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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


HUMILHADOS E OFENDIDOS - P.2 / Fiodor Dostoievski
HUMILHADOS E OFENDIDOS - P.2 / Fiodor Dostoievski

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

HUMILHADOS E OFENDIDOS

Segunda Parte

 

No outro dia Nelly contou-me coisas muito estranhas acerca do visitante da véspera. Além do mais, já era estranho que tivesse ocorrido a Masloboiev ir ver-me naquela noite. Ele, certamente, sabia que eu não estava em casa; eu mesmo o avisara da nossa última entrevista, lembrava-me muito bem. Nelly disse-me que, de início, não quisera abrir-lhe a porta, por ter medo: eram já 8 da noite. Mas ele insistiu, através da porta fechada, afirmando-lhe que, se me não deixasse um aviso, poderia suceder-me algo desagradável no dia seguinte.

Assim que ela o mandou entrar, garatujou umas linhas, aproximou-se dela e sentou-se a seu lado no divã. «Eu pus-me de pé e não quis dar-lhe conversa — contou-me Nelly —, tinha muito medo; ele pôs-se a falar-me da Bubnova, de como está aborrecida, de que já se não atreveria a vir-me buscar. E depois pôs-se a falar-me de si, disse que era muito seu amigo e que o conhecia desde rapaz. Eu então comecei a falar-lhe. Ele pegou num embrulhito como bombons e pediu-me que os aceitasse. Eu não queria, mas ele procurou convencer-me de que-era uma pessoa de bem, que sabia muitas cantigas e dançar; saltou do lugar e pôs-se a fazer piruetas. Estava cheia de vontade de rir... Então ele disse que esperaria mais um bocado: «Esperarei por Vânia, pode ser que volte.» Insistiu muito para que eu não tivesse medo e me sentasse a seu lado. Sentei-me, mas não queria falar com ele. Então disse-me que tinha conhecido a minha mãezinha e o avozinho. Comecei logo a falar, e ele esteve sentado muito tempo.»

— E de que falaste?

— Ora... Da minha mãezinha, da Bubnova, do avôzinho. Esteve aqui duas horas.

Parecia que Nelly não queria dizer-me de que tinham falado. Nada lhe perguntei, esperando saber tudo pelo próprio Masloboiev. Mas parecia-me que Masloboiev fora procurar-me intencionalmente, durante a minha ausência, para encontrar Nelly sozinha. «Porque teria feito isso?», perguntei a mim mesmo.

Ela mostrou-me três dos bombons que ele lhe dera. Eram de açúcar pile, embrulhados em papelitos verdes e vermelhos. Não prestavam e deviam ter sido comprados numa mercearia. Nelly sorria ao mostrarmos.

— Mas... não os comeste? — perguntei-lhe.

— Não os quero — respondeu muito séria, franzindo o sobrolho. — Nem sequer os aceitei por minhas mãos, foi ele que os deixou no divã...

Nesse dia eu precisava de dar muitas voltas. Resolvi despedir-me de Nelly.

— Aborrece-te estar só? — perguntei-lhe ao sair.

— Sim e não. Só me aborrece por o senhor estar fora muito tempo.

E olhou-me com muita ternura ao dizer-me aquilo. Toda aquela manhã me olhou com uns olhos cheios de meiguice e parecia tão alegre, tão carinhosa e, ao mesmo tempo, tão envergonhadita e até inquieta, como se receasse contrariar-me, perder a minha estima. E... parecia também como que sufocada.

— E porque é que te não aborreces? Disseste «que sim e que não»... — perguntei eu, sorrindo sem querer, tão grata e querida me era já.

— Sei muito bem porquê — respondeu ela sorrindo e voltando-se corada de vergonha.

Falávamos junto da porta aberta. Nelly estava de pé, na minha frente, com os olhos baixos, uma das mãos apoiada no meu ombro e a outra ocupada em beliscar-me na manga do sobretudo.

— Como? É segredo? — perguntei.

— Não, nada disso. É que eu comecei a ler o seu livrinho, sem o senhor aqui estar — murmurou em voz baixa, e levantando para mim um olhar terno e compreensivo pôs-se muito vermelha.

— Ah, sim! E gostas?

Eu experimentava a confusão do autor a quem elogiam cara a cara. Deus sabe quanto daria para poder beijá-la naquele instante, mas não era possível fazê-lo. Nelly calou-se Depois perguntou-me:

— Porque é, porque é que ele morre?

A sua expressão reflectia uma pena profunda. Lançou-me um olhar rápido e depois baixou de novo os olhos.

— Ele quem?

— Ora... O rapazito tísico..., o do livro.

— Não podia fazer outra coisa, Nelly.

— Podia, sim! — respondeu ela quase em voz baixa, mas rapidamente, quase com mau humor. Franziu os lábios e pôs, ainda mais obstinadamente, os olhos no chão. Passou um minuto.

— Mas ela... bem, eles... a rapariguinha e o velho (*) — murmurou, enquanto continuava a puxar-me a manga ainda com mais força — chegam a viver juntos? E deixam de ser pobres?

— Não, Nelly. Ela vai para longe, casa com um proprietário; e ele fica só — respondi com pena, lamentando efectivamente não poder dizer nada mais consolador.

— Ah! Bem! Então é assim? Oh! Então... já não quero lê-lo.

E, com pesar, soltou a minha mão, afastando-se rapidamente de mim; dirigiu-se para a mesa e voltou a cara para a parede, com os olhos postos no chão. Estava muito corada e respirava nervosamente, como que devido a algum grande desgosto.

— Basta, Nelly. Porque ficaste aborrecida? — disse, aproximando-me dela. — Olha que nada disso é verdade, é uma coisa escrita, uma ficção. Bem! Vais aborrecer-te por isso? Que criaturinha tão sensível tu és!

— Eu não estou aborrecida — respondeu timidamente, levantando para mim uns olhos cheios de luz e de carinho.

E de repente, apertou-me a mão, encostou o rosto ao meu peito e desatou a chorar.

 

(1) Alusão às personagens de Pobre Gente, Macáno Alexieievitch e Varinka ( N. do T.)

 

Mas, no mesmo instante, pôs-se a rir... e ria e chorava ao mesmo tempo. A mim também me apeteceu rir e senti como que... alegria. Mas ela nem por sombras queria olhar para mim; quando eu tentei afastar a sua carita do meu ombro segurou-se a ele ainda com mais força, rindo-se cada vez com mais gosto.

Finalmente, terminou aquela cena sentimental. Despedimo-nos; eu estava com pressa. Nelly, toda afogueada, como que cheia ainda de vergonha e com olhos muito brilhantes veio a correr atrás de mim até à escada, pedindo-me que voltasse depressa. Prometi-lhe regressar, infalivelmente, à hora de jantar, sendo possível ainda antes.

A primeira coisa que fiz foi ir ver os velhos. Estavam os dois mal. Ana Andreievna estava muito doente; Nikolai Serguieitch encontrava-se no seu gabinete. Ouviu-me chegar, mas eu sabia que, como de costume, só se apresentaria passado um quarto de hora, a fim de nos dar tempo a falar. Eu não queria incomodar Ana Andreievna e, assim, adocei quanto pude o meu relato sobre a noite anterior, embora dizendo toda a verdade. com grande espanto meu, a velhinha, embora ficasse triste, pareceu receber sem surpresa a notícia de uma possível ruptura.

— Aí está, meu caro, bem me parecia — disse-me ela. — Quando se foi embora outro dia... Pensei muito e concluí que isso não se realizaria. Não merecíamos, valha-nos Deus, um homem tão desavergonhado. Que coisas boas podiam esperar-se dele? Brinca, brincando deve-nos dez mil rublos. Ele sabe que os deve, mas não os paga. Tira-nos o último pedaço de pão, põe à venda a Ikmenievka. Natacha mostrou-se digna e inteligente em não dar crédito à sua palavra. Mas o senhor não sabe — continuou em voz baixa — o que diz o meu... ? Pois que é absolutamente contrário a esse casamento. Pronunciou-se contra. «Não quero», diz ele. Eu, primeiro, pensava que ele havia de transigir; mas não, é a sério. E que vai ser dela, da minha pombinha?

Porque, nesse caso, ele vai amaldiçoá-la. Mas, bem, e Aliocha? Que diz ele?

Fez-me muitas perguntas e, segundo o seu costume suspirava e dava mostras de grande aflição a cada resposta minha. Eu já tinha observado que ela, nos últimos tempos andava muito abatida. Qualquer notícia lhe fazia profunda impressão. A ofensa feita a Natacha feria de morte o seu coração e a sua saúde.

O velho entrou, de roupão e chinelos. Queixava-se de febre, mas olhou a esposa com ternura. Durante todo o tempo que lá estive, atendeu a mulher como uma enfermeira, olhando-a nos olhos e como que corando na sua presença. Quanta ternura havia no seu olhar! Estava alarmado pela doença dela. Pressentia que tudo lhe faltaria na vida quando ela lhe faltasse.

Estive com eles uma hora. Ao despedir-me, Nikolai Serguieitch veio comigo até ao vestíbulo e falou-me de Nelly. Tinha o firme propósito de levá-la para sua casa, em lugar da filha. Queria resolver comigo a maneira de convencer Ana Andreievna. Perguntou-me por Nelly com muita curiosidade... se eu não tinha nada de novo para lhe contar a seu respeito. Contei-lhe tudo rapidamente. As minhas palavras impressionaram-no.

— Voltaremos a falar disto! — disse com decisão. — Mas, entretanto... quanto ao mais, eu mesmo irei a tua casa, quando me sentir melhor. Resolveremos então.

Ao meio-dia em ponto já eu estava em casa de Masloboiev. com grande espanto meu, a primeira pessoa com quem encarei foi o príncipe. Estava no vestíbulo e vestia o casaco, ajudado solicitamente por Masloboiev, que lhe oferecia também a bengala. Ele já me havia falado da sua amizade com o príncipe, mas, apesar de tudo, aquele encontro deixou-me estupefacto.

O príncipe pareceu contrariado ao ver-me.

— Ah! E o senhor! — exclamou com cordialidade exagerada. — Olhem que encontro! O senhor Masloboiev estava precisamente a dizer-me que são amigos. Muito prazer, muito prazer, muitíssimo prazer em vê-lo. Estava justamente a pensar em visitá-lo; espero fazê-lo quanto antes. dá-me licença? Tenho de fazer-lhe um pedido: ajude-me, explique-nos a nossa actual situação. Decerto já percebeu que me refiro ao que se passou ontem à noite— O senhor é um amigo da casa, seguiu todo o desenrolar dos acontecimentos, tem influência... Sinto muito não poder falar-lhe agora... Mas, dentro de dias, o mais cedo possível, terei o gosto de o visitar. Agora...

Apertou-me fortemente a mão, trocou um olhar com Masloboiev e foi-se embora.

— Diz-me, por Deus!... — comecei, ao entrar no quarto.

— Não posso dizer-te absolutamente nada — cortou Masloboiev, apanhando à pressa a boina e dirigindo-se para o vestíbulo. — Coisas! Eu, meu caro, tenho que fazer, estou atrasado...

— Mas lembra-te de que me escreveste convocando-me para o meio-dia.

— Que importa que te escrevesse? Ontem escrevi-te, mas hoje escreveram-me a mim; tenho a cabeça à roda... Mas que história! Estão à minha espera! Perdoa, Vânia! Tudo o que posso fazer é consentir que me batas por te ter incomodado inutilmente. Se queres, bate-me, mas por Cristo, depressa. Não digas nada, que estou com pressa...

— Mas porque havia eu de bater-te? Já que tens de fazer, apressa-te, porque há sempre que contar com o imprevisto. Apenas...

— Não. Sobre esse apenas já te direi — atalhou, saindo para o vestíbulo e pondo o sobretudo. Eu vesti também o meu. — Preciso de falar contigo, e por um motivo muito importante. Por isso te chamei. Diz-te respeito directamente, a ti e aos teus interesses. Mas assim, em tão pouco tempo, é-me impossível contar-te tudo. Mas, por amor de Deus, dá-me a tua palavra de que voltas aqui ainda hoje, esta noite, às oito em ponto, nem antes nem depois. Estarei em casa.

— Hoje... — disse eu indeciso — esta noite tenho de...

— Mas vai, meu caro, vai imediatamente onde querias ir e vem à noite ver-me a mim. Porque, Vânia, nem sequer podes imaginar tudo quanto tenho para te dizer.

— Bem, bem. Mas de que se trata? Confesso que me enches de curiosidade.

Com tudo isto tínhamos saído de casa e estávamos já a meio do passeio.

— Então, virás? — perguntou-me receoso.

— Já te disse que sim.

— Não, dá-me a tua palavra de honra.

— Como tu estás! Bem! Palavra de honra.

— Óptimo. Muito obrigado. Por onde vais?

— Por ali — respondi, apontando para a direita.

— Eu vou por aqui — disse ele indicando a esquerda.

— Adeus, Vânia! Lembra-te: às oito.

«É estranho», pensei, seguindo-o com o olhar.

Naquela noite eu queria ir ver Natacha, mas, segundo o que combinara com Masloboiev, resolvi dirigir-me logo a sua casa. Estava convencido de que iria encontrar aí Aliocha e, na verdade, ele lá estava e ficou muito contente quando me viu.

Estava muito carinhoso, extraordinariamente terno com Natacha, e até se alegrou muito com a minha visita. Natacha, embora se esforçasse por parecer alegre, via-se bem que a sua alegria era fictícia. Tinha cara de doente, estava pálida; dormira mal na noite anterior. Mostrava-se carinhosa para Aliocha, mas de maneira forçada.

Aliocha, apesar de falar muito e contar muitas coisas, desejoso, pelos vistos, de alegrá-la e arrancar um sorriso dos seus lábios, que ela involuntariamente mantinha apertados, notava-se que evitava falar de Kátia e do pai. Provavelmente não obtivera êxito a sua tentativa de reconciliação.

— Sabes uma coisa? Está cheio de pressa de me deixar — murmurou Natacha apressadamente, enquanto Aliocha saiu para dizer qualquer coisa a Mavra — e tem medo de o dizer. Eu também não me atrevo a dizer-lhe que se vá, porque então, com certeza, vai insistir em ficar e o que eu mais receio é que se aborreça e se afaste totalmente de mim. Que fazer?

— Meu Deus, em que situação se colocam ambos a si próprios! Que desconfiados e como se espiam mutuamente! Que um se explique, e acabou-se. De contrário, pode ser que esta situação acabe efectivamente por aborrecê-lo.

— Mas como fazê-lo? — exclamou ela assustada.

— Deixa estar que eu arranjarei tudo...

E entrei na cozinha com o pretexto de pedir a Mavra que me limpasse uma das galochas que estavam sujas.

— Cuidado, Vânia! — gritou ela.

Assim que entrei na cozinha, Aliocha precipitou-se para mim como se já me esperasse.

— Ivan Petrovitch, meu caro amigo, que hei-de eu fazer? Aconselhe-me. Empenhei ontem a minha palavra em como estaria hoje, precisamente a esta hora, em casa de Kátia! Não posso faltar! Eu quero a Natacha como nem sei dizer, por ela lançar-me-ia ao fogo, mas concorde que é impossível deixar a outra abandonada.

— Bem, então ande, vá-se embora...

— E como deixar Natacha? Vai ficar ofendida... Ivan Petrovitch, veja se se lembra de qualquer coisa...

— Ao que me parece, o melhor é ir-se embora. Sabe como ela lhe quer: vai julgar que se aborrece junto dela e que vem aqui à força. O melhor é proceder com naturalidade. Além disso, vamos lá, eu vou ajudá-lo.

Querido Ivan Petrovitch! Como é bom! Entrámos. Passado um minuto disse-lhe:

— Acabo de ver seu pai.

— Onde? — exclamou ele assustado.

— Na rua, por mero acaso. Esteve comigo um momento e mais uma vez manifestou o desejo de sermos amigos. Perguntou-me por si, se eu sabia onde estava, pois precisava muito de vê-lo, para dizer-lhe não sei o quê.

— Ai, Aliocha, anda, vai procurá-lo! — insistiu Natacha compreendendo o meu intuito.

— Mas... onde vou eu encontrá-lo agora? Estará em Casa?

— Não, lembro-me de ele ter dito que ia a casa da condessa. ..

— Bem, então... — exclamou ingenuamente Aliocha, olhando, triste, para Natacha.

— Ai, Aliocha, vamos a ver! — disse. — Queres deixar essa amizade para me tranquilizar? Não compreendes que isso é infantil? Em primeiro lugar é impossível, e em segundo procederias como um ingrato para com Kátia. Vocês são amigos! Será possível, por acaso romper tão bruscamente as vossas relações? Finalmente, confesso que me ofendes julgando-me tão ciumenta. Anda, vai imediatamente, peço-te. Assim também o teu pai ficará tranquilo.

— Natacha, meu anjo, não valho nem o teu dedo mendinho! — exclamou Aliocha, entusiasmado e contrito. — És tão boa, ao passo que eu... eu...! Bem, quero que o saibas: há pouco pedi a Ivan Petrovitch, na cozinha, que me ajudasse a ir-me embora. E foi ele quem se lembrou disto. Mas não me julgues mal, meu anjo, Natacha. Não sou inteiramente culpado, porque te quero mil vezes mais que a toda a gente e por isso me ocorreu uma ideia nova: abrir-me com Kátia e expor-lhe a minha situação actual e tudo o que ontem aqui se passou. Ela há-de lembrar-se de alguma coisa para nos salvar; ela tem-nos tanta afeição...

— Bem, vai! — respondeu Natacha sorrindo. — E quero que saibas, meu amigo, que eu também tenho muito gosto em conhecer Kátia. Como havemos de fazer para conseguir isso?

O entusiasmo de Aliocha não tinha limites. Depois começou a pensar no modo como haviam de travar conhecimento. Segundo ele, era muito simples: Kátia já pensara nisso. Desenvolveu a sua ideia com ardor, com veeemência. Prometeu que voltaria com a resposta no mesmo dia, daí a duas horas, e que passaria o serão com Natacha.

— De verdade que vens? — perguntou Natacha, empurrando-o.

— Duvidas por acaso? Adeus Natacha, adeus minha querida, és a minha querida para sempre. Adeus, Vânia! Ai, (peu Deus, chamei-o Vânia sem querer. Oiça, Ivan Petrovitch: eu estimo-o muito, porque não havemos de tratar-nos por tu?

— Combinado.

— Graças a Deus! Já me tinha lembrado disto mais de cem vezes. Só não me atrevia a dizê-lo. Mas veja como continuo a tratá-lo por «senhor». É muito difícil costumarmo-nos ao tratamento por «tu». Tolstoi nota-o muito bem, numa das suas obras. Dois amigos juram tratar-se por tu e nenhum deles consegue costumar-se a isso, ambos evitam empregar frases em que entrem pronomes. Natacha, leste Infâncta e Adokscência? Se visses como está bem escrito!

— Mas vai, vai — e Natacha empurrava-o, a rir. — Põe-se a falar, a falar, de alegre que está...

— Adeus. Até logo, dentro de duas horas. Beijou-lhe a mão e saiu a correr.

— Viste, viste, Vânia? — exclamou ela, rompendo a chorar.

Fiz-lhe companhia durante duas horas, consolei-a e consegui convencê-la. Claro que tinha razões de sobra para o seu alarme. O coração enchia-se-me de pena ao pensar na sua situação. Receava por ela. Mas que fazer?

Aliocha também me causava estranheza; amava-a, não menos que antes, mais ainda talvez, com mais força e aflição, por arrependimento e gratidão. Mas, ao mesmo tempo, apoderara-se fortemente do seu coração um novo amor. Em que acabaria tudo aquilo... era impossível prevê-lo. Eu tinha também uma grande curiosidade de conhecer Kátia; mais uma vez prometi a Natacha fazer com que me apresentassem a ela.

Por fim, pareceu alegrar-se. Entre outras coisas, falei-lhe de Nelly, de Masloboiev e da Bubnova. Contei-lhe o meu encontro com o príncipe em casa de Masloboiev e participei-lhe a minha combinação para as oito. Tudo a interessou muitíssimo. Falei pouco dos velhos, mas calei-me provisoriamente a respeito da visita de Ikmeniev; o projectado duelo de Nikolai Serguieitch com o príncipe poderia alarmá-la. Também lhe referi as estranhas relações do príncipe com Masloboiev e o seu vivo desejo de estabelecer relações comigo, o que se explicava bem pela actual situação.. Às três horas voltei para casa. Nelly veio receber-me com a sua luminosa carita...

 

Às oito em ponto da noite estava eu em casa de Masloboiev. Veio receber-me efusivamente e de braços abertos. Não é preciso dizer que se encontrava completamente embriagado. Mas o que mais me impressionou foram os extraordinários preparativos que fizera para me receber. Saltava à vista que estava à minha espera. Um bejo samovar de ouro e cobre fervia sobre a mesa — redonda, coberta com uma linda toalha, que devia ter sido muito cara. O serviço de chá era de cristal, prata e porcelana. Noutra mesa, coberta por uma toalha de outro género, mas não menos valiosa, havia em diversos pratos, doces, frutas de Kiev, frescas ou secas, marmeladas, pastilhas doces, geleias, pastéis franceses, laranjas, maçãs e três ou quatro variedades de nozes. Numa palavra, uma frutaria completa. Numa terceira mesita, coberta com uma toalha branca como neve, grande variedade de aperitivos, caviar, queijo, empadinhas, presunto, peixes e uma fila de magníficas garrafas de cristal com licores de várias marcas e de cores muito atraentes: verdes, vermelhas, canela e ouro. Finalmente, numa mesinha pequena, posta de lado, mas ainda assim coberta com um pano branco, duas garrafas de champanhe. Na mesa defronte do divã, três garrafas: Sauternes, Laffitte e conhaque — garrafas paradisíacas e caríssimas. Junto da mesinha de chá estava sentada Alexandra Semionovna, em traje simples e modesto, embora visivelmente rebuscado, e que lhe ficava muito bem. Sabia que lhe ficava bem e estava muito orgulhosa por isso. Ao receber-me, levantou-se com certa solenidade. A satisfação e o contentamento espalhavam-se no seu rosto fresco. Masloboiev calçava umas lindíssimas balbuchas chinesas, vestia um roupão de preço e deixava ver uma roupa interior elegante e aparatosa. Na sua camisa, onde quer que se pudessem prender, mostrava botões e broches à moda. O cabelo assente, untado com cosmético, e com risco ao lado, segundo a moda.

Eu estava tão admirado que me detive no meio do quarto e me pus a olhar de boca aberta, ora para Masloboiev, ora para Alexandra Semionovna, cuja satisfação raiava pela beatitude.

— Mas, que é isto, Masloboiev? Tens festa esta noite? — exclamei, finalmente, inquieto.

— Não, só te esperava a ti — respondeu solenemente.

— Mas, e isso? — e apontei os aperitivos. — Há aí o suficiente para abastecer um exército completo!

— E para lhe dar de beber... esquecias o principal; para lhe dar de beber — acrescentou Masloboiev.

— Tudo isso só por mim!

— E por Alexandra Semionovna. Preparou tudo com

tanto gosto...

— Bem, já me queria parecer! — exclamou, corando, Alexandra Semionovna, mas sem perder o seu ar de satisfação. — Não se pode receber dignamente um hóspede?... Sou sempre eu a culpada de tudo!

— Desde esta mesma manhã, já podes ver, desde esta manhã, assim que soube que virias à noite, não parou um momento. Andou tão atarefada!

— Sim, sim! Mas não só desde esta manhã; já desde ontem à noite! Quando entraste ontem à tarde disseste-me logo que ele viria passar o serão aqui...

— Ouviste mal.

— Não ouvi mal, foi o que tu disseste. Eu nunca minto. E porque não havemos de receber bem as visitas? Passam-se dias e dias sem que ninguém nos venha ver e, no entanto, temos de tudo o que é preciso. Que ao menos as pessoas vejam que nós também sabemos viver.

— E que vejam o principal: como é diligente e hábil a dona da casa — acrescentou Masloboíev. — Já vês, meu caro amigo, porque é que eu terei caído aqui. Bordam-me camisas de holanda, colocam-me os botões de punho, calçam-me as babuchas, vestem-me um roupão chinês; penteiam-me e põem-me brilhantina com essência de bergamota. Ela até queria pôr-me perfume de creme brullée; só sei que perdi a paciência, levantei-me e fiz valer a minha autoridade de marido...

— Não é bergamota, é a melhor brilhantina francesa, que vendem no seu frasco de porcelana! — insistiu, toda aborrecida, Alexandra Semionovna. — Veja o senhor mesmo, Ivan Petrovitch: nunca me leva ao teatro nem a um baile; só sabe oferecer-me vestidos e mais vestidos. Que hei-de eu fazer? Vestir-me e pôr-me a dar voltas por aqui, sozinha... Há dias estava combinado que iríamos ao teatro; já me tinha vestido e só me faltava pôr um broche. Fui buscá-lo, e quando voltei já ele se metera com as garrafas. Em resumo: ficámos em casa. Ninguém, absolutamente ninguém, nos vem ver. Só de manhã, para negócios, é que vem alguém, e então eu desapareço... E no entanto não nos falta o samovar, nem o serviço de chá com lindas chávenas... Temos tudo isso, e tudo oferecido. E oferecem-nos também comestíveis: quase só precisamos de comprar a aguardente e a brilhantina. Aí tem: aperitivos, empadinhas, presunto e até doces comprámos para o senhor, para que veja como vivemos. Há um ano que ando a pensar: «Se vier algum convidado, poderíamos mostrar-lhe tudo isto e obsequiá-lo; ele havia de nos elogiar, o que nos daria muito prazer.» E pus a brilhantina a este, embora ele o não mereça, pois, por sua vontade, andaria sujo. Veja o roupão que traz. Também foi oferecido. Por acaso merece ele um roupão como este? Do que ele gosta é de se pôr a beber. Já vai ver como, antes de lhe oferecer chá, lhe oferece vodka.

— E então? É assim, é, vamos beber um bocadito, Vânia, da garrafa de licor de ouro e também licor de prata. Depois, com a alma iluminada, passaremos a outras bebidas.

— Então, eu não dizia?

— Não te assustes, Sachenka; também tomaremos chá, com um bocadinho de conhaque, à tua saúde.

— Bem, aí temos! — exclamou Alexandra, levantando os braços. — Um chá de seis rublos que nos ofereceu o comerciante há três dias, e ele prefere beber conhaque. Não faça caso, Ivan Petrovitch, eu vou servir-lhe o chá! Já vai ver, já vai ver que chá...

E pôs-se a andar de um lado para o outro, afanosamente, à volta do samovar.

Era evidente que tinham pensado entreter-me ali toda a noite. Alexandra Semionovna estivera durante um ano à espera de um hóspede e agora dispunha-se a desafogar a sua alma comigo. Mas aquilo não estava nos meus cálculos.

— Desculpa, Masloboiev — disse eu, sentando-me —, eu não vim ver-te como convidado, tenho que fazer. Tu chamaste-me para me comunicares não sei o quê...

— Bem, é verdade. Negócios são negócios, mas também há lugar para uma conversa de amigos...

— Não, meu caro, não tenhas ilusões. Às nove e meia vou-me embora. Tenho que fazer, prometi...

— Não penses nisso. Faz favor de ver como vais proceder comigo. Que vais fazer a Alexandra Semionovna? Olha para ela. Até faz pena! Para que me poria ela a brilhantina? Vê lá tu, cheiro a bergamota!

— Levas tudo a brincar, Masloboiev. Juro a Alexandra Semionovna que, para a semana que vem, sexta-feira, por exemplo, virei jantar convosco. Mas hoje, caro irmão, dei a a minha palavra, ou, melhor, preciso simplesmente de ir a determinado lugar. É melhor que me expliques já o que querias dizer-me.

— Mas o senhor só fica connosco até às nove e meia? — exclamou Alexandra Semionovna com voz tímida e lastimosa, quase a chorar, enquanto me servia uma chávena do seu excelente chá.

— Não te aflijas, Sachenka, isto é apenas vontade de falar — insistiu Masloboiev. — Ele vai ficar connosco; outra coisa seria um absurdo. Mas diz-me, Vânia, que sítio é esse onde vais constantemente? Que assunto te ocupa? Não se pode saber? Passas os dias de cá para lá, não trabalhas.

— E isso que te importa? Entretanto, pode ser que to diga mais tarde... Mas diz-me tu antes: porque foste ontem à noite a minha casa, quando eu te tinha dito — lembras-te que não estaria lá?

— Lembrei-me depois, mas ontem tinha-me esquecido Queria efectivamente falar contigo sobre um assunto, mas o que mais me interessava era distrair um pouco Alexandra Semionovna. «Olha — disse-me ela —, esse homem parece-me simpático. Porque não o convidas?» E por tua culpa não me deixou descansar durante quatro dias. Por causa da bergamota, meu irmão, terás de me perdoar, indubitavelmente, muitos pecados... Então pensei: «Porque não passar um serão agradável em companhia de um amigo?» E veio-me à ideia um estratagema: escrevi-te a dizer que se passava qualquer coisa de tão sério que se não viesses tudo iria por água abaixo.

Eu pedi-lhe que, para a outra vez, não voltasse a fazê-lo, mas que me falasse francamente. Apesar de tudo, aquela explicação não me satisfez totalmente.

— Bem! Mas vamos lá a saber: porque fugiste de mim? — perguntei.

— Ora, porque efectivamente tinha que fazer, não te mentia. — com o príncipe, por acaso?

— Gosta do nosso chá? — perguntou-me Alexandra Semionovna com voz melíflua.

Esperava há cinco minutos que eu elogiasse o seu chá e eu sem reparar.

— E excelente, Alexandra Semionovna, magnífico! Nunca tomei outro igual.

Alexandra Semionovna corou de satisfação e serviu-me outra chávena.

O príncipe! — exclamou Masloboiev. — Um bom...

Desavergonhado, meu irmão, é um bom desavergonhado, esse tal príncipe. Eu, meu irmão, vou dizer-te uma coisa: não me tenho em grande conta, mas apenas por vergonha não quereria encontrar-me na sua pele. Mas basta. É um tratante. Isso é tudo o que posso dizer dele.

— Pois eu vim ver-te com toda a intenção de te falar nele, entre outras coisas. Mas deixaremos isso para depois. Agora diz-me: porque é que ontem, na minha ausência, ofereceste bombons à minha Helena e até te puseste a dançar diante dela? E de que falaste tu durante hora e meia?

— Helena é uma criança de onze ou doze anos, que vive agora com Ivan Petrovitch — explicou Masloboiev à mulher, voltando-se para ela. — Olha Vânia, olha — prosseguiu, apontando-a com os dedos —, toda ela estremeceu ao ouvir que levei bombons a uma desconhecida. Pôs-se vermelha e estremeceu como se tivesse ouvido o disparar de uma pistola... Vê como os seus olhos brilham que nem brasas. Mas, Alexandra Semionovna, não há nada, nada que ocultar! Anda, põe-te com ciúmes. Se não tenho explicado que era uma garota de onze anos, estava bem servido... Nem a bergamota me salvaria!

— A partir de agora, com certeza que não te salva.

Ao dizer aquelas palavras, Alexandra Semionovna, de um salto, dirigiu-se para nós, abandonando a sua mesinha de chá, e, antes que Masloboiev tivesse tempo de esconder a cabeça, agarrou-o pelos cabelos e deu-lhe uns poucos de bofetões.

— Toma, toma! Para não te atreveres a dizer diante do nosso hóspede que sou ciumenta. Para não te atreveres, para não te atreveres, para não te atreveres!

Pusera-se vermelha e, embora sorrisse, nem por isso batia com menos força no marido.

— Diz coisas que fazem vergonha! — acrescentou, a sério, dirigindo-se a mim.

— Já vês, Vânia, que vida é a minha! Não tenho remédio senão consolar-me com a aguardente — decidiu Masloboiev alisando os cabelos e dirigindo-se, pouco menos que „ correr, para a garrafa..

Mas Alexandra Semionovna adiantou-se-lhe, inclinou-se sobre a mesa, serviu-lhe o vinho ela própria, entregou-lho e até lhe deu, com carinho, uma pancadinha na face. Masloboiev, ufano, piscou-me o olho, estalou com a língua e bebeu solenemente.

— Quanto aos bombons é difícil explicar — começou ele, sentando-se junto de mim no divã. — Comprei-os há três dias, embriagado, numa mercearia... Não sei com que fim. Talvez com o único fim de fomentar o comércio e a indústria nacionais... não sei bem. Só me lembro de que caí, embriagado, no meio da rua; que caí na lama, puxei os cabelos e me pus a chorar, vendo que era um inútil. Naturalmente esqueci-me dos bombons que ficaram no meu bolso até ontem à noite; sentei-me sobre eles quando descansei no teu divã. Quanto às danças, eu estava também embriagado; tinha uma bebedeira muito respeitável e, quando estou assim e me sinto feliz na vida, costumo pôr-me a dançar. E é tudo. Falta talvez apenas acrescentar que a orfazinha me inspirou dó e também que ela não queria falar comigo, como se estivesse aborrecida. Dancei também para a alegrar e para o mesmo lhe ofereci os doces.

— Mas não lhos terias oferecido com o fim de a sondar? Confessa francamente: foste procurar-me intencionalmente, sabendo que eu não estava em casa, para falares a sós com a pequenita e para lhe arrancares algum pormenor, não é? Lembra-te que sei que estiveste a falar com ela durante hora e meia, que lhe disseste que conheceras a sua falecida mãe e que lhe perguntaste não sei que mais.

Masloboiev piscou o olho e sorriu maliciosamente.

— Olha, não teria sido má ideia — disse. — Mas não, Vânia, não é assim. Claro que não fica mal perguntar, mas não se tratava disso. Escuta, velho amigo, embora esteja agora muito embriagado, como é costume, deves saber que nunca Filipe Filipitch te enganou com «má intenção». Assim mesmo: com «má intenção».

Bem. E sem má intenção?

Ora... tão-pouco sem má intenção. Mas que é isto?

gebamos e vamos ao assunto! Que é muito simples — continuou sem deixar de beber. — Essa Bubnova não tinha nenhum direito de reter essa criança. Estou a par de tudo. Não havia perfilhação nem nada no género. A mãe da garota devia-lhe dinheiro, e vai ela ficou com a pequena. A Bubnova, por muito esperta e desavergonhada que seja, é, como todas as mulheres, uma tonta. A falecida tinha um passaporte em regra, e assim tudo está claro. Helena pode viver contigo, embora fosse preferível que qualquer família generosa a adoptasse. Mas, por agora, pode continuar contigo. Isso não importa, arranjarei tudo. A Bubnova não se atreve nem a mover um dedo. Acerca da falecida não pude averiguar nada de concreto. Só sei que era viúva e tinha o apelido Salzmann.

— É assim, é. Nelly já mo disse.

— Bem, está o caso arrumado. Agora Vânia — começou com certa solenidade —, tenho de fazer-te um pedido insignificante. Vais conceder-me o que te peço. Vais contar-me, o mais pormenorizadamente possível, que assunto é esse que te preocupa, onde vais, onde passas os dias inteiros. Embora algo tenha ouvido e saiba sobre isso, preciso de mais dados.

Aquela solenidade surpreendeu-me e até me causou inquietação.

— Como? Para que precisas de sabê-lo? Perguntas-mo tão solenemente...

— vou dizer-to, Vânia, sem palavras supérfluas: quero prestar-te um serviço. Olha, meu amigo, se eu usasse de astúcia, poderia, sem solenidade nenhuma, arrancar-te da língua o que desejo saber. Mas tu pensas que estou a usar de astúcia; compreendi-o quando falaste dos bombons. Mas, ao falar-te agora com esta solenidade, não o faço no meu interesse, mas no teu. Assim, não duvides e conta-me, com toda a franqueza, a verdade inteira... sinceramente...

— Mas que serviço é esse? Ouve, Masloboiev. Porque não me contas alguma coisa sobre o príncipe? Se soubesses como eu preciso de saber certos pormenores... Isso, sim seria um favor.

— Do príncipe? Hum... Bem, seja. Falar-te-ei com franqueza. Ia precisamente perguntar-te agora qual a sua conduta.

— Sim?

— Olha, meu irmão, eu já tinha notado que ele andava de permeio no teu assunto. Entre outras coisas, perguntou-me por ti. Como se inteirou de que tu e eu somos amigos... é coisa que te não diz respeito. O principal é isto: tem cuidado com esse príncipe. É um judas traidor e fíco-me por aqui. Quando vi que estava metido nos teus assuntos, comecei a recear por ti. Quanto ao mais, não sei nada; por isso te pedia que mo dissesses tu, para poder ajuizar... E por isso também te convidei para hoje. Olha que isto é um assunto importante. Não posso explicar-me com mais clareza.

— Mas, pelo menos, quererás dizer-me qualquer coisa, ainda que seja só a razão pela qual devo ter cuidado com o príncipe?

— Pois bem, seja. Eu, meu irmão, costumo, por vezes, meter-me em assuntos alheios. Mas julga por ti mesmo: há quem tenha confiança em mim, porque não sou linguareiro. Como hei-de contar-te alguma coisa? Não te aborreças, pois, se te falar apenas de modo geral, só para te mostrar o tratante que esse homem é. Mas fala tu primeiro.

Eu pensei que realmente não devia ocultar nada a Masloboiev. A história de Natacha não era nenhum segredo e, além disso, podia esperar de Masloboiev algo de útil para ela. Claro que, no meu relato, procurei, dentro do possível, passar por altos pontos. Masloboiev escutou com particular atenção tudo o que dizia respeito ao príncipe. Muitas vezes obrigava-me a parar para perguntar várias coisas que tornassem o meu relato mais pormenorizado. Falei durante meia hora.

— Hum! Essa rapariga é muito inteligente! — concluiu Masloboiev. — Supondo que ela não tivesse acertado em tudo o que respeita ao príncipe, pelo menos acertou numa coisa, desde o primeiro instante: foi em compreender com quem tinha de haver-se e cortar as relações com ele. Bravo Natacha Nikolaievna! Bebo à tua saúde! — e bebeu... — mas não basta a inteligência, também é preciso coração para uma pessoa não se deixar enganar. Coração foi o que lhe faltou. Naturalmente que o assunto já está arrumado; o príncipe realiza os seus desejos, e Aliocha deixa-a abandonada. O único que me faz pena é Ikmeniev... Ter de pagar dez mil rublos a esse desavergonhado. Quem se encarregou do seu caso? Quem deu cabo dele? Talvez ele próprio. Ah! São todos os mesmos, estes homens nobres e ardentes! Não servem para nada! com o príncipe era necessário proceder de outro modo. Eu teria arranjado um advogadozito para Ikmeniev que... Ah! — e deu com aborrecimento um soco na mesa.

— Bem, e agora, que me dizes do príncipe?

— Para ti não existe senão o príncipe. Que hei-de dizer-te dele? Não me agrada, além disso, que mo tenhas lembrado. Eu, Vânia, só queria prevenir-te contra esse desavergonhado, a fim de te pôr a salvo da sua influência. Quem se relaciona com ele não se livra de inquietações. Por isso, toma cautela. Aqui tens tudo. Parece-me que já tinhas pensado que eu te ia contar sabe Deus que mistérios de Paris. Para alguma coisa hás-de ser romancista... Bem! Que hei-de eu dizer desse tratante? Que é um desavergonhado?... Pois bem: vou contar-te, por exemplo, uma das suas façanhas, naturalmente sem especificar lugar, cidade ou personagens. Quero dizer, sem precisão. Deves saber que, na sua mocidade, quando se via obrigado a viver do seu ordenado de funcionário, teve de casar-se com a filha de um opulento negociante. Bem! Pois não se portou nada bem com a tal filha do comerciante, e, embora se não trate agora dela, far-te-ei notar de passagem, Vânia, que toda a vida gostou de empregar recursos destes. Mas continua a ouvir. Fez uma viagem ao estrangeiro. Aí...

— Pára, Masloboiev. A que viagem te referes? Em que ano foi?

— Faz agora precisamente noventa e nove anos e três meses... bom, aí também raptou uma filha à família, filha única, e levou-a para Paris. E sabes o que fez? O pai da pequena era dono de uma fábrica ou sócio de uma empresa não sei bem. Olha que isto tive eu de reconstituí-lo com argumentos e suposições inferidos de outros dados. Pois o príncipe enganou-o e entrou de sociedade com ele. Enganou-o completamente e tirou-lhe uns dinheiros. Quanto ao dinheiro roubado, o velho possuía documentos. O príncipe, porém, queria levá-lo, não pensava devolvê-lo, e também não queria mostrar que praticara simplesmente um roubo. O velho tinha uma filha, uma filha encantadora, e desta formosura estava enamorado um homem ideal, um irmão de Schiller, poeta e ao mesmo tempo comerciante, um jovem sonhador, numa palavra, um perfeito alemão, chamado Pfefferkuchen (*), ou qualquer coisa semelhante.

— Com que então chamava-se Pfefferkuchen?

— Pode ser que não, mas diabos me levem se isso nos interessa! O certo é que o príncipe começou a fazer a corte à pequena, e de tal modo a fez que ela se apaixonou por ele como uma louca. O príncipe, com isto, pretendia duas coisas: primeiro, possuir a rapariga, e depois os documentos que o velho tinha comprovadores de que a quantia fora somente emprestada. Era a filha que guardava as chaves de todas as gavetas do velho. O velho amava-a com loucura, a ponto de não a querer dar em casamento a ninguém. Tinha ciúmes de todos os noivos, não se convencia de que se tinha de separar dela e expulsou de sua casa esse tal Pfefferkuchen, que era um inglês...

— Inglês? Mas onde se passava toda esta história?

— Disse inglês por comparação, e tu agarras-te logo a isso... Esta história passou-se em Santa Fé de Bogotá, ou talvez em Cracóvia, numa cidade ou noutra, tanto faz.

Olha, parece-me que, o mais certo, foi tudo ter acontecido no principado de Nassau, quer dizer, escreveu-se na areia, precisamente em Nassau. Estás satisfeito? Bem. O prícipe raptou a rapariga e, por indicação dele, esta levou consigo alguns documentos. Aquilo é que foi uma paixão, Vânia! Livra! Meu Deus! E acho que a pequena era decente, boa, distinta. Para dizer a verdade, talvez ela não soubesse muito de papeladas. A ela só a preocupava uma coisa: a maldição do pai. O príncipe afastou os seus temores comprometendo-se a casar com ela legal e formalmente. Assegurou-lhe, além disso, que só estariam ausentes uma temporada, o suficiente para dar tempo a que o velho se apaziguasse. Voltariam então, já casados, e viveriam para sempre juntos, os três, em amor e concórdia, assim até à eternidade. A pobrezinha fugiu, o velho amaldiçoou-a e teve de declarar-se falido. Frauenmilch (’) correu para Paris atrás dela, deixando tudo e abandonando até o negócio, pois estava perdidamente enamorado.

— Mas que Frauenmilch era esse?

— Bem, como se chamava ele? Feuerbach... (2) quer dizer, Pfefferkuchen! Bem! Claro que ao príncipe era impossível casar-se, pois, que diabo, que diria a condessa Klestova? Que pensaria o barão Pomoikine? Por conseguinte, era necessário usar de artimanhas. E não esteve com meias medidas... Em primeiro lugar, pouco faltou para lhe bater e, além disso, convidou intencionalmente para sua casa o próprio Pfefferkuchen, o qual acudiu à chamada, fez-se amigo dela e, vamos, derramaram juntos umas lagrimitas, passaram juntos alguns serões, lamentando a sua desdita e consolando-se. Eram ambos uns ingénuos. O príncipe preparara tudo... Uma vez surpreendeu-os já tarde e saiu dizendo que ambos se entendiam e começou a levantar questões. Dizia que os vira com os seus próprios olhos. Expulsou-os imediatamente de casa e partiu para Londres. Mas, pouco tempo

 

(’) Torta de pimenta, em alemão.

(’) Leite de mulher em alemão. (2) Rio de fogo, em alemão.

 

depois de a deixar, ela deu à luz uma menina, quer dizer um menino, é isso, um filhinho, ao qual pôs o nome de Volodia. Pfefferkuchen foi o padrinho. Enfim, ela acabou por ir viver com Pfefferkuchen, que tinha um dinheirito. Viajaram pela Suíça, pela Itália.’., por todas essas terras poéticas, ao acaso. Ela não fazia senão chorar e Pfefferkuchen choramingava também. Assim se passaram muitos anos e o menino cresceu. Ao príncipe tudo correra bem, excepto uma coisa: não pôde arrancar-lhe o documento pelo qual se comprometia a casar-se.

«És um covarde — dissera ela ao despedir-se. — Raptaste-me, desonraste-me e agora abandonas-me. Adeus! Mas não contes que te devolva a promessa de casamento. Não que ainda pense casar contigo, mas porque sei que receias este documento. Por isso o guardarei sempre em meu poder.» Numa palavra, exaltou-se; mas o príncipe permaneceu tranquilo. Em geral, esta classe de indivíduos sabe muito bem regular os seus assuntos com essas criaturas a que chamamos exaltadas. Estas são de condição tão nobre que se deixam enganar facilmente. Além disso, rematam sempre tudo com sublime desdém, em vez de tentar arrumar o assunto de maneira prática e justa, se for possível. Pois essa mãe procedeu assim: pôs fim ao episódio com altivo desprezo e, embora ficasse com os documentos, o príncipe bem sabia que mais depressa ela se deixaria enforcar que faria uso deles. Por isso, continuou tranquilo até agora. O certo é que, embora lhe tivesse chamado, cara a cara, desavergonhado, ela ficou com Volodia nos braços. Se ela morresse, que seria dele? Mas não se ficou a pensar nisso. Bruderschaft (!) animava-a, e também não pensava nisso... Ambos liam Schiller. Até que finalmente deu a Bruderschaft uma grande tristeza, não sei porquê, e... foi-se desta para melhor...

— Referes-te a Pfefferkuchen?

 

(’) Fraternidade: Outro nome humorístico para designar o carácter apaixonado da rapariga.

 

— Claro que sim, diabos o levem. Mas ela...

— Pára! Quantos anos andaram a viajar pelo estrangeiro?

— Duzentos bem contados. Bem! Como ia a dizer, ela voltou para Cracóvia. O pai não quis recebê-la. Amaldiçoou-a e ela foi-se e acabou por morrer, enquanto o príncipe estoirava de alegria. Eu também lá estava. Provei do mel, pelos bigodes passou, mas à boca não chegou. Deram-me um empurrãozito e saí pela porta fora... Bebamos, meu irmão!

— Bem me parecia que tu estavas dentro do assunto, Masloboiev.

