outro.

- Quando voltar a haver eleições, voltará a matança - replicou o empresário, exasperado. - Desde que esta terra é terra, sucede sempre a mesma coisa.

- Veremos.

O empresário examinou-o com um olhar infeliz. Ao voltar a falar, sacudindo a camisa para ventilar o peito, a voz tinha adquirido um fundo de súplica.

- É a terceira fita boa para todos que nos é enviada este ano - disse ele. - No domingo ficaram por passar três bobines por culpa da chuva e há muita gente que quer saber como é que acaba.

- Os toques foram dados - retorquiu o padre.

O empresário teve um suspiro de desespero. Esperou um pouco, olhando de frente para o sacerdote, já sem pensar em outra coisa senão no intenso calor daquele aposento.

- Então, não há nada a fazer?

O padre Ángel abanou a cabeça.

O empresário deu uma palmadinha nos joelhos e levantou-se.

- Está bem - concordou. - Que se pode fazer. Dobrou novamente o lenço, secou o suor do pescoço e examinou o lugar com um rigor amargo.

- Isto é um inferno - disse.

O padre acompanhou-o até à porta. Depois sentou-se a terminar a carta. Leu-a de novo desde o começo e retomou o parágrafo interrompido. Parou a pensar. Nesse momento cessou a música e uma voz impessoal anunciou: Comunica-se ao respeitável público que a sessão desta noite foi suspensa porque esta empresa também pretende associar-se ao luto." O padre sorriu, reconhecendo a voz do empresário.

O calor tornou-se mais intenso. O pároco continuou a escrever, com pausas curtas para secar o suor e ler o já escrito, até preencher duas páginas. Acabava de assinar quando a chuva recomeçou sem qualquer aviso. Um vapor de terra húmida penetrou no aposento. O padre Ángel escreveu o sobrescrito, tapou o tinteiro e dispôs-se a dobrar a carta. Mas antes leu de novo o último parágrafo. Então voltou a destapar o tinteiro e acrescentou um pós- escrito:

Está a chover novamente. Com este Inverno e as coisas que em cima te conto, creio que nos esperam dias amargos."

A sexta-feira amanheceu morna e seca. O juiz Arcadio, que se gabava de ter feito amor três vezes por noite desde que o fizera pela primeira vez, rebentou naquela manhã as cordas do mosquiteiro e caiu da cama com a sua mulher no momento supremo, enredados na cortina de croché.

- Deixa isso assim - murmurou ela. - Eu arranjo

depois.

Surgiram completamente nus das nebulosas confusas do mosquiteiro. O juiz Arcadio foi à arca buscar uns calções limpos. Quando voltou, a mulher estava vestida, a arranjar o mosquiteiro. Passou de lado, sem a olhar, e sentou-se a calçar os sapatos do outro lado da cama, com a respiração ainda alterada pelo esforço amoroso. Ela perseguiu-o. Apoiou o ventre redondo e tenso con- tra o braço dele e procurou-lhe a orelha com os dentes. Ele afastou-a suavemente.

- Deixa-me, agora - disse ele.

Ela soltou um riso carregado de boa saúde. Seguiu o marido até ao outro extremo do quarto, apontando-lhe o indicador aos rins. Arre, burrinho", dizia. Ele deu um salto e afastou-lhe as mãos. Ela deixou-o em paz e tornou a rir, mas de repente ficou séria e gritou:

- Meu Deus !

- Que foi? - perguntou ele.

- É que a porta estava aberta de par em par - gritou. - Mas que grande pouca-vergonha.

Entrou no quarto de banho a rebentar de riso. O juiz Arcadio não esperou pelo café. Reconfortado com a menta da pasta de dentes, saiu para a rua. Estava um sol de cobre. Os sírios sentados à porta das suas lojas contemplavam o rio aprazível. Ao passar diante do consultório do doutor Giraldo raspou com a unha a rede metálica da porta e gritou, sem se deter:

- Doutor, qual é o melhor remédio para a dor de cabeça?

O médico respondeu, do interior da casa:

- Não ter bebido na véspera.

No porto, um grupo de mulheres comentava em voz alta o texto de um novo pasquim colocado na noite anterior. Como o dia amanhecera claro e sem chuva, as mulheres que passaram para a missa das cinco leram-no e agora toda a gente estava ao corrente. O juiz Arcadio não se deteve. Sentiu-se como um boi com uma argola no nariz, puxado para o salão de bilhar. Ali pediu uma cerveja gelada e um analgésico. Acabavam de soar as nove e o estabelecimento já estava cheio.

- Toda a gente está com dor de cabeça - disse o juiz Arcadio.

Levou a garrafa para uma mesa onde três homens pareciam assombrados diante dos seus copos de cerveja. Sentou-se no lugar que estava livre.

- Continua a brincadeira? - perguntou.

- Hoje amanheceram quatro.

- Se houve um que foi lido por toda a gente - disse um dos homens -, foi o da Raquel Contreras.

O juiz Arcadio mastigou o analgésico e bebeu a cerveja pela garrafa. O primeiro sorvo repugnou-lhe, mas bem depressa o estômago se acostumou e ele sentiu-se novo e sem passado.

- Que dizia?

- Parvoíces - respondeu o homem. - Que as viagens que fez este ano não foram para tratar os dentes, como ela disse, mas sim para abortar.

- Não precisavam de ter trabalho a pôr um pasquim - disse o juiz Arcadio. - Isso é o que toda a gente murmura.

Embora o sol quente lhe tenha doído no fundo dos olhos quando saiu do estabelecimento, não sentia já o confuso mal- estar do amanhecer. Foi directamente para o tribunal. O escrivão, um velho esquálido que depenava uma galinha, recebeu-o com um olhar de incredulidade por cima dos aros dos óculos.

- Que milagre !

- É preciso tratar desse caso - disse o juiz.

O escrivão saiu para o pátio a arrastar os chinelos, e, por cima da cerca, deu a galinha meio depenada à cozinheira do hotel. Onze meses depois de ter tomado posse do cargo, o juiz Arcadio instalou-se no seu escritório pela primeira vez.

O espaço desordenado estava dividido em duas secções por uma grade de madeira. Na secção exterior havia um armário, também de madeira, sob o quadro da Justiça vendada com uma balança na mão. Dentro, duas velhas secretárias, uma em frente da outra, uma estante com livros cheios de pó e a máquina de escrever. Na parede, por cima da escrivaninha do juiz, um crucifixo de cobre. Na parede fronteira, uma litografia emoldurada: um homem sorridente, gordo e careca, com o peito atravessado pela faixa presidencial. Por baixo, uma legenda dourada: Paz e Justiça." A litografia era a única coisa nova no escritório.

O escrivão embuçou-se com um lenço e pôs-se a sacudir o pó das secretárias com um espanador de penas.

- Se não se tapar o nariz, fica-se com catarro - disse ele.

O conselho não foi atendido. O juiz Arcadio inclinou-se para trás na cadeira giratória, esticando as pernas para experimentar as molas.

- Segura-se? - perguntou.

O escrivão acenou afirmativamente com a cabeça.

- Quando mataram o juiz Vilela - disse ele - as molas saltaram; mas agora já está composta. - E sem

deixar cair o lenço que lhe tapava a boca e o nariz, acrescentou: - O próprio alcaide a mandou compor quando mudou o Governo e começaram a aparecer imvestigadores especiais por todos os lados.

- O alcaide quer que o serviço funcione - disse o juiz.

Abriu a gaveta do meio, tirou um molho de chaves e foi esvaziando as gavetas, uma atrás da outra. Estavam cheias de papéis. Examinou-os superficialmente, erguendo- os com o indicador para estar certo de nada haver ali que lhe chamasse a atenção. Depois fechou as gavetas e ordenou os utensílios de escrita: um tinteiro de cristal com um recipiente vermelho e outro azul e uma caneta para cada recipiente, com a respectiva cor. A tinta tinha secado.

- O senhor juiz caiu nas graças do alcaide - disse o escrivão.

Movendo-se na cadeira, o juiz perseguiu-o com um olhar sombrio, enquanto limpava a tampa da secretária. O outro contemplou-o como se tivesse o propósito de nunca o esquecer sob aquela luz, naquele instante e naquela posição, e disse apontando com o indicador.

- Como o senhor está agora, nem mais nem menos, estava o juiz Vilela quando o furaram a tiro.

O juiz tocou na fronte as veias pronunciadas. Voltava a dor de cabeça.

- Eu estava ali - prosseguiu o escrivão, apontando para a máquina de escrever, enquanto passava para o exterior da grade. Sem interromper o relato, apoiou-se no corrimão com a caneta apontada como uma espingarda contra o juiz Arcadio. Parecia um salteador de bancos numa fita de cow-boys. - Os três polícias puseram-se assim. O juiz Vilela mal chegou a vê-los e ergueu os braços, dizendo muito devagar: Não me matem. Mas logo a seguir a cadeira saltou para um lado e ele para o outro, cosido a chumbo.

O juiz Arcadio apertou o crânio com as mãos. Sentia o cérebro a palpitar. O escrivão tirou o lenço que o embuçava e pendurou o espanador atrás da porta.

- E tudo isso por ter dito, durante uma borracheira, que estava aqui para garantir a pureza do sufrágiodisse ele.

Ficou como que suspenso, olhando o juiz Arcadio que se dobrou em cima da secretária com as mãos no estômago.

- Sente-se mal?

O juiz disse que sim. Falou-lhe da noite anterior e pediu que lhe trouxesse do salão um analgésico e duas cervejas geladas. Quando terminou a primeira cerveja, o juiz Arcadio não encontrou no seu coração o menor indício de remorso. Estava lúcido.

O escrivão sentou-se diante da máquina de escrever.

- Que fazemos agora? - perguntou.

- Nada - respondeu o juiz.

- Então, se me dá licença, vou procurar a Maria para a ajudar a depenar as galinhas.

O juiz opôs-se:

- Este é um lugar para administrar justiça e não para depenar galinhas. - Examinou o seu subalterno de alto a baixo, com ar de comiseração, acrescentando:Além disso, tem de deixar em casa esses chinelos e vir para o trabalho com sapatos.

Com a aproximação do meio-dia, o calor tornou-se mais intenso. Quando bateram as doze, o juiz Arcadio tinha bebido uma dúzia de cervejas. Navegava nas recordações. Com uma ansiedade sonolenta falava de um passado sem privações, com longos domingos de mar e mulatas insaciáveis que faziam amor em pé, atrás do portão das arrecadações. A vida era assim, então, dizia, fazendo estalar o polegar e o indicador, perante o manso espanto do escrivão que o ouvia sem dizer nada, aprovando com a cabeça. O juiz Arcadio sentia-se embotado, mas cada vez mais vivo nas recordações.

Quando soou a uma hora na torre, o escrivão deu mostras de impaciência.

- A sopa arrefece - disse ele.

O juiz não lhe deu tréguas.

- Nem sempre se encontra um homem de talento por estas terras - afirmou o juiz, e o escrivão agradeceu-lhe, esgotado pelo calor, mudando de posição na cadeira.

Era uma sexta-feira interminável. Sob as ardentes lâminas do telhado, os dois homens conversaram ainda mais uma boa meia hora enquanto a aldeia se cozinhava no caldo da sesta. No extremo do esgotamento, o escrivão fez então uma referência aos pasquins. O juiz Arcadio encolheu os ombros.

- Também tu estás pendente desse pentelho - disse ele, tratando-o por tu pela primeira vez.

O escrivão não tinha vontade de prosseguir a conversa, extenuado pela fome e pelo calor, mas não acreditou que os pasquins fossem um pentelho.

- Já causaram o primeiro morto - disse o escrivão.

- Se as coisas continuam assim teremos uma má época.

- E contou a história de uma terra que tinha sido liquidada numa semana pelos pasquins. Os habitantes acabaram por se matar uns aos outros. Os sobreviventes desenterraram e levaram consigo os ossos dos seus mortos para estarem certos de que nunca mais voltariam.

O juiz ouviu-o com expressão de sarcasmo, desabotoando a camisa lentamente enquanto o outro falava. Pensou que o seu escrivão tinha tendência para as histórias de terror.

- Este é um caso extremamente simples de romance policial - disse o juiz.

O subalterno acenou com a cabeça. O juiz Arcadio contou que pertencera, na Universidade, a uma organização dedicada a decifrar enigmas policiais. Cada um dos membros lia um romance de mistério até uma página determinada, e aos sábados reuniam-se para decifrar o enigma.

- Não falhei uma única vez - disse o juiz. - Evidentemente, era favorecido pelo meu conhecimento dos clássicos, que tinham descoberto uma lógica da vida capaz de penetrar qualquer mistério. - Apresentou um enigma: um homem inscreve-se num hotel às dez da noite, sobe ao seu quarto, e na manhã seguinte a criada que lhe leva o café encontra-o morto e apodrecido na cama. A autópsia demonstra que o hóspede que chegara na noite anterior está morto desde há oito dias.

O escrivão manifestou-se com um longo ruído de articulações.

- O que quer dizer que quando chegou ao hotel já tinha sete dias de morto - disse o escrivão.

- O conto foi escrito há doze anos - afirmou o

juiz Arcadio,passando por cima da interrupção - a chave tinha sido dada por Heraclito,cinco séculos antes de Cristo.       

Dispôs-se a revelá-la,mas o escrivão estava exasperado.

- Nunca,desde que o mundo é mundo,se soube quem coloca os pasquims - sentenciou com uma latente agressividade.

O juiz Arcadio contemplou-o com os olhos torcidos

e afirmou :

- Aposto que vou descobrir.

- Está apostado.

 

Rebeca de Asís afogava-se no escaldante quarto da casa em frente, a cabeça afundada na almofada, tentando dormir uma sesta impossível. Tinha folhas fumadas coladas às fontes.

- Roberto - disse ela, dirigindo-se ao marido - não abres essa janela. morreremos de calor.

Roberto Asís abriu a janela no momento em que o juiz Arcadio abandonava o tribunal.

- Tenta dormir - suplicou à exuberante mulher que jazia com os braços abertos sob o dossel de croché cor-de-rosa, completamente nua dentro de uma leve camisa de nylon. - Prometo-te que não torno a lembrar-me de nada.

Soltou um suspiro.

Roberto Asís, que passara a noite a dar voltas no quarto, acendendo um cigarro com a ponta de outro sem poder dormir, tinha estado prestes a surpreender, naquela madrugada, o autor dos pasquins. Ouvira na frente da sua casa o ruído do papel e o repetido roçar das mãos alisando-o na parede. Mas compreendeu o que se passava tarde de mais e o pasquim já tinha sido colocado. Quando abriu a janela, a praça encontrava-se deserta.

Desde aquele momento até às duas da tarde, quando

prometeu à mulher que não voltaria a lembrar-se do pasquim, ela tinha esgotado todas as formas de persuasão para tentar apaziguá-lo. Propôs por fim uma fórmula desesperada: como prova final da sua inocência, oferecia confessar-se ao padre Ángel em voz alta e na presença do marido. O simples oferecimento daquela humilhação tinha valido a pena. Apesar de confuso, ele não se atreveu a dar o passo seguinte e capitulou.

- É sempre melhor dizer as coisas - disse ela, sem abrir os olhos. - Teria sido um desastre se tivesses ficado embuchado, sem desabafar.

Ele ajustou a porta ao sair. Na penumbra da ampla casa, completamente fechada, notou o zumbido do ventilador eléctrico da sua mãe, que fazia a sesta na casa vizinha. Serviu-se de um copo de limonada no frigorífico, sob o olhar sonolento da cozinheira negra.

Com o seu fresco ar jovial, a empregada perguntou-lhe se queria almoçar. Ele destapou a panela. Uma tartaruga inteira flutuava de patas para o ar na água a ferver. Pela primeira vez não estremeceu com a ideia de que o animal tinha sido lançado vivo na panela, e de que o seu coração continuaria a bater quando o levassem es quartejado para a mesa.

- Não tenho fome - disse ele, colocando novamente a tampa. E acrescentou da porta: - A senhora também não vai almoçar. Passou todo o dia com dor de cabeça.

As duas casas comunicavam por meio de um corredor de mosaico verde de onde se podia ver o galinheiro de rede de arame ao fundo do pátio comum. Na parte do corredor que correspondia à sua mãe, havia várias gaiolas de pássaros penduradas no beiral, e muitos vasos com flores e cores intensas.

Na espreguiçadeira onde acabava de fazer a sesta, a sua filha de sete anos recebeu-o com uma saudação lamentosa. Ainda tinha a trama do lençol impressa na face.

- Vão dar as três - anunciou ele em voz baixa. E acrescentou melancolicamente: - Tenta reparar nas coisas.

- Sonhei com um gato de vidro - disse a criança.

Ele não conseguiu reprimir um leve estremecimento.

- Como era?

- Todo de vidro - respondeu a criança, tentando dar forma com as mãos ao animal do sonho. - Como um pássaro de vidro, mas um gato.

Ele achou-se perdido, em pleno sol, numa cidade estranha.

- Esquece - murmurou. - Uma coisa assim não vale a pena. - Nesse momento viu a mãe na porta do quarto e sentiu-se resgatado. - Estás melhor - afirmou.

A viúva de Asís devolveu-lhe uma expressão amarga.

- Cada dia estou melhor para votar - queixou-se, fazendo um rolo com a cabeleira abundante, cor de ferro.

Saiu para o corredor para mudar a água das gaiolas.

Roberto Asís deixou-se cair na espreguiçadeira onde a filha tinha dormido. Com as mãos apoiadas na nuca seguiu com os seus olhos murchos a ossuda mulher vestida de negro que conversava em voz baixa com os pássaros. Mergulhavam na água fresca, salpicando com o seu alegre esvoaçar o rosto da mulher. Quando acabou o trabalho nas gaiolas, a viúva de Asís envolveu o filho num halo de incerteza.

- Pensava que estavas no monte - disse ela.

- Não fui - respondeu ele. - Tinha algumas coisas a fazer.

- E já não irás até segunda-feira.

Ele confirmou, com os olhos. Uma criada negra, descalça, atravessou a sala com a menina para a levar à escola. A viúva de Asís permaneceu no corredor até que elas saíram. Depois fez um sinal ao filho e este seguiu-a até ao amplo quarto onde zumbia o ventilador eléctrico. Ela deixou- se cair numa escalavrada cadeira de balouço, de cipó, em frente do ventilador, com um ar de extremo esgotamento. Nas paredes, branqueadas com cal, pendiam fotografias de meninos antigos, em molduras de cobre. Roberto Asís estendeu-se na sumptuosa cama, que parecia um trono, onde tinham morrido, decrépitos e de mau humor, alguns dos meninos das fotografias, inclusive o seu próprio pai, no passado Dezembro.

- Que está a acontecer? - quis saber a viúva.

- Acreditas no que dizem as pessoas? - perguntou ele, por sua vez.

- Na minha idade acredita-se em tudo - respondeu a viúva. E perguntou com indolência:

- O que é que dizem?

- Que a Rebeca Isabel não é minha filha.

A viúva começou a mover-se lentamente.

- Tem o nariz dos Asís - disse ela. Depois de pensar um momento perguntou, distraída: - Quem disse isso? -

Roberto Asís mordiscou as unhas.

- Puseram um pasquim.

Só então a viúva compreendeu que as olheiras do filho não eram o sedimento de uma longa insónia.

- Os pasquins não são as pessoas - sentenciou.

- Mas só dizem o que as pessoas já andam a dizer

- respondeu Roberto Asís -, embora o interessado não o saiba.

Ela, no entanto, sabia tudo o que o povoado tinha dito da sua família durante muitos anos. Numa casa como a sua, cheia de criadas, afilhadas e protegidas de todas as idades, era impossível fechar-se no quarto sem que até aí a perseguissem os ruídos da rua. Os turbulentos Asís, fundadores do burgo quando não eram mais do que porqueiros, pareciam ter o sangue doce para a murmuração.

- Nem tudo o que se diz é verdade - disse ela -, mesmo que o interessado o saiba.

- Toda a gente sabe que Rosario de Montero se deitava com Pastor - afirmou ele.- Era para ela a sua última canção.

- Toda a gente o dizia,mas ninguém o soube com toda a certeza - retorquiu a viúva.- Em troca, agora sabe-se que a canção era para Margot Ramírez.Iam-se casar e só ela e a mãe dele o sabiam.Mais lhes valia não terem guardado tão ciosamente o único segredo que se conseguiu manter nesta terra.

Roberto Asís olhou a mãe com uma vivacidade dramática.

- Houve um momento,esta manhã,em que acreditei que ia morrer - disse ele.

A viúva não pareceu comovida.

- Os Asís são ciumentos - sentenciou.- Essa foi a maior desgraça desta casa.

Mantiveram-se longo tempo em silêncio.Eram quase quatro horas e tinha começado a abrandar o calor.           

Quando Roberto Asís desligou o ventilador eléctrico, toda a casa despertava cheia de vozes de mulher e cantos de pássaros.

- Chega-me esse frasquinho que está em cima da mesinha-de-cabeceira - disse a viúva.

Tomou dois comprimidos cinzentos e redondos como duas pérolas artificiais e devolveu o frasco ao filho, dizendo:

- Toma dois; vão ajudar-te a adormecer.- Ele tomou-os com a água que a mãe tinha deixado no copo,e encostou a cabeça na almofada.

A viúva suspirou e fez um silêncio pensativo.Depois, falando, como sempre,genericamente sobre o povoado quando pensava na meia dúzia de famílias que constituíam a sua classe,disse:

- O mal disto tudo é que as mulheres têm de ficar      

sozinhas em casa enquanto os homens andam pelo monte!

Roberto Asís começava a adormecer. A viúva olhou-lhe o queixo por barbear, o longo nariz de cartilagens angulosas, e pensou no seu falecido marido.

Adalberto Asís também tinha conhecido o desespero. Era um gigante bravio que em toda a sua vida havia posto um colarinho de celulóide uma só vez, durante quinze minutos, para tirar aquele retrato que lhe sobrevivera na mesinha-de-cabeceira. Dizia-se dele que tinha assassinado naquele mesmo quarto um homem que encontrou deitado com a esposa e o havia enterrado clandestinamente no pátio. A verdade era bem diferente: Adalberto Asís tinha matado com um tiro de espingarda um homem que surpreendera a masturbar-se na trave do quarto, com os olhos postos na sua esposa enquanto esta mudava de roupa. Tinha morrido quarenta anos mais tarde sem ter podido rectificar a lenda.

 

O padre Ángel subiu a empinada escada de degraus separados. No segundo andar, ao fundo do corredor com espingardas e cartucheiras penduradas na parede, um polícia lia, deitado num catre de campanha. Estava tão absorto na leitura que não reparou na presença do padre senão quando lhe ouviu a saudação. Enrolou a revista e sentou-se no catre.

- Que está a ler? - perguntou o padre Ángel.

O polícia mostrou-lhe a revista.

- Terry e os Piratas.

O padre examinou com um olhar prolongado as três celas de cimento armado, sem janelas, fechadas do lado do corredor com grossas barras de ferro. Na cela do meio, outro polícia dormia em calções, deitado numa rede. O padre Ángel perguntou por César Montero.

- Está aí - disse o guarda, apontando uma porta fechada. - É o quarto do comandante.

- Posso falar com ele?

- Está incomunicável - disse o polícia.

O padre Ángel não insistiu. Perguntou se o preso estava bem.O outro respondeu que lhe tinham destinado o melhor aposento do quartel,com boa luz e água corrente,mas que não comia há vinte e quatro horas.Tinha recusado os alimentos que o alcaide encomendara no hotel.

- Tem medo de ser envenenado - concluiu o polícia.

- Deviam trazer-lhe a comida de casa - disse o padre.

- Não quer que incomodem a mulher.

O padre,como que a falar consigo mesmo,murmurou :

- Falarei disso tudo com o alcaide.- Tentou prosseguir até ao fundo do corredor,onde o alcaide tinha mandado construir o seu escritório blindado.

- Não está - disse o polícia.- Há dois dias que está em casa,com dores de dentes.

O padre Ángel foi visitá-lo.Estava prostrado na rede,junto de uma cadeira onde havia um copo com água e sal,uma caixa de analgésicos e o cinturão com o revólver.A face continuava inchada.O padre Ángel trouxe uma cadeira até junto da rede.

- Tem de tirar esse dente - disse o padre.

O alcaide cuspiu água salgada para uma bacia.

- Isso é muito fácil de dizer - respondeu,ainda com a cabeça inclinada sobre a bacia.

O padre Ángel compreendeu.Disse em voz muito baixa:

- Se me autoriza,eu falo com o dentista.- Inspirou profundamente e atreveu-se a acrescentar: - É um homem compreensivo.

- Como uma mula - disse o alcaide.- Teria de o quebrar a tiro e então estaríamos na mesma.

O padre Ángel seguiu-o com o olhar até à bacia de lavar as mãos.O alcaide abriu a torneira,pôs a cara inchada debaixo do jorro de água fresca e manteve-a assim um instante,com uma expressão de êxtase.Depois mastigou um analgésico e bebeu água da torneira,servindo-se das mãos.

- A sério - insistiu o padre -, posso falar com o dentista.

O alcaide fez um gesto de impaciência.

- Faça o que quiser, padre.

Deitou-se de barriga para o ar na rede, com os olhos fechados e as mãos na nuca, respirando num ritmo de cólera. A dor começou a ceder. Quando voltou a abrir os olhos, o padre Ángel contemplava-o em silêncio, sentado junto da rede.

- Que o traz por estas terras? - perguntou o alcaide.

- César Montero - respondeu o padre, sem preâmbulos. - Aquele homem precisa de se confessar.

- Encontra-se incomunicável - disse o alcaide. Amanhã, depois das diligências preliminares, poderá confessá-lo. Será despachado na segunda-feira.

-Já está preso há quarenta e oito horas - retorquiu o padre.

- E eu estou há duas semanas com esta dor de dentes - disse o alcaide.

No quarto escuro começavam a zumbir as melgas. O padre Ángel olhou pela janela e viu uma nuvem intensamente rosada a flutuar por cima do rio.

- E o problema da comida? - perguntou.

O alcaide saiu da rede para fechar a porta da varanda.

- Eu fiz o meu dever - disse ele. - Ele não quer que incomodem a esposa nem recebeu a comida do hotel.

Começou a fumigar insecticida em todo o quarto. O padre Angel procurou um lenço no bolso para não espirrar, mas em vez do lenço encontrou uma carta amarrotada.

- Ai!, exclamou, tentando alisar a carta com os dedos.

O alcaide interrompeu a fumigação. O padre tapou o nariz, mas foi um gesto inútil: espirrou duas vezes.

- Espirre, padre - disse-lhe o alcaide. E sublinhou com um sorriso: - Estamos numa democracia.

O padre Ángel também sorriu. Disse, mostrando o sobrescrito fechado:

- Esqueci-me de pôr esta carta no correio.

Encontrou o lenço na manga e limpou o nariz irritado pelo inseeticida. Continuava a pensar em César Montero.

- É como se o tivessem a pão e água - disse o padre.

- Se é isto que ele quer - retorquiu o alcaide -, não podemos meter-lhe a comida na boca à força.

- O que mais me preocupa é a sua consciênciarespondeu o padre.

Sem tirar o lenço do nariz, seguiu o alcaide com a vista através do quarto até ele acabar de espalhar o insecticida.

- Deve ter a consciência pouco tranquila, se teme que o envenenem - afirmou o alcaide colocando a bomba-insecticida no chão.

- Ele sabe que toda a gente gostava de Pastordisse o padre.

- Também gostavam todos de César Montero - replicou o alcaide.

- Mas dá-se a casualidade de que quem está morto é o Pastor.

O padre contemplou a carta. A luz tornou-se cor de malva.

- Pastor - murmurou. - Não teve tempo de se confessar.

O alcaide acendeu a luz antes de voltar a deitar-se na rede.

- Amanhã estarei melhor - disse ele. - Depois da diligência pode confessá-lo. Acha bem?

O padre Ángel estava de acordo.

- É só para a tranquilidade da consciência - insistiu. Levantou-se com um movimento solene. Recomendou ao alcaide que não tomasse muitos analgésicos, e o alcaide correspondeu recomendando-lhe que não esquecesse a carta.

- E outra coisa, padre - disse o alcaide. - Apesar de tudo, fale lá com o tira-dentes. - Olhou o padre que começava a descer a escada, e acrescentou outra vez, sorridente: - Tudo isso contribui para a consolidação da paz.

 

Sentado à porta do seu gabinete, o encarregado dos correios via morrer a tarde. Quando o padre Angel lhe deu a carta, entrou na sala, humedeceu com a língua um selo de quinze centavos, para o correio aéreo e a sobretaxa para construções. Continuou a remexer na gaveta da secretária. Quando as luzes da rua se acenderam, o padre colocou várias moedas em cima do balcão e saiu sem se despedir.

O encarregado continuou a verificar o conteúdo da gaveta. Um momento depois, cansado de revolver papéis, escreveu com tinta num canto do sobrescrito: Não há selos de cinco." Assinou e pôs o carimbo do correio.

 

Naquela noite, depois do rosário, o padre Ángel encontrou um rato morto a flutuar na pia da água benta. Trinidad estava a montar as ratoeiras no baptistério. O padre agarrou o animal pela ponta da cauda.

- Vais provocar uma desgraça - disse ele a Trini dad, movendo diante dela o rato morto. - Não sabes que alguns fiéis engarrafam a água benta para a dar a beber aos seus doentes?

- E isso que tem? - perguntou Trinidad.

- Como, que tem? - replicou o padre. - Nada mais nada menos que os doentes irem beber água com arsénico.

Trinidad fê-lo lembrar-se de que ainda não lhe tinha dado o dinheiro para o arsénico.

-É gesso, disse, e revelou a fórmula: tinha posto gesso nos cantos da igreja; o rato comeu-o e depois, desesperado com a sede, tinha ido beber à pia. A água solidificou-lhe o gesso no estômago.

- De qualquer modo - disse o padre - é melhor que venhas buscar as moedas para o arsénico. Não quero mais ratos mortos a boiarem na água benta.

Na sacristia, esperava-o uma comissão de senhoras católicas, encabeçadas por Rebeca de Asís. Depois de dar a Trinidad o dinheiro para o veneno, o padre fez um comentário sobre o calor do lugar e sentou-se à sua mesa de trabalho, frente às três damas que aguardavam em silêncio.

- Estou às vossas ordens,respeitáveis senhoras.

Elas entreolharam-se. Rebeca de Asís abriu então um leque com uma paisagem japonesa pintada, e disse sem mistério :

- É por causa da questão dos pasquins,padre.

Com uma voz sinuosa,como teria contado uma lenda infantil, expôs o alarme do povo. Disse que embora a morte de Pastor se devesse interpretar como uma coisa absolutamente pessoal, as famílias respeitáveis sentiam-se obrigadas a ficar preocupadas com os pasquins.

Apoiada no cabo da sua sombrinha,Adalgisa Montoya,a mais velha das três,foi mais explícita:

-Nós,as senhoras católicas,resolvemos tomar a peito este assunto.

O padre Ángel reflectiu durante um curto momento.

Rebeca de Asís imspirou profundamente,e o padre perguntou a si mesmo como era possível aquela mulher exalar um perfume tão quente.Era esplêndida e floral, de uma brancura deslumbrante e uma saúde apaixonada.

O padre falou,com o olhar fixo num ponto indefinido:

- O meu parecer é que não devemos prestar atenção à voz do escândalo.Devemos colocar-nos acima dos seus procedimentos e continuar a observar a lei de Deus, como até agora.

Adalgisa Montoya aprovou com um movimento de cabeça.Mas as outras não estiveram de acordo: parecia-lhes que esta calamidade poderia vir a provocar consequências funestas".Nesse momento,o altifalante do cinema tossiu.O padre Ángel deu uma palmadinha na fronte.

-Desculpem - disse ele enquanto procurava na gaveta a lista da censura católica.- Qual é a fita de hoje?

- Piratas do Espaço - respondeu Rebeca de Asís.

- É um filme de guerra.

O padre Ángel procurou, por ordem alfabética, murmurando fragmentos de títulos, enquanto percorria com o indicador a longa lista classificada. Parou ao voltar a folha.

- Piratas do Espaço.

Moveu o indicador horizontalmente para procurar a classificação moral, no momento em que ouviu a voz do empresário em vez do disco esperado. Anunciava a suspensão do espectáculo por causa do mau tempo. Uma das mulheres explicou que o empresário tinha tomado aquela atitude porque o público exigia a devolução do dinheiro dos bilhetes se a chuva interrompesse a projecção antes do intervalo.

- É pena - disse o padre Ángel. - Era bom para todos. - Fechou o caderno e prosseguiu: - Como estava a dizer-lhes, este povo é cumpridor. Há dezanove anos, quando me entregaram a paróquia, havia onze concubinatos públicos de famílias importantes. Hoje só resta um, e espero que por pouco tempo.

- Não é por nós - disse Rebeca de Asís. - Mas essa pobre gente...

- Não há qualquer motivo para preocupação - disse o padre, indiferente à interrupção. - É preciso ver como esta terra mudou. Naquele tempo, uma bailarina russa deu aqui um espectáculo só para homens e no final vendeu em leilão todas as roupas e adereços que trazia no corpo.

Adalgisa Montoya interrompeu-o:

- Isso é verdade.

