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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


HOSPITAL - P.2 / Robin Cook
HOSPITAL - P.2 / Robin Cook

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

 

 

 

De regresso à sala de otorrinologia, imobilizei a criança e tentei retirar o objecto preto. Partiu-se quando puxei o forceps e, quando observei o que saíra, nem queria acreditar no que os meus olhos viam. Era a pata traseira de uma barata. O rapazinho soluçava enquanto eu ia retirando a barata, pedaço a pedaço, cheio de pena da criança e ansioso por acabar com aquilo, quase a vomitar de repugnância. Os últimos pedaços saíram com uma boa irrigação. O choro da criança foi diminuindo gradualmente e pincelei o ouvido com desinfectante. Parecia estar tudo bem, mas eu sentia-me um pouco agoniado.

Durante a parte final deste processo, uma enfermeira tinha estado atrás de mim a fazer-me sinais. Informou-me então, num tom um pouco gélido, que Morris continuava à espera na sala de ortopedia. Por vezes aquelas enfermeiras aborreciam-me mortalmente, especialmente de noite. Senti-me, no entanto, um pouco culpado em relação a Morris, porque ele já estava entre nós havia quase doze horas, e suponho que a sensação de culpa aumentou a minha animosidade para com a enfermeira. Profundamente adormecido, Morris estava-se nas tintas. O gesso estava completamente seco. Infelizmente tive de o acordar para lhe ligar o gesso ao corpo com uma ligadura Ace, e, ao fazê-lo, tive de sujeitar-me a mais alguns insultos, que me pareceram não estar à altura da média habitual de Morris. o que mais me preocupava era verificar se Morris podia ou não mover o ombro, com o braço esquerdo assim ligado ao corpo. Mas estava a seguir as instruçÕes do compêndio, e a clínica resolveria o problema na segunda-feira, se houvesse alguma coisa errada. Voltando à sala principal das Urgências, disse à enfermeira nervosa que Morris podia ir para casa, ;e ela arranjasse tempo, entre as pausas para o café, para lhe dar uma njecção antitetânica.

Por volta das dez horas, a casa estava a abarrotar, cheia de todas as doenças possíveis. Com o aumento da clientela, eu tinha-me atrasado um pouco, talvez numa dúzia de fichas. Silenciosamente de pé no meio da sala de espera principal encontrava-se uma mulher que queria que eu examinasse uma pequena perfuração no nariz, provocada havia cerca de oito horas por uma tesoura de podar. o seu nome era Joseplis. Não sei por que motivo Mrs. Josephs estava havia tanto tempo à espera, mas o seu médico tinha-a mandado às Urgências para receber uma injecção contra o tétano. Era uma coisa segura. Todavia, o toxóide do tétano só ajuda o corpo a construir imunidade; além disso, actua lentamente. Pareceu-me sensato complementar a injecção antitétano com um anticorpo para protecção temporária, especialmente numa ferida já com oito horas. Tínhamos acabado de receber uma nova remessa de um soro de anticorpos humanos muito bom, chamado Hypertet, mas eu não podia dá-lo a Mrs. Josephs sem primeiro telefonar ao seu médico, um tal Dr. Sung, que era muito conhecido pela sua língua afiada e medicina antiquada. Marquei o número dele com preocupação.

- Dr. Sung, fala o Dr. Peters das Urgências. Tenho aqui Mrs. Josephs, e vou dar-lhe a injecção antitetânica, mas acho que ela deveria tomar qualquer coisa que a aguentasse até a injecção fazer efeito.

- Sim, tem razão, Peters. Dê-lhe uma dose de antitoxina de cavalo, faça isso depressa, se faz favor. Não quero que ela espere.

- Temos aqui uma globulina humana de imunização contra o tétano, muito boa, chamada Hypertet, Dr. Sung. Não seria melhor que soro de cavalo? É muito mais rápida e além disso...

- Não discuta comigo, Peters. o senhor não sabe tudo. Se eu quisesse o Hypertet, tinha-o pedido.

- Mas, Dr, Sung, se eu usar soro de cavalo, há uma hipótese de alergia, e terei de lhe fazer um teste cutâneo. Tudo isso leva tempo.

- Então, para que diabo lhe pagam? Despache-se com isso.

Ouvi o som agudo do telefone ao desligar-se. Bom, que se lixasse.

O velho Dr. Sung praticava uma má medicina e um dia havia de se dar mal.

Para que havia eu de afligir-me? Era uma pena o Hypertet, no entanto, tão bem embalado e pronto para a injecção. Apostava dez contra um em como o desgraçado nunca tinha ouvido falar dele. É para isso que nos pagam, pensei, elaborando sombriamente uma longa série de instruçÕes para testes de sensibilidade, na parte lateral da garrafa de soro de cavalo, enquanto quinze pessoas aguardavam lá fora.

Mas não fui muito longe com o soro de cavalo. Uma sirene, à distância, trouxe-me de novo o antigo receio. Para meu horror e incredulidade, três ambulâncias pararam simultaneamente diante do hospital e os ajudantes saltaram e começaram a descarregar pedaços de pessoas, todas vítimas do mesmo acidente de viação, colocando-os nas salas onde outras pessoasjá estavam à espera. Um corpo esmagado já teria sido aterrorizador; cinco eram um espectáculo simplesmente esmagador. Enquanto as enfermeiras ligavam para cima, a pedir ajuda ao pessoal da casa, tentei fazer qualquer coisa, fosse o que fosse, antes que a situação me imobilizasse. Um dos pacientes era um rapaz com um lado da cabeça esmagado. A sua respiração era extremamente estertorosa; por vezes cessava completamente, sendo retomada segundos depois. Comecei a preparar uma IV, de que o rapaz, provavelmente, não necessitaria de imediato. Mas havia de vir a precisar dela, e mantive-me ocupado a prepará-la e a extrair algum sangue para ver qual era o tipo e fazer comparaçÕes. Seguiu-se a inserção de um tubo endotraqueal, uma decisão automática. Normalmente era um processo em que eu tinha dificuldades, mas desta vez foi fácil, porque o maxilar inferior estava tão partido que foi possível afastá-lo. Depois de lhe fazer a sucção da boca e da garganta, retirando pedaços de osso e bastante sangue, introduzi o tubo para que ele pudesse respirar. Surpreendentemente, a pressão sanguínea estava normal. Gostaria de ficar junto do rapaz, embora nada mais pudesse fazer por ele, de momento, mas os outros pacientes gritavam por ajuda - e, de qualquer forma, já vinha a caminho um neurocirurgião. Mais tarde vim a saber que o rapaz tinha morrido cinco minutos depois da operação. A ideia incomodou-me durante algum tempo, até que raciocinei que ele já se encontrava praticamente morto quando chegara às minhas mãos.

Agora, ao fim de todos estes meses, tinha-se tornado mais fácil não me deixar prender emocionalmente por um determinado caso. Outros problemas me esperavam, exigindo a minha atenção. A senhora do quarto do lado, - por exemplo - também estava em estado grave. Uma enorme área de pele e cabelo, que ia desde a orelha esquerda até ao cimo da cabeça, podia ser afastada, deixando ver uma rede de fracturas cranianas múltiplas, como um ovo cozido rachado, pronto a ser descascado. A pupila do olho esquerdo estava largamente dilatada. Por onde principiar? Enquanto eu olhava para o crânio, ela vomitou subitamente uns cinquenta centilitros de sangue, que saltou da mesa para cima das minhas calças e dos meus sapatos. Dei graças a Deus pela IV, que dava certa orientação aos meus pensamentos caóticos. Apressei-me a prepará-la, enviando ao mesmo tempo uma amostra de sangue para verificação do tipo e comparação, a fim de se conseguir sangue para a transfusão. Como ela tinha vomitado sangue, pensei que iríamos precisar de oito unidades, em vez das quatro habituais, embora a sua pressão sanguínea fosse invulgarmente forte. A questão de uma pressão sanguínea aceitável, mesmo normal, perante uma nítida falha corporal tinha começado a preocupar-me. Todos os livros citavam a pressão sanguínea como um primeiro e seguro indicativo da função sistémica geral, mas a maior parte das minhas experiências pareciam contrariar essa regra. De qualquer forma, apalpei o abdómen da mulher, tentando descobrir de onde poderia ter vindo todo aquele sangue.

Nessa altura, uma enfermeira chamou-me urgentemente a outro quarto, onde um homem estava a respirar com dificuldade, e, achava ela, convulsivamente. Aparentemente atingido no estômago, era um dos condutores, imaginei eu. A enfermeira entregou-me amobarbital para deter as convulsÕes, mas, antes que lho desse, apercebi-me de que, em vez de convulsÕes, ele estava a sofrer das chamadas ânsias, vómitos em seco. Conseguiu vomitar um pouco, não sangue, mas um álcool de cheiro azedo, que conseguiu ir também parar aos meus sapatos. Quando o Dr. Sung me telefonou, no meio de toda esta aflição, para saber se eu já tinha dado o soro de cavalo, senti-me tentado a descarregar sobre ele, mas limitei-me a dizer que não, que estávamos ocupados.

No mesmo acidente tinha estado envolvido um motociclista. Encontrava-se praticamente esfolado vivo. Tinha abrasÕes por todo o corpo, excepto na cabeça. Era um dos poucos que usavam capacete. Cada fim-de-semana tinha a sua quota de motociclistas mortos. o mais horrível era aparecerem em bocados - casos tão graves, na verdade, que já corria uma piada no hospital acerca do motociclista que tinha chegado ao hospital em várias ambulâncias. No caso deste, equimoses no corpo todo, fracturas e abrasÕes eram a melhor descrição. Se pudessem falar, aqueles fulanos insistiriam veementemente em que uma motocicleta não era muito perigosa, porque se ficava livre quando havia um acidente. Mas ser cuspido a noventa e tal quilómetros por hora, em cima de cimento, sobre a cabeça, e depois ser atropelado, não nos deixava muito que fazer. Este não se encontrava apenas coberto de abrasÕes; a perna esquerda estava também esmagada. Os dois ossos saíam, num ângulo de quarenta e cinco graus, e o pé estava preso apenas por alguns fios de tendÕes. As calças, as meias, pedaços do ténis e asfalto haviam sido esmagados dentro da ferida.

Surpreendentemente, estava consciente, embora um pouco confuso.

- Sente dores?

- Não, não sinto dores. Mas tenho qualquer coisa no olho direito.

- Santo Deus, naquele estado e preocupado por causa de um pouco de cinza no olho. Limpei-o. A pressão sanguínea estava normal, o pulso um pouco elevado, a 120. Comecei a preparar uma IV e enviei uma amostra de sangue para cima, pedindo arbitrariamente cinco unidades de sangue disponíveis. Aparentemente, ele não precisava de sangue de momento, mas era óbvio que teria de ser sujeito a cirurgia óssea. Com um hemostático, tentei deter um pouco do sangue que escorria dos músculos da perna, que estavam à vista. Espantou-me vê-lo sangrar tão pouco.

Voltei para junto da senhora que tinha vomitado sangue e fiquei aliviado por constatar que a sua pressão sanguínea se estava a aguentar. Talvez ela tivesse apenas engolido todo aquele sangue; afinal, estava a sangrar de ambas as narinas. Tinham-se passado vinte minutos desde a chegada das ambulâncias e já ali se encontravam outros membros do pessoal médico, ajudando a estabilizar os pacientes. Mandei vir o aparelho de raios-X e fiz algumas chapas de cabeças, tóraxes e alguns ossos. Não há palavras que possam descrever a confusão que ali se verificava. Era o caos total, com gripes e diarreias e bebés e asmáticos misturados com ossos partidos e cabeças esmagadas. E as coisas não melhoraram muito quando os assistentes chegaram e começaram a ditar ordens para todos os lados. o bloco operatório, já alertado, começou finalmente a absorver os pacientes do acidente de viação.

o Dr. Sung voltou a telefonar, ameaçando apresentar queixa ao hospital se eu não tratasse imediatamente do soro de cavalo. Naquela altura estava-me nas tintas para o soro de cavalo, de modo que lhe desliguei o telefone. Isto fez que ele aparecesse por lá, furioso, cerca de vinte minutos depois, pronto a insultar-me, precisamente na altura em que transportávamos para a sala de operaçÕes o último dos pacientes em estado grave. Fiquei ali, de pé, coberto de uma mistura de sangue e de vómito, ouvindo vagamente a sua peroração. Aquele tarado era capaz de me meter em sarilhos, de modo que nada mais disse, excepto para me referir novamente ao Hypertet, explicando como teria sido muito mais rápido. Isto ainda o fez ficar mais furioso, e foi-se embora, levando consigo o seu paciente. É evidente que apareceu uma reprimenda por escrito na minha caixa, alguns dias depois. Vão-se lá escolher as prioridades!

Por volta das onze horas, o ciclone já tinha passado, deixando a habitual esteira de pacientes com queixas menores, num número bastante maior que o habitual, por causa do que se tinha passado antes. Havia-os por toda a parte - no interior, no exterior, sentados na plataforma da ambulância, no chão, nas cadeiras. Comecei a andar de uma sala para outra, mal escutando o que me diziam, actuando como uma máquina fatigada. Um homem tinha caído junto da piscina, durante uma festa, partindo o nariz na prancha, ao cair, e cortando o polegar num copo de gim com água tónica. o nariz estava direito, de modo que o deixei ficar. Suturei rapidamente a laceração, depois de ter contado a triste história ao seu médico particular. Ele também parecia bêbado.

Era, na verdade, a grande noite dos bêbados; na sua maior parte sofriam de pequenos cortes e equimoses, ou de ressacas prematuras, com náuseas e vómitos. E as crianças ainda continuavam a aparecer, muito depois da hora de deitar, com as suas diarreias e narizes a escorrer e as suas febres. Apareceu-me um com uma temperatura de cerca de 40 graus, mas eu não conseguia encontrar-lhe algo errado. Isto incomodou-me bastante. Como ser humano, sente-se uma vontade irresistível de tratar; é isso que se espera de nós. Os pais clamam quase invariavelmente por penicilina, mas eu tinha o bom senso suficiente para não a receitar, na maior parte dos casos. Tratar um sintoma como a febre sem um diagnóstico seguro é má medicina; e, no entanto, eu apenas fazia uma observação bastante limitada dos ouvidos ou das gargantas daqueles pequenos berradores. Algumas vezes tratava-os, outras vezes não; actuava sempre com base em suposiçÕes mal fundamentadas.

Era um sábado à noite típico nas Urgências. A multidão começou a rarear por volta da 1 hora da manhã. A partir daquele momento começaríamos a ver menos daquelas coisas que afastavam as pessoas ios seus aparelhos de televisão durante a noite, para procurar a santidade do banco do hospital - coisas como gripes, diarreia e ferimentos menores. Dentro de cerca de uma hora começariam a aparecer os problemas que as impediam de dormir. Os mesmos problemas que tinham ignorado durante todo o dia e no princípio da noite impedi-los-iam, naturalmente, de dormir, obrigando-os a aparecer, a meio da noite, perante o astuto e compreensivo interno. Como pruridos nas coxas. Numa outra noite de serviço, tinha adormecido por volta das 5 da manhã e sido acordado porque um doente tinha pruridos nas coxas.

Pouco depois da uma hora, parou à porta uma ambulância sem sírene e os tripulantes descarregaram uma rapariga de aspecto tranquilo, com vinte e poucos anos, que estava mergulhada num sono profundo, próximo do coma. Ingestão de comprimidos. o habitual, como constatei: doze aspirinas, dois Seconal, três Librium e uma mão cheia de comprimidos de vitaminas. Todos aqueles medicamentos, com excepção, talvez, das vitaminas, podiam ser perigosos - especialmente o Seconal, um soporífero - mas era preciso tomar muitos para o caso ser realmente grave. Caso contrário, era apenas um gesto, um infantil pedido de atenção dentro do tecido social da vida do indivíduo; o caso habitual de ingestão de comprimidos é o da jovem perdida no mundo irreal da revista Romances da Vida. Por vezes interessava-me e sentia uma certa simpatia, mas não no estado em que me encontrava; sentia-me tão cansado que qualquer sentimento de empatia se tinha dissolvido, havia muito tempo, em irritação. Como é que aquela rapariga estúpida tinha podido fazer o seu número àquela hora da madrugada num sábado à noite? Por que não poderia dar o seu pequeno espectáculo numa terça-feira de manhã?

Como sempre acontece, vários membros da família e alguns amigos chegaram pouco depois da ambulância. Ficaram na sala de espera, a conversar e a fumar nervosamente. Olhei para a rapariga que dormia sobre a mesa. Depois, agarrei-a pelo queixo com uma mão, sacudi-lhe a cabeça e chamei-a pelo seu primeiro nome, Carol. Os olhos abriram-se lentamente, de modo que se visse apenas metade das pupilas, e choramingou "Tommy".

"Tommy, uma merda." A irritação transformou-se em ira, quando a minha exaustão e a minha hostilidade sentiram necessidade de se expressar. Pedi um pouco de ipecacuanha à enfermeira e decidi fazer-lhe uma lavagem ao estômago. Era um processo difícil tanto para mim como para ela, mas eu queria que ela não se esquecesse mais das Urgências. Além disso, sabia que, quando telefonasse ao seu médico particular, ele me perguntaria o que eu tinha extraído do estômago da rapariga.

Um tubo gástrico tem cerca de um centímetro e meio de diâmetro.

Depois de subir a maca para ela ficar sentada, enfiei-lhe um pela garganta, através da narina esquerda. Os seus olhos abriram-se subitamente, por completo, enquanto vomitava e lutava para se libertar das enfermeiras que a agarravam. Vomitou um pouco em volta do tubo, enquanto eu o introduzia até ao estômago, e, em seguida, todo o conteúdo do estômago foi expulso, incluindo um Seconal ainda não dissolvido e uma porção de uma das cápsulas deLibrium. Quando retirei o tubo, veio com ele o que ainda restava. Alguns minutos depois, a ipecacuanha começou a fazer efeito, obrigando-a a vomitar repetidas vezes, apesar dejá ter o estômago vazio. Por essa altura, já Tominy se tinha ido juntar aos outros na sala de espera. Talvez ele também quisesse um pouco de ipecacuanha, de modo a poder desempenhar um papel completo naquele acontecimento melodramático.

Depois de mandar para cima uma amostra de sangue, para ver se a aspirina tinha alterado a acidez do sangue, e de concluir que não tinha, telefonei ao médico de Carol. Disse-lhe o que ela tinha tomado e que, à parte o facto de estar sonolenta, estava bem naquele momento, devidamente tranquilizada.

- Que é que lhe extraiu, quando fez a lavagem?

- Um Seconal, pedaços de Librium e pouco mais.

- óptimo, Peters, bom trabalho. Mande-a para casa e diga ao pai que me telefone na segunda-feira.

Pouco depois, Carol foi levada para casa, em toda a sua glória, coberta de vómito. Nunca pus em questão a minha dura atitude para com ela, ao fim de dezoito horas nas Urgências, e, embora não me sinta orgulhoso dela, as coisas passaram-se assim mesmo.

Por volta da meia-noite entrou um novo turno de enfermeiras. Quando chegaram as duas horas, eu, estava praticamente a cair, mas as novas enfermeiras eram um grupo enérgico e animado, revelando uma notável agilidade e alegria para aquela hora da noite. o contraste fez-me sentir ainda pior, como uma sombra. E a paciente seguinte não veio ajudar muito. A sua ficha dizia "Deprimida, dificuldades respiratórias".

Quando entrei no quarto, o meu desalento foi imediatamente confirmado pela visão de uma senhora de quarenta e bastantes anos, que vestia um negligé azul-claro. Estava deitada na cama, com uma mão a comprimir dramaticamente o peito amplo. Duas outras senhoras ergueram-se histericamente para nos dizer, a mim e à enfermeira, que a sua amiga não conseguia respirar. Eu conseguia ver à distância que a senhora estava a respirar perfeitamente.

Oh, Doutor - gemeu a senhora, pronunciando a palavra com um profundo sotaque sulista, - Mal consigo respirar. Tem de ajudar-me.

Cheirava a martinis azedos. Uma das amigas histéricas apresentou-me um frasco de remédio. Olhei para ele. Seconal.

- Oh, esses comprimidinhos encarnados. Tomei dois. Fiz mal? - A senhora sulista fitou-me com as pálpebras a tremelicar; estava a divertir-se imenso às duas da madrugada. Senti um forte impulso de a correr a pontapés no traseiro neurótico. Mas isso seriauma autêntica bomba, talvez até um suicídio para a minha carreira. Apesar do meu desencanto perante o sistema, ainda não tinha chegado a esse ponto.

- Ouve alguma coisa estranha, Doutor? - Eu estava a esforçar-me por lhe auscultar o peito, que soava perfeitamente normal. - Oh, vai medir-me a temperatura e a pressão - disse ela alegremente. - Sinto-me como se fosse desmaiar. Não consigo compreender o que está a passar-se comigo. - Coloquei-lhe no braço a manga para medir a tensão e enfiei-lhe o termómetro na boca, silenciando-a, por fim. Aproveitei a oportunidade para me afastar dela por alguns minutos e telefonei ao médico que cobria o hotel onde ela estava hospedada. Ele disse que lhe desse Librium.

Regressando à presença dela, esforcei-me por ser delicado. - Minha senhora, o médico do hotel sugeriu que lhe desse Librium.

- Librium, Doutor? São aqueles comprimidinhos verdes e pretos? Bom, sinto muito, mas sou alérgica a esses. Fazem-me gases e às vezes - disse ela, sentando-se na cama, muito animada -, às vezes são tão fortes que as hemorróidas saem para fora, - Dizendo isto, lançou-se numa extensa conversa sobre os comprimidos que tomava e os seus terríveis efeitos sobre o seu tracto gastrointestinal inferior. A meio do recital, um desempenho digno de Blanche DuBois, interrompi-a dizendo que talvez a Thorazina cor de laranja lhe fizesse o mesmo efeito.

- Thorazina cor de laranja! - Quase gritou de prazer. - Esses nunca tomei! Nem sei como agradecer-lhe, Doutor. Foi tão simpático.

- E lá se foi, conversando alegremente com as amigas sobre as maravilhas da Medicina.

Apareceu-me então uma das enfermeiras de uma enfermaria particular, coxeando ligeiramente. Tinha caído numa escada, aparentemente sem efeitos graves, mas gostaria que eu o confirmasse. Concordei. Chamava-se Karen Christie e a sua anca parecia perfeitamente normal, mas sugeri-lhe que fizesse uma radiografia pélvica, de qualquer forma, para ter a certeza absoluta. Os hospitais são compreensivelmente sensíveis a qualquer ameaça de reclamaçÕes por danos pessoais por parte do pessoal. Quando a radiografia de Miss Christie apareceu, quinze minutos depois, coloquei-a sobre o visor iluminado, entre diversos crânios e ossos partidos. Os meus olhos estavam um pouco enevoados, enquanto percorria o fémur, o acetábulo, o ílio, o sacro, etc. Tudo estava normal. Quase não reparei na espiral branca ao centro e, quando dei por ela, não consegui compreender como o técnico de raios-X tinha conseguido introduzir aquele estranho artefacto na imagem. Depois fez-se luz na minha mente ensonada, ao compreender que estava a olhar para um dispositivo uterino anticonccepcional, que teve a dupla utilidade de tornar Miss Christie num caso muito mais interessante e de animar por uns momentos a minha disposição.

Infelizmente o mauhumor regressou com o doente seguinte. Estava sentado a soluçar baixinho por se ter ferido no nariz quando o carro que guiava tinha batido numa boca de incêndio. Sem qualquer encorajamento da minha parte, começou a contar-me loquazmente a história inteira. Ia a conduzir muito descansado quando tinha sido engatado por uma lésbica, que afinal estava tão aborrecida com a sua companheira que acabou por fazer que fossem bater na boca de incêndio. Não lhe perguntei o que tinha acontecido à lésbica, dando-me por satisfeito por não a ter ali também. Pensei sombriamente que aquele era mesmo o remate perfeito para a noite, sob vários aspectos. Aturá-lo era quase superior às minhas forças, no estado de nula compaixão em que me encontrava. Eu só estava preparado para tratar problemas médicos simples - diagnóstico e cura. Aquele tipo necessitava de algo mais. Recusou-se a qualquer coisa para além de ficar ali sentado, a chorar e a chamar pelo Tio Henry. Quando o Tio Henry chegou, nem mesmo ele conseguiu persuadi-lo de que uma radiografia não matava ninguém. Finalmente, depois de o Tio Henry ter prometido ficar sempre ao seu lado, lá foram os dois para a sala de raios-X. A chapa revelou um nariz partido, e o médico particular dele solicitou, por telefone, a sua admissão no hospital. Pouco depois chegou um polícia com a história verdadeira. Tinha-se tratado de uma simples cena de pugilato num dos bares locais de homossexuais; a lésbica era imaginária.

Novamente à distância, captei o som fatal de uma sirene, esperando que não parasse ali. Mas a ambulância travou no estacionamento e recuou rapidamente para a plataforma. Eu já não estava em condiçÕes para o que se me deparou, os destroços humanos de mais um acidente rodoviário. As duas raparigas deitadas nas macas tinham obviamente atravessado o pára-brisas. Estavam cobertas de sangue da cintura para cima, com ligaduras de primeiros-socorros na cabeça e na cara.

Depois das raparigas, dois homens saíram da ambulância pelo seu próprio pé, mostrando apenas ligeiras escoriaçÕes.

Quando retirei as ligaduras da face de uma das raparigas, brotou um geyser de sangue que me atingiu no rosto e no peito. Um caso evidente de hemorragia arterial, pensei, voltando a colocar a ligadura. Enfiei umas luvas esterilizadas e uma máscara e depois arranquei a ligadura de repente, comprimindo imediatamente a ferida com um pedaço de gaze e passando com ela sobre uma laceração aberta que descia da testa, entre os olhos, quase até à boca. Saltavam pequenos jactos de sangue em várias direcçÕes. Com grande dificuldade, consegui colocar pequenos hemostáticos sobre os golpes, mas, antes que conseguisse ligá-los, a rapariga arrancou-os. Estava embriagada. Durante um minuto, mais ou menos, travámos uma luta cruel e horrível, com ela a retirar os hemostáticos tão depressa quanto eu os colocava. Consegui ganhar por uma questão de persistência, ligando finalmente todos os vasos que sangravam, mas deixando, sem dúvida, trabalho suficiente para enriquecer um cirurgião plástico. Entretanto, tinha chegado um residente que estava a tratar da outra rapariga. Depois descobrimos que as duas raparigas eram filhas de militares e, uma vez que a sua situação era estável - o que queria dizer que não morreriam no decurso da hora seguinte - mandámo-las para um hospital militar. Isso deixou-me com os dois homens, que estavam relativamente em boa forma. Limpei-lhes as abrasÕes e suturei mecanicamente algumas laceraçÕes na cabeça, sem pronunciar uma palavra.

Por volta das três e meia só restava um paciente para observar, um bebé de dezasseis meses. Eu já me arrastava praticamente, nessa altura, e não me recordo bem do caso, exceptuando o facto de os pais o terem levado ali porque a criança não andava a comer bem nas últimas semanas. Pensando não ter entendido bem, pedi-lhes diversas vezes que repetissem.

Entretanto, a criança olhava-nos, sorridente e alerta. Com um pouco de sarcasmo, perguntei-lhes se não achavam que se estavam a comportar de uma maneira um pouco estranha. Estranha porquê?, perguntaram eles; estavam preocupados. Invadiu-me uma raiva lenta enquanto examinava silenciosamente o bebé perfeitamente normal, e depois dirigi-me ao telefone e telefonei para o médico particular deles, que ficou igualmente irritado por ter sido acordado. Isso também era absurdo. o médico estava furioso porque o seu paciente me tinha vindo incomodar às 3:30 da manhã. Acabei por os entregar às enfermeiras, que os mandaram todos para casa. Não consegui voltar a falar com eles.

Depois da partida da criança, fui para a entrada das Urgências, olhar para a escuridão silenciosa. Sentía-me enjoado e exausto, e sabia, por cruel experiência, que acordaria muito pior para atender o inevitável paciente seguinte, se dormisse uns quinze ou vinte minutos apenas. Todas as enfermeiras estavam ocupadas com pequenas tarefas, excepto uma, que estava a tomar café. Senti-me estranhamente irreal, como se os meus pés não estivessem firmemente assentes no chão, e absolutamente solitário. Até o medo tinha desaparecido, banido pelo cansaço. Se, naquele momento, surgisse algum caso grave, apenas me esforçaria por o manter vivo até chegar um médico. Bom, de qualquer modo, sempre seria útil. Evidentemente, continuaria a fazer milagres com os bêbados e os deprimidos e as crianças que não andavam a comer muito bem - a minha verdadeira clientela.

Vinha de algures ali próximo, e sempre a aproximar-se, o som da buzina de um Volkswagen, perturbando a enganadora tranquilidade das Urgências. o som tornava-se cada vez mais alto e começou a recordar-me um personagem dos desenhos animados chamado Papa-Léguas - uma absurda associação, de certo modo adequada ao meu estado mental. Bip-bip só podia ser o Papa-Léguas. Trinta segundos depois, a minha fantasia era substituída por um VW que encostou, ainda a apitar, junte à rampa. Um homem saltou de dentro dele, gritando que a mulher estava a ter um filho no banco de trás. Depois de pedir a uma enfermeira que me trouxesse o estojo, corri para o VW e abri a porta lateral. Lá estava, realmente, no banco de trás, uma mulher deitada de lado, obviamente nas últimas fases do parto. A luz era fraca, obscurecendo a área do parto; tudo teria de ser feito à base do tacto. Quando ela iniciou uma nova contracção, senti a cabeça do bebé mesmo no perineu. As cuecas da mulher estavam no caminho, de modo que as cortei com uma tesoura de ligaduras, e, enquanto ela gemia devido à contracção, conservei a mão na cabeça do bebé, para evitar que ele saltasse. Depois de a convencer a deitar-se de costas, empurrei os bancos da frente e consegui fixar uma das pernas dela na janela de trás e a outra no assento do condutor. As minhas mãos moviam-se agora por reflexo, deixando a mente livre para pensament os absurdos, tais como recordar uma velha piada - o que é mais dificil que meter uma elefanta grávida num Volkswagen? Engravidar a elefanta dentro do Volkswagen. Terminada a contracção, comecei a puxar lentamente a cabeça do bebé, fi-la rodar, puxando-a para baixo para fazer sair um ombro e depois o outro ombro e, de súbito, tinha nas mãos uma massa escorregadia. Quase a deixei cair, ao tentar sair do carro de costas. Graças a Deus, nessa altura o bebé começou a chorar. Não sabendo o que fazer durante tudo isto, o pai estava a comportar-se de uma maneira estranha; interrompeu a sua audível angústia em relação aos estofos, que, naquele momento, estavam uma autêntica desgraça, para perguntar se era menino ou menina. No escuro, não soube dizer-lho. Não deve ser o primeiro filho deste tipo, pensei. Queria fazer a sucção da boca do recém-nascido com a seringa de pêra, mas o bebé estava demasiadamente escorregadio para o segurar só com uma mão. Por isso entreguei-o a uma das enfermeiras, com instruçÕes explícitas para o conservar sempre ao nível da mãe, e, depois de aplicar algumas pinças, cortei o cordão, Nessa altura, toda a gente - ajudantes, enfermeiras e o pai - ajudaram a retirar a mãe do carro. A placenta saiu sem dificuldade nas Urgências. Fiquei admirado por não haver laceraçÕes. Toda a gente desapareceu no interior da área da obstetrícia.

O bebé tinha salvo a noite. Talvez lhe dessem o meu nome. o mais provável era chamarem-lhe V. W.

Quase já nem me importei de tratar do bêbado imundo que tinha aparecido durante a excitação do parto. Tinha uma laceração no couro cabeludo, que cosi sem anestesia, enquanto ele me insultava. Na verdade começou a insultar-me e a querer bater-me logo que eu apareci. Estava tão bêbado que nada sentia. Após o último ponto, fui para a sala dos médicos e deixei-me cair na cama, adormecendo imediatamente,

Eram 4 e 45; às 5 e 10, uma enfermeira bateu à porta e veio dizer-me que havia uma doente para ver. A princípio fiquei desorientado, literalmente incapaz de me recordar do local onde me encontrava e apenas consciente do martelar do meu coração. Durante os vinte e cinco minutos que tinham decorrido, o sono, a grande cura, tinha-me incapacitado, deixando-me atordoado e enfraquecido, com cintilaçÕes na periferia do meu campo visual. Estas passaram quando comecei a mexer-me. Mesmo assim, o meu olho esquerdo recusou-se a focar, e, quando abri a porta, a luz do corredor pareceu-me de mil volts. Sentia-me tão mal quanto era possível ainda em funcionamento.

A paciente, onde estava a paciente? A ficha que eu tinha na mão dizia "Dor abdominal, doze horas". Santo Deus! Isso queria dizer que eu precisaria de registar a história completa e provavelmente esperar pelos resultados do laboratório. Entrei na sala e olhei para ela. Cerca de 14 anos, cabelo macio e sedoso à altura dos ombros, magra, com um nariz grande. A mãe estava sentada a um canto. A lista de perguntas para ocaso de uma possível apendicite é extensa, e comecei a percorrê-la. Quando começou a sentir a dor? Quando a sentiu pela primeira vez? A dor deslocou-se? Parecia-se com as cólicas de indigestão? Ia e vinha ou mantinha-se? Entretanto, apalpei o abdômen, para ver se havia sensibilidade, através das bermudas, um trajo razoável para o clima do Havai - mas, por baixo delas, havia qualquer coisa estranha; o nítido recorte de uma cinta? Que disparate. Já comeu hoje alguma coisa? Esta noite? Sentiu vómitos? o abdómen não se apresentava duro. Não podia estar mesmo mais macio, pois, ao apalpá-lo, não provoquei qualquer desconforto. Esvaziou os intestinos? Tudo normal? Tirei o estetoscópio. A sua urina tem sido normal? Coloquei o estetoscópio nos ouvidos e pousei a campânula sobre o abdômen, filtrando as palavras da paciente através dos tampÕes. Já teve dores abdominais antes? Teve alguma úlcera? Por qualquer motivo, deixei para o fim as perguntas sobre o ciclo menstrual. Era uma hipótese remota. Quando foi o seu último período? A resposta soou um pouco apologética:

- Sou um rapaz.

- Olhei para ela - para ele - por um momento, tentando fazer funcionara minha mente aturdida. Cabelo longo e sedoso, camisa solta de veludo roxo. Não, era uma blusa. Cinta! Metendo a mão por baixo da cinta, puxei tudo aquilo, quase o fazendo erguer da marquesa. Não havia dúvidas, era um pénis. A mãe limitou-se a afastar o olhar. Eu não estava preparado para estas inversÕes súbitas. Pareceu-me uma partida terrível e cruel. Estava eu ali a esforçar-me por chegar a um complicado diagnóstico intra-abdominal e tinha-me enganado até no sexo. De qualquer forma, ele não sofria de apendicite ou de qualquer doença terrivelmente grave. Era, provavelmente, um simples caso de cólicas abdominais. Pensei para mim mesmo que, se lhe dissesse que se tratava de cólicas menstruais, ele ficaria todo satisfeito.

