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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


HOTEL - P.2 / Arthur Hailey
HOTEL - P.2 / Arthur Hailey

                                                                                                                                                 

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

H O T E L

Segunda Parte

 

Depois de alguns momentos Peter saiu também detendo-se apenas para dar instruções no sentido de avisar os seguradores quanto ao roubo e mandar-lhes a lista de objetos que Ogilvie lhe entregara.

Dirigindo-se ao escritório de Christine, Peter ficou desapontado ao ver que ela não estava e decidiu que voltaria logo depois do almoço.

Desceu à portaria e encaminhou-se para o restaurante principal, observando que o movimento do dia era rápido, refletindo o elevado número de hóspedes. Fêz um gesto amistoso para o garçom-chefe, que se apròximou logo.

- Bom dia, Sr. McDermott. Quer uma mesa?

- Não, vou para a colônia penal...

Raramente Peter usava seu direito, como subgerente, de ocupar mesa própria na sala de refeições. Na maioria das vêzes, preferia juntar-se aos demais membros da administração na grande mesa redonda reservada para êles perto da porta da cozinha.

O contador do St. Gregory, Royall Edwards, e Sam Jakubiec, calvo e atarracado chefe de crédito, já estavam almoçando quando Peter se reuniu a êles. Doc Vickery, o maquinista-chefe, chegado poucos minutos antes, examinava o cardápio

e sentando-se na cadeira segura por Max, o chefe dos garçons, Peter indagou:

- O que temos de bom para hoje?

- Experimente a sopa de agrião - aconselhou Jaubiec entre colheradas. - Não está igual à que nossas mãezinhas sabem fazer, mas muitíssimo melhor.

Royall Edwards opinou, em sua voz precisa de contador:

- O prato especial hoje é galinha frita. Foi o que pedimos.

Quando o garçom-chefe se afastou, um garçom ainda jovem surgiu ràpidamente para atendê-los. A despeito de instruções dadas sôbre o assunto, a mesa que o pessoal administrativo chamava "colônia penal" recebia invariàvelmente o melhor serviço do restaurante. Era difícil, como Peter e os demais tinham descoberto, convencer os empregados de que os fregueses do hotel eram mais importantes do que o pessoal que os dirigia.

O mecânico-chefe fechou o cardápio, olhando por cima dos óculos de armação grossa que haviam deslizado, como sempre, para a ponta do nariz, e pediu:

- O mesmo para mim, filho.

- Eu sigo o pedido de todos - disse Peter, devolvendo o cardápio que não chegara a abrir.

O garçom hesitou.

- Não tenho certeza sôbre a galinha frita, Sr. Talvez queira outra coisa.

- Ora, bem! - exclamou Jakubiec. - Que boa hora para nos dizer isso!

- Posso mudar seu pedido fàcilmente, Sr. Jakubiec. E o seu também, Sr. Edwards.

- O que há com a galinha frita? - perguntou Peter.

- Talvez eu não devesse ter falado - respondeu o garçom, demonstrando inquietação. - O fato é que tem havido reclamações. Parece que não estão gostando dela.

Por um momento, voltou a cabeça, percorrendo o salão com os olhos.

- Nesse caso - retrucou Peter -, estou curioso para saber o motivo. Por isso, deixe o meu pedido como está.

Com alguma relutância, os demais concordaram com êle e depois que o garçom se afastou, Jakubiec perguntou:

- E o boato que escutei, o de que a convenção de dentistas poderá abandonar o hotel?

- Está ouvindo bem, Sam. Esta tarde vamos ver se ficará apenas em boato.

Peter começou a tomar a sopa, posta à sua frente como em passe de mágica, e descreveu os acontecimentos de uma hora antes na portaria. Os demais se tornaram carrancudos enquanto ouviam, e Royall Edwards observou:

- Minha observação sôbre os desastres é que êles não ocorrem isoladamente. A julgar pelos resultados financeiros recentes, que os senhores conhecem, êste poderia ser apenas mais um.

- Se a coisa fôr assim - observou o mecânico -, não há dúvida que a primeira coisa a ser feita por vocês será cortar ainda mais a verba das máquinas.

- Isso - emendou o contador - ou a eliminação completa dela.

O mecânico resmungou, não achando graça.

- Talvez sejamos todos eliminados - disse Sam Jakubiec. - Se a turma de O'Keefe tomar conta.

Dirigiu um olhar indagador a Peter, mas Royal Edwards fêz gesto de aviso, à aproximação do garçom. O grupo permaneceu em silêncio enquanto o rapaz servia hàbilmente o contador e chefe de crédito, e ao redor continuava o murmúrio do salão de refeições, ruído abafado de pratos e a passagem dos garçons pela porta da cozinha.

Depois que o garçom se afastou da mesa, Jakubiec perguntou incisivamente:

- Muito bem! Quais são as notícias?

- Não sei coisa alguma, Sam - respondeu Peter. A não ser que esta sopa estava muito boa.

- Caso se lembre, observou Royall Edwards - fomos nós que a recomendamos e vou Lhe oferecer agora outro conselho bem fundamentado: desista enquanto está ganhando.

Estivera provando a galinha frita que Lhe haviam servido e a Jakubiec poucos momentos antes e agora punha faca e garfo de volta no prato, acrescentando:

- De outra vez, sugiro que ouçamos o garçom com mais respeito.

- Está tão ruim assim? - indagou Peter.

- Acho que não - respondeu o contador -, para quem goste de comida rançosa.

Jakubiec examinou o prato com expressão de dúvida, enquanto os demais observavam, e finalmente informou:

- Vamos dizer o seguinte: se eu estivesse pagando esta refeição, não aceitaria o prato.

Já quase de pé, Peter viu o garçom- chefe no meio do salão e chamou-o.

- Mas, o Chefe Hèbrand está de serviço?

- Não, Sr. McDermott. Disseram-me que está doente. O sous-chef Lemieux é o responsável - respondeu o garçom chefe, demonstrando ansiedade. - Se se trata da galinha frita, já tomamos tôdas as providências. Paramos de servir êsse prato, e onde fizeram reclamações trocamos tôda a refeição.

Dirigindo o olhar à mesa, aduziu:

- Vamos fazer o mesmo aqui, num instante.

- Estou mais interessado, no momento, em descobrir o que houve - disse Peter. - Quer pedir ao Chef Lemieux que venha à nossa mesa?

Com a porta da cozinha tão perto dêles, pensou, era tentador entrar e verificar diretamente o que acontecera com o prato especial do dia, mas tal procedimento não seria aconselhável. Ao lidar com os cozinheiros principais, os administradores de hotel seguiam protocolo tão proscrito e tradicional quanto o de qualquer casa real. Dentro da cozinha, o chef de cuisine ou o sous-chef, em sua ausência, era soberano supremo, sendo inconcebível que o gerente entrasse ali sem ser convidado.

Os chefs podiam ser despedidos, e às vêzes eram, mas a não ser nesse caso os seus domínios eram invioláveis. Convidar um chef para sair da cozinha, naquele caso para chegar à mesa no restaurante, era correto. Na verdade, constituía quase uma ordem, pois na ausência de Warren Trent o funcionário mais graduado do hotel era Peter Mcdermott. Também seria permissível que Peter chegasse à porta da cozinha e ali esperasse convite para entrar, mas naquelas circunstâncias - sendo claro que havia uma crise lá dentro - Peter sabia que a primeira atitude era mais correta.

- Em minha opinião - observou Sam Jakubiec, enquanto esperavam -, já passou muito da hora do Chef brand se deitar.

- E se êle se retirasse - perguntou Royall Edwards alguém notaria a diferença?

Todos sabiam que era uma referência às frequentes ausências do chef de cuisine, mesmo nas horas de trabalho, e aparentemente aquêle dia era mais um.

- O fim vem depressa para todos nós - resmungou o maquinista- chefe. - É natural que ninguém o queira apressar por sua própria conta.

Ninguém ignorava que a fria severidade do contador arranhava, às vêzes, a natureza bem-humorada do maquinista chefe.

- Ainda não conheço nosso nôvo sous-chef - disse Jakubiec. - Suponho que tem mantido o nariz ocupado em sua cozinha.

O olhar de Royall Edwards se dirigiu ao prato que mal tocara.

- Se foi assim, deve ser um órgão notàvelmente insensível.

Enquanto o contador falava, a porta da cozinha se abriu outra vez e um ajudante dali surgido se afastou deferentemente do caminho, dando passagem a Max, o garçom-chefe, que vinha diversos passos à frente de um homem alto e magro, com traje de cozinheiro, bem engomado, e chapéu de chef, sob o qual se via uma expressão fisionômica de desalento.

- Cavalheiros - anunciou Peter para os componentes da mesa -, caso não o conheçam, êste é o Chef André lemieux.

- Messieurs! - respondeu o jovem francês, detendo-se e abrindo as mãos em gesto de desolação. - Acontecer isso. Estou muito triste!

Sua voz estava embargada de emoção. Peter Mcdermott já vira o novo sous-chef diversas vêzes, desde que o mesmo ingressara no St. Gregory seis semanas antes, e a cada encontro passara a gostar mais do homem. A nomeação de André Lemieux se seguira à partida abrupta de seu antecessor. O ex-sous-chef, depois de meses de frustrações e agitação interna, irrompera numa explosão de raiva contra seu superior, o idoso M. Hèbrand. Em condições normais, poderia não ter acontecido coisa alguma depois da cena, porquanto as explosões emocionais entre chefs e cozinheiros ocorriam - como em qualquer grande cozinha - com frequência previsível. O que conferira maior destaque ao incidente fôra o gesto do ex-sous-chef, que atirara uma terrina de sopa no chef de cuisine. Felizmente a sôpa era Vichyssoise, pois de outro modo as conseqências poderiam ter sido mais sérias. Numa cena memorável, o chef de cuisine, coberto de branco líquido e pingando-o por tôda a parte, escoltara seu ex-assistente até a porta de serviço, dando para a rua, e lá, com energia surpreendente para um velho, o atirara porta a fora. Uma semana depois, André Lemieux era contratado.

Tinha credenciais excelentes. Preparara-se em Paris, trabalhara em Londres - no Premier's e no Savoy - depois, por breve período, no Le Pavillon de Nova York, antes de chegar ao posto mais graduado em Nova Orleans. Já em seu curto tempo no St. Gregory, entretanto, Peter desconfiava que o jovem sous-chef encontrava a mesma frustração que levara seu antecessor ao desespêro, a recusa terminante de M. Hèbrand no sentido de permitir modificações de trabalho na cozinha, a despeito de sua própria frequente ausência ao serviço, deixando seu sous-chef na direção. De muitos modos, pensou Peter com simpatia, a situação era paralela à de sua própria relação com Warren Trent.

Peter indicou uma cadeira vazia.

- Quer sentar-se conosco?

- Obrigado, monsieur - acedeu o jovem francês, sentando-se com expressão grave na cadeira oferecida pelo garçom-chefe.

Sua chegada foi acompanhada pelo garçom da mesa que, sem precisar de instruções, mudara os quatro pratos para Vitela Scallopini. Retirou os dois pratos de galinha frita, que um ajudante da administração, enquanto o sous-chef pedia apenas um café.

- Isto é outra coisa! - comentou Sam Jakubiec, depois de provar.

- Já descobriu o problema? - perguntou Peter ao recém-chegado.

O sous-chef lançou olhar preocupado à cozinha.

- As dificuldades têm muitas causas. No caso da galinha frita, foi a gordura com mau gosto. Mas sou eu que devo culpar a mim mesmo, que a gordura não fôsse trocada como pensei. E eu, André Lemieux, deixei uma comida assim sair da cozinha! - exclamou, balançando a cabeça em sinal de incredulidade.

- É difícil para uma pessoa estar em tôda parte - disse o maquinista-chefe. - Todos nós, que chefiamos departamentos, sabemos disso.

Royall Edwards exprimiu um pensamento que ocorrera antes a Peter:

- Infelizmente, não vamos saber quantos deixaram de se queixar do prato, mas não voltarão mais aqui, por causa dêle.

André Lemieux concordou, com expressão de tristeza, e pôs a xícara de café na mesa.

- Messieurs, vão-me dar licença. Monsieur McDermott, quando tiver terminado o almoço, talvez possamos conversar, sim?

Quinze minutos depois, Peter entrava na cozinha pela porta que a ligava ao restaurante. André Lemieux se adiantou logo para recebê-lo.

- Foi bom ter vindo, monsieur.

- Eu gosto de cozinhas - respondeu Peter.

Olhando ao redor, nutou que estava diminuindo a ativi dade do almoço. Algumas refeições ainda saíam, passando pelas duas mulheres de meia-idade, sentadas empertigadamente nos bancos altos dos postos de cobrança, mas era maior a quantidade de pratos que vinham do restaurante, enquanto ajudantes de cozinha e garçons limpavam as mesas e diminuía o número dos comensais. No grande posto de lavagem dos pratos, na parte dos fundos da cozinha, onde havia pias de cromo e recipientes para os restos, seis ajudantes com aventais de borracha trabalhavam juntos, mal dando conta dos pratos vindos dos diversos restaurantes no hotel e do andar das convenções. Como de costune, observou Peter, um ajudante trabalhava apenas interceptando a manteiga que não fôra usada pelos comensais, passando-a para uma grande vasilha de cromo. Mais tarde, como sucedia na maioria das cozinhas comerciais, embora poucas reconhecessem isso, a manteiga seria usada para cozinhar.

- Gostaria de lhe falar a sós, monsieur. Na presença de outros, o Sr. compreende, há coisas difíceis de dizer.

Peter respondeu, com ar pensativo:

- Há uma coisa que não ficou clara. O Sr. disse que deu instruções para trocar a gordura da frigideira, mas isso não foi feito?

- É verdade.

- O que aconteceu, então?

O rosto do jovem chef demonstrava contrariedade.

- Esta manhã dei a ordem. Meu nariz me dizia que a gordura não era boa. Mas o Sr. Hèbrand, sem me dizer, deu contra-ordem. Depois, êle foi-se embora e eu fiquei, sem saber, com a gordura ruim.

- Que motivo foi dado para a contra- ordem? - perguntou Peter, que sorriu sem Querer.

- A gordura é cara, muito cara; nisso, concordo com 1 Mr. Hèbrand. Ùltimarnente, nós a temos trocado muitas vêzes.

- Já tentou achar o motivo para isso?

André Lemieux ergueu as mãos em gesto de desespêro.

- Fiz a proposta de executar, todos os dias, uma prova química, para verificar o ácidu gorduroso livre. Poderia ser feito num laboratório, até mesmo aqui. Dêsse modo, inteligentemente, procuraríamos a causa da falha na gordura. M. Hébrand não concorda com isso ou com outras coisas.

- Acha que há muita coisa errada aqui?

- Muitas! - Era uma resposta curta, quase áspera, por momentos pareceu que a conversa terminaria, mas de repente, como se a reprêsa houvesse estourado, as palavras foram sendo ditas: - Monsieur Mcdermott, eu lhe digo que há muito êrro. Isto não é uma cozinha onde se possa trabalhar com orgulho. É uma. como se diz? miscelânea! Comida ruim, algumas coisas antigas que sãoruins, outras novas que também são, e por tôda a parte muito desperdício. Eu sou um bom chef. Pode perguntar a outros. Mas é preciso que um bom chef esteja feliz com o que faz, ou não será mais bom. Sim, monsieur, eu faria modificações, muitas delas, melhores para o hotel, para M. Hèbrand e para os outros. Mas me dizem, como se diz a uma criança, para não mudar nada!

- É possível - disse Peter - que haja grandes mudanças aqui, de modo geral, e bem cedo.

André Lemieux endireitou o corpo, tomando posição altiva.

- Se está se referindo ao Monsieur O'Keefe, qualquer mudança que ele faça eu não estarei aqui para ver. Não tenho intenção de me tornar cozinheiro de pratos instantâneos para um hotel de cadeia.

- Se o St. Gregory continuasse independente - perguntou Peter, levado pela curiosidade - que tipo de modificações seriam convenientes?

Tinha percorrido quase tôda a extensão da cozinha, retângulo comprido de um a outro extremo do hotel. A cada lado dêsse retângulo, como saídas de um centro de contrôle, portas davam acesso aos diversos restaurantes do hotel, elevadores de serviço e salas de preparação de pratos, no mesmo andar e no de baixo. Passando por uma fila dupla de caldeirões de sopa, borbulhando monstruosos, aproximaram-se da sala com tabique de vidro onde, em teoria, os dois chefs principais, o chef de cuisine e o sous-chefe, dividiam as responsabilidades. Perto dali, notou Peter, estava a grande frigideira quádrupla, causa da insatisfação do dia. Um ajudante esvaziava o conteúdo de gordura, e ao ver a quantidade da mesma tornava-se fácil compreender por que a substituição por demais frequente se tornava cara. Detiveram-se, enquanto André Lemieux pensava na pergunta de Peter.

- Que modificações, monsieur? A mais importante é a comida. Para alguns que preparam a comida, a fachada, a aparência do prato, é mais importante do que o seu paladar.

Neste hotel, desperdiçamos muito dinheiro com a apresentação.

A salsa está por tôda parte, mas não o bastante no môlho. O agrião está no prato, quando é preciso pôr mais na sopa. E êsses arranjos de côr da gelatina!

O jovem Lemieux ergueu os braços em gesto de desespêro, e Peter sorriu.

- Quanto aos vinhos, monsieur, Dieu merci, não são de minha alçada.

- Sim - respondeu Peter, que também já criticara o estoque inadequado dessa bebida no St. Gregory.

- Numa palavra, monsieur, todos os horrores de uma table d'hôte de má qualidade. Um desrespeito colossal pela comida, um abandono com o dinheiro, em favor da aparência!

coisas que fazem até chorar. Chorar, monsieur!

Ele se interrompeu, deu de ombros e continuou:

- Com menos desperdício, pòdíamos ter uma cuisine que satisfizesse o bom-gôsto e honrasse o paladar. Como está ela é sem graça, extravagantemente ordinária!

Peter imaginou se André Lemieux estava sendo bastante realista no que dizia respeito ao St. Gregory. Como a sentir essa dúvida, o sous-chef insistiu:

- É verdade que um hotel tem problemas especiais. Aqui não temos uma casa para gastrônomos. Não pode ser. Temos de cozinhar depressa muitas refeições, servir muita gente que está numa pressa americana grande demais. Mas dentro dêsses limites, pode haver excelência de qualidade, de uma qualidade com que se pode viver. No entanto, Monsieur Hèbrand me diz que minhas idéias são caras demais. E não é assim, como provei!

- Como provou?

- Venha, por favor.

O jovem francês foi mostrando o caminho até o escritório com tabique de vidro, cubículo pequeno e atravancado com duas mesas, arquivos e armários que tomavam três paredes. Dirigiu-se à mesa menor, e abrindo uma gaveta extraiu de lá um grande envelope de papel grosso e amarelo, do qual tirou uma pasta que entregou a Peter.

- Pergunta que modificações. Está tudo aí.

Peter Mcdermott abriu a pasta com curiosidade, encontrando muitas páginas, tôdas cheias de uma letra boa e precisa.

Diversas fôlhas maiores e dobradas eram mapas; desenhados e com legendas no mesmo estilo cuidadoso. Compreendeu que se tratava de um plano-mestre de serviço para todo o hotel. Nas páginas seguintes encontrou os custos calculados, cardápios, um plano para contrôle de qualidade e o esbôço de uma reorganização do pessoal. Na simples consulta rápida, concepção de seu autor, bem como sua visão dos detalhes, mostravam-se impressionantes. Peter voltou a cabeça, vendo que o companheiro tinha os olhos fixos nêle.

- Se permitir, gostaria de examinar isto.

Não há pressa - concordou o sous-chef com um sorriso. - Dizem-me que nenhum dos meus cavalos deverá ganhar a corrida.

- O que me surpreende é como pôde preparar isto tão ràpidamente.

André Lemieux deu de ombros.

- Perceber o que está errado não leva muito tempo.

- Talvez possamos aplicar a mesma idéia para descobrir o que desandou na frigideira.

Faiscou um brilho de bom-humor, seguido por tristeza.

Tive olhos para isto, mas não debaixo do meu nariz.

- Não! - protestou Peter.

- Pelo que me disse, entendo que percebeu a gordura ruim, mas não a trocaram como pediu.

- Eu devia ter achado a causa da gordura ficar ruim. Sempre existe uma causa. Pode haver problema maior se não descobrirmos logo.

- Que tipo de problema?

- Hoje, graças a muita sorte favorável, só usamos um pouco da gordura de fritar. Amanhã, monsieur, haverá seiscentas frituras para os almoços da convenção.

Peter assobiou baixinho.

- É isso mesmo!

Tinham andado juntos do escritório para o lado da frigideira, da qual estavam sendo retirados os últimos vestígios da gordura insersível.

- A gordura será nova amanhã, certamente. Quando foi mudada pela última vez?

- Ontem.

- Tão recentemente?

André Lemieux acenou, confirmando.

- M. Hèbrand não estava brincando quando se queixou do preço alto, mas o que está errado é um mistério.

- Estou tentando recordar algumas coisas da química de alimentos - disse Peter, lentamente. - O ponto de queima da gordura nova e boa é.

- Quatrocentos e vinte e cinco graus. Nunca deve ser aquecida além disso, ou se estragará.

- E quando a gordura se estraga, o ponto de queima baixa devagar.

- Bem devagar, se tudo correr bem.

- Aqui vocês trabalham a.

- Trezentos e sessenta graus, a melhor temperatura para cozinhas e donas de casa, também.

- Portanto, enquanto o ponto de queima continuar por volta de trezentos e sessenta, a gordura fará seu papel. Abaixo disso, não.

- É verdade, monsiur. E a gordura dará mau gosto à comida, fazendo-a rançosa, como hoje.

No cérebro de Peter os fatos, uma vez guardados na memória, mas embotados pela falta de uso, começavam a se agitar. Em Cornell, fizera um curso de química dos alimentos. Lembrava- se vagamente de uma aula. no Statler Hall e numa tarde escura, quando as janelas estavam brancas de geada. Ele viera do ar hibernal e penetrante lá fora, e encontrara o calor e a récita de informações. gorduras e agentes catalisadores.

- Iá certas substâncias - disse êle, relembrando-se - que, em contato com a gordura, agem como catalizadores e a fazem estragar bem depressa.

- Sim, monsieur - respondeu André Lemieux, contando nos dedos. - São a umidade, sal, latão e cobre nas jun ções de uma frigideira, calor demais, o óleo de oliva. Tudo isso eu verifiquei. Não é a causa.

Uma palavra ecoara no cérebro de Peter, prendendo-se ao que êle observara, inconscientemente, ao ver a frigideira sendo limpa momentos antes.

- De que metal são as caçambas de fritura?

- São de cromo - foi a resposta, em tom intrigado. Ambos sabiam que o cromo não estragava gordura.

- Será que a cromagem foi bem feita? - perguntou Peter.

- Se não foi, o que existe por baixo do cromo, e estará êle gasto em algum lugar?

Lemieux hesitou, abrindo mais um pouco os olhos. Em silêncio, ergueu uma das caçambas e a limpou cuidadosamente com um pano. Levando-a mais perto da luz, ezaminaram a superfície de metal.

O cromo estava arranhado pelo uso longo e constante, e em pequenos pontos mostrava-se gasto de todo. Por baixo dos arranhões e pontos de desgaste havia um brilho amarelo.

- É latão! - exclamou o jovem francês, batendo com a mão na testa. - Sem a menor dúvida foi o que estragou a gordura. Eu fui um grande bobo!

- Não vejo motivo para se culpar - disse Peter. Está bem claro que muito antes de vir trabalhar aqui alguém economizou, comprando caçambas baratas, de má Qualidade. Infelizmente, a economia acabou saindo mais cara.

- Mas eu devia ter descoberto isso, como o Sr. descobriu, monsieur! - murmurou André lemieux, que parecia a ponto de chorar. - Ao invés, foi o Sr. quem veio à cozinha, monsieur, lá de sua paperasserie, para mostrar a mim o que estava errado. Todos vão rir, quando souberem!

- Só se você mesmo contar - retrucou Peter. - Ninguém vai saber disso, contado por mim.

André Lemieux silenciou e depois, devagar, comentou:

- Outros me disseram que o Sr. é homem bom e inteligente. Agora, eu mesmo sei que é verdade.

Peter indicou a pasta que tinha na mão, dizendo:

- Vou ler seu relatório e lhe direi o que penso dêle.

- Obrigado, monsieur. E eu vou exigir novas caçambas de frigideira, e de aço inoxidável! Esta noite elas estarão aqui, nem que tenha de espancar alguém!

Peter sorriu e o sous-chef acrescentou:

- Monsieur, há uma coisa em que estou pensando.

- Sim?

O outro hesitou um pouco, mas prosseguiu:

- O Sr. vai achar que sou. como se diz? presunçoso: Mas nós dois, Monsieur McDermott, tendo liberdade para trabalhar, podemos fazer dêste hotel um brinco!

Embora o francês risse impulsivamente, Peter pensou naquela afirmação por todo o caminho de volta a seu escritório na sobreloja.

Logo depois de bater à porta do quarto 1410 Christine Francis perguntou a si mesma porque viera. A sua visita a Albert Wells, feita na véspera, fôra perfeitamente natural, depois do embate travado com a morte na antevéspera e tendo ela acorrido em seu auxílio. Mas o Sr. Wells já estava sendo adequadamente tratado e, tendo-se recuperado, voltara à posição de hóspede comum em meio a mais de mil e quinhentos outros no hotel. Não havia, portanto, disse a si própria, um motivo real para outra visita pessoal a êle.

No entanto, alguma coisa a atraía para aquêle velhinho. Seria seu ar paternal e o ter ela percebido, talvez, alguns traços de seu próprio pai, com cuja perda não conseguira ainda se conformar, mesmo depois de cinco longos anos? Mas, não! A relação com seu pai fôra de confiança. Com Albert Wells ela se sentia protetora, como ontem o quisera defender das consequências de sua própria decisão de preferir uma enfermeira particular para cuidá-lo, ao invés de ir para o hospital.

Refletiu também que talvez se estivesse sentindo sòzinha; naquele momento, desejando livrar-se do desapontamento de saber que não estaria com Peter aquela noite, como tinham planejado. E quanto a isso, fôra mesmo desapontamento, ou alguma emoção maior, ao descobrir que êle iria jantar, não com ela, mas com Marsha Preyscott?

Se fôsse sincera consigo própria, teria ficado raivosa de manhã, embora esperasse ter ocultado isso, encobrindo a emoção sob a capa de ligeiro aborrecimento e a acidez leve dos comentários que não conseguira deixar de fazer. Seria um grande êrro demonstrar qualquer idéia de posse sôbre Peter, ou dar à pequenina Srta. Caramelo a satisfação de crer que tinha ganho uma vitória feminina, o que realmente acontecera.

Não houve qualquer resposta dentro do quarto, e lembrando-se de que a enfermeira devia estar presente Christine bateu outra vez, com mais fôrça: Dessa vez, ouviu o ruído de uma cadeira que se arrastava e passos que se aproximavam da porta.

Quando esta se abriu, era Albert Wells quem estava à sua frente, já todo vestido, com boa aparência e corado. O seu rosto se iluminou ao vê-la.

- Eu contava que viesse, Srta. Se não viesse, iria procurá-la.

- Eu pensei... - disse ela, em surprêsa.

O homenzinho deu uma risada.

- Pensou que êles iam me manter na cama. Mas não puderam. Eu me sentia bem, de modo que fiz o médico do hotel chamar aquêle especialista, o que veio do Illinois, Dr. Uxbridge. Ohomem tem muito boa cabeça e disse que quem se sente bem quase sempre está, mesmo. Por isso, mandamos a enfermeira embora e aqui estou!

O rosto exprimia a maior satisfação, êle convidou:

- Então, Srta. faça o favor de entrar!

A reação de Christine foi de alivio, pois terminara a grande despesa com a enfermagem particular. Desconfiava de que os cálculos de seu custo tinham muito a ver com a decisão tomada por Albert Wells, e enquanto entravam no quarto êle perguntou:

- A Srta. bateu antes?

Ela respondeu que sim.

- Pareceu-me ter ouvido alguma coisa. Acho que estava distraído com aquilo - disse êle, indicando uma mesa perto da janela, sôbre a qual estava um grande quebra-cabeças já bem adiantado. - Ou talvez tenha pensado que era o Bailey.

- Quem é Bailey? - perguntou ela, curiosamente.

- Se ficar aqui um pouco, vai conhecê-lo. Pelo menos se não for ele será o Barnum. - respondeu o velho, com expressão brejeira nos olhos.

Ela sacudiu a cabeça, sem compreender, e dirigindo-se à janela inclinou-se sobre o quebra-cabeças, examinando.

havia peças em quantidade suficiente, nos devidos lugares, para se reconhecer a cidade de Nova Orleans, ao entardecer, vista bem de cima, com o rio prateado serpenteando por ela.

- Eu costumava armar êsses quebra-cabeças, há muito tempo - disse ela. - Meu pai ajudava.

A seu lado, Albert Wells observou:

- Há quem diga que não serve como passatempo para um adulto, mas eu costumo armar um jôgo dêsses quando quero pensar. ás vêzes, descubro a peça-mestra e a solução para o que estou pensando, quase ao mesmo tempo.

- Peça-mestra? Nunca ouvi falar nisso.

- É só uma idéia minha, Srta. Acho que sempre existe uma peça-mestra, para êste problema ou os demais que encontramos. Há vêzes em que pensamos tê-la achado, mas estamos enganados. Quando a encontramos, no entanto, de repente se vê com muito mais clareza, inclusive o modo pelo qual as outras coisas se ajustam em volta.

Abruptamente se fêz ouvir uma batida autoritária na porta da frente, e os lábios de Albert Wells formaram o nome:

- Bailey.

Quando a porta se abriu, ela se surpreendeu ao ver um camareiro uniformizado, com roupas penduradas em cabides sôbre o ombro. À frente, apresentava um terno de sarja azul, passado, e que a julgar pelo feitio antigo certamente pertencia a Albert Wells. Com a rapidez da prática o camareiro pendurou o terno num guarda- roupa e voltou à porta, onde o velho aguardava. A mão esquerda do camareiro segurava os ternos no ombro, e a direita se estendeu automàticamente, com a palma para cima.

- Já tratei de seu caso - disse Albert Wells, mostrando divertimento no olhar. - Foi quando apanharam o terno de manhã.

- De mim, não, Sr. - respondeu o homem, sacudindo decididamente a cabeça:

- Não, mas de seu amigo. a mesma coisa.

- Não sei nada disso - insistiu o homem, em atitude estóica.

- Então êle não divide com você?

A mão estendida baixou.

- Não sei do que o Sr. está falando.

- Ora, vamos! - disse Albert Wells, rindo francamente. - Você é Bailey. Eu dei gorjeta a Barnum.

O camareiro voltou o olhar para Cristine, e ao reconhecê-la a dúvida se refletiu em seu rosto, e admitiu, com sorriso encabulado:

- Sim, Sr.

Saiu e fechou a porta atrás de si.

- que se está passando?

- A Srta. trabalha num hotel e não conhece o truque de Barnum e Bailey? - perguntou o velho, soltando uma risada.

Christine sacudiu a cabeça em negativa.

- É truque bem simples, Srta. Os camareiros de hotel trabalham dois a dois, e o que apanha um terno nunca é o que o traz de volta. Fazem de propósito, de modo que recebem duas gorjetas, ao invés de uma só. Depois, juntam o dinheiro e dividem.

- Percebo agora - disse Christine. - Mas nunca pensei nisso!

- A maioria não percebe o truque e isso Lhe custa gorjeta dupla pelo mesmo serviço - comentou Albert Wells, esfregando o nariz pensativamente. - Comigo, é um tipo de jogo, ver quantos hotéis existem onde se faz a mesma coisa.

- E como descobriu? - perguntou ela, rindo.

- Um camareiro me contou, certa feita, depois de lhe dizer que ia protestar. E contou outra coisa: a Srta. sabe que nos hotéis com telefone interno de disco, póde-se chamar os quartos diretamente em alguns dêles, de modo que Barnum ou Bailey, conforme quem seja naquele dia, disca para os quartos onde há entregas a fazer. Se não atendem, êle espera e chama outra vez, mais tarde. Se atendem, porque há alguém no quarto, êle desliga sem dizer coisa alguma e poucos minutos depois entrega o terno e apanha a segunda gorjeta.

- O Sr. não gosta de dar gorjetas, Sr. Wells?

- Não é isso, Srta. A gorjeta é como a morte: ninguém se livra dela, e não adianta aborrecer-se. De qualquer nodo, eu dei boa gorjeta a Barnum, de manhã, como que pagando adiantado pela distração que tive com Bailey há pouco. O que não gosto é de ser tomado por bobo.

- Imagino que isso não acontece muitas vêzes. Christine começava a desconfiar que Albert Wells precisava muito menos de proteção do que ela pensara antes, mas continuava a achá-lo agradável, e êle reconheceu:

- Pode ser, mas vou-lhe dizer que há mais peraltices dêsse tipo neste hotel do que na maioria dos outros.

- Por que pensa assim?

- Porque tenho os olhos bem abertos, Srta. e converso com as pessoas. Elas me contam coisas que talvez não lhe contassem.

- Que tipo de coisas?

- Bem, entre outras, pensam que conseguirão livrar-se de qualquer punição. Acho que isso se deve a não terem boa administração aqui. Podia ser boa, mas não é, e talvez por isso o seu Sr. Trent esteja em dificuldades agora.

- É quase incrível! - respondeu ela. - Peter McDermott me disse exatamente o mesmo, quase nas mesmas palavras!

Seus olhos examinaram o rosto do velhinho. A despeito de seus modos antiquados, êle parecia ter o dom instintivo de descobrir a verdade. Albert Wells assentiu, em sinal de aprovação:

- Esse é um môço esperto. Tivemos uma conversa ontem.

- Peter estêve aqui? - perguntou ela, surpreendida.

- Isso mesmo.

Era, mesmo, o tipo de coisa própria de Peter Mcdermott - pensou ela. Ele acompanhava com eficiência tudo a que estivesse pessoalmente ligado. Já observara a sua capacidade de pensar em têrmos amplos, mas raramente omitindo detalhes.

- Vai se casar com êle, Srta?

A pergunta abrupta a espantou e Christine protestou:

- Quem lhe deu essa idéia?

Para seu embaraço, no entanto, sentiu que corava. Albrt Wells riu e ela achou que havia momentos nos quais êle apresentava traços de um diabrete traquinas.

- Como que adivinhei, pelo modo como disse o nome dêle. Além disso, calculei que devem ver-se muito, trabalhando aqui. E se aquêle rapaz tem o tipo de juízo que penso ter êle verá que não precisa procurar muito além.

- Sr. Wells, o Sr. é abominável! O Sr... lê os pensamentos dos outros e os deixa encabuladíssimos!

O calor do sorriso com que dizia isso, no entanto, desmentia suas palavras e ela acrescentou:

- E pare de me chamar "Srta. " Eu me chamo Christine.

- É nome especial para mim - disse êle, baixinho. Minha espôsa também se chamava Christine.

- Chamava?

- Sim, ela faleceu, Christine. Foi há tanto tempo que em certas ocasiões julgo que realmente não existiram os tempos que passamos juntos, nem os bons, nem os difíceis, e houve bastante dos dois. E de outras vêzes parece que tudo aconteceu ontem. É quando me sinto cansado, mais por estar tão sòzinho. Não tivemos filhos - acrescentou logo, espelhando meditação no olhar. - Nunca se sabe quanto se partilha com alguém, até que o convívio termine. Por isso, você e seu rapaz tratem de aproveitar todos os minutos. Não percam tempo pois êle não volta!

- Continuo dizendo que não é meu rapaz - disse ela com uma risada. - Pelo menos, ainda não.

- Se você fizer as coisas direitinho, êle poderá ser.

- Talvez - respondeu Christine, voltando o olhar para o quebra- cabeças parcialmente montado e acrescentando, devagar: - Será que existe uma peça-mestra para tudo, como o Sr. diz? E quando se descobre essa peça, quando se tem certeza ou só se calcula e tem esperanças?

E antes que o percebesse, viu que estava confiando no homenzinho, contando-Lhe os fatos do passado, a tragédia em Wisconsin, sua solidão, a mudança para Nova Orleans, os anos de ajustamento e agora, pela primeira vez, a possibilidade de uma vida completa e frutífera. Revelou-lhe também o cancelamento do encontro daquela noite e seu desapontamento pelo motivo. Ao terminar suas confidências, Albert Wells acenou, em expressão de quem compreende.

- Muitas vêzes as coisas se arrumam sòzinhas. De outras, é preciso dar um empurrãozinho, de modo a ajudar as pessoas.

- Tem alguma idéia? - perguntou ela, bem-humorada. Sendo mulher, você sabe melhor o que fazer. Mas há uma coisa: pelo sucedido, não é difícil imaginar que o rapaz a convide para sair amanhã.

- É possível - concordou ela enquanto sorria.

- Pois arranje outro compromisso antes que êle a convide. Ele a desejará mais ainda, tendo de esperar outro dia.

- Seria preciso eu inventar alguma coisa.

- Não há necessidade, a não ser que prefira. Eu ia mesmo convidá-la, Srta. desculpe, Christine. Gostaria que jantássemos juntos, você e eu, como a agradecer o que fêz por mim aquela noite. Se consegue aguentar a companhia de um velho, ficarei muito satisfeito de ser o substituto.

- Será muito bom jantarmos - disse ela. - Mas lhe prometo que não vai ser substituto algum.

- ótimo! - exclamou o velhinho, exprimindo satisfação no rosto sorridente. - Será melhor jantar aqui no hotel, eu acho. Eu prometi àquele doutor que não sairia durante alguns dias.

Christine hesitou alguns instantes; duvidando de que Albert Wells soubesse quais eram os preços noturnos no restaurante principal do St. Gregory. Embora houvesse terminado a despesa com a enfermagem, Christine não desejava esgotar ainda mais os recursos que restassem a Albert Wells. De repente achou o modo de impedir que isso acontecesse. Abandonando a idéia para tratar dela mais tarde, garantiu:

- O hotel será formidável. Mas vai ser uma ocasião especial. O Sr. precisa me dar tempo de ir à casa e vestir alguma coisa realmente bonita: Vamos marcar para oito horas de amanhã.

No décimo-quarto andar, depois de deixar Albert Wells, Christine notou que o elevador número quatro estava parado e o trabalho de manutenção se fazia tanto nas portas internas quanto no próprio veículo.

Tomou outro elevador para a sobreloja.

O presidente dos dentistas, Dr. Ingram, voltou o rosto indignado para seu visitante no apartamento do sétimo andar.

- McDermott, se vem com idéia de suavizar as coisas, digo-lhe desde já que perde seu tempo. Foi isso que veio fazer?

- Sim - disse Peter. - Acho que sim.

- Pelo menos, você não mente - disse o Dr. Ingram, resmungando. - Não há motivo para mentir. Sou empregado do hotel, Dr. Ingram, e enquanto trabalhar aqui tenho a obrigação de fazer o possível pela casa.

- O que aconteceu ao Dr. Nicholas foi o melhor que pôde fazer?

- Não, Sr. Acredito ter sido o pior. O fato de não ter autoridade para modificar uma ordem do hotel não meLhora coisa alguma.

O presidente da convenção de odontólogos resmungou novamente.

- Se pensa assim, devia ter a coragem de se demitir. arranjar emprêgo noutro lugar, onde o salário fôsse menor, mas a ética melhor.

Peter corou, abstendo-se duma réplica imediata e lembrando que naquela manhã, na portaria, admirava o dentista por sua posição corajosa. Nada mudara, desde aquêles momentos.

- E então? - perguntou o outro, com expressão alerta e olhar fixo no seu.

- Suponhamos que me demitisse - respondeu Peter. Quem ficasse com o emprêgo poderia estar perfeitamente satisfeito com as coisas, como elas estão agora. Pelo menos, eu não estou, e pretendo fazer o possível para mudar as ordens aqui.

- Ordens! Racionalização! Desculpas esfarrapadas! bradou o dentista, cujo rosto corado ficou ainda mais rubro.

- Já ouvi isso tudo! Elas me enjoam, me tornam envergonhado, farto da raça humana!

Seguiu-se um silêncio e depois o Dr. Ingram prosseguiu, em voz mais baixa, tendo descarregado sua raiva imediata:

- Vou reconhecer que você não é tão fanático quanto outros, McDermott. Você próprio tem um problema e meus gritos não vão resolver coisa alguma. Mas você não percebe, meu filho? Na metade das vêzes é a desgraçada da racionalidade de pessoas como você e eu o que resulta no tipo de tratamento recebido hoje por Jim Nicholas.

- Eu percebo, sim, Doutor. Só não acho que a coisa tôda seja tão simples como o Sr. diz.

- Muitas coisas não são sinples - retrucou o outro.

- Você ouviu o que eu disse a Nicholas. Disse-lhe que se não recebermos desculpas e um quarto, eu tiraria tôda a convenção dêste hotel.

Com cautela, Peter perguntou.

- Não há geralmente acontecimentos em sua convenção, debates médicos, demonstrações, coisas assim, que beneficiam muita gente?

- naturalmente!

- Nesse caso, sua atitude iria ajudar? Quer dizer: se o Sr. acabasse com tudo, quem sairia ganhando? Não seria o Dr. Nicholas? deteve-se, percebendo a hostilidade do interlocutor se renovar, enquanto êle falava.

- Não me venha jogar areia nos olhos, McDermott - atalhou o Dr. Ingram. - E não me ach estúpido a ponto de não ter pensado nisso.

- Sinto muito.

- Sempre há motivos para não fazer alguma coisa, e muitas vêzes são bons motivos. Por isso, poucos tomam posição pelas coisas em que acreditam, ou dizem acreditar. Em algumas horas, quando alguns colegas, bem intencionados, ouvirem o que pretendo fazer, garanto que vão aparecer com o mesmo tipo de argumentação.

O dentista fêz uma pausa, respirando fundo, e depois olhou Peter bem nos olhos, perguntando:

- Diga-me uma coisa... Esta manhã você confessou que se sentia envergonhado por ter de rejeitar Jim Nicholas.

se estivesse em meu lugar, aqui e neste instante, o que faria?

- pergunta hipotética, Doutor, e...

- Não me venha com tolices. Fiz uma pergunta simples e direta.

Peter silenciou, pensando. No referente ao hotel, supunha que tudo quanto dissesse agora não faria grande diferença para o resultado. Por que não responder sinceramente? Manifestou-se então:

- Faria exatamente o que o Sr. pretende fazer: cancelar.

- Ah!

Dando um passo atrás, o presidente da convenção o olhou com satisfação.

- Por baixo de tôda a porcaria dêste hotel, está um homem sincero.

- E que poderá perder o emprêgo.

- Firme nesse terno prêto, meu filho! Pode conseguir emprêgo como ajudante funerário!

Pela primeira vez o Dr. Ingram riu, e perguntou em seguida:

- A despeito de tudo, McDermott, eu gosto de você.

Tem algum dente precisando de trato?

Peter negou, acenando a cabeça.

- Se o Sr. não se incomoda; prefiro saber quais são seus planos, e tão depressa quanto possível.

Haveria providências imediatas a tomar, caso se confirmasse o cancelamento. Oprejuízo seria desastroso para o hotel, como Royall Edwards dissera no almoço, mas ao menos alguns dos preparativos para os dias seguintes podiam ser interrompidos imediatamente. A resposta do Dr. Ingram foi decidida:

- Você foi sincero comigo, e vou retribuir na mesma moeda. Convoquei uma reunião de emergência dos diretores para as cinco horas da tarde. - Consultou o relógio, e aduziu: - Será em duas horas e meia. A essa altura, já terão chegado quase todos os diretores da convenção.

- Certamente estaremos em contato, o Sr. e eu. O Dr. Ingram anuiu, tendo voltado a uma expressão sombria.

- Não vá pensar que a coisa mudou, McDermott, só porque abaixamos as viseiras por um momento. Pretendo atingi-los no lugar onde dói mais!

Surpreendentemente, Warren Trent reagiu quase com indiferença à notícia de que o Congresso Americano de Odontologia poderia abandonar sua convenção e retirar-se do hotel em sinal de protesto. Peter McDermott se dirigira imediatamente ao conjunto administrativo principal, na sobreloja, depois de deixar o Dr. Ingram, e Christine lhe dissera - com alguma frieza, achou êle - que o dono do hotel estava presente.

Notou que Warren Trent se mostrava visivelmente menos tenso do que em outras ocasiões recentes. Sentado calmamente por trás da mesa com tampa de mármore prêto, no suntuoso escritório de gerente, não demonstrava irascibilidade alguma como a exibida na véspera. Havia momentos, enquanto ouvia Peter, quando um esboço de sorriso lhe aflorava aos lábios, embora parecesse ter pouca relação com os acontecimentos narrados. Era mais como se estivesse saboreando um prazer íntimo, sentido apenas por êle, pensou Peter. Ao final do relatório, o dono do hotel sacudiu a cabeça em negativa decidida:

- Eles não vão abandonar o hotel. Vão falar, debater, mas será tudo.

- O Dr. Ingram parece bem decidido.

- Pode ser, mas os outros não estarão. Você diz que vão reunir-se esta tarde. Vou-lhe adiantar o resto: êles debaterão um pouco, e depois nomearão uma comissão para redigir a resolução. Mais tarde, talvez amanhã, a comissão se apresentará à diretoria, que poderá aceitar a resolução ou modificá-la. De qualquer modo, vão debater mais um pouco. Mais tarde, ainda, talvez no dia seguinte, a resolução será levada à assembléia-geral para exame. Já assisti a tudo isso, ao grande processo democrático. Ainda estarão debatendo, quando a convenção já houver terminado.

- Talvez o Sr. tenha razão - disse Peter -, embora eu ache que seja um ponto de vista um tanto mórbido.

Falara com imprudência, e preparou-se para uma resposta explosiva, mas esta não veio. Ao invés, Warren Trent se limitou a resmungar:

- Sou prático, é tudo. As pessoas cacarejam sôbre os chamados princípioS até ficarem de bôca sêca, mas fazem tudo o que é possível para evitá-los.

- Poderia ser mais simples ainda se mudássemos de orientação - insistiu Peter. - Não acredito que o Dr. Nicholas, se lhe déssemos acolhimento, pudesse prejudicar o hoteL.

- Ele, talvez, não. Mas o rebotalho que viria atrás dêle. E então eStaríamos em sérias dificuldades.

- Pelo que sei, já estamos em dificuldades.

Caprichosamente, Peter percebia que se estava arriscando no que dizia e já não sabia até onde poderia ir. E qual o motivo para o seu superior se mostrar relativamente tão bem-humorado, naquele dia?

As feições aristocráticas de Warren Trent tiveram uma expressão sardônica.

- Podemos ter estado em dificuldades por algum tempo, mas em um dia ou dois isso deixará de ser assim.

Depois de uma pausa, perguntou abruptamente:

- Curtis O'Keefe ainda está no hotel?

- Até ond sei, está. Teria sabido, caso êle houvesse SaídO.

- Ótimo! - exclamou Warren Trent, com o mesmo sorriSo misterioso. - Vou-lhe dizer uma coisa interessante. Amanhã convidarei O'Keefe e tôda sua cadeia hoteleira a se atirarem no lago Pontchartrain.

De sua posição estratégica na mesa do guarda da portaria, Herbie Chandler observou disfarçadamente enquanto os quatro rapazes entravam no St. Gregory, vindos da rua. Fal tavam poucos minutos para as quatro da tarde.

Herbie reconheceu dois dêles: lyle Dumaire e Stanley flion, êste exibindo uma carranca ao se dirigir na frente para os elevadores. Poucos segundoS depois, já não estavam à vista. Na véspera, e pelo telefone, Dixon lhe garantira que Sua participação na embrulhada da noit anterior não seria divulgada, mas o chefe da portaria compreendia com inquietação que Dizon era apenas um dos quatro. Como reagiriam os demais - e talvez o próprio Dixon - sob interrogatório e talvez ameaças?

Do mesmo modo como se sentira nas últimas vinte e quatro horas, Herbie Chandler continuou mergulhado em crescente apreensão.

Na sobreloja, Stanley Dixon voltou a encabeçar o grupo, na saída do elevador. Detiveram-se à frente duma porta encimada por letreiro iluminado, onde se lia "ESCRITóRIOS ADminiSTRATIVOS", enquanto Dizon repetia soturnamente o aviso anterior:

- Lembrem-se! Quem fala sou eu.

Flora Yates os conduziu ao escritório de Peter McDermott, que, olhando-os friamente, fêz sinal para que se sentassem e perguntou:

- Qual de vocês é Dixon?

- Sou eu.

- Dumaire?

Com menos confiança, Lyle Dumaire se identificou com aceno da cabeça.

- Não sei os outros dois nomes - disse Peter McDermoot.

- Que pena! - exclamou Dixon. - Se soubéssemos disso, poderíamos ter trazido os nossos cartões de visita.

O terceiro rapaz interveio:

- Eu sou Gladwin, e este Joe Walosici.

Dixon lhe lançou um olhar irritado.

- Todos vocês - declarou Peter - certamente sabem que ouvi da Srta. Marsha Preyscott tudo sóbre o ocorrido na noite de segunda-feira. Se desejarem, estou pronto a ouvir também sua versão dos acontecimentos.

Foi Dixon quem falou logo, antes que outro pudesse intervir.

- Escute! Vir aqui foi idéia sua, não nossa. Nada temos a lhe dizer. Portanto, se quer falar vá tratando de fazê-lo.

Peter sentiu os músculos do rosto enrijarem-se e fêz um esforço para se controlar.

- Muito bem. Sugiro que tratemos da questão menos importante em primeiro lugar.

Examinou papéis, e depois se dirigiu a Dixon:

- O apartamento 1126-7 foi registrado em seu nome. Quando vocês fugiram - disse, acentuando as duas últimas palavras - imaginei que se tinham esquecido de passar pela portaria, de modo que providenciei o que era para fazer: Há uma conta, que não foi paga, de setenta e cinco dólares e alguns cents. Há uma outra conta, por estragos feitos no apartamento, no montante de cento e dez dólares.

Aquêle que se apresentara como Gladwin assobiou baixinho.

- Pagaremos os setenta e cinco - respondeu Dixon. E é tudo.

- Se não concordam com a outra conta, não vou discutir - informou Peter. - Mas posso adiantar que não pretendemos encerrar a questão. Se fôr preciso, abriremos processo de cobrança.

- Escute, Stan. - começou a dizer o quarto rapaz, Joe. mas Dixon lhe fêz um sinal, obrigando-o a calar.

A seu lado, Lyle Dumaire se mexeu, inquieto, e disse em voz baixa:

- Stan, aconteça o que acontecer, podem fazer um grande barulho. Se fôr preciso; podemos dividir a conta por quatro.

Dirigindo-se a Peter, êle perguntou:

- Para pagar os cento e dez, pode ser que tenhamos dificuldades em juntar o dinheiro de uma vez. Poderíamos pagar um pouco de cada vez?

- Certamente - respondeu Peter, achando que não havia motivo para recusar-lhes as facilidades normais do hotel.

- Um de vocês, ou os quatro, podem ir falar com nosso chefe de crédito e êle tratará do caso.

Olhou os componentes do grupo, e perguntou:

- Vamos considerar essa parte como resolvida? Um por um, êles concordaram.

- Resta agora a questão da tentativa de estupro. Os quatro que se chamam homens, contra uma môça - prosseguiu Peter, sem esconder o desprêzo na voz.

Waloski e Gladwin coraram e Lyle Dumaire evitou o olhar de Peter. Apenas Stanley Dixon manteve o seu contrôle, retrucando:

- Isso é o que ela disse. Se for preciso, nossa história será outra.

- Já declarei que estou pronto a ouvir o que tenham a dizer.

- Não amole!

- Nesse caso, só me resta aceitar as da Srta. Dixon deu uma risada de zombaria.

- Você queria estar lá com a gente, não é? Ou foi tirar sua casquinha depois?

- Cále a boca, Stan - murmurou Joe.

Peter segurou-se nos braços da cadeira, lutando contra o impulso de sair dali e ir esmurrar o rosto zombeteiro à sua frente, mas sabia que se o fizesse daria a Dixon uma vantagem que o rapaz astutamente procurava ganhar. Resolveu que não se deixaria descontrolar.

- Suponho - disse glacialmente - que estão informados de que se pode apresentar queixa-crime às autoridades.

- Se fôsse assim - replicou Dixon - já o teriam feito, portanto não venha com essa conversa fiada.

- Quer repetir isso para o Sr. Mark Preyscott, se vier de Roma sabendo o que aconteceu à filha?

Lyle Dumaire lançou olhar rápido, com expressão de alarma. Pela primeira vez, houve um relance de inquietação na expressão de Dixon.

- Ele já sabe? - perguntou Gladwin, ansioso.

- Cale-se! - exclamou logo Dixon. - É um truque!

Não vão cair nêle!

Mas havia menos confiança do que antes, em sua atitude.

- Podem julgar por si mesmos se é truque ou não respondeu Peter, abrindo uma gaveta na mesa e tirando uma pasta, que abriu. - Tenho aqui a declaração assinada, feita por mim, dizendo ezatamente o que me informou a Srta. Preyscott, e mais minha observação pessoal do que vi quando cheguei ao apartamento 1126-7, na noite de segunda-feira. Ela não foi atestada pela Srta. Preyscott, mas pode ser ainda, juntamente com outros detalhes que ela deseje acrescentar. Há uma outra declaração, feita e assinada por Aloysius Royce, o empregado do hotel que vocês agrediram, confirmando o meu relatório e descrevendo o que aconteceu logo depois de ter êle entrado no apartamento.

A idéia de obter a declaração de Royce ocorrera a Peter na noite da véspera. Atendendo ao pedido feito por telefone o jovem negro a entregara aquela manhã. Odocumento bem datilografado era claro e cuidadosamente redigido, demonstrando o conhecimento jurídico de Royce, que ao mesmo tempo advertira Peter de que não acreditava que um tribunal da Luisiana aceitasse a palavra de um negro, num caso de estupro de mulher branca. Embora irritado pela constante atitude difícil de Royce, Peter lhe garantira que a coisa não deveria ir a juízo, mas Que êle precisava de uma base para agir.

Também Sam Jakubicc o ajudara, e a pedido de Peter fizera investigações discretas sôbre os dois jovens, Stanley Dixon e Lyle Dumaire. Mais tarde, informara:

- O pai de Dumaire, como você sabe, é o presidente do banco; o de Dixon é negociante de automóveis, com grandes negócios. Ambos os rapazes parecem dispor de muita li berdade, talvez por indulgência dos pais, e boa quantidade de dinheiro, embora não ilimitada. Pelo que soube, nenhum dos pais reprovaria o filho se seduzisse uma ou duas pequenas, sendo bem provável que dissesse: "Bem, eu fiz o mesmo quando era moço. " Mas tentativa de estupro é outra coisa, ainda mais contra a filha de Preyscott. Mark Preyscott tem tanta influência quanto qualquer outro nesta cidade, e pertence ao mesmo círculo dos outros dois homens, embora provàvelmente em nível superior, socialmente falando. É certo Que se Mark Preyscott fôsse procurar os pais, Dixon e Dumaire, acusando os filhos dêles de estuprar ou tentarem estuprar sua filha, os rapazes ficariam em situação difícil e sabem muito bem disso.

Peter agradecera a Jakubiec, guardando a informação.

- Tôda essa coisa de declarações - disse Dixon - não vale tanto Quanto você pensa. Você não estêve lá senão depois, de modo que a sua é de segunda mão.

- Pode ser - retrucou Peter. - Não sou advogado, de modo Que não tenho certeza. Mas não a desprezaria de todo. Além disso, quer vocês ganhassem, quer perdessem, não sairiam do tribunal com muito bom nome e creio que iriam passar maus momentos.

Pelo olhar trocado por Dixon e Dumaire, percebeu que atingira o alvo.

- Céus? - disse Gladwin, falando com os demais. - Nós não queremos ir ao tribunal!

- O que vai fazer então? - perguntou Lyle Dumaire a Peter.

- Se cooperarem. não pretendo fazer coisa alguma, pelo menos no que diz respeito a vocês. Por outro lado, se continuarem a dificultar as coisas, pretendo telegrafar mais tarde ao Sr. Mark Preyscott, em Roma, e entregar êstes documentos aos advogados dêle, aqui em Nova Orleans.

Foi Dixon quem perguntou, em tom ainda ríspido:

- O que quer dizer com essa história de "cooperar"?

- Quero dizer que aqui, e neste momento, cada um de vocês escreverá uma declaração completa sôbre o que ocorreu na noite de segunda-feira, incluindo tudo quanto ocorreu antes, na noite, e quem estêve envolvido, no pessoal do hotel, se houve alguém.

- Vá para o inferno! - exclamou Dixon.

- Pare com isso, Stan! - interveio Gladwin, demonstrando impaciência, e depois se dirigindo a Peter: - Suponha que nós assinemos essas declarações. O que vai fazer com elas depois?

- Por mais que preferisse agir de outro modo, têm minha palavra que elas não serão vistas por pessoa alguma senão internamente, aqui no hotel.

- Como vamos saber se podemos confiar nisso?

- Não vão saber. Terão de correr o risco.

Fêz-se silêncio na sala, ouvindo-se apenas o estalar de uma cadeira e o ruído abafado de uma máquina de escrever, em outro escritório. De repente, Joe Waloski se manifestou:

- Eu vou correr êsse risco. Dê-me uma fôlha de papel.

- Acho que eu também vou - aduziu Gladwin. Lyle Dumaire, com expressão de contrariedade, fêz aceno afirmativo com a cabeça. Dixon fechou a carranca, e depois deu de ombros.

- Então, resolveram bancar os escritores, hem? Ora, qual a diferença?

Dirigindo-se a Peter, anunciou:

- Quero uma caneta de ponta larga. Assenta mais com meu estilo.

Meia hora depois, Peter McDermott relia com mais cuidado as diversas fôlhas de papel que examinara ràpidamente antes dos rapazes se retirarem.

As quatro versões dos acontecimentos de segunda-feira, embora diferissem em detalhes, corroboravam-se mùtuamente nos pontos essenciais. Tôdas supriam detalhes cobrindo lacunas anteriores, e as instruções de Peter no sentido de identificarem qualquer empregado do hotel haviam sido seguidas.

O chefe da portaria, Herbie Chandler, estava firme e inapelàvelmente condenado.

A idéia inicial e formada pela metade, no espírito de Keycase, já tomara forma completa. Não havia dúvida dizia-lhe o instinto, que o aparecimento da Duquesa de Croydon no mesmo instante em que êle próprio passava pela portaria fora mais do que uma coincidência. Era um presságio superior aos outros, mostrando uma trilha a seguir, ao final da qual estavam as jóias refulgentes da Duquesa.

Era sabido que a fabulosa coleção Croydon não devia estar, tòda ela, em Nova Orleans. Em suas viagens, como era público, a Duquesa levava apenas parte de seu tesouro de Aladino, mas ainda assim era bastante coisa, e embora algumas jóias devessem estar guardadas no cofre do hotel, certamente ela mantinha outras ao alcance imediato da mão.

A chave da"situação, como sempre, estava na chave do apartamento dos Croydons e Keycase Milne deu início a uma busca sistemática para consegui-la. Andou de elevador diversas vêzes, escolhendo carros diferentes para não se tornar percebido, e afinal, vendo-se sòzinho com o ascensorista em um dêles, fêz a pergunta aparentemente casual:

- É verdade que o Duque e Duquesa de Croydon estão hospedados aqui?

- Sim, Sr.

- O hotel deve ter quartos especiais para hóspedes assim - insinuou êle, com sorriso significativo. - Coisa diferente do que dão a nós, as pessoas comuns.

- Bem, Sr. o Duque e Duquesa estão no Apartamento Presidencial.

- Ah, sim? Em que andar fica?

- No nono.

Mentalmente, Keycase registrou "primeiro ponto", e saiu do elevador em seu próprio andar, o oitavo.

O segundo ponto era determinar com precisão o número dos quartos, o que foi simples: Bastou subir um andar pela escada de serviço, e andar um pouco. As portas com acolchoa mento duplo de couro e as flôres-de-lis douradas indicavam o Apartamento Presidencial. Keycase observou o número 973-7.

Voltou à portaria, dessa vez para passear com naturalidade, passando em frente ao balcão da recepção, onde um olhar rápido e arguto revelou que o 973-7, como os quartos mais plebeus, tinha um escaninho comum para a correspondência onde estava uma chave.

Seria um êrro pedi-la em seguida, e Keycase sentou-se para esperar, o que logo confirmou sua suposição. Depois de observar alguns minutos, tornou-se óbvio que o hotel fôra alertado. Em comparação ao modo despreocupado de dar as chaves os recepcionistas demonstravam cautela, e quando os hóspedes as pediam êles perguntavam os seus nomes e os confrontavam com uma lista de registro. Não restava dúvida, raciocinou Keycase, que seu golpe daquela manhã fôra denunciado, resultando disso o maior rigor nas medidas de segurança.

Uma punhalada fria de mêdo o fêz prever outra coisa certa:

a polícia de Nova Orleans logo seria alertada e, dentro de horas poderia estar procurando Keycase Milne pelo nome. Era verdade, se merecessem crédito os jornais matutinos, que o atropelamento e fuga de duas noites antes ainda chamava a maior parte da atenção policial, mas também certamente alguém, no centro policial, encontraria tempo para mandar uma mensagem ao FBI por teletipo. Mais uma vez, relembrando o preço terrível de outra condenação, Keycase se viu tentado a não arriscar sair do hotel e fugir. Estava irresoluto, mas forçando as dúvidas para o lado, reconfortou-se na lembrança do presságio favorável que tivera de manhã:

Depois de algum tempo, a espera se mostrou lucrativa.

Um dos recepcionistas, rapaz de cabelo claro e ondulado, pareceu incerto do que fazia, e nervoso em certos momentos. Keycase supôs que fôsse homem com pouca experiência naquele trabalho.

A presença dêsse jovem proporcionava uma oportunidade embora utilizá-la fôsse arriscado, raciocinou Keycase, e bem arriscado até. Mas talvez a oportunidade - como outros acontecimentos do dia - fôsse um presságio, e êle resolveu aproveitá-la, empregando uma técnica que nunca usara antes.

Os preparativos tomariam pelo menos uma hora, e como eram três da tarde seria preciso terminá-los antes que o rapaz encerrasse seu turno de trabalho. Keycase saiu apressadamente do hotel, rumando para a loja Maison Blanche na rua Canal.

Usando o dinheiro com parcimônia, comprou coisas baratas mas volumosas, principalmente brinquedos de crianças, esperando enquanto cada artigo era colocado nas caixas de papelão onde se via o nome da casa, ou embrulhado em papel marcado do mesmo modo. Afinal, carregando uma pilha de embrulhos com dificuldade, saiu da loja, fazendo mais uma parada, num florista, pondo sôbre os embrulhos uma grande azálea em flor, regressando então ao hotel.

Na entrada da rua Carondelet, um porteiro uniformizado se adiantou para abrir bem a porta, e sorriu para Keycase, que estava quase oculto pela carga de embrulhos e a azálea.

Dentro do hotel, Keycase parou um pouco, aparentemente examinando uma série de vitrinas, mas na verdade aguardando que acontecessem duas coisas. A primeira era a convergência de diversas pessoas no balcão de recepção e correspondência, e a segunda o reaparecimento do rapaz que observara antes. As duas coisas ocorreram quase ao mesmo tempo.

Com o coração batendo forte, Keycase se aproximou da Recepção.

Era o terceiro na fila diante do rapaz de cabelo claro e ondulado, e no momento seguinte só havia uma mulher de meia-idade à sua frente, que recebeu sua chave depois de identificar-se. Quando estava prestes a se afastar, a mulher se lembrou de alguma coisa a respeito de correspondência a ser enviada a outro enderêço. Suas perguntas pareciam intermináveis, e o jovem recepcionista se mostrava hesitante nas respostas. Impaciente, Keycase percebia que em volta dêle diminuía o grupo de pessoas que se haviam dirigido ao balcão. Já um dos outros recepcionistas estava livre, e olhava para o seu lado. Keycase evitou-Lhe o olhar, orando silenciosamente para que terminasse o diálogo à sua frente.

Finalmente, a mulher se afastoù e o rapaz se voltou para Keycase. Como acontecera ao porteiro, sorriu involuntàriamente diante daquela profusão desajeitada de embrulhos, encimados pelas flôres.

Falando com azedume, Keycase utilizou uma frase já ensaiada antes:

- Sei que é muito engraçado, mas se não fôr incômodo quero a chave do 973.

O rapaz ficou vermelho, e o sorriso desapareceu no mesmo instante.

- Certamente, Sr.

Embaraçado, como Keycase pretendera torná-lo, voltou-se e tirou a chave de seu lugar no escaninho.

À menção do número do quarto, Keycase vira um dos outros recepcionistas lançar-lh um olhar de esguelha. O momento era crítico. Naturalmente, o número do Apartamento Presidencial era bem conhecido, e a intervenção por parte de um empregado mais experiente poderia dar mau resultado. Keycase suava frio.

- O seu nome, Sr.

- Que é isso? Um interrogatório? - retorquiu Keycase. Simultâneamente, deixou cair dois embrulhos. Um, ficou no balcão, e outro tombou ao chão. Cada vez mais embaraçado, o rapaz apanhou ambos, enquanto seu colega mais experiente desviava o olhar, com sorriso indulgente.

- Desculpe, Sr.

- Não faz mal.

Aceitando os embrulhos e rearrumando os demais, Keycase estendeu a mão para receber a chave.

Por fração de segundo o rapaz hesitou, mas a imagem que Keycase esperara formar foi vitoriosa. Era a imagem de um homem cansado e frustrado, vindo das compras, absurdamente carregado, a própria respeitabilidade personificada como demonstravam os embrulhos e caixas da Maison Blanche, e além disso já irritado, hóspede a ponto de explodir.

E com tôda a deferência o recepcionista entregou a chave do 973.

Enquanto Keycase andava sem pressa para os elevadores, o balcão de recepção voltava à atividade. Um ligeiro olhar para trás lhe mostrou que os recepcionistas estavam novamente ocupados, atendendo outras pessoas. Ótimo! Isso fazia diminuir a possibilidade de discussão e pensamentos tardios sôbre o ocorrido. Ainda assim, tinha de devolver a chave tão depressa quanto possível, pois sua ausência poderia ser notada, levando a perguntas e desconfianças, ainda mais perigosas porque o hotel já estava parcialmente de sobreaviso.

Keycase pediu ao ascensorista o nono andar, por precaução, no caso de alguém o ter visto solicitar uma chave para aquêle pavimento. Saindo quando o elevador o deixou lá, parou arrumando os embrulhos enquanto as portas se fechavam atrás dêle, e depois se apressou em direção à escada de serviço. Era apenas um lance a descer para chegar a seu próprio quarto, e no meio da escada estava uma lata de lixo. Abrindo-a, enfiou ali a planta que já servira ao seu propósito, e poucos segundos depois estava em seu quarto, o 830.

Enfiou logo os embrulhos num armário embutido. No dia seguinte os devolveria à loja e pediria reembolso. O custo não era importante, comparado ao prêmio que contava conquistar, mas os embrulhos seriam um estôrvo para que os levasse, e abandoná-los ali seria deixar uma pista.

Movendo-se com rapidez, abriu uma mala, tirando um pequeno estôjo forrado de couro. Continha uma série de cartões brancos, alguns lápis de ponta bem fina, calibradores e um micrômetro. Escolhendo um dos cartões, Keycase colocou a chave do Apartamento Presidencial sôbre o mesmo e depois, fixxando-a, desenhou coin cuidado extremo o contôrno da chave. Em seguida, com micrômetro e calibradores, mediu a espessura da mesma e as dimensões exatas de cada ranhura horizontal e corte vertical, anotando-as ao lado do contorno registrado no cartão. Um número de código, gravado pelo fabricante no metal, também foi copiado, pois isso poderia ajudar na escolha do disco adequado de prensagem. Finalmente, segurando a chave contra a luz, desenhou um esboço cuidadoso, à mão livre, de sua imagem vista pela extremidade.

Tinha agora uma especificação tècnicamente detalhada, que um serralheiro hábil podia seguir sem errar. O processo, refletira êle divertidamente em ocasiões anteriores, era muito diferente daquela bobagem de impressão em cêra, predileta dos autores de novelas policiais, porém muito mais eficiente.

Guardou o estojo de couro e pôs o cartão no bolso. Momentos depois, estava de volta à portaria principal.

Precisamente como antes, esperou até ver os recepcionistas ocupados e então, passando com naturalidade por ali pôs a chave do 973 no balcão, sem ser percebido.

Ficou novamente à espera, e no intervalo seguinte um recepcionista notou a chave. Sem demonstrar maior interêsse, olhou o número e a recolocou no escaninho.

Keycase sentiu a satisfação vibrante do orgulho profissional. Mediante a combinação de imaginação e habilidade, vencera as precauções do hotel e atingira seu primeiro objetivo.

Escolhendo uma gravata Schiaparelli azul-escura em meio às outras de seu guarda-roupa, Peter McDermott meditava enquanto dava o laço. Estava em seu pequeno apartamento no centro da cidade, a pouca distância do hotel, de onde saíra uma hora antes. Em vinte minutos, deveria estar no jantar oferecido por Marsha Preyscott. Pensava em quem poderiam ser os demais convidados. Presumia que, além dos amigos de Marsha - que deviam ser diferentes do quarteto encabeçado por Dixon e Dumaire - haveria uma ou duas pessoas mais idosas, justificando o convite que Lhe fôra feito.

Agora que chegava o momento, percebeu que o compromisso o desagradava, e desejava ter ficado livre para se encontrar com Christine. Sentiu a tentação de telefonar para ela antes de sair, mas achou que seria mais discreto esperar até o dia seguinte.

Tinha uma sensação incerta, a de estar suspenso no tempo, entre o passado e o futuro. Tanta coisa com que se preocupava parecia indefinida, com decisões adiadas até que os desfechos se tornassem conhecidos. Havia a questão do próprio St. Gregory. Iria Curtis O'Keefe apossar-se do hotel? E se fôsse assim, outras questões pareciam menores em comparação, até mesmo a convenção dos dentistas, cujos diretores ainda estavam debatendo se deviam ou não sair do St: Gregory em sinal de protesto. Uma hora antes, a reunião de diretores convocada pelo enérgico presidente, o Dr. Ingram, estava ainda em marcha e parecia destinada a prosseguir, pelo que dissera o garçom-chefe do serviço prestado aos quartos, e cujos subordinados haviam feito diversas entradas na reunião para levar gêlo e bebidas. Embora Peter confiasse sua indagação de bastidores a saber se a reunião dava sinais de terminar, o garçom-chefe informara que parecia haver boa dose de debates inflamados. Antes de sair do hotel Peter deixara aviso com o subgerente de serviço, para que Lhe telefonassem imediatamente; caso se tornasse conhecida qualquer decisão dos odontólogos. Até aquêle momento, não recebera qualquer aviso, e imaginava agora se o ponto de vista corajoso do Dr. Ingram prevaleceria, ou a previsão mais cética de Warren Trent, de que nada aconteceria.

A mesma incerteza fizera Peter transferir - pelo menos até o dia seguinte - qualquer ação referente a Herbie Chandler. O que havia a fazer, êle sabia, era despedir imediatamente o corrupto chefe da portaria, o que seria como expulsar do hotel um espírito impuro. Especificamente, como era claro, Chandler não seria despedido por dirigir uma rêde de lenocínio, coisa que outro organizaria se Chandler não o fizesse, mas por deixar que a ganância ultrapassasse o bom senso.

Com a saída de Chandler, muitos outros abusos poderiam ser reprimidos, embora saber se Warren Trent concordaria com ação tão sumária assim fôsse ainda incerto. Lembrando-se das indicações acumuladas, no entanto, e da preocupação do proprietário quanto ao bom nome do hotel, Peter calculava que Warren Trent concordaria.

De qualquer modo, lembrou-se, precisava ter certeza de que as declarações feitas pelo grupo Dixon- Dumaire estavam bem guardadas e só seriam usadas dentro do hotel. Nesse particular, cumpriria sua promessa. Blefara naquela tarde, ameaçando informar Mark Preyscott sôbre a tentativa de estupro da filha, pois tanto naquela ocasião quanto agora mesmo êle se lembrava do pedido feito por Marsha: Meu pai está em Roma. Não lhe conte o que houve, por favor! Nunca!

A lembrança de Marsha o fêz ver que devia apressar-se. Poucos minutos depois, deixou o apartamento e tomou um táxi que passava.

É esta a casa? - perguntou Peter.

- Com certeza - respondeu o motorista do táxi, olhando indagadoramente o passageiro. - A não ser que seu enderêço esteja errado.

- Está certo - disse Peter, acompanhando o olhar do motorista e examinando a mansão imensa, de fachada branca, só ela bastando para tirar o fôlego. Por trás de uma cêrca-viva de teixos e enormes magnólias, colunas graciosamente estriadas se erguiam de um terraço até uma galeria de balaustrada alta. Acima da galeria, as colunas se erguiam, chegando a um frontão, de proporções clássicas. Em ambos os lados do corpo principal do edifício, duas alas repetiam os detalhes, em miniatura. Tôda a fachada estava soberbamente tratada, com as superfícies de madeira bem conservada e a pintura ainda nova. Em volta da casa, o perfume das flôres enchia o ar da noite.

Depois de pagar ao motorista, Peter se aproximou do portão de ferro, que abriu sem dificuldades. Um caminho curvo, feito em tijolos vermelhos, passava entre as árvores e o gramado. Embora não estivesse ainda escuro, dois lampiões com lâmpadas fortes estavam acesos, em ambos os lados do caminho, e Peter passou por êles ao se aproximar da casa. Chegara aos degraus dando para o terraço quando um trinco fêz ruído e as portas duplas da casa se abriram. No portal amplo estava Marsha, que esperou até êle chegar ao alto da escada, partindo então ao seu encontro.

Estava de branco, num vestido pregueado; os cabelos negros contrastando bastante com êle e Peter percebeu, mais do que nunca, aquela provocante combinação de mulher e menina. Ela o recebeu com alegria:

- Seja bem-vindo!

- Obrigado - respondeu Peter, indicando os arredores com um gesto. - No momento, estou um pouco esmagado.

- Todos ficam! - disse ela, passando o braço pelo dêle.

- Vou levá-lo ao passeio oficial dos Preyscotts antes que escureça.

Descendo novamente os degraus do terraço, cruzaram a grama macia. Marsha se manteve bem perto dêle, e pela manga do paletó Peter podia sentir a firmeza cálida de sua carne. Com as pontas dos dedos, ela tocava seu punho, e havia outra fragância suave agora, além do perfume das flores.

- Ali! - disse Marsha abruptamente, voltando-se para trás. - Ali você pode ver tudo melhor. É de onde sempre tiram os retratos.

Daquele lado do gramado, a vista era ainda mais impressionante.

- Um nobre francês, que gostava de se divertir; construiu a casa - disse ela. - Foi depois de 1840. Ele gostava da arquitetura grega renovada, escravos- felizes e sorridentes, e também de ter a amante por perto, pelo que fêz construir mais uma ala. O meu pai completou, construindo a segunda ala. Ele prefere coisas equilibradas, como contas e casas.

- É êsse o novo estilo, a filosofia aliada ao fato?

- Ah, estou farta de ambos. Que fatos? Olhe o telhado. Olharam ambos para cima, e ela prosseguiu:

- Veja que se projeta além da galeria superior. O estilo combinado, de Grécia, Luisiana, seguido na maioria das construções antigas, tem sua razão, porque neste clima proporcionava sombra e arejamento. Muitas vêzes, a galeria era o lugar onde mais ficavam as pessoas. Tornou-se o centro de encontro da família, o lugar de conversar e estar juntos.

- Casas e famílias - citou êle -, uma participação da vida boa, numa forma ao mesmo tempo completa e auto-suficiente.

- Quem disse isso?

- Aristóteles.

- Esse teria compreendido as galerias - concordou ela detendo-se e pensando. - Meu pai fêz muitas restaurações.

A casa está melhor agora, mas não o modo pelo qual a usamos.

- Você deve gostar muito de tudo isto.

- Detesto! - respondeu Marsha. - Detesto êste lugar desde que o vi.

Ele a fitou com indagação no olhar.

- Ah, eu sei! Eu não detestaria, se viesse aqui como turista, em fila com outros que tivessem pago 50 cents para ver o lugar, como fazemos na Festa da Primavera- Nesse caso, eu admiraria a casa, porque adoro as coisas antigas. Mas não para viver nela, ainda mais sòzinha e à noite.

- Está escurecendo agora - observou êle.

- Eu sei. Mas você está aqui e, portanto, é diferente.

Começavam a voltar, passando pelo gramado, e pela primeira vez Peter percebeu o silêncio imperante no lugar.

- Os outros convidados devem estar sentindo sua falta.

Ela lançou um olhar travesso.

- Que convidados?

- Você me disse.

- Disse que ia oferecer um jantar, e ofereço mesmo.

A você. Se está preocupado com companhia para mim Anna está presente.

Tinham chegado à casa, fresca, de teto muito alto. Ao fundo, uma pequenina mulher idosa, vestida em sêda preta, sorria confirmando.

- Falei com Anna a seu respeito - disse Marsha – e ela aprova. Meu pai tem confiança nela, de modo que tudo está bem. Além disso, temos o Ben.

Um serviçal negro os acompanhou, com passos macios até um pequeno escritório cheio de estantes, e de um aparador trouxe uma bandeja com uma garrafa ornamental e copos de xerez. Marsha recusou e Peter aceitou um xerez, tomando-o em atitude de meditação. De um sofá, Marsha fêz-Lhe sinal para sentar-se a seu lado.

- Você passa muito tempo sòzinha aqui? - perguntou êle.

- Meu pai vem para casa nos intervalos entre as viagens. O fato é que essas viagens se tornam mais longas, e os intervalos mais curtos. Eu preferiria morar num bangalô bem feio, desde que tivesse vida.

- Duvido que o fizesse.

- Eu sei que gostaria - disse ela, com firmeza - desde que o partilhasse com alguém de quem realmente gostasse. Ou talvez um hotel servisse, também. Os gerentes de hotel não têm um apartamento para morar, bem lá em cima?

Espantado, êle a olhou, vendo-a sorrir, e poucos momentos depois o empregado avisava, em voz baixa, que o jantar estava pronto.

Em sala contígua, fôra preparada para êles uma pequena mesa redonda, e a luz das velas se refletia nos objetos da mesa e nas paredes apaineladas Acima da lareira de mármore prêto. o retrato de um patriarca, de expressão severa, os olhava, dando a Peter a impressão de que o examinava com olhos críticos.

- Não deixe meu bisavô incomodá-lo - disse Marsha, depois de se terem sentado. - Aquela cara feia que êle faz é para mim. Uma vez, êle escreveu no seu diário que queria fundar uma dinastia, e eu sou a última esperança que êle tem, e bem fraquinha.

Conversaram durante o jantar, diminuindo cada vez mais o tom formal, enquanto o empregado os servia de modo discreto. Os pratos eram requintados; e o principal foi arroz com presunto, soberbamente temperado, seguido por Crème de sabor suave. Para uma situação antevista com preocupações, Peter descobriu que estava sentindo um prazer genuíno. Marsha parecia mais animada e encantadora, à medida que passavam os minutos, e êle próprio mais descansado em sua companhia, o que não era surprêsa, pensou, porque a diferença de idades não era tão grande. À luz das velas, a sala escura ao redor dêles, pôde observar a beleza incomparável da môça.

Imaginou, também, se o nobre francês que construíra aquêle casarão, em companhia da amante, havia jantado com tanta intimidade no mesmo lugar. Ou seria tál pensamento o resultado do encanto a que o ambiente e a oportunidade o tinham submetido?

Ao final do jantar, Marsha lhe disse:

- Vamos tomar café na galeria.

Ele afastou a cadeira onde ela estava sentada, e Marsha se ergueu ràpidamente, tomando-Lhe o braço como fizera antes. Deixou-se guiar para um corredor e uma escadaria larga e curva, ao final da qual um corredor amplo, com as paredes decoradas por pinturas e fracamente iluminadas, dava para a galeria aberta que tinham visto do jardim, já imerso na escuridão.

Xícaras pequenas e um bule de prata estavam numa mesa de vime, acima da qual brilhava uma lanterna de gás. Levaram o café para o balanço da varanda, com almofadas, que oscilou lentamente quando se sentaram. A noite se mostrava confortàvelmente fresca, havendo apenas uma brisa muito suave. Do jardim vinha o zumbido sonoro de insetos. Ouviram também os sons abafados do tráfego, vindos da avenida St. Charles, a dois quarteirões de distância. Peter sentia a presença de Marsha, imóvel a seu lado.

- Você ficou tão quieta de repente. - murmurou êle.

- Eu sei. Estava pensando comu dizer uma coisa. - Experimente o processo direto. Muitas vêzes dá resultado.

- Pois bem - disse ela, como sem fôlego. - Resolvi que quero me casar com você.

Pelo que pareceram longos minutos, mas êle desconfiava serem apenas segundos, Peter ficou imóvel, tendo parado até o balanço suave da cadeira. Depois, com precisão cuidadosa, colocou a xícara de café em cima da mesa.

Marsha tossiu, mudando depois a tosse para uma risada nervosa.

- Se quer sair correndo, a escada é por ali.

- Não - respondeu êle. - Se o fizesse, ficaria sem saber por que você disse isso.

- Eu mesma não sei - retrucou ela, olhando diretamente à frente, para a escuridão da noite, o rosto meio voltado para outro lado.

Peter percebeu que ela tremia, enquanto Marsha acrescentava:

- Só que, de repente, quis dizer. E tenho a certeza de que devia fazê- lo.

Peter sabia que, quaisquer que fôssem suas palavras, era importante falar com gentileza e consideração àquela môça impulsiva. Sentia, também, uma constrição nervosa e incômoda na garganta. Irracionalmente, lembrou-se do que Christine dissera de manhã: a pequenita Srta. Preyscott tem tanta semelhança com uma criança Quanto um gatinho se parece a um tigre. Mas deve ser divertido, para um homem, ser engolido. A observação fôra injusta, até mesmo grosseira, mas a verdade é que Marsha não era criança, e não devia ser tratada como tal.

- Marsha, você mal me conhece, ou eu a você.

- Acredita em impulsos?

- Até certo ponto.

- Pois tive um, a seu respeito. Foi no primeiro instante em que o vi - disse ela, em voz inicialmente insegura mas já firme. - Na maioria das vêzes, o meu impulso não tem falhado.

- Acertou no caso de Stanley Dixon? De Lyle Dumaire?

- perguntou êle, em réplica gentil.

- Eu tive os impulsos certos, mas não os segui. Desta vez, é diferente.

- Ainda assim, o impulso pode estar errado.

- Sempre podemos estar errados, mesmo quando esperamos muito tempo - redarguiu Marsha, olhando-o de frente.

Enquanto seus olhos examinavam os dêle, Peter observou uma fôrça de caráter que não percebera antes.

- Meu pai e minha mãe se conheceram quinze anos antes de se casarem. Uma vez, ela me contou que todos os conhecidos e amigos diziam que seria o casamento perfeito. Acabou sendo o pior, e sei bem disso. Eu estava no meio dêles.

Peter guardou silêncio, sem saber o que dizer.

- Aprendi algumas coisas nesse caso, e também em outro. Viu Anna hoje?

- Sim.

- Quando tinha dezessete anos foi obrigada a se casar com um homem que só vira uma vez antes. Era um tipo de contrato de família. Naqueles tempos, faziam-se coisas assim.

Observando-Lhe a expressão, Peter murmurou:

- Continue.

- Na véspera do casamento; Anna chorou a noite tôda, mas casou- se assim mesmo, e permaneceu casada quarenta e seis anos. O marido morreu no ano passado. Moravam aqui, conosco. Era o homem mais gentil e bondoso que vi até hoje. Se já houve casamento perfeito, foi o dêles.

Peter hesitou, não querendo contradizer o exemplo, mas objetou:

- Nesse caso, Anna não seguiu o impulso. Se o tivesse feito, não se teria casado.

- Eu sei. Só queria mostrar que não existe qualquer modo garantido de adivinhar, e o impulso pode ser um guia tão bom quanto outro qualquer.

Fizeram uma pausa, e depois ela disse:

- Sei que, com o tempo, poderia fazê-lo gostar de mim. Absurda, inesperadamente, Peter sentia animar-se. A idéia era um disparate, evidentemente, produto romântico de uma imaginação juvenil. Ele, que sofrera pelas suas próprias idéias românticas no passado, devia saber. Mas, sabia, mesmo? Eram tôdas as situações subseqentes um resultado da que acontecera antes? A proposta feita por Marsha seria, assim, tão fantástica? Sentiu a convicção repentina e irracional de que ela poderia ter razão. Imaginoù, então, qual seria a reação de Mark Preyscott, o pai da môça, e que estava ausente.

- Se está pensando em meu pai.

Espantado, êle perguntou:

- Como sabe disso?

- Porque estou começando a conhecer você!

Peter respirou fundo, como se o ar estivesse rarefeito.

- Que me diz de seu pai?

- Acho que êle ficaria preocupado, de comêço, e logo voltaria depressa para casa. Isso não seria mau - disse ela, sorrindo. - Mas êle sempre ouve a voz da razão, e sei que o poderia convencer. Além disso, êle gostaria de você. Eu sei qual o tipo de gente que êle admira, e você está nessa categoria.

- Pois bem - disse êle, sem saber se devia ficar satisfeito com a resposta -, pelo menos, isso é um alívio.

- Há outra coisa. Não é importante para mim, mas seria para êle. Eu sei, e meu pai o veria também, que um dia você será um grande homem nos hotéis, e talvez hotéis de sua propriedade. Não que eu me preocupe com isso. O que quero é você - arrematou, quase sem fôlego.

- Marsha - disse Peter, com gentileza -, eu não. simplesmente não sei o que dizer.

Seguiu-se uma pausa, na qual percebeu que a confiança de Marsha a abandonava. Era como se, antes, ela tivesse reforçado a confiança em si mesma graças a uma reserva de vontade, mas essa reserva se tivesse esgotado. Em voz baixa e incerta ela declarou:

- Você acha que sou uma bôba. Diga logo, e acabe com isso.

- Não acho que seja uma bôba - asseverou êle. - Se mais pessoas, inclusive eu próprio, fôssem sinceras como você...

- Então, não se incomoda?

- longe de me incomodar, estou comovido e sem palavras.

- Pois não fale mais!

De um salto, Marsha se levantou, estendendo as mãos para êle. Peter as segurou, olhando-a enquanto entrelaçavam os dedos. Percebeu que Marsha tinha um modo de se recobrar da incerteza, ainda que suas dúvidas só estivessem parcialmente removidas, e ela pediu:

- Vá-se embora e pense. Pense, pense, pense, principalmente em mim!

- Vai ser difícil fazer outra coisa - respondeu êle, com sinceridade.

Marsha ergueu o rosto para ser beijada, e Peter se inclinou sôbre ela. Pretendia dar-lhe um beijo no rosto, mas a môça ergueu os lábios para os seus, e quando se tocaram abraçou-o com força. Remotamente, dentro do cérebro, Peter ouviu tocar um sino de alarme. Marsha comprimiu o corpo ao dêle e o contato parecia elétrico. Sua presença esguia era envolvente, e seu perfume o invadiu. Era impossível, naquele momento, pensar em Marsha senão como mulher. Peter percebeu que os sentidos despertavam, as idéias se turvavam. O sino de alarme silenciou e só conseguia se lembrar: a pequenina Srta. Preyscott. deve ser divertido, para um homem, ser engolido.

Resolutamente, separou-se dela e lhe disse, tomando suas mãos:

- Preciso ir.

Marsha veio em sua companhia até o terraço, e Peter passou a mão em seus cabelos. acariciando-os, e ela murmurou:

- Peter, querido.

Ele desceu os degraus do terraço sem os perceber.

Às 22h30, Ogilvie, detetive- chefe do hotel, utilizou um túnel de serviço, andando pesadamente por êle, do corpo principal do St. Gregory para a garagem subterrânea ao lado.

Tomara o túnel, ao invés da passagem mais conveniente pelo andar térreo, pelo mesmo motivo que o levara a escolher cuidadosamente a hora: passar tão despercebido quanto possível. As 22h30 os hóspedes que iam sair em seus automóveis já o tinham feito, mas era cedo demais para que a maior parte regressasse. Àquela hora, não havia também a probabilidade de chegarem novos hóspedes, pelo menos os que chegassem de automóvel.

O plano inicial de Ogilvie, levar o Jaguar do Duque e Duquesa de Croydon ao norte do país, saindo à uma da madrugada - e faltavam três horas para isso - não fôra modificado. Antes de partir, no entanto, êle tinha o que fazer e era importante passar despercebido.

O material para trabalhar estava no saco de papel que levava à mão, e fôra omitido no planejamento cuidadoso da Duquesa. Ogilvie percebera a omissão desde o início, mas preferira silenciar a respeito.

No acidente duplo da noite de segunda-feira, um dos faróis do Jaguar fôra arrebentado. Além disso, devido à falta do aro, agora em poder da polícia, o conjunto do farol ficara frouxo, e para dirigir o carro à noite, como planejado, seria necessário substituir o farol e consertar provisòriamente seu conjunto. No entanto, era perigoso demais levar o veículo a uma oficina, e também estava fora de cogitações mandar o próprio mecânico do hotel efetuar o consêrto.

Na véspera, escolhendo uma ocasião em que a garagem ficava deserta, Ogilvie examinara o veículo, estacionado discretamente atrás de uma coluna, decidindo que, se achasse o tipo certo de farol, êle próprio faria o consêrto provisório.

Examinara o risco de comprar um conjunto de farol no único representante de Jaguares em Nova Orleans e rejeitara a idéia. Mesmo que a polícia não conhecesse ainda - pelo que êle sabia - a marca do veículo procurado, viria a descobri-la em um ou dois dias, quando identificasse os fragmentos do vidro. Se comprasse um farol de Jaguar naquele momento, poderiam fàcilmente lembrar-se disso quando começassem as investigações, e a compra seria descoberta. Resolvera o problema adquirindo uma lâmpada padronizada, de filamento duplo, numa loja de peças de automóveis. Por exame visual, achara que a mesma poderia servir e estava agora pronto a experimentar.

Comprar a lâmpada fôra mais uma ocupação num dia ocupadíssimo, que o deixara ao mesmo tempo satisfeito e um

tanto intranqilo. Estava também fisicamente cansado, o que era mau comêço para a longa viagem rumo ao norte. Consolava-se, pensando nos vinte e cinco mil dólares, dos quais já recebera dez mil naquela tarde, conforme, o combinado, da Duquesa de Croydon. Fôra uma cena tensa e fria, ela apertando os lábios e formal, Ogilvie enfiando os maços de notas numa pasta, gananciosamente, sem se incomodar. Ao lado, o Duque se balançava, bêbado; de olhar mortiço e mal sabendo o que se passava.

O pensamento do dinheiro fazia Ogilvie sentir-se satisfeito. Já estava seguramente escondido agora, e trazia apenas duzentos dólares no bôlso, precaução para o caso de alguma coisa não dar certo durante a viagem.

Mas havia ainda intranquilidade e por duas causas. Uma, era a idéia das consequências, se não conseguisse levar o Jaguar para fora de Nova Orleans, e depois na Luisiana, Mississippi, Tennessee e Kentucky. A outra era a importância que Peter Mcdermott dava à necessidade de Ogilvie ficar por perto do hotel.

O roubo efetuado na noite anterior, bem como a probabilidade de que um ladrão profissional estivesse à sôlta no St. Gregory, não poderiam ter ocorrido em ocasião pior. Ogilvie fizera tudo quanto estava a seu alcance. Notificara a polícia e o hóspede roubado fôra ouvido pelos detetives. O pessoal do hotel inclusive os detetives da casa, fôra alertado e o lugar-tenente de Ogilvie recebera instruções sôbre o que devia fazer, conforme as contingências. Ainda assim, Ogilvie percebia claramente que devia estar presente para dirigir pessoalmente os tra balhos e quando a sua ausência fôsse percebida por McDermott

- como aconteceria no dia seguinte, deveria haver uma encrenca das maiores. Com o tempo, êsse desentendimento não teria importância, pois Mcdermott e outros como êle eram gente que vinha e ia, enquanto Ogilvie, por motivos conhecidos apenas dêle próprio e de Warren Trent, continuaria no emprêgo. Mas tal discussão teria o efeito, que êle desejava evitar acima de tudo, de chamar a atenção para seus movimentos nos dias seguintes.

Apenas de um modo o roubo e acontecimentos resultantes haviam sido úteis: tinham proporcionado um motivo válido para mais uma visita à central de polícia, onde indagou displicentemente sôbre os progressos feitos nas investigações do caso de atropelamento e fuga. A atenção policial, ficara sabendo, se concentrava ainda no caso, e tôda a fôrça estava alerta, à busca de qualquer pista. No States-Item daquela tarde a polícia fizera nôvo apêlo ao povo, no sentido de dar parte de qualquer automóvel com estragos no pára-lamas ou nos faróis. Fôra bom saber, mas, ao mesmo tempo, isso diminuía as possibilidades de tirar o Jaguar da cidade sem ser visto. Ogilvie suou, ao pensar nisso.

Chegara ao fim do túnel e se achava agora no porão da garagem que, moderadamente iluminada, se apresentava deserta. Ogilvie hesitou entre ir diretamente ao carro dos Croydons, di versos pavimentos acima, ou ao escritório da garagem, onde estava o vigia noturno. Resolveu que seria prudente ir ao escritório primeiro.

Com esforço, arfante, subiu dois lances de escada e viu que o vigia, um homem idoso, chamado Kulgmer, estava sòzinho em seu cubículo fartamente iluminado, situado bem perto da rampa de entrada e saída de veículos. O vigia abaixou o jornal que lia, quando o detetive-chefe da casa entrou.

- Queria informar - disse Ogilvie - que vou sair cedo no carro dos Croydons. Está no ponto 371. Vou fazer um favor para êles.

Kulgmer franziu as sobrancelhas.

- Não sei se posso deixá-lo fazer isso, Sr. Ogilvie, sem autorização.

Ogilvie apresentou-lhe o bilhete escrito pela Duquesa de Croydon, escrito naquela manhã a pedido seu.

- Acho que essa autorização basta.

O vigia noturno leu cuidadosamente o bilhete, e depois virou o papel para examinar o outro lado.

- Parece que basta, sim.

O detetive-chefe estendeu a mão gorducha para receber o bilhete de volta, mas Kulgmer acenou negativamente com a cabeça.

- Tenho de ficar com isso. Para me garantir.

O gordo deu de ombros. Preferiria ficar com o bilhete, mas se insistisse nisso criaria um problema, dando maior destaque ao incidente que, de outra forma, poderia ser esquecido.

Apontou para o saco de papel, dizendo:

- Vou até lá deixar isto no carro. Daqui a duas horas estarei saindo com êle.

- À vontade, Sr. Ogilvie - respondeu o vigia, voltando ao jornal.

Alguns minutos depois, aproximando-se do ponto 371 Ogilvie olhou ao redor, com despreocupação aparente. Aquela área de teto baixo e chão de concreto, ocupada pelos carros em metade de sua capacidade, parecia silenciosa e deserta. Os manobreiros noturnos certamente se achavam nos vestiários do andar térreo, aproveitando a falta de movimento para dormir ou jogar cartas. Mas era preciso agir depressa.

Num canto distante, oculto pelo Jaguar e a coluna que o encobria parcialmente, Ogilvie esvaziou o saco de papel, de onde retirou o farol, uma chave de parafusos, alicate, fio encapado e fita isolante.

A despeito de sua aparente inabilidade, movia os dedos com destreza surpreendente. Usando luvas para proteger as mãos, retirou os restos de vidro partido, levando apenas um instante para descobrir que o farol de substituição se adaptaria ao Jaguar, mas não as ligações elétricas. Pensara nisso antes e agindo depressa com alicate, fio e fita isolante, improvisou uma ligação provisória, mas eficiente. Com outro pedaço de fio, prendeu o farol no lugar, enfiando um cartão grosso tirado do bolso na lacuna deixada pelo aro perdido. Cobriu tudo com fita isolante preta, passando-a ao comprido e prendendo-a na parte traseira. Era um remendo que fàcilmente seria percebido à luz, mas não na escuridão. Levara quase quinze minutos a ser feito, e abrindo a porta do carro do lado do motorista êle ligou a chave dos faróis, que se acenderam.

Ogilvie deu um resmungo de satisfação e no mesmo instante, vindo de baixo, veio a buzinada curta e o ruído de um carro em movimento. Ogilvie ficou estatelado, e o carro se aproximou, com o ruído aumentado pelas paredes de concreto e o teto baixo. Depois, abruptamente, brilharam faróis, varrendo a rampa até o andar superior. Houve o ranger de pneus, o carro parou, e uma porta foi batida. Ogilvie afrouxou os músculos; o manobreiro de carros, como êle sabia, usaria o elevador para voltar ao pavimento inferior.

Quando ouviu os passos que se distanciavam, guardou as fEerramentas e objetos no saco de papel, juntament com alguns fragmentos maiores de vidro partido, e pôs o saco de lado para levá-lo depois.

Quando subira, notara um compartimento de faxina no andar abaixo. e usando a rampa que descia foi examiná-lo.

Como esperara, havia equipamento de limpeza no compartimento. Escolheu uma vassoura e mais um balde. Encheu éste último com água morna e apanhou um trapo de limpeza. Ouvindo cuidadosamente qualquer ruído vindo de baixo, esperou até que tivessem passado dois automóveis, e então voltou depressa ao Jaguar no andar de baixo.

Com a vassoura e a pá de lixo, varreu em volta do carro. Não deviam ficar fragmentos de vidro identificáveis, que a polícia pudesse comparar com os recolhidos no local do acidente.

Restava-Lhe pouco tempo. Estavam chegando mais automóveis que eram entregues aos manobreiros para serem levados a seus pontos de estacionamento. Duas vêzes, enquanto varrera o chão, se detivera com mêdo de ser visto, parando de respirar quando um automóvel viera para um ponto do mesmo andar, a poucos metros do Jaguar. Felizmente, o manobreiro não se dera ao trabalho de olhar em volta, mas era um aviso para que andasse depressa. Se o manobreiro o visse e resolvesse se aproximar, isso causaria curiosidade e perguntas, que seriam depois repetidas no andar de baixo. A explicação de sua presença, que Ogilvie dera ao vigia noturno, pareceria pouco convincente, e as probabilidades de uma escapada despercebida para o norte dependiam de deixar tão pouco rastro Quanto possível.

Restava ainda uma coisa a fazer. Apanhando o balde com água morna e o pano, limpou com cuidado a parte danificada do pára-lamas, e em volta da mesma. Agora, quaisquer que fôssem os aoentecimentos futuros, não havia sangue coagulado no automóvel.

Dez minutos depois, suando por causa dos esforços feitos, estava de volta ao edifício principal do hotel, e se dirigiu diretamente ao escritório, onde pretendia dormir por uma hora antes de partir na longa viagem para Chicago. Consultou o relógio: eram 3h15.

- Talvez eu pudesse ajudar mais - observou Royall Edwards em tom mordaz - se alguém me dissesse do que se trata.

O contador do St. Gregory falava aos dois homens à sua frente, do lado oposto da longa mesa da contabilidade. Entre eles, livros contábeis e arquivos estavam abertos em cima da mesa, e todo o escritório, normalmente escuro e vazio àquela hora da noite, se achava bem iluminado. O próprio Edwards acendera as luzes uma hora antes, quando levara os visitantes para seu local de trabalho, vindos os três diretamente do apartamento de Warren Trent, no décimo-quinto andar.

As instruções do proprietário tinham sido explícitas:

- Estes senhores vão examinar nossos livros. Provavelmente trabalharão até amanhecer o dia. Gostaria de que lhes fizesse companhia. Dê-lhes tudo quanto queiram, e não negue qualquer informação pedida.

Ao dar tais instruções, refletira Royall Edwards, seu patrão parecera mais animado do que o via desde muito tempo. Essa animação, entretanto, não apaziguara o contador, já aborrecido por ser chamado em casa, onde estivera trabalhando em sua coleção de selos, e mais irritado ainda porque não lhe diziam claramente o que estava acontecendo. Além disso, sendo um dos mais firmes empregados a seguir o horário das 9 às 17 horas, ficara indignado com a ideia de trabalhar a noite toda.

Royall Edwards sabia, naturalmente, que a sexta-feira era o dia de vencimento da hipoteca, e também que Curtis O'Keefe se achava no hotel, coisas que tinham evidentemente relações. Presumivelmente, essa visita tardia estaria ligada a ambos os fatos, ainda que de um modo difícil de adivinhar. Uma pista possível estaria nos cartões da bagagem dos visitantes, indicando que os mesmos tinham vindo para Nova Orleans de avião, saindo de Washington, capital do país. Mas um palpite lhe dizia que os dois contadores - pois era óbvio serem colegas seus - não tinham qualquer ligação com o governo. Pois bem, era provável que ficasse a par de tudo depois. Enquanto isso, era irritante ser tratado como simples subordinado.

Não teve resposta para sua observação de que poderia ajudar mais, se soubesse de que se tratava, de modo que a repetiu.

O mais idoso dos visitantes, homem atarracado e de rosto impassível, pegou a xícara de café a seu lado e bebeu-a.

- Uma coisa eu sempre digo, Sr. Edwards: não existe nada como uma boa xícara de café. Veja os outros hotéis! Não preparam bom café. Aqui, neste hotel, o café é bom de modo que não deve haver muita coisa errada num hotel onde servem um café assim. Que acha, Frank?

- Acho que, se vamos acabar êste trabalho a tempo, é melhor parar de conversa - respondeu o outro, sem tirar os olhos dum rascunho de balancete que examinava com atenção.

O primeiro fêz um gesto conciliador com a mão.

- Já viu como é, Sr. Edwards? Acho que Frank está certo. Ele costuma ter razão. Portanto, ainda que gostasse muito de explicar a coisa tôda, acho melhor prosseguirmos.

Percebendo a negativa, Royall Edwards retrucou sêcamente:

- Muito bem.

- Muito obrigado, Sr. Edwards. Agora gostaria de examinar seu sistema de estoque, compras, contrôle por fichas, estoques presentes, seu último recebimento de materiais, e o mais. Puxa! Que café bom! Pode-se arranjar mais um pouco?

- Vou pedir pelo telefone - respondeu o contador, observando desanimadamente que já era quase meia- noite. Era claro que o trabalho levaria ainda mais algumas horas.

quinta-feira

Se quisesse estar em condições de trabalhar no dia seguinte, pensou Peter McDermott, era melhor ir para casa e dormir um pouco. Já passavam trinta minutos da meia-noite, e êle andara durante duas horas seguidas, talvez mais ainda. Sentia-se ao mesmo tempo revigorado e agradàvelmente cansado.

Andar bastante era hábito antigo, ainda mais quando se via diante de problemas de solução difícil. Horas antes, depois de deixar Marsha, regressara a seu apartamento no centro da cidade, mas não conseguira acalmar-se naqueles aposentos pequenos, nem sentira sono, de modo que saíra a passeio, dirigindo-se ao rio. Lá, percorrera tôda a extensão dos Cais Poydras e da rua Julia, passando por navios ancorados, alguns dêles mal iluminados e silenciosos, outros preparando-se para largar. Em seguida, tomara a barca na rua do Canal, cruzando o Mississippi e, do outro lado do rio, percorrera as docas vazias, observando as luzes da cidade contra a escuridão do rio. Regressando, seguira para o Vieux Carré e estava agora sentado, tomando café au lait no velho mercado francês.

Poucos minutos antes, lembrando-se das questões relacionadas com o hotel pela primeira vez em diversas horas, telefonara ao St. Gregory. Perguntando se havia notícias quanto à ameaça de abandono por parte do Congresso Americano de Odontologia. fóra informado pelo subgerente noturno que sim, e que pouco antes de meia- noite fôra deixado um recado curto pelo garçom-chefe do andar da convenção. Até onde o mesmo pudera saber, a junta diretora dos dentistas, após uma sessão que durara seis horas, não chegara a qualquer conclusão fírme. No entanto, uma reunião geral de todos os delegados com caráter de emergência, fôra marcada para as 9h30 no Salon Dauphine. Deviam estar presentes cêrca de trezentos convencionais e a reunião seria secreta, com medidas complexas de segurança, tendo sido pedido ao hotel Que lhes garantisse O isolamento.

Peter deixara instruções no sentido de atender a qualquer pedido dos dentistas, deixando a questão de lado até que a retomasse de manhã. A não ser essa breVe distração, quase todos os seus pensamentos tinham sido sôbre Marsha e os acontecimentos daquela noite. As perguntas zumbiam em seu cérebro, como abelhas persistentes. Como enfrentar a situação com justiça, mas também com tato, sem magoar Marsha? Uma coisa, naturalmente, se tornara bem clara: a proposta feita pOr ela era impossível, mas seria o pior tipo de grosseria desprezar bruscamente uma declaração sincera. Ele lhe disera: se mais pessoas fôssent sinceras como você.

Havia outra coisa - e por que ter medo, se a sinceridade devia ser em ambos os sentidos? Ele fôra atraído por Marsha naquela noite, não como uma mocinha, mas como uma mulher. Se fechasse os olhos, conseguia vê-la como se apresEntara. O efeito era como o de um vinho capitoso.

Mas êle já provara o vinho capitoso antes e ainda sentia o gosto antigo, havendo jurado que jamais tornaria a bebê-lo. Aquêle tipo de acontecimento servia para amadurecer o juízo, tornar um homem mais sábio em sua escolha de mulheres?

No entanto, êle era um homem, vivo, dotado de sensações. Reclusão alguma que impusesse a Si próprio poderia ou deveria eStender -se para Sempre. A questão era saber quando e como terminá-la.

De qualquer modo, o que viria em seguida? Voltaria a ver MarSha? Achava isso inevitável, a menos que ele rompesse de modo imediato e decisivo. E em que têrmos faria isso? E Que dizer, também, da diferença de idades?

Marsha tinha dezenove anos, e êle trinta e dois. A diferença parecia grande, mas era mesmo? Certamente, se ambos fóssem dez anos mais velhos, um namoro - ou um casamento - não sería considerado coisa extraordinária.

As perguntas eram intermináveis, mas êle precisava decidir se veria Marsha novamente, e em que circunstâncias.

Além disso, por todo o raciocínio transitava a lembrança de Christine. No espaço de alguns dias, ele e Christine pareciam ter-se aproximado mais do que nunca. Peter se lembrava seu último pensamento, antes de sair para a casa dos Preyscotts na noite anterior, e fôra sóbre Christine. Naquele momento mesmo, desejara vê-la e ouvi-la.

Refletiu como era estranho que êle, uma semana antes aparentemente livre, estivesse naquele momento indeciso entre duas mulheres!

Riu intimamente, enquanto pagava o café e se levantava para sair.

O St. Gregory ficava mais ou menos no caminho para casa, e instintivamente encaminhou-se para lá. Quando chegou ao hotel, passavam poucos minutos de uma hora da madrugada.

Ainda havia atividade na portaria. Do lado externo, a avenida St. Charles mostrava-se tranquíla, com apenas um táxi em movimento e um ou dois transeuntes. Peter atravessou a rua, cortando caminho pelos fundos do hotel. Ali, as coisas estavam ainda mais tranqilas, e ia passar pela entrada da garagem do hotel quando estacou, avisado pelo ruído de um motor e reflexo de faróis vindos da rampa interna. Momentos depois, aparecia um carro prêto e comprido. Movia-se com rapidez e foi freado abruptamente ao chegar à rua, fazendo gemer os pneus. Quando o carro parou, estava bem em meio a um campo de luz e Peter notou tratar-se de um Jaguar. Parecia que um pára-lama estava amassado, havendo alguma coisa estranha no farol, do mesmo lado.

Desejou que o estrago não tivesse ocorrido por negligência na garagem do hotel, caso em que seria logo informado a respeito. Automàticamente, olhou quem dirigia e, com espanto, vira que era Ogilvie.

O detetive-chefe do hotel, encontrando o olhar de Peter pareceu igualmente surprêso, mas logo o automóvel saiu da garagem, prosseguindo a sua marcha.

Peter ficou imaginando o motivo pelo qual Ogïlvie dirigia aquele veículo, e para onde se encaminhava. Por que estava num Jaguar, e não em seu antigo Chevrolet?

O que os empregados faziam fora do hotel, no entanto, era lá com eles, e Peter prosseguiu para seu apartamento.

Pouco depois, dormia profundamente.

Ao contrário de Peter McDermott, Keycase Milne dormiu mal.

A rapidez e eficiência com que obtivera detalhes precisos sobre a chave do Apartamento Presidencial não tinham sido acompanhados por êxito igual em mandar fazer uma duplicata, para seu próprio uso. As ligações estabelecidas por Keycase ao chegar a Nova Orleans haviam-se mostrado menos úteis do que esperara. Finalmente, um chaveiro em uma rua nos pardieiros perto do Canal Irlandês - e que lhe asseguraram ser merecedor de confiança - concordara em fazer o trabalho, embora resmungando por ter de seguir especificações, ao invés de copiar uma chave. Mas a chave nova só estaria pronta ao meio-dia de quinta-feira, e o preço exigido era exorbitante.

Keycase concordara com o preço, bem como a espera, compreendendo não ter outra saída, mas esperar era coisa especialmente difícil, pois sentia que a cada hora aumentavam as possibilidades de que o descobrissem e prendessem.

Antes de se deitar, vira-se em dúvidas quanto a fazer nova incursão pelo hotel em horas da madrugada. Tinha ainda duas chaves em sua coleção, não utilizadas: a 449, a segunda chave obtida no aeroporto na manhã de têrça-feira, e a 803, que pedira e recebera na recepção, -ao invés de sua própria chave para o 830. Resolveu não agir naquela madrugada, afirmando a si próprio ser mais prudente esperar e se concentrar no plano maior, referente à Duquesa de Croydon. Ao mesmo tempo em que decidia isso, percebia, que a motivação principal dessa decisão era o medo.

À noite, enquanto o sono não vinha, o medo aumentou, de modo que Keycase não fez mais qualquer tentativa de dissimular o fato, nem mesmo sob a capa fina da auto-sugestão. No dia seguinte, porém, ele faria o medo recuar e voltaria a ser o homem de coração de leão.

Conseguiu afinal dormir, e sonhou que uma grande porta de ferro, fechando-o do ar e luz do dia, estava-se aproximando dele. Tentou fugir enquanto restava uma fresta, mas não conseguiu mexer-se. Quando a porta se fechou, ele chorou, sabendo que nunca mais se abriria.

Acordou tremendo de frio, em meio à escuridão, o rosto banhado em lágrimas.

A cerca de cem quilómetros ao norte de Nova Orleans Ogilvie pensava ainda em Peter McDermott. O choque inicial fora quase um impacto físico, e por mais de uma hora Ogilvie dirigira tensamente, mal percebendo em certos momentos a marcha do Jaguar, de início pela cidade e depois pela Estrada Pontchartrain, seguindo finalmente ao norte pela rodovia interestadual 59.

Consultava repetidas vezes o espelho retrovisor, observando todos os faróis surgidos atrás, esperando que logo o ultrapassassem, com o ruído da sirene da polícia. À frente, em cada desvio ou curva da estrada, estava pronto a frear, imaginando que ali iria encontrar barreiras policiais imaginárias.

A sua suposição inicial fora a de que o único motivo possível para a presença de Peter McDermott era testemunhar sua partida, para incriminá-lo. Como McDermott poderia ter descoberto o plano, era coisa da qual Ogilvie não fazia a menor ideia, mas aparentemente o subgerente conseguira isso, e o detetive-chefe do hotel, como um amador dos mais palermas, caíra numa armadilha.

Somente mais tarde, quando o campo desfilava aos lados na escuridão solitária da madrugada, é que começou a imaginar - poderia ter sido uma coincidência, afinal?

Era claro que, se McDermott tivesse aparecido com alguma intenção, o Jaguar teria sido perseguido ou detido por uma barreira. A inexistência de qualquer tentativa nesse sentido tornava mais provável a coincidência; na verdade, tornava-a certa. Ogilvie sentiu-se melhor e começou a pensar prazerosamente nos vinte e cinco mil dólares que seriam seus ao final da jornada.

Pensava, agora, que tendo tudo corrido tão bem até ali, talvez não fosse prudente continuar a viagem. Dentro de uma hora seria dia, e seu plano inicial fora sair da estrada e esperar que voltasse a escuridão da noite para continuar, mas podia haver perigo num dia de inação. Estava apenas na metade do Mississippi, ainda relativamente perto de Nova Orleans, e prosseguir viagem acarretaria o risco de ser visto, mas calculava a margem desse perigo, sentindo que contra tal ideia estava seu próprio cansaço físico, causado pela intensa atividade da véspera. Já sentia grande vontade de dormir.

Foi quando a coisa aconteceu. Atrás dele, aparecendo como num passe de mágica, via uma luz vermelha que se apagava e acendia, e uma sirene gemeu, imperiosamente.

Era aquilo mesmo que, durante as horas passadas, ele esperara acontecer. Quando isso não sucedera, sentira-se descansado, mas agora a realidade causava um choque duplo.

Instintivamente, pisou o acelerador até o chão do carro. Como uma seta cheia de impulso, o Jaguar se arremessou à frente e o ponteiro do velocímetro oscilou rapidamente, chegando a 120 quilómetros. Teve que diminuir a marcha por causa de uma curva, e a luz vermelha se aproximou mais dele. A sirene, que parara um pouco, gemeu novamente, e em seguida a luz vermelha afastou-se para um lado, quando o motorista que vinha atrás se preparou para ultrapassá-lo.

Não adiantava fugir, e Ogilvie sabia disso. Mesmo que conseguisse correr mais do que os perseguidores, não poderia evitar outros, que seriam avisados à frente. Resignadamente, foi perdendo velocidade.

Teve a impressão momentânea de que o outro veículo o ultrapassara a grande velocidade - era um veículo comprido, de cor clara, com uma luz fraca no interior e o vulto de alguém debruçado sobre outra pessoa. Logo depois a ambulância desaparecia, com sua luz vermelha acendendo-se e apagando-se na estrada à frente.

O incidente o deixou abalado e convencido de seu próprio cansaço. Resolveu, então, que fossem quais fossem os riscos, devia parar e ficar ali o resto do dia. Passara já de Macon, pequena cidade do Missisippi que fora seu objetivo para o primeiro lance da viagem. No céu despontava a primeira claridade do dia. Parou para consultar um mapa rodoviário, e logo depois saía da estrada principal, entrando num conjunto de rodovias menores.

Não tardou a atingir um ponto onde a superfície da estrada se tornara uma pista esburacada e coberta de grama. Estava cada vez mais claro, e saindo do carro Ogilvie examinou o campo ao redor.

O lugar tinha vegetação esparsa, e era deserto, sem qualquer casa à vista. A estrada principal mais próxima ficava a mais de dois quilómetros e, não muito além, havia um pequeno bosque. Fazendo a pé o reconhecimento do terreno, descobriu que a pista ia ter às árvores e ali terminava.

O homem gordo emitiu um de seus resmungos de aprovação e, voltando ao Jaguar, dirigiu-o cuidadosamente até escondê-lo na folhagem. Fêz então, uma série de verificações, certificando-se de que o carro não poderia ser visto, a não ser bem de perto. Depois, foi para o banco de trás e adormeceu.

Muitos minutos, depois de acordar pouco antes das 8 da manhã, Warren Trent ficou intrigado ao perceber que sua disposição era das melhores, e depois se lembrou do motivo. Naquele dia, fecharia o negócio proposto na véspera ao Sindicato dos Diaristas. Desafiando as pressões contrárias, bem como as sombrias predições e demais obstáculos achados, salvara o St-Gregory - por questão de horas - de ser absorvido pela cadeia hoteleira O'Keefe. Era um triunfo pessoal, e ele afastou o pensamento de que a estranha aliança com o sindicato poderia causar problemas ainda maiores, posteriormente. Se isso acontecesse, ele pensaria no assunto quando chegada a ocasião. O mais importante era o afastamento da ameaça imediata.

Saindo da cama, olhou a cidade da janela de seu apartamento no décimo-quinto andar. Lá fora, raiara mais um belo dia, e o sol já ia alto, brilhava num céu quase sem nuvens.

Cantarolou baixinho enquanto tomava um banho de chuveiro e, em seguida, Aloysius Royce fez-lhe a barba. A alegria patente de seu patrão fazia Royce erguer as sobrancelhas com surprêsa, embora Warren Trent não desse qualquer Explicação sobre sua atitude, nem tivesse ainda chEgado o momento Em que se sentiria disposto a conversar.

Depois de se vestir, a primeira coisa que fêz ao entrar na sala de estar foi telefonar a Royall Edwards. O contador do hotel, que uma telefonista encontrou em casa, conseguiu dizer-lhe, que trabalhara a noite inteira e que o telefonema do patrão o fizera levantar-se da mesa, deixando uma refeição mais do que merecida. Warren Trent queria saber da reação dos dois contadores visitantes. Pelas declarações do subordinado, os visitantes, embora informados da crise financeira atual do hotel, nada haviam descoberto de extraordinário e tinham parecido satisfeitos com as respostas de Edwards às suas perguntas.

Reconfortado, Warren Trent deixou o seu contador voltar para a mesa. Talvez naquele próprio instante, pensava êle, um relatório confirmando sua própria descrição da situação do St. Gregory estava sendo feito por telefone a Washington. Logo deveria receber notícias diretas de lá.

Quase em seguida, o telefone tocou. Royce estava pronto a servir o café, trazido no carrinho poucos minutos antes, mas Warren Trent lhe fêz sinal para que esperasse.

Uma telefonista anunciou tratar-se de chamada interestadual, e depois de Trent ter-se identificado uma outra pediu que esperasse. Afinal, o presidente do Sindicato de Diaristas entrou bruscamEnte na linha.

- Trent?

- Sim. Bom dia!

- Eu lhe avisei muito claramente, ontem, para não esconder qualquer informação. Você foi estúpido o bastantE para tentar isso; pois, agora, lhe digo uma coisa: quem usa de falsidade comigo acaba dEsejando não ter nascido. Desta vez, você teve sorte, porque a coisa apareceu antes de fechar o negócio. Mas estou avisando: não experimente fazê-lo outra véz!

A surprêsa, a dureza da voz, privaram Warren Trent da fala, momentâneamEnte, mas, recobrando-a depois, protestou:

- Escute! Não faço a menor idéia de quE se trata!

- Não faz, quando houve um conflito racial em seu maldito hotel? Quando a história está em todos os jornais de Nova York e Washington?

Foram precisos alguns segundos para poder ligar aquelas afirmações raivosas ao relatório feito por Peter Mcdermott na véspera.

- Houve um incidente ontem de manhã, coisa pequena. É mais do que certo que não foi um conflito racial, nem coisa parecida. Quando lhe falei, não sabia que tinha ocorrido, e mesmo que soubesse não me teria parecido tão importante que merecesse referência! Quanto aos jornais de Nova York, não os vi ainda.

- Os membros do sindicato os verão, e se não forem os de lá, serão os de todo o país, que vão publicar a reportagem esta noite. Além disso, se eu pusesse dinheiro num hotel que rejeita os negros, êles gritariam junto de qualquer congressista de meia-tigela que anda atrás dos votos dêles.

- Então, não é pelo princípio que você se incomoda. Você não se interessa pelo que fazemos, enquanto não fôr notado.

- Eu me interesso é pelo meu negócio, onde aplico o dinheiro do sindicato.

- Nossa transação poderia permanecer confidencial. - Se acredita nisso, é mais idiota ainda do que eu pensava.

Era bem verdade, concordou Warren Trent, sombriamente; mais cedo ou mais tarde transpareceriam as notícias de uma aliança. Tentou outra atitude:

- O que houve aqui ontem não é fato isolado. Já acon teceu em hotéis do sul antes; e acontecerá de novo. Um dia ou dois depois, a atenção se transfere para outra coisa.

- Talvez, mas se o seu hotel recebesse agora financiamento dos Diaristas, a atenção se voltaria para êle e eu dispenso êsse tipo de atenção.

- Vamos ser claros sôbre isso. Devo entender que a despeito do exame feito pelos contadores, ontem à noite, nossa combinação não está mais de pé?

A voz vinda de Washington retrucou:

- A dificuldade não está em seus livros. O relatório que meus homens fizeram foi favorável. É pelo outro motivo que a coisa fica cancelada.

Portanto, pensou Warren Trent com amargura, por causa de um incidente que ontem tratara como bagatela, o prazer da vitória lhe fôra arrebatado. Percebendo que já não faria qualquer diferença o que fôsse dito, comentou azêdamente:

- Nem sempre você foi tão escrupuloso sôbre o uso dos fundos sindicais.

Seguiu-se um silêncio, e depois o presidente dos Diaristas

disse baixinho:

- Um dia, você talvez se arrependa do que disse.

Devagar, Warren Trent repôs o telefone no ganeho. Em mesa próxima, Aloysius Royce abrira os jornais nova-iorQuinos vindos de avião, e indicava o Heral Tribune.

- A coisa está mais neste. Não vejo notícias no Times.

- Eles têm edições mais tardias em Washington - respondeu Trent.

Passou o olhar pela manchete do Herald Tribune e examinou ràpidamente a fotografia anexa, mostrando a cena da véspera na portaria do St- Gregory, com o Dr. Nicholas e Dr. Ingram como figuras principais. Calculou que, mais tarde, teria de ler esSa reportagem, mas no momento não tinha ânimo para isso.

- Quer que sirva café agora?

Warren Trent assentiu com movimento da cabeça.

- Não estou com fome - respondeu, erguendo o olhar e encontrando a expressão firme do jovem negro - suponho que, em sua opinião, eu recebi o que merecia.

Royce pensou, antes de responder.

- Coisa parecida. Oprincipal, a meu ver, é Que não aceita o tempo em que estamos vivendo.

- Na verdade, não precisa preocupar-se mais com isso.

A partir de amanhã, duvido que minha opinião valha grande coisa neste hotel.

- Essa parte eu lamento muito.

- Qero dizer que O'Keefe tomará conta – esclareceu o velho, dirigindo-se a uma janela e olhando para fora, silencioso, mas dizendo depois, abruptamente: - Imagino que tenha ouvido as condições propostas por êle, inclusive a oferta para que eu continue a morar aQui.

- Ouvi, sim.

- Como a coisa dev marchar para isso, acho que quando você se formar na faculdade, no mês que vem, terei de continuar a tolerá-lo, ao invés de o tirar daqui com um pontapé como devia fazer? Royce hesitou. Em condições comuns, teria respondido logo, com palavras ferinas, mas sabia Que estava ouvindo o apêlo de um homem derrotado e sòzinho; pedindo-lhe que ficasse.

A decisão perturbava Royce, mas assim mesmo teria de ser tomada logo. Durante quase doze anos, Warren Trent o tratara, de muitos modos, como a um filho. Se êle ficasse, as suas obrigações poderiam ser muito pequenas, além daquela de fazer companhia e servir de confidente, nas horas que tivesse depois de seu próprio trabalho como advogado. A vida estaria muito longe de ser desagradável. No entanto, havia outras pressões contrárias, afetando a decisão de ficar ou ir-se embora.

- Ainda não pensei muito sôbre isso - murmurou. Talvez seja melhor começar.

Warren Trent refletiu, vendo que tôdas as coisas, grandes e pequenas, estavam mudando, quase sempre de modo abrupto. Em seu espírito, não tinha a menor dúvida de que Royce o deixaria em breve, assim como a posse do St. Gregory finalmente lhe escapara. A sua sensação de solidão, e agora de exclusão da torrente principal de acontecimentos, era provàvelmente típica daqueles que haviam vivido demais.

- Pode ir, Aloysius - disse, afinal. - Gostaria de ficar sòzinho algum tempo.

Em poucos minutos, telefonaria para Curtis O'Keefe e apresentaria sua rendição oficial.

A revista Time, cujos responsáveis reconheciam um acontecimento digno de registro quando o liam nos jornais da manhã, entrara lèpidamente no incidente de direitos civis do Hotel St. Gregory. O correspondente local da revista, membro do States-Item de Nova Orleans, fôra alertado para conseguir tudo quanto pudesse sôbre os antecedentes locais. O chefe de redação do Time, em Houston, recebera um telefonema na noite da véspera, logo após uma edição matutina do Herald Tribune apresentar o incidente em Nova York, e chegara num dos primeiros aviões da manhã.

Os dois estavam agora trancados com Herbie Chandler, o chefe da portaria, num cubículo do andar térreo. Apelidado de "salas de imprensa", o pequeno compartimento dispunha de uma mesa, telefone e cabide para chapéus, e o homem vindo de Houston, como convinha à sua posição hierárquica, ocupava a única cadeira existente.

Chandler, que conhecia bem a liberalidade do Time para quem lhe facilitasse o trabalho, apresentava- lhes o relatório de uma incursão de reconhecimento da qual acabava de voltar.

- Verifiquei a reunião dos dentistas. Eles estão fazendo a coisa tôda em rigoroso sigilo. Disseram ao garçom-chefe do andar que ninguém deve entrar, a não ser os membros das convenções, nem mesmo as espôsas, e vão ter seus próprios elementos na porta, examinando os nomes. Antes de começar a reunião, todos os empregados do hotel terão de sair e as portas serão fechadas.

O chefe de redação era um jovem irrequieto, de cabelo cortado curto, chamado Quaratone, que já entrevistara o presidente dos dentistas; o Dr. Ingram. O que dizia o chefe da portaria confirmava o que conseguira apurar.

- É claro que vamos fazer uma reunião geral de emergência! - dissera o Dr. Ingram. - Foi resolvido por nossa junta diretora ontem à noite, mas vai ser a portas fechadas. Se eu pudesse resolver, meu filho, você e qualquer outro poderia estar presente, mas alguns colegas pensam de outro modo. Acham que se fala com mais liberdade quando a imprensa não está presente. Por isso, creio que vai ter de esperar lá fora para saber o resultado.

Sem intenção alguma de esperar "lá fora"; Quaratone agradecera polidamente ao Dr. Ingram, e tendo Herbie Chandler já contratado como aliado, sua idéia imediata fôra usar antigo truque e assistir à reunião, trajando uniforme de boy, mas o que lhe dissera Chandler mostrava que teria de usar outro plano.

- O salão onde vai ser a reunião - perguntou - é bem grande?

Chandler confirmou, respondendo:

- É o Salon Dauphine, Sr. Dá para trezentas pessoas sEntadas, e é mais ou menos o que êles esperam ter.

O homem do Time silenciou, pensativo. Qualquer reunião de trezentas pessoas deixaria de ser secreta no momento em que terminasse, e êle poderia fàcilmente misturar-se aos delegados que saíssem do salão e, fazendo-se passar por um dêles, descobrir o que ocorrera lá dentro. No entanto, perderia a maioria dos detalhes de interêsse humano, de que tanto gostavam o Time e seus leitores.

- O tal salão tem alguma sacada?

- Tem uma, pequena, mas êles já pensaram nisso. Verifiquei e descobri que dois dêles vão ficar lá. Estão desligando também os microfones do sistema de alto-falantes.

- Com os diabos! - exclamou o jornalista local. - Será que êles têm mêdo de. sabotadores?

Pensando alto, Quaratone afirmou:

- Alguns querem dizer o que pensam, mas sem que isso seja registrado. Os profissionais, pelo menos nas questões raciais, geralmente não tomam posição firme. Neste caso já estão encalacrados, tendo aceito a escolha entre abandonarem o hotel, em atitude drástica, ou fazer um gesto simbólico, apenas para salvar as aparências.

Pensava, também, que podia existir ali uma reportagem " ainda melhor do que imaginara de início, e se tornou ainda

mais decidido a descobrir o meio de assistir à reunião. Dirigindo-se a Herbie Chandler, disse abruptamente:

- Quero uma planta do andar das convenções e o de cima. Não quero um esboço, apenas, entendeu? Quero uma planta técnica mostrando as paredes, condutos, espaços no teto, tudo o mais. E quero isso depressa, porque só temos menos de uma hora para agir.

- Não sei se temos uma planta assim, Sr. Mas. O chefe da portaria parou de falar, observando enquanto Quaratone desfiava uma série de notas de vinte dólares, das quais deu cinco a Chandler.

- Fale com alguém da manutenção, com um maquinista, ou coisa assim. Use êsse dinheiro para conseguir a planta. Mais tarde tratarei do seu caso. Encontre-se comigo aqui, dentro de meia hora, antes se puder.

- Sim, Sr. - respondeu Chandler, cujo rosto de fuinha se torceu num sorriso obsequioso.

- Continue com as coisas de natureza local - disse Qua ratone, dirigindo-se ao repórter de Nova Orleans. - Declarações dos vereadores, cidadãos mais destacados. É melhor falar com a Associação Nacional Para o Progresso dos Homens de Côr. Você sabe o que fazer.

- Podia escrever até dormindo.

- Não faça isso, e preste atenção ao interêsse humano. Veja se apanha o prefeito tomando banho, por exemplo. Lavando as mãos enquanto presta declarações. Coisa simbólica. Faz boa matéria.

- Vou tentar esconder-me num banheiro - disse o repórter, saindo animado e percebendo que também êle seria generosamente pago por seu trabalho em tempo livre.

O próprio Quaratone ficou esperando no café do St. Gregory. Pediu chá gelado e o tomou distraidamente, pensando na reportagem que se ia formando. Não seria das melhores, mas desde que encontrasse aspectos interessantes poderia en cher coluna e meia na edição da semana seguinte, e isso lhe agradaria, pois nas semanas anteriores uma dúzia ou mais de suas reportagens cuidadosamente elaboradas, fôra recusada por Nova York ou então eliminada na paginação da revista. Isso não era incomum, e escrever para não ser lido era uma frustração com a qual os redatores do Time-Life aprendiam a viver. Mas Quaratone gostava de chegar à impressão, e de ser notado onde isso tinha valor.

Regressou ao pequeno compartimento apelidado "sala de imprensa", e em poucos minutos chegava Herbie Chandler escoltando um homem jovem e de traços inteligentes, vestido de macacão. O chefe da portaria o apresentou como Ches Ellis, trabalhador na manutenção do hotel, e o recém-chegado apertou a mão de Quaratone acanhadamente, dizendo depois, enquanto indicava um rolo de plantas que trazia sob o braço:

- Preciso receber isto de volta.

- O que eu quero não vai demorar - retrucou Quaratone, ajudando-o a desenrolar as plantas e pondo pesos nas pontas. - Agora, mostre-me o Salon Dauphine.

- Eu falei com êle sôbre a reunião, Sr. - interrompeu Chandler. - Disse que o Sr. quer ouvir o que disserem, sem estar lá dentro.

- O que existe nas paredes e tetos? - perguntou o homem do Time.

- As paredes são maciças - respondeu Ellis. - Há um vão entre o teto e o andar de cima mas se pensa entrar lá, não vai adiantar. O Sr. cairia pelo reboco.

- Muito bem - disse Quaratone, que estava pensando precisamente em fazer isso.

Com o dedo, indicou a planta, perguntando:

- Que linhas são estas?

- Condutos de ar quente, vindos da cozinha. Estar perto dêles já daria para assá-lo.

- E isto?

Ellis se deteve, examinando os desenhos e consultando outra planta.

- Conduto de ar frio. Passa pelo teto do Salon Dauphine.

- Há saídas dando para o salão?

- Três, uma no centro e as outras nos extremos. Pode ver que estão marcadas.

- Qual é a dimensão do conduto?

O homem da manutenção pensou, antes de responder.

- Uns três pés quadrados.

- Quero que me ajude a entrar nesse conduto – disse Quaratone, em tom decidido. - Quero entrar e rastejar por êle, até onde possa ver e ouvir o que se passar lá embaixo.

A coisa se resolveu ràpidamente. De início relutante Ellis foi levado por Chandler a conseguir outro macacão e uma caixa de ferramentas. Ohomem do Time mudou de roupa vestiu o macacão e apanhou a caixa; em seguida, nervosamente, mas sem incídentes Ellis o guiou a um anexo ao lado da cozinha do andar de convenções. Ochefe da portaria se afastou discretamente. Quaratone não fazia idéia de quantos, dos cem dólares, Chandler passara a Ellis. Desconfiava que não tinham sido todos, mas evidentemente fôra o bastante.

A passagem pela cozinha de dois trabalhadores da manutenção passou despercebida. No anexo, uma grade de metal, bem alta na parede, fôra já retirada por Ellis, e diante dela estava uma escada de madeira, encostada na abertura antes protegida pela grade. Sem conversar, Quaratone subiu a escada e se enfiou no conduto. Descobriu que havia espaço para rastejar à frente, usando os cotovelos, mas na medida justa.

A escuridão, a não ser por lampejos vindos da cozinha, era completa. Sentiu uma lufada de ar frio no rosto, e a pressão do ar aumentou, à medida que seu corpo obstruía mais o conduto metálico.

Atrás dêle, Ellis sussurrou:

- Conte quatro saídas! A quarta, a quinta e a sexta são o Salon Dauphine. Não faça barulho, Sr. ou será ouvido. Voltarei em meia hora, e se não tiver acabado, meia hora depois.

Quaratone tentou voltar a cabeça, mas não conseguiu. Isso o fazia lembrar que sair dali seria mais difícil do que entrar, e depois de responder sua concordância em voz baixa, começou a avançar.

A superfície metálica fazia doer os joelhos e cotovelos, e apresentava também pontas afiadas. Quaratone estremeceu quando a ponta de um parafuso rasgou o macacão e fêz um corte doloroso em sua perna. Voltando atrás um pouco, desembaraçou-se do parafuso e prosseguiu cuidadosamente à frente.

As saídas do conduto de ar eram fáceis de achar, devido à luz que vinha de baixo, e êle se apoiou sôbre três delas, esperando que tanto as grades quanto o conduto estivessem bem firmes. Ao se aproximar da Quarta, ouviu vozes. Parecia Que a reunião já começara e, para seu deleite, as vozes eram claras: Torcendo o pescoço um pouco, pôde ver uma parte do salão lá embaixo. Achou que a visão poderia melhorar na saída seguinte, e confirmou o palpite quando chegou lá. Podia, agora, ver mais de metade da assembléia compactamente reunida no salão, inclusive a plataforma elevada onde o presidente dos dentistas, Dr. Ingram, estava falando. Voltando-se um pouco, o homem do Time apanhou caderno e caneta esferográfica, na ponta da qual havia uma pequenina lâmpada.

-. insistir com os senhores - afirmava o Dr. Ingram - para que tomemos a posição mais firme possível.

Fêz uma pausa, e prosseguiu:

- Os homens de profissões liberais, como nós, que são por sua própria natureza moderados, já hesitaram demais na questão dos direitos civis. Entre nós próprios não discriminamos, pelo menos na maior parte do tempo, e no passado temos achado que isso basta. Em linhas gerais, temos ignorado os acontecimentos e pressões fora de nossas próprias fileiras e nosso raciocínio tem sido o de que somos profissionais, homens com pouco tempo para outras coisas. Talvez seja verdade, e mesmo conveniente, mas neste lugar e neste momento, queiramos ou não, estamos envolvidos no fato até o pescoço.

O orador fêz uma pausa, examinando as expressões daqueles a quem se dirigia, e continuou:

- Os senhores já tomaram ciência do insulto imperdoável que êste hotel cometeu contra nosso distinto colega, o Dr. Nicholas, num desafio aberto à lei dos direitos civis. Em represália, como seu presidente, recomendo ação drástica, no sentido de que cancelemos nossa convenção e abandonemos êste hotel.

Ouviram-se interjeições de surprêsa em diversas partes do salão, e o Dr. Ingram prosseguiu:

- A maioria dos senhores já conhece essa proposta. Para outros, chegados esta manhã, é coisa nova. Permitam dizer a ambos os grupos, que a medida por mim proposta acarreta inconveniência, desapontamento, tanto para mim quanto para os senhores, e um prejuízo profissional e público. Mas há ocasiões, em questões de consciência, em que sòmente a atitude mais enérgica se justifica. Acredito que esta seja uma ocasião assim, e também a única pela qual o vigor de nossos sentimentos será demonstrado, enquanto provarmos de modo inequívoco, que em questões de direitos humanos a nossa profissão não deverá ser menosprezada novamente.

Da platéia vieram, ao mesmo tempo, gritos de concordância e vozes em desacordo.

No centro do salão, um homem corpulento se ergueu com esforço. Quaratone, esticando-se um pouco de seu ponto vantajoso de observação, viu perfeitamente um sorriso nos lábios carnudos.

- Sou de Kansas City - disse êle, ao que se seguiu uma aclamação alegre, que êle agradeceu com aceno da mão gorda.

- Tenho apenas uma pergunta ao doutor. Será êle quem vai explicar à minha mulher, que muito esperou esta viagem como

muitas outras de nossas espôsas, o motivo pelo qual mal acabamos de chegar vamos dar o fora e voltar para casa?

- A questão não é essa! - bradou uma voz indignada que foi abafada por aclamações irônicas e risadas de outros.

- Isso mesmo! - disse o gordo. - Gostaria que êle explicasse a coisa à minha mulher...

Parecendo satisfeito consigo mesmo, sentou-se. ODr. Ingram se levantou, com o rosto vermelho, indignado.

- Meus senhores! estamos tratando de uma questão urgente e séria. Já retardamos uma atitude por vinte e quatro horas, o que em minha opinião constitui um dia de atraso.

Foi aplaudido, mas por pouco tempo e em pontos esparsos da platéia. Uma série de vozes se ouviu em seguida, e ao lado do Dr. Ingram o presidente da reunião bateu na mesa com o martelo de madeira, pedindo ordem. Seguiram-se vários oradores, deplorando a expulsão do Dr. Nichólas mas deixando sem resposta a questão da represália. Em seguida, como de comum acôrdo, a atenção se focalizoú num homem magro e enérgico, que se pusera de pé com ar de autoridade, na frente do salão. Quaratone não ouviu o nome anunciado pelo presidente da reunião, mas conseguiu entender algumas palavras: - segundo vice-presidente e membro de nossa junta diretora.

O novo orador começou a falar, com voz sêca e decidida.

- É por minha insistência, secundada por diversos companheiros da diretoria, que esta reunião está sendo efetuada em sigilo. Assim sendo, podemos falar livremente, sabendo que o que dissermos não será registrado, e talvez mal interpretado, fora dêste salão. Tal providência, devo acrescentar, encontrou oposição firme de nosso estimado presidente, o Dr. Ingram.

- De que tem mêdo? - perguntou o Dr. Ingram, sentado na plataforma. - De que sejamos envolvidos?

Sem dar atenção à pergunta o homem prosseguiu:

- Não fico atrás de pessoa alguma no desagrado pela discriminação. Alguns de meus melhores. - hesitou um pouco -. meus mais queridos companheiros são de outras crenças e raças. Além disso, deploro, como o Dr. Ingram, o incidente de ontem. Apenas em relação ao nosso procedimento, agora, é que estamos em desacôrdo. O Dr. Ingram, se me permite usar a metáfora, é a favor da extração. A meu ver, devemos fazer um tratamento mais suave de uma infecção desagradável, mas local.

Ouviu-se um crepitar de risadas, e o orador sorriu.

- Não posso crer que nosso colega, o Dr. Nicholas, infelizmente ausente, ganhasse coisa alguma com o cancelamento da convenção, e com tôda a certeza nós, como profissionais, perderíamos com tal cancelamento. Além disso, e como estamos numa sessão fechada, vou falar com franqueza, não acredito que, como entidade, a questão ampla das relações raciais seja de nossa conta.

Uma voz isolada, vinda lá de trás, protestou:

- É claro que é de nossa conta! Não é da conta de todos?

Na maior parte do salão, entretanto, reinava atento silêncio. O orador sacudiu negativamente a cabeça.

- Quaisquer que sejam as posições que tomarmos ou deixarmos de tomar, isso deve ser feito em caráter individual. Devemos certamente apoiar os nossos colegas onde fôr necessário, e dentro de momentos farei algumas sugestões sôbre o caso do Dr. Nicholas. No mais, concordo com o Dr. Ingram em que somos profissionais liberais, com pouco tempo para outras coisas.

O Dr. Ingram se levantou.

- Eu não disse isso! Afirmei que se trata de ponto de vista sustentado no passado, e do qual discordo completamente.

O homem deu de ombros.

- Ainda assim, a afirmação foi feita.

- Mas não com essa intenção. Não vou deixar que torçam minhas palavras! - retrucou Ingram, com um brilho raivoso nos olhos. - Sr. Presidente, estamos aqui falando demais, usando palavras como "infelizmente", "deplorável". Não podem todos ver que se trata de muito mais do que isso, que estamos examínando uma questão de direitos humanos e decência? Se estivessem aqui ontem e testemunhassem, como eu testemunhei, a indignidade cometida contra um colega, um amigo, um bom homem.

Seguiram-se gritos pedindo ordem, e enquanto o presidente batia com o martelo, relutando, seu rosto ficou vermelho. O Dr. Ingram se calou, e o orador perguntou educadamente:

- Posso continuar?

O presidente acenou que sim.

- Obrigado. Senhores, farei ràpidamente minhas sugestões. Em primeiro lugar, proponho que as nossas futuras convenções sejam efetuadas em lugares onde o Dr. Nicholas, e outros de sua raça, sejam aceitos sem dúvidas ou embaraços. Há muitos lugares que os demais acharão aceitáveis, tenho a certeza. Em segundo lugar, proponho que aprovemos uma resolução censurando a atitude dêste hotel ao rejeitar o Dr. Nicholas, após o que devemos continuar nossa convenção, como planejamos antes.

Na plataforma, o Dr. Ingram sacudiu a cabeça em sinal de incredulidade. O orador consultou uma fôlha de papel que tinha à mão.

- Em companhia de outros membros da junta diretora, redigi uma resolução.

Em sua toca, Quaratone já não escutava. A resolução, em si própria, não tinha importância. Seu teor era fácil de calcular e, se preciso, poderia conseguir o texto depois. Observava agora as expressões dos ouvintes. Eram rostos comuns, achou êle, de homens razoàvelmente educados e onde se espelhava alívio por não terem de adotar o tipo de ação, incômoda e pouco comum, proposta pelo Dr. Ingram. O enfeite das palavras, encadeadas direitinho em estilo democrático, proporcionava uma solução. A consciência ficaria aliviada, e a conveniência, intacta. Houve alguns protestos, com um único orador apoiando o Dr. Ingram, mas não duraram muito tempo. A reunião já se tornara o que parecia ser: uma discussão sôbre as palavras da resolução.

O homem do Time estremeceu, lembrando-se agora que, entre outros desconfortos, estivera perto de uma hora dentro de um conduto de ar frio. Mas o esfôrço valera a pena. Dis punha de uma matéria jornalística bem viva, que os estilistas em Nova York poderiam reescrever candentemente. Tinha, também, a impressão de que, naquela semana, o seu trabalho não seria eliminado na paginação.

Peter Mcdermott soube da decisão do Congresso Odontológico, a de continuar sua convenção, quase ao mesmo momento em que a reunião terminou. Devido à importância que tal reunião tivera para o hotel, mandara um empregado do departamento das convenções ficar ao lado de fora do Salon Duuphine, com instruções para informar imediatamente o que pudesse descobrir. Poucos momentos antes, o empregado telefonara, avisando que se tornara evidente, pela conversa dos convencionais à saída, que fôra revogada a proposta de cancelamento.

Pelo bem do hotel, Peter achava que devia sentir-se satisfeito, mas ao invés disso sentia-se deprimido. Imaginava qual seria o efeito de tal decisão sôbre o Dr. Ingram, cuja motivação forte e correção de atitudes haviam sido claramente repudiadas.

Refletia, também, em que a avaliação cínica feita por Warren Trent sôbre a situação se mostrara precisa, afinal de contas, e achou que devia informar o dono do hotel.

Quando Peter entrou na parte principal do conjunto administrativo, Christine levantou os olhos para êle e sorriu acolhedorameente, fazendo-o lembrar-se de que Quisera falar com ela na noite anterior. Ela perguntou:

- A festa foi boa?

Ao perceber a hesitação dêle, Christine pareceu se divertir, e acrescentou:

- Não diga que já se esqueceu.

Peter negou, com movimento, da cabeça, e respondeu:

- Tudo foi muito bom, mas senti sua falta e ainda me sinto mal pelo conflito entre os dois compromissos.

- Estamos vinte e quatro horas mais velhos. Pode parar agora.

- Se você estiver livre, talvez eu possa desculpar-me esta noite.

- Os convites chovem! - exclamou ela - Esta noite vou jantar com o Sr. Wells.

Peter ergueu as sobrancelhas.

- Pelo visto, êle melhorou bastante.

- Não tanto que possa sair do hotel, e por isso vamos jantar aqui mesmo. Se você ficar trabalhando até mais tarde por que não vem ter conosco?

- Se puder, irei - respondeu êle e depois, indicando a porta fechada do escritório do dono do hotel, perguntou: W. T. está?

- Pode entrar. Espero que não traga problemas, porque êle parece deprimido hoje.

- Tenho notícias que talvez o alegrem. Os dentistas acabaram de votar contra o cancelamento. Já viu os jornais de Nova York?

- Vi, sim. Acho que tivemos o que merecemos. Peter concordou, e ela prosseguiu:

- Li também os jornais locais. Não há novidades naquele caso horrível de atropelamento. Continuo a pensar nisso.

- Eu também - disse êle, em tom de solidariedade. Mais uma vez, a cena de três noites antes, a estrada fechada por corda e iluminada por faróis, a polícia buscando pistas, voltou à sua lembrança. Imaginava se a investigação policial descobriria o carro e seu motorista, responsáveis pelo acidente. Aquela altura, talvez os mesmos já estivessem a salvo, embora Peter esperasse que não. O pensamento de um crime fazia lembrar outro. Precisava perguntar a Ogilvie se havia qualquer novidade sôbre as investigações do roubo no hotel, e agora, que isso lhe ocorria, era motivo de surprêsa não ter recebido ainda notícias do detetive-chefe da casa.

Com um sorriso final para Christine, bateu à porta de Warren Trent e entrou.

As notícias não pareceram causar-lhe grande impressão. O proprietário do St. Gregory concordou com aceno da cabeça, parecendo distraído e relutante em mudar de pensamentos, sair do devaneio particular em que estava imerso. Pareceu que ia falar sôbre outro assunto, mas de modo igualmente abrupto mudou de idéia. Depois de conversa das mais curtas, Peter se retirou.

Albert Wells acertara, pensou Christine, quando predissera o convite de Peter para aquela noite, e ela sentiu arrependimento momentâneo por ter-se comprometido, deliberadamente, para aquela noite. O pensamento a fêz lembrar do estratagema que pensara usar, na véspera, a fim de tornar pequena a despesa que Albert Wells iria pagar. Telefonou a Max, o garçom-chefe do restaurante principal.

- Max, os seus preços de jantar são uma vergonha!

- Não sou eu quem os determina, Srta. Francis. Há vêzes que me dá vontade de mudar tudo.

- Tem tido muito movimento nos últimos tempos?

- Há noites - respondeu o garçom- chefe - que me sinto como Livingstone esperando por Stanley. Vou-lhe dizer uma coisa, Srta. Francis: os fregueses estão ficando mais es pertos. Sabem que hotéis como êste têm uma cozinha central, e qualquer que seja o restaurante onde comam, nesta casa, receberão o mesmo tipo de comida, preparada do mesmo modo pelos mesmos chefs. Por isso, resolvem sentar-se onde os preços são mais baixos, ainda que o serviço não seja tão especial.

- Tenho um amigo - disse Christine - que gosta do serviço de restaurante. É um cavalheiro idoso, chamado Sr. Wells. Vamos jantar aí esta noite, e quero ter a certeza de que a conta dêle será pequena, mas não tanto que êle repare. A diferença é para você debitar em minha conta.

O garçom-chefe riu.

- Sabe que é o tipo de môça que eu mesmo gostaria de conhecer?

- Com você, eu não faria isso, Max - retorquiu ela.

- Todos sabem que você é um dos dois homens mais ricos neste hotel.

- E quem é o outro?

- Não é Herbie Chandler?

- A Srta. não me está fazendo favor algum em ligar meu nome ao dêle.

- Mas você vai tratar do Sr. Wells?

- Srta. Francis, quando apresentarmos a conta êle vai pensar que comeu num restaurante automático.

Ela desligou, rindo. Sabia que Max usaria tato e bom-senso na situação.

Com raiva, incrédulo, Peter McDermott leu novamente o memorando deixado por Ogilvie, bem devagar. O papel fôra encontrado em sua mesa quando regressara do breve encontro com Warren Trent, e datado da véspera, marcando também a hora. fôra presumivelmente deixado na mesa de Ogilvie para coleta na correspondência interna da manhã. Tornava-se também claro que, tanto a hora quanto o método de entrega, tinham sido planejados de modo a tornar impossível qualquer providência, pelo menos provisòriamente, quando Peter recebesse o documento. Dizia o memorando:

"Sr. P. McDermott

Assunto Férias.

O abaixo-assinado informa que estará tirando quatro dias de férias, a começar imediatamente, às dezenove horas, por motivos pessoais urgentes.

  1. Finegan, subchefe dos detetives, está notificado sôbre o roubo, providências tomadas, etc. etc. e também poderá agir em tôdas as outras questões.

O abaixo-assinado voltará ao serviço na próxima segunda-feira. Respeitosamente, I'. l.Ogilvie

Detetive-Chefe."

Indignado, Peter se lembrava de que, menos de vinte e quatro horas antes, Ogilvie afirmara que devia haver um ladrão profissional à sôlta no St. Gregory. Naquela ocasião, Peter insistira com o detetive-chefe para que se mudasse para o hotel por alguns dias, sugestão que o gordo rejeitara. Já naquele momento Ogilvie devia pretender sair em férias, mas não o dissera. Por quê? Era óbvio que sabia da objeção firme de Peter caso dissesse alguma coisa nesse sentido, e não quisera discutir e, talvez, retardar sua saída.

O documento falava em "motivos pessoais urgentes". Essa parte devia ser verdadeira. Até Ogilvie, a despeito de sua alegada intimidade com Warren Trent, compreenderia que sua ausência naquele momento, sem aviso, causaria uma decisão final quando regressasse.

Mas que tipo de motivo pessoal se achava em jôgo? Não seria coisa correta, que pudesse ser apresentada claramente e discutida, ou não teria agido daquele modo. Mesmo com as imposições da vida num hotel, uma crise pessoal verdadeira, de um empregado, seria acolhido com espírito de solidariedade.

Devia, portanto, ser alguma outra coisa que Ogilvie não podia revelar.

Até mesmo isso, pensou Peter; não era de sua conta, a não ser na medida em que atrapalhasse a direção eficiente do hotel. Mas como acontecia exatamente isso, tinha o direito de ser curioso e resolveu que faria um esfôrço por descobrir onde o detetive-chefe fôra, e qual o motivo.

Apertou um botão da cigarra, chamando Flora e mostrando-lhe o memorando quando ela entrou. A secretária têve uma expressão aflita.

- Já li. Achei que o Sr. ia se aborrecer.

- Se puder - pediu Peter - quero que descubra onde êle está. Experimente o telefone em casa dêle, e depois outros lugares onde possa achá-lo. Verifique se alguém o viu hoje, ou se está sendo esperado. Deixe recados em tôda parte. Se encontrar Ogilvie, quero falar pessoalmente com êle.

Flora fêz anotações e Peter acrescentou:

- Outra coisa: fale com a garagem. Eu estava passando pelo hotel e vi nosso amigo saindo de automóvel, por volta de uma da madrugada. Era num Jaguar, e talvez tenha dito a alguém aonde ia.

Depois de Flora se retirar, mandou chamar o subchefe dos detetives. Finegan era homem magro e lento ao falar, pensando bem antes de responder às perguntas impacientes de Peter.

Não, não fazia idéia de onde fôra o Sr. Ogilvie. Só bem tarde na véspera, fôra informado, por seu superior, que ficaria à frente do serviço nos dias seguintes. Sim, naquela noite tinham sido feitas patrulhas constantes pelo hotel, mas sem descobrir atividades suspeitas. Não havia também qualquer informação de entrada ilícita em quartos, naquela manhã. Não, não haviam recebido informações do departamento policial de Nova Orleans. Sim, Finegan se manteria em contato pessoal com a polícia, como sugeria o Sr. McDermott. Certamente, se Finegan tivesse notícias do Sr. Ogilvie informaria no mesmo instante ao Sr. McDermott.

Peter o mandou embora. No momento, nada havia a fazer, embora sua ira contra Ogilvie fôsse ainda bem grande e não se moderara minutos depois, quando Flora avisou, pelo interfone:

- A Srta. Marsha Preyscott quer-lhe falar, na linha dois.

- Diga que estou ocupado, que chamarei depois - disse Peter, mas logo se corrigiu. - Está bem, vou falar com ela.

Apanhou o telefone e ouviu a voz de Marsha avisando:

- Ouvi o que disse, sabe?

Irritado, Peter resolveu lembrar a Flora que o botão de "espera" do telefone devia ser abaixado quando o interfone estivesse em funcionamento.

- Sinto muito - respondeu. - Estou numa manhã ruim, em contraste com a grande noite de ontem.

- Aposto que a primeira coisa que os gerentes de hotel aprendem é consertar depressa os erros que cometem.

- Pode ser que alguns saibam, mas não eu. Percebeu que Marsha hesitava, mas disse depois:

- Foi tudo grande, na noite de ontem?

- Tudo!

- ótimo! Nesse caso, estou pronta a cumprir minha promessa.

- Minha impressão é de que você já fêz isso.

- Não! - replicou ela. - Eu prometi contar um pou co da história de Nova Orleans. Podíamos começar esta tarde.

Peter estava quase dizendo que não, que seria impossível deixar o hotel, mas nisso compreendeu que desejava ir. E por que não? Raras vêzes usava os dois dias completos de folga a que tinha direito em cada semana, e ùltimamente trabalhara muitas horas além do normal. Podia conseguir uma ausência breve.

- Muito bem - respondeu. - Vejamos quantos séculos de história se podem examinar entre as duas e as quatro da tarde.

Por duas vêzes, durante a sessão de vinte minutos de orações antes do café, em seu apartamento, Curtis O'Keefe percebera que seus pensamentos devaneavam. Era um sinal conhecido de inquietação, pelo que se desculpou com Deus, embora sem entrar em muitos detalhes, porquanto o impulso de estar sempre em movimento era parte de sua natureza, e presumivelmente coisa modelada pelo poder divino.

No entanto, era um alívio pensar que aquêle era o seu último dia em Nova Orleans. Partiria para Nova York naquela noite, e no dia seguinte, para a Itália. O seu destino naquele país, tanto para êle quanto para Dodo, era o Nápoles-O'Keefe Hotel, e além da mudança de cenário seria agradável estar mais uma vez num de seus próprios estabelecimentos. Curtis O'Keefe jamais compreendera a afirmação de seus críticos, no sentido de que era possível dar a volta ao mundo, ficando-se nos Hotéis O'Keefe, sem jamais deixar os Estados Unidos. A despeito de seu prazer pelas viagens ao estrangeiro, gostava de ter coisas conhecidas ao redor, da decoração americana com concessões apenas minúsculas ao colorido local, banheiros americanos, comida americana e, na maior parte do tempo, gente americana. Os estabelecimentos O'Keefe proporcionavam tudo isso.

Não importava que, dentro de uma semana, estivesse impaciente por deixar a Itália, como naquele instante estava impaciente por sair de Nova Orleans. Havia muitos lugares dentro de seu próprio império, o Taj Mahal O'Keefe, O'Keefe de Lisboa, O'Keefe de Adelaide, O'Keefe de Copenhague, e outros, onde uma visita do alto dignitário, embora sem ser essencial para o funcionamento eficiente da cadeia hoteleira, estimularia os negócios, assim como uma catedral poderia ser revigorada pela visita de um papa.

Mais tarde, é claro, regressaria a Nova Orleans, talvez dentro de um ou dois meses, quando o St. Gregory - a essa altura Hotel O'Keef-St. Gregory - fôsse remodelado e colocado de acôrdo com o padrão de hotel de sua cadeia. A sua chegada para as cerimônias inaugurais seria triunfante, com fanfarra, aclamações populares e cobertura pelo rádio, imprensa e televisão. Como costumava acontecer em tais ocasiões, traria uma comitiva de celebridades, inclusive estrêlas e astros de Hollywood, que não seriam difíceis de recrutar para um banquete opíparo.

Ao pensar nisso, Curtis O'Keefe sentia o desejo impaciente de que tais coisas acontecessem logo, e também uma ligeira frustração por não ter recebido, até então, a aceitação oficial de Warren Trent quanto às condições apresentadas duas noites antes. Eram nove da manhã de quinta- feira, e o prazo combinado se esgotaria em menos de noventa minutos. Tornava-se evidente que, por motivos pessoais, o proprietário do St. Gregory pretendia esperar até o último instante, para então aceitar a oferta.

O'Keefe percorreu o apartamento, demonstrando inquietação. Meia hora antes, Dodo saíra em prolongada expedição de compras, para a qual O'Keefe lhe dera algumas centenas de dólares em notas de alto valor. Sugerira que ela comprasse também algumas roupas leves, pois Nápoles devia estar ainda mais quente que Nova Orleans e não haveria tempo de fazer compras em Nova York. Dodo agradecera com sinceridade, como sempre fazia, embora fôsse estranho que lhe faltasse o entusiasmo genuino que exibira na véspera, durante o passeio de barca pelo porto, e que custara apenas seis dólares. As mulheres, pensou êle, eram criaturas misteriosas.

Parou numa janela, olhando para fora, quando o telefone tocou, no outro lado da sala. Com meia dúzia de passadas largas, êle o alcançou.

- Sim?

Contara ouvir a voz de Warren Trent, mas ao invés disso a telefonista avisou tratar-se de chamada interestadual. Momentos depois, o sotaque californiano de Hank Lemnitzer se ouvia, com seu tom anasalado:

- É o Sr. O'Keefe?

- Sim, sou - respondeu êle, desejando que seu representante na Costa Ocidental não precisasse telefonar duas vêzes em menos de vinte e quatro horas.

- Tenho grandes notícias.

- Que tipo de noticias?

- Arranjei alguma coisa para Dodo.

- Pensei ter sido claro quando insisti em coisa especial para a Srta. Lash.

- Quer mais especial ainda, Sr. O'Keefe? Arranjei o melhor, uma oportunidade verdadeira! Dodo tem muita sorte.

- Pois diga.

- Walt Curzon está filmando uma versão nova de You Can't Take It With You. Lembra-se dêle? Nós pusemos dinheiro na mão do rapaz.

- Lembro-me, sim.

- Ontem descobri que Walt precisa de uma pequena para desempenhar o antigo papel de Ann Miller. É um bom papel de coadjuvante, e se ajusta a Dodo como um soutien apertado!

Curtis O'Keefe, mal-humorado, desejou mais uma vez que Lemnitzer fôsse mais sutil na escolha de palavras.

- Suponho, então, que será feito um teste cinematográfico.

- Claro!

- E como vamos saber se Curzon concordará em lhe dar o papel?

- O Sr. está brincando? Não subestime sua influência, Sr. O'Keefe. Dodo está contratada! Além disso, arranjei Sandra Straughan para treiná-la. O Sr. conhece a Sandra?

- Sim.

O'Keefe conhecia bem Sandra Straughan, dona de reputação como uma das mais completas professôras de arte dra mática no reinado cinematográfico. Entre outros títulos, possuía o dom notável de aceitar môças desconhecidas, com patrocinadores influentes, e transformá-las em campeãs de bilheteria.

- Estou muito satisfeito pela Dodo - disse Lemnitzer.

- Ela é uma menina de quem sempre gostei. Mas é preciso andarmos depressa.

- Qual é a pressa?

- Precisam dela para ontem, Sr. O'Keefe, se tudo se ajustar com o resto que arrumei.

- Resto de quê?

- Jenny LaMarsh - disse Hank Lemnitzer, em tom de perplexidade. - O Sr. tinha esquecido?

- Não.

O'Keefe certamente não se havia esquecido da espirituosa e bela morena diplomada pelo Vassar, e que o impressionara tanto um ou dois meses antes, mas depois da conversa mantida na véspera com Hank Lemnitzer havia pôsto a lembrança dela de lado, por algum tempo.

- Tudo está arranjado, Sr. O'Keefe. Jenny vai de avião esta noite para Nova York, e o encontrará amanhã. Mudaremos as reservas feitas em Nápoles, de Dodo para Jenny, e Dodo poderá partir diretamente de Nova Orleans para cá. Simples, não é?

Era muito simples, mesmo. Tão simples que O'Keefe não conseguia achar falha alguma no plano, e ficou imaginando por que queria achá- la.

- Você me garante que a Srta. Lash conseguirá o papel?

- Sr. O'Keefe, juro sôbre o túmulo de minha mãe.

- Sua mãe não morreu.

- Nesse caso, juro sôbre o de minha avó! Seguiu-se uma pausa e depois, como se percebendo repentinamente alguma coisa, Lemnitzer acrescentou:

- Se o Sr. está preocupado por ter de falar com a Dodo, por que não me deixa fazer isso? O Sr. sai por umas horas, e eu telefono para ela, acerto tudo. Dêsse modo não há embaraços, nem despedidas.

- Obrigado. Sou perfeitamente capaz de tratar disso pessoalmente.

- Como quiser, Sr. O'Keefe. Eu só estava tentando ajudar.

- A Srta. Lash lhe avisará por telegrama a hora de chegada em Los Angeles. Você vai recebê-la?

- Naturalmente! Será formidável rever Dodo. Bem, Sr. O'Keefe, divirta-se em Nápoles. Sinto inveja do Sr. por causa da Jenny.

Sem responder, O'Keefe desligou o telefone.

Dodo voltou sem fôlego, carregando pacotes e embrulhos e acompanhada por um boy sorridente, igualmente cheio de compras.

- Preciso voltar, Curtie. Há mais coisas.

- Por que não manda entregarem tudo isso aqui? - in dagou êle, com expressão de desagrado.

- Ora, assim é mais animado! Parece Natal! Voltando-se para o boy, ela comentou:

- Nós vamos para Nápoles. Fica na Itália, sabe? O'Keefe deu um dólar ao boy e esperou que êle saísse. Desembaraçando-se dos embrulhos, Dodo o abraçou impulsivamente, beijando-o em ambas as faces.

- Sentiu falta de mim? Puxa, Curtie! Estou feliz!

O'Keefe livrou-se gentilmente de seus braços.

- Vamo-nos sentar. Quero-lhe contar algumas modificações no plano. E tenho boas notícias.

- Vamos embarcar ainda mais cedo?

Ele balançou a cabeça, em negativa.

- A coisa diz mais respeito a você do que a mim. O fato, minha cara, é que lhe deram um papel no cinema. uma coisa por que tenho trabalhado muito e só fiquei sabendo esta manhã. Está tudo pronto.

Percebia os olhos azuis e inocentes de Dodo a examiná-lo.

- Garantiram que é um papel muito bom. Na verdade, eu insisti para que fôsse. Se as coisas correrem bem, como deverão correr, pode ser o início de coisa muito importante para você.

Curtis O'Keefe se interrompeu, percebendo que suas palavras tinham um som ôco, e Dodo, lentamente, se manifestou:

- Então, vai ser preciso. eu ir-me embora.

- Infelizmente, minha cara, é assim.

- Logo?

- Amanhã de manhã, creio cue Você irá diretamente de avião para Los Angeles. Hank Lemnitzer a estará esperando.

Dodo acenou lentamente com a cabeça, e os dedos finos da mão subiram distraidamente ao rosto, pondo no lugar um feixe de cabelo. Era um movimento simples, mas, como tantos outros em Dodo, profundamente sensual. Num impulso

irracional, O'Keefe sentiu um estremecimento de ciúme, ao pensamento de Que Hank Lemnitzer estaria com Dodo. Lemnitzer, que preparara todo o terreno para a maioria das ligações de seu patrão, no passado, jamais se atreveria a se adiantar com uma favorita escolhida, antes. Mas, depois. Depois, a coisa era outra. O'Keefe baniu o pensamento.

- Quero que saiba, minha cara, que perdê-la é um grande golpe para mim. Mas temos de pensar em seu futuro.

- Está bem, Curtie - respondeu ela, ainda com olhos fitos nêle. A despeito da inocência ali refletida, O'Keefe teve a idéia absurda de que aquêles olhos haviam descoberto a verdade. - Está bem. Você não precisa preocupar-se.

- Pensei que com a sua entrada para o cinema você ia ficar mais satisfeita.

- E estou, Curtie! Estou mesmo! Acho que é tão bom quanto as outras coisas formidáveis que você faz.

Aquela reação aumentou a confiança de O'Keefe. - Na verdade, é uma oportunidade magnífica. Tenho a certeza de que você se sairá bem, e é claro que vou acompanhar com tôda atenção a sua carreira.

Já resolvera concentrar seus pensamentos em Jenny LaMarsh.

- Então. - disse Dodo, com a sombra de embaraço na vóz - Então, você vai partir esta noite. Antes de mim.

Numa decisão instantânea, êle respondeu:

- Não, vou cancelar minha viagem e partirei amanhã de manhã. Esta noite será especial para nós dois.

Enquanto Dodo o encarava, com uma expressão de reconhecimento, o telefone tocou. Sentindo o alívio de ter outra coisa para fazer, êle atendeu.

- Sr. O'Keefe? - indagou uma agradável voz feminina. - Sim.

- Aqui é Christine Francis, auxiliar do Sr. Warren Trent. O Sr. Trent gostaria de saber se pode ir vê-lo agora.

O'Keefe consultou o relógio. Faltavam poucos minutos para o meio- dia.

- Sim - respondeu. - Posso receber o Sr. Trent. Diga-lhe que venha.

Desligando o telefone, sorriu para Dodo.

- Parece, minha cara, que temos ambos uma coisa a festejar: você, tem um brilhante futuro, e eu, mais um hotel.

Mais ou menos uma hora antes, Warren Trent estava sentado e pensativo, em seu escritório no conjunto administrativo, com as portas fechadas. Diversas vêzes naquela manhã, estendera o braço para o telefone, a fim de chamar Curtie O'Keefe e aceitar sua oferta de compra do hotel. Não parecia mais haver qualquer motivo para a demora. O Sindicato dos Diaristas fôra a esperança final de outro financiamento, e a rejeição brusca que viera de lá esmagara a última resistência de Warren Trent à absorção pela cadeia de O'Keefe. Em tôdas essas ocasiões, entretanto, depois do gesto inicial, Warren Trent recuara. Refletia que estava como um prisioneiro, condenado a morrer em determinada hora mas dispondo da possibilidade de se suicidar antes disso. Aceitava o inevitável, compreendendo que daria fim à sua posse porque não existia outra alternativa. Mas a natureza humana insistia para que se valesse de cada momento, até que tudo acabasse e terminasse a necessidade de uma decisão.

Estivera à beira de capitular, quando a chegada de Peter Mcdermott o impedira. O subgerente o informara da decisão do Congresso Americano de Odontologia, no sentido de con tinuar sua convenção, fato que não surpreendeu Warren Trent porquanto já o previra na véspera. Mas tôda essa questão parecia distante e sem importância, e sentiu-se bem quando McDermott se retirou.

Depois disso, entrou por algum tempo em devaneio, lembrando-se de triunfos passados e das satisfações por êles proporcionadas. Houvera a época, na verdade não muito distante, quando sua casa era procurada pelos grandes e quase-grandes, presidentes, cabeças coroadas, recheadas de poder e riqueza, famosos e infames, todos êles apresentando um traço distinto: chamavam a atenção. E para onde ia essa elite, os demais acompanhavam, até o ponto de transformar o St. Gregory tanto numa Meca quanto numa máquina de fazer ouro.

Quando as recordações eram tudo de quanto se podia dispor, era prudente e sábio saboreá-las. Warren Trent esperava que, durante a hora restante de propriedade do hotel, não o iriam incomodar.

A esperança não se concretizou. Christine Francis entrou sem ruído, como a sentir seu estado de espírito, e avisou:

- O Sr. Emile Dumaire gostaria de Lhe falar. Eu não o teria incomodado, mas êle insistiu, dizendo que é questão urgente.

Warren Trent resmungou. Os abutres já esvoaçavam, pensou êle, ainda que, pensando novament; talvez a comparação fôsse injusta. Uma boa soma do Banco Mercantil Industrial, do qual Emile Dumaire era presidente, se achava empatada no Hotel St. Gregory. Também fôra o mercantil Industrial que, meses antes, recusara prolongar o crédito e ceder uma soma maior para o refinanciamento. Pois bem, Dumaire e seus companheiros de diretoria não tinham com que se preocupar agora. Mediante a transação à beira de se concretizar, seu dinheiro seria pago. Warren Trent achou que devia dar essa garantia.

Estendeu a mão para o telefone, mas Christine interveio:

- Não! Ele não o está chamando por telefone. Está aqui, esperando lá fora.

Warren Trent se deteve, surpreendido. Era muitíssimo estranho que Emile Dumaire deixasse o seu banco para ir pessoalmente ver alguém. Momentos depois, Christine conduzia o visitante, e se retirava, fechando a porta.

Baixo, corpulento e com uma orla de cabelos brancos e encaracolados em volta da cabeça, Emile Dumaire descendia de uma linha ininterrupta de ancestrais de origem francesa, mas sua aparência, por capricho do destino, era como se houvesse saído das páginas dos Pickwick Papers, e seus modos demonstravam um espalhafato correspondente.

- Peço desculpas, Warren, pela intrusão, sem têrmos marcado encontro. No entanto, a natureza de minha visita deixava pouca margem para essas gentilezas.

Apertaram-se as mãos e o dono do hotel lhe fêz sinal para sentar-se.

- A que devo a visita?

- Se não se incomodar, prefiro tratar das coisas em ordem. Em primeiro lugar, quero exprimir meu pesar por não ter sido possível atender ao seu pedido de empréstimo. Infelizmente, a soma e as condições estavam muito além de nossos recursos, ou da orientação adotada.

Warren Trent assentiu, em atitude neutra. Gostava pouco do banqueiro, embora jamais houvesse cometido o êrro de subestimá-lo. Por baixo da afetação, que acalmava e enganava muita gente, existia um espírito competente e astuto.

- No entanto, venho aqui com um objetivo que espero poderá contrabalançar alguns dos aspectos desafortunados daquela ocasião.

- Isso - afirmou Warren Trent - é extremamente improvável.

- Veremos - comentou o banqueiro, extraindo de uma pasta fina diversas fôlhas de papel pautado, cobertas de anotações a lápis. - Estou informado de que recebeu uma oferta por êste hotel, feita pela O'Keefe Corporation.

- Não é preciso consultar o FBI para saber disso.

O banqueiro sorriu.

- Poderia informar-me quais as condições da proposta?

- E por que haveria de fazê-lo?

- Porque - disse Emile Dumaire, com todo o cuidado - estou aqui para fazer-lhe uma contra-oferta.

- Se é assim, tenho ainda menos motivos para falar. O que lhe posso dizer é que concordei em dar uma solução a O'Keefe, até o meio-dia de hoje.

- Exato. A minha informação dizia isso, o que explica meu aparecimento abrupto aqui. Aliás, desculpo-me por não ter vindo antes, mas minhas informações e instruções precisaram de algum tempo para serem reunidas.

A notícia de uma oferta de última hora, principalmente daquela fonte, não animava Warren Trent, que supunha ter um grupo local de investidores, dos quais Emile Dumaire era porta-voz, combinado uma tentativa de comprar barato e vender mais tarde com lucro. Fôssem quais fôssem as condições sugeridas, dificilmente poderiam comparar-se à oferta feita por O'Keefe. A posição do próprio Warren Trent não deveria também melhorar.

O banqueiro consultou suas anotações, feitas a lápis.

- Estou informado de que as condições oferecidas pela O'Keefe Corporation são o preço de venda de quatro milhões, dos quais dois milhões a serem aplicados na renovação da hipoteca atual, um milhão em dinheiro e outro milhão em nova emissão de ações. Há, também, o boato de que você teria, pessoalmente, certo tipo de residência vitalícia num apartamento do hotel.

O rosto de Warren Trent enrubesceu de raiva, e êle esmurrou a superfície da mesa.

- Com os diabos, Emile! Não brinque de gato e rato comigo!

- Se lhe parece assim, sinto muito.

- Por Deus! Se conhece os detalhes, para que pergunta?

- Francamente - respondeu Dumaire -, esperava a confirmação que você acaba de dar. Quero acrescentar que a oferta que estou autorizado a fazer é um pouco melhor que a de O'Keefe.

Warren Trent percebeu ter caído em esparrela antiga e elementar, mas sentia-se indignado pelo fato de Emile Dumaire havê-la armado para êle. Também se tornava claro que Curtis O'Keefe tinha um desertor em sua própria organização, possivelmente alguém no alto comando da cadeia hoteleira, conhecendo a orientação máxima da mesma. De certo modo, havia irônica justiça no fato de que Curtis O'Keefe, que usava a espionagem como instrumento comercial, fôsse por sua vez espionado.

- Condições melhores, como? E quem as oferece?

- Para responder primeiro à segunda pergunta, não posso revelar no momento.

- Eu lido com gente de carne e osso, não com fantasmas - resmungou Warren Trent.

- Eu não sou fantasma - observou Dumaire. - Além disso, você tem a garantia do banco, no sentido de que a oferta que estou autorizado a fazer é de boa fonte, e que as partes representadas pelo banco possuem credenciais inatacáveis.

Ainda irado pelo estratagema de um momento antes, o proprietário do hotel respondeu:

- Tratemos do que interessa.

- Eu já ia fazer isso - disse o banqueiro, examinando suas anotações. Bàsicamente, a avaliação que fazemos dêste hotel é idêntica à da cadeia O'Keefe.

- Não há grande surprêsa, porque vocês conheciam as cifras!

- Em outros aspectos, entretanto, há diversas diferenças importantes.

Pela primeira vez, desde o início daquela entrevista, Warren Trent percebia seu interêsse crescente pelo que o banqueiro tinha a dizer.

- Em primeiro lugar, meus representados não têm qualquer desejo de que você rompa sua ligação pessoal com o Hotel St. Gregory, ou se afaste da sua estrutura financeira. Em segundo, seria intenção dêles, até onde comercialmente fôsse exequível, manter a independência e a atmosfera existente do hotel.

Warren Trent se agarrou aos braços da cadeira, e consultou o relógio na parede à direita. Faltavam quinze minutos para o meio- dia.

- No entanto, êles insistem em adquirir a maioria das ações comuns pendentes, condição razoável em vista das circunstâncias, a fim de obterem contrôle efetivo da direção. Você próprio voltaria, assim, à posição de maior acionista minoritário. Um outro requisito seria sua imediata demissão como presidente e gerente. Pode-me arranjar um copo com água?

Warren Trent encheu um copo com o líquido tirado de garrafão térmico que tinha sôbre a mesa.

- Que estão pretendendo? Fazer de mim um ajudante de cozinha? Ou talvez subporteiro?

- Coisa bem diferente - respondeu Emile Dumaire, tomando alguma água e, depois, olhando o resto que ficara no copo. - Sempre achei notável como nosso enlameado rio Mississippi pode-se transformar em água tão saborosa...

- Continue!

O banqueiro sorriu.

- Meus representados propõem que, imediatamente após sua demissão, você seja nomeado presidente da junta diretora com mandato inicial de dois anos.

- Uma simples figura de proa, suponho!

- Talvez. Mas quero crer que há coisas piores. Ou talvez você preferisse que a figura de proa fôsse Curtis O'Keefe.

Warren Trent não respondeu.

- Tenho, ainda, instruções no sentido de informá-lo que meus representados equipararão qualquer oferta de natureza pessoal, a respeito de acomodações aqui, que você possa ter

recebido da O'Keefe Corporation. Agora, quanto à questão de

transferência de ações e refinanciamento, gostaria de entrar em maiores detalhes.

Enquanto o banqueiro continuava falando, examinando com cuidado as suas anotações, Warren Trent se via tomado por uma sensação de cansaço e irrealidade. Da memória, veio um incidente antigo. Quando menino. fôra a uma feira rural segurando com firmeza algumas moedas que iria gastar nos divertimentos mecânicos. Arriscara-se a entrar em um dos mesmos, o cake walk. Era uma forma de diversão que supunha estar extinta desde muito. Lembrava-se dela, da plataforma com uma porta de dobradiças múltiplas que se movia continuamente, para cima, para baixo, inclinando-se para a frente, para trás, para a frente... A coisa era de tal modo que a perspectiva nunca se achava em nível, e pelo custo de um penny tinha-se a possibilidade iminente de cair antes de chegar à outra extremidade. Antes de subir, parecera formidável, mas lembrava-se que perto do final o que mais queria era sair dali.

Também as semanas mais recentes tinham sido como no cake walk. De início, estivera confiante, mas de repente o chão se inclinara. Subira, quando a esperança reaparecera, e depois se inclinara outra vez. Já perto do fim, o Sindicato de Diaristas oferecera a promessa de estabilidade, e em seguida também aquilo caíra, girando em dobradiças lunáticas.

E agora, de repente, a coisa se estabilizara mais uma vez, e tudo quanto êle desejava era poder sair.

Mais tarde, sabia, seus sentimentos mudariam, seu interêsse pessoal pelo hotel voltaria, como sempre acontecera. Naquele momento, porém, percebia apenas o alívio de saber que, de um ou de outro modo, a carga de responsabilidade estava sendo transferida. E juntamente com o alívio, vinha a curiosidade.

Quem, entre os principais homens de negócios da cidade, estava sendo representado por Emile Dumaire? Quem aceitaria os riscos financeiros de manter o St. Gregory como casa tradicionalmente independente? Mark Preyscott, talvez? Estaria o dono da grande loja procurando aumentar seus interêsses já bem amplos? Warren Trent lembrou-se de alguém ter dito, num daqueles dias, que Mark Preyscott estava em Roma. Isso poderia explicar a atitude indireta com que era abordado. Pois bem, logo saberia quem era.

A transação de ações apresentada pelo banqueiro era justa. Comparada à oferta recebida de O'Keefe, o acêrto pessoal com Warren Trent, em dinheiro, mostrava-se menor, mas era contrabalançado pela participação financeira que manteria o hotel. Em comparação com isso, as condições de O'Keefe o poriam inteiramente de lado no referente às questões econômicas do St. Gregory.

No que dizia respeito à sua nomeação como presidente da junta, embora fôsse apenas une cargo simbólico e destituído de poder, isso ao menos lhe permitiria ser espectador interno e privilegiado do que viesse em seguida, sem menosprezar o prestígio que teria. - Aí temos - disse Emile Dumaire - a soma e substância da proposta. Quanto à idoneidade do ofertante, já declarei que está garantida pelo banco. Além disso, estou pronto a lhe oferecer uma declaração de intenção, registrada em cartório, nesse sentido e hoje à tarde.

- E o fechamento do negócio, caso eu concorde? O banqueiro apertou os lábios, pensando.

- Não há motivo pelo qual os papéis não possam ser preparados ràpidamente, além do que a questão da hipoteca quase a vencer-se traz certa urgência ao caso. Acho que o negócio pode ser fechado amanhã, a esta hora.

- E também nessa ocasião, certamente, serei informado da identidade do comprador.

- Isso - admitiu Emile Dumaire - seria essencial à transação.

- Se vou saber amanhã, por que não me diz agora?

- Minhas instruções não o permitem - respondeu o banqueiro, acenando negativamente com a cabeça.

Por instantes, no espírito de Warren Trent, seu antigo mau gênio irrompeu, e êle foi tentado a insistir naquela revelação como condição para concordar. Depois, a razão interveio. Fazia alguma diferença, desde que as condições oferecidas fôssem cumpridas? Além disso, a discussão acarretaria um esfôrço ao qual não estava disposto. Mais uma vez, o cansaço de minutos antes se apoderou dêle.

Deu um suspiro, e disse simplesmente:

- Aceito.

Incrédulo, furioso, Curtie O'Keefe encarava Warren Trent.

- Você tem o descaramento de me dizer que vendeu a outro!

Estavam na sala de estar do apartamento ocupado por O'Keefe. logo após a partida de Emile Dumaire, Christine Francis telefonara para marcar o encontro a que Warren Trent agora comparecia. Dodo, com expressão de incerteza, estava atrás de O'Keefe.

- Pode chamar de descaramento - replicou Warren Trent - mas, no que me diz respeito, é apenas informação. Você talvez se interesse, também, em saber que não vendi de todo, mas retive interêsse substancial no hotel.

- Pois, então, vai perdê-lo! - bradou O'Keefe, vermelho de ódio.

Já se passavam muitos anos desde que qualquer coisa que pretendera comprar lhe fôra negada. Ainda naquele instante, obcecado pela amargura e desapontamento, não podia acreditar que a recusa fôsse verdadeira, e bradava, ainda:

- Por Deus! Juro que o esmagarei!

Dodo se aproximou, tocando-lhe a manga do paletó com a mão.

- Curtie!

- Cale-se! - gritou êle, livrando o braço com um arranco. Uma veia pulsava perceptivelmente em suas têmporas, e tinha os punhos cerrados.

- Você está nervoso, Curtie. Não devia.

- Vá para o inferno! Não se mêta nisto!. Os olhos de Dodo se voltaram para Warren Trent, em apêlo, e tiveram o efeito de refrear a explosão dêle, à beira de irronper. Dirigiu-se a O'Keefe:

- Faça como quiser, mas devo observar que não tem o direito divino de compra. E também que você veio por sua conta, sem convite meu.

- Vai-se arrepender disso! Você e os outros, seja lá quem fôr! Vou construir um hotel! Vou arrasar este aqui, acabar-lhe com os negócios! Todo o meu planejamento será dirigido para esmagar êste lugar, e você com êle!

- Se tivermos vida para tanto.

Tendo-se já dominado, Warren Trent sentia seu autocontrole aumentar, enquanto o de O'Keefe diminuía, e êle prosseguiu:

- É claro que nenhum de nós dois poderá ver isso acontecer, porque levará tempo para você conseguir isso. E pode ser, também, que a direção daqui possa competir com você.

- Era uma predição ainda sem base, mas esperava Que se concretizasse.

- Saia! - berrou O'Keefe. - Saia daqui!

- Esta é minha casa, ainda. EnQuanto você fôr meu hóspede, terá certos privilégios dentro de seus quartos. No entanto, sugiro que não abuse dêles - respondeu Warren Trent e depois, com mesura leve e cortês pra Dodo, se retirou.

- Curtie. - disse ela.

O'Keefe pareceu não ter ouvido. Estava arquejante.

- Curtie, você está bem?

- Precisa fazer perguntas estúpidas? É claro que estou bem!

O magnata dos hotéis percorria a sala, andando de um para o outro lado.

- É só um hotel, Curtie! Você já tem tantos!

- Eu queria êste!

- O velho. êle só tem êste.

- Ah, sim! Você tinha de ver as coisas assim, deslealmente, estùpidamente!

A voz era alta, nervosa. Assustada, Dodo nunca o vira tão descontrolado antes.

- Por favor, Curtie!

- Estou cercado de idiotas! Idiotas, idiotas, idiotas! Você é uma idiota! Por isso estou me livrando de sua companhia, trocando-a por outra!

Arrependeu-se daquelas palavras no mesmo instante em que as proferira. O seu impacto, mesmo sôbre êle próprio, foi de choque, apagando sua raiva como um incêndio se apaga ao ser abafado. Houve um instante de silêncio, antes dêle murmurar:

- Sinto muito. Eu não devia ter dito isso.

Os olhos de Dodo estavam marejados de lágrimas. Ela tocou distraidamente os cabelos, no gesto que O'Keefe observara antes.

- Eu acho que sabia, Curtie. Não era preciso me dizer. Dodo se dirigiu ao apartamento ao lado, fechando a porta.

Uma vantagem inesperada fizera Keycase Milne recobrar o ânimo. De manhã, devolvera as compras feitas na véspera, na loja Maison Blanche, e lá não tivera qualquer dificuldade, recebendo de volta o dinheiro, sem demora e com tôda a cortesia. Isso servira, ao mesmo tempo, para livrá-lo de um estôrvo e preencher uma hora que, de outra forma, teria sido vazia. Havia outras horas a esperar, no entanto, até que a chave especialmente feita, encomendada na véspera ao chaveiro do Canal Irlandês, estivesse pronta.

Estava a ponto de sair da loja Maison Blanche quando sua sorte brilhou. No balcão do andar térreo, uma freguesa bem vestida, procurando o cartão de crediário, deixou cair um molho de chaves. Parecia que nem ela, nem outra pessoa, a não ser Keycase, observara isso, e êle ficou por ali, examinando gravatas em balcão próximo, até que a mulher se afastasse.

Percorreu todo o comprimento do outro balcão e depois, como se visse as chaves pela primeira vez, parou para apanhálas. Notou logo que, juntamente com as chaves de automóvel havia diversas outras que deviam servir em fechaduras de casas, e ainda mais importante era outra coisa que seu olhar experimentado vira antes - uma miniatura de placa de automóvel.

Era do tipo enviado pelo correio, aos donos de automóveis, por ex- combatentes inválidos, que assim proporcionavam um serviço de devolução de chaves perdidas. A plaquinha mostrava um número da Luisiana.

Mantendo as chaves bem à vista, Keycase saiu às pressas, atrás da mulher, que se retirava da loja. Se sua ação de momentos antes fôra observada, tornava-se óbvio agora que êle se apressava a devolver as chaves à sua dona. Chegando à rua, entretanto, em meio aos transeuntes da rua do Canal, êle as empalmou e guardou no bolso.

A mulher ainda estava à vista, e Keycase a acompanhou a uma distância cautelosa. Depois de dois quarteirões, ela atravessou a rua do Canal e entrou num salão de beleza. Do lado de fora, Keycase a observou aproximar-se da recepcionista, que consultou o livro de apontamentos com hora marcada, e depois a mulher sentou-se para esperar. Animado, Keycase se dirigiu apressadamente a um telefone.

Uma chamada local esclareceu que a informação por êle buscada poderia ser obtida na capital do estado, em Baton - Rouge. Keycase fêz a ligação interurbana, pedindo a Divisão de Automóveis, sendo prontamente atendido pela telefonista. Segurando as chaves à sua frente, Keycase leu o número da licença na miniatura de placa, e um funcionário informou que o carro estava registrado em nome de um F. R. Drummond, com enderêço no distrito de Lakeview, em Nova Orleans.

Na Luisiana, como em outros Estados da América do Norte, a propriedade de automóveis era matéria de registro público, podendo ser obtida na maioria dos casos mediante simples telefonema. Isso constituía informação preciosa, que Keycase já utilizara antes com proveito.

Fêz outra ligação telefônica, discando o número registrado para F. R. Drummnnd, e como esperava, depois de bastante tempo, não houve resposta.

Era preciso agir com rapidez. Calculando ter uma hora, talvez um pouco mais, Keycase chamou um táxi, que o levou ao ponto onde estacionara o seu próprio carro. Dali, e com ajuda de um guia de estradas, partiu para Lakeview, encontrando sem dificuldade o enderêço anotado.

À distância de meio quarteirão, fêz um levantamento externo da casa. Era residência bem cuidada, de dois pavimentos, com garagem dupla e jardim, espaçoso. A entrada de carro era protegida por um cipreste alto, que por coincidência encobria a visão de outras casas vizinhas, em ambos os lados.

Keycase entrou arrojadamente com seu carro, parando sob a árvore, e andou até a porta da frente, que se abriu com a primeira chave experimentada.

Lá dentro, reinava silêncio, e êle chamou em voz alta:

- Alguém em casa?

Se houvesse resposta, estaria pronto a apresentar desculpas, dizendo que encontrara a porta aberta e batera em enderêço errado. Ninguém respondeu.

Examinou ràpidamente o andar térreo e depois subiu ao pavimento de cima. Havia quatro quartos, todos vazios. Num armário embutido do quarto maior encontrou dois casacos de peles. Tirou-os, pondo-os sôbre a cama, e noutro armário achou malas, das quais escolheu a maior, pondo dentro da mesma os casacos. Uma gaveta de penteadeira continha uma caixa de jóias, que esvaziou na mala, juntando mais uma máquina de filmar, binóculos e rádio portátil. Fechou a mala e levou-a para baixo, e depois a reabriu para acrescentar uma tigela e salva de prata. Um gravador de fita, que notou no último instante, foi levado por êle a seu automóvel, numa das mãos, enquanto transportava a mala na outra.

Ao todo, Keycase estivera dentro da casa dez minutos. Guardou a mala e o gravador na mala do automóvel, e se afastou dali. Cêrca de uma hora mais tarde, já guardara tudo em seu quarto de motel na Estrada Chef Menteur, estacionara mais uma vez o seu carro no ponto da cidade, e regressava lèpidamente ao Hotel St. Gregory.

No caminho, com ar bem-humorado, pusera as chaves numa caixa de correio, como pedia a plaquinha com o número. Certamente a organização responsável pelo serviço cumpriria sua promessa e devolveria o molho de chaves a seu dono.

Aquela sorte inesperada, pelos seus cálculos, renderia perto de mil dólares. Tomou café e comeu um sanduíche na cafeteria do St. Gregory, e depois partiu para ver o chaveiro do Canal Irlandês. A duplicata para o Apartamento Presidencial estava pronta, e a despeito do preço exorbitante que fôra pedido êle pagou com prazer.

Voltando ao hotel, observou o sol brilhar benèvolamente no céu sem nuvens. Aquilo, e mais o prémio inesperado que arrecadara de manhã, eram presságios claros, augúrios de êxito para a missão principal mais tarde. keycase percebeu que sua antiga confiança e mais a convicção de invencibilidade haviam regressado sem alarde.

Por tôda a cidade, em tranquila desordem, os carrilhões de Nova Orleans anunciavam o meio-dia, e suas melodias em contraponto chegavam suavemente pela janela do nono andar do Apartamento Presidencial, fechada e calafetada para permitir o funcionamento eficaz do ar condicionado. Preparando um scotch com soda - sua quarta dose desde as 9 da manhã - com mãos incertas, o Duque de Croydon ouviu os sinos e consultou o relógio para se certificar daquela mensagem. Sacudiu a cabeça em sinal de incredulidade, e murmurou:

- Só isso? O dia mais comprido. que me lembro ter vivido.

- Mais tarde êle chegará ao fim.

Num sofá onde tentara, sem êxito, concentrar-se nos Poemas de W. H. Auden, sua espôsa respondeu com menos severidade do que usara em quase tôdas as respostas dadas nos dias anteriores. O período de espera desde a noite anterior, com o conhecimento de que Ogilvie e o carro incriminador estavam em algum lugar ao norte - mas, onde? - fôra causa de tensão para a Duquesa, também. Já passavam dezenove horas desde seu último contato com o detetive-chefe do hotel, e não haviam recebido qualquer notícia a êsse respeito.

- Por Deus! O sujeito não podia telefonar? - perguntou o Duque, andando de um para o outro lado da sala, agitado, como estivera desde o início do dia:

- Concordamos em que não houvesse comunicação - relembrou a Duquesa, ainda em tom sereno. - É muito mais seguro assim. Além disso, se o carro estiver escondido durante o dia, como desejamos, êle não pode sair para telefonar.

O Duque de Croydon examinava o mapa rodoviário mais uma vez, como já fizera em inúmeros momentos antes. Traçou com o dedo um círculo em volta da região em tôrno de Macon, Mississippi e êle falou, como para si próprio:

- perto, infernalmente perto! E o dia todo de hoje. só esperando. esperando! E o sujeito pode ser descoberto! - murmurou, afastando-se do mapa.

- É óbvio que não foi, ou teríamos sabido.

Ao lado da Duquesa estava um exemplar do States-Item vespertino. Ela mandara o secretário à portaria buscar uma edição matutina, e os dois tinham ouvido o noticiário radiofônico tôda a manhã. Um rádio estava ligado, com pouco volume, mas o locutor descrevia os danos causados por uma tempestade de verão no Massachusetts, e a notícia anterior fôra uma declaração feita pela Casa Branca sôbre o Vietnam. Tanto o jornal quanto as irradiações anteriores haviam feito referência às investigações sôbre o atropelamento, mas sòmente para informar que asbuscas prosseguiam e nada de novo fôra descoberto.

- Só havia poucas horas para viajar ontem à noite - prosseguiu a Duquesa, como a se reconfortar. - Esta noite será diferente. Ele poderá partir logo que escureça e amanhã de manhã tudo deverá estar resolvido.

- Resolvido! - exclamou o marido, voltando soturnamente à bebida. - Suponho ser isso a coisa sensata com que nos preocupemos, e não com o ocorrido. Aquela mulher. a menina. Houve fotografias. acho que você viu.

- Já tratamos disso. Não adianta voltar à questão. Ele pareceu não ter ouvido.

- O entêrro é hoje. esta tarde. Pelo menos, devia ir. - Não pode ir, e sabe muito bem disso. Fêz-se um silêncio difícil na sala elegante e espaçosa, abruptamente quebrado pela campainha do telefone. Os dois se olharam, sem qualquer movimento no sentido de atender. No rosto do Duque, os músculos se moviam espasmòdicamente. A campainha soou novamente, e depois parou. Pelas portas intermediárias, ouviram à distância a voz do secretário, que respondia na extensão. Momentos depois o secretário bateu à pórta e entrou, timidamente. Olhou para o Duque, e anunciou:

- um dos jornais da cidade, Excelência. Dizem que têm - hesitou, antes de pronunciar o têrmo que não conhecia - um boletim urgente que parece dizer-lhe respeito. Mediante um esfôrço, a Duquesa recobrou sua pose.

- Eu atenderei. Desligue a extensão.

Apanhou o telefone que estava perto, e só um observador bem próximo teria notado que suas mãos tremiam.

Esperou ouvir o ruído da extensão que se desligava, e disse então:

- Aqui é a Duquesa de Croydon.

Uma voz masculina e firme se fêz ouvir:

- Madame, aqui é do States-Item. Recebemos um boletim da Associated Press e logo em seguida outra notícia. - interrompeu-se a voz. - Desculpe-me.

Ela ouviu o homem dizer, com irritação:

- Onde foi que puseram. Jogue essa cópia para cá, Andy!

Seguiu-se o ruído de papel, e depois a voz retomou a conversa:

- Desculpe, madame. Vou ler para a Sra. LONDRES AP - Fontes parlamentares indicam hoje o Duque de Croydon, conhecido embaixador itinerante do go vêrno britânico, como o próximo embaixador em Washington.

A reação inicial foi favorável, e espera-se a participação oficial para breve.

O jornalista prosseguiu, depois de ler o despacho:

- Há outras coisas que dizem, Madame, mas não vou incomodá-la com isso. Chamamos para saber se seu marido tem algum comentário a fazer e depois, com sua permissão, gostaríamos de mandar um fotógrafo ao hotel.

Por momentos a Duquesa fechou os olhos, deixando a onda de alívio percorrer-lhe o corpo. Ao telefone, a voz indagou:

- Madame, está-me ouvindo?

- Sim - respondeu ela, forçando o cérebro a funcionar.

- Sôbre. o comentário, gostaríamos.

- No momento - interveio a Duquesa - meu marido não tem qualquer comentário, e tampouco o fará até a designação ser oficialmente confirmada.

- Nesse caso.

- O mesmo se aplica às fotografias.

- Vamos imprimir o que temos, é claro, na próxima edição - disse o jornalista, em tom de desapontamento.

- Está no seu direito.

- Enquanto isso, quando vier a confirmação oficial, gostaríamos de lhe falar novamente.

- No caso a que se refere, tenho a certeza de que meu marido receberá a imprensa com todo o prazer.

- Então, poderemos telefonar outra vez?

- Será um favor.

Depois de desligar o telefone, a Duquesa de Croydon se sentou, erecta e imóvel. Finalmente um leve sorriso se formou em seus lábios, e ela disse:

- Pronto! Geoffrey conseguiu.

O marido a olhou com expressão incrédula, umedecendo os lábios.

- Washington?

Ela repetiu a essência do despacho telegráfico, e acrescentou:

- Provàvelmente espalharam a notícia de propósito, para verificar a reação. favorável.

- Eu não teria acreditado que mesmo seu irmão...

- A influência dêle ajudou. Certamente, houve outros motivos. A oportunidade e o fato de precisarem de alguém com seu tipo de antecedente. A política estava a favor... Não se esqueça de que sabíamos existir a possibilidade. Felizmente tudo se juntou e deu certo.

- Agora, com a nomeação... - começou a dizer o Duque, mas se deteve, sem vontade de terminar o pensamento.

- Agora, o que é que tem?

- Será que. vou poder desempenhar o cargo?

- Pode, e o desempenhará. Nós o faremos.

- Houve tempo... - disse êle, balançando a cabeça em dúvida.

- Ainda há tempo - interrompeu a Duquesa, com autoridade na voz. - Hoje, você terá de receber a imprensa. Haverá outras coisas a fazer, e será preciso estar em condições de falar, e continuar assim.

- Farei o possível. - concordou êle, erguendo o copo para beber.

- Não!

A Duquesa se levantou e tirou o copo da mão do marido, dirigindo- se ao banheiro. Ele ouviu que ela o despejava na pia, e ao voltar anunciava:

- Não beberá mais, compreendeu? Não beberá mais coisa alguma.

O Duque pareceu pronto a protestar, mas reconheceu:

- É o único meio. suponho.

- Se quiser que eu tire as garrafas daqui, que derrame esta.

O marido negou, com movimento da cabeça.

- Não vai ser preciso.

Com esfôrço e vontade perceptível, tentou clarear os pensamentos. Com a mesma facilidade de transformação exibida na véspera, pareceram surgir traços mais firmes em sua expressão. A voz era segura, ao observar:

- São notícias muito boas.

- São - respondeu ela. - Pode ser um novo comêço. O Duque deu meio passo em sua direção, mas mudou de idéia. Qualquer que fôsse o nôvo comêço, certamente não incluiria aquilo. Sua espôsa já se expressava, como a pensar em voz alta:

- Teremos de rever os planos sôbre Chicago. A partir de agora, os seus movimentos estarão sob exame atento. Se formos juntos até lá, isso serà noticiado com destaque pela imprensa de Chicago, e poderia despertar curiosidade quando o carro fôr levado a consêrto.

- Um de nós precisa ir.

Ela respondeu em tom decisivo:

- Irei eu, sòzinha. Posso mudar minha aparência um pouco, usar óculos. Se tiver cuidado, escaparei à atenção - acrescentou, lançando o olhar a uma pequena mala ao lado da secretaire. - Levarei o restante do dinheiro e farei o que fôr preciso.

- Você está supondo. que o homem chegará bem a Chicago. Ele ainda não chegou.

Como a relembrar um pesadelo esquecido, ela abriu mais os olhos, e murmurou:

- Oh, Deus! Agora. acima de tudo. êle precisa! Precisa chegar!

Pouco depois do almôço, Peter McDermott conseguiu ir até seu apartamento, onde mudou de roupa, trocando o terno formal de trabalho, que usava na maior parte do tempo no hotel, para calças de linho e jaqueta leve. Voltou ràpidamente ao escritório para assinar cartas, que ao sair deixou sôbre a mesa de Flora.

- Voltarei esta tarde - disse à secretária, e depois, como complemento: - Descobriu alguma coisa sôbre Ogilvie?

A secretária balançou a cabeça.

- Nada. O Sr. pediu que verificasse se o Sr. Ogilvie disse a alguém aonde ia. Pois bem, êle não disse.

- Eu não contava, mesmo, que êle o fizesse - resmungou Peter.

- Há uma coisa - disse Flora, hesitando. - Talvez não seja importante, mas me pareceu um pouco estranho.

- O que é?

- O carro usado pelo Sr. Ogilvie. O Sr. disse que era um Jaguar?

- Sim.

- Pertence ao Duque e Duquesa de Croydon.

- Tem certeza de que não há engano?

- Pensei nisso - respondeu ela -, de modo que verifiquei na garagem para ter certeza. Disseram-me para falar com um homem chamado Kulgmer, vigia noturno de lá.

- Sim, eu o conheço.

- Ele estêve de serviço ontem à noite, e telefonei para a casa dêle. Diz que o Sr. Ogilvie tinha autorização escrita da Duquesa de Croydon para sair no carro.

Peter deu de ombros.

- Nesse caso, não deve haver qualquer coisa errada. Mas era estranho, pensou, que Ogilvie usasse o carro dos Croydons, ainda mais estranho que existisse qualquer tipo de ligação entre o Duque e Duquesa e o grosseiro detetive-chefe do hotel. Era claro que Flora estivera pensando nisso mesmo, e Peter lhe perguntou:

- O carro já voltou?

- Não. Imaginei se devia verificar com a Duquesa de Croydon, mas depois achei que devia falar-lhe primeiro.

- Foi bom ter feito isso - retrucou Peter.

Achava bem simples perguntar aos Croydons se conheciam o destino tomado por Ogilvie, pois, tendo êle levado seu carro, parecia provável que soubessem. Ainda assim, hesitou. Depois de seu próprio embate com a Duquesa na noite de segunda-feira, Peter relutava em se arriscar a nôvo mal-entendido, ainda mais porque qualquer tipo de indagação poderia ser tomado como intrusão pessoal. Havia também o reconhecimento embaraçoso a ser feito, de que o hotel não tinha noção do paradeiro de seu detetive-chefe. Dirigiu-se a Flora, resolvendo o problema imediato:

- Vamos deixar isso de lado por enquanto. Havia outro assunto para resolver: Herbie Chandler. Naquela manhã, pensara em informar Warren Trent sôbre as declarações feitas na véspera por Dixon, Dumaire e os outros, implicando o chefe da portaria nos acontecimentos que haviam levado à tentativa de estupro na noite de segunda-feira, mas a preocupação patente do proprietário do hotel o fizera deixar a questão para outra ocasião. Agora, Peter achava ser melhor êle mesmo ver Chandler.

- Veja se Herbie Chandler está de serviço esta noite - disse a Flora. - Se estiver, quero vê-lo aqui às seis horas. Se não estiver, que venha amanhã cedo.

Deixando o conjunto administrativo, Peter desceu à portaria e poucos minutos depois, da relativa penumbra do hotel, passava à tarde clara e brilhante da rua St. Charles.

- Peter! Estou aqui!

Voltando a cabeça, viu Marsha a acenar, de um conversível branco, estacionado numa fila de táxis à espera de fregueses. Um porteiro alerta antecipou-se ràpidamente a Peter e abriu a porta do carro. Quando entrou no carro ao lado de Marsha, Peter viu três motoristas de praça rindo, e um dêles assobiar.

- Olá! - disse Marsha. - Se não viesse, eu ia acabar arranjando passageiro.

Num leve vestido de verão, ela parecia tão atraente quanto sempre; mas a despeito da saudação cordial êle percebeu uma timidez, talvez devido ao que se passara entre êles na véspera. Impulsivamente, êle lhe segurou a mão e apertou.

- Gosto disso - respondeu ela - embora tenha prometido a meu pai usar ambas as mãos quando estou dirigindo.

Com a ajuda dos motoristas de praça, que chegaram seus carros à frente e para trás, fazendo espaço de manobra, ela dirigiu o conversível para a pista de tráfego.

Enquanto se aproximavam de um sinal verde na rua do Canal, Peter refletia que estava sendo constantemente levado através de Nova Orleans em carros guiados por mulheres bonitas. Fôra apenas três dias antes que fôra com Christine, no Wolkswagen, para o apartamento dela? Naquela mesma noite, vira Marsha pela primeira vez. Pareciam ter transcorrido mais de três dias desde aquela ocasião, talvez porque tinha havido uma proposta de casamento, feita por Marsha. À realidade da luz solar, imaginava se a môça tivera outros pensamentos mais racionais, depois disso, embora estivesse resolvido, em qualquer caso, a nada dizer até que ela própria voltasse ao assunto.

Ainda assim, sentia a excitação de estarem juntos, principalmente por se lembrar de seus últimos momentos, na noite anterior - o beijo terno e depois com paixão crescente, à medida que se desmanchavam os freios, o instante arrebatador quando pensara em Marsha como mulher, e não como menina. Ele a segurara, bem perto, sentindo a promessa insistente de seu corpo. Observava agora, discretamente, sua juventude ansiosa, os movimentos ágeis de seus membros, a fragilidade de seu corpo sob o vestido leve. Se êle.

Deteve o impulso, embora com relutância. Lembrou-se de que em tôda a sua vida adulta, a proximidade das mulheres lhe toldara o juízo e precipitara indiscrições.

Marsha lançou um olhar de esguelha, desviando a atenção do tráfego à frente e perguntando:

- Em que estava pensando, neste momento?

- Em história - mentiu êle. - Por onde começamos?

- No antigo cemitério de St. Louis. Já estêve lá alguma vez?

- Nunca dei aos cemitérios boa colocação na minha lista de coisas para fazer - afirmou êle.

- Em Nova Orleans, devia dar.

Não tardaram a chegar à rua Basin, e Marsha estacionou o veículo no lado sul. Depois, andando a pé, atravessaram o bulevar até o cemitério, rodeado por muro. Era o St. Louis Número Um. Havia uma entrada de colunas antigas.

- Muita história começa aqui - disse Marsha, tomando-lhe o braço. - Nos primeiros anos do século XVIII, quando Nova Orleans foi fundada pelos franceses, a terra era quase tôda alagadiça. Ainda estaria assim, em nossos dias, se não fôssem as barragens, que contêm o rio.

- Eu sabia que a cidade era úmida, por baixo - concordou êle. - No porão do hotel, vinte e quatro horas por dia, bombeamos a água.

- Já foi muito mais úmida. Até nos lugares mais secos, a água estava a apenas um metro de profundidade, de modo que quando se cavava uma sepultura ela se enchia de água a antes que pudessem descer o caixão. Há quem diga que os coveiros costumavam ficar de pé sôbre os caixões para obrigá-los a afundar. Às vêzes êles faziam furos na madeira, para que o caixão afundasse. As pessoas costumavam dizer que quem não estivesse morto de verdade morreria afogado.

- Parece um filme de horror.

- Alguns livros dizem que o cheiro dos cadáveres costumava infiltrar-se na água de beber - acrescentou ela, com uma careta de nojo. - De qualquer modo, mais tarde apareceu a lei de que todos os sepultamentos tinham de ser feitos acima do chão.

Começavam a percorrer os caminhos entre fileiras de túmulos de construção singular. O cemitério era diferente de tudo quanto Peter já vira até então, e Marsha fêz um gesto, indicando os arredores.

- Foi isto o que aconteceu, depois que a lei entrou em vigor. Em Nova Orleans, chamamos êstes lugares de cidades dos mortos.

- É fácil ver por quê.

Era mesmo como uma cidade, pensava Peter. As ruas se mostravam irregulares, os túmulos no formato de casas em miniatura, com tijolos e rebôco, alguns com sacadas de ferro e calçadinhas estreitas. As casas apresentavam diversos pavimentos ou níveis e a inexistência de janelas constituía o único traço comum, mas em seu lugar havia inúmeros portais minúsculos. Ele os indicou, dizendo:

- Parecem entradas de apartamentos.

- E são apartamentos mesmo, na verdade. A maior parte, com contratos curtos.

Peter a olhou, com expressão de curiosidade.

- Os túmulos são divididos em seções - explicou Marsha. - As sepulturas de família, comuns, têm de duas a seis seções, e as maiores têm ainda mais. Cada seção tem sua portinha. Quando vai haver um funeral; antes de chegar o caixão uma das portinhas é aberta, e o caixão que exista lá dentro é esvaziado, empurrando-se os despojos para trás, onde caem ao chão por uma fresta. Ocaixão antigo é incinerado e o nôvo pôsto em seu lugar. Fica ali por um ano, e depois acontece a mesma coisa.

- Um ano só?

Atrás dêles, uma voz respondeu:

- É tudo quanto basta. As vêzes, no entanto, leva mais tempo, se o que vem atrás não tiver pressa.

Voltaram-se. Um homem idoso e gordo como um barril trajado com um macacão manchado, olhava-os cordialmente. Tirando um surrado chapéu de palha enxugou a cabeça calva com um lenço vermelho de sêda.

- Está quente, não é? É muito mais fresco aí dentro - disse, dando um tapinha amistoso num dos túmulos.

- Se não lhe faz diferença - respondeu Peter - prefiro o calor.

O outro riu.

- Ela o apanha de qualquer modo. Como vai, Srta Preyscott?

- Olá, Sr. Collodi - respondeu Marsha. - Este é o Sr. McDermott.

O coveiro respondeu com um aceno cordial, e perguntou:

- Fazendo uma visita ao retiro da família?

- Vamos fazer isso - respondeu ela.

- É por aqui, então - disse o homem, seguindo à frente.

Voltando a cabeça para êles, acrescentou: - Fizemos uma limpeza há uma ou duas semanas. Está com aspecto muito bom, agora.

Enquanto seguiam pelas ruelas estreitas, Peter teve a impressão de datas e nomes antigos. Oguia indicou uma pilha fumegante de refugos, num espaço aberto, e explicou:

- Estamos queimando alguma coisa.

No monte de detritos, Peter podia ver partes de caixões em meio à fumaça. Pararam diante de um túmulo de seis seções, construído no estilo tradicional de uma casa francesa.

Nas placas de mármore, batidas pelo tempo, encontravam-se

muitos nomes, a maioria de Preyscotts.

- Somos uma família antiga - disse Marsha. – Deve estar começando a faltar espaço lá embaixo, no meio ao pó.

A luz do sol tombava inclinadamente, bem brilhante, sôbre o túmulo.

- Bonito, não é?

O coveiro se afastou um pouco, admirando a construção, e depois indicou uma portinha perto da parte superior.

- Será aquêle o próximo a se abrir, Srta. Preyscott. Por ali vai entrar o seu papai - comentou, e depois tocou outra portinha numa fileira abaixo. - Esta será para a Srta. Mas duvido que vá ser eu quem a levará lá para dentro. Parou, e depois acrescentou, em tom filosófico:

- A coisa vem mais cedo, para todos nós, do que desejamos. Não vale a pena perder tempo, não senhor!

Enxugando novamente a cabeça, afastou-se a passos lentos. A despeito do calor do dia, Peter estremeceu de frio. O pensamento de marcar antecipadamente a entrada, naquela sepultura, de alguém tão jovem quanto Marsha, o perturbava.

- Não é tão mórbido quanto parece - disse Marsha, examinando-lhe o rosto e demonstrando mais uma vez sua capacidade de lhe compreender os pensamentos. - É que desde cedo somos trazidos aqui para ver tudo isto como parte de nós próprios.

Peter achou interessante o sistema, mas ainda assim julgava que já vira o bastante daquele lugar de morte. Estavam de saída, e perto do portão dando para a rua Basin, quando Marsha o segurou pelo braço, fazendo-o parar.

Uma fila de carros parara bem à frente, e ao se abrirem suas portas surgiam pessoas, reunindo-se na calçada: A julgar por sua aparência, era evidente que um cortejo funerário estava chegando ao cemitério. Marsha sussurrou:

- Peter, vamos ter de esperar.

Afastaram-se, ainda vendo o portão, mas recuando para distância mais discreta. Já o grupo na calçada se dividira, abrindo passagem para um pequeno cortejo. Um homem lívido entrou em primeiro lugar, sendo acompanhado por um sacerdote.

Atrás do sacerdote vinham seis pessoas, andando lentamente, trazendo aos ombros um caixão pesado. Atrás destas, quatro outras traziam um pequeno caixão branco, coberto por camada simples de flores.

- Oh, não! - disse Marsha.

Peter segurou-lhe o braço com fôrça, e o sacerdote entoou:

- Que os anjos as levem ao paraíso, que os mártires as venham receber no caminho, e as levem à cidad de Jerusalém. Um grupo de acompanhantes vinha atrás do segundo caixão. A sua frente, sòzinho, marchava lentamente um homem ainda jovem. Trajava terno prêto, mal ajustado ao corpo.

Os olhos pareciam pregados ao caixão pequenino, e lágrimas Lhe rolavam pelo rosto. No grupo atrás, uma mulher idosa soluçava, apoiada em outra.

Que o côro de anjos as receba, e com Lázaro que foi pobre, tenham descanso eterno...

- São as vítimas do atropelamento - sussurrou Marsha.

- A mãe, e uma menina. Os jornais noticiaram.

Peter notou que ela chorava.

- Eu sei - respondeu êle, com a sensação de ser parte daquela cena, de compartilhar a tristeza. Oencontro anterior na noite de segunda-feira, fôra sombrio e brutal, mas agora o sentimento de tragédia parecia mais próximo, mais real, e êle sentiu que os seus olhos se umedeciam, enquanto o cortejo prosseguia.

Em seguida aos parentes, vinham outras pessoas. Com surprêsa, Peter reconheceu alguém. De início, não pôde identificar quem era, mas depois viu que era Sol Natchez, o boy idoso suspenso do trabalho depois da discussão com o Duque e Duquesa de Croydon, na noite de segunda-feira. Peter mandara chamar Natchez na manhã de têrça-feira, transmitindo-lhe a ordem de Warren Trent para que passasse o resto da semana longe do hotel, em folga remunerada. Natchez olhou para onde Peter e Marsha estavam de pé, mas não deu sinal de os ter reconhecido.

A procissão fúnebre distanciou-se, entrando pelo cemitério.

Peter e Marsha esperaram até que todos os acompanhantes tivessem desaparecido.

- Podemos ir agora - disse Marsha.

De repente, alguém tocou Peter no braço. Voltando-se êle viu que era Sol Natchez. Então, êle os observara, afinal.

- Vi que estava assistindo, Sr. McDermott. O Sr. Conhece a família?

- Não - respondeu Peter. - Estávamos aqui por acaso.

Apresentou Marsha, que perguntou a Natchez:

- Não esperou até o fim do funeral?

- Há momentos em que só se pode aguentar as coisas até certo ponto - disse. o velho; balançando a cabeça.

- Conhecia a familia, então?

- Muito bem. uma coisa triste, muito triste.

Peter assentiu. Parecia não haver mais coisa alguma a dizer. Foi Natchez quem falou:

- Não o procurei ainda, Sr. Mcdermott, mas sou muito grato pelo que fêz. Por ter falado a meu favor, quer dizer...

- Não tem o que agradecer, Sol. Não acho que você fôsse culpado. - uma coisa esquisita, quando se pensa - disse o velho, olhando para Marsha, depois para Peter, como se relutasse em se afastar.

- O que é esquisito? - perguntou Peter.

- Tudo isso. O acidente - respondeu Natchez, fazendo gesto na direção do funeral. - Deve ter acontecido pouco antes daquele meu embaraço, na noite de segunda-feira. Pense só, Sr. Mcdermott! Enquanto conversávamos...

- Sim - atalhou Peter, pouco inclinado a explicar sua própria presença, mais tarde, na cena do acidente.

- Queria-lhe perguntar, Sr. McDermott... Disseram mais alguma coisa sôbre aquêle caso com o Duque e a Duquesa?

- Absolutamente nada!

Peter achava que para Natchez, como para êle mesmo, era um alívio falar em outra coisa que não fôsse o sepultamento e o homem acrescentou, em ar meditativo:

- Pensei muito no que houve. Parecia até que êles criaram todo aquêle caso de propósito. Não consegui entender antes, e não consigo agora.

Peter se lembrava de que Natchez dissera o mesmo na noite de segunda-feira. Voltavam à sua memória as palavras exatas pronunciadas pelo camareiro: ela empurrou meu braço; se não achasse impossível, diria que o fêz de propósito. Mais tarde Peter tivera a mesma impressão geral, de que a Duquesa queria fazer com que se lembrassem do incidente. Que dissera ela?

Alguma coisa a respeito de passar a noite tranquilamente no apartamento, e sair então para uma pequena volta pelo quarteirão. Tinham acabado de chegar, afirmara depois. Peter se lembrava também de ter ficado imaginando, naquela ocasião o motivo pelo qual ela acentuara tanto êsse ponto. Nisso, o Duque de Croydon murmurara qualquer coisa sôbre ter deixado os cigarros no automóvel, e a Duquesa respondera com aspereza.

O Duque deixara os cigarros no automóvel.

Mas, se os Croydons haviam ficado no apartamento, e tinham dado apenas um passeio curto pelo quarteirão...

Naturalmente, os cigarros poderiam ter sido deixados em ocasião anterior do dia. Mas, por algum motivo; Peter achava

que não fôra assim.

Esquecido de Marsha e Natchez, concentrou seus pensamentos. Por que os Croydons queriam esconder o uso de seu próprio automóvel na noite de segunda-feira? Para que criar uma aparência - aparentemente falsa - de terem passado a noite no hotel? Seria a queixa sôbre o descuido do boy um golpe planejado, envolvendo deliberadamente Natchez, e depois Peter, para dar apoio a essa mentira? A não ser pela observação casual feita pelo Duque, que enraivecera a DuQuesa, Peter o teria aceito como verdade.

Por que esconder o uso do automóvel?

Poucos momentos antes, Natchez dissera: é uma coisa esquisita. o acidente. deve ter acontecido pouco antes daQuele meu embaraço.

O carro dos Croydons era um Jaguar.

Ogilvie. Veio a lembrança súbita do Jaguar que saía da garagem na noite da véspera. Ao parar, momentâneamente, sob uma luz, êle reparara em qualquer coisa estranha. Mas, o que fôra? Com uma frieza horrível, Peter se lembrou: eram o pára-lama e o farol, ambos danificados. Pela primeira vez o significado dos boletins policiais daqueles dias chegava à sua compreensão.

- Peter! disse Marsha. - Você ficou pálido, de repente!

Ele mal ouviu. Era essencial que se afastasse dali, fôsse para algum lugar onde pudesse pensar. Precisava pensar cuidadosa, lógica, calmamente. Acima de tudo, não devia chegar a conclusões apressadas.

Havia peças de um quebra-cabeça, e superficialmente pareciam ligar- se, mas precisavam ser examinadas, reexaminadas, arrumadas e rearrumadas, talvez postas de lado.

A idéia era impossível. A coisa era simplesmente fantástica demais para ser verdade. No entanto.

Como se ela estivesse distante, ouviu a voz de Mársha:

- Peter! Houve alguma coisa. O que é?

Também Natchez o fitava com expressão de estranheza.

- Marsha - disse Peter -, não lhe posso dizer agora. Mas preciso ir.

- Para onde?

- Voltar ao hotel. Sinto muito. Tentarei explicar depois.

- Eu tinha planejado um chá - disse ela, revelando desapontamento.

- Por favor, acredite em mim!. É importante!

- Se tem de ir, eu o levarei de carro.

- Não!

Ir com ela acarretaria conversa, explicações. Ele pediu:

- Por favor! Eu lhe telefonarei depois.

Fora do cemitério, chamou um táxi que passava. Dissera a Marsha que ia para o hotel, mas, mudando de idéia, deu ao motorista o enderêço de seu apartamento.

Seria lugar mais tranquilo para pensar, resolver o que devia fazer.

A tarde já ia no fim, quando Peter McDermott resumiu seu raciocínio, dizendo a si próprio: depois de se somar uma coisa vinte, trinta, quarenta vêzes, e quando em tôdas elas se chegava ao mesmo resultado, quando a questão era o tipo de questão com que se defrontava agora, diante de tudo isso, o seu dever era iniludível.

Desde que deixara Marsha, hora e meia antes, permanecera em seu apartamento. Forçara-se, subjugando a agitação e o impulso de se apressar, a pensar racional, cuidadosa, desapaixonadamente. Revira, ponto por ponto, os incidentes transcorridos desde a noite de segunda-feira. Buscara outras explicações, tanto para os acontecimentos isoládos quanto para seu encadeamento geral, sem achar qualquer uma que tivesse coerência ou sentido, a não ser a conclusão horrível a que chegara de repente, naquela tarde.

Agora, terminara o raciocínio e precisava tomar uma decisão.

Pensou apresentar tudo quanto sabia e calculara a Warren Trent, mas sentiu que seria uma covardia, uma fuga à sua própria responsabilidade. O que tivesse de fazer, devia fazê-lo sòzinho.

Sentia agora a correção das coisas que tinham de ser feitas. Trocou ràpidamente de roupa, voltando a envergar o terno mais escuro. Ao sair, tomou um táxi no qual percorreu a pequena distância que o separava do hotel.

Seguiu a pé pela portaria, recebendo cumprimentos dos empregados, até chegar a seu escritório na sobreloja. Flora sua secretária, já fôra para casa, e havia uma pilha de recados em sua mesa, mas êle não os olhou. Sentou-se no escritório silencioso, por momentos, pensando no que ia fazer. Em seguida, apanhou o telefone, esperou o sinal e discou para a polícia.

O zumbido persistente de ume mosquito que conseguira entrar no Jaguar despertou Ogilvie durante a tarde. Acordou lentamente, e de início teve dificuldade em se lembrar onde estava. Depois, a sequência de fatos voltou à sua memória: a partida do hotel, a viagem pela escuridão da madrugada, o alarme falso da ambulância, sua decisão de esperar o dia seguinte para seguir viagem e, finalmente, o caminho esburacado e tomado de grama, com pequeno bosque ao fim, onde escondera o automóvel.

O esconderijo parecia ter sido bem escolhido e, consultando o relógio, verificou que dormira quase oito horas sem interrupção.

Com a consciência, veio também intenso desconforto. O carro estava muito quente, o corpo lhe doía e se mostrava endurecido em vista das dimensões insuficientes do banco onde dormira. Com a bôca sêca e de péssimo gôsto, sentiu sêde e uma fome enorme.

Gemendo, Ogilvie ajeitou o corpanzil, e abriu a porta do carro. Imediatamente, viu-se rodeado de mais mosquitos, que tentou afastar com a mão, olhando em volta para se orientar e comparando o que via com suas impressões sôbre o lugar, pela manhã. Naquela ocasião a luz do dia era pouco, e estava fresco. Já agora o sol ia alto, e mesmo sob a sombra das árvores o calor era intenso.

Chegando à orla das árvores, podia ver a estrada principal, a boa distância, com ondas de calor tremulando por cima da pista. Pela manhã, não havia tráfego, mas naquele momento diversos automóveis e caminhões, passando ràpidamente em ambos os sentidos, faziam ouvir o ruído de seus motores, atenuado pèla distância.

Mais perto, além do zumbido constante dos insetos, não havia qualquer sinal de atividade. Entre êle e a estrada só via capinzais, o caminho abandonádo e aquêle grupo de árvores, sob as quais continuava oculto o automóvel.

Ogilvie sentiu alívio, e abriu um embrulho que guardara na mala do carro antes de sair do hotel. Lá estava uma garrafa

térmica com café, diversas latas de cerveja, sanduíches, salame, um vidro de conservas e uma torta de maçã. Comeu com voracidade, ajudando a mastigação com longos goles de cerveja, e depois café, que esfriara mas estava ainda forte e bom.

Enquanto comia, ligou o rádio do carro, esperando o noticiário de Nova Orleans, mas quando o mesmo foi irradiado só fêz referência breve às investigações do caso de atropelamento, dizendo que nada de novo fôra descoberto.

Depois disso, resolveu explorar o lugar, e notou a uns cem metros de distância, no alto de uma elevação, outro grupo de árvores, pouco maior que o primeiro. Cruzou o campo aberto até lá, e no outro lado das árvores achou uma margem cheia de musgo e um córrego vagaroso e barrento. Ajoelhando-se, lavou-se sumàriamente e com isso sentiu-se melhor. A grama era mais verde e convidativa do que o lugar onde escondera o carro, e êle se deitou, usando o paletó como travesseiro.

Depois de cômodamente instalado, Ogilvie passou em revista os acontecimentos da noite e as possibilidades à sua frente. A reflexão confirmou a sua conclusão anterior de que o encontro com Peter Mcdermott, na saída do hotel, fôra acidental, e já podia ser esquecido. Era fácil prever que a reação de McDermott, ao saber da ausência do detetive-chefe, seria explosiva, mas isso, por si só, não revelaria o destino tomado por Ogilvie ou o motivo de sua partida.

Era possível, naturalmente, que por outra causa algum alarma tivesse sido dado desde a noite, e que, naquele próprio instante, Ogilvie e o Jaguar estivessem sendo intensamente procurados. Mas, pelo que dissera o noticiário radiofônico, isso parecia improvável.

Em conjunto, as perspectivas pareciam excelentes, ainda mais quando pensava no dinheiro já seguramente guardado, e o restante que receberia em Chicago, no dia seguinte.

Agora só lhe restava esperar que anoitecesse.

O ânimo exultante de Keycase Milne perdurou até a tarde, revigorando sua confiança quando, pouco depois das 17 horas, êle se aproximou com cautela do Apartamento Presidencial.

Usara mais uma vez a escada de serviço, vindo do oitavo andar para o nono. A duplicata da chave, feita pelo chaveiro do Canal Irlandês, estava em seu bolso.

Na parte externa do Apartamento presidencial o corredor se mostrava deserto, e êle parou diante das portas com estôfo de couro, ouvindo com atenção, mas sem perceber ruído algum.

Olhou para ambos os lados do corredor e depois, num só movimento, tirou a chave e a experimentou na fechadura. Antes disso, passara grafite em pó na chave, lubrificando-a, e ela entrou, pegou por um momento e depois girou. Keycase abriu uma das duas portas apenas uma polegada. Continuava não ouvindo qualquer barulho lá dentro, e então fechou a porta com cuidado, retirando a chave.

Não pretendia entrar naquele momento. Isso ficaria para depois, à noite. A sua intenção fôra fazer um reconhecimento e ter a certeza de que a chave servia, estando pronta para uso quando êle quisesse. Mais tarde iniciaria uma vigília, esperando a oportunidade que previra em seus planos.

No momento, voltou ao seu quarto no oitavo andar e, lá chegando, acertou o despertador e dormiu.

Já escurecia lá fora e, pedindo desculpas, Peter McDermott se levantou da mesa para acender as luzes do escritório. Voltou depois a falar novamente com o homem calmo, de terno de flanela cinzenta, que se sentara à sua frente. O Capitão Yolles, do Departamento de Detetives da polícia de Nova Orleans, parecia- se menos com um policial do que qualquer outra pessoa já vista por Peter. Continuou a ouvir, atenciosamente, como um gerente de banco ouviria um pedido de empréstimo, o que Peter tinha para contar, fôssem fatos ou conjeturas e apenas uma vez no curso dessa longa dissertação o interrompera, perguntando se podia usar o telefone. Informado que sim, usara uma extensão no outro extremo do escritório, falando em voz tão baixa que Peter nada percebera do que dissera.

A inexistência de qualquer reação favorável, por parte do detetive, tivera o efeito de fazer voltar as dúvidas de Peter e, finalmente, êle observou:

- Não tenho certeza se tudo isso, ou mesmo parte do que Lhe contei, faz sentido. Na verdade, começo a me sentir meio ridículo.

- Se mais pessoas quisessem se arriscar nesse sentido, Sr. McDermott, o trabalho da polícia seria muito mais fácil.

Pela primeira vez, o Capitão Yolles tomou papel e lápis, acrescentando:

- Se o que diz der algum resultado, precisaremos, como é natural, de uma declaração completa. Enquanto isso, há alguns detalhes que gostaria de conhecer. Um dêles é o número da licença do automóvel.

A informação estava contida num memorando feito por Flora, confirmando o relatório que enviara antes. Peter leu o número, em voz alta, e o detetive o anotou.

- Obrigado. A outra coisa é uma descrição de Ogilvie. Eu o conheço, mas gostaria de tê-la de sua parte.

- Isso é fácil - respondeu Peter, sorrindo pela primeira vez.

Ao terminar a descrição, o telefone tocou. Peter atendeu, e depois empurrou o aparelho sôbre a mesa, na direção do detetive, dizendo:

- É para o senhor.

Dessa vez, pôde ouvir o que o detetive dizia, embora suas manifestações se resumissem quase sòmente a "sim, senhor", e "compreendo". A certa altura, o policial olhou para êle, com expressão de quem avalia alguém, e disse ao telefone:

- Acho que é bem idôneo. E está preocupado, também - acrescentou, exibindo um sorriso.

Repetiu a informação sôbre o número do carro e descrição de Ogilvie, e em seguida desligou o aparelho. Peter comentou:

- Tem razão. Estou preocupado, sim. Pretende falar com o Duque e Duquesa de Croydon?

- Ainda não. Precisamos de mais alguma coisa - respondeu o detetive, encarando Peter com expressão pensativa.

- Já viu os jornais desta noite?

- Não.

- Há um boato; publicado pelo States-Item, de que o Duque de Croydon vai ser o embaixador britânico em Washington.

Peter assobiou baixinho.

- Acaba de ser irradiado, pelo que diz meu chefe, que a designação foi oficialmente confirmada.

- Isto não quer dizer que haveria certo tipo de imunidade diplomática?

- Não para alguma coisa já sucedida - respondeu o detetive, e emendando logo depois - Se é que sucedeu.

- Mas uma acusação falsa.

- Seria muito séria em qualquer caso, ainda mais neste. Por isso, estamos agindo com todo o cuidado, Sr. McDermott.

Peter refletiu que seria péssimo para o hotel, e para êle próprio, se qualquer informação sôbre a sua denúncia viesse a transpirar, no caso dos Croydons estarem inocentes.

- Se isso o tranquiliza um pouco - disse o Capitão Yolles - vou-lhe contar duas coisas. Uma, é que nossa gente fêz cálculos, desde que telefonei pela primeira vez. Eles acham que êsse Ogilvie pode estar tentando tirar o carro do Estado, talvez para algum lugar no norte. Como é que êle se liga aos Croydons, naturalmente, é coisa que não sabemos.

- Também não posso dizer - murmurou Peter.

- A probabilidade maior é que êle tenha viajado ontem à noite, depois de se terem visto, e se escondesse durante o dia. Estando o carro como está, não se arriscaria a fugir de dia. Esta noite, se êle aparecer, estaremos prontos. Já está sendo transmitido um alarme geral para doze Estados.

- Então, o que lhe disse está sendo levado a sério?

- Eu tinha duas coisas a contar - prosseguiu o detetive indicando o telefone. - Um motivo para êsse telefonema que recebi foi a comunicação de que recebemos o relatório do laboratório estadual sôbre o vidro quebrado e o arco, encontrados no local do acidente. Houve certa dificuldade por causa da alteração feita nas especificações do fabricante, e isso explica a demora. Mas agora sabemos que o vidro e o aro pertencem a um Jaguar.

- Podem ter tanta certeza assim?

- Podemos fazer mais ainda, Sr. McDermott. Se apanharmos o carro que matou a mulher e a menina, provaremos além de qualquer dúvida que foi êle.

O Capitão Yolles se levantou para sair e Peter o acompanhou até o escritório externo, onde teve a surprêsa de encontrar Herbie Chandler à espera. Lembrou-se, então, de suas próprias instruções para que o chefe da portaria se apresentasse naquela noite, ou na manhã seguinte. Depois dos acontecimentos da tarde, sentiu a tentação de adiar o que, com a maior probabilidade, deveria ser uma cena desagradável, mas concluiu que nada havia a ganhar com a espera.

Notou que o detetive e Chandler trocavam um olhar.

- Boa noite, Capitão - disse Peter, sentindo o prazer de notar uma sombra de dúvida no rosto de fuinha de Chandler.

Depois que o policial se retirou, Peter fêz sinal ao chefe da portaria para entrar. Abriu uma gaveta da mesa e tirou uma pasta com as declarações de Dizon, Dumaire e outros dois entregando-a a Chandler.

- Acredito que se interessará por isto. Caso tenha alguma idéia, é bom saber que são cópias, e tenho os originais comigo.

Com expressão de desgosto, Chandler começou a ler. Ao virar as páginas, apertou os lábios e Peter ouviu quando aspirou entre os dentes. Momentos depois, murmurava:

- Cachorros!

- Diz isso porque êles o identificaram como prozeneta?

O guarda da portaria ficou vermelho, e depois abaixou os papéis.

- Que vai fazer?

- Gostaria de despedi-lo neste momento. Devido ao fato de ser empregado tão antigo, vou levar a questão para decisão do Sr. Warren Trent.

Havia um tom de chôro na voz de Chandler, quando perguntou:

- Sr. Mac; podemos falar sôbre isso um instante? Não tendo recebido resposta, êle começou:

- Sr. Mac, há muitas coisas que acontecem num lugar como êste.

- Se me está contando os fatos da vida, sôbre mulheres que vêm divertir hóspedes, e demais bandalheiras, duvido que haja muita coisa que eu não saiba. Mas há outra questão de meu conhecimento, e suponho que do seu também: em certos pontos, as direções não transigem. Fornecer mulheres a menores de idade é um dêles.

- Sr. Mac, não podia, talvez desta vez, deixar de falar com o Sr. Trent? Isso não podia ficar entre nós?

- Não.

O olhar do chefe da portaria percorreu ràpidamente a sala, e depois voltou a Peter, com expressão calculista.

- Sr. Mac, se algumas pessoas vivessem e deixassem viver.

- Sim?

- Bem, às vêzes pode valer a pena.

Curioso, Peter não respondeu. Chandler hesitou e depois, com gestos deliberados, desabotoou um bôlso interno. Dali retirou um envelope dobrado, que colocou em cima da mesa.

- Deixe-me ver isso - disse Peter.

Chandler empurrou o envelope, que estava aberto e continha cinco notas de cem dólares. Peter as examinou com curiosidade.

- São verdadeiras?

Chandler torceu o rosto num sorriso, e respondeu:

- São, sim.

- Eu queria saber que preço você pensava ser o meu - respondeu Peter, atirando o dinheiro de volta. - Apanhe isso e saia daqui.

- Sr. Mac, se é questão de um pouco mais.

- Saia!

Peter pronunciara a ordem em voz baixa, já meio levantado da cadeira, e acrescentou no mesmo tom:

- Saia, antes que lhe quebre a cara imunda. Enquanto apanhava o dinheiro e se afastava, Herbie Chandler tinha o rosto transformado numa máscara de ódio.

Ficando sòzinho, Peter McDermott voltou a sentar-se, cansado. As entrevistas com o policial e com Chandler o ha viam esgotado e deprimido. Das duas, pensou êle, a segunda o deprimira mais, talvez porque segurar o suborno oferecido o

deixara com a sensação de imundície.

Mas, fôra assim mesmo? Pensava agora: "Seja sincero com você próprio! " Houvera um instante, com o dinheiro nas mãos, em que sentira a tentação de aceitá-lo. Quinhentos dólares eram uma boa soma. Peter não tinha qualquer ilusão sôbre os seus próprios rendimentos, comparados com os do chefe da portaria, que sem dúvida arrecadava muito mais. Se outro oferecesse aquilo, e não Chandler, poderia ter sucumbido à tentação. Ou teria, mesmo? Desejava ter certeza sôbre isso. Em qualquer caso, não seria o primeiro gerente de hotel a aceitar pagamento de seus subordinados.

A ironia, naturalmente, estava em que, a despeito da insistência de Peter em levar a docúmentação contra Herbie Chandler a Warren Trent, não podia garantir que isso acontecesse. Se a propriedade do hotel mudasse abruptamente, como parecia provável, Warren Trent não teria mais nada a ver com isso. E Peter poderia também não estar presente, pois, com a nova direção, os antecedentes dos principais empregados seriam certamente examinados e, em seu próprio caso, desenterrariam o antigo e desagradável escândalo no Waldorf. Já teria êle próprio, pensou Peter, ultrapassado aquêle obstáculo? Pois bem, parecia que logo ficaria sabendo.

Voltou a atenção para as coisas do momento. Na mesa estava um formulário impresso, deixado por Flora, com a contagem de hóspedes, feita no final da tarde. Examinou as cifras e verificou que o hotel estava de novo se enchendo e parecia que, à noite, estaria inteiramente lotado. Se o St. Gregory marchava para a derrota, ao menos era ao som de trombetas.

Juntamente com a contagem de hóspedes e recados telefônicos, havia uma nova pilha de correspondência e memorandos. Peter a examinou ràpidamente, resolvendo que nada havia que não pudesse ser deixado para o dia seguinte. Por baixo dos memorandos estava uma pasta de papel grosso, que abriu. Era o plano-mestre de aprovisionamento, que o sous- chef André Lemieux lhe entregara na véspera e Peter começara a examinar naquela manhã.

Consultando o relógio, resolveu continuar a leitura, antes de dar uma volta pelo hotel. Sentou-se, tendo à frente as páginas escritas em lètra precisa e mapas cuidadosamente desenhados.

Enquanto lia, sua admiração pelo jovem sous-chef aumentava. A apresentação era magistral, revelando tanto um amplo apanhado geral dos problemas do hotel quanto as potencialidades de seus restaurantes. Peter se sentia enraivecido ao lembrar que o chef de cuisine, M. Hèbrand, rejeitara aquelas propostas inteiramente, pelo que dissera Lemieux.

Algumas conclusões do plano, decerto, eram discutíveis, e Peter discordava de algumas idéias de Lemieux. A primeira vista, também, uma série de cálculos de despesas parecia otimista, mas eram coisas de menor importância. O que se tinha de levar em conta era o fato de que o homem vindo de fora, decerto competente, examinara as deficiências atuais na administração dos alimentos e indicara remédios para as mesmas.

Também era óbvio que se o St. Gregory não fizesse uso melhor dos consideráveis talentos de André Lemieux, em breve os perderia.

Peter recolocou os planos e mapas na pasta, sentindo o prazer de saber que alguém, no hotel, possuía o tipo de entusiasmo pelo trabalho demonstrado por Lemieux, e resolveu que transmitiria ao sous-chef as suas impressões, embora - com o hotel naquela situação incerta - não parecesse haver mais coisa alguma que pudesse fazer.

Deu um telefonema e ficou sabendo que, naquela noite, o chef de cuisine estava ausente, ainda por motivo de doença, e o sous-chef, M. Lemieux, era o encarregado da cozinha. Mantendo o protocolo, Peter deixou recado de que ia descer naquele momento para lá.

Quando chegou, André Lemieux se achava na porta do restaurante principal.

- Entre, monsieur! O Sr. é bem- vindo! - disse o jovem sous-chef, em grito dado perto dos ouvidos de Peter, e seguindo à sua frente pela cozinha ruidosa e fumegante. - Chegou, como dizem os músicos, perto do crescendo.

Em contraste à relativa calma da véspera, a atmosfera era quase de pandemônio. Havendo uma turma completa em serviço, cozinheiros em seus trajes engomados, e os ajudantes e aprendizes pareciam ter brotado como margaridas num campo de flôres. Em meio a ondas de vapor e de calor, os ajudantes suavam levantando ruidosamente travessas, bandejas, panelas e caldeirões, enquanto outros empurravam carrinhos com pouco cuidado, cada qual se esquivando dos demais, bem como dos garçons e garçonetes, estas últimas carregando as bandejas bem alto sôbre as cabeças. Em mesas fumegantes, os pratos do cardápio do jantar estavam sendo preparados e servidos para entrega nos restaurantes. Pedidos especiais, feitos com base nos cardápios la carte e para entrega nos quartos, estavam sendo preparados por cozinheiros de movimentos rápidos, cujos braços e mãos pareciam estar ao mesmo tempo em tôda parte. Os garçons esperavam, perguntando como iam os pedidos feitos, enquanto os cozinheiros respondiam o que bem entendiam. Outros garçons, com travessas carregadas, passavam ràpidamente pelas duas severas registradoras, nos pontos de cobrança. Da seção de sopa, erguia-se uma nuvem de vapor enquanto os caldeirões gigantescos borbulhavam. A pouca distância, dois cozinheiros especializados preparavam destramente salgadinhos e hors d'oeuvres. Mais além, um pasteleiro ansioso supervisionava as sobremesas. De vez em quando, abriam-se com ruído as portas dos fornos, o reflexo de chamas reverberava em rostos preocupados, e o interior daqueles compartimentos proporcionava um relance do inferno. Acima de tudo, ferindo ouvidos e narinas estava o barulho de pratos, o cheiro convidativo da comida e a fragrância doce de café fresco.

- Quando estamos mais ocupados, monsieur, é também quando estamos mais satisfeitos. Ou devíamos estar, se não olhássemos por baixo da fôlha de repôlho.

- Li o seu relatório - disse Peter, entregando a pasta de volta ao sous-chef, e acompanhando-o depois ao escritório com tabique de vidro, onde o barulho chegava amortecido. Gostei de suas idéias. Discordo de alguns pontos, mas não muitos.

- Seria bom debater se, ao final, fôssem tomadas as medidas necessárias.

- Isso não poderá acontecer ainda. Pelo menos, não como imagina - comentou Peter, indicando que antes de qualquer reorganização havia a questão maior da propriedade do hotel para ser resolvida.

- Talvez eu tenha de levar o meu plano para outro lugar. Não faz mal - disse André Lemieux, com um encolher de ombros bem francês, e acrescentando: - Monsieur, estou a ponto de visitar o andar da convenção. Gostaria de ir comigo? Peter tivera a intenção de incluir os jantares de convenção programados para aquela noite, em suas voltas pelo hotel, e seria conveniente iniciar sua inspeção a partir da cozinha no andar de lá.

- Obrigado. Irei, sim.

Tomaram um elevador de serviço que os levou dois andares acima, saindo no que parecia ser uma duplicata da cozinha abaixo. Dali, cêrca de duas mil refeições podiam ser servidas aos convencionais alojados nos três salões de convenção e uma dúzia de salas particulares, também destinadas a refeições. O ritmo do momento parecia tão frenético quanto na cozinha da qual tinham vindo.

- Como sabe, monsieur, são dois grandes banquetes que temos esta noite. No Grande Salão de Baile, e no Salão Bienville.

- Sim, são a Convenção dos Dentistas e da Gold Crown Cola.

Pelo movimento de refeições que eram levadas a ambos os extremos daquela comprida cozinha, observou que o prato principal dos dentistas era peru assádo, e o dos vendedores de refrigerantes sôlha sauté. Equipes de cozinheiros e ajudantes estavam preparando pratos para ambos, distribuindo os legumes em ritmo maquinal e depois, num movimento simples, cobrindo os pratos cheios com tampas metálicas e pondo tudo nas bandejas dos garçons.

Nove pratos por bandeja, o que era o número de convencionais em cada mesa. Duas mesas por garçom. Quatro pratos na refeição, e mais o pão, manteiga, café e petits fours. Peter calculava - haveria doze viagens de carga pesada, pelo menos, para cada garçom. Era quase certo que tal número seria maior, se os convivas se mostrassem exigentes ou, como acontecia às vêzes sob pressão, fôsse aumentado o número de mesas. Não era de espantar que alguns garçons parecessem cansados ao final da noite.

Menos cansado, talvez, se mostrasse o maitre hôtel ossudo e imaculadamente vestido, com gravata branca e fraque. Naquele momento, como um chefe de polícia trabalhando na rua, estava situado centralmente na cozinha, dirigindo o fluxo de garçons em ambas as direções. Vendo André Lemieux e Peter, dirigiu-se para êles.

- Boa noite, Chef, Sr. McDermott.

Embora na hierarquia do hotel Peter fôsse superior a ambos, na cozinha o maitre d'hotel se dirigira corretamente ao chef principal de serviço. André Lemieux perguntou:

- Quais são os nossos números para jantar, Sr. Dominic? O maitre consultou uma folhinha de papel.

- Os convivas da Gold Crown são calculados em duzentos e quarenta, e já acomodamos êsse número. Parecem estar quase todos presentes.

- São vendedores que recebem salário - disse Peter.

- Têm de estar presentes. Já os dentistas fazem o que querem, e provàvelmente se atrasarão e muitos nem aparecerão. I O maitre d'hôtel assentiu, dizendo:

- Ouvi dizer que estão bebendo muito nos quartos. O consumo de gêlo é grande, e o serviço dos quartos foi prolongado pela entrega de bebidas. Achamos que isso pode reduzir o número de refeições aqui.

O enigma consistia em adivinhar quantas refeições deviam ser preparadas em qualquer momento para as convenções e era problema conhecido para os três homens. Os organizadores das convenções davam ao hotel a garantia de um mínimo, mas na prática a cifra poderia variar, atingindo mais cem pessoas, ou menos cem. Um dos motivos para isso era a incerteza sôbre quantos delegados se formariam em grupos menores e dispensariam o banquete oficial ou, então, chegariam em grande número e no último instante.

Os minutos finais antes de terminar um grande banquete de convenção eram inevitàvelmente de nervosismo em qualquer cozinha de hotel. Era também um momento crítico, pois todos quantos estivessem trabalhando ali percebiam que sua reação a uma crise demonstraria sua boa ou má organização de trabalho.

Peter perguntou ao maitre d'hôtel:

- Qual era o cálculo inicial?

- Para os dentistas, quinhentos. Estamos perto disso e já começamos a servir. Mas parece que continuam a chegar outros.

- Estamos tendo uma contagem rápida dos que vão chegando?

- Tenho um homem lá fora para isso. Aí vem êle! Esquivando-se dos garçons, um assístente com casaco vermelho se dirigia apressadamente a êles, tendo entrado pela porta de serviço que dava para o Grande Salão de Baile. Peter perguntou a Lemieux:

- Se fôr preciso, podemos produzir as refeições extraordinárias?

- Depois de saber quais as necessidades, monsieur, faremos o possível.

O maitre d'hôtel conferenciou com o assistente, e depois voltou a juntar-se a êles.

- Parece que teremos mais cento e setenta pessoas. Elas estão invadindo a sala! Já estamos preparando mais mesas.

Como sempre, a crise chegava sem qualquer aviso. Naquele caso, aparecera com o maior dos impactos. Cento e setenta refeições a mais, que seria preciso servir sem demora, bastariam para sobrecarregar os recursos de qualquer cozinha. Peter se voltou para André Lemieux, mas verificou que o jovem francês não estava mais em sua companhia.

O sous-chef entrara em ação, como se projetado numa catapulta. Já estava em meio a seu pessoal, dando ordens em ritmo de metralhadora: um cozinheiro aprendiz para a cozinha principal, para apanhar sete perus da refeição de amanhã... Uma ordem gritada para a sala de preparação: Usem as reservas! Mais depressa. Cortem tudo que estiver à vista!. Mais legumes! Tirem do segundo banQuete, que parece estar usando menos do que era para usar!... Outro aprendiz de cozinheiro mandado às carreiras à cozinha principal para recolher todos os legumes que encontrar... E mande um recado para que façam subir mais ajudantes! Dois cortadores, dois cozinheiros mais... Avisem ao pasteleiro! Cento e setenta sobremesas a mais, dentro de minutos... Roubem Pedro por Paulo! Façam mágica! Dêem comida aos dentistas!

O jovem André Lemieux, pensando depressa, confiante, de bom-humor, dirigindo o espetáculo.

Os garçons já estavam sendo redistribuídos, alguns dêles retirados disfarçadamente do banquete menor da Gold Crown

Cola, onde os restantes teriam de trabalhar mais. Os convivas do banquete jamais perceberiam isso, notando apenas, em alguns casos, que seu prato seguinte seria servido por alguém com rosto vagamente diferente. Outros garçons, já mandados para O Grande Salão de Baile e os dentistas, tomariam conta de três mesas, vinte e sete convivas, ao invés de duas. Alguns dêles mais experientes, e que se sabia terem pés e dedos ligeiros conseguiriam atender quatro mesas. Haveria alguns resmungos, mas não muito. Os garçons das convenções, em sua maioria, eram avulsos, chamados pelo hotel à medida que surgisse a necessidade. Otrabalho extraordinário proporcionava pagamento também extraordinário, e quatro dólares por três horas de trabalho eram o preço para duas mesas; cada mesa a mais proporcionava metade daquela soma, e as gorjetas, aduzidas à conta de uma convenção por acôrdo anterior, dobrariam o toI tal. Os homens de pés ligeiros iriam para casa com dezesseis dólares, e se tivessem sorte poderiam ter ganho o mesmo no almôço ou no café da manhã.

Peter viu que um carrinho com três perus recém-cozidos já saía de um elevador de serviço. Os cozinheiros da sala de preparação caíram sôbre êle, e o ajudante que os trouxera voltou para buscar mais.

Quinze porções em cada peru. Trinchamento rápido, com habilidade de cirurgiões. A cada conviva a mesma proporção de carne branca, carne escura e recheio. Vinte porções por bandeja de entrega, e sua chegada rápida ao balcão. Outros carrinhos com legumes, soltando vapor como navios chegando ao porto.

O despacho de mensagens mandadas pelo sous-chef reduzira o pessoal na turma encarregada de preparar os pratos. André Lemieux se adiantou, substituindo os dois que faltavam e a turma adquiriu velocidade, movendo-se mais depressa do que antes.

Prato. carne. primeiro legume. segundo. môlho. empurre o prato. coberto Um homem para cada movimento: braços, mãos, colherões movendo-se juntos. Uma refeição por segundo. mais depressa ainda! Diante do balcão de entrega, uma fila de garçons se tornara comprida.

No outro lado da cozinha, um pasteleiro abrindo geladeiras, examinando, escolhendo, fechando as portas com ruído. Pasteleiros da cozinha principal chegando às carreiras para ajudar. Usam-se as sobremesas de reserva. Mais sobremesas estão chegando, vindas das geladeiras no porão.

No meio de tôda aquela urgência, um momento de incoerência. Um garçom falou ao assistente, êste ao garçom-chefe, e êste a André Lemieux:

- Chef, há um cavalheiro dizendo que não gosta de peru, e quer saber se pode comer rosbife mal passado!

Uma gargalhada geral se fêz ouvir, dada pelos cozinheiros suados. Mas o pedido seguira corretamente o protocolo, como Peter sabia. Sòmente o chef principal podia autorizar qualquer desvio quanto ao cardápio-padrão.

Sorrindo, André Lemieux respondeu:

- Pode, sim, mas que seja servido por último na mesa. Também isso era antigo costume da cozinha. Como questão de relações públicas, a maioria dos hotéis modificaria a refeição-padrão se isso fôsse pedido, mesmo que o outro prato custasse mais caro. Mas invariàvelmente - como naquele exemplo - o individualista tinha de esperar até que todos os demais convivas em sua mesa tivessem começado a comer, precaução tomada contra a possibilidade de que lhes ocorressem a mesma idéia.

Já diminuía a fila de garçons à espera no balcão de entrega, e para a maioria dos convivas no Grande Salão de Baile - inclusive os que tinham chegado atrasados - o jantar principal fôra servido. Os ajudantes de cozinha já apareciam, trazendo pratos vazios, e sentia-se que a crise fôra vencida.

André Lemieux entregou o lugar que ocupara entre os preparadores de pratos, e lançou olhar inquiridor ao chef pasteleiro. Homem magérrimo, cuja aparência era de quem raramente provava suas próprias guloseimas, êste fêz um sinal característico, anunciando:

- Tudo pronto, Chef.

André Lemieux, sorrindo, voltou à companhia de Peter.

- Monsieur, parece que conseguimos dar conta do recado.

- Acho que conseguiram muito mais do que isso. Estou impressionado!

O jovem francês deu de ombros, dizendo:

- O que viu foi bom, mas é apenas uma parte do trabalho. Em outras partes não é tão boa a nossa aparência. Desculpe-me, Monsieur - acrescentou, afastando-se.

A sobremesa era bombe aux marrons, cherries flambées. Seria servida cerimoniosamente, com as luzes do salão enfraquecidas e as bandejas em chamas levadas bem alto pelos garçons.

Estes já se enfileiravam diante das portas de serviço. O pasteleiro e seus ajudantes verificavam a arrumação das bandejas. Quando fôsse tocado, um prato central, em cada uma irromperia em fogo. Dois cozinheiros estavam prontos, com velas acesas.

André Lemieux inspecionou a fila, enquanto na entrada do Grande Salão de Baile o garçom-chefe, de braço erguido observava o rosto do sous-chef.

Quando André Lemieux balançou a cabeça, aprovando, o braço do garçom-chefe desceu. Os cozinheiros, com velas acesas, percorreram a fila de bandejas, acendendo-as. Abriram a porta dupla de serviço, prendendo-a na parte externa, e recebendo a deixa um eletricista enfraqueceu as luzes do salão. A música da orquestra se abrandou, e parou de repente. Entre os convivas, o murmúrio da conversa terminou.

Sùbitamente, no lado oposto do salão, acendeu-se um farolete, iluminando a porta da cozinha. Houve um instante de

silêncio e depois se ouviu a fanfarra de trombetas. Quando a mesma terminou, a orquestra e órgão voltaram a tocar juntos fortissimo, os primeiros acordes de Os Santos. Em cadência com a música, a fila de garçons com as bandejas acesas foi saindo da cozinha.

Peter McDermott passou ao Grande Salão de Baile para poder ver melhor o espetáculo, observando, então, a grande multidão de convivas que superlotava o lugar.

Oh, quando os Santos; oh, quando os Santos; oh, quando os Santos vêm marchando. Da cozinha surgia garçom após garçom, de uniforme azul, marchando em cadência. Naquele momento, todos se mostravam impressionados. Alguns, dentro de momentos, voltariam a seu trabalho no outro salão de banquetes. Na penumbra, as chamas se apresentavam, luminosas. Oh, quando os Santos; oh, quando os Santos; oh, Quando os Santos vêm marchando. Dos convivas, irrompeu um brado espontâneo de aplauso, seguido logo de palmas cadenciadas à música, enquanto os garçons davam a volta ao salão. O hotel se desincumbira de um compromisso. Ninguém, fora da cozinha, poderia saber que minutos antes uma crise fôra enfrentada e vencida. Senhor, quero estar nesse número, Quando os Santos vêm marchando. No momento em que os garçons chegaram às mesas, as luzes voltaram e redobraram os aplausos e gritos de alegria.

André Lemieux viera ficar ao lado de Peter.

- É tudo por hoje, monsieur, a menos que deseje tomar um conhaque. Na cozinha tenho uma pequena dose.

- Não, obrigado - respondeu Peter, que sorria. - Foi um bom espetáculo. Parabéns!

Quando se voltou para sair, o sous-chef lhe disse:

- Boa noite, monsieur. E não se esqueça!

- De quê? - perguntou Peter, parando e intrigado.

- Do que lhe disse. O brinco que êste hotel poderá ser, graças ao Sr. e a mim.

Meio divertido e meio pensativo, Peter passou pelas mesas do banquete, dirigindo-se à saída do salão de baile. Já percorrera a maior parte da distância, quando percebeu alguma coisa errada. Deteve-se, olhou em volta, incerto quanto ao que seria. De repente, lembrou-se. Era o Dr. Ingram, o pequenino e decidido presidente do Congresso de Odontologia, que devia estar presidindo ao banquete, que era um dos pontos principais da convenção. Mas o doutor não estava no lugar da presidência, nem em qualquer outro lugar na comprida mesa principal.

Diversos convencionais percorriam as mesas, cumprimentando amigos sentados em outras partes do salão, e um homem com um aparelho de surdez parou ao lado de Peter, perguntando-lhe:

- Foi um fecho de ouro, não foi?

- Certamente. Espero que tenha gostado do jantar.

- Não foi mau.

- Estou procurando o Dr. Ingram - disse Peter. Não o vejo em parte alguma.

- Nem vai ver - foi a resposta, em tom brusco. O homem o encarou com expressão de desconfiança, e perguntou:

- É jornalista?

- Não, sou do hotel. Estive com o Dr. Ingram duas vêzes.

- Ele se demitiu. Esta tarde. Na minha opinião, êle se portou como idiota completo.

Peter controlou a surprêsa e indagou:

- O Sr. sabe onde êle está?

- Não faço a menor idéia - respondeu o homem, afastando-se.

Havia um telefone interno no pavimento das convenções e a telefonista informou a Peter que o Dr. Ingram ainda constava como presente no hotel, mas o telefone de seu quarto não respondia. Peter pediu ligação para o caixa, a quem perguntou:

- O Dr. Ingram, de Filadélfia, já liquidou a conta?

- Sim, Sr. McDermott, há poucos instantes. Posso vê-lo daqui, na portaria.

- Mande alguém pedir-lhe que me espere, por favor. Já estou descendo.

O Dr. Ingram estava de pé, ao lado de suas malas, tendo no braço uma capa de chuva, quando Peter se aproximou.

- Qual é o problema agora, McDermott? Se quer referências para êste hotel, pode desistir. Além disso, tenho de apanhar um avião.

- Eu soube de sua demissão e vim- lhe dizer que lamento muito.

- Eles se arranjarão - respondeu o dentista. Do Grande Salão de baile, dois andares acima, veio o ruído de aplausos e aclamações, e o Dr. Ingram comentou: - Parece que já se arranjaram.

- O Sr. está sentido com isso?

- Não - respondeu o pequenino dentista, mas logo em seguida se movia, inquieto, o olhar voltado para o chão, e corrigia: - Sou um mentiroso. Estou muitíssimo sentido. Não devia estar, mas estou.

- Qualquer um ficaria - disse Peter.

O Dr. Ingram ergueu a cabeça em gesto rápido.

- Compreenda o seguinte, McDermott: eu não sou um derrotado, e não tenho de sentir que sou. Fui professor tôda a minha vida, com muita coisa para mostrar de sólido: gente boa, que eduquei, e Jim Nicholas foi um, e outros, trabalhos científicos que produzi, livros que escrevi e são manuais de ensino. Tudo isso é coisa concreta. O mais - acrescentou, fazendo um sinal em direção ao Grande Salão de Baile - é o enfeite.

- Eu não sabia.

- Ainda assim, algum enfeite não faz mal, e chega-se até a gostar dêle. Eu queria ser presidente e fiquei satisfeito quando me elegeram. É uma consagração das pessoas cuja opinião se preza. Se estou sendo sincero, Mcdermott, e só Deus sabe porque lhe digo isto, meu coração está doendo, por não estar lá em cima esta noite.

Fêz uma pausa, olhando para cima, enquanto os sons vindos do salão de baile se tornavam audíveis mais uma vez.

- De vez em quando, porém - acrescentou - é preciso pesar o que se quer contra aquilo em que se acredita.

O pequenino doutor resmungou, e finalizou:

- Alguns dos meus amigos acham que agi como um idiota.

- Não é idiota defender um princípio - disse Peter.

O Dr. Ingram o encarou diretamente.

- Você não fêz isso, McDermott, quando teve a oportunidade. Você estava preocupado demais com êste hotel e o seu emprêgo.

- Creio que seja verdade.

- Pois bem, você tem a coragem de reconhecê-lo, de modo que lhe vou dizer outra coisa, meu filho. Você não está sòzinho. Houve ocasiões em que não me apresentei para a defesa de tudo em que acredito. Acontece a nós todos. Às vêzes, no entanto, conseguimos uma segunda oportunidade. Se acontecer isso com você, não a perca!

Peter fêz sinal a um boy.

- Irei com o Sr. até a porta.

- Não é preciso - recusou o Dr. Ingram. - Não vamos ficar com tolices, McDermott. Não gosto dêste hotel, nem de você.

O boy os olhava, com expressão de dúvida, e o Dr. Ingram lhe disse:

- Vamo-nos embora.

No final da tarde, perto do grupo de árvores onde o Jaguar estava oculto, Ogilvie dormiu outra vez. Despertou com o crepúsculo, quando o sol era um círculo alaranjado sôbre uma elevação no poente. Ocalor do dia já se tornara um agradável frescor noturno, e Ogilvie se apressou, sabendo que logo chegaria a hora de partir.

Ligou o rádio do carro, verificando que parecia não haver notícias novas, e sim apenas a repetição do que já ouvira.

Satisfeito, desligou o receptor.

Voltou ao córrego além do outro grupo de árvores, onde se refrescou, jogando água no rosto e na cabeça para acabar com os últimos vestígios de sonolência. Fêz uma refeição apressada com o que restara de seus alimentos, e depois encheu novamente as garrafas térmicas com água, deixando-as no banco de trás do veículo, junto ao queijo e ao pão. Aquela refeição improvisada teria de sustentá-lo por tôda a noite, pois até o amanhecer do dia seguinte não pretendia fazer paradas desnecessárias.

A sua rota, que planejara e guardara de memória antes de partir de Nova Orleans, seguia para o norte passando pelo restante do estado de Mississippi, e depois atravessaria a ombreira ocidental do Alabama, seguindo então para o norte, passando pelo Tennessee e Kentucky. De Louisville cruzaria diagonalmente pela Indiana, através de Indianápolis, e chegaria ao Illinois perto de Hammond, e daí para Chicago.

O restante da jornada compreendia 1100 quilômetros. A distância completa era grande demais para uma só etapa, mas Ogilvie calculava estar perto de Indianápolis ao alvorecer, onde acreditava que estaria seguro. Uma vez lá, apenas 300quilômetros o separariam de Chicago.

A escuridão era completa quando deu marcha-a-ré no Jaguar, saindo das árvores e dirigindo-se devagar à estrada principal. Ao entrar na U. S. 45, rumo ao norte, deu outro de seus resmungos de satisfação.

Em Columbus, Mississippi, onde os mortos da Batalha de Shiloh foram levados à sepultura, Ogilvie parou para reabastecer o tanque. Teve o cuidado de escolher uma pequena loja nos arrabaldes da cidade, onde viu duas bombas de gasolina, de modêlo antigo, iluminadas por uma única lâmpada. Levou o carro tão longe da luz quanto possível, de modo que sua parte dianteira permanecia na sombra.

Não deu margem para conversa, sem responder ao "boa noite" do lojista. Pagou a gasolina e meia dúzia de barras de chocolate, e prosseguiu viagem. Quinze quilômetros adiante, atravessava a fronteira estadual do Alabama.

Uma série de cidadezinhas desfilava pela beira da estrada. Eram Vermon, Sulligent, Hamilton, Russellville, Florence, esta última - como informava um cartaz - famosa pela sua fabricação de tampas de vasos sanitários. Poucos quilômetros além, atravessava a fronteira do Tennessee.

O tráfego era de intensidade média e o Jaguar se portava magnificamente. As condições de viagem eram ideais, ajudadas por uma lua cheia que surgira logo ao anoitecer. Não se via qualquer sinal de atividade policial.

Ogilvie se sentia tranquilamente repousado. Oitenta quilômetros ao sul de Nashville, em Columbia, no Tennessee, entrou na U. S. 31.

Ali, o tráfego era mais intenso. Tratores-reboques enormes, com os faróis varando a noite como uma cadeia ofuscante sem fim, rumavam estrondosamente para o sul, no sentido de Birmingham, e ao norte, na direção do Meio-Oeste industrial. Carros de passeio, alguns dos quais se arriscando como motoristas de caminhão não o fariam, ziguezagueavam por dentro do tráfego. De vez em quando, Ogilvie também saía da estrada, para passar à frente de algum veículo em marcha lenta, mas tinha cuidado de não ultrapassar os limites de velocidade indicados na estrada. Não tinha qualquer desejo, por exceder os limites ou qualquer outro motivo, de chamar a atenção. Depois de algum tempo, notou que um carro vinha atrás dêle e ali ficava, marchando mais ou menos na mesma velocidade. Ogilvie ajustou o espelho retrovisor para reduzir a intensidade do brilho dos faróis ali refletidos, e reduziu a marcha para que o outro o ultrapassasse. Como isso não aconteceu, retomou despreocupadamente sua velocidade anterior.

Alguns quilômetros adiante, percebeu que o tráfego destinado ao norte diminuía de velocidade. As luzes vermelhas dos demais veículos brilhavam, nas traseiras. Inclinando- se para a esquerda, percebeu o que parecia ser um grupo de faróis, e que os veículos em ambas as pistas destinadas ao norte estavam-se enfileirando numa só. A cena apresentava o aspecto comum de um acidente na estrada.

Foi quando, abruptamente, ao fazer uma curva, compreendeu o motivo real do atraso. Duas filas de carros da Patrulha Rodoviária do Tennessee, com as luzes vermelhas acesas, estavam dispostas em ambos os lados da estrada. Uma barreira iluminada fechava a pista central. No mesmo instante, o carro que o estivera seguindo acendeu a sua luz vermelha, que o identificava como um veículo policial.

Enquanto o Jaguar diminuía a marcha e parava, patrulheiros corriam para êle, de armas na mão.

Tremendo, Ogilvie ergueu as mãos sôbre a cabeça, e um sargento robusto abriu a porta do carro.

- Fique com as mãos onde estão - ordenou - e saia devagar. Está prêso.

Christine Francis observou, em tom divertido:

- Olhe! Está fazendo isso outra vez. Das duas vêzes em que serviram café o Sr. pôs as mãos em volta da xícara como se isso lhe desse prazer.

No lado oposto da mesa, Albert Wells exibiu seu sorriso de pardal esperto.

- Você é mais observadora do que a maioria das pessoas.

Parecia fraco outra vez, pensou Christine. Voltara alguma coisa da palidez de três dias antes e de vez em quando, ao correr da noite, uma tosse bronquial dera trabalho, embora não diminuísse a boa disposição do velho. Christine refletia que Albert Wells precisava era de alguém que tomasse conta dêle.

Estavam no restaurante principal do St. Gregory, e desde sua chegada, uma hora antes, a maioria de fregueses se retirara, mas alguns permaneciam ainda, tomando café e licores. Embora o hotel estivesse lotado, fôra pequeno o número de fregueses naquele restaurante. Max, o garçom-chefe, aproximou-se discretamente dêles.

- Deseja mais alguma coisa, Sr? Albert Wells olhou para Christine, que fêz um sinal negativo.

- Acho que não. Quando quiser, pode trazer a conta.

- Certamente, Sr. - respondeu Max, fazendo aceno discreto para Christine e Lhe garantindo, pelo olhar, não ter esquecido a combinação daquela manhã.

Depois que o garçom se afastou, o velhinho prosseguiu:

- Isso de segurar a xícara tem explicação. Quando se garimpa, no norte, não se desperdiça coisa alguma, para continuar-se vivo. Nem mesmo o calor de uma xícara na mão. hábito que a gente adquire. Eu o podia perder, mas há coisas que é bom lembrar de vez em quando.

- Porque foram tempos bons, ou porque a vida é meLhor agora?

- Por ambos os motivos - respondeu o velhinho, depois de pensar.

- O Sr. me contou que já foi mineiro - disse ela. Não sabia que também garimpou.

- Muitas vêzes quem faz uma coisa faz a outra, também, ainda mais no Escudo Canadense, lá nos Territórios do Noroeste, até onde vai o Canadá. Quando se está sòzinho, só a gente e a tundra, o deserto ártico como lhe chamam, faz-se tudo, porque na maioria das vêzes não há mais quem o faça.

- Quando estêve garimpando, o que procurava?

- Urânio, cobalto, principalmente ouro.

- E encontraram algum? Ouro, quero dizer. Albert Wells assentiu.

- Muitos encontraram, por volta de Yellowknife, do Lago do Escravo. Houve descobertas ali, desde os anos seguintes a 1890, até uma grande corrida em 1945. Na maior parte, entretanto, a região se mostrava difícil demais para minerar e sair com a produção.

- Deve ter sido uma vida bem dura – comentou Christine.

O homenzinho tossiu, depois tomou um gole de água, sorrindo como a se desculpar pela tosse, e prosseguiu:

- Eu era mais forte, naquela época. Ainda assim, quem facilitar um pouco com aquelas montanhas perderá a vida.

Lançou o olhar pelo restaurante bem arrumado, iluminado por lustres e cristal, e comentou:

- Parece coisa bem diferente daqui.

O Sr. disse que, na maioria das vêzes, era difícil demais minerar o ouro. Então, nem sempre era difícil?

- Nem sempre. Havia gente com mais sorte do que outros, embora para todos as coisas pudessem andar mal. Talvez seja porque o Escudo e as Terras Nuas fazem coisas estranhas às pessoas. Alguns que pareciam fortes, e não só em corpo, mostravam-se fracos. E alguns a quem se confiaria a própria vida acabavam mostrando que não eram dignos disso. E havia o contrário... Certa vez, eu me lembro...

Interrompeu-se, enquanto o garçom-chefe depositava na mesa uma salva com a conta. Christine pediu:

- Continue, por favor.

- uma história comprida, Christine.

Albert Wells virou a conta ao contrário, examinando-a.

- Eu gostaria de ouvi-la - disse Christine, que estava sendo sincera. Ao passar do tempo, gostava cada vez mais daquele homem modesto.

Albert Wells ergueu o olhar, e parecia divertido. Olhou o garçom-chefe, já no outro lado do salão, depois voltou a encarar Christine. Em seguida, abruptamente, tirou do bolso um lápis e assinou a conta.

- Foi em 1936- começou -, na época em que uma das últimas corridas a Yellowknife estava começando. Eu garimpava perto da margem do Lago do Escravo, e tinha um sócio. Chamava-se Hymie Eckstein. Hymie era de Ohio e estivera no comércio de roupas, vendera carros usados, e fizera muitas outras coisas. Era arrojado e falava depressa, mas tinha um jeito de fazer com que gostassem dêle. Acho que se chama isso de simpatia. Quando chegou a Yellowknife tinha algum dinheiro, e eu estava falido. Hymie nos sustentou, aos dois.

Albert Wells tomou um gole de água, meditando.

- Hymie nunca vira um sapato de neve, nunca ouvira falar em gêlo permanente, não sabia a diferença entre xisto e quartzo. Desde o comêço, porém, nos demos bem. E tivemos resultado. Já estávamos andando um mês, talvez dois.

No Escudo, a gente perde a noção do tempo. Certo dia, perto da foz do rio Yellowknife, sentamo-nos para enrolar cigarros e ali, como fazem os garimpeiros, tirei algumas lascas de rocha oxidada e guardei um pedaço ou dois no bôlso.

Mais tarde, na beira do lago, lavei a rocha. Quase pulei na água, ao descobrir bom ouro bruto.

- Quando isso acontece - disse Christine - deve ser a coisa mais formidável do mundo.

- Talvez outras coisas sejam melhores, mas nunca aconteceram comigo. Pois bem, voltamos correndo para o lugar onde eu raspara a rocha, e tratamos de cobri-la com musgo.

Dois dias depois, descobrimos que o lugar já fôra marcado por outro. Acho que foi o maior golpe que sofremos em tôda a

nossa vida. Fomos ver que um garimpeiro de Toronto fizera aquela marcação. Estivera fora no ano anterior, e depois voltara para o leste, sem saber o que descobrira. Pela lei dos Territórios, se não trabalhasse na faixa seus direitos caducariam em um ano, desde a data do registro.

- E quando fizera o registro?

- Descobrimos o ouro em junho, e se as coisas continuassem como estavam o direito caducaria no último dia de setembro.

- Não podiam ficar quietos e esperar?

- Queríamos fazer isso, mas não era tão fácil. Entre outras coisas, a descoberta estava bem na linha de uma mina já em produção e havia outros, como nós, trabalhando na mesma região. Acontecia, também, que Hymie e eu tínhamos esgotado o dinheiro e as provisões.

Albert Wells fêz sinal a um garçom que passava.

- Acho que vou tomar mais café, afinal. E você? perguntou a Christine.

- Não, obrigada. Mas não pare! Quero ouvir o resto.

Como era estranho, pensava, que o tipo de aventura sonhada pelas pessoas tivesse acontecido a alguém aparentemente tão comum como aquêle pequenino homem de Montreal...

- Pois bem, Christine, acho que os três meses seguintes foram os mais compridos que dois homens já viveram. E talvez os mais difíceis. Sobrevivíamos, com peixe, algumas plantas. Quando estávamos perto do prazo eu já ficara mais magro que um graveto, e minhas pernas estavam pretas de escorbuto. E tinha esta bronquite e flebite, também. Hymie não estava muito melhor, mas nunca se queixava e passei a gostar mais dêle.

O café chegou e Christine esperou.

- Finalmente, veio o último dia de setembro. Já tínhamos sabido, na região, que quando o primeiro registro se esgotasse outros tentariam entrar, de modo que não nos arriscamos. Tínhamos nossas estacas de marcação prontas, e logo depois da meia-noite nós as fincamos. Eu me lembro... Foi numa noite escura como breu, nevava bastante e o temporal estava forte.

Pôs as mãos em volta da xícara de café, como fizera antes.

- Isso é quase tudo que me lembro, porque depois a natureza tomou conta de mim e só me lembro de ter acordado num hospital em Edmonton, à 1500quilômetros de distância de onde havíamos estado. Fui saber depois que Hymie me tirara do Escudo, embora eu nunca descobrisse como o conseguiu fazer, e um pilôto de um avião pequeno me levara para o sul. Muitas vêzes, mesmo no hospital, acharam que eu estava morto. Não morri, embora achasse que devia ter morrido, quando avaliei as coisas.

Parou para tomar café, e Christine perguntou:

- O pedido de registro não era legal?

- Era perfeito. A dificuldade foi o Hymie - respondeu Albert Wells, esfregando seu nariz parecido ao bico de pardal, em atitude de meditação. - Talvez eu deva voltar à história um pouco atrás. Enquanto esperávamos nossa oportunidade, lá no Escudo, assinamos duas notas de venda. Cada um, no papel, entregava sua metade ao outro.

- E para que isso?

- Foi idéia de Hymie, prevendo a hipótese de que não conseguisse chegar ao fim. Se isso acontecesse, o sobrevivente guardaria o papel mostrando que todo o registro era seu, e rasgaria o outro. Hymie disse que isso evitaria muita complicação legal. Naquela ocasião, parecia sensato. Se ambos conseguíssemos vencer a dificuldade, pelo combinado, rasgaríamos ambos os papéis.

- Então, enquanto estêve no hospital incentivou Christine.

- Hymie tomara ambos os papéis e registrara o seu. Quando eu estava em condições de me interessar, Hymie possuía título completo de propriedade e já estava explorando com máquinas e pessoal. Descobri que tinha recebido uma oferta de duzentos e cinqenta mil dólares, de uma das grandes companhias, para vender, e outras estavam aparecendo com ofertas.

- O Sr. não podia agir?

- Achei que estava perdido antes mesmo de começar.

Ainda assim, quando pude sair do hospital apanhei dinheiro emprestado e voltei ao norte.

Albert Wells interrompeu sua narrativa e acenou com o braço, para alguém presente no restaurante. Christine olhou, vendo que era Peter McDermott que se aproximava dêles. Pensara, antes, se Peter se lembraria de sua sugestão para que fôsse ter com êles depois do jantar, e seu aparecimento lhe causou um delicioso despertar dos sentidos. No mesmo instante, percebeu que êle estava desalentado.

O velhinho acolheu Peter muito bem, e um garçom se aproximou, trazendo mais uma cadeira, na qual Peter se sentou, com expressão de alívio.

- Receio ter vindo um pouco tarde. Houve algumas coisas a fazer - explicou, refletindo que suas palavras ficavam muitíssimo aquém da verdade.

Esperando ter a oportunidade de conversar particularmente com Peter, depois daquele jantar, Christine disse:

- O Sr. Wells está-me contando uma história maravilhosa. Preciso ouvir o final.

Peter tomou um gole do café trazido pelo garçom e pediu:

- Continue, Sr. Wells. Para mim, será como chegar ao cinema quando o filme já começou. Mais tarde, saberei como foi o começo.

O vellinho sorriu, olhando as mãos nodosas e endurecidas.

- Não há muito mais a contar, embora o restante seja uma reviravolta do destino. Fui para o norte, encontrei Hymie em Yellowknife, no que chamam de hotel. Disse-Lhe todos os desaforos possíveis, e todo o tempo êle ria bastante, o que me fêz ficar com mais raiva ainda, até sentir vontade de matá-lo.

Mas não o teria feito, e êle me conhecia bastante bem para saber disso.

- Deve ter sido um homem odioso - disse Christine.

- Eu também achei, mas depois de me acalmar um pouco êle me chamou para sair. Fomos a um advogado, e lá havia papéis, já prontos, devolvendo minha parte, sem mais, nem menos. Na verdade, era mais do que devia ser, porque Hymie não tirara coisa alguma para si próprio, em paga de todo o trabalho que tivera naqueles meses de minha ausência.

Confusa, Christine balançou a cabeça.

- Não compreendo. Por que êle.

- Hymie explicou tudo. Disse que, desde o comêço, sabia que ia haver muita trapalhada de ordem legal, papéis a assinar, ainda mais se não vendêssemos. Por isso, ficara para trabalhar na jazida, como sabia que eu queria fazer. Havia empréstimos bancários para pagar as máquinas, ordenados e tudo mais. Como eu estava no hospital, e na maior parte do tempo sem juízo perfeito, êle não poderia fazer coisa alguma tendo o meu nome na propriedade. Por isso, usou minha nota de venda e tocou à frente. Sempre pretendera devolver minha parte, mas não gostava de escrever e não me dissera coisa alguma. Desde o comêço, porém, arrumara as coisas legalmente. Se êle tivesse morrido, eu teria ficado com a parte dêle e a minha também.

Peter McDermott e Christine trocavam olhares na mesa.

- Mais tarde - continuou Albert Wells - fiz o mesmo com minha metade; fiz um testamento, de modo que ela fôsse entregue a Hymie. Tivemos êsse acôrdo, sôbre aquela mina, até o dia em que êle morreu, o que foi há cinco anos. Acho que êle me ensinou uma coisa: quando se acredita em alguém não devemos ter pressa em mudar de idéia.

- E a mina? - perguntou Peter McDermott. - Bem, continuamos a recusar ofertas e fomos ver que tínhamos razão. Hymie a dirigiu por muitos anos. Ela continua produzindo. É uma das melhores do norte. De vez em quando vou lá, para olhar as coisas e lembrar-me do passado.

Boquiaberta, Christine arregalara os olhos.

- O Sr. O Sr. tem uma mina de ouro? Albert Wells assentiu, alegremente.

- Isso mesmo. Há mais umas coisinhas, além disso.

- Se desculpar minha curiosidade - disse Peter McDermott -, coisinhas tais como o quê?

- Não me lembro de tudo - respondeu o velhinho, movendo-se timidamente na cadeira. - Há dois jornais, uns navios, uma companhia de seguros, edifícios, outras coisas. Comprei uma cadeia de supermercados no ano passado. Gosto de coisas novas. Elas me mantêm interessado.

- Sim - observou Peter. - Imagino que sim. Albert Wells sorriu, com o seu modo malicioso.

- Na verdade, há uma coisa que só ia lhes dizer amanhã, mas vou dizer agora mesmo. Acabei de comprar êste hotel.

- Os cavalheiros são aquêles, Sr. McDermott. Max, o garçom-chefe do restaurante, indicou o outro lado da portaria, onde dois homens, um dêles o detetive da polícia Capitão Yolles, esperavam calmamente, ao lado da banca de jornais do hotel.

Alguns momentos antes, Max chamara Peter na mesa do restaurante onde, com Christine, estivera sentado em silêncio espantado, depois do que dissera Albert Wells. Tanto Christine quanto êle, Peter sabia, tinham ficado surpreendidos demais para compreender inteiramente a novidade ou avaliar suas consequências. Para Peter, fôra um alívio ser informado que o chamavam lá fora, urgentemente. Desculpando-se, apressado, prometera voltar à mesa dêles se pudesse.

O Capitão Yolles veio em sua direção, e apresentou seu companheiro como o Sargento-Detetive Bennett, e perguntando:

- Sr. McDermott, há algum lugar discreto onde possamos conversar?

- Por aqui - respondeu Peter, conduzindo os dois pelo balcão do porteiro e dirigindo-se ao escritório do chefe de crédito, que não era usado à noite. Ao entrarem, o Capitão Yolles entregou a Peter um jornal dobrado. Era uma edição matutina do Times-Picayune, que circularia na manhã seguinte

e um cabeçalho de três colunas dizia:

CROYDON CONFIRMADO COMO EMBAIXADOR BRITÂNICO. NOTÍCIA O ALCANÇA NA CIDADE

O Capitão Yolles fechou a porta do escritório, e disse:

- Sr. McDermott, Ogilvie foi prêso, há uma hora, com o automóvel, perto de Nashville. A Polícia Estadual do Tennessee o apanhou, e já mandamos ordem para que o recambiem para cá. O carro também está sendo devolvido, transportado por caminhão e debaixo de uma capa protetora, mas uma investigação no local mostra que não há dúvidas de que é o veículo que procuramos."

Peter assentiu, percebendo que os dois policiais o observavam com expressão de curiosidade.

- Se eu não conseguir compreender tudo quanto está acontecendo - disse êle - é porque acabo de receber um choque.

- A respeito dêsse caso?

- Não, a respeito do hotel.

Seguiu-se uma pausa, e depois Yolles declarou:

- Talvez se interesse em saber que Ogilvie prestou declarações, dizendo que não sabia que o automóvel estava envolvido num acidente. Tudo quanto aconteceu, diz êle, é que o Duque e Duquesa de Croydon lhe pagaram duzentos dólares para levá-lo ao norte. Encontramos êsse dinheiro com êle.

- Acreditam nêle?

- Pode ser verdade, pode não ser. Amanhã saberemos melhor, depois de um interrogatório.

Amanhã, pensou Peter, muita coisa estaria mais clara. Aquela noite apresentava um ar de irrealidade. Ele indagou:

- Que vão fazer agora?

- Pretendemos fazer uma visita ao Duque e à Duquesa de Croydon. Se não se incomoda, gostaríamos de que viesse também.

- Bem... Se acham necessário.

- Obrigado.

- Há outra coisa, Sr. McDermott - disse o segundo detetive. - Pelo que sabemos, a Duquesa de Croydon deu permissão escrita para tirarem o carro da garagem.

- Foi o que me disseram, sim.

- Isso pode ser muito importante, Sr. Acha que alguém guardou o papel?

Peter pensou um instante e respondeu:

- É possível. Se quiserem, telefonarei para a garagem.

- É melhor irmos lá pessoalmente - disse o Capitão Yolles.

Kulgmer, vigia noturno, mostrou-se cheio de desculpas e contrariedade.

- O Sr. sabe? Eu disse a mim mesmo que poderia precisar daquele papel, para salvar minha responsabilidade no caso de fazerem perguntas. E se acredita em mim, Sr. procurei achá-lo esta noite, antes de lembrar que o devo ter jogado fora ontem, junto com o papel de embrulho de meus sanduíches. Não foi bem minha culpa, quando se olha com justiça - acrescentou, fazendo um gesto para o cubículo de vidro do qual saíra. - Não há muito espaço ali e pouco admira que as coisas se misturem. Ainda na semana passada eu estava dizendo que se o lugar fôsse maior. Veja só, como tenho de fazer a contagem noturna.

Peter McDermot o interrompPeu:

- O que dizia o papel escrito pela Duquesa de Croydon?

- Só que o Sr. Ogilvie tinha permissão para sair com o carro. Estranhei o fato naquela noite.

- A permissão estava escrita em papel do hotel?

- Sim, Sr.

- Lembra-se se o papel tinha alto relêvo e "Apartamento Presidencial" escrito por cima?

- Sim, Sr. Mcdermott, lembro-me disso. Era assim mesmo como o Sr. diz, e parecia uma fôlha de papel em tamanho pequeno.

- Temos papel especial para aquêle apartamento - diss Peter aos detetives.

- Diz que jogou fora a permissão, junto com os papéis de embrulho de seus sanduíches? - perguntou o companheiro de Yolles ao vigia.

- Não pode ter sido de outro jeito. O Sr. sabe, sempre tenho muito cuidado. No ano passado, por exemplo.

- A que horas isso aconteceu?

- No ano passado?

- Ontem à noite - respondeu o detetive, pacientemente.

- Quando você jogou fora o embrulho dos sanduíches. A que horas?

- Por volta das duas horas da madrugada. Em geral, começo minha refeição à uma hora, porque a essa altura as coisas estão mais quietas, e.

- Onde jogou os papéis?

- No lugar de sempre: ali - respondeu Kulgmer, encaminhando-se para um compartimento de faxina, onde havia uma lata de lixo, que destampou.

- Há possibilidade de que o lixo de ontem ainda esteja aí?

- Não, Sr. A lata é esvaziada todos os dias. O hotel faz muita questão disso, não é mesmo, Sr. McDermott?

Peter assentiu, e o vigia continuou:

- Além disso, lembro-me que a lata estava quase cheia ontem à noite, e dá para ver que está quase vazia agora.

- Vamos verificar - disse o Capitão Yolles, consultando Peter com o olhar para saber se podia prosseguir.

Viraram a lata de lixo, esvaziando- a, e depois procuraram cuidadosamente, mas sem encontrar qualquer sinal dos papéis em que Kulgmer embrulhara seus sanduíches, ou o bilhete es crito pela Duquesa de Croydon. Kulgmer se afastou dêles, para atender diversos carros que entravam e saíam da garagem, e Yolles limpou as mãos numa toalha de papel.

- O que acontece ao lixo quando é recolhido daqui?

- Vai para nosso incinerador - respondeu Peter. Quando chega lá, em carrinhos grandes, já vai tudo misturado, recolhido de todo o hotel. Seria impossível identificar qualquer das fontes do lixo. De qualquer modo, o que foi recolhido daqui já deve ter sido queimado.

- Talvez não faça diferença - disse Yolles. - Mas ainda assim, eu gostaria de ter aquêle bilhete.

O elevador parou no nono andar, e acompanhado pelos detetives Peter declarou:

- Não estou muito animado em fazer essa visita.

- Faremos algumas perguntas - respondeu Yolles - e será tudo. Gostaria que prestasse bastante atenção ao que se diga, perguntas e respostas. Se possível, precisaremos de seu testemunho mais tarde.

Surprêso, Peter verificou que as portas do Apartamento Presidencial estavam abertas, e ao se aproximarem ouviram o murmúrio de vozes. O segundo detetive comentou:

- Parece ser uma festa.

Pararam na entrada e Peter apertou o botão da campainha.

Por outra porta lá dentro, parcialmente aberta, podia ver a espaçosa sala de estar, onde se achava um grupo de homens e mulheres, entre os quais o Duque e Duquesa de Croydon. A maioria dos visitantes empunhava copos em uma das mãos e cadernos ou fôlhas de papel na outra.

O secretário dos Croydons apareceu no corredor interno e Peter cumprimentou:

- Boa noite. Estes dois cavalheiros gostariam de falar com o Duque e a Duquesa.

- São da imprensa?

O Capitão Yolles negou, com movimento da cabeça.

- Nesse caso, lamento muito, mas é impossível. ODuque está dando uma entrevista à imprensa. A sua designação como Embaixador Britânico foi confirmada esta noite.

- Sabemos disso - retrucou Yolles. - Ainda assim o nosso assunto é importante.

Enquanto falavam, tinham entrado pelo corredor, chegando à saleta de espera do apartamento, e agora a Duquesa de Croydon se separava do grupo na sala de estar e vinha em sua direção, sorrindo agradàvelmente e convidando:

- Querem entrar?

- Estes cavalheiros não são da imprensa - disse o secretário.

- Oh! - exclamou ela, olhando Peter com expressão de que o reconhecia, e depois os outros dois.

- Somos da polícia, madame - informou o Capitão Yolles. - Tenho meu distintivo aqui, mas talvez a Sra. prefira que não o mostre - acrescentou, olhando para a sala onde diversas pessoas os observavam.

A Duquesa fêz sinal ao secretário, que fechou a porta da sala de estar. Era sua imaginação, pensou Peter, ou percebera um relance de mêdo no rosto da Duquesa, ao ouvir a palavra polícia? Imaginação ou não, ela já estava segura de si agora.

- Posso saber o que desejam?

- Temos algumas perguntas a fazer, madame, à Sra. E ao seu marido.

- A ocasião não é própria para isso.

- Faremos o possível para tomar o mínimo de seu tempo - disse Yolles em voz calma, mas com indisfarçável tom de autoridade.

- Vou saber de meu marido se os pode reçeber. Esperem aqui, por favor.

O secretário os conduziu a úm aposento fora do corredor, mobiliado como escritório. Momentos depois, quando o secretário se retirou, a Duquesa reapareceu, acompanhada pelo Duque, que lançou um olhar incerto da espôsa para os demais.

- Informei a nossos convidados - disse a Duquesa - que não demoraremos mais que alguns minutos a voltar para lá.

O Capitão Yolles não fêz qualquer comentário, e tirou um caderno do bolso.

- Gostaria que me dissessem quando usaram seu automóvel pela última vez. Trata-se de um Jaguar, pelo que sei - acrescentou êle, repetindo o número de registro do veículo.

- Nosso carro? - indagou a Duquesa, parecendo surpreendida. - Não sei bem quando o usamos pela última vez. Ah, um momento! Lembro-me agora. Foi na manhã de segunda-feira. Desde então, ficou na garagem. Está lá agora mesmo.

- Por favor, pense com cuidado. A Sra. ou seu marido, isoladamente ou juntos, usaram o automóvel na noite de segunda-feira?

Peter achava revelador o fato de Yolles dirigir-se automàticamente à Duquesa, e não ao Duque.

No rosto dela, surgiam dois pontos de rubor, e ela redarguiu:

- Não estou habituada a que duvidem de minha palavra. Já disse que a última ocasião em que usamos o carro foi na manhã de segunda-feira. Acho, também, que nos deve uma explicação imediata.

Yolles escrevia em seu caderninho, e fêz nova pergunta:

- Algum dos dois conhece Theodore Ogilvie?

- O nome não é estranho.

- É o detetive-chefe dêste hotel.

- Lembro-me, agora. Ele estêve aqui, não me recordo quando. Havia alguma dúvida quanto a uma jóia que fôra encontrada. Alguém dissera que podia ser minha, mas não era.

- E o Sr. - perguntou Yolles, dirigindo-se diretamente ao Duque. - Conhece Theodore Ogilvie, ou teve algum negócio com êle?

A hesitação do Duque de Croydon foi perceptível. O olhar de sua espôsa estava cravado em seu rosto.

- Bem. - começou êle; e logo se deteve. - Sòmente o que minha espôsa já disse.

Yolles fechou o caderninho, e numa voz calma perguntou:

- Seria surprêsa para ambos, então, saber que seu automóvel está no momento no estado de Tennessee, para onde foi levado por Theodore Ogilvie, que se acha prêso? E também que Ogilvie fêz declarações no sentido de que recebeu dos Srs. algum dinheiro para levar o carro de Nova Orleans para Chicago? E, mais ainda, que investigações preliminares indicam que o veículo estêve envolvido num caso de atropelamento seguido de fuga, nesta cidade, na noite de segunda-feira?

- que pergunta - respondeu a Duquesa de Croydon -; minha surprêsa seria muito grande. Na verdade, é a coleção de invencionices mais ridículas que ouvi até hoje.

- Não há invencionice, madame, no fato de que o seu automóvel está no Tennessee e Ogilvie o levou para lá.

- Se fêz isso, foi sem autorização ou conhecimento de meu marido, ou de mim. Parece perfeitamente óbvio, também, que se o carro estêve envolvido em acidente na noite de segunda-feira, como diz, foi o mesmo homem que o tirou da garagem, usando-o para seus próprios fins naquela ocasião.

- Então, acusa Theodore Ogilvie...

A Duquesa interrompeu, com voz áspera:

- As acusações são coisa sua. O Sr. parece especializar-se nelas. No entanto, vou fazer uma, no sentido de que êste hotel se mostra pavorosamente incompetente na proteção da propriedade de seus hóspedes!

Voltando-se para Peter McDermott, ela aduziu:

- Posso-lhe garantir que vai ter muito do que tratarm por causa disto.

Peter protestou:

- Mas a Sra. escreveu uma autorização! Especificou que Ogilvie podia levar o carro!

O efeito foi como se desse uma bofetada na Duquesa. Ela moveu os lábios, emudecida, incerta, e empalideceu perceptivelmente. Peter compreendeu que a fizera lembrar-se do único fator incriminador que ela esquecera.

O silêncio pareceu interminável, mas ela ergueu a cabeça depois.

- Mostre-me essa autorização!

- Infelizmente, ela foi - começou Peter a dizer, mas se deteve.

Percebeu nos olhos dela um triunfo zombeteiro.

Finalmente, depois de mais perguntas e banalidades, a entrevista dada à imprensa pelos Croydons havia terminado. Ao fechar-se a porta do Apartamento Presidencial sôbre o último visitante, irromperam as palavras reprimidas, nos lábios do Duque:

- Por Deus, você não pode fazer isso! Não é possível que consiga.

- Silêncio! - retrucou ela, olhando em volta pela sala de estar, já deserta. - Não fale aqui. Passei a desconfiar dêste hotel e de tudo nêle.

- Onde, então? Pelo amor de Deus, onde?

- Vamos sair. Vamos onde não nos possam ouvir. Mas quando sairmos, por favor não se mostre tão nervoso como agora.

Abriu a porta de comunicação com os dormitórios, onde os terriers Bedlington tinham sido presos, e êles vieram animadamente, latindo enquanto a Duquesa prendia os laços, sabendo o que isso representava. No corredor, o secretário abriu respeitosamente a porta do apartamento, com os terriers se adiantando por ela.

No elevador, o Duque pareceu prestes a falar, mas a espôsa fêz um sinal negativo com a cabeça. Sòmente quando estavam fora do hotel, distante dêle e de qualquer transeunte, é que ela murmurou:

- Agora!

Sua voz era forçada e veemente, quando o Duque se exprimiu:

- Eu lhe digo que é loucura! A coisa tôda já está complicada demais. Nós complicamos tudo desde o início. Você pode imaginar como será agora, quando a verdade finalmente aparecer?

- Sim, faço uma idéia. Se ela aparecer.

- Para não falar em mais coisa alguma, da questão moral, e tudo o mais, você nunca conseguirá escapar.

- E por que não?

- Porque é impossível, inconcebível! Já estamos em situação pior do que no início. Agora, com isto. - sua voz ficou estrangulada na garganta.

- Nós não estamos em situação pior. No momento, estamos até melhor. Posso relembrar-lhe a designação para Washington?

- Você não acha, sèriamente, que temos a menor possibilidade de chegar lá, não é?

- As possibilidades são tôdas a favor.

Tendo os terriers à frente, pulando animadamente, tinham percorrido a avenida St. Charles e chegado à largura maior da rua do Canal, mais movimentada e iluminada. Voltando-se para o rio, fingiram interessar-se pelas vitrinas, enquanto transeuntes passavam em ambas as direções.

A Duquesa falava em voz baixa, quando disse:

- Por mais desagradável que seja, há certos fatos que devo conhecer sôbre a noite de segunda-feira. A mulher com quem você estêve no Irish Baiou. Você a levou para lá de carro?

O Duque enrubesceu; mas respondeu:

- Não. Ela foi de táxi. Encontramo-nos lá dentro. Eu pretendia, depois.

- Poupe-me suas intenções. Nesse caso, pelo que ela sabe, você podia ter vindo de táxi, também.

- Eu não havia pensado nisso. Suponho que sim.

- Depois de eu chegar, também de táxi, o que pode ser confirmado se fôr preciso, notei que, quando saímos para o seu carro, você o tinha estacionado bem longe daquele clube horrível. Não havia qualquer vigia por perto.

- Eu o estacionei deliberadamente longe. Pensei que assim você teria menos oportunidade de ser informada.

- Portanto, em momento algum houve testemunhas de que você estava dirigindo o carro na noite de segunda-feira.

- Há a garagem do hotel. Quando chegamos, alguém pode ter visto.

- Não! Lembro-me de que você parou bem dentro da entrada da garagem, e deixou o carro, como fazemos muitas vêzes. Não vimos pessoa alguma. Ninguém nos viu.

- E sôbre a saída?

- Você não podia ter saído com êle, da garagem do hotel. Na manhã de segunda-feira nós deixamos o carro num ponto de estacionamento externo.

- Isso mesmo - confirmou êle. - Eu o apanhei lá à noite.

A Duquesa continuou pensando, em voz alta:

- Diremos, naturalmente, que levamos o carro para a garagem do hotel depois de o têrmos usado na manhã de segunda-feira. Não deve haver registro da entrada dêle, mas isso não prova coisa alguma. No que nos diz respeito, não vimos o carro desde o meio-dia de segunda-feira.

O Duque se manteve em silêncio, enquanto continuaram andando. Com um gesto êle estendeu a mão, segurando os laços dos terriers. Sentindo que outro os segurava, os animaizinhos se jogaram à frente com mais vigor do que antes. Finalmente, êle disse:

- É realmente notável como tudo se ajusta.

- É mais do que notável. Foi feito para ser assim. Desde o início, tudo deu certo. Agora.

- Agora você pretende mandar outro homem à prisão, em meu lugar.

- Não!

O Duque balançou a cabeça, e continuou:

- Eu não o poderia fazer, mesmo com aquêle homem.

- No que diz respeito a êle, prometo-lhe que nada acontecerá.

- Como pode ter certeza?

- Porque a polícia teria de provar Que êle estava dirigindo o carro no momento do acidente. Não conseguirão fazer isso, tanto quanto não podem provar que era você quem dirigia. Você não compreende? Eles podem saber que foi um dos dois, podem até acreditar que sabem quem foi. Mas acreditar não basta, se não houver provas.

- Sabe de uma coisa? - perguntou êle, com admiração na voz. - Há momentos em que você é absolutamente in crível.

- Sou prática. E por falar em ser prática, há outra coisa de que você pode se lembrar. Aquêle homem, Ogilvie, tem dez mil dólares de nosso dinheiro. Pelo menos, deveríamos receber alguma coisa em troca daquela soma.

- Aliás - disse o Duque -, onde estão os outros quinze mil?

- Ainda na maleta, fechada e em meu quarto. Vamos levá-la quando partirmos. Já resolvi que poderia chamar a atenção devolver o dinheiro ao banco, aqui nesta cidade.

- Você pensa, mesmo, em tudo!

- Não pensei, no caso daquele bilhete. Quando imaginei que êles o tinham. Eu devo ter estado louca, de escrever o que escrevi.

- Não era possível ter previsto tudo.

Tinham chegado ao término da parte fartamente iluminada da rua do Canal, e regressaram pelo mesmo caminho, dirigindo-se ao centro da cidade.

- É diabólico? - comentou o Duque.

A sua última bebida fôra ao meio-dia, e o resultado era que a sua voz se mostrava bem mais clara do que naqueles últimos dias.

- diabólico, demoníaco e engenhoso - repetiu êle.

- Mas pode dar certo.

- Aquela mulher está mentindo - disse o Capitão Yolles.

- Mas será difícil provar.

Continuava andando de um para outro lado, lentamente, no escritório de Peter McDermott. Tinham ido para lá, os dois detetives e Peter, depois de saírem do Apartamento Presidencial. Até então, Yolles pouco mais havia feito do que andar e pensar, enquanto os outros dois esperavam.

- O marido dela pode ceder - sugeriu o segundo detetive. - Se o conseguíssemos apanhar sòzinho, separado dela, tudo seria mais fácil.

- Não há possibilidade de conseguir isso - respondeu Yolles - Entre outras coisas, ela é esperta demais para deixar isso acontecer. E também devido a serem quem são, estaríamos arriscando- nos muito.

Olhou para Peter e ensinou:

- Não tenha qualquer ilusão sôbre o fato de que exista um comportamento policial para os pobres, e outro para os ricos e influentes.

Do outro lado do escritório Peter assentiu, embora sentindo-se um tanto desligado de tudo. Tendo feito o que o dever e a consciência lhe impunham, o restante era problema da polícia. A curiosidade, no entanto, incitou uma pergunta:

- O bilhete que a Duquesa escreveu para a garagem.

- Se tivéssemos isso - disse o outro detetive - seria fácil.

- Não basta que o vigia noturno, e Ogilvie também, jurem que o bilhete existiu?

- Ela diria que fôra um bilhete falsificado - respondeu Yolles - feito por Ogilvie.

Pensou um pouco, e depois aduziu:

- Você disse que foi escrito em papel especial. Deixe-me ver outra fôlha, igual.

Peter saiu do escritório, e num aparador com material burocrático encontrou diversas fôlhas. Eram em papel pesado, com linha de água, azul claro e tendo o nome e escudo do hotel impressos em relêvo, trazendo por baixo as palavras Apartamento Presidencial, também em relêvo. Voltou ao escritório, onde os policiais examinaram as fôlhas.

- bem enfeitado, o papel. - comentou o outro detetive.

- Quantas pessoas têm acesso a êle? - perguntou Yolles.

- Em geral, apenas algumas. Mas suponho que outras poderiam conseguir uma fôlha, se quisessem.

- Elimina a possibilidade - resmungou Yolles.

- Existe outra. - disse Peter.

- Qual?

- Você já perguntou isso e eu disse que uma vez retirado o lixo, como foi na garagem, não havia modo de recuperar coisa alguma. Pensei, mesmo. Parecia tão impossível, a idéia de achar um pedaço de papel. Além disso, o bilhete não era tão importante naquele momento.

Percebia os olhares dos detetives, cravados em seu rosto.

- Temos um empregado encarregado do incinerador - disse Peter. - Ele separa com a mão boa parte do lixo. Seria muito improvável, e talvez tarde demais.

- Santo Deus! - atalhou Yolles. - Vamos vê-lo!

Dirigiram-se ràpidamente ao andar térreo, e passando por uma porta de serviço chegaram ao elevador de carga que os levaria a seu destino. O elevador estava ocupado num andar de baixo, onde Peter podia ouvir que estavam descarregando volumes, pelo que gritou para que se apressassem. enquanto esperavam o outro detetive, Bennett, disse:

- Estou informado que tiveram algumas dificuldades esta semana.

- Houve um roubo na manhã de ontem. Com tudo isto, eu quase esquecia.

- Estive falando com um de nossos homens. Ele estava com o seu detetive principal do hotel. como se chama?

- Finegan. É o subchefe dos detetives - respondeu Peter, sorrindo a despeito da seriedade da questão. - Nosso detetive-chefe se acha ocupado de outro modo.

- Sôbre êsse roubo, não havia muitas pistas. Nossa gente examinou a sua lista de hóspedes e não encontrou coisa alguma. Mas, hoje, aconteceu uma coisa curiosa. Houve invasão de domicílio em Lakeview, casa particular. Foi trabalho feito com chave. A mulher perdeu as chaves no centro da cidade, esta manhã, e quem as achou deve ter-se dirigido diretamente à casa dela. A coisa apresentava todos os sinais do roubo feito aqui, inclusive o tipo de objetos levados, e nem uma im pressão digital.

- Efetuaram álguma prisão?

- O roubo na casa não foi descoberto senão horas depois de ter sido cometido - respondeu o detetive, fazendo gesto negativo com a cabeça. - Mas há uma pista. Um vizinho viu um automóvel, e não se lembra de coisa alguma, a não ser que o mesmo tinha chapa verde e branca. Cinco estados usam essas cores: Michigan, Idaho, Nebraska, Vermont e Washin gton. e a província de Saskatchewan, no Canadá.

- Isso serve de alguma coisa?

- Nos próximos dois dias, todos os nossos policiais estarão observando os carros vindos dêsses lugares. Vão fazê-los parar e examinar tudo. Pode ser que dê algum resultado. Já tivemos sorte antes, com muito menos para ajudar.

Peter assentiu, embora sem muito interêsse. O roubo acontecera dois dias antes, e não fôra repetido. No momento, muitas outras coisas pareciam mais importantes.

Momentos depois, chegava o elevador.

O rosto suado de Booker T. Graham se iluminou de prazer, ao ver Peter McDermott, o único membro do quadro adminis trativo do hotel que se dava ao trabalho de visitar a sala do incinerador, lá embaixo no porão do hotel. Tais visitas, embora pouco frequentes, eram prezadas por Booker T. Graham como se fôssem festas de gala.

O Capitão Yolles torceu o nariz ao cheiro sufocante do lixo, aumentado pelo calor intenso. O reflexo das chamas dançava nas paredes enfumaçadas, e gritando para se fazer ouvir no rugido da fornalha instalada a um lado do aposento, Peter avisou:

- É melhor deixar isso comigo. Explicarei o que procuramos.

Yolles assentiu, e como a outros que tinham estado ali antes, ocorreu- lhe que a primeira visão do inferno devia ser bem parecida com aquilo que via. Imaginava como um ser humano podia viver em tal ambiente, qualquer que fôsse o espaço de tempo.

Observou enquanto Peter McDermott falava com o negro enorme, encarregado de examinar e separar o lixo antes de incinerá-lo. McDermott trouxera uma fôlha do papel especial do Apartamento Presidencial, e a mostrava para ser examinada. O negro acenava e apanhava a fôlha, segurando-a, mas com expressão de dúvida. Fêz um gesto para as dezenas de latas superlotadas em volta. Havia outras mais, observou o detetive, alinhadas ao lado de fora, sôbre pequenos carrinhos. Compreendeu, então, o motivo pelo qual McDermott descrera da possibilidade de encontrar uma fôlha de papel em meio a tudo aquilo. E agora, em resposta a uma pergunta, o negro balançou negativamente a cabeça. McDermott voltou para junto dos detetives.

- A maior parte do que vêem - explicou - é lixo de ontem, recolhido hoje. Uma têrça parte do que veio já foi queimada e não há modo de saber se continha o que procuramos. Quanto ao restante, Graham terá de examinar, procurando as coisas que recolhemos, como talheres e garrafas. Enquanto estiver fazendo isso, estará alerta para achar um papel como aquêle que lhe dei, mas como podem ver, é um trabaLho imenso. Antes que o lixo chegue aqui, é comprimido, e muita coisa nêle está molhada, e isso umedece tudo. Perguntei a Graham se precisa de ajudantes, mas êle diz que há menos possibilidade de achar o papel se vier para cá alguém que não esteja acostumado a trabalhar como êle.

- Em qualquer dos casos - disse o outro detetive - não acho possível.

- É o melhor que podemos fazer - reconheceu Yolles.

- O que combinou, caso êle encontre alguma coisa?

- Telefonará imediatamente para mim. Vou deixar instruções para que me informem, seja qual fôr a hora. Em seguida, chamarei vocês.

Yolles concordou, e enquanto os três homens se retiravam Booker T. Graham tinha as mãos enfiadas no monte de lixo, espalhado no tabuleiro grande e raso.

Para Keycase Milne, fôra uma frustração após outra. Desde o início da tarde mantivera guarda sôbre o Apartamento Presidencial. Perto da hora de jantar, quando esperava que o Duque e Duquesa de Croydon saíssem do hotel, como quase todos os visitantes tinham feito, tomara posição no nono andar, perto da escada de serviço. Dali, tinha uma visão clara da entrada do apartamento, com a vantagem de impedir que o observassem, afastando-se ràpidamente pela pórta das escadas. Fêz isso diversas vêzes, quando os elevadores paravam e os ocupantes de outros quartos iam e vinham, embora em tôdas as ocasiões conseguisse vê-los antes de se afastar. Também calculara, corretamente, que a essa altura do dia era pequeno o movimento de enpregados do hotel nos andares superiores. No caso de algum imprevisto, era simples retirar-se para o oitavo andar e, mesmo, para seu próprio quarto.

Essa parte do plano dera certo. O que não andara bem é que, por tôda a noite, o Duque e Duquesa de Croydon não tinham saído de seu apartamento.

Ainda assim, notou que não lhe fôra levado o jantar, o que o fêz continuar esperançoso. Em certo momento, imaginando se os Croydons teriam saído sem que êle visse, passara pelo corredor e ouvira à porta do apartamento, percebendo vozes lá dentro, inclusive de uma mulher.

O seu desapontamento fôra aumentado, mais tarde, pela chegada de visitantes, que surgiam isolados, ou aos pares, após o que as portas do Apartamento Presidencial foram deixadas abertas. Logo em seguida, camareiros surgiam com bandejas de hors d'oeuvres, e o murmúrio crescente da conversa, misturado ao ruído de gêlo nos copos, se tornara audível no corredor.

Keycase ficara ainda mais intrigado quando, depois disso, chegou um jovem espadaúdo que êle pensava ser empregado do hotel. O homem tinha expressão sombria, bem como os dois outros que o acompanhavam. Keycase observou o bastante para olhar bem os três, e à primeira vista adivinhara que o segundo e terceiro eram policiais. Em seguida, tranqilizara-se com o pensamento de que isso fôra fruto de sua imaginação fértil demais.

Os três recém-chegados se retiraram primeiro, sendo acompanhados dentro de meia hora, mais ou menos, pelos demais participantes da festa. A despeito do grande movimento nas etapas mais adiantadas da noite, Keycase tinha a certeza de que passara despercebido, e quem o houvesse observado o teria tomado por um hóspede qualquer do hotel.

Com a saída do último visitante, o silêncio se tornara completo no corredor do nono andar. Eram quase 23 horas, tornando-se óbvio que nada mais aconteceria aquela noite. Keycase resolveu esperar apenas mais dez minutos, e depois abandonar o lugar.

O seu otimismo de antes já se transformara em depressão. Não tinha certeza de poder arriscar-se a continuar no hotel mais vinte e quatro horas. Já pensara em entrar no apartamento durante o dia, ou bem cedo na manhã seguinte, mas desistira disso, pois o perigo era grande demais. Se alguém despertasse, não haveria desculpa possível que pudesse explicar sua presença no Apartamento Presidencial. Também percebera, desde a véspera, que teria de levar em conta os movimentos do secretário dos Croydons e da camareira da Duquesa. Ficara sabendo que esta tinha seu próprio quarto em outra parte do hotel, e não se apresentara aquela noite, mas o secretário residia no apartamento e era mais uma pessoa que poderia acordar durante uma entrada noturna: E também os cachorros que êle vira com a Duquesa poderiam dar alarme.

Em tais circunstâncias, via-se diante da alternativa de esperar mais um dia, ou abandonar a tentativa de chegar às jóias da Duquesa.

Foi quando estava a ponto de sair dali que o Duque e Duquesa de Croydon apareceram à porta precedidos pelos terriers Bedlington.

Keycase logo entrara para a escada de serviço, e seu coração começou a bater mais depressa. Finalmente, quando perdera a esperança, chegara a oportunidade que desejava. Não era oportunidade sem complicações. Tornava-se óbvio que o Duque e a Duquesa não ficariam muito tempo fora do apartamento, e em alguma parte do mesmo se achava o secretário dêles. Onde? Num quarto separado, com a porta fechada? Já deitado? O tipo era de homem que se deitava cedo.

Qualquer que fôsse o perigo de encontrar alguém, tinha de ser corrido. Keycase sabia que se deixasse de agir naquela oportunidade, o seu sistema nervoso não sobreviveria a outro dia de espera.

Ouviu as portas do elevador abrirem-se e depois fecharem-se e cautelosamente voltou ao corredor. Encontrou-o silencioso e deserto, e andando sem ruído se aproximou do Apartamento Presidencial.

A chave funcionou com facilidade, como acontecera antes. Abriu um pouco uma das portas, e depois soltou de léve a mola e retirou a chave. A fechadura não fêz barulho, e tampouco a porta, quando a abriu devagar.

À sua frente estava um corredor, e logo depois uma sala maior: À esquerda e direita havia duas outras portas, ambas fechadas. Através da da direita ouviu o que pareceu ser um rádio ligado, e não havia pessoa alguma à vista. As luzes do apartamento estavam acesas.

Keycase entrou, calçando as luvas e, depois, fechou á porta da frente.

Movia-se com cuidado, mas sem perder tempo. O tapête espêsso, no corredor e sala de estar, amortecia-lhe os passos.

Atravessou a sala até uma outra porta, que estava aberta, e como esperava, a mesma dava para dois quartos espaçosos cada qual com banheiro, e um toucador entre os mesmos. Nos dormitórios, como nas demais peças, as luzes estavam acesas.

Não havia engano sôbre qual fôsse o da Duquesa.

Entre os móveis havia uma cômoda, duas penteadeiras e um armário embutido. Keycase começou, de modo sistemático, a examinar os quatro móveis. A caixa de jóias, que procurava, não estava na cômoda ou na primeira penteadeira. Havia uma série de objetos, bôlsas douradas, cigarreiras e estojos de grande valor aparente que, com mais tempo e em outras circunstâncias, êle teria apanhado prazerosamente, mas agora se achava empenhado numa corrida, buscando um prêmio maior e desprezando tudo mais.

Na segunda penteadeira, abriu a primeira gaveta, que nada continha de valor. A segunda não deu melhor resultado. Na terceira, na parte superior, estava uma série de negligées. Por baixo dos mesmos, uma caixa oval, alta, em couro trabalhado.

Estava fechada a chave.

Deixando a caixa na gaveta, Keycase trabalhou com uma faca e chave de parafusos para quebrar-lhe a fechadura. A caixa era resistente, e diversos minutos se passaram. Consciente do tempo que voava, êle começou a transpirar.

Finalmente a fechadura cedeu e a tampa se abriu. Por baixo, num conjunto cintilante e arrebatador, havia duas fileiras de jóias - anéis, broches, colares, grampos, tiaras, tudo em metal precioso e a maior parte incrustada de pedrarias. Ao ver aquilo, Keycase respirou fundo. Então, afinal de contas uma parte da fabulosa coleção da Duquesa não fôra entregue ao cofre do hotel. Mais uma vez um palpite, um presságio, se mostrara acertado. Com as duas mãos, ia apanhar as jóias, mas no mesmo instante uma chave girou na porta da frente.

Seu reflexo foi instantâneo. Keycase fechou a tampa do estôjo e a gaveta. Ao entrar, deixara a porta do dormitório ligeiramente aberta e agora voou para a mesma. Por uma fresta, podia ver a sala de estar. Uma empregada do hotel estava entrando. Trazia toalhas na mão, e se encaminhava para o dormitório da Duquesa. Era uma mulher idosa e andava com o passo característico das pessoas gordas, e a sua lentidão pro porcionava uma única possibilidade, bem frágil.

Voltando-se, Keycase mergulhou na direção de uma lâmpada de cabeceira, encontrando o cordão da mesma e puxando-o com fôrça. A luz se apagou. Agora, precisava ter alguma coisa em sua mão, para indicar atividade. Alguma coisa! Qualquer coisa!

Encostada à parede estava uma pequena maleta. Ele a apanhou e saiu em direção à porta. Quando a abriu inteiramente, a empregada recuou.

- Oh! - exclamou ela, levando a mão ao peito. Keycase franziu o rosto.

- Onde estava? Já devia ter vindo mais cedo! O susto, acompanhado pela acusação, fêz a mulher corar, como Keycase desejara que fizesse.

- Sinto muito, Sr. Vi que havia gente aqui, e. Ele a atalhou com rispidez:

- Não tem importância. Faça o que tem de fazer, e há uma lâmpada que precisa de consêrto - disse, fazendo um gesto a direção do quarto. - A Duquesa quer o consêrto para esta noite.

Manteve a voz baixa, lembrando-se do secretário.

- Oh, eu vou tratar disso, Sr.

- Muito bem - declarou Keycase, com aceno severo, e saiu.

No corredor, tentou não pensar, e conseguiu. isso até chegar a seu próprio quarto, o 830. Depois, em frustração e desespêro, atirou- se na cama e enfiou o rosto num travesseiro.

Passou-se mais de uma hora até que se desse ao trabalho de forçar a fechadura da maleta que trouxera consigo.

Dentro dela, encontrou maços e mais maços de dinheiro, tudo em notas usadas, de valor comum.

Com mãos trêmulas, contou quinze mil dólares.

Peter McDermott acompanhou os dois detetives, do incinerador no porão do hotel à porta para a rua St. Charles.

- Por enquanto - avisou o Capitão Yolles - eu gostaria de manter tudo quanto houve, esta noite, no máior sigilo. Haverá número suficiente de perguntas quando acusarmos o seu empregado, Ogilvie, seja lá do que fôr. Não adianta trazer a imprensa para nos atrapalhar, até que não haja outro jeito.

- Se o hotel pudesse escolher - asseverou Peter - preferiríamos que não houvesse publicidade alguma.

- Não conte com isso - respondeu Yolles, resmungando. Peter voltou ao restaurante principal e descobriu, sem surprêsa, que Christine e Albert Wells já tinham saído de lá. Na portaria, foi interceptado pelo subgerente noturno, que Lhe disse:

- Sr. McDermott, eis um bilhete que a Srta. Francis deixou para o Sr.

Estava dentro de um envelope fechado, e dizia simplesmente:

Fui para casa. Venha, se puder. Christine

Resolveu que iria, achando que ela estaria ansiosa por comentar, com êle, os acontecimentos do dia, inclusive a revelação espantosa feita por Albert Wells.

Nada mais havia a fazer no hotel naquela noite. Ou havia? De repente, Peter se lembrou da promessa feita a Marsha Preyscott, quando a deixara no cemitério, de modo tão pouco cerimonioso. Prometera telefonar-lhe depois, mas esquecera isso até então. A crise da tarde transcorrera poucas horas antes, mas pareciam ter-se passado dias inteiros e Marsha, de algum modo, se distanciara. No entanto, devia telefonar-lhe por mais tarde que fôsse.

Utilizou mais uma vez o escritório do chefe de crédito no andar térreo, e discou o número dos Preyscotts. Marsha atendeu logo após o primeiro toque da campainha.

- Oh, Peter! - exclamou ela. - Fiquei sentada ao lado do telefone, esperando, esperando... Depois, telefonei duas vêzes e deixei recado.

Ele se lembrou, com sentimento de culpa, da pilha de recados encontrados em sua mesa de escritório, e que nem examinara.

- Sinto muito, e não posso explicar, pelo menos agora, mas parece que todos os tipos de coisas estiveram acontecendo.

- Conte-me amanhã.

- Marsha, acho que amanhã vai ser um dia muito movimentado.

- No café da manhã - disse ela. - Se vai ser um dia assim, você precisará de um café à la Nova Orleans. Já fêz algum, em sua vida?

- Geralmente não faço a primeira refeição.

- Pois fará amanhã. E olhe, que as coisas preparadas por Anna são mesmo especiais. Muito melhores, posso apostar, do que em seu hotel.

Era impossível não se deixar levar pelo entusiasmo de Marsha. E, afinal, êle a abandonara naquela tarde.

- Terá de ser cedo.

- Tão cedo quanto você quiser.

Concordaram em marcar 7h30, e poucos minutos depois êle estava num táxi, a caminho do apartamento de Christine em Gentilly.

Ela o esperava com a porta aberta.

- Não fale - pediu a Peter - até o segundo copo. Eu não aguento tudo de uma vez.

- Pois vá-se preparando - retrucou êle. - Você não sabe nem da metade!

Christine preparara daiquiris, que estavam esfriando na geladeira. Também havia uma travessa com galinha e sanduíches de presunto, enquanto a fragrância de café fresco se espalhava pelo apartamento.

Peter se lembrou, de repente, que a despeito de tôda sua permanência nas cozinhas do hotel, e da conversa sôbre o café no dia seguinte, não comera coisa alguma desde o almoço.

- Foi o que imaginei - disse Christine, quando êle Lhe falou. - Vamos!

Obedecendo, êle observou enquanto ela se movia eficientemente pela pequena cozinha. Sentado ali, sentia enorme bem-estar e a impressão de estar separado de tudo quanto pudesse estar ocorrendo lá fora. Pensava que Christine se interessava bastante por êle para fazer o que fizera. Mais importante ainda, formara-se entre êles uma corrente de compreensão que, mesmo calados, como naquele instante, parecia uni-los.

Empurrou o copo na mesa, e estendeu o braço para a xícara de café que Christine enchera.

- Pois bem - disse. - Por onde vamos começar?

Falaram continuamente por quase duas horas, e durante todo o tempo aumentava sua aproximação. Ao final, chegaram à única conclusão possível: a de que o dia seguinte seria dos mais interessantes.

- Não vou dormir - disse Christine. - Não seria possível. Sei que não conseguiria fechar os olhos.

- Nem eu - afirmou êle. - Mas não pelo motivo que você pensa.

Peter não sentia mais dúvidas, apenas a convicção de que desejava prolongar indefinidamente aquêles instantes. Tomou-a nos braços, e beijou-a.

Mais tarde, parecia a coisa mais natural do mundo que se amassem.

sexta-feira

Parecia compreensível que o Duque e a Duquesa de Croydon estivessem empurrando Ogilvie, o detetive-chefe, amarrado sòlidamente em forma de bola, para a beira do telhado do hotel St. Gregory, enquanto lá embaixo um mar de rostos olhava fixamente para cima. Mas era estranho, e até chocante, que poucos metros adiante Curtis O'Keefe e Warren Trent trocassem cutiladas com espadas já ensanguentadas. Por que o Capitão Yolles, de pé numa porta próxima, deixava de intervir? Foi quando Peter percebeu que o policial estava observando um gigantesco ninho de passarinho, onde um único ôvo eclodia. Momentos depois, do ôvo, surgia um pardal de grandes dimensões, apresentando o rosto animado de Albert Wells. Mas agora sua atenção era atraída para a beira do telhado, onde Christine, em luta desesperada, se misturara a Ogilvie, e Marsha Preyscott ajudava os Croydons a empurrar o bolo duplo cada vez mais para a queda horrível. Lá embaixo, os rostos continuavam olhando a cena, boquiabertos, enquanto o Capitão Yolles se encostava ao portal, bocejando.

Se queria salvar Christine, compreendeu Peter, tinha êle próprio de entrar em ação, mas ao tentar mover os pés, êstes ficaram presos ao chão, como que colados, e embora o corpo se atirasse à frente, as pernas não o queriam acompanhar. Tentou gritar, mas sua garganta estava obstruída, e seus olhos encontraram os de Christine, num desespêro mudo.

De repente, os Croydons, Marsha, O'Keefe e Warren Trent pararam no que estavam fazendo e ficaram à escuta. O pardal que era Albert Wells levantou uma orelha. E Ogilvie, Yolles e Christine faziam o mesmo. Escutavam o quê?

Foi quando êle próprio ouviu: uma cacofonia, como se todos os telefones do planêta estivessem tocando ao mesmo tempo. O som veio se aproximando, crescendo, a ponto de parecer que ia engoli-los todos. Peter levou as mãos aos ouvidos. A dissonância aumentou. Ele fechou os olhos, e depois os abriu.

Estava em seu apartamento, e o despertador da mesinha de cabeceira indicava seis e meia da manhã.

Ficou deitado álguns minutos, tentando livrar-se do sonho agitado e depois se dirigiu ao chuveiro, preparando-se para o jato de água fria. Saiu de lá inteiramente desperto e, vestindo um roupão, começou a preparar café na kitchenette. Em seguida, foi ao telefone e discou para o hotel.

Ligaram-no com o subgerente noturno, que assegurou não ter recebido recado durante a noite, a respeito de qualquer coisa encontrada no incinerador. Não, disse o homem revelando cansaço na voz, êle não verificara pessoalmente. Sim, se o Sr. McDermott quisesse, iria imediatamente lá embaixo e telefonaria em seguida, informando o resultado dessa providência, embora Peter percebesse o ligeiro ressentimento causado por tal incumbência inútil, já tão perto do final da noite comprida e cansativa. O incinerador ficava em algum lugar do porão de baixo, não era?

Peter se barbeava quando o telefone tocou. O subgerente noturno informava que falara com o empregado do incinerador, Graham, e êste lamentava muito mas não encontrara o papel pedido pelo Sr. McDermott. A essa altura, parecia que não o encontraria mais. O subgerente acrescentou a informação de que o trabalho noturno de Graham, bem como o seu próprio, estava já chegando ao fim.

Peter resolveu que, mais tarde, transmitiria as notícias, ou melhor, a falta de notícias, ao Capitão Yolles. Lembrou-se de sua opinião da véspera, e ainda de pé, que o hotel fizera tudo quanto devia ter feito, na questão de seu dever público, e tudo mais era problema da polícia.

Entre goles de café e, depois, enquanto se vestia, ezaminou os dois assuntos mais destacados em seu espírito. Um, era Christine; o outro, seu próprio futuro, se é que o teria, no Hotel St. Gregory.

Depois daquela noite, compreendia que em tudo quanto pudesse estar à sua frente, queria que Christine estivesse presente. Essa convicção estivera crescendo nêle, e agora se mostrava clara e definida. Achava que podia estar apaixonado, mas se precavinha ao tentar definir os seus sentimentos mais profundos, até para si próprio. Uma vez antes, o que acreditara ser amor se transformara em cinzas, e talvez fôsse melhor começar com esperanças, e se adiantar incertamente para um fim desconhecido.

Talvez fôsse pouco romântico, refletiu, dizer que se sentia bem na companhia de Christine, mas isso era verdade e, em certo sentido, reconfortante. Tinha a convicção de que os elos entre êles se tornavam mais fortes, e não mais fracos, com o passar do tempo, e acreditava que os sentimentos de Christine fôssem semelhantes aos seus.

Instintivamente, percebia que o que vinha logo à frente devia ser saboreado, e não devorado. Quanto ao hotel, era difícil compreender, ainda então, que Albert Wells, que tinham imaginado um homenzinho simpático e inofensivo, se revelara o magnata financeiro que assumira o contrôle do St. Gregory, ou o faria naquele dia.

A julgar pelas aparências, era possível que a posição de Peter se fortalecesse com êsse acontecimento inesperado. Fizera amizade com o homem e tinha a impressão de que Albert Wells, por sua vez, gostava dêle, mas gostar era uma coisa, e as decisões comerciais eram outra bem diferente. As pessoas mais agradáveis podiam ser cabeçudas e inflezíveis, se o quisessem, e também era improvável que Albert Wells viesse a dirigir pessoalmente o hotel, caso em que a pessoa que tratasse disso, por êle, poderia ter opiniões definidas sôbre os antecedentes pessoais dos empregados.

Como fizera antes, Peter resolveu não se preocupar com os acontecimentos até que os mesmos se verificassem.

Na cidade de Nova Orleans, os relógios batiam sete e meia quando Peter McDermott chegou, de táxi, à mansão dos Preyscotts na rua Prytania.

Por trás das graciosas e grandes pilastras, a grande casa branca se apresentava com tôda majestade ao sol matutino. O ar era fresco e agradável, tendo ainda sinais de um nevoeiro da madrugada e o perfume das magnólias rescendia, enquanto a grama se mostrava coberta de orvalho.

A rua e a casa estavam em silêncio, mas da avenida St. Charles e além podia-se ouvir o rumor da cidade que despertava.

Peter atravessou o gramado, seguindo pelo caminho curvo de tijolos vermelhos, subiu os degraus do terraço e bateu à porta de madeira entalhada.

Ben, o serviçal que servira o jantar na noite de quarta-feira, veio abrir a porta e recebeu Peter cordialmente: - Bom dia, Sr. Faça o favor de entrar. Já dentro da casa, êle anunciou:

- A Srta. Marsha me pediu que o levasse à galeria. Ela virá em poucos minutos.

Com Ben seguindo à frente, para mostrar o caminho, subiram a escadaria e percorreram o amplo corredor com paredes ornamentadas por pinturas, onde Peter acompanhara Marsha na semi- escuridão da quarta-feira. Agora, êle perguntava a si próprio se fôra, mesmo, tão pouco tempo antes. À luz do dia, a galeria se apresentava arrumada e convidativa como na outra ocasião. Havia poltronas estofadas e vasos cheios de flôres. Na parte da frente, dando vista para o jardim do chão, fôra preparada uma mesa para o café, com dois lugares.

- Estão acordando mais cedo por minha causa? - perguntou Peter.

- Não, Sr. - asseverou o serviçal. - Nós acordamos cedo, todos os dias. Quando o Sr. Preyscott está em casa não gosta de começar tarde o dia. Sempre diz que não há tempo

bastante no dia para que se desperdice a primeira parte dêle. - Viu? Não disse que meu pai se parece muito com você?

À voz de Marsha, Peter se voltou. Ela viera silenciosamente, por trás dêles; Peter teve a impressão de orvalho e rosas e de que ela se levantara com o sol.

- Bom dia! - cumprimentou Marsha, sorrindo. - Ben, por favor, dê um absinto Suissesse ao Sr. McDermott.

- Pouca coisa, Ben - pediu Peter. - Sei que o absinto Suissesse faz parte do café à Nova Orleans, mas tenho um novo patrão e quero chegar em bom estado à presença dêle.

- Sim, Sr. - respondeu o sorridente serviçal. Enquanto se sentavam à mesa, Marsha começou a perguntar:

- Foi por isso que você.

- Por isso que desapareci como coelho de mágico? Não. Foi por outra coisa.

Ela arregalou os olhos enquanto Peter contava tudo quanto podia sôbre as investigações no caso de atropelamento, sem mencionar o nome dos Croydons. Com delicadeza, recusou-se a contar mais coisas que ela perguntou, mas terminou dizendo:

- Seja lá o que acontecer, hoje teremos novidades.

Para si próprio, raciocinava: a essa altura, Ogilvie já estaria de volta a Nova Orleans e sob interrogatório. Se o mantivessem prêso, teria de ser apresentada a acusação e êle seria levado a tribunal, o que alertaria a imprensa. Seria inevitável uma referência ao Jaguar, e isso apontaria os Croydons como envolvidos no caso.

Peter provou o absinto Suissesse pôsto à sua frente. De seus próprios tempos de bar, lembrava-se dos ingredientes - erva-santa, clara de ôvo, creme, xarope de orchata e uma pitada de anisete. Poucas vêzes provara mistura tão bem-feita. Do outro lado da mesa, Marsha tomava suco de laranjas e Peter imaginava: poderiam o Duque e Duquesa de Croydon, diante das acusações de Ogilvie, continuar a sustentar sua inocência? Era mais uma pergunta a ser respondida no curso do dia.

Uma coisa parecia certa: o bilhete escrito pela Duquesa, se é que existira, estava perdido. Não viera qualquer aviso do hotel, pelo menos sôbre isso, e Booker T. Graham já deveria ter deixado o serviço.

Diante de Peter e Marsha apareceu um queijo local de creme Evangeline, ornamentado com frutas. Peter começou a comer com satiSfação.

- Antes disso, você dizia alguma coisa sôbre o botel - lembrou Marsha.

- Ah, sim! - disse Peter, entre garfadas de queijo e frutas, e explicando a respeito de Albert Wells. - O novo proprietário vai ser anunciado hoje. Recebi recado pelo telefone, pouco antes de vir para cá.

O telefonema fôra de Warren Trent, informando a Peter que o Sr. Dempster, de Montreal, representante financeiro do novo dono do St. Gregory, já se achava a caminho de Nova Orleans. O Sr. Dempster estava em Nova York, de onde tomaria um avião que chegaria às 9 da manhã. Devia ser reservado um apartamento, e pensava-se em fazer a reunião do antigo e novo grupo de administração às onze e meia. Peter recebera instruções para estar à disposição, caso sua presença fôsse necessária.

Para sua surprêsa, Warren Trent não parecera absolutamente deprimido e, na verdade, se mostrara mais animado do que nos últimos dias. Será que W. T. percebia, imaginou Peter, que o nôvo dono do St. Gregory já estava no hotel? Lembrando-se de que até se efetuar a transferência oficial da propriedade a sua própria fidelidade estava com a antiga direção, Peter lhe narrara a conversa da noite anterior, entre êle próprio, Christme e Albert Wells.

- Sim - respondera Warren Trent -, eu sei. Emile Dumaire, do Banco Mercantil Industrial, que fêz o negócio por Wells, telefonou ontem à noite. Parece que havia algum segrêdo na questão, mas não há mais.

pPeter sabia, também, que Curtis OKeefe e sua companheira, a Srta. Lash, deviam deixar o St. Gregory naquela manhã. Aparentemente, estavam tomando rumos diferentes, pois o hotel - que tratava dessas questões para as pessoas importantes - reservara lugar no avião para Los Angeles, destinado à Srta. Lash, enquanto Curtis O'Keefe se dirigiria para Nápoles com escalas por Nova York e Roma.

- Você está pensando em muitas coisas - observou Marsha. - Gostaria de que me contasse algumas. Meu pai costumava conversar durante o café, mas minha mãe nunca se interessou. Eu me interesso.

Peter sorriu e lhe contou o tipo de dia que esperava encontrar. Enquanto conversavam, o resto do queijo Evangeline foi retirado, sendo substituído por ovos Sardou fumegantes e aromáticos. Dois ovos quentes, colocados sôbre alcachôfra, estavam apetitosamente cobertos por creme de espinafre e môlho holandês. À frente de Peter fôra colocado um vinho rosé.

- Compreendo, agora, o que disse sôbre o dia ser dos mais movimentados - disse Marsha.

- E eu compreendo o que você dizia, quando falou em café tradicional - respondeu Peter, que via a governante, Anna, a alguma distância dêles.

- Magnífico! - disse para ela, vendo-a sorrir. Mais tarde, via com espanto a chegada de bifes com cogumelos, pão francês quente e marmelada. Diante daquilo tudo, êle teve dúvidas.

- Não sei se vou poder.

- Há crêpes Suzette em seguida - informou Marsha - e mais café au lait. Quando havia grandes fazendas aqui, os residentes costumavam zombar do petit dejeuner das pessoas vindas da Europa. Eles faziam do café da manhã uma ocasião especial.

- Você o tornou uma ocasião especial - disse êle. Isto, e muita coisa mais. Conhecê-la, aprender história, estar com você aqui. Não vou poder esquecer tudo isso, nunca mais.

- Parece que está dizendo adeus.

- E estou, Marsha.

Encarou-a com firmeza, e depois acrescentou, sorrindo:

- Logo depois dos crêpes Suzette.

Formou-se um silêncio, antes que ela pudesse dizer:

- Eu pensei.

Peter estendeu a mão pela mesa, cobrindo a de Marsha.

- Talvez estivéssemos ambos sonhando. Acho que estivemos. Mas foi o sonho mais bonito que tive até hoje.

- E por que tem de ser apenas isso?

- Há coisas que não se podem explicar - respondeu Peter, com delicadeza. - Por mais que se goste de alguém, há a questão de decidir o que se vai fazer, uma questão de escolha.

- E a minha escolha não entra em conta?

- Marsha, preciso confiar na minha. Por nós dois. No entanto, êle próprio imaginava: poderia confiar no que resolvera? Os seus impulsos se tinham mostrado menos do que idôneos antes, e talvez naquele próprio instante estivesse cometendo um engano do qual se lembraria, com arrependimento, anos mais tarde. Como ter certeza de tudo, quando muitas vêzes se descobria a verdade tarde demais?

Percebeu que Marsha estava quase chorando.

- Desculpe-me - disse ela, em voz baixa, erguendo-se e saindo ràpidamente pela galeria.

Sentado, Peter desejou ter falado com menos vigor, temperando as palavras com a delicadeza que lhe inspirava aquela môça solitária. Imaginou se ela voltaria à mesa, e após alguns minutos, quando Marsha não regressara, foi Anna quem apareceu.

- Parece que o Sr. vai terminar sòzinho. Não creio que a Srta. Marsha volte.

- Como está ela? - perguntou Peter.

- Está chorando, no quarto dela - respondeu Anna, dando de ombros - Não é a primeira vez, e acho que não será a última. É assim que costuma fazer quando não consegue tudo quanto quer. Ben lhe trará o resto - acrescentou, retirando os pratos de bife.

Peter balançou a cabeça em negativa.

- Não, obrigado. Preciso ir-me embora.

- Nesse caso, trarei só o café.

Mais ao fundo, Ben se mostrava ocupado, mas foi Anna quem trouxe o café au lait e o colocou ao lado de Peter.

- Não vá muito preocupado, Sr. Depois que ela passar o pior, eu farei o possível. A Srta. Marsha talvez tenha tempo demais para pensar em si própria. Se o pai dela estivesse mais tempo em casa, talvez as coisas fôssem diferentes. Mas êle não está. Quase nunca está.

- Vejo que é uma pessoa muito compreensiva. Peter se lembrava do que Marsha lhe dissera a respeito de Anna, como fôra obrigada, ainda jovem, a casar-se com um homem que mal conhecia, mas o casamento fôra feliz por mais de quarenta anos, até a morte do marido, um ano antes. Comentou, então:

- Ouvi falar de seu marido. Deve ter sido homem muito bom.

- Meu marido! - exclamou a governante, dando uma risada. - Eu não tive marido. Nunca me casei. Sou uma solteirona; mais ou menos.

Marsha dissera: eles moravam aQui, conosco, Anna e o marido. Era o homem mais gentil e bondoso Que vi até hoje, Se já houve casamento perfeito, foi o dêles. Marsha usara o exemplo para reforçar sua própria argumentação quando lhe pedira para casar-se com ela.

Anna ainda estava rindo.

- Santo Deus! A Srta. Marsha tem-lhe contado coisas que ela inventa. Ela costuma fazer isso. Muitas vêzes está só representando, e por isso o Sr. não precisa se preocupar agora.

- Compreendo - respondeu Peter, mas sem certeza de compreender realmente, embora sentisse alívio.

Ben o acompanhou na saída. Eram nove da manhã e o dia já se tornara quente. Peter andou com passos rápidos até a avenida St. Charles, de onde se dirigiu ao hotel. Esperava que o passeio acabasse com qualquer sonolência que viesse a sentir, devido à lauta refeição. Sentia arrependimemnto por não voltar a ver Marsha, e pena dela, devido a algum motivo que não conseguia compreender bem. Imaginava se, um dia, entenderia as mulheres, e duvidava muito disso.

O elevador número quatro estava dando trabalho novamente. Seu idoso ascensorista diurno, já estava ficando inteiramente farto daquele veículo e seus caprichos, que tinham começado uma semana antes e pareciam estar piorando.

No último domingo, o elevador se recusara diversas vêzes a responder aos contrôles, embora tanto o carro quanto as portas estivessem inteiramente fechados. O ascensorista noturno lhe dissera que o mesmo acontecera na noite de segunda-feira, quando o Sr McDrmott, subgerente do hotel, estava presente.

Depois disso, na quarta-feira, uma dificuldade mecânica pusera o número quatro fora de ação por diversas horas - fôra o mau funcionamento no conjunto da chave de manobras, tinham dito os maquinistas, coisa que êle não entendera, mas o consêrto não impedira outra paralisação no dia seguinte quando, por três vêzes, o elevador tardara a partir do décimo-quinto andar.

Naquele momento, estava parando e partindo de cada andar com solavancos. Não cabia a Len saber o que estava errado, nem êle se preocupava muito com isso, embora tivesse ouvido o mecânico-chefe, Doc Vickery, resmungar sôbre aquilo de estar "remendando, remendando" e queixar-se de precisar "de cem mil dólares para retirar as tripas dos elevadores e acertar tudo outra vez". Mas quem não gostaria de tanto dinheiro assim? O próprio Lewin era um, motivo pelo qual economizava todos os anos para comprar um bilhete inteiro do sweepstake, ainda que de nada lhe tivesse servido essa poupança.

No entanto, um empregado antigo do St. Gregory, como êle, tinha direito a consideração e amanhã pediria que Lhe dessem outro elevador. E por que não? Já trabalhava vinte e sete anos naqueles veículos do hotel, e os operava antes de alguns dos frangotes agora ali empregados terem nascido. Depois de hoje, que outro fôsse lidar com o número quatro e seus caprichos.

Faltava pouco para as dez da manhã e a portaria começava a movimentar-se. Lewin levou uma primeira remessa de passageiros para cima - em sua maioria convencionais com os nomes nas lapelas - parando nos andares intermediários até o décimo-quinto, o pavimento mais alto do hotel. Descendo, o elevador se lotara de outros passageiros quando chegou ao nono andar, e desceu diretamente, até a portaria.

Nessa última viagem, percebeu que os solavancos tinham parado. Pois bem, qualquer que fôsse o defeito, calculava que o mesmo fôra corrigido.

Não podia estar mais enganado.

Bem acima de Lewin, sôbre o telhado do hotel, achava-se a sala de máquinas dos elevadores, e no coração mecânico do carro número quatro um pequeno relé elétrico atingira o limite de sua vida útil. A causa, desconhecida e insuspeitada, era uma pequena haste do tamanho de um prego comum.

A haste estava aparafusada numa miniatura de pistão que por sua vez, acionava três interruptores. Um dêles ligava e desligava o freio do elevador, um segundo fornecia energia ao motor, e o terceiro controlava um circuito do gerador. Com

todos os três funcionando, o carro do elevador se movia suavemente, para cima e para baixo, respondendo a seus contrôles, mas com apenas dois dos interruptores funcionando - e se aquêle fora de ação fôsse o que controlava o motor do elevador - o carro estaria livre para cair com o seu próprio pêso.

Apenas uma coisa poderia causar essa falha - o encompridamento da haste e pistão.

Por semanas seguidas a haste trabalhara sôlta. Com movimentos tão infinitesimais que cem dêles teriam a grossura de um fio de cabelo, o pistão se voltara, lenta mas inexoràvelmente, desprendendo-se da rôsca na haste. Oefeito era duplo: a haste e pistão haviam aumentado seu comprimento total, e o interruptor do motor mal funcionava.

Assim como um grão de areia faz tombar finalmente o prato da balança, naquele momento a menor torção do pistão isolaria por completo o interruptor do motor. O defeito era a causa do funcionamento irregular do elevador número quatro, observado por Cy Lewin e outros. Uma turma de manu tenção tentara descobri-lo, mas não conseguira, e não podia ser culpada por isso. Havia mais de sessenta relés em cada elevador, e vinte elevadores em todo o hotel.

Tampouco alguém observara que dois dispositivos de segurança, no veículo, apresentavam defeito parcial.

Dez minutos após as dez da manhã de sexta-feira o elevador número quatro pendia por um fio, falando-se figurada e concretamente.

O Sr. Dempster, vindo de Montreal, chegou às dez e meia. Peter McDermott, notificado de sua chegada, foi à portaria apresentar cumprimentos oficiais. Até àquela altura da manhã nem Warren Trent, nem Albert Wells, havia aparecido nos andares inferiores do hotel.

O representante financeiro de Albert Wells era homem enérgico, dêsses que impressionam, tendo o aspecto de experimentado gerente de grande filial bancária, e ao comentário feito por Peter, sôbre a rapidez estonteante dos acontecimentos, esclarecia:

- O Sr. Wells frequentemente causa êsse efeito. Um carregador conduzira o recém-chegado a um apartamento no décimo-primeiro andar, e vinte minutos depois o Sr. Dempster reaparecia no escritório de Peter.

Informou que visitara o Sr. Wells, e falara pelo telefone com o Sr. Trent. A reunião programada para as onze e meia deveria ser confirmada e, enquanto isso, havia algumas pessoas com as quais êle gostaria de conferenciar - o contador do hotel, por exemplo - e o Sr. Trent o convidara a usar o conjunto administrativo.

O Sr. Dempster parecia pessoa acostumada a ezercer autoridade. Peter o acompanhou até o escritório de Warren Trent, onde Lhe apresentou Christine.

Para Peter e Christine era seu segundo encontro desde a manhã, pois chegando ao hotel êle a procurara ver, embora o melhor que pudessem fazer naquele escritório, cheio de gente fôsse apertarem-se as mãos por instantes, mas sentindo no instante roubado que ezistia mutuamente interêsse e desejo.

Pela primeira vez desde sua chegada o homem de Montreal sorriu:

- Ah, sim, Srta. Francis! O Sr. Wells me falou na Srta.

Na verdade, falou de modo bem carinhoso.

- Eu acho o Sr. Wells um homem maravilhoso. Já pensava assim, antes...

Ela se deteve, mas o Sr. Dempster parecia interessado:

- Sim?

- Estou um pouco embaraçada - disse ela. - Foi uma coisa que aconteceu ontem à noite.

O Sr. Dempster tirou do bôlso os óculos de aro grosso que limpou e colocou no rosto.

- Se está se referimdo ao incidente da conta do restaurante, Srta. Francis, não há motivo para sentir-se assim. O Sr. Wells me disse, e quero repetir suas próprias palavras, que foi uma das coisas mais gentis e bondosas que já fizeram por êle. Ele sabia o que se estava passando, naturalmente. Pouca coisa lhe escapa.

- Sim - disse Christine. - Estou começando a perceber isso.

Alguêm bateu à porta do escritório, que logo se abriu à passagem do chefe de crédito, Sam Jakubiec.

- Desculpem - disse, ao ver o guru lá dentro, e voltou-se para sair, mas Peter o chamou.

- Vim verificar um boato - explicou Jakubiec. – O boato está grassando pelo hotel como fogo no mato. Dizem que aquele velho cavalheiro, o Sr. Wells.

- Não é boato - esclareceu Peter. - É verdade.

Apresentou o chefe de crédito ao Sr. Dempster, após o que o primeiro levou a mão à cabeça, exclamando:

- Meu Deus! Eu verifiquei o crédito dêle! Duvidei do cheque! Cheguei a telefonar para Montreal!

- Ouvi falar nisso - comentou o Sr. Dempster, Que pela segunda vez teve um sorriso. - No banco, êles se divertiram muito. Mas êles têm instruções rigorosas para não darem qualquer informação sôbre o Sr. Wells a pessoas estranhas. É assim que êle prefere.

Jakubiec deu o que parecia ser um gemido.

- Acho que o Sr. teria mais motivos de preocupação - asseverou o homem de Montreal - se não tivesse verificado o

crédito do Sr. Wells. Ele deve respeitá-lo pelo que fêz. O Sr. Wells tem o hábito de fazer cheques em pedaços de papel, coisa que desconcerta as pessoas. Os cheques são todos bons naturalmente. A esta altura, os senhores já devem saber que o Sr. Wells é um dos homens mais ricos da América do Norte.

Estonteado, Jakubiec só conseguia balançar a cabeça.

- Talvez fôsse mais simples para os senhores - observou o Sr. Dempster -, se eu explicasse algumas coisas sôbre o meu patrão.

Consultou o relógio, e acrescentou:

- O Sr. Dumaire, o banqueiro, e alguns advogados chegarão daqui a pouco, mas acho que temos tempo.

Foi interrompido pela chegada de Royall Edwards. O contador estava trazendo documentos e uma pasta cheia de papéis, e mais uma vez se realizou o ritual das apresentações.

Enquanto se apertavam as mãos, o Sr. Dempster informou ao

contador:

- Daqui a pouco estaremos conversando, por alguns minutos, e gostaria que ficasse para a reunião das onze e meia.

Por falar nisso, também a Srta. Francis poderia ficar. O Sr.Trent pediu sua presença à reunião, e sei que o Sr. Wells ficará muito satisfeito com isso.

Pela primeira vez, Peter teve o sentimento desconcertante de estar excluído do que se passava.

- Eu ia explicar algumas coisas sôbre o Sr. Wells - prosseguiu o Sr. Dempster, retirando os óculos, bafejando nas lentes e limpando-as mais uma vez. - A despeito de sua fortuna considerável, êle continua a ser homem de gostos muito simples. Isso não se deve à avareza: muito ao contrário, êle é

extremamente generoso. apenas que, para si próprio, êle prefere coisas modestas, mesmo em questões de indumentária meios de transporte e acomodações.

- Quanto às acomodações - disse Peter - estive pensando em transferir o Sr. Wells para um apartamento. O Sr. Curtis O'Keefe estará vagando um dos melhores, esta tarde.

- Sugiro que não o faça. Sei que o Sr. Wells gosta do quarto que tem no momento, embora não gostasse do outro, que lhe deram antes.

Mentalmente, Peter estremeceu à referência feita ao quar to que Albert Wells ocupara antes de ser transferido para o 1410, na noite de segunda-feira.

- Ele não se incomoda se outros ocuparem apartamentos, como eu, por exemplo - explicou o Sr. Dempster. - É que não vê necessidade de tais coisas para si mesmo. Por acaso estarei aborrecendo os senhores?

Em côro, os ouvintes disseram que não. Royall Edwards parecia divertir-se, e comentou:

- Parece coisa extraída dos Irmãos Grimm!

- Talvez, mas não acredite que o Sr. Wells viva no mundo da carochinha - observou o Sr. Dempster. - Ele não vive nisso, nem eu.

Quer houvessem ou não percebido, pensou Peter, sob as palavras educadas havia uma ponta de aço. O Sr. Dempster continuou:

- Conheço o Sr. Wells há muitos anos, e aprendi a respeitar suas intuições, tanto sôbre as pessoas quanto sôbre negócios. Ele possui um tipo de astúcia natural que não ensinam na Escola Comercial de Harvard.

Royall Edwards, que se diplomara naquela instituição, corou àquelas palavras e Peter imaginou se a resposta fôra acidental ou se o representante de Albert Wells já fizera algumas investigações rápidas sôbre os principais empregados do hotel. Era de todo possível, em cujo caso os antecedentes dêle próprio, inclusive em sua despedida do Waldorf e subsequente inclusão na lista negra, seriam conhecidos. Era êsse o motivo de sua ausência aparente dos círculos principais?

- Suponho que devemos esperar bom número de modificações por aqui - disse Royall Edwards.

- Acho provável - respondeu o Sr. Dempster, limpando novamente os óculos, no que parecia ser um hábito. – A primeira modificação será a de que me tornarei presidente da companhia hoteleira, cargo que tenho na maioria das organizações pertencentes ao Sr. Wells. Ele próprio nunca desejou assumir títulos.

- Nesse caso, estaremos vendo o Sr. com bastante frequência - indagou Christine.

- Na verdade, verão muito pouco, Srta. Francis. Serei uma figura decorativa, apenas. O vice-presidente administrativo é que terá autoridade completa. Essa é a orientação do Sr. Wells, e também a minha.

Peter pensava que, afinal de contas, a situação se resolvera como êle imaginara. Albert Wells não estaria envolvido de perto na administração do hotel e, por consequência, o fato de conhecê-lo não apresentaria grande vantagem. O homem, na verdade, ficava a uma distância dupla da administração, e o futuro de Peter dependeria do vice-presidente administrativo, fôsse lá quem fôsse. Peter imaginou se seria alguém seu conhecido, pois isso faria grande diferença.

Até aquêle momento, raciocinava, dissera a si próprio que aceitaria os acontecimentos como os mesmos se apresentassem, incluindo - se necessário - sua própria saída do hotel. Agora verificava que queria muito permanecer no St. Gregory. Um dos motivos era Christine, naturalmente, e outro era que o St. Gregory, com independência continuada sob nova administração, prometia ser um lugar dos mais interessantes.

- Sr. Dempster - perguntou êle -, se não fôr segrêdo, quem será o vice-presidente administrativo?

O homem de Montreal pareceu intrigado. Olhou para Peter, com expressão estranha, mas em seguida seu rosto se desanuviou.

- Desculpe-me - disse finalmente. - Pensei que sabia. Será o Sr.

Durante tôda a noite, nas horas lentas em que os hóspedes do hotel se achavam mergulhados em sono tranqilo, Booker T. Graham trabalhara sòzinho, ao clarão do incinerador. Por si só, isso não era excepcional. Booker T. era homem de alma simples, cujos dias e noites eram cópias a carbono uns dos outros, e jamais se perturbava com que o fôssem. As suas ambições eram simples, também, limitando-se à alimentação, abrigo e certa medida de dignidade humana, embora esta última fôsse coisa instintiva, e não uma necessidade que êle próprio conseguisse explicar.

O fato incomum naquela noite fôra a lentidão com que seu trabalho transcorrera. Em geral, bem antes de chegar o momento de marcar o cartão de ponto e sair para casa, Booker T. Graham já dera cabo do lixo acumulado na véspera, separara os objetos dali recolhidos e lhe sobrara meia hora, mais ou menos, durante a qual permanecia tranquilamente sentado, fumando um cigarro por êle mesmo enrolado, até fechar o incinerador. Naquela manhã, embora houvessem terminado suas horas, o trabalho ainda não estava pronto. Na hora em que devia estar deixando o hotel, restavam umas doze latas de lixo cheias até a beira, que não tinham sido examinadas e esvaziadas.

O motivo era que Booker T. procurava o papel pedido pelo Sr McDermòtt. Tivera todo o cuidado no exame do lixo.

trabalhara devagar, e até aquêle momento nada encontrara.

Booker T. informara isso ao subgerente noturno quando o mesmo aparecera, olhando aquêle ambiente encardido com estranheza, e torcendo o nariz ao cheiro onipresente. Ohomem se retirara tão depressa quanto pudera, mas o fato de ter vindo e o recado que trouxera mostravam que, para o Sr. McDermott, o tal papel ainda era importante.

Por mais que lamentasse, era hora de Booker T. Parar de trabalhar e ir para casa. Ohotel não pagava trabalho extraordinário e, o que era mais importante, Booker T. fôra empregado para tratar do lixo, e não de problemas administrativos, por mais remotos que fôssem.

Sabia que durante o dia, se notassem o resto de lixo, mandariam outra pessoa ao incinerador para operá-lo mais algumas horas e queimar o restante. Se não acontecesse isso, o próprio Booker T. trataria do lixo ali deixado, quando voltasse a trabalhar mais tarde. Oproblema era que, se mandassem outra pessoa terminar a queima, desapareceria para sempre qualquer esperança de encontrar o papel, e no segundo caso poderia ser tarde demais para o que o Sr. McDermott tinha em mente.

No entanto, mais do que qualquer outra coisa, Booker T. queria conseguir aquilo para o Sr. McDermott. Se alguém lhe perguntasse o motivo dêsse desejo, não conseguiria explicar pois não era homem capaz de se exprimir, em pensamento ou em palavras. Mas de algum modo, quando o jovem subgerente estava perto dêle Booker T. se sentia melhor, como indivíduo do que em qualquer outra ocasião.

Resolveu que continuaria a procurar o papel.

Para evitar dificuldades, deixou o incinerador e foi até o relógio de ponto, onde marcou seu cartão como em saída, e voltou. Não era provável que o observassem, pois o incinerador não era lugar que atraísse visitantes.

Trabalhou mais três horas e meia, devagar, meticulosamente, sabendo que buscava uma coisa que poderia não estar no lixo, ou poderia ter sido queimada antes de o terem avisado para procurar.

Às nove da manhã sentia-se muito cansado e chegara à penúltima lata de lixo.

Viu o que procurara logo depois de esvaziar a lata - era uma bola de papel encerado que parecia de um embrulho de sanduíches. Quando a abriu, achou uma folha amassada de papel, idêntica à que o Sr- Mcdermott deixara com êle. Comparou-as sob a luz, para ter certeza. Não havia engano possível.

O papel encontrado estava manchado de gordura e parcialmente molhado. Em certo ponto, a escrita fôra borrada, mas só um pouco. O resto era bem claro.

Booker T. Graham vestiu o paletó encardido e gorduroso, e sem esperar para acabar de separar e queimar o resto do lixo, dirigiu-se aos andares superiores do hotel.

No espaçoso escritório de Warren Trent, o Sr. Dempster terminara sua conversa particular com o contador. Em volta dêles, espalhados pela mesa, estavam balancetes e documentos contábeis; que Royall Edwards já reunia, enquanto chegavam os demais para a reunião das onze e meia. O banqueiro Emile Dumaire foi o primeiro a aparecer, pavoneando um pouco sua importância, sendo seguido por um advogado descorado e muito magro, que tratava da maior parte das questões legais do St. Gregory, e outro advogado mais jovem, de Nova Orleans, representando Albert Wels.

Peter Mcdermott chegou em seguida, acompanhando Warren Trent que descera do décimo-quinto andar momentos antes. Paradoxalmente, mesmo tendo perdido sua longa batalha por manter o contrôle do hotel, o proprietário do St- Gregory parecia mais amistoso e repousado do que em qualquer ocasião daquelas últimas semanas. Trazia um cravo vermelho na lapela, e cumprimentou cordialmente os visitantes, inclusive o Sr. Dempster, a quem Peter o apresentou.

Para Peter, aquêles preparativos apresentavam uma impressão de quimera. Os seus atos eram mecânicos e a sua fala mais parecia o funcionamento de um reflexo condicionado, como em resposta a uma ladainha. Era como se, dentro dêle, um robô se houvesse apossado de seu contrôle, até a ocasião em que pudesse recuperar-se do choque ministrado pelo homem vindo de Montreal.

Vice-presidente administrativo. O título não o preocupava tanto quanto as funções. Dirigir o St. Gregory com contrôle absoluto era como a concretização de um sonho. Peter sabia, com convicção apaixonada, que o St. Gregory podia tornar-se um ótimo hotel. Podia ser conceituado, eficiente e lucrativo. Era claro que O'Keefe, cuja opinião tinha valor, também pensava assim.

Havia meios de atingir tais fins, e êsses meios incluíam uma injeção de capital, reorganização com regiões de autoridade claramente definidas, e modificações no pessoal, aposentadorias, promoções e enxertos de gente nova, vinda de fora. Quando soubera da compra do hotel por Albert Wells

e da continuação de seu caráter independente, Peter esperava que outra pessoa tivesse visão e impulso para efetuar modificações graduais e progressistas, mas agora via que davam a êle próprio tal oportunidade. A possibilidade se mostrava estimulante, e um pouco assustadora.

Havia um aspecto pessoal na coisa. A sua designação, bem como o que viria em decorrência dela representariam a restauração de sua posição dentro da indústria hoteleira. Se levasse o St. Gregory ao êxito, o que se passara antes seria esquecido, e apagados os seus antecedentes. Como um grupo, os hoteleiros não se mostravam rancorosos ou mesquinhos, e eram as realizações o que mais importava.

Os seus pensamentos voavam. Estonteado ainda, mas recobrando pouco a pouco a lucidez, juntara-se aos demais que tomavam lugar na mesa comprida ao centro da sala. Albert Wells foi o último a chegar, e veio timidamente, escoltado por Christine. Quando entrou, todos os presentes se levantaram e, claramente embaraçado, o homenzinho fêz sinal para que se sentassem, dizendo:

- Não! Não! Por favor!

Warren Trent se adiantou, sorrindo.

- Sr. Wells, seja bem-vindo em minha casa. Apertaram-se as mãos, e êle acrescentou:

- Quando se tornar sua casa, será meu desejo sincero que estas velhas paredes Lhe tragam tanta felicidade e satisfação como trouxeram, a mim, algumas vêzes.

Falara com cortesia e graça, e de qualquer outra pessoa, pensou Peter McDermott, tais palavras teriam parecido ôcas ou exageradas. Ditas por Warren Trent, elas possuíam uma convicção estranhamente comovedora. Albert Wells piscou os olhos e com a mesma cortesia Warren Trent o tomou pelo braço e efetuou pessoalmente as apresentações.

Christine fechou a porta externa e juntou-se aos demais na mesa.

- Acredito que conhece minha assistente, a Srta. Francis. E também o Sr. McDermott.

Albert Wells teve o seu sorriso malicioso, respondendo:

- Já lidamos um pouco uns com os outros. Acho que vamos lidar mais ainda - acrescentou, piscando para Peter.

Foi Emile Dumaire quem pigarreou e abriu a sessão. As condições de venda, indicou o banqueiro, já tinham sido acertadas em grande parte. O fito da reunião, que tanto o Sr. Trent quanto o Sr. Dempstèr haviam concordado em presidir; era escolher os processos a adotar, inclusive a data de transferência da propriedade. Não parecia existirem quaisquer dificuldades. A hipoteca do hotel, que venceria naquele dia, fôra tomada pelo Banco Mercantil Industrial, com garantias oferecidas pelo Sr. Dempster, agindo em nome do Sr. Wells. Peter observou um olhar irônico de Warren Trent que, durante meses a fio, tentara sem êxito renovar, êle próprio, a hipoteca de que falavam.

O banqueiro passou a uma agenda, da qual distribuiu exemplares. Houve um breve exame de seu teor, com participação dos advogados e do Sr. Dempster, após o que passaram a lidar com a agenda, ponto por ponto. Na maior parte do que se seguiu, tanto Warren Trent quanto Albert Wells participaram apenas como espectadores, o primeiro apresentando expressão pensativa, o velhinho afundado em sua poltrona como se desejasse sumir dali. Em ponto algum, o Sr. Dempster se referiu a Albert Wells, ou mesmo olhou para êle. Era claro que o homem de Montreal conhecia a preferência de seu patrão, no sentido de evitar atenção, e estava habituado a resolver as coisas sòzinho.

Peter McDermott e Royall Edwards responderam às perguntas feitas, à medida que surgiam, e referentes à administração e finanças. Em duas ocasiões Christine se levantou e deixou a sala, para trazer documentos tirados nos arquivos do hotel.

A despeito de sua pompa, o banqueiro sabia dirigir uma reunião. Em menos de meia hora, os assuntos principais haviam sido liquidados e a data de transferência oficial marcada para a têrça-feira, restando detalhes de menor importância que os advogados acertariam entre si.

Emile Dumaire lançou olhar rápido pela mesa, anunciando:

- A menos que haja mais alguma coisa...

- Talvez haja - disse Warren Trent, adiantando-se na cadeira e chamando a atenção para si. - Entre cavalheiros a assinatura de documentos é apenas formalidade retardada confirmando compromissos de honra já contraídos. Suponho que concorde - acrescentou, dirigindo o olhar a Albert Wells.

- Certamente - respondeu o Sr. Dempster.

- Nesse caso, por favor fique à vontade para dar ínício imediato a qualquer providência que deseje tomar no hotel.

- Obrigado - respondeu o Sr. Dempster, demonstrando reconhecimento. - Há algumas questões que desejaríamos promover. Logo em seguida ao fechamento do negócio, na têrça-feira, o Sr. Wells deseja que se realize uma reunião de diretores, na qual o primeiro assunto será propor a sua própria eleição, Sr Trent, como presidente da diretoria.

Warren Trent inclinou a cabeça em gesto gracioso:

- Ficarei honrado em aceitar. Farei o possível para ser adequadamente ornamental.

O Sr. Dempster deixou que surgisse em seus lábios o esbôço de um sorriso.

- O Sr. Wells deseja também que eu assuma a presidência.

- É um desejo que compreendo.

- Com o Sr. Peter McDermott como vice-presidente administrativo.

Um côro de parabéns se dirigiu a Peter, vindos de tôda a mesa. Christine sorria, e juntamente com os demais Warren Trent apertou a mão de Peter. O Sr. Dempster aguardou que cessasse a conversa, e prosseguiu:

- Resta um ponto. Esta semana, eu estava em Nova York quando teve lugar aquela publicidade lamentáVel a respeito do hotel. Gostaria de ter certeza de que não vamos ter uma repetição do ocorrido, pelo menos antes da mudança de administração.

Seguiu-se um silêncio repentino. O advogado mais idoso pareceu intrigado, em murmúrio audível o mais môço lhe explicou:

- Um homem de côr foi recusado como hóspede.

- Ah! - exclamou o advogado mais idoso, assentindo em compreensão.

- Permitam que esclareça uma coisa - disse o Sr. Dempster, retirando os óculos e começando a limpá-los cuidadosamente. - Não estou sugerindo qualquer modificação básica na orientação do hotel. Minha opinião, como homem de negócios, é que as opiniões e costumes locais devem ser respeitados. O que me preocupa é que, se uma situação semelhante surgir, não deverá apresentar resultado parecido.

Seguiu-se nôvo silêncio.

De repente, Peter McDermott percebeu que o foco da atenção se voltara para êle, e sentia a impressão instantânea e desagradável de que ali, sem qualquer aviso, ocorria uma crise, a primeira e talvez a mais importante de seu nôvo regime. O modo pelo qual a enfrentasse poderia afetar o futuro do hotel, bem como o seu próprio. Esperou até ter absoluta certeza do que pretendia dizer.

- O que foi dito há momentos - disse êle calmamente fazendo sinal no sentido do advogado mais jovem - é deplorável, mas é verdade. Um delegado a uma convenção realizada neste hotel, com reserva confirmada, teve acomodação recusada. Tratava-se de um dentista, bem distinto ao que estou informado, e era negro. Lamento dizer que fui eu quem o recusou. Desde então, tomei a decisão pessoal de que o mesmo não acontecerá mais.

- Como vice-presidente administrativo, - disse Emile Dumaire - o Sr. não deverá estar em posição de.

- Ou de permitir atitude semelhante, de qualquer outra pessoa, num hotel do qual eu seja o responsável.

O banqueiro apertou os lábios.

- É uma afirmação muito ampla - retorquiu. Warren Trent se voltou, inquieto, para Peter.

- Já examinamos o assunto.

- Cavalheiros - disse o Sr. Dempster, recolocando os óculos -, eu tornei claro que não estava sugerindo qualquer modificação fundamental.

- Mas eu estou, Sr. Dempster!

Se precisava haver uma decisão final, pensou Peter, era melhor que fôsse ali de uma vez. Ele dirigia o hotel, ou não. A ocasião era boa para verificar isso.

O homem de Montreal inclinou-se à frente, e pediu:

- Quero ter certeza de compreender a sua posição.

Uma voz interna advertia Peter, dizendo-lhe que estava sendo imprudente, mas êle a desprezou, respondendo:

- Minha posição é bem simples. Eu insisto na eliminação completa da segregação racial no hotel, como condição de meu emprêgo.

- Não está sendo um tanto precipitado ao ditar condições?

- Suponho que sua pergunta signifique estar informado de certas questões pessoais minhas... - disse Peter, calmamente.

- Sim, estamos - assentiu o Sr. Dempster.

Peter notara que Christine tinha os olhos presos a seu rosto, e imaginou no que ela estaria pensando naquele momento.

- Precipitado ou não - respondeu -, acho justo esclarecer minha posição.

O Sr. Dempster estava, mais uma vez, limpando os óculos, e dirigiu-se a todos, de um modo geral:

- Acredito que todos respeitemos uma convicção firme. Ainda assim, parece-me ser êsse o tipo de questão em que podemos contemporizar. Se o Sr. McDermott concordar, podemos adiar uma decisão final sôbre o assunto, no momento presente. Em um ou dois meses a questão poderá ser reexaminada.

Se o Sr. McDermott concordar. Peter percebia que, com tato diplomático, o homem de Montreal lhe proporcionava uma saída.

A coisa seguia padrão já estabelecido. Vinha primeiro a insistência, tranqilizava-se a consciência, fazia-se profissão de fé. Depois vinha uma concessão branda, um acôrdo razoável, alcançado por homens razoáveis. A questão poderá ser reexaminada. Que afirmação ou proposta poderia se mostrar mais civilizada, mais eminentemente ajuizada? Não era o tipo moderado e não-violento de atitude preferido pela maioria? Os dentistas, por exemplo. O ofício dêles ao hotel, deplorando a atitude tomada no caso do Dr. Nicholas, fôra entregue naquele dia.

Era verdade, também, que havia dificuldades para o hotel. A ocasião se mostrava pouco propícia, e uma modificação da administração produziria uma série de problemas novos, sem que fôsse preciso inventar outros. Esperar talvez fôsse a decisão mais prudente.

Mas, por outro lado, o momento da modificação drástica nunca parecia certo. Sempre havia motivos para não se fazer as coisas. Alguém dissera aquilo recentemente, pensou Peter. Quem fôra?

O Dr. Ingram! Fôra o enérgico presidente dos dentistas que se demitira do pôsto porque acreditava que os princípios eram mais importantes do que a comodidade, que deixara o Hotel St. Gregory na noite da véspera, cheio de ira mais do que justa.

De vez em quando, porém, é preciso pesar o que se quer contra aquilo em Que se acredita. Você não fêz isso, McDermott, quando teve a oportunidade. Você estava preocupado demais com êste hotel e o seu emprêgo. As vêzes, no entanto, conseguimos uma segunda oportunidade. Se isso acontecer com você, não a perca!

- Sr. Dempster - disse Peter -, a lei sôbre direitos civis é perfeitamente clara. Quer a retardemos ou contornemos por algum tempo, ou não, o resultado final será o mesmo.

- Pelo que ouço dizer - observou o homem de Montreal -, ainda há bastante discussão sôbre os direitos dos Estados.

Peter sacudiu a cabeça, demonstrando impaciência, e seu olhar percorreu a mesa.

- Acredito que um bom hotel deve adaptar-se aos tempos que mudam. Há questões de direitos humanos que nossos tempos reconhecem. É muito melhor que nos adiantemos na compreensão e aceitação dessas coisas do que vê-las impostas a nós, como acontecerá se deixarmos de agir. Há momentos atrás, afirmei que jamais voltarei a rejeitar um Dr. Nicholas. Não mudei de idéia.

- Eles não serão todos iguais ao Dr. Nicholas - resmungou Warren Trent.

- Nós mantemos certos padrões hoje, Sr. Trent. Continuaremos a mantê-los, porém mais amplos.

- Estou avisando! Vai arruinar êste hotel.

- Creio haver outros meios de conseguir o mesmo resultado - retorquiu Peter.

Warren Trent corou ante a resposta, enquanto o Sr. Dempster olhava para suas próprias mãos.

- Lamentàvelmente, parecemos ter chegado a um impasse. Sr. Mcdermott, em vista de sua atitude, talvez tenhamos de reexaminar.

Pela primeira vez o homem de Montreal demonstrava incerteza, e lançou um olhar para Albert Wells.

O velhinho estava afundado na poltrona, e pareceu encoLher-se quando a atenção se voltou para êle, mas seus olhos encontraram os do Sr. Dempster.

- Charlie, acho que devemos deixar o rapaz fazer a coisa a seu modo - disse êle, acenando em direção a Peter.

Sem a menor mudança de expressão, o Sr. Dempster anunciou:

- Sr. Mcdermott, as suas condições estão aceitas.

A reunião já se desenvolvia. Em contraste com o ambiente de antes, havia uma sensação de constrangimento e embaraço. Warren Trent ignorava Peter, tendo a expressão contrariada. O advogado mais idoso parecia desaprovar o resultado, e o mais jovem exibia ar neutro. Emile Dumairc falava animadamente com o Sr. Dempster, e apenas Albert Wells se mostrava ligeiramente divertido com o ocorrido.

Christine foi até a porta, e momentos depois voltava, fazendo sinal a Peter. Pela fresta da porta, vira que a secretária dêle estava esperando no escritório externo. Conhecendo Flora, sabia que devia ser algo extraordinário o que a levara lá. Peter se desculpou e saiu.

Na porta, Christine pôs um papelzinho dobrado em sua mão, e murmurou:

- Leia depois.

Peter assentiu, enfiando o papelzinho no bôlso.

- Sr. Mcdermott - principiou Flora -, eu não o teria interrompido.

- Eu sei. O que houve?

- Há um homem em seu escritório. Diz que trabalha no incinerador e tem uma coisa importante para o Sr. Não quis dá-la a mim, nem sair de lá.

Peter pareceu espantado, e retrucou:

- Irei assim que puder.

- Por favor, vá depressa! - pediu Flora, que parecia embaraçada. - Detesto dizer isso, Sr. Mcdermott, mas o fato é que. bem, êle tem um cheiro!.

Poucos minutos antes do meio-dia, um trabalhador da manutenção, esguio e de movimentos lentos, chamado Billyboi Noble, desceu ao poço raso, por baixo do elevador número quatro. Ia tratar da limpeza e exame rotineiro, o que fizera aquela manhã nos elevadores número um, dois e três. Era processo para o qual não se considerava necessário parar os elevadores, e enquanto Billyboi trabalhava podia ver o carro do número quatro, subindo e descendo, bem lá em cima.

Questões importantes, refletiu Peter Mcdermott, podiam depender do menor capricho do destino. Estava sòzinho em seu escritório, de onde Booker T. Graham, a quem agradecera adequadamente, e que se mostrara radiante por seu pequeno êxito, saíra poucos minutos antes.

Se ele fôsse outro homem, se tivesse ido para casa - como outros fariam em seu lugar - na hora de deixar o trabalho, se fôsse menos cuidadoso na busca, aquêle pedacinho de papel, que Peter tinha à frente, no papel mata-borrão que cobria sua mesa, teria sido destruído.

Os "se" eram intermináveis. O próprio Peter estivera envolvido na questão. Suas visitas ao incinerador, percebera durante a conversa, tinham tido o efeito de entusiasmar Booker T. Ao que parecia, na parte anterior da manhã o homem chegara a marcar seu cartão de ponto, e continuara a trabalhar sem esperar qualquer pagamento pelo tempo extraordinário. Quando Peter chamou Flora e deu instruções para pagamento daquele trabalho, a expressão de devoção no rosto de Booker T. chegara a ser embaraçosa.

Qualquer que fôsse a causa, o resultado estava ali. O bilhete, virado para cima sôbre o mata-borrão, era datado da antevéspera. Escrito pela Duquesa de Croydon, em papel próprio do Apartamento Presidencial, autorizava a garagem do hotel a entregar-o automóvel dos Croydons a Ogilvie, "em qualquer momento julgado oportuno por êle".

Peter já verificara a caligrafia. Pedira o arquivo dos Croydons a Flora, e o mesmo estava aberto em sua mesa. Havia correspondência sôbre reservas, e diversos bilhetes escritos pela própria Duquesa. Um grafólogo certamente poderia ser mais preciso na identificação, mas mesmo um amador percebia a semelhança inconfundível.

A Duquesa jurara aos detetives da polícia que Ogilvie retirara o carro sem autorização. Negara a acusação de Ogilvie, de que os Croydons Lhe haviam pago para tirar o Jaguar de Nova Orleans. Sugerira que Ogilvie, e não os Croydons, estivera dirigindo o veículo na noite de segunda-feira última, por ocasião do atropelamento e fuga. Quando lhe haviam falado do bilhete, desafiara a que o mostrassem.

Agora, o bilhete podia ser mostrado.

O conhecimento de Peter sôbre as coisas da lei limitava-se às questões referentes a hotéis, mas ainda assim tornava-se óbvio que o bilhete escrito pela Duquesa era extremamente incriminador. Igualmente óbvio era o dever de Peter: informar ao Capitão Yolles sôbre a prova que faltara antes, e fôra recuperada.

Com a mão no telefone, Peter hesitou.

Não sentia qualquer simpatia pelos Croydons. Pelas indicações existentes, parecia claro que haviam cometido um crime nefando, e depois o tinham aumentado pela covardia e mentiras. Em sua memória, Peter revia o antigo cemitério de St. Louis, o cortejo de acompanhantes, o caixão maior, o outro, branco e pequenino seguindo atrás.

Os Croydons haviam até ludibriado seu cúmplice Ogilvie. Desprezível como era o detetive gordo, seu crime era menor do que o dêles, mas ainda assim o Duque e Duquesa estavam prontos a lhe infligir a culpa maior, e o maior castigo. Nada disso fazia Peter hesitar. O motivo de sua vacilação era apenas uma tradição centenária, ponto de crença de um hospedeiro: o da obrigação para com um hóspede.

Fôssem lá quem fôssem o Duque e Duquesa de Croydon eram também hóspedes do hotel.

Peter chamaria a polícia, mas avisaria os Croydons em primeiro lugar.

Pegando o telefone, pediu ligação para o Apartamento Presidencial.

Curtis O'Keefe pedira pessoalmente o café no quarto, para si próprio e Dodo, e o mesmo fôra entregue uma hora antes em seu apartamento. A maior parte da refeição, no entanto, continuava intacta. Tanto êle quanto Dodo haviam feito uma tentativa sumária de sentarem-se juntos para comer, mas parecia que estavam ambos desprovidos de apetite. Depois de algum tempo, Dodo pedira licença e voltara ao apartamento contíguo para terminar a arrumação das suas malas. Deveria sair para o aeroporto daí a vinte minutos, e Curtis O'Keefe uma hora depois.

A tensão entre êles continuara desde a tarde da véspera. Depois de sua explosão colérica, O'Keefe se sentira imediata e verdadeiramente arrependido. Continuava cheio de rancor pelo que achava ter sido uma perfídia de Warren Trent, mas as suas palavras contra Dodo tinham sido imperdoáveis, e êle sabia disso.

Pior ainda, eram de consêrto impossível. A despeito de suas desculpas, a verdade permanecia de pé. Ele estava, mesmo, desembaraçando-se de Dodo, e o avião da Delta Air Lines para Los Angeles deveria partir naquela tarde. Ele estava, mesmo, substituindo-a por outra, Jenny LaMarsh, que naquele momento o esperava em Nova York.

Na noite anterior, compungído, ele proporcionara uma noitada especial para Dodo, levando-a primeiramente a soberbo jantar no Commander's Palace, e depois à dança e entreteni mentos do Salão Azul do Hotel Roosevelt, mas a noitada não andara bem, não por culpa de Dodo, mas devido a seu próprio abatimento.

Ela fizera o possível para se mostrar boa companhia. Depois de seus momentos de patente infelicidade, durante a tarde, parecera ter resolvido deixar a mágoa de lado e mostrar-se cativante, como sempre, e durante o jantar lhe dissera:

- Puxa, Curtis! Muitas pequenas dariam tudo para conseguir um papel no cinema, como eu consegui!

E mais tarde, pondo as mãos nas dêle, comentara afetuosamente:

- Você ainda é o maior, Curtis. Será sempre. O efeito dessas manifestações, sôbre O'Keefe, fôra o de aprofundar ainda mais sua depressão, o que viera finalmente a contagiá- los, ambos.

Curtis O'Keefe atribuía seus sentimentos à perda do hotel, embora geralmente fôsse mais resistente nesses assuntos. Em sua longa carreira, tivera seu quinhão de desapontamentos comerciais, e aprendera a se recuperar, passando ao que vinha em seguida, ao invés de perder tempo lamentando fracassos.

Naquela ocasião, entretanto, mesmo após o sono de uma noite, o acabrunhamento persistia. Isso o tornou irritado com Deus. Havia uma aspereza perceptível, e mais certo tom de crítica, em suas orações matinais, quando dissera Vós decidistes pôr, o St. Gregory em mãos alheias. Não há dúvida de que tendes vossos próprios designios inescrutáveis, mesmo que mortais experientes como êste vosso servo não possam perceber o motivo.

Rezara sòzinho, levando menos tempo do que o comum, e em seguida descobrira Dodo fazendo as malas dela, bem como as suas próprias. Quando protestara, ela lhe asseverara:

- Curtis, eu gosto de fazer isso. E se não esse, desta vez, quem o faria?

Ele não sentira vontade de explicar que nenhuma das antecessoras de Dodo jamais arrumara ou desfizera malas para ele, ou que geralmente chamava alguém do hotel para fazer isso, coisa que de agora em diante, ao que supunha, voltaria a adotar.

Fôra a essa altura que pedira pelo telefone que servissem o café no quarto, mas não dera resultado, a despeito de Dodo lhe dizer, ao se sentarem à mesa:

- Puxa, Curtis, não precisamos ficar tão abatidos. Nós vamos nos ver outra vez! Podemos encontrar-nos em Los Angeles!

Mas O'Keefe, que percorrera antes aquêle caminho, sabia que não se encontrariam. Além disso, lembrava a si próprio: não era a separação quanto a Dodo, mas a perda do hotel o que realmente o preocupava.

Os momentos transcorreram, e chegou a hora de Dodo partir. A maior parte de sua bagagem, apanhada por dois carregadores, já descera para a portaria diversos minutos antes e vinha agora o guarda da portaria para apanhar o restante e acompanhar Dodo à limusine do aeroporto, especialmente fretada.

Herbie Chandler, percebendo a importância de Curtis O Keefe e sensivel como sempre às possíveis gorjetas, supervisionara pessoalmente aquela manobra, e se manteve de pé no corredor que dava entrada para o apartamento. O'Keefe consultou o relógio e se dirigiu para a porta do apartamento contíguo.

- Você tem pouco tempo a perder, minha cara.

- Preciso terminar as unhas, Curtis - respondeu Dodo lá de dentro.

Imaginando o motivo pelo qual tôdas as mulheres deixavam o trato das unhas para o último instante, Curtis O'Keefe entregou a Herbie Chandler uma nota de cinco dólares, dizendo:

- Divida com os outros dois.

- Muito obrigado, Sr. - respondeu Chandler, com o rosto de fuinha abrindo-se num sorriso, enquanto pensava que dividiria, sim, mas os outros receberiam meio dólar cada um e êle ficaria com os outros quatro.

Dodo saiu do apartamento ao lado.

Deviam tocar música, pensou O'Keefe. Devia haver a clarinada de trombetas e uma vigorosa revoada das cordas. Ela surgia num vestido amarelo simples, com o chapelão cinematográfico que usara à chegada, na têrça-feira. Ocabelo louro caía pelos ombros, sôlto, e seus grandes olhos azuis o encaravam.

- Adeus, querido Curtis...

Abraçou-o e beijou-o. Sem querer, O'Keefe a abraçou também, com fôrça. Sentiu o impulso absurdo de dizer ao guarda da portaria que trouxesse a bagagem de volta, dizer a Dodo para ficar e nunca o abandonar, mas se livrou do pensamento como sendo disparate sentimental. De qualquer modo, havia Jenny LaMarsh. Àquela hora, no dia seguinte.

- Adeus, minha cara. Pensarei muito em você, e acompanharei sua carreira com muito carinho.

No portal, ela se voltou e acenou. O'Keefe não podia ter certeza, mas lhe pareceu que Dodo chorava. Herbie Chandler fechou a porta por fora.

À frente do elevador, o guarda da portaria apertou o botão, e, enquanto esperavam, Dodo consertou a maquilagem com um lencinho.

Os elevadores pareciam lentos aquela manhã, pensou Herbie Chandler. Impaciente, apertou outra vez o botão, por alguns segundos. Ainda estava nervoso, compreendeu. Estivera pisando em brasas desde o encontro na véspera com Mcdermott imaginando como e quando viria o chamado, talvez diretamente de Warren Trent, que marcaria o final de sua carreira no Hotel St. Gregory. Até então, não viera chamado algum, e agora surgia o boato de que o hotel fôra vendido a algum sujeito de quem nunca ouvira falar.

Como iria afetá-lo, pessoalmente, essa modificação? Pesarosamente Herbie Chandler achava que não teria qualquer vantagem nisso, pelo menos se Mcdermott continuasse no hotel, o que parecia provável. A demissão do guarda da portaria talvez se retardasse alguns dias, mas era tudo. Mcdermott!

Aquêle nome odiado era como um espinho em sua carne. Se

tivesse bastante coragem, pensou Herbie, enfiaria uma faca emtre as omoplatas daquele cachorro.

Ocorreu-lhe uma idéia. Havia outros modos, menos drásticos porém igualmente desagradáveis, pelos quais um sujeito como Mcdermott pudesse ser tratado. Ainda mais em Nova Orleans! Era claro que tal tipo de coisa custava dinheiro, mas havia os quinhentos dólares que Mcdermott rejeitara tão presunçosamente. E poderia arrepender-se de ter rejeitado. O dinheiro valeria a pena, pensou Herbie, só pelo prazer de saber que Mcdermott ficaria caído em alguma sarjeta, coberto

de sangue e ferimentos. Herbie já vira uma pessoa depois de receber aquêle tratamento. Oespetáculo não era bonito. O chefe da portaria umedeceu os lábios. Quanto mais pensava nisso, tanto mais a idéia o animava. Assim que voltasse ao térreo, resolveu, faria uma chamada telefônica. A coisa podia ser arranjada com rapidez; talvez naquela mesma noite.

O elevador chegara, finalmente. As suas portas se abriram. Já havia diversas pessoas lá dentro, e as mesmas afastaram-se delicadamente para trás, quando Dodo entrou. Herbie Chandler veio atrás e as portas se fecharam.

Era o elevador número quatro, e os relógios marcavam onze minutos depois do meio-dia.

A Duquesa de Croydon parecia estar esperando que um pavio, queimando lentamente, chegasse a uma bomba invisível. Se a bomba explodiria ou não, e onde, só seria visto quando o pavio terminasse, e tampouco podia ter certeza de quanto tempo seria preciso para que isso acontecesse.

Já se tinham passado quatorze horas. Desde a noite anterior, quando os detetives haviam surgido, não aparecera mais comunicação alguma. Perguntas difíceis continuavam sem resposta. Que estaria fazendo a polícia? Onde estaria Ogilvie? O Jaguar? Haveria algum resto de prova que, a despeito de tôda a sua habilidade, ela esquecera? Mesmo agora não acreditava que existisse.

Uma coisa parecia importante. Fôssem quais fôssem suas tensões internas, os Croydons deveriam, externamente, manter uma aparência de normalidade. Por êsse motivo, tinham tomado -o café à hora habitual. Com instância da espôsa, o Duque fizera chamadas telefônicas para Londres e Washington, e dEram início aos planos para partirem de Nova Orleans no dia seguinte.

Às 9 da manhã, como fazia quase todos os dias, a Duquesa saíra do apartamento para passear com os terriers Bedlington e regressara ao Apartamento Presidencial uma hora antes.

Estava perto do meio-dia, e não tinham surgido quaisquer notícias sôbre a questão que mais importava.

Na noite da véspera, examinada lògicamente, a posição dos Croydons parecera inatacável, mas hoje a lógica se mostrava mais tênue, menos segura.

- Seria de pensar - disse o Duque - que êles estão querendo vencer-nos pelo silêncio.

Estava de pé, olhando pela janela da sala, como fizera tantas vêzes nos últimos dias. Em contraste a outras ocasiões sua voz se mostrava clara, pois desde a véspera, embora a bebida continuasse à sua disposição no apartamento, não fraquejara na abstinência.

- Se fôr assim - respondeu a Duquesa -, vamos providenciar para que...

Foi interrompida pela campainha do telefone que, como em tôdas as ocasiões anteriores naquela manhã, elevou seu nervosismo ao máximo.

A Duquesa estava mais próxima ao telefone, e estendeu a mão, mas sùbitamente parou. Tinha o pressentimento repentino de que essa chamada seria diferente das outras.

- Quer que eu atenda? - perguntou o Duque, compreensivamente.

Ela negou com aceno da cabeça, afastando a fraqueza momentânea, e erguendo o aparelho respondeu:

- Sim?

Houve uma pausa, e a Dùquesa confirmou:

- É ela mesma.

Cobrindo o fone, informou ao marido:

- o homem do hotel, McDermott, que estêve aqui ontem.

Ao telefone, e em outro tom de voz, ela aduziu:

- Sim, eu me lembro. O Sr. estava presente quando aquelas acusações ridículas...

Interrompeu o que dizia, e passou a ouvir, empalidecendo. Fechou os olhos, e depois os reabriu.

- Sim - disse lentamente -, sim, eu compreendo.

Desligou o aparelho, e suas mãos tremiam. O Duque de Croydon murmurou:

- Alguma coisa não deu certo...

Era uma afirmação e não uma pergunta. A Duquesa confirmou com aceno lento da cabeça.

- O bilhete - disse, com voz quase inaudível. - O biLhete que escrevi foi encontrado. O subgerente do hotel está com êle.

O marido se afastara da janela, dirigindo-se ao centro da sala, onde permaneceu imóvel, os braços caídos ao lado do corpo, deixando passar o tempo para que a notícia fôsse bem absorvida. Finalm ente, perguntou:

- E agora?

- Ele vai chamar a polícia. Resolveu avisar-nos primeiro.

A Duquesa pôs a mão na testa, num gesto de desespêro, dizendo:

- O bilhete foi o pior êrro. Se não o tivesse escrito.

- Não! - exclamou o Duque. - Se não fôsse isso, teria sido outra coisa. Nenhum dos erros foi seu. O êrro que importava, logo de início, foi meu.

Dirigiu-se a um aparador que servia de bar, e preparou uma dose forte de Scotch e soda.

- Vou tomar só êste, nada mais. Passará algum tempo até que tome outro, segundo imagino.

- Que vai fazer?

Ele bebeu de uma só vez.

- É um pouco tárde para falar em decência, mas se restarem alguns fragmentos ainda, vou tentar salvá-los.

Foi ao dormitório ao lado, voltando quase em seguida com uma capa de chuva e um chapéu-côco.

- Se eu puder - disse o Duque de Croydon -, pretendo chegar à polícia antes que ela me procure. Acho que se chama a isso. entregar-se. Calculo que não haja muito tempo; de modo que vou dizer ràpidamente o que é preciso.

Os olhos da Duquesa estavam fixos nêle. Naquele momento, falar seria difícil demais para ela. Em voz controlada e calma, o Duque afirmou:

- Quero que saiba que sou grato por tudo quanto fêz. Foi um êrro cometido por nós dois, mas ainda assim eu lhe sou grato. Farei tudo quanto puder para que você não seja envolvida. Se, a despeito disso, você fôr, direi que tôda a idéia foi minha, depois do acidente, e que eu a persuadi a agir dêsse modo.

A Duquesa assentiu, com expressão obtusa.

- Outra coisa ainda. Creio que preciso de um advogado. Gostaria de que arrumasse isso para mim, se puder.

O Duque pôs o chapéu e, com a batida do dedo, colocou-o no lugar. Para um homem cuja vida e futuro haviam ruído completamente, poucos momentos antes, a sua serenidade era notável.

- Vai precisar de dinheiro para o advogado - prosseguiu êle. - E de bastante dinheiro, ao que penso. Pode dar-lhe inicialmente parte daqueles quinze mil dólares que ia levar para Chicago. O restante deve voltar ao banco. Chamar a atenção já não importa agora.

A Duquesa não deu qualquer sinal de ter ouvido. Uma expressão de piedade surgiu no rosto do marido, que disse, com voz incerta:

- Pode ser muito tempo.

Estendeu os braços para ela que, fria e deliberadamente, virou o rosto para o lado. O Duque pareceu que ia falar de nôvo, mas mudou de idéia. Com ligeiro dar de ombros, voltou- se e saiu sem ruído, fechando a porta.

Durante alguns momentos, a Duquesa se manteve passivamente sentada, pensando no futuro e avaliando a vergonha e desgraça que tinha de enfrentar. Depois, com a segurança do hábito, levantou-se. Trataria do advogado, o que parecia necessário de imediato. Mais tarde, decidiu calmamente, examinaria o meio de suicidar- se.

Enquanto isso, o dinheiro que fôra mencionado devía ser guardado em lugar mais seguro. Ela se dirigiu a seu dormitório.

Bastaram poucos minutos, os primeiros de incredulidade, e depois de busca frenética, para descobrir que a maleta desaparecera. A causa só podia ser o roubo. Quando pensou em informar à polícia, a Duquesa de Croydon começou a dar gargalhadas histéricas.

Quando se quer um elevador, porque se tem pressa, pensou o Duque de Croydon, era certo que o mesmo tardaria a chegar.

Parecia já estar esperando no nono andar, diante das portas do elevador, por diversos minutos. Agora, finalmente, ouvia que um dêles se aproximava, vindo de cima. Momentos depois, suas portas se abriam.

Por instante, o duque hesitou, pois naquele segundo lhe parecera ter ouvido sua mulher, gritando. Sentiu- se tentado a voltar, mas resolveu que não.

Entrou no elevador número quatro. Havia diversas pessoas lá dentro, inclusive uma loura das mais atraentes, e o chefe da portaria, que reconheceu o Duque.

- Bom dia, Excelência!

O Duque de Croydon respondeu com distraído aceno da cabeça, enquanto as portas do elevador se fechavam.

Keycase Milne precisara de quase tôda a noite, e boa parte daquela manhã, para compreender que o ocorrido era realidade, e não uma alucinação. De início, ao descobrir o dinheiro que levara tão inocentemente do Apartamento Presidencial, achara que estava dormindo e sonhando. Dera voltas pelo quarto, tentando despertar, mas sem notar qualquer diferença. Em seu sonho aparente, a impressão era de que já estava desperto. A confusão manteve Keycase inteiramente acordado, até pouco antes do alvorecer. Foi quando caiu num sono profundo e tranquilo, do qual não despertou senão às 9 da manhã.

No entanto, era típico de Keycase que a noite não passasse inutilmente. Ainda que duvidasse de que seu incrível golpe de sorte fôsse verdade, fizera planos e tomara precauções para o caso de ser.

Quinze mil dólares, em dinheiro pronto para usar, era coisa que nunca viera ter às suas mãos, em todos os seus muitos anos de ladrão profissional. Ainda mais notável era o fato de que só havia dois problemas a resolver para poder se afastar, levando o dinheiro intacto. Um dos problemas era quando e como deixar o Hotel St. Gregory. O outro era o transporte daquela dinheirama.

Na noite da véspera, conseguira chegar a uma decisão em ambos os casos.

Ao deixar o hotel, devia atrair o mínimo de atenção, o que significava apresentar-se normalmente para liquidar as contas. Agir de outro modo seria a maior loucura, proclamando sua desonestidade e convidando a que o perseguissem.

Era tentador sair imediatamente, mas Keycase resistiu à idéia. Uma saída em hora tardia, acarretando, talvez, a discussão para saber se seria ou não cobrada mais uma diária, corresponderia a acender um farol. O caixa noturno se lembraria dêle e o poderia descrever, bem como outros empregados do hotel, caso o momento fôsse de tranquilidade, como era quase certo.

Não! O melhor momento de sair do hotel era às 9 da manhã, ou mais tarde, quando muitas outras pessoas estariam igualmente de partida. Desse modo, êle passaria virtualmente despercebido.

Havia, como era claro, o perigo da demora. A perda do dinheiro poderia ser descoberta pelo Duque e Duquesa de Croydon, caso em que a polícia ficaria de alerta. Isso representaria a presença de policiais na portaria, e exame de todos os hóspedes que estivessem saindo. Por outro lado, no entanto, nada havia que ligasse Keycase ao roubo, ou mesmo o tornasse suspeito. Além disso, parecia improvável que a bagagem de todos os hóspedes fôsse aberta e inspecionada.

Havia, também, o elemento intangível. O instinto dizia a Keycase que a presença de soma tão grande em dinheiroprecisamente onde e como a encontrara - era estranha, e mesmo suspeita. Dariam, mesmo, um alarma por causa daquele dinheiro? Havia, ao menos, a possibilidade de que não o fizessem.

Refletindo bem, a espera parecia ser o risco menor. O segundo problema era retirar o dinheiro do hotel. Keycase pensou em mandá-lo pelo correio, usando o coletor postal do hotel e endereçando os pacotes a si mesmo, em alguma outra cidade, onde apareceria dentro de um ou dois dias. Era um método que fôra usado com êxito em ocasião anterior. Com tristeza, no entanto, achou grande demais a soma. Seria preciso fazer um número muito grande de pacotes separados, e os mesmos, pelo simples número, poderiam chamar a atenção.

O dinheiro teria de ser transportado, na saída do hotel. Como?

Naturalmente, não podia ser na maleta que trouxera do apartamento do Duque e Duquesa. Antes do mais, ela precisava ser destruída, e Keycase tratou de providenciar sôbre isso.

A maleta era de couro bom, e muito bem-feita. Com algum trabalho, Keycase a desmontou e depois, com lâminas de barbear, cortou-a em pedacinhos. O trabalho era lento e monótono, e de vez em quando Keycase lançava um punhado de fragmentos no vaso sanitário, dando descargas espaçadas, de modo a não atrair a atenção dos quartos vizinhos.

Precisou de duas horas ou mais, para terminar o trabalho.

Ao final, tudo quanto restava da maleta eram suas partes de metal, que Keycase pôs no bôlso. Saindo do quarto, deu uma volta pelo corredor do oitavo andar.

Perto dos elevadores havia caixas de areia. Fazendo uma valeta numa delas, com os dedos, empurrou os pedaços de metal bem para o fundo. Poderiam descobri-las mais tarde, mas levaria algum tempo.

A essa altura, faltava uma ou duas horas para amanhecer e o hotel estava em silêncio. Keycase voltou ao quarto, onde arrumou seus pertences, a não ser as poucas coisas de que precisaria, logo depois da saída. Usou as duas malas que trouxera na manhã de têrça-feira, e na maior delas enfiou os quinze mil dólares, envoltos em diversas camisas sujas.

Depois disso, ainda estonteado e incrédulo, Keycase dormiu.

Preparara o despertador para as 10 da manhã, mas porque não ouvisse o sinal, ou porque o mesmo não funcionou, acordou às 11h30, quando o sol lhe invadia totalmente o quarto.

O sono teve um efeito: Keycase finalmente se convenceu de que os acontecimentos da noite anterior eram reais, e não ilusão. Um momento de derrota abjeta se tornara, como pela mágica de uma varinha de condão, um triunfo resplandecente que o enchia de ânimo.

Fêz a barba e se vestiu ràpidamente, e depois terminou a arrumação das malas e as fechou. Resolveu que as deixaria no quarto, enquanto descia para pagar a conta do hotel e fazer um reconhecimento pela portaria.

Antes disso, livrou-se das demais chaves ainda em seu poder, dos quartos 449, 641, 803, 1062e do Apartamento Presidencial. Enquanto se barbeava, notara uma chapa de inspeção hidráulica na parte baixa da parede do banheiro, e desaparafusando sua tampa êle deixou cair as chaves. Uma a uma ouviu-as bater no fundo, lá embaixo.

Reteve sua própria chave, a do 830, para entrega quando deixasse o hotel. A partida de "Byron Meader", prestes a deixar o Hotel St. Gregory, devia ser normal em todos os aspectos.

A portaria se mostrava moderadamente ativa, sem qualquer sinal de movimento incomum. Keycase pagou sua conta e recebeu o sorriso amável da môça na caixa, que Lhe perguntou:

- O quarto já está vago, Sr?

- Estará em poucos minutos - respondeu êle, retribuindo o sorriso. - Só preciso ir buscar minha bagagem, e pronto!

Satisfeito, voltou ao oitavo andar e no 830 deu uma última espiada ao redor. Não deixara coisa alguma, nem um fragmento de papel, ou qualquer objeto como carteira de fósforo, que servisse de pista para sua identidade verdadeira. Com toalha molhada, limpou os lugares que poderiam ter ficado marcados com suas impressões digitais. Em seguida, apanhando as duas malas, saiu do quarto.

O relógio marcava dez minutos depois do meio-dia. Segurava com fôrça a mala maior, e à idéia de que ia passar pela portaria e sair do hotel seu pulso se acelerou e as mãos começaram a suar.

Diante dos elevadores, apertou o botão de chamada, e enquanto esperava ouviu que um dêles descia, parava no andar de cima, descia novamente e parava de nôvo. Diante de Keycase, a porta do elevador número quatro se abriu.

Bem à frente dos outros passageiros estava o Duque de Croydon.

Num instante de pavor, Keycase sentiu o desejo de dar meia-volta e sair correndo, mas dominou-se. Naquela mesma fração de segundo, o bom-senso lhe disse que o encontro era acidental, e olhares rápidos confirmaram isso. O Duque não estava em companhia da Duquesa, e nem sequer reparara em Keycase. A julgar por sua expressão, tinha os pensamentos em outro lugar bem distante.

O ascensorista, um homem idoso, anunciou:

- Desce!

Ao lado do ascensorista estava o chefe da portaria, que Keycase reconheceu por tê-lo visto antes; e que fêz, com a cabeça, um sinal para as duas malas:

- Quer que as leve, Sr.

Keycase recusou, com um gesto, e ao entrar no elevador o Duque de Croydon e uma bela môça loura se afastaram para trás, para dar lugar.

As portas se fecharam. O ascensorista, Lewin, empurrou a alavanca de manobra para "descer", e ao fazê-lo, com um ruído de metal dilacerado, o elevador caiu, inteiramente descontrolado.

Refletindo, Peter McDermott achou que devia narrar pessoalmente a Warren Trent o que acontecera, com relação ao Duque e à Duquesa de Croydon.

Encontrou o proprietário do hotel em seu escritório na sobreloja, de onde já se haviam retirado os demais participantes da reunião. Aloysius Royce estava com seu patrão, ajudando a reunir os objetos pessoais em caixas de papelão.

- Achei melhor tratar disso - disse Warren Trent a Peter. - Não vou mais precisar dêste escritório. Suponho que passará a ser seu.

Falara sem rancor, a despeito da altercação de meia hora antes. Aloysius Royce continuou trabalhando, enquanto os dois conversavam. Warren Trent ouviu, com atenção, a descrição de acontecimentos, desde a partida abrupta de Peter, no cemitério de St. Louis, na tarde da véspera, até o encerramento, com as chamadas telefônicas feitas poucos minutos antes, para a Duquesa de Croydon e a polícia de Nova Orleans.

- Se os Croydons fizeram o que diz - manifestou-se Warren Trent -, não tenho a menor pena dêles. Você tratou bem do caso. Pelo menos, vamos estar livres daqueles malditos cachorros!

- Acho que Ogilvie está bem envolvido no caso. O velho assentiu, comentando:

- Desta vez, êle se excedeu. Vai arcar com as consequências, sejam quais forem, e para o hotel êle não existe mais.

Warren Trent fêz uma pausa, como se estivesse pensando no que ia dizer e finalmente murmurou:

- Deve ter querido saber por que tenho sido tão tolerante com Ogilvie.

- É verdade - respondeu Peter.

- Era sobrinho de minha espôsa. Não me orgulho disso, e lhe garanto que minha espôsa e Ogilvie nada tinham em comum. Há muitos anos ela me pediu que lhe desse um emprêgo aqui, e eu concordei. Depois disso, quando ela se preocupou por causa dêle, certa vez, prometi que nunca o despediria. Na verdade, nunca faltei a essa promessa.

Como poderia, pensou Warren Trent, explicar que embora tal ligação com Hester fôsse precária e tênue, era a única que lhe restava?

- Sinto muito - disse Peter. - Eu não sabia...

- Que fui casado? - atalhou o velho, sorrindo. – São poucos os que sabem disso. Minha espôsa veio para êste hotel comigo. Éramos ambos jovens. Ela morreu pouco tempo depois. Parece ter sido há muito tempo...

Isso o fazia lembrar da solidão que suportara ao correr dus anos, e da solidão ainda maior que se aproximava.

- Se há alguma coisa que eu possa... - começou a dizer Peter.

Sem qualquer aviso, a porta que dava para o escritório externo se abriu, com violência. Christine entrou, tropeçando.

Viera correndo e perdera um sapato. Estava sem fôlego, o cabelo em desalinho, e pronunciou as palavras com dificuldades:

- Houve... um acidente horrível! Um dos elevadores.

Eu estava na portaria... horrível! Há gente prêsa... estão gritando.

Na porta, já correndo, Peter Mcdermott a afastou para o lado. Aloysius Royce vinha bem atrás dêle.

Três coisas deveriam ter salvo o elevador número quatro do desastre. Uma, era o regulador de velocidade excessiva, instalado no carro, ajustado para desengatar quando a velocidade do veículo ultrapassasse determinado limite de segurança. No número quatro - embora o defeito não tivesse sido observado - êsse regulador funcionava com atraso.

Um segundo dispositivo compreendia quatro grampos de segurança. Logo após o regulador se desengatar, os mesmos deviam ter-se prendido aos trilhos de guia, detendo o carro. Na verdade, dois dêsses grampos se prenderam, num dos lados, mas no outro - devido à reação retardada do reguladoros grampos falharam.

Ainda assim, o acionamento imediato de um contrôle de emergência dentro do carro poderia ter evitado a tragédia. Era um botão vermelho, cujo objetivo, ao ser apertado, era o de cortar toda a energia elétrica, paralisando o elevador. Nos modelos modernos, o botão de emergência era colocado em ponto alto do painel de contrôle, e bem à vista. Nos elevadores do St. Gregory, como em muitos outros, estava colocado embaixo, a Cy Lewin estendeu o braço, procurando desajeitadamente alcançá-lo, mas o encontrou com atraso de um segundo.

Quando um jôgo de grampos pegou nos trilhos de guia e os outros não o fizeram, o carro se torceu e vergou. Com estrondo de metal que se rompe e torce, impelido por seu próprio pêso e velocidade, e mais a carga pesada que trazia no interior, o carro se abriu. Rebites saltaram, painéis se romperam, fôlhas de metal se separaram. A um dos lados - abaixo do outro porque o chão estava agora bastante inclinado - abriu-se um buraco de perto de um metro de largura, entre o chão e a parede. Gritando, agarrando desesperadamente uns aos outros, os passageiros escorregaram em sua direção.

Cy Lewin, o ascensorista idoso e que estava mais próximo, foi o primeiro a cair pelo chão. Seu grito único e prolongado, enquanto tombava da altura de nove andares, foi interrompido quando seu corpo bateu no concreto ao fundo do poço. Um casal também idoso, vindo de Salt Lake City, tombou em seguida, agarrando-se mùtuamente. Como Cy Lewin, morreram quando seus corpos bateram no chão. O Duque de Croydon caiu desajeitadamente, batendo numa barra de ferro ao lado do poço, que o atravessou. A barra se partiu, e êle continuou caindo. Já estava morto antes de atingir o fundo.

De algum modo, os demais passageiros se agarraram, e enquanto o faziam os outros dois grampos de segurança cederam, mandando o carro já destroçado pelo resto do poço a baixo. Em meio à queda, um jovem dentista caiu pelo buraco no chão do elevador, sacudindo os braços. Sobreviveria ao acidente, para morrer três dias depois, devido a ferimentos internos.

Herbie Chandler teve mais sorte. Caiu quando o carro estava no final da queda, e rolando para o poço ao lado recebeu ferimentos na cabeça, dos quais se recuperaria, e teve vértebras partidas e fraturadas, que o tornariam paraplégico, incapaz de andar pelo resto da vida.

No chão do elevador estava uma mulher de meia-idade, de Nova Orleans, com uma tíbia fraturada e maxilar partido. Quando o carro bateu no fundo, Dodo foi a última a cair. Quebrou um braço e bateu com a cabeça, violentamente, num trilho de guia. Ficou ali, inconsciente, bem perto da morte enquanto o sangue jorrava aos borbotões de um grande ferimento na cabeça.

Três outros passageiros - um convencional da Gold Crown Cola, sua espôsa e Keycase Miln - escaparam milagrosamente ilesos.

Por baixo do elevador destroçado, Billyboi Noble, o trabalhador da manutenção, que minutos antes, entrara no poço, estava com pernas e bacia esmagadas, consciente, sangrando e gritando.

Correndo com uma velocidade que nunca mostrara no hotel, Peter Mcdermott desceu as escadas da sôbre- loja.

A portaria, quando lá chegou, era um pandemônio. Gritos vinham pelas portas do elevador e de diversas mulheres por perto. A gritaria era confusa. Diante de uma multidão fervilhante, um pálido assistente da gerência e um boy tentavam abrir as portas metálicas que davam para o poço do elevador número quatro. Caixas, recepcionistas e escriturários saíam dos balcões e das mesas. Os restaurantes e bares estavam-se esvaziando na portaria, com garçons e encarregados do bar acompanhando os fregueses. No restaurante principal, a música do almôço parara e os músicos se juntaram aos espectadores. Aparecia uma fila de empregados da cozinha, vindos por uma porta de serviço, e uma série de perguntas acolheu Peter quando êle chegou.

Tão alto quanto êle pôde, gritou acima da balbúrdia:

- Silêncio!

Houve uma pausa momentânea na gritaria, e êle gritou novamente:

- Por favor, afastem-se! Vamos fazer tudo o que pudermos.

A um recepcionista que o olhava, perguntou:

- Já chamaram o Corpo de Bombeiros?

- Não tenho certeza, Sr. Pensei que.

- Vá fazer isso agora! - atalhou Peter, que logo se dirigiu a outro ordenando: - Chame a polícia. Diga que precisamos de ambulâncias, médicos, gente para controlar o povo.

Os dois homens desapareceram correndo. Um outro, alto e magro, trajado de paletó de xadrez e calças militares, se aproximou de Peter.

- Sou oficial-fuzileiro. Diga o que quer que eu faça.

- O centro da portaria deve ficar vazio - respondeu Peter, grato pela ajuda. - Use o pessoal do hotel para formar uma barreira e não deixar outros passarem. Mantenha o caminho aberto até a entrada principal. Abra as portas giratórias.

- Certo!

O homem alto se afastou, dando ordens em tom autoritário. Como se acolhessem a direção, outros obedeceram e logo uma fila de garçons, cozinheiros, recepcionistas, carregadores e músicos, alguns hóspedes, se estendia pela portaria até a porta que dava para a avenida St. Charles.

Aloysius Royce se juntara ao assistente da gerência e carregador que tentavam abrir as portas do poço do elevador, e se voltou para Peter, chamando-o.

- Não vamos conseguir abrir sem ferramentas. Temos de entrar por outra parte.

Um trabalhador da manutenção, de macacão, entrou correndo pela portaria e chamou Peter:

- Precisamos de ajuda no fundo do poço. Há um homem prêso debaixo do carro. Não podemos tirá-lo, nem chegar aos passageiros.

- Vamos para lá! - bradou Peter, saindo em corrida para a escada de serviço, seguido de Aloysius Royce.

Um túnel revestido de tijolos cinzentos, e mal iluminado, dava para o poço do elevador, onde os gritos que tinham ouvido lá de cima eram novamente audíveis, mas agora mais de perto e em tom mais confrangedor. A porta do elevador, destroçada, estava bem à frente, mas o caminho até ela se mostrava fechado por barras de metal torcido, do próprio carro e das instalações

em que batera ao cair. À sua frente, trabalhadores da manutenção lutavam por abrir caminho, usando alavancas, enquanto outros, sem poderem fazer coisa alguma, estavam por trás. Brados, gritos confusos e o ruído das máquinas funcionando por perto se combinavam com os gemidos constantes vindos do interior do carro.

- Tragam mais luzes para cá! - gritou Peter aos homens que não estavam ocupados, e diversos dêles se afastaram correndo pelo túnel.

- Volte para a portaria - ordenou Peter ao homem de macacão que o fôra chamar. - Fique lá para mostrar o caminho aos bombeiros.

- E mande um médico, agora! - gritou Aloysius Royce, ajoelhado perto dos destroços.

- Sim - endossou Peter -, leve alguém para lhe mostrar o caminho. Mande anunciar pelos auto-falantes e telefones. Há diversos médicos hospedados aqui.

O homem voltou correndo. Outras pessoas chegavam ao corredor, começando a bloqueá-lo, e o mecânico- chefe, DocVickery, abriu passagem usando os ombros.

- Meu Deus! - exclamou, olhando o que via à frente.

- Meu Deus!. Eu bem que avisei! Eu bem que disse que se não gastássemos dinheiro, uma coisa assim poderia...

Segurou Peter pelo braço. - Você ouviu o que eu disse, rapaz. Você me ouviu dizer muitas vêzes.

- Depois, chefe - respondeu Peter, desprendendo-se de seu braço. - O que pode fazer para tirar essa gente daí de dentro?

O maquinista-chefe balançou a cabeça em desespêro.

- Vamos precisar de equipamento pesado, macacos, ferramentas de corte.

Era evidente que o homem não estava em condições de dirigir os trabalhos e Peter lhe disse:

- Verifique os outros elevadores. Mande parar tudo, se fôr preciso. Não se arrisque a uma repetição.

O homem assentiu e afastou-se de cabeça baixa, alquebrado.

Peter agarrou, pelo ombro, um maquinista de cabelos grisalhos, que conhecia, e lhe disse:

- O seu trabalho é manter êste lugar desembaraçado de gente. Quem não estiver fazendo alguma coisa deve sair daqui.

O maquinista começou a dar ordens, os outros se afastaram e o túnel ficou desimpedido. Peter voltou ao poço do elevador. Aloysius Royce, ajoelhando-se e rastejando, conseguira enfiar-se por baixo dos destroços e estava segurando os ombros do trabalhador da manutenção, que gritava de dor. Naquela luz fraca, percebia-se que um monte de destroços estava sôbre suas pernas e parte inferior do abdome.

- Billyboi - dizia Royce, com voz ansiosa, -, você vai escapar, eu lhe prometo. Vamos tirar você daí.

A resposta foi outro grito de dor. Peter segurou a mão do homem.

- Ele tem razão. Estamos aqui, agora. Já vem gente para ajudar.

Distante, lá em cima, podia ouvir o gemido das sereias.

A chamada telefônica feita pelo recepcionista alcançou o Centro de Contrôle de Incêndios na sede da administração municipal. Ainda não terminara de dar sua mensagem, e já dois toques agudos - alarma geral - soavam em tôdas as unidades de bombeiros na cidade. No rádio, uma voz calma se fêz ouvir em seguida.

- Alarme geral zero-zero-oito, Hotel St. Gregory, Carondelet e Common.

Automàticamente, quatro unidades responderam - a Central, em Decatur, Tulane, South Rampart e Dumaine. Em três das quatro, os bombeiros fora da escala de serviço estavam almoçando. Na Central, a refeição estava quase pronta, e se constituía de almôndegas e espaguete. Um dos bombeiros, que servia de cozinheiro naquele dia, suspirou enquanto apagava o fogão de gás e se juntava à correria geral. Justamente naquela hora tinham de dar um alarma no centro da cidade!

Os uniformes e botas de cano alto estavam nos carros, e os bombeiros iam descalçando os sapatos e embarcando nos veículos enquanto os mesmos eram postos em funcionamento. Em menos de um minuto, desde que tinham soado os toques duplos, quatro companhias de bombeiros, dois caminhões de escadas, um carro-tanque, emergência, unidades de busca e salvamento, um subchefe e dois chefes distritais estavam a caminho do St. Gregory, com os motoristas abrindo caminho em meio ao tráfego intenso do meio-dia.

Um alarma mobilizava todos os recursos, de acôrdo com os regulamentos.

Em outras estações de bombeiros, dezesseis outras companhias e dois carros de escadas ficavam em estado de alerta, para o caso de serem chamados.

No Departamento de Queixas da polícia, instalado nos Tribunais de Justiça Criminal, o aviso foi recebido por dois meios - do Centro de Contrôle de Incêndios e diretamente do hotel.

Sob o letreiro onde se lia Seja paciente com quem chama, duas atendentes no centro de comunicações escreveram a mensagem em formulários, e momentos depois os passavam a um despachante de rádio, que emitiu o aviso: "Tôdas as ambulâncias, da polícia e do Hospital de Caridade, para o Hotel St. Gregory."

Três andares abaixo da portaria, no túnel que dava para o poço de elevador, continuavam o ruído, as ordens apressadas, os gemidos e os gritos, mas já se ouviam passadas rápidas e enérgicas. Um homem trajando terno listrado chegava, apressado. Era jovem, e trazia uma maleta de médico.

- Doutor! - chamou Peter, com urgência na voz. Por aqui!

Agachando-se, rastejando, o recém- chegado se juntou a Peter e Aloysius Royce. Atrás dêles, estavam chegando outras luzes, instaladas às pressas. Billyboi Noble gritou outra vez, com o rosto se voltando para o médico, os olhos suplicantes, as feições torcidas em agonia.

- Oh, Deus! Oh, Deus! Por favor, dê- me alguma coisa. O doutor acenou, mexendo em sua maleta, de onde tirou uma seringa. Peter ergueu a manga do macacão de Billyboi, segurando o braço do rapaz, e o doutor espetou ràpidamente a agulha. Em segundos, a morfina entrava em cena e Billyboi deixou a cabeça tombar para o lado, fechando os olhos.

O médico pusera um estetoscópio no peito do rapaz.

- Não trouxe muita coisa comigo - explicou. - Vim da rua. Vão poder tirá-lo ràpidamente?

- Assim que chegar ajuda. Não tarda.

Mais passos em corrida, desta vez pesados e numerosos. Bombeiros com capacetes começavam a chegar, trazendo lanternas possantes, equipamento pesado - machados, macacos ferramentas de cortar metal, pés-de-cabra alavancas. Falavam pouco, em palavras curtas e claras, dando ordens em tom ríspido.

- Aqui! Um macaco aqui debaixo. Vamos tirar isso daí! De cima, veio o barulho de machados em funcionamento - metal que cedia, um jôrro de luz quando as portas do poço se abriram na portaria. Um grito:

- Escadas! Precisámos de escadas aqui! Escadas compridas desciam pelo poço. Houve a ordem

dada pelo jovem médico:

- Preciso tirar êsse homem daí!

Dois bombeiros, lutando para colocar o macaco, que ao levantar retiraria o pêso de cima de Billyboi. Os bombeiros pelejavam, gemiam, manobravam para conseguir o vão onde

instalar o macaco, mas êste era grande demais, por questão de polegadas.

- Precisamos de um macaco menor! Arranjem um macaco menor, para começar, e depois vamos pôr o maior!

O pedido, repetido num transmissor portátil: - Tragam o macaco pequeno, do caminhão de salvamento!

A voz do médico outra vez, insistente:

- Preciso tirar êsse homem daí!

A voz de Peter:

- Aquela barra! A de cima! Se a levantarmos, levantará a de baixo e dará espaço para o macaco.

Um bombeiro, aconselhando:

- Vinte toneladas lá em cima. Mexa em alguma coisa e pode cair tudo. Quando começarmos, vamos devagar.

- Vamos tentar! - exclamou Aloysius Royce. Royce e Peter, ombro a ombro, de costas para a barra mais alta, braços entrelaçados. Fôrça para cima! Nada. Mais

fôrça! Mais ainda! Mais fôrça! Pulmões estourando, sangue congestionado, sentidos falhando. A barra se mexe, mas pouco. Mais fôrça! Faça o impossível! A consciência se esvai, a visão diminui, fica só um nevoeiro vermelho. Fazendo fôrça. Movendo. Um grito:

- O macaco entrou!

Terminou o esforço. Descer. Sair dali. O macaco funcionando, suspendendo. Os destroços subindo.

- Já podemos tirar o rapaz!

A voz do médico, falando baixinho:

- Não há mais pressa. Está morto.

Os mortos e feridos foram retirados pela escada, um por um. A portaria se tornou ponto de parada, com auxílio imediato para os que ainda viviam, lugar de exame final para os mortos. Os móveis tinham sido afastados e a área central se enchera de macas. Atrás da barreira formada pelos empregados do hotel, os espectadores - agora silenciosos - se comprimiam, mulheres choravam e alguns homens voltavam o rosto para outro lado. Na frente do hotel, uma fila de ambulâncias aguardava. A avenida St. Charles e a Carondelet, entre as ruas do Canal e Gravier, estavam fechadas ao tráfego. Multidões se aglomeravam por trás das barreiras estabelecidas pela polícia, em ambas as extremidades. Uma por uma, as ambulâncias partiam em alta velocidade. A primeira levou Herbie Chandler, e a segunda o dentista que morreria poucos dias depois; momentos após, seguia a mulher de Nova Orleans, com ferimentos na perna e no queixo. Outras ambulâncias partiam, dirigindo-se em velocidade menor ao necrotério da cidade. Dentro do hotel, um capitão da polícia inquiria testemunhas, procurando saber os nomes das vítimas.

Dos feridos, Dodo foi a última a ser retirada do elevador. Um médico que descera até lá aplicara um tampão no enorme ferimento da cabeça, e tala plástica num dos braços. Keycase Milne, desprezando os oferecimentos de ajuda para si próprio, ficara com Dodo, segurando-a, guiando quem chegava. Foi o último a sair, pois o convencional da Gold Crow Cola e sua espôsa saíram antes dêle. Um bombeiro recolhia as malas, de Dodo e Keycase, passando-as para a portaria, onde um policial uniformizado as recebia e guardava.

Peter McDermott regressara à portaria quando Dodo foi retirada. Ela estava pálida e imóvel, tendo o corpo ensanguentado e o tampão já rubro. Quando a depuseram na maca, dois médicos. a trataram por instantes. Um dêles era jovem interno o outro mais idoso, e o primeiro balançava a cabeça em sinal de tristeza.

Por trás da barreira, formou-se um tumulto, com os gritos de um homem em manga de camisa e agitado, que queria passar. Peter olhou, e fêz sinal ao oficial de fuzileiros. A barreira se abriu e Curtis O'Keefe veio correndo. Com expressão de aflição, andou ao lado da maca. Quando Peter o viu pela última vez, estava na calçada lá fora, suplicando que o deixassem embarcar na ambulância. O interno concordou, as portas se fecharam e, com a sirena tocando bem alto, a ambulância se afastou ràpidamente.

Abalado pelo choque e sem acreditar que tivesse escapado ileso, Keycase subiu a escada no poço de elevador. Atrás dêle vinha um bombeiro, e lá de cima estenderam mãos para ajudá-lo, braços lhe deram apoio quando pisou no chão da portaria.

Verificou que podia estar de pé e andar, sem precisar de auxílio. Os seus sentidos voltavam ao normal, e mais uma vez seu cérebro estava alerta. Havia uniformes por tôda a parte, e isso o assustava. As duas malas! Se a maior tivesse estourado!. Mas não! Estavam com diversas outras, ali bem perto, e Kyecase se dirigiu a elas. Atrás dêle, alguém lhe falou:

- Há uma ambulância esperando, Sr. Keycase se voltou, vendo que era um policial jovem.

- Não vai ser preciso.

- Todos devem ir, Sr. É para exame, em seu próprio bem.

- Preciso de minhas malas - protestou Keycase.

- Poderá apanhar depois, Sr. Elas serão bem guardadas.

- Não! Agora!

Outra voz interveio:

- Deus! Se êle quer as malas, deixe que as leve! Quem passou por uma coisa assim tem o direito.

O policial carregou as malas de Keycase, acompanhando-o até a porta da avenida St. Charles, onde Lhe disse:

- Se quiser esperar aqui, Sr. verei qual é a ambulância.

Pôs as malas no chão e se afastou, e Keycase as recolheu, e misturou-se à multidão. Ninguém o observou, quando se afastou do lugar.

Continuou andando, sem pressa, para o ponto externo de estacionamento onde deixara seu carro, na véspera, depois da pilhagem vitoriosa da casa em Lakeview. Sentia tranqilidade e confiança. Nada mais poderia lhe acontecer, depois daquilo tudo.

A faixa de estacionamento estava cheia de carros, mas Keycase localizou o seu sedan Ford graças à sua chapa branca e verde, de Michigan, que se destacava das demais. Lembrou- se de que na segunda-feira se preocupara, achando que aquelas placas poderiam chamar a atenção, mas era óbvio que não havia motivo para isso.

O automóvel estava como o deixara, e o motor pegou no primeiro toque do arranque. Do centro da cidade, Keycase dirigiu cuidadosamente até o motel na estrada Chef Menteur, onde escondera seus roubos anteriores. Eram coisas de pequeno valor, comparadas aos gloriosos quinze mil dólares em dinheiro, mas ainda assim valiam alguma coisa.

No motel, Keycase encostou o carro no quarto que alugara, e levou para dentro as duas malas trazidas do St. Gregory. Fechou as cortinas da janela, antes de abrir a mala maior, a fim de se certificar de que o dinheiro ainda estava lá.

Guardara boa parte de seus objetos de uso pessoal no motel, e agora refez suas diversas malas, para alojá- los. Ao final, verificou que restavam os dois casacos de peles e a tigela e salva de prata que roubara na casa de Lakevew. Não havia lugar para guardá-las, nas malas, a não ser que fizesse outra arrumação.

Keycase sabia que o devia fazer, mas naqueles últimos minutos percebera a chegada de um cansaço esmagador, possivelmente a reação dos acontecimentos e tensões do dia. Além disso, já se tinha passado muito tempo e era importante sair de Nova Orleans tão depressa quanto possível. Os casacos e objetos de prata, resolveu então, estariam perfeitamente a salvo, desembrulhados, na mala do Ford.

Verificando bem, para ver se não estava sendo observado, levou as malas para o carro, pondo os casacos e objetos de prata ao lado delas.

Apresentou-se à administração do motel, para liquidar sua conta, que pagou na oportunidade, e ao se afastar no Ford pareceu-lhe que parte do cansaço já se desfizera.

Seu destino era Detroit, e pretendia fazer a viagem em etapas fáceis, parando quando lhe desse vontade: Durante o caminho, pensaria sèriamente em seu futuro. Durante alguns anos, Keycase prometera a si próprio que, se um dia, conseguisse uma boa soma de dinheiro, utilizaria a mesma para comprar uma pequena garagem. Nela, e abandonando sua vida incerta de crime, êle se estabeleceria para trabalhar honestamente pelo resto da vida. Tinha a habilitação para isso, e o Ford que dirigia o provava. E quinze mil dólares era bastante dinheiro para começar. A questão era: seria aquela a ocasião?

Já estava debatendo consigo próprio a idéia, enquanto se dirigia ao norte de Nova Orleans, rumando para a Estrada Pontchartrain e o caminho da liberdade.

Havia motivos lógicos a favor de se estabelecer e parar de roubar. Não era mais jovem, e os riscos e tensões o cansavam. Daquela vez fôra novamente tocado, em Nova Orleans, pela mão paralisante do mêdo.

No entanto. os acontecimentos das últimas 36 horas lhe haviam infundido confiança nova, um nôvo élan. O bem sucedido roubo da casa, a dinheirama apanhada no apartamento dos Croydons, sua sobrevivência no desastre do elevador, coisa ocorrida apenas uma hora antes, tudo isso pareciam sintomas de invencibilidade. Combinados, certamente os mesmos constituíam um presságio indicando o rumo a tomar.

Afinal de contas, pensou Keycase, talvez devesse continuar mais algum tempo na vida de até então. A garagem poderia vir depois. Na verdade, havia bastante tempo para isso.

Passara da Estrada Chef Menteur para o bulevar Gentilly, dando a volta ao Parque Municipal, passando por lagoas e carvalhos antigos e frondosos. Na avenida do Parque Municipal, aproximava-se da estrada Metarie. Era ali que os mais novos cemitérios de Nova Orleans, Greenwood, Metarie, St. Patrick, dos Bombeiros, do Hospital da Caridade, Cypress Grove, estendiam um mar de túmulos até onde a vista alcançava. Bem acima das sepulturas via-se a Estrada Pontchartrain, e Keycase já a divisava, agora, uma cidadela no céu, um abrigo a lhe acenar. Dentro de minutos chegaria lá.

Aproximando-se do entroncamento da rua do Canal e avenida do Parque Municipal, último ponto preparatório antes da rampa da estrada intermunicipal, Keycase notou que o sinal luminoso do cruzamento estava defeituoso, e um policial dirigia o tráfego, de pé no meio da estrada, no lado da rua do Canal.

A poucos metros do cruzamento, percebeu que um pneu se esvaziara.

O patrulheiro Nicholas Clancy, da polícia de Nova Orleans, fôra certa vez acusado, por seu sargento enfurecido, de ser "o guarda mais burro da corporação, sem exceções".

A acusação tinha seus motivos. A despeito de muitos anos de serviço, que o tinham tornado um veterano, Clancy nem uma só vez fôra promovido, ou sequer entrara nas listas de policiais que merecessem promoção. A sua fôlha de serviço era pobre. Fizera poucas prisões, e nenhuma delas importante. Se Clancy perseguisse um carro em fuga, era certo que o mesmo escaparia. Certa vez, em meio a uma confusão, tinham dito a Clancy para algemar um suspeito que outro guarda capturara. Clancy ainda estava pelejando para tirar as algemas da correia, quando o suspeito já fugira e estava bem distante. Em outra ocasião, um bandido muito procurado, e que se tornara reli gioso, se entregara a Clancy, em plena rua da cidade. O bandido lhe dera sua arma, que Clancy deixou cair. A arma disparou, assustando o bandido, que mudou de idéia e tratou de fugir. Passou-se mais um ano, e seis outros assaltos, até que fôsse recapturado.

Apenas uma coisa, no correr dos anos, impedira a demissão de Clancy: sua natureza extremamente boa, a quem ninguém podia resistir, e mais uma cara de palhaço triste, quando reconhecia as suas próprias deficiências.

Em certos momentos, Clancy desejara conseguir alguma coisa, realizar qualquer façanha, ainda que única, porém digna de nota, quando mais não fôsse para contrabalançar sua fôlha de serviços, ou pelo menos torná-la menos unilateral. Até então, fracassara redondamente nesse intuito.

Apenas uma coisa em seu trabalho não lhe causava qualquer sombra de dificuldades - a direção do tráfego. Ele gostava disso. Se de algum modo lhe fôsse dado regressar na história e impedir que inventassem o sinal automático de tráfego, Clancy o teria feito com enorme satisfação.

Dez minutos antes, ao perceber que o sinal luminoso no cruzamento da rua do Canal e avenida do Parque Municipal entrara em pane, enviara a informação pelo rádio, estacionara sua motocicleta e se encarregara de dirigir o movimento de veículos, esperando que a turma de consêrto do sinal demorasse bastante a chegar.

No lado oposto da avenida, viu o sedan Ford, de côr cinzenta, reduzir a marcha e parar. Sem se apressar, Clancy rumou para lá.

Ke case estava sentado, imóvel, como estivera desde que estacionara o carro. Clancy examinou a roda defeituosa, que arriara sôbre o pneu vazio.

- Pneu furado?

Keycase assentiu. Se Clancy fôsse mais observador, teria notado que os nós dos dedos, nas mãos que seguravam o volant, estavam brancos. Keycase, numa auto-recriminação amarga; lembrava-se do único fator esquecido; em seus planos meticulosos. O estepe, bem como o macaco para erguer o carro e efetuar a troca, estavam na mala do carro, e para apanhá-los teria de abri-la, revelando os casacos de pele, a tigela e salva de prata e as malas de viagem.

Ficou esperando; suando, e o policial não deu qualquer sinal de que se ia afastar.

- Acho que vai ter de trocar a roda, hem? Keycase assentiu novamente, calculando. Podia fazer depressa a troca, no máximo em três minutos. Macaco! Chave de porca! Girar as porcas! Roda para fora! Sobressalente no lugar! Apertar! Atirar roda, macaco e chave no assento de trás! Fechar a mala do carro! E poderia se afastar, pela estrada intermunicipal. Se o guarda fôsse embora.

Atrás do Ford, outros veículos diminuíam a marcha e alguns tinham parado antes de entrar na pista do centro. Um dêles saiu apressado demais, e atrás se ouviu o ruído característico de pneus se esfregando no pavimento, e logo depois uma buzina em protesto. O guarda se inclinou à frente, pondo o braço na porta ao lado de Keycase.

- Fica movimentado, isso por aqui.

- Sim - respondeu Keycase, engolindo em sêco. O guarda endireitou o corpo, e abriu a porta para Keycase.

- É melhor começar a agir.

Keycase tirou as chaves da ignição. Devagar, saltou para o pavimento, e forçou um sorriso.

- Pode deixar, Sr. guarda. Eu trato disso.

Esperou, sem respirar, enquanto o guarda examinava o cruzamento com o olhar, dizendo-Lhe depois, bonachão:

- Vou-lhe dar uma mãozinha.

Um impulso se apoderou de Keycase, no sentido de abandonar o carro e sair correndo. Resistiu, achando ser inútil. Resignadamente, inseriu a chave e abriu a mala do carro.

Em pouco menos de um minuto, já instalara o macaco, afrouxara as porcas e estava suspendendo o pára- choque trazeiro - As malas de viagem, casacos de pele e objetos de prata estavam amontoados a um canto da mala do carro. Enquanto trabalhava, Keycase podia ver o guarda contemplando aquela coleção, e por incrível que fôsse, não dissera coisa alguma até então.

O que Keycase não podia saber era que o raciocínio de Clancy levava tempo para apreender as coisas. O guarda se inclinou, apalpando um dos casacos.

- Está meio quente para usar isso.

A temperatura da cidade estivera bem elevada naqueles dez dias.

- Minha espôsa. sente frio, às vêzes.

As porcas já tinham saído, e a roda antiga estava sôlta. Com um só movimento, Keycase abriu a porta trazeira do carro e jogou-a lá dentro. O guarda inclinou o pescoço, olhando pela tampa da mala do carro, examinando o interior do veículo.

- A patroazinha não está em sua companhia, hem?

- Eu. Eu vou apanhá-la daqui a pouco.

As mãos de Keycase lutavam frenèticamente para soltar a roda sobressalente. A porca de retenção estava dura, e êle quebrou uma unha e ralou os dedos no esfôrço. Ignorando a dor, levantou-a da mala.

- Parece engraçado, essa coisada tôda!

Keycase ficou paralisado. O destino lhe dera uma oportunidade e êle a desprezara. Não fazia diferença que sua decisão fôra apenas no espírito. O destino tinha sido bondoso, mas êle desdenhara sua bondade e agora, com raiva, o destino lhe voltava as costas.

O terror se apoderou dêle ao lembrar o que, poucos minutos antes, esquecera tão depressa - o preço terrível de mais uma condenação; a prisão longa, que talvez durasse o resto de sua vida. A liberdade nunca Lhe parecera tão preciosa. A estrada intermunicipal, tão próxima, parecia estar no outro lado do mundo.

Keycase finalmente compreendia o que tinham querido dizer os presságios da véspera e daquela manhã. Tinham-lhe oferecido libertação, uma oportunidade de vida nova e decente, uma fuga para o amanhã. Se êle tivesse compreendido antes!

Ao invés disso, lera erradamente os augúrios. Com arrogância e vaidade, interpretara a bondade do destino como sendo sua própria invencibilidade. Tomara aquela decisão, e o resultado era êsse. Agora, era tarde demais.

Era, mesmo? Seria qualquer momento tardio demais, pelo menos para a esperança? Keycase fechou os olhos.

Com vigor profundo que, se lhe dessem a oportunidade, êle levaria avante, prometeu que se escapasse àquêle momento, por qualquer fímbria de sorte, nunca mais em sua vida faria qualquer coisa desonesta.

Abriu os olhos. O guarda estava andando para outro veículo, cujo motorista parara a fim de lhe pedir informações.

Com movimentos mais rápidos do que êle próprio acreditava possível, Keycase enfiou a roda de reserva, recolocou as porcas e soltou o macaco, que atirou na mala. Mesmo numa ocasião daquelas, como devia fazer um bom mecânico, deu mais um aperto nas porcas quando a roda já estava no chão. Já arrumara a mala do carro, quando o guarda voltou.

Clancy fêz gesto de aprovação, tendo esquecido seus pensamentos anteriores.

- Tudo pronto, hem?

Keycase fechou a mala do carro, com um safanão. Pela primeira vez o patrulheiro Clancy viu a placa de Michigan.

Michigan. Verde sôbre branco. Nas profundezas do cérebro de Clancy, a memória se agitou. Fôra hoje, ontem ou antes de ontem? O comandante do pelotão, estando todos em forma, lera os últimos boletins em voz alta. Alguma coisa a respeito de verde e branco...

Clancy desejava se lembrar. Havia tantos boletins, pessoas desaparecidas, foragidos, automóveis, roubos. Todos os dias os rapazes inteligentes e animados da corporação escreviam ràpidamente em seus caderninhos, tomando nota, lembrando-se, registrando as informações. Clancy tentava fazer o mesmo, sempre. Mas era inevitável que a voz áspera do tenente, sua lentidão no escrever, o deixassem logo bem para trás. Verde e branco. Ele desejava se lembrar.

Apontou para a placa.

- Michigan, hem?

Keycase assentiu, e ficou esperando, incapacitado de qualquer movimento. O espírito humano só aguentava as coisas até certo ponto.

- Water Wanderland - disse Clancy, lendo em voz alta a legenda na placa. - Dizem que há pescarias muito boas por lá.

- Sim. há.

- Gostaria de ir lá um dia. Também sou pescador. Atrás dêles, soou uma buzina impaciente. Clancy segurava a porta do carro, mantendo-a aberta. De repente, pareceu lembrar-se de que era um policial.

- Vamos desimpedir esta pista.

Verde e branco. O pensamento sôlto ainda o incomodava.

O motor foi ligado. Keycase saiu em frente, e Clancy o observou se afastando. Com precisão, nem depressa nem devagar demais, sua decisão bem firme, Keycase dirigiu o carro para a rampa da estrada intermunicipal.

Verde e branco. Clancy balançou a cabeça, como quem desiste de alguma coisa, e voltou a dirigir o tráfego. Não fôra à toa que o haviam chamado de guarda mais burro da corporação, sem exceções.

Da avenida Tulane a ambulância azul- celeste e branco, da polícia, com sua luz azul bem visível, a acender e apagar, tomou a entrada de emergência do Hospital de Caridade e se deteve. Abriram ràpidamente as portas, e a maca onde vinha Dodo foi erguida. Depois, com a velocidade conferida pela prática, foi empurrada por atendentes, entrando pela porta onde se lia: ENTRADA DE PACIENTES BRANCOS.

Curtis O'Keefe vinha em seguida, quase correndo para acompanhar a maca, e um atendente à frente avisou em voz alta:

- Emergência! Abram caminho!

Um grupo de pessoas, que se comprimiam na portaria, recuou para deixar passar o pequeno cortejo, acompanhando a marcha com olhos cheios de curiosidade, a maioria fita no rosto de Dodo, branco como cêra.

Portas de vaivém, com o letreiro SALA DE ACIDENTES, foram abertas para dar entrada à maca. Lá dentro estavam enfermeiras, médicos, atividade, outras macas, e um atendente barrou o caminho de O'Keefe.

- Espere aí, por favor.

- Eu quero saber. - protestou O'Keefe. Uma enfermeira que entrava parou por instantes, e lhe disse:

- Tudo o que é possível será feito. Um médico falará com o Sr. assim que puder - acrescentou, entrando na sala, e as portas de vaivém se fecharam.

Curtis O'Keefe ficou ali, olhando aquelas portas, com olhos marejados e o coração em desespêro. Menos de meia hora antes, depois da despedida de Dodo, êle andara de um para outro lado da sala no apartamento, com pensamentos confusos que o perturbavam. O impulso lhe dizia ter saído de sua vida alguma coisa que talvez nunca mais encontrasse, enquanto a lógica zombava dêle. Outras, antes de Dodo, tinham vindo e ido, e êle sobrevivera à sua partida. A noção de que fôsse diferente, daquela vez, era absurda.

Ainda assim, sentira a tentação de acompanhar Dodo, talvez para protelar por algumas horas a sua separação, e naquele lapso de tempo avaliar novamente os seus sentimentos. A razão ganhara, e êle permanecera onde estava.

Poucos minutos depois, ouvira as sirenes. De início, não se preocupara, mas depois, percebendo que seu número aumentava e pareciam convergir para o hotel, fôra até a janela do apartamento. A atividade lá embaixo o fizera resolver-se a descer, como estava - em mangas de camisa.

À frente dos elevadores no décimo-segundo andar, enquanto esperava que um dêles parasse, ouvira ruídos inquietantes, partidos lá de baixo. Depois de quase cinco minutos, quando deixara de aparecer qualquer elevador e os hóspedes se aglomeravam diante das suas portas, O'Keefe resolvera descer pelas escadas e já nos andares de baixo, quando os ruídos se tinham tornado mais claros, usara seu treino de atleta para aumentar a velocidade.

Na portaria, fôra informado por espectadores agitados dos fatos essenciais do que ocorrera. Nessa oportunidade, orara com intensidade, desejando que Dodo houvesse deixado o hotel antes do acidente. Momentos depois, êle a via sendo carregada, inconsciente, saindo do poço do elevador.

O vestido amarelo que êle admirara, os cabelos, os braços e as pernas estava tudo ensanguentado. Em seu rosto O'Keefe notara a palidez da morte.

Naquele momento, em percepção ofuscante e candente, Curtis O'Keefe descobrira a verdade a que fugira tanto tempo. Ele a amava, terna, ardentemente, com sentimento além da percepção humana. Tarde demais, descobrira que ao deixar Dodo partir cometera o maior êrro de sua vida.

Refletia agora sôbre isso, amargamente, vigiando as portas de vaivém da sala de acidentes. Elas se abriram por um instante, quando saiu uma enfermeira. Ao tentar falar, ela sacudiu a cabeça em negativa e prosseguiu apressadamente em seu caminho.

O'Keefe sentia-se desamparado, inútil. Era tão pouco o que podia fazer! Mas o que pudesse, êle o faria.

Voltando-se, saiu andando pelo hospital. Nas portarias e corredores movimentados, atravessou os grupos abrindo caminho com o peito, seguindo letreiros e setas que o levavam a seu objetivo. Abriu portas onde se lia PARTICULAR, sem dar atenção às secretárias que protestavam pela invasão, e só parou diante da mesa do diretor.

O diretor se ergueu raivosamente da cadeira, mas quando Curtis O'Keefe se identificou a ira diminuiu.

Quinze minutos depois, o diretor saía da sala de acidentes, na companhia de um homem franzino, e de fala mansa, que apresentou como sendo o Dr. Beauclaire. O médico e O'Keefe apertaram-se as mãos.

- Estou sabendo que é amigo da môça, a Srta. Lash.

- Como está ela, doutor?

- Está muito mal. Fizemos tudo o que é possível, mas devo lhe dizer que há grande possibilidade de que ela não sobreviva.

O'Keefe ficou em silêncio, abatido, e o médico prosseguiu:

- Tem um ferimento muito sério na cabeça, que superficialmente parece ser uma fratura do crânio, com afundamento. Há a possibilidade de que fragmentos ósseos tenham chegado ao cérebro. Vamos saber melhor depois do raios X.

- A paciente está sendo reanimada antes. - explicou o Diretor.

O doutor assentiu, acrescentando:

- Estamos fazendo uma transfusão. Ela perdeu muito sangue. E já começou o tratamento do choque.

- Quanto tempo.

- O trabalho de reanimação levará, pelo menos, mais uma hora. Depois, se o raios confirmar o diagnóstico, será necessário operar imediatamente. O Sr. é parente dela em Nova Orleans?

O'Keefe negou, com movimento da cabeça.

- Na verdade, isso não faz diferença. Neste tipo de emergência, a lei nos permite prosseguir sem permissão de parentes.

- Posso vê-la?

- Mais tarde, talvez. Agora, não.

- Doutor, se houver alguma coisa de que precise, uma questão de dinheiro, ajuda profissional.

O diretor interrompeu-o, falando calmamente:

- Este hospital é gratuito, Sr. O'Keefe. Destina-se a indigentes e casos de emergência. Ainda assim, há serviços que o dinheiro não poderia comprar. Há duas faculdades médicas bem ao lado, e seu pessoal está aqui trabalhando. Devo informar-lhe que o Dr. Beauclaire é um dos principais neurocirurgiões do país.

- Desculpe - disse O'Keefe, humildemente.

- Talvez haja uma coisa - disse o médico. O'Keefe ergueu a cabeça.

- A paciente está inconsciente agora, e sob sedativo. Antes, houve momentos de lucidez, e num dêles perguntou pela mãe dela. Se fôr possível trazê-la aqui.

- É possível - respondeu O'Keefe, sem o deixar terminar.

Era um alívio haver alguma coisa que êle pudesse fazer. De um telefone público no corredor, Curtis O'Keefe fêz chamada a cobrar, destinada a Akron, no Ohio. Era para o O'Keefe-Cuyahoga Hotel, cujo gerente, Harrison, estava em seu escritório. O'Keefe deu-Lhe instruções:

- Seja lá o que esteja fazendo, largue tudo. Não faça coisa alguma até ter completado, com a maior rapidez, o que vou Lhe dizer.

- Sim, Sr. - respondeu Harrison, com voz alerta.

- Entre em contato com a Sra. Irene Lash, da rua Exchange, aí em Akron. Eu não sei qual é o número da casa.

Lembrava-se agora do nome da rua, graças ao dia em que êle e Dodo haviam mandado a cesta de frutas. Fôra na têrçafeira? Ouviu que Harrison chamava alguém de seu escritório:

- Uma lista telefônica, depressa!

O'Keefe prosseguiu:

- Vá pessoalmente ver a Sra. Lash. Diga-Lhe que sua filha, Dorothy, ficou ferida em acidente e poderá morrer. Quero que tragam a Sra. Lash a Nova Orleans, pelo meio mais rápido possível. Fretem um avião, se fôr preciso. Não há limite para as despesas.

- Um momento, Sr. O'Keefe! - respondeu o outro, dando ordens sucintas para quem o ajudava. - Chamem a Eastern Air Lines, departamento comercial em Cleveland, em outro telefone. Depois disso, quero uma limusine com bom motorista, na porta da rua do Mercado!

A voz voltou à linha, mais forte:

- Pode continuar, Sr. O'Keefe.

Assim que as providências estivessem tomadas, ordenou O'Keefe, deveriam avisá-lo, no Hospital de Caridade de Nova Orleans.

Desligou o aparelho, confiante em que suas instruções seriam levadas a cabo. Harrison era bom empregado, talvez merecedor de hotel mais importante.

Noventa minutos depois, o raios confirmava o diagnóstico do Dr. Beauclaire. Já estavam aprontando uma sala de operações no décimo-segundo andar, e a neurocirurgia, se chegasse ao fim, levaria diversas horas.

Antes de levarem Dodo para a sala de operações, permitiram que O'Keefe a visse por alguns instantes. Estava pálida e inconsciente, e em sua imaginação êle achou que tôda sua doçura e vitalidade tinham-se evaporado.

Haviam fechado as portas da Sala de Operações.

A mãe de Dodo estava a caminho, avisara Harrison. McDermott, do Hotel St. Gregory, a quem O'Keefe telefonara minutos antes, estava providenciando para que esperassem a Sra. Lash no aeroporto e a levassem diretamente ao hospital.

No momento, nada havia a fazer, senão esperar.

Em ocasião anterior O'Keefe declinara do convite feito para que fôsse descansar no escritório do diretor do hospital.

Resolvera esperar no décimo-segundo andar por mais que demorasse a operação.

Repentinamente, sentiu o desejo de rezar.

Uma porta próxima tinha o letreiro SENHORAS DE COR. Ao lado, havia outra, marcada DEPóSITO DA SALA DE CON VALESCENTES, e pelo vidro podia- se ver que estava escuro lá dentro. O'Keefe abriu a porta e entrou, tateando e passando por uma tenda de oxigênio e um pulmão de aço. Na semiescuridão, encontrou espaço vazio, onde se ajoelhou. O chão era muito mais duro do que o tapête a que estava acostumado, mas isso não tinha importância. Juntou as mãos, em súplica, e abaixou a cabeça.

Estranho como fôsse, pela primeira vez em muitos anos, não conseguia achar palavras para exprimir o que tinha no coração.

O anoitecer, como sedativo do dia que se encerrava, chegava à cidade. Logo viria a noite, pensou Peter McDermott, e viria o sono também, trazendo um pouco de esquecimento durante algum tempo. No dia seguinte, a proximidade dos acontecimentos daquele dia começaria a diminuir. O anoitecer já marcava o comêço do processo do tempo que, ao final, cura todos os males.

No entanto, passar-se-iam muitas tardes, noites e dias, até que os personagens mais ligados àqueles acontecimentos se sentissem livres de um sentimento de tragédia e terror. As águas do esquecimento ainda estavam distantes.

A atividade, embora não fôsse libertadora, ajudaria um pouco o espírito.

Desde o início da tarde, muita coisa acontecera. Sòzinho, em seu escritório, Peter passava em revista o que fôra feito e o que restava por fazer.

O processo sombrio e triste de identificar os mortos e informar a seus parentes fôra completado. Quando o hotel devia ajudar nos funerais, as providências tinham sido tomadas. O pouco que se podia fazer pelos feridos, além dos cuidados médicos, fôra oferecido:

As turmas de emergência, da polícia e bombeiros, já tinham partido, e em seu lugar estava inspetores de elevadores examinando todas as peças dêsse equipamento que o hotel possuía. Iam trabalhar tôda a noite, varando o dia seguinte. Enquanto isso, o serviço dos elevadores fôra parcialmente restaurado.

Investigadores das companhias de seguros, homens tristes que anteviam pedidos de grandes indenizações a pagar, faziam interrogatórios, recolhiam declarações.

Na segunda-feira, uma equipe de consultores voaria para Nova York a fim de começar o planejamento da substituição de todo o maquinismo de transporte de passageiros, instalando equipamento novo. Seria a maior despesa inicial do regíme

Albert Wells-Dempster-Mcdermott.

O pedido de demissão do mecânico-chefe estava na mesa de Peter, que o pretendia aceitar. O mecânico-chefe, Doc Vickery, deveria ser honrosamente aposentado, com uma pensão de acôrdo com os longos anos de serviços prestados ao hotel.

Peter ia providenciar para que fôsse bem tratado.

  1. Hèbrand, o chef de cuisine, receberia a mesma consideração, mas sua aposentadoria deveria ser ràpidamente providenciada, e André Lemieux promovido a seu lugar. De André Lemieux, com suas idéias de criar restaurantes especializados, bares íntimos, reformar todo o sistema de aprovisionamento do hotel, dependeria grande parte do futuro do St. Gregory. Um hotel não vivia apenas do aluguel de quartos. Poderia ter os quartos cheios todos os dias, e ainda assim ir à falência.

Os serviços especiais, como as convenções, restaurantes, bares eram onde estava o filão principal de lucros.

Deviam haver outras nomeações, uma reorganização dos departamentos, uma nova definição de responsabilidades. Como vice-presidente administrativo, Peter estaria envolvido na orientação, durante a maior parte do tempo. Precisaria de um subgerente geral, para supervisionar o funcionamento diário do hotel. Quem fôsse nomeado para o cargo deveria ser jovem eficiente, disciplinador onde necessário, mas capaz de se entender com outras pessoas mais idosas do que êle próprio. Um diplomado da Escola de Administração de Hotéis poderia servir. Na segunda-feira, resolveu Peter, telefonaria ao Diretor Robert Beck, de Cornell. ODiretor mantinha contato com muitos de seus melhores ex-alunos e talvez conhecesse alguém em tais condições, que estivesse disponível no momento.

A despeito da tragédia ocorrida naquele dia, era preciso pensar com antecipação.

Havia o seu próprio futuro com Christíne, e o pensamento sôbre isso se mostrava inspirador e estimulante. Nada fôra estabelecido entre êles, ainda, mas Peter sabia que o seria. Christine partira para seu apartamento em Gentilly, e êle logo iria ter com ela.

Outras questões ainda pendentes, e menos agradáveis, permaneciam de pé. Uma hora antes o Capitão Yolles, da polícia de Nova Orleans, aparecera no escritório de Peter. Viera de uma entrevista com a Duquesa de Croydon.

- Quando se está com ela - dissera o Capitão -, fica-se imaginando o que pode existir sob todo aquêle gêlo. uma mulher? Será que sente o modo pelo qual o marido morreu? Eu vi o corpo dêle. Santo Deus! Ninguém merecia uma morte assim. Aliás, ela o viu também. Poucas mulheres poderiam ter feito isso, mas nela não surgiu uma única falha. Nada de calor, ou de lágrimas, só a cabeça bem alto, naquele jeito que ela tem, e o olhar altivo que lança aos outros. Na verdade, como homem, eu me sinto atraído por ela. Tem-se a impressão de que vale a pena descobrir o que realmente ela é...

O detetive se interrompera, pensando.

Mais tarde, em resposta às perguntas de Peter, Yolles dissera:

- Sim, vamos acusá-la com cúmplices, será prêsa depois do funeral do marido. O que vem depois, se o júri a condenará caso a defesa afirme que foi o marido quem cometeu o crime, e está morto. Bem, isso resta a ver.

Ogilvie já fôra indiciado, dissera o policial.

- Está indiciado como cúmplice. Mais tarde poderemos apresentar outras acusações. O promotor é quem vai decidir. De qualquer modo, se pretende guardar o lugar dêle, não conte com seu regresso em menos de cinco anos.

- Não vamos contar com isso - respondeu Peter. A reorganização do quadro de detetives do hotel tinha prioridade em sua lista de coisas a fazer. Quando o Capitão Yolles se retirara, o escritório voltara ao silêncio, e já começava a noite. Depois de algum tempo, Peter ouviu que abriam e fechavam a porta da frente, e batiam de leve à sua porta.

- Entre!

Era Aloysius Royce. Ojovem negro trazia, numa bandeja uma garrafa de martini e um únicu copo, e a depositou na mesa.

- Achei que talvez quisesse.

- Obrigado - respondeu Peter -, mas nunca bebo sòzinho.

- Imaginei que ia dizer isso - disse Royce, tirando outro copo do bolso.

Bebêram em silêncio. Os acontecimentos pelos quais tinham passado estavam ainda próximos demais para frivolidades ou brindes. Peter perguntou:

- Encaminhou a Sra. Lash?

Royce assentiu, aduzindo:

- Levei-a diretamente ao hospital. Tivemos de entrar por portas separadas, mas nos encontramos lá dentro e a encaminhei ao Sr. O'Keefe.

- Muito obrigado.

Depois da chamada telefônica que Curtis O'Keefe lhe fizera, Peter precisara ter, no aeroporto, alguém em quem pudesse confiar, e por isso pedira a Royce que fôsse.

- Tinham acabado de operar quando chegamos ao hospital. A não ser que surjam complicações, a jovem... Srta.

Lash... escapará.

- Fico satisfeito.

- O Sr. O'Keefe me disse que êles vão casar-se, assim que ela tenha melhorado. A mãe dela pareceu gostar da idéia.

- Todas as mães gostam - respondeu Peter, com sorriso fugaz.

Seguiu-se um silêncio, e depois Royce se manifestou:

- Eu soube da reunião esta manhã, da posição que você tomou, do resultado que obteve.

Peter assentiu, acrescentando:

- O hotel não fará mais discriminação racial. A partir de agora.

- Deve esperar algum agradecimento meu... por nos dar aquilo a que temos direito.

- Não espero isso - retorquiu Peter -, e você está sendo muito melindroso outra vez. No entanto, gostaria de saber se pode ficar com W. T. Sei que êle gostaria disso, e você teria inteira liberdade. Há trabalho jurídico no hotel, e eu poderia dar-lhe parte désse trabalho.

- Tenho de Lhe agradecer a oferta - disse Royce - mas a resposta é negativa. Já falei com o Sr. Trent esta tarde. Vou sair, logo após a diplomação.

Encheu novamente os copos de martini, e prosseguiu:

- Estamos numa guerra, você e eu, em lados opostos. Ela não terminará em nosso tempo. O que posso fazer, com o que aprendi sôbre a lei, pretendo fazer por meu povo. Há muita luta à nossa frente, tanto legal quanto de outros tipos. Nem sempre será justo, tanto de nosso lado quanto do seu. Mas quando formos injustos, intolerantes e pouco razoáveis, lembre-se! Aprendemos com vocês. Haverá dificuldades para

nós todos. Você terá o seu quinhão delas; aqui. Suprimiu a discriminação, mas isso não basta. Surgirão problemas, com gente que não gostará do que fêz, com negros que não se comportarão educadamente, que lhe causarão embaraços porque são como são. O que vai fazer com o fanfarrão negro, com o engraçadinho negro, com o negro meio bêbado e metido a conquistador? Nós também os temos. Quando é gente branca que faz isso, vocês engolem em sêco, tentam sorrir e na maioria das vêzes desculpam o que fazem. Quando forem negros, o que vai fazer?

- Poderá não ser fácil - respondeu Peter. - Tentarei ser objetivo.

- Você tentará, mas outros, não. Ainda assim, é dêsse modo que a guerra prosseguirá. Só existe uma coisa boa.

- Qual?

- De vez em quando haverá tréguas - respondeu Royce, recolhendo a bandeja com a garrafa e copos vazios - Acho que essa foi uma delas.

Já anoitecera.

Dentro do hotel, o ciclo de outro dia de hospedagem completara o seu curso. Aquêle dia fôra diferente da maioria, mas por baixo de acontecimentos sem precedentes a rotina conti nuava. Reservas, recepção, administração, rouparia, arrumação, maquinismos, garagem, cofres, cozinha. tudo se combinara numa única função, a de acolher o viajante, sustentá-lo, proporcionar-lhe descanso e mandá-lo na continuação de sua jornada.

O ciclo logo recomeçaria.

Cansado, Peter McDermott se preparou para sair. Apagou as luzes do escritório, e do conjunto administrativo se dirigiu até a sobreloja. Perto da escadaria que dava para a portaria, olhou-se num espelho. Pela primeira vez, compreendeu que o terno estava amarrotado e sujo. Ficara assim debaixo dos destroços do elevador, onde morrera Billyboi.

Tanto quanto pôde, alisou o paletó com a mão. Um leve raspar o fêz enfiar a mão no bolso onde seus dedos encontraram um papelzinho dobrado. Tirando-o, êle se lembrou. Era o bilhete que Christine lhe entregara quando saíra da reunião aquela manhã, a reunião onde apostara tôda sua carreira num princípio, e ganhara.

Esquecera o bilhete até aquêle momento, e o abriu com curiosidade. Lá estava escrito: Será um ótimo hotel, porQue se parecerá com o homem que o vai dirigir.

Na parte inferior, Christine escrevera também: P. S. Eu te amo.

Sorrindo e alargando o passo, êle desceu as escadas até a portaria de seu hotel.

 

                                                                                Arthur Hailey  

 

                      

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