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Ilha de Paquetá, Rio de Janeiro.
Sanatório para tuberculosos terminais ‘Cidade das Sombras!’.
15 de abril de 1926; 09h00min.
Os três homens carregavam mais lenha do que o normal para aquecer o grande forno. Fazia frio naquele final de abril na Ilha de Paquetá. Enquanto caminhavam, cada um a sua maneira se extasiava com a bela construção à sua frente, o ‘Hotel Cidade das sombras!’.
Construído em 1900 pelo renomado arquiteto holandês Dizzan Schvarstein, nascido em Amsterdã, Holanda, Países Baixos, e que um dia a passeio a Ilha de Paquetá, apaixonou-se pelo local, o Morro do Castelo, lá ergueu sua mais emblemática obra Stad van Schaduwen!, ou ‘Cidade das Sombras!’ em holandês, o hotel era pintado de azul escuro, com muitos andares, 200 quartos, um grande hall de lustres de cristal Baccarat e papéis de parede Juan Zuber, trazidos da fantástica fábrica na comuna francesa de Rixheim.
Havia uma grande lareira de pedra, pedida pela então viva, Melindra, sua filha de onze anos, que diziam, tinha problemas mentais, e gostava de paredes de pedra. E além daquele, também oito salões; para baile, para jogos de cartas, para se fumar.
Do lado de fora, duas piscinas descobertas, quatro quadras diversas. Do lado de dentro, uma super piscina com prainha aquecida a carvão na cobertura, três restaurantes, e a cozinha mais vasta, 150 m2, no alto do morro.
O Hotel ‘Cidade das Sombras!’ havia sido tão fantástico, que já na balsa, no abandonar da Baía de Guanabara, era visto. Agora transformado num sanatório, emblemático ficava, sob o nevoeiro de abril, quando o outono no seu auge, criava o maior fog conhecido.
A Ilha de Paquetá havia sido ocupada anteriormente pelos índios Tamoios, o viajante francês André Thevet registrou a descoberta da ilha em dezembro de 1555 e o Rei Henrique II da França reconheceu a ilha
em 1556, até ser escolhida pela família real portuguesa para passar férias. E foi no período colonial e imperial, que o próprio José Bonifácio de Andrade e Silva, tutor de Dom Pedro II, lá tinha uma casa.
Mas do hotel holandês de 1900, só lembranças; agora lá, um sanatório sombrio abrigava doentes terminais de tuberculose ou peste cinzenta, doença infectocontagiosa causada por uma bactéria que afetava principalmente
os pulmões.
Com escassos financiamentos, mão-de-obra mínima, remédios que sempre terminavam antes do tempo, e no seu auge com três pessoas morrendo por dia, o sanatório esvaziava cada vez mais rápido. Porque era para
queimar os doentes terminais, que a lenha subia no lombo dos três homens, Bão, Licínio e Francisco.
— Bão? — chamou a Dra. Betje Becker na porta do salão principal, um grande espaço de pé-direito triplo e caro piso de mármore róseo, em meio a cadeiras descascadas outrora filetadas a ouro, dispostas em
paredes revestidas de tecido há muito desbotadas, defronte à grande lareira de pedra que raras vezes era acesa.
Sebastião ou Bão, homem negro, de costas arqueadas e olhos esbugalhados, mandou os outros dois pararem. Licínio e Francisco obedeceram, e a lenha desceu dos ombros até o chão úmido e gelado.
— A Dotôra estrangeira quer o quê? — Bão perguntou.
— Sabe que aquela molher no pode ficar no room number 666, no sabe? Que aquela molher usa o number para chamar o inferno?
Licínio e Francisco tiveram mais medo do tom da voz grossa e imponente da doutora holandesa do que das palavras que lhe escaparam do entendimento. E a Dra. Betje, apesar de mulher de pequena estatura,
tinha fortes peitoris, pernas largas, cabelos tão avermelhados quanto o Sol da manhã, trançados na cabeça larga. Era tão assustadora quanto competente. Havia sido levada no final do ano 1915 pelo próprio
arquiteto Dizzan Schvarstein para lá trabalhar, quando o diagnóstico de tuberculose o atingiu, atingiu a todos no hotel, hóspedes e funcionários, qualquer um que lá chegasse. Em seu leito de morte, Dizzan
exigiu que o suntuoso hotel se transformasse naquele centro de horrores, o Sanatório Stad von Schaduwen!, já conhecido por sua tradução, ‘Cidade das Sombras!’; um sanatório para doentes terminais.
Bão ainda estava parado lá, a olhando falar, porque aquela frase, ele também não conseguiu traduzir por completo. Sabia apenas que a mulher do quarto de número 666 não era tuberculosa, era uma ricaça lá
trancafiada pela família que almejava sua fortuna. Por isso não podia ser contaminada com os terminais.
Mas seus ajudantes paquetaenses mal sabiam ler e escrever se confundiam quase sempre nas triagens, e quase sempre ela era misturada aos outros. Também não se podia esperar muito nem brigar com os funcionários
já que mediante tal situação que há 11 anos se arrastava, conseguir empregados estava difícil. Então, nada a fazer, se não obedecê-la, a única mulher e única sobrevivente dos anos dourados de Dizzan e
seu sonho de arquitetura.
— Vamô continuar a carregar lenha, Bão? — perguntou Licínio, homem baixinho, de andar manco, nascido de orelhas pontudas feito arpão, logo que ela se afastou irritada pelo silêncio dos três homens.
— Vamô Licínio. Metade nos fornos da cozinha, metade no aquecedor...
— Mas e a mulhé do 666? A gente vai continuar a fazê o que ela manda? — foi a vez de Francisco, homem simples, de gordura saliente, mas coração bom.
— Calado, Francisco, ou a Dotôra escuta. Vamô fazê sim. E você... — apontou para Licínio. —, leva as pernas de barata que ela pediu ontem, Licínio.
— Cruz credo! Cruz credo! — se benzeu. — Mas vô levá, porque o dinheiro é maço. Porque não quero que ela me espeta de novu.
— Calado! — voltou Bão a ralhar com ele. — Num quero que ela mande ele de volta.
— Nem eu... Cruz-credo! — Licínio voltou a se benzer.
— É... Cruz-credo! — Francisco se benzeu também. — Quem já foi não deve volta, né?
— É. Num deve...
— Por isso tomo cachaça. Pra num acorda as três horas.
— Vamô! Vamô! Parem de falar... Agora descarregue a lenha, Licínio. E vamô queimar os últimos japa no forno.
Licínio e Francisco se olharam, mas Bão já estava irritado de mais para relevar tais olhares.
Só que os olhares prosseguiam ali.
— Que foi agora?
— Os olhos puxados, sei lá, tavam se debatendo ainda.
— O Dotô Wezlicki explicou. Eles são terminais. Quando não dá, não dá. A gente tem que abreviá.
— Mas porque sempre aquela hora? — falou um.
— É... sempre as três... — falou outro.
— Não discutam! Vamô!
— Mas somo assassino, né? — questionou Licínio se benzendo.
— Calado! Obedeça a ordem e só!
Licínio e Francisco se olharam novamente. Não pensavam assim, mas fizeram o que lhes foi mandado. Lenha nos fornos da cozinha para fazer a sopa, para aquecer os pés, para cremar os corpos.
O resto para as caldeiras, no porão do sanatório.
Francisco foi o encarregado de levá-las, abastecer com calor o sanatório que se esvaziava cada vez mais rápido por causa da doença. E haviam feito três finais-de-semana que o cemitério na propriedade lotara,
que covas estavam sendo abertas nas fundações da grande construção. Porque ele próprio enterrara cinco, noite anterior, perto de onde agora se encontrava; nas colunas que sustentavam o grande salão de
baile.
O pobre Francisco sonhava com eles. Não os antigos bailantes que vez ou outra dançavam no salão de festas vazio, com muita música e bebida, com rolos de confete e serpentina, e o qual as mulheres, sempre
bonitas, o convidavam para dançar. Francisco sonhava era com os ‘terminais’, sempre queimando no forno, gritando.
Francisco sabia que era errado adiantar a morte, rezava e pedia perdão. Tinha a triste sensação de que já não era mais ouvido. Mas ouvia-os, os gemidos, mesmo quando cessavam, mesmo quando Bão dizia acabado,
e ele atravessava os carrinhos cheios de corpos pelo extenso túnel que ligava a cozinha ao porão. Lá, os descarregava, para depois voltar a atravessar o ‘túnel da morte’ onde ouvia os gritos, lamurias;
onde os mortos ainda viviam.
Sanatório para tuberculosos terminais ‘Cidade das Sombras!’.
15 de abril de 1926; 11h11min.
Na cozinha, o médico Carl Wezlicki respirou aliviado por conseguir se esquentar ao pé do fogão. Tinha a pele avermelhada e os cabelos loiros platinados; de Dublin, Irlanda, chegou ao Brasil, fugido do
pré-guerra, fugido de mais coisa do que contou a Dra. Betje Becker, mais do que forjou na carta de apresentação à Embaixada da Irlanda no Rio de Janeiro.
Betje até desconfiou de tamanho currículo, mas faltavam médicos radiologistas num Brasil onde poucos eram os hospitais que tinham uma máquina de Raios-X. Trazida do Reino Unido, pelo ainda vivo Dizzan
Schvarstein, era triste pensar que a máquina já não mais era necessária.
Também com a escassez de mão-de-obra e o temor dos paquetaenses em trabalhar onde todo mundo morria, cozinheiras e faxineiras não havia. Lá somente os três homens, ‘pau-para-toda-obra’ Bão, Licínio e Francisco.
Além deles, os médicos Betje e Carl, ainda uma única enfermeira geral, Srta. Anne Sanne, de pais britânicos, nascida no Rio de Janeiro. Era ela quem adentrava a cozinha vendo Licínio colocar lenha no grande
fogão de parede, enquanto os pés de Carl se aqueciam.
O corpo de Anne amargava rugas num rosto relativamente jovem. Morena, olhos escuros feito breu, sorriso enigmático de mulher perigosa.
— Não sei se as batatas vão ser suficientes — falou ela nervosa porque mais uma vez ficara encarregada do almoço. — Acho que vou ter que ir ao Rio de Janeiro comprar mais amanhã.
— Pois eu não sei até quando, Darling. Os Lucchesi estão cada vez mais rareando o dinheiro.
— ‘Os Lucchesi’ não deveriam rarear nada se querem que a dona rica, mamãezinha dona de tudo, até do ar que eles respiram, permaneça trancafiada aqui.
— Mesmo ela fazendo o que faz? — gargalhou.
E foi um gargalhar nervoso que assustou Licínio.
— Mesmo fazendo o que faz! — completou Anne Sanne irritada com o descaso dele.
— Não se preocupe, então, Darling. Betje está barganhando mais dinheiro, tentando arrancar mais dinheiro contando à família o que ela anda fazendo, vestida de negro, mandando comprar asas de barata — e
voltou a gargalhar. — Se ao menos pudéssemos ficar com dinheiro e nos livrar dela...
Anne Sanne olhou Licínio que de ouvido atento, prestava atenção.
— Não fale besteiras, Carl. Podemos ser mal interpretados — agora ambos olharam Licínio que parou de ouvir a conversa e tratou de sair de lá rapidamente. — Você não tem papas na língua, mesmo Carl. Esses
caiçaras dão com a língua nos dentes e nossa única fonte de renda escapa.
— Não aguento mais isso aqui. Depois que secou os investimentos de Dizzan Schvarstein, continuar a manter Barbara Lucchesi prisioneira, não era o melhor emprego do mundo que sonhei para mim, Darling.
— Porque nunca houve ‘melhor emprego do mundo’ depois de perder seu diploma de medicina, ‘Darling’ — ironizou.
— Shit!!! — gritou. — Agora é você quem devia parar de falar besteiras. Não somos nenhum exemplo de confiança, não Anne Sanne secagem.
— Never!!! — berrou Anne Sanne mais descontrolada que ele. — Nunca mais se atreva a me chamar assim!!!
— Eram os pretinhos os preferidos, Darling?
— Shut-up!!!
— Então não se atreva você em... — e parou de falar ao ver algo na porta.
Toda sua feição embranqueceu e Carl sentiu o ar gelado que entrou com a figura na porta. Uma mulher negra, jovem e bonita, de vestidos de algodão branco e pano amarrado na cabeça, volitando.
E ela lhe olhava sem os olhos na face.
Carl nada comentou, levantou-se e deixou Anne Sanne lá, arrumando mais alguns legumes na panela. Anne Sanne, porém, respirava descompensada com o que ouvira. Colocou mais lenha no fogão e foi embora pensando
em como Carl conseguira saber sobre seus pacientes queimados.
Passou pela negra que volitava e chegou à sala, passou também sem ver Carl no saguão da sala principal, branco como papel, com o coração a pulsar na boca pelo medo do que viu.
— O que faz aqui? — a voz de Betje fez Carl voltar a Terra.
— Eu... — a saliva secou. — Eu vi... Vi na cozinha...
— Você viu? —e foi a vez dela parar de falar recosa com algo.
Carl ficou sem entender se a frase foi dúbia, se ela o estava questionando ou perguntando se também vira, mas Betje deu as costas e voltou para onde acabara de sair, para o quarto do fundo do corredor
logo à entrada do hotel, onde havia sido uma vez o grande escritório de Dizzan Schvarstein no hotel.
— Hei?! — mas Carl gritou inconformado pela frieza dela. — Não vai me deixar falando sozinho. Você ia falar algo, Betje?
— Deve ter sido ilusão — falava ao longe.
— Como sabe o que foi que vi? — Carl não acreditou no repentino descaso dela.
Ela estancou, se virou e sorriu enigmática.
— Dizem...
— Dizem?
— Foi antes de eu chegar aqui.
— O que foi antes de você chegar Betje?
— Que Dizzan Schvarstein obrigava meninas a fazer sexo strange com ele, de olhos fechados.
— Estranho quanto?
— I don’t know. Dizem, one day, uma das jovens cozinheiras os abriu e ele enfurecido por ter sido desobedecido, ou ela ter visto o seu sexo estranho... — riu. —, arrancou seus olhos, literalmente, pessoalmente,
com seus próprios fingers — moveu os dedos voltando a sorrir enigmática.
— Jesus Christ! Só porque ela abriu os olhos?
Yes! E nessa hora, aqueles tipos de pássaro que vivem no telhado da cobertura, revoaram... — Betje apontou para cima. —, e os gritos dela ecoaram por todo hotel, só parando depois de dois dias, quando
ela morreu de infecção.
— Jesus Christ, Betje — Carl estava mais branco do que já fora. — Isso são lendas de pescadores para Halloween.
— No existe Halloween no Brazil, Carl. E no é lenda. Desde então, quando o fog levanta como hoje, visões dela na cozinha, são vistos. Dizem que ela volta para ver o cozimento dos seus olhos, que dizem,
Dizzan Schvarstein comeu...
— Chega de dizem ou Dizzan!!! — gritou Carl em meio às risadas de Betje, que sumiu dali. — Vou voltar à cozinha e esquentar-me sem essas ‘bullshit’ — foi embora falando sozinho — mas foi só se virar e
viu vindo pela escada, Bão, arrastando dois corpos num lençol manchado de sangue, retirados do quarto 301 e 302. — Shit!!! — gritou Carl ao olhar o chão de mármore branco manchar-se. — You’re crazy?! —
gritou. — Não sabe que esse sangue está contaminado? — e apontou para o chão que se manchava de sangue. — Não sabe que podemos ser contaminados?
— Ninguém me ajudou a carrega, Dotô. Desci três andares com eles no lombo; e esse andar é grande, né? Então não me venha dizer o que fazê, Dotô.
— Shit! — outra vez exclamou nervoso ajudando a carregar os corpos para a cozinha. — Por que não os queima no porão com os outros? — Carl os viu serem desenrolados.
Escrófulas, gânglios linfáticos, se espalhavam pelo pescoço dos asiáticos.
— Num sei. A Dotôra mandou esses pra esse forno da cozinha — e Bão arregalou os olhos já saltados e saiu no crispar dos corpos.
Carl sentiu ânsia de vômito.
E foi uma das últimas sensações que viveria, porque no cair da noite, Barbara Lucchesi colocou em prática mais uma sessão de magia negra que chamava ‘rito de passagem’; naquela noite, às três da manhã,
algo passou levando a vida de todos que ali estavam.
“Nós que vivemos aqui não somos mais do que fantasmas ou ligeiras sombras”.
Sófocles
Capítulo 2
Ilha de Paquetá, Rio de Janeiro.
Escombros do ‘Cidade das Sombras!’.
07 de setembro de 1970; 11h11min.
A família Trancoso era uma família de classe média, que batalhava para dar aos dois filhos, Marina de seis anos e Alberto Jr. de dezesseis anos, uma boa vida. Como naquele fim de semana de feriado, que
alugaram uma lancha para passear pela Baía de Guanabara.
Só que o pai, Alberto Trancoso, não era o melhor navegador do mundo, nem do Rio de Janeiro. Perdeu-se no nevoeiro que se fez sobre a baía.
A mãe Herculana Trancoso, rezava as contas do terço que carregava, enquanto seus dois filhos, de coletes salva-vidas a olhavam de olhos arregalados, sabendo no seu intimo, que alguma coisa estava errada
ali, naquele fog que aconteceu na manhã carioca.
— Onde tamos papai? — perguntou Marina.
— Navegando filha... — foi só o que respondeu sem conseguir enxergar um palmo à sua frente, com as ondas ficando violentas e todos os tipos de sons e uivos chegando até eles.
— O que é esse barulho mamãe? — Marina voltou a questionar.
Era uma menina bonita, com cabelos cor de mel, envoltos em ‘Marias-chiquinhas’.
— São os outros barcos minha querida. Porque também estão nesse nevoeiro.
E o silêncio entre eles. Porque à volta, uivos e lamentações se fizeram.
Alberto pai e Alberto Jr. se olharam sabendo que havia algo errado, quando a proa da lancha bateu em algo, erguendo toda a embarcação, cuspindo a família Trancoso para fora, para a água gelada, que os
levou.
— Mamãe?! Papai?! — gritava Marina na água, sentindo todo seu corpo pequeno congelar.