Como aprendo lentamente, voltei a adormecer de imediato. Zás! A porta abriu-se e uma enfermeira, encantada, informou-me de que tinha um doente. Ocorreu o mesmo processo, de novo, a mesma agonizante punição de me levantar, piscar os olhos e começar gradualmente a desanuviar o cérebro, depois de sair do quarto. Era um petisco, uma senhora de Samoa que arrastava consigo a mãe doente, que não sabia uma palavra de inglês. Com tantas línguas em uso nas ilhas, estávamos habituados a trabalhar através de intérpretes, mas, neste caso, o inglês da filha nem sequer era inteligível. Além disso, as suas queixas eram tão numerosas que parecia sofrer de todos os órgãos. Doía-lhe aqui, doía-lhe ali, tinha dores de cabeça, sentia-se fraca, não conseguia dormir, em suma, sentia-se muito em baixo. Tal e qual como eu.

Muito cuidadosamente, perguntei à filha se a mãe sentia qualquer ardor quando urinava e fui recompensado por uma expressão de total incompreensão. Dando uma volta à frase, perguntei-lhe se a mãe sentia dores quando fazia chi-chi, pi-pi, ummm... acabaram-se-me os sinónimos... quando mijava. Nessa altura ela pareceu entender. A resposta foi fantástica, fez-me sentir vontade de desistir imediatamente da medicina. Não sabia. Não existe na língua inglesa uma palavra que possa descrever a minha frustração. Disse-lhe que, pelo amor de Deus, lho perguntasse, então. E ela perguntou-lhe. Sim. E deste modo foram sendo feitas as perguntas. Lentamente, e a resposta era sempre sim. Ela sentia ardor ao urinar, urinava frequentemente, tinha náuseas, vómitos, corrimento vaginal, diarreia, obstipação, dores no peito, tosse, dores de cabeça... Dado que a mãe insistia especialmente na dor no peito, tentei fazer-lhe um electrocardiograma, mas o aparelho avariou-se. Quando as aves começaram a cantar lá fora, pareceu-me que me queriam atacar com o seu canto; mas, evidentemente, estavam a apenas a anunciar a chegada do dia. Eu estava tão cansado que já nem me interessava pela velha ou fosse pelo que fosse. Na firme convicção de que ela não morreria dentro das próximas horas, dei-lhe Gelusil, de que gostou imenso, e marquei-lhe uma consulta na clínica. Uma gloriosa manhã já tinha nascido quando ela se foi embora.

Antes que eu pudesse voltar a desaparecer na sala dos médicos, chegaram simultaneamente um bebé e um velho. A mãe tinha deixado cair a criança sobre um braço, que estava um pouco inchado, e o homem tinha feito uma distensão nas costas alguns dias antes. Com o bebé e o velho nos raios-X, adormeci numa cadeira junto do balcão, mesmo no centro das Urgências. Quando o meu substituto chegou, deixou-me continuar a dormir. Acordei quarenta e cinco minutos depois, sentindo-me tão mal como anteriormente, mas sabendo que, desta vez, poderia ir para a minha cama, Onde estão agora as câmaras de televisão?, perguntei a mim mesmo, arrastando-me para o quarto, como uma pintura móvel de Jackson Pollock, feita de muco, vómito e sangue secos. Foi uma sensação estranha e maravilhosa, despir as roupas e deslizar entre os lençóis frescos e levemente ásperos.

Começou assim a minha folga de vinte e quatro horas. Ao fim de mais de um mês no banco do hospital, sentia-me um farrapo, mental e fisicamente. Voltei a ficar lúcido por volta da hora do almoço, altura em que fui acordado por uma combinação do canto das aves, sol e fome.

Fazer a barba e tomar um duche fizeram-me sentir quase humano e, enquanto me dirigia ao almoço, sob o quente sol do meio-dia, regressei ao mundo real. Após o almoço, sucumbi a algo imperioso, dentro de mim, que me levava a afastar-me do hospital. Dormir um pouco mais teria sido a decisão mais prudente, mas tinha descoberto, por experiência própria, que, por mais cansado que estivesse, o ruído geral da tarde em volta das minhas instalaçÕes me mantinha acordado. Por isso enfiei os calçÕes de banho, meti a prancha de surf no carro, atirei alguns livros de Medicina para o banco de trás e parti para a praia.

Foi um alívio afastar-me dali e deixar que o tumulto de cores e movimento me invadisse a mente. Parecia haver gente por toda a parte, todos estranhamente inteiros e saudáveis. No hospital, começa a ganhar-se a sensação de que toda agente do mundo sofre de diarreia ou de dores no peito. Mas eles ali estavam, ocupados e felizes, caminhando e misturando o riso com a actividade física, os bronzeadores e os biquinis de cores garridas. Aquelas pessoas pareciam tão normais. Com os meus sombrios pensamentos, eu era, de certo modo, um estranho, não pertencia ali. Demasiado fatigado para nadar ou jogar volley, encostei-me à prancha de surf e deixei que a cena se desenrolasse diante de mim.

Não tentei falar com pessoa alguma e ninguém se aproximou de mim, o que foi bom. Estava tão dominado pelo banco que teria afastado rapidamente qualquer pessoa, no seu juízo perfeito, com as minhas conversas sobre sangue e ossos partidos. Mas não seria esse o meu verdadeiro tema; o meu verdadeiro tema seria eu - a minha raiva, a minha exaustão e o meu medo. Deixa-te disso, pensei, são palavras terríveis e dramáticas; pára de te embalar na autocompaixão. É a única coisa que tens feito ultimamente, sentir pena de ti mesmo. É uma coisa muito chata, ser-se interno, não é? Altera-a, se puderes, mas pára de ter pena de ti mesmo. Isso não ajuda seja quem for, e muito menos a ti. Só gostaria, no entanto, que a nossa civilização nos aliviasse de uma parte do peso, reconhecendo que uma bata branca e um estetoscópio não conferem sabedoria. E muito menos nobreza instantânea.

Bom, que se lixasse tudo. Ia dormir um pouco.

Adormeci ali, ao sol, sozinho, no meio de toda aquela alegria e daqueles risos. Na verdade, isto acontecia todas as tardes que tinha de folga durante o período de serviço ao banco. Dormir de manhã, comer, dormir à tarde, comer. Nada fazer durante um bocado e depois dormir, ao acordar, constatar que o ciclo de vinte e quatro horas recomeçava, e perguntar a mim mesmo para onde tinha ido o tempo. Quando acordei, a tarde chegava ao fim; havia muito menos gente e o sol estava menos forte. Ninguém me incomodou e continuei ali sentado a olhar para o sol e para a água. Era como olhar para uma fogueira. A sua actividade parecia-me uma desculpa para a minha imobilidade e pensamentos dispersos. Não estava propriamente inconsciente; tudo o que se passava à minha volta penetrava na minha mente - todos os movimentos, os sons e as cores. Simplesmente eu não os relacionava.

Hastings teve de passar com a mão diversas vezes diante da minha cara até que eu o visse. Surf? Claro, por que não, desde que eu conseguisse levar-me a mim mesmo e à minha prancha até à água. Sentia-me imóvel, como se o sol me tivesse sugado todas as forças que me restavam. Isso também fazia parte da rotina da tarde. Hastings ia ter comigo à praia, bastante tarde, e praticávamos surf, sem falarmos, dizendo apenas palavras como "por fora" quando vinha uma onda grande. Não conseguia compreender por que fazíamos tantos planos para nos encontrarmos e depois nos ignorávamos um ao outro. Mas ambos gostávamos que assim fosse.

Remar foi o ponto alto do dia, uma espécie de catarse. Senti o corpo e a mente unirem-se de novo. Servia-me dos braços e dos pés para remar, sentindo a força que havia neles e o toque da água por baixo de mim, fresca, num movimento suave. A extensão do oceano, estendendo-se aparentemente até ao infinito, diante de mim, fazia-me sentir pequeno mas real, mesmo no centro. As pessoas desapareceram; as suas vozes mudaram, ficaram abafadas e distantes, levadas pelas ondas. o sol no poente transformava todo o céu ocidental em quentes e suaves tons de laranja e vermelho, reflectindo-se milhÕes de vezes na superfície da água, como um quadro de Claude Monet. A oriente, começavam a aparecer azuis prateados e violeta, entre os rosas e verdes distantes. o mar estava pontilhado por barcos à vela, espalhados ao acaso, como manchas de cor contra a água e o céu. A ilha erguia-se abruptamente da água e a luz do sol produzia sombras contrastantes entre as gargantas, criando uma textura suave como o veludo e dando aos elevados penhascos asas como os arcosbotantes de uma catedral gótica. Sobre a ilha pairavam nuvens de um violeta-escuro, ocultando os picos, criando reflexos prismáticos de arco-íris nas sombras dos vales. Não sei qual era o efeito que toda esta beleza causava nos outros, mas a mim embalou-me, esvaziou-e de todos os outros pensamentos e fez-me sentir vivo de novo.

As ondas contribuíam para aquela atmosfera, com a sua impetuosidade e ritmo; num momento, uma vibração organizada de movimento harmónico, no seguinte, uma massa rodopiante de insensata confusão. Apanhei uma das ondas. Senti o seu poder, o vento e o som. Torcendo o corpo, num movimento a que a prancha reagiu, fi-lo trabalhar contra a forçada queda; velocidade e milissegundos cruciais. Desci com a onda e, depois, uma torção do tronco, passando a mão pela barreira de água, e a queda e o redemoinho, ainda de pé, com os pés sobre a prancha perdida sob um torvelinho de espuma branca. Finalmente, o coice súbito, com uma torção violenta, mas controlada para trás, deu-me vontade de gritar de alegria por estar vivo.

A escuridão apagou o cenário por completo e trouxe-nos de regresso à praia. Hastings seguiu o seu caminho e eu o meu, para o hospital e para um duche. De novo no mundo geométrico e asséptico dos soalhos limpos, dos chuveiros utilitários e das luzes fluorescentes, vesti-me e saí de novo. Dirigindo-me, no carro, para o Monte Tantalus, comecei a antever a noite que se aproximava.

Ela chamava-se Naney Shepard e eu tinha-a conhecido - como poderia ser de outra maneira? - através do hospital. o pai dela sofria da vesícula biliar e eu tinha acompanhado de perto os seus progressos, depois de ter assistido o seu médico particular durante a operação. De cada vez que eu lhe mudava o penso, dizia-me que gostaria que eu conhecesse a sua filha, repetindo-me que ela tinha andado na Smith e passado um ano na Universidade de Bóston a licenciar-se em história africana. A falar verdade, estava um pouco farto de ouvir as suas histórias, embora continuasse interessado em a conhecer. Finalmente, na véspera da alta do pai, ela tinha aparecido, e era simpática - mesmo muito. Na realidade, parecia-se com uma outra rapariga da Smith com quem eu tinha saído, quando andava na faculdade. De qualquer forma, fomos algumas vezes à praia e divertimo-nos ambos. Ela era capaz de falar praticamente de tudo; era agradável estar com uma mulher culta e inteligente. Com um curso de ciências políticas, gostava de discutir acaloradamente pequenas questÕes governamentais, especialmente relacionadas com áfrica. Apesar de os nossos encontros terem sido sempre bem sucedidos e da minha admiração por ela, deixei de a convidar com frequência, por uma questão de letargia e de falta de tempo. Na verdade, o convite daquela noite para jantarmos juntos tinha sido bastante inesperado. Não que eu não quisesse ver Naney. Simplesmente quase nunca podia fazê-lo - e, por essa altura, Joyce tinha-se tornado muito conveniente.

o jantar foi óptimo. Também estavam presentes os pais de Nancy e dois irmãos dela, todos eles grandes conversadores. Depois do café, Naney e eu fomos até ao pátio, grande e cheio de verdura, e começámos a discutir Jomo Kenyatta e a Tanzânia. Por que não teria a áfrica produzido mais Kenyattas? Ela falava emocionalmente do assunto; era agradável vê-la ficar mais corada à medida que se entusiasmava, pois isso tornava-a mais bonita ainda.

Mas depois ela começou a fazer-me perguntas sobre a Medicina. Porque estava realmente interessada, não apenas a tentar fazer conversa, como tanta gente, esforcei-me por a fazer compreender, respondendo-lhe tão bem quanto conseguia. Inevitavelmente, perguntou-me porque tinha querido ser médico. Um interno tem muitas respostas para esta pergunta. Na sua maior parte são meias verdades evasivas. Mas, com ela, decidi tentar a verdade total.

- Bom, Naney, acho que nunca o saberei exactamente. No princípio, suponho que sentia um vago desejo de ajudar as pessoas e de seguir uma profissão nobre. Mas agora que já percorri um bom caminho, penso que fui atraído, como muitos outros, pela ideia de que ser médico me dava uma espécie de poder que as outras pessoas não têm - um poder sobre as pessoas e sobre as doenças. Poucas coisas representam mais para os americanos que a boa saúde, e aqueles que a podem dar, ou afirmam poder fazê-lo, são automaticamente figuras de autoridade na nossa sociedade.

- Que queres dizer com poder e autoridade?

- Isso mesmo, suponho eu. É algo como o poder que o feiticeiro detém sobre uma sociedade tribal primitiva. Tem uma posição elevada só porque é capaz de jogar com os temores dos outros homens da tribo e fazê-los acreditar que controla a natureza. É uma espécie de mistificação legítima - legítima porque ele desempenha uma função mais ou menos útil, e mistificação porque, na verdade, ele controla apenas a psicologia tribal. Penso que a Medicina moderna é a herdeira afortunada desse tipo de conceito psicológico errado. Os meus pacientes não se prostram diante do raio ou do trovão, mas ficam terrivelmente aterrorizados pelo cancro e por muitas outras doenças que não conseguem entender. Quando vêm ao hospital, procuram, de certo modo, um feiticeiro. Antes de tirar o curso, eu era como qualquer outra pessoa. Quero dizer, acreditava no poder da Medicina para fazer quase tudo, e queria ter esse poder, queria ser olhado como o agente desse poder.

- Mas referes-te, com certeza, ao poder de ajudar as pessoas? - Ela ainda não tinha compreendido.

- Claro, eu posso ajudar as pessoas. Não tanto como gostaria, e nada que se pareça com aquilo que elas esperam, mas um pouco. Mas esse tipo de poder é terrivelmente limitado. A Medicina é ainda relativamente primitiva. Não sabemos ainda o bastante. Estou a falar de outro tipo de poder, de carácter mais abstracto. Esse é praticamente ilimitado. Por exemplo, joguei um pouco de rugby quando andava no liceu, e, um dia, um tipo partiu uma perna durante o treino. Eu estava mesmo ao lado dele, no meio da confusão, e dei comigo a olhar para ele, querendo fazer qualquer coisa mas sentindo-me absolutamente inútil. Quando pensei nisso, mais tarde, só me recordo da inveja que senti do médico. Sei agora que ele pouco mais fez que dizer algumas palavras de conforto, administrar um analgésico e mandar levar o rapaz para o hospital. Mas, para mim, para todos nós, ele era uma espécie de deus. Quanto mais pensava nisso, mais desejava uma parte desse poder.

- Mas, e a ideia com que começaste, de que a Medicina é uma profissão nobre, o desejo de ajudar o rapaz com a perna partida. Que sucedeu a isso?

-Tudo isso se misturou. De qualquer forma, entrei para a universidade com a ideia de ser médico. Embora se me tivessem aberto muitos outros caminhos depois disso, não surgiu qualquer alternativa que me entusiasmasse. Por isso, acabei por passar para a escola médica, não tendo qualquer outra ideia em vista, pretendendo ambos os tipos de poder e apercebendo-me de que os poderia ter se seguisse a profissão de médico, para além da posição social e de um salário razoável. Agora que consegui mais ou menos ser médico, todas essas noçÕes abstractas se desfizeram. Não tenho uma grande posição social, não tenho dinheiro, o tal poder divino parece-me vazio, e, quanto ao poder sobre a doença... só peço a Deus que nunca tenha de ser operado. Conheço demasiadamente bem as limitaçÕes da Medicina.

Deveria ter sido suficientemente astuto para me aperceber do desapontamento que Nancy estava a sofrer, mas não fui. Ela ainda estava à espera da história do "desde criança", tão cara à televisão e outras histórias de ficção sobre a Medicina. Mas ela tinha-me feito pesquisar dentro de mim mesmo, em busca de respostas, e a tal criança não estava lá.

- Então não sentes que tenhas qualquer qualidade especial que te tenha feito tirar o curso de Medicina? Uma vocação, por assim dizer?

- Ela ainda estava à procura de Ben Casey.

- Não, decididamente isto não é um sacerdócio para mim. o máximo que consigo aproximar-me da ideia da vocação é ter sido bom aluno em ciências e humanidades na faculdade, e a Medicina ser uma combinação lógica de ambas as coisas.

- Bom, não me parece que tenhas as mesmas motivaçÕes que os médicos que eu conheço. - Ela estava a começar a irritar-se. E eu também.

- Quantos médicos conheces, Naney? Todo o meu mundo é constituído por médicos. Vivo com eles... internos, residentes, assistentes, toda a malta da escola médica... e posso dizer-te uma coisa: de maneira geral, o que sucedeu comigo também sucedeu com eles, e o que eu sinto é o mesmo que eles sentem, se conseguires levá-los a confessá-lo.

- Bom, eu acho isso horrível.

- Que é que achas horrível?

- Que a nossa sociedade te tenha deixado chegar tão longe. Tu és a pessoa errada para tirar um curso de Medicina porque não te interessas suficientemente por ajudar os outros.

- Mas eu já te disse que quero ajudar as pessoas, e faço-o, mas é tudo muito mais complicado que isso. Que diabo, eu sou como todos os outros. Não tenho um objectivo que me consome e que pÕe de parte tudo o resto. Quero viver, também. Além disso, uma grande parte do idealismo que eu tinha foi asfixiado na escola médica. Não está orientada nesse sentido.

- Não gostas de ser interno? - interrompeu ela.

- Nem por isso.

Ficou de novo surpreendida:

- Porquê?

- Basicamente, sinto-me fatigado, verdadeiramente exausto, durante a maior parte do tempo. E falta-me a sensação de ser realmente útil. Tenho a impressão de que a maior parte das coisas que faço poderiam ser feitas por qualquer outra pessoa que não tivesse tido o treino que eu tive. Além disso, sinto-me constantemente assustado, com medo de fazer qualquer coisa mal e passar por idiota. Bem vês, creio que a escola médica não me preparou assim tão bem. - Naquela altura, a resolução tomada nessa tarde de manter a boca calada tinha-se dissolvido na intensidade do momento.

- Bom, acho que isso é compreensível. A escola médica não pode fazer tudo - disse ela.

-Talvez possa ser compreensível à distância, mas, quando se está no meio das coisas, não se consegue compreender o que está a acontecer-nos. E quando paro para pensar e me apercebo de que os quatro anos da escola médica foram desperdiçados, na sua maior parte, no que se refere a tomar conta dos doentes, e que estou a ser explorado, sob o disfarce de estar a aprender, a carga psicológica é muito pesada. Sinto-me furioso com o sistema... o modo como a escola médica e o internato e a prática da Medicina estão interligados... e com a sociedade que aceita isto.

- Enfureceres-te não é propriamente a atitude mais adequada para um médico - disse ela com frieza.

- Estou inteiramente de acordo contigo, e gostaria que a sociedade também pensasse assim. Com o tempo, chega-se a um ponto em que nos estamos nas tintas para tudo. Por vezes, quando sou chamado a meio da noite por causa de uma paragem cardíaca, dou comigo a desejar que o tipo morra, para eu poder voltar para a cama. Isto é só para veres a que ponto me sinto cansado e farto. Em certo sentido, deixei de pensar nos pacientes como pessoas, e, naturalmente, isso faz-me sentir ainda mais culpado.

Ao olhar para ela, quase podia ver a sua ética a estalar sob a tensão das minhas palavras. Prossegui cegamente.

- Suponho que este aspecto de não pensar nos doentes como pessoas é o mais difícil de explicar. Talvez alguns médicos consigam manter indefinidamente a empatia. Mas eu não. Não posso. Para sobreviver, neste momento, quero conhecer os meus pacientes apenas como vesículas, ou hérnias, ou úlceras. Evidentemente, incluo nisso tudo o que eles têm que afecte directamente o seu processo patológico básico, e creio que estou a tornar-me um bom médico, tecnicamente, mas, para além disso, não quero sentir-me envolvido. o meu sistema não está engrenado para isso. Tive um doente chamado Roso e interessei-me de tal modo por ele que, quando ele teve alta, fiquei mais aliviado por ele se ter ido embora do que satisfeito por ele ter sobrevivido.

o silêncio foi gelado. Olhei para o céu, afastando propositadamente o olhar dela. Depois, prossegui.

- Outra coisa. Muito importante. Como interno, sou explorado da mesma forma que qualquer país subdesenvolvido a actuar sob relaçÕes mercantis com uma potência colonial. Por exemplo, tudo o que eu faço na sala de operaçÕes, durante noventa por cento do tempo, é segurar os retractores, muitas vezes para o mais desleixado dos médicos de clínica geral, que nem sequer deveria operar. Estou ali para ser usado. Tudo o que aprendo é apesar do sistema, não graças a ele. E se não fizer o que me mandam, ou fizer queixas de mais acerca do sistema médico... puf!... lá se vão as minhas hipóteses de me especializar num bom hospital. Por isso, quando eu digo que tenho medo de fazer asneira, não estou só preocupado por causa do doente... embora também o esteja, em parte... mas porque posso ser corrido e acabar em qualquer cidade da província a dar injecçÕes contra a febre tifóide. Isso, em Medicina, é o equivalente aos mortos-vivos.

"E, além disso, há uma série de problemas muito reais e muito graves, sobre os quais ninguém nos fala, nem nos aconselha. Como a questão das urgências sobre quando deveremos tentar reanimar um doente ou deixá-lo em paz. Como internos inexperientes, somos totalmente vulneráveis a essas coisas. E não se trata inteiramente de um problema médico. E a ética que ele implica? Se a pessoa é reanimada e fica transformada num vegetal, o que significa que vai ficar a ocupar uma das tão necessárias camas dos C.I., privamos uma outra pessoa dessa cama dos C.I., alguém que poderia ter melhores hipóteses. E uma decisão que cabe aos deuses. A escola médica nunca me ensinou a fazer de Deus. E depois todos...

Eu tinha continuado a falar, olhando para as árvores escuras, coligindo todos estes pensamentos pela primeira vez. De certo modo, estava a falar para mim mesmo apenas, e quando me voltei e fitei Nancy, ela explodiu, detendo-me a meio da frase:

- És uma pessoa incrivelmente egoísta! - disse.

- Não me parece. Apenas vivo no mundo real.

- Para mim, és um egoísta... frio, desumano, sem qualquer ética, imoral e destituído de simpatia. E não são essas as características que procuro num médico. - Ela era capaz de ferir, quando queria.

- Escuta, Naney, o que eu te disse é a verdade, e não apenas a minha. É uma mistura do que sente a maior parte dos internos que conheço.

- Então deviam ser todos expulsos.

- Isso mesmo, querida! Se estás tão convicta do que dizes, por que não organizas uma manifestação em frente do banco do hospital? A compaixão é fácil quando se dorme oito horas pornoite. Na maior parte das noites, durmo menos de metade. Passo o resto do tempo a observar os pruridos das hemorróidas da Sra. Fulana. Não armes em moralista comigo, sentada no teu cadeirão.

E assim prosseguiu a conversa, acabando com ambos a ferver de raiva. Parti, depois de uma promessa pouco convicta de voltar a telefonar-lhe proximamente.

De regresso ao meu quarto geométrico, todo branco, fiquei estendido na cama, furioso, todo contraído, com menos de nove horas antes que recomeçasse oholocausto das Urgências. Dormir estava claramente fora de questão. Telefonei para o laboratório e Joyce atendeu. Perguntei-lhe se poderia vir às onze. Ela disse que sim e senti-me melhor.

 

CIRURGIA GERAL: SERVIÇO DE ENSINO PARTICULAR

Para um interno, na prática da Medicina, durante a segunda metade do século XX, Alexander Graham Bell é o maior vilão de todos os tempos. As culpas, naturalmente, deverão ser alargadas, de modo a incluírem não só o homem que inventou o telefone, mas também o sádico que criou o toque da campainha. E também todos aqueles tipos que trabalhavam para a Mãe Bell e que perpetuaram o toque - esses também deverão ser incluídos. Como funcionariam os hospitais antes da invenção do telefone? Naquela época, eu próprio já me considerava como uma mera extensão daquela peça de plástico negro. Era tão aterrorizador como uma ambulância, e bastante mais súbito- sempre esperado, de certo modo, no fundo do meu cérebro, mas, de qualquer forma, apanhando-me sempre desprevenido. Em todo o mundo, não existe outro som como aquele para perturbar a paz das pessoas.

Naquele momento, a minha paz consistia em adormecer suavemente ao lado de Karen Christie no apartamento dela, após uma união mutuamente satisfatória, penso eu. Quando o telefone tocou às duas horas da madrugada, estendemos ambos a mão para ele. Deixei-a atender - não por ser provavelmente para ela. Como eu estava de serviço, o mais provável era ser a telefonista da noite a convidar-me a regressar aos seus corredores. Mas é que também podia ser o chamado namorado de Karen.

Na realidade, era a telefonista do hospital, que me passou uma enfermeira.

- Doutor, pode vir já? Um dos doentes particulares do Dr. Jarvis está com problemas respiratórios e o Dr. Jarvis quer que se ocupe dele.

Rolando para ficar de costas, olhei para o tecto e praguejei interiorrnente, afastando o telefone do ouvido. Conhecia bem o Dr. Jarvis. Era nada menos que o nosso velho amigo Supercaro, famoso pelas suas chacinas na sala de operaçÕes, especialmente em biópsias da mama. - Está aí, doutor? - perguntou a enfermeira.

- Estou sim, Enfermeira, ainda estou aqui. O Dr. Jarvis tenciona vir cá?

- Não sei, Doutor. Típico. Não só do Supercaro, mas da maior parte dos médicos particulares ligados ao hospital. o interno iria ver o paciente, faria uma recomendação e telefonaria ao médico particular que, evidentemente, diria ao interno que fizesse o que lhe parecesse melhor. Na maior parte destes casos, os tipos nem sequer se davam ao trabalho de ser delicados. Certa vez, tinha passado cerca de uma hora a tratar de um dos casos do Supercaro. Quando telefonei a fazer o meu relatório, o Supercaro já tinha saído do consultório e tive que deixar uma mensagem à secretária dele, para que ele me telefonasse à chegada, Telefonou, efectivamente, mas para a enfermeira de serviço, não para mim. Quando ela lhe disse que eu queria falar urgentemente com ele, disse que não tinha tempo para falar com todos os internos do hospital. Corre, corre, para apanhar mais uns dólares - era esse o jogo do Supercaro.

O Supercaro tinha um outro hábito interessante. Internava todos os seus doentes ao abrigo do chamado programa de ensino. Seria de pensar, naturalmente, que um programa de ensino nos ensinaria, pelo menos, alguma coisa. Sabe Deus que os internos bem precisavam disso. Na prática, o programa de ensino não passava de uma piada. Significava apenas que eu, ou qualquer dos outros internos, fazia toda a história do internamento do paciente e o exame físico - o trabalho "básico". Como recompensa, tínhamos direito a preencher também a alta. Mas, entretanto, não tínhamos direito a discutir as ordens, e, na sala de operaçÕes, a nossa contribuição consistia em segurar nos retractores, remover verrugas e, talvez, dar alguns nós, se o médico estivesse num dos seus dias condescendentes.

o desplante máximo do Supercaro tinha ocorrido pouco antes, no caso da biópsia da mama, que ele tinha feito pessimamente. Na ficha de internamento, com os detalhes do caso, tinha escrito uma nota dizendo que o pessoal - ou seja, o interno - que trabalhasse no caso não deveria examinar as mamas. Ora, como poderia eu fazer uma história adequada e um exame da paciente, num caso de biópsia da mama, sem examinar as mamas? Ridículo. E agora queria que eufosse a correr, às duas da manhã, para reparar outro dos seus erros.

A enfermeira continuava à espera.

- o doente foi operado? - perguntei.

- Foi, sim. Esta manhã. A uma hérnia - respondeu ela. - E não está muito bem. As dificuldades respiratórias já duram há algumas horas.

- Está bem, estou aí dentro de alguns minutos. Entretanto, quero que levem para o quarto um aparelho de raios-X portátil e lhe façam uma radiografia ao tórax. E tirem sangue para se fazer uma contagem completa; e verifiquem se há um aparelho de respiração de pressão iositiva e um aparelho para ECG no andar.

Não queria ficar o resto da noite à espera do material. Talvez não viesse a precisar dele, mas era melhor tê-lo à mão. Quando saí da cama, Karen não se mexeu. Não tinha importância. Enquanto me vestia, voltei a pensar como ela era conveniente. o seu apartamento ficava mesmo em frente do hospital, até mais perto que o meu próprio quarto. E tinha todos os confortos... aparelho de televisão, gira-discos, um frigorífico bem abastecido com cerveja e carnes frias.

Karen e eu tínhamos começado a andar juntos quatro meses antes, pouco depois de eu ter observado a sua invulgar radiografia, na noite em que ela tinha caído na escada. Depois disso, ela passara para o turno de dia, onde voltámos a encontrar-nos e começámos a passar juntos as pausas para o café. Uma coisa levou à outra, e ir ao apartamento dela tornou-se um hábito - mais ou menos na altura em que Joyce deixou de andar comigo.

Joyce, que também tinha passado para o turno de dia, começou a querer armar-se em turista, e visitar todos os locais nocturnos. Depois disso surgiu uma certa pressão para eu conhecer os pais dela e um crescente aborrecimento perante certas saídas sub-reptícias a meio da noite. Tentei continuar a nossa relação, mas a companheira de quarto dela, viciada em TV, estava sempre lá, e o nosso relacionamento, que nunca tinha sido muito saudável, acabou por azedar por completo. Dadas as circunstâncias, Joyce e eu decidimos afastar-nos por um tempo, para termos oportunidade de pensar.

Karen tinha outro namorado, o que sempre me intrigou bastante. Encontrava-se com ele de vez em quando, talvez duas ou três vezes por semana, quando iam ao cinema ou mesmo a um clube nocturno. Ela dizia que o rapaz queria casar-se, mas ela não conseguia decidir-se; eu não o conhecia, nem sabia muito a seu respeito, embora tenhamos falado uma vez, rapidamente e por acaso, quando ele telefonou para casa de Karen. No fundo, eu não pretendia arriscar uma coisa boa com investigaçÕes mais profundas.

Quando ia a caminho de ver o paciente do Supercaro, reparei que a noite estava invulgarmente silenciosa, quase sem vento, embora um banco de nuvens baixo pairasse sobre a ilha, obscurecendo o céu. Tinha chovido fortemente durante toda a semana. Enquanto me dirigia para a ala oeste do hospital, olhei para as Urgências e veio-me logo à mente a recordação da minha luta cega e exaustiva. Via os habituais aglomerados de actividade, com pessoas à espera e enfermeiras passando, numa mistura aparentemente confusa. Parecia um pouco mais animado do que era habitual numa noite de terça-feira, e tive esperanças de que se mantivesse suficientemente calmo para que a minha presença não fosse necessária. Sempre que recebia uma chamada nocturna das Urgências, tratava-se geralmente de um internamento - talvez uma intervenção cirúrgica, e isso podia ser mau.

O corredor da enfermaria estava mortalmente silencioso e escuro, com excepção das pequenas luzes nocturnas que espreitavam dos quartos, enquanto eu passava rapidamente por eles a caminho do posto das enfermeiras. Este situava-se no extremo da enfermaria e, à medida que dele me aproximava, a luz ia-se tornando gradualmente mais brilhante. Naquela altura, já era uma sensação familiar, para mim, percorrer aqueles corredores escuros, cujo silêncio era apenas quebrado por uma subcorrente de sons hospitalares - o leve tilintar dos suportes das IV, um sonolento gemido ocasional -, sons que sempre me davam a sensação de estar sozinho no mundo. Outros médicos já me têm falado de sensaçÕes semelhantes. Na verdade, já tinha deixado de analisar o hospital e os seus efeitos sobre mim, como fazia dantes, tendo-me tornado, em certo sentido, cego para o que me rodeava. Como um invísual, tomava por certos os pontos de referência, as diversas portas e curvas, e era frequente chegar ao meu destino sem dar pelo caminho nem pelos meus pensamentos durante o percurso.

Alguns meses antes, a telefonista tinha-me chamado por causa de uma paragem cardíaca, Eu tinha-me levantado, vestido e corrido até ao hospital, antes de me aperceber de que ela se tinha esquecido de me dizer onde se encontrava o paciente, nem qual a enfermaria. Felizmente eu tinha tido um palpite certo - graças a um sexto sentido, chegava-se ao ponto de, ao ser acordado, se obter precisamente a informação certa antes de ela nos ser dada.

Isto tinha as suas desvantagens ocasionais - como, por exemplo, no caso de uma das frequentes chamadas nocturnas para ir ver um paciente que tinha caído da cama. Fiz uma corrida automática e insensata até àenfermaria e lá o encontrei, emboaforma, naturalmente. Depois de telefonar ao seu médico, deixei ordem para lhe darem uma injecção de Seconal, para ter a certeza de que ele iria dormir, e depoisrastejei de novo para a cama. Tudo sem ter chegado praticamente a acordar. A mesma enfermeira telefonou-me pouco depois para me dizer que o doente tinha voltado a cair, desta vez num lanço de escada. Levantei-me outra vez, perguntei qual era a enfermaria, e parti a correr. A meio do caminho, enquanto subia umas escadas, tropecei numa massa inerte estendida no patamar. Fiquei parado, aturdido, e levei uns dez segundos para me reprogramar para o facto de que o que estava diante de mim era o paciente que eu tinha ido ver. Mas ele deveria ter estado no andar de cima! Naturalmente, estava ali porque tinha caído pelas escadas. Encontrando-se totalmente flácido durante a queda, não se tinha magoado. Tinha sucedido simplesmente que todas as injecçÕes - o analgésico, o anti-histamínico, o relaxante muscular e o meu Seconal - tinham sido dadas simultaneamente pela enfermeira e tinham feito efeito ao mesmo tempo, precisamente quando ele descia o primeiro degrau.

Eu nem sempre andava envolto em nevoeiro. Simplesmente, desenvolvi uma espantosa habilidade para continuar a dormir durante o caminho para ir fazer qualquer tarefa estúpida a meio da noite. Era diferente quando era chamado por causa de alguma coisa grave, ou quando estava irritado. Mas dado que o nosso hospital sofria de uma epidemia de pessoas que caíam da cama, aprendi a desempenhar essa função sem acordar completamente.

O posto das enfermeiras parecia tão iluminado como um estúdio de televisão, após aquele longo percurso no escuro. A enfermeira ficou efusivamente satisfeita por me ver e informou-me logo do quejá tinha feito. o sangue tinha sido enviado para o laboratório e a radiografia tinha sido feita, e os aparelhos de ECG e de respiração estavam a postos no quarto do paciente. Tirei-lhe a ficha da mão e observei os resultados que, evidentemente, tinham sido obtidos por outro interno. Uma caixa de bombons tentava-me da secretária próxima, e meti alguns na boca. A temperatura estava normal. A pressão tinha subido e o pulso estava muito elevado. A contagem estava perfeita. Nada conseguia encontrar que justificasse os problemas respiratórios. Tudo me parecia mais ou menos normal para uma operação recente a uma hérnia.

