Shannon tomava nota, amaldiçoando a ineficácia da caneta lanterna para escrever em meio de um teatro escuro. E amaldiçoava também o apertado dos braços da poltrona, onde mal cabia sua caderneta. Exalou um suspiro enquanto empurrava o carnudo braço que tinha a sua esquerda e sussurrava.
—Importa-lhe? Estou tentando trabalhar.
Gostava de estar zangada. O aborrecimento afastava sua mente das imagens que a abrasavam. Tawny, de juba e olhos castanhos, com um rosto como o de uma boneca de porcelana e um sorriso capaz de iluminar uma habitação. Seus sonhos de converter-se em uma estrela, sua maneira exagerada de expressar-se. Sua ousadia. Shannon queria recordar a aquela mulher vibrante que tinha sido aspirante a atriz de dia, prostituta de noite e sua melhor amiga sempre. Não queria recordar seu corpo nu sobre os lençóis, seu olhar vazio. Nem as duas marcas vermelhas sobre seu branco pescoço.
Continuou tomando notas, vagamente consciente dos aplausos, do gradual silêncio que se fez a seguir e da posterior espera. Tampouco atendia à voz profunda e melodiosa do homem que estava sobre o cenário anunciando que necessitava uma voluntária do público. Apenas se distraiu antes de ajustar a tênue luz de sua caneta e continuar escrevendo.
As mulheres virtualmente babam. Para ele seria muito fácil conseguir que qualquer delas fosse aonde ele quisesse Mas ainda não foi capaz de me dizer onde estava na quarta-feira de noite entre as...
De repente deteve a caneta e se sentiu envolta em uma nuvem de ar glacial. Elevou o olhar para o corredor. Ali estava Damien, envolto em uma capa de negro cetim. Um instante depois, o foco o iluminou, fazendo resplandecer seu cabelo até lhe arrancar brilhos azuis e intensificando a palidez de sua pele. Tinha um braço estendido e a estava assinalando com a mão. Seus olhos, uns olhos redondos e enormes como os de um mocho, que pareciam encerrar toda a sabedoria dos deuses e a dor de mil infernos, posaram-se sobre ela.
—Você, senhorita.
Shannon desejou que o coração deixasse de pulsar. Ainda não havia a mais mínima prova de que aquele homem fosse um assassino. Só certas circunstâncias e suas próprias suspeitas.
—Eu o que?
O homem curvou os lábios em um sorriso. Posou o olhar na caderneta e na caneta lanterna e voltou a fixá-lo em seus olhos.
—Como se chama?
—Sha... Shannon, mas eu...
—Um forte aplauso para a encantada Shannon, nossa valente voluntária.
Disse em voz alta, inclinando-se para ela com um gesto teatral. Os focos o obedeceram imediatamente e banharam Shannon em um círculo de luz que não servia absolutamente para aliviar aquele frio glacial que não parecia prenunciar nada de bom. Shannon entrecerrou os olhos enquanto cresciam os aplausos. Damien fechou sua mão sobre a sua, uma mão grande, quente e forte. Atirou dela sem muita delicadeza. A caneta, a bolsa, tudo caiu ao chão enquanto Shannon se levantava.
Tentou atirar de sua mão, mas a do homem era mais robusta que o melhor par de algemas que jamais se inventou. O ruído dos aplausos e o acompanhamento da música impediam que se ouvissem seus protestos. Damien a arrastou para uns degraus situados à direita do cenário. Shannon podia continuar resistindo e ficar como uma idiota ou aceitar aquele fiasco com certa elegância. Optou pela segunda opção, embora pensasse que a aquele vaidoso canalha não teria sentado mal, uma boa patada em seu descomunal ego.
Damien a olhou nos olhos e, uma vez mais, curvou os lábios. Não tanto como para que seu gesto pudesse ser considerado um sorriso. Foi algo assim como um «sei o que está pensando e o encontro é divertido».
Shannon o fulminou com o olhar; em sua mente se alternavam os olhos negros de Damien com os olhos castanhos do Tawny... Uns olhos abertos, frágeis, cegos para sempre.
A pressão em seu pulso cessou. O homem a olhou com o cenho franzido e deslizou a mão para estreitar a de Shannon. Detiveram-se no centro do cenário. Depois deles, uma cortina de veludo vermelho se elevou tão silenciosamente como o teria feito um fantasma. Shannon olhou por cima do ombro e viu um cristal em equilíbrio sobre o encosto de duas cadeiras.
—A encantada Shannon está a ponto de me ajudar a desafiar as leis da natureza.
Shannon procurava não deixar que o aborrecimento cedesse o passo, aquela crescente inquietação que tão facilmente poderia transformar-se em medo. Fôra Damien ou não o assassino, não podia lhe fazer nenhum dano diante de milhares de espectadores. Ergueu as costas.
—Se acreditar que vou permitir que me parta pela metade, esqueça-o —disse entre dentes.
O olhou de esguelha e o viu apertar os lábios ao tempo que sentia aumentar a pressão de sua mão.
—A lei da gravidade —continuou dizendo Damien.
Falava de maneira hipnótica. Seus lábios pareciam acariciar cada sílaba antes de liberá-la.
—Por aqui, Shannon.
Conduziu-a para a improvisada mesa de cristal e tomou a mão para que subisse um par de degraus de madeira enquanto aumentava a intensidade da música.
—Agora, inclini-se, Shannon.
Shannon se estremeceu ligeiramente, perguntando-se se utilizaria sempre aquele tom de voz ou somente o fazia quando estava em cena. Inclinou-se sobre o frio cristal sem apartar em nenhum momento os olhos de seu rosto. Inclusive suas respirações e suas piscadas resultavam hipnóticas, como se todas elas formassem parte de uma coreografia. Damien a rodeou com um braço estendido, balançando sua capa enquanto se movia. Depois, levou a mão ao pescoço, tirou a capa de um puxão e cobriu Shannon com ela, cobrindo-a até o queixo.
Era um tecido groso, forrada de cetim tanto por fora como por dentro. Shannon desejou esfregar a bochecha contra ela. A fragrância que a invadia era penetrante e escura. E não tinha cheirado nunca nada parecido.
O homem levou a mão até sua cabeça e foi descendendo até lhe fechar os olhos.
— Relaxe, Shannon. Não se mova. Deixe que seus músculos se relaxem. Quebrar as ataduras de seu coração. Te libere das constrições da gravidade.
Shannon suspirou com força e pestanejou para apartar as lágrimas de aborrecimento que a imagem de sua amiga tinha levado a seus olhos. Damien Namtar sabia como montar um espetáculo. Não seria o mago mais famoso do mundo se não soubesse fazê-lo. Damien o Eterno. Embora fosse mais apropriado chamá-lo Damien, o Professor das Ilusões Ópticas. Mas possivelmente pudesse averiguar algo mais sobre ele se prestava atenção. Possivelmente conseguisse deixar de pensar na Tawny o tempo suficiente para encontrar alguma prova de quem a tinha matado.
E como. Pelo amor de Deus, como.
Tentou concentrar-se enquanto permanecia tão quieta como Damien lhe ordenava. Não queria perder a concentração e terminar caindo no meio do cenário.
Não ocorreu nada. Shannon ouviu o grito afogado do público e abriu um olho. Damien estava a seus pés, sustentando uma cadeira com a mão. Shannon franziu ligeiramente o cenho. Era uma das cadeiras que sustentavam o cristal? Mas ela continuava em posição horizontal...
Damien deixou a cadeira e caminhou até sua cabeça. Deteve-se um instante para colocou sua mão com a ligeireza de uma pluma sobre seus olhos e os voltou a fechar.
Mas Shannon os abriu imediatamente. Ela tinha pagado para ver aquele maldito espetáculo. Com os olhos fechados não ia poder ver absolutamente nada.
Damien estava à cabeça daquele leito improvisado, fixando o olhar em seu rosto. Quando viu que tinha aberto os olhos, apertou os lábios, mas Shannon não voltou a fechá-los. O olhar de Damien se fez mais intenso, perspicaz, penetrante. Inclinou-se, e Shannon soube que ia afastar a segunda cadeira de debaixo do cristal. Damien se endireitou sustentando a cadeira com uma mão, girou com ela e a afastou para a direita.
Quando Shannon pôde vê-lo outra vez, Damien levava um aro na mão que passou a seu redor para demonstrar que não havia nada que estivesse sujeitando seu corpo suspenso no ar.
Desprendeu-se também do aro e se inclinou sobre Shannon.
—Agora te concentre comigo, Shannon. Não tem nada que temer.
Com um olhar jubiloso, jogou a capa para lhe cobrir com ela a cabeça. Aquilo a ensinaria a manter os olhos fechados, imaginou Shannon que estava pensando.
Ouviu um murmúrio de vozes em um idioma que não reconheceu. Sentiu depois uma vibração forte; o cristal sobre o que estava apoiada começou a mover-se. Deslizou-se para um lado. Ela tentou agarrá-lo instintivamente com a mão esquerda, mas Damien lhe agarrou a mão e a sustentou entre as suas. Shannon esteve a ponto de entrelaçar os dedos com os seus, uma coisa completamente absurda. Felizmente, Damien a soltou antes que tivesse tido tempo de fazê-lo.
Sentiu que o cristal se separava para sempre dela. A música tinha perdido volume, mas o redobrar dos tambores era cada vez mais forte, mais rápido. Shannon continuou tombada no meio do cenário. Como diabos...?
A capa começou a deslizar-se ao longo de seu corpo. Damien permanecia a vários centímetros dela, com os braços estendidos e os olhos fechados como se estivesse concentrando-se. Tinha umas pestanas incrivelmente largas para ser um homem. De fato, tudo nele parecia incrível. Shannon conhecia a Tawny melhor que ninguém e tinha a impressão de que Tawny jamais teria saído daquele teatro sem oferecer ao menos...
Damien elevou a mão e os tambores retumbaram freneticamente. Shannon se sentia como se estivesse elevando-se sobre uma almofada de ar. Damien deu um passo adiante.
—Vem comigo, Shannon — disse com aquela voz firme e profunda a que não podia opor-se.
Abaixou os braços e estalou os dedos. A música se interrompeu e, ao mesmo tempo, Shannon caiu. Durou um instante; pensou que a queda ia doer-lhe de maneira terrível, sentiu a necessidade de gritar, mordeu-se o lábio e... Aterrissou em seus braços.
Pestanejou surpreendida. Damien a olhava e a estreitava contra seu peito. E Shannon experimentou uma sensação estranha. Pensou que depois daquela noite, possivelmente estivesse mais perto de compreender a capacidade de Tawny para deitar-se com qualquer. Damien inclinou a cabeça e lhe roçou a cabeça com os lábios. Shannon estava convencida de que tinha marcado com fogo sua pele. Mas era uma estupidez. Eram a música e a magia que a faziam estremecer-se de prazer. Não o contato de um homem. Jamais o faria o contato de um homem.
Os gritos do público estiveram a ponto de ensurdecê-la. Damien apartou o olhar dela para dirigir-se ao público. Shannon seguiu o curso de seu olhar, mas quase imediatamente voltou a prestar atenção ao homem que a sustentava entre seus braços. Seu duro perfil, a elegante linha de sua mandíbula, seu nariz aquilino... E a luz que emergia das profundidades daqueles olhos negros como o azeviche. Damien adorava aquilo. Absorvia a adoração do público com a mesma ansiedade que o deserto absorvia a água da chuva. Estava em um absoluto êxtase. Virtualmente resplandecia.
O pano de fundo baixou e Damien a deixou no chão. Pousou as mãos em seus ombros, a fez voltar-se e a empurrou suavemente.
—Tirem Shannon de cena —um dos contra-regras se fez cargo dela e Damien se inclinou para lhe sussurrar ao ouvido—: estiveste maravilhosa.
Depois, o contra-regra a agarrou pelo braço e a tirou do cenário, antes de desaparecer de sua vista.
Shannon voltou a fixar o olhar no pano de fundo, que se elevava como se não pesasse apenas. Damien permanecia no centro do cenário, atando as tiras que sujeitavam sua capa. Quando o pano de fundo deteve sua ascensão, Shannon pôde ver o público levantado, sem deixar de aplaudir.
Damien apontou apenas uma reverência e elevou as mãos pedindo silêncio.
—Obrigado, graças a todos. Temo que Shannon não vá poder reunir-se de novo com vocês. Decidi convidá-la para jantar.
As risadas encheram o teatro.
Damien abriu os braços, sustentando a capa com as mãos.
—Adeus, amigos.
O coração de Shannon palpitava a toda velocidade. O público continuava em pé. Damien baixou um braço e se cobriu o rosto com o outro, com um gesto do mais puro estilo Drácula. Girou em círculo três vezes.
Soaram os pratos. O casaco caiu no chão transformou em uma nuvem de cetim. Damien tinha desaparecido. Shannon se levantou e fixou o olhar naquele tecido resplandecente. Viu que algo se movia e franziu o cenho. Que demônios era esse pequeno...?
O morcego abandonou o ninho de cetim e bateu suas asas com força antes de lançar-se sobre o público. Voava baixo, provocando no público gritos de terror e expressões de surpresa. Depois retornou sobre o cenário. O pano de fundo voltou a cair e o teatro estalou em aplausos.
Os aplausos se prolongaram durante uns minutos antes de começar a apagar-se lentamente. O público começou a mover-se e a atividade se desenvolveu depois do cenário. Shannon sacudiu o feitiço que a magia parecia ter operado sobre ela e olhou a seu redor. Tinha uma missão a cumprir. Cruzou os dedos e começou a avançar em que esperava fosse a direção correta. Ainda não tinha terminado com o Damien Namtar. Tinha muitas perguntas e não ia sair dali até que tivesse obtido algumas respostas.
Uma palmada no ombro a fez voltar-se, meio esperando encontrar o mago atrás dela. Mas não era o mago, era o mesmo contra-regra que a tinha tirado de cena. Levava sua bolsa na mão.
—Damien me pediu que lhe entregasse isto.
—Obrigado —Shannon tomou sua bolsa e olhou depois do homem—. Onde está? Preciso falar com ele.
—É impossível. Já se foi.
— O que? Se foi?
Sentia-se exatamente como um globo ao que acabassem de cravar.
—Tem que conduzir até seu palácio. E está chovendo.
—Há dito palácio?
O contra-regra baixou o olhar e sacudiu a cabeça lentamente.
—Sim, possuir um palácio. Sabe ao que me refiro?
Sim, sabia. Tinha visto fotografias em algumas revistas que pareciam não ter nunca suficiente informação sobre aquele renomado mago. Algo que lhe ocorria também a sua legião de admiradores. Shannon inclinou a cabeça.
—Ouvi dizer que leva uma vida de ermitão. Creio que mantém em segredo o lugar no que vive para evitar a seus admiradores?
—Todo mundo sabe onde está o palácio, mas é impossível acessar a ele. Tem um sistema de segurança inviolável. Ninguém pode entrar em seu palácio.
—Portanto que ninguém, né? —colocou a bolsa no ombro e se voltou.
Damien,
Escrevo-te uma vez mais esperando sua resposta. E desta vez me esforçarei em te explicar com mais detalhe meus motivos, possivelmente assim me perdoe. Sou um vampiro, igual a você, e também um cientista. Dediquei uma grande parte da minha vida, uns duzentos anos a estas alturas, a estudar aos vampiros, com a intenção de compreender melhor as peculiaridades de nossa existência. Por que estamos aqui? Com que propósito? E, além disso, eu gostaria de poder lutar contra aqueles aspectos menos agradáveis de nossas vidas. Estudo também aos Escolhidos, aqueles humanos com os quais mantemos um vínculo inexplicável, aqueles para os quais nos sentimos atraídos e aos que, instintivamente, tentamos proteger. Os escolhidos podem ser transformados e possuem o mesmo antígeno no sangue que todos nós tivemos em alguns momentos. Meus estudos me revelaram uma grande quantidade de informação, mas quero mais.
Mim disseram que você, Damien, é o mais ancião dos vampiros que ainda existem e que tem habilidades muito superiores às dos imortais jovens como nós. Estou convencido de que, também sua sabedoria excede com muito à nossa. Eu gostaria de te conhecer, falar contigo, aprender algo de sua vasta existência. Sua sabedoria pode nos beneficiar a todos. Eu gostaria de muito ser seu amigo.
Teu na escuridão, Eric Marquand.
Damien enrugou a carta e a jogou ao fogo de sua moderna chaminé de mármore. Esse Marquand deveria aprender a escrever como se vivesse no presente. Damien sempre tinha pensado que o mais importante era tentar adaptar-se a qualquer cultura, mostrar-se como se pertencesse a ela. Não chamar de maneira nenhuma a atenção.
Esboçou uma careta ao recordar a última frase da carta. «Eu gostaria de muito ser seu amigo». Amigo. Ele não precisava ser amigo de ninguém. Tinha sofrido em uma ocasião àquela dor lhe debilitado e não precisava revivê-la.
Em qualquer caso, aquele Eric Marquand que se definia, a si mesmo como cientista não poderia aprender muitas coisas com ele. Certamente, Marquand tinha aprendido mais em seus curtos duzentos anos de existência, que ele durante quase seis mil anos de vida. Damien tinha vivido sempre isolado. Não queria ter contato com ninguém dos de sua espécie e, sobre tudo, não queria ter contato algum com os Escolhidos.
Os Escolhidos. Os Escolhidos o aterrorizavam. Aquele instinto irresistível e que sabia próprio de todos os vampiros, de cuidá-los e protegê-los, sacudia-o até os ossos. Era uma ameaça para sua solitária existência. Ele não queria preocupar-se com ninguém. Nunca mais. E a única maneira de evitar a atração por volta desses estranhos humanos era evitá-los a todos eles. E isso era exatamente o que Damien tinha conseguido. Até aquela noite.
Havia sentido sua presença assim que tinha saído à cena. Havia sentido que estava ali, e também seu poderoso magnetismo. Algum demônio lhe tinha urgido a vê-la, a falar com ela, a tocá-la. Havia sentido aquela urgência em ocasiões anteriores, quando seu caminho se cruzou com o de algum deles e sempre tinha sido capaz de resisti-la. Mas aquela noite, não. Tinha desejado tocá-la e o tinha feito.
Muito, possivelmente. Damien mantinha sua mente fechada deliberadamente. Não queria abrir-se nem aos pensamentos nem aos desejos dos outros. Os outros não lhe importavam, não sentia por eles a mais mínima curiosidade. Mas aquela noite, havia sentido a avalanche de sentimentos que emergiam da mente de Shannon, uns sentimentos tão poderosos que o tinham estremecido. Havia sentido sua dor, seu aborrecimento. E, sobre tudo, sua tristeza. Por um instante, não tinha sabido se era a tristeza de Shannon ou a sua própria, que ressurgia para paralisá-lo uma vez mais. Eram tão parecidos... Tinha conseguido reprimir a necessidade de aliviar sua dor fazendo um grande esforço de vontade para fechar sua mente a de Shannon. Mas o tinha conseguido.
A partir do ocorrido, devia ter muito mais cuidado. E, sobre tudo, precisava evitar qualquer contato com aquela mulher em particular, que o afetava como não o tinha feito ninguém até então.
Shannon levava umas malhas de cor negra, uma camiseta da mesma cor e uma máscara negra de nylon que tinha tirado do disfarce do Cat Woman do último Halloween. As luvas com que cobria suas mãos também eram negros, igual às sapatilhas esporte que calçavam seus pés. Inclusive vestia meias três - quartos negros para que os tornozelos não pudessem ver-se na escuridão.
Tinha-lhe dado uma oportunidade o Damien. Tinha convidado três vezes a sua casa. A primeira, tinha respondido o telefone, mas assim que lhe havia dito que era ela a que chamava, tinha-lhe gritado que não voltasse a incomodá-lo. O telefone tinha estado chamando após e Shannon suspeitava que o ermitão o tivesse desligado. Estupendo. Se queria que fizesse as coisas da maneira mais difícil, assim o faria. Diabos, não tinha nada a perder. E queria averiguar quem tinha matado a sua amiga e como. Aquele homem lhe tinha parado os pés. Havia tentando controlá-la. Mas não havia nada que a enfurecesse mais, que a pusesse mais à defensiva, mais disposta a batalhar. A última vez que alguém tinha tentado controlar sua vida tinha dezesseis anos e os resultados não tinham sido absolutamente agradáveis. Mas não voltaria a acontecer.
Estudou a enorme mansão com o olhar e se perguntou por que diriam que era tão inacessível. Na taipa que a rodeava não havia nenhum sensor para detectar movimentos externos. Só um alarme que soaria no caso de que tentasse abrir a porta e um par de câmeras de vigilância.
Deslizou a corda que levava no ombro e lançou o gancho que tinha a um dos extremos, no ramo de uma árvore que sobressaía próximo. Como era possível que um homem tão preocupado por sua segurança tivesse passado algo assim por alto? Subiu para subir ao ramo, voltou a lançar o gancho outra vez e descendeu até o chão. Foi muito singelo. Até um menino poderia ter entrado naquela casa.
Mas nesse momento se acenderam dois focos, apontando diretamente para ela. O coração de Shannon palpitava em seu peito como um martelo pneumático.
As luzes continuaram iluminando-há durante alguns segundos antes de apagar-se de novo. Assim havia sensores. Bastaria que algo se movesse para que aquelas luzes voltassem a iluminá-la outra vez. De acordo, tinha que pensar.
O sensor tinha que estar dirigido para o lugar no que se produzia o movimento para que se acionasse. Shannon deduziu que não podia estar orientado para o chão, posto que nesse caso, os focos se acenderiam cada vez que se movia um coelho ou um camundongo de campo. De acordo. Merecia a pena tentá-lo.
Deslizou-se para a casa arrastando-se sobre o estômago. Não via virtualmente nada com aquela escuridão. Quão único sabia era que a casa era enorme e que estava completamente às escuras. Não se via uma só luz procedente de seu interior.
Tentaria entrar pela porta; possivelmente houvesse uma gateira ou uma coisa parecida pela que pudesse entrar. Sempre e quando não houvesse um cão dentro da casa. Cruzou os dedos e se incorporou para subir os degraus de pedra da entrada.
E justo quando chegou à porta, esta se abriu lentamente e viu um par de botas negras frente a ela.
—O que está fazendo aqui, Shannon?
O aborrecimento vibrava em sua voz, mas parecia estar fazendo um esforço para controlá-lo. Shannon abriu a boca para responder, sem deixar de olhar as reluzentes botas, mas não saiu uma só palavra de seus lábios.
—Poderia imaginar todo tipo de coisas sobre sua atual postura, mas acredito que deveria se levantar.
Shannon obedeceu, ao tempo que sentia seu rosto arder sob a máscara.
Exato, levava uma máscara. Como demônio tinha adivinhado então que era ela?
Tirou a máscara e o fulminou com o olhar.
—Olhe, tentei falar contigo no teatro, mas você partiu. Depois chamei e me pendurou no telefone. Assim não me deixaste outra opção.
—Deixei-te a opção de me deixar em paz.
Em seus olhos negros parecia arder um autêntico fogo. Um fogo negro. Uma luz escura. Shannon pestanejou e se sacudiu mentalmente. Como era possível que um homem tão atrativo como aquele pudesse lhe dar medo? Ela não tinha medo de nada. Nem sequer da morte. E embora o tivesse, não o admitiria. Em sua situação, não podia permitir-lhe.
—Temo que não possa te deixar em paz.
—Por que não?
—Me deixe passar e lhe contarei isso —o olhou à cara e, ao ver que não se negava, compreendeu que estava vacilando—. É importante.
—Sim, deve sê-lo —baixou o olhar para seu traje enquanto o dizia.
A Shannon não passou despercebido seu sarcasmo. E justo quando elevou o queixo e a resposta estava a ponto de sair de seus lábios, Damien assentiu e se fez a um lado para deixá-la passar.
—Dez minutos, Shannon. Depois terá que ir ou chamarei a segurança.
Shannon o olhou por cima do ombro, sentindo-se triunfal.
—E a quem indicar que levarão, a Mulher Gato ou ao Batman?
Damien fez uma careta, mas não pôde dissimular o sorriso que apareceu apenas a seus lábios. Shannon se perguntou por um instante por que quereria ocultá-la. Mas assim que se voltou para ver por aonde ia, desapareceu de sua mente qualquer outro pensamento.
O curto vestíbulo que acabavam de cruzar dava ligação a uma habitação circular que teria deixado em ridículo ao Salão Oval. Havia uma lareira de mármore negro com duas portas em arco, uma para o fogo e a outra para armazenar a lenha. Sobre o suporte da lareira, alinhavam-se diferentes objetos resguardados em cubos de cristal de boêmia. O chão resplandecia enquanto as chamas iluminavam uns tapetes de vívidas cores. Uma delas estava perto da chaminé e estava coberta de almofadas. Almofadas redondas, quadradas, ovais, de cetim, de seda e de veludo em cor negra, vermelho ou dourado. Frente à chaminé, uma chaise-longue de couro envelhecido. Havia também um sofá, mas sem respaldo, com almofadas em cada um de seus extremos. De todas as paredes penduravam tecidos de cor vermelha com franjas. E a madeira dos pés e as bordas dos móveis estavam gravadas com formas e símbolos estranhos.
Shannon pestanejou e sacudiu a cabeça.
—Não é o que esperava?
Shannon tremia como se estivesse soprando a seu redor um vento gelado. Mas não era o frio o que a fazia estremecer-se. Tinha sido um fôlego quente e cinco palavras brandamente pronunciadas em sua nuca.
Conteve a respiração, fechou os olhos e tentou tranqüilizar-se. Não podia permitir que o estranho comportamento daquele homem a assustasse. Ao fim e a cabo, formava parte de seu espetáculo. Era uma imagem que levava além do que ela esperava, mas isso não provava que fora capaz de levá-la até o final... Ou sim?
—É o lugar perfeito para manter sua imagem intacta, Damien. Embora... —continuou tentando dissimular o assombro de sua voz—, não sei por que toma tantas moléstias. Tenho entendido que são muito poucas as pessoas que conseguem cruzar essa porta. De modo que, a quem tenta impressionar?
—Esta habitação é para mim. Eu gosto assim.
Shannon se aproximou do suporte da chaminé e arregalou os olhos ao ver de perto os objetos que encerravam os cubos de cristal. Eram figuras de homens Barbados com os olhos amendoados. Havia também uma figura de uma cabra sentada sobre seus quartos traseiros, aparentemente de ouro, uma peça de cerâmica com animais e desenhos perfeitamente simétricos, e uma pedra coberta de linhas com diferentes signos, letras possivelmente?
—São todos tão antigos como parecem?
—Isso depende do antigo que lhe pareçam.
Shannon o olhou com o cenho franzido.
—São antiguidades, verdade? Coleciona-as. Mas onde as encontraste? Na tumba de um faraó?
—Não estaria mau. Mas deveria as buscar um pouco mais ao sul.
Shannon se mordeu o lábio enquanto se divagava os miolos tentando averiguá-lo, mas Damien a cortou.
—Dei-te dez minutos e já gastaste três olhando boquiaberto este salão. Vais dizer-me o que te fez vir até aqui vestida dessa forma tão ridícula?
O aborrecimento retornou e, com ele, a lembrança dos motivos que a tinham levado a aquela casa.
—Mencionar que é uma tolice, verdade? Que sou uma admiradora obcecada por você, e que único quero é um autógrafo ou uma lembrança do Eterno Damien.
Damien inclinou a cabeça para um lado, cruzou os braços e esperou pacientemente que Shannon fora ao grão. Esta abriu o zíper da pochete que levava a cintura e tirou de seu interior um envelope sem selo.
—Com quanta freqüência faz o truque da levitação com uma voluntária do público, Damien?
Damien fixou o olhar no envelope e a olhou de novo aos olhos.
—É um número novo. Esta noite o tenho feito pela terceira vez.
—Então essa foi à terceira vez. E você lembra da voluntária da semana passada?
Tirou umas fotografias antes que ele tivesse tempo de responder. Manteve o olhar fixo no Damien em todo momento, tendo muito cuidado de não baixar o olhar enquanto as tendia.
Damien a olhou durante extenso momento. Quando tomou as fotografias, roçou-lhe o polegar e Shannon se estremeceu. Afastou-se dele, caminhou para aquele móvel que parecia a cama da Cleópatra e se sentou.
Negava-se a olhá-lo e optou por fixar o olhar no fogo da chaminé.
Não o ouviu aproximar-se, de modo que se sobressaltou quando Damien a agarrou pelo pulso e atirou dela para obrigá-la a levantar-se. Sua mão parecia uma garra de ferro e a fulminou com um olhar tão intenso como perigoso.
—Que demônios é este lixo?
—Não a reconhece, Damien? Admito que seja difícil reconhecê-la com essa pele tão branca como a cera e esse olhar vazio. Mas o cabelo segue sendo o mesmo. Despenteado, sim, mas basicamente o mesmo. Era atriz, sabe? Ou pelo menos queria sê-lo.
Damien aumentou a pressão de sua mão.
—Que suja brincadeira está tentando...?
—Lembra-te dela. Estupendo. Isto não é nenhuma brincadeira, Damien. Tawny Keller está morta. Morreu em sua cama, umas horas depois de ter participado de seu espetáculo.
Damien entrecerro os olhos e deixou cair a mão com a que a sujeitava. Sacudiu a cabeça e se voltou.
Shannon procurou de novo na pochete e tirou uns documentos grampeados.
—Não lhe creio isso, verdade? Bom, pois provo com isto —lhe colocou os papéis sob o nariz—. São os relatórios do forense, os resultados da autópsia.
Damien elevou de novo o olhar. Shannon teve a impressão de que se estava rasgando por dentro, mas a sensação se desvaneceu quase tão rapidamente como chegou.
—Como conseguistes todas estas coisas? É da polícia?
—Polícia não. Detetive privado.
Shannon deixou os documentos a um lado. As folhas saíram voando e terminaram no chão. O silêncio se alargava entre o Damien e ela. Mas Shannon não queria voltar a senti-lo.
—Eu encontrei o cadáver.
As lembranças a assaltaram apesar de que lutou contra eles com todas suas forças. Recordou-se batendo na porta de Tawny. Estava preocupada porque não respondia o telefone e sempre falavam na primeira hora da manhã. A porta nem sequer estava fechada.
Shannon sentiu uma mão de ferro ao redor de seu coração enquanto revivia mentalmente o momento no que tinha entrado em sua casa. Tinha sabido, havia sentido o medo antes de entrar no dormitório e ver o que ninguém deveria ver jamais.
Voltou-se para ocultar sua dor e se afastou do Damien.
—Estão tentando mantê-lo tudo em silêncio. Armar-se-ia um verdadeiro revôo se a causa da morte se filtrasse à imprensa. Mas eu o vi. Vendi meu silêncio em troca das fotografias e os informes. Trabalhei com esse forense e se atem sempre escrupulosamente às normas. Se tivesse sido por ele, jamais teria tido acesso a estas fotografias —fixou o olhar na chaminé, batalhando contra as lágrimas—. Ameaçaram-me tirar a licença de detetive se me meter nisto, mas não me importa. Era minha melhor amiga.
Damien esclareceu a garganta.
—Sinto-o —se aproximou dela, permanecia justo atrás. Aquele homem era tão sigiloso como um gato—. Mas ainda não entendo...
Shannon girou bruscamente e lhe cravou o dedo indicador no peito.
—Não o entende? Sangrou até morrer, Damien. E as únicas feridas que encontraram em seu corpo são essas duas marcas no pescoço. Diga-me como demônio pôde alguém fazer isso e depois, me diga de quem suspeitaria você se estivesse em minha pele.
Damien fechou os olhos e se apartou lentamente dela.
—É impossível. Tem que haver outra ferida, ou...
—Lê esta maldita autópsia se não me crie. A causa da morte é uma perda extrema de sangue. Não podem explicá-lo. Se fosse um cidadão importante em vez de uma prostituta que aspirava converter-se em atriz, provavelmente chamariam o FBI —fechou os olhos—. Mas só era Tawny. Uma João ninguém que cresceu nas ruas e fez tudo o que esteve em sua mão para sobreviver. Foi minha melhor amiga desde que completei os dezesseis anos. Se não tivesse sido por ela, eu nunca teria chegado a completar dezessete.
-- A polícia acredita que estou louca. Dizem que não há nenhuma prova que aponte para você. Mas sou boa no que faço e neste momento, o único objetivo de minha curta e triste existência é chegar ao final de tudo isto —se aspirar o nariz e tentou apagar o tremor de sua voz—. Estou tentando localizar a mulher que aparecer voluntária uma semana antes que Tawny o fizesse. Mas não estou tendo muita sorte. E minhas vísceras me dizem que não a vou encontrar, ou que se o fizer, não estará em condições de me contar nada.
Ouviu-o exalar um lento e comprido suspiro.
—Assim vieste aqui me acusar de assassinato. Pois já o tem feito. E agora, acredito que deveria partir.
—Rosalie também era uma prostituta, sabe? Tinha ido aquela noite ao espetáculo com um de seus clientes. Ninguém informou seu desaparecimento. E a polícia decidiu ignorar o fato de que não apareça porque a ninguém importa. Mas o caso do Tawny é diferente. Há alguém que se preocupa com ela. E não vou deixar as coisas como estão.
—Vete a casa, Shannon.
—Me diga Damien, o que passou? Estais tão louco que realmente acreditas que é o personagem que representa em cena? Ou é só uma tática publicitária? Umas quantas mortes à mãos de um vampiro enquanto está na cidade para aumentar sua fama? —franziu o cenho e o olhou com atenção—. Sofreu muito Tawny antes que a matasse, Damien? E como demônios conseguiu lhe fazer uma coisa assim?
O aborrecimento o estava atacando com uma violência quase física.
—Você quer crer?
Shannon elevou o queixo e lhe sustentou o olhar.
—Acredito que esses crimes indicam um patrão de conduta e, se tiver razão, então eu sou a seguinte da lista, não é certo? E sabe algo, Damien? Quase estou desejando que venha me buscar, porque estarei esperando.
Shannon sentia sua raiva. Parecia chispar no espaço que os separava.
—Ah, sim?
—É obvio que sim, e será melhor que acabe comigo à primeira tentativa, porque não vacilarei. Nunca falho.
—Está disposta a me disparar, verdade?
—Estou disposta a te voar a cabeça. Não sei quantas outras garotas mataste, mas desta vez equivocaste. Tawny era minha melhor amiga. Assim procura apontar bem, mago, porque esta vai ser sua última oportunidade.
Deu meia volta e começou a caminhar para a porta, mas Damien a agarrou pelo braço e a fez voltar-se de novo para ele.
—Não vai a nenhuma parte.
Shannon arregalou os olhos. Uns olhos da cor do âmbar. Damien sentiu o medo que a atravessava. Mas Shannon não o mostrava. Não se encolheu. Nem sequer baixou a cabeça. A juba loira emoldurava seu rosto lhe dando um aspecto angelical. Naquele momento era um anjo furioso, um anjo vingador. Damien abriu sua mente de maneira deliberada pela primeira vez em séculos. O bombardeio o surpreendeu. Soltou a Shannon e se levou as mãos às têmporas para defender-se da força com a que o assaltavam as vozes, pensamentos, emoções, sensações... Milhares e milhares de sensações pressionando-o ao mesmo tempo.