— Achas que sim?

— Só não compreendo o que poderás fazer!

— Pois olha: quando ela voltou para Madrid, depois de dez anos de ausência, foi preciso averiguar o que acontecera a Bruderschaft e ao velho, se ela voltara efectivamente, que teria acontecido ao menino, de que teria ela morrido, que fora feito dos documentos, etc., para maior tranquilidade. Mas basta. É um homem perigoso. Foge dele, Vânia, e lembra-te sempre disto: pelo que respeita a Masloboiev, nunca, por nada no mundo, lhe chames canalha. Embora tenha algo de desavergonhado (a meu entender não há ninguém que não o seja) nunca o será para ti. Estou muito embriagado, mas ouve: se alguma vez, cedo ou tarde, agora ou para o ano, te parecer que Masloboiev te fez objecto de alguma maroteira (e peço-te que não esqueças esta palavra, maroteira), lembra-te que foi sem má intenção. Masloboiev olha por ti. Além disso, não acredites em suspeitas, antes vem até cá e explica-te, com toda a franqueza e fraternalmente, com o próprio Masloboiev. Bem. Queres agora outro copito?

— Não.

— Só um bocadinho?

— Não, meu irmão, desculpa...

— Bem, então vai-te. Já são nove menos um quarto e tu gostas de ser pontual. Já está na tua hora.

— Como? Que é isso? Bebes até te embriagares e depois despedes as visitas? És sempre o mesmo. Ah! Desavergonhado! — exclamou, quase a chorar, Alexandra Semionovna.

— Não mistures alhos com bugalhos... Alexandra Semionovna, nós ficamos juntos e podemos adorar-nos mutuamente. Mas esse é um general. Não, Vânia, minto, não és um general, mas eu... sou um desavergonhado. Olha para mim. Que pareço agora? Que sou eu comparado contigo? Perdoa, Vânia, não leves a mal e deixa-me desabafar.

Abraçou-me e salpicou-me de lágrimas. Eu levantei-me para sair.

— Ah, meu Deus, e eu que tinha preparado a ceia!

exclamou Alexandra Semionovna com grande pesar. — Mas sexta-feira, sem falta, virá jantar connosco, não?

— Virei, Alexandra Semionovna, palavra de honra que virei.

— Talvez o senhor se aborreça de vê-lo tão... embriagado. Mas não faça caso, Ivan Petrovitch. Ele é muito bom... e se visse quanto lhe quer! Dia e noite não faz senão falar-me de si; não tem outro tema. Comprou-me os seus livros, mas eu ainda não pude lê-los — começarei amanhã. E se soubesse que prazer me dá se vier! Nunca vejo ninguém, nunca vem ninguém a esta casa. Não nos falta nada, mas estamos sós. Estava eu ali, sentada, a ouvi-los falar... e com tanto prazer! Bem, até sexta-feira.

 

Apressei-me a voltar a casa. As palavras de Masloboiev tinham-me causado profunda impressão. Deus sabe as coisas de que me lembrei! Como que intencionalmente, aguardava-me em casa um episódio que me impressionou tão viva mente como uma descarga eléctrica.

Em frente da porta de casa havia uma lanterna. Ainda eu não chegara à porta quando, de sob essa lanterna, se dirigiu para mim um estranho vulto, que até me fez dar um grito: era uma pobre criatura assustada, a tremer, meia louca, e que, dando um grito, me agarrou num braço. O espanto apoderou-se de mim: era Nelly.

— Nelly! Que é isto? — exclamei. — És tu?

— Lá em cima. . . Está lá em cima. . . Em casa. . .

— Mas quem? Subamos, vem comigo.

— Não quero, não quero. Esperarei que se vá embora. . . Não saio daqui. . . Não quero. . . Desci assim que ele entrou.

Eu subi, com um pressentimento estranho. Abri a porta e... encontrei-me com o príncipe. Estava sentado à mesa e lia. Pelo menos o livro aberto estava.

— Ivan Petrovitch! — exclamou alvoroçado. — Quanto me regozijo por que tenha enfim regressado. Estava quase para ir-me embora. . . Já o espero há uma hora, mais ou menos. Eu comprometi hoje a minha palavra, perante insistente reiterado pedido da condessa, de que o levaria hoje a sua casa. Insistiu tanto comigo, tem tal desejo de o conhecer... E assim, como o senhor já mo tinha prometido, julguei melhor vir eu mesmo buscá-lo, antes que tivesse tempo de ir a outro lado, a fim de convidá-lo. Agora calcule a minha arrelia: a sua criadita explicou-me que o senhor não estava em casa. Que fazer? Eu tinha dado a minha palavra de honra de que só voltaria na sua companhia. . . Resolvi sentar-me, para o esperar apenas um quarto de hora. Sim, sim, apenas um quarto de hora. Peguei no seu romance e pus-me a ler. Que maravilha! E não o compreendem ainda depois disto!... Sabe que conseguiu fazer-me chorar! É que, quero que o saiba, eu chorei — e não costumo chorar com muita frequência...

— Então o senhor quer levar-me consigo? Pois devo dizer-lhe que agora... embora eu também desejasse ir...

— Por amor de Deus, venha. Se não vier, que vai ser de mim? Olhe que estou à sua espera há hora e meia... Além disso, preciso tanto, tanto, de falar consigo... Não se lembra sobre quê? O senhor está mais a par do assunto que eu. . .

Talvez possamos resolver alguma coisa, optar por qualquer solução. Pense! Por amor de Deus, não deixe de me atender! Reflecti que, mais cedo ou mais tarde, não teria remédio senão ir. Supondo até que Natacha está só e que precisa de mim, não me encarregou ela de tentar, quanto antes, conhecer Kátia? Além disso, pode ser que Aliocha lá esteja... Eu sabia que Natacha não ficaria tranquila enquanto eu lhe não levasse notícias de Kátia, e resolvi-me a ir. Mas tinha pena de Nelly

— Desculpe-me — disse ao príncipe.

E saí para a escada. Nelly estava escondida num canto escuro.

— Porque não queres entrar, Nelly? Que te fez ele? Que te disse?

— Nada... Mas não quero, não quero... — repetia.

Tenho medo...

Por mais que lhe pedisse, foi inútil. Combinei então que, assim que eu saísse com o príncipe, ela entraria no quarto e se fecharia.

— E não abras a ninguém, Nelly, por mais que insistam.

— Mas o senhor vai com ele?

— Vou, sim.

Estremeceu e agàrrou-me a mão, como se quisesse pedir-me que não saísse, mas não disse nada. Eu decidi interrogá-la mais em pormenor no dia seguinte.

Depois de apresentar as minhas desculpas ao príncipe, comecei a vestir-me. Ele garantiu-me que não era necessário traje de cerimónia.

— Vista qualquer coisa leve — acrescentou, passando-me revista da cabeça aos pés. — Apesar de que, afinal, esses preconceitos mundanos... é impossível alguém desprender-se completamente deles. Tal perfeição não se encontra no nosso mundo — concluiu ao verificar, com ar satisfeito, que eu tinha fraque.

Saímos. Mas detive-o no patamar e entrei no quarto onde Nelly já se metera e, mais uma vez, despedi-me dela.

Estava terrivelmente agitada. Tinha a cara lívida. Fiquei inquieto; custava-me muito deixá-la.

— Que estranha é a sua criadita! — disse-me o príncipe ao sair para a escada. — Suponho que essa rapariguinha é sua criada...

— Não... ela... vive comigo provisoriamente.

— Que estranha criatura. Tenho a impressão de que está louca. Imagine que, a princípio, respondia muito bem às minhas perguntas; mas, assim que me olhou, atirou-se a mim, pôs-se a dar gritos e a tremer. Agarrou-se a mim e parecia querer dizer qualquer coisa, sem o conseguir. Confesso que tive medo e dispunha-me já a deitar a desaparecer quando ela, graças a Deus, se adiantou, fugindo de mim. Eu estava atónito. Como pode o senhor suportá-la?

— Ela é epiléptica — respondi eu.

— Ah! Sim? Então não há que estranhar... se lhe dão ataques...

No mesmo instante ocorreu-me que a visita de Masloboiev na véspera, sabendo que eu não estava em casa, o relato que o próprio Masloboiev me fez, embriagado e de má vontade, o seu convite para as oito em sua casa, a advertência para que eu não supusesse haver, da sua parte, vilania para comigo, e, finalmente, o facto de o príncipe me ter esperado hora e meia, sabendo talvez que eu estava com Masloboiev, quando Nelly fugiu para a rua... — ocorreu-me que tudo isso devia estar relacionado. Havia motivo para assim pensar.

À porta esperava-nos a caleche do príncipe. Subimos e partimos.

 

Não tínhamos de ir longe: só até à ponte de Torgovi. Durante os primeiros momentos, conservámo-nos em silêncio. Eu só pensava: «Que será que ele me quer dizer?» Parecia que queria pôr-me à prova, fazer-me frente, sondar-me.

Mas ele começou a falar sem rodeios e foi logo direito ao assunto.

— Estou actualmente muito preocupado com uma ideia, Ivan Petrovitch. Quero falar-lhe sobre ela, antes de falar com mais ninguém, para que me dê a sua opinião. Há tempo que decidi desistir da demanda iniciada e perdoar a Ikmeniev os dez mil rublos do litígio. Como hei-de fazer?

«Não me parece que tu não saibas o que hás-de fazer — pensei. — Quererás troçar de mim?»

— Não sei príncipe — respondi com a maior ingenuidade possível. — Pelo que respeita a Natacha Nikolaievna, estou pronto a declarar-lhe que é absolutamente imprescindível que combinemos todos uma reunião; mas quanto a esse assunto de que me fala, o senhor sabe mais do que eu.

— Não, não, pelo contrário... O senhor conhece-os e talvez a própria Natacha Nikolaievna lhe tenha exposto o seu modo de pensar sobre o assunto. Isso será para si o guia principal. O senhor pode ajudar-me, trata-se de um problema muito difícil. Eu estou disposto a renunciar e até já decidi fazê-lo, enquanto se resolvem as outras coisas. compreende? Mas como? Que aspecto dar a essa desistência? Que pretexto atribuir-lhe? O velho é orgulhoso, insolente. É possível que se ofenda com a minha generosidade e me recuse esse dinheiro...

— Mas permita-me: como considera o senhor esse dinheiro? Seu ou dele?

— Eu ganhei a demanda, portanto é meu.

— E na sua consciência?

— Naturalmente que o considero meu — respondeu-me um pouco melindrado pela minha falta de urbanidade. — Além do mais, segundo me parece, o senhor não conhece o assunto a fundo. Eu não acuso o velho de me ter enganado intencionalmente e confesso-lhe que nunca o acusei. Foi ele mesmo quem, involuntariamente, se considerou ofendido. Eu só o acusei de descuido, de não olhar pelas coisas que lhe estavam entregues. Segundo combinámos, ele estava obrigado a responder sobre algumas dessas coisas. Mas saiba que também se não tratava disso: tratava-se da nossa questão, das nossas ofensas mútuas, numa palavra, do nosso amorpróprio ofendido. É possível que eu nem sequer tivesse prestado atenção a esses miseráveis dez mil rublos... O senhor já sabe por ele como a coisa começou... Reconheço que procedi com desconfiança e até com injustiça (quer dizer, fui bruto naquela altura), mas então não dei por isso, e, na minha arrelia, ao sentir-me ofendido pelas grosserias do velho, não quis perder a ocasião e iniciei a demanda. Talvez isso lhe pareça pouco nobre da minha parte. Não quero justificar-me. Só quero fazer-lhe notar que a cólera e, sobretudo, o arnor-próprio ferido não significam ausência de nobreza, porque são coisas naturais, humanas. Confesso e repito que quase não conhecia Ikmeniev quando dei crédito a todos aqueles rumores que corriam a respeito de Aliocha e da filha dele. Assim, acreditei também num desfalque premeditado... Mas deixemos isso. O principal é outra coisa: é que não sei o que hei-de fazer. Renunciar ao dinheiro? Mas, se eu lhe digo que o considero meu, à lei do Direito, visto que ganhei o processo, isso significa que o ofereço. E veja o que a situação tem de delicado, se se pensar em Natacha Nikolaievna. .. Ele vai infalivelmente atirar-me com o dinheiro à cara...

— Repare, se é o senhor o próprio a dizer que ele «lho atirará», isso demonstra que o considera um homem honrado e, sendo assim, é porque o senhor está absolutamente convencido de que ele não roubou o dinheiro. E então porque não vai procurá-lo e não lhe explica, com toda a franqueza, que considera a demanda ilegal? Isso seria muito nobre. Talvez então Ikmeniev não achasse inconveniente em receber o «seu dinheiro».

— Hum... o «seu dinheiro»... Bem, mas veja, que quer que eu faça? Que vá explicar-lhe que considero a minha demanda ilegal? Mas donde conclui o senhor, como sabe que a minha demanda é ilegal? Dizer-mo assim, cara a cara! Eu não mereço isso, porque eu estava no meu direito... Nunca disse ou escrevi que ele me tinha roubado. Quanto ao seu descuido, à sua despreocupação, ao seu modo desacertado de tratar dos assuntos, de tudo isso estou convencido. Esse dinheiro é indiscutivelmente meu, e, portanto, é-me doloroso renunciar a ele. Em último caso, repito-lhe que foi o velho quem me ofendeu. E o senhor quer obrigar-me a pedir-lhe desculpa... Essa é um pouco forte!

— Parece-me que quando dois homens querem fazer as pazes...

— Acha que é assim tão simples?

— Sim.

— Não. Algumas vezes é muito difícil, tanto mais...

— Tanto mais que estas circunstâncias estão relacionadas com outras. Nisso estou de acordo consigo, príncipe. O caso de Natacha Nikolaievna e do seu filho tem o senhor de o resolver em todos os pontos que dependem de si, e tem de resolvê-lo de modo satisfatório para os Ikmenieves. Só então poderá ter uma explicação com Nikolai Serguieitch, acerca do litígio, com absoluta sinceridade. Mas agora, que nada está resolvido, só tem um caminho: reconhecer a injustiça da sua demanda, e reconhecê-la franca e... publicamente, se for preciso. É esta a minha opinião. Se lha exponho com franqueza é porque o senhor próprio ma pediu; decerto não quereria que eu faltasse à sinceridade... Isto dá-me coragem para perguntar: porque se preocupa tanto com a devolução desse dinheiro a Ikmeniev? Se pensa que estava dentro da justiça nesse processo, porque há-de restituí-lo? Perdoe a minha curiosidade, mas isto está de tal modo relacionado com outras circunstâncias...

— Mas que pensa? — perguntou-me imediatamente, como se não tivesse ouvido a minha pergunta. — Está certo de que o velho Ikmeniev vai recusar o dinheiro se lhe entregarem os dez mil rublos sem nenhuma desculpa e... e... sem nenhumas dessas atenuantes?

— Claro que recusará!

Eu estremeci e até fiz um impaciente movimento de aborrecimento; aquela pergunta céptica causou-me a mesma impressão de que se o príncipe me tivesse cuspido nos olhos.

esta ofensa juntou-se outra: aquele grosseiro modo mundano com que, sem responder à minha pergunta e como que não reparando nela, me interrompeu com outra, dando-me claramente a entender que eu me distraía e me familiarizava demasiado ao fazer-lhe tais perguntas. A mim eram-me antipáticos até ao ódio esses modos aristocráticos e já antes me empenhara em tirá-los a Aliocha.

— Hum... O senhor é muito fogoso, mas no mundo há coisas que não podem fazer-se como pensa — fez-me notar o príncipe, tranquilamente, ante a minha exclamação. — Além do mais, penso que isto poderia ser em parte resolvido por Natacha Nikolaievna. Diga-lho. Talvez ela possa aconselhar-nos.

— De maneira nenhuma — respondi secamente. — O senhor não se digna escutar o que eu comecei há pouco a dizer-lhe e cortou-me a palavra. Natacha Nikolaievna pensará que, o senhor devolve o dinheiro sem sinceridade e sem nenhuma dessas «atenuantes»,’como diz, isso significa que paga ao pai pela filha, e à filha por Aliocha, numa palavra: que os indemniza com dinheiro...

— Hum... Como o senhor me trata, meu caro Ivan Petrovitch! — e o príncipe sorriu. Porque teria ele sorrido? — Mas, para já — continuou —, temos ainda tanto, tanto que falar! E agora não há tempo... Só lhe peço que tenha presente «uma coisa»: o assunto afecta directamente Natacha Nikolaievna e todo o seu futuro... e tudo depende da maneira como o senhor e eu resolvermos isto, e daquilo que estabelecermos. O senhor é imprescindível... já o está a ver. Por isso, se continua a ter afecto por Natacha Nikolaievna, não pode negar-se a uma explicação comigo, por muito pouca que seja a simpatia que eu lhe inspire. Mas heis-nos chegados... à bientôt.

 

A condessa vivia muito bem. Tinha a casa posta com conforto e gosto, embora sem fausto. No entanto, tinha o aspecto de uma instalação provisória; era apenas uma elegante vivenda para uma temporada e não a residência permanente de uma família rica, com todos os seus refinamentos aristocráticos e todos esses caprichos que se julgam indispensáveis. Corria o boato de que a condessa, quando voltasse o Verão, se mudaria para a sua propriedade (arruinada e hipotecada) da província de Simbirsk, e que o príncipe a acompanharia. Eu já o ouvira falar disso e pensava com pena: «Que fará Aliocha quando Kátia se for com a condessa?» A Natacha ainda eu não falara disto, por receio; mas, por alguns indícios, pude inferir que tal rumor também tinha chegado aos seus ouvidos. Simplesmente calava e sofria em silêncio.

A condessa recebeu-me muito bem, estendeu-me afectuosamente a mão e disse-me que havia muito tempo me desejava ver em sua casa. Ela própria me serviu o chá, de um magnífico samovar de prata, em volta do qual estavam sentados, o príncipe, eu e outro cavalheiro da alta sociedade, já entrado em anos, com uma condecoração, afectado e com ares de diplomata. A esse senhor, segundo parecia, todos tinham muito respeito. A condessa, ao voltar do estrangeiro, ainda não tivera tempo de fazer amizades em Petersburgo, nem de consolidar a sua situação, como queria e esperava. Além daquele senhor, ninguém mais apareceu durante toda a noite. Procurei com o olhar Catarina Fiodorovna. Estava noutra sala, com Aliocha, mas, quando deu pela nossa chegada acorreu imediatamente. O príncipe beijou-lhe a mão amavelmente e a condessa chamou-lhe a atenção para mim. Em seguida fez as apresentações. Eu observava-a com atenção impaciente. Era uma lourita delicada, vestida de branco, de estatura mediana, com uma expressão serena e plácida e com olhos de pomba (como Aliocha dizia), tinha a beleza da juventude e nada mais. Eu esperava encontrar-me com um modelo de beldade, mas não havia tal beleza. O seu rosto, de contornos delicados, umas feições bastante singulares, cabelos abundantes e realmente belos, penteados muito simplesmente, olhos serenos e atentos... Se a tivesse encontrado nalgum sítio, teria passado junto dela sem lhe dedicar particular atenção. Mas aquilo foi só o primeiro olhar, porque, ao observá-la com mais vagar, já me pareceu melhor. Quando me apertou a mão, olhou-me nos olhos com atenção ingénua e insistente, sem dizer uma palavra.

Impressionou-me pela sua singularidade; não pude deixar de lhe sorrir. Claro que experimentei logo a impressão de me encontrar perante um ser de coração puro. A condessa não tirava a vista de cima dela. Depois de me apertar a mão, Kátia, com certa pressa, afastou-se de mim e foi sentar-se no outro extremo da sala, junto de Aliocha. Este, depois de me cumprimentar, murmurou-me ao ouvido: «Só estou aqui por um minuto, depois vou para lá.»

O «diplomata» — ignoro o seu apelido e chamo-lhe diplomata para lhe chamar qualquer coisa — falava com calma e dignidade, desenvolvendo não sei que ideia. A condessa ouvia-o com atenção. O príncipe sorria de modo encorajador e lisonjeiro; o orador, que se dirigia frequentemente a ele, apreciava-o, certamente, como a um ouvinte digno de si. A mim serviram-me o chá e deixaram-me em paz, com o que muito me alegrei. Entretanto, eu ia observando a condessa. À primeira vista agradou-me muito, confesso que, em parte, contra a minha própria vontade. Talvez já não fosse muito nova, mas a mim parecia-me que não teria mais de vinte e oito anos. O rosto ainda fresco, e na sua juventude devia ter sido interessantíssima. Os cabelos, de um louro escuro, eram ainda muito abundantes. O olhar bondoso, embora um pouco frívolo, brincalhão e travesso. Mas agora, por alguma razão, reprimia-se visivelmente. No seu modo de olhar reflectia-se também muito espírito, mas, acima de tudo, bondade e alegria. Afigurava-se-me que os traços predominantes do seu carácter eram uma certa frivolidade, a ânsia dos prazeres e um certo egoísmo, talvez até mesmo grande Encontrava-se sob o domínio do príncipe, que exercia sobre ela extraordinária influência. Eu sabia que entre eles houvera uma ligação e também ouvira dizer que ele não tinha sido um amante muito zeloso, durante a permanência no estrangeiro. Parecia-me, porém — e ainda agora me parece.

que a ambos unia, além das suas antigas relações, alguma outra circunstância, em parte secreta, algo como um compromisso recíproco, baseado nalgum cálculo... Numa palavra, qualquer coisa nesse género. Sabia também que o príncipe já estava cansado dela, se bem que não tivessem cortado as suas relações. Talvez que o que unia ambos fossem os seus desígnios sobre Kátia, a iniciativa dos quais devia ter sido do príncipe. Por esta razão, aquele abstinha-se de casar com a condessa, que lho exigia, convencendo-a de que isso facilitaria o casamento de Aliocha com a sua enteada. Era o que eu deduzia do ingénuo relato que me fizera Aliocha, no qual tive forçosamente de ver alguma coisa, por pouco que fosse. Parecia-me também, a julgar por estas mesmas referências, que o príncipe, embora tivesse a condessa completamente à sua mercê, não deixava de ter alguma razão para a recear. Também Aliocha já notara isso. Vi logo que o príncipe desejava casar a condessa com qualquer outro e que talvez fosse com essa intenção que a enviava para a província de Simbirsk, esperando encontrar-lhe um bom marido naquela região.

Eu estava sentado e escutava, sem achar o modo de conseguir, o mais depressa possível, conversar à parte com Catarina Fiodorovna. O diplomata respondia a não sei que pergunta da condessa, referente ao estado dos assuntos contemporâneos, às reformas incipientes, e se seria ou não razoável assustar-se com elas. Falava muito, com fleuma e como quem tem autoridade. Desenvolvia a sua tese com muito senso e espírito, apesar de que essa tese era repulsiva: sustentava que toda a reforma e modificação espiritual não tardariam a produzir os resultados esperados; que esses resultados seriam outras tantas provas da necessidade de se ser razoável, que, não só na sociedade (naturalmente numa certa parte da sociedade...), mas fora dela, aquele novo espírito encontraria acolhimento — apesar de que logo, com a experiência haviam de reconhecer o erro cometido e, então, com dobrada energia, voltariam a defender o antigo regime. Que a experiência, embora de lamentar, resultaria proveitosa, porque ensinaria a defender essa antiguidade salvadora e porque proporcionaria novos dados. Por conseguinte, seria de desejar que, quanto antes, se chegasse aos últimos extrefflos da imprudência. «Sem nós nada é possível — concluiu — sem nós nenhuma sociedade perdurou. Nós não perderemos nada, mas, pelo contrário, ganharemos; vamo-nos mantendo ao de cima e o nosso lema, no momento presente, deve ser pire ca vá, mieux ca est!» (l) O príncipe sorriu-lhe com uma simpatia que me desgostou. O orador estava satisfeitíssimo consigo próprio. Eu estive prestes a cometer a tolice de lhe dar resposta: o coração parecia que me saltava, mas conteve-me um olhar do príncipe que, imperceptivelmente, se voltou para mim. Pareceu-me que esperava alguma estranha e juvenil saída da minha parte: talvez que até o desejasse, para se divertir ao ver-me comprometido ex abrupto. Além disso, eu já estava firmemente persuadido de que o diplomata não iria fazer caso da minha objecção, nem talvez, até, de mim próprio. Tornava-se-me insuportável permanecer a seu lado, mas Aliocha tirou-me de apuros.

Aproximou-se de mim, devagar, deu-me uma pancadinha no ombro e pediu-me duas palavras. Adivinhei que vinha enviado por Kátia e, de facto, assim era. Ao fim de um minuto já eu estava de conversa com eles. A princípio Kátia olhou-me atentamente, como se pensasse: «Bem, já sei como tu és.» No primeiro instante, nenhum dos dois atinava com uma palavra para iniciar o diálogo, apesar de que eu estava convencido de que valera a pena ficar a falar com ela até de manhã. «As cinco... ou seis horas de conversa», de que nos falara Aliocha, vieram-me à ideia. Aliocha estava

 

( ) Quanto pior, melhor.

 

perto de nós e também aguardava com impaciência que começássemos.

— Mas então não falam? — disse, olhando-nos sorridente. — Estão juntos e não falam?

— Ai, Aliocha, como tu és!... Vamos já falar — respondeu Kátia. — Eu precisava muito de falar consigo, Ivan Petrovitch, e veja: agora não sei por onde começar. Conhecemo-nos demasiado tarde; devíamos ter-nos encontrado antes, embora eu já o conheça há muito tempo. E tinha tanto desejo de vê-lo! Até pensei escrever uma carta.

-— Acerca de quê? — perguntei, sorrindo involuntariamente.

— Pois, de qualquer coisa — respondeu-me com seriedade —, ainda que fosse para lhe perguntar se é verdade o que este me disse de Natacha Nikolaievna: que ela se não ofende por ficar só tanto tempo... Bem. É possível alguém proceder como ele procede? Mas... não me queres dizer porque estás aqui agora?

— Ai, meu Deus, eu já me vou embora! Eu tinha dito que só aqui estaria um minuto, mas vejo que se dispõem a falar e gostava de poder estar cá e lá, ao mesmo tempo.

— Mas que tem de especial o facto de falarmos? Já viu? Há-de ser sempre o mesmo — afirmou ela corando levemente e apontando Aliocha com o dedo. — Ele diz «um instante, só um instante», e veja, fica aqui até à meia-noite. «Natacha não se aborrece, é muito boa.» Veja como ele pensa! Quer fazer o favor de me dizer se isto assim está bem, se isto é correcto?

— Bem, eu já vou — respondeu Aliocha, lastimoso. — É que gostava de ficar convosco...

— Mas que tens tu a fazer aqui? Nós é que precisamos muito de falar a sós. Faz o favor de te não aborreceres: é indispensável... Pensa bem!

— Se é indispensável, vou-me agora mesmo... Mas... porque havia de me aborrecer? Estarei apenas um momento com Levinka e irei logo a seguir para casa dela. A propósito, Ivan Petrovitch — continuou, enquanto pegava no chapéu —, não sabe que o meu pai quer renunciar ao dinheiro que ganhou no pleito com Ikmeniev?

— Sim, sei. Ele já mo disse.

.— Isso é muito digno da sua parte! Mas repare: Kátia não crê que ele proceda com nobreza. Fale-lhe disto. Adeus, Kátia, e, por favor, não duvides de que eu amo Natacha. Mas porque me impõem essa condição, porque me recriminam e me seguem com os olhos... como se me tivessem sob a vossa tutela? Ela sabe quanto lhe quero e tem fé em mim, estou convencido de que tem. Eu amo-a independentemente de todas as circunstâncias, sem nenhum compromisso, nem eu mesmo sei quanto lhe quero. Amo-a, simplesmente. Por isso, não me interroguem como a um criminoso. Olha, pergunta a Ivan Petrovitch, agora que o tens aqui, e ele te dirá que Natacha é ciumenta e que, apesar de me querer muito, há no seu amor um pouco de egoísmo, pois por nada do mundo renunciaria a mim.

— De verdade? — perguntei, assombrado, sem querer dar crédito aos meus ouvidos.

— Que estás a dizer, Aliocha? — quase gritou Kátia, juntando as mãos.

— Bem, que tem isso de particular? Ivan Petrovitch sabe-o. Ela pretende que eu esteja a seu lado, quer dizer, ainda que não o diga, vê-se que é esse o seu desejo.

— Mas... não te envergonhas, não te envergonhas de dizer isso? — exclamou Kátia cheia de cólera.

— Porque me havia de envergonhar? Que graça te acho, Kátia. Olha, eu amo-a mais do que parece, mas se ela não me quiser verdadeiramente, como eu lhe quero a ela, sacrificar-se-ia por mim. Claro que ela me diz que venha aqui, mas nota-se-lhe na cara quanto isso lhe custa, o que para mim vale o mesmo que nada me dizer!

— Não, isto são ideias dele! — exclamou Kátia, dirigindo-se a mim com os olhos flamejantes de cólera. — Confessa, Aliocha, confessa agora que tudo isso foi influenciado pelo teu pai! Disse-to hoje mesmo? E, por favor, não armes em esperto comigo, que eu já te conheço! E assim ou não?

— Sim, foi ele que mo disse — respondeu Aliocha confuso. — E que tem isso? Esteve hoje tão carinhoso para mim, tão amigo, e fez-me tais elogios sobre ela que eu estava assombrado. Natacha ofendeu-o tanto e o meu pai fazer o seu elogio!

— Mas pode estar certo — disse eu — de que agora mesmo, hoje mesmo, toda a inquietação dela era por si por si a quem ela deu quanto podia dar, para que não se sentisse triste, para que se não privasse da possibilidade de estar com Catarina Fiodorovna! Foi o que ela própria me disse. E o senhor a acreditar em semelhantes calúnias!. Não tem vergonha?

— Ingrato! Ele nunca se envergonha de nada! — exclamou Kátia, apontando-o com a mão, como a um homem completamente perdido.

— Mas que me censuram agora? — continuou Aliocha, com voz lastimosa. — Tu és sempre assim, Kátia! Só vês em mim o lado mau... Não me refiro a Ivan Petrovitch! O senhor pensa que eu não amo Natacha. Não foi isto que eu quis dizer ao achá-la egoísta. Só quis dizer que me quer em excesso, com um amor que passa para todas as medidas e que é doloroso, tanto para ’ela como para mim. Mas o meu pai nunca seria capaz de me manobrar à sua vontade, ainda que o quisesse. Ele também não disse que ela era egoísta no mau sentido do termo, bem o percebi: apenas quis dizer aquilo que eu próprio acabo de exprimir: que ele me ama a tal ponto, com tal violência, que isso redunda em egoísmo, o que se torna aborrecido para os dois e, com o andar dos tempos, ainda se há-de tornar mais aborrecido para mim. Reparem que ele está no direito de falar assim, pelo afecto que me tem. Isto não quer dizer, de maneira nenhuma, que ofendesse Natacha; antes significa que vê nela um amor muito forte, um amor sem medida, tocando quase o impossível ...

Mas Kátia interrompeu-o e não o deixou concluir. Começou a censurá-lo com veemência, a mostrar-lhe que só intencionalmente seu pai se pusera a gabar Natacha, para o enganar com a sua aparente bondade, tudo com o intuito de afrouxar os laços e de acabar por virar contra ela, de modo quase insensível, o próprio Aliocha, com ardor e discrição, fez ressaltar quanto Natacha o amava, que nenhuma mulher lhe perdoaria o modo como estava a proceder para com ela, e que o único e verdadeiro egoísta era ele próprio, Aliocha. Pouco a pouco Kátia foi-lhe fazendo sentir um terrível desgosto e um arrependimento completo; estava sentado junto de nós, com os olhos no chão, sem responder nada, completamente aniquilado e com uma expressão de sofrimento no rosto. Mas Kátia era inexorável. Eu contemplava-a com extrema curiosidade. Queria conhecer a fundo, quanto antes, aquela estranha rapariga. Era, na verdade, uma criança especial, «com convicções», com normas firmes e com um amor apaixonado, agressivo, à bondade e a justiça. Embora se lhe pudesse chamar uma criança, pertencia a essa classe de crianças «que pensam», muito numerosas nas nossas famílias. Era evidente que já pensara muito. Era curioso olhar aquela cabecita pensadora e observar como nela alternavam ideias e suposições pueris com impressões seriamente sentidas e observações da vida (porque Kátia não era já uma criança); ao mesmo tempo havia ideias que (ela própria o ignorava) não eram vividas, que a tinham seduzido abstractamente nos ’livros — ideias que deviam ser muito numerosas e que por certo tomara como experiência própria. Em toda aquela noite e depois aprendi a conhecê-la muito bem. Possuía um coração impetuoso e sensível. Em alguns momentos, parecia esquecer o dom de se dominar, pondo acima de tudo a sinceridade. Considerava a coacção mundana como um preconceito e, ao que parecia, ufanava-se de tal convicção, o que costuma suceder a muitas pessoas fogosas, até quando já não são muito novas. Mas tudo isto lhe conferia uma atracção particular. Gostava muito de pensar e procurar as razões de tudo. Estava a tal ponto isenta de pedantismo, tinha tantas saídas infantis, dignas de uma criancinha, que a sua originalidade desde o primeiro instante se tornava encantadora e até nos costumávamos a ela.

Eu recordava-me de Levinka e Borinka, e pensava que tudo isto estava perfeitamente de acordo. E, coisa estranha, o seu rosto, no qual, ao primeiro olhar, eu não encontrara nenhuma beleza especial, tornou-se para mim, nessa noite muitíssimo belo e atraente. Aquela ingénua duplicidade da criança e da mulher que pensa, aquela ânsia infantil, e absolutamente sincera, de verdade e justiça, a sua fé inquebrantável nas próprias aspirações, tudo isso parecia iluminar-lhe o semblante com um certo fulgor de sinceridade, muito belo, e comunicava-lhe uma espécie de suprema beleza espiritual. Começava-se a compreender que não era fácil atingir o pleno significado daquela formosura, que esta não se patenteava toda a qualquer olhar vulgar e indiferente. Compreendi que Aliocha devia estar apaixonadamente ligado a ela. Como não era capaz de discorrer nem de pensar, amava precisamente quem pensasse, e até quem desejasse por ele. Kátia tomara-o assim sob a sua tutela. Aliocha tinha um coração nobre e dócil; propendia sempre para o honesto e sublime, e Kátia fizera-lhe ver muitas coisas com toda a sua franqueza e simpatia infantis. Ele não possuía nem uma ponta de vontade própria; ela, em troca, tinha uma grande firmeza, uma vontade ardente. Aliocha só poderia prender-se a quem o soubesse dominar e até impor-lhe a sua vontade. Foi por isso, em parte, que Natacha conseguiu atraí-lo no início das suas relações, mas Kátia tinha uma grande vantagem sobre Natacha: a de ser uma rapariguinha e de haver de continuar a sê-lo por muito tempo ainda. A sua infantilidade, a sua inteligência lúcida e, ao mesmo tempo, uma certa falta de senso, tudo estava mais de acordo com Aliocha. Este sentia-o e por isso Kátia cada vez o atraía mais. Estou convencido de que, quando falavam a sós, alternariam com as sérias expressões «de propaganda», de Kátia, algumas brincadeiras. E, embora Kátia, seguramente, ralhasse com Aliocha e até o tivesse nas suas mãos, era evidente que ele estava a seu lado com mais prazer que junto de Natacha. Eram mais «iguais» entre si, e isso é o essencial.

.— Basta, Kátia, basta. Tu tens sempre razão e eu nunca Isso deve-se ao facto de a tua alma ser mais pura que a minha — disse Aliocha levantando-se e estendendo-lhe a mão em sinal de despedida. — vou agora mesmo ver Natacha, sem passar por casa de Levinka.

— Não tens nada a fazer em casa de Levinka. Acho muito bem que me obedeças e te vás embora.

— És sempre mais gentil que todos os outros — respondeu, num tom triste, Aliocha. — Ivan Petrovitch, preciso de dizer-lhe duas palavras.

Afastámo-nos um pouco.

— Conduzi-me hoje como um verdadeiro desavergonhado — disse-me ele em voz baixa. — Procedi muito mal e incorri em culpa com toda a gente e, sobretudo, com elas as duas. Hoje, o meu pai, depois do jantar, apresentou-me Alexandrine (uma francesa), uma mulher deslumbrante. Deixei-me levar e... bem! Sou indigno de estar com elas... Adeus, Ivan Petrovitch!

— É bom, é nobre! — apressou-se a dizer Kátia, logo que voltei a sentar-me a seu lado. — Mas já falaremos dele, e não há-de ser pouco. Agora, antes de mais, é necessário que me responda a uma pergunta: que lhe parece o príncipe?

— Um homem odioso.

— A mim também. Nisto, portanto, estamos completamente de acordo. Quanto ao resto, ser-nos-á fácil ajuizar. Falemos agora de Natacha Nikolaievna... Sabe, Ivan Petrovitch, que eu ando completamente às escuras e que o esperava como à luz?... O senhor vai-me aclarar tudo, porque, quanto ao essencial, eu não pude ajuizar senão por conjecturas tiradas do que me contava Aliocha. Não tinha mais ninguém por quem me informar. Diga-me, em primeiro lugar, qual é a sua opinião. Se Aliocha e Natacha se unirem, serão felizes ou desventurados? Isto é o que preciso de saber primeiramente, para adoptar uma solução definitiva, para saber como devo conduzir-me.

— Que hei-de dizer de seguro sobre este ponto?

— Evidentemente que não espero nenhuma informação segura — interrompeu —, apenas aquilo que lhe parece Porque o senhor é um homem muito inteligente...

— Ao que me parece não poderão ser felizes.

— Porquê?

— Porque não são iguais.

— Era o que eu pensava — e deixou cair os braços profundamente aflita. — Conte-me mais pormenores. Oiça eu tenho uma enorme vontade de ver Natacha, porque preciso muito de falar com ela. Parece-me que, entre ambas resolveremos tudo. Já a imagino mentalmente: deve ser muito inteligente, muito séria, muito sincera e bonita. É assim?

— Assim mesmo.

— Tinha a certeza disso. Mas bem. Se é assim, como pode ela amar Aliocha, que é tão infantil? Explique-me isto. E só o que me preocupa.

— Não é possível explicar-lho, Catarina Fiodorovna. É difícil ver as razões porque cada uma o ama. Sim, ele é infantil; mas não sabe até que ponto se pode querer a uma criança?

O meu coração enternecia-se ao olhá-la, ao ver os seus olhos que me contemplavam atentos com uma funda, séria e impaciente atenção.

— E precisamente porque Natacha não é uma menina — prossegui —, precisamente porque é mais séria é que mais facilmente se enamorou dele. Ele é sincero, franco, terrivelmente ingénuo e, por vezes, graciosamente simples. Talvez ela o amasse (quem poderia dizer?) como que por dó... Um coração generoso pode amar por compaixão... Mas, afinal, vejo que não posso explicar-lhe bem... Em troca, vou agora perguntar-lhe: a Kátia ama-o, não é verdade?

Formulei ousadamente esta pergunta, mas senti que, com ela, não poderia perturbar a infinita, a juvenil pureza daquela alma.

— Por Deus, ainda não sei ao certo! — respondeu, em voz baixa, olhando-me nos olhos. — Parece que o amo muito...

— Bem, já vê. E poderá explicar-me porque o ama?

— Nele não há mentira — respondeu, depois de pensar um momento —, e quando me olha e me fala isso é-me muito agradável... Oiça, Ivan Petrovitch, estou a falar consigo sobre tudo isto, mas eu sou uma rapariga e o senhor um homem. Faço bem ou mal?

— Que mal pode haver?

— Efectivamente! Claro, que mal pode haver? Mas veja: eles — e assinalou com os olhos o grupo junto do samovar por certo diriam que isto não estava bem. Têm razão ou não?

— Não. O seu coração não a avisaria de que andava mal se assim fosse?

— Eu procedo sempre assim — apressou-se ela a interromper-me, com o visível desejo de falar comigo o mais possível — quando estou preocupada com alguma coisa, consolo o coração e, se está tranquilo, eu também fico tranquila. É assim que se deve proceder sempre. Além disso, falo consigo tão francamente como comigo própria, em primeiro lugar, porque o senhor é uma pessoa de bem e porque conheço a sua história com Natacha, antes de Aliocha. Chorei ao ouvi-la contar.

— Mas quem lha contou?

— Aliocha, naturalmente; e também chorava ao contar-ma. Portou-se muito bem neste caso, o que muito me agradou. Creio que ele gosta mais de si que o senhor dele, Ivan Petrovitch. Veja: por estas coisas é que ele me agrada. Bem... Em segundo lugar, falo consigo com tanta franqueza como falaria a mim própria, porque o senhor é um homem muito inteligente e pode aconselhar-me e ensinar-me muitas coisas.

— Mas como sabe que eu tenho inteligência suficiente para instruí-la?

— Olhem que pergunta! — e ficou pensativa. — Oiça — prosseguiu —, eu apenas queria dizer-lhe isto: que pode falar-me do principal. Ajude-me, Ivan Petrovitch, eu sinto agora que sou rival de Natacha, sei-o; como hei-de proceder?

Por isso lhe perguntei há pouco se eles «poderiam ser felizes». Penso nisto de noite e de dia. A situação de Natacha é horrível, horrível... Porque, quero que o saiba, ele já não a ama, ao passo que a mim me quer cada vez mais de dia para dia. Não é assim?

— Parece.

— E veja: ele não a engana. Ele próprio ignora que deixou de amá-la, ao passo que ela já por certo deu conta do que se passa. Quanto deve sofrer!

— E que pensa fazer, Catarina Fiodorovna?

— Projectos tenho muitos — respondeu ela sinceramente —, mas, até agora, não fiz nada. Por isso o aguardava com tanta impaciência, para que o senhor resolva tudo Sabe muito mais do que eu sobre o assunto. O senhor é agora para mim pouco menos que um deus. Oiça, eu, a princípio, pensava assim: se eles se amam reciprocamente, têm por força de ser felizes e, nesse caso, estou obrigada a sacrificar-me e a ajudá-los no que puder. É como lhe digo.

— Sei bem que, se fosse necessário, se havia de sacrificar!

— Sim, sacrificar-me-ia... Mas quando ele começou a vir aqui e a querer-me cada vez mais, comecei a pensar sobre isto: «Sacrifico-me ou não me sacrifico?» Foi um mau sentimento, não acha?

— Isso é natural — respondi. — Tinha de ser assim... e a culpa não é sua.

— Eu não penso assim. O senhor diz-me isso porque é muito bondoso. Mas eu acho que não tenho já um coração puro. Se o tivesse, saberia o que resolver. Mas deixemos isto. Vim a saber mais pormenores acerca das relações entre eles, pelo príncipe, pela mamã e pelo próprio Aliocha, e deduzi que eles não estão bem um para o outro. O senhor mesmo acaba de o confirmar. Então insisti mais do que nunca nas minhas meditações: que fazer agora? Porque, se eles não vão ser felizes, é melhor que se separem. Resolvi, portanto, pedir-lhe mais pormenores e ir eu própia visitar Natacha e resolver tudo com ela.

— Mas... resolver como? A questão é esta...

— Bem, vou lá e digo-lhe: «A senhora ama-o mais que

tudo no mundo e, portanto, deve desejar também, acima de tudo, a felicidade dele. Assim, o seu dever é deixá-lo.»

— Sim, mas como encarará ela isso? Suponho que concorda consigo, terá coragem suficiente para fazer o que lhe vai pedir?

— É nisso precisamente que penso, noite e dia, e... e... E começou a chorar.

— Não calcula que pena eu tenho de Natacha! — murmurou com os lábios trémulos, prestes a chorar.

Nada mais havia a dizer. Eu estava calado e também sentia vontade de chorar, ao vê-la sofrer tanto. Que criança tão simpática! Nem sequer lhe perguntei porque se considerava capaz de fazer Aliocha feliz.

— Gosta de música? — perguntou-me, depois de serenar um pouco, embora ainda comovida.

— Gosto muito — respondi, um pouco admirado.

— Se tivesse tempo, havia de lhe tocar o Concerto n.º 3 de Beethoven. Ando agora a estudá-lo. Reflecte os mesmos sentimentos... que eu experimento agora. Pelo menos, é o que me parece. Mas ficará para outra vez. Agora precisamos de falar.

E procurámos resolver a maneira de ela se encontrar com Natacha e como se arranjariam as coisas. Ela explicou-me que andava vigiada; embora a madrasta fosse boa e lhe tivesse afecto, por nada no mundo iria consentir que travasse amizade com Natacha Nikolaievna. Estava, pois, resolvida a empregar a astúcia. De manhã, costumava sair a passear, mas quase sempre com a condessa. Quando esta, algumas vezes, não podia ir com ela, entregava-a à francesa, que agora estava doente. Isso costumava acontecer quando a condessa ficava com enxaqueca e, portanto, era necessário esperar que assim sucedesse. Então ela combinaria tudo com a francesa (uma espécie de dama de companhia, já velha), que era muito boa. Em resumo: era impossível indicar antecipadamente o dia da visita a Natacha.

— Há-de conhecer Natacha e não o lamentará — disse eu. — Ela também deseja conhecê-la, e é necessário que falem, ainda que seja apenas para se saber quem há-de renunciar a Aliocha. Não se preocupe muito com este assunto. O tempo, só por si e sem que nós nos inquietemos, resolverá tudo. Ouvi dizer que vai fazer uma viagem ao campo.

— Sim, dentro em pouco, talvez dentro de um mês respondeu ela. — E sei que o príncipe insiste nessa viagem

— E que pensa? Aliocha acompanhá-la-á?

— Sim, já pensei nisso — exclamou, olhando-me atentamente. — Virá!

— Irá.

— Meu Deus, não sei como irá acabar tudo isto! Oiça, Ivan Petrovitch. Eu escrever-lhe-ei muitas vezes e contar-lhe-ei tudo com pormenores. Já que comecei a aborrecê-lo... Virá ver-nos algumas vezes?

— Não sei, Catarina Fiodorovna. Depende das circunstâncias. Talvez não possa vir.

— Porquê?

— Depende de muitas coisas, mas principalmente das minhas relações com o príncipe.

— É um velhaco — declarou Kátia. — Mas oiça, Ivan Petrovitch, e se eu” fosse a sua casa? Estaria bem ou não?

— Que lhe parece?

— A mim parece-me que estava bem.

— Assim, contar-lhe-ia tudo... — acrescentou sorrindo. — Olhe: eu falo-lhe deste modo, porque, além de o respeitar... também o estimo muito... Sim, estimo-o... Mas diga-me, não é uma vergonha eu dizer-lhe estas coisas?