Realmente, ela recordava o escândalo como lhe tinha sido contado: quando a bailarina ficou completamente nua, um velho começou a gritar na galeria, e, subindo para o último degrau, começou a mijar em cima do público. Tinham-lhe contado que os outros, seguindo-lhe o exemplo, haviam acabado por mijar uns nos outros no meio de uma gritaria infernal.

- Actualmente - prosseguiu o padre -, está provado que esta terra é a mais cumpridora de toda a comunidade católica.

Insistiu na sua tese. Referiu alguns momentos difíceis da sua luta contra as debilidades e fraquezas do género humano, até que as senhoras católicas deixaram de lhe prestar atenção, agoniadas com o calor. Rebeca de Asís abriu de novo o leque, e então o padre Ángel descobriu onde se encontrava a fonte da sua fragância. O cheiro a sândalo cristalizou-se no torpor da sala. O padre extraiu o lenço da manga e levou-o ao nariz para não espirrar.

- Ao mesmo tempo - continuou - o nosso templo é o mais pobre da comunidade católica. Os sinos estão rachados e as naves cheias de ratos, porque a vida se me gastou a impor a moral e os bons costumes. - Desabotoou o colarinho. - O trabalho material, qualquer jovem o pode fazer - disse, levantando-se. - Em troca é necessária uma tenacidade de muitos anos e uma velha experiência para reconstruir a moral.

Rebeca de Asís levantou a sua mão transparente, com a aliança matrimonial esmagada por um anel de esmeraldas :

- Digo o mesmo. Nós pensámos que esses pasquins fariam com que o seu trabalho fosse perdido.

A única mulher que então permanecera em silêncio, aproveitou a pausa para intervir.

- Além do mais, pensamos que o país se encontra em recuperação e que esta actual calamidade pode constituir um sério inconveniente.

O padre Ángel procurou um abano no armário e começou a abanar-se parcimoniosamente.

- Uma coisa não tem que ver com a outra - disse ele. - Atravessámos um momento político difícil, mas a moral familiar manteve-se intacta. - Olhou de frente as três mulheres. - Dentro de poucos anos irei ao núncio apostólico dizer que lhe entrego esta terra exemplar. Agora só falta que ele envie para aqui um pastor jovem e empreendedor para construir a maior igreja da comunidade. - Fez uma reverência lãnguida e exclamou:Poderei então ir morrer em paz no pátio dos meus antepassados.

As senhoras protestaram. Adalgisa Montoya expressou o pensamento geral:

- Esta é como se fosse a sua terra, padre. E queremos que fique aqui até ao último instante. .

- Se se trata de construir uma nova igreja - disse Rebeca de Asís -, podemos começar a campanha desde já.

- Tudo a seu tempo - replicou o padre Ángel. De pois, noutro tom, acrescentou: - Não quero, evidentemente, chegar a velho à frente de nenhuma paróquia. Não quero que me aconteça o mesmo que ao manso Antonio Isabel del Santíssimo Sacramento del Altar Castaneda Y Montero, que informou o bispo de que na sua paróquia estava a cair uma chuva de pássaros mortos. O inquiridor enviado pelo bispo encontrou-o na praça da aldeia a brincar com as crianças aos polícias e ladrões.

As senhoras exprimiram a sua perplexidade.

- Quem era?

- O pároco que me sucedeu em Macondo - respondeu o padre Angel. - Tinha cem anos.

 

O Inverno, cuja inclemência tinha sido prevista desde os últimos dias de Setembro, implantou o seu rigor naquele fim- de-semana. O alcaide passou o domingo a mastigar analgésicos deitado na rede, enquanto o rio, saído do leito, causava estragos nos bairros mais baixos.

Na primeira trégua da chuva, quando a segunda-feira amanheceu, o povoado gastou várias horas para se restabelecer. O salão de bilhar e a barbearia abriram muito cedo, mas a maioria das casas permaneceu fechada até às onze horas. O senhor Carmichael foi o primeiro a quem se ofereceu a oportunidade de estremecer perante o espectáculo dos homens que transportavam as suas casas para os terrenos mais altos. Grupos buliçosos tinham desenterrado as vigas de suporte e transportavam inteiras as casas simples feitas de materiais leves e telhados de palma.

Abrigado debaixo do beiral da barbearia, com o guarda-chuva aberto, o senhor Carmichael contemplava a laboriosa manobra quando o barbeiro o tirou da sua abstracção.

- Devem ter estado à espera que estiasse - disse o barbeiro.

- Não vai estiar nestes dois dias - retorquiu o senhor Carmichael, fechando o guarda-chuva. - Estão aí os meus calos a avisar-me.

Os homens que transportavam as casas, mergulhados

na lama até aos tornozelos, passaram, tropeçando contra as paredes da barbearia. O senhor Carmichael viu pela janela o desmantelado interior, um quarto inteiramente despojado da sua intimidade, e sentiu-se invadido por uma sensação de desastre.

Pareciam seis da manhã, mas o seu estômago dava-lhe indicação de que ia bater o meio- dia. O sírio Moisés convidou-o a sentar-se na sua loja, esperando que passasse a chuva. O senhor Carmichael repetiu o prognóstico de que não estaria nas próximas vimte e quatro horas. Hesitou antes de saltar o passeio da casa contígua. Um grupo de rapazinhos que brincava às guerras atirou uma bola de terra enlameada que se esmagou na parede, a poucos metros das suas calças acabadas de passar a ferro. O sírio Elías saiu da loja com uma escova na mão, ameaçando os rapazinhos com uma álgebra de árabe e castelhano.

Os meninos saltaram de contentes:

- Turco nojento!

O senhor Carmichael verificou que a sua roupa estava intacta. Então fechou o guarda-chuva e entrou na barbearia, indo directamente para a cadeira.

- Eu sempre disse que o senhor é um homem prudente - afirmou o barbeiro.

Amarrou-lhe uma toalha ao pescoço. O senhor Car michael aspirou o odor da alfazema que lhe provocava o mesmo mal-estar que os vapores glaciais do gabinete do dentista. O barbeiro começou por acertar na nuca o recorte do cabelo. Impaciente, o senhor Carmichael procurou com o olhar alguma coisa para ler.

- Não há jornais?

- Já só restam no país os jornais do Governo e esses não entram neste estabelecimento enquanto eu for vivo.

O senhor Carmichael conformou-se com a ideia de contemplar os seus sapatos, até que o barbeiro lhe perguntou pela viúva de Montiel. Vimha de casa dela. Era o administrador dos negócios da viúva desde que morrera Don Chepe Montiel, de quem fora contabilista durante muitos anos.

- Lá está - disse o senhor Carmichael.

- Uma pessoa mata-se a trabalhar - murmurou o barbeiro, como que falando consigo mesmo - e ela sozinha com terras que não se atravessam em cinco dias a cavalo. Deve ser dona de uns dez municípios.

- De três - corrigiu o senhor Carmichael. E acrescentou, convicto: - E a melhor mulher do mundo.

O barbeiro moveu-se em direcção ao toucador para limpar o pente. O senhor Carmichael viu-lhe a cara de cabrito reflectida no espelho, e compreendeu uma vez mais a razão por que não gostava dele. O barbeiro falou, olhando a imagem.

- Lindo negócio: o meu partido está no poder, a Polícia ameaça de morte os meus adversários políticos, e eu compro as terras deles e o gado ao preço que eu mesmo proponho.

O senhor Carmichael baixou a cabeça. O barbeiro aplicou-se novamente no corte de cabelo.

- Quando as eleições acabam sou dono de três municípios, não tenho competidores, e de passagem continuo com o pecúlio na manga, embora mude o Governo. Por isso digo: melhor negócio do que esse, nem o de fabricar notas falsas.

- José Montiel era rico muito antes de terem começado as lutas políticas - afirmou o senhor Carmichael.

- Sentado em calções - disse o barbeiro - à porta de um armazém de arroz. A história reza que calçou o seu primeiro par de sapatos aos nove anos.

- E mesmo que assim fosse - admitiu o senhor Carmichael -, a viúva não teve nada a ver com os negócios de Montiel.

- Fez vista grossa - disse o barbeiro.

O senhor Carmichael levantou a cabeça. Tornou mais folgada a toalha no pescoço, para activar a circulação.

- Por isso preferi sempre que o cabelo me fosse cortado pela minha mulher - protestou. - Não me leva nada e por acréscimo não me fala de política.

O barbeiro continuou a trabalhar, agora em silêncio, empurrando-lhe a cabeça para diante. Por vezes fazia soar as tesouras no ar para descarregar um excesso de virtuosismo. O senhor Carmichael ouviu gritos na rua. Olhou pelo espelho: crianças e mulheres passavam diante da porta com os móveis e utensílios das casas transportadas. Comentou com rancor:

- A miséria está a comer-nos e vocês a tratar de manter os ódios políticos. Há mais de um ano que acabou a perseguição e ainda se fala do mesmo.

- O abandono a que nos votaram também é perseguição - disse o barbeiro.

- Mas não nos dão pauladas - protestou o senhor Carmichael.

- Abandonarem-nos ao deus-dará também é uma maneira de nos darem pauladas.

O senhor Carmichael exasperou-se:

- Isso é literatura de cordel.

O barbeiro manteve-se em silêncio. Fez espuma numa tacinha e passou-a com o pincel na nuca do senhor Carmichael.

- É, que a necessidade de falar rebenta - desculpou-se. - Nem todos os dias se encontra um homem imparcial.

- Com onze filhos para alimentar não há homem que não seja imparcial - disse o senhor Carmichael.

- É verdade - concordou o barbeiro.

Fez cantar a navalha na palma da mão. Barbeou a nuca em silêncio, limpando o sabão com os dedos, e limpando depois os dedos nas calças. Por fim passou na pele da nuca uma pedra de alume. Terminou a tarefa em silêncio.

Quando abotoava o colarinho, o senhor Carmichael viu o aviso pregado na parede do fundo: ?É proibido falar de política." Sacudiu as pontas de cabelos dos om bros, pendurou o guarda-chuva no braço e perguntou, apontando para o aviso:

- Porque não o tira dali?

- Aquilo não é consigo - disse o barbeiro. - Já estamos de acordo que o senhor é um homem imparcial.

O senhor Carmichael não hesitou, desta vez, em saltar o passeio. O barbeiro ficou a olhá-lo até que ele dobrou a esquina. Depois extasiou-se a ver o rio turvo e ameaçador. A chuva tinha parado, mas por cima do povoado, imóvel, mantinha-se uma nuvem carregada. Um pouco antes da uma hora entrou na barbearia o sírio Moisés, lamentando-se que o cabelo lhe caísse tanto no crânio e, em troca, lhe crescesse na nuca com extraordinária rapidez.

O sírio cortava o cabelo todas as segundas-feiras. Normalmente dobrava a cabeça com uma espécie de fatalismo e ressonava em árabe enquanto o barbeiro falava em voz alta consigo mesmo. Naquela segunda-feira, no entanto, acordou em sobressalto à primeira pergunta.

- Sabe quem esteve aqui?

- Carmichael - respondeu o sírio.

- O desgraçado do negro Carmichael - confirmou o barbeiro, como se tivesse soletrado a frase. - Detesto essa espécie de homens.

- Carmichael não é um homem - disse o sírio Moisés. - Deve haver uns três anos que não compra um par de sapatos. Mas, em política, faz o que se deve fazer: leva a contabilidade com os olhos fechados.

Apoiou a barba no peito para ressonar de novo, mas o barbeiro plantou-se diante dele com os braços cruzados, dizendo :

- Diga-me uma coisa, turco de merda: ao fim e ao cabo de que lado está?

- Estou comigo - respondeu o sírio, inalterável.

- Faz mal - disse o barbeiro. - Pelo menos não devia esquecer as quatro costelas que partiram ao filho do seu compatriota Elías, por conta de Don Chepe Montiel.

- Elías tem tão mau feitio que o filho lhe saiu político - disse o sírio. - Mas agora o rapaz está a dançar o samba no Brasil e Chepe Montiel está morto.

 

Antes de abandonar o quarto, desarmado pelas longas noites de sofrimento, o alcaide barbeou-se do lado direito e deixou no esquerdo a barba de oito dias. Vestiu depois o uniforme lavado, calçou as botas de charão e desceu para almoçar no hotel aproveitando a trégua da chuva.

Não estava ninguém na sala de jantar. O alcaide abriu caminho através das mesinhas de quatro lugares e sentou-se no lugar mais discreto, no fundo da sala.

- Máscaras - chamou.

Veio à sala uma rapariga muito jovem, com vestido curto e ajustado e seios como pedras. O alcaide pediu o almoço sem a olhar. No regresso à cozinha, a rapariga ligou o aparelho de rádio colocado numa prateleira no fundo da sala. Ouviu-se um boletim noticioso, com citações do discurso pronunciado na noite anterior pelo presidente da República, e depois uma lista de novos artigos sujeitos à proibição de importação. À medida que a voz do locutor enchia o ambiente, o calor tornou-se mais intenso. Quando a rapariga voltou com a sopa, o alcaide tentava conter o suor abanando-se com o boné.

- A mim, o rádio também me faz suar - disse a rapariga.

O alcaide começou a comer a sopa. Tinha pensado sempre que aquele hotel solitário, sustentado por caixeiros-viajantes ocasionais, era um lugar diferente do resto da aldeia. Na realidade, era anterior à aldeia. Na sua escalavrada e ampla varanda de madeira, os comerciantes que vinham do interior para comprar a colheita de arroz passavam a noite a jogar cartas, esperando a frescura da madrugada para poderem dormir. O próprio coronel Aureliano Buendía, que ia discutir em Macondo os termos da capitulação da última guerra civil, dormiu uma noite naquela varanda, numa época em que não havia povoações em muitas léguas em redor. Era então a mesma casa com paredes de madeira e telhado de zinco, com a mesma sala de jantar e as mesmas divisórias de cartão nos quartos, apenas sem luz eléctrica nem sanitários. Um velho caixeiro-viajante contava que até ao início do século havia uma colecção de máscaras penduradas na sala à disposição dos clientes, e que, utilizando-as, os hóspedes, mascarados, faziam as suas necessidades no pátio, diante de toda a gente.

O alcaide teve de desabotoar o colarinho para acabar a sopa. Depois do noticiário, o rádio transmitiu anúncios em verso. Depois um bolero sentimental. Um homem de voz mentolada, morto de amor, tinha decidido dar a volta ao mundo em perseguição de uma mulher. O alcaide prestou atenção à música, enquanto esperava o resto da comida, até que viu passar diante do hotel dois meninos com duas cadeiras e um berço. Atrás, duas mulheres e um homem com panelas, alguidares e peças de mobiliário. Saiu à porta, gritando:

- Onde é que roubaram essas tralhas?

As mulheres pararam. O homem explicou que estavam a mudar a casa para terrenos mais altos. O alcaide perguntou para onde a tinham levado e o homem apontou para sul com o chapéu.

- Lá para cima, para um terreno que Don Sabas nos alugou por trinta pesos.

O alcaide examinou os móveis. Um misturador desarticulado, panelas em mau estado: coisas de gente pobre. Reflectiu um momento. Finalmente disse:

- Levem essas coisas e todos os vossos pertences para aquele terreno que está desocupado, junto do cemitério.

O homem ficou espantado.

- São terrenos do município - disse o alcaide - e não lhes vão custar nada. O município oferece. - Depois dirigindo-se às mulheres, acrescentou: - E digam a Don Sabas que eu mando dizer que não seja ladrão.

Acabou o almoço sem saborear os alimentos. Depois acendeu um cigarro. Acendeu outro com a ponta do primeiro e esteve muito tempo pensativo, com os cotovelos apoiados na mesa, enquanto o rádio moía boleros sentimentais.

- Em que pensa? - perguntou a rapariga, ao levantar os pratos vazios.

O alcaide não pestanejou:

- Nessa pobre gente.

Pôs o boné e atravessou a sala. Voltando-se, ao chegar à porta, disse:

- É preciso transformar esta terra num espaço decente.

Uma sangrenta luta de cães interrompeu-lhe a passagem ao voltar a esquina. Viu um novelo de costelas e patas num torvelinho de uivos, e depois uns dentes com pêlo e um cão a arrastar uma pata, com o rabo entre as pernas. O alcaide passou de lado e continuou pelo passeio até ao comando da Polícia.

Uma mulher gritava no calabouço, enquanto o guarda fazia a sesta, deitado de bruços, num catre. O alcaide deu um pontapé na perna do catre. O guarda acordou em sobressalto.

- Quem é? - perguntou o alcaide.

O guarda pôs-se em sentido.

- A mulher que punha os pasquins.

O alcaide desatou a vociferar contra os seus subalternos. Queria saber quem prendera a mulher e por ordem de quem a tinham metido no calabouço. Os agentes deram-lhe uma explicação dispendiosa.

- Quando a prenderam?

Tinham-na encarcerado durante a noite de sábado.

- Pois ela sai e entra um de vocês - gritou o alcaide. - Essa mulher dormiu no calabouço e a terra apareceu esta manhã cheia de papéis.

Tão depressa como se abriu a pesada porta de ferro, uma mulher de idade madura, de ossos pronunciados e com um puxo monumental seguro por uma peineta, saiu do calabouço aos gritos.

- Vai prò caraho - disse-lhe o alcaide. A mulher soltou o cabelo, sacudiu várias vezes a cabeleira longa e abundante, e desceu a escada como um tiro, gritando: Puta, puta." O alcaide inclinou-se por cima do varandim e gritou com todo o poder da sua voz, para que o ouvissem não só a mulher e os seus agentes, mas também toda a povoação:

- E não continuem a foder-me com os papelinhos.

 

Embora a chuvinha persistisse, o padre Ángel saiu para dar o seu passeio da tarde. Ainda era cedo para o encontro com o alcaide, de modo que foi até à zona das inundações. Só encontrou o cadáver de um gato a flutuar entre as flores.

No regresso, a tarde começou a secar. Tornou-se intensa e brilhante. Uma barcaça coberta de tela asfáltica descia o rio espesso e imóvel. De uma casa meio destruída saiu uma criança a gritar que tinha encontrado o mar dentro de uma concha. O padre Ángel aproximou a concha do ouvido. Com efeito, ali estava o mar.

A mulher do juiz Arcadio estava sentada à porta de casa, como que em êxtase, com os braços cruzados no ventre, de olhos fixos na barcaça. Três casas mais adiante começavam os armazéns, os mostruários de quinquilharias e os sírios impávidos sentados às portas. A tarde morria em nuvens cor-de-rosa intenso e no alvoroço dos papagaios e dos micos da margem oposta.

As casas começavam a abrir-se. Sob as sujas amendoeiras da praça, rodeando os carrinhos de refrescos ou nos bancos de granito carcomidos, os homens reuniam-se para conversar. O padre Ángel pensava que todas as tardes, nesse momento, a terra sofria o milagre da transfiguração.

- Padre, lembra-se dos prisioneiros dos campos de concentração?

O padre Ángel não viu o doutor Giraldo, mas imaginou-o a sorrir atrás da janela iluminada. Não se lembrava, honestamente, das fotografias, mas estava certo de um dia as ter visto.

-Venha até à sala de espera - disse o médico.

O padre Ángel empurrou a porta de rede de arame. Estendida numa esteira estava uma criatura de sexo indefinido, apenas os ossos forrados com uma pele amarelada. Dois homens e uma mulher esperavam, sentados contra o biombo. O padre não sentiu nenhum cheiro, mas pensou que aquele ser devia exalar um fedor imenso.

- Quem é? - perguntou.

- O meu filho - respondeu a mulher. E acrescentou, como se estivesse a desculpar-se: - Tem há dois anos uma caganeirinha de sangue.

O doente moveu os olhos na direcção da porta, sem mover a cabeça. O padre sentiu uma piedade aterrorizada.

- E que lhe fizeram? - perguntou.

- Faz tempo que lhe estamos a dar banana verderespondeu a mulher -, mas não a quer, apesar de ser um petisco tão bom.

- Têm de o levar, para que se confesse - disse o padre.

Mas disse-o sem convicção. Fechou a porta cuidadosamente e raspou com a unha a rede da janela, aproximando a cara para ver o médico no interior. O doutor estava a triturar algo num almofariz.

- Que tem ele? - perguntou o padre.

- Ainda não o examimei - respondeu o médico, comentando, pensativo: - São coisas que acontecem às pessoas pela vontade de Deus, padre.

O padre Ángel passou por alto o comentário:

- Nenhum dos mortos que vi na minha vida parecia tão morto quanto esse rapaz.

Despediu-se. Não havia embarcações no porto. Começava a escurecer. O padre Ángel compreendeu que a sua disposição se tinha alterado com a vista do doente.

Reparou subitamente que estava atrasado para o encontro e apressou o passo para a esquadra da Polícia.

O alcaide estava derrubado numa cadeira, com a cabeça entre as mãos.

- Boa tarde - disse o padre, muito devagar.

O alcaide levantou a cabeça e o padre estremeceu perante aqueles olhos avermelhados pelo desespero. Tinha uma face fresca e barbeada, mas a outra era uma selva mergulhada numa pomada cor de cinza. Exclamou, com um queixume surdo:

- Padre,vou dar um tiro em mim mesmo.

O padre Ángel sentiu uma verdadeira consternação.

- Está a intoxicar-se com tanto analgésico – disse ele.

O alcaide foi a arrastar os pés até à parede,e com o cabelo agarrado com as duas mãos bateu violentamente com a cabeça contra as tábuas.O padre nunca tinha testemunhado tanta dor.

- Tome mais dois comprimidos - disse ele,propondo conscientemente um remédio para a sua própria perturbação.- Com mais dois ainda não morrerá.

Não só o era realmente,como tinha plena consciência de ser desajeitado perante a dor humana.Procurou os analgésicos com o olhar,no espaço vazio da sala.Encostados contra a parede havia meia dúzia de tamboretes de couro,um armário de vidro cheio de papéis poeirentos e uma litografia do presidente da República,pendurada num prego.Dos analgésicos,só restavam embalagens vazias espalhadas pelo chão.

- Onde estão? - perguntou,desesperado.

-Já não me fazem efeito - respondeu o alcaide.

O pároco aproximou-se,repetindo:

- Diga-me onde estão.- O alcaide teve um estremeção violento e o padre viu uma cara enorme e monstruosa a poucos centímetros dos seus olhos.

- Caramba - gritou o alcaide.- Já disse que não me fodam.

Ergueu um dos tamboretes por cima da cabeça e lançou-o com toda a força contra o armário de vidro.

O padre só compreendeu o que acontecera depois do instantâneo granizo de vidro,quando o alcaide começou a surgir como uma serena aparição entre a névoa de poeira.Nesse momento havia um silêncio perfeito.

- Tenente - murmurou o padre.

Na porta do corredor estavam os polícias com as espingardas aperradas.O alcaide olhou-os sem ver,respirando como um gato,e eles baixaram as armas,mas permaneceram imóveis junto da porta.O padre Ángel conduziu o alcaide pelo braço até à cadeira de dobrar.

- Onde estão os analgésicos? - insistiu.

O alcaide fechou os olhos e lançou a cabeça para trás :

- Não tomo mais porcarias. Os ouvidos zumbem-me e os ossos do crânio estão a adormecer. - Na curta trégua da dor voltou a cabeça para o padre e perguntou:

- Falou com o tira-dentes?

O padre acenou afirmativamente, em silêncio. Pela expressão que se seguiu àquela resposta, o alcaide percebeu o resultado da entrevista.

- Porque não vai falar com o doutor Giraldo? propôs o padre. - Há médicos que arrancam dentes.

O alcaide demorou a responder.

- Ele dirá que não tem pinças - disse. E acrescentou: - É uma conspiração.

Aproveitou a trégua para repousar um pouco daquela tarde implacável. Quando abriu os olhos, o quarto estava na penumbra. Disse, sem ver o padre Ángel:

- Vinha por causa do César Montero? - Não ouviu qualquer resposta. - Com esta dor não pude fazer nada - prosseguiu. Levantou-se para acender a luz e a primeira vaga de insectos entrou pela varanda. O padre Angel sofreu o sobressalto da hora.

- O tempo vai passando - afirmou o padre.

- De qualquer maneira, na quarta-feira terá que ser enviado - disse o alcaide. - Amanhã arranja-se o que tiver de se arranjar, e confessa-o à tarde.

- A que horas?

- Às quatro.

- Mesmo que esteja a chover?

O alcaide descarregou num único olhar toda a impaciência reprimida em duas semanas de sofrimento.

- Mesmo que o mundo esteja a acabar, padre.

A dor tinha-se tornado invulnerável aos analgésicos. O alcaide pendurou a rede na varanda do seu quarto, tentando dormir na frescura da primeira noite. Mas antes das oito sucumbiu de novo ao desespero e desceu à praça que estava sob o letargo de uma densa onda de calor.

Depois de vaguear pelos arredores sem encontrar a inspiração de que necessitava para se sobrepor à dor, entrou no cinema. Foi um erro. O zumbir dos aviões de combate aumentou a intensidade da dor. Abandonou o cinema e foi à farmácia, no momento em que Don Lalo Moscote se dispunha a fechar as portas.

- Dê-me o mais forte que tenha contra a dor de dentes.

O farmacêutico examinou-lhe a boca com uma expressão de assombro. Depois foi até ao fundo do estabelecimento, passando por uma dupla fila de armários com portas de vidro completamente cheios de frasquinhos de cerâmica, cada um com o nome do produto gravado em letras azuis. Ao vê-lo de costas, o alcaide compreendeu que aquele homem de nuca roliça e rosada podia estar a viver um instante de felicidade. Conhecia-o. Estava instalado em dois quartos no fundo da farmácia, e a esposa, uma mulher muito gorda, encontrava-se paralítica havia muitos anos.

Don Lalo Moscote voltou ao balcão com um frasquinho de louça sem etiqueta. Ao tirar a tampa, o frasco libertou um perfume de ervas doces.

- O que é isso?

O farmacêutico mergulhou os dedos entre as sementes secas do frasco.

- Mastruço - respondeu. - Mastigue-o bem e engula a saliva pouco a pouco: não há nada melhor para a secreção. - Pôs várias sementes na palma da mão e disse, olhando o alcaide por cima dos óculos: - Abra a boca.

O alcaide esquivou-se. Fez girar o frasco para se convencer de que nada havia escrito, e voltou a fixar o olhar no farmacêutico.

- Dê-me qualquer coisa estrangeira - pediu.

- Isto é melhor do que qualquer coisa estrangeira

- disse Don Lalo Moscote. - Está garantido por três mil anos de sabedoria popular.

Começou a envolver as sementes num pedacinho de jornal. Não parecia um pai de família, embrulhando o mastruço com a habilidade afectuosa com que se faz um papagaio de papel para as crianças. Quando levantou a cabeça tinha começado a sorrir.

- Porque não o tira?

O alcaide não respondeu. Pagou com uma nota e saiu da farmácia sem esperar o troco.

Já passava da meia-noite e continuava a rebolar-se na rede sem se atrever a mastigar as sementes. Por volta das onze da manhã, o pico culminante do calor, tinha- se precipitado um aguaceiro que se transformou depois numa chuvinha ténue. Esgotado pela febre, tremendo no suor pegajoso e gelado, o alcaide deitou-se de bruços na rede, abriu a boca e começou a rezar mentalmente. Rezou a fundo, com os músculos tensos no espasmo final, mas consciente de que quanto mais lutava para conseguir o contacto com Deus, mais a dor o empurrava no sentido contrário. Então calçou as botas e a gabardina e foi até ao comando da Polícia.

Irrompeu, vociferando. Enredados numa mistura de sono e pesadelo, os agentes atropelaram-se no corredor, na escuridão, em busca das armas. Quando se acenderam as luzes estavam meio vestidos, à espera das ordens.

- González, Rovira, Peralta - gritou o alcaide.

Os três nomeados destacaram-se do grupo e rodearam o tenente. Não havia uma razão visível que justificasse a selecção: eram três mestiços vulgares. Um deles, de feições infantis, de cabeça rapada, estava em camisola interior de flanela. Os outros dois vestiam a mesma camisola debaixo do dólman desabotoado.

Não receberam uma ordem precisa. Saltando os degraus quatro a quatro atrás do alcaide, saíram do edifício em fila indiana; atravessaram a rua sem se preocuparem com a chuvinha e pararam diante do consultório do dentista. Com duas cargas destruíram a porta à coronhada.

Já se encontravam no interior da casa,quando as luzes da entrada se acenderam.Um homem pequeno e calvo, com os tendões à flor da pele,apareceu em cuecas na porta do fundo,tentando enfiar um roupão.No primeiro momento ficou paralisado,com um braço no ar e a boca aberta,como no instantâneo de um fotógrafo.Depois deu um salto para trás e chocou com a mulher que saía do quarto em camisa de dormir.

- Quietos - gritou o alcaide.

A mulher fez Ai!" com a mão na boca e retrocedeu, entrando no quarto.O dentista dirigiu-se à entrada, apertando o cordão do roupão e só então reconheceu os três polícias que lhe apontavam as espingardas,e o alcaide que gotejava água por todo o corpo,tranquilo,com as mãos nos bolsos da gabardina.

- Se a senhora sair do quarto,há ordem para lhe darem um tiro - disse o tenente.

O dentista agarrou o fecho da porta,dizendo para dentro: Ouviste?" e ajustou com um gesto meticuloso a porta do quarto.Depois dirigiu-se ao consultório,vigiado através do descolorido mobiliário de verga pelos olhos fumados das espingardas.Dois agentes adiantaram-se,entrando à frente dele: um deles acendeu a luz; o outro foi directamente à mesa de trabalho e tirou um revólver da gaveta.

- Deve haver outro - disse o alcaide.

Tinha entrado em último lugar,atrás do dentista.Os dois polícias fizeram uma revista conscienciosa e rápida, enquanto o terceiro guardava a porta.Voltaram em cima da mesa a caixa dos instrumentos,dispersaram pelo chão moldes de gesso,dentaduras postiças por acabar,dentes soltos e envoltórios de ouro; esvaziaram os frascos de louça do armário e estriparam com cortes rápidos a almofada da cadeira giratória e o assento de molas.

- É um trinta e oito de cano comprido – precisou o alcaide,e dirigindo-se ao dentista: - É melhor que diga de uma vez onde está.Não vimos dispostos a destruir a casa.- Atrás dos óculos com aro de ouro,os olhos pequenos e apagados do dentista não revelaram nada.

- Por mim não há problema - respondeu o dentista, de um modo repousado -; podem continuar a destruir o que quiserem, se isso lhes dá na gana.

O alcaide reflectiu. Depois de examinar uma vez mais o gabinete feito com tábuas sem serem aplainadas, avançou para a cadeira dando ordens cortantes aos seus agentes. Colocou um na porta da rua, outro na entrada do consultório, e o terceiro junto da janela. Quando se acomodou na cadeira, só então desabotoando o impermeável molhado, sentiu-se rodeado de metais frios. As pirou profundamente o ar impregnado de creosoto e apoiou a cabeça, tentando regular a respiração. O dentista apanhou do chão alguns instrumentos e pô-los a ferver numa caçarola.

Permaneceu de costas para o alcaide, contemplando o lume azul com a mesma expressão que teria se estivesse sozinho no gabinete. Quando a água ferveu, envolveu o cabo da caçarola num papel e levou-a para a cadeira. A passagem estava obstruída por um dos polícias. O dentista baixou a caçarola para poder ver o alcaide por cima do fumo e disse:

- Ordene a este assassino que se ponha onde não estorve.

A um sinal do alcaide, o agente afastou-se da janela para libertar a passagem para a cadeira. Rodou um assento contra a parede e sentou-se com as pernas abertas, a espingarda atravessada nas coxas, sem descurar a vigilância. O dentista acendeu a lâmpada. Deslumbrado pela claridade repentina, o alcaide fechou os olhos e abriu a boca. A dor tinha cessado.

O dentista localizou o dente culpado, afastando com o indicador a face inflamada e orientando a lâmpada móvel com a outra mão, completamente insensível à respiração ansiosa do paciente. Depois enrolou a manga até ao cotovelo e dispôs-se a arrancar o dente. O alcaide agarrou-o pelo pulso e ordenou:

- Anestesia.

Os olhares deles encontraram-se pela primeira vez.

- Vocês matam sem anestesia - retorquiu então o dentista, com voz muito calma.

O alcaide não notou na mão que apertava o gatilho nenhum esforço para se libertar.

- Dê-me a anestesia - ameaçou.

O polícia colocado no canto moveu o cano para eles e ambos perceberam o ruído da espingarda a ser montada.

- Suponha que não há - disse o dentista.

O alcaide soltou o pulso do outro.

- Tem de haver - respondeu, examinando com um interesse desconsolado as coisas espalhadas pelo chão.

O dentista olhou-o com uma atenção compassiva. Depois empurrou-lhe a cabeça para a almofada e, dando pela primeira vez mostras de impaciência, disse:

- Deixe de ser medroso, tenente; com esse abcesso não há anestesia que valha.

Passado o momento mais terrível da sua vida, o alcaide afrouxou a tensão muscular e permaneceu exausto na cadeira, enquanto as manchas escuras pintadas pela humidade no tecto liso se lhe fixavam na memória até à morte. Sentiu o dentista lavar as mãos na bacia. Sentiu-o repor no seu lugar as gavetas da mesa e recolher em silêncio alguns dos objectos espalhados no chão.