Saí para o corredor e voltei quase ao seu início. Ao entrar no quarto, acendi a luz, iluminando um homem pálido recostado na cama que inalava com dificuldade a cada expiração. Aproximando-me, pude ver que estava diaforético, com gotas de suor abrilharna testa. Olhou-me, Por um segundo, e depois afastou o olhar, como se precisasse de concentrar-se na respiração. Olhando pela janela, apercebi-me de que conseguia ver o prédio e a janela de Karen, a segunda da direita, no terceiro andar. Perguntei a mim mesmo se ela teria dado pela minha saída.

Com o estetoscópio nos ouvidos, inclinei o paciente para a frente e escutei os campos pulmonares. Os sons respiratórios eram nítidos - nada de estalidos, nem roncos nem assobios. Nada. Talvez os campos pulmonares soassem um pouco alto; mas isso parecia coadunar-se com o facto de ele ter o abdômen inchado e um pouco rígido. Mas não estava sensível. Auscultando o abdómen, escutei os tranquilizadores gorgolejos habituais. Os sons cardíacos eram normais; não havia sinais de falha cardíaca. Só me restava ver se o estômago esbaria cheio de ar. A dilatação gástrica era um problema frequente depois da anestesia geral. Disse à enfermeira que fosse buscar um tubo nasogástrico e, entretanto, preparei o ECG. Aquelas maquinetas eram sempre uma fonte de irritação para mim, quando tentava usá-las de noite, sem técnicos para me dar uma ajuda. Como nunca parecia conseguir um bom campo eléctrico, o traçado vagueava pela página toda. Mas consegui pôr este a funcionar bem, ligando o cabo de terra ao cano do lavatório, e obtive um traçado enquanto o paciente continuava a respirar com dificuldade. A enfermeira tinha regressado com o tubo nasogástrico antes de eu terminar o ECG. Enquanto untava o tubo, não conseguia deixar de pensar no médico que dormia na sua casa, enquanto eu estava ali a aplicar o seu tubo nasogástrico.

Uma coisa não me abandonara, tornara-se mesmo mais forte, durante os últimos dez meses - a satisfação de conseguir um resultado rápido e conveniente -, e senti-me aliviado quando evacuei uma grande quantidade de fluido e ar do estômago do paciente. o meu alívio foi insignificante, porém, em comparação com o dele. Ainda sentia dificuldade mas a sua respiração era muito mais fácil agora. Quando me expressou o seu profundo agradecimento, precisou de recuperar o fôlego antes de dizer a frase completa. Escutei-lhe novamente os pulmÕes, para me certificar de que não havia fluido dentro deles. Estavam limpos. As pernas também estavam normais, não apresentando qualquer edema nem sugestÕes de trombofiebite. Espreitando por baixo do penso, achei que a incisão estava com óptimo aspecto, sem excessiva drenagem. Disse à enfermeira que fosse buscar um aparelho de sucção para o tubo nasogástrico e a ligasse, enquanto eu voltava ao posto das enfermeiras com o ECG.

Ainda tinha pouca prática da leitura dos ECG, mas aquele parecia-me bom. Pelo menos, não havia arritmias. Possivelmente haveria uma leve sugestão de tensão cardíaca do lado direito, na onda S, mas nada drástico. Como medida de precaução, decidi telefonar para o residente médico para me ajudar na leitura. Após um minuto ou dois de contracção, enquanto eu explicava a situação e o residente me escutava, ele acabou por dizer que não podia descer para ver o ECG porque se tratava de um doente particular.

Podia compreender a sua relutância. Assemelhava-se à minha quando um interno de serviço me telefonava à noite a pedir-me ajuda para fazer uma incisão para introdução de um catéter, ou qualquer outra coisa no género, num doente particular. Se os assistentes nos tivessem feito sentir que era uma questão de cooperação recíproca, cada um segurando na sua ponta, essas pequenas tarefas desagradáveis teriam sido mais fáceis de executar. Mas na medicina americana grande parte da diferença entre um interno e um médico já pronto é literalmente a diferença entre a noite e o dia. Deixavam-nos fazer praticamente tudo depois de o Sol se pôr, quando o ensino era inexistente, mas nada durante o dia, quando poderíamos aprender qualquer coisa. Como sempre, havia algumas simpáticas excepçÕes que confirmavam a regra - mas muito poucas.

No início do meu internato, tinha sido bastante ingénuo em relação a este relacionamento senhor-escravo, não conhecendo os meus direitos. Até me sentir esgotado, tentei ver todos os pacientes, particulares ou indigentes, dentro ou fora do serviço de ensino, por insignificante que fosse a sua queixa. Finalmente, no entanto, foi uma questão de sobrevivência. Actualmente, no entanto, sempre que era chamado de noite para qualquer tarefa de rotina respeitante a um doente particular - uma subida de temperatura, por exemplo - perguntava sempre o nome do médico. Se não fosse dos que me agradavam - e na maior parte não eram - dizia à enfermeira que lhe telefonasse e lhe dissesse que os internos não são obrigados a tratar de casos particulares, excepto em emergências. Isso não se aplicava, naturalmente, aos casos privados do serviço de ensino. Nesses casos, tinha de ir, independentemente do médico.

Os médicos de meia-idade ou mais velhos gostam de fazer invejosas comparaçÕes entre a nossa vida supostamente fácil e os seus velhos tempos espartanos. Ao ouvi-los falar, dir-se-ia que, trinta anos antes, um interno vivia abaixo do nível de pobreza. Os nossos sumptuosos salários, que eu calculava atingirem cerca de metade do que se pagava a um canalizador, enfureciam-nos. Para onde ia este mundo?, costumavam dizer. Nós tínhamos que tratar de todos os doentes, fosse qual fosse a sua posição, e nunca dormíamos, e não tínhamos todas estas maquinetas, e assim por diante. A atitude deles em relação a nós era simplesmente venenosa: eles tinham sofrido, nós deveríamos sofrer também. Assim a educação médica, nestes tempos iluminados, passa de geração em geração; cada uma tem a sua vingança.

E onde ficava o paciente, em tudo isto? Era apanhado no meio - um sítio bastante desconfortável, com as bombas e as granadas da guerra médica a caírem à sua volta.

Curiosamente, a maior parte da legislação que saía de Washington só servia para piorar a situação. Era forte a tendência para se prestarem cada vez mais cuidados particulares à custa do governo, mas sem qualquer esforço no sentido de controlar a qualidade dos cuidados médicos ou de educar o doente potencial. Subitamente armados com o poder dos dólares, os pacientes anteriormente indigentes eram lançados para o mercado médico sem qualquer noção de como escolher um médico, e, de certo modo, como que através de um grande desígnio enganador, pareciam dirigir-se aos médicos marginalmente competentes, cuja clientela dependia do volume e não da qualidade. o resultado imediato era que os tipos de pacientes que os internos e residentes costumavam tratar apareciam agora nas enfermarías particulares sob os ternos cuidados de médicos que, como o Supercaro, não sabiam tratá-los, quanto mais ensinar. Mesmo o velho Roso tinha voltado a aparecer, com um pequeno problema, sob os cuidados de um médico particular que não queria que o pessoal do hospital mexesse na ficha. Tendo ficado encalhados pela maré do dinheiro, os internos eram forçados a usar as muletas desses médicos arcaicos para ganhar experiência a tratar certos tipos de casos. Todos ficavam prejudicados. Nos velhos tempos, quando esses pacientes eram internados no serviço geral, eram tratados com a ajuda dos melhores especialistas do hospital. Sucedia, logicamente, que os assistentes mais capazes e dotados de maiores conh ecimen tos faziam também parte do pessoal docente de serviço, porque o comité de ensino do hospital e o serviço de pessoal seleccionavam os melhores que conseguiam arranjar. E os assistentes que estavam mais interessados em ensinar eram, quase invariavelmente, os que sabiam mais. Se alguma vez era chamado, de noite, para ver um doente deles, ia sempre, fosse qual fosse o motivo.

Mas agora, em vez de serem admitidos no serviço de pessoal, onde eram preciosos para fins de aprendizagem, e, ao mesmo tempo, recebiam melhor atendimento médico que quaisquer outros, os antigos pacientes desse serviço estavam a passar-se para os homens de Neanderthal. Como era possível que uma coisa tão vital como a educação e os cuidados médicos fossem lixados deste modo? A situação parecia-me particularmente assustadora em relação à cirurgia, e fazia, sem dúvida, que os ingleses, os suecos e os alemães parecessem muito esclarecidos. Eles só permitem que, nos hospitais, as operaçÕes sejam feitas por especialistas. Nos Estados Unidos, qualquer cretino com um diploma médico pode efectuar qualquer tipo de operação que queira, desde que o hospital o permita. Eu sabia como o meu treino da escola médica tinha sido insuficiente em relação aos cuidados a prestar aos pacientes; mas também sabia que poderia obter uma licença para praticar medicina e cirurgia em qualquer dos cinquenta estados. Que haverá na psique americana que nos permite gastar milhÕes a policiar o mundo, e, no entanto, nos leva a aceitar um sistema médico criminosamente atrasado? Como todas as outras questÕes importantes durante o meu internato, esta também acabou por ser posta de parte, graças à exaustão. Comecei a aceitar a questão como se não houvesse alternativa. Na realidade, de momento não há alternativa. o problema, naquele momento, tinha-me vindo à cabeça porque havia problemas, e eu sabia que ia ter muitos aborrecimentos com o Supercaro por causa da radiografia e dos outros testes que tinha mandado fazer ao homem da hérnia. Voltei a perguntar a mim mesmo por que não me teria dedicado à investigação.

Antes de telefonar ao Supercaro e o acordar, quis observar a radiografia que tinha sido feita no aparelho portátil. Ele iria, por certo, explodir quando a descobrisse, de manhã, mas eu estava-me absolutamente nas tintas para isso.

o corredor começou a ficar cada vez mais escuro enquanto voltava para trás, percorrendo o labirinto do hospital até aos raios-X. o local estava tão escuro e silencioso que, quando lá cheguei, não consegui encontrar o técnico. Finalmente, desesperado, peguei, no telefone e marquei um dos números do departamento de raios-X. à minha volta, uma dúzia de telefones voltou à vida. Algures, alguém atendeu um deles, silenciando os outros. Disse à voz que me falava que estava no seu departamento e pretendia ver um portátil que ele tinha feito mais ou menos uma hora antes, após o que o homem saiu de uma porta a cerca de três metros de distância, a piscar os olhos e a enfiar a camisa dentro das calças. Segui-o até um monte de caixas e esperei, enquanto ele folheava uma pilha de negativos.

o departamento de raios-X tinha uma característica- pareciam nunca saber onde as coisas se encontravam. Aquela radiografia tinha menos de uma hora e elejá não sabia onde ela se encontrava. o homem disse que não conseguia perceber porquê. Diziam sempre isso, e eu estava de acordo com eles. Durante o dia, as secretárias conseguiam encontrar o raio das chapas, mas eram as únicas. Enquanto o técnico percorria uma pilha de chapas após outra, encostei-me ao balcão e esperei. Era como ver um replay infindável de uma passagem incompleta. Finalmente ele puxou uma chapa de um monte que se pensava já ter sido visto. Colocando-o no visor de radiografias, acendeu a luz, que piscou algumas vezes e depois ficou acesa. Estava ao contrário e ele teve de a virar.

Estava uma desgraça-a radiografia, não o paciente. Os aparelhos portáteis não eram, na realidade, muito bons, e eu estava certo de que o radiologista me teria dito que era ridículo pedir uma portátil quando o paciente poderia ter sido levado ao andar de cima para fazer uma boa radiografia. Nunca tentei explicar que a portátil se justificava porque eu podia solicitá-la do meu quarto, pelo telefone, e recebê-la - desde que não se perdesse - na altura em que chegasse junto do paciente. Caso contrário, teria de ficar sentado durante uma hora, a meio da noite, à espera que fizessem uma boa radiografia do paciente. Este tipo de raciocínio não fazia sentido para uma pessoa -um radiologista, por exemplo - que dormisse a noite inteira.

A radiografia parecia normal para uma portátil, o que quer dizer que era uma mancha confusa, com excepção do gás no estômago e o facto de o diafragma aparecer elevado. Mesmo isso era enganador, porque, com o homem deitado na cama, nunca se poderia saber ao certo de que ângulo o técnico de raios-X tinha feito a radiografia. De qualquer forma, tudo parecia bem.

Em seguida, falei pelo telefone com o técnico do laboratório e pedi-lhe os resultados da contagem sanguínea. o laboratório de sangue era muito bom; normalmente davam logo os resultados dos testes. Mas naquela noite a técnica pediu-me que me identificasse, porque o hospital não podia prestar essas informaçÕes a pessoas não autorizadas. Que questão ridícula! Quem mais poderia telefonar a pedir uma contagem de sangue às três horas da madrugada? Identifiquei-me com o nome de Ringo Starr, o que pareceu satisfazer a rapariga. A contagem também estava normal.

Armado destas informaçÕes, liguei para casa do Supercaro. o som do telefone a tocar no outro extremo era uma delícia para os meus ouvidos. Tocou quatro, cinco, seis vezes. o Supercaro, fiel à sua reputação, tinha o sono pesado. Finalmente respondeu.

- Fala o Dr. Peters, do hospital. Estive a ver o seu doente, o caso de hérnia com complicaçÕes respiratórias.

- Bom, como está ele?

- Muito melhor, Doutor. Tinha o estômago muito dilatado e evacuei quase um quarto de litro de líquido e bastante gás, através de um tubo nasogástrico.

Sim, já calculava que fosse esse o problema. Mentiroso, pensei, convicto de que o Supercaro não tinha feito a mínima ideia do problema. Prossegui.

- Achei aconselhável verificar os outros sistemas, por isso tenho aqui os resultados de uma contagem de glóbulos, uma radiografia do tórax e um ECG. Parecem aceitáveis. Tudo, excepto o diafragma, que...

Soou um rugido pelo telefone.

- Meu Deus, rapaz, não precisava de todas essas muletas. o meu doente não é milionário, nem estamos na Clínica Mayo. Que diabo anda a fazer? Eu podia ter-lhe dito onde estava o problema apenas com um estetoscópio e um pouco de percussão. Vocês, os jovens, pensam que o mundo foi feito para as máquinas. No tempo em que eu fazia esse trabalho, nós não... - Podia imaginar o seu rosto a ganhar um tom avermelhado, as veias do pescoço a ficarem salientes. Esperava sinceramente que ele ficasse com insônias durante o resto da noite.

- E que é que fez com o tubo nasogástrico, Peters?

- Pu-lo em sucção, Doutor, e deixei-o ficar assim.

- Não sabe mesmo nada? o tipo vai ficar com uma pneumonia, com aquela coisa enfiada. Vá tirá-lo imediatamente.

-Mas, Doutor, o doente está com falta de ar e receio que o estômago comece a dilatar-se outra vez.

- Não discuta comigo. Vá tirá-lo. Nenhum dos meus doentes de hérnias deverá ter tubos nasogástricos. Essa é uma das minhas regras básicas, Peter, básicas. - Clique. Eu tinha na mão um telefone desligado.

Voltei à enfermaria e retirei o tubo. o doente continuava a esforçar-se por respirar, mas não tanto como antes. Quando ia a sair, entrou uma enfermeira, que ficou obviamente um pouco surpreendida e nervosa por me ver ali. Trazia uma agulha na mão. Num tom um pouco culpado, disse-me que o Supercaro tinha telefonado e mandado dar mais sedativo. Fiquei tão furioso que nem lhe perguntei qual; limitei-me a sair.

Agora tinha que decidir para onde iria, para o meu quarto ou para o apartamento de Karen. Este último não fazia sentido, porque Karen estava, por certo, a dormir profundamente. Além disso, os meus utensílios de barbear não estavam lá - uma política que seguíamos para evitar explicaçÕes ao outro tipo. Se eu voltasse para o meu quarto, poderia barbear-me quando me levantasse de manhã, daí a algumas horas. Já passava das três. Por isso, voltei para o meu quarto e liguei para a telefonista para lhe dizer quejá não estava no outro número. Ela disse que compreendia. Perguntei a mim mesmo até que ponto compreenderia.

Mal tinha pousado a cabeça na almofada quando o telefone tocou de novo. Valha-me Deus, pensei, provavelmente é um novo internamento nas Urgências. Que raio de noite de terça-feira! Mas era a mesma enfermeira, a dizer-me que o paciente da hérnia estava outra vez pior, e o médico particular queria que eu o fosse ver imediatamente. Começava a ficar farto daquilo - para cima e para baixo, a ver pacientes em relação aos quais a minha responsabilidade era tão confusa e indeterminada que eu nunca sabia em que posição colocar-me. Era considerável a ironia da situação. Neste caso, o Supercaro mal tinha acabado de me ralhar por ter pedido testes laboratoriais e porter deixado ficar o tubo nasogástrico, tinha telefonado à enfermeira - não a mim - para lhe dar um medicamento; e agora queria que eu fosse ver o paciente de novo. Não fazia muito sentido, a menos que se pensasse que eu apenas servia para que o bom doutor pudesse dormir. Era óbvio que o paciente não estava a receber aquilo que tinha pago. E eu? Eu estava a receber um ensinamento menor que zero. Talvez um dia, se tivesse sorte, eu pudesse aspirar a ser um médico como ele, e a estar-me nas tintas para os internos, os pacientes e os cuidados médicos em geral.

Por agora, estava a descer de novo no elevador, a percorrer o longo corredor, a penetrar na luz azulada e escura que envolvia o hospital adormecido, fazendo soar nitidamente os meus passos, como se caminhasse no vácuo. Tudo estava calmo, agora, mas, por volta das sete e meia eu estaria em más condiçÕes para uma operação. Apeteceu-me internar-me no hospital, para descansar um pouco. Tinha perdido quase dez quilos desde o primeiro dia do internato.

Subitamente, atrás de mim, o mundo foi estilhaçado por frenéticos sons de vidro e metal que embatíam um no outro. Voltando-me, vi o interno das Urgências que vinha a correr na minha direcção, à luz azul do corredor, agarrado ao laringoscópio e um tubo endotraqueal. Atrás dele, uma enfermeira empurrava o ruidoso carro.

- Paragem cardíaca - arquejou ele, fazendo-me sinal para o seguir. Começámos ambos a correr, enquanto eu perguntava a mim mesmo se seria o doente da hérnia.

- Que andar ? - perguntei.

- Na enfermaria cirúrgica dos particulares, neste andar. - Passou rapidamente pelo guarda-vento. Brilhava uma luz no quarto onde eu tinha estado, e todos entrámos, enchendo o quarto. o paciente estava no chão, perto do lavatório. Tinha arrancado a IV do braço e saído da cama. Estavam lá duas enfermeiras, uma delas a fazer uma massagem cardíaca. Agarrei no tabuleiro trazido pela enfermeira e coloquei-o sobre a cama, para obter uma superficie firme para a massagem.

- Ponham-no aqui - berrei, e nós os quatro levantámo-lo e pusemo-lo sobre a tábua. Não havia pulso, nem qualquer esforço para respirar. Tinha os olhos abertos, com as pupilas amplamente dilatadas e a boca grotescamente aberta. o interno das Urgências deu uma forte pancada no peito; não obteve reacção. Apertei-lhe o nariz, coloquei a boca sobre a dele e soprei. Não houve resistência e o peito elevou-se levemente. Continuei a respirar para dentro dele e depois fiz sinal para trazerem o laringoscópio, enquanto o interno das Urgências começava afazer uma massagem cardíaca, subindo para a cama e ajoelhando-se ao lado do paciente para o fazer. De cada vez que ele empurrava o peito, a cabeça do paciente saltava violentamente.

- Pode segurar-lhe na cabeça? - perguntei a uma das enfermeiras. Ela tentou, mas não conseguiu. Entre os saltos, enfiei o laringoscópio na boca do homem e pela garganta abaixo. A epiglote ora se via ora deixava de se ver. Avançando um pouco mais, fixei-o e o laringoscópio bateu-lhe contra os dentes. Nada. Não conseguia orientar-me nas pregas vermelhas da membrana mucosa. Retirando rapidamente o laringoscópio, soprei algumas vezes mais, entre as compressÕes. o interno das Urgências estava a fazer umas boas excursÕes do esterno; o esterno subia e descia cerca de cinco centímetros, forçando indubitavelmente o sangue a penetrar no coração. Tentei enfiar de novo o laringoscópio, até à epiglote, com a ponta para cima, depois um pouco mais para baixo. Aí vi, por um segundo, as cordas vocais.

- O tubo endotraqueal. - Uma enfermeira entregou-mo. Eu não tirava os olhos da garganta do homem. - Empurre-o contra a laringe - fiz sinal para o pescoço. A enfermeira empurrou. - Mais. - Nessa altura, vi de novo as cordas vocais e empurrei o tubo. - o saco Ambu. - Fixei o saco respiratório Ambu e observei o peito enquanto o comprimia. Em vez de o peito subir, o estômago inchou um pouco. - Raios! Falhei. - Puxei o tubo para fora, coloquei de novo a boca por cima da do paciente e soprei duas vezes mais. Depois, novamente o laringoscópio. Desta vez, tinha que o colocar. - Empurre outra vez a laringe. - Empurrei com força e consegui ver as cordas vocais entre cada compressão. - Aguente assim. OK. Pare de comprimir.- o interno das Urgências interrompeu o ritmo por um segundo, enquanto eu enfiava o tubo; depois recomeçou imediatamente a massagem. Com o saco Ambu fixado e comprimido, o peito subiu um bom bocado. A enfermeira das Urgências já tinha aplicado os contactos para o ECG e ouvimos o blip do osciloscópio. Não estava bem ligado à terra.

- Ponha o ECG no dois - disse o interno das Urgências. Ficou melhor. Eu estava a comprimir o Ambu quando chegou a enfermeira anestesista. Tomou conta do Ambu.

- Medicut. - A enfermeira passou-me um catétereeuapertei-lhe rapidamente o braço com um tubo de borracha. Os medicuts podem ser complicados, especialmente quando se está com pressa, mas são muito mais rápidos que as venostomias, porque se introduz o medicut mesmo na veia, fazendo-o passar através da pele, em vez de se fazer uma incisão, como na venostomia. Fiz penetrar o medicut no braço do doente e depois empurrei-o até achar que se encontrava na veia; felizmente penetrou sangue na seringa - mas era apenas metade da batalha. Enpurrei o catéter de plástico um pouco mais pela agulha, esperando que ele se conservasse dentro do lúmen da veia. Depois, retorcendo a agulha para trás e para diante, tentei fazer avançar um pouco mais o catéter na veia. Quando retirei a agulha, um pouco de sangue escuro, vermelho acastanhado, subiu pelo catéter e foi cair na cama. A enfermeira ainda estava a lutar com o tubo de plástico do frasco da IV. Deixei o sangue correr; não tinha grande importância. Depois de fixar a extremidade do tubo ao catéter, vi o sangue desaparecer do catéter, voltando de novo para a veia, quando a IV começou a correr. Desatando o torniquete de borracha, observei a passagem e abri por completo a válvula até começar a correr bem. -Adesivo. - Prendi o catéter ao braço. o ECG continuava a mostrar uma fibrilação rápida mas grosseira. - Epinefrina - berrei. Pensava que um estimulante cardíaco pudesse acalmar a fibrilação, antes de tentarmos alterá-la electricamente para um batimento regular.

- Por que não directamente no coração? - sugeriu o interno das Urgências.

- Vamos tentar a IV primeiro. - Eu não tinha grande confiança no método intracardíaco. A enfermeira deu-me uma seringa e disse que continha 11000 diluído em 10 cc. Injectei-a rapidamente no local da IV, através de um pequeno tubo de borracha, tendo o cuidado de comprimir o tubo de plástico distal para impedir a epinefrina de passar para o frasco da IV. - Bicarbonato - disse à enfermeira, estendendo-lhe a mão livre. A enfermeira deu-me uma seringa, dizendo que continha 44 miliequivalentes. - Como vai o bombeamento? - perguntei ao interno das Urgências.

- Muito bem - respondeu ele. Injectei o bicarbonato no mesmo local da IV - e piquei um dedo ao fazê-lo -, enfiando a agulha através do pequeno tubo de borracha. Chupando o indicador, observei o ECG. Começou lentamente a apresentar fibrilaçÕes mais fortes.

- Que tal se desfibrilássemos agora? - sugeriu o interno das Urgências. o desfibrilador estava carregado. A enfermeira segurava as placas, untadas com um pouco de condutor. Parando de bombear, o interno das Urgências segurou nas placas, colocando uma sobre o coração e a outra na parte lateral do peito. - Afastem-se da cama! - A enfermeira anestesista largou o Ambu. Zás! o paciente deu um salto, agitou os braços, e o blip do ECG desapareceu. Quando voltou, estava na mesma. Nessa altura chegou um residente médico, arquejante, e foi rapidamente posto ao corrente da situação.

- Suspendam 5 por cento de bicarbonato na IV e dêem-me xilocaína. - A enfermeira deu ao residente médico 50 mg de xilocaína. Ele passou-mos e eu injectei-os. Desfibrilámos o paciente de novo. Efectivamente, tentámo-lo quatro vezes antes que a fibrilação desaparecesse. Mas, em vez de se seguir um ritmo cardíaco normal, todos os sinais de actividade cardíaca desapareceram e o blip electrónico do ECG ficou perfeitamente liso.

- Raios! Assístole - disse o residente, observando o blip.

- Epinefrina, isuprel, atropina, pacemaker: tentámos tudo o que tínhamos. Entretanto, as pupilas do homem regressaram ao tamanho normal, deixando de estar dilatadas como a princípio. Pelo menos, isso significava que o oxigénio estava a chegar ao cérebro e que a nossa massagem cardíaca era eficaz.

Chegou outro interno, que se ocupou da massagem cardíaca, para que o interno das Urgências pudesse regressar às suas funçÕes, pobre diabo. Depois foi a minha vez de fazer a massagem.

- Que tal darmos-lhe cálcio? - sugeriu o outro interno. o residen te injectou um pouco de cálcio. Pedi outro tubo nasogástrico, mas só o pude aplicar depois de o interno me substituir na massagem. Não havia grande coisa no estômago do homem excepto um pouco de ar, provavelmente o que eu lá tinha introduzido por engano, através do tubo endogástrico mal colocado. Disse ao residente que este paciente era o do ECG que eu tinha pedido antes. Disse-lhe também que a radiografia do aparelho portátil se apresentava limpa, de maneira geral.

Olhando para trás de mim, fiquei surpreendido ao ver o Supercaro ali, de pé, a observar a nossa febril actividade. Suponho que as enfermeiras lhe tivessem telefonado. Não disse uma palavra. o residente injectou o coração diversas vezes com epinefrina intracardíaca.

Mas não conseguiu interromper a assístole, e estavam a esgotar-se as hipóteses. Bombeando e fazendo respiração boca a boca, conservámo-nos durante mais quinze minutos, enquanto o aparelho continuava a desenhar um traço contínuo no osciloscópio.

- Pronto, já chega. Podem parar. - Era a voz do Supercaro, que falava finalmente, depois de ter permanecido em silêncio durante quase trinta minutos. As suas palavras surpreenderam-nos e não conseguiram penetrar na nossa rotina, de modo que não parámos imediatamente, continuando a bombear e a soprar como se ele nada tivesse dito.

-Já basta - repetiu ele. A enfermeira anestesista que comprimia o saco Ambu foi a primeira a parar. Depois, o interno que estava a fazer massagens naquela altura. Todos nós estávamos exaustos, ansiosos por poder voltar para a cama, e conscientes do facto de que teríamos podido parar mais cedo se as pupilas do homem não se tivessem reduzido tão bem. A constrição das pupilas é um dos sinais de reanimação; isso é que nos tinha feito continuar. Mas era evidente que, desta vez, tinha sido um sinal falso. Por isso parámos e o homem morreu. o Supercaro saiu e desapareceu, corredor fora, em direcção ao posto das enfermeiras, onde preencheu a papelada e telefonou aos parentes. As enfermeiras desligaram o aparelho de ECG, enquanto eu retirava uma grande agulha intracardíaca.

Que tal és a atingir o coração? - perguntei ao outro interno. - Atingi-o a cem por cento, mas só em duas tentativas - respondeu ele.

- Eu só consigo cinquenta por cento - confessei. - Depois de fixar uma seringa de 10 cc à agulha, dirigi-me ao paciente e procurei a estria transversal, chamada ângulo de Louis, mais ou menos a meio do esterno. Isto orientou-me em relação à caixa torácica. A agulha entrou facilmente e, quando puxei o êmbolo, a seringa encheu-se de sangue. Em cheio.

- Acho que o meu problema tem sido estar a usar o terceiro interespaço - arrisquei. Tentei de novo, desta vez no terceiro interespaço, e, quando puxei o êmbolo, não veio sangue. - É isso mesmo. OK é a tua vez. - Entreguei-lhe a seringa, e ele atingiu o coração à primeira tentativa.

Retirei o tubo endotraqueal do morto, limpando o muco espesso da ponta ao lençol, onde deixou um rasto cinzento.

- Este tipo era realmente difícil para se introduzir o tubo endotraqueal. Queres experimentar? - Segurando cuidadosamente o tubo entre o polegar e o indicador, apresentei-o ao outro interno. Eu já era bastante bom a entubar, naquela altura, porque tinha decidido, nos últimos meses, praticar sempre que tínhamos um caso de reanimação falhada como aquele, o que acontecia com bastante frequência. Ele pegou no laringoscópio e introduziu-o. Disse que não conseguia ver coisa alguma. Espreitei por cima do seu ombro e percebi que ele não estava a comprimir suficientemente com a ponta da lâmina.

- Levanta até teres a impressão de que vais deslocar o maxilar. o braço dele estremeceu, ao esforçar-se. Ainda havia qualquer coisa errada. - Deixa-me tentar. - Retirei o aparelho e depois, com a mão direita, empurrei-o pela laringe. As cordas vocais ficaram à vista. - Ele tem um ângulo bastante oblíquo, aqui. Experimenta outra vez, mas comprime um pouco mais a laringe. - A enfermeira veio espreitar, dizendo que precisava do laringoscópio para poder devolver o carrinho às urgências. Com um gesto da mão, fi-la aguardar mais uns segundos, enquanto espreitava por cima do ombro do outro interno. Ouvi-o emitir um som de satisfação, ao ver finalmente as cordas vocais. Depois, afastando-se, entregou o laringoscópio à enfermeira, que produziu um som de desaprovação.

Subitamente, encontrei-me só, enquanto toda a actividade se afastava, como numa sombria procissão, para outros pontos de hospital. Voltei a perguntar a mim mesmo se deveria ir para casa de Karen ou para o meu quarto. Sentía-me solitário, especialmente porque o homem tinha morrido. Eu fora uma das últimas pessoas a vê-lo vivo. Mas eu tinha feito tudo o que podia - todos nós tínhamos - e achava que nos tínhamos esforçado bastante. Além disso, o Supercaro obrigara-me a retirar o tubo nasogástrico e a dar-lhe um medicamento qualquer. Portanto, a culpa não era miinha, embora, provavelmente, ele pensasse que era. Sem dúvida poria a culpa em todos aqueles testes dispendiosos. Esse era um dos problemas com os doentes particulares. Eu estava disponível para observar o paciente, mas não tinha verdadeira responsabilidade, ao passo que o médico assistente tinha a responsabilidade final, mas não se encontrava presente. Isso tornava a minha posição ambígua, para não dizer mais. Era tudo complicado de mais para as 4 horas da madrugada. Mas eu ainda sentia curiosidade quanto à última injecção do Supercaro. A enfermeira tinha dito que era um sedativo. Se voltasse atrás para consultar a ficha, iria ver o cretino outra vez, e provavelmente ainda teria que ouvir comentários sobre as contagens sanguíneas dispendiosas. Mas, enquanto seguia pelo corredor, decidi correr o risco.

o Supercaro já se tinha ido embora. Foi um alívio; e era também uma indicação do seu interesse pelo ensino. Seconal, era o que dizia a ficha. Nada acrescentava ao que eu já sabia. Relendo a história, constatei que o homem nunca tinha tido problemas cardíacos. o estômago e os rins também estavam normais. Depois li que a hérnia era enorme, do tipo de bola de basquetebol; mas isso também não explicava o que sucedera. Algo lhe tinha provocado falha respiratória que acabara por levar à falha cardíaca. A distenção gástrica que eu tinha aliviado deveria ter contribuído para o problema, mas não o tinha causado. Seria da anestesia?, pensei. Voltando-me para o relatório da anestesia, verifiquei que tinha sido feita indução de pentotal, e óxido nitroso para manutenção, sem complicaçÕes. Esforcei-me em vão para unir todas as peças soltas, mas não consegui orientar-me no labirinto. Estava excessivamente extenuado. o melhor era voltar depressa para a cama, pensei cinicamente, de modo a estar lá quando a telefonista ligasse para me acordar e recomeçar a trabalhar. Muito engraçado.

Mas foi mesmo uma péssima noite de terça-feira. As noites de terça-feira eram geralmente activas, como as noites de segunda-feira, visto que tanto a segunda-feira como a terça-feira tinham sempre programas operatórios, e isso significava muitos problemas nocturnos de mudanças de pensos, dores e drenos; no entanto, eu costumava conseguir dormir um pouco. Desta vez, não; mal tinha encostado a cabeça à almofada, o telefone soou de novo. Era da Cirurgia; estava a chegar um caso para amputação e precisavam de mim como assistente.

Havia, para mim, algo especialmente deprimente numa amputação, especialmente de uma perna. Uma apendicectomia ou uma colecistectomia ou qualquer outra operação interna deixavam a pessoa exteriormente intacta. Mas levantar um pé e uma perna da mesa de operaçÕes e separá-los da pessoa a quem tinham pertencido era um acto de alteração irreversível. Por muito estafado que me sentisse, nunca consegui olhar para a extracção de um membro humano como para os outros processos médicos.

Mas tinha de ser feito. Por isso levantei-me de novo, com a mais total falta de motivação, e arrastei-me para a Cirurgia. Toca a enfiar o fato esterilizado e a pôr a touca e a máscara. Depois de esta última estar colocada, puxei-a para baixo, deixando osfios atados, e observei-me no espelho. Quase nem reconheci o rosto devastado que me fitava.

Felizmente, quando cheguei à sala de operaçÕes, soube que não se tratava de uma amputação, mas de uma tentativa de salvar uma perna, cujo joelho tinha sido esmagado por um camião. Apenas o nervo e a veia estavam intactos, atravessando o intervalo onde se tinha situado o joelho. A artéria, os ossos - tudo tinha desaparecido. Com surpresa minha, encontrei lá dois cirurgiÕes particulares, ambos excelentes em casos vasculares. Perguntei se seria necessário, uma vez que eles eram dois, e eles responderam "Talvez". Isso não me deixou outra alternativa além de me esterilizar e vestir a bata e calçar as luvas esterilizadas.

