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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


HORIZONTES PARA OS DOIS/ Odette de Saint Maurice
HORIZONTES PARA OS DOIS/ Odette de Saint Maurice

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

É difícil abstrair de certas coisas que se nos incrustam na sensibilidade, muito mais do que na retina ou na lembrança. E contudo não posso, não quero e não devo continuar obcecada por quanto se passou nestes últimos dias.

Não posso recordar o som das orações que magoam em vez de aliviarem. Não quero deixar-me invadir pelo perfume das flores tornado enjoativo. Não devo falar mais no que por agora está completamente parado.

A noite foi de sono sem pesadelos, a manhã está bonita e os meus papéis esperam-me. Talvez seja a altura de voltar a RAPARIGAS DE VIDA VAZIA.

 

 

 

 

Vidas vazias! Tantas!...

- A Senhora já destinou o almoço de hoje ? A Emília. Eficiente desde ontem à tarde,

quando me viu chegar desfeita do funeral de Sebastião de Ribatorpes.

- Qualquer coisa me serve.

- E... pró menino?

- Para o menino?... - de repente não atino com a razão da pergunta. - Qual menino?...

- O menino Artur, minha Senhora!... Não me disse que ele vinha cá almoçar?

E no mesmo instante a memória projecta um quadro na minha frente.

- Tens razão, Emília! Esqueci-me por completo!

O quadro continua ante os meus olhos da alma.

Gente, gente, gente. Flores, flores, flores.

Flores, flores, flores. Gente, gente, gente.

E depois.

Cumprimentos. Caras conhecidas.

Desconhecidos sem possível contagem.

Ou com contagem.

Efectivamente, junto à mesa vestida de negro e franjada de oiro, um rapaz esbelto, pesquisando na bandeja de prata onde se amontoam bilhetes de visita, tenta saber quantos. Ou quem. Não lhe interessam os desconhecidos, mas os conhecidos que passaram. Que continuam a passar.

E de súbito:

- " Arturito! ...

Artur Xavier de Sá Ferreira. O primo deles.

- Que estás tu aqui a fazer, Artur?

- A tirar apontamentos para a notícia a dar no meu Jornal.

- Ah, sim!... E por isso...

Exactamente por isso o Artur vem almoçar comigo. Ainda bem que a Emília mo recorda!

Um diante do outro. Na mesinha redonda onde trabalho e tantas vezes solitária tomo as minhas refeições no tabuleirito contra o qual esbarram ódios da Emília - ódios inócuos... Onde tantas vezes tomo as minhas refeições com os que por serem tão íntimos merecem integrar-se nesta simplicidade que me caracteriza - simplicidade ou falta de paciência para me dispersar no que de dia para dia cada vez se me afigura mais inútil.

O Artur é um dos que merecem.

E contemplando o seu rosto feio mas simpático, esperto, revejo o garoto que conheci tão irrequieto, um pedaço desobediente e transbordante de imaginação. O petiz que um dia, sem dar cavaco a ninguém, decidiu embarcar com os pescadores lá na praia onde estava a passar férias entregue aos tios que apanharam um susto que o aventureirozito expiou e muito bem! O amador de detective que para se fazer valer não hesitou em dar um desgosto à Ana e em arriscar a honestidade de uma inocente. O rapazito tão bem dotado para as lides de escrever que lhe encomendaram a Crônica dos acontecimentos em S. Boaventura, começada e nunca acabada...

Ponho-me a rir, à recordação de certas passagens. E ele, que principiou a comer o caldo verde, quer saber:

- De que foi que se lembrou, diga! ?...

- Dos teus primeiros passos de Escritor!

- Da minha peçazinha, aquela que fiz para representar na festa em favor do João André moleiro?

- Não. Por acaso, não! Vieram-me à idéia algumas descrições da Crônica...

- Ah, a Crônica!...

- Foi pena não a teres continuado.

- Pois foi!

A evocação dele - a peçazinha escrita para a festa em favor do João (ou André) moleiro - traz-me para a actualidade. Liga-se com a actualidade. É que na verdade o Artur pertence ao número dos que trabalham para concretizar uma vocação.

- Que tens feito, filho?

Ele amontoa no prato pastelinhos de bacalhau (a Emília é exímia no trivial) e salada, distraído porque me olha através de pensamentos que não tarda em formular.

- Soube do que me sucedeu com aquela idéia muito gira que me roubaram?

- Soube. O Pedro contou-me tudo. Foi para ti uma experiência dolorosa.

- Uma grande ensinadela!

- Creio no entanto que reagiste o melhor possível, decidido a recuperar todos os pontos perdidos.

- É certo.

- Projectos ?

- Alguns, mas não imediatos. Já agora vou esperar calmamente.

- Armazenando bagagem?

- Isso. Tanto mais que...

Toca o telefone, colocado à nossa beira. Ele suspende a frase enquanto eu atendo, sem esperar que a Emília surja da cozinha onde deve estar ocupada a arranjar ovos para o Artur que eu não quero mais nada.

- Quem fala?... O quê? Tu, Teresinha?... Como?... A seguir ao almoço?... Podes vir, sim, querida. Alguma novidade?... Bom, cá te espero. Até já.

Desligo. O Artur não pergunta quem falou. Eu não lhe digo.

- Sabe?...

- Ainda não...

- . Dentro da minha cabeça há uma certa confusão neste momento porque as idéias borbulham, surgem, confundem-se... e isto assim não pode ser. Às vezes dá-me a impressão de que aqui - e aponta a testa, - é um campo húmido onde os cogumelos são aos montes.

Ponho-me a rir.

- Oh, Artur, cuidado!... Olha que os cogumelos assim nascidos são quase sempre venenosos.

- Pois é isso mesmo!

- Como?

- É isso mesmo! Certas sugestões parecem-se com os cogumelos que não prestam ao pé das grandes árvores que um dia são capazes de dar umas belas copas! - e encara-me. - Não me chame presunçoso, não? Mas julgo que existem dentro de mim qualidades para aproveitar! O que eu preciso é de dar tempo ao tempo, sem precipitações. Talvez não valha a pena começar cedo demais.

- Nunca se sabe, Artur! Houve grandes homens que principiaram cedíssimo...

- Pois houve, numa época sem concorrência, por assim dizer. As pessoas eram e provavam-no, porque as que não eram não lhes empeçavam o caminho. Agora tornou-se diferente. A uniformidade das limitações imposta por um nivelamento intelectual impossível de obter mas exigido em toda a parte, não deixa que os que são se distanciem dos que não são, pelo menos antes de sobejas provas dadas. Até porque os que não são durante uns tempos conseguem confundir-se com os que são!

Se ele tem razão, Deus do Céu!... Apoio-o, encantada com a lucidez da exposição que confirma a sua inteligência. E o Artur continua:

- Por isso meti travões nas minhas forças naturais e tentarei doravante seguir em andamento moderado.

- Mas não deixas de escrever?

- Não deixo de fazer nada neste momento, embora não faça senão o que a minha auto-disciplina me aconselha. Decidi, no Jornal, abster-me de brilhar. Prefiro conservar-me encolhido na minha toca, a ver se o gatarrão que me espreita deixa de dar por mim.

- Nesse caso continuas a receá-lo, ao tal?

- A verdade anda sempre à superfície da água, como o azeite, não é?

- É! Mas não vejo a ligação... Não tardo em ver.

- De súbito, quando as pessoas agora iludidas descobrirem que o tipo não tem nada lá dentro que preste, que não passa de um monte de basófias e de falta de escrúpulos, pode acontecer que surja à tona dos factos a origem do empreendimento sensacional que ele está a tentar levar a cabo, devo dizer que cheio de falhas e indecisões...

- Está a estragar o que podia ser uma coisa magnífica, não?

- Faltam-lhe as estruturas, claro!

- Mas tu querias dizer que... ?

- que a esperteza do tipo chega para se aperceber do perigo... e portanto ele acima de tudo o que deve desejar é eliminar-me, pôr-me completamente fora de combate.

- Não vais arranjar a mania da perseguição, Artur?

- Não! Pretendo apenas evitar que me persigam e portanto faço os possíveis para não darem por mim. Limito-me a cumprir as obri13

gações diárias como o mais zeloso dos escriturários de uma repartição pública. Faço o que me mandam e acabou-se! Aliás, faço o que me mandam agora... porque falei com o Chefe da Redacção, que é um tipo excepcionalmente recto e desempoeirado, o tal que fez com que me admitissem...

- Bem sei, bem sei. Por acaso até o conheço e digo-te que tens toda a razão na forma como o julgas.

- Pois fui mais uma vez procurá-lo e pedi-Lhe que me ajudasse, mudando-me de secção.

- De secção?

- Sim, de secção. Justificando-me em parte com a realidade (preciso de um pouco mais de tempo livre para acabar o meu curso do Conservatório no próximo Julho!) muito embora a sentir que ele nas entrelinhas divisava o verdadeiro motivo, deixei de ser Crítico Musical, recusei toda a colaboração eventual e fiquei à margem das notícias principais que me davam para redigir constantemente. Foi por isso que ontem me encontrou no funeral do conde de Ribatorpes... - e sorri-me. - Não está a perceber, pois não?

- Confesso que não.

- Ando por fora assim, a ver quem cornparece nos enterros de gente de categoria (como não os conheço bisbilhoto os cartões e as assinaturas nas folhas de pêsames). vou às Conservatórias do Registo Civil descobrir se entre os que estão para casar há nomes que sejam notícia. Tenho também a meu cargo uma secção de perdidos e achados.

Contemplo-o indecisa. Não sei bem o que hei-de achar de isto...

- Pouco que fazer, não?...

- Mais do que julga! Morre muita gente. Casa muita gente. E nem a Madrinha faz idéia do que se perde e acha nesta cidade!... Até crianças e adultos!... Perdem-se por aí raparigas e rapazes e acham-se crianças ao Deus dará...

A reflexão é incisiva. E elucidativa.

- Torna-se evidente que não gostas do trabalho que andas a fazer.

- Detesto-o.

- Ouve lá, Artur. Não seria preferível mudares de emprego? Tentares outra colocação?

A Emília retira os pratos e depõe ante o meu jovem convidado os ovos que mandara fazer só para ele. O Artur protesta.

- Ó Madrinha, mas eu já não tenho vontade! Comi imenso.

- Comeste o que te apetecia.

- Comi mais do que me apetecia, para não deixar no prato. Servi-me sem ver o que estava a fazer.

- Pois agora comes sem veres o que tens na tua frente. Sou contra o hábito de estragar o que faz tanta falta a alguns.

- Pois também eu, mas os ovos não se estragavam! Comia-os a Emília.

- Oh, menino, nem pense! Primeiro não gosto de ovos... e depois o meu fígado punha-se praí aos pulos!

E o Artur começa a comer os ovos que estão aliás com um ar apetitosíssimo. E só uns minutos depois parece disposto a responder à minha sugestão.

- Mudar de emprego? Para quê, Madrinha? Mais vale dar tempo ao tempo! As coisas hão-de modificar-se... e o meu cantinho dentro do Jornal está certo!

- Certo, com o inimigo à perna?

- Ele desiste. Até porque há-de acabar ou por me esquecer... ou por cair do pedestal enquanto eu estiver longe. Depois, quando voltar, com as idéias arrumadas, com a escolha feita, ou seja, com a minha própria selecção crítica realizada - para um lado o trigo para o outro o joio...

- cogumelos no lugar dos cogumelos, árvores no lugar das árvores... - atalho, a mostrar a minha compreensão.

- Isso!... Pois quando eu regressar, talvez com as horas livres de que entretanto dispuser transformadas em obra para ser aproveitada, reocuparei o meu lugar, o lugar a que conservarei todo o direito, mas então em vez de me subordinar a uma posição apagada reclamando aquela que eu souber que posso ocupar de vez, em plena evidência. Hei-de principiar a querer tudo, nesse momento. Aquilo que quero já... mas demasiadamente cedo, então há-de estar certo.

- E que queres tu, concretamente ?

- Escrever, em primeiro lugar.

- Romances ?

- O Teatro interessa-me mais! Há assuntos e formas novas (novas mas coerentes!) dentro de mim. Serei Dramaturgo. Serei Jornalista, mas Jornalista para chegar a Director de um Jornal.

- Não te esqueças de que muitas vezes o lugar de Director de um Jornal é um lugar político.

- Hei-de ter as forças bastantes para convencer esses de quem possa depender o meu futuro de que a minha política pessoal não terá cores, será de todo o meu país, alicerçada em estruturas morais e sociais aptas a servirem de apoio a quanto dignifique a sociedade em geral e o homem em particular.

- Bravo, Artur!

Ele sorri, acabando os ovos.

- Todos os que perfilham um partido, qualquer que seja, incorrem no pecado de julgar que o mundo é composto por eles e os outros. Ora o mundo é composto por todos nós!

- Está certíssimo! E era bom que as pessoas o entendessem.

- Lutarei para que o entendam. É um dos meus objectivos. E não cederei facilmente. De resto, sei que ainda não chegou a hora. Os meus cogumelos perdem-se entre as minhas árvores.

Preciso de traçar planos, de estudar efeitos e reacções prováveis, de delinear formas que tanto quanto possível afastem as más interpretações que surjam para macular o que acima de tudo terá características inteligentes e nobres, deturpando-as.

- Artur... ? ...

- Sim, Madrinha ?

- Não receias estar a encarar com demasiado optimismo a tua ascensão?

- Não, Madrinha, porque não a julgo assim tão rápida como isso. Agora, em traços largos, parece que a prevejo repentina... e não! Levará muitos anos! Mas há-de chegar. Primeiro serei... Redactor principal. E Crítico outra vez. Depois, Chefe de Redacção. As minhas peças começarão a representar-se. Assinarei artigos sobre os assuntos que me interessarem, que interessarem às pessoas bem intencionadas. Quando me sentir muito cansado... consagrar-me-ei ao meu hobby, à ocupação que me deleita mais que todas. Tocarei... Há quem junte dinheiro para comprar um automóvel. Eu amealhá-lo-ei para comprar... um órgão! E enquanto tocar sentirei idéias e forças chegarem, multiplicarem-se, a fim de que eu não pare mais de trabalhar. Num trabalho que dê forma a quanto valer a pena desta nascente que trago cà dentro... - e a acabar de comer uma banana que pisa com o garfo até a tornar em papa-alimento-de-bèbé: - Este é o meu projecto de vida.

- Mas... - e detenho-me. - Deverei... ou não?

E ele, suspenso:

- Diga, diga!

- Artur, creio que entendi perfeitamente tudo o que disseste. Resta-me porém uma dúvida que eu desejava aclarar.

- Só não a aclara se ma não expuser.

- Nos teus projectos não há lugar para...

- Para... ?

- O casamento? Ele começa a rir.

- Para o casamento? Mas tudo o que eu desejo, tudo o que eu ambiciono, tudo o que eu entreteço, cabe dentro do meu casamento... com a Inês, claro!

Rio com ele.

- Ah, bem!...

E, de chofre, uma interrogação que me embaraça.

- Não gosta muito da Inês, pois não?

- Que idéia!

- Seja sincera! Chegaram-me aos ouvidos uns zum-zuns de que a achava bastante frívola...

Tenho de ser sincera.

- Realmente, fiquei com essa impressão.

- Ficou.. !! Mas por quê?

- A tua prima... no livro dela... - e calo-me. Ele insiste:

- A Ana, no livro dela... ?...

- refere-se à inclinação, aparente, claro, da Inês pelo Pedro.

E sinto-me muito envergonhada. Nem que tivesse culpa do facto!

O Artur riposta-me como um homem superior. O Artur é um homem superior.

- Madrinha, nem todas as raparigas têm a sorte da minha prima, ou da Maria do Rosário, para se enamorarem definitivamente logo ao primeiro encantamento. Umas vezes porque esse encantamento não possui qualquer profundidade. Outras porque o objecto do encantamento não o merece, não é digno de o tornar definitivo. Quantas raparigas falham por causa disto!... Quantas raparigas se desnorteiam porque o alvo, a razão, do seu primeiro interesse de mulheres, fica longe da espontaneidade com que elas oferecem as suas crenças que são puras e saiem embaciadas de uma experiência infeliz!

Eis-me presa da exposição clara deste rapaz fora de série - pelo menos fora de uma série que abunda por mal dela própria. E dos que a cercam. E oiço-o, toda atenção e interesse.

- Não contesto (longe de mim a pretensão!) que existem raparigas que são autênticas desmioladas, criaturinhas à margem por incapazes de reconsiderarem nas conseqüências da sua leviandade, criaturinhas destinadas a nada terem... ou a tudo perderem. Mas também abundam as que por pouca sorte encontram quem, ludibriando-lhes a fé inicial, as arrasta para uma dispersão cujas conseqüências têm de por força ser funestas. Dessas, algumas salvam-se porque... - e sorri. - Porque, felizmente, existem Artures e Júlios.

- An?

- O Pedro não lhe contou?

- O quê?

- A propósito da Lili ?

- Da Lili ? - assim à primeira não sei a quem ele se refere. E de repente: - Ah, a Leonor Augusta Abegorim! ...

- Pois!... A Leonor namorou, namorou...

- Namoriscou. - corrijo.

- Seja! De qualquer maneira perdeu tempo. Perderia tempo Deus sabe até quando se não aparecesse o Matinha. com a Inês não sucedeu bem a mesma coisa porque surgi diante dela mais cedo. É ainda muito nova... e tudo se tornou certo. Tudo me parece certo. Tudo está certo quando uma rapariga sedenta de amor encontra um rapaz honesto.

- Isso quer dizer que responsabilizas o sexo masculino pelos desastres sofridos pelo feminino?

- Pois responsabilizo! O rapaz que engana, que mente, deixa aberta muitas vezes para sempre a porta da casa que não soube respeitar. E a partir daí tudo pode acontecer. Até a iludida e desiludida cair numa desmoralização onde as noções do bem e do mal se baralhem e tornem indistintas. Ou se tornar capaz, a iludida e desiludida, de alimentar desejos de vingança que venham a desabar sobre inocentes, ou sobre um inocente. Quantas delas constróiem um lar com um homem que chegou tarde demais e não sabem nem merecê-lo, nem estimá-lo, nem conservá-lo!

Tudo isto que ele diz é muito válido e revela um amadurecimento surpreendente.

- Tens razão! -concordo. - É de facto assim. Ainda há dias recebi a carta de uma cachopa que, se não lhe surge um Artur ou um Júlio, corre sérios riscos! - e penso na Maria Helena Icanha que por acaso não voltou a dar-me notícias (que se passará com ela?).

- Quase todas correm sérios riscos, Madrinha. Quase todas, por culpa da...

- estrutura masculina!

- Por culpa da má educação masculina.

- Já agora põe também má preparação feminina.

- Por mais bem preparada que esteja, a rapariga defronta sempre um momento em que pergunta a si própria ante o rapaz que lhe dirige um galanteio, ou a olha mais demoradamente, ou tenta cingi-la ao peito... -será este? Algumas acertam.

- Em geral aquelas que o não pensam ao ouvir o galanteio, indiferentes ao primeiro olhar, esquivas ao abraço traiçoeiro.

Ele sorri e concorda.

- E isso!

- Mas...

- Não te ofendes com uma pergunta?

- De modo nenhum!

- Segundo creio... o Pedro nunca dirigiu à Inês um galanteio, nem a olhou langoroso, nem experimentou abraçá-la.

- Não. O Pedro é um sentimental, quase um romântico, nesta nossa era de materialismos. Persegue um sonho. E a Inês, que no fundo não passa de outra sonhadora, nunca personificou esse sonho! De resto, Madrinha, asseguro-Lhe que ela não se parece nada com as Alicinhas que por aí abundam. Se parecesse eu não a escolhia como escolhi, para casar. - engraçado, o reparo. E leva-me a felicitá-lo.

- Parabéns, filho. Aliás a estirpe aliciana não seduz...

E ele:

- Ai não! Pense no Fernando Vasco!

- O Fernando Vasco anda intoxicado por um meio onde os valores se acham bastante confundidos!

- É natural. Caíamos na monotonia se a vida só tivesse uma cor!

- Claro!... Aliás pelos contrastes e pelas comparações se adquire a faculdade de interpretar as diferenças que originam o bonito e o feio.

Estamos no café que ele bebe de um trago. Como pode, assim a escaldar!... Eu passo horas a mexê-lo para que arrefeça.

Horas. Tim-tim-tim. No meu relógio velho-novo do ferro-velho e no novo-velho do tempo de Napoleão.

Napoleão.

"Que ele marque para si horas belas... horas belas que a compensem das horas feias que aqui viveu hoje".

Sebastião de Ribatorpes.

João Alfredo.

A ILHA DOS PÊSSEGOS.

Idéias em ligação, que a voz do Artur corta.

- Madrinha, tenho de ir indo!... Ir. Ausência.

IR.

Uma frase do Artur, inexplicavelmente retida cá dentro, surge-me cintilante. Pois quando eu regressar...

- Artur... ? -Madrinha?

- Para onde é que tu vais?

- Para a Redacção, ou melhor, à Redacção, saber o destino que hei-de dar à tarde de hoje.

- Não é isso.

- Então?

- Referiste-te, salvo erro, a um afastamento teu a propósito do Jornal e da arrumação das idéias... mas não me disseste quais as tuas intenções a esse respeito!

- Não há intenções, Madrinha! Há obrigações!

- Quais?

- O serviço militar!

- Ah, sim. O serviço militar!... João Alfredo!

IR...

IRá... ainda? Agora?

E a caminho da porta da rua, o Artur vai explicando:

- Devo ser incorporado lá para o Outono. E é evidente que não sei o que me espera. Todos os meus projectos saltam pelo menos dois anos, ou mais.

Ele tem razão. Inteira razão! Todos os projectos saltam dois anos ou mais.

A Ilha dos Pêssegos!...

Como vai ser, com eles, Fofo e companhia? Anseio sabê-lo! E quando ponho a mão no trinco da porta, uma campainhada. E uma esperança.

- Se fosse ele!...

Diante de mim, a cruzar-se com o Artur que sai, a Teresinha.

Sim, a Teresinha Souzelo.

Tinha-me esquecido por completo de que ela vinha cá.

Podia ser linda se não fosse tão estranha. Estranha não de feições nem de figura, mas de atitudes e de expressão. Faz lembrar muito mais a Berta Maria do que a Mãe que continua a ser uma linda rapariga (apesar dos quarenta anos feitos). Mas Berta Maria inspirava confiança. Toda ela era simpatia, afectividade. E Teresa parece dentro de uma campânula, isolada, distante.

Tem de ser impressão. Não pode deixar de ser impressão, pois de contrário ela não estaria aqui.

E... por que está aqui? Como está aqui?

Apercebo-me de que a singularidade do ar desta rapariguinha "tens dezasseis anos feitos, não é?" "é!" reflecte a singularidade da situação.

Ela, de lábios cerrados, não parece disposta a falar. E no entanto veio para, falar, com certeza.

Passam-me pela mente palavras dispersas da última carta da Becas a propósito da adolescência da sobrinha, um tanto em crise inexplicável, segundo os conceitos básicos do que se imagina ser uma felicidade ou dever ser uma felicidade.

Recordo-me de ter falado no assunto ao Pedro, até, admitindo como explicação uma semelhança do caracter da Teresa com o da avó, a Maria Alice Torredalto, que conheci tipo boneca mimada e caprichosa sem grandes noções do que sempre se me afigurou essencial para se possuir realmente a sensação de se estar VIVO.

VIVA.

E no entanto na atitude fechada da Teresa não há nada que se assemelhe à fragilidade das idéias e das expressões da mulher rica e adulada que ia arriscando a ventura da família não por erros próprios mas por não ser capaz de travar os erros alheios.

De súbito, Teresa-a-silenciosa encara-me.

E...

Ah, sim, sim! Reconheço a maneira de olhar, voluntariosa, dura, tantas vezes hostil, do avô, esse Eugênio Torredalto que em momentos terríveis aprendeu que amar é dar e não receber, pedir e não impor, esperar e não exigir.

Já sei agora com quem a Teresa Souzelo se parece.

Mas...

Por que está ela aqui? E como?

- Cheguei ante-ontem e fiquei dois dias em casa da D. Aniceta que como sabe adoeceu e não pôde agüentar o clima onde estávamos. Aquilo é terrível! O Pai e a Mãe suportam. A tia Becas também suportou. O avô e a avó passam mal mas não arredam pé. O filão de oiro tem proporções assombrosas e a fortuna do meu Pai dava-lhe para se vir embora... dava-lhe para fazer uma vida de príncipe em qualquer parte. Não quer. Ninguém quer. Estão como se o dinheiro fosse mais importante do que o oxigênio, E ali o calor e a humidade são às vezes de tal ordem que a gente parece que nem pode respirar!

De súbito noto que a Teresa está a falar. Não sei bem quando começou nem se começou no instante em que principiei a ouvi-la.

Agora escuto-a e paralelos com as suas frases correm os meus pensamentos que as apreendem e comentam.

Estão como se o dinheiro fosse mais importante do que o oxigênio...

Tanto que a Maria Helena passou! Tanto que o Diniz sofreu pela falta de dinheiro!

Tanto que o dinheiro empederniu o Eugênio Torredalto até ele perceber que o dinheiro não era tudo para ninguém!

- O dinheiro não é tudo para ninguém! exclamo.

- E para mim não é nada porque mal entrei na adolescência percebi que eu era uma espécie de boneco para o oiro ou um boneco feito de oiro... Um boneco que afinal preferia ser de carne e osso, simples, mortal. com o direito de ser feito em pedaços. Um boneco de oiro há-de ser sempre de oiro, incapaz de sentir, incapaz de vibrar...

Os pensamentos originados pelo passado cedem lugar aos que o presente me impõe. Sou forçada a admitir que a adolescência difícil desta rapariguinha pode ter justificações perfeitamente admissíveis, ou compreensíveis.

E ela agora fala como se receosa de perder a coragem de dizer o que pretende.

- Até aos 11 anos estive sempre ali, cercada de carinhos e de atenções, com brinquedos que enchiam um quarto até ao tecto... sim, até ao tecto, postos em prateleiras! Davam-me

lições o avô, o meu Pai e a tia Becas. Ia fazer os exames de passagem ao Lobito. Depois, internaram-me num Colégio em Johanesburgo. Aí fiquei a saber que havia gente que não se metia pela terra abaixo à procura de oiro, muito oiro, cada vez mais oiro. E casas que não serviam de cofres-fortes de oiro, muito oiro, cada vez mais oiro. Pessoas que não viviam de dentes cerrados a privarem-se de tudo para terem oiro, muito oiro, cada vez mais oiro...

Num clarão, ante a minha espectativa que cresce de momento a momento, um reparo esta rapariga discorre e fala excepcionalmente bem... e logo a seguir o domínio que a sua voz exerce sobre mim.

- Voltei por fim para aquele meio onde os homens vivem de rostos fechados, ora a darem-nos a impressão de que estão sempre a partir para uma grande caçada, ora a expressarem uma enorme desconfiança de tudo e de todos. E as mulheres - ai as mulheres! - é como se tudo para elas se resumisse a esperar qualquer coisa. Voltei e nunca percebi se porque fazia falta ao isolamento da minha Mãe e da minha avó, se porque infantilmente me queixei de que tinha saudades e me acreditaram. Quando cheguei, a tia Becas, que entretanto casara com o Médico das minas, fora-se embora. Bem sei, penso, a Becas casou, comigo a assistir. E saturou-se a tempo, creio! daquele ambiente e partira com a mulher. Ele, o Médico das minas.

- Está a trabalhar no Hospital novo de Luanda, com o Dr. Rui Manuel de Macedo. A tua tia escreveu-me a contar. - esclareço.

- Ah ... E... e não lhe contou mais nada ? Devo ou não ser franca?

Teresa interpreta a minha rápida indecisão.

- Calculo que contou! Fez-lhe queixas minhas... queixas baseadas nas dos meus Pais. Mas não explicou porquê... pois não?

Abano a cabeça.

- Não!

- A tia Becas devia começar por aí. Devia começar por lhe dizer que os meus Pais pretendiam enterrar-me viva.

- Como?

- Pretendiam enterrar-me viva!

- Estás a gracejar... sem nenhuma espécie de gosto.

- Não! Estou a exprimir uma verdade. Pois sob que outro nome quer que eu defina a situação em que de repente me encontrei?

- Não sei qual foi a situação, não posso classificá-la.

- Queriam casar-me com um velho.

- Queriam o quê?

- Casar-me com um velho!

- Explica-te.

- É o que tenho estado a fazer.

- A esse respeito ainda nada disseste.

- Mas tencionava chegar aqui, para que me entendesse!

- Fala.

- Um dos Directores lá daquela coisa da pesquisa do oiro... - sinto que a notável elegância de forma com que ela se exprime se altera. A emoção contida na garota submerge a adulta e vai deixar ver à transparência o fundo da sensibilidade atingida. - enviuvou... E começou, sem eu dar por nada, a andar atrás de mim. Eu, é claro, a princípio julguei que era só amizade. Não me passava pela cabeça a mais pequena suspeita! Ele era... era como se fosse outro avô.

Interrompo-a.

- Teresa, que idade tem esse velho?

- Cinqüenta e tal bem medidos. Não posso deixar de sorrir.

- Bom... é apenas relativamente velho!

- Para mim é velhíssimo! Fiz 16 anos há pouco!

- Sim, para ti é velhíssimo! - concordo e sem ser para lhe fazer jeito. - E... depois?

- Depois o fulano foi falar com os meus Pais.

O espírito abre-se-me à compreensão total de os meus pais queriam enterrar-me viva...

E toda eu me transformo numa palavra única. NÃO. Toda eu sou NÃO.

- NÃO.

- Sim.

como se revisse a figura ríspida de Eugênio Torredalto impondo o que a Maria Helena não podia aceitar, negando o que ela desejava.

- Exageras pela certa quando dizes os meus Pais, Teresa. Queria-o o teu avô, talvez.

- O avô foi o que menos concordou.

- O quê?

- Se estou aqui, devo-o a ele.

- Deus? ...

- A minha Mãe e o meu Pai pretendiam obrigar-me. Diziam que eu seria riquíssima! O fulano oferecia... Sei lá o que oferecia!... Como se eu tivesse preço! Dinheiro, dinheiro, dinheiro...

Como é possível? Como podem as pessoas mudar tanto... e esquecer... a tal ponto? ...

A Maria Helena, que lutou por um amor sincero e desinterssado, que viveu na mais extrema pobreza, que...

Devo ter falado alto, porque a Teresa comenta:

- Se calhar foi por isso mesmo! Julgam que me poupam às coisas más da vida se eu nadar em oiro!

- Estão intoxicados, filha!

- É isso mesmo. Estão intoxicados... e não querem tratar-se. Mas eu não deixo que me matem assim.

- Teresa, precisas de calma, de reflexão...

- Estou calma. E não tenho feito outra coisa nestes últimos tempos se não reflectir.

- Disseste que o teu avô foi de todos o único que discordou?

- Disse que foi o que menos concordou. Não é bem a mesma coisa.

Não. Mas afigura-se-me o mais estranho.

- A mim, pelo contrário, pareceu-me justificado. Eu sei bem o que se passou. A D. Aniceta contava muitas vezes como tudo acontecera e afirmava que o avô Eugênio se modificara completamente depois do incêndio das fábricas e da doença da tia Becas.

Becas. Berta Maria!...

- Teresa, explica-me uma coisa. A tua tia concordava com o tal casamento?

- Escrevi-lhe desesperada e talvez um tanto atabalhoada... Entretanto a minha Mãe também lhe escrevera e à sua maneira. A tia Becas adorou sempre a minha Mãe...

- Eu sei!

- Adora-a ao ponto de considerar como Verdadeiras leis as opiniões, os gostos, as vontades da irmã. E não me apoiou, pelo contrário. Respondeu-me em tom de discurso, a dar-me imensos conselhos.

- Achava que devias casar-te com o velho?

- e até eu já emprego a palavra "velho" em relação a um homem de cinqüenta e poucos anos.

- Achava, principalmente, que eu não devia contrariar a minha Mãe nem apoquentá-la nem desgostá-la...

Pois... compreendo! Becas, a que foi um expoente de dedicação...

Encho-me de compaixão pela Teresa, a adolescente que dava muitas preocupações...

Estendo-lhe as mãos e recebo as dela, frias, úmidas.

- E depois?

- Depois... não agüentei mais e fugi de casa.

- Estás aqui... fugida?

Nem reparo no que a suspeição encerra de contra-senso. Uma rapariguita de 16 anos vir fugida de Angola para aqui! Daquele pedacito de Angola-serrania-mato-selva - deserto - região -perdida-a-enterrar-se-em-minas...

Ela abana a cabeça, sem notar o disparate da hipótese.

- Aqui não estou fugida. Andei fugida lá... Deitei-me naquela noite sem saber como resistir à pressão. Horrorizada. O velho levara-me de presente uma pulseira de diamantes, parecida com a da tia Becas. E eu pensei que tinha de me ir embora, fosse para onde fosse. Se no meu destino a ordem fosse a de ser sepultada antes de tempo... ao menos que estivesse bem morta! Viva não, nunca! E levantei-me e meti-me pela escuridão adiante! Andei, andei, andei...

Como a Becas! Como a Becas, quando fugiu do Colégio para ir ao encontro da irmã. A Becas. A pulseira de diamantes.

Que estranhas ligações nas coisas!...

- E depois, Teresa?

- Perdi-me, como não podia deixar de ser. Durante vinte e quatro horas o pessoal da Concessão bateu a região. Encontraram-me inanimada perto de um local onde dias antes tinham andado leões... E foi então que o meu avô, com um ar muito esquisito, disse que era melhor mandarem-me passar uns tempos à Metrópole. A Mãe não queria, mas o avô insistiu.

Apoiando-se talvez em factos ocorridos

quando tu eras um bébèzinho?

- Acho que sim.

- E ficou o assunto resolvido?

- Não sei. Mas sei que não volto para lá.

- Então?

- Aparentemente, vim para aqui passar uns tempos... até ver.

- Confiaram-te à D. Aniceta?

- Não temos cá mais ninguém!

- Têm-me a mim!

Nos olhos da Teresa há finalmente luz. Uma luz que me envolve e emociona. - Por isso aqui estou.

- Aconselharam-te a vir?

- Não, fui eu que decidi. Não me aconselharam a nada. Nunca mais me falaram, a não ser o avô e a avó.

- Ah, sim, a tua avó... ? ... Que atitude assumiu?

- Nenhuma. A avó está sempre por tudo, sempre de acordo com toda a gente.

Sempre sem estar de acordo com ninguém. Sempre por tudo. Sem personalidade.

A doce e cômoda Maria Alice Torredalto não mudou! Mudou a Maria Helena e mudou o Diniz.

E a Becas? ...

- Que te disse a D. Aniceta quando resolveste vir ter comigo?

- Achou muito bem.

- " Parece-te que achará muito bem se vieres passar uns tempos comigo?

- É capaz de me convidar?... De me querer?

- Não se responde a uma pergunta com outra pergunta!

- Desculpe.

- Achará muito bem, a D. Aniceta ?

- Só falando-lhe. Mas penso que sim. Ela adora-a!

- Também a tua Mãe e a tua tia me adoraram. E esqueceram-se de mim... agora!

- Talvez não desejassem que eu pudesse sentir-me feliz num ambiente onde o oiro pode tão pouco...

Que linda coisa para o meu coração esta feia hipótese que a Teresa assim admite!...

- Poderás sentir-te feliz ao pé de mim?

- Sem dúvida.

- Sou muito exigente! Muito rigorosa... -i Ainda bem! Preciso de segurança!

- Bom... vou convidar-te. vou querer-te! Teresa escorrega na cadeira, fica apoiada

ao meu regaço, aguardando decisões.