- Rovira - chamou o alcaide. - Diga a González que entre e apanhem as coisas do chão até deixar tudo como encontraram.

Os homens executaram a ordem. O dentista prensou o algodão com as pinças, empapou-o num líquido cor de ferro e colocou-o no abcesso. O alcaide sentiu uma sensação de ardor superficial. Depois de o dentista lhe fechar a boca, continuou com a vista fixa no tecto, pendente do ruído que os agentes faziam ao tentarem reconstituir de memória a ordem minuciosa do consultório. A torre badalou as duas horas. Um alcaravão, com um minuto de atraso, repetiu a hora no murmúrio da chuvinha. Um momento depois, sabendo que tinham terminado, o alcaide ordenou por gestos, aos seus homens, que regressassem ao comando.

O dentista tinha permanecido junto da cadeira durante todo o tempo. Quando os outros saíram, retirou o tampão da gengiva, explorando depois com a lâmpada o interior da boca. Voltou a ajustar as mandíbulas e afastou a luz. Tudo tinha terminado. No abafado consultório ficava então essa estranha insipidez que só conhecem os arrumadores de um teatro depois da saída do último actor.

- Mal-agradecido - disse o alcaide.

O dentista meteu as mãos nos bolsos do roupão e deu um passo atrás para o deixar passar.

- Havia ordem de arrasar a casa - prosseguiu o alcaide, procurando-o com o olhar atrás do cone de luz.

- Havia instruções precisas para encontrar armas e munições e documentos com os pormenores de uma conspiração nacional. - Fixou no dentista os olhos ainda húmidos e acrescentou: - Eu achei que fazia bem desobedecendo às ordens, mas estava enganado. Agora as coisas mudam, a oposição tem garantias e toda a gente vive em paz, mas você continua a pensar como um conspirador. - O dentista secou com a manga a almofada da cadeira e verificou que não tinha sido destruída.A sua atitude prejudica a terra - prosseguiu o alcaide, apontando a almofada, sem se preocupar com o olhar apreensivo que o dentista dirigiu à sua boca. - Agora tem o município de pagar todas estas tralhas, além do conserto da porta da rua. Um dinheirão, tudo por causa da sua má vontade.

- Não se esqueça de bochechar com água de alforva - disse o dentista.

O juiz Arcadio consultou o dicionário da estação do telégrafo, pois no seu faltavam algumas páginas. Não ficou muito esclarecido: Nome de um sapateiro de Roma, famoso pelas sátiras que compunha contra toda a gente", e outras precisões sem importância. Com a mesma justiça histórica, pensou, uma injúria anónima posta na porta de uma casa podia chamar-se marfório'. Durante os dois minutos que empregou na consulta experimentou, pela primeira vez em muito tempo, a tranquilidade do dever cumprido.

O telegrafista viu-o colocar o dicionário na estante, entre as esquecidas ordens de serviço e disposições acerca dos correios e telégrafos, e cortou a transmissão de um telegrama com uma advertência enérgica. Depois aproximou-se a baralhar os naipes, disposto a repetir o truque da moda: a adivinhação das três cartas. Mas o juiz Arcadio não lhe deu atenção. Agora estou muito ocupado, desculpou-se. Saiu para a rua abrasadora, perseguido pela confusa certeza de que eram apenas onze horas e aquela terça-feira ainda lhe reservava muitas horas para gastar.

 

Marfório: nome dado em Roma a uma estátua antiga que os satiristas italianos utilizavam para fixar epigramas, panfletos, etc., que respondiam normalmente a outros afixados em outra estátua chamada Pasquino (de onde o nome de pasquins). A estátua encontrada à entrada do fórum de Marte, encontra-se hoje no pátio do Capitólio. (N. do T.)

 

No seu gabinete esperava-o o alcaide com um problema moral. Em consequência das últimas eleições, a Polícia tinha destruído as cédulas eleitorais do partido da oposição. A maioria dos habitantes do lugar não possuía agora instrumentos de identificação.

- Essa gente que está a transferir para o alto as suas casas - concluiu o alcaide com os braços abertos, nem sequer sabe como se chama.

O juiz Arcadio compreendeu que atrás daqueles braços abertos existia uma aflição sincera. Mas o problema do alcaide era simples: bastaria solicitar a nomeação de um oficial de registo civil. O escrivão acabou por simplificar o problema:

- Basta apenas mandá-lo chamar - disse ele. - Está nomeado talvez há um ano.

O alcaide lembrou-se. Meses antes, quando a nomeação do conservador do registo civil lhe havia sido comunicada, tinha feito um telefonema interurbano para per guntar como o devia receber e tinham-lhe respondido: A tiro." Agora havia ordens diferentes. Voltou-se para o escrivão, com as mãos nos bolsos, e disse-lhe:

- Escreva a carta.

O ruído do teclado produziu na sala um ambiente de dinamismo que se repercutiu na consciência do juiz Arcadio. Achou-se vazio. Tirou do bolso da camisa um ci garro que esfregou entre a palma das mãos antes de o acender. Depois empurrou as costas do assento para trás até ao limite das molas; naquela posição surpreendeu-o a certeza definitiva de que estava a viver um minuto da sua vida.

Preparou a frase antes de a pronunciar:

- Eu, no seu lugar, nomearia também um delegado do Ministério Público.

Ao contrário do que esperava, o alcaide não lhe respondeu imediatamente. Olhou o relógio, mas não viu as horas. Conformou-se com a certeza de que ainda faltava muito tempo para o almoço. Quando falou, fê-lo sem entusiasmo: não conhecia o procedimento necessário para uma tal nomeação.

- O funcionário deveria ser nomeado pelo conselho municipal - explicou o juiz Arcadio. - Como agora não há conselho municipal,o regime de estado de sítio confere-lhe autorização para o nomear.

O alcaide ouviu,enquanto assinava a carta sem a ler.

Depois teve um comentário entusiasmado,mas o escrivão fez uma observação de carácter ético relativa ao procedimento preconizado pelo seu superior.O juiz Arcadio insistiu: era um procedimento de emergência sob um regime de emergência.

- Parece-me bem - disse o alcaide.

Tirou o boné para se abanar e o juiz Arcadio observou a marca em círculo impressa na fronte.Pelo modo de se abanar considerou que o alcaide não tinha ainda deixado de pensar.Libertou a comprida cinza do cigarro com a longa e curvada unha do mendinho e esperou.

- Lembra-se de algum candidato? - perguntou o alcaide.

Era evidente que se dirigia ao escrivão.

- Um candidato - repetiu o juiz,fechando os olhos.

- Eu,no seu lugar,nomearia um homem honesto - disse o escrivão.

O juiz reparou na impertinência.

- Isso é mais do que evidente - afirmou olhando alternadamente para os dois homens.

- Por exemplo - quis saber o alcaide.

- De momento,não me lembro de ninguém - respondeu o juiz,pensativo.

dirigia-se para a porta.

- Pense nisso - disse ele.- Quando sairmos do problema das inundações,resolveremos esse caso.- O escrivão manteve-se inclinado sobre a máquina até deixar de ouvir os passos do alcaide.

- Está doido! - exclamou o escrivão.- Há ano e meio que rebentaram à coronhada a cabeça do anterior delegado,e agora anda à procura de um candidato para lhe oferecer o lugar.

O juiz Arcadio levantou-se num salto e disse:

- Vou-me embora. Não quero que me estragues o almoço com as tuas narrativas terroristas.

Saiu. Na composição do meio-dia havia um elemento aziago. O escrivão registou-o com a sua sensibilidade para a superstição. Quando pôs o cadeado na porta pareceu- lhe estar a praticar um acto proibido. Fugiu dali. Na porta do telégrafo alcançou o juiz Arcadio que estava interessado em averiguar se o truque dos naipes era de algum modo aplicável ao jogo do póquer. O telegrafista negou-se a revelar o segredo. Ia até ao limite de repetir o truque indefinidamente para oferecer ao juiz a possibilidade de descobrir a chave. O escrivão observou igualmente a manobra. No final considerou ter chegado a uma conclusão. O juiz, em troca, nem sequer olhou para as três cartas. Sabia que eram as mesmas que tinha escolhido ao acaso e que o telegrafista lhe devolvia sem sequer as ter visto.

- É uma questão de magia - disse o telegrafista. O juiz Arcadio só pensava então no esforço de atravessar a rua. Quando se resignou a caminhar, agarrou o escrivão pelo braço, obrigando-o a mergulhar com ele na atmosfera de vidro fundido. O escrivão explicou-lhe então a chave do truque. Era tão simples que o juiz Arcadio se sentiu ofendido. Fizeram em silêncio um trecho do caminho.

- Naturalmente - disse de súbito o juiz com um rancor gratuito - você não averiguou os dados.

O escrivão demorou um instante à procura do sentido da frase.

- É muito difícil - concordou por fim. - A maioria dos pasquins são arrancados antes do amanhecer.

- Esse é outro truque que não entendo - admitiu o juiz Arcadio. - Um pasquim que ninguém lê não me tiraria o sono.

- Esse é o caso - disse o escrivão, parando, porque tinha chegado a casa. - O que tira o sono não são os pasquins, mas sim o medo dos pasquins.

Apesar de se encontrarem incompletos,o juiz Arcadio quis conhecer os dados recolhidos pelo funcionário.

Anotou os casos,com datas e nomes: onze em sete dias.

Não havia qualquer relação entre os onze homens.Os que tinham visto os pasquins concordavam que estavam escritos a pincel,em tinta azul e com letras de imprensa, maiúsculas e minúsculas,como se fossem escritas por uma criança.A ortografia era tão absurda que os erros pareciam deliberados.Não revelavam qualquer segredo; nada se dizia neles que não fosse já do domínio público desde há algum tempo.Tinha feito todas as considerações possíveis quando o sírio Moisés o chamou da loja.

- Tem um peso?

O juiz Arcadio não compreendeu.Mas voltou os bolsos do avesso: vinte e cinco centavos e uma moeda norte-americana que usava desde a Universidade como amuleto.O sírio Moisés pegou nos vinte e cinco centavos.

- Leve o que quiser e paga quando quiser - disse o sírio fazendo tilintar as moedas na gaveta vazia. - Não quero que chegue o meio-dia sem abençoar o nome de Deus.

Desse modo, ao bater das doze badaladas, o juiz Arcadio entrou em casa carregado de prendas para a mulher. Sentou-se na cama para mudar de sapatos enquanto ela envolvia o corpo num corte de seda estampada. Imaginou a sua aparência, depois do parto, com o vestido novo. Ela deu-lhe um beijo no nariz. Ele tentou esquivar-se, mas ela caiu em cima dele, de bruços, na cama. Permaneceram imóveis. O juiz Arcadio passou-lhe a mão nas costas, sentindo o calor do ventre volumoso, até perceber a palpitação dos rins. Ela levantou a cabeça. Murmurou, com os dentes apertados:

- Espera que eu feche a porta.

 

O alcaide esperou até acabarem de instalar a última casa. Em vinte horas tinham construído uma rua nova, larga e térrea, que terminava subitamente na parede do cemitério. Depois de ajudar a colocar os móveis, trabalhando lado a lado com os proprietários, o alcaide entrou, asfixiando-se, na cozinha mais próxima. A sopa fervia num fogão de pedras, improvisado no chão. Destapou a panela de barro e aspirou por um momento a fumarada. Do outro lado do lume, uma mulher enxuta de olhos grandes e aprazíveis olhava-o em silêncio.

- Almoça-se? - inquiriu o alcaide.

A mulher não respondeu. Sem ser convidado, o alcaide serviu-se de um prato de sopa. A mulher foi então ao quarto buscar um banco e pô-lo diante da mesa para que o alcaide se sentasse. Enquanto comia a sopa, examinou o pátio com uma espécie de terror reverencial. Ontem, aquilo era um terreno vazio. Agora havia roupa a secar e dois porcos a revolverem-se na lama.

- Até podem semear - disse o alcaide. A mulher respondeu sem levantar a cabeça:

- Os porcos comem tudo. - Depois serviu no mesmo prato um pedaço de carne apenas fervido em água e sal, dois pedaços de pirão e meia banana verde, levando-o para a mesa. De um modo ostensivo, pôs naquele acto de generosidade toda a indiferença de que era capaz. O alcaide, sorrindo, procurou com os seus os olhos da mulher.

- Há para todos - disse ele.

- Queira Deus que lhe cause indigestão - comentou a mulher, sem o olhar.

Ele passou por alto a má vontade. Dedicou- se por inteiro ao almoço, sem se preocupar com os jorros de suor que lhe desciam pelo peito. Quando acabou, a mulher pegou no prato vazio, sempre sem olhar.

- Até quando vão continuar assim? - perguntou o alcaide.

A mulher falou, sem que a sua expressão aprazível se alterasse:

- Até que ressuscitem os mortos que nos mataram.

- Agora é diferente - explicou o alcaide. - O novo Governo preocupa-se com o bem-estar dos cidadãos. Vocês, em troca...

A mulher interrompeu-o.

- São os mesmos, com as mesmas...

- Um bairro como este, assim construído em vinte e quatro horas, era uma coisa que não se via antes - insistiu o alcaide. - Estamos a tentar criar um ambiente decente.

A mulher apanhou a roupa lavada do arame e levou-a para o quarto. O alcaide seguiu-a com o olhar até lhe ouvir a resposta:

- Este era um povo decente, antes de vocês virem.

Não esperou pelo café.

- Ingratos - disse ele. - Estamos a oferecer-lhes terra e ainda se queixam.

A mulher não replicou. Mas quando o alcaide atravessou a cozinha em direcção à rua, murmurou inclinada para o fogão:

- Aqui vai ser pior. Lembrar-nos-emos mais de vocês com os mortos mesmo ao lado.

O alcaide tentou fazer uma sesta enquanto chegavam as lanchas. Mas não resistiu ao calor. O inchaço da face tinha começado a ceder. No entanto, não se sentia bem. Seguiu o curso imperceptível do rio durante duas horas, ouvindo o som de uma cigarra dentro do quarto. Não pensava em nada. Quando ouviu o motor das lanchas, despiu-se, secou o suor com uma toalha e mudou de uniforme. Depois procurou a cigarra, agarrou-a com o polegar e o indicador e saiu para a rua. Da multidão que esperava as lanchas surgiu um menino limpo, bem vestido, que lhe impediu a passagem com uma metralhadora de plástico. O alcaide deu-lhe a cigarra.

Um momento depois, sentado no armazém do sírio Moisés, observou a manobra das lanchas. O porto ferveu durante dez minutos. O alcaide sentiu o estômago pesado e uma leve dor de cabeça e recordou a má vontade da mulher. Depois tranquilizou-se, vendo os passageiros que atravessavam a plataforma de madeira e estiravam os músculos depois de oito horas de inactividade.

- A mesma rotina - disse o alcaide.

O sírio Moisés fê-lo reparar numa novidade: estava a chegar um circo. O alcaide admitiu ser verdade, embora não pudesse saber bem porquê. Talvez por um montão de estacas e panos coloridos amontoados no tejadilho da lancha, e por duas mulheres exactamente iguais enfiadas em roupas floridas e idênticas, como se fossem uma mesma pessoa repetida.

- Vamos pelo menos ter um circo - murmurou.

O sírio Moisés falou de feras e malabaristas. Mas o alcaide tinha outro modo de pensar no circo. Com as pernas esticadas, olhou a biqueira das botas.

- A terra progride - disse ele.

O sírio Moisés parou de se abanar.

- Sabe quanto vendi hoje? - perguntou.

O alcaide não arriscou qualquer número e aguardou a resposta.

- Vinte e cinco centavos - acrescentou o sírio.

Nesse momento o alcaide viu o telegrafista a abrir o saco do correio para entregar a correspondência ao doutor Giraldo. Chamou-o. O correio oficial vinha num so brescrito diferente. Quebrou os lacres e verificou que se tratava de comunicações de rotina e folhas impressas com propaganda do regime. Quando acabou de ler, o molhe estava transformado: embalagens de mercadorias, gaiolas de galinhas e os enigmáticos artefactos do circo. Começava a entardecer. Suspirou.

- Vinte e cinco centavos!

- Vinte e cinco centavos - repetiu o sírio com voz sólida, quase sem alento.

O doutor Giraldo observou até ao final a descarga das lanchas. Foi ele quem chamou a atenção do alcaide para uma mulher vigorosa, de aparência hierática, com vários jogos de pulseiras em ambos os braços. Parecia esperar o Messias debaixo de uma sombrinha colorida. O alcaide não se deteve a pensar na recém-chegada.

- Deve ser a domadora - disse ele.

- De certo modo tem razão - concordou o doutor Giraldo, mordendo as palavras com a sua dupla fieira de pedras afiadas. - É a sogra de César Montero.

O alcaide prosseguiu caminho. Olhou o relógio: quatro menos vinte e cinco. Na porta do quartel da Polícia, o plantão informou-o de que o padre Ángel o tinha esperado meia hora e voltaria às quatro.

Novamente na rua, sem saber o que fazer, viu o dentista na janela do consultório e aproximou-se para lhe pedir lume. O dentista deu-lhe lume, observando-lhe a face ainda inchada.

-Já estou bem - disse o alcaide.

Abriu a boca. O dentista olhou.

-Tem vários dentes a precisar de serem chumbados.

O alcaide ajustou o revólver no cinto.

- Virei cá um dia destes - decidiu.

O dentista não mudou de expressão.

- Venha quando quiser, pode ser que se cumpram os meus desejos de que morra em minha casa.

O alcaide deu-lhe uma palmada no ombro.

- Não se cumprirão - comentou, bem-disposto, concluindo com os braços abertos: - Os meus dentes estão acima dos partidos.

 

- Então não te casas?

A mulher do juiz Arcadio abriu as pernas.

-Nem esperanças disso, padre - respondeu.E ainda menos agora que lhe vou parir um rapaz.

O padre Ángel desviou a vista para o rio. Uma vaca afogada, enorme, descia pelo fio da corrente, com várias galinhas em cima.

- Mas será um filho ilegítimo - disse o padre Ángel.

- Não lhe importa - respondeu ela. - Agora sou bem tratada por ele. Se o obrigo a casar comigo, depois sente-se amarrado e vinga-se em mim.

Tinha tirado os tamancos e falava com os joelhos separados, os dedos dos pés acavalitados no travessão do tamborete. Tinha o leque no regaço e os braços cruzados no ventre volumoso.

- Nem esperanças, padre - repetiu, pois o padre Ángel permanecia em silêncio. - Don Sabas comprou-me por duzentos pesos, chupou-me o suco durante três meses e lançou-me à rua depois sem um alfinete. Se Arcadio não me recolhe, teria morrido de fome. - Olhou o padre pela primeira vez: - Ou seria obrigada a ir para puta.

O padre Ángel andava há seis meses a insistir.

- Deves obrigá-lo a casar e a constituir um lar - disse ele. - Assim como vivem agora, não só estás numa condição insegura, como constituem um mau exemplo para a terra.

- É melhor fazer as coisas francamente - retorquiu ela. - Outros fazem o mesmo, mas com as luzes apagadas. Não tem lido os pasquins?

- São calúnias - respondeu o padre. - Tens de regularizar a situação e pôr-te ao abrigo da maledicência.

- Eu? - exclamou ela. - Não tenho de me pôr ao abrigo de nada porque faço toda a minha vida à luz do dia. A prova é que ninguém gasta o seu tempo a pôr-me um pasquim, e em troca todos os decentes da praça têm sido empapelados.

- És uma tola - disse o padre -, mas Deus deu-te a sorte de conseguir um homem que te estima. Por isso mesmo deves casar e formalizar o teu lar.

- Eu não entendo nada dessas coisas - retorquiu ela -, mas de qualquer modo, assim como estou, tenho onde dormir e não me falta o comer.

- E se ele te abandona?

Ela mordeu os lábios. Sorriu enigmaticamente ao responder:

- Não me abandona, padre. Sei o que estou a dizer. Mesmo dessa vez, o padre Ángel não se deu por vencido. Recomendou-lhe que pelo menos assistisse à missa. Ela respondeu que o faria um dia destes, e o padre continuou o seu passeio à espera da hora de se encontrar com o alcaide. Um dos sírios fê-lo observar o bom tempo, mas ele não prestou atenção. Interessou-se pelos pormenores do circo que descarregava as suas feras ansiosas na tarde brilhante. Esteve ali até às quatro horas. O alcaide despedia-se do dentista quando viu o padre Ángel aproximar-se.

- Pontuais - disse ele apertando-lhe a mão.Pontuais, apesar de não estar a chover. - Resolvido a subir a íngreme escada do quartel, o padre Ángel replicou:

- Nem o mundo estar a acabar.

Dois minutos depois foi levado até César Montero. Enquanto durou a confissão, o alcaide esteve sentado no corredor. Lembrou-se do circo, de uma mulher agarrada pelos dentes a uma barra, a cinco metros de altura e de um homem com um uniforme azul, bordado a ouro, rufando numa caixa. Meia hora mais tarde, o padre Ángel saiu da cela onde se encontrava César Montero.

- Pronto? - perguntou o alcaide.

O padre Ángel examinou-o com rancor.

- Estão a cometer um crime - disse ele. - Esse homem está há mais de cinco dias sem comer. Só a sua constituição física lhe permitiu sobreviver.

- É a sua vontade - argumentou o alcaide, tranquilamente.

- Isso não é verdade - disse o padre, imprimindo à voz uma serena energia. - O senhor deu ordens para não lhe darem de comer.

O alcaide apontou-lhe o indicador.

- Cuidado, padre, está a violar o segredo da confissão.

- Isto não faz parte da confissão - retorquiu o padre.

O alcaide levantou-se.

- Não tome isso a peito - disse ele rindo. - Se isso o preocupa tanto, agora mesmo lhe damos remédio.

- Chamou um agente e deu ordem para encomendarem comida no hotel e a levarem a César Montero. – Que lhe mandem um frango inteiro, bem gordo, com um prato de papas e uma taça de salada - disse e acrescentou, dirigindo-se ao padre: - Tudo por conta do município, padre. Para que veja como as coisas mudaram.

O padre Ángel baixou a cabeça.

- Quando o despacha?

- As lanchas saem amanhã - disse o alcaide. - Se até esta noite der ouvidos à razão, parte amanhã mesmo. Só tem que aceitar que lhe estou a fazer um favor.

- Um favor um pouco caro - admitiu o padre.

- Não há favor que não custe dinheiro a quem o tem - disse o alcaide.

Fixou os olhos nos diáfanos olhos azuis do padre Ángel, e acrescentou:

- Espero que o tenha feito compreender tudo isso.

O padre Ángel não respondeu. Desceu a escada e despediu-se no patamar com um ruído surdo. O alcaide atravessou o corredor e entrou sem bater na cela de César Montero. Era um aposento simples: uma cama de ferro e um lavatório. César Montero, com a mesma roupa com que tinha saído de casa na terça-feira anterior, com a barba por fazer, estava deitado em cima da cama. Não moveu sequer os olhos quando o alcaide entrou.

-Já que puseste em ordem as contas com Deus - disse o alcaide -, nada mais justo que agora as resolvas comigo. - Levou uma cadeira até à cama e sentou-se ao contrário, com o peito encostado às costas de verga. César Montero concentrou a atenção nas vigas do tecto. Não parecia preocupado, apesar de se advertirem nas comissuras dos lábios os estragos de uma longa conversa consigo mesmo. - Tu e eu não precisamos de estar com rodeios - ouviu o alcaide dizer-lhe. - Amanhã vais-te embora. Se tiveres sorte, virá um investigador especial dentro de três ou quatro meses. Nós teremos o dever de o informar. Na lancha da semana seguinte, ele regressará convencido de que fizeste um disparate. - Fez uma pausa, mas César Montero continuou imperturbável.Depois, entre advogados e tribunais, arrancar-te-ão pelo menos vinte mil pesos. Ou mais, se o investigador especial se encarregar de lhes dizer que és milionário.

César Montero voltou a cabeça para ele. Foi um movimento quase imperceptível, que no entanto fez ranger as molas da cama.

- Com isso tudo - prosseguiu o alcaide, com voz de conselheiro espiritual -, em voltas e papeladas perderás dois anos, e ainda assim se tiveres sorte.

Sentiu-se examinado desde a biqueira das botas. Quando o olhar de César Montero chegou até aos olhos dele, o alcaide ainda não tinha acabado de falar:

- Tudo o que tens, deve-lo a mim. Havia ordens para acabar contigo. Havia ordens para te assassinarem numa emboscada e confiscarem as tuas reses para que o Governo tivesse com que subsidiar as enormes despesas das eleições em toda a região. Sabes que outros o fizeram, em outros municípios. Em troca, aqui nós desobedecemos às ordens.

Nesse momento percebeu o primeiro sinal de que César Montero estava a pensar. Abriu as pernas. Com os braços apoiados no espaldar da cadeira respondeu a uma acusação não formulada em voz alta pelo seu interlocutor:

- Nem um centavo do que pagaste pela tua vida foi para mim. Tudo foi gasto na organização das eleições. Agora o novo Governo decidiu que deve haver paz e garantias para todos e eu continuo a vegetar com o meu ordenado enquanto tu nadas em dinheiro. Fizeste um bom negócio.

César Montero iniciou o laborioso processo de se levantar. Quando ficou de pé, o alcaide viu-se a si mesmo: minúsculo e triste perante uma besta monumental. Houve uma espécie de fervor no olhar com que o seguiu até à janela.

- O melhor negócio da tua vida - murmurou o alcaide.

A janela dava para o rio. César Montero não o reconheceu. Viu-se numa terra diferente, diante de um rio.

- Estou a tentar ajudar-te - ouviu dizer nas suas costas. - Todos nós sabemos que foi uma questão de honra, mas vai dar-te muito trabalho provar isso. Fizeste a asneira de rasgar o pasquim.

Nesse momento uma baforada nauseabunda invadiu o quarto.

- A vaca morta - disse o alcaide - deve ter ancorado em qualquer parte.

César Montero permaneceu à janela, indiferente ao odor da putrefacção. Não havia ninguém na rua. No molhe, estavam três lanchas fundeadas, cuja tripulação estava a pendurar as redes para dormir. No dia seguinte, às sete da manhã, a vista seria diferente: durante meia hora o porto estaria em ebulição, esperando que embarcassem o preso. César Montero suspirou. Meteu as mãos nos bolsos e, com ar resoluto, mas sem se apressar, resumiu o seu pensamento em duas palavras:

- Quanto é?

A resposta foi imediata:

- Cinco mil pesos, em carneiros de um ano.

- E mais cinco carneiros - disse César Montero -, para que eu seja enviado esta mesma noite, depois do cinema, numa lancha expresso.

A lancha apitou, deu a volta no meio do rio, e a multidão concentrada no cais e as mulheres nas janelas viram Rosario de Montero pela última vez, junto da sua mãe, sentada no mesmo baú de folheta com que tinha ali desembarcado sete anos antes. Barbeando-se na janela do consultório, o doutor Giraldo teve a impressão de que aquela era, de certo modo, uma viagem de regresso à realidade.

O doutor Giraldo tinha-a visto na tarde da sua chegada, com o seu esquálido uniforme de normalista e os seus sapatos de homem, averiguando no porto quem lhe cobrava menos para levar o baú até à escola. Parecia disposta a envelhecer sem ambições naquela pequena terra cujo nome vira escrito pela primeira vez - conforme ela mesma contava - no papel que tirou de um chapéu quando sorteavam seis postos disponíveis entre onze candidatos. Instalou-se num quartinho da escola, com uma cama de ferro e um lavatório, dedicando-se nas horas livres a bordar toalhas enquanto cozia as papas de milho no fogareiro de petróleo. Nesse mesmo ano, pelo Natal, conheceu Montero numa festa escolar. Era um solteirão bisonho de origem obscura, enriquecido com a extracção de madeiras, que vivia na selva virgem entre cães montesinhos e só aparecia na terra ocasionalmente sempre sem se barbear, com botas de tacões ferrados e uma espingarda de dois canos. Foi como se tivesse tirado mais uma vez, do chapéu, o papel premiado, pensava o doutor Giraldo com a barba cheia de espuma, quando uma baforada nauseabunda o tirou das suas recordações.

Um bando de galináceos dispersou-se na margem oposta, espantados pela corrente criada pela lancha. O odor da podridão permaneceu um momento por cima do cais, moveu-se na brisa matinal e entrou até ao fundo das casas.

- Ainda aí está, porra! - exclamou o alcaide na varanda do seu quarto, vendo a dispersão dos galináceos.

- Puta de vaca!

Tapou o nariz com o lenço, entrou no quarto e fechou a porta da varanda. O cheiro persistia no interior. Sem tirar o boné, pendurou o espelho num prego e iniciou uma trabalhosa tentativa de barbear a face ainda um pouco inflamada. Um momento depois o empresário do circo bateu à porta.

O alcaide mandou-o sentar-se, observando-o pelo espelho enquanto fazia a barba. Tinha uma camisa de quadrados escuros, calças de montar com polainas e uma chibata com que batia sistematicamente no joelho.

-Já me fizeram a primeira queixa de si - disse o alcaide, acabando de rapar com a navalha os vestígios de duas semanas de desespero. - Mesmo ontem à noite.

- Qual foi a queixa?

- Que estão a mandar os rapazes roubar gatos.

- Isso não é verdade - disse o empresário -; compramos a peso qualquer gato que nos levem sem perguntar de onde veio, para alimentar as feras.

- Dão-nos vivos ?

- Ah, não - protestou o empresário. - Isso despertaria o instinto de crueldade das feras.

Depois de se lavar, o alcaide voltou-se para ele esfregando a cara com a toalha. Até então não havia reparado que tinha anéis com pedras coloridas em quase todos os dedos.

- Pois vai ter de inventar qualquer outra coisadisse. - Apanhem caimões, se quiserem, ou aproveitem o peixe que se perde neste tempo. Gatos vivos, nem de brincadeira.

O empresário encolheu os ombros e seguiu o alcaide até à rua. Grupos de homens conversavam no cais, apesar do mau cheiro da vaca atascada nos silvados da margem oposta.

- Maricas - gritou o alcaide. - Em vez de estarem por aí a bisbilhotar como mulheres, já deviam ter organizado um grupo para libertar aquela vaca.

Alguns homens rodearam-no.

- Cinquenta pesos - propôs o alcaide -, àquele que me trouxer, antes de uma hora, os cornos daquela vaca.

Uma desordem de vozes estalou no extremo do cais. Alguns homens tinham ouvido a oferta do alcaide e saltavam para as canoas, gritando desafios recíprocos enquanto soltavam as amarras.

- Cem pesos - dobrou o alcaide entusiasmado.Cinquenta por cada corno.

Levou o empresário até à extremidade do molhe. Ambos esperaram que as primeiras embarcações chegassem às dunas da outra margem. O alcaide voltou-se então para o empresário, sorrindo.

- Esta é uma terra feliz - disse ele. O empresário concordou com a cabeça. - O que nos falta são coisas como esta - prosseguiu o alcaide. - As pessoas pensam demasiados disparates por falta de ocupação.

Pouco a pouco um grupo de crianças tinha-se formado em torno deles.

- Aí está o circo - disse o empresário.

O alcaide arrastava-o pelo braço para a praça.

- E o que fazem? - perguntou.

- Fazemos de tudo - respondeu o empresário.Temos um espectáculo muito completo para crianças e adultos.

- Isso não basta - disse o alcaide. - É preciso, além disso, que o ponham ao alcance de todos.

- Também temos isso em conta - retorquiu o empresário.

Foram juntos até um espaço baldio, atrás do cinema, onde tinham começado a montar o grande toldo. Homens e mulheres de aspecto taciturno despejavam os enormes malões, chapeados de latão, tirando deles trastes diversos e panos coloridos. Quando seguiu o empresário através do amontoado de seres humanos e de trastes heterogéneos, apertando a mão a todos, o alcaide sentiu-se em ambiente de naufrágio. Uma mulher robusta, de gestos resolutos e dentadura amplamente aurificada, examinou-lhe a mão depois de a apertar.

- Há algo de estranho no teu futuro - disse ela.

O alcaide retirou a mão, sem poder reprimir um momentâneo sentimento de depressão. O empresário deu à mulher, com a chibata, uma pancadinha no braço.

- Deixa o tenente em paz - disse-lhe sem se deter, empurrando o alcaide para o fundo do terreno onde se encontravam as feras. - O senhor acredita nisso?perguntou.

- Depende - respondeu o alcaide.

- A mim não conseguiram convencer-me - disse o empresário. - Quando se anda nestas coisas, uma pessoa acaba por não acreditar senão na vontade humana.

O alcaide contemplou os animais adormecidos pelo calor. As jaulas exalavam um vapor azedo e quente e havia uma espécie de angústia sem esperança na respiração pausada dos animais. O empresário acariciou com a chibata o nariz de um leopardo que se torceu num estremecimento lamentoso.

- Como é que se chama? - perguntou o alcaide.

- Aristóteles.

- Refiro-me à mulher - esclareceu o alcaide.

- Ah - fez o empresário -; chamamos-lhe Casandra, espelho do futuro.

O alcaide revelou uma expressão desolada.

- Gostaria de me deitar com ela - disse.

- Tudo é possível - respondeu o empresário.

