Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


HORIZONTE CERRADO / Alves Redol
HORIZONTE CERRADO / Alves Redol

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT 

 

 

Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

ENROLADO numa saia que lhe dera a Maria Dolorosa, Luís continuava encostado ao parapeito do janelo, embora, o queixo lhe tremelicasse com o ar agreste da noite ponteada de estrelas e nimbada por um luar macio que lhe dava ajuda na vigilância da estrada, onde esperava que surgisse o vulto desejado de um cigano com o seu macho ligeiro, ferindo de lume as pedras do caminho. Ele estava ausente das conversas do avô e do Fontelas, dos remO Ques do irmão e até do cheiro dos fritos de abó-bora-menina que a Maria Dolorosa vigiava ao lume da lareira. Toda a sua atenção estava presa na rua, donde só vinha um grande silêncio, talvez medonho, se tivesse que andar lá por fora.
O temporal dos últimos dias amainara - a chuva não fustigava os portais, nem o vento mugia nas telhas quebradas, vindo solto dos lados do Caedo para tanger, de mansinho, o sino da igreja. Só o taro apertara mais - devia haver neve no Marão, como lá para riba, na Terra Fria. E a aldeia descoberta, no alto dum monte rasgado por varandins de vinhedos, de mistura com calços arruinados de mortórios, suportava a braveza daqueles frios de navalha que corriam afoitos por ali.

 


 

- Fecha lá isso, neto - insistiu o velho Teimas. - Vem dessa banda uma aragem dos dianhos...
- Só mais um bocadichinho, avô.
- Já tenho as mãos gararlhas... Queres matar-me?
- Não, avô. - E Luís voltou-se para dentro, contrariado com a conversa que lhe desviava a atenção. - Não deve tardar, com certeza, a menina apressada por meu pai na feira da Senhora do Monte.
Todos riram, e mais do que ninguém o irmão, querendo dar assim a entender que já não o enganavam com pataranhas daquelas. Luís ficou abespinhado, sentindo percorrer-lhe o corpo um grande calor de vergonha. Teve vontade de chorar só por raiva daquele Chico... E, mentalmente, repetiu a assoada com que a canalha mais miúda se desforrava das vezes em que ele corria o adro da igreja, com jeitos de vendaval, fazendo saltar os piões ou os pinos de jogar à malha.
O avô percebeu-o e quis deitar água na fervura, dizendo que talvez o cigano se tivesse perdido no caminho e só chegasse de madrugada.
- A minha mãe disse-me que vinha cedo; ela até se deitou de manhã para ir aquecendo a cama...
A mancha duma lanterna acesa surgiu num cabeço, mas logo desapareceu. Pelos montes que esborratavam a claridade da noite, uma ou outra luz lembrava cortelhos isolados ou quintas distantes. Mais ao longe, e para além do Douro, lumes acesos de outros povos perdidos nas dobras dos montes pareciam agora pregados no céu, como luzeiros de estrelas.
Maria Dolorosa voltou para junto de Luís e apertou-o nos braços, querendo afastar-lhe o amuo e defendê-lo do frio; ele pôs-se em bicos de pés, sobre o banco, encostando, agradecido, a cabeça ao ombro da rapariga.
- Aquele Chico larico...
- Deixa-o lá. Ele tem ferro é que eu goste de ti.
E aquela certeza venceu a sua ira pelo irmão. Era uma graça que se contava naquele sítio do povo, a do Luizito do Teimas dizer-se noivo da Maria Dolorosa e ter feito cena de ciúmes quando um dia lhe parara à porta um rapazola de Valença que por ali deitara nas últimas vindimas. "Já a morte tem vícios", comentaram as velhas nas conversas e risadas dos portais.
Mas Luís lá se achava com as suas razões. Em seu entender, se ela o ia despir todas as noites, dando-lhe um beijo de despedida, e se ele gostava de a ver sorrir-lhe e amimá-lo com aquela voz que parecia guardar o gorjeio dos pássaros mais cantaroleiros do Douro, é porque entre os dois haveria casamento consertado, lá mais para diante, quando ele fosse capaz de puxar o cabo duma ranfãola nas cavas das vinhas, carregar um cesto vindimo ou entrar na corta dum lagar.
Encostar-se agora ao seu ombro era ter a melhor ajuda para que a fantasia lhe não faltasse. E idealizou um ciga-não a primor, daqueles que vira na festa da Pesqueira, a correr os burricos, machos e cavalos a ponta de chicote.
- Se calhar, o macho vem com campainhas... E a cabeçada deve ser como a do cavalo daquele almocreve que veio vender panos pela Senhora da Ribeira. Lembras-te? !... Tinha umas risquinhas de muitas cores e umas vassourinhas de pano que batiam-batiam quando o garranote andava. E a manta do albardão?... Era mais bonita que a do fidalgo da Casa Grande. Mais bonita, sim. Se a visses ao pé, como eu...
E ficou-se à espreita, mais senhor daquele deslumbramento que a imaginação lhe oferecia. Prosseguiu depois, baixando a voz.
- Tu achas que o cigano vem? Ainda o não oiço...
- Só a tua mãe o pode ver, Luís. É que lhe podiam roubar o menino...
14
15
- Não é menino, é menina. Pedi ao meu pai e ele disse que sim, que mandava trocar. Quero uma menina para ir comigo à escola e andar na brincadeira. Depois quando formos grandes... assim grandes comoa ti, hei-de levá-la a todas as festas, até à Senhora do Socorro e aos Remédios havemos de deitar.
- Então já não casas comigo? - perguntou Maria Dolorosa para o ouvir.
- Vamos os três, pois. Rai me pele se não ganhar para irmos a toda a banda!
Depois ficou calado, por instantes, azedado de novo com as gargalhadas do irmão, porque se lembrava agora do que lhe dissera o Fatinário, o filho do Chasco carreiro. E não ficou descansado com aquela dúvida que voltava a animá-lo.
-O Fatinário é maluco, pois não é?... Disse-me que não acreditasse nessa história de a menina ser encomendada na Senhora do Monte.
- Ele é tolo...
E Maria Dolorosa sorria.
- Que era o meu pai e a minha mãe... Por isso é que ela tinha deitado aquele corpo todo.
- Deixa-o falar - respondeu a rapariga, já perdida de riso.
- Mas olha que o Fatinário sabe muita coisa! - disse Luís, ainda desconfiado. - Conhece os pássaros todos que cantam e não há terra das duas bandas do Doiro onde não tenha deitado. - E, fixando bem Maria Dolorosa, tentou perceber o que o seu rosto lhe dizia. -
- Não me estás a enganar, pois não?...
o avô insistiu na sanfona da janela aberta, e ela teve de convencer o rapazito a deixá-la fechar, com o pretexto de que o cigano não chegava, porque o via ali e tinha receio de se aproximar do povo.
16
Luís não ficou muito convencido, mas acedeu. Foi sentar-se no outro lado da lareira, longe do irmão que já cabeceava, e quis prestar toda a atenção à conversa do avô e do Fontelas, para não adormecer.
- Se todos fossem como eu, não entrava no Doiro um almude de vinho do Sul - dizia o velho. - É como te canto! Vinhos há muitos... há, pois... Em qualquer banda uma cepa se agarra; mas o do nosso, criado na éragaria...
- É verdadeiro sangue de Cristo - interveio o Fontelas, num menear de cabeça, enquanto enrolava o tabaco na mortalha.
- Mais do que isso!... Vinho do Doiro é sangue dos homens. Sangue dos homens, pois!...
Os seus olhos azuis, cansados de verem o mundo, acenderam-se no rosto magro e esverdinhado das últimas maleitas. Passou os dedos ossudos pelos bigodes espigados e descaídos, deixando-os correr até à ponta do queixo, e ficou a olhar os netos com ternura. Depois franziu a testa, num jeito muito seu de preocupações, e bateu no ombro do Fontelas, que seguia o cirandar da filha, na preparação da ceia.
- É praga antiga que se roga por aí: Deus te dê um filho estudante e uma quinta no Doiro. E é bem certo. A gente agarra-se à terra... iEu já não sei bem, mas talvez seja ela que nos prende ainda mais do que às árvores. Se vem um porradão de vento, uma árvore desenraíza-se; um homem que se mete com vinhas, nunca mais as larga, haja o que houver: é uma sina...
- Quando os homens se chamam Teimas - interveio o Fontelas.
- Puseram-me a alcunha quando não quis abalar daqui... E sabe-me bem ouvi-la, porque os que fogem no meio do temporal nasceram com sangue sem tripas.
17
São como os vinhos brandos, que nem a aguardente os aguenta.
Os netos dormitavam, de cabeça deitada sobre a mesa. António Teimas olhou-os com ternura.
- É o que te digo, Fontelas; e a tua filha que o oiça. Se todos fossem como eu, esses fazedores de vinho a martelo não metiam aqui uma lágrima que não fosse do nosso. O Jerónimo havia de contar com a gente, quando se metesse a fazer vinho fino com essa zurrapa do Sul, misturada com aguardente pra lhe dar força, baga de sabugueiro pra lhe emprestar cor e açúcar pra que tenha doçura.
- É vinho como os fumadores por conta doutros: pedem o papel, o tabaco e até a acendalha. E a gente que se amole sem trabalho.
- Porque vossemecês querem - reforçou o velho, com firmeza no olhar. - Se as novidades são mal pagas pelos comerciantes e se a maior parte dos pequenos lavradores tem de ficar com elas na vasilha, como querem vossemecês arranjar trabalho?... Os granjeios fazem-se de fugida, quando se fazem; os poucos dias de jorna que podemos dar são mal pagos, e os que não arriscam com a terra uma baga de suor, nem uma hora de ralações, continuam a viver na grande lá prà Régua e prò Porto, ou aqui mesmo nas nossas barbas, que ainda é pior.
- Mas eles que não abusem - interveio o Fontelas de rosto sombrio.
- Não têm feito outra coisa. Já se pediu ao rei que olhasse prà gente, dizem por aí. Mas o rei está em Lisboa e Lisboa é Sul... Terras de pouca-vergonha e de maganas, onde nem sonham o que passa um homem do Doiro, pra lhes dar uma golada de vinho que mal sabem beber. Isto é lá gente!...
O velho levantou-se, depois de esfregar as pernas trôpegas, e foi aquecer as mãos na fogueira.
- A hora tarda -disse Maria Dolorosa. - Tinha graça se a criança nascia mesmo à meia-noite.
- Era como Cristo. E cruz bem pesada lhe vai cair nos ombros - juntou António Teimas. E depois de uma reflexão momentânea: - Já se faz tarde... tens razão. A Elvira bem sofreu desta vez; pôs-se para aí magra que nem um canelo velho...
- A chuvada é que deu conta dela - reforçou o Fontelas, tapando o Luís com o seu casaco de remendos. - Meter-se a caminho com uma manhã assim...
- O vinho não manda chover, homem, manda andar, era um dito do velho fidalgo, que Deus tenha a sua alma em descanso. Depois de ter a criança, enrija. Com a Ana Sarrifa à sua beira tudo há-de correr bem.
Passaram uns instantes sem conversa. O velho foi afagar os netos e voltou a sentar-se no seu lugar. O reco começou a grunhir na loja e logo o Fontelas pegou no balde da vianda, dirigindo-se para a porta.
- Porcos com frio e homens com vinho... é baru-lheira certa.
Antes, porém, que a abrisse, outra mão dera volta ao trinco pelo lado de fora e um vulto entrou de rompante.
- Alguma novidade, Francisco? - perguntou o velho, mal viu no rosto do filho o sinal de preocupações.
- A Ana não s'entende com aquilo; vou chamar o doutor. Se a Dolorosa pudesse lá chegar...
- É pra já, homem - acudiu o Fontelas, pousando o balde à entrada da porta. - E se quiseres vou eu pro doutor.
- Não, obrigado; não tenho coragem pra ficar à espera.
E saiu enrolado no gabão. O pai seguiu-o a manquejar até à ombreira; dali ficou a ouvir-lhe os passos e a acompanhar a mancha da luz da lanterna. Depois ergueu
18
19
o olhar para as estrelas que adivinhava no céu, lançando-lhes uma súplica muda.
Um coro de Natal foi crescendo no silêncio, como uma prece trazida pela aragem que corria os capelos dos montes. E aquele som espalhou-se por sob as casas da aldeia, querendo servir a todos na mesma paz daquela noite; mas em muitos cortemos a lareira não se acendera, porque nada havia com que fazer a ceia. Os vinhos não se vendiam e o trabalho era raro na Terra Quente.
O coro, porém, ia sempre de quebrada em quebrada, agora mais forte, porque outras vozes desesperadas se lhe juntavam, e essas pareciam mais um clamor do que uma súplica.
O velho Teimas voltou para dentro, em passos lentos, foi sentar-se no banco com os olhos cerrados e ficou assim, esquecido, por largo tempo, a bichanar uma oração, com a cabeça apertada entre as mãos trémulas e magras.
Foi nascer a Belém, Numa triste manjedoura, Onde ao Divino Infanteoboi bento cobria E a mula descobria...
II
Era aquela mesma ladainha que o filho ouvia escapar-se dos casebres por onde passava, galgando os quelhos que levavam a casa do médico. As suas pernas rijas de caçador, afeitas a bater os cerros, tropeçavam naquela noite com frequência. Como se por ali andasse a primeira vez ou carregasse no bandulho boa conta de vinho,
20
Francisco Teimas desequilibrava-se, desajeitado, incapaz o cérebro de lhe orientar a cautela dos passos por aquele caminho pedregoso.
A lanterna pouco o ajudava na jornada - ele também não se guiava pela sua luz. Ia para ali de qualquer maneira, às corridas, para chegar depressa, com todos os sentidos postos na dúvida que a Ana Sarrifa lhe lançara no espírito quando chegara à porta e lhe dissera que já estranhava a demora do parto. Mais ainda do que isso, porém, magoava-o a ideia que se apossara do seu pensamento, depois das horas passadas junto da cunhada, perto da lareira, enquanto ela atiçava o lume e tratava das águas. "Como lhe chegara aquela tentação à cabeça? Como pudera esquecer-soe da companheira de tantos anos, nunca farta de trabalho e sempre animosa para todos os momentos de dificuldades? E no mesmo instante em que ela sofria por um filho seu, nascera-lhe o desejo estranho de agarrar a cunhada nos braços e apertar-lhe o corpo magro que parecia rogar, em cada movimento, as suas carícias."
Apetecia-lhe deixar-se cair muitas vezes sobre as pedras do caminho, para que a carne sofresse aquele pecado que lhe entrara na imaginação, obrigando-o a recordar a última noite de lagarada na Casa Grande, quando fora dançar com ela e sentira o seu contacto pela primeira vez. Nessa noite, porém, estava transtornado com mais uma pinga. E a algazarra dos homens no lagar, as moças da roga bailando por todos os cantos, ou desaparecendo, à socapa, na escuridão, a música do violino, da guitarra e do tambor, o cheiro do mosto a toldar ainda mais a cabeça, desculpavam aquele apertão que lhe dera na anca e a fizera corar muito, obrigando-a a baixar os olhos até ao fim da "moda".
"Mas agora... no momento em que a mulher se matava com dores, aquela ideia voltara numa intimação,
21
para nunca mais lhe sair da cabeça. Tivera até coragem para dizer qualquer coisa à Gracinda - uma daquelas brejeirices tão usadas e de que ela, talvez, não tivesse compreendido a intenção."
Precisava agora de chegar depressa, porque os gemidos da companheira não lhe saíam dos ouvidos e seguiam-no sempre, como um pesadelo de que precisava libertar-se. Arfante, pensou despir o gabão para que os movimentos fossem mais ligeiros; depois continuou assim mesmo, como se receasse o tempo perdido. A habitação do médico estava já perto. Viu luz na casa da varanda e chegaram-lhe gargalhadas. Numa corrida achou-se junto da porta e bateu duas vezes; apurou o ouvido e não lhe respondiam.
"Desejar a cunhada numa noite daquelas era bem uma tentação do Mafarrico. Algumas vezes diziam-lhe por galhofa, nas conversas da praça: aquela Gracinda anda mesmo a mirrar-se com falta de sulfato. Sulfata-a tu, Francisco."
Deu mais duas argoladas e uma cabeça surgiu à varanda.
- O Sr. Doutor?... Diga-lhe que é da casa do Teimas... A mulher está muito malzinha-insistiu ainda, para reforçar o pedido, quando o vulto ia a desaparecer
Ficou à espera de resposta, cada vez mais inquieto. Os minutos decorridos agora pareciam-lhe sem fim; a demora do Dr. Pimenta em aparecer alarmava-o. Queria estar ali e em casa, acompanhar tudo, ter entre as suas as mãos da mulher para que ela lhe perdoasse, e procurar o médico, como fizera, com receio de que outro qualquer encontrasse conversa pelo caminho e se esquecesse de o levar.
A porta abriu-se, por fim, e uma voz convidou-o a subir. Depois, lá no alto e a ajeitar as lunetas, surgiu a figura do Dr. Pimenta.
- Então que temos?
- É a minha mulher, Sr. Doutor. Está pra ter raparigo, mas aquilo não vai nada bem. A Ana Sarrifa ficou a tomar conta dela.
Lembrou-se novamente da cunhada e gostaria de poder arrancá-la do pensamento com as mãos.
- E queres que lá vá, Francisco?
- Era um grande favor. É de cortar o coração ouvi-la gemer.
- Então o que julgas tu? Ela não vai parir nenhuma borboleta, homem. Parece que é a primeira vez que tens lá por casa uma dessas...
Francisco insistiu ainda mais enervado.
- Mas nunca foi assim, Sr. Doutor. Tenha paciência de o vir incomodar esta noite, mas venha comigo.
A volta pareceu-lhe ainda mais longa. O médico já devia estar alegrote e emperrava a cada passo, amaldiçoando, com pragas e galhofas, as pedras dos quelhos. Falou-lhe dos vinhos e das dificuldades da sua venda; estavam a chegar as carregações e ainda não se sabia quem comprava toda a "novidade" do Douro.
- Há más notícias do Brasil. O mercado está retraído de todo e os Ingleses parece que vão comprar menos.
O Brasil recordou-lhe a Gracinda. "E ele que era amigo do marido."
Queria responder qualquer coisa ao Dr. Pimenta, mas não conseguia ligar as palavras. Só lhe apetecia suplicar que caminhasse mais depressa, porque talvez fosse tarde.
- E tu já vendeste? - insistia o outro. - Ó Nem sombras...
- Vai um Inverno de fome, como não há memória. As doenças são cada vez mais e eu só posso receitar um medicamento: comer. E isso é o que falta por aí.

22
23
Quando viu a casa já próxima, estugou o passo e foi abrir o portão do quinteiro. Lá dentro tudo estava na mesma - os gemidos lá em cima, no quarto, a cunhada à volta da lareira, agora acompanhada pela Maria Dolorosa, e aquela expectativa que deixara ao sair. O médico atirou com o gabão para cima dum banco e começou a subir a escada, depois de pedir água quente. Francisco pensou em acompanhá-lo - a coragem faltou-lhe. E indagou notícias à Maria Dolorosa, querendo esquecer a presença da cunhada; foi ela, porém, que lhe respondeu, contando que a irmã pedira que lhe levassem os filhos.
À porta do quarto apareceu a cabeça inquieta da Ana Sarrifa. Ele ergueu o olhar, numa tentativa de compreender o que o seu rosto dizia, mas foi incapaz de o decifrar. Quis sentar-se por um instante e não o conseguiu - os nervos não lhe davam repouso, tocados pelos gemidos que se avantajavam lá em cima, enchendo a casa daquela súplica que era também uma acusação. A cunhada, depois de entregar à Ana uma bacia com água, voltou para junto de Maria Dolorosa, com o mesmo ar contristado, e pôs-se a ajudá-la a manter a fogueira acesa. A voz do Dr. Pimenta dava ordens; ouviam-se passos apressados e o ruído da água a cair na selha. Depois, os gemidos transformaram-se em uivos e, por fim, um grito doloroso rasgou a noite como uma navalha. Aturdido, no meio da casa, ele ficou sem compreender o sentido daquele grito que se desdobrou nos seus ouvidos até se tornar numa alucinação. Quis tapá-los, mas quando deixou de o escutar ficou apavorado de medo. Afastou os dedos e um grande silêncio, mais pesado que as suas preocupações, enchia agora todo o ambiente de uma paz terrível.
"Porque não gritava ela mais?!... Porquê aquele silêncio?!... Porquê?!..."
Sentiu um desejo irreprimível de galgar a escada e ir vê-la; agarrá-la nos seus braços e pedir-lhe perdão por mais aquele filho que ela não quisera. Se estivesse sozinho, teria chorado e gritado para quebrar o silêncio sem fim que o esmagava - antes a súplica angustiosa desse uivo de animal ferido do que a incerteza duma calma ameaçadora. "Porque não gemia ela as dores que a retalhavam?...
Mas lá de cima chegou o vozeirão do Dr. Pimenta, a dar ordens que ele não conseguia entender. A cunhada e a Maria Dolorosa tinham-se aproximado da escada, inquietas por adivinhar o que Horizonte Cerrado se passava. Muito juntas, como se assim pudessem defrontar melhor a incerteza do momento, volviam a cabeça de vez em quando para Francisco, mas logo retiravam o olhar se encontravam o dele.
Todos pareciam recear a presença dos outros; e Francisco mais do que ninguém, porque só vivia agora para o ruído, que se tornara alucinante aos seus ouvidos, do chapinhar da água, escapando-se através da porta do quarto. Esquecera até o pecado dos seus pensamentos - os sentidos e a própria pele estavam atentos ao som mais insignificante que viesse lá de cima, e tentavam escutar outro uivo semelhante ao que abrasara o silêncio de há pedaço. Preferia que a companheira gritasse, mesmo numa acusação, se tivesse podido conhecer os seus desejos.
Incapaz de suportar, por mais tempo, a tensão nervosa que a expectativa lhe provocava, foi até junto da lareira. Nesse mesmo instante, um choro de criança começou a ouvir-se muito ao longe, e veio crescendo, mais e mais, até se tornar numa certeza que lhe encheu o peito duma alegria que não pôde conter. Correu para as duas mulheres e apertou-as de encontro a si, enquanto as lágrimas lhe corriam à vontade pelo rosto, onde um sorriso vencia agora o arrepanhar constante do tique na face
24
25
esquerda. A Maria Dolorosa e Gracinda pareciam ali colocadas pelo destino, para que ele gozasse melhor a transformação do pesadelo numa satisfação que não sabia definir em palavras; sentiu depois uma ânsia enorme de subir ao quarto e afagar a companheira, para lhe exprimir nesse contacto a certeza de que o pecado fora vencido.
- Estás contente? - perguntou-lhe a cunhada, deixando os olhos pregados nos seus.
Quis responder-lhe e não pôde nem soube. Só lhe apertou mais o braço, mas naquele instante ela deixara de ser uma tentação para a sua carne. Ficaram assim por muito tempo, até que a porta do quarto gemeu nos gonzos e os três ergueram a cabeça numa interrogação.
O Dr. Pimenta apareceu de casaco sobre o braço, a desenrolar as mangas da camisa, tendo ainda a testa e a calva perladas de suor, pelo esforço que acabava de fazer. Quando notou aqueles olhares cheios de ansiedade, desviou o seu e pôs-se a descer os degraus, lentamente, como se procurasse aumentar a distância que o separava dos outros.
- Então, Sr. Doutor, mais um rapaz? - indagou Francisco, a sorrir.
O médico parou para vestir o casaco, consertou as lunetas de sobrolho franzido, e respondeu na voz áspera que sempre tinha quando se zangava ou queria esconder emoções.
- Não, uma rapariga e estás com sorte.
Num impulso, Francisco subiu as escadas até junto dele e apertou-lhe as mãos num agradecimento efusivo.
- Posso ir vê-las agora?...
O Dr. Pimenta abanou a cabeça, passando por ele sem o fitar.
- Vai ver a tua filha...
E, agarrando no gabão que deixara sobre o banco, desapareceu na noite, sem mais palavras.

III
O velho Teimas fez sinal ao filho para que fechasse a porta, e, estendendo-se um pouco sobre a mesa, como se receasse ainda que o pudessem ouvir lá de baixo, continuou a enzoná-lo.
- Porque não lhe pedes dinheiro emprestado? A vinha não pode esperar a escava por mais tempo. Sabes bem que, se as videiras não beberem à farta estas águas de Inverno, vamos ficar amolados na vindima. És tu capaz de viver morto de sede? Hã?!...
E fulminou-o com os seus olhitos azuis, num franzir de sobrancelhas que todos lhe conheciam. Recolheu as mãos descarnadas e apertou a aba da mesita, como se a quisesse desfazer.
- Julgas que as videiras são menos do que a gente?...
- Mas eu é que não lhe peço dinheiro. Já basta o favor que faz em vir aqui depois da morte da El vira.
- Paga-se-lhe tudo na nova vindima.
- E se for como agora?... Se o vinho continuar no lagar do Matula, sem ter saída, como é que se lhe paga?
Francisco foi até à janela espreitar o dia, mas mal reparou nos sinais do tempo. Preocupava-o a ideia do pai, para que falasse à cunhada; evitava conversas com ela, tanto quanto lhe era possível, e já se sentia vexado só em pensar que teria de lhe pedir alguma coisa.
- Pagam-se-lhe juros - insistiu o velho. - Para que lhe manda o marido dinheiro do Brasil?
26
27
Voltou-se para o pai, num repente, já enervado com a insistência.
- Não sabe que é pra comprar terras? E qualquer dia não faltará por aí quem lhas venda. É só escolher; vendedores serão todos os pequenos lavradores do Doiro. Já ninguém se aguenta mais.
O velho transtornou-se com aquelas palavras e começou a altear a voz.
-Os que forem como tu, com certeza. Ainda bem que as terras estão em meu nome, porque senão já tinha ido uma parte para a justiça, com a morte da tua mulher, e o resto desfazia-se por tua culpa.
- Por minha culpa?...
- Sim, pois. A gente sabe criar os filhos, mas não sabe fadá-los. Foi o que me sucedeu contigo.
E erguendo-se, trémulo, avançou para o filho, a arrastar os pés.
- És capaz de me dizer que serias capaz de vender também?...
- Se não houvesse outro remédio...
- Desculpas de fracalhões ao resto. Rai me pele se com esse sangue és meu filho. Não me tremas esse olho, que pareces estar na mangação comigo.
Francisco quis dominar as contracções da face esquerda, mas elas eram superiores à sua vontade. Tentou responder; as palavras, porém, entaramelavam-se-lhe na boca, como sempre sucedia quando se irritava.
- Saio à mãe, já sei - conseguiu dizer depois de muito esforço e a gaguejar. - Por isso ela se enforcou.
-Cala-te com isso, que já entendo o que queres dizer - interveio o velho num grito.
E aproximando-se do filho, sorrateiro, pegou-lhe nos braços para o sacudir.
- Queres dizer que a obriguei a ficar aqui a aguentar fome e trabalho com a minha mania das vinhas,
28
quando podia abalar para a cidade, como muitos outros fizeram?! Não é isso?... Fala, homem!
- O pai sabe que não.
O velho ficou mais trémulo* e chegou-se à janela.
- Julgas que todos esses socalcos estavam aí, se não fosse o sacrifício e a maluqueira de uns tantos que foram capazes de rebentar as fragas Com o peito? Estás enganado, Francisco. A vida aqui não é a mesma das cidades. Para o homem dar um passo tem de fazer primeiro o caminho; e depois de o dar desfazer-se nas pedras para que o outro pé possa ir para a frente.
- Se tenho abalado para o Brasil, seria bem melhor - respondeu-lhe Francisco, numa voz que parecia esconder queixumes.
- Só Brasil, Brasil... Estava o mundo bem senado com gente da tua laia; ficava isto tudo em pedras e só a caça cá morava. Mas ainda bem... Ainda bem que não foste.
E sorriu-se para o filho num sinal de tréguas.
- A gente azeda-se às vezes, mas no fundo entende-se. Tu não abalaste, porque és meu filho e o Doiro fazia-te falta. Não era assim, Francisco?... Hã?!... Diz lá, homem, que estou com uma gana de te dar um abraço...
Francisco encolheu os ombros, rendido, e apertou a mão que o velho lhe estendia. Nos olhos de ambos bai-locavam lágrimas de satisfação.
- É assim, pai.
- Vale mais um homem ver uma valeira de vinha plantada do que ter na mão um saco de libras, se não for capaz de fazer com ela uma quinta no Doiro. E tem de ser no Doiro, Francisco!
E o velho Teimas, mudando de tom, tomou o braço do filho para lhe dar alento.
29
-O Jerónimo deu-te resposta?
- Diz que pelo preço não quer.
- Malandro! Faz aí vinho fino de tudo, menos das nossas cepas, para enganar este mundo e o outro. Por isso a desgraça é a que se vê. A gente quer granjear e não pode; os cavadores precisam de trabalhar e não têm onde matar o corpo. E esse renegado brinca com todos.
- E os esganados são cada vez mais. O Luís Balsa já vendeu o dele... Nem pagou metade do trabalho que lhe deu.
- É isso mesmo que querem o Jerónimo e os outros da sua laia: apertarem a corda até ao fim e dizerem depois, a rir, que estão fartos de esganados a oferecerem vinho.
E logo numa ameaça, brandindo os punhos: - Eles que não confiem de mais... Eles que não brinquem com a fome do povo... O povo é um burro manso, mas quando abusam dele até dá coices nas estrelas. Esse Jerónimo!... Não há pra cá do Marão um só pé de cepa plantado por ele; e o que tem ganho com vinho, empregado aqui nos nossos bardos, dava lindas quintas pra render trabalho a essa gente que aí anda a enganar-se. O velho estava fora de si - punha-se sempre naquele estado quando falava no assunto. O queixo tremelicava-lhe e tentava endireitar o busto, gladiando com os braços magros. Nos seus olhitos piscos e doentes passava o calor do ódio.
- No meu tempo... Era eu mesmo que lhe-ia falar, mas para lhe dizer tudo o que penso dele. A seguir deitava-lhe as mãos e desfazia-o.
E deixou-se cair numa cadeira, a arfar de cansaço. Francisco afagou-lhe o ombro numa palmada, tentando sorrir.
- Vou falar ao administrador do fidalgo.
30
- O fidalgo não compra vinho. Vai gastando no bródio o que o pai lhe deixou. Esse é que era um homem!... Agora o D. Fernando!... Fidalguia sem comedoria é como a gaita que não assobia.
-o Silva Costa talvez compre mesmo para ele. A altura é boa para ganhar dinheiro.
- Andam todos ao mesmo. Casa, vinho e potro faça-o outro. É como eles pensam. Eu, que sou parvo, gozo em ver as coisas nascerem das minhas mãos; por isso quero dinheiro para as escavas e não o tenho. Vai lá, anda! Sempre é fazer alguma coisa...
E quando o filho se encaminhava para a porta:
- Aquilo que te disse da Gracinda, se não queres, acabou-se. Mas olha a rapariga a direito. Parece que te fez alguma... Ela tem-se portado bem com a gente.
Incapaz de lhe responder, Francisco esgueirou-se pela porta. Quando se achou, porém, no alto da escada e viu a Gracinda voltar-se para ele, embalando a pequenita nos braços, deteve-se a simular que esquecera qualquer coisa. Bateu com as mãos nos bolsos e foi depois com os dedos às algibeiras do colete, enquanto pensava: "Diacho! Para que hei-de ter receio de olhar para ela? Estou que nem uma rapariguita ao pé do namorado... Olha a história, hã?!..." E abalou decidido pela escada abaixo, indo fazer um mimalho à filha. Gracinda abriu o xalão de malha, fitando-o num sorriso que o embaraçou. "Olhos danados que nunca estavam quietos!", pensou com rancor.
--Então a minha coelhinha já comeu?...
E sem dirigir palavra à cunhada, saiu pela porta fora. Mal o viram, os dois podengos saltaram-lhe às pernas, a ladriscar de contentamento, convencidos, talvez, de que o dono os ia buscar para uma batida aos coelhos em Ventozelo ou no Caedo. Afagou-os, distraído, deixando-os lamberem-lhe as mãos, por um instante, e logo
abalou pelo portão do quinteiro, sem cuidar, como noutros tempos, se tinham de comer. Os cães ficaram a ganir, lamentosos de o não acompanharem, e tentavam saltar ao muro meio derruído, até que voltaram para junto da capoeira, de orelha e rabo caídos, enrolando-se lado a lado, para gozarem uma réstia de sol daquele Janeiro desabrido.
Francisco escutara-os de coração arrepanhado. "Até já esquecera o seu melhor entretém. Nem para uma caçada com a Diana e o Espertezas tinha agora disposição. Carregara cartuchos para toda a feitoria e só dera meia dúzia de tiros numa batida às raposas."
As vizinhas viam-no passar melancólico e lamentavam-lhe aquela tristeza pela morte da mulher. E faziam discussões com os maridos, apontando-o como exemplo de homem amigo "que parecia voltado para a cova, à espera que a companheira voltasse ainda". Mas eram bem outras as preocupações que lhe faziam o modo triste e a abstracção para tudo o que o rodeava.
"Quando ali nascia um rapaz, dizia-se que com ele vinham ao mundo um garrano, uma espingarda, um reco e um relógio. Esqueciam-se, porém, de juntar o principal: que deveria surribar, pelo menos, um naco de montanha, fazer-lhe com o sangue uns tantos bardos de videiras e matar-se por eles toda a vida. Era o destino de quem por ali via a luz do Sol e não arrancava para outras terras. Porque não abalara para o Brasil?..."
Essa invocação trouxe-lhe mais viva a imagem da cunhada. Por muito que a quisesse afastar, tentando ignorá-la, sentia que a sua presença era sempre mais forte em cada dia que passava. Enrodilhava-se-lhe no pensamento, de parceria com a necessidade de vender o seu vinho e arranjar dinheiro para os granjeios. Naquele momento, Francisco atravessava uma das suas crises de impotência perante a vida. Tinha desejos de deixar cair
32
os braços, cerrar os olhos e esquecer-se de tudo, deixando arrastar-se para onde o quisessem levar.
Quando o Dr. Pimenta lhe dera a terrível notícia, logo pressentira alguma coisa de mais grave ainda do que a morte da mulher. Não soubera, então, explicar esse receio que chegara a parecer-lhe absurdo. Mas depois, quando se viu agarrado à casa, pretextando não sair por falta de alegria, e se sentiu confortado em ver a cunhada cuidar-lhe dos filhos e do arranjo, alarmou-se com o rumo dos seus pensamentos. Não podia agora enganar-se mais. Aquele corpo magro perturbava-o. Compreendia, finalmente, que já antes da noite do baile, na lagarada da Casa Grande, a Gracinda o preocupava.
"E desde quando?..." Se alguém se lhe referia, a propósito da ausência do marido, ele não lhe dava seguimento, mostrando-se reservado, para melhor .compreenderem que não lhe agradava o rumo daquelas conversas. Durante muito tempo tomara a reacção como uma amizade natural pela irmã da companheira. Agora, porém, percebia que já eram os seus desejos a miná-lo num fogo lento.
Precisava de vencer aquela atracção de qualquer maneira. Nem a Gracinda queria nem ele mesmo podia pretendê-la - isso seria afrontar a memória da mulher e manchar as suas telhas. E grande pecado já cometera nessa noite de Natal, reparando nela, enquanto a companheira se debatia com a morte. "Se o pai soubesse porque evitava falar-lhe, talvez agradecesse a sua atitude!... Era-lhe impossível pedir à cunhada que não voltasse a sua casa, e, contudo, seria essa a maneira mais fácil de se livrar daquela preocupação."
Chegara defronte do portão da Casa Grande, onde num dos cunhais de granito estava esculpido o brasão do fidalgo. Espreitou para o terreiro, olhou a sineta e mesmo ali perdeu todas as esperanças que o tinham
33
levado a fazer o caminho. Pensou voltar para casa, enganando o pai com a informação de que o Silva Costa não comprava vinhos. No mesmo instante, porém, sentiu-se cobarde e reagiu, puxando a sineta repetidas vezes, como se, ao largá-la, fosse capaz de abalar.
Uma cabeça assomou à janela do extremo do casarão.
- É o Francisco Teimas - disse uma voz de mulher. Só então percebeu que era a Silvaninha. Daí por
instantes, a Ana Sarrifa vinha de chave em punho abrir-lhe o portão; e, posto ao corrente da estadia do administrador na quinta, aguardou no terreiro que o mandassem chamar.
O eco das enxadas na escava lembrava-lhe o motivo que ali o trazia. Olhava a Casa Grande toda caiada de branco, recordando o velho fidalgo. Parecia vê-lo com o seu casacão de bombazina, na companhia da esposa, a cantora estrangeira por causa de quem correra mundo e abandonara honrarias no Paço Real, esquecendo o casamento rico que lhe proporcionavam. Era um homem direito. A sua .palavra valia tanto como a de qualquer inglês dos armazéns de Gaia e tratava das vinhas ali mesmo, onde passava a maior parte do ano. Lá estava o retiro que a senhora mandara fazer - os bancos revestidos de azulejos com motivos de caça, o lago de repuxo e aquele menino de mármore a puxar o arco com a seta e que, um dia, o falecido abade Joaquim, pároco da freguesia e antigo administrador da quinta, lhe explicara ser a figura do amor.
- Bons olhos o vejam, Teimas.
O Silva Costa sorria-lhe da janela do rés-do-chão, bem agasalhado na samarra de lã e a retorcer as guias refilonas do bigode. Francisco caminhou para ele, distraído com a barafunda dos seus pensamentos.
- Entre por ali, homem.
- Não o quero incomodar, Sr. Silvinha.
34
O outro percebeu logo, pela maneira do tratamento, que o Teimas lhe vinha fazer algum pedido e retraiu-se na sua exuberância.
- Então já começou com as escavas?
- É por isso mesmo que cá venho. - E depois duma breve pausa: - Ainda não senhor...
Fez um esforço para continuar, tentando deter o tique da face esquerda. Precisava de encontrar palavras bem claras, para que o outro não o empandeirasse de qualquer maneira, mas reparou que começara mal, dando-lhe conta, em tom lamentoso, das suas dificuldades. E isso enervou-o ainda mais. "Não era assim que se vendia fosse o que fosse", pensou com aborrecimento.
- Esta vista é o diabo - disse para disfarçar.
- Já ouviu o Dr. Pimenta?
- Diz que são coisas de nervos, que me incomode pouco...
- Os médicos só receitam o que não se pode cumprir - retorquiu, sorridente, o Silva Costa, aproveitando o momento para dar a sua ferroada no outro, que era do Partido Progressista.
O eco das enxadas na encosta parecia crescer com o fim da tarde. Francisco encostou a mão livre ao parapeito da janela, enquanto na outra balouçava o chapéu.
- Pois vinha saber se oestava comprador de vinhos... -Quem lhe falou nisso, homem de Deus? Nunca
por aí merquei um almude...
- Com o que há para vender e com o dinheiro que o Sr. Silvinha tem, podia querer especular com os de Gaia. Conhecimentos não lhe faltam...
Defendendo-se com a sua manha de campónio, Francisco ensaiava tentar o outro para o negócio, dando-lhe os tO Ques necessários.
- É um vinho real o que lá tenho. Aquilo com mais um ano em cima vale cinco vezes mais.
35
- Acredito, Francisco; mas o dinheiro é pouco e a vontade de me meter a comprar vinhos ainda é menor. Se fosse algum bocadito de terra...
- Desculpe Vossa Senhoria o conselho: antes comprá-lo feito do que fazê-lo - insistiu ainda o Teimas.
- Também é verdade. Mas sou filho do Douro e o meu pai deixou-me o vício. - E noutro tom: - Já falou ao Jerónimo?... Esse compra tudo o que lhe aparecer.
- E por que preço, Sr. Silva Costa? A gente tem de fazer as escavas e a poda, não tardam também as cavas, e por aí adiante os prédios só comem dinheiro. Com o dinheiro que ele nos oferece nem para mandar cantar um cego...
- Pois eu não estou comprador. Tenho pena...
E perguntou-lhe pelo pai, querendo dar a entender que a conversa acabara; olhou para a secretária, como a indicar que os papéis o esperavam, passando-os depois de um lado para o outro, enquanto o Teimas procurava maneira de ainda o convencer ao negócio. E, como o visse desinteressado, sentiu um desejo estranho de o apavorar.
- Rebenta-se para aí com fome e não sei como isto acaba. O lavrador, não vendendo, não pode dar trabalho; o cavador sem trabalho não come... E quando os homens não comem, é o diabo! É o diabo, acredite Vossa Senhoria. Quem é que os aguenta?!...
Pelo modo como o administrador o olhava, Francisco Teimas percebeu que a sua vingança acertava no alvo. Sorriram-lhe os olhos, enquanto o Silva Costa meneava a cabeça e franzia as sobrancelhas espessas, numa expressão preocupada.
- Eu, por mim, não tenho muito que perder... E esta gente, quando sai fora dos eixos, não mede o que faz. É o diabo!...
E estendeu a mão ao outro para se despedir.
36
Mal o Teimas abalou, Silva Costa sentou-se à secretária e ficou a aparafusar num plano para fazer frente a todas as contingências: poria alguns homens a vigiar a quinta, como no tempo das uvas, e soltaria, à noite, os três canzarrões. Já mais sossegado, teve pena que a tarde chuvosa lhe não permitisse selar o cavalo pigarço, para dar um bom passeio pelos campos, não esquecendo que na volta passaria pela rua da escola, a fim de ver "uns certos olhos", como dizia na sua. Olhou para fora e o cupido de mármore italiano sorria-lhe, maroto, debaixo do carramanchão desguarnecido de flores.
Não tardaria muito que a noite se pusesse a trepar pelos vales fundos, triste de crepes e apressada para chegar aos cumes.

IV
A falta de saída de vinhos tocava a todos. E como o Chasco não arranjava transporte de pipas, a sua vara de carreiro descansava a um canto do cortelho e o filho vagabundeava pela aldeia. Foi por isso que, naquela manhã, Luís Teimas, a caminho da escola, encontrou o Fatinário no adro da igreja, enrolado no casaco que lhe chegava a meio das canelas; parecia tiritar de frio, e no seu rosto, mais pálido, avantajava-se o pintalgado das sardas.
Luís saudou-o de longe e ele só lhe acenou a cabeça, num modo preocupado que o amigo estranhou. Por isso se foi chegando até se sentar a seu lado.
- Já viste o meu livro? - perguntou-lhe para encetar uma daquelas conversas que o deslumbravam.
O amigo agarrou no abecedário, desfolhou-o com indiferença e pô-lo depois sobre o muro. Logo se ergueu, para
37
olhar com atenção o quinteiro da casa do abade, abanando, por fim, os ombros, desiludido.
- Estou hoje sem sorte! - exclamou, irritado. - Se calhar, já me descobriram...
Luís tentava compreender o sentido daquelas palavras, ditas com tanta amargura; quis perguntar-lhe o que se passava, mas o Fatinário prosseguiu no mesmo tom, como se arremessasse as sílabas:
- Ainda hoje não comi... Nem uma migalha, ao menos. Ali o Marão é que me deixava acamaradar com ele. Mas agora... acabou-se.
E erguendo-se, depois de se espreguiçar, sacudiu o companheiro pelos ombros, numa expressão que era um misto de rancor e tristeza.
- Passar fome é coisa ruim. É pior que andar uma noite inteira, sem dormir, à frente dos bois. Dá vontade... dá vontade de partir tudo!
Ficou por momentos naquela atitude, embora calado, fixando qualquer coisa indefinida com o seu olhar travesso. Acabou por sorrir e pegar no braço do Teimas.
- Vem daí comigo a Ventozelo. Preciso de comer... E esfregando as mãos, depois de puxar ao peito as
bandas do casacão, pôs-se a caminho todo recolhido nos seus pensamentos, sem cuidar do amigo, que corria a seu lado, de vez em quando, para o acompanhar até à saída da aldeia. Aí, porém, voltou-se para o companheiro, já arrependido do convite que lhe fizera, e mandou-o voltar para trás, olhando-o de uma maneira estranha e alçando a mão, para lhe bater, quando Luís insistiu.
- Vai-te lá embora, anda.
- Deixa-me ir contigo - suplicou-lhe o Teimas.
oFatinário parecia esperar as palavras do amigo, para adoçar aquela expressão de ódio que nem ele sabia explicar inteiramente - havia na sua alma uma raiva surda por tudo o que o rodeava e lhe trazia desejos de
fazer mal a alguém. Sacudiu Luís pela camisa, embora tivesse vontade de lhe sorrir e de o levar consigo; aquele sentimento, porém, misto de ira e de mágoa, não o deixava dominar-se.
- Não vens, não! - gritou fora de si.
Logo depois, como a retemperar o desabafo, tentou uma justificação.
- Pode suceder alguma... E depois?! Julgas que vou brincar?! A brincadeira de hoje é muito séria.
Luís julgou ver lágrimas nos olhos do Fatinário, mas não teve tempo de se certificar, porque lhe voltou costas e abalou a correr, desaparecendo numa curva do carreiro. Ele ficou ali, indeciso, à procura duma resolução que lhe tardava. Lembrou-se de tudo o que o amigo dissera, quando se sentou na berma do quelho, desfiando as palavras, uma a uma, como se nelas arranjasse pretexto para ficar ali até que o Fatinário voltasse. Só, então recordou aquela frase do amigo: "Pode suceder alguma... E depois?!..." Alarmou-se com essa invocação. "E se lhe acontecesse alguma coisa?!"
A dúvida logo se tornou em certeza - lembrou-se de lobisomens e de bruxas, de ciganos e de lobos... Teve medo de os recordar depois, porque esse receio o embaraçou quando, ao olhar à sua volta, se sentiu sozinho naquele ermo. Pensou fugir para a aldeia, mas achou melhor correr para junto do amigo. E, já esquecido de tudo o mais, abalou pelo quelho, onde o Fatinário desaparecera, arrepiado com as suas lembranças e vendo espreitar, pelo capelo dos muros, quantos vultos a sua imaginação lhe trazia.
Já ao longe se ouvia a chocalhada dos rebanhos que para ali tinham vindo, da serra da Estrela, passar o Inverno e estrumar terras, em troca do caldo para os pastores, que invocava com os grandes chapeirões largos e manta serrana sobre a jaleca de saragoça.
39
"O Fatinário precisava da sua companhia, tinha a certeza." E essa obsessão levava-o a continuar sempre, galgando pedras e atoleiros, sem receio do temporal próximo nem das visões que o espreitavam de todos os lados do caminho. O cansaço sufocava-o, mas alguma coisa lhe dizia que o amigo não devia estar longe.
E, numa curva do quelho, achou-se à sua frente. A expressão do Fatinário não foi de boas-vindas; fez um trejeito de raiva com a boca e mediu-o dos pés à cabeça.
- Pra que vieste atrás de mim? - gritou-lhe. - Não te disse que fosses para a escola?!...
E, sacudindo-o pelos ombros, alçou o punho para lhe bater.
- Até este pitorro me quer fazer mal!...
A expressão de ternura e clemência do Teimas afogou-lhe a ira; e sentou-se numa fraguita, balouçando a cabeça, num jeito muito seu de desespero.
- Ah, bô!... Por tua culpa passo o dia todo sem comer, não é?!
Luís sentia um grande calor de vergonha, acompanhado por um desejo imperioso de chorar. Queria dizer ao amigo que não viera para o afligir, mas faltavam-lhe as palavras.
- E se te deixasse aqui sozinho, como é que tu ias
pra casa?
O Fatinário sentia necessidade de o torturar, agora,
que conseguira dominar-se.
- Quando a noite chegasse, os lobisomens não te largavam e as bruxas viriam fazer uma roda à tua volta, para te chuparem o sanguinho todo...
Luís sabia bem que o amigo não lhe desejava essa fatalidade; assim mesmo, chorou sentido, mais pelo receio de perder a sua estima do que pelas más lembranças das almas penadas. Sensibilizado com as lágrimas do Teimas, Fatinário perdeu o seu ar agressivo; num repente,
40
levantou-se de um salto e ajeitou a pala do boné.
-Não chores agora... O Que lá vai, lá vai. Os pastores trazem canzarrões grandes, mas não tenhas medo...
- E tu? - perguntou Luís ainda a limpar as lágrimas.
- Nunca ouviste dizer que a fome e o frio metem a lebre ao caminho?... Pois é isso mesmo. Tenho medo dos cães, mas pior do que isso...
E bateu com a palma da mão na barriga. Depois piscou o olho para o amigo, numa expressão de tréguas, e, de um pulo, agarrou-se ao alto do muro. Uma flauta ouviu-se no cimo do monte. O Fatinário ficou a escutá-la, por um instante, como se nela procurasse alentos para a sua aventura.
- Queres que fique a espreitar os cães?...-perguntou-lhe Luís, ansioso por comparticipar na façanha.
- És capaz?... Com certeza?!...
Fez-lhe bem aquela oferta; puxou o amigo para cima e deu-lhe um abraço, antes de se deixar cair para dentro da quinta, decidido, então, a não perder mais um minuto.
Oculto entre as videiras, de rastos, foi serpeando pelos bardos além. A melodia das frautas embalava o rebanho e ajudava-o também a dominar aquela ânsia de chegar depressa que o queria empurrar para diante, sem cautelas. Sentia os joelhos tremerem-lhe, mas sabia que não era o medo que os punha assim - todos os dias, daquela semana sem trabalho de carretos, a mesma tremura viera, roubando-lhe as forças.
Luís perdia-o de vista algumas vezes e alarma-se. Os seus olhitos hesitavam entre o vulto dos pastores e o rasto do amigo; cada ruído lhe parecia o avançar de um dos canzarrões que não admirava naquele momento, como ao vê-los passar na aldeia com o rebanho à frente. Arregalava os olhos, julgando poder assim multiplicá-los e
41
nada perder do que se passava em toda a quinta de Ven-tozelo. Quando uma das flautas se calou, sentiu-se embaraçado, sem saber se devia gritar pelo amigo, se aguardar qualquer outro sinal para dar o alarme. Mas, como o visse surgir perto de uma das cabras que andava mais arredia do rebanho, acalmou-se um pouco e ficou a seguir os movimentos do outro, vaidoso de estar ali com ele, numa aventura que iria dar brado entre os rapazes do adro. Um e outro, porém, achavam que aquela distância era mais difícil de vencer do que todo o caminho já feito. A cabra estava cada vez mais perto; o Fatinário continuava a dominar-se, enquanto Luís torcia as mãos e se inteiriçava no alto do muro, já esquecido de todas as cautelas.
Um cão ladrou ao longe - e aquele som desdobrou-se, por vales e montes, mais ameaçador do que a trovoada suspensa sobre Carlão. Nasceu-lhe um enorme desejo de urinar, de dar gritos ou de fazer qualquer coisa. Um aceno do amigo salvou-o, porém, de comprometer a façanha - compreendeu que aquele sinal era indicação de que tudo corria como era preciso. E só nesse instante se pôs a pensar o que iria o Fatinário fazer à cabra. "Dissera-lhe que ainda não vira pão naquele dia... Iria ele comer o bicho? Mas como, se a cabra estava viva?!... Não podia ser... Não, não podia..." Só agora reparava naquele pormenor que o embaraçava tanto, como a situação do amigo perto dos cães serranos.
Mas quando viu o outro deitar-se debaixo da barriga do animal e aproximar-lhe a boca da teta, enquanto com uma das mãos a ia ordenhando, Luís Teimas achou na sua que não havia em todo o Douro outro homem que valesse o amigo. "Aquilo é que era!... Nem mesmo um homem de barbas teria coragem para chegar até ali."
Apetecia-lhe gritar agora essa verdade a toda a gente, para que nos cortemos das aldeias soubessem que o companheiro
42
- o filho do Chasco, pois! - não sentia medo por coisa alguma desta vida. Contudo, ao voltar a si daquele deslumbramento, entendeu que o Fatinário estava a tardar na volta ao muro, onde se empoleirava.
"E se os pastores dessem com ele?!..."
Um cão ladrou mais perto e outro respondeu-lhe num uivo que julgou de mau presságio. "o uivar de um cão era a morte", ouvira dizer muitas vezes à mãe e ao avô. As frautas tocavam ainda, mas o tempo passava - e pareciam-lhe horas infinitas aqueles momentos escassos, em que o companheiro, esquecido de tudo, só via a teta da cabra junto da sua boca e o leite branco, escorrendo-lhe pelo rosto, a suavizar aquela moinha dolorosa do estômago vazio.
A cabra baliu e, nem mesmo assim, o Fatinário se resolveu a voltar. "Agora é de mais... Os cães iam dar com ele..." E trincava os lábios cheios de angústia, tremiam-lhe as mãos e as pernas, julgava-se já a gritar, mesmo sem querer, porque os gritos lhe saíam dos olhos inquietos e dos cabelos arrepiados pelo medo.
- Vem, Fatinário! - começou a murmurar em voz dolorosa, como se as suas lágrimas pudessem salvar o companheiro, comovendo os serranos.
Foi então que a voz de um pastor gritou lá do alto. Logo as frautas se calaram e ecoou pelos montes uma algaraviada selvagem de gritos, assobios e imprecações, como se estivessem na serra da Estrela a espantar algum lobo.
- Vem, Fatinário, depressa! Olha que te agarram!... Já o amigo estava de pé e tentava galgar a distância
que o separava do muro, perseguido por um canzarrão que disparara lá de cima, ganhando terreno em cada salto. Parecia um furacão que rompia por entre as videiras, enquanto os pastores açulavam os outros cães, sem perceberem ainda o que se passava.
43
- Anda, Fatinário! Corre mais!... Anda depressa!... E os gritos de Luís eram de incitamento e de terror.
Já via mais perto o rosto desfigurado do companheiro, mas melhor ainda a boca aberta daquele cão-lobo que adivinhava medonho, de grandes dentes, capazes de estraçalhar o amigo num abrir e fechar de olhos. Na excitação em que estava, bateu com o punho no seu livro da escola, e logo uma ideia lhe ocorreu - realizou-a quase tão depressa, como o pensamento a concebera. E quando o Fatinário estava muito junto do muro, perseguido, de perto, pelo cão, deu um grito para o amimal e atirou-lhe com o seu livro. O bicho mediu aquele vulto que vinha no ar, em direcção da cabeça, parou-se num instante para lhe pegar melhor, e, quando se lhe lançou, desfê-lo entre as patorras, rugindo e ladrando - fora o tempo suficiente para o filho do carreiro chegar junto do amigo.
Levadas pelo vento e perseguidas pelos cães que as faziam em pedaços, numa fúria cega, as folhas do livro desapareceram num instante, enquanto o Fatinário já mais calmo, ajudava o companheiro a descer para o quelho. Numa corrida, meteram para os lados da aldeia, e ainda ouviram, por algum tempo, as imprecações dos pastores.
Chegados às primeiras casas, o Fatinário deu conta ao amigo das preocupações que o atormentavam agora.
- O que vais dizer tu do livro?...
Luís Teimas encolheu os ombros, sem que a pergunta lhe desse abalo.
- Apanhas uma surra, com certeza! - insistiu o outro.
- Quero lá saber!...
E foi ele que se pôs a assobiar, metendo as mãos nas algibeiras das calcitas remendadas, com um ar de bazófia que nem o Fatinário era agora capaz de compreender.