A minha tarefa consistia em colocar-me ao fundo da mesa, voltado para o anestesista, e segurar o pé, de modo a ficar rígido, segurando-o com as duas mãos. Ambos os cirurgiÕes, evidentemente, tinham de estar perto do meu extremo da mesa para trabalhar no joelho. Mas estavam de costas para mim, como habitualmente - em especial o que se encontrava à minha esquerda, inclinado sobre a mesa. Eu não via absolutamente nada. o relógio à minha direita marcava 5 horas, na altura em que a operação começou a desenrolar-se, Pela conversa deles, deduzi que estavam a fazer um enxerto da artéria principal que passa por detrás do joelho em direcção ao pé. Uma hora passou-se tão lentamente quanto uma hora pode passar-se, enquanto o ponteiro dos minutos se arrastava pelo mostrador do relógio. Eles aplicaram o enxerto e surgiu uma pulsação no pé, que desapareceu de novo ao fim de alguns minutos. Isso queria dizer que os cirurgiÕes tinham que abrir o enxerto e retirar um coágulo que acabara de se formar. Obtiveram outra pulsação, que também desapareceu. Outro coágulo. Abrir outra vez. Coágulo. E o processo foi-se arrastando indefinidamente. Eu estava absolutamente espantado com a calma persistência e paciência deles.

Sem ter que fazer, além de olhar para o relógio e ficar ali parado, com as mãos sempre na mesma posição, comecei a ficar incontrolavelmente sonolento. o som das vozes dos cirurgiÕes começou a entrar e a sair da minha cabeça, juntamente com a imagem da sala. Apenas semiconsciente, esforcei-me ao máximo para me manter acordado, mas perdi; adormeci a segurar no pé. Não caí para o chão. A minha cabeça foi descaindo lentamente, até que a testa foi embater levemente no ombro do cirurgião à minha esquerda. Isso fez-me acordar, tão próximo do tecido da bata, que podia ver o cruzamento de cada fio. o cirurgião olhou para trás e endireitou-me com a ponta do cotovelo. Por cima da máscara, uns frios olhos azuis fitaram-me com nítida desaprovação. Eu já não me ralava, mas o incidente serviu para me manter acordado, porque tinha reavivado a minha fúria latente.

Eram oito da manhã e lá estava eu, depois de uma noite sem dormir, com um horário completo de operaçÕes à minha frente, ainda de pé e a segurar aquele pé como um peso morto. Era uma tarefa para sacos de areia. Na verdade, os sacos de areia teriam feito um trabalho melhor; não adormecem nem se enfurecem. Não era a primeira vez que eu adormecia na sala de operaçÕes. Certa vez, ao prestar assistência a um caso de tiróide, depois de uma noite em claro, tinha adormecido a segurar os retractores. Apenas por um instante, penso eu, porque subitamente tinha tido um daqueles esticÕes que se experimentam ao adormecer, o que assustou o cirurgião. Ele perguntara-me, em parte por brincadeira, se eu ia ter um ataque epiléptico. Mas não creio que tivesse percebido que eu tinha adormecido. Mas este tinha, e estava irritado, embora ele e o seu colaborador continuassem a ignorar-me. Finalmente, depois de terminada a intervenção e quando eu mo preparava para sair, o cirurgião chamou-me.

- Bom, Peters, se adormecer durante uma operação indica o seu interesse pela cirurgia, acho que o caso deveria ser levado à atenção da direcção. - Em vez de lhe dizer que fosse para o diabo, recuei e aleguei falta de sono e não ter conseguido ver o campo operacional. Não ficou impressionado. - Acho conveniente que isto não volte a repetir-se.

- Não senhor. - Saí, abrigando pensamentos assassinos e pouco práticos.

o horário regular das intervençÕes cirúrgicas tinha principiado mais de uma hora antes. Na realidade, eu tinha perdido o meu primeiro caso, o que não me incomodou muito. Era o trabalho de um segundo assistente numa colicistectomía, um caso de rotina total. Além disso, tinha mais dois casos iguais nessa tarde, Saindo subrepticiamente da sala dos cirurgiÕes, fui comer umas fatias de pão, o meu primeiro alimento em cerca de quinze horas. Quanto a sono, não estava melhor - uma hora nas últimas vinte e seis. Sentia-me um pouco fraco. A ideia de outro dia inteiro na sala de operaçÕes não era animadora.

Na sala, fui abordado por um residente chefe irritado que exigiu saber onde eu tinha estado durante as rondas. Logo desde o início, um interno aprende a impossibilidade de agradar a toda a gente. Ultimamente, porém, eu perdia todas e não conseguia agradar a pessoa alguma, e muito menos a mim próprio. Fiz ao residente chefe um relatório dos poucos pacientes que tinha. Dado que estava no serviço de ensino privado, não tinha muitos pacientes exteriores - apenas aqueles em cujas operaçÕes tinha colaborado. Ambas as hérnias estavam a progredir bem; as gastrectomia já principiara a comer; as varizes estavam bem e já andavam; e nenhuma das hemorróidas tinha movimentado os intestinos. As doenças desfilaram verbalmente diante de mim, sem as ligar a nomes ou pensamentos pessoais.

Quase me esqueci de mencionar o doente do aneurisma, para quem tínhamos marcado uma a ortografia para esse dia. Tinha-nos sido aviado de uma das ilhas exteriores, porque a sua radiografia apresentava uma sombra suspeita no campo do pulmão esquerdo. Era provavelmente um aneurisma, uma protuberância na artéria principal. Sem uma intervenção cirúrgica, um aneurisma destes costuma rebentar ao fim de seis meses, mais ou menos, e o doente sofre uma hemorragia fatal. Por isso, era importante actuar rapidamente, e ter a certeza do diagnóstico, o que poderíamos fazer por meio de um aortograma. Este procedimento relativamente simples tinha lugar nos raios-X, onde um corante opaco seria injectado na artéria do homem, mesmo acima do coração. Por alguns momentos, antes que o sangue o varresse, o corante delinearia a forma da artéria, e as radiografias feitas em rápida sequência captariam a imperfeição. Só então poderíamos saber se a operação seria ou não necessária. Dado que eu tinha elaborado a história e feito o exame físico do homem, queria estar presente, e pedi-o ao residente chefe.

- Claro - disse ele -, se o horário das operaçÕes permitir. Essa parte do sistema não se tinha modificado durante os últimos nove meses. Nós, os internos, continuávamos a ser atirados para trás e para diante entre os casos, abandonados aos caprichos do horário cirúrgico; era frequente não podermos ver os nossos doentes. Quando se começa a trabalhar com um doente, dever-se-ia acompanhá-lo durante todos os processos de diagnóstico e durante a operação. Ninguém poderia argumentar contra isso, quer do ponto de vista académico, quer do ponto de vista do bem do próprio paciente. Não obstante, sempre que alguém precisava de mais um par de mãos numa extracção da vesícula (os nossos cérebros, ao que parecia, nunca eram necessários), éramos sacrificados, sem ter em consideração o aspecto educativo ou o efeito psicológico sobre os nossos pacientes. Era mais uma maneira de nos fazerem ver como éramos dispensáveis.

o residente chefe desapareceu e, alguns minutos depois, recebi um telefonema da cirurgia, dizendo-me que ele me tinha marcado para fazer uma gastrectomia que já estava a realizar-se. Aparentemente, eram precisas as tais mãos extra. Terminei o meu pão duro e arrastei-me uma vez mais para a área da cirurgia, fazendo mentalmente um mapa do resto do dia na sala de operaçÕes. Depois daquela gastrectomia, estava marcado para uma nefrectomia - uma extracção de um rim - na Sala 10, e depois para duas colecistectomias. Quando passei pela Sala 10, constatei que a nefrectomia já estava em curso e eu iria perdê-la. Nakano, um outro interno, estava a esterilizar-se. Um rapaz de sorte. Aquela nefrectomia era muito mais interessante para mim que todos os outros casos juntos. o doente tinha um tumor no rim e o tumor tinha de ser extraído, embora não fosse maligno. Até há pouco tempo, um cirurgião com um caso desses teria sido forçado a extrair o rim inteiro; actualmente, com o progresso da radiologia, esses tumores podiam ser "mapeados" com grande exactidão, de modo que apenas se extraía a parte afectada. Ali, bom, ficava para outra vez. Continuei a avançar pelo corredor, em direcção à gastrectomia. Normalmente ficaria desanimado com a ideia de duas colecistectomias seguidas. Mas, naquele dia, estava com um pouco de sorte, porque estavam ambas marcadas com um cirurgião que sabia ensinar. Aquele homem era como um oásis num deserto de conservadorismo. Evidentemente, havia sempre a hipótese de a gastrectomia a que eu ia estar presente ultrapassar a primeira colecistectomia com o cirurgião docente. Tinha esperanças de que isso não sucedesse.

Mal reparando na actividade que me circundava, dirigi-me lentamente para a Sala 4, sem pressas, forçando-me a avançar. Uma olhadela para a lista de operaçÕes colocada no quadro de afixação aumentou o meu desânimo. Como o Supercaro, aquele médico de clínica geral era um homem de avançada idade, pouca habilidade e destituído de modéstia. Era também dado a contar histórias intermináveis e egocentristas sobre os seus feitos nos velhos tempos. Ao que parecia, tinha, durante anos, transportado sobre os ombros o fardo de todo o serviço médico americano, desempenhando feitos de capacidade e resistência que faziam perder a cabeça a quem o ouvia. Pelo menos a dele já tinham feito. Um residente brincalhão tinha-lhe dado a alcunha de Hércules, e o nome pegara. Hércules era um dos tais que internava sempre os seus pacientes no serviço de aprendizagem, para que os internos elaborassem as histórias dos pacientes e fizessem os exames físicos por ele. Se algum solicitasse uma radiografia ou mesmo uma contagem de sangue extra, trepava pelas paredes, censurando-o pela extravagante utilização de dispendiosos testes laboratoriais. Aparentemente, 99 por cento dos testes laboratoriais tinham sido desenvolvidos depois de ele se ter licenciado em Medicina, mais ou menos na época em que os Curie começavam a brincar com a uraninite. Além disso, tinha o hábito de receitar penicilina ou tetraciclina para cada constipação que aparecia nas Urgências - um processo que praticamente todas as autoridades médicas consideram pior que nada fazer. o facto de ele dever ser considerado como um professor era uma piada de mau gosto.

Já tinha prestado assistência a Hércules, alguns meses antes, na extracção de um cálculo renal. Nessa altura, ele tinha acabado de ler, pelo menos era o que afirmava, um artigo recente que recomendava üma nova maneira de extrair cálculos dos rins. Eu duvidava muito de que Hércules fizesse leituras profundas ou frequentes, mas aquele artigo tinha-o intrigado - embora não conseguisse recordar-se dos nomes nem da revista nem do autor do artigo, nem sequer do local onde a experiência tinha sido feita. Enquanto trabalhava no rim, alimentando as noçÕes do tal processo novo, ia mantendo o seu hábito de cortar artérias indiscriminadamente e depois recuar e dizer "Trata, dessa hemorragia, meu rapaz", sem interromper, praticamente, o que estava a contar. o residente tratava da incisão, aplicando a esponja de gaze e os hemostáticos, enquanto o cirurgião pontificava.

Aquele novo método de Hércules para o rim implicava a aplicação de uma sutura crómica 2-0 - um fio bastante grosso - através do rim e depois, segurando a sutura de ambos os lados e manipulando-a um pouco como se fosse umafaca mal afiada, ir serrando o rim. Isto deveria reduzir a hemorragia. o processo pareceu-me um pouco estranho e excessivamente simplista. Constatei que o meu cepticismo era saudável. Hércules tinha-se esquecido de um ponto vital, que o artigo repetidamente sublinhava: antes de "serrar" com a sutura, o cirurgião deveria adquirir o controlo do pedículo renal - a fonte de sangue do rim - de modo que a passagem de sangue através daquele órgão fosse interrompida. Pois bem, o nosso temerário inovador mergulhou de cabeça, nada fazendo para controlar o afluxo sanguíneo, serrando descontraidamente o rim, "para reduzir ahemorragia". o resultado foi a pior hemorragia descontrolada que já vi numa sala de operaçÕes - excepto numa ocasião em que o catéter auricular direito de um aparelho cardíaco-pulmonar se desprendeu do doente. Mas isso foi um acidente legítimo. o desastre do rim não. o sangue dos vasos do rim encheu imediatamente a incisão, transbordando e encharcando a mesa de operaçÕes e a equipa operatória. Começámos a introduzir sangue no operado através de uma IV, como num poço sem fundo. Ao fim de quatro litros, tínhamos finalmente aplicado pinças no rim, feito uma sucção suficiente para permitir a extracção do cálculo e feito enormes suturas no córtex renal. Dado que o corpo humano contém apenas cerca de seis litros de sangue, tínhamos praticamente esvaziado o homem, para o voltar a encher. Estávamos todos bastante assustados. Até o anestesista - normalmente num outro mundo, por detrás da cortina de éter, com um olho no respirador automático e ambas as mãos no jornal - estava perturbado.

Naturalmente, eu não estava muito entusiasmado com a ideia daquela gastrectomia com Hércules, que já via lá dentro a trabalhar enquanto me esterilizava. Tinha esperanças de que ele não tivesse andado a ler mais artigos. Estava lá um residente chamado O'Toole, mas não se viam internos. Quando entrei, rendendo-me, constatei que a atmosfera não era muito boa.

- Quero uma pinça decente - berrou Hércules à enfermeira, enquanto atirava um por cima do ombro contra a parede de azulejos brancos. -Peters, venhajá para aqui. Como é que se há-de operar sem ajuda? - Alguns dos cirurgiÕes estavam habituados a isso. Na maior parte do tempo, portavam-se como crianças petulantes, especialmente no que se referia aos instrumentos, que gostavam de atirar fora indiscriminadamente e utilizar de formas inesperadas - como, por exemplo, cortar arame com a tesoura de dissecção. Todavia, quando lhes entregavam um desses instrumentos, que eles próprios poderiam ter estragado, tinham ataques de fúria, atribuindo a culpa de todos os fracassos recentes à falta de equipamento adequado. Ninguém falava destas explosÕes. Ao fim de algum tempo, habituávamo-nos a elas.

Quando me aproximei de Hércules, ele fixou-me as mãos em volta de dois retractores e disse-me que levantasse, não puxasse para trás. Uma frase que já era habitual. Na verdade foi possível fazê-lo, porque nada havia para retrair naquele momento. o estômago, em que Hércules estava a trabalhar, encontrava-se mesmo ao cimo da incisão, bem à vista. Ele necessitaria de retracção mais tarde, quando fizesse a ligação da bolsa do estômago com o início do intestino, chamado duodeno. Esperava fervorosamente que elejá tivesse cortado os nervos do estômago que são parcialmente responsáveis pela secreção dos ácidos. Esses nervos do vago envolvem o esófago e, para que o cirurgião os possa cortar, o interno tem de segurar a caixa torácica; eu detestava essa retracção.

Lá estava eu de novo no meu posto da sala de operaçÕes, a olhar para um ponteiro dos minutos que parecia colado ao relógio. Enquanto lutava para me manter acordado, ficava com os olhos desfocados depois de cada bocejo, e sentia uma incontrolável comichão no nariz, do lado esquerdo, um pouco abaixo do olho, como se estivesse a ser atacado por um subtil e sádico insecto.

A posição da minha máscara era outra tortura subtil. De cada vez que eu bocejava, descia um pouco, talvez um centímetro. Ao fim de cinco bocejos, caiu por completo do nariz e ficou apenas a cobrir-me a boca. Isto fez entrar em acção a enfermeira circulante. Colocou-se ao meu lado e levantou a máscara, tocando-lhe com muito cuidado, de modo a evitar tocar na minha pele, como se toda a minha cara fosse infecciosa. Desejando aliviar a comichão, tentei diversas vezes tocar com o nariz na mão dela, enquanto ajustava a máscara. Mas ela era mais rápida que eu, e afastava a mão sempre que estava quase a tocar no meu nariz.

Hércules estava mais nervoso e confuso do que habitualmente. Em volta da mesa, ninguém conseguia imaginar qual seria o seu movimento seguinte. Felizmente eu estava imobilizado pelos retractores, pelo que não se esperava de mim qualquer contribuição, mas o pobre O'Toole parecia um rato num labirinto, chamado a desempenhar impossíveis feitos de antecipação.

- O'Toole, está a trabalhar comigo ou contra mim? Segure-me nesse estômago! - Enquanto fazia esta pergunta retórica, Hércules aplicou na mão esquerda de O'Toole uma forte pancada com a tesoura Mayo. O'Toole rangeu os dentes e ajustou a posição do estômago.

- Pelo amor de Deus, Peters, nunca aprendeu a fazer retracção? - Agarrou-me no pulso pela sexta vez, para reajustar os retractores, embora isso nada tivesse a ver com o que ele estava a fazer naquele momento. Na verdade, eu não era necessário; mas ele queria que eu estivesse ali. Era como muitos cirurgiÕes, que se sentem diminuídos quando não são assistidos por um residente e um interno, independentemente de serem ou não necessários. Eu era um símbolo da sua posição.

Hércules tinha dado a volta, de modo que estava a olhar para as suas costas quando começou a aplicar a segunda camada de suturas na bolsa do estômago. Não via nem o campo operatório nem as minhas mãos.

o anestesista disse subitamente.

- Peters, por favor não se incline sobre o peito do paciente. Está a comprometer a ventilação. - Empurrou-me para trás para que não impedisse a linha intravenosa. Mas eu não tinha para onde ir, pois já estava quase encostado a Hércules.

Nessa altura O'Toole recuou abruptamente com uma expressão assustada no rosto, erguendo a mão direita. Vi algumas gotas de sangue que escorriam de um corte feito na luva de borracha, na parte lateral do dedo indicador.

- Se tivesse o dedo onde devia estar, isso não tinha acontecido, O'Toole. Vamos a acordar - berrou Hércules.

O'Toole ficou em silêncio, voltando-se para a enfermeira, que lhe enfiou outra luva. Penso que se sentia grato por ainda ter o dedo.

Apesar de tudo o cirurgião conseguiu terminar, e começámos a fechar. Uma das minhas tarefas consistia em irrigar com uma seringa de pêra depois de a forte camada fascial fibrosa da parede abdominal ter sido fechada com suturas de seda a cerca de meio centímetro de intervalo. O'Toole e eu, nessa altura,já começávamos a divertir-nos e, enquanto Hércules lavava a mão, levantei a seringa daferida, porcima do paciente, e projectei um jacto da quente solução salina para o outro lado da mesa, atingindo O'Toole no estômago. Os nossos olhos fitaram-se, compreendendo-se; éramos parceiros numa situação infeliz.

Voltando para junto de nós, Hércules mostrou-se subitamente jovial. Era óbvio que pensava ter novamente realizado o impossível.

- É uma pena que a minha arte fique oculta por debaixo da pele, em vez de o doente a poder ver. Ele só tem para mostrar uma pequena incisão. - O'Toole revirou os olhos, fingindo-se aflito.

Dado que O'Toole e Hércules estavam a acabar, chamei a mim toda a minha coragem, para poder sair.

- Tenho várias operaçÕes a seguir, Doutor. Poderia dispensar-me agora? - Isto irritou um pouco o velhote, mas libertou-me com um gesto de noblesse oblige.

Para começar, cocei o nariz, durante longo tempo e com força, numa experiência sensual. Depois urinei, o que foi igualmente satisfatório. Eram onze e vinte cinco, e, dado que o paciente da nefrectomia estava a sair da Sala 10, tinha alguns minutos enquanto a sala era preparada para a primeira das minhas colecistectomias. Ali perto, à porta da sala de recuperação, vi Karen, o meu anjo de misericórdia e sexo, imaculada no seu uniforme branco. Tinha vindo buscar um paciente para a enfermaria e, quando me viu, dirigiu-me um amplo sorriso, perguntando-me, com um toque de sarcasmo, se eu tinha dormido bem nessa noite. Disse-lhe que fosse simpática, se não, numa destas noites, a atiraria para fora da cama. Olhando em volta, mandou-me calar, acrescentando que tinha dito ao namorado que não queria sair nessa noite; estaria em casa, provavelmente a partir das onze, caso eu estivesse livre. Arquivei a informação, mas não me parecia que fosse possível fazer alguma coisa.

O meu aneurisma tinha sido marcado para o aortograma às onze e quinze, e desci para ver o que estava a suceder. Entrando na sala de fluoroscopia, vi que o residente chefe estava nos preparativos finais para iniciar o estudo.

- Chegou dez minutos atrasado, Peters. Poderia ter-me ajudado a meter o catéter no bolbo aórtico.

- E eu teria vindo, se não fosse uma operação. - Evitei conscientemente dizer "graças a si".

- Bom, cá está a posição do catéter. Ponha um avental forrado de chumbo. Esta fluoroscopia emite uma data de radiaçÕes. Tem de proteger as suas gónadas.

Seguindo o conselho, peguei num dos pesados aventais e coloquei-o. Pondo-me atrás do residente chefe, podia ver o ecrã. Quando as luzes se apagaram, o fluoroscópio entrou automaticamente em fUncionamento com um estalido sonoro. A imagem era extremamente fraca, como habitualmente. Para se ver bem uma fluoroscopia, é preciso adaptar os olhos, usando óculos de lentes vermelhas durante cerca de trinta minutos antes. Não conseguia ver muito bem o aneurisma do meu paciente no ecrã, porque não tinha tido possibilidade de preparar a visão, mas conseguia distinguir a pesada tira rádio-opaca do catéter.

- Cá está a ponta do catéter. - O dedo apontado do residente chefe recortou-se contra a luz do ecrã. - Está na aorta, mesmo acima do coração. Não a vê saltar a cada contracção? - Isso conseguia eu ver sem dificuldade. - Agora vamos injectar o corante opaco na artéria, para obtermos uma imagem e, para o fazer, teremos de usar o injector de pressão. - Indicou-me um pequeno aparelho que parecia uma bomba de bicicleta deitada de lado.

Tinha três ou quatro válvulas de fecho na extremidade - eu achava que uma ou duas teriam bastado para prevenir um acidente.

- Basta-nos empurrar esta alavanca, que projecta o corante rapidamente para o coração, a cerca de 400 psi. Ao mesmo tempo, a câmara Schonander dispara à média de uma radiografia em cada meio segundo, durante dez segundos. Nós vamos observando no ecrã de flúor.

o residente chefe passou para os preparativos finais, falando pelo telefone com os técnicos de raios-X, para se certificar de que eles estavam a postos, e foi colocar-se por detrás do braço do injector de pressão. Desejando toda a protecção que fosse possível obter, meti-me por detrás da protecção de chumbo com o técnico de raios-X, que era bastante robusto. Observámos através da janela de quartzo.

A um grito do residente chefe, o técnico de raios-X pôs em acção a câmara Schonander, que engrenou imediatamente, tirando radiografias sucessivas, enquanto o residente chefe comprimia o injector de pressão até ao fim. o corante correu do injector para as válvulas e aí, em vez de ser projectado para o coração do paciente, ergueu-se num geyser gracioso até ao tecto, onde foi embater, correndo um pouco ao longo dele antes de começar a pingar sobre o residente chefe, o paciente e toda a maquinaria. o residente chefe tinha-se esquecido de abrir a última válvula. Quanto ao paciente, ficou a pestanejar, olhando em volta, tentando perceber que estranho teste seria aquele. o residente chefe ficou num estado de choque que começou a transformar-se rapidamente em exasperação. Dado que seria necessário recomeçar todo o processo e eu já estava um pouco atrasado para a colecistectomia, aproveitei a oportunidade para fazer uma saída inconspícua e corri para o bloco operatório.

Trabalhar com um verdadeiro profissional é muito diferente, sob todos os aspectos, de prestar assistência a um Hércules ou a um Supercaro, e o Dr. Simpson era o melhor que o hospital tinha. Com o residente de um lado e eu do outro, esterilizámo-nos os três, a conversar e a brincar. Simpson contou-nos a história de um professor da Colúmbia que tinha descoberto uma maneira de criar vida no laboratório. Corria tudo bem até a mulher o apanhar.

Uma piada simples - talvez, pensando bem, nem sequer muito boa. Mas, no contexto das horas passadas com Hércules, da imagem do corante a espalhar-se pelo tecto da sala de flúor, e do meu cansaço, aquela piada fez-me rir quase histericamente. Ainda estávamos os três a rir quando entrámos na sala de operaçÕes, onde o ambiente se modificou imediatamente, passando para simpática concentração. Prontos para trabalhar, conservávamos ainda num tom ligeiro, mas, não obstante, intensamente interessado na tarefa que nos aguardava.

A enfermeira entregou um bisturi a Simpson. Foi interessante a maneira como ele iniciou a operação. Não houve pausa. o bisturi foi empunhado e produziu imediatamente um corte perfeito no abdômen. Não houve paragens para deter as hemorragias com hemostáticos.

- Para quê andar por aí a esgravatar como uma galinha? - diria ele, ao terminar rapidamente a incisão, com o mesmo gesto decidido e seguro, enquanto os tecidos se abriam. Depois, o residente segurou os tecidos do seu lado e o cirurgião do outro, usando ambos forceps dentados, e, com mais um rápido golpe do bisturi, chegaram ao abdômen. Só então algumas hemorragias foram tratadas. Não mais de três minutos da pele à cavidade peritoneal. Perfeito.

Desta vez, porém, Simpson não fez o primeiro corte. Surpreendeu-nos, entregando o bisturi ao residente.

-A vesicula é sua - disse.-Um movimento em falso e ponho-o a dar clisteres durante um mês. - Sob seu olhar experiente, foi feito o mesmo tipo de incisão, mais ou menos à mesma velocidade. o cirurgião explorou rapidamente o interior, depois o residente e eu em seguida.

Estômago, duodeno, fígado, vesícula biliar (pude sentir os cálculos), baço, intestinos. o exame foi cauteloso mas completo; quando se tem o braço mergulhado até ao cotovelo no abdômen de alguém, há tendência para se ser cauteloso. Disse a Simpson que estava a ter dificuldade em encontrar o pâncreas. Ele explicou-me um ponto de referência e um volume. Encontrei-o logo.

Utilizando a técnica de Simpson, o residente colocou cuidadosamente as toalhas brancas ensopadas em solução salina que são usadas para separar a vesícula biliar da massa intestinal. Eu recebi os habituais retractores. Por sugestão de Simpson, o residente deslocou-se um pouco, para eu poder ver a incisão. Tudo decorreu normalmente com encorajamentos mas sem a assistência manual de Simpson. A vesícula biliar saiu perfeitamente, a base foi fechada, e em seguida a pele, tudo em trinta minutos. Sentindo-me bem agora, felicitei o residente, a caminho da sala de recuperação. Ele tinha feito um trabalho de profissional.

Com trinta minutos entre casos, Simpson e eu descemos para ver alguns dos nossos doentes, um dos quais, uma gastrectomia, eu estava a seguir de perto, depois de ter ajudado à operação. Tinha-me sido atribuída a responsabilidade total de prescrever para aquele caso, embora eu tentasse seguir as preferências de Simpson que, sabía-o já, eram seguras e sensatas. Quando alterava uma das minhas ordens, como sucedeu uma vez por outra, escrevia invariavelmente uma pequena explicação, uma opinião sobre um determinado medicamento ou processo. Era um professor nato.

Depois da nossa visita à enfermaria, vestimos novos fatos esterilizados e começámos a esterilizar-nos de novo, da mesma maneira alegre, desta vez sem histeria da minha parte. Depois de reflectir, resolvi, desta vez, desinfectar-me com Betadine; o seu tom amarelo pálido sempre era uma variação, depois do pHisoHex incolor que geralmente utilizávamos. Ao entrar na sala de observaçÕes, apercebemo-nos da habitual rotina hierárquica. A primeira toalha foi entregue a Simpson, a segunda ao residente e a terceira a mim. o mesmo se passou com as luvas.

Enquanto rodeávamos o paciente, a enfermeira entregou um bisturi a Simpson e, para meu grande espanto, ele entregou-mo.

- OK, Peters. Extraía aquela vesícula, e extraia-a à primeira, senão tiro-lhe a sua sem anestesia. - Obviamente, eu nunca tinha feito uma colecistectomia antes, embora tivesse visto fazer uma boa centena, e esta situação não fazia, decididamente, parte das que poderia imaginar. Estava interessado numa nova sessão como espectador interessado, vendo dois profissionais (o residente já não era novo) a trabalhar em conjunto. Agora, no entanto, já não seria um espectador, mas um participante - na realidade, o actor principal, Subitamente, o homem deitado sobre a mesa e o bisturi na minha mão adquiriram uma nova realidade. Interiormente invadido pela incerteza, sabia que, se agora hesitasse, poderia nunca mais sentir coragem para experimentar. Consegui dominar as tremuras que ameaçavam estender-se à minha mão direita, agarrei firmemente no bisturi e tentei copiar a primeira incisão de Simpson na parte superior do abdómen, introduzindo-o até ao cabo e depois descendo diagonalmente mesmo abaixo das costelas, do lado direito, tentando sempre conservar o bisturi num ângulo de noventa graus com a pele. Queria agradar a Simpson como um filho deseja agradar ao pai.

- Por Deus, ainda há esperanças para si - disse ele, por brincadeira, sem saber como as suas palavras soavam docemente aos meus ouvidos. Quando repeti a manobra, os músculos e a gordura separaram-se e retraíram-se. Houve alguma hemorragia, mas não muita.

- Forceps. - A enfermeira entregou-mos e deu um par ao cirurgião. Levantei um dos lados da incisão e ele a outra. Nessa altura estávamos muito perto da fina membrana peritoneal que reveste a cavidade abdominal. Estávamos a fazer a elevação para proteger os órgãos subjacentes, quando empurrei a lâmina do bisturi. Pop! Surgiu um orificio no abdómen e eu larguei o forceps.

- Segure no forceps - sugeriu Simpson - e corte enquanto consegue ver. - Tentei fazê-lo, avançando cuidadosamente porque o fígado e os intestinos estavam claramente visíveis na incisão que alargava. Correu tudo bem. Depois, para fazer a extremidade inferior da incisão, eu teria que mudar de técnica. Largando o forceps, introduzi a mão na incisão e abri o resto do peritoneu, cortando por entre os dedos. o meu coração batia violentamente. Já não me sentia cansado, nem reparava no relógio, no rádio ou no anestesista. Estava assustado mas determinado. Simpson apalpou e depois eu apalpei, e o residente também, e depois o residente pegou nos retractores, enquanto eu me afastava um pouco para o deixar ver, se desejasse. Tentei seguir a técnica de Símpson com as toalhas abdominais. Ele ajudou-me a colocar a última e depois, com a mão, enrolou o duodeno, afastando-o para que eu pudesse ver uma curva lisa de tecido que se estendia desde a parte superior do duodeno até à vesícula biliar. Depois de aplicar clamps na vesícula e a puxar, utilizei a tesoura de Metzenbaum para empurrar para baixo o tecido delicado. Havia por ali, algures, uma artéria, a artéria cística, que transportava o sangue para a vesícula. Não a podia cortar.

Sentia os músculos do pescoço rijos como pedras, quando me inclinei para diante, tentando ver claramente. Simpson disse-me que me endireitasse, ou não aguentaria mais de quinze minutos. A artéria apareceu - com as dimensÕes habituais, de uma artéria cística - e isolei-a com um clamp. Depois atei-a e peguei nas pontas. Primeira laçada. Passei o fio com o indicador direito. óptimo. Segunda. Para baixo. Que tensão deveria dar ao fio? Assim bastava; não convinha que se partisse. Mais uma laçada, para ter a certeza. Com a ajuda da pinça, uma outra sutura rodeou a artéria cística. Desta vez tinha que dar um nó mais abaixo, junto da artéria hepática que penetrava no fígado. A artéria cística derivava da artéria hepática, e, puxando levemente a sutura já feita em volta da artéria cística, pude ver a parede da artéria hepática. Na realidade, até conseguia ver a ramificação que se dirigia ao lado direito do fígado. Isso fez que me sentisse melhor, porque havia sempre o perigo de confundir aquela malvada com a artéria cística e atá-la em vez dela.

Estava muito preocupado com aquele segundo nó na artéria cística. Era o nó mais importante de toda a operação. Se se desmanchasse, alguns dias depois, o paciente morreria de uma hemorragia interna. Tendo isto em mente, passei a primeira laçada e espreitei para o orifício. Parecia estar bem. Involuntaríamente, olhei para Simpson, que não fez comentários. Por isso terminei a sutura e depois cortei a artéria entre as duas ataduras, começando a isolar a vesícula.

Veio em seguida o canal cístico, através do qual normalmente corre a bilis. Tratei-o da mesma maneira, atando-o com duas suturas e cortando entre os nós. Uma vez isolada a vesícula, passei tensa e levemente o bisturi em volta do seu leito, de modo a separar a camada exterior de tecidos brilhantes. Com a tesoura, comecei a levantar a vesícula e a afastá-la do fígado.

- Ele faz que isto pareça difícil - brincou Simpson. - Se demora muito mais tempo, aquilo acaba por gangrenar. - Mal o ouvi. A operação ainda só durava havia vinte e cinco minutos.

Com mais um corte suave e um puxão, a vesícula libertou-se. Deitei-a no recipiente que a enfermeira me estendeu. Com a outra mão, ela entregou-me um porta-agulha com sutura crómica 3-0. Pegando no tecido do rebordo do leito da vesícula e puxando-o para cima do canal hepático e da artéria hepática direita expostos, dei um Ponto e prendi-o firmemente abaixo. Com demasiada firmeza. A sutura rebentou. Outro, no mesmo lugar, desta vez com mais cuidado e menor tensão. Depois, com pontos seguidos, fechei o leito da vesícula.

Depois de retirar as toalhas utilizadas para separar a área da vesícula dos outros órgãos internos, comecei a fechar. As enfermeiras começaram a fazer a contagem das esponjas e instrumentos, para se certificarem de que eu nada tinha deixado no interior do paciente. Estava tudo em ordem. Cuidadosamente, identifiquei todos os níveis da parede abdominal, especialmente a dura camada fascial, que se tinha retraído e desaparecido da minha vista. Ponto após ponto, fui fechando a incisão, com o cirurgião e o residente a ajudarem-me. Mergulhei a agulha curva no lado inferior, retirei-a do outro lado da incisão, voltei a posicioná-la com a mão esquerda e depois atravessei o lado superior. Fechei a incisão camada por camada, como se estivesse a baralhar cartas, vendo-as unirem-se e sobreporem-se. Finalmente a pele. Quando terminei, invadiu-me uma tremenda sensação de confiança, semelhante à sensação que se experimenta quando a prancha atravessa a água branca. Quando retirei as luvas, o residente retribuiu-me o cumprimento anterior. o mundo era meu. Enquanto acompanhava o paciente pelo corredor até à sala de recuperação, continuava a sentir-me excitado. Duas enfermeiras tomaram o paciente a seu cargo, enquanto eu escrevia ordens pós-operatórias e ditava a nota operatória. Depois a fadiga regressou, pesada. Sentia fome, também, e decidi ir comer, porque apenas tinha no estômago duas fatias de pão desde ojantar da noite anterior, dezanove horas antes: eram 2 horas da tarde.