Fechou os olhos e retrocedeu cambaleante. O ruído de infinitas vozes lhe brocava os tímpanos. Sensações de dor, prazer, frio, calor, enjôo, esgotamento... Pisoteavam seu corpo e o faziam vibrar como se estivesse eletrificado. As imagens surgiam como chamas ante seus olhos. Milhares de aromas o assaltavam, milhares de sabores se acumulavam em sua boca antes que pudesse fechar a porta de seu cérebro. Selá-la.
Pelo amor da Inanna! Tinha passado tanto tempo desde a última vez que tinha tentado perceber sensações de outros... Tinha crescido em poder, em força, em habilidade para praticar certos truques, mas, ao mesmo tempo, tinha descuidado muitas outras, de suas habilidades. Teria que voltar a trabalhar nelas. Aprender de novo a filtrar as vibrações, a concentrar-se unicamente na mente que lhe interessava. Que nesse momento era a de Shannon.
Abriu os olhos e pestanejou para tentar fixar o olhar. Estava sozinho. Voltou-se para o vestíbulo. A porta estava totalmente aberta e atrás dela só se via a noite escura.
Como se Shannon não tivesse estado nunca ali. Damien fechou a porta e permaneceu atrás dela sem deixar de tremer. Obrigou-se a retornar ao salão, seu lugar preferido para relaxar-se. Os olhos fundos da mulher morta o olhavam das fotografias que tinham ficado pulverizadas sobre o chão de mármore. As marcas de seu pescoço pareciam estar burlando-se dele.
«Crie-te o inimigo da morte, Damien? Pois você se equivoca. No final ganhei, você viu? Rendeste-te. E agora me pertence».
Equilibrou-se sobre aquelas horríveis fotografias, ajoelhou-se frente à chaminé e as jogou sobre as cinzas apagadas da habitação.
—Eu não a matei.
Aquelas palavras saíram de seus lábios convertidas em um precipitado sussurro. O rosto que uma vez fora uma formosa aspirante a atriz o olhava fixamente, gritando sua acusação das profundidades de uns olhos que já não viam. Damien concentrou seus pensamentos e as fotografias arderam. Observou-as arder perguntando-se o que podia ter feito para evitar todo aquilo. A sede... Aquela maldita necessidade foi-se fazendo mais forte à medida que tinham se passando os anos. Era impossível negá-la ou ignorar aquela fome. Os animais já não eram suficientes. E o frio líquido que roubava dos bancos de sangue não conseguia saciar sua necessidade. Não podia seguir ignorando-a.
Tinha-o tentado. De fato, converteu-se em uma espécie de ritual de tortura. Cada vez que chegava a fome, negava-se a alimentar-se, lutava contra a sede de sangue, resistia até que o superava. Tinha pensado que, dessa maneira, faria-se cada vez mais forte. E, entretanto, não tinha sido assim. Cada vez que o reprimia, o desejo se fazia mais forte em suas veias e até a última célula de seu corpo terminava lhe demandando aquele elixir. Ao final, perdia o controle e saía a caçar abrindo-se caminho em um feixe de desejo sangrento.
Mas, mesmo assim, tinha mantido uma modesta contenção. Bebia apenas uns sorvos e só de mulheres que o seguiam atrás de suas atuações. Suas admiradoras. Aquelas que se deslizavam em seu camarim sem ter sido convidadas e lhe suplicavam que as fizesse dele.
Eram puras fantasias, ele sabia. E ria de seus oferecimentos. Mas se apresentava horas depois em seu dormitório, lhes aparecia em sonhos. E ali, envolto no calor de uns braços mortais, saciava seu urgente desejo. Depois, com uma simples ordem, conseguia que suas vítimas recordassem aquele troca como um sonho erótico. E os primeiros raios de sol apagavam as marcas que tinha deixado em seu pescoço.
Sempre as deixava dormidas e satisfeitas, tendo recebido tanta satisfação como ele do intercâmbio.
O teria cegado o desejo até o ponto de ter sangrado a uma delas sem haver-se dado conta?
«Exato Damien. Não só te rendestes, mas também se uniu ao meu exército. Agora é um de meus homens. Damien. Um instrumento da morte».
Damien gemeu angustiado e cruzou os braços sobre seu ventre. Ninguém desprezava como ele a sombra da morte. Ninguém. A morte era seu maior inimigo. Se chegasse um momento no que para poder alimentar seus próprios demônios tivesse que matar, poria fim a sua existência imediatamente. Faria... Não.
Damien se endireitou e fixou o olhar nos restos das fotografias que descansavam na habitação. Não, antes de fazer nada, tinha que saber a verdade. Se tiver matado, se tinha arrebatado uma vida, deveria entregar a sua.
Mas se não era assim, isso significava que havia alguém mais.
Começou a caminhar, perdido em seus pensamentos. Alguém, possivelmente, que pretendia lhe fazer aparecer como culpado.
Deteve-se perto do primeiro arco do salão. Alguém que estava espiando a todas as mulheres das que se alimentava, possivelmente? Mas se alguém o tivesse seguido, teria se dado conta, ou não?
Mas então tinham seguido às mulheres que subiam a cena com ele?
Seu olhar voou para o lugar no que tinha visto por última vez a Shannon. Se não ia procurar e a sua teoria era certa, poderiam matá-la essa mesma noite.
E se ia atrás dela, como todos seus instintos lhe gritavam que fizesse, e seus piores temores fossem certos, a preciosa vida de Shannon também poderia terminar. Como podia arriscar-se a matar alguém a quem só queria proteger? E como podia arriscar sua necessidade de solidão cedendo à urgência de protegê-la quando sua razão lhe dizia que fugisse?
Que demônios ia fazer?
Um corvo elevou seu vôo em meio da noite; o negro azulado de suas asas resplandecia enquanto planava sobre o vento e se elevava de novo em espiral. Depois, dobrando suas asas e descendeu a uma velocidade vertiginosa. Elevou-se de novo e bateu as asas até o balcão de um apartamento do vigésimo terceiro andar.
Shannon fechou a porta de sua casa, jogou o ferrolho e pôs a corrente. Recostou-se contra a porta e fechou os olhos sem fôlego. Tinha conservado o valor até o momento no que Damien a tinha agarrado o braço e lhe havia dito que não ia partir. Nesse instante, tinha experimentado o mais puro pânico, pensando que ia matar-la.
Imediatamente, foi a sua mente a imagem de Damien, como uma foto instantânea que refletia a expressão com a que a tinha cuidadoso nesse momento. O que lhe teria ocorrido? Tinha-a solto de repente e se levou as mãos à cabeça como se temesse que esta fosse partir-se o em dois. E ela tinha saído fugindo como um coelho assustado.
Apertou os olhos com força para evitar as estúpidas lágrimas que ameaçavam transbordando seus olhos e sacudiu a cabeça ante aquela amarga ironia. Ela fugindo da morte. Deus, que ironia! Não pela primeira vez, ouviu-se a si mesma amaldiçoando ao destino por ter cometido o engano de escolher a Tawny como vítima daquele psicopata. Deveria ter morrido ela, Tawny tinha futuro. Uma carreira. Shannon sabia que o teria conseguido. Tawny tinha uma capacidade especial para conseguir que as coisas saíssem tal e como ela queria.
«Não deveria ter morrido Tawny. Deveria ter morrido eu. Deus, por que não me terão matado? Pelo menos, uma de nós teria seguido viva, poderia ter chegado a ter uma família algum dia... »
Pestanejando, tentou abandonar a autocompaxão. Se não era capaz de recuperar a compostura, ela também acabaria morrendo. E poria fim a qualquer possibilidade de descobrir ao assassino de Tawny antes que acabassem seus dias na terra. Se for procurá-la, fá-lo-ia aquela noite. Tawny tinha morrido a mesma noite que tinha participado do espetáculo de Damien. E, por isso ela sabia a outra mulher, Rosalie, não havia tornado a ser vista da noite que se mostrou diante dos refletores.
Shannon estava cansada. Sim, maldita fora, estava cansada.
Afundou a mão na pochete para tirar dali um revólver 38. Levou a pistola ao banheiro e a deixou sobre o mostrador que rodeava um pia de cor coral para tê-la ao alcance da mão. Despiu-se rapidamente e deixou os objetos ali onde aterrissaram. Depois, meteu-se sob a ducha e deixou que a água relaxasse seus doloridos músculos. Deus, seria maravilhoso poder descansar depois de tanta tensão. Relaxar com um bom livro ou com uma tigela de pipocas e um velho filme do Bogart. Viajar de carro para o sul até encontrar as praias e o sol. Mas sabia que não podia fazê-lo. Ainda não. Tinha posto toda uma maquinaria em movimento e tinha que ver como terminava tudo aquilo. Não contava com muito tempo e era consciente disso.
Inclusive depois da morte de Tawny e de todas suas repercussões, de todas as perguntas para as que lhe faltava uma resposta, Shannon ainda não podia evitar que sua mente voasse para a última pessoa em que queria pensar.
Damien Namtar.
A imagem daquele homem voltava a flutuar em seu cérebro, maldito fora. Aquele homem era suspeito de assassinato. Não para a polícia, é obvio. Mas para ela o era. De fato, até o momento era o único suspeito. Assim deveria deixar de pensar na estranha consciência de si mesma que sentia quando estava perto dele, as agradáveis sensações que a acompanhavam. «Distrações psíquicas», pensou para si e jogou a cabeça para trás para deixar que a água lhe enxaguasse o cabelo. Inalou aquele vapor quente, esperando que a ajudasse a centrar a cabeça. Damien Namtar era um homem muito atrativo. De uma forma escura, exótica. A isso teria que acrescentar que suas atuações tinham sempre uma importante dose de erotismo, de modo que não era absolutamente estranho que sua libido respondesse daquela maneira.
Ou sim? Shannon sempre se considerou imune ao desejo sexual. Tinha muito pouca experiência nesse campo; só a viciada bêbada que se supunha que tinha que cuidá-la, a mãe adotiva que a tinha acolhido aos dezesseis anos. Não tinha muita escolha e se viu obrigada a viver com ela.
Entretanto, desde aquele dia em adiante, todas as opções tinham sido dela. Ninguém havia tornado a lhe dizer o que tinham que fazer. E ninguém o faria.
Só tinha tirado uma coisa boa daquela etapa de sua vida, e era que tinha conhecido Tawny. Tinha enviado a mesma família de criação e ambas tinham sofrido os mesmos abusos, embora era certo que durante um curto espaço de tempo. Tinham conseguido escapar antes que aquele descarado pudesse consumar a violação última. Não tinham muita escolha. Nem Shannon nem Tawny confiavam então na polícia para denunciá-lo. Com quem poderiam ter falado? Com os mesmos burocratas que as tinham enviado a aquela casa?
Os resultados da breve estadia com aquele homem tinham sido completamente diferentes para cada uma delas. No caso do Tawny, esta não havia tornado a sentir nenhum respeito por seu próprio corpo. Tinha-o convertido em um fim para conseguir o que queria. Utilizava-o e ria dos homens que eram tão estúpidos para pagar por algo que ela teria estado disposta a lhes entregar livremente.
Mas Shannon era diferente. Ela tinha decidido que jamais deixaria que um homem voltasse a tocá-la. Nunca. Nem sequer era capaz de pensar no sexo sem recordar a humilhação, o pestilento fôlego daquele homem.
Mas, por alguma razão, não revivia aquela sensação de repugnância quando pensava no Damien.
Suspirou, tentando tirar-lo da cabeça, mas não podia. Recordava sua atuação. Não era de se estranhar que suas admiradoras lhe jogassem nos braços.
Mas a questão era saber se Damien assassinava as mulheres que lhe ofereciam. Teria se deixado arrastar Tawny por seu atrativo e lhe teria devotado como outras tantas mulheres faziam? Seria essa a razão pela qual a tinha assassinado?
Shannon continuava sem compreender o que lhe tinha ocorrido a sua amiga.
Havia outros casos que também demandavam sua atenção, mas os tinha transferido a agências de detetives maiores que a sua; odiava ter que renunciar a aqueles trabalhos quando tinha tido que lutar tão duramente por chegar a estabelecer-se, mas queria concentrar-se em um único caso. Manteria o escritório aberto só para investigar o que lhe tinha ocorrido a sua amiga. E quando descobrisse ao assassino de Tawny, fecharia o negócio para sempre.
De momento, queria concentrar-se exclusivamente no assassino de Tawny. Não podia permiti-la menor distração. Utilizaria a cada segundo de seu tempo para...
Enjoou-se de repente, apoiou-se contra os frios ladrilhos da ducha e fechou a torneira. Maldita fora, por que naquele momento? Por que demônios tinha que lhe ocorrer em uma situação como aquela?
Procurou por uma toalha e saiu cambaleante da ducha, detendo-se unicamente para recuperar a pistola antes de sair ao quarto. Tinha que meter-se na cama, tinha que deitar-se e descansar até que cessasse o enjôo. Porque lhe passaria. Sempre o fazia.
Precisava chegar à cama e esfregou para manter o equilíbrio, até chegar a ela. Tinha que meter-se entre os lençóis porque o seguinte seria o frio. E depois começaria a tremer e lhe subiria a febre. Normalmente, o processo durava somente uma hora. Mas os episódios eram cada vez mais freqüentes. Era como uma espécie de sistema de alarme de seu próprio corpo que lhe recordava que seu tempo estava a ponto de terminar.
Conseguiu chegar à porta do dormitório antes de deprimir-se. Sentiu que as pernas começavam a afrouxar-se dos tornozelos até os quadris e que o chão se elevava para receber sua queda. Ela colocou seus braços antes de tentar subir, mas ele pesava tanto que era quase impossível de se mover.
Os tremores a sacudiam e podia ouvir o bater de seus próprios dentes. Deus, tinha tanto frio... Se pelo menos pudesse chegar à cama... Até então, sempre o tinha conseguido. Mas aqueles malditos ataques eram cada vez mais freqüentes e mais fortes, compreendeu. E não queria pensar no que isso significava.
Concentrando-se com força, conseguiu esticar a mão ao redor da pistola. Tinha que tê-la consigo se por acaso fossem procurar-la. O assassino a mataria se a encontrasse completamente indefesa. Deus, odiava sentir-se tão impotente, não poder controlar seu próprio corpo. Concentrou-se em sentir o gatilho e inclusive se esforçou em arrastar-se pelo chão. Todos os músculos de seu corpo lhe ardiam. E depois, começaram aquelas malditas convulsões que pareciam querer rasgá-la.
Alguém se inclinou sobre ela e a levantou. Uma familiar fragrância a envolveu. Uma fragrância sutil, sensual. Sentiu uns braços a seu redor e depois um peito contra o seu; era uma sensação aconchegante e familiar. Obrigou-se a abrir os olhos e a fixar a visão, mas só via um contorno impreciso. Não importava. Sabia perfeitamente quem era a pessoa que estava cruzando com ela a habitação e a depositava sobre a cama. Agasalhou-a entre os lençóis e conectou a manta elétrica. Soube por que começou a notar o calor sobre a pele gelada. Damien lhe tirou suavemente a pistola e, com aquelas mãos mágicas de dedos largos e elegantes, removeu-lhe os cabelos da cara.
—Quer que chame uma ambulância, Shannon?
Shannon ouviu suas palavras, ouviu aquela voz suave que com tanta dureza a tinha tratado a última vez que se dirigiu a ela. Naquele momento, entretanto, era como uma música aveludada para seus ouvidos.
Tentou responder, mas renunciou e se limitou a negar com a cabeça. Inclusive para aquele pequeno esforço necessitava de todas suas energias.
—A sua família então?
—Não... Não há ninguém.
— O que está errado com você? O que você tem?
Falava quedamente, como se temesse machucar os seus ouvidos. Shannon sentiu a força de suas mãos nos ombros, seu calor, a pressão de seus dedos sobre sua pele.
O calor da manta elétrica foi penetrando em seu corpo. Os tremores cessaram e também diminuiu ligeiramente o frio, mas persistia aquela dor que a fazia sentir-se como se acabasse de lhe passar um rolo compressor por cima. Notou que Damien se separava da cama e ouviu seus passos.
Deus, por que não a tinha matado ainda? E onde estava sua pistola? Por que não gritava para pedir ajuda?
Damien retornou e se sentou a borda da cama. Shannon sentiu umas pastilhas nos lábios e depois água fria. Tragou enquanto Damien lhe sustentava a cabeça, lhe rodeando o pescoço com os dedos.
—É ibuprofeno —lhe disse— para a dor e a febre.
Shannon assentiu e Damien lhe fez apoiar de novo a cabeça no travesseiro.
—Encontra-te melhor?
Shannon não era capaz de manter os olhos abertos por muito que tentasse olhá-lo para adivinhar se realmente se escondia um assassino detrás daqueles olhos negros.
—Importaria me dizer como pensava você enfrentar a um assassino neste estado?
Parecia zangado. E Shannon se perguntava por que.
—Eu... Não tinha planejado isto.
—Está melhor? Está mais relaxada?
Shannon começou a dormir, mas sentiu as mãos do Damien sobre seus ombros a levantar o travesseiro.
—Diga-me isso!
Shannon arregalou os olhos. Já estava, dizia-lhe sua mente adormecida. Aquele era o fim. E a tinha encontrado de madrugada, tal e como lhe tinha ocorrido a Tawny. Morreria sangrada e com o olhar fixo no teto. Contemplando a alternativa, morrer de um de seus ataques não lhe parecia tão terrível.
Tinha que fazer algo. Tinha que concentrar sua mente e a força de cada um de seus músculos em salvar-se. Alargou uma mão para a mesinha de noite. Era ali onde Damien tinha deixado a pistola, não? Tocou o abajur e sentiu cair no chão.
Damien se aproximou dela e a fez deitar-se delicadamente sobre os lençóis. Shannon viu os olhos negros de Damien escrutinando seu rosto. E depois suas mãos pressionando algo frio e duro entre as suas.
—É isto o que buscas?
Shannon fechou a mão ao redor da fria coronha da arma e começou a respirar outra vez.
—Fique se isso te tranqüilizar, Shannon, mas não vim te matar.
Shannon sustentava a pistola contra seu peito, cobrindo-a também com a outra mão. O canhão assinalava para o Damien e seu dedo logo que roçava o gatilho. Os olhos lhe fecharam, mas voltou a abri-los imediatamente.
—Está melhor, de verdade?
Shannon assentiu.
—Por que... Por que vieste? —arrastava as palavras como se tivesse estado bebendo—. Se não tiver vindo a me matar, então por que...? —lhe fechavam as pálpebras e se esforçava em mantê-los abertos, mas cada vez lhe resultava mais difícil.
Damien sorriu ligeiramente.
—Logo que poder permanecer acordada. Tranqüila, Shannon dorme um pouco.
—Não, não dormirei até... Até que você tenha ido — umedeceu os lábios e se obrigou a fixar nele o olhar para lhe enviar claramente uma mensagem—. Saia imediatamente daqui.
Damien tinha visto seus olhos cuspindo fogo. E, por um instante, Shannon recordou um de seus velhos amigos, o único homem que tinha tido o valor de enfrentar ele. Sorriu.
Shannon tinha medo, mas tinha também o valor da Inanna. Considerava-o um autêntico demônio, mas mesmo assim, desafiava-o a lutar. Como tinha feito ele em outro tempo. Shannon era como ele. Como Enkidu.
Umedeceu os lábios enquanto escutava a respiração de Shannon, cujo corpo ia rendendo-se a incontrolável invasão do sono.
Lutar contra a morte era um triste exercício. A morte sempre terminava ganhando a batalha. Acaso não tinha procurado ele incessantemente a chave da imortalidade, só para descobrir que não era outra coisa que uma morte perpétua?
Ele não queria fazê-lo. Negava-se a fazê-lo com a vontade de cada segundo de seus quase seis mil anos de existência. Não queria fazê-lo. Mas mesmo assim, abandonou a cama, meteu-se no banheiro e umedeceu um pano de água fria que utilizou depois para refrescar o acalorado rosto de Shannon. Permaneceria toda a noite em vigília, não por nenhuma classe de afeto, mas sim por simples decência e por fazer honra as lembranças.
A visão de Shannon ardendo de febre lhe tinha feito retroceder aos piores momentos de sua existência, quando tinha visto seu melhor amigo em uma situação similar. Havia-se sentido tão impotente então... Tinha-lhes chorado aos deuses clamando piedade, mas o único que tinha conseguido deles tinha sido vingança.
Recordou-se a si mesmo que Shannon não era sua amiga. Era uma desconhecida. E não era a agonia da morte a que estremecia seu corpo, a não ser calafrios provocados pela febre. E já tinham remetido.
—Não...
Baixou o olhar para a Shannon, mas não estava falando com ele. Pelo menos, não acreditava.
—Servirá para baixar a febre —lhe explicou, e voltou a colocar o pano sobre sua cabeça.
—Não me toque —chorou Shannon, e se retorceu na cama—. Tawny lhe diga que pare!
As lágrimas empapavam seu rosto e Damien não pôde evitar o nó de tristeza que se formou em sua garganta, embora soubesse que era uma tolice, que não tinha sentido. Aquela mulher não lhe importava absolutamente.
Acariciou seu rosto.
—Não passa nada, Shannon. Ninguém vai te danificar.
Surpreendeu-se ao ver a pequena mão de Shannon subindo para cobrir a sua.
—Não me deixe —sussurrou Shannon—.Tenho tanto medo...
Não estava falando com ele. Estava dormida e continuava ardendo de febre. Estava sonhando. Não estava falando com ele, repetiu-se.
Mesmo assim, sabia que ficaria ao seu lado. Como ia poder defender-se Shannon naquele estado? Se fosse certo que algum louco estava acabando com a vida de todas as mulheres que saíam a cena em seu espetáculo, Shannon corria um sério perigo.
Damien não queria acreditar nessa possibilidade. E mesmo assim, parte dele o fazia. Porque se não era outro o que tinha matado a aquela mulher, o teria feito ele. E ele não podia ter sido.
Logo que recordou seu rosto. Tinham sido tantas ao longo dos séculos, tantas mulheres com as que tinha satisfeito aquela sede eterna... Jovens, belas e todas dispostas a deixar-se arrastar para o êxtase com ele. Mas jamais as tinha matado. Nunca. Ele odiava a morte.
Forçou-se a recordar a Tawny. Tinha ido a seu camarim depois da atuação, tinha deslizado as mãos por seu peito e se pôs nas pontas dos pés para beijá-lo. E lhe tinha metido um papel na cintura da calça antes de partir. Era seu endereço. E Damien tinha sabido que podia ir vê-la. Aquela noite, sua sede de sangue tinha alcançado um de seus pontos gélidos. Não podia seguir resistindo-a e ao final tinha ido procurar-la.
Tinha encontrado ela na cama, meio dormido, e a tinha despertado com um beijo, mas não tinha intercambia com ela uma só palavra. Tawny tinha tirado a camisola e tinha empurrado Damien para a cama, oculta pela escuridão da noite. E quando a tinha penetrado, quando tinha satisfeito sua sede ardente em seu pescoço, produziu-se um instante de loucura. Tinha havido uma décima de segundo durante a que não tinha sido consciente do que fazia.
E quando se separou dela, tinha-o assaltado a mesma sensação de culpa que sempre o invadia. Ficou olhando-a fixamente enquanto ela dormia, tinha-a agasalhado com os lençóis e, em silêncio, tinha-lhe ordenado que recordasse o ocorrido como se só tivesse sido um sonho. Depois tinha pirado para a noite, com a consciência muito afetada para ficar ali nem um segundo mais.
Naquele momento estava caminhando ao lado da cama de outra mulher formosa, a amiga de Tawny, que pretendia ser também sua vingadora. E se questionava sua própria capacidade mental. Estaria Tawny dormindo quando a tinha deixado? Ou agonizando? Havia alguma possibilidade de que tivesse bebido muito sangue e tivesse acabado com aquela jovem vida?
Apartou o cabelo dourado de Shannon de seu rosto e sentiu sua textura sedosa entre os dedos.
Asseguraria-se de que qualquer ameaça contra sua vida desaparecesse, embora resultasse ser ele mesmo aquela ameaça, e depois se afastaria até a outra ponta do planeta para não voltar a vê-la nunca mais. Para não voltar a pensar jamais nela. E o faria sem lhe importar o que pudesse ser dela. Damien Namtar nunca se preocupava com ninguém. Tinha sido assim durante séculos e assim continuaria sendo.
Mesmo assim, era consciente de que não ficava outro remédio que averiguar o que lhe tinha passado ao Tawny Keller. Porque se resultava que ao final não era capaz de viver sem lhe arrebatar a vida aos outros, sabia que tinha que pôr fim a sua existência.
Todas aquelas coisas giravam como um ciclone em sua mente enquanto a observava, enquanto cuidava dela. Estava fazendo exatamente tudo aquilo que se jurou não fazer nunca. Estava protegendo a um de dos Escolhidos. Atuando por impulsos que eram puramente físicos, instintivos.
E quando estava chegando o amanhecer, compreendeu que não podia deixá-la ali sozinha, desprotegida.
Anthar olhou o edifício e apareceu em seus lábios um sorriso. Justo antes do amanhecer, esse ser que era uma mescla de humano e de Deus tinha saído da casa com a mulher nos braços. Inconsciente? Dormida? Hipnotizada possivelmente? Fosse o que fosse não importava. O pagão havia tornado para cuidar de alguém, outra vez. Esfregou as mãos com regozijo. Era muito perfeito. Ah, a destruição do Gilgamesh, de sua alma, de seu corpo e de seu espírito, estava aproxima. Por fim tinha encontrado as ferramentas para isso. Tinha esperado durante muito tempo sem perder a paciência. Porque não era possível destroçar completamente a um homem que ninguém lhe importava. O afeto, aquela era a chave da debilidade.
Sempre e quando aquilo fosse verdadeiro afeto.
Anthar não se atrevia a ler os pensamentos do Gilgamesh. Era de vital importância não ser descoberto enquanto observava cada movimento de Damien. Tinha que estar seguro antes de atuar.
Deveria lhe fazer uma prova. Ou várias, possivelmente. As que fossem necessárias até estar seguro. E depois começaria a lenta tortura até levá-lo a destruição definitiva.
Shannon despertou sentindo-se como se tivesse estado lutando contra um trem de mercadorias e tivesse perdido. A cabeça palpitava. O corpo doía e tinha a garganta como se a tivessem esfregado com uma bucha de aço. Apertou os olhos com força para proteger-se da luz que se filtrava através de suas pálpebras e enterrou a cabeça no travesseiro. O cetim acariciou sua bochecha. E quando inalou, seus pulmões se alagaram de uma mescla de fragrâncias. Estreitou-se contra o fofo edredom que a envolvia e…
Abriu os olhos de par em par. Aquela não era sua cama. Ela jamais tinha tido lençóis de cetim. Deu meia volta na cama, sentou-se e pestanejou até esclarecer seu olhar. Aquela tampouco era sua habitação.
—Que demônios...? —apartou os lençóis e se levantou.
A felpa de um tapete branco acariciou seus pés. Piscou de novo e tentou sacudi-la sensação de ter cruzado ao outro lado do espelho. A habitação era de forma triangular e a porta que tinha frente a ela estava em um dos cantos. Onde demônios estava? Aproximou-se da porta, agarrou o trinco e o girou. Mas não cedia. Esmurrou então a madeira.
—Né! O que está passando? Tirem-me daqui!
O coração lhe pulsava violentamente no peito enquanto esperava uma resposta que não chegava. Só silencio. Um silêncio pesado que se fechava a seu redor como um sudário. Procurou acalmar-se. Não era um sonho. Estava segura de que estava acordada. Muito bem. Então, o que tinha passado?
A lembrança da noite anterior retornou lenta, mas nitidamente. Havia tornado a sofrer uma daquelas crises. E uma crise especialmente grave, pior que nenhuma das que tinha tido até então. E Damien estava lá Ela tinha medo de que a matasse, mas em realidade... Tinha tentado ajudá-la.
—Sim, miúda ajuda. E assim que fiquei dormido, seqüestrou-me.
Olhou ao redor da habitação. Não tinha nenhuma dúvida de que pertencia ao palácio de Damien. Aquele tipo parecia ter algo contra as habitações quadradas. Percorreu o perímetro da habitação, empurrou uma porta aberta situada em um dos ângulos e viu um banho triangular atrás dela.
As janelas, altas e estreitas, pareciam sentinelas a ambos os lados da habitação, com seus cortinados de cor negra separadas por tiras brancas. Shannon apartou as cortinas e olhou ao exterior para confirmar suas suspeitas. Viu a taipa que tinha escalado a noite anterior.
Estava em sua casa, muito bem. E a janela não parecia a melhor via para escapar. Devia estar a uns três pisos do chão. O sol começava a ficar. Tinha passado dormindo a maior parte do dia.
—Maldito seja —Shannon deixou a cortina em seu lugar e se meteu no banheiro, em busca de alguma possível saída. Nada. Só o resplendor da porcelana e o cromo e um penhoar de felpa. Tudo sem mácula. E caro. A banheira era tão grande que poderia haver-se celebrado nela a Convenção Nacional do Partido Democrata. E a bata que pendurava de uma das paredes era... Um momento... Era sua bata!
Shannon retornou ao dormitório, abriu a porta do armário de par em par e encontrou em seu interior as roupas cuidadosamente penduradas.
. Um par de jeans, uma blusa e sua jaqueta de ante.
—Esse filho de... Que demônios acredita que está fazendo? —retrocedeu até a cama e viu então uma cesta de piquenique no chão.
Entrecerro os olhos, aproximou-se com cautela e abriu uma das tampas. Um montão de fruta. Examinou de perto seu conteúdo e levantou outra tampa. Meia dúzia de bolachas, um recipiente térmico e uma terrina com açúcar. O estômago começou a rugir. Uma parte dela se perguntou se Damien lhe teria jogado algo à comida. Mas a outra lhe dizia que para que fosse haver se tomado tantas moléstias. Se tivesse querido lhe fazer danifico, teria tido a possibilidade de fazê-lo a noite anterior.
Não gostava daquela situação. Tudo em seu interior se rebelava contra ela e, se tivesse detido a analisar os motivos, teria sabido por que. Tinham-lhe tirado a possibilidade de escolher. Era uma situação quase tão terrível como quando era menina e estava a mercê do Estado. Naquele momento, não tinha nenhum controle sobre sua vida. Quando voltasse a ver esse bastardo, mataria-o. Mas de momento, estava faminta. E embora a comida a tivesse eleito Damien, era ela a que decidia se a comia ou não.
Alargou a mão para o recipiente térmico desejando que estivesse cheio de café.
Era café, sim, e, além disso, bem quente.
Shannon olhou a seu redor e sacudiu a cabeça com gesto de frustração.
—Não sei o que te propõe, Damien, mas não vais sair te com a tua.
Damien tinha decidido que só havia três possibilidades. Uma, que tivesse perdido o controle e se converteu em um servidor da morte, seu pior inimigo. Dois, que houvesse outro vampiro em Arista. E três, que um mortal normal e corrente com uma mente especialmente retorcida fora o responsável por aquelas mortes e, por alguma razão doentia, queria que parecessem provocadas por um vampiro. O assassino podia ser alguém que pretendia que o acusassem de seus assassinatos. E se esse era o caso, então Shannon corria um grave perigo. E por muito que Damien tivesse jurado que jamais o faria, via-se obrigado a protegê-la. Os laços sangüíneos eram impossíveis de esquecer.
—A garota está acordada, senhor.
Damien saiu de seu ensimismamiento e elevou o olhar. Netty inclinou sua cabeça de um lado a outro como um passarinho curioso. Damien forçou um sorriso e o rosto de Netty se enrugou ao lhe responder com outra. Aquela mulher tinha um físico tão delicado como o de uma bailarina de uma caixinha de música e o caráter de um santo. Onde ia encontrar Damien a ninguém capaz de adaptar-se a seus horários sem queixar-se e sem fazer perguntas?
—Obrigado, Netty —apertou os lábios, perguntando-se o que diria Shannon quando subisse a vê-la.
—Já leva um momento acordada, caminhando pela habitação. Parece nervosa.
Inclinou de novo a cabeça e Damien soube que certamente não haveria nada que gostasse de mais que receber uma explicação sobre os motivos pelos que se deu a estranha circunstância de que houvesse uma mulher naquela casa.
—Levaste-lhe algo de comer?
—Sim, claro. Estava completamente dormida quando lhe levei a comida. É adorável, não crie?
—Já pode te retirar, Netty. Estiveste trabalhando durante todo o dia.
Netty se mordeu o lábio, inclinou a cabeça e saiu correndo da habitação. Damien ouviu fechar uma das portas traseiras do palácio e, aos poucos segundos, o motor de seu carro.
Ergueu então as costas e olhou para a escada. Não precisava abrir sua mente nem tentar escrutinar a Shannon para sentir a fúria que emanava da jovem. Era evidente. Enchia cada rincão da casa e toda ela ia dirigida contra ele.
Damien suspirou pesadamente, cortou o baralho e estendeu as cartas sobre a mesa. Extraiu quatro cartas e as girou. Quatro ases. Outro truque para acrescentar a seu repertório. Esboçou uma careta enquanto se levantava e começava a subir as escadas.
Quando chegou à porta, abriu o ferrolho com a mente e entrou na habitação. O primeiro que o impactou foi o aroma úmido e limpo que se desprendia de Shannon. Banhou-se. Podia sentir o vapor da água no ar, cheirar a água gotejando por sua pele... Quase podia saboreá-la. Ia vestida com uns jeans e uma blusa de algodão verde. E estava a ponto de arregaçar-se quando se voltou para ele. O fato de não ter grampeado um só botão não pareceu alterá-la. Seus olhos ambarinos jogavam fogo.
—Já era hora de que aparecesse. Que demônios crie que está fazendo ao me encerrar aqui? Isto é um seqüestro e te asseguro que lhe meterão no cárcere assim que possa...
Interrompeu-se e baixou o olhar; ao parecer, por fim se deu conta de onde tinha fixado Damien a sua. Os bordos brancos do prendedor acariciavam os montículos de seus seios como se fossem umas mãos amorosas e Damien não teria sido capaz de desviar o olhar por nada do mundo. Era preciosa. E fazia muito tempo que não se dava a oportunidade de apreciar realmente a beleza feminina. Satisfazia suas necessidades na escuridão, com encontros rápidos durante os que não havia nenhum intercâmbio de palavras.
Shannon lhe deu as costas para grampeá-la blusa.
—Quero um telefone. Vou chamar a um táxi para sair imediatamente daqui, e quando estiver de volta em meu apartamento, provavelmente chame à polícia.