V
O Freitas velho mandara-o chamar ao escritório do armazém de Gaia e dera-lhe parte do seu projecto, usando da franqueza que o caracterizava no tratamento com os seus mais íntimos colaboradores quando os sabia capazes de não irem além dessa condição. O filho assistira à conversa, ora tomando notas, ora compondo o monóculo, em atitudes de uma lentidão estudada.
- A última colheita foi de boa qualidade, como sabe, Gonçalves. Eu sou ainda daqueles que entendem e dizem que quando há uma boa vindima se deve vender o casaco, vender a camisa que se traz vestida, vender a pele, se se conseguir quem a compre, vender tudo, enfim, para se comprar vinho...
- O meu pai era da mesma opinião, Sr. Freitas
- aquiesceu Gonçalves, curvando-se com respeito na cadeira que o outro lhe oferecera, junto da secretária. Era um hábito muito seu, adquirido na polidez que sempre se habituara a usar no trato com os directores da Companhia Velha, de que se tornara empregado responsável, embora à sua sombra se entendesse em negócios alheios. Como era seco e alto, de pele muito branca e deslavada, os outros lembravam-se de um peneireiro quando o viam naquelas vénias cerimoniosas, desdobradas sem tirar o olhar vivo das pessoas com quem falava. Supunha-se um modelo de boas maneiras; por isso mesmo, estivera mais interessado em fazer boa impressão no Dr. Albano de Freitas do que no Velho, comerciante de tipo já antiquado, segundo a sua opinião.
- Pretendo por esse motivo comprar mais umas pipas de bons vinhos carregados de cor - prosseguiu o Freitas.
- Muitas?...
45
- Depende do preço - retorquira o velho, com um sorriso no olhar arguto.
- Julgo que é possível adquirir em boas condições...
- Também me parece ser a melhor altura -declarou o Dr. Albano.
O pai teve uma expressão contemporizadora e prosseguiu, mordiscando, a espaços, a ponta duma cigarrilha que tinha entre os lábios.
- Há muitos lavradores que se guardaram para tarde, convencidos de que não nos aguentaríamos sem comprar; enganaram-se mais uma vez. As exportações estão fracas, mas devem animar. E como tenho para aí uns dinheiros...
- E um banco nos abriu todo o crédito que pretendermos para Vinho... -corroborou o filho, aproximando a cadeira da secretária. O Freitas fitou-o com um olhar de estranheza, querendo reprimi-lo por ir tão longe em pormenores desnecessários. O Dr. Albano fingiu, porém, não perceber a intenção e continuou ainda, sabendo o ascendente que ganhara junto do pai com a sua entrada na política.
- Temos um plano audacioso para a próxima colheita.
- Pois agora é uma grande oportunidade! - exclamou Gonçalves com satisfação. - Uma grande oportunidade!
- Não a queremos desperdiçar. E por isso mesmo o meu pai o chamou, reconhecendo que é um comprador... dos mais hábeis...
O velho, receando que o filho entrasse em elogios mais largos, interveio por sua vez.
- Temos o nosso comissário, como o Gonçalves bem sabe. Mas não esquecemos aquela sua indicação... sobre o mercado de Londres.
O especulador ficou um tanto embaraçado, sem saber se deveria mostrar-se agradecido com a alusão, se
46
fechar o sorriso que compusera durante toda a entrevista.
- Embora fosse confidencial, entendi que não prejudicava a Companhia - disse com um assento de dignidade.
- Oh, Gonçalves! Sabemos perfeitamente que é um funcionário exemplar.
- Deve dizer exemplaríssimo, sem favor - corroborou o Dr. Albano, cumprimentando o outro numa vénia.
O Gonçalves agradeceu com deferência e a conversa tornou-se mais íntima e directa. O Freitas velho não queria que se soubesse ser ele o comprador; pretendia, por isso mesmo, mandar o Gonçalves. Este, por sua vez, especulando em vinhos com a posição que desfrutava na Companhia Velha, exigiu que a sua percentagem fosse liquidada em pipas de vinho.
Sentado numa 1.ª classe que o conduzia ao Pinhão, Gonçalves recordava aquela conversa em Gaia, sorrindo, de vez em quando, pelas perspectivas que os cálculos da operação lhe prometiam. Arrumou depois o livro, de que lera algumas páginas, e dispôs-se a conversar com os outros companheiros de viagem, muito calados sempre, embora parecessem pai e filho.
- Uma grande coisa o comboio, não acha Vossa Excelência? - disse em voz requebrada, compondo com desvelo o guarda-pó que lhe resguardava o fato preto.
- Algumas vezes, talvez... - respondeu o mais velho, mal volvendo o olhar.
- Para mim, sempre. A vertigem dos negócios de hoje...
- Não me fale de negócios - interveio o outro num tom seco. - Os negócios estragaram a vida, tal qual o fumo deste comboio a beleza da nossa paisagem duriense
47
- disse ainda numa rajada de palavras, como se tivesse pressa de acabar.
E voltaram ao mesmo mutismo, enquanto o Gonçalves ia para a janela, numa tentativa de recordar aquele rosto, que lhe não era desconhecido.
A linha férrea começava a seguir a margem direita do rio, onde se viam rabelos na descida, arrastados nos pontos, como se fossem naufragar, ou puxados à sirga, pelas margens fraguentas, no calvário da ascensão. Dentro da carruagem, os dois homens continuavam calados, numa fria hostilidade, que o Gonçalves tentava interpretar. Voltou-se mais uma vez para eles, e logo lhe chegou à lembrança aquela cara que o intrigava, convencido de que a vira muitas vezes na Régua. Exultou quando a conseguiu identificar entre as suas recordações e aproximou-se dos companheiros com um à-vontade que a satisfação recebida não lhe deixou dominar.
- É ao fidalgo de Roriz que tenho a honra de falar, não é verdade? D. Fernando, se não estou em erro... Meu pai, que Deus guarde, trabalhou algumas vezes com o paizinho de Vossa Excelência.
O fidalgo pareceu encantado com aquela prova de popularidade, embora não fosse de estranhar o facto. - Seu pai era... -•oGonçalves do Vesúvio, assim conhecido em todo
o Doiro.
- Bom homem!...
D. Fernando referiu-se-lhe com o ar amável e protector que sempre usava para toda a gente. Isso mesmo bastou ao Gonçalves para tornar mais íntimo um conhecimento que o orgulhava, quanto mais não fosse para as conversas nas Caldas do Moledo, durante a época da batota e dos banhos.
- Ora repare Vossa Excelência nesta velocidade! Noutros tempos tínhamos de ficar em Caíde e fazer depois
48
o resto da viagem em carruagens puxadas ora a bois, ora a cavalos, suportando sempre as bebedeiras dos carreiros. ..
- Sim, para quem não tinha carruagem própria, era muito incómodo.
Gonçalves achou melhor não perceber a alusão, sentando-se mais perto do fidalgo, depois de lhe pedir licença para compor a manta que ele trazia sobre os joelhos. O passageiro mais jovem continuava distraído, longe da conversa.
- Os negócios tinham de ser demorados e perderam-se grandes ocasiões...
- Um dos grandes males do nosso tempo: os negócios - sentenciou o fidalgo, cofiando a barba bem tratada. - Desculpe a insistência da minha antipatia, se porventura é negociante.
- É possível que Vossa Excelência tenha razão - emendou o Gonçalves com solicitude. - Eu próprio...
Receou, porém, alargar-se demasiado e preferiu ficar naquelas reticências.
- A sua influência tem sido maléfica na vida portuguesa - insistiu D. Fernando com autoridade, vergastando o espaço com a sua mão magra.
O Gonçalves assentiu com um manejo discreto de cabeça, enquanto o outro passageiro bocejava com recato e ia para o corredor desentorpecer as pernas, num curto passeio entre duas janelas. Parecia fatigado e aborrecido com tudo o que o rodeava.
- É filho de Vossa Excelência?... -perguntou Gonçalves numa reverência sorridente. D. Fernando aquiesceu num franzir da testa.
- Não pode negar.
Depois disso, o fidalgo tornou-se apreensivo só respondendo por monossílabos, e já foi difícil ao outro prosseguir na conversa. Esta só voltou a reanimar-se quando o
49
fidalgo soube que ele seguia para o Pinhão e lhe pediu que comunicasse ao administrador da quinta que preparasse os seus aposentos - dentro de duas semanas iria até lá cima assistir ao fim das carregações.
-O Silva Costa, bem sei...
- Escuso de dizer que será nosso hóspede - juntou o fidalgo com amabilidade.
O Gonçalves nem tentou recusar; a oferta deslumbrava-o.
Na Régua descarregou as malas com alegria, ficando muito sensibilizado quando D. Fernando lhe estendeu a mão para se despedir. Embora cansado - não era homem para grandes pesos -, logo bendisse a hora em que se resolvera a pagar bilhete em carruagem de luxo. "Todos os dias se aprende", pensava consigo. "Um conhecimento destes paga bem a diferença do bilhete." E resolveu nunca mais viajar noutra classe.
Quando chegou ao Pinhão, era grande o bulício no largo, agora tornado em lamaçal com as chuvadas de Inverno. Os passageiros para Alijó barafustavam à porta da estação, querendo todos romper ao mesmo tempo, para ganharem lugar na ambulância puxada a cavalos que fazia a carreira. Uma zaragata entre dois carreiros, por via duma descarga, só chamava a atenção do rapazio, por se terem tornado num hábito diário, depois de meados de 1880, quando o primeiro comboio ali chegara. Ameaçavam-se com os aguilhões, prestes a mutilarem-se, enquanto os seus ajudantes brincavam com as campainhas duma mula engatada numa carripana, no meio daquela balbúrdia de gente e de animais. A gritaria da multidão
atroava nos ares, de parceria com o tO Que de guitarra e a cantilena de um grupo que assaltara a ambulância.
Ele já indagara se havia por ali algum criado da quinta do fidalgo, mas ninguém lhe soubera dar conta. Recorreu depois a um carniceiro que apregoava carne de borrego, junto a uma árvore, donde o animal pendia, já esfolado, e sem os quartos da frente.
- Está mesmo aí, o Sr. Silva Costa. Vi-o há pedaço ao pé daquela venda que tem o ramo à porta.
O largo desatravaneava-se aos poucos. Os cavalos e mulas partiam carregados, a caminho das quintas, guisalhando as cabeçadas. Os carreiros contratados entretinham-se na faina dos carregos, enquanto os outros voltavam às tabernas, deixando os bois à guarda dos moços, sentados à frente dos animais a darem-lhe palha centeia. Caseiros passavam a esporear garranos espertos, abalando a galope pela rua, em direcção à ponte, que tinha um ano de inaugurada e ainda era motivo de paragem quando a pressa não era muita.
Finalmente, o Silva Costa apareceu com o seu cavalo à arreata. Gonçalves dirigiu-se-lhe para comunicar o recado do fidalgo em todos os pormenores, sem esquecer a hospedagem que lhe fora recomendada.
- Vem com o filho?!... Lá fez o D. Afonso mais alguma...
E o administrador foi procurar o criado que deveria tomar conta da mala do Gonçalves, satisfeito por ter companhia na quinta por alguns dias. O especulador aproveitou o momento para meter conversa com um velhote, pondo-se a indagar os preços correntes do vinho de feitoria.
50
51

VI
Tornaram-se as suas melhores companhias, depois que as obrigações da mãe a tinham trazido até à aldeia, aquelas folhas brancas de papel, colocadas todas as noites à sua frente. Quando a D. Ifigénia lhe dissera, à despedida, para escrever o seu diário, recebera a sugestão sem interesse, convencida de que nunca recorreria a esse meio para gastar o tempo. Pensava, então, que lhe bastariam as cartas para o Dr. Albaninho. A correspondência dele, porém, fora rareando aos poucos, até que terminara de vez, com pretextos de afazeres no foro e na casa exportadora do pai, reuniões políticas no partido em que ingressara, e os mil e um motivos que se invocam na ausência dos que não deixam saudades.
E no meio da solidão daquele inferno, como lhe chamava, sem amigas nem tarefas, consumida pelas recordações dos passeios à Foz, dos chás e dos serões em casa da D. Ifigénia, onde se tocava piano e se falava dos raros escândalos da cidade, Helena lembrara-se daquela sugestão.
"Escreva o seu diário. É um passatempo muito distinto e reconfortante. Todos os grandes homens o fizeram... E entre as mulheres não foram poucas, entre as mais célebres, as que cultivaram esse meio tão elevado de falarem consigo próprias."
Experimentara sem convicção, nesses dias em que buscava um pretexto qualquer para viver, querendo agarrar-se ao passado, para não cair num desespero que já sentia correr-lhe no sangue. De princípio as folhas brancas causavam-lhe receio, talvez mesmo repulsa. É que as palavras da D. Ifigénia lhe traziam os momentos passados com o Dr. Albaninho, e essa amargura não desejava ela comunicar ao papel, ainda envergonhada de lhe
contar os seus sonhos traídos, como se tais confidências pudessem chegar a mais alguém e serem motivo de comentários.
Ele dera-lhe conta dos seus projectos, hesitante ainda entre os negócios de exportação de vinhos e a carreira de advocacia, querendo ligá-la ao seu futuro nos mais fúteis pormenores. E fora ela quem lhe pedira que não abandonasse o foro, pois sempre o sonhara de toga negra, imponente de altivez, a fulminar os tribunais com a cerrada argumentação da sua palavra fácil e rica de conceitos. Negociar em vinhos, mesmo que se tratasse de remessas para a Inglaterra, parecia-lhe bem mesquinha ocupação para o talento desse homem que ela entendia fadado para outros e mais altos destinos. Sempre admirável de síntese, o Dr. Albano de Freitas harmonizara as duas exigências - pusera escritório com tabuleta na Rua de Santo António e passava os dias a tratar dos negócios do armazém de Gaia. Depois ainda, e para reforçar ambas ocupações, entrara para o Partido Regenerador, com a promessa de um círculo de deputado, em futuro acto eleitoral, quando ele criasse nome na região - para tanto seria necessário que se fizesse paladino do DOUTO, defendendo num comício os pequenos produtores, a excelência do seu vinho contra o do Sul e aludisse à "patriótica tarefa de dar ao cavador duriense aquele mínimo desejável a todos os homens, nossos irmãos".
Nesse momento, a personalidade do Dr. Freitas ganhara um poder maior aos seus olhos. E só quando ele entrou a desfiar os propósitos que o norteavam Helena se sentiu um tanto desiludida, embora confiasse na força da sua influência junto dele, ao tornar-se um dia sua esposa.
- Protecção aos pobres e aos lavradores de produção reduzida, facilidades de crédito e garantia de marca.
53
É um projecto mais largo na defesa do Douro do que o concebido pelo marquês de Pombal com a fundação da Companhia Velha.
- E há possibilidade de o realizar? - perguntara-lhe com entusiasmo, só para o ouvir mais tempo.
- Talvez não... Quase certo que não...
E como Helena se mostrasse aturdida, sem lhe compreender os propósitos, ele falou dos segredos da política, da estratégia eleitoral, dos votos e de tantas outras coisas que ela não podia entender; misturava o lugar de deputado com os negócios de exportação, falara mesmo na hipótese de conseguir, mais tarde, uma pasta de ministro, como o cimo natural dessa escalada na vida política do País.
Foram essas confidências que a vexaram, perante as folhas brancas de papel, quando se resolvera a escrever um diário. Apesar de ressentida com o seu silêncio, amava-o ainda, não tanto como homem, mas talvez mais como a corporização desses dias já distantes, em que gozara os melhores momentos da existência. Incluí-lo nas suas recordações seria torturar-se mais - esquecê-lo seria esquecesse de si própria.
E as folhas ficaram muitas noites sem uma palavra, desafiando-lhe o desespero de não achar a quem pudesse confiar os seus segredos. Se tivesse um piano... Estava certa de que, tocando certas páginas, acharia o conforto de que tanto precisava. Passava os dias deitada sobre a cama, já incapaz de ouvir o barulho dos rapazes na escola, os ralhos da mãe e todos esses ruídos sempre iguais, decorados naquelas horas enervantes em que a Vida parecia correr à sua volta, recusando-lhe um só instante de alegria.
Numa noite, porém, a angústia do silêncio vencera-lhe todas as dúvidas; e escrevera horas sem conta, descontrolada, numa confusão de sentimentos que hesitava
entre a ira e a súplica, a renúncia e a revolta. Esgotada de nervos atirara-se sobre a coberta, a soluçar, numa crise de choro, tão repousante, por fim, que adormecera sem tomar consciência de si. Desde então ganhara aquele hábito, tornando-o num vício de que já não podia dispensar-se. Todas as noites para ali vinha, com o candeeiro de petróleo sobre a mesa que pusera junto da janela, enquanto a aldeia dormitava no aconchego dos montes, repousando das incertezas angustiosas do outro dia.
Nalguns momentos, umas escassas linhas esgotavam-na; noutros escrevia sem cessar, durante muitas horas, até que o cérebro se lhe fechasse às recordações do passado e ficasse tolhida de cansaço, mal podendo guardar as folhas cheias de uma letra nervosa que se mostrava incapaz de corresponder ao dinamismo do seu pensamento.
30-1-1908
Se o J.r. Albano quisesse subir ao Alto Douro para ouvir esta gente e ver quanto sofre, talvez não pensasse no seu lugar nas Cortes, como um meio de servir a firma comercial do pai. Apesar do seu comportamento nestes últimos meses, sei que é no fundo um homem digno e superior, capaz de se interessar pelas causas nobres. Falou-me assim naquela noite, talvez por cinismo intelectual, querendo mostrar-se uma pessoa de ideias originais. Sei que é bom, embora não esqueça que anda fora do seu próprio coração.
A escola é um óptimo espelho de todos os males que afligem esta pobre gente. Vêm menos crianças e, as que aparecem, mirram-se em cada dia que passa. Chegam mais sujas e algumas são tão imundas que me parecem inferiores outros animais.
54
55
Um dos pequenos desmaiou hoje, quando a mamã me chamou para a ajudar; vim cá dentro cortar uma fatia de pão para lhe oferecer. Comeu-a num instante e o pão era duro. Nunca mais esquecerei aquele rosto desfigurado que nem foi capaz de me agradecer. Isso chocou-me bastante.
Era um pobre animal esfomeado e faminto a devorar uma côdea. E os olhos da maioria voltavam-se para mim, numa súplica muda que me deu vontade de chorar, confesso. Há coisas que é melhor ignorarem-se toda a vida, porque isto de pobres não há remédio e até são precisos para que Deus possa distinguir as almas caridosas das outras. Mas custa... E Deus, quando fez os pobres, não os quis tão pobres, com certeza. Se Ele, com a sua infinita misericórdia, pudesse ver estas crianças, não as deixaria penar desta maneira. Elas não têm culpa do que se passa e do que os outros fizeram. São malcriadas, bisonhas e às vezes estúpidas; mas que podem fazer nesta aldeia onde tudo falta, onde só se fala de vinhas e de terras, onde o próprio pão vem de fora?
Vejo toda esta gente retraída ainda e começo a ter medo, porque julgo que vão de um momento para o outro fazer qualquer grande crime de que ninguém terá consciência. E fico a pensar que podem voltar-se também contra mim.
Isto é horrível! Para que me trouxe a mamã consigo? Por causa dela perdi o Dr. Albano!
De princípio os homens falavam e discutiam, as mulheres bramavam umas com as outras ou espancavam os filhos. Mas agora andam silenciosos, terríveis... E não sei que palavras posso [usar para dizer tudo o que adivinho neste silêncio. Parecem autómatos ou fantasmas que andam por aqui. Só perguntam uns aos outros se já venderam. E eu julgo que a alma já a venderam ao Diabo.
56
Falei nisto à mamã e ela encolheu os ombros, desinteressada. Compreendo o seu entusiasmo pela corte que lhe faz o administrador da Quinta Grande, um homem ridículo que passa todas as tardes, a cavalo, para nos cumprimentar e quer mostrar-se atencioso comigo, só para agradar à mamã. Mas gostaria que ela compreendesse também este receio que começo a sentir e a pena que me causam estas criancinhas. Seria bom para ela que o casamento se fizesse. Ele, porém, nada diz e ainda lhe não escreveu, com certeza. A mamã anda mudada e descuida as lições, sempre atenta aos ruídos dos cavalos na rua. E bate às crianças antes de ele aparecer, como se elas tivessem culpa. Já lhe disse qualquer coisa e enfureceu-se comigo. Passa as manhãs ao espelho, veste tudo o que tem de melhor, ela, que foi sempre tão poupada com os seus vestidos. A ideia do casamento fá-la desvairar. Gostaria por ela, embora me custe suportar a ideia de que devo viver perto daquele homem durante algum tempo.é possível, contudo, que se vierem a casar, a mamã o possa convencer a mandar-me para o Porto. E talvez... Como seria bom!... Falar novamente ao Dr. Albano e dizer-lhe tudo isto que aqui tenho presenciado. Poderia ajudá-lo na sua missão de paladino do Douro, falando-lhe das crianças e desta gente que aqui vejo agora sofrer...
E não sofrerei eu mais do que eles?... Quem sabe se não terão sensibilidade para compreender a sua vida!... Mas o olhar das crianças... Nunca mais esquecerei o rosto magro e macilento daquele garoto que agarrou na côdea que lhe ofereci e a devorou num instante. Tenho medo desta gente! Medo e compaixão. Se estivesse no Porto, talvez pudesse organizar uma quermesse com tômbola para os ajudar. Mas aqui nada mais é possível
57
fazer do que esperar. E esperar o quê?... Agora me lembro doutra coisa: quis esta manhã dar esmola a um velho e ele olhou-me com arrogância, dizendo que "não era pedinte, mas um cavador que precisava de trabalho.
Como queria que lhe desse trabalho? Já não era alguma coisa aquela esmola oferecida com com tanta devoção?... São estúpidos, coitados. Estúpidos e infelizes.
Seria tão bom que o Dr. Albano fizesse alguma coisa por eles!... Se lhe pudesse escrever... Se lhe pudesse falar...

VII
Foi um alvoroço na aldeia quando a notícia correu. Só o Jerónimo, no primeiro instante, ficara mal humorado com a novidade, já convencido de que se achava senhor absoluto das compras e poderia conduzir os preços à sua vontade, escolhendo-os para aqueles lotes misteriosos de que todos falavam com um ódio sempre renovado. Sentia que a intromissão do Gonçalves lhe vinha transtornar os planos, além da quebra de hábito que representava não o ter procurado, como era de uso entre os compradores portugueses que vinham à aldeia e que, a troco de uma pequena comissão, se orientavam com ele acerca dos lavradores esganados. Essa desconsideração vexava-o mais do que o desarranjo no negócio - havia tantos vinhos que o outro, por certo, não seria capaz de lhes dar saída, pensava depois, já recomposto da primeira impressão que a notícia lhe causara. Senhor de si, pouco a pouco, entendera, por fim, que talvez o facto ainda lhe servisse as conveniências, uma vez que se tratava do Gonçalves, mais agarrado nos preços do que qualquer outro especulador.
Entre os lavradores é que a novidade se fez obsessão - já afirmavam que o homem vinha disposto a varrer lagares e armazéns, por conta de casas importadoras do Brasil e Inglaterra, onde a procura de porto tinha subido numa febre que ninguém, dias antes, poderia suspeitar. Animaram-se os quelhos e ruelas, voltou o rapazio ao adro, sem ralhos nem sopapos das mães, enquanto os homens discutiam na praça, indiferentes ao mau tempo.
- E o que ganha a gente com isso?!... -bramava o Espanhol, arrenegado com os outros.
- Trabalho, pelo menos - volveu-lhe o Mirão, arrancando pele das mãos com a ponta do canivete.
- Vai ser uma fartura!... Estalas aí de dinheiro que "em um albardão se aguenta com ele.
- Venha lá o que vier... Sempre é melhor que isto!
De vários lados da praça começaram a surgir lavradores, montados nos seus cavalos, que fustigavam com as esporas, e apressados em chegarem primeiro à Casa Grande. Tinham vestido os fatos domingueiros e recolhido amostras nos armazéns, certos de que levavam consigo o melhor vinho do mundo.
Os grupos de trabalhadores volviam-se para os ver passar e erguiam as mãos, numa saudação muda.
- Parece que há romaria para as bandas do Santo Cristo! -gritou o Mal-Matado da porta da taberna, convencido de que o seu dito provocaria risos aos que o ouvissem.
Mas ninguém esboçou um gesto, nem fez um arremesso para lhe responder.
Foi, então, que entre Francisco Teimas e outro lavrador se esboçou contenda, porque o Teodósio metera o cavalo pelo meio do quelfão e não deixava ninguém passar-lhe à dianteira.
59
- Tire lá isso daí, homem! - gritava o Teimas, empinado de raiva, com os pés firmes, nos estribos.
O outro, porém, fingia que o não escutava, no mesmo passo de ripanso do gineto enfezado, bamboleando na mão o guarda-chuva aberto, como se levasse maromba para um exercício de equilibrista. Todos tinham acertado a marcha por ele, embora bramassem lá atrás; mas o Teimas, já incapaz de se conter, deu de esporas ao seu garrano e atirou-o para cima do Teodósio, quase derrubando o cavaleiro de cima do albardão. E antes que o outro reagisse, em praguedo de levar tudo raso, passaram por ele uns tantos que lhe taparam o caminho. Foi a vez de o Teodósio dizer das suas e de não achar quem lhe desse troco.
- Vinhas cego, ó Francisco! Não me faças uma igual, porque senão temo-la armada.
oTeimas mastigava a resposta para o Inverno que ia à sua ilharga, embora não lhe saíssem da cabeça as palavras azedas que trocara com o pai antes de deixar o pátio. As imprecações do outro desfizeram-se na indiferença dos companheiros, cada qual esporeando os animais para chegar primeiro à fala com o Gonçalves, apressados todos em resolver a venda dos seus vinhos.
- oJerónimo é que está que nem um podengo derramado, o filho da mãe - disse o Inverno, sem se dirigir a qualquer dos companheiros, como se falasse consigo em voz alta.
- Que mais quer esse malandro?!...
- Vinhos de graça...
- Ou que alguém perca a cabeça e lhe meta um balázio no meio dos olhos - gritou o Inverno para o Teimas, que continuava calado, à parte de todos.
-'Que dizes, Francisco?... - insistiu o velho para o ouvir.
-Que não há mal que sempre dure...
60
Tinham chegado ao portão da quinta e o caseiro dava ordens para deixarem os animais da banda de fora; na rotunda, ali aberta entre os muros da quinta, as cavalgaduras comprimiam-se, pacientes, cobertas pelas mantas listradas que as defendiam do chuvisco miúdo que caía, enquanto os donos se dirigiam para o jardim, reunindo-se em pequenos grupos silenciosos.
Cada minuto parecia-lhes uma vida - e a porta larga da entrada principal da Casa Grande nunca mais se abria. Não cessavam de chegar mais lavradores, que apertavam a algibeira, onde traziam a amostra do seu vinho, mal saudando os outros que já esperavam a chamada e escondiam o seu nervosismo em pequenos passeios, insensíveis à chuva miúda. Aparentavam indiferença, mas, logo que se ouviu o ruído dum fecho a abrir-se, todos se voltaram num repente.
O almoço daquele dia deixara o Silva Costa bem bebido, porque todos o acharam mais sorridente, quando o viram aparecer à janela do seu escritório, na companhia do Gonçalves, que soubera tocar-lhe no coração, e já dispunha de tudo, como se a quinta lhe pertencesse. Os lavradores descobriram-se, num cumprimento cerimonioso, procurando cada um deles distinguir-se desde logo pela afabilidade; alguns deixaram-se ficar de chapéu na mão, aguardando que os outros lhes fizessem o sinal devido. Ambos, porém, continuavam a conversar e a sorrir, como se ninguém os esperasse.
Naquele momento, o Silva Costa falava da sua paixão com exuberância de gestos, enquanto o Gonçalves, encostado à janela, acenava a cabeça, como grande entendedor desses assuntos.
- Não tenha pressa - recomendava com ênfase. - Deixe-a amadurecer bem até que ela o provO Que. Faça como a aranha... Seja cortês, sem exageros, e conte com
61
o tempo. O tempo resolve muitas coisas e nunca passa sem fazer das suas.
- Mas parece-lhe...
- Tenho a certeza - afirmava o especulador, com presunção.
-É casado, com certeza?-perguntara o Silva Costa com ratonice nos olhos.
- Não; por isso mesmo percebo um pouco dessas coisas - respondera o Gonçalves com ar triunfante, abanando o corpo, numa gargalhada só expressão. - Os homens casados, pello facto de terem cometido essa gravíssima asneira, não podem ser bons conselheiros. Estive uns anos em Lisboa, sabe?
- Ah, Lisboa!... Diga-me dessas...
E o Silva Costa ficou-lhe ainda mais à mercê, depois daquela revelação que fora o grande sonho da sua vida. O Gonçalves já insistia para se começar a apreciação das amostras; mas ele continuava a querer pormenores da capital.
- Deve ter muito que contar, meu amigo. Lisboa é a única terra do País. O resto não passa de sertão africano... E as mulheres? Lindas estampas, hã?! Se fosse mais novo, não era o Alto Douro que me comia os ossos. Antes lá varredor de ruas que rei por aqui.
O Gonçalves voltou a lembrar-lhe os lavradores. Deu ordens para que o primeiro se aproximasse, mas fê-lo de mau humor, gritando na sua voz aflautada.
- o primeiro!... Não, não, por aqui!
E chamava o Inverno, que fechara a umbela e se dirigia para a porta de entrada. oGonçalves é que interveio, para lhe pedir que os recebesse ali dentro, não esquecendo a conveniência que havia em atordoá-los com amabilidades, naquele seu jeito de boa pessoa, muito habituado ao jogo de compras e vendas nos escritórios da Companhia Velha.
62
E, como visse o administrador hesitante, bateu-lhe no ombro, num gesto muito íntimo e num piscar de olho significativo.
- Nunca o vinagre apanhou moscas, meu querido amigo...
- Você sempre me saiu um passarão!
oGonçalves foi receber o vendedor à porta, de mão estendida e sorriso de boas-vindas no rosto macilento. O velho, porém, hesitava entre aquela mão que o aguardava e o capacho onde esfregava os pés, receoso de sujar o soalho, muito limpo, com as suas botas cardadas.
- Entre, entre - insistia o especulador, com deferência.
Olhando à sua volta, como se procurasse qualquer arrimo para os braços, o Inverno sentia-se naufragar no meio daquele casarão, onde os móveis pareciam boiar e lhe fugiam. Tremiam-lhe as pernas, queria sorrir, entaramelava-se-lhe a voz, já esquecido de quantas palavras concebera para falar na sua amostra. O Silva Costa mirava-o de esguelha, embasbacado com aquela inovação no trato dos homens. "Vê-se logo que andou por Lisboa", pensava na sua.
O Gonçalves já despejava a amostra dentro duma molheira apropriada, vagarosamente, quase pingo a pingo, para bem lhe apreciar a cor, e fez uma expressão de desagrado que deixou no velho um doloroso frio de angústia. Todos os propósitos que trazia quanto a preços desvaneceram-se também com aquela indicação; e achou-se mais só ainda, depois de ensaiar uns passos para intervir no exame e se sentir incapaz de o fazer.
Depois das outras operações para avaliar da qualidade do vinho, o Gonçalves rolhou bem o resto que ainda ficara na garrafa e entregou-a.
- Não é bem o tipo que pretendo. Falta-lhe perfume...
- Perfume, senhor? - interveio o Inverno, receoso de lhe desagradar.-É uma madressilva...
-O que há-de o senhor dizer. Qual é o pai que não gaba a noiva?... Não é mau, mas...
Num repente, para achar o outro desprevenido, fez a pergunta que lhe interessava. "Quanto pretende por cada pipa?..." O lavrador hesitou, por um instante, torcendo nas mãos a aba do chapéu, e atirou o seu preço, como quem teme dizer uma heresia; no mesmo instante sentiu-se corar muito, ficando ainda mais embaraçado. O especulador percebeu-o e teve um sorriso, compassivo e escarninho ao omesmo tempo.
- Por três pipas, com certeza - disse depois, olhando para Silva Costa com ar vitorioso.
- Por três pipas, senhor? Se soubesse...
E, antes que o lavrador desfiasse as lamentações habituais, o Gonçalves descarregou a sentença.
- Nada feito. Obrigado pelo seu incómodo e pode ser que para outra vez se faça negócio. O velho queria ainda voltar à conversa, mas o Gonçalves era entendido naquelas transacções e já sabia que convinha deixar sair os primeiros de orelha murcha, para que os outros viessem, a seguir, mais cordatos.
- Não diz o seu preço?... - insistiu o Inverno, pretendendo agarrar-se de qualquer maneira.
- Não; considero isso uma deslealdade. Quem é dono é que marca o seu dinheiro. A mim só me compete pegar ou largar. E, se pego, já venho preparado para o primeiro pagamento.
E como o outro não saísse do escritório, a olhar o Silva Costa num pedido de auxílio, Gonçalves tomou-lhe o braço, encaminhando-o para a saída.
-É possível que para a outra vez... Não será a última, com certeza.
Quando o Inverno surgiu à porta, mais dobrado do que os anos lhe pediam, e se dirigiu para a saída, sem olhar os outros, todos os homens perceberam que as coisas iam mal.
- O segundo! - gritou o Silva Costa da janela.
Os lavradores ficaram inquietos, esquecidos uns dos outros, a remoerem impaciências e pensamentos sombrios. "Já não chegava o trabalho que as videiras davam e os sustos que o tempo trazia, para ainda sofrerem aqueles momentos, sem fim, ia espera da sua vez e de mais uma desilusão."
Mas a maioria não podia aguardar outra oportunidade. Estavam todos empenhados com agiotas e as escavas aproximavam-se. Quanto mais tarde vendessem, pior seria - os pagamentos chegariam também, e com eles as penhoras e as perdas das terras, além da vergonha. O Gonçalves tinha-os na mão, sabia-o demasiado. Mais do que a percentagem ganha com a incumbência do Freitas, preparava negócios para si próprio e saberia escolher os seus vinhos, entre os que se "embarcariam para Gaia.
O segundo lavrador saiu como o Inverno; mas não se dirigiu logo para o portão da saída. Aproximou-se dos outros e atirou-lhes toda a verdade à cara.
-É melhor abalarem! O preço que deve querer é para zurrapa do Sul; ainda por cima torce as ventas e diz que não presta. Vocês estão aqui a perder tempo.
Nenhum dos outros, porém, lhe quis seguir as pisadas. Estavam dispostos a jogar a sua sorte até ao fim, confiantes na amostra que guardavam no bolso e duvidando sempre da qualidade da dos outros.
Dentro do escritório, Gonçalves sorria para o Silva Costa, gabando-se, só em expressões, da sua perícia de bom comprador. Despejou num balde a última amostra provada e agarrou na garrafa que o Francisco Teimas
65
lhe oferecia, com as mãos trémulas e o rosto inquieto pelo seu tique nervoso. Aproximou-se mais da secretária, para se sentir menos embaraçado, e foi seguindo as expressões do outro, enquanto o via agitar a molheira, para experiência da homogeneidade da sua amostra.
O silêncio do Gonçalves e aquele tempo prolongado que a operação levava tornavam-no cada vez mais inquieto. Torcia as abas do chapéu nos dedos, batia com os joelhos um no outro e espreitava o boneco da seta que o olhava do fundo do jardim. Recordou-se da última vindima, quando dançara com a Gracinda no terreiro dos lagares. "O que se tinha passado depois disso!... A morte da mulher, uma filha, a vida mais torta do que nunca e um enorme desejo de ter a cunhada..."
O especulador aspirava agora o perfume da amostra, metia depois na boca um gole de vinho, que passava de um lado para o outro, querendo mastigá-lo bem, até que o foi expelir para o balde.
- Um pouco doce... ÍÉ adamado de mais.
-Nem por isso... É um meio-seco, muito fino. - Na sua vontade, talvez.
E num repente, bem calculado, fez-lhe a pergunta: tem muito?
- Quatro pipas e meia - respondeu Francisco, dominando o seu nervosismo.
- Posso ficar com ele para uns lotes. Tem boa cor e pouco mais.
- Ora essa!... Só boa cor um vinho desses?... "Pagassem-lhe mal, mas não lhe apoucassem a novidade", pensou com indignação.
- O fidalgo é que diz uma grande verdade sobre o vinho ideal - interveio o Silva Costa. - Deve ser uma tinta de escrever na cor, um Brasil na doçura e uma índia no aroma.
66
- E nada disso falta ao meu - retorquiu Francisco, olhando o comprador com orgulho. - Aqui o Sr. Silva Costa sabe os cuidados que temos com o nosso.
- Você quer dizer que o seu vinho é um vintage, não? Está muito longe disso homem de Deus!
Não fosse a necessidade que tínha de vender e Francisco abalaria pela porta fora, sem mais aquela; mas ficou ali preso, de má vontade, tudo retraindo, menos o tique do rosto e a gaguez que lhe tomou a fala.
- Diga o seu mínimo preço - atirou-lhe o Gonçalves com mau humor, quando percebeu que aquele não se deixava dominar pelas suas artimanhas.
-o preço da vindima... - Nada feito.
E voltou-lhe as costas, à espera que o outro insistisse. O Teimas deu dois passos para ele, fazendo rodar o chapéu nas mãos trémulas.
- Quanto oferece?...
- Venho para comprar - respondeu-lhe o Gonçalves com indiferença.
- E eu para vender pelo que for mais justo - gritou-lhe o Francisco, já fora de si. - E se os senhores quiserem achar sempre vinhos destes, têm de pensar no mesmo. Senão, um dia, acabam-se as videiras no Alto Douro, se no preço elas derem tanto como a palha cen-teia da Terra Fria ou os vinhos de Consumo do Sul.
- Prefiro menos conselhos - interveio o Gonçalves, sentencioso e já lívido.
Os que lhe chamavam peneireiro, se o vissem agora, ficariam contentes com a justeza da alcunha que tinham escolhido. Sacudia os braços e deixava pender a cabeça pequena, como se fosse coçar o peito com o nariz adunco.
--Quer vender ou não? - reforçou ainda, enquanto
Francisco o media dos pés à cabeça. - Tire duas partes
67
ao que disse e o vinho pertence-me. Foi assim que já comprei vinte pipas.
-i Aos enforcados, não foi? Mas eu não estou nesses apuros e vinho como o meu mão é mistela de sabugueiro e aguardente.
Os dois ficaram, hirtos, frente a frente, parecendo capazes de arredar a secretária que estava entre eles, para se agarrarem.
Teimas aproximou-se mais ainda e a sua voz ganhou firmeza.
- Quando nos quiser roubar o suor, venha de espingarda e assalte-nos de noite. E a gente cá está para lhe fazer frente...
E saiu de cabeça erguida, enquanto o Gonçalves, atarantado, esboçava um gesto para o reter.

VIII
A esperança trazida pelo Gonçalves tornara-se em amarga realidade. E a chegada, dias depois, do comissário duma casa inglesa que procurava também alguns vinhos carregados de cor, para um tipo full, deixara uma descrença geral na aldeia. Os preços oferecidos eram tão arrastados que mal dariam para a renda das terras, se tivessem de a pagar.
Mesmo assim, muitos venderam e estavam já como os suicidas quando o desespero lhes fecha o coração para os sonhos.
- Mas que pode a gente fazer?!-perguntavam alguns, à espera de uma resposta que lhes servisse de pretexto para o seu desalento.
68
As videiras esperavam os granjeios, os empréstimos venciam juros "e era preciso não perder as terras, guardando-as para o jogo da colheita próxima.
- Se vem outro ano como este...
- Aguentamos de pé firme. A gente pensa sempre que não pode, mas no fim cá vamos andando.
- Até um dia...-juntou o Inverno, sentado no muro da praça, onde um grupo de lavradores fazia conversa.
- E quando ele chegar voltamos ao princípio. A terra é pior que a crença numa mulher por quem agarramos vício. É um coiro!...
- A gente paga-lhe e os outros é que a têm - voltou o Inverno, cuspindo as palavras com ódio.
Depois ficaram calados. Ao longe ouvia-se a chia-deira triste de um carro de bois, descendo o caminho que levava ao Pinhão, onde alguns rabelos esperavam as carregações. Agora aquele **sote Não lhes lembrava um meio de afastar os lobos ou as tentações do Dianho, mas era uma carpideira dolorosa que ia pelas estradas do Douro a lamentar-se por eles, levando-lhes o próprio sangue dentro das pipas.
Olhavam-se com rancor, de queixos cerrados; e, contudo, estavam ali para se ajudarem, naquela incerteza que os tocava de sorte idêntica. Eram raros os cigarros acesos num grupo de cavadores, e essa falta tornava-os ainda mais desgraçados do que a escassez de pão.
- Ao menos que nos dessem bebida todo o dia, para que a bebedeira nos fizesse esquecer isto - dizia o Espanhol entre eles, torcendo o olhar para o lado da taberna, onde um grupo de cavadores, já inválidos, sarrazinava a propósito dos seus tempos, recordando a filoxera e o Ano da Queima.
- Ainda se em Espanha houvesse trabalho... - lembrou o Sandão na sua voz magoada.
69
- Pra que falas tu nisso?!... Já sabes que só pràs ceifas lá podemos deitar - respondeu-lhe o Espanhol, endurecendo a voz e a expressão.
- Porque me apeteceu -disse o outro, medindo-o com o olhar torvado. - Ou és tu quem manda na minha boca?!
- Fechava-ta por uma vez, se mandasse.
-"Mas não podes.
E, antes que os outros os contivessem, deitaram-se um ao outro, num salto, peito com peito, procurando cada qual deitar o adversário por terra. Balancearam-se assim, por instantes, a medir forças; depois o Sandão esgueirou-se, ao sentir os braços enfraquecerem-lhe, e atirou uma punhalada ao rosto do Espanhol, que, sem mais esperas, fez estalar a sua navalha de ponta e mola, mostrando-a ao outro num ódio cego.
- Faço-te em postas, ciganão! - disse num grito que encheu a praça.
Sorrateiro, o Sandão puxou também a sua, esquecidos ambos de que as tinham comprado, em boa camaradagem, numa ida às segadas de Castela-a-Velha. Ficaram a medir-se por algum tempo, ante a indiferença dos outros homens que pareciam divertidos, com a perspectiva duma luta sangrenta. Temiam-se um ao outro e ambos esperavam um descuido para se atirarem.
Mas o Inverno meteu-se de permeio, levando o Espanhol consigo. E, de largo, encheram-se de insultos. Depois caíram todos na mesma abstracção, cansados de esperar qualquer coisa que tanto podia ser a morte de um homem, como a notícia de trabalho em qualquer quinta grande do outro lado do Douro, no Sarrão ou na Roeda, na Romaneira ou nos Malheiros.
O administrador da Casa Grande passou a cavalo e muitos deles nem se descobriram. Alguns ficaram a falar do Silva (Costa e da professora, inventando boatos de
70
encontros à noite, fora de horas, quando a aldeia dormia. Precisavam de um pretexto qualquer para não pensarem neles próprios.
- Vi com estes dois que a terra há-de comer. A terra que tudo cria e tudo leva...
- Se desse uma filoxera na gente como deu nas vinhas, era bem bom - lamentou o Sandão.
- Deus lá sabe o que faz...
- Se ele me pudesse ouvir, tinha muito que lhe dizer.
A manquejar, agarrado a um cacete a que se amparava, surgiu do quelho da Fonte o velho Teimas, perseguido pelo Dr. Pimenta, que estugara o passo para o agarrar. O cirurgião vinha de visitar o cortelho de um doente e apeteceu-lhe desabafar com o velho, quando o viu à sua frente, rojando os pés, com aquelas malditas dores que lhe trituravam os ossos.
- Quem lhe deu ordem para sair, seu homem? - interpelou-o, pegando-lhe no braço para o ajudar.
- Viva, Sr. Doutor!... Quem havia de ser? Esta danada sorte de um homem que nem a casa lhe apetece.
E depois de uma breve pausa:
-oSr. Doutor vendeu?
- Nem a carcaça me querem quanto mais o vinho! E o meu não levam eles pelo preço da zurrapa.
-É assim que se canta... Se houvesse por aí a mesma opinião, talvez não andássemos assim.
Todos os grupos se voltaram para eles.
- Nas Cortes falaram da gente, sabe?
- Cortes é Sul, Sr. Doutor!... Falaram mal, com certeza.
- Nem todos...
- Elas lá se compõem - disse o velho, aproximando-se de um grupo onde estava o filho.
71
- Noutros tempos dizia-se que pra cá do Marão mandavam os que cá estão... Agora é isto...
E apontava os outros com desdém.
- Gente de palha centeia, sem tripas nem coração. E isto custa-me mais do que o que diz essa cambada das Cortes.
- Vossemecê é que lá devia estar - disse o Dr. Pimenta, batendo-lhe no ombro.
- Se o senhor também lá fosse...
- E pra quê, homem?
- Prós sangrar. Eu depois tratava-os com uma racha que lá tenho no cortelho.
O Sandão deu uma gargalhada das suas - das que enchiam o largo, porque se contaminava aos outros; agora, porém, embora todos rissem, pareciam-lhes desprositadas e reprendiam-no com o olhar.
- Cala-te aí com esse cascalho, meu bruto! - gritou-lhe o velho. - Risotas de quê?!... De alguns fazerem vinho a martelo e tu ficares aqui, à espera que o trabalho te venha do céu?!... Gente de palha centeia!... Ah, Sr. Doutor!... Se noutros tempos, no Doiro, só houvesse pessoal deste, a filoxera bem tinha levado tudo.
- É falar no Diabo e ele a aparecer -disse o Inverno, fazendo um sinal com a cabeça para o lado do quelho do Santo Cristo, donde surgira o Jerónimo, montado no seu garrano pigarço, a bambolear o corpanzil sobre o albardão. Quando viu toda a gente volver-se para ele, o Jerónimo pensou em torcer rédeas para o caminho da Pesqueira, sentindo-se incapaz de defrontar aqueles olhares que o seguiam.
Desabrido, António Teimas pôs-se a falar, aos gritos, na sua direcção.
- Então a gente mete-se aí à montanha, faz das pedras um jardim, mata ali a vida inteira e há-de ficar mais desgraçado do que antes?!... Isto não pode ser!...
72
O Dr. Pimenta abalou direito a casa, com o pressentimento do que se ia passar. Ninguém, porém, notou a sua ausência. Na praça só se ouvia o bater das ferraduras nos rebos do chão e a voz do velho que brandia o cacete, como se quisesse desancar alguém.
- Vi enforcar-se a companheira e enterrei dois filhi-nhos por falta de pão, com esta fé de não deixar isto aos bichos. E a paga é esta?!... Malditos sejam os que fazem vinho que não é suado!...
O Jerónimo avançava para eles, tocando o garrano com a chibata que trazia na mão. O seu rosto, marcado de cicatrizes, que nem o bigode conseguia disfarçar, parecia sorrir com o arrepanhado daquela marca maior que lhe contraía a face, da orelha à boca. Sentia, contudo, o corpo anafado descair no albardão, como se os olhares o puxassem abaixo. Esboçou uma saudação, levando os dedos ao chapéu, mas ninguém lhe respondeu. O silêncio confrangia-o. Temia os grupos que lhe ficavam para trás, como se dali o fossem apedrejar de um momento para o outro. O garrano devia sentir o seu nervosismo, porque começou a encaracolar-se, mordendo o ferro do freio. Ele picava-o com as esporas, mas continha-o logo com as rédeas, não querendo apressar o passo do animal, para que os outros não compreendessem aquela vaga de receio que o varava. Numa reacção, tentou dominar-se e levantou o olhar para o grupo onde estava António Teimas; primeiro, ainda indeciso, logo depois com firmeza, quando notou que muitos homens retiravam o seu.
"No fundo eram todos uns cobardões", pensava consigo. E, já possuído dessa certeza, atreveu-se a dar-lhes as boas-tardes.
Foi então que o Francisco Teimas se aproximou para lhe falar.
-Ainda está pela palavra que me disse no outro dia?
73
- Qual palavra?!... - interrogou distraído, acompanhando as reacções que o seu desassombro provocava nos rostos dos outros homens. E, como lhes interpretasse o silêncio por cobardia, quis alardear a sua autoridade, continuando o caminho sem se importar com o Teimas.
-Não ouviu o que lhe perguntei? - insistiu Francisco, agarrando-se ao freio do garrano.
- Larga o bicho, anda. Que queres tu que te responda?...
- A palavra que me deu.
- E há quanto tempo foi isso?
- A honra de um homem vale sempre - gritou-lhe Francisco, já fora de si, enquanto dominava o garrano, que começava às recuas, querendo furtar-se ao poder das suas mãos.
- E tu o que fizeste?!... Andaste aí a oferecer vinho a quem apareceu, e, como não to quiseram, vens agora pedir a minha palavra.
Francisco Teimas olhava-lhe as cicatrizes do rosto, com ganas de o fazer baldear e desancá-lo ali mesmo, marcando-lhe mais as faces com a verdasea que o outro lhe apontava.
- Nem de graça o recebo agora. Bebe-o tu ou queima-o. - E gritando para o outro: - Deixa lá o animal! Larga-me a rédea!...
Os homens levantaram-se dos seus lugares e já rodeavam os dois, apertando o círculo. Jerónimo sentiu, novamente, a mesma onda de frio que o tomara quando surgiu dentro da praça, com todos os olhares postos nele, mas não ignorava que, se mostrasse uma hesitação, ninguém o pouparia. E fitava o outro de um modo provocador, esporeando o garrano. Outra mão, porém, veio juntar-se à de Francisco, mais nervosa ainda - era a do pai, que se conseguira arrastar até eles e o varava com os seus olhos incendiados de rancor.
74
- Ele devia era beber-te o sangue - foram as primeiras palavras do velho. - Sai-te daí, que com este falo eu - disse depois, afastando o filho com a outra mão.
Jerónimo ficou suspenso com aquela arremetida do velho Teimas, sabendo bem que se o desrespeitasse ninguém mais se lembraria de receios. Recordou também, por sua vez, o que devia àquele velho, e tentou levá-lo às boas.
- Ó mestre António!... Enforcado em vinho já eu estou.
- Em vinho, não, em mistélas que fazes de tudo, menos do verdadeiro. Já esqueceste que te matei a fome algumas vezes? Não podes negar que és filho de contrabandista.
- Ó mestre António! -titubeava o outro, com receio de se não conter e verdascar o velho.
Mas António Teimas prosseguia sempre, agarrado com ambas as mãos ao focinho do garrano, que espumava, a furtar-lhe a cabeça e a resfolegar com braveza.
-i Até vendias a alma, se te servisse para fazer vinho!o pior é que ficava mais venenoso ainda do que aquele que fazes a -martelo...
E, procurando-lhe o olhar, largou o animal com desprezo.
- Deus, que te marcou, algum defeito te encontrou. E não são pequenos... Vai-te lá embora, anda!
Depois, como o visse hesitar, gritou-lhe com ódio desvairado:
- Sai da minha vista! Quando te dei de comer, devia-lhe ter posto veneno dentro ou ficar paralítico das mãos. Sai-te daqui, depressa!
E, alçando o cacete, descarregou-o na lombeira do garrano, que partiu a galope, esparrinhando lama dos atoleiros, sem se deixar conter pelo freio que o Jerónimo queria segurar, para que o não julgassem com medo.
75
Durante muito tempo, todos os olhares ficaram pregados naquela saída da praça, numa maldição sem palavras. Mais abatidos ainda, voltaram depois a refazer os grupos, como esquecidos dos companheiros.
- Se eu tivesse adivinhado! - repetiu o velho Teimas, a acenar a cabeça, num misto de ódio e arrependimento.
Ficou assim uns longos momentos, até que se voltou, num arremesso, e meteu pelo quelho da Fonte, acompanhado pelo filho. Muitos homens abalaram com eles; outros, porém, ficaram ainda, atormentados com a ideia de voltarem aos cortelhos, sem mais esperanças.
Daí por instantes, com a enxada sobre o ombro, e arrastando o corpanzil de gigante, o Fontelas surgiu dos lados da estrada do Pinhão. Aproximou-se do Espanhol e entenderam-se num olhar. Depois o outro quis ouvi-lo.
- Na mesma...
o Fontelas abanou a cabeça e os ombros, numa atitude de abatimento, e descansou a enxada entre as pernas.
- Na mesma, pois.
Nesse momento, o Sandão saiu do seu grupo e atravessou a praça, aproximando-se dos dois e de mão estendida para o Espanhol, a pedir-lhe desculpa. Então os homens sorriram e fizeram-nos abraçar, levando-os para a taberna, onde o MalMatado lhes serviu duas rodadas de aguardente à sua conta. Cada um deles, porém, não quis ficar atrás e despejaram mais quatro medidas.
- Tu eras capaz de me espetar, Sandão?!...
- Dava primeiro em mim, com certeza. Raio de coisa aquela!
- Um homem anda esbraseado, sem saber o que faz. Abraçaram-se novamente; beberam mais. E vieram
recordações das segadas de Espanha. Até que o Espanhol
76
começou a cantar, acompanhado pelo bater compassado das mãos dos outros.
Las mujeres de Alcocillo... Comprarem una romana, Para pesaredolas tetas Três veces por la semana...
Gargalhadas e aplausos receberam a quadra, que todos repetiram em coro.
Las mujeres de Alcocillo...
Mas quando o Espanhol se preparava para cantar outra, mais brejeira ainda, um alarido de assobios e gritos rompeu na praça, e um cão vadio, escorraçado pela canalha, vendo aberta a porta da taberna, correu para ali à procura de abrigo e de alguma côdea. O Sandão assobiou-lhe, desafiando-o com uma palmada na perna. O podengo aproximou-se resoluto, para receber os seus afagos, enquanto agradecia com lambidelas aquela mão que o protegia. De longe, a canalha ficou contrariada por tal percalço, que lhe roubava uma oportunidade para mais correrias e apupos.
- Não é daqui! - gritou um dos rapazes.
- Está derramado, com certeza - aprovou outro. O cão parecia entender as acusações, encolhendo-se mais, entre as pernas do seu protector, em ganidos de gratidão, enquanto olhava o rapazio com desconfiança. Mas o álcool excitava o Sandão, dando-lhe um desejo estranho de brincar com o podengo; pegou num pedaço de tojo e, com a ajuda do Espanhol, amarrou-lho pacientemente à cauda, que se sacudia de contentamento, pelo contacto daqueles dedos que o tinham acarinhado. Ambos
77
se puseram a andar, levando o rafeiro atrás deles. A canalha exultava. Então, uma voz lembrou:
- E se lhe deitasses o fogo?
O Mal-Matado, que acompanhava toda a cena da porta da taberna, correu logo dentro do balcão, para voltar com a garrafa de aguardente, que entregou ao Espanhol.
- Posso beber? - perguntou-lhe ele com malícia nos olhos.
Já um grupo rodeava o animal, aturdido agora com o gáudio que se fazia à sua volta. Espreitando por entre as pernas dos homens, quis escapar-se dali, mas reparou no rapazio que o esperava com pedras, e voltou para junto do Espanhol. Havia risos - cada qual dava a sua sugestão para a galhofa.
- Há aqui menino que, se ele fosse bem chamuscado, até o comia como a um reco! - disse o Sandão, lambendo os beiços gretados pelo frio.
O comentário provocou gargalhadas - e a última foi a do Sandão, que ficou a casquinar por muito tempo, quando já o Espanhol despejava aguardente no tojo e o Mal-Matado tentava pegar-lhe o fogo com a sua pederneira. O lume era escasso, porém, para incendiar o tojo húmido pela chuva. E os rostos emocionados daqueles homens, que se esqueciam por instantes dos seus problemas, acompanhavam as tentativas frustradas com contrariedade. Logo outras pederneiras faiscaram e o círculo apertou-se, para que a aragem do sueste não prejudicasse a brincadeira.
- E um papel?! - gritou o Sandão.
Todos acenaram a cabeça e sorriram com aquela lembrança. E enquanto o Mal-Matado corria à taberna para o procurar, o Espanhol ia afagando o focinho do podengo, a tiritar agora de frio e fome na sua carcaça de pele e osso.
78
- Todos os cães têm sorte! - exclamou o Fontelas, já longe das suas andanças pelas quintas da outra margem, em busca de trabalho.
Os outros riram-se com o dito. Exuberante de alegria, como um cachopo, o taberneiro voltava de papel na mão e de tenaz com uma brasa na outra, desejoso de ver o resultado de tudo aquilo e poder gozar o embaraço do podengo quando se visse com um rabo de fogo.
Depois foi um instante. A roda abriu-se para desafrontar o cão, embora cada qual procurasse o melhor sítio para ver o resto à sua vontade. O papel pegou ao tojo embebido em aguardente, com uma lentidão que enervava os homens, pois o animal continuava estático, procurando com o olhar triste quem o havia protegido do rapazio. Ele pressentia, por certo, que alguma coisa se ia passar e precisava do seu amparo; o Espanhol, porém, afastara-se mais do que os outros, talvez já arrependido daquela traição.
À volta do podengo as gargalhadas atroaram, quando ele sacudiu o rabo pelado, para se libertar do peso que o incomodava. Foi a vez de a canalha se aproximar e fazer o resto. Orapazola mais velho do Teimas jogou a primeira pedra; logo uma saraivada de muitas outras caiu sobre a lombeira esquálida do cão, que largou numa corrida curta e se deteve, novamente, para olhar a cauda. De dedos metidos à boca, os homens assobiavam-no com frenesi; e o rapazio voltou à sogada e às pedradas de boa pontaria, enquanto o animal atravessava a praça já com o fogo bem atiçado no tojo, fugindo espavorido com o calor que se lhe aproximava da pele e espertava sempre com a sua fuga.
A canalha largou atrás dele para fora da aldeia; os homens riram-se ainda, por momentos, parecendo ficar menos abatidos depois daquela façanha. Mas os ganidos
79
e os uivos do podengo cresceram, cada vez mais angustiosos, e os grupos debandaram.
E, quando os rapazes voltaram, a praça estava vazia. Só à porta da taberna o Mal-Matado chupava a ponta de um cigarro, agora, que todos tinham abalado e não havia receio de lhe pedirem tabaco.
- Então o podengo?! - perguntou, a sorrir.
- Parece que vai morrer queimado - disse um deles.
Ao ouvir a confirmação dos seus receios, um dos rapazes rompeu num choro convulsivo, que mais parecia o ganir do cão vadio.