Adolescência complicada...

- Será necessário eu ir contigo a casa da D. Aniceta... ou bastará telefonar-lhe? - Creio que bastará telefonar-lhe, S'Dona Odette. - Não, querida.

- Como?...

- Madrinha! ...

- Ah... Madrinha! ...

  1. Aniceta, muito velhota, muito inquieta, (confessa-me que recebeu contra a Teresa uma carta cheia de prevenções que muito a assustou "que responsabilidade!" e da qual nem quis falar à menina) acolhe a minha oferta telefônica com ambas as mãos. Sabe dar valor ao que estou a proporcionar-lhe.

- O minha querida Senhora, mas ela fica muito melhor consigo do que comigo! Não que eu não adore a Teresinha! Mas que posso eu, na minha idade e cheia de achaques, por uma garota destas, rebelde e tudo?

Rebelde e tudo? ...

Pois rebelde e tudo, tomo conta da Teresa e vou escrever à Maria Helena. E à Becas! Rebelde? ? ? ?...

- Emília, que se passa?

O restolho é tanto na cozinha que me sobressalta. Batem portas. Caiem panelas. Quebram-se pratos (quebrou-se o balão superior da máquina de café - o décimo-quinto em ano e meio!).

- Emília, que se passa? Já não é beiça. São trombas.

- E-Mí-LI-A, que-se-pas-sa... ?

- nã... ada.

- Não se passa nada e respondes-me com menos de metade das palavras?

- e... er? ...

- Quero que não batas com as portas, que não deixes cair as panelas e que não me partas coisas.

- e... ao... ande... bora.

- Ah, sim? ... Pois vai-te embora e pronto! -a... ava... da.

- O quê?

E as frases soltam-se inteiras.

- Não faltava mais nada!

- Heim?

- " Quem não se sentir bem que se mude!

Sinto que uma onda de ira começa a formar-se dentro de mim.

É raro deixar-me elevar na crista desta vaga que tudo submerge - inteligência, bom-senso, sentido das conveniências. Mas acontece. E principia assim, com algo a rugir, a ferver cá dentro.

Há lava prestes a fazer saltar a calma do monte que não parece vulcão. Nas minhas mãos treme a força de um velho avô (com quem me pareço extraordinariamente) que, zangado, quebrava cristais da Boêmia e louças da companhia das índias.

- Que é que disseste ?

Ela desafia-me.

- O que ouviu.

A boca seca-se-me.

Emília, quem não se sente bem neste

momento SOu eu... Ora eu sou a dona da casa... parece que não posso mudar-me... Ou posso?

- Não estava a falar consigo.

- Pois é comigo que tens de falar!

- Isso? ... A onda cresce.

- Emília... na minha casa está quem eu quero e só quem eu quero!

- E depois?

- E depois... se continuas assim, acho melhor que penses em arranjar outra patroa.

- Claro!... Manda-me embora por causa de quem se vem cá meter...

A situação pode chegar até aqui porque a Teresinha saiu a fim de ir buscar o que lhe faz falta para se instalar mal acabei de falar com a D. Aniceta. Mais além é que não!

- Emília, eu recebo na minha casa quem quero e tenho na minha casa quem quero. Se te sentes sobrecarregada, retira-te... agora, neste instante, mas nem mais uma palavra acerca do assunto! Convidei a menina Teresinha para aqui ficar e tu não tens nada com isso!

- Ah, pois não! Mais uma a sujar roupa, a sujar loiça, a dar trabalho!

- Basta, Emília!

- Se quer visitas permanentes trate de me pôr companheira!

- Não, não te ponho companheira nenhuma. O que te ponho é na rua e acabou-se, porque estou farta de te aturar!

- Claro. Já se sabe que quando começa a embirrar comigo está tudo estragado.

Nunca o expliquei até hoje. E sem o explicar arrisco-me a passar por má, por intolerante, sei lá bem!...

Coitadinha da pobre Emília! ...

Coitadinha da pobre Emília? Não!... Coitadinha de mim!

Mas então a eficiente!... Por favor, já várias vezes declarei que ela nem sempre é eficiente, pelo contrário! Mas nunca declarei que a pobre Emília sofre de uma estranha tara. Quase sempre detesta as pessoas que não conhece ou conhece mal e fica possessa quando a intimidade deste lar que ela adoptou se abre para um, ou para uma, desconhecido. Chego a pensar que a capacidade afectiva da Emília é como a inteligência das galinhas - extremamente reduzida. E quando os espaços são ocupados por esta espécie de loucura, a paz que amo acima de tudo fica transtornada e erguemo-nos ridiculamente as duas em pé de guerra. O final é tirado a químico de umas vezes para as outras. Reconheço que não agüento mais as impertinências e as más-criações e as manifestações de um descontrole que fere. E esquecendo as eficiências (e até a dedicação) anseio colocá-la longe do alcance da cólera que transborda. E após o meu veredicto - RUA! vêm dela os protestos, os arremesses, as lágrimas, os pedidos de desculpa e as promessas de não tornar...

Oh, meu Deus, meu Deus! Por que é que até nestas coisas tão insignificantes a vida exige tanta coragem para ser vivida como deve ser?

Pode um homem que se considera bom superar os seus erros ao abrigo dos olhos de Céus que tudo vêem, da providência divina que tudo orienta, só porque os oculta no fundo da própria consciência?

Reparo na frase que acabo de escrever, enquanto espero que a Teresa se arranje para jantarmos. Fora.

Não me apetece estar a ouvir os soluços da Emília que mais uma vez me indignam em lugar de me comoverem.

Observo de novo a frase que o meu sentido crítico reconhece cheia de realismo. E de longe chega qualquer coisa que me magoa. De longe no tempo. De perto em mim mesma.

Nove badaladas aqui e além. No meu relógio velho-novo do ferro-velho e no novo-velho do tempo de Napoleão.

Horas belas!... ?

Como eu gostava que a vida fosse cheia de horas belas para toda a gente!

A Teresinha acaba de ler por cima do meu ombro as frases que tracei assim, sem motivos aparentes pelo menos nesta ocasião e sobre as quais me fixo pensativa. E comenta, inesperadamente:

- Acho que não!

- O quê, filha?

- As pessoas, por mais que escondam os seus erros, não se libertam do peso deles. Não é por ficar com o crime impune que o homem que mata deixa de ser criminoso!

- Ah, sim... pois...

E gosto de reconhecer que aos dezasseis anos já se têm opiniões destas!

No fim de contas, a ILHA DOS PÊSSEGOS, como mito, pode bem caber dentro dos anseios de muita gente.

A Ilha dos Pêssegos.

Que será feito do João Alfredo, desde ontem?

Minha querida Lena

Vai longe a época em que recebi no meu coração, já aberto à compreensão dos que me queriam para amiga e à amiga impunham o papel de confidente, os problemas da tua existência de rapariguinha sentimentalmente encantadora.

De olhos bem abertos revejo em cima da tua cama, ao lado da da Becas; o vestido maravilhoso (parecia feito por fadas, dizia a tua irmã) que devias envergar no baile com que os

teus Pais festejavam os teus 21 anos. Revejo-te dentro dele, lindíssima e tristíssima, adulada como uma princesa, arrastando atrás os pretendentes favorecidos pela escolha de teu Pai. O Arquitecto Moreno e o marquês de Vila Menor.

Tenho boa memória? - pensas. Pois tenho, Maria Helena. Muita memória. MUITA.

Será possível que a tua esteja debilitada?

Será possível que hajas esquecido tudo o que sofreste por causa do Diniz quando te fecharam num circulo de dificuldades vencido pela dedicação da tua irmã?

Achas estranho o princípio desta carta após um longo silêncio? Não se trata de saudosismo, não. Trata-se de espanto.

Espanto, Maria Helena!

E no meu espanto um pedido que te dará a chave de um mundo que me parece teres fechado tão fechado... ai tão fechado!

Posso guardar a Teresa comigo durante uns tempos? Emprestas-me a Teresa? Não para colaborar contigo e com o teu marido numa obra de destruição, mas para a levar p"ara a Ilha dos Pêssegos. O que é a Ilha dos Pêssegos? Uma pequena ilha destinada a abrigar as que procuram a beleza de tudo, mas a beleza autêntica, beleza de dentro para fora e não de fora para dentro. Beleza para nós e não para os outros. E dela não te direi mais nada porque não te encontras em estado de merecer desejá-la.

Creio que o clima árido onde vives desde a

infância da Teresa secou determinados sentimentos dentro de ti. E o brilho do oiro a que te habituaste impede-te de ver o brilho de tantas outras coisas que dantes consideravas importantes.

Maria Helena, será possível que baste às pessoas o serem ricas? Espero que ainda caiba na tua alma a confiança que sempre me dedicaste, e o Diniz também. Agradeço-ta. E a ele.

A Teresa escreve-te em breve. Pelo menos o mais breve que eu conseguir do ressentimento (infelizmente justificado) em que se desola.

Hesito em acrescentar mais qualquer coisa. Penso que talvez baste. E simultaneamente assalta-me o receio de me tornar incompreensível para quem se isolou entre muros doirados.

Oiço neste instante a campainha do telefone, no corredor. E as minhas dúvidas são interrompidas pela informação da própria Teresa que atendeu (com grande ofensa da Emília, que se sente relegada para a inferioridade de serviços menores em vez de agradecer a ajuda).

- A Sr.a condessa de Ribatorpes deseja falar-lhe.

- vou já.

E sem mais nada fecho a carta com uma despedida rápida, assino-a e enfio-a no sobrescrito onde depois escreverei o endereço.

E corro a atender Ana Margarida.

Não é Ana Margarida. A Teresa entendeu mal. Não falava a condessa de Ribatorpes, mas da parte dela. A criadita. A Berta.

Ana Margarida mandava pedir-me que estivesse presente no dia imediato, às seis da tarde, para assistir à abertura do testamento.

No soleníssimo escritório verde escuro e negro (negro nos móveis, verde escuro no tom das paredes e da alcatifa, negro nos sofás, verde escuro nos reposteiros), aguardam-me várias surpresas.

Não, a presença de Teresa Mafalda Abegorim não é surpresa. Teresa Mafalda está para acompanhar Ana Margarida, como eu. Embora eu, sem que ninguém mo diga, saiba que pesam sobre mim obrigações que vão mais além do dever de prestar assistência moral à viúva, extremamente dolorosa e singela na exteriorização das suas imensas mágoas, de preto e sem maquilhagem. Toda de luto. É horrível que algumas pessoas imaginem que o luto está nos fatos. Vestem-se de luto e maquilham-se ou alindam-se, essas algumas. São caricatas. Os desgostos não se mostram. Estão à vista.

Ao lado de Teresa Mafalda, o Juiz Abegorim, que julgo ter vindo por dever de amizade.

Presentes, quando entro, Nicolau Gogó e Henrique. O Henrique de Lemos. O Pai do Paulo. Cuja estadia só hei-de entender mais tarde.

Um cunhado do falecido (viúvo de uma irmã de Sebastião) é-me apresentado. E dois sobrinhos, já casados.

Num recanto junto à porta, semi-apoiado numa estante, um rapaz forte, de óculos, que não conheço. Mas naturalmente, por correcção, baixo-lhe a cabeça. Sinto que me olha, fixamente. Aqueles olhos de míope, por detrás das lentes grossíssimas, não me são de facto estranhos. Mas não consigo situá-los numa personalidade.

Chega mais gente. Uns tios de Ana Margarida. Um primo que foi sempre íntimo do conde extinto. Dir-me-ão que é Padrinho de Catarina.

Catarina? ... Que será feito dela?

E por onde andará o João Alfredo?

Não ouso perguntar. No fim de contas... para quê?

Ausentes muito embora, os filhos de Ana Margarida encontram-se e estejam onde estiverem como que diluídos neste ar a que pertencem.

Há sussurros indistintos, aqui e além.

Pesa como que uma espectativa sobre o grupo sombrio.

E depois Ana Margarida suspira. Um daqueles fundos suspiros incensiveis que não podem passar despercebidos. E o suspiro como que tem características de sinal.

O Dr. Álvaro Abegorim inquire:

- Estamos todos?

A condessa acena que sim.

Então, lentamente, nobremente, o Juiz quebra os lacres que fecham o laço negro que ata um pequeno dossier - o testamento de Sebastião conde de Ribatorpes e barão de Montelongo.

Percebo o verdadeiro motivo da sua comparência. Álvaro Abegorim é o testamenteiro.

Baixinho, indago a Teresa Mafalda, que se acha perto de mim:

- O João Alfredo não virá assistir? Ela encara-me surpreendida.

- O João Alfredo? Mas... -e logo entende a causa da pergunta. - Realmente... está irreconhecível!

- Como?

Nem posso crer. A direcção do olhar dela obriga porém o meu a voltar ao rapaz que não se mexe do recanto ao pé da porta.

João Alfredo!

Por isso as pupilas familiares, atrás das lentes grossas, num desconhecido!

Completamente desconhecido!

O fato escuro, vulgar, disfarça-lhe a gordura. Os caracóis estão quase rentes à cabeça, pouco encaracolados para o que são de origem porque foram cortados e penteados. A pele do rosto é lisa e as feições revelam-se de uma notável perfeição, impregnada de gravidade.

Um João Alfredo sem nada do João Alfredo. Um João Alfredo homem e não garoto a querer confundir-se com vários. Um João Alfredo conde de Ribatorpes.

De chofre, temo: excessivamente conde?...

Estou a vê-lo e não o vejo. Vejo novos receios dentro e fora de mim.

Como será aquele novo João Alfredo? Que terá ele de comum com o outro? Que sucederá com este sem preparação para o ser? Que resultará do encontro com as facilidades de uma vida a que ele talvez não saiba atribuir o verdadeiro sentido?

Ao menos o outro queria a Ilha dos Pêssegos

- e quem é capaz de querer uma ilha dos pêssegos é capaz de ter ideais. João Alfredo conde de Ribatorpes e barão de Montelongo talvez não precise de ideais porque pode malbaratar certezas...

Quase sinto saudades do Fofo. Não sei que João Alfredo conde e barão emergiu do Fofo. Como não sei nada do que Álvaro Abegorim tem estado a ler. Como continuo a só perceber coisas sem ligação entre si.

A voz serena e pausada do Juiz fala de legados. Que me interessam os legados?...

cem mil escudos em dinheiro para o Nicolau Gogó e dois dos prédios que possuo em Luanda para onde ele pela certa irá refazer a sua vida, podendo talvez estabelecer-se (e permito-me sugerir-lhe um bom restaurante visto a localização de um dos prédios ser excelente).

Os prédios são situados e abrangem

dois mil metros quadrados.

Oiço nitidamente, a envolver a voz do Juiz, um soluçar compassado. É Nicolau que chora.

Nicolau, o filho da negra Gogó. Recebe com lágrimas à sua independência.

Em favor de cada serviçal com mais de cinco anos de casa serão entregues vinte e cinco mil escudos em dinheiro e

a propriedade de Abrejunto será mantida,

devendo por isso o meu cunhado, viuvo de minha irmã Clotilde, pelo menos trinta. trinta órfãos

Metade das frases esvai-se sem que eu consiga entendê-la. Ficam apenas parcelas que me vão puxando para a observação das várias fisionomias.

E assim me fixo na de João Alfredo. Os maxilares de João Alfredo deviam contrair-se. Mas não há a menor alteração no seu rosto. Ou antes, há. Os lábios desenham um sorriso que me é dirigido.

As surpresas são cada vez maiores, a colherem-me, a cingirem-me.

Sebastião de Ribatorpes cumpriu a sua ameaça. Os quadros famosos, que valem uma fortuna impossível de calcular, são confiados à Nação, salvos de se perderem por aí entregues à vanglória de uns tantos ricaços que os adquirissem apenas porque o dinheiro lhes permite luxos. E assim vão pertencer a toda a gente que ama o belo sem a possibilidade de o ter só para si. Como quanto a natureza oferece aos homens. Não se levam paisagens para casa... não é?

Álvaro Abegorim poisa o longo testamento cuja leitura demorou quase hora e meia. E Ana Margarida profere, numa voz surda mas calma:

- Este testamento anulou o anterior e foi escrito depois de João Alfredo diante de testemunhas (todos os olhares se poisam em mim) declarar qual o destino que tencionava dar aos quadros.

- Pois é!... O meu Pai viveu o suficiente para isso, ao contrário do que então mostrei desejar.

Há no aposento como que um estremecimento colectivo.

Sinto que o sangue corre com uma velocidade terrível nas minhas veias. A cabeça escalda-me. As mãos e os pés arrefecem-me.

Então tudo voltou para trás, assim?

Nada voltou para trás.

João Alfredo abandona o recanto de onde ainda se não mexera. E vem para o centro do escritório, para o meio de nós que fazemos pesar sobre ele a nossa repulsa. Em breve, o nosso arrependimento.

- O meu Pai teve tempo para cumprir a sua ameaça. Só não o teve para saber que não valia a pena, porque antes de ser necessário eu sofreria uma enorme modificação. Não sei explicá-la muito bem, a não ser desta forma. trazia cá dentro uma quantidade de sonhos e de desejos amordaçados, ou melhor, tapados com imensa força. Como o espumante dentro de uma garrafa. Depois, de repente, tiraram-me os arames, a rolha saltou, a espuma jorrou e eu fiquei como o champagne nas taças. A borbulhar, tranqüilamente em liberdade. Vai acontecer qualquer coisa na minha vida de que o meu Pai ainda teve conhecimento. Espero que pelo facto em si ele não haja sentido quaisquer remorsos, pois se ele não desse os quadros para um Museu Nacional... entregá-los-ia eu próprio, eu que das duas uma - ou vou dar à Pátria mais do que quadros ou consigo da Pátria mais do que quadros. - e não diz o quê, pressinto que pela prudência que lhe aconselhei.

Estou maravilhada, a escutá-lo. Todos estão maravilhados, reconhecendo que João Alfredo despiu com a pele de urso a personalidade que a uns afugentava e a outros indignava.

Todos continuamos maravilhados até ele nos colocar diante da situação que ninguém aflorou até agora.

- A reacção de Catarina? Qual será a reacção de Catarina quando souber que o Pai só lhe deixou o que de todo em todo a lei não o autorizou a tirar-lhe?

- Ah, Catarina? ...

- Ninguém sabe de Catarina?

Um silêncio que é resposta. Não, ninguém sabe!

Catarina? ? ? ? ? ? ? ?

Como um fantasma transparente a rapariga vestida de vermelho dançando entre sons alucinantes de música que não é música e morte que é morte verdadeira... Vejo-a a dissipar-se na noite, no nevoeiro em que desaparece ninguém sabe para quê. Talvez nem Deus, ainda. Talvez Deus ainda não haja destinado para ela o rumo que seguirá a caminho do arrependimento ou a caminho da perdição total.

na minha qualidade

de Advogado a quem a Sr.a condessa entrega dos assuntos da

família...

Não oiço mais nada. Mas a surpresa da presença de Henrique de Lemos encontra justificação. Está ali como Advogado, evidentemente. Evidentemente indicado por Álvaro Abegorim que o considera bom entre os melhores. Para acudir a emergências. Para providenciar no caso de disputas. Para resolver problemas mais do que inevitáveis, certos, num caso destes com

herdeiros cheios de direitos com direitos errados... Numa situação intrincada como a que a espera até que o destino se processe legalmente, Ana Margarida precisa do apoio dos homens de leis para que as leis se cumpram dentro de todas as leis.

O debate, agora, é conversa, discussão amena, troca de impressões.

Ana Margarida de Ribatorpes, ciente do que já sabia, pede licença a fim de retirar-se. Teresa Mafalda oferece-se para a acompanhar.

- Não, amiga! Prefiro encontrar-me no meu silêncio apenas comigo, como quem faz arrumações de coisas antigas. Tenho de perceber o que presta e o que não presta dentro do meu coração, para não salvar o mau e deitar fora o Bom. Receio enganar-me nesta grande confusão.

- Devias tentar dormir, querida! Depois procedias a essa limpeza nas tuas idéias. Estás tão cansada, podes iludir-te!...

- Pois posso! E se reconhecer que as coisas não correm como devem, prometo-te que farei os possíveis para descansar. Mas não antes de tentar.

Num beijo entre as duas um "até amanhã".

Num beijo entre mim e ela (não considero azado o momento para oferecer os meus préstimos) um "até breve".

Vejo-a retirar-se certa de que aquela mulher procura coragem para atravessar o seu vale de lágrimas.

Teresa Mafalda, pouco depois, diz-me:

- Creio que nos vamos embora. Por hoje não somos aqui precisos para mais nada. Quer que a levemos a casa?

- Agradeço muito, mas trouxe o meu carro. Nicolau acompanha-nos à porta, enquanto

Berta traz os agasalhos.

Não, não é Berta que me traz o casaco cinzento (de meia estação, que o calor já vai dando sinal de si) que deixei no vestíbulo, aliás entregue a uma outra rapariga que não conhecia. É João Alfredo.

João Alfredo cujas mãos frias como a neve seguram, apertam as minhas. João Alfredo cuja voz treme, ao ciciar:

- Queria pedir-lhe uma coisa.

- Pedir-me a mim, tu que tens agora tudo?

- Tudo o que eu desejava antes. Agora é diferente.

- Pois fala.

- Não vai abandonar-me? - Em que sentido?

- A Ilha... ?

Num clarão, a verdade íntima do rapaz que ao tornar-se moralmente válido não deixa de ser ignorante e ingênuo.

- Continuas a pensar na ilha dos Pêssegos ?

- Eu como eles!

- Ah! ...

- Fará os possíveis?

- E o serviço militar?

- Vamos tratar de tudo. Nenhum de nós mudou de idéias.

- Bem... nesse caso, conta comigo.

- Assim que puder arranja-nos as tais fotografias que nos prometeu ? Ansiámos por vê-las.

- É natural.

- Quando será?...

- Breve. Muito breve. Descansa.

Mas neste momento não posso. Preciso de responder à carta de uma revista literária que solicita a minha colaboração, a agradecer e a prometê-la o mais depressa que me for possível.

Ou logo que me surja um tema.

Breve. Muito breve.

Mas não agora que pensara procurar na gaveta do armário da sala onde armazeno fotografias. A modista telefonou-me a exigir-me que vá provar os meus vestidos de Verão sem mais lhe faltar... ou arrisco-me a passar o calor emprimaveerada...

E os dias aquecem e alindam-se a acenar com promessas de horas em que não apetece fazer nada senão sentir que se respira. Mesmo que às vezes não consigam ser totalmente belas, essas horas.

Breve. Muito breve.

Mas não nesta noite prè-destinada para a busca. A Teresinha, tristonha e inadaptada, mostrou vontade de ir ao Cinema.

Vamos ao Cinema. Amanhã talvez possa cumprir-se o meu breve, muito breve.

Breve. Muito breve.

A gaveta do armário da sala aberta, diante de mim centenas de fotografias.

A Teresinha debruça-se para elas, pega-lhes, interessa-se, quer saber quem são. Ocupa-me.

A tua Mãe pouco mais velha do que tu. Era linda! Os pequenos Macedo na Quinta de S. Boaventura. Não conheces. Duas amigas que não vejo há longos anos. A lida e a Carolina. São primas. Nesta altura viviam como se fossem irmãs. Depois casaram e cada uma seguiu o seu caminho. A lida esteve durante anos em Lourenço Marques. Tem uma filha, a Luísa Maria. A pequena casou e foi viver para Israel. O marido é um judeu francês. Têm cinco filhos, entre ojs quais duas gêmeas. A lida e o marido, o José, curtem saudades radicados no Algarve, onde ele montou uma casa de saúde. Confessam que se sentem, ali, diante do mar, mais próximos dos que foram para o outro continente e lhes mandam de quando em quando os netos mais velhos para férias. A outra, a Carolina, tem um rapaz, o Pedro. Vive actualmente em Timor, onde o marido, oficial de marinha hoje de alta patente, exerce um cargo governativo. O rapaz formou-se em Engenharia, e está a trabalhar na Alemanha. A Ana Maria de Macedo com a Mãe. Tinha sete anos, aqui. Estes são os filhos da Dr. a Maria Teresa de Melo. Sim, a mulher de um dos nossos maiores Neuro-Cirurgiões. A Directora dessa revista especialmente dedicada à juventude onde os problemas da saúde e da moral são tratados de uma maneira excepcional. Ou não tivesse a Maria Teresa aprendido o valor da vida à própria custa! Aliás toda a parte capital da sua obra se encerra num conceito extraordinário. Sei-o de cor. Uma mulher sem amor, sem a claridade maravilhosa dos sagrados deveres da família vindos dos princípios da Terra, da própria essência de Deus, é uma coisa triste, miserável, sombria, insalubre, incapaz de satisfazer a missão para que foi destinada, tão monstruosa e absurda como uma tremenda casa sem janelas. Deste tamanho, os filhos dela, agora?... Ah, não! A Eduarda já está na Faculdade. Aqui eram pequenitos. Parecem actuais as fotografias Pois é, as saias voltaram a usar-se deste comprimento. As modas repetem-se! O casal Macedo quando foi a África, há uns quatro anos. A Guida. Pobre Guida! Foi uma rapariga infeliz até tarde. Depois aprendeu a reagir e achou o caminho certo. Marcado com uma cruz. Morreu num desastre de avião. Não gosto de falar disto. Magoa-me. O mais novo dos Macedo com o primo, o Artur Xavier de Sá.

- Repare! ...

- Sim, Teresinha?

- Tem montes de fotografias dos Macedo! ...

- Ah... pois tenho!...

São tantas, que hoje não posso já procurar as que para aqui me trouxeram. Ela deleita-se a admirar o Rumané, a Ana, o Pedro, o Paulo, os avós, os tios... todos. Todos! E eu deleito-me com ela, recordando. Ou não seja viver, recordar!...

E a promessa incumprida persegue-me.

Breve, muito breve.

Mas quando?

- Correio. Tanto correio! Para mim CORREIO! Carta da Ana Maria. CARTA DA ANA MARIA.

Minha querida Madrinha.

Finalmente posso escrever. Já posso escrever!

Ai os dias horríveis durante os quais me senti atabafada com os gritos de desespero que era proibido soltar!

Se estivéssemos perto, não hvia nada que me impedisse de correr para si e de, ajoelhada aos seus pés, depor todo o peso da minha angústia no seu regaço, sentindo as suas mãos alagadas em compreensão refrescando a testa que me escaldava, ajudando-me a não desesperar. Assim, tudo ao contrário do que de outra forma podia ser, nada restava senão achar a força de suportar.

E isto passava-se com cada um de nós. Todos tínhamos de agüentar, e agüentar isolados nos momentos piores, pois nessas ocasiões se as nossas almas se tocassem através dos dedos, explodíamos. E explodir era proibido!

E mais uma vez a vida nos deu uma enorme lição! Aprendemos que realmente explodir não serve de nada. Não remedeia nem alivia. É preciso agüentar. Agüentando às vezes vence-se. Esperar o pior não é ter o pior. Deus é Bom, Madrinha! Nós esperámos o pior - e tivemos o melhor.

Temos o melhor!

Vejo-a daqui, à Rosinha-Mãe. Sentada (reclinada) entre almofadas na grande cadeira de baloiço na varanda. A Serafina, de vez em quando, agita um leque de penas para lhe dar uma ilusão de frescura. Está realmente muito abafado, hoje. Julgo que vai trovejar.

O meu Pai pensou em instalá-la debaixo duma ventoinha mas depois desistiu, não vá a nossa convalescente constipar-se. Ela ri-se, com o temor dele. Realmente, uma Rosa transformada em flor de estufa...

A Mãe faz-me lembrar, entre os bordados, as rendas do roupão e as penas do leque, assim pálida ainda, uma rosa branca. Já lho disse e ela vaidosamente requereu uma fotografia a cores. Tirá-la-emos amanhã. Não precisa de me pedir nenhuma. Lá irá. E também vou providenciar para que me retratem com a Maria Rosa ao colo. Está resplandecente, a pimpolha. Toda ela paz, bem-estar, certezas. Nos seus olhos dum inalterável azul carregado não há o embaciamento das lágrimas que toldaram os nossos. E lá volto ao mesmo. Sempre ao mesmo, e não pode ser. Não quero que seja, porque andar a olhar para trás não tem jeito de coisa certa. E no entanto é difícil retomar a vida no ponto em que ia. O abanão foi tremendo e tanto eu como o Pai ficámos ressentidos. O Rumané também, claro. Mas o Rumané dir-se-ia um tanto afastado de nós. Tenho conversado várias vezes com a Mãe acerca deste rapaz e embora ela me recorde que eu, por exemplo, experimentei certas dificuldades até me adaptar não ao meu interior mas ao meu exterior, acho que nunca fui bem assim. Também é certo que sempre me aproximei muito mais do Pedro do que dele, não porque o estime menos, sabe-se, mas por instintiva obediência a um desejo de seguir os mais velhos. Aqui detenho-me para um reparo. O Rumané não se abeira de mim de acordo com o que julgo natural, pelo contrário. Todo ele se debruça e se prende à Maria Rosinha, que o adora e já não tenho quaisquer dúvidas de que a palavra que melhor pronuncia entre as muitas que diz é realmente e na tal indecifrável "Alhiin" de há tempos "Maninho", o que o torna glorioso. Quer saber uma das graças da nossa, benjamina? Tapamos-lhe a cara com as mãos, ou com um lenço, ou com um jornal, e declaramos "A Maía Rosina (o Pai acha ridículo que lhe falemos neste tipo de linguagem mas também o utiliza...) não tá cá..." E ela, pouco depois, libertando-se do mistério, a rir matreira, declara toda senhora de si "Tá, tá!... "

Cinco minutos de interrupção para tomar conta dum recado da minha Mãe -para si: Diz à Madrinha que não altere os seus planos por nossa causa. Claro que tenho (temos! ...) muitas saudades dela, mas que não pense em visitar-nos agora se isso implicar a sua ausência na Quinta, em Setembro. Lá não a dispensamos." Textual. - Pessoal - Lá não a dispensamos!

E a Laura, que não deverá poder acompanhar-nos porque nessa altura já com certeza estará ao serviço no Hospital (o Pai confirma que ela é muitíssimo esperta e principalmente muitíssimo bem dotada para esta profissão que exige tanto de boa vontade e de paciência como de intuição e sentido das responsabilidades) tendo ouvido o recado da Mãe enquanto lhe trazia uma salada de frutas para a primeira merenda - a Mãe come de três em três horas refeições sadias mas leves - encarregou-me imediatamente de a prevenir de que "pelo amor de Deus vá preparando tudo para então vir ao casamento dela em Fevereiro do próximo ano." Acho bem. Achamos todos bem.

E entretanto sonhamos com a visita à Quinta... Começamos já a tecer projectos. "Quando" "depois" "nessa ocasião", etc. etc. ouvem-se agora com bastante freqüência e tudo vai parar a S. Boaventura. E palpita-me que por aí existe já como que o eco do que se diz por aqui...

O meu Paulo mandou-me um telegrama talvez meia-hora após ter recebido a notícia de que vamos. com uma palavra única. Estou.

A menina dos correios que escreveu a mensagem devia pensar que ". ele há tipos muito avarentos ou muito excêntricos".

De facto suponho, e julgo-me certa, que nunca nenhum telegrama disse tanto em tão pouco.

"Estou" é um mundo de afirmações, de sonhos, de promessas, de compreensão, de alegria. Ele ESTÁ: pronto a ir até Penarím.

delirante a "ver-nos" a passear na Quinta.

disposto a não deixar exames para Outubro a fim de se nos consagrar em férias totais.

de acordo com a decisão do meu Pai.

feliz porque cada hora que passa nos aproxima.

ESTÁ!

Ele que a pensar muito "estava" quase resolvido a deixar os nossos olhos privados de nós até para o ano! E eu, ao sabê-lo, tão em desacordo e tão sem me sentir no direito de protestar porque as suas razões eram razões boas e eu reconhecendo-o só as achava péssimas!

O Rumané acaba de chegar ao pé de mim neste instante. Não, não bisbilhota. è incapaz. Mas pergunta-me: "Outro livro, mana?" Encolho os ombros. "Por que há-de ser um livro, Rui Manuel? Pode ser um conto!" E ele, gracejando: "com tantas folhas?..." Realmente, vejo agora... já é um monte!... E digo-lhe: "Estou a escrever à Madrinha". Ele entende, mas observa: "Vais ocupá-la um dia inteiro..." "E depois? ". E depois...

Pois é, eu sei que o tempo lhe faz falta. Mas mais falta me faz a sua companhia, Madrinha! No entanto sinto que o Rumané tem razão.

E por isso fico-me por aqui.

A carta escorrega-me devagarinho entre os dedos. Dou por mim a afagá-la como se afagasse as mãos suaves e bem feitinhas da Ana Maria. Dou por mim e pela forma atenta, curiosa talvez (ou um pouco ciumenta?) com que me olha a Teresinha. A Teresinha que nunca interrompeu a leitura destas páginas onde se encontra tanto do meu mundo. E que agora diz, esboçando um sorriso:

- A Ana Maria é das maiores preciosidades da sua vida, pois é?...

Aceno uma afirmativa, porque a comoção ainda me não deixa falar.

- Quando ela chega ao pé de si, o resto deixa de contar, percebe-se.

- Por que julgas isso ?

Oiço horas. Horas no meu relógio velho-novo do ferro-velho reafirmadas pelo novo-velho do tempo de Napoleão. Não sei quantas. Na realidade, quando ela (eles) chegam ao pé de mim, pertenço-lhes por completo. E as horas, sejam quantas forem, são belas!

- Quero-lhes muito, sim, Teresa!

- Compreendo. Mas...

- Mas... ?

- Coitados dos outros!... Não me parece justo que não guarde um bocadinho de coração para eles!

Tão doce na forma de o fazer notar. Mas objeetiva.

Tento defender-me.

- Tenho lugares disponíveis para os que os merecem, sempre!

- Para os que assinaram as cartas que ainda não abriu... também?

- Também, sim! - e puxo o montinho de cima da mesa. Mas não consigo abri-las. Não consigo ainda interessar-me.

Levanto-me. Dirijo-me ao telefone. Oiço a Emília resmungar suficientemente alto para que eu perceba (propositadamente alto) "anda tudo de pernas pró ar nesta casa! Daqui a pouco almoça-se à hora do jantar". Não lhe ligo. No marcador, defino uma decisão.

- Telegramas...

- Sim, menina. Para Luanda, se faz favor. Digo-lhe o meu nome e o meu número.

- Para quem vai? Ah, sim! Para Ana Maria Ferreira de Macedo - e dou a direcção. - Texto? Só isto. Espero o resto da carta.

Então hoje não se almoça ?

- Já vamos. Vai tirando a sopa.

E disponho-me a ler num instante o resto da correspondência.

Notícias serenas da Maria de Fátima. Conheceu um rapaz na Faculdade e tem com ele longas conversas ao telefone. Está vagamente interessada e parece-lhe que ele anda a tentar perceber se ela é o que aparenta - uma boa rapariga. Sorrio dentro de mim. As raparigas queixam-se de que faltam maridos, chefes de família, fundadores de lar. Pois faltam. Mas também há grande falta de esposas, de sustentáculos de um amor para sempre, de companheiras exemplares. E tanto como a rapariga teme um ludibrio, o rapaz intimida-se sem saber ao certo o que o espera. E quando sucede ter pouca sorte, o homem fica muito infeliz. Na Maria de Fátima pode acreditar-se. Oxalá ele o perceba.

Outra carta. Esta de uma mocinha que hesita entre dois pretendentes e me pede conselho por sugestão da própria Mãe. Encolho os ombros. Primeiro não conheço nem um nem outro. Depois quando uma rapariga hesita entre dois não gosta de nenhum e mais vale que se não decida. Por que lho não diz a Mãe? Talvez o não saiba ela própria. Ou se tivesse enganado um dia! Acontece.