Damien não disse nada. Limitou-se a olhá-la fixamente. Shannon se meteu as abas da camisa nos jeans antes de voltar-se de novo para ele.
—E bem?
A fúria coloria suas bochechas e arrancava faíscas de seus olhos.
—Parece que está muito melhor. Como te encontra?
Shannon elevou as mãos e elevou os olhos ao céu.
—Estupendamente. Onde demônios tem um telefone? —passou por diante dele, cruzou a porta e saiu ao enorme vestíbulo.
Olhou para os lados, sem saber onde ir.
—Tem esses ataques freqüentemente?
—Isso não é teu assunto. Onde tem o telefone?
—Responde a minha pergunta e lhe direi isso.
Se um olhar pudesse matar, o de Shannon teria brocado o coração do Damien nesse mesmo instante.
—Por que me trouxe para sua casa? —abriu os olhos de repente, como se acabasse de ocorrer-se o uma possível resposta—. Estava inconsciente, verdade? Fez-me algo?
—Shannon, pelo amor de Deus. Não me ocorre ir pela vida incomodando a mulheres que deliram. Traga-te aqui porque me dava medo te deixar sozinha. Estava muito doente. Teria chamado a algum membro de sua família se tivesse sabido como localizá-lo. Mas não sabia, assim decidi te cuidar eu.
—Eu não tenho família.
—Ocorreu-te em outras ocasiões, verdade?
—Uma vez ou dois —se voltou e começou a avançar pelo vestíbulo, mas em direção equivocada.
—Com quanta freqüência?
Encolheu os ombros.
—De todas as formas, a você o que importa? —deteve-se os poucos metros e se voltou, ao parecer, decidida a trocar de direção.
Quando passou por diante de Damien, este a agarrou pelo braço e começou a caminhar com ela.
—Nada. Não me importa absolutamente nada. O telefone está no piso de abaixo, mas não o necessita. Levarei-te aonde você queira.
Shannon piscou e se deteve sobre seus passos.
—De verdade? Quero dizer, não vais tentar... ?
—O que pensava? Que tinha seqüestrado você?
Shannon voltou a olhá-lo aos olhos; os seus continuavam relampejando.
—Deixaste-me encerrada.
—E tinha motivos para fazê-lo.
Damien começou a baixar as escadas, conduziu-a através de um corredor estreito até o seguinte lance e continuou baixando. Quando ao final chegaram ao primeiro piso, guiou-a para a biblioteca e assinalou um sofá de couro.
Shannon se esticou e não se moveu da porta.
—O que é isto? Hei-te dito que queria partir.
—Shannon, quando ontem você se meteu em minha casa e me pediu que te concedesse dez minutos, dava-lhe isso. O único que te estou pedindo é que me devolva o favor.
Shannon inclinou a cabeça para um lado; era como um animal desconfiado medindo as oportunidades que tinha ante seu depredador.
—Pode partir quando quiser, não te deterei Tem um telefone em cima da escrivaninha —o assinalou. Shannon o olhou, umedeceu os lábios e assentiu.
—De acordo. Dez minutos. Nenhum mais.
Nenhum mais. Desgraçadamente para ambos, ia ter que haver muitos mais. Inclusive teria que reter a à força no caso de que se visse obrigado a isso.
Por que demônios teria ficado, escutando-o? Se o propunha, aquele tipo seria capaz de convencer a de que comprasse um pântano situado no deserto. Havia algo especial nele...
Shannon percorreu a biblioteca. A forma oval da habitação já não representava uma surpresa. As paredes curvas estavam cobertas de livros, a maior parte muito antigos, com aquele maravilhoso aroma que desprendiam sempre os livros velhos. O sofá e as cadeiras eram de couro. Novos. Seu aroma se fundia com o dos livros e com aquela fragrância tão sutil distintiva do Damien.
Shannon o olhou por cima do ombro. Estava no mesmo lugar que antes, olhando-a intensamente. Eram seus olhos, sim, isso era. Tinha uns olhos enormes, profundos e expressivos. E tão escuros... Combinados com sua melodiosa voz de tenor resultavam do mais persuasivo.
—Então, fala —disse, tentando parecer insensível.
Não queria pensar que fora possível que se equivocou com ele. Não queria baixar suas defesas. E não pensava confiar naquele homem. Ela não confiava em ninguém. Tawny e ela só confiavam a uma na outra.
—O que foi isso?
Damien a sondou com o olhar. Aproximou-se dela e se deteve.
—O que?
—Por um instante, parecia... —umedeceu os lábios e sacudiu a cabeça—. Nada, não importa. Não é meu assunto.
—Provavelmente não.
Shannon se voltou e deslizou os dedos pelos lombos dos livros enquanto lia os títulos. Mitologia Suméria. Os Deuses da Antigüidade. A Epopéia do Gilgamesh...
—Sei que crê que fui eu que matei a sua amiga, mas como me conheço melhor que você, temo que não esteja de acordo.
Colocou-se atrás dela enquanto falava. Estava muito perto. Shannon notava sua proximidade como se fora eletricidade estática; punha-lhe de ponta o pêlo da nuca. Tentou concentrar-se nos títulos. Viu outro volume sobre o Gilgamesh, e outro. Damien tinha várias versões da mesma história.
—Tendo isso em conta, tenho que assumir que há outra pessoa responsável por esse assassinato. E se estiver no certo, você está em perigo.
—Se estiver certo? Diz-o como se nem sequer você estivesse convencido de ser inocente —se voltou a tempo de ver Damien piscar como se acabasse de colocar o dedo na chaga.
—Pensei que poderia estar em perigo. Essa é a razão pela que segui a sua casa ontem de noite. E o motivo pelo que te traga aqui quando vi que estava muito doente para se defender.
—Sim, claro, e por que vou ter que acreditar em você? Apenas me conhece, por que foste querer me proteger?
— Qual alternativa tinha Shannon? Deixar você ali e permitir que morrera? Me inteirar pelos periódicos de que tinha sido encontrado seu cadáver?
—Esta noite, amanhã de noite... Que diferença pode haver? —alguém encontraria seu cadáver qualquer dia. Depois do último ataque, não acreditava que fora a agüentar muito mais tempo.
Damien franziu o cenho, escrutinando-a de tal maneira com o olhar que Shannon teve que voltar-se.
—Se for esse assassino ataca você, estará completamente indefesa.
—Chamaram-me muitas coisas ao longo de minha vida, Damien. Mas ninguém me considerou nunca uma pessoa indefesa.
—Shannon...
—Se ficar aqui, o assassino não tentará nada —quadrou os ombros e elevou o queixo— E se não tentar me matar, não poderei descobri-lo, entende-o?
Damien posou as mãos nos ombros de Shannon. Umas mãos fortes, firmes, cálidas e prementes.
—Assim quer ataque você.
—Exato.
—Isso é uma loucura. Matará-te —parecia estremecer-se ante a idéia.
—Desde meu ponto de vista, é perfeitamente sensato. E que mais dá que me mate? Levarei a esse canalha comigo.
—Vais arriscar sua vida...
—Não acredito que seja arriscar muito. E agora, me deixe partir.
Damien deixou cair às mãos a ambos os lados de seu corpo e fixou nela seu olhar de ébano.
—O que quer dizer com isso? Não crie que seja arriscar muito?
No interior de Shannon começavam a crescer seus medos. Tentou batalhar contra eles. Não ia falar disso. Não podia pensar nisso. E sabia condenadamente bem que quão último faria seria chorar por isso. Os olhos lhe ardiam, mas pestanejou para apartar as lágrimas. O que tinha de mal a morte? A vida tampouco era precisamente um caminho de rosas.
—Agora penso partir. Há dito que me deixaria ir. Assim que vou.
—Sinto muito, Shannon, mas não posso.
—Sabia que não podia confiar em ti!
Deu-lhe um murro em pleno peito e sorriu satisfeita quando o viu retroceder cambaleante. Voltou-se e correu para a porta.
—Fique aí, maldita seja!
As portas se fecharam violentamente, como se as tivesse sacudido um golpe de vento. Shannon arregalou os olhos e sentiu um estremecido calafrio na nuca.
Voltou-se lentamente. Damien parecia zangado.
—Como o há...?
—Sou mago, recorda? —balbuciou Damien.
—A... A casa está preparada para este tipo de truques?
—Algo assim.
—Não pode me deter aqui.
—Não vou permitir que se suicides. Acredite-me, Shannon, eu não gosto disto mais que você. Mas até que tenha desaparecido a ameaça, vou converter-me em sua sombra.
—Isso é uma estupidez. Você te propõe algo. Quer algo de mim. E faria bem o pondo diretamente sobre a mesa, Damien. Porque não me trago o que me está dizendo.
Damien se umedeceu os lábios, arrastando com aquele gesto o olhar de Shannon e povoando sua mente de tórridas imagens. Seus beijos. Deus, como seria seus beijos? Aquela idéia o fazia arder tanto por fora como por dentro.
—Preciso ver o cadáver —disse por fim.
—Que necessita o que?
—Quero ver sua amiga.
—Pelo amor de Deus, por quê?
Damien desviou o olhar e começou a caminhar pela biblioteca.
—Tenho que ver como morreu.
Shannon voltou a piscar. Um frio glacial envolveu seu coração.
—E o que crie que poderá averiguar ao vê-la? Tem alguma noção de patologia forense? Estudastes algo sobre a morte, Damien?
Damien elevou o olhar e a olhou aos olhos. E Shannon pensou que não teria visto mais dor em seu olhar embora lhe tivesse disparado ao coração.
—Estive estudando-a durante toda minha vida —sussurrou Damien.
—Devo estar louca —sussurrou Shannon quase ao ouvido de Damien enquanto permaneciam agachados detrás dos arbustos da entrada traseira do escritório do médico forense de Arista—. Estive chamando dia atrás dia para tentar que a enterrassem. Dava-me largas me dizendo que ainda terei que lhe fazer muitas provas. Nem sequer me deixaram vê-la.
Damien lhe rodeou a cintura com o braço e a fez estreitar-se contra ele. Shannon não parava de mover-se. A vigilância clandestina não parecia ser um de seus fortes como detetive particular.
—Fique quieta —lhe advertiu.
Mas então foi ele o que teve problemas para seguir seus próprios conselhos. Seu braço continuava ao redor da estreita cintura de Shannon apesar das ordens que emitia seu cérebro para que se separar-se. O flanco direito de Shannon pressionava seu flanco esquerdo. Podia sentir a suavidade de seus seios, a curva de seus quadris, a firmeza de suas coxas contra os seus. Aquilo era uma loucura.
—Não imaginava que alguém ficasse até tão tarde —disse Shannon, como se sua cercania não a afetasse absolutamente—. O que estão fazendo?
Havia um carro fúnebre com um emblema do governo e as siglas DIP pintadas em cor amarela na porta traseira. O chofer saiu, rodeou o veículo e abriu a porta de atrás. Shannon se esticou ao lado de Damien.
—A vão levar!
—Podem levar-se a qualquer, Shannon.
Shannon sacudiu a cabeça e o olhou aos olhos com expressão atormentada. O coração lhe deu um tombo quando viu que das portas do centro saíam dois homens empurrando uma maca de rodas e se detinham atrás do carro.
—Esse é o médico forense —Shannon assinalou com a cabeça ao mais desço dos dois, um homem gordinho com uma bata branca.
O outro homem era mais alto, mais elegante em seus movimentos, de compleição forte, moreno e atrativo. Levava um traje cinza e um casaco comprido negro.
—Ponha no relatório que foi um suicídio —lhe disse este último ao médico forense.
—Mas está essa detetive...
—Poremo-nos em contato com ela, não se preocupe. Já enfrentamos a situações como esta em outras ocasiões.
O médico e o chofer colocaram o cadáver no carro enquanto o homem alto os contemplava com as mãos nos bolsos. Sua respiração formava um bafo que ocultava seu rosto.
O médico retornou ao interior do centro, sacudindo a cabeça e murmurando para si enquanto o chofer fechava as portas do veículo. Depois, tanto o homem elegante como o chofer se meteram no carro e se afastaram dali.
Shannon tremia de pés a cabeça.
—Aonde a levam? Não podem levar-se a dessa forma! Maldito seja Damien, me deixe partir.
Damien a retinha com força. Shannon esteve lutando até que o carro desapareceu de vista. E então a abandonaram todas suas forças. Inclinou a cabeça contra Damien e suas lágrimas empaparam seu peito.
—Deveria me haver deixado detê-los.
Damien enredou os dedos em seu cabelo e a acariciou uma e outra vez. Conhecia aquela dor. Sabia o que sentia Shannon naquele momento, o que tinha sentido da morte de sua amiga. Sabia muito bem. Possivelmente esse fora outro dos motivos daquela cercania contra a que tinha estado lutando. A tristeza. A dor compartilhada.
Continuou abraçando a Shannon durante longo momento, enquanto ela chorava. Não tinha tido oportunidade de ver o cadáver, mas tinha estado suficientemente perto. Durante uns instantes, tinha baixado as defesas de seu cérebro para concentrar-se na mulher morta. Precisava praticar mais, afinar melhor sua mente. Mas tinha conseguido averiguar uma coisa: a morte de Tawny Keller tinha sido obra de um vampiro.
E Damien ainda não sabia se era ele aquele vampiro.
Shannon se endireitou e se secou os olhos com tanta força que quase lhe doeu.
—Está passando algo, Damien. Esses homens eram agentes federais ou um pouco parecidos. Esse forense não mentiria a respeito de uma morte a não ser que não ficasse outra opção, sei. É um homem honesto.
Damien estava tão desconcertado como Shannon.
—Não compreendo nada, a não ser que...
Shannon elevou a cabeça bruscamente.
—A não ser o que?
Damien sacudiu a cabeça.
—Ia dizer, a não ser que realmente criam na existência dos vampiros. Mas isso é muito pouco provável, não creio?
Shannon se encolheu de ombros e desviou o olhar. Mas Damien continuava perguntando-lhe Se não se manteve tão à margem dos de sua espécie, certamente saberia algo mais. Seria o FBI consciente de sua existência? E que demônios era isso do DIP?
Shannon lhe tocou o braço.
—Quero ir a casa.
Apesar da escuridão, Damien via perfeitamente seus olhos irritados pelo pranto.
—Estaria mais segura em minha casa, acredito.
—Posso cuidar de mim mesma. Me leve a minha casa ou a algum lugar do que possa chamar um táxi. Você escolhe —sorveu sonoramente.
Damien a ajudou a levantar-se, rodeou-lhe os ombros com o braço e caminhou com ela pela calçada até o lugar no que tinha deixado estacionado seu carro. A fria brisa de outubro açoitava seus rostos.
—Se insistir, levar-te-ei a seu apartamento. Mas poderia estar em perigo, Shannon. Estacionarei fora do edifício e tentarei te vigiar de ali.
—Sim, claro. E as vacas voam —abriu a porta de passageiros do resplandecente carro de Damien.
Era um de seus caprichos. Um Jaguar. Damien gostava, gostava de sua rapidez, e seu aroma de novo. E assim que aquele aroma se esgotasse, compraria imediatamente outro. Eram muito poucos os prazeres dos que desfrutava em sua vida.
Shannon abriu a porta de passageiros e permaneceu ali, olhando Damien por cima do carro.
—Então vais levar-me a minha casa ou não?
—Sim, vou levar-te.
Damien permanecia sentado no carro frente ao edifício que vivia Shannon. Um edifício alto e estreito. Poucas janelas e muitos ocos na escada de incêndios. Os tijolos pareciam a ponto de derrubar-se. Não podia dizer-se que fora uma ruína, mas Damien não gostava da idéia de que Shannon vivesse ali.
Shannon apareceu em duas ocasiões ao balcão e olhou para o carro. Damien se estremeceu ligeiramente ao vê-la inclinar-se sobre o corrimão de ferro. Aquela maldita coisa certamente não estaria em melhor estado que o resto da casa. Depois, viu-a correr as cortinas várias vezes. Sabia que estava olhando-o, assegurando-se de que ainda estava ali.
Embora possivelmente tivesse feito melhor em partir.
Damien não podia acreditar que tivesse sido ele o que tinha matado à outra mulher, mas tampouco podia ignorar aquela possibilidade. Não sabia se aquele troco em seus apetites era normal, algo que acontecia a todos os imortais com a idade. Não sabia se outros tinham matado sem ser sequer conscientes disso. Seria possível?
Golpeou o volante com o punho, atormentado por todas aquelas perguntas. Naquele momento, Damien desejava não ter evitado o contato com outros imortais; desejava ter alguém a quem lhe perguntar por essas siglas, DIP, e pelo assassinato de Tawny Keller.
Pensou nas cartas que tinha recebido desse cientista, Eric Marquand. Se alguém podia lhe oferecer alguma luz sobre tudo aquilo, certamente era aquele jovem curioso. Damien esboçou uma careta ao pensar em pedir ajuda. A mera idéia de ficar em contato com Marquand o fazia sentir-se incômodo. Tinha vivido em solidão durante tanto tempo... Sua única atadura sentimental era a que estabelecia com seus admiradores. Um homem podia viver sem amor, sem relações, durante muito tempo. O público lhe dava o que necessitava para sustentar-se. Era o único amor que se permitia em sua solitária vida e era suficiente. Tinha que ser suficiente.
Sacudiu a cabeça lentamente. Não, tentaria resolver aquele assunto por seus próprios meios. Só utilizaria Eric Marquand e seus estudos como último recurso. E, enquanto isso vigiaria Shannon e evitaria que lhe fizessem dano.
Um trabalho que lhe resultaria muito mais fácil se pudesse lhe ler o pensamento. A possibilidade de voltar a tentá-lo evocava o fantasma daquela dor intensa e palpitante. Mesmo assim, era um dos benefícios de ser um vampiro. Deveria utilizar todas as ferramentas das que dispunha para resolver aquele mistério, para mantê-la a salvo.
Preparou-se para o que o esperava e muito, muito lentamente, começou a baixar suas defesas até permitir que se filtrassem em sua mente uma miríade de sensações do exterior. Concentrava todas suas energias em Shannon, mantendo sua imagem em sua mente. Tentou sintonizar seus sentidos com os seus, sentir o que ela estava sentindo.
Por um instante, envolveu-o uma quebra de onda de sensações, mas se obrigou às suportar. Apertou os dentes enquanto se defendia daquele bombardeio e aumentou sua concentração. Pouco a pouco, a intensidade do bombardeio foi cedendo. Damien se esticou, procurou e tentou sintonizar a mente de Shannon e a sua.
Não estava no apartamento.
Ergueu-se em seu assento enquanto lia seus pensamentos. Aborrecimento. Alarme. Tinha-lhe passado algo a seu carro. Estava saindo pela porta traseira do edifício... Ia para o estacionamento.
Damien saiu disparado do carro e rodeou a toda velocidade o edifício. Ali a viu, com os pés e as pernas nuas no meio do frio do outono. Levava uma camisola azul curta e o cabelo recolhido em um rabo-de-cavalo que ricocheteava enquanto ela corria sobre a calçada.
Damien olhou na direção por volta da que corria e viu dois jovens agachados na porta de um Corvette que devia ter tantos anos como a própria Shannon. Um dos homens se voltou para vê-la aproximar-se e soltou uma gargalhada. Shannon não diminuiu o passo. O ladrão começou a caminhar para ela e elevou a mão. Damien viu a barra de ferro que sustentava e se lançou para diante sem saber se ia chegar a tempo. Os dois homens estavam já muito perto de Shannon e um deles estava a ponto de deixar cair à barra sobre sua cabeça.
Mas Shannon elevou a mão, agarrou-o pela boneca e lhe plantou uma joelhada na virilha. O homem uivou enquanto se dobrava sobre si mesmo. A barra de ferro caiu com grande estrondo sobre o pavimento. Damien ficou paralisado por um instante enquanto Shannon girava sobre si mesma, dava-lhe uma patada ao homem no queixo e o atirava de costas. Tudo ocorreu em menos de um segundo.
O segundo homem tirou uma pistola de seu jeans. Mas antes que tivesse podido apontá-la, Shannon lhe deu uma patada e a arrancou da mão. Ele tentou lhe dar então um murro, mas Shannon se agachou a tempo e, quando se endireitou, sustentava na mão a barra de ferro que tinha deixado cair o outro ladrão.
O homem elevou as mãos e retrocedeu.
—De acordo, de acordo, você ganha.
Enquanto Damien corria para eles, o ladrão ajudou a seu companheiro a levantar-se e os dois se afastaram correndo na escuridão.
Damien agarrou a Shannon do braço, ainda impressionado pelo que acabava de ver.
—Está bem?
Shannon assentiu, mas não disse nada; estava tentando recuperar a respiração. Damien se voltou para olhar aquele carro sem pintar. E estava a ponto de começar a arreganhá-la por ter arriscado a vida por uns quantos pedaços de metal, quando ouviu o inconfundível clique do percussor de uma pistola. Elevou a cabeça e sua penetrante visão mostrou a um dos ladrões apontando para Shannon com a arma.
Damien se colocou frente a ela e se tornou para diante justo quando o disparo rasgava o silêncio da noite. Sentiu Shannon caindo no chão a baixo ele. E ele sentiu que uma dor ardente o atravessava.
Anthar observava atento até o mínimo gesto do pagão, e sorriu para si. Esse canalha. Esse canalha blasfemo. Damien o Eterno. Mas esse nome já era o de menos.
Aqueles valentões em cujas mentes tinha implantado Anthar a idéia de roubar a aquela mulher eram dois estúpidos, sim. Mas pelo menos um deles tinha sido capaz de disparar à garota. E o infiel se havia interposto para lhe evitar a bala.
Ao final, depois de milhares de anos, tinha começado a preocupar-se com outro ser. Anthar tinha esperado tanto tempo, tinha tentado tantas vezes ferir o dessa maneira... Mas Damien se mantinha encerrado em si mesmo, sem lhe guardar amor a ninguém. Nem sequer às mulheres às que procurava de vez em quando. Anthar o observava sempre entre as sombras, tão escondido que Damien nem sequer podia sentir sua presença.
Ah, mas aquela vez era diferente. Naquela ocasião havia algo mais. Algo que Anthar necessitava para ferir o da forma mais devastadora possível. Mas devia atuar com precaução. Tinha que assegurar-se de que o mais ancião dos imortais sentisse a dor última, a vergonha, o arrependimento... Tinha que estar seguro.
E para isso fazia falta outra prova.
Foram-se. Tinha-os ouvido correr e depois, o silêncio. O corpo de Damien descansava pesadamente sobre o de Shannon. Ela estava de costas e ele tinha a cabeça perto de seu ombro.
—Foram-se —disse Shannon—Já pode te levantar. Não sei por que vieste correndo como se fosse um cavalheiro andante ou algo assim. Eu posso cuidar de mim mesma.
Posou a mão em seu ombro para apartá-lo e tocou então sua camisa empapada.
—Damien!
Damien moveu-se lentamente. Doía-lhe muito fazê-lo. Sentou-se e Shannon se levantou e se inclinou sobre ele. Sua camisa branca estava tinta de cor carmesim. Damien levou uma mão ao ombro e tentou levantar-se.
Shannon se levantou para ajudá-lo, deslizou o braço por sua cintura e o sustentou com firmeza.
—Maldito seja, Damien, moveste-te e recebeste você o disparo. Como te ocorreu saltar dessa forma sobre mim? —caminhou para a entrada do edifício, arrastando-o com ela.
Damien baixou o olhar para Shannon. Quase ria de alivio ao ver que tinha chegado a tempo.
—Estava-te apontando à cabeça. Supunha-se que tinha que ficar quieto enquanto lhe disparavam?
—Sim! —Shannon chegou até a porta e a sujeitou com o quadril enquanto o ajudava a passar—. Maldito seja você vais sangrar até morrer.
Não ia se sangrar até morrer. De fato, a ferida era leve, a pesar da espantosa dor que lhe causava. O ombro ainda lhe ardia. Mas o esperava. Uma das coisas que tinha aprendido sobre o que era, como ele era que a sensibilidade à dor e aos estímulos físicos se incrementava com a idade, ao igual à força e os poderes psíquicos. Quanto à possibilidade de sangrar-se, não lhe preocupava muito. Poderia manter pressionada a ferida até o amanhecer. E durante o dia, a ferida sanaria com o sonho regenerador. De fato, qualquer ferida o faria.
O que lhe preocupava, além da dor do ombro, era a sensação da mão do Shannon em sua cintura. O modo no que se estreitava a jovem contra ele enquanto entravam no elevador. O apresso com o que elevava o olhar para ele. Seu aroma. Seu calor.
—Está pálido, sangra muito?
—Sempre estou pálido. E não, não é nada.
—Claro que é algo. Chamaremos uma ambulância do apartamento.
Damien negou com a cabeça, mas observou a determinação de Shannon.
—Por que saíste correndo em meio da noite? Por que arriscaste sua vida quando poderia havê-lo solucionado chamando à polícia?
—Brinca? Quando tivesse chegado à polícia, meu carro já teria desaparecido. Sabe quanto tive que trabalhar para pagar as letras desse carro?
—Os Corvettes nunca são baratos.
Abriram-se as portas do elevador.
—Não é só um Corvette. É um Stingray de 1962 com um motor que poderia deixar atirado a seu Jaguar.
Damien sorriu. Não pôde evitá-lo.
—É o carro de seus sonhos?
—Total e absolutamente. Ninguém se mete com ele.
—Terei-o em conta.
Shannon se deteve na porta de seu apartamento e a empurrou para abri-la. Não a tinha fechado e isso incomodou a Damien quase tanto como a ferida, mas dominó as vontades de fazer um comentário. Já tinha podido comprovar por que insistia tanto Shannon em que sabia cuidar de si mesmo. Tinha-o feito até então e não lhe tinha ido nada mal.
Shannon o ajudou a entrar na casa, fechou a porta com o pé e não soltou ao Damien até que o deixou no sofá. Correu para a porta e fechou com chave. Continuando, ajoelhou-se frente a ele e lhe rasgou a manga da camisa. Depois, tentou lhe apartar a mão para poder examinar a ferida.
—Só é um arranhão.
—Sangra muito para que seja só um arranhão.
—Estou acostumado a sangrar muito, mas me porei bem.
Shannon o olhou com o cenho franzido.
—Né, essa bala era para mim. O menos que posso fazer é te olhar a ferida —alargou a mão de novo para seu ombro, mas Damien a apartou.
—Então admite que provavelmente acabo de salvar a sua vida?
Shannon se ergueu e pôs os braços em jarras.
—Sim, provavelmente me salvaste a vida.
—Arriscando a minha? —Shannon não disse nada, mas inclinou a cabeça para um lado—. E bem?
—De acordo, sim, admito-o. Aonde quer chegar?
—Quero que admita que não estou planejando matar você, para começar —se levantou sem esperar resposta e se dirigiu ao quarto de banho.
Sentia-se débil, certamente devido à quantidade de sangue que tinha perdido. Fechou a porta do banho atrás dele. Um lugar que não queria compartilhar com Shannon era o quarto de banho, onde os espelhos abundavam. Mas sentia sua presença incluso com a porta fechada. Estava na toalha úmida que pendurava da ducha, e nas roupas que tinha deixado no chão. E no perfume que utilizava. Um perfume sutil. Mais tentador que as flores ou as essências frutíferas. Cheirava a ervas. Era um aroma exótico, como o do incenso ou as especiarias. E o impregnava tudo. Inclusive o ar.
Damien abriu o armário e tentou tirar Shannon de sua mente e concentrar-se no que realmente importava naquele momento, em aplicar algo à ferida que pudesse deter a hemorragia até o amanhecer. Se for necessário, permaneceria durante as seguintes horas pressionando a ferida com a mão, mas preferiria não fazê-lo.
Encontrou um cilindro de gaze e esparadrapo. Uma escova de cabelo com alguns fios de cabelo de cor mel apanhou seu olhar. Aquela juba loira era como um halo ao redor do rosto de Shannon, como algo irreal. Tinha o cabelo de um anjo, havia dito Netty.
Maldita fora, tinha que deixar de pensar nela.
Tirou-se a camisa, rasgando-a para não cessar de pressionar a ferida. Atirou-a ao cubo da roupa suja e, com uma mão, deixou cair um montão de gaze sobre a pia.
Shannon bateu na porta.
—Está bem?
—Sim, Shannon, tranqüila.
—Me deixe passar. Quero ajudar você.
—Agora mesmo saio.
—Maldito seja, Damien...
—Começa a te repetir, Shannon —não acreditava que as gazes bastassem para fechar a ferida e olhou a seu redor procurando algo mais substancial—. Diga-Me uma coisa? Por que não saíste com a pistola?
—Porque se me tivesse levado isso, teria matado a esses tipos —golpeou de novo a porta—. Abre essa maldita porta!
—Não.
—Estupendo, como queira. No armário há uma lata marrom. É um ungüento feito de seiva de pinheiro. É um antigo remédio. Se for muito cabeça dura para ir ao médico, ponha um pouco. Deterá-te a hemorragia.
Damien franziu o cenho; havia um ligeiro tremor na voz de Shannon. Um tremor que desmentia a aparente despreocupação que tentava imprimir a suas palavras. Damien localizou a tampa, abriu-a e farejou seu conteúdo. Pinheiro. Merecia a pena prová-lo.
—Encontraste-a?
—Sim, fede.
—Te jogue esse ungüento na ferida.
Damien assentiu, afundou dois dedos na lata e apartou um instante a mão da ferida. O sangue começou a brotar imediatamente, mas Damien foi capaz de sujeitar as bordar da ferida e mantê-los juntos. Depois se esfregou aquela substância espessa sobre a ferida.
Foi quase instantâneo. O sangue deixou de fluir. Não sem receio, foi diminuindo a pressão de seus dedos. Mas a carne não se separava. Aquele ungüento tinha selado a ferida. Sacudiu a cabeça com incredulidade.
—Damien? Está bem?
—Sim, estou bem. Sua mistura funcionou que uma forma surpreendente.
Pressionou uma gaze contra a ferida, tomou um pedaço de esparadrapo e a fixou ali. Continuando, abriu a torneira da pia e tirou o sangue do peito, do ombro e da mão.
Não abriu a porta até que teve feito desaparecer todo rastro de sangue. E quando o fez, Shannon continuava ali. E Damien não teria podido passar por cima como trocou sua tensa postura por outra mais relaxada assim que o viu sair. Distinguiu em seus olhos sua preocupação e seu medo por ele, e se comoveu apesar de si mesmo. Depois, Shannon baixou o olhar para seu peito descoberto e continuou descendendo até o broche de suas calças. Ruborizou-se ligeiramente e Damien se ruborizou também, desejando ao mesmo tempo ter a energia suficiente para poder lhe ler naquele momento seus pensamentos.
—Estúpido.
Damien pestanejou.
—Perdão?
—É um estúpido, não sei como te ocorreu te encerrar dessa forma. O que teria passado se você tivesse desacordado né? O que se supunha que teria que ter feito? Arremessar a porta a patadas?
Damien soltou uma gargalhada. Mas só conseguiu zangá-la ainda mais, de modo que se obrigou a deixar de rir.
—Tem uma forma muito estranha de mostrar gratidão.
—Gratidão? Crie que te estou agradecida porque estiveste a ponto de morrer em meu lugar? Como pode ser tão... Duro de entender? Como volta a dizer uma tolice como essa, eu... —pestanejou rapidamente e voltou à cabeça, mas Damien teve tempo de ver a umidade que fez brilhar seus olhos.
Algo estranho se formou em sua garganta. Elevou a mão e, sem pretendê-lo, posou-a sobre o ombro de Shannon. Sua juba lhe roçou os nódulos, lhe fazendo tremer.
—Shannon...
Shannon evitou seu contato, dirigiu-se ao centro da habitação e se voltou para ele com o semblante completamente inexpressivo.
—Eu não acredito que a intenção de roubo de meu carro esteja relacionado com o outro assunto, e você?
—Inclino-me a pensar que não. Acredito que lhe dispararam porque te lançou sobre eles como um esquadrão de cavalaria.
—Sim, bom, se não o tivesse feito, teriam levado meu carro.
—Como te inteiraste que lhe estavam roubando?
Shannon se voltou de novo, caminhou até o sofá e se deixou cair nele como se estivesse esgotada.
—Tenho um sistema de alarme por controle remoto. Se alguém tenta meter-se no carro, este pequeno dispositivo que tenho na bolsa me avisa —se apartou o cabelo da cara com uma mão e ficou de repente paralisada—. E você como te inteiraste?
—Eu... —Damien apartou os olhos de seu penetrante olhar—... Estava dando um passeio ao redor do edifício, para me assegurar de que não ocorria nada fora do normal. Ouvi-os, mas quando quis chegar —se voltou para ela, tentando averiguar algo mais do que seu formoso rosto revelava—, já estava chutando-os. Onde aprendeste a brigar dessa maneira?
—Principalmente, graças ao método de ensaio e engano. Tawny e eu estávamos acostumados a praticar juntas. Normalmente terminávamos feridas, mas quando se é uma menina e se vive na rua, terá que saber defender-se. Ela é tão boa como eu. Quero dizer, era... Esse é o motivo pelo que não compreendo...
Interrompeu-se de repente e se umedeceu os lábios. Damien sabia o que ia dizer. Por que não tinha lutado Tawny contra seu atacante? Mas a resposta era muito singela. Um vampiro não tinha por que atacar a suas vítimas. Seduzia-as e elas lhe ofereciam voluntariamente.
A culpa lhe roia as vísceras e não era capaz de lhe sustentar o olhar. Algum imortal tinha recompensado a boa disposição de Tawny, sua confiança quase infantil, com a morte. Algum imortal, sim, mas quem?
Não tinha sido ele. Não podia ter sido ele.
—Não foi você, verdade? —Shannon se levantou, aproximou-se dele e o olhou com os olhos entrecerrados—. Não seria capaz de salvar a uma desconhecida se tivesse suficiente sangue-frio para matar a outra, verdade?
—É obvio que não.
Mas, e se o tinha feito? E se tinha matado a uma pobre inocente e Shannon fora a seguinte da lista? Possivelmente a próxima vez a sede fora insuportável e poderia chegar a dominar sua vontade. Que Inanna o salvasse, mas a fragrância de Shannon, o calor de sua pele, começavam a meter-se o sob a pele. Podia ouvir o doce fluir de seu sangue nas veias. Podia cheirá-lo. E era tão suave, tão formosa... Desejava-a...
—Em realidade não acredito que fosse capaz.
—O que? —Damien tentou liberar-se das vozes que povoavam sua mente.
—Quando antes há dito que ficaria aqui, me vigiando, não me acreditei isso. A verdade é que me surpreendeste —franziu o cenho e se afastou lentamente dele, inclinando a cabeça enquanto caminhava—. Assim, se não ir me matar, o que é que buscas?
Damien baixou o olhar para o chão e sacudiu a cabeça.
—Acredito que deveria partir.
—Por quê?
Damien se estava dirigindo já para a porta quando Shannon lhe fez aquela pergunta. Ficou onde estava de costas a ela. Quando sentiu o calor de seu corpo atrás dele, ficou rígido.