IX
A noite viera com estrelas, mas dolorosa de frio, como nenhuma outra naquele Inverno. O taro penetrava pelas frinchas das portas e pelas telhas quebradas, fustigando os corpos debilitados que se enrolavam junto das fogueiras acesas; o seu calor, porém, não bastava para vencer o frio agreste do Marão e a incerteza do futuro, antes de os homens partirem para as segadas da Terra Fria. "E até lá?!", era a pergunta muda com que todos se interrogavam.
No sermão de domingo, o padre Augusto quisera ajudá-los com a sua palavra, pressentindo que aquela gente precisava de uma esperança para suportar a vida. E falara nos castigos do Céu, por muitos erros cometidos pelos homens, de cujas almas Satanás se apoderara, levando-as, pelo caminho do mal, para os abismos do seu reino maldito. Só a humildade e as preces poderiam chamar o Senhor a intervir pela salvação das almas pecadoras;
80
até lá havia que suportar as inclemências, numa prova sublime de redenção, capaz de demover a graça divina.
Por isso naquela noite se rezavam preces pelos cortelhos da aldeia, numa súplica angustiosa, dirigida a Deus.
"Padre Nosso que estais no Céu... Salve, Rainha, cheia de graça... Perdoai-nos, Senhor..."
A muitas preces, porém, faltava a humildade que o padre Augusto dizia necessária para chamar Deus até eles. No seu desespero, os penitentes bramavam, em lugar de rogarem; não suplicavam, mas exigiam em gritos, de braços erguidos, tempo sem fim, como se esperassem poder tocar o céu com as mãos e comover mais depressa a bondade divina.
Lá fora os cães uivavam ao luar e os homens recordavam-se do podengo que morrera queimado na estrada da Pesqueira. Essa lembrança tornava-os mais infelizes quando escutavam os cânticos que as mulheres, os velhos e as crianças rogavam ao Senhor, muito juntos uns dos outros, como cachos humanos, buscando conforto para a sua esperança atormentada. E muitos deles aproximavam-se e cantavam também, num arrependimento que lhes não permitia entregarem-se logo com maior devoção às palavras entoadas em prece.
Foi nascer a Belém Numa triste manjedoura...
Depois, pouco a pouco, esqueciam-se do mais e ficavam presos àquela fé que talvez os salvasse do inferno em que o Douro tinha mergulhado.
- Vós estais fora da graça - diziam-lhes as mulheres numa reprimenda, afagando os filhos, como se assim os pudessem furtar à aragem da morte que despejava os cortelhos de risos infantis.
81
- O **Madoarrieo é vosso irmão...
E eles ouviam as acusações, incapazes, naquela noite, de reagirem como de costume.
"Padre Nosso, que estais no Céu... Maria Santíssima, mãe de Deus... O pão nosso de cada dia nos dai hoje... Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo..."
Corpos arrastavam-se até junto dos santos alumiados e ali ficavam de mãos erguidas, rogando pelas crianças que a morte ceifava, como se se estivesse em Agosto, no mês dos anjinhos.
E lá fora os cães uivavam ao luar, deixando arrepios nos corpos esgotados de sofrimento.
O Fontelas olhou para a enxada de dois bicos, abandonada a um canto da cozinha, e sacudiu os ombros de latagão, numa impotência acabrunhante. As feiras de homens só se formavam na praça para se conversar no mesmo - os lavradores "esganados" não podiam dar trabalho e as lojas não fiavam, nem tinham já que vender Cansado de esperar, abalara pelas estradas do Douro, em busca de jorna em que matasse o corpo. Por toda a parte só ouvira negas dos feitores das quintas e hostilidades dos outros cavadores, que o olhavam como a um inimigo.
- Então, pai?... A gente assim nada remedeia - disse-lhe Maria Dolorosa, preocupada com o seu rosto sombrio.
Ele voltou-se para lhe sorrir com amargura e tornou
a olhar a enxada.
- E há algum remédio para isto?!...
Não tivesse aquela filha e abalaria dali para qualquer banda - terras do Sul ou de Espanha, onde um homem,
82
se morresse de míngua, não teria de se envergonhar de quê. Brasil era aventura de lavrador e ele de seu só possuía os braços - braços de gigante, era certo, mas agora menos prestimosos que os da canalha. Deixar a filha, porém, seria abandoná-la aos baldões da sorte. E ele queria-a bem arrumada, com um rapaz que tivesse uns bardos de vinha e fosse merecedor daquele palminho de cara, espelho fiel da sua defunta companheira.
- Pão com dentes é uma ceia de fidalgo - tornou a rapariga para o animar.
-•Centeio com quinze dias na arca pra se comer menos, não é?...
- Não há-de ser sempre assim, pai.
Fontelas levantou-se do banco e, agarrando a filha pelos ombros, puxou-a para si.
- Julgas assim que me animas... Mas gostaria que tu e eu próprio pensássemos que tudo seria sempre igual para a gente. Talvez fosse melhor... Acabaria esta teima de ficar aqui agarrado não sei a quê. E na fronteira, como contrabandista, ou em qualquer parte, como o Zé do Telhado...
- Não diga isso, pai.
Ele dirigiu-se para o canto onde estava a enxada, agarrou-lhe com ambas as mãos e premiu-as no cabo, como se fosse começar uma cava rija com outros cavadores decididos.
- As terras à espera disto e a gente para aqui, como mortos, sem fazermos alguma coisa que nos tire deste inferno. Ao menos que tivéssemos coragem para a descarregar na nossa cabeça. Mas assim... esperar... esperar. Esperar o quê?!...
Os dedos do Fontelas afagaram as folhas do ferro polido pelo trabalho nos xistos e doeu-lhe o coração com aquele contacto.
83
E noutros cortelhos os homens olhavam também as enxadas quietas, parecendo que as preces entoadas se dirigiam mais para elas do que para os céus.
Helena seguia a luz do luar da janela do seu quarto e julgava vê-la desfazer-se, num poalho, sobre a crista dos montes. Estava agora mais triste do que nunca, sentindo-se só para ali, e nem as folhas brancas de papel a chamavam para lhe ouvir a confissão daquele dia.
Depois que soubera a notícia do cão carbonizado, só pudera chorar. Tinha receio de adormecer, embora aquele cântico religioso, vindo dos cortelhos próximos, quisesse sossegá-la. Mas sem perceber por que estranho motivo, aquelas preces atemorizavam-na mais do que se houvesse o silêncio das outras noites, terríveis de solidão.
Todas as sombras ganhavam expresão aos seus olhos, como agitadas pela melodia do desespero daquela gente que não via, mas adivinhava, prostrada de impotência, e capaz, contudo, de sacrificar um animal ou um homem ao delírio febril de fazer alguma coisa que não fosse pensar no seu destino. Desejava compreendê-los, mas sentia agora por eles uma aversão ilimitada; e um pavor sinistro de se achar só dentro do quarto, para onde pareciam caminhar as montanhas do horizonte, dava-lhe vontade de fugir para longe, para os braços de alguém que a pudesse proteger e aquietar.
Depois cerrou a janela para não ver o luar nem ouvir as preces. Tentou dominar-se, sentou-se à mesita e pegou na caneta para escrever. Um fluido estranho, porém, ficara no ambiente e corria-lhe nos nervos, obrigando-a a erguer-se. Foi escutar à porta do quarto da mãe e já não a ouviu. Voltou à cadeira, para se abstrair desse receio tolo que a não deixava juntar pensamentos, mas
84
a sua atenção continuava posta nos ruídos que penetravam pelas paredes da casa. Falou para se ouvir; e o eco das suas palavras pareceu-lhe desdobrar-se em muitas vozes. "Estaria em seu juízo?... Era ela só que estava ali e ninguém a poderia escutar nem repetir. E se tentasse escrever?..." Mas nesse momento só se recordou do cão carbonizado e já não a comoveu a invocação do seu sofrimento. Julgava até que também estivera na praça, assistindo a tudo, e que partira de si a ideia de lhe deitar o fogo.
"Não, não podia continuar naquilo. Era melhor deitar-se também. Precisava de repousar os nervos com um sono reparador."
Começou a despir-se; logo voltou a enfiar o vestido. Talvez fosse melhor escrever e contar tudo o que sentira naquele dia. Debruçou-se sobre o papel branco, querendo agarrar-se só à sua presença, e pensou durante muito tempo - todas as palavras lhe pareceram insignificantes para contar o que sentia. Teve depois vontade de chorar, como fizera de tarde; os olhos, porém, estavam secos para as lágrimas. Voltou a passear; o rangido do soalho velho desagradou-lhe. Sentiu novamente uma dolorosa incapacidade para tentar o que quer que fosse, mas num impulso estranho agarrou na caneta e, com os bicos do aparo bem assentes no papel, como se o quisesse rasgar, escreveu duas linhas.
Já estou como eles. Prefiro que a terra estale a suportar esta vida terrivelmente monótona, só feita da certeza de que a gasto sem préstimo.
E só depois de reler aquelas palavras foi capaz de chorar durante algum tempo.
85
- O quê?!... Repete lá o que disseste?... - gritou o velho Teimas, atirando ao chão a manta que tinha sobre os ombros.
Todos se voltaram para ele, vendo-o caminhar, de braços abertos e olhos toldados pela ira, para o filho, que começara a subir a escada.
- Olhe o frio, Ti António!-dissera a Gracinda, que naquela noite ficava lá em casa.
-Mais frio me fez o que ele disse e ainda não
morri.
O Chico erguera a cabeça do banco, para seguir melhor o que se ia passar, pois parecia-lhe que o avô se levantara para bater no pai, e essa expectativa tirava-lhe agora o sono. O Luís, por sua vez, parou de embalar o berço da irmã, procurando a mão que a tia abandonara no regaço.
- Venderes o quê?!... Tu falaste em vender?... Francisco receou o olhar do velho; como, porém, a
cunhada estava ali, entendeu que não se podia acobardar e enfrentou-o de cabeça erguida. Desceu os dois degraus que já tinha subido e caminhou para o pai, sem saber ainda o que lhe ia dizer mais.
- Esqueces que tudo está em meu nome? Vender o quê?... Quem fala aqui em vender o que me custou
a vida?...
Estavam agora perto um do outro, medindo-se com
os olhares carregados de ódio.
- Mas quem tem de dar a volta às coisas sou eu. Ainda o não vi mexer-se para arranjar dinheiro e só diz que as vinhas precisam de ser cuidadas. Cuidadas com quê?!... Com palavras?!...
- Com o que quiseres, menos vendendo-as.
E, pegando o filho pelo casaco, abanou-o com fúria.
86
- É só o que sabem dizer estas árvores desenraizadas: vende-se, vende-se... Boa maneira de resolver tudo. Vendidos andam vocês, que não souberam ganhar amor à terra que os outros suaram.
- O pai não ouviu hoje o Jerónimo?... Não sabe o que se passou com esse especulador que esteve na Casa Grande?...
Gritavam um para o outro, como se a violência pudesse resolver-lhes a situação.
- E a quem vou oferecer mais?... Se não fosse o que me anda sempre a resmungar, já o tinha entregue há muito tempo. Mas agora faço o que me der na gana. E, se não quiser assinar o que eu entender, abalo daqui e vou para outra terra qualquer, para bem longe. Enforcar-me por sua causa é que não.
ovelho ficou mais lívido com aquela acusação velada e deitou as mãos trémulas aos braços do filho.
- O que queres dizer com isso? Que fui eu o causador da morte da tua mãe?...
- Sim, e depois? - respondeu-lhe Francisco sem hesitar. - Para que a obrigou a ficar aqui na filoxera?
- Desgraçado! - volveu o velho, num grito abafado que parecia desfazer-se em soluços. - Para te deixar estas terras que querias vender agora.
Francisco compreendia ter ido demasiado longe; mas sentia também que o seu prestígio junto da cunhada e dos filhos precisava daquela prova. E, embora se comovesse com a emoção transparecida no rosto do pai, sorriu-se ainda com desdém, repisando as palavras, como se cada sílaba fosse uma punhada que lhe atirasse.
- Fique com elas... Os homens do seu tempo falavam muito, mas faziam pouco...
A Gracinda interpôs-se entre eles, para lhes acalmar a ira, cujas consequências lhe faziam medo; repeliram-na, porém, insistindo em se defrontarem. Os rapazes olhavam-nos
87
apavorados, aproximando-se um do outro para se protegerem.
- Não sabes ainda o que valem os homens do meu tempo? - insistiu o velho Teimas, sacudindo o filho com as mãos nervosas, enquanto as retinas azuis continuavam imóveis pelo rancor.
- Não! - gritou-lhe Francisco, numa reacção ao acabrunhamento que teimava em se apossar da sua vontade.
Estavam agora com os rostos muito próximos, olhos com olhos, numa luta surda de domínio; cada qual se esforçava por submeter o outro, embora desejassem, talvez, acabar depressa com aquilo. Mas, de têmpera igual, entendiam ser necessário ir até ao fim, para que um deles cedesse.
- Repete lá o que disseste! - voltou o velho, sentindo que a sua ira não bastava para vergar o filho.
E como percebesse que ele ia retorquir, descarregou-lhe a mão direita sobre a boca, para esmagar as palavras que já não podia ouvir. Aturdido, pelo inesperado da agressão, Francisco esbugalhou os olhos e deu um passo para o velho, abrindo os braços para o agarrar. Um grito da cunhada tolheu-o, porém; e ficou naquela posição de rancor, enquanto o pai o desafiava de cabeça erguida e rosto firme.
- Anda! Dá mais um passo!...
Cada palavra parecia uma vergastada a cortar o silêncio.
- Cale-se, pai! - uivou Francisco, numa súplica ameaçadora.
E como as mãos lhe estremecessem, abertas ainda na mesma atitude do primeiro instante, o velho Teimas teve uma contracção mais forte no rosto e cuspiu sobre
88
o filho, com desdém, num desprezo que já não era preocupação de o ver insubmisso.
Ninguém teve mão nele; abalou pela porta fora, sem manta nem gabão, deixando penetrar na casa as preces gritadas ao Céu nos cortelhos próximos.
- Ti António! - chamou Gracinda, correndo para o agarrar.
Mas o Francisco saltara-lhe à frente, tapando a porta com os seus ombros e esmagando-a com um olhar, onde havia um ódio que ela nunca lhe vira.
O velho Teimas seguira pelo quelho fora, aos baldões, tropeçando nas pedras que não conseguia distinguir com os seus olhos cansados. Levava aquela ideia presa ao pensamento e não o atormentava o receio de alguma queda por ali. Só entendia que todos esperavam nos cortelhos o seu sinal para se vingarem. E as preces em coro, que escutava melhor agora, eram-lhe dirigidas.
- Se ele pode tocar pelas crianças que morrem, também pode acordar os que vivem--dizia, entre dentes, a cambalear.
O frio parecia querer tolhê-lo, mais agreste do que nunca; ele não ignorava, porém, o motivo por que ia ali, naquela noite de Fevereiro. Tremia-dhe todo o corpo, vergavam-se-lhe as pernas da carreira, mas não podia deter-se agora, porque a aldeia lhe rogava que desse o sinal.
"Não sabem como eram os homens do meu tempo? Pois vão sabê-lo agora."
E quando deitou as mãos garanhas do frio à corda do sino julgou-se incapaz de a puxar, tão cansado estava.
89
Uma coruja soltou um pio e fez rufiar as asas por cima dele.
- Maldita - ciciou entre dentes, para vencer o arrepio de medo que o varara.
Esfregou as mãos uma na outra por muito tempo. O coro subia cada vez mais alto e vogava agora sobre toda a aldeia, como a luz do luar que se entornava no céu. "Estavam todos à sua espera e ele que chegara até ali, parecia transido de receio, como um cachopo apavorado pelos lobisomens."
Mordeu os lábios queimados pelo frio, numa indignação de desespero por si, deitou fora o chapéu e atirou-se à corda com as duas mãos, pondo nela o peso do seu corpo. Sentiu a força do sino lá em cima, viu-o dobrar-se na imaginação, e o bronze badalou uma vez, no alto do campanário, desferindo na noite um grito que fez calar todos os ruídos que ali lhe chegavam.
Aquele som deu-lhe forças que parecia não trazer consigo.
Retesou os músculos dos braços cansados e puxou mais uma vez, depois outra, e ainda outra. O esforço fê-lo cambalear por um instante; julgava sentir-se desmaiar e procurou arrimo na parede, encostando-lhe o ombro direito. Mas o braço ficava-lhe tolhido e não podia, só com o esquerdo, mover aquela massa pesada que brilhava lá no cimo, batida pela luz do luar.
"Se pode tocar pelas crianças que morrem, também pode acordar os que vivem", pensava, de novo, para que o desânimo o não vencesse.
Num arranco atirou-se à corda mais uma vez, deixando-se cair com todo o peso do corpo, que veio bater pesadamente nas lajes do adro. O sino vibrou, de novo, no silêncio da noite, espantando mais asas do campanário. Ficara de joelhos e a corda fugia-lhe das mãos, como uma "serpente que amarinhasse no espaço, em procura
90
das estrelas que cintilavam no céu. O frio varava-o e parecia ir tolhê-lo, emperrando4he os movimentos que já mal podia esboçar. Mas a sua vontade não se domara ainda. "Ele saberia o que valiam os homens do seu tempo."
E enrolando nos dedos a ponta da corda, para que não lhe fugisse, girou no chão, apoiado nos joelhos, e deu com ela duas voltas ao corpo. Depois jogou-se para trás com gana e, balanceando-se na corda, como um animal que espinoteasse para se libertar, fez tocar o sino num alarido nervoso. O tO Que a rebate encheu-lhe o coração duma alegria, que lhe apeteceu gritar, para que todos na aldeia não faltassem ao seu apelo. Chorava e ria, arquejante pelo esforço, enquanto o frio se apossava dele e parecia ir adormecê-lo agora, tornando-se de dor lancinante em embriaguez carinhosa. E o seu corpo ia com o som de bronze do sino, pelas quebradas das montanhas, amarinhando todos os cerros e descendo todos os vales, onde houvesse gente a despertar para aquela hora que já era tardia.
- Se pode tocar pelas crianças que morrem, também pode acordar os que vivem - balbuciava ainda, entre dentes, com os olhos a perderem luz, sem saber se das lágrimas que corriam, se daquele sono pesado que o conduzia para um mundo indefinido, onde só chegavam o tanger do sino da igreja e a angústia do povo que o escutava.
Quando ouviram aquela voz arrebatada, calaram-se os cânticos para o céu. E como todos aguardassem aquele sinal para partir, abalaram para a rua, pegando em qualquer coisa que mais estivesse à mão, sem ser necessário ordens de alguém para os conduzir.
91
Pelos quelhos abaixo, de todos os cantos da aldeia, o povo corria, como uma enxurrada rumorosa, capaz de arrastar consigo, em direcção à praça, todos os obstáculos que quisessem tolher-lhe a caminhada.
Na cama, as crianças doentes escutavam o apelo angustioso do sino; e, vendo abalar de casa os homens armados, ficavam a chorar, pedindo que as levassem também naquela jornada. Enrolados em mantas, a arquejar, os velhos corriam atrás, dando-se os braços, numa ajuda, para que todos chegassem ao fim.
Transida de pavor, Helena via-os passar, incapaz de abrir a janela do quarto. Não distinguia uma só pessoa, entre a turba que tinha ali junto dos olhos. Os rostos e os vultos eram confusos, como se a própria noite houvesse gerado todos aqueles fantasmas que marchavam sem gritos, em filas cerradas, armados de **Káuços, mangoais, espingardas, ranholas e machados. A canalha corria à frente, descalça e esfarrapada, a abrir o caminho.
E o rumorejar da gente, o ruído dos socos nas pedras e o respirar daquelas bocas, cujo bafo parecia bater-lhe no rosto, apavoravam-na ainda mais. "Para onde iam?... O que seriam capazes de fazer?..." Recordou-se instintivamente do cão carbonizado naquela tarde.
"Eram eles, porventura, os culpados de tudo aquilo?!... E, se o não eram, quem seria?!...
Um archote passou a arder nas mãos dum rapazelho que sorria deslumbrado para a sua chama. E logo mais e mais apareceram noutras mãos que os agitavam com alvoroço, querendo ameaçar com eles a luz macia do luar que se desfazia nas alturas, num pó branco, suspenso sobre a aldeia.
Surgia gente de todos os cantos e ninguém sabia, por si, o motivo por que saíra nem para onde se dirigia. Mas juntos, em filas, lado a lado, sem trocarem um olhar, todos conheciam o seu destino.
92
Algumas mulheres levavam crianças nos braços, parecendo agitá-las como bandeiras daquele exército sem chefes. E, vendo-as, todos marchavam com decisão, porque era mais por elas do que por ninguém que iam ali, tão capazes agora dum carinho como dum massacre.
O sino tocava já frouxamente, como se fosse a aragem que o tangesse.
Quando chegaram à praça, fizeram roda, tendo no meio os rapazes com os archotes. Esperaram uns instantes, sem gritos nem ameaças, pelos que chegavam ainda por todos os quelhos da aldeia; e abalaram depois, em direcção ao rio, que ficava longe, no sopé da montanha, toda esculpida em sucalcos que o seu sangue criara - alguns mortos agora pela filoxera; outros, com as videiras alerta, mais vivas nas suas contorções, incitavam aquela gente com os braços estendidos, como se compreendessem a batalha empreendida pelos homens para não morrerem ao abandono.
Pelo quelho estreito, onde agora a multidão se apertava, o rumorejar crescia em direcçã o ao Douro - e o declive aumentava-lhe o rugir e a marcha. O ponto do rio, onde muitos rabelos tinham naufragado e os marinheiros se benziam, era, naquela noite, um triste lamento, das águas, sem eco nas faldas dos montes, porque o cobria o bramar daquela torrente humana que avançava sempre, galgando lombas e baixios, em direcção aos armazéns do Jerónimo. A luz dos archotes punha cores sinistras nos rostos que lhe ficavam perto e marcava nas trevas da noite o serpear da multidão, agora mais bulhenta, no meio da qual já cresciam gritos e imprecações.
- Ele é que tem culpa de tudo!
- Ele brinca com a nossa desgraça!
E as vozes esganiçadas das mulheres tinham-se feito num coro, primeiro incontrolado, em gritos de desabafo, para depois acharem um ritmo que ninguém marcava
93
e todos compreendiam, tornando-se numa melopeia bárbara.
-Maldito seja!... Maldito!... Deus se amerceie do povo!...
Com a continuação vinha um cansaço ou esquecimento que tornava os uivos em sussurros da natureza; mas logo um grito mais áspero avivava as bocas, e o coro fazia-se impetuoso e vibrante, enquanto a carreira pelo quelho aumentava de impetuosidade com o despenhar daquele turbilhão de gente.
- Maldito seja!... Maldito!... Deus se amerceie do povo!...
Lá no alto o sino badalava ainda, de vez em quando, como a voz arrebatada de um condutor de multidões. António Teimas balouçava-se na corda, sacolejando o corpo, a espaços, já insensível a quanto o rodeava, embora no cérebro a mesma obsessão lhe chegasse num eco daquela fúria que o levara até ali.
E o povoléu marchava sempre, à luz dos archotes agitados nas mãos irrequietas dos rapazes, para quem essa noite era mais de festa que de vingança. Sorriam-se entre si, de olhos ardentes pelo entusiasmo, envaidecidos por comparticiparem numa aventura de homens. E, quando foram chegados ao terreiro dos armazéns, todos pararam num vago receio daquelas paredes brancas e impenetráveis que lhes apareceram como um abismo, para além do qual morria a vontade humana.
- Deus se amerceie do povo! - continuavam ainda algumas mulheres mais destemidas, mas agora em gritos esparsos, rareando sempre, sem darem ao homem a decisão que eles desejavam reencontrar, entre os despojos dos sentimentos opostos em que se debatiam.
Os que chegavam pelos quelhos queriam entrar também no terreiro e forçavam os das primeiras filas a dar mais alguns passos em frente, embora um retraimento
94
colectivo os amassasse de encontro uns aos outros, confundidos no mesmo receio. Talvez tentassem compreender agora porque tinham chegado até ali, interrogando-se naquela impotência que o vago sussurro da multidão assemelhava ao vento.
Olhos fitos nas portas cerradas, pareciam temer reparar uns nos outros, como se esse encontro pudesse frustrar-lhes a caminhada empreendida. Nenhum deles, porém, achava coragem para sair daquela massa de gente que se confundia com as trevas e a que o clarão dos archotes não dava relevo naquele momento.
O sino também se calara no capelo do monte, onde a aldeia repousava. Sem essa invocação, muitos julgavam ter vindo ali num sonho mau que os arrancara às preces cantadas em louvor a Deus. Se alguém tivesse retrocedido, talvez todos eles voltassem pelo mesmo caminho, abrigando-se, a correr, nos seus cortemos, receosos de que o próprio luar os descobrisse. Mas estavam tolhidos por uma força estranha que os prendia ao terreiro, como se os pés houvessem ganhado raízes no chão enlameado.
- Então?!... - rouquejou uma voz de mulher, alçando o filhito nos braços magros.
A multidão sacudiu-se num instante, parecendo ir cair, de novo, na mesma imobilidade. Um rapazola, porém, correu para a porta e tentou abaná-la com as mãos franzinas. E um uivo soltou-se.
-Maldito seja!... Maldito!... Maldito!...
E a mesma voz de mulher insistiu com uma praga raivosa.
- Peguem-me aqui no rapaz, que vou lá!
-Onde estão os homens?!...-gritou uma velha, cuja carcaça parecia rasgar-se naquela imprecação de escárnio.
Foi nesse momento que o Fontelas avançou com o corpo de gigante até à porta, retirando o rapazola, sem
95
o olhar; e, depois de abrir bem as pernas, para achar maior poder, atirou-se com os ombros sobre a madeira, que rangeu. Un% brado de incitamento cortou a noite; um friso de mulheres colocadas na retaguarda da multidão iniciou uma reza em voz alta.
- Padre Nosso que estais no Céu, santificado seja o Vosso nome...
E os rapazes brandiram os archotes, que se sacudiram na noite, como serpentes de fogo, desvairadas de cobiça.
- Vá!... Vá outra vez!... --clamaram outras vozes.
- Há aqui um machado!
- Com os ombros!... Com os ombros!-pediram outros.
Lá ao fundo, a prece subia ao Céu, onde o luar se sumia agora entre castelos de nuvens invisíveis.
- Salve, Rainha, cheia de graça, o Senhor é convosco. ..
E o Fontelas voltara a arremeter mais duas vezes, fincando os dentes de desespero, auxiliado sempre pelo mesmo coro sinistro que o acicatava num brado uníssono.
- Vá!... Vá agora!... Vá, anda!...
Ele, contudo, receava não ser capaz de derrubar aquele obstáculo que se erguia à sua frente, aturdido pelas vozes da gentalha, com quem compreendia ter estabelecido uma compita de força. Chamava a si todas as energias de que dispunha, querendo aparentar serenidade para dominar os músculos e fazê-los agir no momento preciso - sabia que jogava ali a sua fama de homem mais forte da aldeia. Tinha a impressão de que, se todos se calassem, ele seria capaz, num instante, de escavar aquela madeira, que só rangia ao impulso dos seus ímpetos. Pensou dizer-lhes, mas entendeu também que isso seria, para muitos, uma prova de fraqueza. E ele nã o estava ali para dar glórias aos outros. Já o suor lhe escorria no rosto e as pernas lhe tremiam numa ira cega,
quando o Espanhol avançou também para o ajudar, gingando o corpo seco.
Fontelas voltou-se para o repreender, mas a multidão veio por si.
-Ele sozinho! Deixa-o!...
A melopeia das velhas sarrazinava as mesmas preces.
-O Senhor é convosco... Maria Santíssima... Opão nosso de cada dia...
De mãos apoiadas no mangoal que levava, o Espanhol parou, já perto do companheiro, incitando-o em voz baixa, como se ele próprio jogasse a sua fama.
- Anda, Fontelas!... Mede-a bem ao meio... No sítio da fechadura...
O outro contorceu o tronco, alteando-o depois, e sacudiu a cabeça numa bravata do seu poder. Despiu o casaco num rompante, deu um passo à retaguarda e, quando jogou o corpo, novamente, já levava a certeza de que a derrubaria dessa vez.
- Vá agora!...
E a esse último brado respondeu o estalido seco da madeira com o escancarar da porta por onde logo enfiaram o rapazelho e o Espanhol, seguidos de uma golfada de gente, enquanto o Fontelas ficava um pouco de largo, a limpar o suor e a sorrir, com orgulho nos seus músculos de gigante. Na fúria de todos entrarem ao mesmo tempo, atropelavam-se uns aos outros, entre os gritos de dor dos que caíam; no meio da avalancha, ou os protestos dos mais timoratos, arrastados também no turbilhão que lá dentro se imobilizara pela escassez de espaço onde se movesse. Alguns gritavam agora para que os rapazes e as mulheres saíssem e eles pudessem avançar para destruir aquele antro, onde se fabricava o vinho que os arruinava. Bem poucos, porém, deram ouvidos às intimações. Eles queriam ver tudo e comparticipar nessa tarefa, para que se julgavam arrastados pelas preces das
96
97
velhas, gritando em coro - preces que eram ecos de rebeldias amarfanhadas no sangue.
- Ave Maria, cheia de graça...
- Deus se amerceie do povo!... Maldito!... Maldito
seja!...
De machado em punho, brandido numa alucinação, sobre a cabeça desgrenhada, já sem lenço, uma mulher golpeava o tampo da pipa que lhe ficava mais próxima, enquanto outros a incitavam, repetindo-lhe o nome, numa monotonia de sarrazina. Num repente, uma golfada de vinho jorrou sobre a mulher e fê-la cambalear.
- Bebida de bruxas!
- Este já não nos tira mais trabalho!
Sem se importar consigo, antes regalada com aquele banho morno e avermelhado, a mulher voltou à tarefa, continuando a golpear o tampo, até só ficarem uns cavacos daquele precioso carvalho do Báltico de que o Jeró-nimo tanto blasonava. Á luz dos archotes que se aproximavam, a mulher parecia desfazer-se em borbotões de sangue e sorria, vitoriosa, para os que estavam mais perto, enquanto dois ohomens tentavam apanhar algum líquido, deitando as bocas ao arco de ferro que apertava a ponta das aduelas. O vinho jorrava em golfadas que os cegou por instantes.
- Ainda escoicinha, o filho da mãe - disse um deles a rir, enquanto limpava os cantos dos olhos com os dedos tintos de vinho.
Burlesco, o outro deitou a língua de fora e quis apanhar o melaço que lhe escorria na barba e no bigode. Dois rapazes apontavam-no à gentalha, contorcendo-se em gargalhadas histéricas.
- Morres envenenado, Manel! Não há mezinha que te salve!
Já um grupo, com gritos de arreda, fazia rolar uma pipa para o terreiro, onde as velhas das preces e as
98
mulheres com crianças nos braços formavam um semicírculo. Logo outro lhe seguiu o exemplo, rolando a sua com tamanha rapidez que, junto do rio, não foi possível segurá-la. Apanhada pelo turbilhão, a pipa empinou-se como um cavalo e partiu vertiginosamente, indo desfazer-se, mais adiante, numas fragas ralas que espreitavam das águas. Já o primeiro grupo rebentava a sua, entornando o vinho para o Douro, onde o rumorejar do ponto se confundia com o sussurro das gentes. A tarefa entusiasmou-os e trocaram abraços.
- Esta tem aguardente! - gritou um velho, triunfante, batendo-lhe com a coronha da sua caçadeira. E saltava-lhe à volta, de boca sem dentes, num esgar, provocado pela fadiga que o esforço exigia da sua carcaça faminta.
- Maldito seja!... Maldito!... Maldito!...
Outros vieram ajudar o velho na tarefa, e o vinho espalhou-se na lama, empoçando num rebaixo, até tomar depois o caminho de um pequeno declive que levava ao rio, mais alucinante agora na sua carreira. O velho meteu depois a arma à cara, fazendo rebentar dois cartuchos, cujo som se envolveu na concha dos montes, e ali ficou a repercutir-se, em desdobramento de ecos longos. O friso de mulheres aconchegou-se entre si, num pavor instintivo. De archotes na mão, os rapazes exultaram, pedindo ao velho que fizesse mais fogo. E dentro do armazém a azáfama prosseguia na mesma alucinação, num destempero de gritos, gargalhadas e imprecações.
- Incendeia-se a casa! - lembrou uma voz de mulher.
Logo outros quiseram ir mais além, pedindo que se queimasse tudo.
- Que nem uma cinza aqui fique!
ocheiro do vinho e da aguardente embriagava-os. Cada qual procurava exceder os companheiros em violência
99
e bramidos, como se um poder infernal os tivesse dinamizado até à loucura. Muitos andavam de um lado para o outro, sem destino, em busca de qualquer tarefa que lhes parecesse digna da sua ira demente; mas na hesitação perdiam-se as oportunidades que se lhes deparavam.
- Incendeia-se tudo!
- Nem uma cinza!
- Nem uma sombra de parede! O vozeirão do Fontelas ouviu-se para clamar prudência.
- A casa, não! As telhas podem dar abrigo!
- Tendes medo?!-perguntou-lhe, de longe, uma mulher. - Quem tem medo compra um cão.
E outras mulheres riram-se duma asneirola com que terminou o apupo ao Fontelas.
- Arrenegai-vos! - gritou outra ainda.
Um dos rapazes, incitado por aquela vozearia que se alargara, pegou no seu archote e jogou-o para dentro do armazém, já na esperança de ver tudo aquilo arder perante os seus olhos alucinados.
Um clamor de alegria respondeu ao cair do fogacho; outras vozes suplicaram, porém, que tivessem mão naquilo.
- Fogo é pecado! Deus manda castigar sem lume!
Criaram-se partidos no terreiro--dois homens socaram-se, por momentos, até que o Chico Teimas, fugido de casa quando o sino iniciara o toque de rebate, foi agarrar no archote caído dentro do armazém e veio para o terreiro correr com ele, na mão, às voltas e aos saltos, como se tivesse enlouquecido. As mulheres riram-se do desaforo do rapazola; esse aplauso entusiasmou-o mais, fazendo-o girar numa alucinação que lhe punha a cabeça à roda, tonto de todo, mas cada vez mais vaidoso da façanha. E, no delírio da sua imaginação, rodopiou depois
100
no mesmo sítio, até largar o archote para o rio, caindo, redondo, para o outro lado.
Num instante, como por milagre, as águas incendiaram-se. Um uivo de espanto acolheu o inesperado do espectáculo que o Chico Teimas via sentado no chão, ainda tonto de vertigens. Um clarão vermelho, logo depois amarelo e azul, cresceu nas águas sacudidas. Todos correram à margem para ver melhor, acotovelando-se, em silêncio, tolhidos de espanto, por aquele sinal que algumas mulheres interpretaram como o aviso de um castigo que o Céu mandava.
- Louvado seja Deus!
-Ave Maria, cheia de graça...
E as orações foram gritadas depois em alarido, enquanto a aguardente e o vinho, carregado de álcool, se confundiam no rio, logo tomados pelas chamas, numa torrente de fogo que descia o Douro numa miragem do apocalipse. Era uma fogueira fantástica de muitas cores, cujos revérberos queriam tocar os astros e os homens iam alimentando sempre com mais pipas. Uma delas, antes que lhe quebrassem o tampo, foi atingida pelo fogo.
- Fujam, que vai rebentar! - gritou uma voz, em aviso dramático.
E, pelo quelho acima, a multidão correu, em debandada, atropelando-se com receio da explosão.
Um estampido seco e forte estalou na margem - o seu eco foi apagar-se nas montanhas distantes, depois de se repetir, mais de uma vez, em muitos vales que o decoraram por instantes. As chamas consumiram a pipa, num momento, correndo para o rio, onde se juntaram às outras, numa estrada de fogo. Como se levasse sangue, em explosões de lume, a torrente luminosa alargava-se cada vez mais, lambendo, com os seus clarões de muitas cores, os geios das encostas e as trevas do céu. A multidão
101
deslumbrava-se e tinha medo daquele milagre feito pelas suas mãos - só os rapazes continuavam exuberantes, jogando os seus archotes ao rio, como se pudessem incendiá-lo ainda mais e aumentar a grandiosidade daquele espectáculo sinistro e belo, pleno de contrastes de luz e trevas.
- Deus se amerceie do povo! - sussurravam as velhas em pranto.
Os revérberos da torrente encharcavam de vermelho a populaça comprimida no quelho. E logo num silêncio de terror assistiam ao desdobrar das chamas que corriam numa galeira, mais abaixo, avantajando-se em mil coloridos, onde predominavam o amarelo, o vermelho e o alaranjado, batidos, a espaços, por sombras fugazes de violeta e azul que volitavam por entre o corpo gigantesco daquela enorme serpente de fogo, caminhando sempre, num aviso de cor e lume. Espavoridos ficaram os povos das outras aldeias que viram passar o Douro incendiado, julgando que o mundo ia acabar.
Morrendo depois aos poucos, na curva pronunciada de um promontório, as flamas galgavam distâncias, projectando-se no firmamento, acastelado de nuvens, onde espasmos de relâmpagos morriam nas trevas.
Então a gentalha debandou pelo carreiro, levando nos olhos a imagem daquele vulcão e indo acolher-se aos pés dos seus santos, a rezar orações.
-oLouvado seja Deus!
- Padre (Nosso que estais no Céu, bendito seja o Vosso nome...
102

A TEIA
I
Jerónimo foi à Pesqueira.
-À Pesqueira?...
Fez a interrogação distraído, como se o facto lhe pudesse parecer estranho, embora já esperasse aquela notícia - nunca duvidara de que o outro deixasse de mover as suas influências, junto dos politiqueiros daquela terra odiada, da qual chegavam os abusos do fisco e as intrigas eleitorais. Caminhou até junto da janela, evitando olhar a cama, onde o pai continuava adormecido, no mesmo sono pesado em que caíra depois que o Chasco o trouxera na noite anterior.
- Diz que foi a cavalo e levava a espingarda - insistiu a cunhada, enquanto aconchegava a coberta para o peito do velho.
- Ora!...
Respondeu com desprendimento, mas enfiou os polegares nas covas do colete, pondo-se a tamborilar o peito com os dedos, num nervosismo só denunciado pelas contracções do rosto.
- O pior é se o Chasco com a bebida... dá por aí à língua - volveu ainda a Gracinda, para quem a indiferença de Francisco não lograva efeito.
105
- Pois que dê, com um raio! - disse num grito destemperado, já incapaz de se dominar. - Que nos levem a todos para a cadeia, é o que precisamos há muito tempo.
Queria estar sozinho, a remoer as suas culpas naquele desvario provocado pelo pai com o toque do sino; mas quando a porta bateu, anunciando-lhe que a cunhada saíra do quarto, zangada, por certo, com a sua resposta, sentiu um grande vazio na alma, e um primeiro impulso aconselhou-o a segui-la para lhe pedir desculpa.
Gracinda!- ciciou ainda, embora convencido de que ela o não ouviria.
Esse sinal de arrependimento trouxe-lhe, porém, alguma calma, mesmo para o íntimo debate que toda a noite o consumira junto do velho, ao recordar a discussão e os antecedentes do assalto ao armazém.
"Mais tarde ou mais cedo tudo se viria a saber; e o pai pagaria na cadeia da Pesqueira aquele desaforo de provocar o povo. Seria a vergonha do nome e, pior do que isso, a certeza de que os comissários se concertariam para lhe não comprarem o vinho. Iriam enganá-lo ainda mais, obrigando-o a entregar a novidade a outros, para que o vendessem, e nisso iria uma parte do dinheiro, ou a ceder as terras, abalando dali. Talvez fosse uma solução... O pior é que o velho não aguentaria a cadeia, se antes não morresse com o resfriamento da noite."
Olhou o pai, numa instintiva aversão, compreendendo que para si já acabara de há muito o afecto que liga pais e filhos. A recordação da mãe, sacrificada à teimosia do marido, humilde e paciente, até essa manhã em que fora encontrada morta, ainda serena, suspensa daquela corda à trave grande do outro quarto, entrepunha-se sempre entre eles.
Encheram-se-lhe os olhos de lágrimas com a invocação. A hostilidade pelo pai cresceu mais ainda, entendendo
106
melhor agora por que motivo eram tão frequentes as suas discussões. No fundo de si, bem escondida, essa lembrança estava sempre presente e sempre pronta a intervir nas suas relações. A imagem da mãe surgia-lhe nos olhos e via-a naquele canto do quarto, com os dois irmãos mortos no regaço, lívida, resignada...
Desesperado, levou as mãos à testa, premindo os temporais, como se pudesse desfazer a recordação. Sacudiu a cabeça e passeou mais agitado, a dominar um soluço que lhe tomava a garganta. Essas imagens, porém, não lhe saíam da memória. E com elas a sua própria angústia de fome, quando ao Alto Douro nada chegava, e ele corria a aldeia e os campos, com os outros rapazes, em busca de qualquer coisa que pudesse comer.
"António!... Vamos embora com os meninos", rogava a mãe, num fio de voz muito manso.
Ela sabia que já não era possível continuar. E o pai, cada vez mais endurecido, a persistir sempre, surdo a todas as súplicas e cego para todas as verdades. "Hei-de ser o último a sair daqui. E para abalar será preciso que a terra se acabe. Embora para onde?!"
E ficaram. E tinham morrido os dois irmãos... Como se lembrava de tudo! Fora o pai quem fizera o caixão a ambos, muito calado, com a ruga grande da testa mais funda ainda, mas sem uma lágrima. A um canto do quinteiro, no sítio onde hoje estava o casinhoto dos podengos, ele chorara pelos dois meninos agarrado ao Douro, um canzarrão feroz que só tinha alegrias para a gente da casa.
Depois disso a mãe ficara insensível a tudo o que a rodeava. Não falava; parecia até que os seus olhos já não viam... E quando o afagava, repetia o nome dos irmãos, muito baixinho, como se tivesse receio que o marido a ouvisse. Na véspera dessa manhã fora à sua cama e falara-lhe mais do que era hábito. "Nunca deixes
107
de ser amigo do teu pai. Tudo o que ele faz é para nosso bem... É, sim, tu hás-de compreender isso mais tarde. Quando te lembrares, reza por mim nas tuas orações..."
Ele não a compreendera, embora aquelas palavras o tivessem deixado mais triste do que os dias sem comer. "Dorme, anda. E não penses mal de mim." Na outra manhã, um grito do pai acordara-o. Não era grito de homem, mas um uivo de lobo ferido a zagalotes. E os seus soluços pareciam ganidos de quem não sabia chorar.
O velho agitou-se na cama, resfolegando com ruído; moveu a cabeça com frenesi, embrulhando algumas palavras nos lábios, e ficou depois na mesma modorra. Instintivamente, aproximou-se-lhe, pegando na mão que ficara a descoberto, e apertou-lhe os dedos com violência, como se quisesse vingar-se das recordações dolorosas que lhe tomavam a memória.
A voz da cunhada ouviu-se em baixo, na cozinha. Pensou nela por alguns momentos, sentindo que também isso lhe desagradava. "Era preciso acabar com essa ideia de uma vez para sempre. Se o pai morresse..."
A hipótese deixou-o indeciso, sem se perceber. Não sabia se isso lhe agradava agora ou se seria pior ainda.
"Mas ele não aguentaria a cadeia no estado em que ficara. E se teria de passar a vergonha de atravessar a aldeia debaixo de prisão, para morrer na Pesqueira, bem podia Deus levá-lo agora, antes que se soubesse tudo. As terras seriam suas para as vender quando lhe aprouvesse, e iria vendê-las o mais depressa possível. Fugiria dali com os filhos..."
No fundo de si, porém, havia uma força que lhe negava apoio para esse projecto. Desejava a cunhada e, embora percebesse que não podia fazer dela sua mulher, sabia-se incapaz de a deixar, antes que a esperança mais frouxa se desfizesse também. Indignava-o aquela fraqueza de homem, perante uma fêmea magra, um pedaço de
108
tábua, quando sempre gostara de mulheres carnudas e baixas.
Estava cansado de tudo e de todos, sem ânimo para reagir. Parecia-lhe que não era mais de que uma coisa qualquer a boiar na vida, como um desses despojos arrastados pelas cheias do Douro, nas invernias mais ásperas. "Não vendera o vinho, talvez por sua causa. Não se mexera, como devia, procurando compradores no Pinhão ou na Régua, porque amigos lhe não faltavam. Mas aquele grito que lhe dera poderia ser o primeiro aviso de que lhe iria passar essa doença estranha... Arranjaria mulher para lhe tratar da casa e dos filhos... Não lhe faltavam na aldeia raparigas que o quisessem. E mais ao seu gosto do que aquela lagartixa de olhos inquietos, que pareciam incapazes de se fixar em qualquer coisa..."
A recordação dos seus olhos desviou-lhe, porém, a linha do pensamento.
"Eram eles que o perturbavam. Esse olhar que, quando o tocava, parecia entrar-lhe nas veias e percorrê-las com o pecado de a querer para si. E a (boca também... Mais talvez a boca. Se a beijasse uma vez, uma vez só, estava certo de que a esqueceria depois. Era uma boca húmida, atrevida..."
Mastigou um palavrão entre dentes, indo novamente para junto da janela. O céu era de chumbo naquele dia e o seu peso sufocava a aldeia em abraços de morte. As nuvens baixas cortavam os cumes do horizonte e desciam ainda, como se quisessem confundir-se com a terra.
Ninguém saía dos cortelhos. Todas receavam encontrar-se, porque sabiam que naquele dia sombrio só seriam capazes de falar no assalto. As ruelas estavam desertas. Os cães e os recos andavam por onde queriam, e nem os rapazelhos vinham procurar a sua camaradagem. Alguns tinham ido para a escola, muito recomendados para não
109
falarem no que se passara. Todos sabiam de tudo, mas desconfiavam uns dos outros, como se a aldeia em peso os pudesse acusar dessa culpa.
Francisco olhava por detrás da cortina, pensando ainda na cunhada. "Era preciso resolver aquela situação e depressa. Logo que o pai melhorasse ou morresse..."
Voltou-se para o velho e agarrou-lhe novamente na mão. Achou-a trémula e continuava fria, embora se sentisse que o corpo vivia ainda, na respiração ofegante do peito e na agitação da cabeça. "Talvez sofresse os remorsos da morte da mulher e dos filhos. Ele não era insensível a isso, com certeza."
E quis encontrar para ele aquela compreensão que a mãe lhe pedira na véspera de se enforcar. "Não, não era possível. Fora sempre um seco... Fazia dele um cachopo, ainda agora, mesmo à frente dos filhos e da cunhada. Contrariava-o em tudo, só ele queria perceber dos amanhos da terra e dos preços do vinho. Era preciso não lhe perdoar. Isso seria mais uma fraqueza sua e estava farto de se submeter à vontade do pai. A partir daquele momento precisava de olhar mais por si, não encontrando desculpas para as faltas dos outros. Teria de falar com a cunhada e pôr tudo a claro. Afastá-la de casa, arranjar companheira..."
O ruído de socos nas pedras do quelho alarmou-o. Ficou inquieto, mas hirto, à espera de que a ameaça se aproximasse ou desaparecesse através do silêncio pesado da aldeia recolhida em angústia. Levou a mão aos olhos, como se quisesse apagar as más recordações que tinham decorado, e quando voltou a si já o ruído desaparecera.
Em voz baixa, passeando novamente, começou a compor na imaginação tudo o que lhe devia dizer.
"Olha, Gracinda. Devo-te favores... Tens sido a mulher da casa e pelos meus filhos agradeço-te o que fizeste."
110
Hesitou, porém, no seguimento da conversa. "Como podia dizer-lhe que não voltasse sem lhe falar dos seus propósitos?!... Não tinha cara para a mandar embora de qualquer maneira, sem uma desculpa... E que desculpa?!..."
Nesse instante começou a ouvir-se o toque do sino para a missa. A primeira badalada soou-lhe ao coração, deixando-lhe o peito opresso, numa vaga de pavor que não conseguia dominar. A ele, como a toda a aldeia, voltava a lembrança do apelo dramático que levara o povo ao desvairamento. E o Douro caminhava em chamas, alucinado na galeira, assombrando de espanto os seus olhos, outra vez atingidos pela mancha vermelha que lambia as montanhas e as trevas do céu, numa invocação trazida pelo tanger compassado do sino.
Era agora o medo que respondia àquele apelo, enquanto o padre Augusto, já paramentado, na sacristia, lhes aguardava a chegada, para fazer o seu sermão de reprimendas. Raros eram, porém, os que abandonavam a casa.
"O Jerónimo foi à Pesqueira", pensavam todos. "A quem iam agora pedir contas?!... A quem?!..."
Francisco deixou-se cair junto da cama, encostando o rosto à mão trémula e fria do pai, num instintivo carinho. Depois ergueu a cabeça e o velho sorria, ciciando palavras que ele não era capaz de entender.
- Se pode tocar pelas crianças que morrem, também pode acordar os que vivem.
E voltará depois à mesma modorra, agitando só os braços. (Na sua inconsciência, o velho Teimas via-se, novamente, agarrado à corda do sino, puxando-a a si, à força dos solavancos do corpo, até que as forças se lhe esvaíram e nada mais sabia recordar.
A porta do quarto abriu-se; aturdido, Francisco ergueu-se num repelão. O Chico entrou com passadas cautelosas,
111
vaidoso por se ver metido naquele segredo, e bichanou ao ouvido do pai que a Chandarca estava lá em baixo com a tia.
- Ela desconfiou?...
- Não senhor. Disse-lhe que desde ontem à tarde o avô ficou assim.
Francisco acenou a cabeça para o filho, dando-lhe uma palmada no ombro que fez sorrir o rapazola.
- A tua tia está zangada?... - perguntou ainda, sem poder evitar a preocupação.
- Parece que sim. Tem uma cara...
Mas o rapaz não adiantou mais. Só queria falar no assalto e na ida do Jerónimo à Pesqueira que a Chandarca lhe contara. E via-se com o seu archote aceso na mão, entre filas cerradas de povo, a caminhar pêlos quelhos em direcção ao rio. E a água em fogo... Fora ele quem provocara aquilo. Sentia-se orgulhoso de ter ocasionado a coisa mais linda, a que se assistira naquele povo. Se eles soubessem... Viriam buscá-lo para o meter na cadeia e sonhava a prisão que nunca vira.
- O Jerónimo foi logo de madrugada e diz que prometeu à Senhora da Ribeira uma vela do seu tamanho...
- Deixa lá.
O Chico, porém, não se podia conter. -O avô tocou ao sino e eu, pai... (e baixando a voz) fui eu que deitei o fogo à água.
- Cala-te aí, rapaz - bramou fora de si. - A Chandarca que suba.
O Chico desapareceu, a pensar no rio em chamas. E para ele não tinham sido a aguardente e o vinho que se haviam incendiado; mas a água, a água do rio que apagava fogueiras, e se tornara, pelas suas mãos, numa fogueira enorme capaz de abrasar todas as montanhas do Douro.
112
Debruçou-se, a sorrir, no corrimão de escada e fez sinal à Chandarca; a velha pegou nas ferramentas do seu ofício de bruxa e começou a subir a escada. Com a pequenita nos braços, a tia pôs-se a passeá-la, cantarolando em voz baixa. Estava ainda ofendida com o cunhado e iria pedir-lhe explicações, logo que a velha fizesse as rezas e saísse.
- Traz o fogareiro, anda -disse a Chandarca quando passou junto do rapaz.
- Eu levo, deixa-gritou-lhe a tia, de baixo. - Vem cá pegar na tua irmã.
-Eu?!...-perguntou, alarmado com o desgosto de perder a benzedura. - Porque não a dá ao Luís? Ele está em casa do Fatinário.
O pai avançou para ele, enquanto a Chandarca se aproximou da cama do velho, para o mirar a preceito. - Vai tu e não dês sentenças.
Abalando pela escada abaixo, a resmungar, o Chico submeteu-se; mas quando chegou junto da tia gritou ostensivamente, estendendo os braços: "Dê cá essa coisa!" E sentou-se numa cadeira com vontade de atirar a irmã para o quinteiro. O olhar do pai, lá de cima, vigiava-o - acalmou-se contrariado. Viu a tia partir com o fogareiro, a porta fechar-se e nada mais.
Depois de mexer nas mãos do velho Teimas e de lhe passar os dedos pela testa, a Chandarca pôs a frigideira ao lume com três seixos muito polidos que procurara no rio, e a que chamava coriscos, dizendo-os caídos do céu, numa trovoada de Março. Tirou uma ferradura da algibeira do avental e pô-la também junto das pedras.
- Arranja-me aí uma camisola do António -disse para Gracinda.
Voltando-se depois para o Francisco, que lhe seguia todos os movimentos, indagou se lhe tinham voltado as sezões.
113
- Agora não...
A sorrir e a menear a cabeça, a velha falou nas virtudes do "rudo", do "fêmeo da arruda", como chamava, na sua linguagem, à erva-santa que ela própria ia buscar a Garlão.
- É remediozinho do Céu. Benzedura minha e fome de mulher por quinze dias botam fora as sezões mais rabeldas.
Francisco fitou instintivamente a cunhada com aquela alusão da Chandarca que lhe aviva desejos. A Gracinda, porém, recusou-lhe o seu olhar, entregando a camisola que a velha pôs no regaço.
-Ainda sou precisa?...
- Podes ficar - disse Francisco, emocionado.
A Chandarca agarrou, então, numa garrafa e despejou dentro da frigideira o seu conteúdo de vinagre. Uma grande fumarada se levantou, enquanto a bruxa passava por ela a camisola do velho e bichanava a sua prece, com os olhos postos no tecto, como se dali pudessem atingir a benevolência do Céu.
Deus te fez
Deus te criou
Jesus tire o mal
Que no teu corpo entrou...
Onde está Jesus
Não entra mal nenhum.
Santo Nome de Jesus
Por Deus e Maria Santíssima
Santa Sagrada,
permita a melhorar-te...
Arde vivo, arde morto,
Sai o mal que entrou no teu corpo.
114
E, logo que acabou, recolheu a camisola no regaço e meteu-a depois junto do seio. Tocou a testa e as mãos do doente e disse ainda, de olhos cerrados.
- Está malzinho, está. Mas agora levo a camisola e seis vezes em cada três dias lhe faço a reza.
- Não será melhor vir aqui? - perguntou Francisco, a esfregar os olhos, que lhe ardiam com o fumo.
- É o mesmo. A camisola é o corpo do teu pai. E, se não melhorar, posso chumbá-lo...
Francisco entregou uma moeda à Chandarca e insistiu. - Se é pelo dinheiro...
- É o mesmo, homem. Se com isto e a chumbada não arribar, é porque Deus precisa dele lá em cima.
Compôs o seu ferramental e abalou acompanhada pela Gracinda. A meio da escada, porém, chamou o Francisco para lhe dizer que esperava não a terem enganado.
- Enganado, Chandarca?...
- Sim, pois. Que o teu pai não agarrasse a doença nessa pouca-vergonha da noite passada. Porque, então, até Deus me rachava com ele, por ter vindo aqui ajudar um pecador.
- Vossemecê já nos conhece há muito - gaguejou Francisco, apavorado.
- Conheço, sim. Mas eu sei lá... - E numa decisão: - O Jerónimo não tarda e tenho de saber o que tratou na Pesqueira. Vai ser o bom e o bonito. Costa de África para os que levaram o povo a essa pouca-vergonha.
- Então lá vai o Jerónimo, com certeza - disse Francisco, querendo gracejar ainda.
A Chandarca cuspiu de nojo, abalando a arrastar os pés descalços no lamaçal do quinteiro. Foi então que a Maria Dolorosa lhes entrou a chorar pela porta dentro, contando que o pai fugira naquele mesmo instante, pois o cabo-de-ordens fora-o avisar de que tinha mandado de captura para ele.
115
Todos ficaram aturdidos com a notícia.
Soluçando, encostada ao ombro da Gracinda, Maria Dolorosa repetia inconscientemente a interrogação que a esmagava: o que vai ser de mim?... E agora?!... O Que vai ser de mim agora?!..."

II
Albano Freitas, sentindo que depois do assassínio do rei a política nacional iria mudar de rumo, entendeu aproveitar aquele acontecimento para ganhar prestígio junto dos chefes do novo partido em que ia fazer a sua filiação. O franquismo estava morto por agora e não se sentia capaz de permanecer na expectativa, até que os ventos mudassem. Como futuro deputado de um dos círculos da região vinhateira, ser-lhe-ia fácil defender a sua curta passagem pelo partido franquista se, porventura, algum ataque lhe viesse, por esse facto, de qualquer dos deputados opositores.
Estudara já a resposta exacta que daria na Câmara. Pensara-a maduramente, durante muitos dias, e estava certo de que ficaria nos anais da assembleia, como um dos mais brilhantes improvisos ali escutados, tão digno de José Maria de Alpoim, como de João Arroio ou de António Cândido.
"Engana-se V. Ex.a, Sr. Deputado. (Fazia questão na conduta polida dos seus discursos.) Não fui por João Franco, fui sempre pelo Douro. Por esse Douro a que ele deu a região demarcada, criando, de novo, as mesmas prerrogativas de Pombal à verdadeira marca da Nação, em vinhos generosos. Estive com João Franco, como
116
hoje aqui relembro, comovidamente... a figura do Marquês. Os homens, para mim, só merecem apoio e admiração enquanto servirem os ideais da justiça que nobilitam a resolução dos grandes problemas nacionais. O meu chefe de partido é o Douro. O Douro nada tem com a Lei de 13 de Fevereiro nem com a de 31 de Janeiro de 1908, que levaram a essa tragédia que amarfanha os nossos corações..."
Em linhas gerais seria aquela a sua resposta espontânea aos possíveis agravos que lhe quisessem fazer. Precisava ainda de trabalhá-la com adjectivos, principalmente quando se referisse à região de que desejava ser um dos devotados paladinos.
Com esse mesmo propósito, expusera ao velho Freitas o seu plano em relação ao assalto do armazém no Alto Douro, e, depois de obter a sua adesão e o dinheiro para as despesas, partira para a Régua, em busca de D. Fernando PimenteL. sabendo que o fidalgo estava com o filho mais velho, na Quinta do Loureiro, em visita às propriedades, um tanto comprometidas com os seus destemperos de vida faustosa. Levantava-se-lhe só um problema - o de evitar que a Helenazinha, aquele seu namorico musical, como ironicamente lhe chamava, lho não quisesse recordar, quando tivesse conhecimento da sua presença na quinta.
Depois daquela estafante viagem não lhe desagradariam, bem entendido, algumas horas com ela, em amena palestra e junto de um bom piano. Mas ele agora trocara os devaneios artísticos pela sua carreira política, e era disso, em exclusivo, que desejava tratar naquela visita ao Douro, para bem dos seus futuros eleitores, como afirmara ao pai, no escritório de Gaia. Depois, a rapariga era filha duma modesta professora primária e não o abonariam muito certas públicas intimidades com gente doutra condição, em especial num dos seus prováveis círculos
117
de deputado, e ainda por cima à vista do fidalgo, em relação ao qual tinha já arquitectado alguns projectos, depois que o velho Freitas entrara na sua roda, por via dumas largas hipotecas transaccionadas.
Isso mesmo lhe facultara a possibilidade de arrastar D. Fernando à Quinta Alta, para aquela entrevista com a gente mais grada da aldeia, a fim de se resolver o problema que o assalto levantara. Havia alguns homens na cadeia da Pesqueira, outros tinham fugido, e o ambiente carregava-se, com certo risco para a paz da região, já um tanto aberta à influência republicana, o facto de um dos assassinos do Terreiro do Paço, o Manuel Buíça, ser de uma aldeia de Trás-os-Montes, do concelho de Val-paços, poderia também transformar-se num mau exemplo para aquela gente violenta, onde em cada cortelho havia, pelo menos, uma espingarda.
Foram esses os argumentos empregados pelo Dr. Freitas junto do fidalgo, além da persuasão natural que lhe concedia o facto de ser filho de um credor respeitável da Casa Grande.
Tinham-se reunido todos no escritório de D. Fernando, onde as recordações de família tornavam ainda mais grave o ambiente que a mobília de nogueira, em estilo inglês, já dava ao aposento. Dois retratos grandes, em moldura dourada, dominavam todos os pormenores: eram do velho fidalgo, D. Miguel, e de sua esposa, a cantora italiana, por quem abandonara o lugar de camareiro do
Paço.
Enquanto esperavam a chegada do médico da aldeia, o Dr. Pimenta, a conversa vogou da política para a anedota, da intriga da corte para a aventura de mulheres. O abade procurara um dos fauteuils perto da secretária, enquanto o Jerónimo, envaidecido pela honra do convite, mas embaraçado com o ambiente, preferira uma das cadeiras, onde se comprimia, num subjectivo propósito
118
de tomar pouco espaço com o corpo anafado. A vermelhidão do rosto marcava-lhe melhor os sinais do desastre que o desfigurara, tornando-o sempre sombrio e um tanto hostil para toda a gente. Estava, porém, encantado com o Dr. Freitas, cujo pai conhecia de alguns negócios de vinho. Deslumbrava-o a sua figura insinuante, o mover cuidado das mãos e até o monóculo, que, noutro homem, sempre lhe provocara hostilidade.
Albano Freitas postara-se à sua frente, de pé, como convinha para melhor o dominar, sabendo que da impressão por ele causada ao comerciante muito dependeria o êxito do seu propósito. O abade, o médico e até o fidalgo seriam meras figuras de decoração para aquele combate de diplomacia, já facilitado pelos objectivos de cada um, embora ambos ignorassem os pensamentos do outro.
Respeitosamente, junto da porta, o administrador da quinta saboreava um cálice de vinho da famosa colheita de 1834, um tanto ausente de tudo aquilo, porque escrevera nesse dia à professora a pedir-lhe uma entrevista. Iria agora resolver a sua vida e estava quase certo de que nada o impedia de ser feliz. Sorrindo de vez em quando para o abade, pensava na maneira mais hábil de conduzir a conversa, pois dela poderia depender muito dos seus dias futuros.
Sentado à secretária, mais preocupado no castigo que ia dar ao filho do que nos resultados daquela reunião, D. Fernando olhava a fotografia da mãe, majestosa na sua beleza, invocando essa maravilhosa aventura que levara seu pai a percorrer a Europa, na perseguição da companhia lírica de que fazia parte, até que a conseguira raptar do teatro de Berlim numa noite em que devia cantar a Aida. "Ainda hoje teriam a conversa... O temperamento do filho devia ser uma herança da avó. Vivia para a música; fora dela só fazia disparates. Se ainda fossem como os seus!... Mas havia nele uma tendência
119
para o reles que o confrangia. Viera-lhe, certamente, nesse sangue desconhecido da cantora italiana, uma linda mulher que fizera sucesso entre os homens e escândalo no meio das mulheres."
A voz do Dr. Pimenta, porém, chamou todos à realidade daquela reunião. Depois dos cumprimentos e de mais um cálice de vinho, D. Fernando apresentou o Dr. Freitas, "como um dos mais talentosos homens de amanhã, devotado ao Douro por laços de família e pelo superior imperativo do coração que fazia de todos os presentes, abnegados defensores dos mais sublimes interesses durienses. Esperava, pois que lhe dessem o seu apoio incondicional."
E, satisfeito da forma desembaraçada como se saíra daquela missão, imposta pela sua qualidade de dono da casa, voltou-se para o Dr. Freitas, num sorriso de afectuosa simpatia, e, com um cerrar de olhos, convidou-o a expor o motivo da reunião.
o abade empertigou-se um pouco no almofadado comprometedor do estofo que começava a convidá-lo para uma soneca, enquanto o Dr. Pimenta, pigarreando com ruído, talvez por antipatia para com o filho do exportador, enrolava um cigarro distraído e o Jerónimo se ajeitava na cadeira, que parecia mirrar-se e gemer sobre o seu peso.
- Os últimos acontecimentos no País - começou Al-bano Freitas, depois de dar volta ao monóculo entre os dedos - indicam que a alma da Nação está enferma desse gravíssimo mal que os enciclopedistas franceses legaram ao mundo.
O seu olhar arguto percorreu os circunstantes, logo notando um sorriso de troça no rosto do médico, que, de perna cruzada e cálice de vinho na mão, parecia ali colado como a facção oposicionista da Câmara que desejava enfrentar, já talvez na próxima consulta eleitoral.
120
Por isso mesmo encaixou o monóculo, franzindo o sobrolho, numa atitude de desassombrada provocação.
- O assassínio do nosso Augusto Soberano e do Príncipe Real, os atentados bombistas, os discursos e intrigas dos deputados republicanos, a violência de que foi vítima, aqui mesmo, no nosso Douro, este amigo, ilustre a todos os títulos, e cuja convivência nos honra, mostra bem que a hidra da dissolução dos costumes e da ordem não escolhe meios para atingir os seus fins.
- Muito bem, doutor, é assim mesmo - interveio o abade Augusto com fingido entusiasmo.
Confundido pelo elogio, o Jerónimo cruzou as mãos no ventre rotundo, e refreava com esforço a respiração, como se a temesse capaz de fazer perder alguma das palavras do Dr. Albano Freitas. Este, depois de ler a declaração confidencial dos Partidos Regenerador e Progressista, em que se propunham estabelecer uma frente comum contra os republicanos, falou na necessidade de se criar em todo o país o mesmo movimento de unidade que substituiria a ditadura franquista, por uma forma mais constitucional e ainda mais forte, contra quaisquer influências dos inimigos da Coroa, que eram também inimigos da Nação, uma vez que ambas estavam confundidas na pessoa do novo rei.
Ele só tinha um propósito, vindo ali com grave sacrifício da sua vida forense e do amparo que devia à casa exportadora de seu pai: trabalhar pela monarquia e pelo Douro.
- E se, efectivamente - reforçou com veemência -, é preciso não poupar os inimigos declarados, há necessidade, por outro lado, de fazer a paz com aqueles que não poderemos deixar cair nas mãos da maçonaria ou dos anarquistas. Desejo referir-me, como exemplo, aos homens que estão retidos na cadeia da Pesqueira.
121
Bem de frente para o Jerónimo, Albano Freitas continuou, sem desmanchar a sobranceria da expressão e o floreado das mãos eloquentes de gestos:
- Esses já pagaram o que deviam. E se, porventura, alguma manobra existe por detrás deles, combatamo-la, servindo-nos deles próprios. O exemplo do cristianismo, de que o nosso abade é aqui um ilustre representante, manda perdoar sempre. Eu peço que não se conceda tanto; perdoe-se quando isso seja em proveito da nobre causa que julgo pertencer a todos nós. Com a sua influência, este nosso amigo dará como arrumado o caso que lhe respeita, atirando-se as culpas para cima dos que fugiram. É uma maneira de perdoar, sem ofender a justiça. E se puder comprar vinhos, compre-os. O Douro lhe saberá agradecer mais esse sacrifício que parece atingir a sua dignidade, mas que só a nobilita. Precisamos de paz com muitos, para fazermos guerra de morte a alguns.
E, depois de tirar o monóculo, passou com os dedos pela órbita, num gesto muito seu, e sorriu-se para o Jerónimo e para o abade, fazendo em seguida uma vénia a D. Fernando.
- É o que tinha para lhes dizer. Basta-me ouvi-los agora, com a certeza de que tudo resolveremos pela maneira mais consentânea com os altos interesses durienses e nacionais.
Um silêncio ficou no gabinete durante alguns momentos. Como se abandonasse a tribuna da Câmara, o Dr. Albano atravessou a curta distância que o separava de um fauteuil e deixou-se cair sobre o estofo, verdadeiramente satisfeito consigo. Compreendia mais uma vez que as suas esperanças eram bem fundadas. No conjunto, os presentes exprimiam as várias classes sociais que valia a pena convencer. Faltava o povo, mas esse não era mais do que um elemento da paisagem portuguesa. E quando lhe ocorreu esta definição, teve pena de a não poder reproduzir
122
em voz alta, porque ficaria, certamente, como uma das mais inteligentes expressões da oratória parlamentar.
- Então?!... Que nos diz o doutor?... - resolveu-se a perguntar ao médico, desafiando de frente o seu sorriso de zombaria.
O Dr. Pimenta, ajeitando as lunetas com aquele mesmo ar frio que todos lhe conheciam, mas que escondia um temperamento exaltado e simples, ergueu-se com lentidão e começou a preparar um novo cigarro.
- Digo-lhe sinceramente... que sou leigo na matéria. Mas parece-me que se todos cumprissem as suas obrigações, como esta gente cumpre as suas - e não são das mais fáceis -, as coisas resolver-se-iam por bem e sem recorrermos a complicações que não existem.
•- São uns selvagens, digo-lhe eu - espirrou, indignado, o Jerónimo.
- Eu não tenho a mesma opinião. Senhores do seu nariz e independentes, como os que o sabem ser, isso é verdade. Mas deles só favores tenho recebido, depois que vim para aqui. E de tal modo que, tendo possibilidades de fazer clínica em Alijó, ou mesmo na Régua, deixo-me ficar porque muito lhes devo...
- Ainda por cima? - interveio o abade, com um sorriso largo. - Você medica-os de graça e ainda paga remédios a alguns...
- Exagera, padre Augusto. Recebo de muitos o suficiente para viver e suprir à família. Mas até os que parece não me pagarem o fazem bem à larga. A melhor pita que criam, lá ma levam a casa... É uma fortuna para eles!
- Tem mais sorte do que eu, porque as côngruas andam sempre atrasadas. Você tem-lhes o corpo nas unhas...
- E o abade a alma. Mas olhe que isto que se deu é mais culpa sua do que minha. O pastor do rebanho
123
é você - retorquiu o Dr. Pimenta, dando uma palmada no ombro do padre. E voltando à sua:
- Comprem-lhes o vinho, paguem-lho com jeito e o resto... é uma história.
- Assim me parece -concordou o fidalgo, já cansado da conversa. -O Dr. Freitas pôs o problema com toda a clareza e com um largo espírito progressivo.
- Não quer dizer progressista, pois não? - interveio o abade com vivacidade, numa denúncia da sua simpatia pelos regeneradores.
- E é preciso saber se progressista mesmo, se dos dissidentes do Alpoim - retorquiu o fidalgo, cofiando a sua barba bem tratada, onde alguns cabelos brancos lhe davam um ar respeitável, um tanto desmentido pelo seu sorriso amarrotado.
- Lá o seu chefe, o Hintze, é que é uma boa prenda - gracejou o Dr. Pimenta para o abade. - Uma grande prenda!...
- A paz na família monárquica vai fazer-se - asseverou Albano Freitas. - E é preciso que se faça. Da atitude do nosso amigo Jerónimo... Jerónimo Soares, em muito ela dependerá no que respeita ao Douro.
- Então tem a palavra o Jerónimo -disse o padre Augusto, esvaziando outro cálice que o administrador lhe enchera, voltando depois ao seu lugar com a mesma recatada modéstia.
Seriamente confundido, o comerciante abanou o corpo, como se precisasse chocalhá-lo, para que as palavras lhe aparecessem. Voltou-se para o Dr. Freitas e, encolhendo os ombros, fez um gesto de submissão.
- Mas fale, homem - insistia o abade, a sorrir. - Se fosse alguma raparigola...
- Oh, padre Augusto!...
124
- Não me tome esse ar de santo, que lhe fica mal, homem. Olhe que não há defeito nisso. Cada um come do que gosta.
- Não me faça falar...
- É melhor calarem-se todos, lá isso é uma verdade - rematou o médico com malícia. -oJerónimo aceita a sugestão...
Aceito porque é o Sr. Doutor Freitas que mo pede. Já tive negócios com o pai e sempre nos demos como dois homens honrados. Palavra dada foi sempre palavra cumprida. E embora gostasse de saber quem tinha tocado ao sino...
- Isso é que o mói - interveio o Dr. Pimenta, a sorrir.
- Fosse seu o vinho, não falava assim, com certeza.
- Mas, ó Jerónimo, diga lá aqui à gente. Aquilo que você lá tinha era vinho?...
As gargalhadas rebentaram com estrépito. Fora de si, o Jerónimo levantou-se com um ímpeto desconhecido e, estendendo a mão ao fidalgo, preparou-se para sair. O abade remexia-se no fauteuil, com satisfação, vendo que a conversa tomava agora um caminho mais do seu agrado; até o Silva Costa abandonou aquela humildade de empregado, perante o fidalgo, para se desforrar do comerciante com gargalhadas aflautadas que só serviam para aumentar o gáudio.
Muito a custo, D. Fernando conseguiu pôr ordem no escritório; e logo afirmou ao Jerónimo que o doutor não fizera aquela alusão para o desfeitear, mas para dar bom humor à conversa.
- Eu bem o percebo. O Sr. D. Fernando desculpe-me, mas vou-me embora. Irei à Pesqueira fazer o que me pedem. Antes, porém, quero fazer uma declaração: saibam todos que não dou um passo por via daquele senhor
125
- e apontou o médico com furiosa indignação. - Talvez por sua culpa as coisas se tenham passado assim.
- Talvez, Jerónimo. Não lhe respondo como merece, só pelo respeito desta casa onde estamos. Mas você lá sabe porque enfiou a carapuça. E vou primeiro do que você.
Antes que os outros pudessem evitar a sua saída, o Dr. Pimenta fez uma vénia e abalou, levando o Silva Costa atrás de si pelo corredor. A Ana Sarrifa espreitou a uma porta e desapareceu depois, indo dizer a D. Afonso que já saíra o primeiro e a conversa devia acabar dentro de pouco tempo.
- Estou interessado em saber por que motivo o pai me quer castigar - dizia o rapaz para a velha ama. -Tu acreditas que o não mereço, é claro.
- Eu sei lá, menino.
Pouco depois ouviu-se falatório no corredor, cumprimentos de despedida e passos que desciam a escada de pedra. A velha ama saiu da sala, um pouco de fugida, e deixou D. Afonso sentado no banco do piano, com a cabeça entre as mãos. "Meterem-no ali era um verdadeiro degredo. Acabavam-se os bródios nas tascas dos arrabaldes, os namoricos na Foz e os concertos de música." Sentiu passos dentro da sala e julgou ser o pai que lhe vinha "pregar o sermão" tão esperado; fingindo que não dava pela sua presença, passou as mãos pelo teclado, até que uns dedos lhe tocaram o ombro.
- D. Afonso...
Era o Albano Freitas, mais sorridente do que nunca, muito tufado de orgulho pela sua perícia em convencer o Jerónimo.
- Então, resolveu o assunto por bem?...
- O melhor possível - respondeu o paladino. - Acabo de prestar um enorme serviço ao Douro.
126
E carregou no "r" do enorme, como a dar mais expressão à palavra. Depois acendeu um cigarro, recordando-se da Helena com a presença do piano.
- Só por mim nada podes fazer - disse D. Afonso, entre galhofeiro e apreensivo. - O meu pai vai deixar-me encarcerado neste inferno e nem me explica porquê.
- Alguma das tuas...
Deitou uma baforada de fumo para o ar e, chegando-se ao fidalgo, voltou a afagar-lhe o ombro.
- Não me digas que não sou homem para resolver todos os problemas. Deixo-te de presente uma rapariga que toca piano e não é peste nenhuma.
D. Afonso fez uma expressão de incredulidade, tamborilando os dedos no teclado.
- Só por graça... Uma rapariga aqui? Desabavam as montanhas...
- Sim, meu amigo - respondeu Albano de Freitas, em segredo. - A filha da professora... É um petisco!
E deu uma gargalhada.