Um postal. A avisar-me de que chegou de França uma encomenda de livros que fiz há mais de dois meses.

Dois cartões lutuosos a agradecer-me a presença num funeral. Do filho do Dr. Leopoldo Brás e do Colégio que dirigiu. (A propósito, o Paulo disse-me que o novo Director deve ser o Dr. Soares. Virgílio Soares. com aprovação de alunos antigos e modernos e de todo o corpo docente).

O boletim informativo de uma livraria editora especializada em romances de amor que nem contém amor nem são romances. Dizem baboseiras em mau português e contribuem para dar principalmente às raparigas menos preparadas uma idéia falsa de esperanças e certezas.

- A sopa já está fria!

Falta-me apenas abrir este sobrescrito. Papel do melhor que há. Dentro um cartão impresso a relevo, em letras douradas.

Maria, do Espírito Santo Castelões de Mendonça Pexes Fontemora e Carlos Abílio Peres Fontemora têm a honra de convidar V. Exª para assistir ao cocktail com que no Hotel Majestade festejam o pedido em casamento de sua filha Maria Alice pelo artista do cinema francês jacques Bertrand, no dia 19 do corrente, às 18, 30.

A sopa não me passa pela garganta. Ou melhor, não me cabe no estômago. Estou cheia, cheia com o oiro desta comunicação à qual tantos reparos podem fazer-se...

Tudo fulge aqui.

Por ordem:

o orgulho de oferecer o coktail no mais caro Hotel da capital.

o orgulho de casar a Alicinha com o artista do cinema francês... com o artista de Cinema. Não com ele, com o homem, com um rapaz chamado Fernando Vasco.

A sopa, decididamente, não vai.

E percebo porquê. Afinal não estou cheia com o oiro desta comunicação. O que me sinto é imensamente agoniada.

Com os meus melhores cumprimentos agradeço o convite de V. Ex. a", esperando poder estar presente na festa do próximo dia 19.

- Mas se acha tudo falso, oco, inútil, por que vai, Madrinha?

- Talvez porque tocar o viscoso nos ajuda a gostar mais do puro. Talvez porque esse contacto satisfaz quem sente uma autêntica necessidade de saber, de observar. E depois nada tenho contra eles e de qualquer modo devo reconhecer a gentileza do convite! E não te esqueças, Teresinha, de que conheço o Fernando Vasco há muitos anos. Antes de ele ser Jacques Bertrand, o artista do cinema francês. E depois apetece-me encontrar-me com imensas pessoas que estimo... Provavelmente até com a maioria dessa gente moça que se torna difícil reunir. Não posso perder esta oportunidade, não é?...

Pois...

Pois!...

E o breve, muito breve, escoa-se nos dias que passam, que se diluem, que se desdobram ao som dos vários tiques-taques que me rodeiam e acompanham. Dentro de casa, os relógios que disputam entre si o direito de estarem certos. O velho-novo do ferro-velho e o novo-velho do tempo de Napoleão. Fora de casa, o meu reloginho de ouro branco e diamantes (presença no meu pulso de quem mo deu, e não há ninguém de quem eu mais goste).

Ora com isto, ora com aquilo, as horas estão cheias. A transbordar. Não volto sequer a lembrar-me de procurar as fotografias na gaveta do armário da sala onde as guardo.

A três dias de 19.

Gostava de convidar o Fernando Vasco para vir jantar comigo.

Laura Peres, desvanecida, "que honra, minha excelente amiga, que honra!" lamenta que o filho chegue no dia 19 de madrugada. Não podia ser antes por causa de um programa na R. T. F. E regressa a Paris na noite do dia seguinte para só voltar a uma semana do casamento cuja proximidade a põe, à timorata senhora, nervosíssima. Tanto como o pedido de casamento, a grande festa para a qual se sente com tão pouca categoria - afirma.

- Por favor, não diga semelhante coisa, Laura! Você tem a categoria necessária, tranquilize-se. E nunca receie fazer má figura ao lado do seu filho. As Mães que sabem ser Mães estão sempre certas nos lugares que ocupam. De resto a Laura veste-se lindamente, tem umas mãos excelentes. - (já digo excelentes também, na deformação de ouvir o adjectivo vulgarissimo na boca desta excelente senhora tão difícil de arrancar da concha medíocre em que julgou ficar bem instalada).

Custa-me a convencê-la. Mas creio que a animei.

Espero que a Mãe do Fernando Vasco esteja à altura do Jacques Bertrand.

A dois dias e meio de 19.

Um telefonema do Pedro, radiante, a contar-me que recebeu cartas de todos, incluindo do Rumané e da Rosinha-Mãe (da Mãe uma carta pequenina!) e retratos. Os tais retratos em que a Ana me falava. Rosa-Maria toda de branco, toda branca. Rosa branca. Branca de neve ao lado da Serafina (quando recordo o estado em que me pôs naquela noite a escrupulosa cumpridora de ordens!) que tem a mais engraçada carinha mulata que imaginar-se pode. "Quando vierem trazem a Serafina". E depois conta-me que fez um exame, não percebi de quê, brilhante. Fizeram, ele e o Paulo.

Quem esperaria o contrário... ?

A dois dias de 19.

Carta da Maria Helena Torredalto Souzelo. A carta fria de uma desconhecida.

Acuso a recepção da sua missiva e não me apraz discutir consigo, a despeito da consideração extrema que lhe tributo, quaisquer decisões que o meu Marido e eu entendamos dever tomar com respeito à nossa filha. Evidentemente que não nos agrada ver estranhos incluídos nos assuntos familiares. Em todo o caso e como neste momento a nossa decisão de manter a Teresa, afastada por uns tempos se acha concretizada, não vemos qualquer inconveniente em que a conserve na sua companhia até julgarmos azado o regresso dela. E isto porque as atitudes dela foram espontâneas e não sugeridas por terceiros. No entanto agradecemos a maior moderação em conselhos tendentes a conservá-la firme na decisão que julgamos inconvenientíssima. Sabemos que sempre tem procurado contribuir para a existência de harmonia nos lares. Lembramos o facto, muito louvável, a fim de que na verdade a Teresa beneficie de uma temporada junto de si.

Cumprimentos de meu Marido e dos meus Pais.

Da amiga de sempre

Maria Helena Souzelo

A carta de uma desconhecida! ... Sim, a carta de uma desconhecida, que os amigos não escrevem cartas destas. Os amigos não esquecem as lágrimas que junto de nós enxugaram com o lenço que lhes emprestámos.

A dia e meio de 19.

Dói-me a cabeça. Sinto arrepios de frio.

Irei adoecer?

Estar doente é normal. Quebra-se a saúde de qualquer um e eu sou qualquer um mesmo quando me sinto à margem de todos por mais ou por menos.

Há muito tempo que não acamo. De resto sou saudável e tenho defesas orgânicas. Obedeço às instruções do meu Médico que é um sujeito extraordinário e sabe como raros o valor da medicina preventiva. Tomo regularmente as diversas vitaminas essenciais ao organismo e...

Dói-me cada vez mais a cabeça. O frio aumenta. Tusso.

Gripe nesta altura do ano?

Gripe, em qualquer altura do ano.

E nisto um receio. Se não posso ir à festa do pedido de casamento da Alicinha Fontemora? (ou do Fernando Vasco, tanto faz...)

- Tinha assim tanta pena? - pergunta-me a Teresa.

- Muita pena. Não pela festa, mas por eles todos!

- É acudir quanto antes! - opinião da Emília. - E em vez de se queixar, trate-se.

Palavras que podiam ser simpáticas. Se não fossem ditas de arremesso.

Volto a tossir. O frio cresce e cresce. A dor de cabeça torna-se intolerável. Ponho o termômetro. 39 e 3.

Como uma criança, apetece-me fazer beicinho... Ohohoh! ... Como uma pessoa consciente, decido atalhar com tudo quanto cabe na experiência caseira.

E meto-me na cama.

Não renuncio a acreditar que ainda faltam trinta e tantas horas para o dia 19.

A um dia de 19.

Com a luz da tarde que se escoa o mal-estar diminui e cede, Não há dúvida de que sou ultra-resistente.

Dormi quando costumo dar largas às mil necessidades de me ocupar e a medicação resultou. Hesito porém em levantar-me. Talvez seja melhor obedecer à prudência e ver se isto melhora mesmo.

Ficarei no leito até amanhã de manhã, a meio dia do dia 19.

A meio dia da tarde do dia 19.

Nem me lembro da gripe de ontem. Uma gripe de acordo com certas modas da nossa era. Sintética... convencida de que não faltarei no Hotel Majestade logo às 18, 30, penso na encadernação que me convém.

Abro o armário e hesito. É preciso que não peque nem por excesso nem por falta.

Rendas... não.

Brocado, nesta altura, nem hipóteses.

Seda natural, estampada... não me apetece.

Ou melhor - não vejo seda estampada, mesmo natural, no ambiente do Hotel Majestade.

E de súbito...

O meu vestido de crepe verde escuro, o tal que comprei em Paris num acesso de loucura de que não me arrependi?... É tão bonito e fica-me tão bem!

Procuro-o sorrindo à recordação do meu jantar no restaurante de que mais gosto, o tal onde os ouros e os cristais nos prometem enquadrar quando menos o esperarmos as imagens dos que a si próprios se chamavam vencidos da vida - humildade prodigiosa de vencedores da morte. Eça, Ramalho, Fialho...

O meu vestido? ... Não consigo descobri-lo.

- Emília!

- ora?

- O meu vestido?

- ai... ido?

Penso que está a exorbitar na intratabilidade. As pessoas não podem contar indefinidamente com a paciência alheia...

- O meu vestido de crepe verde, que trouxe de Paris?

- ao... ei...

Então se não sabes procura-o.

Longe de mim a suspeição de que esteja enfiado num canto do roupeiro, feito numa espécie de bola da qual emerge todo amachucado.

- Emília? ...

- ... isto... assa-se.

- Tu andas a perder a noção das conveniências vezes demais!

- Isto passa-se!

- Eu sei que se passa, mas também sei que um vestido destes é para ser bem tratado! Assim que se despe, limpa-se se for necessário, dá-se-lhe uma brunidela e pendura-se no seu lugar.

- Olha a novidade!

- Se não é novidade porque o não fizeste?

- Não sou elástica.

- An?

- Não me encha a casa com visitas e eu já posso fazer as coisas como deve ser. "Não me encha a casa com... f"

- Emília? ? ?...

- É assim mesmo!

- Chamas casa cheia à presença de uma menina precisada dos nossos cuidados?

Ela volta-se para sair sem responder. A Teresinha, que assistiu à cena, olha-me timorata.

- Veja se será melhor eu regressar para junto da D. Aniceta...

- Cala-te, filha! - na ordem não há qualquer aspereza. Mas vibra nela a irritação provocada pela atitude da Emília cuja eficiência mergulha em névoas. Sinto que não vou aturar por muito mais tempo estas telhas.

Distingo-a num resmungo incessante de que chegam até nós palavras repetidas... "Trabalho... um inferno... trabalho... trabalho... "

E não me pesa a consciência, não! Sei perfeitamente que a não sobrecarrego. Tem semanas vazias, semanas assim-assim, semanas mais complicadas. É normal. Nas fases de intratabilidade o pouco a fazer não se faz e o porventura acima do normal quotidiano dá-lhe ensejos para fazer bolos que não como (a linha... ) e pratos complicados que ela decide experimentar e tantas vezes são intragáveis...

- o... ido! Nem falo!

- Teresinha, vamos? Temos o cabeleireiro!...

A hora e meia das 18 e SÓ do dia 19.

O telefone retine.

- Vê quem é, Teresinha.

E acabo de estender no rosto o creme especial para peles secas.

- A Srª condessa de Ribatorpes. Ana Margarida.

Ana Margarida e os seus problemas cortando a alegria a que me entrego por saber que dentro em pouco estarei com esses a quem chamo no meu coração "as crianças"...

Ana Margarida a saber de mim e a perguntar-me se posso ir amanhã jantar com ela. Desculpo-me destas semanas sem lhe haver testemunhado a minha afeição, da falta de comparência na missa do 7. ? dia (só dei por ela depois!) e asseguro-lhe que lá estarei. Antes de desligar não resisto a inquirir:

- Notícias da Catarina?

- Nenhumas!

Quando nos despedimos, ela retém-me.

- Um momento mais... O João Alfredo queria falar-lhe também.

O João Alfredo, com voz desalentada.

- Esqueceu-se de mim?...

Ai... a Ilha dos Pêssegos! Ai... as fotografias!

Sinto picadinhas no coração. As picadinhas incômodas dos remorsos.

Eu tinha-lhe dito "breve, muito breve... ".

BREVE, MUITO BREVE...

- João Alfredo, amanhã! Amanhã sem falta.

- Até AMANHã!

Fico por momentos a pensar que devo deixar tudo e ir em busca das fotografias.

Mas...

Ah, não!... Isso, também não!... TIM... No meu relógio velho-novo do ferro-velho e no novo-velho do tempo de Napoleão. Horas. São horas!

Horas belas, as que estão à minha espera! Não, não posso renunciar. O resto fica para amanhã. AMANHã. Neste momento é hoje. Há que vivê-lo!

Para cima de trezentos convidados.

As caras conhecidas emergem das desconhecidas que enchem os dois magníficos salões do Hotel Majestade.

A Teresinha (o Pedro trouxe-me o convite para ela) segue-me delirante, esquecida de quanto não seja fazer-me perguntas. Perguntas sobretudo tendentes a identificar as pessoas que ela deseja saber quem são. Uma pergunta insistente pelo meio das outras.

- E o Jacques Bertrand?

Realmente ainda não dei por ele. Mas dou pelos outros e são tantos!

Admiro a Alicinha. O facto de me não agradar como pessoa (não agrada mesmo nada, valha-me a santa franqueza!) não me impede de reconhecer que é a rapariga mais sensacional desta elegantíssima assembléia. O vestido, de um azul pálido, tão pálido como os seus olhos, no exacto comprimento que a moda. impõe, modela uma figura de tal modo esguia que lembra o pescoço de um cisne, a baloiçar segundo o ritmo dos sorrisos e das lisonjas. Os cabelos soltos, quase brancos no seu loiro excepcional, são um adorno que não sofre comparação.

- Perdão... gosto mais da cor dos da Rosário Abegorim.

Oiço a frase mas não conheço quem a profere. É a opinião de um rapaz que se afasta a conversar com outro. E o outro... não pode deixar de ser ele, assim esquálido num gesto de pessoa que anda pelo meio da multidão sem fazer o que quer que seja para dar nas vistas. O Júlio Matinha. Não o vejo há uns anos mas recordo bem as suas feições ainda dos tempos do Colégio.

Presa à comparação estabelecida entre os cabelos da Alicinha, branca e sempre fria mesmo ante a demora insólita do Fernando Vasco (perdão, Jacques Bertrand!) e os da Rosarinho, tento descortinar esta. Ainda não chegou pela certa. Não chegou ninguém da família Abegorim.

Não vieram ainda os Lemos. Nem o Pedro.

Cumprimento os que são, mesmo no Hotel de luxo de toda a gente (com dinheiro...) os donos da casa. Dona Maria do Espírito Santo Castelões de Mendonça Peres Fontemora e o Eng. Carlos Abílio Peres Fontemora.

Maria do Espírito Santo (bem janota), solicitada por uns e outros, não pára quieta. Dir- se-ia ligada a um catavento, de tal maneira roda. E tanto resplandece na alegria de ir casar a filha com o artista de cinema Jacques Bertrand que nem estranha que às 18 e 45 o Fernando Vasco ainda não esteja presente.

O Eng. ? Fontemora atarda-se dois ou três minutos a tagarelar comigo. Muito dentro da etiqueta que o manda interessar-se pela minha obra, ignorando que tanto detesto falar dela com estranhos como adoro fazê-lo sabendo que encontra lugar certo nos corações dos que aprenderam a querer-lhe bem. Felizmente quase não sou obrigada a responder-lhe, porque um grupo de recém-chegados o envolve em felicitações pelo acontecimento e pela beleza da Alicinha que continua a distribuir sorrisos e apertos de mão, branca e ainda fria.

São 18 e 48.

- Ora viva!...

- Oh, Artur! Rio-me para ele.

- Não me digas que te encontras aqui em serviço oficial... ?

- Não, embora isto seja noticia... Contudo foi outro o encarregado da reportagem. Está lá em baixo com o Fotógrafo. Eu sou convidado.

A Inês, que se atrasara um pouco a falar não sei com quem, abeira-se e beija-me sem ressentimento, apesar de sabedora de que não pertence ao grupo que me merece confiança total. compreende os meus motivos como eu compreendo o quanto ela deseja certificar-me de que tudo vai ser como deve entre os dois. Ou melhor dizendo - o Artur ocupa-lhe o coração para sempre. Oxalá!

Trocamos impressões no tom ajustado ao ambiente. Superficial.

Ah! ? Não esperava a alegria de a encontrar aqui!...

- Marta! ...

- Não esperávamos, não!... E pela minha parte digo-lhe que me dá uma satisfação daquelas que nascem fundo na alma da gente!

- Cristina!

Beijam-me as duas com um carinho indesmentível. A sinceridade refulge no olhar em que me envolvem. Não podem prová-la, porquanto são já solicitadas pelo rancho que nos envolve. As quatro Abegorins e o Pedro e o Paulo.

A confusão é grande. Todos falam e riem. E todos estranham, depois de me cumprimentarem:

- São sete menos cinco (18 e 55) e o Fernando Vasco não há maneira de chegar!

- Talvez esteja lá em baixo a pagar o preço da celebridade do artista de cinema, respondendo a perguntas patetas e tirando fotografias postiças.

A hipótese é formulada pelo Artur. O Pedro esclarece.

- Entrámos agora mesmo e não o avistamos.

O Paulu inquieta-se.

- Queira Deus não lhe tenha acontecido nada.

- Nada de que gênero? - indaga a Rita que me encara como se quisesse emoldurar-me num grande desejo de comunicação. - O avião chegou!

- Como é que sabes ?

- Ouvi a notícia no meu lingrinhas, dada pela Emissora Nacional. Logo, é de confiança, a informação.

Sorrio por dentro e por fora ao recordar-me do pequenino aparelho de que a terceira Abegorim quase nunca se separa (segundo me contou o Pedro...)

Teresa Mafalda e o marido vêm apertar-me a mão.

A gente moça, em grupo, a dois passos, tagarela.

A Rosarinho - linda, linda, linda! (realmente a cor do manto loiro que lhe desce até quase à cintura é muito mais bela do que a dos cabelos da Alicinha)-conserva-se coladinha a mim. Recebo-lhe o hálito perfumado e a mão de menina que se me enfia no braço em jeito

que traduz Exactamente! O afecto que o

Pedro me dedica e ela quer reflectir, pronta a doar-me a sua própria afeição.

O fluxo e refluxo da gente que transborda dos salões ora nos envolve juntando-nos como espargos em molho, ora nos afasta como pedras que a água deixa a descoberto correndo-lhe pelo meio. Os criados, que principiaram a servir, têm dificuldade em circular.

Passam bandejas e bandejas. com aperitivos de todos os gêneros. com doçaria das mais diversas qualidades. com salgadinhos sem fim. com bebidas, sumos, vinhos raros, whiskys. Sem dar fé de como sucede, acho-me ao lado dos Fontemora, Pai, Mãe e filha. Os Fontemora que entre si desabafam a preocupação que nos demais é, para uns motivo de espanto, para outros motivo de escárneo. Alicinha parece menos pálida e menos fria. E solta-se-lhe da boca mimosa uma dessas frases em que ela é exímia. Uma das tais frases que não lhe assentam nada bem...

- Que raio andará ele a fazer que justifique esta chatice?

São sete e cinco.

- Em chegando ouve-me das boas e se não lhe agradar que vá com a da mãe às costas...

Dá-me a impressão de que desta feita os Fontemora acham despropositada a linguagem. Ou apenas a hipótese?

Não tenho possibilidades de chegar a uma conclusão.

Os dois salões ondulam como em tempestade, rolando para as portas de entrada com um rumor fragoroso. Irá estalar o trovão? Pelo menos os relâmpagos sucedem-se aos relâmpagos...

Só, no meu canto, distante da massa humana que se comprime, sei já o que está a suceder.

É o Fernando Vasco, enfim. Ou melhor, é o Jacques Bertrand. O artista do cinema francês.

Pelo meio do burburinho ouvem-se risos agudos. Meninas nevróticas soltam gritinhos:

"Jacques! Jacques! Jacques!... "

Esquecem-se de que aquele não é um espectáculo.

Ou será?

A massa humana abre alas. Os Fotógrafos (e mal posso crer ao aperceber-me da câmara de Televisão que manobra antecipando-se a todos os outros que procuram a melhor forma de fixar as imagens!) captam a aproximação do Fer... -não, do Fernando Vasco, não! - do Jacques Bertrand, em cujo braço vem pendurada a Alicinha toda sorrisos, seguidos ambos pelas atitudes desvanecidas do Eng. ? Fontemora e de Dona Maria do Espírito Santo.

Há aplausos. Não para a festa do coração que se celebra, mas para a presença do jovem actor. Do Cinema francês.

Os Fontemora tiveram razão em dizer no convite que a Maria Alice desposará o "artista de Cinema".

E afinal o espectáculo continua.

Não existe intimidade nem calor irradiando de mãos que se enlaçam só para dois. Há ostentação, um beijo para serviços de reportagem especial.

Em mim, uma pergunta sem resposta. Acaso a Alicinha teria recebido o Fernando Vasco (Jacques Bertrand) com os mimos pouco antes argamassados em ameaça... ? Sem resposta, a pergunta. Sou tonta! A resposta está ali, patente no seu ar deslumbrado e deslumbrante. Claro que o recebeu de braços abertos, com a Televisão a registar-lhe a ternura...

Pois eu bem gostava de conhecer os motivos porque o Fernando Vasco chegou aqui ao Hotel Majestade com cerca de quarenta minutos de atraso!

De novo a massa humana se individualiza, pelo menos comendo e bebendo cada qual para si próprio.

Até os meus estão espalhados por aí. Além, o Pedro, o Paulo, a Marta, a Rosarinho, a Lili e o Júlio Matinha.

Acolá a Mirita, o Zé Chaves, a Inês e o Artur.

Do outro lado a Teresa e a Cristina, cuja aproximação não visiono como se haja dado. Foi acidental, pela certa.

E aqui...

- Está tão só!... Importa-se que venha um bocadinho para junto de si?

Ergo os olhos e encaro a rapariguinha tão bonita, com os cabelos pretos e revoltos presos com uma fita amarela (da cor do vestido que lhe fica muito bem) atados na nuca.

- Nunca estou só, Rita Isabel, quando estou com tudo quanto preciso a fazer-me companhia. Mas gosto imenso que venha para o pé de mim.

Ela senta-se ao meu lado, no sofá, as mãos cruzadas no regaço, um ar de melancolia em que é impossível não reparar.

- Ritinha?...

- Minha Senhora?

- O poeta... não devia estar aqui também?

Vem do fundo do olhar límpido de Rita Isabel Abegorim um clarão bem mais cheio de força para me iluminar do que as luzes dos flash com que os Fotógrafos continuam a metralhar não só os noivos mas também a assistência entre a qual nomes de prestígio social e artístico se destacam. Transborda nela gratidão. Gratidão por lhe oferecer esta ajuda tão pequenina e tão importante, visto que a deixa falar do que mais lhe interessa agora.

- O Antônio não podia vir. O Pai está cada vez pior.

- Continua a escrever-lhe ?

- Não quer tratar-me por tu?

- Continua a escrever-te ?

- Sempre. -" E versos ?

- Também. Mas são demasiadamente dele, pôr isso demasiadamente tristes. Fica-se doente só de os ler, mesmo que não se comunique por amizade com a sua dor!

- Pobre rapaz!

- Há pessoas tão infelizes!

- E no entanto...

- Sim... ?

- Não me parece que o Antônio seja uma pessoa infeliz.

Ela não compreende. Explico-me.

- Pessoas infelizes são as pessoas para quem tudo acabou, as pessoas sem ilusões nem esperanças! Ora não é este o caso dele! Está a atravessar um momento sem dúvida alguma péssimo, mas nada acaba para ele. Principalmente não se lhe acabam nem as ilusões nem as esperanças!

Resta saber se umas e outras encontrarão

uma forma de se tornarem em realidades!

- Por quê, Rita Isabel?

- Quando o Sr. Fontemora deixar de existir, tudo vai ser muito complicado para o Antônio. Primeiro há-de custar-lhe a libertar-se do enormíssimo desgosto. E depois, como não são ricos, ele precisará de empregar-se.

- E por que não? Há tantos exemplos, tantos, de rapazes que abrem caminho na vida à custa dos seus esforços!

- Penso que ele, de tão introvertido, não tem grande coragem para lutar.

- Dar-lha-às tu, Rita! Ela encara-me.

- Eu?

- Sim! Eu sei que lha darás, a essa coragem, como um dia lhe darás tudo quanto um rapaz como ele pode querer. Paz, amor, segurança... e a doçura de uns olhos que hão-de sempre vê-lo a ele em primeiro lugar na vida!

Os lábios dela tremem.

- Acha isso muito importante?

- No casamento é o mais importante de tudo!...

As mãozinhas cruzadas no regaço descerraram-se. E uma delas vem poisar-se no meu regaço.

- Dá-me licença... ?

- Licença para quê, Rita?

- Não sei se me atrevo...

- Por que não ?

- Gostava de lhe chamar também... Madrinha

Mais uma! maravilhoso!...

Abro para ela o meu sorriso de aceitação.

E do meu sorriso compartilha quem eu não vira aproximar-se e está aqui à minha beira. A agradecer-me o que não se lhe destinava.

- Ah, minha querida amiga, que bom encontrá-la, finalmente!

- Laura? ? ...

A Rita encolhe-se no sofá, eu chego-me para ela a oferecer lugar à Mãe do Fernando Vasco cujo semblante me parece alterado e não pela alegria.

Dou-lhe os parabéns pelo feliz acontecimento. Encolhe os ombros num gesto vago. Pergunto pelo marido. Outro gesto vago:

- Anda por aí. Ele adapta-se melhor do que eu. Não sou pessoa para isto.

Disfarço e quero saber dos enteados.

- Vão benzinho. São bonzinhos. Excelentes crianças!

E fica silenciosa, a mirar os salões regurgitantes.

Tento arranjar assunto.

Está uma linda festa!

- Para eles.

Para todos! Principalmente para si, como

Mãe!

- Ora!

Não me diga que não lhe agrada ver o

Fernando Vasco numa situação de tanto relevo! E lá volta o queixume:

- Nesta situação ele precisava de outra Mãe. Eu não lhe sirvo!

E qualquer coisa no meu íntimo me adverte de que nisto se encerra a razão do atraso do Fernando Vasco. Do Fernando Vasco que vejo agora e enfim a avançar na minha direcção.

Porque só agora ele me descobriu. E vem deixando tudo e todos para trás. E vem de mãos abertas a dar ou a receber - ou a dar e a receber ao mesmo tempo. E traz um riso esplêndido na boca e nos olhos azuis. Na boca que me faz estalar nas faces dois beijos sonoros. Nos olhos que não estão a fingir quando fitos nos meus me permitem ver a subir da sua alma a sincera afeição que lhe mereço.

E põe-se de joelhos diante de mim a abraçar-me pela cintura e na alegria deste reencontro ficamos enlaçados durante largo tempo, com emoção de raízes fundas.

Estamos fechados num círculo. A massa humana que fez dele centro de movimentação, seguiu-o e pasma de uma atitude que ainda ninguém lhe merecera.

Os Fotógrafos batem chapas.

Há vozes que perguntam, sem discrição, quem sou.

E o Fernando Vasco (Jacques Bertrand) finalmente de pé, enquanto a Alicinha seguindo-o procura não sair do enquadramento necessário aos retratos, participa a rir a um Jornalista novato:

- Esta fotografia é por ela... (e Ela sou eu...). Porque, não sei se sabe, sem Ela eu talvez nunca tivesse saído da mais completa inexistência.

Tento ralhar-lhe pelo exagero. Não adianta, porque ele continua a afirmar que são, ele e os outros (o gesto vai procurar o Pedro e o Paulo que riem a distância, assistindo), obra minha...

Um Repórter vem por detrás, encantado com a revelação do astro e a aproveitá-la, solicitando-me uma entrevistazinha.

Um a um, os meus conseguem furar (e não percebo como) a muralha dos curiosos.

E o Fernando Vasco disserta. E os Jornalistas tomam apontamentos.

Rio, divertida.

Continuo a rir quando reparo que Dona Maria do Espírito Santo se acerca dele e lhe segreda algo a que ele responde abanando a cabeça em evidente negativa. De resto oiço-a, à negativa, concretizada num impossível, após o que se volta para mim.

- Madrinha, parto depois de amanhã no avião da madrugada. Quero que jante comigo.

- Não posso, filho!

- Tem de poder! Resolva como quiser, mas tome nota de que não a dispenso! Recuso tudo o que não seja achar-me em têteà-tête consigo!

Aflora-me a recordação de Ana Margarida e de quanto estarei a ser-lhe necessária. Assistir-me-à o direito de trocá-la por este meu rapazinho, ou antes, pela minha própria e intransmissível satisfação?

certo que Ana Margarida está, não parte, como ele... Mesmo assim, onde acabará o errado e principiará o certo? Ou onde acabará o certo e principiará o errado?

A massa humana afastou-se. Estão todos outra vez espalhados, comendo e bebendo. Também eu bebo, maquinalmente. Ou para me não achar sem nada que fazer, de mãos vazias, perdidas nesta inutilidade.

Oiço palmas, de súbito.

E reparo que, fechada no meu vazio momentâneo, não dei pelo que se passou nestes últimos instantes.

vou sabê-lo pela frase com que Laura Peres me restitui ao momento actual.

- Custou oitenta e cinco contos.

- O quê, Laura?

- Custou oitenta e cinco contos, o anel de noivado que o Fernando Vasco acaba de enfiar no dedo dela.

- Ah!...

- E uma safira excelente rodeada de brilhantes!

- Ah? ...

- Faz me muita pena!

- O quê, Laura? Que a sua nora possua uma jóia tão valiosa ? - e sorrio-lhe. - Não acredito!

Ela cora, embaraça-se.

- Claro que não é isso, é...

- Diga.

E porque o não faz, insisto:

- Passa-se qualquer coisa, Laura ? Que a magoa? - e no receio de a ver romper em pranto: - Não vai chorar, não ?

- Não.

Desliza rente a nós um tabuleiro cheio de copos. Deito a mão a um onde o whisky loiro brilha.

- com água lisa ou soda ? - indaga o criado, formalíssimo.

- Só com gelo. - e entrego-o à Laura. Beba. Faz-lhe bem.

- A quê?

- Ao ânimo.

- É disso mesmo que preciso.

- Mas por quê?

Ela bebe de um trago e tosse, atrapalhada. Espero um pouco, de olhar perdido na massa humana, sem ver ninguém, na tentativa de perceber o que possa ter de novo ferido esta mulher a quem a vida sempre assustou tanto, esta mulher que não conseguiu nunca deixar de esperar o pior até mesmo quando ante ela parecia erguer-se o melhor.

Recordo-me daquela vez em que o Fernando Vasco anunciou de Paris a compra do seu primeiro carro e ela só previu desgraças...

Desgraças e mais desgraças! Sim, que

tudo isto é uma desgraça! Uma grande desgraça!

Liga-se o presente com o passado. No momento exacto dá-se o encontro das idéias.

E agora oiço, porque Laura, que normalmente não bebe, recebe a chicotada do estimulante e obedece à libertação momentânea contando cada vez mais depressa:

- O meu filho foi sempre complicado, difícil, exigente até mesmo quando renunciava. Tudo lhe parecia desagradável, feio, piroso. Preferia encolher-se do que mostrar-se, como se ser pobre fosse alguma vergonha! Acho que nunca me aceitou como uma Mãe digna dele! Depois, com a distância, as coisas pareceram melhorar. Das vezes que nos visitou ultimamente não nos dava tanto a impressão de se considerar mal empregado como filho. Até que foi isto agora!... Não sei porquê, mas o casamento deu-lhe volta ao miolo. E daí talvez não fosse ? casamento... O Pai diz que tudo se torna resultado da preocupação com a publicidade que lhe fazem. É que ele vive principalmente para as aparências! Até a noiva só conta pela aparência, ninguém me tira isto da cabeça. Seja Porém como for, o certo é que a vaidade dele não aceita de maneira nenhuma que eu não seja como essas elegantes a quem se habituou. Sou

gorda e ele aprecia as magras. Tenho o cabelo grisalho e ele gosta de pinturas e de artifícios! De maneira que nem queira saber o que houve lá em casa antes de virmos...

(Ah... eis "o mistério" a surgir do mistério do atraso do Fernando Vasco - perdão! -do Jacques Bertrand).

- Eu, é claro, preparara um vestido para hoje de acordo como o que me pareceu melhor. Em crepe liso cor de canela. Bordado nas mangas - e um bordado que me ficou bem caro apesar do preço especial por ser para mim que dei tanto dinheiro a ganhar à Bordadora, uma excelente profissional a quem as melhores casas de modas nunca faltam com encomendas, asseguro-lhe E tive cuidado com os acessórios, acredite! Comprei sapatos de verniz a condizer, carteira... tudo! E fui ao Cabeleireiro a seguir ao almoço... por tal sinal que sem almoço, que eu não gosto de lavar a cabeça com o estômago cheio por causa das congestões e escusam de me dizer que não faz mal que faz mesmo e ainda não há muito eu soube de uma antiga freguesa minha que morreu no secador. - (a velocidade com que a Laura fala é agora alucinante...) Pois aí por volta das cinco horas o Fernando Vasco apareceu-me no quarto onde eu estava justamente a preparar o fato do Ernesto, e a camisa e a gravata, como de costume, e perguntou-me como é que eu tencionava vir vestida. Mostrei-lhe a "toilette"... e nem a minha amiga imagina a fita!... "Isto"? - disse-me ele, posssesso. "Nem penses que te apresentas com

este horror em cima! ". Está a ver como eu fiquei! Em primeiro lugar aflitissima porque não tinha mais nada em condições. Em segundo lugar ofendidíssima. Um horror um vestido tão bonito!...

Noto que Laura enverga um discreto "fourreau" negro em organza rendada. Sem deixar de a ouvir.

- Respondi-lhe que o fizera de propósito para a solenidade e ele largou o que é pela certa um palavrão. Zemanfixa, parece. Sabe o que quer dizer, não?... Pois largou o palavrão e foi direito ao guarda-vestidos e aquilo era como se estivesse com um ataque de fúria. Tudo abaixo! E então... sai-se com esta: "Já comigo para uma boutique a ver o que se arranja!" Que remédio senão obedecer! Táxi... e uma boutique que eu nem sabia que existia. Nada que me servisse! Tudo acanhado, que nessas casas só as magras é que têm cabimento! Indicaram-lhe uma outra loja... e lá apareceu este que, enfim, escapava! De resto cederam-no, porque era uma encomenda. Mas como ele disse que o Pagava por qualquer preço, logo acharam que Podiam fazer outro para a cliente a quem se destinava. com isto tudo voltámos para casa eram quase seis e meia. Mas não ficou por aí a cena... Por força queria que eu enfiasse uma peruca que ele tinha trazido ali para a futura sogra (- ai o ar de zombaria! -) que é toda dada às modernices, como se sabe. Calcule! Está a ver-me de cabeleira postiça, a mim?