—Está de acordo comigo em que os ladrões de carros provavelmente não tenham nenhuma relação com o assassino. De modo que o assassino ainda poderia voltar a tentá-lo, não é certo?
Damien fechou os olhos. A fragrância de Shannon assaltou seus sentidos.
—Possivelmente o seja.
—Então, fique.
OH, aquilo não estava bem; aquele rugido interior que o urgia a voltar-se e a estreitá-la contra seu peito. A tomar sua boca até deixá-la sem respiração e... Não, não estaria bem. Não seria suficiente para saciar a intensidade de sua sede. E não era só a sede a que nessa ocasião fazia arder suas vísceras, mas também o desejo.
Shannon posou a mão sobre seu ombro ferido.
—Olhe, Damien, salvaste-me a vida. Por muito que odeie lhe dever nada a ninguém, não posso passar por cima algo tão importante. Ontem de noite, quando estava doente, levou-me a sua casa. Agora só quero te devolver o favor.
Damien sacudiu a cabeça e abriu a porta.
—Durante o dia estará a salvo.
—Durante o dia? O que...?
—Até então, estarei atento de ti, mas não aqui, a não ser do carro. E se baixas, Shannon, não posso te garantir nada, assim, por favor, fica em casa.
—Mas eu...
—Boa noite —saiu ao corredor, fechou a porta atrás dele e correu para as escadas antes de que Shannon pudesse abrir a porta outra vez.
Muito bem, equivocou-se na hora de julgar a esse tipo. Damien tinha aparecido em duas ocasiões, justo no momento no que necessitava ajuda. E até então, não lhe tinha pedido nada em troca.
É obvio Shannon não era nenhuma estúpida. Damien queria algo. Ninguém ajudava a ninguém sem ter uma boa razão para isso. E ela o tinha descoberto da forma mais dura. Tinha-o aprendida graças a adorável família que a tinha acolhido e com a que ao princípio todo parecia ir sobre rodas. Todas essas estupidez sobre que adoravam aos meninos porque não tinham podido ter filhos e sobre sua vontade de ajudar a uma pobre adolescente que tinha perdido já toda esperança de ser adotada...
Tawny levava já um mês com eles quando Shannon tinha ido viver ali. Ela procedia de outra instituição; então Shannon já as conhecia quase todas. Tinha sido quase um milagre que não se conheceram antes, pois seus caminhos se cruzaram centenas de vezes. Ao princípio se odiaram com todas suas forças. Mas depois tinha começado a loucura. O senhor Grayson tinha algumas idéias doentias. E sua esposa sabia, mas era muito covarde para permitir que ele soubesse que estava a par do que ocorria.
Qualquer que pensasse que duas adolescentes de dezesseis anos não podiam defender-se sós nas ruas deveria tentar viver uma situação parecida durante algum tempo. As ruas era um passeio depois de uma experiência como aquela.
Deus, pensar que Tawny tinha superado todo aquele inferno para terminar morta... Por que demônios se incomodaram em sobreviver a tudo aquilo?
Mas aquele tipo de pensamentos roçava a auto compaixão, assim apagou sua mente como se de uma piçarra se tratasse e começou de novo. Damien. Sim, estava pensando no Damien e no que podia querer dela.
Por um segundo, teria jurado que era sexo. Mas tinha descartado aquela idéia assim que tinha pensado seriamente nisso. Damien podia ter a qualquer mulher que quisesse, por que demônio ia interessar- lhe por alguém como ela?
Tinha que haver algo mais. E sabia que averiguá-lo era só questão de tempo.
Shannon passou pelo escritório pela primeira vez desde fazia três dias. Até então, a única pista que tinha encontrado sobre a morte de Tawny era Damien e já não estava tão segura de que aquele tipo fora outra coisa que um mago excêntrico que era capaz de fazer o que fora para preservar o mistério de seu personagem.
—Shannon, onde estiveste? Estava começando a pensar que tinha abandonado o negócio.
Shannon lhe dirigiu um sorriso a Sal, que permanecia na porta da pizzaria com um avental branco cobrindo sua pronunciada barriga.
—Olá, Sal. Não, não deixei o negócio, mas estive muito ocupada. Alguma nova notícia?
—O mês que vem sobem o aluguel.
—Outra vez?
—Provavelmente tenha uma carta esperando você. A minha me chegou ontem.
—Este lugar não se merece o dinheiro que estamos pagando por ele —grunhiu Shannon.
Abriu a porta que havia ao lado da do estabelecimento de Sal e começou a subir as escadas. Sal a chamou do pé da escada.
—Poderia pagar o aluguel sem problemas se não tivesse um carro tão luxuoso.
—Me continua recordando isso. Mas será mais luxuoso assim que possa economizar o suficiente para pintá-lo.
—Não tem bom aspecto, Shannon. Come bem?
—Seguro que hoje comerei estupendamente —chegou ao final da escada, abriu a porta de seu escritório e se voltou—. Quero dois sanduíches para o almoço.
—Completos, mas sem anchovas. Já sei como você gosta.
Shannon sorriu, abriu a porta e entrou em seu escritório. O homem que a esperava sentado atrás de seu escritório se levantou, deixou a pasta que tinha estado revisando a um lado e entreabriu os lábios para dizer algo, mas pareceu pensar-lhe e os fechou. Baixou o olhar para o revólver com o que Shannon o estava apontando.
—Quem é você e que demônio está fazendo em meu escritório?
O homem se umedeceu nervoso os lábios. E então Shannon o reconheceu. Era um dos tipos que se levaram o cadáver de Tawny.
—Tranqüilize-se e baixe essa pistola. Identificarei-me.
—Se saca do bolso algo que não seja a carteira, vai terminar com um buraco na cabeça.
O homem colocou a mão em um dos bolsos da jaqueta e tirou uma carteira de couro. A tendeu. Shannon tomou sem apartar o olhar dele e a abriu. Olhou a fotografia de sua documentação pela extremidade do olho, Stephen Bachman. Baixou o olhar uns milímetros mais e piscou assombrada.
—A CIA?
—Uma de suas subdivisões.
—Qual?
—Isso agora não importa.
Shannon voltou a olhá-lo com atenção. Alto, de ombros largos. Tinha um corpo artístico e o cabelo negro e ligeiramente encaracolado nas pontas. Levava um traje cinza e uma camisa branca. E sob seu braço esquerdo se adivinhava um vulto.
—Deixe sua arma na mesa, senhor Bachman. Devagar.
Bachman assentiu, tirou a pistola e a deixou sobre a mesa. Shannon se aproximou, tomou e a meteu na cintura da calça.
—Como entrou aqui?
—Já o hei dito. Sou da CIA.
Shannon baixou o olhar para a pasta que Bachman tinha estado lendo e franziu o cenho.
—E que motivos tem a CIA para envolver-se em um assassinato?
—OH, vamos, senhorita Mallory. Ambos sabemos que este não foi um assassinato normal. Agora posso me sentar?
Shannon assentiu e se colocou detrás de sua escrivaninha enquanto Bachman se sentava.
—Que demônios está acontecendo aqui?
—Foi você quem a encontrou, por que não me diz isso?
—O que quer de mim, Bachman?
—Quero que me fale de Tawny Keller e de você. E de tudo o que cria saber sobre o caso.
—Por que deveria fazê-lo?
Bachman se encolheu de ombros e apertou os lábios.
—Porque ambos queremos o mesmo: apanhar o assassino. E porque, se não o fizer, tirarei-lhe sua licença de detetive antes do meio-dia.
—Assim sabe como convencer a uma garota, né? Direi-lhe o que quer saber se antes responde a um par de perguntas —não ia dizer lhe absolutamente nada. Por isso sabia dele, todo aquilo podia ser um engano.
—O que é o que quer saber?
—Por que não pode me entregar o corpo de Tawny? Quero lhe celebrar um enterro —conhecia de antemão a resposta a aquela pergunta. Esperou.
—Terá que conformar-se com um funeral. Não vamos entregar lhe o cadáver.
—Por quê?
—Agora é propriedade do governo federal. E isso é quão único precisa saber.
—E que demônios têm feito com ela, Bachman? Sei que a transladaram, onde está?
—É uma boa detetive, verdade? Como sabe que a movemos?
—O forense me estava tirando o sarro e eu tinha minhas suspeitas. Simplesmente, confirmei-as.
—Não está mau. Mas não posso lhe dizer onde está, sinto-o —olhou o relógio—. Quer me fazer a seguinte pergunta? Não tenho todo o dia.
Shannon lutou contra uma quebra de onda de raiva.
—Como morreu realmente?
—Sangrada.
—Isso já sei. O que quero dizer é, como...?
Bachman a olhou fixamente.
—Oxalá soubesse.
Era uma mentira tão evidente... Aquele homem queria assegurar-se de que Shannon soubesse que estava mentindo. O muito canalha...
—Agora me toca senhorita Mallory. Sabemos que foi ao médico em quatro ocasiões durante este último mês, que problema tem?
—Não tenho nenhum problema.
—Eu pensava que ia colaborar.
—E o estou fazendo. Não tenho nada, eram simples verificações.
—Posso comprovar essa informação.
—E por que será que não me surpreende?
Bachman a estudou durante comprido momento. Ao parecer, não sabia se Shannon estava tomando-lhe à ligeira ou sendo brutalmente honesta.
—Viu muito Damien Namtar durante os últimos dois dias?
Shannon piscou, mas evitou refletir sua surpresa.
—Estão-me vigiando?
—Ainda não.
—E a ele?
—Preciso saber por que o esteve vendo ultimamente.
De modo que a CIA estava seguindo Damien. Perguntou-se se ele saberia.
—Sou sua admiradora —respondeu—. Há algo que deva saber sobre ele?
—Não estou seguro de que não saiba a estas alturas.
A expressão de desconcerto de Shannon foi completamente sincera.
—Acredita que tem algo que ver com o assassinato?
—Algo é possível.
Bachman estava falando, mas não estava lhe dizendo absolutamente nada.
—Nesse caso, possivelmente deva tomar cuidado.
—O que deveria fazer é manter-se afastada dele.
Era uma advertência? O que era o que sabia aquele tipo?
—Estou à corrente de seu passado, e do da vítima —lhe advertiu Bachman.
—Tawny. chamava-se Tawny. Utilize seu nome.
Bachman abriu a maleta que tinha no regaço e tirou uma caderneta.
—Como quero. Ambas estavam sob a tutela do Estado e estiveram em um lar de acolhida do Flatbush. Escaparam juntas. Ela era uma prostituta, como conseguiu sobreviver você? Dedicava-se a quão mesmo ela?
Shannon tirou a pistola de Bachman e o apontou com ela.
—Seu tempo terminou Bachman. Saia imediatamente daqui.
—Ainda não terminei —fechou a caderneta e depois a maleta.
—Pois como não se vá imediatamente, terá terminado de forma definitiva.
—De acordo. Há outras formas de averiguar o que preciso saber —alargou a mão para a pasta que havia em cima do escritório, mas Shannon posou o dedo sobre o gatilho.
Bachman ficou paralisado e se voltou para ela. Era aborrecimento, não medo, o que Shannon viu em seus olhos.
—Poderia colocá-la no cárcere por isso.
—E eu poderia lhe voar os miolos e dizer que o confundi com um ladrão. Deixe essa pasta e largue-se.
O olhar de Bachman se obscureceu, mas deixou cair à mão. Shannon lhe abriu a porta e se tornou a um lado. Antes de sair, Bachman se voltou para ela.
—Procure manter a boca fechada sobre a morte de sua amiga, senhorita Mallory. Foi um suicídio e no momento no que lhe ocorra dizer algo diferente, você também poderia desaparecer.
—Se acreditar que vou abandonar o caso, equivoca-se.
—Não ficará outra opção. Falo a sério. Não sabe ao que se está enfrentando.
Shannon lhe fechou a porta nos narizes. Custou-lhe cinco segundos decidir-se a segui-lo quando partiu e, enquanto o fazia se desfia os miolos procurando resposta. Que interesse podia ter o governo na morte de uma prostituta? Tinha que ser pela forma em que tinha morrido, sim, tinha que ser isso, mas, como tinha morrido Tawny exatamente? E por quê?
Tinha a sensação de que Bachman sabia. Mas o muito canalha não ia falar.
Damien estudou minuciosamente as páginas da nova tradução procurando, sempre procurando. Mas o que? Por muitas pranchas de pedra que se descobria enterradas na areia do Iraque, por muitos símbolos cuneiformes que explicassem a história do herói Gilgamesh, jamais recolheriam o verdadeiro final da história.
Fechou o livro e o atirou bruscamente ao chão. Os olhos lhe ardiam. Cada vez que voltava a ler aquelas histórias revivia a dor. Que estúpido. Tinha passado já muito tempo. Netty se esclareceu garganta, reclamando sua atenção.
—Tem visita.
Netty se tornou a um lado e apareceu Shannon na porta da biblioteca, olhando-o fixamente. Baixou o olhar para o livro que Damien acabava de atirar ao chão.
—Se chegar em um mau momento...
Damien sacudiu a cabeça rapidamente e se levantou.
—Não, só foi um momento de raiva.
—Esta noite tem muito melhor aspecto, verdade, senhor? Tem mais cor nas bochechas —Netty aplaudiu o braço de Shannon—. Trarei um ponche quente para que se tire o frio.
—De verdade, não faz... —Shannon se interrompeu.
Netty já tinha saído correndo.
Shannon sacudiu a cabeça e sorriu ligeiramente. Damien era incapaz de apartar o olhar dela. E advertiu a preocupação que refletiam seus olhos.
—Que passou?
—Olhe, não sei por que demônios estou aqui, exceto possivelmente porque acredito que lhe devo isso. Por isso e porque tenho uma boa intuição Não para decidir em quem posso confiar ou em quem não, mas me permite diferenciar a quem me vai cortar o pescoço daquele que se conforma me tirando a carteira.
Damien franziu o cenho; Shannon estava nervosa.
—Não confia em ninguém.
—Exato.
—Contou-me que Tawny e você tinham aprendido a lhes defender na rua. Isso significa...
—Agora não importa.
—Se, claro que importa —A olhou fixamente Aqueles enormes olhos ambarinos pareciam querer apanhá-lo—. Onde está sua família?
—Minha mãe me abandonou quando era um bebê. Nem sequer me lembro dela.
—Então lhe adotaram?
Shannon curvou ligeiramente os lábios
—Contaram-me que era uma menina doentia. Magra, asmática. Cresci sob a tutela do Estado, conheci montões de centros e lares de acolhida. A Tawny a conheci em um deles —voltou ligeiramente a cabeça e brincou com uma mecha de cabelo que serpenteava por seu ombro.
—E depois? —quis saber Damien.
—As coisas ficaram difíceis. Decidimos que estaríamos melhor sozinhas, e assim foi.
Damien considerou a possibilidade de lhe ler o pensamento.
—Quantos anos tinham?
—Dezesseis! E isso é tudo o que vou contar a você. Vim aqui, Damien, apesar de que não confio em ti, porque desconfio menos de ti que do outro tipo.
Tinha trocado de tema com tanta firmeza que Damien compreendeu que não ia dizer uma palavra mais a respeito de seu passado.
— Que outro tipo?
Shannon entrou na habitação. Aproximou-se da chaminé e se sentou frente a ela como se queria absorver seu calor.
—Nas ruas, quando alguém lhe faz algo mau, você o devolve imediatamente. Mas também funciona o contrário. Suponho que não me pude tirar nunca esse maldito código da cabeça. Você me ajudou, assim aqui estou. Possivelmente seja uma estúpida, mas o caso é que estou aqui.
Damien se aproximou dela, desejando poder lhe ver a cara. Compreendia melhor a dor causada pela perda de Tawny depois de suas palavras. Tinham estado juntas desde que eram quase umas meninas. Deviam ser como irmãs.
—Shannon, não tenho nem idéia da que te refere.
Shannon se voltou para ele. Estavam tão perto que Damien quase podia sentir seu fôlego no rosto.
—Acredito que tem problemas Damien. Acredito que nos dois os temos.
Mas o apresso desapareceu de seus olhos quando olhou por cima de Damien Este se voltou com o cenho franzido e viu a Netty na porta com uma taça fumegante na mão. A criada deu um passo adiante com um sorriso enquanto a aproximar-se de Shannon.
—Obrigado, Netty —bebeu um sorvo—. Mmm. Maravilhoso, você não quer? —olhou a Damien.
—Ele nunca toma nada. Surpreende-me que não tenha desaparecido ante meus olhos.
—É tudo por hoje Netty. Volta para casa com seus netos.
Netty assentiu, enviou a Shannon um beijo e se despediu com a mão enquanto ia em busca de seu casaco. Shannon bebeu um novo sorvo, aproximou-se do livro que permanecia atirado no chão e o recolheu.
—OH. Gilgamesh outra vez. Tem lido muito sobre ele verdade?
—É uma de minhas afeições.
—Não parece que seja uma afeição muito agradável. Não parecia muito contente com o que tem lido.
—Com o que não estou contente é com o que não encontrei no livro. Mas essa é outra questão
—Posso me levar o livro a minha casa? Eu gostaria de lê-lo.
Damien assentiu.
—Resultará-te mortalmente aborrecido. São histórias velhas que já não interessam a ninguém. Há dito que tinha problemas, Shannon.
Shannon deixou o livro cuidadosamente sobre a mesa.
—Hei dito que temos problemas.
Tirou-se a mochila e a deixou no chão, ajoelhou-se, abriu a ponchete e tirou um montão de papéis de seu interior. Havia pastas, cadernetas, fotografias e envelopes.
—Pensei que deveria ver isto.
—Que é?
—Não estou segura, ainda não o revisei tudo —elevou o olhar para ele. Estava emocionada, assustada possivelmente, mas também doída—. Damien sabia que a CIA te tem sob vigilância?
—A CIA? —esteve a ponto de soltar uma gargalhada.
Mas viu então que Shannon estava franzindo o cenho e soube que falava a sério. Sacudiu lentamente a cabeça e se sentou frente a ela
—Shannon, que ocorre?
—Esse tipo do traje se colocou hoje em meu escritório era o mesmo homem que vimos ontem à noite com o médico forense. Levava um cartão de identificação da CIA de uma de suas subdivisões, há dito ele. Deve ser a DIH. Queria sabê-lo tudo sobre a Tawny e sobre mim e começou a me perguntar por você. Ameaçou-me tirando a licença de detetive se não falava.
—Ameaçou-te?
—Não se preocupe não lhe hei dito nada, mas sabia que ultimamente tinha estado contigo e, mas ou menos, veio a me dizer que lhe estavam vigiando —sacudiu a cabeça—. Tem idéia de por que podem estar interessados em você?
Damien negou com a cabeça. Só lhe ocorria uma razão, mas era impossível. Nenhuma agência do governo se tomaria suficientemente a sério a existência de vampiros para investigá-los. De modo que tinha que ser um pouco relacionado com o do assassinato.
—Diz que lhe perguntaram pelo Tawny.
—Não vão devolver seu cadáver Damien. Não me há dito aonde a levaram nem por que, só que agora é propriedade do governo e... Nem sequer vou poder enterrá-la —quando elevou o olhar, tinha os olhos cheios de lágrimas—. Ele sabe como morreu, estou segura. Mas não me dirá isso. Tenho que averiguá-lo Damien. Compreende-o? Tenho que saber o que ocorreu.
Estava sofrendo. Estala sofrendo porque sua melhor amiga tinha morrido. E Damien conhecia perfeitamente aquela dor. Alargou a mão para seu rosto e lhe acariciou a juba, desejando poder fazer algo mais por ela.
—Sinto muito Shannon. Sei o muito que dói perder a alguém a quem quer, não há uma dor que o iguale.
E não aliviaria sua dor saber como tinha morrido Tawny. Shannon jamais lhe acreditaria se lhe dissesse que a tinha matado um vampiro.
Shannon se endireitou e o olhou fixamente aos olhos.
—A quem perdeu?
O rosto do Enkidu apareceu em sua mente e sua risada pareceu encher seus ouvidos.
—A um amigo —explicou—. Era como um irmão, como minha outra metade. Fazíamo-lo tudo juntos...
Damien tragou o nó que tinha na garganta e escrutinou seu rosto. Fazia séculos que não expressava sua angústia em voz alta.
—Mas ele morreu —sussurrou Shannon—, e agora vive como um ermitão —inclinou a cabeça para o lado. --Essa é a razão? Tem medo de fazer mais amigos porque poderia perdê-los algum dia?
—Não é uma possibilidade. A morte lhe está garantida a todos os mortais do planeta.
—Sou perfeitamente consciente disso. Mas a vida é muito curta para vivê-la sozinho.
Damien sorriu em um intento de rebaixar a tensão.
—Olha quem fala. Vi a centenas de pessoas chamando a sua porta.
—Não, mas não porque evite fazer amigos. Eu não me isolei do mundo, Damien, como faz você. Meu problema é que não estabeleço vínculos.
Elevou o olhar enquanto falava. O fogo da chaminé se refletia em seus olhos e fazia resplandecer seu cabelo com se fosse de ouro. Estaria estabelecendo alguma classe de vínculo com ele? Os deuses fariam bem em ajudá-lo se esse era o caso. Shannon era realmente formosa. Tinha um aspecto frágil e uma pele tão delicada como as pétalas de uma açucena.
Damien sacudiu a cabeça quando se deu conta de que a estava olhando fixamente. Desviou o olhar rapidamente e a desceu para os papéis.
—Não terminaste que me contar como conseguiste tudo isto.
—OH, bom, segui a esse tipo. Ele nem sequer se deu conta. Aloja-se no Hilton. Estive esperando a que saísse outra vez, meti-me em sua habitação e me servi eu mesma.
—Shannon, esse homem se dará conta de que desapareceram uns documentos de sua habitação.
—Sim, e se tiver meio cérebro, também saberá quem os levou. Suponho que minha licença de detetive tem os minutos contados, mas não importa. Teria-me tirado isso de todas as formas. Parecia muito zangado quando lhe tirei a pistola —esboçou um sorriso travesso—. Não me olhe assim... Não lhe tenho feito nenhum estrago.
—Não é ele quem me preocupa.
—Bom, não podia fazer outra coisa. Ele também me zangou.
Damien sentiu que aparecia em seus lábios um sorriso enquanto Shannon se levantava e se aproximava da mesa em que tinha deixado seu ponche. Enquanto ela bebia, Damien revisou algumas pastas.
—Em qualquer caso, estava pensando em fechar a agência —lhe disse Shannon quando voltou para seu lado—. Já deixei todos os casos, salvo o assassinato de Tawny. Enviei à maioria de meus clientes a outras agências.
Havia uma pasta com o nome de Shannon. Damien a abriu e viu em seu interior os resultados de umas análises e uns relatórios médicos. Fechou-a, elevou o olhar para Shannon e a escondeu debaixo do sofá assim que ela se voltou.
—Parece que vamos ter que passar a noite em vela, está preparado?
—Se o estiver você —respondeu.
Preocupava-lhe o que pudesse ler Shannon nos relatórios que havia sobre ele, mas não lhe ocorria nenhuma forma de evitá-lo. Ainda não podia acreditar que aquele Bachman soubesse... Não, era impossível. Mas se Bachman não estava investigando a morte, então, que interesse podia ter naquele caso e no Damien?
De repente, Shannon soltou um grito e deu um salto para trás, atirando sua bebida. Um rato marrom passou correndo por diante dela e se deteve em uma esquina. Shannon deixou seu copo sobre o suporte da chaminé, agarrou o atiçador e se voltou para aquela criatura.
—Espera.
Damien deu um passo adiante, fechou a mão ao redor da de Shannon e lhe tirou o atiçador para deixá-lo em seu lugar.
—Está louco? Se deixar que entre um, logo terá a casa infestada de ratos.
Damien sacudiu a cabeça e assinalou o camundongo. Moveu-se lentamente para ele, lhe enviando mensagens com o olhar. Quando esteve suficientemente perto, agachou-se e tomou entre suas mãos.
—Já está, vê o indefeso que é? Deste-lhe um susto de morte —fechou a mão ao redor do camundongo, tomando cuidado de não esmagá-lo.
—Que eu o assustei?
Damien lhe acariciou a cabeça com o dedo.
—Só estava procurando umas quantas migalhas e um lugar quente para passar o inverno. Quer ficar- o
—Não, obrigado.
Damien se encolheu de ombros e se dirigiu para a porta.
—O que vais fazer com ele? Damien, se o deixar na porta voltará a entrar.
—Há uma lenheira na parte de atrás da casa, deixarei-o ali. Aos ratos adoram a madeira.
Quando terminou de ler, Shannon se sentia mais que um pouco inquieta. Descoberto-se olhando ao Damien uma e outra vez enquanto revisava aqueles documentos. Fixou-se em que não tinha uma só cabelo branco. E tampouco uma só ruga. Maldito fora, aquele homem tinha idade suficiente como para que lhe tivessem saído já pés de galinha. Cada vez eram mais as razões que tinha para pensar que Damien Namtar era um vampiro. Um vampiro, pelo amor de Deus.
Damien, por sua parte, permanecia em silêncio, sem elevar nunca o olhar. Parecia desconcertado ao princípio, preocupado depois e, ao final, zangado.
Quando acabou de ler, Shannon se levantou e se estirou ao tempo que se obrigava a ignorar tudo o que tinha lido dizendo-se que era obra de um louco.
—Bom, já está. Suponho que esse tipo não é da CIA. E se o é, tem o cérebro esgotado. Meu deus crie-se a última versão do Kolchek.
—De quem?
—Kolchek. Era uma antiga série de televisão sobre um caça vampiros... Damien, não ponha assim, esse tipo é um louco —Damien se levantou, aproximou-se da chaminé e jogou uma lenha.
---Ou isso, ou realmente é um vampiro —Damien se voltou para olhá-la com os olhos abertos como pratos—. Né, era uma brincadeira. Tranqüilize-te, quer?
—Não posso me tranqüilizar. Esse homem seguiu todos meus movimentos durante dias. Eu não gosto.
—Claro, a quem poderia lhe gostar de algo assim?
Shannon voltou para o lugar no que tinha estado sentada e tomou o último relatório que tinha lido Damien, querendo saber o que era o que o tinha afetado tanto. Damien se equilibrou para ela e tentou tirar-lhe mas Shannon o esquivou e pôde ler algumas linhas.
A alma caiu aos pés e lhe gelou o ar nos pulmões.
—Meu deus —olhou a Damien. Parecia desolado—. Não queria que visse isto, verdade?
—E me culpa?
Shannon se umedeceu os lábios e releu aquelas linhas. O cadáver de Tawny era o segundo que se encontrou. O primeiro tinha sido o de outra jovem com umas feridas idênticas no pescoço. E ela também tinha participado voluntariamente no espetáculo de Damien. Era Rosalie Masón, a mulher a que Shannon tinha estado tentando encontrar.
Shannon sacudiu a cabeça e olhou ao Damien com expressão de incredulidade.
—Por isso não queria que o visse, Shannon. Sei o que está pensando.
—Neste momento, nem sequer sei o que pensar —se levantou de novo e começou a recolher todos aqueles documentos—. Agora vou, estou esgotada e como não vá logo, terminarei dormindo na lenheira com esse camundongo.
—Pode usar a habitação de convidados.
—Não —suavizou seu tom. Em realidade não acreditava nada do que tinha lido, não? Claro que não, é obvio que não—. Não, de verdade, não posso. Esta noite não.
—Tem medo mim.
Shannon se mordeu o lábio inferior e pestanejou.
—Não. Ao melhor isso é o que me preocupa —deu um passo, voltou-se e tomou o livro de Gilgamesh que estava lendo Damien quando ela tinha chegado— Você... Há dito que não te me importava deixar isso verdade?
Damien assentiu. Shannon se meteu o livro na mochila, colocou-se a mochila no ombro e se dirigiu para a porta. Damien a seguiu e posou a mão em suas costas.
—Sei que não confia em mim, Shannon, mas tenho que seguir você a sua casa. Ainda é de noite e...
Shannon se voltou para ele.
—Sim, é certo, e isso me recorda que tenho que te perguntar por que está tão seguro de que só corro perigo pelas noites.
—Os vampiros só atacam de noite.
Shannon sentiu um calafrio na nuca para ouvir aquelas palavras, mas o ignorou.
—Sou realista, Damien.
—Estou falando a sério —suspirou, passou-se a mão pelo cabelo e retrocedeu.
—Os vampiros não existem —disse, mas suas palavras logo que foram um sussurro.
—Então digamos que o assassino quer parecer um vampiro, isso convence você?
Shannon assentiu ainda receosa.
—Não acredito que vá trocar agora de tática e atacar de dia —continuou dizendo Damien.
Shannon sentiu que cedia a tensão de suas costas.
—Por um momento pensei que você tinha acreditado todas essas tolices. Tinha-me preocupado.
E ainda o estava, embora não sabia por que.
A prova final. Depois dela, não haveria dúvida do carinho de Damien para aquela delicada mortal.
Anthar tinha mantido sua mente isolada dela, como lhe teria gostado de fazer também a seu inimigo. Mas Anthar jamais desenvolveria nenhum sentimento para ela. Para ele era só uma boneca. O combustível que animava seus atos era mais forte que qualquer outro sentimento: a vingança. Tinha estado obcecado com a queda do outrora rei durante muito tempo para permitir que nada interferisse.
E com a prova que tinha ideado Damien o Eterno teria que arriscar algo mais que a dor de uma bala no ombro para salvar a sua mortal. Teria que arriscar sua existência ou vê-la morrer.
A história era fascinante.
Shannon não tinha querido interromper sua leitura. Tinha apagado a secretária eletrônica e se negou a abrir a porta, apesar de que sabia que certamente o homem que a esmurrava com impaciência devia ser aquele agente da CIA chamado Bachman. Não sabia por que não tinha entrado sem permissão. Possivelmente realmente acreditasse que não estava ali.
Mas não importava. Não tinha tempo de falar com ele. Precisava passar o dia decidindo se Damien Namtar podia ser um assassino. Ou possivelmente só estivesse louca. Possivelmente sofresse um transtorno de múltipla personalidade e possivelmente uma dessas personalidades fora a de vampiro.
Depois de que Damien partisse, tinha tentado dormir, mas não tinha podido. Apareciam em sua mente múltiplas possibilidades que a tinham deixado dando voltas na cama até a madrugada.
Descobriu-se pensando no Damien do momento no que tinha aberto os olhos. E a única conclusão a que tinha chegado era que não conhecia suficientemente aquele homem para julgá-lo. E tinha decidido ler aquele livro para tentar averiguar o que naquela história o comovia tão profundamente. Possivelmente assim encontrasse uma pista de por que atuava como o fazia.
E dessa forma ela saberia como devia atuar.
Era uma história triste, trágica. Toda ela tratava sobre um rei e sobre o homem que tinha chegado a ser seu melhor amigo. Algo mais que um amigo, em realidade Gilgamesh tinha sido quase um tirano ao princípio de seu mandato. Era um homem forte, duro no combate e cheio de sabedoria. Até tal ponto, que era considerado meio deus e meio homem. Mas tinha esquecido a compaixão por seu povo.
Enkidu tinha vivido no estepe, em plena natureza, de maneira que era considerado meio humano e meio animal. Mas tinha chegado à antiga cidade do Uruk um bom dia e se havia interposto deliberadamente no caminho do Gilgamesh. Tinha sido um desafio público. Tinham lutado e a descrição daquela batalha era a coisa mais poética que Shannon tinha lido em toda sua vida.
Lhe fez um nó na garganta enquanto lia. Os dois se converteram em amigos inseparáveis após e o livro falava das aventuras que tinham deslocado juntos, de como se converteram em duas partes de um só ser. E de como, ao final, Enkidu tinha morrido lentamente ante o olhar impotente de seu amigo, que não tinha podido fazer nada para ajudá-lo.
Era um texto comovedor e lhe tinha surpreso que escritores que tinham vivido milhares de anos antes de Cristo pudessem ser tão expressivos. Pestanejou para conter as lágrimas e leu outra passagem em voz alta:
O nome do Enkidu
Acompanhava cada um de seus pensamentos.
Era como um animal faminto entrando nas guaridas vazias
Em busca de comida. O único alimento
Que conhecia era a tristeza, uma tristeza eterna que brotava de uma fonte escondida.
Shannon permaneceu muito quieta; compreendia exatamente como se sentia aquele homem. Ela tinha experimentado a mesma tristeza com a morte de Tawny. Ainda a sentia. Teve que esperar uns minutos antes de continuar lendo. As lágrimas lhe nublavam a visão, mas se obrigou a terminar.
A partir de então Gilgamesh tinha deixado de ser um grande governante, converteu-se em um homem como qualquer outro e tinha terminado perdendo-se no deserto, possivelmente depois de ter perdido também a cabeça, em sua busca pelo segredo da vida eterna. Tinha chegado a obcecar-se com a idéia de ser imortal e de devolver a vida ao Enkidu. Uma missão que estava destinada a fracassar.
Quando terminou o livro, Shannon estava soluçando. Mas se secou os olhos, sacudiu a cabeça e tentou concentrar-se no motivo que a tinha levado a ler aquela comovedora história. Compreender ao Damien.
É obvio. Tinha perdido a seu melhor amigo. Inclusive havia descrito sua relação em uns termos que pareciam refletir a relação entre o Gilgamesh e Enkidu. Não era de se estranhar que se identificasse com eles. E com ela. Era como se houvesse um triângulo que os conectava.
Mas o que significava isso para ela?
Shannon baixou o livro, acariciou com ar ausente a coberta e começou a caminhar pelo salão. Poderia Damien ser um assassino? Um homem capaz de comover-se com uma história como aquela? Um homem incapaz de matar a um simples camundongo de campo?
Durante toda sua vida, tinha aprendido a não confiar em ninguém. A que se devia então aquela vontade de confiar nele?
Muito bem, possivelmente tivesse chegado o momento de jogar uma olhada a suas próprias motivações. E o faria dando um bom banho.
Ela jamais tinha estado com um homem, e tampouco queria fazê-lo. Mas ultimamente se via freqüentemente pensando nisso. Perguntando-se se realmente poderia ser tão maravilhoso como Tawny estava acostumado a lhe dizer. E se tinha que ser brutalmente sincera, não ficava mais remédio que admitir que era Damien o que inspirava aquela classe de pensamentos. E a verdade era que não estranhava. Era um homem absolutamente sensual.
Começava a obscurecer. Logo estaria ali, disposto a velá-la toda a noite. Deveria sair da banheira e vestir-se. O que faria, perguntou-se, se o beijasse?
A resposta não importava, porque não ia beijar-lo. Ou sim?
Sentia uma estranha letargia estendendo-se por seu corpo enquanto se banhava. Era um cansaço estranho, como se tivesse tomado uma pastilha para dormir ou um pouco parecido.
Pensou que gostaria de averiguá-lo. Diabo, não tinha nada que perder, e por que não experimentar algo pelo que sentia curiosidade antes que sua vida terminasse?