 

A viúva de Montiel abriu as cortinas do quarto, murmurando: Coitados dos homens." Pôs em ordem a mesinha-de- cabeceira, guardou na gaveta o rosário e o livro de orações e limpou as solas das suas chinelas cor de malva na pele de tigre estendida aos pés da cama. Depois deu uma volta completa no quarto para fechar à chave o toucador, as três portas do armário da roupa e um outro, quadrado, em cima do qual havia um São Rafael de gesso. Por fim fechou a porta do quarto.

Enquanto descia a ampla escada de azulejos com labirintos gravados, pensava no estranho destino de Rosario de Montero. Quando a viu dobrar a esquina do porto, com a sua aplicada compostura de escolar a quem ensinaram a não voltar a cabeça, a viúva de Montiel, assomada às grades da sua varanda, pressentiu que alguma coisa que havia muito começara a acabar, tinha finalmente terminado.

No patamar da escada, veio-lhe ao encontro o fedor do seu pátio de feira rural. A um lado da varanda havia um andaime com queijos envoltos em folhas novas; mais além, numa galeria exterior, havia sacos de sal arrumados e odres de mel, e ao fundo do pátio um estábulo com mulas, cavalos e selins pendurados nas traves. A casa estava impregnada com um persistente cheiro de besta de carga, misturado com um outro de couros curtidos e moenda de cana.

No escritório, a viúva deu os bons-dias ao senhor Carmichael, que separava maços de notas na secretária enquanto verificava as quantias no livro de contas. Ao abrir a janela que dava para o rio, a luz das nove entrou na sala carregada de adornos baratos, com grandes cadeirões forrados a cinzento e um retrato ampliado de José Montiel com uma fita negra na moldura. A viúva reconheceu o cheiro da podridão antes de ver as embarcações nas dunas da margem oposta.

- Que se passa no outro lado? - perguntou.

- Estão a tentar retirar uma vaca morta - respondeu o senhor Carmichael.

- Então era isso - comentou a viúva. - Sonhei toda a noite com este cheiro. - Olhou o senhor Carmichael atento ao trabalho e acrescentou: - Agora só nos falta o dilúvio.

O senhor Carmichael falou sem levantar a cabeça:

- Começou há quinze dias.

- É verdade - admitiu a viúva -; agora chegamos ao fim. Só falta deitarmo-nos numa sepultura debaixo do céu aberto e aguardar a morte. - O senhor Carmichael ouvia-a sem interromper as suas contas. - Há anos queixávamo-nos de que nada acontecia nesta terra - prosseguiu a viúva. - De repente começou a tragédia, como se Deus tivesse resolvido que aconteceriam todas juntas as coisas que durante anos deixaram de acontecer.

No cofre, o senhor Carmichael voltou-se para a olhar e viu-a de cotovelos no peitoril, com os olhos fixos na margem oposta. Trazia um vestido negro com mangas até aos punhos e mordiscava as unhas.

- Quando passarem as chuvas, as coisas vão melhorar - disse o senhor Carmichael.

- Não vão melhorar nada - prognosticou a viúva.

- As desgraças nunca vêm desacompanhadas. Não viu a Rosario Montero?

O senhor Carmichael tinha-a visto.

- Tudo isto é um escândalo sem motivo - disse ele.

- Se dermos ouvidos aos pasquins, acabaremos loucos.

- Os pasquins - suspirou a viúva.

- A mim, já me puseram o meu - disse o senhor Carmichael.

Ela aproximou-se com uma expressão de assombro.

- Ao senhor?

- A mim - confirmou o senhor Carmichael. Puseram-mo bem grande e bem completo no sábado da semana passada. Parecia um anúncio de cinema.

A viúva sentou-se numa cadeira, frente à secretária.

- É uma infâmia! - exclamou. - Não há nada a dizer de uma família como a sua. - O senhor Carmichael não estava alarmado.

- Como a minha mulher é branca, os filhos vieram-nos de todas as cores - explicou. - Imagine: são onze.

- Evidentemente - disse a viúva.

- Pois o pasquim dizia que eu sou pai somente dos filhos negros. E dava a lista dos pais dos outros. Até enredaram nisso Don Chepe Montiel, que descanse em paz.

- O meu marido!

- O seu e os de mais quatro senhoras - disse o senhor Carmichael.

A viúva começou a soluçar.

- Felizmente as minhas filhas estão longe. Dizem que não querem voltar a este país selvagem onde assassinam os estudantes em plena rua, e eu respondo que têm razão, que fiquem em Paris para sempre.

O senhor Carmichael deu meia volta à cadeira, compreendendo que o embaraçoso episódio de todos os dias tinha novamente começado.

- A senhora não tem que se preocupar - disse ele.

- Pelo contrário - soluçou a viúva. - Sou a primeira que deveria ter empacotado os trastes e saído daqui, mesmo perdendo estas terras e estas tarefas de todos os dias que tanto têm a ver com a desgraça. Não, senhor Carmichael: não quero bacias de ouro para cuspir sangue.

O senhor Carmichael tentou consolá-la.

- A senhora tem de enfrentar a suas responsabilidades - disse. - Não se pode atirar uma fortuna pela janela fora.

- O dinheiro é o artifício do diabo - protestou a viúva.

- Mas, neste caso, é também o resultado do trabalho duro de Don Chepe Montiel.

A viúva mordeu os dedos.

- O senhor sabe que não é verdade - replicou ela.

- É dinheiro mal ganho e o primeiro a pagá-lo ao morrer sem confissão foi o próprio José Montiel.

Não era a primeira vez que o afirmava.

- A culpa, naturalmente, é desse criminoso - exclamou ela, apontando o alcaide que passava no passeio oposto, levando pelo braço o empresário do circo.Mas é a mim que corresponde a expiação.

O senhor Carmichael deixou-a sozinha. Meteu numa caixa de cartão os maços de notas apertados com elásticos e, da porta do pátio, chamou os peões por ordem alfabética.

Enquanto os homens recebiam a paga da quarta- feira, a viúva de Montiel sentia-os passar sem corresponder às saudações. Vivia sozinha na sombria casa de nove quartos onde morrera a Mamâ Grande e que José Montiel tinha comprado sem supor que a sua viúva teria de sobreviver nela em solidão, até à morte. De noite, en quanto percorria com o insuflador de insecticida os aposentos vazios, encontrava-se com a Mamâ Grande a matar piolhos nos corredores e perguntava-lhe:

- Quando morrerei?

Mas aquela comunicação feliz com o Além apenas tinha conseguido aumentar as suas incertezas, porque as respostas, como as de todos os mortos, eram disparatadas e contraditórias.

Pouco depois das onze, a viúva viu, através das lágrimas, o padre Ángel atravessar a praça.

- Padre, padre - chamou, sentindo que com aquele apelo estava a dar um passo final.

Mas o padre Angel não a ouviu. Tinha batido à porta da viúva de Asís, no passeio em frente, e a porta abrira-se de um modo discreto para lhe dar passagem.

No corredor invadido pelo canto dos pássaros, a viúva de Asís jazia numa cadeira de lona, desdobrável, com a cara coberta por um lenço embebido em água de Florida. Pela maneira de bater à porta, ela soube que era o padre Ángel, mas prolongou o alívio momentâneo até ouvir-lhe a voz. Libertou então o rosto devastado pela insónia.

- Desculpe, padre - disse. - Não o esperava tão cedo.

O padre Ángel ignorava que tinha sido chamado para almoçar. Desculpou-se, um pouco ofuscado, dizendo que também ele tinha passado a manhã com dores de cabeça e havia preferido atravessar a praça antes de começar o calor.

- Não importa - disse a viúva. - Só quis dizer que me encontra feita um trapo.

O padre tirou do bolso um breviário com a encadernação desconjuntada.

- Se quiser, pode continuar a repousar um momento mais enquanto eu rezo - disse ele, mas a viúva opôs-se.

-Já me sinto melhor - disse ela.

Caminhou até ao extremo do corredor, com os olhos fechados, e no regresso estendeu o lenço perfumado com delicado gesto no braço da cadeira. Quando se sentou diante do padre Ángel, parecia vários anos mais nova.

- Padre - disse então, sem dramatismo -, necessito da sua ajuda.

O padre Ángel guardou o breviário no bolso.

- Estou às suas ordens.

- Trata-se outra vez de Roberto Asís.

Contrariando a sua promessa de esquecer o pasquim, Roberto Asís tinha-se despedido no dia anterior até sábado, e havia regressado intempestivamente a casa naquela mesma noite. Desde a chegada até ao amanhecer, quando a fadiga o venceu, tinha estado sentado na obscuridade do quarto, esperando o suposto amante da mulher.

O padre Ángel ouviu-a, perplexo.

- Isso não tem fundamento - disse ele.

- Não conhece os Asís, padre - replicou a viúva.

- Têm o inferno na imaginação.

- Rebeca, conhece o meu ponto de vista acerca dos pasquins - disse o padre. - Mas se achar bem, posso falar igualmente com Roberto Asís.

- De maneira nenhuma - protestou a viúva. - Isso seria atiçar a fogueira. Em troca, se o senhor se referisse aos pasquins no sermão de domingo, estou certa de que Roberto Asís se sentiria chamado à reflexão.

O padre Ángel abriu os braços.

- Impossível! - exclamou. - Seria dar às coisas uma importância que elas não têm.

- Nada é mais importante do que evitar um crime.

- Acredita que chegue a tais extremos?

- Não só acredito - disse a viúva -, como estou certa de que as minhas forças não serão suficientes para o impedir.

Pouco depois sentaram-se à mesa. Uma servente descalça pôs na mesa arroz com feijões, legumes cozidos e uma travessa de almôndegas, cobertas com um molho cinzento e espesso. O padre Angel serviu-se em silêncio. A pimenta picante, o profundo silêncio da casa e a sensação de desconcerto que lhe ocupava o coração naquele momento, transportaram-no de novo ao seu esquálido quartinho de padre novato no ardente meio-dia de Macondo. Num dia como aquele, poeirento e cálido, tinha recusado dar sepultura cristã a um enforcado a quem os duros habitantes de Macondo negavam funeral.

Desabotoou o colarinho da sotaina para soltar o suor.

- Está bem - disse ele à viúva. - Então faça com que Roberto Asís não falte à missa de domingo.

A viúva de Asís prometeu.

 

O doutor Giraldo e a mulher, que nunca dormiam a sesta, ocuparam a tarde na leitura de um conto de Dickens. Estiveram no terraço interior, ele na rede ouvindo com os dedos entrelaçados na nuca; ela, com o livro no regaço, lendo de costas para os espaços de sol onde ardiam os gerânios. Fez uma leitura desapaixonada, com ênfase profissional, sem mudar de posição na cadeira.

Não levantou a cabeça até ao final, mas mesmo assim permaneceu com o livro aberto nos joelhos, enquanto o marido se lavava na bacia do lavatório.O calor anunciava tempestade.

- É um conto comprido? - perguntou ela,depois de pensar cuidadosamente.

Com os escrupulosos movimentos aprendidos na sala de cirurgia,o médico tirou a cabeça da bacia.

- Dizem que é uma novela curta - respondeu, diante do espelho,amassando a brilhantina.- Eu diria de preferência,um conto comprido.- Esfregou,com os dedos,a vaselina no crânio e concluiu: - Os críticos diriam que é um conto curto,mas alongado.

Auxiliado pela mulher,vestiu-se de linho branco.Ela poderia ser confundida com uma irmã mais velha,não só pela calma devoção com que o atendia,mas também pela frialdade dos olhos que a faziam parecer uma pessoa de mais idade.Antes de sair,o doutor Giraldo forneceu-lhe a lista e a ordem das visitas,para a hipótese de se apresentar um caso urgente,e moveu os ponteiros do relógio publicitário na sala de espera: O doutor volta às cinco horas."

O calor fervia na rua.O doutor Giraldo seguiu pelo passeio do lado da sombra,perseguido pelo pressentimento de que,apesar da densidade do ar,não choveria naquela tarde.O canto das cigarras tornava mais intensa a solidão do porto,mas a vaca tinha sido removida e fora arrastada pela corrente,e o cheiro da podridão tinha deixado na atmosfera um enorme vazio.

O telegrafista,na porta do hotel,chamou por ele:

- Recebeu um telegrama?

O doutor Giraldo não tinha recebido.

- Informe condições do envio,assinado Arcofán" - citou o telegrafista,de memória.

Foram juntos ao telégrafo.Enquanto o médico escrevia uma resposta,o empregado começou a dormitar.

- É o ácido muriático - explicou o médico,sem grande convicção científica.E apesar do seu pressentimento,acrescentou animadamente quando acabou de escrever: - Talvez chova esta noite.

O telegrafista contou as palavras. O médico não prestou atenção. Estava pendente de um volumoso livro aberto junto da chave morse. Perguntou se era um romance.

- Os Miseráveis, Victor Hugo - telegrafou o telegrafista. Carimbou a cópia do telegrama e regressou à varanda com o livro. - Acho que com este demoraremos até Dezembro.

Havia anos que o médico sabia que o telegrafista ocupava as horas livres a transmitir poemas à telegrafista de San Bernardo del Viento. Ignorava que também telegrafasse romances.

- Este é a sério - disse o doutor Giraldo, folheando o manuseado calhamaço que despertou na sua memória confusas emoções de adolescente. - Alexandre Dumas seria mais apropriado.

- Ela gosta deste - explicou o telegrafista.

-Já a conheces?

O telegrafista negou com a cabeça.

- Mas dá no mesmo - disse. - Era capaz de a reconhecer em qualquer parte do mundo pelos saltinhos que dá sempre no erre.

Também naquela tarde o doutor Giraldo reservou uma hora para Don Sabas. Encontrou-o na cama, exausto, enrolado numa toalha a partir da cintura.

- Eram bons os caramelos? - perguntou o médico.

- É o calor - lamentou-se Don Sabas, voltando para a porta o seu enorme corpo de avô. - Tomei a injec ção depois do almoço.

O doutor Giraldo abriu a maleta em cima de uma mesa preparada junto da janela. As cigarras cantavam no pátio e o quarto tinha uma temperatura vegetal. Sentado no pátio, Don Sabas urinou um manancial lânguido.

Quando o médico olhou no tubo de vidro a amostra do líquido ambarino, o doente sentiu-se reconfortado. Disse, observando a análise:

- Muito cuidado, doutor, que eu não quero morrer sem saber como termina este romance.

O doutor Giraldo lançou um comprimido azul no tubo.

- Que romance?

- O dos pasquins.

Don Sabas seguiu-o com um olhar manso até ele ter acabado de aquecer o tubo na lamparina de álcool. Cheirou. Os descoloridos olhos do doente esperavam-no com uma pergunta:

- Está bem - disse o médico, enquanto despejava a amostra de urina no pátio. Depois examinou Don Sabas:

- Também está pendente disso?

- Eu não - respondeu o doente. - Mas gozo como um preto com o medo que as pessoas sentem.

O doutor Giraldo preparava a seringa hipodérmica.

- Além do mais - prosseguiu Don Sabas -, já me puseram o meu há dois dias. As mesmas parvoíces: as histórias dos meus filhos e a história dos burros.

O médico apertou a artéria de Don Sabas com uma borracha. O doente insistiu na história dos burros, mas teve de a contar porque o médico achava que não a conhecia.

- Foi um negócio de burros que fiz há-de haver uns vinte anos - disse. - Deu-se a casualidade de que todos os burros que vendia amanheciam mortos dois dias depois sem marcas de violência.

Ofereceu o braço de carnes flácidas para que o médico tirasse a amostra de sangue. Quando o doutor Giraldo tapou o furinho com algodão, Don Sabas dobrou o braço.

- Pois sabe o que as pessoas inventaram?

O médico negou com a cabeça.

- Correu o boato de que era eu mesmo que entrava de noite pelas hortas e disparava no interior os burros, metendo-lhes o revólver pelo cu.

O doutor Giraldo guardou na bolsa o tubo de vidro com a amostra de sangue de Don Sabas. Depois afirmou :

- Essa história tem todo o aspecto de ser verdadeira.

- Eram as cobras - disse Don Sabas, sentado na cama como um ídolo oriental. - De qualquer modo, é preciso ser-se bem estúpido para se escrever um pasquim com aquilo que toda a gente sabe.

- Essa foi sempre uma característica dos pasquins

- retorquiu o médico. - Dizem o que toda a gente sabe, e que quase sempre é verdade.

Don Sabas sofreu uma crise momentânea.

- Acha? - murmurou, secando com o lençol o suor dos olhos inchados. Imediatamente reagiu:O que acontece, é que neste país não há uma só fortuna que não tenha às costas um burro morto.

O médico recebeu a frase inclinado no lavatório. Viu a sua própria reacção reflectida na água: um sistema dental tão correcto que não parecia natural. Olhando o paciente por cima do ombro, disse:

- Eu sempre acreditei, meu caro Don Sabas, que a sua única virtude é o descaramento.

O doente entusiasmou-se. As pancadinhas do seu médico produziam-lhe uma espécie de juventude repentina.

- Isso e a minha potência sexual - disse ele, acompanhando as palavras com uma flexão do braço que podia ser um estímulo para a circulação, mas que ao médico pareceu de uma insolência excessiva. Don Sabas deu um saltinho com as nádegas. - É por isso que os pasquins me provocam tanto o riso - prosseguiu. Dizem que os meus filhos apanham quanta raparigumha começa a despontar por esses montes e eu digo: são filhos do seu pai.

Antes de se despedir, o doutor Giraldo teve de ouvir uma recapitulação espectral das aventuras sexuais de Don Sabas.

-Ditosa juventude! - exclamou finalmente o doente. - Tempos felizes em que uma rapariguinha de dezasseis anos custava menos do que uma novilha.

- Essas recordações vão-lhe aumentar a concentração do açúcar - disse o médico.

Don Sabas abriu a boca.

- Pelo contrário - replicou. - São melhor cura do que as suas malditas injecções de insulina.

Quando saiu para a rua, o médico levava consigo a impressão de que pelas artérias de Don Sabas tinha começado a circular um caldo suculento. Mas outra coisa o preocupava: os pasquins. Rumores chegavam desde há dias ao seu consultório. Nessa tarde, depois da visita a Don Sabas, reparou que na realidade não tinha ouvido falar de outra coisa em toda a semana. Fez várias visitas na hora seguinte. Em todas lhe falaram dos pasquins. Ouviu os relatos sem fazer comentários, aparentando uma risonha indiferença, mas tentando, na realidade, chegar a uma conclusão. Estava de regresso ao consultório quando o padre Ángel, que saía da casa da viúva de Montiel, o retirou das suas reflexões.

- Como vão os doentes, doutor? - perguntou o padre Ángel.

- Os meus vão bem, padre - respondeu. - E os seus ?

O padre mordiscou os lábios. Tomou o médico pelo braço e começaram a atravessar a praça.

- Porque me pergunta isso?

- Não sei - respondeu o médico. - Tenho notícias de que há uma epidemia grave entre a sua clientela.

O padre Ángel fez um desvio que o médico pensou ter sido deliberado.

- Acabo de falar com a viúva de Montiel - disse o padre. - A essa pobre mulher, os nervos trazem-na aniquilada.

- Pode ser a consciência - diagnosticou o médico.

- É a obsessão da morte.

Apesar de viverem em direcções opostas, o padre Ángel acompanhou-o até ao consultório.

- Falando sério, padre - recomeçou o médico -, o senhor que pensa dos pasquins?

- Não penso neles - disse o padre. - Mas se me obrigasse a fazê-lo, diria que são obra da inveja numa terra exemplar.

- Desse modo não diagnosticava a Medicina, nem sequer na Idade Média - replicou o doutor Giraldo.

Pararam diante do consultório. Abanando-se lentamente, o padre Ángel repetiu, pela segunda vez nesse dia, que não se deve dar às coisas a importância que elas não têm". O doutor Giraldo sentiu-se abanado por um desespero recôndito.

- Como sabe, padre, que não há nada de verdadeiro no que dizem os pasquins?

- Sabê-lo-ia pelo confessionário.

O médico olhou-o friamente nos olhos.

- Se o não sabe pelo confessionário ainda é mais grave.

Naquela tarde o padre Ángel verificou que também em casa dos pobres se falava dos pasquins, mas de um modo diferente e até com uma saudável alegria. Comeu sem apetite, depois de assistir à oração com uma alfinetada de dor de cabeça que atribuiu às almôndegas do almoço. Procurou depois a classificação moral do filme e, pela primeira vez na sua vida, experimentou um obscuro sentimento de orgulho quando deu as doze badaladas rotundas da proibição absoluta. Por fim colocou um banquinho na porta da rua, sentindo que a dor de cabeça aumentava dolorosamente, e dispôs-se a verificar publicamente quem entrava no cinema apesar das suas advertências.

Entrou o alcaide. Acomodado num canto da plateia, fumou dois cigarros antes de começar a sessão. A gengiva estava completamente desinflamada, mas o corpo padecia ainda da memória das noites passadas e dos estragos dos analgésicos, e os cigarros provocaram-lhe náuseas.

A sala do cinema era um pátio cercado por um muro de cimento, fechado por cima com chapas de zinco até meio da plateia, e com uma erva que parecia reviver em cada manhã, adubada com pastilhas elásticas e pontas de cigarros. Por um momento, o alcaide viu a flutuar os bancos de madeira tosca, a grade de ferro que separava a plateia da galeria, e reparou numa ondulação de vertigem no espaço pintado de branco na parede do fundo onde o filme se projectava.

Sentiu-se melhor quando se apagaram as luzes. Então cessou a música estridente do altifalante, mas tornou-se mais intensa a vibração do gerador eléctrico instalado num casinhoto de madeira junto do projector.

Antes do filme de fundo, projectaram imagens de publicidade. Um tropel de sussurros afogados, passos confusos e risos entrecortados removeram a penumbra dos breves minutos. Momentaneamente sobressaltado, o alcaide pensou que aquela entrada clandestina pelos fundos tinha o carácter de uma subversão contra as normas rígidas do padre Ángel.

Ainda que tivesse sido apenas pelo odor da água-de-colónia, teria reconhecido o proprietário do cinema quando passou junto dele.

- Bandoleiro - murmurou, agarrando-o pelo braço. - Terás de pagar um imposto especial.

Rindo entre dentes, o proprietário sentou-se na cadeira ao lado.

- A fita é boa - afirmou.

- Por mim - disse o alcaide -, preferia que fossem todas más. Não há nada mais aborrecido do que o cinema moral.

Anos antes ninguém tinha tomado muito a sério aquela censura de sinos. Mas em cada domingo, na missa principal, o padre Ángel apontava do púlpito e expulsava da igreja as mulheres que durante a semana tinham ignorado as suas advertências.

- A salvação foi abrir a portinha das traseirasdisse o proprietário.

O alcaide tinha começado a seguir o noticiário desactualizado. Falou, fazendo uma pausa de cada vez que encontrava no ecrã algo de interessante:

- É sempre a mesma coisa - disse. - O padre não dá a comunhão às mulheres que andem de manga curta, e elas continuam a usar mangas curtas, mas enfiam mangas postiças antes de entrarem na igreja.

Depois do noticiário passaram o filme-anúncio para a semana seguinte. Viram-no em silêncio. Quando terminou, o proprietário inclinou-se para o alcaide.

- Tenente - sussurrou-lhe -, compre-me esta empresa.

- Não é negócio - respondeu o alcaide sem afastar os olhos do ecrã.

- Para mim, não - disse o proprietário. - Mas para si seria uma mina. É evidente: a sI, o padre não lhe viria com a história das badaladas.

O alcaide pensou um pouco antes de responder:

- Poderia ser.

Mas não se deixou levar à concretização. Colocou os pés no banco da frente e perdeu-se nos sobressaltos de um drama arrevesado que, para finalizar, segundo pensou, não valia quatro badaladas. Ao sair do cinema demorou-se na sala de bilhar, onde se jogava o loto. Estava calor e o rádio transpirava uma música pedregosa. Depois de beber uma garrafa de água mineral, o alcaide foi-se deitar.

Caminhou despreocupadamente ao longo da margem, sentindo na obscuridade a enchente do rio, as suas entranhas e o seu cheiro de animal poderoso. À porta de casa, dando um salto para trás, empunhou o revólver.

- Saia para a luz! - disse com voz tensa - ou dis paro.

Uma voz muito suave saiu da escuridão:

- Não se enerve, tenente.

Permaneceu com a mão no gatilho até que a pessoa escondida saiu para a luz. Era Casandra.

- Escapaste por um cabelo - disse o alcaide.

Fê-la subir ao quarto. Durante um certo tempo Casandra falou, seguindo uma trajectória acidentada. Tinha-se sentado na rede e enquanto falava tirou os sapatos e olhou com certa candura as unhas dos pés pintadas de vermelho-vivo.

Sentado diante dela, abanando-se com o boné, o alcaide seguiu a conversa com uma correcção convencional. Tinha voltado a fumar. Quando bateu a meia-noite, ela estendeu-se de bruços na rede, alongou para ele um braço adornado com um jogo de pulseiras sonoras e beliscou-lhe o nariz.

- É tarde, menino - retorquiu. - Apaga a luz.

O alcaide sorriu.

- Não era para isso - disse.

Ela não compreendeu.

-Sabes deitar as sortes? - perguntou o alcaide.

Casandra voltou a sentar-se na rede.

- Evidentemente - respondeu. E depois, tendo compreendido, calçou os sapatos e acrescentou: - Mas não trouxe o baralho.

- Quem come terra - sorriu o alcaide - deve carregar consigo o seu torrão.

Tirou um baralho bastante gasto do fundo da maleta. Ela examinou cada carta de frente e de costas, com uma atenção concentrada.

- As outras são melhores - concluiu -, mas de todos os modos, o que é importante é a comunicação.

O alcaide puxou uma mesinha, sentou-se diante dela e Casandra dispôs as cartas.

- Amor ou negócios?perguntou Casandra.

O alcaide secou o suor das mãos.

- Negócios - respondeu.

Um burro sem dono protegeu-se sob o beiral da casa paroquial e esteve toda a noite a dar coices contra a parede do quarto. Foi uma noite sem sossego. Depois de ter conseguido um sono profundo ao amanhecer, o padre Ángel acordou com a impressão de estar coberto de poeira. Os nardos adormecidos sob a chuvinha, o cheiro da retrete e a seguir o interior lúgubre da igreja depois de se terem perdido as badaladas das cinco, tudo parecia conspirar para tornar difícil aquela madrugada.

Na sacristia, onde se vestiu para dizer a missa, sentiu Trinidad a fazer a sua colheita de ratos mortos, enquanto entravam na igreja as mulheres silenciosas dos dias normais. Durante a missa foi notando com crescente exasperação os enganos do acólito, o seu latim montanhês, e chegou ao momento final com o sentimento de frustração que o atormentava nas horas más da sua vida.

Avançava para o pequeno-almoço, quando Trinidad lhe saiu ao caminho com uma expressão radiante:

- Hoje caíram mais seis - disse ela, fazendo saltar os ratos mortos dentro da caixa.

O padre Ángel tentou sobrepor-se ao seu descalabro interior.

- Magnífico! - exclamou. - Por este andar bastaria encontrar os ninhos para os exterminar completamente.

Trinidad havia encontrado os ninhos. Explicou como tinha localizado os buracos em diversos lugares do templo, especialmente na torre e no baptistério, e como os havia tapado com asfalto. Naquela manhã tinha encontrado uma ratazana enlouquecida, batendo contra as paredes depois de ter procurado durante toda a noite a porta da sua casa.

Saíram para o patiozinho empedrado onde os primeiros caules dos nardos começavam a endireitar-se. Trinidad demorou-se a lançar os ratos mortos na latrina. Quando regressou, o padre Ángel dispunha-se a tomar o pequeno-almoço, depois de ter afastado o guardanapo debaixo do qual aparecia todas as manhãs, como que por um passe de mágica, a refeição que lhe era enviada pela viúva de Asís.

- Tinha-me esquecido de dizer que não pude comprar o arsénico - disse Trinidad ao entrar. - Don Lalo Moscote diz que não se pode vender sem ordem do médico.

- Não será necessário - retorquiu o padre Ángel.

- Morrerão todos asfixiados na cova.

Aproximou a cadeira da mesa e começou a dispor a chávena, o prato com fatias-douradas e a cafeteira com um dragão japonês, enquanto Trinidad abria a janela.

- É sempre melhor estarmos preparados para o caso de voltarem - afirmou ela.

O padre Ángel serviu-se do café, parou subitamente e olhou Trinidad com a sua bata deformada e as suas botinas de deficiente a aproximar-se da mesa.

- Preocupas-te demasiado com isso - disse ele.

O padre Angel não descobriu nem então, nem antes, qualquer indício de inquietação na apertada selva das sobrancelhas de Trinidad. Sem conseguir reprimir um leve tremor dos dedos, acabou de encher a chávena, lançou-lhe duas colherinhas de açúcar, e começou a mexer o líquido com o olhar fixo no crucifixo pendurado na parede.

- Desde quando não te confessas?

- Desde sexta-feira - respondeu Trinidad.

- Diz-me uma coisa - perguntou o padre Ángel.

- Escondeste-me alguma vez algum pecado?

Trinidad negou com a cabeça. O padre Ángel fechou os olhos. De repente, parou de mexer o café, pousou a colherzinha no pires e agarrou Trinidad por um braço.

- Ajoelha-te - ordenou o padre.

Desconcertada, Trinidad pousou a caixa de cartão no chão e ajoelhou-se diante dele.

- Reza o Eu Pecador - disse o padre Ángel, pondo na sua voz o tom paternal do confessionário.

Trinidad fechou os punhos contra o peito, rezando num murmúrio indecifrável, até que o padre lhe pôs a mão no ombro e exclamou:

- Bem !

- Disse mentiras - confessou Trinidad.

- Que mais ?

- Tive maus pensamentos.

Era a ordem habitual da sua confissão. Enumerava sempre os seus pecados de um modo genérico e sempre pela mesma ordem. Daquela vez, no entanto, o padre Angel não pôde resistir à vontade de os aprofundar.

- Por exemplo? - perguntou.

- Não sei - vacilou Trinidad. - Às vezes temos maus pensamentos.

O padre Ángel endireitou-se.

- Nunca te passou pela cabeça a ideia de te matares?

- Ave, Maria Puríssima! - exclamou Trinidad sem levantar a cabeça, batendo ao mesmo tempo com os nós dos dedos na perna da mesa. Depois respondeu: - Não, padre.

O padre Ángel obrigou-a a levantar a cabeça e reparou, com um sentimento de desolação, que os olhos da rapariga começavam a encher-se de lágrimas.

- Isso quer dizer que o arsénico era realmente para os ratos.

- Claro, padre!

- Então, porque choras?

Trinidad tentou baixar a cabeça, mas ele sustentou-lhe o queixo com toda a energia. Ela soltou-se em lágrimas. O padre Ángel sentiu-as correr como um vinagre morno entre os seus dedos.

- Trata de serenar - disse-lhe. - Ainda não terminaste a confissão.

Deixou-a desafogar-se num pranto silencioso. Quando percebeu que tinha acabado de chorar, ordenou-lhe suavemente :

- Bem, agora conta.

Trinidad assoou o nariz com a saia e engoliu uma saliva grossa e salgada de lágrimas. Ao começar a falar, tinha readquirido a sua estranha voz de barítono.

- O meu tio Ambrosio anda a perseguir-me - confessou.

- Como assim?

- Quer que o deixe passar uma noite na minha cama.

- Continua.

- Mais nada - disse Trinidad. - Em nome de Deus, mais nada.

- Não jures - admoestou-a o padre. Depois perguntou com a sua tranquila voz de confessor: - Diz-me uma coisa: com quem dormes?

- Com a minha mãe e as outras - respondeu Trinidad. - Sete no mesmo quarto.

- E ele?

- No outro quarto, com os homens - disse Trinidad.

- Nunca foi ao teu quarto? - Trinidad negou com a cabeça.

O padre insistiu:

- Anda, diz-me a verdade, sem receio: nunca tentou passar para o teu quarto?

- Uma vez.

- Como foi?

- Não sei - respondeu Trinidad. - Quando acordei senti-o a meu lado, muito quieto, dizendo que não queria fazer-me nada, mas que queria dormir comigo porque tinha medo dos galos.

- Que galos ?

- Não sei - disse Trinidad. - Foi o que ele disse.

- E tu que respondeste?

- Que se não se fosse embora me punha a gritar para acordar toda a gente.

- E ele que fez?

- Cástula acordou e perguntou-me o que estava a acontecer e eu respondi que nada, que devia ter estado a sonhar, e então ele ficou quieto como um morto, e quase nem reparei quando ele saiu.

- Estava vestido - disse o padre, de um modo afirmativo.

- Estava como costuma dormir - retorquiu Trinidad. - Só com as calças.

- Não tentou tocar-te?

- Não, padre.

- Diz-me a verdade.

- É verdade, padre - insistiu Trinidad. - Por amor de Deus.

O padre Ángel voltou a levantar a cabeça e enfrentou o brilho triste dos olhos humedecidos da rapariga.

- Porque não me contaste?

- Tinha medo.

- Medo de quê?

- Não sei, padre.