— Vergonha porquê? Eu também já a estimo, como se fosse da minha família.

— Então quer ser meu amigo?

— Oh, sim, sim! — respondi.

— Bem. Eles haviam de dizer seguramente que é uma vergonha e que uma menina não deve conduzir-se deste modo — observou, indicando-me de novo o grupo formado em volta da mesa de chá.

Devo anotar que o príncipe parecia ter-nos deixado intencionalmente falar a sós.

— Eu sei muito bem — acrescentou ela — que o príncipe o que quer é o meu dinheiro. Eles pensam que eu sou uma criança e até mo dizem na cara. Mas eu não penso assim. Eu já não sou uma criança. Eles sempre são muito estranhos! Eles é que parecem crianças. Vejamos o que andam a planear.

— Catarina Fiodorovna, esqueci-me de lhe perguntar uma coisa: quem são esse Levinka e esse Borinka que Aliocha visita tantas vezes? — São parentes meus, afastados. Uns rapazes muito inteligentes e muito sérios, mas que falam pelos cotovelos... Já os conheço... — e sorriu.

— É verdade que pensa oferecer-lhes mais tarde um milhão?

— Vê? Ainda que isso seja verdade, falaram tanto do milhão que já se torna insuportável. Claro que eu estou disposta a sacrificar-me por tudo o que for útil. Para que quero eu tanto dinheiro? Mas olhe que daqui até eu dar o milhão... E, todavia, já estão a fazer e a desfazer, a falar, a discutir, a gritar e a brigar sobre o modo como hão-de empregar o dinheiro. Até por isto brigam... o que é realmente estranho. Estão muito apressados... Não obstante, são rapazes sinceros e... inteligentes. Estudam. É preferível isso à vida que outros levam, não é verdade?

Ainda estive um pedaço a falar com ela. Contou-me toda a sua vida e escutou as minhas palavras com avidez. Insistia para que lhe contasse tudo o que soubesse de Natacha e de Aliocha. Seria já meia-noite quando o príncipe se aproximou de mim, dando-me a entender que eram horas de nos retirarmos. Despedi-me. Kátia apertou-me a mão com força e olhou-me expressivamente. A condessa insistiu para que voltasse. Saí com o príncipe.

Não posso deixar de expor uma observação singular, ainda que resulte incongruente. Da minha conversa de três quartos de hora com Kátia fiquei, entre outras coisas, com a convicção um pouco estranha, mas ao mesmo tempo profunda, de que ela era tão criança que ignorava em absoluto as relações secretas que existem entre o homem e a mulher. Isto imprimia uma graça desusada a algumas ideias suas e ao tom sério que tomava para abeirar-se de certos problemas importantes.

 

— Sabe uma coisa? — disse-me o príncipe ao sentar-se a meu lado no trem. — Parece-me que não estaria mal tomarmos qualquer coisa. Que lhe parece?

— Verdadeiramente não sei, príncipe — respondi, hesitante. — Eu nunca ceio...

— Bem, é que, naturalmente, «falaríamos», enquanto ceássemos — acrescentou ele olhando-me nos olhos atentamente e com uma expressão manhosa.

Como não compreender! Ele quer explicar-se comigo e é precisamente isso o que eu preciso. Aceitei.

— Pois vamos. À Bolchaia Morskaia, à B.

— Um restaurante? — perguntei com certa perplexidade.

— Sim, que tem? É raro cear em casa. Não me permite que o convide?

— Mas é que, já lhe disse, eu nunca ceio...

— Uma vez só, não tem importância. Além disso, sou eu quem convida...

Quer dizer: «Sou eu que vou pagar.» Estou convencido de que acrescentou aquilo «intencionalmente». Eu acedi a acompanhá-lo, mas estava resolvido a pagar a minha conta no restaurante. Chegámos. O príncipe pediu um compartimento reservado e, com arte e conhecimento do assunto, escolheu dois, três pratos. Eram pratos caros os que ele encomendou, tal como as garrafas, de excelente vinho de mesa. Aquilo não estava ao alcance da minha bolsa. Olhei a ementa e pedi para mim meio frango e um copo de Laffite. O príncipe protestou:

— Mas não quer cear comigo? Isso é absolutamente ridículo. Pardon, mon ami. Olhe que isso... é de uma mesquinhez ofensiva. E de um amor-próprio tacanho. Dir-se-ia que há aqui preconceitos de classe e apostaria que assim é, Asseguro-lhe que me ofende.

Persisti na minha ideia.

— Bem, como queira — acrescentou. — Eu não quero constrangê-lo... Diga-me, Ivan Petrovitch, poderei falar-lhe como a um verdadeiro amigo?

— Peço-lhe que o faça!

— bom, em meu entender essa mesquinhez prejudica -o. Prejudica-o a si e a todos os da sua classe. Os senhores, os literatos, precisam de conhecer o mundo e, no entanto, mantêm-se alheios a tudo. Não falo agora dos frangos. Veja: o senhor está disposto a recusar todas as relações com o nosso meio, e isto prejudica-o. Perde muito... numa palavra: perde a sua carreira! O senhor tem necessidade de conhecer de facto o que descreve, o que se encontra nos seus romances: condes, príncipes e boudoirs. Além de tudo, depois de tudo, como direi? O senhor agora só pinta miséria, inspectores, oficiais violentos, funcionários, tempos passados, conspiradores... Sei-o bem, sei-o bem.

— Engana-se em-absoluto, príncipe. Se eu não penetro naquilo a que chama as «altas esferas», é porque nelas, em primeiro lugar, uma pessoa se aborrece, e depois porque não tenho lá nada que fazer. Apesar de tudo, de vez em quando ainda apareço...

— Já sei que vai a casa do príncipe R... uma vez por ano. Já tive ocasião de o ver lá. Mas, no resto do ano, o senhor reveste-se de um orgulho democrático e perde-se no seu casebre. Nem todos os do seu grémio se conduzem assim: há uns que só procuram aventuras e que me causam náuseas...

— Agradecia-lhe muito, príncipe, que mudasse de assunto e me deixasse em paz com os casebres!

-— Ai, meu Deus, já se ofendeu! Mas lembre-se de que foi o senhor mesmo quem me autorizou a falar-lhe como a um amigo íntimo. Mas é verdade, errei, porque ainda não mereci a sua amizade. Excelente vinho. Prove-o.

Encheu-me meio copo da sua garrafa.

— Veja, meu caro Ivan Petrovitch, eu compreendo muito bem que não é decente atirar com a amizade à cara de uma pessoa; veja que nem todos nós somos grosseiros e duros para consigo, como o senhor pensa... Apesar de que também compreendo muito bem que o senhor está aqui, não por deferência para comigo, mas porque lhe prometi «falar». Não é verdade? — e sorriu. —Já que vela tanto pelos interesses de certas pessoas das suas relações, vai ter a bondade de ouvir o que vou dizer-lhe, não é assim? — acrescentou com sorriso maldoso.

— Não se engana — atalhei, impaciente; eu via que ele era um desses indivíduos que, ao ver que um homem está em seu poder, ainda que apenas preso por um cabelo, imediatamente lho fazem sentir. Eu estava em seu poder; não podia sair dali sem escutar tudo o que quisesse dizer-me, e ele sabia-o de sobra. Mudou subitamente de tom, procurando cada vez mais dar às suas palavras um ar de familiaridade e até de brincadeira. — Não se engana, príncipe. Foi por isso que vim, de outro modo, realmente, não estaria aqui... tão tarde.

Senti o desejo de dizer: «De outro modo, por nada deste mundo estaria aqui consigo», mas não o disse e empreguei outros termos, não por receio, mas pela minha fraqueza e delicadeza, tão condenáveis. Depois de tudo, como ofender uma pessoa na sua própria cara, ainda que o mereça e que eu quisesse realmente fazê-lo? Pareceu-me que o príncipe leu isto nos meus olhos. Olhou-me a sorrir, enquanto eu proferia aquela frase, como que satisfeito com a minha pusilanimidade e como que procurasse excitar-me com este olhar: «Anda, atreve-te, meu caro!» Por certo fora assim, pois, quando terminei, desatou a rir e deu-me uma pancadinha nas costas com uma afectuosidade protectora.

«Fazes-me rir, meu caro!», li eu nos seus olhos. «Espera que já vais ver!», pensei eu para comigo.

— Hoje foi para mim um dia muito alegre — exclamou ele -— e, na verdade, não sei porquê. Sim, sim, meu amigo. Era precisamente dessa pessoa que queria falar-lhe. E necessário resolver alguma coisa em definitivo, «ficarmos» nalguma coisa. Espero que agora me compreenda perfeitamente. Falei-lhe, há pouco, daquela quantia e desse pai fanfarrão, desse garoto sexagenário... Bem! Não vale a pena falarmos agora disso... Ah, ah, ah! O senhor, que é um literato, devia ter adivinhado...

Olhei-o atónito. Ao que parecia, ainda não estava embriagado.

— Bem! Quanto à tal menina, é verdade que a respeito e até me inspira afecto, creia-me. É um pouco voluntariosa, mas devemos pensar que «não há rosas sem espinhos», como diziam, e muito bem, há cinquenta anos! Os espinhos picam, mas isso é muito atraente e, embora o meu Alexiei seja um tolo, tenho de lhe perdoar, porque revelou bom gosto. Numa palavra: a pequena agrada-me, e eu... — e apertou os lábios de modo significativo — até tenho quanto a ela intenções pessoais... Mas, bom, isso fica para depois...

— Príncipe, por favor! — exclamei. — Não compreendo essa mudança tão brusca; mas... mudemos de conversa, suplico-lhe.

— Já está outra vez zangado! Está bem... vou falar de outra coisa. Só queria perguntar-lhe uma coisa, meu amigo: tem-lhe muita estima?

— Naturalmente! — respondi com brusca impaciência.

— E ama-a? — insistiu, estalando repulsivamente com a língua e piscando os olhos.

— O senhor esquece-se! — exclamei.

— Bem, bem, acalme-se! E que me encontro hoje numa excelente disposição. Estou contente como há muito não estava. Não quer champanhe? Que lhe parece, meu caro poeta?

— Não bebo, não quero!

— E também não fala. O senhor tem obrigação absoluta de fazer-me hoje companhia. Sinto-me muito bem disposto e com uma bondade que raia pelo sentimentalismo. Não posso ser feliz sozinho. Quem sabe se acabaremos a beber e a tratarmo-nos por tu!... Ah! ah, ah, não meu jovem amigo, ainda não me conhece! Estou certo de que acabará por me estimar. Quero que compartilhe hoje comigo a tristeza e a alegria, os risos e as lágrimas, apesar de que espero não chorar. bom, vamos a ver: que diz o senhor, Ivan Petrovitch? Imagine apenas que se as coisas não me correrem bem toda a minha inspiração se desvanecerá, volatilizará, desaparecerá, e o senhor não chegará a ouvir nada. E veio aqui só para me ouvir, não é verdade? — acrescentou voltando a piscar-me maliciosamente o olho. — Agora escolha.

A ameaça era grave. Assenti. «Não quererá embriagar-me?», pensei. Efectivamente, é a altura de recordar um certo rumor que corria acerca do príncipe, rumor que há muito chegara aos meus ouvidos. Diziam que ele, sempre tão elegante em sociedade, gostava de se embriagar às vezes, durante a noite, beber como uma esponja e entregar-se clandestinamente a uma libertinagem torpe e secreta. Ouvira sobre ele boatos terríveis... Diziam que Aliocha sabia que o pai costumava embriagar-se e que se esforçava por ocultá-lo de toda a gente e, em especial de Natacha. Certa vez começou a falar-me disso, mas imediatamente mudou de assunto e não respondeu às minhas perguntas. Além do mais, apesar de ter ouvido contar o facto, confesso que, a princípio, me recusava a acreditar. Agora estava à espera do que se iria passar.

Trouxeram-nos champanhe. O príncipe encheu duas taças das grandes, uma para ele e outra para mim.

— E uma simpática e linda rapariga, apesar de me ter tratado com aspereza — continuou, enquanto saboreava o champanhe com deleite. — As pessoas assim simpáticas são especialmente atraentes em determinados momentos... Ela havia de estar a pensar que conseguira confundir-me, lembra-se, que me reduzia a pó. Ah, ah, ah!... Como fica bonita quando cora!... O senhor percebe alguma coisa de mulheres? Às vezes um súbito rubor fica-lhes admiravelmente kern às faces pálidas, já reparou? Ai, meu Deus! Vejo que já se aborreceu outra vez!

—- Sim, estou aborrecido! — exclamei, sem poder já conter-me. — Não quero que fale agora de Natacha Nikolaievna, isto é, não admito que fale nesse tom. Não posso... não posso consenti-lo!

— Bem, desculpe. vou fazer-lhe a vontade: mudarei de assunto. Porque, veja, eu sou tão flexível e brando como a cera. Falemos de si. Eu estimo-o, Ivan Petrovitch; se soubesse a simpatia tão amigável e sincera que me inspira...

— Príncipe, não seria melhor falarmos sobre o assunto? — interrompi.

— Do «nosso assunto», quer o senhor dizer. Eu, a si, até o compreendo por meias palavras, mon ami. Mas nem calcula como ficaremos perto do assunto, se falarmos de si — se o senhor, naturalmente, me não interromper. Nesse caso, continuo. Queria dizer-lhe, meu inestimável Ivan Petrovitch, que viver como vive equivale simplesmente a perder-se. Há-de permitir que eu toque neste assunto delicado, porque sou seu amigo. O senhor é pobre, recebe dinheiro adiantado do editor e paga as dívidas; no semestre seguinte, porém, alimenta-se apenas de chá e treme de frio na sua trapeira, à espera que se publique o seu romance na revista do seu editor, não é assim?

— Embora seja assim, parece-me que tudo isso...

— É mais honesto que roubar, adular, pedir dinheiro emprestado, enredar, etc., etc. Sei, sei o que o senhor quer dizer. Tudo foi posto a claro, há tempo...

-— Mas, na realidade, não me parece que o príncipe tenha de se intrometer nos meus assuntos... Vai dar lugar a que eu lhe dê uma lição de delicadeza...

-— Não, não terá de a dar. Que fazer, todavia, quando estamos tocando numa corda tão sensível? Mas, enfim, deixemos em paz as trapeiras. Não gosto nada delas, salvo em determinadas ocasiões — e rompeu num riso repulsivo. Mas é ist:o que me espanta: porque tem tanto interesse em fazer papéis de segunda ordem? É verdade que um dos seus camaradas escritores disse uma vez, se bem me lembro, que talvez o maior feito de um homem fosse contentar-se na vida com um papel secundário... Era qualquer coisa deste género... E, a propósito, ouvi também qualquer coisa semelhante, não sei onde. Mas, enfim, o caso é que Aliocha lhe tirou a noiva, sei-o bem, e o senhor, como qualquer Schiller ainda se esforça por os servir, por lhes ser prestável. Só lhe falta pôr-se a quatro patas por causa deles... Desculpe-me meu caro, mas acho um pouco vil isso de brincar aos sentimentos generosos. Não sei como o senhor, no fundo, se não aborrece. É até vergonhoso. Eu, no seu lugar, morreria de desespero e, o que é mais importante, de vergonha, sim, de vergonha.

— Príncipe, parece-me que o senhor me trouxe aqui para me insultar! — exclamei, transtornado pela ira.

— Oh! Não, meu amigo! Neste momento sou apenas um homem prático e que deseja a sua felicidade. Numa palavra: desejo arrumar este assunto. Mas deixemos por agora toda esta história. Escute-me até ao fim e procure não se irritar, nem que seja apenas por um momento. E se o senhor se casasse? Vê? Falo-lhe agora sobre «outra coisa». Mas... porque me olha tão espantado?

— Estou à espera de que acabe — respondi, olhando-o, efectivamente com assombro.

— Pois não me interrompa. Quero precisamente saber o que diria o senhor se algum amigo seu, que lhe desejasse uma felicidade sólida, efectiva, não efémera, lhe propusesse uma jovem interessante mas... que já tivesse passado por certas coisas... Falo alegoricamente, mas deve compreender-me, uma rapariga como Natacha Nikolaievna, claro que com uma indemnização decente... Olhe que estou a falar-lhe de «outra coisa» e não do «nosso assunto». Bem, então que diria?

— Direi ao senhor que... está louco!

— Ah, ah, ah! Bah! Pouco faltou para se atirar a mim. Eu, efectivamente, senti tentações de me atirar a ele.

Não podia conter-me mais. Dava-me a impressão de um réptil’ de uma aranha enorme que eu a todo o custo desejava esmagar. Ele divertia-se a troçar de mim. Brincava comigo como o gato com o rato, supondo que me tinha em seu poder. Parecia, lembro-me, que encontrava certa satisfação, certa voluptuosidade até, naquela tirania, naquele cinismo com que tirava diante de mim a sua máscara. Queria divertir-se com o meu espanto, com o meu assombro. Desprezava-me francamente e ria-se de mim.

Eu pressentia, desde o início, que tudo aquilo era deliberado e tinha alguma finalidade. Mas estava em tal situação que, houvesse o que houvesse, não tinha remédio senão ouvir o príncipe até ao fim. Assim convinha aos interesses de Natacha. Tive, pois, de resignar-me a tudo e tudo aguentar, porque talvez naquele instante se decidisse o seu destino. Mas como seria possível ouvir aquelas cínicas e maldosas apreciações a respeito dela, como seria possível sofrer tudo aquilo a sangue-frio? Ele sabia muito bem que eu não tinha outro remédio senão ouvi-lo, e isto duplicava a sua ofensa. «Além do mais, ele também precisa de mim», pensei, e mostrei-me redondamente hostil. Ele compreendeu-o.

— bom! Veja meu amigo — começou, olhando-me com seriedade —, que não é possível continuarmos assim. Será melhor pormo-nos de acordo. Olhe que eu tencionava dizer-lhe uma coisa, mas é preciso que o senhor seja amável, que escute o que lhe quero dizer. Desejo falar à minha vontade, a meu gosto e como, de facto, se torna necessário. Vejamos, meu jovem amigo, está disposto a ter paciência?

Tive de fazer um grande esforço, e calei-me, apesar de ele me olhar com tal sarcasmo que parecia desafiar-me para que eu formulasse o mais vivo protesto. Mas compreendeu que eu acedera a não me retirar, e prosseguiu:

— Não se aborreça comigo, meu amigo. Afinal, porque se aborrece? Só por aquilo que eu aparento, não é verdade? O senhor, no fundo, não esperava de mim outra coisa, qualquer que fosse a forma por que eu me exprimisse: com grande cortesia, ou como acabei de fazer, as ideias seriam as mesmas. O senhor sente desprezo por mim, não é verdade? Não vê quanta ingenuidade, franqueza e bonhomie há em mim! A si tudo confesso, inclusive os meus caprichos pueris. Sim, mon cher, sim. Ponha outra tanta bonhomie da sua parte e verá então como falamos, chegamos a acordo e nos compreendemos, finalmente, um ao outro. Mas não me olhe com esse espanto. Se soubesse como me aborrecem todas essas inocências, todas essas pastorais de Aliocha, todos esses dramas à Schiller, todas essas exaltações por causa dessa maldita ligação com a tal Natacha, que, aliás, é uma rapariga muito interessante... Posso até dizer que involuntariamente me regozijo por ter uma ocasião para lhe exprimir todo o horror que me inspiram. Bem, chegou a ocasião. Além disso, queria desafogar consigo a minha alma. Ah, ah, ah!

O senhor espanta-me, príncipe, não o reconheço. Está a usar o estilo de um polichinelo: essa franqueza inesperada...

— Ah, ah, ah! Isso, em parte, é verdade. Que comparação tão acertada! Eu estou muito divertido, meu amigo, estou muito divertido, estou alegre e contente. E o senhor, meu caro poeta, tem de mostrar-me toda a tolerância possível. Mas será melhor bebermos — decidiu, completamente satisfeito consigo, esvaziando um copo. — Veja, meu amigo. Aquela estúpida noite (lembra-se?), em casa de Natacha, acabou de me matar definitivamente. Ela, na verdade, estava muito interessante. Saí de lá com um desgosto horrível e não posso esquecê-lo, nem esquecê-lo nem ocultá-lo. Por certo que também me há-de chegar a vez e não deve tardar... Mas deixemos isso, por agora. Queria, entretanto, explicar-lhe que há um traço no meu carácter que o senhor ainda ignora: é a aversão a todos esses imbecis que para nada servem, a todas essas ingenuidades vulgares e baratas. Um dos meus mais gratos prazeres foi sempre fingir concordância, exprimir-me no mesmo tom, acarinhar, encorajar qualquer desses eternamente jovens Schillers e depois, rapidamente, de um só golpe, desconcertá-lo, tirar a máscara da sua frente e, em vez de mostrar-lhe uma cara entusiasmada, fazer-lhe caretas, deitar-lhe a língua de fora... ,recisamente no instante em que menos esperasse tal surpresa. Que tal O senhor não compreende isto, parece-lhe abominável, absurdo, talvez ignóbil, não? .— Pois claro!

— O senhor é franco. bom. Mas que hei-de eu fazer, se me aborrecem? será estupidez — também sou sincero —, mas é este o meu carácter. Além do mais, gostaria de lhe contar alguns episódios da minha vida. O senhor há-de compreender-me melhor e vai achar curioso. Sim, efectivamente, talvez me pareça hoje com um polichinelo. Mas, já vê, o polichinelo é sincero, não é?

— Por favor, príncipe. Já é tarde e, na verdade...

— Como? Meu Deus, que impaciência! Vamos! Continuemos a falar como amigos, sinceramente, sabe? Sim, senhor, junto da garrafa de vinho, como bons camaradas. O senhor pensa que eu estou bêbado? Que importa? Assim é melhor! Ah, ah, ah! Na verdade, estes momentos em companhia de um amigo ficam, para muito tempo, gravados na memória, e uma pessoa recorda-os com prazer. O senhor não é bom, Ivan Petrovitch. Falta-lhe sentimentalismo, sensibilidade. Bem, que é para si uma garrafa a mais ou a menos, tratando-se de um amigo como eu? No fundo, isto também tem relação com o «assunto». Como é que não o compreende? Para mais sendo um escritor... O senhor até devia celebrar esta ocasião: pode tirar de mim um tipo para os seus romances... Ah, ah!, Meu Deus, como eu estou hoje simpático e tão franco!

Pelos vistos, estava embriagado. Mudara de semblante e mostrava agora uma expressão maldosa. Indubitavelmente sentia vontade de morder, ferir, espicaçar, troçar. «Em parte, é melhor que esteja embriagado», pensei eu. Os bêbados dão sempre à língua. Mas ele não perdia a noção das coisas.

— Meu amigo — começou, visivelmente satisfeito consigo próprio —, há pouco dei-lhe uma indicação, talvez extemporânea, sobre a vontade invencível que às vezes me dá de deitar a língua de fora, em determinadas ocasiões.

Devido a esta minha ingénua e simples franqueza, o senhor comparou-me com um polichinelo, ao que, sinceramente achei muita graça. Mas se o senhor me recriminasse ou se se espantasse comigo, porque me porto agora grosseiramente e até, permita-me, de uma maneira indecente, como um m’ujique, numa palavra, por ter mudado de tom, o senhor seria então absolutamente injusto. Em primeiro lugar, isto agrada-me e, além disso, não estou em minha casa, mas «consigo»... Quero dizer que nós, agora, estamos a divertir-nos como bons amigos; finalmente, também confesso que me agradam os caprichos. Não sabe que eu, uma vez, por mero capricho, me fiz também metafísico e filantropo e acabei quase por cair nas mesmas ideias que o senhor tem? Claro que isto foi há muitíssimo tempo, nos dourados dias da minha mocidade. Lembro-me que, nessa altura, fui às minhas terras, lá para a aldeia, animado de propósitos humanitários. Naturalmente aborreci-me imenso. Quer crer do que me lembrei então? Pois, de tão aborrecido que estava, comecei a cultivar as relações com as raparigas bonitas... Franze a testa? Meu jovem amigo! Olhe que nós estamos agora a passar um bocadito como bons camaradas. Quando se divertem, as pessoas desabafam. E olhe, o temperamento russo, o temperamento russo natural, patriótico, gosta de desabafar. Além disso, é necessário não desperdiçar o momento que passa e gozar a vida. Temos de morrer e então... bom... pois também fiz das minhas. Lembro-me de que numa quinta havia uma rapariga cujo marido era um mujique, um moço jovem e simpático. Castiguei-o duramente e quis fazê-lo soldado (diabruras passadas, meu amigo), mas não consegui. Morreu em minha casa, no hospital... Porque eu tinha na aldeia um hospital com doze camas (um edifício magnífico, muita limpeza, sobrados encerados), que há muito desmanchei. Naquela altura, porém, ele era todo o meu orgulho, eu era um filantropo... Bem. Pois quase matei o tal camponês, com o chicote, por causa da mulher... Que é isso? Já está outra vez a franzir a testa? Repugna-lhe ouvir estas coisas? Os seus nobres sentimentos sofrem com isto? Bem, bem, tranquilize-se. Tudo pertence ao passado. Fiz isto quando era romântico: queria tornar-me um benfeitor do homem, fundar uma Sociedade filantrópica. Em que pedra fui tropeçar... Naquela altura ainda se chicoteavam as pessoas... Agora não, agora é necessário fazer caretas; agora todos fazemos caretas..- A que tempos chegámos! Mas quem me dá mais vontade de rir é esse idiota do Ikmeniev. Estou certo de que sabia toda essa história com a camponesa... E que importa? Ele, pela bondade da sua alma, feita, ao que parece, de melaço, entusiasmou-se comigo e levou-me a sua casa... Resolveu não acreditar em nada, e assim fez, quer dizer, não deu crédito aos ditos. Andou atrás de mim doze anos até que chegou a sua vez... Ah, ah, ah! Bem, tudo isto é um absurdo! Bebamos, meu jovem amigo. Diga-me, gosta de mulheres?

Não respondi. Limitava-me a ouvi-lo. Já tinha entrado na segunda garrafa.

— Pois eu gosto de falar delas, depois de cear. Quer que lhe apresente como sobremesa uma tal Mademoiselle Philiberte? Que lhe parece? Que pensa? Mas... nem sequer olha para mim! Hum!

Ficou pensativo, mas depois levantou a cabeça, olhando-me de modo significativo. E continuou:

— Olhe, meu caro poeta, quero revelar-lhe um segredo da natureza, que, segundo parece, o senhor ignora por completo. Estou certo de que, neste momento, o senhor me classifica de pecador e, quem sabe, talvez de mau, extravagante, perverso e vicioso. Mas repare no que lhe digo: se fosse possível (o que, claro está, não será nunca, dada a natureza do homem), se fosse possível que cada um de nós escrevesse todos os seus pensamentos, mas sem recear desvendá-los — não só o que se receia dizer e por nada do mundo se diz aos outros, não só o que se não diz ao amigo mais íntimo, mas até aquilo que uma pessoa se não atreve a dizer a si própria —, então, creia-me, levantar-se-ia no mundo tal cheiro pestilencial que todos deitaríamos a correr, sufocados. E é por isso, diga-se entre parênteses, que as nossas convenções e o decoro mundano nos são precisos. Encerra-se neles um sentido profundo... não direi moral, mas simplesmente conservador, confortável, o que, naturalmente, é melhor, porque a moral, no fundo, se reduz a comodidade, quer dizer, só se inventou por comodidade. Mas já iremos falar das conveniências. Agora estou desorientado Lembre-me depois. Para terminar: o senhor toma-me por um libertino, por um homem perverso, imoral, quando eu talvez não seja agora culpado de outra coisa senão de ser «mais sincero» que os outros... e nada mais; de não ocultar o que os outros ocultam até a si próprios, como já disse... Nisso faço muito mal, mas agora quero que seja assim. Mas não se inquiete — acrescentou com um sorriso irónico —, disse «culpado», o que não significa que vá pedir perdão. Lembre-se de uma coisa: eu não pretendo desconcertá-lo, não vou perguntar-lhe: «Não terá o senhor também alguns segredos semelhantes, com os quais eu possa justificar-me?» Eu conduzo-me de outro modo, decoroso e nobre. Em geral, conduzo-me sempre com nobreza...

— O senhor está apenas a divagar — disse-lhe, olhando-o com desprezo.

— Divagar... Ah, ah, ah! Mas diga-me: em que está agora a pensar? O senhor há-de perguntar a si próprio porque o trouxe eu aqui, e porque, bruscamente, sem motivo, me estou a abrir consigo. Não será assim?

— É assim, é.

— Bem! Pois já vai saber.

— Parece-me bem que a chave de tudo é o facto de se terem já esgotado duas garrafas e... de o senhor estar embriagado.. .

— Quer dizer, simplesmente, bêbado. Talvez seja assim. «Embriagado». Isso é mais suave que dizer bêbado. Oh! Que homem tão delicado! Mas... parece-me que estamos de novo a discutir e que nos desviámos de um tema muito interessante. Sim, querido poeta, sim, há neste mundo coisas boas e saborosas — as mulheres.

— Olhe, príncipe, não chego a compreender porque me terá o senhor escolhido, precisamente a mim, para confidente dos seus segredos e alardes amorosos!

— Hum! Já lhe disse que lho explicarei em breve. Não se inquiete, que não há razão para isso. O senhor é poeta, o senhor compreende-me — já lhe falei disto. Existe uma voluptuosidade especial neste repentino tirar de máscara, neste cinismo com que um homem se mostra, de repente, aos demais, sob um aspecto em que já nem sequer se digna envergonhar-se deles. vou contar-lhe uma história. Havia em Paris um funcionário louco, a quem enviaram para um manicómio quando verificaram que estava doido. Bem; pois ao ficar louco, veja do que se lembrou para diversão própria: pôs-se nu como Adão, apenas com os sapatos, envolveu-se numa capa ampla e, com rosto grave e solene, foi para a rua. Visto de costas, era um homem como os outros, a passear embrulhado numa ampla túnica, a seu bel-prazer. Mas quando se encontrava com algum semelhante nalgum sítio solitário onde não houvesse mais ninguém, aproximava-se em silêncio, com um aspecto grave e pensativo, punha-se, de repente, em frente dele, abria a túnica e mostrava-se com absoluta... sinceridade. A coisa durava um instante, passado o qual se tornava a embrulhar na capa e, em silêncio, sem contrair sequer um músculo da cara, passava pelo espectador paralisado de espanto, grave e subtil como o espectro no Hamlet. Procedia assim com toda a gente: homens, mulheres e crianças, e estava nisto todo o seu prazer. Pois até certo ponto pode gozar-se esta mesma satisfação desconcertando algum Schiller e deitando-lhe a língua de fora, quando menos se espere. «Desconcertar»... Bem, que palavra é esta? Lia-a nalgum trecho de literatura contemporânea.

— bom, mas ele era louco, ao passo que o senhor...

— Estou no meu perfeito juízo?

— Sim!

O príncipe soltou uma gargalhada.

— O senhor está a ser injusto, meu amigo — acrescentou com a mais cómica expressão no semblante.

— Príncipe! — exclamei irritado com o seu impudor.

— O senhor odeia-nos a todos, incluindo eu, e é em que se vinga agora de tudo e de todos. Tudo isto revela o mais irritante amor-próprio. O senhor é perverso, nimimamente perverso. Nós conseguimos confundi-lo, e é talvez por isso, por causa daquela noite, que o senhor está tão furioso. Naturalmente não poderia vingar-se melhor do que com esse desprezo que mostra por mim. O senhor liberta-se nem que seja apenas por uma meia hora, de todos os deveres da cortesia a que estamos reciprocamente obrigados. O senhor quer mostrar-me claramente que nem sequer se digna ter vergonha diante de mim, ao tirar na minha presença, de modo tão franco e inesperado, a sua repugnante máscara... ao revelar-se-me, em toda a plenitude, com tão imoral cinismo...

— Mas, porque me diz todas essas coisas? — perguntou bruscamente, olhando-me com ar agressivo. — Para me demonstrar a sua sagacidade?

— Para lhe demonstrar que o compreendo e para lho fazer sentir.

— Quelle idée, mon cher! (l) — prosseguiu, mudando repentinamente de tom, para voltar ao seu anterior aspecto de alegria e bondade ingénuas. — O senhor só está a desviar-me do assunto. Buvons, mon ami! (2) Permita-me que o sirva. Eu apenas queria contar-lhe uma aventura interessantíssima e muito curiosa. Contar-lhe-ei em linhas gerais. Uma vez conheci uma senhora, muito jovem, de uns vinte e sete a vinte e oito anos, uma beldade de primeira categoria. Que busto? Que palminho de cara! Que andar! Tinha um olhar penetrante como as águias, sempre muito sério. Mantinha-se sempre muito soberba e altiva. Diziam-na fria como o mês de Janeiro e intimidava todos os homens com a sua inacessível, a sua tremenda virtude. Isto mesmo: tremenda. Não havia nas suas relações um juiz tão severo como ela. Condenava não só os vícios, mas até a mais leve fraqueza das outras

 

(’) Que ideia, meu caro!

(2) Bebamos, meu amigo’

 

mulheres, e condenava sem recurso, sem apelação. No seu meio, gozava de enorme influência. As velhas mais orgulhosas e mais ferozes, quanto ao capítulo virtude, tinham-lhe respeito e até procuravam a sua estima. Ela olhava toda a gente com uma crueldade inflexível, como a abadessa de um mosteiro medieval. As raparigas tremiam ante o seu olhar e as suas censuras. Bastava uma observação sua, uma simples alusão, para deitar por terra uma reputação — tal era a aceitação de que gozava na sociedade. Até os homens a temiam. Finalmente, veio a cair em certo misticismo contemplativo, aliás também calmo e altivo... E, todavia, não havia mulher pervertida que fosse mais perversa que aquela mulher. Eu... tive a sorte de merecer a sua confiança absoluta. Mantivemos relações com tal habilidade, tão magistralmente, que ninguém pôde conceber a mais leve suspeita. Só a sua dama de companhia, uma francesa, estava dentro de todos os seus segredos, mas nessa francesa podia haver toda a confiança: também tomava parte... Como se passavam as coisas? Já lho vou explicar. A minha amiga era tão luxuriosa que poderia dar lições ao próprio marquês de Sade. Mas o prazer mais forte, mais penetrante e violento, era o seu mistério, a sua habilidade para o engano. Aquele modo de pôr a ridículo tudo o que a condessa fingia em sociedade, dando-se ares de altiva, inacessível e inviolável e, finalmente, aquele riso íntimo e diabólico e aquele modo consciente de espezinhar tudo quanto era intangível... tudo isso sem medida, levado até ao último extremo que a imaginação mais fogosa não poderia conceber... Sim, isso era o principal e constituía o aspecto mais vivo daqueles prazeres. Sim, ela era o diabo em pessoa, mas tinha uma sedução irresistível. Ainda agora não consigo recordá-la sem loucura. No momento culminante dos mais ardorosos deleites soltava uma gargalhada, e eu compreendia muito bem aquele riso e ria-me também. Ainda hoje estremeço só de a recordar, apesar de já lá irem muitos anos. Ao fim de um ano, deixou-me. Ainda que eu quisesse, não poderia prejudicá-la. Quem me acreditaria? Uma pessoa como ela? Mas, que diz o senhor, meu jovem amigo?

— Livra! Que abominação! — respondi, após ter ouvido com repugnância aquela confissão.

— Já sabia, meu jovem amigo, que me não poderia responder de outro modo. Já sabia que iria dizer isso mesmo Ah, ah, ah! Espere, acalme-se, mon ami. Viva e compreenderá. Mas por agora... por agora, ainda precisa de comer muito sal. Não, afinal o senhor não é poeta, já vê. Aquela mulher compreendia a vida e sabia aproveitá-la.

— Mas... para que descer a tamanha bestialidade?

— Que bestialidade?

— Essa a que chegaram essa mulher e o senhor com ela.

— Ah! Chama a isso bestialidade? Sinal de que ainda está muito ingénuo. Já vejo que a oposição pode ser indício de independência. Mas... continuemos a falar, mon ami. Há-de concordar comigo em que tudo isso é absurdo.

— E que há que não seja absurdo?

— O que não é absurdo... é a personalidade, sou eu próprio. Tudo é meu, e o mundo foi feito para mim. Olhe, meu amigo, eu creio que neste mundo se pode viver bem. E este modo de pensar é excelente, porque sem ele seria impossível viver, mesmo mal. Uma pessoa acabaria por se envenenar. Dizem que foi o que fez certo imbecil: deu em filosofar até tal ponto que rompeu com tudo, inclusive com os deveres humanos, normais e naturais; chegou ao extremo de ficar sem nada, ficou reduzido a zero, pois dizia que nesta vida o melhor era o ácido prússico. O senhor dirá: «Esse é Hamlet, isso é desespero absoluto, numa palavra, algo tão grande que nunca o compreenderemos.» Mas o senhor é um poeta, ao passo que eu sou simplesmente um homem, por isso digo que é mister considerar as coisas sob um aspecto prático, simplesmente. Eu, por exemplo, há tempo já que me libertei de todos os laços e até de todas as obrigações. Só me considero obrigado quando isso me traz alguma vantagem. O senhor, naturalmente, não pode ver as coisas deste modo; o senhor tem os pés atados e o gosto estragado: fala de ideais, de virtudes. Mas, meu amigo, eu estou disposto a concordar com tudo o que me diga — que hei-de fazer, porém, se tenho a certeza de que na base de todas essas virtudes humanas há um egoísmo profundo? Quanto mais virtuosa é uma acção mais dose de egoísmo contém. O amor por si próprio, eis a única norma que reconheço. A vida é uma transacção comercial; o senhor não deve dar o seu dinheiro em vão; pague pelo prazer e terá cumprido todos os seus deveres para com o próximo... Aí tem toda a minha moral, se é que lhe faz muita falta. Confesso-lhe, porém, que, em meu entender, é melhor não pagar ao próximo, mas saber obrigá-lo a fazer as coisas de graça. Quanto a ideais, nem os tenho nem os quero ter; nunca senti desejos por eles. No mundo pode viver-se muito bem e muito a nosso gosto sem ideais... en somme (’), aprecio imenso poder passar sem o ácido prússico. Concordo, de boa vontade, que sou pouco «virtuoso», mas, em troca, não farei o mesmo que o imbecil daquele filósofo (sem dúvida alemão). Não. Na vida há ainda tantas coisas boas! A mim atraem-me a distinção, a posição social, as grandes jogadas de cartas (gosto imenso de cartas). Mas o principal, o principal são as mulheres... as mulheres de todos os tipos. Porque eu também aprecio as perversas, as obscuras e tenebrosas, as mais estranhas e originais, com algo, até de porcaria, para variar... Ah, ah, ah! Estou a ver com que desprezo me olha agora! —’ Tem razão —- respondi.

— Bem. Suponhamos que o senhor também tem razão. Mas veja: mais vale porcaria que ácido prússico, não acha?

— Não, o ácido prússico é muito melhor.

— Perguntei-lhe intencionalmente «não acha?», para me divertir com a sua resposta. Já a conhecia de antemão. Não, meu amigo, se é um verdadeiro filantropo deve desejar que todos os homens inteligentes tenham o mesmo gosto que eu, até pela porcaria, já que, de contrário, nada ficará para fazer neste mundo aos homens inteligentes: só cá ficarão os imbecis. Eles é que serão felizes. Mas olhe: também temos um provérbio «A felicidade é para os tolos». E

 

  1. C) Em resumo.

 

diga-me: há alguma coisa mais agradável que viver entre imbecis e fazer coro com eles? É muito proveitoso! Não me censure porque aprecio os preconceitos, respeito as conveniências e aspiro ao bom nome. Bem sei que é em vão que vivo em sociedade, mas, por enquanto, há nela calor. Eu faço como os outros: finjo defendê-la, mas, se fosse necessário, seria talvez o primeiro a pôr-me a salvo. Veja: conheço todas as novas ideias, apesar de que nunca sofri por elas nem por nada. Remorsos, nunca os tive por coisa alguma. Concordo sempre com tudo, o que é muito proveitoso. Como eu, há muitos: nós arranjamo-nos sempre muito bem. Ainda que todo o mundo ruísse, nós havíamos de nos salvar. Existiremos enquanto o mundo existir. O mundo poderá naufragar, mas nós ficaremos à superfície, sobrenadaremos sempre por cima de tudo. Se acha que não tenho razão, repare numa coisa: a vitalidade que têm as pessoas como eu. Olhe para mim, por exemplo: veja como sou forte. Nunca tinha reparado? Nós vivemos até aos oitenta, até aos noventa anos, o que significa que a própria natureza nos confere privilégios, eh, eh, eh! Custe o que custar, eu quero chegar até aos noventa anos. Não quero a morte, ela assusta-me. O diabo é que deve saber o que é morrer... Mas... para que falar disto? A culpa é da maldita filosofia. Para o diabo com a filosofia! Buvons, mon cher. Olhe, tínhamos começado a falar de raparigas bonitas... Mas... onde vai?

— Vou-me embora! Também já são horas para si...

— Ora, ora... Eu, por assim dizer, abri-lhe o meu coração, e o senhor não sabe apreciar esta evidente prova de amizade!... Eh, eh, eh! É pouco afectivo, meu poeta! Deixe-se estar, que vou mandar vir outra garrafa...

— A terceira?

— A terceira. Quanto à virtude, meu jovem discípulo... (há-de permitir que lhe dê este nome tão doce, talvez até que a minha lição lhe seja proveitosa.) Efectivamente, meu caro discípulo, quanto à virtude já lhe disse: «quanto mais virtuoso é o virtuoso, mais egoísta é.» vou contar-lhe, a este respeito, uma história muito engraçada. Uma vez estive apaixonado por uma jovem: amava-a quase deveras. Note-se que ela sacrificou muito por mim...

-— Foi aquela que o senhor roubou? — perguntei à queima-roupa, sem poder já conter-me.

O príncipe deu um salto, mudou de semblante e ficou-se a olhar para mim com uns olhos inflamados; no seu olhar via-se perplexidade e raiva.

— Alto! — murmurou, como se falasse consigo próprio. — Alto! Deixe-me pensar. Estou muito embriagado e custa-me reunir as ideias...

Ficou silencioso e olhou-me com curiosidade, com um ar maldoso, apertando a minha mão na sua, como se receasse que eu fugisse. Estou certo de que naquele instante pensava, esforçando-se por adivinhar como poderia eu conhecer aquele assunto ignorado quase por toda a gente e tentando ver se não correria com isso algum perigo. Permaneceu assim por um minuto, mas logo mudou a expressão do rosto. Nos seus olhos apareceu uma expressão sarcástica, a alegria da embriaguez. Pôs-se a rir.

— Ah. ah, ah! com que então nada menos que um Talleyrand! Bem, e então? Eu, na verdade, fiquei diante dela como um estúpido quando me disse, cara a cara, que eu a tinha roubado. Como gritava e como me insultava! Era uma mulher raivosa e... sem o menor autodomínio. Mas ajuíze por si próprio: em primeiro lugar, eu não lhe roubei absolutamente nada, como o senhor disse há um momento. Foi ela própria que me ofereceu aquele dinheiro, de forma que ele era meu. Suponhamos que o senhor me oferece o seu melhor fraque — ao dizer isto olhava o meu fraque, o único que eu tinha, já bastante deformado, e que fora feito três anos antes pelo alfaiate Ivan Skorniaguine. — Fico-lhe muito grato, visto-o e, por fim, passados dois anos, o senhor briga comigo e exige que lhe entregue o fraque, já usado por mim. Isso não seria nobre. Para quê então oferecer? Além disso, apesar de o dinheiro ser meu, tê-lo-ia certamente devolvido. Mas diga-me: onde iria eu buscar tal quantia, assim de repente, uma quantia como aquela? Mas, sobretudo, não tolero idílios e dramas à Schiller, já lho disse... e foi essa a verdadeira razão. O senhor não imagina como ela se pôs comigo, gritando que me dava aquele dinheiro (que, aliás era meu). A ira apoderou-se de mim, mas imediatamente resolvi o assunto segundo a lógica, porque a presença de espírito nunca me abandona. Pensei que se lhe devolvesse o dinheiro talvez ainda a tornasse mais infeliz. Privá-la-ia do prazer de ser completamente desgraçada «por minha culpa» e de me amaldiçoar por isso durante toda a vida. Creia-me meu amigo, numa desgraça desta índole há também como que a embriaguez suprema de nos considerarmos a nós próprios como totalmente inocentes e de termos o pleno direito de chamar patife ao ofensor. Esta embriaguez do ódio encontra-se nos temperamentos schillerianos. Claro que... talvez ela logo a seguir sofresse a fome, mas estou certo de que era feliz. Eu não queria privá-la dessa felicidade e não lhe devolvi o dinheiro. Assim, fica plenamente justificada a minha regra de que quanto maior e mais forte for a generosidade humana, tanto maior dose de repugnante egoísmo há nela... Está bem claro? Mas... o senhor queria apanhar-me. Ah, ah, ah! Vamos, confesse que queria apanhar-me! Ah! Talleyrand!

— Adeus! — disse-lhe eu levantando-me.

— Só mais um minuto! Duas palavras para terminar — gritou, trocando o seu tom festivo pelo sério. — Oiça o resto. De tudo quanto lhe disse, deduz-se claramente (suponho que já o notou), que eu nunca estou disposto a sacrificar as minhas conveniências, seja pelo que for. Amo o dinheiro e preciso dele. Catarina Fiodorovna tem-no em abundância: o pai dela teve, durante dez anos, um negócio de aguardente. A pequena possui três milhões e esses três milhões vêem-me mesmo a calhar. Aliocha e Kátia... são absolutamente semelhantes: dois idiotas a mais não poder, o que também me faz muito jeito. Assim, desejo em absoluto e quero que o seu casamento seja um facto, e o mais rapidamente possível. Dentro de duas ou três semanas, a condessa e Kátia vão para o campo. Aliocha tem de acompanhá-las.

previna Natacha Nikolaievna para que não haja idílios nem dramas à Schiller, para que não pensem em contrariar-me. Eu sou mau e vingativo. Olho pelo que é meu. Não tenho medo dela. Há-de sair tudo à medida dos meus desejos e, se a aviso desde já é para seu interesse. Procure que ela não faça disparates e que se conduza de modo discreto. De outro modo, tudo irá a mal, mas muito a mal. Já devia estar-me muito grata por não proceder contra ela como devia, isto é, judicialmente. O senhor deve saber, meu caro poeta, que as leis velam pela tranquilidade das famílias, que põem o pai a coberto das culpas do filho e que aquelas que apartam os jovens dos seus sagrados deveres para com os pais não contam com a protecção da lei. E repare, finalmente, que eu possuo um certo número de conhecimentos, ao passo que ela não tem ninguém e... com certeza o senhor já compreendeu o que eu lhe posso fazer... Mas não faço nada, porque até agora se conduziu sempre discretamente. Não se inquiete: em cada momento, a cada movimento deles, havia uns olhos penetrantes que tudo vigiavam, durante este meio ano. Eu estava ao facto de tudo, até ao último pormenor. Além disso, aguardava tranquilamente que Aliocha a abandonasse, como começa a fazer, embora ela tenha sido para ele uma distracção agradável. Fiz-me passar perante eles por um pai humano: precisava que ele pensasse isso de mim. Ah, ah, ah! Como me lembro dos cumprimentos que lhe fiz naquela noite, dizendo-lhe que era muito generosa e desinteressada, para não exigir o casamento com ele! Gostaria de saber como o conseguiria. Ao que me parece, naquela ocasião tudo obedeceu apenas ao facto de já ter tempo de pôr termo àquelas relações. Mas eu necessitava de convencer-me de tudo, pelos meus próprios olhos, pela minha própria experiência. Então? E agora? Já lhe chega? Ou quer saber mais alguma coisa? Porque o trouxe aqui? Porque me’desmascarei assim diante de si quando tudo isto dispensava bem as confidências... Natacha? vou dizer-lho com toda a sinceridade... Sim?