Chovia lá fora; tinha chovido durante todo o dia, concluí, visto que havia poças de água nos locais mais baixos. No céu redemoinhavam nuvens cinzentas, perseguidas, ao longo da ilha, pelos fortes ventos. A chuva era tão violenta que eu mal conseguia ver a cafetaria, a cerca de cem metros. Enquanto corria, o vento fazia ondular as poças de água por baixo das abas do telhado. Senti que a minha sorte se tinha ido parcialmente embora quando vi Joyce do outro lado da sala e, como seria de esperar, ela veio imediatamente ter comigo. Com imensa gente à nossa volta a falar da chuva, da Taça Hula e de muitas outras coisas, Joyce pouco falou, a princípio, o que me deixou satisfeito. Depois, como que obedecendo a um sinal, toda a gente se foi embora e Joyce principiou.

- Já pensaste bastante? - perguntou.

- Em quê? - inquiri, com curiosidade.

- Tu sabes, sobre nós, como disseste que ias fazer.

- Oh, acerca de nós. Sim, tenho pensado bastante nisso - disse eu.

- Bom, eu também - acrescentou ela, endireitando-se na cadeira. - E acho que devíamos ser mais abertos um para o outro.

- Achas que sim? - o meu tom foi levemente sarcástico, mas não suficientemente para ela perceber.

- Nunca falámos um com o outro dos nossos sentimentos e dos nossos pensamentos - acrescentou ela.

Estava enganada, nesse ponto. Ela já me tinha dito demasiado, especialmente como achava horrível esgueirar-se pelas escadas das traseiras. Pouco à vontade, apercebi-me de que ela estava a um passo de propor a cura instantânea para essas fugas - o casamento. Estava levemente descontrolada.

- Tu sempre me disseste o que se passava na tua cabeça - disse eu. - Nunca deixavas de falar daquelas escadas e de como achavas tudo aquilo horrível.

- Bom, as coisas estavam a tornar-se muito desagradáveis - disse ela, com o ar de quem está cheia de razão.

- Desagradáveis, Bom, isso é verdade. Por que não fazes qualquer coisa em relação à Miss Maçãse-TV, para podermos ir ao teu apartamento como duas pessoas normais?

- A minha companheira de quarto não tem nada a ver com isto.

- A tua companheira de quarto tem muito a ver com isto. Se não fosse a tua companheira de quarto, ficaríamos no teu apartamento e já não terias que te esgueirar pelas escadas.

- Tu não queres saber de mim - disse ela, num tom petulante.

- É claro que quero, mas não é isso que está em causa. Se tu...

- Está em causa, sim - interrompeu ela.

- Estás a mudar de assunto - protestei eu.

- É o único assunto que me interessa - disse ela seriamente, pondo-se de pé e arrastando a cadeira para trás. - De qualquer forma, decidi que podes deixar de pensar em nós e cair morto onde quiseres. - E saiu, indignada.

Cair morto. Uma excelente sugestão. Na verdade, havia um certo encanto mórbido na ideia. Estava morto de cansaço. Depois de Joyce sair, a sala afastou-se subitamente de mim. Ainda lá se encontravam bastantes pessoas, sentadas às mesas, mas nem uma única estava comigo. Os sons de cem vozes misturavam-se, todas distantes e incompreensíveis. Olhando através da janela para a chuva e para as nuvens cinzentas acumuladas, continuei a comer, distraidamente, vencido pela solidão. Já nada restava da sensação agradável causada pela extracção da vesícula; depois dela, eu tinha ficado simplesmente esvaziado detodas as emoçÕes. Olhando para o relógio, apercebi-me de que estava em movimento há trinta horas. Pensei na clínica e que devia lá ir. Os internos devem dar uma ajuda no atendimento dos pacientes externos, nos seus "tempos livres". Mas, no estado em que me encontrava, de pouco serviria. A clínica que fosse para o inferno.

As gotas de chuva dançavam em volta do telheiro, quando o vento as fustigava, atirando-as para as áreas abrigadas. Estava surpreendentemente frio. Quando se encontra fatigado, o corpo não consegue tolerar muito, quanto a variaçÕes de temperatura. Por isso, os arrepios que me percorriam eram, provavelmente, mais um produto das minhas condiçÕes físicas do que do tempo. Apressei-me, concentrando-me totalmente na minha cama, antevendo o prazer que iria sentir. Todos os internos desenvolvem um extraordinário apreço por coisas simples de que os outros nem se apercebem - o movimento muscular livre, o direito de aliviar uma comichão, de esvaziar a bexiga ou os intestinos, refeiçÕes mais ou menos regulares, um período decente de sono. Na cama, senti o meu corpo afundar-se, crescer terrivelmente e invadir todo o quarto, até que o meu corpo enorme e o quarto se fundiram gradualmente, transformando-se num só, e adormeci.

O abcesso era pequeno, quando comecei, pouco mais que uma borbulha. Agora era enorme, cobrindo a maior parte do braço esquerdo e sempre em crescimento. Por mais que eu cortasse, aparecia sempre mais; agora subia para o ombro. Por detrás de mim, Hércules sussurrava ao Supercaro: "Ele não vai conseguir safar-se. E o doente também não." Para obter um pouco de encorajamento, olhei para Simpson, que disse: "Faz isso bem logo à primeira, Peters, ou estás destinado a Hicksville." Num esforço final e desesperado, cortei até ao osso, atravessando os tecidos e, cheio de horror, vi que tinha cortado o nervo uInar, imobilizando a mão para sempre. o tempo acabou, pensei, quando a campainha tocou; fracasso! Era, naturalmente, o telefone. Ergui-me de um salto, para o atender, ainda meio mergulhado no sonho e confundido pela luz. Teria esquecido as rondas? Não, não eram ainda cinco horas, e o meu relógio marcava três. Era do bloco operatório. Tinha sido escalado para uma operação que começava dentro de quinze minutos.

Desligando o telefone, recuperei a orientação. Por que teria acordado naquele estado de terror? Depois, relacionei o sonho com a incisão e a drenagem que tinha feito no dia anterior a um enorme abcesso num cotovelo. Depois de abrir o abcesso com um bisturi afiado, provocando uma saída espontânea de pus, tinha introduzido a ponta de uma Pinça hemostática para assegurar uma boa drenagem. Mas o abcesso era muito mais fundo do que eu tinha imaginado; parecia estender-se até à região do nervo uInar. Por isso tive de ir cortando, cada vez mais abaixo, nunca chegando ao fundo do abcesso e parando, finalmente, com receio de cortar o nervo uInar, se não o tivesse feito já. De qualquer forma, decidi parar por ali e levar o caso à cirurgia.

O reflexo do medo tinha-me apanhado na cama, mas, depois, o meu estado de desintegração física começou a revelar-se. Tendo estado tanto tempo a pé, dormir menos de uma hora só piorara as coisas. Nada à minha volta parecia funcionar bem; senti-me tonto e levemente enjoado, quando me pus de pé, depois de ter calçado os sapatos. Infelizmente olhei para o espelho - um erro grave, porque me apercebi de que teria de me barbear, para entrar no mundo dos vivos. As minhas mãos tremiam e, como habitualmente, cortei-me algumas vezes: nada de grave, apenas o suficiente para que o sangue continuasse a correr, apesar dos lenços de papel, da água fria e uma forte e ardente aplicação do lápis hemostático.

Corri para a enfermaria. Tinha parado de chover, embora as nuvens grossas e pesadas ainda estivessem baixas, sobre as colinas. o meu paciente do abcesso ficou, provavelmente, um pouco espantado quando entrei no quarto e lhe pedi que erguesse as mãos e afastasse os dedos. Quando ele o fez, tentei unir os dedos e obtive uma boa resistência; isso indicava que o nervo uInar estava intacto. Não tive tempo de ver os outros, excepto o meu paciente do edema cheio de água, cuja cama ficava ao lado da do doente do abcesso. Ele queria fazer-me uma pergunta acerca dos comprimidos diuréticos e senti que tinha que responder-lhe.

Eu tinha adquirido um grande respeito por casos de edemas graves daquele tipo que exigem uma diminuição dos fluidos corporais através do emprego de diuréticos. Isso sucedera súbita e brutalmente - uma paciente com um carcinoma, transferida de uma enfermaria médica, sofria de um edema total do corpo, uma situação chamada anasarca. Concluí que ela se encontrava naquele estado porque o departamento médico tinhafeito asneira; havia sempre uma pequena fricção entre os que abriam - os cirurgiÕes - e os que lidavam com os medicamentos - os médicos. Aquela paciente sofria de cancro, diagnosticado a partir da biópsia de um nódulo linfático. Embora o local primário nunca tivesse sido encontrado, nem determinado o tipo exacto de cancro, alguém tinha decidido atacar com radioterapia, que nada tinha feito ao cancro, e depois com quimioterapia, que tinha sido igualmente inútil. Entretanto, a doente estava a IVs e os médicos tinham-na deixado ganhar tanto líquido que os níveis de sódio e cloreto desceram ao ponto de ela entrar praticamente em delírio. E esqueceram as suas proteínas de plasma, que também desceram. Quando recebi a paciente, decidi livrá-la de toda aquela água. Dando-lhe alguma albumina e um diurético, consegui alguma diurese e, assim, uma leve melhoria do edema. Mas eu queria mais. Quando tentei obter alguns conselhos, ninguém se mostrou muito interessado, incluindo o assistente. Dado que a sua urina era alcalina, decidi dar-lhe uma boa dose de cloreto de amónio com o diurético, e, desta vez, os resultados foram espectaculares. Que diurese! A água abandonava-a, à medida que a urina corria. Era terrível, espantoso - só que nunca mais parava, e, durante a noite, ela secou como uma ameixa. A broncopneumonia instalou-se imediatamente e a mulher morreu dentro de um dia e meio. Eu nun ca mais disse nada sobre o caso aos rapazes da medicina, mas tinha ganho respeito aos agentes diuréticos. Estava a tomar muito cuidado com o homem ao lado do do abcesso. Ele tomava apenas comprimidos.

E tinha também ganho respeito pelos abcessos. Tinha havido um paciente - não meu, embora eu o visse todos os dias durante as rondas - que tinha sido internado por causa de celulite invasora na perna direita, a partir da área de um abcesso. Quando veio ter connosco, a maior parte dos músculos da barriga da perna já estavam liquefeitos. Fizemos a cultura de diversos organismos diferentes daquele abcesso; todos eles pareciam trabalhar em conjunto contra o paciente. Um dia, quando o interno que tratava dele esteve doente, tive de o drenar. o cheiro era indescritível; mais uma vez tive de recorrer ao uso de três máscaras, para não vomitar. Quando tentei abrir a cavidade do abcesso, verifiquei que ele seguia em todas as direcçÕes, até onde o hemostato conseguia chegar. Tinha havido uma grande discussão, durante as rondas, sobre se a perna deveria ser amputada, mas os defensores de um novo método de perfusão contínua de antibióticos ganharam - pelo menos a discussão - e introduziram litros de antibiótico na perna, parecendo estabilizá-lo durante um dia ou dois. Mas, subitamente, um dia, enquanto estávamos a olhar para ele, durante as rondas matinais, o homem morreu. Tínhamo-nos aproximado do leito, e um outro interno tinha começado a dizer que o paciente se encontrava "essencialmente estacionário". Era curioso constatar quantas vezes a palavra "essencialmente" era usada durante as rondas. Aquele homem tinha tido falha hepática, falha cardíaca, falha renal - na realidade, falha corporal total. Mas, enquanto o interno fazia o seu relatório de um estado neutro, o homem arquejou e morreu. Pareceu-nos um acto de terrível mau gosto. Ficámos a olhá-lo, estupefactos. Ninguém tentou reanimá-lo, porque todos nos tínhamos habituado à ideia de que era um caso perdido. Os nossos medicamentos insignificantes apenas o tinham conservado em estado precário durante algum tempo, até tudo se desmoronar, como tinha sucedido naqueles casos de sépsis Gram-negativa, na escola médica. Assim comecei a respeitar os abcessos. Na realidade, à medida que o tempo ia passando, eu aprendia a respeitar todas as doenças, por muito inócuas que parecessem ser.

Agora corria para o bloco operatório, já atrasado. Havia grande actividade no andar. Passei por internos, residentes e médicos, de pé, junto das camas, a conversar, como sucedia sempre - excepto quando estavam sentados a conversar na sala. A maior parte dessas conversas centrava-se no tratamento e nos medicamentos a utilizar. Quando estavam quase a chegar a um consenso, um dos participantes recordava um efeito secundário, e, nessa altura, sugeria-se um medicamento para contrariar esse efeito secundário, medicamento esse que, por sua vez, tinha os seus próprios efeitos secundários. A questão passava então a ser: o que seria pior, o segundo efeito secundário, ou a situação original? o segundo medicamento tornaria os sintomas originais piores do que eram, antes de o primeiro medicamento os ter melhorado? E a conversa continuava sempre às voltas, até que a discussão parecia tornar-se tão complicada que parecia melhor recomeçar com o paciente seguinte. Era isso que as enfermarias me pareciam. Conversa, conversa, conversa. Pelo menos, na cirurgia, fazíamos qualquer coisa. Mas os médicos declaravam, com certa razão, que só cortávamos porque não podiamos curar. Nós argumentávamos que cortar era, muitas vezes, a cura. A discussão andava para a frente e para trás, sem conclusÕes definitivas, sempre mantida num tom amistoso, mesmo jovial, mas as suas raízes mergulhavam fundo.

Enfiar um outro fato esterilizado deu-me uma sensação de déjà vu. Estava a começar a viver com eles vestidos. Como já não havia fatos de tamanho médio, tive de usar um de tamanho grande e os atilhos das calças davam-me duas vezes a volta à cintura. Atravessei o guarda-vento para a área do bloco operatório. Enquanto calçava os sapatos de lona, olhei para o quadro, para ver quem era o operador. Zás! Nada menos que El Poderoso Cirurgião Cardíaco. Mas que estava ele a fazer ali?A operação tinha a indicação "Abcesso Abdominal, Infectado" e era óbvio que El Poderoso trabalhava geralmente com o tórax. Todavia, as coisas estranhas tinham deixado de me surpreender. Quando afastei o olhar, ele cumprimentou-me, chamando-me pelo meu nome, de maneira muito amistosa, mas eu sabia que não podia baixar a guarda, era apenas o primeiro movimento, um acto condescendente no início do espectáculo - especialmente porque tinha que gritar para me cumprimentar do meio do corredor, para que toda agente reparasse na sua boa disposição e espírito de camaradagem.

Recordei-me amargamente do dia em que eu e um residente tínhamos sido destacados para um caso cardíaco, não com um, mas com dois cirurgiÕes daquele género. Os dois homens, de maneiras absolutamente semelhantes e ocultos por detrás das máscaras só se distinguiam pela medida da cintura, pois um era muito mais gordo que o outro. o caso tinha começado muito bem, com muita afabilidade e palmadas nas costas. De súbito, sem qualquer aviso, um dos cirurgiÕes começou a desancar o residente por dar sangue a um paciente a morrer de cancro dos pulmÕes. Na verdade, a decisão era discutível, mas não suficientemente grave parajustificar aquela tirada diante de todos os presentes. Estava apenas a vangloriar-se, para melhorar a sua auto-imagem. Assim foi durante toda a operação, louvores e depois ataques, todos eles exagerados, até que chegámos a uma espécie de crescendo frenético de invectivas que foi diminuindo gradualmente, regressando ao bom humor. Tinha-me parecido estar no manicómio.

Há algo deste género em muitos cirurgiÕes - uma espécie de abordagem da vida passivo-agressiva absolutamente imprevisível. Num momento, somos amigos chegados e apreciados; no momento seguinte, quem sabe? Era quase como se estivessem emboscados, à espera que atravessássemos uma linha invisível e, quando o fazíamos - zás! - avançar, um interno tem de aprender a manter a boca fechada. Mais tarde, quando residente, aprendeu a lição tão bem que fica interiorizado. Por baixo, porém, anda permanentemente irritado. Embora pudesse ter sido muito agradável dizer a um tipo que se fosse lixar, eu nunca o fiz, e ninguém mais o fez. Estando situados no fundo do totem, aspirávamos, naturalmente, a subir, e isso significava entrar no jogo.

Nesse jogo, o medo entrava em simbiose com a ira. E a parte do medo era a mais complicada. Como internos, passávamos a maior parte do tempo cheios de medo; pelo menos eu passava. A princípio, como qualquer humanista, sentíamos medo de cometer um erro, porque ele poderia prejudicar um paciente, até mesmo custar-lhe a vida. Cerca de seis meses mais tarde, porém, o paciente começava a recuar, tornando-se menos importante, à medida que a nossa carreira progredia. Nessa altura já se tinha concluído que nenhum interno sofreria um revés por causa da desaprovação oficial da sua prática de Medicina, por muito desleixado ou incompetente que fosse. A única coisa que não era tolerada era a crítica ao sistema. Não importava que estivéssemos fatigados, ou aprendêssemos a passo de caracol, se é que aprendíamos alguma coisa, enquanto estávamos a ser explorados. Se queríamos ser residentes num bom hospital - e eu desejava-o desesperadamente - aceitava-se tudo sem um murmúrio. Havia muita gente cheia de esperanças, na bicha, à espera do nosso lugar nas grandes ligas. Por isso eu segurava pés e retractores e ocupava-me de todas as outras insignificâncias. E a raiva estava sempre dentro de mim.

Não acreditávamos, na nossa maior parte, na teoria da existência do diabo na história, ou numa noção extrema do pecado original, e, por isso, sabíamos que aqueles homens mais velhos que tanto odiávamos já tinham sido como nós. Aprincípio idealistas, depois furiosos e depois resignados, tinham acabado por se tornar maus como tudo. Finalmente, a ira e a frustração, retidas durante tanto tempo, estavam a extravazar-se numa brilhante manifestação de auto-indulgência. E à custa de quem? De quem havia de ser? Os pecados dos pais e dos avós recaíam sobre nós, os filhos do sistema. Iria acontecer-me o mesmo? Pensava que sim. Na verdade, já tinha começado, porque eu já tinha ultrapassado o meu período de idealismo da escola médica. Já não me surpreendia que houvesse tão poucos cavalheiros entre os cirurgiÕes; na realidade, o que me espantava era que alguns médicos ainda conseguissem emergir como seres humanos. Aparentemente, poucos conseguiam. E entre eles não estava o El Poderoso que eu ia ter de defrontar.

o homem deu-me uma palmada nas costas, querendo saber de todos os pormenores. Era como se fosse dar-me rebuçados ou beijar os meus filhos, como qualquer político corrupto da grande cidade a recolher votos. Na verdade estava a recolher autovotos. Eu estava tão cansado que não prestava atenção ao que ele dizia ou fazia. Conservei a cabeça baixa, enquanto me esfregava, um passo de cada vez. Vesti a bata e depois enfiei as luvas. o cenário à minha volta era irreal. A voz do cirurgião ecoava, falando de tudo e de nada, alguns decibéis acima das outras todas. o anestesista parecia ter uma imunidade especial ou usar tampÕes nos ouvidos; sem se preocupar com o cirurgião, tratava calmamente dos seus assuntos. Até a enfermeira ignorava El Poderoso. Quer ele lhe pedisse uma pinça delicadamente ou aos gritos, ela entregava-lha da mesma maneira reservada e eficiente, e continuava a ajeitar os equipamentos. Esperava que ele se escutasse atentamente a si próprio, porque, aparentemente, era a sua única audiência.

o caso era uma reoperação da inflamação das pequenas bolsas que as pessoas idosas têm, por vezes, na parte inferior da coluna. Aquele infeliz doente tinha sido operado à sua diverticulite, como se chamava aquela situação, cerca de um mês antes. Normalmente recomenda-se uma operação em três estágios, mas o primeiro cirurgião a operá-lo tinha tentado fazer tudo de uma vez. o resultado era um grande abcesso, que nós íamos drenar, e uma fistula fecal, que ia desde a incisão anterior até ao cólon, que estava a drenar pus e fezes.

Felizmente, o processo foi curto. Dei alguns nós, todos eles insatisfatórios para o cirurgião. De resto, conservei-me silencioso e imóvel, enquanto ele discursava sobre as vicissitudes da sua vida quando era interno.

- Era realmente duro naqueles tempos... que fazer as histórias e os exames físicos... todos os doentes... pela porta... e, além disso... um quarto do salário... e vocês, meus malandros, recebem... - Eu mal o ouvia. A minha exaustão tornava-me realmente imune, projectando para o exterior todos os comentários que penetravam no meu cérebro.

No final, saí dali e troquei de roupa, envergando os meus trajos normais. Eram quase quatro horas. Um pouco de sol da tarde tinha aberto caminho entre as nuvens espessas e espreitava pelajanela. Os raios refractavam-se e brilhavam nas gotas de chuva agarradas aos vidros. Isto fez-me pensar em fazer surf. Mas ainda faltavam as rondas da tarde; ainda não estava livre.

Descendo às enfermarias cirúrgicas particulares, fui ver o meu paciente da vesícula, que estava bem. Pressão, pulso, urina - tudo normal. Fiz a anotação na ficha e dirigi-me à outra paciente da vesícula, embora estivesse certo de que o residente a tinha visto. E tinha.

Parando nos raios-X, pedi a uma secretária que localizasse o aortograma feito nessa manhã ao meu aneurisma, para o poder ver rapidamente. Aparentemente, o residente chefe tinha realizado o trabalho, após os seus titânicos esforços. A secretária encontrou logo as chapas e eu comecei a colocá-las no visor. Eram tantas que não cabiam todas. Felizmente os números permitiram-me colocá-las em sequência. Agora era preciso encontrar o problema - o que era geralmente um cálculo, para mim. Mas, desta vez, até eu conseguia ver um volume considerável na aorta, mesmo abaixo da artéria subelávica esquerda. Vendo-me diante das radiografias, o radiologista chamou-me para me fazer a habitual preleção sobre as radiografias portáteis, com especial referência ao caso da hérnia da noite anterior. Mas desta vez eu tive a última palavra. o radiologista ficou abatido ao saber que o paciente tinha morrido. Talvez acreditasse agora que eu não poderia ter mandado fazer uma radiografia normal. Gozei a vitória embora, evidentemente, achasse que a radiografia, boa ou má, não teria feito a mínima diferença.

Toda a gente no serviço da enfermaria se encontrava sob controlo. Ambas as hérnias estavam em boas condiçÕes e já podiam andar; a gastrectomia tinha tido uma refeição completa; as varizes estavam prontas para ter alta de manhã; uma das hemorróidas tinha tido um movimento intestinal. o meu paciente do abcesso, com certa razão, queria saber por que lhe tinha apertado os dedos, e o homem do edema fez-me novas perguntas acerca dos comprimidos, querendo saber como eles o poderiam fazer perder líquidos. Satisfiz ambos os pacientes com respostas simplistas.

Apenas um problema - um novo paciente, ou antes, um paciente antigo, para me dar trabalho. Este homem, com uma grande úlcera de decúbito, tinha uma história de pelo menos vinte e cinco internamentos anteriores. Um deles tinha sido por engolir lâminas de barbear, outros por tentativas de suicídio por métodos mais convencionais, e por reacçÕes de conversão psiconeurótica, convulsÕes, alcoolismo, dores abdominais, úlcera gástrica, apendicite, incompetência hepática - a sua ficha era uma lista de doenças primárias e secundárias. Também tinha entrado e saído diversas vezes do hospital estatal de doenças mentais no decurso de dez anos. Precisamente o tipo de doente que estava a fazer-me falta, no estado de frescura e bom humor em que me encontrava. Falar com ele era impossível, porque estava tão embriagado que só se recordava de pequenos detalhes meio loucos das últimas horas. Tentar examiná-lo e estudar a ficha levou-me cerca de uma hora. Depois, tive de limpar a úlcera, um processo conhecido pelo nome francês de débridement, que tinha um som algo romântico.

Inclinado sobre as suas nádegas, a olhar para a úlcera negra e necrótica, a supurar, que ele tinha contraído por estar deitado durante muito tempo na mesma posição, senti pena de não ter estudado Direito. Com uma licenciatura em Direito, já estaria a ganhar a vida há dois anos. Um guarda-roupa completo, um escritório impressionante, papel liso e limpo, uma secretária, longas noites completas de sono - tudo isso teria sido meu. Naquele momento não tinha uma única dessas coisas. Pelo contrário, estava ali inclinado sobre o posterior malcheiroso de um alcoólico, a cortar tecidos mortos, tentando evitar o fedor e afastar as náuseas. Tinha sido excitante a primeira vez, na escola médica, vestir aquela bata branca e fazer de conta que fazia parte do misterioso e fervilhante mundo do hospital. E como eu tinha invejado os estudantes mais velhos e os internos, com os seus estetoscópios e agendas pretas, e maneiras decididas e experientes. Tinha conseguido subir a escada da Medicina e saltar os obstáculos específicos - até a realidade se abrir diante dos meus olhos. Aquelas nádegas eram a realidade, o outro extremo da vida, onde eu vivia.

Enquanto eu cortava, a úlcera começou a sangrar um pouco nos rebordos. Quando os nós dos dedos do paciente se tornaram brancos nos pontos onde se agarrava ao lençol, e quando ele começou a praguejar e a bater na almofada, concluí que tinha alcançado tecidos viáveis. Polvilhei com um pouco de Elase, que deveria continuar a limpar a ferida, decompondo enzimaticamente o tecido morto; depois cobri tudo com gaze de iodo. Aquela gaze não cheirava propriamente a Chanel Nº 5, mas, pelo menos, dominava os outros cheiros, que passavam dos da porcaria nojenta aos de um produto químico desagradável. Preferia o cheiro químico. o Elase? Não sabia se ele actuaria, mas tinha-o aplicado por causa de um artigo que tinha lido recentemente; dava-me a sensação de estar a fazer qualquer coisa científica.

Abria-se agora diante de mim o prazer das rondas da tarde. Ninguém gostava dessas rondas, e poucos achavam que houvesse necessidade de estarmos presentes, porque todas as disposiçÕes essenciais eram tomadas por comité, por assim dizer. Não obstante, fazíamos as rondas da tarde como se elas fossem um dos Dez Mandamentos. Ficando durante longos e terríveis minutos, ora sobre um pé, ora sobre o outro, conversávamos e fazíamos gestos, indicando aqui uma hemorróida, além uma gastrectomia. Olhávamos para as incisÕes e certificávamo-nos de que estavam fechadas e não se encontravam avermelhadas. Os pensos eram rapidamente substituídos, a esmo, enquanto os pacientes se submetiam como silenciosos animais sacrificados no altar. Quando um deles arriscava uma pergunta, era geralmente ignorada, perdia-se na conversa "Quantos dias desde a operação?"; "Deveríamos mudar para uma dieta suave ou continuar só com líquidos?". Como os outros, eu apresentava os meus casos num tom monótono. "Hemorróidas, dois dias pós-operatórios, dreno r tirado, sem hemorragia, ainda sem movimento intestinal, alimentação normal."

Arrastávamos os pés até à cama seguinte; alguns dos médicos pareciam interessados numa fenda do estuque do tecto, perto de uma das lâmpadas. "Gastrectomia, seis dias pós-operatórios, dieta suave, tem libertado gases mas nãohouve movimento dos intestinos, a incisão está a sarar bem, suturas retiradas amanhã, prevê-se alta." Alguém perguntava se a operação tinha sido uma Billroth I ou II. Evidentemente, estava-se nas tintas para isso; era uma daquelas perguntas que sempre se faziam acerca de uma gastrectomia. "Bilroth II."

Alguém mais perguntou se tinha havido uma vagotomia. "Sim, houve uma vagotomia, e o relatório final foi positivo quanto ao tecido neural." o paciente mostrou-se subitamente interessado e perguntou o que era uma vagotomia, mas ninguém lhe prestou atenção. Em vez disso, um dos residentes perguntou se a vagotomia tinha sido selectiva. - Outra pergunta oportuna que conduzia a um labirinto. "Não, não foi selectiva. o relatório de percurso sobre a úlcera consubstanciou um diagnóstico pré-operatório de doença péptica." Injectando subitamente uma informação concreta não directamente associada à tendência da conversa, tinha conseguido efectivamente mudar de assunto, e arrastámos os pés para a cama seguinte.

Continuámos a avançar, sonolentos, ficando cada vez mais fatigados e irritáveis, aplicando mal todos os pensos. o assistente disse que tudo parecia sob controlo e que nos veria à mesma hora no dia seguinte. Como no sexto ano, num jogo de futebol, todos se afastaram em todas as direcçÕes, menos eu. Aparentemente era eu quem tinha a bola, porque fiquei ali parado, sem pensar em coisa alguma, a olhar para a esquina de uma mesa que estava inclinada e fazia que toda a perspectiva parecesse um pouco estranha.

Quando saí do meu semitranse, estava indeciso quanto ao que deveria fazer. Poderia voltar a ver os doentes particulares, ou poderia sentar-me na enfermaria e aguardar novos internamentos, ou poderia voltar ao quarto e dormir um pouco. A última opção foi imediatamente posta de parte por uma questão de superstição. Se eu fosse dormir, era mais que certo ser chamado para novos internamentos, ao passo que, se ficasse na enfermaria, talvez não houvesse novos internamentos. Um ponto de vista altamente científico. Instalei-me no posto das enfermeiras e comecei a folhear alguns números atrasados da revista Glamour, que uma das raparigas ali tinha deixado. Não estava a registar o que via. Enquanto voltava as páginas e olhava os padrÕes de cores, com as figuras misturadas na minha mente, encontrava-me perdido no meu próprio mundo interior, registando os sons e os movimentos à minha volta, mas indiferente a eles. Um facto exterior conseguiu penetrar a minha muralha: tinha recomeçado a chover. Curiosamente, o som da chuva deu-me vontade de fazer surf; uma boa onda ou duas poderia lavar os meus pensamentos depressivos. Estava excessivamente fatigado e sabia que me sentiria inquieto se fosse directamente para a cama. Além disso, ainda restava uma boa hora de luz do dia.

A chuva caía, gelada, sobre as minhas costas nuas, enquanto atava a prancha ao tejadilho do meu VW. Uma vez dentro do carro, liguei o aquecedor e esforcei-me para ver para o exterior. Chovia com força e os limpa pára-brisas estavam,como habitualmente, com dificuldades para enfrentar toda aquela água. Tinha grande fé nos VW, excepto quanto a limpa pára-brisas. Nunca conseguiam manter o pára-brisas limpo e sem distorção - uma técnica curiosamente má num carro que era absolutamente seguro em tudo o resto.

Enquanto me dirigia para a praia, a chuva aumentou, fragmentando a minha imagem da estrada em manchas de cinzento e preto. De vez em quando tinha de enfiar a cabeça pela janela lateral para recuperar a perspectiva. o limpa pára-brisas do lado do passageiro estava a trabalhar um pouco melhor agora, e descobri que conseguia ver a estrada se me inclinasse para o lado. De certo modo, a chuva começou a reconfortar-me, fechando um pouco o mundo e dominando fortemente a minha consciência.

Sentia a chuva ainda mais fria nas minhas costas, enquanto me esforçava por retirar a prancha do tejadilho. o aquecedor dentro do carro não tinha sido muito boa ideia. Depois de ter libertado a prancha e a ter colocado sobre a cabeça, fiquei protegido das gotas geladas. Ansioso por ver as ondas, atravessei rapidamente a rua e penetrei na praia, mas, evidentemente, só conseguia ver alguns metros à minha frente. Pela primeira vez desde que a conhecia, a praia estava completamente deserta. Lançando a prancha à água, saltei sobre ela, ficando ajoelhado, e comecei a remar furiosamente com as mãos, tentando gerar um pouco de calor nos meus ossos gelados. A chuva caía com força suficiente para me magoar o nariz, forçando-me a baixar a cabeça e a espreitar por baixo das sobrancelhas. o mar estava picado e desorganizado. Quanto mais avançava, mais difícil se tornava manter a velocidade e a direcção, em face do forte vento kona que soprava para a praia. Fui remando, remando, a olhar para baixo durante a maior parte do tempo, fitando a tábua à frente dos meus joelhos. A água envolvia-me em redemoínhos. Quando a parte da frente da prancha saía da água, parecia seca por causa da cera, mas depois voltava a ficar molhada quando eu me inclinava para apanhar outra vaga.

Sobre a rebentação, a praia e toda a ilha desapareceram por detrás de uma nebulosa muralha de chuva. Era uma rebentação de tempestade, picada, ventosa e absolutamente imprevisível. Quando apanhava uma onda, não podia prever para onde ela iria, se se quebraria ou simplesmente desapareceria. Tinham desaparecido os habituais movimentos harmónicos e os pontos de referência conhecidos. Podia encontrar-me a mais de mil milhas, no alto mar. Os únicos sons eram os do vento, da chuva e das ondas. A minha mente começou a ver formas fantásticas nas vagas e na cortina invariavelmente cinzenta que pendia sobre mim. Imaginando tubarÕes a patrulhar a costa, sob a superfície perturbada do mar, coloquei os braços e as pernas sobre a prancha e fiquei estendido sobre ela. Uma onda empinou-se subitamente, quebrou-se e voltou-me. Em pânico, consegui trepar de novo para a prancha, como um gato com as orelhas achatadas, com medo de olhar para trás. Deixei que a acção das ondas e do vento me empurrassem para a praia, enquanto procurava sinais da ilha, uma segurança de que não me encontrava, à deriva num mar solitário. Senti-me inundado de alívio quando o recorte esfumado de um prédio tomou forma. A minha quilha raspou por coral. Depois a praia deserta apareceu, com a areia batida pela chuva transformada em milhÕes de crateras miniaturais. Vi algumas pessoas a correr, manchas grotescas e desprovidas de rosto, tentando proteger-se da chuva e do vento.

Quando entrei no carro, voltei a ligar o aquecedor, com os dedos enrugados, e senti o seu bem-vindo calor a escapar-se do ventilador. Estava roxo e a tremer enquanto me dirigia ao hospital, novamente inclinado para o banco do passageiro, paraver o caminho. Continuava a chover violentamente e as luzes dos outros carros abriam no pavimento molhado passagens quebradas e confusas.

A felicidade é um duche quente. Ondas de vapor quente enchiam a cabina, lavando o sal e o frio e os pequenos medos estúpidos que a minha mente tinha convocado, Deixei-me ficar quase vinte minutos no duche, com a água quente a cair sobre a cabeça e a escorrer por todas as fendas e elevaçÕes do meu corpo. Quando comecei a relaxar, pus-me a pensar como deveria passar a noite. Dormir. Devia dormir. Sabia disso. Mas também sentia a necessidade de me afastar do hospital, de ver alguém. Karen tinha-me dito que, afinal, não ia sair. Karen. Era isso mesmo: iria postar-me diante do televisor dela, beber cerveja e deixar a mente vegetar. Noite sim noite não eu não estava de serviço e o telefone permanecia silencioso. Era um prazer saber que ele nãoiria tocar. Aquela seria uma dessas noites tranquilas. Ahhh.

Enxuguei-me, lenta e lascivamente, e depois regressei ao meu quarto, a patinhar, com uma toalha enrolada em volta da cintura. A cama parecia-me tentadora, mas estava com receio de, se dormisse mais ou menos seis horas e depois me levantasse, não ser capaz de voltar a adormecer. Era preferível ficar a pé e adormecer mais tarde. Nessa altura, o telefone tocou. Com toda a inocência, atendi-o. Não o devia ter feito, porque era o interno que estava de serviço. Estava com um problema e tinha que ir a casa durante uma hora, talvez duas no máximo. Era um problema que não podia esperar.