Colocou-lhe a mão no ombro e aconselhou-a longa mente. Trinidad aprovava com a cabeça. Quando terminaram, começou a rezar com ela, em voz muito baixa: Senhor meu Jesus Cristo, Deus e Homem verdadeiro..." Rezava profundamente, com um certo terror, fazendo no decurso da oração uma revisão mental da sua vida até onde a memória lhe permitia. No momento de dar a absolvição tinha começado a apoderar-se-lhe do espírito um sentimento de desgraça.

 

O alcaide empurrou a porta, gritando:

- Juiz!

A mulher do juiz Arcadio apareceu, a secar as mãos na saia.

- Há duas noites que não vem - anunciou ela.

- Maldito seja - disse o alcaide. - Ontem não apareceu no tribunal. Ando à procura dele por todos os lados para um assunto urgente e ninguém me dá notícias dele. Não faz ideia onde ele possa estar?

- Em alguma casa de putas.

O alcaide saiu sem fechar a porta. Entrou na sala de bilhar, onde o gira-discos automático moía uma canção romântica a todo o volume e foi directamente ao aposento do fundo, gritando:

- Juiz !

O proprietário, Don Roque, interrompeu a operação de engarrafar rum a partir de um grande garrafão.

- Não está, tenente - gritou.

O alcaide passou para o outro lado da divisória. Grupos de homens jogavam as cartas. Ninguém tinha visto o juiz Arcadio.

- Caralho - disse o tenente. - Nesta terra sabe-se sempre o que toda a gente faz, e agora que preciso do juiz ninguém sabe onde se meteu.

- Pergunte ao que põe os pasquins - retorquiu Don Roque.

- Não me fodam com os papelinhos - disse o alcaide.

O juiz Arcadio também não se encontrava no seu gabinete. Eram apenas nove horas, mas o escrivão já cabeceava um sono no corredor do pátio. O alcaide foi ao quartel da Polícia, mandou vestir três agentes e obrigou-os a procurar o juiz Arcadio na sala de baile e nos quartos de três mulheres clandestinas conhecidas de toda a gente. Depois saiu para a rua sem seguir uma direcção determinada. Na barbearia, deitado na cadeira e com a cara envolta numa toalha quente, encontrou o juiz Arcadio.

- Maldito seja, juiz - gritou -, há dois dias que ando à sua procura.

O barbeiro retirou a toalha e o alcaide viu uns olhos esbugalhados e o queixo ensombrado por uma barba de três dias.

- Você anda perdido, enquanto a sua mulher está a parir.

O juiz Arcadio saltou da cadeira:

- Merda!

O alcaide riu ruidosamente, empurrando-o para a cadeira.

- Não seja tolo - disse ele. - Estou à sua procura para outra coisa. - O juiz Arcadio voltou a estirar-se com os olhos fechados. - Acabe com isso e venha ao gabinete - acrescentou o alcaide. - Fico à sua espera.

- Sentou-se no escano e perguntou: - Por onde raio andou todo este tempo?

- Por aí - respondeu o juiz.

O alcaide não frequentava a barbearia. Uma vez tinha reparado no letreiro pregado na parede: É proibido falar de política", mas tinha-lhe parecido natural. Daquela vez, no entanto, resolveu dar-lhe uma atenção especial.

- Guardiola - chamou.

O barbeiro limpou a navalha nas calças e permaneceu em suspenso.

- O que é, tenente?

- Quem te autorizou a pôr ali aquele letreiro? perguntou o alcaide, apontando o aviso.

- A experiência - respondeu o barbeiro.

O alcaide levou um banco até ao fundo da sala e subiu nele para retirar o papel.

- Aqui só o Governo tem o direito de proibir seja o que for - disse. - Estamos numa democracia.

O barbeiro voltou ao trabalho.

- Ninguém pode impedir que as pessoas expressem as suas ideias - prosseguiu o alcaide, rasgando o aviso.

Deitou os pedaços no cesto do lixo e foi lavar as mãos.

- Estás a ver, Guardiola - sentenciou o juiz Arcadio -, o que te acontece por seres parvo?

O alcaide procurou o barbeiro no espelho e viu-o absorvido no seu trabalho. Não o perdeu de vista enquanto secava as mãos.

- A diferença entre antes e agora, é que antes mandavam os políticos e agora manda o Governo.

- Estás a ouvi-lo, Guardiola? - perguntou o juiz Arcadio com a cara coberta de espuma.

- Claro - respondeu o barbeiro.

Ao sair, empurrou o juiz Arcadio para o tribunal. Sob a chuvinha persistente, as ruas pareciam pavimentadas de sabão fresco.

- Sempre acreditei que aquilo é um ninho de conspiradores - disse o alcaide.

- Eles falam - retorquiu o juiz Arcadio. - Mas não passam daí.

- O que me chateia é isso mesmo - disse o alcaide. - É pareceram demasiado mansos.

- Na história da humanidade - sentenciou o juiz - não houve um único barbeiro conspirador. Em troca, não houve um único alfaiate que o não tenha sido.

Não soltou o braço do juiz Arcadio enquanto não o instalou na cadeira giratória. O escrivão entrou, a bocejar, com uma folha de papel escrita à máquina.

- É isso - disse ele ao alcaide. - Vamos trabalhar. Inclinou o chapéu para a nuca e mostrou a folha.

- O que é isso?

- É para o juiz - respondeu o escrivão. - É a lista das pessoas a quem não puseram pasquins.

O alcaide olhou para o juiz com uma expressão de perplexidade.

- Caramba! - exclamou. - Também você está dependente desta história de merda?

- É como ler romances policiais - desculpou-se o juiz.

O alcaide leu a lista.

- É uma boa pista - explicou o escrivão. - O autor tem de ser um desses. Não é lógico?

O juiz Arcadio tirou a folha ao alcaide.

- Este é maluco de todo - disse ele, dirigindo-se ao alcaide. Depois falou ao escrivão: - Se eu ponho os pasquins, a primeira coisa que faço é pôr um na minha própria casa para evitar qualquer suspeita. - E perguntou ao alcaide: - Não acha, tenente?

- São jogos das pessoas - respondeu o alcaide -, e elas saberão porque o fazem. Nós não temos que suar essa camisa.

O juiz Arcadio rasgou a folha, fez com ela uma bola e atirou-a para o pátio:

- Tem razão - concluiu.

Antes da resposta, já o alcaide tinha esquecido o incidente. Apoiou as palmas das mãos na secretária e disse:

- Bem, o problema para o qual quero que encontre solução nos seus livros é este: devido às inundações, a gente da zona baixa transportou as suas casas para os terrenos situados atrás do cemitério. Esses terrenos são minha propriedade. Que tenho que fazer, neste caso?

O juiz Arcadio sorriu.

- Para tal não tínhamos necessidade de vir aqui - respondeu o juiz. - É a coisa mais simples do mundo: o município adjudica os terrenos aos colonos e paga a indemnização correspondente a quem demonstre possuí-los a justo título.

- Tenho as escrituras - retorquiu o alcaide.

- Então resta apenas nomear peritos para fazerem a avaliação - disse o juiz. - O município paga.

- Quem os nomeia?

- Podem ser nomeados por si.

O alcaide caminhou para a porta, ajustando o coldre do revólver. Vendo-o afastar-se, o juiz Arcadio pensou que a vida não era mais do que uma sucessão contínua de oportunidades para sobreviver.

- Não vale a pena ficar nervoso por uma questão tão simples - disse ele, sorrindo.

- Não estou nervoso - respondeu o alcaide, com ar sério -, mas não deixa de ser um problema.

- Evidentemente, tem de nomear antes o delegado.

O alcaide olhou o juiz:

- É assim?

- Em estado de sítio não é absolutamente indispensável - disse o juiz -, mas é evidente que a sua posição estaria menos vulnerável se, nesse caso, interviesse um delegado, dada a casualidade de os terrenos em litígio serem seus.

- Então é preciso nomeá-lo - concluiu o alcaide.

 

O senhor Benjamín mudou o pé na caixa do engraxador,sem tirar a vista dos galináceos que disputavam entre si uma tripa no meio da rua.Observou os movimentos difíceis dos animais,cerimoniosos,como que a dançarem uma dança antiga,e admirou a fidelidade representativa dos homens que se disfarçam de galináceos no domingo da Quinquagésima.O rapaz sentado a seus pés untou com óxido de zinco o outro sapato e deu uma pancada na caixa para significar a ordem de mudar novamente de pé.

O senhor Benjamín,que em outras épocas vivera de escrever memoriais,nunca tinha pressa para nada.

O tempo possuía uma velocidade imperceptível dentro daquela loja que ele tinha comido centavo a centavo,até a reduzir a um galão de petróleo e um maço de velas de sebo.

- Apesar de chover,continua a fazer calor - anunciou o rapaz.

O senhor Benjamín não concordou.Vestia impecavelmente de linho imaculado.O rapaz,em troca,tinha as costas empapadas.

- O calor é uma questão mental - disse o senhor Benjamín.- Tudo consiste em não lhe prestar atenção.

O rapaz não fez comentários.Deu outra pancada na caixa e um momento depois o trabalho estava concluído.

No interior da sua lúgubre loja de armários vazios,o senhor Benjamín vestiu o casaco.Depois pôs um chapéu de palha entrelaçada,atravessou a rua protegendo-se da chuvinha com o guarda-chuva,e bateu na janela da casa em frente.Pela porta entreaberta assomou uma rapariguinha de cabelos de um negro intenso e pele muito pálida.

- Bom dia,Mina - disse o senhor Benjamín.- Ainda não vais almoçar?

Ela respondeu que não e acabou por abrir a janela.

Estava sentada diante de um grande cesto com arames cortados e papéis coloridos. Tinha no regaço um novelo de fio, uma tesoura e um ramo de flores artificiais por acabar. Um disco tocava, lá dentro.

- Fazes-me o favor de deitar um olho para a loja enquanto eu não estou? - pediu o senhor Benjamín.

- Demora?

O senhor Benjamín estava atento ao disco.

- Vou até ao dentista - respondeu. - Volto daqui a meia hora.

- Está bem - disse Mina. - A cega não quer que eu me demore à janela.

O senhor Benjamín deixou de ouvir o disco.

- Todas as canções de agora são iguais, comentou. Mina levantou uma flor terminada no extremo com um comprido arame forrado em papel verde. Fê-la girar com os dedos, fascinada com a correspondência perfeita entre o disco e a flor.

- O senhor não gosta de música? - perguntou.

Mas o senhor Benjamín tinha partido, caminhando em bicos de pés para não espantar os galináceos. Mina não recomeçou o trabalho enquanto não o viu bater na casa do dentista.

- Na minha maneira de ver - disse o dentista ao abrir a porta-, o camaleão tem a sensibilidade nos olhos.

- É possível - admitiu o senhor Benjamín. - Mas a que propósito vem isso?

- Acabo de ouvir no rádio que os camaleões cegos não mudam de cor - respondeu o dentista.

Depois de colocar o guarda-chuva aberto na varanda, o senhor Benjamín pendurou no mesmo prego o chapéu e o casaco e ocupou a cadeira. O dentista amassava no almofariz uma pasta rosada.

- Dizem-se muitas coisas - disse o senhor Benjamín.

Não só naquele instante, mas em qualquer outra circunstância, falava com uma inflexão misteriosa.

- Sobre os camaleões?

- Sobre todas as coisas.

O dentista aproximou-se da cadeira com a pasta terminada, para tirar o molde. O senhor Benjamín extraiu a velha dentadura postiça, envolveu-a num lenço e pousou-a numa prateleira de vidro junto da cadeira. Sem dentes, com os seus ombros estreitos e membros esquálidos, tinha algo de santo. Depois de ajustar a pasta no palato, o dentista mandou-o fechar a boca.

- É isso - disse, olhando-o nos olhos. - Sou um covarde.

O senhor Benjamín tentou uma inspiração profunda, mas o dentista manteve-o de boca fechada. Não", respondeu interiormente. Não é isso." Sabia, como toda a gente, que o dentista fora o único condenado à morte que não abandonara a sua casa. Tinham-lhe furado as paredes a tiro, haviam-lhe dado um prazo de vinte e quatro horas para abandonar a terra, mas não conseguiram dobrá-lo. Tinha transladado o consultório para um quarto interior, e trabalhou com o revólver ao alcance da mão, sem perder as estribeiras, até terem passado os longos meses de terror.

Enquanto trabalhava, o dentista viu assomar várias vezes aos olhos do senhor Benjamín a mesma resposta expressa em diversos graus de angústia. Mas manteve-lhe a boca fechada, esperando que a pasta secasse. Depois retirou o molde.

- Não me referia a isso - desafogou-se, finalmente.

- Referia-me aos pasquins.

- Ah! - exclamou o dentista. - De maneira que também estás pendente do caso?

- É um sintoma de decomposição social - disse o senhor Benjamín.

Tinha voltado a pôr a dentadura postiça e iniciava o meticuloso processo de vestir o casaco.

- É um sintoma de que tudo se sabe, mais tarde ou mais cedo - disse o dentista, com indiferença.

Olhou o céu turvo através da janela e propôs:

- Se quiseres, espera que passe.

O senhor Benjamín pendurou o guarda-chuva no braço.

- A loja está sem ninguém - disse ele olhando por sua vez a pesada nuvem negra de chuva. Despediu-se com o chapéu. - Tira essa ideia da cabeça, Aurelioacrescentou da porta. - Ninguém tem o direito de pensar que és um covarde por teres tirado um dente ao alcaide.

- Nesse caso, espera um segundo. - Avançou até à porta e deu ao senhor Benjamín uma folha dobrada.Lê-a e fá-la circular.

O senhor Benjamín não teve necessidade de desdobrar a folha para saber do que se tratava. Olhou-o, boquiaberto :

- Outra vez?

O dentista afirmou que sim com a cabeça e permane ceu na porta, até o senhor Benjamín ter saído.

Ao meio-dia a mulher chamou-o para almoçar. Ángela, a filha de vinte anos, cerzia meias na sala de jantar mobilada de modo simples e pobre, com coisas que pareciam ter sido velhas desde o início. No peitoril de madeira que dava para o pátio, havia uma fila de vasos pintados de vermelho com plantas medicinais.

- O pobre Benjamín - disse o dentista no momento de ocupar o seu lugar à mesa - está preocupado com os pasquins.

- Todo o mundo está preocupado - retorquiu a mulher.

- As Tovar vão-se embora daqui - interveio Ángela.

A mãe recebeu os pratos para servir a sopa.

- Estão a vender a toda a pressa - disse ela.

Ao aspirar o aroma cálido da sopa, o dentista sentiu-se alheado das preocupações da sua mulher.

- Mais tarde voltarão - disse ele. - A vergonha tem fraca memória.

Soprando na colher antes de comer a sopa, esperou o comentário da filha, uma rapariga de aspecto um pouco árido, como ele, cujo olhar desprendia, no entanto, uma rara vivacidade. Mas ela não correspondeu à sua expectativa. Falou do circo. Disse que havia um homem que cortava a mulher pelo meio com um serrote, um anão que cantava com a cabeça metida na boca de um leão e um trapezista que dava o triplo salto mortal em cima de uma plataforma cheia de facas. O dentista ouviu-a, comendo em silêncio. No fim prometeu que naquela noite, se não chovesse, iriam todos ao circo.

No quarto, enquanto pendurava a rede para a sesta, compreendeu que a promessa não tinha alterado a disposição da sua mulher. Também ela estava disposta a abandonar aquela terra se lhe pusessem um pasquim.

O dentista ouviu-a sem se surpreender:

- Seria bonito que não tivessem podido mandar-nos embora a tiro - disse ela - e agora nos expulsassem com um papel colado na porta.

O dentista tirou os sapatos, deitou-se na rede com as meias calçadas e afirmou, tranquilizando-a:

- Mas não te preocupes, que não há o menor perigo de fazerem isso.

- Não respeitam ninguém - retorquiu a mulher.

- Depende - disse o dentista. - Comigo sabem que a coisa tem outro preço.

A mulher estendeu-se na cama com um ar de cansaço infinito.

- Se pelo menos se soubesse quem os põe.

- Quem os põe, sabe - concluiu o dentista.

 

O alcaide costumava passar dias inteiros sem comer. Simplesmente, esquecia-se. A sua actividade, febril em certas ocasiões, era tão irregular como as prolongadas épocas de ócio e aborrecimento em que vagueava pela terra sem qualquer propósito, ou se encerrava no gabinete blindado, sem consciência do decurso do tempo. Sempre sozinho, sempre um pouco ao acaso, não tinha um interesse especial, nem se lembrava de uma época pautada por costumes regulares. Só impulsionado por uma necessidade irresistível aparecia no hotel a qualquer hora e comia o que lhe servissem.

Naquele dia almoçou com o juiz Arcadio. Ficaram juntos toda a tarde, até ter sido legalizada a venda dos terrenos. Os peritos cumpriram o seu dever. O delegado, nomeado com carácter de interinidade, desempenhou o seu cargo durante duas horas. Pouco depois das quatro, ao entrar na sala de bilhar, ambos pareciam regressar de uma penosa incursão no futuro.

- Ainda bem que este assunto está arrumado - disse o alcaide, sacudindo as palmas das mãos.

O juiz Arcadio não lhe prestou atenção. O alcaide viu-o a procurar às cegas um banquinho e deu-lhe um analgésico.

- Um copo de água - ordenou a Don Roque.

- Uma cerveja gelada - corrigiu o juiz Arcadio, com a testa apoiada no balcão.

- Ou uma cerveja gelada - rectificou o alcaide, pondo o dinheiro em cima do balcão. - Ganhou-a, trabalhando como um homem.

Depois de beber a cerveja, o juiz Arcadio esfregou o couro cabeludo com os dedos. O estabelecimento agitava-se num ar de festa esperando o desfile do circo.

O alcaide viu-o passar da sala de bilhar. Sacudida pelos cobres e latas da banda, passou primeiro uma rapariga com um trajo prateado, em cima de um elefante anão de orelhas como folhas de malanga. Atrás vieram os palhaços e os trapezistas. A chuva tinha parado por completo, os últimos raios de sol aqueciam a tarde lavada. Quando a música parou para que o homem em cima das andas lesse o pregão, todo o povoado pareceu elevar-se do chão num silêncio de milagre.

O padre Ángel, que viu o desfile da sua salinha, ficou com o ritmo da música na cabeça. Aquele bem-estar resgatado da infância acompanhou-o durante o jantar e depois de noite, até ter terminado de controlar as entradas no cinema e se encontrar novamente consigo mesmo, no seu quarto. Depois de rezar, permaneceu num êxtase melancólico na cadeira de balouço, de verga, sem reparar no bater das nove nem quando o altifalante do cinema se calou e em seu lugar ficou o coaxar de um sapo. Dali foi para a mesa de trabalho, redigir uma nota para o alcaide.

Num dos lugares de honra do circo, que ocupara a instâncias do empresário, o alcaide presenciou o número inicial dos trapézios e uma entrada dos palhaços. Depois apareceu Casandra, vestida de veludo negro e com os olhos vendados, oferecendo-se para adivinhar o pensamento dos espectadores. O alcaide fugiu. Fez uma ronda de rotina pelas ruas da terra e às dez foi ao comando. Ali o esperava, em cartão-de-visita e com letra muito composta, a mensagem do padre Ángel. Alarmou-o o formalismo da solicitação.

O padre Ángel começava a despir-se quando o alcaide bateu à porta.

- Caramba - disse o pároco -, não o esperava tão depressa. - O alcaide descobriu a cabeça antes de entrar.

- Gosto de responder a tempo às cartas - retorquiu sorrindo.

Lançou o boné, fazendo-o girar como um disco, para a cadeira de verga. Sob a prateleira das talhas, havia algumas garrafas de gasosa postas a refrescar na água de um alguidar. O padre Ángel tirou uma.

- Bebe uma limonada?

O alcaide aceitou.

- Tomei a liberdade de o incomodar - disse o padre, indo direito ao seu propósito - para manifestar a minha preocupação pela sua indiferença perante os pasquins.

Disse-o de um modo que poderia ser interpretado como uma brincadeira, mas o alcaide tomou-o à letra. Perguntou a si mesmo, perplexo, como era possível que a preocupação com os pasquins tivesse podido arrastar o padre Ángel até àquele ponto.

- É estranho, padre, que também o senhor esteja pendente desse caso.

O padre Ángel procurava em todas as gavetas, sem o encontrar, o abre-latas. Respondeu, um pouco atarantado, sem saber o que fazer com a garrafa:

- Não são os pasquins em si mesmo aquilo que me preocupa. O que me traz apreensivo é, digamos, um certo estado de injustiça que há em tudo isto.

O alcaide tirou-lhe a garrafa da mão e abriu-a na espora da bota, com uma habilidade da mão esquerda que chamou a atenção do padre Ángel. Lambeu no gargalo da garrafa a espuma que saía.

- Há uma vida privada - começou a falar, sem conseguir uma conclusão. Muito a sério, padre, não vejo o que se possa fazer.

O padre instalou-se na mesa de trabalho.

- Devia saber - retorquiu o padre. - Ao fim e ao cabo não é nada de novo para si. - Percorreu o aposento com um olhar impreciso e disse noutro tom: - Seria preciso fazer alguma coisa antes de domingo.

- Hoje é quinta-feira - precisou o alcaide.

- Estou consciente da escassez do tempo - respondeu o padre. E acrescentou num impulso recôndito:Mas talvez não seja demasiado tarde para que o senhor cumpra o seu dever.

O alcaide tentou torcer o gargalo à garrafa. O padre Ángel viu-o passear-se de um extremo ao outro do aposento, aprumado e esbelto, sem qualquer sinal de perda física, e experimentou um definido sentimento de inferioridade.

- Como vê - reafirmou -, não se trata de nada de excepcional.

Na torre, bateram as onze horas. O alcaide esperou até que a última ressonância se desvanecesse e então inclinou-se diante do padre, com as mãos apoiadas na mesa. O rosto tinha a mesma ansiedade reprimida que a voz iria revelar.

- Olhe uma coisa, padre - começou. - A terra está tranquila, as pessoas começam a ter confiança na autoridade. Qualquer manifestação de força neste momento seria um risco grande de mais para uma coisa sem importância de maior.

O padre Ángel aprovou com a cabeça. Tentou explicar-se.

- Refiro-me, de um modo geral, a certas medidas da autoridade.

- Em todo o caso - prosseguiu o alcaide sem mudar de atitude -, eu tomo em conta as circunstâncias. O senhor sabe: tenho aí seis agentes fechados no quartel a ganhar o seu soldo sem fazerem nada. Não consegui que os mudassem.

- Bem sei - disse o padre Ángel. - Não o culpo de nada.

- Actualmente - prosseguiu o alcaide com veemência, sem se preocupar com as interrupções - não é segredo para ninguém que três deles são criminosos comuns, tirados das prisões e disfarçados de polícias. Tal como as coisas estão, não vou correr o risco de os mandar para a rua caçar um fantasma.

O padre Ángel abriu os braços.

- Claro, claro - reconheceu com decisão. - Isso é evidente, está fora de questão. Mas porque não recorre, por exemplo, aos bons cidadãos?

O alcaide esticou-se, bebendo da garrafa a sorvos rápidos. Tinha o peito e as costas empapados de suor.

- Os bons cidadãos, como o senhor diz, riem à gargalhada dos pasquins - afirmou o alcaide.

- Nem todos.

- Além do mais, não é justo alarmar as pessoas por uma coisa que ao fim e ao cabo não vale a pena. Francamente, padre - concluiu de bom humor -, até esta noite não me tinha passado pela ideia que o senhor e eu tivéssemos alguma coisa a ver com esse assunto.

O padre Angel assumiu uma atitude maternal.

- Até certo ponto, sim - respondeu, iniciando uma laboriosa justificação, na qual já se encontravam parágrafos amadurecidos do sermão que tinha começado a ordenar mentalmente desde o dia anterior ao almoço, em casa da viúva de Asís.

- Trata-se, se assim se pode dizer - concluiu -, de um caso de terrorismo da ordem moral.

O alcaide sorriu abertamente.

- Bem, bem - quase o interrompeu. - Também não é caso para gastar filosofia a propósito dos papelinhos, padre. - Abandonando na mesa a garrafa por terminar, transigiu com boa disposição: - Se me põe as coisas dessa maneira, veremos o que se pode fazer.

O padre Ángel agradeceu. Não era nada grato, segundo revelou, subir ao púlpito no próximo domingo com uma tal preocupação. O alcaide tinha tentado compreendê-lo. Mas reparara que já era muito tarde e que estava a fazer o pároco perder a noite.

O rufo do tambor reapareceu como um espectro do passado. Estalou frente à sala de bilhar, às dez da manhã, e susteve a terra em equilíbrio no seu puro centro de gravidade, até que bateram as três severas advertências do final e se restabeleceu a angústia.

- A morte! - exclamou a viúva de Montiel, ao ver abrirem-se as portas e as janelas e pessoas surgirem de toda a parte em direcção à praça. - A morte chegou!

Refeita da impressão inicial, abriu as cortinas da varanda e observou o tumulto em torno do agente da Polícia que se dispunha a ler o edital. Havia na praça um silêncio grande de mais para a voz do pregoeiro. Apesar da atenção que pôs para tentar ouvir, pondo a mão em concha atrás da orelha, a viúva de Montiel só conseguiu entender duas palavras.

Ninguém conseguiu informá-la, na casa. O edital tinha sido lido com o mesmo ritual autoritário de sempre, uma nova ordem reinava no mundo, e ela não encontrava ninguém que o tivesse ouvido. A cozinheira ficou alarmada ao ver-lhe a palidez.

- O que dizia o edital?

- É isso que estou a tentar averiguar, mas ninguém sabe nada. Evidentemente - acrescentou a viúva -, desde que o mundo é mundo um pregão desses nunca trouxe nada de bom.

A cozinheira saiu então para a rua e voltou com os pormenores. A partir dessa noite e até terem cessado as razões que o motivavam, era restabelecido o recolher obrigatório. Ninguém podia sair para a rua depois das oito da noite até às cimco da manhã, sem um salvo-conduto assinado e selado pelo alcaide. A Polícia tinha ordem para dar três vezes voz de alto a qualquer pessoa encontrada na rua nesse período e disparar no caso de não ser obedecida. O alcaide organizaria rondas de civis, designados por ele mesmo para colaborarem com a Polícia na vigilância nocturna.

Mordiscando as unhas, a viúva de Montiel perguntou quais as causas de uma tal medida.

- No edital não está escrito - respondeu a cozi nheira -, mas toda a gente o diz: os pasquins.

- O coração já me tinha respondido! - exclamou a viúva, aterrorizada. - A morte está encarniçada contra esta terra.

Mandou chamar o senhor Carmichael. Obedecendo a uma força mais antiga e mais madura que um impulso, mandou retirar do depósito e levar para o seu quarto a mala de couro com cravos de cobre que José Montiel tinha comprado para a sua única viagem, um ano antes de morrer. Tirou do armário alguns vestidos, roupa interior e sapatos, ordenando tudo no fundo da mala. Ao fazê-lo, começou a sentir a sensação de repouso absoluto com que tantas vezes tinha sonhado, imaginando-se longe dali, daquela terra e daquela casa, num quarto com um fogão e um terracinho para cultivar orégãos, onde só ela tivesse o direito de se recordar de José Montiel, e a sua única preocupação fosse esperar pelas tardes de segunda-feira para ler as cartas das filhas.

Tinha emalado apenas a roupa indispensável: o estojo de couro com tesouras, ligaduras e o frasquinho de tintura de iodo, os utensílios de costura e depois a caixa de sapatos com o rosário e os livros de orações, e já a atormentava a ideia de que levava mais coisas do que aquelas que Deus podia perdoar. Então meteu o São Rafael de gesso dentro de uma meia, acomodou-o cuidadosamente entre os trapos e fechou a mala.

Quando o senhor Carmichael chegou, encontrou-a vestida com as suas roupas mais modestas. Naquele dia, como um sinal promissor, o senhor Carmichael não trazia o guarda-chuva. Mas a viúva não reparou. Tirou da carteira todas as chaves da casa, cada uma com indicação escrita à máquina num cartãozinho, e entregou-as, dizendo:

- Coloco nas suas mãos o pecaminoso mundo de José Montiel. Faça com ele o que lhe der na gana.

O senhor Carmichael receava há muito tempo a chegada daquele momento.

- Quer dizer - gaguejou - que a senhora pretende sair daqui durante um tempo, enquanto estas coisas se passam.

A viúva respondeu com voz repousada, mas de um modo rotundo :

- Vou-me embora para sempre.

O senhor Carmichael, sem demonstrar o seu alarme, pô-la ao corrente da situação. Em síntese, a herança de José Montiel não tinha sido legalizada. Muitos dos bens adquiridos de qualquer maneira e sem tempo para se cumprirem formalidades encontravam-se numa situação legal indefinida. Enquanto não se pusesse em ordem aquela fortuna caótica, da qual o próprio José Montiel não tivera nos últimos anos de vida uma noção aproximada, era impossível fazer partilhas e liquidar o imposto sucessório. O filho mais velho, no seu posto consular na Alemanha, e as suas duas filhas, fascinadas pelos delirantes mercados de carne de Paris, tinham de regressar ou de nomear procuradores para fazerem valer os seus direitos. Antes disso, nada se podia vender.

A momentânea iluminação daquele labirinto, onde estava perdida desde há dois anos, não conseguiu desta vez comover a viúva de Montiel.

- Não importa - insistiu. - Os meus filhos são felizes na Europa e não têm nada a fazer neste país de selvagens, como eles lhe chamam. Se o senhor quiser, senhor Carmichael, faça um pacote com tudo o que se encontrar nesta casa e deite-o aos porcos.

O senhor Carmichael não a contrariou. Com o pretexto de que seria preciso, de qualquer maneira, preparar algumas coisas para a viagem, saiu à procura do médico.

 

- Agora vamos ver, Guardiola, em que consiste o teu patriotismo. O barbeiro e o grupo de homens que conversava na barbearia reconheceram o alcaide antes de o verem à porta. - E também o de vocês - prosseguiu, apontando os mais novos. - Esta noite terão a espingarda que tanto desejaram, vamos a ver se são tão ordinários que as voltem contra nós. - Era impossível confundir o tom cordial das suas palavras.

- Era melhor uma vassoura - respondeu o barbeiro. - Para caçar bruxas, não há melhor espingarda do que uma vassoura.

Nem sequer o olhou. Estava a barbear o primeiro cliente da manhã, e não tomava o alcaide a sério. Só quando o viu a averiguar quais do grupo eram reservistas e estavam pois capacitados para manobrar uma espingarda, o barbeiro compreendeu que de facto era um dos escolhidos.

- É verdade, tenente, que nos vai pôr nessa tarefa?

- Caralho! - respondeu o alcaide. - Passam a vida a suspirar por uma espingarda e agora que a vão ter não conseguem acreditar. - Parou atrás do barbeiro, um lugar de onde podia dominar todo o grupo pelo espelho.

- Falo a sério - acrescentou, alterando a voz para um tom autoritário. - Esta tarde, às seis, os reservistas de primeira classe apresentam-se no quartel.

O barbeiro enfrentou-o, pelo espelho:

- E se me dá uma crise nos pulmões? - perguntou.

- Curamos-te na cadeia - respondeu o alcaide.

O gira-discos da sala de bilhar distorcia um bolero sentimental. A sala estava vazia, mas em algumas mesas havia garrafas e copos ainda com bebida por consumir.

- Agora, sim - disse Don Roque, vendo entrar o alcaide. - Acabou de se armar nova trapalhada. Teremos de fechar às sete.

O alcaide seguiu directamente até ao fundo da sala, onde também as mesas de jogo estavam desocupadas. Abriu a porta do urinol, deu uma olhada ao armazém, e regressou ao balcão. Ao passar junto do bilhar, levantou inesperadamente o pano que o cobria até aos pés, dizendo :

- Bem, devem ser uns poltrões.

Dois rapazes saíram do esconderijo, sacudindo a poeira das calças. Um deles estava pálido. O outro, mais novo, tinha as orelhas a escaldar. O alcaide empurrou-os suavemente até às mesinhas da entrada.

- Então, já sabem - disse. - Às seis da tarde no quartel.

Don Roque continuava atrás do balcão.

- Com esta nova trapalhada - afirmou - teremos de nos dedicar ao contrabando.

- Será por dois ou três dias - retorquiu o alcaide.

O proprietário do cinema apanhou-o na esquina.

- Era só isto o que me faltava - gritou. - Depois das doze badaladas, um toque de corneta. - O alcaide deu-lhe uma pancadinha no ombro e disse seguindo o seu caminho :

- Vou expropriá-lo.

- Não pode - gritou o proprietário. - O cinema não é um serviço público.

- Em estado de sítio - argumentou o alcaide -, até o cinema pode ser declarado serviço público.

Só então parou de sorrir. Subiu dois a dois os degraus do quartel e ao chegar ao primeiro andar abriu os braços novamente.

- Merda! - exclamou. - Você também? Derrubado numa cadeira de dobrar, com a negligência de um monarca oriental, estava o dono do circo. Fumava, extasiado, um cachimbo de lobo do mar. Como se fosse ele que estivesse em sua casa, fez sinal ao alcaide para se sentar.

- Vamos falar de negócios, tenente.

O alcaide sentou-se diante dele. Sustentando o cachimbo com a mão empedrada de cores, o empresário fez um sinal enigmático.

- Posso falar com toda a franqueza?

O alcaide fez um sinal de que podia.