Mas Alberto e Herculana também se debatiam para nadar, não enxergando para onde, na água gelada que adormeciam seus dedos, enrijecendo as articulações até que os quatro corpos em hipotermia chegaram até
uma areia de cascalhos, sob um nevoeiro que começava a ceder sua intensidade.
— Marina?! — gritava Herculana. — Junior?!
— Tamos aqui... — falou Alberto Jr. tremendo, abraçando Marina que estava com os lábios roxos.
— Vejam! — exclamou Alberto pai para a grande construção azulada, acima de uma escada encrustada no morro, de paredes descascando e janelas de madeira envelhecidas desenhando a fachada.
— Vamos... — ordenou Herculana sentindo toda sua alma congelando pelo frio.
A família andava de mãos dadas, com as marias-chiquinhas de marina engrunhidas pela água que as molhara, e algo passou por detrás deles.
— Mamãe... — Marina se apavorou.
— Vamos... Vamos... — Herculana os empurrava. — Deve ser algum cachorro dos donos daqui...
E chegaram até a porta, tocando uma campainha rouca, que falhava em toda sua essência. Quando a porta se abriu, lá estava uma mulher bonita, alta, de olhos negros e grandes cílios maquiados, que lhes sorria.
— O que desejam?
Herculana mais uma vez tomou a frente:
— Ah! Desculpe-me dona... Mas nossa lancha virou no nevoeiro e caímos no mar.
— Oh! — ela levou a mão delicada, lotada de anéis de pedras preciosas aos lábios vermelhos, emplastados de um batom Rouge. — Que peninha de vocês...
E os quatro se olharam, com Herculana tomando a frente de novo.
— Queríamos saber ser pode nos emprestar o telefone.
— Não temos telefones aqui.
— Talvez um pouco de água fervente? Um chá?
— A comida é escassa.
— Talvez um banho quente?
— A lenha é pouca.
— Talvez uma roupa seca?
— Não tenho nada além da minha.
— Por favor! Por favor! Imploro-lhe qualquer coisa, a qualquer preço...
E o silêncio.
A família Trancoso só precisou esperar alguns segundos até que a voz da mulher bela se fizesse outra vez.
— Claro! Entrem! Está ficando muito tarde! — apontou para um salão ricamente decorado, com uma grande lareira de pedra, ao fundo, queimando lenha.
E tudo ali era ricamente decorado, com cadeiras de veludo e papéis de parede importado. Grandes lustres de cristal Baccarat e todas suas velas acesas. Nem combinava com a fachada destruída e as janelas
dos andares acima em escombros.
Os quatro voltaram a se olhar, mas aceitaram de bom agarrado tudo aquilo.
Foram encaminhados ao sexto andar, para um quarto grande e também ricamente decorado, com uma grande cama de casal e duas de solteiro, prontas, com cobertores quentinhos e roupas em cima delas, os esperando.
— Ela não disse que...
Mas a mão levantada de Herculana calou Alberto pai, que tremia pela hipotermia que tomava conta deles.
— Sem questionamentos. Estamos com frio e perdidos aqui — e sua mão se levantou outra vez, ordenando que as crianças fossem para o banho, que estava com a banheira cheia e a água quente.
— Mas ela não disse... — e foi a vez do próprio Alberto parar de falar quando pela porta aberta do quarto viu a bela mulher. E o olhar pela porta lhe fez todo seu corpo gelar pela maldade que dela exalava.
Era um olhar mal, doentio, de um azul brilhante e gélido. — Quero ir embora...
— Embora? Enlouqueceu Alberto? Não vê que não estamos em condições?
— Mas há algo... — e Alberto se calou mais uma vez no que Herculana ergueu a mão e foi para o banho, atrás das crianças.
Alberto não gostou daquilo, mas aceitou. Estavam sem saída, ilhados, literalmente.
Contudo, a família Trancoso aceitou mais que o banho, a cama e a roupa limpa e quentinha, aceitou também a sala quente às três da manhã, aos pés da grande lareira que crispava a madeira, o vinho rubro
que aqueceu seu sangue, a comida quente que comeram. Aceitou virar comida, nas mãos da bela mulher de cabelos negros e lábios rubros, que os fatiava de olhos arregalados, sem sentir dor, presos pela magia
misturada ao vinho que beberam, à comida que comeram, que alimentava Barbara Lucchesi.
Porque quando aceitaram aquela estadia, também aceitaram o que passou por ali, levando a vida de todos que ali estavam.
“Da mesma maneira projetei eu também a minha ilusão, mais para além da vida dos homens à semelhança de todos os crentes em além-mundos. Além dos homens, realmente? Ai! meus irmãos! Este deus que eu criei
era obra humana e humano delírio, igual a todos os deuses. Era homem, tão somente um fragmento de homem e de mim. Esse fantasma saía das minhas próprias cinzas e da minha própria chama, e na verdade nunca
veio do outro mundo”.
Friedrich Wilhelm Nietzsche.
Capítulo 3
Ilha de Paquetá, Rio de Janeiro.
Sanatório feminino para doentes mentais ‘Cidade das Sombras!’.
20 de agosto de 1999; 22h22min.
Era uma noite gelada de inverno, de fog acentuado, e a psiquiatra Dra. Miranda Lamberte deu as ordens à franzina cozinheira Ana Maria Costa, para que cozinhasse mais batata e lentilha na sopa. De elevado
valor nutricional e quantidades apreciáveis de proteínas, as internas necessitavam comê-las.
Já se fazia dois anos que lá chegara para trabalhar, no Sanatório feminino para doentes mentais ‘Cidade das Sombras!’, e os funcionários iam e vinham, entravam e saíam, eram contratados e se demitiam numa
velocidade louca, e Ana Maria era a única que lá ficara apesar da estatura pequena e fraquinha, de mulher de trinta que aparentava 50.
— Esaú cedeu a Jacó seu direito de primogênito, em troca de um prato de lentilhas, Doutora — a voz de Ana Maria acordou Miranda que achou graça.
E apesar da vida sacrificada, das horas intensas de trabalho e preocupação, Miranda adorava seu trabalho. Mesmo quando estranhos acontecimentos começaram a surgir na boca das enfermeiras, das internas,
com música de baile se espalhando pelos muitos andares, dos perfumes caros e os saltos que tilintavam pelos corredores, ou quando o clima ficou estranho, com nevoeiros densos e dias em que pouca luz entrava
pelos muitos janelões, Miranda não reclamava.
Estava agora, naquele mesmo momento, saindo da cozinha pensando naquilo, em como boa era a vida dela cuidando de suas internas, que estavam longe de serem normais, com transtornos que tinham significativo
impacto na vida deles, provocando sintomas como desconforto emocional, distúrbio de conduta e enfraquecimento da memória.
Às vezes Miranda os tratava através de medicamentos ou psicoterapia. Mas o diagnóstico envolvia também exames e testes psicológicos, exames neurológicos, de imagem e exames físicos.
— Estamos vivos, Miranda.
E Miranda se virou da porta, olhando distante a cozinheira Ana Maria.
— O que disse Ana Maria?
A cozinheira Ana Maria ainda ria cortando as batatas na grande mesa de nogueira roxa.
— Disse? — se virou para ela. — Disse algo doutora?
— Disse “Estamos vivos, Miranda”.
E Ana Maria olhou para os lados; panelas penduradas, tachos de cobre, muitas compotas de frutas e Miranda na porta.
— Disse não... — voltou a rir. — Disse?
Miranda não gostou do descaso, havia escutado sim. Não gostava quando lhe diziam que não havia escutado o que havia escutado; e ela escutava muito.
Saiu nervosa, batendo a porta.
— Doutora? — foi a vez da Dra. Josephine Silva, a outra doutora do sanatório, chamá-la.
— O que quer Josephine?
A Doutora em psiquiatria forense Josephine Silva era uma mulher de origens francesas; delicada, de estatura mediana e belos cabelos negros até a cintura, que presos em coque ficavam mais belos.
Ela se aproximou de Miranda extremamente nervosa.
— A garota... — deu uma pausa para recobrar também o fôlego da escadaria que descera aos trancos; com contenção de despesas, os elevadores foram desligados, e as piscinas, saunas e lavanderia a carvão
foram desativadas.
— Que garota?
— A garota do quarto 666 está gritando.
— Ela sempre grita! — Miranda se virou para o grande balcão de granito, à entrada do hall e abriu um grande caderno prontuário, e escreveu algo na folha descrita como 6° andar, a fim de se livrar mais
rápido dela. — Pronto! Está anotado!
Com as médicas e enfermeiras, Miranda também não tinha paciência. Porque também foram muitas nos últimos quatro meses; dezesseis médicas, vinte e cinco enfermeiras e catorze ajudantes que lá não ficaram
muito tempo.
— Socorro!!! — ecoou pelas paredes do Sanatório ‘Cidade das Sombras!’, que assustadoramente ficava mais ainda por causa dos halls e salões desabitados, uma vez que todas as internas ficavam trancafiadas
em seus quartos.
— Ouviu? — Josephine arregalou os olhos. — É a garota do 666 gritando outra vez.
— Já disse não?
— Não podemos ao menos trocar-lhe de quarto?
— Estamos lotadas, minha querida. Se não percebeu...
— Ah! Percebi! Que aqui lota e ‘deslota’ na mesma velocidade — a Dra. Josephine não deixou Miranda terminar a frase. — Aquele número...
Mas aquilo sim tirou Miranda do sério.
— Deixe de besteiras! Todos os quartos, todos os andares, são quartos de solitárias. E lá elas gritam porque estão com problemas mentais. Isso tudo é coisa da cabeça problemática delas.
— Elas morrem!
— Está dizendo o que Josephine? — se aproximou dela de uma maneira que Josephine teve mais medo que os gritos que ouviam.
— Elas morrem!
— Todos nós morremos!
— Ah! Não! Não com essa velocidade — Josephine desafiava Miranda com um olhar. — Elas só morrem no 6° andar! — olhou o caderno prontuário ali no balcão. — Por isso só existe um caderno daquele — apontou.
Mas o olhar da médica chefe Miranda foi tão intenso que Josephine teve medo do que viu, do olhar vermelho que Miranda lhe deu.
Josephine engoliu aquilo a seco e se virou em meio a mais gritos da garota do quarto 666 e todo o andar mortal. Deixou-a lá, próximo ao grande janelão, observando ela não soube o que. Foi embora dando
de encontro com a ajudante de enfermagem Isabela Oliveira e a enfermeira-chefe Beatriz Pankalopolo no corredor do terceiro andar.
As duas destoavam horrivelmente. Isabela era baixinha e atarracada, com óculos de grau nove, que não enxergava um palmo a sua frente. Já Beatriz era alta, elegante, com cabelos loiros que lembravam uma
penca de trigo. Com porte nobre, era uma mulher da sociedade carioca que largara fortuna e família grega de posses para trabalhar como voluntária.
— Pela sua cara não conseguiu nada — já foi Isabela falando com Josephine, que bufava após subir o pé-direito triplo do andar térreo, e o primeiro, e o segundo, até chegar ao terceiro andar.
— Ela não entende.
— Nós é que precisamos entender que a doutora precisa de nós — sorriu Beatriz. — Temos que entender que são todas loucas e o que fazem e falam não pode ser considerada coisa normal.
— Você sempre coloca panos quentes, Beatriz — retrucou Josephine Silva.
— Não coloco panos quentes. Precisamos ajudar.
— Ajudar como? Um dia somos cinco noutro sobra só eu. Ajudante de enfermagem de quem?
— Acalme-se! — ralhou Beatriz Pankalopolo. — Tudo vai dar certo. Vamos encontrar quem queira ajudar-nos.
— Ahhh!!! — explodiu Isabela Oliveira. — Eu é que não vou continuar aqui muito tempo. Cansei de ouvir chamarem meu nome e quando viro, não tem ninguém.
— E as portas então? — emendou Josephine. — Elas abrem e fecham na cara da gente. Esses dias meu nariz por pouco não foi cortado fora.
As três se olharam, e nenhuma das três riu. Aquilo não era engraçado. Alguma coisa estranha acontecia ali, e ia além da demência alheia.
— E tem as loucas, não? — prosseguiu Isabela. — Que conversam com as paredes — olhou para os lados. — E quando olham para a gente, dizem o que havíamos feito do lado de fora, antes de entramos nos quartos.
Beatriz riu das duas.
— São portas velhas que rangem e não fecham direito, por isso batem. E as ‘loucas’ sofrem de demência, um grupo de sintomas caracterizado por um declínio progressivo das funções intelectuais.
— Loucas!
— Não Isabela, mas severo o bastante para interferir com as atividades.
— Loucas! Isso sim!
— Não sei por que se incomoda tanto Isabela? Elas ficam trancadas no silêncio, ouvem o que vocês fazem do lado de fora, por isso sabem o que fazemos.
— Não é do lado de fora... — soou pesado, vindo de Josephine Silva. — É o que fazemos longe, no jardim, na cozinha, no porão... — emendou. — E aquilo me provoca arrepio.
— Você... Você... — Beatriz ficou momentaneamente embranquecida. — Você foi ao porão, Josephine?
Josephine não gostou do tom da voz de Beatriz, algo não condizia com ela.
Talvez a voz que ficou trêmula.
— Uma vez... — mentiu.
— E você... Você... Ouviu?
— Ouvi? — estranhou Josephine novamente. — O que devia ter ouvido Beatriz?
— Ah... Nada. Não há nada lá para ser ouvido mesmo... — Beatriz se virou e foi embora.
E o silêncio.
— Você também estranhou? — Isabela só esperou ela sumir na curva do corredor.
— Sim...
— Não gostei de nada disso
— E eu gostei?
— Você ouviu algo lá?
Josephine fez uma careta.
— Eu não. Você já foi?
— Eu não. Dizem que é mal assombrado por causa do cemitério.
— O cemitério fica próximo à entrada da garagem, não Isabela?
— Não. Dizem que tem outro daquele túnel que está lacrado. Morreu gente que ninguém soube e que foram enterrados no porão.
— Quem disse isso, Isabela?
— Foi na cidade. Contavam quando eu era pequena. Minha vó contava...
— Socorro!!! Socorro!!! — voltava a gritar a garota do 666. — Tem alguém aqui!!! Alguém tá comigo na solitária!!! Socorro!!!
E o silêncio.
As duas se olharam, olharam em volta e nenhum único movimento se fez.
— Você...
— Shiiiu!
E o silêncio.
— Josephine...
— Shiiiu!
— Não me mande calar... — falava Isabela baixinho.
— Quer o que?
E o silêncio. E o silêncio. E o silêncio.
As duas se olharam e respiraram aliviadas, como se o silêncio resolvesse tudo.
— De quem é a vez de lavar ela?
E a Dra. Josephine largou os ombros.
— Droga! Hoje sou eu... — a Dra. Josephine foi indo embora. — Não estudei tanto para parar aqui... Droga!
Isabela Oliveira arrumou os óculos no lugar e a viu ir embora, em meio a novos gritos. Ela engoliu a seco aquilo e correu até o andar térreo vendo a Dra. Miranda Lamberte ouvindo os gritos, parada próxima
à entrada do escritório, sem se mexer. Virou-se e foi para a cozinha, da cozinha para fora, para o centro da Ilha de Paquetá, para sua casa.
Andava cansada de tudo aquilo.
Cansada também Miranda, que também perdia a paciência com a garota Paolla Fidelix, do quarto de número 666. Adolescente problemática, que vivia com hippies fumando LSD, e fora internada pela família para
se ‘livrar do problema’. Assim como no passado, a família de Barbara Lucchesi sustentara o grande ‘Hotel Cidade das sombras!’
Miranda achava que o problema nunca sairia, porque as crises de abstinência de Paolla nas drogas eram maiores que a demência que vivia sob o efeito do LSD. Foi o diagnóstico que deu a família que a levou
lá. Mas eles nada ouviram nada quiseram ouvir. E como o dinheiro advindo de sua estadia era bem-vindo, Miranda fechou os olhos.
“Só dessa vez!”, pensava com seus botões.
Também era o que pensava naquele momento ao ver pelo janelão uma família se aproximando do portão; mais dinheiro. Ela se esticou e deu uma ajeitada no jaleco que usava sobre a calça de brim e a malha de
lã, porque fazia frio.
A família vinha em quatro, caminhando de mãos dadas; pai, mãe, uma filha de aproximadamente seis anos e um filho grande, provável na casa dos dezesseis anos. Miranda se iluminou, novas internas eram do
que precisava.
Voltou a arrumar o jaleco, o cabelo preso no coque, e colocou a mão na maçaneta gelada para abrir a porta, para então ser invadida pelo fog úmido. Miranda recuou e voltou assustada com o que vira, ou com
o que não vira.
Não se enxergava nada a um palmo de distância por causa do fog. Não se via a entrada, a escadaria que dava na entrada, toda a Baía; nada. Estava em choque, acabara de ver pela janela a família de quatro,
no portão.
Mas ali não havia ninguém.
Miranda sentiu o coração ir à boca. Recuou, fechou a porta e ficou olhando a maçaneta como quem pensa. Voltou atrás, olhou pelo janelão, e lá fora um dia lindo, claro e invadido pelo Sol. E pelo janelão,
lá fora, uma família; pai, mãe, uma filha e um filho no portão.
Miranda tremeu e se afastou do janelão. Teve medo dos pensamentos e não quis pensar neles. Deu passos nervosos, colocou a mão na maçaneta gelada outra vez e a noite escura e úmida a invadiu.
— Ahhh!!! — gritou em choque, arrepiada, sentindo cada pelo do corpo se erguer, cada poro se abrir.
Fechou a porta novamente e passou a chave. Não ia abrir a porta outra vez quando vozes a alçaram.
— Estamos vivos, Miranda.
— Ahhh!!! — berrou. — Beatriz?! Isabela?! Josephine?! Ana Maria?! — seus berros agitavam as internas que gritavam, que se jogavam contra a porta dos quartos. — Josephine?! Beatriz?! Ana Maria?! Isabela?!
— mas mais gritos assustaram Beatriz, que correu para onde Miranda berrava sem controle. — Ana Maria?! Beatriz?! Josephine?! Isabela?! — ainda gritava.
A enfermeira Beatriz Pankalopolo chegou primeiro ao hall de entrada após descer o 5°, o 4°, o 3°, o 2°, o 1° e todo o pé-direito triplo.
— Doutora? — chegou sem fôlego. — O que houve?