- Sinto muito, Peters, mas tenho mesmo que ir. Importas-te de ficar por mim?

- Há alguma operação marcada?

- Não, nenhuma. Está tudo calmo.

Embora a ideia de fazer o lugar dele me tirasse as forças, não podia recusar. Faz parte do código de entreajuda e, quem podia saber?, talvez eu viesse a precisar que ele me retribuísse o favor.

- OK, eu fico por ti.

- Obrigadíssimo, Peters. Vou dizer à telefonista que ficas no meu lugar e volto o mais depressa possível. Mais uma vez, obrigado.

Quando desliguei, pensei fatigadamente que, se tivesse que assistir a alguma operação, desmaiaria. Estava certo de que me iria abaixo, mental ou fisicamente, se tivesse que enfrentar uma longa sessão de qualquer tipo, especialmente uma operação com alguém como o Supercaro ou Hércules ou El Poderoso Cirurgião Cardíaco.

Vesti antecipadamente as roupas brancas, novamente na esperança de afastar o mal com preparativos excessivos. Quando telefonei a Karen não obtive resposta e recordei-me vagamente de ela ter dito qualquer coisa sobre onze horas, mas não me recordava exactamente de quê. Não tendo que fazer, estendí-me e abri um livro de cirurgia, apoiando-o sobre o peito. o seu peso tornava-me a respiração um pouco difícil. Sem me concentrar efectivamente no livro, a minha mente vagueou até Karen. Que estaria ela a fazer às sete horas, se não tinha saído com o namorado? Não podia dizer que tivesse muitos motivos para confiar nela. Mas que queria eu dizer com confiança? Por que deveria essa palavra entrar na nossa relação, afinal? Era uma reacção de adolescente falar de confiança quando não passávamos de uma conveniência um para o outro.

Estava a começar a ser conduzido para o sono por estes devaneios quando o telefone me acordou. o maldito livro cirúrgico ainda estava em cima do meu peito e eu estava a respirar com os músculos abdominais. Era das urgências.

- Dr. Peters, fala a enfermeira Shippen. A telefonista diz que está a fazer o lugar do Dr. Greer.

- Exactamente - concordei com relutância.

- o interno de serviço aqui está atrasado. Importa-se de vir ajudar?

- Quantas fichas estão à espera no cesto?

- Nove. Não, dez - respondeu ela.

- o interno pediu realmente ajuda? - Que diabo, eujá tinha tido dez fichas de atraso nas noites de sexta-feira e sábado, durante os meus meses nas urgências.

- Não, mas ele é muito lento e...

- Se ele se atrasar numas quinze, mais ou menos, e se o próprio interno pedir a minha ajuda, chame-me.

Desliguei, farto até aos cabelos daquelas enfermeiras das Urgências, sempre a querer dirigir o espectáculo e tomar decisÕes. As Urgências eram o território do interno; talvez ele ficasse irritado se eu aparecesse de súbito. Havia um grão de verdade e um quilo de racionalização nisto, penso eu. Contudo, durante os meus dois meses nas Urgências, eu nunca tinha pedido a ajuda de um interno de serviço. Não podia imaginar que as coisas estivessem in controlavelmente complicadas e o trabalho fosse assim tanto numa noite de quarta-feira. Tentei ler um pouco mais, sem conseguir avançar e ficando cada vez mais nervoso e deprimido. As minhas mãos tremiam levemente - uma coisa nova - quando equilibrei o livro sobre o peito. Os meus pensamentos passavam desencontradamente da cirurgia para Karen e para o tempo horrível em que estivera a fazer surf, regressando depois à cirurgia. Pondo-me de pé, fui à casa de banho, sofrendo de uma leve diarreia - que não era, ultimamente, invulgar em mim.

Quando o telefone tocou de novo, era a mesma enfermeira oficiosa das Urgências, a dizer, com satisfação, que o interno tinha pedido ajuda. Fiquei tão furioso que nem falei, limitei-me a desligar o telefone. Antes que conseguisse sair do quarto, o telefone tocou novamente. Era a enfermeira a perguntar, num tom ofendido, se eu ia ou não. Reuni todo o ácido que conseguia e respondi que iria, desde que eles conseguissem aguentar as coisas durante o tempo suficiente para calçar os sapatos. Não teve qualquer efeito. Ela estava imune aos insultos e eu ao interesse pelo assunto, sem me conseguir apressar; talvez quando eu lá chegasse as coisas já estivessem calmas. Não me teria importado de fazer uma tranquila sutura ou duas, ou coisa parecida. Mas estava certo de ter que enfrentar algum acidente na auto-estrada ou convulsÕes.

A chuva tinha passado e uma ou duas estrelas cintilavam entre os cúmulos violeta-escuros das nuvens pesadas. o vento tinha mudado de novo, tendo regressado os ventos alísios que afastavam o mau tempo kona.

Ao chegar ao banco, tive de aceitar que as coisas estavam longe de estar calmas. Estavam lá a trabalhar um interno e dois residentes. Além disso, também lá se encontravam quatro ou cinco assistentes a ver os seus doentes. Uma das enfermeiras entregou-me uma ficha e disse que o sujeito estava à espera havia algum tempo; não tinham conseguido contactar com o médico particular dele. Peguei na ficha e dirigi-me à sala de observaçÕes, enquanto alia. A principal queixa era "Nervosismo; acabaram-se-lhe os comprimidos." Meu Deus! Parei e observei melhor a ficha. o médico particular era um psiquiatra; não era de admirar que não conseguissem localizá-lo. E o paciente, um homem de 31 anos, encontrava-se na sala de psiquiatria. Esta ficava, do outro lado, para a direita. Que sorte a minha, pensei, um paciente do foro psiquiátrico. Porque não havia de ser uma simples laceração do couro cabeludo - algo que eu pudesse consertar - em vez de um trabalho no interior da cabeça?

Ao entrar na sala de psiquiatria, sentei-me e deparei com um homem de aspecto juvenil sentado na marquesa. A marquesa e a cadeira de costas direitas onde eu estava sentado eram os únicos móveis daquela sala simples, de paredes brancas. Tanto a marquesa como a cadeira estavam solidamente fixadas ao chão. Estava tudo impecavelmente limpo ali dentro, e muito brilhante, graças a uma série de lâmpadas fluorescentes montadas no tecto. Depois de consultar de novo a ficha, olhei para o homem. Era um tipo razoavelmente bem parecido, com cabelos e olhos castanhos, muito bem penteado. Tinha as mãos apertadas à frente, única sugestão do seu nervosismo; esfregava uma na outra como se estivesse a moldar barro entre as palmas.

- Não se sente bem? - perguntei.

- Não. Ou antes, sim, não me estou a sentir bem - respondeu ele, pousando as mãos nosjoelhos e afastando o olhar do meu. - Penso que seja um interno. o meu médico não vem?

Fiquei a olhar para ele durante uns segundos. Tinha aprendido que deixá-los falar era o melhor, mas tornava-se evidente que ele pretendia que eu respondesse às suas perguntas.

- Sim, sou um interno - disse eu, um pouco defensivamente. - E não, não conseguimos contactar o seu médico. No entanto, penso que podemos ajudá-lo, e poderá ir consultar o seu médico mais tarde, talvez amanhã.

- Mas eu preciso dele agora - insistiu ele, tirando um cigarro do bolso, que lhe permiti que acendesse. Os doentes psiquiátricos podiam fumar se quisessem; não havia oxigénio na sala.

- Por que não me diz qualquer coisa sobre o que está a incomodá-lo, e talvez eu ou o residente psiquiátrico possamos ajudá-lo. - Estava certo de não conseguir que o residente psiquiátrico lá fosse, mas talvez pudesse contactá-lo pelo telefone.

- Estou nervoso - disse ele. - Sinto nervos pelo corpo todo e não consigo estar quieto. Tenho medo de fazer qualquer coisa.

Houve uma pausa. Ele estava a ollhar para mim, fixamente. Embora tivesse acendido o cigarro, não o levou aos lábios, segurando-o entre o segundo e o terceiro dedos, com um rasto de fumo a serpentear-lhe diante do rosto. Os olhos, muito abertos, tinham as pupilas relativamente dilatadas. Brilhava-lhe um pouco de humidade na testa.

- Que coisa tem medo de fazer? - Queria dar-lhe toda a corda possível. Além disso, não me importava de falar ali sentado por muito tempo. Os outros problemas das Urgências, no meio do pandemónio, seriam resolvidos sem mim. Era bem feito, para não me darem um doente do foro psiquiátrico.

- Não sei o que posso fazer. Isso é metade do problema. Mas sei que, quando fico assim, não tenho grande controlo sobre o que penso... sobre o que penso. Penso. - Estava a olhar em frente, para a parede branca, sem pestanejar. Depois fez uma careta súbita e a sua boca ficou transformada numa fenda apertada.

- Há quanto tempo tem esse tipo de problema? - perguntei, tentando quebrar o transe, para o manter a falar. - Há quanto tempo está sob os cuidados de um psiquiatra?

A princípio ele pareceu não me ouvir, e estava prestes a repetir a pergunta quando se voltou para mim, mais uma vez.

- Há cerca de oito anos. Diagnosticaram que eu era um tipo esquizofrénico, paranóico, e já estive duas vezes hospitalizado. Tenho estado sob cuidados psiquiátricos desde a primeira hospitalização, e tenho andado bem, especialmente no último ano. Mas esta noite sinto-me como me sentia há alguns anos. A única diferença é que agora sei o que está a suceder. É por isso que eu preciso de mais Librium, e é por isso que tenho de ver o meu médico. Tenho de parar com isto antes que perca o controlo.

A sua visão da situação surpreendeu-me. Concluí que ele tinha andado sob cuidados muito intensivos, talvez mesmo a fazer psicanálise. Era inteligente, sem dúvida. Embora eu fosse novato naquele tipo de coisas, sabia o suficiente para o manter a falar e a comunicar. Teria sido fácil limitar-me a dar-lhe Librium e esperar que fizesse efeito. Mas agora eu estava interessado, em parte nele e em parte na sua capacidade para me livrar do resto das Urgências. Em fundo, escutei o choro de uma criança.

- o que exigiu a sua hospitalização? - perguntei.

Ele respondeu avidamente.

- Eu estava na faculdade, em Nova Iorque, e andava a ter certas dificuldades nos estudos. Vivia com a minha mãe. o meu pai morreu quando eu ainda era um bebé. Depois, durante o segundo ano da faculdade, a minha mãe começou a ter um caso com um homem, o que me aborreceu, embora, a princípio, não soubesse porquê. Ele era um cavalheiro, muito elegante e simpático, e tudo isso. Suponho que devia ter gostado dele. Mas não gostei. Agora sei disso. Odiava-o. A princípio dizia a mim mesmo que gostava dele. Quero dizer, sentia-me atraído por ele. Agora sei disso, também.

Eu começava a imaginar o quadro - o que a psiquiatria lhe dera, uma moldura para as suas ansiedades. Agora que tinha começado, prosseguiu.

- E a minha mãe, bem, comecei a odiá-la também, por diversas razÕes. Era ódio a um nível inconsciente, claro. Uma das razÕes era por ter começado a andar com aquele homem e me deixar de parte, e a outra era por o guardar para ela. Penso que tinha tendências homossexuais latentes. Mas eu gostava da minha mãe. Era a única pessoa de quem me sentia próximo. Eu não tinha muitos amigos... nunca tive... nem sentia grande prazer em sair com raparigas. Bom, nessa altura o presidente Kennedy foi assassinado e eu soube que tinha sido um jovem. Ia de metro para casa e vi jornais por todo o lado: PRESIDENTE KENNEDY ASSASSINADO POR UM JOVEM. Fiquei nervoso, já andava assim há alguns dias e, de repente, como eu era um jovem, decidi, não me pergunte porquê, que tinha sido eu quem tinha assassinado oKennedy. Os dias seguintes foram um autêntico inferno, tanto quanto consigo recordar-me. Não fui para casa. Andava aterrorizado com a ideia de que toda a gente me perseguia. E o que tornava tudo pior era ver as pessoas a chorar por toda a parte. Preocupava-me que descobrissem que eu era o assassino, de modo que andei sempre a fugir, durante dois dias, ao que parece, com medo de todas as pessoas que encontrava, e acredite que é difícil fugir das pessoas em Nova iorque. Felizmente, acabei num hospital. Levei quase um ano para acalmar, e foi preciso outro ano de cuidados intensivos para compreender o que me tinha acontecido. Depois as coisas...

Subitamente parou a meio da frase e pôs-se a olhar de novo para a parede. Depois olhou para mim e pediu:

- Importa-se de medir a minha tensão? Estou preocupado, porque penso que está muito alta.

Eu não me importava de lhe medir a tensão, mas na sala não havia equipamentos. Saí para ir buscar um esfigmomanómetro, levemente perturbado com a súbita, concisa e impressionante história de um esquizofrénico paranóico. No regresso, uma enfermeira tentou impingir-me outra ficha, mas afastei-a, dizendo que ainda não tinha acabado de atender o meu paciente.

De regresso à sala, o homemjá tinha arregaçado a manga. Mostrou-se muito interessado enquanto eu colocava a manga em volta do seu braço e tentou ler o mostrador enquanto eu dava à bomba. A pressão era de 146/96. Disse-lhe que estava levemente alta, mas em conformidade com a sua agitação. Na verdade, tinha ficado um pouco surpreendido por a achar alta de mais. Depois, perguntei-lhe o que acontecera depois de ele sair do hospital.

- De qual das vezes? - perguntou ele.

- Esteve hospitalizado mais que uma vez?

- Duas. Eu já lhe disse.

- Que sucedeu depois da primeira hospitalização?

- Correu tudo bem. Ia regularmente ao meu psiquiatra. Depois, sem qualquer motivo, comecei a sentir-me nervoso, como agora, e as coisas foram piorando cada vez mais, até que tive de voltar para o hospital durante mais quatro meses.

- De quanto tempo foi o intervalo entre as hospitalizaçÕes? - perguntei.

- Cerca de um ano e meio. o verdadeiro problema é que nunca conseguimos descobrir o que sucedeu da segunda vez. Eu não estava paranóico, só nervoso. Tinha aquilo a que chamam ansiedade impregnada. Depois, o meu psiquiatra começou a falar de esquizofrenia pseudoneurótica, mas não percebi isso muito bem, embora leia muita coisa sobre o assunto. É por isso que esta situação me preocupa tanto. Sinto-me nervoso agora, verdadeiramente nervoso. Sinto a mesma ansiedade que sentia antes de ir parar ao hospital pela segunda vez, e não suporto isso. Não quero ficar louco outra vez. Não sei por que estou a sentir isto agora. Andava tudo a correr bem ultimamente. Até o meu negócio corre bem.

Apercebi-me de que ele tinha estado psicologicamente bem compensado. Tinha conseguido ter um novo lar no Havai e tinha mesmo iniciado um negócio. Estranhamente, senti-me nervoso também, mas, evidentemente, por motivos diferentes e num grau diferente. Estava exausto, mas o meu problema poderia ser curado com um pouco de sono e de descontracção. o dele era a longo prazo e, além disso, ele sentia receio de subitamente perder o controlo. Uma enfermeira abriu a porta, começou a dizer qualquer coisa e depois fechou-a, vendo-nos a conversar.

- Tem muitos amigos aqui? - perguntei.

- Não, nem por isso. Nunca tive muitos amigos. Prefiro ficar em casa a ler. Não gosto de sair e sentar-me nos bares a beber. Parece-me uma perda de tempo. Não tenho muita coisa em comum com as outras pessoas. Gosto de fazer surf de vez em quando, e vou fazer surf com alguns tipos, mas nem sempre. Na maior parte das vezes faço surf sozinho.

Aquilo divertiu-me, por um momento. Um surfista esquizofrénico. Mas, de certo modo, o estilo de vida dele era um pouco como o meu.

- E a sua mãe? Onde está ela agora?

- Em Nova Iorque. Casou com o tipo com quem andava. o meu psiquiatra sugeriu-me que me afastasse por algum tempo. Por isso vim para o Havai. Não há dúvida de que a minha vida mudou para melhor.

Levantei-me e caminhei até à porta. Uma das minhas pernas tinha ficado dormente e sentia um formigueiro no pé.

- Qual é o seu negócio?

- Fotografia - respondeu ele. - Sou fotógrafo, independente, mas também faço algum trabalho industrial. É isso que me mantém ocupado. - Levantou-se, para estender as pernas, e caminhou até ao outro extremo da sala, até à cadeira. Voltei-me, pus as mãos atrás das costas e encostei-me à porta. Ele parecia um pouco mais calmo, aliviado da sua ansiedade.

- E quanto a mulheres? - perguntei, um pouco hesitante, perguntando a mim mesmo o que teria sucedido àquelas tendências homossexuais latentes a que ele tinha feito referência.

Olhou-me rapidamente, depois de ouvir as minhas palavras, e em seguida sentou-se na cadeira, a olhar para o chão.

- Bem, muito bem. Nunca estive melhor. Na verdade, vou até casar-me muito em breve com uma óptima rapariga. É por isso que eu quero ter a certeza de que tudo esteja bem a meu respeito. Não quero passar mais tempo naquele maldito hospital. Agora, não.

Compreendia perfeitamente a sua preocupação. Ao dar-lhe voz, ele tinha subitamente levado a conversa para um plano mais pessoal. Não porque não tivéssemos estado a falar de coisas pessoais, mas o facto de ele ligar as suas dificuldades mentais ao desejo de se casar tornava mais fácil, para mim, compreendê-lo e simpatizar com ele. Afinal, se ele conseguisse safar-se e estabelecer um relacionamento real com a sua noiva, ela poderia ser o meio de uma compensação permanente. Pelo menos era uma possibilidade. Diferentemente de muitas pessoas mentalmente perturbadas, aquele homem estava realmente a esforçar-se. Gostei disso. Sentei-me na marquesa, perto da cadeira onde ele se encontrava.

- Isso é bom - disse eu. - Está a ultrapassar o seu problema básico.

- Pois é, é maravilhoso - repetiu ele, sem grande entusiasmo.

o facto de os esquizofrénicos apresentarem afectos embotados veio-me à mente, proveniente de uma vaga palestra psiquiátrica. Deu-me uma momentânea sensação de entendimento e prazer académico.

- Quando é que se casa? - perguntei, para ver se conseguia obter dele uma reacção emocional.

- Bom, esse é um dos problemas - disse ele. - Ela ainda não marcou a data.

Este comentário fez-me recuar um pouco.

- Mas ela concordou em casar-se consigo, não é verdade?

- Concordou, sem dúvida. Mas ainda não decidiu quando quer casar-se. Na verdade tencionava perguntar-lhe esta noite se ela quereria casar-se no Verão. Gostaria de me casar este Verão.

- Então por que não pergunta? - inquiri. Começava a formular uma nítida impressão de hipersensibilidade esquizofrénica contra qualquer sinal de rejeição. Talvez aquela ansiedade tivesse surgido por ele sentir medo de ser rejeitado pela rapariga. Tudo indicava que fosse isso.

- Esta noite não posso - disse ele.

- Por que não? - Era um ponto crucial. Se as coisas corressem bem, ele poderia ficar óptimo; mas, se ela o rejeitasse, o efeito poderia ser catastrófico. Ele também sabia disso.

- Porque ela me telefonou esta manhã e me disse que esta noite não podia estar comigo. Quando lhe perguntei por que não, disse que tinha uma coisa importante a fazer. Faz isso muitas vezes.

Eu sabia que ele estava numa posição difícil. Quando mais avançava, mais dependente ficava da sua noiva para a sua própria estabilidade mental. Não sabia que dizer-lhe. Tínhamos chegado a uma espécie de impasse, e pensei que talvez fosse a altura de lhe dar o Librium ou qualquer outra coisa. Depois, ele recomeçou a falar.

- Talvez a conheça - disse. - É enfermeira do hospital.

- Como é que ela se chama? - Senti uma certa curiosidade.

- Karen Christie - disse ele. -Vive aqui perto, do outro lado da rua.

As palavras dele embateram na minha mente, derrubando muralhas de defesa cuidadosamente construídas e levando tudo à sua frente. Senti que abria a boca involuntariamente, e aminha visão ficou nublada, reflectindo a confusão e a descrença interiores. Esforcei-me profundamente por recuperar a compostura exterior. Ele estava demasiadamente mergulhado nos seus problemas para reparar no meu desconforto. Continuou a descrever o seu relacionamento com Karen. Agora, vinte segundos depois da sua revelação, eu estava de novo exteriormente calmo, a escutá-lo, mas, por dentro, as minhas próprias mensagens urgentes retiravam todo o significado às suas palavras. Eramos como dois homens a falar do mesmo assunto, mas em línguas diferentes.

Então era aquele o "namorado", o "noivo". Eu partilhava Karen com um esquizofrénico que dependia totalmente dela para o seu equilíbrio mental, cujo mundo se desmoronava quando era privado dessa compensação, como tinha sucedido por causa da decisão de passar aquela noite comigo. De uma maneira grotesca, mas muito real, tínhamos trocado de lugar: agora era ele o terapeuta e eu o paciente. Era perfeito que eu estivesse sentado na marquesa e ele na cadeira. Cerca de meia hora antes, eu tínha-me sentido rejeitado porque Karen só me poderia receber depois das onze. Ao mesmo tempo, tinha ilogicamente abençoado a minha sorte por ela ter outro homem que a levasse a sair e a trouxesse a casa a tempo de uma cerveja e sexo comigo. o facto de ter estado a partilhar a situação com um esquizofrénico tentava-me a identificar-me com ele, a ver-me à mesma luz. Mas eu não era, sem dúvida, esquizofrénico; a minha visão da realidade era até boa de mais. Não podia acreditar que tivesse tido delírios, porque eu era, por certo, muito realista, especialmente quanto ao meu papel de interno. Além disso, nunca tinha alucinaçÕes. Eu teria dado por isso, pensei. Ou não teria?

Subitamente, notei que ele estava a olhar para mim, à espera de uma resposta. Com os olhos, pedi-lhe que repetisse.

- Conhece-a? - repetiu ele.

- Conheço - respondi mecanicamente. - Está nos turnos de dia. Começámos a falar e a pensar de novo em línguas diferentes, enquanto ele descrevia a sua meia vida com Karen e eu me retirava para as minhas especulaçÕes. Não, tinha a certeza de que não era esquizofrénico, mas talvez tivesse tendências esquizóides. Tentando recordar-me de palestras e páginas de compêndios, esforcei-me por recordar as características da personalidade esquizóide. A maior parte desses casos, recordei-me, evitava relacionamentos próximos ou prolongados. Isso condizia comigo? Sim, muito decididamente, nos últimos tempos. Por certo ninguém poderia descrever as minhas associaçÕes com Karen, Joyce ou mesmo Jan como íntimas, ou caracterizadas pelo respeito e pelo afecto. Cabiam mais no domínio das conveniências recíprocas - não tinha sido investida grande emoção genuína ou vinculação tanto da minha parte como da parte delas. Tinha que confessar que, para mim, elas eram mais vaginas ambulantes que pessoas inteiras, servindo não de um meio de aproximação, mas de um método de escape e de fuga. Sucedia o mesmo em relação aos meus pacientes. No decurso dos meses, a minha atitude para com eles tinha-se modificado. Cada caso passara a ser umórgão, uma doença específica, ou um tratamento. Desde Roso, tinha evitado todos os contactos próximos, intimidade e envolvimento. Até isso me parecia esquizóide, agora. Subitamente penetraram na minha mente pensamentos abjectos, doentios, envenenando-me, e apercebi-me de que teria de sair rapidamente daquela sala e afastar-me do hospital, ir para um sítio onde pudesse respirar. Dominando os meus pensamentos, concentrei-me na realidade diante de mim.

- Que tipo de tranquilizante tem estado a tomar? - apressei-me a perguntar.

- Librium, 25 mg - respondeu ele, um pouco confuso. Era evidente que eu o tinha interrompido.

- óptimo - disse eu. - Vou dar-lhe algum, mas recomendo que entre em contacto com o seu médico esta noite ou amanhã. Entretanto, vou receitar-lhe uma injecção de Librium, para obter um efeito imediato.

Antes que ele pudesse dizer alguma coisa mais, levantei-me rapidamente da marquesa, abri a porta e saí para a luz fluorescente e para o movimento das Urgências. Mecanicamente, preenchi uma receita para "Librium, 25 mg., sig: etiqueta T, P. E., QID, disp. 10 comp.", enquanto a minha mente revolvia a ideia absurda de o paciente se transformar em terapeuta. Isso, só por si, parecia-me um delírio quase esquizofrénico. Uma enfermeira tentou entregar-me outra ficha, mas afastei-a. Disse a outra enfermeira que desse ao paciente que se encontrava na sala de psiquiatria uma intramuscular de 50 mg de Librium, Encontrava-me apenas semiconsciente da actividade que me rodeava. Depois, antes de sair, achei que devia ir ver uma vez o esquizofrénico, para ter a certeza de que ele não era uma alucinação. Abri a porta. Lá estava ele, a olhar para mim.

Fechei a porta e comecei a percorrer o caminho que levava ao meu quarto. Eram bem verdadeiras todas aquelas coisas que tinha pensado a meu respeito, naqueles segundos depois de ele ter pronunciado o nome de Karen. Eu era um filho da mãe frio e indiferente, e estava cada vez pior. Tudo aquilo em que eu pensara o confirmava. o meu relacionamento inicial com Carno, por exemplo; tinha desaparecido sob o disfarce da inconveniência. Na realidade, eu tinha sido excessivamente egoísta e preguiçoso para lhe dar continuidade. Fazer surf era provavelmente a maior de todas as desculpas, especialmente porque, aparentemente, eu estava a servir-me do surf para cobrir e disfarçar a minha vida cada vez mais isolada. E a própria Karen - um relacionamento vazio e sem sentido, não havia dúvida. Os sentimentos que eu tinha vagamente experimentado, o vazio e um desejo de algo indefinido - tinha tentado em vão reprimi-los através dos encontros com Karen e com Joyce, e até mesmo com Jan. A maior parte de tudo isto tornou-se horrivelmente clara nos momentos em que estive sentado numa cadeira no meu quarto às escuras, procurando respostas.

Eu nem sempre tinha sido assim. Na faculdade era diferente, fazia amigos com facilidade e conservava-os. E aquele anseio de solidão que agora fazia parte de mim? Talvez o tivesse sentido um pouco no primeiro ano da faculdade, mas depois disso não. Em seguida tinha vindo a escola médica. As sementes da mudança teriam sido aí plantadas? Sim. Afinal, tinha sido durante a escola médica que os amigos se tinham afastado e as minhas atitudes e práticas para com as mulheres tinham mudado, por uma questão de necessidade, compelido pelas dificuldades económicas e pelo tempo limitado. Mas as sementes da mudança só tinham germinado durante o internato. Agora era sexual e socialmente pouco mais que um prostituto, embora actuasse mais no hospital que no mundo real. Que diferente tudo se tinha tornado. o telefone tocou, mas não lhe dei atenção. Despindo o fato branco, enfiei umas calças de ganga cor de areia e uma camisola preta de gola alta.

Que me tinha sucedido? Seria apenas o horário? Ou seria isso, aliado ao medo e à raiva que estava sempre dentro de mim? Seria basicamente o meu autodesprezo por não me manifestar quando achava que o sistema estava corrompido, por me deixar levar, não obstante, aguentando tudo? Estaria o meu cérebro de tal modo deformado pela exaustão que deixara de funcionar logicamente? Não sabia ao certo. Quanto mais pensava, mais confuso e deprimido me sentia. Confuso em relação às causas, não aos efeitos. Em perspectiva, os efeitos eram claros: tinha-me tornado um autêntico patife.

Subitamente, pensei em Nancy Shepard, e como a tinha afastado da minha mente, rejeitado as suas perguntas e as suas acusaçÕes. Na noite em que tínhamos discutido, ela estava a tentar dizer-me o que eu acabara por saber pelo meu terapeuta - o meu terapeuta, o esquizofrénico. Que triângulo, pensei: uma enfermeira dúplice, um esquizofrénico mal compensado e um interno chanfrado. Naney Shepard tinha-me chamado um comodista incrível, uma pústula egoísta que avançava para um ponto em que o amor se tornava impossível. E com razão. Que importância tinha que houvesse motivos para isso? Que não se tratasse de uma qualidade inata da minha personalidade, mas adquirida? Que eu tivesse sido encorajado, dia após dia, a evitar o genuíno envolvimento emocional, porque proceder assim era a única defesa natural que podia convocar para lidar com a raiva, a hostilidade e o cansaço? Que importância tinha que a vida de um interno fosse estupidamente monótona, ou que o sistema médico abusasse dele e o hostilizasse? Para uma Naney Shepard - para qualquer pessoa - só contava o resultado final da personalidade. Ela tinha-me aflorado com algumas verdades e eu tinha-a corrido a pontapés da minha vida por causa disso.

Estendido na cama, perguntei a mim mesmo o que deveria fazer agora. De momento, dormir. Quantas pontas teria ainda intactas? E Karen? Não sabia. Talvez voltasse a visitá-la, talvez não. Esperava que não, mas provavelmente fá-lo-ia.

 

A PARTIDA

o apêndice encontrava-se dentro de um recipiente de aço, onde eu o tinha colocado, um momento antes de voltar à mesa das operaçÕes. o cirurgião estava a acabar de coser no lugar onde havia estado o apêndice. A nossa concentração era tão intensa que nenhum de nósviu a mão que penetrara no campo operatório e começara a mover-se ao acaso, apalpando os intestinos carnudos e húmidos. A mão não tinha luva-estava absolutamente deslocada ali, no nosso campo operatório previamente esterilizado. Parecia uma coisa estranha, vinda de uma zona crepuscular, para além das coberturas cirúrgicas. o cirurgião e eu entreolhámo-nos, alarmados, e depois olhámos para Straus, o interno que acabara de chegar, mas Straus não conseguia afastar os olhos da mão. Os segundos seguintes passaram-se num remoinho de confusão mental, enquanto nós os três tentávamos ligar a mão intrusa a um dos membros da equipa operatória. Quando eu larguei a agulha e a linha e estendi a minha mão para retirar a outra da incisão, o cirurgião percebeu o que se passara.

- Pelo amor de Deus, George, o tipo tem a mão dentro da barriga! Acordado do seu sonho, George, o anestesista, espreitou por cima da protecção do éter e comentou:

- Essa é boa - de um modo absolutamente tranquilo, antes de voltar a sentar-se. Com uma destreza que negava o seu aparente torpor, injectou uma potente droga paralisadora dos músculos, a succinilcolina, no tubo da IV. Só então a mão do paciente se descontraiu e voltou a cair entre os lençóis cirúrgicos.

- Quando disse que ia manter o paciente com anestesialeve, nunca pensei que tivéssemos que lutar com ele - disse o médico.

Em vez de responder, George extraiu a agulha da succinilcolina da IV com a mão direita, enquanto a esquerda abria um pouco mais o óxido nitroso. Depois de algumas compressÕes forçadas do saco de ventilação, para introduzir mais depressa o óxido nitroso nos pulmÕes do paciente, George ergueu o olhar para se juntar à conversa.

- Sabe, George, essa sua anestesia epidural é muito divertida. Faz que se sinta de novo o desafio da cirurgia. Efectivamente, é mais ou menos como fazer uma apendicectomia no século XVI.

-Oh, não sei - replicou George. -Naqueles tempos, os pacientes não atacavam só com as mãos; também davam pontapés. Já repararam como os pés dele têm estado quietos? Temos feito bastantes progressos na anestesia.

Dentro deste tipo de investidas, tinha sido uma barragem bastante pesada e o cirurgião decidiu parar de fazer fogo. Em vez disso, dirigiu a sua atenção para salvar o que podia dentro do campo operatório. Enquanto ele segurava, por precaução, a incómoda mão do paciente, eu cobri a incisão com uma toalha esterilizada embebida em solução salina. Straus, a enfermeira e eu continuávamos ainda esterilizados, como determina a terminologia do bloco operatório.

Quebrar a esterilização do bloco operatório era um problema grave, porque aumentava grandemente a possibilidade de uma infecção pós-operatória, com uma sépsis estafilocócica. Há cirurgiÕes que são absolutamente maníacos quanto à esterilização - mas nunca, aparentemente, de uma maneira racional. Por exemplo, havia um professor da escola médica que exigia que os internos, residentes e estudantes se lavassem durante exactamente dez minutos. Quem tentasse entrar na sala de operaçÕes após uma esterilização de menos de dez minutos, tinha de recomeçar do princípio. Essas exigências não se estendiam, todavia, à sua própria esterilização que durava, num cálculo generoso, pouco mais de três ou quatro minutos. Aparentemente, os outros estavam mais contaminados, ou as bactérias dele eram menos tenazes.

A sua mania da esterilização foi responsável por um episódio memorável. o caso era interessante, envolvendo um ferimento de bala no pulmão direito, e os residentes e internos estavam em três filas em volta da mesa de operaçÕes. Um estudante de Medicina, cheio de recursos, que era bastante baixo, estava interessado em seguir todos os detalhes. Por isso empilhou alguns bancos, colocou-se sobre eles e, amparando-se ao candeeiro sobre a mesa, podia ter uma visão directa do campo operatório. Este engenhoso método resultou perfeitamente até que os óculos lhe escorregaram do nariz e foram cair, com um inocente plop mesmo dentro da incisão. Isto enervou de tal forma o professor que mandou o residente levar por diante a operação.

Felizmente, Gallagher, o cirurgião da apendicectomia, dominava as suas emoçÕes melhor que o professor da escola médica. Embora obviamente incomodado, continuava a funcionar.

- George, veja se consegue puxar esse braço para fora dos lençóis e segurá-lo firmemente - disse Gallagher, olhando para mim e revolvendo os olhos perante o absurdo de toda a cena, enquanto o anestesista se enfiava, de cabeça, por debaixo dos lençóis.

- E você, Straus, afaste-se da mesa - disse eu. o pobre Straus estava obviamente confuso. Os seus olhos voltavam-se ora para o cirurgião, sempre sem largar a mão do paciente, ora para a massa de lençóis que se moviam, revelando o avanço do anestesista ou a falta dele. - Junte as mãos, Straus, e conserve-as à altura do peito. - Straus recuou, grato pelas instruçÕes recebidas.

Com certa dificuldade, o anestesista conseguiu voltar a colocar a mão do paciente no local devido e tentou segurá-la contra a mesa. Depois, o cirurgião recuou e deixou que a enfermeira circulante lhe despisse a bata e retirasse as luvas, enquanto a enfermeira da esterilização saía da sua peanha com um conjunto novo devidamente esterilizado.

Que maneira de terminar o internato, pensei eu. Era a minha última operação marcada como interno - talvez a minha última actuação no bloco operatório como interno, embora estivesse de serviço nessa noite e me pudessem ser dadas algumas horas extra de cirurgia. De qualquer forma, aquele caso tinha sido um perfeito circo desde o início. Para começar, o paciente tomara o pequeno-almoço porque eu me tinha esquecido de escrever "sem alimentação oral" na ficha, e as enfermeiras, que deviam ter pensado um pouco, ao ver todas as outras instruçÕes pré-operatórias, tinham-no alimentado.