- Eu soube-o desde que o vi a barbear-se - disse o empresário. - Pois bem: eu, que estou acostumado a conhecer as pessoas, sei que este recolher obrigatório, para si... - O alcaide examinava-o com um definido propósito de se entreter. -. . em troca, para mim, que já fiz as despesas de instalação e tenho de alimentar dezassete pessoas e nove feras, é simplesmente um desastre.

- E então ?

- Proponho - respondeu o empresário - que altere o início do recolher obrigatório para as onze e poderemos repartir entre os dois o lucro das sessões nocturnas.

O alcaide continuou a sorrir, sem mudar de posição na cadeira.

- Suponho - disse ele - que não teve muito trabalho para encontrar aqui quem lhe dissesse que sou um ladrão.

- É um negócio legítimo - protestou o empresário.

Não reparou em que momento o alcaide passou a uma expressão grave.

- Falamos na segunda-feira - disse o tenente, de um modo impreciso.

- Na segunda-feira terei empenhado os trastes replicou o empresário. - Somos muito pobres.

O alcaide levou-o até à escada com palmadinhas suaves no ombro.

- Não me diga isso a mim - disse o alcaide. - Eu conheço o negócio. - Junto da escada, acrescentou em tom consolador: - Envie-me a Casandra, esta noite.

O empresário tentou voltar-se, mas a mão no ombro exercia uma pressão decidida.

- Evidentemente - respondeu. - Isso é um dado adquirido.

- Mande-a - insistiu o alcaide - e amanhã falaremos.

 

Com a ponta dos dedos, o senhor Benjamín empurrou a porta aramada, mas não entrou na casa. Exclamou, com secreto desespero:

- As janelas, Nora!

Nora de Jacob, madura e alta, com o cabelo cortado como o de um homem, jazia diante do ventilador eléctrico na penumbra da sala. Esperava o senhor Benjamín para almoçar. Ao ouvi-lo, levantou-se com esforço e abriu as quatro janelas que davam para a rua. Um jorro de calor entrou na sala de ladrilhos com o desenho de um mesmo pavão anguloso, indefinidamente repetido, e móveis forrados com tecidos floridos. Em cada pormenor se observava um luxo pobre.

- Que há de verdade no que dizem as pessoas? perguntou.

- Dizem-se tantas coisas.

- Sobre a viúva de Montiel - precisou Nora de Jacob. - Andam a dizer que ficou doida.

- Para mim, está doida há muito tempo - disse o senhor Benjamín. E acrescentou com um certo desencanto: - É isso mesmo: esta manhã tentou atirar-se da varanda.

A mesa, inteiramente visível da rua, estava preparada com um talher em cada extremo.

- Castigo de Deus - afirmou Nora de Jacob batendo palmas para que servissem o almoço. Levou a ventoinha eléctrica para a sala de jantar.

- A casa está cheia de gente desde esta manhãdisse o senhor Benjamín.

- É uma boa oportunidade de a ver por dentro - replicou Nora de Jacob.

Uma menina negra, com a cabeça cheia de nós coloridos, trouxe para a mesa a sopa a ferver. O cheiro do frango invadiu a sala e a temperatura tornou-se intolerável. O senhor Benjamín ajustou o guardanapo no pescoço, dizendo: Saúde." Tentou comer com a colher a ferver.

- Sopra, não sejas tolo - disse ela, impaciente.Além disso, tens de tirar o casaco. Os teus escrúpulos de não entrar em casa com as janelas fechadas vão acabar por me matar de calor.

- Agora é mais indispensável que nunca - retorquiu ele. - Ninguém poderá dizer que não viu, a partir da rua, todos os meus movimentos quando me encontro em tua casa.

Ela mostrou o seu esplêndido sorriso ortopédico, com uma gengiva de lacre para selar documentos.

- Não sejas ridículo! - exclamou. - Por mim, podem dizer o que quiserem. - Quando conseguiu engolir a sopa, continuou a falar durante as pausas. - Poderia preocupar-me, isso sim, com o que dissessem da minha filha Mónica - concluiu, referindo-se à sua filha de quinze anos que não tinha vindo de férias desde que fora pela primeira vez para o colégio. - Mas de mim não podem dizer mais do que aquilo que já todos sabem.

O senhor Benjamín não lhe dirigiu, desta vez, o seu habitual olhar de desaprovação. Comiam a sopa em silêncio, separados pelos dois metros do comprimento da mesa, a distância mais curta que alguma vez ele se teria

permitido, sobretudo em público. Quando ela estava no colégio, vinte anos antes, ele escrevia-lhe umas cartas longas e convencionais a que ela respondia com papeli nhos apaixonados. Numas férias, durante um passeio campestre, Néstor Jacob, completamente embriagado, arrastou-a pelos cabelos para um extremo do curral e declarou-se-lhe sem alternativas: Se não casares comigo dou-te um tiro." Casaram-se no fim das férias. Dez anos depois tinham-se separado.

- De qualquer modo - disse o senhor Benjamín não se pode estimular com portas fechadas a imaginação das pessoas.

Levantou-se ao terminar o café.

- Vou-me embora - anunciou. - A Mina deve estar desesperada: - Da porta, ao pôr o chapéu, exclamou: - Esta casa está a arder!

- É o que eu te digo - respondeu ela.

Esperou até que o viu despedir-se com uma espécie de bênção, na última janela. Depois levou a ventoinha para o quarto, fechou a porta e despiu-se completamente. Por fim, como todos os dias depois do almoço, entrou no quarto de banho e sentou-se na retrete, sozinha com o seu segredo.

Quatro vezes por dia via passar Néstor Jacob diante da casa. Toda a gente sabia que estava instalado com outra mulher, que tinha tido com ela quatro filhos e que era considerado um pai exemplar. Várias vezes, nos últimos anos, havia passado com as crianças diante da casa, mas nunca com a mulher. Ela tinha-o visto enfraquecer, ficar velho e pálido, e converter-se num estranho cuja intimidade de outros tempos lhe parecia inconcebível. Por vezes, durante as sestas solitárias, tinha tornado a desejá-lo de um modo premente: não como o via passar diante da casa, mas sim como era na época que precedera o nascimento de Mónica, quando o seu amor breve e ocasional ainda não se lhe tinha tornado intolerável.

 

O juiz Arcadio dormiu até ao meio-dia, por isso não teve notícia do edital antes de chegar ao tribunal. O escrivão, pelo contrário, estava alarmado desde as oito, hora a que o alcaide lhe pediu que redigisse o decreto.

- De qualquer maneira - reflectiu o juiz Arcadio depois de se inteirar dos pormenores -, está concebido em termos drásticos. Não era necessário.

- É o mesmo decreto de sempre.

- É verdade - admitiu o juiz. - Mas as coisas mudaram, e é preciso que os termos mudem igualmente. As pessoas devem estar assustadas.

No entanto, segundo comprovou mais tarde a jogar cartas na sala de bilhar, o temor não era o sentimento predominante. Havia mesmo, de preferência, uma sensação de vitória colectiva por se confirmar o que estava na consciência de todos: as coisas afinal não tinham mudado. O juiz Arcadio não iludiu o alcaide quando saía da sala de jogos.

- Então os pasquins não tinham importância - disse-lhe. - As pessoas estão felizes.

O alcaide tomou-o pelo braço.

- Não se está a fazer nada contra as pessoas - retorquiu. - É uma questão de rotina. - O juiz Arcadio desesperava-se com aquelas conversas ambulantes. O alcaide caminhava com passo firme, como se tivesse diligências urgentes, e depois de muito andar reparava que não ia para parte alguma. - Isto não vai durar toda a vida - prosseguiu. - Daqui até domingo teremos na gaiola o engraçadinho dos papelinhos. Não sei porquê, penso que seja uma mulher.

O juiz Arcadio não acreditava. Apesar da negligência com que aceitava as informações do seu escrivão, tinha chegado a uma conclusão geral: os pasquins não eram obra de uma única pessoa. Não pareciam obedecer a um plano concertado. Alguns, nos últimos dias, apresentavam uma nova modalidade: eram desenhos.

- Pode acontecer que não seja um homem nem uma mulher - concluiu o juiz Arcadio. - Pode acontecer que sejam diversos homens e diversas mulheres, actuando cada um por sua conta.

- Não me complique as coisas, juiz - disse o alcaide. - Devia saber que em todos os sarilhos, embora intervenham muitas pessoas, há sempre um culpado.

- Isso é o que diz Aristóteles, tenente - replicou o juiz Arcadio. E acrescentou, convicto: - De todos os modos, a medida parece-me disparatada. Quem os põe esperará simplesmente que acabe o recolher obrigatório.

- Não importa - disse o alcaide. - Ao fim e ao cabo é preciso preservar o princípio da autoridade.

Os recrutas tinham começado a concentrar-se no quartel. O pequeno pátio, de muros altos de cimento, manchados de sangue seco e com impactes de projécteis, lembrava os tempos em que não era suficiente a capacidade das celas e se expunham os presos à intempérie. Naquela tarde, os agentes desarmados vagueavam em calções pelos corredores.

- Rovira - gritou o alcaide. - Traz alguma coisa de beber a estes rapazes.

O polícia começou a vestir-se.

- Rum? - perguntou.

- Não sejas parvo - gritou o alcaide, de passagem para o gabinete blindado. - Qualquer coisa gelada.

Os recrutas fumavam, sentados no pátio. O juiz Arcadio observou-os da varanda do segundo andar.

- São voluntários ?

- Imagine! - exclamou o alcaide. - Tive de os tirar de debaixo das camas, como se fossem para a tropa.

O juiz não encontrou uma única cara desconhecida.

- Pois parecem recrutados pela oposição - disse ele.

As pesadas portas de aço do gabinete exalaram, ao abrirem-se, um ar gelado.

- Quer dizer que são bons para a luta - sorriu o alcaide, depois de acender as luzes da fortaleza privada. Num dos extremos havia um catre de campanha, uma caneca de vidro com um copo em cima de um banco e um bacio debaixo do catre. Encostadas às paredes nuas, de cimento, havia espingardas e metralhadoras portáteis. A ventilação só se fazia pelas altas e estreitas clarabóias de onde se dominava o porto e as duas ruas principais. No outro extremo havia uma secretária junto de um cofre-forte.

O alcaide marcou a combinação de números necessária para abrir o cofre.

- E isso não é nada - anunciou. - Vou distribuir espingardas a todos eles.

O polícia entrou atrás dos dois homens. O alcaide entregou-lhe algumas notas, dizendo:

- Traga também dois maços de cigarros para cada um deles. - Quando ficaram novamente sozinhos, o alcaide perguntou ao juiz Arcadio:

- Que lhe parece a manobra?

- Um risco inútil - respondeu o juiz, pensativo.

- As pessoas vão ficar de boca aberta - disse o alcaide. - Parece-me, além disso, que estes pobres rapazes não saberão o que fazer com as espingardas.

- Talvez estejam agora desconcertados - admitiu o juiz -, mas isso dura pouco. - Fez um esforço para reprimir a sensação de vazio no estômago. - Tenha cuidado, tenente - reflectiu. - Não vá deitar tudo a perder. - O alcaide levou-o para fora do gabinete com um gesto enigmático.

- Não tenha medo, juiz - soprou-lhe ao ouvido.

- Só terão cartuchos de pólvora seca.

Quando desceram ao pátio, as luzes estavam acesas. Os recrutas bebiam gasosas debaixo das sujas lâmpadas eléctricas contra as quais se esmagavam os moscardos. Passeando de um extremo ao outro do pátio, onde permaneciam algumas poças de chuva, o alcaide explicou-lhes, num tom paternal, em que consistia a missão dessa noite: seriam colocados aos pares nas principais esquinas, com ordem de disparar contra qualquer pessoa, homem ou mulher, que desobedecesse às três ordens de Alto!". Recomendou-lhes coragem e prudência. Depois da meia-noite levar-lhes-iam de comer. O alcaide esperava, com a ajuda do Senhor, que tudo se passasse sem contratempos, e que a aldeia soubesse apreciar aquele esforço das autoridades em favor da paz social.

 

O padre Ángel ia levantar-se da mesa quando começaram a soar, na torre, as badaladas das oito horas da noite. Apagou a luz do pátio, meteu o ferrolho e fez o sinal da Cruz sobre o breviário: Em nome de Deus." Num pátio remoto, cantou um alcaravão. Dormitando na frescura do corredor, a viúva de Asís ouviu a segunda badalada e, sem abrir os olhos, perguntou: - Roberto já entrou?" Uma servente acocorada contra o gonzo da porta respondeu que estava deitado desde as sete. Um pouco antes, Nora de Jacob tinha descido o volume do rádío e extasiava-se com uma músíca ténue que parecia vir de um lugar confortável e limpo. Uma voz demasiado distante para parecer real gritou um nome no horizonte e os cães começaram a ladrar.

O dentista não tinha acabado de ouvir o noticiário. Lembrando-se que Ángela decifrava um problema de palavras cruzadas sob a lâmpada do pátio, ordenou sem a olhar: Fecha o portão e vai acabar isso no teu quarto." A mulher acordou sobressaltada.

Roberto Asís, que efectivamente se deitara às sete, levantou-se para olhar a praça pela janela entreaberta. Viu apenas as amendoeiras escuras e a última luz que se apagava na varanda da viúva de Montiel. A esposa de Asís acendeu a lâmpada da mesinha-de-cabeceira e, com um sussurro abafado obrigou o marido a deitar-se. Um cão solitário continuou a ladrar mesmo depois da quinta badalada.

No ardente saguão cheio de latas vazias e frascos poeirentos, Don Lalo Moscote ressonava com o jornal aberto sobre o abdómen e os óculos na testa. A sua esposa paralítica, estremecida pela recordação de outras noites como aquela, espantava mosquitos com um trapo enquanto contava mentalmente as badaladas. Depois dos gritos distantes, do ladrar dos cães e das correrias sigilosas, começava o silêncio.

- Cuida que não falte coramina - recomendava o doutor Giraldo à esposa que metia na maleta drogas de urgência, antes de se deitar. Ambos pensavam na viúva de Montiel, rígida como um morto sob a última carga de luminal. Só Don Sabas, depois de uma longa conversa com o senhor Carmichael, tinha perdido o sentido do tempo. Ainda estava no escritório, a pesar na balança o pequeno-almoço do dia seguinte, quando soou a última badalada e a mulher saiu do quarto com o cabelo revolto. O rio parou. Numa noite como esta...", murmurou alguém na obscuridade, no momento em que soou a oitava badalada, profunda, irrevogável, e alguma coisa que tinha começado a crepitar quinze segundos antes extinguiu-se por completo.

O doutor Giraldo fechou o livro até o clarim do recolher acabar de vibrar. A esposa colocou a maleta na mesinha-de-cabeceira, deitou-se com a cara para a parede e apagou o seu candeeiro. O médico abriu o livro, mas não leu nada. Ambos respiravam pausadamente, sozinhos numa terra que o silêncio desmesurado tinha reduzido às dimensões da alcova.

- Em que pensas?

- Em nada - respondeu o médico.

Não se concentrou mais até às onze horas; quando voltou a mesma página em que estava quando batiam as oito. Dobrou o canto da folha e pousou o livro na mesinha. A esposa dormia. Noutro tempo, ambos velavam até ao amanhecer, tentando descobrir o lugar e as circunstâncias dos tiros. Várias vezes o ruído das botas e das armas chegara até àquela casa e ambos esperaram, sentados na cama, a granizada de chumbo que deveria rebentar a porta. Muitas noites, quando já tinham aprendido a distinguir os diversos matizes do terror, velaram com a cabeça apoiada numa almofada cheia de panfletos clandestinos para distribuir. Uma madrugada ouviram diante da porta do consultório os mesmos preparativos sigilosos que precedem uma serenata e depois a voz do alcaide: Aí não, esse não se mete em nada." O doutor Giraldo apagou a luz e tratou de dormir.

A chuvinha recomeçou depois da meia-noite. O barbeiro e outro recruta, colocados na esquina do porto, abandonaram o seu posto e abrigaram-se sob o beiral da casa do senhor Benjamín. O barbeiro acendeu um cigarro e examinou a espingarda à luz do fósforo. Era uma arma nova.

- É made in USA - disse.

O companheiro acendeu vários fósforos para procurar a marca da sua carabina,mas não o conseguiu.

Uma goteira do beiral rebentou na culatra da arma e produziu um impacte oco.

- Que coisa tão esquisita - murmurou,secando-a com a manga.- Nós aqui,cada um com uma arma,a apanhar chuva.- Na escuridão que os rodeava só se percebiam ruídos da água nos beirais.

- Somos nove - disse o barbeiro.- Eles são sete contando o alcaide,mas três estão no quartel.

- Há pouco eu estava a pensar o mesmo - afirmou o outro.

A lanterna de pilhas do alcaide tornou-os brutalmente visíveis,encostados contra a parede,tentando proteger as armas das gotas que estalavam nos sapatos como chumbos.Reconheceram-no quando apagou a lanterna e se abrigou também sob o beiral.Tinha um impermeável de campanha e uma metralhadora ligeira a tiracolo.

Acompanhava-o um dos polícias. Depois de olhar o relógio que usava no pulso direito,deu ordem ao agente:

- Vá ao quartel e veja o que se passa com as provisões.

Com a mesma energia teria dado ordem de batalha.

O polícia desapareceu debaixo da chuva.O alcaide sentou-se então no chão,junto dos recrutas.

- Que há? - perguntou.

- Não há nada - respondeu o barbeiro.

O outro ofereceu um cigarro ao alcaide,antes de acender o seu.O alcaide recusou.

- Até quando nos vai manter nisto,tenente?

- Não sei - respondeu o alcaide.- Por agora,até

que termine o recolher.Depois veremos o que se faz amanhã.

- Até às cinco! - exclamou o barbeiro.

- Imagina - disse o outro.- Eu que estou a pé desde as quatro da manhã.

Através do ruído da chuvinha,chegou até eles um tropel de cães. O alcaide esperou até terminar o alvoroço e só restar um latido solitário.Voltou-se para o recruta com ar deprimido:

- Diga-me isso a mim, que já vivo meia vida desta maneira. Estou a cair de sono.

- Para nada - disse o barbeiro. - Isto não tem pés nem cabeça. Parece coisa de mulheres.

- Eu começo a acreditar o mesmo - retorquiu o alcaide.

O polícia regressou para informar que estavam à espera que estiasse para distribuir a comida. Depois relatou o restante: uma mulher surpreendida sem salvo-conduto esperava o alcaide no quartel.

Era Casandra. Dormia na cadeira de dobrar, vestida com uma capa de oleado, na salinha apenas iluminada pela lâmpada lúgubre da varanda. O alcaide apertou-lhe o nariz com dois dedos, ela emitiu um queixume, estremecendo num início de desespero, e abriu os olhos.

- Estava a sonhar - disse.

O alcaide acendeu a luz da sala. Protegendo os olhos com as mãos, a mulher torceu-se e ele sofreu um instante com as suas unhas prateadas e a sua axila rapada.

- És um malvado! - protestou. - Estou aqui desde as onze.

- Esperava encontrar-te no quarto - disse o alcaide.

- Não tinha salvo-conduto.

O cabelo, de uma cor acobreada duas noites antes, era agora cinzento-prateado.

- Não me lembrei - sorriu o alcaide. Depois de pendurar o impermeável, sentou-se numa cadeira junto dela. - Espero que não tenham pensado que eras tu que punhas os papelinhos. - A mulher tinha recobrado as suas maneiras fáceis.

- Quem dera - replicou. - Adoro as emoções fortes.

De súbito, o alcaide pareceu extraviado na sala. Com ar indefeso, fazendo estalar os nós dos dedos, murmurou :

- Preciso que me faças um favor. - Ela examinou-o. - Aqui entre nós, preciso que deites as cartas a ver se se descobre quem é o autor desta brincadeira.

Ela voltou a cara para o outro lado.

- Entendo - disse ela depois de um curto silêncio.

O alcaide impulsionou-a:

- Acima de tudo, faço-o por vocês.

Ela concordou com a cabeça.

-Já o fiz - admitiu.

O alcaide não teria podido dissimular a sua ansiedade. - É uma coisa muito estranha - prosseguiu Casandra, com calculado ar melodramático. - Os sinais eram tão evidentes que senti medo depois de os ter em cima da mesa. - Até a sua respiração se tinha tornado teatral.

- E quem é?

- Toda a gente e ninguém.

Os filhos da viúva de Asís vieram à missa, no domingo. Eram sete, além de Roberto Asís. Todos fundidos no mesmo molde: corpulentos e rudes, com qualquer coisa de mula na sua capacidade de trabalho violento, e dóceis para com a mãe, com uma obediência cega. Roberto Asís, o mais novo, e o único que se casara, apenas tinha de comum com os irmãos um nó no osso do nariz. Com a sua saúde precária e as suas maneiras convencionais, era como que um prémio de consolação pela filha que a viúva de Asís se cansara de esperar.

Na cozinha, onde os sete Asís tinham descarregado os animais, a viúva passeava entre uma fila de frangos presos pelas patas, legumes e queijos e panelas escuras e pedaços de carne salgada, dando instruções às criadas. Uma vez despejada a cozinha, deu ordem de seleccionar o melhor de cada coisa para o padre Ángel.

O pároco estava a fazer a barba. De vez em quando estendia a mão para o pátio, para humedecer a pele com a água da chuva. Preparava-se para terminar, quando duas raparigas descalças empurraram a porta sem bater e despejaram diante dele abacates maduros, bananas, panelas cheias, queijo e um cesto de legumes e ovos frescos.

O padre Ángel piscou-lhes um olho.

- Isto parece - disse ele - o sonho do tio coelho.

- A mais nova das raparigas, com os olhos muito abertos, apontou-lhe o dedo:

- Os padres também fazem a barba!

A outra levou-a até à porta.

- O que é que julgavas? - sorriu o pároco, acrescentando com seriedade: - Também somos humanos.

- Depois contemplou as provisões dispersas pelo chão e compreendeu que só a casa de Asís era capaz de tamanha prodigalidade. - Digam aos rapazes - quase gritou - que Deus lhes agradecerá em saúde.

O padre Ángel, que em quarenta anos de sacerdócio não tinha aprendido a dominar a inquietação que precede os actos solenes, guardou os instrumentos sem acabar de se barbear. Depois recolheu as provisões, amontoou-as nas prateleiras e entrou na sacristia a limpar as mãos à sotaina.

A igreja estava cheia. Em dois bancos de espaldar próximos do púlpito, doados por eles e com os respectivos nomes gravados em plaquetas de cobre, estavam os Asís com a mãe e a cunhada. Quando chegaram ao templo, pela primeira vez juntos em vários meses, teria podido pensar-se que entravam a cavalo. Cristóbal Asís, o mais velho, que tinha chegado da malhada meia hora antes e não tivera tempo de se arranjar, levava botas de montar com esporas. Vendo aquele gigante bravio, parecia certa a voz pública, nunca confirmada, de que Cesar Montero era filho secreto do velho Adalberto Asís.

Na sacristia, o padre Ángel sofreu uma contrariedade: os paramentos litúrgicos não se encontravam no seu lugar. O acólito encontrou-o aturdido, a revolver gavetas, enquanto sustentava uma renhida disputa consigo próprio.

- Chama a Trinidad - ordenou o padre - e pergunta-lhe onde pôs a estola.

Esquecia-se de que Trinidad estava doente desde sábado. Certamente, julgava o acólito, ela teria levado algumas coisas para arranjar. O padre Ángel vestiu então os paramentos destinados aos ofícios fúnebres, mas sem conseguir concentrar-se. Ao subir ao púlpito, impaciente

 

Numa manhã como aquela, o doutor Giraldo tinha compreendido o mecanismo interior do suicídio. Chuviscava sem ruído, na casa contígua silvava o verdilhão, e a sua mulher falava enquanto ele lavava os dentes.

- Os domingos são dias estranhos - disse ela, pondo a mesa para o pequeno-almoço. - É como se os pendurassem esquartejados: cheiram a animal cru.

O médico armou a máquina e começou a barbear- se. Tinha os olhos húmidos e inchados.

- Andas a dormir mal - disse-lhe a mulher. E acrescentou com suave amargura: - Um destes domingos vais amanhecer velho. - Vestira um roupão muito usado e tinha a cabeça coberta de rolos.

- Faz-me um favor - pediu ele. - Cala-te.

Ela foi para a cozinha, pôs a cafeteira do café ao lume e esperou que a água fervesse, atenta primeiro ao silvo do verdilhão e depois ao ruído do duche. Foi então ao quarto para que o marido encontrasse a roupa pronta ao sair do banho. Ao transportar o pequeno-almoço para a mesa viu-o pronto para sair e pareceu-lhe um pouco mais novo, com as calças de caqui e a camisa desportiva.

Tomaram o pequeno-almoço em silêncio. Quase no final, ele examinou-a com uma atenção afectuosa. Ela bebia o café com a cabeça baixa, um pouco trémula de ressentimento.

- É o fígado - desculpou-se ele.

- Nada justifica a sobranceria - replicou ela, sem levantar a cabeça.

- Devo estar intoxicado - disse ele. - O fígado atasca-se com esta chuva.

- Dizes sempre o mesmo, mas nunca fazes nada - precisou ela. - Se não abres os olhos - acrescentou -, terás de te limpar a ti mesmo.

Ele pareceu acreditar.

- Em Dezembro - disse ele - estaremos quinze dias numa praia. - Olhou a chuvinha através dos rombos da grade de madeira que separava a sala do pátio entristecido pela persistência de Outubro, e acrescentou:

- E então deixará de haver domingos como este, pelo menos durante quatro meses.

Ela amontoou a louça antes de a levar para a cozinha. Quando voltou, encontrou-o com o chapéu de palma tecida a preparar a maleta.

- Então a viúva de Asís voltou a sair da igreja - disse ele.

A mulher tinha-lhe contado o acontecimento antes de começar a lavar os dentes, mas ele não prestara atenção.

- Já são três vezes este ano - confirmou ela. - Pelos vistos não achou nada melhor para se entreter.

O médico mostrou o seu rigoroso aparelho dental.

- Os ricos estão doidos.

Algumas mulheres, no regresso da igreja, tinham entrado para visitar a viúva de Montiel. O médico cumprimentou o grupo que permanecia na sala. Um murmúrio de risos seguiu-o até ao patamar. Antes de bater à porta, reparou que havia outras mulheres no quarto. Alguém lhe disse para prosseguir.

A viúva de Montiel estava sentada, com o cabelo solto, segurando contra o peito a beira do lençol. Tinha no regaço um espelho e um pente de corno.

- De modo que também a senhora resolveu ir à festa - disse-lhe o médico.

- Está a festejar os seus quinze anos - retorquiu uma das mulheres.

- Dezoito - corrigiu a viúva de Montiel com um sorriso triste. Outra vez estirada na cama, cobriu-se até ao pescoço. - Evidentemente - acrescentou satisfeita -, não foi convidado nenhum homem. E o senhor doutor ainda menos: é de mau agouro.

O médico pousou o chapéu molhado em cima da cómoda.

- Faz muito bem - disse ele, observando a doente com uma complacência pensativa. - Acabo de reparar que não tenho nada para fazer aqui. - Depois, dirigindo-se ao grupo, desculpou-se: - Dão-me licença?

Quando ficou sozinha com ele, a viúva de Montiel assumiu novamente uma amarga expressão de doente. Mas o médico não pareceu reparar nisso. Continuou a falar no mesmo tom festivo enquanto colocava em cima da mesinha-de-cabeceira as coisas que ia tirando da maleta.

- Por favor, doutor - suplicou a viúva -, mais injecções, não. Estou feita um coador.

- As injecções - sorriu o doutor Giraldo - foi o que se inventou de melhor para alimentar os médicos.

Também ela sorriu.

- Acredite-me - disse ela, apalpando as nádegas por cima do lençol -, tenho tudo isto dorido. Nem as posso tocar.

- Não as toque - concordou o médico.

Então ela sorriu francamente.

- Fale a sério, doutor, nem que seja aos domingos.

O médico subiu-lhe a manga para lhe medir a tensão arterial.

- Não posso - disse ele. - O médico proibiu-me. É mau para o fígado.

Enquanto ele media a tensão, a viúva observou o mostrador do aparelho com uma curiosidade infantil.

- É o relógio mais estranho que vi na minha vidadisse ela. O médico manteve-se concentrado até ter terminado de accionar a pêra.

- É o único que marca com exactidão a hora de cada um se levantar - disse ele.

Ao terminar, enquanto enrolava os tubos do aparelho de medir a tensão, analisou minuciosamente o rosto da doente. Pôs em cima da mesinha um frasco com pastilhas brancas, com a indicação de tomar uma em cada doze horas.

- Se não quiser as minhas injecções - disse o médico -, não levará mais injecções. A senhora está melhor do que eu. - A viúva fez um gesto de impaciência.

- Nunca tive nada - retorquiu ela.

- Acredito - replicou o médico -, mas era preciso alguma coisa para justificar a conta.

Ignorando o comentário a viúva perguntou:

- Tenho de continuar deitada?

- Pelo contrário - disse o médico -, proibo-a solenemente. Desça à sala e atenda as visitas como deve ser. Além do mais - acrescentou com voz maliciosa -, há muitas coisas de que podem falar.

- Meu Deus, doutor - exclamou ela -, não seja tão brincalhão! Deve ser o senhor que põe os pasquins.

O doutor Giraldo registou o dito. Ao sair, lançou um olhar furtivo à mala de couro com cravos de cobre pronta para a viagem num canto do quarto.

- E traga-me alguma coisa - gritou da porta quando regressar da volta ao Mundo. - A viúva tinha recomeçado o paciente labor de desenrolar o cabelo.

- Não esquecerei, doutor.

Não desceu à sala. Permaneceu na cama até sair a última visita. Então vestiu-se. O senhor Carmichael encontrou-a a comer diante da varanda entreaberta.

Ela respondeu ao cumprimento sem desviar a vista da varanda.

- No fundo - disse ele -, gosto dessa mulher: é valente.

Também o senhor Carmichael olhou a casa da viúva de Asís, cujas portas e janelas não se tinham aberto às onze.

- É coisa da sua natureza - disse ele. - Com umas entranhas como as suas, que só produzem varões, não se pode ser de outra maneira. - Dirigindo a atenção para a viúva de Montiel, acrescentou: - E a senhora também está como uma rosa.

Ela pareceu confirmá-lo com a frescura do seu sorriso.

- Sabe uma coisa? - perguntou. E ante a indecisão do senhor Carmichael, antecipou a resposta: - O doutor Giraldo está convencido de que estou louca.

- Não me diga!

A viúva concordou com a cabeça.

- Não ficaria admirada se ele já tivesse falado consigo - prosseguiu - para ver a melhor maneira de me enviar para o manicómio. - O senhor Carmichael não soube como se desenredar daquela confusão. - Não saí de casa toda a manhã - concluiu.

Deixou-se cair no cadeirão de couro roído colocado junto da cama. A viúva recordou José de Montiel naquele cadeirão, fulminado pela congestão cerebral quinze minutos antes de morrer.

- Nesse caso - disse ela afastando a má recordação - pode ser que lhe fale esta tarde. - E mudou de assunto, com um sorriso lúcido: - Falou com o meu compadre Sabas?

O senhor Carmichael respondeu que sim com a cabeça.

Realmente, na sexta-feira e no sábado, tinha feito sondagens no abismo de Don Sabas para averiguar qual seria a sua reacção se se pusesse à venda a herança de José Montiel. Don Sabas, supunha o senhor Carmichael, parecia disposto a comprar. A viúva ouviu-o sem dar mostras de impaciência. Se não fosse na quarta-feira próxima seria na da outra semana, admitiu com uma segurança repousada. De qualquer modo, estava disposta a abandonar a terra antes de Outubro acabar.

 

O alcaide pegou no revólver com um movimento instantâneo da mão esquerda. Todos os músculos do seu corpo estavam prontos para disparar, quando acordou por completo e reconheceu o juiz Arcadio.

- Merda!

O juiz Arcadio ficou petrificado.

- Nunca repita isso - protestou o alcaide, guardando o revólver. Deixou-se cair novamente na cadeira de lona. - O meu ouvido funciona melhor quando durmo.

- A porta estava aberta - disse o juiz Arcadio.

O alcaide tinha-se esquecido de a fechar ao amanhecer. Estava tão cansado que se deixara cair na cadeira e adormecera.

- Que horas são?

-Vai ser meio-dia - respondeu o juiz Arcadio. Ainda havia na sua voz uma nota trémula.

- Estou morto de sono - disse o alcaide. Torcendo-se num longo bocejo, teve a impressão de que o tempo se tinha detido. Apesar da sua diligência, das suas noites em claro, os pasquins continuavam. Naquela madrugada havia encontrado um papel colado na porta do seu quarto: Não gaste pólvora com galináceos, tenente." Na rua dizia-se em voz alta que os próprios membros das rondas colocavam os pasquins para se distraírem do tédio da vigilância. A aldeia, pensava o alcaide, estava morta de riso.

- Sacuda-se - disse o juiz Arcadio - e vamos comer alguma coisa.

Mas ele não tinha fome. Queria dormir mais uma hora e tomar banho antes de sair. O juiz Arcadio, em troca, fresco e limpo, regressava a casa para almoçar. Ao passar diante do quarto e como a porta estava aberta, tinha entrado para pedir ao alcaide um salvo-conduto que lhe permitisse transitar depois da hora do recolher.