Contive-me e escutei avidamente.

— Pois foi apenas, meu amigo, porque me pareceu ver em si um pouco mais de bom senso, uma visão mais clara das coisas, que nos nossos dois pombinhos. O senhor mais facilmente havia de ver quem eu sou, adivinhar, forjar suposições a meu respeito. Mas eu quis tirar-lhe todo este trabalho e decidi mostrar-lhe claramente «com quem» teria de haver-se. Efectivamente, uma impressão é uma grande coisa Compreenda-me, mon ami. O senhor já sabe com quem tem de haver-se. Estima Natacha e, portanto, espero que há-de exercer sobre ela todo o seu ascendente (e tem tal ascendente sobre ela...) para «evitar» certos contratempos. De outro modo, havê-los-á e asseguro-lhe, asseguro-lhe que não só serão brincadeira. Aí tem as razões da minha franqueza para consigo... Já deve ver, meu caro... Eu queria cuspir um pouco sobre todo este assunto, e cuspir precisamente diante de si...

— E conseguiu o seu propósito — disse eu trémulo de emoção. — Estou de acordo sobre que não poderia exprimir diante de mim todo o ódio e desprezo que me tem, a mim e a todos nós, de modo mais perfeito do que empregando essa franqueza. O senhor não só não receou que essa sua franqueza «para comigo» pudesse comprometê-lo, mas até nem sentiu vergonha de mim... O senhor, na verdade, parece-me muito com o louco da capa. Não me considerou como um homem.

— Adivinhou, meu jovem amigo — disse ele, levantando-se —, acertou em tudo. Não é em vão que é escritor... Espero que nos separemos como bons amigos. E se bebêssemos à nossa saúde?

— O senhor está bêbado, e só em atenção a isso lhe respondo como deveria...

— Outra vez as reticências... Não acabou de dizer o modo como deveria responder! Ah, ah, ah! Permite-me que pague a sua parte?

-— Não se preocupe; eu próprio a pagarei.

— Claro, sem dúvida. Não vai para os mesmos lados que eu?

— Não, não vou consigo.

Então, adeus, poeta. Espero que me tenha compreendido...

Saiu com passo incerto e sem se voltar para mim. (O lacaio sentou-se na caleche. Eu segui o meu caminho. Eram três da madrugada. Chovia. Estava uma noite lúgubre...

 

Não quero demorar-me a descrever o meu desespero. Apesar de poder esperar tudo, estava transtornado, tal como se o príncipe se me tivesse apresentado em toda a sua fealdade, de um modo completamente imprevisto. Lembro-me, também, de que os meus sentimentos eram de inquietação, como se estivesse oprimido, magoado, e uma negra dor me apertava cada vez mais o coração. Receava por Natacha. Pressentia que a esperavam muitos sofrimentos e, cheio de sobressalto, reflectia sobre a maneira de libertá-la, de dulcificar os últimos períodos antes da solução definitiva do caso. Da referida solução não havia dúvida nenhuma. Aproximava-se. E como não adivinhar qual seria?

Não sei como cheguei a casa, embora a chuva me tivesse molhado durante todo o caminho. Eram já três horas da madrugada. Mal eu chegara à porta do meu quarto quando ouvi um gemido e a porta começou logo a abrir-se, como se Nelly não se tivesse deitado e houvesse ficado durante todo o tempo à minha espera, junto da ombreira. Havia uma luz acesa. Olhei para a cara de Nelly e fiquei assustado. Estava transtornada. Os olhos ardiam-lhe como se tivesse febre e olhava-me de um modo selvagem, como se não me reconhecesse. Estava muito afogueada.

— Nelly, que tens? Estás doente? — perguntei-lhe inclinando-me para ela e pegando-lhe numa mão.

Aproximou-se de mim a tremer, como se receasse não sei o quê; murmurou qualquer coisa numa voz entrecortada e apressadamente, como se estivesse à minha espera só para me dizer aquilo. Mas as suas palavras eram incoerentes e estranhas. Eu não compreendia o que ela dizia: delirava.

Levei-a para a cama. Mas ela agarrava-se a mim como se procurasse protecção contra alguém, depois de eu a ter deitado na cama ainda se segurava à minha mão com muita força, com receio de que eu tornasse a sair.

Eu estava tão cansado e enervado que, ao vê-la assim, até chorei. Também eu estava doente. Quando viu as minhas lágrimas, olhou-me durante muito tempo, com muita atenção, como se se esforçasse por pensar ou imaginar qualquer coisa. Era evidente que isso lhe custava um grande esforço. Finalmente, qualquer coisa semelhante a um pensamento aflorou ao seu rosto. Depois de uma forte recaída na sua doença, quase sempre lhe era difícil concentrar os pensamentos durante um momento e articular as palavras de maneira clara. Era o que lhe acontecia agora: fazia um esforço enorme para dizer não sei o quê, e, adivinhando que eu não a percebia, soltou a sua mãozinha e pôs-se a enxugar-me as lágrimas, depois do que me deitou os braços ao pescoço e me puxou para si e me beijou.

Era evidente que na minha ausência sofrera um ataque e precisamente no instante em que estava junto da porta. Aturdida pelo ataque, provavelmente, tombara no chão. Nesses momentos o delírio mistura-se à realidade e ela devia ter imaginado qualquer coisa de horroroso, de terrível. Nesse instante teria dito a si própria que eu havia de voltar e parar à porta, e assim, estendida à entrada, no chão, estivera esperando atentamente o meu regresso, levantando-se quando me ouviu.

«Mas porque viria para junto da porta?», pensei eu.

E de repente observei com admiração que tinha vestida a sua pequena pelica que eu acabara de comprar a um penhorista conhecido (que costumava vir visitar-me ao meu quarto e me entregava os seus artigos a crédito); pelos vistos tencionava ir a algum lado e teria já aberto a porta quando, de súbito, lhe deu o ataque de epilepsia. Onde pensaria ela ir? Não estaria já transtornada nesse momento?

Entrentanto, a febre não descia e não tardou que a pobrezinha perdesse os sentidos. Já lhe tinham dado dois ataques desde que vivia comigo; mas passavam sempre sem nada de maior, ao passo que, agora, tinha febre. Depois de estar sentado meia hora junto dela, puxei uma cadeira junto do divã e deitei-me ao seu lado, vestido como estava, com a intenção de acudir em seu auxílio assim que me chamasse. Não apaguei a luz. E ainda olhei para ela muitas vezes antes de me estender. Estava pálida; tinha os lábios pegajosos da febre e sanguinolentos, provavelmente por causa do ataque. do seu rosto não se apagara ainda uma expressão de espanto e tristeza dolorosa que, segundo parecia, nem em sonhos a deixava. Tomei a decisão de ir procurar um médico no dia seguinte, se ela estivesse pior. Receava que aquilo acabasse por degenerar numa febre verdadeira.

«O príncipe deve ter-lhe metido medo», pensei, estremecendo e lembrando-me do que ele me contara daquela rapariga, que lhe atirara com o seu dinheiro à cara.

 

Passaram-se duas semanas. Nelly restabeleceu-se. Não chegou a ter febre, mas esteve muito mal. Levantou-se da cama já em fins de Abril, num dia luminoso, radiante. Era na Semana Santa.

Pobre criatura! Não posso continuar a minha narrativa seguindo a mesma ordem que até aqui. Muito tempo passou já até ao momento actual, em que descrevo todo este pretérito; mas ainda agora sinto uma funda, angustiante tristeza, ao recordar aquela carita pálida, vincada; aquele longo e triste olhar dos seus olhos pretos, quando ficávamos sozinhos e ela se punha a olhar-me, na sua caminha, a olhar-me longamente, de uma maneira que parecia convidar-me a adivinhar o que se passava na sua alma, mas ao ver que eu não o adivinhava e persistia na minha ignorância anterior, sorria para si mesma em silêncio e, de repente, estendia-me a sua mãozinha escaldante, de dedinhos fracos, descarnados. Agora já tudo passou: já tudo se sabe: mas ainda hoje ignoro todos os segredos desse coraçãozinho doente, torturado e ofendido

Sinto que estou a afastar-me da minha narrativa; é que neste momento, não queria pensar em mais ninguém senão em Nelly. Coisa estranha: agora que estou só no meu leito de doente, abandonado de todos aqueles a quem tanto amei... agora vem-me de repente à memória um pequeno pormenor daquele tempo, em que então quase nunca reparava e depois logo esquecia, e, sem eu querer, assume a meus olhos um significado totalmente diferente, que aclara e ilumina aquilo que até aqui não consegui compreender.

Nos primeiros quatro dias de doença, nós, eu e o médico, receávamos terrivelmente por ela; mas ao quarto dia o médico chamou-me à parte e disse-me que nada receasse, pois ela restabelecer-se-ia de certeza. Era aquele mesmo médico que eu conhecia já algum tempo, um velhinho solteirão, bondoso e extravagante, que chamei aquando da primeira doença de Nelly, e que tanta impressão lhe causou com o seu Estanislau (*) de dimensões invulgares, ao pescoço.

— Então não há motivo para receio! — exclamei num alvoroço.

— Não, desta ainda escapa, mas está condenada a não viver muito.

— Como? Porquê? — exclamei acabrunhado perante tal prevenção.

— Sim, não há dúvida de que há-de morrer nova. A doentinha tem um defeito constitucional no coração e ao menor contratempo tornará a cair doente. Poderá acontecer que volte a restabelecer-se, mas para recair de novo, e finalmente morrerá.

— E não há maneira nenhuma de salvá-la? Não, isso não pode ser!

— É um caso irremediável. Embora, é claro, se lhe evitarem todos os contratempos desagradáveis, se lhe assegurarem

 

(*) Medalhão com a efígie de S. Estanislau, patrono dos médicos. (N. do T.)

 

uma vida tranquila e aprazível, se lhe proporcionarem mais satisfações, talvez possa afastar-se a morte, e até se dão casos... inesperados, anormais e raros... Numa palavra: poderia salvar-se a doentinha se se desse uma série de circunstâncias favoráveis, embora salvá-la radicalmente... isso, nunca.

— Mas, meu Deus, que fazer, agora?

— Seguir as minhas indicações: que leve uma vida tranquila e tome os remédios às horas marcadas. Já reparei que esta menina é voluntariosa, de um temperamento irregular e até um pouco trocista; não gosta de tomar os remédios receitados e até chega mesmo a negar-se a tomá-los.

— É verdade, doutor. De facto, é uma criança estranha, mas atribuo isso à sua excitação doentia. Ontem esteve muito obediente, mas hoje, quando lhe levei o remédio, deu um empurrãozito à colher, como se o fizesse sem querer, e entornou tudo. Quando lho quis dar pela segunda vez, tirou-me o frasco das mãos, atirou-o ao chão e depois pôs-se a chorar... Mas não acredito que fizesse isso por a obrigarem a tomar remédios — acrescentei, pensativo.

— Hum! Irritação. Essa grande infelicidade que sofreu! — eu tinha contado ao médico pormenorizadamente e com toda a sinceridade a história de Nelly, e a minha narrativa impressionaro-o profundamente. — Tem ainda os seus efeitos naquilo que se está a passar e é daí que deriva a sua doença. Por agora o único meio... consiste em tomar os medicamentos e ela tem obrigação de tomá-los. Hei-de voltar e fazer-lhe-ei ver a sua obrigação, que ela deve seguir as prescrições do médico e... falando de uma maneira geral, tomar os remédios.

Saímos da cozinha, onde tivemos esta conversa, e o médico voltou a aproximar-se da cama da doentinha. Mas, pelos vistos, Nelly estivera à escuta; pelo menos tinha erguido a cabeça da almofada e parecia ter compreendido a nossa conversa; devia ter ouvido tudo. Observei isto pela frincha da porta entreaberta. Quando nos aproximámos a espertalhona tornou a embrulhar-se na dobra da coberta e olhou-nos com um sorriso trocista. A pobrezinha enfraquecera muito naqueles dias de doença; tinha os olhos encovados e a febre ainda não a deixara. Aquele ar trocista do seu rosto e o brilho vivo dos seus olhos admiraram muito o médico, que era o mais bondoso de todos os alemães que havia em Petersburgo.

Esforçando-se o mais possível por suavisar o tom de voz pôs-se, com toda a seriedade, com afectuosidade e com ternura, a demonstrar-lhe a necessidade de tomar os remédios, que eram bons, a obrigação que todos os doentes tinham de tomá-los. Nelly ergueu a cabeça, mas, de repente, com um gesto na aparência perfeitamente involuntário, deu um empurrão na colherzinha e outra vez o remédio se entornou no chão. Tenho a certeza de que o fez propositadamente.

— Foi uma imprudência aborrecida — disse o velhote tranquilamente — e tenho a impressão de que a menina fez isto de propósito, o que é uma má acção. Mas... tudo se pode remediar. É trazer outra vez o remédio.

Nelly riu-se francamente na cara do médico, o qual abanava a cabeça devagar.

— Isso é uma maldade — disse, trazendo-lhe uma nova porção de remédio, — uma grande maldade.

— Não se zangue comigo — respondeu Nelly, esforçando-se por não se rir outra vez — que eu vou tomá-lo... Fica a gostar de mim?

— Se se portar como deve ser, ficarei a gostar muito.

— Muito?

— Muito.

— E agora não gosta de mim?

— gosto

— E dá-me um beijinho se eu lhe der outro?

— Sim, se o merecer.

Nelly não pode conter-se e tornou a rir.

— A nossa doentinha tem um temperamento alegre; mas agora... esses nervos e esses caprichos... — disse-me o médico em voz baixa, com uma expressão muito séria.

— Bem, vou tomar o remédio — exclamou Nelly, de repente, com a sua vozinha fraca — mas quando eu for crescida casa comigo?

Provavelmente a ideia desta nova brincadeira divertia-a muito. Os seus olhos chispavam fogo, mas os seus lábios reprimiam o riso, à espera da resposta do médico, já desorientado.

— Claro que sim! — respondeu este sorrindo involuntariamente perante esse novo gracejo. — Sim, se for uma boa rapariga, educada, obediente e...

— E tome os remédios, não é verdade? — concluiu Nelly.

— Oh! Isso mesmo, sim senhora, se tomar os remédios.

É uma boa menina — murmurou-me ao ouvido. — É muito, muito... bondosa e inteligente; no entanto... isso de casar-me com ela! Que lembrança tão estranha!

E tornou a insistir com o medicamento. Mas desta vez já nem sequer se serviu de artimanhas, deu simplesmente um empurrão à colher, às claras, e todo o remédio se entornou sobre a camisa e a cara do pobre velho. Nelly soltou uma gargalhada, mas já não do mesmo modo simples e jovial de antes. No seu rosto reflectia-se algo de cruel, de mau. Durante todo esse tempo parecia fugir do meu olhar, olhando unicamente para o médico, e com um sorrizinho, através do qual transparecia, no entanto, qualquer coisa de inquietação, esperava para ver o que iria fazer agora o ridículo velhote.

— Oh! Outra vez... Que pena! Mas... vamos dar-lhe outra colher — continuou o velho limpando o rosto e a camisa com o lenço.

Isso impressionou terrivelmente Nelly. Esperava que ficássemos zangados, que íamos começar a ralhar com ela, a fazer-lhe censuras, e talvez desejasse inconscientemente que assim fosse nesse instante, para ter um pretexto e se pôr em seguida a chorar, a gritar como uma histérica, a atirar, como antes, com as almofadas para o chão, ou até partir qualquer coisa na sua cólera, e satisfazer assim o seu caprichoso e doentio ressentimento. Caprichos desses costumam existir só nos doentes, não só em Nelly. Quantas vezes me tenho posto a passear pelo meu quarto de um lado para o outro com o desejo inconsciente de que alguém viesse ofender-me o mais brevemente possível ou me dissesse uma palavra que eu pudesse tomar como ofensa para desoprimir assim o coração! As mulheres também desabafam desta maneira e começam por derramar as lágrimas mais sinceras, mas as mais sensíveis acabam numa crise de histerismo. O que é muito simples e importante e costuma acontecer, sobretudo quando se tem um desgosto que os outros ignoram e se desejaria escondê-lo o mais possível de toda a gente.

Mas, de repente, Nelly apaziguou-se, desconcertada perante a angélica bondade do velho por ela ofendido, e pela paciência com que de novo ele lhe levou uma terceira colher de remédio, sem dirigir-lhe, uma única censura. O tal sorriso desapareceu dos seus lábios, corou e o seu olhar suavizou-se; olhou rapidamente para mim, mas voltou logo o rosto. O médico apresentou-lhe o remédio. Ela aceitou-o, tranquila e mansamente, pegou na mão do velho, vermelha e cabeluda, e depois fitou-o nos olhos.

— O senhor... está zangado porque eu sou má — ia para dizer; mas não acabou.

Escondeu-se na roupa, tapou a cabeça e desatou a soluçar ruidosamente, histericamente.

— Oh, minha filha... não chore! Isso não é nada... São os nervos. Beba um pouco de água.

— Mas Nelly não o escutava.

— Não se preocupe... não se aflija — continuou ele, também quase a chorar, pois era um homem muito sensível. — Prometo-lhe casar consigo, desde que continue a portar-se bem...

— E tome os remédios — ouviu-se debaixo da roupa, ao mesmo tempo um risinho nervoso, fino como o tilintar de campainha, entrecortado por soluços; um risinho que eu já conhecia.

— Boa e grata rapariguinha! — disse o médico com solenidade e quase com lágrimas nos olhos. — Pobre rapariga!

E a partir daí estabeleceu-se uma simpatia estranha entre ele e Nelly. Em compensação, Nelly mostrava-se cada vez mais arisca, nervosa e irritável. Eu não sabia a que atribuí-lo e admirava-me, sobretudo, porque aquela mudança se dera nela repentinamente. Nos primeiros dias da doença mostrava-se muito terna e carinhosa; parecia que não era capaz de desviar os olhos de mim; não se afastava do meu lado, costumava pegar na minha mão e uni-la à sua, febril, e obrigava-me a sentar junto dela, e se via que eu estava triste e pensativo esforçava-se por alegrar-me, dizia gracejos, brincava comigo e sorria-me, esquecendo-se das suas inquietações pessoais. Não queria que trabalhasse de noite nem ficasse a velá-la e afligia-se quando via que eu não lhe dava atenção. Às vezes, notava-lhe uma atitude preocupada; punha-se a perguntar e a querer saber porque estava eu triste, em que pensava; mas, coisa estranha, quando Natacha chegava, calava-se e punha-se a falar de outra coisa. Parecia fugir a falar de Natacha e isso admirava-me. Quando eu entrava em casa, ficava muito contente. Quando pegava no chapéu para sair, olhava-me com tristeza e de um modo estranho, como se me dirigisse uma censura, e seguia-me com a vista.

No quarto dia da doença passei toda a tarde e até uma parte da noite em casa de Natacha. Tínhamos muitas coisas para dizer. Quando saí de casa disse à minha doente que não me demorava, pois era realmente esse o meu pensamento. Quando me deixei ficar em casa de Natacha, quase involuntariamente, estava tranquilo a respeito de Nelly; não a deixara sozinha. Alexandra Semionovna, informada por Masloboiev, que me fizera uma pequena visita, de que Nelly estava doente e que eu tinha muito que fazer e estava só, muito só, apressara-se a substituir-me ali. Meu Deus, como tagarelava aquela bondosíssima Alexandra Semionovna!

— com que então ele não virá jantar connosco! Ah, meu Deus! E vive tão só, o pobrezinho, tão só! Pois bem, mostremos-lhe agora toda a nossa franqueza. Temos agora uma boa oportunidade.

Veio imediatamente para nossa casa, trazendo consigo e, finalmente, roupa branca: lençóis, toalhas, camisas de mulher, ligaduras, compressas... Uma farmácia completa depois do que desatou o embrulho. Trazia nele xaropes doce para doentes, um frango e uma galinha, para quando à nossa doentinha entrasse em convalescença; maçãs para cozer, laranjas, frutas secas de Kiev (se o médico consentisse) e, finalmente, roupa branca: lençóis, toalhas, camisas de mulher, ligaduras, compressas... Uma farmácia completa.

— Nós temos isto tudo — disse muito rapidamente e acentuando bem cada palavra, como se estivesse com pressa. — O senhor vive como um celibatário. Não tem quase nada destas coisas. Por isso dê-me licença que... além disso, foi o que Filipe Filipitch me mandou. Ora bem, vamos lá... Quanto mais depressa melhor! Que é preciso fazer? Como está a doente? Conhece as pessoas? Ai, como ela está mal deitada! É preciso colocar bem a almofada para que fique com a cabeça mais baixa. Mas oiça, não seria melhor uma almofada de couro? Que tola eu sou! Não me lembrei de trazer... Hei-de ir buscá-la. Não será preciso acender o lume? vou trazer-lhe a minha velha. Eu tenho uma velhinha conhecida, e aqui, em sua casa, o senhor não tem quem possa servi-lo. Bem. Que é preciso trazer? Diga-me! Remédios... Que receitou o médico? Naturalmente alguma tisana para o peito. Vou já acender o lume.

Mas eu tranquilizei-a e ela ficou muito admirada e até se afligiu quando me ouviu dizer que o caso não parecia de cuidado. O que no entanto não lhe tirou a coragem. Tornou-se imediatamente amiga de Nelly e ajudou-me muito durante todo o tempo da sua doença; visitava-nos quase diariamente e fazia uma cara como se alguma coisa se tivesse extraviado e fosse preciso encontrá-la imediatamente. Dizia sempre que vinha por ordem de Filipe Filipitch. Nelly simpatizava muito com ela. Tomaram amizade uma pela outra, como duas irmãs, e eu penso que Alexandra Semionovna era, em muitas coisas, tão criança como a própria NellyContava-lhe histórias, fazia-a rir, e Nelly ficava muitas vezes triste quando Alexandra Semionovna se ia embora. A sua primeira vinda para nossa casa causou grande admiração à minha doente; adivinhou imediatamente porque viera aquela hóspede espontânea e, segundo o seu costume, ficou amuada, triste e taciturna.

— Porque veio ela para nossa casa? — perguntou-me Nelly, como se estivesse descontente, assim que Alexandra Semionovna saiu.

— Para te fazer companhia e tratar de ti, Nelly.

— Mas porquê? Porquê? Eu não fiz nada por ela.

— As pessoas boas não estão á espera que nós façamos nada por elas, Nelly. Gostam de dar o seu auxílio a quem precise dele, sem necessitarem disso. E assim , Nelly. Neste mundo há muitas pessoas boas. Simplesmente tu não tiveste a felicidade de encontrá-las no teu caminho quando era preciso.

Nelly ficou calada. Eu afastei-me. Mas passado um quarto de hora já me chamava com a sua vozinha fraca; pediu-me chá e, de repente, cingiu-se contra mim, apoiou a cabeça no meu peito e ficou assim durante muito tempo sem me largar. No dia seguinte, quando Alexandra Semionovna chegou, recebeu-a com um sorriso alegre mas um pouco envergonhado.

 

Nesse dia eu passara todo o serão em casa de Natacha. Regressei já tarde. Nelly dormia. Alexandra Semionovna dormitava também, mas continuava sentada à cabeceira da doente e à minha espera. Começou a contar-me imediatamente, falando baixo, que Nelly, a princípio, estivera muito contente e se rira muito, mas que depois entristecera e, ao ver que eu não vinha, ficara silenciosa e pensativa. Depois começara a queixar-se de dores de cabeça, pusera-se a chorar e soluçava tanto «que eu já não sabia o que lhe havia de fazer», acrescentou Alexandra Semionovna.

— Falou-me de Natacha Nikolaievna, mas não sabia dizer-lhe nada acerca dela e então deixou de interrogar-me, as suas lágrimas abrandaram e acabou por adormecer. Bem adeus, Ivan Petrovitch. No entanto, parece-me que ela está melhor. Eu tenho de voltar para casa, conforme Filipe Filipitch me mandou. Confesso-lhe que, desta vez, apenas me enviou por duas horas e que fui eu que me demorei. Mas isso não tem importância, não se preocupe por minha causa; ele não se zanga... Simplesmente, se por acaso... Ai, meu Deus, meu caro Ivan Petrovitch, que se há-de fazer! Agora, acaba sempre por voltar bêbado para casa. Anda muito preocupado não sei com quê; mal me fala, está muito murcho, deve ter qualquer coisa de importante que o preocupa; mas todas as noites bêbado... A única coisa que eu penso é: «Se ele volta neste momento a casa, quem há-de ajudá-lo a deitar-se?» Mas bem, deixa-me ir, deixa-me ir. Adeus, adeus, Ivan Petrovitch! Já vi que tem muitos livros! E devem ser todos bons! Eu sou uma burra, nunca li nada... Bem, até amanhã...

No dia seguinte Nelly acordou amuada e arredia e não me queria falar. Não me dirigiu nem uma palavra, como se estivesse zangada comigo. Reparei que me examinava com alguns olhares, às escondidas, olhares em que havia um certo mau humor disfarçado, embora deixasse transparecer ternura, apesar de tudo, quando poisavam em mim. Nesse dia deu-se outra cena com o médico, quando este lhe deu o remédio. Eu não sabia o que havia de pensar.

Mas Nelly mudara completamente para comigo. A sua estranheza, os seus caprichos e até, às vezes, o seu quase ódio, tudo isso se prolongou até ao último dia em que deixou de viver comigo, até ao surgir da catástrofe que veio pôr fim ao nosso romance. Hei-de falar disto mais para diante.

No entanto, acontecia às vezes que ela, durante uma hora, se tornava de repente tão carinhosa para comigo como antes. A sua ternura parecia redobrar nesses momentos; o mais frequente era que, então, irrompesse num choro amargo. Mas essas horas voavam rapidamente e logo voltava a afundar-se na antiga tristeza e a olhar-me com hostilidade, quando não se tornava também hostil para o médico, ou, de repente, ao notar que eu não achava graça a uma nova travessura sua, punha-se a rir, para acabar depois quase sempre a chorar.

Também zagarateava com Alexandra Semionovna e dizia-lhe que não precisava nada dela. Quando eu ralhava com ela diante de Alexandra Semionovna, enfurecia-se, respondia-me com uma certa má vontade acumulada; mas de súbito calava-se, e depois, tímida, ficava dois dias sem trocar uma palavra comigo, sem querer comer nem beber, e só o velho médico conseguia convencê-la e dominá-la.

Já disse que se estabelecera uma simpatia estranha entre ela e o médico, desde o primeiro dia em que tomara o remédio. Nelly gostava muito dele e recebia-o sempre com um sorriso alegre, como se todas as tristezas desaparecessem com a sua chegada. Por seu lado, o velho começava a visitar-nos diariamente e até duas vezes por dia, até mesmo quando Nelly se levantou e se restabeleceu completamente, e parecia que ela o fascinara de tal maneira que não podia passar um dia sem ouvir os seus risos e as suas brincadeiras, às vezes muito fortes. Começou a trazer-lhe livros com estampas, todos de índole instrutiva. Um deles comprou-o até de propósito para ela. Depois começou a trazer-lhe guloseimas em caixinhas muito graciosas. Nessas ocasiões costumava entrar com um ar solene, como se fosse o dia do aniversário de alguém, e Nelly adivinhava imediatamente que lhe trazia um presente. Mas ele não lho mostrava e, limitando-se a sorrir maliciosamente, sentava-se junto dela e dizia-lhe que, se uma certa menina se tivesse portado bem na sua ausência e fosse merecedora de respeito, então com certeza que a tal menina seria digna de um prémio. Depois olhava para ela tão candidamente e tão bondosamente que Nelly se ria com o riso mais franco, mas ao mesmo tempo uma gratidão sincera, afectuosa, se reflectia naquele instante nos olhinhos radiosos. Por fim, o velho levantava-se solenemente da cadeira, puxava da caixinha com os doces e, quando lha entregava, dizia infalivelmente:

— Para a minha futura e amada esposa.

Nesse instante, provavelmente, era mais feliz que Nelly Depois disto iniciava-se uma conversa, e ele, com seriedade e persuasão, exortava-a a olhar pela sua saúde e dava-lhe sugestivos conselhos médicos.

— Antes de mais, cuidar da saúde — dizia em tom dogmático —, que é a primeira e principal coisa para uma pessoa se manter entre os vivos, e em segundo lugar para ser sempre sadio e alcançar assim a felicidade na vida. Minha filha, se tem algum desgosto, esqueça-o, ou, para melhor dizer, faça por não se lembrar dele. Mas se não tem desgosto algum, então... também não pense neles e esforce-se, em compensação, por pensar em coisas agradáveis... em qualquer coisa de alegre e gracioso.

E em que coisa alegre e engraçada hei-de eu pensar? — perguntava Nelly.

Imediatamente o médico desanimava.

— Ora... ora... em qualquer brincadeira própria da sua idade; sobretudo nos seus estudos, ou também... bom, em qualquer coisa do género.

— Eu não quero brincar, não gosto de brincar — dizia Nelly. — Preferia um vestido novo.

— Um vestido novo! Hum! Isso é que já não está muito bem. Cada um deve contentar-se com a sua sorte na vida. Embora afinal... sim... também possa gostar de vestidos novos.

— E o senhor dá-me muitos vestidos quando casarmos?

— Que ideia! — exclamou o médico e, sem querer, ficava amuado. Nelly ria-se com malícia, e uma vez, sem dar por isso, deitou-me um olhar no momento em que sorria. — Mas se se portar bem, eu compro-lhe os vestidos — continuou o médico.

— E também terei de tomar todos os dias o remédio quando for sua mulher?

-— Pode ser que então já não tenha de o tomar todos os dias.— e o médico começou a sorrir.

Nelly interrompeu o diálogo com uma gargalhada. O velhinho riu, acompanhando a sua alegria com prazer.

— Que marota! — murmurou, dirigindo-se a mim. — via-se que em tudo isto há qualquer coisa de voluntarioso e de exaltação.

Tinha razão. Não havia dúvida, eu não sabia como havia de proceder com ela. Parecia que não queria de maneira nenhuma falar comigo, como se eu fosse culpado perante ela. O que me deixava numa grande amargura. Acabava também por ficar amuado e uma vez passei um dia inteiro sem lhe dirigir uma palavra, simplesmente no outro dia senti-me envergonhado. As vezes punha-se a chorar e eu não sabia como havia de consolá-la. No entanto, uma vez quebrou o seu mutismo para comigo.

Dessa vez voltava eu para casa, ao cair da tarde, e reparei que Nelly escondia um livro debaixo da almofada. Era o meu romance, que tinha ido buscar acima da mesa e que estivera a ler na minha ausência. «Porque o escondia de mim, como se isso a envergonhasse?», pensei eu. Mas fingi que não tinha percebido nada. Passado um quarto de hora fui por um instante até à cozinha, e ela aproveitou a ocasião para saltar da cama e ir colocar outra vez o livro no seu lugar. Quando voltei encontrei-o já em cima da mesa. Passado um minuto ela chamou-me para o seu lado; na sua voz notava-se uma certa comoção. Havia já quatro dias que não me falava.

— Hoje... foi ver Natacha? — perguntou-me numa voz entrecortada.

— Sim, Nelly, tinha muita necessidade de vê-la. Ficou calada.

— Gosta muito dela? perguntou-me outra vez com uma voz fraca.

— Sim, Nelly, gosto muito dela.

Eu também gosto dela — acrescentou baixinho, e tornou a ficar calada.

— Queria ir para junto dela e ficar a viver com ela —. começou de novo Nelly, olhando-me nos olhos.

— Isso não pode ser, Nelly — respondi-lhe um pouco surpreendido. — Não te sentes bem aqui?

— Mas porque não pode ser? — exclamou, exaltando-se. — O senhor tinha-me dito que eu podia viver com o pai dela, mas eu não quero. Ela tem criada?

— Tem.

— Pois bem, ela que despeça a criada que eu fico ao seu serviço. Farei tudo quanto ela precisar sem receber nada em troca; hei-de gostar muito dela e farei o serviço da cozinha Diga-lhe isto ainda hoje.

— Mas que capricho é esse, Nelly? Que pensas tu dela? Julgas que ela seria capaz de ficar contigo por criada? Se ficasse contigo seria como tua igual, como a sua irmazinha mais nova.

— Eu não quero que seja como sua igual. Não quero.

— Mas porquê?

Nelly calava-se. Estava quase a chorar.

— Esse de quem ela gostava, deixou-a sozinha? — perguntou-me por fim.

Fiquei estupefacto.

— Mas como sabes tu isso, Nelly?

— Foi o senhor mesmo que me disse tudo, e anteontem de manhã, quando o marido de Alexandra Semionovna veio, eu perguntei-lho e ele contou-me tudo.

— Mas Masloboiev veio uma manhã?

— Veio — respondeu ela baixando os olhos.

— E porque não mo disseste?

— Porque...

Eu reflecti um momento. Sabe Deus o motivo por que aquele Masloboiev teria andado com aquele segredo. Porque teria vindo? Era preciso sabê-lo.

— Bem. A ti que te importa, Nelly, que ele a tenha deixado?

— E que, como o senhor também gosta muito dela... há-de casar com ela, já que o outro a deixou.

— Não, Nelly, ela não gosta de mim como eu gosto, e eu... Não, isso não pode ser, Nelly.

— Eu serviria os dois como criada, e viveriam os dois juntos e seriam felizes — propôs ela quase num murmúrio,

sem me olhar.

«Que lhe teria acontecido, que lhe teria acontecido!», pensava eu muito agitado.

Nelly ficou calada e durante toda a noite já não voltou a dizer mais nada. Quando eu me retirei pôs-se a chorar e assim ficou toda a tarde seguinte, conforme me disse Alexandra Semionovna, e adormeceu a chorar. Também nessa noite chorou em sonhos e disse palavras delirantes.

Mas a partir desse dia tornou-se ainda mais arredia e tristonha e deixou completamente de falar-me. É verdade que notei dois ou três olhares seus, dirigidos para mim, às furtadelas, e que nesses olhares transparecia tanta ternura... Mas isso desapareceu juntamente com o momento que provocara aquela súbita ternura. E, como se resistisse a este impulso, Nelly, quase de hora a hora, tornou-se mais carrancuda, inclusivamente com o médico, que se admirava desta transformação.

Entretanto, estava já quase completamente restabelecida, e o médico permitiu-lhe finalmente passear ao ar livre, mas apenas por um momento. Estava um tempo claro, temperado. Era na Semana Santa, que dessa vez deitara para muito tarde; eu saí de manhã cedo; necessitava absolutamente de falar com Natacha, mas pensava voltar cedo para casa, para ir buscar Nelly e dar um passeio com ela. Entretanto, ela ficara sozinha.

Mas não posso descrever aquilo que me esperava em casa. Vinha com pressa. Entro e vejo que a chave está do lado de fora da porta. Olho: em cima da mesa, um papelinho, e nele, garatujado a lápis, numa letra grande e desigual:

Saio de sua casa e não voltarei. Mas gosto muito de si. Sua Nelly.

É Dei um grito de espanto e corri para a rua.

 

Não tivera tempo sequer de chegar à rua; não tivera tempo ainda para pensar o que havia de fazer qvando uma carruagem parou à nossa porta e dela se apeou Alexandra Semionovna, conduzindo Nelly pela mão. Trazia-a muito bem segura, como se receasse que ela fugisse pela segunda vez. Corri imediatamente para elas.

— Nelly, que fizeste? — exclamei. — Para onde fugiste? E porquê?

— Acalme-se, não se desoriente; vamos lá para cima o mais depressa possível e já saberá tudo — murmurou Alexandra Semionovna. — Que coisas tenho para contar-lhe, Ivan Petrovitch! — acrescentou à pressa pelo caminho. — É espantoso... Vamos lá que já vai ficar a saber tudo.

Lia-se-lhe no rosto que trazia notícias de extrema gravidade.

— Retira-te, Nelly, retira-te, deita-te um pouco — disse assim que chegámos a casa. — Estás esgotada, essa corrida não foi brincadeira nenhuma. E sobretudo por cima de uma doença dessas. Deita-te um pouco, querida, deita-te. E o senhor venha comigo lá para dentro, pois aqui não a deixamos dormir — e fez-me sinal para passar com ela para a cozinha.

Mas Nelly não se deitou. Sentou-se no divã e tapou o rosto com as duas mãos.

Alexandra Semionovna e eu tomámos chá e ela contou-me rapidamente o acontecido. Depois vim ainda a saber mais pormenores sobre o assunto. E eis aqui o que acontecera.

Quando saiu de casa, duas horas antes do meu regresso, depois de me ter deixado o jantar feito, Nelly correu em primeiro lugar a casa do velho médico. Tivera o cuidado de conseguir antes o endereço. O médico contou-me que ficara gelado de susto quando viu Nelly em sua casa, e que todo o tempo que ali esteve nem queria acreditar naquilo que os seus olhos viam.

— Ainda agora me parece mentira — acrescentou, como até da sua história. — E nunca o acreditarei.

E, no entanto, Nelly estivera de facto em sua casa. Estava O o médico tranquilamente sentado na sua poltrona, no seu escritório, de bata e saboreando o café, quando ela entrou e lhe deitou os braços ao pescoço, antes que ele pudesse aperceber-se. Chorava, abraçava-o e enchia-o de beijos; beijava-o nas mãos e, com palavras persuasivas, embora incoerentes, pedia-lhe que a deixasse viver a seu lado. Dizia que não queria nem podia continuar a viver comigo e por isso me tinha deixado; que isso lhe custava muito; que daí por diante não tornaria a rir-se dele nem a falar dos seus vestidos novos e que se portaria bem e estudaria, aprenderia a coser e a passar-lhe as camisas (provavelmente preparara todo este pequeno discurso durante o caminho e talvez ainda com mais antecipação), e que, finalmente, lhe obedeceria em tudo, e tomaria os remédios que ele mandasse, ainda que tivesse de fazê-lo todos os dias. E que se tinha dito que queria ser sua esposa, fora por graça e que nunca pensara nisso. O velho alemão ficou tão desconcertado que esteve todo aquele tempo de boca aberta, com a mão que segurava o cigarro suspensa no ar e esquecido deste a tal ponto que ele se gastou sem dar por isso.

— Madmuasel! — exclamou por fim, recuperando um pouco o uso da palavra. — Madmuasel, se bem percebi, está a pedir-me que a receba em minha casa. Mas isso é impossível. Pode ver pelos seus próprios olhos que eu vivo com muita modéstia e não possuo nenhum rendimento certo... Em resumo: assim, de repente, sem ter pensado antes... É horrível! E, além disso, a menina, segundo vejo, fugiu de casa. Isso não está certo, e é impossível... E, finalmente, eu só lhe dei autorização para passear um bocadinho nos dias em que houver bom tempo, à vista do seu protector, e a menina deixa-o e vem para minha casa, quando devia ter cuidado consigo e... e... tomar os remédios. E, finalmente... finalmente, eu não compreendo absolutamente nada...

Nelly não o deixou continuar a falar. Pôs-se outra vez a chorar e de novo tornou a suplicar-lhe a mesma coisa; mas não conseguiu nada. O velho estava cada vez mais estonteado e cada vez compreendia menos. Por isso, Nelly deixou-o e exclamou «Ai meu Deus!», saindo do quarto a correr.

— Eu fiquei doente todo esse dia — acrescentou o médico ao terminar a sua narrativa — e à noite tive de tomar uma infusão...

Nelly dirigiu-se então a casa de Masloboiev. Possuía também a sua direcção, mas ainda teve alguma dificuldade em dar com ela. Masloboiev estava em casa. Alexandra Semionovna bateu as palmas quando ouviu o pedido de Nelly, de que a deixasse ficar com ela. Mas às suas perguntas: «Porque queria isso? Se não estava contente junto de mim?», Nelly não respondera e deixara-se cair, soluçando, numa cadeira.

— Soluçava de uma maneira, soluçava tanto — contava-me Alexandra Semionovna —, que eu pensei que ela ia morrer ali.

Nelly pedia-lhe que a aceitasse, ainda que fosse como criada ou cozinheira; que varreria o chão e aprenderia a lavar a roupa, (nisso de lavar a roupa branca depositava ela as maiores esperanças, pensando que era a melhor recomendação para que a aceitassem). A intenção de Alexandra Semionovna era ficar com ela até que o caso se aclarasse, quando mo participasse. Mas Filipe Filipitch opôs-se decididamente e mandou imediatamente que me fosse entregue a fugitiva. Durante o caminho Alexandra Semionovna abraçou-a e beijou-a e Nelly voltou outra vez a chorar. Alexandra Semionovna, ao vê-la assim, chorava também. E vieram assim as duas a chorar durante todo o caminho.

— Mas porque não queres tu, Nelly, viver com ele? Ofendeu-te em qualquer coisa? — perguntava-lhe Alexandra Semionovna enxugando as lágrimas.

— Não, ofendér-me não me ofendeu.

— Bem. Então porque é?

— Por nada, mas não quero viver com ele... Não posso... Eu sou muito má para ele... e ele é muito bom. Mas em sua casa não me hei-de portar mal; trabalharei — dizia, soluçando, como num ataque de histerismo.

— Mas porque és tão má para ele, Nelly?

— Porque sou.

— E não consegui mais que arrancar-lhe esse porque sou _- concluiu Alexandra Semionovna, enxugando as lágrimas. — Porquê tanto sofrimento? Que pensa o senhor, Ivan Petrovitch?

Fomos ver Nelly. Estava deitada, com a cabeça escondida debaixo das almofadas, e chorava. Eu pus-me diante dela, de joelhos; peguei-lhe nas mãos e comecei a beijar-lhas. Ela retirou as mãozitas e aumentou ainda mais os soluços. Eu já não sabia o que havia de dizer-lhe. Nesse momento entrou o velho Ikmeniev.

— Venho falar do caso contigo, Ivan. Como estás? — disse, olhando-nos a todos muito admirado, quando me viu de joelhos.

O velho estivera doente todo aquele tempo. Estava pálido e fraco, mas, como se quisesse mostrar fanfarrão com alguém, desprezou a sua doença, não escutou os conselhos de Ana Andreievna, não ficou na cama e continuou a sair para tratar dos seus assuntos.

— Dê-me licença, por um momento — disse Alexandra Semionovna, depois de olhar o velho. — Filipe Filipitch disse-me que não me demorasse. Temos que fazer. Mas voltarei esta tarde, por uma hora ou duas.

— Quem é? — perguntou o velho com voz baixa, como se estivesse a pensar noutra coisa.

Expliquei-lho.

— Hum! Mas vamos ao assunto, Ivan.

Eu sabia de que assunto se tratava e aguardava a sua visita. Vinha falar comigo e com Nelly, pedir-me que lhe consentisse levá-la para a sua companhia. Ana Andreievna consentira finalmente em levar uma órfã para sua casa. E isso foi devido às nossas entrevistas secretas. Eu tinha visitado Ana Andreievna e dissera-lhe que a presença de uma órfã, cuja mãe concitara também a maldição paterna, talvez fizesse que os sentimentos do nosso velho enveredassem por outro caminho. Expliquei-lhe tão claramente o meu plano que foi ela própria quem instou depois com o marido para que perfilhassem uma órfã. O velho tomou o assunto a peito; em primeiro lugar, queria agradar à esposa e, além disso tinha também as suas ideias particulares... Mas disto falarei depois mais pormenorizadamente.

Já disse que Nelly não simpatizara com o velho, desde a primeira visita. Depois reparei que nos seus olhos se reflectia também uma certa aversão quando eu pronunciava perante ela o nome de Ikmeniev. O velho entrou imediatamente no assunto, sem estar com preâmbulos. Dirigiu-se a Nelly, que continuava ainda de cama; destapou-lhe o rosto e, pegando-lhe na mão, perguntou-lhe se queria viver com ele, para o lugar da sua filha.

— Eu tinha uma filha à qual queria mais que a mim mesmo — concluiu o velho —, mas agora já não está comigo. Morreu. Queres ocupar o seu lugar na minha casa... e no meu coração?

— Não, não quero — respondeu Nelly sem levantar a cabeça.

— Mas porquê, minha filha? Tu não tens ninguém. Ivan não pode ter-te decentemente em sua casa; em compensação, na nossa, estarás como na de teus pais.

— Não quero, porque o senhor é mau. Sim, mau — acrescentou levantando a cabeça e endireitando-se na cama, diante do velho. — Eu sou má, muito má, mas o senhor ainda é pior do que eu...

Quando disse isto, Nelly empalideceu; os seus olhos chispavam fogo; também os seus lábios, trementes, empalideceram e se crisparam devido à comoção. O velho olhava-a atónito.

— Sim, é mais mau do que eu porque não quer perdoar à sua filha; quer esquecê-la completamente e pôr outra no seu lugar. Mas será possível esquecer uma filha? Poderá o senhor gostar de mim? Todas as vezes que me olhar há-de recordar que sou uma estranha na sua casa, que tinha uma filha que votou ao esquecimento, porque é um homem cruel. E eu não quero viver com gente má. Não quero, não quero!

Nelly soluçou e olhou-me timidamente.

— Amanhã é o dia da Aleluia; toda a gente se beija e se abraça, todos se reconciliam, todos perdoam mutuamente as suas culpas... E para que veja que o sei... Só o senhor... Seu desalmado!

E pôs-se a chorar. Parecia que tinha já essas palavras preparadas de antemão para o caso do velho ir convidá-la a ir para casa. O velho ficou perturbado e mudou de cor. Um grande sofrimento se reflectiu no seu rosto.