Não, não estou a ver... Mas vejo lindamente o Fernando Vasco, poseur e exigente, a querer transformar a Mãe simples e modesta numa sofisticada dama gritantemente evoluída. A Mãe modesta e simples que levou a melhor no direito de apresentar-se com os seus cabelos grisalhos bem à vista...

E eis justificado o atraso de quarenta e tal minutos sem explicação para quem quer que fosse!

A própria Alicinha o há-de certamente ignorar para sempre. Jacques Bertrand nunca revelará o motivo que ia dando escândalo.

A pobre Laura continua a falar, em crise de desabafo, na coragem encontrada por acidente. Mas deixo de a ouvir. De resto ela agora fala também para a Mariana Lemos que chegou há instantes e veio sentar-se ao pé de nós.

Eu tenho ao meu lado a Teresinha que me pergunta, na direcção da Cristina Benevides, se seria possível convidá-la para lá ir a casa amanhã à tarde um bocadinho.

E a Cristina:

- Espero não a incomodar... mas gostava tanto de conversar consigo!

A Teresa revela-me, no encantamento de uma simpatia capaz de gerar amizade:

- A Cristina disse-me que adorava visitá-la mas que não se atrevia a falar nisso a ninguém, com receio de parecer intrometida...

Pois vai a Cristina. E também a Marta, digam-lhe!

A Cristina sorri, um tudo-nada confusa. Não chego a aperceber-me se a expressão que se me afigura tímida nesta rapariga que conheci tão travessa, tão arrapazada, é fruto de uma circunstância ou de uma evolução.

Há um grande fluxo-refluxo na maré humana. Burburinho, deslocações, risos.

Alguém comenta:

- São as Actualidades Cinematográficas. São.

Holofotes sobre Jacques Bertrand e a noiva. Máquinas de filmar em acção. O galã beija a noiva. Abraça os futuros sogros. Recebe cumprimentos de quantos esperam lisongear a vaidade própria aparecendo nos écrans do país (e do estrangeiro!), graças à mão estendida do jovem actor.

Uma vozinha doce atrás de mim:

- E como no Teatro!...

- Exactamente, Rosarinho!

Estamos agora sós, Maria do Rosário, Pedro e eu. Sós neste sofá resguardado dos movimentos da multidão profundamente ébria de celebridade, ligeiramente ébria da profusão Je bebidas que não cessam de ser ofertadas.

Laura Peres, cedendo à insistência de um Repórter, foi fotografar-se ao lado do filho.

Com o marido. O galã junto de seus Pais. Bonita recordação para um álbum de família a lançar em revistas francesas - elucidar-me-à mais tarde a própria Laura, estupefacta com o que se lhe apresenta como honra imerecida...

A Cristina e a Teresa, curiosas, admiram de perto a exibição daquela felicidade para mostrar aos outros. Mariana Lemos está entretida com umas senhoras que não conheço.

Continuo entre o Pedro e a Rosarinho. A Rosarinho que me contempla como se eu fosse uma ave de plumagem brilhante que ela nunca tivesse visto. Dir-se-ia deslumbrada. E de de repente confessa-me:

- Não gosto lá muito de a ver aqui!...

Solta-se uma gargalhada cá de dentro, tão inesperada é a frase.

- Por quê, Rosarinho ?

- Porque perde o ar que o Pedro diz que tem!

- Não entendo!...

- O Pedro afirma que a expressão dos seus olhos é toda bondade, toda aceitação, toda confiança.

- E nesta altura não há nada disso nos meus olhos?

- Não!

O Pedro escuta-a sem tentar detê-la. Julgp-o em expectativa, como eu.

- Então, Rosarinho? - quero saber.

- Nos seus olhos só divisu censura.

- Não, pena! -Pena?... - Ou medo...

- Medo?

Os lábios cor-de-rosa, de uma pureza infinita, tremem, talvez arrependidos de haverem ousado formular em palavras o que as minhas pálpebras não conseguem velar.

Pego na mão da menina que amarrota nervosamente uma ponta do vestido claro. Afago-a sem nada proferir, durante segundos. (De resto nem consigo dizer nada, porque esta pequenina mão direita me faz saudades, pela semelhança, das mãos pequeninas da Ana Maria).

- Sabes, Rosarinho ?... Creio que nos meus olhos está hoje tudo isso misturado.

- Ah ? ... - e parece-me enormemente aliviada.

O Pedro sorri e eu continuo: -'Na realidade censuro bastante, tenho pena de muito e medo de imenso.

- Posso saber de quê?

- Podes, mas não agora. Num dos próximos dias vais a minha casa, se os teus Pais derem licença...

- Dão!

- Também o creio!

- E então conversamos, é?

- É.

- Que Bom!

O Paulo aproximou-se de nós desde há instantes. E de súbito, completamente alheio ao que podemos estar a debater, comenta:

- Vão nascer com os cabelos cor de algodão em rama!

Viramo-nos, eu e o Pedro, a olhá-lo tão surpreendidos que ele, percebendo imediatamente a nossa reacção, desata a rir.

- A sério que não bebi senão dois whiskys! E o Pedro:

- Se não te importas de nos esclarecer do a-propósito dessa observação, acreditamos-te.

- Não há nada mais simples! Tenho estado a observar a identidade de cores entre a Alicinha e o Fernando Vasco! Ora repara... e repare também a Madrinha. Se no caso deles houver confirmação das leis de Mendel, os filhos que tiverem serão desbotados... Olhos azuis pálidos. Cabelos de um loiro pálido. Tez pálida. Lábios pálidos...

- Que engraçado, Paulo! - replico. - E só agora o noto! Eles podem não ter mais nada em comum, mas os tons são exactamente iguais, o que não deixa de ser curioso.

- Têm mais coisas em comum! - e a voz de Pedro soa com uma expressão de agressividade pouco vulgar nele.

Esperamos que concretize os seus pensamentos. Fá-lo sem hesitar.

- A superficialidade com que encaram os aspectos mais graves e sérios da existência é idêntica em ambos. O dom de se acomodarem às conveniências sociais estabelecidas por exigências snobes, também. Os gostos que levam ao cultivo da arte de parecer, idem. E idem a falta de profundidade para alicerçarem o que a nós se afigura essencial - o futuro.

Não me pronuncio. Não quero colaborar na razão que lhe assiste. Aliás ele sabe demasiado bem o que penso de um tal casamento.

O Paulo discorda deste julgamento bastante impiedoso.

- Acho que o Fernando Vasco vale mais do que se deduz das tuas observações.

- Valia!... Temo que haja perdido qualidades.

- Pedro... cuidado!

- An?

- Cuidado! Não ajuizes assim!... Tu e o Fernando Vasco têm tido de certo modo quebrada a sua convivência e isso pode induzir-te a juízos precipitados! Aliás... faço minhas as tuas palavras de há anos, palavras que na altura, talvez por me haverem magoado, ficaram presas a mim.

O Pedro fita-o, esperando.

Eu de antemão sei o que vou ouvir.

Por não ser igual aos mais, necessita de um outro amparo, de uma outra assistência... ele tem dificuldades... Não é dotado de uma inteligência excepcional mas possui uma extraordinária personalidade... isto mesmo. Isto mesmo!

O Pedro não responde. Ignoro se porque a recordação o tolhe se porque neste ambiente não há qualquer possibilidade de descer fundo nos assuntos por mais que nos prendam.

Teresa Mafalda Abegorim aproxima-se de nós. De mim.

- Venho despedir-me.

- Vamos já embora, Mãe?

- Passa das oito horas, Rosarinho! E as festas nos Hotéis não podem prolongar-se muito.

- Ah, pois!

Estou de pé, de rosto estendido para o beijo do até qualquer dia.

- Sabe ? - diz-me Teresa Mafalda - Penaliza-me deveras não ter conversado consigo! Vinha nessa esperança...

- Fica para a próxima ocasião. - e aproveito para lhe manifestar o meu desejo de receber em dia breve a visita da Rosarinho.

- com certeza! As nossas filhas junto de si são como o oiro em pó junto das mãos honestas. Ficam em total segurança!

Os meus olhos agradecem-lhe as palavras tão boas.

Rosarinho sorri-nos a todos. E pergunta ao Pedro.

- Vens?

- Fico um pouco mais.

E Teresa Mafalda, de súbito e na minha direcção, com irreprimível franqueza:

- A Ana Margarida disse-me que amanhã vai jantar com ela. Gostava imenso de lhe falar antes.

Há preocupação nestas frases que me surpreendem pelo inesperado.

- Passa-se mais alguma coisa além do que sei?

- A Ana está desmoralizada e creio que em vésperas de tomar graves decisões. Precisa de apoio e ao mesmo tempo de direcção.

Sinto-me deveras inquieta.

- Quer que lhe telefone, Teresa Mafalda?

- O assunto não é para telefone. Mas deixe, não fique a atormentar-se por causa disto, agora. Sei que não pode dispor de muito tempo livre...

- Passo por sua casa amanhã, antes de ir para a condessa de Ribatorpes.

- Ah? ... Bem haja! Muita gente e eu só.

O Pedro acompanha a Rosarinho que segue a Mãe e lá adiante se junta com as irmãs, o Pai e os futuros cunhados. Desaparecem na multidão.

O Paulo sumiu-se.

E eu intimido-me ante o tanto que devo fazer amanhã.

Decididamente não posso de facto jantar com o Fernando Vasco. Primeiro Ana Margarida. E João Alfredo. E as fotografias.

- Madrinha, que é que tem?

O Pedro, que não se demorou nada.

- Quer ficar muito mais tempo, ainda? Notam-se grandes clareiras nos salões. Julgo que metade das pessoas já se retirou.

Vejo as horas no reloginho adorado que marca no meu pulso a presença constante de...

- Faltam vinte para as nove, Pedro!...

- Pois faltam!

- Vou-me embora, sim!

- Trouxe o seu carro?

- Não! Quando venho ajanotada detesto guiar, como sabes.

- Então vou pô-la em casa.

- É muita maçada... Ele ri.

- Ah, bem!... O contágio faz-se sentir!...

- Como?

- Em duas horas aprendeu a ser hipócrita... ?

- Tolo! Ri.

- Vamos despedir-nos ?

- Despedir-me, sim. E dizer ao Fernando Vasco que não conte comigo amanhã.

Ele não sabe a que me refiro mas nada pergunta. Segue-me.

Os Fontemora, em bloco, recebem agradecimentos e as últimas felicitações. O Fernando Vasco faz parte do bloco.

- Menino!...

O bloco parece um pião, a rodar para abarcar os que vêm de todos os lados.

- Menino!

claro que ele ouve mas nem sequer imagina que este menino possa ser-lhe dirigido. Desabituou-se há muito de semelhante tratamento.

Monsieur Jacques Bertrand... -lá. Vossa

Excelência... - aqui.

Encadeiam-se os Excelências uns atrás dos outros.

O Pedro fala não sei com quem.

O Artur e a Inês chegam ao pé de mim.

- Madrinha! - chama o Artur.

- Sim, filho?

- Vinha convidá-la para ir ao Teatro connosco, ver a companhia da Bernardette Salomon. Arranjo bilhetes lá do Jornal.

- Quando, Artur?

- Amanhã.

- Amanhã? - arrepio-me. - Oh, não, mais coisas para amanhã, não!

Ele não percebe a reacção que traduz, reconheço-o, uma espécie de susto. Mais coisas para amanhã, não!

- Então, quando?

- Telefona-me, filho. Depois combinaremos. MAIS COISAS PARA AMANHÃ, NÃO.

- Menino!

E digo-o com tanta violência que várias pessoas me encaram talvez admitindo hipóteses pouco lisonjeiras para mim. Entre elas, o próPrio Fernando Vasco. Primeiro intrigado, seguidamente incrédulo, por fim divertido na súbita compreensão. Recordando-se de que assim os tratava muitas vezes.

Menino...

Todos são meninos para a minha ternura por eles.

- Desculpe, Madrinha! Creio que já me tinha chamado...

(Confirma-se o que eu pensara - Vossa Excelência...)

Os Vossa Excelência continuam mas diluem-se entre nós dois. Ele integra-se no meu menino, por instantes restituído a antigamente.

- Não posso de forma alguma jantar contigo amanhã, Fernando Vasco. Acredita que estou obrigada por um compromisso de que não devo desligar-me.

O meu menino está todo diante de mim - no pesar sincero que me manifesta sem qualquer atitude preconcebida.

- Não admito a idéia de me ir embora sem conversar consigo! Parto às duas da madrugada...

- Fica para quando voltares.

- Só volto para casar, em Setembro. Gracejo:

- Reservo-te uma hora inteirinha dando-te o direito de a escolheres entre as sete e as vinte e quatro...

Ele sorri. - prefiro que me arranje essa hora para amanhã.

Amanhã...

Mais coisas para amanhã, não!

Mas a expressão dele abala a minha relutância.

Só se fosse ao almoço... ?

Ele retrai-se.

- Almoço em casa dos meus futuros sogros...

- E por que não há-de ir almoçar também a nossa casa? Dava-nos um grande prazer... frase de Dona Maria do Espírito Santo que se aproximara do futuro genro.

- Uma grande honra! - frase do Eng. ? Fontemora que veio atrás da mulher.

Não posso esquivar-me sem ser incorrecta.

- Pois... pois sim.

- Às 13 horas, convém-lhe? - Sem dúvida!

- Então... até amanhã!

No olhar do Fernando Vasco a sombra de uma discordância. Reconheço que ele preferia mil vezes conversar comigo a sós, principalmente para ter direito a uma sinceridade que cada vez se lhe torna mais esquiva. E no entanto vejo o impedimento como uma marca do destino tendente a evitar que ele na transparência dos meus pensamentos encontre opiniões que nada adiantam agora.

E portanto melhor assim.

- Vamos indo, Madrinha?

- Vamos, Pedro. - e peço-lhe: - Chama a Teresinha, sim?

A Teresa, que conversa com a Cristina e com a Marta, feliz do encontro que promete amizade para amanhã.

Ai, amanhã!...

- Madrinha, está muito preocupada ?

- Estou, Pedro.

- Por quê?

Ele guia devagar e mesmo assim estamos perto da minha casa.

Vim calada durante bastante tempo e foi isso o que o alertou, dando-lhe a noção de que algo não está bem no meu íntimo. Continuo calada, tentando descobrir qual a base de quanto de facto não está bem. Há várias camadas sobrepostas de inquietações. Inquietação por cima de inquietação...

- Não necessita de desabafar, Madrinha? Parece-me descobrir o fundo desta massa

ondulante e escaldante como o magma do interior da terra.

- Preciso de arranjar fotografias.

Uma daquelas minhas súbitas frases que se afiguram sem sentido...

Ele sorri, troçando-me amenamente e francamente.

- Para bilhete de identidade ou passaporte ? Suspiro.

- Quero fotografias convincentes da Ilha dos Pêssegos!

Ah!... -e abarcando o conteúdo da expressão. Continua interessada no caso do João Alfredo de Ribatorpes?

Interessadíssima! Amanhã vou a casa

dele jantar, a convite da condessa.

Por isso não pode ceder ao Fernando

Vasco a hora que ele pedia?

- Exacto.

- No lugar dele, tinha ciúmes.

Sei que está a querer suavizar o que me aflige. Mas não adiro.

- Seria um erro. Cada qual tem o seu lugar! De resto o Fernando Vasco neste momento não precisa de mim.

- Sabe-se lá!

- Não pode precisar. Entrou num caminho em que todo o retrocesso se torna impraticável. Logo mais vale que não existam obstáculos diante dele. Quanto aos Ribatorpes... acham-se por demais desamparados.

- com aquele fortunão que, segundo o meu futuro sogro diz, atinge proporções fabulosas?

- Oh, Pedro, se a fortuna bastasse às pessoas, só os ricos seriam felizes... e por vezes não há ninguém mais desditoso!

Estamos à porta do meu prédio. Do prédio onde vivo, é mais exacto. De meu, o andar, enquanto pagar a renda.

E o Pedro, humanizado por completo:

- No caso do João Alfredo, que pretende fazer com as fotografias da sua ilha?

- O que prometi, a ele e aos amigos. Dar-Lhes uma idéia de como é.

- Portanto há que conseguir fotografias convincentes onde se vejam pessegueiros, praiazinhas, casinhas, piscinas naturais escavadas nas rochas...

- Tudo isso!

- E tem-nas, Madrinha ?

- vou procurá-las agora, na gaveta onde guardo centenas tiradas durante anos nas minhas várias digressões. Estou a pensar numas da Grécia...

- Da Grécia ? Tenha cuidado com as ruínas...

- Ah, pois!

- Lembro-me delas perfeitamente e não creio que sirvam para documentar a Ilha dos Pêssegos. Mas...

- Mas... ?

- Talvez eu lhe resolva o problema.

- De que maneira?

- com umas tantas que o Paulo possui num álbum, feitas em Trás-os-Montes.

- Oh, filho? ... Mas em que pode a nossa província de Trás-os-Montes parecer-se com a Ilha dos Pêssegos?

- As fotografias são coloridas e maravilhosas!

Não duvido... mas mantenho a pergunta. Que pode parecer-se Trás-os-Montes com a Ilha dos Pêssegos?

- Nas amendoeiras!...

- Oh, Pedro? ...

A Teresa, que se tem conservado sempre em silêncio no assento de trás, desfere uma risada.

o Pedro: - Estou certo de que a Teresinha já decifrou a charada. - Acho que sim! -afirma a rapariguinha.

- Então diz.

- Ambas as árvores dão florzinhas cor-de-rosa!

Compreendo o alcance da idéia dele.

- Ah! ...

- Portanto -continua o Pedro, -a Madrinha escolhe entre as suas, eu entre as do Paulo e depois, mercê de uma hábil mistura, deve conseguir-se o efeito desejado!

- com certeza! É uma idéia óptima!

- Excelente, diria a S'Dona Laura... E separamo-nos bem dispostos.

Como as pequenas coisas, as coisas que parecem pequenas, podem na verdade ser tão importantes!

E entro em casa a trautear uma canção francesa, actualmente muito em voga. Por acaso de um filme de Fernando Vasco. Perdão. De Jacques Bertrand!

A Emília.

Com o nariz mais bicudo do que o costume, logo arrenegada. A canção, de que a Teresinha repetia o estribilho

La vie cê n'est qu'un songe quand je parle d'amour avec toi. Lês raisons de la raisom sarrêtent et je tremble du réveil qui m'effroi acaba-se-me no effroí.

Já sei que me espera uma arrelia. E nem cuido de perguntar "o que há".

Ela anuncia:

- Está na sala uma visita.

Respiro, aliviada. Talvez não seja afinal uma arrelia.

Dirijo-me para a sala, enquanto a Teresinha, discretamente, se afasta.

E eis-me diante da visita. Uma visitinha. Treze ou catorze anos em figura de gente. Figura de gente, porque o olhar intenso, de um castanho escuro, é de gente. Cheio de alma. De alma de gente.

Encaramo-nos, ambas silenciosas. Ela não deve saber como principiar o que tem a dizer porque tem alguma coisa a dizer. Eu, desconhecedora até da sua identidade, sinto que melhor se torna aguardar.

Observo a figurinha delgada vestida de preto. A carita que sem beleza (a beleza das rapariguinhas surge às vezes muito para além da idade ingrata que é a adolescência) irradia inteligência.

Figurinha delgada vestida de preto...

Não ouso crer!

Mas recordo uma carta recebida há semanas (e continuada de quando em quando) com a assinatura...

- Luísa Maria?...

- Sim, sou a Luísa Maria!

- Oh, filha... mas... que significa isto?

Luisa Maria, a menina que tão cedo conheceu as verdadeiras dores que a vida faz padecer, a menina que perdeu o Pai.

Oiço-a inquirir:

- Como foi que me reconheceu?

Não lhe respondo. Há coisas que não têm explicação! Reconheci-a. E sei que se passa com ela algo de grave que a obrigou a vir. Está aqui porque precisa de mim.

Meu Deus... que poderei fazer por ela?

Reparo que a três passos está, no chão, uma maleta parda.

Fito-a. Espero. Mas não hermética. Abro-Lhe os braços. E aperto de facto uma pobre criança que se desfaz em lágrimas, que balbucia:

- Foi disparate... um disparate!... Mas só Pensei em si! Por tudo quanto há, não me deite fora! Não me enjeite!

Consigo sentá-la numa poltrona. Toco a camPainha. Preciso que a Emília me traga um copo de água e um calmante para dar à Luisa que não pára de soluçar.

A Emília não vem.

Chego à porta e chamo-a. Três vezes, sem resultado. quarta vez acode a Teresinha sobressaltada.

- Aconteceu alguma coisa?

- Chamei a Emília! -esclareço-a.

- Eu vou dizer-lhe. - oferece-se, como se fosse possível a Emília, a dez metros de mim e com uma única porta fechada, não se aperceber dos meus apelos.

Volto para junto da Luisa Maria. Tento serená-la com palavras onde ela colha a certeza de que não vou deitá-la fora. O tempo decorre e nem ela me escuta nem a Emília surge.

Mas volta a aparecer a Teresa.

- Madrinha, a Emília diz que não pode cá vir.

- O quê?

A pequena encolhe os ombros num trejeito expressivo da mesma estranheza que me colhe. E... e talvez não seja a mesma. Na minha crescem laivos, embora ainda vagos, de presciência...

- Teresa, fazes-me um favor?

- Tudo quanto quiser, sem favor.

- Vai ao meu quarto, abre a gaveta da mesa de cabeceira. Vês um frasco pequeno que diz... - e pronuncio o nome do medicamento. Traz-mo e um copo de água.

Mais alguns minutos. Cortados por dois ahs argentinos que assinalam meia-hora nos meus relógios, o velho-novo do ferro-velho e o novo-velho do tempo de Napoleão. Olho para o pulso esquerdo, a certificar-me do que suponho. Sim, são nove e meia. 21, 30 h.

E a Teresa não volta.

nisto...

O estardalhaço de algo que se quebra lá dentro, na cozinha.

E agora a Teresa, muito vermelha, quase chorosa, seguida pela Emília que traz... um copo com água que poisa de arremesso em cima da mesa do centro.

A Teresa estende-me o frasco dos comprimidos.

E a Emília sai de rompante.

Não preciso de perguntar para saber o que sucedeu. A Emília tirou o copo das mãos da Teresa com tamanha fúria que... fiquei sem copo. Um a menos. (Mais um a menos!...)

A intratabilidade em acção!

Domino-me para não explodir. Fica o assunto para depois. Agora preciso de me consagrar esta pequenita que ainda não esgotou as lágrimas. Forço-a a engolir o comprimido e conSigo que beba água. Faço sinal à Teresa para que se deixe estar.

E sento-me ao lado da Luisa Maria, aguardando.

O silêncio por vezes ajuda enormemente à estabilização de quem sofre. O que as minhas palavras não haviam obtido resulta da espécie de paz que se diria envolver-nos com a cidade a ronronar lá fora.

A Luisa destapa o rosto.

- Dá-me um lenço ?

Dá-lho a Teresa, que trazia um na algibeira do vestido.

E depois de se assoar e de limpar o rosto inundado, a menina começa:

- Sou muito infeliz! Muito! E por isso é que vim ter com a Senhora... Se calhar fiz mal... mas só pensei em correr para aqui... Comprei o bilhete de comboio e...

- Compraste o bilhete do comboio?... Mas... nesse caso... vieste de fora?

- Vim de casa... saí de manhã quando tive a certeza...

- Luisa, mas tu vives no Porto! ?

- Pois vivo!

- Quer isto dizer... que te abalançaste a viajar sozinha?

- Sim!

- com ordem de quem?

- De ninguém.

- Luisa?... Acaso... fugiste?

- Fugi.

- Deixaste a tua Mãe?

- Eu não tenho Mãe! - e esta frase solta-se num grito.

Pego no copo e bebo o resto da água. Sou eu que preciso de acalmar, agora.

A Teresa está concentrada na Luisa, toda ela a aceitação que me falta.

- Luisa Maria, vejamos... A que propósito uma tal afirmativa?... Sempre me tens falado

da tua Mãe...

- Pois eu tinha Mãe!... Tinha!... - e deixando-se escorregar para o chão, de joelhos, apoiada ao meu regaço, olhos postos nos meus, tenta explicar-se. - Eu andava desconfiada... A Mãe estava sempre ao telefone. Aquele homem ia buscá-la de automóvel para sair. Depois começou a ir lá a casa e cada vez se demorava mais. E hoje de manhã... a Mãe disse-me que ia casar-se com ele! Percebe? Casar-se com ele!... Ter outro marido, a minha Mãe! Um marido que não é o meu Pai! Um estranho metido na família... Como se os maridos se substituíssem! Era o mesmo que eu arranjar outro Pai!... Não posso... não quero... não agüento!... E então... vim-me embora! Fiquei sem Pai... POSSO ficar sem Mãe!

Os meus relógios anunciam-me que são dez horas. Horas que não confirmam o voto amigo que acompanhou a oferta do do tempo de Napoleão (o novo-velho). Estas não são horas belas. Nem feias, também. São horas sem luz que lhes deixe perceber a tonalidade, o recorte.

Onde o mal? Onde o bem?

Mãe que feriste a tua filha, por que tão Apressa quiseste deixar de ser apenas Mãe?...

Mulher que podes ter razão, porque não soubeste esperar que a tua filha fosse capaz de te entender ?

Menina sem calma, por que ousaste revoltar-te?

Menina impiedosa, por que foste capaz de atirar sobre a tua Mãe o sangue que te escorreu da alma atingida?

Tão difícil, tudo isto...

Luisa Maria, de pupilas febris, espera que eu lhe responda.

Que posso responder-lhe?

- Luisinha, tens telefone em casa, com certeza...

- Tenho, sim.

- Dá-me o número.

- Para quê?

- Para que há-de ser? Para tranqüilizar a tua Mãe, dizendo-lhe que estás aqui.

- Eu deixei um bilhete escrito a avisar.

- De qualquer modo, Luisa, não posso guardar comigo uma criança sem licença da Mãe!

Ela recua.

- Não volto para casa, nunca!

Sinto no meu pulso direito uma mão gelada que mo aperta nervosamente. A mão da Teresa.

- Madrinha... as crianças como nós podem transbordar de razão! Há crianças muito infelizes!

- Eu sei, Teresa. Mas isso não autoriza os adultos como eu a perderem a razão! -e para Luisa Maria. - O número, filha ?

Ela di-lo e eu marco. É ligação directa. De lá atende-me uma voz esganiçada.

- Quem fala?

A Senhora, está?

A Senhora saiu. Foi ao Cinema.

- Ah!

- Quem fala?

- Fala de Lisboa. Ligo para aí mais tarde. e poiso o auscultador.

Fico durante momentos sem saber que dizer à garota em cujo olhar diviso uma expressão onde a amargura se torna triunfo. Como se ela me transmitisse a enormidade dos seus motivos...

Afago-lhe os cabelos lisos e digo para as duas reivindicadoras:

- Vamos jantar, filhas. É tardíssimo!

Tardíssimo mas não tanto que justifique o que estou a verificar.

Na cozinha, tudo apagado. A Emília sumiu-se. vou à sala de jantar. A mesa posta com dois lugares. Volto à cozinha. Dois tachos minúsculos com um nico de qualquer coisa dentro que nem me dou ao cuidado de ver o que será. Uma presciência obriga-me a ir ao recipiente do lixo, que destapo. Lá dentro, bifes e batatas fritas... Percebo! Tudo.

vou direita ao quarto da Emília. Acendo a luz.

Está deitada em cima da cama, vestida.

- Emília!... Emília, não finjas que dormes! E se dormes, acorda!

Regouga, sem se mexer:

- ói-me a beca.

Fita!... Não dói nada. Se doesse tomava um comprimido.

- Emília, por que foi que deitaste o jantar fora?

Apanhada, ela senta-se, desafia-me.

- Isto não é asilo!

- Isto é a minha casa e dentro da minha casa as coisas são como eu quero!

- Não me paga pra eu aturar essas pingonheiras que prá aí vêm!

- Emília? ...

Num arremesso, volta a estender-se e, com ambas as mãos ergue a almofada e enfia a cabeça por baixo dela.

Fico por instantes perdida numa enorme hesitação. Da qual principia a emergir um pontinho de luz que aumenta e me deixa ver dentro dele uma idéia. Idéia que não tarda a vencer a hesitação, todas as hesitações.

Agora a eficiência e a intratabilidade da Emília fundem-se numa suspeita que preciso de confirmar. Esta rapariga não é nem boa nem má - é uma doente mental! Como não percebi isto mais cedo?

Amanhã tenho de a levar a um Psiquiatra!

Amanhã?... Mas em amanhã não cabe mais nada!

Depois de amanhã!

Encargos, encargos, encargos...

Recuo, apago a luz, vou ter com as pequenas que encontro num diálogo onde os lamentos se misturam a conselhos mútuos.

- Filhas, temos de ir jantar fora. Encaram-me, surpreendidas.

- Oh? ... Por quê? A Teresa diz:

- Havia jantar cá em casa! Julgando-se a mais, a Luisa Maria afirma:

- Eu como poucochinho!...

- Acredito. Mas a verdade é que nem esse poucochinho existe! - e porque realmente me sinto cansada, peço: - Não me obriguem a explicar nada!

Elas não obrigam. Levantam-se e dispõem-se a acompanhar-me para uma breve refeição num restaurante modesto nosso vizinho. Uma refeição durante a qual elas continuam o seu diálogo. E nele, muitas coisas que podiam ser ditas por mim.

Engraçado! Como podemos sentir-nos continuados espiritualmente, sem que os laços de sangue tenham nada a ver com essa descendência maravilhosa!

Sim... ENGRAÇADO!

Tim -tim - tini - tim -tim - tim - tim -tim tim - tim - tim - tim...

Doze badaladas quase a par nos meus dois relógios - o velho-novo do ferro-velho e o novo-velho do tempo de Napoleão. Meia-noite.

Já estará em casa, a Mãe da Luisa Maria?

As duas pequenas dormem. Deitaram-se e contra a minha expectativa (pensei que ficassem a tagarelar até às tantas) mergulharam num sono profundo. Vantagens da idade. Os problemas não entram pela noite adiante...

Também a Emília dorme, com a cabeça caída para fora do leito pequeno que é grande para ela. Posição vulgar nas suas crises.

Deixo que decorra mais um quarto de hora. E ligo para o que foi um lar. Para o que podia continuar a sê-lo. Podia e devia.

De lá:

- Estou! ? ...

- É de casa da sr.a D. Maria Regina?

- Sim, sou eu própria.

- Fala de Lisboa. Sou... -e nomeio-me.

- Tenha a bondade.

- Queria comunicar-lhe que a sua filha está em perfeita segurança na minha residência.

- Ela deixou-me dito numa carta que ia procurá-la.

- Que devo fazer?

- Calculo que a Luisa represente um estorvo de que deseje libertar-se rapidamente.

A voz áspera traduz um desejo de magoar que faço por deter.

Não, sr.a D. Maria Regina, nenhum estorvo, embora a minha casa não seja refúgio de abandonados.

Como? Está a considerar a Luisa uma

abandonada? Foi disso que ela a convenceu?

- Foi disso que a sua atitude me persuadiu, sr.a D. Maria Regina, quando verifiquei que em vez de telefonar para mim a saber se na verdade a Luisa aqui chegara saiu em passeio, parece que para ir ao Cinema.

- Então oiça. A minha filha não me interessa desde o momento em que pretende ser um obstáculo à minha felicidade. Ela tem o que quer. Disse-me palavras que não esqueço e essas naturalmente não lhas referiu.

- Só posso sabê-lo quando as identificar.

- Que havia gente a mais dentro desta casa. E que ou safa o meu futuro marido ou que saía ela.

(Não, a Luisa não me contou isto...) -'De facto... ignorava esse ultimatum.

- Já vê!...

- Vejo ? ... Não, ainda não vejo.

- Como?

- Por qual opta ?

- Por qual opto?

- Sim. Pela Luisinha ou pelo seu outro marido?

- Essa agora? Não há que hesitar! De resto, ela saiu... ficou o assunto resolvido!

- Quer isso dizer que a sr.a D. Maria Regina, viúva há meia dúzia de meses, prefere o seu futuro marido à sua filha ?

- Evidentemente! Filhos... posso ter muitos!

Fico por momentos impossibilitada de responder, com a voz presa dentro de mim por um espanto que se vai tornando indignação. Filhos... posso ter muitos!... Não sei bem porquê, mas neste mesmo instante impõe-se-me a imagem de Catarina (Catarina de Ribatorpes) a dizer-me que guardasse o meu tempo "prós meus porquinhos da índia... "

Talvez haja sementes de Catarinas proliferando onde não se dá por elas...

- Pois... -articulo por fim, - as suas decisões são consigo.

- Claro!

- No entanto... necessito, e isto sem admitir a hipótese de que a Luisinha me incomode, que me diga o que deseja que eu faça. Tanto mais que pela certa ela se acha no fim do ano lectivo.

- Não interessa.

- Não interessa? ... Então, o que interessa ?

- Que cada um sofra as conseqüências dos seus actos.

- Ah... com certeza!... (-grande frase! -).

- Portanto, se não se importa de guardar a Luisa durante uns dias... eu vou tratar de saber de um Colégio onde possa interná-la definitivamente.

Definitivamente ?

Sim, um Colégio onde passe as férias,

mesmo de Verão, e onde fique a estudar durante os próximos anos.

bom, guardo comigo a Luisinha durante

o tempo que for conveniente.

- Agradeço.

- Valerá a pena tentar convencê-la de que para bem de todos ela deve procurar ver no seu futuro marido um segundo Pai?...

- Não!

- Pronto, V. Exª é que sabe! Fico aguardando as suas instruções.

- Boa noite.

- Agradecida.

Poiso o auscultador e aperto a cabeça entre as mãos, horrorizada.

Ai não poder fazer nada! Não possuir uma varinha de condão!...

Arranca-me do pavor da minha inutilidade o som de um soluço.

- Teresinha? ...

- Acordei... acordei a ouvi-la falar!... Percebi com quem era... e quis saber...

- E sabes? - balbucio.

- Sei! SEI!...

Vem cair aos meus pés, chora agarrada a mim. Não conheço palavras que a confortem.

Verifico apenas que afinal também nestas idades os problemas podem entrar pela noite adiante...

Hoje é amanhã. O tal dia cheio a transbordar. Que principiou quando o ontem acabou altas horas na madrugada, todas ritmadas pelos meus relógios. Horas onde a beleza se confina em esperanças, projectos e indecisões. E numa certeza - por agora em relação à Luisa Maria há que aguardar. Aguardar. E noutra certeza - preciso de marcar consulta no Psiquiatra para a Emília.

A Emília que me aparece às nove da manhã com o pequeno almoço no tabuleiro de prata, participando-me:

- Já servi também as meninas. Nem falo. Para quê?

E ela:

- A minha Senhora está zangada comigo? Conservo o silêncio.

- Eu ontem não me sentia bem. A modos que havia coisas esquisitas dentro da minha cabeça...

- Amanhã vais ao Médico.

- Mas eu não estou doente!...

- Pois não, mas vais.

Os olhos dela abrem-se desmesurados numa expressão esquisita.

Isso é a arranjar um pretexto para depois

me mandar embora?

Emília, não discutas!

Deixo o tabuleiro em cima da cama e abandono o quarto.

Preciso de começar este dia de hoje tão cheio de coisas.

Recapitulo-as, mentalmente. "Almoçar em casa dos Fontemora, com o Fernando Vasco". "Receber a visita da Cristina e da Marta". "Passar ao fim da tarde por casa dos Abegorim". "Jantar com Ana Margarida".

Ah... e as fotografias para o João Alfredo!... vou procurá-las.