Deus estava cansada. Fechavam-lhe os olhos. Obrigou-se a sair da banheira e ficou a bata. Seria essa maldita enfermidade a que lhe provocava o sono? Fora o que fora, era irresistível. Meteu-se na cama com o cabelo empapado.
Não foi a fumaça que a despertou a não ser o alarme. O uivo do alarme rompeu o silêncio da noite. Antes de cheirar a fumaça, Shannon já estava meio vestida, de modo que, por um instante, duvidou de que ocorresse algo. Podia ser sua imaginação. Ao melhor se danificou o alarme e...
Ficou os jeans que tinha deixado no chão e saiu ao salão enquanto os grampeava. Dirigiu-se para a porta, mas se parou em seco ao ver a fumaça cinza que se filtrava pela fresta.
Cada vez era mais espesso, flutuava e subia para cima, estendendo-se por toda a habitação. Deu outro passo e sentiu um profundo terror. Pressionou a porta com as mãos, mas teve que as apartar bruscamente para não queimar-se.
—OH, Deus, Deus...
Tinha que lutar contra o pânico; tinha que utilizar a cabeça. Deu meia volta, cruzou a habitação e agarrou a manta do sofá. Aproximou-se da banheira, empapou-a e retornou à porta.
A fumaça continuava penetrando a toda velocidade; deixou cair à manta ao chão e, com os pés, pressionou-a contra a fresta da porta. Então observou. Cessou a entrada de fumaça.
Correu ao telefone e o desprendeu. Não havia linha. Secou-lhe a garganta. Umedeceu-se os lábios e girou lentamente no centro da habitação. O que podia fazer?
Retornou ao dormitório e apareceu à janela. As chamas iluminavam a noite. Viu o resplendor laranja elevando-se dos pisos de abaixo. Distinguiu as luzes dos bombeiros e à multidão que se amontoava debaixo. Deus, como tinha podido ficar dormindo em meio de tudo aquilo?
Baixou o olhar para o oco no que deveria estar à escada de incêndios. Logo estaria também ela abaixo, junto aos bombeiros, como toda aquela gente. Quão único tinha que fazer era esperar a que apagassem o fogo e fossem procurá-la. E o faria. Só tinha que manter a cabeça fria.
Aproximou-se do armário, abriu-o e tirou o taco de beisebol. Correu ao dormitório de novo; o cristal da janela se rompeu ao primeiro impacto.
Mordeu-se o lábio, retornou à sala de estar e olhou ofegante para o balcão. Mas as chamas continuavam atacando o piso de abaixo. Não podia escapar por ali.
Retornou ao quarto de banho e encheu a banheira de água fria. Encheu depois uma bacia, foi com ela ao salão e a lançou sobre a porta. A pintura estava começando a levantar-se e a fumaça se abria passo apesar da manta.
Foi correndo a colocar outra manta na água com intenção de envolver-se nela se fosse necessário.
Que mais podia fazer? Que mais?
Lhe acelerou o coração ao dar-se conta de que estava suando. A temperatura da habitação aumentava. O chão... Deus, sentia o calor subindo por seus pés.
«Tranqüila, tranqüila. Não te deixe levar pelo pânico. Te aproxime outra vez à janela e lhes faça saber que está aqui».
Shannon amarrar vários lençóis, tentando evitar que as mãos lhe tremessem e sabendo que não podia fazer nada mais que esperar. Quando elevou de novo o olhar, viu uma capa de fumaça suspensa à altura da cintura e se levantou da cama para sentar-se no chão. Atou um dos extremos dos lençóis a uma das patas da cama e lançou o resto pela janela. Estava segura de que veriam a bandeira branca em meio da noite e iriam procurá-la.
Os olhos lhe ardiam. O interior do nariz lhe ardia e as bochechas lhe queimavam.
A fumaça era o problema. A fumaça era o principal inimigo. Tinha que evitar respirar muito.
Retornou ao banheiro, mas já não havia água. Tomou uma toalha úmida e a sustentou contra seu rosto. Limpou os olhos e quando os voltou a abrir, estava às escuras.
Foi-se a luz. Sustentando com uma mão a toalha contra seu nariz e contra sua boca para filtrar o ar, mediu até localizar a banheira e tirou a manta úmida. De joelhos, saiu do banheiro arrastando aquela manta empapada atrás dela.
Não soube a que se deveu a explosão, mas de repente, ali onde devia estar à porta, apareceu uma parede de fogo. Engatinhando a toda velocidade, encontrou o caminho para o dormitório obrigado à luz daquele inferno que se estendia por todo seu apartamento. Encerrou-se no dormitório e colocou a manta sob a fresta da porta.
Começou a tossir. Sentou-se no chão e se voltou lentamente com os olhos cheios de lágrimas. A janela... Queria voltar para a janela. Engasgou-se outra vez. Tinha o cabelo empapado em suor e a pele ardendo.
E então encontrou a janela graças ao resplendor dos lençóis que tinha pendurado nela, que estavam ardendo como todo o resto. As chamas começavam a conquistar o batente. Procurou provas o nó com o que as tinha pacote, mas sofreu um novo ataque de tosse.
Damien nunca tinha tido intenção de utilizar o poder do vínculo psíquico que havia entre Os Escolhidos e os que eram como ele. Mas cada vez se alegrava mais de saber fazê-lo. Assim que o sol ficou e ele esteve completamente acordado, dispôs-se a ir para a casa de Shannon para passar outra noite de vigília.
Tentou ignorar as necessidades de seu corpo. Não deveria sentir um desejo tão intenso ainda. Não tinha passado tempo suficiente. E essa maldita sede que continuava não deveria levar impresso o rosto de Shannon. Maldita fora, o que lhe estava ocorrendo?
Tentou distrair aquele desejo irracional pensando em novas proezas para surpreender ao público. Mas continuamente, em um rincão de sua mente, sentia os pensamentos de Shannon.
Shannon estava dormindo, tão profundamente dormindo que nem sequer sonhava.
E então se produziu uma brusca mudança. Todos os sentidos de Shannon estavam alerta. Damien cheirou a fumaça, sentiu-o no nariz, abrasando seus olhos. Sentiu seu medo. O terror.
Fogo. E, maldita fora, era consciente de que bastaria que uma chama o roçasse para que sua pele ardesse como a gasolina.
Mas não importava. Tinha que ir procurar-la. Em caso contrário, teria que sentir sua morte. Sentir o retrocesso gradual das forças da vida, ver a morte dê Shannon batalhando contra o inimigo final.
Damien saiu de sua casa e elevou os braços. Segundos depois se elevava convertido em uma sombra noturna que nenhum olho humano teria podido detectar. E enquanto voava para ela, sentiu como ia diminuindo o ritmo de seu coração.
Maldita fora, essa vez não lhe permitiria ganhar na morte. Essa vez não ganharia!
Sentia o ar frio e limpo da noite sobre a pele e, ao mesmo tempo, o calor abrasador de Shannon. E de repente se encontrou ali. O incêndio rugia convertendo o edifício em um puro inferno; Damien se elevou para ele e entrou no dormitório de Shannon pela janela.
Caiu no chão da uma habitação cheia de fumaça. Nem sequer com sua visão noturna era capaz de ver apenas. O calor era intenso e só as línguas de fogo rompiam à escuridão da noite. Tentou as evitar e concentrar-se unicamente em Shannon. Ajoelhou-se junto a ela enquanto Shannon lutava para não deixar de respirar tombada no chão, com os olhos fechados, como um anjo. Damien a levantou nos braços, tomou sua cabeça com uma mão e a sustentou contra seu rosto. Insuflou ar a seus pulmões. Uma vez, dois... E assim uma e outra vez.
Shannon tossiu e tentou tomar ar, mas seus pulmões voltaram a encher-se de fumaça. Rodeou ao Damien o pescoço com os braços e pressionou o rosto contra seu pescoço. Antes de voltar a perder a consciência, sussurrou seu nome com voz engasgada.
Damien a aconchegou contra seu peito e saltou pela janela, voando em meio da noite a uma velocidade que a faria invisível para o olho humano. Aterrissou em um beco, entre dois edifícios. As ruas eram um caos de sirenes. As luzes vermelhas e brancas banhavam o rosto de Shannon, tingindo o de cor. Ouviam-se buzinas, carros.
Shannon se estirou em seus braços, tomou ar trabalhosamente e explorou em um ataque de tosse tão violento que Damien chegou a pensar que ia se rasgar por dentro. Sustentou-a contra seu peito até que a tosse começou a ceder e procurou seu rosto com o olhar.
—Shannon?
Shannon pestanejou e tentou fixar nele seus olhos irritados pela fumaça.
—Como...?
Mas sua pergunta foi interrompida por um novo ataque de tosse. Damien a tirou de entre as sombras e não se deteve até encontrar uma ambulância.
—Um momento senhor —um dos paramédicos se voltou, colocou em Shannon uma máscara de oxigênio e assinalou para o estou acostumado a—. Deixe-a ali.
—Quero uma marca —respondeu Damien, fulminando-o com o olhar.
—Sinto muito, mas estão todas ocupadas. Deixe-me isso —alargou os braços para Shannon, mas Damien o separou de um tapa—. Né...
Damien o silenciou com o olhar antes de ir procurar algum lugar no que Shannon pudesse descansar. Viu um carro de polícia e correu para ali. O paramédico soltou uma maldição, mas correu atrás deles com o bujão de oxigênio. Damien abriu a porta traseira do carro de polícia e tombou Shannon no assento de atrás.
—Damien...
—Te tranqüilize, Shannon, porá-te bem.
—Há...? —um novo ataque de tosse a interrompeu.
De todas as formas, sentou-se, alargando o braço com o passar do assento para sustentar-se. Mantinha a máscara de plástico contra seu rosto e inclinava a cabeça para tomar oxigênio, mas seus olhos não abandonavam em nenhum momento os de Damien. Elevou a cabeça lentamente.
—Tiraste-me de casa.
—Descansa, necessita...
—Como?
Damien não disse nada. Limitou-se a olhá-la em silêncio. Shannon voltou a cabeça para o edifício em chamas. Tomou oxigênio um par de vezes e se tirou a máscara.
—Entraste ali, verdade? —franziu o cenho e escrutinou seu rosto.
Uma ambulância estacionou nesse momento junto ao carro de polícia. Saíram dois paramédicos, tiraram uma maca da parte de atrás e se detiveram detrás do Damien. O paramédico que levava o oxigênio golpeou o teto do carro patrulha.
—Temos uma ambulância disponível. Nos podemos levar isso. -- Shannon negou com a cabeça.
—Não, estou bem.
—vamos leva-la ao hospital, senhorita. Respirou muita fumaça...
—Hei dito que estou bem —se levantou, apoiando-se em Damien, e posou a mão em seu ombro para manter-se em pé. Olhou uma vez mais ao edifício e procurou o olhar de Damien—Por que?
—Tem que ir ao médico, Shannon. Tombe-te nessa maca e...
—Deixa de me falar como se tivesse dois anos, Damien —se deteve para tossir e pressionou a mão contra seu peito.
O jovem que sustentava a máscara voltou a aproximar-lhe à cara. Shannon tomou uma baforada de oxigênio, apartou a máscara e elevou a cabeça fazendo um esforço evidente.
—Por que arriscaste a pele por mim outra vez? Está desejando morrer ou o que te passa?
—Sabe? Estou começando a me cansar de sua péssima atitude. Tomei-me um montão de moléstias para tirar você das garras da morte. A estas alturas, já não espero que me dê obrigado, mas vai ver um médico embora para isso tenha que te levar sobre meu ombro.
Shannon tomou oxigênio e o olhou com os olhos entrecerrados.
—Não me olhe com tanto receio, Shannon Mallory. Isto não é uma estratégia para que deixe de suspeitar que seja o culpado desses horríveis crimes. Se meu objetivo fora esse, te teria deixado ali.
Shannon apartou a máscara.
—Eu nunca hei dito...
Começou a tossir com uma força capaz de lhe destroçar os pulmões. Damien a levantou nos braços.
—Estou cansado de discutir contigo, maldita seja —A sustentou com força e a levou a ambulância.
Sentou-se com ela no colo e lhe fez um gesto ao médico que os tinha atendido com a cabeça.
O jovem se montou com eles na parte posterior da ambulância, sem soltar nunca o bujão de oxigênio. O condutor da ambulância fechou as dobre portas e ocupou seu assento. A ambulância saiu dando inclinações bruscas. Damien estreitou Shannon entre seus braços e lhe fez apoiar a cabeça em seu ombro. Fechou os olhos. Em questão de segundos, estavam em caminho com as sirenes uivando a pleno volume.
Não tinham avançado muito quando Shannon elevou a cabeça e tentou tirá-la máscara, mas Damien tomou a mão e a olhou aos olhos. Podia submetê-la a sua vontade, mas queria convencê-la. Por muito que o irritasse, gostava do espírito combativo de Shannon.
—Shannon, eu não vou conseguir nada com isto. Isso é o que você está perguntando, verdade? Pois quero que saiba que nada absolutamente.
Shannon liberou sua mão e tirou a máscara.
—Eu não te pedi que te metesse em minha vida. Não necessito um herói.
—E não hei dito que o fora.
—AH! Correste a você colocar em um edifício em chamas como se fosse um super-herói de gibi. Não tem nenhum motivo para... —sua acusação foi interrompida por outro ataque de tosse e Damien lhe colocou de novo a máscara.
Quando a tosse cessou, a retirou. Shannon o olhou em silencio durante longo momento.
—Não há nenhum motivo para que arrisque a vida desse modo.
—Sim, há muitíssimos motivos —Respondeu, e lhe apartou uma mecha de cabelo da cara.
Shannon entrecerro os olhos, lançando ao fazê-lo um montão de faíscas ambarinas. Tentou sentar-se e Damien o permitiu. Shannon se deslizou de seu colo e se sentou no bordo da maca. Não o olhou aos olhos, inclinou a cabeça e sua juba loira caiu ocultando parte de seu rosto.
—Eu... Pensava que tudo tinha terminado.
—Me alegro de que não tenha sido assim.
—Estou em dívida contigo, Damien. Uma vez mais.
A ambulância girou e diminuiu de velocidade. Deteve-se e, aos poucos segundos, abriram-se as portas de atrás. Shannon saiu por seus próprios pés, negando-se a receber ajuda.
Damien a alcançou quando estava começando a cair. Que mulher tão teimosa. Levantou-a em braços e correu com ela para a sala de urgências, levou-a até uma das consultas e a deixou cuidadosamente sobre uma mesa coberta de papel branco que o corpo de Shannon cobriu de fuligem.
Damien se evaporou assim que apareceu a primeira enfermeira com os formulários. Shannon se sentou na borda da cama e os preencheu, perguntando-se se submeteriam a mesma papelada às vítimas de um enfarte.
Chegou uma enfermeira com uma bacia cheia de água quente e procedeu a limpar o rosto de Shannon.
Muito bem, pensou a jovem. Estavam sendo muito amáveis com ela. E o único motivo de seus maus pensamentos era que estava de um humor endiabrado. Maldita fora! Acabava de perder tudo o que tinha.
—O médico virá agora mesmo, senhorita... —a enfermeira olhou um dos formulários—... Mallory. Relaxe-se e deixe tomar os sinais vitais.
Shannon assentiu enquanto lhe colocavam um termômetro na boca.
A enfermeira passou uma boa meia hora com ela. O médico entrou e saiu aos cinco minutos, disse-lhe que podia ir-se a casa e depois retornou a enfermeira para lhe perguntar que roupa ia ficar.
Shannon não tinha pensado nisso. E quando o fez, recordou todas as coisas que nunca ia voltar a ver. Seus discos, sua jaqueta de ante... Abriu os olhos de par em par e gemeu com autêntica dor.
A enfermeira a agarrou por ombro e Damien entrou imediatamente na habitação.
Shannon voltou a gemer, mais alto aquela vez.
—Meu carro. OH, Meu deus, meu carro —se cobriu o rosto com as mãos—. Depois de que esses tipos me tentassem roubar isso o estacionei na garagem subterrânea do edifício—. OH, maldita seja, é que não o compreende? —gemeu. Não, evidentemente ninguém a compreendia—. Me Deixe vestir —murmurou.
Ouviu que a porta se fechava e, acreditando que se estava sozinha, elevou o olhar. Damien deixou uma bolsa de roupa no chão e caminhou para ela.
—Está chorando —secou com seus dedos de mago as lágrimas de suas bochechas.
—Se crie que sou tão estúpida para chorar por um carro... —sorveu e tentou deter-se, mas as lágrimas continuavam fluindo.
Damien deslizou as mãos por seus ombros e por suas costas. Shannon apoiou a cabeça em seu peito e ele a balançou ligeiramente.
—Não acredito que seja nenhuma estupidez.
—Tawny... Colecionava-os.
—Colecionava carros?
—Carros de brinquedo. O Corvette era seu favorito. Mas também era o meu. Sempre brigávamos por ele. Um Stingray vermelho como uma maçã de caramelo e cujas comporta se abria de verdade. Tinha-o roubado ela. Fomos muito majores para jogar com brinquedos, mas demônios, tampouco tínhamos podido desfrutar os de meninas —seguiu chorando—.E... E chegou o dia de meu aniversário. Como sempre, não tive nenhum presente. Mas então ela... Envolveu esse estúpido carrinho em um papel e me deu isso. Jurou-me que algum dia teríamos um carro de verdade e montaríamos juntas...
Damien a abraçou com força.
—Por isso esse carro significa tanto para você?
Shannon voltou a assentir.
—Ao melhor não aconteceu nada, sabe? Diz à rádio que o fogo está controlado e não acredito que tenha afetado aos metrôs.
—De verdade o crie?
—É possível. Comprovarei-o assim que você tenha se instalado.
—Instalado onde?
—vais vir comigo. E não quero protestos.
Shannon ficou calada durante comprido momento, examinando-o. Damien lhe tinha salvado a vida em duas ocasiões. Estava segura de que não ia fazer lhe danifico.
—Damien... Você crie que o fogo...?
—Dizem que foi provocado, mas não estarão seguros até dentro de um par de dias.
Shannon se mordeu o lábio.
—Tudo está relacionado, verdade? Há alguém que não quer que siga investigando o assassinato de Tawny.
—Não há provas de...
—Inclusive poderia ter sido Bachman. Ele mesmo me disse que poderia me fazer desaparecer.
—Não sei. Pode ter sido um intento de acabar com sua vida ou uma coincidência. Em qualquer caso, comigo estará a salvo. Não quero que volte a ficar sozinha, Shannon.
E Shannon tampouco queria voltar a estar sozinha. Limitou-se a assentir.
Damien a levantou nos braços e saiu da sala de urgências. Havia uma parte de Shannon que se revelava contra aqueles mimos e lhe dizia que lhe pedisse que a deixasse no chão.
Mas não o fez. Porque havia outra parte de Shannon, cada vez maior, a que parecia lhe gostar de ser embalada contra seu peito. E quem demônios havia dito que não tinha direito a sentir-se bem alguma vez?
Rodeou-lhe o pescoço com os braços, ignorando a sua parte mais cínica. Houve um segundo, enquanto Damien a levava para o Jaguar, no que se perguntou como teria conseguido Damien levar o carro tão rápido até ali. Mas em realidade não importava.
Damien a sentou no carro, colocou-lhe o cinto de segurança e a olhou durante comprido momento. Shannon via seus olhos movendo-se minuciosamente, como se queria ver cada parte de seu rosto.
Elevou a mão, pensando que ao melhor tinha ficado alguma mancha, mas Damien a reteve entre a sua. Shannon se encontrou com seu olhar de ébano e viu seus lábios mover-se ligeiramente, esboçando apenas um sorriso. Imediatamente, Damien retrocedeu e fechou a porta, sem deixar de olhá-la. Ao cabo de uns segundos, Shannon lhe devolveu o sorriso. Ao final, Damien desviou o olhar, sentou-se no assento do condutor e pôs o carro em marcha.
Uma vez em sua casa, voltou a tirá-la em braços.
—Suponho que quererá tomar banho. Seu penhoar segue no dormitório que usou a última vez.
Shannon não protestou. Tinha a sensação de que não serviria de muito. Além disso, estavam já no segundo piso, de modo que não demoraria para deixá-la no chão. Mas então, por que não se sentia tão aliviada como esperava? Damien a sustentava com força, como se temesse deixá-la cair. Shannon posou a cabeça em seu ombro e teve a estranha certeza de que Damien tinha inclinado a cabeça para roçar seu cabelo com os lábios.
Que tolice. Sua imaginação voltava a transbordar-se.
Damien abriu a porta do dormitório, cruzou-a e a deixou no chão, mantendo a mão em sua cintura, como se queria ajudá-la. Parecia tão preocupado que a fazia sentir-se incômoda.
—Acredito que tem razão. Necessito uma ducha. Quero me tirar esta peste de cima antes que termine me asfixiando.
Damien assentiu, mas não partiu. Abriu a porta do armário e deixou a bolsa de roupa em uma estante. Depois se voltou de novo para ela.
—Acredita que poderá fazê-lo sozinha?
—O que pensa fazer, Damien, me banhar se por acaso não tenho forças suficientes para sujeitar a pastilha de sabão?
A expressão preocupada de Damien trocou. Fez-se mais escura, mais intensa. Durante segundos compridos, Shannon não foi capaz de apartar o olhar de seu rosto. E quando o fez, estava tremendo.
—Voltarei para buscar você dentro de uns minutos —Damien deu meia volta e partiu como se de repente tivesse pressa.
—Sim —sussurrou Shannon quando se fechou a porta—, e depois o que?
Meteu-se na ducha e saiu aos poucos minutos envolta em uma toalha. Aproximou-se do armário a procurar a roupa que tinha deixado ali a vez anterior. Mas ao mesmo tempo, reparou na bolsa que Damien tinha levado. Por isso havia dito, tinha comprado todas aquelas coisas para ela. Shannon a olhou perguntando-se se teria algo mais conveniente que ficar. Alargou o braço, mas não chegava a estropia em que a tinha deixado.
Mordendo o lábio, olhou a seu redor, viu uma cadeira e a aproximou do armário subiu justo nesse momento abriu-se a porta e apareceu Damien com os braços cruzados, olhando-a como teria podido olhar a uma menina que acabasse de pendurar-se pelos pés das barras de um balanço.
Ele também tinha tomado banho e trocado de roupa. Levava uns jeans negros e uma camisa de cor veio com as mangas recolhidas até os cotovelos. Shannon se fixou imediatamente no pêlo escuro que cobria seus antebraços. Quando voltou a olhá-lo aos olhos, estava sorrindo.
Shannon ignorou sua expressão divertida e alargou a mão para a bolsa.
—Cuidado!
O grito chegou justo no momento no que a cadeira começava a cambalear-se. A bolsa lhe escapou das mãos enquanto ela caía em picado. Quão seguinte soube foi que caía contra o peito de Damien com tanta força que lhe fez se chocar contra a parede. Imediatamente se aferrou a seu pescoço enquanto Damien a sustentava contra ele a vários centímetros do chão. Seu rosto estava virtualmente pego dele. Shannon conteve a respiração. Damien não a soltava. Olhava-a fixamente. E Shannon não sabia que parte de seu rosto o fascinava tanto, porque ela também tinha o olhar fixo em sua boca.
Não era a primeira vez que se via olhando aqueles lábios e perguntando-se como seriam seus beijos.
Damien fechou os olhos e posou a cabeça contra a parede como se estivesse tentando esclarecer seus pensamentos. Relaxou a pressão de suas mãos em sua cintura para que pudesse posar os pés no chão, mas enquanto descendia, Shannon sentiu a dureza de sua ereção e o coração lhe deu um tombo no peito.
Excitava-o? Deus santo, não se tinha dado conta. Ao melhor o tinha suspeitado, mas...
Assim que roçou o chão com os pés, apartou as mãos de seu pescoço. Damien abriu os olhos. Até então, Shannon não se fixou em quão espessas eram suas pestanas, nem em que tinha as íris tão escuras que pareciam de negro cetim. Retrocedeu meio passo, mas sem abandonar em nenhum momento seus olhos.
Damien posou as mãos justo em cima de seus quadris e Shannon sentiu que pressionava ligeiramente os dedos, mas não estava segura de que tivesse sido um movimento voluntário. Pensou na magia daquelas mãos, na facilidade com a que se moviam em cena; pensou nas coisas que faziam aparecer de um nada. Que classe de magia obrariam aquelas mãos no corpo de uma mulher? E pensou na ereção de Damien, que tinha cobrado vida com o mero roce de seus corpos. E por um instante, perguntou-se o que seria fazer o amor com um homem como aquele.
Damien se apartou e se voltou bruscamente, com os punhos apertados a ambos os lados de seu corpo.
—Em... Tenho-te feito mal?
—Não, Shannon, não me tem feito mal.
—Me imaginava —se encolheu de ombros.
Voltou-se. Não queria que soubesse o muito que a desconcertava. Se de verdade o excitava, por que não o dizia? Por que não fazia algo a respeito?
—Deveria comer algo —lhe disse Damien, e Shannon esteve a ponto de gritar de frustração—. Vamos abaixo.
Damien queria assegurar-se de que Shannon estivesse bem antes que ele se retirasse a descansar antes do amanhecer. Tinha estado a ponto de morrer.
Mas estava viva, mais viva que qualquer das pessoas que até então tinha conhecido. Observou-a colocar a colher na sopa que lhe tinha preparado. Não se tinha atrevido a cozinhar nada mais complicado. Fazia muito tempo que tinha deixado de preocupar-se com a comida, embora sempre mantinha a geladeira cheia porque Netty tinha que comer ali.
Shannon terminou a sopa e ficou a perambular pela habitação, examinando-o tudo com a curiosidade de uma menina. Tomou uma das caixas negras nas que Damien fazia desaparecer coisas em cena. Abriu-a, examinou os espelhos que tinha no interior e voltou a fechá-la. Damien a observava contemplando sua vitalidade, seu espírito. Tinha estado a ponto de morrer. E não podia tirar-se da cabeça aquela idéia.
A bata que levava era muito curta. Se por ele tivesse sido, teria insistido em que se vestisse, mas ambos parecia haver-se esquecido de tudo no momento no que Shannon tinha caído em seus braços.
Durante uns instantes, Damien se tinha esquecido até de respirar. Shannon queria que a beijasse. E ele o tinha sabido com uma aterradora certeza.
Por que a tinha levado a sua casa? Acreditava que podia passar junto a ela todos os momentos de debilidade sem perder o controle? Possivelmente houvesse se tornado louco. Quanto período poderia durar a prudência?
Shannon se aproximou da chaminé e deslizou o olhar por uns desenhos a lápis-carvão. Em um deles estava representado o Eufrates, cortando o deserto. Olhou depois os objetos metidos nos cubos de cristal. Com o cenho franzido, inclinou-se para uma das figurinhas.
—O que é isso?
—Uma antiga deusa da fertilidade. Os sumérios a chamavam Inanna, os babilônios Ishtar.
—É muito formosa. E parece muito antiga.
—Tem quase cinco mil anos.
Shannon arregalou os olhos, levantou o cubo que cobria a peça e olhou ao Damien.
—Posso?
Damien assentiu e a observou enquanto sustentava a figura e a acariciava com delicadeza.
—Não me posso acreditar que esteja tocando um objeto que tocaram outras pessoas faz cinco mil anos.
Damien desejava que também o acariciasse a ele daquela maneira. Ele era mais velho que aquela figura.
—E esta? —perguntou Shannon atrás deixar à deusa em seu lugar—. O que é uma cabra?
—Sim, foi feita ao redor do ano dois mil e seiscentos antes de Cristo. Os chifres e a barba são de lápis-lazúli.O resto é de ouro.
—Coleciona antiguidades?
Damien assentiu e Shannon se voltou para a última peça que havia no suporte.
—Isto o que é?
—Um pedaço de história —se aproximou dela enquanto Shannon escrutinava quão gravados cobriam cada milímetro daquela pedra.
—É uma forma de escritura?
—A mais antiga que se conserva. Escritura cuneiforme. Esta peça é do ano quatro mil antes de Cristo, encontraram-na no Sumer.
—Sabe-se o que diz?
—Sim, é parte da história do Gilgamesh.
Shannon elevou o olhar e Damien viu arrependimento em seus olhos.
—Gilgamesh. OH, Meu deus, Damien, o livro...
—Não se preocupe.
—Mas eu...
—Shannon, só era um livro, uma das últimas traduções. Tenho dúzias de livros que contam a mesma história. Você mesma o viu.
—Mas para ti é um livro importante.
Era-o, mas, por que sabia Shannon?
—Posso comprar outro.
—Comprarei-lhe isso eu —suspirou e posou a mão sobre o cristal que continha a pedra—. É uma história maravilhosa e terrível. Alegro-me de havê-la lido antes que o fogo queimasse o livro.
—O leste?
Shannon assentiu com ar ausente.
—Me conte o que diz.
—Não acredito que queira ouvi-lo...
—Claro que sim.
---A história me comoveu Damien. Acredito que compreendo a dor que arrastou ao Gilgamesh ao deserto. Eu também perdi a minha melhor amiga.
—Sim, sei —e o explicou—. Nesta pedra se narra à morte do Enkidu. Gilgamesh estava a seu lado, lhe dando a mão. Enkidu o olhou e lhe falou. E isto foi o que lhe disse —Damien se voltou para a pedra—. «Te deixarei sozinho, incapaz de compreender um mundo no que já nada vive. Estará sozinho, vagará procurando a vida que se foi ou a vida eterna que terá que conquistar. Seus olhos trocaram. Está chorando. Antes nunca chorava. Não é próprio de ti. Quem sou eu para morrer, para te deixar sozinho? Gilgamesh permaneceu em silêncio enquanto os olhos de seu amigo se detinham. E em silêncio alargou a mão até a frente do amigo que tinha perdido».
Damien cravou o olhar nas chamas da chaminé. E não voltou a elevá-la até que a ouviu soluçar.
—É tão triste... E aos com tanta emoção... — Shannon sorveu uma vez mais e se passou o dorso da mão pelos olhos—. Deveria ter sido ator.
—Sou-o.
Shannon assentiu, mordeu-se o lábio e se voltou para ele.
—Contou-me que você também tinha perdido a um amigo. Por isso você gosta tanto essa epopéia, verdade? —Damien assentiu em silêncio—. Tem lido muito sobre o Gilgamesh. Sabe se houver algo mais?
—Mais?
—Sim, é tão triste pensar que isso foi tudo o que ocorreu... Sabe se encontrou o segredo? Se conseguiu lhe devolver a vida a seu amigo?
Damien suspirou e fixou o olhar na pedra.
—Encontrou a imortalidade, mas isso não o converteu em um deus. E tampouco lhe deu poder para reviver ao Enkidu. Converteu-o em um demônio. A gente que o tinha adorado o odiou. Nem sequer acreditavam que fora Gilgamesh, pensavam que era um impostor. Seu rei tinha morrido. Sua absurda busca da vida eterna o tinha condenado a uma existência sem fim em que se viu obrigado a contemplar uma e outra vez o triunfo do único inimigo ao que ansiava derrotar, a morte.
—Todo isso o diz a história?
—Não, Shannon. Grande parte da história ainda não foi descoberta. Essa é minha própria teoria.
—E não ocorreu a você uma teoria melhor? Uma teoria com um final feliz, por exemplo?
—Quem me dera me ocorresse.
Shannon sorriu, mas lhe tremeram ligeiramente os lábios. Agachou-se para jogar um lenho na chaminé, provocando uma chuva de faíscas. Damien saltou para apartar-se delas; o coração esteve a ponto de deixar de pulsar. Mas não lhe havia meio doido nenhuma faísca e rapidamente fechou a tela de cristal da chaminé. Shannon não pareceu notá-lo. Sentou-se no chão, em um dos tapetes, com as pernas cruzadas.
—Eu podia passar toda a noite falando do Gilgamesh. Fascina-me, mas há algo do que preciso falar contigo imediatamente —disse ela.
—E sobre o que, quer falar?
—Sobre como vou apanhar ao assassino de Tawny. Não temos feito muitos progressos ainda.
—Isso significa que ao fim acredita que não fui eu?
—Acredita que estaria aqui em caso contrário?
—Tem idéia de por onde começar? Porque eu não —cruzou as pernas e se sentou a seu lado.
—Pois sim —inclinou a cabeça e o olhou com olhos faiscantes—, mas temo que você não vai gostar.
—Por que será que não me surpreende?
Shannon sorriu e Damien compreendeu que tinha cometido um engano ao sentar-se a seu lado. Olhou para seu delicioso rosto, um rosto de maçãs do rosto altas e marcados e de lábios cheios. Adoraria ver esse rosto retorcendo-se em um êxtase tão doce que resultasse quase doloroso.
O problema era que podia matá-la no processo.
Shannon franziu o cenho e aproximou a mão a seu rosto.
—Está bem?
O contato de sua mão era uma autêntica agonia. Damien voltou à cabeça e Shannon apartou a mão.
—Sim. Que idéia é essa que não vou gostar?
Shannon pareceu doída por seu gesto, mas continuou de todas as maneiras.
—O assassino só está matando a mulheres que saíram em seu espetáculo. Eu pensava que também o tentaria comigo, mas não o tem feito, de modo que temos que lhe preparar outra armadilha. A partir de agora, eu serei sua única ajudante. E começarei amanhã mesmo.
—Não.
—Sabia que você não gostaria.
—Não quero que arrisque sua vida.
—Em realidade já estou em sua lista.
—É possível que não.
—Não pode continuar pedindo voluntárias, Damien. Não seria justo as converter em seu objetivo...
Damien se levantou e se voltou de novo para ela.
—Não utilizarei ajudantes.
—Então, começará a procurar antigas voluntárias —se levantou e se aproximou dele—. Pelo menos em meu caso, é uma decisão consciente. Essas outras pobres mulheres não têm a menor idéia do que as espera.
—Preferiria pôr fim ao espetáculo. Cancelar o resto das atuações.
—Poderiam te denunciar.
—Não me importa.
Shannon elevou o queixo e virtualmente ficou nas pontas dos pés para olhá-lo aos olhos.
—Não encontraremos ao assassino a não ser que o tente outra vez. Isto é muito importante para mim, Damien. Não corro nenhum risco porque não tenho nada que perder. O único que me interessa agora é me assegurar de que esse canalha pague pelo que fez a Tawny.
—Shannon...
—E estou disposta a fazer uma concessão. Ficarei aqui, contigo, se te resultar mais fácil continuar assumindo o papel de protetor, embora não necessite nenhum. Mas se disser que não, partirei-me imediatamente.
—E aonde iria?
—Ainda tenho meu escritório.
—Nesse caso, poderia te seguir e te vigiar de todas as maneiras.
—Mas aqui estou mais segura. Esta casa é como uma fortaleza.
Damien baixou o olhar, sabia reconhecer a derrota.
—De acordo, renuncio você ganha.
Shannon lhe rodeou o pescoço com os braços e o apertou com força.