— Beatriz?! Isabela?! Ana Maria?! Josephine?! — Miranda ainda gritava.
— Doutora?
— Abra a porta! — apontou Miranda quase sem cor.
— O que disse?
— Abra a porta Beatriz!!! — berrou agitando novamente todas as internas.
Beatriz temeu a Dra. Miranda, que se descontrolava ultimamente como nunca fizera. Não viu alternativa a não ser abrir a porta para então um nevoeiro denso invadi-la.
Ambas olharam o chão ser tomado pela névoa como se em nuvens, estivessem.
— Feche!!! Feche!!! Feche!!! — berrava descontrolada.
— Calma... Calma... — bateu a porta. — Já fechei!
— Eu... — Miranda não sabia o que falar. — Veja no janelão!
— Mas não dá para...
— Veja!!! — gritou até sua boca expelir gotículas de saliva.
Beatriz arregalou os olhos e foi até o janelão lateral para onde Miranda apontava. E Beatriz até tentou, mas nada era visto lá fora.
— Não se dá para ver nada — fazia movimento com a cabeça, para um lado e para outro. — Ultimamente o nevoeiro tem sido muito cerrado — e se virou para Miranda que nada mais falou.
E nada mais falou porque nada quis falar.
Miranda Lamberte virou-se e foi para a cozinha comer. Era madrugada, três da manhã, mas pensou que talvez a fome e o cansaço houvesse lhe cobrado uma parcela muito cara; sua insanidade.
Capítulo 4
Ilha de Paquetá, Rio de Janeiro.
Sanatório feminino para doentes mentais ‘Cidade das Sombras!’.
21 de agosto de 1999; 09h00min.
Amanheceu para alguns na Ilha de Paquetá, para outros não.
A ajudante de enfermagem Isabela Oliveira havia chegado cedo, estranhara que o café não estivesse na grande mesa de carvalho da cozinha como de costume, nem Ana Maria tão pontual colocara a água para fazer
café. Na mesa grande de nogueira roxa só o farelos de pão da noite anterior, os pratos ainda vazios da sopa feita, das muitas batatas e ervilhas lá colocadas.
No fogo só um grande caldeirão que cozinhava algo escuro, de cheiro forte.
Com ânsia, Isabela saiu atrás de Miranda no escritório que ficava no fundo da recepção, atravessando o almoxarifado, passando pelos dois banheiros, pelas três portas lacradas desde antes de sua chegada
há duas semanas, e alcançou a sala de Miranda. Lá, só o piso escorregadio que a fez erguer as duas pernas e estatelar-se no chão visguento.
— Ahhh!!! — gritou Isabela ao cair perdendo os óculos. — Onde... Onde... O que? — e tocou o líquido pegajoso e frio que levou às lentes quando as encontrou. — Ahhh!!! — e gritou ao ver-se banhada de sangue.
— Mas que diabo... — rodou-se ao ver todo piso da sala de Miranda banhado de sangue. — Miranda? — olhava um lado. — Miranda? — olhava o outro lado. — Miranda?! — gritou sem mais parar para pensar. Correu
até chegar ao hall e alguém passou por trás de suas costas. Ela estancou e se virou tentando enxergar pela lente dos óculos que se sujara de sangue e alguém passou de novo por trás de suas costas. Ela
se virou sem ver nada, ninguém, e alguém passou por trás de suas costas. — Quem está aí? — perguntou.
— Estamos vivos... — foi o que falaram.
— Quem está aí?! — foi o que berrou descontrolada, correndo andares acima atrás de Miranda. — Dra. Miranda?! Dra. Miranda?! Dra. Miranda?!
Mas vozes recomeçaram a surgir, inaudíveis, estrangeiras.
— Spreekt... Het is met haar... Alleen jij... — ‘Fala... Está com ela... Só você...’, soou em holandês.
— Miranda? É você?
— Spreekt... Het is met haar... Alleen jij...
— Beatriz? Ana Maria? Josephine?
— Spreekt... Het is met haar... Alleen jij... — vozes de várias paragens e Isabela não conseguia decifrar até que um português nítido surgiu.
— Estamos vivos, Isabela!
— O quê? — se virou para o corredor vazio, apavorada, sentindo algo de muito ruim ali.
Isabela Oliveira tentou abrir as portas do 3° andar, mas nenhum delas atendeu seu pedido; estavam todas trancadas.
— Estamos vivos, Isabela! — voltaram a falar.
— Quem esta aí? Por que está falando isso? — e Isabela correu.
Quarto andar, quinto andar, sexto andar onde estancou pela visão que se moldou. O carpete havia trocado de cor, formatos diversos de espirros de sangue vindo de todas as direções, portas escancaradas;
todas elas. Isabela engoliu a saliva e arrumou as lentes que escorregavam na face suja, suada, embranquecida.
— Miranda? Josephine? Ana Maria? Beatriz?
— Estou aqui! — respondeu Beatriz.
— Oh! Graças... — e Isabela se virou para um machado que desceu sob sua cabeça.
— Ahhh... — mal pôde gritar pelo impacto, pelo susto, pelo talho que se abiu. Isabela caiu de joelhos, desesperada à procura dos óculos que pularam da sua face, apavorada com a imagem embaçada de alguém
com um machado. — Ahhh!!! — e sua mão foi cortada no que tocou os óculos. — Ahhh!!! Ahhh!!! Socorro!!!
— Eu falei ‘socorro’ e você não me atendeu — falou uma voz que entre a dor e o pavor, Isabela reconheceu como Paolla, a garota do 666.
— Miranda?! — berrou Isabela quando se ergueu como pôde e correu, para então sua perna direita ser atingida pelo machado inclinado. — Ahhh!!! Ahhh!!! — o sangue esparramava-se pelo carpete sempre lavado
do 6° andar. — Socorro!!!
— Socorro!!! Socorro!!! Socorro!!! — Paolla, a garota do 666 gritava e debochava, e pulava satisfeita vendo Isabela caída.
Porque Isabela não entendeu de imediato quem era a mulher de quadris largos, vestindo um vestido preto, ao lado da menina alta e magra, vestindo uma camisola branca, e que tinha o pescoço de Beatriz Pankalopolo
nas mãos como se ela fosse uma galinha degolada.
Junto a elas, a garota Paola do 666 sorria e pulava com igual satisfação.
Isabela ficou ali, entre a vida e a morte, vendo a morte vestindo uma camisola branca se virar e acompanhar Paolla para dentro do quarto de número 666, do Sanatório ‘Cidade das Sombras!’, arrastando Beatriz
pelo pescoço, porque noite anterior, às três da manhã, algo passou levando a vida de todos que ali estavam.
“Monstros são reais e fantasmas são reais também. Vivem dentro de nós e, às vezes, vencem”.
Stephen King.
Capítulo 5
Ilha de Paquetá, Rio de Janeiro.
Escombros do Hotel ‘Cidade das Sombras!’
21 de janeiro de 2017.
Era quase uma promessa de campanha do Prefeito do Rio de Janeiro Humberto Humberval, o ‘HH’, que em vias de reeleição havia colocado seu próprio dinheiro, e outros arrecadados pelo seu eficiente Secretário
de campanha, Igor das contas, para reerguer o que um dia já fora a arquitetura mais bela e enigmática da Ilha de Paquetá, o Hotel Stad von Schaduwen de Dizzan Schvarstein, o Hotel ‘Cidade das Sombras!’.
A Primeira-dama, Jacqueline Humberval, arquiteta, era amiga do mais renomado Engenheiro de obras do Estado do Rio de Janeiro, Dr. Victor Hugo Antero, da Antero Construções. Juntos, repaginariam cada cadeira
de designers famosos da época, cada metro de mármore e granitos nobres, muitos importados, cada cristal Baccarat e papéis de parede Juan Zuber trazidos da fantástica fábrica na comuna francesa de Rixheim.
Estava se iniciando uma nova era para o hotel, que temático, iria absorver a ‘Ala dos tuberculosos’ e a ‘Ala dos insanos’, como um diferencial. E tudo sob o comando do prestigiado Gerente Nicholas Antero,
Mestre em Hotelaria na London School of Business and Finance, da Grã-Bretanha, e irmão de Victor Hugo.
Eles só não esperavam encontrar histórias que iam além das temáticas ali oferecidas.
Depois de três anos de muita labuta, e muito mais dinheiro que o previsto pelo Secretário de campanha, a equipe de pedreiros, encanadores e eletricistas contratados pelo mestre-de-obras Pedro Lago apareceu
boiando na piscina da cobertura; exatos 66 corpos no findar da reconstrução do Hotel ‘Cidade das Sombras!’ que faria jus ao seu nome.
E quando o celular tocou insistente em cima da mesinha de cabeceira da Dra. Letícia Oliveira, jovem advogada de 23 anos, advogada do hotel, ela o procurou ainda zonza de sono.
Mas a ligação havia caído.
Ela deu Redial no aparelho celular, e Maria Clara Oliveira, sua irmã gêmea, gritava histérica do outro lado da linha.
— Ela!!! Ela!!!
— Maria Clara? Maria Clara o que houve? Maria Clara? Acalme-se! O que está acontecendo?
— Ela!!! Ela disse que todos vão morrer!!!
— Pare de gritar! Quem disse o que? Do que está falando Maria Clara?
— A tia Isabela!!! — berrava. — Ela disse que vão todos morrer!!! Que ela viu...
Letícia deu um pulo da cama indo ao chão enrolada nos lençóis que a pouco a cobriam.
— Não acredito que você foi atrás dela, Maria Clara! — cortou os gritos da irmã, que se calou.
— Mas ela me chamava...
— Já dissemos que... — e Letícia tomou fôlego. — Já havíamos conversado sobre isso Maria Clara... Mas que droga!
— Mas ela disse que o hotel se levantou...
— O hotel? — e Letícia paralisou, porque ambas haviam concordado que sua tia moribunda, Isabela Oliveira, nada saberia sobre a reforma do ‘Cidade das sombras!’, nem sobre sua reabertura. — O que ela disse
exatamente?
— A mamãe está chorando.
— Maria Clara! Escute! Esqueça o que mamãe chora, porque ela chora desde que a titia foi encontrada quase morta, dezoito anos atrás, está bem?
— Mas a mamãe... Mas a titia...
— Maria Clara!!! — Letícia berrou a quase fazer o celular cair das suas mãos. — Escute! O que a titia disse exatamente?
— Que ela sabia, que o hotel estava se levantando do túmulo, que ela vinha.
— “Ela”?
— ‘Ela’ Letícia! Sei lá quem é ‘ela’! Foi o que titia disse.
— E as meninas?
E Maria Clara parou de falar.
— O que tem as meninas?
— Titia Isabela conversou com Gaia?
— Claro que não! Sabe que...
— Não sei de nada. Já disse que não quero que Gaia fale com ela, porque Gaia é sensitiva.
— E acha que eu não sei o que minha filha é?
— Não estou dizendo que... Ahhh! — explodiu. — Mas que teimosia a sua, Maria Clara. Falei que nunca fosse perguntar nada, que nunca... — e Letícia percebeu o silêncio em meio a sua respiração pesada. —
Maria Clara? Maria Clara? Maria Clara?!
— Ainda estou aqui... — soou uma voz metálica.
— Você... Maria Clara? É você?
— Estamos vivos, Letícia!
Letícia se deu conta que estava no seu quarto de número 339, no hotel, na Ilha de Paquetá, que no chão de carpete recém-colocado, enrolada um lençol e que sua irmã gêmea corria perigo em Jacarepaguá.
Porque algo ou alguém estranho falava com ela pelo celular.
— Maria Clara?! — foi a sua vez de berrar. — Me escuta! Não saia daí! Entendeu?! Não saia daí. Estou indo para o Rio de Janeiro — Letícia largou o pijama a esmo, jogou documentos na bolsa e desceu as escadas
do 4° andar sem sentir os degraus sob seus pés.
Alcançou o suntuoso hall e o calor da grande lareira abafava tudo. Letícia gritou algo que os funcionários Mateus e Tomás na recepção, não decifraram e partiu.
Os dois, enrolados com as traduções necessárias para o check-in dos cinco hóspedes alemães ali à frente deles, só a viram correndo porta a fora, sem entender o que a cena que viram significava, já que
a advogada Dra. Letícia Oliveira era considerada a pessoa mais estável do planeta.
“A nossa imaginação gera fantasmas que nos espantam durante toda a nossa vida”.
Marquês de Maricá.
Capítulo 6
Jacarepaguá, Rio de Janeiro.
30 de janeiro de 2017.
Dizem que a complexa geografia da região costuma ser motivo de brincadeira entre moradores. De “longe pra caramba” a “Suíça Carioca”, Jacarepaguá reunia qualidades que eram motivos de orgulho, que só quem
mora lá sabe do que se trata.
Jacarepaguá hoje é formado pelas terras mais próximas ao Maciço da Pedra Branca, num formato que lembra uma sela de cavalo. Era lá que ficava o Condomínio Flor do sal, na Estrada Grajaú-Jacarepaguá; uma
estrada bastante sinuosa, com trechos de subida e descida, cortando a Serra dos Pretos-Forros.
Ligação entre os bairros cariocas de Jacarepaguá na Zona Oeste, e do Grajaú, na Zona Norte, o bairro ainda era um dos maiores e mais importantes do município, com um dos metros quadrados que mais encareciam
por ano, já que nele estava localizado o Autódromo Nelson Piquet, o Centro de Convenções do Rio, o Estádio Olímpico de Hóquei, o Hospital Sarah Kubitschek, o Velódromo Municipal do Rio, e também era lá
que se encontrava a Igreja Nossa Senhora da Penna, que podia ser vista de boa parte da baixada onde se encontra o Bairro.
Jacarepaguá era o bairro dos sete amigos vizinhos, que viviam num condomínio de casas iguais e diferentes ao mesmo tempo, porque cada um, com seu modo de vida, as decoravam a seu gosto.
Lá no condomínio Flor do sal morava a família Oliveira, de Sofia e Gaia, gêmeas de 15 anos, de cabelos cor de mel e olhos de igual cor, eram meias-irmãs de Caio, um garotão bonito, de 17 anos, que moravam
com a mãe Maria Clara Oliveira, mãe solteira por opção. A família Oliveira havia perdido recentemente a tia-avó Isabela Oliveira, ex-enfermeira que sofrera um quase latrocínio, um assalto seguido de morte.
A família Oliveira andava triste com a perda, mesmo a tia-avó presa a uma cadeira de rodas há dezoito anos. Gaia mais sensível, ainda sentia a presença da tia, que não conseguira fazer a passagem, porque
algo ainda a prendia a orbe terrestre. Sofia era o inverso de Gaia, era mais ‘pé-no-chão’ como gostava de se definir. Cética por natureza, vivia às pegas com Gaia, pela maneira da irmã viver, meio riponga,
de vestes e cabelos meio largados, despojada de fressuras próprias de garotas na idade dela. Sofia ficava nervosa com o jeito de ser de Gaia, porque achava que ela era igual a mãe Maria Clara, hippie dos
anos 70.
Já Sofia se espelhava na tia Letícia Oliveira, advogada de renome na área de Advocacia especializada em Direito Imobiliário e Administração Predial, motivo pelo qual o prefeito a contratara para administrar
o famoso ‘Hotel Cidade das sombras!’, na Ilha de Paquetá, para onde Letícia havia se mudado.
Sofia queria ser uma advogada como a tia, como seu meio-irmão, filho de outro relacionamento de sua mãe, que estudava direito e já pretendia estagiar com a tia, se a mãe Maria Clara não tivesse dado um
escândalo, o obrigando a nunca mais repetir aquilo.
Sofia, Gaia e Caio creditavam que o motivo era por sua tia Isabela ter sido atacada no ‘Hotel Cidade das sombras!’ anos atrás.
Lá no condomínio de casas iguais e diferentes, morava também Marjorie Pellieiro, menina bonita de 16 anos, mas com leve estrabismo, que lhe causava desgosto pelo bulling que sofrera a vida toda. ‘Marj’,
como era chamada pelos mais íntimos, era uma apaixonada por imagens desde pequena, era a fotógrafa oficial dos amigos vizinhos nas festas e estava se especializando em filmar aniversários e casamentos,
por um precinho mais bacana.
Marj se considerava uma ‘camerawoman’.
Lá no condomínio de casas iguais e diferentes, morava também Antony Brown, garoto de 16 anos, inteligente, sempre envolvido com eletrônica, apaixonado por tudo que envolvia informática. E apesar do sobrenome,
Antony era branco, de bochechas vermelhas e cabelos platinados, filho único de holandeses, que chegaram ao Rio de Janeiro há cinco anos para trabalharem, e aqui ficaram, e aqui fincaram raízes.
Antony já tinha até um emprego de fim-de-semana, DJ das baladinhas do bairro.
Lá no condomínio de casas iguais e diferentes, morava também Miguel Gutierrez, de pele amorenada, vinha de família boliviana, também chegada ao Brasil há cinco anos. Miguel era estatura mediana, com uma
barriguinha de cerveja despontando. Com 19 anos, estudava Física na Federal, e era um apaixonado por Chopra, pela Física quântica e seus mistérios, e adorava ficar horas conversando com Gaia, sua vizinha
mais próxima, e por quem tinha uma quedinha, já que Gaia era especial, sensitiva. Miguel sabia que a vida tinha muitos mistérios, velados aos seres aqui encarnados, e que um dia a vida lhe cobraria o que
estudava.
Miguel era um físico quântico em sua essência.
E lá no condomínio de casas iguais e diferentes, morava também Maria Julia Filardes, a Maju, vinda pequena do interior do Paraná, de cabelos vermelho feito fogo, e centenas, se não milhares de pintinhas
pelo rosto, e que junto com Miguel, tinha 19 anos, se tornando a mais velha daquela turminha de amigos vizinhos.
Maju era especial de todas as formas, havia terminado o Ensino médio com dezesseis anos e já estava formada em TO, Terapia Ocupacional, pelo dom de ajudar os outros. Desde pequena, Maju trabalhava a sua
maneira para ajudar o Planeta, fosse recolhendo latinhas e papéis do chão, sempre que os via, fosse recolhendo gatinhos abandonados por onde passava; o que já lhe causara alguns problemas no condomínio,
por Maju morava com a avó paterna já de muita idade e mais de cem gatos.
O que nas noites de Lua cheia fazia os vizinhos não a cumprimentarem no dia seguinte, pelo escândalo e miados.