Quando a Teresa e a Luisa me aparecem estou realmente disposta a ir procurá-las, às fotografias, na gaveta do armário da sala onde as guardo. Detém-me o agrado de vê-las, para me sentir contente ante o bom parecer da Teresa e angustiada ante a carinha desfeita da Luisa Maria.

Conversamos um pouco sobre nada de especial. E de súbito algo me alerta, quando me disponho a arranjar-me, pois quero dar uma saltada à Baixa antes de ir para casa dos Fontemora, cujo almoço foi marcado para as 13 horas.

Encaro as pequenas, sobressaltada.

- Ah... e vocês duas?

Pois, não dei ordens à Emília em relação ao almoço de ambas. E não queria dá-las. Mas... também não se me afigura conveniente permitir que meninas desta idade almocem fora sozinhas.

- Eu lembrei-me... -principia a Teresa.

- De quê, filha ?

- Podia almoçar com a D. Aniceta. Ainda lá não voltei... E a Luisa ia comigo.

- É uma idéia! - aprovo. - Eu passava por lá a levá-las e a buscá-las... O pior é que a D. Aniceta pode não ter nada em casa e atrapalhar-se...

- Ela não é muito de confusões.

- E de qualquer maneira, - encadeio, compra-se alguma coisa e leva-se.

- Telefono-lhe, para saber se está?

- Isso, isso!

Tenta telefonar ela e tento telefonar eu a fim de marcar a consulta para a Emília. A Emília que se afadiga... a limpar as pratas que todas foram limpas há cinco dias!...

Sem comentários.

O telefone de D. Aniceta está impedido. Obtenho por fim a ligação com o consultório do Dr. Samuel Crisóstomo - um dos Psiquiatras mais considerados que um dia conheci em casa dos Macedos. Consulta para amanhã, às

19 horas.

E fecho-me no quarto de banho (do qual a Luisa acaba de sair) enquanto a Teresa fica finalmente a conversar com a velha governanta do seu antigo lar.

Até que:

- Madrinha!... Madrinha !...

- Sim?

A Aniceta diz que a nossa lembrança

lhe deu uma grande alegria!

Doze horas e meia.

Tim - exclama o meu relógio velho-novo do ferro-velho.

Tim - confirma o meu relógio novo-velho do tempo de Napoleão.

- Vamos, filhas?

A Emília continua, de nariz afilado, a limpar as pratas conscienciosamente.

Embraio, engato, arranco...

Oh, malditos cruzamentos!

Automóveis, automóveis, automóveis. Autocarros. Carros de turismo. E mais automóveis.

Tanta gente rica! A fingir de rica. Como eu... No fim de contas como queixar-me desta fila interminável de automóveis se eu também contribuo para a engrossar... ? Um carro a menos ou a mais tanto faz? Mas é grão a grão que a galinha enche o papo... É automóvel a automóvel que as filas se tornam enormes!...

Passamos.

Tornamos a passar.

E agora, onde estaciono para ir além comprar um frango assado (são de confiança!) e carnes frias e pão de forma e pastéis de nata e uns bolos secos - para a merenda! não posso esquecer-me de que a Cristina e a Marta vão lá a casa logo! ?

A Teresa e a Luisa riem-se da minha irritação. Sim, a Luisa ri. Esquecida do drama de que é a principal protagonista. Só por isso vale a pena não saber onde estacionar durante cinco minutos.

Quinze! -que na charcutaria está uma multidão. Toda a gente parece hoje necessitar de frangos assados, carnes frias, pão de forma, pastéis de nata e bolos secos...

- Faça o favor de circular que aqui é proibido o estacionamento!

- Já vai, já vai!

Dá-me vontade de refilar - onde é que eu havia de parar, a cinco quilômetros do estabelecimento onde tinha de fazer compras?... Mas não vale a pena argumentar. Há pessoas para quem as nossas razões são culpas.

As pequenas continuam a rir.

- Ó Madrinha, - diz a Teresa, - o polícia deu vinte voltas ao carro!

- Todas para o mesmo lado?

- Todas!

- Coitado, deve estar como vocês ficam depois de um corropio... Tonto!

E enfim largo as duas mais o frango e um embrulho de carnes frias (o outro segue comigo

dentro do saco onde em grandes letras vermelhas se lê "Delícia de mel, charcutaria e bolaria" Delícia de mel... !-) à porta do prédio

antigo onde habita a D. Aniceta desde que regressou dos Torredalto.

Lá de cima, de uma janela do terceiro andar, a boa senhora acena-me grandes adeuses e grita a plenos pulmões:

- Não sobe um bocadinho?

- Impossível! Já devia estar onde ainda não cheguei! - e para as pequenas: - Das três para as três e meia venho buscá-las.

Finalmente! Um lugar fácil para deixar o carro, sobre a placa central.

Espero que o trânsito seja interrompido para eu poder manobrar. E enquanto, levanto os olhos... Não, não para onde me aguardam com mais de três quartos de hora de atraso, (que vergonha!) mas para onde não está ninguém. O segundo andar de janelas cerradas pela ausência da família Macedo, por cima do andar vazio da pobre Dona Ester que Deus tem. O aperto que sinto na garganta dilui-se quando ergo um pouco mais o rosto... Lá em cima, no quarto andar, as janelas estão escancaradas e espalham em ondas vozes e risos. E música.

Penso na Mirita e o seu lingrinhas..." Aliás a esta hora devem estar todas em casa. Pela certa já almoçaram, que o Juiz Abegorim leva uma existência regrada. E não penso nos Fontemora com certeza impacientes.

O trânsito, cortado enfim pelas transversais, deixa-me atravessar.

Arrumo o carro, fecho-o, corro para o outro lado da rua e chego esbaforida à casa onde num sorriso desta vez justificadamente hipócrita me é dito "ora essa, não tem importância nenhuma... "

Achamo-nos de facto na maior intimidade. Só eu de fora, visto que o Fernando Vasco (a quem Dona Maria do Espírito Santo trata unicamente por Jacques) pode considerar-se da família.

Conversa-se.

Fala o Fernando Vasco, para mim.

- Tencionávamos casar em princípios de Setembro, mas quando o Pedro me disse esta manhã que os Pais vêm precisamente na segunda quinzena do mês, decidimos atrasar para os últimos dias ou para os primeiros de Outubro.

Se não houver prejuízo para a sua vida profissional, Jacques... - obtempera a futura sogra.

Como ainda falta tempo, posso dispor as coisas de modo a ter pelo menos nessa altura uma semana livre! Aliás não se trata apenas de poder contar com a presença deles...

Sorrio, porque pressinto o que vou ouvir.

- A vinda da S'Dona Rosa Maria e do Dr. Macedo dará satisfação a um desejo meu que de outra forma não podia concretizar-se.

- Queres que sejam teus Padrinhos... é?

- Adivinhou! - e olha-me sorrindo. Olha-me?... Bem, suponho que me olha, visto que...

E não calo a minha estranheza feita constatação.

- Por que é que estás de óculos escuros, Fernando Vasco?

- An? ...

- Há muito que te desabituaste deles... recordas-te?

Ele sabe que estou a pensar "tu usavas óculos escuros quando desejavas esconder a tua verdadeira expressão... Que tens a ocultar hoje? "

Os lábios entre-abertos como que absorvem o sorriso.

- Ardiam-me os olhos esta manhã. Suponho que do excesso de luzes que ontem me flagelou.

Ele? Tão habituado aos projectores dos estúdios?...

Não insisto. Não devo, claro. Mas fica-me cravada no espírito a verificação. Algo está errado e o Fernando Vasco não quer que ninguém o descubra.

Aliás, a conversa prossegue e eu sou obrigada a comunicar.

Dona Maria do Espírito Santo quem diz: - Pela minha parte, discordei da escolha do Jacques em relação aos Padrinhos. Creio que lhe conviria gente de um nível diferente, de um meio de mais representação.

Nunca pensei descobrir tão depressa o motivo dos óculos escuros!... Desses óculos escuros por detrás dos quais sinto a agudeza das pupilas do Fernando Vasco.

- É evidente que para mim não há ninguém de mais representação. E depois e mais importante que tudo existe a amizade que nos liga e a gratidão que lhes devo.

- Perdão!... Sob esse aspecto creio que o Jacques deve maior gratidão a outras pessoas! E já lho fiz notar! Por exemplo, à Simone Mignonet...

- Perdão, minha senhora... e era isso o que eu ia justamente explicar-lhe quando a Madrinha chegou. Sem a família Macedo, nunca na minha vida teria acontecido a protecção da Simone Mignonet! Quando surgiu a hipótese de irmos, o Pedro, o Paulo e eu para o Colégio de Verão na Alemanha tudo parecia negar-me a concretização desse sonho. E foi graças à ajuda material dos Pais dos meus amigos (e ponho em primeiro lugar a dos Pais do Pedro porque a amizade dos Lemos foi uma conseqüência da dos Macedo) que eu pude acompanhá-los. O resto veio por acréscimo.

- De qualquer maneira, - e o rosto de Dona Maria do Espírito Santo, contraído, perde a sua habitual harmonia, - isso são coisas para esquecer.

- Não, minha senhora. São coisas para guardar no coração até ao fim da vida.

- Guarde... mas na sua actual situação, Jacques, penso que não lhe convém mostrá-las.

As mãos de Fernando Vasco crispam-se no talher que depõe com um ruído sintomático no prato.

Alicinha, não obstante a sua branca frialdade, agita-se e dirige à Mãe um olhar moderador.

- Oh, Mãe? ... Talvez fosse melhor mudar de assunto...

Engulo a minha indignação e o reconhecimento de que a vaidade perturbou o normal bom-senso desta senhora sem dúvida pouco esperta mas correctamente educada. E depois de a engolir agarro na sugestão da Alicinha.

- A propósito, Fernando Vasco, que é feito do Jean Paul? Há imenso tempo que não sei dele!

- Ah, Bom... Bom... -regouga o meu galã voltando a pegar no talher - o Jean Paul... Pois, o Jean Paul... -mete na boca um pedacito de lagosta e parece mastigar cortiça. - O Jean Paul lá vai.

- Suponho!

- Não quis estudar mais.

- Ah!

- A Mãe teve imensa pena.

- É natural.

- No entanto nem só os formados singram.

- Claro!

Não há dúvida de que a lagosta tem semelhanças com a cortiça. As frases saiem-lhe como se fossem puxadas a saca-rolhas...

- Ele não vai mal.

- Ocupado em quê?

- Tirocina para Realizador de Cinema, digamos.

- De que maneira ?

- Entrou para a UNICINE como assistente do Fabianino e mostrou qualidades, tantas que depois de se ter aventurado a uma curta-metragem recebeu uma encomenda de mais quatro que está em vias de começar.

A lagosta passou-lhe na garganta. Ainda bem, porque assim já vai falando com mais facilidade.

Que assuntos debate ele, Fernando Vasco?

O primeiro, de sua livre escolha, teve

como tema a vida das crianças na rua.

A caminho das Escolas, dos Liceus... ?

Não, não! As crianças que vivem na rua.

As crianças sem lar.

Que por lá existem, apesar de um tão

gabado clima de civilização?

- Quanto mais evoluída sob certos aspectos for a civilização, mais sem lar se encontrarão as crianças!.

- Essa agora? ... -pasma o Eng." Fontemora, aderindo à conversação que a Alicinha escuta com um sorriso pálido que tanto pode revelar concordância como alheamento. - Como é que o meu amigo justifica tão arrojada afirmativa?

- De uma maneira simplicíssima, Sr. Engenheiro. Eu lhe digo...

- Diga, diga.

- Jacques, mais lagosta ? ... - interrompe Dona Maria do Espírito Santo, a chamar a atenção dele para a criada perfilada à espera de servi-lo.

- Não, não, obrigado! - e começa a expor as suas idéias. - A vida actual está cara como nunca e como nunca repleta de seduções, de coisas que dantes nem sequer se idealizavam e hoje parecem imprescindíveis. Daí a ocupação dos dias em trabalhos acumulados geralmente pelo casal. Marido e mulher saiem pela manhã e voltam à noite e isto nas mais diversas camadas sociais. Entre os Operários como entre os Empregados comerciais e os Licenciados em quaisquer especialidades. Ao mesmo tempo as dimensões das residências minguam e as serviçais desaparecem. Ficam as crianças ao Deus dará...

- Existem Creches, Parques Infantis, Jardins-Escolas...

- E parece-lhe que os assalariados para os acabarem de criar (ou criar mesmo) e para iniciarem a sua educação, substituem os cuidados maternais? Acha que o ambiente difuso cornpensa a falta do lar?

- Compensar, compensar, enfim... talvez não! Mas também não há uma substituição global, Fernando Vasco!

(Registo com satisfação que o Pai da Alicinha o trata como nosso).

- Não há?

- À noite as famílias reúnem-se. Aos sábados e aos domingos também.

- Olhe, Sr. Engenheiro, à noite as famílias não se reúnem. As crianças dormem... e os Pais ou dormem ou saiem para se distrair em. Entre certa gente é questão de honra ir ao Cinema e ao Teatro para terem os divertimentos o mais possível em dia. Outros reúnem-se com amigos, jogam, vão dançar, etc. etc...

- Ficam os sábados e os domingos. -insisto.

- Às vezes e para os conservadores que saiem em bloco! Estes são ainda os que empunham a defesa da família como os atletas olímpicos o facho tradicional, passando-o de mão em mão. São poucos. E em certos países serão cada vez menos. Ainda há pouco li num Jornal francês uma notícia que me gelou o sangue nas veias... e não sou positivamente um bota de elástico.

Pelo contrário!... - sinto que me foge

esta concordância, mau grado meu, com os olhos postos na Alicinha.

Ninguém repara no sentido da frase irônica. Nem ele, Fernando Vasco.

- Que dizia a tal notícia? - acha-se na obrigação de perguntar Dona Maria do Espírito Santo.

- Num determinado país nórdico uma corrente protesta contra as donas de casa.

- O quê?

- Protesta contra a existência das donas de casa, ou seja, contra o facto de haver mulheres que passam a vida em casa, logo sem fazer nada.

Dona Maria do Espírito Santo indigna-se e com inteira razão.

- Que disparate? ... Mas uma mulher em sua casa, se não tiver quem a ajude, trabalha mais do que outras nos empregos! Há sempre que fazer, sempre!...

E a Alicinha (o sorriso não era de alheamento):

- Eu que o diga! Aqui há meses ficámos sem criadas e foi uma destas chatices!... E ainda o que valia é que quase nunca comíamos em casa!

- Bom, - profere o Eng. ? Fontemora, ao cabo e ao resto o que é que essa tal corrente pretende ?

- Que se acabe para as mulheres o direito de exercerem a profissão de donas de casa, passando obrigatoriamente a empregarem-se e tornando-se desta forma úteis à colectividade.

- Nesse caso... os idiotas entendem que as donas de casa, acima de tudo Esposas e Mães, não são úteis?

- Exactamente!

- Nega-se à mulher o exercício da mais feminina das missões?

- Num país que se gaba do usufruto de uma liberdade absoluta.

- O país da Arabela... -lembro, lembrando-me...

O Fernando Vasco, que acaba de tirar os óculos escuros, fita-me.

- Ah, sim, tem razão! É o país da Arabela! - e noutro tom: - Por acaso... leu o artigo?

- Soube do assunto quando estive na Dinamarca, há meses. Era debatido em todos os tons, entre grandes aplausos e grandes censuras.

- E que pensa a minha amiga a esse respeito? - pergunta-me o Eng. ? Fontemora.

- Penso que se fabrica uma geração de monstros.

- Ou de desgraçados! - acrescenta o Fernando Vasco, com vivacidade. - Porque tanto podem resultar, de uma escravização dessas, seres abomináveis, sem qualquer noção de lar e

de pátria, como infelizes que nunca percebam o que andam por cá a fazer. De qualquer modo, isso é o fim da família.

- Na Dinamarca aventava-se a hipótese de que seria facultada à mulher a possibilidade de continuar em casa... mediante o pagamento de um imposto!...

Dona Maria do Espírito Santo observa:

- É claro que ninguém concordaria!... Trabalhar o dia inteiro no serviço doméstico e pagar ainda por cima... é demais!

- A ir por diante uma tal decisão, as criancinhas acabadas de nascer seriam entregues a quem?

- A Infantários estaduais onde os Pais os iriam visitar e buscar aos domingos, Sr. Engenheiro.

- Horrível coisa! E eu:

- Seria bem desejável que o Jean Paul em vez de um documentário fizesse dezenas deles sobre a situação das crianças nas ruas!

- Desejável, Madrinha ? Mas é mais do que desejável, é necessário! Tão necessário que a encomenda visa precisamente esse objectivo.

- Ah, Bom!

- " E onde vai ele filmar ? Na própria Suécia ?

- A Suécia não tem as crianças nas ruas. Tem-nas entre muros.

- Então? ...

- Os primeiros documentos são para realizar em França. Os seguintes parece que na Itália. Há muito que dizer sobre o problema.

- E ele tem sensibilidade bastante para o tratar? - inquiro.

- Tem, sim, Madrinha. O Jean Paul é um tipo notável. O que não lhe passará despercebido quando o conhecer.

- Vem ao teu casamento?

- Prometeu-me.

- com a Mãe?

- A Simone deve nessa altura estar a filmar em Tóquio.

- Vêm mais alguns dos teus antigos companheiros do Reichvater?

- O Luís Viegas Pastor, o Pepe de Castrilla e o Vic Nusen não devem faltar.

- E o Ma-Hur?... -gracejo. Ele ri.

- Não, embora tenha escrito afirmando que gostaria bastante de visitar Portugal. - sobre a toalha a mão dele, muito branca, vai prender a branca mão da Alicinha, enquanto acrescenta: - Se os meus projectos não forem contrariados pelo destino, tenciono levar a Maria Alice até Ichanagan.

- A passar a lua de mel?...

- Possível!

E Dona Maria do Espírito Santo:

- É o que eu digo! com os conhecimentos que tem, o Jacques podia convidar um príncipe para Padrinho... até mesmo por procuração!... Teria um destes chiques...

O Fernando Vasco, num gesto brusco, -volta a pôr os óculos escuros.

E a voz aguda da Alicinha soa:

A propósito de chique... eu venho muito

bem nas fotografias dos Jornais da manhã, pois

venho?...

A diversão assim oferecida não foi propositada, foi acidental, mas serve-nos às mil maravilhas para fugir do assunto perigoso.

Chegamos ao café a recordar incidentes, caras conhecidas, actos ocasionais, cada um de acordo com a sua maneira de ser.

Quando olho para o pulso, a perguntar ao meu adorável (e adorado) reloginho, quantas horas são, sobressalto-me. Três e um quarto! Tenho de ir buscar a Teresinha e a Luísa Maria!...

Também o Fernando Vasco precisa de sair, nem percebo para quê. A Alicinha vai com ele e retira-se para se preparar num instante.

Despedimo-nos.

- Então, meu querido Fernando Vasco, até Setembro?...

- Até Setembro!

- Passarás uns dias em S. Boaventura? Olha-me e tira os óculos de chofre. Deixa-me ver uma grande luz nos seus olhos azuis. A luz acesa por uma sugestão que lhe chega à alma.

- Sabe... eu não pensara nisso!... Não me lembrara sequer dessa possibilidade. Mas... mas a idéia agrada-me em cheio e acho que não

resisto à tentação de uns dias de férias na Quinta ao pé deles todos... ao pé da amizade e da pureza e...

Atalho a frase que a soltar-se-lhe dos lábios feriria a família Fontemora sem vantagens para ninguém - das melhores pessoas que existem no mundo...

- de um bom ambiente à antiga portuguesa, conservado pelas Serras que desde Eça de Queiroz não têm a mínima dificuldade em vencer a Cidade...

E ele, compreensivo e agradecido:

- É isso mesmo!

E depois de me beijar as duas mãos, cola na minha testa a boca enternecida.

- Se não fosse haver a Rosinha-Mãe, era a si que eu queria para minha Madrinha!

- Eu sei, meu filho! Mas graças a Deus que há a Rosinha-Mãe!

Cinco minutos à espera, toda dobrada para a janela do lado oposto a fim de ver a D. Aniceta lá em cima e poder ao mesmo tempo acenar-lhe um adeus e pedir-lhe desculpa por não subir mas na verdade tenho pressa de chegar a casa não vá a Emília dizer à Cristina e à Marta apenas que não estou... (e não estou realmente mas não demoro a chegar) o que talvez levasse as pequenas a voltarem para trás melindradas ou surpreendidas com o facto não de todo impôssível aliás, pois entre os meus diversos defeitos cabe o ser deveras esquecida. Pelo menos em certas ocasiões! Já me sucederam várias desgraças por causa disso. Certa vez convidei (com bastante antecedência) um casal conhecido amigo, Não! -para jantar, nunca mais me lembrei e quando eles chegaram, eu, confortavelmente sentada à lareira a ler (era no Inverno) nem sequer os reconhecia... (devo explicar que sou míope e estava sem óculos...) De outra vez aceitei um convite para jantar e esqueci-o tão completamente que quando os que me esperavam telefonaram admirados com a demora eu me achava a jantar em casa - recordo-me bem! - precisamente com os Lemos!

Por que será que de umas coisas se guardam tão nítidas imagens e de outras nem contornos esfumados?

A propósito de demora... que demora! Lá em cima, no andar da D. Aniceta, nenhuma janela se abre. Não teriam ouvido o klaxon?

E ei-las transpondo a porta da rua, direitas ao carro, a Teresinha, a Luisa e a D. Aniceta cada vez mais reboluda e grisalha, um sorriso de bondade imensa no rosto onde as rugas se multiplicam impiedosamente. Curioso! A D. Aniceta, que nunca foi bonita, pode considerar-se agora uma linda velhota.

Abro a porta do carro e recebo da antiga governanta dos Torredalto, que se põe de joelHos no assento ao meu lado, duas beijocas estaladinhas.

- Só assim, só assim é que a gente lhe põe a vista em cima, de fugida!...

- O tempo não dá para nada!...

- Eu sei, eu sei que trabalha muito, mas às vezes faz pena ser-se tão posto de parte!

- Não diga isso!... Quem é que a põe de parte?

- Ora, ora, quem há-de ser?... Quem é que não quer saber de mim há que tempos?...

Ela tem razão. Toda a razão. Mas não me rendo.

- E a senhora, de mim, quer?...

- Eu?

- Pois. Por que é que nunca me faz uma visitinha, an?

- A gente nunca sabe se está no país, se está em casa... e se está em casa acha-se tão ocupada que um simples telefonema é capaz de lhe causar transtorno!...

Tudo isto tem a força do incontestável.

- Quem gosta de mim aceita-me como sou.

- Claro!

- Portanto a D. Aniceta telefona-me a prevenir que vai passar uma tarde comigo, aparece e o mais que pode acontecer é ficar a olhar para mim durante duas horas sem que eu dê pela sua presença!...

Ela ri com gosto.

- Então qualquer dia destes lá me tem!

- Combinado! - e para as pequenas: -Vamos, filhas?

Enquanto a Luisa se instala no banco de trás, a Teresa espera que Aniceta abandone o lugar. Mas ela tem qualquer coisa a dizer.

A Teresinha leva que contar, sabe?... pela expressão, deduzo que a Teresinha não terá nada a contar, a não ser que repita ou desenvolva o que a boa criatura estala por me revelar.

Pressinto que são notícias dos Torredalto. Ou dos Souzelo (a Maria Helena assina apenas o nome do marido).

- Ah, sim? - incito-a, interessada, mau grado a pressa.

- A S'Dona Maria Alice escreveu-me. Eles vêm aí.

Encaro a Teresinha, em busca da reacção que haja podido sentir. Está calma.

- Vêm aí, quem? - pergunto. - A Maria Helena e o Eng. ? Souzelo?

- Não, não! A S'Dona Maria Alice e o Sr. Torredalto! - e explica, volubil: -Aquilo tem por lá havido mosquitos por corda! Parece que o Sr. Torredalto entrou em completo desacordo com a menina Maria Helena (- para ela a Maria Helena será sempre menina, a menina para a qual tanto representou a boa governanta -) por causa dela continuar a querer à viva força o casamento da Teresinha com o tal sujeito. A princípio, o Sr. Torredalto não ligou grande importância ao assunto. Se a Teresinha tivesse

concordado, ele deixava andar. Mas depois de tudo quanto se passou ele acabou por se indignar deveras e parece que as disse bonitas à filha e ao genro.

- Lembrando-se de coisas antigas, com certeza!

- Lembrando-se e lembrando-lhas!...

- Claro!

- E então o Sr. Torredalto declarou à menina Maria Helena que vinha para o pé da neta, pois queria que a Teresinha tivesse um lar capaz de a proteger e abrigar.

As voltas que o mundo dá!... Eugênio Torredalto a defender o que outrora teria atacado...

Uma só pergunta minha (não vale a pena alargar-me em considerações):

- Quando chegarão?

- Ao certo não sei, mas são capazes de não demorar. Lá nisso, o Sr. Torredalto ainda continua a ser de decisões rápidas.

Também eu preciso de me decidir rapidamente a sair daqui. Não subi porque não podia demorar-me e agora apetecia-me conversar com a velha Aniceta acerca de tanta coisa que estava tão arrumadinha no recanto onde se guardam as recordações do passado...

Uma buzinadela inesperada e impaciente atrás de mim dá-me o empurrão para a partida.

- É o autocarro, zangado! - esclarece-me Aniceta. - A S'Dona Odette está a tomar-lhe o lugar!

Ele Tem a rua livre para passar. a paragem é aqui à minha porta!

Realmente... lá está a tabuleta... EStava um bocadinho mais atrás!... protesto.

E a Teresinha, muito lúcida.

Isso era se o motorista fosse dos simpáticos... mas este deve pertencer ao grupo dos antipáticos.

- Pronto, pronto, saio já! -pois se tenho

mesmo de ir!... E com a razão da minha sem razão, faço um gesto repetido com a mão esquerda a aconselhar ao motorista impaciente "calminha".

Aniceta dá-me mais duas beijocas, sai do automóvel, a Teresinha entra, fecha a porta e eu arranco.

Até breve!.

Durante alguns instantes guio calada dominada ainda pela presença do que parecia haver-se afastado para tão longe. Até que não posso deixar de dar forma a um pensamento que se torna principal entre os demais. Como reagira a Teresa ante a iminência da vinda dos avôs. Ou melhor-quais serão as suas impressões neste momento?

Relanceio o olhar para ela. Parece extremamente serena, entretida com o trânsito.

- Teresa? ...

- Sim, Madrinha?

- Estás satisfeita?

Sou menos que pouco explícita, mas ela sabe o porquê da interrogação.

- Estou.

- Achas bem que os teus avós venham ?

- Acho bem. Sinto que doravante não preciso de recear mais nada.

- Deve ter-se passado por lá qualquer coisa.

- Sim, pela certa uma zanga que obrigou o avô a esta resolução.

- É espantoso que seja precisamente o teu avô, o Eugênio Torredalto que eu conheci inflexível, a tomar uma atitude contrária à que outrora assumiu para com a tua Mãe!

E ela, com uma vozinha muito doce:

- Mas o meu avô continua inflexível. Um reparo transbordante de lógica. E a Teresa acrescenta:

- Só que apoia as suas convicções em pontos de vista diferentes dos de antigamente!

Estamos chegadas a casa.

O assunto fica-se nesta afirmativa com a qual a rapariguinha confirma que se tornou capaz de ter opiniões suas. Todos podem ter opiniões desde que aprendam a destrinçar o mal do bem e a saberem o que querem. E isto é independente por completo do ser-se ou não adulto. Há adultos que nunca sabem o que querem e que acima de tudo se afiguram incapazes de diferenciar o bem do mal. Por que podem catalogar-se como estúpidos?... Confesso que hesito entre aceitar esta definição ou admitir que apenas se deixam guiar, esses, por um agudo sentido das conveniências que os molda de forma a tudo estar certo quando facilita os seus interesses.

bom, mas ponto final no que assim me preocupa.

Este não é o caso da Teresa (nem o do avô) e o dia de hoje continua. Necessito de vivê-lo.

A casa está em ordem.

A Cristina e a Marta ainda não chegaram. Disponho-me, mais a Teresa e a Luisa Maria e segundo o que combinámos enquanto subíamos as escadas (o meu prédio é de três andares, bastante antigo e não possui elevador) a preparar tudo para servir a merendazinha. Simplesmente... Só nos resta colocar em pratinhos o que trouxemos da rua. Ou com mais correcção de forma, o que comprei na charcutaria-bolaria "Delícia de Mel".

A mesita está pronta. Xícaras azuis sobre a toalha prateada que me ofereceram no último Natal. Linda, executada em tear manual. Um bolo grande, com bom ar (deve ser de nozes). Bolachas de baunilha e sanduíches de queijo.

As pequenas miram-me divertidas com o meu espanto.

Não, a sensação que me domina não chega a ser de espanto. Conheço bem demais a Emília e a sua eficiência lutando contra a intratabilidade... Ah, mas não! Se ela julga que desisto de a levar ao Médico rotulando mais uma vez a sua loucura de maldade, engana-se.

Porque se se confirmar a maldade, creio bem que não há doravante eficiência, que a salve de fazer as malas desta feita definitivamente.

Uffff!

Soaram há instantes as 16 h. nos meus relógios (o velho-novo do ferro-velho e o novo-velho do tempo de Napoleão). E, quase simultânea, a campainha da porta retine.

A Emília, impecavelmente fardada, sorriso dos dias bons, corre a abrir, desfaz-se em atenções para as recém-chegadas que tomam conta cada uma de uma das minhas mãos.

E assim nos sentamos no sofá. Eu no meio delas. A Teresinha e a Luisa Maria entendendo que nas poltronas fronteiras ficam demasiadamente afastadas, instalam-se no chão aos nossos pés.

Durante os primeiros minutos a tagarelice difusa faz lembrar o vento quando instável. Ora para um lado, ora para o outro... Nem eu própria sei o que digo e oiço. Até que insensivelmente me acho, de pergunta em pergunta, a conduzir a conversa.

- Então o Liceu, como vai? Esse 7º ano?

E a Marta:

- para mim vai estupendo. Para a Cristina vai decente, (-a Cristina ri, as covinhas nas faces mais acentuadas do que nunca-). Para as nossas colegas, das formas mais diversas!...

- Para a Inês?

Benzinho. Decidiu-se por uma arrancada

final em boa forma.

Influência do Artur! - explica a Cristina. - Ela resolveu tornar-se para ele num motivo de orgulho!

- Isso é óptimo! - aprovo.

- Pois!

- E a Helena, tão estupenda como tu, Marta?

- Sob o aspecto de trabalho, ela não pode ser melhor. Dá um rendimento fantástico.

- Parece que existe um certo retraímento nas tuas palavras, ó Marta?

- Sabe, a Helena foi sempre a mais afastada de nós, a mais desinteressada dos nossos casos, dos nossos problemas...

- Pois!

- E agora então vive como se o seu mundo não fosse o nosso. Às vezes mete confusão o alheamento dela.

- É uma rata sábia! - exclama a Cristina.

- Tudo quanto aprende é pessoal e intransmissível.

- Queres dizer que estuda por prazer próprio?

- Isso!

- É bom gostar de estudar. - declaro.

A Marta abana a cabeça.

- É bom gostar de estudar mas não para se armazenar tudo dentro de nós sem nos tornarmos úteis fazendo com que a nossa luz sirva para iluminar à volta! Não concebo um Médico que adquirisse ciência, ciência, ciência, sem ser para exercer clínica ou para se dedicar a investigações. Nem um Advogado a tornar-se num compêndio de leis que não tencione pôr à disposição do bem comum!

- Nem um Pianista a aprender vinte concertos maravilhosos para os tocar num estúdio isolado de modo a não deixar que os apreciadores de música se consolem com o mais pequenino acorde...

Dá-me vontade de rir a forma como a Cristina acaba de exprimir-se procurando levar-me a falar do Vic Nusen. Mas não, ainda não chegou o momento de me ocupar deles. De eles. Estou muito interessada nas opiniões da Marta. Estamos, que a Teresinha e a Luisinha parecem beber-lhe as palavras, ouvindo-a de boca aberta.

- Tens razão, Marta. Quem se isola com os seus conhecimentos torna-se estéril.

- Como o dinheiro de um avarento, não acha?

- Acho, sim!

- Parece-me que devemos saber o máximo para servirmos os que precisam de ser esclarecidos.

- Por isso continuas a pensar em ser Professora ?

Oh, sim, continuo! Temos projectos.

Desde o fim do Verão passado, creio... e a minha alusão ao Domingos, ao feitor da Quinta de S. Boaventura, é tão clara que a Marta cora na emoção da oferta que assim lhe faço. Na verdade, ela queria falar-me do namorado. Pode já referir-se-lhe à vontade. Dei-lhe a deixa...

Os seus olhos meigos resplandecem.

- Tenho conversado muito com os Pais acerca do meu futuro com o Domingos. E eles acreditam que o meu destino está traçado. A princípio fez-lhes uma certa impressão, parecia-Lhes que o meu casamento com um rapaz de instrução medíocre (não vale a pena dizermos o contrário da verdade, nunca, porque a verdade não se modifica com as nossas conveniências!) para quem a terra é o próprio sangue, ia ser um falhanço para mim. Primeiro porque, atendendo ao meu gosto pelo estudo, às minhas possibilidades de tirar um curso com elevadas classificações, sempre pensaram que eu me destinaria a uma situação de relevo. Depois porque o desnível de meios os afligia, não fosse eu deixar-me arrastar por um impulso de generosidade que me impusesse sacrifícios sem qualquer ventura pessoal.

- Espera aí, Marta. - atalho.

- Sim?

- Tu queres dizer que os teus Pais recearam que te inclinasses para o Domingos não por gostares dele mas para praticares um acto de caridade, supúnhamos?

- Tal qual!

- Ó filha... mas... não seria de admitir em ti, num tal caso, uma vocação quase de Irmã de Caridade? Tu és muito boa rapariga, bem sei, mas boa a esse ponto, acho um pouco de exagero admiti-lo...

Ela sorri-me.

- Em parte, o temor dos meus Pais estava bastante fundamentado e exactamente porque me viram crescer a pensar cada vez mais da mesma forma - esta de entender que o nosso bem nunca pode ser egoistamente só nosso. Percebe?

- Percebo. Mesmo assim, num caso de doação total de uma vida... ? Podias ser útil de muitas outras formas! Nada te obriga a dedicares-te apenas à felicidade do Domingos.

- com certeza. E eles agora já sabem isso. Compreenderam depois de o conhecerem. O Domingos é Bom, é puro...

Evoco de súbito:

- bom como a terra... Um bloco de granito com todas as qualidades das coisas difíceis de modelar...

- Ah, sim... é certo. Eu disse um dia essas palavras.

- Que confirmas ?

- Sim, confirmo-as. Inteiramente! Julgo que gosto dele para a vida toda. E estamos ambos a trabalhar para estabilizar essa vida da melhor forma.

- Isso significa que tu te enraízas na intenção de fundares o tal Colégio que há-de espalhar luz na região serrana para onde um dia irás viver?

- Tudo em nós e nos nossos planos precisa de ganhar raízes. E repare... até nos aconteceu uma coisa maravilhosa!

Espero-a, à revelação da coisa maravilhosa.

- O Domingos outro dia escreveu-me e falava de uma casa que acabava de ser posta à venda em Penarim, uma casa que até metia raiva se se pensava que ia parar a outras mãos quando era ideal para o Colégio com que sonhamos, que temos de arrancar de dentro dos nossos sonhos... Imagine, Madrinha, mesmo no largo de Penarim, ao lado do Café... recorda-se?

O largo de Penarim, as grandes árvores seculares, as alamedas do jardinzinho florido, o chafariz lá ao fundo, a estátua ao centro dedicada a um antigo benfeitor cujo nome não me ocorre, o Café "Ao Saboroso", e o grande solar barroco pertença de uma família radicada no Brasil há longos anos...