—Obrigado, Damien, não te arrependerá.
Mas a verdade era que já se arrependeu.
Virtualmente tinha amanhecido quando Shannon reparou na hora que era e decidiu ir-se à cama. E embora odiasse utilizar o controle mental com ela, Damien invadiu seus pensamentos para lhe ordenar que dormisse durante todo o dia. Não queria que se metesse em problemas sem que ele estivesse em condições de ajudá-la.
Antes de retirar-se, aproximou-se do dormitório de Shannon e abriu a porta. Apoderou-se dele o mais cru desejo quando a viu tombada em meio da cama. Tinha deixado à bata no chão. Se tivesse sido pintor, a teria retratado naquela postura. Nua, relaxada, viva. Bela.
Damien fechou a porta, apoiou-se contra a parede e tomou ar, expandindo seus pulmões até fazê-los arder.
A sede o devorava. O desejo o estava matando. E se queria que Shannon estivesse segura em sua casa, tinha que encontrar a maneira de aplacá-lo. Sabia que se resistia que se negava sua natureza selvagem durante muito tempo, a fome cresceria até lhe fazer perder o controle.
Isso era o que lhe tinha passado com aquelas duas mulheres. Ele pensava que tudo sairia bem. Até então, sempre tinha tomado o que lhe tinham devotado e tinha podido saciar sua sede no processo.
Mas era possível que com aquelas duas mulheres tivesse perdido o controle durante alguns segundos.
Mas não, maldito fora. Ele estava seguro de que as tinha deixado vivas. Ele jamais tinha sido instrumento de morte. Jamais.
Separou-se da parede e baixou a escada. A fome voltava a chamá-lo e, naquela ocasião, não cometeria a estupidez de negar seu poder. Não podia deixá-la crescer até a loucura estando Shannon em casa. Tão perto. Tão doce. Seria um bocado muito suculento.
—Não!
Damien se deteve no centro do vestíbulo, fechou os olhos e se concentrou na mente do Shannon. Demorou menos de um segundo em saber que continuava dormida. Antes de partir, conectou o sistema de segurança. O que tinha em mente lhe levaria só uns minutos. Ninguém poderia lhe machucar em tão pouco tempo. Sabia que a deixava a salvo.
Shannon abriu os olhos e viu Damien aos pés da cama, olhando-a fixamente. Seus olhos escuros resplandeciam. Tinha o queixo tenso e uma postura rígida. Não disse nada, limitou-se a observá-la.
Shannon se sentou e os lençóis se deslizaram por seu corpo. Então se deu conta de que estava nua e, com uma exclamação, voltou a tampar-se até o pescoço. Depois elevou de novo o olhar. Sentiu o calor que abrasava seu rosto, a vergonha, e não foi capaz de lhe sustentar o olhar.
Sentiu um puxão. Depois outro. Elevou rapidamente os olhos. Damien estava atirando os lençóis para ele. Lentamente, mas com firmeza, os lençóis foram correndo-se. Shannon queria os reter, ou pelo menos parte dela isso pretendia, mas era incapaz de mover-se.
Seus seios eram completamente visíveis. O cetim escorregava por seus quadris, por suas coxas, por seus joelhos. Estremeceu-se, mas não fazia frio. Damien jogou os lençóis a um lado e os deixou cair ao chão.
Shannon permanecia quieta, imobilizada por alguma força que não compreendia enquanto Damien percorria com olhar ardente todos os rincões de seu corpo. Ela viu o vulto que me sobressaía entre suas coxas, sob o tecido negro dos jeans, e soube o que ia ocorrer. Mas não tinha medo. Não. Damien deu um passo para a cama.
—Damien —sussurrou Shannon.
—Me deixe fazer o amor contigo, Shannon.
Shannon não tinha fôlego para responder. Damien alargou a mão para acariciá-la.
Abriu os olhos de repente e se encontrou sozinha na habitação. Só sob o ligeiro peso dos lençóis e o edredom. Deitou-se nua e a bata que levava a noite anterior lhe enredava entre as pernas. Não sentia saudades que tivesse tido sonhos eróticos. O roce do cetim sobre sua pele tinha inspirado seus sonhos. Sim, isso era. O fato de que aquele homem estranho tivesse invadido ultimamente seus pensamentos não significava que fora ele a causa de seus sonhos.
Mas sabia que estava se enganando.
Deu um murro ao travesseiro. Tinha demorado um inferno para dormir. Uma parte dela, a mais ridícula, estava esperando ao Damien.
Procurou a bata e se deu conta então da penumbra que havia na habitação. Já era de noite? Olhou o despertador da mesinha. Às sete e quinze da tarde. Estava anoitecendo. Deus, jamais tinha dormido até essas horas. E tampouco tinha tido nunca sonhos como aqueles. Sentou-se na cama, levou-se a mão à frente e a descobriu empapada em suor.
Uma chamada à porta a sobressaltou.
—Shannon? Está acordada?
—Um momento
Saltou da cama envolta nos lençóis e procurou frenética a bata ou a roupa que levava no dia anterior, mas não via nada. Aproximou-se da porta, entreabriu-a e o olhou.
Damien permanecia no outro lado, sombrio e misterioso como nunca.
—Trouxe-te algo de comer. Posso passar?
—Bom, não pode dizer-se que esteja vestida.
Damien se encolheu de ombros, empurrou a porta e entrou como se fora algo habitual.
—Shannon, me passado à vida rodeado de mulheres formosas seminuas. Prometo-te que serei capaz de me controlar —lhe dirigiu um sorriso enquanto ela ajustava os lençóis com estupidez sob os braços. Deixou a fonte na mesinha de noite.
—Sim, ao melhor você pode, mas eu não - se dirigiu por volta do banheiro, arrastando os lençóis com ela, e fechou a porta—. Onde está minha roupa?
—Pedi a Netty que lhe lavasse isso. Está no armário.
—Importaria-te me aproximar algo que me pôr?
Damien se pôs a rir, mas um segundo mais tarde bateu na porta. Shannon abriu uma fresta e Damien colocou a mão para lhe passar uns jeans, uma sudadera e roupa de baixo limpa.
—Isso não é meu.
—Netty saiu e comprar algo. Não pode você pôr a mesma roupa todos os dias, verdade? Agarra-o, Shannon, não morde.
Shannon aceitou a roupa, fechou a porta e se vestiu rapidamente.
—Não sei por que toma tantos incômodos. Não vai levar a posta muito momento - comentou Damien.
Shannon olhou estupefata a porta do banheiro. Assim ao final parecia disposto a dar um passo. Certamente, não era assim como o tinha imaginado.
—Essa é a proposição mais grosseira que ouvi em toda minha vida —abriu a porta e o olhou com os braços em jarras—. Não te ocorre nada melhor?
Damien lhe deslizou um dedo por sua bochecha.
—Me ocorrem coisas muito melhores. Mas isto não era uma proposição. Só estava expressando um fato.
Shannon franziu o cenho.
—Assim já o está dando por sentado, verdade?
—Disse que queria ser minha ajudante até que tivéssemos apanhado ao assassino, verdade? —Shannon assentiu—. Compreenderá que não pode ir assim vestida.
Shannon ficou vermelha como o grão, mas se voltou para ocultar seu rosto e tentou converter seu mal-estar em um pouco mais construtivo.
—Se acredita que vou sair a desfilar em cena com um desses minúsculos cangas, como o resto de seus ajudantes, temo-me que te equivoca Damien.
—Não vais desfilar em cena. Aparecerá flutuando, dançando. E só temos uma hora para ensaiar, assim te coma esse festim que te preparou Netty para que possamos começar quanto antes, de acordo?
Não era justo. Alimentou-se com a única intenção de evitar que seguisse crescendo aquele desejo incontido por ela. E estava convencido de que controlava perfeitamente a situação quando tinha ido procurá-la ao dormitório.
Mas o desejo havia tornado a assaltá-lo ao lhe pôr os olhos em cima. Aquela condenada sede devia estar fazendo-se cada vez mais forte. Porque nunca havia tornado a reviver o desejo a tal velocidade. Jamais!
E não podia fazer o amor com Shannon. Nem sequer tinha a certeza de não ter sido o responsável pela morte das outras mulheres. Por isso não queria deixar que o que sentia por ela se fizesse mais forte.
Mas que demônios lhe ocorria? Havia muitas outras coisas nas que deveria estar pensando naquele momento. Devia pensar no assassino que espreitava pelas ruas de Arista, na pessoa que podia ter elegido a Shannon como próxima vítima. Se ele não tinha matado aquelas duas mulheres, tinha que averiguar quem era o assassino antes que continuasse matando.
E estava também a misteriosa enfermidade de Shannon. Sabia que podia encontrar informação sobre ela nos relatórios da CIA, mas ainda não tinha tido oportunidade de revisá-los. Ou possivelmente fora a culpabilidade o que lhe tinha impedido de fazê-lo. Mas precisava averiguar o que lhe ocorria antes que tudo piorasse.
Shannon cruzou a habitação e se jogou em seus braços, caindo para trás, como se estivesse deprimindo-se. Damien esteve a ponto de deixá-la cair. Não estava suficientemente concentrado. Os tremores de Shannon lhe indicaram que a jovem estava lutando contra um ataque de risada. Um segundo depois, abria os olhos.
—Não sei se poderei fazê-lo sem rir, Damien. É tão dramático.. E eu não sou uma pessoa dramática.
Damien não pôde evitar um sorriso ao ver as faíscas de seus olhos e as covinhas de suas bochechas.
—Não, eu diria que mais que dramática, é irreverente —a levantou de novo e a rodeou com seus braços.
Os aplausos do Netty lhes chegaram da porta.
—É obvio que te parece absurdo, Shannon, indo a jeans e dançando no meio do salão. Mas será muito distinto quando estiver adequadamente vestida e a música comece a encher seus ouvidos.
—Você crê?
Netty lhe piscou os olhos um olho.
—OH, eu sei dessas coisas. Atuei com o Teatro de Londres como primeira atriz.
Damien a olhou com o cenho franzido.
—Nunca me tinha contado isso, Netty.
—Nunca me perguntou —replicou isso ela. Olhou a Shannon—. Sempre foi tão frio que estava começando a me perguntar se haveria algum coração nesse enorme peito. Mas desde que vieste a esta casa...
Damien abriu a boca para lhe dizer a Netty que se estava passando do limite, mas ela o cortou antes de que tivesse podido pronunciar uma só palavra.
—Agora tenho que ir se quero chegar ao teatro a tempo de ver a estréia de Shannon. Quer algo mais?
Damien negou com a cabeça.
—Obrigado pela roupa, pela comida e por tudo o que tem feito por mim.
—Lhe agradeceu Shannon.
—De nada, moça. Você recorda a uma órfã que necessita os cuidados de uma mãe. Assim que gosta de mimar você um pouco.
Shannon arregalou os olhos, mas Netty já se estava dirigindo para a porta. Olhou ao Damien completamente aniquilada.
—O que te passa? —perguntou Damien.
—O que há dito... —pestanejou e sacudiu a cabeça— Não importa, suponho que é uma coincidência.
Pouco depois, estava atirando nervosa da parte de acima do biquíni e ajustando o nó da canga. Roxy, a ajudante de Damien, não tinha visto muita graça à mudança. De fato, quase lhe tinha dado uma síncope ao inteirar-se. Damien tinha estado inventando desculpas até que, farta de escutá-los, Shannon se havia interposto entre eles.
—Olhe, sou detetive privado e como te ocorra dizer-lhe a alguém, asseguro-te que te arrependerá de havê-lo feito. Vou substituir você porque as ajudantes do Damien correm perigo de terminar convertendo-se nas vítimas de um louco. E como o diga a alguém, destroçarei-te a mandíbula. Alguma pergunta?
Roxy se tinha ficado olhando fixamente a Shannon durante longo momento. Ao final se virar de novo para o Damien.
—Espero que seja verdade, Namtar, porque tenho um contrato.
—Seguirei-te pagando todas as atuações.
Roxy tinha fulminado Shannon com o olhar e partiu.
Shannon suspirou, tentando esquecer aquela desagradável discussão e concentrar-se nos movimentos de Damien enquanto estava em cena. Esforçava-se em lembrar-se de tudo o que lhe havia dito. Tinha que manter a cabeça alta e uma postura elegante e confiada.
Quando Damien lhe fez um gesto com a cabeça, Shannon posou as mãos sobre uma mesa com rodas e a levou a cena. Damien a apresentou como Shannon, «sua encantadora ajudante». Shannon se inclinou para o público tal e como Damien lhe tinha indicado que luzisse e a jovem se surpreendeu para ouvi-los aplaudir com entusiasmo. Quando terminou aquele truque e Damien lhe beijou a mão, Shannon se abanou e piscou um olho. Ao parecer, o gesto adorou ao público, porque aplaudiu grosseiramente enquanto Shannon saía com o carrinho de cena. Era o último que Shannon se esperava e o encontrou divertido. Podia paquerar com o Damien tudo o que quisesse e ele o considerariam parte de sua atuação.
Estava incrível e o público a adorava. Mas quando a névoa começou a serpentear entre suas pernas e a música anunciou o final, Damien olhou para os bastidores, onde Shannon o esperava, e viu que tinha desaparecido o brilho de seu olhar. Alargou uma mão para ela e Shannon foi girando para ele enquanto aumentava o volume da música. Damien tomou a mão e ela se deteve de cara ao público, como tinham ensaiado.
Damien lhe pôs então um dedo no queixo e lhe fez voltar o rosto para ele. Depois, sacudiu a mão ante seus olhos. Shannon trocou de expressão, como se acabasse de entrar em transe. Damien deslizou então uma mão por sua cintura e, com a outra, fez-lhe jogar a cabeça para trás e se inclinou sobre ela. Tomou ar, baixou a cabeça para seu pescoço, entreabriu os lábios e os posou sobre sua pele.
E o desejo voltou a cobrar vida.
Supunha-se que não tinha que ocorrer. Tinha repetido aquela atuação centenas de vezes, e em algumas ocasiões em épocas de intenso desejo, mas jamais havia sentido a tentação de converter aquela ficção em realidade. Aquele dia, entretanto, estava satisfeito. Alimentou-se a noite anterior com intenção de satisfazer seu desejo.
Mas a pele de Shannon era como cetim contra seus lábios. Beijou-lhe o pescoço e deslizou por ele a língua, incapaz de conter-se. Sentiu-a estremecer-se e a ouviu sussurrar seu nome. O suave palpitar de seu pulso parecia amplificar-se em seus ouvidos. Podia sentir o fluxo do sangue correndo sob sua pele. Apertou ligeiramente os dentes e ouviu o ofego surpreso de Shannon.
Esta inclinou há cabeça um pouco mais e a pressão dos lábios de Damien aumentou. Damien começou a tremer. O desejo o envolvia e o suor empapava seu rosto.
Com um profundo gemido, soltou-a e a deixou bruscamente no chão.
O público rugiu. Damien se voltou piscando para ele. Durante uns instantes, esqueceu-se de sua existência.
Shannon permanecia tombada, muito quieta, mas com a respiração agitada. Damien desviou o olhar e, sem esperar a que caísse o pano de fundo, cobriu-se com a capa e girou.
Foi um corvo o que emergiu aquela noite de entre suas dobras. Sobrevoou ao público, retornou a cena e o pano de fundo caiu acompanhado do estrondo dos aplausos.
Sim, a coisa ia bem, observou Anthar. Estava convencido de que Damien estava tão absorto em seu ajudante que nem sequer tinha detectado a presença de outro ancião entre o público. É obvio, nunca o faria. Anthar era único para ocultar sua presença. Damien tampouco tinha detectado sua presença aquela noite. O muito estúpido se apaixonou por aquela garota e era óbvio que tinha tido que batalhar consigo mesmo para evitar ceder ao desejo de saciar com ela sua sede. De modo que só era questão de tempo. Assim que Damien decidisse levar-se a aquela beleza à cama e bebesse dela. Anthar saberia. E então atuaria.
Não lhe custaria nada terminar o trabalho, sangrando-a por completo. Deixaria-a na cama em que Damien se teria deitado com ela e deixaria que o muito canalha a encontrasse ali e pensasse que a tinha matado. Que acreditasse que tinha matado à única mulher a que tinha amado. Ah, que tortura que dor experimentaria então! E então, que outrora fora um grande rei, acabaria com sua própria vida. Gilgamesh o Grande deixaria de existir.
Anthar se esfregou as mãos com regozijo e abandonou o teatro.
—É realmente assombroso, Damien —lhe comentou Shannon no camarim—Lhe adoram. Escuta-os...
Damien tentava assimilar suas palavras sem emprestar atenção ao tom de sua voz. À carícia erótica que aquele tom representava para seus ouvidos.
«Te concentre em outra coisa, idiota. No que seja. No público, te concentre no público».
Abriu sua mente, esperando que as sensações dos outros apagassem as provocadas por Shannon. Sentiu sua adoração, seu amor. Com isso deveria lhe bastar. Aquele era o único sentimento, a única conexão com a vida que se permitiu. Mas de repente, elevou a cabeça bruscamente e apertou os dentes.
Havia outro como ele entre o público. Outro vampiro. Deus, ele mesmo tinha tentado explicar-se daquela maneira os assassinatos, mas no fundo não tinha chegado a acreditar-lhe de tudo. Havia uma parte de si mesmo que continuava pensando que tinha sido o assassino. E, entretanto, aquela noite, havia entre o público outro vampiro.
E o muito canalha se estava aproximando.
Damien se levantou de um salto justo quando se abria a porta do camarim. Agarrou a Shannon do braço e a empurrou para que permanecesse atrás dele.
Apareceu um homem no marco da porta e ficou olhando fixamente Damien. Tinha os olhos negros e o cabelo de cor azeviche, como Damien. Sorriu ligeiramente e assentiu enquanto olhava Shannon.
—Desfrutei muito de sua atuação —disse em um tom ligeiramente afrancesado—.Tem você muito talento, senhorita Mallory...
—Obrigado.
—Não fale com ele, nem sequer o olhe —disse Damien com uma fúria surpreendente.
—Não tem nenhum motivo para te mostrar hostil, Damien. Só vim a falar contigo.
—Nesse caso, falaremos a sós.
—Asseguro-te que serei discreto, se for isso o que preocupa você—sacudiu ligeiramente a cabeça—. Possivelmente não tenha sido uma boa idéia. Mas como te negava a responder a minhas cartas, pensei vir a verte atuar e tentar te convencer em pessoa —disse um passo adiante.
—Que cartas? Do que está falando?
Shannon se liberou de sua mão, agradecendo aquele momento de distração, e o olhou de esguelha.
—Meu deus. Jamais tinha visto você se comportar de uma forma tão grosseira, o que ocorre?
Enquanto falava, tendeu-lhe a mão ao desconhecido e este tomou e a levou aos lábios. Damien agarrou a Shannon da outra mão e atirou dela.
—Será melhor que se tombe senhorita Mallory. Não se encontra bem.
Damien a olhou e reparou pela primeira vez na palidez de seu rosto. Fechou os dedos ao redor de sei pulso e advertiu a rapidez de seu pulso. Além disso, estava começando a tremer.
—Estou bem, só um pouco cansada.
O recém-chegado procurou o olhar de Damien e sacudiu a cabeça de maneira quase imperceptível.
—Eu gostaria de ir a casa —disse Shannon—. Este teatro está gelado. Possivelmente Damien e você possam falar ali, senhor...
—Marquand —respondeu brandamente—. Eric Marquand, e acredito que seria uma idéia maravilhosa.
—Marquand —repetiu Damien.
Fechou os olhos ao dar-se conta de seu engano, mas imediatamente se perguntou quanto tempo levaria aquele Marquand na cidade. O suficiente para ter cometido esses assassinatos?
«Deixa de fazer o parvo, Damien, e te leve a essa mulher a algum lugar no que possa descansar. Está a ponto de deprimir-se, não te dá conta?».
Aquela voz chegou a sua mente tão claramente como se aquele homem lhe tivesse falado e o pilhou completamente por surpresa. Damien nunca tinha utilizado a telepatia, exceto para convencer a suas vítimas de que sua visita tinha sido um sonho.
Olhou a Shannon outra vez e naquela ocasião, sintonizou sua mente com a sua. Sentiu seu enjôo e o desequilíbrio entre o calor que fazia arder sua cabeça e o frio que lhe gelava os ossos. Estava a ponto de sofrer outro ataque!
—Shannon?
—Estou... Estou bem.
Mas arrastava as palavras e sua pele começava a arder sob sua mão. Damien a levantou em braços e passou por diante do desconhecido. Já teria tempo de responder a suas perguntas mais tarde. De momento, quão único importava era que Shannon superasse aquele ataque. Maldita fora, por que não teria encontrado um momento para ler seus relatórios? Por que?
Assim que saiu do carro, começou a correr para a porta de sua casa com Shannon nos braços... E ficou gelado ao ver que o homem estava ali, esperando-o. Ao parecer, Eric Marquand era capaz de mover-se a mais velocidade que ele com o carro.
O homem fez um gesto e abriu a porta.
Damien entrou em grandes pernadas, dirigiu-se diretamente ao salão circular e deixou Shannon no sofá. Eric Marquand ia atrás dele e Damien se voltou furioso.
—Sal imediatamente daqui!
—Quer que a ajude ou não?
Tinha uma voz suave, serena. Damien tentou lhe ler os pensamentos e não encontrou neles nenhum indício de maldade.
—Pode ajudá-la?
—Não estou seguro.
—Se lhe fizer algum dano, matarei-te.
—Para ser um de nós, tem muito pouca informação sobre os de nossa espécie, verdade? Jamais machucaria a um dos Escolhidos. Nenhum de nós pode fazer-lhe. Pelo menos ninguém dos que eu conheço —olhou para o sofá, onde Shannon estava tremendo violentamente—. Necessitamos mantas. E acende o fogo.
Damien o olhou com o cenho franzido. Pela informação que tinha daquele desconhecido, bem podia ser o assassino. Não pensava deixar Shannon a sós com ele nem um segundo solo.
—Encontrará mantas no armário que há ao final das escadas.
Marquand assentiu e começou a subir. Damien se concentrou na chaminé e os lenhos começaram a arder como tochas.
Passou uma hora até que Shannon se tranqüilizou e ficou dormindo. Ao final, o vampiro mais jovem resultou ser de grande ajuda; deu-lhe uma beberagem que preparou para aliviar a dor e conseguiu lhe baixar a febre.
Naquele momento, caminhava frente à chaminé com aspecto sombrio.
—Por que vieste? —perguntou-lhe Damien ao fim.
—Se tivesse lido minhas cartas, saberia. Sou uma espécie de cientista —olhou a Shannon e sacudiu a cabeça lentamente—. Me advertiram que poderia ser perigoso aproximar-me de ti, mas tenho muitas perguntas que fazer você e espero que possa as responder.
—Não há nada mais?
—Só vim para ver seu espetáculo, Damien. Ouvi contar coisas formidáveis sobre você e minha curiosidade venceu a minha prudência. Depois, quando hei sentido este problema, não pude deixar de ajudar —inclinou a cabeça e olhou para Shannon—. Nunca tinha visto um tão loiro. A maioria deles são morenos, como nós —girou a cabeça—. Mas não tem por que se pôr ciumento, amigo. Eu tenho já uma companheira, não desejo seduzir à tua.
—Não é minha companheira, como você tão curiosamente a há descrito.
Marquand apertou os lábios.
—O que vais fazer?
—O que indicar que posso fazer? Já viu quão doente está, mas se nega a ir a um hospital. Diabos, nem sequer sei o que ocorre.
Eric o olhou com expressão de incredulidade.
—Não tinha conhecido alguma vez a um Eleito?
—É obvio que não! Maldito seja Marquand, indicar que eu gosto deste compromisso? Esta feral necessidade de cuidá-la e protegê-la?
—Tem muito que aprender, meu amigo —respondeu Eric com uma calma inalterável.
—Não me chame assim. Eu não tenho amigos. Não quero ter amigos.
—Como você queira. Mesmo assim, tem muito que aprender. Sobre ela, por exemplo. Quantos anos têm, por certo?
—Quase seis mil. Já vê, comparado comigo, é uma menina.
—E onde apareceu pela primeira vez?
—A que vem tanta curiosidade?
—Não sei, passei-me toda minha existência me fazendo perguntas e procurando respostas, experimentando.
—E eu passei a meu completamente isolado, salvo pelas atuações. Não procuro nenhuma classe de intimidade com ninguém —olhou a Shannon—. Esta noite tinha que vir ao teatro. Mas temo que possa estar morrendo.
—Nenhum dos Escolhidos vive mais de quarenta anos. Agora pelo menos sabemos e a medicina em que estive trabalhando lhes ajuda a aliviar os problemas de seu final.
O olhar do Damien voltava inexoravelmente para Shannon. A única cor que via em seu rosto era o rubor de suas bochechas provocado pela febre.
—Eu... Não sabia.
—De acordo, minhas perguntas podem esperar. É evidente que as tuas são mais importantes neste momento. Como te hei dito Damien, sou cientista. E a crua verdade é que esses sintomas são os que experimentam Os Escolhidos quando estão perto da morte. Em realidade Shannon é mais jovem que a maioria. Mas também suas características físicas são únicas. Estou seguro de que, a menos que seja transformada, morrerá.
Damien tragou saliva e lutou contra as lágrimas que apareciam em seus olhos. Queria gritar, amaldiçoar aos deuses.
—Quanto tempo fica?
—Com quanta freqüência está sofrendo esses ataques?
—Este é o segundo em uma semana.
—Então fica pouco tempo. Uns dias, possivelmente menos. Sofrerá outro ataque, entrará em coma e não voltará a despertar. Não se pode fazer nada. A medicação a ajudará a estar relativamente cômoda —deu um passo adiante e posou a mão no ombro de Damien—. O sinto, Damien. Mas não sofrerá, prometo-lhe isso.
Damien escapou de sua mão e caminhou lentamente para ela. Ajoelhou-se ao lado do sofá e tomou sua mão.
—Não posso suportar isto outra vez. Não posso vê-la morrer.
—Damien, há poucos mortais no mundo emocionalmente capazes de viver como nós o fazemos. Não é uma opção que possa tomar-se à ligeira.
—A alternativa é deixá-la morrer.
—E ela o quereria? Conhece sequer a outra possibilidade?
Damien não respondeu. Deixou que seus olhos vagassem pela deliciosa estrutura de seu rosto. Não poderia suportar que lhe arrebatassem a vida à pessoa mais vital que tinha conhecido nunca.
—Esta vez não morrerá, Damien. Recuperará-se. Terá tempo para explicar-lhe para lhe dar uma opção. Tem que ser uma decisão que ela tome —sacudiu a cabeça lentamente—.E terá que tomá-la logo.
—Me diga uma coisa, Marquand. Acredito que já sei, mas diga-me a de todas maneiras.
—O que você queira.
—Você matou a duas mulheres em Arista?
—Tem razão, já conhece a resposta. Eu não as matei, Damien.
Damien deixou cair a mão, levantou-se e se voltou para o Eric.
—Não, sei que você não o fez. Então... Já não fica nada que fazer.
—Por quê?
—Não tem nem idéia, verdade? Não, é obvio que não. É muito jovem, muito inocente. De onde obtém o alimento, Marquand? De animais?
—De bancos de sangue —olhou ao Damien com o cenho franzido—. Que importância pode ter isso?
Damien apertou os dentes, baixou a cabeça e se levou a mão aos olhos.
—Maldita seja, a fome se faz mais forte, mais poderosa com a idade. Converte-se em algo impossível de resistir. E só se acalma com o sangue de um ser vivo. Não posso vê-la morrer, Marquand, mas tampouco posso condenar a viver assim —elevou a cabeça e tirou o chapéu enfrentando-se à diminuta figurinha da Inanna. Levantou o cristal, tomou a figurinha e apertou o punho—. Maldito seja maldito seja o mundo e tudo o que há nele! —apertava o punho com tanta força que a figura começou a pulverizar-se entre seus dedos.
Marquand deu um passo adiante.
—Te tranqüilize, Damien. Tem que me explicar isto. Por favor, embora só seja pelo bem do Shannon. Está dizendo que... Tiveste que matar?
Damien lançou os restos da miniatura ao fogo.
—Não, acredito que não —pensou nas duas mulheres assassinadas e na possibilidade de que ele fora o responsável por suas mortes, mas não queria lhe transmitir seu temor a aquele desconhecido.
—Não me precisa dizer isso Damien. Ouvi-te claramente.
—Maldito seja, sai de minha cabeça!
Não estava absolutamente acostumado a estar perto de outros capazes de lhe ler o pensamento. Ele era um professor em proteger sua mente dos pensamentos e os sentimentos de outros, mas nunca tinha tido necessidade de proteger seus próprios pensamentos.
—Não importa —disse Eric. —Isso é fácil de aprender. Eu te ajudarei. Agora me diga, quando começou a fazer-se tão forte essa necessidade? A que idade se faz necessário consumir sangue de um ser vivo? Só o pergunto por que quero te ajudar.
—Ninguém pode me ajudar.
—Maldito seja, Damien. Não seja tão... Enkidu? Esse é o nome que acaba de...?
Damien se voltou para ele.
—Sai de minha cabeça imediatamente se não quiser terminar convertido em uma bola de fogo.
Para sua surpresa, Eric sorriu ante aquela ameaça.
—Rhiannon me comentou que podia fazê-lo, mas não sabia se acreditá-la.
—Quem demônios é Rhiannon?
—Rhianikki, princesa do Egito. É três mil anos mais jovem que você. E até agora, era a vampiresa mais velha que conhecia. Mas jamais sentou o que você diz. De vez em quando bebe sangue de um ser vivo, mas só porque desfruta tirando o Roland de gonzo. Por isso te perguntei quando começa a ser tão insuperável essa sede.
Damien baixou lentamente o olhar. Roland. Recordava aquele nome. Tinha ajudado a aquele vampiro dois anos atrás. Ao pobre tipo o tinham drogado e o tinham deixado ao sol. E Damien tinha ido resgatar -lo, apesar de seus votos de manter-se sempre isolado.
—Damien?
—Certamente, faz mais de trinta séculos —escrutinou o rosto do Eric.
—Vê-o? Se a ela não a afetou, tem que haver alguma razão. Algo ao que ela tenha estado exposta e você não. Talvez podemos averiguar o que é.
—O que quer de mim, Marquand? —perguntou com receio.
—Só quero falar contigo, que me conte isso tudo. Quero saber se for certo que pode trocar de forma e que conseguiste voar. Quero saber como faz todas essas coisas. Quero...
—E em troca, você encontrará a resposta para minha sede insaciável —deu meia volta e se deixou cair em uma poltrona—. A situação piorou desde que conheço Shannon. Basta-me cheirá-la para me voltar louco.
Eric soltou uma gargalhada.
—Bom, esse não é exatamente o mesmo tipo de sede... Damien. Eu sentia o mesmo cada vez que olhava a Támara. Sabe que para nós, o desejo sexual e a sede de sangue se mesclam e é impossível distinguir um do outro.
Damien arqueou as sobrancelhas e estudou de novo a aquele homem. Realmente, eram muitas as coisas que sabia.
—É certo —disse Eric—.E essa classe de necessidade frenética piora quando o objeto de seu apetite é a mulher a que amas.
—Eu não a amo! —bramou Damien, levantando-se de um salto—. De acordo, estou disposto a te contar tudo o que quer saber, mas não acredito que possa encontrar uma solução para meu problema, assim terá que me oferecer outra coisa em troca —voltou a sentar-se.
—Me diga o que quer.
—Necessito que me ajude a averiguar a verdade sobre a morte dessas duas mulheres. Necessito toda a ajuda que possa me oferecer. E se ao final resulta que... Resulta que fui eu o que as matei... Então quero que me destrua.
Damien não queria acreditar o que Eric Marquand lhe dizia, que Shannon estava morrendo, que não podia fazer nada para salvar sua vida mortal. Mas enquanto permanecia sentado ao lado da cama a que a tinha transladado e revisava os relatórios que a CIA tinha sobre Shannon, encontrou a confirmação ao que Eric lhe havia dito. Os relatórios médicos eram concludentes. Os glóbulos vermelhos de seu sangue pareciam estar desaparecendo de maneira inexplicável. As transfusões não serviam de nada; os glóbulos novos morriam logo que lhe eram transferidos. E, em qualquer caso, tinha um tipo sangüíneo tão estranho que teria resultado impossível lhe proporcionar um tratamento.
Era aquele antígeno, a beladona. Eric lhe tinha falado dele. Os Escolhido eram humanos com esse antígeno no sangue e eram os únicos mortais geneticamente suscetíveis de ser transformados. Todos os imortais haviam possuído aquele estranho tipo sangüíneo quando eram mortais.
O resto de seus rasgos não podiam ser explicados de maneira tão fácil. Mas exsudavam algo que alertava aos vampiros de sua presença e os compelia a vigiá-los e protegê-los. A hipótese do Marquand era que se tratava de uma espécie de reação química.
Mas enquanto Damien contemplava o rosto pálido de Shannon, sabia que o que sentia por ela não estava só induzido pela química. E tinha que encontrar a maneira de salvá-la.
Os relatórios sobre Shannon diziam que tinha sido abandonada por sua mãe. Tinha passado a infância sendo transladada de uma agência a outra. Aos dezesseis anos, tinha chegado ao último de seus lares de acolhida e nele tinha conhecido a Tawny. E poucos meses depois, as duas garotas tinham desaparecido. Tempo depois seu pai de acolhida tinha sido condenado por abuso de menores. Aos poucos meses, havia-se suicidado.
O muito canalha. Se não tivesse morrido já, o próprio Damien teria acabado com ele.
—O que os? —perguntou Shannon de repente.
Damien deixou os documentos a um lado e se inclinou sobre a cama. Damien tomou a mão; o impulso inicial foi leva a mão de Shannon aos lábios, mas ao final, voltou a deixar-lhe sobre a cama.
—Como te encontra?
—Melhor, a verdade é que bastante bem.
Mas não era certo. Estava-lhe mentindo. Shannon estava morrendo e sabia. Tinha-o sabido desde fazia tempo. Damien experimentou uma incrível sensação de alívio ao ver que a cor retornava a sua pele, mas não se permitiu mostrar esse alívio. Shannon não se sentia cômoda com ele; nem com sua preocupação. E lhe ocorreu pensar então que Shannon não queria que a quisesse. Nunca o tinha querido. E naquele momento, compreendia por que.
Levantou-se o tempo que tentava combater o nó que tinha na garganta. Shannon não tinha forma de saber que ele era consciente de seu estado. Tirou-lhe os lençóis e lhe estendeu a mão.
—Vamos, te levante. Tem idéia de quanto tempo leva dormindo? Toda a noite e todo o dia. Já é de noite outra vez e Netty se nega a ir sem estar segura de que você encontra se melhor. Vamos ao piso de abaixo ou nunca nos desfaremos dela.
Shannon pareceu vacilar. Mas de repente, sorriu e deslizou a mão entre a sua. Damien a estreitou com força.