Mas todos lá viviam bem, chegaram ao mesmo tempo, há seis anos, quando o condomínio ficara pronto, e estranhavam a última casa da rua, dentro do condomínio que sempre estivera vazia, ter sido iluminada
noite anterior.
Até os seguranças do condomínio foram alertados pelos moradores, apavorados que a casa, que ninguém sabia a quem pertencia estar acesa.
Era uma luz discreta, no segundo andar onde ficavam os quartos, porque todas as casas eram iguais, apesar de diferentes.
Mas os seguranças comunicaram aos outros condôminos, havia um morador novo ali.
E o silêncio.
Condomínio Flor do sal.
Jacarepaguá, Rio de Janeiro.
30 de janeiro de 2017; 19h00min.
Sofia, Gaia, Caio, Miguel, Maria Julia e Marjorie só estavam esperando Antony voltar da Avenida Rio Branco, aonde virava-e-mexia, ele estava procurando mais uma novidade em informática, para juntos tomarem
a decisão de saberem quem era o morador misterioso, que todos, mas todos mesmo, falavam.
Porque não havia um único condômino que não falasse, comentasse, articulasse a possiblidade de quem seria o misterioso homem que se mudara para a casa de número 45, no final do condomínio.
E era uma casa diferente das outras porque no final do condomínio, e no final da praça onde todos os carros eram obrigados a passar para sair do condomínio, tinha um terreno mais amplo, com um galpão nos
fundos, grande o suficiente para caber um caminhão de grande porte. Ninguém sabia o porquê daquele galpão existir, o porquê de nunca ter sido usado pelo condomínio, nem se ele pertencia realmente a casa
de número 45, mas a verdade era que ele nunca fora usado, nunca fora habitado e nem a casa tivera uma única luz acessa naqueles últimos seis anos de condomínio pronto.
Então, a curiosidade dos sete amigos vizinhos era quase que inevitável, mesmo Sofia, a mais centrada, dizendo que invasão era crime.
— Tão todos loucos! — voltava a exclamar Sofia naquele momento. — Além de levarmos uma multa, corremos o risco de sermos presos.
— Tá bem Sofia... — Gaia queria acabar logo com aquilo.
— Não tá nada bem Gaia — retrucou Maria Julia. — Eu quero saber quem é o misterioso.
— E por quê? — argumentou Miguel vindo de outro mundo.
— Por que o que Miguel? Por que você acha?
— Os dois querem parar de discutir. — porque Gaia sabia que eles sempre discutiam, que Maria Julia e Miguel sempre discutiam. — Então vamos partir pra votação.
— Sim! Claro! Sempre a votação! — emendou Antony e os seis amigos vizinhos o olharam. — Hei? Não tô sendo irônico. Tô concordando.
E os sete amigos vizinhos se olharam.
— Ok! — Caio tomou a dianteira. — Como sempre, papéis na jarra.
E os sete amigos vizinhos, mesmo com Sofia contrariada, colocaram os papéis na jarra, com seus votos.
— Ok... Ok... — ia Maria Julia lendo, porque era Maria Julia quem sempre lia os votos. — Seis contra um!
— Ah! Nem precisa perguntar quem é, né Sofia? — Marjorie partiu para a briga.
As duas se olharam e desviaram olhares.
— E então?! — gritou Gaia.
— Meia-noite em ponto! Na praça!
E os seis amigos vizinhos se foram.
Sofia só bufou.
Condomínio Flor do sal.
Jacarepaguá, Rio de Janeiro.
30 de janeiro de 2017; 23h59min.
Ninguém quis perder a hora, estavam todos na praça da curva dos carros, de olhos atentos na casa de número 45, com uma única luz acesa, num único ambiente.
— Por que só aquele quarto fica aceso? — Sofia se aproximou do meio-irmão Caio.
— Sei lá...
— Seja lá quem for não sai daquele quarto?
— Sei lá...
— Nossa quanta informação Caio.
— Que quer que eu diga maninha?
— Sei lá... — foi pura ironia.
— Os dois... — Gaia já tentava acalmar a irmã, que conhecia como a ‘palma da mão’.
E Antony observava com o binóculo meia boca que conseguira comprar, vendo que a luz se apagara.
— Não vão acreditar... — soou baixinho. — A luz que nunca apaga se apagou.
— Deixa ver! — e Sofia arrancou o binóculo de Antony que levou um susto. — É verdade!
E o galpão se abriu pela primeira vez, com um carro grande, do tipo SUV, último modelo e vidros tão escuros que nada se enxergava dentro dele, saindo de lá. A porta se fechou automaticamente e o carro
se foi. Os sete amigos vizinhos se olharam. E foi uma troca de olhar porque os sete se levantaram da campanha e correram até a casa de número 45.
— E agora? — pararam em frente a porta fechada.
— Agora entramos — Maria Julia já arrancava um grampo da cabeça e abria a porta.
— Maju! Não acredito que você vai... — e a voz de Sofia se perdeu ali porque Maju, Gaia, Caio, Miguel, Antony e Marjorie já estavam do lado de dentro. — Droga! — exclamou bufando.
A casa estava vazia se não por um único sofá verde de dois lugares, uma mesa de centro de vidro pintado de verde, o tapete abaixo deles e sete cadeiras, desarrumadas. Acima deles, um lustre de cristal
Baccarat que brincando, valia mais que a casa toda.
— Nossa... — soou de Marjorie. — Isso é o que eu chamo de decoração minimalista.
E os sete amigos vizinhos se olharam.
— Vamos lá em cima! — Antony tomou a dianteira.
Subiram a escada de madeira e não havia cheiro na casa. Nem cheiro de caixas de mudança, porque não havia nenhuma, nem cheiro de casa parada, já que estava sem moradores há muitos anos.
Mas os sete nada comentaram.
No andar de cima, quatro portas; três quartos e um banheiro, todos fechados. Antony que estava à frente dos amigos vizinhos, se dirigiu até o quarto da frente, o que tinha a luz que há dias não se apagava,
mas que foi apagada.
Os sete amigos vizinhos entraram e a porta bateu.
— Ahhh!!! — gritaram todos juntos.
— Shiiiu! — falaram um para o outro.
Ali, também nada, nenhum cheiro. Só uma cama, uma mesa de cabeceira e um homem moribundo que sorriu para eles quando a luz se acendeu sozinha.
— Ahhh!!! — os sete gritaram e os sete correram para a porta, mas estava trancada.
— Não tenham medo... — a voz do homem moribundo era fraca, e ao mesmo tempo metálica.
E nem a saliva descia neles, paralisados, tremendo até o último músculo do corpo.
— Você... Você... — a centrada Sofia, que já não se sentia mais assim, tomou a palavra.
Mas ficou naquilo até Gaia se impor.
— Poderia abrir a porta pra sairmos?
E o moribundo se ergueu dos travesseiros onde se encostava e todos deram um passo para trás. O moribundo percebeu que eles estavam muito amedrontados para uma comunicação.
— Preciso da sua ajuda Gaia...
E os sete amigos vizinhos se olharam.
— Como sabe meu nome?
— Preciso da sua ajuda porque estamos todos vivos.
E todos os pelos dos corpos dos sete se arrepiaram.
— Santo pai Deus! — foi só o que se ouviu ali.
Mas Gaia era realmente sensitiva, e sentiu algo de diferente.
— Você tá morto? — foi a pergunta que tirou todos do lugar comum.
— Gaia... — soou de um Miguel apavorado.
Mas ela pediu silêncio e todos se calaram. Mesmo porque nada conseguiam falar.
— Não... — foi a resposta do moribundo. — Sim... — completou depois. —Porque não fizemos a passagem... Porque nós ainda estamos vivos.
— Quem é ‘nós’?
— Eu... Sua tia...
E Sofia sentiu todo seu couro cabeludo se arrepiar. Passou a mão institivamente e sentiu que alguém tocava seus cabelos. Virou para trás, mas nada viu.
— É a titia... — falou Gaia vendo algo, um vulto que lembrava a tia Isabela morta, atrás de Sofia, de olhos arregalados. Depois se virou para o moribundo. — O que quer de mim?
— Quero dos sete amigos vizinhos! — e foi só exclamar aquilo que Sofia, Marjorie, Maria Julia, Miguel, Antony e Caio se viraram desesperados para a maçaneta que não girava.
— Socorro!!! — gritavam os seis uníssonos. — Tirem-nos daqui!!!
— O som não vai sair da casa... — falou o moribundo.
Os seis amigos vizinhos olharam Gaia sentada ao lado dele, com a mão gelada dele nas suas.
— Gaia... — sussurrava Sofia sem sair do lugar. — Gaia... Venha já pra cá...
Mas Gaia sorria para o moribundo que se virou para os outros seis amigos vizinhos.
— Um mil reais por semana, é o que posso pagar a cada um de vocês.
E os seis amigos vizinhos paralisaram de vez.
— Um o que? — falou Caio com a boca trêmula.
— Shiiiu! — exclamaram Sofia, Maria Julia, Marjorie e Miguel para Caio, que só arregalou os olhos cor de mel.
— Shiiiu o que? Não ouviram?
— Ouvimos que o fantasma disse que vai nos pagar pela nossa alma — a boca de Antony tremia tanto que quase ninguém entendeu o que ele disse.
— Ninguém tá vendendo a alma Antony... — falou Gaia ainda segurando a mão do moribundo. —, ele precisa da nossa ajuda.
— Ajuda?! — gritou Maria Julia se abaixando e enfiando o grampo na fechadura da porta, puxando a maçaneta que não cedia.
Mas Maria Julia se desesperou e começou a chutar a porta até Sofia perder a estribeira.
— Chega!!! — e Caio, Maria Julia, Marjorie, Antony e Miguel a olharam, brancos feito papel. E Sofia parecia ter voltado a ser centrada. — Por que nós? — perguntou ao moribundo.
— Porque sua tia lhe pediu Sofia...
E eles não sabiam se era o fato dele saber o nome de todos ali, ou algo pior acontecia e eles não queriam saber o que.
— E por que nós? — falou Marjorie tentando colocar um pouco de lucidez nela própria.
— Pela amizade de vocês, porque para os espíritos, a amizade é um bem maior. O verdadeiro amigo nos aceita como somos, mas não deixa de nos dar conselhos. E nós aceitamos esses conselhos porque sabemos
que vêm de quem se importa conosco.
— E quer que aceitemos seu conselho? Não somos seu amigo.
— Não quero dar conselho algum Marjorie, mas estarão em breve envolvidos com isso.
— Como assim? Se não fizermos nada não nos envolvemos.
— Correto Miguel! Não precisam estar onde sua amiga Gaia e sua amiga Sofia estarão, mas o verdadeiro amigo está ao nosso alcance quando precisamos dele, quando quisermos saber se ele está bem, ou quando
precisarmos ajudá-lo.
— Antoine de Saint-Exupéry escreveu O pequeno príncipe, e também a famosa frase ‘Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas’ — a voz de Gaia atingiu a todos.
— Isso Gaia... — sorriu o moribundo provocando algo como um lampejo de luz.
Fraca, era bem verdade.
— Você tá morto? — Miguel teve coragem de voltar a fazer aquela pergunta.
— Não morremos Miguel... Não exatamente...
— Como assim?
— Nosso corpo espiritual, dentro do corpo carnal, não morre... Apenas se desprende... Mas às vezes, nosso espírito não consegue se soltar, e para isso vaga por terras tristes e aquecidas, cheias de dores
e murmúrios, junto àqueles que um dia infringiram o mal a alguém... Há muitos..
— Você fez mal alguém?
— Não... Mas deixei que fizessem... Minha falta de fé permitiu que outros tomassem meu corpo e fizesse o mal àquelas mulheres...
— Ai... — o medo de Marjorie era igual ao dos outros.
— Quem é você?
— Não sou mais alguém...
— Mas já teve um nome?
— Preciso que não saibam, para que me ajudem.
— E por que precisamos ajudá-lo?
— Porque precisam do dinheiro.
— O dinheiro não compra nossa alma.
— Nada! — a voz do moribundo subiu de tom e eles deram um passo atrás. — Nunca! — voltou a soar metálico e rude. — Jamais vendam sua alma!
— E mesmo assim quer nos pagar pra ajudá-lo.
— Quero pagar com dinheiro porque é a única coisa que posso fazer materialmente, porque meus advogados irão dar-lhes o que for preciso...
— Espera aí! — exclamou Caio com força. — E a tal história que precisamos ajudar minhas irmãs?
— Porque sua tia precisa de ajuda...
— Minha tia morreu e fim! — explodiu Sofia.
— Mas não é dessa tia a quem me refiro, é?
E Gaia saltou da cama de olhos mel arregalados. Olhou Sofia que parecia ainda tentando diluir tal informação e Gaia começou a chorar.
— Tia Letícia... — saiu da sua boca, junto a uma fumaça que gelava seu corpo, o quarto, todos.
Os sete amigos vizinhos se olharam.
— Que frio... Que frio é esse...
Mas foi a voz do moribundo que os acordou do pavor.
— Um mil reais por semana... A cada um... Para formarem um grupo de investigação paranormal...
— Paranormal?
— No galpão... Com todos os equipamentos de última geração necessários...
— Equipamentos? — os olhos de Antony brilharam no que a frase ‘todos os equipamentos de última geração necessários’ quando Maria Julia, Sofia, Miguel, Marjorie e Caio o fuzilaram. — Hei? Não disse que
vamos aceitar.
— Tenho pressa... — e o frio tomou conta de todos outra vez.
— Que frio... Que frio é... — tentava Marjorie falar, com os lábios roxos.
— Cale-se! — explodiu Sofia com Marjorie que calou. Depois se virou para o moribundo. — Um mil por semana, até sabermos se o que faremos, poderá ser feito.
Os outros seis amigos vizinhos a olharam.
— Um mil por semana, o galpão e grupo formado... — saiu da boca do moribundo que ainda não se identificara. — Porque tenho pressa... — e a porta se destrancou abrindo com toda velocidade, batendo na parede.
— Ahhh!!! — gritaram os sete vendo a porta escancarada.
E nem precisaram ser convidados a se retirar, porque eles correram dali pela escada, um degrau engolindo o outro, para chegaram na sala e as sete cadeiras estarem arrumadas em círculo, com o tapete redondo
sobre os pés.
Os sete amigos vizinhos se olharam outra vez e correram, chegando do lado de fora da casa com a madrugada avançando.
— E... E agora? — Miguel tomou fôlego.
— Agora... — e Sofia parou de falar. — Aonde vai Antony?
E Antony já estava na porta do galpão, o que nunca fora usado, lotado de caixas pretas repletas de aparelhos.
E o sorriso dele foi imediato.
— Ainda não decidimos Antony — Maria Julia tomou a frente.
— Eu não sei vocês, mas um mil por semana me ajuda na faculdade — completou Caio.
— E me ajuda com... Ahhh!!! — gritou Maria Julia fazendo todos pularem do chão, a vendo agachada, tirando de dentro de uma das muitas caixas ali, três câmeras ‘top de linha’ e duas câmeras de infravermelho,
para gravar no escuro. — Gravar vídeo com pouca luz é uma tarefa frustrante, sabiam?
— E o que isso tudo significa? — Marjorie questionou.
— Que vamos gravar no escuro — completou Antony com cinismo.
— Chega Antony! — Sofia voltou a tomar as rédeas. Depois se virou para Gaia. — O que sua sensibilidade lhe diz Gaia?
E Gaia olhou para todos.
— Que somos o GIP.
— Quem? — perguntou os seis amigos vizinhos uníssonos.
— Grupo de Investigação Paranormal — sorriu.
E o silêncio.
Capítulo 7
Condomínio Flor do sal.
Jacarepaguá, Rio de Janeiro.
31 de janeiro de 2017; 08h10min.
O dia amanheceu confuso para os sete amigos vizinhos, porque eles sabiam que estavam assumindo algo que não tinham a mínima ideia do que era. Foi o que Miguel pensou a noite toda, a manhã toda, e apertava
a campainha da casa dos Oliveira naquele momento. Mas Maria Clara, a mãe, disse que ele era esperado no galpão, ou que lugar fosse aquele.
O próximo pensamento de Miguel foi como ela sabia que ele iria ali, na casa dela. Miguel deu meia-volta e foi até o final do condomínio, no ‘galpão’. Chegando lá, Sofia, Gaia, Caio, Antony, Maria Julia
e Marjorie o esperavam realmente.
E foi Gaia quem se adiantou.
— Eu sabia que você ia lá em casa — sorriu-lhe.
E Miguel só arregalou os olhos para ela, para eles, para o entorno, porque as estantes já estavam carregadas de equipamentos, porque Antony passou a madrugada desmontando as caixas.
— Acha mesmo que tamos fazendo o certo? — foi o que Miguel perguntou.
— E o que é certo nessa vida? — respondeu Marjorie.
— Sabe o que significava aquele frio Marj? — e o silêncio. — Que espíritos se utilizam de energias pra se comunicar, que provável aquele frio que nos acometeu foi aquele moribundo sugando a energia térmica
pra se manifestar.
E os seis amigos vizinhos nada entenderam. Olharam-se e voltaram a mexer nos equipamentos.
Antony não acreditou naquilo.
— Acha que ele tá morto? — contudo a voz de Maria Julia o alcançou.
— Não acho nada Maju, mas a física quântica nos diz isso.
E Caio deu alguns passos, parando à sua frente.
— Acalme-se cara... — Caio bateu nas costas do amigo. — Sabe que isso de caçar fantasmas não existe.
— Por que acha que não? — mas Miguel acordou diferente.
E os seis amigos vizinhos paralisaram outra vez, porque no fundo achavam realmente aquilo.
— Sei lá... Um mil por semana? — falou Caio na dúvida.
— Então é o dinheiro?
— Não! — exclamou Gaia. — São eles... Porque ainda tão vivos...
E os sete sentiram a corrente gelada que passou por eles, no que uma campainha tocou ali.
— Ahhh!!! — gritaram os sete amigos vizinhos.
— É meu celular... — falou Sofia tremendo. — Alô! — mas só interferência. — Alô? — e chiado outra vez. Sofia olhou todos lhe olhando. — Alô? — insistiu.
— Estamos vivos Sofia... — soou do outro lado da linha.
E Sofia largou o celular, que não só foi ao chão, porque Caio o pegou no ar.