III
Apesar de todos os esforços empreendidos por D. Afonso, no sentido de vencer a frieza do pai, as relações entre ambos permaneciam inalteráveis desde a saída do Porto. Agora, que se aproximava a hora da partida, já anunciada numa ordem para o Silva Costa, o rapaz esgotava ainda as últimas possibilidades de quebrar aquele mutismo cerrado, não porque o confrangesse a atitude paterna, mas por se sentir incapaz, cada vez mais, de suportar uma longa estadia na Quinta Alta, apesar da sugestão de Albano Freitas, quanto à filha da professora,
127
e à companhia do piano da sala, onde na noite anterior tentara um pequeno concerto para vencer essa hostilidade. O plano saíra frustrado, pois D. Fernando, ao contrário de outros tempos, em que lhe solicitava algumas peças da sua predilecção, intimara-o, numa rudeza pouco habitual, a fechar o piano e a retirar-se.
Albano de Freitas tentara, por seu lado, apaziguá-lo também; embora polido, como era timbre de todos os seus actos, mesmo os mais hostis, o fidalgo escusara-se a falar do filho num simples gesto de mão e num cerrar de olhos. Compreensivo e habilidoso, o Dr. Freitas galgara o escolho, com desenvoltura, sem insistir, nem se mostrar ofendido com a atitude de D. Fernando.
Naquela manhã, depois de uma volta a cavalo, pela quinta, na companhia do administrador, sempre pronto a pormenorizar quaisquer perguntas que lhe dirigiam, os quatro almoçavam na sala, onde se conservava o antigo fausto imposto ao marido pela cantora italiana.
Motivos de parras e cachos decoravam sobriamente as paredes, sobre um tom geral de verde-ervilha, onde a imponência recatada do mobiliário em estilo inglês, ganhava uma harmonia menos severa, num misto do purita-nismo britânico que D. Miguel adorava, e do lirismo italiano, trazido por D. Grazzia.
Do peru passara-se a um leitão bem tostado no forno, e a conta larga de vinhos da garrafeira seleccionada produzia já alguns efeitos, embora subtis, na exuberância do Dr. Freitas, enquanto D. Afonso se mostrava de um piedoso recato nas bebidas, a fim de dar ao pai uma boa prova da sua redenção. O fidalgo, porém, fingia não compreender aquele sinal de boa vontade ou percebia-lhe demasiado a intenção.
- Mas sem dúvida, D. Fernando - declamava o Dr. Freitas, trinchando um belo naco de leitão. - É preciso
128
achar esse meio termo ideal dos interesses justíssimos de quantos intervêm na realização do nosso porto.
- Embora os senhores, lá por Gaia, continuem nas misturas com vinhos das lezírias. E vinho desse abastarda a pureza do nosso.
- Talvez...
oD r. Freitas percebia algumas vezes que já fora demasiado longe na defesa do comércio exportador e recuava um pouco na argumentação, para insistir depois, noutro tom, em que pudesse achar uma forma de compromisso com o ponto de vista de D. Fernando. Usava aquela estratégia, como mais um ponto do exame a que se submetia constantemente; o Silva Costa constituía, para si, embora se mantivesse o mais calado possível, o júri dessa prova de tacto e de dialéctica parlamentar. Tentava agradar-lhe também, porque já resolvera ter nele o seu apoio eleitoral naquela parte do Alto Douro.
- A ciência dos provadores é complexa, meu ilustre amigo. O vinho do Sul é necessário para certos lotes...
- Porque teima em chamar-lhe vinho ? - insistia o fidalgo numa amigável oposição.
- Da mesma forma que em anatomia se chama homem ao atrasado mental e ao génio--ripostou Albano
Freitas, entusiasmado com a imagem que encontrara.
E, sem tirar os olhos do Silva Costa, reforçou o seu argumento.
- O produto duriense é o néctar, sem dúvida; mas necessita de um amparo...
- Oh, Dr. Freitas! - exclamou D. Fernando, escandalizado. - Não lhe chame amparo, pelo amor de Deus! Porque não prefere dizer que os interesses comerciais do exportador o levam a baixar o preço do custo do produto com essas mistelas?
A D. Afonso irritava aquela discussão estéril que nada lhe dizia. Mal tocara no leitão, como se pudesse
129
influenciar os outros com o seu exemplo, de maneira a abandonarem a mesa o mais depressa possível. Torturava-se com a ideia de que iria suportar - sabia lá por quanto tempo! - conversas idênticas do Silva Costa e de todos os visitantes da quinta durante o seu exílio.
- Porquê essa má vontade contra os exportadores, meu ilustre amigo?-continuava Albano de Freitas, com mais doçura na voz. Se o produtor merece a gratidão do País pelos seus sacrifícios sem conta, não é menos certo que o comércio, pelos enormes encargos das suas organizações dispendiosas, permite ao nosso porto melhores preços nos mercados ingleses e, portanto, melhor remuneração ao produtor.
O Dr. Freitas estava num dos seus momentos de síntese, como designava às suas fórmulas de acordo entre adversários.
- É por essa colaboração estreita das suas partes mais proeminentes...
- Estreita para nós, produtores - chalaceou o fidalgo, a afagar a barba com a ponta dos dedos. - Porque os senhores alargam-se, talvez demasiado...
- Esquece os anos de espera, as lotas, os técnicos... -" Não, nem por sombras. Mas sei que vendo o meu
vinho por dez e o bebem a cálice, em Inglaterra, por mil. De mim até ao consumidor inglês há uma multiplicação por cem. Não lhe parece demasiado?!...
O argumento destroçava toda a estratégia do Dr. Freitas, que mostrou um sorriso, para ganhar tempo na resposta, mas sentiu que perdera a partida. Não quis, porrém, ficar calado; e recordou ao fidalgo que ele próprio já afirmara algumas vezes ser preciso afinar as engrenagens de toda a máquina complicada do vinho generoso nacional.
- O revendedor é o nosso inimigo comum - respondeu num hábil desvio das arremetidas de D. Fernando.
130
- É ele quem exorbita, transformando um lucro justo numa especulação vergonhosa. A essas firmas inglesas falta o nosso patriotismo, o espírito de sacrifício sempre presente em Vossa Excelência, meu ilustre amigo, como ao honrado comerciante de Gaia...
O fidalgo entendeu que não podia insistir. O dinheiro do Freitas velho já lhe pesava sobre as propriedades e não se achava capaz de levar a discussão mais adiante. Tinha ainda muito que lhe dizer, satisfazia-o aquele prazer da conversa e de afirmar algumas verdades, mas compreendia ter atingido o limite de inconformismo perante um credor.
O Freitas é que caíra numa das suas torrentes de eloquência e não podia agora contê-la.
- Não devemos, contudo, esquecer que foram eles os primeiros a dar valor e apreço ao nosso vinho. Fizeram-lhe a reputação, no que lhes devemos estar verdadeiramente agradecidos. É claro que não podem esquecer, por sua vez, os limites desse direito. A nossa cruzada será a de lhes fazer assimilar que a nossa pobreza não lhes dará a fortuna por muito tempo.
O repasto acabara com uns belos cachos de uvas de pendura, e já a criadita, vigiada pela Ana Sarrifa, enchia os cálices de um vinho generoso da colheita de 1834. Fez-se silêncio entre eles, como para o ofício divino de qualquer religião. Miraram os cálices por largo tempo, levaram-nos depois junto do nariz, para lhe aspirarem o olfacto, tomaram um pequeno gole, que mastigaram, sem pressas, e entenderam-se por acenos de cabeça.
Os gestos eram realizados com a maior lentidão, divididos em partes e repetidos numa adoração, de que partilhavam todos os sentidos, até mesmo o tacto, tal era a volúpia com que os dedos afagavam o cristal facetado dos cálices.
131
- Enquanto produzirmos esta maravilha, seremos sempre um país independente - declamou o Dr. Freitas, coménfase teatral. Não lhe parece, D. Fernando?...
O fidalgo acenou a cabeça, distraído. Pensava que não podia partir sem dirigir algumas palavras ao filho e o facto preocupava-o. Albano de Freitas aproveitou para entabolar conversa especial com o Silva Costa.
- Invejo-lhe a profissão, sabe? Este contacto permanente com a terra é adorável. A Nação tem uma enorme dívida para com os homens como o senhor. Sinto a impressão de que a terra, quando germina os seus frutos deve... sim, creio que não exagero, afirmando que ela deve falar uma linguagem especial que só os senhores entendem.
O administrador estava rendido pelas homenagens do paladino, durante o almoço, embora nele houvesse qualquer coisa que não soubesse definir e o pusesse um tanto receoso. Inquieto na cadeira, D. Afonso já não conseguia disfarçar o seu nervosismo; apetecia-lhe desafiar o Freitas sobre qualquer pretexto ou puxar a ponta da toalha e partir quanta loiça tinha em cima. Estava num daqueles momentos de ira que se tornaram famosos entre os seus companheiros de estúrdia, e que o pai bem conhecia, por muitas contas liquidadas em pensões e casas
de pasto.
- Vou precisar do seu conselho muitas vezes - continuava o Dr. Albano para o administrador.
- Vossa Excelência dispõe...
- Os serviços que conto prestar ao Douro necessitam de muita ponderação, e essa tenho de a ir buscar, em grande parte, entre os homens que aqui vivem e conhecem a raiz de muitos dos problemas. Aceita a intimação?!...
Silva Costa não podia resistir mais, depois de tamanhas provas de consideração. Só lamentava a presença
132
do fidalgo, para fumar de outro modo o charuto que o Freitas lhe oferecera e explanar-se acerca de tais assuntos, de que já tinha ideias muito precisas, segundo julgava. D. Fernando talvez o percebesse, porque se levantou numa vénia, encaminhando-se para uma das janelas que deitava sobre a quinta. Dali ficou a remoer nos encargos que lhe levavam a fortuna, nos juros a liquidar e nas inúmeras despesas de que não podia prescindir, comprometendo-o sempre e mais, em cada mês que passava.
Foi então que o filho se aproximou dele para lhe pedir uma explicação; não lhe permitiu, contudo, quaisquer comentários, resolvendo-se ele mesmo a ir ao encontro desse desejo.
- Está ainda a tempo de arrepiar caminho, D. Afonso. Fique aqui durante algum tempo, emende-se e voltará depois. É o castigo mais suave que lhe posso dar.
E piscando os olhos claros, de um cinzento azulado, olhou o filho com firmeza.
- Posso saber o motivo por que mereço esta condenação?...
- Já o conhece de há muito tempo. Devia-o, pelo menos, ter pressentido.
- Garanto-lhe que não, meu pai. Até agora considero-me inocente de qualquer falta mais grave.
- Inocente!... Não foi amante de uma senhora na Rua de Santa Catarina?...
- Fui, sim - respondeu alarmado, sem compreender a alusão do pai.
- E desconhecia que visitava essa senhora por interferência minha?
-Não, mas... Ela pediu-me que voltasse para lhe tocar umas músicas...
- Fez-se então pianista de senhoras...
-O Que o papá me apresentou e por isso mesmo...
133
- Se tornou seu amante.
E fitando o filho de sobrolho carregado: - Portou-se muito mal, D. Afonso. Essa senhora merecia a minha amizade e não gosto... nem permito que um filho meu transforme as mulheres das minhas relações em suas concubinas. Percebe agora?... Faça-o quando tiver dinheiro seu.
D. Afonso baixou a cabeça e deixou o pai sair. Depois ouviu-o ainda sentenciar da porta, com voz dura e pausada:
- Recomendei ao Silva Costa que o tratem como a um hóspede. Faça por merecer a honra da minha hospitalidade e nunca invO Que aqui a sua condição de meu filho, para obter facilidades de dinheiro ou de outra espécie. A sua mãe vai mandar-lhe dinheiro, com certeza, contra as minhas instruções. Gaste-o com recato, para que eu não sinta que as minhas ordens são desrespeitadas. Evite que entre mim e sua mãe surja algum conflito mais grave.
D. Afonso só lhe ouviu depois o ranger dos passos no corredor; e, sem reparar na expressão de espanto do Dr. Albano e do administrador, foi encafuar-se no seu quarto.
"Queriam a sua regeneração, pois que esperassem pela resposta! Beberia mais do que nunca, faria escândalos, vexaria o administrador e o caseiro até que o fossem buscar, se antes disso não abalasse por esse mundo, em busca dum ambiente onde vivesse. Estava farto da pasmaceira idiota a que o obrigavam os títulos da família. Um dia que pedira uma ocupação qualquer, fora um escândalo. "Não quererá ir para marçano, D. Afonso?", perguntara-lhe a tia com ar de troça. Até essa corcunda irritante tivera a desfaçatez de fazer graça com os seus propósitos. Preparavam-no, por certo, para um casamento;
134
saberia desfazê-los a todos. Não estava disposto a vender-se numa negociata de interesses."
Tais hipóteses irritaram-no mais. Esbracejou sozinho, em diálogos imaginários com toda a família, reunida, um dia, para o escutar. Precisava de lhes dizer quanto desprezo mereciam.
- Sairei à minha avó cantora... À cómica, como alguém diz cá por casa. É essa a minha honra e o meu brasão. Desprezo-os a todos; enojam-me!...
Chegava do pátio o guizalhar da parelha que deveria levar o pai e o Freitas, ao Pinhão. Espreitou pelas cortinas da janela cerrada e viu-os aproximarem-se com o Silva Costa, enquanto um dos criados esperava ordens na boleia do char-à-banes. De capa à espanhola, com a ponta traçada sobre o ombro, D. Fernando afastou-se para dar uma volta ao jardim, seguido pelo caseiro, de cabeça descoberta, que lhe ouvia as recomendações para os novos canteiros já preparados.
O Dr. Albano insistia com o administrador numa oferta que lhe fizera e o outro teimava em recusar, por falsa modéstia.
- Não o dispenso, Silva Costa; tenha paciência. Quando o Douro exigir que eu seja deputado, também o serei, acredite, com um enorme sacrifício. Não nos podemos escusar a servir o País. Conto consigo para a regedoria. É preciso dignificarem-se os cargos públicos, mesmo os que parecem mais insignificantes. A regedoria duma aldeia é o seu coração. Seja, pois, meu amigo, o coração desta gente.
E, tomando-lhe o braço, subiu depois para o banco do carro. Caía uma chuva miúda.
135

IV
Exuberante de alegria, e ao mesmo tempo envergonhada de se sentir tão contente, D. Assunção mandara dizer ao Silva Costa que podia conceder-lhe naquela tarde a entrevista solicitada. A recepção da carta transtornara-a.
Minha Senhora
Será ousadia da minha parte pedir-lhe uma entrevista?! Talvez sim... Mas um coração diamantino como o de V. Ex.a saberá compreender-me e depois escutar-me. Tenho tanto para lhe dizer!... Poderei ser feliz?... Uma voz misteriosa veio esta noite dizer-me que sim. Beija-lhe as mãos, comovidamente,
O seu devotado
De tanto que a lera, não havia já uma palavra ou um sinal de pontuação desconhecidos para si. Quase lhe decorara o recortado daquela letra muito apurada, onde se continha uma torrente de confissões. Passara toda a noite numa insónia - vira o Silva Costa, nervoso, debruçado na secretária, depois de muitas horas de hesitação, a refrear o ardor dos sentimentos, com receio de que ela se recusasse a ouvi-lo; acompanhara-o nesses instantes de expectativa, alheio a tudo o mais, infeliz talvez, numa angústia que se revelava nas interrogações da sua carta, tão cheia de dúvidas e de promessas.
Quisera tê-lo junto de si, para lhe dizer que também ela esperara aquele dia com alvoroço; afagara-lhe a
136
cabeça imaginária, entre as suas mãos, em delírios de ternura que só o correr das lágrimas havia embalado. Não pudera dormir só um instante, a desejar que o tempo passasse depressa e a manhã viesse, e as horas corressem... Se o sono quisesse chegar, talvez o tivesse repelido, para ficar de luz apagada, a recordar toda a sua vida e a conduzir o futuro por um caminho ideal de que o Silva Costa comparticiparia.
Como lhe pareciam já longe os dias terríveis de solidão, entre as paredes sombrias das escolas da província, desde o tempo do seu falecido marido, funcionário administrativo em Amarante. A lengalenga das lições, a algazarra dos rapazes, a régua, o quadro, o mapa, todo aquele conjunto de objectos, pessoas e problemas que a enchia de mágoa, de angústia, talvez, quando os considerava permanentes na sua existência. Mas agora tinha a certeza de que tudo isso estava prestes a acabar.
O Silva Costa usufruía uma boa posição, já não era rapaz para se meter em aventuras fáceis, e essas duas condições lhe bastavam para se sentir feliz com a perspectiva do casamento. Delicado em extremo, interessando-se muito pelo bem-estar da filha, poderia facilitar à Helena um bom partido, com a ida de ambas para a Casa Grande, onde, pelas vindimas, não faltariam a família do fidalgo e vários convidados, entre os quais seria fácil conseguir um marido.
Soubera que o Dr. Freitas passara por lá e era possível, pelo contacto, reatar esse namoro que trazia Helena entediada com o seu afastamento do Porto. Ali havia um piano; e confiava nos predicados de menina prendada da filha - com que sacrifícios, só ela os sabia!- para que esse sonho se tornasse numa realidade possível.
As horas passavam lentas, terríveis de monotonia, perante o seu nervosismo. O taquetaque enfadonho do
137
relógio, por cima da sua cabeça, enchia-lha desse som irritante que parecia vir beliscar-lhe o cérebro, num desafio atrevido à sua inquietação. Algumas vezes rompera pela aula, de régua em punho, para desfazer os círculos de conversas e galhofa que se formavam aqui e além, mal a viam distraída; recompunha-se, porém, para evitar irritações que a desfiguravam - o espelho mostrara-lhe olheiras fundas e rugas mais vincadas. Por isso inventava tarefas que prescindissem da sua presença na aula, indo meter-se no quarto, a cuidar de si, enquanto as palavras da carta, interrogativas e prometedoras, se lhe repetiam na imaginação. "Tenho tanto para lhe dizer!..." Era essa passagem que mais a perturbava. Ouvia a confissão apaixonada do Silva Costa, tímida, porventura, mas, por isso mesmo, mais emocionante e sincera. Pensava muito na atitude que deveria tomar perante ele. "Mostrar-se admirada ou recebê-lo com um sorriso de cumplicidade, como de quem lhe disesse aguardar de há muito um tal momento?"
A filha devia ter adivinhado, embora nada lhe houvesse dito. Ela conhecia, contudo, por experiência própria, essa faculdade de pressentir que as mulheres possuem. E a sua Helena não lhe escondia a satisfação, mostrando-se mais carinhosa para com ela. Ouvia-a cantarolar na varanda das traseiras, como se anunciasse a Primavera, que já se aproximava em todos os sinais da terra e dos astros. Via-a andar mais ligeira de um lado para o outro, sorridente, feliz, podia dizê-lo. "Era bem certo que tudo se modificaria para ambas." E um sentimento de gratidão e ternura exprimia-se no olhar de D. Assunção, agora um pouco ruborizada e trémula, porque a hora desejada se aproximava num galope.
Quando deu ordem para os alunos saírem, não sabia já se o facto lhe agradava ou se a confrangia o receio de o ver chegar, muito emocionado também com o encontro.
138
"Tenho tanto que lhe dizer! Tanto!..." Talvez fosse o "tanto" que lhe trazia medo.
Sorrateira, a filha viera olhá-la num enlevo que a comoveu e dizer-lhe que naquele dia estava mais bonita. Deixou-a compor-lhe a renda da blusa de seda azul e pôr-lhe pó-de-arroz nas faces; depois beijaram-"se com ternura, a quererem sorrir com a emoção nos olhos. Apertaram-se as mãos, sem palavras, e D. Assunção abalou, para ir esconder a rebeldia de uma lágrima que não conseguia dominar.
Diante do espelho, achou que as suas rugas lhe não ficavam tão mal como supusera; e disfarçou o fio prateado de um dos seus cabelos brancos, mais rebeldes. Depois entendeu que começava a exagerar- ele não era nenhum rapaz!-e voltou a deixá-lo aparecer com orgulho. "Tenho tanto para lhe dizer!"
Essa lembrança fê-la voltar apressada para a sala da aula, não fosse o Silva Costa bater devagar e ela o não ouvisse. Com a hesitação pressentida na sua carta, ele poderia abalar, valendo-se do menor pretexto. "Demorara tanto tempo a resolver-se!"
Passeava por entre as carteiras, como se já se despedisse daquele ambiente, onde passara os anos mais tristes da sua vida. Corria-as com as mãos, recordando sempre a balbúrdia das saídas, a monotonia das lições, as contas na pedra... E as suas contas à volta do ordenado, que nunca se sabia quando chegava, tarde, sempre tarde, e escasso... Aquele rapazito que lhe fugira dali, depois de lhe atirar com o saco dos livros e gritar-lhe um palavrão... Aquele outro... Uma vida inteira presa à grilheta do lugar oficial, a tanto por mês...
Tudo começava a distanciar-se, como se uma força redentora levasse para longe esses dias opressivos que ainda na véspera lhe obscureciam a existência. E era ali mesmo, perante esses objectos mortos, repugnantes,
139
talvez, que ela ia ouvir a confissão do Silva Costa. Ironia do destino, pensava, mas logo o coração lhe ficou a pulsar no peito, num ritmo apressado e violento.
Tinham batido.
Sentiu-se corar; quis correr a abrir a porta e desejou poder mirar-se num espelho mais uma vez. Instintivamente, levou as mãos ao cabelo, para o compor ainda, e foi puxar a corda do trinco. O Silva Costa entrou. Viu-o subir em passos solenes pela escada, ganhando relevo em cada degrau vencido e no hábito dos seus olhos à escuridão, que lhe pareceu muito íntima para aquele momento.
-Como está V. Ex.a?... E sua extremosa filha?...
- Bem, Sr. Silva Costa, como Deus permite.
o administrador entrou, correu os olhos pela sala e pareceu satisfeito.
- É melhor assim...
- Melhor como?...
- Estando sós.
D. Assunção ficou embaraçada com aquela referência, sem compreender o sentido que o Silva Costa lhe quereria dar. "Viria ele para alguma proposta menos decente?", pensava ainda, enquanto lhe oferecia uma das cadeiras. A sua carta, porém, era tão recatada e cerimoniosa que logo afastou a sombra de tal hipótese.
- Desculpe de o receber aqui... Nesta casa... Apeteceu-lhe dizer pardieiro, mas conteve-se.
-* Está muito bem, minha senhora - aquietou-a o Silva Costa, um tanto contrafeito também, agora que se aproximava o momento de confessar ao que vinha.
Tinham ambos dificuldade em esconder a emoção daquele encontro. Olhavam-se de fugida, denunciando nas mãos inquietas, esse misto de receio e satisfação que os oprimia. Pretextaram ainda um desvio para a entrevista, falando do tempo e da Primavera, que se aproximava;
140
e pareciam transtornados por se acharem incapazes de falar naquele momento.
Um grande silêncio caiu, por fim, entre eles.
O Silva Costa esforçava-se por recordar a longa perlenga que escrevera e decorara, penosamente, no escritório da quinta. As palavras baralhavam-se, fugiam ao seu domínio, e julgava-as agora ineficazes e mesquinhas. Um brando suor molhava-lhe as mãos e o rosto; sentia-se mal com o colarinho duro e as botas de pelica inglesa. D. Assunção, por seu lado, inquieta na cadeira, onde se empertigara de solenidade, queria sorrir-lhe para o ajudar, mas receava mostrar os seus dentes ralos e grandes. Fitava-o com ternura, ao compor a renda da blusa, e esteve prestes a aludir à carta. Pareceu-lhe, contudo, que não deveria precipitar os acontecimentos. E lembrou-se da filha, que estaria preparando a bandeja com os bolos secos e os cálices para o licor, conforme lhe recomendara. Nessa recordação sentiu mais carinho pelo Silva Costa, pois a vida dela também se modificaria.
O silêncio sensibilizava-a - dizia-lhe bem da pureza
dos sentimentos daquele homem que tinha à sua frente, irrepreensível no fato preto e na camisa engomada, onde o plastrão cinzento punha uma nota de distinção.
- Minha senhora...
D. Assunção estremeceu na cadeira, julgando-se capaz de dar um grito, quando ouviu a voz comovida e doce do Silva Costa. Ele prosseguiu no mesmo tom de indecisão e afabilidade.
- Deve ter percebido pelo meu embaraço... que venho tratar de um assunto de altíssima... importância.
Ela aquiesceu num menear nervoso de cabeça.
- Sabe que tenho um bom lugar, além dos meus haveres, que permitirão... assegurar a minha esposa um futuro risonho.
141
Sem saberem porquê, ambos sorriram com aquela invocação. Silva Costa desprendeu uma das mãos e esboçou um gesto tímido.
- Sou um homem que pensa maduramente tudo o que faz. Sonhei muitos anos ter uma casa minha, constituir família...
D. Assunção teve de levar o lenço bordado ao rosto para esconder o pudor; mas Silva Costa não lhe percebeu o embaraço, tão prontas lhe chegavam agora as palavras que compusera durante alguns dias.
- Ter um lar, em suma.
Fez uma pausa curta e estremeceu.
- Depois de longos anos de celibato... senti-me preso de amor por uma mulher.
"Tenho tanto para lhe dizer!...", pensava D. Assunção, comovida.
- Sei que posso prodigalizar uma vida feliz, sem cuidados, embora não desconheça que a minha idade...
- Oh, a sua idade! - interrompeu a professora, num sussurro.
Silva Costa agradeceu num fechar de olhos e chegou-se para a ponta da cadeira.
- Já não estou novo; é preciso que não me engane e não engane. Mas posso oferecer o sossego que a um rapaz não é possível garantir.
-"Não insista nesse ponto, pelo amor de Deus! - suplicou D. Assunção com a voz comovida.
Ele não a ouvia. A audácia que o levara a escrever-lhe a carta parecia agora abandoná-lo. E fazia esforços para se dominar, chegando depressa ao ponto emocionante da entrevista.
-Vim falar a V. Ex.a, para que me diga sinceramente... com aquela lealdade que espero encontrar...
- Conte com ela, Sr. Silva Costa.
142
D. Assunção não pudera dominar-se por mais tempo e estendera-lhe a mão, que o Silva Costa segurava, sem atinar no que lhe deveria fazer. Esse contacto transtornou-o; não percebia a presença daquela mão agarrada à sua, nem a expressão doce e apaixonada da professora. Uma grande dúvida ficou dentro de si, mas entendeu que já não podia retroceder; e esqueceu o resto do seu pequeno discurso, para ir direito ao fim, sem mais rodeios:
-Penso fazer minha esposa... a filha de V. Ex.a Ela ficou aturdida, sem querer entender o conteúdo daquelas palavras. Retirou a mão com brandura, querendo dominar-se, mas a transfiguração que sentia não a deixava enganar-se. Tudo rodopiava à sua volta, numa alucinação de carrocel. Fugia-lhe a vista; os objectos e as paredes sacudiam-se, tomados por uma vertigem inexplicável.
Vendo-a tão transtornada, o Silva Costa aproximara-se para a amparar; a ela apetecia-lhe gritar que saísse imediatamente dali.
- Deseja que chame a Sr.a D. Helena?...
- Não, isso não -" suplicou-lhe a professora. Queria reagir, precisava de estancar as lágrimas que
lhe enchiam os olhos, e percebia que tinha necessidade de dizer alguma coisa. "Mas o quê?! Mas o quê?!O Que lhe poderia dizer naquele momento?!" E essa incapacidade martelava-lhe a cabeça. A garganta só guardava soluços e não podia articular palavra, nem compor outro pensamento que não fosse o de lhe gritar o seu desespero.
- Vejo que ficou muito comovida... Desculpe, D. Assunção! - titubeava o Silva Costa, num embaraço quase infantil. - Eu voltarei... ou ficarei à espera do seu conselho, por carta, se achar melhor...
143
Sem entender por que milagre conseguira reagir, D. Assunção agarrou-se-lhe ao braço e ergueu-se da cadeira. Receava dar um passo, porque as vertigens sucediam-se; um pouco encostada ao Silva Costa, que já não era o homem por quem esperara toda a noite, encaminhou-se com ele para a escada. E pôde falar.
- Depois lhe direi... Perdoe este pequeno incidente...
Mais grave do que entrara, Silva Costa dobrou-se numa vénia e desapareceu nas trevas do patamar.
Ela ficou encostada à primeira carteira da fila, muito hirta e lívida, a ouvir-lhe os passos nos degraus. E, logo que a porta bateu em baixo, deixou-se cair no banco, ficando a soluçar, baixinho, com a cabeça sobre o tampo da carteira.
"Tenho tanto para lhe dizer!"
Essa invocação desvairou-a; deixou os soluços romperem à vontade e gritou desvairadamente, sem pudor, até que a filha chegou.

V
O fragor das enxadas de ganchos nas cavas das terras mais próximas dizia-lhe que no Alto Douro tudo continuava na mesma, após esse sono profundo em que caíra durante algumas semanas. As coisas e as pessoas que o rodeavam tinham ganho um relevo mais acentuado, como se ele fosse um homem atirado para a morte, durante algum tempo, e conseguisse permissão depois para voltar a viver. Era esse milagre da sua robustez que lhe emprestava um sentido mais aguçado da realidade.
144
Achava maior beleza às montanhas que via do postigo do portal e mais embaladores ainda aqueles gritos selvagens dos homens e das enxadas, alinhados em rajadas, a revolver a terra, em cuja profundeza estavam as raízes de todos eles.
P... Maria Cavaca...
cantava uma voz ardente, logo seguida de um coro que subia no silêncio.
Tuumbóóó...
Mulher de grande conceito
Tuumbóóó...
Quantas vezes a cantara, nos seus tempos de cavador! A Maria Cavaca era uma trova própria daquela tarefa e ajudava-o a reviver o passado.
Embalando o berço da neta, o velho Teimas, enrolado numa manta de cordão, via-se no extremo direito da rajada, no lugar de rei, a dar o Cristo para as ordens no trabalho e a arrastar os outros, no afã dos braços rijos que outros não havia, por ali, nos seus bons tempos. Nunca nenhum feitor lhe mandara baixar as gaitas, como diziam na gíria das cavas, para os que levantavam muito a cabeça, ao darem descanso ao corpo. Com ele na fila, era chegar-lhe bem ou arriar a enxada. Cavador que fosse seu braçal não tinha mãos para comer uma côdea, nem tempo para aliviar os rins.
Cava à rasa ou cava aos montes, tanto fazia, para quem, como ele, herdara do pai todo o saber do trato dos vinhos - mesmo no podar que no Baixo Corgo era trabalho para gente de fora, para os samartinheiros, que vinham das bandas de Mesão Frio.
145
Lavradores do Baixo Corgo, onde a terra é manteiga, sabiam lá o que era dar-lhe sangue! Num dia, um só homem, virava a terra de uma pipa de vinho, enquanto ali, no rio Torto, eram precisos dez cavadores nos bardos e quinze nas valeiras, para cavarem o mesmo. Quase se caminhava de gatas, para amarinhar as montanhas, como se andassem a cumprir de rastos alguma promessa. Vinho bem suado era o deles e mais enjeitado do que o outro, porque ficava longe das negociatas da Régua.
Sabia-lhe agora bem recordar os tempos distantes das cavas, embora estivesse apreensivo com a falta de dinheiro para fazer as suas. Mas tudo isso lhe parecia bem sofrido, perante a certeza de que estivera nas mãos da morte e conseguira escapar-lhe.
- Avô!... O meu pai foi ao Jerónimo por causa do pai do Fatinário? - perguntou-lhe Luís, que se sentara junto dele, mal voltara da escola.
- Sei lá, neto. Daquele aventesma nunca se sabe
nada.
- E porque é o Jerónimo aventesma?
- Ora iporquê... Dali nunca vem sombra para ninguém. Um dia hás-de saber tudo isso.
- Quando, avô?
- Quando te matares na terra e quiseres vender o teu vinho. Nunca queiras abalar daqui, neto. Isto custa muito, mas não há coisa mais bonita que ver a terra dar cachos. Nem uma seara de pão!...
- É melhor que carreiro?
- Qual carreiro! - respondeu num sorriso de escárnio.- Ora ouve lá as enxadas...
E ambos ficaram à escuta daqueles gritos que pareciam arrancados ao xisto, como se lhe magoassem as carnes o penetrar das rarlholas.
A miúda adormecera com o embalo do berço e o velho Teimas pôde entregar-se melhor à contemplação.
146
Puxou a manta para o peito, tossicou um instante e acariciou a cabeça de Luís.
- Gostas de ouvir?
- É bonito, é. Mas mais bonito ainda é o toque que fazem na Casa Grande.
- É o D. Afonso, com certeza. Uma boa cara, esse rapazola!...
Nesse momento, Francisco empurrou a porta do quinteiro e logo o velho reparou na alegria do seu rosto, denunciada por um olhar que há muito lhe não via.
- E então?!... Vens contente...
- Quando recebi o recado, julguei que ele tinha sabido de si... Afinal..
- Por causa do Chasco?...
- Não senhor, ofereceu-se para me comprar o vinho.
-O vinho ?! - repetiu o velho Teimas, ainda desconfiado. - Não acredito, Francisco.
- Pois é verdade. Lá a paga é que já se sabe... - Preço pra esganados, é claro.
E o lábio inferior tremelicou-lhe de raiva.
- Compradores não há e as cavas vão atrasadas, pai.
- A quem o dizes - respondeu distraído, vagueando o olhar à sua volta. - Um vinhão daqueles por preço de consumo. Mas antes assim... Em temporal, quando se salva o barco já é muito.
E logo depois o velho começou a falar nos trabalhos que era preciso fazer. Se ainda pudesse sair, ficaria ele com uma rajada de homens no prédio mais perto da aldeia, enquanto o Francisco iria para o do rio Torto e depois para o outro que ficava junto do Douro.
- Nunca mais se arranja quem queira fazer uma troca. Aquelas valeiras ficam lá tão fora de mão...
- Mas são nossas, homem. Tomara eu outro tanto. Foi o primeiro bocado que o meu pai desbravou e quanto mais não fosse, só por isso...
147
Francisco começou a estranhar a ausência da cunhada e aproximou-se da escada para a ouvir nos quartos de cima, aparentando estar absorto com qualquer ideia que lhe ocorrera. Talvez pudesse subir, para aproveitar o momento de lhe falar. Persistia nele a obsessão de a ver afastar-se de casa, e estava certo de que a sua ausência o ajudaria a esquecê-la ou, pelo menos, a atenuarem-se-lhe aquelas tristezas repentinas que lhe caíam na alma, de vez em quando, para o deixarem desgraçado de todo, como se à sua volta as coisas morressem uma a uma. Queria libertar-se dessa opressão que o tornava mais sombrio; já lhe bastava o vinho com os preços baixos e as dívidas que nunca mais pagavam. Disso nem o pai sabia.
- Procuraste pessoal? - perguntou o velho.
- É o que por aí não falta.
"Não, não podia viver assim. Hoje mesmo tinha de lhe dizer que já bastava o seu sacrifício. Precisava de procurar uma mulher que viesse tomar-lhe conta do arranjo... e dele também, pois claro. Passava horas e horas, sem dormir, com o pensamento na cunhada, e isso era uma ideia tola que tinha de cabar."
- Achas que eu posso ir com os homens? - interrogou o pai.
Abanou-lhe a cabeça, em resposta, e continuou a passear na cozinha, remoendo as mesmas dúvidas.
O ruido das enxadas tornou-se mais vivo com a aproximação da noite. O Velho Teimas já não conseguia distinguir o volume dos montes na distância, embora lhes parecessem mais perto ainda.
Quando ouviu o Fatinário, Luís abriu a porta e desapareceu. A conversa assim não lhe interessava, tanto mais que a sua menina já dormia. Durante um breve instante, o velho ficou-se a olhar a porta. Depois fitou o filho, cofiando a bigodeira que lhe caía aos cantos da boca.
148
- Ouve lá, ó Francisco. Tu tens de acabar com esta coisa.
- Qual coisa? - respondeu-lhe o filho, enquanto se aproximava mais.
-Com a Gracinda, homem. Agora andas outra vez para aí que nem lhe falas. Noutras alturas parece que andas pendurado no olhar dela.
- Eu, pai?
E sentiu necessidade de se zangar, quando compreendeu que o velho já o percebera. Queria falar depressa, mas gaguejava.
- Pendurado nela, eu?! O pai ainda não está bom, com certeza. Era o que me faltava mais agora. Então não sei que é casada com o António Francisco e que dali nada posso esperar?... Essa agora!... E logo uma sardanisca magra que nem tem onde um homem se agarre.
- Se não é como eu disse... - interrompeu o velho Teimas, com um sorriso maroto. - Não te zangues, homem.
- Se ainda fossem outros que o pensassem - insistiu Francisco, para aparentar indignação.
- Antes assim.
- Eu quero é vê-la pelas costas, quanto mais depressa melhor.
- Fez-te algum mal?...
- Anda já a querer mandar de mais. E aqui em casa quem manda sou eu e vossemecê.
- Pois eu só lhe devo favores - retorquiu o velho de bom humor.
- Pague-lhos.
- Ora lá vens tu com os teus repentes... Ou paparrá que até um rapazola te ganha ou trinta diabos capaz de derreter o mundo.
António Teimas estava naquela tarde pouco disposto a atravessar a conversa. Encolheu os ombros, a sorrir,
149
ficando à escuta dos últimos versos da Maria Cavaca. O vozeirão era do Espanhol, uma fraca figura na aparência, mas que arrastava uma rajada de homens na cava mais dura.
De tudo isso és dona
Tuumbóóó...
Já tens mais buracos nela
Tuumbóóó
Do que janelas tem Roma
Tuumbóóó...
E depois sucediam-se os vivas, os gritos de resposta do coro e a anolhadela de boca, com vinho próprio para beberagem dos cavadores, mais fraquito que um bochecho de água, para quem gostava de aguardente e vinhões de pancadão.
Tudo isso lembrava ao velho Teimas os seus tempos de cavador. E essas recordações tornavam-no mais feliz naquele instante. Era um vicioso da terra e não tinha razões para se arrepender, apesar de outros mais novos pensarem em abalar dali, trocando o Alto Douro por uma viagem ao Brasil. Nunca tal lhe passara pela cabeça; nem nos dias terríveis da filoxera. E, se tinha lágrimas para chorar, também muitas alegrias ficara a dever à terra. Essa terra que os homens cantavam nas cavas, chamando-lhe Maria Cavaca, "a que tinha mais buracos do que janelas tem Roma."
Podia morrer descansado, porque fizera bem a sua obrigação. Dera-lhe tudo, mas deixava num jardim pedaços de montanha, onde só ervas cresciam, antes de os saibrar.
"Um dia...", o velho Teimas pensava sempre nisso, embora lhe chamassem doido. "Um dia, sabia-se lá quando, a terra seria mãe dos homens que trabalhassem.
150
E então esses lhe agradeceriam o seu sacrifício e o de muitos outros que morriam ignorados. Até lá... era preciso não desanimar. Deus ou os lhomens por ele poriam as coisas no seu lugar."
Nesse momento, em que invocava a sua confiança na vida, o o Luís e o Fatinário entraram pela porta dentro, para dar a grande novidade; antes, porém, que falassem, o Chasco apareceu entre portas, a sorrir, com aquele seu rosto vermelhusco das bebedeiras famosas que tinham história na aldeia.
- Viva! - gritou-lhe o velho, incapaz de dizer mais palavra, com as lágrimas a bailarem-lhe nos olhos.
Francisco puxou o carreiro para dentro e caiu-lhe nos braços.
- Então, homem? Lá te livraste... Vai um copo?...
Os dois rapazes olhavam o Chasco num deslumbramento, à espera de o ouvirem contar o seu tempo de cadeia.
- Regressámos os dois, Manel -disse ainda o velho, depois de vencer a emoção que o transtornava. -Voltei eu da morte e tu da Pesqueira.
E gritou para o filho:
- Vai lá buscar esse vinho, homem.
oChasco sentou-se junto dele, enquanto o Luís e o Fatinário faziam roda no chão, preparados para a conversa.
- Custou, hã?
- A gente aguenta muita coisa, Ti António - respondeu o Chasco, a piscar os olhos travessos de malícia. -o pior é um homem não fazer nada. Tinha umas saudades dos meus bois que só para estar ao pé deles dava três anos de vida!
Ficou-se a menear a cabeça, numa recordação.
- Queriam que eu dissesse quem havia tocado ao sino. Ó mestre António!... Sempre há coisas!...
151
E, pegando no copo que Francisco lhe oferecia, fez uma careta para o velho.
- Eu sabia lá quem fizera uma dessas!... Riram todos; até os rapazes, mais felizes do que nenhum deles.
- Vossemecê sabe, Ti António?!... Sempre querem que um homem diga coisas!...
E de uma vesada despejou o copo, voltando a acompanhar os outros numa gargalhada.

VI
Francisco deu o louvado para os homens largarem a cava e deixou-os abalar à sua frente - já no céu se acendera a primeira estrela. Queria estar só; aborreciam-no as conversas dos outros, sempre iguais todos os dias, em queixas pelas jornas curtas que recebiam. Não era maior a sua. Ser dono da terra, sem lagar nem armazém para tratar as uvas, e ficar à espera dos caídos para vender, não era melhor vida. Agora, ainda por cima, o pai, impossibilitado de sair com aquele tempo, não lhe dava ajuda para vigiar o pessoal. Mandara o Chico acompanhar os homens das terras baixas, mas o rapaz não podia puxar a enxada; e se o pessoal quisesse encostar-se, bem o enganariam.
"Recebera uma parte do vinho e, primeiro que viessem as outras duas prestações, quantas dores de cabeça!O dinheiro sumia-se-lhe nas mãos, sem que o gastasse em arranjos na casa, que bem o precisava, nem na gandolagem. Tinha de pagar os juros ao Freitas do Pinhão na próxima semana; recebera dois recados para lhe aparecer e bem sabia o que o convite anunciava. Ralhos e
152
mais ralhos, ameaças e mais ameaças. Se ainda visse uma esperança!... Mas que esperança lhe dava agora a sua vida?!"
Vender mal, gastar nos amanhos e matar o corpo, até que na próxima vindima ficasse sujeito às mesmas dúvidas da última. E em cada uma cavava mais a cova onde se afundaria.
"Se não fosse o pai, arrumava tudo por qualquer preço e abalava dali. Mas agora era tarde. O Que faria dos filhos?! Deixá-los a alguém, levá-los consigo... Era sempre o mesmo embaraço. Só o velho confiava. E aquilo já não era fé, era demência."
O frio da noite deu-lhe um arrepio. Puxou melhor o casaco ao corpo, a que se pegara a camisa repassada de suor. Atirou a enxada para o ombro e meteu pelo carreiro acima. A noite fechada não mostrava um palmo do caminho. Os pés é que, já habituados à jornada, sabiam de cor os rebos mais salientes e o carreiro aberto na fraga pelos pés dos homens que por ali subiam e desciam.
A conversa com a cunhada não podia passar daquela noite. Andava a adiá-la havia não sei quanto tempo, mas era-lhe impossível suportar aquelas duas preocupações que o esmagavam - a Gracinda a um lado e os vinhedos a outro. E já que não podia livrar-se simultaneamente de ambas, abalando da aldeia, era preciso afastar a mais fácil. Sem uma mulher, quando há muitas outras no mundo, pode um homem passar bem. Era disto que Francisco se queria convencer.
Um vulto passou por ele e saudou-o. A conversada dos cavadores ressoava agora na escarpa do monte, lá muito acima da sua cabeça.
No dia seguinte era sábado e tinha de fazer o pagamento das jornas. Pouco dinheiro lhe sobejava, depois de ter pago as contas nas lojas e comprado uns alqueires
153
de centeio para o resto do ano. Pensava naquilo, mas o vulto da cunhada intervinha, novamente, com a atracção daquela boca que apetecia esmagar ou morder, para lhe arrancar a peçonha de o seduzir até ao desvairamento.
Nunca mais podia esquecer a noite que ela passara lá em casa, quando fora com a filha ao Castanheiro do Sul para falarem à santa Natalinha, que, por ainda estar viva, era mais milagreira, no dizer do povo, do que quantas santas havia na igreja. Não fora capaz de descansar um minuto. O ar que respirava enchera-se da sua presença, e parecia ir tentá-lo, para que deixasse a cama e a fosse procurar no quarto onde dormia. Chegara ainda a entrar no compartimento do lado; tropeçara, porém, em qualquer coisa e o ruído acordara toda a gente, como se tivessem ficado alerta para o verem naquele preparo.
Desde essa noite sentira-se entre as duas alternativas - fazer dela sua amante ou afastá-la da sua vida para sempre. Era preciso optar pela segunda, tanto mais que nunca percebera da parte da cunhada qualquer interesse por si; e isso também lhe trazia um ressentimento amargo.
Uma chuvada forte desabou num repente, deixando-o molhado até aos ossos, apesar de se ter abrigado debaixo da copa duma oliveira. Depois ficou um chuvisco miúdo, e começou a apressar o passo para chegar depressa à taberna do Mal-Matado, onde beberia um cálice de aguardente para aquecer. Senão lá lhe vinham outra vez as sezões, segundo era dizer da aldeia pela sabedoria da Chandarca.
Agarrando-se à lembrança do Mal-Matado, tentou afastar de si a obsessão da Gracinda. "Fora ele quem lhe desatara a corda, quando o Manel se quisera enforcar. Chegara mesmo no momento preciso, agarrando-o pelas pernas, a todo peso, enquanto o outro pedia que o deixasse. Vieram outros homens aos seus gritos e de lá
154
o tiraram. O Manel ficou-lhe depois agradecido, mas o povo baptizou o taberneiro com aquela alcunha que o desvairava. Mal-Matado é o raio que te parta! Todavia, ninguém o tratava agora por outro nome."
"E se deixasse a conversa com a cunhada para outro dia?", pensou ainda. Logo depois entendeu que adiar mais uma vez era prova de cobardia declarada e já que aquilo se tinha de fazer, quanto mais cedo se resolvesse, melhor seria. A ideia, contudo, ficou a minar-lhe a vontade. Apressou ainda mais o passo para chegar depressa à taberna.
Quando entrou, a loja estava vazia. A Idalina é que veio atendê-lo, enquanto o taberneiro o cumprimentava lá de dentro, convidando-o para cear.
- Não vai, obrigado. Enche-me aí um copito de aguardente, ó Idalina. Preciso de calor até casa.
- E bem precisa, pois. Olhe que apanha alguma que se vê maluco.
- Isto já é coiro velho, rapariga.
oMal-Matado insistia lá de dentro para se chegar à lareira e fazer-lhe companhia a um copo. Pensando, para se convencer, que não fazia aquilo por receio à fala com a cunhada, acabou por entrar, depois de beber a aguardente. E, conversa puxa conversa, pediu mais uma medida e depois outra. Sentiu-se, pouco a pouco, com o corpo mais quente e confortado, ao mesmo tempo que o desejo de chegar depressa a casa o dominava.
"Agora é que, desse lá por onde desse, não passaria daquela noite."
Já não ouvia a lengalenga do amigo, a queixar-se de poucos fregueses e das contas que lhe deviam. A cabeça ficara-lhe um pouco entontecida, enquanto uma exuberância de palavras crescia dentro dele. Olhou a filha do Mal-Matado com gulodice, seguindo-lhe os movimentos, com uma atenção que nunca lhe dera. A rapariga aproximou-se
155
da fogueira para arredar um dos potes, onde preparava a vianda para o reco que grunhia ao fundo do quinteiro, e sentiu desejos de lhe agarrar no braço e puxá-la para si. Acendiam-se-lhe no sangue apetites de há muito recalcados. "Raios partam as mulheres", pensou atormentado, mas com um sorriso a brincar-lhe na boca. Quis ainda galhofar.
- Ó Manel! É um pecado aqui a tua Idalina morrer com asinha doanjo.
- Não me olhe assim, Seu (Francisco - pedia a rapariga, ruborizada com a insistência daquele olhar que a perturbava.
- Talvez a queiras - chalaceou o taberneiro.
- É fraco bolo - respondeu a moça com garridice, já refeita da primeira impressão e apostada agora em excitá-lo.
- Enquanto não provardes, não o sabeis - disse ainda Francisco, erguendo-se do banco onde se sentara. - Sou ainda feito com mel que já não arranjais agora.
E ia avançando para a rapariga, que, excitada também, não lhe recusava o olhar, embora fingisse impedir que ele se lhe aproximasse. O Mal-Matado ria alto, já alegrote com a pinga a que se entregava para arrefecer desgostos.
Francisco Teimas agarrou um dos braços da cachopa, primeiro com brandura, não deixando de reparar nas reacções que a sua atitude provocava no taberneiro; mas, como o visse a contorcer-se de riso na cadeira, piscando-lhe ainda o olho, num incitamento, abraçou a rapariga com ímpeto e apertou-a de encontro ao peito. Aquele contacto desvairou-o. Correu-lhe as mãos pela cintura, trazendo-lhe depois uma delas para baixo da axila, onde o altar do peito duro começava a nascer.
- Largue-me, seu guloso! Largue-me!
156
Francisco ouvia as gargalhadas do taberneiro, por cujo espírito não podia passar o propósito do amigo. Sabia que a rapariga era arisca e gozava com o seu desespero, já preparado para arranjar conversa na taberna quando os fregueses a irritassem pela sua recusa em ter namoro.
"Árvore sem sombra já eu sou", era sempre o dito da Idalina.
O Mal-Matado teria agora com que lhe responder: "Ela gosta é do Teimas." E essa perspectiva de galhofa com os que Viessem abancar afastava de si qualquer outro pensamento.
A rapariga estrebuchava nas mãos do amigo e naquela luta tinham chegado a um canto mais sombrio da cozinha. Francisco Teimas compreendeu-o num relance, puxou a cachopa para si com maior vigor e quis dar-lhe um beijo na boca. Ela pressentiu, porém, a intenção e furtou-lhe o rosto - os lábios dele só lhe tocaram o pescoço, junto da orelha, deixando ali um arrepio que a fez dar um grito. Ofendida no seu pudor, olhava-o com raiva, sem saber se deveria chorar ou desfeiteá-lo com nomes. Esfregava o pescoço com frenesi, desvairada, tendo desejos de uma vingança que deixasse o Teimas arrependido do que lhe fizera. Procurava, em vão, qualquer gesto ou palavra que a pudesse satisfazer.
- Nunca mais brinca comigo, ouviu? As gargalhadas do pai magoavam-na.
- Faça lá isso à sua cunhada - foi só o que pôde dizer ainda, antes de fugir pela porta do quinteiro.
Aturdido com a alusão, Francisco Teimas ficou lívido, no meio da cozinha, incapaz de reagir. Pegou na enxada e abalou.
- Ó Chico! - gritava-lhe o Mal-Matado lá de dentro. - Ouve lá, homem!
157
Mas ele já não podia ficar ali um só instante; levava as palavras da rapariga a martelarem-lhe o cérebro, numa obstinação cruel.
Na praça havia alguns vultos pelos portais; outros chegavam de lanterna acesa para a conversa.
- Ainda agora?! - gritou-lhe alguém.
- E vou a tempo - respondeu mal-humorado, sem parar.
- Tchegas fora d'horas pra comer mailo reco.
Os outros ficaram a rir-se com o dito. Ele abalou, em direcção a casa, cheio de uma ansiedade que há muito não sentia. Uma febre estranha percorria-lhe o corpo; sentia o peito da moça apertado no seu e o contacto daquela pele morenaça a crestar-lhe os lábios. Mordeu-os, sem compreender se o fazia com raiva, se para gozar, de novo, a doçura dessa impressão que o desvairava de desejo; apressava o passo, quase corria, como se o ruído das cardas das botas nos rebos do caminho lhe afastasse a obsessão. "Faça lá isso à sua cunhada!..."
Apesar de todos os esforços, aquelas palavras repetiam-se-lhe nos sentidos, num matraqueio monótono e irritante - até a aragem húmida da noite parecia trazê-las também. "Por que motivo queria chegar depressa?", interrogou-se ainda. "Não, aquilo tinha de acabar, desse lá por onde desse. O remoque da Idalina talvez fosse voz corrente na aldeia; e se começassem a falar nunca mais se calavam, tanto mais que a família do António Francisco não o via com bons olhos, por causa da extrema de um dos seus prédios."
- Boa noite! - disseram-lhe de um portal. Respondeu distraído; um cão rosnou-lhe do quinteiro
do Felício e atirou-lhe um palavrão.
"•Não queria famas sem proveitos. Era amigo do marido e, lá porque ele estava no Brasil, não podia desfei-teá-lo. Tê-la mais tempo junto de si é que se tornava
158
impossível! Olha, Gracinda. Isto de vires aqui, já caiu na boca dessa corja danada. Agradeço-te tudo o que fizeste..."
Chegara, entretanto, à porta do quinteiro. A Diana e o Espertezas latiram-lhe do casinhoto, à espera das suas carícias e de algum tacho de comer. Olhou de relance para a cozinha e viu luz; não entendia agora porque quisera vir depressa. A bebida e a rapariga tinham-no excitado, mas a presença da casa deprimia-o - sentia um enorme cansaço no corpo e um desejo de abalar outra vez para a solidão donde viera.
Foi necessário reagir para abrir a porta. Atirou com a enxada para um canto e saudou a cunhada, sem a olhar.
- Onde se meteu esta gente? - perguntou, irritado por se encontrar sozinho com ela.
A Gracinda contou-lhe que o pai se deitara de tarde, muito tomado de dores, e que os rapazes já tinham ceado.
-O Chico chegou aí derreado de todo.
- E já se deitaram?
- Já, sim.
Essa notícia trouxe-lhe um mal-estar doloroso. "Tinha de lhe falar, conforme pensara, mas hesitava agora no que lhe devia dizer."
Sentou-se, para comer o caldo de abóbora, envolvido na teia das suas dúvidas. Via-a perto de si, mesmo ali à mão, e não tencionava tocar-lhe, embora voltasse a pensar no peito da Idalina e no beijo que lhe roubara. "Faça lá isso à sua cunhada!... Faça lá isso à sua cunhada!..."
A Gracinda aproximou-se mais. Sentia naquela noite pelo cunhado uma ternura que nunca tivera, apetecia-lhe falar muito com ele, tocar-lhe talvez...
- Recebi carta do Brasil.
Um arrepio nervoso estremeceu-o.
159
- E depois? - perguntou sem levantar os olhos da malga.
- Está bom; diz que já lhe passaram as febres. Calaram-se ambos por muito tempo.
Francisco confragia-se com aquele silêncio, só cortado pelo gemer das urzes na lareira. Havia na casa um calor diferente, que não sabia a que atribuir. Via a cunhada junto de si e, contudo, sentia-se incapaz de levantar os olhos para ela. Foi retardando o resto da sopa, para se não ver forçado a erguer a cabeça. A exuberância desaparecera-lhe. A mesma tristeza voltava a apossar-se da sua vontade, alquebrando-lhe os membros pela fadiga da cava. Era preciso, porém, começar de qualquer maneira.
- Tenho hoje de falar contigo - disse-lhe a gaguejar.
- E eu também - respondeu-lhe Gracinda, numa voz que nunca lhe ouvira. - E é uma boa novidade.
Então, Francisco levantou a cabeça para tentar compreender o sentido daquelas palavras e viu-lhe os olhos presos nos seus. A mão dela caiu-lhe sobre o ombro e a boca sorria-lhe, como uma flor que se abrisse, tocada pelo milagre da Primavera, que já começava a denunciar-se com as últimas chuvas.
- Quando precisares de dinheiro, já to posso emprestar.
Ele estava aturdido por tudo o que se passava. Não sabia bem o que devia fazer nem dizer.
- Escrevi ao António Francisco e autorizou-me. Quando ele vier, fazem a escritura...
- Mas nada te pedi - respondeu-lhe em voz sumida, enquanto o tique da sua face se pronunciava.
- Julgas que não me custava ouvi-los falar em faltas de dinheiro, enquanto eu tinha o meu guardado?
Gracinda falava com um carinho de que ele nunca a julgara capaz. Sorria-lhe mais, com um encanto que
160
o seu olhar oferecia também numa confiança pelo futuro. Francisco quis agradecer-lhe, mas não achou palavras nem gestos para se exprimir. Receava mover-se, agora, porque ela voltava a ser essa mulher que lhe tomava o pensamento em todas as horas.
- Que querias tu falar comigo? - perguntou-lhe Gracinda.
- Eu?...
E tão embaraçado se sentiu que baixou novamente a cabeça, afagando os bordos da malga com as mãos trémulas. Queria afastá-la de si, gritar-lhe, mordê-la ou bater-lhe, mas era preciso dominar-se ainda, agora, que ela lhe fizera aquela oferta. Ou agarrá-la e beijá-la, levando-a nos braços lá para cima e dar-lhe toda a ternura que subia ao seu corpo, numa sensação estranha. Só essas duas hipóteses lhe ficaram na alma e não podia usar qualquer delas.
- Olha, Gracinda... Tu desculpa... Desculpa, mas não repares em mim. Sou um bruto que anda para aqui, à sorte... - disse-lhe, por fim, numa voz magoada. - Não me perguntes mais nada. Estabanado já eu ando.
E, levantando-se, num repelão, começou a subir a escada.
"Podia, talvez, voltar atrás e tê-la ali mesmo... Ou gritar-lhe que abalasse para sempre e não viesse mais cruzar-lhe a porta da casa."
Por sua vez, ela pensava segui-lo e retê-lo. "Era agora mais dele do que nunca fora do marido, lá longe, abalando três meses depois do casamento, para viver no Brasil as suas ambições de terras. Aquela casa já lhe pertencia. Os sobrinhos eram os seus filhos... Aqueles dedos que subiam agarrados ao corrimão tinham-na já apertado uma vez no baile da última vindima da Casa Grande. E precisava deles agora, para lhe desfazerem no corpo aquela tortura dolorosa que lhe corria nas veias."
161
- Não me vais acompanhar? - disse-lhe ainda, para que ele voltasse. -O Chico já está deitado.
Ele parou no alto da escada e ficou incapaz de a perceber. Quis raciocinar, mas não tinha cabeça para tanto.
- Porque não ficas cá?...
E enfiou pela porta do quarto do pai, sem mais lhe dizer.
O pai estava alerta e encheu-o de perguntas - como iam as cavas, se o tempo prometia... Depois, num desabafo, disse que, se remediasse a sorte do Fontelas iria entregar-se à prisão da Pesqueira.
Francisco nem lhe respondeu. Foi .meter-se no quarto, sempre à escuta dos ruídos da casa. Ouviu a cunhada subir, passar pela porta e, muito depois, o ranger da cama. Havia em todo o cortelho qualquer coisa de indefinido que o tornava diferente - "talvez fosse da oferta que ela lhe fizera... Ou seria do seu olhar, que já não vagueava e o fixara?!..."
Enervou-se quando percebeu que o sono não iria chegar tão depressa, quando precisava de repousar bem para continuar a cava do outro dia; mas depois habituou-se à ideia e bendisse aquela insónia que o obrigou toda a noite a pensar na cunhada.

VII
"O Que farei depois no mundo?!..." era a interrogação que repetia num sussurro, de cabeça apertada entre os dedos. A mãe falara-lhe e dissera tudo. "Mas como queria ela dispor da sua vida? Considerava-a ainda uma criança, a quem se obriga a cumprir a vontade alheia?"
162
Voltou atrás algumas páginas do seu diário e começou a relê-las, como se tivesse necessidade desse auxílio, para reconstituir o que se passara nas últimas semanas. Muitas noites as páginas ficaram em branco, porque não tinha cabeça para esboçar uma só palavra - e as coisas terríveis que algumas vezes sentia para lhe comunicar faziam-lhe medo.
*
Nenhuma de nós teve ânimo para tocar nos bolos que mandámos vir do Pinhão. Deitei-os hoje fora. A mamã nem me perguntou por eles, quando os viu desaparecer do armário. Tenhho agora a certeza de que lhe prestei um bom serviço.
O Que ocorreu durante essa conversa é ainda um mistério para mim. O Silva Costa continua a passar todas as tardes, a cavalo, mas a mamã já não vai à janela. Lembro-me do seu rosto quando me apareceu, e vejo-a desfigurada e envelhecida, como se durante aquela hora tivesse vivido alguns anos.
Ontem fui encontrar a blusa de seda azul, toda rasgada, na esterqueira do quintal. O destino desse farrapo surgiu a meus olhos como o símbolo da nossa vida. Atiraram-nos também para uma esterqueira e não podemos sair dela. Será melhor dizer que caímos a um pântano; quanto mais nos movemos, mais nos afundamos.
Quero falar-lhe para a animar, mas falta-me a coragem. A mamã olha-me de uma maneira estranha. Há nela uma hostilidade fria por todas as coisas que a rodeiam, e entre elas estou eu também. Fala-me por monossílabos, como se eu, fosse culpada do que sucedeu. "Que se teria passado na entrevista com esse homem?"
163
Na escola trata as crianças com antipatia. Ouço-a ralhar todo o tempo que ali está e recusou ontem a minha ajuda, com o pretexto de que lhe estrago a classe. Ouço a régua no tampo das carteiras e nas mãos dos alunos. Eles choram. E também me apetece chorar.
Somos ambas infelizes. O Dr. Freitas esteve na Casa Grande e nem se dignou mandar-me um cartão. Compreendo agora, finalmente, que nunca mereceu o meu amor. É um homem calculado que nada faz sem objectivo prático. E, contudo, não posso deixar de ter saudades desses dias que passámos no Porto.
A sua hostilidade vem agora mais para mim do que para os alunos. Ainda bem. Preciso de fugir deste inferno, tão depressa quanto possível. Receio endoidecer. Não durmo, não a posso ouvir. "Se não fosses tu..." É o que repete constantemente para me vexar. Acha, por certo, que, se eu não tivesse sobrevivido à meningite, a sua vida seria bem diferente. Talvez tenha razão!...
Ainda me parece um sonho e só agora compreendo o que se passou naquela tarde. Depois de jantar, a mamã quis mostrar-se amável e falou-me com outros modos. A trégua soube-me bem; não me contive sem a abraçar. Chorámos as duas. E junto uma da outra, com as mãos bem agarradas, como se nos quiséssemos salvar assim, ela contou-me tudo.
O mais estranho é que insiste comigo para que aceite. Disse-me que passara todos estes dias a pensar bem no caso, porque deseja acautelar o meu futuro, como boa mãe. Tirou informações do Silva Costa; soube que ele tem
164
um bom arranjo e é um homem sem mancha. Pouco **femeeiro e económico; honesto e apaixonado por mim, pode dar-me a vida que preciso.
Mas que sabe ela dos meus desejos? E como quer dispor de mim, depois de ter sofrido o desgosto de ver os seus próprios sonhos desfeitos por esse homem?... Nunca percebi que ele me olhasse com interesse. Nunca! E a hipótese de lhe pertencer parece-me tão impossível como acordar um dia e ver estes montes desaparecerem todos da minha frente.
A mamã deseja mandar-lhe uma resposta e pediu-me que resolvesse. Comove-me a sua presença. Agora sou eu que digo: se não fosses tu...
Instou comigo para que fosse à janela, à hora de o Silva Costa passar. É horrível esta situação. Apetece-me dizer-lhe que esse homem me enoja, mas sei também que a ofendo no seu afecto por ele. Assim, fico sem argumentos para opor aos seus e sinto-me enrodilhar nesta perspectiva que vai ganhando forma e é mais forte em cada dia que passa.
Pedi-lhe que aguardasse mais uma semana. A Primavera vai chegar. Se pudesse fugir, talvez entre eles as coisas se compusessem. Mas estou incapaz de agir. Para onde vou?!... O que farei depois no mundo?!...
E, amarrotando a última folha escrita, passeou no quarto, como se esperasse de alguém a resposta para as suas interrogações.
"Para onde vou?! O que farei depois no mundo?!"
165
Ainda se pudesse chorar, talvez se aliviasse daquela impressão dolorosa que era vácuo e ao mesmo tempo saturação. Mas já não era capaz. Sentia-se presa à sua impotência e nunca lhe apetecera tanto ter forças para ser livre.
"E de que lhe serviria a liberdade?!" Essa nova pergunta deixou-a imóvel no meio do quarto.

VIII
A aldeia despovoara-se para Valença, onde se festejava a Senhora da Ribeira, lá no coruto de uma das maiores montanhas do Alto Douro, varandim de paisagem deslumbrante de povoações e vinhedos, em que a serpente do rio, no fundo dos vales, murmureja ou in-crepa soluços e raivas, como se fosse o eco eterno dos homens que o vêem passar.
Nessa noite, as raparigas casadoiras voltam-se para o silêncio e as trevas, numa interrogação graciosa e emotiva:
Ó cuco da carrasqueira!
Quantos anos me dás de solteira?...
E ficam de ouvidos atentos, com esperanças no coração, à espera que o cuco lhes diga, em assobios, qual o destino dos dias futuros.
Encostada à janela do seu quarto na Casa Grande, Maria Dolorosa escutava o estralejar dos foguetes, ao longe, recebendo o afago da aragem fresca daquela noite que já trazia o anúncio da Primavera e lhe recordava o pai, ausente da aldeia.
166
"Por onde andaria ele agora?... Teria entrado em Espanha, como lhe dissera, ou faria vida de contrabandista?... Quando os homens partissem para as segadas, talvez conseguisse saber dele. Mas antes disso?!..." E ao repetir o apelo das outras raparigas:
Ó cuco da carrasqueira!
Quantos anos me dás de solteira?...
(Maria Dolorosa não pensava em qualquer dos rapazes que a procuravam para namoro. Era sempre o pai que lhe lembrava, alto e troncudo, como nenhum outro na aldeia, amigo de seu amigo, carinhoso para ela e franco para todos, capaz de arrancar a camisa do corpo para a entregar a quem lha pedisse. Via-se na sua companhia, a percorrer o adro da capela, entre o bulício do povo, sempre seguidos pelo rapaz de Valença que namorara depois, durante alguns meses. Tinham abancado a comer polvo frito e "trigo" com açafrão, no grupo do Teimas e do Chasco, enquanto no terreiro do bailarico os pares não se cansavam de rodopiar, moda atrás de moda. De cravo vermelho na orelha, chapéu largo à banda, com a imagem da Senhora presa na fita, e jaqueta negra sobre a calça de bombazina doirada, o rapaz não deixava de a perseguir, numa teima que primeiro a aborreceu e depois já a divertia. E quando o pai se dispusera a entrar em conversa com um cigano, por causa de um cavalico Que, ele viera, muito à mansa, convidá-la para o bailarico. Fizeram as conversas do costume: a festa estava bonita. Ela dançava bem. Donde era?!...
"E, de então para cá, quantas coisas se tinham passado? A noite do assalto, a fuga do pai, a sua vinda para a Casa Grande... Agradava-lhe aquele asseio e o comer certo, sem preocupações; mas trocava tudo isso pela presença do pai. "Maria Dolorosa! Vou abalar à
167
cata de trabalho, por esse Douro fora... Não há outro remédio!" E, logo na noite em que ele voltara, o sino tocara a rebate para o assalto. Saíra também com ele naquela enxurrada de povo e não sabia explicar como tudo se passara. - O Fontelas! Deixem ir o Fontelas!... - E depois chegara a ordem de prisão.
De vez em quando, um fogacho de luz desfazia-se nas trevas. E voltava a pensar na Senhora da Ribeira, na conversa do moço, nos grupos que passeavam no adro e no garranote que o pai quisera comprar.
"Onde estaria àquela hora?!..."
A voz de D. Afonso, chamando pela ama, tirou-a daquelas recordações. Ouviu-os depois falar, até que a Ana Sarrifa gritou também o seu nome.
- Vem daí, se queres. O menino dá licença... Logo se esqueceu das suas invocações, para viver
essa curiosidade há tanto tempo apetecida.
Enfiou cautelosa pela porta, ficando junto da ombreira. O luar penetrava por uma das janelas e dava uma luz estranha à casa, criando sombras que pareciam ter forma humana. As velas do piano estavam acesas. Debruçado sobre o teclado, D. Afonso continuava imóvel, enquanto a velha ama esperava com os dedos entrelaçados no regaço.
- Vamos, entra! - disse o fidalgo.
A Ana Sarrifa fezlhe sinal para que se aproximasse.
- Senta-te! - ordenou-lhe a mesma voz, que naquele instante lhe soou dum modo diferente.
A luz branda das velas tocava o rosto de D. Afonso duma claridade irreal, tornando-lhe os cabelos em fios de oiro, que ela via nimbarem-lhe a cabeça numa auréola estranha. O coração, emocionado, saltitava-lhe no peito. Via agora aquela fieira de teclas brancas e as mãos nervosas e magras do fidalgo, suspensas sobre elas, diziam-lhe que a magia da música estava naqueles dedos.
168
D. Afonso sacudiu o corpo, num movimento brusco, e logo no ar ficou uma grinalda de sons que fez Maria Dolorosa olhar à sua volta, atordoada e inquieta, numa sensação nova que parecia entrar-lhe nas veias, para suavizar as suas inquietações. Sentiu-se criança, num desejo de abalar dali ou de ir beijar aquelas mãos que vogavam sobre a estrada branca das teclas. Cerrou os olhos, num instinto, e a música tornou-se ainda mais expressiva, como se lhe repetisse muitos dos anseios. E achou-se perto do pai, aconchegada nos seus braços, enquanto ele repetia aquele gracejo que era também o melhor sonho da sua vida - só um príncipe te merece, Maria Dolorosa!
Como ele gostaria de a ver ali, tão mirrada de espanto e de deslumbramento, que nem os desgostos pareciam seus, mas do piano que os chorava! Sentia os olhos cheios de lágrimas - de lágrimas tão reconfortantes que a deixavam incapaz de compreender, porque estava naquela sala de doirados e azuis, como num ninho de amor feito para si.
Os sons envolviam-na, levavam-na e vinham depô-la ali, outra vez, para depois abalarem pela noite dentro, numa revoada de pássaros invisíveis que ela queria agarrar com os sentidos. E os dedos corriam, afrouxavam e tornavam-se tensos, iam e voltavam pela via branca das teclas, mais luminosa agora do que a estrada de Santiago lá no céu - rasgavam sempre o véu da música que enchia a sua imaginação de figuras e a casa de sombras irrequietas.
De olhos cerrados, Ana Sarrifa sorria e sonhava também. Via aquela casa no tempo da sua senhora, da italiana, como lhe chamavam, por despeito, as outras que invejavam a sua beleza, quando ela vinha ali sentar-se, para cantar ao velho fidalgo as mesmas árias que o tinham levado, através do mundo, em sua perseguição. Revivia esses anos distantes, em que se viajava do Porto,
169
numa carruagem puxada ora a cavalos, ora a bois, com o cocheiro da casa, o Baião, seu amor de toda a vida e que não se temia a tempestades nem a ladrões.
Os fidalgos estavam na quinta a maior parte do ano, cuidando, eles próprios, de tudo, embora o padre Joaquim fosse o administrador da casa e o cura da aldeia; e viviam as alegrias e as tristezas da criadagem, escolhida entre gente da mesma família, de pais para filhos, num hábito que poucos eram capazes de quebrar. Entrava-se para a quinta, como as filhas da gente rica recolhiam aos conventos - para o resto da vida. Aprendia-se de tudo: aia das senhoras, ama dos meninos, serva da mesa ou cozinheira. Muitas ali nasciam e sa finavam, como a Maria Bornal, que dissera sempre com vaidade, até à hora da morte: para ser filha do fidalgo só me falta gastar-lhe o dinheiro e usar-lhe o nome. E era assim mesmo. D. Miguel escolhia-lhes os maridos, apadrinhava-lhes os filhos e dispunha-lhes do futuro.
Era uma grande família, vivendo debaixo da mesma telha, sobre a protecção do fidalgo, que nada descuidava e sabia de vinhas, como poucos lavradores do Alto Douro. Os filhos não lhe tinham seguido o exemplo, não. Passeavam e aborreciam-se, desprezavam os amanhos, entregavam tudo aos outros. Mal a senhora fechara os olhos, dois meses depois do marido, tinham abalado para o Porto, para só voltarem na época das vindimas e nas carregações, para fazerem festas e receber os ingleses que chegavam de visita na época das compras.
Quando o Sr. Barão de Forrester morrera afogado no cachão de Valeira, a D. Antónia Ferreirinha passara pela quinta e ali estivera uns dias. (Era uma mulher de armas! Magra, toda nervos, parecia ouvi-la ainda: "Sabe-se lá como aquilo foi; tinha os seus dias contados. Nadador como ele era, só Deus pode explicar tamanha desgraça!"
170
O povo falara que o barão levava um cinto cheio de libras e se afundara com o seu peso; que a D. Antónia se salvara por mor da roda das suas saias e que houvera imperícia do arrais do barco. "Se fosse à espadela, o Oliveira de Porto Manso, não sucedia o desastre, com certeza."
Era um mundo de invocações que vinha à memória de Ana Sarrifa, ao escutar a música predilecta que tantas vezes ouvira cantar à sua senhora. E por ela, principalmente, sentia uma enorme ternura por D. Afonso, não só por ser o seu neto preferido, como também porque, no trato com a criadagem, ele lha recordava em todos os instantes.
Quando o piano se calou, apeteceu-lhe levantar-se e ir afagá-lo, como no tempo em que o passeava no jardim e na quinta.
- Gostaste? - ouvi-o perguntar.
Esquecida de tudo* Maria Dolorosa não percebia que era para ela que se dirigiam as palavras do fidalgo. À sua frente, D. Afonso fitava-a numa expressão de ternura que a rapariga não entendia. Da sua cadeira, Ana Sarrifa sorria-lhes, enlevada no "seu menino."
- Tens uns lindos olhos, sabes?...
E D. Afonso acariciava os cabelos da rapariga, num contacto que lhe parecia ainda a continuação do mesmo deslumbramento.
-i És só Maria?!...
- Sou Maria Dolorosa...
- Maria Dolorosa?! - disse com arrebatamento.- É um belo título para um Lied. E que voz tens, rapariga! Tu cantas quando falas...
Ele não reparava que as suas mãos a enfeitiçavam e lhe traziam confidências que ainda ninguém lhe soubera dizer.
171
- Gostaste do que toquei?- perguntou-lhe, ao mesmo tempo que lhe pegava no queixo para a ver melhor.
E, como notasse lágrimas nos seus olhos, ficou radiante - foi abraçar a velha ama e falou com entusiasmo, andando de um lado para o outro, como se as palavras o obrigassem a caminhar.
- É isto o que eu ambiciono. Ir por esse mundo fora, ensinar aos que ignoram a música que ela é a arte mais sublime de entre todas. E o povo compreende-a melhor do que essa gente... idiota, estúpida mesmo, que parece venerá-la. A música é uma língua universal feita para as almas...
E, parando defronte de Maria Dolorosa, continuou na mesma excitação.
- Esta rapariga tem mais sensibilidade do que uma rainha. E é mais bela...
Como se uma alucinação o tocasse, D. Afonso voltou para o piano. E, no silêncio da noite, a música tornou-se mais expressiva do que antes, numa carícia de sons.
Ana Sarrifa estendeu a mão trémula para a filha do Fontelas e ambas ficaram a sonhar por muito tempo; mas o sonho de Maria Dolorosa já não cabia naquela mão que a segurava.

IX
Batidos o Alto das Monteiras, Caedo e Ventozelo, como refúgios de caça, e dados alguns passeios a cavalo, D. Afonso caiu no mesmo abatimento dos primeiros dias, sentindo-se ainda com maior tédio "naquele buraco impossível", como chamava à quinta, agora que a mãe lhe escrevera a informá-lo do propósito paterno de lhe dar
172
um castigo prolongado. Passava a vida entre o quarto e o salão, ora deitado, ora a tocar piano, querendo refugiar-se, algumas vezes, na leitura que a biblioteca da avó lhe oferecia.
Levantava-se muitos dias com o propósito de iniciar ali uma vida diferente, disposto a mostrar à família que o não abatia o degredo a que o pretendiam submeter. Punha nisso todo o seu brio e cantarolava satisfeito com a resolução. Buscava um livro, lia algumas páginas e acabava por achá-lo idiota ou mesquinho; pegava noutro e o fenómeno repetia-se, incapaz de submeter o seu aborrecimento à necessidade de gastar as horas.
Encafuava-se depois na sala, recordando a vida de alguns músicos que lhe podiam servir de exemplo, pela persistência do amor à arte que haviam escolhido. Achava-os seus semelhantes, concebia planos, deslumbrava-se com alguns pormenores, mas logo sentia que tudo ficava esgotado ante a impassibilidade de uma parte de si mesmo que não conseguia convencer. "Esta costela fidalga que me deixaram incapacita-me para tudo. Tenho de assassinar este biltre que vive dentro de mim", pensava muitas vezes, para se enganar.
No fundo, porém, percebia que essa força o dominava. Ia sentar-se ao piano, fazia algumas escalas para vencer a preguiça das mãos e acabava por ficar vazio, à frente das teclas, como se lhe recusassem o contacto dos dedos. "Talvez amanhã. É preferível não me enervar com isto. O importante é já ter concluído que devo reagir. Um dia qualquer a resolução chegará e talvez me obrigue a abandonar esta vida mesquinha que tenho levado, forçando-me a partir, sem que aguarde o dia de receber a minha parte na fortuna da família."
Era isso o que mais desejava fazer. Contudo, como se sabia incapaz de o realizar, não deixava radicar-se esse pensamento no seu espírito. Queria manter uma certa esperança
173
no futuro e fingia assim ignorar os seus mais profundos desejos. Esgotava-se a pensar e a considerar-se impotente para agir. E voltava ao quarto, primeiro com paciência, quase conformado em aguardar esse dia das grandes resoluções; a pouco e pouco, porém, vinha-lhe uma onda de desespero e bramava consigo, despia-se novamente, chamava a velha ama e pedia-lhe a chave da garrafeira.
- Preciso de beber, senão enlouqueço! Vai depressa, Ana. Quero embebedar-me.
Paciente, resignada aos seus gritos, Ana Sarrifa dizia-lhe sempre o mesmo: "O Silva Costa é que tem a chave, menino."
- Mas quem sou eu aqui?... Dize-me tu. Estou prisioneiro, porventura ?...
E nesse momento pensava em cometer os maiores desmandos, para que o pai o mandasse voltar à cidade, embora lá o submetesse depois, a quantas humilhações quisesse.
- Já que vivo numa lixeira, que seja eu o dejecto mais podre que para lá deitaram. É a única maneira que me fica de protestar contra tudo isto!
O melhor que podia, a velha ama obrigava-o a deitar-se e ia à cozinha buscar a garrafa de vinho dos criados. Ele bebia com sofreguidão, mas insistia por mais, sentindo que precisava de se embriagar completamente, para se não achar cobarde e incapaz de uma reacção.
- Escuta, minha velha - dizia, tentando depois acalmar-se. - Tenho um sonho: abalar pelo mundo com a minha arte e viver por ela. Achas que posso continuar aqui?... Não, não posso. Se tu me compreendesses, estou certo que me ajudavas. Mas assim, minha velha, julgas-me doido, quando no fundo sou um idiota. Depois disto, se fosse corajoso, só tinha um caminho a seguir: o suicídio. Seria a melhor maneira de protestar contra esta
174
lixeira em que vivo. Mas não; prefiro vegetar por comodismo, esperando que me perdoem, como um biltre que sou.
Cansado de se vexar, deixava-se cair sobre a cama e adormecia. Algumas vezes recusava-se a ir jantar com o Silva Costa. Considerava-o, nesses momentos, como um carcereiro e hostilizava-o com a sua ausência. Já noite, vestia-se e saía para os campos, andando horas e horas, sem destino, até se cansar. Ana Sarrifa e Maria Dolorosa ficavam-se a lamentá-lo, mas sentiam-se impotentes para o ajudar. A rapariga, principalmente, depois dessa noite em que entrou na sala, entendia-se ligada àquele homem por um segredo estranho que não sabia explicar. Achava-se modificada; tudo lhe parecia mais doce à sua volta, com excepção da ausência do pai, por cuja culpa incriminava agora a ambição do Jerónimo e dos outros como ele. Tentou falar-lhe uma noite, esperando que voltasse do seu passeio, sem saber bem o que lhe queria dizer. Contudo, não se embaraçou com essa ideia e ficou junto à escada por onde ele devia subir. Pareceu-lhe envelhecido, transtornado até de cabeça, como o velho Saramago, a quem o juízo dera volta com a mania de que na sua vinha se encontrava uma mina de oiro. Aquele olhar vago, indiferente e longínquo, que lhe atirou, recordou-lhe a figura do louco. E ficou, até de manhã, sentada aos pés da cama, esperando que ele a chamasse no corredor, embora não pudesse imaginar qual o motivo que o levaria a pedir o seu auxílio.
Foi preciso, porém, que o Silva Costa provocasse as visitas da professora e da filha para que D. Afonso voltasse a aquietar-se um pouco. Elas vinham depois do jantar e faziam longos serões na sala, durante os quais tocavam piano, até à hora de servir o chá.
Cansado de esperar pela resposta à sua entrevista com a D. Assunção, o administrador arranjara aquele pretexto
175
para se lhes aproximar, quando soube que Helena adorava a música. Convidara-as, sem fazer qualquer alusão à sua proposta, sempre à espera de melhor oportunidade para resolver o assunto do casamento. Sentados junto do piano, Helena e D. Afonso trocavam opiniões acerca dos seus músicos preferidos e interpretavam-nos, enquanto a professora e o Silva Costa ficavam a distância, silenciosos, como duas peças exóticas que fizessem parte da sala. Recordando-se da alusão do Dr. Freitas à rapariga, o fidalgo fitava-a sem interesse, pensando que o filho do exportador não primava pelo gosto quanto a mulheres. Achava-a demasiado fornida de carnes, embora a languidez dos olhos quisesse contrariar essa falta de sexo que sempre lhe ocorria na presença de mulheres idênticas. Só o narizilo arrebitado lhe dava um ar de originalidade ao rosto pálido.
- Não admira Bach?...
Ela só meneava a cabeça, por resposta, e D. Afonso não entendia essa linguagem muda.

X
Faltavam três meses para a vindima e já na aldeia se não falava noutra coisa. Aventavam-se hipóteses de preços para o vinho, conversava-se das exportações e dos rumores de compras que alguns ouviam no Pinhão, e as notícias pareciam não melhorar ainda. O Brasil estava cada vez pior para receber vinhos beneficiados e a Inglaterra não se mostrava disposta a alargar o número de pipas importadas.
- Vamos ter aí outro Inverno...
176
- Outro inferno é que devias dizer. E se desejavam ver os ranchos dali, ou as rogas da serra, por entre os bardos e as valeiras, a carregar cestos que encheriam depois os lagares, receavam, por outro lado, ver esa certeza aproximar-se. Sempre mês de maleitas e de mortes, aquele Agosto, porém, parecia mais lúgubre do que nenhum outro. O sino da igreja badalava a finados com frequência, acompanhando os anjinhos que partiam deste mundo, embora o Dr. Pimenta não afrouxasse em cuidados e a Santa Natalinha não parasse nas suas comunicações com o eterno, acerca da saúde dos que a procuravam para obter um dos seus milagres.
Um calorão abrasador queimava tudo e parecia estorricar as próprias fragas das montanhas. Os poucos homens que arranjavam trabalho começavam as fainas ainda muito pela noite, para as acabarem à hora do meio-dia. Depois dessa hora ninguém bulia uma palha. Vivia-se num forno, cujas labaredas aquela gente respirava com suplício. As sezões pareciam epidémicas e era raro o cortelho onde não havia alguém torturado com elas.
Esperavam-se os homens que tinham ido segar para a Terra Fria e Espanha, como uma maneira de preencher o tempo. Alguns contariam o que por lá se passara, haveria novas cantigas para ouvir e aventuras para fantasiar, como as do Espanhol, que viera contar, uma vez, ter lá deixado um filho nos braços duma fidalga, tão nobre e tão rica, que nem lhe dizia o nome, por receio de vingança dos Castelhanos.
Faziam-se malhadas de Ervedosa para cima que eram já terras de pão, embora o colhessem ainda entre calhaus das serranias. Mas aí mesmo era o vinho que dominava todas as preocupações. Os especuladores mostravam-se desinteressados pelas compras, se alguém os procurava para colocar a novidade, mesmo a preço baixo. Eles próprios receavam que a situação se prolongasse, invalidando
177
o seu jogo de altas e descidas. Todos esperavam - uns por manobra, a maioria por obrigação.
E aqueles dias ardentes, pesados e lúgubres, tornavam-se mais arrastados, como se cada volta do Sol caminhasse agora em passo de manco, a subir ao capelo de um dos cerros mais encabritados do Douro.
À sombra da igreja, no adro, a canalha abrira a época do botão. O abade suara as estopinhas para os conseguir demover da brincadeira do assalto que tentavam reconstituir com badalar de sino, archotes imaginários e arrombamentos de portas. Só atingira o seu intento, mercê das suas artes de carpinteiro, oferecendo carrinhos de madeira aos mais destacados do grupo. Bem o tinham feito manejar a plaina e a serra, porque o receio de não chegar ao céu deixara a garotada um tanto indiferente. Pelas vezes que o sino dobrava a finados e o Mão Branca abria covais, não lhes parecia viagem de invejar nem difícil de empreender.
Iniciaram assim a época do botão, e o velho abade vinha espreitá-los da sua janela, sorrindo, embora os calos ainda lhe doessem, como preço da sua vitória sobre as preferências da canalha. Havia férias escolares. E os poucos que lá andavam juntavam-se aos outros que nada tinham agora para fazer, tirante algumas braçadas de raízes para lume, procuradas à pressa, nos mortórios dizimados pela filoxera. Até o Fatinário e o Chico, já grandalhões para aquilo, passavam horas e horas no adro, a jogar botões à cova. Senhor de seu nariz e jogador inveterado, embora a sorte lhe andasse fugidia, Luís Teimas lá conseguira furtar de casa mais uns tantos "brancos", para se desforrar das últimas jogadas que lhe tinham levado das mãos um saco cheio, e já começara uma partida rija com outros do seu tamanho. Aquele vício fazia-o esquecer as longas horas que passava junto do berço da irmã e do avô, escutando histórias doutros tempos. Cada
178
vez mais avaro de palavras, António Teimas abria-se com o neto preferido, em longas conversas de invocação.
Mas Luís até isso abandonava. Mais do que o vício, enresinava-o o ar de mofa dos que lhe ganhavam. Vinha para se desforrar, e com palmos batoteiros, ou por outra forma qualquer, dispusera-se a reaver o saco dos botões. Não falava para galhofas, nem sorria para ninguém. Os seus olhos espertitos não largavam a cova e a posição dos adversários no terreiro.
- Vá lá, anda! -dizia enervado com a demora dos outros.
Tinha pressa na desforra. E uns tantos "brancos" já ganhos davam-lhe a certeza de que até à hora da ceia estaria safo daquela mágoa de ver o saco vazio. O Chico, porém, sempre de carinha na água para o ver desorelhado, aproximou-se para seguir a disputa e começar os seus ditos. Ajudou os outros na batota contra ele, e Luís perdeu o que já amealhara, vendo até sumir-se os que trouxera de casa, a preço de algum tabefe que a tia não deixaria de lhe dar, quando notasse mais aquela falta.
- Cala-te aí, lafrau! Ainda te encho de nomes, que vais ver!... - gritou Luís para o irmão, procurando a ajuda do Fatinário, que também se aproximara.
- Julgas que a cova está em Fontelas, do outro lado do Doiro...
E a canalha ria do seu desespero e das piadas do Chico, todo repimpado no muro, a espreitar, de vez em quando, o quinteiro da Vareirinha, cuja filha andava já nas suas intenções.
Endiabrado com a má sorte, Luís dispunha-se a jogar tudo para que o irmão amochasse no seu gáudio. Atirou o último botão à cova, medindo bem a distância com o olhar, e jogou-o depois com decisão. Mas o Mafarrico estava contra ele nos últimos dias. Embatendo numa pedrica, o botão recuou com velocidade, fez uma volta, a
179
distância, e parou longe da parede. O irmão sorriu-se, matreiro, afagando os pêlos do buço, seu orgulho de rapazola. Luís teve uma veneta de o atirar dali abaixo, mas quis ainda tentar a sua última oportunidade. As jogadas sucederam-se numa vertigem - perdera.
Entregou o seu último "branco", muito vermelho de raiva, enquanto a canalha gritava a sua falência, rodopiando alguns, no adro, de mãos dadas e numa exultação.
- Foi à pireza! Foi à pireza!
Mediu-os de esguelha e teve de retrair os seus intentos, para não galgar em cima de um deles, a poder de murros e pontapés.
- Pireza o quê?! - gritou furioso. - Há aqui mais, vamos lá a isto.
E, arrancando um botão da camisa, pôs-se na marca da partida e jogou-o à cova. Então fez-se silêncio. A coisa era séria. A canalha percebeu que estava à frente de um herói, capaz de não recuar perante uma tareia para conseguir os seus intentos. O grupo reduzido dos que apoiavam Luís Teimas cresceu num instante. Só o Chico e pouco mais continuavam agora da banda dos outros. O rapazito sentiu-se orgulhoso daquele volte-face dos assistentes, recordando com gratidão algumas palavras do avô - um homem, mesmo quando está a morrer, ainda deve pensar que vive. Há sempre que contar com ele.
Nunca ali no adro se jogara assim. Alguns garotos, por admiração incontida, não puderam refrear-se, sem que lhe não fossem oferecer botões dos seus sacos. Recusou-os a todos.
- Só os meus é que valem - respondeu com bazófia, a olhar o irmão.
O silêncio tornou-se tão surpreendente que o abade correu à janela, com receio de que tivesse sucedido alguma de marca. E viu-os tão interessados na refrega que se deixou ficar também, com curiosidade em saber o que se
180
passava de sobrenatural naquela jogatana. Luís ganhara de fiada uma mão-cheia. Sorria agora à sua volta, como se assim quisesse repetir as palavras que recordara do avô. O Chico mordiscava as unhas, tentando, a espaços, um dos seus gracejos. Mas o irmãozito dominava os nervos e sentia-se capaz de ganhar ali todos os botões que havia na aldeia. O caso é que os outros também eram de força e o desafio não afrouxava.
No botão, porém, como na vida, a sorte muda. E para Luís aquela aragem de boa estrela foi sol de pouca dura. Perdeu tudo num instante - mais depressa do que ganhara. Jogador inveterado, já fora de si, arrancou outro botão e outro da camisa. Os amigos ofereceram-se para lhe emprestar e recusou de novo. - Só os meus é que valem.
Jogou com ardor, impacientado, com a vista toldada por qualquer coisa que não eram lágrimas, mas raiva contra a maldita azarina que lhe entrara com a abertura da época do botão. Perdeu a tineta e fez o seu jogo de qualquer maneira, às cegas, desejoso de acabar aquilo depressa, mas ainda com brio. Queria ver-se vencido de todo, sem uma hipótese para jogar. Percebia que, se se afastasse com alguns botões, os assistentes voltariam a sogá-lo como das outras vezes. "Um homem, mesmo quando está a morrer, ainda deve pensar que vive." Sabia-se agora derrotado, mas era preciso fazê-lo com honra, amachucando o irmão, como um exemplo que fosse lembrado no adro durante algumas semanas, embora o Chico tivesse abalado em direcção à fonte.
- Queres ainda?... - perguntou-lhe um dos seus adversários, já compadecido.
- Pois então!... Já disse que tinha acabado?...
E arrancou um botão preto dos calções - era já o segundo - para o jogar, a sorrir, em direcção à cova que lhe dava ganas de espezinhar ou oencher de pedras, para
181
que ninguém ali mais jogasse o resto da vida. E perdeu-o também - perdeu tudo. Teve de agarrar nos calções para lhe não caírem, e abalou a caminho de casa, decidido, sem se temer à surra que ia apanhar da tia. Todos se afastaram para ele passar; o Fatinário gostou de o ver assim e pôs-lhe o braço sobre o ombro, numa homenagem que o* rapazio ficou a invejar. Gordalhucho, como o pai, um filho do Carriço disse então para os outros, no seu jeito grave, de uma precocidade que levara a alcunharem-no de Velhinho: "Aquele Teimas é um ga-jão!" E todos acharam que ele dissera a justa palavra. Mas Luís é que entendia não haver feito ainda a sua vontade. Recusou a ajuda proposta pelo Fatinário, que queria levá-lo consigo, para a mãe lhe pregar uns botões, e enfiou pela cozinha, depois de ter amarrado as calças com um baraço velho. Entrou sorrateiro, certo de que o avô não tinha olhos para descobrir o atilho, e ficou à espera que a tia se voltasse para as bandas da lareira. O avô pregara-lhe um aviso: não andes muito ao sol, neto. Olha que se te pegam as maleitas... - Não estive ao sol, avô.
A irmã pairava no berço, estendendo os braços para ele, já habituada a que lhe pegasse. Luís Teimas ia, porém, com outro propósito e não desejava esquecê-lo agora. Escapou-se pela escada que nem um gamo, procurou o pião na caixa onde o guardara e, enrolando a corda ao pulso, como no hábito da canalha, voltou para a rua que nem um foguete, ainda com receio que a tia o tivesse visto e viesse persegui-lo com ralhos. Logo havia tempo para tudo isso e ainda mais - já sabia a conta que lhe cabia no lombo.
Fora de adro enrolou bem o pião, deu volta à ponta do cordel no dedo, e apareceu de mãos atrás das costas para o esconder. "Aquilo tinha de acabar. Não estava disposto a perder mais um botão, sequer, a jogar à cova."
182
E saltando para o meio dos outros, atirou o pião ao terreiro e ficou-se a vê-lo bailar, no seu rodopio, olhando os companheiros, de soslaio, como para ver o efeito que neles fazia ia quebra do preceituado quanto às épocas de brincadeiras.
-Isso está fora do tempo; guarda lá isso - gritou-lhe um dos rapazes.
-E que m'importa?... Quem quer meças comigo?...
Os rapazes hesitavam ainda; mas entenderam na sua que um "gajão", como lhe chamara o Velhinho, tinha direito a romper com esses hábitos. E alguns correram a buscar os seus. Houve ainda disputas: Luís teve de se engalfinhar com o Marradinhas e levou a melhor.
E o "sereninho" pôde rodopiar no adro e na palma da sua mão, disputando aos outros a supremacia da aldeia. Foi uma revolução nos hábitos do rapazio - mas a época do pião começou um mês mais cedo naquele ano.

XI
À noite é que foi o diacho.
Deram com ele naquele preparo, levou uma surra do pai e ficou sem ceia. Disposto a tudo, nem as correadas lhe doeram nem o comer lhe fez falta. Adormeceu como um santo, contente consigo e com o pai, que não deixara de o castigar com rudeza, como era preciso que a canalha soubesse.
E quando o irmão subiu ao quarto já não pôde dizer-lhe das suas - sonhava, com certeza, porque sorria numa volúpia de quem vai feliz para uma longa viagem. Só, então, o avô deu largas às gargalhadas que retinha, desde que a Gracinda o descobrira naquele preparo, muito arrimado
183
à parede, sem jeitos de se aproximar da mesa, onde toda a família esperava a ceia.
- Aquele rapaz é o trinta demónios!
- Vossemecê acha-lhe graça em tudo - retorquiu Francisco, ainda excitado com a tareia que dera no filho.
- Assim eras também quando tinhas o seu tamanho. E olha que nunca tirei o cinto para te chegar.
- Porque não era teimoso como ele...
- Infelizmente para ti.
Fez-se silêncio com aquelas palavras, que soaram como uma alusão às suas dúvidas dos últimos meses. Começara a perceber que a cunhada o não desdenhava desde o princípio da Primavera, numa noite em que fora acompanhá-la, quando o ar estava cheio de um vivo aroma de terra encharcada. E nunca mais o pudera esquecer - trazia-o decorado no olfacto, como a recordação desse passeio em que ambos pareciam caminhar para o mesmo destino, alheios ao resto do mundo. A casa dela ficava no outro extremo da aldeia, perto da estrada que levava às margens do rio Torto. Tinham seguido, muito tempo, silenciosos. De repente ela dissera-lhe: "Pensas casar ainda?" "Casar, eu?... Talvez...", respondera-lhe por despeito.
Nem mais uma palavra haviam trocado. Num quelho, para além da praça, ela agarrara-lhe na mão, a pretexto de lhe pedir ajuda, e tinham caminhado assim até à sua porta. À despedida, já da parte de dentro, pedira-lhe que não casasse.
- E porquê?... -perguntara, só para não ficar calado.
- Coisas parvas da minha cabeça.
Dissera aquilo com os seus belos olhos cravados nos dele, as narinas agitadas e a boca entreaberta e húmida, como se acabasse de a molhar na Fonte Velha. Ficara sem entendimento por um espaço de tempo que lhe pareceu
184
depois infinito. E, quando estendeu a mão para a agarrar, ela fechara a porta, sem mais palavras.
Especado, ali defronte, pensou no que sucedera; quis juntar factos e não encontrou coerência que justificasse a sua atitude. "Mostrara-se sempre tão rebelde e agora... Que lhe teria passado pela cabeça?..."
Prolongara a volta à casa, passeando sozinho pelos campos, a magicar naquilo. Fizera todos os granjeios e fora pagar a dívida ao credor do Pinhão com dinheiro que ela emprestara. Aquele empréstimo tivera o condão de matar nele a atracção que sentia.
Notara, finalmente, que cometera um grave pecado, pensando nela, numa falta que só não era irreparável, porque nunca lhe falara.
"Coisas parvas da minha cabeça. Tinham, porventura, aquelas palavras algum sentido? "Coisas parvas da minha cabeça..." E o seu olhar voltava-lhe à imaginação, mais vivo e meigo do que nunca. Passara à taberna do Mal-Matado, para arranjar conversa que o afastasse daquela preocupação, mas só conseguira responder por gestos às perguntas que lhe dirigiram. Fez um esforço para se integrar na discussão que havia à volta do caso dum especulador que viera comprar vinhos e agora os não queria levantar; não conseguiu, porém, vencer a sua ausência. Acabara por sair, como entrara, a aparafusar no mesmo: "Havia naquilo algum sentido ou era por causa da irmã?... Mas porque não dizia ela, claramente, o que pensava?"
Esperara o dia seguinte e vira-a muito retraída. Julgara-se tolo com tais preocupações, mas, na primeira oportunidade, a cunhada dissera-lhe que ele andava cego.
- Cego eu?... E porquê?!...
Deixara-o sem resposta - o encolher dos ombros e o seu olhar é que lhe tiraram todas as dúvidas. Sentiu, então, uma enorme alegria a crescer-lhe na alma; logo,
185
porém, se achou triste, mais melancólico do que quando andava obcecado e só tinha a certeza de que ela o não queria. Estabelecera-se dentro de si uma luta sem tréguas, em que os sentimentos mais opostos se debatiam, tornando penosa a presença de Gracinda dentro da sua casa. Dizer-lhe agora que) não voltasse seria abrir uma conversa, em que era forçado a confessar-lhe tudo. Nalguns momentos isso surgia-lhe como a maneira mais fácil de resolver a situação: ou a cunhada o repelia para sempre, ou se tornava sua amante. Quase sempre, porém, receava qualquer das decisões. Entendia que era preciso solucionar o caso, mas dentro de si. Estrangular aquele desejo até ao fim, de maneira que acabasse por desaparecer.
O remoque do pai levantava-lhe o problema de se considerar ou não cobarde. Seria receio ou bom enfio, o que o fazia hesitar? Desejava acreditar na segunda hipótese, para se não sentir diminuído aos seus próprios olhos. "Não vês agora como ela te olha? Porque receias possuir o que tanto desejas?..."
E aquelas interrogações perseguiam-no, durante o silêncio que se fizera na cozinha, depois das palavras do velho. Este compreendera que o magoara e tentava começar outra conversa.
- Pensas saibrar outro bocado de encosta depois da vindima?
-"Não sei - foi a única resposta que soube encontrar. Logo depois descarregou toda a sua ira, olhando o pai com azedume.
-Vossemecê só pensa em saibrar. E o resto?!... Julga que o dinheiro nasce debaixo dos pés?... Os amanhos que fizemos devemo-los à Gracinda. E temos de lhos pagar. Este amo talvez seja, ainda pior do que o outro e talvez se tenham de entregar algumas terras.
Francisco sabia que era essa a maneira mais pronta de desorientar o velho. Precisava agora de o ver excitado,
186
para se vingar da dúvida que este lhe levantara no espírito.
- Se eu deixar... - gritou-lhe o pai.
- Se os outros não quiserem, diga antes assim. O Que tem feito para que isso não suceda? Se julga que posso fazer milagres, engana-se. O dinheiro do Jerónimo já lá vai e o Matula avisou-me de que teremos de pagar armazenagem se o vinho lhe ficar em casa tanto tempo como neste ano. Qualquer dia abalo...
- Abala quando quiseres, ouviste? O raio que te pele com essa ameaça!...
O velho pusera-se de pé, encostado ao cajado, a que agora se arrimava, e todo o corpo lhe tremia de indignação.
- Pois vai sem me avisares, se assim o entendes. Ainda posso tomar conta no que fiz e me pertence.
- Tocando o sino, não?... - gritou-lhe com violência.
- Tocando o raio que te parta! Queimando as cepas todas para que elas te não cheguem às mãos, meu bastardo, que não gostas da terra nem doutra coisa que não sejas tu. Some-te da minha frente!
E o velho alçava a mão junto do rosto de Francisco, numa ameaça que parecia ir concretizar-se de um momento para o outro. Foi, então, que a cunhada interveio, para lhes lembrar que os rapazes podiam ouvi-los.
- Tens razão - ciciou António Teimas, dirigindo-se à escada que levava aos quartos. - E obrigado pelo que tens feito, Gracinda. Não julgues que nesta casa todos esquecem os teus sacrifícios. Até amanhã!...
Enquanto ele subia, passo a passo, os dois sentiram-se incapazes de o olhar ou de se fitarem. Quando a porta rangeu e se fechou depois, já ela pusera o lenço na cabeça para sair.
-Vens comigo?...
187
Gracinda fizera a pergunta sem saber bem porquê. Mas agora que via o cunhado a fixá-la de uma maneira estranha, achou que não lhe devia ter falado. Meteu o saco de ramagens debaixo do braço e encaminhou-se para a saída que levava ao quinteiro. Francisco viu-a aproximar-se da porta, deu ainda dois passos para a segurar, mas reteve-se. Uma alucinação de pensamentos enchia-lhe o cérebro. "Pedir-lhe que não voltasse?... E quando- lhe pagaria?!... Confessar-lhe tudo, para que ela o não julgasse indiferente ?..."
Ela esperava também qualquer atitude da sua parte. E quando chegou junto da saída parou e disse:
- Gostava que fosses comigo.
- Tenho ainda umas voltas a dar - respondeu-lhe Francisco, transtornado.
Gracinda voltou-se e viu-o parado no meio da casa, com os braços pendidos de desânimo, enquanto o rosto se agitava em contracções nervosas.
- Parece que me odeias - disse-lhe num desafio.
- Talvez, sim - gritou-lhe, no mesmo tom agressivo em que falara ao pai. - Desculpa que to diga, mas é melhor falar-te assim. Seria bom que não voltasses. Hei-de arranjar o dinheiro para te pagar antes da vindima.
-É isso o que queres?!... - insistiu ela.
- Sim.
Mas não foi capaz de receber aquele olhar que o fitava com submissão e ternura.
Só quando a viu abalar se sentiu capaz de um gesto. Correu para a porta, tentando ouvir-lhe os passos no silêncio da noite e com vontade de lhe gritar que voltasse; mas deixou o tempo correr, sabendo que lhe chegaria o arrependimento e o desespero, por nada ter feito para negar quanto dissera. E isso parecia satisfazê-lo, como se desejasse mortificar-se. Voltou para dentro da cozinha, correndo todos os cantos com o olhar inquieto e desconfiado,
188
e a procurar qualquer pretexto para ficar ali. Tudo, porém, lhe pareceu sem sentido, agora que sabia ter feito o irremediável.
Ela já não viria na manhã seguinte tratar dos filhos e do arranjo. Era preciso procurar uma mulher que lhe tomasse conta das coisas e pagar-lhe não só a mensalidade como ainda aquilo que ela levaria para casa. Arranjara um novo motivo para se atormentar e mais uma despesa para resolver, além do pagamento do empréstimo que a cunhada lhe fizera. E já não era pouco. "Para que aceitara a sua ajuda?", interrogava-se, torcendo as mãos com angústia. Se não fosse a alusão do pai, nada daquilo teria sucedido. Não era teimoso, bem o sabia. Desejava as coisas, cansava-se a consegui-las, e logo que as via prestes a chegarem-lhe às mãos receava-se com a posse. Andava doente, por força. Era impossível suportar aquele medo tolo de conseguir o que desejava.
A casa parecia-lhe agora mais insuportável ainda. Não a veria andar na lida, a cuidar-lhe dos filhos com carinho, e, quando voltasse à noite, já não teria a sua presença, para lhe segredar que talvez almejasse fazer dela sua companheira. "Podia ser que o destino lhe matasse o marido e, então, tudo seria fácil." Era o que pensava muitas vezes, embora evitasse repeti-lo. Mas por suas próprias mãos arredara essa hipótese da sua vida, pedindo-lhe que não voltasse. E não fora capaz de a chamar, antes que ela se enchesse de capricho e não houvesse remédio.
Com esse pensamento saiu pela porta fora.
Havia ainda gente nos quelhos, a refazer-se do calor do dia; alguns dormindo pelo chão, outros na alcovitice do dize tu, direi eu. Resmungou saudações aos que lhe davam as boas-noites, cada vez mais apressado, numa tentativa de encontrar a Gracinda, antes que chegasse a casa. Talvez fosse tarde; perdera muito tempo a pensar
189
e agora atormentava-se com a ideia de não poder apanhá-la.
- Parece que viste raposa, Teimas! - gritou-lhe alguém de um grupo que estacionava na praça, junto ao muro da taberna do Mal-Matado.
- Talvez coelha - gritou outro.
E um coro de gargalhadas ressoou na praça.
- Vou com pressa de agarrar a morte - respondeu, por fim, na intenção de os desviar de qualquer desconfiança.
- Pras bandas da quinta vai tomar chá, com certeza. - Devias levar a guitarra.
E, seguindo com esforço pelo quelho íngreme que levava à saída da aldeia, voltou aos seus receios, para estugar mais o passo. Dos lados da Casa Grande chegava o som do piano. Lembrou-se de que na noite em que a viera acompanhar, e lhe ouvira as palavras que o tinham embaraçado, os dois haviam parado uns momentos, ao portão, para escutar aquela música. Era a mesma; sim, os ouvidos tinham-na decorado. E, contudo, era agora uma música diferente, enervante, cujos sons apetecia agarrar para desfazer nos dedos.
Quando chegou defronte da porta da cunhada, viu luz pela frincha do postigo. Aproximou-se para escutar o que se passava lá dentro, mas, sem querer, deu-lhe um encontrão. A voz da Gracinda, aquela voz que ia deixar de ouvir, perguntou lá de dentro quem batia. Receando que o encontrasse naquela situação embaraçosa, galgou o quelho e um muro, escondendo-se perto duma oliveira.
Daí por momentos, o postigo abria-se e a sua silhueta desenhava-se na claridade frouxa da luz que vinha de dentro. Esteve para lhe aparecer, mas retraiu-se. "Porque não ficara junto da porta, para lhe pedir que esquecesse o que dissera? Era pior surgir agora, como um pilha-galinhas,
190
metendo-lhe medo e levando-a, talvez, a pedir socorro."
O vulto olhara para os dois lados da ruela, erguera depois a cabeça, talvez a olhar o céu, e desaparecera, por fim. Ficou ali, por muito tempo, intrigado com a luz que não se apagava. "E se estivesse acompanhada?... Com a ausência do António Francisco não teria já ela um amante que viria ali todas as noites?"
E a dúvida ganhou forma, quando recordou a repugnância de Gracinda em ficar na sua casa, junto dos sobrinhos e de gente que a saberia respeitar. O olhar inquieto dos primeiros tempos, depois da morte da irmã, talvez fosse o receio de se ver traída. E quando lhe fechara a porta, naquela noite...
"Andas cego! Que bruto se tornara. Aquelas palavras não queriam dizer outra coisa. Ela percebera o seu intento de há muito e, quando o vira mais afoito, dissera-lhe aquilo para o conter. Emprestara-lhe o dinheiro também por isso; queria que ele fosse seu cúmplice, nada mandando dizer ao marido do que se passava. Comprava-lhe o silêncio, tanto mais que era a ele, como seu padrinho de casamento, a quem incumbia de velar pela honra do nome que o marido lhe dera. Como andava cego! Ela tinha razão quando lho dissera."
Ficou com aquela certeza. Pensou ir a casa buscar a espingarda, para atirar sem piedade sobre o homem que saísse. Mas, entretanto, o outro podia abalar e perderia a oportunidade. Talvez ambos estivessem naquele momento a rir-se de si. Ela contaria tudo, exagerando por certo, pois já não era a primeira vez que a apanhava em mentiras. Sentada no colo do amante com os braços à volta do seu pescoço...
A invocação dessa cena fulminou-o de ira, sentindo ganas de atravessar a rua e bater à porta. Conseguiu retrair-se e continuou à espera. Já muito tarde a luz apagara-se.
191
"Ficaria o outro lá dentro até de madrugada?... E se ele fosse chamar mais gente para assistir à saída?... Toda a aldeia o saberia e ela seria forçada a abalar dali. O marido deixaria de lhe mandar dinheiro; e do que lhe emprestara não havia escritura, e sentia-se capaz de negá-lo, por vingança. A bem todos o levavam; agora assim, com velhacaria, servindo-se da sua casa para esconder as vergonhas que fazia, não contasse com a sua boa-fé. Que a levasse o demónio bem para longe, donde nunca mais houvesse notícias de semelhante mulher!"
Devia ser tarde, com certeza; já não se ouvia o piano da Casa Grande e só os grilos zangarreavam entre os socalcos. Calaram-se os cães; as estrelas estavam vivas, como há muito tempo as não via. Saiu, então, do seu refúgio e foi encostar o ouvido à porta. Um grande silêncio respondeu à sua interrogação.
Dormiam já, por certo, a sono solto, cansados de se amarem. E ele ali, ridículo como um doido, sem pregar olho, à espera que o outro saísse para lhe saltar ao caminho e fazer-lhe frente. "Quem seria ele?!..."
Por uma estranha associação de ideias lembrou-se do Jerónimo, sempre atento para rodar as saias das raparigas sem namoro ou das viúvas mais novas. A Chandarca estivera lá em casa por causa do pai, embora ele não a quisesse chamar. E a bruxa era quem preparava o terreno para o Jerónimo conseguir os seus fins. O dinheiro que ela tinha talvez não viesse do marido, mas desse amaldiçoado que brincava com a vida alheia.
Um novo argumento lhe ocorreu para se convencer melhor. "Porque lhe comprara o Jerónimo o vinho da última colheita, quando antes se recusara a adquiri-lo pelo preço que ele próprio tinha oferecido?... Fora ela quem lho pedira, estava bem de ver. Queria comprá-lo, para que o António Francisco nada soubesse. Mas enganavam-se."
192
Pensou voltar ao seu abrigo, para que ninguém o visse ali e não fosse espantar a caça, se ainda por cima não lhe levantassem algum falso testemunho. Era preciso cautela, agora que tudo descobrira. Não calculava o tempo que passara, mas a claridade do céu indicava que a madrugada não viria longe. Daí a pouco os trabalhadores iam começar a sair dos cortelhos, para aproveitarem a jorna até ao meio-dia, e era preciso que o não encontrassem.
Abalou para casa, atravessando a aldeia com mil cuidados; quando entrou no quinteiro, viu a porta fechada e luz lá dentro. Hesitou um instante; depois decidiu-se, dando volta ao trinco. Sentado num banco, o pai olhava para ele de uma maneira penetrante, como se quisesse adivinhar donde voltava. Aquela expressão embaraçou-o. Pensava subir a escada, sem mais explicações, mas con-teve-se.
- Já a esta hora?... -perguntou para o velho, querendo mostrar-se distraído.
- Já! E tu ainda...
- Ainda, pois, e então?... Não posso tratar da minha vida?...
- Podes, sim, mas tem cautela. A Gracinda...
- Não me fale nessa mulher - gritou com desespero. - Já não entra aqui mais vez nenhuma.
- Porque não te quis - naturalmente - insistiu o velho, também excitado.
- Porque não recebo gente daquela na nossa casa.
- Cala-te aí!... Julgas que não te tenho percebido?...
E esfregando as mãos, com um grande sorriso a brincar-lhe nos olhos, o velho pegou no cajado e aproximou-se da lareira, enquanto Francisco procurava compreender o sentido das suas palavras.
- Ainda bem que te deu para trás, já que tu não
193
andavas em teu juízo. Vai dormir, anda. E depois dizes que as coisas correm mal.
Francisco tentava falar, mas o pai mostrava-se de tal modo firme no que dizia que resolveu subir ao quarto. Só do alto da escada foi capaz de lhe falar.
- Engana-se com aquela prenda!

XII
- E então, D. Assunção?... Que me diz... da nossa conversa sobre a menina Helena?
- É melhor esperar ainda algum tempo.
O Silva Costa já não podia aguentar aquela situação, que se prolongava havia meses. Convidara-as para virem à quinta passar uns serões, para que ela tocasse piano e estivesse mais junto de si, criando entre eles uma aproximação comprometedora, e, afinal, parecia ter preparado tudo para que o fidalgo se aproveitasse. Era isso que mostrava a intimidade entre D. Afonso e Helena, sempre junto do piano, a cochichar, executando músicas a quatro mãos, e conversando, à parte, em assuntos pelos quais ele desejava mostrar, por hostilidade, o mais absoluto desprezo. Insistira várias vezes com a mãe e a resposta era sempre a mesma - espere ainda algum tempo.
De costas voltadas para ele, muito juntos um do outro, sabia lá o que faziam com as mãos! Tinham de se tocar, por força. Ele, pelo menos, se estivesse naquela situação, não deixaria de se aproveitar. Já sondara o fidalgo acerca disso, mas o rapaz mostrava-se impenetrável aos seus rodeios. Estivera tentado" a contar-lhe a conversa tida com a mãe; contudo, preferia continuar naquele jogo de dúvidas e de insinuações, para saber como precisava
194
conduzir-se na resolução do assunto e se ela mereceria usar o seu nome.
Algumas vezes aproximava-se deles, sorrateiro, numa tentativa de os apanhar em qualquer intimidade. Deviam estar atentos; viam-no, certamente, pelo polimento do piano que funcionava como um espelho para os avisar. Não podia demorar-se muito, porém, porque logo a D. Assunção inventava qualquer assunto para o trazer até junto de si.
A professora compreendia todos aqueles sintomas de ciumeira e gozava com tais indícios que a vingavam da desilusão provocada pelo administrador. Sabia que a filha acabaria por casar com ele - era esse, de resto, o seu desejo, porque bem precisavam de alguém que as protegesse -; mas antes disso queria vexá-lo, fazendo-lhe sentir que Helena merecia um outro homem mais jovem.
-Mas não acha, D. Assunção? - insistia - o Silva Costa na sua voz esganiçada.
- Parece um rapazinho... Então, que é isso?!
E sorria com aqueles lábios finos que escondiam toda a satisfação da sua alma, falando-lhe assim para o humilhar, embora tomasse um ar muito terno de s. Ogra desvelada.
- Porque há-de ter essa pressa?... Acalme esses nervos. Já experimentou flor de laranja? - perguntara-lhe, solícita.
Silva Costa sentia-se capaz de rebentar, mas sorria-lhe também, em contracções que eram esgares. Toda a sua atenção estava posta nos dois jovens. Espiava-lhes os mínimos gestos; tentava seguir as conversas que faziam durante os intervalos das músicas. E ficava intrigado se os via rir ou olhar um para o outro durante mais algum tempo do que lhe parecia necessário.
195
- Ora contem lá, contem - dizia do seu lugar, acabando por ir até junto deles.
- Não seja curioso, Sr. Silva Costa - contrariava-o a voz da professora, cuja presença se lhe tornara insuportável.
E Helena, como se comparticipasse no suplício que a mãe lhe reservara, pedia ao fidalgo que nada dissesse.
- Não gosta de distribuir a sua alegria? - perguntou-lhe de maneira afectada.
- O que nos dá?...
Abandonado no meio da sala, Silva Costa sentiu-se corar de ridículo, e voltou para junto da D. Assunção, sempre muito empertigada no seu espartilho bem cingido. O piano começou a ouvir-se numa outra música, agora só tocada por Helena. D. Afonso levantara-se e pusera-se por detrás dela, tendo de se debruçar para ir passando as folhas já executadas. A Silva Costa parecia-lhe que ele a iria abraçar de um momento para o outro - estava inquieto e perturbado. À socapa, olhou o relógio, com desejos de que o serão acabasse, pois já não podia mais com aquele namoro desvairado. Por desforra, voltou a contar a D. Assunção, exagerando ainda em pormenores, por que motivo o rapaz viera para a quinta.
- Mas ninguém diria...
- Ora, minha senhora, porque não lhe dou a chave da garrafeira e imponho aqui o meu respeito. O fidalgo ordenou-me que o tratasse como uma simples visita. E assim tenho feito...
- Deve humanizar-se, Sr. Silva Costa. Acha-se capaz de ser o carcereiro dum rapaz tão belo... e tão amável?...
Silva Costa, porém, não dava agora conta das palavras de D. Assunção. Ocorrera-lhe um plano para acabar com aquela situação vexatória e já gozava, só a pensar nos seus resultados certos. "Que tolo!" Uma coisa tão
196
fácil que só lhe passava pela cabeça no meio duma conversa."
Agora era ele quem sorria com sinceridade. Bateu as palmas para que a criada viesse servir o chá e tornou-se exuberante, a passear a sala de um lado para o outro, cofiando o seu bigode cuidado, enquanto a professora lhe estranhava a atitude.
Maria Dolorosa entrou de bandeja na mão, indo servir as senhoras. O vestido preto, o avental branco e a touca de renda, posta sobre o seu cabelo de azeviche, realçavam mais ainda a sua beleza.
-Maria Dolorosa!... - disse D. Afonso coménfase. - Um lindo nome para algumas páginas de Beethoven.
E, pousando as duas xícaras sobre o tampo do piano, ficou-se a seguir-lhe o menear das ancas, quando ela se dirigia ao Silva Costa para o servir. "Um amor de rapariga! Mas eu tenho andado cego!", pensou numa repri-menda à sua distracção. E só naquele momento voltou a invocar as suas lágrimas dessa noite em que ele lhe tocara o Clair de lune, Maria Dolorosa, ao aproximar-se da porta, voltou-se instintivamente, e, quando viu que ele continuava a olhá-la, sorriu-lhe num agradecimento e abalou pelo corredor.
Ao administrador, porém, não passou o pormenor. Debruçando-se, afectuoso, sobre as costas da cadeira de D. Assunção, falou do caso, em seu proveito.
- Reparou?... É um anormal perigoso. Julgo, prudente avisar sua filha de qualquer tentativa da parte do fidalgo...
- Ó Sr. Silva Costa!... - interveio a professora com fingida indignação, mas intimamente feliz por assistir a mais aquele indício da tortura que o administrador sofria.
197
- Eu sei, evidentemente, que sua filha é um modelo de virtudes. Nem eu olharia para ela se tal não compreendesse - emendou, ruborizado. - Mas a música para certas pessoas é... como direi...
- Uma paixão...
- Sim, uma paixão; disse V. Ex.a a palavra exacta.
Silva Costa fixou D. Assunção com um olhar tão profundo que ela teve de lamentar o erro crasso que o destino ia permitir, não lhe dando aquele homem para
marido.
- Nunca fez versos?... -perguntou-lhe a professora
com doçura.
-Oh, versos!... Talvez...
E o administrador gozava no rosto de D. Assunção o prazer de se sentir requestado pela mãe da que seria sua mulher. D. Afonso, porém, parecia agora distraído e respondia-lhe por meias palavras. Via Maria Dolorosa a atravessar a sala com o seu olhar luminoso, genttil e simples como uma rainha. E recordara o que lhe dissera nessa noite quando a sentiu perturbada pela música.
- Já é tarde, Helena - lembrou D. Assunção, olhando o relógio de figurinhas.
- Porque não fica mais uns instantes? - voltou Silva Costa a dizer, por cerimónia.
- E os rapazes, amanhã!... Não, não pode ser. Foram acompanhá-las até casa, como já era hábito.
E os dois voltaram silenciosos, lado a lado, sem trocarem palavra. Silva Costa ainda tentou conversa, como se continuasse a esconder o plano que continuava vivo no seu pensamento; mas D. Afonso foi tão indiferente e seco na resposta que o administrador entendeu não dever insistir.
Separaram-se ao fundo da escada. Daí por instantes, o piano embalava a Casa Grande com o Clair de lane, que o fidalgo tocava com o candelabro apagado. Ninguém,
198
contudo, entrou na sala, como ele esperava. Maria Dolorosa ouvia-o do seu quarto, de lágrimas nos olhos, sem compreender que o apelo se lhe dirigia.

XIII
Envergonho-me de o confessar mas é irremediável este temperamento. E talvez assim eu possa corrigi-lo, mostrando a loucura do rumo dos meus afectos. Amo D. Afonso como amei o Dr. Freitas. Gosto dos homens jovens que se aproximam de mim. Estou convencida de que não são os homens em si que me perturbam, mas a sua mocidade. É com certeza uma consequência de ser ainda uma rapariga e não achar possível o meu casamento com o Silva Costa. A mamã deve sofrer muito. E tudo sofre por mim, convencida de que o seu dever materno lhe impõe um tão grande sacrifício.
Seremos infelizes as duas, e tudo afinal era tão simples se o dinheiro da Silva Costa não lhe desse direitos que a sua idade e a sua cultura lhe não dão. Ele pode escolher - eu tenho de ficar submissa aos seus desejos e a mamã vexada às suas conveniências
D. Afonso não me pode querer. Agarrou-me por duas vezes na mão, quando tocávamos a Valsa do Amor, mas fê-lo só porque eu o olhei com ternura, do mesmo modo que acarinharia um cão que saltasse à sua volta. Não posso cometer uma loucura com ele, porque ficarei perdida e abandonada para o resto da vida. Mas gostaria de afagar nos meus dedos aquela linda cabeça. Fi-lo em sonhos, enquanto tocava. Que bom a música - ela contém todas as palavras que desejamos conceber, sem que mais ninguém as entenda, como nós, e sem este inconveniente
199
da escrita, tão incapaz de lhe comunicarmos tudo o que sentimos. Há coisas tão suaves que uma pena não pode escrever. É muito diferente!...
Qualquer dia, o fidalgo abala para as suas aventuras e aqui ficarei à disposição do Silva Costa, senhora da Casa Grande; mas só por empréstimo, enquanto a família de D. Afonso não lhe apetecer vir passar uns dias a este inferno de calor e de mesquinhez. Mas que fazer nesta aldeia?... Muitas raparigas invejarão a minha sorte, porque não têm de ser colocadas perante a mesma irremediável situação. O assunto vai resolver-se em breve.
Fui hoje tão feliz quando ele passava as folhas do álbum e me tocava nos ombros!... Enganei-me algumas vezes na música, não porque fosse difícil, mas porque, de olhos fechados, deixei a imaginação correr à vontade. Estávamos sós, os dois, e eu era sua mulher...
Num ímpeto, Helena atirou com a pena, que rolou na mesa; depois releu o que escrevera, arrancou a folha do seu diário e rasgou-a em pedaços.
Encostada ao parapeito, cerrou os olhos e deixou-se ficar a conceber quanto idealizava.