— Mas porquê, porque se preocupam todos comigo? Não quero, não quero! — exclamou Nelly, de repente, com uma certa exaltação. — Irei pedir esmola!

— Nelly, que tens tu? Nelly, minha querida! — exclamei eu involuntariamente; mas a minha exclamação não fez mais que atiçar o fogo.

— Sim, prefiro lançar-me à rua a pedir esmola que continuar aqui — exclamou soluçando. — Minha mãe pedia esmola e, quando morreu, disse-me: «És pobre e mais vale mendigar que... Pedir esmola não é uma vergonha.» Não a pedirei a uma só pessoa, pedi-la-ei a toda a gente e toda a gente não é só uma pessoa; a uma, faz vergonha pedi-la, mas a toda a gente não é vergonhoso; foi o que me disse uma mendiga. Repare: eu sou pequena, ninguém me quer. Por isso pedirei esmola a toda a gente. Não quero, não quero, eu sou má, pior que ninguém. Oh, como eu sou má!

E de súbito, Nelly, de um modo completamente inesperado, pegou numa chávena que estava em cima da mesa e, olhando para mim com uma solenidade provocante, atirou-a ao chão.

— Tínhamos duas chávenas — disse ela. — A outra, também já a parti. Agora onde é que toma o chá?

Estava furiosa e parecia sentir prazer naquela fúria, como se ela própria reconhecesse que aquilo era vergonhoso e mau e, ao mesmo tempo, inflamava-se para novos arrebatamentos.

— Está doente, Vânia; deve ser isso! — disse o velho — A não ser que... a não ser que eu já não compreenda as pessoas. Adeus!

Pegou na sua pele de abafo e apertou-a na mão. Parecia esgotado. Nelly tinha-o ofendido de uma maneira terrível. Eu sentia uma revolta enorme.

— Não tiveste piedade dele, Nelly! — Exclamei quando ficámos sozinhos. — Não tens vergonha, não tens vergonha! Não, tu não és boa, és horrivelmente má!

E, tal como estava, sem chapéu, deitei a correr atrás do velho. Desejava alcançá-lo antes que chegasse à porta e dizer-lhe duas palavras de consolação. Quando descia a escada a correr, parecia-me ver ainda à minha frente o rosto de Nelly, que empalidecera espantosamente perante as minhas censuras.

Depressa alcancei o velho.

— Ofenderam essa pobre rapariga e está magoada, acredita, Ivan. Eu comecei a falar-lhe das minhas coisas — disse, sorrindo amargamente — e toquei nas suas feridas. Dizem que o saciado não compreende o esfomeado, mas eu, Vânia, acrescentaria que até o esfomeado nem sempre entende o esfomeado.

Tentei falar-lhe de outras coisas, mas o velho moveu a mão.

— Nada de consolações. Faz antes o possível para que ela não fuja; olha de uma tal maneira... — acrescentou, com certa malícia.

E afastou-se de mim a grandes passadas, agitando a bengala e batendo com ela no passeio.

Mal podia imaginar que estava a fazer uma profecia certa.

Que não senti eu, quando ao regressar a casa, cheio de espanto, já aí não encontrei Nelly! Vim até ao patamar na escada, chamei-a no quarto vizinho e perguntei por ela; não queria nem podia acreditar que tivesse voltado a fugir. E como podia ela ter fugido? A casa apenas tinha uma porta. Quando saiu, precisava de ter passado diante de nós, enquanto eu estava a falar com o velho. Mas logo a seguir pensei, com grande tristeza, que podia ter-se escondido em algum sítio na escada, à espera que eu voltasse para casa, para fugir de maneira que eu não pudesse encontrá-la. Fosse como fosse, não devia estar muito longe.

Voltei a procurá-la, com grande inquietação, deixando a porta aberta, como se fosse por acaso.

Antes de mais, dirigi-me a casa de Masloboiev. Mas ele não estava em casa, nem tão pouco Alexandra Semionovna. Depois de lhes deixar um bilhete comunicando-lhe a nova infelicidade, e pedindo-lhes que se Nelly aparecesse por ali mo comunicassem imediatamente, fui à casa do médico. Também não estava e a criada disse-me que, depois da sua última visita, não voltara a fazer outra. Que fazer? Dirigi-me à Bubnova e soube por um empregado amigo que ela fora presa no dia anterior, não sei porque motivo, e que até então não tinha visto Nelly. Esgotado, desanimado, voltei de novo para casa de Masloboiev. A mesma resposta. Ninguém lá tinha ido e os donos da casa ainda não tinham regressado. O meu bilhete continuava em cima da mesa. Que me restava fazer?

Voltei a casa com um tédio mortal, já noite avançada. Precisava de ir ver Natacha nessa noite; ela própria me mandara chamar de manhã. Eu não tinha comido nada durante todo o dia. A lembrança de Nelly torturava-me.

— Que será? — pensava eu. — Será isto uma estranha consequência da doença? Estaria ela já louca ou apenas a aproximar-se da loucura? Mas, meu Deus! Onde estará ela agora, onde poderei encontrá-la?»

Mal eu proferia esta exclamação quando de súbito vi Nelly a alguns passos de mim, na ponte de V... Estava de pé, junto de um lampião, e não me viu. Quis correr para ela mas detive-me.

«Que fará ela ali?», pensei, perplexo.

E, já com a certeza de que dessa vez não a perderia de vista, decidi esperar e observá-la. Passaram dez minutos e ela continuava ali, olhando para os transeuntes. Finalmente passou um velhote bem vestido e Nelly aproximou-se. Ele sem parar, tirou qualquer coisa da algibeira e deu-lha. Ela fez-lhe uma reverência. Não posso exprimir o que senti naquele momento. O coração estremeceu-me, dolorosamente, como se qualquer coisa estimada, que eu amava, acariciava e amimava, se envilecesse e consumisse à minha vista naquele momento, e ao mesmo tempo brotaram lágrimas dos meus olhos.

Sim, lágrimas pela pobre Nelly, embora ao mesmo tempo sentisse um enorme aborrecimento; ela não pedia por necessidade; não vivia abandonada nem se encontrava exposta por ninguém à mercê da sorte; não fugira ao poder de opressores cruéis, mas da casa de amigos que a amavam e estimavam. Parecia antes que se se propusera assombrar ou assustar alguém com as suas proezas, como se quisesse dar-se ares de pessoa valente. Perante quem? Mas algo de misterioso se agitava na sua alma... Sim, o velho tinha razão, ela estava ofendida, a sua ferida não podia sarar e parecia que se comprazia em irritá-la com aquele receio, com aquela desconfiança por toda a gente. Dir-se-ia que gozava com o seu mal, com aquela dor egoísta, se me é permitida a expressão. Este irritar da ferida e ter prazer nela era compreensível para mim; é o prazer de muitos ofendidos e agravados, maltratados pela sorte e convencidos da sua injustiça. Mas de que injustiça podia Nelly queixar-se? Parecia que queria assombrar-nos e assustar-nos com as suas façanhas, com os seus caprichos, com as suas lembranças selvagens; como se quisesse mostrar-se fanfarrona perante nós... Mas não. Agora ela estava só, nenhum de nós a via pedir esmola. Dar-se-á o caso de que ela sozinha ache prazer nisto? Para que precisa de esmolas? Para que quer o dinheiro?

Depois de receber uma esmola retirou-se da ponte e aproximou-se da montra iluminada de uma loja. Aí, pôs-se a contar o que tinha recebido; eu estava apenas a dez passos. Tinha bastante dinheiro na mão; era evidente que estivera a pedir desde manhã. Apertando-o na mão atravessou a rua e dirigiu-se para uma loja. Eu encaminhei-me imediatamente para a porta da loja, que estava aberta de par em par, e olhei. Que iria ela fazer ali?

Vi que colocava dinheiro sobre o balcão e que lhe entregavam uma chávena, uma simples chávena para chá, semelhante àquela que pouco antes tinha quebrado, para nos dar a entender, a mim e a Ikemeniev, como era má. Aquela chávena poderia valer cinco copeques e até talvez menos. O comerciante embrulhou-a em papel, atou-a e entregou-a a Nelly, que se apressou a sair da loja com uma expressão de contentamento.

— Nelly! — gritei-lhe, quando ia a passar junto de mim. — Nelly!

Ela estremeceu, olhou para mim, deixou escapar a chávena da mão, que caiu e se partiu. Nelly estava pálida, mas, quando me olhou e se convenceu de que eu a tinha visto e sabia tudo, de repente, fez-se muito vermelha, e esse rubor revelava uma vergonha intolerável, dolorosa. Peguei-lhe na mão e levei-a a casa, que ainda estava longe. Nem uma só palavra trocámos durante o caminho. Já em casa, sentei-me. Nelly estava de pé, na minha frente, apreensiva e comovida, pálida como antes, de olhos fixos no chão. Não podia olhar-me na cara.

— Nelly, tu pediste esmola?

— Sim! — murmurou ela, e ficou ainda mais meditativa.

— Querias juntar dinheiro para comprar outra chávena como a que partiste?

— Sim...

— Mas eu censurei-te ou ralhei-te por causa disso? Não vês, Nelly, quanta maldade, quanta maldade deliciada consigo própria há na tua conduta? Achas isso bem? Não tens vergonha? Não...

— Vergonha? — murmurou ela com uma voz quase imperceptível, enquanto uma lagrimazinha rolava pela sua face.

— Vergonha — repeti eu por minha vez. — Nelly minha filha, se te ofendi em qualquer coisa perdoa-me e façamos as pazes.

Ela olhou para mim, as lágrimas brotaram dos seus olhos e lançou-se contra o meu peito.

Nesse instante Alexandra Semionovna apareceu a correr.

— O quê? Já está em casa? Outra vez? Ai! Nelly, Nelly, mas que te aconteceu? Bem. Ao menos ainda teve o bom senso de voltar a casa... Onde a encontrou, Ivan Petrovitch?

Fiz sinal a Alexandra Semionovna para que não continuasse a perguntar e ela compreendeu-me. Perdoei a Nelly, com ternura, mas ela continuava a chorar amargamente; pedi à bondosa Alexandra Semionovna que continuasse a fazer-lhe companhia até que eu voltasse e dirigi-me a toda a pressa para casa de Natacha. Estava atrasado e por isso tinha de correr.

Nessa noite, o nosso destino decidia-se; eu tinha muitas coisas que falar com Natacha, no entanto fiz recair a conversa sobre Nelly e contei-lhe tudo quanto se passara, com todos os pormenores. O meu relato interessou muito Natacha e até lhe fez impressão.

— Sabes uma coisa, Vânia? — disse pensativa. — Tenho a impressão de que ela está apaixonada por ti.

— O quê? Que dizes? — exclamei eu surpreendido.

— Nada! Que isso é um começo de amor, de paixão de mulher...

— Não continues, Natacha! Não vês que é uma criança? -— Que em breve vai fazer catorze anos. tudo isso é puro

desespero por ver que tu não compreendes o seu amor, sim, que talvez nem ela mesma o compreenda; desespero em que há muito de pueril, mas também de seriedade, que é sério, doloroso. Tu gostas tanto de mim que, verdadeiramente, só pensas em mim e só te preocupas comigo e falas de mim, sem lhe dedicar, a ela, a menor atenção. Ela repara e isso exaspera-a. É possível que quisesse falar contigo, que sinta a necessidade de abrir-te o coração, mas não sabe, tem vergonha.

não se compreende a si própria; espera uma oportunidade, e tu, em vez de provocares essa oportunidade, afastas-te dela, deixa-la para me vires ver a mim, e até quando esteve doente a deixaste dias inteiros sozinha. Por isso ela chora; sente a tua falta e o que mais lhe custa é ver que tu não o notas. Bem vês, agora mesmo, neste momento, acabas de deixá-la sozinha para vires ver-me. E por isso é capaz de ficar doente amanhã, e tu, também, como podes tu deixá-la? Volta para o seu lado quanto antes...

— Eu não a deixaria sozinha, mas...

— Bem, vai. Fui eu própria que te pedi que viesses. Mas agora vai.

— Sim, mas fica sabendo que não acredito nada disso.

— Porque isto não se parece com o resto. Lembra-te da sua história; medita sobre tudo e depois já te convencerás. Ela não foi criada contigo, como eu...

Apesar disto, regressei tarde. Alexandra Semionovna contou-me que Nelly, tal como na noite anterior, também tinha chorado muito, e também ’adormecera a chorar... mas que «agora vou-me embora, Ivan Petrovitch, conforme me mandou Filipe Filipitch, que já deve estar farto de esperar por mim».

Agradeci-lhe e sentei-me à cabeceira de Nelly. Custava-me tê-la deixado naquelas circunstâncias. Fiquei sentado durante muito tempo, junto dela, a pensar... Horas fatais foram essas...

Mas é preciso contar o que se passou nessas últimas semanas.

 

Depois daquela noite, que nunca mais poderei esquecer, aquela que me levou ao restaurante de B... em companhia do príncipe, durante alguns dias consecutivos senti um verdadeiro receio por Natacha. «Que ameaças lhe fará este maldito príncipe e, sobretudo, qual a vingança que trama contra ela?», a mim próprio perguntava a todos os momentos e perdia-me em diversas conjecturas. Cheguei finalmente à conclusão de que as suas ameaças não eram nenhum absurdo nem tinham nada de fantástico, e que enquanto ela vivesse com Aliocha, o príncipe, efectivamente, podia proporcionar-lhe muitos dissabores. «É exigente, vingativo e interesseiro», dizia eu para mim próprio. Dificilmente poderá esquecer uma ofensa e não aproveitar a primeira ocasião que se lhe apresente para vingar-se. Seja como for, ele indicou-me um ponto concreto em todo este assunto e exprimiu-se com toda a clareza: tinha absoluta necessidade da ruptura de Aliocha com Natacha, e contava comigo para a ir preparando para uma separação iminente, para que não viessem a dar-se nem cenas sublimes nem dramas à Schiller. Evidentemente que se esforçava por todos os meios para que Aliocha ficasse satisfeito com ele e continuasse a tê-lo por um pai amante, o que lhe era muito necessário para poder depois manejar o dinheiro de Kátia. Por isso eu me via na necessidade de preparar Natacha para uma ruptura iminente. Mas eu observara uma notável mudança em Natacha: da sua antiga franqueza comigo não havia agora nem uma amostra; e mais, parecia desconfiar de mim. As minhas consolações só serviam para mortificá-la; as minhas perguntas contrariavam-na cada vez mais e chegavam até a aborrecê-la. Sentava-me diante dela e observava-a. Ela andava no quarto de um lado para o outro, de braços cruzados, severa, pálida, distraída, esquecida de tudo, inclusivamente de que eu estava ali. Quando poisava a vista em mim, por acaso (e evitava também o meu olhar), ao seu rosto assomava uma contrariedade impaciente e apressava-se a voltar os olhos para outro lado. Eu compreendia que ela também elaborava algum plano respeitante à ruptura iminente, e que podia pensar nisso sem sentir dor nem amargura. Eu tinha a certeza de que ela já estava decidida à ruptura. Mas apesar disso afligia-me e assustava-me o seu desespero sombrio. Muitas vezes nem sequer me atrevia a falar-lhe e a consolá-la, e assim aguardava com espanto em que acabaria tudo aquilo.

Quanto à sua desconfiança e evasiva atitude para comigo, embora me inquietasse e custasse, sentia-me, no entanto, certo do coração da minha Natacha; via que ela sofria muito e que estava extremamente agitada. Toda a interferência alheia a aborrecia e irritava. Em casos destes, a interferência, sobretudo de amigos íntimos, que sabem dos nossos segredos, é a que se nos torna mais aborrecida. Mas eu sabia também que no último momento Natacha havia de voltar para mim, a procurar refúgio no meu coração.

É claro que não lhe disse uma palavra da minha aventura com o príncipe; tudo quanto eu dissesse apenas serviria para aumentar a sua agitação e desassossego. Disse-lhe unicamente, como se fosse por acaso, que tinha estado com o príncipe em casa da condessa e que tivera oportunidade de verificar que era muito mau. Mas ela não me perguntou porquê, o que muito me alegrou; em compensação estava ansiosa por ouvir tudo quanto lhe contei da minha entrevista com Kátia. Depois de me ter ouvido também não disse nada, mas corou, e durante quase todo esse dia mostrou-se muito agitada. Eu não escondi nada a Natacha e disse-lhe francamente que Kátia me deixara uma excelente impressão. Para quê estar com fingimentos? De qualquer maneira Natacha tinha adivinhado o que eu lhe ocultara, e ainda por cima ficara aborrecida comigo por causa dessa reserva. E foi por isso que eu, propositadamente, lhe contei tudo o mais pormenorizadamente possível, antecipando-me às suas perguntas, tanto mais que, na sua irritação, a ela mesma lhe teria sido difícil interrogar-me. Na verdade, será qualquer coisa de fácil inquirir com um ar indiferente das perfeições de uma rival?

Pensava que ela ignorasse ainda que Aliocha, por ordem irrevogável do príncipe, tinha de ir fazer companhia à condessa e a Kátia, no campo, a fim de suavizar-lhe o golpe, na medida do possível. Mas qual não foi o meu assombro quando Natacha me deteve logo às primeiras palavras, dizendo-me que não a consolasse, pois havia cinco dias que estava ao facto de tudo!

— Meu Deus! — exclamei eu. — Mas quem é que to disse?

— Aliocha.

— O quê? Foi ele que to disse?

— Sim, e eu estou decidida, Vânia — acrescentou com um gesto que me dava a entender com toda a clareza e quase com impaciência que não devia continuar com o diálogo.

Aliocha visitava Natacha com muita frequência, mas apenas por um minuto; houve apenas uma ocasião em que ficou várias horas com ela. Mas isso foi de uma vez em que eu não estava presente. Costumava aparecer muito triste; olhava-a tímida e ternamente, mas Natacha recebia-o com tanto afecto e carinho que ele esquecia imediatamente tudo e punha-se muito contente. Também a mim me visitava com muita frequência, quase todos os dias. Para dizer a verdade, ele também sofria bastante, mas não podia ver-se sozinho nem um momento com a sua tristeza e vinha ter comigo em busca de consolo.

Que poderia eu dizer-lhe? Ele reprovava a minha frieza, a minha indiferença, e até se aborrecia comigo; lamentava-se, chorava, ia visitar Kátia e ali se distraía.

No mesmo dia em que Natacha me confessou estar já informada acerca da viagem (foi na semana seguinte à minha conversa com o príncipe), veio ele procurar-me, desesperado, abraçou-me, lançou-se nos meus braços e rompeu a chorar como uma criança. Eu calava-me, na expectativa do que ele iria dizer.

— Sou vil e velhaco, Vânia — começou. — Salva-me de mim próprio. Eu não choro por ser vil e velhaco, mas porque Natacha vai ser infeliz por minha causa... Porque eu a abandono na desgraça... Vânia, meu amigo, diz-me, resolve por mim, qual das duas é que eu amo mais: Kátia ou Natacha?

— Isso não posso eu dizê-lo, Aliocha — respondi-lhe. — Tu deves saber melhor que eu...

— Não, Vânia, não é isso; ainda não sou assim tão tolo que te fizesse uma pergunta dessas; mas é que, no fundo, eu próprio não o sei. Interrogo-me e não acho resposta. Ao passo que tu olhas o caso como espectador e pode ser que saibas mais do que eu... Bem, e ainda que não o saibas, diz-me: a ti que te parece?

— A mim parece-me que tu gostas mais de Kátia.

— Achas? Não, não, de maneira nenhuma. Estás completamente enganado. Eu amo infinitamente Natacha. Nunca, por nada deste mundo, a poderei deixar; foi o que eu disse a Kátia e Kátia está completamente de acordo comigo. Porque estás tão calado? Mas tu sorris... Ah, Vânia, tu nunca me soubeste consolar nas ocasiões em que eu estou tão triste, como agora! Adeus!

Saiu do quarto a correr, deixando uma extraordinária impressão em Nelly, que estava assombrada e assistira ao nosso diálogo, em silêncio. Estava ainda de cama e a tomar remédios. Aliocha nunca falou com ela e durante as suas visitas mal reparava nela.

Passadas duas horas voltou a aparecer e eu fiquei admirado do seu rosto tão prazenteiro. Outra vez se atirou para os meus braços.

— É assunto arrumado! — exclamou. — Desvaneceram-se todas as dúvidas. Fui daqui directamente para casa de Natacha; eu estava excitado e não podia passar sem ela. Quando entrei lancei-me a seus pés, de joelhos, e beijei-lhos; tinha de fazer isso, era um desejo que eu tinha; se não o fizesse teria morrido de tristeza. Ela abraçou-me em silêncio e chorou. E eu então disse-lhe sem rodeios que gostava mais de Kátia do que dela...

— ela, que disse?

— Não me respondeu nada, limitou-se a acariciar-me e a consolar-me... A mim, que acabava de dizer-lhe aquilo! Como ela sabe consolar uma pessoa, Ivan Petrovitch! Oh, desafoguei com ela toda a minha amargura, contei-lhe tudo! Comecei por dizer-lhe que amo muito Kátia, mas que por muito que a ame, a ela ou a outra, sem Natacha não posso viver e morrer. Sim, Vânia, compreendo que nem um só dia poderei viver sem ela! Por isso decidimos casarmo-nos imediatamente e, como antes da viagem não é possível, porque agora, na Quaresma, estão encerradas as preces públicas deixá-lo-emos para o meu regresso, que será nos princípios de Junho. O meu pai dará o seu consentimento, disso não duvido. Pelo que respeita a Kátia, pode dizer-se o mesmo. Eu não posso viver sem Natacha. Casar-nos-emos e depois iremos para junto de Kátia!

Pobre Natacha! Como a consolava escutar aquele rapaz, sentado junto dela, ouvir as suas confidências e, para tranquilidade daquele egoísta, fingir que acreditava na história do seu próximo casamento! De facto, Aliocha ficou assim tranquilo por uns dias. Ia ver Natacha precisamente porque o seu fraco coração não tinha coragem para suportar sozinho a tristeza. No entanto, quando começou a aproximar-se a época da separação, voltou a cair no desassossego, a chorar, e de novo veio ter comigo para desabafar a sua amargura. Nos últimos tempos estava tão ligado a Natacha que não podia separar-se dela nem um dia, quanto mais um mês e meio. Mas não há dúvida de que até ao último momento esteve perfeitamente convencido de que apenas a deixava por mês e meio e que no seu regresso se casariam. Quanto a Natacha compreendia muito bem que o seu destino ia transformar-se radicalmente, que Aliocha já não voltaria para ela e que assim tinha de ser.

Chegou finalmente o dia da separação. Natacha estava doente, pálida, com os olhos inflamados e os lábios febris; ralava sozinha, de vez em quando, e de vez em quando também olhava para mim de um modo fixo, penetrante; não chorava, não respondia às minhas perguntas e tremia como uma folha de árvore, quando se ouviu a voz sonora de Aliocha, que entrava. Ela corou intensamente e apressou-se a ir ao seu encontro; abraçou-se convulsivamente a ele: beijava-o, ria... Aliocha olhava-a, às vezes com inquietação; perguntava-lhe se se sentia bem, consolava-a dizendo-lhe que ia por pouco tempo e que depois se casariam; Natacha fazia esforços visíveis para dominar-se e conter as lágrimas, não chegou a chorar na sua presença.

Uma vez chegou ele a dizer que era preciso deixar-lhe dinheiro para todo o tempo da sua ausência, para que não passasse necessidades, pois o pai devia dar-lhe muito para a viagem. Natacha ficou amuada. Quando ficámos sós, eu expliquei-lhe que tinha à sua disposição cento e cinquenta rublos. Ela não me perguntou pela origem dessa quantia. Isso passou-se dois dias antes da partida de Aliocha e na véspera do primeiro e último encontro de Natacha com Kátia. Kátia enviara um bilhete a Natacha, no qual lhe pedia que a deixasse visitá-la no dia seguinte; nele escrevia também umas linhas para mim; pedia-me que assistisse também ao seu encontro.

Eu resolvi estar ao meio-dia (hora marcada por Kátia), sem falta, em casa de Natacha, ponto de parte o que tinha para fazer; mas surgiram muitos obstáculos e daí resultou um atraso. Sem falar de Nelly, os Ikmenieves, nos últimos tempos, davam-me muitas preocupações.

Estas preocupações tinham começado uma semana antes. Ana Andreievna mandara-me chamar uma manhã, com o pedido de que deixasse tudo e fosse imediatamente a sua casa para tratar de um assunto importantíssimo que não consentia o menor adiamento. Quando cheguei encontrei-a sozinha; andava de um lado para o outro, assustada, num estado de comoção febril, aguardando a tremer o regresso de Nikolai Serguieitch. Como de costume, durante bastante tempo não consegui saber de que assunto se tratava e que receava ela, apesar de cada minuto ser precioso. Finalmente, depois de amargas censuras supérfluas em relação ao assunto: «Porque não gostava deles e os abandonava sozinhos na sua dor?», enquanto «Só Deus sabia o que teriam sofrido sem mim» e explicou-me que Nikolai Serguieitch se mostrava indescritivelmente agitado nos últimos três dias.

— Parecia outro, simplesmente — dizia ela —, à noite, cheio de febre, rezava em voz baixa, para que eu o não ouvisse, de joelhos diante da imagem, delirava em sonhos e de dia parecia meio louco; ontem, quando lhe trouxe a sopa nem conseguia segurar a colher; eu perguntava-lhe uma coisa e ele respondia-me com outra. Saía de casa a todos os momentos: «Tenho de ir tratar de um assunto — dizia — tenho de ir procurar o advogado.» Até que esta manhã se fechou no escritório. «Tenho — disse-me — de escrever uma coisa para o assunto do processo.» «Bem — pensei eu para comigo —, que documento irás tu escrever se não consegues segurar na colher?» Mas pus-me a espreitar pelo buraquinho da fechadura: está sentado, escreve e, de vez em quando, parece que chora. «Que documento vai sair das suas mãos — dizia para comigo — se se encontra neste estado? A não ser que, agora, o seu desgosto seja por causa da nossa Ikmenievka!» Estava eu a pensar nisto quando, de repente, ele se levanta da cadeira, atira com a pena sobre a mesa, faz-se vermelho, os seus olhos começam a chispar fogo, pega no gorro e diz-me: «Ana Andreievna, eu já volto.» Assim que ele saiu aproximei-me da mesa para ver o que tinha escrito; há aí muitos papeluchos relacionados com o processo e ele não me deixa arrumá-los. Quantas vezes eu lhe pedi: «Ao menos deixa-me tirar esses papéis uma vez, para limpar o pó da secretária.» «De maneira nenhuma — grita —, proíbo-te que toques aí»; aqui em Petersburgo tem-se tornado mais impertinente e grita mais do que nunca. Bem; pois eu aproximo-me da mesa e procuro: «Qual será o papel que ele esteve a escrever agora mesmo? Bem vi que ele não o levou consigo e, quando se levantou da mesa, meteu-o debaixo dos outros papéis.» Pois bem, amigo Ivan Petrovitch, aqui tens o que eu encontrei, olha.

E estendeu-me uma folha de papel de carta, escrita até metade, mas com tantos borrões que era impossível decifrá-la.

Pobre velho! Podia adivinhar-se, desde as primeiras linhas, o quê e a quem escrevia. Era uma carta para Natacha, para a sua idolatrada Natacha. Começava ardente e terno; dirigia-se-lhe, oferecendo-lhe o seu perdão e chamando-a para o seu lado. Era difícil compreender essa carta toda, garatujada nuns termos arrevesados e incoerentes e cheia de torrões. A única coisa que era evidente era que o sentimento ardente que o levara a pegar na pena e a escrever as primeiras e inspiradas linhas, imediatamente depois de escritas tinha degenerado noutro; o velho passara a dirigir censuras à filha, pintava-lhe o seu crime com cores negras e recordava-lhe com dureza a sua teimosia, deitava-lhe em rosto a sua falta de sentimentos por não ter pensado nem um momento naquilo que fizera a seus pais. Ameaçava-a com um castigo e com a maldição, por causa do seu orgulho, e terminava com a exigência de que voltasse imediatamente para sua casa, depois do que, e só quando tivesse cumprido uma nova vida exemplar, «no seio da família me resolverei a perdoar-te», escrevia. Era claro que o seu generoso sentimento inicial lhe devia ter parecido fraqueza, assim que escreveu as primeiras linhas, e que se sentiu envergonhado e, finalmente, sofrendo as torturas do orgulho ofendido, acabou a carta encolerizado e com ameaças. A velhinha, postada na minha frente, juntava as mãos e aguardava, temerosa, o que eu iria dizer depois de lida a carta.

Eu disse-lhe, sem rodeios, o que pensava. Isto é, que o velho já não podia viver sem Natacha e que, portanto, se podia falar já da sua imprescindível e próxima reconciliação, mas que, entretanto, tudo dependia das circunstâncias. Disse-lhe também em apoio desta minha suposição, que, em primeiro lugar, o desenlace desfavorável do processo o devia ter alterado e comovido muito, para não falar em que a vitória obtida pelo príncipe devia ter ofendido o seu amor-próprio, nem no desgosto que lhe devia ter trazido essa solução do caso. Perante essas dores espirituais não tinha outro remédio senão procurar quem o ajudasse a suportá-las, e mais do que nunca se lembrou daquela a quem continuava a amar mais que ninguém neste mundo. Por fim, podia ser que lhe tivesse acontecido também isto: que tivesse ouvido dizer (já que estava informado de tudo quanto dizia respeito a Natacha) que Aliocha estava prestes a deixá-la e pensasse no que iria ser dela, agora, e como iria ficar necessitada de amparo. Mas que, apesar de tudo, não podia dominar-se e considerava-se humilhado e ofendido pela filha. Pelos vistos tinha-lhe ocorrido a ideia de que, fosse como fosse, não devia ser ela a primeira a vir ao seu encontro, que talvez não se lembrasse deles nem sentisse necessidade de uma reconciliação. Eu disse-lhe que, em minha opinião, devia ser este o seu pensar, e por isso não acabara a carta, e que talvez de tudo isso resultassem ainda novos agravos que podiam tornar mais sensíveis os primeiros, e que a reconciliação ficava assim adiada sabia-se lá até quando.

A velhinha pôs-se a chorar. Por fim, quando eu lhe disse que me era forçoso ir a seguir a casa de Natacha, e que já estava atrasado, estremeceu e disse-me que se esquecera do principal. Quando tirara a carta debaixo de outros papéis, sem querer tinha virado um tinteiro. De facto, havia um canto todo salpicado de borrões e a velha tinha um medo terrível de que o marido deduzisse, ao ver essas manchas, que lhe tinham remexido os papéis na sua ausência e que ela encontrara a sua carta para Natacha. O seu receio era fundado; só o facto de que nós conhecêssemos o seu segredo poderia ser o bastante para que ele, por pudor e aborrecimento, prolongasse a sua hostilidade e, por orgulho, insistisse na sua exigência.

Mas depois de ter considerado o caso aconselhei a velha a não se preocupar. Depois de ter arrumado a carta, ele tinha-se levantado no meio de tal comoção que não poderia recordar-se bem de todos os pormenores, e agora, provavelmente, pensaria que devia ter sido ele, quem sujara a carta, se é que não o esquecera. Depois de tranquilizar assim Ana Andreievna voltámos a colocar cuidadosamente a carta no seu lugar e preparei-me para, antes de me retirar, falar-lhe seriamente de Nelly. Parecia-me que a pobre órfã abandonada, sobre cuja mãe pesara também a maldição paterna, podia, com a tristeza e trágica história da sua vida passada e da morte de sua mãe, comover o velho e predispô-lo para sentimentos generosos. Tudo estava preparado, tudo amadurecia no seu coração; a nostalgia da filha começava já a vencer o seu orgulho e o seu amor-próprio ofendido. Só precisava de um impulso, de uma última ocasião apropriada, e essa oportunidade favorável podia Nelly oferecê-la. A velhinha escutava-me com uma atenção extraordinária; o seu rosto iluminava-se de esperança e entusiasmo. Pôs-se imediatamente a fazer-me censuras: «Porque não lhe dissera eu tudo isso antes?» Impaciente, começou a perguntar-me por Nelly e terminou com a solene promessa de que ela mesma iria agora suplicar ao velho que perfilhasse uma órfã. Começava já a ganhar amizade sincera por Nelly; custava-lhe que estivesse doente, fazia-me perguntas acerca dela; empenhou-se em que eu lhe levasse um boião de doce, que ela mesma foi buscar à despensa; deu-me cinco rublos de prata, alegando que eu não tinha dinheiro para pagar ao médico, e quando viu que eu não os aceitava, apenas se tranquilizou e contentou quando soube que Nelly não só precisava de roupa para sair e também de roupa interior, e que, portanto, ainda podia ser-lhe útil, e imediatamente abriu a arca, na qual revolveu toda a roupa, apartando as peças que podia oferecer à orfazinha.

Encaminhei-me para casa de Natacha. Quando subia pela última escada que, como já disse, era de caracol, vi diante da sua porta um homem que se preparava para chamar, mas que se deteve quando ouviu os meus passos. Por fim, desistiu subitamente do seu intento e resolveu descer a escada. Encontrei-o no último e escorregadio patamar e qual não seria o meu assombro ao reconhecer Ikmeniev! Aquela escada até de dia era muito escura. Ele encostou-se à parede para me deixar passar e, lembro-me ainda do estranho brilho dos seus olhos, que me olhavam atentamente. Pareceu-me que ele corara extraordinariamente; pelo menos ficou visivelmente desorientado e desconcertado.

— Ah, Vânia, eras tu! — proferiu numa voz insegura. — Vim aqui ver um indivíduo... um escrivão... Por causa do meu assunto... Mudou-se há pouco... para estes lados... mas parece que não mora aqui. Adeus.

E rapidamente começou a correr pela escada abaixo.

Resolvi, por então, não dizer nada acerca deste encontro a Natacha, pensando dar-lhe parte dele somente quando ficasse só, depois da partida de Aliocha. Agora estava tão agitada que, embora compreendesse e apreciasse plenamente todo o poder daquele facto, não teria podido entendê-lo e senti-lo como mais tarde, no instante em que sobre ela caíram o desgosto e o desespero finais. Não chegara ainda o momento.

Durante esse dia podia ter ido ver os Ikmenieves, e de facto lembrei-me disso, mas não fui. Parecia-me que o velho havia de estranhar isso e poderia até pensar que eu ia vê-lo intencionalmente, depois do nosso encontro. Só fui visitá-lo passados três dias; o velhinho estava triste mas acolheu-me com bastante à-vontade e falou-me dos seus assuntos.

— E então, a casa de quem ias tu, quando nos encontrámos? Quando foi? Há três dias, parece-me — perguntou-me de repente, com bastante despreocupação, evitando no entanto o meu olhar.

— É que tenho ali um amigo — respondi-lhe, desviando também os olhos.

— Ah! Eu ia à procura do meu escrivão, Astafiev; indicaram-me essa casa... Mas deviam estar enganados. Bem, já te falei no meu caso; no Senado resolveram... etc., etc.

Corou também quando começou a falar no assunto.

Nesse mesmo dia contei tudo a Ana Andreievna, para ver se dava uma grande alegria à velhota, pedindo-lhe, entre outras coisas, que não o olhasse agora no rosto de um modo especial, nem suspirasse, nem fizesse alusões, nem lhe desse a entender de maneira nenhuma que estava ao corrente dessa nova saída sua.

A velhinha ficou admirada e alvoraçada a tal ponto que, a princípio, nem queria acreditar-me. E disse-me, por seu lado, que falara já com Nikolai Serguieitch acerca da órfã, mas que ele ficara calado, apesar de ter sido ele quem anteriormente lhe pedira que adoptasse uma menina. Decidimos que no dia seguinte seria eu quem o interrogaria sobre o assunto, directamente e sem reservas. Mas no dia seguinte estávamos os dois com um medo e uma inquietação espantosos.

De facto, Ikememev tinha-se encontrado nessa manhã com um escrivão que dirigia o seu processo. O escrivão explicou-lhe que tinha visto o príncipe e que este, embora considerasse já como sua a Ikmenievka, entretanto, em vista de certas consequências de família, decidira indemnizar o velho e abonar-lhe dez mil rublos. E daí correra logo o velho a procurar-me, extraordinariamente agitado; os olhos chispavam-lhe de fúria. Obrigou-me a sair de casa para a escada, debaixo de um pretexto qualquer, e exigiu-me terminantemente que fosse procurar o príncipe naquele mesmo instante e o desafiasse em seu nome. Eu estava tão desorientado que demorei muito até a compreendê-lo. A primeira coisa que me competia fazer era procurar dissuadi-lo. Mas o velho estava tão furioso que o caso era difícil. Entrei em casa, com o pretexto de ir buscar um copinho de vodka, porém, quando voltei, já não encontrei Ikmeniev na escada.

No dia seguinte fui a sua casa, mas ele já não estava; e esteve três dias sem aparecer.

Ao terceiro dia soubemos tudo. Da minha casa fora directamente à do príncipe e, como não o encontrara, deixou-lhe uma carta; dizia-lhe nessa carta que tinha sido informado das palavras que lhe dirigia o escrivão e que as considerava como uma ofensa mortal, e a ele um homem vil, e que por isso o concitava para um duelo, esperando que o príncipe não se atreveria a repelir o desafio, pois nesse caso desonrá-lo-ia publicamente.

Ana Andreievna contou-me que ele regressara a casa num estado de agitação e estonteamento tais que tivera de se deitar. Que se mostrara muito carinhoso para com ela, mas que mal respondera às suas perguntas e que parecia esperar qualquer coisa com uma impaciência febril. No dia seguinte recebeu uma carta da província; quando a leu, deu um grito e levou as mãos à cabeça. Ana Andreievna estava morta de susto. Mas ele pegara imediatamente no chapéu e na begala

e saíra.

A carta era do príncipe. Seca, breve e cortesmente, dizia a Ikmeniev que das palavras que o escrivão dissera não tinha que dar satisfações absolutamente a ninguém. Que embora sentisse muito que Ikmeniev tivesse perdido o processo, apesar de todo o seu pesar nunca poderia achar justo que aquele que perdia um processo se sentisse no direito de desafiar a parte contrária para um duelo, só por vingança. Quanto à desonra pública com que o ameaçava, o príncipe pedia a Ikmeniev que não se preocupasse com isso, já que não havia nem poderia haver semelhante desonra pública; que enviara a sua carta para onde devia, e que a Polícia, prevenida, havia com certeza de adoptar medidas oportunas, velando pela ordem e pela tranquilidade.

Ikmeniev, com a carta na mão, foi imediatamente ver o príncipe. Também dessa vez, não o encontrou em casa; mas o velho ficou a saber pelo criado que ele estava nesse momento em casa do velho conde N... Sem se deter a pensar, correu a casa do conde. O guarda suíço do conde deteve-o quando ele ia a subir a escada. Furioso até ao paroxismo, deu-lhe uma bengalada. Seguraram-no imediatamente, trouxeram-no para o patamar e entregaram-no aos guardas, os quais o levaram preso. Participaram ao conde o que tinha acontecido. Quando o príncipe, que se encontrava de facto ali, explicou ao libertino velhote que aquele Ikmeniev era o pai de Natacha Nikolaievna (e o príncipe por mais de uma vez servira o velho nestes assuntos) o magnate limitou-se a sorrir e mudou o seu aborrecimento em brandura; os dois, de acordo, fizeram todos os esforços para conseguirem a liberdade de Ikmeniev, ao qual a Polícia só pôs em liberdade passados três dias, prevenindo-o (com certeza por ordem deles) de que o próprio príncipe e o conde tinham intercedido por ele.

O velho regressou a casa como louco, meteu-se na cama e permaneceu um dia inteiro sem se mexer, até que por fim se levantou e, com grande pavor da parte de Ana Andreievna, declarou-lhe solenemente que amaldiçoava para sempre a filha e a privava da benção paterna.

Ana Andreievna esta aterrorizada; mas era preciso ajudá-la a ela, que parecia agora meia tonta, e ajudar o velho; durante todo esse dia e toda essa noite estive a tratar dele, pondo-lhe na cabeça parches de vinagre e envolvendo-Iha em gelo. Tinha febre e delirava. Separei-me deles às três da madrugada. Mas na manhã seguinte Ikmeniev levantou-se e nesse mesmo dia veio ver-me com o fim de levar Nelly definitivamente. Mas já contei a sua cena com Nelly; essa cena acabou por abatê-lo. Quando Voltou para casa, deitou-se. Tudo isso se passou na Quarta-Feira Santa — dia marcado para a entrevista de Kátia com Natacha —, a véspera da partida de Aliocha e de Kátia, de Petersburgo. A essa entrevista assisti eu; realizou-se de manhã cedo, antes que o velho tivesse vindo ver-me e antes também da primeira fuga de Nelly.

 

Aliocha apresentou-se antes da hora marcada para a entrevista, com o fim de prevenir Natacha. Eu cheguei também no momento em que a carruagem de Kátia parava à nossa porta. Kátia vinha acompanhada da velha dama de companhia que, depois de muitos melindres e hesitações, consentira por fim em acompanhá-la e até em deixá-la subir ao andar de Natacha, mas com Aliocha, enquanto ela ficava à espera em baixo, na carruagem. Kátia chamou-me e, sem apear-se da carruagem, pediu-me que chamasse Aliocha da sua parte. Fui encontrar Natacha a chorar, e Aliocha chorava também. Quando soube que Kátia estava ali, levantou-se da cadeira, enxugou as lágrimas e foi colocar-se em frente da porta, muito comovida. O seu vestido, nessa manhã, era todo branco. Tinha os cabelos, de um louro escuro, repuxados para trás, lisos e seguros num grosso topete. Eu gostava muito desse penteado. Quando viu que eu ficava junto dela, Natacha pediu-me que fosse também receber os seus hóspedes.

— Só agora pude vir ver Natacha — disse-me Kátia enquanto subia a escada. — Espiam-me de uma maneira horrível. Tive de insistir com madame Albert durante duas semanas inteiras, até ela finalmente consentir. Mas o senhor, o senhor Ivan Petrovitch, nem uma vez sequer esteve na minha casa! Escrever-lhe, também eu não podia, nem queria, porque com uma carta não se esclarece nada. E tinha tanta necessidade de vê-lo i Meu Deus, como eu tenho o coração!

— A escada é muito íngreme — respondi eu.

— Sim, sim, a escada... Mas acha que Natacha não ficará zangada comigo?

— Não. Porquê?

— Por nada... evidentemente... porquê? Já vamos ver isso, não vale a pena eu estar a perguntar-lhe...

Levava-a pelo braço. Ela também estava pálida e, segundo parecia, muito assustada. Parou no último patamar para respirar, depois olhou para mim e continuou a subir já mais decidida.

Tornou a parar à porta do andar de Natacha e murmurou-me ao ouvido: «Entrarei e dir-lhe-ei simplesmente que é tal a confiança que tenho nela que vim sem receio... E, aliás, porque estou eu a dizer isto? Estou convencida de que Natacha é uma criatura nobilíssima. Não é verdade?»

Entrou timidamente, como se se sentisse culpada, e olhou atentamente para Natacha, que depois lhe sorriu. Então, Kátia correu rapidamente para ela, pegou-lhe nas mãos e roçou os lábios pelos dela. Depois do que se dirigiu a Aliocha e pediu-lhe, com uma expressão séria e até severa, que nos deixasse sós.

— Não fiques zangado, Aliocha — acrescentou —, porque tenho muitas coisas para dizer a Natacha, coisas muito importantes e muito sérias, que tu não deves ouvir. Por isso sê compreensivo e sai. Mas o senhor fique, Ivan Petrovitch. Tem de ouvir tudo quanto dissermos.

— Sentemo-nos — disse para Natacha assim que Aliocha saiu. — Eu sento-me aqui, na sua frente. Primeiro que tudo, quero vê-la.

Sentou-se quase em frente de Natacha e, durante alguns rninutos, esteve a contemplá-la de alto a baixo. Natacha correspondia-lhe com um sorriso involuntário.

— Eu já tinha visto um retrato seu — disse Kátia. — Foi Aliocha que mo mostrou.

— E então? Acha-me parecida com esse retrato?

— É muito melhor — respondeu Kátia com seriedade e decisão. — Sim, eu pensava que havia de ser muito melhor.

— Deveras? Eu também a acho tão bonita!

— Que diz? Eu, bonita? Oh, minha querida! — acrescentou apertando com a sua mão trémula a de Natacha, e outra vez ficaram silenciosas, contemplando-se uma à outra. — Olhe, meu anjo — exclamou Kátia, quebrando o silêncio —, temos meia hora para estar juntas. Madame Albert só com muito custo consentiu em vir e temos muitas coisas de que falar... Eu quero... eu tenho a obrigação... bom, vou perguntar-lho, simplesmente: gosta muito de Aliocha?

— Sim, muito.

— Sendo assim, gostando assim tanto de Aliocha, também deve desejar a sua felicidade — acrescentou timidamente e em voz baixa.

— Sim, quero que ele seja feliz.

— Muito bem. Mas repare naquilo que eu vou perguntar-lhe: será verdade que eu represento a felicidade para ele? Tenho eu o direito de falar assim, uma vez que vou roubar-lho? Se assim o entender e nós resolvermos agora, que ele será mais feliz comigo, nesse caso... nesse caso...

— Isso já está decidido, querida Kátia; por si própria pode ver que já está decidido — respondeu Natacha em voz branda e baixou a cabeça. Era evidente que lhe era doloroso prolongar aquela conversa.

Pelos vistos, Kátia dispunha-se a uma demorada dilucidação do tema: qual das duas representava melhor felicidade para Aliocha e a qual pertencia ceder? Mas depois da resposta de Natacha compreendeu imediatamente que havia já algum tempo que tudo estava decidido e que não havia mais nada a dizer. Mordendo os seus lindos lábios, contemplou Natacha com perplexidade e tristeza e, ao mesmo tempo, sem lhe largar a mão.

— Mas gosta muito dele? — perguntou-lhe Natacha de repente.

— Sim. E olhe, eu também queria perguntar-lhe uma coisa e vim com essa ideia: qual o motivo porque gosta dele?

— Não sei — respondeu Natacha, e uma leve impaciência transpareceu na sua resposta.

— É inteligente, não acha?

— Não; gosto dele simplesmente, tal como é...

— Também a mim — consentiu Natacha.

— Que havemos de fazer-lhe, agora? Não consigo compreender como é que ele pode deixá-la por mim — exclamou Kátia. — Como eu a admiro e não a compreendo!

Natacha não respondeu e fixou os olhos no chão, Kátia ficou calada por um momento e, de repente, levantou-se do seu lugar e abraçou-a, sem dizer uma palavra. Choravam as duas abraçadas uma à outra. Kátia sentou-se no braço do cadeirão de Natacha, sem largar-lhe o braço, e pôs-se a beijar-lhe as mãos.

— Se soubesse como gosto de si! — exclamou, a chorar. — Seremos irmãs, não deixaremos nunca de nos escrevermos e hei-de gostar de si eternamente... Hei-de gostar de si, muito...

— Ele falou-lhe do nosso casamento em Junho? — perguntou Natacha.

— Falou. Disse-me que a senhora estava de acordo. Disse tudo isso, assim, só para consolá-lo, não é verdade?

— Claro.

— Foi isso o que eu calculei. Eu hei-de gostar muito dele, Natacha, e informá-la-ei de tudo. Segundo parece, não tarda que ele seja meu marido. Foi por isso que vim. Querida Natacha, pelos vistos, agora vai voltar para sua casa...

Natacha não lhe respondeu, mas beijou-a em silêncio.

— Que seja feliz! — disse.

— E... e a menina... e a menina também! — exclamou Kátia.

Neste momento a porta abriu-se e Aliocha entrou. Não pudera, não tivera coragem para esperar meia hora e, quando viu que as duas se abraçavam a chorar, muito comovido, deitou-se aos pés de Natacha e de Kátia.

— Mas porque choras? — disse-lhe Natacha. — Porque te vais separar de mim? Mas será por pouco tempo! Em Junho já estarás de volta...

— E então casam-se — apressou-se Kátia a dizer, através das suas lágrimas, também para consolar Aliocha.

— Mas eu não posso, eu não posso estar separado de ti nem um só dia. Sem ti, morro. Tu não sabes como eu te quero agora. Precisamente agora!

— Bem. Então vê o que vais fazer — disse Natacha de repente, com animação. — Olha que a condessa ainda fica algum tempo em Moscovo!

— Sim, quase uma semana —- corroborou Kátia.

— Uma semana! Excelente. Amanhã, tu, acompanha-las a Moscovo, para o que só precisas de um dia, e depois voltas logo. Quando elas tiverem de partir, despedimo-nos por um mês e tu voltas para acompanhá-las.

— Isso, isso... E assim passarão os dois quatro longos dias juntos — exclamou Kátia, encantada, trocando um olhar significativo com Natacha.

Não posso descrever o entusiasmo de Aliocha perante esse novo projecto. Num instante se consolou do seu desgosto, o seu rosto respirava alegria, abraçou Natacha, beijou as mãos de Kátia, deu-me um abraço a mim... Natacha olhava-o com um sorriso triste mas Kátia não podia mais. Trocou comigo um olhar ardente e cintilante; abraçou Natacha e levantou-se para se retirar. Como de propósito, nesse instante a dama de companhia enviou um recado com o pedido a Kátia de que desse a entrevista por terminada o mais depressa possível, pois já tinha passado o tempo marcado.

Natacha levantou-se. Ficaram de pé as duas, uma em frente da outra, de mãos entrelaçadas e esforçando-se por não darem a entender com os olhos uma à outra tudo quanto se agitava na sua alma.

— Já não nos veremos mais — disse Kátia.

— Nunca mais, Kátia — respondeu Natacha. E abraçaram-se.

— Não me amaldiçoe — murmurou Kátia rapidamente — que eu sempre... pode ter a certeza de que ele será feliz... Vamos, Aliocha, leva-me! — disse apressadamente pegando-lhe no braço.

— Vânia! — disse-me Natacha comovida e dolorida, assim que eles saíram. — Vai tu também com eles e... não voltes; Aliocha ficará comigo até à tarde, até às oito. Eu ficarei sozinha... Vem às dez... Adeus!

Quando, depois de ter deixado Nelly com Alexandra Semionovna (na ocasião em que ela quebrara a tal chávena), fui ver Natacha, às dez horas, esta já estava sozinha e esperava-me com impaciência. Mavra touxe-nos o samovar; Natacha serviu-me o chá, sentou-se no divã e convidou-me a aproximar-me dela.

— Pronto, já se acabou tudo! — disse olhando-me fixamente (nunca esquecerei esse olhar). — Acabou-se o nosso amor. Meio ano ,de vida! E para sempre — acrescentou, pegando-me na mão.- A sua escaldava. Procurei convencê-la a agasalhar-se e a deitar-se.

— Agora, Vânia, agora, meu bom amigo, deixa-me falar e recordar um pouco. Estou como morta. Amanhã às dez, é a última vez que o vejo... a última!

—- Natacha, tu tens febre, tu vais começar com arrepios; tem pena de ti própria...

— Que importa! Há meia hora que estava à tua espera, Vânia, e que pergunta fiz eu a mim própria, depois que ele partiu? Esta: «Eu amava-o ou não o amava, e que espécie de amor era o nosso?» Quê? Achas ridículo, Vânia, que só quisesse saber isso agora?

— Não te inquietes, Natacha.

— Já vês, Vânia. Olha, eu concluí que não O tinha amado como a um igual, como geralmente as mulheres casadas gostam dos maridos. Eu gostava dele como... quase uma mãe. Parece-me até que não existe no mundo absolutamente nenhum amor em que dois se amem de igual para igual. Que pensas tu?

Olhei-a com inquietação e receei que começasse já a delirar. Parecia que qualquer coisa a atraía, que sentia uma necessidade especial de falar; algumas das suas palavras eram um tanto incoerentes e às vezes até as pronunciava mal. Eu estava inquieto.

— Ele era meu — continuou. — Quase desde a primeira vez que me viu despertou em mim uma ânsia infinita de que fosse meu, meu, o mais depressa possível, e que não olhasse para ninguém nem conhecesse mais niguém senão a mim, a mim unicamente... Kátia, esta manhã disse bem: eu amava-o de uma certa maneira, como se constantemente, sem eu saber porquê, me inspirasse dó... Quando ficava sozinha, sentia sempre uma ânsia infinita, até ao suplício, de que ele fosse imensa e eternamente feliz. Não podia olhá-lo no rosto tranquilamente (já conheces a expressão do seu rosto, Vânia); é uma expressão que ninguém tem e, quando sorria, eu sentia frio e tremores. É verdade!

— Natacha, por favor...

— Repara: dizem — interrompeu-me —, e és tu quem o dizes, que ele não tem carácter e... e quanto a inteligência não está longe de uma criança. Bem. Pois era isso o que eu mais amava nele... acreditas? No fim de contas não sei se era isto precisamente a única coisa que eu amava nele; eu amava-o simplesmente, a ele todo, e se ele fosse diferente, com carácter ou inteligente, pode ser que não o tivesse amado dessa maneira. Olha, Vânia, confesso-te uma coisa: Lembro-me de que tivemos uma zanga, há uns três meses, quando ele andou com essa tal Mina... Eu informei-me, segui-o, e, quererás acreditar? Isso custou-me muito, terrivelmente, e ao mesmo tempo foi-me quase agradável... não sei porquê... só o pensamento de que ele se distraía... ou não, não é isso, era antes o pensamento de que também ele, como qualquer outro homem adulto, juntamente com outros adultos, andava com mulheres, que também andava com Mina Eu... Que prazer me proporcionou então essa zanga! Depois perdoei-lhe, ao meu querido!

Olhou-me na cara e sorriu de uma maneira estranha. A seguir ficou um pouco pensativa, como se recordasse ainda tudo aquilo. E durante muito tempo esteve sentada assim, de sorriso nos lábios, absorta no passado.

— Eu tinha uma vontade atroz de perdoar-lhe, Vânia — continuou. — Sabes uma coisa? Quando ele me deixava só eu costumava passear pelo quarto afligindo-me, chorando, e às vezes pensava: «Quanto mais culpável for para comigo, tanto melhor...» Sim e olha, eu imaginava sempre que ele era uma criança; sentava-me, ele punha a cabeça nos meus joelhos, e eu, devagarinho, docemente, acariciava-lhe os cabelos... Era sempre assim que eu o imaginava, quando não estava comigo... Ouve, Vânia — acrescentou de repente —, como Kátia é atraente!

Parecia-me que se comprazia em irritar as suas feridas, que sentia uma certa necessidade de fazê-lo, uma necessidade de desespero, de sofrimento. E quantas vezes não sucede isso aos corações que perderam muito!

— Penso que Kátia poderá fazê-lo feliz — continuou a dizer. — Tem carácter e fala com tal convicção, trata-o com tanta seriedade, tão gravemente... não fala senão de coisas importantes, tal como uma pessoa adulta. E apesar de que ela também é... uma verdadeira criança, simpática, simpática! Oh! Que sejam muito felizes! Deus queira, Deus queira, Deus queira!

E, de repente, brotaram lágrimas e soluços do seu coração. Durante meia hora não conseguiu dominar-se nem tranquilizar-se, por pouco que fosse.

Natacha, meu anjo! Nessa mesma noite, apesar do seu sofrimento, também tomou parte nas minhas preocupações, quando, ao ver que ela acalmara um pouco, ou melhor que o cansaço a esgotara, eu, para a distrair me pus a falar-lhe de Nelly... Separámo-nos tarde, nessa noite. Esperei que ela

adormecesse e, quando saí, pedi a Mavra que durante a noite não se afastasse de junto da sua senhora doente.

— Oh, já, já! — exclamei quando voltei a casa. — Acabem já com este suplício. Seja como for, seja como for, contanto que seja já!

De manhã, aí pelas nove, já-eu estava em sua casa. Ao mesmo tempo que eu chegou Aliocha, que ia despedir-se. Não vou descrever, não quero recordar essa cena. Natacha parecia ter prometido a si própria dominar-se, mostrar-se mais alegre, mais serena; mas não pôde. Abraçou-se a Aliocha, convulsiva, fortemente. Pouco falou com ele, mas olhou-o longamente, com uns olhos dolorosos, de louca. Escutava avidamente todas as suas palavras, mas, segundo parecia, não compreendia nada do que ele dizia. Lembro-me de que ele lhe pediu que lhe perdoasse, que lhe perdoasse a ele e àquele amor, e tudo o que durante aquele tempo a fizera sofrer, a sua leviandade, a sua partida... Falava com incoerência, as lágrimas sufocavam-no. Às vezes, de repente, punha-se a consolá-la; dizia-lhe que se ausentava apenas por um mês, ou, no máximo, por cinco semanas, e que quando viesse na Primavera se casariam e seu pai daria o consentimento, e por fim o principal: que daí a dois dias voltaria a Moscovo e então teriam quatro dias completos para estarem juntos, e que agora se separavam unicamente por um dia...

Coisa estranha: estava perfeitamente convencido de que dizia a verdade e que, infalivelmente, daí a dois dias estaria de regresso... E se era assim, para que chorar e atormentarem-se?

Finalmente soaram onze horas. Só a muito custo pude conseguir que ele saísse. O comboio para Moscovo partia às doze em ponto. Restava apenas uma hora. A própria Natacha me disse depois que não se lembrava de como é que o olhara pela última vez. Lembro-me de que ela o benzeu, o beijou e, cobrindo o rosto com as mãos, reentrou apressadamente em casa. Eu tive de levar Aliocha até à carruagem, senão teria voltado atrás e nunca mais teria acabado de descer a escada.

— Toda a minha esperança está em ti — disse-me, ao descer. — Meu amigo, Vânia. Eu sou culpado para contigo e nunca serei merecedor do teu afecto; mas sê um irmão, para mim, até ao fim; ama-a, não a abandones. Escreve-me tudo, o mais pormenorizadamente possível, e muito, escreve-me o mais que possas, para que expliques tudo muito bem. Depois de amanhã estarei aqui outra vez sem falta, sem falta. E depois, quando eu tornar a partir, escreve-me.

Levei-o até ao carro.

— Até depois de amanhã! — gritou-me, já a caminho. — Sem falta!

De coração angustiado, voltei para cima, para casa de Natacha. Fui encontrá-la de pé, no centro do quarto, de braços cruzados, e olhou-me perplexa, como se não me reconhecesse. Tinha os cabelos penteados para um lado, os olhos vagos e como que toldados por uma nuvem. Mavra estava sentada junto da porta, parecia alheada e contemplava-a, espantada.

De súbito, os olhos de Natacha cintilaram.

— Ah! Es tu! Tu! — exclamou dirigindo-se a mim. — Só me restas tu, agora! Tu odiava-lo! Tu nunca pudeste perdoar-lhe que eu o amasse. Agora tu estás outra vez ao meu lado. Então? Vens outra vez consolar-me, ver se me convences a ir para o meu pai, que me expulsou de sua casa e me amaldiçoou? Eu já lhe disse ontem e há dois meses: não quero, não quero! Sou eu quem os amaldiçoa a eles! Vai-te, adeus; não posso ver-te! Adeus, adeus!

Compreendi que estava transtornada e que a minha presença lhe provocava uma cólera que raiava pela loucura; compreendi também que assim tinha de ser e achei mais prudente retirar-me. Sentei-me na escada, no primeiro degrau e... esperei. De quando em quando levantava-me, entreabria a porta, chamava Mavra e interrogava-a. Mavra chorava.

Assim se passou hora e meia. Não posso exprimir o que sofri durante todo esse tempo. O meu coração estremecia e sentia um enorme mal-estar. De repente, a porta abriu-se e

Natacha saiu a correr para a escada, de chapéu e casaco. Parecia fora de si e ela mesma me confessou depois que mal se lembrava disso e que não sabia com que intenção saíra assim de casa.

Ainda eu não tinha tido tempo de mover-me do meu lugar e esconder-me em qualquer sítio, quando de repente ela me viu e, sobressaltada, parou diante de mim, imóvel. «Lembrei-me de súbito — disse-me ela depois — como é que eu, louca, cruel, podia expulsar-te a ti, meu amigo, meu irmão, meu salvador... E quando vi que tu, infeliz, ofendido por mim, estavas aí sentado perto do meu quarto, na escada, não te tinhas ido embora e esperavas que eu voltasse a chamar-te, meu Deus, se tu soubesses, Vânia, o que eu pensei nesse momento! Que sobressalto eu senti!»

— Vânia, Vânia! — exclamou ela estendendo-me os braços. — Tu, aqui! — e caiu nos meus.

Segurei-a e levei-a para dentro. Tinha desmaiado.

«Que fazer? — disse para comigo. — Vai ficar com febre, de certeza!»

Decidi correr em busca do médico; era preciso deter o mal e era uma diligência fácil, essa: o meu velho alemão costumava estar em casa até às duas. Corri a sua casa, suplicando a Mavra que nem por um minuto nem por um segundo se separasse de Natacha, nem deixasse entrar ninguém. Deus veio em meu auxílio, pois se me tivesse demorado um pouco mais não acharia o meu velho em casa. Encontrei-me com ele na rua, quando já tinha saído. Fi-lo subir para o meu fiacre num instante, de maneira que nem sequer teve tempo de admirar-se, e dirigimo-nos para casa de Natacha.

Foi Deus que veio em meu auxílio! Durante a meia hora que durou a minha ausência dera-se em casa de Natacha um acontecimento que poderia tê-la morto, se eu não tivesse chegado a tempo com o médico. Ainda não tinha passado um quarto de hora sobre a minha saída, quando o príncipe chegou. Assim que deixou os seus veio directamente da estação. Devia há muito tempo ter planeado essa visita. Foi a própria Natacha que me contou depois que, no primeiro instante não se admirou, quando viu o príncipe. «Estava transtornada», disse-me.

— Minha filha — disse o príncipe quando entrou — compreendo a sua dor; já sabia como este instante havia de ser-lhe doloroso e por isso achei que era meu dever visitá-la. Console-se, se isso for possível, pensando que, ao separar-se de Aliocha, o fez feliz. Mas a senhora deve compreender isto ainda melhor do que eu, quando se decidiu a essa acção generosa...

— Eu estava sentada e escutava — contou-me Natacha —, mas a princípio não o compreendia verdadeiramente. Só me lembro de que olhava fixamente para ele, fixamente. Ele pegou-me na mão e começou a acariciar-ma com a sua. Parecia que isso lhe era muito agradável. Eu estava tão fora de mim que nem sequer pensei em retirar a minha mão.

— Deve compreender — continuou a dizer — que se se tivesse empenhado em ser esposa de Aliocha isso teria podido acarretar consequências aborrecidas, e teve o nobre orgulho de assim o reconhecer e decidir... Mas bem, eu não vim para dizer-lhe galanteios. Queria apenas comunicar-lhe que nunca, em parte alguma, a senhora encontrará melhor amigo que eu. Identifico-me com a sua dor e tenho pena de si. Desempenhei um papel involuntário em todo este assunto, mas... cumpria o meu dever. O seu bom coração há-de compreender isto e assim se reconciliará comigo... Eu sofri mais que a senhora, acredite-me.

— Basta, príncipe — disse Natacha. — Deixe-me em paz.

— Eu já me vou — respondeu ele —, mas gosto de si como de uma filha e vai com certeza permitir que a visite. Considere-me como seu pai, a partir deste momento, e permita-me que lhe seja útil.

— Eu não preciso de nada! Deixe-me! — tornou Natacha a dizer-lhe.

— Já sei que é orgulhosa... Mas eu falo-lhe sinceramente, com o coração nas mãos. Que pensa fazer agora?

Reconciliar-se com os seus pais? Isso seria o melhor, mas o seu pai é orgulhoso, injusto e despótico; desculpe-me, mas é assim. Em sua casa, agora, só iria encontrar censuras e novos sofrimentos... E preciso que a senhora seja independente, e o meu dever, o meu sagrado dever... é velar agora por si e ajudá-la. Aliocha pediu-me que não a abandonasse e fosse seu amigo. Aliás, há outras pessoas que também lhe são muito dedicadas. Há-de dar-me licença, com certeza, que lhe apresente o conde N... Tem um excelente coração, é nosso parente, e posso até dizer que protector de toda a nossa família; fez muito por Aliocha. Aliocha respeita-o e gosta muito dele. É um homem poderoso, com muita influência, e já quase velho, e por isso pode muito bem recebê-lo em sua casa. Já lhe falei de si. Pode dar-lhe uma situação e, se o desejar, dar-lhe uma elevada posição... em casa de um dos seus parentes. Já há muito tempo que eu lhe expliquei franca e abertamente, o nosso caso, e a tal ponto os seus bondosos e nobres sentimentos o encantaram que ele próprio se apressou a pedir-me que lha apresentasse em breve... É um homem que simpatiza com tudo quanto é belo, acredite; é um ancião generoso, honrado, capaz de apreciar os sentimentos dignos e ainda não há muito intercedeu por seu pai, em certo episódio.

Natacha levantou-se como se a tivessem picado. Agora já o compreendia.

— Mas a minha amiga esquece-se de que o conde pode também fazer muito pelo seu pai...

— O meu pai não aceita nada do senhor. Deixe-me! — tornou a gritar Natacha.

— Oh, meu Deus, que impaciente e desconfiada! Que fiz eu para merecer isto? — exclamou o príncipe olhando com certa inquietação à sua volta. — Mas, seja como for, a senhora há-de permitir-me que lhe deixe aqui esta prova de simpatia que me inspira e, em particular, da que inspira ao conde N..., que me incitou com os seus conselhos. Aqui, neste maço, estão dez mil rublos. Espere, minha amiga — insistiu quando viu que Natacha se erguia do seu lugar, com um gesto de aborrecimento—, escute-me com paciência até ao fim; fique sabendo que o seu pai perdeu o processo que trazia comigo e que estes dez mil rublos representam a indemnização que...

— Fora! — exclamou Natacha. — Fora daqui com esse dinheiro! Já o conheço... homem vil, vil, vil!

O príncipe levantou-se da cadeira, depois de a ouvir pálido de cólera.

Certamente que tinha ido ali com a intenção de examinar o lugar e informar-se da situação e, provavelmente, confiava no efeito daqueles dez mil rublos sobre Natacha, reduzida à miséria e abandonada por toda a gente... Mau e velhaco, não era essa a primeira vez que servia de intermediário ao conde N..., velho libertino, em tais enredos. Mas odiava Natacha, e ao ver que a coisa não tinha corrido bem, mudou de tom e, com uma alegria maldosa, para ao menos não ir assim sem mais nem menos, disse:

— Olhe, minha filha, não está certo inflamar-se dessa maneira — disse com uma voz um pouco trémula por causa do impaciente desejo de ver quanto antes o efeito da sua ofensa. — Olhe que não está bem. Oferecem-lhe protecção e a senhora dá-lhe um pontapé... Mas a senhora não sabe que tem a obrigação de ser boa para comigo? Já há muito que eu poderia tê-la feito encerrar numa casa de correcção, como pai de um rapaz seduzido e espoliado por si, e vê que, afinal, não o fiz... Ah... ah... ah... ah!

Mas nós vínhamos já a chegar. Quando, já na cozinha, ouvi aquela voz, obriguei o médico a parar por um momento e escutei até ao fim a frase do príncipe. Depois ouviu-se aquele seu riso repugnante e a desesperada exclamação de Natacha: «Oh, meu Deus!» Nesse momento abri a porta e dirigi-me para o príncipe.

Cuspi-lhe na cara e, com todas as minhas forças, dei-lhe uma bofetada. De boa vontade se teria lançado sobre mim, mas quando viu que éramos dois, deitou a correr, mas não sem que tivesse agarrado primeiramente no maço de notas. Sim, fez isso, vi-o com os meus próprios olhos. Lancei-me em sua perseguição, com um rolo () que apanhei em cima da mesa da cozinha... Quando voltei outra vez para o quarto fui encontrar Natacha debatendo-se entre os braços do médico, acometida, segundo parecia, de um ataque. Demorámos muito tempo a dominá-la, até que por fim conseguimos deitá-la na cama; estava cheia de febre e delirava.

— Que tem ela, doutor? — perguntei, morto de medo.

— Aguarde — respondeu-me. — E preciso observar a doença primeiro e depois veremos... Mas desde já lhe digo que o caso não está bem encarado... A febre poderia acabar por se declarar... Mas vamos tentar evitá-lo...

Eu tivera outra ideia. Pedi ao médico que permanecesse ao lado de Natacha mais duas ou três horas e arranquei a sua promessa formal de que não se separaria dela nem um instante. Assim que mo prometeu, corri a minha casa.

Nelly estava sentada num canto, severa e alarmada, e olhou-me de um modo estranho. Mas é claro que o meu aspecto também não devia ser menos estranho.

Peguei-lhe numa das mãos, obriguei-a a sentar-se num divã, deitei-me a seus pés de joelhos e pus-me a beijá-la com paixão. Ela exaltou-se.

— Nelly, meu anjo! — exclamei. — Queres ser a nossa salvadora? Queres salvar-nos a todos?

Ela olhou para mim, atónita.

— Nelly, é em ti que se resume agora toda a nossa esperança! Há um pai que amaldiçoou a sua filha e que ontem esteve aqui a pedir-te que fosses com ele para o lugar dela. Agora, a filha dele, Natacha (e tu disseste que gostavas dela), abandonou aquele a quem amava e pelo qual fugiu de casa. É o filho desse príncipe que esteve aqui ontem, lembras-te?, e que veio encontrar-te sozinha e tu fugiste dele e depois ficaste doente... Conhece-lo, não é verdade? É um homem mau!

— Eu sei — respondeu Nelly estremecendo e empalidecendo.

 

(’) Rolo dos que se utilizam para estender massa de bolos. E acepções da palavra stalka, que Dostoievski emprega (N do T ).

 

—- Sim, é um homem mau. Odeia Natacha porque Aliocha, o seu filho, queria casar com ela. Aliocha foi-se hoje embora e uma hora depois ele apareceu em casa dela e ofendeu-a, ameaçou-a de a enviar para uma casa de correcção e escarneceu dela. Compreendes-me, Nelly?

Os seus olhos negros cintilaram, mas baixou-os imediatamente.

— Compreendo — murmurou numa voz quase imperceptível.

— Natacha, agora, está só e doente; eu deixei-a com o nosso médico e corri a ver-te. Escuta, Nelly: vamos ver o pai de Natacha; tu não gostas dele, negaste-te a ir com ele para sua casa, mas agora vamos lá os dois juntos. Assim que entrarmos digo-lhe logo que tu, agora, já queres ir viver com eles, para o lugar da filha, para o lugar de Natacha. O velho agora está doente por ter amaldiçoado Natacha e porque há alguns dias o pai de Aliocha lhe fez uma ofensa mortal. Não quer ouvir falar da filha, mas gosta dela, gosta dela, Nelly, e está ansioso por se reconciliar com ela. Eu sei, sei isso tudo. É assim! Estás a ouvir-me, Nelly?

— Estou — disse num murmúrio.

Eu falava-lhe afogado em lágrimas. Ela olhava para mim timidamente.

— Acreditas em mim?

— Acredito.

— Bem. Então entrarei contigo, tu sentas-te e eles receber-te-ão, começarão a acariciar-te e a fazer-te perguntas. A seguir eu dirigirei a conversa de maneira que eles comecem a interrogar-te sobre a tua vida anterior, pela tua mãe e pelo teu avô. Tu conta-lhes tudo, Nelly, como me contaste a mim, tudo; conta-lhes tudo simplesmente e não lhes escondas nada. Conta-lhes como a tua mãe foi abandonada por um mau homem; como veio a morrer na cave da Bubnova; como tu vinhas pedir esmola para a rua, com a tua mãe; aquilo que ela te dizia e o que te pediu quando morreu... Fala-lhes também do teu avô. Conta-lhes como ele não queria perdoar à tua mãe e como esta te mandou ter com ele à

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hora da morte, para ele lhe dar o seu perdão, e como ele se negou... e como ele morreu. Tudo, conta-lhes tudo! E pode ser que, logo que tu acabes de contar tudo isto, o velho tenha um rebate de consciência. Olha, ele sabe que Aliocha a deixou hoje e que ela foi humilhada e insultada, que está sozinha, sem auxílio nem defesa de ninguém, por ter ofendido o seu inimigo. Ele sabe tudo isto... Nelly, salva Natacha! Queres ir?

— Sim — respondeu ela respirando ofegantemente e olhando-me com uns olhos estranhos, fixa e longamente; havia qualquer coisa semelhante a uma censura naquele olhar, pelo menos foi o que me pareceu.

Mas eu não podia abandonar a minha ideia. Tinha muita fé nela. Peguei na mão de Nelly e saímos. Eram já três horas da tarde. Havia nuvens. Durante os últimos dias estivera sempre calor e um ar abafado, mas agora anunciava-se ao longe a primeira e precoce tempestade outonal. O vento açoitava as ruas poeirentas.

Tomámos um fiacre. Durante o trajecto Nelly seguiu calada e apenas de quando em quando me lançava um daqueles olhares seus, estranhos, enigmáticos. Respirava precipitadamente e, ao segurá-la, no carro, senti como o seu coraçaozinho palpitava sobre a palma da minha mão, como se quisesse saltar-lhe do peito.

Capítulo sétimo

O caminho pareceu-me interminável. Finalmente chegámos e eu entrei em casa dos meus velhos, meio morto de angústia. Não sabia como sairia dali, mas, fosse como fosse, tinha ,de conseguir deles o seu perdão e a sua paz.

Eram já quatro horas. Os velhos estavam sós, como .de costume. Nikolai Serguieitch estava muito enfraquecido e doente, meio deitado, enterrado na sua cómoda poltrona, pálido e abatido, com um lenço atado à cabeça. Ana Andreievna estava junto dele; de quando em quando molhava-lhe as fontes com vinagre e espiava-lhe o rosto de instante a instante, o que parecia até inquietar e aborrecer o velho. Este guardava um silêncio obstinado e ela não ousava dirigir-lhe a palavra. O nosso aparecimento inesperado impressionou-os a ambos. Ana Andreievna assustou-se de repente, quando nos viu aos dois, como se de repente se sentisse culpada de qualquer coisa.

— Aqui lhes trago a minha Nelly — disse eu assim que entrei. — Já pensou melhor e agora já quis vir. Aí a têm. Gostem muito dela...

O velho olhava-me, receoso, e só por esse olhar se poderia adivinhar que estava ao facto de tudo, isto é, que Natacha se achava agora sozinha, abandonada, desprotegida e talvez ofendida. Ansiava por descobrir a secreta razão da nossa vinda e olhava interrogativamente para mim e para Nelly. Esta tremia, segurando com força a minha mão, de olhos fixos no chão, e de vez em quando lançava um olhar medroso, como uma ferazinha apanhada numa armadilha. Mas não tardou que Ana Andreievna se recordasse e adivinhasse tudo; aproximou-se então de Nelly, beijou-a, acariciou-a, chorou até, e fê-la sentar a seu lado com uma terna violência, sem lhe largar a mão. Nelly, curiosa e um pouco admirada, olhava-a de soslaio.

Mas, depois de acariciar Nelly e de obrigá-la a sentar-se a seu lado, a velhinha já não sabia o que havia de fazer mais e pôs-se a olhar para mim numa ingénua expectativa. O velho franziu o sobrolho, como se começasse a perceber qual o objectivo com que eu trouxera Nelly. Quando viu que eu reparava na sua expressão de contrariedade e de enfado, levou a mão à cabeça e disse-me secamente:

— Dói-me a cabeça, Vânia.

Nós continuávamos calados, em silêncio; eu pensava por onde é que devia começar. O quarto estava na penumbra; passava nesse momento um negrão e tornou a ouvir-se o ribombar longínquo da trovoada.

— Os temporais começam muito cedo este ano — disse o velho. — Mas há trinta e sete anos, na nossa terra, ainda começavam antes.

Ana Andreievna suspirou.

— E se eu trouxesse o samovar? — perguntou timidamente, mas ninguém lhe respondeu e de novo encarou Nely

— E tu, minha linda, como te chamas? — perguntou-lhe.

Nelly disse-lhe o seu nome com uma voz fraca e baixou outra vez os olhos. O velho mirava-a de alto a baixo.

— com que então Helena, hem? — continuou a velha,

com animação.

— Sim — respondeu Nelly e novamente se fez um silêncio momentâneo.

— A irmã de Praskovia Andreievna tinha uma sobrinha que se chamava Helena — disse Nikolai Serguieitch. — Também era Helena, lembro-me bem.

— De maneira que tu, minha pequena, não tens parentes nem pais? — tornou a perguntar-lhe Ana Andreievna.

— Não — murmurou Nelly lacónica e timidamente.

— Já o tinha ouvido dizer, já tinha ouvido dizer. E já há muito tempo que a tua mãe morreu?

— Não, há pouco.

— Minha pequenita, minha orfazinha — continuou a anciã, olhando-a compassivamente.

Nikolai Serguieitch tamborilava sobre a mesa com os dedos, impaciente.

— E a tua mãe, não era estrangeira? Creio que foi isso o que disse Ivan Petrovitch, não foi? — continuou a velha olhando-me timidamente.

Nelly olhou-me rapidamente com os seus olhos negros, como se pedisse o meu auxílio. Respirava irregular e precipitadamente.

— A mãe dela, Ana Andreievna — comecei eu —, era filha de um inglês, mas era russa. Nelly nasceu no estrangeiro.

— Então a mãe foi viver para lá com o marido?

De repente, Nelly estremeceu toda. A velha compreendeu imediatamente que tinha dito qualquer coisa que não devia e assustou-se ao ver o olhar iracundo do marido. Este olhou-a severamente e voltou-se para a janela.

— A mãe dela foi vítima das falas enganosas de um homem mau e vil — disse ele encarando de repente com Ana Andreievna. — Fugiu com ele de sua casa e entregou o dinheiro do pai ao amante, isto é, ele tirou-lho com artimanhas, foi para o estrangeiro e deixou-a espoliada e burlada. Houve no entanto um homem bondoso que não a abandonou e a ajudou até à sua morte. E quando ele morreu, há dois anos, voltou para casa do pai. Não foi isso o que me contaste, Vânia? — perguntou-me à queima-roupa.

Neliy, tomada de uma grande comoção, levantou-se do seu lugar e fez menção de dirigir-se para a porta.

— Vem cá, Nelly! — exclamou o velho estendendo-lhe por fim a mão. — Senta-te aqui, senta-te ao pé de mim, aqui... senta-te.

Beijou-a na testa e ficou a olhá-la compassivo. Nelly parecia tremer toda, mas fazia o possível por dominar-se. Ana Andreievna, assombrada, numa ansiedade alvoroçada, via finalmente Nikolai Serguieitch acariciar a órfã.

— Já sei, Nelly, que foi um homem mau e desalmado que perdeu a tua mãe, mas também sei que ela gostava do pai e respeitava-o — continuou o velho, comovido, sem deixar de olhar Nelly no rosto e sem poder dominar-se, para não nos lançar essa provocação naquele momento. Um leve rubor lhe cobriu as faces pálidas, mas esforçou-se por não olhar para nós.

— A minha mãe gostava mais do meu avô do que o meu avô dela — declarou Nelly com timidez, mas com firmeza, esforçando-se também por não olhar para ninguém.

— Como sabes tu isso? — atalhou o velho, cortante, sem se poder dominar, como uma criança, e como se se envergonhasse da sua impaciência.

— Sei — respondeu Nelly com secura. — Não quis receber a minha mãe em sua casa e... expulsou-a.

Eu vi que Nikolai Serguieitch queria dizer, objectar qualquer coisa, por exemplo, que o velho fizera bem em não receber a filha, mas limitou-se a olhar-nos e ficou calado.

— Onde viviam vocês então, quando o teu avô não quis receber a tua mãe? — perguntou Ana Andreievna, que, de repente, sentiu um desejo teimoso de insistir nesse tema.

— Quando voltámos do estrangeiro, andámos muito tempo à procura do avô — respondeu Nelly —, mas não conseguimos dar com ele. A mamã disse-me então que, em tempos, o avozinho fora muito rico e tivera uma fábrica, mas que agora estava na miséria, porque o homem com quem ela tinha fugido levara o dinheiro do avô e não lho devolvera. Foi o que ela mesma me disse.

— Hum! — resmungou o velho.

— E também me contou — continuou Nelly cada vez mais animada e como se quisesse responder a Nikolai Serguieitch, mas dirigindo-se a Ana Andreievna — que o avô estava muito zangado com ela, que ela é que tinha a culpa de tudo e que no mundo apenas lhe restava o avô. E quando me contava isto, chorava... «Ele não me perdoará — dizia, quando andávamos a procurá-lo —, mas pode ser que, quando te vir, goste de ti, te ganhe amizade e me perdoe por tua causa.» A minha mãe gostava muito de mim e, quando me dizia isso, beijava-me sempre, mas tinha muito medo de ir ver o avô. Ensinou-me a rezar por ele e ela também rezava por ele, e contava-me muitas vezes como vivera noutro tempo com o avô, e como ele gostava muito dela, mais que ninguém. Tocava piano para ele e lia-lhe livros à noite, e o avô beijava-a e dava-lhe muitos presentes, dava-lhe tudo; um dia zangaram-se no dia do santo da mamã, porque o avô pensava que a mamã não sabia que presente ele ia dar-lhe, mas ela já sabia há muito tempo do que se tratava. A mamã queria uns brincos, mas o avô, de propósito, disse-lhe que lhe ia oferecer, não uns brincos mas um broche, e quando chegou com os brincos e viu que a mamã já sabia que se tratava de uns brincos e não de um broche ficou zangado e esteve quase todo o dia sem lhe falar, até que por fim se pôs a beijá-la e acabou por lhe pedir perdão...

Nelly contava tudo isto com entusiasmo e até a cor subia às suas faces pálidas e adoentadas.

Era evidente que a sua mãezinha falara por mais de uma vez com a sua Nelly acerca dos seus antigos dias felizes, sentadas a um canto da cave, abraçando e beijando a sua menina (toda a consolação que lhe restava na vida) e chorando por ela, sem suspeitar sequer então com que força se gravariam as suas histórias no coração, morbidamente sensível e precocemente desenvolvido da sua filha.

Mas a entusiástica Nelly pareceu cair em si, de repente: olhou à sua volta com desconfiança e calou-se. O velho franziu o sobrolho e pôs-se outra vez a tamborilar sobre a mesa; uma lagrimazinha apareceu nos olhos de Ana Andreievna e, sem dizer nada, enxugou-a com o lenço.

— Mamenka (’) chegou aqui muito doente — acrescentou Nelly em voz baixa. — Estava muito doente do peito. Andámos muito tempo à procura do avô sem conseguir encontrá-lo, por isso alugámos um cantinho numa cave.

— Um canto numa cave! — exclamou Ana Andreievna.

— Sim, um cantito — respondeu Nelly. — Mamenka estava na miséria. Mamenka dizia-me — acrescentou, reanimando-se —, que não era pecado ser pobre, mas que o era ser rico e pecar... e que Deus estava a castigá-la.

— Foi em Vassilievski que alugaram a cave? Em casa da Bubnova, não foi? — perguntou o velho dirigindo-se a mim e esforçando-se por deixar transparecer uma certa indiferença nas suas perguntas.

— Não, não foi... Primeiro morárrios em Miechanski

— respondeu Nelly. — Aquilo era muito escuro e húmido

— continuou, depois de uma pausa — e mamenka piorou, mas nessa altura ainda saía. Eu lavava-lhe a roupa e ela chorava. Ali vivia também uma velhinha, viúva de um capitão,

 

(l) Diminutivo familiar e carinhoso da palavra mãe, em russo. (N. do T )

 

e um empregado reformado, que andava sempre bêbado; embebedavam-se todos e passavam as noites todas a gritar e a chorar. Eu tinha muito medo dele. Eu dormia com mamenka e sentia-a tremer todas as vezes que o reformado guinchava e rosnava. Uma vez ele quis matar a viúva, que já era muito velhinha, coitada, e andava apoiada num pau. Mamenka teve pena dela e levou-a consigo; o reformado então começou a bater na minha mãe e eu nele...

Nelly parou por um momento. Essa recordação perturbara-a, os seus olhos brilhavam.

— Meu Deus! — exclamou Ana Andreievna muito interessada na narrativa e sem tirar os olhos de Nelly, que se dirigia de preferência a ela.

— Quando mamenka saía — continuou Nelly — levava-me consigo. Era de dia. Andávamos pelas ruas até anoitecer, e mamenka não fazia outra coisa senão andar e chorar, levando-me pela mão. Eu estava muito cansada; não tínhamos comido nada todo o dia. E mamenka falava sozinha e dizia-me: «És pobre, Nelly, mas quando eu morrer não faças caso de ninguém. Não vás com ninguém; deixa-te ficar sempre sozinha, sê pobre e trabalha e, se não encontrares trabalho, pede esmola; mas nunca recorras a ele.» Um dia, ao escurecer, fomos ter a uma rua muito grande e, de repente, mamenka começou a gritar: «Azorka, Azorka!», e então um cão muito grande, pelado, veio a correr para junto de mamenka, ladrando e erguendo-se à altura do seu corpo; mamenka assustou-se, pôs-se muito pálida, deu um grito e pôs-se de joelhos aos pés de um velho muito alto, que se apoiava num bordão e olhava para o chão. E esse velho tão alto era o avô, e estava muito fraco e trazia um fato muito roto. Foi essa a primeira vez que eu vi o avô. Ele também se assustou muito e empalideceu quando viu que mamenka estava a seus pés e abraçada a eles; mas depois afastou-se dela com violência, deu-lhe uma pancada com a ponteira do bastão e fugiu de nós quase a correr. Azorka ficou ainda ali um momento, a ladrar e a lamber a minha mamenka’, mas acabou por ir com o avô, agarrou-se-lhe às calças e puxou-o para trás; mas o avô bateu-lhe também com o bastão. Azorka correu outra vez para junto de nós; mas o avô chamou-o e então foi com ele, sem deixar de ladrar. Mamenka estava caída no chão, como morta, e juntara-se muita gente à sua volta. Apareceram guardas. Eu gritava e fazia todo o possível por levantá-la do chão. Até que por fim ela se levantou, olhou à volta e veio comigo. Levei-a a casa. As pessoas ainda nos seguiram durante bastante tempo com a vista e todos abanavam a cabeça...

Nelly fez uma pausa para respirar e descansar. Estava muito pálida, mas nos seus olhos lia-se decisão. Percebia-se que estava resolvida a contar tudo até o fim. Parecia inspirada naquele momento.

— De maneira que — observou Nikolai Serguieitch com uma voz hesitante e com certa secura irritada —, de maneira que a tua mãe tinha ofendido o avô e ele tinha as suas razões para repeli-la...

— A minha mãe, ela própria me disse isso — insistiu Nelly. — E quando chegámos a casa, contou-me tudo: «Era o teu avô, Nelly, eu procedi mal para com ele e por isso ele me amaldiçoou e Deus me castiga agora.» E durante toda essa noite e todos os dias seguintes me falou do mesmo. Mas falava como se ela própria não soubesse...

O velho continuava calado.

— Mas depois mudaram-se para o outro quarto? — perguntou Ana Andreievna, que continuava a chorar.

— Mamenka caiu doente nessa mesma noite; a viúva procurou um quarto em casa da Bubnova. Passados três dias mudámo-nos dali e a viúva veio connosco; assim que saímos mamenka caiu à cama e esteve três semanas doente e então era eu que saía em vez dela. Já não tínhamos dinheiro nenhum e quem nos ajudava era a mulher do capitão e Ivan Alexandrovitch.

— Um fabricante de caixões — disse eu, à maneira de explicação.

— E quando mamenka se levantou da cama e começou outra vez a sair, contou-me coisas sobre Azorka.

— Que te contava ela de Azorka? — perguntou Nikolai Serguieitch, acomodando-se no cadeirão, como se quisesse esconder melhor o rosto e olhar para baixo.

— Ela falava-me sempre do avô — respondeu Nelly — e quando estava doente falava-me também sempre dele e delirava. Quando melhorava um pouco, começava logo a falar-me de como tinha sido a sua vida... e contava-me coisas sobre Azorka, porque, uma vez, não sei onde, na margem do rio, do outro lado da cidade, uns rapazes levavam Azorka atado por uma corda para irem afogá-lo, e mamenka então deu-lhes dinheiro e comprou-lho. Quando o avô viu Azorka fez muita troça dele. Mas um dia Azorka fugiu. A mamã pôs-se a chorar; o avô assustou-se e disse que daria cem rublos a quem lhe trouxesse Azorka. Passados três dias levaram-lho; o avô deu os cem rublos e a partir desse momento começou a gostar de Azorka. Mamenka gostava tanto dele que até o deixava dormir na sua cama. Contou-me que, dantes, Azorka andava com uns saltimbancos pelas ruas e sabia servir à mesa e trazer um macaco às costas, e também segurar numa espingarda e muitas outras coisas... Mas quando mamenka saiu de casa do avô, este ficou com Azorka e passou a andar sempre com ele; e por isso, daquela vez, quando a mãezinha viu Azorka, adivinhou imediatamente que o avô andava por ali...

O velho, pelos vistos, não esperava aquilo de Azorka e por isso ficou ainda mais zangado. Não tornou a perguntar mais nada.

— E não tornaram a ver o avô? — perguntou Ana Andreievna.

— Não. Quando mamenka começou a melhorar eu tornei a encontrá-lo. Foi quando ia à loja comprar pão; de repente vi um homem com Azorka; olhei e reconheci o avô. Desviei-me para um lado e encostei-me à parede. O avô olhou para mim durante muito tempo, e com tal ferocidade que eu fiquei cheia de medo e fugi. Azorka também me reconheceu, veio a correr e lambeu-me as mãos. Corri para casa o mais depressa que pude, olhando para trás, e o avô entrou na loja. E pensei para comigo que ele ia com certeza fazer perguntas, e assim que cheguei a casa não disse nada à minha mãe com medo que ela ficasse doente. No dia seguinte não fui à loja; disse que me doía a cabeça, mas quando lá voltei, passados três dias, não encontrei ninguém, mas senti um medo terrível enquanto ia caminhando. Mas no outro dia, mal voltei a esquina, dei de cara com o avô e com Azorka. Deitei a correr, meti-me por outra rua e vim ter à loja por outro lado; mas assim que entrei, estaquei e fiquei tão aterrorizada que nem podia dar um passo. O avô estava na minha frente, e outra vez me olhava longamente, e depois olhou-me ainda mais de perto, puxou-me por uma mão, e Azorka vinha connosco a mexer a cauda. Foi então que eu vi que o avô não podia andar direito e tinha de apoiar-se no bastão, e que as mãos lhe tremiam. Levou-me a uma frutaria que havia ali perto, onde vendiam tortas e maçãs. O avô comprou-me um galo e um peixe de pão doce, um cartucho de rebuçados e uma maçã, e quando tirava dinheiro da bolsa de couro tremiam-lhe muito as mãos e deixou cair um pttak (*) que eu apanhei. Ele deu-mo, mais os doces; olhou-me de frente, mas não chegou a dizer nada; foi-se e encaminhou-se para sua casa.

«Quando eu cheguei à minha, contei tudo à mamenka e disse-lhe o medo que tivera do avô e como me tinha escondido dele. Mamenka, a princípio, não queria acreditar-me, mas depois ficou tão contente que durante toda a noite não fez mais que fazer-me perguntas e beijar-me e chorar; e quando eu acabei de lhe contar tudo, recomendou-me que, daí por diante, nunca mais tivesse medo do avô e disse-me que, naturalmente, o avô gostava de mim, visto que se tinha aproximado. E disse-me que devia ser afectuosa para com o avô e falar com ele. No dia seguinte, de manhã, mandou-me espiá-lo várias vezes, embora eu lhe tivesse dito que o avô aparecia sempre de tarde. Ela seguia-me a uma certa

 

(*) Moeda de cobre do valor de cinco copeques. (N. da T,)

 

distância e escondia-me numa esquina, e no outro dia tornámos a fazer o mesmo. Mas o avô não apareceu; nesse dia choveu e a mamã apanhou um resfriamento, porque vinha sempre acompanhar-me até à porta, e por isso teve de ir para a cama outra vez.