- aquela casa que fazia esquina para a rua dos Trotadores, com uma cerca que nunca mais acaba?... - indago.

- Essa mesma.

- Sim, não há dúvida. com umas obras dava um Colégio sensacional!

- Dará, se Deus quiser! -e resplandece Mal ouso crer no que antevejo.

- Como?...

- Quando recebi a carta, falei do assunto aos meus Pais, naturalmente. Mas tão longe do que ia suceder!... Imagine só - o Pai e a Mãe no sábado passado declararam que tinham de tratar de um assunto dos negócios do Pai nem sei onde, meteram-se no carro e abalaram. Voltaram no domingo à noite. Só queria que visse o meu Pai! Parecia um rapaz pequeno a quem oferecem um brinquedo novo!... E estava tão feliz que não podia guardá-lo só para ele, ao brinquedo.

- Tens a quem sair, Marta! E ela:

- Começou a mangar comigo, querendo saber o que lhe pagaria eu em troca de uma notícia. Ofereci-lhe dois beijinhos. Requereu meia dúzia adiantados que dei do fundo do coração. E recebi a notícia.

- O teu Pai compra-te a casa?

- É isso -e há lágrimas de alegria nos seus olhos cada vez mais doces.

- Não podia ser outra coisa!

- Não?

- Não, perante o que conheço da sua compreensão, da sua inteligência. - e logo quero saber: - Foi muito cara?

- Não tanto como de início se julgaria. O procurador dos donos até disse ao meu Pai que os proprietários não estavam conscientes do valor da propriedade... - e como que temendo qualquer censura: - Mas disso nós não temos culpa, pois não?

Para o efeito a que se destina, nem que fosse de graça estava certo!

Pois... de graça não foi.

- Quanto, Marta?

- Novecentos contos!

- Nada mau.

- Mas só as árvores da cerca valem mais de metade do preço!

- Espero que não precisem de cortá-las...

- Algumas hão-de ser vendidas, quando se iniciarem as obras.

- -e penso no parque frondoso do Reichvater lá na Alemanha, que tão bem conheço de descrições e fotografias (ai as fotografias para o João Alfredo!) com as suas árvores seculares. Podermos ter um Colégio assim, entre nós!

Ela dir-se-ia adivinhar-me os pensamentos.

- Há que sacrificar algumas árvores, Madrinha, para fazermos os campos de jogos e a piscina.

- Ah!...

- Tentaremos algo de semelhante ao Colégio de Verão onde estiveram o Pedro e o Paulo.

A Cristina acrescenta:

- E o Fernando Vasco! - e a apressar a Marta com a sinceridade da sua maneira de ser: - Vê se contas tudo rapidamente que eu também quero falar!

A Luisa Maria e a Teresinha riem, divertidas, qualquer delas esquecida de que a vida não lhe promete nada comparativamente com o tanto que promete a estas duas.

- Acho uma idéia maravilhosa! - declaro.

- Mas difícil de pôr em prática. Principalmente porque tem de levar tempo...

- Tempo e dinheiro! Aliás é isso o que nos ajuda!

- Como?

- De outra forma não seria possível. O meu Pai ficou... - e esboça com a mão livre (a outra continua agarrada a uma das minhas) um gesto que significa em termos familiares liso...

- Sem cheta... -traduz a Cristina, que fala o seu pedacito de calão.

A Marta prossegue:

- Há que repor no monte durante uns tempos! E depois começar as obras, devagarinho. Aliás não há pressa, não adianta ter pressa! Só no fim do curso posso dirigir o Colégio.

- Ah, sim, claro! E... quantos anos são necessários para concluir o Magistério?

- Primeiro tenho os anos da Faculdade. E depois as Ciências Pedagógicas e a tese. Na melhor das hipóteses uns seis ou sete anos. Entretanto há muito que fazer lá, para além das obras, já se vê. Estudar os melhores métodos de ensino nas melhores Escolas (e os meus Pais entendem que eu devo daqui em diante aproveitar algumas das nossas férias para uns breves estágios nos principais Colégios da Europa), ir recrutando Professores jovens e competentes...

- principalmente competentes!

- Isso! - e prossegue: - Mas também jovens, cheios de genica e capazes de se consagrarem à obra. - põe-se a rir: - Ali, Madrinha, tudo precisa de ganhar raízes!

- Acho bem.

- Além do mais, os novos não têm ainda tantas exigências materiais como os outros, é evidente! E por isso podem nos primeiros anos colaborar connosco sem precisarem de ordenados grandes que só o tempo nos permitirá conceder.

A Teresinha faz-se ouvir:

- Os primeiros anos são também os de ajustamento ao meio. Há que conquistar a confiança dos Pais e a preferência dos alunos!

- Tal qual! De resto tencionamos principiar a nossa propaganda uns dois anos antes da inauguração do Colégio...

- que se vai chamar? - interrompo.

- Ainda não sabemos. O que sabemos, e isso dá-nos uma grande alegria, é que os meus Pais estão dispostos a acompanhar-me para Penarim e a dedicar-se à obra da maneira mais proveitosa. A minha Mãe dirigi-lo-á como... digamos... uma governanta, ou seja, tomando conta do pessoal doméstico, orientando limpezas, alimentação...

- Mister de dona de casa!

- Isso!

E a Luisa Maria, revelando conhecimentos que de súbito me fazem lembrar das horas (17 menos 15...).

- Como a Mãe de São João Bosco, quando foram para Turim. Foi sempre quem olhou pelo Oratório.

- Enquanto viveu! - especifica a Cristina.

- Pois pudera!

(explicando a associação de idéias que me obrigou a olhar para o meu reloginho querido Rosarinho e a sua cultura acerca do Apóstolo da Juventude, Teresa Mafalda aguardando-me antes do jantar em casa de Ana Margarida...)

As pequenas não dão pelo meu gesto de consulta. E a Marta prossegue:

- Quanto ao meu Pai, esse tenciona ocupar-se da Secretaria. O que isto representa de auxílio, é estupendo! E sabe? Há colegas minhas do Liceu a quem falo do meu projecto e que estão tão entusiasmadas que querem vir a ser Professoras...

- Marta...

- Madrinha ?

- "E... o Domingos?

Ela não percebe, assim de repente.

- O Domingos?

- Sim, o Domingos, no meio disso tudo, que representa?

- Mas...

Já sei, já sei que ele é a pedra onde apoias quanto começaste a construir - porque não há dúvida nenhuma de que começaste mesmo. Pretendo saber agora qual a missão que lhe cumpre realizar.

- Em relação ao Colégio propriamente dito, nenhuma, a não ser dar aulas de lavoura.

- Estás a brincar? - e antecipadamente sei que não está.

- Não, não! Somos da opinião que esta coisa de ignorar como nascem as couves e como se tratam as árvores precisa de acabar!

- Concordo contigo. Mas... e além dessas tais aulas em hipótese ?

- Dirigirá a Quinta e a Queijaria que (ai e a propósito, o Domingos escreveu-me a dizer que o Pedro lhe comunicou a vinda da família, em Setembro e que por isso o estábulo há-de estar prontinho com as suas cinqüenta vacas lá dentro custe o que custar!) se Deus quiser há-de dar tão bom rendimento como a propriedade, uma vez atingido o nível a que tem de chegar e chega com certeza!

Tudo isto são coisas queridas, coisas que me interessam enormemente e apetece-me desatar a falar de S. Boaventura ("como eu gostava de conhecer a Quinta" - suspirou a Luisa Maria pelo meio das falas da Marta -) e saber notícias de tanta gente com quem a força do dia-a-dia me obriga a perder o contacto durante meses que perigosamente se tornam anos. Mas nem pelo velho Tomás pergunto.

Cinco horas no meu reloginho de pulso. Cinco horas lá dentro nos meus relógios velho e novo (velho-novo do ferro-velho e novo-velho do tempo de Napoleão).

- Filhas, vamos lanchar. Upa!...

E eis-nos de volta da pequena mesa sobre a qual quatro mãozinhas ligeiras colhem isto e aquilo com ar sôfrego de pardais em campo de trigo.

- Chá ou refrescos ? Ora... refrescos, sabe-se!

A Emília serve. Não sei com que ar. Não me apetece nem sequer investigar. Estou tão bem disposta!... A Cristina quer agora que eu a oiça, a ela. Um desejo mais do que razoável.

- Pois eu cá...

- Espera que ainda não acabei! - protesta a Marta.

- Oh, que maçadora! Eu é que devia ter falado primeiro que tenho menos que dizer.

- Isso? ...

- Tenho, tenho!

- Pois então agüenta um bocadinho. Já não demoro nada!

- Olha, vingo-me a comer!

- Come. Se ficares uma bucha logo se vê!

- Não sou da qualidade de engordar.

- Daqui a uns anos conversamos!

Corto o diálogo, que se elas o encadeiam nem uma acaba nem a outra principia...

Marta, requeiro a comunicação final.

Ah, pois! - e diz, resplandecente: Sabe que o Domingos é capaz de não fazer o serviço militar?

- Se eu acredito? ...

- Realmente, dito assim parece uma história da Carochinha, mas depois de explicado...

- Explica-te.

- O Domingos, aqui há cerca de duas semanas (olhe, Madrinha, precisamente no dia em que depois me falou da casa para o Colégio!) ia de Penarim para a Quinta, já era de noite, e encontrou empanado perto de S. Boaventura um automóvel com uma senhora e um senhor de meia idade e duas crianças, por sinal duas meninas chamadas Inês e Joana. O senhor estava apoquentadíssimo porque não tinha forma de reparar a avaria do carro e não podia arredar pé dali, primeiro porque nem sequer sabia onde ir e àquela hora, segundo porque a senhora morria de medo só com a idéia de ficar no meio da estrada com as pequerruchas que acho que eram lindas como os amores! E então o Domingos ofereceu asilo a todos na Quinta de onde telefonou para um rapaz da vila, que é Mecânico, para ir ver o carro. O rapaz foi... mas era necessária uma peça que estava partida e essa só mandando-a vir de Coimbra ou de Viseu no dia seguinte.

- E dizias tu que isso "não demorava nada?" Até parece que dá para um folhetim em episódios...

A Marta não liga. Está entusiasmada demais para se preocupar com a exprobação aliás justa da Cristina.

- E como não havia volta a dar-lhe, os senhores ficaram na Quinta. A Joana matou à pressa uma galinha, fez canja, tirou lombo de porco da banha, cozeu batatas...

- Ai, com menu e tudo o melhor é eu voltar amanhã!...

- Depois foi abrir-lhes o quarto onde costumam dormir os Pais Macedo e os tais senhores, claro, ficaram encantados. E muito mais encantados ficaram no outro dia de manhã quando o Domingos lhes foi mostrar a Quinta e as obras! E o senhor era um nunca acabar de perguntas e mais perguntas...

- Vais repeti-las, uma por uma ? Tivemos de rir com a interrupção. Até a Marta que porém e imperturbável continuou:

- E o Domingos lá lhe foi contando os seus projectos e acho que também os nossos sonhos.

Nesta altura não posso deixar de inquirir:

- Ó Marta, em que pode tudo isso ter ligação com a hipótese de vir a ser dispensado do serviço militar um rapagão como ele?

- Já vai!... - e engolindo um bolito dos secos quase inteiro: - O tal sujeito, em dado momento, perguntou-lhe se ele já fizera a tropa. O Domingos respondeu que dera o nome e estava à espera de ser chamado para a próxima incorporação. Então o senhor quis saber que estudos tinha ele e aí o Domingos fez um relatório bastante completo da sua vida, enquanto a sr.a Joana parece que contava à senhora, que cansada do passeio fora sentar-se na cozinha junto dela enquanto as meninas brincavam ao pé dos passarinhos - (os descendentes dos mimitos da Ana Maria) - a vida dele desde que o recolheram. A Cristina suspira:

- Não sobra nem migalha de tempo para mim, estou mesmo a ver! E pensar que vieste comigo por acréscimo!...

- Estou no fim! - garante a Marta, sem se melindrar com a alusão.

E eu, sorrindo:

- Continuo no entanto sem descortinar o ponto de ligação entre o acontecimento tão bem descrito e a esperança com que iniciaste a tua reportagem.

- Ó Madrinha, é que o tal senhor perguntou ao Domingos se a ele lhe convinha não ter que passar três ou quatro anos longe da Quinta! E o Domingos respondeu que era um atraso grande, claro, mas que enfim os seus deveres de português estavam à frente de tudo.

- Ah? ... -começo enfim a vislumbrar a possível ligação dos factos.

- E a isto o senhor volveu-lhe que talvez os deveres dele, Domingos, estivessem concentrados precisamente ali, na Quinta! E tudo com um ar... Bom, com um ar que o levou a admitir que o tal senhor era uma pessoa importante e que tudo quanto se passara fora obra da Providência, pois a verdade é que a idéia de ter de abandonar a Quinta estava a tornar-se num autêntico pesadelo! Quem iria tomar conta da propriedade e do pessoal? com o Tomás já não se pode contar, de tão velho e doente... Havia de ser tudo a andar para trás!

- Sim, realmente! Mas... e o tal senhor, como tu dizes, prometeu alguma coisa?

- Não, prometer não prometeu! O Domingos é que pensou...

- Ó filha, oxalá isso viesse a ser verdade. Mas o que se passou parece-me pouco para vocês se deixarem embalar numa crença afinal tão sem fundamentos.

- Pois... também acho. Mas contudo sinto como o Domingos uma fé... ai, uma grande fé! - e sorri-me tão luminosa que nem mais refuto o que oiço: - E a fé... quando existe, não se explica, pois não? É das tais coisas que há... ou não há!

Seis tins nos meus relógios, no velho-novo do ferro-velho e no novo-velho do tempo de Napoleão, a chamarem-me à necessidade de arranjar-me num instante para comparecer onde me esperam.

A mesa já não atrai as quatro mãozinhas que a deixaram como campo de trigo onde os pardalitos se saciaram. Vazia...

Filhas, lamento imenso... mas tenho de me retirar.

- Ooohhh!...

Encaro a pobre da Cristina que não disfarça o seu pesar.

- Vens amanhã ou depois falar-me do Vic Nusen... que é isso o que queres, pois é?...

A Marta, de súbito, sente remorsos de haver açambarcado o tempo todo.

- Oh, Cristininha, efectivamente... portei-me muito mal! Mas o tempo passa tão depressa! Desculpa!...

- Eu desculpo... mas... -e faz beicinho. Decido consagrar-lhe cinco minutos.

- Vá... dá-me notícias dele! Tudo corre bem?

- Muito bem! Vai interromper agora as suas apresentações (as últimas, em África, foram êxitos sucessivos) para durante dois meses preparar um novo repertório. Depois vem aqui passar uns dias de férias, em Setembro...

- (Céus, Setembro! Setembro, que grande mês!

- penso) - e em Outubro parte para uma tournée pelas Américas.

- É tudo?

- É!...

Mas na entonação deste é diviso uma negativa. E os cinco minutos passaram.

Levanto-me.

A pequena suplica:

- Deixa-me ir para o pé de si enquanto se prepara?

Encaro-a. E de repente apercebo-me de uma extraordinária profundidade neste olhar que costumava parecer-me o de uma garota despreocupada, tão despreocupada que ela era a Maria-Rapaz do grupo...

- Vem, Cristina.

Ela segue-me, enquanto as outras voltam para a salinha de estar.

A Emília aparece, a perguntar o que desejo para vestir.

- Não te preocupes. Eu trato de mim.

- E quem janta ? - quer saber, sem se mostrar ofendida pela dispensa dos seus serviços.

- Quem janta? ... As duas meninas, só. Faz-lhes bifes, ovos estrelados e batatas fritas.

- Madrinha ?

- Sim, Cristina?

- Não podem jantar em minha casa, a Teresa e a Luisa?

- Podem!... Vai avisá-las, que eu faço um desvio e levo-as a todas. - e para a Emília, enquanto a Cristina sai para dar cumprimento à ordem: - Arranja um bife para ti.

Ela volta costas sem mais palavra. E eu retoco a maquilhagem, rápida como sempre. E envergo um vestido de malha de seda

castanho escuro, com cinto de verniz. Estou tão ocupada a despachar-me que nem dou pelo regresso da Cristina se não quando me volto para tirar do roupeiro o casaco de fazenda de gabardine beje. - Ah! ?...

E de novo a profundidade do olhar dela me impressiona. Um olhar que aceita o meu, que deseja o meu até lá dentro, até uma alma onde se agita, sei-o agora, uma ansiedade imensa. Ansiedade que se forma em palavras. Numa interrogação.

- Madrinha... não me julga à altura do Vic, pois não? Imagina-me útil e inconseqüente... porque me conheceu brincalhona e um pedaço cábula... ?

Não posso refutar o que escrevi e ela leu. Nem tenciono fazê-lo porque se não quisesse que ela soubesse dos meus receios não os exprimia. - (e isto faz-me lembrar uma senhora que conheço e um dia me advertiu de "que nunca me atrevesse a escrever nada a respeito dela... " - também não escrevia que não valia a pena! -).

Num aceno, confirmo a minha opinião, ou antes, os meus temores.

- Madrinha... sou muito melhor do que pareço... e hei-de aperfeiçoar-me até ser capaz de merecer o Vic! O que eu queria dizer-lhe era isto - não me casarei senão quando me sentir segura de poder pensar como a Rita Abegorim, sempre primeiro nos outros.

Tim!...

Meu Deus, 18 h. e 30 e eu aqui!

Abro os braços à Cristina e aperto-a com força. Neste gesto de ternura, a minha resposta. Doravante deixarei de ver inconvenientes na inclinação que os aproxima, a ela e ao Vic. Sim, perante uma atitude como esta, tenho de reconhecer que a mulher consciente pode emergir da rapariguita turbulenta como a borboleta da crisálida.

E eis-nos, às cinco, a correr pelas escadas abaixo.

E eis-me, com elas atrás de mim, a abrir a porta do meu automovelzinho.

E nisto:

- Eh, eh... Madrinha!...

- Olha o Pedro! - exclama a Marta.

O Pedro, de mãos estendidas para nós todas. Numa delas, um pequeno embrulho.

- Mais um pedacito e não a apanhava! - e entrega-me o embrulhinho. - São as fotografias do Paulo. Creio que encontra aí material suficiente para documentar a Ilha dos Pêssegos.

- Obrigada, Pedro.

- Deseja vê-las num instante ?

- Não, filho. Logo ou amanhã. Estou atrasadíssima e ainda preciso de ir deixar as meninas em casa da Cristina, onde jantam.

- Lá por isso eu levo-as, quer?...

Se quero! Até agradeço muito!

a Cristina (ser brincalhona e maliciosa não contesta virtudes!) a rir:

A Rosarinho não irá pedir-te contas de

andares com quatro de uma vez?

E ele, numa careta:

- Primeiro antes com quatro do que só com uma. É menos perigoso. E depois a Rosarinho tem confiança em mim!

- Coitada, não sabe a prenda que lhe sai na rifa!...

Vejo-os rir e oiço-os gracejar. E de tão encantada nesta contemplação esqueço-me de que tenho realmente pressa. De tal maneira "que só dou pelo pouco tempo de que disponho quando eles (elas e ele) me acenam os últimos adeuses do carrito verde que se afasta com a velocidade possível.

São sete em ponto, no meu reloginho de pulso. Sete e quatro minutos no relógio carrilhão que nesta casa costuma bater horas felizes mesmo quando dentro delas cabem problemas.

Há horas felizes com problemas e horas infelizes sem nenhuns. Porque estas resultam de uma vida aprisionada pela dor, uma dor onde os dias se encostam sem nada que os agite. Tudo tão mau que não pode ser pior.

- Tudo tão mau que não pode ser pior... e a frase solta-se devagarinho dos lábios de Teresa Mafalda Abegorim, aqui sentada à minha beira no escritório do marido, a propósito de Ana Margarida.

Ana Margarida de Ribatorpes.

- Dão-me licença ? -pergunta alguém da porta.

- Entra, Casimira!

Ah... a tia Casimira!... Casimira Abegorim, com o seu ar de eterna menina, adianta-se para nós a sorrir, soltando-se enfim do conhecimento formal das escadas e da rua onde desde há tanto nos cruzávamos sem nos darmos as mãos.

- Eu podia, muito fingida, inventar uma justificação para vir aqui meter-me... mas prefiro pura e simplesmente utilizar a verdade. quero estar ao pé das duas. Principalmente, ao pé de si de quem as minhas sobrinhas cada vez falam mais! - e instala-se ao meu lado. - Isto confessado, aceitem a minha compreensão pelo caso de que se ocupam e tu, Teresa Mafalda, continua o que ias dizendo acerca da Ana Margarida.

- Ah, sim... é que realmente aquilo está tudo tão mau que não pode ser pior!

- A partir do momento em que as coisas atingem esse extremo, há que acreditar no início de um retrocesso.

- Quem me dera possuir a tua faculdade de acreditar, Casimira!

- Eu penso como a S'Dona Casimira...

- Casimira! Por enquanto... só.

Pois... - e corrijo: - Como a Casimira...

enquanto não se torna na Irmã Casimira... é?...

- É.

Pois... eu penso como a Casimira. Talvez se dê um movimento contrário naquele lar tão duramente experimentado. Mas enfim, não se trata agora de o admitir ou não, pois julgo que a Teresa Mafalda deseja pôr-me ao corrente de qualquer coisa prestes a acontecer.

- Sim, precisamente! Ontem de manhã fui a casa da Ana Margarida, a pedido dela.

- Também a pedido dela vou lá jantar.

- E ela espera-a ansiosamente.

- Passa-se alguma coisa com a Catarina?

- Não, não há quaisquer notícias da pequena. Sumiu-se. Por tal sinal que o meu marido e o Dr. Lemos precisam de contactar com ela e não sabem onde procurá-la. Creio que a polícia terá de pôr-se em campo para lhe descobrir o paradeiro.

- Está para aí em casa de alguma amiga do gênero dela. - sugere Casimira.

E eu:

- Aparece quando se lhe acabarem os mil e oitocentos escudos que lhe dei naquela noite.

- Não acredito que ainda lhe reste alguma coisa. Nunca soube poupar, nunca foi habituada a isso.

- Nesse caso... ?

- A Ana Margarida admite que ela se encontre a viver à custa de alguém. Desgraçadamente, não conserva ilusões acerca dos escrúpulos morais da filha. E a noção do mal de que não pode salvá-la junto ao afastamento do João Alfredo arrastam-na para a situação em que se encontra.

- O afastamento do João Alfredo ?

- Não tem falado com ele ?

- Quase nada.

- Anda a tratar dos papéis para se alistar e ao mesmo tempo a arranjar a casa cá de baixo.

- Cá de baixo, como ?

- Acaso ignora que este prédio pertence aos Ribatorpes?

- Completamente.

- Pois é deles.

- Não me diga que o João Alfredo vem habitar o andar que foi da S'Dona Ester?

- Exactamente. O primeiro andar.

- E a Ana Margarida deixa-se afundar por causa de uma coisa que pareceu aceitar tão bem?

- Ela aceita, o que não sabe é sobreviver!

- Como?

- Não sabe sobreviver!

- Não poderá, agora que está completamente livre, continuar a existência que levava?

- Não quer. Diz que o horror que tudo isso lhe inspira é tamanho que deseja libertar-se do tempo mal gasto como quem despe um vestido! Se a visse como eu, ontem, a andar pelo meio de todas aquelas preciosidades com uma expressão de autêntica repugnância...

Talvez seja uma atitude transitória!

- Talvez!... E é precisamente o que interessa agora perceber. Irá reagir ou, pelo contrário, afundar-se cada vez mais naquele desejo de desaparecer?

- Desejo de desaparecer?

- Sim.

- Assusta-me!

- Vim de lá assustadíssima.

- Tem alguma idéia acerca do que ela pretenda comunicar-me?

- Sinceramente, não! Mas admito que por instinto, digamos, aguarde de si um ponto qualquer a que se agarre.

- Como o náufrago que espera a bóia de salvação?

- Isso!

- Acredita que eu seja capaz de conseguir influenciá-la? - (e penso com súbito desespero que Ana Margarida também precisa de uma Ilha dos Pêssegos que para ela eu não conseguirei descobrir!).

- É pelo menos a única pessoa capaz de influenciá-la. Ela confia em si!

E neste instante Casimira pronuncia-se, encarando-me com uma expressão extraordinária:

- Eu também confio em si!

- Por quê? - cicio.

- Porque Deus há-de inspirá-la de forma a moldar essa mesma confiança.

Neste instante a porta do escritório escancara-se.

- Podemos? -indagam quatro vozes boas de ouvir. E colhendo a resposta nos sorrisos com que as saudámos, vêm em fila beijar-me.

E tal como ainda há pouco tive a Teresa e a Luisa Maria, tenho agora a Rosarinho e a Rita. A Leonor Augusta e a Mirita, em pessoas crescidas, puxam cadeiras e instalam-se.

- Mãe, - exclama a Mirita, - já perguntou?

- O quê, filha?

- Ó Mãe! ?... Esqueceu-se?

- A Mãe tem estado tão apoquentada por causa da condessa de Ribatorpes que de certo não pensou mais no assunto! - justifica a Rosarinho que me contempla como se através de mim pudesse encontrar outra pessoa, e digo-o porque me custa a crer que tanta ternura me seja oferecida

- E também não havia uma pressa por aí além!...

- É que... estou ansiosa por saber!

- O quê, filha? - e agora sou eu que formulo o quesito.

Abrem-se covinhas na cara bonita de Casimira (a nova), feitas pelo riso feliz.

- Tenho medo de parecer incorrecta, se disser...

- E trespassavas então o encargo para a tua Mãe? Muito cômodo, não haja dúvida! - rita colhe no olhar da Mãe autorização para falar.

- Está cá em Agosto?

Aqui na tua casa, Mirita?... Se os teus

Pais me quiserem hospedar posso dar um jeito...

Riem todas.

Aqui na minha casa... num certo dia...

sim!

- Num certo dia? - já sei o que vou ouvir, mas provoco-a: - Depende. Se for marcado com bastante antecedência...

- Vinte e seis de Agosto!

- Fazes anos?

- Não! Caso-me! - e sai da cadeira, arrasta a grande e bela almofada que eu conhecia de tradição, a almofada da casa dos Câmaras, e ajoelha-se-lhe em cima-apoiada às minhas pernas sem atender à observação da Mãe "menina, veja lá, não incomode a nossa amiga... ". Vai receber o convite como deve ser, claro... mas eu sinto-me mais contente perguntando-lhe assim "posso contar consigo?" É um casamento intimo... e por isso mesmo mais gostava de a ter ao pé de nós! Parece-me que a conheço desde pequenininha...

Poiso as mãos nos cabelos sedosos, afago-os enquanto respondo, encantada com esta prova de simpatia:

- Podes contar comigo, Mirita! - e depois acrescento, a gracejar, enquanto abro a carteira que poisei ao meu lado e tiro dela a pequena agendita de capa vermelha e doirada: - Mais algum casamento de que me não dispensem?

e fito a Lili, que abana a cabeça.

- Para reservar data... ainda não. Estamos todas muito atrasadas!

E conversamos, as sete.

Teresa Mafalda explica-me que o casamento da Mirita foi marcado com aquela brevidade por duas razões fortíssimas. O Pai do Zé Chaves precisa de regressar a Moçambique antes do fim de Agosto e a tia Casimira tem de estar em Turim na primeira quinzena de Setembro.

Quatro pares de olhos desviam-se dos meus subitamente e poisam-se no chão. Sente-se como que um véu de tons cinzentos a envolver a alegria das raparigas.

Fito Casimira (a futura Irmã Casimira) que num gesto de mãos para as sobrinhas me expressa uma pena cheia de compreensão:

- Não há há maneira de se conformarem!... Por mais que lhes explique que a minha decisão é tão acertada como o casamento da Mirita daqui a pouco mais de dois meses e o da Leonor Augusta quando o Júlio estiver em condições de montar casa!...

- E o meu, quando o Pedro acabar o curso!

- diz Rosarinho que logo acrescenta: - E nós sabemos isso, mas a tia Casimira faz muita falta cá em casa! Deixa o lugar vago...

- Também a Mirita deixa o lugar vago!

- É diferente! - observa a Rita, esta a cujo casamento não houve qualquer referência. – A Mirita vai constituir família. Ao passo que a tia se afasta da família!

Rita, tenho de voltar ao princípio e repetir palavra por palavra as frases que demonstram as razões que me levam e provam a importância do que me espera?...

Rita pestaneja e acena que não.

A tia prossegue:

- A missão a que vou consagrar-me é muito importante, tão importante que chegará para me encher a vida quando vocês ma deixarem vazia... não o esqueçam!

Não oiço mais nada do que Casimira Abegorim (a futura Irmã Casimira) diz às sobrinhas. Porque sou captada, integralmente, por aquela afirmativa a missão a que vou consagrar-me é muito importante, tão importante que chegará para me encher a vida quando vocês a deixarem vazia.

Uma missão capaz de encher uma vida vazia.

UMA MISSÃO CAPAZ DE ENCHER UMA VIDA VAZIA.

E acontece como se uma grande luz me esclarecesse acerca do que há instantes era uma dúvida tão grande para mim.

Talvez seja possível achar para Ana Margarida de Ribatorpes uma Ilha dos Pêssegos.

Sim, talvez.

Talvez.

Mas antes que o caminho para o talvez se abra, quantas canseiras, quantos tropeções, quantas voltas em torno de obstáculos que se afiguram intransponíveis!

Estamos a jantar no salão que me parece ainda maior do que da primeira vez. Naturalmente porque hoje somos apenas três pessoas. E a que falta (éramos quatro nessa noite!) ocupava um espaço que nada tem a ver com o de uma presença física.

O Nicolau vai-nos servindo tão simples como se não fosse agora um rapaz quase rico.

João Alfredo, de calças escuras e camisola de malha de seda branca de gola alta, come normalmente, utilizando colher, garfo e faca. Não fala. Não me fala. Conserva-se impenetrável. Sei no entanto que pensa nas fotografias que lhe prometi e não trouxe. Redimir-me-ei da falta de cumprimento da minha promessa porque vou marcar o nosso encontro decisivo para amanhã.

Amanhã.

Ana Margarida (como pode uma pessoa emagrecer tanto em tão pouco tempo?) deixa intacto o que põe no prato. E eu sigo-lhe o exemplo, sem ser por me sentir obrigada a acompanhá-la nessa indiferença que a persistir lhe destruirá a saúde e, com a saúde, a vida. Todo o meu estômago se encheu com o ar pesado que nos rodeia.

Tento dizer isto, e aquilo, e aqueloutro... Mas o som da minha voz dir-se-ia bater nas paredes e voltar para trás com tamanha violência que me magoa.

E desisto de tentar captar a atenção dos condes de Ribatorpes. Sim, João Alfredo, o conde novo...

São nove horas e vinte. (9 h. e 20...)

Recuso o café.

E então Ana Margarida levanta-se. Acabou a refeição que o não foi sob aspecto nenhum, tivesse embora quanto foi servido o ar mais delicioso.

Em fila, dirigimo-nos para o corredor, seguimos para a salinha íntima da condessa. Aquela onde adormeci a esperá-la.

No grande vestíbulo, o João Alfredo regouga.

- Boa-noite.

Ana Margarida pára.

E eu prendo-o por um braço.

- Deixas-nos ?

- Não interesso a ninguém!

- Interessas a todos!

- Que inesperado! Corri jo:

- Interessas a tua Mãe e a mim.

- Vê-se!

- Por que o dizes, em relação a tua Mãe? Sinto que um leve embaraço o tolhe.

- Não o digo em relação a minha Mãe.

- Nesse caso... é a mim que pretendes atingir? Parece-te que de facto não te dedico nem sequer um mínimo de atenção?

E ele, mudo. Então enfrento o problema sem mais hesitações. No fundo ele tem razão...

- João Alfredo, peço-te desculpa.

- Como?

- Peço-te desculpa! Mas tenho tido tanto que fazer, tanto!

- Não deve perder mais tempo comigo. Bem sei que não valho nada.

- Amanhã vais com os teus amigos lá a casa, depois do jantar.

- Para quê ?

- Para verem as fotografias que prometi, naturalmente!

O braço que se retesava sob os meus dedos amolece, deixa de se defender do que procura chegar-lhe ao coração - esta oferta de amizade.

- Mas então... ?

- Julgavas que me esquecera ?

- Que nos esquecera, sim. Que não valíamos nada. Que não queria continuar a fazer por nós fosse o que fosse.

- Amanhã depois do jantar espero-te e aos teus amigos! - repito.

Ele diz que sim com a cabeça. Um sim que se lhe define nos lábios que aperta como se devessem conter quaisquer palavras. Gostava que as dissesse. Serão de lástima, de agrado, de esperança, de gratidão?...

Fantasmas de pessoas; fantasmas

Contundem-se vivos e mortos, recordações e sugestões. Ana Margarida e eu comungamos das presenças invisíveis. De Sebastião e de Catarina. Do destruído e do por construir.

Passam minutos durante os quais nos próprias nos diluímos nesta espécie de entorpeci mento físico.

E de súbito:

- Não vale a pena viver.

- Que disse, Ana Margarida?

- Não vale a pena viver!

- Que barbaridade!

- Sinto-me incapaz de continuar. Olho para trás e reconheço a inutilidade de tudo. O meu casamento foi um desastre total, porque atraiçoei a minha missão de esposa quando me tornei incapaz de dar felicidade ao meu marido. Fechei-me numa situação de egoismo onde tudo o que eu tinha era de todos e nada me pertencia realmente. A inutilidade devorou horas que podiam ter sido cheias... e agora que o compreendo sou uma mulher sem possibilidades de mais nada.

- Sem possibilidades de mais nada com uma fortuna como a sua, Ana Margarida?

- De que me serve a fortuna?...

- De que lhe serve? ?...

- As minhas mãos estão tão secas, tão encortiçadas, que já nem sabem gastar dinheiro. Nada me interessa... e este palacete onde me perco dir-se-ia que não contém ar suficiente! Os quartos dos meus filhos quando eram pequeninos, o quarto horrível que o capricho de Catarina idealizou, o meu quarto sem Sebastião, os quartos dos hóspedes que não vêm, são como gritos que durante o dia calam os meus e durante a noite me tiram o sono. Desprezo-me a mim própria! Sou culpada de não ter sabido travar o mal, de não me haver apercebido dos tempos em que gastámos com as energias o dever de aproveitar o tempo. É tudo de tal modo insuportável que receio enlouquecer... enlouquecer e pôr em prática a libertação que se desenha no meu espírito durante as insónias que me arrancam da cama.

Sei que vou ouvir algo de assustador. É preciso que o oiça o mais depressa possível para depois...

- Ana Margarida, em que consistiria essa libertação?

- Num auto de fé! "

- O quê?

- Num auto de fé! Lançar o fogo à casa! Queimar os quartos sem razão de sobrevivência; queimar os quadros, as mobílias, os tapetes, tudo, tudo!...

- E como uma indiana das velhas religiões arder na pira erguida sobre o cadáver do esposo?...

Os olhos secos de Ana Margarida fitos nos meus asseguram-me que ela nunca enlouquecerá. Pelo menos de modo a cometer semelhante crime.

- Ana Margarida, é preciso achar, no meio dos, escombros da sua existência, motivos para continuar!

- Eu sei. De resto sou profundamente católica, nunca atentaria contra a minha existência. Pelo menos, lúcida! Mas... e se a razão me faltasse?

- A Ana Margarida é uma pessoa demasiadamente normal para que tal coisa a ameace.

- Como pode afirmá-lo com tanta segurança ?