— O que houve?
Mas a face branca de Sofia não ajudava muito.
— Eles...
— Eles?
— Eles tão vivos...
— Vivos? — perguntou Maria Julia.
— Quem tá vivo, Sofia? — perguntou Marjorie.
— A voz da titia...
— Tia Isabela? — questionou Gaia.
— Tia Letícia...
E os seis amigos vizinhos se olharam. E saltaram do chão no que uma nova campainha tocou. Dessa vez, uma campainha interna no galpão, instalada pelo moribundo do número 45.
Os sete amigos vizinhos correram, com a porta da casa aberta e ninguém ali para abri-la. Lá dentro a mesma sala minimalista e as sete cadeiras fora de ordem. Os sete amigos vizinhos subiram receosos, mas
com coragem, e a porta do quarto se abriu para uma pequena luz ali iluminar o moribundo, parecendo ter estado na mesma posição desde a noite anterior.
— ‘Hotel Cidade das sombras!’... — foi o que o moribundo falou.
— O hotel da tia Letícia?
— O hotel está acordando...
— Acordando?
— Não podem deixar que ele acorde... — e a luz apagou.
— Ahhh!!! — gritaram os sete amigos vizinhos uníssonos, desesperados em busca do interruptor, batendo um contra o outro. — Ahhh!!! — gritavam até um de eles achar a maçaneta e abrir a porta, com os sete
se lançando corredor a fora, escada abaixo, entrando na sala, encontrando as sete cadeiras em círculo, parecendo terem sido arrumadas e usadas. — Ahhh!!! — gritaram e correram para fora da casa de número
45 encontrando uma mulher alta, de cabelos negros e longos, sinistramente branca, com olheiras que tomavam conta de todo o seu globo ocular. — Ahhh!!! — gritaram para ela.
Mas a mulher alta, de cabelos negros e longos, sinistramente branca, com olheiras que tomavam conta de todo o seu globo ocular, continuou firme, os olhando.
— Seus cheques! — ela exclamou com a voz oca, metálica.
Os sete amigos vizinhos se olharam e só Sofia teve coragem de esticar uma mão que Caio puxou de volta. Os dois se olharam e foi Caio quem esticou a mão para pegar os sete envelopes.
— Obrigadão...
— A chave do carro!
Os sete amigos vizinhos se olharam e outra vez Sofia esticou uma mão que Caio puxou, esticando ele a mão que pegou a chave. A mulher alta, de cabelos negros e longos, sinistramente branca, com olheiras
que tomavam conta de todo o seu globo ocular se virou, entrou no carro SUV preto da noite anterior, que a trouxera até ali, e foi embora.
Os sete se olharam mais uma vez e Caio acionou a chave eletrônica de carro que fez um som de buzina, vindo de dentro do galpão, que não tivera um carro quando lá estiveram.
Os sete voltaram a se olhar, com medo, mas muito medo mesmo, entraram no galpão vendo ali um carro tipo Van, preto, com três grandes letras brancas adesivadas nela – GIP.
Os sete amigos vizinhos se olharam e a figura cadavérica de Maria Clara Oliveira na porta os impactou.
— Ahhh!!! — gritaram.
— Mamãe? — foi Sofia quem conseguiu soltar a voz.
— Sua tia... — ela chorava. — Sua tia...
— Mãe? — Caio se aproximou. — O que houve mãe?
— Sua tia Letícia... — Maria Clara olhou Caio em choque. — Ela desapareceu...
Capítulo 8
Ilha de Paquetá, Rio de Janeiro.
Hotel ‘Cidade das Sombras!’.
01 de fevereiro de 2017; 12h30min.
O ‘Hotel Cidade das sombras!’ estava em polvorosa, lotado de hóspedes, fora obrigado a cancelar as reservas, recusar novos hóspedes, dispensar alguns funcionários e ainda por cima, deslocar os hóspedes
já lá em férias, para outro hotel mais próximo. E tudo aquilo por causa do desaparecimento da Dra. Letícia Oliveira, advogada do hotel, que noite anterior havia feito uma reclamação ao Lauro Freitas, o
Freitinha, concierge, que o barulho do baile a estava incomodando. Mas Freitinha nada pôde fazer, porque tentou explicar que não havia baile algum acontecendo ali.
Depois disso, Letícia sumiu.
E ela foi procurada por todo o hotel, no porão, na adega, em todos os quartos e dependências de empregados, também no cemitério e nas dependências da cobertura, onde gostava de tomar um vinho a noite antes
de dormir, à beira da piscina aquecida. Mas também não estava fora do hotel, nem em outros hotéis, em nenhum lugar da Ilha de Paquetá.
O prefeito ‘HH’ não teve alternativa a não ser chamar a família, que recusou a ajuda da polícia, já que estava mandando seus próprios investigadores. ‘HH’ nem imaginava que eles tinham de 15 a 19 anos.
O embarque para a ilha era feito no cais da histórica Praça XV, no centro da Cidade do Rio de Janeiro, ao lado do Paço Imperial, do Arco dos Teles, do Convento das Carmelitas, da Igreja de Nossa Senhora
do Carmo e o Chafariz do Mestre Valentim.
As viagens duravam em média 70 minutos e era realizada pelas tradicionais barcas, em travessia marítima de aproximadamente 15 km, com o fantástico visual da Baía de Guanabara, da Ilha Fiscal, da Ponte
Rio/Niterói, da Ilha do Sol, da Ilha de Jurubaíbas. Os sete amigos desceram na Ilha de Paquetá, em meio a charretes e bicicletas, com as ruas de saibro e residências aconchegantes, ouvindo o piar dos pássaros,
as cigarras e o silêncio, tudo entremeado ao cheiro de terra, cavalos, mar, e mato. E também uma penca de malas quadradas de couro preto, tacheadas, com três letras adesivadas nela – GIP.
Lá, um carro para carregar malas, com permissão da prefeitura.
Miguel e Maria Julia, os mais velhos do GIP, entraram na frente, com o gerente Nicholas Antero tomando a frente.
— Olá! — sorriu Nicholas. — É mesmo um infortúnio, mas estamos com problemas de dedetização e nosso hotel está fechado para hóspedes.
— Não somos hóspedes! — explicou Maria Julia. — Somos o GIP.
E ‘HH’ deu um passo a frente de todos.
— Fala do Grupo de Investigação Paranormal?
— Paranormal? — falaram uníssonos Nicholas, a primeira-dama Jacqueline Humberval, o contabilista Igor das contas, o mestre-de-obras Pedro Lago, e o concierge Freitinha, que ali chegou demonstrando ter
chorado.
— Sim Excelência Senhor Prefeito — falou Caio, conhecedor de hierarquias. — Somos o GIP.
— Ah... Chame-me de ‘HH’! — sorriu Humberto Humberval fazendo a barriga tremer.
A primeira-dama também deu um passo e correu a abraçá-los. Eram um casal alegre, o prefeito e sua esposa, que sem filhos, adoravam crianças.
— Vamos! Vamos! Se aproximem da grande sala. Venham tomar chá conosco... Temos canapês, doces miúdos e também refris...
— Espere! — o Eng. Dr. Victor Hugo Antero fez um movimento e os sete amigos vizinhos amigos e a penca de malas pararam de andar. — Espere aí! O que significa isso?
Mas foi HH quem respondeu.
— Letícia sumiu! — Humberto olhou para Jacqueline que chorou.
E os sete perceberam que a Dra. Letícia Oliveira era querida pelo casal.
— Sua tia é muito querida por nós menina Gaia — Jacqueline falou aquilo mesmo.
E Gaia olhou Caio antes de falar.
— Me conhecia?
— Sua tia nos mostrava suas fotos, todas que vocês mandavam a ela.
E Sofia pareceu relaxar um pouco, estava tensa com tudo aquilo que Miguel falara a eles.
— Olha dona Jackie... — Gaia era simples. — Fomos contratados na verdade.
— Crianças?! — Victor Hugo explodiu outra vez.
— Crianças usam fraldas! — falou Marjorie. — Não tem ideia como com dez anos, já não mais existem crianças.
E os sete amigos vizinhos inflaram o peito, com camisetas da GIP e moletom cinza, calça e blusão, porque estranhamente aquele hotel era frio, em pleno verão carioca.
— Crianças caçando fantasmas? — e Victor Hugo caiu em sonora gargalhada.
— Sabia que segundo a ParanormalSocieties.com, que afirma ter a maior lista de sociedades e grupos de paranormais do mundo, os Estados Unidos são líderes no setor, com mais de 3,6 mil integrantes registrados?
Só o Brasil não dá credito a nós — Marjorie se irritou.
— Não se preocupe Doutor engenheiro, não temos mochilas de prótons pra capturar fantasmas nem vamos destruir seu hotel novinho em folha — debochou Caio, que pelo tamanho e montante de músculos nos braços,
não viu possibilidades do baixinho e atarracado Victor Hugo querer bater de frente com ele.
— Por isso não vamos demorar por aqui — Sofia se impôs. — Chegamos e vamos encontrar titia. E ir embora.
Jackie até quis contradize-la, mas sabia quer se tratando de uma Oliveira, aquilo era impossível. Considerou conversar mais tarde com Sofia, gêmea de Gaia que parecia mais avoadinha, olhando para os lustres
de cristais que pareciam despencar do pé-direito triplo, com as muitas colunas e paredes decoradas de papéis de parede caríssimos.
Maria Julia e Marjorie também estavam encantadas com a decoração, um pouco antiquada para o gosto delas, mas bonita.
Já Antony só queria saber onde poderia armar seus brinquedinhos novos enquanto Miguel sentia todos os tipos de emoções ali, olhando Gaia aérea, feliz com algo que não identificava, porque ele estava tenso,
com medo, ouvindo música.
— Disse que não havia hóspedes? — a voz dele saltou da boca.
— Você quem é? — perguntou Jackie.
— Sou Miguel.
— Claro! Claro! Prazer Miguel!
E os outros seis se olharam e se apresentaram.
Jackie gostou de todos.
— Prazer dona Jacqueline.
— Podem me chamar de Jackie.
— Vamos parar com isso? — Victor Hugo parecia estar desconfortável com aquilo. — Não há hóspedes, já não dissemos isso?
— Mas tô ouvindo música.
— Música?! — gritaram, HH, Jackie, Freitinha e Nicholas, cada um pensando uma coisa diferente, mas igual, que o hotel era assombrado.
E Gaia se virou para Nicholas.
— Acha mesmo? — sorriu-lhe.
Nicholas só esticou o sobrolho e sentiu medo, muito medo.
— É o que dizem... — foi o que responder.
— Acha o que, Gaia? — Sofia perguntou e calou no que Caio deu-lhe um apertão no braço.
Sofia calou vendo Gaia ainda sorrindo para um gerente para lá de apavorado.
— Podemos ser colocados num quarto, dona Jackie? — Caio pediu.
— Claro! Claro! Vou dar quartos a todos vocês.
— Não! — Caio voltou a falar e os seis amigos vizinhos o olharam. — Queremos ficar todos juntos, no quarto da minha tia Letícia, com colchões no chão.
E os seis amigos vizinhos voltaram a olhar Caio decidido a algo.
— Claro! Claro! — e Jackie ficou esperando Nicholas ou Freitinha se moverem, mas Nicholas continuava preso ao chão. — Os dois? — chamou-lhe a atenção.
E Freitinha deu um pulo, sorrindo e mostrando o elevador. Os sete amigos entraram num elevador e a penca de malas seguiu de carrinho dourado, que mais parecia uma gaiola de rodas, pelo elevador de serviço.
O quarto era o de número 339, porque havia seis andares já prontos, com dez quartos em cada andar, indo dos números 111 ao 1110 no primeiro andar, do 221 ao 2210, do 331 ao 3310, do 441 ao 4410, do 551
ao 5510 e do 661 ao 6610. Totalizando um número de 600 quartos já prontos para receber hóspedes.
No quarto de número 339, uma cama, uma cadeira com algumas roupas de Letícia Oliveira em cima, dois pares de sapato no chão, um deles virado, a cortina puxada e só. O resto das roupas de Letícia estava
dependuradas no armário, e o banheiro limpo, sem que ela o tivesse usado.
— O quarto tá como o encontramos — falou Freitinha.
Os sete nada falaram e ele saiu.
— Por que pediu um quarto pra todos nós? — já foi Marjorie falando.
— Porque Miguel ouviu música — Caio até não entendia o porquê daquela pergunta, mas os seis amigos vizinhos se olharam.
— Só eu não entendi? — foi a vez de Antony.
— Gaia sorrindo pras paredes, você Miguel ouvindo música e tia Letícia engolida pelo hotel... — apontou. — Queriam mesmo dormir cada um no quarto? Sozinhos?
E ninguém falou mais nada.
Antony começou a desarrumar a grande maleta, as quatro meninas lavaram o rosto e prenderam os cabelos no espelho sem ver a menina de longos cabelos negros atrás delas, as observando.
No quarto Miguel continuava calado.
— O que houve Miguel? — Gaia sorriu com carinho quando voltou.
— O frio... — estremeceu. — Alguém tá tentando se comunicar conosco.
E todos se olharam com Antony ainda desmontado a grande maleta.
— E agora? Qual o próximo passo? — perguntou Maria Julia.
E foi Sofia quem tomou à dianteira:
— Vamos fazer o que todos os caça-fantasmas fazem.
— Caçar fantasmas? — perguntou Gaia animada.
— Não! — Sofia só bufou. — Tentar desvendar o que tá acontecendo aqui.
E Antony se levantou:
— Antes de tudo, precisamos definir cargos.
— Boa ideia! — exclamou Maria Julia. — Quais?
— Sofia é sempre a cabeça de tudo, então vai ficar como nossa representante. Tudo que tivermos pra falar ou pesquisar ficará a cargo dela.
— Ok! — concordou Sofia. — Vou sair e tentar conversar com alguns empregados que ainda tão por aí. Depois vou pegar uma carona de charrete e ir até o centro pra ouvir histórias sobre o ‘Hotel Cidade das
sombras!’.
Todos concordaram.
Antony prosseguiu:
— Caio é o mais fortão de nós, ficará encarregado da segurança e da retaguarda, caso algo nos aconteça.
— Tipo? — perguntou Caio não gostando muito daquilo.
— Tipo qualquer coisa — respondeu Sofia, a representante.
— Ok! — concordou Caio a contragosto. — Vou ver com o tal Freitinha, as chaves mestres e esperar Sofia voltar com as histórias, pra sabermos por onde começar.
E Antony prosseguiu:
— Maria Julia será nossa camerawoman, ela ficará encarregada das filmagens, da colocação de câmeras infravermelho, câmeras térmicas capazes de captar e converter a faixa visível do espectro, permitindo
que possamos ver o calor gerado pelos fantasmas.
— Que incrível não?
— Sim, através do sensor infravermelho é possível identificar até vazamentos de energia — Antony ia entregando a Maria Julia seus equipamentos. —Também vai usar microfones parabólicos, que captam sons
até 100m de distância, conectados a um gravador digital, pra registrar vocalizações chamadas EVP.
— EVP?
— Sigla em inglês pra Fenômeno de Voz Eletrônica.
— Legal! Vamos gravar os mortos?
— Vamos Maju! Ou esperamos ir.
— Ok! — concordou Maria Julia.
— Miguel vai usar o Gauss Master, um medidor de campos eletromagnéticos. Variações nos índices indicam a presença de espíritos ou energias estranhas — e Antony viu que Miguel nada cogitou. — Também fique
com essa Almofada térmica — Antony entregou. —, ela é sensível ao toque, e fica com manchas mais claras se tocada por algo com temperatura acima de 30°C, ou mais escuras, se for abaixo de 13°C.
— Ok! — concordou Miguel.
— Também use isso aqui... — entregou algo. — Isso é um TriField Natural EM Meter, um medidor eletromagnético, mas que como o nome indica, também avalia separadamente campos magnéticos, ondas de rádio e
micro-ondas.
— Quanta tecnologia... — soou de Gaia.
— Marjorie vai ficar encarregada da iluminação; toda ela. Vai usar Termômetro com foco de luz, que permite medir o calor de objetos à distância, sem tocá-lo. A manifestação de fantasmas costuma causar
quedas inexplicáveis na temperatura como já disse Miguel. Também vai usar o Termômetro com sensor... — Antony entregou. —, ele consegue medir a temperatura a até 30cm de distância. Útil pra detectar a
aproximação de algo sobrenatural.
— Ok! — concordou Marjorie.
— E Caio... — Antony só esperou Caio se virar para ele. — Você vai instalar os detectores de movimento nos seis andares reformados.
— Por que não vamos aos outros andares? — Sofia quis saber. — Lá deve haver esconderijos.
— Vamos deixar os outros três andares ainda não reformados pro fim. Sua tia Letícia não iria até lá. E quem a escondeu não iria escolher um local tão óbvio.
— Fantasmas são óbvios?
— Fantasma é gente morta — disse Maria Julia. — Então já foi inteligente né?
— Verdade! — todos concordaram.
— E todos coloquem essas lanternas de LED na testa. Podemos a qualquer momento ficar no escuro. Também um comunicador pra cada um — distribuía Walk-talk. —, não queremos nos perder nessa imensidão.
— Mas a titia se perdeu — a voz de Gaia os alcançou.
— Acho que sua tia não se perdeu Gaia... — falou Miguel. —, ela foi levada.
— Pela TV como em Poltergeist?
— Quase isso Maju.
— E eu? — a voz de Gaia os alcançou.
— Você Gaia... — e Miguel sorriu carinhosamente, porque tinha um carinho especial por ela, e ela por ele. —, água benta e sal grosso, pra duvida.
E os sete riram.
Hotel ‘Cidade das Sombras!’.
01 de fevereiro de 2017; 18h10min.
Os seis amigos ficaram no quarto de número 339 esperando Sofia retornar das pesquisas. Haviam tomado lanche e alguns dormido meio embolados no sofá, esperando que Freitinha arrumasse os colchões pedidos,
quando a voz de Marjorie os acordou.
— Sabia que aqui na Internet, diz que esse tal negócio de caçar fantasma é bem antigo?
— Antigo quanto?
— O nome dele era Harry-Price, nascido em 1881 na Inglaterra, e foi considerado o primeiro investigador a empregar métodos científicos pra identificar fenômenos sobrenaturais — e o silêncio do interesse.