O tenente disse simplesmente que não. Depois, com um gesto paternal, justificou-se:

- Convém-lhe ficar em casa, sossegado. - O juiz Arcadio acendeu um cigarro. Ficou a olhar a chama do fósforo à espera que o rancor declinasse, mas não achou nada para dizer. - Não tome isso a mal - acrescentou o alcaide. - Acredite que eu gostaria de trocar consigo, deitar-me às oito da noite e levantar-me quando me desse na gana.

- Claro - disse o juiz. E acrescentou com acentuada ironia: - A única coisa que me faltava era isso: um papá novo aos trinta e cinco anos.

Tinha-lhe voltado as costas e parecia contemplar, da varanda, o céu carregado de chuva. O alcaide fez um silêncio duro. Depois disse, de um modo cortante:

-Juiz. - O juiz Arcadio voltou-se para ele e ambos se olharam nos olhos. - Não lhe darei o salvo-conduto. Entende? - O juiz mordeu o cigarro e começou a dizer algo, mas reprimiu o impulso. O alcaide ouviu-o descer lentamente as escadas. De repente inclinou-se e gritou: - Juiz! - Não houve resposta. - Ficamos amigos - gritou o alcaide.

Também dessa vez não obteve resposta.

Permaneceu debruçado, pendente da reacção do juiz Arcadio, até que a porta se fechou e ele ficou novamente sozinho com as suas recordações. Não se esforçou por dormir. Estava sonolento em pleno dia, empantanado numa terra que continuava a ser impenetrável e alheia, muitos anos depois de ele se ter encarregado do seu destino. Na madrugada em que ali desembarcara furtivamente com uma velha mala de cartão amarrada com cordas e a ordem de controlar aquela gente a qualquer preço, fora ele quem conhecera o terror. A sua única âncora era uma carta para um obscuro partidário do Governo com quem se devia encontrar no dia seguinte sentado em calções à porta de uma empilhadora de arroz. Com as suas indicações e as entranhas implacáveis dos três assassinos contratados que o acompanhavam, a missão foi levada a cabo. Naquela tarde, no entanto, inconsciente da teia invisível que o tempo tinha tecido à sua volta, ter- lhe-ia bastado uma instantânea explosão de clarividência para perguntar a si mesmo quem estava submetido a quem.

Sonhou com os olhos abertos diante da varanda açoitada pela chuvinha, até pouco depois das quatro. Em seguida tomou banho, vestiu o uniforme de campanha e desceu ao hotel para comer a sua primeira refeição do dia. Mais tarde fez uma inspecção rotineira ao quartel e, de súbito, encontrou-se parado numa esquina, com as mãos nos bolsos, sem saber o que fazer.

O dono da sala de bilhar viu-o entrar ao entardecer, ainda com as mãos nos bolsos. Cumprimentou-o do fundo do estabelecimento vazio, mas o alcaide não lhe correspondeu.

- Uma garrafa de água mineral - pediu.

As garrafas provocaram um pequeno estrondo ao serem removidas na caixa de gelo.

- Um dia destes - disse o comerciante - vão ter de o operar e vão-lhe encontrar o fígado cheio de borbulhinhas.

O alcaide olhou atentamente o copo. Bebeu um trago, arrotou, ficou com os cotovelos apoiados na mesa e o olhar fixo no copo, e arrotou de novo. A praça estava deserta.

- E então? - inquiriu o alcaide. - Que acontece por aí ?

- É domingo - respondeu o comerciante.

- Ah!

Pôs uma moeda no balcão e saiu sem se despedir. Na esquina da praça, alguém que caminhava como se arrastasse uma cauda enorme disse-lhe que ele não com preendeu. Reagiu pouco depois. De um modo confuso entendeu que alguma coisa se estava a passar e dirigiu-se ao quartel. Subiu as escadas precipitadamente, sem prestar atenção aos grupos que se formavam à porta. Um polícia veio-lhe ao encontro. Entregou-lhe uma folha de papel e bastou-lhe um olhar rápido para compreender do que se tratava.

- Ia colocá-la - disse o polícia.

O alcaide precipitou-se para o corredor. Abriu a primeira cela e permaneceu com a mão na porta, perscrutando a penumbra, até conseguir ver: era um rapaz de cerca de vinte anos, de rosto afilado e citrino, marcado pela varíola. Tinha um boné de jogador de basebol e óculos escuros.

- Como te chamas?

- Pepe.

- Pepe, quê ?

- Pepe Amador.

O alcaide olhou-o por um momento e fez um esforço para se recordar. O rapaz estava sentado no estrado de cimento que servia de cama aos presos. Parecia tranquilo. Tirou os óculos, limpou-os com a fralda da camisa e olhou para o alcaide de sobrancelhas franzidas.

- Onde é que já nos vimos? - perguntou o alcaide.

- Por aí - respondeu Pepe Amador.

O alcaide não deu um passo no interior da cela. Continuou a olhar para o preso, pensativo, e depois começou a fechar a porta.

- Bem, Pepe - disse -, acho que te fodeste.

Acionou o ferrolho, meteu a chave no bolso, e foi para a sala ler e reler várias vezes o papel clandestino.

Sentou-se diante da varanda aberta, matando melgas à palmada, enquanto se acendiam as luzes nas calçadas desertas. Ele conhecia aquela paz crepuscular. Noutro tempo, num anoitecer como este, teria encontrado a emoção do poder na sua plenitude.

- Então recomeçaram - diz em voz alta.

Tinham recomeçado. Tal como antes, estavam im pressos a stencil de ambos os lados, e teriam podido ser reconhecidos em qualquer parte e em qualquer tempo pela indefinível onda de afundamento que a clandestinidade imprime. Pensou muito tempo, envolto nas trevas, dobrando e desdobrando a folha de papel, antes de tomar uma decisão. Por fim guardou a folha no bolso e reconheceu pelo tacto as chaves da cadeia.

- Rovira - chamou.

O seu agente de confiança surgiu da escuridão. O alcaide deu-lhe as chaves.

- Encarrega-te desse rapaz - disse. - Trata de o convencer a dar-te os nomes dos que trazem a propaganda clandestina para aqui. Se não o conseguires a bem -  precisou -, consegue-o de qualquer maneira.

O polícia lembrou-o que estava de turno nessa noite.

- Esquece - disse o alcaide. - Não te ocupes com mais nada, até nova ordem. E outra coisa - acrescentou, como que obedecendo a uma inspiração: -, despacha esses homens que estão no pátio. Esta noite não há rondas.

Chamou ao seu gabinete blindado os três agentes que, por sua ordem, se mantinham inactivos no quartel. Mandou-os vestir os uniformes que estavam guardados à chave no armário. Enquanto o faziam, guardou na mesa os cartuchos de pólvora seca que nas noites anteriores tinham sido distribuídos aos homens das rondas, e tirou do cofre um punhado de balas.

- Esta noite, vão vocês fazer as rondas - disse-lhes, escolhendo as espingardas, para lhes entregar as melhores. - Não têm nada a fazer, apenas fazer com que as pessoas vejam que são vocês que estão na rua.

Uma vez todos armados, entregou-lhes as munições. Plantou-se diante deles.

- Mas ouçam bem uma coisa - advertiu. - O primeiro que fizer um disparate, mando-o fuzilar contra a parede do pátio.- Esperou uma reacção que não veio.- Entendido?

Os três homens - dois de tipo índio, de aspecto vulgar,e um loiro,com tendência para gigantismo e olhos de um azul-transparente - tinham escutado as últimas palavras enquanto forneciam as cartucheiras.Puseram-se os três em sentido.

- Entendido,meu tenente.

            - E outra coisa - disse o alcaide,mudando para um tom informal.- Os Asís estão cá todos e não seria anormal que encontrassem esta noite algum deles com copos a mais e vontade de armar sarilhos.Aconteça o que acontecer,não se metam com nenhum deles.- Também desta vez não houve a reacção esperada.- Entendido?

- Entendido, meu tenente.

- Então já sabem - concluiu o alcaide.- Ponham os cinco sentidos em alerta.

 

Ao fechar a igreja, depois do rosário, que tinha adiantado uma hora por causa do toque de recolher, o             padre Ángel sentiu um cheiro a podridão. Foi uma baforada momentânea que não conseguiu intrigá-lo. Mais tarde, fritando fatias de banana verde e aquecendo leite para a refeição achou a causa do cheiro: Trinidad. Doente desde sábado, não tinha recolhido os ratos mortos. Então voltou à igreja e limpou as ratoeiras. Depois foi a casa de Mina, a dois quarteirões do templo.

O próprio Toto Visbal lhe abriu a porta. Na sala mergulhada na penumbra, onde havia vários bancos de couro em desordem e litografias penduradas nas paredes, a mãe de Mina e a avó cega bebiam chávenas de uma bebida aromática e ardente. Mina fabricava flores artificiais.

- Há quinze anos - disse a cega - que o não vía mos nesta casa, padre.

Era verdade. Todas as tardes passava diante da janela onde Mina se sentava para fazer as flores, mas nunca se dispunha a entrar.

- O tempo passa sem fazer barulho - disse o padre. E depois, dando a entender que estava com pressa, dirigiu-se a Toto Visbal: - Venho pedir-lhe que deixe ir a Mina, a partir de amanhã, tratar das ratoeiras. Trinidad - explicou a Mina - está doente desde sábado. Toto Visbal deu o seu consentimento.

- Já é vontade de perder tempo - interveio a cega.

- Ao fim e ao cabo, o mundo acabará este ano.

A mãe de Mina pôs-lhe a mão no joelho, para que se calasse. A cega afastou- lhe a mão.

- Deus castiga a superstição - disse o pároco.

- Está escrito - retorquiu a cega. - O sangue correrá pelas ruas e não haverá poder humano capaz de o deter.

O padre enviou-lhe um olhar de comiseração: era muito velha, de uma palidez extrema e os olhos mortos pareciam penetrar no segredo das coisas.

- Tomaremos banho em sangue - ironizou Mina. O padre Ángel voltou-se então para ela. Viu-a surgir, com o seu cabelo de um negro intenso e a mesma palidez da cega, de entre uma confusa nuvem de fitas e papéis coloridos. Parecia um quadro alegórico numa festa escolar.

- E tu - disse-lhe. - A trabalhar ao domingo?

- Eu bem lhe disse - interveio a cega. - Choverá cinza a arder sobre a sua cabeça.

- A necessidade tem focinho de cão - sorriu Mina. Como o pároco se mantinha de pé, Toto Visbal puxou um assento e voltou a convidá-lo a sentar-se. Era um homem frágil, de gestos sobressaltados pela timidez.

- Obrigado - recusou o padre. - O toque de recolher vai-me apanhar na rua. - Prestou atenção ao profundo silêncio do povoado e comentou: - Até parece que já bateram as oito.

Então soube-o. Depois de quase dois anos de celas vazias, Pepe Amador estava na cadeia e a aldeia à mercê de três criminosos. As pessoas tinham-se recolhido logo depois das seis.

- É estranho. - O padre Ángel pareceu estar a falar consigo mesmo. - Uma coisa assim resulta desatinada.

- Tarde ou cedo tinha de acontecer - disse Toto Visbal. - O país inteiro está remendado com teias de aranha.

Acompanhou o padre até à porta.

- Não viu os panfletos clandestinos?

O padre Ángel deteve-se, perplexo.

- Outra vez?

- Em Agosto - interpôs-se a cega - começarão os dias de escuridão.

Mina esticou o braço para dar à cega uma flor iniciada.

- Cala-te - disse-lhe -, e acaba isso. - A mulher reconheceu a flor pelo tacto.

- Então recomeçaram - admitiu o padre.

- Há-de haver uma semana - disse Toto Visbal. Aqui puseram um, sem que ninguém soubesse quem o trouxe. Sabe como é! - O pároco confirmou com a cabeça. - Dizem que continua tudo como antes - prosseguiu Toto Visbal. - Mudou o Governo, o novo prometeu paz e garantias, e a princípio toda a gente acreditou.

Mas os funcionários continuam a ser os mesmos.

- E é verdade - interveio a mãe de Mina. – Aqui estamos, novamente com o recolher obrigatório, e esses três criminosos na rua.

- Mas há uma novidade - disse Toto Visbal. Dizem que se estão a organizar outra vez guerrilhas contra o Governo, no interior do país.

- Tudo isso está escrito - retorquiu a cega.

- É absurdo - disse o pároco, pensativo. - Temos , de reconhecer que a atitude das autoridades mudou. Ou pelo menos tinha mudado, até esta noite.

Horas depois, meditando no calor do leito, perguntou a si mesmo, se na realidade o tempo tinha transcorrido nos dezanove anos que levava já naquela paróquia. Ouviu, mesmo na frente da sua casa, o ruído das botas e das armas de fogo. Só que desta vez as botas afastaram-se, voltaram a passar uma hora depois, para de novo se afastarem sem que se ouvissem tiros. Pouco depois, atormentado pela fadiga da vigília e do calor, reparou que os galos já estavam a cantar há algum tempo.

Mateo Asís tentou calcular as horas pela posição dos galos. Finalmente, aceitou a realidade.

- Que horas são?

Nora de Jacob esticou o braço na penumbra e pegou no relógio de algarismos fosforescentes que estava do seu lado na mesinha-de-cabeceira. A resposta que ainda não tinha dado acordou-a por completo.

- Quatro e meia - respondeu.

- Merda!

Mateo Asís saltou da cama. Mas a dor de cabeça e depois o sedimento mineral na boca obrigaram-no a moderar o impulso. Procurou os sapatos com os pés, na obscuridade.

- Por pouco que o dia me apanhava - disse.

- Que bom! - exclamou ela. Acendeu a luz e reconheceu a sua nodosa espinha dorsal e as suas nádegas pálidas. - Terias de ficar aqui fechado até amanhã.

Estava completamente nua, o sexo apenas coberto com uma ponta do lençol. Com a luz acesa, até a voz perdia o seu cálido atrevimento.

Mateo Asís calçou os sapatos. Era alto e maciço. Nora de Jacob, que o recebia ocasionalmente havia já dois anos, sentia uma espécie de frustração perante a fatalidade de ter em segredo um homem que lhe parecia feito para que uma mulher o divulgasse.

- Se não tiveres cuidado, vais engordar - disse.

- É a boa vida - respondeu ele, procurando ocultar o mal-estar. E acrescentou, sorrindo: - Devo estar grávido.

- Quem dera - disse ela. - Se os homens parissem, teriam mais consideração.

Mateo Asís recolheu do chão o preservativo, foi para o quarto de banho e lançou-o na retrete. Lavou-se, tentando não respirar fundo: qualquer cheiro, ao amanhecer, era um cheiro dela. Quando voltou ao quarto, encontrou-a sentada na cama.

- Um dia destes - admitiu Nora de Jacob - cansar-me-ei destes esconderijos e contarei tudo a todo o mundo. - Ele não a olhou enquanto não ficou completamente vestido. Ela teve consciência dos seus seios macilentos, e sem deixar de falar cobriu-se com o lençol até ao pescoço. - Não vejo a hora - prosseguiu - de estarmos a tomar o pequeno-almoço na cama e ficarmos até à tarde. Sou capaz de pôr um pasquim a mim mesma.

Ele riu abertamente:

- O velho Benjaminzinho ia morrer. Como é que anda isso? - perguntou.

- Imagina! À espera que Néstor Jacob morra - respondeu.

Viu-o despedir-se, da porta, com um gesto da mão.

- Trata de vir para a Noite de Natal - disse ela.

Ele prometeu. Atravessou o pátio em bicos de pés e saiu para a rua pelo portão. Ao chegar à praça, saiu-lhe um grito ao seu encontro:

- Alto !

Uma lanterna de pilhas iluminou-lhe os olhos. Ele voltou a cara.

- Ah, caralho! - ouviu a voz do alcaide, invisível atrás da luz. - Olhem o que nós encontrámos. Vais ou vens?

Apagou a lanterna e Mateo Asís viu-o, acompanhado por três homens. Tinha a cara fresca e lavada e a metralhadora a tiracolo.

- Venho - respondeu Mateo Asís.

O alcaide deslocou-se para ver as horas à luz do poste. Faltavam dez minutos para as cinco. Com um sinal feito aos agentes, mandou terminar a hora do recolher. Permaneceu em suspenso até se ter esvaído o toque de clarim, que pôs no amanhecer uma nota triste. Depois mandou os homens embora e acompanhou Mateo de Asís através da praça.

-Já está! - exclamou. - Acabou-se o problema dos papelinhos.

Mais do que satisfação, havia cansaço na sua voz.

- Apanharam quem os fazia?

- Aimda não - respondeu o alcaide. - Mas acabo de fazer a última ronda e posso garantir que hoje, pela primeira vez, não houve no amanhecer um único papelinho. Era uma questão de amarrar bem as calças.

Ao chegar ao portão da casa, Mateo adiantou-se para prender os cães. As mulheres de serviço espreguiçaram-se na cozinha. Quando o alcaide entrou, foi recebido por um alvoroço de cães acorrentados que um momento depois foi substituído por passos e suspiros de animais pacíficos. A viúva de Asís encontrou-os a tomar café, sentados no varandim da cozinha. O dia estava mais claro.

- Homem madrugador - disse a viúva -, bom esposo, mas mau marido.

Apesar da boa disposição, o rosto revelava a mortificação de uma intensa vigília. O alcaide correspondeu ao cumprimento. Apanhou a metralhadora do chão e pendurou-a ao ombro.

- Tome todo o café que quiser, tenente - disse a viúva -, mas não me traga espingardas para dentro de casa.

- Pelo contrário - sorriu Mateo de Asís. - Devias pedi-la emprestada para ir à missa. Não te parece?

- Não preciso de trastes desses para me defender - replicou a viúva. - A Divina Providência está do nosso lado. Os Asís - acrescentou com seriedade - foram sempre gente de Deus, antes de haver padres em muitas léguas em redor.

O alcaide despediu-se.

- É preciso dormir - disse ele. - Isto não é vida para cristãos. - Abriu passagem entre as galinhas, os patos e perus que começavam a invadir a casa. A viúva espantou os animais. Mateo de Asís foi para o seu quarto, tomou banho, mudou de roupa e saiu novamente para aparelhar a mula. Os irmãos timham partido ao amanhecer.

A viúva de Asís tratava das gaiolas quando o filho apareceu no pátio.

- Recorda-te - disse-lhe - que uma coisa é tratar da vida e outra coisa saber manter as distâncias.

- Ele só entrou para tomar café - protestou Mateo Asís. - Viemos a falar, quase sem nos darmos conta.

Estava no extremo do corredor, a olhar para a mãe, mas ela não se tinha voltado para falar. Parecia dirigir-se aos pássaros.

- Só te digo isto - replicou. - Não me tragas assassinos para casa. - Tendo acabado de arranjar as gaiolas, perguntou ao filho: - E tu, onde estavas?

 

Naquela manhã, o juiz Arcadio acreditou descobrir sinais aziagos nos episódios minúsculos que fazem a vida de todos os dias. Provoca dores de cabeça", disse, tentando explicar à mulher aquilo que sentia. Era uma manhã de sol. O rio, pela primeira vez em várias semanas, tinha perdido o seu aspecto ameaçador e o seu cheiro a couro cru. O juiz Arcadio foi à barbearia.

- A justiça - disse o barbeiro, para o receber - coxeia, mas acaba por chegar.

O estabelecimento tinha sido polido com petróleo e os espelhos estavam cobertos com pinceladas de alvaiade. O barbeiro começou a poli-los com um trapo enquanto o juiz Arcadio se acomodava na cadeira.

- Não devia haver segundas-feiras - disse o juiz.

O barbeiro tinha começado a cortar-lhe o cabelo.

- São culpa do domingo. Se não fossem os domingos, as segundas-feiras não existiriam - precisou.

O juiz Arcadio fechou os olhos. Desta vez, depois de dez horas de sono, de um acto de amor turbulento e de um banho prolongado, não havia nada a censurar ao domingo. Mas era uma segunda-feira densa. Quando o relógio da torre bateu as nove e, em lugar das badaladas, ficou no ar o ruído de uma máquina de costura na casa contígua, outro sinal fez estremecer o juiz Arcadio: o silêncio das ruas.

- Esta é uma terra-fantasma - disse o juiz.

- Vocês assim o quiseram - retorquiu o barbeiro. - Antes, numa segunda-feira pela manhã, já tinha atendido pelo menos cinco clientes a esta hora. Hoje, faço consigo o nome de Deus.

O juiz Arcadio abriu os olhos e por um momento contemplou o rio no espelho.

- Vocês - repetiu. E perguntou: - Quem somos nós ?

- Vocês - vacilou o barbeiro. - Antes de vocês, esta era uma terra de merda, como todas as outras, mas agora é a pior de todas.

- Se me dizes essas coisas - replicou o juiz - é por saberes que nada tive a ver com elas. Terias coragem - perguntou, sem agressividade - de dizer o mesmo ao tenente ?

O barbeiro admitiu que não:

- O senhor não sabe o que é levantar-se todas as manhãs com a certeza de que o matarão e passarem dez anos sem que isso aconteça.

- Não sei - admitiu o juiz -, nem quero saber.

- Faça tudo o que puder para que nunca o saiba disse o barbeiro.

O juiz dobrou a cabeça. Após um prolongado silên cio, perguntou :

- Sabes uma coisa, Guardiola? - Sem esperar resposta, prosseguiu: - O tenente está-se a afundar com o povoado. E cada dia se afunda mais, porque descobriu um prazer do qual não se regressa: pouco a pouco, sem fazer muitas ondas, está a ficar rico. - Como o barbeiro o escutava sem dizer nada, concluiu: - Aposto contigo que não haverá nem mais um morto por sua conta.

- Acredita nisso ?

- Aposto cem contra um - insistiu o juiz Arcadio.

- Para ele, neste momento, não há maior negócio do que a paz.

O barbeiro acabou de lhe cortar o cabelo, inclinou a cadeira para trás, e mudou a toalha sem falar. Quando finalmente o fez, havia na sua voz um fio de desconcerto :

- É estranho que seja o senhor a dizer isso e que o diga a mim.

Se a posição o tivesse permitido, o juiz Arcadio teria encolhido os ombros.

- Não é a primeira vez que o digo - garantiu.

- O tenente é o seu melhor amigo - disse o barbeiro.

Havia baixado a voz, e era uma voz tensa e confidencial. Concentrado no seu trabalho, tinha a mesma expressão em que uma pessoa que não tem o hábito de escrever faz a sua assinatura.

- Diz-me uma coisa, Guardiola - perguntou o juiz Arcadio com certa solenidade. - Que ideia fazes de mim ?

Guardiola tinha começado a barbeá-lo. Pensou um momento, antes de responder:

- Até agora, tinha pensado que o senhor é uma pessoa que sabe que se vai e pretende ir.

- Podes continuar a pensá-lo - sorriu o juiz. Deixava-se barbear com a mesma passividade sombria com que se teria deixado degolar. Manteve os olhos fechados enquanto o barbeiro lhe passava no rosto uma pedra de alúmen, punha pó-de- arroz e sacudia o pó com um pincel de cerdas mwto suaves. Ao tirar-lhe a toalha do pescoço, meteu-lhe um papel no bolso da camisa, e disse-lhe:

- Só está enganado numa coisa, juiz. Neste país vai haver sarilhos.

O juiz Arcadio assegurou-se de que continuavam sozinhos na loja. O sol ardente, o ruído da máquina de costura no silêncio das nove e meia, a segunda-feira iniludível indicaram-lhe algo mais: parecia que estavam sozinhos no povoado. Então tirou o papel do bolso e leu. O barbeiro voltou- lhe as costas para pôr em ordem os objectos na prateleira. Dois anos de discursos, citou de memória. E ainda o mesmo estado de sítio, a mesma censura de imprensa, os mesmos funcionários." Ao ver no espelho que o juiz Arcadio tinha terminado a leitura, disse-lhe:

- Faça circular.

O juiz voltou a guardar o papel no bolso.

- És corajoso! - exclamou.

- Se alguma vez me tivesse enganado com alguma pessoa - disse o barbeiro -, há anos que estaria furado com chumbo. - Depois acrescentou com voz séria:E lembre-se de uma coisa, juiz: já ninguém pode deter o que se vai passar.

Ao sair dali, o juiz Arcadio sentia a boca seca. Na sala de bilhar pediu dois duplos e, depois de os tomar, um atrás do outro, compreendeu que ainda lhe faltava muito tempo para acabar. Na Universidade, um sábado de glória, tentou aplicar uma cura de burro à incerteza: entrou no urinol de um bar, perfeitamente sóbrio, lançou pólvora num dos reservatórios e chegou-lhe fogo.

Ao quarto pedido, Don Roque moderou a dose.

- Por este andar - sorriu - será levado em om bros, como os toureiros. - O juiz também sorriu com os lábios, mas os olhos permaneceram apagados. Meia hora depois foi urinar. Urinou e antes de sair lançou a folha clandestina na retrete.

Quando voltou ao balcão encontrou a garrafa junto do copo, com uma linha de tinta a assinalar o nível do conteúdo.

- Tudo isso é seu - disse-lhe Don Roque, abanando-se lentamente. Estavam sozinhos no estabelecimento. O juiz Arcadio serviu-se de meio copo e começou a beber sem pressas.

- Sabe uma coisa? - perguntou. E como Don Roque não deu mostras de ter compreendido, disse-lhe: - Vai haver sarilhos.

 

Don Sabas estava a pesar na balança o seu almoço de passarinho quando lhe anunciaram uma nova visita do senhor Carmichael.

- Diz-lhe que estou a dormir - sussurrou ao ouvido da mulher. E, efectivamente, dez minutos depois estava a dormir. Ao acordar, o ar tinha ficado seco e a casa estava paralisada pelo calor. Passava do meio-dia.

- O que é que sonhaste? - perguntou-lhe a mulher.

- Nada.

Tinha esperado que o marido acordasse, sem o chamar. Um momento depois ferveu a seringa hipodérmica e Don Sabas injectou insulina na coxa.

- Há-de haver três anos que nunca sonhas nada - disse a mulher, com um desencanto tardio.

- Porra! - exclamou ele. - Que queres? Não se pode sonhar à força.

Anos antes, no seu curto sono do meio-dia, Don Sabas tinha sonhado com um carvalho que em vez de flores produzia navalhas de barba. A mulher dele interpretava o sonho e ganhara uma fração da lotaria.

- Se não é hoje, será amanhã - disse ela.

- Não foi hoje nem será amanhã - replicou Don Sabas, impaciente. - Não vou pôr-me a sonhar só para tu jogares a tua sorte.

Estendeu-se novamente na cama enquanto a esposa punha ordem no quarto. Toda a espécie de instrumentos, cortantes e perfurantes, tinham sido desterrados do aposento. Passado meia-hora, Don Sabas acordou em várias etapas, tentando não se agitar, e começou a vestir-se.

- Ah - perguntou -, que disse Carmichael?

- Que volta mais tarde.

Não voltaram a falar até estarem sentados à mesa. Don Sabas picava a sua pouco complicada dieta de doente. Ela serviu-se de um almoço completo, aparentemente demasiado abundante para o seu corpo frágil e a sua expressão lânguida. Tinha já pensado muito, quando decidiu perguntar:

- Que é que ele quer, o Carmichael?

Don Sabas nem sequer levantou a cabeça.

- Que mais pode ser? Dinheiro.

- Já imaginava - suspirou a mulher. E prosseguiu piedosamente: - Pobre Carmichael: rios de dinheiro a passarem-lhe pela mão durante tantos anos, e vivendo da caridade pública. - À medida que falava, perdia o entusiasmo pelo almoço.

- Dá-lhe, Sabitas - suplicou. - Deus te pagará. Cruzou os talheres em cima do prato e perguntou, intrigada: - Quanto precisa?

- Duzentos pesos - respondeu Don Sabas, imperturbável.

- Duzentos pesos !

- Imagina!

Ao contrário dos domingos, que eram dias mais ocupados, Don Sabas tinha às segundas uma tarde tranquila. Podia passar muitas horas no escritório, dormitando diante da ventoinha eléctrica, enquanto o gado crescia, engordava e se multiplicava nas suas malhadas. Naquela tarde, no entanto, não conseguiu um instante de sossego.

- É o calor - disse a mulher.

Don Sabas deixou transparecer uma chispa de exasperação nas pupilas descoloridas. No escritório acanhado, com uma secretária de madeira, quatro cadeirões de couro, um em cada canto, as persianas tinham sido fechadas e o ar era morno e espesso.

- Pode ser - admitiu ele. - Nunca fez tanto calor em Outubro.

- Há quinze anos, com um calor como este, houve um tremor de terra - disse a mulher. - Lembras-te?

- Não me lembro - respondeu Don Sabas, distraído. - Tu sabes que nunca me lembro de nada. Além disso - acrescentou de mau humor -, esta tarde não estou para falar de desgraças. - Fechou os olhos, cruzou os braços no ventre e fingiu dormir. - Se Carmichael vier - murmurou - diz-lhe que saí. - Uma expressão de súplica alterou o rosto da esposa.

- Tens má índole - disse a mulher.

Mas ele não voltou a falar. Ela saiu do escritório, sem fazer o menor ruído ao fechar a porta forrada de rede de arame. Pelo entardecer, depois de ter realmente dormido, Don Sabas abriu os olhos e viu diante dele, como no prolongamento de um sonho, o alcaide sentado à espera que ele despertasse.

- Um homem como o senhor - sorriu o tenente - não devia dormir com a porta aberta.

Don Sabas não fez qualquer gesto que denunciasse o seu espanto :

- Para si, as portas da minha casa estão sempre abertas. - Esticou o braço para tocar a campainha, mas o alcaide impediu-o com um gesto. - Não quer um café? - perguntou Don Sabas.

- Agora não - respondeu o alcaide, olhando o aposento com um olhar nostálgico. - Estava-se aqui muito bem, enquanto dormia. Era como estar noutra terra.

Don Sabas esfregou os olhos com as costas da mão.

- Que horas são?

O alcaide olhou para o relógio.

- São quase cinco - respondeu. Depois, mudando de posição no assento, entrou suavemente nos seus propósitos: - Então, vamos falar?

- Suponho - respondeu Don Sabas - que não o posso evitar.

- Não valeria a pena - disse o alcaide. - Ao fim e ao cabo, isto não é segredo para ninguém. - E com a mesma repousada fluidez, sem forçar em nenhum momento o gesto ou as palavras, acrescentou: - Diga-me uma coisa, Don Sabas: quantas reses da viúva de Montiel mandou retirar e remarcar com o seu ferro desde que ela se propôs vender-lhas?

Don Sabas encolheu os ombros:

- Não faço a menor ideia.

- Mas recorda - afirmou o alcaide - que isso tem um nome.

- Recordo.

- Muito bem. Digamos, por exemplo - prosseguiu o alcaide -, que tiraram duzentas reses em três dias.

- Quem dera - disse Don Sabas.

- Duzentas - confirmou o alcaide. - Sabe quais são as penalidades merecidas por esse acto: cinquenta pesos de imposto municipal por cada rês.

- Quarenta.

- Cinquenta.

Don Sabas fez uma pausa de resignação. Estava encostado no espaldar da cadeira de molas, fazendo girar com o dedo o anel de pedra negra e polida, com os olhos fixos num xadrez imaginário. O alcaide observava-o com uma atenção inteiramente desprovida de compaixão.

- Desta vez, no entanto, as coisas não terminam aí

- prosseguiu. - A partir deste momento, em qualquer lugar onde se encontre, todo o gado da viúva de Montiel está sob a protecção do município. - Depois de esperar inutilmente uma reacção, explicou: - Essa pobre mulher, como o senhor sabe, está completamente louca.

- E Carmichael?

- Carmichael - disse o alcaide - está há duas horas sob controlo.

Don Sabas examinou-o então com uma expressão que tanto podia ser de espanto ou de admiração. E sem qualquer anúncio, descarregou sobre a secretária o corpo mole e volumoso, sacudido por um incontível riso interior.

- Que maravilha, tenente - disse Don Sabas. - Isto deve parecer-lhe um sonho.

 

O doutor Giraldo teve a certeza, ao entardecer, de ter ganho muito terreno ao passado. As amendoeiras da praça voltavam a estar cheias de pó. Um novo Inverno passava, mas o seu passo silencioso deixava na recordação uma marca profunda. O padre Ángel regressava do seu passeio vespertino quando encontrou o médico tentando meter a chave na fechadura do consultório.

- Está a ver, doutor - disse o padre, sorrindo.Até para abrir uma porta é necessária a ajuda de Deus.

- Ou de uma lanterna - retorquiu por sua vez o médico. Fez girar a chave na fechadura e depois ocupou-se inteiramente do padre Ángel. Viu-o tenso e cor de malva ao crepúsculo. - Espere um momento padre. Creio que alguma coisa não anda bem no seu fígado - acrescentou retendo-o pelo braço.

- Acha que sim?

O médico acendeu a lâmpada do vestíbulo e examinou, com uma atenção mais humana do que profissional, o semblante do pároco. Depois abriu a porta forrada de rede de arame do consultório e acendeu a luz.

- Não seria nada excessivo consagrar cinco minutos ao seu corpo, padre - disse o médico. - Vamos medir essa tensão arterial.