- Porque está a reagir como uma pessoa normalíssima! Estranho seria que não registasse os estragos causados pelos problemas e pelos desgostos e não reconhecesse que tudo o que dantes lhe parecia importante é perfeitamente dispensável. Ou não?

E ela:

- Sim, tudo perfeitamente dispensável! E por isso... libertar-me-ei do que me prende aqui... mas não num braseiro.

- Então?

- Tomei decisões.

- Ah? ...

- Vou encarregar o marido da Teresa Mafalda de vender tudo o que é meu.

- E depois que fará com o dinheiro? Viajará, como as mulheres ricas e sem nada? Melancolicamente errante ?

- Não, amiga. Darei tudo a uma instituição qualquer de caridade. - (meu Deus infinitamente bom e poderoso que sem ela o saber estais a prepará-la para que se deixe iluminar pela luz que me mandaste há horas ao lado de Casimira Abegorim, a futura Irmã Casimira!).

- E depois, Ana Margarida?

- Quando eu era menina, ia muitas vezes passar as férias a casa dos meus tios Tamegão. O tio Diogo tinha por Camilo um autêntico fanatismo. Talvez ele me ajude. Quero enclausurar-me num convento em Espanha.

Ela entreabre os lábios como se fosse pronunciar algo, mas não fala. Aguarda. que principio a dizer:

- Portanto a Ana Margarida desfaz-se da sua fortuna em favor de uma obra de caridade e depois consagra-se a Deus isolando-se do mundo, cortando até com a hipótese de vir a dar-se à recuperação total de um filho que venha a precisar de si, merecendo-a.

Ela conserva-se hermética, em confirmação.

- Vejamos portanto, dentro dos seus intentos, se não haverá uma forma menos semelhante ao que, bem vistas as coisas, não passa de uma deserção, de uma fuga... Ora acontece que a sua fortuna, aplicada numa obra de caridade, pode tornar-se de uma eficácia capaz de resgatar o que até hoje não esteve certo aqui dentro.

- Colocada em mãos experientes! Continuo como se não ouvisse a afirmativa que marca um princípio de interesse. E o que digo agora não tem qualquer ligação aparente com o antes dito.

- A Casimira Abegorim parte para Turim nos princípios de Setembro, logo a seguir ao casamento da sobrinha. Ingressa no Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora onde vai preparar-se para se consagrar à educação de raparigas, educação e recuperação. É uma bela obra, uma obra que enche a vida de quem não tem obrigações constituídas,

O que disse e parecia nada se ligar com o antes dito humedece os olhos de Ana Margarida como se na ausência de ligação ela descobrisse os maiores contactos.

- Prossiga! - balbucia. E parece-me sentir que há lágrimas a prenderem-lhe a voz.

- Ana Margarida, e se abrisse à claridade, ao ar puro, os quartos fechados dos seus filhos pequeninos, o quarto horrível de Catarina, os quartos dos hóspedes que deixaram de vir... e os enchesse de raparigas que precisam de tudo o que a sua bondade, a sua compreensão nova da vida, o seu dinheiro, são capazes de lhes conceder?... E no seu quarto sem Sebastião entrasse para lhe fazer companhia, a si, a noção de se haver transformado na criadora e orientadora de uma obra social e moral mais digna de servir a Deus do que todas as clausuras do mundo? Ah... Ana Margarida? Pense, pense, suplico-lhe! Imagine esta casa limpa, arejada, transformada... E pão e amor... E paz e harmonia... E dias com coisas para fazer... Será possível? - debruço-me um pouco e tomo nas minhas as mãos que ainda são as daquela estátua gelada em que ela um dia se metamorfoseou. E encadeio: - Ana Margarida, há uma obra a fazer!... Você não imagina, não sabe... Mas eu tenho certezas'. Constantemente, por isto ou por aquilo, aparecem rapariguinhas que necessitam de amparo, de conselhos, de ajuda. Quantos casos, uns graves, outros pueris mas todos eles merecedores de solução!... Uma tem asas grandes demais para caber no lar estreito que a asfixia como se fora uma gaiola. Outra o justo receio da vida lá fora prende-a a uns Pais incompreensivos e desgraçados. Esta quer estudar e não pode por falta de meios. Aquela ficou sem ninguém e não sabe como agüentar os dias, e surge ao lado da que sempre desejou uma boneca que não teve e de outra que gosta de livros e apenas lê os alheios. Uma no fundo da gaveta guarda poemas que nenhum editor publica. Outra gostaria de ser actriz mas vive tão longe de todas as possibilidades que jamais fará algo que não seja sonhar. Aqui há uma que casou na ilusão de uma existência melhor e passou a uma escravidão que moralmente a destroi. Aqui existe a que acredita no amor e não sabe como sustentar o filhito que o Pai abandonou. E a que nunca veste se não os vestidos velhos que lhe dão e tanto gostava de um que viu numa montra. E a que não tem família porque os Pais se separaram. E a que se formou com altas classificações e se enterra numa aldeola porque se lhe impõe ganhar o pão de cada dia e não pode especializar-se para dar o rendimento que se deve exigir aos espiritualmente muito ricos. E a que, aluna Universitária, para se vestir e calçar vende discos a prestações pelas portas, sujeita quantas vezes a inconveniências de pessoas menos dignas. E a que, empregadita mal paga, se desvia de um caminho direito porque ninguém percebe que as pequenas faltas do mesquinho quotidiano se tornam às vezes insuportáveis... E a filha de uns Pais horrivelmente egoistas que sempre ouviu lamentar o seu nascimento... Ah, Ana Margarida, quantas, quantas vezes, diante do conhecimento dos factos tenho pensado: ai se eu possuísse uma varinha de condão!... Uma varinha de condão que num toque melhorasse o que pode achar remédio!.

- Uma varinha de condão? - balbucia a condessa de Ribatorpes, ainda sem perceber o alcance desta minha frase.

- Sim, uma varinha de condão que a Ana Margarida agitará quando quiser. A fortuna, que a mim me falta!

- Oh? ...

As mãos geladas desta mulher que esteve transformada em pedra tornam-se de súbito quentes, quentes... Escaldam!. Transmitem o calor de um coração que já sabe porque pulsa. No rosto afogueado os lábios tremem, os olhos enchem-se de lágrimas bem diversas das que ela tem gasto sem ninguém a vê-las.

E agora, abraçadas, choramos juntas a desmedida alegria da descoberta que ambas acabamos de fazer e ela a soluçar define:

- Afinal não é preciso ir longe para encontrar o refúgio onde se esconde tudo aquilo de que precisamos para viver. Dentro desta casa vai existir, para muitas, um Universo!

E eu sem poder dominar-me:

- Sim, Ana Margarida! Para muitas, cada quarto deste palacete será a Ilha dos Pêssegos.

Carneiros. Conto carneiros. Um, dois, três, quatro... cinqüenta... cem...

duzentos... MIL...

Inútil, não adormeço.

O meu espírito, super-excitado, recusa-se a deixar-se vencer pelo sono.

Detesto tomar drogas para dormir. Mas...

Tim-tim-tim-tim...

Os meus relógios, o velho-novo do ferro-velho e o novo-velho do tempo de Napoleão, dizem-me que são quatro da madrugada.

Nem sempre se pode deixar de fazer o que se não gosta. Tomarei um calmante.

Não tenho água na mesa de cabeceira, a Emília esqueceu-se. Paciência, vou buscá-la. E aproveito para espreitar a Teresa e a Luisa Maria que já dormiam quando cheguei a casa (conversei com Ana Margarida até tarde, a delinear os primeiros alicerces do que se chamará "Fundação Ribatorpes").

Estão como eu desejava - tão profunda e tranqüilamente adormecidas que nem dão pela luz que acendo e apago.

Entro na cozinha, tiro do armário um copo, encho-o de água e regresso ao quarto.

Tomo o sedativo, estendo-me, aconchego-me e recomeço a contar para que os pensamentos não me cansem mais do que já estou. Foi um dia enorme!

"Um dia que era futuro, que foi futuro durante tanto tempo e agora se tornou irremediavelmente passado...

Não quero lembrar-me de mais nada.

Um dois três quatro cinco.

Tenho de destinar tudo de modo a ir com a Emília ao Dr. Samuel Crisóstomo, logo às 19 horas. Podemos demorar-nos. É melhor não jantar em casa. vou com as pequenas comer a qualquer parte. A qualquer parte, não. A um restaurante chinês. Adoro comida chinesa.

Cinqüenta.

Que pena o Fernando Vasco ter escolhido a Alicinha Fontemora para esposa! Tudo aquilo me cheira a falso, a postiço, a oco... "o Jacques, o Jacques. Por que não percebe ele? Não é destituído de inteligência! Anda enoveladinho nos ouropéis que se fazem passar por oiro, nas quinquilharias que tomam o lugar de jóias. Pobre rapaz, merecia realmente melhor

- bem o afirmou a Laura. E... por que não hei-de enganar-me no que julgo? Não, não a respeito do Fernando Vasco. A respeito da Alicinha.

Cem.

Gosto delas. De todas. Da Lili, da Mirita, da Rita, da Rosarinho... Gosto, Gosto que o Pedro pense na Rosarinho para construir o seu lar.

Duzentos.

ANA MARGARIDA SALVA. Ana Margarida salva.

Ana Margarida salva. Ana Margarida salva.

Ana Margarida salva. Ana Margarida salva.

QUE é ISTO? Quem riu à minha beira?

Quem riu aqui ?...

Silêncio e noite.

Tim-tim-tim-tim-tim-tim.

Seis da manhã. E o riso que me abanou por dentro e por fora a situar-se na minha mente que principia a entorpecer-se e não consegue descanso. O riso do João Alfredo. O riso incompreensível que me encheu de estranheza.

Por que riu ele assim? Por quê?

Não sei não sei não sei não sei não sei não sei!

PAI NOSSO QUE ESTAIS NO CÉU... SEJA FEITA A VOSSA VONTADE!

Mas eu preciso tanto de dormir.

Um dia começado com falta de horas (todas as da manhã que o sono tardiamente conseguido preencheu e mais umas duas ainda um tanto entorpecidas pela acção do calmant-razão da minha embirração por eles-). Um almoço sem apetite e sem disposição e a necessidade de tranqüilizar a Teresa e a Luisa Maria que se inquietam ao ver-me assim.

E o trabalho à minha espera.

- Não escreva, hoje! -sugere a Teresinha compassiva, alheia às obrigações de quem aceita dentro da consciência.

- Preciso de acabar uma coisa urgentemente.

-Ninguém lhe ralha se deixar para amanhã!...

Amanhã. Ai horrível amanhã de hoje e de sempre!

Como explicar que mais importa a nossa certeza de estarmos certos do que as certezas reconhecidas pelos outros? Claro que não é difícil demonstrar isto, apenas por enquanto tudo me parece difícil.

E sento-me na tentativa de disciplinar as minhas faculdades, obrigando-as a apresentarem-se cumpridoras ante a vontade a que devem obediência.

Na saleta, aqui ao lado, a Teresa e a Luisa tagarelam, baixinho. E as suas vozes ciciadas dir-se-iam picadinhas de alfinetes nestas faculdades que tão mal dispostas se aprestam a desempenhar as tarefas que lhes incumbem. Acode-me uma idéia súbita. E se elas saíssem um bocadinho?... Se fossem ao Cinema, à primeira matinée...

Consulto o Jornal, procuro num bom Cinema um filme com o máximo de garantias para ser visto por menores de dezassete anos. Escolho um título simpático, actores afamados.

vou ter com elas e dou-lhes parte do que resolvi. E ambas me pedem que as acompanhe.

- Não posso, filhas!

- Pode e deve! Também tem direito a umas horas de folga!...

Umas horas de folga... num dia que ficou mais pequeno do que me convinha... ?

Consigo resistir. E convenço-as a irem sem mim. De resto sei que a pena sincera que mostram passará quando se instalarem na platéia ante o écran.

E entretanto, com o movimento, a acção, a ida à janela para lhes acenar um até logo, melhoro consideravelmente e quando volto a instalar-me sinto-me quase em forma.

E... por que não? Talvez isto resulte da noção boa de haver resistido à tentação de sair com elas, sabendo pôr o dever à frente de sedutoras conveniências. Também tenho direito a umas horas de folga? Ah, pois também... Mas não e nem eu nem ninguém quando essas horas fazem falta para o trabalho que espera por nós.

As horas de folga não se tornam obrigatoriamente em horas belas...

O trabalho que espera por mim.

E eis que me envolvem como o som de um hino triunfal frases que me foram ditas há pouco tempo, ainda.

Frases.

Um boneco de oiro... um boneco de oiro que preferia ser de carne e osso, simples, mortal. com o direito de ser feito em pedaços.

Frases que são sugestão.

Sugestão que já nem sei se vem de algures em mim ou fora de mim. Nem importa.

Estou obrigada ao tema.

E traço o título.

O MENINO DE OIRO

Seis da tarde. Anunciadas há instantes pelos meus relógios velho-novo e novo-velho e confirmadas pelo meu querido reloginho de pulso.

A Teresa e a Luisa devem estar a chegar.

E eu releio o conto concluído para a Revista literária que mo havia solicitado. A tempo de seguir para com tempo ser incluído no próximo número como o desejavam - a revista é semestral e o próximo número sairá em Novembro.

Era uma vez um homem e uma mulher que tinham saúde e podiam trabalhar para viver. Mas o homem e a mulher sentiam-se muito infelizes por não serem ricos. E todo o bem-estar simples que possuíam lhes parecia menos que nada. Só consideravam como ventura o que quer que fosse que lembrasse Oiro.

E tanto falaram em oiro, tanto suspiraram pelo oiro, que certo dia, ao raiar da madrugada, uma voz misteriosa lhes disse:

- Descansai, gente sequiosa de oiro, que em oiro ides ter o vosso bem supremo. Vai nascer-vos um menino de Oiro!...

Mulher e marido esperaram com ansiedade o nascimento do filho assim prometido, convencidos de que essa criança viria a ser, tal como a profecia o anunciara, um menino de oiro, um menino destinado a ser tão rico que personificasse o seu ideal de felicidade.

E nasceu o menino de oiro.

Um menino todo de oiro, de oiro maciço, de oiro verdadeiro.

Grandes foram o espanto e a dor da mulher e do homem quando viram aquele filho que valia uma fortuna mas que nada tinha de comum com os filhos de toda a gente.

O menino de oiro não chorava, não comia, não sorria. Estava no berço, quieto, imóvel. A vida, nesse corpo de metal precioso, denunciava-se apenas nos olhos - olhos que eram duas esmeraldas reluzentes, maravilhosas, e que se moviam de um para outro lado como procurando adivinhar, compreender, a razão da sua existência ou o tempo que passava por ele.

E o menino de oiro crescia. De mês para mês aumentava e com ele o tesoiro que representava.

Agora aquele homem e aquela mulher que trabalhavam para viver não tinham nem vagar nem desejo de se lastimarem por não serem ricos. Sofriam diante do menino de oiro que nunca diria Mãe e Pai, que nunca engoliria uma colher de leite, que nunca precisaria de nada de humano.

Vinha gente de toda a parte admirar o fenômeno. E o Pai e a Mãe do menino de oiro, cheios de amargura, quase envergonhados do que tantos achavam prodigioso, perdiam as forças e a saúde e a vontade de trabalhar, entregando-se ao infortúnio que os encaminhava para a miséria.

E então a voz misteriosa voltou a falar-lhes, como zombando, certa noite em que o sono não vinha:

- Vendei o vosso filho, vendei o vosso filho, vendei o vosso filho... Vale muito dinheiro, é todo de oiro, vale muito dinheiro. Vendei-o!... Vendei-o!...

E a mulher e o homem puseram-se a chorar. E choraram diante do menino, longamente, longamente...

O menino já tinha seis anos, era grande como os meninos de seis anos e mais pesado que nenhum - porque era de oiro maciço.

E o menino, olhando os Pais com os seus olhos de esmeralda, quando os viu a chorar pôs-se a chorar também, com pena de não poder consolá-los. E quando as primeiras lágrimas lhe chegaram à boca, o menino balbuciou: - Pai!... Mãe!...

O Pai e a Mãe julgavam sonhar. E agora, o menino de oiro chamava por eles constantemente! E continuava a crescer, e continuava a vir gente ver o menino e milionários ofereciam por ele fortunas. Mas os Pais preferiam a pobreza a separarem-se do menino que tanto chamava por eles.

E veio um dia - tinha o menino nove anos! – em que adoeceu a Mãe do menino. E no seu leito de dor, julgando que ia morrer, ela estendia os braços para o filho que nunca pudera abraçá-la. E o menino de oiro, chorando com os seus olhos de esmeralda, ergueu de súbito os braços para neles estreitar a Mãe. E a Mãe ergueu-se da cama e correu a abraçar-se ao filho que tinha agora braços como os de todos os meninos!... E tamanha foi a sua alegria que a alegria venceu a doença e ela viveu para o filho que podia abraçá-la!

O menino de oiro, com braços iguais aos dos outros meninos, valia agora menos e os compradores principiaram a diminuir.

E veio um dia em que o menino avistou pela janela aberta meninos da idade dele que brincavam e corriam ao sol do entardecer.

E os olhos de esmeralda do menino voltaram a chorar, Ele tinha pena de não poder brincar como os demais meninos!...

E então, de súbito, as pernas do menino deixaram de ser de oiro e ele começou a andar de um lado para o outro como qualquer menino. Só tinha de oiro, agora, a cabeça e o tronco. E como podia mexer-se, começou a ajudar a Mãe e o Pai; e a Mãe e o Pai, auxiliados pelo filho, voltaram a ter gosto pelo trabalho. E como todos juntos labutavam, a vida no lar normalizava-se.

O menino de oiro valia cada vez menos. Mas a miséria fugia do homem e da mulher que haviam sido Pais de um menino de oiro.

E veio um dia em que o menino de oiro, passando por uma grande casa que se chamava Escola, ouviu dentro dela vozes de meninos que diziam muitas coisas belas e respondiam a muitas perguntas sobre outras que devia ser bom saber. Parou à escuta de tudo e viu-os depois sair de dentro daquela grande casa chamada Escola, rindo contentes por conhecerem quanto ele, pobre menino de oiro, ignorava por completo.

E os olhos de esmeralda do menino de oiro tornaram a chorar. E nesse mesmo instante a cabeça do menino deixou de ser de oiro e ele começou a pensar e a raciocinar como os que não são de oiro. E principiou a ir àquela grande casa de nome Escola e a aprender como os outros meninos. E tornava-se instruído.

Agora, de oiro só possuía o tronco, pouco valia como preciosidade, já nenhum milionário desejava comprá-lo. Mas os Pais sentiam-se felizes com o seu filho que era quase normal como os dos outros Pais.

E o menino continuava a crescer, fez-se um homem, bondoso, inteligente e trabalhador.

E veio um dia em que o menino amou. Amou com toda a pureza, com toda a sinceridade, com toda a juventude.

Ela era linda e ouviu-lhe frases apaixonadas. Consentiu em que ele lhe roubasse um beijo. Mas quando os braços do namorado a apertaram de encontro a um peito de oiro, gelado, ela gritou de horror e fugiu.

O menino que nascera todo de oiro e era agora um homem metade de oiro, compreendeu com desespero que o Amor lhe estava proibido. E não pôde chorar!

Os seus olhos de esmeralda, secos, febris, queimavam as lágrimas que a eles subiam.

E veio um dia em que os homens da terra e os moços da idade dele foram chamados a defender a Pátria ameaçada por um inimigo forte e numeroso.

O menino de oiro foi como todos. E era invulnerável, porque as balas que faziam tombar os seus companheiros não o magoavam, a ele. Batiam-lhe no tronco e recuavam!

E ele ia à frente, sempre à frente, e chamavam-lhe herói e queriam condecorá-lo porque ele era um herói.

O homem que fora menino de oiro não aceitou nada. Nada lhe interessava, de nada se sentia digno. Tinha vergonha do seu tronco de oiro que nem sequer podia morrer.

E chegou aquela noite que ainda é a mais bela de todas as noites entre as trezentas e muitas que os dias possuem.

Nos campos da luta havia tréguas, porque era Natal, fazia anos que nascera o Salvador do Mundo, um menino que não era de oiro mas valia mais que todo o oiro do mundo. Em cada lar, quando se celebra um aniversário, há festa. Em todos os lares se festeja o aniversário do Menino chamado Jesus porque ele pertence a todos os lares. Por isso nos campos da luta os homens não guerreavam, curtindo saudades e alimentando na alma os mesmos anseios de paz e amor.

Lutas e ódios depunham-se aos pés do Menino, para que ele os aceitasse como aceitara as oferendas dos Reis

Magos. Cada um dá o que tem e os que não têm nada entregam-lhe o desgosto de nada ter.

No silêncio majestoso daquela noite de tréguas, o homem que fora menino de oiro e não podia amar nem morrer, ouviu de súbito, na sombra densa que o envolvia e habitava nele, o cântico maravilhoso dos sinos em repique, longe, longe... Cambaleante, ergueu-se como se quisesse agarrar nas mãos estendidas para a distância os sons embaladores, os sons festivos.

E foi, e foi, e foi...

Quase para lá dos horizontes, quando a madrugada se anunciava tênue, avistou a igreja aberta.

Altas horas, os fiéis não estavam. Dormiam. Deus, no céu, velava. Deus não dorme.

E então o homem que nascera feito de oiro caiu de joelhos e de joelhos arrastou-se, arrastou-se, e ficou tombado no chão, aos pés do altar, suplicando num cicio:

- Piedade! Piedade!...

E, ao implorá-lo, de novo pôde chorar!

E nesse instante, o tronco do que fora um menino todo de oiro deixou de ser de oiro e fez dele um homem como qualquer outro, um homem apenas de carne e osso.

Os homens devem ser de carne e osso, com alma bastante para não quererem ser de oiro, porque só não sendo de oiro os homens são dignos do Menino de carne e osso que nasceu para ensinar que de carne e osso se pode ser o Melhor, o Maior, o mais Valioso de todos os homens.

Só de carne e osso o homem encontra abertos diante de si os caminhos da felicidade possível - transsitória por amor do amor, eterna pela aceitação da morte.

Quando ergo os olhos da última página, traçada aqui e além uma breve correcção, tocam-me na fronte, debruçadas por cima de mim, duas bocas frescas que me aplaudem:

- É lindo, esse final! - diz uma.

- Posso ler do princípio ?

- Podes.

- Eu também quero! - assegura a primeira.

- Lês também, não te amofines. - e depois,

- Chegaram há muito?

- Poucochinho.

- Vimo-la tão atenta que até estávamos com medo de respirar!

- Não as ouvi. - declaro. E interesso-me:

- E o filme, que tal?

- Vê-se. - observa a Teresa.

- Só assim... vê-se?...

A Luisa discorda da opinião da companheira.

- Eu cá gostei! - e para a Teresinha, com uma careta cômica: - Já sei, já sei que gostei porque ainda sou muito miúda e não noto os defeitos, os erros, as deficiências, etc... Mas a história é querida e acaba bem, o que para mim é o principal e por isso até podes chamar-me pirosa que não me ralo nada!

Sinto um desejo quase irreprimível de concordar com as opiniões da Luisinha, atraindo as censuras da Teresa. Também adoro acima de tudo uma história articulada (princípio, meio e fim) e o seu final agradável, lógico após as complicações que justificam o enredo, faz-me sair do Cinema com vontade de acreditar que sim, que a vida pode realmente ser bela com horas boas depois de horas más.

Ai, horas!...

O Médico para a Emília!...

Consulto o meu reloginho. Dezoito e vinte sete.

A Teresa e a Luisa sentam-se do outro lado da minha mesa de trabalho.

E a mais nova propõe:

- Quer que a gente lhe conte o filme?

- Contam logo, durante o jantar. Preciso de me aprontar num instante por causa da Emília.

- Ah, pois é! Tem de levar a Emília ao Médico!

- Tal qual! - e arrumo os meus papéis que sou incapaz de deixar ao Deus dará.

- Não guarde o conto! - pede a Luisinha.

- Seja! -e confio-lhe o manuscrito. Quando chego à porta, volto-me numa lembrança viva:

- Ai, duas coisas!

As cabeças que se haviam debruçado para as páginas abertas em cima da mesa erguem-se de novo.

- Em primeiro lugar, estejam preparadas para saírem aí às oito e pouco. Vamos jantar a um restaurante chinês.

A Luisa mostra uma expressão penalizada.

- Se calhar não posso ir!...

- Essa agora ? Por quê ?

- Só trouxe para vestir outra saia e uma camisola mais velha do que esta e o restaurante há-de ser fino!...

Sorrio:

- Não precisas de mudar coisa nenhuma que estás lindamente assim!

- Mas acaba de dizer para estarmos preparadas!...

- Formas de expressão banais sem sentidos particulares!

A Teresa pergunta:

- A segunda coisa também não terá sentido particular?

- Por acaso, tem! Vocês vão à gaveta do lado esquerdo do armário da sala... - gaveta do lado esquerdo do armário da sala...

- e tiram dois sobrescritos grandes que lá hão-de encontrar com fotografias coloridas dentro.

- Isso é muito simples!

- Ainda não acabei.

- Desculpe.

- Depois procuram nos sobrescritos quantas fotografias acharem que mostrem os seguintes pormenores: recantos à beira-mar, sem gente, a não ser que apareça alguém com tipo rude de pescador ou mulher dos campos; rochas quanto mais escarpadas melhor; casinhas abarracadas, semi-destruídas; caminhos pedregosos; água transparente; árvores em flor, quantas mais melhor, mas árvores tipo pessegueiros e amendoeiras...

- no gênero das que o Pedro trouxe? indaga a Luisa.

- Ah, é verdade, as fotografias do Paulo... não cheguei a vê-las! Onde estão?

- No seu quarto, em cima da cômoda. De manhã, como nunca mais acordava, fomos lá espreitar se não precisava de nada (- penso que elas tiveram receio de que me houvesse dado algum badagaio... -) e como vimos o pacotinho e tudo em ordem, que a Madrinha até ressonava...

- Oh, Teresa! - interrompo-a, escandalizada. - Então eu ressono?

- Não sei se ressona. Ressonava... Rendo-me ante a afirmativa.

- E depois?

- Trouxemos o pacotinho e estivemos entretidas a ver as fotografias que são uma beleza. Antes de sairmos lembrámo-nos que as tínhamos largado no nosso quarto e fomos pô-las mais ou menos no mesmo sítio. Se deseja vê-las, vou buscá-las.

- Agora não tenho tempo. Mas juntem essas e mais as que seleccionarem das minhas e levem-nas para eu separar as que me parecerem melhores para a documentação de que preciso.

As minhas palavras, sejam embora tão normais, para elas devem soar revestidas de um sabor estranho...

Olham-me e entreolham-se.

Não ousam porém manifestar as suas impressões. Acham esquisito que eu necessite de ir escolher fotografias para um restaurante...

Percebo-as e resolvo esclarecê-las.

- Temos de as ter em ordem por causa da Ilha dos Pêssegos.

- An? ... Ah! ...

Estamos há dez minutos nesta sala de espera cheia de gente compenetrada, gente que se prepara para ouvir da boca do Médico uma sentença, possa ela conter ilibação ou condenação.

Refugio-me nos meus pensamentos, porque as velhas revistas esfarrapadas em cima da mesa de centro me não atraiem e porque a observação destes rostos ansiosos me magoa. Atrás das expressões disciplinadas pela noção das conveniências de que em público todos mais ou menos somos servidores, quantos problemas, quantas angústias, quantos dramas...

Nestas cadeiras, lado a lado, o pequeno ridículo de quem inventa doenças porque não sabe em que ocupar os dias, e é sofrimento; a insegurança de quem não pode dizer que lhe dói aqui ou ali e se afunda numa incapacidade de se sentir viver, e é Sofrimento; a terrível dor de cabeça que já não cede aos medicamentos e parecia não ter importância e pode ser qualquer coisa de horrível, e é SOFRIMENTO...

Tenho de as ter em ordem por causa da Ilha dos Pêssegos...

A lembrança desta frase que proferi há uns três quartos de hora a propósito das fotografias corta-me num relâmpago, brusco como todos os relâmpagos, as constatações em que o meu espírito se enfronha. Distrai-me dela a entrada na sala de uma senhora de meia idade conduzindo um rapazito evidentemente anormal. Tonto.

Tonto? ...

A Emília, que o observa como eu, ela que não abriu a boca desde que saiu de casa e se tem conservado impenetrável, indaga, num sussurro:

- Este Médico é só de malucos?...

- O quê?

- Pergunto se este Médico só trata malucos ?

- Não, Emília, que idéia! Trata doenças nervosas, o que é muito diferente.

Doenças nervosas. Neuroses. Estados depressivos. Inadaptações.

E de novo volto a fugir para dentro de mim, recordando um artigo que li há dias. Faíscam-me passagens dele no recanto do espírito reservado à conservação das idéias.

Na realidade o nosso século é o mais notável da história humana, notável pela escala mundial dos seus conflitos, pelas perturbações no equilíbrio político e econômico, pelas inacreditáveis descobertas no domínio do futuro. Mas há que aceitar, porém, como incontestável, a convicção de que o extraordinário desenvolvimento da técnica, só muitas vezes se consegue sacrificar ao progresso espiritual ou moral.

Sinto de repente como que pesos em cima de mim. De facto, olham-me várias pessoas. Tenho de achar natural o facto. Cada um entretém-se como pode.

E volto para o meu Eu.

O mundo moderno, além de ser um mundo de descobertas, é também um mundo de acumulações. Acumulações de factos, de idéias, de

novas populações. E de problemas. Abaladas pelas guerras e pelas revoluções, as colectividades que constituímos põem diariamente a si próprias a questão da sobrevivência e das modalidades que esta pode apresentar. Problemática constante, essencial e mal resolvida; instabilidade geral no meio dos ruídos da rua e do Universo; rebaixamento e embrutecimento perante as técnicas invasoras. E, todavia, permanência do Homem, influência incessante e crescente sobre a natureza, perfeição aparente da civilização material ao serviço de todos. Que série de contradições que transportam a tormenta para o coração e para o espirito! ? ?

Alguém murmura:

- Deve ter a mania de falar sozinha. E quando entrou, pela aparência não se diria que...

Quem será que fala sozinha?...

Não vejo ninguém a fazê-lo e nem sei quem o disse.

Consulto o meu reloginho de pulso para saber as horas. Quase oito. Tão tarde já! Os pequenos vão com certeza chegar lá a casa antes de nós. Nós - eu, a Luisa e a Teresinha, depois de jantarmos. Esperam, pois que remédio! E abafo um suspiro. Ou melhor - o suspiro é-me abafado pelo relâmpago em que de novo se me apresenta aquela frase tão ligada à visita do grupo do João Alfredo.

Tenho de as ter em ordem (às fotografias) por causa da Ilha dos Pêssegos...

Ah... pois!... Pois! O ar desconfiado da Luisinha e da Teresa... Que disparate! É que elas não sabem o destino que aguarda as fotografias! Elas ainda não conhecem a Ilha dos Pêssegos!

E por isso...

Como?... O quê?

Não há dúvida. Distingo perfeitamente o som imperceptível da última frase a Ilha dos Pêssegos...

Quem fala aqui em Ilha dos Pêssegos? Quem pode falar, quem a conhece... a não ser eu?...

Eu! EU!... Era eu a pessoa que falava sozinha! Sou eu que falo sozinha!... Eu... de quem pela aparência não se diria que... Oh! ...

É demais!... Elas, lá em casa, e estes, aqui... a pensarem que sou maluquinha ou, pelo menos, um tanto zuoa? ...

E não consigo reprimir-me. Estalo numa gargalhada! Uma gargalhada que distrai toda a gente do meu nome que neste instante a empregada do Dr. Samuel Crisóstomo profere, a chamar-me porque chegou a minha vez. Ou antes, a vez da Emília.

Mas... poderia alguém convencer os que continuam a aguardar o momento da consulta de que não sou eu quem precisa dos cuidados do Psiquiatra... ?

De lábios cerrados, a Emília escuta o que por meias palavras tento explicar a Samuel Crisóstomo, Não é muito fácil... mas o Psiquiatra, habituado, percebe o muito no pouco que lhe digo. As crises de irritabilidade, as más disposições inesperadas, a falta de apetite, os choros. E as mãos trêmulas que partem coisas em série...

Por detrás dos óculos escuros (é truque) Samuel Crisóstomo conserva-se voltado para mim. Mas olha-a, a ela. E depois começa a interrogá-la. A tudo quanto pergunta, buscando orientar-se "sente isto, sente aquilo..." a Emília responde obstinadamente não. Não, não, não.

E os vários testes que se seguem pouco adiantam.

Samuel Crisóstomo prescreve uns calmantes e mais não sei o quê. Leio, num dos papéis que me estende - a idade exacta dela não corresponde à idade somada pelos anos de vida. Reage como uma criança de sete anos mal-educada. Tenha paciência e aguente-a... ou "trespasse-a"...

Dobro a receita que guardo. Devolvo a informação ao clinico cuja mão estendida a solicita.

Despeço-me. A Emília grunhe um vago boa-noite e sai à minha frente. A empregada não me cobra nada. Samuel Crisóstomo, amigo dos Macedos, não me leva dinheiro.

E na escada, a Emília comenta:

- Sempre gostava de saber se me trazia ao Médico se tivesse de pagar a consulta só para ele dizer se eu sou ou não maluca! - e com um risinho que a haver soado há pedaço na sala de espera não permitiria confusões a nosso respeito - E ao cabo e ao resto ficou como antes... Eu troquei-lhe as voltas todas! Ai não! Sei lindamente aquilo que faço!... Bem-feito!...

Pois. Pois.

Pobre Emília!...

Em cima da toalha branca, na mesa rectangular, sob as luzes vermelhas e azuis que pretendem dar um ar fantasmagórico aos dragões mais inocentes que imaginar-se pode assim pintados nestas paredes onde parecem esperar uma carícia nossa ou uma guloseima para desatarem a dar às caudas em sinal de alegria, espalham-se por entre as travessinhas mais de meias de estranhos petiscos deliciosos as fotografias coloridas que consultamos ora para as achar óptimas ora para as rejeitar, sem saber até que ponto são susceptíveis de cumprir o que se lhes exige - que dêem uma visão autêntica da Ilha dos Pêssegos.

Agora a Luisa e a Teresa estão bastante ao par da minha idéia e já visionam a ilha pequenina dos Açores tão pouco conhecida de todos e que tanto apetece a quem se adapta mal neste mundo cheio de ruídos da rua, e do Universo!) e cansativo onde às vezes não sabemos, os últimos sonhadores, onde abrigar o desejo que sentimos de ter alguma coisa só nossa.

Contei-lhes no carro, de casa até ao restaurante. E embora muito por alto (o tempo não dava para mais) a invenção nascida para João Alfredo de Ribatorpes, a invenção que pertence hoje ao grupito que daqui a bocado vai fazer uma idéia do que ela, a Ilha dos Pêssegos, é no meio do mar que a resguarda da profanação dos que não podem amá-la, entusiasma-as. Ardem ambas (mas principalmente a Teresa, mais velha, portanto com mais capacidade de apreensão) por dominar a história dos rapazes que desejam tornar-se dignos de possuir um mundo só para eles. Impossível satisfazê-las, agora. Elas vão conhecê-los e depois, se o encontro não bastar para elucidá-las, definirei melhor o que não passando de um ligeiro esboço foi ponto de partida para o seu interesse real.

Curioso acho o facto de que elas vêem a Ilha! E as fotografias que me indicam estão certas. A Ilha deve ser assim, rude e ternurenta, rendilhada e poética, e toda, toda coberta de pessegueiros...

Conseguimos apurar umas trinta e tal fotografias convenientes.

Depois ponho-me a reflectir que em número são excessivas - quem vai gastar um rolo completo numa Ilha quase deserta onde se passaram apenas algumas horas?