— Ele ficou famoso por detonar falsos médiuns que invocavam espíritos e demônios. Dizem que ele era mágico, então tinha conhecimento dos truques feitos. Mas... — e fez uma pausa dramática. —, também encontrou
casos autênticos, como o da casa Borley, que tinha um fantasma caseiro.
— Fantasma o que?
— Gente que morre e não abandona a casa que vivia.
— Eita! — Miguel se arrepiou.
— E a tal casa Borley?
— Os críticos sugeriram que Price houvesse orquestrado pelo menos alguns dos supostos fenômenos de poltergeist. Mas a verdade é que quando começou a investigar, ele encontrou um velho envelope com o nome
da mulher morta lá, e escreveu: ‘O que você quer?’, colocando o envelope no mesmo lugar. E na manhã seguinte, apareceu uma resposta debaixo da pergunta: ‘Descansar!’.
E todos se arrepiaram.
E Antony deu um grito.
— Droga!!! — e Antony olhou todos de olhos arregalados. — Meu celular desligou...
— Que susto Antony! Podia ao menos...
— Mas a Internet caiu.
E todos olharam seus celulares, com o sinal Wi-Fi cortado. Caio se levantou e foi até o telefone, mas também não havia linha quando Sofia entrou de supetão fazendo todos gritar.
— Ahhh!!!
— Que susto Sofia!
Mas seus olhos e pele brilhavam pela emoção.
— Vocês não vão acreditar no que vou contar... — e lá veio mais história. — E vou contar lá pelo comecinho, porque o babado é forte.
— Fala logo Sofia.
— Sabia que o cara que construiu esse hotel, em 1900, era um arquiteto holandês de nome Dizzan Schvarstein e que era sádico?
— Sadismo Sexual envolve atos reais, em que o indivíduo sente excitação sexual infringindo sofrimento psicológico ou físico, inclusive provocando humilhação — todos olharam Marjorie. — Estudei em TO.
— Tá, mas o foco do sadismo tá no controle e na observação, enquanto vê o outro sofrer.
— Pois é Miguel, e o tal Dizzan Schvarstein gostava de fazer as empregadas do hotel a fazer coisas, entendeu? Coisas de olhos fechados, porque se elas abrissem, ele mandava arrancar os olhos delas.
— Ai!
— Ui!
— Eita!
— E não só isso. A filha dele Melindra Schvarstein, gostava tanto de paredes de pedra que mandava emparedar as empregadas que não a obedeciam.
— Família simpática.
— Imagino o resgate dessa família — falou um Miguel espiritualista.
— Então... Aí que tá o bafão, porque o pai, o tal Dizzan Schvarstein, foi enterrado vivo pelas empregadas que ele sodomizava.
— Ai!
— Ui!
— Eita!
— Mas e a filha Melindra?
— Ninguém achou o corpo.
— Até hoje?
— Às vezes a achavam.
— Como assim às vezes?
— Porque ela vinha, de machado em punho, matar quem sumiu com ela.
— Mamãe uma vez disse que a titia Isabela tinha pesadelos com essa menina, que ela arrastava gente pelo pescoço enquanto dava machadadas — a voz de Gaia era puro medo.
— A titia sofreu um assalto Gaia — falou Caio. — A cabeça dela foi rachada.
— Tá dizendo que sua tia teve a cabeça rachada por um machado? — perguntou Maria Julia de olhos arregalados.
— Não! Disse que ela ficou ‘lelé da cuca’ quando o ladrão bateu na cabeça dela — respondeu Caio.
— E a música? — perguntou Miguel?
— Que música?
— A música que eu ouvi.
— Que tipo de música era? — perguntou Antony.
— Uma antiga... Dessas de dentista.
E cada um pensou na sua.
— Ah! Verdade! — exclamou Maria Julia. — Tem a música que o tal Freitinha falou que sua tia ouviu.
E Sofia ficou pensando.
— E agora? — foi o que Marjorie perguntou a todos.
— Não soube mais nada Sofia?
— Aqui o pessoal não fala muito, Miguel. Parecem mesmo estar com medo. E a coisa vai além de portas batendo e piso rangendo.
E um carrilhão bateu nove horas da noite em algum lugar do grande e vazio ‘Hotel Cidade das sombras!’.
Os sete se levantaram e anunciaram:
— Agora é a hora!
Hotel ‘Cidade das Sombras!’.
01 de fevereiro de 2017; 21h00min.
Os sete amigos vizinhos saíram do quarto encontrando o hotel mergulhado no silêncio.
E ainda sem linhas telefônicas ou Internet.
— Cadê todo mundo? — perguntou Maria Julia quando os sete chegaram ao salão de entrada, com a lareira acesa, aquecendo o ambiente e todos os cristais dos lustres brilhando pelas luzes acesas.
— Achei que iam nos dar suporte Sofia? — perguntou Caio.
— Você é nosso super irmãozinho.
E os sete amigos vizinhos riram. Tensos, era verdade.
— Vamos testar os comunicadores.
— Testando 1, 2, 3.
Todos testaram.
— Vamos colocar os binóculos de visão noturna, com Câmera Digital Foto E Vídeo Digicam, Ampliação 16x, Câmera Com 12mp.
— Massa! — Maria Julia gostou daquilo. Mas também carregava três câmeras infravermelho e três tripés, que armou um na sala apontando para porta, um segundo apontado para grande lareira de pedra, e um apontando
para as escadas. — E agora?
— Agora vamos todos até a cozinha, armar uma câmera de movimento lá — foi Sofia quem falou.
— Por que na cozinha?
— Porque dizem que uma mulher sem olhos cozinha um panelaço de olhos arrancados pra Dizzan Schvarstein comer.
— Ai!
— Ui!
— Eita!
E o silêncio.
Porque todos ficaram em silêncio.
— E agora? — Antony perguntou e Marjorie, Caio, Gaia, Maria Julia e Miguel olharam para Sofia, esperando mais.
Mas foi Gaia quem falou.
— Agora vamos colocar câmeras no sexto andar.
— Por quê?
— Porque ela disse que tá viva.
E os seis pularam do chão.
— Como... Como disse? — Maria Julia tremia.
— Ela quem Gaia? — Caio quis saber.
— A menina do 666.
— Cruzes-credo! — Antony, Sofia e Maria Julia se benzeram.
— Que menina é essa Gaia? — Miguel quis saber.
— Não sei... Mas ela pediu pra que fossemos lá.
— Ficou louca! — Caio explodiu.
— Por que louca Caio? Não somos o GIP? — perguntou Sofia.
— Você é maninha, eu sou só o guarda-costas.
— Não! — Gaia ficou brava. — Somos todos o GIP. E vamos todos lá.
— Não!!! — gritaram os seis.
— Acho que o pessoal tá certo Gaia — falou Miguel. — O 666 já é um número pra lá de assustador.
— Não há nada com o 666, bobinho — sorriu Gaia.
— Ah! Não! O número 666 é citado na Bíblia Sagrada, como o número da besta em Apocalipse 13:18, no livro Apocalipse de São João, com Deus aparecendo e julgando, e destruindo o mal. Só isso! — debochou
Marjorie.
— Quis dizer que não há nada no 666 porque ela tá morta.
E o seis voltaram a pular do chão.
— Quer parar de conversar com as paredes irmãzinha?
E Gaia não entendeu aquilo.
— Tá bem! Não vamos mais discutir — falou Antony. — Vamos começar pela cozinha, tentando uma comunicação seja lá quem for quem cozinha lá. Eu vou ficar na sala da lareira, com a Marj.
— Achei que não íamos nos separar Antony?
— Mas preciso ficar controlando as câmeras pelo computador. Para gravar algo e avisar também.
Os sete se olharam.
— Ok! — Sofia deu alguns passos e se virou para ver todos paralisados. — Então?
E os seis se mexeram, com Antony e Marjorie indo para a sala, ligar os três notebooks. Quando Antony fez um sinal de positivo, Maria Julia, Sofia, Gaia, Miguel e Caio se dirigiram para cozinha, atravessando
um extenso corredor de portas trancadas, que passava pelo escritório da gerência, do almoxarifado, pela sala do cofre, dois banheiros e uma dispensa, até chegar a grande cozinha, que era grande mesmo;
150m2 de decoração de última geração.
— Que massa! — explodiu Maria Julia, com câmeras na mão.
E como Marjorie havia ficado na sala auxiliando Antony, os gravadores ELF foram divididos entre Maria Julia e Caio.
— Desliguem as luzes e acionem os binóculos! Câmbio! — ordenou Antony.
Os cinco obedeceram no silêncio que se seguiu.
— E agora... — sussurrou Miguel.
— Agora esperamos... — sussurrou Sofia.
— Não devíamos falar com eles? — cogitou Gaia.
— Tá vendo alguém? — Maria Julia recomeçou a tremer.
— Sabe que o medo é um chamariz pra fantasmas Maju?
E Maria Julia só arregalou os olhos para Gaia.
— Gaia! — Sofia chamou-lhe a atenção.
— Não tô brincando. Quando chegamos aqui de manhã, aquele engenheiro babaca, o tal Victor Hugo, tava todo amedrontado e aquelas mulheres riam dele.
— Mulheres? — foi só o que Caio conseguiu falar.
— Sim... Uma bem bonita, de cabelos ruivos. E outras duas, vestidas de enfermeira.
E os quatro se olharam, como se estivessem se enxergando bem.
— Ela tem razão... — a voz de Miguel chegou a cada um deles. — O medo é uma poderosa força negativa, que pode consumir a energia espiritual de alguém.
— Vamos prosseguir... — Sofia deu alguns passos pela cozinha, apesar do excesso de matéria de inox, nada lá era frio. — Que estranho...
— O que?
— Não há frio aqui.
— Também percebi quando entrei. Era como se tivesse... — e parou de falar.
E parou de falar porque perdeu a voz. À sua frente, um grande panelaço fervendo num fogão que estava longe de ser moderno, porque tudo a volta deles era uma antiga cozinha do ano 1900.
— Antony? Tá vendo isso? Câmbio! — Maria Julia apontou a câmera para o fogão a lenha aceso.
— Tô vendo... — respondeu Antony. — Pode se aproximar dela? Câmbio!
— Da panela ou da cozinheira sem olhos? Câmbio! — perguntou Gaia.
E os quatro se arrepiaram pelo frio que se seguiu.
— Ahhh!!! — gritou Maria Julia. — Minha câmera desligou! — batia nela. — Droga!
— Alguém pode se aproximar da panela? Câmbio!
— Por que isso é importante Antony? Câmbio!
— Por que... — e Antony olhou Marjorie lhe olhando. — Porque quando a Maju se aproximou do panelaço, eu ouvi alguma coisa. Câmbio!
E Caio agarrou Maria Julia que começava fugir da cozinha.
— Não! — exclamou com força. — Porque todos somos o GIP.
E Maria Julia só engoliu aquilo a seco, se aproximando da panela com seu aparelho Gauss Master, que disparou.
— Bzzz!!!
E os cinco pularam do chão.
— Tem alguém aqui...
— Você tá perguntando?
— Não Maju, tô afirmando. Tem alguém aqui mexendo no campo magnético.
— Aproxima o gravador EVP pra investigar os picos de atividade! Câmbio! — falou Antony pelo comunicador.
E Caio arrastou Maria Julia outra vez para perto do panelaço que ainda estava ali, cozinhando algo de cheiro ocre e fedido.
— Faça valer os mil que recebemos ok?
E Maria Julia nem respondeu. Aproximou-se e o Gauss Master disparou outra vez.
— Bzzz!!!
— Fale algo... — sussurrou Miguel.
— Ah... Oi...
— Não isso Maju!
— Ah... Você viu a tia da Gaia?
— Pergunte onde ela tá.
— Por que não pergunta você?
— Porque você é a...
— Chegam os dois!!! — gritou Gaia calando todos. — Oi! — olhou a mulher grande e de pele morena, que se aproximava de Gaia, que sentiu seus cabelos levantarem. O Gauss Master voltou a disparar e ela a
perguntar. — Você viu minha tia Letícia? Ela é advogada do hotel... — mas a mulher só observava Gaia, com interesse. — Você a viu? — e o silêncio. — Precisamos encontrá-la... — e o silêncio. — Ela é muito
importante pra minha família... — e o silêncio. — É que ela vai matá-la...
— Ouviram?! Câmbio! — gritou Antony.
— Não! — responderam os cinco na cozinha.
— O que você ouviu? Fale logo!
— Ela tá com ela. Câmbio!
— Quem tá com quem?
— Não sei...
— Volte a perguntar Gaia. Volte... Ahhh!!! — gritou Sofia e todos os outros quatro no que a luz da cozinha voltou, com todos os aparelhos do hotel se ligando e todas as luzes dos lustres de cristal se
acendendo ao mesmo tempo, trazendo uma música de dentista.
Gaia, Sofia, Miguel, Caio e Maria Julia correram para a sala, por corredores de portas abertas e escancaradas, mesmo eles sabendo que elas estavam fechadas quando lá passaram.
E Antony vibrava na sala com os três notebooks ligados.
— Escutem isso! — e ligou.
— Gaia... — soou a voz de Letícia Oliveira. — Sofia... — eles não tinham duvida que fosse Letícia. — Caio...
E Antony parou o gravador.
— Cruz-credo! — Maria Julia se benzeu.
— É sua tia? — perguntou Marjorie.
Gaia, Sofia e Caio concordaram com um movimento de cabeça.
— Tem mais... — a voz de Antony ainda vibrava pela emoção.
Ele voltou a ligar o gravador do notebook.
— Venham tomar chá conosco... Temos canapês, doces miúdos e também refris...
— Ui!
— Ai!
— Eita!
— Essa não é a arquiteta primeira-dama falando?
— Ou era...
E Sofia correu até o balcão da gerencia, ficou ali tentando saber se havia uma linha telefônica, mas ela não funcionava,. Ela correu até a porta e abriu vendo que um espesso nevoeiro cobria tudo.
— Onde tão todos do hotel? — foi só o que conseguiu falar.
— Achei que não iam nos deixar sozinhos... — tremia Marjorie atrás de Sofia, que ainda olhava para o lado de fora do hotel, vendo a família de mãos dadas chegando ao hotel.
— Em setembro de 1970, uma família chamada Trancoso entrou no nevoeiro e sua lancha virou — a voz de Sofia era estranha. — Testemunhas viram um casal com dois filhos se aproximando do hotel, talvez pra
pedir socorro.
E foi Caio quem se aproximou de Sofia ainda parada na porta, ainda vendo o nevoeiro.
— Do que tá falando Sofia?
— Mas o hotel tava em escombros, porque o sanatório pra tuberculosos havia sido fechado por falta de verbas.
— Sofia? — Miguel também a estranhou parada ali, na porta, a olhando o nevoeiro que entrava no hotel feito nuvens.
— Dizem que só encontraram o terço que ela costumava usar... — e todos os tipos de sons e uivos chegaram até eles, com uma campainha rouca, que falhava em toda sua essência, tocando. Caio fechou a porta
violentamente e Sofia acordou. — Ah... — e Sofia desmaiou.
— Sofia?! — gritaram todos.
Capítulo 9
Ilha de Paquetá, Rio de Janeiro.
Hotel ‘Cidade das Sombras!’.
02 de fevereiro de 2017; 08h00min.
O cheiro do café invadiu Sofia, que sentiu todas suas sinapses explodindo ali.
— Ahhh! — ela acordou e viu Miguel, Gaia, Antony, Maria Julia, Marjorie e Caio a olhando. — O que... — e sua cabeça pesou. — O que houve?
— Não sabemos...
— Você ficou falando com o nevoeiro.
E Sofia não se lembrava de nada daquilo.
— Preferimos dormir todos aqui na sala, na lareira quentinha — falou Maria Julia lhe dando um café.
— Alguém...
— Não Sofia. Ninguém apareceu.
— E agora?
— Prosseguimos com o plano.
— Ah! Temos um plano?
— Espero que tenhamos Maju, porque... — e Antony parou de falar olhando os outros cinco amigos.
— Por quê?
Antony se levantou e mostrou a tela do notebook para todos.
— Por isso!
E nem Sofia nem os outros cinco acreditaram quando a câmera, que Maria Julia havia instalado na frente da porta, filmou o casal e os dois filhos ali, de mãos dadas, molhados.
— Ela comeu eles... — a voz de Gaia foi o ápice.
— Ela?
— A mulher bonita que faz o que Melindra quer.
— Que mulher?
— Faz o que?
— A que a família trancou aqui — Gaia sorriu.
— Gaia... — Sofia a abraçou. — Não converse mais com ela, tá bem?
— Ah... Ela só queria tomar chá conosco... — sorriu.
— Claro! E canapésinhos, docinhos miudinhos e nossos miolinhos.
— Isso Marj!
— Gaia! — Sofia começava a ter realmente medo do que começaram. — Escute! — sorriu para ela lhe fazendo um carinho. — Não converse mais com eles, ok?
— Mas eles...
— Prometa-me!
— Mas eles tão vivos Sofia...
— Quem?
— Os médicos do sanatório, que a mulher bonita matou pra agradar Melindra.
— Fala do sanatório de doidos que titia trabalhava?
— Não... Falo do sanatório de tuberculosos...
— Alguém na feira me contou sobre o sanatório... — Sofia parecia se lembrar de algo. — Eles tavam muito endividados e aceitaram trancar uma ricaça, porque a família queria o dinheiro dela.
— E ela se vingou comendo o casal que caiu do barco? — perguntou Miguel.
— Não... Foram todos dados como desaparecidos.
— Assim como todos do hotel — falou Marjorie.
— Assim como a sua tia Letícia, Sofia — falou Maria Julia.
— Sabe de uma coisa... — Sofia se levantou e começou a vestir o moletom do GIP. — Tô começado a achar que não foi um assalto o que aconteceu com tia Isabela.
— Acha mesmo que o lance da machadinha rolou aqui? — Antony não queria escutar a resposta, mas perguntou mesmo assim.
— Acho que devíamos começar a procurar em todos os cantos.
— Podíamos começar pela cobertura, onde fica a tal piscina que sua tia frequentava.
— Boa ideia Maju — e Sofia ergueu a mochila com um monte de coisa dentro. — Quem vai quem fica?
E todos se olharam.
— Eu continuo nos computadores — falou Antony.
— Não é aconselhável alguém ficar sozinho.
— Então vamos continuar como antes... — Sofia olhou cada um. —, e vamos lá... — se dirigiu para a grande escadaria.
— Mas eu coloquei sensores de presença em todos os andares. Por que nenhum deles deu resultado? — se perguntou Caio.
Antony se virou para os três notebooks e acionou todas as câmeras.
— Aqui não tá mostrando nada mesmo.
— Vamos dizer... — Sofia parou para pensar no que ia dizer exatamente. —, que a mesma energia que rouba baterias, e que rouba nossa força espiritual, consiga driblar os sensores.
E os seis se olharam.
— Bem... Na verdade... — e Antony falou e parou de falar.
— Fiquei sabendo de um grupo na Deep Web que usou o Kinect do vídeo game, aquele que detecta seus movimentos pra você jogar tênis e tal, e que usou o aparelho pra detectar fantasmas.
— Ai!
— Ui!
— Eita.
— Caio... — Maria Julia riu.
— Não é brincadeira não. Existem dezenas de vídeos no YouTube que mostram não só o sistema reconhecendo alguém que não tá lá, como fantasmas usando o controle em movimento pra jogar o videogame.
— Aonde quer chegar com isso Caio? — Sofia não o compreendia.
— Colocarmos o videogame que tá lá na sala de jogos em algum lugar específico e ver se algo passa por lá.
— Quantos desses têm na sala de jogos?
— Eu vi três.
— Ótimo! Vai lá Caio, com o Miguel, e trás os Kinect aqui.
E não demorou mais que oito minutos para os dois, três videogames e uma enorme tela de Plasma surgir ali.
— Coloquem um Kinect na escada.
— Colocaremos um no sexto andar quando formos a cobertura.
— Isso! E vamos colocar o terceiro lá na piscina da cobertura.
E foi só Maria Julia, Sofia, Caio, Miguel e Gaia começarem a andar, que toda energia acabou.
— Ahhh!!! — gritaram todos.
— Olha o medo... — lembrou Maria Julia apavorada.
— E agora?
— Os notebooks têm baterias extras.
— Mas e os videogames?
— Tomem! — Antony entregou duas mochilas. — Use esses nobreaks, eles vão aguentar quatro horas de energia pros dois videogames.
— Que massa!
— Vou colocar o terceiro aqui na escada.
— Deixa que eu coloco — se ofereceu Marjorie.
E os cinco correram para a escada, a ideia de ficar preso num elevador não estava nos planos. E foi uma corrida que esgotou o fôlego dos amigos, que chegaram suados ao sexto andar.
— Santo pai Deus... — Maria Julia sentiu todo seu corpo gelar. — Sentiram o frio? — e ela viu os quatro olharem para ela com gelo na ponta do nariz. — Ah... Sentiram...
— Vamos! — anunciou Sofia não querendo muito explicação para aquilo.
Caio então entrou pé-ante-pé num dos quartos e pegou uma TV de LED. Montaram o Kinect e o videogame no nobreak no meio do corredor, e não demoraram mais que cinco minutos.
— Acha que isso vai funcionar?
— O Kinect andou ganhando alguns upgrades, sendo capaz de reconhecer uma pessoa que tá entrando em seu campo de visão. Também consegue detectar calor corporal, mudanças de expressão facial e até frequência
cardíaca — falou Caio.
— Quem diria que todo seu conhecimento de games ia servir pra algo né? — Maria Julia gostou de irritá-lo. — Também vou deixar uma câmera aqui, gravando a tela da TV.
— Vamos! — voltou Sofia a anunciar, com os cinco subindo a escadaria até a cobertura, no décimo quarto andar, passando por andares de paredes descascadas, carpete sujo e rasgado, papel de parede soltando
e portas comidas por cupim.
E ninguém comentou nada.
Já a cobertura era a riqueza em pessoa. Cadeiras última moda, de fibra sintética na cor azul, tinha almofadões listrados em azul e branco e toalhas bordadas, uma em cada cadeira. A piscina era enorme,
gigantesca mesmo. Uma obra e tanto da engenharia se pensada ter sido construída na virada do século passado.
Havia um bar, com muitas banquetas de fibra sintéticas azuis também, bebidas das mais diversas espalhadas na parede espelhada, e um vapor quente saindo da água da pisciana quando a música disparou ali.
— Ahhh!!! — gritaram os cinco.
— Olha o medo!!! — gritaram os cinco também.
E a música era mais que sala de espera de dentista, porque ali tocava algo muito diferente.
— Foxtrote!
— O que Miguel?
— A música... É foxtrote! Uma dança de salão que apareceu nos Estados Unidos por volta de 1910. E vem de fox, raposa, literalmente ‘trotar da raposa’, de origem africana, cuja coreografia imitava passos
de animais.
— E por que tá tocando foxtrote?
— Porque havia bailes aqui... — falou Sofia. —, executada por grandes bandas de jazz, big bands, trazidas por Dizzan Schvarstein pra alegrar seus hóspedes ricos, que incluíam gente do cinema americano
da época — e Sofia ligou o comunicador. — Antony? — e um chiado. — Antony? Responda! Câmbio!
— Oi! — exclamou Antony. — O que houve? Câmbio!
— Tá ouvindo a música? Câmbio! — exclamou Sofia.
— Sim... Acho que tá pelo hotel todo. Câmbio!
— Pode ligar a câmera que tá na porta de entrada, no salão de baile? Câmbio!
— E onde fica isso? Câmbio!
— No escritório da gerência tem um mapa do hotel, uma planta, sei lá. Eu vi quando fui lá ontem. Câmbio!
— Ok! Peraí! Câmbio!
— Ok! Câmbio!
E os cinco esperaram, e esperaram, e esperaram.
— Achei! Câmbio! — falou Antony ofegante, como quem correu.
— Por que demorou tanto? Câmbio!
— Porque ela tava num quadro de vidro... pesado...
— Ok! Deixa pra lá! Veja onde fica a sala de baile? Câmbio!
E Antony e Marjorie encontraram.
— Fica no lado oposto daqui. Acessa por trás da escada. Câmbio!
— Vai lá e monta uma câmera de infravermelho e detectores, e volta pra sala que tamos descendo. Câmbio!
— Ok! — e Antony olhou Marjorie lhe olhando. — Mas por quê? Câmbio!
— Porque tá tendo um baile lá... — Sofia respondeu vendo Gaia dançando, ela não enxergou com quem. — Câmbio!
Armaram o terceiro Kinect e desceram.
Hotel ‘Cidade das Sombras!’.
02 de fevereiro de 2017; 11h00min.
O carrilhão bateu onze horas quando Gaia, Sofia, Maria Julia, Miguel e Caio chegaram ao andar térreo, com Antony e Marjorie de olhos arregalados, tremendo.
— Onde você tava? — Sofia tomou a frente.
— Tem... Tem... — e Antony não saía daquilo.
— Tem um baile lá... — Marjorie completou.
— Ui!
— Ai!
— Eita!
— E agora? Vamos precisar montar uma câmera lá? — perguntou Marjorie.
— Sim! — exclamou Sofia.
— E por quê? Já sabemos que há fantasmas lá.
— Diga a ela Maju! — soou como uma ordem na boca de Sofia.
Maria Julia olhou um e outro e respondeu:
— Precisamos enxergar através do infravermelho se a tia deles tá no baile.
— Não é só isso — foi a vez de Miguel. —, segundo especialistas, fantasmas são almas de seres humanos que faleceram, mas que ainda não abandonaram o plano carnal. Mas há algo mais acontecendo aí.
— Como assim?
— Fantasmas são conhecidos como espíritos inquietos que não alcançaram a paz devida. Há algum tipo de ação que não fora completada enquanto ainda vivo, né?
— O moribundo disse que tinha que acertar as contas pra poder partir.
— Sim. Mas o problema é que existem inúmeros tipos de fantasmas, que até podem não ser humanos.
— Como assim?
— Fantasma não humano, quer dizer que não seja oriundo de um ser humano, mas pode ser de animais ou... — e a parada dramática. —, demônios.
— Ai!
— Ui!
— Eita!
— Santo pai Deus!
— Não tô brincando. Fantasma humano tem forma semelhante a um humano, que pode ficar visível, meio-visível ou totalmente invisível. E esse invisível se comunica através do toque, som, girando mesas, ou
se manifestando por algum aparelho eletrônico, como rádio ou TV.
— Sem qualquer forma física?
— Sim. Totalmente invisível.
— Por isso os tais objetos que dizem ter fantasmas?
E Miguel prosseguiu na explicação:
— Isso se chama assombração residual, que é quando a energia de alguém fica gravada num objeto ou num ambiente, como o que sentimos no sexto andar.
— Me contaram que a tal Melindra morava lá — respondeu Sofia vendo Gaia sorrindo para a parede. — No número 666 — e teve realmente medo daquilo.
Mas Miguel prosseguiu.
— Quando a gente ouve passos, sente cheiros ou até mesmo vê uma entidade, o que tá realmente acontecendo é que tamos vendo uma reprodução gravada do que aconteceu, tipo um vídeo que gravou a voz e a imagem
daquela pessoa que morreu.
— Tipo o casal e as duas crianças?
— Sim... E eles não vão falar conosco, porque esse tipo de fantasma não ouve, não vê, nem interage com seres vivos, porque ele não tá realmente aqui. É só sua energia que ficou.
— Na neblina...
— Sim Sofia... E vão continuar lá, num ciclo de aparecer e desaparecer, geralmente em dias e horários definidos.
— Até que a energia se dissipe...
— Até que eles encontrem a luz...
— Ai!
— Ui!
— Eita!
— E o que ia falar dos demônios Miguel?
— Pois é... Para a física quântica, o Universo todo é regido por energias, portanto tudo, simplesmente tudo que tá a nossa volta, os pensamentos, a vida, as estrelas e nossos atos, são regidos pela energia.
— Mas o que tem isso haver com não colocarmos câmeras na sala?
— Porque eles não vão aparecer. Porque não existem, porque são energias que se apoderam de seres vivos pra fazer maldades.
— E como vamos pegar algo que não existe?
— Tirando ele de dentro da pessoa afetada.
— Tá falando de exorcismo?
— Não... — Miguel chacoalhou os braços nervoso. — Tô falando em salvar a pessoa que ele entrou. E rápido, porque se ele sugar a energia dela, ela vai morrer.
— Minha tia Letícia?
— Não. Ela não... — falou Gaia.
— Quem?
— Melindra, Barbara e Paolla.
— Mas elas morreram.
— Ninguém morre Sofia... — sorriu Gaia.
— Quem são essas?
— Acho que são as mulheres onde o tal aí, entrou.
— Miguel tem razão — falou Caio até então quieto. —, precisamos libertar essas almas pra que sua tia e os outros voltem.
— E para onde eles podem ter ido afinal?
E os sete, mas os sete mesmo, não souberam responder. E talvez ninguém soubesse a resposta.
Mas o silêncio ali fez algumas ideias surgirem.
— O porão! — exclamou Sofia.
— O que tem o porão?
— Alguns funcionários disseram, que quando o hotel era um sanatório, ele fazia ligação com o cemitério, e eles passavam com os corpos de quem morria por ele, pra não contaminar o sanatório.
— Pra não mostrarem que corpos tavam sendo assassinados né?
— Quase isso.
— E como chegamos ao porão?
Sofia e Caio se aproximaram do grande quadro de vidro, e era pesadão mesmo, o que Antony trouxe da gerência.
— Aqui! — temos que descer pela copinha.
— Eu não vou voltar naquela cozinha cheia de olhos cozidos — falou Maria Julia nervosa.
— Não temos alternativa Maju, precisamos percorrer o corredor no porão até o cemitério.
— Mas lá só vai ter lapides.
— Precisamos ver se alguma foi aberta recentemente.
— Ai!
— Ui!
— Santo pai Deus!
E tudo prosseguiu como antes. Com Antony e Marjorie à frente dos três notebooks, com tudo em silêncio e nenhuma gravação fora do comum feita.
Lá, só corredores vazios, e o silêncio, claro, regado a Foxtrote.
Hotel ‘Cidade das Sombras!’.
02 de fevereiro de 2017; 11h40min.
Gaia, Caio, Sofia, Maria Julia e Miguel seguiam pelo corredor frio e úmido, com paredes descascando e ratos que vez e outra faziam as garotas ali, gritarem. Mas nada daquilo se comprava ao serem obrigados
a passar pela cozinheira sem olhos cozinhando um panelaço para Dizzan Schvarstein.
Maria Julia até teve vontade de gritar, mas o medo do medo a controlou.
O cheiro ali também não ajudava os amigos a manter a concentração, era um odor ocre, metálico, como a voz que as atingiu.
— Gaia... — chamavam-na.
Gaia se virou e começou a voltar para a cozinha.
Sofia a agarrou e foi lançada longe.
— Ahhh!!!
— Sofia?! — gritou Maria Julia a socorrê-la.
Caio também correu e segurou Gaia, mas foi lançado para o teto e lá ficou colado.
— Ahhh!!! — gritaram Miguel e Maria Julia.
Mas Caio tentava desesperadamente se soltar do teto que umedecia e fedia sua roupa de moletom do GIP.
— Gaia?! — gritou ele. — Gaia não!!!
Mas Gaia continuava sem escutar nada, só a voz que a chamava de volta a cozinha, onde a panela transbordava de olhos fedidos e cada vez mais desmanchados.
Mas Caio conseguiu se solapar e correu atrás de Gaia que entrou na cozinha novamente, arrastava uma cadeira até perto do fogão, subia nela, e começava a entrar no panelaço quando Caio deu um salto agarrando
Gaia, derrubando a panela aos gritos horrendos da mulher sem olhos.
— Ahhh!!! — ecoou por todo o ‘Hotel Cidade das sombras!’.
Sofia acordou caída no corredor do porão e correu atrás de Maria Julia e Miguel que voltavam para a cozinha de onde saíram. Quando Sofia chegou junto com Maria Julia e Miguel, viu Caio e Gaia no chão,
abraçados e Gaia chorando muito.
Antony e Marjorie também correram ao ver toda a ação pela câmera ali instalada e entraram brancos.
— Nós a vimos... — Marjorie tremia a bater os dentes um contra os outros.
— Mas não disse que ela era invisível?
— Nós vimos sua tia Sofia... — falou Marjorie que conhecia a tia dos Oliveira.
— Tenho até medo de perguntar qual delas.
— Seja lá qual for, sua tia Letícia tava protegida por sua tia Isabela.
E Gaia voltou a chorar.
Os sete resolveram dar um tempo naquilo tudo.
Hotel ‘Cidade das Sombras!’.
02 de fevereiro de 2017; 21h10min.
Se os GIP achavam que eles iam ficar confortáveis naquele galpão, no final do condomínio, instalados com uma fortuna em equipamentos eletrônicos, parados, haviam realmente se enganado.
Os sete estavam exaustos. E não era nada muito físico. Estavam achando que haviam cometido um erro assumindo aquele caso, aquele dinheiro e o GIP, afinal, eram só sete amigos, entre 15 e 19 anos, que nada
sabiam sobre os mistérios da vida.
Depois do incidente com o panelaço e a cozinheira dos olhos que desapareceu, ou fez a passagem, eles também não sabiam, a cozinha voltava a ter uma decoração contemporânea, com um fogão de aço e muitas
bocas. Lá também um freezer lotado de comida congelada.
Mas eles escolheram mesmo uns legumes na panela, arroz e aquilo virando uma sopa.
Estavam todos na sala, em meio aos equipamentos e muitas duvidas, com Marjorie olhando a grande lareira crispando a madeira que os aquecia.
— O que tem atrás da lareira? — falou ela.
— Como assim? — perguntou Sofia.
— Quando Antony e eu olhamos a planta do hotel, vimos que não há nada construído atrás da lareira, que o salão de baile fica atrás da escada e as outras salas de jogos, fumódromo e tal, ficam embaixo dos
quartos. Mas há um grande vazio atrás da lareira.
E Sofia e Miguel se aproximaram da planta baixa.
— Verdade. Pela fachada, há alguma coisa ali.
E Gaia se levantou até a grande lareira.
— Não mexa em nada!!! — gritou Caio.
— Não vou mexer em nada bobinho — sorriu já mexendo, em todas as pedras que compunham a frente da lareira.
— O que tá fazendo Gaia? — Maria Julia quis saber.
— Ela passava por aqui...
— Ela?
— Ai! Tenho até medo de perguntar quem... — Maria Julia pensou em voz alta.
— Tá falando da garota endiabrada? — perguntou Caio.
E Sofia e Miguel fizeram uma careta para ele.
— Sim... Falo de Melindra e o machado.
— Ai!
— Ui!
— Pode vê-la Gaia? — Miguel se aproximou ela.
— Você a vê?
— Só rastro de maldade.
E Gaia sorriu para ele quando se aproximou da última fileira de pedras e uma delas se moveu.
— A pedra tá solta? — Antony largou o prato de sopa e se aproximou de Gaia.
— Ei! — exclamou Miguel. — Vejam? Tem algo do tipo botão ali... — apontou.
— Espere!!! — gritou Sofia. — Acha mesmo prudente apertarmos esse botão?
— Acha que temos saída maninha? — Caio ficava cada vez nervoso.
— Acho mesmo que tomamos uma decisão maluca aceitando vir aqui — Marjorie completou.
— Não sabíamos que íamos passar por isso, né? — Maria Julia meio questionou meio respondeu.
— Mas já tamos aqui — falou Gaia. — E não podemos deixar titia presa lá.
— Lá? — falou um.
— Lá? — falou outro.
— Lá? — falou ainda outro.
— Lá naquele lugar nenhum.
— Existe algum assim? — e a questão de Maria Julia foi para Miguel.
— O limbo...
— Ai!
— Ui!
— Eita!
— Então? — voltou Sofia a questionar. — Vamos adiante?
— Papéis no jarro?
— Acho que não vamos precisar de papéis e jarros Maju.
— Isso! A resposta é ‘Sim!’ — voltaram todos.
E Gaia tocou no botão, que fez um som agudo seguido do movimento de uma parte quase toda da parede e lareira se moveu para frente deixando escapar um cheiro de umidade, de ar contaminado.
— Ponham as máscaras! — ordenou Miguel e os sete vestiram mascaras e olhos de acrílico transparente.
Voltaram a sala e se equiparam, agora com Antony e Marjorie junto.
E os sete entraram. Lá um extenso corredor de paredes de pedras, que atravessaram, e que desembocava num grande espaço vazio, sujo, escuro.
Os sete acionaram a lanterna da cabeça e Antony quebrou três light stik, bastões de luz química, verde, que iluminou o ambiente sujo, de paredes descasadas e úmidas. Nas paredes correntes de todos os tipos
e tamanhos, enferrujadas. Duas cadeiras de madeira podre e uma grande mesa com várias ferramentas, a maioria de corte.
— Santo pai Deus! O que é isso aqui?
— Todo tipo de material de tortura.
— E tudo isso era uma criança que usava?
— Começo a acreditar que Dizzan Schvarstein participava disso.
— Que família hein?
— Pare com isso Maju.
— E acha normal uma coisa dessas Gaia?
— Não acho nada.
— As duas...
— O que é aquilo? — apontou Marjorie para o que parecia ser uma cama de madeira.
— Potro! — exclamou Miguel. — Era um instrumento de tortura que amarava os pulsos da vítima em cima e os calcanhares embaixo. E esticavam até que todos os ossos e músculos fossem deslocados.
— Ai!
— Ui!
— Credo!
— E agora? — perguntou Maria Julia. — Sua tia não tá... — e uma machadinha desceu sobre ela.
— Ahhh!!! — gritaram os sete e as luzes se apagaram.
— Maju?! — gritou Marjorie e Sofia.
— Maju?! — gritou Miguel e Gaia.
— Maju?! — gritou Caio e Antony.
— Tô... Tô bem...
— Acenda as luzes Antony!!! — gritava Sofia.
— Mas os bastões têm 12 horas de...
— Acenda!!! — berrou Sofia descontrolada com Gaia cantando algo.
— Gaia? — Caio se movimentava desesperado no escuro. — Gaia? Cadê você?
E Gaia cantava, arrastando os pés pela sujeira e umidade como quem dançava.
— Gaia querida? — uma voz surgiu ali.
— Gaia?! — berrou Sofia.
— Gaia... — chamou Miguel. — Libere sua mente.
E Sofia dava socos no ar, na escuridão, não conseguindo alcançar a irmã.
— Gaia querida? Vamos dançar? — voltava a voz a chamá-la.
— Gaia!!! Gaia!!! — berravam Sofia e Caio desesperados.
— O medo vai...
— Cale-se!!! — berraram Sofia e Caio desesperados.
E Maria Julia se calou.
Antony desesperava-se quebrando mais dois bastões, os lançando longe, mas nenhum deles acendeu. Ele ainda tentou a lanterna da cabeça, a lanterna que carregava na moa, mas fosse o que fosse aquilo, roubava
toda a energia dali.
— Gaia? — voltou Miguel a chamá-la no breu que os tomava na sala de tortura. — Escute-me! Concentre-se numa oração, busque a luz dentro de você.
— Gaia... — soava metálico, arrastado.
— Gaia... — insistia Miguel. — Reze comigo; ‘Para iluminar aos que estão assentados em trevas e na sombra da morte; a fim de dirigir os nossos pés pelo caminho da paz’, Lucas, 1:79.
— Gaia... Vamos dançar...
E o som de Gaia se arrastando pela sala de tortura, no escuro, deixava todos em pânico.
Mas voltava Miguel a rezar.
— ‘Vós sois a luz do mundo; não se pode esconder uma cidade edificada sobre um monte’
— Ahhh!!! — gritou Melindra.
— ‘Nem se acende a candeia e se coloca debaixo do alqueire, mas no velador, e dá luz a todos que estão na casa’.
— Ahhh!!! Gaia!!! Ahhh!!!
— ‘Assim resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai, que está nos céus’.
— Ahhh!!!
— Mateus 5:14-16! — e a luz acendeu.
— Ahhh!!! — gritaram agora todos menos Gaia.
— Gaia?! — Sofia quase explode ao ver que ela sumira.
Mas Caio saiu Antenor frente de todos e correu para fora da sala de tortura, pelo corredor grande e sujo, chagando na sala da lareira e subindo a escada.
— Caio?! Caio?! — Sofia ia atrás e Antony, Maria Julia, Marjorie e Miguel atrás deles.
— Ainda vai Caio?! — gritou Antony.
— Ao 666! — ele engolia degraus em duplas.
— Não Antony! Não é assim que vamos trazê-los de volta! — exclamou Antony com força.
— Você não sei cara, eu vou buscar minha irmã.
— Caio?! — gritava Sofia não conseguindo alcançá-lo que já chegava ao quinto andara quando Miguel e Antony juntos o derrubaram no chão.
— Não!!! Não!!! — ele se debatia quando Sofia o encarou, suada e ofegante.
— Não... Espere... — tentava respirar e falar, tudo ao mesmo tempo. — Vamos trazer todos... Mas a nossa maneira...
E Caio chorava, agarrado por Miguel e Antony, perante Maria Julia e Marjorie de olhos esbugalhados.
— E como é ‘a sua maneira’, maninha?
— Como devia ter sido desde o começo...
E Caio, Antony, Maria Julia, Marjorie e Miguel olharam Sofia.
— E como devia? — perguntou Maria Julia.
— Fazendo o jogo dela...
E eles realmente não sabiam que jogo era.
Capítulo 10
Ilha de Paquetá, Rio de Janeiro.
Hotel ‘Cidade das Sombras!’.
03 de fevereiro de 2017; 03h00min.
Biologicamente falando, por volta das três horas da manhã, temos a menor temperatura do nosso corpo, e isso faz com que acordemos. Ocultistas, porém, dizem que acordamos, porque fomos acordados, porque
as três horas da manhã, é a hora morta.
Para muitos estudiosos do sobrenatural, três horas da manhã, é a hora que os demônios estão na terra, e é nesta hora que as pessoas estão mais suscetíveis a sofrerem seus tormentos. Era naquela lenda que
Sofia se baseava, mesmo porque alguns funcionários haviam dito que as três começavam sons estranhos, como três batidas, três vezes o nome deles sussurrado, ou três janelas rangendo.
Então ela correu na sala, arrastou uma grande mesa ali com um jarro de flores, pegou sete cadeira e as arrumou em círculo, ao redor da mesa.
Caio, Maria Julia, Marjorie e Antony nem tiveram coragem e contrad-ze-0la.
Sofia também pegou velas na cozinha, fósforos, um copo e uma toalha branca, e se sentou, esperando o carrilhão dar as três sonoras badaladas.
Os amigos sentaram, vendo a cadeira de Gaia vazia, mas nada falaram.
Mas o silêncio estava matando.
— E agora? — a voz de Maria Julia se fez ali.
— Em 1656, Christian Huygens se baseou numa pesquisa com pêndulos realizada pelo físico Galileu Galilei, e construiu o carrilhão.
— E tá falando isso porque...
— Porque tamos esperando dar três horas.
— A horta morta? — questionou Miguel.
— O que significa isso Sofia? O que quer com isso... — apontou Antony. —, essa mesa, e esse copo, e...
— Nos comunicar.
— Com quem?
— Com o moribundo que ficou em Jacarepaguá.
— Quem?! — gritaram os cinco.
— Não entenderam? — perguntou Sofia mexendo no copo. — Ele era o fantasma de Dizzan Schvarstein, que fez mal àquelas mulheres, e que precisa do tal resgate.
E os cinco correram e se sentaram.
— Tem tudo haver mesmo...
— Claro que tem.
— E o que vamos perguntar a ele? — falou um.
— Com quem sua filha brincava de machadinha? — falou outro.
— E o que vamos fazer com essa resposta? — falou outro ainda.
— Nada! — exclamou Sofia. — Mas vamos fazer a mesma coisa que elas faziam pra se comunicar com essa entidade que tomou conta do hotel.
— Que o acordou...
— Isso Maju.
E o copo balançou para lá e para cá.
— Faça as perguntas Miguel — falou Marjorie.
— Quem é você? — perguntou Miguel.
— E isso vai ser importante? — brigou Maria Julia.
— O que quer que eu pergunte então?
— O que temos que fazer pra que a filha dele os liberte — falou uma Maria Julia que nem sabia o que falava.
— Dizzan Schvarstein... — falou Miguel e o copo foi para direita e voltou para o centro da mesa. — Isso é um sim?
E o copo foi para a direita e voltou ao centro da mesa.
— Ele tá falando ‘Sim!’.
— Ok! Pra direita é ‘Sim!’ e pra esquerda é ‘Não!’
— Percebemos! Obrigada Maju...
— As duas! — Caio chamou a atenção delas.
E Miguel prosseguiu:
— Como sua filha chamava essas entidades sem luz?
— Não há como ele responder Miguel — ralhou Caio. — Fale algo que o faça dizer ‘Sim!’ ou ‘Não!’.
— Ok! — Miguel prosseguiu. — Velas? — e o copo foi para esquerda e voltou ao centro da mesa.
— Isso não tá funcionando.
— E agora?
— Pegue o seu brinquedinho de vozes Antony — falou Sofia.
— Como é que é?
— Pegue seu gravador — mandou Sofia e Antony se levantou e trouxe o gravador. — Agora pergunte Miguel, o que fazemos pra chamar Melindra?
— Dizzan Schvarstein... — Miguel falou ao gravador.
— Melindra... — soou ali.
Os seis se impactaram, mas prosseguiram firme.
— Eita! Celular fantasmagórico...
— Chega Caio!
— Desculpe aí...
— Dizzan Schvarstein... Como chamamos sua filha?
— Perdida...
— Melindra tá perdida? Aonde?
— Quarto...
— Quarto 666?
— E como vamos ajudar todos? — Antony falou desesperado. — Você disse que éramos importantes.
— São importantes...
— Então nos diga...
— Antony... Você melhor que ninguém sabe a resposta.
Antony olhou um, olhou outro e tirou um pequeno crucifixo do pescoço, colocando no bolso, e a voz de Dizzan Schvarstein não se fez mais.
— E agora? — perguntou Caio. — Sua maneira funcionou maninha?
— Pergunte a ela... — falou Sofia apontando para a escada.
— Ahhh!!! — Caio, Miguel, Antony, Maria Julia e Marjorie pularam das cadeiras.
O fantasma de Melindra se virou então e correu para cima. Caio saiu correndo e arrancou da lareira um grande crucifixo. Sofia e Maria Julia correram até a cozinha e pegaram sal. Marjorie e Miguel encheram
duas garrafas de água e os seis subiram.
Nunca o medo se fez tão presente quanto naquele momento. No sexto andar, uma menina de cabelos negros cobrindo todo o rosto, vestindo camisola branca até os pés e uma machadinha na mão, estava num corredor
sujo de sangue, que escorria pelas paredes e chegava ao chão.
O som da glote engolindo a saliva dos seis se fez ali.
— E agora... — sussurrou Maria Julia.
— Onde tá minha irmã? — Sofia se adiantou.
E Melindra nada disse, continuou parada ali, com a machadinha na mão.
— Devolva-nos nossa irmã e tia e podemos ajudá-la.
Mas Melindra nada disse outra vez quando Caio bateu no seu próprio pescoço. Miguel o olhou se batendo e moscas apareceram por todos os lados.
— Sofia... — sussurrou Antony colocando a mão no bolso do moletom do GIP. Sofia escorregou um olhar e o viu pegando algo quadrado, metálico, parecendo ter sido coberto por papel de alumínio. — Um condutor,
quando carregado, tende a espalhar suas cargas uniformemente por toda a sua superfície, né?
— Sim... — e ninguém entendia aquele assunto, só Sofia. — E esse condutor for uma esfera oca, as cargas vão se espalhar pela superfície externa, porque a repulsão entre as cargas faz com que elas se mantenham
o mais longe possível umas das outras.
Caio olhou Maria Julia, que olhou Marjorie que olhou Miguel que olhou Caio, e os quatro nada falaram.
Mas Antony prosseguiu:
— Por isso Michael Faraday fez, em 1836, um experimento pra provar os efeitos da blindagem eletrostática, onde os efeitos de campo elétrico criados no interior do condutor acabam se anulando, obtendo assim
um campo elétrico nulo.
E o silêncio, com Melindra inclinando o pescoço para um lado e outro, talvez tentando decifrar aquilo que falavam.
Mas Miguel subitamente pareceu entender aquilo ali.
— Se o estímulo eletromagnético for local, bem próximo, então é possível isolar uma área de modo que ela... — Miguel queria dizer o fantasma de Melindra. —, não consiga atravessá-la, ficando presa em seu
interior.
E Antony deu passos controlados até a figura fantasmagórica de uma Melindra que há muito deixou de ser humana.
— Afinal... — prosseguiu Antony. — Ciências é uma aula a qual a gente realmente presta atenção, né? — e Antony jogou a peça metálica em direção de Melindra que correu, atravessou a parede do quarto de
número 666, mas foi pega pelo pé, literalmente, sendo puxada para dentro da peça metálica.
— Ahhh!!! Ahhh!!! Ahhh!!! — berrava Melindra desesperada com a Gaiola de Faraday soltando raios e faíscas, e fazendo todo tipo de som. — Ahhh!!! Ahhh!!! Ahhh!!! — e o silêncio.
Caio, Maria Julia, Marjorie, Antony e Miguel se olharam.
— Sofia... — alguém chamou muito longe dali.
— Gaia? — chamou Sofia.
— Aqui embaixo... — Gaia respondeu.
Os seis desceram aos trancos e barrancos, chegando ao andar térreo, vendo a mesma cena de sete cadeiras, entorno da mesa redonda, agora ocupada.
Sofia, Letícia, HH, Freitinha, Jacqueline, Igor, e Pedro haviam voltado.
Só Victor Hugo não estava lá.
— Que massa! — soou de Maria Julia sob os olhares estatelados de todos.
Final
Condomínio Flor do sal.
Jacarepaguá, Rio de Janeiro.
05 de fevereiro de 2017; 09h45min.
Os sete amigos haviam voltado a Jacarepaguá depois de uns dias de descanso no belo ‘Hotel Cidade das sombras!’, com mordomias como sucos e sanduíches levados à beira da piscina aquecida, na cobertura do
hotel.
Era o pagamento do casal Humberval ao GIP, pelo ótimo trabalho, pela vida que voltava ao normal, com hóspedes do mundo inteiro voltando ao recém novamente aberto, ‘Hotel Cidade das sombras!’, que o casal
Humberval já pensava em trocar o nome.
Estavam agora mesmo os sete no galpão relembrando a loucura que fora tudo aquilo, relendo apontamentos, revendo imagens e sons, e tudo mais.
— Sabe duma coisa? Não entendi até hoje o que Dizzan Schvarstein quis dizer com o Antony melhor que ninguém sabia o que devia ser feito — a voz de Maria Julia fez os seis se olharem.
— Dizzan Schvarstein havia dado toda aquela parafernália pra nós, equipamentos eletrônicos de última geração. Mas... — e a parada dramática. —, havia lá uma caixa metálica coberta por papel de alumínio
que eu identifiquei como Gaiola de Faraday. Então na viagem até a Ilha de Paquetá, eu pesquisei na Internet sobre alguns caça-fantasmas que usavam a gaiola.
— Como assim?
— As gaiolas têm muitos usos em nossas vidas cotidianas, permitindo a proteção contra radiação e ondas de rádio de todos os tipos. Em teoria, o que esses caçadores de fantasmas tão fazendo com estas gaiolas,
é absorver frequências de RF e campos eletromagnéticos. E como Melindra tava presa dentro da propriedade do ‘Hotel Cidade das sombras!’, onde suas memórias e energia ainda eram fortes, ela podia materializar
vozes, imagens, e até sumir com gente pro limbo.
— Ai!
— Ui!
— Eita!
— Santo pai Deus!
E os sete se olharam quando a porta do galpão se abriu. Lá a mesma mulher alta, de cabelos negros e longos, sinistramente branca, com olheiras que tomavam conta de todo o seu globo ocular que os contratou,
acabava de sair da SUV preta, de vidros escuros, impossível de ver dentro dele.
— Congratulações! — foi o que exclamou com a voz oca. — Aqui está um bônus pelo ótimo trabalho! — e esticou sete envelopes que nenhum dos sete teve coragem de pegar até que Caio deu um passo e os pegou.
— Obrigadão... — soou um agradecimento confuso dele.
— Dizzan Schvarstein pediu-me para dizer que sua tia está bem, Gaia.
— Eu sei... — sorriu Gaia para espanto de todos. — Ela me disse isso...
E Caio, Miguel, Sofia, Maria Julia, Marjorie e Antony não acreditaram no que ouviram.
— Ainda fala com ela Gaia? — perguntou Sofia.
— Sim... — sorriu a menina pura e doce que era.
E a mulher se virou para ir embora quando a voz de Caio a alcançou.
— Hei? Espere aí...
E os seis olharam para ele.
A mulher alta, de cabelos negros e longos, sinistramente branca, com olheiras que tomavam conta de todo o seu globo ocular parou, mas continuou de costas para ele.
— O que houve Caio? — perguntou Sofia.
— Há mais sete cheques de um mil reais aqui, Sofia.
— Salário do GIP! — a mulher disse ainda de costas.
— Achei que havíamos feito a nossa parte.
— E fizeram! — ela continuava de costas. — E ainda farão! — e a mulher alta, de cabelos negros e longos, sinistramente branca, com olheiras que tomavam conta de todo o seu globo ocular entrou no carro.
Os sete ficaram num silêncio incomodativo.
— E agora?
— Vamos voltar a pegar um caso? É isso?
— Papéis na jarra... Papéis na jarra... — Maria Julia se movimentava atrás de papel e caneta.
— Maju... — a voz de Caio ainda era tensa.
— O que houve cara? — perguntou Miguel não gostando muito daquele silêncio.
— Acho que vamos viajar...
— Viajar? — perguntou um.
— Viajar? — perguntou outro.
— Viajar? — perguntou ainda outro.
— Pra onde?
— O pântano dos jacarés.
— Fala daquele pântano aqui atrás de Jacarepaguá?
— Se levarmos em conta que a palavra ‘Jacarepaguá’ é um termo tupi, que significa ‘enseada do lugar dos jacarés’ né? — falou Marjorie.
E Caio olhou os outros seis com os olhos arregalados.
— O que tem o pântano cara?
— Ele tá nos chamando...
E o silêncio.
Marcia Ribeiro Malucelli
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