XIV
- Sr. D. Afonso!... Sr. D. Afonso!...
Silva Costa resolvera levar o seu plano por diante. Se não tivesse razões de sobra, por seu lado, repugnar-lhe-ia aquele processo de afastar o fidalgo da aldeia. Respeitava-se o suficiente para não cometer deslealdades a quem quer que fosse, mas naquele caso todos acabariam
200
por lhe agradecer a intenção e as consequências da manobra.
Pensara também aguardar mais uma quinzena, que era o tempo suficiente para que a família do Sr. D. Fernando chegasse para as vindimas. Talvez, então, achassem o castigo justo para o rapaz e o levassem para o Porto. O fidalgo, porém, era casmurro e ninguém lhe podia garantir que não resolvesse manter ali o filho até à época das carregações. E daí até lá...
- Sr. D. Afonso! - insistiu à porta da biblioteca, informado pela Ana Sarrifa de que ele se metera lá dentro, era ainda madrugada.
"o amor podia surgir entre eles de um momento para o outro e nada haveria a fazer. Os romances que começara a ler, para lhe dizerem alguma coisa desses assuntos de coração, mostravam-lhe todos que os seus receios eram bem fundamentados. Jovens, com as mesmas predilecções e sem mais por onde escolherem, não poderia ser outro o resultado natural daquela convivência. A D. Afonso não faltariam mulheres e Helena não seria para ele mais do que uma simples aventura. Afastando-o dali, cometeria um duplo serviço: ao fidalgo menos um motivo para que o pai persistisse em castigá-lo, tirando-lhe até, porventura, a parte cativa da sua herança; a Helena, salvando-a de um abismo para onde a sua inexperiência a poderia levar."
E Silva Costa achou tão nobres propósitos neste encadeado de pensamentos que afastou de si, em definitivo, o receio de cometer uma acção indigna da integridade do seu carácter. "Com isso não queria ele preocupações de qualquer natureza. A sua palavra e o seu carácter eram parte sagrada da honradez que desejava manter contra todas as conveniências. Depois de D. Afonso abandonar a quinta, provocaria uma longa conversa com Helena, durante a qual lhe falaria na sua proposta de
201
casamento, reservando-lhe toda a liberdade de resolução. E até... Seria uma nobre atitude que todos louvariam -retiraria a sua pretensão para lhe dizer depois: ama-me o suficiente para que eu possa ter a honra de lhe chamar minha esposa?..."
Agora, sim. Silva Costa sentia-se, finalmente, de bem com a sua consciência, e já poderia chamar D. Afonso em voz alta.
Logo de dentro lhe disseram para entrar. Junto duma das janelas que deitava sobre o jardim, o fidalgo estava sentado com um livro oentre as mãos, tendo peito um cinzeiro cheio de pontas de cigarros. Parecia excitado e os olhos traíam a insónia que passara aquela noite.
"Preciso de ajudar este rapaz a sair daqui, já que ele não tem coragem para o fazer."
- Alguma novidade?...
- Não será bem uma novidade, D. Afonso. Venho pensando muito neste degredo a que o paizinho o submeteu.
-Obrigado - disse o rapaz por mera cortesia, sem desfitar o fumo do cigarro.
Silva Costa puxou uma cadeira para junto do fidalgo e, de cotovelos apoiados nas coxas, para tornar a conversa mais íntima, prosseguiu nas suas considerações, procurando adivinhar na expressão do outro quais as reacções que lhe produziam.
- Espero que D. Fernando nem sonhe esta minha opinião.
Um cerrar de olhos e a mão que se moveu disseram-lhe que podia continuar.
- Peço-lhe que conte comigo para qualquer liberdade que esteja ao meu alcance. Se for preciso algum dinheiro...
"Já dissera mais do que queria"; mas emendou com um sorriso de modéstia.
202
-Pouco, é claro... Sabe que os meus proventos não me permitem outra oferta.
- É muito gentil - agradeceu o fidalgo, desinteressado.
Naquela manhã, nem talvez a notícia de que voltava para o Porto o libertaria do acabrunhamento em que se encontrava.
-Percebo que a sua mocidade se incompatibilize com tudo isto. Além do que ofereci, conte com a minha amizade.
E, metendo a mão à algibeira, Silva Costa mostrou uma chave que fez girar nos dedos.
- Vou hoje à Régua. Sei que tem pedido à Ana a chave da garrafeira...
D. Afonso modificou a expressão; pôs o livro de lado e interessou-se pelas palavras do administrador.
- Deixo-lhas. Peço que tenha cuidado. Só voltarei amanhã, à tarde, e conto recebê-las das mãos de Vossa Excelência. Se o papá aparecer... ou se houver qualquer coisa, enfim...
Silva Costa ruborizou, por instantes, transtornado com os mesmos rebates de consciência. "Era preciso salvar Helena e aquele rapaz. Depois teria a tal conversa com ela, para retirar a sua pretensão." E aquietou-se para prosseguir.
- Espero que preserve a minha cumplicidade amiga. Dirá que as foi buscar ao meu escritório... Qualquer desculpa, enfim, que lhe pareça capaz de me defender.
- Conte comigo, Silva Costa. Nunca comprometi os amigos...
E, estendendo-lhe a mão, num agradecimento afectuoso, D. Afonso pegou na chave que o outro lhe oferecia e meteu-a ao bolso.
- Deseja alguma coisa da Régua?...-perguntou o administrador numa reverência.
203
- Não, obrigado. Boa viagem!... E creia que não esqueço esta sua prova de compreensão. Já estou cansado desta santidade a que me condenaram.
- Cuidado, D. Afonso. Muito cuidado! - recomendou-lhe ainda num sorriso, que mais parecia um incitamento.
- Descanse.
E Silva Costa, quando saiu para tomar o carro puxado a parelha que um criado acabara de trazer para o terreiro da quinta, sentiu-se liberto de todas as preocupações. "Era um belo feito, não havia dúvida. Aquele rapaz precisava de sair dali. As flores da cidade não se davam entre os xistos do Alto Douro."
Assobiando, saltou para junto do cocheiro; volveu o olhar para a janela da biblioteca e cumprimentou D. Afonso com o chapéu, embora lhe apetecesse fazer um adeus de intimidade. O fidalgo é que correspondeu com um sorriso de camaradagem.
O cocheiro fez estalar o chicote e o carro partiu, a guizalhar ao trote das éguas.
D. Afonso, porém, não pedira as chaves a Ana Sarrifa só para acalmar a sua sede de vício pela bebida. Sentia-se esmagado pelo tédio da aldeia e por aquele calor que parecia espapaçar-lhe os músculos e os sentimentos, dando-lhe uma ideia de castração total do seu espírito. Andava com o cérebro ausente, como se entre ele e o resto do corpo houvesse uma distância infinita; tudo o que lá chegava tornava-se deformado por essa espécie de nebulosa que o abstraía até da forma dasdocoisas e das pessoas que o rodeavam. A insónia da última noite levara-o, contudo, a conceber uma reacção extrema. Já não podia com os serões da professora e da filha, as baboseiras do Silva Costa e os dias arrastados e inúteis
204
ali gastos, a ver o tempo pintar vagos sinais de transformação nas cores dos socalcos das videiras e nos montes acastelados pelo horizonte.
Sabia tudo de cor. Os vermelhos sangrentos, os doirados e os violetas do Outono; o castanho e o cinzento do Inverno, com as raras árvores todas nuas de folhagem e o garrular dos verdes na Primavera. O cheiro dos cortelhos e o cheiro das gentes... Tudo aquilo um cheiro nauseabundo, cheiro e só cheiro... Depois, talvez, outro Outono e outro Inverno... Os mesmos passos ressoando na Casa Grande, como se as pessoas fossem fantasmas; as mesmas palavras, a mesma sala e o mesmo piano. Uma rapariguita esquecida no meio de tudo aquilo e ele também ignorado de si mesmo, como o cupido do pavilhão ou um dos ciprestes da entrada.
Um símbolo da sua existência, aqueles ciprestes. Um cemitério de vidas com as suas preocupações ridículas, pequenos orgulhos, inúteis esforços - tudo um campo de mortos, onde até ele fora tocado pelo fatalismo do mesmo destino. O caseiro com a filharada; o Silva Costa no escritório, a dar ordens e a fazer contas; a velha ama a sorrir-lhe e a "rainha" da casa a servir o chá durante os serões - nesses serões impossíveis e sarnentos em que Beethoven e Bach ojá pareciam autores de valsinhas e •mazurcas.
Só um arranco violento poderia fazê-lo sair dali. Cartas para a mãe, e sempre a mesma resposta, eram já humilhações que não desejava repetir."O teu pai continua muito aborrecido contigo. E ontem disse-me que, finalmente, lhe dás algum lucro: as despesas da quinta diminuíram depois que aí estás."
Eram esses os períodos mais destacados da última carta que recebera. Encontravam-lhe agora uma finalidade - ser cão de guarda ddo administrador e do caseiro, enquanto o resto da família continuava a gastar no Porto,
205
em festas idiotas, o rendimento das quintas e o dinheiro das hipotecas. Aquilo tinha de acabar. E acabava mal.
Pegou na chave e meteu direito à garrafeira, ainda com certos cuidados, para não comprometer o Silva Costa. Nesse momento ligou as palavras da carta da mãe com aquela facilidade que o outro lhe concedeu, e teve um sorriso amargo. "Um biltre! Mas ajudava-o no seu objectivo. Seria cúmplice desse paspalho com voz de gaitinha de fantoches."
Correu os olhos pelas prateleiras, tirando para o chão o que mais lhe convinha. Reservas do tempo do avô, na sua maioria: duas Tokay, Champanhe, Geres e alguns vintage da região, vinhos que só eram servidos a visitas de alta categoria que por ali passavam, ou aos ingleses que da Casa Grande faziam quartel-general de compras, durante o tempo das vindimas. Contou-as, a uma por uma, no antegozo do seu plano. E, pouco a pouco, meteu-as na sala, em cima do tampo do piano e na mesa doirada do centro, fechando depois a porta e guardando a chave.
Até à noite nada o entreteve. Desceu a escada, foi ao jardim e voltou ao quarto, abriu a biblioteca e mexeu nalguns volumes. Voltou a fazer o mesmo que já fizera, e nada foi suficiente para o ajudar na tarefa de suprimir mais depressa as horas do dia. Só às cinco horas, enquanto tomava chá, se entreteve a dar ordens à Maria Dolorosa, retendo-a junto de si, para que lhe visse melhor o menear das ancas e o olhar luminoso do rosto trigueiro. Por fim, já perturbado com a sua presença, que lhe dominava a obsessão dessa longa abstinência, falou-lhe com ternura.
- Numa noite toquei para ti, sabes?...
- O menino?...
- Sim, eu, pois. E tu não apareceste... Aquela música já não te faz chorar?...
206
A rapariga movia os lábios sem nada dizer, como estupefacta das suas palavras. Corria com o olhar o rosto do fidalgo, retendo expressão por expressão, e só sabia sorrir-lhe de encantamento.
- Pois esperei por ti... Nunca te disseram que eras uma rainha no meio deste inferno?...
E agarrou-lhe na mão, puxando-a para si. O ruído de passos no corredor separou-os, porém, e a velha ama entrou desconfiada, pretendendo procurar qualquer coisa no guarda-prata.
- Vai lá para dentro, anda.
Contrafeita, Maria Dolorosa saiu, afagando com a outra a mão que D. Afonso agarrara, como se pudesse dali colher a mesma impressão de doçura que lhe correra pelo corpo. Até à hora do jantar ficou à espera que ele a chamasse, sem perceber bem por que motivo o desejava.
Dos homens que já tinham voltado das segadas não soubera qualquer notícia do pai e, embora o assalto começasse a esquecer, Maria Dolorosa sabia que lhe não era permitido voltar tão cedo là aldeia. Talvez fosse essa saudade, aliada à impressão que lhe provocara a música daquela noite, que a atraíam para junto daquele homem bem diferente de todos que conhecera. Serviu-o ao jantar, tão radiante por ele estar só, que a Ana Sarrifa lhe jogou uma graça das suas:
-Dormiste esta noite com o luar, cachopa?...
- Fiquei de janela aberta... - respondeu a rir, como se não entendesse o remoque.
E abalou para junto dele, sempre à espera que a chamasse para perto, recomeçando a conversa interrompida pela chegada da ama. D. Afonso, porém, bebia sem cessar, numa expressão vaga de recolhimento interior. Pensava em tudo o que tinha desejos de realizar na sua vida de artista em digressão pelo mundo. Nos últimos dias conseguira achar na biblioteca alguns livros de viagens
207
e entretivera-se a preenchê-las com a sua presença. Sentia-se disposto agora a lutar pelas suas preocupações. "Sairia dali; no Porto tomaria um barco como marinheiro até Hamburgo e depois... depois toda a Terra se abria ao caminho da sua imaginação."
Aquietado por essa certeza, reparou em Maria Dolorosa. Fez um sinal com a cabeça para que ela se aproximasse, correu-a com o olhar e esvasiou outro cálice de Porto.
- Sabes que vou partir?... Vou-me embora daqui; é possível que não volte mais. iSe não tivesse na vida um grande sonho para construir, talvez te levasse comigo.
Hirta e trémula, Maria Dolorosa escutava aquelas palavras que adivinhava dizerem lindas coisas, embora não compreendesse algumas delas. Meneando a cabeça, de vez em quando, D. Afonso prosseguia, acariciando o cristal dum copo que tinha entre os dedos.
- Preciso de ofender esta gente que me rodeia. E seria surpreendente fazer de ti minha mulher, vexando-os com a tua entrada na família. Vales mais que todas elas, acredita. Se um dia compuser... Sinto bem que o poderei fazer, hei-de lembrar-me de ti. Maria Dolorosa é um nome que hei-de consagrar. Será um dos meus protestos contra esta vida ignóbil que fez de ti uma criada... e de minha tia uma senhora. Irei pelo mundo... Quero emocionar multidões que ignoram a música como tu e podem entendê-la melhor que esta gente snodO Que vai ouvir Bee-thoven, em trajes espaventosos, ultrajando o génio...
Falava agora com calor e pusera-se de pé, olhando para o fundo da sala.
Depois, já a cambalear um pouco, D. Afonso passou por ela, em direcção à saída.
- Julgas que estarão muitos homens na praça?... - perguntou-lhe ainda.
- Sim, menino.
208
-- Pois esta noite vai haver concerto na Casa Grande. É o meu primeiro recital para o povo...
E abalou pelo corredor, sem mais uma palavra, enquanto Maria Dolorosa se ficava a vê-lo seguir, de junto da porta, com os braços pendentes e a cabeça numa confusão de imagens.

XV
Quando pelo portão grande irrompeu aquela avalancha de gente, o João Ermida saiu atarantado do seu cortelho, a lembrar-se da noite do assalto e dos desmandos praticados no Pinhão, onde, a machado, alguns homens tinham rebentado pipas de vinho do Sul que ali estava para despacho.
- Não me desgracem! Não me desgracem!... - gritava em altos brados, num gesticular de braços que, de longe, mais parecia o mover de um fantoche mal articulado.
- Que querem vossemecês daqui?O vinho do fidalgo é todo feito pela gente e pela terrinha que Deus abençoou.
Segurando os filhos à sua volta, a mulher ajudava-o na gritaria, enquanto às janelas da Casa Grande aparecia o resto da criadagem, alarmada com o alarido de ambos e o ruído dos socos na areia da álea principal do jardim.
- Vinde cá ajudar-me!... Que quereis daqui?! - bradou o João Ermida, encarando com o Espanhol, que continuava indiferente aos seus protestos.
- Nunca mais aqui fazeis um quartel de trabalho! Cego eu seja!
209
Aquela ameaça fez hesitar alguns homens. O caseiro ia de um para o outro, como se pretendesse segurá-los a todos com as suas mãos trémulas, onde havia súplicas e raivas; sabia que jogava o pão ou a confiança mais larga de Silva Costa e esforçava-se por dissuadi-los pela violência, já que o não conseguira com solicitações. Saltitando como uma alvéloa, João Ermida esbracejava ainda, arrepeso de não ter trazido consigo uma das caçadeiras da guarda à vinha, porque se achava capaz de atirar abaixo um dos mais atrevidos, certo de que os outros recuariam.
- Ainda não vos chegou o que já fizésteis ao Jeró-nimo?! - rouquejava em voz histérica, onde havia lágrimas.
Oculto na sombra, a gozar o desvairo do criado, D. Afonso incitava os homens a prosseguir contra as ameaças do caseiro. Hesitantes entre ambos, eles caminhavam, lentamente agora, levando à frente o Espanhol e o Sandrão. Foi para este que o João Ermida se voltou; agarrando-o pela camisa, estrebuchava aos gritos, para o conter, como se o outro lhe desse luta.
- Somos convidados do fidalgo, homem! - replicou-lhe o Sandão, que começava a perder a paciência.
- Uma figa!...
O outro, que andava atravessado com ele, desde a última poda, encolhia os ombros e tentava mostrar-se indiferente, embora, no fundo, fosse seu desejo socá-lo ali mesmo.
- Largue-me lá, Seu Ermida! - avisava o Sandão. - Olhe que a camisa tem dono... e o dono da camisa é torto como um arrocho.
- Largo-te um raio! A tua conta vais arranjá-la na Pesqueira - retorquiu o caseiro, obrigando o outro a recuar com o impulso dos seus braços.
Os homens rodeavam-nos, indecisos, à espera que o
210
fidalgo interviesse. Alguns começavam a debandar com receio de que o convite desse mais alarido ainda. Todos sabiam que o Sandão já trazia uma pinga no bucho e não era novidade para ninguém que ele jurara vingar-se do "capote" que o Ermida lhe dera na última poda.
- Talvez não te livres da costa de África! - gritava-lhe, possesso, o caseiro.
Puxando-o para si num golpe de força, o Sandão agarrou-o em peso e levou-o suspenso nos braços, como se o fosse atirar de encontro ao muro do primeiro bardo da vinha. Foi só nesse momento que D. Afonso se resolveu a intervir--tirou o João Ermida das mãos do outro
e sacudiu-o, como se o quisesse acordar daquele pesadelo.
- Sabes quem eu sou, cachorro?!...
O caseiro titubeava, numa gaguez nervosa, vexado com as risadas dos homens.
- Ó senhor D. Afonso... - lamuriava numa súplica.
O fidalgo, porém, deixara de achar graça à sua agitação e estava disposto a diminuí-lo aos olhos da criadagem. Antipatizava com a sua humildade perante o administrador, em contraste com a arrogância que usava sempre! no trato com os subalternos. Apetecia-lhe esbofeteá-lo ali mesmo, mas no meio da embriaguez ocorreu-lhe outro plano ainda mais seguro para o desrespeitar. Segurou-o por uma orelha e arrastou-o em direcção à porta do cortelho, onde a mulher desaparecera com os filhos.
- Uma vergonha destas, D. Afonso - murmurava o caseiro, escondendo a sua raiva.
As gargalhadas do Sandão repercutiram no silêncio da noite, mais alucinantes do que nunca, e contaminaram todos os homens, num coro de risadas que ninguém pôde conter.
Varado do pudor, João Ermida calou-se, embora jurasse íntima vingança para quantos conhecera no grupo. Estava já à porta de casa e o fidalgo segurava-o ainda.
211
- Não sais daí, ouviste? Não gosto que incomodem os meus convidados, nem que eles sejam farroupilhas de estrada.
E os seus gritos destemperavam-no mais, como se tivesse um acesso de loucura.
- Corro-te esta noite como a um cão!... Quando o meu pai não está, sou eu quem aqui manda, ouviste?... Ouviste bem?!...
Sacudia-o com raiva, ao lembrar-se das ordens deixadas ao Silva Costa. E sentia-se naquele instante capaz de cometer as maiores violências, para descarregar as humilhações a que o forçavam.
-Fecha-te lá, anda!... Não quero mais uma palavra!
A porta bateu com estrondo; ficou um silêncio tão pesado como a calma sufocante da noite.
- Vamos embora! - disse D. Afonso para os homens.
Todos o seguiram sem mais palavra. Nas janelas tinham desaparecido os vultos dos criados, por ordem da Ana Sarrifa, que fora recolher-se no oratório, a rezar pelo seu menino. "Andavam todos fora da graça de Deus! Se o avô voltasse, o que diria?! Uma vergonha!..."
Ouviu o ruído dos socos cardados na escada de pedra, e depois pelo corredor fora, até que se extinguiu. Junto dela, Maria Dolorosa parecia feliz.
Dentro da sala azul e oiro, com todas as velas acesas do grande candelabro, os homens sentiam-se estranhos, aglomerados num grupo compacto, junto da porta da entrada. Incomodava-os aquele ambiente que nunca haviam sonhado e o contacto do grande tapete macio sob os pés.
Os velhos olhavam o retrato da senhora e do fidalgo velho, recordando a sua presença na quinta; os mais pingueiros namoriscavam as garrafas espalhadas pelo tampo do piano e pela mesa do centro, onde um açafate de prata, com figuras cinzeladas, deslumbrava outros, encantados
212
também com o relógio doirado que encimava o fogão de mármore preto.
- Entrem! Que fazem aí à porta?!...
Alguns mais atrevidos moveram-se para dentro da sala, mas ficaram incapazes de perceber depois qual a atitude a tomar; parecia-lhes que se tinham aventurado de mais e rogavam aos outros, com o olhar, para que se chegassem também até ali. Os companheiros, porém, continuavam retraídos e estranhos, naquele enorme salão que ultrapassava todas as fantasias que haviam imaginado para a Casa Grande.
- É como o meu cortelho, hã?!... - disse o Espanhol, entre dentes, para se mostrar mais desembaraçado do que os outros.
O Inverno cerrou-lhe os olhos como resposta, num aviso de quem não queria galhofar ali dentro.
- Então?!... - insistiu D. Afonso, depois de levantar o tampo do teclado e beber uma golada de vinho de uma das garrafas abertas.
-Sentem-se por aí.
E, como os visse receosos ainda, foi empurrar os mais idosos para junto das cadeiras, onde os forçou a sentarem-se.
- Estejam à vontade - insistia D. Afonso. - Vocês trabalharam mais para tudo isto, num só ano, do que eu até hoje. Estejam à vontade!...
Alguns deles não percebiam o sentido das suas palavras; outros, porém, piscavam os olhos, entre si, e tomavam posições no círculo que se formara junto do piano. Era sobre aquele enorme caixão preto que todos tinham agora o olhar.
- Será aquilo que toca?... - perguntou um rapazola para o Espanhol.
- Acho que sim.
213
Foi então que o Francisco Teimas se aproximou do fidalgo, para lhe dizer que talvez fosse melhor abalarem.
- A gente agradece ao menino, mas isto não são coisas pra pessoal deste. O senhor D. Fernando não vai gostar, com certeza...
- E que te importas com isso?! Se queres sair, a porta está aberta...
E apontava-lha com arrogância.
- Guarda lá os teus conselhos para quem tos pedir.
Francisco Teimas voltou para o seu lugar, embezer-rado com a repreensão, que os companheiros pareciam lamentar com encolheres de ombros e meneares de cabeça. Já D. Afonso distribuía garrafas por todos, dando palmadas nas costas de alguns para os animar.
- Bebam, andem!
Ele próprio meteu uma delas à boca e passou-a depois para o Teimas, num sinal de tréguas pela reprimenda de há pouco.
- Prova lá disso e deixa-te de perlengas... É um porto autêntico! Que dizes?!...
O Teimas sorriu-lhe com assentimento; outros imitaram-no.
- É um daqueles que vocês trabalham e nunca bebem - disse D. Afonso, aproximando-se doutro grupo. - É o sol engarrafado de que falam os Ingleses. Não são tolos, não!... Que tal?!...
- Melhor que beijos de cachopa, fidalgo - retorquiu o Sandão, já refeito da pega com o Ermida.
- Não está mal comparado - voltou o fidalgo num sorriso de camaradagem. - Um beijo de mulher, hã?! - repetiu ainda, um tanto absorto depois nos seus pensamentos.
Sabia que estava a fazer mais do que o suficiente para ser expulso da quinta e recobrar a sua liberdade perdida. Percorria com o olhar turvo pelo álcool aqueles rostos
214
barbudos, onde só as pupilas cintilavam, pensando no escândalo que o caso iria provocar em todo o Douro. E ria-se intimamente, esfregava as mãos e incitava-os sempre.
- É beber até cair. Esta noite a quinta e a casa são vossas. Escavaquem tudo, façam o que quiserem. Já o ganharam há muito tempo.
- Só peço ao fidalgo que me dê esta coberta onde temos os pés -disse o Sandão, com o seu ar maroto e já sem vergonha, sob o poder do vinho. -Se tivesse uma assim, nunca mais me levantava.
E, ajoelhando, começou a afagar o rosto com a lã espessa e macia do tapete, enquanto os outros riam do seu desacato, em gargalhadas que saíam pelas janelas abertas e mortificavam o João Ermida, rodeado pelos filhos e pela mulher, no desconsolo de quem sabia haver perdido o seu lugar na quinta.
- Que macia!-ciciava o Sandão, refastelado de gozo. -É um pecado, fidalgo!... Um grande pecado pôr os socos em cima disto!...
D. Afonso aproximara-se do piano e, ainda de pé, correu as mãos pelas teclas - aquela corda de sons foi apagando as gargalhadas na boca dos cavadores. O Sandão levantou a cabeça e ficou quedo, a lembrar-se da filha do Mal-Matado, por quem morria de amores.
-Querem ouvir?... - perguntou D. Afonso, sem se voltar.
- Sim, fidalgo! - respondeu-lhe um coro de vozes.
- Foi para isso que viemos - disse o Espanhol com vivacidade! -Nunca ouvi coisa mais bonita!
E um silêncio fundo passou na sala, como se todos já tivessem abalado.
O fidalgo começara a tocar. Os homens sentiram-se aturdidos por aquela música que os rodeava pouco a pouco, num abraço, e depois lhes tocava a pele, num arrepio
215
de estranhas sensações. Volviam ainda o olhar uns para os outros, como se procurassem nos companheiros a explicação daquela magia que os ia dominando, submetidos ao poder dessa melodia de que eles próprios pareciam fazer parte.
Num arrebatamento desvairado, as mãos do pianista corriam sobre as teclas, ora em afagos que só ficavam esboçados, ora em crispações que se julgariam ir esmagá-las, e penetravam já dentro dos homens, dominando-os, por inteiro, ao seu poder emotivo. Todos tinham os olhos pregados naquele vulto que se agitava à sua frente, tocado pela luz das velas dos dois candelabros pequenos.
Mais chegados uns aos outros, os seus rostos estavam transformados por um apuro de sensibilidade, onde a música ia repercutir-se nos mais subtis pormenores. Não parecia agora a mesma gente que brincara com o podengo ou se desafiava na praça, de navalhas em punho; e, contudo, cada um deles tinha ali bem vivo, como antes, o rasto trágico da sua vida. Até o Sandão deixara de galhofar com o tapete e, ajoelhado, como se escutasse uma prece de religião desconhecida, procurava encontrar-se nas trevas da sua embriaguez, querendo guardar no coração aqueles sons que o percorriam. Cada cordão de homens era um friso de caras ingénuas que estremeciam de emoção, mais sensíveis do que folhas de árvore a acusar o bafo de uma aragem. Estavam deslumbrados, como crianças que ouvissem uma história maravilhosa - o olhar firme sorria de encantamento; os lábios semiabertos estavam tomados pela sedução mágica da música; as cabeças, mais erguidas, pareciam tocadas por uma auréola de beleza, como se um escultor as tivesse modelado num barro estranho e desconhecido. E quando D. Afonso tirou as mãos do teclado, erguendo-se a cambalear, os homens continuaram presos dessa mesma sedução, sem entenderem a angústia que lhe rasgava a alma. Viram-no pegar noutra garrafa, levá-la à
216
boca e beber com sofreguidão, indiferente agora à sua presença. Depois ficou a passear defronte do piano, em passadas lenttas, olhando os homens, de soslaio, como se receasse defrontá-los. Abanava as mãos trémulas, afagava uma na outra e meneava a cabeça, num destrambelhamento nervoso que eles não podiam interpretar. Esteve assim durante algum tempo. O bater do relógio do fogão parecia marcar-lhe os passos.
Finalmente, avançou para os primeiros homens e olhou-os com amargura.
- Chamei-os para me ouvirem...
A sua voz era magoada e soava num sussurro. - Queria mostrar-lhes... E num grito raivoso:
- Mas não posso! As mãos... as mãos não me deixam...
Contorcia-as com desespero, como se as quisesse desfazer.
- Não posso! Herdei todos os vícios desta maldita família...
Numa reacção brusca, porém, voltou-se para o piano e sentou-se. Correu as mãos pelas teclas e outra música encheu a sala. Os homens estavam perplexos, sem entenderem a sua tragédia.
Eles não sabiam que a memória e os dedos se lhe recusavam, frouxos e incapazes de corresponderem aos seus anseios. E a dúvida que o inundava fazia-se mais forte a cada instante. Percebia que se tornava incapaz de realizar os seus sonhos de fuga pelo mundo, grilhetado para sempre àquela vida sem horizonte que lhe queriam dar. Trouxera-os consigo por vingança, mas também para seu estímulo. E estava ali, quase tolhido, de mãos hirtas, querendo arrastá-las, num esforço supremo, a que se escusavam indiferentes, longe do seu domínio.
Arrebatado depois, começou a tocar qualquer coisa,
217
para se enganar. Era uma melodia bárbara, alucinante de sons, num crescendo de vertigem que fez recordar aos homens a noite do assalto. Os rostos foram-se transformando, até que os músculos das faces se crisparam também, como as mãos angustiadas do pianista.
Tocava sempre, numa amálgama de músicas que lhe chegavam de todos os recantos da memória, aos pedaços, esfrangalhadas e alucinantes. As mãos queriam cair mortas sobre as teclas e levava-as, sem rumo, de um lado ao outro, numa fúria que a ele próprio parecia inconsciente. Sabia que, se parasse, nunca mais acreditaria na libertação dos seus sonhos; e, contudo, essa dúvida era já uma certeza acabrunhante e imperiosa - de tal modo apossada de si que a cabeça lhe descaiu sobre o peito e a vertigem da música foi amainando, como se a distância começasse a vencê-la.
- Saiam!
E esse grito sacudiu os homens.
- Saiam depressa!... - insistiu, desvairado, fechando o tampo do piano com violência.
As palavras saíam-lhe em golfadas.
- Herdei todos os vícios desta maldita família... Queria ser um artista e serei um bêbado! Um bêbado!... - repetiu num lamento.
Aturdidos, sem o compreenderem, os homens foram saindo. Só o Sandão continuava de joelhos, sobre o tapete, sem saber se lhe devia gritar também ou se romper em soluços que lhe abafavam a garganta. E, quando o Espanhol o veio buscar, sacudiu-o, levantando-se sozinho, e atravessou a sala, a cambalear, com os olhos cheios de lágrimas. Parou ainda à porta para falar, mas abanou a cabeça e desapareceu.
- Um bêbado... Toda a vida um bêbado... Uma esterqueira tudo isto! - prosseguia ainda D. Afonso na mesma obsessão.
218
Depois, aproximando-se do piano, levantou o tampo e passou os dedos, num afago, pelas teclas mortas. O bafo quente da noite e o barulho dos passos dos homens na álea do jardim entravam pela janela aberta. No meio da sua inconsciência, esse ruído trouxe-lhe novas invocações, mas já não podia reagir. E sentou-se no banco, deixando cair a cabeça sobre o teclado.
Para Maria Dolorosa, os acontecimentos daquela noite adoçavam mais a figura de D. Afonso. Agradecia-lhe intimamente a concessão feita aos homens, trazendo-os à sala mais linda da Casa Grande, para ouvirem música. Lembrava-se do pai; e era por ele, que também ali viria se estivesse na aldeia, que a sua ternura pelo fidalgo aumentara. Se não fosse a ordem da velha ama, teria ido para junto deles viver o mesmo encantamento- Adivinhava-lhes as expressões risonhas, a terna aprovação de gostos, e deslumbradas, ela escutara, **de
**tir.
pelo corredor ?u-o. Queria sair,
**nhol: çú &" a junto daquele ho- Que lhe te oseguravam ou aquele
**repente parecia m ?o das trevas.
219
Deixou-os sair; em baixo, a porta bateu. Dentro de casa fez-se um grande silêncio, através do qual sussurravam as palavras do fidalgo naquela tarde e os comentários do Espanhol. Ele devia precisar da sua ajuda. "Que lhe teria acontecido?... Estava naquilo e de repente parecia maluco."
Apurou a atenção para o quarto do lado, onde dormiam a Ana Sarrifa e a cozinheira, e ficou hesitante. Parecia-lhe que uma sombra a espreitava também, junto da escada. Retendo a respiração, esperou que o vulto se movesse. Viu-o ficar no mesmo sítio por longo tempo. Pensou voltar para o quarto, mas a certeza de que ele necessitava de alguém obrigou-a a ficar.
Deu um passo depois e o sobrado rangeu. A sombra continuava estática. Num instante estava junto do corrimão e o vulto desaparecera. Um arrepio de medo correu-lhe no corpo, alarmado por todos os ruídos e sombras da casa. Volveu-se ainda duas vezes para a porta do outro quarto, sempre à espera que dali surgisse a cabeça branca de Ana Sarrifa. Mas ele precisava da sua presença, tinha a certeza disso.
Com os pés descalços tacteou o primeiro degrau; logo que o encontrou, foi descendo com precauções. Por cada movimento uma dúvida; por cada passo um alarme.
Lá ao fundo a mancha da luz - e lá dentro estava ele, à espera que alguém chegasse para o ajudar.
Num instante, sem perceber bem como ali chegara, achou-se à porta da sala, onde as velas do candelabro morriam. De mansinho, medindo novamente os passos, foi-se aproximando até que lhe tocou o ombro.
- Sr. D. Afonso!... Porque se não vai deitar?... Já é tarde...
E a sua mão afagava-lhe agora os cabelos, mais loiros com a luz pálida das velas.
220
- Porque se não vai deitar? - ciciava-lhe ao ouvido, numa ternura de que nunca se julgara capaz.
Ele levantou a cabeça de uma maneira estranha. Ficou assim, por alguns instantes, como se quisesse recordar alguma coisa; fez depois uma expressão de amargura. Tomou-lhe a mão num agradecimento e premiu-a entre os dedos.
- Aquilo que eu te disse... não sou capaz. Lembras-te?...
- O Sr. D. Afonso pode tudo o que quiser - respondeu-lhe na mesma voz apagada, mas ardente de certeza.
No olhar dele passou um clarão de luz.
- Seria tão bom... Mas tenho no sangue esse mal que não me deixa. É a herança deles.
- Venha deitar-se...
E tomou-lhe o braço, achegando-o para si.
- Foi tão bonito o que fez, trazer os homens consigo...
- Tu gostaste?...
- Lembrei-me do meu pai...
Encaminharam-se para a porta, agarrados um ao outro, sem que qualquer deles se recordasse da sua juventude. Eram dois amigos que se ajudavam na mesma jornada, sem outro pensamento que não fosse o dos seus sonhos.
- Morreu-te?...
- Não. Teve de fugir depois da noite do assalto. E nunca mais soube dele...
Ele não lhe respondeu mais. Só as suas mãos a premiram com maior ansiedade. Passaram o corredor e a escada, entraram no quarto dele, e **a sentou-o. Queria sair, mas um poder desconhecido amarrava-a junto daquele homem. Talvez fossem os dedos que a seguravam ou aquele olhar triste que adivinhava no meio das trevas.
221
- Vou fazer esta mesma vida... sempre... E tu não calculas o que isto me faz sofrer... Um bêbado sem préstimo, à espera de ser vendido por um casamento.
- Se o menino não quiser...
- Eu tenho de querer o que os outros ordenarem. Vocês é que têm coragem para escolher... Agora eu... E os outros como eu...
O luar veio entrar pela janela aberta do quarto e envolveu os dois na suavidade da sua luz. Lá fora, os homens já haviam abalado. A força da terra erguia-se dos socalcos, através dos cachos das videiras ajoujadas, e saturava os corpos do seu poder estranho.
D. Afonso reparou em Maria Dolorosa e deixou-se cair sobre a cama, levando a sua imagem nas retinas.
- Ter força - recomeçou ele na mesma voz cansada - seria abalar pelo mundo e fazer de minha companheira... uma mulher.
(E queria dizer naquele momento uma mulher como ela.) A sua fantasia voltava-lhe com maior exuberância; ficou assim por muito tempo, atordoado ainda pela embriaguez que lhe conduzia a imaginação por largos horizontes.
Ela continuava ali, presa por qualquer força que não podia dominar.
- Deite-se, D. Afonso! - disse sem compreender por que motivo lhe falava assim. E foi aconchegar a almofada.
Ele ciciou-lhe ao ouvido:
- Se quisesses ajudar-me... Se quisesses ir comigo pelo mundo fora...
E Maria Dolorosa ficou ali, de olhos cerrados e cabeça junto dele, escutando-lhe o sonho na boca e nas mãos enlaçadas.
222
Quando, pela madrugada, acordou sobre a cama, D. Afonso tentou recordar tudo o que se passara. Estava sozinho, mas aquela mancha... "Aquela mancha viva o que queria dizer?..." Levantou-se e chegou à janela, interrogando-se com frenesi. Pelas lombas das montanhas, as cores começavam já a pintar-se com o alvorecer. O silêncio caminhava para os astros, desfazendo-se com as últimas estrelas. Do lado da nascente, uma fímbria vermelha cortava o céu, num rasgão de punhalada. E ali lhe ficou o olhar angustiado, esquecendo os sonhos que fantasiara. Queria apagar aquele sinal do céu, como temia voltar-se para o leito, onde a mancha crescia, tornando tudo sangrento à sua volta.

XVI
Silva Costa tomou conta da ocorrência mal veio da Régua, procedendo a um inquérito minucioso acerca de tudo o que se passara, de modo a firmar melhor a sua autoridade perante o pessoal da quinta, e também para que D. Fernando continuasse a ver nele o administrador probo, a quem dava a sua inteira confiança. O momento era difícil para manter as dissimuladas intenções que guardava quanto à quinta do rio Torto, mas não se dispunha a ceder nesse objectivo sem jogar todas as possibilidades. Embora os factos tivessem ultrapassado os seus projectos no que respeitava ao afastamento de D. Afonso, confiava no prestígio conquistado durante longos anos de serviço para se aguentar no temporal que desencadeara. Só lhe faltava conversar com o responsável da ocorrência, para saber até que ponto ele estava disposto a manter a promessa que fizera.
223
Havia partes complicadas a resolver, mas confiava no seu bom tacto, para que tudo se passasse pelo melhor. No que respeitava ao João Ermida, sentia-se intimamente satisfeito com o vexame, pois começavam a saturá-lo certas liberdades cometidas à sombra de algumas negociatas em que se forçara a admiti-lo. Era um homem que sabia demasiado dos seus actos administrativos e não duvidava de que Seria um inimigo feroz, quando um dia o visse em dificuldades maiores. Nesta emergência tinha-o bem agarrado, pois juntara a criadagem para uma prelecção em seu louvor, certo de que as suas palavras eram ineficazes perante o ridículo a que o forçara D. Afonso.
O caso da rapariga seria o mais difícil, logo que soubesse das intenções do filho do fidalgo; mas esperava arrumá-lo também com a gratidão de D. Fernando. O pior é que o rapaz não aparecia, embora o tivesse mandado procurar por alguns criados. Sabia que saíra logo de manhã, para as bandas do Caedo, e não voltara ainda, deixando passar a hora do almoço, com grande desgosto da Ana Sarrifa, que o julgava capaz de algum disparate de monta.
"Lá voltava ela" - já lhe conhecia os passos arrastados no átrio que levava ao escritório da administração. E não se enganara.
- Mais alguma? - perguntou-lhe, mal a viu entrar.
- Parece que vem aí. Deus Nosso Senhor o traga para bem - disse a ama, enxugando as lágrimas à ponta do avental.
- Deixe o caso comigo. Espero que o mal já tenha passado - respondeu-lhe com gravidade.
A velha parecia disposta a assistir à entrevista ou estava tão preocupada que não percebia a conveniência de sair.
- E a rapariga?
- Não responde ao que lhe pergunto...
224
- Chora, é claro. É a artimanha habitual.
- Não lhe vejo uma lágrima.
O facto devia impressioná-la, porque rompeu a soluçar. Nesse momento, D. Afonso apareceu à porta do escritório, mais pálido do que nunca. Caminhava de braços pendidos e com passos hesitantes, parecendo cambalear ainda de embriaguez; tinha um olhar estranho, onde se contradiziam a dor e o ódio; uma ruga funda cortava-lhe a testa numa cicatriz.
- Ai, menino, menino! - foram as palavras da Ana Sarrifa quando deu pela sua presença.
E abalou com o avental a tapar-lhe o rosto, incapaz de dominar os soluços.
Silva Costa deu uns passos até à janela, para submeter a emoção, e voltou-se depois; quando se dispunha a falar, D. Afonso fez um gesto que o calou.
- Escusa de fazer comentários. De tudo o que sucedeu, só eu tenho que me lamentar.
Media-o com o mesmo olhar abstracto, no fundo, do qual havia qualquer coisa de inexplicável para o administrador.
- Escreva hoje mesmo a meu pai e diga-lhe que espero o seu castigo. Sinto-me incapaz de escrever eu próprio...
Silva Costa aproximou-se, comovido com o seu aspecto e esquecido agora das dúvidas que a presença do rapaz junto de Helena lhe tinham levantado.
-Mas...
- Aqui tem a chave. Saberei cumprir o que combinámos.
No rosto inquieto do administrador ficou uma sombra de espanto. D. Afonso notou-lha e esclareceu:
-Os homens perdidos respeitam- sempre qualquer coisa... A mim deu-me para honrar a palavra que prometo.
225
É um paradoxo, talvez. A palavra é o que primeiro todos perdem; eu perdi tudo e fiquei só com isso.
- Agradeço-lhe, fidalgo - retorquiu o outro, comovido.
-Não é caso para tanto...
Hesitou depois por um momento, passando os dedos pelo rosto fatigado, como se quisesse arrancar-lhe a emoção que o sacudia.
- Há um facto que desejo esconder...
- O da rapariga? - interveio Silva Costa, sem retraimento.
D. Afonso confirmou num aceno de cabeça.
- Espero que a deixe ficar aqui, até ao dia em que eu possa remediar...
- Está tudo resolvido, fidalgo.
E, pondo-lhe a mão sobre o ombro, Silva Costa obrigou-o a sentar-se.
- Esse caso é o mais simples.
- Como sabe?!...
Silva Costa já não tinha dúvidas, depois que desaparecera o que mais o preocupava. Percebera que o rapaz estava disposto a guardar o segredo da chave e achara a sua melhor calma.
- Foi o fidalgo que a procurou?...
- Não, mas...
- Deixe tudo por minha conta.
E, baixando a voz, prosseguiu quase num cicio:
- Já apurei que lhe apareceu com premeditação, querendo-se valer do seu estado para o amarrar a compromissos... Percebe?!...
Silva Costa sabia que estava a portar-se como um canalha, mas não via outra maneira de sossegar D. Afonso.
- Confessou-me tudo. Evite conversas com ela até sair daqui... Eu tratarei do futuro da rapariga, embora a sua conduta só me mereça... repulsa.
226
Dissera aquilo com dificuldade - as palavras pareciam rasgar-lhe a boca. Começou a passear com certa agitação e os pensamentos sucediam-se num ritmo in-quietante.
"Canalha, pois claro. Para que disse eu aquilo?!... Não devia ter-me metido numa história destas... E tudo, afinal, por causa duma mulher que tardava em resolver um problema tão fácil. Falara à mãe, sem rodeios, e não sabiam corresponder-lhe da mesma maneira. Evasivas... só evasivas."
Aproximou-se da janela e o cupido de mármore sorria-lhe do fundo do jardim; sentiu desejos de lhe atirar com qualquer coisa que o derrubasse.
- Tem a certeza do que me contou? - disse D. Afonso em voz lenta.
Silva Costa estremeceu, voltando-se quase dum salto, como se estranhasse a presença de alguém dentro do escritório. Percebeu que ficara embaraçado - as mãos estavam incapazes de esboçar um gesto natural; os lábios secaram-se numa sede angustiosa.
"Deveria ser sincero?!... Mas como o podia fazer, sem comprometer o seu prestígio e tudo porque lutara durante tantos anos?!... Desdizer-se seria tornar-se duas vezes canalha." Conseguiu falar, por fim.
- Não me devia fazer a pergunta, Sr. D. Afonso. Vê algum interesse da minha parte?...
O fidalgo levantou-se para o aquietar.
- Nem por sombras, Silva Costa; mas parece-me ainda um pesadelo... Isso é para mim muito pior do que tudo o que sucedeu. Julguei-a uma rapariga pura... Ofacto transtorna-me, porque era um dos poucos homens que confiava nas mulheres. Apesar da vida que tenho feito, respeitava-as... Julgava-as vítimas do nosso egoísmo...
227
Silva Costa fazia um enorme esforço para se dominar e conseguia-o, pouco a pouco.
- Deixe a poesia para os poetas - disse depois.
- E talvez a razão esteja com eles. O mal é sonhar e não empreender a conquista do que sonhamos.
- Ora, ora, fidalgo. Deixe essa mania para os homens como eu. O senhor deve esperar que o conquistem e bendizer essa sorte.
Falava de um modo estranho que podia ser cinismo ou despeito sincero. Só as mãos o embaraçavam ainda; mas enfiou os dedos nas algibeiras do colete e sentiu-se mais capaz de prosseguir naquele jogo de sentimentos e
de palavras.
- Queria vir achar pureza numa aldeia?... -E porque não?!...
Silva Costa deu uma gargalhada, que logo abafou num alarme; aquilo soou-lhe com desagrado. D. Afonso olhava-o também com estranheza e começou a corar de um modo alucinante - sentia bem as ondas de sangue galoparem-lhe nas veias. E voltou para a janela, obrigando-se a aceitar o sorriso maroto do cupido de mármore.
Daí por instantes a porta rangeu, e só viu o fidalgo, já de costas, a sair. Sem saber porquê, correu a fechar a porta; depois quis sorrir daquele acto imponderado.
"Um canalha, sim senhor. Um canalha, sem qualquer sombra de dúvida."
Foi sentar-se à secretária para se acalmar; pegou num lápis e começou a traçar nomes, falando entre dentes, para que mais ninguém o ouvisse.
"Ora vejamos, Silva Costa; nada de precipitações. Havia três interessados nesta contenda: Helena, D. Afonso
e eu."
Eram esses os nomes que escrevera no papel; juntou-os depois por traços que partiam do mesmo círculo a lápis que pusera no centro da folha.
228
"Helena nada podia esperar do fidalgo. Um namoro, alguns momentos de romance, e era tudo. Cairia num escândalo, manchando o nome, e ninguém a pouparia a esse vexame. Ele propunha-se fazer dela sua esposa à face de Deus e conceder-lhe uma vida de tranquilidade e abastança. Havia nisto alguma coisa de condenável?!... Não, por certo."
Teve um suspiro de alívio, já confortado com as primeiras deduções. Colocou o lápis sobre o nome de D. Afonso, depois de riscar o de Helena, e começou a discorrer acerca do seu caso.
"Habituado a aventuras pelo Porto, era certo de que lhe não podia convir um casamento de aldeia..."
Apesar de tudo, aquela invocação magoava-o. Via-os junto do piano, muito perto um do outro, a falarem numa intimidade agressiva que ainda agora o transtornava.
"Ao fidalgo não interessava um tal consórcio, bem lho percebera, e o caso da Maria Dolorosa justificava-o à larga. Queria mulheres e nada mais. Estava-lhe destinada uma esposa entre as filhas de família do Porto, onde o seu título lhe facilitaria um bom partido. Quanto a si..."
Teve um sorriso amargo e amarrotou o papel na mão, rasgando-o depois, em pedaços, que atirou pela janela. Desagradava-lhe aquele cálculo frio com que comentava o sucedido e apetecia-lhe esbofetear-se...
"E a rapariga?!... O Que ia fazer da rapariga?!..."
Uma exacerbação doentia de sexualidade perturbou-o; logo sacudiu a cabeça com decisão.
"Estava doido, com certeza. E o escândalo na aldeia?!... D. Afonso não fora tolo, não. O Fontelas, se pudesse aparecer, era homem para balear um qualquer..."
Essa lembrança fê-lo estremecer. Voltou à janela, para achar uma solução de fácil defesa, perante alguém que lhe surgisse com pedido de explicações. "Deixá-la
229
ali era impossível! Mandá-la para casa e pagar-lhe uma mensalidade por conta da quinta?!... Talvez D. Fernando não discordasse dessa proposta. O pior era ficar na aldeia. Dentro de pouco tempo tudo se saberia, e depois... Não, não, era impossível. Estava pouco disposto a tomar responsabilidades alheias."
Nesse momento, porém, ocorreu-lhe o nome do Gonçalves. Ainda na véspera tinham falado numa companhia para ele, pouco decidido, como estava, a contrair casamento.
"Precisava de estudar aquela hipótese." Voltou a passear no escritório com os dedos enfiados nas cavas do colete e a tamborilar o peito. Os passos não lhe deixavam, contudo, assenhorear-se bem daquele caso. Foi sentar-se à secretária e escreveu os nomes noutro papel.
"Era uma óptima solução para ambos. A rapariga teria melhor trato e casa de que poderia dispor... Sabia bem que esse era um dos grandes sonhos das mulheres! E o Gonçalves ficaria bem servido, o mariola."
Via-o àquele canto, a comprar vinho com o seu ar matreiro, todo mesuras e sorrisos de blandícias. Repugnava-lhe, talvez, o papel que representava na emergência; mas era preciso dar ao fidalgo uma boa prova da sua capacidade e do seu tacto. A quinta do rio Torto esperava por ele e não podia hesitar. Retraiu-se depois com tal pensamento; voltava-lhe a obsessão do canalha.
"Mas alguém ficava prejudicado no meio de tudo isto?!..., perguntava-se com ansiedade. E, como não encontrasse resposta para a sua dúvida, começou a chamar a velha ama da porta do escritório.
Ana Sarrifa chegou alarmada, tantos e tão graves tinham sido os acontecimentos das últimas horas.
- Chamou, Sr. Silva Costa?!
- Sim, Ana. É por causa da rapariga. Tem de convencê-la...
230
- Metida em coisas destas e com esta idade...
- Tenha paciência, mulher. Também eu cá estou. A rapariga vai servir para a Régua.
E perante o olhar interrogativo da velha ama:
- Não há outro remédio. Eu próprio lhe arranjo uma casa de respeito daquele senhor que aqui esteve a comprar vinhos; lembra-se?...
- Sim, Sr. Silva Costa.
Ana Sarrifa duvidava do êxito da missão que lhe confiavam.
- Mas se ela não quiser?...
- Convença-a. Não é capaz de convencer uma rapariga?...
- Ela pode não querer ir por causa do pai, Sr. Silva Costa.
- Pois diga-lhe que se arranja o perdão para o pai voltar.
A velha ama estava atarantada com tudo aquilo. E, em voz lamurienta, lembrou ao administrador a desgraça que seria quando o Fontelas soubesse.
- Ora, você, Ana!...
E pôs-se a acenar a cabeça, com vontade de lhe dizer que não tivesse receio de semelhante hipótese. Mas achou preferível guardar essa certeza só para si e retorquiu que deixasse tudo ao seu cuidado.
- Vá, ande, e não se preocupe.
E quando a velha ama saiu começou a escrever para D. Fernando. "Que hei-de fazer?!... Não deviam os homens, porventura, resolver as dificuldades que a vida lhes reserva? O seu lugar talvez fosse pouco..."
-•Pouco o quê?!... gritou com desespero. Tive culpa disto?!
E dominando-se, outra vez, prosseguiu a carta; mas a letra era trémula e as palavras pareciam-lhe pouco claras.
231

ANGÚSTIA
I
APESAR de tudo o que nos contou esta noite o Silva Costa, sinto-me ainda mais presa à recordação de D. Afonso. Percebo que uma companheira seria capaz de o modificar, matando-lhe na alma aquela tendência que o obriga a cometer os actos mais absurdos. E, não sei por que estranho motivo, penso que eu poderia realizar esse milagre. Nunca lhe notei um olhar ou um gesto, a mais leve indicação de que se interessasse por mim; apesar disso, devo-lhe momentos de felicidade que não posso esquecer e deixar de lhe agradecer.
Nasci para me interessar por homens que talvez me desprezem. Mereço eu, porventura, mais do que isso?!... Sou filha de uma professora de aldeia com uma educação defeituosa que me leva a olhar para mais alto do que me é permitido. Devia estar grata à mamã pelos sacrifícios que fez para me dar essa educação e no fundo tenho motivos para me lamentar. Criaram-me num meio de gente que só me tolerava porque nunca perceberam as minhas aspirações. E tenho de as sufocar. Nesta aldeia vai acabar a minha vida. É possível que viva ainda muito tempo, mas já não serei a mesma. Perdi a alegria; tudo me amarga; apetece-me fazer mal a alguém, e esse alguém
235
é o Silva Costa, o homem que será meu marido. Não posso resistir à insistência da mamã, porque também ela morreu para a vida naquela tarde da entrevista. Envelheceu tanto depois desse dia!
Já não esconde os cabelos brancos nem as rugas, nem toma precauções quando fala. Perdeu todas as aspirações- e tenho eu algumas?!...
D. Afonso partiu para o Porto e vai encontrar o Dr. Freitas. Talvez falem de mim: e, se o fizerem, vão rir-se com certeza. Sou filha de uma professora de aldeia e isso é bem menos do que criada da Casa Grande; menos do que a criada a quem D. Afonso fez sua mulher por uma noite.
Vou ser a senhora do Silva Costa!...
Como me custa escrever esta palavra e como não posso fugir-lhe?!... Falta-me a coragem para abalar e sei que sem isso não vale a pena viver mais. Acabar comigo seria uma solução. Mas também não vale a pena pensá-lo muito, porque me agarro à ideia de que a mamã morrerá de desgosto e fico sem vontade para realizar esse desejo.
Vou-me deixar viver. O Silva Costa será o meu marido; irei para a quinta e nada me vai faltar, diz a mamã. Ela esquece-se de que na minha idade um afecto vale mais do que a vida fácil com um homem que quase chego a odiar.
Ele não o percebe e eu também não o mereço. Se não fosse pecado, diria que me vou vender. Sim, é isso, é bem o termo.
Na aldeia não há mais ninguém que me compre.
236

II
Após a conversa com Francisco, em que este lhe pedira que não voltasse, Gracinda ficara à espera que a procurasse, convencida de que poucos dias bastariam para o cunhado se arrepender do destempero daquele desabafo. Percebera que o motivo não era mais do que essa luta íntima em que se debatia com a sua presença - luta de audácias e cobardias, revelada em silêncios e olhares de súplica ou de raiva.
O velho Teimas é que aparecera para lhe pedir desculpa, rogando que não desse ouvidos ao filho - um doido que não sabia onde tinha a cabeça!
Soubera, porém, fugir à tentação de defrontar o cunhado, bem segura, embora, de que seria capaz de lhe dominar a rebeldia. Mas queria-o ver chegar, submisso, embaraçado de gestos e em busca de palavras que o justificassem, humilhando-se em explicações.
Dias, e semanas até, haviam já passado--só o Luís
viera uma vez, para lhe dizer que o pai lhe iria mandar algum dinheiro, logo que recebesse a última prestação do Jerónimo. Respondera desabrida, incapaz de dominar o despeito que o facto lhe provocava. Desde muito nova que gostava de se saber admirada e a insubmissão do cunhado perturbava-a pelo inesperado. Agora, contudo, que lhe tinham chegado más notícias da doença da sobrinha, fizera o propósito de aparecer, mais talvez para compreender por que milagre pudera o Francisco passar sem a sua presença. Intrigava-a e causava-lhe desgosto esse esquecimento inexplicável, tanto mais que logo percebera as suas intenções poucos dias depois da morte da irmã. "Como eram os homens!... Num momento parecem viver do gesto duma mulher, para logo depois só lhe acharem aborrecimento."
237
Por isso a dominara um desejo irreprimível de se aproximar do cunhado, como se lhe quisesse lançar um desafio. Era um apetite estranho, esse de o ver, novamente, lutando contra a sua atracção, que antes parecia não poder dominar, mesmo quando não a fitava e se lhe dirigia por monossílabos. Eram esses instantes, em especial, que lhe agradava ver repetirem-se, embora não soubesse explicar-se da espécie de sentimento que tinha por ele.
Antes do casamento com o António Francisco mantivera namoricos à larga, num jogo de pega-e-deixa, que haviam causado alguns desgostos aos padrinhos. A verdade é que nenhum dos rapazes soubera merecer a sua atenção por muito tempo, talvez porque outros nunca deixavam de lhe rondar a porta, sempre à espera que ela se decidisse. Escutava-lhes as confissões com entusiasmo, prometia-lhes a sua palavra, mas, logo que eles se afastavam, ficava consigo uma desolação que não podia vencer, mesmo que se esforçasse por consegui-lo. Depois viera o namoro e o casamento com o António Francisco - e reconhecia que com ele nada se transformara dentro de si. Palavra dada no altar trazia, porém, obrigações e .submetera-se, embora gostasse de se ver requestada. Não era mulher para se perder com palavras enganadoras, nem outro homem lhe tocara antes do marido. Sabiam-lhe bem, contudo, os olhares devoradores e amalandrados, os remoques picantes e as procuras de encontros, feitos de maneira que só ela percebesse o que queriam dizer.
Mas tivera de se submeter ao recato de mulher comprometida - e a abalada do António Francisco para o Brasil obrigara-a a redobrar de cautelas, porque era mais fácil cair nas bocas do mundo e a tanto não queria chegar.
Puxou a porta para si, embrenhada naqueles pensamentos.
238
"Ele receava-a ou tinha-a lançado ao desprezo? Talvez, se nunca lhe tivesse emprestado dinheiro, o Francisco não se sentisse capaz daquela atitude. Recordava-se bem de que desde esse dia ele se tornara diferente, mais retraído e afastado, como se isso o diminuísse aos seus olhos. Devia ter previsto essa reacção, porque aquela gente do Teimas não tinha medida para o seu orgulho."
Encaminhando-se agora para o Lugar da Igreja, Gra-cinda invocava todos os argumentos que a pudessem ajudar a entender a atitude de Francisco. Pela estrada que conduzia ao Pinhão devia descer uma roga, talvez de Trevões. Ouvia-se o som cavo do bombo, o repenicar dos ferrinhos e o zangarreio duma guitarra, acompanhando o alarido de cantigas e exclamações que chegavam até ela, num eco confuso. Iam começar as vindimas na Terra Quente e as rogas vinham das aldeias, à compita, para arranjarem patrão certo, mesmo que por uns dias só ganhassem o cardenho para dormir, enquanto os cachos amaduravam melhor com as soalheiras de Setembro.
"E se ele já tivesse mulher para substituir a falta da irmã?!"
Estranhou que esse pensamento lhe deixasse ficar uma grande amargura na alma. "Nunca gostara de alguém; nunca, tinha a certeza. Mas aquele sintoma não lhe agradava." Percebeu, contudo, que, lá muito no fundo de si, uma alegria ainda indecisa parecia nascer. "E se ele tivesse outra mulher?!" A interrogação fê-la apressar o passo. Queria falar-lhe; precisava de o ver, para lhe descobrir nos olhos toda a verdade de que já receava suspeitar."
E, com aquela dúvida presa ao espírito, atravessou o pátio da casa do cunhado e bateu à porta da cozinha. Do seu casinholo, os dois podengos ganiram-lhe, num sinal de boas-vindas. Falou-lhes de longe, percebendo melhor agora que aquele ambiente lhe fazia falta e a
239
sua vida estava presa ali, a qualquer coisa que ainda não queria compreender.
Como não abrissem, bateu mais duas vezes. Pensou chamar, mas o seeu orgulho aconselhou-a a não insistir. "o cunhado que ficasse com o seu capricho ou o seu esquecimento. Com a outra, talvez... Mas quem seria ela?!..."
Todavia, no momento em que se preparava para abalar, a porta abriu-se, e o Dr. Pimenta apareceu com a sua maleta na mão, seguido de Francisco e do pai.
- Bom sol te traga, cara bonita! - chalaceou o médico, franzindo os olhos por detrás das lunetas, como se a quisesse apreciar melhor.
E continuando, depois de um sorriso de agrado:
- Já tens menos afazeres?
- São sempre os mesmos, Sr. Doutor - respondeu mais exuberante do que de facto se sentia.
- Receberes carta do marido e responder-lhe, não é assim?... Pois és aqui precisa; tem paciência. Arranja lá as tuas coisas, como entenderes, mas a pequerrucha necessita de boa enfermeira.
E voltando-se para os homens, com certo ar amarotado:
- Com uma cara destas à cabeceira...
- Ninguém morria - chalaceou o velho, encostado ao seu bordão. - Ainda eu fazia três idades como a que tenho.
- Bom, bom, não me estraguem a cachopa - rematou o médico, depois de lhe fazer um afago no queixo e de a fitar com enlevo. -" Cuida-me da tua sobrinha e amanhã cá estou. Infelizmente... as coisas não correm bem.
E o Dr. Pimenta atravessou o quinteiro, pensando que a Gracinda, numa cidade, e com aquele olhar guloso que devorava, não seria rapariga para ficar em casa à
240
espera de carta do marido. Atirou com o chapeirão para a nuca e foi-se lembrando, pelo caminho, dos seus tempos de rapaz em Coimbra.
Já Gracinda subira a escada, indo ajoelhar-se junto da cama, onde a sobrinha agora ficava. Viu-a muito amodorrada pela febre, magrita como um graveto e respirando com esforço. O velho Teimas observava-as da porta, com duas lágrimas a quererem escapar-se-lhe dos olhos.
Em baixo, na cozinha, Francisco continuava o seu passeio agitado, tentando arranjar forças para dominar os nervos. Agora que a voltava a encontrar, sentia-se mais incapaz do que nunca de resistir à sua atracção.
Do alto da escada o velho chamou-o e fez um gesto de impaciência. Quis mostrar-se rebelde à solicitação, mas desejou que o pai insistisse. António Teimas foi descendo, vagarosamente, encostado ao corrimão e ao arrocho, até que se chegou junto do filho.
- Não ouviste o doutor? Queres matar a criança só por um capricho teu?...
E os seus olhos azuis tornaram-se frios.
- Vai lá, homem. Sim, vai - persistiu, a sorrir, quando o viu aproximar-se do primeiro degrau. - Faz isso pelos teus filhos e por mim.
Francisco ficou transtornado com a oportunidade que lhe davam para falar à cunhada. Tentou dominar-se, para que o velho não percebesse a sua alegria, mas foi incapaz de submeter os sentimentos à sua vontade. Subiu a escada, a dois e dois, e pôs-se entre portas, à espera que ela lhe dissesse no olhar de que maneira acolhia a sua presença. Gracinda limpava a testa de Emilita com os dedos; e deu-lhe um beijo na mão, que meteu depois entre os lençóis. Quando volveu o olhar para ele, teve um sorriso que fez Francisco atravessar o quarto até
241
junto dela, olhos nos olhos, ambos incapazes de dizerem alguma coisa.
Foi Gracinda quem primeiro rompeu o silêncio; e as palavras saídas daquela boca húmida e sangrenta soaram-lhe aos ouvidos numa carícia.
- Estás zangado?!...
- Zangado de quê?... Tu é que tinhas razões para nunca mais aqui voltares... Nem que eu fosse de joelhos até à tua porta para te pedir...
- Não era preciso. Vocês faziam-me falta - respondeu-lhe a cunhada num sorriso aberto que bailava tanto nos seus lábios como nos olhos.
E, talvez sem consciência do que fazia, agarrou nas mãos do cunhado e apertou-as entre as suas.
Ele esqueceu, então, a presença da filha adormecida e quantos argumentos invocara, durante horas e horas de tortura, para fugir àquela tentação que o desvairava. Prendeu Gracinda, com vigor, entre os braços e, sem se atemorizar com a expressão atónita do seu rosto, esmagou-lhe a boca na sua. De olhos cerrados, sentia-lhe o corpo colado, embora percebesse, vagamente, que ela se queria libertar daqueles dedos que a prendiam pela cintura, como cadeias que mais ninguém pudesse quebrar.
Ela revolvia-se, desesperada, entre os seus braços; Francisco compreendia que queria falar, mas esmagava-lhe "as palavras nos lábios. E só quando a sentiu abater-se de fragilidade e romper em soluços a afastou de si, atirando-a sobre a cama, onde a filha dormitava. Pensou segui-la na queda, mas a presença da filha confrangeu-o; foi recuando até à porta, passo a passo, cheio de um terror que não sabia explicar. Gracinda continuava no mesmo choro reprimido - julgava-a magoada pela sua violência e ela sentia-se feliz.
Pensou ainda aproximar-se, para lhe pedir perdão e enxugar-lhe as lágrimas, rogando que esquecesse o seu
242
pecado. Deu um passo, mas a quietude e a palidez da filha fizeram-lhe medo.
E saiu, num repente, abalando a correr pela escada. Um grito, porém, agarrou-o, antes que chegasse lá abaixo.
- Está fria, Francisco!... Fria!...
Um arrepio doloroso varou-lhe o corpo e deixou-o tolhido, perante o pai, que o olhava de mãos erguidas.