- Straus, ajude-me aqui com os lençóis esterilizados. - Inclinei-me sobre o paciente e estendi a ponta de um novo lençol esterilizado para o novo interno. Tínhamos um dia de sobreposição - era o primeiro dia dele e o meu último. Eu ainda era oficialmente um interno, embora estivesse a agir mais como residente desde a chegada de todos os internos. Pareciam um bom grupo, tão ávidos e inexperientes como nós tínhamos sido. Straus e eu tínhamos sido colocados juntos, para eu o ajudar a ambientar-se. Efectivamente estávamos ambos de serviço nessa noite.

- Segure-os bem alto - indiquei, erguendo a minha extremidade à altura dos olhos e deixando o rebordo cobrir o lençol antigo. - óptimo. Agora deixe a parte superior cair por cima da protecção do éter. - Ele pareceu perceber rapidamente, e entreguei-lhe o lençol inferior. Mas o cirurgião, já de bata e luvas novas, estava impaciente e tirou o lençol a Straus, ajudando-me a colocá-lo rapidamente e sem mais palavras.

Eram duas e quinze no grande relógio com o seu quadrante institucional bem conhecido. Custava-me a crer que, dentro de vinte e quatro horas, deixaria para trás o meu internato. Como o ano tinha passado rapidamente. No entanto, havia recordaçÕes que pareciam ter mais de um ano. Roso, por exemplo. Ele não tinha sido sempre uma parte de mim ? E...

- Que tal uma ajudazinha, Peters? - Gallagher já brandia um porta-agulha, do qual pendia um fino filamento. Mas não podia começar porque a toalha esterilizada que eu colocara sobre a incisão ainda estava no lugar.

- Pinça grande e uma bacia. - Estendi a mão para a enfermeira da esterilização e ela colocou uma pinça, com toda a força, sobre a palma da minha mão. Era um demónio na sala de operaçÕes. Aparentemente via muita televisão, porque nos batia com os instrumentos na mão ao ponto de fazer doer, e, quando enfiava as luvas, era como se estivesse a tentar fazê-las chegar às axilas. Com a juda da pinça, retirei a toalha esterilizada sem lhe tocar e deitei-a para a bacia. o conceito de esterilização na sala de operaçÕes confundia-me tanto que errava sempre por excesso. Não sabia se Gallagher achava que a toalha estava contaminada, por isso, pelo sim pelo não, não lhe toquei. Evidentemente, com o doente a meter na incisão a sua mão nua, nada fazia sentido em todo aquele processo.

Com a toalha fora do caminho, Gallagher voltou-se de novo para o apêndice. Por sorte, o doente escolhera uma boa altura para as suas pesquisas; o apêndice já tinha sido extraído. Gallagher tinha estado prestes a fazer o fecho da segunda camada, na altura da aparição da mão misteriosa.

George, o anestesista, conseguira uma fantástica recuperação. As coisas já tinham voltado à normalidade, do seu lado - o nível de som da sua Panasonic portátil competia com o do respirador automático que tinha sido trazido, depois da succinilcolina. Não se tratava de uma mera precaução. A succinilcolina é tão potente que o paciente se encontrava totalmente paralisado naquele momento, e a máquina estava a respirar por ele. Quando Gallagher deu o primeiro ponto, depois da luta, o ambiente geral regressou ao nível de antes da crise. Até fez uma pausa para escutar o relatório sobre as condiçÕes de surf que saía do rádio de George, por cima da protecção do éter - "Ala Moana três-quatro e calma". Mas a minha prancha já tinha sido vendida. Gallagher era um dos dois cirurgiÕes maisjovens que de vez em quando faziam surf. Tinha-o visto algumas vezes no "número 3" ao largo de Waikiki, e era, sem dúvida, melhor cirurgião do que surfista, pois era uma pessoa muito requintada. Tinha o hábito de pegar nos instrumentos cirúrgicos com o dedo mínimo espetado, como uma dama de um clube de floricultura pega na sua chávena de chá.

Foi assim que deu o ponto seguinte - afastando o dedinho tanto quanto possível dos dedos restantes e puxando habilmente o fio do porta-agulha para a minha mão que aguardava. Como eu era o primeiro assistente, competia-me atar. Straus segurava nos retractores. A primeira laçada foi formada e atada com extrema rapidez, como sucede quando um acto se torna reflexo. As paredes opostas do intestino grosso uniram-se sobre o coto invertido do apêndice. Enquanto eu esticava a sutura, Gallagher fingia não olhar, mas estava certo de que não me perdia de vista. Como nada disse, parti do princípio de que aprovara o grau de aperto que eu dera à primeira laçada. Depois tirou o porta-agulha carregado de novo das mãos da enfermeira, quando eu iniciei a segunda laçada.

- Ei, Straus, que tal levantar um pouco esses retractores para eu ver o meu nó ? - Aborreceu-me que Straus estivesse a olhar para o ar precisamente nessa altura. Esperei, passando a segunda laçada, enquanto ele olhava para a incisão e a levantava com a mão direita, abrindo-a mais. Isso possibilitou que o meu indicador fizesse descer o fio à altura da primeira laçada, onde a apertei com uma precisão que me pareceu perfeita. Outra laçada, com a outra mão a conduzir, de modo a obter um nó direito, não um nó escorregadio.

Cinco dessas suturas cobriram completamente a área do coto do apêndice e estávamos prontos para fechar.

- Straus, fez um trabalho excelente - disse Gallagher, piscando-me o olho, enquanto retirava os retractores das mãos do interno. - Não teria podido passar sem a sua ajuda. - Não sabendo ao certo se Gallagher estava ou não a gozar com ele, Straus decidiu sensatamente permanecer em silêncio. - Onde aprendeu a fazer assim a retracção, Straus?

- Ajudei a algumas operaçÕes na escola médica - disse ele, modestamente.

-Tinha a certeza disso - replicou Gallagher, com um sorriso subreptício a notar-se aos lados da máscara. -Peters, com ajuda do nosso jovem cirurgião, poderá fechar a incisão?

- Penso que sim, Dr. Gallagher.

Gallagher hesitou, olhando para a incisão.

- Pensando bem, é melhor eu ficar. Se o paciente sofrer uma infecção pós-operatória, quero que as culpas recaiam sobre um mínimo de pessoas... apenas sobre o George. George, está a ouvir?

Que foi? - George ergueu o olhar do seu relatório de anestesia, mas Gallagher ignorou-o e recuou, para lavar as mãos na bacia.

- Straus, como vai em atar nós?

- Não muito bem.

- Bom, está pronto para experimentar uns?

- Penso que sim.

- OK, quando chegarmos à pele, até.

As suturas faciais foram rapidamente feitas. Eu agora atava tão rapidamente quanto o cirurgião suturava, e a enfermeira tinha de apressar-se para nos acompanhar. A incisão sorridente foi-se fechando, à medida que eram feitas e atadas as suturas subcutâneas.

- OK, Straus, vejamos o que sabe fazer - disse Gallagher, depois de colocar a primeira sutura dérmica no centro da incisão e de ter puxado o fio de seda sobre o abdômen do paciente. A primeira sutura dérmica, no centro de uma incisão, é a mais difícil, porque, até serem feitas as outras, tem de suportar uma grande tensão e essa tensão dificulta a sua atadura com a tensão adequada. Gallagher piscou-me de novo o olho, quando Straus pegou nas duas pontas do fio. Straus nem sequer tinha as luvas bem esticadas e havia protuberâncias de borracha enrugada nas pontas dos seus dedos. No entanto, não ergueu o olhar - o que foi bom, porque eu sabia o que o esperava e o meu rosto estava contorcido num amplo sorriso de antecipação.

Pobre Straus. Quando fez a segunda laçada, estava a transpirar, e os rebordos da pele encontravam-se ainda a cerca de um centímetro de distância. Além disso, tinha os dedos todos enfeixados na sutura, de uma maneira que dava a impressão de estar a fazer um número cómico. Mas continuava a não olhar para cima, o que era um bom sinal. Havia de ser dos bons.

- Straus, conhece bem a teoria. As suturas dérmicas não devem ficar muito esticadas. - Gallagher riu-se. - Mas um centímetro de separação é levar as coisas longe de mais.

- Podem demorar o tempo que quiserem. o paciente vai ficar paralisado durante bastante tempo, com aquela succinilcolina - acrescentou George.

Cortei a sutura, arranquei-a e atirei-a para o chão. Gallagher aplicou outra, separando o fio da agulha com um movimento quase imperceptível da mão. Em silêncio, Straus pegou nas duas pontas e recomeçou a tentar.

- Não foi a primeira vez que vi uma mão nua numa incisão abdominal - disse eu, olhando para Gallagher. - Certa vez, na escola médica, estávamos uns oito estudantes na sala de operaçÕes, tentando ver um caso, e o cirurgião disse: "Apalpem esta massa. Digam-me o que pensam." Todos os residentes apalparam, acenando com a cabeça, e, de repente, apareceu uma mão sem luva, entre dois residentes, e apalpou também.

- Foi um dos estudantes? - perguntou o anestesista.

- Provavelmente. Nunca chegámos a saber ao certo, porque fomos todos corridos pelo residente chefe, que estava a tentar acalmar o cirurgião.

Straus continuava a lutar com a segunda sutura, largando as pontas, ficando com os dedos presos e inclinando-se para um lado e para o outro, contorcendo o corpo como um jogador que pretende apanhar a bola. Não sei como é que ele esperava que aquelas contorçÕes o ajudassem, mas reconhecia em mim a mesma tendência.

- o paciente teve uma infecção pós-operatória? - perguntou Gallagher.

- Ná. Safou-se sem complicaçÕes - disse eu.

- Esperemos que este siga pelo mesmo caminho. Sem falar, desemaranhei o fio de seda das mãos de Gallagher e fiz rapidamente um nó, puxando-o para o lado, para o afastar da sutura. Straus manteve obstinadamente a cabeça baixa enquanto Gallagher fazia outra sutura.

- Que tal esta, meu prometedor cirurgião? - disse Gallagher, esticando os braços com as mãos invertidas e os dedos entrelaçados. Uma ou duas articulaçÕes estalaram.

Aquele Straus era realmente um tipo silencioso; nem um som provinha dele enquanto se concentrava na sutura. Na verdade, eu já estava a ficar cansado dojogo, de estar ali avê-lo às voltas. Eram quase três horas e tinha muito que fazer, últimas coisas a meter nas malas e outros pormenores. Depois de um olhar tranquilizador para Gallagher, voltei a desatar a sutura de Straus e fiz um rápido nó direito, unindo os rebordos da pele sem qualquer tensão.

- Bom, penso que vocês os dois podem acabar isso. Não se esqueçam, só quero um pedaço de adesivo fino sobre o penso. - Dizendo isto, Gallagher dirigiu-se à porta, arrancou as luvas e desapareceu. Straus ergueu o olhar pela primeira vez desde que começara a atar as suturas.

- Prefere atar ou coser? - perguntei, fitando o seu rosto suado e tenso. Na verdade, não conseguia decidir o que seria pior, se ele atar ou ele coser. Só queria ir-me embora dali.

- Eu coso - disse ele, estendendo a mão para a enfermeira que, como habitualmente, lhe bateu com toda a força com o porta-agulha na palma da mão. o som agudo do metal sobre a borracha esticada ecoou em volta das paredes nuas da sala de operaçÕes. Straus deu praticamente um salto, assustado com o impacte. Depois, cambaleou e, recompondo-se, com outra olhadela rápida para mim, inclinou-se sobre a incisão e mergulhou a agulha na pele no lado superior da incisão.

- Straus.

- Que foi? - Inclinou o rosto para cima, conservando-se curvado.

- Segure a agulha de modo que a ponta fique perpendicular à pele e depois mova o pulso... por outras palavras, siga a curva da agulha.

Ele tentou mas, quando fez rolar o pulso, rodou o porta-agulha sem ter em conta a distância entre o suporte e a ponta da agulha curva. o resultado foi um leve estalido metálico quando a agulha se partiu mesmo rente à pele. A mão dele ficou paralisada, enquanto os seus olhos, cheios de descrença e ansiedade, iam da ponta partida da agulha para mim.

"Estou lixado", pensei.

- OK, Straus, não mexa em nada. - o "Big Ben" dizia que passavam cinco minutos das três.

As pontas de agulha - na verdade até as agulhas inteiras - eram quase impossíveis de encontrar quando se perdiam. Felizmente, eu conseguia ver a parte superior desta mesmo ao nível da pele. - Pinça mosquito. - Sem tirar os olhos da ponta quase invisível, estendi a mão para a enfermeira. Zás! A força do delicado instrumento enviou uma onda de choque pelo meu braço acima, fazendo vibrar o campo de visão. A agulha partida desapareceu. Olhei, furioso, para a enfermeira. Era uma mulher enorme, praticamente esférica, cujo peso era uns dez quilos superior ao meu, e o seu olhar, naquele momento, continha uma malícia tão inesperada, que declinei a oportunidade de dizer qualquer coisa.

Em vez disso, concentrei-me na delicada pinça mosquito, que de qualquer forma ainda estava inteira, na minha mão. Colocando o indicador esquerdo na incisão e empurrando levemente por baixo da agulha partida, encontrei alguma resistência antes de tentar agarrar o pedaço de aço. No entanto, a primeira tentativa apenas conseguiu empurrar o raio da coisa um pouco mais para dentro. Nessa altura tomei a decisão de terminar eu a sutura e a atadura. A segunda tentativa foi melhor sucedida; retirando a pinça, fiquei aliviado ao ver a ponta brilhante da agulha firmemente segura na sua extremidade, e, com o cuidado de um relojoeiro, depositei-a num canto do tabuleiro dos instrumentos, comparando o pedaço com a sua base, para ter a certeza absoluta de que não faltava qualquer segmento. Satisfeito, pedi uma sutura, evitando olhar para Straus.

A pele curvou-se por baixo da agulha perpendicular, quando aumentei a pressão, até que, com um estalido, a agulha penetrou na pele. Fazendo rodar o pulso num arco cujo centro se desviou para eliminar a torção na ponta da agulha - a força que Straus não tinha tido em conta - trouxe a ponta da agulha até à superfície inferior da pele, do lado oposto da incisão. Contra a contrapressão exercida pelos meus dedos indicador e médio da mão esquerda, torci de maneira decisiva a mão direita, e a ponta da agulha irrompeu - Puxando a agulha com o suporte, completei o ponto. Desliguei o fio, levantando o porta-agulha de modo que o orifício da agulha apontasse para cima; a tensão na extremidade do fio que atravessava a pele arrancou o fio do instrumento.

Seguindo a rotina aceite, larguei o porta-agulha vazio na área coberta entre as pernas do paciente. A enfermeira recuperá-lo-ia automaticamente e enfiá-lo-ia de novo. Entretanto, peguei na extremidade do fio, fiz um nó com quatro laçadas e termiinei com as duas pontas esticadas. Só então olhei para Straus.

- Que tal cortar, Straus? - perguntei. Ele moveu-se, sem responder, cortou o fio e continuou a olhar para a incisão. Apliquei mais dez suturas de forma semelhante, rapidamente e sem conversas. Depois de cortar um pedaço de adesivo e o colocar sobre a incisão fechada, voltei-me para Straus.

- Por que não escreve as ordens pós-operatórias? Tem de começar por alguma coisa. Eu depois vejo-as, quando me mudar. E depois vou apresentá-lo aos seus doentes, OK?

- OK - disse ele finalmente, numa voz sem timbre.

- Além disso - prossegui - vou mostrar-lhe o que sei quanto a suturar e atar, se quiser. - Straus não falou.

Que chato, pensei. Se elejá está cansado, o ano vai ser muito, muito longo para ele. Mas o problema era dele, e a sua atitude não me incomodou por muito tempo; tinha mais que fazer. Deitando as luvas no saco junto da porta, saí do bloco operatório pela última vez como interno, sem a mínima sensação de nostalgia. Na verdade, sentia-me eufórico. Sentia que tinha cumprido a minha pena e estava pronto para ser residente. Muito pronto, mesmo. A prática da Medicina estava finalmente à vista. Enquanto caminhava pelo corredor do bloco operatório, perguntava a mim mesmo se deveria comprar um Mercedes ou um Porsche. Sempre desejara um Porsche, mas, vendo bem, era um carro pouco prático. Um Cadillac? Nunca teria um Cadillac. Que automóvel obsceno! - embora fosse um dos favoritos dos cirurgiÕes. Hércules tinha um, e o Supercaro também. De qualquer forma, o Mercedes atraía-me mais.

A ementa chamava-lhes croquetes de vitela, mas, para nós, eram uns montinhos misteriosos; o antídoto era o ketchup. Como na maior parte das cafetarias dos hospitais, a comida exigia uma excelente imaginação e boa vontade da parte de quem a encomendava. Se a ementa dizia vitela, convinha que nos agarrássemos tenazmente à noção de vitela, apesar das provas em contrário, quanto a gosto, textura e aspecto. Convinha também suprimir qualquer conhecimento das práticas imperfeitas dos matadouros, estar com muita fome e ser abençoado com uma boa conversa.

Para ser justo, penso que a cozinha da cafetaria do Havai era cordon bleu, em comparação com as que tinha conhecido durante a escola médica em Nova Iorque. Todavia, mesmo no Havai, o serviço alimentar recorria ocasionalmente a misteriosos pastéis de carne moída e, como se quisesse ajudar-me a festejar, escolheu essa noite para servir a vitela, uma das minhas peças favoritas para conversar. Além disso, eu ainda estava de serviço. Mesmo assim, a refeição foi como um banquete. Era a minha última noite como interno, e, no entanto, já estava praticamente afastado do campo de batalha. Straus estaria indubitavelmente na primeira linha de defesa se e quando os sarilhos começassem.

o clima da sala de jantar era agradável. Finos veios de luz solar penetravam através das fendas e em volta dos estores das janelas voltadas para sudoeste. Partículas de poeira dançavam nos raios dourados do sol, como bactérias sob um microscópio. Só um médico se podia lembrar desta comparação. Um dos inconvenientes do treino técnico concentrado é que a nossa mente acaba por reduzir tudo a uma experiência técnica. A poeira poderia também lembrar peixes num oceano ou aves no céu. Mas, a mim, lembrava bactérias numa amostra de urina para análise.

Estávamos reunidos, num grupo, em volta de uma das grandes mesas perto da janela. Straus encontrava-se à minha esquerda, depois de Jan, que estava sentada ao meu lado. Num contexto social, longe dos terrores do bloco operatório, Straus era tudo menos uma pessoa silenciosa e retraída, como eu o julgara. Na verdade, era uma pessoa extremamente animada, faladora e, poder-se-ia dizer, litigiosa. Parecia discordar de todas as minhas afirmaçÕes, quer se tratasse de automóveis, de remédios ou de medicina.

Como frequentemente sucedia, a conversa tinha-se desviado inexoravelmente para os cuidados médicos nos Estados Unidos. Havia mais seis ou sete pessoas em volta da mesa, além de Straus, de Jan e de mim, mas, por qualquer modo, tinham decidido, no início da refeição, apenas escutar em vez de participar, e comiam a sua comida e bebiam o seu café em silêncio, deixando-nos falar. A sua única participação consistia numa ou noutra risada incrédula, acompanhada por um revirar de olhos e um abanar de cabeça, para demonstrar que o que havia sido dito era ridículo. Era óbvio que não pretendiam acrescentar algo de concreto ou relevante. Comecei a pô-los de parte, concentrando-me em Straus, que prosseguia animadamente.

A única maneira por que os cuidados médicos podem ser equitativamente distribuídos de modo que toda a gente goze os benefícios é restruturar todo o sistema de aplicação - dizia Straus, alternadamente erguendo a palma da mão da mesa e deixando-a cair, para sublinhar o ponto que pretendia fazer valer.

- Quer dizer, deitar para o lixo o actual sistema de médicos, hospitais, etc., e começar tudo de novo? - perguntei eu.

- Isso mesmo. Acabar com tudo. Enfrentemos a situação. A Medicina está atrasada na maneira como organiza e distribui os cuidados médicos. Pense em quanto a tecnologia mudou durante os últimos quinze ou vinte anos. E a Medicina mudou? Não. Claro, temos mais conhecimentos científicos, mas isso não ajuda o homem da rua. Os manda-chuvas ficam com os benefícios do teste de iso-enzinas recém-desenvolvido, apanhando sempre tudo o que surge de novo. E o pobre do ghetto? Esse não apanha nada. Sabia que quarenta milhÕes de americanos nunca foram ao médico?

Straus não esperou que eu respondesse, continuando ao ataque, aproximando-se mais da mesa. Era bom que ele não tivesse parado, porque quarenta milhÕes parecia-me gente de mais, e eu ia interrogá-lo a esse respeito. Mas que importância tinha o número em si, quando se sabia que muitos americanos estavam praticamente a passar fome? De que serviam os cuidados médicos sofisticados, quando as pessoas não tinham alimentos suficientes? Mas o valor estatístico perdeu-se na conversa, enquanto Straus prosseguia.

- o que nós somos é um bando de médicos vendedores de rua, a empurrar carrinhos na era espacial. E a culpa é dos médicos!

- Espere aí um pouco - disse eu. Não podia deixar passar aquela generalização. - As coisas talvez não sejam as melhores possíveis, mas há muitas colheres metidas na sopa.

- Certo, as colheres gananciosas dos ricos. Por certo, uma vez que os cuidados médicos levam sete por cento do produto nacional bruto... ou seja, cerca de setenta biliÕes de dólares por ano... é natural que haja muita gente interessada. Mas não deixa de ser verdade que, nos Estados Unidos, os médicos fizeram o sistema e o dirigem. Dirigem os hospitais, as escolas médicas e a maior parte da investigação. E, o que é mais importante, os médicos controlam o abastecimento de médicos.

- Então e as companhias de seguros e os fabricantes de produtos farmacêuticos?

- As companhias de seguros? Bom, não têm as mãos muito limpas, mas, de qualquer forma, não interferem no relacionamento médico-paciente... suponho que por receio da AMA (Associação Médica Americana). Quero eu dizer, se uma companhia forçasse a nota, a AMA poderia concebivelmente recusar-se a tratar os pacientes dessa companhia.

- Oh, seja razoável, Straus. - Procurei apoio e não obtive qualquer compromisso, excepto de Jan, que abanou vigorosamente a cabeça.

- Então acha que a AMA não ia fazer uma coisa dessas? - perguntou Straus.

- Não posso imaginá-lo sequer.

- Ho-ho, meu amigo. Está ao corrente da gloriosa história da AMA?

- A que se refere em especial? Sei algumas coisas acerca da organização. - Na verdade estava longe de ser uma autoridade sobre o assunto, não só porque ele tinha sido ignorado na escola médica, como também porque... não estava muito interessado nele.

- Que quer dizer com algumas coisas acerca da AMA? É membro?

- Bom, mais ou menos. Como sabe, os internos e os residentes podem filiar-se, com uma taxa reduzida. Foi o que eu fiz. Mas não fiz nada. Quero eu dizer que não fui a reuniÕes, nem votei, nem participei de alguma maneira.

- Aí tem, esse é um dos problemas. É membro. Faz parte da estatística deles. Eles gostam de pensar que somos todos membros, sendo alguns mais activos que os outros. A AMA afirma que representa cerca de duzentos mil médicos do país, mas sabe uma coisa?

- O quê? - Strauss dava nitidamente a impressão de saber do que estava a falar.

- Os números deles são falseados. Em muitos estados, está determinado que, para conseguir privilégios hospitalares, o médico terá de se inscrever na sociedade médica local, e, desse modo, torna-se automática e obrigatoriamente membro da AMA. E acha que algum desses médicos se interessa ou pensa sequer no que se passa com a AMA? Bom, pode ter a certeza de que não. Dizem para si próprios, tenho mais que fazer; não tenho tempo para isso. Ou talvez tenham a sensação, embora não a examinem muito cuidadosamente, de que a AMA é política suja. E nisso têm toda a razão. Mas, graças à sua apatia, a nossa doce e velha AMA apresenta-se em Washington e afirma que fala em nome de duzentos mil médicos, que nunca contradizem essa afirmação. Para tornar as coisas piores, não só fala por eles como usa o dinheiro deles. Sabia que o orçamento da AMA é superior a vinte e cinco milhÕes de dólares por ano, pagos em quotas pelos médicos que dizem não ter tempo para investigar o que está a passar-se?

- OK, OK. - Tinha que o interromper; estava a ficar excessivamente excitado. Dois dos residentes do outro lado da mesa puseram-se de pé e saíram, largando os guardanapos nas bandejas. Já passava das seis e eu tinha que fazer as malas. Mas não podia mandar Straus embora. Naquele momento estava inclinado para mim, praticamente à frente de Jan, que teve de se endireitar na cadeira para lhe dar espaço. Podia ver os olhos dele. Era um tipo magro e intenso, e os seus olhos brilhavam.

- Straus, eu não vou defender a AMA, mas é do conhecimento comum que ela tirou a arte da Medicina do caos em que se encontrava no século XIX. Antes do relatório Flexner, por volta de 1910, o treino médico era uma anedota, e foi a AMA que se deu ao trabalho de alterar isso.

- Sim, não há dúvida de que o fizeram. Mas, deixe que lhe pergunte, com que fins?

- Que quer dizer com isso? Para rectificar uma situação lamentável.

- Talvez, mas também para os seus próprios fins.

- Que quer dizer?

- Que eles reduziram o número de escolas médicas e as melhoraram... com isso concordo. Mas ao mesmo tempo passaram a controlar a aprovação das escolas médicas. o que, traduzido, significa que eles controlam o abastecimento de médicos e o seu curriculum. Por outras palavras, eles determinaram o percurso social que os médicos em potência têm de percorrer, e conseguiram fazer que os estudantes em potência se moldem perfeitamente ao sistema.

- Straus, você é um romântico. Tem a certeza de que quer iniciar o internato?

- Quero ser médico, e, se houvesse outra maneira de o ser, utilizá-la-ia. Mas, para mudar de assunto, diga-me uma coisa, Peters, está consciente do peso da história que recai sobre si ao ingressar na profissão médica na América?

- Onde quer chegar? - Os dois últimos médicos que tinham estado silenciosos à nossa frente, arrastaram as cadeiras e foram-se embora. Apenas ficámos eu, Straus e Jan, inclinados sobre uma mesa cheia de pratos sujos e bandejas desarrumadas.

Straus prosseguiu, impávido.

- A AMA tem um record quase impecável de nunca apoiar, e muito menos iniciar, reformas sociais progressivas. Por exemplo, a AMA foi contra o Serviço de Saúde Pública dar injecçÕes antidiftéricas e criar clínicas para doenças venéreas. E foi contra a Segurança Social, o seguro de saúde voluntário e a clínica de grupos. Efectivamente, na década de 30, a AMA classificou os grupos médicos como bolchevistas!

Tartamudeei, tentando dizer qualquer coisa, mas não consegui.

- Mais alguns pontos. Sabia que a AMA lutou contra os chefes hospitalares assalariados a tempo inteiro, e, mais recentemente, até contra os empréstimos federais a juro baixo aos estudantes médicos?

- o quê? - Eu tinha começado a deixar de ouvir Straus quando ele iniciara a sua lista de queixas, até que as palavras "empréstimos" e "estudantes" se ligaram na minha cabeça. Ainda devia bastante dinheiro dos meus tempos da escola médica. - Eles foram contra os empréstimos aos estudantes de Medicina?

- Pode crer que sim.

- Porquê? - Aquilo realmente surpreendia-me.

- Sabe Deus! Penso que isso abria a Medicina aos não ricos. Mas um dos aspectos mais patéticos desta história é que, depois de essas reformas terem sido aceites pela sociedade e a AMA ter sido obrigada a aceitá-las, a AMA tenta, posteriormente, que elas lhe sejam creditadas. Faz-nos lembrar osjornais de Orwell no 1984. Todo este cenário miserável tem de acabar. Penso que o governo terá de o fazer.

- OK, Straus. Está a tentar dizer-me que, depois de ter passado por todos estes anos de estudo, e todos os anos que ainda lhe faltam, estará disposto a trabalhar para o governo federal? Parece ser isso que está a sugerir.

- Não necessariamente. Só estou a dizer que os médicos conseguiram o controlo e lixaram tudo. A sua responsabilidade é muito mais ampla do que os seus consultórios solitários, tratando uma sucessão de pacientes individuais. Têm de ter em consideração a totalidade dos cuidados de saúde, incluindo o tratamento do homem do Harlem e da famílía nos Apalaches... é tão importante tratá-los como tratar um presidente do Conselho de Administração do Harkness Pavilion. Se os médicos falharem de novo, o governo terá de tomar o controlo e ordenar à profissão médica que faça o que é necessário. Afinal, todos os cidadãos têm direito a cuidados de saúde adequados.

- Isso é fácil de dizer, mas não estou assim tão seguro. Afinal, quando alguém se sente incomodado por uma dor de cabeça às 4:30 da manhã, e faz sair um médico da cama porque tem direito aos cuidados de saúde, o que se passa quanto aos direitos desse médico? Até que ponto uma pessoa se pode sobrepor aos direitos de outra? Não há dúvida de que o médico também tem os seus direitos.

"E, além disso, se os rins de uma pessoa deixam de funcionar, mas todos os rins artificiais estão ocupados, quem é que o paciente processa? A sociedade não pode ter um rim artificial à esquina, à espera de cada cidadão. A questão é que os cuidados de saúde são uma indústria de serviços prestados por pessoas altamente treinadas e equipamento sofisticado, e ambas essas coisas estão sempre em falta. Não se podem prometer cuidados de saúde a todos quando os recursos são limitados.

- Não vou discutir esse ponto, Peters. o governo federal definiu claramente os cuidados de saúde como um direito dos seus cidadÕes, ao aprovar as leis do Medicare e do Medicaid.

- Bom, Straus, gostaria de voltar a falar consigo quando terminar o seu internato. Mas, até agora, foi apenas um estudante e, concordemos num ponto, se as coisas corressem mal, podia pôr-se de parte e deixar a responsabilidade aos outros. Gostaria de saber se sentirá o mesmo quando este ano tiver terminado.

Jan tinha estado a escutar em silêncio, mais ou menos do meu lado, pensava eu, Nessa altura interveio.

- Poderá haver problemas com a distribuição dos cuidados de saúde, mas não há dúvida de que temos a melhor Medicina do mundo, Straus. Toda a gente sabe disso.

- Ridículo - retorquiu Straus. - Repare na mortalidade infantil. Os Estados Unidos estão em décimo quarto lugar na prevenção da mortalidade infantil, em décimo oitavo na duração prevista da vida dos indivíduos do sexo masculino, e em décimo segundo...

- Espere aí, Straus - disse eu, recusando-me a escutar mais estatísticas.

Só em décimo quarto na mortalidade infantil? - perguntou Jan. Straus tinha-a impressionado.

- Jan, minha querida, não te deixes enganar pelas estatísticas. Pode-se provar quase tudo com estatísticas, se tratarmos com amostras diferentes da população. Pode ser uma espécie de divisão matemática arbitrária. Straus, o facto de sermos décimos quartos ou seja o que for em mortalidade infantil tem provavelmente a ver com o facto de termos registos tão exactos no nosso país. Muitos países registam os nascimentos nos hospitais. Todos os outros ficam por registar.

- São muito bons a fazer registos na Suécia - replicou Straus com um sorriso.

- Bom, então há diferentes maneiras de fazer o registo consoante a altura da gravidez em que a criança nasce... se se tratou de um nado morto, de um morto in utero ou de um caso em que a criança morreu quando era viável. Faz uma grande diferença o ponto onde um determinado país traça uma linha na recolha de estatísticas sobre a mortalidade infantil.

Straus ergueu as mãos, com as palmas voltadas para mim, e baixou-as lentamente, enquanto prosseguia.

- Também não vou discutir os detalhes técnicos das estatísticas. Mas subsiste o facto de os Estados Unidos não estarem no topo da lista, E décimo quarto é uma posição bastante baixa quando se pensa no lugar onde estamos na maior parte dos outros serviços técnicos. Francamente, a Suécia faz que nos sintamos bastante mal.

- A Suécia não tem os nossos problemas - disse eu vivamente. - Têm uma população relativamente pequena e homogénea, ao passo que os Estados Unidos são uma sociedade pluralista. Quer dizer que um estado com uma Previdência Social socialista como a Suécia é a resposta para todos os males sociais e a solução para nós?

- Parece ser a melhor para a mortalidade infantil, e os cuidados odontológicos das crianças e a longevidade. Mas não estou a dizer que os Estados Unidos devessem adoptar o sistema sueco de governo ou de cuidados de saúde. Só estou a tentar dizer que há lugares onde os cuidados de saúde em geral são melhores que aqui. o que, traduzido, significa que é possível ter melhores cuidados de saúde, e nós temos de fazer que isso suceda.

- Bom, não se cria uma indústria de serviços como a Medicina a partir do vácuo, nem se pode legislar abruptamente. As mudanças na estrutura social só ocorrem através de mudanças nas atitudes das pessoas. Estas mudanças são lentas e estão relacionadas com as forças educacionais que delas se ocupam. As pessoas estão habituadas à actual relação médico-paciente. Não creio que queiram modificá-la.

- Pelo amor de Deus, Peters, há quarenta milhÕes de pessoas que nunca viram um médico! Como podem ter uma atitude? Homem, isso é uma desculpa vazia. Mas é típica. Você e os seus camaradas conseguem sempre arranjar um milhão de pequenas razÕes irrelevantes segundo as quais o sistema presente não deverá ser mudado. É por isso que toda a estrutura tem de ser destruída. Caso contrário, vamos pondo paninhos quentes, com compromissos como o Medicare ou o Medicaid.

- Então, até mesmo o Medicare e o Medicaid são maus. Straus, você é um autêntico terrorista. Vê tudo negro do seu ponto de vista. Eu acho que a Medicare e a Medicaid são boas leis. o único problema que consigo ver nelas é que lixaram o sistema de ensino permitindo que muitos dos pacientes que nós tratávamos tivessem o seu médico particular, que não deixa os internos e os residentes ocuparem-se do caso. o resultado foi termos perdido uma larga população de pacientes com quem podíamos aprender.

- Bom, isso é bastante importante - disse Straus. - E é um indicativo da solução do Penso Rápido para os gigantescos problemas sociais. Todavia, o maior problema do Medicare e do Medicaid é que puseram mais dinheiro em jogo, criando maior procura. Se a procura aumentar e o fornecimento se mantiver igual, os preços sobem.

- Claro, claro. - Eu começava a ficar um pouco irritado. - o que pretende é outra burocracia monolítica do governo, com milhÕes de armários de arquivo e máquinas de escrever. Mas isso custa muito dinheiro. o custo dos cuidados de saúde talvez subisse, e não descesse, com essa burocracia. E suponho que está a ver todos os médicos a receber um salário do governo. Isso havia de ser interessante! A sociedade iria sentir um belo choque quando descobrisse de quanto dinheiro precisaria para pagar a esses médicos. o retorno financeiro iria subir, quando o médico aprendesse rapidamente a comparar-se comum piloto aéreo sindicalizado, que pode ganhar cerca de cinquenta mil dólares por ano num mês de sessenta e cinco horas. Quantos médicos seriam precisos para manter o sistema de cuidados de saúde se cada un deles trabalhasse sessenta e cinco horas por mês? Além de todos os benefícios da reforma...