«O avô tornou a passar ao fim de uma semana, comprou-me outra empadinha de peixe e outra maçã, mas também não me disse nada. Quando nos separámos, eu, às furtadelas, fui-o seguindo, conforme o projecto que tinha feito, para ficar a saber onde é que ele vivia e para o dizer à mamã. Fui-o seguindo à distância pelo outro passeio da rua, de maneira que ele não me visse. Mas morava bastante longe, não na casa onde veio a morar depois e a morrer, mas na Gorokovaia, também num prédio grande, no 4.º andar. Fiquei a saber isto tudo e voltei tarde para casa. A mamã estava muito assustada, porque não sabia por onde eu andava. Quando lhe contei tudo pôs-se outra vez muito contente e queria ir logo ver o avô, no dia seguinte; mas no dia seguinte reflectiu e ficou cheia de medo. Por isso não saiu. Depois chamou-me e disse-me: «Olha, Nelly, eu estou doente e não posso sair, mas escrevi uma carta ao avô; leva-lha tu. E repara na cara que ele faz ao lê-la, e o que diz, e o que faz; depois põe-te de joelhos e beija-o e suplica-lhe que perdoe à tua mãe...» E mamenka chorava muito e dava-me muitos beijos e benzia-me durante todo o caminho até à porta e implorava Deus, e tinha-me feito ajoelhar a seu lado diante da imagem, e embora estivesse muito doente, veio acompanhar-me até à porta, e sempre que eu me voltava para trás, via-a ali, seguindo-me com os olhos. Eu fui procurar o avô e abri a porta, que não tinha o ferrolho corrido. O avô estava sentado à mesa e comia batatas com pão, e Azorka estava diante dele, via-o comer e mexia a cauda. O quarto do avô também era de tecto baixo e escuro e também só havia nele uma mesa e uma cadeira. Vivia sozinho. Quando entrei ele ficou tão assustado que empalideceu e se pôs a tremer. Eu também me assustei e não disse nada; aproximei-me simplesmente da mesa e entreguei-lhe a carta.

Quando a viu, o avô ficou tão furioso que se levantou de um pulo, pegou no bastão e ameaçou-me com ele; simplesmente, não chegou a bater-me, limitou-se a empurrar-me para o patamar. Mal eu pusera o pé no primeiro degrau quando tornou a abrir a porta e me atirou a carta por abrir. Regressei a casa e contei tudo. Mamenka teve de meter-se na cama outra vez...

Capítulo oitavo

Nesse momento ouviu-se um trovão bastante forte, e a chuva, num rijo aguaceiro, veio bater contra os vidros. A sala escureceu e todos nos quedámos de repente.

— Já está aqui — disse o velho olhando para a janela. Depois do que se levantou e pôs-se a dar voltas na sala,

de um lado para o outro, enquanto Nelly o seguia com os olhos, às furtadelas. Estava extraordinariamente agitada, quase doente. Eu observava-a mas ela parecia evitar o meu olhar.

— Bem, e que mais? — perguntou o velho tornando a sentar-se no cadeirão.

Nelly olhou, assustada, à sua volta.

— E depois, não tornaste a ver o teu avô?

— Não, não o tornei a ver...

— Ah! Conta, minha querida! — insistiu Ana André ievna.

— Passaram três semanas sem que eu o visse mais — começou Nelly — até ao Inverno. Quando voltei a encontrar o avô, no mesmo sítio de antes, fiquei muito contente porque a mamã estava muito triste por ver que ele não saía. Assim que o vi, deitei a correr para o outro passeio, para que ele visse que eu fugia dele. Olhei e vi que o avô, a princípio, começou a andar a trás de mim, estugando o passo para me alcançar, e se punha a gritar: «Nelly, Nelly!»

E Azorka corria atrás dele. Tive pena e parei. O avô aproximou-se, pegou-me na mão, mas quando viu que eu chorava, deteve-se, olhou-me e deu-me um beijo. Viu que eu trazia uns sapatos muito velhos e perguntou-me: «Não tens outros?» Apressei-me a contar-lhe que a minha mãe não tinha dinheiro e que a dona da casa nos dava de comer apenas por dó. O avô não disse nada mas levou-me a uma sapataria, comprou-me uns sapatos e mandou-me calçá-los, e daí levou-me a sua casa, na Gorokovaia; mas antes entrou ainda numa loja e comprou um pastel e dois pacotes de doces; disse-me que comesse o pastel e depois deu-me os doces. E Azorka pôs as patas sobre a mesa, a pedir-me um bocadinho do pastel; e eu dava-lho e o velho sorria. Depois pegou em mim, sentou-me ao seu lado, pôs-se a olhar-me de frente e a perguntar-me se eu já tinha alguns estudos e o que sabia. Disse-lho e ele mandou-me ir todos os dias a sua casa, se eu pudesse, aí pelas três horas, porque ele próprio me ensinaria. Depois disse-me que me voltasse e olhasse para a janela até que ele me dissesse quando é que eu podia tornar a olhar. E assim fiz; mas ia voltando a cabeça às escondidas e vi então que ele descosia a almofada pelo lado de baixo e tirava dela quatro rublos de prata. Assim que os tirou deu-mos e disse-me: «Toma, são só para ti.» Eu ia já a aceitá-los, mas pensei melhor e disse: «Se são só para mim, então não os quero.» De repente, o avô enfureceu-se e disse-me: «Está bem, é como tu quiseres. Toma-os e vai-te embora!» Saí e ele não me beijou.

«Quando voltei a casa contei tudo à minha mãe. Mamenka estava cada vez pior. A casa do fabricante de caixões costumava ir um estudante. Ajudava a minha mãe e fazia-a tomar os remédios.

«Eu ia ver o avô muitas vezes. Era a minha mãe que me mandava. O avô comprou um Novo Testamento e uma geografia e começou a dar-me lições, e às vezes dizia-me quantas terras há no mundo, e que pessoas vivem nelas, e como Cristo perdoou a todos nós. Quando eu lhe fazia alguma pergunta ele ficava muito contente, por isso eu fazia-lhemuitas perguntas e ele dizia-me tudo e falava-me muito de Deus. De outras vezes não dávamos lição e eu punha-me a olhá-lo de frente, embora ele não fosse muito para risos. Às vezes punha-se a falar durante muito tempo, depois calava-se de repente e ficava meio adormecido, mas com os olhos abertos. E assim ficava até escurecer; e quando escurecia punha-se horrível, com uma expressão tão velha... Eu costumava aproximar-me dele, mas ele continuava sentado na sua cadeira, meditando e sem ouvir nada, com Azorka estendido a seus pés. Eu esperava, esperava e tossia, mas o avô não se voltava para olhar para mim. E assim o deixava e me ia embora. Em casa, havia já muito que a mamã me esperava. Estava deitada e eu contava-lhe tudo, tudo, de maneira que a noite aproximava-se e eu continuava a falar, e ela a escutar o que eu dizia do avô, o que tinha feito nesse dia e as histórias que ele contara, e também a lição que tínhamos dado. E depois falava-lhe de Azorka, dizia-lhe que o tinha feito saltar um pau e o que o avô se ria e, de repente, também começava a rir e ficava a rir por muito tempo, e ria-se e ficava muito contente, e pedia-me que lhe contasse tudo outra vez e depois começava a rezar. E eu pensava: «Porque será que mamenka, gostara tanto do avô e ele não gostara dela?» E quando eu ia vê-lo punha-me a contar-lhe tudo de propósito, a dizer-lhe como a mamã gostava dele. Ele escutava-me, muito mal-humorado; escutava-me e não dizia nada. Então eu perguntava-lhe porque seria que a mãe gostava tanto dele, porque não fazia outra coisa senão perguntar-me por ele e ele nunca me perguntava por ela. Até que um dia o avô se zangou e me pôs fora de casa. Eu fiquei algum tempo no patamar, atrás da porta; mas ele tornou a abri-la de repente e mandou-me entrar; estava muito zangado e silencioso. Mas depois, quando nos pusemos a ler a lei de Deus eu tornei a perguntar-lhe: «Não é verdade que Jesus Cristo disse Amai-vos uns aos outros e perdoai as ofensas e ele não queria perdoar à mamã?» Então ele saltou da cadeira e pôs-se a gritar que tudo aquilo tinha sido a minha mãe que mo ensinara e mais uma vez me expulsou e me disse que nunca mais voltasse a aparecer ali. E eu disse-lhe que podia ficar descansado, que eu não voltaria mais, e fui-me... E o avô no dia seguinte mudou-se de quarto...

— Eu bem dizia que a chuva passava depressa. Já lá vai e aí vem o sol... Olha, Vânia — disse Nikolai Serguieitch, assomando à janela.

Ana Andreievna lançou-lhe um olhar de grande perplexidade e, de repente, nos olhos até então plácidos e altivos da velha, relampejou uma enorme irritação. Em silêncio, pegou em Nelly e sentou-a nos joelhos.

— Conta-me, meu anjo — disse —, que eu escuto-te! Deus queira que aqueles que têm um coração duro...

Não acabou e desatou a chorar. Nelly dirigiu-me um olhar interrogativo, entre perplexo e assustado. O velho olhou-me e encolheu os ombros, mas’ em seguida voltou-se.

— Continua, Nelly — disse.

— Eu estive três dias sem aparecer em casa do avô — recomeçou Nelly — e durante esse tempo a mamã piorou. O dinheiro tinha-se-nos acabado completamente; não tínhamos com que comprar os medicamentos, nem de comer, porque a dona da casa também não o tinha e começaram a atirar-nos à cara que vivíamos à custa alheia. Mas passados três dias eu levantei-me de manhã e comecei a vestir-me. A minha mãe perguntou-me onde é que eu ia e respondi-lhe: «A casa do avô, vou pedir-lhe dinheiro.» Ela ficou muito contente, porque eu já lhe tinha contado como ele me expulsara de sua casa e lhe respondera que nunca mais voltaria a procurá-lo, por mais que ela chorasse e procurasse dissuadir-me. Fui até lá e disseram-me que o avô se mudara; fui então procurá-lo à sua nova casa. Assim que o vi, na sua nova casa, ele deu um pulo, dirigiu-se para mim e bateu com o pé no chão; eu então disse-lhe que mamenka estava muito doente, que precisávamos de dinheiro para remédios, que custavam dez copeques, e que também não tínhamos nem uma côdea de pão para levar à boca. O avô pôs-se a gritar, expulsou-me para a escada e depois fechou a-porta a chave. Mas no momento em que ele me empurrava ainda lhe gritei que me sentaria na escada e que não sairia dali enquanto ele não me desse dinheiro. Passou bastante tempo, até que ele voltou a abrir a porta e, quando me viu ali, tornou a fechá-la. E depois tornou a abrir e a olhar para mim. Até que por fim saiu com Azorka, fechou a porta e passou junto de mim em direcção à rua, e não me disse uma palavra. Eu também não lhe disse nada, continuei sentada, e ali fiquei até que se fez noite.

— Pobrezinha! — exclamou Ana Andreievna. — com o frio que devia fazer na escada!

— Eu trazia uma samarra para me agasalhar — respondeu Nelly.

— Ainda que trouxesses samarra... minha pobrezinha, como tens sofrido! E o teu avô, que fez ele?

Os lábios de Nelly começaram a tremer, mas fez um esforço enorme sobre si própria e dominou-se.

— Regressou a casa quando era já de noite e quando ia a entrar tropeçou em mim e deu um grito: «Quem está aqui?» Disse-lhe que era eu. Ele”devia imaginar que eu com certeza já me tinha ido embora e, quando viu que eu continuava ali, ficou muito admirado e esteve a olhar para mim durante muito tempo. De súbito deu uma bengalada no degrau, passou de largo, abriu a porta e, após um minuto, voltou e trouxe-me uns cobres, tudo moedas de cinco copeques, atirando-as para a escada. «Isso é para ti — gritou —, toma; é tudo quanto tenho e diz à tua mãe que a amaldiçoo...», e fechou a porta. As moedas espalharam-se pela escada. Pus-me a apanhá-las na obscuridade, e o avô, pelos vistos, compreendeu que as moedas tinham rolado e que eu precisava de ter muito trabalho para procurá-las na escada. Então abriu a porta, trouxe uma vela, e assim, com luz, não tardou que eu as encontrasse. O avô pôs-se também a apanhá-las comigo, disse-me que deviam estar ali oitenta copeques e parecia agora mais brando. Quando voltei a casa dei as moedas à minha mãe e contei-lhe tudo. A minha mãe continuava pior e eu também estive doente toda a noite e na manhã seguinte ainda tinha febre. Mas só pensava numa coisa: porque teria o avô ficado furioso? E quando mamacha adormeceu, fui e saí para a rua e dirigi-me a casa do avô, mas parei no passeio. E foi então que passou aquele...

— Refere-se a Arkipov — disse eu —, o indivíduo de quem eu lhe falei a si, Nikolai Serguieitch... o que tinha combinação com a Bubnova e levou aquela sova. Era a primeira vez que Nelly o via... Continua, Nelly.

— Fi-lo parar e pedi-lhe um rublo de prata. Ele olhou para mim e perguntou-me: «Um rublo de prata?» Eu disse-Ihe: «Sim.» Então ele pôs-se a rir e disse-me: «Vem comigo.» Eu não sabia se havia de acompanhá-lo ou não. De repente passou junto de nós um velhinho com óculos de aros de ouro, que me ouviu estar a pedir o rublo de prata; dirigiu-se a mim e perguntou-me para que queria eu tanto dinheiro. Disse-lhe que a minha mamenka estava doente e que precisava desse dinheiro para os remédios. Ele perguntou-me onde vivíamos, tomou nota da morada e deu-me uma nota com o valor de um rublo de prata. Mas o outro, assim que viu o velho dos óculos afastou-se e não tornou a chamar-me mais. Fui a uma loja e troquei a nota. Embrulhei trinta copeques num papelinho e pu-los de lado, para a minha mamacha, guardei oito grivenes na mão e dirigi-me a casa do avô. Quando cheguei abri a porta, assomei à entrada, juntei o dinheiro e atirei-lho, de maneira que ele se espalhou pelo chão. «Aí tem, guarde o seu dinheiro! — disse-lhe. — A minha mãe não o quer, por vir de si, de si que a amaldiçoou!», gritei eu à porta e saí logo a correr.

Os olhos de Nelly cintilavam e olhou para o velho com uma expressão de desafio amigável.

— Fizeste muito bem! — disse Ana Andreievna sem olhar para Nikolai Serguieitch e apertando com força a mão de Nelly. — Era assim mesmo que era preciso proceder com ele. O teu avô era mau e duro de coração...

— Hum! — resmungou Nikolai Serguieitch.

— bom. E que mais, e que mais? — perguntou Ana Andreievna impaciente.

— Deixei de ir ver o avô e ele deixou de vir ver-me

respondeu Nelly.

— E então ficaste com a tua mãe? Ah, pobrezinha, pobrezinha!

— A minha mãe estava cada vez pior e raro era o dia em que se levantava da cama — continuou Nelly, a sua voz tremia e estrangulava-se-lhe. — Dinheiro, já não tínhamos nenhum, e eu comecei a sair com a mulher do capitão. E ela andava pelas ruas e também pedia esmola às pessoas e era disso que vivia. Costumava dizer-me que não era nenhuma mendiga, que tinha documentos onde constava a sua identidade e também que era pobre. Mostrava esses documentos às pessoas e davam-lhe dinheiro. Também me dizia que não era nenhuma vergonha pedir a toda a gente. Eu saía com ela e davam-nos esmola e era disso que vivíamos. Mamacha ficou a saber isto porque os vizinhos deram em lançar-lhe ern rosto que era uma mendiga e a própria Bubnova veio vê-la e disse-me que mais valia que me deixasse ir com ela e não andasse a pedir esmola. Já antes tinha ido ver a mamã e lhe levara dinheiro, e quando a mamã não o queria a Bubnova dizia: «Porque é tão orgulhosa?», e mandava-lhe comida. Mas quando disse aquilo de mim, a minha mamacha pôs-se a chorar e ficou assustada, mas a Bubnova começou a resmungar, porque estava bêbeda e dizia que eu andava a fazer de mendiga sem necessidade disso, e que saía com a mulher do capitão, e nessa mesmo noite expulsou-a de casa. Quando soube disso tudo mamenka pôs-se a chorar; depois, de repente, foi e levantou-se da cama, vestiu-se, pegou-me na mão e levou-me consigo. Ivan Alexandrovitch tentou detê-la, mas ela não consentiu. Mamenka mal podia andar, sentava-se constantemente no chão e eu ia-a amparando. Só dizia que ia procurar o avô e pedia-me que a levasse até lá; havia já algum tempo que anoitecera. De repente, fomos desembocar a uma grande rua. Aí, junto de uma casa havia carruagens paradas e saía muita gente, nas janelas brilhavam muitas luzes e ouvia-se música. Mamenka parou, cingiu-me a mim e disse-me: «Nelly, és pobre e toda a vida hás-de ser pobre; não vás com ninguém, ainda que te chamem e seja quem for. E ainda que pudesses estar, como aqueles que vês ali, rica e bem vestida, eu não o queria. Essa gente é má e cruel. Escuta o que eu te recomendo: conserva-te pobre, trabalha e pede esmola, e se alguém te chamar, responde: «Não quero nada consigo...» Foi isto o que a minha mãe me disse quando estava doente e eu hei-de obedecer-lhe toda a vida — acrescentou Nelly trémula de comoção, com a carita afogueada — e toda a vida servirei e trabalharei, vim para a vossa casa para servir e trabalhar e não quero ficar aqui na qualidade de filha...

— Basta, minha querida, basta! — exclamou a velhota abraçando muito Nelly. — A tua mamacha estava doente quando te dizia isso...

— Estava doida — observou o velho, cortante.

— Pode ser que estivesse doida — concordou Nelly, voltando-se, mal-humorada, para o velho —, pode ser que estivesse doida, mas foi o que ela me mandou e eu hei-de obedecer-lhe toda a vida. E quando disse isso, também desfaleceu.

— Meu Deus! — exclamou Ana Andreievna. — Doente, no meio da rua? E no Inverno?

— Os polícias queriam levar-nos, mas apareceu um senhor, perguntou a nossa morada, deu-me dez rublos e mandou levar a minha mãe a casa, na sua carruagem. Depois disso já a minha mamenka não tornou mais a levantar-se... E passadas precisamente três semanas morreu...

— E o pai, que fez, por fim? Perdoou-lhe? — interrogou Ana Andreievna, anelante.

— Não lhe perdoou — acrescentou Nelly, dominando-se a custo. — Uma semana antes de morrer, mamenka chamou-me e disse-me: «Nelly, vai outra vez ter com o avô, a última, e diz-lhe que venha ver-me e me perdoe. Diz-lhe que eu devo morrer num destes dias e te vou deixar sozinha no mundo. E diz-lhe também que me custa muito morrer...» Eu fui e chamei à porta do avô, ele abriu-a, mas quando me viu fez logo menção de fechá-la; eu agarrei-me à porta com ambas as mãos e gritei-lhe: «Mamacha está a morrer e chama por si. Venha vê-la...» Mas ele deu-me um empurrão e fechou a porta. Eu voltei para junto da minha mãe, deitei-me a seu lado, abracei-me a ela e não disse nada... Mamenka abraçou-me também e também nada me perguntou...

Quando Nelly chegou a este ponto, Nikolai Serguieitch apoiou uma mão sobre a mesa e levantou-se, mas depois de nos envolver a todos num olhar extremamente doloroso, deixou-se cair novamente no cadeirão, como se lhe tivessem faltado as forças.

— Bem; antes de morrer, no último dia, quase ao escurecer, a minha mãe chamou-me e disse-me: «Eu morro hoje, Nelly.» E quis continuar a falar mas não pôde. Eu olhei para ela, mas ela parecia que já não me via; apenas segurava com força a minha mão entre as suas. Eu, devagarinho, retirei a minha mão, saí de casa a correr e, sem parar de correr durante todo o caminho, dirigi-me à do avô. Quando me viu ele saltou da cadeira e ficou tão assustado que se pôs lívido e começou a tremer. Peguei-lhe na mão e só lhe disse isto: «A minha mãe está a morrer.» Então ele, de repente, pareceu voltar a si; pegou na bengala e deitou a correr atrás de mim. Até se esqueceu de pôr o chapéu, apesar de fazer frio. Agarrei nele e pus-lho, e saímos juntos a correr. Eu dizia-lhe que era preciso andar depressa e tomar uma caleche, porque a minha mãe estava a morrer, mas o avô só tinha oito copeques. Entretanto, mandou parar vários cocheiros e pôs-se a regatear com eles, mas eles riam-se e faziam troça de Azorka, porque, Azorka vinha connosco e nós continuávamos a correr. O avô cansava-se e respirava com dificuldade, mas apressava-se o mais que podia. De repente caiu e o chapéu fugiu-lhe. Apanhei-o, pus-lho, segurei-o pela mão e quando chegámos a casa era já quase noite... E a minha mãe já tinha morrido. Quando a viu, o avô juntou as mãos, estremeceu, aproximou-se dela, mas não disse nada. Eu, então, aproximei-me do cadáver da mãezinha, peguei no avô por um braço e gritei-lhe: «Aí tens, homem mau e cruel, aí tens. Olha. Olha!» O avô lançou um grito e caiu no chão como morto...

Nelly estremeceu; soltou-se do braço de Ana Andreievna e colocou-se no meio de nós, pálida, esgotada e espavorida. Mas Ana Andreievna correu para ela e, abraçando-a outra vez, gritou-lhe, como inspirada:

— Eu, eu serei tua mãe a partir deste momento, Nelly, e tu serás minha filha! Sim, Nelly, vamo-nos, deixemos todos esses seres maus e duros! Que continuem a escarnecer do próximo e que Deus, que Deus os proteja! Vamo-nos, Nelly, vamo-nos daqui, vamo-nos!

Nunca, nem antes nem depois, a vi em tal estado, e nunca pensei que fosse capaz de comover-se a tal ponto. Nikolai Serguieitch, erguendo-se do seu lugar, perguntou numa voz sonora e entrecortada:

— Mas onde vais, Ana Andreievna?

— Buscá-la a ela, à minha filhinha Natacha! •— exclamou a velha.

E puxou por Nelly, em direcção à porta.

— Pára, pára, espera!

— Qual espera, homem duro e mau! Já esperei muito, mas agora, adeus!

Depois de lhe ter respondido isto, a velha voltou-se, olhou para o marido e mudou de cor. Nikolai Serguieitch estava diante dela, pegou no chapéu e, a tremer, desajeitado, pôs à pressa, ele sozinho, o sobretudo.

— Tu também... tu também vens comigo! — exclamou ela estendendo as mãos, suplicante, e olhando incrédula para o marido, como se não se atrevesse a acreditar em semelhante felicidade.

— Natacha! Onde está a minha Natacha? Onde está? Onde está a minha filha? — foram os gritos que brotaram por fim do peito do velho. — Restituam-me a minha filha Natacha! Onde está ela, onde está?

E tirando das minhas mãos a bengala que eu já lhe tinha estendido, dirigiu-se precipitadamente para a porta.

— Perdoou-lhe! — exclamou Ana Andreievna.

Mas o velho nem chegou a sair. A porta abriu-se de repente e Natacha, pálida, de olhos cintilantes, como se estivesse cheia de febre, entrou na sala. Trazia a roupa toda esgarçada e molhada da chuva. O lenço com que cobria a cabeça escorregara-lhe para a nuca e nas madeixas do seu cabelo, fartas e revoltas, brilhavam grossas gotas de chuva. Entrou a correr, viu o pai e, dando um grito, deitou-se a seus pés de joelhos, estendendo as mãos para ele.

 

Ele apressou-se a levantá-la...

Segurou-a e erguendo-a no ar, como a uma menina, levou-a para o seu cadeirão, sentou-a nele e deixou-se cair a seus pés, de joelhos. Beijou-lhe as mãos, os pés; beijava-a apressadamente, olhava-a avidamente, como se não quisesse acreditar que a tinha novamente a seu lado, que outra vez a via e ouvia... a ela, à sua filha, à sua Natacha. Soluçando, Ana Andreievna aproximou-se dela, apertou a sua cabeça contra o peito e ficou tão comovida com esse amplexo que nem teve forças para dizer uma palavra.

— Alma minha! Minha vida! Alegria do meu coração! — exclamou o velho com incoerência, segurando as mãos de Natacha, como um apaixonado, olhando o seu rosto abatido e pálido, mas tão bonito, e os seus olhos nos quais havia lágrimas. — Minha alegria, filha da minha alma! — repetia e tornava a olhá-la em silêncio e como num alvoroço descomedido. — Quem, quem é que me disse que estavas mais magra! — dizia com precipitação, com um riso infantil, dirigindo-se a nós e sem se levantar do chão, de joelhos, a seus pés. — Um bocadinho mais magra, é verdade, um pouco pálida, mas olhem, que bonita! Ainda mais do que antes, ainda mais! — acrescentou, acalmando-se involuntariamente sob o efeito da agradável dor que parecia querer partir-lhe a alma em duas.

 

— Levanta-te, papá, levanta-te! — disse Natacha. — Que eu também queria beijar-te...

— Oh, minha filha! Ouves, ouves, Anutchka, como ela veio!

E abraçaram-se convulsivamente.

— Não, Natacha, não. Eu tenho de continuar a teus pés até que o meu coração sinta que tu lhe perdoas, porque agora, nunca, nunca poderei merecer o teu perdão! Eu repeli-te, amaldiçoei-te, estás a ouvir, Natacha? Eu amaldiçoei-te! Tive coragem para isso! Mas tu, tu, Natacha, acreditaste que eu te amaldiçoasse? Acreditaste, sim... acreditaste! Não devias tê-lo acreditado! Não devias, não devias, de maneira nenhuma! Minha mazinha! Porque não vieste para mim? Tu bem sabias que eu te receberia! Oh, Natacha, deves lembrar-te de como eu gostava de ti, dantes! Pois bem, agora e durante todo esse tempo gostei de ti o dobro, gostava de ti agora mil vezes mais que dantes. Queria-te com loucura! Teria dado a minha alma por ti, o meu sangue, teria arrancado o coração para pô-lo a teus pés, ó alegria da minha vida!

— Então, vá, beije-me, homem cruel, nos lábios, no rosto, como beija uma mãe! — esclamou Natacha numa voz dolente, débil, entrecortada”por lágrimas de júbilo.

— E nos olhinhos também! Nos olhinhos também! Como dantes, lembras-te? — repetiu o velho depois de um meigo abraço à sua filhinha. — Oh, Natacha! Sonharias de noite comigo, tu? Eu sonhava contigo quase todas as noites, sonhava que voltavas para casa e eu chorava por ti, e uma vez tu vieste, eras pequenina, lembras-te? Como quando tinhas só dez anos e começavas a aprender piano... e trazias um vestidinho curto e uns sapatinhos muito bonitos e umas mãozinhas muito cor-de-rosa... Lembras-te de como ela tinha as mãos rosadas, nesse tempo, Anutchka? E vieste para mim e puseste-te de joelhos e abraçaste-me... Mas tu, tu, que menina tão má! Tu pudeste pensar que eu te tinha amaldiçoado, que eu não te receberia se voltasses para casa? Pensaste uma coisa dessas? Pois vês que eu... Ouve, Natacha, para que fiques a saber: eu ia muitas vezes até tua casa, sem a tua mãe saber, sem ninguém saber; e parava debaixo das tuas janelas, à espreita; algumas vezes ficava lá metade do dia, às voltas para trás e para diante, no passeio em frente. Podia ser que saísses para que eu pudesse ao menos ver os teus olhos! E na tua janela, ao escurecer, muitas vezes havia luz. Quantas vezes eu, Natacha, ia até tua casa, ainda que fosse só para ver brilhar essa luz e vislumbrar a tua sombra na janela e dar-te as boas-noites! E tu também me davas as boas-noites? Lembravas-te de mim? Pressentia o teu coração que eu estava ali, ao pé da tua janela? Quantas vezes, durante o Inverno, já noite avançada, subia a tua escada, parava no patamar sombrio e punha-me a escutar junto da porta! Podia ser que ouvisse a tua vozinha! Tu podias estar a rir-te! E tinha-te eu amaldiçoado! Pois, ouve. para que saibas: uma noite fui até tua casa com a intenção de perdoar-te, cheguei junto da porta mas depois retrocedi... Oh, Natacha! Ergueu-se, levantou-a da cadeira e estreitou-a fortemente contra o seu peito.

— Estás outra vez aqui, junto do meu coração! — exclamou. — Oh, agradeço-te, meu Deus, por tudo, por tudo, tanto pela Tua cólera como pela Tua bondade! E pelo Teu sol que brilha agora, depois da chuva, sobre nós! Dou-Te graças por este momento! Oh! Podem ter-nos humilhado, podem ter-nos ofendido, mas estamos outra vez juntos e, agora, que cantem vitória esses orgulhosos e soberbos que nos humilharam e ofenderam! Que nos atirem pedras! Não receies, Natacha... Nós caminharemos de mãos dadas e eu dir-lhes-ei: «Esta é a minha querida, a minha muito querida filha, a minha filha inocente que vocês ofenderam e humilharam mas que eu amo e abençoo pelos séculos dos séculos!»

— Vânia! Vânia! — exclamou Natacha com uma voz fraca, estendendo-me a mão por entre o abraço do pai.

Oh, nunca mais esquecerei que se lembrou de mim nesse instante e me chamou:

— Onde está Nelly? — perguntou o velho olhando à sua volta.

— Ah, onde estará? — exclamou a velhita. — Minha querida! Esquecemo-nos dela!

Mas ela não estava na sala. Sem que déssemos por isso, escapara-se para o quarto de dormir. Dirigimo-nos todos para lá. Nelly estava escondida num canto, atrás da porta, e escondia-se de nós, medrosa.

— Nelly, que tens tu, minha filha? — exclamou o velho fazendo menção de abraçá-la.

— E mamacha? Onde está mamacha? — exclamou, como se tivesse enlouquecido. — Onde está a minha mãe? — tornou a exclamar estendendo-nos as mãos trementes.

E, de repente, um grito horrível, espantoso, escapou-se do seu peito, espasmos contraíram o seu rosto e rolou por terra com um ataque violentíssimo.

                   Últimas recordações

Meados de Junho. Dia quente e sufocante. É impossível permanecer na cidade. Pó, cal, casas em obras, pedras partidas, ar envenenado pelas emanações... Mas eis que, oh alegria!, se anuncia uma tempestade. Pouco a pouco, o céu enevoa-se; o vento levanta-se, empurrando à sua frente nuvens de pó da cidade. Algumas grossas gotas caem pesadamente sobre a terra e depois parece que todo o céu desaba, autênticas torrentes de água se precipitam sobre a cidade. Quando, passada meia hora, o sol torna a brilhar, abro a janela do meu quarto e, avidamente, aspiro o ar fresco com o meu peito cansado. Extasiado, de boa vontade deixaria a pena e todos os meus trabalhos, e até o próprio editor, e iria com os meus para Vassilievski. Mas por grande que seja este desejo, apresso-me, no entanto, a retomar a tarefa e com novo ardor lanço-me sobre os papéis. É preciso acabar, seja como for! O editor manda e, se não for assim, não dá dinheiro.

Lá, estão à minha espera; mas em compensação esta noite ficarei livre, tão livre como o vento; o serão me compensará destes últimos dias, nos quais escrevi três folhas.

E eis que o trabalho termina, finalmente, largo a pena e levanto-me, com dores nas costas e no peito, e enxaqueca. Sei que neste momento tenho os nervos abalados até mais não poder ser e julgo escutar as últimas palavras que me disse o meu velho médico: «Não, não há saúde nenhuma que resista a semelhante esforço, porque isso é impossível.» No entanto, até agora tem sido possível. A cabeça anda-me à roda; mal posso suster-me de pé, mas uma alegria, uma alegria infinita enche o meu coração. O meu romance está concluído, e o editor, embora lhe deva já bastante, deve dar-me com certeza alguma coisa, quando vir o original nas suas mãos, ainda que sejam só cinquenta rublos, e eu há já muito que não vejo em meu poder tanto dinheiro junto. Liberdade e dinheiro! Cheio de entusiasmo, pego no chapéu, meto o manuscrito debaixo do braço e deito a correr, para ver se vou encontrar ainda em casa o nosso caríssimo Alexandre Petrovitch.

Encontro-o mas disposto já a sair. Ele acaba também por sua vez de fazer um contrato, não literário, mas muito mais proveitoso, e depois de despedir certo judeu melancólico, com o qual esteve em conferência duas horas seguidas no seu gabinete, estende-me afectuosamente a mão e, com a sua simpática, pastosa voz de baixo, pergunta-me pela minha saúde. E um bom homem e eu estou-lhe seriamente agradecido. Que culpa tem ele que lhe coubesse em sorte ser toda a sua vida, no campo literário, somente editor? Disse para si que a literatura precisava de editores e disse-o muito oportunamente. Honra e glória lhe seja por isso... Glória editorial, naturalmente!

com um sorriso amável fica a saber que o romance está pronto e que o próximo número da revista contará assim com uma secção principal, admira-se de que eu tenha podido terminar qualquer coisa, e di-lo com a intenção de ser subtil. Depois disto vai ao seu cofre de ferro para dar-me os prometidos cinquenta rublos e, entretanto, estende-me um volumoso jornal inimigo, indicando-me algumas linhas na secção de crítica, onde dedicam duas palavras ao meu último romance.

Olho. É um artigo do Copista. Aí, não me insultam nem me elogiam, e fico muito satisfeito. Mas o Copista, diz, entre outras coisas, que a leitura das minhas obras, de uma maneira geral, cheira a suor, isto é, que eu devo suar, fazer um grande esforço para fazê-las; a tal ponto as enfeito e retoco que as deixo sem graça nenhuma.

Rio-me com o editor. Prometo-lhe escrever o meu próximo romance em duas noites; e agora, em dois dias e duas noites, escrevi duas folhas. Se esse Copista que censura a excessiva dificuldade e a pesada lentidão dos meus trabalhos soubesse disto!

— No entanto, o senhor é que tem a culpa, Ivan Petrovitch. Porque se descuida assim tanto a ponto de ter necessidade de trabalhar à noite?

Não há dúvida de que Alexandre Petrovitch é uma boa criatura, embora tenha a sua opinião literária, sobretudo diante daqueles que, como ele mesmo suspeita, lhe percebem as intenções. Mas eu não quero discutir literatura com ele; guardo as folhas de papel e pego no chapéu. Alexandre Petrovitch dirige-se a Ostrov, à sua casa de campo, e quando me ouve dizer que vou a Vassilievski, oferece-se generosamente para me levar até lá no seu fiacre.

— Tenho um fiacre novo. Já o viu? É esplêndido. Subimos. A carruagem, na verdade, era magnífica e

Alexandre Petrovitch, nestes primeiros dias, sente uma grande complacência e uma espécie de necessidade espiritual de conduzir nela os seus amigos.

Na carruagem, Alexandre Petrovitch torna a insistir nas suas opiniões acerca da literatura contemporânea. Não se sente inibido na minha presença e, com toda a tranquilidade, repete-me várias opiniões alheias, que deve ter ouvido nestes dias a algum literato cujo critério lhe merece respeito. Por sinal que, às vezes, lhe acontece apreciar coisas bem estranhas. Acontece-lhe também modificar as opiniões dos outros, ou interpô-las onde não ficam bem, de maneira que faz assim uma grande barafunda. Eu estou sentado, admiro a diversidade e a fantasia dos indivíduos apaixonados. «Bem, eis aqui um homem — penso para comigo — que deve ganhar dinheiro, com certeza, mas que apesar disso ainda precisa da fama literária, da fama de bom editor e de crítico.»

Neste momento pôe-se a expor-me pormenorizadamente um pensamento literário que há três dias me ouviu, e pelo qual há três dias tivemos uma discussão, o que não obsta a que, agora, o apresente como seu. Mas fraquezas destas costumam acontecer a Alexandre Petrovitch a todos os instantes, e esta sua fraqueza inocente é conhecida de todos os seus amigos. Como ele vai contente, discursando no seu carro! Como está contente com a sua sorte e vaidoso! Mantém uma dissertação de literato, e com a sua pastosa e pundonorosa voz de baixo abarrota de erudição. Pouco a pouco assume um tom liberal e passa a uma convicção levemente céptica, de que a nossa literatura, e a literatura de uma maneira geral, seja ela qual for e em todos os tempos, não pode ser honesta nem modesta e que não passa de uma troca de safanões, sobretudo nos começos literários.

Digo para comigo que, para Alexandre Petrovitch, todo o escritor modesto e sincero, se não é tolo é pelo menos um ingénuo, devido a essa mesma honestidade e sinceridade. É claro que semelhante opinião deriva da extraordinária ingenuidade de Alexandre Petrovitch.

Mas deixei já de escutá-lo. Na ilha Vassilievski saio do fiacre e corro para os meus. Eis aqui já a rua treze e aqui está a sua casinha. Quando me vê, Ana Andreievna ameaça-me com o dedo, estende-me as mãos e faz-me um sinal para que não faça barulho.

— Nelly acaba de adormecer. Pobrezinha! — diz-me em voz baixa. — Por amor de Deus, não faça barulho! Ela está tão fraca, coitadinha! Andamos preocupados. O médico diz que, por agora1, não é nada. Mas quem é que consegue arrancar-lhe a verdade, ao seu médico? E não será sua a culpa, Ivan Petrovitch! Estávamos à sua espera, esperávamo-lo para o almoço... e há dois dias que não aparece...

— Mas se há três dias os avisei que durante dois não poderia vir! — disse eu em voz baixa a Ana Andreievna. — Precisava de acabar um trabalho...

— Mas tinha-nos prometido que viria hoje almoçar connosco. Porque não veio? Nelly levantou-se da cama de propósito, coitadinha, e sentámo-la muito sossegada na sua poltrona. Foi assim mesmo, levantou-se para vir assistir ao almoço. «Quero acompanhar-vos à mesa, a vós e a Vânia.» E o nosso Vânia sem aparecer. E já são quase sete horas! Por onde tem andado? Sempre me saiu um maroto! Pois fique sabendo que ela estava tão desassossegada que eu já não sabia o que havia de dizer-lhe... Felizmente que por fim acabou por adormecer. Pobre anjo! Nikolai Serguieitch saiu, morto de fome, só com o chá, e eu estou quase a cair de fraqueza... Saiu, ele, Ivan Petrovitch; calculo que deve ter ido a Perm, é uma ideia que eu tenho...

— E Natacha?

— Está no jardim, meu amigo, no jardim! Vá vê-la... Ela também me parece... Não posso compreender... Ah, Ivan Petrovitch, sinto-me infeliz! Quer convencer-me de que anda contente e alegre, mas a mim não me engana ela... Vá vê-la, Vânia, e diga-me depois em segredo, o que acha... Está a ouvir-me?

Mas eu já não oiço Ana Andreievna e corro para o jardim. Esse jardinzinho pertence à casa; tem vinte passos de comprimento e outro tanto de largura, e está todo verde.

Há nele três árvores fortes, velhas e frondosas, alguns tenros vidoeiros, alguns sebes de lilaseiros e madressilvas, um cantinho de framboesas, dois canteiros de morangueiros e dois estreitos e sinuosos carreirinhos, um à largura e outro transversal. O velho está entusiasmado com este jardinzinho e afirma que não tardará a dar míscaros. O importante é que Nelly gosta muito do jardinzinho e trazem-na com frequência, num cadeirão, para o caminho traseiro, e que Nelly é agora o ídolo de toda a casa. Mas eis aqui Natacha; vem receber-me com alegria e estende-me a sua mão. Como está magra e pálida! Se ainda há tão pouco tempo esteve doente!

— Então, já o acabaste todo, Vânia?—perguntou-me ela.

— Todo, todo! Tenho a noite por minha conta.

— Ainda bem, graças a Deus! Trabalhaste muito depressa? Fizeste um grande esforço?

— Que havia eu de fazer? Mas isso não tem importância. Eu trabalho sempre debaixo de uma certa tensão nervosa, debaixo de uma certa excitação; vejo assim mais claramente as coisas, sinto com mais vivacidade e profundidade, e até o temperamento me obedece, de maneira que o trabalho forçado é o que me sai sempre melhor...

— Ah, Vânia, Vânia!

Reparo que Natacha, nos últimos tempos, se interessa estranhamente pelos meus êxitos literários, pela minha fama. Tem uma nota de tudo quanto publiquei o ano passado; pergunta-me minuciosamente pelos meus planos futuros; segue com atenção todas as críticas que me dedicam; aborrece-se com algumas e empenha-se decididamente em que eu sobressaia na literatura. Exprime o seu desejo com tal energia e altivez que fico admirado.

— Simplesmente tu precipitas-te, Vânia — diz-me ela. — Fazes esforços demasiados e precipitas-te e, além disso, estragas a tua saúde. Repara em C..., que em dois anos só publicou dois romances e em N... que, em dez, apenas escreveu um, ao todo. Mas em compensação, como tudo isso está correcto e primoroso! Não encontras aí nem um só descuido!

— Sim, mas esses têm a vida garantida e não precisam de escrever a prazo fixo, ao passo que eu... sou um cavalo de posta. bom, mas tudo isto é absurdo. Deixemos isso, minha amiga. Que há de novo?

— Muitas coisas. Em primeiro lugar, uma carta dele.

— Outra?

— Outra — e entregou-me uma carta de Aliocha.

Era a terceira depois da separação. A primeira escrevera-a quando ainda estava em Moscovo e escreveu-a num arrebatamento. Apercebera-se de que as circunstâncias se tinham transformado de tal maneira que lhe era impossível regressar de Moscovo a Petersburgo, conforme pensara antes da separação. Na segunda carta apressava-a a anunciar-lhe que dentro de dias estaria connosco, para casar-se o mais depressa possível com Natacha, coisa que estava resolvida e que não haveria força alguma no mundo capaz de impedir. E, no entanto, depreendia-se do tom geral da carta que estava desesperado, que uma influência estranha se apoderara dele por completo e que nem ele mesmo acreditava no que dizia. Recordava, entre outras coisas, que Kátia era a sua providência e que era ela a única pessoa que o consolava e animava.

Foi com avidez que abri a terceira carta. Era uma carta de duas páginas, escrita de uma maneira incoerente, desalinhada, escrita à pressa com uma letra indecifrável, salpicada de borrões e de lágrimas. Começava Aliocha por dizer que renunciava a Natacha e pedia-lhe que o esquecesse. Esforçava-se por mostrar que o seu casamento era impossível, que certa influência estranha, hostil, era mais forte que tudo, e que, finalmente, tinha de ser assim; que ele e Natacha, juntos, seriam infelizes, porque não eram iguais. Mas não podia conter-se e, de repente, pondo de parte os raciocínios e as demonstrações, começava a dizer, de repente e sem transição, sem largar a pena, que procedera mal para com Natacha; que era um homem perdido e não tinha forças para opor-se à vontade do pai, que tinha aparecido na aldeia. Dizia também que não se sentia com energia suficiente para descrever a sua dor; confessava, entre outras coisas, que se sentia completamente capaz de fazer Natacha feliz; punha-se, de repente, a demonstrar que eram os dois muito parecidos; rebatia as afirmações paternas com teimosia, com rancor; desesperado, abalançava-se à descrição do quadro da felicidade de toda a sua vida, da vida que se depararia aos dois, a ele e a Natacha, se chegassem a casar-se; amaldiçoava-se a si próprio pela sua falta de carácter e... terminava despedindo-se para sempre. Essa carta estava escrita com dor; era evidente que devia tê-la amarrotado, completamente fora de si; a mim vieram-me as lágrimas aos olhos... Natacha deu-me outra carta, de Kátia. Esta carta tinha chegado dentro do mesmo sobrescrito que a de Aliocha, mas fechada. Kátia, muito laconicamente, em poucas linhas, participava-lhe que Aliocha estava de facto muito triste, que chorava muito e mostrava indícios de desespero e parecia até adoentado; mas que ela estava a seu lado e ele seria feliz. Entre outras coisas esforçava-se Kátia por explicar a Natacha, para que esta não se afligisse muito, que Aliocha não tardaria a consolar-se e que a sua dor não devia ser muito profunda. «Nunca se esquecerá de si — acrescentava Kátia —, e não poderá esquecê-la nunca, porque não tem temperamento para isso. Ama-a muito; amá-la-á sempre e, se deixasse de amá-la algum dia, se alguma vez deixasse de sentir tristeza ao evocar a sua recordação, eu própria deixaria de amá-lo imediatamente por esse facto.»

Restituí as duas cartas a Natacha. Troquei um olhar com ela e não dissemos nada. Assim tínhamos feito também quando das duas primeiras cartas e, de uma maneira geral evitávamos falar do passado, como se tivéssemos feito essa combinação. Ela sofria muito, que eu bem via, mas não queria dá-lo a entender. Depois do regresso a casa dos pais esteve de cama durante três semanas, com febre, e agora encontrava-se apenas em convalescença. Também falávamos da próxima mudança das circunstâncias, apesar de ela saber que iriam dar um destino ao velho e que em breve teríamos de nos separar. Mas apesar disso mostrava-se sempre carinhosa e atenciosa para comigo e preocupava-se também com tudo quanto me dizia respeito, nesse tempo; escutava com muita atenção e firmeza tudo quanto eu lhe dizia de mim, de tal maneira que isso chegava a custar-me, pois parecia que queria recompensar-me por causa do passado. Mas não tardou que este escrúpulo meu desaparecesse; compreendi que ela tinha outro desejo muito diferente; que me amava, simplesmente; que me amava muito, que não podia viver sem mim e não esquecia coisa alguma que a mim se referisse, e de uma maneira tal que nunca uma irmã amou o seu irmão assim. Eu sabia muito bem que a nossa separação iminente lhe dilacerava o coração; que Natacha sofria, e ela sabia também que eu não podia viver sem ela; mas não falávamos disto, apesar de falarmos muito pormenorizadamente dos próximos acontecimentos.

Perguntei-lhe por Nikolai Serguieitch.

— Penso que não se demora — respondeu-me’Natacha. — Prometeu estar aqui para o chá.

— Anda a tratar do seu destino?

— Sim; aliás, hão-de dar-lhe um destino, com certeza, mas parece-me que hoje, não foi por causa disso que saiu — acrescentou, pensativa. — Creio que disso tratará amanhã.

— Então porque saiu?

— Porque eu tinha tido carta... Está a tal ponto apaixonado por mim — acrescentou Natacha, depois de um silêncio — que até me custa, Vânia. Parece que até em sonhos não vê mais ninguém senão a mim. Tenho a certeza de que, tirando a minha saúde, a minha disposição, os meus pensamentos, não se preocupa com mais nada. Todos os meus desgostos se reflectem nele. Eu própria vejo os esforços que ele faz, às vezes desajeitadamente, para conter-se e não dar a entender o que sofre por minha causa; finge alegria e faz por se rir e por nos fazer rir a nós. A mamã também não acredita na sua alegria e suspira... É tão desajeitado! Uma alma ingénua! — acrescentou, sorrindo. — Hoje, por exemplo, quando eu recebi a carta, não teve outro remédio senão deitar logo a correr, para não encontrar o meu olhar... Eu gosto mais dele que de mim própria, mais que de toda a gente, Vânia — acrescentou, baixando a cabeça e apertando-me a mão. — Até mais que de ti...