—Está o bastante forte para andar? Quer que leve você nos braços?
Antes que tivesse podido responder, a porta do dormitório se abriu de par em par. Apareceu Netty no marco da porta, olhou Shannon e cruzou correndo a habitação para envolvê-la em um abraço.
Soltou-há um instante para voltar-se para Damien.
—Fora daqui. Shannon precisa dar um banho, trocar-se de roupa e tomar um chá. Te vais pôr bem, criança. Netty se assegurará de que ponha bem —Shannon olhou Damien aos olhos e este sentiu o calor de sua mensagem.
—Agora vá-se —insistiu Netty—, Seu amigo, o senhor Marquand, está esperando-o no piso de abaixo. Levarei-lhe Shannon quando estiver preparada.
Damien reuniu os documentos que tinha estado lendo e abandonou a habitação.
Enquanto se banhava e vestia, e deixava que Netty lhe escovasse o cabelo, a idéia não deixava de lhe devorar as vísceras. Damien deveria saber a verdade.
Já tinha suportado a agonia de perder a um amigo; tinha conseguido sobreviver a uma perda que poderia havê-lo traumatizado. O que ocorreria se a história voltava a repetir-se? A única solução possível era lhe dizer a verdade antes que chegasse a apreciá-la muito.
Netty a ajudou a baixar as escadas e a deixou, não sem antes lhe desejar boa noite. Shannon se dirigiu então para a biblioteca com o coração destroçado. Deus, quanto gostaria de desfrutar de uma só noite com o Damien, explorar aquela atração que parecia emanar dele para ela, descobrir os segredos da paixão. Mas seria injusto para o Damien. Não podia permitir o luxo de aproximar-se mais a ele, nem física nem emocionalmente. Tinha que lhe advertir quanto antes de seu sombrio futuro e partir.
Shannon se deteve na porta da biblioteca, surpreendida ao ver os dois homens com a cabeça inclinada sobre a mesa. Damien elevou o olhar, viu-a e se levantou de um salto. Em menos de um segundo, tinha cruzado a habitação e, por um instante, Shannon teve a convicção de que ia envolvê-la em um abraço e a estreitá-la com força contra seu peito.
Mas sua fantasia morreu assim que Damien chegou frente a ela e posou as mãos sobre seus ombros como se queria impedir que caísse. Estava-a tocando, sim, mas era um contato completamente impessoal; uma questão de cortesia mais que de paixão. E como Shannon estava disposta a manter as distâncias, supunha que deveria lhe estar agradecida.
—Não deveria estar levantada, Shannon. Precisa descansar —começou a dizer Damien.
—Já terei tempo para descansar mais adiante. Agora me encontro bem —olhou por cima de Damien e advertiu que seu acompanhante era o homem ao que havia visto justo antes de deprimir-se—. Olá outra vez, temo-me que não me lembro de...
—Marquand, Eric para você. Tem muito melhor aspecto que a última vez que te vi —se levantou enquanto falava—Me alegro de que te encontre melhor.
—Obrigado —Shannon olhou para o escritório e, ao ver os documentos que repousavam sobre ele, franziu o cenho e correu até eles—, DIP? Então a Divisão de Investigações Paranormais é real?
—É uma subdivisão da CIA e acredito que o senhor Bachman trabalha para ela —respondeu Eric sombrio.
—Investigações Paranormais? Nisso se gastam o dinheiro de meus impostos? Mas se eu pensava que esse tipo estava completamente louco e...
—Tudo isto é um punhado de sandices, Shannon —Damien deu um passo adiante, empilhou perfeitamente os documentos e os guardou em uma das gavetas do escritório.
—Mas por que lhe estão investigando você? Ou a mim, pelo amor de Deus?
Nenhum dos homens dizia nada, embora Shannon aguardasse na espectativa. Então recordou as perguntas que Bachman lhe tinha feito. Estava interessado no assassinato de Tawny. Ficou-se com seu cadáver. Havia...
—O que me está dizendo é que o que há nos documentos de Bachman é certo, que não são só as divagações de um lunático. Essa agência crie realmente nos vampiros. E não só isso, mas também pensa que um deles anda solto por Arista.
—Sim, assim é —respondeu Eric.
Shannon se voltou para Damien.
—E acreditam que é você, verdade?
—Utilizam os recursos do governo para investigar fenômenos paranormais —lhe explicou Damien com calma, ao tempo que dirigia a Eric um olhar com a que poderia ter murchado um ramo de rosas frescas—. Suponho que seu principal objetivo é descobrir a possíveis enganadores, Shannon. Talvez seja capaz de averiguar de que maneira conseguiram que a morte de Tawny parecesse obra de um vampiro.
—Está seguro de que isso é tudo? —Shannon procurou o olhar de Eric, mas este a desviou—. Porque Damien, se a opinião de Bachman é representativa da do resto da agência, essa gente está falando muito a sério e sua imagem poderia terminar pelos chãos. Mas possivelmente poderia arrumá-lo. Organiza uma roda da imprensa à luz do dia, lhes ofereça provas, análise de sangue, o que seja... —interrompeu-se em meio de sua peroração e olhou alternativamente aos dois homens—. O que lhes passa? Por que me olham assim?
—Agora tenho que ir —disse Eric brandamente; dirigiu ao Damien um olhar que parecia carregada de mensagens.
—Eric, em qualquer caso, por que está envolto você em tudo isto?
Eric lhe sorriu.
—Tive alguns encontros com a DIP em ocasiões anteriores e pensei que poderia lhes servir de ajuda —se voltou, despediu-se de Damien com um assentimento de cabeça e partiu.
Shannon o observou partir com expressão de desconcerto. Que demônios estava ocorrendo entre aqueles dois homens? Era evidente que sabiam algo que lhe ocultavam. Voltou-se para Damien e, ao advertir a ansiedade de sua expressão, suspirou. Damien estava preocupado por ela.
—Nós né... acredito que temos que falar.
Damien assentiu, mas não parecia muito disposto a manter uma conversação de coração a coração.
—Eu gostaria de saber o que esteve acontecendo aqui embaixo.
—Estivemos falando do assassinato. Eric quer nos ajudar a chegar ao fundo deste assunto.
—E também estavam falando de Bachman e da DIP. Como pensa você enfrentar a eles, Damien?
—Ainda não o decidi, mas, certamente, não penso estragar uma imagem que me levou anos aperfeiçoar.
—Damien, se esse homem acreditar que é um vampiro, terá que fazer algo.
—Não, não penso fazer nada.
Shannon entrecerro os olhos, deu um passo adiante, inclinou-se sobre a escrivaninha e o olhou aos olhos.
—Está-me ocultando algo, não o negue, vejo-o em seus olhos. O que é Damien?
—Nada do que tenha que preocupar-se, Shannon.
—Se for algo que tem que ver com o assassinato de Tawny, preocupa-me —sacudiu a cabeça zangada e começou a caminhar, afastando-se dele—. Não o compreende, Damien? Vivo para apanhar a esse tipo. Não há nada mais importante para mim. Nada.
Quando se voltou para olhá-lo outra vez e viu a intensidade de seu olhar, esteve a ponto de corrigir-se.
Havia algo que estava começando a ser mais importante inclusive que seu desejo de vingança. Ele.
—E o encontraremos.
—Como?
—Já pusemos as engrenagens em movimento ao te fazer aparecer comigo a outra noite. Tenha paciência. Dê-me um pouco de tempo.
—Não posso ter paciência, e não tenho tempo — Damien fechou os olhos com força para ouvir suas palavras—. Já só fica uma função, Damien, e se ele não faz nenhum movimento, nunca saberemos quem é.
—Averiguaremo-lo —insistiu Damien.
Shannon elevou os olhos ao céu e sacudiu a cabeça; estava farta daquelas ambigüidades. Damien a agarrou então pelos ombros.
—Tenho uma surpresa para ti. Por que não se esquece de tudo isto um momento? Estiveste doente, precisa te relaxar.
—Uma surpresa?
Damien assentiu, agarrou-a pela mão e lhe fez abandonar a biblioteca e cruzar o salão circular até chegar à porta da rua. Abriu-a de par em par e assinalou para fora com um gesto triunfal.
—Voilá.
O Stingray do Shannon resplandecia sob uma flamejante capa de pintura vermelha. Inclusive as rodas pareciam novas.
—Esse é... Meu carro?
Damien atirou dela para lhe fazer baixar os degraus da entrada. O vento de outubro açoitava seu cabelo negro de uma forma que fez desejar ao Shannon afundar seus dedos nele. Damien se deteve o lado do carro, abriu a porta do condutor e correu depois ao outro lado para abrir a de passageiros.
—Vamos, entra. Aqui fora faz muito frio.
Shannon se tinha ficado sem fala. Sentou-se atras do volante, alargou a mão para a chave de ignição e se deteve com os olhos arregalados.
—O que é isso? —olhou ao Damien de relance.
Este se inclinou para diante e pressionou um botão. O último êxito do Spint Doutor começou a soar do reprodutor dos CDs que acabavam de instalar no carro. Shannon alargou a mão para baixar o volume. Quando voltou a olhar Damien, tirou o chapéu a si mesmo batalhando contra as lágrimas.
—Por quê?
—Queria-o pintar de vermelho e eu tinha dinheiro, por que não?
Era tão considerado, tão doce, que se tinha acordado da história do carro de brinquedo. Inclusive da cor.
—E o reprodutor dos CDs?
—Parecia gostar do meu.
Ninguém tinha tido um gesto tão amável com ela desde que Tawny lhe tinha dado aquele estúpido carro no dia de seu aniversário. Ela não queria que Damien a quisesse maldita fora... Mas Deus, sentia-se tão bem sabendo que a queria... Era algo bom, e triste, e terrível ao mesmo tempo.
Alargou a mão para seu rosto. Os olhos de Damien se obscureceram. Shannon logo que era capaz de suportar seu olhar através do véu das lágrimas. Ao Damien tremeram ligeiramente os lábios. E então se voltou.
—Não tem importância, Shannon. Vamos, ponha o carro em marcha —alargou a mão para subir o volume da música.
Shannon se mordeu o lábio e acendeu o motor.
Shannon tirou o CD de Doctors e pôs um do Sting. Damien tinha metido uma caixa cheia dos CDs no porta-luvas. Aquele homem era uma caixa de surpresas. Shannon se sentia como se fora uma espécie de deliciosa tortura o que tivesse feito algo tão maravilhoso por ela. Não estava segura de se lhe doía ou a fazia sentir-se bem. Tampouco sabia se rir ou chorar, se estar jubilosa ou deprimida. E experimentar aqueles sentimentos lhe resultava exaustivo.
Quão único sabia era que o diminuto interior do carro os obrigava a estar mais perto e que as palavras carregadas de sentimentos que fluíam dos alto-falantes enchiam o pouco espaço que ficava entre eles.
Enquanto conduzia através daquela fria noite de outono, se via mais atenta ao Damien que na estrada. De seu rosto de feições fortes e daqueles lábios tão sensuais que pareciam uma fruta amadurecida pronta para ser devorada.
Damien posou a mão sobre o volante para girar à esquerda. Shannon fixou o olhar na estrada, mas sabia que não seria capaz de retê-la ali durante muito tempo. Tomou uma intercessão e conduziu de volta para a casa.
Se havia algo que realmente desejava antes de morrer, era fazer amor com aquele homem. O único problema era que dessa forma poderia terminar lhe fazendo sofrer. Com o profundamente que Damien sentia as coisas, poderia terminar destroçando-o. E pensar que tinha chegado a acreditar que ele podia ter sido um assassino... Deus, tinha uma confusão de sentimentos absoluta.
Assim que o melhor seria que se concentrasse no mais importante de seus objetivos: encontrar ao assassino.
—Sabe? Não vai fazer nunca um movimento contra mim enquanto esteja contigo.
Shannon olhou ao Damien enquanto o dizia. Este pestanejou como se acabasse de tirar o de algum pensamento profundo.
—O que?
—Nosso assassino. Não é provável que me ataque estando você comigo e sabe.
—Possivelmente eu não tenha tanta pressa como você por ver como te assassina.
—Eu tenho pressa por apanhá-lo.
—Não penso deixar que vá sozinha e com um alvo na testa.
—Então quer que escape? Porque isso é o que vai passar, Damien.
—Já nos ocorrerá algo.
—Com isso não basta —Shannon girou lentamente para o caminho da casa e Damien utilizou um mando que tirou do bolso para abrir a porta por controle remoto.
—Depois da seguinte apresentação...
—A última apresentação.
—Exato, quando tudo termine, poderíamos organizar algo. Lhe fazer acreditar que está sozinha sem que realmente o esteja e tentar apanhá-lo.
—Não quero esperar tanto tempo —principalmente, porque duvidava de que Damien estivesse disposto a levar adiante aquele plano.
—Shannon, é muito arriscado. Esse deveria ser o último recurso. Com um pouco de sorte, mostrará a si mesmo antes que tenhamos que nos arriscar.
Shannon apagou o motor. Ela tinha suas próprias idéias sobre o que podiam ou não arriscar naquele caso. Para ela, o maior risco era que o assassino escapasse. Ela ia perder a vida de todas as maneiras.
—Está cansada —Damien posou a mão em seu ombro.
—Demônios, Damien, dormi quase trinta e seis horas, como vou estar cansada? —mas não disse que não o estivesse. Estava-o, de fato. Estava esgotada.
—Ainda está pálida.
—Ao melhor esse louco de Bachraan termina pensando que eu também sou um vampiro.
Damien não riu aquela brincadeira. De fato, por um instante pareceu inclusive doído. Shannon abriu a porta do carro.
—Assim não vais deixar me levar a cabo meu plano esta noite —saiu do carro e caminhou para a porta sabendo que Damien ia atrás dela—. Então o que te parece que passemos o resto da noite revisando essas notas que Eric Marquand trouxe sobre você? Todas essas loucuras da DIP —esperou na porta enquanto Damien a abria.
—Isso já o temos feito. E não há nada que possa nos ajudar —fechou a porta e jogou a chave.
Shannon cruzou o vestíbulo e caminhou para aquela habitação circular que estava começando a adorar. Deixou-se cair em um sofá. Damien não queria que revisasse os documentos que Eric lhe tinha entregado. Tinha-os guardado sob chave assim que ela tinha entrado na biblioteca.
—Então podemos ir ver o Bachman a seu hotel e lhe fazer algumas perguntas, o que te parece?
Damien pestanejou rapidamente.
—Amanhã tenho algumas entrevistas, assuntos de trabalho, estarei fora a maior parte do dia.
—OH.
Esperava que sua voz não refletisse sua desilusão. Não gostava de passar todo o dia sozinha... Embora aquilo lhe brindasse a oportunidade perfeita para jogar uma olhada aos documentos que tinha escondido no escritório.
Damien cruzou até a chaminé, jogou um par de lenhas e se sentou no chão, sobre as almofadas.
—Está cansada? Quer descansar um pouco?
—Amanhã terei todo o dia para descansar enquanto está você fora.
—É uma boa idéia.
Shannon se incorporou ligeiramente para sentar-se sobre suas pernas.
—Esse aparelho funciona?
Damien seguiu o curso de seu olhar até um aparelho de televisão.
—Sim, mas não o utilizo muito. Estou acostumado a ver as notícias e vídeos de outros magos. Ajuda-me a descobrir meus próprios defeitos.
—Me acredite, Damien, se tiver algum defeito, é completamente invisível ao olho humano.
Damien há olhou um pouco surpreso. A própria Shannon não podia acreditá-lo que acabava de fazer.
Estava paquerando com ele. Estava sendo uma repugnante egoísta.
—Tenho defeitos, Shannon.
OH, por que seus olhos a atraíam corno se fossem dois ímãs gigantescos? E por que não parecia ter força suficiente para resisti-lo?
—Quais são seus defeitos?
—Sairia correndo se lhe dissesse isso.
Shannon sacudiu com a cabeça e viu admiração nos olhos de Damien quando sua juba voou ao redor de seu rosto.
—É preciso muito para me assustar. Não tenho medo de você.
Damien elevou a mão, que pareceu elevar-se como por arte de magia, e a posou em seu cabelo, vacilante, insegura.
—Talvez me devesse ter isso.
Shannon se balançou para diante. Seu cérebro parecia ter deixado de ter influência sobre as ações de seu corpo. Fechou os olhos, inclinou o rosto e pressionou os lábios de Damien com os seus. Sentiu-os tremer ligeiramente, pareciam a ponto de apartar-se. Então pressionou mais forte, entreabrindo os lábios em um delicado convite.
O suspiro de Damien a encheu. Shannon se embebeu nele enquanto Damien afundava a mão em seu cabelo, posava-a em sua nuca e sustentava seu rosto contra o seu. Abriu os lábios e deslizou a língua entre eles para lamber o interior de sua boca. Shannon a abriu mais para lhe permitir todo o acesso a seu corpo que ele pudesse desejar.
Mas Damien a apartou. Levantou-se e ficou de costas a ela. Passou-se a mão pelo cabelo e inclinou a cabeça enquanto fixava o olhar no fogo. Os tremores que Shannon sentia sacudindo seu corpo eram reflexos da postura inquieta de Damien e de sua respiração agitada.
—Sinto muito, Shannon.
Shannon permaneceu onde estava. Se levantava, jogaria-se em seus braços como uma mulher sedenta de amor.
—Eu não. Jamais me tinham beijado dessa maneira.
—Então, os homens aos que conheceste eram uns estúpidos.
Não a olhava. Shannon sorriu ante aquele completo. Um quente prazer fluiu por suas veias.
—Nunca me importou. Eu não desejava a nenhum deles.
Advertiu que esticava as costas. Não podia ter passado por cima sua insinuação.
Damien se voltou lentamente e a olhou.
—Shannon me acredite, não quer perder o tempo comigo, sobre tudo se não ter estado nunca com nenhum homem. Isso é algo muito precioso como para...
—Pelo menos seja sincero —Shannon se levantou frustrada, zangada e ferida. Voltou-se disposta a partir.
Damien a agarrou por ombro e a obrigou a voltar-se para enfrentar-se a ele.
—Shannon, sinto muito...
—Não o sinta. Sobreviverei —sacudiu a cabeça com dureza, fazendo cair o cabelo sobre seu rosto como se fosse uma cortina—. Jamais acreditei que pudesse chegar a desejar a um homem. É irônico, não te parece? Que quando por fim o faço, esse homem não me deseja.
As mãos de Damien tremeram sobre seus ombros. De repente, estreitou-a contra seu peito e pressionou seus seios contra ele. Cobriu sua boca, apanhou-a e afundou a língua nela para embeber-se e acariciar seu interior. Cada vez mais rápido, mais forte, mais profundamente. Shannon lhe rodeou o pescoço com os braços e afundou os dedos em seu cabelo azeviche ao tempo que acariciava sua língua. Deus tinha um gosto tão bom... Desejava-o tanto que o desejo era como uma força viva em seu interior. Sentiu seus quadris balançando-se contra as suas e se arqueou em resposta contra ele. Sentiu no ventre a pressão de sua ereção, uma pressão dura, forte e insistente.
Um ligeiro tremor a sacudiu, acompanhado de lembranças aos que estranha vez se permitia acessar. Lembranças de outras mãos torpes e grosseiras. E do medo. Damien pareceu advertir sua vacilação, porque elevou a cabeça.
—Shannon?
—Só... Me prometa que não me fará mal.
Damien fechou os olhos e se afastou ligeiramente dela.
—Não te farei mal, Shannon. Jamais. E esse é o motivo pelo que esta loucura não pode continuar.
—Loucura?
Damien a fez voltar-se então para a porta e a urgiu a caminhar até as escadas.
—Vete à cama, descansa. E não te ocorra pensar nem por um instante que não te desejo Shannon. Desejo-te muito.
Shannon se voltou e procurou seu rosto. Não compreendia nada. Damien tinha acendido um fogo em seu sangue e ela queria que ele mesmo o apagasse.
—Vamos, agora —eram palavras duras, pronunciadas com aborrecimento ou desespero.
Shannon correu para as escadas lutando para não chorar antes de chegar ao dormitório. Não queria que Damien advertisse sua frustração. Havia dito que a desejava. Mas se assim fora, teria passado com ela aquela noite. Shannon se tinha humilhado atuando como uma prostituta, oferecendo-se como se fora algo que fizesse cada dia. Damien não tinha forma de saber o quanto havia sido duro abrir-se a ele daquela maneira. Assim que fechou a porta de sua habitação, deslizou-se até o chão enquanto os soluços lhe rasgavam o peito.
O vaso estalou em pedacinhos. Damien esticava e relaxava os punhos lutando contra o desejo que ameaçava devorando. Jamais tinha desejado a ninguém como desejava a Shannon. O desejo lhe destroçava o cérebro, rugia em seus ouvidos como se fora um dragão incendiando sua alma e lhe devorando a mente.
Nem mesmo Inanna poderia ter inspirado uma paixão como aquela.
—Damien?
Damien girou sobre seus pés e descobriu ao Eric Marquand frente a ele.
—Está bem?
—Não, maldita seja, não estou bem. Tenho aspecto de está-lo?
Marquand se voltou como se queria esquentá-las mãos na chaminé, mas Damien suspeitava que o que realmente pretendia era ocultar sua expressão.
—Já te apaixonaste por ela?
—Essa é a pergunta mais estúpida que... É obvio que não. Acha que sou idiota?
—Não, não acredito que seja idiota Damien.
—É desejo físico, nada mais. E é só porque estou passando muito tempo com ela —Damien saiu a grandes pernadas ao vestíbulo e tomou um casaco que tinha pendurado em um cabide—. Preciso andar e tomar um pouco de ar fresco.
—Não é só desejo, Damien —Marquand continuava a seu lado—.E andar não vai servir te de nada.
—Ah, não? E o que é o que poderia me servir? —imprimiu a sua voz o suficiente sarcasmo como para que não passasse despercebido.
—Fazer o amor com Shannon.
Damien ficou completamente quieto de costas para Marquand. Quando falou, sua voz não era mais que um suspiro enrouquecido pela dor e a frustração.
—Não posso fazer isso. Tenho medo de... —não pôde terminar a frase.
—Tem medo de matá-la, sei amigo.
—Hei-te dito que não me chame assim.
—Me continua dizendo isso possivelmente algum dia te faça caso —Marquand vestiu o casaco e se grampeou com calma os botões, um a um—. Damien, eu não acredito que tenha matado a nenhuma dessas mulheres e tampouco acredito que pudesse machucar a Shannon, mas suponho que é melhor que te reprima até que esteja seguro. De momento, iremos dar um passeio, se você acha que isso pode ajudar.
Damien se voltou lentamente, procurou seu rosto e sentiu, pela primeira vez, o vínculo invisível que os unia. Eram irmãos. Marquand queria ajudá-lo a superar aquela tortura infernal. E sabê-lo o comoveu profundamente. Tinha evitado durante tanto tempo aquele tipo de proximidade que não sabia como atuar, o que dizer. Tragou saliva e sacudiu a cabeça.
«Eu isto não o quero, maldito seja. Não quero apreciar a este homem... Nem a Shannon».
—Muito tarde —sussurrou uma voz que não soube de onde tinha saído.
Procederia da mente de Marquand? Voltou-se para ele procurando resposta. Mas Eric se limitou a sorrir vagamente e abriu a porta.
Shannon fingiu dormir quando ouviu a chave de Damien na fechadura justo antes do amanhecer. Sabia que se aproximaria de vê-la. Sentiu as gemas de seus dedos nas bochechas, lhe apartando o cabelo da cara. Cheirou-o, sentiu seu calor, ouviu sua respiração. E desejou abrir os olhos e alargar os braços para ele. Deus, queria sentir seus braços a seu redor, estreitando-a com força contra ele. Que lhe fizesse sentir que queria tê-la mais perto dele, mais perto do que dois seres tinham estado jamais. Queria sentir seu coração pulsando ao mesmo ritmo que o seu, queria...
Fechou sua mente a aqueles pensamentos. Resistiu à tentação de mover o rosto contra sua mão. Quase podia sentir os pensamentos de Damien tentando alcançá-la, ouvir sua mente lhe dizendo que descansasse durante todo o dia, que permanecesse na cama até que ele fora a procurá-la.
Eram estranhas as coisas que sua mente conjurava. Fechou-a ao Damien, negava-se para ouvir aquelas coisas que imaginava estava lhe dizendo. Uns segundos depois sentiu o roce acetinado de seus lábios no rosto. E quase imediatamente, Damien se foi.
Shannon não se levantou até que a casa parecia estar anunciando a gritos sua solidão. Tomou banho, vestiu-se e baixou correndo as escadas. Chamou o Damien, no caso de, mas não obteve resposta.
Tinha sido uma estúpida, naquele momento o compreendia. A atração que sentia por aquele homem a tinha distraído de seu objetivo e tinha perdido um tempo precioso.
Mas não voltaria a ocorrer. Damien lhe estava ocultando dados, dados que tinham que ver com o assassino de Tawny e com o Bachman. E tinha que averiguar o que era.
Dirigiu-se à biblioteca e olhou a seu redor antes de fechar a porta. Rodeou a escrivaninha, deteve-se depois da gaveta e, utilizando um abre cartas, abriu-o. Tirou dali a pastas que procurava e o levou a habitação circular. Jogou dois troncos sobre as brasas da chaminé e esperou a que o fogo cobrasse vida. Por um momento, o resplendor das chamas lhe recordou o incêndio que se produziu em seu apartamento, a sensação de estar apanhada, o medo. Mas o lugar no que se encontrava era justamente o contrário a aquele inferno.
Sentou-se entre os almofadões e almofadas que havia no chão, mas o resplendor de um objeto que refletia as chamas a fez deter-se. Ajoelhou-se e viu várias peças do que em outro tempo tinha sido um vaso de ônix.
Franzindo o cenho, reuniu os diferentes fragmentos que foi encontrando sobre o tapete e os tirou da habitação.
Tentou não imaginar como se quebrado aquele vaso. Tentou não perguntar-se se Damien se haveria posto furioso, ou se sentiria frustrado, ou se, simplesmente, tinha sido uma estupidez. E, pela primeira vez, perguntou-se se possivelmente Damien não estaria lhe dizendo a verdade quando confessava que a desejava. Possivelmente fossem outras as razões pelas que a rechaçava, mas quais?
Já estava bem. Tinha chegado à conclusão de que pensar no Damien só servia para distrair a de seu propósito, de modo que se sentou, abriu a pastas e começou a ler.
Damien despertou quando chegou à noite no dormitório do terceiro piso, situado depois de uma porta dissimulada. Abriu os olhos e seus sentidos foram aguçando-se gradualmente em resposta aos estímulos habituais. A suavidade dos lençóis de cetim que acariciavam sua pele nua. Amaciada-a travesseiro de plumas sobre a que apoiava a cabeça. O calor do fogo na chaminé. A música do estéreo que se acendia automaticamente ao anoitecer.
Aquela habitação tinha sido especialmente desenhada para proporcionar conforto a uma existência pouco confortável. Damien obtinha prazer ali onde podia encontrá-lo. Nos objetos, em vez de nas pessoas. Rodeou-se das mais modernas tecnologias, dos tecidos mais caros, das fragrâncias mais agradáveis e dos sons mais melodiosos. Mas quando esteve completamente acordado, compreendeu que nada daquilo era suficiente. Já não. Desejava Shannon.
Desejava o calor de sua pele contra a sua, em vez do frio do cetim. Desejava que sua erótica fragrância o enchesse. Queria que o rodeassem seus suspiros de prazer.
Sentou-se lentamente na cama enquanto ia recuperando as forças. Limpou sua mente e foi então quando percebeu uma sensação de vazio na casa. Shannon se tinha ido.
Saltou da cama e tentou abrir a mente de Shannon à sua, mas sua mente se negava a concentrar-se. Seu cérebro lhe estava pedindo ação e ele obedeceu. Vestiu-se rapidamente e baixou ao primeiro piso.
Netty o estava esperando ao pé da escada.
—Deixou uma nota —disse, como se lhe estivesse lendo o pensamento—. Na biblioteca, em cima da escrivaninha.
Damien passou por diante dela para dirigir-se à biblioteca. Netty correu a seu lado.
—Estava em casa quando se partiu, Netty?
—Não. Passei o dia entrando e saindo, fazendo compras e indo pagar algumas contas. Quando entrei em sua habitação, ainda estava dormindo.
Damien se aproximou da escrivaninha a grandes pernadas e abriu o sobre no que Shannon tinha rabiscado seu nome. Damien começou a ler. Olhou a Netty por cima do papel, esta assentiu imediatamente e se voltou para deixar a habitação. Quando fechou a porta, Damien continuou lendo.
Não podia ficar depois de ontem à noite. Não sei se serei capaz de voltar a verte depois de meu comportamento, sinto muito. Equivoquei-me ao te pôr nessa situação e não quero que se sinta culpado ou responsável pelo ocorrido. Você não tem feito nada, salvo me cuidar. É o homem mais amável que conheci nunca, Damien. Possivelmente seja essa a razão pela que te desejo.
Espero que possa compreender por que preciso passar algum tempo a sós. Por favor, não me busque. Quero estar sozinha e espero que possa respeitar meu desejo.
Não havia nada mais. Só seu nome rabiscado ao final da folha. Mas Damien lia o que havia detrás de suas palavras. Sua dor. A dor que lhe tinha causado. Shannon estava envergonhada de seus atos, envergonhada de desejá-lo. Maldita fora, isso era quão último ele pretendia! E algo mais; havia algo em suas palavras que soava como uma espécie de advertência e que não podia ignorar.
Shannon não tinha ido a nenhuma parte. Estava convencido disso inclusive antes que Marquand chegasse quase sem respiração e lhe tendesse uma folha de papel.
—Tem que sair daqui —lhe disse sem preâmbulos—. Falo a sério, Damien. Aqui não está a salvo.
Damien o ignorou; continuava tentando averiguar a verdade que se escondia depois das mentiras de Shannon.
—Damien, está-me ouvindo? Bachman sabe onde descansa. Tentará vir a por ti durante o dia, quando está completamente indefeso.
Por fim, as palavras do Marquand puderam abrir-se passo no meio da dor.
—Impossível ninguém sabe onde descanso.
Marquand lhe tendeu então um pedaço de papel e Damien baixou o olhar para aquela breve nota.
Bachman, dorme em uma habitação escondida no terceiro piso. A entrada tem que estar na habitação de convidados do segundo piso, embora não sei onde exatamente.
Não havia assinatura e era uma nota datilografada, de modo que não havia maneira de analisar a letra. Damien sacudiu a cabeça com incredulidade.
—Netty?
—É possível.
—Não posso acreditar que tenha sido capaz de...
—Não sei do que outra forma esse canalha pôde conseguir essa informação, mas já nos preocuparemos com isso mais tarde. De momento, tem que procurar outro lugar no que descansar.
Damien continuava olhando a nota com o cenho franzido.
—Como a conseguiste?
—Quão único tive que fazer foi ir procurar as mensagens que lhe tinham deixado ao Bachman —inclinou a cabeça—. Damien tem que aprender a utilizar seus poderes mentais para influir nas ações humanas. Fiz que a recepcionista abandonasse o mostrador durante uns minutos e retirei estas mensagens. Muito singelo.
—Se for tão singelo, onde está Shannon?
Eric arqueou uma sobrancelha com expressão interrogante.
—Disse-lhe que descansasse até meia noite. Mentalmente. Outras vezes tinha funcionado, mas esta vez não. Quando me despertei, partiu-se.
—Interessante.
—Interessante? É perigoso.
—É possível que tenha decidido te fechar sua mente. É um truque que inclusive os humanos podem aprender, embora poucas vezes aconteça. Mas, em qualquer caso, não tem nenhum motivo para fazê-lo, posto que não tenha a menor idéia do que é. Porque não o há dito, verdade?
—É obvio que não o hei dito.
—Então, tem-na feito zangar de algum jeito?
—Olhe, neste momento, não me importam nem o como nem o por que. Shannon se foi e tenho a sensação de que está em perigo. E o único que deveríamos estar fazendo neste momento é procurá-la.
—Adiante, busca , o que te detém?
Damien assentiu com dureza e alargou a mão para a porta. Começaria com o carro. Seria mais fácil lhe seguir o rastro. Uma mão firme no ombro o deteve.
—Sente-se, Damien. Esclarece sua mente. Abre-a, procura Shannon...
—Mas se ela me fechou sua mente...
—Não pode influir nela, mas deveria ser capaz de sentir sua presença, de sentir o que a rodeia, de discernir se estiver a salvo.
—Não estou seguro de que possa fazê-lo. Meu deus, Eric, você não o entende. Nunca utilizei minhas habilidades psíquicas. Nunca quis fazê-lo —elevou o olhar, como se de repente lhe tivesse ocorrido algo— por que não o faz você?
—Escolhidos conectam quase sempre com um só vampiro, Damien. E, se por acaso não te deste conta ainda, você é esse único vampiro para Shannon. Eu poderia senti-la ternamente, sobre tudo se estivesse em perigo. Mas a ti tem que te resultar muito mais fácil. Por favor, tenta-o.
Damien assentiu. Retornou ao salão, sentou-se em um sofá e tentou relaxar-se e deixar a mente em branco. Fechou os olhos.
—Agora já só nos falta Rhiannon com o incenso e as velas —murmurou Eric. Damien abriu os olhos e arqueou as sobrancelhas—. Nada, estava falando comigo mesmo. Te concentre, Damien. Te concentre em Shannon. Coloca sua imagem frente a seus olhos. Faz-a viver em seu interior até que possa senti-la.
Damien fechou os olhos outra vez e encontrou assombrosamente fácil levar Shannon a sua mente. Bastava-lhe recordando o sabor de sua boca e seu quente interior. Moveu-se incômodo em seu assento, mas continuou concentrado. A sensação de perigo se incrementava com cada um de seus pensamentos.
Era absolutamente incrível. Nenhuma pessoa em seu são julgamento podia acreditar que aquilo fora verdade.
Mas parecia certo. Shannon tinha lido as notas sobre a DIP. A Divisão de Investigações Paranormais. Era uma organização secreta e a única razão de sua existência, segundo as notas de Marquand, era localizar e destruir vampiros, utilizando o álibi de querer descobrir seus segredos através da investigação. Marquand sustentava que a organização era responsável por assassinatos, seqüestros e torturas de vampiros.
Dizia que sua própria esposa, não, companheira, esse era o término que utilizava, tinha sido seqüestrada por aqueles cientistas desumanos. E isso tinha ocorrido quando ainda era mortal. Antes que tivesse sido transformada.
Quando terminou de ler aqueles documentos, Shannon estava tremendo. Marquand estava tão louco como Bachman. Inclusive acreditava que ele mesmo era um vampiro. Realmente acreditava.
E, ao parecer, também Damien acreditava. Em caso contrário, não teria contínuo mantendo nenhum tipo de relação com aquele homem.
Mas tinha que deixar de pensar nisso. Tinha que manter-se alerta.