III
A vindima do Senhor alongara-se mais do que nos outros anos, deixando na aldeia o pesadelo do luto pelos anjinhos que colhia. Em casa do Teimas, porém, só Luís e o avô pareciam ter sentido o desaparecimento de Emi-lita, que era a recordação viva dessa noite de Natal, em que a morte também ali passara. O pai ainda vivera atormentado, durante uns dias, como se a imagem da pequenita, deitada no leito, o acusasse de ter posto a mancha do pecado debaixo daquelas telhas; mas a Gracinda voltara para encher a casa e a sua vida - e se,
por um lado, parecia avivar essa lembrança, por outro, atenuava-lha, tornando os dias menos sombrios e inquietantes.
Poucas vezes uma vindima fora acolhida por ele com tanta esperança. Todas as manhãs e tardes dera volta aos prédios, montado no garrano, namorando as cepas mais carregadas e de melhor casta. No quinteiro, concertara os cestos vindimos e o albardão das cargas, andara numa roda-viva de casa para o lagar do Arrenegado, onde se devia fazer a pisa das suas uvas, e nem parecia afligir-se com os preços, que se não anunciavam mais promissores.
243
E agora, que toda a família estava empenhada na vindima - o Chico e a cunhada na corta dos cachos, o Luís como paquete no transporte dos cabazes e o pai, no lagar, para assistir ao peso dos cestos que ele conduzia no Doiradinho-, a vida aparecia-lhe com um novo sentido até aí ignorado. Compreendia melhor a alucinação do velho pelas suas vinhas, dando-lhe com alegria todos os sacrifícios, para se aguentar em quanta catástrofe havia passado pelo Douro, desde que se entendia. Os seus olhos deslumbravam-se também em ver as videiras ajoujadas, e ia afagá-las num agradecimento, como se elas pudessem entender a linguagem dos seus dedos.
- Olha esta "tinta Francisca", ó Gracinda!
E depenicava os cachos, provando-lhe a doçura, para depois cuspir o engaço no cesto vindimo, porque ali tudo dava vinho e nada se podia perder.
- É um melaço!... E a mourisca que bem rendeu... Do bardo onde vindimava, ela acenava-lhe a cabeça,
num sorriso; Francisco não se podia conter e aproximava-se, sorrateiro, como se fosse dar-lhe ajuda, mas beliscava-lhe o braço numa volúpia que o sol acicatava. Ela repreendia-e com um olhar tão travesso que Francisco apetecia agarrá-la ali mesmo e morder-lhe a boca, tão sumarenta como os cachos da "tinta Carvalha", assim lhe dissera num momento em que o Chico se afastara.
- Está quedo...-ciciara a cunhada para o aquietar. Trémulo, a fingir como um cachopo, ele agarrara a
parra das videiras, sem desviar os olhos dela, e assim ficara largos momentos, até que a Gracinda o desmanchara com uma das suas gargalhadas.
- Não vês onde pões as mãos?... Não te queria para meu servo...
E numa roda-viva, aspirando, depois, o ar da montanha com toda a gana, de cepa em cepa, a calcular a
244
produção, ou carregando o Doiradinho, Francisco parecia querer guardar, dentro de si, a certeza que se desprendia daquele Outono tão doce, em que os socalcos se enfeitavam de gente e o espaço se enchia de mil sons. Em Gracinda estava a magia dessa transformação. Há muitos anos que ele não sentia aquela poderosa força interior, capaz de lhe oferecer um destino na vida, levando-o à convicção de que, por si, o poderia conduzir a bom rumo. Logo que as coisas se compusessem, mandaria construir um lagar e um armazém, para se não sujeitar às exigências dos outros e às diferenças nos pesos das cargas. Só com isso tiraria o suficiente para saibrar mais terras, até que um dia fosse capaz de guardar as colheitas de uns anos para os outros, beneficiando o seu próprio vinho. E, então, o seu esforço seria compensado no dobro; depois ainda poderia guardar uma pipa ou duas, todos os anos, em pacientes desvelos, para que, ao fim de uma década, o vinho lhe valesse dez vezes ou mais, como sucedera ao Carradinhas do Pinhão, um fortunaço de respeito, almejado num abrir e fechar de olhos. E talvez toda aquela encosta lhe viesse a pertencer, comprando aos mais esganados as parcelas dessa terra xistosa do Torto, onde as cepas parecem caldeadas em fogo.
Tudo agora se lhe tornava possível e até fácil.
Filas de homens, ajoujados de cestos sobre o dorso, encaminhavam os carregos em direcção aos lagares, sempre acompanhados de música ou de apitos dos feitores, para não desfalecerem nas caminhadas. Uma cantiga ou outra vinha de longe, nalguma desgarrada entre as mulheres da corta. E tudo isso se lhe revelava naquele momento, como promessa de um futuro que se ia realizar. Também para ele viria uma roga da serra e o Doiradinho não andaria naquela canseira de fazer carretos - essa faina ficaria para os cardenheiros.
245
Os filhos teriam um bom arranjo; e, se fossem capazes de escolher um bom casamento, poderiam chegar longe. Adivinhavam-no já, talvez, tamanho era o entusiasmo com que se deitavam ao trabalho. O Luís, em especial, azougado e vivo, senhor do seu nariz como o avô, queria multiplicar-se na faina, indo despejar os cestos ou pondo-se, junto do irmão, a ajudá-lo na vindima. E cuidadoso, como um eco dos reparos do velho, enzo-nava o Chico com os bagos que caíam no chão ou com os esgalhos que ficavam perdidos entre as parras.
- Na Casa Grande dizem que este ano não rende muito - informou o filho mais velho, desejoso de se mostrar sabido nos boatos da aldeia.
- Como as nossas, bem tratadas, há poucas, rapaz. Também muito grande é o Marão e não dá palha nem grão.
E as caminhadas para o lagar do Arrenegado sucediam-se, ao passo ligeiro do Doiradinho, que parecia compreender a alegria do dono naquela colheita. O velho Teimas, junto da balança, dava conta de tudo e decorava as pesadas, fazendo cálculos do rendimento em litragem.
- Acaba-se tudo hoje naquele prédio, Francisco?
- Só se for muito ao tarde. Rendeu melhor do que ninguém naquela banda.
E voltava mais apressado do que viera, fustigando o garranote com a verdasca, nos intervalos das palmadas nas ancas e entre palavras amigas que o animal já percebia.
Quando o Sol se escondeu, nada mais se podia fazer com préstimo. Preparou a última carga, já enervado, antegozando o momento em que ficaria sozinho com a cunhada. Mandou os filhos à frente, com os aprestos da vindima, a pretexto de partirem alguma lenha para a ceia e abrirem a porta ao avô.
246
Sempre cautelosa, ela tentava refrear-lhe o entusiasmo, não fosse alguém dar com eles e a aldeia encher-se, de ditos que a comprometessem perante a família do marido. Francisco, porém, persistia na sua. As sombras da noite já desciam sobre os geios e pareciam-lhe suficientes para os abrigar de olhos estranhos. Agarrou-a com ímpeto, e Gracinda não pôde evitar que a beijasse. Teve de se mostrar zangada para o aquietar, embora no íntimo a envaidecesse o desvario do Teimas.
-Olha que se faz tarde e o teu pai desconfia...
- Já não tenho idade para lhe ganhar medo...
- Mas queres desgraçar-me?
Só então ele esfriou, não porque essas razões o acomodassem, mas pelo despeito que sentiu perante, os seus cuidados. Desejava-a toda entregue ao seu amor e percebia que, apesar de tudo, ela continuava presa ao passado e à lembrança do marido. Assaltou-o um ciúme feroz e quis esquecer-lhe a presença. Atirou a arreata do garrano sobre o ombro, sem mais conversas, e começou a jornada.
Gracinda seguia-o a distância, um tanto inclinada a fazer as pazes, mas temerosa de que ele voltasse ao mesmo desvairamento anterior. Queria ser capaz de evitar o prosseguimento dos seus encontros em casa, pressentindo que nunca mais poderia ser feliz quando o marido voltasse. Receava que a recordação do cunhado se apegasse a todas as coisías, numa acusação que não seria capaz de vencer. O silêncio de Francisco porém, foi agindo sobre si, duma maneira persistente. Estava também presa àquele homem por qualquer sentimento mais profundo. A ardência da sua paixão contaminava-a, embora lhe metesse medo.
E aproximou-se mais, até que foi caminhando ao seu lado. Deviam estar próximos do alto do monte. Tudo se fundia nas mesmas trevas, das quais chegavam brados e risadas de gente invisível.
247
- Parece que te aborreço - resmungou Francisco, a enrolar outro cigarro.
- Lá vens tu com a tua. Perdeste o juízo de todo e se eu não tiver cautela... Julgas que o teu pai já não desconfia?...
- O meu pai?... - interrogou o Teimas, estacando junto a uma oliveira.
- Bem lhe percebo a maneira como nos olha. Ainda não te disse nada?...
-Não se atreve...
- É preciso sossegá-lo, Francisco.
E quando a mão dela lhe tocou, ele viu, num relance, que a noite se fechara e estavam sós.
Apeteceu-lhe agarrá-la ali mesmo, mas coibiu-se ainda. Calculoso, meteu pelo carreiro de um desvio que levava a um pequeno pinhal, e embrenhou-se por ali. Ela percebeu-o; sabia, contudo, que não seria capaz de se lhe opor. E seguiu-o sem queixas, até que o viu estacar e correr para ela.
Então cerrou os olhos e abandonou-se.

IV
O Silva Costa atravessou o jardim de chapéu na mão, para ouvir o que o fidalgo lhe dissera da janela do escritório.
- Estamos a meter só touriga e mourisca, Sr. D. Fernando - respondeu depois de perceber a pergunta.
- Foi indicação do Roop?
- Sim, Sr. D. Fernando. Mas já mandei cortar umas valeiras de sousão, para lhe dar a cor e o paladar acidulado que o inglês deseja.
248
- Está bem, Silva Costa - e adernou-lhe a mão para que se retirasse.
O administrador curvou-se numa cortesia e abalou mais apressado do que era seu hábito. O fidalgo admirava-lhe a presteza e o saber, embora não ignorasse que se governava com a quinta, talvez bem melhor do que ele. Contudo, não podia evitar essa comparticipação, querendo viver afastado dali, entre os jantares na Feitoria, em contacto com os ingleses, e as visitas recatadas, fora de horas, a certas amigas suas que o faziam esquecer a cerimoniosa incompatibilidade com a esposa. Era preciso receber visitas, olhar também pelo futuro dos filhos, e tudo isso lhe seria vedado fazer naquela aldeia, onde os pais se tinham recolhido durante muitos anos - o seu casamento não era mais do que uma triste consequência desse afastamento da cidade. O sacrifício pelos filhos tornava-se, ao seu espírito, o motivo mais forte para desculpar a decadência lenta, mas progressiva, da sua fortuna.
Não se desfizera ainda de nenhuma das quintas legadas pelo pai, embora todas já estivessem comprometidas em empréstimos a juros. Confiava em qualquer coisa que o salvasse da situação, não obstante nada tentar para reduzir as despesas da família ou estabelecer um plano que o reabilitasse. Entendia que o seu título de nobreza lhe acarretava obrigações e essas não podiam ser abandonadas, houvesse o que houvesse. Tinha de salvar todas as aparências; porque só assim lhe seria possível encontrar um bom futuro para os filhos. D. Afonso é que o embaraçava com os seus desvarios - parecia ainda ouvi-lo na conversa que provocara ao chegar ao Porto.
- Só tu tens a culpa da má vida que venho fazendo. Nada te devo, tens de o reconhecer tão bem como eu. Educaste-me na preguiça...
249
- Querias que te metesse a marçano - replicou-lhe num grito.
- Queria que me fizesse um homem. E agora já é tarde. Sei que é preciso tomar outro caminho, mas já não tenho forças para tanto. Fizeste de mim um vadio e um cobarde!
Aquelas palavras de ingratidão transtornavam-no. Não fossem as visitas do inglês e do Dr. Freitas, e não teria vindo à vindima daquele ano. Mandara agora o filho rebelde para a quinta de Lamego, hesitando, porém, no que lhe devia fazer depois - deixá-lo ali seria provocar mais desvairamentos, e talvez outro caso semelhante ao da rapariga não tivesse a mesma solução que lhe dera o Silva Costa.
Pelos socalcos da quinta, o rancho de mulheres devassava as cepas, cortando os cachos que os rapazes transportavam nos balaios para os grandes cestos vindimos. O caseiro e o feitor seguiam o trabalho com atenção, sem deixarem o pessoal amodorrar na faina. Até ele chegavam cantigas dispersas, em vozes esganiçadas que o irritavam.
Fui ao Doiro, à vindima,
Pagaram-ma trinta réis,
Dei um vintém ao barqueiro,
Só me ficaram dez-rêis.
A mancha garrida dos lenços e das blusas indicavam-lhe o caminho que a vindima tomava. Havia ainda trabalho para mais uma semana, não contando com a parte junto ao rio Torto, cuja corta se deveria fazer depois, no entender do administrador. As notícias do Roncão e do Loureiro não eram das melhores - muitos cachos desavinhados, algum míldio e pouca doçura. E o palacete da Foz precisava de reparações urgentes, a mulher
250
pensava ir a Lisboa passar o Inverno e a filha já falava num automóvel com entusiasmo. "Um automóvel! Uma maquineta a que só o doidivanas do infante D. Afonso dava atenção, para arrepiar de susto as gentes espavoridas pelas ruas do Porto."
Em direcção ao lagar vinha agora mais uma "caminhada" de cestos, que o feitor estimulava com o seu passo largo e a música do bombo, dos ferrinhos e do harmónio queria suavizar. Eram duas filas de homens, levando ao centro o que conduzia um casal de bonecos, no alto de um pau, e acompanhava o ritmo da marcha, fazendo dançar os fantoches. Ao fundo, a trempe dos tocadores, um dos quais o do harmónio não levava cesto, e ganhava o dia como os outros, só para o ouvirem nas cargas e à noite na lagarada.
Tinham começado de madrugada, todos a cantar, mas agora já arrastavam os pés e gingavam o corpo, movendo as pernas, mais por hábito do que por energia. Com os cestos altos sobre a trouxa apoiada nas espáduas, peles de carneiro ou sacas velhas sobre as costas, seguravam-nos com a cunha de ferro, agarrada pelo cabo de madeira numa das mãos. Iam todos de cabeça descoberta, em cujo frontal passava a correia larga da cabeceira, para que a carga fosse suportada com menos esforço dos pulmões.
A música alegre fazia lembrar a que conduzia, nas guerras, os soldados para a morte.
Entontecidos, na sua maioria, pela aguardente e pelo vinho que lhes davam, iam naquela andança, quase sem consciência dos movimentos que faziam. Passavam agora a caminho do lagar, querendo mostrar-se mais ligeiros, mal deram pela sua presença.
D. Fernando, naquele momento, sentiu uma certa piedade por aqueles homens. "Mas que podia fazer por eles? Melhorar a sua vida de que maneira?!..."
251
A música calou-se e ouviu-se melhor a cantiga das mulheres.
Nossa Senhora da Serra, Carqueijinha do Mamo, .. Olhinhos que foram meus, Agora de quem serão?...
Vencida uma valeira, tinham passado para outra, levando-a de seguida, enquanto os "paquetes" andavam no mesmo azougue, a transportar os balaios para os cestos, que já aguardavam a volta dos homens.
Para o lado norte, os olhos do fidalgo enxergavam Favaios, encarrapitada na outra margem, e adivinhavam a presença do rio, cuja carreira, até Gaia, fizera, havia muitos anos, no barco de D. Antónia Ferreirinha. Teve vagas saudades desse tempo - lembrou-se do Forrester, com as suas suíças bem tratadas e um pouco anafado, percorrendo o rio com o arrais Oliveira, de Porto Manso, a espadela mais firme de todo o Douro.
Uns passos ouviram-se dentro do escritório, e D. Fernando voltou-se. Era a esposa, sempre apoiada à bengala, já muito branca e encorreada pelas rugas - agora é que se percebia melhor a diferença de idade que os separava. Nos últimos anos ela tornara-se mais impertinente, falando-lhe com uma autoridade que o indignava, mas contra a qual não se sentia capaz de lutar com desassombro. Contrariava-a em quanto podia, certo de que, apesar das suas recomendações, era ele quem tudo determinava.
Falavam-se com frieza, mas faziam-no com dignidade.
- Sempre pensas realizar a festa?... - perguntou-lhe D. Branca, com um sorriso irónico.
- Não penso... Tenho de a dar.
252
- É uma maneira habilidosa de fugires ao que te disse - acentuou a mulher, aproximando-se um pouco mais.
- Não uso de habilidades, mas não esqueço as nossas obrigações. Temos cá o Roop...
- Porque não dizes que a fazes só por causa do teu Dr. Freitas? - E acentuou-lhe o nome com cinismo.
- Um homem à sombra do qual estamos vivendo há muito tempo - respondeu-lhe com o mesmo modo, embora o magoasse também a alusão.
- Com juros que pagamos...
- De qualquer maneira, devemos-lhe muito dinheiro.
Criou-se um silêncio entre ambos. Lá de fora chegavam os passos dos homens, que voltavam para outra caminhada de cestos. O harmónio insistiu na mesma sarrazina, acompanhado pelo troar do bombo e o depenicar dos ferrinhos.
- Espero que não continues a facilitar-lhe o acesso junto de nossa filha - insistiu D. Branca, levando a conversa para outro rumo.
- Não penso contrariá-los... Sou um homem que me habituei a venerar a liberdade.
Ela teve um acesso de riso breve, mas logo se transformou.
- Procuras simplesmente trocar a Constança pela dívida que contraíste...
-O Que contraímos... -respondeu D. Fernando com rudeza.
- Que contraíste com os teus desvarios. Mas eu não te admito... A minha filha é uma fidalga e merece um homem do seu sangue.
- Como o nosso D. Afonso, talvez queiras dizer - volveu-lhe com um sorriso de troça.
- Que é o herdeiro dos vícios de tua família, e não da minha.
253
Olharam-se com rancor, por instantes. Ela compôs uma das luvas, que nunca abandonava, enquanto D. Fernando ia afagar a lombada de um livro que estava sobre a secretária.
-Tens mais alguma coisa com que me hostilizar? - perguntou-lhe, sem desviar os olhos.
- Não. Só te quis avisar...
- Agradecido pela gentileza. Mas quanto à Constança, devo dizer-te...
A guizalhada de um cavalo fê-los interromper a conversa - era o inglês que regressava da sua volta pelos lavradores, recolhendo algumas amostras e dando a libra de sinal pelas compras que ia estabelecendo.
- Devo dizer-te - insistiu o fidalgo - que se o casamento com o Dr. Freitas se não fizer, perderemos todos os nossos haveres.
E não permitindo que ela o interrompesse:
- Mesmo o palacete da Foz e os teus Invernos em Lisboa acabarão de uma vez para sempre. Teremos de ficar só com esta quinta, e talvez isso mesmo por favor dele...
-É uma ameaça que me fazes? - interrogou D. Branca com rancor, agora, que o marido lhe falara em acabar com os seus divertimentos favoritos.
- Não; é um aviso. Viremos viver para aqui...
- Isso nunca!
D. Fernando encolheu os ombros com indiferença, dirigindo-se ao corredor para aguardar o inglês. E, num sorriso diabólico, compôs as lunetas com a ponta dos dedos.
- É a realidade em que vivemos, minha querida amiga.
D. Branca passou por ele como um rabo de vento, mastigando, entre dentes, todos os insultos que a oprimiam.
254
Já tinham incubado dois lagares de quinze pipas e o vinho dera bem à lágrima. Em qualquer deles, algumas horas depois de ter levantado a manta, o mosto marcara doze graus de álcool - não podia ser melhor a promessa da feitoria dali, embora do Roncão e do Loureiro as novas fossem menos animadoras. O Silva Costa andava exuberante com o facto, pois atribuía a diferença ao esmero do seu trato das videiras; o João Ermida pensava o mesmo e dizia-o a toda a gente.
Para a pousa daquela noite calculavam-se talvez dezasseis pipas - seriam precisas trinta e duas pessoas pelas boas contas, duas por cada pipa, mas o administrador dissera para se poupar o que fosse possível. E o feitor não discutira a ordem, antes procurara exagerá-la, pois assim ganharia lembrança mais choruda, depois da festa do ramo enfeitado com cachos de uvas e papel matizado, com que se louvaria o final da faina da roga.
Tinham adoecido três homens pelo cansaço das caminhadas com os cestos e pelas noites de lagarada. E, como pela aldeia não se arranjava pessoal para preencher o quadro, Silva Costa dera ordem para meterem mulheres. Sabia que os fidalgos desceriam com os convidados, depois do jantar, e não seria mau espectáculo um grupo de raparigas metido na corda dos lagareiros.
- Mande-me das mais ajeitadas, ó feitor - recomendara por precaução. - Não me traga velhas nem pernas tísicas.
Já os homens arregaçados, de pernas arroxeadas pelas pousas anteriores, e de casacos em farrapos, pelos ombros, fumavam o cigarro depois da ceia, à espera da ordem para entrarem. O tanque de pedra estava cheio de belos cachos, que pareciam trazer pedaços de sol agarrados
255
à película. Havia predominância de alvarelhão e tinta-francisca, mas não faltavam também exemplares famososo de abelhal e gouveio, rabigato e tinta-roriz.
O feitor acabara por insistir com o Silva Costa para ele próprio ir escolher as raparigas ao cardenho. No terreiro que lhe ficava defronte, a trempe tocava para elas e algumas já dançavam, entre si, enquanto rapazolas da aldeia, com permissão de entrada na quinta, as mediam a distância, deitando-lhes o olho para o bailarico.
Dentro do cardenho, algumas delas preparavam-se ainda, penteando-se ou trocando as saias e as blusas de trabalho por outras mais garridas. O Silva Costa espreitou à porta, mas logo deu alguns passos atrás, com a baforada do cheiro da palha e dos corpos suados que ali dormiam, havia dez dias, era promiscuidade de animais.
- Veja lá isso, ó Manuel, veja lá isso.
E abalou para o lagar. O feitor, daí a pouco, aparecia com cinco raparigas, das mais bonitas da sua roga, enquanto as outras as seguiam a distância, em galhofa e risada, levando no meio um tocador de cavaquinho, todo impante na vaidade do assédio que as mulheres lhe faziam. Já os lagareiros lavavam os pés para começar a faina, mirando, de soslaio, as coxas morenas das cinco cachopas, que puxavam as saias à cintura e as enrefegavam um pouco abaixo das virilhas. Ocheiro acre do mosto das pousas anteriores, a música e as gargalhadas das cardemheiras, os olhares de apetite sensual que se trocavam e as pernas roliças das raparigas, um tanto pudicas por se sentirem mais despidas ainda, tudo isso dava ao lagar um ambiente de estranha excitação, a que a luz mortiça dos gasómetros emprestava um aspecto fantasmagórico.
- Vamos dentro! - gritou o feitor, de cajado na
256
mão, depois de saltar ligeiro para a cinta de pedra do
tanque.
Todos os lagareiros pularam para a montanha dos cachos, dispondo-se em dois grupos de catorze, frente a frente, braços abertos sobre os ombros dos companheiros, e, acolhendo ao meio de cada corda, e bem distribuídos, os rapazolas e as cinco cachopas, a fim de que, lá mais para diante, se pudessem aguentar no amparo dos camaradas. Da extrema, um latagão ruivo, apoiado a um cajado, deu a primeira voz para começar.
- Esquerdo! Direito! Esquerdo! Direito! Num ritmo compassado, as pernas afundavam-se com esforço, para romper a massa calcada dos cachos, até o pé tocar no fundo do tanque da pisa. E, quando voltavam acima, veias roxas do sumo açucarado das uvas percorriam as coxas morenas das cachopas, onde os olhos dos homens ainda encontravam motivo para afagos.
- Esquerdo! Direito! -continuava o vozeirão do ruivo, cuja cabeleira, em caracóis, se enredemoinhava sobre a testa curta.
Avançavam uns para os outros, toda a corda arrastada, braços com braços, como nós duma cadeia, pela cadência dos mais fortes. Separando-se dos cachos, as uvas começavam a boiar no mosto, e os seus pés duros vingavam-se na pele dos lagareiros, como se tivessem gana de lhes moirder.
Balouçando os ombros, as duas fileiras recuavam depois, sempre vigiadas pelo olhar atento do feitor e também do caseiro, que não deixava de atirar algum remoque aos que se mostrassem descuidosos no trabalho. - Chega bem ao tampo! Os cachos da ponta também dão vinho!
O tocador dedilhava agora com frenesi uma musiqueta que fez saltar da janela, onde se penduravam, algumas raparigas da roga. E os pares enlaçaram-se para o
257
bailarico no terreiro do lagar, enquanto outros dançavam lá dentro, em apertos de ancas e palavras ciciadas que provocavam risos às cachopas e mais atrevimento aos companheiros.
- Troca o passo, Diamantino! - recomendava o feitor para um rapazola de buço atrevido, que ao lado de uma das mulheres se sentia perturbado, quando a mirava de banda e lhe via os seios saltitarem, ainda rijos, na concha da blusa verde.
As coxas agora já escorriam um mosto sangrento, e eles continuavam sempre, na mesma cadência, em avanços e recuos, como émbolos desiguais de uma grande máquina, cujo andamento uma voz gritava já enrouquecida:
- Esquerdo! Direito! Esquerdo!...
Debaixo dos pés, os bagos cediam, mas os canganhos, de que se soltavam, eram ainda agressivos. Parecia que os cardenhedros haviam caído a um pântano, doqual tentavam libertar-se, em vão. Tinham de fazer ali quatro horas de pousa, logo rompendo com a sova, que era a faina mais dura da lagarada. Ensonados, entontecidos de vinho e aguardente, com todo o corpo saturado daquele odor das uvas e do mosto, moviam-se agora com lentidão, conversavam em voz baixa, sorriam em esgares, e mal reparavam já nas coxas arroxeadas das raparigas, ainda risonhas para as outras que bailavam no corredor e lhes deitavam olhares de galhofa.
As pernas começaram a chapinhar, prosseguindo na mesma contradança. No tanque do lado, quatro homens, com a ajuda de "macacos", remexiam o mosto trabalhado a pés, na noite anterior, andando por cima de pranchas apoiadas nos bordos de granito do lagar. A espuma diminuía e o cango ia-se destacando.
-Um... dois... três... copos!...
258
O ruivo lembrava ao feitor a necessidade de vinho, atazanado pelos companheiros que passavam palavra, por causa do frio do mosto, onde os bagos ainda não desfeitos balouçavam como a cadeia de homens, numa vaga branda que não crescia mais, mas não cedera ainda. O frio começava a transi-los, e os seus carões barbudos, onde os olhos mortos de fadiga e semiembriaguez mal lucilavam, punham-se mais pálidos, naquele bailado de fantasmas, onde a música zangarreava, sem descanso, as gargalhadas atroavam como um escárnio e um uivo soltado por todos os lagareiros, como se quisessem imitar algum lobo acossado, varava o silêncio da noite, galgando as quebradas dos montes próximos.
-oFalta... aqui... vinho... vinho...-rouquejava o latagão da extrema esquerda, apoiado ao cajado.
Depois a voz passou ao homem da extrema da outra corda, um serrano baixote e franzino, de grandes bigodes •e chapeirão de palha-centeia enfiado até às sobrancelhas.
- Esquerdo!... Esquerdo!...
As cinco raparigas estavam esfalfadas e de bocas abertas pela canseira, mas, pretendendo ainda escondê-la num sorriso, cingiam melhor os braços, ao tronco dos companheiros, sem se lembrar, nenhum deles, que elas eram as cachopas mais escorreitas do rancho - para se moverem melhor elas sacudiam os bustos, como se oferecessem os seios à colheita das mãos que pendiam dos seus ombros. Alguns homens atiravam-lhes remoques e segredavam-lhes brejeirices, tocando com os lábios nos lenços que lhes cobriam a cabeça; mas faziam-no só por hábito, porque o cansaço chegara a todos.
O mosto subia no tanque, ao contrário da maioria dos anos, em que, depois de sovado, baixava mais de um palmo. Teve a corda de se quebrar, por instantes, afim de que as cachopas levantassem mais ainda os calções improvisados com as saias.
259
- Está a subir-lhes muito! - gritou, amalandrado, um rapazola.
- Fica o vinho mais doce!
E uma gargalhada percorreu todo o lagar, enquanto o feitor remordia um sorriso, para que o respeito se não quebrasse entre ele e o pessoal da sua roga.
À porta aparecera o Silva Costa a verificar se tudo estava em ordem.
- Vem aí o fidalgo - avisou para o caseiro.
E o tocador sanfoneou o cavaquinho com mais entusiasmo, enquanto o caseiro dava ordem para que fosse uma das raparigas cumprir o ritual em uso, com a entrada no lagar, pela primeira vez, do patrão ou de algum seu convidado de cerimónia.
Com as coxas morenas escorrendo mosto, a cachopa foi ajoelhar-se, um pouco envergonhada, à porta do lagar, tendo sobre si o olhar de toda a gente. Os pares que bailavam separaram-se por instantes, mas no tanque os cardenheiros prosseguiram, embora os da fila que ficava de costas para a entrada tivessem de volver a cabeça para ver o que se ia passar.
Compondo as lunetas, D. Fernando apareceu a encaminhar, num gesto amigável, o Dr. Freitas que era, entre os seus convidados, aquele que ali entrava pela primeira vez. Logo a cachopa se baixou para lhe limpar o pó dos sapatos, cortesia acompanhada com vivas dos lagareiros, que já sabiam da recompensa de cigarros e aguardente.
- Viva o fidalgo maila companhia!... - gritou o feitor, tirando o chapéu.
E todos o imitaram, enquanto a rapariga voltava apressada para dentro do lagar e as visitas entravam com o Dr. Freitas, à frente, todo embevecido daquele acolhimento, que o orgulhava e comovia. Arrimada à sua bengala, D. Branca sorria para o Roop, um inglês magrizela e vermelhusco, de cabeça quase calva e colarinho engomado,
260
apertando-lhe o pescoço alto e seco. Atrás deles, como um podengo de guarda, o seu comissário, o Arnal-dinho Veiga, muito baixo e irrequieto. Chamavam-lhes o ponto e vírgula quando os viam juntos, já de há longos anos; o comissário exuberante, carregando a mala do inglês, e o Roop, sempre meio bêbado, a responder-lhe num franzir de sobrancelhas e numa mistura de monossílabos que só o Veiga entendia. Depois ainda D. Constança, nos seus dezassete anos insípidos dando o braço, com o irmão mais novo, à tia corcunda e mirrada, que era na família a veladora dos bons princípios e de todos os meandros do complicado ramo genealógico dos Pimen-téis. D. Amália, mais do que a irmã, não suportava ali a presença do Dr. Freitas, o filho do velho Freitas de Gaia, um taberneiro de ramo à porta, como lhe chamava nos seus desabafos. E quando olhava a sobrinha, mais crescia nela repulsa por aquele casamento que o cunhado queria facilitar por questões de dinheiro.
- Segunda fila, meia volta! - gritou o serrano, querendo imitar na gravidade o vozeirão de um oficial que tivera na tropa, em Viseu.
E as duas cordas de lagareiros ficaram uma atrás da outra, enquanto o caseiro passava ao feitor um pacote de cigarros, para distribuir pelos homens, já todos aconchegados com o copito de aguardente que tinham vindo beber à borda do tanque, e um por um, para que o trabalho não parasse e alguma gota de álcool não fosse transtornar a lagarada.
Os lagareiros espertaram, por momentos, e o ritmo da tarefa dinamizou-se. As pernas pareciam verter sangue, um sangue estranho, em cujo limite de contacto, com o mosto, ficava uma linha mais escura, arroxeada, alguns dedos abaixo dos calções, todos salpicados de melaço. Rutilantes pelo verniz do mosto, os bagos negros, já rasgados na sua maioria, balouçavam na manta, onde uma
261
espuma branca principiava a levantar-se e "a qual punham, os engaços, minúsculos pontos dourados.
- Esquerdo! Direito!
A voz do comando ressoava na casa e escapava-se pelas frinchas das telhas. As coxas não davam ainda tréguas, embora as mais débeis já fossem arrastadas pela cadeia dos braços que prendia os corpos adoadigados uns aos outros. As raparigas andavam suspensas, de cabeças derreadas, sem ânimo para risotas, e insensíveis a tudo o que se passava à sua volta. Não as indignava agora os apertões que sentiam nas ancas, nem conseguiam distinguir sons. Tudo vivia nelas num empasíelamento de formas e ruídos vagos, cujo eco o corpo parecia enjeitar. Os músculos das pernas tornavam-se-lhes trambolhos que elas tinham de suportar, e os outros conduzir, já independentes do seu raciocínio.
O mosto ia aquecendo um pouco mais, mas todos os lagareiros continuavam transidos. A voz de ordens não cessava. O ruivo insistiu com o feitor por outra distribuição de aguardente.
- Sr. Manel, as bestas estão à manjedoura...
- Ainda não são horas - respondeu o outro, a catra-piscar de sono.
O cavaquinho remordia a mesma sandoonice. Os pares volteavam no terreiro, e dentro do lagar, depois de o fidalgo insistir para que se não coibissem com a sua presença. As senhoras pediram licença ao inglês e retiraram-se. O Dr. Freitas foi acompanhá-las à porta, tentando agradar a D. Amália, que não deixou, no primeiro momento, de lhe dar a sua ferroada.
- Porque não dança também, doutor?... Na Roda parece que os ingleses bailam algumas vezes com as cardenheiras...
-E parece-lhe bem, minha senhora?
262
- Julgo que não lhe ficaria mal - retorquiu com intenção.
- Embora el-rei D. Pedro folgasse com o povo... julgo que os tempos são outros, minha senhora.
Já D. Amália lhe voltava costas, pegando na saia para atravessar o terreiro que levava aos jardins, sem ouvir, sequer, a oferta dele para a acompanhar. Um tanto lívido pelo desprezo, o Dr. Freitas voltou a passo lento, ainda empanturrado com o jantar de doze pratos, servido durante três horas. Aproximou-se do Roop, que balouçava o corpo, num disfarce muito seu de embriaguez, e tentou estabelecer conversa acerca do mercado britânico.
A massa viscosa do mosto ia-se tornando mais líquida com o passear incessante dos lagareiros, já divididos em três grupos, sempre no mesmo ondulado das cadeias, agora mais bambas pela fadiga de todos. O ruivo voltou a gritar as ordens com o seu vozeirão.
- Sempre! Sempre! Um! Dois! Chega! Chega! Ao meio! Agora! Já! Atrás! Pisa bem!
Com nova distribuição de aguardente e cigarros, o ruído aumentou no lagar. Silva Costa deu ordem para o tocador de cavaquinho espertar mais os dedos e para as raparigas cantarem. Os homens que trabalhavam com os "macacos" no outro tanque principiaram também uma canção em coro:
Vinho fino do Alto Douro De forte me faz falar;
Põe-me alegre, põe-me fino,
E só me estrova o andar...
Depois riram-se, olhando, de soslaio, para o Roop, que pedira uma amostra de mosto, deixando de tirar fumaças do seu cachimbo. Com uma tamboladeira, o caseiro
263
chegou-se ao lagar e chamou um dos homens, que lhe pôs o pé por cima, fazendo escorrer líquido avermelhado para dentro do recipiente.
As fileiras balouçavam sempre, tocadas um pouco pela alegria e pelo ruído que se fazia à sua volta. O feitor já mirara o relógio por duas vezes - aproximava-se a hora do grito de liberdade, em que se desprenderiam os braços, para cada qual percorrer o tanque à vontade, sem necessidade das vozes de comando, nem da cadência que lhes era imposta pelos mais possantes. O uivo do lobo soltava-se, de vez em quando, no meio do alarido.
E, até esse instante, os lagareiros juntaram restos de energias esquecidas, para aumentarem o ritmo do trabalho, como se aproximassem mais o momento de folga, naquela cavalgada deémbolos das suas pernas, subindo e descendo sem cessar. As raparigas e os moços não sabiam bem por que motivo se moviam ainda. Tudo lhes balouçava com o cadenciado das fileiras e do mosto, e os próprios pensamentos se chocalhavam no cérebro.
- Liberdade! - gritou uma voz.
--Viva a liberdade! - responderam dezenas de bocas.
Bateram palmas, saltaram e riram, deram-se as mãos e dançaram de roda. Galhofaram entre si e alguns deles olharam as raparigas, novamente, como fêmeas. Um cardenheiro pegou no bombo, outro atirou-se aos ferrinhos, e uma música bárbara encheu o lagar, levando o fidalgo a sair com os convidados.
- Viva o patrão maila companhia! Vivam! Muitos homens enfiaram os casacos em farrapos e
cingiram-nos bem ao peito, pois ainda não tinham conseguido vencer o frio que os fazia tiritar. Chupavam cigarros, passeando sempre naquela borrinha viscosa, onde o cango formava uma camada dourada.
264
Foi nesse momento que o Chasco apareceu à porta, de aguilhada na mão, um pouco atordoado com a luz dos gasómetros. Chegara do Pinhão com uma carrada de duas pipas de aguardente, embriagado, como era seu uso em época de transportes, mas sem deixar aquele sorriso galho-feiro que nunca lhe saía dos cantos da boca e dos olhitos piscos. Quis gritar para os lagareiros, mas lembrou-se outra vez do filho, deitado sobre os cascos, a cozer também a sua berzundela. E riu-se com a invocação do rapaz. "Aquele alma do Diabo ainda vai sair mais bêbada do que eu. Deu-me a sede, vá de furar uma das pipas e beber até fartar. Fatinário! Vai também uma golada?... Estava a vê-lo acenar a cabeça, com aquele ar amalandrado que pelo Alto Douro todos lhe conheciam. E aquele pingueiro duma figa metera os beiços à pipa com tanta gana que se o não tivesse de lá tirado parecia capaz de a despejar duma só vez. Ficara como um porco, estava bem de ver. Pois não!... Aguardente... e da boa!"
Deu dois bordos, arrimado à vara, e meteu pelo meio daquela balbúrdia, procurando o caseiro, que, com a demora, já devia estar a jurar-lhe pela pele.
- Quando quiser que a morte venha, vais tu buscá-la - foi o que lhe disse, mal o viu a furar por entre os pares que dançavam.
- Ó João... Ó João...
E piscava os olhos ao outro, mostrando a boca meio desdentada. Agarrou-lhe na manga da camisa e tentou endireitar-se, para que não desconfiassem do furo na pipa.
- Dou-te a minha palavrinha... que não bebi um dedal de consumo.
- Bebeste um almude de aguardente.
E, chamando os homens que trabalhavam com os "macacos", dirigiu-se ao terreiro, para ordenar a descarga. O Chasco foi-lhes no encalço, mais transtornado com a luz e a algazarra dos cardenheiros que cantavam a acompanhar
265
a trempe. O homem do bombo tangia a pele de cabra, como se a quisesse estoirar, arrancando-lhe sons que ficavam a vibrar nos recantos do armazém.
- Tenham-me cuidado com o rapaz, ouviram? Está aí em cima, pois.
Teve vontade de lhes contar tudo, tal risota lhe provocava a recordação do filho, agarrado à pipa, como um cordeiro à teta da mãe.
- Esse alma do Diabo...
- Mas o que tem ele, ó Ghasco? - perguntou o João Ermida, transtornado, quando sentiu um arrepio no corpo, ao tocar as mãos geladas do Fatinário.
- O que há-de ter um filho meu?... tá bêbado... Bêbado que nem esses dois cascos.
Viu pegarem-lhe no rapaz e encostarem-no à parede, enquanto o caseiro o sacudia com frenesi, dando-lhe palmadas no rosto inexpressivo e lívido.
- Tenho quase quarenta e nunca apanhei uma dessas- resmungou a sorrir. - Se vocês o vissem... Era uma loba...
-i Cala-te aí! - gritou-lhe o caseiro, deitando a correr para dentro do lagar. - Arranjaste-a bonita!
Os quatro homens depuseram o Fatinário no chão, silenciosos, e de cabeça baixa. O caseiro voltou a correr, acompanhado pelo administrador, que se debruçou sobre o corpo inerte do pequeno carreiro, e ali ficou, por alguns instantes, a tactear-lhe os pulsos e a auscultar-lhe o coração. Depois levantou-se, vagarosamente, a acenar a cabeça para o caseiro; olhou, de seguida, para o Chasco, deitou-lhe a mão ao ombro e sacudiu-o com rancor.
- Mataste o teu filho.
E abalou. Dentro do lagar calou-se o alarido das vozes e da música.
Atordoado, como se lhe tivessem dado uma punhada entre os olhos, o Chasco deixou-se cair junto do filho e
266
ficou agarrado ao seu corpo, babudoando-o com a boca e as lágrimas que lhe corriam.

VI
Aquela sequência de acontecimentos transtornaram o espírito de Luís Teimas. Tornou-se melancólico, rebelava-se, em fúrias, contra o irmão quando ele o importunava, e nem os carinhos do avô lhe faziam a vida mais risonha.
Primeiro a morte da irmã, depois o caso da Maria Dolorosa, que o Fatinário lhe pormenorizara, após a conversa subentendida em sua casa, e, finalmente, a morte do amigo predilecto, por quem bebia os ares e sempre lhe trazia, das suas viagens de carreiro, algum novo incidente que merecia ser escutado. Sonhava também um dia correr as estradas e os carreiros do Alto Douro, de varas às costas, tangendo uma junta de bois, para a qual até já escolhera os nomes - um dos bichos seria o Doirado e o outro Galante. Como aquela chiadeira das rodas lhe dava alegrias, antes dessa noite de lagarada na Casa Grande! Lembrava-se sempre do Fatinário, já grandalhão e magrizela, muito sardento no rosto, a piscar-lhe os olhos, malandro, como quem trazia consigo um mundo de gandolagem. Agora, porém, quando escutava os carros, ficava mais triste do que se encontrasse o Chasco, abatido e mais bêbado do que nunca, revivendo essa trágica caminhada, pela noite, com o filho morto em cima das pipas, enquanto ele cantarolava cantigas à Lua.
Do seu mundo de afeições só o avô lhe ficara. E esse estabanava-se com o pai a todo o momento, agora que
267
a confiança de Francisco Teimas trazia apreensões ao velho.
Nunca mais viria para a porta do quinteiro embalar a irmã, nem ensinar-lhe a fazer turras e velhinhos; já não escutaria, com enlevo, as histórias do amigo, nem a sua mão lhe passaria no ombro, num jeito de tamanha ternura que, muitas vezes, só isso lhe bastava para se sentir feliz. Quase um homem, embora querendo já namoriscar a Adelaide Marinha, o Fatinário era sempre o mesmo, talvez agradecido pela ajuda que lhe dera naquele assalto ao rebanho em Ventozelo. Lembrava-se sempre com saudade da tosa que apanhara do pai, por causa dessa aventura, mas nunca, em sua vida, se sentira tão satisfeito consigo mesmo!
Quanto à Maria Dolorosa... Essa fora bem ingrata! Abalara da aldeia sem lhe dizer adeus - um recado só que fosse, para ele a procurar ao portão da quinta, já lhe bastava. Não eram recordações do tempo em que a considerava como sua prometida, porque percebia agora a distância que os separava; mas ficara-lhe um grande carinho por ela, uma amizade muito doce, diferente das outras, como nela se juntassem as da irmã, do Fatinário e do avô. Quando a via, pouco falava - ficavam-lhe só as mãos para acariciar as dela e os olhos para a mirarem bem.
Odiava o fidalgo. Esquecera todo o entusiasmo que Vivia com os outros rapazes da escola, quando o viam passar a cavalo, todo aprumado na sela, acenando-lhes a mão enluvada, mal eles se descobriam e o saudavam em coro, ou nos dias em que se juntavam ao portão da quinta, a ouvi-lo tocar piano. Fora por sua causa que a Maria Dolorosa abalara para a Régua e nem lhe mandara, sequer, um recado. Como gostaria de lhe bater!... Bater nos dois com uma daquelas "rachas" que se vendiam na Senhora do Monte, da Pesqueira.
268
Mas a vingança chegou naquele Carnaval.
Esquecidos da nova vaga de fome que corria o Alto Douro com a falta de saída para os vinhos, um grupo dispôs-se a pintar a garrana na Quarta-Feira de Cinzas. Chico Teimas, com outros rapazolas do seu lote, preparou um Judas famoso, um Judas de palha, vestido de farrapos, a que o Melras pôs um bigode, como o do Jerónimo. E foi esse pormenor que mais fez exultar toda a gente, quando a rapaziada da "súcia" saiu, à noite, com o boneco espetado num pau, levando alguns deles campainhas de bois ao pescoço, e começou a correr a aldeia em todos os sentidos. Foi uma inferneira de sogada, de apupos e de risota que sossegava por alguns momentos, quando, a certas portas, o cortejo parava para se ouvirem os versos dedicados aos seus moradores. O improvisador, aos ombros de outros rapazes, ou encarrapitado nos muros, se os havia perto, gritava a versalhada, apontando o Judas. E se todas as quadras eram acolhidas com gui-zalhadas e palmas, assobios e morras ao pai da fartura, como chamavam ao boneco, nenhuma teve mais elogios do que a declamada à porta da taberna da praça.
Se não vender o meu vinho, Vou pedir ao Mal-Matado A corda que ele usou Pra não morrer enforcado.
E enquanto o taberneiro os arrenegava, recusando-se a vender uma canada para os que queriam recompensar o pregador, o que ainda maior sogada provocou, o rapazio cochichava no largo, acenando archotes e tangendo as campainhas. Já outros tinham acendido uma grande fogueira para assar as castanhas que naquela noite da entrudada era hábito comer.
269
Luís Teimas andava no meio de toda aquela balbúrdia, sem grande alegria para festas, como os velhos que não pareciam satisfeitos com certos sinais do mês - Fevereiro quente traz o Diabo no ventre. Mas ele tinha razões especiais para estar mazombo e não deixar a "súcia". Se muitos entravam no grupo só por festa, outros porque o Judas tinha um bigode igual ao do Jerónimo, outros ainda porque o arrenegavam, como se, no fim da festança, as suas queixas da vida fossem acabar, Luís escolheu, por sua vez, a figura de D. Afonso, para ceifar no boneco os seus ódios recalcados.
À volta da fogueira já andava uma roda, que repetia a quadra dedicada ao taberneiro, obrigando-o a fechar a loja.
Se não vender o meu vinho, Vou pedir ao Mal-Matado...
E um grande coro acabou a cantiga quando chegaram dois tocadores com cavaquinho.
A corda que ele usou Pra não morrer enforcado.
Muitos já estavam ébrios e vociferavam contra o Judas, meio dobrado no pau em que o tinham espetado e já com a palha a aparecer por entre a farraparia. Chico Teimas parecia louco, pulando no meio daquela gente, quando lhe passaram o boneco.
- E dopai da fartura! - gritavam à sua volta. - E do pai da fartura!
Foi então que o Espanhol apareceu de caçadeira em riste, com ar de quem preparava uma surtida, a pedir para um lado e outro, com sinais muito sumidos, que nada dissessem ao Judas. A grande algazarra que o
270
acolheu amainou aquela gente, já divertida com a entru-dada que começavam a adivinhar. Abriram-se alas, e o Espanhol ia avançando, olho atrás, olho à frente, como quem receasse ser visito e tomasse precauções para se sair bem da empresa. Chico Teimas ajudava a farsada, fazendo girar o espantalho e falando por ele, em voz esganiçada.
- Ó Espanhol, não me faças mal! Alembra-te dos meus filhos e da minha mulher que ficam sem pão.
-Homens não lhe faltam, meu chibato! - respondeu o outro, no meio da gargalhada geral, que não se prolongou muito, porque todos estavam interessados em não perder pitada da festança.
- Ó Espanhol!... Olha que eu sou o pai da fartura!...
- Fartura de vento, meu malandro. Arrebentas aí com a gente à fome e agora ainda choras?...
E depois de um curto silêncio, em que só se ouviam as castanhas a estalar na fogueira:
- Com quem se parecem os teus bigodes?
-Com os do Jerónimo!-gritou um vozeirão de cima da parede da praça.
- E és omalandro com quem?... -insistiu o Espanhol, avançando sempre, e já de espingarda engatilhada.
- Com o D. Afonso - respondeu Luís Teimas, num desabafo que ele próprio não se julgava capaz de dizer em voz alta.
- Dizes bem... com D. Afonso...
E toda a gente se recordou de Maria Dolorosa e do Fontelas. Não houve mais palavras. Só o marulhar da multidão se ouvia, como um vento que passasse sobre a aldeia. A galhofa desaparecera para voltarem as queixas e as iras.
Chico Teimas ergueu o Judas, o mais alto que pôde, e uma detonação cortou o recolhimento da praça, logo
271
seguido por um uivo de todas as bocas: "Judas malvado!" E, antes que o Espanhol pusesse a espingarda ao ombro, já o espantalho caía à fogueira, levantando uma grande fumarada, onde agora os olhos se fixavam, talvez a corporizar no boneco de palha aqueles que provocavam os seus ódios. O rapazio não fez a carpideira habitual: ai o meu rico paizinho! Lá morreu o pai da fartura!
Todos esperavam que o fogo tomasse bem conta do Judas. E quando o viram a arder, com o fedor dos farrapos queimados a empestar a praça, seguiram para suas casas, sem cuidarem que a fogueira se apagasse e sem mais tropelias ou improvisos. As guizeiras badalavam ainda, mas ninguém as agitava por brincadeira.
Luís Teimas e o irmão não guerrearam nessa noite pelo caminho. Iam silenciosos, mas entendiam-se. E o rapazola sentia-se vingado desse Judas que levara a Maria Dolorosa da aldeia. No coração só lhe ficava a mágoa pela morte da irmã e do Fatinário. E, sem que o Chico desse por tal, os seus olhos estavam marejados de lágrimas.

VII
A mamã insistiu para que eu me resolvesse a dar-lhe hoje mesmo a resposta. O Silva Costa não a largava com cartas; nem uma só tarde ele deixava de passar, a cavalo, à espera que eu aparecesse à janela.
Mandei-lhe dizer que sim, mas penso continuar a fingir que o não ouço subir o quelho. Tenho de me sacrificar pela mamã, porque entendo agora que só eu posso e devo fazer. Vou ficar aqui o resto da vida, entre eles,
272
junto de um homem que não amo, nem pelo qual tenho, sequer, uma leve simpatia. A mamã diz-me que o tempo trará o que é preciso para vivermos juntos. Ela engana-se e eu preciso também de me enganar, acreditando nessa possibilidade. Se o não consigo, vou endoidecer.
O Dr. Freitas casará com a filha do fidalgo. D. Afonso... Seria preferível que tivesse sucedido comigo o que se deu com a criada; não para que o tivesse, porque nunca julguei isso possível, mas para ter agora um pretexto que afastasse o Silva Costa. Vai ser meu marido. Nos seus braços morrerão quantos sonhos idealizei em toda a minha vida. Vida ainda curta, mas pesada como um fardo que parece derrubar-me.
Deixarei de comer: hei-de ficar doente e não me tratarei. Quero acabar depressa. Tão depressa que não chegue a sentir nojo por este homem que vai ser meu marido. Pensei agora que poderia ter filhos dele. Não, isso não; seria horrível. Filhos deste homem só por maldição; e não tenho sido tão pecadora que mereça este castigo do Céu. Ó meu Deus, ajudai-me!...

VIII
Francisco andava com o pai nas palminhas, dando-lhe conta dos benefícios que fazia nos prédios, mas o velho mostrava-se reservado para os seus entusiasmos. Todos se queixavam da situação criada pela escassez de compras, cada vez mais raras, e as que se faziam, por intermédio de especuladores, enfermavam dos preços baixos que era norma oferecerem. Por seu lado, Francisco não se lamentava de dificuldades nem parecia mostrar interesse em vender.
273
Era esse contraste que preocupava António Teimas.
Escarranchado no Doiradinho, muito esperto de orelhas e deserto por achar carreiro onde pudesse seguir no seu trote azougado, o velho aparafusava nos receios que lhe traziam a confiança do filho. Aquela mudança brusca num homem sempre lamentoso, só vendo noutros tempos soluções no abandono da terra e na partida para a estranja, dava-lhe pouco sossego. A vida ali não se resolvia por impulsos, mas numa certeza firme que tinha de ser igual em todos os dias, tal como as fragas presas às montanhas, sempre agarradas ao fundo, mesmo que os temporais !as descarnassem.
Ainda que entres na vinha e soltes o gabão, Se não trabalhares, não te dará pão.
Essa era a grande verdade que o velho Teimas perfilhara em toda a sua existência e repetia a quantos procuravam o seu conselho avisado. Ao filho, em especial, recordava esse rifão, feito pela experiência de quantos tinham transformado o Alto Douro fraguento num jardim de esperanças. E ele parecia não querer ouvi-lo. O dinheiro agora não faltava; mas dinheiro que não era suado pouco conforto lhe trazia.
Francisco já tentara encetar conversa, por várias vezes, a propósito das enxertias feitas no bacelo plantado nas terras baixas, junto ao rio. O velho, contudo, respondera sempre por meias palavras, e lá seguia, balanceado pelo passo curto do garranote que escolhia, por si, o melhor carreiro do caminho. A Primavera voltara em todo o seu esplendor de verdes e de luz, embora aqueles sinais não enganassem os que se lembravam das tempestades de Maio, em que o vento macera os pâmpanos das videiras e as chuvas torrenciais arrastam muros de socalcos, desventram
274
terras e levam na enxurrada quanto encontram na sua correria pelas vertentes.
Naquela meia tarde, porém, tudo estava límpido, como para deslumbrar os olhos que ali viessem. Os geios goivados nas fragas, a poder de vidas, pareciam mais simétricas, sem sombras duras, retalhando todas as lombas desde o rio aos píncaros; as aldeias acasteladas nas montanhas balbuciavam ternuras no branco do casario caiado ou no moreno do granito sem reboco. E os montes encavalitavam-se sempre, seguindo aquela serpente colossal que o Douro rasgava lá no fundo e onde os rabelos venciam galeiras e poços, a poder de vela ou de remos, de varas ou de sirga. Naquele momento, um barco passava à curva do Pinhão e mostrava-se em toda a vaidade da sua vela empolada, quase insignificante naquele cenário grandioso de montanhas desdobradas.
António Teimas mal reparava nesse espectáculo que sempre o entusiasmava, embora o conhecesse como os seus dedos. Mas pensava agora no rumo da sua vida, quando o fim se lhe aproximava; tanto que parecia ser capaz de lhe tocar com os dedos, se lá quisesse chegar depressa. Merecia bem um pouco de mais sossego, depois de tamanhas canseiras e matações de cabeça. O filho, porém, não levava as coisas por boa estrada. Era preciso reagir ele próprio contra a cegueira que o tomara. "Aquela Gracinda lá em casa... Também lhe cabiam culpas na situação. Instara com o filho para lhe pedir dinheiro e agora o resultado estava à vista. Pensara lá alguma vez que aquilo se tornaria num hábito!... Num mau hábito..." o
Francisco julgou que o pai adormecera em cima do albardão e agarrou na arreata, não fosse o Doiradinho tropeçar nalgum rebo do carril.
-Cuidado, pai!
- Deixa, que vou bem!
275
- Como levava os olhos fechados...
- É pra ter a alma mais aberta - respondeu-lhe com amargura na voz.
E continuaram silenciosos, até chegarem aos socalcos que Francisco lhe vinha mostrar. O velho não desmontou - viera até ali para provocar a conversa com o filho acerca de tudo o que se passava, bem mais do que pelos enxertos no "americano".
- Assim não pode ver tudo - dissera-lhe Francisco mal-humorado, quando o pai se recusou a descer do albardão.
- Julgas isso?... Estás enganado... Ora diz lá o que fizeste.
O filho deu uns passos para dentro de um socalco do meio, e dali começou a contar ao velho o que ordenara, convencido de que iria mudar-lhe a carranca num franco sorriso de satisfação. Desconfiava que ele pressentia o que se passava com a Gracinda, e resolvera trazê-lo, não ignorando o habitual entusiasmo do pai sempre que via novos geios, dos que a filoxera matara, replantados com videiras. Só por isso insistira uns poucos de dias para que viesse.
- Meteram-se castas para qualidade e para quantidade, pai!
E, como a expressão dele nada lhe dissesse, insistiu pela sua opinião.
- Acha que fiz bem?...
- Diz mais, anda, diz mais...
Aquela indiferença começava a perturbá-lo. Já o tique da face se acentuava, enquanto à boca lhe vinha a secura da gaguez que se aproximava.
- Viosinho e terrantês nestes socalcos mais baixos e agudenho e gouveio nestes de riba.
O velho só meneava a cabeça. O rabelo que surgira na curva do Pinhão passava agora ali defronte e a vela
276
crescera, esmagando todo o barco, onde no alto das apegadas o arrais fazia o rumo com outro marinheiro. Ouvia-se o gemer da espadela e a proa do barco rasgava as águas turvas, aproximando-se do ponto da Roeda.
- Não é bom sítio, pai. Nem o vinho em baixo, nem trigo era cascalho.
O velho não respondera e ele insistia.
- Ouve ranger a espadela muito perto...
- Nem tudo pode ser oiro...
Um novo silêncio se fez entre amibos. Francisco deu volta às videiras para disfarçar o enervamento que o pai lhe causava com aquela atitude de reserva. O velho olhou para os longes, correndo depois a vista pela veia do rio. O rabelo ainda não passara o ponto, mas os homens insistiam sempre. Deixavam o barco recuar e voltavam a fazer o rumo para vencer a corrente impetuosa que os repelia. Chegavam ali os brados da ajuda, galgando o rumor da galeira.
"Era assim na vida... E o filho não o queria compreender. Insistia-se sempre até que chegasse o dia da vitória. E nem nesse dia seria para descansar, porque outra nova tarefa haveria para dar começo."
Francisco aproximou-se e pegou na arreata para dar volta ao garrano.
- Estás com pressa?
- Pensei que o pai já tivesse visto tudo.
- Vejo até de mais - respondeu, olhando o filho com firmeza.
E as palavras, retidas de há muito, foram-lhe saindo com a força que punha em tudo o que dizia. Francisco fitava-o transtornado.
-Vejo o que não queria ver. Endividares-te até às orelhas quando as terras estão em meu nome e sabes que não serei capaz de negar aquilo que pedires. Outro fosse eu... E se recusasse as dívidas?
277
- O que a Gracinda tem feito, não merecia - interrompeu Francisco com azedume.
- Já sabes que o não faço... Nunca neguei a minha palavra a ninguém, mesmo se ela for empregada por outro, em meu nome.
E numa pergunta brusca, em que os seus olhos claros cintilavam mais:
- Quanto lhe deves?... Quanto lhe deves?...-insistiu já desvairado.
- Não sei bem... Mas não percebo porque é isso agora, quando foi o pai que me ensinou a pedir-lhe.
- Com conta! -gritou o velho, já trémulo. - Tentaste vender o vinho, porventura? Nem nisso falas...
Francisco hesitava agora e ocorreu-lhe uma ideia para enganar o pai.
-O Silva Costa disse-me que me guardasse para mais tarde, porque o Brasil e a Inglaterra iam comprar mais qualquer dia... e o preço tinha de subir.
António Teimas procurava compreender nos olhos do filho a verdade do que lhe dizia.
- Foi ele que to disse?
- Sim, senhor.
E só então encarou o pai. Este balouçava-se no albardão, como se tivesse ganas de saltar abaixo.
- Admira-me - replicou, desconfiado. - Agora, que também se fez comprador, não te viria assim avisar, para que tu e os outros lhe furassem o negócio.
- Pois é verdade.
-Não vai ser comerciante muito tempo, se assim continua.
E depois de um curto silêncio:
- Pois faz de conta que assim seja. Mas como pensas tu pagar à Gracinda?... Vais pagar-lhe, é claro. O marido aparece aí, um dia, e depois?...
- O pai não quer ver tudo como antes da filoxera?
278
- retorquiu Francisco com voz dura, agora que o pai lhe lembrava o que gostaria de esquecer.
- Quero, sim, mas feito pelo nosso esforço. Não é com dinheiro dos outros, às mãos-cheias, sem peso nem medida, à parva! Corta-se no comer, endurece-se o pão na arca, passa-se frio com falta de roupa... tira-se ao sangue, se for preciso. Isso é que é. Agora assim?... Desconfio da fartura; não gosto que o vinho me corra pra bica sem que eu meta uvas no lagar. Entendes?!...
Francisco agarrou nas rédeas do Doiradinho e incitou o animal para fazerem o retorno. As palavras do pai excitavam-no, como chicotadas que lhe desse na cara. A resposta seria outra, se não fosse ele que lhe falasse. Dava-lhe ganas de saltar dentro dos geios e desfazer aquilo tudo a pontapés.
- Tens de lhe pagar.
- Já sei, pai; cale-se, por favor - gritou-lhe com ódio. - Parece que a Gracinda lhe fez mal.
O velho sorriu-se, mas aquele sorriso no seu rosto lívido não indicava satisfação.
- Tu é que andas atrás dela a farejar...
- Por sua causa... Porque quer milagres. E eu só para não o ouvir...
- Desgraças-me e queres deitar fora o pão dos teus filhos. Pois mesmo assim velho, já que outro filho me não ficou, vou eu mesmo tratar de tudo.
- E eu abalo...
- Não me metes medo com a ameaça. Ainda estou vivo e apetece-me tomar conta do que é meu.
Pelo caminho acima só se ouviu o ruído das ferraduras do garranote, ferindo as pedras do carreiro. Francisco meteu a passo largo, em direcção à aldeia, enquanto o velho seguia sobre o albardão, na mesma aparente moleza com que descera até perto do rio. Dentro da sua alma, porém, crescia um novo vigor. E olhava o filho
279
que se distanciava, acenando a cabeça com frenesi. "Um baboso!... Perdeu a cabeça com a cunhada e recebe-lhe todo o dinheiro. Um dia chega aí o António Francisco e temo-la armada. Se desconfia deles, atira-lhe dois zagalotes naquela testa que o mata. E se o não souber, aquele dinheiro ou as terras hão-de saltar-lhe para a unha. Não é homem de meias conversas."