Demos mais duas voltas ao jardinzinho antes que ela recomeçasse a falar.

— Esta noite, Masloboiev virá também ver-nos — disse.

— Sabes porque vem ele? A mamã, não sei porquê, tem fé nele. Pensa que ele sabe tanto de tudo (de leis e de outras coisas) que poderá tratar de qualquer assunto. Sabes em que é que ela anda agora a magicar? Pois custa-lhe muito que eu não tenha chegado a ser princesa. Este pensamento trá-la num desassossego e parece-me que acabou por desabafar com Masloboiev. com o meu pai não se atreve ela a falar destas coisas e pensa: «Não se poderia conseguir qualquer coisa por meio de Masloboiev, ainda que tivesse de recorrer às leis?» Pelos vistos Masloboiev não a contradiz e ela vai-lhe oferecendo aguardente — acrescentou Natacha sorrindo.

— Não falemos mais desse velhaco. Mas como é que tu sabes isso?

— Ora, porque foi a própria mamã quem mo deu a entender, por alusões...

— E Nelly? Como está? — perguntei.

— Fazes-me admirar, Vânia. Só agora é que perguntas por ela — disse Natacha em tom de censura.

Nelly era o ídolo de todos naquela casa. Natacha gostava muito dela e Nelly correspondia-lhe finalmente com todo o seu coração. Pobre pequena! Não podia imaginar que existissem no mundo seres assim, que pudessem gostar tanto dela, e eu via com prazer que o seu temperamento arredio se ia abrandando e que a todos abria a sua alma. Apoderava-se de todo aquele carinho que a rodeava, com um ardor doentio, por aversão a todo o passado, que gerara nela a desconfiança, o aborrecimento e a inflexibilidade. Aliás, ainda por muito tempo Nelly se mostrara obstinada; ocultou de nós, de propósito, as lágrimas de reconciliação que afluíam aos seus olhos, até que finalmente se nos entregou por completo. Queria muito a Natacha e depois afeiçoou-se ao velho. Também eu me tornei tão indispensável para ela, que caía doente quando tardava um pouco mais a aparecer. Da última vez, quando me despedi por dois dias, para terminar definitivamente o meu trabalho, tive de convencê-la... com muitos rodeios, claro. No entanto, Nelly tinha muito pudor de pôr a descoberto os seus sentimentos, com demasiada franqueza...

Dava muita preocupação a todos nós. Tacitamente, sem a menor discussão, ficou resolvido que já não sairia mais de casa de Nikolai Serguieitch, mas, entretanto, a data da partida aproximava-se e ela estava cada vez pior. Adoecera no dia em que eu a levei a casa dos velhos, no dia em que estes se reconciliaram com Natacha. Mas que culpa tinha eu? Doente, sempre ela tinha estado. A doença já antes se fora desenvolvendo gradualmente, mas agora começava a agravar-se com extraordinária rapidez. Não sei nem posso descrever exactamente o seu mal. Os ataques, é verdade, repetiam-se agora com mais frequência que antes; mas o principal era um certo esgotamento e enfraquecimento de todas as suas energias, febre e excitabilidade contínuas... o que, tudo junto, acabou por conduzi-la, nos últimos dias, ao extremo de não poder já levantar-se da cama. E, coisa estranha, quanto mais a doença se apoderava dela, mais comunicativa e carinhosa Nelly se punha para connosco. Três dias antes pegara-me na mão quando eu passei junto da sua caminha e puxou-me para si. No quarto não estava mais ninguém. O seu rosto queimava (estava espantosamente fraca) e os seus olhos pareciam deitar fogo. Apertou-se contra mim num arrebatamento convulsivo e, quando eu me inclinava para ela, cingiu-me com força o pescoço, com as suas mãozinhas morenas, magras, deu-me um beijo e, depois, logo a seguir, pediu-me que chamasse Natacha. Nelly queria a todo o custo que Natacha se sentasse na beira da cama e a contemplasse.

— Eu também tinha muita vontade de olhar para ela — dizia. — E ontem vi-a em sonhos e esta noite hei-de vê-la também... Eu sonho muito consigo... todas as noites...

Além de mim, gostava de Nikolai Serguieitch, mais do que ninguém. É preciso dizer que Nikolai Serguieitch gostava quase tanto dela como de Natacha. Tinha um jeito especial para fazer rir e distrair Nelly. Assim que ele assomava à porta do quarto, logo ela se punha a rir e até com meiguice. A doentinha alegrava-se como uma criança, gracejava com o velho, ria-se dele, contava-lhe os seus sonhos e o velho ficava tão contente, tão vaidoso, ao ver a sua filhita Nelly, que cada dia saía dali mais entusiasmado com ela.

— Foi Deus que no-la mandou como recompensa dos nossos sofrimentos — disse-me uma vez ao sair do quarto de Nelly, depois de lhe ter deitado a bênção, como costumava, todas as noites.

Todos os dias, ao fim da tarde, quando nos reuníamos (Masloboiev ia também por ali quase todas as tardes), e também o velho médico costumava fazer-nos companhia, pois ganhara amizade aos Ikmenieves, traziam-nos também Nelly no seu cadeirão e colocavam-na junto da mesa-redonda. Abriam a porta da varanda e víamos então todo o jardinzinho verde, iluminado pelo Sol poente. Dele subia o perfume da erva fresca e dos lilases desabrochados. Nelly, sentada na sua poltrona, olhava para todos amigavelmente e escutava a nossa conversa. Às vezes reanimava-se e começava também a falar... Mas quase sempre, nesses momentos, todos nós a escutávamos com extraordinária inquietação, pois nas suas recordações havia casos sombrios em que não era possível tocar. Tanto eu como Natacha e os Ikmenieves sentíamos e compreendíamos toda a nossa culpa para com ela a partir do dia em que, tremente e esgotada, se vira obrigada a contar-nos a sua história. Sobretudo o médico era inimigo dessas evocações e esforçava-se geralmente por mudar de conversa. Nesses casos Nelly procurava não nos dar a entender que compreendia os nossos esforços e punha-se a rir do médico ou de Nikolai Serguieitch.

E, no entanto, estava cada vez pior. Tornara-se extremamente sensível. O seu coração pulsava com irregularidade. O médico dizia-me que podia morrer de um dia para o outro.

Eu não falei disto aos Ikmenieves, para não os alarmar. Nikolai Serguieitch estava firmemente convencido de que ela havia de pôr-se boa durante a viagem.

— Olha, o papá já voltou — disse Natacha, que ouvira a sua voz. — Vamos ter com ele, Vânia!

Assim que entrou, Nicolau Serguieitch começou a falar em voz alta. Ana Andreievna teve de fazer-lhe também um sinal com as mãos. O velho conteve-se imediatamente e, quando nos viu, a mim e a Natacha, começou a contar-nos o resultado das suas diligências, com precipitação e em voz baixa. O terreno que pedira estava já à sua disposição e sentia-se muito contente.

— Daqui a duas semanas teremos de pôr-nos a caminho -— disse, esfregando as mãos e olhando, solícito, de soslaio, para Natacha. Esta respondeu-lhe com um sorriso e abraçou-o, e com isso imediatamente se desvaneceram as suas dúvidas.

— Vamos para lá, vamos para lá, meus amigos! — exclamou ele, alegre. — Só temos pena de nos separarmos de ti, Vânia...

Devo fazer notar que nem uma só vez me tinha proposto viajar com eles, o que, a avaliar pelo seu carácter, infalivelmente teria feito... noutras circunstâncias, isto é, se não soubesse do meu amor por Natacha.

— Bem, que se há-de fazer, meus amigos, que se há-de fazer? Tenho muita pena, Vânia, mas a mudança de ares vai dar a todos nova vida... A mudança de lugar... quero dizer, a mudança de tudo! — acrescentou, olhando outra vez para a filha.

Tinha fé naquilo e estava contente com a sua fé.

— Mas... e Nelly? — disse Ana Andreievna.

— Nelly? Ah, sim, é verdade... Coitadinha, está doentita; mas com certeza que, daqui até lá se há-de pôr boa. Agora já está melhor, não achas, Vânia? — disse, um pouco assustado, e olhou-me com inquietação, como se eu tivesse o dever de dissipar as suas dúvidas.

— Como está? Como dormiu? Não lhe aconteceu nada? Sabes uma coisa, Ana Andreievna? Vamos pôr uma mesinha no terraço; levaremos para lá o samovar, sentar-nos-emos todos, e Nelly juntamente connosco... Verás como vai ser bom. Mas ela ainda não teria acordado? vou vê-la. Só olhar... Não te preocupes! — acrescentou, ao ver que Ana Andreievna tornava a agitar as mãos.

Nelly já tinha acordado. Passado um quarto de hora, todos nós nos encontrávamos sentados à volta da mesa, para o chá da tarde.

Trouxeram Nelly na sua poltrona. O médico apareceu, bem como Masloboiev, que trouxe um ramo de lilases para Nelly; mas parecia um pouco preocupado e triste.

De facto, Masloboiev ia ali quase diariamente. Disse já que todos nós, e sobretudo Ana Andreievna, gostávamos muito dele, mas nunca nos lembrávamos dos serviços de Alexandra Semionovna; nem o próprio Masloboiev se lembrava deles. Quando Ana Andreievna soube por mim que Alexandra Semionovna ainda não tinha conseguido fazer dele seu marido segundo a lei, tomou a resolução de tratar desse assunto; mas falar dele, em casa, era impossível. A própria Ana Andreievna respeitava este princípio, embora fosse fazendo muitos projectos. Pode ser que, se Natacha não estivesse ali e, sobretudo, se não tivesse acontecido o que aconteceu, pode ser que não estivesse com tantos cuidados.

Nessa tarde Nelly estava especialmente murcha e também preocupada com alguma coisa. Dir-se-ia que sofrera um pesadelo e que pensava nele. Mas o presente de Masloboiev dispô-la bem e contemplou com prazer as flores que haviam colocado diante dela num vaso.

— Já vejo que gostas muito de flores, Nelly — disse o velho. — Olha! — acrescentou, como se lhe tivesse surgido uma ideia. — Amanhã... Também... Bem, depois verás!

— Gosto — respondeu Nelly — e lembro-me de como uma vez demos um ramo de flores à minha mãezinha. A minha mamacha, quando nós ainda estávamos lá — lá, significava no estrangeiro — esteve uma vez um mês inteiro muito doente. Eu e Heinrich combinámos que, quando ela se levantasse da cama e saísse pela primeira vez do quarto, onde tinha estado um mês inteiro, havíamos de encher de flores a casa toda. E assim fizemos. Uma noite, a mamã disse que, no dia seguinte, de manhã, se levantaria sem falta para ir almoçar connosco. Levantámo-nos muito cedinho. Heinrich trouxe muitas flores e, os dois, enchemos a casa de folhas verdes e grinaldas. Havia hera e também umas flores muito largas... que já não sei como se chamam, e ainda outras que se colam a tudo, e também umas flores grandes, brancas, e narcisos, que são as flores de que eu gosto mais, e rosas, umas rosas lindíssimas, e muitas, muitas outras flores. Armámos grinaldas e ramos e, tantas flores havia ali, que pareciam plantas completas em grandes vasos; espalhámo-las por todos os cantos e, quando apareceu, a mamã ficou muito admirada e muito contente... Ainda me lembro.

Nessa noite Nelly estava especialmente fraca e nervosa. O médico olhava-a, inquieto. Mas ela tinha muita vontade de falar. E, durante muito tempo, até se fazer noite, esteve a contar-nos coisas da sua vida anterior, no estrangeiro; não a interrompemos.

Lá, viajara muito com mamenka e com Heinrich e as suas recordações desse tempo permaneciam na sua memória com toda a clareza. Comovida, falava-nos dos céus azuis, das altas montanhas de neve que vira e percorrera, das torrentes, das fontes; depois, dos lagos e dos vales da Itália, das flores e das árvores, dos habitantes das aldeias, dos seus trajos, dos seus rostos morenos e dos seus olhos negros; contava-nos vários encontros e episódios que aí se tinham passado. Depois falava-nos das grandes cidades e palácios, dos altos templos com cúpulas, todos iluminados à volta com luzes de várias cores; depois, da cidade quente, em Junho, com o céu azul e o mar azul... Nunca Nelly nos contara tão pormenorizadamente as suas recordações. Escutávamo-la com a maior atenção. Até aí, só sabíamos dela as suas próprias recordações: na cidade sombria, severa, de atmosfera sufocante, opressiva, de ambiente carregado, de sumptuosos palácios, sempre manchados de sujidade; com um sol turvo, gente pobre e má, meia enlouquecida, que tanto a tinha feito sofrer, a ela e a sua mãe. E eu imaginava como as duas, na sua cave infecta, pelas tardes húmidas e lôbregas, estendidas sobre o mísero enxergão, haviam de ter recordado o passado, o falecido Heinrich e as maravilhas das terras exóticas... Imaginava também Nelly, recordando tudo isso já sozinha, sem a sua mãezinha, quando a Bubnova, com pancadas e selvagem crueldade, queria dominá-la e obrigá-la a coisas torpes.

Até que Nelly começou a sentir-se mal e a levaram para dentro. O velho médico ficou muito alarmado e lamentou que a deixassem falar tanto. Tinha-lhe dado um ataque, uma espécie de síncope. Esse ataque,já se repetira por várias vezes. Assim que melhorava, Nelly dizia que me queria ver. Precisava de dizer-me qualquer coisa, unicamente a mim. Insistia tanto nisso que, dessa vez, o próprio médico quis que eu satisfizesse esse seu desejo, e todos saíram do quarto.

— Olha, Vânia — disse Nelly, assim que ficámos sós —, eu sei que eles julgam que eu os acompanharei; mas eu não poderei fazê-lo, porque não estou em condições; por isso ficarei contigo; era isto o que eu te queria dizer.

Tentei convencê-la; disse-lhe que em casa dos Ikmenieves todos gostavam dela, que a consideravam como uma filha. Que todos haviam de sentir muito se ela não os acompanhasse. Que, pelo contrário, a vida comigo ser-lhe-ia muito mais difícil, e que embora eu gostasse muito dela, isso não interessava, pois não tínhamos outro remédio senão separarmo-nos.

— Não, isso não pode ser! — respondeu Nelly, com decisão. — Porque eu vejo muitas vezes a minha mãezinha em sonhos e ela diz-me que não vá com eles e fique aqui; diz-me que eu cometi muitos pecados; que deixei o avô sozinho, e vejo-a sempre a chorar quando me diz tudo isso. Eu quero ficar aqui e visitar o avô, Vânia.

— Mas se o teu avô morreu, Nelly — disse eu, depois de escutá-la, admirado.

Ela reflectiu e olhou-me também assombrada.

— Conta-me outra vez, Vânia — disse —, como o avô morreu. Conta-me tudo, sem esqueceres nada.

Este pedido espantou-me; no entanto, comecei a contar-lhe tudo pormenorizadamente. Parecia-me que ela delirava ou, pelo menos, que não estava ainda absolutamente lúcida depois do ataque.

Escutou atentamente a minha narrativa e lembro-me de como os seus olhos escuros, de um brilho doentio e com cintilações febris, continuavam fixos e atentos enquanto eu falava. No quarto já estava escuro.

— Não, Vânia, não morreu! — disse resolutamente e uma vez mais ficou a meditar. — A minha mãe costuma falar-me do avô e quando eu ontem lhe disse: «Mas se o avô já morreu!», ela ficou muito zangada, pôs-se a chorar e disse-me que não, que me tinham feito acreditar nisso com alguma intenção, mas que ele agora andava a pedir esmola, «tal como dantes a pedia contigo», disse a mamã, e vai sempre àquele sítio onde nos encontrámos naquele dia, quando eu me deitei a seus pés e Azorka me conheceu...

— Isso são sonhos, Nelly, sonhos doentios, porque agora estás doentinha — disse-lhe.

— Eu também penso isso, que são sonhos — concordou Nelly —, e não os contei a ninguém. Só queria contar-tos a ti. Mas hoje, quando adormeci, visto que tu não vinhas, vi o meu próprio avô em sonhos. Estava na sua casa, sentado à mesa, à minha espera, e parecia estranho, muito,,apoquentado, e disse-me que havia já dois dias que não comia, e Azorka também não, estava muito zangado comigo e censurava-me. Também me disse que não tinham nem um pó de rapé, e que sem rapé a vida é impossível. De facto, Vânia, em tempos ele disse-me a mesma coisa, já depois de a minha mãezinha ter morrido, quando eu fui vê-lo. Estava então muito doente e quase já nem conhecia as pessoas. Pois hoje tornou a dizer isso e então eu pensei: «Então hei-de ir para o passeio, pedirei esmola e, com o que me derem, compro-lhe pão, batatas fritas e tabaco.» E pareceu-me que eu própria me levantava e vi que o avô andava por ali, fez uns rodeios, e depois vai, aproxima-se e olha para ver quanto angariei e tira-me o dinheiro. «Isto — disse ele — é para pão; agora pede para tabaco.» Eu peço, ele torna a aparecer e novamente me tira o dinheiro. Eu digo-lhe que não era preciso ele ter vindo, pois eu lhe daria tudo e não ficaria com nenhum. «Não — disse ele —, tu roubas-me; A Bubnova disse-me que tu és uma larápia e por isso eu também nunca te admitirei em minha casa. Que fizeste do outro piatak» Pus-me a chorar comNpena de que ele não acreditasse em mim, mas ele não quis” escutar-me’e pôs-se a gritar: «Roubaste-me um piatak.» E começou a bater-me ali mesmo, no passeio, e doía-me. E eu chorava muito... Aí tens, Vânia, a razão porque eu me lembrei de que ele ainda deve estar vivo, e se vai pôr à espreita, em qualquer sítio, à espera que eu passe...

Tornei a tentar convencê-la de que não era assim e, finalmente, pelo menos na aparência, ficou convencida. Respondeu-me que, agora, tinha medo de adormecer porque via o avô. Por fim abraçou-me num abraço muito apertado...

— Eu, apesar de tudo, não posso deixar-te, Vânia! — disse-me, roçando a sua carinha pelo meu rosto. — Ainda que isso do avô não seja verdade, eu não me separarei de ti.

Em casa estavam todos alarmados com o ataque de Nelly. Eu comuniquei em voz baixa ao médico todos os seus desvarios e perguntei-lhe categoricamente o que pensava da sua doença.

— Ainda não há nada de certo — respondeu-me, pensativo. — Até agora limito-me a fazer conjecturas, a reflectir, a observar, mas... não há nada de positivo. Em princípio, é impossível que recupere a saúde. Morre. Não lho digo por tê-lo perguntado; mas eu andava muito inquieto e pensei reunir amanhã uma junta médica. Pode ser que a doença tome outro aspecto, depois da consulta. Mas eu tenho muita pena dessa criatura, como de uma filha minha... Pobre menina! E com um feitio tão brincalhão!

Nikolai Serguieitch estava particularmente comovido.

— Olha, Vânia, eu pensei — disse-me — que ela gosta muito de flores. Sabes uma coisa? Vamos arranjar para amanhã, para quando ela acordar, um ramo de flores como as que ela arranjou para a mãe, juntamente com o Heinrich da sua história, conforme nos contou hoje... com que comoção ela nos contou tudo isso!

— com demasiada comoção — respondi eu. — As comoções, agora, são perigosas para ela...

— Sim, mas as comoções agradáveis não. Acredita, querido, acredita na minha experiência, as comoções agradáveis não fazem mal, podem até curar, restituir-nos a saúde.

Em resumo: esta ideia seduzia tanto o nosso velho que já estava entusiasmado com ela. Teria sido impossível fazer-lhe qualquer objecção. Pedi conselho ao médico, mas antes que

pudesse responder-me já Nikolai Serguieitch pegara num saco e corria a pôr em prática a sua iniciativa.

— Olha — disse quando saía —, perto daqui há uma estufa de plantas, uma estufa magnífica. Os jardineiros vendem as flores. Há lá tantas e tão baratas! Dão-nas quase de graça! Se eu falasse disto a Ana Andreievna começava imediatamente a rezingar contra os gastos. Bem, mas ouve uma coisa, meu amigo, onde vais tu agora? Já acabaste o teu trabalho? Que pressa tens tu de voltar para casa? Fica para dormires connosco no quarto pequeno, lá em cima, lembras-te? Ainda está como dantes. Ainda lá está o teu colchão e a tua cama; tudo no mesmo sítio de dantes e bem arrumado. Dormirás como um rei de França. Ficas? Amanhã levantamo-nos cedinho, trazemos as flores, e às oito enchemos com elas a casa toda. Natacha também nos ajudará; ela tem mais gosto do que nós dois juntos... Então, estás de acordo? Ficas?

Decidiram que eu passaria ali a noite. O velho tratou de tudo. O médico e Masloboiev despediram-se e retiraram-se. Os Ikmenieves costumavam deitar-se cedo, às onze. Quando saiu, Masloboiev parecia preocupado e desejoso de dizer-me qualquer coisa, mas que deixava isso para outra ocasião. Quando eu, depois de despedir-me do velho, subia para o meu quartito, fiquei admirado quando o vi ali de novo. Estava sentado junto de uma mesinha, à minha espera, folheando um livro.

— Voltei para trás, Vânia, porque agora está melhor. Senta-te aqui. Repara que coisa tão estúpida, tão lamentável, até...

— De que se trata?

— É que o patife do príncipe tornou a cometer outra proeza, ainda não há duas semanas, e de tal género que ainda me sinto indignado.

— Mas que foi? Continuas em relações com o príncipe?

— Bem, aí vens tu com perguntas, quando só Deus saberá o que se passou... Tu, meu amigo Vânia, és exactamente como a minha Alexandra Semionovna e, de uma maneira geral, todo esse insuportável mulherio... Não posso tolerar as mulheres... Assim que um corvo grasna logo nos vêm com: «O que foi? De que se trata?»

— Não te zangues.

— Eu não estou zangado, mas acho que é preciso, em todos os assuntos, ver as coisas calmamente, não exagerar... eis tudo.

Ficou calado por um momento, como se ainda estivesse zangado comigo. Não o interrompi.

— Olha, meu amigo — insistiu —, eu estou metido num caso, ou melhor, verdadeiramente não estou, nem isso teve também as consequências que eu imaginava; de certas razões deduzi que Nelly podia ser... Numa palavra, que podia ser filha legítima de um príncipe.

— Que dizes?!

— Lá vens tu com o teu «Que dizes?!» com indivíduos assim não é possível falar! — exclamou, gesticulando com violência. — Eu afirmei alguma coisa, cabeça de alho chocho? Eu disse-te que ela é filha legítima de um príncipe? Foi o que eu te disse?

— Escuta, meu amigo -— atalhei-o, muito agitado —, por amor de Deus, não grites, explica-te com clareza e precisão. Juro-te que te compreendo. Compreendo até que ponto o caso é importante e as consequências que...

— Consequências? Porquê? Onde estão as provas? As coisas não se fazem assim, e agora falo-te em segredo. Eu vou explicar-te a razão por que estou a falar assim contigo. Quer isso dizer que não havia outro remédio. Cala-te e escuta, fixa bem que se trata de um segredo... Vê em que consiste o caso. Este Inverno, antes de Smith morrer, quando o príncipe tinha acabado de’ regressar de Varsóvia, lançou-se nesta empresa. Embora verdadeiramente a houvesse começado já muito antes, no ano passado. Mas então procurava ele uma coisa e agora anda à procura de outra. O principal de tudo isto é que perdeu a pista. Há treze anos que se separou em Paris da filha de Smith e a abandonou, mas durante todos estes treze anos ele seguiu-a firmemente, formou-se de que vivia com Heinrich, o mesmo de que nos falaram hoje; sabia que tinha Nelly consigo e sabia que estava doente. Bem, numa palavra, estava ao facto de tudo, simplesmente, de repente, perdeu-lhe o rasto. E isto aconteceu, segundo parece, na altura da morte de Heinrich, quando a filha de Smith voltou para Petersburgo. Em Petersburgo, naturalmente, não teria tardado em encontrá-la, qualquer que fosse o nome com que ela regressasse à Rússia; mas o certo é que os seus espiões de além-fronteira o enganaram com um falso testemunho: fizeram-no acreditar que ela vivia em qualquer aldeola perdida no sul da Alemanha; é que eles próprios se tinham enganado, por descuido, confundindo as pessoas. Assim esteve a coisa um ano mais. Mas o ano passado o príncipe começou a duvidar; de certos factos chegara a inferir, já muito antes, que aquilo não podia ser verdade. Depois pôs-se-lhe esta interrogação: «Que fora feito da verdadeira filha de Smith?» E lembrou-se (assim, sem o menor indício), que ela podia estar em Petersburgo. Até então só realizara pesquisas no estrangeiro, mas depois começou a praticá-las aqui; entretanto, pelos vistos, não queria servir-se demasiado das vias oficiais e pôs-se a falar comigo. Apresentaram-me: «Fulano de tal, que trata de investigações várias, como amador» e etc., etc. Bem. Então ele foi e explicou-me o assunto, simplesmente de uma maneira obscura, o filho do diabo, escura e ambígua. «Cometeram-se muitos erros — repetia algumas vezes —, transmitiram-nos os factos sob várias versões ao mesmo tempo...» Bem. Como se sabe, por muito espertos que sejam, sempre lhes escapa algum pormenor. Eu, naturalmente, comecei a trabalhar para ele com diligência e honestidade. Numa palavra, com vontade de bem servir, mas de acordo com a regra a que sempre me atenho, pensando na lei da paternidade (porque há uma lei da paternidade), comecei por dizer para comigo: «Que necessidade tinha ele de me chamar?» E depois: «Atrás da necessidade que apontou, não haverá outra escondida?» Porque, neste último caso, como tu mesmo poderás compreender, meu caro, com a tua imaginação... ele defraudava-me, porque, admitamos que um dos assuntos valesse um rublo, e o outro, quatro. Pus-me a discorrer e a conjecturar e, pouco a pouco, acabei por formular as seguintes conclusões: um desses assuntos, foi ele próprio que mo declarou; o outro... tinha de tirá-lo de alguns dos seus servidores, por conta de terceiro, obrando com a minha própria habilidade. Hás-de perguntar, talvez, porque me decidi eu a proceder deste modo. Eis a resposta: bastava a circunstância de o príncipe se interessar tanto por uma coisa para eu concluir que ele temia algo. Mas, na realidade, que temia ele? Roubara uma filha ao pai, a rapariga ficara grávida e ele abandonara-a. Bem, que tem isso tudo de especial? Uma travessura simpática e nada mais. Um homem como o príncipe não se inquieta por causa de uma ninharia dessas. Mas o certo é que ele tinha medo... Era aqui que começavam as minhas dúvidas. Eu, meu irmão, acabei por tirar algumas conclusões curiosíssimas, entre outras coisas a propósito de Heinrich. Este não há dúvida que morreu, mas, por uma das suas primas (agora casada com um padeiro aqui, em Petersburgo), que tinha estado algum tempo apaixonada por ele e que continuou a amá-lo durante quinze anos seguidos, apesar da existência do gordo padeiro, com o qual a princípio conviveu oito anos; por esta prima sua, dizia eu, vim a saber, depois de várias diligências, uma coisa importante: Heinrich costumava enviar-lhe, conforme o costume alemão, cartas e o seu diário e antes de ter morrido remeteu-lhe alguns documentos seus. Ela, a grande tola, não compreendia a importância dessas cartas e só compreendia os passos em que ele lhe falava da Lua, de mein lieber Augusttn e também de Wieland, segundo parece. Mas eu arranjei os encontros necessários e, graças a essas cartas, cheguei a novas conclusões. Fiquei ’a conhecer, por exemplo, a existência do senhor Smith, do seu dinheiro, da filha que lhe tinham raptado, do príncipe que lhe roubara o seu capital; finalmente, após diversas exclamações, preâmbulos e alegorias, revelou-se-me nessas cartas a verdadeira essência do caso, isto é, Vânia, compreendes-me? Nada de definitivo... Heinrich escondia-o daquela tonta e só lhe falava por alusões. Pois bem: eu, de todas essas alusões, de todo esse enredo, acabei por formar para mim uma interpretação perfeitamente harmónica, isto é: que o príncijpe se tinha casado com a filha de Smith. Onde, como e quando se teria casado com ela, se no estrangeiro, se aqui, onde estavam os papéis? Disso não fazia a mínima ideia. meu caro Vânia; eu arrepelava os cabelos de furioso e não fazia senão investigar e investigar, de dia e de noite, semmpre a investigar! Por fim, dei também com Smith, mas logo a seguir ele morreu de repente. Nem sequer tive tempo de encontrá-lo vivo. Eis senão quando fico a saber, por acaso,, que morrera uma mulher sobre quem eu tinha as minhas dúvidas, em Vassilievski Ostrov; informo-me e ponho-me na sua pista. Corro a Vassilievski, lembras-te?, foi dessa vez que nos encontrámos. Trabalhei muito, então. E por- sinal a Nelly me ajudou muito também... —- Ouve — interrompi-o —, achas que Nelly saberá?

— O quê?

— Que é filha do príncipe.

— Aí está, tu também sabes que ela é filha do príncipe — respondeu, alhando-me com uma censura maliciosa. — Mas então para que me fazes essas perguntas ociosas, homem frívolo? O principal não é isso, mas sim o facto de que não só ela é filha do príncipe como também filha legítima, compreendes?

— Isso não pode ser! — exclamei eu.

— Isso foi o que eu disse também, a princípio: «Não pode ser!», e ainda hoje o digo às vezes: «Não pode ser!» Mas o certo é que pode ser e que há todas as probabilidades de que o seja.

— Não, Meloboiev, isso não é assim, tu estás a devanear — exclamei. — Não só ela não sabe nada disso como, no fim de contas, é filha natural. Se não fosse assim, como é que a mãe, se possuísse algum documento, qualquer que ele fosse, teria podido suportar tantos dissabores aqui, em Petersburgo, e, além disso, deixar a sua filha, depois, em tamanha orfandade? Basta! Isso não pode ser.

— Era isso mesmo o que eu pensava, isto é, até agora tive-o por indubitável. Mas apesar de tudo, no fundo, é filha de Smith, era a mulher menos inteligente e mais tola deste mundo. Era uma mulher extraordinária; imagina unicamente todas as circunstâncias, todo o puro romantismo, toda a estupidez terrena, na dose mais violenta e desaforada. Repara só nisto: logo no princípio, ela não sonhava com outra coisa senão com coisas do céu na terra, com anjinhos, apaixonava-se sem saber por quem, era de uma credulidade sem limites e estou convencido de que se tornou louca depois, não porque ele se cansasse dela e a deixasse, mas por se ter enganado com ele, por ele ser capaz de enganá-la e de abandoná-la, pelo seu anjo se ter transformado em lama, cuspindo-lhe em cima e humilhando-a. O seu romântico e aturdido espírito não pôde suportar essa degradação. E para mais, a ofensa: compreendes que ofensa? com espanto, e sobretudo com orgulho, afastou-se dele, animada de um infinito desprezo. Rompeu todos os laços, todos os documentos, cuspiu-lhe no dinheiro, esqueceu inclusivamente que não era seu, mas do pai, renunciou a ele como a lama, como a pó, para aniquilar o seu sedutor com a sua grandeza de alma, para poder apontar-lhe o seu roubo e ter direito a desprezá-lo enquanto vivesse; e talvez pensasse também que era uma desonra para ela usar o nome dele, ser sua esposa. Entre nós o divórcio não existe; mas de facto eles divorciaram-se, e, portanto, como é que ela poderia implorar-lhe a sua ajuda?! Lembra-te que essa, a pobre doida, disse a Nelly no seu leito de morte: «Não vás com ninguém, trabalha, mata-te a sofrer, mas não vás com ninguém que te chame, seja quem for»; isto é, ainda sonhava que a chamassem e, efectivamente, tinha ocasião de vingar-se outra vez, de aniquilar com o seu desprezo o chamador. Em resumo: em vez de pão era o seu sonho rancoroso que lhe servia de alimento.

Também averiguei muitas coisas a respeito de Nelly, meu amigo, e continuo ainda as minhas indagações. Não há dúvida de que a mãe estava doente, tuberculosa; esta doença dá lugar ao desenvolvimento da maldade e a todo o género

de ressentimentos; no entanto, eu sei de fonte segura, por um indivíduo de casa de Bubnova, que ela escreveu ao príncipe, sim senhor, ao próprio príncipe...

— Escreveu-lhe? E a carta chegou? — exclamei impaciente.

— Ora! Se chegou, ou não, não sei. Uma vez a filha de Smith chegou a acordo com essa tipa (lembras-te de uma rapariga muito empoada, que havia em casa da Bubnova? Agora está numa casa de correcção); foi por intermédio dela que pensou enviar a carta, e chegou a escrevê-la, simplesmente arrependeu-se e não a enviou; isto aconteceu três semanas antes da sua morte... Pormenor significativo: se já uma vez se decidira a escrever-lhe, não tem importância de maior que depois recolhesse a carta: podia ter-lhe escrito outra vez. Na realidade, não sei se teria chegado ou não a enviar-lhe outra carta; mas tenho razões para supor que não, pois o príncipe só veio a saber que ela vivia em Petersburgo depois da sua morte. Devia ter ficado bem contente!

— Sim, lembro-me de Aliocha ter falado de uma certa carta que o pôs de muito bom humor; mas isto foi ainda há pouco tempo, quando muito há uns dois meses. Bem. E que mais, que mais? Como estavas tu com o príncipe?

— Como estava eu com o príncipe?! Ora vê: a convicção moral mais absoluta e nem uma prova terminante... Uma posição verdadeiramente crítica. Seria preciso fazer investigações no estrangeiro, mas em que ponto do estrangeiro? Não sabia. É claro que eu compreendi que tinha na minha frente a perspectiva de uma luta, que só podia assustá-lo com alusões, dar-lhe a entender que sabia mais do que realmente sei...

— Bem, e então?

— Para falar verdade, digo-te que tinha muito medo, a tal ponto que ainda hoje continuo a tê-lo. Tivemos várias entrevistas. Como ele sabia fingir! Uma vez ele próprio se pôs a contar-me tudo, espontaneamente. Pensava que eu sabia tudo. Contou-mo bem, com sentimento, com sinceridade... Claro que, inconscientemente, mentia. E pude ver então até que ponto ele me temia. Durante algum tempo fingi perante ele que era um toleirão e que queria dar-se ares de esperto. Ele assustou-se estupidamente, isto é, com uma estupidez afectada; eu comportava-me com ele de um modo propositadamente grosseiro; comecei a ameaçá-lo... bom; tudo isso com o fim de que ele me tomasse por um simplório e começasse a dar com a língua nos dentes. Mas o velhaco é finório... De outra vez fui procurá-lo bêbado e procurei enganá-lo, mas o malandro nem assim! Tu, meu amigo, deves compreender o caso, Vânia, é que eu precisava absolutamente de avaliar até que ponto ele tinha medo de mim e, em segundo lugar, fazer-lhe acreditar que sabia mais do que realmente sei.

— Bem, e em que ficou a coisa?

— Em nada. Eram necessárias provas, factos, e eu não os tinha. Ele só compreendeu uma coisa: é que, fosse como fosse, eu podia fazer escândalo. É claro que ele receava o escândalo, tanto mais que começava a arranjar relações aqui. Sabes que ele vai casar?

— Não.

— Para o ano que vem. Até ao ano passado ainda ele não conhecia a noiva; tinha ela então catorze anos; agora tem quinze, segundo parece, e ainda usa saias curtas, a pobrezinha. Os pais estão contentíssimos. Compreendes como lhe convinha que a mulher tivesse morrido? A futura esposa é filha de um general, uma rapariga com dinheiro, com muito dinheiro (J). Eu, meu amigo, nunca me casarei assim... Era a única coisa que nunca perdoaria a mim próprio nesta vida! — exclamou Masloboiev, descarregando uma punhada forte sobre a mesa. — E... ainda há duas semanas me cuspiu... Malandro!

— Como foi isso?

— Como eu te vou dizer. Vi que ele compreendia que eu não tinha em meu poder nenhuma prova terminante e, por

(’) O tema do casamento por interesse foi já tratado pelo autor no conto «Uma árvore de Natal e um casamento».

fim, pensei que quanto mais se prolongasse o assunto, tanto mais cedo, naturalmente, havia de descobrir nele a minha impotência. Numa palavra: acabei por receber dele dois mil rublos.

— Apanhaste dois mil rublos!

— De prata, Vânia, e bem me custou recebê-los. Um assunto destes deveria render mais que dois mil rublos! Aceitei-os com vergonha. Estava diante dele como se ele me tivesse cuspido! E ele disse-me: «Eu ainda não lhe paguei as suas diligências anteriores, Masloboiev (quando, por essas diligências anteriores me tinha pago já, não havia muito, cento e cinquenta rublos, segundo o combinado), e vou partir em viagem; por isso aqui tem dois mil rublos, e espero que, com isto, o nosso assunto possa dar-se por perfeitamente liquidado.» Eu respondi-lhe: «Perfeitamente liquidado, príncipe»; mas não me atrevia a olhá-lo na sua feia cara, e pareceu-me que lia nessa cara: «Ora bem, aceitaste então esta grossa maquia? Parece-te suficiente, não? Pois, se ta dou é por pura bondade para com um imbecil!» Nem me lembro como saí dali!

— Isso é uma baixeza, Masloboiev! — exclamei. — E com Nelly, como procedeste?

— Uma baixeza é pouco, é qualquer coisa digna do presídio, é uma porcaria. E... é... Bem, não há palavras para qualificá-lo!

— Meu Deus! Ele, pelo menos, tem obrigação de assegurar a vida de Nelly.

— Qual obrigação?! Como pode ele ser obrigado? Assustando-o? Ele não se assusta. Não vês que eu já aceitei o dinheiro? Eu próprio reconheci perante ele que todo o medo que poderia infundir-lhe valia dois mil rublos de prata; fui eu próprio que me taxei por esse preço. Como assustá-lo agora?

— De maneira que o caso de Nelly acabou aí? — exclamei quase desesperado.

— Não se trata disso! — exclamou Masloboiev com veemência e como se estremecesse todo. — Não, não será com isso que eu o assustarei. vou cometê-lo agora com um novo caso, Vânia, é ponto já assente. Que importa que eu lhe aceitasse os dois mil rublos? Que me importa isso? Eu, no fim de contas, tomo como ofensa o facto de que ele, o grande gozador, me tenha enganado e ainda por cima se tenha rido de mim. Enganou-me e ainda se riu por cima. Não, eu não consinto que se riam de mim... Agora vou pôr mãos à obra a respeito de Nelly. Depois de ter feito algumas observações, estou convencido de que nela está a chave deste assunto. Ela sabe tudo, tudo... Foi a mãe que lho contou. Nas suas horas de febre, nos seus momentos de tristeza, pode muito bem ter-lhe contado tudo. Não tinha ninguém com quem desabafar — insinuou —, portanto, desabafaria com ela. E é possível que arranjemos algum documento — acrescentou com grande entusiasmo. — Compreendes agora, Vânia, porque ando eu por aqui de nariz no ar? Em primeiro lugar, pela amizade que te tenho, disso nem é preciso falar; em segundo porque ando a observar Nelly, e em último, amigo Vânia, quer queiras quer não, tens a obrigação de apoiar-me, visto que tens tanta influência sobre Nelly.

— Juro-te — exclamei — e espero, Masloboiev, que tu, e isto é o principal, farás esse esforço por Nelly, por uma pobre órfã ofendida e não por puro interesse pessoal...

— Mas por que interesse havia eu de esforçar-me num caso destes, criatura? Trata-se apenas de agir... Isso é o principal! Não só em relação a uma órfã como em relação ao amor à humanidade. Mas tu, Vânia, não me julgues mal pelo facto de velar pelos meus interesses. Eu sou pobre e ele não se coíbe de ofender os pobres. Roubou-me o que me pertencia e, além disso, enganou-me de uma maneira vil. De maneira que eu, a teu ver, havia de estar com cerimónias com um patife destes? Morgen fruh! (*).

 

(*) Até amanhã.

 

Mas a nossa festa floral do dia seguinte não teve êxito. Nelly piorou e não pôde já sair do seu quarto.

Nunca mais tornou a sair daquele quarto.

Morreu duas semanas depois. Durante essas duas semanas da sua agonia, nem uma só vez voltou a recuperar por completo o conhecimento nem conseguiu libertar-se dos seus estranhos desvarios. Parecia que as suas faculdades estavam embotadas. Esteve firmemente convencida, até morrer, de que o avô a chamava e se zangava com ela porque não lhe ligava importância, que lhe batia com o bordão e a mandava sair para pedir esmola para pão e tabaco. Muitas vezes desatava a chorar em sonhos, e depois, quando acordava, dizia que tinha visto a mãe.

Às vezes parecia recuperar completamente o raciocínio. Em certa ocasião, estávamos os dois sós, chegou-se para mim e segurou as minhas mãos com as suas, descarnadas, ardentes do calor da febre.

— Vânia — disse-me —, quando eu morrer, casa com Natacha.

Esta, pelos vistos, era a sua constante e antiga obsessão. Sorri-lhe em silêncio. Quando viu o meu sorriso, sorriu também com uma expressão animada, ameaçando-me com os seus dedinhos descarnados e em seguida pôs-se a dar-me beijos.

Três dias antes da sua morte, numa esplêndida tarde de Verão, pediu que erguêssemos as cortinas e abríssemos a janela do seu quarto. Essa janela dava sobre o jardim; contemplou durante muito tempo a verdura exuberante e o Sol que se punha e, de repente, pediu que nos deixassem sozinhos.

— Vânia — disse-me com uma voz quase imperceptível, pois estava já muito fraca —, eu vou morrer em breve, muito em breve, e quero dizer-te que te lembres de mim. Quero deixar-te isto como recordação — e mostrava-me uma bolsinha que trazia ao peito, juntamente com uma pequena cruz. — Deixou-mas a minha mãe quando morreu. Olha quando eu morrer, tu tiras-me esta bolsinha, abre-la e lês o que nela está escrito. Hei-de dizer hoje a todos que não a dêem a mais ninguém senão a ti. E assim que tiveres lido o que lá está escrito, irás vê-lo a ele e dirás que eu morri sem perdoar-lhe. Diz-lhe também que ainda há pouco acabei de ler os Evangelhos. Aí diz: «Perdoai a todos os vossos inimigos.» Bem, pois eu, embora tivesse lido isso, não lhe perdoei a ele, porque a minha mãe, ao morrer, quando ainda podia falar, a última coisa que disse foi: «Maldito seja!» Por isso eu também o amaldiçoo, e amaldiçoo-o não por mim mas pela minha mãezinha. Dir-lhe-ás também como morreu a minha mãe e me deixou sozinha com a Bubnova, conta-lhe como foste encontrar-me em casa dela; conta-lhe tudo, tudo, e diz-lhe ainda que, apesar de tudo, eu preferi ficar com a Bubnova a ir ter com ele...

Quando disse isto Nelly empalideceu, os seus olhos chisparam fogo e o coração começou a bater-lhe com tanta força que se deixou cair sobre a almofada e durante um momento não pôde dizer uma palavra.

— Chama-os, Vânia — disse, finalmente, com uma voz fraca. — Quero despedir-me de todos. Adeus, Vânia!

Abraçou-me com muita força pela última vez. Os outros entraram todos. O velho não queria acreditar que ela estivesse a morrer, não se conformava com essa ideia. Esteve até ao último momento a discutir connosco, afirmando que ela havia de recuperar a saúde, com certeza. Passava dias e noites à cabeceira de Nelly, muito preocupado... Na última noite nem dormiu. Esforçava-se por adivinhar o mais pequeno desejo, o mais leve capricho de Nelly, e quando vinha ter connosco, chorava amargamente, embora passado um momento já estivesse outra vez cheio de esperança e procurasse convencer-nos a todos de que ela estava a restabelecer-se. Encheu o seu quarto de flores. Uma vez comprou um ramo de magníficas rosas, brancas e vermelhas, teve de ir buscá-las longe, e trouxe-as à sua Nelita... Ela ficava muito comovida com tudo isto. Não podia corresponder com todo o seu coração a um carinho tão desvelado. Nessa noite, na noite em que se despediu de mim, o velho não queria convencer-se a despedir dela para sempre. Nelly sorria e toda a noite fez esforços para parecer contente, dirigiu-lhe gracejos e até se riu com ele... Todos nós nos separámos dela quase esperançados; mas no dia seguinte já não podia falar. Duas horas depois estava morta.

Lembro-me de como o velho encheu o seu caixão de flores e com que desespero contemplava a sua carinha definhada, com aquele seu sorriso e as mãozinhas cruzadas sobre o peito. Chorava por ela como por uma filha. Natacha, eu, todos nós fazíamos por consolá-lo, mas ele não admitia consolações e adoeceu gravemente depois do enterro de Nelly.

Foi a própria Ana Andreievna quem me entregou a bolsinha que ela trazia ao pescoço. Nessa bolsinha estava a carta da mãe de Nelly para o príncipe. Li-a no dia da morte de Helena. Dirigia-se ao príncipe para amaldiçoá-lo; dizia-lhe que não conseguia perdoar-lhe; descrevia-lhe toda a vida que ultimamente tinha levado, todos os horrores no meio dos quais deixava Nelly e terminava pedindo-lhe que fizesse alguma coisa pela pequena. «É sua filha — dizia — e o senhor mesmo sabe que é sua filha verdadeira. Ordeno-lhe que vá vê-lo quando eu morrer e lhe entregue a si, esta carta, nas suas próprias mãos. Se não repelir Nelly, pode ser que eu lhe perdoe de lá. que no Dia do Juízo seja testemunha perante Deus e interceda perante o Juiz para que lhe perdoe os seus pecados. Nelly conhece o texto da minha carta, leu-o, eu contei-lhe tudo, ela sabe tudo, tudo...»

Mas Nelly não cumpriu a sua promessa; sabia tudo, mas não foi procurar o príncipe e morreu sem reconciliar-se com ele.

Quando voltávamos do funeral de Nelly, eu e Natacha fomos para o jardim. Estava um dia quente, de sol radioso. Daí a uma semana, eles partiriam. Natacha pousou sobre mim um olhar longo, estranho:

— Vânia! — disse ela. — Olhai Vânia, foi tudo um sonho!

— O que é que foi um sonho? — perguntei-lhe.

— Tudo, tudo — respondeu ela. — Tudo quanto se passou este ano, Vânia. Porque teria eu destruído a tua felicidade?

E eu li no seu olhar: «Podíamos ter vivido sempre felizes juntos!»

 

                                                                                Fiodor Dostoievski  

 

                      

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