- Isso é uma...

- Deixe-me acabar, Straus. Pôr todos os médicos a receber salário teria outros efeitos mais subtis. Quanto se recebe um salário independentemente do que se faça, isso tem um efeito sobre a nossa motivação, em situaçÕes marginais. Quando nos arrastamos para fora da cama às 4 horas da madrugada, queremos receber qualquer coisa por isso, algo mais que a satisfação que sentimos. Na maior parte dos casos, não nos dá satisfação nenhuna. Pelo contrário.

"Afinal, o homem do lixo, o piloto, toda a gente recebe horas extraordinárias. Pois bem, o médico também as vai querer, se não, não se arrasta para fora da cama. Deixe-me que ponha as coisas de outra forma. Quando se trabalha por um salário, tem-se um horário específico. Chegam as cinco horas e o médico assalariado lava as mãos e vai para casa. Por acaso até sei que, despido de toda a mitologia, um médico é um ser humano bastante vulgar.

- Posso falar agora? - perguntou Straus.

- Faça o favor.

- Várias coisas. Número um: um serviço nacional de saúde não é a única resposta. Está a tirar conclusÕes precipitadas. Os planos de saúde pré-pagos, por exemplo, funcionam bem, aumentando ainda a produtividade dos médicos individuais por diversas razÕes. o papel do governo poderia ser simplesmente garantir que toda a gente está coberta, de uma maneira ou de outra, com, pelo menos, um pacote de cuidados de saúde básicos de boa qualidade. E número dois: não concordo com as suas opiniÕes acerca do médico que está a dormir. Ao mesmo tempo, acredito que o médico terá de ser pago em relação a uma escala racional que o compare favoravelmente com os pilotos das linhas aéreas, ou com os canalizadores, ou seja com quem for, tendo em atenção a duração e investimento do seu treino, bem como as longas horas do seu trabalho. Mas, acima de tudo, acredito que o prazer profissional de praticar medicina fará que o médico ultrapasse os incómodos do seu dia - especialmente se for aliviado do fardo da papelada e de outras tarefas fúteis que ocupam vinte e cinco por cento do tempo do médico que trabalha a solo. Além disso...

- Dr. Peters, Dr. Peters. - o meu nome soou subitamente nos altifalantes perto do tecto e ecoou por toda a sala. Straus continuou a falar enquanto eu me dirigia ao telefone a um canto.

- Além disso, na clínica de grupo - prosseguiu Straus - há mais possibilidades de revisão. Os médicos podem vigiar-se entre si e prestar conselhos e críticas quando for necessário. E fichas. As fichas dos pacientes seriam muito melhores, porque seriam organizadas e completas, quer o doente fosse visto por um médico de clínica geral ou por um especialista. - Straus estava praticamente a gritar quando cheguei junto do telefone e liguei para a telefonista. Depois, graças a Deus, calou-se.

A telefonista pôs-me em comunicação com o andar da cirurgia particular e depois tive de esperar enquanto procuravam uma enfermeira.

- Dr. Peters.

- Diga.

- Temos uma doente do Dr. Moda que está com dificuldades respiratórias. Ele quer que o interno a veja. Além disso, preciso de uma receita para um laxante para uma das doentes do Dr. Henry.

- Qual é a situação do problema respiratório?

- Não muito má. Ela sente-se bem e está sentada.

- O Dr. Straus vai já para lá.

- Obrigada.

 

Voltando para trás, reparei que toda a cafetaria estava vazia, só restando nós três. o sol tinha desaparecido e a iluminação da sala passara de uma luz viva que contrastava fortemente com a sombra para um brilho suave e difuso. Era um cenário pacífico, que se tornava ainda mais calmo graças à alegria que eu sentia de poder mandar Straus ver a senhora com o problema respiratório e ocupar-me eu do caso de obstipação.

- Peters.

- Diga. - A voz do outro lado do fio parecia-me conhecida. - Fala Straus. Era de calcular. Parece estar muito ocupado. Não consigo evitar. Toda a gente está a ficar irritada - disse ele. - Olhei para o relógio. Dez e meia.

- Bom, qual é a última crise? - perguntei.

- Morreu uma velhota. Com uns 85 anos. Uma doente particular da Enfermaria F, no segundo andar.

Houve uma pausa. Eu não falei, aguardando que ele me desse mais pormenores do problema. Ouvia-se a respiração de Straus do outro lado da linha, mas, aparentemente, ele nada mais tinha a acrescentar. Acabei por falar eu.

- OK, portanto morreu uma velhota. E qual é o problema?

- Não há propriamente um problema. Mas importa-se de vir cá ver?

- Oiça lá, Straus, ela está morta, certo?

- Certo.

- Bom, e que é que espera que eu faça? Um milagre? Houve outro silêncio breve.

- Pensei que quisesse vê-la.

- Muitíssimo obrigado, meu amigo. Mas acho que não.

- Peters.

- Ainda cá estou.

- Que é que se faz com a família e a papelada?

- Pergunte às enfermeiras. Elas já estão batidas nisso. Só terá que assinar uns papéis, avisar a família e tratar da autópsia.

- Uma autópsia? - Mostrou-se genuinamente surpreendido.

- Claro, uma autópsia.

- Pensa que o médico particular quer uma autópsia?

- Bom, tem de querer, de certeza. Se não quiser, terá que o dizer. Mas devem fazer-se autópsias de todas as pessoas que morrem aqui. Talvez não seja fácil, mas veja se convence a família.

- Está bem, vou tentar, mas não garanto nada. Não sei se serei capaz de transmitir grande entusiasmo por uma autópsia.

- Tenho a certeza de que consegue resolver isso. Ciao.

- Ciao.

Ele desligou e eu também, pensando uma vez mais na mulher amarela na sala das autópsias da escola médica. Jan interrompeu-me.

- Alguma coisa errada? - perguntou.

- Não. Morreu uma pessoa e o Straus quer saber o que há-de fazer.

- Vais até ao hospital?

- Estás a gozar comigo? Jan estava a ajudar-me a fazer as malas. Na verdade, estava apenas a fazer-me companhia. Não precisávamos de uma desculpa para estar juntos; tínhamos passado bastante tempo juntos, ultimamente. Tanto, na verdade, que a minha partida iminente lançava uma sombra sobre a noite, embora tivéssemos deixado de falar desse assunto.

O ponto em questão era saber se eu a amava suficientemente - palavras dela - para lhe pedir que me seguisse para o hospital onde seria residente. Eu tinha-o implicado diversas vezes, mas algo me impedia de lho pedir directamente. o que eu tentara dizer-lhe era que queria que fosse ela a tomar a decisão, sem a minha interferência directa. Não queria ter a responsabilidade de a forçar a vir comigo. Era assim que eu via a situação. E se não nos entendêssemos depois de eu terminar o período como residente? Eu forçara-a a deixar o Havai, e sentir-me-ia indubitavelmente preso pela responsabilidade, e não queria que isso sucedesse. Queria que ela fosse, isso sim, mas por vontade própria.

Jan e eu dávamo-nos bem. Fora um alívio construir um relacionamento importante com ela, após a desgraça de Karen Christie e o seu noivo chanfrado. Embora eu ainda tivesse ido a casa de Karen algumas vezes depois da minha confrontação com o namorado dela, acabei por me aperceber de que não podia continuar a andar com ela. Por isso parei.

O telefone tocou de novo.

- Fala da Morgue - respondi, numa voz alta e animada.

- Peters, é você?

- Ao seu "cervix", meu amigo.

- Por momentos assustou-me. Não me faça isso - disse Straus.

- Está bem, vou tentar ser mais educado. Que se passa?

- Recebi uma chamada da U. C. I. e há lá um doente com dificuldades respiratórias. A enfermeira disse que provavelmente era um edema pulmonar. Parece que o médico particular está com receio de uma falha cardíaca.

- Há lá umas enfermeiras bestiais, hein, Straus? Até fazem diagnósticos. Isso é que é serviço de primeira. Concorda com elas?

- Ainda não vi o doente. Vou agora para lá. Resolvi telefonar-lhe para o caso de querer seguir a acção desde o princípio.

- Straus, a sua amabilidade aquece-me o coração. Mas por que não vai até lá, vê o que se passa, e me telefona depois? OK?

- OK. Telefono-lhe logo.

- óptimo. - Jan estava absorvida a tentar meter os meus livros de Medicina em diversas malas. Era obviamente um problema de complexidade, que exigia uma solução igualmente drástica. Tinha que decidir quais os livros que ia deixar - uma tragédia terrível para um médico. Há muito quem aprecie os livros, mas os médicos adoram-nos e comunicam com eles de uma maneira quase sensual. Se um médico for realista, apercebe-se rapidamente do facto de que nunca estará à altura da sua biblioteca. Consequentemente, rodeia-se de livros, procurando avidamente motivos para comprar um novo compêndio, quer venha a lê-lo ou não. Os livros são o colchão de segurança de um médico, e era o que sucedia comigo.

A simples ideia de me separar de alguns dos meus livros parecia-me sacrílega - até mesmo aquele compêndio de psiquiatria, ou aquele outro de urologia. A urologia não era, de modo algum, a minha especialidade preferida. Perguntava a mim mesmo, muitas vezes, como poderia alguém passar o resto da sua vida a tratar do sistema hidráulico- embora a especialidade não parecesse ser assim tão má, visto os urologistas parecerem pessoas felizes, em geral. Tinham, indiscutivelmente, o melhor repertório de piadas obscenas.

- Não vais conseguir meter aí todos esses livros - disse Jan. - Vamos tirá-los todos para fora e recomeçar. Vamos tentar pô-los uns em cima dos outros, em vez de os deitarmos sobre a roupa. - Mostrei-lhe o que pretendia, equilibrando aproximadamente vinte quilos do Manual Completo de Psiquiatria a um canto da mala. Nessa altura, o telefone tocou outra vez. Era Straus; a sua voz transmitia uma sensação de urgência.

- Peters?

- Que foi agora, Straus?

- Lembra-se do doente de que lhe falei há pouco, o que as enfermeiras diziam que tinha um edema pulmonar?

- O que sucedeu ?

- Bom, acho que tem mesmo um edema pulmonar. Estou a ouvir ralos borbulhantes com o estetoscópio em ambos os pulmÕes, quase até aos vértices.

- OK, Straus. Acalme-se. Já telefonou ao residente de serviço?

- Já.

- Que é que ele disse?

- Disse que lhe telefonasse a si.

- Oh, bestial. - Hesitei, coligindo os pensamentos. - É um doente particular?

É. Do Dr. Narru, ou qualquer coisa parecida. É um caso de aprendizagem? Não sei. Então informe-se, Straus. - Brinquei com a campânula do estetoscópio enquanto Straus desapareceu da linha. Jan estava a fazer progressos com os livros; começava a parecer que iria conseguir guardá-los todos.

- Sim, é um caso de aprendizagem, Peters - disse Straus.

- Telefonou ao Dr. Narru?

- Claro. Foi a primeira coisa que fiz.

- Que é que ele disse?

- Disse que fosse fazendo o necessário, que ele vinha cá depois para ver o que se passava, quando acabasse as visitas da noite.

Com o indicador, puxei o relógio de forma a poder ver o mostrador. Onze e cinco. Ou Narru estava a gozar com Straus, ou fazia rondas muito tardias - mesmo muito tardias. De certo modo, achava isso impossível.

- Jan, por que não metes o manual cirúrgico do Christopher antes desses livros pequenos? Só um minuto, Straus. O Christopher é esse encarnado grande. Esse mesmo. - Ia dar mesmo à justa. - Muito bem, Straus, que tipo de cirurgia sofreu o tipo?

- Não tenho acerteza. Uma cirurgia abdominal qualquer. Tem um penso no abdómen.

- Ele tem febre?

- Febre? Não sei.

- Está a tomar digitalina?

- Não sei. Escute, eu só o auscultei.

- Escutou o coração?

- Mais ou menos.

-Tem um ritmo tipo galope?

- Não tenho a certeza - respondeu ele, evasivamente. Santo Deus, aquele tipo interessava-se mesmo, pensei eu sarcasticamente.

- Straus - disse. - Quero que examine o paciente, tendo em vista três diagnósticos possíveis: edema pulmonar, que ele provavelmente tem, embolia pulmonar e pneumonia. Leia a ficha e descubra a história cardíaca dele. Entretanto, faça uma radiografia ao tórax, uma contagem de sangue completa, uma análise à urina, um ECG e tudo o mais que lhe apetecer. Ele está prostrado?

- Não, está muito alerta.

- OK, então dê-lhe 10 mg de morfina e ponha-o a oxigénio com uma máscara. Vigie-o cuidadosamente quando lhe der o oxigénio. Depois de ter tudo organizado, telefone-me outra vez.

Ia desligar, quando me lembrei de outra coisa.

- Só outra coisa. Se ele nunca tomou digitalina... pelo menos durante as duas últimas semanas... dê-lhe 1 mg de digitoxina IV. Mas lentamente. Ainda aí está, Straus?

- Estou - disse ele.

- Provavelmente devíamos dar-lhe também um diurético, para o livrar desse excesso de fluido. Experimente cerca de 25 mg de ácido etacrínico. - Sabia que aquilo era suficientemente poderoso para fazer urinar uma pedra. Poderoso - o meu medo interior dos diuréticos fez-me pensar duas vezes e mudei de ideias.

- Pensando melhor, aguente o diurético até termos a certeza do edema pulmonar. Se ele tiver pneumonia, não vai adiantar muito. - A senhora idosa com o cancro, que eu tinha morto com o diurético, perseguiu-me por um momento; ela tinha morrido de pneumonia. Finalmente, desliguei.

- Hei. Jan, formidável. - Ela conseguira introduzir todos os livros excepto um pequeno. O volume que restava era um daqueles que costumamos deitar fora, um daqueles livros oferecidos por uma companhia de produtos farmacêuticos, na esperança de convencer alguém de que um dos seus medicamentos é a resposta para todos os males patológicos. Nunca o tinha lido, nem tencionava fazê-lo. No entanto, enfiei-o numa das minhas malas já cheias.

Com excepção dos utensílios para a barba e outros artigos de toillete, as roupas que iria usar no dia seguinte e a bata e as calças brancas sujas que usava naquele momento, todas as minhas tralhas estavam emaladas. Os transportadores viriam buscar as malas grandes na manhã seguinte; as malas de nião iriam comigo, juntamente com alguma bagagem de mão que incluía um grande pedaço de coral. Finalmente, estava pronto. Podia descontrair-me e gozar o que restava do meu ano no Havai.

Jan escolheu esse momento para largar a sua bomba e informar-me abruptamente que ia para casa. Precisamente quando poderíamos esquecer tudo e ficar juntos, ela decidiu que tinha de ir-se embora. Foi, obviamente, uma grande surpresa, visto que eu tinha partido do princípio de que dormiríamos juntos, como habitualmente.

- Jan, pelo amor de Deus, por que tens de ir-te embora? Fica, por favor. É a minha última noite.

- Precisas de uma boa noite de sono antes da viagem - disse ela, de modo evasivo.

- Essa agora! - Olhei para o seu rosto bronzeado. Ela fitou-me, com a cabeça levemente inclinada para a frente e para um lado, num jeito coquete e sabido, sugerindo que a sua súbita reserva se baseava em complicadas razÕes femininas. Mas eu não estava muito certo disso. Podia compreender o seu desejo de se ir embora, se ele derivasse de um certo desdém pela rotina artificial da última noite, de não querer reduzir o acto de fazermos amor a uma espécie de ritual para celebrar uma era passada. A proximidade de que normalmente gozávamos não teria provavelmente existido, de qualquer forma, visto que estávamos ambos preocupados com outros pensamentos.

Deu-me um beijo leve, disse que nos veríamos na manhã seguinte e flutuou sem ruído para a porta. Aconteceu tudo com excessiva rapidez para me permitir uma digestão mental.

Pensei fugazmente em ir até à U. C. I, embora não o quisesse verdadeiramente fazer, mas acabei por encolher os ombros perante a ideia, pensando na racionalização que Straus teria de fazer sozinho.

Por isso, decidi tomar um duche - e mal tinha começado a tomá-lo quando a campainha do telefone soou. A única maneira que eu tinha de afogar o som era colocando a cabeça mesmo por baixo do chuveiro. Não devia ter deixado a porta da casa de banho aberta. Mas o hábito ganhou. Ao quarto toque, corri para o meu quarto e peguei no auscultador, enquanto um charco aos meus pés começava rapidamente a aumentar em periferia.

- Peters, é o Straus.

- Que surpresa!

- Sabe uma coisa? Boas notícias!

- Não me importava nada de receber algumas.

- O paciente do edema pulmonar de que lhe falei pertence ao serviço médico, não ao cirúrgico, e o interno do serviço médico assumiu o controlo.

- Então e a operação dele? - perguntei, muito surpreendido.

- Não tinha sido operado. Pelo menos recentemente. O penso estava a cobrir uma colostomia que ele tinha feito há uns anos.

- Parabéns, Straus. O seu primeiro êxito clínico como interno. Mas por que não fica por lá na mesma? A menos que, naturalmente, tenha qualquer outra coisa.

- Sinto muito, não posso ficar. Fui chamado para uma cirurgia. É a extracção de uma rótula. Um acidente de automóvel, julgo eu. A menos que queira ir você. Nesse caso, fico por aqui.

Uma patelectomia, um caso ortopédico! Estava a tornar-se bem claro para mim quanto iria apreciar ser um residente em vez de um interno. Imagine-se, poder mandar alguém fazer uma patelectomia à meia-noite! Era a felicidade pura.

- Não o privo desse prazer, Straus. Vá lá esterilizar-se. - A cirurgia ortopédica apavorava-me. Antes da escola médica, eu tinha a ilusão de que a cirurgia era uma ciência exacta e delicada. Depois tinha vindo o holocausto da minha primeira operação ortopédica, onde assisti aos mais crus processos de pregar pregos, brocar e partir ossos que eu poderia imaginar. Não só isso - a violência tinha sido acompanhada de comentários no género de "Faça aqui uma radiografia para eu ver para onde foi o raio do prego"; e, depois de observar a radiografia "Diabo, falhei por completo o fragmento da anca. Vamos meter outro, mas desta vez vou apontar ao umbigo".

Tais experiências tinham rapidamente eliminado a cirurgia ortopédica como especialidade para mim. A neurocirurgia tinha sido posta de parte pouco depois, quando vi o melhor neurocirurgião de Nova Iorque parar durante um caso e espreitar para o buraco que tinha feito no cérebro do paciente, perguntando "Que será aquela coisa cinzenta-clara?". Ninguém respondeu - afinal ele estava a falar consigo mesmo - mas foi o fim da neurocirurgia para mim. Se ele não sabia onde estava ao fim de vinte anos, não havia esperanças de eu chegar alguma vez a saber.

Com todos os livros médicos emalados, não tinha que ler antes de adormecer. Depois lembrei-me dovolume dafirma de produtos farmacêuticos que tinha metido na mala de mão. Fui buscá-lo e recostei-me na fresca almofada branca. Muito apropriadamente, tratava-se de A Anatomia do Sono. Voltando-o, fiquei a saber que pretendia vender um comprimido para dormir. Abri o volume ao acaso e comecei a ler. Com tanta coisa na cabeça, consegui acabar uma página inteira antes que os meus olhos começassem a fechar-se.

O toque agudo do telefone soou antes mesmo que eu tivesse tempo de iniciar um sonho decente. Com o pânico habitual, agarrei no auscultador como se a minha vida dependesse disso. Quando a telefonista me pôs em contacto com a enfermeira que me tinha chamado, já estava bem orientado quanto à hora, local e pessoa.

- Dr. Peters, fala a Enfermeira Cranston da F-2. Desculpe acordá-lo, mas Mrs. Kimble caiu da cama. Importa-se de vir cá vê-la, se faz favor?

O mostrador luminoso do meu despertador revelou-me que tinha dormido cerca de uma hora.

- Mrs. Cranston, esta noite temos um novo interno. Chama-se Straus. Que tal telefonar-lhe para ele resolver esse problema?

- A telefonista já tentou - disse ela. - Mas o Dr. Straus está numa cirurgia.

- Merda.

- Como disse, Doutor?

- A paciente está bem? - eu estava a demorar a situação.

- Está, parece estar bem. Vem, Doutor? - Resmunguei qualquer coisa que implicava a afirmativa e desliguei. Era nítido que ainda não tinha deixado o internato. Até conseguir tirar o meu corpo do alcance deles, haveria sempre mais pacientes a cair da cama. Ficar ali a pensar no assunto foi um erro. Voltei a adormecer.

Quando o telefone tocou de novo, reagi com o pânico habitual, perguntando a mim mesmo quanto tempo tinha estado a dormir. A telefonista esclareceu-me - vinte minutos, disse ela - e, experiente como era, poupou-me o esforço de me desculpar, sugerindo que eu tivesse adormecido. Afinal, acontecia a muita gente, mesmo em casos de emergência. Se eu não pusesse imediatamente os pés no chão frio, as possibilidades de me levantar decaíam rapidamente. Durante algum tempo, o meu truque tinha consistido em colocar o telefone a alguns metros da cama, fora do alcance da mão, para ter que sair do ninho quente antes de o atender. Todavia, com tantos pedidos de laxantes que eu podia resolver na horizontal, acabei por abolir esse recurso e voltei a colocar o telefone perto da cama.

Depois da segunda chamada, levantei-me logo e vesti-me rapidamente. Com um pouco de sorte, poderia regressar à cama dentro de vinte minutos. O meu record estava ainda em dezassete minutos.

As luzes fluorescentes do corredor, as portas do elevador, as estrelas no céu - na realidade, toda a viagem até à Enfermaria F escapou ao registo no meu cérebro. Só comecei a funcionar como uma pessoa consciente quando me vi frente a frente com Mrs. Kimble.

- Como está, Mrs. Kimble? - perguntei, tentando avaliar a sua idade à fraca luz do candeeiro da mesa-de-cabeceira. Calculei que tivesse 55 anos aproximadamente. Estava bem arranjada e penteada e deu-me a impressão de ser uma pessoa especialmente meticulosa. O seu cabelo estava puxado para trás num rolo apertado, com fios grisalhos.

- Sinto-me muito mal, Doutor, muito mal mesmo - disse ela.

- Onde é que se magoou? Bateu com a cabeça quando caiu?

- Santo Deus, não. Nem sequer me magoei. Nem cheguei a cair, a falar verdade. Sentei-me.

- Não caiu da cama?

- Não, de maneira nenhuma. Tinha voltado da casa de banho e estava acocorada ali. - Apontou para o chão, aos meus pés. - Estava a tentar tirar a minha agenda da mesa-de-cabeceira quando perdi o equilíbrio.

- Bom, então agora tente dormir, Mrs. Kimble.

- Sr. Doutor.

- Diga. - Olhei por cima do ombro, pois já me tinha voltado em direcção à porta.

- Importa-se de me dar qualquer coisa para os meus intestinos? Há cinco dias que não faço nada decente. Olhe, veja.

Com grande esforço, estendeu a mão e abriu a gaveta da mesa-de-cabeceira, retirando um livro de notas preto de dez centímetros. Teve de se estender tanto para retirar o livro, que receei que acabasse por cair, afinal. Aproximei-me da cama e estendi os braços por debaixo do corpo dela.

- Veja aqui, Sr. Doutor. - Abriu o livrinho e percorreu com o dedo uma lista de dias cuidadosamente anotada. A cada dia seguia-se um gráfico e a descrição completa da sua actividade intestinal: forma, cor e esforço despendido. Abruptamente, o seu dedo deteve-se num dos dias.

- Veja, há cinco dias foi a última evacuação normal que tive. E mesmo essa não foi completamente normal, porque não era castanha. Era verde-azeitona e deste tamanho. - Ergueu a mão esquerda, definindo com o polegar e o indicador um círculo de um centímetro de diâmetro.

Que poderia eu dizer-lhe que revelasse competência e interesse, e, o que era mais importante, me libertasse imediatamente? Olhei da agenda para a cara dela, procurando uma resposta sem a encontrar. Passei a bola.

- Tenho a certeza de que o seu médico particular saberá muito melhor que eu o que lhe convém, Mrs. Kimble. E agora, tente dormir um pouco.

De regresso ao posto das enfermeiras, escrevi qualquer coisa na sua ficha sobre a alegada queda; era preciso escrever sempre qualquer coisa depois de tais "quedas". Depois iniciei a viagem de regresso para o leito que me aguardava.

- Bom, Straus - ruminei. - Que valeria este pequeno episódio segundo o teu novo sistema? Prazer profissional, uma treta!

A minha fé nos aviÕes não é ilimitada. Na verdade, não acredito verdadeiramente no princípio da aeronáutica. Mas tenho de confessar que os motores Pratt and Whitney pareciam robustos e dignos de confiança. Ouvia-os ronronar suavemente enquanto faziam o seu trabalho, e o enorme bojo do 747 elevou-se do solo, deixando para trás o Havai e o meu internato. Estava sentado junto da janela, do lado esquerdo do aparelho, junto de um casal de meia-idade que vestia camisas havaianas floridas iguais. A minha bagagem de mão tinha constituído um problema - onde metê-la toda - e eu levava no colo o meu pedaço de coral, que não tinha um feitio natural que lhe permitisse caber facilmente num moderno transporte público.

As despedidas finais tinham sido bastante moderadas, afinal. No aeroporto, Jan tinha-me "leiado" quatro vezes, como se diz em terminologia havaiana. Dois dos leis (Colar de flores havaiano) eram feitos de pekaki e o seu aroma delicado flutuava no ar à minha volta. Não se falara mais de Jan nem eu do futuro. Escrever-nos-íamos.

Sentia emoçÕes mistas em relação à minha partida do Havai, mas nenhuma ambivalência quanto ao facto de o meu internato ter terminado. Mas já estava a notar em mim uma curiosa tendência para recordar e realçar os bons momentos, o que tinha havido de divertido, e para me esquecer do sofrimento e do esforço que me dominara durante esse tempo. O corpo tem uma memória curta.

Quando o avião se inclinou para a esquerda, olhei pela janela para a ilha de Oahu pela última vez. A sua beleza era inegável. As montanhas escarpadas projectavam-se para o céu, cobertas por uma vegetação aveludada e rodeadas por um brilhante mar azul-escuro. Comprimindo o nariz contra o vidro, consegui ver, lá em baixo, o sítio onde as ondas se quebravam contra o recife exterior de Waikiki, formando longas repercussÕes de espuma branca. Iria sentir a sua falta.

Pensei em Straus, que iniciava o internato, com o ano inteiro à sua frente. Naquele momento, estava a passar por uma das experiências por que eu passara. A vida repetia-se. Straus e Hércules - poderia ser uma grande confrontação. Imagine que as arestas vivas do idealismo de Straus em breve estariam embotadas, depois de quatro ou cinco colecistectomias com Hércules.

Como uma grande ave em movimento lento, o avião colocou-se numa posição estável, a caminho da Califórnia. A única prova de que se encontrava em movimento era uma vibração quase imperceptível. A ilha já tinha desaparecido, tendo sido substituída por um horizonte indistinto, onde a ampla extensão do oceano se misturava com o céu. Pensei em Mrs. Takura, no bebé nascido dentro do VW, em Roso, e de novo em Straus. Não concordava com tudo o que Straus tinha dito, mas ele tinha-me feito aperceber-me do pouco que sabia, do pouco que eu me interessava pelo sistema, excepto, naturalmente, quando me afectava directamente. Imagine-se, a AMA a tentar bloquear o meu empréstimo federal de baixo juro para entrar na escola médica! Impulsivamente, inclinei-me um pouco para a direita, agarrado ao coral, e tirei a carteira do bolso. Recostando-me de novo, procurei entre os meus cartÕes e licenças até que o encontrei. "O médico cujo nome e assinatura figuram neste cartão é membro efectivo da Associação Médica Americana." As palavras eram impressionantes. Sugeriam uma adesão e um compromisso para com uma instituição poderosa. Tinha trabalhado durante cinco longos anos e conseguira lá chegar.

Nessa altura senti a primeira sacudidela, e depois outra, mais forte, mais nítida, e o letreiro acendeu-se "Senhores passageiros, é favor porem os cintos. Esperamos alguma turbulência local", disse tranquilizadoramente a hospedeira.

Continuei ali sentado,junto do casal das camisas floridas, agarrado ao meu pedaço de coral e dobrando nervosamente o meu cartão da AMA para trás e para diante, para trás e para diante, até que ele se partiu pela dobra e ficou dividido em dois.

 

A ÚLTIMA PALAVRA

O Dr. Peters fez a sua acidentada viagem da escola médica, passando pelo internato, até ao ponto em que a sociedade o reconheceu como um médico completo. Poderá solicitar, e receber, sem dúvida, uma licença para praticar Medicina e Cirurgia em qualquer estado da União. Isso assinalará que se encontra pronto para assumir todas as responsabilidades que uma tal licença confere.

Graças ao seu treino rigoroso, pode-se partir do princípio de que se encontra academicamente preparado. Mas estará o Dr. Peters psicologicamente equipado para praticar a Medicina que uma moderna sociedade humana tem o direito de esperar?

Os médicos da "velha guarda" dirão que sim. Para um grande número deles, as aberraçÕes da personalidade são apenas a garantia de que as "partidas" a que foi sujeito durante o internato o iniciaram numa fraternidade. o internato foi duro para eles, e, por isso, deveria ser igualmente duro para a geração seguinte. Endurece-os - aqueles jovens são moles de mais. Esta lógica não poderá sugerir que os médicos mais velhos estarão provavelmente a sofrer dos mesmos problemas psicológicos que o Dr. Peters, e pelos mesmos motivos? E que sucede ao paciente durante estes exercícios juvenis?

A posição superior tradicional - ou antes, antiquada - do médico na escala mundial de valores sociais e, nos Estados Unidos, o respeito corrente pelas realizaçÕes tecnológicas, levou a uma atitude de crescente veneração pelo médico. Como corolário directo desta adoração por tudo o que diz respeito à Medicina, tornou-se impensável pôr em questão o controlo da profissão médica sobre a educação do médico em embrião. As escolas médicas e os programas de treino médico têm estado relativamente livres para fazer o que querem. Ninguém pergunta porquê.

Todavia, nem sempre foi assim. o treino dos médicos nos Estados Unidos foi, certa vez, seriamente posto em causa, no início do século, por um grupo extramédico que foi nomeado para estudar a preparação médica americana. Esse grupo, cujo ponto de referência é o relatório Flexner, expôs impiedosamente as abomináveis condiçÕes em que ela então se verificava. A maior parte das escolas médicas, dizia, eram simples fábricas de diplomas, a que faltavam por completo os controlos académicos. Indirectamente, o relatório acusava a própria profissão médica de fazer mau uso da carta branca que lhe era dada por um público em adoração.

Este documento teve grande alcance. Iniciou uma melhoria gradual e implacável dos padrÕes académicos das escolas médicas. Mas os seus efeitos não foram totalmente benéficos. Por um lado, o relatório possibilitou que a profissão médica - na pessoa da Associação Médica Americana - apertasse mais o seu jugo sobre a educação médica, reduzindo o número de escolas médicas e instalaçÕes de treino - uma medida que se tornava necessária, alegou, para elevar a qualidade da instrução.

E a melhoria e padronização do curriculum que o relatório instigou fez que o pêndulo recaísse sobre a inclusão de mais cursos científicos e laboratoriais no estudo da Medicina. Mas o pêndulo não parou de girar até chegar ao ponto de invadir a medicina clínica. (Alguém se deteve para pensar no paciente?) Um dos resultados é que os actuais licenciados em Medicina estão amplamente equipados com as mais recentes hipóteses sobre as mais bizarras doenças e raros processos metabólicos, mas, muitas vezes, não conhecem os simples factos clínicos necessários para tratar uma constipação vulgar ou para lidar humanamente com um moribundo que se encontra para além da simples ajuda médica.

Cresce na América a sensação de que poderá ser necessário outro "relatório Flexner" para trazer reformas ao treino médico. Nunca houve um exame objectivo da educação psicológica dos médicos. Qualquer análise madura, honesta e directa teria que a considerar com a mesma seriedade que a prestada à excelência académica.

O público mal se apercebe de que alguns médicos são dados a certos comportamentos peculiares - as birras infantis dos cirurgiÕes, por exemplo. É mais provável que a maior parte das pessoas se aperceba de que, quando um estudante de Medicina entra na escola médica, a sua cabeça está geralmente cheia de visÕes idealistas sobre o alívio do sofrimento, a ajuda aos pobres, o fazer bem pela sociedade. Todavia, poucos repararam na discrepância entre o número de idealistas que entra e a minúscula percentagem dos que saem do outro lado com os seus ideais ainda intactos. E quase ninguém relaciona os ideais perdidos e as extravagâncias absurdas dos cirurgiÕes. Ou os ideais perdidos e a preocupação de muitos médicos recém-formados, no final do seu longo treino, com "a reclamação do seu direito" a ter um grupo financeira e socialmente compensador de doentes, e de comprar casas e carros luxuosos, para se compensar das privaçÕes dos seus anos de preparação.

Obviamente, a possibilidade de os ideais de um médico poderem mudar entre a escola médica e a prática médica é diametralmente oposta àquilo em que as pessoas querem acreditar - e que lhes é apresentado pelos meios de comunicação. Os filmes, a televisão e os romances de médicos têm tendência para reforçar o mito da inerente saúde psicológica e bondade dos médicos - especialmente dos médicos jovens.

Voltamos, assim, à credibilidade do Dr. Peters como representante dos internos em geral. Mais uma vez declaro a minha crença em que ele é representativo. Não é um dos poucos indivíduos aberrantes. É o típico jovem que começou com objectivos relativamente idealistas. É o típico estudante e interno, cuja personalidade sofre gradualmente certas modificaçÕes que o transformam na pessoa lamurienta, queixosa e egoísta que viemos a conhecer - compreensível, mas não admirável.

A noção de que o mundo médico está cheio de Dr. Peters custa a engolir. Se, além disso, se puder aceitar que quase toda a gente que passa pela escola médica sofre semelhantes lesÕes na sua personalidade, poderá surgir a suspeita de que o defeito é do sistema, não das pessoas que a ele se sujeitam. E isso, por sua vez, não sugerirá que o sistema precisa de ser estudado pelos seus efeitos psicológicos e alterado num sentido capaz de alimentar, em vez de extinguir, o idealismo e a sensibilidade dos estudantes?

A mudança é inevitável, e é uma esperança dos homens e mulheres de boa vontade que ela se faça para melhor - melhor para a sociedade e para cada indivíduo. A reforma voluntária é uma forma mais segura e mais saudável de mudança que as medidas explosivas tomadas em consequência dos abusos. É tempo de analisar e reformar as nossas escolas médicas e os centros médicos onde os internos e os residentes são treinados, se a Medicina - como ciência e como arte - quiser ir ao encontro das necessidades dos nossos tempos. Mesmo a análise mais interessada e profunda será imperfeita. Mesmo os remédios mais honestamente utilizados não serão inteiramente bem sucedidos. Mas, se não conseguirmos atingir a perfeição, podemos, pelo menos, aproximar-nos dela. No mínimo, teremos tido o bom senso e a coragem de tentar.

 

                                                                                Robin Cook  

 

                      

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