IX
Silva Costa perdera o ar reservado, para se tornar num homem de confiança aberta, cujos sintomas se adivinhavam não só no desembaraço dos gestos e na vivacidade do olhar, como nas conversas bem humoradas e no rejuvenescimento físico. E se do Porto trouxera aquele líquido milagreiro que lhe escondia os cabelos brancos, de lá voltara também com uma certeza mais firme quanto aos seus projectos - isso era, no fundo, o grande segredo da sua transformação.
Falara com o fidalgo por causa dos próximos granjeios e percebera melhor até onde já iam as dificuldades da casa. As despesas sempre constantes a que o obrigavam a vida de sociedade amasiavam-no para a ruína, se não fosse por diante o casamento de D. Constança com o filho do Freitas Velho. A esposa, porém, mantinha-se inalterável quanto a esse projecto, parecendo ignorar para onde os levava o esbanjamento do dinheiro, a que ninguém se escusava na família, e mais ela do que ninguém.
A quinta do rio Torto estava já perante D. Fernando, como um peso morto que, mais tarde ou mais cedo, havia necessidade de alijar. Silva Costa soubera descuidá-la, com mais reservado pensamento, e carregar-lhe bem nas
280
contas anuais, para que a todos o facto se tornasse evidente. Cauteloso, porém, não deixava uma só aberta para qualquer dúvida.
- É uma pena!... A terra talvez não seja grande coisa, mas eu não desistia ainda; mandava-lhe arrancar todas as videiras e metia bacelo novo para ver o que dava.
O fidalgo retorquia sempre com as mesmas evasivas:
- E já viu quanto isso custa?... Naquelas encostas todos medram menos eu. Valerá a pena teimar?!...
Entrava depois em confidências com aquele homem a quem oferecia toda a confiança, vendo nele um colaborador indispensável.
-Não tenho dinheiro, Silva Costa, essa é que é a grande verdade. Já reparou nesta família que arranjei?... Cada qual aposta-se em gastar mais do que os outros e eu não tenho coragem para me opor, embora não lhes esconda a situação, à espera que eles próprios compreendam para onde caminhamos. Mas ninguém a quer entender; isto vai assim até ao cabo.
-o pior é que...
- O pior é tudo isto, Silva Costa. Quanto aos granjeios... eu sei lá! Espere mais umas semanas.
- Se a Vossa Senhoria não parecesse mal... Tenho umas economiazitas e adiantava uma parte do que é preciso.
O fidalgo acabara por abraçá-lo.
- Acredite que nunca mais esquecerei este dia. E hei-de corresponder à sua atitude com uma amizade sem limites.
De casa do fidalgo fora a Gaia, aos armazéns do Freitas. O filho continuava interessado na candidatura e pedira-lhe que aparecesse sempre que descesse ao Porto, a fim de conversarem alguns instantes. "Não incomoda nada, Silva Costa. A sua presença traz-me um pouco dessa
281
terra heróica que eu venero e desejo servir até ao sacrifício", dissera-lhe na última vez que se haviam encontrado na Rua dos Ingleses.
Bem lhe percebia a intenção, mas o certo é que amizades daquelas não se podiam enjeitar. O Dr. Freitas iria longe na vida pública do País, estava bem certo disso. Tinham falado de inúmeras coisas até chegarem ao ponto que lhes interessava. O outro quisera conhecer pormenores da vida do fidalgo, pensando, certamente, na D. Constança, e ele não se mostrara esquivo. Aludira à ruína que representava a vinha do rio Torto e aos bons lucros da Quinta Alta.
- Aquilo precisava era duma rédea forte, como a de Vossa Excelência. Doutra maneira não sei...
O Dr. Albano recebera a sugestão com evidente prazer. Aquele casamento tornava-se necessário à sua carreira política e, embora entendesse de há muito a hostilidade de D. Branca e da irmã, confiava ainda na sua persistência e nos créditos do pai Freitas, cartada forte a jogar no último extremo, mas que não hesitaria em pôr na mesa, se a resolução demorasse. Silva Costa bem lhe conhecia os propósitos; por isso mesmo fizera aquela alusão. Desprevenido, talvez, o outro correspondia ao seu plano.
- Formava-se uma cadeia de interesses desde a vinha ao armazém, Sr. Doutor. Sempre é outra coisa!...
- Produtor só por graça, meu caro Silva. Fale-me em comércio... Se me dissesse que haveria uma forma de meter os meus vinhos directamente em Inglaterra, isso era favor que lhe ficava devendo. Agora produzir...
E sorria-se com benevolência da candura da sugestão.
- Saltar por cima dos Ingleses é que é a manobra. Mas como?!... Aquilo que eu compro por um no Alto Douro, chega ao cálice dos fregueses, em Inglaterra, por mais de cem. E eu embolso o máximo de dez. Veja o
282
negócio!... A produção quase não conta no meio de tudo isto.
Silva Costa ficara deslumbrado com aquele galope de preços e de lucros.
-O vinho, afinal, é dos Ingleses! - exclamou ainda com ingenuidade.
O Dr. Freitas dera uma gargalhada.
-Pois de quem queria que fosse?... Nosso?!... Você tem coisas!... O lavrador é o burro e o comércio português a albarda; mas quem vai às cavaleiras é o beef. Pois então!... E sem risco de cair, porque o burro é manso e a albarda vai bem presa. Você ignorava isto?!...
- Ignorar não é bem - respondera. - Mas julgava as coisas doutra forma.
Aquela lição valera-lhe logo bons resultados - propôs-se fazer parte da albarda, tomando algumas compras para o Freitas Velho. Com uma achega do filho conseguira trazer ordem para adquirir cem pipas de dois tipos de vinho bem caracterizados para feitoria. Encetava uma nova vida. Iria casar com Helena e entrava no mundo dos negócios. O Dr. Freitas queria ser deputado; ele garantia-lhe os votos, mas o outro que lhe garantisse as compras nos lagares.
Recordava tudo isto ao fazer contas da encomenda e das suas percentagens no negócio, revendo-se embevecido nas cifras com que os Ingleses ficavam. Nunca poderia chegar até lá, mas só produtor já não o desejaria ser mais no resto da vida. A quinta do rio Torto para base de ofertas era um caminho; no resto comprar aos outros e negociar com Gaia.
Foi nesse momento que a Ana Sarrifa apareceu para dizer que o velho Teimas lhe queria falar.
- Pois sim, que entre.
283
Logo lhe ocorreu o motivo daquela visita - o filho enxergara-o para lhe pedir que dissesse ao velho, na hipótese de o procurar, que se esperavam altas de preços. Já pensara no caso e percebera que também esse facto o poderia ajudar no seu plano contra o Jerónimo.
- Desculpe, Sr. Silvinha - dissera-lhe o velho, entre portas.
- Para si nunca há licenças, homem. O Douro é seu...
- Se o fosse!...
E os olhos do Teimas sorriam, deslumbrados.
- Era isto um jardim. Mas não lhe quero roubar tempo - prosseguiu o velho depois de uma pausa curta. - O meu Francisco disse-me...
- Sim, mestre António, as coisas parecem ir compor-se. Foi isso mesmo que me pareceu compreender por certas conversas que tive com alguns graúdos de Gaia. Mas daí a ter a certeza... Nisto de vinhos é sempre o diabo dar conselhos. O Francisco disse-lhe a verdade, porque é disso que eu estou convencido. É claro que o fiz por uma grande amizade e espero que não conste por aí... Agora a certeza!
E um pouco confrangido consigo, pela frieza que estava a usar no aproveitamento de uma mentira de ou-trem, pôs o assunto nos seus termos exactos.
- Mas quem me diz que, deixando para tarde, os preços não serão mais arrastados?
-O Senhor Silva Costa compra? - perguntou-lhe o velho, numa tentativa para o procurar entender.
Ele, porém, estava atento e repudiou a hipótese.
- Nunca comprei um almude de vinho e nem esse é o meu propósito. Entendo-me melhor com produtores do que com comerciantes. E se algum dinheiro guardar, será para o meter na terra. Ganhei o vício com o meu pai.
284
O velho Teimas saiu pior do que entrara, desorientado com as dúvidas criadas pelo Silva Costa. "O filho talvez tivesse razão. Mas esperar... Quem é que podia esperar numa situação daquelas?... Dinheiro emprestado era sempre dinheiro falso. Num repente vinha ordem para o pagar, com a chegada do António Francisco, e lá se perdia tudo."
O administrador viu-o partir preocupado e sentiu-se mal disposto. O certo, porém, é que fora o próprio filho quem lhe viera pedir aquele favor. Era verdade que servia os seus propósitos e tolo seria se não aproveitasse uma oportunidade que os outros lhe davam. A notícia iria correr, por força - todos se iriam segurar até ao fim, o Jerónimo pagaria algumas pipas por preço mais alto, e isso faria que todos os outros se aguentassem. Até que o Jerónimo deixaria de comprar; depois tudo era fácil. Os preços viriam por aí abaixo, de cambolhada, ele apareceria, no fim, a ajudar um ou outro, servindo de simples intermediário para os tirar de apuros.
o pior era o caso do velho Teimas, que lhe bolia com a consciência. E resolveu pagar-lhe pelo melhor preço possível, porque bem o merecia pelo serviço que lhe ia prestar, dando à trela pela aldeia. Como sempre que conseguia harmonizar as suas contradições, Silva Costa sentiu-se satisfeito. Fechou o escritório e mandou aparelhar a égua para fazer o seu passeio habitual. Enquanto esperava, foi até junto do cupido de "nármore (do jardim e, assobiando, sorriu-lhe com enlevo. Atirou-lhe depois um piparote numa das bochechas e ciciou com bonomia: "Ah, meu velho! Isto de tratar contigo é uma coisa muito mais complicada do que comerciar com vinhos generosos!"
285
Com aquela esperança retraíram-se nas vendas, à custa de novos empréstimos que os agiotas tornavam cada vez mais caros. O boato da subida dos preços levava-os, porém, a aceitar quaisquer exigências; o pior é que já se aproximava outra colheita e nenhum possuía vasilhame seu para incubar mais vinho.
António Teimas hesitava também no caminho a seguir: "Vender pelos preços que o Jerónimo oferecia ou suportar ainda aquela falsa situação de viver com dinheiro recebido do Brasil pela Gracinda? Ambas alternativas se lhe tornavam dolorosas - mas que devia fazer?..."
O Jerónimo, por sua vez, andava alarmado com aquele disparate, sem perceber a que o atribuir.
- Vossemecês endoideceram, com certeza. Então tudo piorou e pedem-me um dinheirão desses?!...
- É pegar ou largar, Seu Jerónimo.
Convencidos de que estavam a ganhar tempo e lucros, os vendedores respondiam-lhe, de galhofa, num contraste embaraçador com os outros anos, em que quase lhe suplicavam a tirada do vinho. Na Quinta Alta, o administrador aguardava a sua vez de intervir, cauteloso nos manejos e sempre bem informado do que se passava. Ia afastando os comissários que apareciam a pedir-lhe informações, como era hábito consagrado, e já escrevera ao Dr. Freitas para aumentar as compras, pois estava convencido de que por mais três meses adquiriria por tuta-e-meia o vinho que lhe aprouvesse.
António Teimas não parava de magicar, já um tanto desconfiado com a expectativa geral. Pedira ao neto que lhe escrevesse algumas cartas para a Régua e as respostas
286
ainda o desorientavam mais - todas eram unânimes nos preços baixos que os vinhos almejavam.
-oRaio me pele se entendo uma coisa destas!... Aqui anda maroteira!... Ná!...
O filho exultava com as suas preocupações e atazanava-o com perguntas.
- Então, pai?...
- Então o quê?... - respondia-lhe, já atravessado com o modo abrejeirade de Francisco.
- Sempre vende ao Jerónimo?... - Deixa lá isso comigo.
Falava-lhe com calma fingida, só para não lhe dar glórias, mas a verdade é que se se sentia desconfiado daquela promessa de subida, não tinha coragem para fechar negócio antes dos outros. Sabia que o filho o vigiava, para vir com as suas, logo que ele cometesse o primeiro erro. Andava capaz de estoirar, enervado com aquilo. "Já não bastava o trabalho que dava até se meter nas pipas, quanto mais viver-se depois naquela incerteza."
A dúvida para com a Gracinda também não lhe dava sossego. Afastara a hipótese de quaisquer relações com o filho, depois que ela provocara uma conversa acerca dos empréstimos, rodeando o assunto com manha redobrada.
Ficara convencido - metem-se coisas na cabeça de um homem! -, mas entendia que era necessário pagar-lhe tudo o mais depressa possível.
oAntónio Francisco adoecera no Brasil e podia aparecer na terra de um momento para o outro, exigindo o pagamento imediato do dinheiro ou a entrega de alguns prédios. Conhecia-lhe muito bem a costela - aquilo não era gente a quem se confiasse um pó de sulfato. E não largava a Gracinda com perguntas acerca da saúde do marido.
- Recebeste carta?
287
- Diz que está pior...
- Qualquer dia vem até aí. Bem precisava de descanso, coitado - dizia-lhe para esconder o interesse que tinha em que não voltasse tão cedo.
Esse desejo, contudo, não era só dele.
O filho andava mais exaltado do que nunca e o velho supunha que o motivo era o seu embaraço com as vendas. Para Francisco era bem outra a causa - a doença do afilhado tornara-se no facto mais importante da sua vida. Se chegasse uma carta com a notícia fatal, todos os seus problemas ficariam resolvidos. Poderia casar com a cunhada, deixando de se encontrarem às fugidas, sempre com receio de serem descobertos, ao mesmo tempo que ganharia sobre o pai o ascendente da sua condição de credor. Então, talvez o velho percebesse que estava à sua mercê e acabasse com as perlengas dos seus sacrifícios pela terra. Nunca lhe poderia perdoar o suicídio da mãe, obrigada a ficar ali, a passar fome com os filhos, só porque lhe dera a maluqueira de não abandonar as videiras, a quem queria mais do que ao amor da família. Se o outro morresse, talvez ainda abalasse para a Régua, onde montaria uma casita de negócio para ele e para a Gracinda. Ali era outra vida - ficariam longe da má-língua "e daquela mornice da aldeia, onde se sofria todo o ano por uma vindima que só trazia novas amarguras.
E exultava com os seus pensamentos, como se tudo corresse, tal qual ele desejava. Sentia necessidade de falar a alguém nas suas ambições, mas vira a amante preocupada, um pouco alheia aos seus carinhos, e o facto torturava-o com ciúmes.
- Pensas nele, não é?!...
Durante muito tempo evitara sempre aludir ao afilhado; agora, com a continuação das suas relações com a Gracinda, acabara por se sentir traído pelo outro, só porque era seu marido e podia aparecer algum dia.
288
- Julgas que não te percebo?... Depois que soubeste a notícia, ficaste triste - insistiu Francisco naquela noite, quando o pai subiu a escada para se ir deitar.
- Querias que cantasse, naturalmente!
Aquela réplica e o modo como fora dita transtornaram-no. Lamentou não estar em casa dela para lhe falar à vontade, mas aproximou-se com o olhar firme de ódio, querendo domar o de Gracinda, que não se lhe submetia. Agarrou-a por um braço e sacudiu-a com violência, ciciando-lhe ao ouvido o grito que refreara.
- É assim que me queres?... Já te esqueceste...
- Esqueci-me primeiro que ele era meu marido. Francisco Teimas abriu os dedos num gesto de repulsa
e apeteceu-lhe espancá-la sem piedade, ali mesmo, até provocar alarido na aldeia. Retraiu esse impulso, mas disse-lhe, para a martirizar, numa vingança de que precisava:
- E depois o que fazias?... - insistiu com perversidade. - Desonrada para ele, ainda te lembravas que eras sua mulher?...
Voltou a fincar-lhe os dedos na carne, até a obrigar a gemer de dor. Gracinda compreendeu que tinha.de se lhe submeter e baixou os olhos, onde as lágrimas corriam.
-Não sabes que por ti sou capaz de tudo?!...- disse-lhe com brandura, já comovido da sua fraqueza.
-"Mas que querias tu que eu dissesse? - suplicou-lhe Gracinda, ainda receosa.
-Que te sentisses contente... Não percebes?...
Quase lhe dissera que o marido podia morrer e isso era bom para ambos; sentiu, porém, um pudor estranho de falar naquilo e afastou-se. Passeou na cozinha, durante algum tempo, sempre a evitar olhá-la de frente - parecia recear agora que ela pudesse adivinhar os seus pensamentos. "Seria o fim de todos os males daquela casa. O pai havia de se lhe submeter e nunca mais o desfeitearia
289
perante os outros. Daria uma volta a tudo; faria um lagar e compraria pipas para beneficiar os vinhos de sua conta."
Logo se lembrou do seu projecto de abrir a loja na Régua; e quis ouvir-lhe a opinião.
- Tu gostarias de ir para a Régua ou de ficar aqui?...
Gracinda mostrou-se surpresa, sem lhe perceber a intenção, e limpou as lágrimas, como se precisasse de o ver melhor para atinar nas suas palavras.
- Mas eu não posso abalar...
- Porque não queres.
Voltou-lhe a exaltação da fuga, embora naquele momento, se ela lha propusesse, sentisse os inconvenientes dessa atitude.
-Abalaríamos para onde tu quisesses; faríamos vida nova os dois, sozinhos...
- E o teu pai?!...
-Achas que lhe devo obrigações?... Não vês como me trata?!...
- Ele é teu amigo, Francisco.
Agarrou-lhe as mãos para o convencer, sentindo que ele se transformava com o seu contacto; sorriu-lhe, depois, e Francisco afagou-lhe os cabelos, numa carícia nervosa.
-Se estivéssemos em tua casa...
- Cala-te!
Percorria-lhe o corpo com o olhar, invocando as noites passadas junto dela, e toda a exaltação se desviava agora para aquela carne morena que se adivinhava no começo do peito.
- E se ele morresse?! - disse radiante, sem perceber como fora capaz de lhe confessar o seu desejo mais profundo.
290
Ela baixou os olhos, embaraçada, mas acarinhava-lhe ainda uma das mãos.
- Sei que também ficarias contente. Não fales agora, que eu digo tudo. Casaríamos depois e viveríamos na tua casa, os dois, sozinhos...
Gracinda acenava a cabeça num frenesi, querendo gritar-lhe que se calasse; ele, porém, nada mais entendia do que o seu sonho, e prosseguia sempre, num desvario de palavras e de afagos que era simultaneamente conso-lador e doloroso.
- Faríamos o que tu quisesses; aqui, ou em qualquer parte, vivendo um para o outro. Gostei sempre de ti desde aquela noite... Lembras-te?!... Também eu desejei que ela morresse; não tenho agora vergonha de to dizer. Foi um pecado, mas era o que eu sentia...
Gracinda rompeu em soluços nervosos, que quis retrair e não pôde. Desembaraçou-se dele, num repelão, abalando sem que Francisco a pudesse segurar. Ele quis segui-la ainda, mas em cima ouviu-se o ruído da porta do quarto, e ficou tolhido.
- Estava alguém a chorar? - disse o velho.
- Não, senhor...
Seguiu-se depois um longo silêncio, em que nenhum deles se moveu.

XI
O plano do Silva Costa amadurecera e ia dar os seus frutos. O Jerónimo comprara alguns dos melhores vinhos dali para fazer os seus lotes, entrando depois, à descara, na candonga de vinhos do Sul. Empenhara nesses negócios todas as suas possibilidades e parara nas aquisições.
291
- Agora, nem dado- dissera uma vez ao administrador.
E, ainda intrigado com a febre de preços altos pedidos pelos vinicultores, desabafou com o outro.
- Esta gente anda doida! Então você sabe que me exigiam quase o dobro do ano passado?... E se eu me mostrava aparvalhado, como era natural, riam-se ainda, como se estivessem a perceber que eu os queria enganar. Mas amolam-se! Agora, nem mais cinco reis. Hão-de ficar mais esganados do que nos outros anos.
Silva Costa deu-lhe razão e, logo que ficou sozinho, sorriu-se orgulhoso da sua artimanha. "Lá ganhar dinheiro sabia ele... Nunca estivera para se meter em negócios, mas agora, que precisava de cuidar do futuro da família, tinha de fazer como os demais."
Contudo, como a si próprio prometera, resolveu pagar ao velho Teimas pelo melhor preço, certo de que os outros dariam para a diferença. E, logo que lhe mandou o recado, ficou oà sua espera no escritório.
- Bons olhos o vejam, Ti António - saudara-o com
"Esse macaco lá tinha a rapariga ma Régua e ainda recordasse a lição recebida do Gonçalves.
"Esse macaco lá tinha a rapariga na Régua e ainda lhe não agradecera o favor. Como se carinhas daquelas se encontrassem aos pontapés..."
- Já vendeu o seu vinho?...
- Ainda não, Sr. Silva Costa. E parece-me que fiz mal - esclareceu o Teimas, preocupado.
- Talvez não; enquanto há vida há esperança.
- A quem o diz. Aguentei aqui a filoxera...
O velho trazia sempre aquela invocação na boca. Orgulhava-se do seu feito e todas as coisas da vida se dividiam por essa referência: foi antes ou depois da filoxera...
- Mas de que se queixa, Ti António?...
292
-Ora, de que me hei-de queixar; do mesmo mal dos outros. Vinho em adega que não é minha e poucos compradores. OJerónimo acenou-me com melhor preço do que no outro ano e não lhe peguei... Agora já lho fui oferecer e apanhei com a tábua no rabo, com licença de Vossa Senhoria.
Silva Costa esganiçou-se numa gargalhada nervosa. António Teimas ficou desconfiado com o despropósito da risota e foi direito ao fim - intrigava-o o recado do administrador.
- Mandou-me chamar?...
- Sim, mandei. É que um amigo de Gaia pediu-me o favor de lhe comprar umas pipas; poucas, é claro, e lembrei-me de si.
Não seriam precisas pancadinhas no ombro do Teimas, para que logo o outro se pusesse de bem.
-E aqui para amigos... Pago-lhe mais cinco mil réis em pipa do que o melhor preço dado pelo Jerónimo. Que diz a isto?!...
O velho quase lha beijara as mãos de agradecimento. Nos seus olhos claros bailaram lágrimas de alegria.
- Se fossem todos como o senhor... Mas eles não sabem o que isto custa a quem o faz.
- É o mal, Ti António - dissera com pouca convicção, talvez vexado pela frieza do seu plano para com o velho.
"Não sou homem para estas coisas, está provado", pensava Silva Costa.
- E é muito o vinho que tem - perguntou mais à vontade, depois daquele pensamento.
- Cinco pipitas, Sr Silvinha. E se é um vinho!... E o velho sorria, mostrando as gengivas descarnadas. - Pois recebe já o sinal.
Percebeu no olhar do Teimas uma dúvida, mas quis levar a sua isenção para com ele até ao fim.
293
- Está a lembrar-se do que lhe disse naquele dia, em que me procurou, e pensa que estou a fazer negócio consigo. Ora diga lá...
Descoberto nos seus pensamentos, o velho ruborizou e meteu os pés pelas mãos.
- Ó Sr. Silvinha!... Não pense numa coisa dessas... - Pois, para que vá sossegado, sempre lhe quero dizer que, se o vinho subir, o preço para as suas cinco pipas também não valerá menos. Pago-lhe depois a diferença.
António Teimas estava maravilhado com aquela franqueza do Silva Costa. E no fundo já se sentia arrependido por não ter dito mais duas ou três - depois as compraria a outro. "Mas do mal o menos", pensou.
E quando saiu ao portão da quinta foi a badalar todo o caminho o negócio que acabara de fazer.
Foi um rodopio de que a Ana Sarrifa e a mulher do caseiro sofreram as consequências.
-oSr. Silva Costa, está?...
- É por causa do vinho?... - É, sim, Ana Sarrifa.
Acolhia-os a todos com as mesmas palavras.
- Não, vocês estão enganados. Comprei o vinho do Teimas porque um amigo de Gaia me pediu esse favor. E como o tipo da colheita dele era o preciso...
Eles apelavam sempre para a sua boa vontade. E com ar humilde, com receio de o aborrecerem, acabavam por fazer o pedido.
- Se o Sr. Silva tivesse a bondade de perguntar a esse amigo...
- Sim, lá perguntar, pergunto. O diabo é que as
294
coisas estão más, homem. Na Régua vendeu-se vinho por menos um bocado do que por aqui.
Mas emendava logo, não querendo esquecer o princípio que estabelecera para as suas transacções.
- É claro que é mal pago. Se eles soubessem o trabalhho que dá...
- Isso é que é, Sr. Silvinha... Se quisesse fazer o favor de escrever...
-E quanto pedem vocês?... Vou ver se convenço o homem.
- É claro que o senhor deve ganhar alguma coisa - diziam alguns para o tentar à empresa, desconhecendo os meandros do negócio. Silva Costa repelia com dignidade essas sugestões.
-Isso nunca... Proíbo-lhe que mo repita. Sou seu amigo; aprendi em casa de meu pai a apreciar o vosso esforço, e só por isso... e nada mais, me disponho a insistir com o homem. Mas devo avisá-lo de que não é muito de confiar. As coisas estão más!... - rematava
em voz mais baixa.--oBrasil foi chão que deu uvas
e os Ingleses também começam a esquecer-se do seu Port-Wine.
E para os despedir:
- Voltem daqui por quinze dias. Vou influir o homem. O preço é o que ele disser... e vocês ou vendem ou arranjam outro comprador. E ficamos amigos como dantes. Disto lavo as mãos como Pilatos.
Comprou as cem pipas que o Dr. Freitas lhe encomendara. E todos o louvaram.
- Se não fosse o Sr. Silvinha, bem apanhávamos uma enforcadela diziam nas conversas da praça.
295
Aproximava-se nova vindima e a maioria não tinha vazilhas para meter mais vinho. A alternativa não era fácil de resolver - ou dar o do ano anterior, ou abandonar a produção da colheita que se aproximava.
- Foi Deus que nos apareceu.
Nisso todos estavam de acordo, menos o Jerónimo, que ficara roído de inveja, embora nada tivesse compreendido do plano do Silva Costa.
No seu escritório da Casa Grande, o administrador fazia contas e chegava à conclusão de que podia comprar a quinta do rio Torto. As notícias que recebia do fidalgo confirmavam-lho cada vez mais. E como o casamento da D. Constança com o Dr. Freitas ainda não obtivera a adesão de D. Branca e da pretendida, era preciso conseguir a quinta antes que os ventos mudassem.

XII
As vindimas estavam a acabar. De vários pontos da aldeia chegava até ali a melopeia triste dos homens cantando nos lagares, num esforço de esquecerem as fadigas das fainas, já depois de ouvido o grito de liberdade. A sarrazina dos cavaquinhos, com o carpir dos violinos, acompanhavam os últimos bailes nos terreiros dos armazéns, onde moços e cachopas não cessavam o rodopio, mais pelo contacto do que pelo prazer do bailarico.
- Gracinda! -" chamou o velho Teimas, afastando um pouco o neto mais novo, de maneira a poder voltar-se para dentro de casa.
Estivera a contar ao Luís algumas recordações da guerra dos patuleias; mas os seus sentidos, porém, permaneciam agarrados à preocupação da dívida contraída
296
pelo filho. Sentia-se envelhecer em cada dia que passava e o facto entristecia-o, não por si, que já vivera o bastante, mas pelas terras onde depusera todas as esperanças da sua vida. Sabia que lhes fazia falta - talvez mal fechasse os olhos elas passassem para gente estranha que só quisesse tirar-lhe o sangue, sem cuidar de lhes dar um carinho igual ao seu. Nunca fora homem para lamentações; todavia, ao escutar a melopeia dos lagareiros, lembrava-se do sonho frustrado de ter um armazém seu, onde preparasse o vinho e o incubasse. Este ano fora ainda pior do que os outros - obrigara-se a vender ao Silva Costa as suas uvas por arrobas, a fim de fugir às exigências dos que tinham lagar, e achava nisso uma traição à terra que tanto amava. Ser arrobeiro era sangrar-se em vida, o mesmo que entregar os filhos aos outros, para que cuidassem deles; não poder ir à bica do lagar e dizer que o vinho era seu parecia-lhe um ultraje feito pelas suas mãos.
A Gracinda aproximara-se e esperava que ele falasse. O velho Teimas olhava-a, como se fosse incapaz de ligar o pensamento às palavras, afagando a cabeça do neto, num gesto inconsciente.
- Chamou, Ti António? - perguntou-lhe a rapariga para romper o silêncio.
O velho abriu mais os olhos, como se reparasse nela só naquele momento.
- Sim, chamei.
Estava indeciso; baralhavam-se-lhe as ideias e precisava, contudo, de lhe falar na dívida.
- Quero pagar-te... Não sei ainda... Acariciava o rosto de Luís, numa ansiedade crescente. - Não sei o que te posso dar, mas quero pagar-te
tudo.
- Tem tempo, Ti António - disse-lhe Gracinda para
297
o acalmar, embora dentro de si outras preocupações avultassem.
- Não tenho muito, não. Julgas que não me sinto? Depois daquela noite, nunca mais fui o mesmo.
Falava agora em rajadas, enquanto o neto lhe seguia as palavras com entusiasmo.
- Vou receber a última prestação da outra colheita pelo São Miguel e não sei... Não sei nada, acredita. Este ano vendi às arrobas; ainda me roubaram mais. Quero salvar-me... quero salvar as terras, mas tenho a tua dívida...
- Não se importe com isso...
- Quando o António Francisco vier, ele há-de querer o dinheiro... o dinheiro todo. E se eu não lhe pagar, vai tirar-me as terras.
Gracinda procurava sossegá-lo, pondo-lhe a mão no ombro, mas o velho Teimas não entendia esse gesto.
- Só te peço... Nada te posso pedir, eu sei... O dinheiro é dele...
Depois baixou a cabeça e prosseguiu em voz baixa, como se estivesse a falar só para Luís:
- As terras custaram-me a vida... Se fosse noutro tempo, bem sabia que ninguém as levava... A bem ou a mal, ninguém ficaria com elas. A tua avó, neto...
o avô conversava agora para ele e Luís começou a afagar-lhe as mãos trémulas.
- A tua avó pendurou-se na trave lá de cima e eu nem assim abalei. A terra vale tudo; mais do que a vida de alguém. A terra fica sempre... sempre... e é por isso que ela merece o nosso sacrifício.
Gracinda voltara para dentro da cozinha e dava os últimos arranjos na casa. Pensava falar ao velho na morte do António Francisco, mas entendeu depois que seria reparado dar-lhe a notícia antes que chegasse a carta de confirmação. Já lá iam dois meses sem correspondência
298
de ninguém; e a última carta não dava esperanças.
Muito juntos um ao outro, fundidos com as trevas da noite, o Teimas e o neto conversavam ainda.
- Se fosses mais velho, era em ti que eu confiava. Sei que vais ser como eu... Teimoso, neto. É tão bom ser teimoso pela terra...
- Quando for homem - disse Luís com deslumbramento - hei-de trabalhar como o avô.
-Mas trabalhar na terra, Luís; e aqui na terra do Doiro, que é suada com sangue da gente. É isso que muitos não entendem...
Chegaram-se mais, em silêncio, como se escutassem o eco das suas palavras, para lá do cântico monótono dos lagareiros. Gracinda deu as boas-noites e abalou sozinha. Levava consigo a certeza do desenlance esperado, e não sabia se era motivo para se lamentar ou se devia desejá-lo como antes.
Tinha agora receio das consequências da sua ligação com o Francisco; tentava reconstituir como se criara aquela situação, num desejo absurdo de procurar desculpas. "Fora ela que o procurara no dia da morte da sobrinha... Ela e mais ninguém."
Apressou o passo para chegar a casa depressa; de vez em quando, uma golfada de luz e de ruídos recordava-lhe a faina das lagaradas. Sentia-se perseguida pelas palavras do velho, que pareciam acusá-la, e pelos remorsos de ter pensado na morte do marido. "Mas que obrigações a ligavam a esse homem que abalara da aldeia mal se haviam casado, indiferente às suas lágrimas e súplicas?!... Trocara-a pelo Brasil; deixara-a sozinha, sem um filho, sequer, fazendo por lá a sua vida, talvez com outra companheira. As suas cartas só falavam de dinheiro e de terras que haviam de comprar quando voltasse. Raro dizia uma palavra de saudade para ela..."
299
A praça estava deserta àquela hora - nem havia luz na taberna do Mal-Matado.
Toda a gente vivia agora para a febre da colheita, acalentando esperanças que pronto se desfariam, mal começassem a correr os preços oferecidos pelo Jerónimo e pelos comissários.
"Nem uma palavra de saudade para ela", pensava Gracinda, obsessionada em achar desculpa para a sua falta. Estugou ainda mais o passo, quase a correr para o seu cortelho. "oFrancisco viria mais logo, quando tudo estivesse em sossego."
Naquela noite, porém, desejava que ele não chegasse. O remorso consumia-a, apesar de achar que só o marido a obrigara àquele passo. "Fora-lhe fiel durante muito tempo; com que sacrifícios só ela o sabia! Lutara contra o pecado... Mas era uma rapariga e ele trocara-a pelo dinheiro. As noites que passara dentro daquelas quatro paredes voltavam agora tão dolorosas como nos primeiros dias da separação. Chorara muitas lágrimas; retraíra muitos impulsos da carne. Gostava de se saber desejada, como antes de casar, mas era um desejo diferente, o que o seu corpo sentia; já não lhe bastavam os olhares, precisava de mãos que a afagassem, doutra boca..."
Mal abriu a porta de casa, correu para a cama e deitou-se sobre ela, a soluçar. Chorou mais alto do que precisava, como se pudesse já comover os que a acusariam alguma vez, em uivos nervosos que a iam serenando, ao mesmo tempo que invocava os seus amores com o cunhado.
"Percebera-lhe o interesse na noite da morte da irmã... O seu olhar não a enganara..."
Essa recordação, porém, fez-lhe calar os soluços, obrigando-a a sentar-se.
"Era um amor só referenciado por mortes. A da Elvira, a da sobrinha... E agora a do marido."
300
Sentia medo de estar só. Os gritos e as canções distantes dos lagareiros tornavam-se ecos de acusações que ela própria se fazia. Levantou-se a cambalear, apalpando as trevas, para ir até junto da mesa, onde estava o candeeiro. A luz fazia-lhe falta; os seus passos pareciam-lhe doutrem que a perseguisse no meio da escuridão.
"Só morte, só morte", eram as palavras que lhe chegavam ao pensamento. "Mas se o marido voltasse e soubesse do que se passara, não seria ainda a morte a solução? Conhecia-o tão bem..."
Parou no meio da casa, já desnorteada, sem entender de que lado estaria a mesa. Aos olhos surgira-lhe a imagem de dois homens batendo-se por ela, de navalhas em punho, numa luta raivosa de silêncio.
"E se voltasse para a cama?" Essa ideia apavorou-a mais ainda. Fora ali que conhecera os dois; era lá que estavam todas as recordações vivas do seu pecado. "E se gritasse?!..." Deu uma corrida na escuridão, transida de medo, e qualquer coisa se lhe embaraçou nas pernas, como se as mãos de alguém a agarrassem. Sabia bem que não era o marido, mas queria pensar que sim.
-Francisco!...-gritou com desespero.
"Chamava o marido ou o amante ... Ambos tinham o mesmo nome. Francisco!... Qual deles devia vir?!... Talvez o outro, para a castigar... para tirar vingança do seu pecado..."
Enrolada no chão, ciciava aquele nome, que repetia numa inconsciência dolorosa - talvez tivesse enlouquecido, pensava. "Como seria bom!... Ninguém a acusaria... O cunhado não devia tardar e já não sabia se lhe desejava a presença se o afastamento para sempre. E o dinheiro?!..."
Outra ideia lhe ocorreu - chegar até à janela e abri-la para gritar. Foi rastejando na terra batida da casa, a arfar, num cansaço estranho que não era de fadiga.
301
"Porque não chegava o Francisco?!... O Francisco... O marido ou o amante?!..."
Aturdida de pensamentos, precisava de alguém que a fizesse desaparecer nos braços e repelisse as imagens e os ruídos que nasciam sempre à sua volta, numa vertigem.
- Francisco!... Francisco!...
A porta abriu-se e uma voz chamou pelo seu nome; teve-lhe medo e encolheu-se, enrodilhada no chão, para que não a descobrissem. Mas alguém a agarrava e a erguia nos braços, levando-a para o quarto do fundo. Deixou-se conduzir sem um protesto. Quando sentiu, porém, que se aproximava da cama, teve um estremecimento de pavor e, com as mãos presas ao pescoço do amante, suplicou-lhe em gemidos:
- Não, não me leves. Ali não. Tenho medo de vocês.

XIII
O Silva Costa esteve cá ontem e veio dizer-nos que comprara ao fidalgo a quinta do rio Torto. Julgou, talvez, que me agradava com a notícia e me faria perder este modo triste, a que sempre alude quando nos falamos. E se ele soubesse o que eu senti?!...
A fortuna dos patrões vai desfazer-se, enquanto ele enriquecerá, mostrando aquele mesmo ar estudado de pessoa que veio ao mundo para espalhar o bem. Horroriza-me ainda mais o seu espírito do que o seu físico. Não posso esquecer a maneira como ele me descreveu a sua manobra para comprar vinhos mais baratos. É um animal venenoso com um aspecto pacífico. Só agora o compreendi e já não posso voltar atrás. Dei-lhe a minha
302
palavra, a mamã gastou dinheiro com o enxoval, e, por tudo isto, falta-me a coragem para reagir e pôr-lhes de frente toda a situação. Para que vêm ao mundo as pessoas como eu?!...
Ele falou da quinta e eu pensava no D. Afonso e na rapariga. Perguntei-lhe por ambos, e o Silva Costa só aludiu à criada, que continua na Régua em casa do tal Gonçalves; sobre D. Afonso não disse uma palavra. Tinha ciúmes dele; foi a mamã que me falou nisso uma vez.
Sinto saudades dessas noites passadas na Casa Grande, com ele ao meu lado, vendo as suas mãos correrem, nervosas, pelas teclas do piano, numa linguagem que só eu entendia. Nem ele próprio, por certo, era capaz de a compreender, porque nunca me dirigiu uma palavra de amor e preferiu essa camponesa, talvez enxovalhada, como todas as outras que vejo passar debaixo da janela do meu quarto. Devia odiá-lo por isso, e não posso. Todo o meu ódio ficou para o outro... Para o outro que vai ser meu marido perante Deus.
Começou uma tempestade lá fora. E eu, que tanto medo tinha aos temporais, não me emociono agora, porque maior é ainda a tempestade da minha vida e não dou um passo para a afastar. Qualquer dia, o sol virá para sarar as feridas da terra e só as minhas ficarão sempre, enquanto viver, maiores e mais dolorosas em cada dia que passar. Se eu tivesse coragem!... Se fosse capaz de fazer um disparate, como seria bom!... Ele talvez casasse ainda com a mamã e todos seríamos mais felizes.
Pela rua vai um alarido confuso que tanto me parece de alegria como de tragédia...
Parece que o mundo vai acabar com a maldição do Céu. Sobre este papel abrem-se os clarões dos relâmpagos; gritam-me aos ouvidos os berros dos trovões e o fustigar da chuva que verdasca os vidros. A mamã, muito
303
trémula, já apareceu à porta do quarto. Fui inconveniente com ela; estou num dia em que me apetece maltratá-la. Devem ser influências da tempestade que vai nos astros, porque as adivinho a distância. A noite anterior não dormi com uma insónia. Eram as duas tempestades que se repercutiam em mim: esta e a minha. Mas a terra sarará quando a Primavera chegar e na minha vida...
Helena não pôde prosseguir. Deixou cair a cabeça sobre a mesa e rompeu em soluços. Lá fora, o alarido crescia.

XIV
E choveu sem uma aberta, durante dias e dias, como se as fontes do alto se quisessem esvair sobre a Terra, numa maldição bíblica. Era uma água de cordas cerradas que caía em jorros, diferente de quantos temporais o Douro suportara alguma vez.
Por toda a parte pararam as escavas e as plantações de bacelo - ficaram os cavadores sem trabalho e as bocas sem pão.
Do céu cinzento e baixo não se abria uma só clareira de azul para oferecer esperanças. As montanhas pareciam cingir-se entre si, para se abrigarem melhor da devastação, e os horizontes fechavam-se mais e mais, como se aquela terra convulsa fosse esmagar-se num choque que o vento provocasse na sua fúria. Derreadas pelo esforço da última colheita, as videiras acaçapavam-se nos bardos
304
e nas valeiras, com os braços pendidos de sofrimento, tal como os homens, melancólicos e abatidos, que viam chover sem cessar, impotentes agora para se oporem àquela maldição dos astros.
Pelas vertentes das montanhas goivadas, as águas despenhavam-se sempre em torrentes sem fim, cor de burel do xisto ferrugento e do rio turvo e louco que corria lá ao fundo, agora num galope apocalíptico em que ninguém tinha mão. Encolhidos de humildade, como se rastejassem numa promessa; os povoados pareciam mortos de vida humana - pelas ruelas só vagueavam cães famintos e recos esquálidos, afocinhando nos dejectos e nas poças; as raras pessoas que se encontravam pareciam ter receio de serem vistas, como se as perseguisse algum fantasma, e logo se encafuavam nos cortelhos, às fugidas.
Na esteira do Douro não passava uma vela havia semanas. Os rabelos permaneciam amarrados nos portos ou às fragas das margens, prestes a abrirem-se com a impetuosidade da corrente que ganhara tons avermelhados com as terras arrastadas e as águas de Espanha, sempre sangrentas de cor.
Chovia sem piedade, como se a cólera do Céu quisesse mostrar aos homens que lhe desagradava aquela teima de obrigarem as pedras a dar frutos.
- Este 1909 começou mal e acaba pior!... - disse um dos homens, quebrando o silêncio da taberna.
- Com um Fevereiro daqueles...
- Fevereiro quente traz o Diabo no ventre - juntou o Mal-Matado.
305
Um grito ouviu-se no largo.
- O Douro já subiu mais!
Olharam-se todos com os rostos entumescidos de amargura. Um velho tossicou; outro ergueu as mãos descarnadas, quis falar, mas deixou-as cair novamente, numa impotência sem abrigo.
- Vamos morrer todos! - exclamou o Inverno do seu canto.
E os homens recordaram o Melras, que aparecera enforcado na sua adega, junto das pipas de vinho que ninguém aparecia a comprar.
Chovia ainda - chovia sempre.
Das povoações ribeirinhas fugiam as gentes espavoridas, em busca dos cabeços, e abandonavam os lares, ficando ao tempo, sem abrigo, insensíveis a tudo o que as rodeava. Nas vertentes mais inclinadas já nem escapava a terra guardada pelos muros dos geios, que se desmoronavam também, roídos pelas águas nos seus alicerces.
Vinhedos inteiros desapareciam num instante. Ficavam algumas raízes, entre os xistos ferrugentos, para recordar aos homens a saudade da sua morte.
- No Pinhão, um grande tonel levantara um armazém em peso e levara-o consigo pelo rio abaixo, no turbilhão das águas. Nada escapava - era o fim que vinha breve.
E na galopada do Douro passavam árvores arrancadas, pipas cheias, gados mortos, cortemos de colmo e restos de azenhas. Parecia que o destino iria desfazer em dias tudo o que os homens haviam construído durante séculos de trabalho constante.
306
As novas sucediam-se - e eram sempre mais dolorosas.
- Da ponte do Pinhão chega-se ao Douro com um garda-chuva! - foi o alarme que correu na aldeia.
- Fugiu todo o mundo do Pinhão!
Ali, no alto, ficavam longe da cheia, mas muitos dos seus vinhedos situavam-se junto do Torto ou nas margens do rio Grande, cada vez mais largo e impetuoso, no seu galgar de valeiras e bardos, onde as mãos aduncas das águas raivosas desfaziam tudo. Milhares de cepas desapareciam na voragem e casas derruíam, sepultando riquezas de pobre.
E o céu cinzento, fechado às preces e às imprecações, não mostrava um raio de esperança para ninguém.
- Isto vai ser pior do que a filoxera, Ti António - disse o Chasco para o velho Teimas.
-Pior que a filoxera?!... Não digas tonteiras!
No fundo de si, porém, António Teimas chorava a nova maldição que caíra sobre aquela terra martirizada.
- Perde-se tudo... O Aparício desapareceu de casa; ninguém sabe dele. Abalou como doido e nunca mais o viram.
- Há-de ainda ficar alguém...
- Só os doidos - gritou-lhe Francisco, do fundo da casa.
- Sim, os doidos como eu - respondeu-lhe o velho, com uma calma estranha. - Se tudo desaparecer, tudo se fará de novo. E melhor ainda.
Caiu novo silêncio entre eles.
307
Vendo o rio de longe, ninguém diria que era capaz de tamanha braveza - parecia quedo, como uma grande serpente adormecida que as mãos das montanhas tivessem esmagado, e ali ficasse esparranhada, a desfazer-se em sangue. E, contudo, os despojos que levava corriam numa vertigem, como se fossem folhas caídas das árvores.
Quilómetros e quilómetros de vinhedos cobertos deixavam angústias nos olhos que os viam - olhos rasos de lágrimas e abertos de espanto, inúteis para abrandar tamanha maldição.
Não havia preces que submetessem o temporal - parecia até que a humildade dos povos o enfurecia mais, juntando a cada instante novas desgraças que ficavam já sem eco nos corações desfeitos.
A aldeia era um mundo à parte, isolado naquele inferno de montanhas descarnadas pela tempestade que lhe cortara todos os liames da vida - a linha férrea, destruída em muitos pontos, era uma estrada morta; nos caminhos não havia carro que os transpusesse, arriscando-se às derrocadas constantes das fragas que se soltavam dos berços das escarpas.
Os xistos só podiam dar vinho e esse ninguém o procurava. Acabaram-se nas -arcas os restos de centeio e os últimos recos e pipas eram sacrificados à necessidade das gentes.
Aumentava o desespero - já ninguém confia em alguém.
308
DIÁRIO
De vez em quando o temporal amaina, mas parece que o faz para torturar ainda mais esta gente. Vejo-a espreitar aos postigos, com os olhos postos no céu, e adivinho que, por instantes, confiam na graça divina. E têm razão em entender que para castigo já basta.
Porque não ouve Deus as suas súplicas?!... Porque não refreia as suas iras, Ele, que é bom e justo?!...
Fiz ontem um pedido ao Silva Costa e fiquei com a impressão de que o ia atender. É a primeira coisa que lhe peço e confio na sua boa vontade. Sinto agora por esta gente uma grande ternura, mas não sei a maneira de lha comunicar. Tenho sempre a impressão que me hostiliza; vejo-a fechada, triste... terrivelmente triste. Para ganharem os reinos dos Céus não se lhe deveria exigir sacrifícios. Apesar de tudo, o facto consola-me, porque me dá forças para suportar o meu calvário. O meu egoísmo torna-se menos feroz perante as suas desgraças.
"Se Deus é por nós, quem será contra nós?" Li ontem esta interrogação num livro. É a pergunta angustiosa de um apóstolo, e quando Ele teve essa dúvida o que poderei eu fazer? Quem será contra nós?!... Deus?!... Os homens?!...
o temporal não amainava. As ruas das terras ribeirinhas eram agora caminhos de barcos, em busca de salvados. Muitas casas estavam submersas; muita gente ficava sem abrigo.
Impetuoso de ira, o Douro arrastava tudo o que apanhasse na gadanha sinistra da sua carreira para o mar. As preces não o domavam ainda. "Padre Nosso, que
309
estais no Céu... Ave Maria, cheia de graça..." Impotentes nos seus nichos, os santos continuavam a ignorar os homens.
Estava ali a melhor sociedade do Porto para escutar o Dr. Albano. Ele sabia que jogava, naquele momento, a sua pretensão para o casamento com a filha de D. Branca e o prestígio de paladino de que os jornais se faziam eco. Preparara-se durante duas noites e mostrava-se confiante, em vénias e sorrisos, embora um vago receio morasse no fundo de si.
Vinham as famílias mais distintas - e o facto desvanecia-o.
- É uma grande desgraça! - diziam os que entravam.
Logo depois, cumprida aquela obrigação, em voz magoada, falavam de vestidos e de reuniões, recordavam momentos passados na Foz ou na Póvoa, cochichavam escândalos de D. Afonso, cada vez mais desabrido nas suas aventuranças.
-Senhoras minhas!... Meus queridos amigos!...
Pediu-se silêncio para escutar o orador, mal o Dr. Albano de Freitas se lhes dirigiu, com uma ponta de emoção na voz. Falou durante muito tempo, sempre para D. Branca, que lhe vigiava os mínimos gestos, numa prova definitiva. Ele compreendia-o e não havia temor que o confundisse.
- É necessário que essa gente heróica, digna continuadora da maruja destemida que chegou às índias, sob o comando de muitos dos nossos antepassados, fidalgos da melhor linhagem da nossa nobreza, sinta que o nosso coração...
310
E, compondo o monóculo mais uma vez, repisou as palavras, juntando-lhe outro adjectivo.
-O nosso abnegado coração, direi melhor, está com eles nesta hora trágica, acompanha-os num instante em que Satanás braveja à solta pelas terras que Deus nos entregou para sua glória eterna.
Quando deu por finda a sua prelecção, ouviram-se palmas discretas na sala do palacete de D. Fernando. Albano de Freitas, porém, só estava atento às reacções de D. Branca e da irmã. Percebeu que ganhara a partida. E logo se lhe dirigiu para que presidisse à comissão de honra que promoveria às festas em favor dos sinistrados da grande cheia de 1909.
Vista do Peso, a cheia tornara-se num espectáculo grandioso e dramático, transformando, por inteiro, a bacia da Régua e o vale do Rodo, onde os olhos, habituados ao esplendor de vegetação e cores, horizontes e ondulações, ficavam magoados de desolação.
Ali, do Alto, a tragédia fazia-se mais pungente. O Salgueiral era um amontoado estranho de casas que nasciam nas águas sangrentas do rio, cujos limites se alargavam para além da estrada de Lamego, inundando os vinhedos mais rasos, e vindo da outra margem, desde o vale do Rodo, que era agora um braço do Douro, donde surgiam raras copas de árvores e telhados destruídos.
Maria Dolorosa olhava da janela aquele mesmo panorama que a deslumbrara nos primeiros dias que para ali viera e sentia-se agora mais desolada, ao recordar a sua aldeia do Alto Douro, donde nunca mais recebera notícias. Da vida que o pai levava nada sabia também. "Se alguma vez se encontrassem..."
311
Custava-lhe invocar o ano ali passado, sempre à espera que o Gonçalves cumprisse as promessas do Silva Costa. Se quisesse contar a sua vida, teria dificuldade em fazê-lo. "Onde estavam as boas ideias do pai a seu respeito?" Era-lhe impossível esconder toda a verdade da sua situação, queda após queda, a partir daquela noite em que os homens da aldeia tinham ido à Casa Grande.
Perante a desolação da terra invadida pelas águas, um grande abatimento se apossou de si e as lágrimas toldaram-lhe os olhos. Ficou encostada à janela, recordando tudo.
"TO Quei esta noite para ti...", e só essa voz lhe soava ainda, como a única redenção da sua vida.
- Vai acabar o mundo! - gritavam com desespero.
E a igreja da aldeia enchia-se de preces e de corpos famintos.
Os quelhos tornaram-se em riachos; os caminhos em ribeiras. Lá ao fundo dos vales, os rios cresciam cada vez mais, galgando já as veias que eles próprios tinham aberto por entre a fragaria indómita. Ruidosa e sinistra, a água rasgava os montes e punha-os descarnados, com os granitos à mostra, como corpos ensanguentados, levando tudo o que apanhava na sua alucinação. Os homens sentiam-se impotentes na sua pequenez, ante aquele sopro de tragédia que até dobrava os raros pinheiros dos cumes e as oliveiras das vertentes.
O luto morava nos corações e nos olhos - triste e vencida, a terra vestia-se de cores pardas e de dor.
A angústia fechava os horizontes.
Sempre rebelde e impetuoso, o Douro avantajava-se, a cada momento, desviando galeiras daqui, para as formar
312
lá adiante, mais terríveis e ameaçadoras. Não havia poços remançosos em todo o seu caminho até ao mar - todo ele era uma raiva impetuosa, rugindo de noite e dia, como se o seu destino fosse o de crescer até às estrelas e apagá-las, para que nem essa luz alumiasse os homens.
Os vinhos não se vendiam e ninguém pensava neles. Todos julgavam que chegara o dilúvio, num castigo implacável. Quem lhe podia sobreviver?
Raros confiavam agora--esses sabiam que a terra
os esperava ainda e sempre para um desafio ao céu.
- Não escapou uma cepa, pai. De tudo o que se tinha enxertado, nem raízes lá estão para amostra - disse Francisco, mal entrou a porta, e atirou com o gabão para cima dum banco.
O velho baixou a cabeça, cerrou os olhos e deixou-se ficar naquela atitude por muito tempo. Luís só lhe via as lágrimas correrem; aproximou-se do avô e pôs-lhe a mão sobre o ombro. Tinha também vontade de chorar com ele, mas entendeu que era preciso mostrar-se forte naquele momento.
- Se tem ouvido o que eu disse - insistiu Francisco com rancor. - Como vamos agora vender aquilo?!... Só lá ficaram calhaus...
António Teimas levantou os olhos para o filho.
- E quem te disse que eu ia vender?!...
Um acesso de ira explodiu-lhe no rosto transfigurado.
- A terra não se vende... Enquanto eu for vivo, não se vende um palmo. Endurece-se o pão na arca, passa-se fome... Já passei muita e não morri.
- Mas eu... - interveio Francisco com dureza.
313
- Tu és um desnaturado; não me admira. Abala, se quiseres, que eu fico até ao fim... Nesta terra, quem manda são os homens... Os homens que são homens.
(E atravessou a cozinha, a manquejar, levando Luís consigo. No cimo da escada olhou ainda o filho com firmeza.
- Lá porque me viste fraquejar... - Cale-se, pai!...
Gracinda suplicou-lhe que não continuasse. A porta do quarto bateu com estrondo.
António Teimas aproximou-se da janela e ficou a olhar os socalcos revolvidos pelas enxurradas. Uma neblina espessa ocultava as montanhas mais distantes e adensava-se, como se o horizonte quisesse fechar-se sobre ele, numa ameaça do destino.
"Nesta terra, quem manda são os homens...", repetia-lhe ainda o pensamento. E, erguendo os braços, teve a sensação de que podia rasgar aquele véu cinzento com os seus dedos.
- Nunca te esqueças, neto. Pra cá do Marão ainda mandam os que cá estão.

XV
António Teimas mandou os netos aparelhar o garrano e saiu com eles, a dar uma volta pelos prédios. Queria ver, com os seus olhos, as devastações do temporal, que deixara feridas bem vivas por toda a parte. Conhecia as suas reacções quando a adversidade lhe batia à porta e precisava desse estímulo para defrontar a situação.
- Eu sou como a abelha - disse para os netos. - Só deito o ferrão quando me bolem.
314
Embora a velhice lhe fosse tomando conta das energias, não ignorava que só com o seu ânimo tinha possibi-dades de fazer frenfe às dificuldades. As relações com o filho haviam esfriado mais depois da última discussão por mor da venda das ferras baixas, onde não ficara um bacelo. E, vagamente, percebia em Francisco uma espécie de conforto com a tormenta que desabara sobre eles. Vira-o indiferente, talvez mesmo satisfeito, durante os dias mais trágicos da tempestade, quando tudo parecia ir perder-se naquela fúria do céu; e só achava uma explicação para a sua atitude - andava outra vez desvairado com a ideia de abalar do Alto Douro e tudo o mais se lhe tornava insignificante. "Pois que se fosse, e depressa, já que outra coisa não sabia fazer do que atentá-lo. Gente assim, bem podia debandar, que ninguém lhe choraria a ausência", pensava o velho, escarranchado no albardão, com os dois netos à ilharga.
Hesitava algumas vezes nas suas possibilidades, agora que não podia agarrar numa enxada ou nos ferros de saibrar, dia e noite, como tinha feito depois da filoxera. Era essa mágoa que o atormentava. "Se fosse no seu tempo!... Que grande tarefa para um homem de coragem! Ver o arranjo desfeito, e dia após dia, só com a ajuda dos braços, repor tudo ou fazer de novo, olhando para o céu, num desafio, ao cabo de tanta canseira, como se lhe perguntasse: então, quem é mais forte?!..."
Olhava os netos com essa amargura, mas confiava neles, principalmente no mais moço, que era rijo de dobrar e dono de um coração como bem poucos conhecia. Luís pareceu entendê-lo e sorriu-lhe, lá de baixo, com o olhar firme.
- Veja ali, avô!...
Por toda a parte os sinais da tormenta estavam bem vivos. Videiras arrancadas, cujos braços contorcidos simbolizavam a batalha de morte que as tinha vencido; muros
315
caídos de socalcos, em montões de ruínas, numa desolação que fazia chorar a alma de António Teimas; terras descarnadas, em grandes feridas abertas pelas convulçÕes das torrentes, que pareciam trazer punhais para desven-trar o xisto.
E gente acabrunhada e silenciosa, como fantasmas de um mundo de tragédia, donde se enjeitasse a esperança e o sonho.
- Coisa ruim, avô! - disse Luís.
-Até parece que a terra chora - respondeu o velho, com a voz magoada. - E é preciso fazer voltar-lhe a alegria, neto. Ela merece tudo...
Ficou, por alguns instantes, a mirar os longes, como se pudesse guardar tudo nos seus olhos. Depois chamou os netos mais para junto de si e, tocando-lhes a cabeça com as mãos trémulas, foi falando, numa evocação que o sangue lhe recordava.
- Quando era um pouco mais velho do que o Chico, foi o Ano da Queima. Perderam-se todos os vinhos, quase metade dos centeios de Ervedosa pra riba e muitas árvores secaram. Depois recomeçou a mesma trabalheira de sempre, para quem teima em fazer as pedras dar vinho. De vez em quando, uma cheia para arrasar as terras baixas, até que chegou a filoxera, e foi o cabo das tormentas.
Fez uma longa pausa, passando os dedos nos olhos cansados.
- Tinha o meu arranjinho nessa altura... Umas sete pipas de vinho de feitoria. Começara a casa onde hoje vivemos, tinha o dinheiro para a adega e o lagar, pensava ainda surribar outro bocado de montanha...
O Chico passara para a frente do Doiradinho, a fim de não perder nenhuma das palavras do avô; Luís preferira agarrar a mão do velho e acariciava-se com ela, passando-a nas faces.
316
- Aquilo foi um vento de desgraça que varreu tudo. Muitos mataram-se... À vossa avó nem a salvou a fé que me animava. Pendurou-se na trave grande do quarto, numa trave que ainda hoje não posso ver, sem que as lágrimas me não cheguem aos olhos.
A voz de António Teimas entaramelou-se e sacudiu a cabeça para afastar emoções.
- Foi uma desgraça! Os cachos mirraram-se e as videiras esbraseadas morreram desfeitas; pareciam estorricadas por uma grande lambra de fogo que corresse o Doiro, de ponta a ponta. Os socalcos ficaram nuinhos, sem uma folha... A terra pôs-se mais morta do que antes da gente a saibrar... Cor de ferrugem, da cor dessa água bravia que passa lá em baixo e a que ninguém pode deitar a mão...
o velho tinha a testa encamarinhada do suor frio que lhe varava o corpo magro.
- Morreu gente de fome, porque o pão deixou de vir a Ribacorgo. Fugia gente, levando o que podia das casas, como se atrás levasse alguma peste medonha. E aquilo era pior do que uma peste. Mataram-se muitos... muitos! Caíram casas e lagares abandonados; caíram geios de mortórios... As famílias partiam e levavam saudades do suor que ali ficava morto. E não levavam mais nada...
Parecendo esquecido dos netos, o velho falava sempre, numa voz amargurada pela emoção.
- "Vem, António", diziam-me muitos. "Agora, que a tua mulher se matou e te morreram os dois meninos, que ficas aí a fazer com o rapaz?..."
- Era o meu pai? - perguntou o Chico.
- Era, sim... Por mais de uma vez estive para abalar também, mas a terra parecia pedir-me que ficasse. "Fica, António, fica..." Os rapazes esfaimados guerreavam com os cães pelo que encontravam. Comeram-se raízes... ervas... cascas... E eu não fui!...
Disse aquilo num grito de orgulho e calou-se, por momentos. Os dois rapazes escutavam-no, mas sentiam-se incapazes de lhe fixarem o olhar.
- Salvei umas dúzias de cepas que aí estão, a lembrar esses anos de miséria... da miséria mais negra e triste que os homens tiveram alguma vez de sofrer. Mas fiquei até ao fim!... E por isso me chamaram Teimas... E logo gostei da alcunha, porque este vinho do Doiro não é por acaso o melhor do mundo. A gente é que o faz do nosso sangue...
As lágrimas corriam-lhe na barba e no bigode farto, mas o velho sorria, ora a olhar os netos, ora a dominar a imponência da paisagem, que parecia humilhar-se, ante a expressão vitoriosa de António Teimas.
- É isto que vocês têm de aprender - continuou ainda. - A terra vale tudo, porque é ela que nos dá a vida; e já depois de mortos, quando para pouco prestamos, é ela que nos acolhe lá no fundo para o último sono. E esta terra pra riba do Marão vale mais do que nenhuma outra...
Luís levantou o olhar para o avô e viram-se ambos através das lágrimas que choravam. O velho esporeou o garrano e voltaram à caminhada.
Iam silenciosos, mas uma nova confiança nascia no olhar de todos. E a terra compreendia-os, porque os cumes das montanhas continuavam firmes no horizonte, numa presença que se tornava em estímulo.
- A desgraça não foi tamanha que não valha a pena começar outra vez. Enquanto houver homens...
Ao passo ligeiro do Doirado, o rio avançava para eles. Um rabelo sulcava-lhe as águas, de grande vela branca aberta ao vento, como um guião de paz num campo de batalha.
318
Francisco fora vê-los à porta. Mal eles desapareceram no declive do quelho, voltou para dentro de casa, sem refrear a excitação que o dominava, e aproximou-se da cunhada. Ela parecia indiferente, sentada num banco perto da lareira.
- Mas pensas ficar toda a vida à espera?... Gracinda olhou-o, resignada, num breve encolher de
ombros.
- Acho já muito tempo. Precisamos de abalar deste inferno.
- Tem paciência...
- Estou cansado. Parece que não te importas...
- Que mais posso fazer senão esperar? - respondeu-lhe Gracinda, alteando a voz. - Que mais queres?!...
Francisco procurou dominar-se ainda. Uma raiva surda impelia-o para a violência.
- E se lá lhe ficam com o espólio?... Já não é a primeira vez que isso sucede...
Gracinda ergueu-se, a pretexto de ir ao prateleiro, evitando a insistência do amante; mas ele seguiu-lhe os passos até ao canto da cozinha e agarrou-a pelos ombros. A sua voz sibilou.
-Não vês que podemos perder tudo?...
-E depois?! - retorquiu-lhe a cunhada, num grito abafado. - Fui eu que o ganhei?!... Fui eu?!...
Exasperava-a aquela pressa, embora também esperasse a notícia com ansiedade. Precisava de afastar o martírio do seu pecado, mas preferia que ele lho não lembrasse a todos os momentos, numa obsessão doentia.
Olharam-se como dois inimigos. Ele sentia crescer dentro de si uma vaga de ódio por tudo o que o rodeava e sacudia as mãos, torturado, com o tique da face que lhe traía a calma que desejava aparentar. Percebia que
319
era preciso dominar-se, embora soubesse que aquele grito da cunhada era uma afronta e uma revolta. Encolheu os ombros, por fim, e foi sentar-se junto da mesa, querendo mostrar-se indiferente.
De relance, viu-a aproximar-se; fingiu que a não notava.
- Achas que devo fazer alguma coisa?! - perguntou Gracinda, num sussurro.
Um falso sorriso brincava-lhe na boca. Ele sentia-se vencer, mas começou a assobiar, brincando com uma tigela que fazia girar nos (dedos.
- Desculpa o que disse... Mas sinto-me tão inquieta!... Se eu pudesse lá ir buscar a carta...
Francisco voltou-se a procurar-lhe no rosto uma expressão de confiança. Tinha necessidade de sossego para as suas inquietações e só ela agora lho podia oferecer. Ficou ainda incapaz de falar, mas os olhos ganharam uma doçura que lhe vinha da alma, aos poucos, numa carícia reconfortante.
- Julgas que não desejo também que tudo se resolva? - insistiu a cunhada.
Ele largou a tigela; as mãos foram prender-lhe as ancas e puxou-a para si, descansando a cabeça naquele peito que lhe trazia recordações. Gracinda sorria, agora confiante do seu domínio sobre ele, e achava-o uma criança grande, dependente da sua vontade.
-O Que devo fazer? - ciciou-lhe ao ouvido, à espera de submeter o último sinal do seu despeito.
Comprazia-se em senti-lo fraco perante si, sem saber explicar o segredo desse sentimento que a dominava. Francisco quis resistir ainda, mas os restos da sua vontade dissolviam-se com as carícias que ela lhe fazia no rosto. Sorriu-lhe um agradecimento ingénuo e apertou-a mais.
- Talvez pudesse escrever... Que dizes?!...
320
Mas, nesse instante, a porta do quinteiro rangeu; ela afastou-se para junto da lareira, levantando o testo da panela do jantar. Ficaram à espera que alguém aparecesse. Depois, uma voz chamou por Gracinda. Ela voltou-se alarmada e correu para fora - conhecera a voz do sogro. O coração batia-lhe no peito, em pancadas curtas e fortes que se lhe repercutiam na cabeça.
Quando se viram, correram um para o outro e abraçaram-se, em soluços que nenhum deles podia reprimir. Incapazes de falar, ficaram assim por muito tempo, até que Gracinda conseguiu trazer o velho para dentro de casa.
Francisco assistia, atónito, a tudo aquilo, alegre por compreender que o outro morrera, mas perturbado de despeito por ver lágrimas nos olhos da amante. Desejava que ela esquecesse conveniências e viesse para junto de si, para falarem da vida que se abria agora à sua frente.
Embaraçado, quis fazer qualquer coisa que justificasse a sua presença; mas ao cérebro, dominado pela certeza daquele desenlace, só ocorriam as palavras que era preciso esconder naquele momento. "Quando estivessem sós..."
O velho tentou falar, mas os soluços embargaram-lhe a voz. E um novo ataque de choro convulsivo fê-lo sentar-se num banco, junto da mesa, no tampo da qual deixou cair a cabeça encanecida. Então, os dois amantes puderam olhar-se e sorrir.
Ele aproximou-se da cunhada e, puxando-a para si, apertou-a de encontro ao peito, como se a quisesse guardar ali dentro.
- Tenha coragem, Ti Manuel! - disse para o velho, numa ternura forçada. -O Que se há-de fazer?!... Deus que o chamou...
ovelho levantou a cabeça e quis falar novamente; tentava exprimir no rosto a nova que trazia, mas a comoção embargava-lhe a voz e traía-lhe as expressões. Levantou-se, por fim, num arranco, e gritou para os dois:
- O António vai chegar!...
Hirta, Gracinda desprendeu-se daqueles braços que a amparavam e escancarou a boca, para deixar sair um grito que parecia rebentar-lhe as veias; mas não pôde. Uma vertigem cerrou-lhe os olhos e fulminou-lhe o corpo, deitando-a por terra. Sobre Francisco a vida fechava-se, numa onda de sangue.

 

 

                                                   Alves Redol         

 

 

 

                          Voltar a serie

 

 

 

 

      

 

 

O melhor da literatura para todos os gostos e idades