O padre Ángel estava com pressa. Mas perante a insistência do médico, entrou para a salinha e preparou o braço.

- Nos meus tempos - disse o padre - não existiam essas coisas.

O doutor Giraldo colocou uma cadeira diante dele e sentou-se a preparar o aparelho.

- Os seus tempos são estes, padre - disse o médico, sorrindo. - Não lhes negue o corpo.

Enquanto o médico estudava o mostrador, o pároco examinou o aposento com aquela curiosidade ingénua que costumam inspirar as salas de espera. Pendurados nas paredes estavam um diploma amarelecido, a litografia de uma menina arroxeada com uma face carcomida em azul e o quadro de um médico a disputar à morte uma mulher despida.No fundo,atrás da caminha de ferro,pintada de branco,havia um armário com frascos rotulados.Ao lado da janela,uma prateleira com instrumentos e outras duas abarrotadas de livros.O único cheiro definido era o do álcool a noventa graus.Quando acabou o exame,o rosto do doutor Giraldo nada revelou.

- Neste lugar faz falta um santo - disse o padre.

O médico examinou as paredes.

- Não só aqui - retorquiu o médico. – Também faz falta no povoado.- Guardou o aparelho num estojo de couro,que fechou com um puxão enérgico do fecho éclair,e disse: - Saiba uma coisa,padre: a sua tensão está muito bem.

-Já desconfiava - disse o pároco.E acrescentou com uma perplexidade lânguida: - Nunca me tinha sentido tão bem em Outubro.

Começou lentamente a desenrolar a manga.Com a sotaina de beiras esfiapadas,os sapatos em péssimo estado e as mãos ásperas cujas unhas pareciam de corno chamuscado,prevalecia nele,nesse instante,a sua condição

essencial: era um homem extremamente pobre.

- No entanto - prosseguiu o médico - estou preocupado consigo: temos de reconhecer que o seu regime de vida não é o mais adequado para um Outubro como este.

- Nosso Senhor é exigente - disse o padre.

O médico voltou-lhe as costas para olhar o rio escuro pela janela:

- Pergunto a mim mesmo até que ponto.Não parece coisa de Deus isto de se esforçar durante tantos anos para tapar com uma couraça o instinto das pessoas,tendo plena consciência de que por baixo tudo continua na mesma.- E depois de uma longa pausa,perguntou:

- Nestes últimos dias não teve a impressão de que o seu trabalho implacável tinha começado a desmoronar-se?

- Todas as noites,ao longo da minha vida,tive essa impressão - respondeu o padre Ángel.- Por isso sei que devo começar o dia seguinte com mais vontade.

Dispôs-se a abandonar o consultório, dizendo: Vão dar as seis." Sem se afastar da janela, o médico pareceu estender um braço ao seu encontro para lhe dizer:

- Uma noite destas, ponha a mão no coração e pergunte a si mesmo se não está a tentar colocar pensos na moral.

O padre Ángel não conseguiu disfarçar uma terrível sufocaçãão interior.

- À hora da morte - disse ele - saberá quanto pesam essas palavras, doutor. - Deu as boas-noites e fechou suavemente a porta ao sair.

Não conseguiu concentrar-se na oração. Quando fechava a igreja, Mina aproximou-se para lhe dizer que em dois dias só tinha sido apanhado um rato. Ele tinha a impressão de que na ausência de Trinidad os ratos haviam proliferado a ponto de ameaçarem derruir o templo. No entanto, Mina tinha montado as ratoeiras. Havia envenenado o queijo, perseguido o rastro das crias e tapado com asfalto os novos ninhos que ele próprio a ajudava a descobrir.

- Põe um pouco de fé no teu trabalho - dissera-lhe - e os ratos virão até às ratoeiras como cordeirinhos.

Deu muitas voltas na sua esteira pelada antes de adormecer. No enervamento da vigília teve plena consciência do obscuro sentimento de derrota que o médico lhe tinha inculcado no coração. Essa inquietação e depois o tropel dos ratos no templo e a espantosa paralisia do recolher obrigatório, tudo se confabulou para que uma força cega o arrastasse até à turbulência da sua mais temida recordação.

Recém-chegado ao povoado, tinham-no acordado à meia-noite para dar os últimos sacramentos a Nora de Jacob. Tinha recebido uma confissão dramática, exposta de um modo sereno, pormenorizado e rigoroso, num quarto preparado para receber a morte: havia apenas um crucifixo na cabeceira da cama e muitas cadeiras vazias encostadas às paredes. A moribunda tinha-lhe revelado que o seu marido, Néstor Jacob, não era o pai da filha que acabava de nascer. O padre Ángel havia condicionado a absolvição ao acto de ela repetir a confissão e terminar o acto de contrição na presença do marido.

Obedecendo às ordens rítmicas do empresário, os homens arrancaram as estacas e o toldo desinchou numa catástrofe solene, com um silvo que parecia um queixume semelhante ao do vento entre as árvores. Ao amanhecer estava dobrado e as mulheres e as crianças tomavam o pequeno-almoço sentadas nos malões, enquanto os homens embarcavam as feras. Quando as lanchas apitaram a primeira vez, as marcas das fogueiras no solo pelado eram o único indício de que um animal pré-histórico tinha passado pela aldeia.

O alcaide não tinha dormido. Depois de observar da varanda o embarque do circo, misturou-se ao bulício do porto ainda com o uniforme de campanha, os olhos irritados pela falta de sono e a cara endurecida pela barba de dois dias. O empresário descobriu-o no tejadilho da sua lancha.

- Viva, tenente - gritou. - Aí lhe deixo o seu reino.

Estava enfiado num camisolão amplo e puído que lhe imprimia ao rosto rotundo um ar sacerdotal. Tinha a chibata enrolada no punho. O alcaide aproximou-se da margem.

- Sinto muito, general - gritou por sua vez de bom humor, com os braços abertos. - Espero que tenha a honestidade de dizer porque se vai embora. - Voltou-se para a multidão e explicou em voz alta: - Cancelei-lhe a licença porque não quis dar um espectáculo grátis para as crianças.

A sereia final das lanchas e, em seguida, o ruído dos motores afogaram a resposta do empresário. A água exalou um relento de lama removida. O empresário esperou que as lanchas dessem a volta no centro do rio. Então apoiou-se na borda e, utilizando as mãos como altifalante, gritou com todo o poder dos seus pulmões.

- Adeus, polícia-filho-da-puta.

O alcaide não se mexeu. Esperou, com as mãos nos bolsos, até que o ruído dos motores se desvanecesse. Depois atravessou a multidão, sorridente, e entrou no armazém do sírio Moisés. Eram quase oito horas. O sírio tinha começado a guardar a mercadoria exposta na porta.

- Então o senhor também vai - disse o alcaide.

- Por pouco tempo - admitiu o sírio olhando o céu. - Vai chover.

- Às quartas-feiras não chove - garantiu o alcaide. Esteve de cotovelos no balcão a olhar as grossas nuvens que flutuavam por cima do porto, até que o sírio acabou de recolher a mercadoria e pediu à mulher para trazer café.

- Por este andar - suspirou como que para si mesmo - teremos de pedir gente emprestada a outras terras.

O alcaide bebia o café em sorvos espaçados. Mais três famílias haviam partido. Com elas, segundo as contas do sírio, eram cinco as que tinham ido embora no decurso de uma semana.

- Mais tarde ou mais cedo voltarão - disse o alcaide. Perscrutou as manchas enigmáticas deixadas pelo café no fundo da chávena e comentou com um ar ausente:

- Para onde quer que partam, sempre recordarão que têm o umbigo enterrado nesta terra.

Apesar dos seus prognósticos, teve de aguardar no armazém que passasse uma violenta bátega que afundou, por breves minutos, a terra num dilúvio. Depois dirigiu-se ao quartel e encontrou o senhor Carmichael ainda sentado num banquinho, no centro do pátio, encharcado pela bátega. Não se preocupou com ele. Depois de receber o relatório do polícia de serviço, mandou abrir a cela onde Pepe Amador parecia dormir profundamente, deitado de bruços no chão de mosaico. Voltou-o com o pé e, por um momento, observou com comiseração o rosto desfigurado pelos golpes.

- Desde quando é que não come? - perguntou.

- Desde anteontem à noite.

Mandou-o levantar. Agarrando-o pelas axilas, três agentes arrastaram-no através da cela e sentaram-no no estrado de cimento incrustado na parede a meio metro de altura. No lugar onde o corpo tinha estado, ficou uma sombra húmida.

Enquanto dois agentes o mantinham sentado, outro segurava-o pelo cabelo para lhe manter a cabeça alta. Poderia pensar-se que estava morto, se não fôsse a respiração irregular e a expressão de infinito esgotamento dos lábios.

Ao ser abandonado pelos agentes, Pepe Amador abriu os olhos e agarrou-se à beira de cimento. Em seguida, deitou-se de bruços na plataforma, com um queixume rouco. O alcaide saiu da cela e deu ordem para lhe darem de comer e o deixarem dormir um bocado.

- Depois - prosseguiu - continuem a trabalhá-lo até cuspir tudo o que sabe. Não creio que possa resistir muito tempo. - Da varanda viu de novo o senhor Carmichael no pátio, com o rosto entre as mãos, encolhido no banquinho. - Rovira - chamou. - Vá a casa de Carmichael e diga à mulher dele que lhe envie roupa. Depois - acrescentou de um modo peremptório - traga-o ao meu gabinete.

Tinha começado a adormecer, apoiado na secretária quando bateram à porta. Era o senhor Carmichael, vestido de branco e completamente seco, exceptuando os sapatos que estavam inchados e moles como os de um afogado. Antes de se ocupar dele, o alcaide ordenou ao polícia que lhe fosse buscar um par de sapatos.O senhor Carmichael levantou um braço para o agente.

- Deixe-me assim - pediu.E depois,dirigindo-se ao alcaide com u olhar de severa dignidade,explicou:

- São os únicos que tenho.

O alcaide mandou-o sentar.Vinte e quatro horas antes o senhor Carmichael havia sido conduzido ao aposento blindado e submetido a um intenso interrogatório acerca da situação dos bens de Montiel.Tinha feito uma exposição pormenorizada.No final,quando o alcaide revelou os seus propósitos de comprar a herança pelo preço que viessem a estabelecer os peritos municipais, anunciara a sua firme determinação de o não permitir enquanto a sucessão não estivesse liquidada.

Naquela tarde,depois de longas horas de fome e de exposição à intempérie,a resposta do senhor Carmichael revelou a mesma inflexibilidade.

- És uma mula,Carmichael - disse o alcaide.- Se esperas que a sucessão esteja liquidada,esse bandido do Don Sabas acabará por sobrepor o seu ferro a todo o gado de Montiel.

O senhor Carmichael encolheu os ombros.

- Está bem - disse-lhe o alcaide após uma longa pausa.- Sabe-se que és um homem honesto.Mas lembra-te de uma coisa: há cinco anos,Don Sabas deu a José Montiel a lista completa das pessoas que estavam em contacto com as guerrilhas,e por isso foi o único chefe da oposição que pôde permanecer aqui.

- Ficou outro - retorquiu o senhor Carmichael, com uma ponta de sarcasmo.- Ficou o dentista.

O alcaide deixou passar a interrupção.

- Acreditas que por um homem assim,capaz de vender por tuta-e-meia a sua própria gente,vale a pena estares sentado vinte e quatro horas ao sol e ao relento?

O senhor Carmichael baixou a cabeça e pôs-se a olhar as unhas.O alcaide sentou-se na secretária.

- Além disso - disse finalmente num tom amável -, pensa nos teus filhos.

O senhor Carmichael ignorava que a sua mulher e os seus dois filhos mais velhos tinham visitado o alcaide, na noite anterior, e este lhes havia prometido que antes de vinte e quatro horas o poria em liberdade.

- Não se preocupe - retorquiu o senhor Carmichael. - Eles sabem como se defender. - Não levantou a cabeça enquanto não sentiu o alcaide a andar de um extremo ao outro da sala. Então soltou um suspiro e disse: - Ainda lhe resta outro recurso, tenente. - Antes de prosseguir, olhou-o com terna mansidão: - Liquidar-me com um tiro.

Não recebeu qualquer resposta. Um pouco depois o alcaide estava profundamente adormecido no seu quarto e o senhor Carmichael tinha regressado ao seu banquinho.

À distância de apenas dois quarteirões do quartel, o escrivão era feliz. Timha passado a manhã a dormitar no fundo do gabinete e, sem o ter podido evitar, vira os seios esplêndidos de Rebeca de Asís. Foi como um relâmpago ao meio-dia: tinha-se aberto subitamente a porta do quarto de banho e a fascinante mulher, sem nada mais do que uma toalha enrolada na cabeça, lançou um grito silencioso e apressou-se a fechar a janela.

Durante meia hora, o escrivão continuou a suportar, na penumbra do gabinete, a amargura daquela alucinação. Por volta do meio-dia pôs o cadeado na porta e foi dar à sua recordação alguma coisa de comer. Ao passar diante do posto telegráfico, o delegado dos correios fez-lhe um sinal.

- Vamos ter padre novo - disse-lhe. - A viúva de Asís escreveu uma carta ao núncio apostólico.

O escrivão afastou-o:

- A melhor virtude do homem é saber guardar um segredo.

Na esquina da praça encontrou-se com o senhor Benjamín, que pensava duas vezes antes de saltar os charcos diante da sua loja.

- Se o senhor soubesse, senhor Benjamín - começou o escrivão a dizer.

- Se soubesse o quê?

- Nada - disse o escrivão. - Levarei este segredo para o túmulo.

O senhor Benjamín encolheu os ombros.Viu o escrivão saltar por cima dos charcos com uma agilidade tão juvenil que também ele se lançou na aventura.

Na sua ausência,alguém tinha colocado no fundo da loja um armário de comida de três secções,pratos e talheres e uma toalha dobrada.O senhor Benjamín estendeu a toalha na mesa e dispôs as coisas de modo a poder almoçar.Fez tudo com extrema organização.Primeiro comeu a sopa,amarela,com grandes círculos de gordura flutuante e um osso descarnado.Noutro prato comeu arroz branco,carne guisada e um pedaço de mandioca frita.Começava o calor,mas o senhor Benjamín não lhe prestava atenção.Quando acabou o almoço,empilhou os pratos,colocou no seu lugar as secções do porta-comidas e bebeu um copo de água.Dispunha-se a colocar a rede,quando sentiu que alguém entrava na loja.

Uma voz sonolenta perguntou:

- O senhor Benjamín está?

Esticou a cabeça e viu uma mulher vestida de preto, com uma toalha a tapar o cabelo,e a pele cor de cinza.

Era a mãe de Pepe Amador.

- Não estou - respondeu o senhor Benjamín.

- É o senhor - disse a mulher.

- Bem sei - admitiu ele -,mas é como se não fosse,porque sei o que quer de mim.

A mulher hesitou diante da porta dos fundos,enquanto o senhor Benjamín acabava de colocar a rede.

A cada inspiração escapava-lhe dos pulmões um silvo ténue.

- Não fique aí - disse o senhor Benjamín com dureza.- Vá-se embora ou entre.

A mulher ocupou a cadeira diante da mesa e começou a soluçar em silêncio.

- Desculpe - disse ele.- Tem de compreender que me compromete ficando aí,à vista de toda a gente.

A mãe de Pepe Amador descobriu a cabeça e secou os olhos com a toalha. Por puro hábito, o senhor Benjamín experimentou a resistência das cordas ao acabar de pendurar a rede. Depois voltou-se para a mulher:

- De modo que a senhora quer que eu lhe faça um requerimento. - A mulher e concordou com a cabeça.

- Quer dizer - prosseguiu o senhor Benjamín -, continua a acreditar em requerimentos. Nos tempos que correm, a justiça - explicou, baixando a voz - não se faz com papéis, faz-se a tiro.

- Toda a gente diz o mesmo - replicou ela -, mas dá-se o caso de eu ser a única que tenho o meu rapaz na cadeia.

Enquanto falava, desfez os nós do lenço que até então tinha apertado no punho e dele tirou várias notas amarrotadas: oito pesos. Ofereceu-os ao senhor Benjamín.

- É tudo o que tenho - disse.

O senhor Benjamín olhou para o dinheiro. Ergueu os ombros e pegou em duas notas, colocando-as em cima da mesa:

- Sei que é inútil. Mas vou fazer o que pede só para provar a Deus que sou um homem pertinaz. - A mulher agradeceu em silêncio e recomeçou a soluçar. - De qualquer modo - aconselhou-a -, trate de fazer com que o alcaide a deixe ver o rapaz e convença-o a dizer o que sabe. Fora disso, é o mesmo que alimentar porcos com papéis.

Ela limpou o nariz com a toalha, cobriu novamente a cabeça e saiu da loja sem voltar a cara. O senhor Benjamín fez a sesta até às quatro. Quando foi ao pátio lavar-se, o tempo estava limpo e o ar cheio de formigas-voadoras. Depois de mudar de roupa e de pentear os poucos fios de cabelo que lhe restavam, saiu para ir ao telégrafo comprar uma folha de papel selado.

Voltou para a loja para fazer o requerimento quando compreendeu que algo estava a acontecer. Ouviu gritos distantes. A um grupo de rapazes que passava a correr junto dele perguntou o que era e eles responderam-lhe sem parar. Então regressou ao posto telegráfico e devolveu a folha de papel selado que comprara.

- Já não é precisa - disse ele. - Acabam de matar Pepe Amador.

 

Ainda meio adormecido, com o cinturão na mão e abotoando o dólman com a outra, o alcaide desceu em dois saltos a escada do quarto. A cor da luz transtornou-lhe o sentido do tempo. Antes de saber o que se passava, compreendeu que devia dirigir-se ao quartel.

As janelas fechavam-se à sua passagem. Uma mulher aproximava-se, correndo com os braços abertos, pelo meio da rua, em sentido contrário. Havia formigas de asas no ar límpido. Ainda sem saber o que acontecia, o alcaide sacou o revólver do coldre e começou a correr.

Um grupo de mulheres tentava forçar a porta do quartel. Vários homens tentavam impedi-las à força. O alcaide afastou-os com violência, colocou-se de costas contra a porta e apontou a arma.

- Quem avançar um passo leva um tiro.

Um agente, que tinha estado a reforçá-la por dentro, abriu então a porta, com a espingarda armada, e fez soar um apito. Dois outros agentes apareceram na varanda, deram alguns tiros para o ar, e o grupo dispersou para os extremos da rua. Nesse momento, uivando como um lobo, a mulher apareceu na esquina. O alcaide reconheceu a mãe de Pepe Amador. Deu um salto para o interior do quartel e ordenou ao agente:

- Encarregue-se dessa mulher.

Dentro havia um silêncio total. Na realidade, o alcaide não soube o que se tinha passado enquanto não afastou os agentes que tapavam a entrada da cela e viu Pepe        Amador. Deitado no chão, encolhido sobre si mesmo, tinha as mãos entre as coxas. Estava pálido, mas não havia manchas de sangue.

Depois de se convencer de que ele não tinha nenhuma ferida, estendeu o corpo de costas no chão, meteu-lhe a fralda da camisa dentro das calças e abotoou-lhe a braguilha. Por fim, apertou-lhe o cinto.

Quando se levantou tinha recobrado o aprumo, mas a expressão com que enfrentou os agentes revelava um princípio de cansaço.

- Quem foi?

- Todos - respondeu o gigante louro. - Tentou fugir.

O alcaide olhou-o, pensativo, e por alguns segundos pareceu não ter mais nada a dizer.

- Essa história já ninguém a engole - afirmou. Avançou para o gigante loiro com a mão estendida:' Dá-me o revólver.

O polícia tirou o cinturão e entregou-lho. Tendo trocado por projécteis novos as duas cápsulas disparadas, o alcaide guardou-as no bolso e entregou o revólver a outro agente. O gigante loiro, que visto de perto parecia iluminado por uma auréola de puerilidade, deixou-se conduzir à cela vizinha. Ali despiu-se por completo e entregou a roupa ao alcaide. Tudo foi feito sem pressas, sabendo cada qual a função que lhe correspondia, como numa cerimónia. Finalmente o próprio alcaide fechou a cela do morto e saiu para a varanda do pátio. O senhor Carmichael permaneaa no banquinho.

Ao ser conduzido à sala onde se encontrava o alcaide, não correspondeu ao convite para se sentar. Ficou em pé, diante da secretária, outra vez com a roupa molhada, e mal moveu a cabeça quando o alcaide lhe perguntou se tinha dado conta do que se passara.

- Pois bem - disse o alcaide. - Ainda não tive tempo de pensar o que vou fazer, nem sequer sei se vou fazer alguma coisa. Mas seja o que for que faça lembra-te disto: queiras ou não estás metido no sarilho. O senhor Carmichael continuou absorto diante da secretária, a roupa colada ao corpo e um princípio de tumefacção na pele, como se ainda não tivesse vindo à tona da sua terceira noite de afogado. O alcaide esperou inutilmente um sinal de vida.

-Repara então nesta situação,Carmichael: agora somos parceiros.

Disse-o gravemente e até com algum dramatismo.

Mas o cérebro do senhor Carmichael não pareceu registra-lo. Permaneceu imóvel diante da secretária,inchado e triste,mesmo depois de a porta blindada se ter fechado.

Diante do quartel,dois agentes seguravam pelos pulsos a mãe de Pepe Amador.Os três pareciam repousar.

A mulher respirava com um ritmo normal e os seus olhos estavam secos.Mas quando o alcaide apareceu na porta,lançou um uivo rouco e sacudiu-se com tal violência que um dos agentes teve de a soltar e o outro imobilizou-a no solo com um golpe de artes marciais.

0 alcaide não olhou para ela.Fazendo-se acompanhar por outro agente,enfrentou o grupo que,na esquina, presenciava a luta.Não se dirigiu a ninguém em especial:

-Um qualquer de vocês.Se querem evitar algo pior,levem essa mulher para a casa dela.

Sempre acompanhado pelo agente,abriu passagem através do grupo e dirigiu-se ao tribunal.Não encontrou ninguém.Entâo foi a casa do juiz Arcadio e,empurrando a porta sem bater,gritou:

- Juiz!

A mulher do juiz Arcadio,afligida pelo humor denso da gravidez,respondeu da penumbra:

- Foi-se.

O alcaide não se moveu do umbral.

- Para onde?

- Para onde havia de ser? - retorquiu a mulher.- Para alguma puta de merda.

0alcaide fez ao agente um sinal para prosseguir.

Passaram ao lado da mulher,sem a olhar.Depois de revolverem o quarto e verificarem que não havia coisa de homem em sítio algum,regressaram à sala.

- Quando é que partiu? - perguntou o alcaide.

- Há duas noites - respondeu a mulher.

0alcaide necessitou de uma longa pausa para pensar.

- Filho da puta - gritou de repente. - Poderá esconder-se a cinquenta metros debaixo da terra; poderá enfiar-se outra vez na barriga da puta da mãe, que daí mesmo o sacaremos, vivo ou morto. O Governo tem o braço comprido.

A mulher suspirou.

- Deus o oiça, tenente.

Começava a escurecer. Ainda se viam grupos.mantidos em respeito pelos agentes da polícia nas esqumas do quartel, mas tinham levado a mãe de Pepe Amador e a terra parecia tranquila.

O alcaide dirigiu-se directamente à cela do morto. Mandou vir uma lona e, com a ajuda de um agente, colocou o boné e os óculos no cadáver, envolvendo-o nela. Depois procurou em diferentes sítios do quartel pedaços de fibra de piteira e arames, amarrando o corpo em espiral desde o pescoço até aos tornozelos. Quando acabou estava a suar, mas tinha um ar restabelecido. Era como se fisicamente tivesse tirado o peso do cadáver de cima de si.

Só então acendeu a luz da cela.

 

- Procura a pá, a picareta e uma lanterna - ordenou ao agente. - Depois chamas o González, cavam um buraco bem fundo na parte de trás do pátio das traseiras, que é mais seco. - Disse-o como se tivesse concebido palavra a palavra, à medida que falava. - E lembrem-se de uma coisa para toda a vida: este rapaz não morreu - disse em conclusão.

Duas horas mais tarde ainda não tinham acabado de cavar a sepultura. Da varanda, o alcaide verificou que não havia ninguém na rua, salvo um dos seus agentes que montava a guarda de esquina a esquina. Acendeu a luz da escada e deixou-se ficar a descansar no canto mais escuro da sala, ouvindo apenas os gritos espaçados de um alcaravão distante.

A voz do padre Ángel arrancou-o à sua meditaçâo. Ouviu-a primeiro a dirigir-se ao agente que se encontrava de guarda, depois a alguém que o acompanhava e, por fim, a outra voz. Permaneceu inclinado na cadeira desdobrável,até ouvir de novo as vozes,agora já no interior do quartel,e os primeiros passos na escada.Estendeu então o braço esquerdo na obscuridade e agarrou a cara-

bina.

Ao vê-lo aparecer no topo da eseada,o padre Ángel deteve-se.Dois degraus abaixo estava o doutor Giraldo, com uma bata curta e engomada e a maleta na mão.

Mostrou-lhe os dentes afilados.

- Estou muito desiludido,tenente - disse o médico,com aparente bom humor.- Passei toda a tarde à espera que me mandasse chamar para fazer a autópsia.

0 padre Ángel fixou nele os seus olhos transparentes e mansos,voltando-os depois para o alcaide.Também o alcaide sorriu.

- Não há autópsia - disse o alcaide -,uma vez que não há morto.

- Queremos ver Pepe Amador - protestou o pároco.

Com a carabina na mão,o cano apontado para baixo, o alcaide continuou a dirigir-se ao médico:

- Eu também gostaria.Mas não há nada a fazer.- E deixou de sorrir ao dizer: - Fugiu.- O padre Ángel avançou um degrau.O alcaide levantou a carabina na

sua direcção.- Fique aí quieto,padre - advertiu.Por sua vez o médico avançou um degrau.

- Diga-me uma coisa,tenente - disse,ainda a sorrir.- Nesta terra não se podem guardar segredos.Toda a gente sabe,desde as quatro da tarde,que fizeram com esse rapaz o mesmo que Don Sabas fazia com os burros que vendia.

- Ele fugiu - repetiu o alcaide.

Vigiando o médico,mal teve tempo de se pôr em guarda quando o padre Ángel subiu de uma vez dois degraus com os braços no ar. O alcaide soltou o cão da arma com um movimento seco da mão e ficou plantado com as pernas abertas.

 

- Alto aí! - gritou.

O médico agarrou o pároco pela manga da sotaina. O padre Ángel começou a tossir.

- Façamos jogo limpo, tenente - disse o médico. A sua voz endureceu pela primeira vez em muito tempo.

- É preciso fazer essa autópsia. Vamos agora esclarePer o misténo das síncopes que os presos sofrem nesta cadeia.

- Doutor - disse o alcaide. - Se se mover do lugar onde está, abato-o. - Desviou ligeiramente a mira para o pároco. - E a si também, padre. - Os três permaneceram imóveis. - Além disso - prosseguiu o alcaide dirigindo-se ao sacerdote - o senhor devia estar satisfeito, padre: esse rapaz era aquele que punha os pas- Por amor de Deus... - começou o padre a dizer. Mas a tosse convulsiva impediu-o de prosseguir. O alcaide esperou que a crise passasse.

- Ouçam uma coisa - disse então. - Vou começar a contar. Quando chegar a três, disparo com os olhos fechados contra essa porta. Saiba-o desde a ora e sempre - falou explicitamente para o médico. - Acabaram-se as piadinhas. Estamos em guerra, doutor. . O médico arrastou o padre Ángel pela manga. Ini aou a descida sem voltar as costas ao alcaide e de súbito, começou a rir com vontade.

- É assim que eu gosto, general - disse o médico.

- Agora sim, começamos a entender-nos.

- Um - contou o alcaide.

Não ouviram o número seguinte. Quando se separaram na esquina do quartel, o padre Angel estava cabisbaixo e teve de virar a cara porque tinha os olhos húmidos. O doutor Giraldo deu-lhe uma palmadinha no ombro sem parar de sorrir:

- Não se surpreenda, padre. Tudo isto é a vida. Ao dobrar a esquina da sua casa, olhou o relógio à luz do poste de iluminação: eram oito menos um quarto.

 

0padre Ángel não conseguiu comer.Depois do to-

que de recolher sentou-se a escrever uma carta.Ficou

inclinado sobre a secretária até depois da meia-noite,en-

quanto a chuva miudinha ia desfazendo os contornos do

mundo à sua volta.Escreveu de um modo implacável,

desenhando letras iguais,com tendência ao preciosismo,

1 e fazia-o com tanta paixão que não molhava a pena se-

" não depois de ter traçado duas palavras invisíveis,ferin-

do o papel com o aparo seco.

No dia seguinte,depois da missa,pôs a carta no correio apesar de saber que não seria expedida até sexta-feira.Durante a manhã,o ar esteve húmido e enevoado, mas por volta do meio-dia tornou-se diáfano.Um pássaro extraviado apareceu no pátio e esteve uma meia hora a dar saltinhos de inválido entre os nardos.Cantou uma nota progressiva, subindo de cada vez uma oitava, até á que se tornou tão ajuda que foi necessário imaginá-la.

No seu passeio vespertino,o padre Ángel teve a certeza de que durante toda a tarde o tinha perseguido uma fragrância outonal.Em casa de Trinidad,enquanto mantinha com a convalescente uma conversa triste acerca das doenças de Outubro,julgou identificar o odor como aquele que uma noite Rebeca de Asís exalara no seu escritório.

No regresso tinha visitado a família do senhor Carmichael.A esposa e a filha mais velha estavam desconsoladas e sempre que se referiam ao preso emitiam uma nota falsa.Mas as crianças estavam felizes sem a severidade do papá,tentando fazer beber água num copo um casal de coelhos que a viúva de Montiel lhes tinha enviado.De repente,o padre Ángel interrompeu a conversa e,traçando com a mão um sinal,disse:

-Já sei: é acónito.

Mas não era acónito.

Ninguém falava dos pasquins.No fragor dos últimos acontecimentos,estes eram apenas uma pitoresca história do passado.O padre Ángel teve ocasião de o comprovar durante o passeio vespertino e depois das vésperas, conversando na sacristia com um grupo de senhoras católicas.

Ao ficar sozinho, sentiu fome. Preparou fatias fritas de banana verde e café com leite e acompanhou-as com um pedaço de queijo. A satisfação do estômago fê-lo esquecer a dor. Enquanto se despia para se deitar, e depois dentro do toldo que envolvia a cama, matando os mosquitos que tinham sobrevivido ao insecticida, arrotou várias vezes. Tinha azia, mas o seu espírito estava em paz.

Dormiu como um justo. Ouviu, no silêncio do recolher obrigatório, os sussurros emocionados, as tentativas preliminares das cordas temperadas pelo frio da madrugada e, por fim, uma canção de outros tempos. Às cinco menos dez reparou que estava vivo. Levantou-se, num esforço solene, esfregando os olhos com os dedos, e pensou: Vinte e um de Outubro, sexta- feira." Depois recordou em voz alta: Santo Hilarião.

Vestiu-se sem se lavar e sem rezar. Tendo rectificado a longa abotoadura da sotaina, calçou as botas gretadas pelo uso diário, cujas solas começavam a ganhar bocas. Ao abrir a porta que dava para os nardos, lembrou-se das palavras de uma canção.

- Ficarei no teu sonbo até à morte" - suspirou. Mina empurrou a porta da igreja enquanto ele dava o primeiro toque. Dirigiu-se ao baptistério onde encontrou o queio intacto e as ratoeiras montadas. O padre Ángel acabou de abrir a porta que dava para a praça.

- Pouca sorte - disse Mina, abanando a caixa de cartão, vazia. - Hoje não apanhámos nenhum.

Mas o padre Ángel não lhe prestou atenção. Estava a despontar um dia brilhante, com um ar nítido que parecia um anúncio de que também naquele ano, apesar de tudo, Dezembro sena pontual. Nunca lhe pareceu mais definido o silêncio de Pastor.

- Ontem à noite houve serenata - disse ele.

- De chumbo - confirmou Mina. - Ouviram-se tiros até há pouco.

O padre olhou-a pela primeira vez. Também ela, extremamente pálida como a avó cega, usava a faixa azul de uma congregação laica. Mas, ao contrário de Trinidad, que tinha um humor masculino, nela começava a amadurecer uma mulher.

- Onde?

- Por todos os lados - respondeu Mina. - Parece que ficaram doidos à procura de panfletos clandestinos. Dizem que levantaram o soalho da barbearia, por casua lidade, e encontraram armas. A cadeia está cheia, mas dizem que os homens estão a ir para os montes para se organizarem nas guerrilhas.

O padre Ángel suspirou:

- Não me dei conta de nada.

Foi até ao fundo da igreja. Ela seguiu-o em silêncio até ao altar-mor.

- E isso não é nada - disse Mina. - Ontem à noite, apesar do toque de recolher e apesar do tiroteio...

O padre Ángel deteve-se. Voltou para ela os seus olhos tristes, de um azul inocente. Mina também se deteve, com a caixa vazia debaixo do braço, e esboçou um sorriso nervoso antes de acabar a frase.

 

                                                                                            Gabriel García Márquez  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades