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AMOR À SEGUNDA VISTA / Tami Hoag
AMOR À SEGUNDA VISTA / Tami Hoag

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

 

Lynn Shaw conhece muito bem a rebeldia da adolescência, assim como o estrago que ela pode causar. Lynn não conseguiu poupar a si mesma desse transtorno, mas como psicóloga e orientadora, está determinada a ajudar as moças da Horizon House, meninas que precisam de amor, não de publicidade. Porém, quando os vizinhos locais protestam com brutal hostilidade contra a instalação do abrigo num imóvel do bairro, eles atraem a atenção do senador do Estado, um homem que parece um galã de cinema, e que Lynn acredita estar interessado apenas em se auto-promover como político.

Erik Gunther deseja ajudar Lynn, embora ela não acredite nisso nem por um segundo. Nem mesmo quando a atração entre ambos se torna inegável. Mas, pelo bem das meninas, Lynn decide abrir mão de suas defesas. Se bem que é mais fácil dizer do que fazer, quando uma verdadeira batalha de demônios do passado eclode em seu íntimo. Uma batalha que a levará a acreditar que o amor pode surgir quando menos se espera...

 

 

 

 

Precisamos de um cavaleiro em armadura bri­lhante, montado num cavalo branco, para nos salvar.

Lilian Johnson olhou para a casa enorme, preocupada. Estava parada na frente de seu Volvo, com os ombros posi­cionados como se fossem receber um golpe, a brisa vesper­tina de verão brincando com as pontas de seus cabelos gri­salhos curtos. Vestindo uma blusa de gola arredondada e uma saia pregueada, ela parecia uma bibliotecária prestes a ser atacada por uma multidão de fanáticos destruidores de livros.

A calçada da frente da casa estava abarrotada de pes­soas zangadas, vizinhos que não se sentiam inclinados a uma recepção calorosa às novas moradoras do quarteirão. Muitos erguiam cartazes, onde se lia: Fora, delinqüentes! Fugitivas, voltem para casa! Cidadãos Unidos em Prol dos Bairros de Família!

Uma equipe de reportagem da televisão local filmava a movimentação.

Lynn Shaw franziu o cenho quando a brisa agitou seus longos cabelos pretos sobre o rosto.

Ela os afastou com a mão, enquanto os olhos verdes focalizavam a multidão.

— Não existem mais benfeitores, como os antigos ca­valeiros que defendiam as damas em perigo. — Ela se in­clinou sobre o porta-malas de seu antigo automóvel Buick e emergiu com uma caixa contendo utensílios de cozinha nos braços. — Além do mais, eu ficaria furiosa se tivesse de esperar um homem para me salvar.

Deixando a amiga para trás, ela se dirigiu a casa com passos determinados. Afinal, era uma psicóloga, uma orien­tadora, sabia como lidar com as pessoas e acalmá-las, des­de que não se descontrolasse. Naturalmente, sempre havia algum risco de que se irritasse também.

A mudança da Horizon House deveria ter sido simples. Fora necessário apenas contratar um carreto, embalar al­gumas caixas e mudar o endereço do material de escritó­rio com o logotipo da empresa. A instituição permanecera no antigo endereço por três anos, sem nenhum incidente. Lynn duvidava de que a maioria dos cidadãos da cidade de Rochester, no Estado de Minnesota, soubesse que ela existia, até o prédio que abrigava as moradoras da Horizon House ter sido escolhido para demolição, com o objetivo de dar lugar a um novo hotel. E as funcionárias poderiam ter se mudado para aquela casa inócua, e os vizinhos teriam seguido suas vidas tranqüilamente, não fosse por aquele homem pomposo, antipático e mal-informado.

— Não queremos vocês aqui!

Ele se materializou na frente de Lynn, como se os pen­samentos dela o tivessem invocado.

Elliot Graham. Um homem de altura e constituição física medianas, e cabelos castanhos penteados com esmero. O rosto era comum, sem nenhuma característica marcante, com exceção dos olhos, que se assemelhavam aos de um fanático. Parecia julgar-se importante e superior, de calça cinza, camisa branca e gravata bordo: a síntese do manifestante bem-vestido.

Lynn sentiu o aroma de loção pós-barba amadeirada e deduziu de imediato quem havia chamado a equipe de reportagem. Chegaram muito tarde para o noticiário das dezoito horas, mas Elliot apareceria bem-apessoado e en­gajado com a moda no das vinte e duas horas. Ela, por ou­tro lado, usava uma calça jeans desbotada e uma camiseta surrada com o logo da Universidade de Notre Dame.

Fechou os olhos por um breve instante após um lampejo de dor na têmpora direita. Quando os abriu de novo, um operador de câmera entrou em seu campo de visão, e um assistente levantou um refletor com luz branca e bri­lhante em uma longa estaca. Ela se esquivou quando o repórter se direcionou para ela com o microfone na mão.

— O que tem a dizer sobre o ressentimento da comuni­dade em relação à mudança?

— Não queremos esta instituição em nosso bairro! — Elliot Graham interveio enfático.

— A Igreja de Santo Estéfano foi gentil em doar a casa para ser utilizada pela Horizon House, Sr. Graham — Lynn respondeu, parando na frente dele e percebendo que seu controle sobre a situação diminuía à medida que a inten­sidade da dor de cabeça aumentava. — Temos intenção de nos mudar, com ou sem a sua permissão.

— É o que veremos!

A expressão de Graham era de satisfação e confian­ça. Ele devia ter um coringa debaixo da manga. Lynn se preparou mentalmente para algo desagradável. O filho adolescente de Graham, um promissor extremista de um partido político menos favorável a mudanças sociais, que se vestia de maneira semelhante ao pai, aproximou-se e entregou a ele uma pasta.

— O grupo Cidadãos Unidos em Prol dos Bairros de Família fez um abaixo-assinado contra a mudança da Horizon House para esta propriedade. Pretendo apresen­tá-lo ao padre Bartolomeu amanhã de manhã. Uma cópia também será enviada ao bispo de Winona. Temos mais de oitocentas assinaturas...

O restante do monólogo de Graham sobre qualidade de vida e padrões morais foi ignorado por Lynn, enquanto ela lutava para controlar a raiva. Cidadãos Unidos em Prol dos Bairros de Família.

Pessoas boas e tementes a Deus que apenas tentavam fazer o que era certo. Ela queria reclamar sobre a atitude deles, sacudi-los, mostrar que o que faziam não estava certo. Não tinham motivos para re­pudiar ou temer as moradoras da Horizon House. As me­ninas de Lynn não eram malfeitoras. Eram apenas jovens que precisavam de oportunidade, amor e compreensão.

Decerto elas não encontrariam aceitação naquela vizi­nhança, graças a Elliot Graham e seu grupo de vigilantes. Depois de todo o furor ocasionado pela mudança, Lynn du­vidava de que fossem bem recebidas em qualquer lugar de Rochester. E não havia nada que ela pudesse fazer a respeito. A voz da razão e da verdade era raramente ouvi­da em meio aos gritos de alarmistas. A sensação de impo­tência a dominou assim que as habilidades de orientadora psicológica a abandonaram.

— Fala muito bem sobre padrões morais, Sr. Graham, mas parece não saber nada referente à gentileza e caridade — ela argumentou com um brilho de lágrimas ofuscando a visão. — Sabe o que o senhor é? Um homem pretensioso, arrogante...

A equipe de reportagem mudou de direção inesperada­mente. Com a ausência da luz, a dor de Lynn diminuiu e deu lugar a um abençoado alívio. Ela quase desmaiou quando os músculos, antes rígidos, relaxaram, mas a in­dignação a manteve em pé. Devia ter terminado de dizer a Elliot Graham o que pensava a seu respeito, mas ele já havia se afastado.

Irritada, ela franziu o cenho. O sujeito nem ao me­nos tivera a decência de prestar atenção enquanto era repreendido!

Lynn virou-se para ver o que havia despertado o inte­resse de todos e foi logo atingida no rosto, mais uma vez, pelo brilho pulsante e devastador de antes. Então alguém se posicionou na frente da luz, um homem alto, vestido de branco, e uma espécie de auréola se formou sobre a cabeça dele. A cena lembrava o modo como Hollywood retrata­va as visões sagradas. Era como se o próprio Cristo ou o mítico benfeitor de Lilian, sir Galahad — um dos cava­leiros do lendário rei Arthur — tivesse vindo resgatá-las. Algo nada provável.

A equipe de reportagem mudou de direção, e naquele instante iluminava o rosto do recém-chegado. O coração de Lynn disparou.

Na verdade, tratava-se do senador Erik Gunther. O menino-prodígio dos democratas. Tinha trinta e três anos, e era um homem encantador e destinado à grandiosidade. Obviamente, estava ali para aparecer nas últimas notícias. O empenho de um político em uma causa era diretamen­te proporcional ao lucro que traria à sua imagem. Se ela tivesse sorte, o senador Gunther veria a Horizon House como uma questão digna de atenção, por tempo suficiente para que ela e as meninas pudessem se entrosar com a vi­zinhança e provar que Elliot Graham estava enganado.

O repórter se posicionou na frente de Gunther e lançou o microfone sob o nariz do político.

— Senador, pode nos contar como se envolveu na disputa entre a organização Cidadãos Unida em Prol dos Bairros de Família e a Horizon House?

Lynn viu Gunther dar o sorriso que lhe garantira una­nimidade em dez mil urnas. A energia que ele emanava a atingiu com um choque que quase a fez cair. Ele não estava a mais do que um metro de distância e a fitava diretamen­te nos olhos. Parecia assustado e demonstrava tanta compaixão que ela quase acreditou no que via. Impressionada, sentiu-se atraída por aquele homem; chegou a dar um passo na direção dele, sem nem mesmo dar-se conta disso. De repente, parou e se repreendeu em pensamento.

— Sempre me interesso por pessoas injustiçadas, que têm os direitos humanos básicos, como moradia, negados — ele respondeu em um tom de voz forte, que, de algum modo, o tornava mais parecido com um representante do povo do que com um brilhante orador treinado para aquele tipo de trabalho.

— Então está se posicionando contra os Cidadãos?

Outro sorriso. Esse; continha um ar de sentimentos feridos.

— Ninguém é mais a favor de bairros de família do que eu.

Uma bela demonstração de como ficar em cima do mu­ro, Lynn pensou.

— Mas entendo que, no mundo de hoje, quando um entre dois casamentos termina em divórcio, precisamos ampliar nosso conceito de família. Temos de olhar para nossas comunidades e nossos vizinhos como a extensão de nossas casas, em vez de excluí-los por puro preconceito.

Até mesmo Elliot Graham parecia impressionado com a eloqüência de Gunther. A bravata de superioridade moral de Graham murchou como um balão emperrado. Pareceu ter encolhido um pouco. Gunther havia roubado o brilho e o momento do outro no noticiário. Ele guardou a petição de volta na pasta e a devolveu ao filho. Graham Júnior lan­çou a Lynn um olhar petulante, como se Gunther tivesse aceitado o desafio por culpa dela.

Lynn ignorou o garoto e se deteve na multidão. Toda a tensão que a acometia diminuiu para menos da metade. Se forem as palavras do senador ou sua incrível presença que havia operado o milagre, ela não sabia, mas não im­portava. Ele conseguira o que ela, com todo o conhecimento em psicologia e aconselhamento; tinha falhado em fazer.

Lynn sentiu uma pontada de ressentimento em relação á Gunther. Aquele era um problema dela. Deveria ter sido ela a pronunciar as palavras comoventes. Em vez disso, fora colocada em evidência pelo menino-prodígio.

Erik Gunther se dirigiu a Lynn, tirou-lhe a caixa das mãos e a colocou sob um dos braços como se fosse uma bola de futebol. O refletor a atingiu no rosto de novo, e ela se es­quivou, apoiando-se no senador como se procurasse abrigo e conforto. Ele a afagou no ombro, conciliador.

— Precisamos cuidar da juventude de nossa nação — ele declarou. — Temos de ajudar aqueles que enfren­tam problemas, e não excluí-los. Esta menina precisa da nossa ajuda.

Lynn moveu a cabeça com rapidez. "Esta menina"? Ele pensava que ela era uma das moradoras da instituição! Assim que a surpresa momentânea a abandonou, ou­tro ataque de fúria irracional a atingiu. Ele achava que ela era uma adolescente que precisava de orientação!

Gunther encerrou seu discurso com a promessa de fazer tudo o que pudesse pela Horizon House. A imprensa agra­deceu-lhe a atenção e se retirou apressada, para editar a reportagem. A multidão de vizinhos começou a dispersar a maioria se dirigindo para suas casas, enquanto outros se reuniam no gramado para conversar, agora mais calmos.

Erik Gunther suspirou ao se afastar da pequena for­mosura de cabelos pretos, que ainda olhava para ele de queixo caído. Adolescentes...

Após devolver a caixa, esfregou o polegar sobre uma pequena mancha de sujeira na bochecha de Lynn.

— Sei que tinha boas intenções, querida, mas deve deixar o Sr. Graham aos cuidados dos diretores da casa.

Ela emitiu um som indistinto e continuou a olhá-lo, se­gurando a caixa com uma das mãos, enquanto com a outra esfregava acima do olho direito. A garota era uma coisinha bonita, talvez uma infratora de incríveis olhos verdes e um narizinho petulante. Balbuciou algo para ele, e Erik deu um passo cauteloso na direção dela.

Franzindo o cenho, ele estendeu a mão.

— Você está bem?

Talvez ela estivesse apreensiva, ele pensou com o co­ração disparado. A garota parecia estar tendo um ataque só de olhar para ele. Maravilhoso. Fazia tempo que não se sentia tão especial.

— Adolescentes... — ele resmungou, olhando, deses­perado, à procura de alguém que se parecesse com um supervisor.

Duas senhoras de cabelos grisalhos saíram da casa e correram para Lynn.

— Senhoras... — Gunther sorriu discreto, ao entregar a garota aos cuidados das duas mulheres.

Ele havia cumprido seu dever, assumira a batalha a fa­vor da Horizon House em público e tinha se transforma­do no assunto principal do noticiário das dez. Tudo o que queria naquele momento era sair dali, comer um bom bife e tomar uma cerveja gelada.

Lynn puxou o braço para se livrar da mão dele e acabou virando a caixa com a parafernália de cozinha de cabeça para baixo. Espátulas caíram na calçada, e uma coleção de xícaras para medida rolou pela grama. Erik a fitou, horrorizado.

— Eu não sou uma adolescente — ela disse, tentando se controlar. — Não sou uma das internas, sou orientado­ra da Horizon House.

Ele pareceu constrangido. Mesmo sob a luz fraca do crepúsculo, Lynn pôde ver que ele estava ruborizado.

— Oh... Minha nossa! — ele exclamou.

Erguendo as mãos como se estivesse se rendendo â um ladrão, lançou-lhe um sorriso repleto de arrependimento e encanto. Lynn se armou contra ele, mas uma parte dela baixou há guarda para o senador. O que apenas á deixou mais irritada. Ninguém tinha o direito de possuir tanto carisma.

— Desculpe. — Ele deu de ombros, parecendo desnor­teado ao observar as roupas que ela usava. — Você não combina com a imagem que eu faço de uma orientadora.

Lynn se esticou, lançando-lhe um olhar frio.

— Bem, estamos empatados então — a retrucou, ava­liando a camisa pólo branca que cobria os ombros largos do homem a sua frente até a calça de algodão caqui, que finalizava nos sapatos mocassim. — O senhor também não se parece nem um pouco com a imagem que eu faço de um senador.

Erik deu um largo sorriso. Ela era determinada e co­rajosa. Levando em consideração a delicada situação da Horizon House, ele esperava que a orientadora imploras­se sua ajuda. Erik ocupava uma posição que lhe conferia poder, e as pessoas que o cercavam costumavam adulá-lo.

Uma atitude, aliás, que não lhe agradava. Seu trabalho era servir as pessoas, e não o contrário.

Mas ele tinha a nítida impressão de que aquela moça não demonstrava respeito nem vontade de obedecer a ninguém.

— Você me pegou — disse ele. — Vim direto do campo de golfe.

Lynn sorriu de modo exagerado.

— Então o senhor teve um bom dia, senador? Algumas voltas no campo de golfe, drinques no clube e um pouco de publicidade. Que agradável!

— Lynn, controle-se — Martha Steinbeck ordenou com um olhar de advertência.

Martha era tão alta quanto encorpada. Tinha sessenta e cinco anos e uma aparência impressionante, usava ba­tom vermelho e os cabelos eram da cor de palha de aço.

— Não ligue para ela, senador Gunther — a senhora acrescentou, áspera. — Lynn teve uma experiência trau­mática com um político quando era criança. Isso a marcou.

— O que aconteceu? — ele perguntou com os olhos bri­lhando de divertimento. — Ela mordeu a mão dele e pro­vou o sangue?

Lynn tentou conter o sorriso, mas não conseguiu. Não queria gostar de Erik Gunther, no entanto ele a encanta­va. A maioria dos homens em sua posição teria se senti­do afrontado pela falta de humildade da conselheira. Mas não ele. Havia um inegável ar de desafio em seus olhos, atrás de todo o bom humor.

— Não — Lynn respondeu. — Mordi a mão dele e pro­vei... Outra coisa.

Erik riu.

— Tenho atuado na política há bastante tempo para saber que é totalmente possível. Eu mesmo sou um tipo honesto de primeira categoria.

— Isso, nós iremos comprovar em breve, não é mesmo?

Ele bateu de leve na própria cabeça.

— Touché, senhorita orientadora. Eu detestaria ficar contra você em um debate.

— Sinto muito, senador. Receio que meu temperamen­to ande meio agressivo nos últimos dias. — Ela estendeu a mão para ele, numa tentativa de se retratar. — Lynn Shaw, vinte e nove anos, bacharel em Psicologia pela Universidade de Minnesota. Quer conferir minha carteira de motorista?

— Pensei que diria Universidade de Notre Dame — ele falou, indicando a camiseta que ela vestia.

— Lembrança de uma vida passada.

Erik não tentou descobrir mais a respeito. As cortinas pareceram se fechar sobre os olhos verdes. De algum modo, ele conseguira atingir uma linha divisória. A Srta. Lynn Shaw era fascinante, ele pensou, observando a ausência de aliança na mão esquerda. Uma orientadora psicológica temperamental e com segredos estampados nos olhos.

Ao apertar a mão delicada, segurou-há um pouco mais que o normal, apenas para ver sua reação. Ela não gostou. Ele podia sentir a tensão. Ela queria se livrar de seus de­dos, mas o encarou e se manteve firme. Ele adicionou; "co­rajosa" e "teimosa" na lista de adjetivos que a descreviam.

— Muito prazer, Srta. Shaw — ele disse, soltando a mão dela.

— O prazer é meu, senador.

Lynn sentia-se desconfortável com o que via no olhar daquele homem. Ele tentava analisá-la e estava se saindo muito bem.

— Estas senhoras são as fundadoras e diretoras da Horizon House — ela informou, apontando as; chefes. — Martha Steinbeck e Lilian Johnson.

— Senhoras. — Ele inclinou a cabeça, polido.

— Receio que não tenha encontrado nenhuma de nós em nossos melhores dias — Martha disse. — Com exceção de Lilian. Ela está sempre mal-humorada. É a síndrome da viúva de médico.

Lilian observou á amiga, depois se virou para Erik.

— Em nome de todas nós, senador Gunther, eu quero agradecer por ter vindo nos ajudar.

— Vocês me elegeram para isso.

— Eu não — Lynn interveio com um sorriso atrevido. — Votei em Milner.

Erik arqueou a sobrancelha.

— Números.

Ele gostaria de perguntar a ela onde Mick Milner esta­va no momento em que ela precisara dele, mas a questão teve de ser adiada, pois Elliot Graham juntou-se ao grupo.

— Sinto que é justo preveni-lo, senador — Graham começou sério.

O filho estava á seu lado com os braços abarrotados de panfletos e as sobrancelhas franzidas.

O garoto devia ter uns dezesseis anos, era alto, magro e um tanto desajeitado.

— Como presidente da organização Cidadãos Unidos em Prol dos Bairros de Família — o Graham mais velho continuou, — tenho a intenção de dar prosseguimento a essas petições.

Erik enfiou as mãos nos bolsos e sorriu com benevolência.

— Faça o que achar correto, Sr. Graham.

— E fácil para o senhor vir até aqui e apoiar a institui­ção, senador — Graham opinou. — Este não é o seu bairro.

— Não faria diferença alguma se fosse.

Graham sorriu de leve.

— Já conheceu as moradoras da Horizon House, senador?

— Não, ainda não.

— Então, vá visitá-las. Depois me diga que não se im­portaria de ter pessoas do tipo delas morando do outro lado da rua em que sua família vive.

Lynn se irritou e saiu em defesa de suas meninas como uma tigresa com os filhotes.

— O que o senhor quer dizer com "do tipo delas"?

Graham virou-se para Lynn e a olhou com inegável desdém.

— Acho que sabe exatamente o que quero dizer, Srta. Shaw.

Ela deu um passo na direção de Graham, fitando-o nos olhos. Queria que ele expressasse o que pensava das meni­nas que haviam cometido erros na vida. Desejava ter uma justificativa para estapear aquele pretensioso na face. Mas não foi Elliot Graham quem cooperou. Foi o filho.

— Vadias.

A palavra foi emitida em um tom baixo e cheia de ódio, o que perturbou Lynn. As bochechas do jovem Graham coraram quando todos os olhares se voltaram para ele. O pai o observou furioso.

— Júnior! — ele gritou.

O garoto o olhou boquiaberto.

— Mas, pai...

— Vamos para casa — Graham ordenou em voz bai­xa, mas firme, já segurando o garoto por um dos braços e conduzindo-o rumo à calçada.

Um silêncio incômodo desceu sobre o grupo, enquanto observavam pai e filho se apressarem pela rua.

— Meu Deus — Lilian murmurou com desgosto.

Martha apenas balançou a cabeça.

Erik estava mais interessado em Lynn do que nos Graham. A crítica do rapaz a tinha aborrecido sobrema­neira, tornando-a pálida. Ela o disfarçou de forma admi­rável ao esfregar a testa, como um escudo para os olhos, depois fez um comentário áspero:

— Aposto que ele vai ter que fazer exercícios extras em seu caderno da Juventude de Hitler esta noite.

— Você está bem?

A cabeça de Lynn agora latejava.

— Sim — ela respondeu. — Não é nada.

Martha revirou os olhos.

— Como se acabar atingida por uma marreta não fosse nada.

— Estou bem — Lynn repetiu em um tom de voz que dava o assunto por encerrado.

Ela convivia com enxaquecas fazia vinte anos. Já conhe­cia o mecanismo. Aquela dor de cabeça ainda não decidira se ficaria ou não. Se ela conseguisse tomar algum remé­dio logo, ficaria bem. Caso contrário, ficaria imprestável por algumas horas. De todo modo, não se importava que Erik Gunther soubesse do seu problema. Afinal o senador estava ali por outros motivos.

— Mais uma vez, obrigada por ter vindo, senador — ela agradeceu, abaixando-se para recolher os utensílios.

Quanto mais o elogiassem, fizessem-no se sentir orgu­lhoso e permitisse que fizesse as promessas de praxe, mais rápido ele iria embora. E, quanto antes ele partis­se, mais rápido ela estaria a salvo daqueles olhos azuis que percebiam tudo.

— Qualquer tipo de ajuda que puder nos conceder será bem; vinda.

— Farei tudo o que estiver ao meu alcance — ele afirmou.

A seguir, ao se ajoelhar no pavimento rachado com a intenção de pegar uma colher, seus dedos roçaram-nos de Lynn. Ela o encarou com um ar indecifrável, que o dei­xou ainda mais intrigado.

Uma coisa era certa: ambos se sentiam atraídos um pelo outro.

Um sorriso discreto se espalhou pelo rosto de Gunther. Não vai se livrar de mim tão fácil, Srta. Shaw. Então ele levantou a colher e a bateu no peito.

— Vivo para servir.

Lynn esticou-se para pegar a colher e a agarrou quando ele ia estendê-la, agindo como uma aborígene que se aven­turava a se aproximar, mas não a ponto de ser tocada.

— Vou me lembrar disso.

— Talvez possamos discutir o assunto mais detalhada­mente... Durante o jantar?

Ela meneou a cabeça em negativa.

— Não acho que...

— Grande idéia, senador! — Martha exclamou, igno­rando o olhar mortal que Lynn lançou sobre ela. — Um filé Mongolian está a caminho. Podemos sentar e conversar.

— Talvez o senador não goste de filé Mongolian — Lynn falou com firmeza.

— O senador comeria uma bota velha com catchup agora mesmo. — Erik se levantou e estendeu a mão para Lynn. — E você, conselheira? Vai dividir os biscoitos da sorte comigo?

Ela arqueou as sobrancelhas.

— Tenho escolha?

— Quer realmente fazer sua escolha? — ele a desafiou com discrição.

Martha e Lilian já estavam a caminho de casa. Não ha­via testemunhas. Não que elas tivessem sido de alguma ajuda enquanto estiveram ali, Lynn refletiu. Pareciam alheias aos sentimentos ocultos, ao ritual sutil envolven­do o avanço do homem e o recuo da mulher.

Lynn observou Erik, o "cavaleiro montado num cavalo branco" que Lilian mencionara, e imaginou o quanto aque­la armadura estaria enferrujada debaixo da fachada lustrosa. Ele tinha uma ficha sem manchas, no entanto era muito precavida para se deixar influenciar. A política era um jogo que envolvia a negociação de favores. Que tipo de favores o senador Gunther esperava em troca de aju­dá-las? Não queria descobrir, mas a verdade era que ela precisava mais do auxílio dele do que de livrar-se de sua presença. O antigo adágio sobre a política fazer estranhas conexões passou pela mente de Lynn, porém ela ignorou tanto a imagem formada quanto a onda de calor inopor­tuna que veio junto com o provérbio.

Levantou-se, ignorando a mão estendida do senador, segurando os utensílios de cozinha junto ao peito.

— Acho que vou aproveitar minhas oportunidades, senador.

Ele sorriu de modo sábio e caloroso, como se tivesse a resposta para um dos maiores segredos da vida. Lynn sen­tiu o coração se agitar no peito quando ele acrescentou:

— Acho que ambos aproveitaremos Srta. Shaw.

— Onde estão as moradoras? — Erik indagou enquanto afastava o prato.

Não direcionou a pergunta a ninguém em especial, mas seu olhar focalizou Lynn.

Ambos se sentaram em lados opostos da mesa. Ela pe­gou uma pequena porção de arroz com o garfo, lutando contra o impulso de esfregar as têmporas. O comprimido que havia tomado mantinha a enxaqueca sob controle, mas a presença de Erik impedia que a dor desaparecesse por completo. A tensão sexual que pairava no ar parecia palpável para ela, contudo Lilian e Martha, sentadas lado a lado, mostravam-se alheias ao que acontecia.

— Está na outra casa — Martha respondeu, verificando o conteúdo de pequenas caixas brancas sobre a mesa.

Ela selecionou ervilhas e cogumelos, e os amontoou em seu prato. Erik arqueou as sobrancelhas, ainda fitan­do Lynn, como se esperasse que ela respondesse às suas perguntas.

— Sem supervisão? É prudente?

O comentário de Graham sobre "o tipo delas" ainda es­tava muito vivido na mente de Lynn para que não reagisse. Endireitando-se na cadeira, ela lhe lançou um olhar frio.

— A Horizon House é um lar, senador, não um reformatório. Não mantemos as meninas sob vigilância vinte e quatro horas por dia.

O olhar de Gunther continuou firme, caloroso, inqui­ridor, curioso, tentando encontrar um modo de desvendar o que havia sob a armadura da orientadora.

— Acho que, com toda a controvérsia que vocês vêm causando, seria prudente abrir uma exceção para essa re­gra. Por pura precaução, compreendem?

— Devemos nos proteger? — Lynn indagou com sarcasmo.

Ele deu um sorriso que indicava sabedoria.

— Imaginem o que poderia acontecer se alguns dos manifestantes de Graham decidissem montar um piquete do lado de fora da outra casa. Seria uma situação muito desagradável para as meninas e um pesadelo para a ima­gem da instituição.

— Bem, quem melhor que um político para saber o que é bom para a imagem pública?

— O senador Gunther tem razão, Lynn — interveio Lilian, com um tom de censura na voz. — É importante que as meninas saibam que confiamos nelas, mas a situa­ção está periclitante demais para que corramos riscos justamente agora.

O argumento era lógico e prático. Decerto a própria Lynn o teria apresentado se Erik não o tivesse feito primeiro. Ela simplesmente não gostava que ele se intro­metesse em seu território, tanto no aspecto físico quanto no psicológico. Estava cansada, frustrada, com dor de cabe­ça, e seu sistema de advertência feminino estava em alerta total. A combinação de tudo isso a deixava de mau humor.

Podia sentir o olhar de Erik sobre ela, procurando coisas que ela não queria revelar, e a reação instintiva de Lynn era fugir. Mas não podia fazer isso. Havia passado tempo sufi­ciente de sua vida fugindo, para saber que isso não resolvia nada. Além do mais, o olhar vigilante do senador a levava a compará-lo ao de um lobo. Tinha a inquietante sensação de que, se corresse, ele automaticamente a perseguiria.

— Lilian irá me levar de volta à outra casa — Martha disse com calma. — Vou passar a noite lá, enquanto Lynn cuida das coisas por aqui. Acho que as meninas ficarão bem até que eu termine meu chá.

Erik assentiu com a cabeça.

— É provável que esteja certa, Sra. Steinbeck. O pes­soal de Graham não parecia muito inflamado quando saiu daqui.

— Obrigada, senador. — Levantou a xícara para saudá-lo. — Pode me chamar de Martha.

— Tudo bem, Martha. — Erik meneou a cabeça, concor­dando. — Eu também gostaria que me chamasse pelo pri­meiro nome. Não gosto de ser cerimonioso com os amigos.

Lilian e Martha sorriram. Lynn o observava atenta­mente, e Erik se perguntava qual seria a razão de ela ser tão cautelosa; se não confiava nos políticos em geral, ou se o problema era com ele.

— Quais são nossas chances de ficar aqui, Erik? — perguntou Lilian.

Ele tomou um gole de chá e pousou a delicada xícara no pires, sobre a mesa.

— É difícil dizer. Vai depender da tenacidade do gru­po de Graham e do quanto são perspicazes. Prometeram pressionar a igreja. Podem tentar conseguir um mandado contra vocês, requerendo um estudo de viabilidade da co­munidade, embora devessem ter feito isso antes. Quanto mais perto vocês estiverem de morar aqui, menos provável será que um juiz impeça que se mudem. — Ele analisou a sala de visitas e o corredor, que continha uma boa quan­tidade de móveis e caixas empilhadas de forma precária.

A casa antiga ainda transmitia uma sensação de vazio, mas não estava longe de ser transformada em um lar.

— Eles não podem desafiá-las com qualquer tipo de es­tatuto local. Talvez peçam a elaboração de um novo esta­tuto contra lares desse tipo em bairros residenciais, mas, mesmo que consigam, não poderão atingi-las. Esse tipo de lei apenas se aplica depois que é ordenada a publicação.

— Fez bem sua lição de casa, senador — murmurou Lynn.

Erik a fitou, deixando claro que havia percebido o uso deliberado que ela fazia do título dele.

— Estou interessado em mais do que fama ao defender a causa da Horizon House — ele disse em contrapartida. — Não teria vindo aqui sem conhecer todos os fatos.

— Pensei ter ouvido que deixara o campo de golfe para vir para cá.

Ele sorriu.

— Posso insistir em travar minhas batalhas, mas não tenho problemas em pedir a meu grupo que faça o traba­lho pesado.

Lynn assentiu, inclinando a cabeça, antes de voltar a perguntar:

— Se o grupo de Graham não pode contar com nenhum recurso legal, a não ser convencer a Igreja a nos tirar daqui, então temos boas chances de ficarmos nesta casa?

— Não. Eles podem tornar a vida de vocês aqui tão in­suportável que vocês mesmas não agüentem ficar. — Erik se inclinou para frente e pousou os antebraços sobre a mesa. — Pelo que vi esta noite, essa é uma possibili­dade real.

Lynn deixou o prato de lado, sem ter praticamente tocado na refeição. Arqueou uma das sobrancelhas bem delineadas.

— Isso não seria considerado molestamento?

— Não, contanto que eles não invadam a propriedade nem desrespeitem a lei — Erik explicou. — A democracia é um grande sistema, mas pode se mostrar terrivelmen­te falha em algumas situações. Graham e seus seguidores têm o direito à liberdade de expressão. Você pode não gos­tar nem concordar com o que dizem, mas não tem como detê-los, a menos que se trate de algo difamatório.

Vadias. A palavra voltou à mente de Lynn, como a lem­brança de um pesadelo. O semblante de Erik se dissipou enquanto as imagens da multidão no gramado retornavam. Ela sabia como era sentir-se excluída de um grupo. A con­fiança das meninas na humanidade não seria recuperada se ficassem expostas àquele tipo de situação ridícula dia após dia. E esse era o trabalho de Lynn, fazer com que elas voltassem a confiar nas pessoas, a se sentirem bem-vindas e amadas, encorajadas a retomar a vida em sociedade an­tes que se tornassem tão alienadas que nunca mais pudes­sem se encaixar no sistema. Mas havia pessoas como Elliot Graham que surgiam no meio do caminho, espalhando ódio a todos à sua volta e fazendo com que Lynn e as meninas se sentissem rodeadas por um fosso, mais isoladas do que nunca.

— Bem, creio que nada mais irá acontecer esta noite — Lilian opinou.

Lynn saiu da letargia e percebeu a preocupação nos olhos da chefe. Lilian podia gostar de representar uma pessoa fria e sofisticada, mas no fundo era uma manteiga-derretida, maternal e protetora como uma galinha, disfar­çada em plumagem de cisne.

— E não podemos prever o futuro, portanto, não de­vemos nos preocupar antes que os fatos aconteçam — acrescentou.

— Talvez possamos ler o futuro nas folhas de chá do senador — Martha disse com um sorriso irônico. Em segui­da inclinou-se para frente e pegou a xícara de Erik.

Ele a encarou, surpreso.

— Decifra o significado das folhas de chá?

Lynn se segurou para não rir. Era óbvio que ele se de­batia com aquela idéia; era educado demais para demons­trar desdém, e cético demais para acreditar. Ela gostou de vê-lo inseguro.

— Martha é uma mulher de interesses variados e es­tranhos — explicou Lynn. — Peça que ela leia os gaios em sua cabeça algum dia.

— Talvez quando nos conhecermos um pouco melhor — ele falou, movendo-se na cadeira, desconfortável.

Ainda assim, observou com interesse quando Martha girou o restante do chá em sua xícara, depois derramou o líquido no pires. Colocando a xícara de volta na mesa, ela a estudou, com o cenho cerrado. Erik a observava, an­sioso. Ela sorriu como uma médium que acabara de ouvir uma piada de alguém do outro lado.

— Bem — começou, — não sei quanto a nós aqui, mas o seu futuro parece bem interessante, Erik.

Ele se sentou na borda da cadeira, pronto para ouvir os detalhes. Martha, por sua vez, descartou o assunto, co­locou a mão sobre os joelhos e ficou em pé.

— É melhor voltarmos para casa, Lilian.

— Mas... Você não me contou... — Ele se levantou desnorteado.

Martha acenou para ele com a mão rechonchuda.

— Oh, iria acabar com a diversão.

— Mas...

— Não se preocupe senador — Lynn o tranqüilizou enquanto se levantava da cadeira. — Ela lhe contaria, se o senhor estivesse correndo o risco de ser atropelado por um ônibus.

Todos seguiram para a entrada da casa. Lilian tirou as chaves da bolsa. Martha ficou na ponta dos pés para dar um beijo no rosto de Lynn.

— Nos vemos amanhã de manhã, querida. Tenha uma; boa-noite.

— Ela já está muito boa — Lynn falou com sarcasmo.

Martha a segurou pelos braços, com o semblante repentinamente sério.

— Faça uma limonada — sussurrou.

Lynn pestanejou para ela.

— Quando a vida lhe der limões, faça uma limonada — Martha esclareceu. — Alguma coisa boa vai resultar de tudo isso. Você vai ver.

— Obrigada de novo, Erik — Lilian agradeceu ao abrir a porta. — Fico feliz por termos nos conhecido. Talvez possamos nos encontrar amanhã, para discutirmos a es­tratégia de ação todos juntos.

— Sim, parece ótimo.

As senhoras se despediram e foram na direção do carro de Lilian. Lynn segurou a porta da frente aberta, observando até que as duas chegassem ao automóvel com segurança.

A noite caíra no bairro, como um veludo negro e silen­cioso. As luzes brilhavam em uma tonalidade âmbar nas janelas do quarteirão, mas não havia sinal de vida do lado de fora. Ainda assim, Lynn sentia alguma coisa pesada e tensa na escuridão, uma sensação de malevolência, como se alguém estivesse escondido nas sombras a observá-la.

Devia ser apenas sua ansiedade, disse a si mesma quan­do um dos cachorros da vizinhança correu pelo jardim, sa­tisfeito. Estava cansada e nervosa, e sentia-se meio aban­donada com a partida de Martha e Lilian. Abandonada, mas não sozinha.

Virou-se para Erik Gunther enquanto fechava a por­ta. Ele se encontrava muito perto e a olhava com inten­sidade. Parecia tranqüilo parado ali, com as mãos nos bolsos da calça. Porém, Lynn captava a masculinidade, o magnetismo e a energia que o rodeavam, e ficou nervosa. Quando um formigamento intenso a atingiu, ela não conse­guiu concluir se era algo bom ou ruim. Ainda segurando a maçaneta, tentou representar o papel da anfitriã se des­pedindo do convidado.

— Obrigada por ter vindo, senador.

— Está me mandando embora, orientadora? — ele per­guntou com os olhos azuis brilhando como safiras sob a luz do hall de entrada. — Ainda não abrimos nossos bis­coitos da sorte. Talvez o meu me diga o que Martha evitou contar.

Sem dar chance para que ela se recusasse, ele se virou e perambulou pela sala como se tivesse todo o tempo do mundo. Lynn suspirou contrafeita, e desistiu, esfregando o ponto de tensão e dor acima dos olhos.

— Precisa de alguém que faça isso por você.

Ela ficou assustada ao perceber que ele havia se virado de novo; agora estava encostado no vão da porta da sala e a observava.

— Fiz um curso de massagem quando jogava futebol na faculdade — o senador prosseguiu. — Toda a tensão que está sentindo poderá ser aliviada se você gerar energia de forma ativa.

— Vou me lembrar disso.

— Gostaria de uma demonstração? Sou muito bom com as mãos.

— Não duvido — Lynn murmurou.

Passando por ele, ela rumou até a sala e começou a tirar os pratos da mesa.

Por um momento, Erik ficou admirando como a calça jeans ficava bem nela. O tecido de brim estava gasto em um dos bolsos, deixando transparecer uma leve e atordoante visão da calcinha de renda preta. O desejo o alvoroçou.

— Deixe-me ajudá-la — ofereceu-se; quando ela se endireitou.

— Não precisa obrigada.

— Minha mãe me educou bem. Você me dá o alimento e eu a ajudo com a limpeza.

Antes que ela protestasse, Erik pegou a pilha de pratos das mãos dela e saiu da sala à procura da cozinha. Lynn o seguiu, resignada, levando as embalagens de comida para viagem. A pia da cozinha já estava cheia de água e bolhas de sabão. Ele já havia dado um destino aos pratos e xeretava as gavetas. Apanhou um pano de prato e uma toalha de algodão.

— Você lava e eu enxugo — ele propôs.

— Está com medo de ser visto de avental? — perguntou Lynn com sarcasmo.

A seguir jogou as embalagens no lixo.

— Não. — Ele lhe entregou o pano de prato.

— Os eleitores entendem o uso do avental. Gostam da imagem do homem que surgiu a partir dos anos noventa. Cerram o cenho quando a questão envolve roupas íntimas femininas.

Lynn não conseguiu conter o riso. Ela o teria rotulado como um homem preocupado com atenção e respeito. O fato de ele ter senso de humor era uma surpresa.

Trabalharam em silêncio por alguns instantes, em cli­ma de camaradagem. Lynn tinha consciência de que esta­va apreciando a companhia. Porém, Erik estava ali para ajudar, tinha a própria agenda e os próprios objetivos. Não seria bom para ela se aproximar muito dele.

— Eu não mordo — ele disse com voz calma e gentil, como se lhe adivinhasse os pensamentos.

Lynn arregalou os olhos, surpresa. Um sorriso malicioso surgiu no canto da boca de Erik.

— A menos que seja um pedido específico.

— Eu estava apenas... Pensando sobre Elliot Graham — ela mentiu, voltando a se concentrar nos pratos.

Erik se mostrou desapontado.

— Oh. — Ele secava um prato sem pressa. — Já não teve o suficiente dele por uma noite?

— Já tive o suficiente dele para sempre, mas não posso ignorá-lo. Esse homem é a maldição da minha existência.

Erik suspirou.

— Sei que ele é pretensioso; e inclinado à direita de Mussolini politicamente falando; mas acho que tem boa intenção, se serve de consolo.

— Não muito. Como dizem o inferno está cheio de boas intenções. — Lynn lavou outro prato, metódica, e a água morna começava a acalmar seus nervos. Estava mais tran­qüila com a mudança de assunto. — Se ele percebesse a pretensão da própria superioridade moral, veria o quan­to está errado. Mas isso nunca vai acontecer. O homem é tão bitolado que suas orelhas se esfregam uma na outra.

— Ele defende uma causa — Erik opinou. — Vejo isso o tempo todo. Tem freio nos dentes e mantém a mente vol­tada apenas para seu objetivo. Não quer ser afetado por nada, como a possibilidade de estar errado.

— Elliot está muito enganado. A ironia de tudo é que atitudes como a dele ajudam a fomentar problemas, se­melhantes aos que as minhas meninas têm.

Erik bufou, demonstrando não acreditar no que ouvira.

— Está dizendo que todas elas têm um pai como Graham e por isso se tornam delinqüentes quando crescem? E uma visão simplista demais, não acha?

— Não gosto do termo; "delinqüentes". De qualquer modo, o que você sabe a respeito? — Lynn questionou na defensiva, virando-se para encará-lo, e colocando a mão no quadril, ignorando a espuma de sabão que molhava a camiseta.

Um antigo ressentimento escapou do esconderijo e se direcionou ao homem diante de si.

— Sir Erik, o bom, o menino-prodígio, o filho favoreci­do, o herói.

Ele era a versão masculina de sua irmã, Rebecca, uma jovem brilhante e perfeita, amada por todos.

— Aposto que seu pai era seu melhor amigo — ela pros­seguiu. — Jogavam futebol juntos. Ele o levava para pes­car e o apoiava em tudo o que você fazia. Estou certa?

A expressão de Erik se fechou de repente, e um resíduo de dor brilhou em seus olhos. Lynn se sentiu como se tives­se dado um passo gigante em uma propriedade particular.

— Meu pai morreu quando eu tinha dezesseis anos — ele respondeu em voz baixa.

Droga! Ela queria pedir desculpas, mas as palavras pareciam entaladas em sua garganta.

— Ele jogava futebol comigo, sim — Gunther conti­nuou. — Me levava para pescar. Apoiava-me em tudo o que eu fazia. Mas, então, ele teve um enfarte fulminante e faleceu, deixando uma esposa, cinco filhos e uma pilha de contas para pagar.

A vergonha tomou conta de Lynn. Ela não costumava julgar as pessoas com tanta rapidez e tão poucas evidên­cias. Rotulara Erik Gunther como um filhinho de papai, produto de uma educação privilegiada, um homem atraen­te, bem-sucedido e superficial. Talvez essa atitude repre­sentasse um mecanismo de defesa para mantê-lo a uma distância segura, mas não era correto.

— Sinto muito — murmurou por fim.

— Sim, bem...

Ele se virou, pegou um punhado de talheres da pia e foi procurar a gaveta apropriada.

Mantinha a cabeça baixa; claramente concentrado no trabalho enquanto distribuía os garfos e as colheres. Lynn queria alcançá-lo, curar a ferida que causara ao abrir uma antiga cicatriz, no entan­to, por essa mesma razão, deu-lhe as costas. Erik não era uma das meninas, e sim um homem capaz de lidar com os próprios sentimentos. Se; se aproximasse dele, seria ela quem teria problemas.

Levantando o dreno da cuba para deixar a água es­correr, Lynn olhava pela janela sobre a pia, mas não via nada, apenas a escuridão e o próprio reflexo, como um fan­tasma. Os pensamentos se voltaram para sua juventude infeliz.

— Perdi minha mãe quando eu tinha onze anos — falou, distraída.

A adorável Gabrielle, gentil e paciente, fora tomada de uma só vez pela dolorosa esclerose lateral amiotrófica, ou doença de Lou Gehrig, uma enfermidade que recebera o nome de um jogador de beisebol, como se fosse exclusi­vamente dele. Sua mãe, a única pessoa que realmente a compreendia, morrera, deixando-a com um pai que exigia nada menos que a perfeição. As emoções que tinha conhe­cido quase duas décadas antes começaram a borbulhar, porém Lynn as depositou em uma pequena caixa imaginá­ria e fechou a tampa.

Quando se virou, Erik a fitava.

— Já cumpriu seu dever — disse ela, secando a pia vazia. — Está livre para ir embora.

— Por que tenho a impressão de que você me quer fora daqui? — ele perguntou com um sorriso.

Ela deu de ombros e sorriu com falsidade.

— Nossa! Não sei. Talvez seja porque eu gostaria de ir para a cama com minha dor de cabeça. O dia foi longo.

Erik fez uma expressão de pesar.

— Trocado por uma dor de cabeça. Devo estar perden­do meu charme.

— Eu não me preocuparia se fosse você — Lynn dis­se com sarcasmo. — Tenho certeza de que existem várias mulheres lá fora prontas para lhe dar seu voto, senador.

— Mas você não é uma delas, certo?

— Não misturo negócios com minha vida pessoal. — Ela não tinha vida pessoal, mas isso não vinha ao caso no momento.

Erik deu um passo, diminuindo a distância entre os dois pela metade. Então inclinou a cabeça para o lado, como se estivesse analisando uma escultura moderna. Os olhos se estreitaram, e alguns fios de cabelo caíram em sua testa.

— É uma regra muito conveniente — opinou por fim.

— Eu a considero prática — Lynn replicou.

— Mas você não me parece uma mulher muito prática.

— Obrigada — ela respondeu com um riso incrédulo.

— É muito explosiva, tem um temperamento forte — Erik argumentou franco. — Por que reprime tais caracte­rísticas no que diz respeito à sua vida pessoal?

— É um problema meu.

— Por enquanto.

O coração de Lynn deu um pulo.

— O que quer dizer com isso?

Ele sorriu de novo, caloroso e amigável.

— Que eu gostaria de conhecê-la melhor.

Ela meneou a cabeça, negando.

— Acho que não é uma boa idéia.

— Por que não?

Havia uma dúzia de razões para isso. Porque ela não tinha interesse em relacionamentos casuais. Porque não queria se aproximar muito de homem nenhum. Por­que sabia que ele não iria querer uma mulher com um passado que poderia manchar a armadura brilhante que ele possuía, não correria tal risco. Porque sabia muito bem o que ele pretendia: um pouco de publicidade, com alguma diversão extra no currículo, para que todo o trabalho valesse á pena. Havia outras razões que Lynn poderia ter citado, mas pela primeira vez deu uma resposta prudente.

— Porque existe a grande possibilidade de ocorrer um conflito de interesses.

Erik assentiu, demonstrando calma e cautela, saben­do que aquela justificativa não valia nada.

Lynn estava se fazendo de desentendida, com a esperança de que ele desistisse. Estava encostada á pia, com as mãos cruzadas na altura do ventre e o olhar firme.

A imaginação de Erik jamais teria evocado uma mulher tão intrigante ou tão difícil de vencer.

Instintivamente ele fez a pergunta que poderia tirar a Srta. Shaw da concha.

— Do que tem medo?

Os olhos de Lynn pareceram lançar faíscas; a pequena e viçosa boca se apertou numa linha fina; as faces averme­lharam, e as mãos se contorceram, como se uma quisesse impedir a outra de gesticular.

— De nada — respondeu por entre os dentes.

Erik ignorou a negativa e a pressionou ainda mais, desejando que ela se tornasse viva para ele.

— Tem medo que possamos gostar um do outro? Receia que eu possa descobrir o que há por trás da sua armadura?

Lynn ficou visivelmente tensa ao tentar conter a raiva. Deu um passo para frente e inclinou o queixo em um ângulo provocante.

— Não tenho medo de nada, senador — ela respondeu com rispidez e o encarou; os olhos brilhando como esmeral­das. — Não gosto de ser pressionada nem usada. Se for uma prostituta que está procurando, tenho certeza de que logo a encontrará. Até mesmo numa cidade como Rochester existem prostitutas.

Aquilo o pegou de surpresa, como um golpe vindo do nada. Erik meneou levemente a cabeça, chocado. Retroce­deu meio passo, levando as mãos à cintura.

— O que significa isso?

— Ora, senador... Não sou ingênua. É óbvio que quer uma retribuição pelo transtorno. Coca as minhas costas, e eu coco a sua libido, não é isso? Bem, sinto muito, mas não participo desse tipo de jogo.

Ele recuou abruptamente. Poderia ser considerado um homem antiquado, em alguns aspectos, mas fora criado com princípios morais e códigos de honra era um homem de palavra e de caráter íntegro. Ser acusado por uma mu­lher de um ato tão vil e revoltante como extorsão sexual era algo inconcebível para ele.

Cerrou os punhos numa tentativa de se conter para não agarrá-la pelos ombros e sacudi-la até ela bater os dentes. A raiva que o dominou foi suficiente para deixá-lo sem fôle­go. Andou pela cozinha com passos firmes, furioso demais para dizer alguma coisa sem se exaltar. Tentava se convencer de que havia pedido por aquilo, provocando-a para que reagisse, mas esse pensamento não o acalmou. Afinal de contas, ele tinha ido até ali, empenhado em ajudar e interceder pela causa dela, e era aquele o agradecimento que recebia?!

Finalmente, ele a encarou.

— Eu não engano as pessoas, Srta. Shaw — falou com voz contida. — Nem espero favores sexuais. Não é para me vangloriar, mas não preciso fazer nenhum tipo de chan­tagem ou joguinho com as mulheres para levá-las para a cama. Eu estaria aqui mesmo que você fosse uma mulherzinha rabugenta, fedida e com uma verruga enorme e peluda no queixo. Entendeu?

Lynn o fitava com os olhos arregalados, e seu coração batia como um martelo de ferreiro dentro do peito. Erik não estava a mais do que um suspiro de distância. Ele não parecia ser do tipo de homem que perdia o controle com facilidade. Entretanto, ela havia lhe atingido um nervo, um ponto sensível, na verdade dois, num espaço de pou­cos minutos, e a fachada de calma e compostura desmo­ronara. Teria felicitado a si própria se aquele fosse seu consultório e ela estivesse se esforçando para que um pa­ciente obtivesse sucesso no tratamento. Mas ele não era seu paciente, e ela não queria saber como era o homem debaixo da imagem que se apresentava à sua frente.

— Eu me fiz compreender, Srta. Shaw? — Erik insistiu.

Ele a observava, reparando nos cílios espessos e escu­ros, no nariz fino e arrebitado, nas bochechas delicadamen­te moldadas. A pele era clara, de uma tonalidade rosada tão suave que o fazia ansiar por tocá-la. E a boca... Ah, a boca! Era carnuda, nem muito grande, nem muito pequena, esculpida com perfeição. Os lábios estavam afasta­dos, e a respiração passava entre eles em pequenos sopros, fazendo o peito de ela arfar.

O chão parecia se mover devagar sob os pés de Erik. O ar havia se tornado denso e quente. E naquele instante uma única idéia ocupava sua mente: a vontade de beijar Lynn Shaw.

Ela percebeu o que estava para acontecer no brilho de fúria que detectou nos olhos de Erik.

Ele começou a bai­xar a cabeça na direção de Lynn, que apesar de dizer a si mesma que aquela era a última coisa que queria, não fez movimento algum para se esquivar.

Os lábios de ambos se roçaram num beijo gentil. Segundos depois, Erik se afastou um pouco, o olhar pro­curando o dela, pedindo permissão para seguir adiante. Por mais que pensasse, Lynn não sabia o que dizer.

Foi quando o vidro da janela da cozinha explodiu, e ca­cos voaram pelo cômodo como adagas de cristal. Instintiva­mente, Lynn se retraiu, mas não gritou. Seu cérebro, abala­do, parecia não assimilar todas as mensagens que recebia. Ela apenas tinha noção de que estava deitada no chão, protegida pelo corpo sólido e forte de Erik Gunther.

O silêncio que se seguiu à explosão era quase tão ensur­decedor quanto o estrondo havia sido.

Por um momento, a imobilidade e a quietude absoluta pressionaram os ou­vidos de Lynn. A seguir, ela percebeu sua respiração ofegante. Afastou a cabeça do calor reconfortante do ombro de Erik e observou o vidro espalhado no chão da cozinha. Ainda incapaz de compreender o que acontecera, tentou se levantar, mas Erik a mantinha imobilizada com o peso do próprio corpo.

— Fique abaixada — ele sussurrou, com a respiração difícil.

Virou a cabeça para verificar o estrago, praguejando por entre os dentes. O interruptor de luz ficava do outro lado da cozinha, ao lado do telefone. Não havia como chegar a nenhum deles sem engatinhar sobre um tapete de ca­cos de vidro ou se tornar um alvo ambulante em frente à janela.

— O que foi isso? — Lynn finalmente perguntou. — Um projétil? Alguém atirou em nós?

— Não sei. — Ele se apoiou nos cotovelos e a fitou, preocupado. — Você está bem?

A pergunta soou absurda aos ouvidos de Lynn. Estava deitada de costas sobre um tapete, com o atraente polí­tico do ano esparramado sobre ela. O calor misturado à adrenalina que corria por suas veias fizeram-na se sentir meio tonta.

— Ficarei melhor assim que você sair de cima de mim — respondeu, encobrindo a ansiedade com a irritação.

Erik saiu de cima dela com lentidão e cuidado, agachando-se. Lynn se ergueu e se sentou no chão, apoiando as costas contra a porta do armário da pia. Os únicos ruí­dos que entravam pela janela quebrada eram os da noite: o latido distante de um cachorro, o murmúrio de uma tele­visão, um carro passando pela rua. Não se ouvia o som de tiros, nem de vozes, nem de passos em retirada.

Uma pedra grande e cinza do tamanho de uma bola de tênis estava no chão, ao lado da geladeira. Havia um amassado feio na porta do refrigerador, na altura da cabeça de uma pessoa.

O impacto tirara uma lasca da pintura branca, deixando um ponto cinza no centro do amassado. Lynn soltou um palavrão.

— Que maravilha! Agora temos que pagar uma porta nova para a geladeira.

— Você poderia ter que pagar uma neurocirurgia — Erik a alertou. — Aquela pedra quase a atingiu na cabeça.

Ela sentiu um frio na espinha.

— Que bairro agradável. Em vez de um comitê de boas-vindas, enviam brigadas com pedras. Pessoas encantadoras.

— Vou chamar a polícia — Erik anunciou, decidido, movendo-se, agachado, até o outro lado do cômodo.

— Para quê? — Lynn se levantou e começou a se lim­par, tentando se livrar de uma vez por todas da sensação do corpo viril contra o seu. — Eles vão dar uma olhada, dizer que foi uma pedra e irão embora.

Erik se endireitou e cerrou o cenho.

— Não podemos deixar que um crime não seja notificado.

Lynn não disse nada. Tinha aversão a homens de farda desde a época em que era uma infratora juvenil, quando adquirira um comportamento destrutivo para conseguir chamar a atenção do pai: pequenos roubos em lojas, faltas na escola, bebidas... Coisas que provocavam a ira de um professor da Universidade de Notre Dame. As experiências de Lynn com as forças da lei não haviam sido boas, mas ela nada comentou quando Erik tirou o receptor do telefo­ne do gancho e ligou para a polícia. Imaginava que não se­ria compreendida pelo senador, da mesma forma que o pai não a entendera.

Erik parecia muito honesto, mais do que ela havia pen­sado a princípio. Uma prova disso era o acesso de raiva que o acometera quando ela duvidara de suas boas intenções ao defender a causa da Horizon House. Tratava-se de um seguidor das leis, um defensor do bem. Devia ser o último benfeitor, o último cavaleiro da face da Terra. E ela devia ser a última mulher com quem ele gostaria de ter um rela­cionamento. Ele apenas não havia descoberto isso ainda.

— Foi uma pedra.

Erik ficou de cara amarrada quando percebeu o olhar de "Eu não falei?" que Lynn lhe lançou.

— Sabemos que foi uma pedra, policial Reuter. O que pretende fazer a respeito?

O policial soltou um suspiro, como se tivesse sido con­vidado a explicar a teoria da relatividade em vinte pala­vras ou menos. Era um homem baixo e parrudo, de uns quarenta anos de idade e cabelos ruivos ondulados.

— Vamos levar a pedra e procurar as digitais do agressor.

O colega de Reuter passou pela porta da cozinha; era alto, magro e usava bigode.

— Não vi ninguém. Provavelmente foi uma traquinagem de algum garoto. Pena para a geladeira.

Os policiais ficaram mais uns vinte minutos, anotan­do declarações e fazendo o que podiam para acalmar Erik. Lynn esfregava o local onde a dor ressurgira, passado o efeito do medicamento que havia tomado. Ninguém vira o infrator. Não havia nenhuma esperança de pegar quem quer que tenha jogado aquela pedra na janela.

O padre Bartolomeu, pároco da igreja que oferecera o imóvel para sediar a Horizon House, veio de o presbitério expressar sua preocupação e lançar olhares aflitos à ge­ladeira. Tratava-se de um homem baixo, na faixa dos cin­qüenta anos, de olhos escuros e gentis, além da aura geral de desalinho. As roupas estavam levemente amarrotadas, os cabelos escuros não paravam no lugar, e os óculos es­tavam sempre tortos. Tinha a aparência alegre e ansiosa de um camundongo de desenho animado.

Lynn sabia que ele não recebera o apoio de outras pessoas quando oferecera o imóvel à Horizon House, e ela se sentia muito mal pelo fato de a gentileza do padre ter trazido tantos problemas para ele. Gostaria que ele tives­se sido recompensado pelo esforço, em vez de ridiculariza­do. Confessou sua opinião a ele enquanto observavam a geladeira danificada.

O padre sorriu, preocupado.

— Nossas recompensas são maiores no céu do que na terra, Lynn. Oh, nossa, pode ter certeza! — Ele esticou o dedo na direção do amassado, mas o retraiu inespera­damente, como se estivesse com medo de tocá-lo. Então empurrou os óculos de aro redondo sobre o nariz.

— Assim espero — Lynn murmurou. — Pelo que tenho observado esta vida não é muito justa.

O padre estalava a língua como um esquilo, com o sem­blante devastado pelo desapontamento.

Parecia pronto para preveni-la contra o pessimismo, mas foi distraído pelo policial Reuter, que se inclinava para apanhar a pedra com um pegador de macarrão. O padre ficou pálido e se afastou, com os sapatos de sola grossa esmagando os cacos de vidro.

— Anjos do céu! — ele exclamou, fazendo o sinal da cruz. — Graças a Deus, ninguém ficou ferido. — Fitou Lynn com preocupação. — Tem certeza de que está bem, minha filha?

Ela afirmou que sim com um movimento de cabeça, e o padre se virou para Erik.

— Senador?

— Estou bem, padre.

— Graças a Deus! — O pequeno padre balançou a cabeça, consternado. — O bispo ficará furioso com essa ocorrência.

Lynn estava mais curiosa sobre o que o bispo iria dizer em relação à petição de Elliot Graham, mas ficou quieta, pois não queria aborrecer o padre ainda mais.

Ele saiu com os policiais, que carregavam a pedra em uma sacola plástica. Parada à porta da frente, Lynn os ob­servou partir; seu olhar se estendia além deles e alcançava as casas vizinhas, de onde as pessoas espiavam das portas e janelas. A viatura policial estava parada no meio-fio, com as luzes brilhando como um enorme brinquedo de Natal, um sinal que anunciava problemas. No estado de cansaço e frustração em que se encontrava, Lynn podia imaginar os vizinhos dirigindo olhares malévolos em sua direção, como se fosse culpa dela o fato de terem atacado a casa, como se ninguém nunca tivesse sido obrigado a chamar a polícia antes, naquele bairro fino e de padrão elevado.

Lynn fechou a porta devagar e voltou-se para Erik, que parecia desapontado com o precioso sistema de juris­prudência que o abandonara. Ela precisou se contiver para não confortá-lo com um abraço.

— Agora que já cumpriu com seu dever cívico, senador — falou com sarcasmo, — podemos dar a noite por encerrada?

Ele enfiou as mãos nos bolsos, suspirou e sacudiu os ombros.

— Sim, vamos dar a noite por encerrada. Onde quer que eu durma?

A pergunta a atingiu como um pontapé nas costas, po­rém ela disfarçou, limitando-se a erguer as sobrancelhas.

— Em sua cama, do outro lado da cidade, ou seja, lá onde for que more — respondeu no mesmo tom.

Erik balançou a cabeça.

— Nada disso. Você poderia ter se ferido esta noite. Não vou deixar você sozinha.

Lynn o fitou incrédula.

— Mas... Você não pode ficar aqui! — Lynn argumen­tou veemente. — Meu Deus, já imaginou se a imprensa souber?

— Alguém atacou esta casa há pouco, e é muito provável que tenha feito isso com a intenção de feri-la. Que tipo de homem eu seria se apenas me despedisse e fosse embora?

— Do tipo que respeita os fofoqueiros.

— Não ligo a mínima para os fofoqueiros. Estou aqui para protegê-la.

Lynn resmungou, contrariada, caminhando pelo corredor, os tênis rangendo sobre o assoalho de madeira.

Com um passo, Erik lhe bloqueou o caminho e a segu­rou pelos ombros. Fitou-a nos olhos com uma expressão curiosa e doce.

— Por que você não deixa que eu me preocupe com a minha reputação?

Ela sorriu irônica.

— Porque é óbvio que você não se preocupa! Veio aqui para nos ajudar. Não quero ser culpada pela ruína da sua imagem pública.

Tais palavras resultaram em um riso brando da parte dele, levando-a a desejar chutá-lo na canela. Ela tentou se livrar dos punhos fortes, mas ele a mantinha no lugar com uma facilidade ridícula.

— Há uma hora você me acusou de usar minha ofer­ta de ajuda como uma artimanha para levá-la para a cama! — ele exclamou de bom humor. — Agora está preo­cupada com a possibilidade de me arruinar?

Lynn o encarou com raiva.

— Eu estava errada. Portanto, pode me processar. Você é um homem honrado. Agora vá para casa.

— Não. Não vou deixá-la sozinha. Ficarei aqui vigian­do. Caso não queira minha companhia, volte para a outra casa.

— Vou telefonar para Lilian — disse ela, sem intenção de continuar a conversa.

Fazia tempo que a sensação inicial de medo se extin­guira. Lynn não se sentia em perigo, nem incapaz de ficar sozinha. O atirador da pedra tinha dado o recado e partira. Ela duvidava de que ele voltasse naquela noite.

— Lilian tem um marido que possa vir com ela?

— Não. Ele morreu faz uns quatro ou cinco anos.

— Então telefone para Lilian, e ficaremos os três juntos aqui. Não vou deixar mulheres desprotegidas nesta casa.

Um suspiro escapou dos lábios de Lynn. Julgou que poderia ter mentido para ele e dito que Lilian tinha um marido, mas duvidava de que isso lhe trouxesse alguma vantagem. Por uma simples razão: havia perdido a prá­tica. As mentiras já não saíam de sua boca com tanta facilidade. Além disso, algo lhe dizia que Erik Gunther não iria embora até que estivesse satisfeito quanto à sua segurança. A idéia de tal dedicação a sensibilizou, de um modo que não ocorria havia muito tempo.

— É inacreditável — ela se queixou, olhando para todos os lados, menos para o senador. — Com tantos políticos corruptos e inescrupulosos no mundo, tenho de conhecer justamente um que age como o cavaleiro Lancelot, do rei Arthur.

Ele riu.

Lynn não gostava de ser contrariada. Era tei­mosa e corajosa demais. Os olhos dela brilharam de raiva reprimida. A boca delicada arqueou para baixo, forman­do um beicinho.

Bem, Srta. Shaw vai ter de me suportar, ele pensou.

Ela era uma mulher fascinante. Muito bonita e des­confiada. A combinação de resistência e vulnerabilida­de atingiu; em cheio o coração do senador, representando uma experiência única.

Não, não iria deixá-la sozinha naquela noite, nem na manhã seguinte, nem tão cedo.

— Um coração mole nunca venceu uma dama valente — ele declarou, aliviando a pressão nos ombros de Lynn, que suspirou aparentemente resignada.

— Não precisa me convencer de que tem razão, sir Erik — ela sussurrou, de repente parecendo muito triste. — Não sou uma vestal, nem uma donzela, muito menos a pessoa mais indicada para dar conselhos sobre assuntos políticos.

— E eu por acaso disse que estava à procura desse tipo de mulher?

Não, ela pensou, mas era o que ele precisava: uma jo­vem pura de coração, para ficar ao lado dele na campanha para as eleições.

— Ouvi dizer que as vestais, as deusas do fogo, são supervalorizadas — murmurou Erik, baixando a cabe­ça. — Não há centelha... — Roçou os lábios nos de Lynn, fazendo-a estremecer. — Não há fogo... — Repetiu o gesto de carinho.

Ela sabia que deveria se afastar. Mas estava cansada, e uma antiga e familiar solidão começava a afetar a arma­dura de que ela mesma se revestira. A idéia de ser abra­çada era muito atraente. Sentir o calor do corpo masculino que a envolvia e a afastava da realidade parecia por demais tentador. Seria apenas um beijo, disse a si mesma. Que mal poderia haver em um beijo?

Erik pousou os lábios nos dela com ternura. Tamanha gentileza era algo tão raro e doce que Lynn sentiu um nó na garganta. Fechou os olhos numa tentativa de repri­mir o choro ameaçador, não queria que Erik o visse ou o questionasse.

Com a escuridão repentina, veio a sensação de estar flutuando. Agarrou os braços musculosos e se pendurou no senador, a única coisa sólida em um mundo de pura sensação. Ele deslizou as mãos pelas costas delicadas e a puxou para mais perto, fundindo os dois num estado de intensa paixão.

Lynn tremia sob a magia do momento. Seu corpo pare­cia derreter contra o de Erik. Ela baixou á guarda e sim­plesmente permitiu que a experiência inusitada a arre­batasse, saboreando cada gosto, cada textura que lhe era apresentada.

Recebeu com prazer a invasão gentil da língua quente, suspirando levemente enquanto ele explorava a doçura de sua boca, cruzando uma linha que ela não permitia a ho­mem nenhum ultrapassar havia anos. Tal fato a amedron­tava e a excitava ao mesmo tempo, envolvendo-a em um redemoinho de emoções. De repente, seus mamilos pare­ciam insuportavelmente sensíveis ao ser pressionados contra os músculos do peito de Erik. No âmago de sua feminilidade, uma sensação constante a estimulava a se aproximar ainda mais daquele homem.

No final, o medo venceu. Tudo estava acontecendo rá­pido demais, quando não deveria nem mesmo ter come­çado. Ela não deveria tê-lo deixado chegar tão perto. Era para ser um simples beijo.

Erik á sentiu tensa e logo percebeu que ela começava a se afastar. Levantou a cabeça com relutância e abriu os olhos, como se saísse de um transe. Lynn o fitou, parecendo tão aturdida quanto ele. Ambos tinham total consciência do nível de excitação que atingiram com aquele "simples" beijo. Permitiu que ela se afastasse um passo, mas voltou a segurá-la pelos ombros.

Entreolharam-se por um longo tempo. Por fim, Erik assentiu com a cabeça.

— Já sei quem pode ser o acompanhante perfeito!

— Oh, nossa! — exclamou o padre Bartolomeu, ajei­tando as dobras do saco de dormir sobre o sofá.

Havia trocado a batina de clérigo por um agasalho cinza do Seminário Cruz Sagrada. Os cabelos desalinhados in­dicavam que ele já estava na cama quando Erik fora bus­cá-lo. Mas o padre se mostrara animado com a oportunida­de de vigiar a nova sede da Horizon House, apressando-se a reunir seus pertences.

Pouco depois, ele se deitou e apoiou a cabeça no braço do sofá.

— Que aventura! — exclamou, entusiasmado. — Estou me sentindo um personagem de romance de mistério. — Acha que poderemos pegar o culpado tentando entrar de mansinho na casa?

Erik ia dizer que não, mas o padre parecia tão esperan­çoso que o senador não teve coragem de desapontá-lo.

— Existe a possibilidade.

— Oh, nossa! — O padre arregalou os olhos. — Nunca me envolvi em algo tão emocionante assim desde os dias de missões na África. Eu servia com alguns jesuítas no Quênia. — Ele riu e se enfiou mais fundo em seu ninho. — Ah, as histórias que tenho para contar...

Lynn olhou para Erik e reprimiu um sorriso. Sem que­rer, estavam realizando um sonho do padre Bartolomeu.

— Obrigada por ter vindo, padre. Eu poderia ficar mui­to bem sozinha, mas o senador Gunther insistiu...

— Não se preocupe querida! — o padre bradou. — Fico feliz de poder ajudar. Uma sentinela de Deus tentando encontrar pessoas desonestas.

— Bem, vou me deitar também. Boa noite, padre.

— Boa noite, querida. Durma bem.

Lynn e Erik deixaram o padre na sala, remexendo-se no saco de dormir como um garoto em um acampamen­to de escoteiros. Erik a acompanhou até o pé da escada do corredor. Ela teve de lutar contra a vontade de subir os degraus correndo, para escapar do exame minucioso; a que era submetida.

— Acho que agora não precisaremos nos preocupar com o prejuízo da minha imagem, não é? — ele indagou em voz baixa. — Ninguém levantará suspeita de como passamos a noite, tendo um padre como acompanhante.

— Não, acho que não. — Lynn subiu dois degraus e parou. Dando meia-volta, tornou a encará-lo. — Não que pudesse acontecer algo entre nós dois se ele não estivesse aqui — insistiu.

Ela sentiu a respiração levemente ofegante quando Erik subiu o primeiro degrau. Os olhos de ambos ficaram nivelados.

— Alguma coisa já aconteceu — ele sussurrou, com um sorriso. — A questão é o que virá a seguir. — Após dar um beijo suave e doce no rosto de Lynn, ele desceu o de­grau. — Boa noite, orientadora.

— Boa noite, senador.

Erik riu enquanto voltava à sala de visitas. Lynn o observou se afastar, imaginando o que viria a seguir.

 

Amanhã chegou muito rápido para o gosto de Lynn. Ela acordou com a sensação de estar com areia nos olhos e a cabeça recheada de algodão. Era a costumeira ressaca da enxaqueca. O fato de as poucas horas de sono ter sido atormentada por visões de Erik Gunther pio­rou ainda mais a situação.

Passara a maior parte da noite deitada no colchão sobre o chão, no quarto que iria ser de uma das moradoras, olhando para o teto e desejando não sonhar com aquele beijo. Mas, mesmo naquele momento, quando se esforçava para abrir os olhos contra a luz da manhã que entrava pela janela, ela podia sentir o corpo do senador de encontro ao seu o calor e a força masculina a envolvê-la, o sabor da boca ardente na sua.

Resmungando, sentou-se e olhou para o relógio. Eram quase sete horas, e, por mais que desejasse voltar a dormir, aquele dia prometia ser longo, com muito trabalho pela frente. As meninas estariam morando naquela casa ao cair da noite.

Como reagiriam com relação à hostilidade dos vizi­nhos? Lynn refletia ao andar descalça pelo assoalho de madeira, à procura de sua mala. A calça jeans estava onde a havia deixado na noite anterior. Não tivera energia para mais nada e dormira com as roupas de baixo e a camise­ta. Assim que encontrou sua bagagem, mudou de roupa, tendo o pensamento voltado para as meninas.

Atualmente havia cinco moradoras na Horizon House, cujas idades variavam entre catorze e dezessete anos. Barbara Wheeler e Michelle Jenner eram de Rochester, ambas vindas de famílias malsucedidas e chefiadas ape­nas pelo pai ou pela mãe; tinham saído recentemente do programa de reabilitação de usuários de drogas do Hospi­tal Santa Maria. As outras três garotas, Regan Mitchell, Tracy Brogan e Christine Rickman, eram de outras cida­des do Estado de Minnesota. Christine tinha quinze anos e estava grávida. Tracy tinha um histórico como fugitiva e um passado que incluía um pai violento. Regan era o mais recente desafio. Era com ela que Lynn mais se preocupa­va no momento.

Aparentemente, Regan Mitchell tinha tudo a seu favor. Vinha de uma "boa" família. O pai ocupava uma posição importante na multinacional americana Honeywell, em Mineápolis. A família morava no rico bairro residencial de Minnetonka. Regan tivera muitas oportunidades na vida, mas não recebera amor. O pai era um homem frio e exi­gente; a mãe estava sempre envolvida com instituições de caridade e tinha uma vida social intensa. Era como se o casal Mitchell esperasse que os filhos criassem a si mes­mos e, automaticamente, se tornassem adultos perfeitos, produtivos e responsáveis.

Mas não foi o que acontecera com Regan. Ela crescera e se transformara em uma adolescente amargurada e re­belde. Entrara e saíra de problemas durante os últimos três anos e estava a ponto de ser declarada uma causa perdida. Havia fugido de casa, envolvera-se com drogas e tinha cometido furtos nas mais importantes lojas de de­partamento da região metropolitana. Suas amigas eram as outras garotas do lar juvenil. Regan tentava aparentar ser uma pessoa forte, que não se importava com nada, mas Lynn sabia que aquilo não passava de uma fachada para esconder a vulnerabilidade de uma garota solitária, que precisava desesperadamente de um amigo de verdade.

Talvez Regan fosse a mais sensível à desaprovação de Elliot Graham. Ela demonstrava problemas de adaptação, desafiando as pessoas a gostar dela, apesar do comporta­mento terrível. Até aquela data, poucos haviam se preocu­pado realmente com aquela garota. Ela tinha passado pe­los "melhores" lares juvenis de Twin Cities, a cidade mais populosa de Minnesota, sendo, por fim, entregue aos cui­dados da Horizon House. E, naquele momento, a própria instituição estava sendo rejeitada e atacada.

Lynn calçou os surrados tênis de lona e abriu a porta do quarto, pronta para enfrentar o novo dia. Do lado de fora, encontrou, no chão, um prato com um biscoito da for­tuna partido ao meio. A ponta de uma tira de papel podia ser vista do lado de fora da iguaria, atraindo os curiosos a ler e descobrir o que o futuro reservava.

Irritada, ela deu um passo para trás, observando o bis­coito como se fosse á isca de uma armadilha. Convenceu-se de que não se importava com o que o papel dizia. Não era tola a ponto de acreditar na sentença colocada ao acaso dentro de um cookie, em uma fábrica que estava a milha­res de quilômetros de distância. Mesmo assim, ela hesitou, olhando para os dois lados do corredor. Não havia ninguém por perto. Maldizendo a própria curiosidade, abaixou-se e pegou a mensagem.

"Coisas boas virão até você no momento certo", ela leu em voz alta. Bufando por não acreditar naquelas pala­vras, enfiou a tira de papel no bolso e desceu as escadas, ajeitando os cabelos.

O som da voz do padre Bartolomeu a guiou até a cozinha.

— Farelo de trigo, farelo de aveia, farelo de avelã, é tudo o que a Sra. Ingram compra. Minha tigela do café da ma­nhã se parece com a ração oferecida a um cavalo de car­ga. Que Deus abençoe o coração dessa mulher. Sei que ela quer fazer o que é certo, mas todo aquele farelo pode aba­lar a manhã de um homem, se é que entende o que quero dizer. Outro dia eu disse a ela: "Agnes, quando preguei que devíamos nos expurgar, eu quis dizer no sentido espiritual!".

Um riso rouco soou na cozinha, fazendo Lynn parar do lado de fora da porta. Ela nutria a esperança de que o se­nador tivesse ido tomar o café da manhã com seu grupo de trabalho ou jogar golfe com alguém importante e influente. Mas não tivera essa sorte.

Erik estava sentado a uma das extremidades da mesa, parecendo se sentir em casa com a camiseta pólo branca toda amarrotada. Os cabelos pareciam ter sido penteados com os dedos, levemente desalinhados, mas muito sen­suais. Os cabelos e a barba por fazer lhe conferiam a aparência de um astro de rock, algum ídolo adolescente apenas esperando que um bando de garotas se atirasse sobre ele. Com os cotovelos apoiados na mesa e os ombros arqueados, ele tinha uma xícara de café quente à sua frente e um bolinho na mão.

O bolinho recheado chamou a atenção de Lynn. Como podia se mantiver fria em relação a um benfeitor que reve­lava sua fraqueza por um tipo de alimento de baixo valor nutritivo?

— Oh, bom-dia, Lynn! — O padre Bartolomeu girou o corpo na cadeira e lhe deu um belo sorriso. — Não a ouvi descer.

— Bom dia, padre. — Em seguida, ela cumprimentou Erik com um gesto de cabeça, mantendo os olhos no boli­nho que estava pela metade. — Senador.

— O senador Gunther saiu e providenciou alguns pre­sentes especiais para o nosso café da manhã.

— Já percebi. Trouxe bolinhos da sorte. Hoje é meu dia de sorte. — Lynn se dirigiu à cafeteira e encheu uma cane­ca com o líquido fumegante.

— Eu os colocaria na minha lista de compras — o pa­dre disse, — mas a Sra. Ingram não os compraria. Ela está preocupada com meu colesterol e a ingestão de gorduras. Eu mesmo poderia comprar alguns, porém não me situo bem nesses supermercados grandes. Receio não ter um senso de direção muito bom.

— Por nos deixar usar esta casa, padre, será um pra­zer providenciar um suprimento de bolinhos para o se­nhor — Lynn falou, encostando-se ao balcão.

— A Horizon House é uma causa digna, querida — ele declarou. — Não vou deixar ninguém me convencer do contrário.

Lynn pensou que o bispo talvez tivesse algo a dizer sobre o assunto após o encontro com Elliot Graham, mas ficou quieta. Ainda era muito cedo para iniciar uma discus­são, e a última coisa que queria fazer era aborrecer o padre Bartolomeu. Um homem tão doce e querido, o único que se dispusera a ajudá-las... Até Erik Gunther aparecer.

— Agora preciso ir — o padre anunciou, já se levan­tando. Enfiou três bolinhos no bolso do blusão de moletom amarrotado depois da noite de sono. — Se eu não chegar para a missa da manhã, antes que o grupo de senhoras termine de rezar o rosário, estarei em apuros. Voltarei mais tarde para ver como as coisas andam por aqui.

Lynn se despediu do padre e, com o coração pesado, observou-o sair pela porta de trás e correr pelo jardim, rumo ao presbitério. Quase que de imediato, o grau de tensão aumentou no ar.

— Como está a dor de cabeça? — Erik perguntou.

— Passou, obrigada — ela murmurou, aspirando ao vapor que vinha da xícara de café.

Não era bem a verdade. Havia ainda um cerne de dor alojado acima do olho direito, como uma brasa ardente es­perando por combustível, para alimentar uma nova chama. Poderia permanecer ali durante vários dias, assombrando-a com a possibilidade de outra enxaqueca surgir com toda a força, no entanto ela não queria compartilhar aquela informação com o senador.

Podia sentir o olhar azul incrivelmente magnético a avaliá-la. Ela mal resistiu à vontade de verificar os pró­prios cabelos. Aquilo não era bom. Não tinha tempo para se preocupar com a aparência, para questionar se ele a julga­va; preguiçosa, porque a via apenas usando jeans velhos e camisetas de faculdade. Aquele era seu uniforme, além de confortável, não representava uma ameaça para as meni­nas. Por que ela se importava com a possibilidade de Erik Gunther achar que estava malvestida?

— O café não tem cafeína — ele informou. — Pessoas que sofrem de enxaqueca devem evitá-la. Li a respeito esta manhã na revista Newsweek.

Lynn torceu o nariz para o café e a preocupação do se­nador. Não queria que ele ficasse lendo sobre enxaquecas e fazendo café especial para ela, mesmo que parecesse algo extremamente gentil.

O beijo da noite anterior havia sido um erro, um momento de fraqueza. Naquele instante, à luz brilhante do dia, ela conseguia enxergar a tolice que come­tera. Não podia ter um relacionamento com ele. Não havia razão para perseguir algo que terminaria em desilusão e mágoa.

— Sente-se — ele a convidou, indicando a cadeira à sua direita.

Ela lançou um olhar suspeito ao assento e segurou a caneca de café de encontro ao peito.

— Vou ficar em pé, obrigada.

Um músculo no queixo de Erik se contraiu.

— Sabe — ele começou com um sorriso honesto, — acho que também vou ficar em pé. Gosto de ficar em pé.

Ele empurrou a cadeira para trás e se levantou, com um bolinho na mão. Conservava o olhar fixo em Lynn, para que ela soubesse que ele não se intimidava com facilidade. Ela tentava se mantiver distante, física e emocionalmente, a fim de diminuir o efeito do beijo que havia trocado.

Erik se considerava um homem experiente com as mulhe­res, mas jamais sentira algo parecido com as sensações despertadas por aquele beijo.

Lynn o encarou, zangada, quando ele se colocou a seu lado, encostando-se com naturalidade no balcão, os pés cruzados, uma xícara de café em uma das mãos e um boli­nho na outra. Ele esperava que ela fugisse para a mesa e se sentasse, porém a teimosa se manteve no lugar.

Erik disfarçou um sorriso. Não se lembrava de já ter jul­gado a teimosia como um traço atraente em uma mulher. Com Lynn, tudo era possível. Ele queria se virar e der-lhe-lhe um beijo de bom-dia, fazendo-a considerar a possibilidade de voltar para a cama, levando-o consigo, claro.

Fazia doze horas que ele a conhecia e já se sentia apai­xonado como um adolescente. Em vez de se revoltar contra si mesmo, teve vontade de rir. Era muito bom se sentir daquele modo, mesmo que a garota em questão estivesse relutante. Entretanto, ele acreditava na própria habilida­de para conquistá-la. Antes de morrer, o pai lhe ensinara a se concentrar no que desejava e a trabalhar com afinco. Desse modo, obteria qualquer coisa que quisesse.

Naquele momento, ele queria Lynn Shaw. Não havia dúvidas quanto a isso, pensou, admirando os lindos cabe­los da moça, as feições delicadas, os seios pequenos que da­vam uma dimensão encantadora à camiseta cinza que ela vestia. Por apenas um segundo, ele se permitiu imaginar levantando a barra da camiseta e afagando o busto chamativo, provocante...

— Já pegou seu biscoito da sorte? — Ele a olhou de soslaio e mordeu um pedaço do bolinho, insistindo na fan­tasia que povoava sua mente.

Lynn apertou a caneca de café entre as mãos quando o viu lamber o recheio cremoso no canto da boca e pra­guejou intimamente quando os mamilos se enrijeceram e formigaram.

— Oh, sim — ela respondeu seca. — Devo esperar coisas boas. Na semana passada, recebi uma carta do que a segurava.

— Não — Erik respondeu com franqueza. — Apenas me ocorreu que você tem medo que eu a toque.

Lynn ergueu o queixo e o fitou com os olhos brilhantes.

— Não tenho medo que me toque.

— Mentirosa.

Ele pousou os dedos sobre os cabelos de Lynn e friccionou o couro cabeludo com gentileza.

— Relaxe — Erik murmurou. — Fechar os olhos ajuda.

Lynn obedeceu; determinada a se manter impassível.

Não iria ceder à sedução daquele homem. Não havia dúvi­das de que muitas pessoas cediam à vontade dele... Erik, o grande, destinado a coisas importantes. Era hora de ele enfrentar um obstáculo. Precisava perceber que não podia conquistá-la com um mero sorriso e um toque mágico...

Mas, droga, a sensação era maravilhosa. Ele havia massageado um ponto com o dedo do meio que a fez gemer alto, e, quando colocou o polegar na testa macia à procura do ponto de tensão que havia ali, um murmúrio escapou dos lábios de Lynn. Os músculos se afrouxaram, fazendo-a relaxar.

— É uma sensação boa, não acha? — Erik sussurrou.

— Sim... — ela admitiu ressentida.

Ele riu.

— Eu tinha a impressão de que você iria preferir conti­nuar com a enxaqueca a reconhecer que eu estava certo.

Lynn ergueu um pouco as pálpebras e o fitou por en­tre os cílios. A expressão do senador era de divertimento. Por que ele não podia ser pretensioso e arrogante? Em ge­ral e metaforicamente, ela quebrava as pernas de homens pretensiosos e arrogantes e os mandava rastejando para casa. Mas aquele ali... Era perigoso.

— Não estou aqui para machucá-la, Lynn — ele mur­murou com tanta sinceridade que ela sentiu um nó na garganta.

— Não — disse ela, lutando internamente para se defender. — Você está aqui em uma missão de duplo benefício.

Um lampejo de irritação brilhou nos olhos de Erik.

— Pensei que tínhamos resolvido essa questão ontem à noite. Estou aqui porque quero ajudar.

— Com que intenção? — Lynn o desafiou, deixando a xícara de café de lado. — Sim, a Horizon House é uma cau­sa valiosa, assim como era há um ano, quando o senhorio aumentou o aluguel e se recusou a consertar a casa. E nós nunca o vimos por lá. Admita a verdade... Você não estaria aqui se alguém não tivesse considerado esta situação não só importante como também importante para a imprensa.

— Não fui eu que chamei o pessoal da televisão ontem à noite.

— Mas foi você quem obteve a publicidade.

— E que diferença faz?

Erik tinha a sensação de que Lynn estava decidida a provocá-lo, com o intuito de aumentar a distância entre eles.

— Esta discussão é irrelevante — opinou, deslizando a mão de novo pelos cabelos escuros e reiniciando a massa­gem. Então se aproximou mais. — Sabe o que eu faço com relação a discussões irrelevantes? — Sorriu ao inclinar a cabeça na direção dela. — Eu as encerro.

Era o momento perfeito para empurrá-lo, mas ela não fez isso. Em silêncio, blasfemou contra a própria imobili­dade, enquanto a boca sedutora descia sobre a sua. Como se, de repente, tivesse perdido o controle das habilidades motoras, ficou parada e permitiu que fosse beijada. Pior ainda, permitiu-se usufruir das sensações provocantes.

Os lábios firmes e quentes tinham gosto de café ado­cicado. A barba roçou em sua face quando Erik aprofun­dou o beijo, inserindo a língua na boca de Lynn. Com ou­sadia, ele deslizou a mão esquerda até a curva do quadril feminino, puxando-a para mais perto. As mãos delicadas subiram até o peito vigoroso, como se ela quisesse empur­rá-lo, mas tal gesto nunca se realizou.

Beijaram-se como se tivessem todo o tempo do mundo, tirando proveito total do fato de ela não o estar repelindo. Erik podia sentir a insegurança de Lynn, mas esse senti­mento estava sendo ignorado devido a algo mais forte. E ele estava determinado a fazer de tudo para transformar a faísca que se acendera na noite anterior em uma chama.

No entanto, quando Lynn finalmente tentou encerrar o beijo, ele não a impediu. Um resquício de bom-senso o aconselhou a ir com calma. Lynn estava cautelosa em re­lação a ele. Se uma distância muito grande se instalasse entre ambos, nunca teriam a chance de explorar a paixão que florescia. Por outro lado, se Erik se mostrasse muito impetuoso, arruinaria tudo do mesmo modo.

— Viu? — ele murmurou, com a cabeça ainda bem perto da de Lynn. — A discussão acabou.

Ela engoliu em seco. Um tremor demorado a percorreu.

— Você é muito convincente, senador — ela falou sem fôlego.

— Erik — ele a corrigiu com gentileza.

— E... Erik.

Ele sorriu ao ouvir seu nome ser pronunciado com tanta dificuldade.

— Importa-se de repetirmos o beijo, conselheira Shaw?

— Penso que devemos parar por aqui...

— Seu problema é que você pensa demais.

Lynn gostaria de dizer que aquele não era bem o caso. Durante toda a vida, tinha se metido em confusões por agir sem pensar. Era movida pela emoção e o instinto, ação e reação. Seu sentimentalismo a levara a se afastar da famí­lia. O pai havia sido um homem de lógica. A irmã, Rebecca, também era pragmática e reservada. Por serem; tão sérios e controlados ela se sentira instigada a se comportar de um modo mais afrontoso. A discussão com Elliot Graham na noite anterior constituía um exemplo perfeito.

A voz de Martha rugindo pelo corredor a tirou do tran­se. Com as mãos pressionadas contra o peito de Erik, Lynn o empurrou. O senador lhe lançou seu costumeiro sorriso irritante e, a seguir, soltou-a. A porta da cozinha se abriu, e Martha entrou com os braços carregados de sacolas de mantimentos. Estava acompanhada por três adolescentes, cada uma com uma sacola nos braços.

Após depositarem os víveres sobre a mesa, os olhos de Tracy, Michelle e Barbara se dirigiram para Erik Gunther, como se nunca tivessem visto um homem antes.

— Que cara bonito... — Michelle suspirou, cutucando Barbara com o cotovelo.

Tracy Brogan se apoiou nas outras.

— Será que ele veio junto com a casa? — questionou.

O senador se sentiu incomodado com os comentários e lançou um olhar austero às meninas, mas não surtiu efei­to. Elas continuaram a analisá-lo com curiosidade.

Lynn deu uma tossidela para ganhar a atenção das adolescentes.

— Meninas... Este é o senador Erik Gunther, que re­presenta o nosso Estado. Senador, estas são Tracy Brogan, Michelle Jenner e Barbara Wheeler.

Erik as cumprimentou com um movimento de cabeça. De repente, ele se conscientizou de sua aparência: as rou­pas estavam completamente amassadas e a barba por fa­zer. Não se parecia com um senador. E o brilho no olhar das meninas revelava que elas já haviam deduzido que ele passara a noite ali.

— Tivemos um pequeno problema aqui depois que você e Lilian saíram Martha — ele foi logo explicando. — O padre Bartolomeu e eu acampamos na sala de visi­tas. Concluímos que Lynn não deveria ficar sozinha.

— Problema? — Martha demonstrou preocupação en­quanto tirava o galão de leite da sacola de compras e se dirigia ao refrigerador. — Deus do céu! O que aconteceu com a geladeira?

— Hum, é uma longa história.

Mais do que depressa, Martha entregou o leite a Tracy e segurou Lynn pelos ombros.

— Você está bem?

— Sim. Com certeza. — Ela enfrentou o olhar de sua; chefe sem estremecer.

Porém, a estratégia não enganou Martha, que lançou um olhar repleto de significados a Erik Gunther e voltou a encarar Lynn. O esboço de um sorriso surgiu nos lábios vermelhos da boa senhora.

A porta da cozinha se abriu de novo, e Lilian entrou, com o costumeiro ar afetado. O rosto apresentava linhas de preocupação e desaprovação, e Lynn podia deduzir, pelo suspiro longo, vagaroso e profundo, que a paciência dela es­tava chegando ao fim. A razão do mau humor de Lilian en­trou atrás dela na cozinha: um metro e setenta centímetros de beleza e problemas, com cabelos escuros e olhos azuis.

— Credo, este lugar é um lixo! — Regan Mitchell excla­mou com desprezo. Lançou; um olhar superficial ao redor da cozinha, os braços cruzados sobre a regata preta. — Não tem nem tevê a cabo.

Lynn deu de ombros.

— Acredite se quiser, a maioria das pessoas importan­tes da história do mundo cresceu sem MTV, reality shows e outros programas de entretenimento.

— Não que você fosse assistir a esses programas, se tivéssemos tevê a cabo — interveio Lilian, arrogante.

Regan fez uma expressão de desdém e ressentimento. Lynn fitou Martha, pedindo uma explicação.

— Enquanto você estava ocupada aqui com o ataque aos eletrodomésticos da cozinha, nós estávamos enfrentando uma pequena crise. Regan se ausentou um pouco durante a noite passada sem avisar ninguém.

A menina revirou os olhos e suspirou, à maneira típica dos adolescentes.

— Eu fui até o centro da cidade. Grande coisa! Não ti­nha mais nada para fazer. A Horizon é muito chata...

— E você é mais ainda! — Tracy Brogan zombou maldosa.

— Tracy, já basta — Lynn a censurou. — Lilian, por que você não leva Tracy, Michelle e Barbara para o andar de cima? Tentem decidir como organizar os quartos.

O grupo se retirou. Lilian com o nariz empinado, Tracy esbarrando no ombro de Regan ao passar, e Barbara e Michelle ainda observando Erik com espanto. Então Martha recomeçou a guardar os mantimentos.

Lynn foi até a mesa e pegou um bolinho do prato, com a atenção voltada de novo para Regan.

A garota parecia preparada para a batalha, com uma expressão desafiadora no olhar. Vestia roupa preta, em contraste com a pele alva como leite, e calçava botas de combate. Os cabelos estavam cortados de modo irregular, como se as pontas tives­sem sido mastigadas por ratos; um alfinete com uma cruz pendia da orelha e um pequeno rubi perfurava a narina. Uma aparência feia o bastante para desencorajar aproxi­mações. Lynn conhecia bem o problema; ela mesma usa­ra sua própria versão durante algum tempo.

— Quer um bolinho? — ofereceu.

A resposta não passou de um resmungo.

— Aonde você foi ontem à noite? — Lynn prosseguiu.

— A nenhum lugar.

— Nossa, deve ter sido muito legal!

— Fui à Peace Plaza passar o tempo. Grande coisa!

Pelo canto dos olhos, Lynn viu a cara amarrada de Erik, enquanto ajudava Martha a tirar os mantimentos das sacolas. Olhou de novo para Regan a tempo de pegar a me­nina examinando um esfolado feio nas juntas dos dedos da mão direita.

— Você está bem?

— Como se você se importasse...

— Eu me importo.

— Só porque meus pais pagam você para isso.

— Não, mas tenho certeza de que prefere pensar assim, portanto, não vou discutir com você. O que aconteceu?

O olhar de Regan se moveu com rapidez.

— Tropecei na calçada.

A menina não era uma mentirosa muito convincente. Lynn ainda não descobrira se a falta de habilidade da ga­rota para mentir era natural ou intencional. Decidiu dei­xar o assunto de lado por enquanto. Não gostava da idéia de Regan ter andado pelas ruas à noite, mas, naquele mo­mento, investigar com mais profundidade o que aconte­cera apenas aumentaria a desconfiança da menina.

Deu uma mordida no bolinho e mudou de tática.

— Regan, eu sei que tem dificuldade para seguir regras — ela disse com calma, mergulhando o dedo no recheio com creme, — mas realmente precisamos que sejam seguidas. As coisas estão ficando bastante delicadas com a mudança.

— Por que devo me importar? — a menina indagou. — Odeio essa instituição medonha! Não me importaria se alguém a queimasse!

— Ei! — Erik esbravejou, dando meia-volta, com uma expressão irritada no rosto. — Já ouvi o suficiente da sua boca!

Regan ergueu o queixo.

— Então por que não vai embora?

Lynn viu o rosto de Erik ficar vermelho. Os músculos do maxilar enrijeceram, e as narinas dilataram. Aquela cena fez com que ela se lembrasse do próprio pai. Sentiu o coração doer. Já imaginava que ele não era do tipo tole­rante, porém tinha alguma esperança de estar enganada.

Coração tolo. O senador era um homem autoritário, que vivia seguindo regras, sem fugir a seus princípios. Ele não iria compreender meninas como Regan. Disse que esta­va lá porque se preocupava, mas sua preocupação não ia além da causa em si. As pessoas que se danassem.

Lynn largou o bolinho e se afastou da mesa assim que Erik avançou sobre Regan com o dedo levantado em sinal de advertência.

— A Srta. Shaw está tentando ajudar você. O mínimo que pode fazer é agir de maneira civilizada.

Os olhos de Regan brilharam com rebeldia.

— Quem é você para me dizer o que devo fazer?

Lynn interferiu com diplomacia, colocando-se entre eles.

— Regan, este é o senador Gunther!

— Grande coisa!

Erik prendeu o fôlego, numa tentativa de se controlar.

— O senador já estava de saída — Lynn falou com aspereza, coibindo qualquer repreensão que ele tivesse a intenção de fazer.

Erik estava a ponto de refutá-la, mas acabou mudan­do de idéia. Afastou-se um pouco, quando Lynn passou, empurrando a menina porta afora.

— Vamos cuidar desse arranhão, depois você pode aju­dar Martha a arrumar a cozinha.

— E seu eu não quiser ajudar Martha?

— Problema seu. Vai ajudar, querendo ou não, minha filha.

Erik sentou-se no degrau da frente da casa, olhando para a rua, quieto e triste. O dia estava nublado, porém abafado. Mais abaixo, no quarteirão, um grupo de meninas pequenas se entretinha em uma brincadeira barulhenta. A Igreja de Santo Estéfano, ao lado, reluzia como um pe­queno castelo medieval, esculpido em calcária cor de mel. Na calçada em frente à igreja, uma senhora idosa seguia em seu longo caminho com a ajuda de um andador.

Aquele era um bairro tranqüilo. Parecia ter pouco trá­fego, poucos pedestres ou qualquer movimento. Ele olhou para o outro lado da rua, para a casa sombreada por ár­vores onde morava Elliot Graham, e ponderou se aquele homem pensara especificamente em Regan Mitchell ao lhe dizer que devia encontrar as meninas da Horizon House antes de fazer um julgamento.

Erik se sentia como se a menina tivesse lhe acertado um soco no estômago. E a reação dele em relação ao com­portamento de Regan acertara outro em Lynn. Todo o seu esforço para causar uma boa impressão tinha se perdido.

A porta de tela atrás dele foi aberta, e Lynn saiu. Ele a fitou sobre os ombros e logo percebeu que estava furiosa.

— Tentarei manter Regan fora de alcance quando você fizer sua próxima aparição publicitária em defesa da nos­sa causa — ela falou com ironia.

— Sinto muito por ter perdido a calma — Erik se des­culpou, levantando-se e virando-se para encará-la. — Não gostei do modo como a garota falou com você.

— Jura? E como acha que ela deveria falar comigo? Está magoada, irritada e amargurada. Os pais a abando­naram. Você provavelmente os adoraria. São pessoas poli­ticamente corretas, apesar de acreditarem que o dinheiro é a solução para qualquer problema.

— Ora, não seja tão intratável! — Erik vociferou. Estava irritado consigo mesmo por ter perdido a calma, com Regan por provocá-lo, e com Lynn por tolerar a arro­gância e a grosseria da menina.

— O que espera que eu diga depois de tudo o que pre­senciei? Pobrezinha da Regan, os pais ricos não dão aten­ção suficiente a ela! Isso dá direito à garota de ser mal­criada? Não penso assim. Passei por situações piores que a dela quando era criança e não saía por aí desrespeitando os adultos nem fugindo durante a noite.

— Bem, ótimo para você, Erik — Lynn replicou. — Isso o torna melhor do que o resto de nós. Teve uma vida árdua e saiu dela como um campeão. Talvez devêssemos torná-lo o rei do mundo.

Ele suspirou e esfregou a mão sobre a barba crescida.

— Veja talvez eu tenha me descontrolado...

— Não existe "talvez" nesse caso. Minhas meninas dão satisfação a mim, senador, e não a você. Elas não preci­sam do seu alto padrão de conduta para avaliá-las, muito menos da sua reprovação.

Erik ergueu as mãos em sinal de rendição.

— Já pedi desculpas. Tenho dificuldade para com­preender crianças que têm boas oportunidades na vida e as desperdiçam, como Regan. Não vamos transformar isso em uma grande briga.

Lynn comprimiu os lábios.

— Estamos do mesmo lado, lembra-se? — ele perguntou com gentileza e um sorriso nos lábios. — Sócios. Amigos. — Inclinou a cabeça com a intenção de beijá-la, mas Lynn o ignorou e se afastou.

— Meu pai era professor da Universidade de Notre Dame — ela disse, com a voz apertada e rouca de emoção. — E em comparação a mim, Regan seria uma menina exemplar. Oportunidades não são tudo.

Com as mãos na cintura, Erik inclinou a cabeça e deu outro longo suspiro de derrota.

— Reconheço que me saí mal nessa situação.

— Realmente.

— Sabe; eu não era muito bom para tomar decisões na adolescência — ele falou com sinceridade. — Acho que pre­ciso aprender algumas coisas. Talvez você possa me ensi­nar. Que tal?

Na verdade, tratava-se de um truque para passar mais tempo com ela, e não de um pedido de ajuda. A consciên­cia de Erik o acusou, mas ele a ignorou pela primeira vez.

Queria saber mais sobre Lynn Shaw. Se tivesse de enfren­tar um tratamento de choque junto a delinqüentes juvenis para conseguir o que queria, ele o faria.

Lynn estreitou o olhar e deu mais um passo para se afastar do senador. Apertando os braços contra o peito, meneou a cabeça em negação. Havia cometido o erro de deixá-lo chegar muito perto mais de uma vez. Envolver-se com ele seria um desastre completo. Ela não conseguiria mu­dar a opinião de Gunther sobre garotas como Regan, como ela própria havia sido um dia. Ele fora doutrinado segun­do a moral do Meio-Oeste, seguindo a ética escandinavo-luterana do comportamento apropriado. Era provável que tivesse mais em comum com Elliot Graham do que com ela. Erik tinha colocado na cabeça que a queria, mas aca­baria condenando-a do mesmo modo que condenara Regan, e ela ficaria sozinha, com os pedaços de outro relaciona­mento fracassado.

— Você veio até aqui para dar apoio à nossa causa e ter o rosto estampado no jornal, senador — ela disse com cal­ma ao se virar na direção da porta. — Vamos deixar tudo como está.

— Parabéns, você saiu na primeira página do jornal Post Bulletin hoje. E na terceira do Star Tribune e do Pioneer Press.

Erik Gunther colocou o receptor do telefone entre o om­bro e a orelha, franzindo o cenho enquanto enrolava uma toalha nos quadris, apressado. Seu assessor continuou com todo o entusiasmo de um jovem político aficionado:

— Lori e eu realizamos uma pesquisa de opinião e con­firmamos seu recorde de aprovação pelo eleitorado. O sen­timento geral é de que você é um herói por evitar que jo­vens infratoras fossem jogadas na rua. Ocorreram algumas manifestações contrárias à causa das meninas, mas acho que podemos minimizar esse fato e ainda conseguir uma boa cobertura para você. O que acha? Erik? Ainda está aí?

O senador olhava pela janela do quarto para o bosque exuberante que circundava sua casa. As palavras de Rob William o haviam atingido como um martelo. Aquele era exatamente o telefonema que ele teria esperado de seu braço direito. Tratava-se do tipo de estratégia que discu­tiam todos os dias. Nunca havia pensado com mais profun­didade a respeito e mudado de opinião. Aquele era o modo como o jogo era conduzido. Sua profissão envolvia a aten­ção da mídia, dependia do apoio do público. Na maior parte do tempo, ele aceitava e lidava com as dificuldades sem se preocupar muito. Naquele momento, porém, sua confian­ça vacilava ao pensar em Lynn com uma expressão cínica e acusadora.

— Erik?

— Estou aqui, Rob — ele resmungou.

Com o telefone na mão esquerda, andou devagar até a cama. O assessor o inteirou dos projetos de Elliot Graham em relação a um lugar vago na câmara municipal e, a se­guir, continuou explanando sobre outros assuntos impor­tantes da agenda.

—... E você pode marcar uma conferência com a impren­sa se quiser, mas não esqueça que irá almoçar com Gary Pressman, da revista Minnesota Monthly e jogar golfe com o governador às três horas da tarde.

— Cancele os dois compromissos.

A voz do outro lado da linha ficou muda por um instante.

— C... Como?

— Você ouviu — Erik falou, decidido. — Não vou con­seguir ir à câmara municipal hoje. Se a imprensa quiser uma história, terá de vir até mim para consegui-la. Quanto ao governador, acho que irá compreender se você disser que eu tive coisas mais importantes para fazer do que en­contrá-lo para associar a imagem dele à boa repercussão do caso da Horizon House.

— Mas... Mas...

— Obrigado pela informação sobre Graham. Vou apa­recer na sede do partido mais tarde.

Eles se despediram, Rob William parecendo não enten­der a repentina mudança de planos do chefe. Erik colocou o telefone de volta na estante ao lado da cama e entrou no banheiro para se barbear, quieto e metódico, com o pen­samento focado em Lynn.

— Você é um idiota — disse para si mesmo.

Estava parado na frente do lavatório, com a metade do rosto lambuzado de creme de barbear.

Fitava-se no espe­lho e se condenava por ter feito exatamente aquilo que Lynn o havia acusado na primeira vez em que se falaram. Ele fora até a Horizon House, preocupado apenas com o que sabia superficialmente. Elas estavam enfrentando pro­blemas com moradia. Ele iria aparecer como o conhecido benfeitor, iria apoiá-las e seguir em frente com aplausos de gratidão ecoando atrás dele.

Mas os problemas da insti­tuição iam além de simples moradia.

Erik não pensara muito nas moradoras da casa antes de ir até lá. Havia apenas levantado a faixa do que era cer­to, do auxílio aos indefesos, acreditando com descuido que aquilo era o suficiente. E, assim que conhecera as meni­nas, reagira de um modo que o colocara apenas um ou dois pontos abaixo de Elliot Graham na escala internacional dos cretinos.

Que hipócrita! Havia moldado sua imagem à de defen­sor dos oprimidos e depois os desprezava, como todos fa­ziam. Erik não conseguia se lembrar da última vez em que sentira tanta vergonha de si mesmo.

Em comparação comigo, Regan seria uma menina exem­plar. As palavras de Lynn martelavam em seus ouvidos. Ele se inclinou sobre a pia, lamentando a própria estu­pidez. Ao desaprovar a atitude de Regan, também tinha condenado Lynn. Não precisa me convencer de que tem ra­zão, sir Erik. Não sou uma vestal, nem uma donzela.

Ele a magoara. Não tinham passado juntos nem um dia completo para se conhecerem, e ele já a havia ofendido. Olhou para seu reflexo no espelho com revolta.

— Que espécie de benfeitor você é?

A única coisa que podia fazer era recomeçar, pensou ao levantar a lâmina e passá-la com cuidado sobre o queixo. Devia voltar à Horizon House e provar a si mesmo e a Lynn Shaw que era capaz de se importar com os outros.

— Gosto de trabalhar com platéia — disse Lynn, sar­cástica, enquanto tirava uma caixa da parte traseira do carreto alugado.

Entregou-a á Martha, que a passou para Tracy. A me­nina caminhou com dificuldade na direção da casa, esqui­vando-se dos manifestantes que se encontravam na calça­da, balançando cartazes.

Lynn os observou ao parar um pouco para tomar ar no calor sufocante. O grupo organizado parecia seguir uma agenda. Aquele era o turno da tarde, formado prin­cipalmente por pessoas da idade de Martha. Chegaram entoando um brado em tom único e monótono, típico do Meio-Oeste:

— Salvem nosso bairro de família! Fugitivas, voltem para casa! Salvem nosso bairro de família! Fugitivas, voltem para casa!

Martha olhou os manifestantes com cara feia.

— Aposto que esses aí eram um grupo de camponeses ensebados na vida passada — disse ela, quando Lynn lhe entregou outra caixa. — Provavelmente é a mesma hor­da que participou da caça às bruxas no vilarejo de Salem, há três séculos.

— Bem, estamos a salvo por ora — Lynn disse com ressentimento, enxugando o suor da testa. — Tenho certeza de que deve haver um estatuto na cidade proibindo a queima de infiéis em praça pública. Esse tipo de acontecimento é negativo para a imagem de Rochester-Camel um lugar de beleza, paz e sabedoria supremas.

Martha repassou a caixa a Barbara, observando com olhar protetor quando a menina correu entre os manifestantes, rumo á casa. Meneando a cabeça, desgostosa Martha apoiou os braços na carroceria do veículo.

— Por falar em Camelot, fico imaginando o que de ter acontecido ao nosso cavaleiro, sir Lancelot.

— Com certeza, foi para casa se embelezar para a próxima sessão de fotos.

Martha assimilou o comentário indelicado com ar especulativo. Lynn se virou para apanhar outra caixa de bagunça do carreto de mudança.

— Você foi rígida demais com ele esta manhã — Martha opinou, — considerando que o senador é o nosso único real apoio até agora.

— O padre Bartolomeu é nossa única; e real ajuda até agora. Tudo o que Erik Gunther fez foi aparecer no noticiário.

— Oh, não acho que isso foi tudo.

Lynn encarou a amiga com raiva.

— O que está querendo dizer?

— Creio que não devemos condená-lo por ter perdido a paciência com Regan — Martha falou, ignorando pergunta. — Ela colocaria à prova até mesmo a paciência de um santo. Regan deixou Lilian à beira de um colapso esta manhã. Aquela menina tem o dom de enfurecer as pessoas.

— Não apenas Regan — Lynn replicou, tentando se proteger das lembranças dos beijos de Erik. — O senador mostrou o que realmente é. Eu disse a você que ele só estava interessado em se promover à nossa custa. Homens como Gunther são ligados somente na aparência. Não têm substância.

— Ora, ele me pareceu bastante substancioso... — provocou Martha. — Eu diria, até... Bonitão.

— "A beleza não está em ser, e sim em fazer" — recitou Lynn, mal-humorada.

— Ah, é? Pois eu diria que a beleza dele fez você ficar um tanto balançada.

Lynn estendeu outra caixa a Martha.

— Não fez nada disso. É toda essa confusão que está me perturbando.

— Sério? — Martha arqueou uma sobrancelha ao pe­gar a caixa de livros e colocá-la de lado. — Bem, já que estamos; citando máximas que tal esta: "A honestidade começa em casa"?

A réplica de Lynn morreu em seus lábios quando uma comitiva virou a esquina. Ela se endireitou ao notar o Thunderbird vermelho-escuro de Erik Gunther lideran­do o desfile, seguido por duas; picapes; repletas de pessoas. Estacionaram no meio-fio, atrás do carreto, e os passagei­ros desceram bastante entusiasmados. Vestindo roupas informais, não lembravam em nada uma equipe de repor­tagem nem qualquer outro grupo que costumava rastrear um político popular. Tratava-se de uma mistura de homens e mulheres de várias faixas etárias, alguns armados com a parafernália de limpeza. Um deles carregava um isopor; algumas mulheres carregavam caçarolas e fôrmas.

O próprio Erik trajava-se de modo bem diferente do ha­bitual. A calça jeans desbotada aderia aos quadris esbeltos e às coxas musculosas do senador. A camiseta era de uma tonalidade azul que lhe realçava o bronzeado e a cor dos olhos. Na altura do peito largo, podia-se ler o logotipo da Clínica Mayo e a frase: ROCHESTER, MINNESOTA: PREFERIDA POR NOVE ENTRE CADA DEZ PESSOAS DOENTES.

Analisando-o como um todo, desde os cabelos desali­nhados até os tênis, ninguém adivinharia que ele passava a maior parte do tempo em reuniões de comitês. Parecia adepto da vida saudável ao ar livre e da atividade física.

Ele olhou para Lynn quando se aproximou do carreto. Ela controlou o desejo de olhar em volta e encontrar uma rota de fuga, convencendo-se de que podia lidar com o se­nador Gunther.

— Pensei que as damas poderiam precisar de ajuda para descarregar a mudança — disse ele. — Por isso, pro­videnciei alguns voluntários.

Em troca de um ou dois favores, pensou Lynn. Depois que tudo terminasse, ele teria metade dos grupos de inte­resse em Rochester em dívida com ele.

— Erik, você é um enviado de Deus! — exclamou Martha, dando tapinhas gentis no braço dele. — Na mi­nha idade, não tenho mais tanta disposição para me movimentar, muito menos para descarregar um furgão cheio de tranqueiras.

— Por que não descansa um pouco? — ele propôs. — Coloque os pés para cima e tome um pouco de limonada. Bill tem um isopor cheio de refresco.

— Que ótima idéia!

— Lynn, você também pode ir, se quiser.

— Obrigada por me dar sua permissão, senador — Lynn respondeu com sarcasmo. — Mas me sinto bem aqui.

Martha suspirou e se dirigiu para a casa em meio aos manifestantes. O grupo encarregado da limpeza geral e dos cuidados com a cozinha a seguiu; os demais voluntá­rios ficaram esperando instruções.

— Ajudem no que for preciso — instruiu Erik e voltou á atenção a Lynn.

Ela não ia tornar as coisas mais fáceis para ele, isso estava claro. Fitava-o com hostilidade.

A imagem de uma jovem amarga e desafiadora veio à mente de Erik. Havia uma história pregressa que justifi­cava o comportamento da adolescente rebelde que Lynn ti­nha sido e da mulher sarcástica que se tornara. Ele queria conhecer aquele passado. Queria compreendê-la. Queria que ela confiasse nele. Desejava tê-la amparado e acalma­do quando ela lhe contara sobre a juventude problemáti­ca que tivera. Mas ele duvidava de que ela o deixasse se aproximar naquele momento.

Ela pegou uma caixa de papelão com a etiqueta: "Escritório de Lynn" e a entregou a ele. Erik a passou para uma das voluntárias. Ele e Lynn trabalharam lado a lado durante uma hora sem trocar uma palavra. Quando a par­te de trás do furgão estava vazia, ela se dirigiu à cabine.

— Ainda falta vir alguma coisa da outra casa? — ele perguntou.

— Não. Essa foi á última remessa. Tenho de devolver o carreto.

— Vou com você.

Lynn arqueou a sobrancelha quando a; van do Canal 10 virou a esquina.

— E vai perder uma oportunidade de ouro de relem­brar o público de como está profundamente envolvido com a juventude da América?

Erik apertou os lábios e abriu a porta do furgão.

— Deixo até você dirigir — ele respondeu, reconhecen­do que merecera a cutucada.

Sem esperar que ela concordasse ou discordasse, ele subiu na cabine e se acomodou no assento do passageiro. Lynn entrou em seguida e deu a partida, olhando-o de sos­laio. Pouco depois, desciam a rua margeada por árvores, rumo à Broadway, com um sinistro ranger de marchas.

— Não é que eu não goste da sua ajuda — Lynn come­çou a contragosto, a consciência finalmente superando a teimosia. — É o sentimento por trás dessa atitude que eu julgo inadequado.

— Eu sei.

Ela o encarou, parecendo aborrecida quando pararam em um semáforo.

— É tudo o que tem a dizer?

Erik deu de ombros ao fitá-la daquela forma magnética que a enervava.

— A conversa não me favoreceu muito no relaciona­mento com você — ele admitiu. — Decidi deixar que mi­nhas ações; falem por mim. Pensei bastante no que me disse esta manhã. Estava certa, em parte. Em minha de­fesa, devo dizer que geralmente não tenho oportunidade de me envolver com profundidade em uma causa. Exis­tem muitas delas por aí e pouco tempo.

— Então nós somos uma exceção privilegiada? — Lynn indagou com sarcasmo, voltando á atenção à rua quando o tráfego começou a se mover.

— Quero provar a você que me preocupo com as causas que apoio, além da minha popularidade nas pesquisas — Erik esclareceu, levantando a voz acima do barulho hor­rível que vinha do capo do furgão.

— Não tem que me provar nada, senador. — Ela olha­va pela janela lateral. — Além do mais, não é uma con­tradição? Se estiver apenas querendo provar algo para mim, continua não se importando verdadeiramente com a causa que defende.

— Não. Eu quero me importar. Desejo ajudá-la e enten­der os problemas que suas meninas enfrentam. Provar minhas intenções a você é um assunto à parte.

— E desnecessário — ela acrescentou. Não queria ser objeto de investigação.

Pressionou a alavanca da seta para baixo e entrou na Seventh Street com algum esforço para girar o volante.

— Agora sei como os motoristas de caminhão conse­guem ter espaço para tantas tatuagens nos braços — ela disse. — Senti meus bíceps crescendo neste momento.

— Quer que eu dirija? — Erik se ofereceu.

— Não.

Ele riu.

— Eu já imaginava que não concordaria. Gosta de fa­zer tudo da maneira mais difícil, não é mesmo?

— Não gosto de ficar em dívida com as pessoas.

— Tem medo de como podem cobrá-la?

Foram muitas as dívidas contraídas, pensou Lynn, sen­tindo o coração pesado. Pecados que desejava nunca ter cometido.

Pisou com violência no pedal da embreagem, lutou para engatar a marcha correta sob os protestos do veículo e entrou no galpão que alugava carros. O furgão passou mais rápido do que deveria sobre a lombada da entrada, jogando Erik contra a porta com um baque. Aos solavancos e com muito barulho, percorreu o caminho de cascalho que levava ao escritório. Lynn acionou o freio e o veículo parou bruscamente.

Ela desligou o motor e se recostou no assento, sem fô­lego e esgotada pelo esforço físico de dirigir, pela tensão emocional de ter Erik tão perto e por saber que não podia permitir que ele se aproximasse mais. Olhou através do vidro do pára-brisa, pensativa, e viu as nuvens de poeira que tinham levantado.

Erik a observava enquanto esfregava o lado da cabeça que havia batido na janela. Ela parecia estar a quilômetros de distância. Ele queria envolvê-la em seus braços, mas, quando estendeu a mão para tocá-la, ela abriu a porta do veículo e saiu.

Respirando fundo, ele também desceu do carro e a al­cançou ao lado de pequenos reboques para alugar. O vento agitou os longos cabelos pretos e fez com que a camise­ta lilás que ela usava se moldasse aos seios pequenos e arredondados.

Aquela não era á hora nem o lugar, mas Erik não conseguia desviar os olhos de Lynn. Ela devia ter perce­bido o que se passava com ele, porque lhe fez cara feia. Sem conseguir se controlar, ele a agarrou pelo braço e a pressionou contra um reboque.

— Todos têm direito a uma segunda chance, menos eu; é assim que você age? — ele interrogou, apoiando as mãos nos quadris.

Lynn cruzou os braços na defensiva.

— Não sei o que está querendo dizer.

— Talvez eu tivesse mais sorte se houvesse passado algum tempo em instituições para jovens delinqüentes. Isso a convenceria a jantar comigo?

Ela se recusou a morder a isca. Estava decidida a não se envolver com aquele homem.

— Já o avisei de que não misturo vida profissional com vida pessoal — respondeu, congratulando-se pela frieza.

— Acho que sua vida profissional se fundiu à pessoal — Erik replicou ligeiramente mal-humorado.

Ela ergueu o queixo.

— Não sabe nada sobre mim, senador.

— Estou tentando me redimir, mas você não permite. Está sempre muito ocupada representando o papel da petulante.

Lynn ficou chocada.

— Eu? Sou...

— Está me desprezando porque sou político, porque venho de uma família normal e tive uma adolescência sem incidentes — acusou-a, irritado.

As coisas não estavam funcionando do modo como ele planejara. Havia pensado em cortejá-la sem pressa, en­quanto provava seus méritos a ela, mas estava ficando evidente que, no que se referia a Lynn Shaw, ele tinha pouco controle tanto sobre ela quanto sobre ele mesmo. Ela o provocava de maneiras inimagináveis. Naquele momento, estava indignado a ponto de não conseguir se controlar, independentemente do que a prudência o aconselhasse.

— Vim para ajudá-la, droga! — ele exclamou. — Talvez meus motivos sejam apenas noventa e nove por cento pu­ros, no entanto, além da contribuição do padre Bartolomeu, é a única ajuda que recebeu. E talvez eu não compreenda bem o que você e suas meninas têm enfrentado, mas não está me dando oportunidade de entender.

Ele estava certo. Lynn desejou poder fazer uma répli­ca severa, mas cometeria uma grande injustiça. Mordeu o lábio inferior enquanto refletia. Precisava da ajuda de Erik, mas não pretendia machucar o próprio coração. Seu senso de justiça exigia que desse uma chance a ele ao mesmo tempo em que o senso de auto-proteção dizia que deveria mantê-lo á distância.

— Que tal um pouco de paz, Lynn? Quero fazer a coisa certa — murmurou.

O cascalho estalou sob os tênis quando ele se aproxi­mou. Lynn estremeceu quando o viu levantar a mão e, com gentileza, afastar os cabelos de seu rosto.

— Vamos, Lynn, só peço uma chance.

Deixá-lo chegar tão perto seria o cúmulo da insensatez, para ambos. Porém, ela olhava aqueles olhos azuis nórdicos e queria... Queria muito, desesperadamente... Livrar-se do passado e incluir um homem como Erik em seu futuro.

Tola, o lado cínico de Lynn desdenhou. Ele não estava pedindo para construir um futuro a seu lado, queria ape­nas um encontro. Queria uma oportunidade para provar a si mesmo que era capaz de ajudá-la. Seria uma tola se o recusasse.

— Tudo bem. Você venceu senador — ela concordou afinal.

Não era bem isso que eu tinha em mente, Erik pensou, duas noites mais tarde, ao posicionar um varão de cortina acima da janela da sala de visitas. Tinha conseguido a "chance" de executar trabalhos manuais desde o nascer até o pôr do sol. Lynn o fazia trabalhar como um cavalo e o vigiava como um falcão. Permitira que ele manuseas­se martelo e pregos, além de interagir com as meninas. Mas Erik não teve a menor oportunidade de cortejá-la.

Os dias foram preenchidos com trabalho e preocupa­ção, enquanto colocavam as coisas no lugar dentro da casa e lidavam com os problemas criados pelo grupo lidera­do por Elliot Graham.

No fim de cada dia, Lynn parecia tão exausta que Erik não tinha coragem de persegui-la. A situação estava se tornando muito frustrante.

Ele a olhou por sobre o ombro.

— O que acha?

Ela esfregou o queixo, séria, analisando a posição do varão. Estava bonita com uma regata amarela e saia flo­rida quase transparente, em tons de azul e pêssego. Um cinto largo de couro marcava a cintura fina, e um par de delicados colares de ouro lhe enfeitavam o pescoço. Era a primeira vez que a via com algo diferente de calça jeans e camiseta.

— Levante-o mais do lado esquerdo — ela gritou para ser ouvida acima do volume do rock que tocava alto.

Erik ergueu o varão conforme solicitado. Lynn estreitou os olhos. Lilian foi chamada para dar sua opinião. Tracy e Michelle se juntaram à platéia.

— Gosto de onde está.

— Creio que estava melhor antes.

— Acho que o senador tem um traseiro bonito.

Michelle começou a rir da declaração de Tracy. Erik sentiu o rosto corar, mas remexeu os quadris, provocan­do o riso de todas. O que ele não tivera que aturar nos últimos dois dias, ao carregar objetos, martelar, abaixar e levantar! As meninas tinham perdido toda a inibição que apresentaram no início, tratando-o como se fosse um ir­mão mais velho. O constrangimento do senador havia sido dolorosamente pisoteado, o ego masculino, provo­cado e cutucado sem interrupção.

Ele decidiu encarar aquilo como um teste à própria to­lerância e uma oportunidade para compreender melhor o assédio sexual no trabalho.

Agüentou firme quando começou a sentir câimbras nos músculos dos ombros e encarou Lynn outra vez.

— Essa decisão será tomada em algum horário do pró­ximo milênio? Estou com fome.

— Você vive com fome — ela respondeu, com um sor­riso. — Ainda bem que a Horizon House não abriga rapa­zes. Gastaríamos todo o nosso dinheiro em mantimentos.

— Só por isso, vou pedir uma sobremesa dupla.

— Não faço objeção, desde que pague a conta.

Ela se voltou para as moradoras da casa. Erik obser­vara muito nos dois últimos dias e havia notado que Lynn quase sempre incluía as meninas nas tomadas de decisão. Ele tinha questionado aquela prática no início, mas logo percebeu a sabedoria de tal atitude. Ao opinar sobre onde colocar a mobília, por exemplo, as garotas se sentiam mais importantes do que apenas prisioneiras dentro da casa. Além do mais, os debates suscitados favoreciam o desen­volvimento de valiosas habilidades de comunicação e a ela­boração do pensamento. E tudo era conduzido com tanta destreza e de forma tão prática que Erik duvidava de que as meninas percebessem o que acontecia. A admiração do senador por Lynn aumentava com mais rapidez do que ele desejava. Aquilo o surpreendeu um pouco, tornou-o mais humilde.

Lynn se virou para o sofá onde Regan descansava, com os braços cruzados sobre o peito e os coturnos sobre a mesa.

— Regan, o que acha?

A expressão da menina era de puro tédio.

— Quem se importa?

Lynn não fez nenhum comentário, apenas se inclinou e abaixou o volume do rádio quando Regan se levantou e começou a vagar pela sala. Então Lynn se virou para Christine Rickman, a menina de quinze anos que estava grávida e era extremamente tímida.

— Christine?

A garota corou e um minúsculo sorriso se delineou em sua boca.

— Não sei.

Tracy cutucou Michelle com o cotovelo e disse:

— Acho que o senador deve colocar o varão dele onde quiser.

Lynn arqueou a sobrancelha em uma reprovação silenciosa.

A campainha tocou, e Erik gemeu quando Lilian foi atender a porta.

— Não acho que essa votação precise de quorum. Alguém tome uma decisão!

— Está ótimo, Erik. Pode fixá-lo aí mesmo — Martha falou, ajoelhada ao lado de Barbara, separando pilhas de livros.

Barbara suspirou. Tracy e Michelle irromperam em uma nova gargalhada.

— Oh, é tão bom ouvir risadas depois do dia que eu tive! — disse o padre Bartolomeu.

Ele seguiu Lilian até a sala, apertando as mãos e com os olhos brilhando de preocupação, enquanto um rubor na face revelava que algo acontecera.

— Passei a maior parte do dia na cidade de Winona, com o bispo Lawrence, tratando apenas de problemas — ele prosseguiu.

O coração de Lynn disparou no peito.

— O que ele tinha a dizer?

— Muita coisa. Que Deus se apiede dele, é um ho­mem maravilhoso, mas não consegue lidar com assuntos delicados. — Cruzou as mãos sobre a barriga, revirou os olhos para o alto e murmurou algumas palavras em latim.

— Ele viu as petições de Graham? — Lynn tornou a questionar.

— Sim, e o noticiário na televisão e as matérias nos jornais. — Lançou um olhar de pesar a Lynn. — E eu tive de contar a ele sobre a geladeira.

— Naturalmente.

— Não obstante, assegurei a ele que não era culpa sua querida. Ele não ficou muito contente, mas consegui sua­vizar o efeito das notícias com a história bíblica sobre jo­gar a primeira pedra. Ele achou que podia se tornar uma excelente homilia. — O rosto do padre se iluminou por um breve momento com orgulho.

— O que ele disse sobre a Horizon House? — Erik in­dagou. Baixou o varão e o deixou sobre o degrau da ban­queta, dando total atenção ao religioso.

O padre soltou um suspiro dramático.

— Bem, ele não ficou muito satisfeito por eu ter emprestado a casa sem a permissão do Conselho Paroquial, mas está me apoiando por enquanto.

— Graças a Deus — Lynn murmurou, com uma das mãos tocando no bordado da regata.

— Sim, devemos agradecer — disse o padre, entusiasmado. Então enrugou a testa e inalou uma pequena quantidade de ar, ao lembrar á tarde que havia passado enclausurado com o bispo. — Oh, meu Deus, vimos e revimos toda a situação! Sinto-me como se tivesse lutado com um urso. Ele concorda comigo que, como cristãos, somos obrigados: a oferecer ajuda e refúgio, mas não está muito satisfeita com a publicidade negativa. Desculpe senador, mas ele não quer que a diocese acabe envolvida com assuntos políticos bem agora.

— Ele vai nos deixar ficar — Lynn afirmou, soando mais animada do que realmente se sentia.

O padre meneou a cabeça, assentindo.

— Por enquanto. Devemos orar para que o tumulto aca­be logo. Não gosto de pensar no que ele faria se houvesse muita confusão no bairro.

Pela janela da frente, que ainda estava sem cortinas, Lynn olhou para os manifestantes subindo e descendo a calçada, liderados pelo próprio Elliot Graham, com ares de homem honesto.

Ela sentiu um nó no estômago. Se Graham continuasse com a campanha, a manifestação não acaba­ria. E, se o bispo os tirasse da casa, seria o fim da Horizon House. O único outro imóvel que conseguiram encontrar ficava localizado numa área sujeita a alagamentos, ao longo do rio Zumbro.

Erik pousou a mão sobre o ombro de Lynn para tranqüilizá-la. Era muito menos do que ele queria fazer, mas não achava que tomá-la em seus braços e beijá-la na frente do padre Bartolomeu, das meninas e do grupo de Elliot Graham seria aconselhável e compreendido.

— Dei alguns telefonemas — informou. — Ainda não tive muitas respostas, no entanto espero receber ajuda em um ou dois dias. Enquanto isso, o jantar é por minha conta. O que acha padre? Toda a pizza que puder comer, com antiácido como sobremesa?

O padre se mostrou mais animado, porém hesitou.

— Parece divertido, mas não sei se devo.

— Ah, vamos lá — Erik o encorajou, com o coração co­movido pela atitude do religioso. Não havia muitas pessoas com vontade de defender suas convicções atualmente. — Já que começamos, vamos em frente, como dizem. Além dis­so — brincou, — preciso de outro homem por perto. Essas mulheres me intimidam.

— Bem... Está certo — o padre concordou, com um bri­lho nos olhos.

— Vamos pessoal — Erik falou. — O varão pode esperar. — Ele encarou Michelle e Tracy. — Meu estômago, não.

As meninas sufocaram as risadas. Lynn parecia se di­vertir ao deixar Erik conduzi-la na direção da porta, com a mão nas costas dela. Lilian ajudou Christine a se levan­tar da cadeira, Martha ficou em pé com dificuldade e os seguiu com o andar pesado, pegando a bolsa que estava sobre a mesa de centro e desligando o aparelho de som.

Na porta da frente, Lynn parou e olhou em volta, franzindo a testa.

— Onde está Regan?

— Não sei — ele respondeu.

— Ela estava aqui há um minuto.

Lynn e Lilian foram procurar a menina pela casa. Regan não estava em parte alguma.

— Ela deve ter saído de fininho pelos fundos enquanto conversávamos — Erik opinou.

Enquanto as outras meninas da Horizon House con­seguiram vencer o temperamento reservado do senador em relação a elas, Regan não havia feito esforço nenhum. Na verdade, parecia decidida a deixá-lo irritado.

— Bem — Lynn deu de ombros, — ela vai perder a diversão.

Não gostava de deixar Regan sair sozinha, mas gosta­va menos ainda de sair à sua procura e trazê-la de volta. A força não era o melhor meio de derrubar as defesas da garota. Apenas esperava que ela se estabilizasse emocionalmente e não criasse mais problemas.

— Fico feliz de andar um pouco — Lynn falou, com as mãos nos bolsos da saia.

A comitiva havia se adiantado até que ela alcançou a parte de trás do grupo, acompanhada de Erik. As meni­nas tinham se convencido de que o senador era um homem decente e não escondiam seus esforços para que um rela­cionamento romântico entre ele e a orientadora se inicias­se. Lynn percebeu os olhares furtivos lançados sobre ela, e um sorriso surgiu em seus lábios.

— Também fico feliz de caminhar. — Erik suspirou, batendo de leve no estômago. — É bom andar depois de ter comido aqueles dez pedaços de pizza.

O sol mergulhava além das árvores a oeste, irradiando as últimas gotas de luz quente e alaranjada sobre a pláci­da superfície do Silver Lake. O parque às margens do pe­queno lago estava repleto de pessoas passeando com seus cachorros ou alimentando os grandes gansos canadenses com milho.

A multidão encolhia enquanto a escuridão aumentava. Em breve o lago estaria iluminado pela lua e os bancos do parque, livres, convidando os amantes a sentar e fi­tar as estrelas. Tal pensamento deixou Lynn ainda mais consciente do homem a seu lado.

Os passos de Erik eram lentos e tranqüilos, como se não se importasse em voltar para casa somente à meia-noite. As meninas se adiantaram, levando Martha, Lilian e o padre Bartolomeu com elas. Lynn pensou em correr para alcançá-los, mas logo desistiu da idéia. Estavam em um local público. O que poderia acontecer?

Apaixonar-me por ele. A resposta veio sem um segun­do de hesitação, arrepiando-a, apesar da noite quente de verão. Havia passado os últimos dois dias testando o se­nador, cínica, certa de que ele iria falhar.

Porém, ele não cometera erros. Erik passou em todos os testes de forma brilhante. Tinha trabalhado sem reclamar, sofrerá as provocações das meninas, doou seu tempo e ta­lento com altruísmo. Havia passado horas ao telefone, in­cansável, tentando conseguir apoio para a Horizon House. Nem uma vez tentara tirar vantagem de seus esforços pu­blicamente. O nome de Erik aparecia com destaque nas reportagens sobre a situação da Horizon House, mas ele não estava engajado em procurar a mídia como Lynn espe­rara que ele fizesse.

Erik tinha oferecido auxílio, estímulo e força. Lynn percebera que seria uma tola se o rejeitasse. Havia con­vencido a si mesma de que seria capaz de utilizar fria e cinicamente o que ele propunha, sem se envolver emocionalmente. Contudo, ao notar como ele se dedicava a compreender a situação das meninas e a tratá-las com cuidado genuíno, o cinismo de Lynn em relação ao senador cedeu. O escudo que a mantinha segura e longe de cometer uma insensatez pareceu se esfarelar como um biscoito velho.

O som de risadas flutuou no ar, partindo do grupo à frente do casal, e despertou-a do transe.

Tracy e Barbara começaram a cantar, depois estouraram em risos.

— São meninas muito boas, não são? — Erik indagou, sem conseguir disfarçar o assombro na voz.

Lynn sorriu com gentileza quando ele abaixou a cabe­ça e a encarou, sem graça.

— Elas têm problemas. Cometeram erros. Mas são boas meninas. Estão se esforçando muito para colocar suas vidas de volta nos trilhos.

— Menos Regan.

— Ela vai cair em si.

— Todas conseguem se recuperar?

— Não.

Lynn não conseguia salvar cada uma delas, não impor­tava o quanto quisesse, nem o quanto tentasse. Mas não iria desistir fácil de Regan. Aquela garota fazia com que Lynn se lembrasse de si mesma; quinze anos atrás, ma­chucada, amarga, com medo, desejando que as pessoas se preocupassem com ela, mas, ao mesmo tempo, repelindo as mãos que se estendiam em seu auxílio.

— Não gosto do fato de Regan estar desaparecida — Erik disse. — Se ela se meter em confusão, isso se volta­rá contra a Horizon House. Neste exato momento, o apoio público fora do bairro está levemente á seu favor, mas o pêndulo pode mudar de posição durante a noite.

— Eu sei — Lynn o admitiu triste. — Vou falar com ela amanhã.

— Sim, se ela estiver por perto — ele murmurou com sarcasmo. — Talvez ela possa até escutar.

Lynn parou de andar no mesmo instante e o fitou.

— Se não gosta do jeito como trabalho...

— Calma! — Erik levantou uma das mãos para inter­rompê-la. — Eu nunca disse...

— Sugeriu...

— Não sugeri nada. — Ele respirou fundo, tentando se acalmar.

Era incrível. Ele nunca fora do tipo que discutia com namoradas. No caso de Lynn, ele realmente gostava de discutir sobre qualquer assunto, adorava ver os olhos ver­des brilhando intensamente, divertia-se com a inteligência aguçada e importava-se com a opinião dela. Importar-se. Aquela era a palavra-chave, ele se deu conta, chocado. O que ele sentia por Lynn Shaw ia além do que já senti­ra por qualquer outra mulher. Ele tinha consciência disso desde a primeira vez em que a vira, mas esse fato ainda o espantava.

— Olhe — ele disse, segurando-a pelos ombros. — Não vamos brigar. Vamos focalizar nossa atenção em coisas mais agradáveis.

Lynn o olhou com cautela. Tinha a sensação de que ele conhecia tudo de bom no mundo, que podia abrigá-la e protegê-la do que era ruim. Queria se deixar envolver por sir Erik, o Bom, e aquilo a amedrontava.

Nervosa, ela desviou o olhar para o restante do grupo, que, naquele momento, já se movia a distância.

— Deixe-os ir — Erik falou com calma. — Quero algum tempo a sós com você.

— E sempre consegue o que quer senador?

Ele sorriu.

— Se eu trabalhar bastante e de forma correta.

Lynn demonstrou certo menosprezo, mas deixou que ele a pegasse pela mão e a conduzisse até um banco, num lu­gar agradável, cercado por pinheiros e arbustos com flores lilás e brancas.

Havia poucas pessoas ali, dando a Lynn á sensação fantasiosa de que era um lugar encantado, reservado aos benfeitores. Recriminou-se por ser tão tola ao se sentar e ajeitar a saia. Passara-se muito tempo des­de a época em que acreditava em encantamentos.

Erik se acomodou a seu lado, esticando os braços ao longo do encosto do banco. O coração de Lynn disparou ao sentir os dedos firmes em volta de seus ombros.

— Relaxe — ele sussurrou repentinamente aconchegando-se a ela.

— Foi muito esperto — ela disse, divertida. — Aposto que se aproximou de muitas líderes de torcida desprevenidas, com esse movimento, nos tempos de faculdade.

— Não. — Ele olhou para o lago à frente, pensativo. — Eu não tinha muito tempo para namorar naquela épo­ca. Trabalhava todas as noites e nos fins de semana. Era aquilo ou ficar sem estudar. Eu contava com uma ou duas bolsas, mas não eram suficientes para pagar tudo... — A voz soou fraca, como se as lembranças daqueles tempos custassem muito para ele.

Depois de um momento de silêncio, sorriu discreto e encantador, ao acrescentar:

— Além disso, eu era um pouco tímido com as garotas.

— Você? Tímido? — Lynn riu.

Jamais conhecera alguém com tamanha autoconfian­ça quanto Erik. Imaginá-lo um adolescente alegre, porém frustrado em relação às garotas, tocou-lhe o coração.

— E você? — ele perguntou. — Como era quando tinha dezessete anos?

— Eu? — Foi á vez de Lynn olhar para o lago escuro.

— Qualquer homem com uma filha tem pesadelos com garotas do tipo como eu era.

Ela mantinha o passado trancado em seu interior havia muito tempo. No entanto, ele constantemente a pressio­nava, desejando ser libertado. Uma parte dela queria con­fidenciar tudo a Erik e se livrar daquele peso. O senador era tão sólido e forte. Mas também era bom e puro, e ela sabia que a desilusão e o desapontamento iam tomar conta dos olhos dele. Ambos passariam apenas o verão juntos, depois ele voltaria à cidade de Saint Paul, para cuidar de outros assuntos, outras causas e dirigir o Estado. Por que estragar o tempo que tinham para ficar juntos?

— É uma história longa e triste — ela prosseguiu, sen­tindo um arrepio percorrer-lhe a espinha. — Você não vai querer ouvi-la.

— Quero, sim. — Ele se inclinou e roçou os lábios sobre a têmpora de Lynn. — Desejo saber tudo sobre você.

Ela meneou a cabeça em negação, o olhar distante.

— Beije-me — Erik ordenou com voz tão suave que, por um momento, ela pensou ter imaginado tais palavras.

Distanciando-se do passado, ela o fitou, sorrindo.

— Pensei que fosse tímido.

Ele deslizou a mão pelas costas macias até o pescoço e aproximou a boca dos lábios de Lynn.

— Superei esse problema.

Ela ergueu o rosto para receber o beijo de Erik, fechando os olhos e deixando o passado para trás. Não queria mais aquele peso. Desejava sentir os braços fortes deslizando a sua volta, o sabor másculo invadindo sua boca, a sensação de ser derrotada pelo magnetismo e a sensualidade dele.

Queria pertencer a esse mundo por alguns instantes. E não pensar em mais nada, nem nas garotas, nem na casa, só nos dois sentados ali, às margens do lago, compartilhando um beijo.

Arqueou a língua, permitindo que ele tivesse acesso ao doce calor de sua boca. Um suave arrepio a percorreu a partir do ponto onde ele a massageava na nuca. O delicioso calor do desejo fluiu por seu corpo como mel aquecido pelo sol, rodopiando pelos seios e atingindo o vácuo ansioso da feminilidade. Já havia se passado muito tempo desde que ela permitira que um homem a tocasse daquela maneira, tanto que parecia ser a primeira vez. Cada sensação que surgia parecia nova e intensa, crepitando por seus nervos como eletricidade.

Ele deslizou uma das mãos da curva da cintura e subiu para abrigar um seio, apertando-o com suavidade. Lynn gemeu e se contorceu ao toque de Erik, ficando sem fôlego quando o polegar do senador pressionou-lhe o mamilo. Ela se aproximou ainda mais e ele tirou proveito da situação, enchendo-a de beijos ao longo do pescoço.

O calor do desejo o envolvia por completo. Sentia-se va­gamente consciente do fato de que estavam em um parque público, mas pensamentos sobre a possibilidade de serem descobertos ali foram empurrados para longe. Queria ver os seios de Lynn sob a luz da lua e sugá-los até que ela implorasse para ser libertada. Queria colocá-la sob ele e se libertar dentro do calor úmido da feminilidade que o atraía como um ímã, tomando-a para si em um ritual de acasa­lamento tão antigo quanto o tempo.

O primitivo impulso masculino de criar laços afetivos com uma mulher, com seu corpo e sua alma falava mais alto. E a satisfação daqueles instintos básicos talvez a aju­dasse a se libertar da dor que ele vira nos olhos dela quan­do estivera perdida em pensamentos.

Erik sussurrou-lhe o nome e, emoldurando o rosto deli­cado com as mãos, beijou-a nas pálpebras e nas bochechas.

— Tão doce — ele murmurou.

Lynn levantou o queixo, procurando novamente a boca masculina. Então pressionou a mão contra o peito sóli­do, regozijando-se ao sentir os músculos bem delineados. A seguir ele a envolveu pelo pulso e a guiou mais abaixo, passando sobre o abdômen plano e detendo-se onde a excitação forçava a parte frontal do jeans. Ela gemeu diante do evidente desejo de Erik. A língua ardente e ousada ini­ciou um lento e sugestivo impulso contra a dela de novo. A sexualidade reprimida por tanto tempo tremulava den­tro de Lynn. Os sentimentos eram esmagadores, selvagens. Ela afastou a boca, sem fôlego, quando a mão experien­te encontrou o caminho sob a saia e subiu acariciando a coxa até a junção umedecida das pernas bem delineadas.

Ela desejava abrir-se para ele. Queria senti-lo afagando sua feminilidade. Mas alguns resquícios de sanidade se so­brepuseram às brumas da paixão, o que a deixou irritada.

— Não — ela sussurrou, retirando a mão do jeans de Erik e segurando-o pelo pulso. — Não — repetiu mais para convencer a si mesma do que a ele.

A noite caíra sobre eles, mantendo a alcova secreta nas sombras, com reflexos prateados vindos de uma lâmpada de rua atrás dos dois.

— Deixe-me levá-la para casa esta noite, Lynn — Erik pediu com voz profunda e rouca.

Ela o fitou, percebendo vagamente que ele tremia. Oh, Deus, ela queria dizer sim. Queria levá-lo para a cama e deixá-lo terminar o que haviam começado ali. Mas, desse modo, o relacionamento atingiria um novo patamar, onde os riscos eram grandes. Havia dito a si mesma, centenas de vezes, que não deveria se envolver com Erik Gunther, mas naquele momento era tudo o que mais almejava.

Ele roçou o polegar no rosto de Lynn. A ação foi infi­nitamente suave, um comovente contraponto ao desejo visível que o dominava.

— Erik, eu...

— Lynn! Lynn!

Ela se voltou à procura de quem a chamava. Era um alarme. O temor percorreu seu corpo com uma força terrí­vel. Pulou do banco em um instante, correndo na direção de uma das meninas.

— Tracy!

A garota vinha depressa, sem fôlego e com os olhos arre­galados. Parou perto de Lynn, que a agarrou pelos ombros.

— Querida, o que há de errado? E Christine? O bebê está para nascer?

Tracy negou com a cabeça, balançando o rabo de cavalo.

— Não. Não é Christine. São os policiais.

 

Um agrupamento de pessoas se encontrava no gramado de Cyrus Johansen, olhando para a palavra de qua­tro letras, pintada com tinta preta, na parede da garagem. Uma dúzia de lanternas iluminava a tal palavra, sendo que duas delas eram dos policiais Reuter e Briggs.

Elliot Graham parou ao lado de Lynn, usando camisa e gravata, com os olhos fanáticos queimando com o senti­mento de justiça, no calor tremulante das lanternas. O fi­lho estava hesitante atrás dele, parecendo mal-humorado.

— Essa era exatamente a coisa pela qual eu estava es­perando — disse Graham pai em voz alta e amarga.

— Então não está desapontado, ou está? — Lynn mur­murou discreta.

Ele lhe lançou um olhar aguçado.

— O que foi aquilo, Srta. Shaw?

Erik se colocou entre os dois antes que ela pudesse responder. Lynn se afastou relutante, ressentida; queria revidar a ostentação de Graham, mas sabia que Erik es­tava tentando evitar piorar ainda mais a situação. Estava aborrecida com o vandalismo, com Graham, com o cabo de guerra emocional que empreendia consigo mesma em relação ao senador. O palco estava pronto para que ela reagisse com os sentimentos em vez de usar cérebro, e Erik o havia percebido.

— Antes que faça uma acusação incabível, Sr. Graham — Erik disse com calma, — eu gostaria de observar que não há assinatura na parede.

— Não é necessário — Graham replicou. — Nunca tivemos esse tipo de problema no bairro antes.

— O senhor não tem provas de que o ato de vandalismo foi causado por uma das moradoras da Horizon House.

— Qual é a prova de que o senhor precisa? — o filho de Graham zombou com sarcasmo.

Erik dirigiu ao garoto um olhar frio e austero.

— Mais do que seus preconceitos pessoais, rapaz.

O garoto fez uma carranca e correu para trás do pai. Do lado direito de Lynn, Cyrus e Edna Johansen estavam parados perto de Reuter e Briggs, dando seu depoimento.

— Edna e eu tínhamos acabado de nos acomodar para ver o noticiário, quando ouvimos o tumulto...

— Oh, meu Deus — o padre Bartolomeu resmungou preocupado. — Não quero nem pensar no que o bispo irá dizer sobre isso — ele sussurrou ao ouvido de Lynn.

Ela queria explicar que nenhuma de suas garotas ha­via cometido tal ato. A cidade de Rochester, com certeza, possuía mais; jovens problemáticos do que apenas as que moravam na Horizon House. Vandalismo não era um ato fora do comum. Porém, ela não disse nada. Na verdade, o bispo Lawrence não se importaria com quem havia come­tido a falta, e sim com a publicidade negativa envolven­do a Igreja de Santo Estéfano. A especulação de que uma das meninas da Horizon House tinha feito aquilo seria o suficiente para deixá-lo insatisfeito.

— E isso que acontece quando se acolhem delinqüen­tes em um bairro de família — Graham provocou.

— Não fomos bem acolhidas — Lynn falou com rispidez e se virou para o adversário.

— As famílias que vivem aqui não querem ser submeti­das a esse tipo de caos — Graham disse com ar de superio­ridade. Depois, gesticulou dramático na direção da parede e acrescentou: — Nem a essa linguagem.

— Ah, me poupe...

— Lynn. — Erik a segurou pelos ombros, afastando-a de Graham. — Por que não vai para casa com os outros? Envolver-se em brigas não irá ajudar a causa.

Ela cerrou o cenho, irritada, mas sabia que ele estava certo. Quanto menor a atenção sobre o problema, melhor. Com poucas e breves palavras a Lilian e Martha, ela se virou e conduziu a todos pela rua, na direção da casa, onde as meninas já esperavam nos degraus da varanda por no­tícias.

Todas foram levadas para dentro. Martha rumou para a cozinha, a fim de fazer um bule de chá. Lilian cami­nhou pela sala de visitas. O padre Bartolomeu desabou na poltrona, parecendo um mártir relutante. As meninas pas­saram pela porta, com os olhos em Lynn, que estava para­da junto à janela da frente, olhando para fora.

— Eles vão conseguir se livrar de nós, não vai? — Barbara perguntou.

Os olhos de Tracy se estreitaram com raiva.

— Não fizemos nada. Eles não passam de um bando de idiotas.

Lynn suspirou e caminhou pela sala até as meninas, parecendo aborrecida.

— Não os coloque na mesma categoria, querida — acon­selhou preocupada. — Nem todos são maus. Do mes­mo modo que nem todos os jovens com problemas são maldosos.

A boca de Tracy formou um beicinho, e ela desviou o olhar. Lynn observou o outro quarteto, fixando-se em Christine. A garota pressionava uma das mãos na barri­ga redonda. Os olhos escuros brilhavam de preocupação quando se voltou para a conselheira.

— Estou com medo — sussurrou.

Lynn a abraçou.

— Não se preocupe querida. Vamos superar esse pro­blema. — Sorriu, tentando animar a garota. — Temos o senador Gunther do nosso lado.

— Sim. Tudo o que eles têm é Elliot Graham — Michelle interveio, rangendo os dentes.

— E aquele garoto chato e estranho — Tracy acrescen­tou. — Já observaram aquele rapaz? — Ela estremeceu de revolta. — Ele me dá arrepios.

Quando Lynn levou as meninas aos seus quartos, no andar superior, a conversa gravitou de pessoas estranhas para homens atraentes. Ela se sentiu corar um pouco quando sondaram a respeito do tempo em que ela estivera a sós com Erik no lago.

— Sentamos e conversamos — Lynn disse apenas, evi­tando o olhar indagador de Michelle ao estender a coberta sobre uma das camas.

— Sim, claro. — Tracy riu maliciosa.

— Ele é muuuuito bonito. — Barbara suspirou, vestin­do a camisola.

Lynn ajeitou um último travesseiro, depois parou com as mãos na cintura, olhando para as meninas com uma expressão séria.

— Sei que estão tentando aproximar o senador Gunther de mim, mas não tenham tantas esperanças a respeito. Erik é um homem ocupado, e eu também não tenho tempo para relacionamentos amorosos. Estamos nos divertindo com a companhia um do outro por algum tempo, mas isso é tudo.

Tracy lançou um olhar enviesado a ela, quando se aco­modou sobre a cama e cruzou as pernas no estilo de yoga.

— Na verdade, Lynn, você tem que fazer outras coisas na vida, além de pensar em nós.

Aquele sábio comentário atingiu a conselheira como um tijolo. Ela se recobrou instantes depois, com algum esforço.

— Talvez quando não enfrentarem mais o risco de se­rem jogadas na rua — ela falou com sarcasmo.

Deu boa-noite para as meninas e desceu devagar e com esforço as escadas, sem vontade de lidar com a polícia, nem com Erik, sobre o problema. As palavras de Tracy ecoavam em sua cabeça, desviando a atenção de um problema pa­ra outro.

Lynn não tinha vida fora da Horizon House. Apesar de não morar ali, aquele era seu lar e aquelas pessoas era sua família. Martha e Lilian desempenhavam os papéis de amiga e mãe substituta. As meninas eram moradoras, estavam ali para que Lynn as ajudasse com aconselhamento, mas também exerciam o papel de filhas adotivas. Davam-lhe a chance de ser mãe, sem correr o risco de um envolvimento romântico.

Durante longo tempo, Lynn estivera muito contente com aqueles papéis e os sentimentos que os acompanhavam. Tinha rompido o relacionamento com a própria família de um modo que não tinha mais conserto. Havia se permitido viver um romance muito tempo atrás e fora completamen­te; traída. A segunda oportunidade de ter uma convivência familiar surgiu na forma da Horizon House, e ela a acei­tou com gratidão. Mas, de repente, percebeu que esperava algo mais...

— Eles prometeram não torturar. Não precisa ficar com esse ar de sofrimento.

A voz de Erik a afastou de seus pensamentos.

— Já sabe das novidades, senador? — ela perguntou irônica.

Ele meneou a cabeça em negação.

— Não haverá protestos naquele ponto esta noite — afirmou sério. — Mas a primeira coisa que Graham fará pela manhã será trazer seu grupo para cá. Pode apostar.

Tomaram seus lugares nas cadeiras que haviam sido trazidas da sala de jantar. Lilian se recusou a sentar, seus nervos a impulsionavam a vagar pela sala. Martha e pa­dre Bartolomeu ocuparam as duas cadeiras estofadas, com ar pessimista.

Lynn observou os policiais com cuidado. Podiam estar do lado de Graham. Normalmente, a polícia suspeitava dos adolescentes, especialmente daqueles que já possuíam antecedentes de mau comportamento. Tal idéia fez com que os instintos de proteção de Lynn se aguçassem, e ela foi logo dizendo na defensiva:

— Nenhuma de nossas meninas cometeu aquele ato de vandalismo.

— Pode responder por elas na hora do incidente? — perguntou Briggs.

— Acabamos de voltar de um jantar — Lilian falou atrás de Lynn naquele momento.

— Estavam todos juntos?

— Sim, com exceção de Regan — Erik respondeu hesitante.

Lynn não aparentaria maior mágoa se ele a tivesse esbofeteado. Fitou-o, claramente sentindo-se traída. Ele se condenava por ser tão honesto e comprometia Regan. A garota era um problema, não havia dúvidas quanto a isso, mas não significava que ela fora a responsável pelo ocorrido.

— Regan é inocente — Lynn afirmou, concentrando-se em Erik.

— Onde está Regan agora? — Reuter interrogou.

— Saiu por conta própria mais cedo — Martha respon­deu. — Ela gosta de passar algum tempo na Peace Plaza.

— Então ela poderia ter pichado o muro dos Johansen — Briggs falou.

Lynn continuava encarando Erik.

— Porém, ela não o fez.

— Desculpe-me, Srta. Shaw, mas não tem como saber. Queremos falar com ela amanhã.

Depois de poucas perguntas mais, os policiais saíram, assegurando a Lynn que voltariam para falar com Regan. Padre Bartolomeu os acompanhou, rezando o rosário em voz baixa.

A casa ficou tão silenciosa quanto uma tumba, enquanto os outros se encarregavam de pôr a sala em ordem de novo. Uma forte tensão pairava no ar.

— Consegue ver algo promissor naquelas xícaras, Martha? — Erik perguntou para quebrar o silêncio.

— Estou com receio de olhar — ela respondeu com tristeza e seguiu Lilian até a cozinha.

Ao ficar a sós com Lynn, Erik se recostou no batente da porta e a observou com cuidado, enquanto ela afofava as almofadas do sofá. A boca formava uma linha, de­monstrando o quanto estava aborrecida. Ele fechou os olhos por um segundo e se lembrou da satisfação estam­pada no rosto dela quando estavam sentados próximos ao Silver Lake. E imaginou quanto tempo iria demorar até que ele a tivesse nos braços de novo.

— Não temos certeza de que ela não estivesse envol­vida no episódio da pichação — ele começou, esperando acabar com o mal-entendido o mais breve possível. — Essa palavra faz parte do vocabulário dela.

Lynn se endireitou, com os olhos brilhando. Ele se afastou da porta e deu um passo na direção da conselheira.

Assim como ele, ela avançou um passo.

— Também é uma palavra do meu vocabulário, senador — ela afirmou sarcástica. — E acredito que o ouvi usá-la outro dia. Significa que também somos suspeitos?

Erik suspirou. Não queria discutir. Queria apenas que ela usasse a razão uma vez quando o assunto era Regan Mitchell.

— Lynn, eu não estou acusando a menina. Apenas acho que você deve enfrentar a possibilidade de que ela talvez tenha feito aquilo. Ela não demonstra ser tímida com re­lação ao que sente. Odeia esta instituição. Diz que não se importa com o que aconteça com a Horizon House. Poderia muito bem contribuir para o fechamento do abrigo, com o intuito de se livrar deste lugar.

— Você não entende... — Lynn murmurou. — Trata-se de um desafio. Regan quer que realmente nos importemos com ela, mas vai tornar tudo tão difícil quanto for possível para ter certeza de que o que sentimos é verdadeiro.

— Bem, ela está se saindo muito bem nesse aspecto.

— Sim. — De ombros caídos, Lynn passou por Erik e se dirigiu ao corredor, onde se encostou à balaustrada da escadaria e olhou para a escuridão do primeiro andar. — Bem — prosseguiu, demonstrando cansaço, — é muito mais fácil ser especialista em fazer algo do que lidar com pessoas.

Ele a enlaçou pela cintura e a beijou na têmpora.

— Você é muito boa no que faz querida. Apenas não quero vê-la desapontada com essa garota.

— Também não quero me decepcionar — ela sussurrou, sabendo que existia a possibilidade de ele estar certo de novo, sir Galahad, o cavaleiro protetor.

Ele assentiu com seriedade, e Lynn fez uma careta.

— Realmente o envolvemos em nossos problemas, não é? Tenho certeza de que preferiria passar suas noites em outro lugar a ficar amontoado num sofá.

Os olhos de Erik brilharam. Não havia como não saber em que ele pensava quando um sorriso se desenhou em sua boca.

— Sim. Na verdade, eu contava com isso esta noite.

— Não sei se você deveria depositar suas esperanças em mim. Eu poderia decepcioná-lo.

— Por quê? — ele indagou. — E não me venha com essa bobagem sobre conflito de interesses. Podemos ter algo realmente especial, Lynn. Você sabe disso. Por que não dei­xa acontecer?

— Não vai dar certo — ela respondeu na defensi­va. — Somos pessoas ocupadas. Dedicamo-nos às nossas carreiras...

— Sou dedicado, mas não escravo. Você também não deve ser. Precisa ter uma vida fora desta instituição.

O olhar de Lynn lhe dizia que ela não se sentia mere­cedora da felicidade. E Erik ponderou sobre o que teria semeado aquele sentimento, mas não investigou a questão. Quando estivesse pronta, ela lhe contaria. Em vez disso, decidiu guiá-la. Na verdade, era um homem acostuma­do a conseguir o que queria. Lynn não seria uma exceção à regra.

— Sexta à noite — ele propôs com firmeza. — Vamos sair de verdade. Você e eu apenas. Sem adolescentes. Sem desculpas.

— Mas... E a casa? — ela inquiriu. — E se alguma coisa acontecer? E se...

— Lilian e Martha são perfeitamente capazes de lidar com isto durante algumas horas. Conseguiram viver até os sessenta e poucos anos sem você nem eu para cuidar dos problemas delas.

Lynn o fitou, contrariada.

— Apenas por falta de opção.

— Vamos lá, conselheira — Erik insistiu. — Um encon­tro. Até mesmo nós, benfeitores, merecemos uma folga da causa de vez em quando.

Um encontro. Ele não estava pedindo a lua. Também não estava prometendo nada. Lynn fechou os olhos por um segundo e se lembrou de como havia se sentido quando ele a abraçara no parque. Ansiava para se sentir daquela maneira de novo... Merecendo ou não. Eles poderiam ter o tal encontro. Poderiam passar a noite juntos. Entretanto, uma ou duas noites era tudo o que teriam.

— Está bem, senador — ela concordou, com um sorriso triste. — Teremos nosso encontro.

Na sexta-feira, Lynn vestiu-se com esmero para o en­contro. Com o coração disparado, correu para abrir a porta quando a campainha tocou.

Erik estava lindo e elegante; segurando um pequeno buquê de violetas quando ela foi abrir a porta.

— Está bonita — ele murmurou, com um sorriso sábio e reservado.

O coração de Lynn disparou.

— Chegou cedo — ela deixou escapar de forma pouco recomendável.

Erik sorriu e entrou no apartamento.

— Não quis lhe dar chance de se livrar de mim.

— Obrigada pelo voto de confiança. — Ela pegou as de­licadas flores embrulhadas em papel celofane que ele lhe estendeu. Deu a volta no barzinho e foi à pequena cozinha, para apanhar um vaso no armário. — E obrigada pelas flores — acrescentou com suavidade, mais emocionada com tal gesto do que gostaria de estar.

— Elas estavam crescendo no bosque atrás da minha casa — Erik disse, andando pela sala à procura de pistas que lhe revelassem mais sobre a mulher que o atraía tanto. Não havia muito a ser visto.

Apenas um sofá e uma cadeira feitos em trama rústi­ca e de tonalidade marrom, uma mesa de centro enterra­da sob pilhas de pastas de arquivo, uma estante modular abarrotada com livros, um aparelho de som e três plan­tas quase mortas em potes de cerâmica. Um; porta-retrato sobre a televisão, no qual ela aparecia com Lilian, Martha e um grupo de ex-alunas da Horizon House em um acam­pamento. Colocou o dedo na moldura empoeirada, depois se virou, sorrindo.

— Estou certo de que transgredi a lei quando as colhi.

Lynn ofegou e pressionou o coração com a mão.

— Senador, que comportamento escandaloso! Espero que ninguém o tenha visto.

— Fui dar uma volta lá fora em roupas íntimas en­quanto minha calça estava na secadora.

Lynn riu, e ele sentiu um calor deslizar pelo abdômen. Deus, como ela era bonita! O vestido realçava ainda mais os olhos verdes e as curvas sensuais do corpo de Lynn. Erik queria tomá-la nos braços ali mesmo, e fez um grande es­forço para se controlar.

— Não estou muito preocupado — ele prosseguiu, com voz rouca. Seu olhar se demorou nos seios firmes. — Moro longe da cidade, em Buckthorn. Talvez um casal de esqui­los tenha me visto. — Fez um gesto amplo, indicando os outros cômodos. — Posso dar um passeio para conhecer o resto do apartamento?

— Está olhando para ele — ela respondeu. A seguir empurrou uma pilha de correspondências ainda fechadas para o lado e colocou as flores no meio do balcão. — Pode ver tudo de onde está.

— Não posso ver o quarto — retrucou-o voltando a encará-la, insinuante.

Outra onda de calor percorreu o corpo de Lynn.

— Acredite você não iria gostar. Faz lembrar a explo­são de uma bomba na loja Casual Corner.

— Fecharei os olhos.

— Então, vai continuar sem saber como é.

— Eu já lhe disse antes — ele murmurou com um sorri­so sedutor, — sou bom com as mãos.

— Esqueça isso, campeão. — Ela pegou as chaves. — Você me prometeu uma noite na cidade.

— Eu a coagi a uma noite na cidade.

— Está fazendo tempestade em copo d'água.

Enfim, trancaram a porta do apartamento e saíram do edifício, rumo ao carro de Erik.

— Antes preciso passar na instituição por dois segun­dos — Lynn informou ao se acomodar no assento do carro, enquanto ele deslizava para trás da direção.

Fitou-a, meio impaciente.

— Desculpe-me — ela pediu. — Esqueci minha bolsa no trabalho.

— Dois segundos — ele falou com voz sinistra. — E você tem que me prometer que não vai passar a noite toda se preocupando com o que pode estar acontecendo na sua ausência.

— Prometo — ela murmurou a contragosto.

— Vou prendê-la a essa promessa — ele declarou. En­tão tornou a sorrir de modo sensual e piscou para ela. — Melhor ainda, vou prendê-la a mim.

Erik entrou na Horizon House junto com Lynn. Não ha­via ninguém em casa. Era a noite do mês em que as meni­nas iam ao cinema, acompanhadas por Lilian e Martha.

— Está no meu escritório — Lynn falou e caminhou pelo corredor, mas seus passos vacilaram quando passou pela porta da sala de visitas.

Com o canto dos olhos, ela avistou uma silhueta no sofá e seu coração saltou quando se virou.

— Quem está aí? — perguntou autoritária, apesar do medo que sentia.

Um soluço foi á única resposta. Ela se aventurou e se aproximou, apertando os olhos na penumbra. As persianas haviam sido abaixadas e as luzes apagadas, deixando o cômodo envolto por sombras pesadas. Lynn automatica­mente acendeu a primeira lâmpada de mesa que encon­trou, iluminando uma cabeça com cachos dourados encos­tada no sofá.

— Christine? — Lynn questionou, preocupada. — Querida, o que há de errado? Por que não foi ao cinema com as outras?

A menina a observou, triste. O nariz e os olhos estavam gotejantes, e a boca tremia.

— Eu... Eu t... Telefonei para meu pai, como v... Você disse que eu d... Devia fazer.

Lynn se acomodou ao lado da garota, com o coração cada vez mais apertado. Aconselhara Christine a dar o primei­ro passo em busca da reconciliação com o pai e a madras­ta, que literalmente a jogara na rua quando engravidou. Lynn conversara com o Sr. Rickman vária vezes, tentando explicar o sentimento de abandono que invadiu Christine quando ele se casou de novo, logo após a morte da mãe da menina, sentimento que a levou a procurar amor em uma; outra fonte. Lynn percebera que ele estava pronto para voltar a falar com a filha, mas era óbvio que algo não havia dado certo.

— Oh, querida — ela murmurou. — As coisas não saíram como você imaginava, não é mesmo?

Os olhos de Christine transbordavam de lágrimas. Em um segundo, ela estava nos braços de Lynn, soluçan­do até quase perder o fôlego. Lynn se esforçou para não chorar junto com ela. Passara pela mesma experiência de Christine. Sabia como era estar só e grávida. Sabia o quan­to era doloroso ser repelida pela família e abandonada pelo homem por quem que julgara ser amada.

— Por que tem que ser tão difícil? — a menina per­guntou atormentada.

— Não sei, querida — Lynn sussurrou, desejando do fundo do coração saber. — Se eu tivesse a reposta para essa pergunta, poderia tornar o mundo um lugar melhor, não poderia?

Passou muito tempo até que as lágrimas cessassem. Lynn a ouviu com paciência, abraçando-a calorosamente. Por fim, Christine a olhou de soslaio.

— Estraguei o seu encontro. — Esticou a mão e tocou em uma grande mancha úmida no vestido de seda de Lynn. — Estraguei a sua roupa.

— Não se preocupe comigo — Lynn disse com um sorriso.

De repente, lembrou-se de Erik. Um olhar para o relógio a avisou que os "dois segundos" haviam se estica­do para uma hora e meia. Ele devia estar furioso com ela. Bem, era uma situação difícil. As lágrimas de Christine eram muito mais importantes do que jantar e dançar, e, se ele pensasse de modo diferente, poderia ir embora.

— Acredite se quiser — Lynn continuou, — já tive encontros antes e terei outros. Você vai ficar bem?

A menina deu de ombros e, com uma das mãos, acariciou a barriga volumosa.

Lynn percebeu a incerteza da garota e lhe apertou a mão.

— Estarei à disposição sempre que você precisar de mim, querida.

— Eu sei. Obrigada.

— Por que não vai se deitar? — Lynn propôs gentil. — Usar uma caixa inteira de lenços de papel é um traba­lho muito cansativo.

Quando Christine estava devidamente instalada em sua cama no andar superior, Lynn pegou a bolsa e apagou a luz da sala de visitas. Caminhou até a porta da frente, pensando se ia ter de chamar um táxi para voltar para casa. Ao olhar para fora, notou que Erik estava sentado com as costas contra a balaustrada da escada, olhando para as estrelas no céu.

Naquele instante, ela se deu conta de que estava apai­xonada por ele. Enfrentara situações de instabilidade durante vários dias, mas naquele segundo caiu em si. Ele se virou, sorrindo de modo caloroso e gentil, fazendo-a derreter por dentro.

— Está tudo bem? — ele indagou.

— Não. — Ela se sentou no degrau próximo a ele, envolvendo os joelhos com os braços. — No entanto, Christine vai se sentir melhor.

— Ela tem muito para superar.

— Sim, eu sei. — Lynn observou a escuridão por um longo tempo, perdida em lembranças. Então afastou as recordações e olhou para Erik com um sorriso irônico. — Achei que você tivesse ido embora há muito tempo.

— Mostra o quanto você sabe sobre mim. Vamos sair esta noite a qualquer preço.

Jantaram em um restaurante elegante, em uma mesa com vista para as estrelas. Após a refeição foram; para a casa de Erik, na isolada área de Buckthorn. A estrutura era simples, em três níveis, feita com cedro rusticamente cerrado. Estava em perfeita harmonia com os arredores, embora fosse bastante confortável. O bosque além do gra­mado chilreava com a vida noturna. O céu parecia adorna­do com pontinhos de diamantes. Encontravam-se no largo deque nos fundos da casa, envoltos por uma grande sensa­ção de paz.

Pela primeira vez em várias semanas, Lynn se sentiu realmente descansada, como se aquele lugar fosse um re­fúgio seguro e distante, onde os problemas do mundo não pudessem alcançá-la.

Inalou o ar fresco da noite e o exa­lou devagar, fechando os olhos.

Erik se levantou, ligou o aparelho de som e estendeu a mão para ela.

— Dance comigo — pediu.

Lynn se deixou envolver pelos braços fortes sem dizer uma palavra, aninhando a cabeça no ombro largo. A can­ção Unforgetable flutuava no ar enquanto os dois giraram pelo deque. Ela sentiu um tremor percorrê-la quando ele abaixou a cabeça e roçou os lábios em seu pescoço. A seguir, a boca de Erik encontrou a dela e a beijou de modo arrebatador, as enormes mãos deslizando pelas costas de Lynn e puxando-a para mais perto.

Ela o queria como nunca desejara outro homem antes. A idéia há amedrontava um pouco. Não conseguiu evitar deixá-lo se aproximar tanto. Era uma necessidade que aumentava a cada instante, exigindo ser saciada.

— Preciso de você, Lynn. — O sussurro incrivelmente sensual chegou até ela.

— Sim — ela murmurou, esfregando os lábios no queixo de Erik.

Ela o beijou no rosto e no pescoço. Com uma das mãos, afrouxou o nó da gravata e desabotoou o botão de cima da camisa que ele usava. De leve, pressionou a boca contra o peito macio e o afagou com a ponta da língua. Um gemi­do profundo vibrou contra ela.

Ele deslizou as mãos pelos cabelos escuros, derrubando as presilhas sobre o deque e libertando os fios, que lhe caí­ram sobre os pulsos e antebraços. Inclinando a cabeça de Lynn para trás, fitou-a no rosto, tenso, os olhos brilhantes, queimando com o calor do desejo que o consumia.

Beijou-a outra vez com urgência, e ela respondeu com idêntica necessidade. Agarrou-se a ele e o pressionou contra ela, foi quando Erik a ergueu no colo e a carregou.

O senador atravessou o deque e abriu a porta de vidro que levava a seu quarto com os ombros.

O cômodo estava iluminado pela luz suave do luar que entrava pela janela. Lynn assimilou o quarto por meio de sensações e impres­sões: o toque do grosso tapete bege sob seus pés quando Erik a colocou no chão, a organização e as linhas mascu­linas da mobília. Com a atenção exclusivamente voltada a ele, não conseguiu reparar na decoração nem tentar dis­cernir qualquer coisa sobre o homem que a seduzia.

Ele se deteve nos pés da cama, com os olhos grudados nela quando puxou a gravata e levou a mão até os bo­tões da camisa. Imitando-o, ela começou a abrir os botões de madrepérola do vestido.

Quando atingiu o último aci­ma do cinto, Erik a envolveu pela cintura.

— Deixe-me fazer isso — ele pediu.

Introduziu os polegares dentro do corpete e o tirou devagar. A seguir lhe envolveu os seios com as mãos em concha. Ela ficou totalmente parada para o exame, apesar da respiração ofegante.

Ele os tocava, acariciava e aperta­va com gentileza, saboreando o tamanho e o formato com os dedos. Os mamilos intumescidos pareciam implorar por atenção.

Outro tremor de desejo sacudiu o corpo ansioso de Erik, e aquela mesma paixão ardia em Lynn. Ela se arqueava com o toque ousado.

— Erik, por favor... — ela gemeu.

Ele a ajudou a se livrar do vestido e se contorceu quando as mãos pequenas e delicadas deslizaram pelos músculos de suas costas. A próxima coisa que Lynn percebeu foi que estava na cama, com Erik sobre ela, separando as coxas roliças com os joelhos para se acomodar com intimidade de encontro a ela. A camisa e a gravata dele já haviam sido tiradas e abandonadas em algum lugar. Ela o olhou com o coração disparado.

— Já faz muito tempo para mim — disse com discri­ção, sem ter certeza do motivo que a compeliu a fazer tal revelação.

Teria sido melhor deixá-lo pensar que transava com re­gularidade. Teria sido melhor não deixá-lo saber que aque­le momento era especial. Mas a necessidade de partilhar essas informações com ele era quase tão forte quanto á necessidade de tê-lo dentro dela.

Erik a observou em silêncio por um longo tempo, ava­liando a importância das palavras de Lynn.

— Bom — ele finalmente sussurrou. — Fico feliz que tenha esperado por mim.

— Não fiquei esperando.

Ele sorriu sensato e meneou a cabeça em negação.

— Esta é a primeira vez. Nossa primeira vez. É tudo o que conta.

Lynn não conseguiu conter as lágrimas que brotaram em seus olhos. Sentia-se pequena ao lado de Erik, o Benfeitor. E ele fazia com que ela se sentisse pura de novo, como se o passado nunca tivesse acontecido, como se a bondade dele pudesse de algum modo apagar os pecados da juventude dela.

Tolice, a voz cínica do interior de Lynn se manifestou. Ele era somente um homem e apenas fariam sexo. Nada que ela já não tivesse experimentado antes.

— Está tudo certo, querida. — Carinhosamente, ele lhe beijou uma lágrima que se formava no canto do olho.

E ela se rendeu ao sentimento, bloqueando as dúvidas. Afagou os cabelos de Erik, enquanto ele a beijava até atin­gir os seios. Ela ofegou e se arqueou quando ele abocanhou um dos mamilos, concentrando-se na incrível sensação, no ímpeto ardente que reivindicava seu corpo. A boca ávi­da movia-se com habilidade, puxando e mordiscando com brandura o ponto sensível.

A seguir, tateando-a, ele começou a tirar a meia-calça, que se revelou um divertido desafio, fazendo com que Lynn o ajudasse a livrar as pernas daquele emaranhado. Quan­do ela finalmente estava livre e sorridente, Erik voltou a se acomodar junto a ela.

— É isso que eu quero — ele disse, afastando-lhe os ca­belos do rosto. — Vê-la feliz. — Abaixou a cabeça e mordiscou-a nos lábios. A voz se tornou mais rouca quando a fitou nos olhos. — Fazê-la feliz.

Lynn deu um sorriso irônico.

— Acho que terá que tirar a calça para isso.

Ele obedeceu sem hesitar, jogando a calça e a cueca para o lado e voltando para ela, glorioso e sem o menor pu­dor. Ele tinha um corpo bonito, atlético. Lynn estremeceu de desejo quando ele se posicionou á seu lado. Não conse­guiu evitar tocá-lo, deleitando-se com a maciez do corpo musculoso.

Então ele se deitou de costas e deu a ela total liberdade para explorá-lo, arrepiando-se e gemendo quando foi to­cado no ponto de maior sensibilidade. Ela massageava o membro sólido, quente e pulsante entre as mãos miúdas. Pensou na sensação que a consumiria quando o tivesse dentro dela, e um tremor de urgência a sacudiu.

Lynn soltou um gritinho de surpresa quando Erik in­verteu as posições e a deitou de costas.

Ele se posicionou sobre ela, parecendo um predador.

— Minha vez — ele sussurrou, deslizando a mão pela coxa até os cachos escuros como ébano, que escondiam os segredos femininos.

Seguindo os instintos, ela ergueu os quadris quando os dedos de Erik penetraram no calor de sua intimidade, movendo-se com experiência e profundidade, enquanto ele a tocava com a língua o ponto externo mais sensível, levando-a a se contorcer de prazer.

De repente ele retirou a mão e se posicionou entre as coxas de Lynn, beijando-a na boca com volúpia.

— Agora vou acompanhá-la. Atingiremos o prazer má­ximo juntos. — Ele a beijou de novo, dessa vez a carícia foi longa e reconfortante. Então deslizou a boca até o ouvido dela. — Preciso de proteção, querida?

— Sim. Desculpe.

— Está tudo bem. — Ele se inclinou e, com algum esfor­ço, alcançou a gaveta da mesinha de cabeceira e a abriu, apanhando o preservativo.

Após colocá-lo, deslizou as mãos sob os quadris arre­dondados e os levantou para penetrá-la.

Queria torná-la sua da maneira mais básica e antiga possível. Jamais se sentira daquele modo com uma mulher antes e, quando o corpo de Lynn se fechou quente e apertado a sua vol­ta, Erik se deu conta de que jamais se sentiria daquele modo de novo.

Ela prendeu a respiração quando ele começou a invadi-la lentamente. A sensação de estar sendo preenchida era inimaginável. Ao fitá-lo sob a luz pálida e prateada, a sen­sação de se unir ao corpo e à alma de outro ser humano a atingiu com uma força que a fez vacilar.

— Juntos — ele sussurrou, segurando-a pelas mãos e esticando-lhe os braços acima da cabeça. Então começou a se mover. — Juntos, Lynn.

Moviam-se em uníssono, os corpos em perfeita har­monia. A cada investida, Erik a penetrava mais fundo, levando-a a se entregar completamente àquele momento de louca paixão. Livrou-se das mãos másculas e agarrou-se a ele com desespero, como se o desejo a esmigalhasse por dentro.

— Erik! Oh, Erik! — ela gritou completamente ar­rebatada, quando uma onda; de prazer após outra a dominaram.

Ele estava perdido em seu próprio mar de entorpeci­mento. Deslizou os braços pelos ombros frágeis e a agar­rou firme no momento em que espasmos extraordinários e entorpece dores o dominaram, levando-o a gritar o nome de Lynn.

O nevoeiro se dissipava aos poucos na mente de Erik, à medida que a intensidade de sua respiração diminuía. Percebeu com alguma demora que estava espremendo Lynn com seu abraço e a soltou, apoiando os cotovelos no colchão. Com ternura, retirou os fios de cabelo úmidos do rosto dela e a fitou. Parecia tão aturdida quanto ele, tomada de surpresa pela força do que havia acabado de acontecer entre ambos.

— Está tudo bem, querida — ele sussurrou com um sorriso gentil. — Amo você.

Não imaginara que era possível se apaixonar tão de­pressa, mas não lhe restavam dúvidas quanto a isso. Estava apaixonado por Lynn Shaw. Porém, ela não parecia sentir o mesmo por ele.

— Não pode — ela falou com voz tão branda que ele quase não a ouviu.

— Posso.

— Não.

Lynn saiu de baixo dele e se sentou, cobrindo-se com a colcha verde que estava nos pés da cama. Então se recostou na cabeceira de carvalho. A revelação de Erik á deixara aturdida.

Havia sido pega. Pensara que ia ser capaz de enfrentar o ato sexual incólume, emocionalmente intocada. Tinha se convencido de que poderia partilhar aquele momento com ele porque agora sabia como não se deixar levar pelo cora­ção. A quem queria enganar? Sentira-se conectada a Erik na noite em que se conheceram, e, apesar do esforço para manter distância, eles se aproximavam a cada dia que passava e a cada experiência compartilhada.

O olhar que ele lhe endereçou naquele instante pare­ceu atingi-la na alma.

Deus, por favor, não permita que ele perceba que o amo.

Ás vezes a vida demonstrava um senso de ironia ex­cessivamente cruel. Enfim encontrara um homem que po­deria amar e confiar, o último benfeitor da face da Terra, mas não podia se permitir ter o apoio de alguém tão bom e verdadeiro. Ele tinha um histórico irrepreensível, um fu­turo que se apresentava brilhante e dourado a sua frente, enquanto o passado de Lynn não tinha brilho e estava re­pleto de problemas. Ela o arruinaria. Assim como destruí­ra a própria família em Indiana.

Erik se sentou na ponta da cama, observando-a lutar contra algum terrível demônio interno.

Apesar do esforço para evitá-las, lágrimas surgiram e fizeram os olhos dela brilhar.

Pressionando a mão contra a boca, ela desviou o olhar.

— Por que não posso amá-la? — ele perguntou com calma e determinação.

Ela não o rejeitava, mas estava se esquivando dele, como se sentisse medo.

— Você nem ao menos; conhece-me — ela disse.

— Conheço tudo de que preciso para amá-la. Sei que é teimosa e bonita, e que tem um fogo interno que ilumina os seus olhos. Sei que se importa com as pessoas, que se es­força para ajudá-las. É ardorosa, temperamental e boa...

Lynn o interrompeu ao negar com veemência. A vergo­nha que a atingiu fez com que se engasgasse. Não podia ficar sentada ali e ouvi-lo enaltecer suas virtudes quan­do não possuía nenhuma. Não podia deixá-lo confundir penitência com bondade.

Ela começou a se mover para o outro lado da cama, com a intenção de se levantar. Erik a pegou pelos braços com pulso firme, mas gentil.

— Por que tem medo que eu a ame, Lynn? — ele inda­gou. — Por que receia minha aproximação?

— É muito cedo — ela mentiu, desejando desesperadamente encontrar um caminho que a tirasse daquela situação.

— Não — ele opinou. — Existe algo entre nós desde a noite em que nos conhecemos. Não tente me dizer que não sentiu o mesmo que eu. Não teria vindo para a cama comigo se não fosse verdade.

Lynn o encarava, ignorando a lágrima que escorria por seu rosto.

— É um homem bonito, senador. Não tente me conven­cer de que uma mulher nunca se sentiu fisicamente atraí­da por você.

A fúria flamejou nos olhos de Erik. Os dedos fortes pressionaram os antebraços de Lynn.

— Não ouse dizer que fizemos apenas sexo. Você é tão apertada quanto uma virgem. Há tempos não partilha a cama com um homem e não me elogia apenas pelo modo como meu jeans se ajusta a meu corpo.

Ela fechou os olhos e outro par de lágrimas escorreu por sua face.

— Você não sabe de nada.

— Sei que te amo! — ele gritou.

— Como pode me amar? — ela esbravejou. — Nem ao menos sabe meu nome!

Tudo ficou silencioso. Ele a fitou, com o coração palpi­tante e a mente atordoada. Não sabia o nome dela? Não fazia sentido.

— O que está dizendo? — ele perguntou, sem muita certeza de que gostaria de ouvir a resposta.

Lynn tirou vantagem do estado de choque de Erik para se libertar dos punhos que a prendiam.

Em seguida, ela saltou da cama e foi procurar a roupa.

— Nada — ela murmurou. Pegou o vestido amarrotado do chão com mãos trêmulas. — Apenas vamos admitir que este relacionamento não vá dar certo e parar por aqui.

— Não. — Ele deu a volta na cama e a agarrou de novo. — Está me dizendo que fui para a cama com uma estra­nha. — Sua expressão era feroz. — Acho que mereço uma explicação.

A fachada de fúria de Lynn desmoronou. Seus ombros se envergaram. Ela observou as enormes mãos que lhe circulavam os pulsos. A fantasia acabara. Havia tido o encontro com seu príncipe encantado, mas não consegui­ra chegar; em casa antes da meia-noite. O relógio tocou as badaladas e a princesa tinha se transformado em... O quê? Em uma mulher com um passado.

Erik notou que ela travava uma luta interna e seu co­ração se compadeceu da dor que ela enfrentava por qual­quer que fosse a razão.

— Conte-me — ele pediu, envolvendo-a em um abra­ço e enterrando o rosto nos cabelos selvagens. — Pode me contar qualquer coisa. Você é uma espiã russa? Já foi homem? — Ele a afastou o suficiente para que ela o visse fazer uma careta. — Bem, acho que posso lidar com qualquer coisa. Prometo.

O coração de Lynn estava dolorosamente apertado com a doçura que via nos olhos de Erik.

Era um homem muito bom. Tentaria manter a promessa. No entanto, não tinha muita esperança. A compreensão que ele aprendera com as meninas na última semana ainda era muito recente e frágil. Ela havia mentido para ele, tinha escondido al­gumas coisas. A revelação sobre o passado poderia trazer de volta o Erik austero e inflexível, o homem extrema­mente honesto que não tolerava mau comportamento de crianças vindas de "boas" famílias.

— Eu gostaria de me vestir antes, se você não se im­portar — ela pediu. Porém, ia se sentir nua mesmo usando roupas.

Ele não disse uma palavra. Tirou o vestido das mãos de Lynn e o jogou de lado, depois pegou a camisa que ele havia tirado pouco antes e lhe entregou. Ela a vestiu sem pro­testos, cedendo à necessidade de, ao menos, estar próxima a ele. Após vestir a cueca e a calça, Erik se sentou nos pés da cama, com os antebraços escorados nas coxas e as mãos penduradas entre os joelhos, e esperou, seguindo-a com o olhar enquanto ela se dirigia à enorme janela.

— Meu nome é Ellen Bradshaw — ela começou. — Meu pai lecionava Ciências da Computação na Universidade de Notre Dame. Minha irmã era brilhante. Eu era rebelde. — Tratava-se de uma história simples, mas com resul­tados catastróficos. — Tudo o que Rebecca fazia estava certo, perfeito. Papai a adorava. Usava-a como referên­cia para mim, e eu sempre me sentia pequena porque era comum. Quando criança, eu me cansava de tentar satisfazê-lo, orgulhar-se de mim, mas ele sempre tinha uma crítica, alguma coisa que eu poderia ter feito melhor se tivesse pensado a respeito, se tivesse me aplicado mais. Finalmente, desisti de tentar.

Por um longo momento, ela olhou pela janela em silên­cio, sem ver o terraço de madeira mais adiante nem o pró­prio reflexo no vidro, entretanto se recordava da menina de nove anos, em seu melhor vestido com uma mancha na gola e uma trança afrouxada. Estava parada à porta da casa dele em Mishawaka, segurando com firmeza um peru feito de cartolina. Foi naquele momento que percebeu, com um terrível senso de clareza, que o pai jamais a amaria do jeito que amava Rebecca, não importava o que ela fizes­se, o quanto tentasse. Vinte anos haviam se passado e ela ainda podia sentir aquele terrível aperto no estômago.

— Um dia desses, eu lhe disse que, comparada comigo, Regan é uma menina exemplar — ela prosseguiu com es­forço. — É verdade. Eu sabia como enfurecer meu pai. Era a única coisa na qual eu parecia me superar. Abandonei a escola, fumei maconha, bebi, roubei. Saía com o grupo mais agressivo e fracassado que pudesse encontrar.

A imagem da menina de nove anos se dissipou e foi substituída pela da adolescente que tinha uma semelhan­ça sombria com Regan Mitchell.

— Apesar de tudo, consegui me formar. No íntimo, acho que eu ainda queria agradar meu pai. Naquela época, ele já havia me expulsado de casa e eu vivia do dinheiro que minha mãe tinha me deixado. Inscrevi-me em um curso de pós-graduação, pensando que talvez me ajudasse a re­solver os meus problemas. Meu pai já estava convencido de que eu era um fracasso. Eu não tinha mais para quem representar o papel da garota má. Portanto, dediquei-me às minhas boas intenções, mas... Bem, você sabe o que di­zem sobre os melhores planos... Acabei me envolvendo com um dos meus professores. Foi um clássico exemplo da pro­cura por amor em uma figura paterna. Naturalmente, eu tinha certeza absoluta de que era a coisa certa. Queria muito que fosse... — A lembrança daquele doloroso desejo repercutia nela como um eco. Havia desejado tanto ser amada, precisara desesperadamente de alguém que a valorizasse.

— O que aconteceu? — A voz rouca de Erik a trouxe de volta ao presente.

Ela afastou os antigos sentimentos e relatou os fa­tos de forma simples e concisa, como se ainda não a machucassem.

— Eu engravidei. E ele me abandonou. Fiquei saben­do que não estava realmente divorciado da esposa, afinal. Grande surpresa... Ele me deu duzentos dólares e disse que estava tudo acabado.

— Oh, Deus... — Erik suspirou.

De soslaio, Lynn pôde ver que ele esfregava as mãos no rosto.

— Nem imagina como me senti — prosseguiu, com voz trêmula. — Eu estragava tudo em que tocava. A única coi­sa que não fiz foi me prostituir, mas depois percebi que o acabei fazendo também, mesmo sem ter tido consciência disso.

Ela ainda sentia um vazio por dentro que poderia en­goli-la a qualquer momento. Ainda guardava a sensação de ter sido abandonada no corredor escuro do edifício de Ciências, enquanto via Philip Rutger se afastar com cal­ma, batendo o solado dos sapatos no chão de mármore. Ela não representara nada para ele, apenas alguém com quem fazer sexo. Ele tinha lhe dado algum dinheiro pelo trans­torno causado e ido embora, sentindo-se absolvido de toda a culpa e de toda a responsabilidade. Jamais imaginara que alguém pudesse se sentir tão desprezível e tão suja quanto ela se sentira naquela noite. Nem tão solitária.

Erik a abraçou, e Lynn sentiu vontade de chorar de novo ao ser; envolvida pelo calor que ele emanava. Por que não o havia encontrado muito tempo atrás, antes de cometer tantos erros?

— O que você fez?

— Segui em frente. Tive o bebê. — Reduziu aqueles meses terríveis a duas escassas sentenças, porque sim­plesmente se sentia incapaz de recordar tanta dor.

— Deu o bebê para adoção?

— Oh, fiz algo melhor do que isso — respondeu com um sarcasmo acirrado. — Eu o entreguei à minha irmã com estas palavras: "Você é tão boa em tudo, acho que vai se sair melhor do que eu com este bebê também".

Lynn fechou os olhos, devido ao sofrimento que tais lembranças evocavam.

Não havia desejado nada no mundo mais do que poder cuidar de seu bebê, alguém a quem poderia amar e que a amaria incondicionalmente. Mas havia estragado tantas coisas no passado!

Sempre cometia falhas lamentáveis. Não podia suportar a idéia de fracassar na maternidade também, arruinando a vida do próprio filho porque não fazia nada direito. Ao mesmo tempo, percebera um modo de se vingar da irmã e de punir o pai. Assim, havia alte­rado a vida de ambos de forma irreversível.

— Isso foi há dez anos — ela resmungou atordoada pelo fato de ter um filho de nove anos em Mishawaka.

Como será que ele era? Do que gostava? O que fazia para se divertir? A consciência de que nunca iria saber a atingiu com força. Durante um longo tempo, ela havia se punido ao pensar em todas as coisas que perdera: o primei­ro sorriso dele, os primeiros passos, a primeira palavra. Esses pensamentos ainda a atormentavam de tempos em tempos, e nunca deixou de se surpreender ao explodir em lágrimas por isso. Aquela altura, a camisa de Erik já estava ensopada.

— Poucos anos mais tarde — ela fungou, — recompus-me e recomecei. Nome novo, vida nova.

Depois de ficar à deriva, gastar todo o dinheiro que ga­nhava e se punir de todos os modos que podia uma orien­tadora psicológica a havia recuperado, acreditado nela, ajudando-a, incentivando-a, e agora ela fazia o mesmo por outras meninas.

— Portanto, senador — ela deu um longo e triste sus­piro, — não sou exatamente quem pensou que eu fosse.

— Não é? — Ele a fitou nos olhos.

Lynn esperava que ele a rejeitasse, que seria julgada do mesmo modo que ele fizera com Regan. Erik podia ver o medo nos olhos de Lynn. Ela acreditava que alguma coisa ruim aconteceria. E sentiu-se envergonhado. Como pudera ser tão pretensioso a ponto de julgar alguém sem conhecer todos os fatos? Tinha sido um erro que ele estava determi­nado a não cometer de novo.

Erik ouvira a história de Lynn, sentindo pena da meni­na que jamais conseguira ser valorizada, desejando do fun­do do coração ter podido estar lá para confortá-la durante a provação da adolescência, desejando estar por perto para dar uma lição no bastardo que a havia abandonado grávida. Ficou arrasado só de imaginá-la entregando o bebê. Vira a dor que a afligia. Faria qualquer coisa para voltar no tempo e mudar tudo, devolver-lhe o filho, dar a ela o bebê dele, abraçá-la e mantê-la a salvo de tudo o que já a tinha feito sofrer.

Com certeza, ela conseguira desarmá-lo no pouco tem­po em que se conheciam, ele pensou, enquanto enxugava o rosto de Lynn. Havia passado de petulante e dono da verdade a alguém que empunha a espada para defender as mesmas pessoas que antes julgava estarem abaixo dele, os que tinham cometido erros na vida. Ela havia mostrado a ele como as raízes de tais erros podiam ser profundas. Ensinara-o sobre compaixão, zelo e fragilidade humana. Erik não tinha a intenção de fazer com que aquelas lições fossem desperdiçadas nem de deixar que aquela mulher extraordinária se afastasse dele.

— Você é quem eu julgava que fosse e um pouco mais — ele afirmou, segurando o rosto alvo entre as mãos.

— Ainda é a mulher que luta pelo que acredita que dá tudo o que tem para ajudar jovens com problemas. E a mulher pela qual me apaixonei.

O cansaço nos olhos de Lynn parecia tão antigo quanto o tempo.

— Não me torne uma santa, Erik.

— Não quero uma santa. Quero você.

Ela meneou a cabeça em negação e se afastou.

— Não vai durar muito tempo, não percebe isso?

— Vejo que você não quer dar uma chance a nós.

— Não, você não entende... — Ela se sentia frustrada. — Ao não me envolver; estou dando uma chance a você.

O propósito de Lynn o atingiu como um tijolo. Ela não esperara apenas que ele a rejeitasse, mas havia desisti­do de fazer parte da vida de Erik em nome da nobreza.

— Acha que não está à minha altura? — ele perguntou incrédulo.

— Erik, use a cabeça, pelo amor de Deus — ela pediu, elevando os ombros de forma defensiva. — Você é um polí­tico correto. Meu passado não é composto de períodos mal-sucedidos, é negro como fuligem. Não pode acreditar que eu seria um trunfo para sua carreira.

— Desculpe — ele zombou, — mas nunca pensei em me apaixonar, tendo em vista minha popularidade nas eleições.

— Sorte minha — ela murmurou irônica.

Abaixando a cabeça, olhou para os punhos cerrados a sua frente, como se, literalmente, quisesse repelir o amor de Erik. Soltou as mãos devagar e as deixou cair. Os pu­nhos da camisa lhe cobriam as pontas dos dedos, fazendo com que se sentisse pequena e sem forças, como uma garotinha vestindo as melhores roupas do pai.

— Sinto muito — ela sussurrou.

Novamente teria de desistir do que mais queria no mundo para salvá-lo da ruína. Soluçando, ela estendeu os braços com a intenção de se defender de Erik. As pal­mas das mãos tocaram o tórax vigoroso e ela começou a se afastar, mas, com rapidez, ele aprisionou o corpo trêmulo em seus braços, agasalhando-a com seu calor, oferecendo a ela o conforto do toque e da sua voz.

— Vamos resolver essa questão — falou com calma, roçando os lábios nas têmporas de Lynn.

— Não podemos — ela murmurou, com o rosto pressio­nado contra o peito másculo, enquanto as lágrimas cor­riam até sua boca, salgadas e dolorosas.

— Vamos resolver — Erik insistiu como se tentasse mudar os fatos com a força da própria determinação.

Fora criado daquela maneira, acreditando que podia realizar qualquer coisa se programasse a mente para aqui­lo. Não queria pensar que aquele caso seria uma exceção à regra. Esperara muito tempo para se apaixonar e não pretendia que Lynn fosse arrancada de suas mãos. Aquela era a mulher que ele desejava com maior intensidade do que qualquer outra coisa que quisera antes. Não a dei­xaria partir.

— Não me importa quem você foi. Não me importo com o que fez — ele sussurrou insistente, enquanto deslizava a mão pelos cabelos. — Amo você.

Beijou-a com um ardor que beirava o desespero. A ne­cessidade de prendê-la a ele queimava em seu peito. Ele baixou a mão direita até atingir as nádegas arredondadas e a ergueu de encontro a ele, pressionando-a contra sua masculinidade repentinamente distendida.

Lynn sentiu a determinação ser drenada, queria Erik a seu lado para sempre. E, naquele momento, não importava o quanto tudo estivesse errado. Não tinha forças para lutar contra ela mesma nem para ser nobre. Tudo o que podia fazer era desejá-lo e ter a esperança de que o pouco que pudesse ter dele durasse por toda a vida.

Em vez de repeli-lo, envolveu-o pelo pescoço e pressionou-se contra ele. Erik a beijou várias vezes, afas­tando-a da realidade e levando-a a flutuar em sensações encantadoras, perdida em sonhos.

Inclinou a cabeça para trás quando ele passou a beijá-la no pescoço. A camisa escorregou dos ombros dela para cair a seus pés. Logo ela estava sendo acomodada na cama junto a ele. Passando as pernas em volta dos quadris largos, recebeu-o dentro de si, calorosa. Arqueou-se com as investidas ritmadas e intensas, movimentando-se com ele, entregando-se ao clímax inebriante, mantendo afastada a certeza de que os sentimentos compartilhados por ambos não poderiam durar.

 

— É hora de entrar em ação quando nossos lares são desfigurados, e delinqüentes têm a permissão de infestar nosso bairro! — Elliot Graham exclamou.

Os olhos escuros queimavam com a febre da justiça quando as câmeras do noticiário o focalizaram de perto. A multidão à volta gritava em apoio, ondulando cartazes com os já familiares slogans, além de outras mensagens que divulgavam o nome de Graham ao Conselho Municipal.

Lynn ficou afastada, observando a cena com uma sen­sação desconfortável. A condenação estava no ar. A maré de sentimentos corria forte contra a Horizon House. Os seguidores de Elliot Graham estavam se tornando mais numerosos e mais contestadores, e ela não conseguia pen­sar em outra coisa, a não ser no fato de que era apenas uma questão de tempo antes que o bispo silenciasse aquele barulho pedindo que a instituição encontrasse outra sede. Os manifestantes estavam parados atrás de Graham, com o sol da manhã lançando seus raios brilhantes em uma expansão de obscenidades que tomava todo o muro da casa dele. Quem quer que fosse que estivesse infestando o bairro, certamente sabia aonde ir para conseguir uma divulgação maior para suas mensagens, Lynn pensou. Além da imprensa de Rochester, Elliot havia conseguido chamar a atenção do jornal de Twin Cities, assim como do Daily News, da cidade de Winona, cuja história sem dúvida ia ter grande influência sobre a opinião do bispo na cres­cente controvérsia.

— Estou convidando o bispo e o padre Bartolomeu para uma reunião com o prefeito — disse Graham.

Ela meneou a cabeça e parou de ouvi-lo. Virou-se para o pequeno grupo de simpatizantes que possuía, procuran­do encontrar algum raio de esperança entre o rosto deles, mas não havia nenhum.

— Ele vai conseguir o encontro com o bispo? — Lynn perguntou com discrição, fitando o padre que viera res­gatá-las com valentia.

— Não em poucos dias, graças aos anjos. O bispo foi a Chicago, para uma conferência sobre a nova era de milagres.

— Talvez ele possa providenciar um para nós — ela falou com sarcasmo.

Notou quando os repórteres dirigiram a atenção a Erik. Ele tinha a aparência austera, muito diferente do homem que a havia segurado nos braços durante toda a noite. O contraste o fazia parecer distante, afastado de Lynn por uma lacuna que não podia ser preenchida. Aconselhou a si mesma a se acostumar com aquela situação.

O senador utilizava seu encanto como uma espada para se proteger das acusações de Graham, rechaçando-o com bom-senso e convicção de modo a subjugar a multidão. Ele reafirmou o fato de que ninguém fora acusado de van­dalismo, de que as pessoas naquele país eram protegi­das pela suposição de inocência. Lynn o ouvia, com amor e orgulho, demonstrar uma profundidade que ela não ha­via imaginado que ele fosse capaz de possuir. Ficou admi­rada com o carisma e a força que ele revelava, decerto era um homem destinado a um caminho muito longo... Sem ela.

Para esquecer a profunda dor no peito, desviou o olhar de Erik e o pousou em Graham. A raiva sempre fora uma eficiente defesa contra a tristeza, a dor e a perda. Raiva era o que ela sentia quando olhava para aquele engenheiro inescrupuloso. Graham almejava fazer parte do Conselho Municipal e estava decidido; a usar a Horizon House como alavanca para chegar lá. Ela refletiu se alguma vez aque­le homem pensara nas vidas que estava prejudicando com sua campanha estrondosa. Ela imaginou se ele alguma vez pensara no filho que era arrastado na vigília da maldade.

Elliot Graham Júnior estava parado um pouco atrás do pai, com as mãos nos bolsos da calça do terno um pouco maior do que ele.

O olhar de Lynn se estreitou quando uma idéia lhe veio à mente. O jovem Graham se virou e seguiu o pai na dire­ção da garagem da casa. O grupo se subdividiu e a multi­dão começou a se dissipar.

— Isso não é bom, Erik. — A voz fraca de Rob William interrompeu os pensamentos de Lynn.

Erik se colocou na frente dela. Havia uma mensagem secreta nos olhos azuis, um calor íntimo, um sentimento de posse, uma expressão que fez o desejo voltar a consumi-la. Ela teve de lutar contra o impulso de se jogar nos braços do senador.

— Estamos perdendo terreno — o assessor afirmou, com a atenção em Erik e no grupo de repórteres. Então ele direcionou o braço para a pichação. — Esse tipo de coisa não é bem-vista pelas massas em Minnesota, você sabe. Se a situação se deteriorar mais, sua imagem será prejudicada.

Erik lançou um olhar analítico ao empregado.

— Não estou preocupado com minha imagem neste momento, Rob — vociferou.

O assessor se retraiu com os olhos arregalados.

— Claro que não, senador.

— Vou pedir a ajuda do juiz Gunderson. Volte ao escri­tório e veja se consegue agendar um encontro para hoje ainda.

— Sim, senhor. — William abaixou a cabeça em deferência e se retirou para cumprir as ordens do chefe.

Erik fitou Lynn por um momento antes de dizer:

— Essa situação não é boa, Lynn.

Ela sabia que, implicitamente, acusavam uma das me­ninas de ter cometido mais aquele ato de vandalismo.

— Bem, não olhe para mim, senador — ela disse com firmeza. — Tenho um álibi para a noite passada.

Ele ficou levemente ruborizado, mas não se deu por derrotado.

— As suas meninas podem dizer o mesmo?

Lynn pareceu tensa e cerrou os punhos no mesmo ins­tante. Martha e Lilian haviam lhe dito naquela manhã que Regan conseguira escapar delas no cinema e tinha voltado furtivamente para casa às duas horas da manhã. A meni­na tivera muito tempo para a façanha, e Deus sabia que aquilo não estava longe das intenções da garota, mas Lynn não conseguia acreditar que Regan era culpada.

— Se foi Regan quem cometeu tal ato, a Horizon House vai ter que assumir a responsabilidade — Erik falou com seriedade. — Você não pode continuar a protegê-la, per­mitindo que ela se divirta arruinando a imagem da insti­tuição e das outras meninas.

— Erik está certo — Lilian se manifestou ao dar um passo à frente. — Já demos muitas oportunidades a Regan, Lynn. Se ela, além de resistir a nós, também quer nos obri­gar a fechar a instituição, teremos que mandá-la de volta para casa.

Lynn olhou de Lilian para Martha. Lilian era uma pes­soa que seguia normas e regulamentos.

Martha dava ouvi­dos ao instinto. Sempre conseguia perceber uma demons­tração de falsa autoconfiança.

— Não podemos sacrificar tudo pelo que trabalhamos tanto, Lynn — Martha explicou.

Lynn se afastou, sentindo-se magoada e traída, como se fosse a ela que acusavam ter pichado palavrões na parede da casa de Graham. Algumas vezes perdiam uma das mo­radoras. Ela sabia.

Apenas não queria que Regan fizesse parte das estatísticas negativas da Horizon House.

— Não temos provas contra ela — Lynn os desafiou, co­locando as mãos na cintura e erguendo o queixo em uma atitude provocativa. — Elliot Graham conseguiu colo­car policiais esquadrinhando este bairro todas as noites. Por que eles não a flagraram?

A única resposta que obteve foi o silêncio. O grupo a olhava com interesse, pensativo.

— Se Regan quisesse causar problemas à Horizon House, não acham que ela iria querer ser pega, do mes­mo modo que sempre quis ser flagrada furtando e usando drogas, para que pudesse humilhar os pais?

— Talvez ela esteja cansada de uma instituição juvenil — Erik propôs.

— Ou talvez ela não seja culpada — Lynn replicou.

— Você se identifica com Regan, Lynn — murmurou ele.

O restante do grupo deixou de existir para Lynn na­quele momento. Ela e Erik migraram para um plano dife­rente de entendimento. Ele ouvira a história dela. Tinha acreditado nela. Oferecera consolo e atenção. Ela o havia visto crescer desde que se conheceram, vira-o lutar para se tornar mais compreensivo. Se conseguisse fazê-lo dar mais esse passo, ao menos sentiria que havia dado a ele alguma coisa de valor quando chegasse a hora de deixá-lo partir.

Observou-o com extrema preocupação, como se implo­rasse por apoio naquela decisão.

— Se você também se identificasse comigo, Erik, daria à menina o benefício da dúvida.

Ele inspirou o ar da manhã, com os olhos fixos em Lynn. Aquilo era um teste. Ela tinha lhe dado a oportunidade de provar seu caráter; naquele momento testava sua sinceri­dade. Ele podia ver a armadilha com clareza, mas havia tomado sua decisão. Aceitar qualquer provocação, qual­quer desafio, que implicasse ganhar o coração daquela mulher extraordinária.

— Espero que tenha algum plano em mente, Srta. Shaw — ele disse.

O sorriso que brotou nos lábios de Lynn valia qual­quer dano que aquela situação pudesse trazer à carreira de Erik. O amor o estava conduzindo por um caminho perigoso, especialmente se considerasse que a jovem que o segurava pela mão tinha a intenção de abandoná-lo. Mas, como em todas as batalhas que enfrentara, ele pla­nejava sair daquele como vencedor: com o coração intacto e Lynn Shaw ao seu lado.

— É muito mais emocionante na televisão — Lynn opinou ao se agachar no banco.

Sabia que aquela poderia ser uma noite longa e sem frutos. Tinha saído da Horizon House com Erik um pou­co depois das dez e meia, dizendo a todos que iam à úl­tima sessão de cinema, mas dobraram a esquina, onde estacionaram o Thunderbird e logo em seguida o deixa­ram. Esconderam-se em um automóvel Ford Fairlane, ano 1969, antigo e sujo, que o padre Bartolomeu guardava na garagem atrás da Horizon House. O carro fornecia uma clara visão da porta dos fundos da instituição. Se, e quan­do, Regan deixasse a casa, iriam segui-la a pé.

Ficaram esperando por quase duas horas. O bairro es­tava envolvido pela escuridão e pelo silêncio. Mesmo em um sábado à noite, aquela não era uma parte muito mo­vimentada da cidade. As grelhas tinham esfriado e já es­tavam guardadas, as cadeiras que estavam dispostas no gramado estavam dobradas. Todos haviam entrado para escapar dos mosquitos e assistir à televisão ou deitar cedo, depois de um longo e difícil dia de cuidados com o gramado. As últimas luzes se apagaram na Igreja de Santo Estéfano, ficando acesa apenas uma enorme lanterna na entrada principal. Em meio à semi-escuridão, o prédio pa­recia mais um castelo medieval, com as torres de pedra se erguendo na direção do céu.

O padre Bartolomeu emergiu da porta lateral da ins­tituição, manuseando as chaves, atrapalhado, e tentando manter um par de livros sob o braço. As obras caíram na calçada com estrondo. Quando ele se abaixou para pegá-las, foi á vez dos óculos, e a seguir derrubou as chaves.

— Que contratempo! — reclamou.

Ele se recompôs, juntou as coisas e se dirigiu ao presbitério. As sombras dos edifícios o engoliram.

Quando o som de passos se dissipou, Erik virou-se para Lynn.

— Poderíamos tornar esta experiência mais emocio­nante — ele propôs enquanto deslizava um dos braços sobre os ombros delicados.

— Que policial você teria sido! — ela zombou, cutucando-o nas costelas com o cotovelo. — Divertindo-se com alguém quando deveria estar vigiando, enquanto o crime corria solto pelas ruas. E assim que acha que Reuter e Briggs desempenham seu trabalho?

— Espero que não — Erik respondeu com sinceridade. Puxou-a mais para perto. Lynn não protestou, apesar de pensar que teria sido melhor para ambos se ela simplesmente se afastasse.

Porém, não tinha coragem de fazê-lo, não naquela noite, não quando muita coisa ain­da pesava na balança. Não queria se sentir sozinha antes que fosse absolutamente necessário.

Engraçado, ela pensou ao olhar para a pequena imagem da Virgem Maria que estava colada ao painel do carro, fi­cara sozinha por tanto tempo que o sentimento de solidão tinha se tornado parte dela. Havia parado de pensar na­quilo com angústia. Fazia tanto tempo desde que quisera algo mais do que a vida que tinha moldado para si mesma, até esquecera como era almejar algo além do alcance.

Encostou a cabeça no peito de Erik e fechou os olhos com a dor que brotava em seu peito. Ao menos tinha a Horizon House, além das meninas e de Lilian e Martha. Era tudo o que lhe fora permitido, e Lynn se sentia tremendamente feliz por isso depois da confusão do início de sua juventude. Não se sentia com permissão para querer algo mais. Tinha absoluta certeza de que não merecia ter aquele cavaleiro de armadura brilhante, sentado a seu lado, com os braços à sua volta.

Mas não podia se afastar dele ainda.

Levantando a cabeça, ela procurou a boca de Erik, fa­minta. Beijou-o guiada pelo tumulto que rodopiava em seu interior. Desejava se tornar parte dele, uma parte que pudesse ser mantida e abrigada para sempre.

— Ei — o senador sussurrou, enchendo-a de beijos. — Está tudo bem, querida. Vamos resolver tudo. — Ele afa­gou-lhe os cabelos.

Lynn voltou à posição inicial, sentindo-se incomodada pelo modo como tinha permitido que as emoções perfuras­sem seu autocontrole. Colocara os pés sobre o banco, le­vantando uma pequena nuvem de pó, e havia envolvido as pernas com os braços, para evitar tocar em Erik.

— Apenas me aproximei um pouco antes que algo sus­peito ocorra — ela disse, com a esperança de que ele não pedisse explicações sobre a fraca tentativa de Lynn em esclarecer a situação.

Olhou-o com o canto dos olhos. Ele a observava, quieto e pensativo.

— Talvez não aconteça nada suspeito, você sabe — ele disse, encostando-se ao banco do automóvel. Colocou uma das mãos na direção e olhou, através do pára-brisa, para as paredes altas da Igreja de Santo Estéfano. — Graham pressionou muito o departamento de polícia para patrulhar o bairro em intervalos regulares. Qualquer um que tentar alguma coisa esta noite estará procurando problemas.

— Procurando algo — Lynn o corrigiu.

— Você realmente acha que o filho de Graham está por trás das pichações, não é mesmo?

— Desejo apostar que sim. Ele quer muito ser como o pai, e isso até magoa só de observar. Elliot Graham está envolvido demais com os próprios interesses para percebê-lo. Ele trata o garoto com um secretário, e não como filho.

— Acha que o menino está cometendo vandalismo para chamar a atenção do pai.

— Ou o está ajudando a vencer a campanha ao "provar que o pai está certo", por assim dizer. Se ele puder fazer com que todos acreditem que as moradoras da Horizon House representam risco ao bairro, como Elliot Graham tem dito então ele ajudará o pai a ganhar uma cadeira no Conselho Municipal. E um caso clássico de filho procuran­do a aprovação paternal. Nem sempre fazem as melhores escolhas para alcançar seu objetivo. Acredite, sei como é.

— Mas, mesmo que o filho de Graham seja o responsá­vel pelos atos de vandalismo, não resolve o mistério das saídas clandestinas de Regan.

— Não, não resolve.

Os ombros de Lynn se curvaram um pouco sob o fardo daquele peso em especial. Havia tido outra conversa com a garota naquela manhã e não conseguira nada além de frustração. Regan se posicionara no canto da cama, com as costas contra a parede, e se trancara em uma concha de hostilidade e desconfiança.

— Por que devo contar algo a você? Apenas vem até a mim porque estou quebrando todas as suas regras esquisi­tas. Não está do meu lado, portanto, acabe com a rotina do "sou sua melhor amiga".

— Exatamente agora, sou sua melhor amiga, Regan. Na verdade, sou a única amiga que você tem.

— Besteira. É apenas a minha guardiã esquisita. Não vou contar nada, e, se isso acabar com seus planos para sua preciosa Horizon House, vai ser muito ruim.

— Receio que vou perdê-la — Lynn murmurou, admi­tindo o medo em voz alta pela primeira vez. — Eu que­ria desesperadamente ajudá-la, mas não consigo me aproximar.

Erik percebeu a dor e a confusão na voz de Lynn e a segurou pela mão para oferecer o apoio que podia. Ela parecia intrigada com a inabilidade para fazer Regan Mitchell entender o que acontecia.

— Alguém poderia ter ajudado você naquela idade? — ele arriscou discreto.

— Não sei — ela sussurrou, com o olhar perdido atra­vés do pára-brisa sujo do automóvel. — Ninguém real­mente tentou.

A tristeza contida naquelas palavras tocou o coração de Erik e permaneceu ali; tão afiada e cortante quanto agulhas. Ele olhou para Lynn e tentou imaginá-la jovem, grávida e solitária, a raiva o dominou. Queria ter sido o pai do filho dela, mas a verdade era que ele provavelmente teria encabeçado a fila para ridicularizá-la. Que hipócrita pretensioso era. E Lynn não se julgava à altura dele.

— Amo você — disse Erik, tentando uni-la a ele, segurá-la por perto, evitar que ela se afastasse.

Se Lynn soubesse que ele realmente a amava... Gostaria de ter uma oportunidade com ela, uma chance de impres­sioná-la, de consertar os erros do passado e viver de acordo com a imagem que ela fazia a seu respeito.

— Por favor, não...

Ele a silenciou ao colocar um dos dedos em seus lábios.

— Não me diga para não amá-la. Não faça isso.

Inclinou a cabeça, determinado a silenciar qualquer protesto com um beijo, mas um movimento atrás da casa chamou sua atenção. Ele vasculhou as sombras, desejando enxergar no escuro.

— É Regan — sussurrou. — Eu reconheceria aqueles coturnos em qualquer lugar.

Lynn se abaixou o mais que pôde no banco do Ford Fairlane, até se ajoelhar no chão e ficar espiando pelo painel. Regan descera do primeiro andar escapando pela janela do banheiro, seguia seu caminho com cuidado pelo telhado inclinado da janela tipo bay window. Por um instante, ela foi pega pela luz da lâmpada da rua, que iluminou a pele branca da menina e as roupas escuras. Logo já se encontra na sombra de novo, quando pulou para o gramado.

Ela caminhou na direção do carro, e, por um terrível momento, Lynn pensou que a menina podia estar usando a garagem antiga para se esconder, que ela ia entrar e encontrá-los à espreita como caçadores. Porém, ela mudou de direção no último segundo, roçando as unhas do lado do prédio quando passou por ele e rumou para a rua estreita

Lynn respirou fundo e deixou escapar um palavrão.

— Eu nunca ia conseguir ser espiã.

— Agora é tarde para arrependimentos. Vai ter de agir como espiã — ele disse ao abrir a porta do motorista.

Pouco depois, os dois se ocultavam pela rua estreita como uma dupla de gatunos, usando como cobertura uma fileira de arbustos que crescia atrás do presbitério de Santo Estéfano. Erik liderava o caminho, rebocando Lynn como uma criança teimosa.

Se Regan a pegasse naquela situação, seria o fim das chances de Lynn com a menina. Sabia que a única coisa que podia destruir toda a esperança em um relacionamento era a falta de confiança, e Regan com certeza se sentiria traída. Como se não fosse importante o fato de a meni­na não merecer confiança. Era nisso que residia o desa­fio. Regan não conseguiria enxergar a verdade, que Lynn tentava provar a inocência da garota ao persegui-la. Ela veria justamente o oposto: Lynn tentando provar que a menina era culpada, querendo pegá-la fazendo alguma coisa errada.

Atravessaram a rua se escondendo atrás dos carros estacionados, enquanto Regan se apressava na frente, quase correndo. Aonde quer que esteja indo, mostra­va-se ansiosa para chegar lá. Dobrou a esquina, desapa­recendo assim que uma radiopatrulha veio de uma rua lateral. Erik empurrou Lynn para trás de uma cerca viva, agacharam-se e prenderam a respiração quando o carro diminuiu a marcha, mas seguiu em frente. Era tudo do que precisavam; ela pensou serem pegos andando, sorrateiros, no meio da noite.

— Para onde ela foi? — Erik sussurrou.

— Não tenho certeza. Preste atenção, Erik, talvez esta não seja uma boa idéia. Se alguém nos pegar, a sua reputação...

— Fique tranqüila quanto a isso.

— Mas...

— Vamos. Posso ver Regan.

Então ele se virou e arrastou Lynn com ele, como uma boneca de pano. Cruzaram outra rua e seguiram ao nor­te, apressando-se para manter Regan dentro do campo de visão. Os pulmões de Lynn queimavam, enquanto ela procurava evitar ofegar pela falta de ar. Sentia uma dor lateral por correr curvada. E, ao mesmo tempo, uma horrí­vel sensação a afligia. Queria desaparecer dali, mas nesse instante Erik se ajoelhou atrás de um contêiner e a puxou para baixo com ele.

Lynn olhou em volta, analisando o local. Haviam an­dado umas cinco ou seis quadras na direção do centro da cidade, atingindo o distrito comercial, onde casas de bai­xa renda se intercalavam com oficinas mecânicas e lojas de autopeças. O contêiner ficava na parte de trás de um prédio cinza, nos fundos de um canteiro coberto de ervas daninhas que era usado de estacionamento. A luz de se­gurança acima da porta de trás do comércio estava que­brada, mas a visibilidade era relativamente boa, devido a uma lâmpada de rua na esquina.

Regan encontrava-se encostada ao prédio, fumando um cigarro e batendo com nervosismo a ponta da frente da bota. Ela pareceu meio sufocada com a fumaça, xingou baixinho e atirou o cigarro longe quando se afastou da parede e re­começou a andar. Era óbvio que estava esperando alguém. As possibilidades passavam pela mente de Lynn em um passo frenético. Era o tipo de lugar onde uma jovem podia encontrar um vendedor de drogas. Regan já havia enfren­tado problemas com drogas antes. Lynn não tinha obser­vado sinais de abuso na menina desde que ela havia ido a Horizon House, mas aquilo não significava que estivesse pronta para recomeçar sua vida. Talvez houvesse enfrenta­do problemas para encontrar a pessoa certa.

Ou, quem sabe, estivesse ali por uma razão totalmente diferente.

A terrível sensação cresceu dentro de Lynn quando uma segunda pessoa, vestindo roupas escuras, saltou ao lado do prédio e Regan correu imediatamente para os braços dele...

Elliot Graham Júnior.

Vadias.

A palavra surgiu na mente de Lynn ao observar Elliot Graham Júnior apalpar Regan. Havia algo mais do que necessidade juvenil enquanto o garoto beijava e deslizava as mãos pelo corpo da menina. A ira tomou conta de Lynn, e ela relembrou com um tremor o veneno na voz do rapaz naquela noite, quando ele completou a frase dita pelo pai sobre o tipo de meninas que a Horizon House abrigava. Vadias.

— Oh, Deus... — ela murmurou.

Lágrimas surgiram em seus olhos, e ela pressionou as mãos sobre a boca para evitar que algum ruído es­capasse. Aquilo não era um encontro secreto de jovens apaixonados. Nem um ato de rebelião de Elliot Graham Júnior contra a visão tradicionalista do pai. Nem a versão moderna de Romeu e Julieta. Aquilo era crueldade. E do pior tipo. O rapaz estava se aproveitando de uma menina perdida e vulnerável. Ele a estava usando e fingindo sentir por Regan Mitchell o que ela mais precisava e desejava: amor.

Erik também havia percebido aquela malevolência, pois apertou a mão de Lynn ao resmungar a palavra; "bastardo". O senador estava tenso, o olhar fixo na cena que se apresentava diante deles no estacionamento da empresa Schultz Encanamento e Aquecimento.

A atividade física tomava um rumo mais frenético. O jovem Graham encostou Regan no muro e ergueu a re­gata preta que a menina usava com movimentos ríspidos e insistentes. Ela se retorcia e o empurrava. Quando fa­lou, a voz de Regan soou confusa e amedrontada, em nada lembrava a garota ríspida que gostava de fingir ser.

— Elliot, pare! Está indo muito rápido.

— Você disse que seria esta noite, Regan — ele falou com impaciência. — Vamos lá.

— Mas não aqui.

— E que diferença faz?

Um pequeno soluço escapou de sua garganta quando ela o afastou de novo.

— Faz muita diferença. Eu queria que fosse algo bonito. Pensei que você também quisesse. Elliot, por favor...

O rapaz a sacudiu e lançou uma blasfêmia:

— Você disse que ia transar comigo esta noite e é me­lhor que cumpra a palavra!

Regan gritou e tentou se livrar dele. No entanto, Elliot a agarrou pelo braço com uma das mãos e levantou a outra como se tivesse intenção de bater nela.

Lynn saiu de trás do contêiner, um grito de ultraje ras­gando sua garganta, mas Erik estava um passo à frente.

Com a fúria a dominá-lo, atravessou o estacionamento com quatro largos passos. Agarrou Elliot Júnior pela nuca e o empurrou para longe, fazendo com que se estatelasse na lama e no cascalho.

Havia uma dúzia de coisas que Erik queria dizer, mas a costumeira eloqüência o abandonara quando a raiva surgira e tinha lhe bloqueado o peito e a garganta. Olhou para o "bom" jovem cidadão, o filho do homem que discur­sava com tanta devoção sobre segurança e bairros moral­mente honestos, e meneou a cabeça com repugnância.

— Você me causa náuseas — disse entre os dentes. — Tanto você quanto seu pai. Saia daqui!

Elliot Júnior tremeu de medo, encolhendo-se como um cão açoitado, choramingando e lamuriando.

— Saia daqui! — Erik exclamou dessa vez com a voz retumbando como um trovão.

O rapaz tropeçou enquanto corria do estacionamento. Em algum lugar por perto, um cachorro soltou latidos cur­tos, a seguir o único som que se ouviu foi um choro suave e triste. Erik virou-se e viu Regan parada com os braços cruzados sobre o ventre, como se sentisse dor. Mesmo sob a luz fraca, pôde decifrar a expressão de tormento da me­nina, e, pela primeira vez desde que a conhecera, compa­deceu-se dela. Uma jovem solitária, apanhada pela arma­dilha dos próprios erros e abandonada pela pessoa na qual se permitira confiar. Da mesma forma como ocorrera com Lynn no passado. A compaixão cresceu dentro de Erik.

— Ele a machucou? — o senador perguntou, sabendo tratar-se de uma pergunta boba.

Era óbvio que ela estava machucada. E médico algum podia curá-la. Fora magoada e humilhada. Erik maldis­se Elliot Graham Júnior e a própria falta de habilidade para impor justiça. Se a lei o permitisse, ele teria dado um chute no traseiro do jovem Graham.

Regan não respondeu. Olhava para o chão, soluçando em meio às lágrimas que tentava conter com esforço.

— Vamos para casa, querida — Lynn sussurrou.

Esticou-se para pegar o braço da menina, mas Regan se afastou. A rejeição atingiu Lynn como uma faca. Ela que­ria consolar a garota, tratá-la como a uma filha, acalmar a própria e relembrada dor ao ajudar Regan, mas esta não permitia. Erguendo o queixo com orgulho, Regan se foi, deixando Lynn sem nada a fazer, a não ser se apressar atrás da garota.

Foi um longo caminho até a casa. Talvez Regan nunca perdoasse Lynn por tê-la seguido e presenciado a humilha­ção que sofrerá nas mãos de Elliot Graham Júnior. Lynn tentou se contentar com o fato de que Erik e ela talvez tivessem evitado um estupro. Duvidava de que Regan se manifestasse sobre o episódio se não houvesse ninguém lá para fazer o rapaz parar. Regan ia ser a própria conse­lheira, jamais confiando que alguém acreditaria em sua história. Era uma "daquelas garotas" da Horizon House, e Elliot Graham Júnior era o filho de um homem que concor­ria a uma vaga no Conselho Municipal, em uma platafor­ma sobre conduta moral.

Toda dor que Lynn sentiu em nome de Regan se con­centrou em um ponto ardente, bem acima do olho direito. Levantou a mão para esfregá-lo, mal conseguindo encon­trar forças para colocar um pé na frente do outro. Não que­ria nada mais do que se deitar e se isolar do mundo. Então, Erik deslizou o braço pelos ombros de Lynn e os pressio­nou. E ela sentiu a necessidade de corrigir seu desejo. Não queria nada mais do que se deitar com Erik e se isolar do mundo, perder-se no conforto daqueles braços fortes e livrar-se da culpa na bondade daquele homem.

Viraram a rua estreita que passava atrás da Igreja de Santo Estéfano, voltando pelo mesmo caminho que haviam percorrido na ida. Regan caminhava com esforço na frente, como uma rainha que ia para a execução, ca­beça levantada, ombros rígidos. Abaixou-se para passar pela brecha de uma cerca viva, mas se ergueu com tanta rapidez que Lynn quase se chocou contra ela.

— Regan, o que... — Lynn se interrompeu ao notar o olhar chocado da menina.

Uma silhueta estava agachada nas sombras, ao longo da parede alta de calcário da igreja. Um ruído sinistro cor­tou o silêncio da noite. O som de uma cobra pronta para dar o bote ou de uma lata de tinta spray em atividade.

— Esperem aqui — Erik pediu e saiu correndo pelas fileiras de cerca viva, desaparecendo na esquina.

Lynn olhou de soslaio na escuridão, tentando identi­ficar características, gênero, qualquer coisa que pudesse dar uma pista da identidade da pessoa que desfigurava a lateral da igreja, mas estava muito escuro, o delinqüente muito distante e bem disfarçado, vestido de preto prati­camente da cabeça aos pés. Podia ser um homem ou uma mulher, um adolescente ou alguém mais velho.

Não ha­via como saber. Quem quer que fosse ele ou ela deu uma última sacudida na lata de tinta e a jogou fora.

Lynn agarrou o pulso de Regan com força, trazendo-a mais para perto, sem tirar os olhos da silhueta que se vi­rou, caminhou em silêncio para a porta lateral da igreja e entrou sorrateiramente.

— Regan, pegue as minhas chaves. Vá para casa e cha­me a polícia. Diga que alguém está invadindo a Igreja de Santo Estéfano. Rápido!

A garota correu na direção da instituição. Lynn seguiu para a porta por onde o vândalo havia entrado com cer­ta familiaridade. Sentindo a pulsação acelerada e o enjoativo cheiro de tinta fresca, ela se deteve na maçaneta, tentando formular algum plano.

O vândalo estava lá dentro. Era provável que fosse perigoso e estivesse armado. Ela não sabia o paradeiro de Erik. A intenção dele era dar a volta pela frente da igre­ja para pegar o criminoso em flagrante, porém não tinha idéia de que o meliante entrara na igreja...

De repente, ela se deu conta de que não havia tempo para teorias nem planos de jogo. Havia tempo apenas para ação. Desejando defender as meninas, ela girou a maçane­ta da porta e a abriu.

No instante seguinte, várias coisas aconteceram ao mesmo tempo: uma silhueta negra se apressava na direção dela, Erik vinha atrás daquela figura, um crucifixo rasga­va o ar numa tentativa de acertá-la. Erik gritou o nome de Lynn, pedindo que tomasse cuidado, mas não houve tempo para reação.

O crucifixo a atingiu na lateral da cabeça, e ela camba­leou para trás. O bandido tornou a investir contra Lynn, empurrando-a desesperadamente para o lado, no entanto ela o agarrou pelo braço, uma reação instintiva de auto-proteção. Ele se atirou com rapidez pela porta após ter se livrado da mão que o segurava. O vândalo tropeçou na pon­ta do degrau, e Lynn se arremessou contra ele. Levaram um tombo assustador, e ela teve a satisfação de ouvi-lo gemer, mas logo ele a empurrou de lado e lutou para ficar em pé.

Não tinha dado dois passos quando Erik voou através da porta e pelos degraus. Os dois caíram com um baque e um gemido.

Lynn ficou de joelhos, ofegante, e tirou um emaranhado de cabelos dos olhos. No mesmo instante, Erik se sentou, colocando o joelho sobre as costas do criminoso para man­tê-lo imóvel, com o rosto para baixo no gramado. Lançou a ela um olhar feroz e triunfante ao perguntar:

— Gostaria de ter a honra de tirar a máscara de esse ser imundo?

Ela engatinhou para frente.

— Com todo o prazer.

Portas de carros bateram a distância. A luz da varan­da de trás da Horizon House acendeu.

Lynn podia ouvir o barulho das pessoas que corriam pelo gramado, mas sua atenção estava voltada à criatura que Erik havia prendido no gramado. Ela alcançou a borda da máscara de esquiar, puxou-a com apenas um movimento e sentiu o coração parar.

Elliot Graham a fitou, os olhos de fanático queima­vam com fúria.

— Não quero falar com você.

Lynn entrou no quarto e fechou a porta atrás de si, ignorando as palavras de Regan. Era quase uma hora da manhã. Havia suportado as inúmeras perguntas da polí­cia, do padre Bartolomeu, de Martha, de Lilian e das me­ninas, que tinham levantado da cama com o tumulto.

Estava cansada. A cabeça latejava. Um calombo havia surgido onde Graham a atingira com o crucifixo roubado. Queria muito ir para casa e tomar um banho bem quente de banheira, aliviar as mazelas que acumulara durante a luta, mas ainda tinha algo a ser resolvido.

Regan sentou-se na beira da cama, olhando pela janela que dava para o jardim de trás. Quisera aquele quarto que era distante de todos e pequeno demais para mais de uma cama. Um refúgio quieto e seguro, que a menina transfor­mara em um casulo. A solidão presente naquele cômodo tocou Lynn, o auto-exílio que ali se esboçava desenterrou lembranças, como agulhas que lhe feriram o coração. Regan tentara se isolar, mas o truque não havia funcionado. Em vez disso, tal atitude a levou a encontrar Elliot Graham Júnior, para aliviar a solidão.

— Ele estava me usando — ela disse, com uma re­signação na voz que superava a amargura. — Eu deveria ter desconfiado que ele fosse um idiota.

— Nem sempre é fácil saber o verdadeiro caráter das pessoas — Lynn murmurou. Sentou-se na cama ao lado de Regan. — Acho que ninguém teria desconfiado que o pai dele fosse um crápula se ele mesmo não tivesse se revelado.

— Tal pai, tal filho — Regan se queixou.

— Elliot Graham estava doutrinando o filho por um longo tempo. É muito difícil para os jovens fazer as esco­lhas certas nas melhores circunstâncias.

Regan moveu bruscamente a cabeça, fitando-a pela primeira vez desde que Lynn entrara no quarto. Os olhos da menina estavam vermelhos de tanto chorar, tinham a borda manchada de preto devido ao delineador e ardiam em um fogo azul.

— Está encontrando desculpas para ele?

Lynn meneou a cabeça em negação.

— Não, querida. Nada pode desculpar a maneira como ele a tratou. Apenas estou tentando entendê-lo — ela explicou com calma. — Como está se sentindo?

Regan desviou o olhar com rapidez, esfregando o nariz com as costas da mão.

— Que diferença faz? Você quer me mandar de volta para o meu pessoal com a consciência tranqüila?

— Não vou mandar você para lugar algum.

— Sim, claro. Era por isso que estava me seguindo esta noite, para me pegar fazendo algo errado e ter uma boa razão para se livrar de mim.

— Sinto muito se tivemos que segui-la, Regan, mas não havia outro modo de provar que você não estava por trás dos atos de vandalismo.

— Eles teriam atribuído a culpa a mim, não teriam? Elliot Graham Júnior mentiria sobre nossos encontros. E eu não teria álibi.

Lynn pensou quanto tempo levaria para Regan per­ceber o quanto era uma garota brilhante, o quanto seu futuro poderia ser promissor.

— Claro que todos acreditariam que eu havia feito as pichações — a garota prosseguiu com sarcasmo, erguendo as mãos em rendição. Lágrimas correram por seu rosto. — Qualquer um pode ver que sou podre. Não sou boa em nada, exceto, talvez, em proporcionar um pouco de diver­são atrás daquela loja de produtos para encanamento.

A menina pressionou uma das mãos sobre a boca e lutou contra a maré de mágoa e desespero que a acometeu com tanta força que seu rosto ficou vermelho. Lynn mudou de posição com sutileza, aproximando-se um pouco de Regan.

— Vejo algo diferente disso quando olho para você — Lynn falou com suavidade. — Vejo uma garota boa pas­sando por muitas situações ruins. Sei como é. A gente se mete em um pouco de confusão de vez em quando e logo se vê tão envolvida que não sabe mais como sair nem mesmo se merece sair. Já passei por isso, querida. Sei o quanto é dolorido. Sei o quanto é assustador.

Regan tremia naquele momento, lutando para se man­ter calma. Apesar de compadecida, Lynn manteve sua po­sição. A menina respirava com dificuldade, balançando o corpo. As mãos agarravam os braços com tanta força que os dedos perderam a cor.

— C... Como v... Você conseguiu s... Sair dessa? — a me­nina gaguejou.

Lynn fechou os olhos por um instante e rezou em agradecimento.

— Alguém me estendeu a mão — ela respondeu. — E todas as vezes que essa pessoa tentava, eu a repelia, mas ela estendia a mão de novo. Finalmente, quando eu esta­va certa de que ela não ia retirar essa mão, agarrei-a e me segurei a ela.

Devagar, ela estendeu a mão a Regan. A garota obser­vou a mão da conselheira, com olhos temerosos. A seguir, encarou Lynn. As barreiras se desfizeram, e Regan caiu nos braços dela, chorando por ajuda e pedindo perdão. Lynn apenas a abraçou.

Erik esperava Lynn quando ela finalmente desceu as escadas. Ele estava sentado em uma poltrona da sala de visita, com os pés enormes acomodados sobre a mesa de centro. A lâmpada no canto da mesa lançava uma luz suave sobre ele, atenuando as linhas de cansaço que mar­cavam os olhos e a boca do senador.

Ele a olhou assim que ela entrou e deu aquele sorri­so caloroso que fez o coração de Lynn disparar. A idéia de nunca mais vê-lo se tornava difícil de enfrentar. Ela afas­tou aquele pensamento, estava muito cansada para lidar com ele naquele momento. A noite havia sido longa.

— Pensei que já tivesse ido para casa descansar — ela falou com discrição.

— Isso mostra o quanto você me conhece. — Erik se ergueu com calma da poltrona.

— Sim, acho que não sou tão esperta quanto pensei que fosse. — Ela franziu o cenho. — Jamais teria suspeitado de Elliot Graham.

— Demonstra que é um fracasso no que diz respeito a cinismo. Existe esperança para você, afinal.

— O pior de tudo é que ele não me pareceu estar arre­pendido pelo que fez; apenas irritado porque o flagramos.

— Imagino que ele acredite ter agido de forma repreensível em nome de uma boa causa. Pensou que estava apres­sando o inevitável ao cometer o vandalismo ele mesmo.

— Antecipando a própria entrada no Conselho Municipal, para que pudesse lutar por um bem maior para a cidade de Rochester — Lynn concluiu com amargura. — O fim justifica os meios.

Erik deslizou as mãos pelos ombros miúdos, massageando os músculos rígidos, tentando fazê-la se livrar da tensão. Ela era como uma leoa defendendo os filhotes sempre que alguém ameaçava a Horizon House ou as meninas. Elas se tornaram a família de Lynn, tomando o lugar do filho do qual ela tinha desistido, assim como do pai e da irmã que deixara para trás.

Os ombros frágeis começaram a se curvar sob os to­ques sutis dos dedos experientes. Ela suspirou e inclinou a cabeça para trás.

— Bem, tudo acabou agora — murmurou ele. — Como está Regan?

— Magoada.

Erik meneou a cabeça, inconformado com a atitude do jovem Graham. O senador fora criado para tratar as mulheres com respeito e menosprezava homens que não seguiam aquela regra.

— Você nem imagina, mas estive muito perto de dar um soco na boca daquele garoto — ele revelou.

Um sorriso de prazer e dor surgiu nos lábios de Lynn. Ela deslizou os braços pela cintura de Erik e o abraçou.

— Nosso benfeitor, responsável pelo resgate.

— Não sou tão cavalheiresco como você acredita. Eu julgava que Regan fosse realmente culpada pelas pichações. Acompanhei você apenas porque eu queria alguns pontos a meu favor.

E para estar por perto caso as coisas não dessem certo, Lynn pensou. Ele era tão bom quanto ela o idealizara.

— Considere alguns pontos positivos a seu favor.

Erik passou a mão pelos cabelos escuros e a beijou na cabeça.

— Vamos para minha casa esta noite.

Lynn pressionou a face contra o peito másculo e ouviu os batimentos do coração de Erik por um longo momen­to. Ela não deveria. Era provável que fosse muito mais fácil para ambos se simplesmente dissesse não e, assim, desse início ao processo de separação. Mas não conseguiu

Eles fizeram amor com calma e ternura, saboreando cada toque, cada beijo. Lynn ficou atenta a todos os de­talhes daquela experiência, registrando-os na mente e no coração como um filme a ser exibido outras vezes, quando aquele momento terminasse. Nem as minúcias do quarto passaram despercebidas: o matiz marrom-claro nas pare­des, a maciez do tapete, o brilho da luz na base de latão da lâmpada, a fina mobília de carvalho, o aroma de sândalo e o perfume das árvores levado pela brisa fria através da porta de vidro aberta. Os sentidos de Lynn estavam aguçados, reagindo a cada estímulo. O roçar dos lençóis parecia mais alto, o aroma de almíscar durante o ato de amor se espalhou pelo ambiente, o toque mais suave da mão de Erik na pele alva a fez ofegar.

— Dói aqui? — ele perguntou, circulando com cuidado a mancha escura em um dos ombros dela.

Só então Lynn se deu conta de que havia gemido alto.

— Estou com vários hematomas pelo corpo — ela disse com um sorriso desafiador.

A raiva tomou conta de Erik só de pensar que Lynn havia sido machucada. Estava apaixonado de verdade, pela primeira vez na vida, e suspeitava de que seria a única. Lynn era sua alma gêmea, estava destinada a ele. Pertencia um ao outro.

Abaixou a cabeça devagar e roçou os lábios no círculo escuro da pele sedosa.

Pela manhã, haveria a imprensa a ser enfrentada. Os repórteres proclamariam Erik um herói e iria arras­tá-lo para as entrevistas. Eles o tirariam dela e o levariam de volta ao mundo com o qual ele estava acostumado a lidar, ao mundo para o qual ele estava destinado. Mas não naquela noite.

Ele seria de Lynn por mais algumas horas.

— Sim — ela sussurrou afinal.

Ela suspirou e passou a mão pelos cabelos de Erik, que traçou um caminho de beijos, seguindo pescoço abaixo.

— Dói aqui? — perguntou em um tom de voz que pare­cia fumaça na noite.

Ela gemeu ao toque na parte inferior do seio.

— Sim — sussurrou.

Ele beijou o ponto onde seu dedo roçara.

— E aqui? — Pousou a ponta da língua sobre o mamilo quente, umedecendo-o e, a seguir, assoprando-o, espalhan­do faíscas de prazer pelo corpo feminino.

— Sim — ela respondeu, sem fôlego. — Em todos os lugares.

Estava ansiosa demais para senti-lo dentro dela. Então ele passou a distribuir beijos sobre o ventre delgado. Demorou-se ali, beijando-a com profundidade, mergulhan­do a língua no umbigo e depois deslizando mais abaixo. Ele a beijou no quadril e na dobra sensível da virilha. O desejo a fez estremecer quando a respiração quente aca­riciou a pele úmida entre suas pernas, que se abriu pa­ra ele, convidativas, implorando por ele em silêncio.

Quando Erik encostou a boca na intimidade de Lynn, ela gritou com a extraordinária sensação de prazer. Os dedos longos a massageavam no mesmo ritmo do afago profundo da língua. Em poucos instantes, ela se arqueava, suplicando para que ele a conduzisse ao êxtase, mas ele a segurou ali, à beira do clímax.

— Diga que me ama — pediu ao se posicionar sobre ela.

Lynn o fitou com o coração disparado. O olhar de Erik era impetuoso. Os cabelos castanhos lhe caíam na testa. As narinas se dilatavam levemente com o ritmo da res­piração. Ele apoiou as mãos sobre o colchão, nas laterais das madeixas negras, e os músculos dos amplos ombros se tornaram salientes. Estava pronto para penetrá-la. Era a figura do homem apaixonado, próximo da realização se­xual, mas adiava aquele momento porque queria ouvi-la dizer ás palavras que ela estava determinada a deixar trancadas dentro do coração.

— Diga Lynn — ele ordenou.

Ela o encarou, amava-o com desespero. Porém, disse:

— Não. — Sua voz soou como um suspiro.

Um estremecimento de medo tomou conta de Erik. Ela o rejeitava até mesmo nesse momento.

Não era um afas­tamento físico, mas emocional. Lynn; seria dele naquela noite, mas em nenhuma outra. Ele estava certo disso, da mesma forma que sabia que ela o amava. Tinha que amá-lo, ele pensou, com uma sensação de desespero que aumen­tava a cada instante. Ela não via um futuro para ambos, ou melhor, via o futuro dele e se convencera de que não podia estar incluída.

De repente, a necessidade de ouvi-la se tornou a coisa mais importante do mundo para ele. A necessidade físi­ca à beira de ser satisfeita não era nada se comparada à do coração, que suplicava para ouvi-la dizer que o amava. Se ele conseguisse fazê-la reconhecer que estavam espiri­tualmente unidos...

— Diga Lynn — ele insistiu, com os olhos fixos aos dela. Então começou a penetrá-la devagar. — Diga que me ama.

As lágrimas a tomaram de súbito. Ela o queria, e como! Não apenas naquela noite, mas para sempre. Queria dizer isso a ele, mas as palavras não saíam. Seu silêncio o ma­goaria naquele momento, mas Erik ficaria mais chateado se ela dissesse que o amava e depois fosse embora.

Deslizou as mãos pelas costas molhadas de suor até os músculos rígidos das nádegas masculinas, empurrando-o ainda mais para dentro. Ele a preencheu por completo, pulsante. Lynn engoliu o ar e tentou se mover, no entanto ele permaneceu imóvel, ainda a observá-la.

— Diga Lynn. Por favor. Apenas uma vez. — Ele pres­sionou o rosto ao dela.

Lynn o envolveu pela cintura com firmeza; amor e ar­rependimento se misturaram, provocando-lhe uma dor amarga que queimava como ácido no coração.

— Eu te amo — ela disse com suavidade, enquanto as lágrimas lhe banhavam o rosto.

Erik vibrava por dentro com a onda de alívio que o atingiu. Eles teriam uma chance.

Com delicadeza, lambeu as lágrimas de Lynn até bei­já-la nos lábios, com o corpo viril a pressioná-la, aumen­tando a intensidade e o ritmo das investidas gradualmen­te, levando ambos á mais completa felicidade.

Amo você. Uma frase tão simples. Uma emoção tão complexa.

Lynn se sentou à mesa no deque, enfiada em uma das blusas de moletom de Erik, vestindo calça jeans amarro­tada e meias; brancas de algodão, no frio que antecedia o amanhecer. Apoiou os pés em outra cadeira e cruzou os braços em volta dos joelhos, o olhar perdido ao longe, em meio à neblina baixa que flutuava no ar.

Conseguira sair da cama quando Erik finalmente havia sucumbido ao sono. Tinha perdido a conta do número de vezes que fizeram amor, determinados a agradar um ao outro. Queria dar a ele tudo o que pudesse como um último presente, uma última lembrança. Ele estava determinado a provar a ela como o relacionamento dos dois era bom, o quanto ele a amava, o quanto ela o amava.

Tinham se agarrado a um tipo de dor, um doce desespero, ambos que­rendo se apegar a algo que simplesmente não podia durar.

Ela terminaria o caso naquele mesmo dia. Haviam pas­sado bons momentos juntos, apesar de breves, comparti­lhando algo especial. Os caminhos de ambos tinham se cruzado e se unido, mas deviam tomar rumos diferentes de novo. Erik merecia alguém melhor, sem um passado som­brio. E ela devia se contentar com o sabor do amor que provara. Cavaleiros em armaduras brilhantes não apare­ciam todos os dias. Devia julgar-se uma pessoa de sorte por ter conseguido aquela oportunidade e então agir com nobreza, deixando-o partir.

Apenas desejava que a decisão não o machucasse muito.

Por que os melhores sonhos sempre se encontravam fora do seu alcance? O amor do pai, o filho, Erik... Por quanto tempo ainda teria de pagar pelos erros que cometera?

Para sempre. Não havia como reparar as vidas que ela tinha alterado. Aquelas faltas jamais seriam esquecidas. Ela apenas podia continuar a viver, tentando consertar os erros dos outros antes que outras vidas fossem arruina­das. A das meninas que moravam na instituição. A de Erik. E talvez um dia, se tivesse muita, muita sorte, ela conse­guisse outra chance no amor, à qual pudesse se agarrar.

— Também venho até aqui de manhã para pensar. — A voz grossa soou atrás dela. — As coisas parecem mais claras, mais simples.

Lynn o observou. Estava encostado à porta de vidro, com o peito nu e descalço. Uma calça jeans desbotada mo­delava as pernas e o quadril. O zíper estava fechado, mas o botão estava aberto, revelando os pelos escuros abaixo da barriga. Ela se sentiu atingida por constatar o quanto ele era atraente, não apenas quando usava terno, desem­penhando a função de político, mas também em momen­tos como aquele, quando se mostrava apenas um homem, com os cabelos em desalinho e a barba por fazer, sombreando as feições angulosas.

— Nem tudo é simples na vida — ela disse.

— O que sinto por você é. — Erik atravessou o deque e ficou de pé ao lado da cadeira de Lynn, fitando-a, como se quisesse convencê-la a respeito. — Eu amo você. Você me ama. Isso é tudo o que importa.

— Eu gostaria que fosse verdade.

Erik se conteve para não dizer um impropério. Afinal, era um político. Devia ser persuasivo e diplomático. Ajoelhou-se ao lado da cadeira que Lynn ocupava, apoian­do uma das mãos no encosto. Ela o observou em silêncio, resignada e determinada.

— As pessoas cometem erros, Lynn. Somos humanos.

— Alguns são mais do que outros — ela argumentou com um sorriso irônico.

— Não temos que pagar pelas falhas cometidas com nossas vidas.

— Não vou pagar com a sua Erik. Não quero preju­dicá-lo. Meu passado...

— Ficou para trás e está quase enterrado — ele com­pletou, perdendo a paciência.

Ela o encarou com aquela terrível resignação.

— Poderá vir a público se as pessoas me investigarem.

— Mas por que fariam uma coisa dessas? — ele per­guntou, dando de ombros. — Tem feito tantas coisas boas, Lynn. Por que alguém ia procurar algo errado?

Ela riu cínica.

— Você é um democrata, não é? Um idealista.

— Estou sendo mais realista do que você. Está tão en­volvida com seu martírio que não consegue enxergar nada além. Seria a esposa de um político, não exerceria a políti­ca. Todos se preocupariam com o que tem feito de sua vida agora. E se alguém tentasse bisbilhotar seu passado, des­cobriria que você cometeu os mesmos erros que milhares de jovens cometem. Sabe; quantas vezes uma oportunida­de como a nossa aparece, Lynn? — perguntou com calma, mas veemente. — Tem idéia de como é raro o sentimento que nos une?

Ela agarrou o braço da cadeira com força.

— Sim — sussurrou, com uma dor aguda pulsando por dentro.

— Como pode jogar fora o que temos?

— Não vejo outra saída.

— Na verdade, você é muito teimosa! Sabe que pode escolher entre felicidade e sacrifício. Podemos ter uma vida juntos, Lynn, um lar, uma família...

Ela levantou a mão para interrompê-lo.

— Não — disse com a voz embargada pela emoção.

Duvidava de que ele tivesse idéia de como estava sen­do cruel, apresentando aquela imagem a ela: os dois com uma criança. Era tudo o que mais queria na vida, a chance de ter uma família de verdade, uma segunda oportunida­de de ser mãe.

— Não posso Erik — sussurrou.

Levantou-se da cadeira e se afastou, para se encostar à balaustrada. Olhou o bosque enquanto a neblina começava a subir e os primeiros raios da manhã a atravessavam.

— Você não quer — ele disse, irritado. — Está muito ocupada, fugindo do passado. Primeiro fugiu fisicamente. Agora o faz de maneiras mais sutis, mas ainda está fugin­do, jogando fora tudo de bom que lhe acontece por causa do demônio que a persegue. Se você o enfrentasse de uma vez por todas, talvez visse as coisas como realmente são. Você não é um monstro, Lynn. E uma mulher que cometeu alguns erros. Está sempre aconselhando outras jovens a compreender suas falhas. Por que não segue os próprios conselhos?

— E o que estou fazendo! — ela gritou, encarando-o. — Não quero prejudicar mais ninguém nesta vida!

Erik estreitou o olhar, apoiou as mãos nos quadris e caminhou até ela.

— Acha que não é boa; o suficiente para mim? Tem medo de tentar ser feliz comigo porque me imagina um cavaleiro de armadura brilhante, alguém muito puro para ser tocado por você? — Ele meneou a cabeça, espantado. — Deus, e acusa a mim de ser pretensioso. Veja o que está fazendo, Lynn.

— Estou fazendo a coisa certa — disse ela, com voz trêmula.

— Você não é mais uma garota perdida, Lynn. Você é uma mulher, pode fazer as próprias escolhas. E eu não sou um salvador público imaculado. Sou apenas um homem que a quer. Não somente na cama, mas de todos os modos. Desejo que tenhamos uma vida juntos.

— Bem, então encontre alguém que possa atender suas expectativas, senador — ela falou com teimosia, agarrada à resolução que tomara. — Vou para casa a pé — informou.

Erik não respondeu, e Lynn atravessou o deque em di­reção à porta de vidro. Ia pegar os sapatos, tirar o moletom e sair da vida dele. Era provável que ainda se vissem mais tarde naquele dia. Haveria uma entrevista coletiva e a imprensa anunciaria a prisão de Elliot Graham. A partir daí, tudo voltaria ao normal na Horizon House, e Erik se envolveria em outra boa causa. As feridas cicatrizariam e, finalmente, só restaria ás lembranças.

— Nunca a rotulei de covarde, Lynn.

Os dedos finos pressionaram a maçaneta da porta. Covarde? Não. Ele não tinha idéia de como era difícil para ela abandonar o amor de sua vida.

— Não está com medo por mim — ele prosseguiu. — Teme por você, não quer enfrentar o passado nem sua fa­mília, tem medo de dar a si mesma algo mais do que peni­tência. Você perdoa a todos, Lynn. Por quanto tempo mais continuará se punindo?

Ela olhou o reflexo de Erik na janela. Logo ele se tor­naria apenas uma lembrança. Por quanto tempo iria punir a si mesma? Até que aquela imagem desaparecesse por completo de sua mente.

Um tempo muito longo.

Com os ombros curvados pelo peso de tal constatação, passou pela porta e entrou no quarto.

A notícia da prisão de Elliot Graham se espalhou por Rochester como fogo. Os sentimentos contrários à Horizon House desapareceram subitamente. O grupo Cidadãos Unidos em Prol dos Bairros de Família também sumiu. Os manifestantes envergonhados esconderam seus carta­zes. As portas dos ricos grupos de caridade da comunidade, que antes haviam se fechado para a instituição em que Lynn trabalhava agora se abriam com a irresistível pres­são da boa publicidade.

Ela sabia que a onda de interesse e apoio ia diminuir e, mais tarde, desaparecer, mas Lilian e Martha fizeram bom uso das oportunidades, transformando a repentina fama da Horizon House no pagamento inicial do terreno, aonde as novas instalações iam finalmente ser construídas. Não queriam depender da caridade da Igreja de Santo Estéfano nem do bispo. A mudança para a propriedade da igreja fora uma medida temporária para o problema de moradia que enfrentavam. O lucro inesperado com o caso constran­gedor de Elliot Graham assegurou que elas dessem início à construção da nova sede, onde poderiam dirigir os negó­cios sem interferência.

Com a tensão dos últimos dias deixada para trás, Lynn mergulhou no trabalho. Além de se dedicar às meninas, passava horas arrumando o escritório e organizando os arquivos; geralmente dormia no sofá da instituição, para evitar ficar sozinha em casa.

Os longos períodos de trabalho e as noites mal dormidas surtiam um péssimo efeito sobre ela.

Perdera peso e apresentava olheiras. Lilian insistia para que Lynn fosse ao médico. Martha oferecia uma discreta compreensão e deixava claro que seu ombro estava à disposição a qual­quer hora do dia e da noite. O padre Bartolomeu, bondo­so como era, arrumou coragem para ir ao supermercado e lhe trouxe uma caixa de bolos recheados de baunilha.

— Eles não substituem a oração — o padre esclareceu com solenidade e os óculos escorregando no nariz. — Mas estão na minha lista dos melhores consolos.

Lynn os aceitou, mas ainda não os havia tocado. Encontravam-se na última gaveta da sua escrivaninha. Não estava pronta para ser consolada.

Erik não tinha tentado contatá-la. Ela fizera o possível para afastá-lo dos pensamentos, mas não havia passado de um esforço inútil. Mesmo que fosse capaz de não pen­sar nele, o nome do senador estava nos lábios de todos na­queles dias. A imprensa o proclamava o herói do momen­to, um homem sempre pronto a ajudar, deixando Lynn de fora da captura de Elliot Graham para melhor se adequar ao tema do Guardião Solitário. Os dirigentes do Partido Democrata pensavam em eleger Erik para concorrer com o representante republicano a uma cadeira para o Senado dos Estados Unidos um ano antes do início da disputa.

O olhar de Lynn se fixou no jornal que alguém deixa­ra sobre sua mesa. Na foto, Erik se reunia a um grupo de fazendeiros da região, que enfrentava a crise da in­dústria de laticínios. Como Lynn tinha previsto, a vida dele continuava em ascensão. Não havia como dizer até onde ele poderia chegar quanto bem ele poderia fazer... Sem ela. A punhalada do arrependimento era tão dolorida quanto havia sido no dia em que ela fora embora, havia quase um mês.

Fiz a coisa certa. Aquele pensamento tinha se tornado um mantra para ela, palavras que deviam ser cantadas mentalmente a cada momento em que o desejo se torna­va; intenso demais para ser suportado. Fiz a coisa certa. Mas as palavras não passavam de um mísero consolo quando se encontrava sozinha no meio da noite e não havia ninguém nem nada que a distraísse da sensação de hipo­crisia que a envolvia.

Fizera a coisa certa para quem? Fizera a coisa certa, ou o que era mais fácil? Afastar-se de Erik fora uma das decisões mais difíceis que já tinha tomado, mas ficar com ele teria sido ainda mais complicado. Havia se convencido de que não podia ficar com o senador sem prejudicar o futuro dele, também não poderia ficar com ele sem fazer as pazes com a família e seu passado, e aquilo era algo para o que nunca conseguira encontrar coragem de reali­zar. Julgava que o pai, a irmã e o filho estariam melhores se não mantivessem contato com ela; mas a acusação de Erik conseguira eliminar a racionalidade das justificativas de Lynn, e a palavra "covarde" a assombrava dia e noite.

Covarde ou mártir, de qualquer modo, ela ainda era escrava dos erros da juventude. Aquela não parecia uma maneira muito saudável de viver. Não aconselharia suas meninas a levar a vida da mesma forma que ela.

— Por que parou de vê-lo? — A voz de Regan a interrompeu de forma brusca.

Lynn desviou o olhar da fotografia, ruborizada. Girou cadeira na direção da porta, onde a garota estava parada trajando uma de suas deprimentes roupas preta. Regan havia feito um grande progresso nas últimas semanas. Lynn chegou a brincar, dizendo que teriam feito a parte mais difícil do trabalho quando a garota voltasse a vestir roupas coloridas.

— Eu... É... Foi á melhor decisão — Lynn gaguejou pega de surpresa. Geralmente era ela quem fazia as perguntas e interpretava as respostas, não o contrário.

Regan estava ligeiramente ofegante quando entrou escritório com uma caixa branca nas mãos.

Apoiou o quadril na escrivaninha e lançou um olhar crítico para o artigo do jornal.

— Melhor para quem? Você está horrível — a menina, disse com suavidade enquanto examinava a fotografia.

— Obrigada. Eu realmente precisava ouvir isso.

— Sabe — ela acrescentou, ignorando o sarcasmo de Lynn, — primeiro achei que ele era um chato, mas se mos­trou um cara legal. Não existem muitos por aí. — A garo­ta dava a impressão de ser uma autoridade no assunto.

— Eu sei — Lynn murmurou.

— Além do mais, ele é um gato...

— O que tem na caixa? — Lynn a interrompeu.

Regan estendeu a caixa para ela.

— É para você. Um entregador a trouxe.

Lynn a apanhou, hesitante. Não tinha o endereço do remetente, apenas uma discreta etiqueta dourada com o nome de uma joalheria no centro da cidade, impresso com elegantes letras pretas.

— Não vai abri-la?

A conselheira fitou Regan.

— Em um minuto. Em particular — ela respondeu zombeteira.

Revirando os olhos, a garota se retirou.

Lynn voltou á atenção à caixa que estava em seu colo. Não tinha certeza se queria abri-la. Não sabia o que ia fa­zer se fosse de Erik. Por outro lado, não imaginava como reagiria se não fosse dele.

Tinha a sensação de que seu coração acabaria partido mais uma vez em qualquer uma das situações.

Levantando a caixa, testou o peso. Era tão leve que podia estar vazia. Devia ter sido enviada por outra pes­soa, ela admitiu. Uma antiga moradora da instituição, um pai ou uma mãe, alguém que a tivesse visto no noticiá­rio. Poderia ser de Elliot Graham. Ele havia sido libertado sob fiança.

Talvez achasse que, presenteando-a, poderia se redimir dos erros cometidos. Outro detalhe era que a Lyon não vendia coisas desagradáveis, era a joalheria mais fina da cidade.

— Nunca irá descobrir até que abra — Martha falou de súbito.

Lynn ergueu o olhar quando a amiga entrou no escri­tório e se instalou na cadeira à sua frente.

— Eu estava tentando adivinhar — justificou-se.

Não esperava nenhum comentário da parte de Martha, voltando á atenção à caixa. Não queria falar sobre o que acontecera entre ela e Erik. A amiga estava fazendo o jogo da espera, como um pescador aguardando que a truta se cansasse da luta, para que ele pudesse enrolar a linha do molinete. Lynn não queria ser enrolada. Preferia sofrer em silêncio, com medo de que, se as comportas de seu tumul­to emocional fossem abertas, não conseguisse fechá-las de novo. Como conselheira psicológica, sabia que conter as emoções não era saudável, mas não conseguia olhar para os próprios sentimentos sob o ponto de vista de uma pro­fissional no âmbito do comportamento.

Estava muito en­volvida com o problema para evitar que seus mecanismos de defesa interferissem.

Acabou rompendo o selo da caixa e a abriu, imaginando o que estaria ali dentro e quem a teria mandado. Percebeu que lidar com aquilo era melhor do que enfrentar a paciên­cia estóica de Martha por mais um minuto.

Aninhada em um leito de papel de seda cor-de-rosa, estava uma minúscula imagem de porcelana: um cavalei­ro montado em seu cavalo branco, sobre um pedestal de mármore cinza polido. A estatueta não tinha mais do que dois centímetros e meio de altura, e os detalhes eram perfeitos, desde o elmo do cavaleiro ornado com ouro até os minúsculos cascos do cavalo. Lynn a tirou da embalagem e colocou aquele tesouro sobre o mata-borrão.

Não havia cartão, mas estava claro quem o tinha envia­do: Erik. O que ela não imaginava era o motivo do presen­te. Seria uma proposta de paz? Apenas uma lembrança? Uma forma de provocação? Lynn não sabia, mas, quando olhou para a delicada estatueta, a sensação de solidão que a invadiu foi suficiente para fazê-la chorar de dor.

O último cavaleiro, o último benfeitor. A oportunidade de viver um grande amor. E ela o empurrou para longe com as duas mãos.

As lágrimas rolaram silenciosas, pelo rosto de Lynn no primeiro momento, gotejando do queixo trêmulo como pin­gos de chuva. Logo Martha a segurava pela mão, enquan­to os soluços finalmente puseram fim ao autocontrole de Lynn. Ela se curvou na cadeira, quase encostando a cabe­ça nos joelhos, os cabelos pendendo como uma cortina dos dois lados do rosto. Um misto de emoções a afligia: solidão, tristeza, auto piedade. Mas a mais forte, com certeza, era o medo. Erik tinha razão. Ela temia as coisas boas, acha­va-se não merecedora da felicidade. Tinha medo do passa­do e de apostar no futuro. Por isso, desperdiçara a maior oportunidade de sua vida.

— Procure-o — Martha propôs com delicadeza.

— Não posso — disse Lynn, quase sufocada pelas pró­prias palavras.

— Você o ama; querida. Ele a ama. Não há nada que o amor não possa resolver.

— Tenho medo — ela murmurou, levantando a cabeça com o rosto banhado de lágrimas. — Tenho muito medo e odeio isso. Tudo ia bem até ele aparecer. Eu estava conten­te com minha vida. Não tinha de lidar com meu passado. Então, ele apareceu e agora nada mais será como antes. Por que Erik tinha que fazer com que eu me apaixonasse por ele? — gritou, irritada, esfregando o nariz molhado.

Martha deu um sorriso compreensivo.

— Porque é o que os cavaleiros em armadura brilhante fazem, querida — explicou com paciência. — Agora tem de decidir se o deixa se apaixonar profundamente por você e vão lutar suas batalhas juntos ou se seguirá sozinha, imaginando pelo resto da vida como poderia ter sido se estivessem casados. Não quero dizer que não precise de coragem para seguir com ele, porque irá precisar, mas acho que não deveria deixar essa chance escapar.

— Quero estar com ele — Lynn sussurrou, apesar dos conflitos internos. — Sinto muita falta de Erik. Isso não faz sentido. Quero dizer, só o conheço há poucas sema­nas, mas sinto como se uma parte de mim estivesse morta por dentro sem ele. Não quero magoá-lo nem prejudicá-lo profissionalmente.

Era o argumento usado por Lynn desde o início, porém não causou impacto algum em Martha. A senhora, que era mais experiente, olhou-a nos olhos.

— E o que acha que está fazendo ao tirá-lo de sua vida? O futuro de Erik vai muito além da carreira, Lynn. Envolve a mulher que ele ama e a formação de uma família. Esse pode ser o futuro de vocês dois. Não se deixe levar pelo medo, querida. Agarre esse homem.

Lynn se levantou da cadeira e começou a andar pela sala. Talvez Erik não a quisesse de volta.

Podia ter man­dado a estatueta por inúmeras razões. Quem sabe aquele fosse o modo de ele encerrar o capítulo que a incluía. Talvez... Ela estivesse procurando desculpas porque não tinha coragem de tentar ser feliz nem de lidar com os pe­sadelos do passado.

— Acho que vou caminhar perto do lago e pensar um pouco — ela disse.

— Faça isso. — Martha foi até a amiga e a abraçou. — Vai chegar à conclusão certa. Sei que você é uma mulher de fibra, embora não esteja tão certa disso.

Lynn sorriu afetuosa.

— Como pode saber? O seu cristal revelou?

— Este? — Martha balançou a corrente com a ametista pendente. — Uso-o porquê é interessante e faz as pessoas pensarem que sou insegura. A pedra não revela nada que eu já não saiba em meu coração.

— Você é muito especial — Lynn sussurrou, rindo com discrição.

Sentiu-se melhor por ter compartilhado com a amiga aquele momento.

Martha suspirou e a conduziu à porta.

— Não esqueça o que eu disse, querida. E vá fazer sua caminhada.

O trajeto a partir da usina de energia era menos utili­zado do que os que ficavam à volta do Parque Silver Lake.

O sol já havia se posto do outro lado da cidade, deixando o céu de verão com um brilho alaranjado e marcado pela silhueta dos prédios mais altos do centro da cidade. A brisa do anoitecer estava quente. Era o tipo de crepúsculo ves­pertino que as pessoas costumavam aproveitar antes do inverno congelante de Minnesota. O parque estava reple­to de gente, sons e aromas: crianças pulavam corda, ou­viam-se gritos animados e risadas vindos de um grupo de adolescentes que jogava frisbee com um cachorro peludo. O aroma de hambúrgueres grelhados se espalhava pelo ar.

Lynn absorvia tudo a distância. Andou em volta do lago até encontrar um caminho pelo qual ninguém passava. Sentou-se na grama com as pernas cruzadas e olhou para a água reluzente.

Tudo o que mais queria era fazer parte de uma família. Mesmo que as coisas não dessem certo entre ela e Erik, já era tempo de tentar consertar a cisão com os familiares em Indiana. Jamais teria outra oportunidade de ser a mãe de Justin. Rebecca era a única mãe que ele havia conhecido. Mas Lynn poderia ser uma boa tia, boa irmã e boa filha. Distanciar-se deles tinha sido uma forma de autopunição. Ela havia cometido erros na juventude, mas Erik tinha razão, não iria corrigi-los abstendo-se de ser feliz.

Erik. Ela fechou os olhos e evocou a imagem de seu benfeitor, o senador de terno e gravata com seu belo sorriso e muito carisma e do homem vestindo calça jeans amarrotada, com os cabelos desalinhados e a barba por fazer lhe encobrindo os traços do rosto. Seu coração doeu desejando vê-lo em carne e osso. Ansiava por senti-lo dentro dela...

— Fazendo um pedido à primeira estrela da noite?

Lynn abriu os olhos, surpresa, ao ouvir aquela voz.

Ele estava lá, sentado em uma bicicleta branca, com os pés plantados no chão. Vestia calça jeans, tênis e camisa pólo, que combinava com o azul dos olhos dele. Ela per­cebeu que nunca se sentira tão feliz em ver alguém em toda a sua vida.

— Não era para você estar montando em um cavalo branco? — ela perguntou, levantando-se.

Ele deu de ombros, olhando-a de cima a baixo.

— É difícil encontrar um de improviso. Além disso, está muito quente para usar armadura.

— Tudo bem. Você parece ótimo para mim.

— Pareço? — ele perguntou, com o sorriso desaparecen­do. — Olhei no espelho antes de sair de casa e vi um ho­mem que passa as noites em claro, imaginando se a veria de novo.

Lynn colocou a mão sobre a dele no guidão da bicicleta.

— Acho que formamos um par perfeito então — ela falou com delicadeza.

Ele a examinou de perfil. O coração de Erik disparara. E a boca estava seca. De repente, nada do que havia acon­tecido em sua vida se comparava à enormidade daquele instante. Era o momento da verdade. Ou conquistaria o amor de Lynn ou seria mandado embora definitivamente. Percebeu, sem ficar envergonhado, que estava tremendo.

— Significa que vai se casar comigo? — ele indagou, com receio de ouvir a resposta.

Ela o fitou nos olhos.

— Posso não ser a melhor escolha para você.

Erik entrelaçou os dedos aos de Lynn. Com a outra mão, tocou-a na face macia como seda.

— Expliquei antes que eu não estava procurando nenhu­ma vestal. Quero uma mulher de verdade. Desejo você.

Ela deu aquele lindo sorriso que o havia atormentado durante as últimas semanas.

— Sim, mas lembre-se de que os votos dizem "na alegria e na tristeza".

— Não pode haver nada pior do que viver sem você.

Erik desceu da bicicleta e a abraçou. O beijo que se seguiu foi ardente, dando vazão a todo o desejo contido nas últimas semanas.

Ela o envolvia pelo pescoço, tremendo de alívio por tocá-lo novamente. Nunca se sentira tão completa, tão segura e tão amada como naquele momento.

— Vamos para casa — ele murmurou assim que ergueu a cabeça.

— Sim — ela sussurrou. — Preciso telefonar para alguém em Indiana.

Ele sorriu, entendendo o recado, e o coração de Lynn floresceu como uma rosa. Eles iam ser felizes juntos. Ela podia sentir isso como uma promessa no fundo de sua alma.

— Vamos, sir Galahad. — Então Lynn observou a bicicleta caída ao chão. — É melhor chamarmos um táxi.

 

                                                                                Tami Hoag  

 

 

                      

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