Saboreando a nossa galinha com amêndoas, o nosso chop-suey de vaca e o nosso pato com ananaz (palavra que é tudo sensacional!) reduzimos a vinte o montinho das seleccionadas. E depois, ainda a considerá-las demasiadas e conquanto nenhuma das fotos deixe de parecer (e de ser!) encantadora, fixamos as definitivas. São sete das minhas e três do Paulo. Entre estas, duas que julgo providenciais... e essenciais, pois tiradas de pontos altos abarcam extensões de amendoeiras (amendoeiras perfeitamente passáveis por pessegueiros ante quem não for perito) em terrenos acidentados que sem a menor dificuldade se aceitam como pertencentes a uma Ilha que depois em rochas abruptas desce para um mar que aqui faz lembrar um véu de noivado, coberto de espuma provocada pelo desfazer constante das ondas nas falésias e além, na pequena enseada acolhedora.

E enquanto a Teresa e a Luisa finalizam a refeição com sonhos de maçã (resisto à tentação- ai a linha!...) eu anoto as fotografias pelo lado de trás (e felizmente que não tinham nada escrito nem as minhas nem as do Paulo - ao contrário do que pelo menos eu costumo fazer a fim de as identificar mais tarde).

Ficam assim classificadas:

1)-LAGO DOS PEIXINHOS AMARELOS. (Deve ser por sugestão do ambiente chinês, esta designação...)Trouxe-a de Capri.

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2) - CAMINHO VERDE E OIRO QUE TALVEZ ENCOSTE AO CÉU. Trouxe-a de Araalfi.

3) -BOCHAS SEM LUGAR PARA NÓS. Foi

tirada numa ilha da Grécia, não me lembro qual.

4)- MARÉ NOSTRUM. MEU TAMBÉM. O Egeu, do topo de uma ilha cujo nome nos transporta longe, longe, no ontem sem fim que se veja. Samotrácia.

5) - MUNDO É COR DE ROSA. Um

declive inteiramente coberto de pessegueiros (amendoeiras) em flor.

6) - AQUI DEVEM VIVER FADAS. A máxima extensão admissível numa ilha, acidentada, com certo ar irreal. Coberta de pessegueiros, evidentemente (não empregarei mais a palavra amendoeiras e elas não vão sentir-se humilhadas com a troca de identidade, pela certa. São tão prestáveis para me ajudar, para ajudar os que precisam da Ilha dos Pêssegos!).

7) - QUEM VAI COMER TANTOS PÊSSEGOS? Um recanto sob os pessegueiros em flor.

8) - ÁGUA QUENTE PARA O BANHO. De

uma pequena cascata cai água fumegante numa espécie de tanque natural escavado na rocha. (Fotografia tirada nos Açores, realmente, Na Ilha de S. Miguel, uma das mais belas deste nosso mundo tão cheio de mundos cheios de beleza).

9) - AQUI MORA A PAZ. Uma clareira completamente cercada por pessegueiros.

10) - OS HOMENS VIVEM DO OUTRO LADO. Só mar, mar a perder de vista. (Também foi tirada em S. Miguel, do cume de uma serrania).

E a propósito de gente... ?

- Falta-nos uma fotografia, filhas! - digo.

- Falta?

- Falta! Precisávamos de dar uma idéia dos habitantes da Ilha dos Pêssegos e das suas casinhotas!

- Ah, pois!...

E enquanto espero que me tragam a conta, procuramos febrilmente o que talvez neles despertasse indesejáveis desconfianças - a ausência do elemento humano! E achamos. Achamos três. Aqui, numa rua pedregosa, sem vislumbres de calcetamento, cinco ou seis casitas térreas com um ar velho e primitivo. Não podem ser mais toscas. Não podem ser mais ajustadas à pobreza e ao isolamento da Ilha que não vem nos mapas... Recordam-me a minha ascensão ao Olimpo. Sim, ao Olimpo! Onde moravam os deuses. Onde moram homens muito pobres. Na Grécia. Aqui, à beira de água, duas mulheres de saias esfarrapadas e blusas que deixam ver os ombros, procuram algo na areia. Uns peixitos semelhantes aos linguados. Talvez até sejam linguados. Ou pudessem ser, que não se vê nenhum... Ignoro se os apanharam (engraçado, este retrato obtive-o numa pequena praia de pescadores, em Espanha)! E a última fotografia - ei-la. Dois velhos num bote fumando umas esquisitas folhas enroladas. São dois italianos. Dois homens certos para qualquer Ilha deserta. Certos para a minha Ilha dos Pêssegos!

E enquanto me não trazem o troco do dinheiro que entreguei para pagar, verifico que a escolha está perfeita e - o que é mais espantoso! - no seu colorido, nos seus vários aspectos, existe uma ligação, uma seqüência que até perante mim cria a realidade da quimera.

E as pequenas ficam com os olhos húmidos de emoção quando me ouvem balbuciar:

- Começo a convencer-me de que ainda um dia hei-de visitar a Ilha dos Pêssegos!

Passam minutos antes que a Emília nos abra a porta. E eu que tanto queria não me haver esquecido da chave!

Distingo, lá para dentro, vozes. E os tins dos meus relógios, o velho-novo do ferro-velho e o novo-velho do tempo de Napoleão, a apressarem-me. São dez horas e os pequenos já chegaram!

E a Emília continua a não abrir a porta. Volto a premir o botão da campainha, com mais insistência.

Ah, bem... finalmente!

Encaro-a e refilo.

- Que maçada!

E ela:

- Preciso de falar com a Senhora.

- Está bem. Logo ou amanhã.

- Agora.

- Mas agora por quê? Que se passa? Aconteceu alguma coisa?

- Tenho as malas prontas. Não entendo.

- O quê?

- Tenho as malas prontas.

- E depois?

- E depois... vou-me embora.

A Luisa e a Teresa, que iam a afastar-se (a Teresa fora encarregada de guardar no meu quarto as fotografias excedentes, mal entrássemos em casa, não fosse haver qualquer acidente apesar de eu ter na carteira as da Ilha dos Pêssegos) param e retrocedem, tão surpreendidas como eu própria.

Engulo o meu pasmo (que remédio!).

- Mas vais-te embora neste momento?

- Neste momento.

- Não preferes aguardar o fim do mês?

- Não.

- Amanhã... de manhã?

- Nada.

- Seja. vou pagar-te. - abro a carteira e verifico que não tenho que me chegue. - Espera um momento, vou buscar o teu ordenado.

- Não pedi dinheiro.

- Era o que faltava, que saísses sem o ordenado!

Afasto-me. Não sei se dentro de mim com o espanto se amassa pena ou alívio. Uma certa cobardia - tanto a fazer e tantos afazeres... como esticar o tempo, como obrigá-lo a chegar. onde arranjar quem substitua a eficiência da Emília quando sem intratabilidade ? Um enorme orgulho - paciência, cá me hei-de arranjar!

Espreito pela porta da sala. E os seis rapazes, que deviam estar de olhos fitos nela, aguardando-me, põem-se de pé como que impulsionados por uma mola. Dirijo-lhes um rápido aceno e prometo:

- Não me demoro nada. Desculpem.

Não tardo em voltar ao corredor onde a Emília continua especada, sozinha.

A Teresa e a Luisinha desapareceram.

- Pronto, Emília, aqui tens o teu ordenado. Apesar da maneira insólita como decidiste sair, não te desconto os dias que faltavam para completares o mês.

Ela guarda as notas na mão, amachucando-as. E exclama:

- Não me pergunta por que é que saio?

- Penso que não possuis quaisquer razões, logo por que havia de interrogar-te?

- Essa agora? ... Não tenho razões? Então leva-me a um Médico de malucos e acha que não tenho razões?

- Emília, volto a dizer-te que o Dr. Samuel Crisóstomo não é um Médico de malucos, mas sim um Médico de doenças nervosas, doenças mentais...

- Se não fosse para ver se eu era maluca ele punha-se a dar-me aquelas marteladas nas pernas e nos braços, punha ? Algum doutor trata assim a gente?

Lembro-me do papel onde o especialista escreveu o diagnóstico. Reage como uma criança de sete anos...

Não vale sequer a pena tentar explicar-lhe a utilidade do martelo de reflexos!

- Adeus, Emília. Que sejas muito feliz e até qualquer dia!

Eis-me entre eles.

E estão todos mais ou menos como da última vez.

Todos não. O João Alfredo (Fofo, aqui) continua de cara rapada e cabelos bastante cortados. Trajando calças de seda e camisa preta e branca de fantasia (bem bonita, por sinal!) sob um casaco sem mangas, aceitável. De comum com o antigo Fofo (pois não parece que foi há tanto?) os aros grossos dos óculos. E as lentes grossas. E a gordura.

Penso que este rapaz devia fazer uma dieta para emagrecer e disponho-me, num sorriso, a iniciar a realização do objectivo que nos reúne.

A Teresa e a Luisa, que lhes apresentei, sentam-se ao meu lado, nas poltronas.

Eles, no chão (coerentes...).

Estamos na sala.

Da primeira vez quis que se reunissem comigo dentro da minha moldura íntima, onde sou eu como em mais parte alguma. Hoje desejei honrá-los com o que tenho de melhor, para que se sintam não dominados mas categorizados.

Atrás de mim, sobre a consola que herdei da casa dos meus bisavós maternos - duas vezes maternos, Pais da Mãe da Mãe, - o tique-taque pendular do meu relógio novo-velho do tempo de Napoleão é cortado por um toque tim. Lá para dentro, outro tim, no meu relógio velho-novo do ferro-velho, a confirmar que são 10 e 30.

- Tão tarde, filhos! - lamento. - Uma série de pequenas coisas encadeadas umas nas outras atrasou-me mais do que eu queria. Desculpem e falem-me de vocês.

- Nós, - começa o Licas, - vínhamos com a idéia de...

- De verem as fotografias da Ilha dos Pêssegos, bem sei. Tenho-as comigo. Antes, porém, queria que me dessem conta do adiantamento das vossas diligências.

- O Fofo ainda não lhe contou nada? - estranha o Carola.

- Mal nos falámos, ontem!

- Pois a gente...

É o Todinho quem conclui:

- A gente estamos alistados!

- Estão alistados ? ...

- Isto é, estamos a tratar dos papéis.

- Ah, bem!

- Mas é ponto assente que vamos mesmo - afirma o Teco com um ar tão peremptório que me faz sorrir.

- As vossas famílias concordam?

- Lá isso as reacções foram muito diversas. E uns acharam bem e outros mal.

- Mal ? - e não concebo que pudesse alguém preferir que um rapaz continuasse entregue a uma inutilidade prejudicial em vez de enveredar por um caminho onde o preço da vida lhe fosse revelado custasse o que custasse. Quem achou mal, importam-me de me dizer ?

Interessam-me elementos que me ajudem a conhecer o meu semelhante quando ele se encontra no extremo da minha compreensão. Gostava de adivinhar qual foi, ou quais foram, de entre estes, os que enfrentaram a oposição. O filho dos Serramoura? O filho dos Caiate (do Banco Caiate, Leoninos e Sómaris...)? Ou o pequeno herdado, o que deve constituir todo o ponto de apoio afectivo de uns avós pela certa sem coragem para verem partir o seu menino de botas ferradas nos pés mimosos e mochila às costas nunca antes dobradas?

E poiso o meu olhar nos três que me parecem mais susceptíveis de haverem encontrado oposição. E, se não oposição, pelo menos discordância... Nenhum deles se manifesta.

- O meu Pai achou mal! - exclama o Fadista. - Tem medo que eu morra e depois não sabe a quem deixar a massa.

- Os meus Pais também ficaram danados!

- desabafa o Todinho. - Principalmente a minha Mãe, que diz que morria de vergonha se me visse a marchar ao lado dos filhos dos operários lá das fábricas e dos criados de lavoura da família.

Sobe-me a indignação do coração à boca num jacto de tal modo violento que para a não deixar extravazar numa série de impropérios contra uma mulher que acaba de descer ante o meu juízo e os meus sentimentos mais baixo que a lama de que me afasto nos caminhos sujos dos dias feios, obrigando o filho quem sabe se a desviar dela os olhos com horror e nisso não posso colaborar, mordo os lábios até fazer sangue.

E é o João Alfredo quem, como se lesse no meu olhar quanto não digo, pronuncia palavras tendentes a serenarem-me. Palavras que me acalmam levando-me a esquecer as pessoas erradas, as pessoas que fazem tudo ao contrário do que devem.

- Os conselhos e as opiniões de uns e de outros não nos afectam nada. Como não afectavam, antes. Mal ou bem orientámo-nos de acordo com o que queríamos. Nenhum de nós fez caso das imposições que cada vez nos davam mais vontade de os contrariar. Quando nos decidimos a contestar (eis a grande palavra juvenil da actualidade - CONTESTAR - e não importa o quê) proclamando a nossa libertação, sabíamos que devíamos governar-nos sós. Ou antes, governar-nos segundo os nossos pontos de vista. Quantas mais ordens nos davam, mais coisas fazíamos que a todos irritassem e escandalizassem.

- Lá em casa armava-se cada bronca! - ri o Teco. - Até que por fim desistiram. E foi o melhor, quando não eu acabava por perder a cabeça!

Sinto vontade de saber o que resultaria desse perder a cabeça, mas a voz do Licas impede-me de traduzir numa pergunta o meu desejo.

- A gente não parava de escandalizar as pessoas. Eu uma vez os meus Pais tinham um jantar a uma data de financeiros, uns tipos emproados que de cada vez que arrotam parece que estão a repetir "comi lagosta ao almoço com molho de caviar..." e umas mulheres muito velhas com uns vestidos que custam um dinheirão e nem assim conseguem ficar bonitas... e vai encheram-me de recomendações! "Que me apresentasse convenientemente" "que fosse educado", "que não dissesse disparates", "que mais isto e mais aquilo"... Um Luisinho em Bom! Quando entrei na sala... julguei que dava uma coisa àquela gente toda.

Estou suspensa. Que irei ouvir?

- Ia embrulhado num lençol de banho que ameaçava deixar-me nu em pelo a qualquer movimento, com os cabelos empapados em azeite e as mãos besuntadas com graxa preta... Se visse as brinqueiras horrorizadas a fugir de mim por causa das toiletes (e diz toiletes em vez de correctamente pronunciar tualetes) e o meu Pai sem saber se havia de me pôr fora se acudir à minha Mãe que estava com um fanico!...

Os outros riem com ele. Menos o João Alfredo que me não desfita.

Tornei-me impenetrável. O meu papel neste instante cinge-me na obrigação de escutar. Apenas escutar.

Comenta o Fadista:

- Todos nós inventávamos coisas que vincassem bem o nosso desprezo pelas convenções. E a senhora - a senhora sou eu, claro! - acha isto muito mal, não?

Não respondo. E o Carola:

- Não vale a pena interrogá-la, Fadista. Não pertence à nossa geração! Tem de achar mal muita coisa.

Sobre todos nós desce o silêncio. Um silêncio perigoso. Podem admitir que me calo porque os condeno...

E o João Alfredo, de súbito:

- Não quer responder ao Fadista ?... Encaro-o e murmuro:

- Parece-te necessário?

- Parece.

- Todas as gerações encerram o mal em muita coisa. Olhando para trás reconhecem-se as asneiras passadas. Porque não há só asneiras actuais. Isso seria uma regalia única. Vocês não podem orgulhar-se dela.

O silêncio deixa de ser perigoso. E o Fadista:

- Nesse caso pensa que os nossos Pais também cometeram erros ?

- Como os Pais deles. Como os vossos filhos virão a praticá-los. O direito de proceder ao contrário do que seria melhor para todos não é exclusivo de ninguém. Antes fosse.

- Por quê antes fosse?

- Porque se tornaria mais fácil classificar os que nos rodeiam e constituir com eles núcleos de segurança, ou de insegurança. Sabíamos mais a tempo com o que podíamos contar. - e vejo-os tão atentos no desejo de me entenderem que lhes dou num sorriso a simplicidade de que necessitamos para continuarmos próximos, eles de mim e eu deles. - Não vamos discutir estes problemas agora, não? Vocês conhecem-me e eu conheço-os. Eu sei o que vocês ambicionam e vocês sabem o que posso ajudá-los a conseguir... logo esqueçamos as discussões para arranjarmos as soluções. Certo?

E cinco vozes, a um tempo:

- Certo!

Cinco porque o João Alfredo não respondeu. O João Alfredo começa a falar:

- O que foi, foi... e agora o que importa é o que vai ser.

- An? - e sinto-me à espera.

Ele encara-me com uma expressão que me impressiona. Há por detrás das lentes grossíssimas do Fofo algo a brilhar numas pupilas que o vidro durante anos embaciou. Desenha-se-lhe nos lábios delgados um sorriso tão incompreensível como a frase e o olhar. E como aquela gargalhada de ontem lá em cima no primeiro andar do palacete dele.

Irá deixar-me perceber, enfim?

Abre a boca.

Aguardo, suspensa.

- Podemos ver as fotografias?

- Oh! ... As fotografias ? ... As fotografias, claro!...

As fotografias.

Passam de mão em mão, sofregamente puxadas, sofregamente admiradas. Chego a temer que as rasguem tal a violência com que as arrancam uns aos outros.

As exclamações extasiadas soltam-se de permeio com risadas jubilosas. Os comentários estrepitam, quando decifram o que escrevi nas costas dos retratos.

- Ah, lê aqui... Rochas sem lugar para nós... Eh, pá, eu garanto-te que hei-de amarinhar por elas acima de qualquer maneira!...

- Sempre quero ver como é que te agüentas no alto destes picos!...

- Pá, faço um curso pra faquir...

- Eu cá acho que nunca mais tomo banho!

- O quê, pá?... Nunca mais tomas banho?

- Até ir pra lá, não!

- Que cheirete vais deitar!

- Óptimo, para se afastarem todos do meu caminho!

- Mas com que finalidade ?

- A de sentir meu este mar!... Ninguém mo disputa que eu deixo-lhe a água bem suja!

- És um cretino, Fadista! Querias o mar só para ti?

- o que aí diz, Carola!

- Qual quê, selvagem! O que aí está escrito é "meu também". Portanto de cada um de nós, também. Logo, de todos.

- O que é que quer dizer "maré nostrum", ó Licas?

E o Licas, com reminiscências do seu quarto ano chumbado não sei quantas vezes:

- Mar nosso.

- Mar de todos nós, portanto, como eu concluo - e na voz do Carola perpassa a satisfação de haver compreendido.

Agora as treze fotografias acham-se no chão, alinhadas sobre o tapete, seis sob sete. E os rapazes amontoam-se para as observarem todos ao mesmo tempo. Uns de joelhos, outros por cima das costas dos de joelhos.

As meninas e eu só vemos trazeiros, modelados em calças onde se distinguem a sarja, a bombazina, a ganga, a flanela de lã e a seda. E eu e elas trocamos sinais de entendimento.

Achamos graça às posições de garotos, elas e eu. Graças à disputa infantil das mãos que apontam o lago dos peixinhos amarelos, e a água quente para o banho. Graças ao entusiasmo com que eles repetem que os homens vivem ao outro lado. Elas e eu.

E eu tenho os olhos rasos de lágrimas quando o dono do mais volumoso dos traseiros, moldado em seda negra, se volta para mim e com os lábios a tremer pronuncia:

- Aqui mora a paz!

Sinto-me submergida numa vaga de emoção. E como da outra vez, apetece-me desdobrar-me em afagos que sejam tradutores da mais maternal ternura por estes rapazes que no fim de contas desejam no mundo a paz.

A paz que lhes é negada na existência trepidante e desmoralizadora em que se encontraram sem culpa e por culpa de outros acusados de tantas culpas. A paz pela qual suspiram, ecoando a frase de João Alfredo:

- Aqui mora a paz!...

E dir-se-ia que estão fascinados a contemplarem a fotografia maravilhosa da clareira completamente cercada por pessegueiros.

- Bem... -consigo articular por fim. - Gostam então da Ilha dos Pêssegos?

Dá-se um rápido movimento colectivo. Os que estão de gatas voltam-se e os que estão debruçados por cima deles quase se desequilibram. Dois deles caiem mesmo no chão, mas logo se instalam como os outros, diante de mim e das meninas, em cacho.

- Gostamos!

- Se gostamos!... E o Fadista:

- Já faz uma idéia de quanto pedem pela Ilha?

- Não, nenhuma idéia. Porque sem ter a certeza da vossa decisão não me pareceu conveniente abordar o assunto. Agora sim, agora posso afoitamente tratar disso.

- E olhe que é custe o que custar! - exclama o Carola. - Custe o que custar... a Ilha tem de ser prá gente! Pelo menos eu e o Fofo não sabemos o que seja falta de dinheiro, por isso nem que a gente os dois pague pelos outros!

Observo João Alfredo. Continua a mirar, com uma expressão cada vez mais estranha, o recanto todo cercado de pessegueiros "onde mora a paz".

- Pronto, meus filhos! Amanhã ou depois irei expor no Ministério a vossa pretensão. Logo que saiba a resposta eu contacto com o João Alfredo para que os previna. - e volto, como no primeiro dia em que aqui estiveram, a dizer-lhes que tudo nestes casos leva muito tempo a resolver.

- A gente sabe disso! - concorda o Teco. E o Licas acrescenta:

- A gente ainda nem sabemos quando somos incorporados!

- Mas... já meteram realmente os papéis?

- e insisto porque mal ouso acreditar.

- Já! - afirmam cinco vozes.

E o Todinho (é impressão minha ou está menos feio?) explica:

- O último a entregar tudo fui eu, porque o meu Pai estava casmurro e tive de o ameaçar sei lá com quantos escândalos se não me desse os documentos. E palavra que lhe ensaboava o juizo!...

- Mas... vocês querem assim tanto, tanto, ir para a Ilha dos Pêssegos? - tartamudeio, numa última incredulidade.

- Queremos, sim! - e de novo a resposta sai em uníssono.

A sexta voz, que desde há pedaço deixara de ouvir, adita:

- Precisamos da Ilha dos Pêssegos! - e nas mãos de João Alfredo, aqui Fofo, continua a fotografia do recanto cercado de pessegueiros onde mora a paz.

A paz.

Atrás de mim, de mim e das meninas, canta horas o meu relógio novo-velho do tempo de Napoleão. Onze, confirmadas pelo meu relógio velho-novo do ferro-velho, lá dentro.

E tudo está bonito nesta sala. Tudo parece certo, à força de bonito. O rosto sem beleza de Luisa Maria. O rosto gracioso da Teresinha. Os olhos destes rapazes ansiosos por algo de Bom. Os olhos míopes de João Alfredo conde de Ribatorpes e barão de Montelongo (Fofo!) reflectindo as horas belas que uma noite me foram desejadas. As horas belas que estão a acontecer neste momento.

- Precisamos da Ilha dos Pêssegos! - repete o moço que de súbito parece encontrar um caminho para os sentimentos próprios. - Não queria voltar a falar do passado. Nem até a lembrá-lo. Mas talvez não me assista o direito de calar tudo aquilo que tenho estado a pensar... Aqui há tempos ouvi, por sinal na telefonia do meu carro, um programa qualquer onde alguém falava a propósito das águas passadas que não movem moinhos, segundo um velho rifão popular, e o sentido era mais ou menos este - o que passou, passou; o que acabou, acabou. Recordar o que foi só serve para que fique em cada um de nós a noção de que as águas futuras têm de ser aproveitadas! É preciso não sofrer a influência negativa das tristes lembranças mas aceitá-las como um constante exemplo que nos estimule a fim de nos tornarmos capazes de não repetir nada do que foi mau sabendo merecer o tempo que tivermos para viver... É mesmo assim! Nenhum de nós pode, só porque até hoje não prestou, ficar de braços caídos a achar que nada vale a pena! Nos últimos dias nós procurámos conversar a sério, procurámos ler coisas educativas e formativas, interessando-nos por problemas espirituais pelos quais tentamos chegar até aos sociais. Não nos adianta nada a conclusão de que o mundo está mau, transbordante de coisas erradas, e como única atitude de desacordo tomarmos a resolução de fazermos disparates e quanto se afigurar em contraste com os preconceitos das classes que os respeitam. A contestação, este reconhecimento do mal que alastra em toda a parte e de cem mil maneiras, exige-nos pelo contrário que nos revelemos dignos da humanidade que não herdámos dos nossos Pais mas dos que principiaram a viver sem coisa nenhuma à sua volta além do direito de trabalhar e de descobrir e de fazer... Seria muito cômodo continuarmos a deixar andar. E a vegetar por aí, como que adormecidos. Ou antes - verdadeiramente embrutecidos. Podíamos não cair em nós se não quando o irremediável da idade nos mostrasse que não havia nada à nossa espera. Mas aconteceu que de repente abrimos os olhos e vimos. E com a força da nossa juventude desatámos a querer. E agora queremos deveras! Queremos a sério! Queremos a Ilha dos Pêssegos. Queremos aberturas para caminharmos em frente. E mesmo que haja montanhas a distância, a gente saberá escalá-las!

Então todos graves, sérios, mudos.

O assombro alaga-me.

Se algum dia imaginei que iria ouvir isto ao gordo Fofo dos caracóis vestindo traje de luxo. Ao gordo Fofo dentro do qual existia João Alfredo conde de Ribatorpes e barão de Montelongo!...

Miro-os, um por um. Eles continuam mudos, sérios, graves. Todos numa aprovação ao companheiro.

Luisa Maria rói as unhas nervosamente. Não sei até onde entendeu o que ouviu. Mas rói as unhas. Nervosamente.

Pelas faces da Teresa Souzelo escorrem lágrimas em fio.

E João Alfredo recomeça a falar. Especialmente para mim, que não posso articular palavra.

- Entre as muitas decisões que temos tomado, existe da minha parte uma de que não posso deixar de a tornar sabedora. Quando requeri casa própria, havia na minha exigência restos do antigo desejo de ferir aqueles a quem devia poupar males e desgostos. Não se muda de personalidade de uma forma tão completa que a velha não faça a sua aparição uma vez por outra... É preciso mesmo que a gente aprenda a senti-la aproximar-se quando menos se espera e a reconhecê-la às primeiras, porque os hábitos enraizados até sabem ser manhosos e surgir um tanto ou quanto disfarçados... Eu magoei a minha Mãe ao manter o meu desejo de ser totalmente independente e nem sequer o notei quando ela me deu parte de que tencionava viver o resto dos seus dias enclausurada. Ainda pensava só em mim. Creio que comecei a deixar de pensar só em mim esta manhã quando ela foi levar-me ao quarto um tabuleiro com o pequeno almoço, coisa que nunca fizera, nem quando eu em pequenito estava de cama doente. Algo que competia às misses e às criadas, a quem pagavam para a execução desses serviços considerados menores. Fiquei por momentos a julgar que era sonho. Não era. A minha Mãe entrou, abriu a janela, poisou-me o tabuleiro nos joelhos depois de me ver sentado, instalou-se na beira da cama, olhou-me a direito, deu-me um beijo na testa e disse-me "meu filho, já não vou para Convento nenhum. vou ficar nesta casa procurando transformá-la numa Ilha dos Pêssegos". Confesso que a princípio, muito embora já com a noção de estar bem acordado, não repeli uma nova suspeita. Das duas uma - ou troçava de mim ou estava variada do juizo. Qualquer das hipóteses era desagradabilíssima... e inaceitável ante a expressão meiga e reflectida com que me fitava. E depois... depois ela explicou-me tudo, tudo... e eu percebi... e agarrei-me a ela com tanta violência que entornei o café com leite por cima da cama e nenhum de nós se importou! Estávamos abraçados e chorávamos juntos. E eu, sem vontade nenhuma de tornar a magoar os sentimentos da minha Mãe, achei-me a repetir "é bom que me vá embora daqui, fica mais um quarto livre" e ela a concordar sem me desprender "pois é bom que fique mais um quarto livre, sim... "

E agora um soluço fundo, seguido de soluços inextinguíveis, interrompe o jovem conde de Ribatorpes cujas mãos se estendem para a rapariga que chora. Para Teresa Souzelo.

Desce sobre mim a noção de que está a acontecer algo marcado pelo destino e de tal maneira imprevisível, inimaginável, que bem testemunha os desígnios ocultos de Deus, tão fora do alcance das nossas expectativas como um terramoto ou um tufão.

João Alfredo, com as mãos nos joelhos de Teresa, soerguido, pergunta-lhe:

- O que foi que te comoveu? Posso saber o que foi que te comoveu assim?

E a rapariguinha, singela como a própria pureza, vencido um derradeiro soluço, responde:

- Tu és Bom! És muito Bom. Vales mais que todo o oiro da terra, que o oiro em que pretendiam enterrar-me viva... Não me importava nada de ir contigo para a Ilha dos Pêssegos!

Sinto-me maravilhada. MARAVILHADA.

Os acontecimentos ultrapassam-me, definem-se para além de mim, d'Eles, de nós todos.

Teresa Souzelo e João Alfredo, ainda quase adolescentes, meninos de há pouco sedentos de compreensão e amor. Um rapaz e uma rapariga que acabam de encontrar-se. De ENCONTRAR-SE.

Baila-me no espírito a recordação de uma frase da Teresinha em relação ao que deixou lá longe nas terras calcinadas das minas onde as criaturas pensam que o oiro é tudo, onde as criaturas estão como se o dinheiro fosse mais importante do que o oxigênio.

O oxigênio da Ilha dos Pêssegos!

O oxigênio generosamente ofertado pelas flores, pelas folhas dos pessegueiros. Da natureza que evoca a parábola divina considerai os lírios, como eles crescem: não trabalham nem fiam; e nem Salomão em toda a sua Glória se vestiu como um deles. Se Deus assim veste a erva que hoje está no campo, quanto mais a vós, homens de pouca fé!... Não pergunteis pois o que haveis de comer, ou o que haveis de beber, e não andeis inquietas. Porque as gentes do mundo buscam todas essas coisas, mas vosso Pai sabe que haveis mister delas. Buscai o reino de Deus e todas essas coisas vos serão acrescentadas.

Todas as coisas boas e naturais se acharão na Ilha dos Pêssegos quando os que as buscarem as merecerem. Porque onde nascem lírios nascem pessegueiros.

Tim-tim-tim...

Cantam horas os meus relógios. O velho-novo do ferro-velho e o novo-velho do tempo de Napoleão.

Horas belas. Sim, BELAS.

- Quantas ? - balbucio.

- É meia-noite. - elucida-me a Luisa Maria, enquanto o Licas, o Fadista, o Carola, o Todinho e o Teco contemplam o parzinho que não fala, só se olha, como que assombrados um e outro ante os sentimentos novos a que talvez nem saibam dar um nome.

O Licas por fim observa:

- Temos de ir embora. A nossa amiga precisa de descansar.

Então o João Alfredo afasta-se da Teresa, põe-se de pé. Fica como que a dominar-nos. Todos erguemos a cabeça para o ver. E ele diz:

- vou fazer tudo o que for possível para merecer a companhia da Teresa na Ilha dos Pêssegos. Na Ilha dos Pêssegos com que todos sonhamos... e com a qual antes de nós sonharam outros.

- Como ? - pergunto. E ele para mim:

- Trago-lhe aqui uma coisa de que vai gostar.

Pega numa pasta que estava caída aos pés do tal armário onde numa gaveta guardo as minhas fotografias. Abre-a e tira de dentro um rectângulo aí com uns vinte centímetros por trinta e cinco, cuidadosamente embrulhado. Retira os papéis e vejo um quadro. As costas de um quadro. Depois a tela, emoldurada numa barrita doirada. E na tela...

- Meu Deus! - mal consigo articular, emergindo do meu espanto sem limites. - Mas... mas... isso é... isso aí... aí mora a paz!

"É a Ilha dos Pêssegos. O recanto da Ilha dos Pêssegoss entre os pessegueiros. Exactamente como na fotografia que o João Alfredo contemplara pouco antes com aquela expressão que tanto me intrigara.

E ele:

- Sim... aqui mora a paz, entre estas árvores que são um Universo de flores cor-de-rosa... - e estende-me o quadro. - Tome, é para si. Merece mais que ninguém.

Tenho as faces molhadas de lágrimas. E nem sequer as limpo. É a minha vez de não ser capaz de dominar a emoção.

Pego no quadro com as mãos que me tremem. E decifro a assinatura num dos cantos RENOIR.

As lágrimas secam-se-me no calor que me inunda.

- Não, João Alfredo, não! Não posso aceitar uma coisa destas! Isto vale uma fortuna!

- Oiça... isto é seu porque tem o mais legítimo direito a possui-lo. Primeiro porque nunca o venderá e portanto nunca disporá do dinheiro que ele vale, logo é como se nada valesse a não ser em Beleza - (horas belas, tão belas!) Depois... - e repete: - Merece-A. Paz que mora aqui.

- Mas... os quadros pertencem... ?

- Este quadro estava na salinha privada da minha Mãe e por acaso, ou predestinação, não foi incluído no inventário feito pelo meu Pai. Por isso quando pensei em trazer-lho não houve qualquer impedimento.

- Mas a tua Mãe...

- A minha Mãe pede-lhe uma coisa só, em troca.

- O quê, filho?

- Que deixe reproduzir o quadro... obter dele cópias.

- Cópias?... Cópias para quê?

- Para colocar uma, depois, no quarto de cada rapariga, lá em casa, e cada rapariga vendo-o ali, como o sugeriu à minha Mãe, possa ver no seu próprio quarto uma Ilha dos Pêssegos.

Tenho o meu quadro cingido ao peito e abraço-o como se abraçasse todas as minhas esperanças, todos os meus anseios, todas as minhas crenças. Todos os meus esforços.

- Claro... - balbucio. - Claro!

Não é preciso mais nada. Ele sabe que entendi por completo.

Agora estão de pé, os outros, para se despedirem. E nos olhos deles os meus olhos cheios da visão dos pessegueiros como que só vêm flores, flores, flores...

Não, não há flores. Há largueza de vistas. Há perspectivas. Há a luz de uma ilha cor-de-rosa num mar azul sem fim. Há os caminhos descobertos por João Alfredo, guia de todos os outros. Caminhos para horizontes largos.

Horizontes para João Alfredo conde de Ribatorpes e barão de Montelongo.

E na doçura desta convicção, um choque no peito.

Primeiro não descubro o que o provoca, não percebo se vem de dentro se vem de fora.

E agora sei. Foi uma campainha que retiniu.

E é a Emília (nem percebo que a Emília ainda se encontra aqui em casa depois de tudo o que se achava definido) quem aparece a trazer-me o telefone e a comunicar-me:

- O menino Pedro para a Senhora. Atendo:

- Pedro?...

E oiço, oiço. Oiço.

- Sim, está bem. - digo por fim. - Espero por ti antes do almoço para me contares tudo.

Poiso o auscultador.

Estou demasiadamente cansada para tentar compreender o que se me afigura confuso.

A Teresa inquieta-se, vendo-me de cabeça baixa agarrada ao meu quadro.

- Alguma noticia desagradável, Madrinha?

- Sim.

- Pode saber-se o que foi?...

- Agora não vale a pena. Amanhã.

Na minha vida o amanhã surge com demasiada freqüência. Porque sempre gosto mais de hoje.

Mas hoje está no fim. Tão no fim que pensando melhor hoje passou a ontem e amanhã já é logo.

E os meus rapazinhos para a Ilha dos Pêssegos saiem. E o último a partir é João Alfredo conde de Ribatorpes e barão de Montelongo. Sem saber que acabo de ter notícias de Catarina.

Catarina, a rapariga cheia de absurdos. Perdida na noite. Sem nada. Porque a noite não tem horizontes.

Pelo menos não se vêm.

 

 

                                                                                                    Odette de Saint Maurice

 

 

 

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