Tinha deixado à mansão de Damien em seu carro e tinha estado conduzindo durante um par de horas com intenção de chamar a atenção do assassino. Depois, dirigiu-se a seu escritório.
Uma vez no interior, assegurou-se de que tinha a pistola carregada e se sentou a esperar.
A morte tinha sido uma sombra que durante muito tempo tinha estado espreitando-a, mas aquela noite a sentia mais perto que nunca.
Por isso tinha que acabar com aquele canalha essa mesma noite.
Não demorou muito em ouvir passos nas escadas. Levantou-se e elevou a pistola enquanto via girar o trinco da porta.
Mas não foi o assassino o que entrou em seu escritório, a não ser Bachman.
Em qualquer caso, Shannon elevou a pistola, apontando para a lapela esquerda de sua jaqueta cinza. Bachman caminhou até seu escritório e tomou assento.
—Já está disposta a ficar de meu lado, Mallory? Ou pensa esperar a converter-se em sua próxima vítima?
Shannon pestanejou. Bachman a estudou com firmeza, limitando-se a esperar.
—Pelo menos sei que não é um deles. Esteve conduzindo seu flamejante carro à luz do dia.
—E você esteve me seguindo.
—É uma garota inteligente. Me diga, por que o deixou? Ao final foi o suficientemente sensata para ter medo?
—Não sei do que me está falando.
—Estou falando de monstros, Shannon. De animais sedentos de sede e de morte. Agora conhece o Damien, sabe quem é realmente. Os humanos não significam nada para ele, para nenhum deles —se inclinou para diante—. Teve sorte de poder partir.
—Está louco se pensar que me acredito uma só palavra de todo isso.
—A que se refere?
—Já sabe. A que supostamente Eric Marquand e Damien são... Vampiros. Essas tolices não existem e você está louco se crie o contrário.
—Não acredito, sei —inclinou a cabeça—. Assim que o recém-chegado é Marquand. Me imaginava, mas nunca o tinha visto tão perto. Em uma ocasião, estivemos a ponto de apanhá-lo. Ao Damien não o conhecíamos. Mas o pus sob vigilância o dia que apareceu o primeiro cadáver.
Shannon soltou uma gargalhada, ignorando o nó que tema no estômago.
—Viu-o alguma vez à luz do dia, Shannon? —a tutear- Lhe viu comer? Há algum espelho em toda sua casa?
—Em sua casa há comida. Eu comi ali...
—Mas ele não comia.
—O horário que faz é só uma questão de imagem. Uma imagem que cultiva para seus admiradores, nada mais.
—Shannon, foi um vampiro o que assassinou a seu amiga, e se não tomar cuidado, sofrerá o mesmo destino... Ou algo pior.
—Algo pior?
Bachman se encolheu de ombros, levantou-se e caminhou até a janela.
—Se tivesse querido, Damien poderia te haver matado, mas acredito que tem outros planos.
—Fala Bachman. O que está insinuando?
Bachman a olhou por cima do ombro.
—Acredito que quer te converter em um deles. Te conservar a seu lado para satisfazer seus repugnantes prazeres. Eternamente. Será sua prisioneira durante toda a eternidade.
—Como chegaste a estar tão louco, Bachman? Supõe-se que tenho que me tragar todas essas estupidez? Não crie que me convertendo em vampiro Damien faria fracassar seu próprio plano? Faria-me tão forte como eles e, nesse caso, como ia poder me manter prisioneira?
—Sabe muito pouco sobre tudo este tema. Os poderes aumentam com a idade. E Damien é tão velho que ainda não pudemos descobrir suas Orígenes. O do Marquand sim os conhece. É de origem francesa e foi transformado durante a Revolução.
Shannon era consciente de que tinha os olhos arregalados. Mas era uma estupidez, porque em realidade não acreditava uma só palavra do que lhe estavam dizendo.
—Está-me dizendo que Eric tem mais de duzentos anos?
Bachman a olhou como se pensasse que era estúpida.
—Para eles, isso é ser jovem. O mais ancião que temos nos arquivos procede do Egito, era a filha de um faraó. E suspeitamos que Damien seja inclusive maior que ela.
—Está louco —caminhou até o Bachman, situando-se perto da janela—Agora me diga o que é o que pretende conseguir desta visita. Por que te tomou a moléstia de me contar tudo isto?
—Por que crie que o faço?
Shannon franziu o cenho e deu um passo para trás. Mas Bachman a deteve posando a mão em seu ombro.
—Eu gosto Mallory. Eu gosto de sua guelra. Por não mencionar que certamente é a mulher mais condenadamente sexy que vi em toda minha vida.
Mentiras. Eram todas as mentiras, e tão óbvias que adivinhá-lo era um jogo de meninos. Bachman queria algo dela, e não era seu corpo.
—Nem sequer me conhece.
—Sei que está doente. Que inclusive é possível que esteja morrendo.
Shannon elevou o queixo.
—Como sabe?
—Graças a seus relatórios médicos. Mas você já sabia que os tínhamos. Estavam em uma das pastas que me roubou da habitação do hotel.
Seus relatório médico estavam entre esses documentos? Ela não os tinha visto. Teria-os Damien? Teria sabido durante todo aquele tempo seus problemas de saúde e o teria oculto?
—É um estranho espécime, Shannon. Tem o antígeno e uns Orígenes que lhe convertem em uma das poucas pessoas que pode chegar a converter-se em um deles. Desgraçadamente, isso também significa que morrerá jovem. Todos morrem jovens. Mas na DIP estamos fazendo uma investigação, Shannon, uma investigação que poderia te ajudar.
Investigação. Shannon tinha lido algo sobre essas investigações nas notas do Marquand. Támara tinha estado atada a uma maca, em um laboratório secreto, e tinha sido torturada até que Marquand tinha ido resgatar la.
Possivelmente não tudo fora ficção.
—Se vier comigo, se puser em minhas mãos, poderemos encontrar a maneira de te manter viva. Poderíamos inclusive encontrar um remédio...
—Ir aonde?
—Ao complexo do White Plains. É um laboratório.
White Plains. Eric o mencionava em seu relatório. Deus poderia ser certo?
—Ali estará a salvo, Shannon. Temos os melhores médicos e os melhores cientistas nesse campo.
—Então me converteria em sua prisioneira? Parece que não tenho muito onde escolher, verdade?
—Não seria uma prisioneira. Seria nossa protegida, é muito distinto.
De repente Shannon teve medo. Medo a que Bachman não aceitasse um não por resposta.
—Olhe, sou perfeitamente consciente do pouco tempo que fica, mas não penso passá-lo convertida em uma cobaia. E não me acredito uma só palavra sobre o dos vampiros. Quão único quero é encontrar ao assassino de Tawny e, diga o que diga, não acredito que seja Damien.
—Sinto ouvir lhe dizer isso.
—Por quê? O que pensa me fazer?
Bachman sacudiu a cabeça lentamente.
—Ao final virá comigo.
—Está pensando em me obrigar?
—Não, ainda não. Sabendo que há dois vampiros soltos, não aspiro a terminar como alguns dos cientistas que utilizaram essa tática. Mas te aconselho que não te aproxime dele, Shannon. É um assassino. E assim que tudo isto termine, voltaremos a nos ver outra vez —cedeu ligeiramente a dureza de seu rosto—.E não me importa o que possa pensar, Shannon. Faço-o por seu bem.
Shannon negou com a cabeça e o acompanhou até a porta.
—Tudo isto é uma loucura, Bachman. Damien não é o que diz. Juro-te que...
—Você não sabe, mas eu sim —abriu a porta—. Terei que acabar com ele. Não fica outra opção.
Shannon começou a protestar, mas lhe estava falando com uma porta vazia. Bachman já se partiu.
Damien a encontrou sentada no chão de seu desvencilhado escritório, frente à porta e pistola em mão. Seus olhos eram dois poços de absoluta confusão. E estavam cheios de lágrimas.
—Pensava que havíamos ficado de que esperaríamos até a próxima função, Shannon —deu um passo para o interior do despacho.
—Não pensava que me encontraria tão logo. Suponho que é muito inteligente para mim.
Damien franziu o cenho ao advertir a palidez de seu rosto. Deu um passo para ela e o coração lhe encolheu ao vê-la retroceder.
—Agora me tem medo? —perguntou-lhe brandamente—. O que passou?
—Não, não te tenho medo. Mas quero estar sozinha, isso é tudo.
—Não posso te deixar sozinha e sabe.
Shannon lhe deu as costas e sua juba loira se balançou com aquele movimento. Damien queria acariciá-la, enterrar seu rosto nela, inalar sua fragrância.
—Não suporto que decidas por mim.
—Eu não...
—Claro que sim! —caminhava pelo escritório evitando olhá-lo—. Decidiu que tinha que ficar em sua casa depois do incêndio. E agora decidiu não me deixar aproveitar minha última oportunidade de apanhar a esse canalha. Olhe, fui uma mulher muito independente durante muitos anos para deixar que agora alguém se faça cargo de mim. Minha vida é minha, sou eu a que decide o que fazer e aonde ir. Quero estar aqui e quero estar sozinha.
—Por quê?
Shannon sacudiu a cabeça e baixou o olhar para o chão.
—Maldita seja. Não vou daqui sem obter uma resposta.
Damien cruzou a habitação e Shannon se encolheu, lhe provocando uma pontada de dor. Agarrou-a pelos pulsos e as sustentou a ambos os lados de seu corpo. Permaneceu olhando o um ao outro, com a janela como cortina de fundo.
Shannon se negava a responder, mas o medo que Damien via em seus olhos era toda a resposta que necessitava. Quando Shannon desviou o olhar, seu medo pareceu aumentar. Abriu os olhos de par em par e ficou branca como o papel.
—Meu deus...
—O que...?
Damien seguiu o rumo de seu olhar e viu a imagem de Shannon refletida no cristal da janela. Embora ele continuasse a seu lado, sua imagem não estava ali.
Shannon tremia como se estivesse a ponto de morrer congelada.
—Bachman... Bachman me há isso dito, mas eu não lhe acreditei...
—Bachman. Deveria haver-me imaginado. Então esteve aqui?
Shannon assentiu. Que sentido tinha mentir?
—Meu deus, Damien, me diga que não é verdade. Tudo isto é uma loucura.
—Shannon...—Damien tentou dizer algo, mas nenhuma palavra abandonava seus lábios. O que podia dizer?
—Nem sequer o nega? —o impacto convertia sua voz em um sussurro—. Desmaiei, verdade? Isto só está ocorrendo em minha mente. Você nem sequer está aqui... Estou sozinha. Ao melhor nem sequer existe e eu...
—Já basta, Shannon —Damien lhe rodeou os ombros com o braço e a encaminhou para a porta—.Vamos, saiamos daqui.
—Não penso ir a nenhuma parte contigo.
—Claro que vais vir.
Shannon tirou a pistola da pistoleira, deu um passo para trás e o apontou. Com um movimento vertiginoso, Damien lhe arrebatou a arma e a apertou até convertê-la em uma bola de metal que deixou cair ao chão.
Shannon sacudiu a cabeça e retrocedeu. Tinha-a aterrorizado. Não deveria ter feito isso.
—Eu jamais te faria nenhum dano, Shannon, sabe. Tem que sabê-lo. Não poderia te fazer nenhum dano embora quisesse. Não posso te deixar aqui sabendo que o assassino pode te encontrar. E tampouco posso deixar que Bachman te encadeie em um desses laboratórios de máxima segurança —viu que Shannon pestanejava quando o dizia e se perguntou se Bachman já o teria sugerido—. Sei por que Eric me advertiu isso. Shannon vêem comigo, lhe tentarei explicar isso tudo...
Shannon se equilibrou para a porta, mas Damien a agarrou pela cintura e a obrigou a retroceder. Shannon terminou estreitada contra ele, com o coração palpitante e as bochechas ruborizadas. Olhou-o fixamente, com lábios trementes, e sacudiu a cabeça de lado a lado.
Todos os sentidos de Damien ficaram em alerta. Seu coração pulsava a tanta velocidade como o de Damien.
—Shannon, mata-me que me tenha medo. Não compreende que jamais te faria nenhum dano? Não sabe que...? —então viu que Shannon lhe tinha umedecido o olhar.
Inclinou a cabeça e tomou sua boca com um frenesi que não era capaz de dobrar. Movia as mãos por todo seu corpo, incapaz de saciar-se. Desenhava suas costas, afundava as mãos em seu cabelo, acariciava a delicada curva de seu pescoço... Muito lentamente, chegou a ser consciente de que Shannon não se estava resistindo. O tremor não tinha cessado, mas parecia ter trocado. A jovem elevou as mãos timidamente antes de abraçá-lo e inclinou a cabeça para trás em resposta à invasão de Damien. O fogo de Damien se avivou. Jogou os quadris para diante para mostrar-lhe a Shannon e ela continuou acariciando seus ombros. Quando se arqueou contra ele, Damien posou as mãos sobre seu redondo e firme traseiro e a estreitou com força contra ele, deleitando-se no suave gemido de Shannon.
Louco de desejo retrocedeu até se chocar contra a escrivaninha. Com um movimento de braço, limpou-o e colocou Shannon sobre sua superfície. Sentia sua respiração cálida e agitada no rosto. Rasgou-lhe a parte dianteira da blusa. Os botões voaram e apareceram seus seios escondidos depois do encaixe do prendedor, encaixe que também destroçou para despi-los ante seus olhos famintos. Com um gemido, inclinou-se para embeber-se deles e alimentar aquela sede que ia mais à frente do puro desejo. Sugou com força o mamilo sentindo-o esticar-se ante aquele contato. Tomou o rosado pico entre seus dentes brancos e o acariciou até que Shannon gritou seu nome e se aferrou a sua cabeça com ambas as mãos. Então repetiu a tortura com o outro.
Damien elevou a cabeça e observou o rosto de Shannon enquanto alargava a mão para o botão e o zíper de seu jeans. Tirou-lhe as calças, acariciando seu corpo ao mesmo tempo.
Continuando, endireitou-se e se colocou entre suas pernas com uma ereção tão tensa que resultava quase dolorosa. Olhou fixamente Shannon, nua para ele, e se disse a si mesmo que não podia fazê-lo. Não deveria...
—Se te detiver outra vez, pegarei-te um tiro —sussurrou Shannon—. Não quero ouvir mais tolices. Só quero a ti.
Damien sabia que não estava bem. Sabia que Shannon estava tão assustada como excitada. Mas mesmo assim, afundou os dedos nos úmidos cachos de entre suas coxas. Abriu as dobras e explorou seu sexo tenso e úmido. Procurou o diminuto botão e tomou entre dois dedos. Shannon fechou os olhos e gritou.
—Shannon, eu...
—Não me importa! O que tenho que perder Damien? Maldito seja, faça amor comigo!
Damien rezou para que Shannon não se arrependesse nunca daquela ordem, ao tempo que se desabotoavam as calças para liberar sua palpitante ereção. Viu que o olhar de Shannon voava para aquela parte de seu corpo, sentiu o contato de seus olhos abrasando-o. Posou então as mãos na parte interior de suas coxas e se deleitou no saboroso bocado que tinha frente a ele. Guiou a mão de Shannon até seu sexo e atirou delicadamente dela. Shannon o guiou a sua vez para sua lubrificada feminilidade. Tombou-se sobre o escritório e arqueou os quadris para ele, lhe sustentando em todo momento o olhar.
Damien foi afundando-se lentamente nela até que Shannon já não teve nada mais que lhe oferecer. Pressionou-se contra ela. Shannon deixou escapar um suspiro rouco e prolongado e se aferrou a seu traseiro ao tempo que Damien fechava as mãos ao redor de sua cintura. Quando retrocedeu, Shannon o apertou com força e, naquela ocasião, Damien não foi absolutamente delicado quando voltou a afundar-se nela. Retrocedeu uma vez mais, mantendo-a prisioneira com suas fortes mãos enquanto investia de novo. Shannon esticou os músculos a seu redor, como se queria retê-lo para sempre dentro dela. Elevou a cabeça e os ombros da escrivaninha e procurou seus lábios. Damien respondeu inclinando-se sobre ela e beijando-a, fazendo amor com sua boca com a mesma intensidade com a que o fazia com seu corpo.
E então Shannon ficou muito quieta. Todo seu corpo se esticou, apertou os punhos e deixou de respirar durante uns segundos intermináveis. Damien sentiu seu corpo esticando-se a seu redor. Um segundo depois, Shannon se estremecia ao alcançar o clímax e Damien derramava sua essência em seu interior sentindo-se como se estivesse esvaziando seu corpo inteiro.
Enquanto observava ao casal da escada de incêndios, Anthar amaldiçoou em babilônio, em sumério e em inglês. Tinha esperado uma eternidade a que Damien cedesse a seu desejo e fizesse o amor com aquela mulher. E ao final o tinha feito, mas não tinha bebido de seu corpo. Um instinto mais capitalista que a mesma natureza tinha conseguido detê-lo. Maldito fora!
Depois daquilo, teria que esperar outra oportunidade. E, a julgar pela saúde da garota, possivelmente não a houvesse. E se a garota morria, a oportunidade da vingança perfeita morreria com ela. Teria que induzir ao Damien ao suicídio. Era a única maneira de aplacar a fúria agônica que sentia.
Ao fim e ao cabo, assim era como tinha morrido Siduri.
Siduri. Ah, que formosa tinha sido, e quanto a tinha desejado! Ele também poderia havê-la tido. Anthar a tinha visitado freqüentemente na casa que tinha junto ao mar. Mas, hei aí que o Grande Gilgamesh se deteve ali, meio morto, ao bordo da loucura, esgotado e faminto. Deteve-se em meio de sua busca da imortalidade durante o tempo suficiente para destroçar a vida de uma donzela. Siduri o tinha acolhido em sua casa. Tinha-o alimentado, tinha-o vestido e o tinha sustentado entre seus braços para aliviar sua dor. E quando se recuperou Gilgamesh a tinha abandonado. Nem sequer se tinha informado do muito que Siduri o tinha amado, nem sabia como tinha morrido.
Siduri se tinha entrado no mar e, ao igual à Gilgamesh, não havia tornado a olhar atrás.
Mas Anthar sabia. Porque Siduri o tinha deixado gravado em pedra com aquela escritura que as mulheres tinham proibido aprender, mas que ela tinha aprendido. Porque o próprio Anthar lhe tinha ensinado.
Era tão formosa, tão brilhante. E tinha morrido por culpa do Gilgamesh.
Mas Gilgamesh teria que pagar por isso.
Shannon se aconchegou em seus braços, tremendo, enquanto Damien a vestia. Não era fácil. Quando tentava apartar-se dela, Shannon se aferrava a ele para não deixá-lo partir.
—Ah, Shannon... —Damien a pôs de pé e a estreitou contra seu peito.
Mas as pernas de Shannon pareciam de borracha. Começou a cair, mas conseguiu esticar os joelhos. Emoldurou o rosto de Damien com as mãos e o escrutinou com seu profundo olhar.
—Não é verdade, sabia. Nenhum monstro poderia ter feito amor comigo como acaba de fazê-lo você. Diga-me isso Damien, diga-me isso. --O beijou na boca, nas bochechas, nos olhos—. Jamais me havia sentido assim, Damien. Com ninguém. Só contigo, assim tem que me dizer que tudo é mentira —voltou a lhe beijar o pescoço, o queixo... O desespero o fazia tremer—. Me Diga que tudo é uma ilusão, igual a quando atua. Diga-me isso Damien.
Os tremores se incrementavam e Damien sentia o calor de seus lábios, um calor que naquela ocasião não procedia da paixão, mas sim da febre.
Tomou seu rosto entre as mãos. Sua pele resplandecia como o leite branco e o rubor cobria suas bochechas.
—Maldita seja —murmurou Damien—. Não, outra vez não...
—Só... Me abrace —sussurrou ela—. Enquanto me abrace, estarei bem —e se derrubou contra seu peito.
Damien fechou os braços a seu redor e sentiu que o coração lhe estalava em mil pedaços. Não podia suportá-lo. Não podia vê-la sofrer daquela maneira, não podia vê-la morrer.
Apertou os punhos enquanto a sustentava entre seus braços e gritou sua dor. Gritou seu nome, e o do Enkidu, e amaldiçoou aos deuses e ao mundo, à vida e à morte. Depois, enterrou o rosto em seu cabelo e o encheu de lágrimas amargas.
Sentiu o cetim das mãos de Shannon em suas bochechas.
—Não chore. Eu não queria que isto ocorresse... Não queria te amar... Não queria...
Damien elevou a cabeça e Shannon sorriu ligeiramente.
—Eu gostaria... Não ter que morrer... Não ter que te deixar assim —e fechou os olhos.
—Damien.
Damien se voltou lentamente para olhar ao Eric Marquand, mas logo que podia apartar os olhos de Shannon.
—Damien, tem que tirar a daqui. Isto é perigoso.
—Olha-a, Eric —Damien sacudiu a cabeça—. Esta vez é diferente.
Eric se aproximou e se inclinou para ela. Quando voltou a endireitar-se, tinha o semblante sombrio.
—Sinto muito, Damien. Sinto muito. Entrará em coma antes que acabe a noite. E me temo que não desperte. O fim está perto.
—Não... —os joelhos já não o sustentavam. Caiu ao chãosustentando a Shannon contra ele.
—Vamos, Damien, leva a casa que aluguei. Bachman lhes segue a vós, não a mim —mas Damien não se movia—. Vamos, pelo menos podemos levá-la a um lugar no que estará quente.
Damien assentiu mudo de dor.
«Canalha isto é menos do que merece!»
Deteve-se de repente, inclinou a cabeça e olhou para o Eric lhe pedindo silencio. Uma raiva absoluta enchia sua mente, eram pensamentos carregados de ódio... Mas de onde procediam? De quem?
«Quero que a veja morrer, cão, e que deseje sua própria morte, porque logo chegará Gilgamesh».
Tão repentinamente como tinha chegado, desapareceu aquela sensação.
—Ouviste-o? —perguntou- Damien ao Eric.
—Perfeitamente. Essa mensagem ia dirigida a ti.
—Quantos outros... Há aqui?
—Nenhum, Damien. Saberíamos se assim fora. Não têm nenhum motivo para ocultar sua presença.
—Mas poderiam? Nos poderiam ocultar isso se quisessem?
Eric assentiu arqueando uma sobrancelha.
—Era um vampiro, Eric, estou seguro. Um vampiro que me conhece... —centrou então sua atenção no Shannon e sua dor fez empalidecer qualquer outra sensação—. Nem sequer posso levá-la a minha casa sabendo que Bachman quer ir por mim.
—Não irá te buscar até o amanhecer. Ainda é logo. Pelo menos esta noite estaremos seguros, e amanhã já faremos outros planos. Vamos.
Segundos depois, Damien estava acomodando Shannon em uma das poltronas da habitação circular. Sentia que ela preferia descansar ali, perto do fogo. Eric acrescentou lenha ao fogo enquanto Damien se sentava a seu lado e lhe acariciava o cabelo.
—OH, Meu deus! O que lhe passou?
Damien elevou o olhar e ao ver a expressão preocupada de Netty, esqueceu sua possível traição.
—Está doente, Netty. Muito doente.
—Necessita um médico... —Netty correu para ela, procurou sua mão e a levou o peito.
—Já não podemos fazer nada por ela.
—Quer dizer que se está morrendo?
Damien se mordeu o lábio até fazê-lo sangrar. Eric desviou o olhar do fogo.
—Netty, poderia nos trazer umas mantas? Tem que conservar o calor e...
Netty retrocedeu lentamente com o rosto convertido em uma máscara de sentimentos confusos.
—Não senhor, isto não está bem —sacudiu a cabeça com ferocidade—. Ele me disse que ficaria bem. Que tudo tinha sido culpa de seu feitiço... —interrompeu-se de repente e arregalou os olhos. Quando Damien elevou a cabeça, procurou seu rosto—. Mas você não a enfeitiçou. Agora o entendo. OH, Meu deus, o que tenho feito?
Eric deu um passo adiante e se interpôs entre o Netty e Damien quando este último se levantou.
—Está falando de Bachman?
—Disse-me que tinha que salvar a Shannon. Que vocês eram... —estremeceu-se e baixou o olhar para o chão—... Diabos. Disse que ela morreria se não a ajudava.
—E você lhe disse que a habitação secreta estava no terceiro piso —Damien logo que podia conter sua raiva.
Netty se mordeu o lábio. As lágrimas empapavam seu rosto.
—Bachman me disse que ela morreria se não o dizia. Eu só queria ajudar à garota!
—Deveria te arrancar o coração.
—Te cale, Damien! —ordenou-lhe Eric—. Netty, ainda não é muito tarde para que corrija seu engano. Interceptei a nota que deixou no hotel.
Netty gemeu brandamente.
—Mas eu o chamei mais tarde. Ele sabe... Sabe.
—Nos conte o que está planejando Bachman —lhe pediu Eric.
—Eu tinha que lhe deixar entrar em amanhecer. Queria ver a habitação em que você dorme.
—O que ele quer é me assassinar enquanto durmo, estúpida.
—Eu não sabia! O juro!
Damien a fulminou com o olhar, voltou-se e reatou sua vigília de Shannon.
—Agora não sou capaz de pensar com claridade. Eu... —interrompeu-se e sacudiu a cabeça.
—Então é verdade? É verdade o que Bachman diz que são?
—Netty, que classe de idiota poderia acreditar-se essa tolice? —perguntou Eric—. Bachman é um louco, um admirador que perdeu a razão. Certamente terá ouvido falar de casos parecidos —se interrompeu e Netty assentiu—. O caso é que Bachman se convenceu a si mesmo de que a identidade de Damien em cena é a da vida real e se crie um caça vampiros —Eric deu um passo adiante e posou a mão no braço de Netty—. É perigoso, Netty. Esse homem quer matar realmente Damien.
—E eu estive a ponto de ajudá-lo a fazê-lo! —chorou Netty—. O sinto senhor Namtar.
Mas Damien nem sequer foi consciente de sua desculpa. Estava muito absorto em sua própria dor.
—Fora. Fora os dois. Deixem-nos sozinhos.
Netty estalou em pranto e saiu correndo da habitação. Eric se aproximou dele e se ajoelhou a seu lado.
—Só estarão a salvo até o amanhecer, sabe.
—Tirarei-a daqui antes que amanheça.
—E aonde irá?
—Não sei. Mas isso agora não importa.
—Voltarei a te buscar.
—Não, você já tem feito suficiente. Tenta te manter a distância, Eric. Não necessito público nem ajuda para suportar esta tristeza. É uma velha companheira.
Estava tão viva... Nunca tinha conhecido a ninguém tão vital como ela. Fazia muito tempo que Damien não ria com ninguém. E Shannon lhe tinha feito sorrir uma e outra vez. Havia tornado a levar a ternura e a alegria a sua existência.
E se estava morrendo. Ia deixar o sozinho, como Enkidu. E justo quando estava a ponto de encontrar ao assassino. Justo quando tinha descoberto a existência de outro vampiro furiosamente zangado na cidade. Um que o odiava... Pestanejou lentamente quando se deu conta das implicações de seus próprios pensamentos. Outro vampiro. Um que odiava Damien além da razão.
Algo pareceu iluminar a negra noite de sua alma. Ele não era um assassino! A sede não tinha sido capaz de dominá-lo. Fazia o amor com Shannon de uma forma frenética, apaixonada, mas não tinha provado seu sangue.
Seus motivos para não transformá-la eram singelos. Sofria ao pensar que podia ser um assassino e não podia suportar a idéia de que Shannon tivesse que sofrer algum dia pelo mesmo. Essa razão já tinha desaparecido. Não queria amá-la. Não queria arriscar-se a sofrer uma dor similar ao que tinha suportado antes. Mas já era muito tarde para evitá-lo. E se Shannon fora imortal, não teria que perdê-la.
Mas teria aceitado ela essa escura magia? Seria capaz de viver renunciado à luz do dia, ao beijo do sol? Poderia assimilar a idéia de viver eternamente?
Damien amaldiçoou e deu meia volta. Não podia tomar aquela decisão por ela. Não podia! As lágrimas alagaram seus olhos. Enterrou o rosto nas mãos e deixou que os soluços sacudissem seus ombros. E então, Shannon elevou a mão e a posou em suas costas.
Damien se ajoelhou a seu lado. Tomou sua mão e a beijou depois se inclinou para beijar seu rosto.
—O... Sinto-o —sussurrou Shannon—. Deveria te haver advertido...
—Isso não teria trocado nada, Shannon.
—Tenho tanto medo...
Damien não sabia o que dizer. O que podia dizer para consolá-la?
—Tentei negá-lo, sabe? Fingia ser valente, mas não o sou —as lágrimas fluíam livremente por seu rosto—. Não quero morrer Damien. Não quero seguir sendo valente. Importa-me um cominho a dignidade.
Damien a olhou fixamente aos olhos.
—Está-o dizendo a sério, Shannon?
Shannon baixou as pálpebras e Damien soube que estava chegando o final.
—Eu... Daria algo... Qualquer... —sussurrou—... Para poder viver...
Fechou os olhos. Damien lhe emoldurou o rosto entre as mãos e a sacudiu ligeiramente. Mas Shannon estava afundando-se no coma que Eric tinha prognosticado. Não voltaria a despertar. Mas tampouco precisava fazê-lo, acaso não acabava de expressar sua decisão?
Por muito que tentasse dizer-se que deveria haver dado a opção a Shannon quando ainda estava em condições de tomar uma decisão, não podia enfrentar-se à idéia de perdê-la. Não podia maldito fora! Não podia viver sem ela. Não podia vê-la morrer quando Shannon acabava de lhe suplicar que a salvasse.
Levantou-a nos braços. Sua juba loira caiu para trás como uma cortina de seda. Era como a Bela Adormecida. E ele ia lhe dar o beijo que despertaria de seu sonho. Inclinou a cabeça, roçou sua pele com os lábios e sussurrou:
—Inanna, me perdoe. Enkidu me ajude. E Shannon, meu doce Shannon, fica a meu lado.
Anthar rugiu furioso. Acabavam de lhe arrebatar a possibilidade de ver sofrer ao Gilgamesh pela morte daquela jovem!
Todos seus planos arruinados...
Mas não ia renunciar tão facilmente à vingança. Siduri se merecia ser vingada e ele a vingaria. Quão único tinha que fazer era matar ao Gilgamesh. Antes a mataria a ela, para aumentar sua dor eterna. Sim, possivelmente resistisse, mas inclusive com sua nova fortaleza, seria muito fraco comparada com ele.
Anthar também tinha algum medo de Gilgamesh, mas não muito. Era quase tão velho como ele, a diferença era de só uns minutos.
Anthar tinha seguido Gilgamesh depois do suicídio de Siduri. Tinha-o seguido para vingar-se. E o tinha descoberto em meio de seu encontro com o Utnapishtim o Iluminado. Dizia-se que aquele ancião sábio tinha sido feito imortal pelos deuses, mas não tinha direito a compartilhar aquele dom.
Entretanto, algo no jovem Gilgamesh devia ter comovido ao ancião porque, depois de muito pensá-lo e de uma tortuosa discussão, fazia realidade o desejo de Gilgamesh. Tinha intercambiado seu sangue, aquele ato tinha debilitado ao Utnapishtim e tinha fortalecido Gilgamesh.
—Agora viverá para sempre, meu jovem amigo —tinha sussurrado o sábio antes de lhe pedir que partisse.
Anthar se tinha deslizado em sua casa atrás dele e se aproveitou da debilidade do ancião para repetir o ritual. Se Gilgamesh vivia, também deveria fazê-lo Anthar. Devia viver eternamente para poder levar a cabo sua vingança.
Shannon abriu os olhos e se sentiu ao princípio ligeiramente dormitado, como se tivesse a cabeça cheia de algodão. Tentou sentar-se, mas os ossos não lhe respondiam.
Umas mãos fortes a ajudaram e olhou a seu redor com o cenho franzido. Não estavam na casa de Damien. Elevou o olhar para ele, recordou como tinham feito amor e sorriu.
—Quanto tempo estive dormindo?
—Toda a noite e todo o dia.
—Já é de noite outra vez?
Damien assentiu. Parecia preocupado Shannon não tinha a menor idéia de por que, a não ser que estivesse sofrendo por sua enfermidade. Elevou a mão para seu rosto; teria que prepará-lo para o que à larga era inevitável.
Naquele momento, um morcego se deslizou entre eles e elevou seu vôo atraindo seu olhar. Shannon inclinou a cabeça e o olhou. Distinguia até o último milímetro de seu corpo com absoluto detalhe apesar da escuridão. Podia contar os ossos que recortavam suas asas. Seus olhos pareciam estar trabalhando a toda velocidade, porque eram capazes de distinguir cada movimento daquelas asas apesar de que as batia a uma velocidade que o fazia impossível. Mordeu-se o lábio e arregalou os olhos: não só podia vê-lo, mas também podia ouvir seus gritos penetrantes, e podia cheirá-lo. Sacudiu a cabeça lentamente.
—Não é possível.
—O que não é possível? —Damien se inclinou para diante e tomou a mão. Shannon podia contar todas as linhas de sua mão só pelo tato. Olhou-o aos olhos e viu o brilho de seus olhos como não o tinha visto nunca até então. E também seu cabelo, que lhe desejava muito de um negro muito perfeito para ser humano.
—Damien, por que estamos aqui fora?
—Bachman queria vir a nos buscar, assim tive que te trazer aqui.
—E onde estamos exatamente?
Damien sorriu e olhou a seu redor.
—Em uma cova, no meio do bosque e nos subúrbios da cidade.
—Tudo me resulta muito estranho...
—Me fale disso.
—Não, agora tenho que te contar um pouco mais importante. Eu... —Shannon se umedeceu os lábios—... Estou-me morrendo.
—Não, Shannon, você não está morrendo —respondeu Damien sem olhá-la—. Não morrerá jamais.
Shannon piscou surpreendida.
—O que quer dizer?
«Damien quer te converter em um deles. Será sua prisioneira eternamente». Não podia deixar de recordar as palavras de Bachman.
—Damien, o que me está dizendo? O que pensa me fazer?
—Já o tenho feito.
—O que é o que tem feito?
Damien se inclinou para ela e afundou os dedos em seu cabelo.
—Lembra-te da outra noite, quando tinha a morte tão perto que quase podia sentir seu fôlego na nuca? Lembra-te de que me disse, chorando, que faria algo para sobreviver? Não o sente, Shannon? Não sabe?
Shannon conteve a respiração. Logo que recordava o que tinha ocorrido depois de que fizessem o amor. Não tinha decidido ela que todo aquilo dos vampiros era uma loucura?
Levantou-se, sentindo uma força estranha em seu interior. A névoa de seu cérebro parecia ter desaparecido. Sentia-se enérgica, forte, saudável.
Baixou o olhar, abriu a mão, fechou-a e a estudou enquanto o fazia. Por que se sentia diferente? Ao final, levou-se a mão ao pescoço, cedendo a um repentino impulso. E sentiu as duas punções que tinham cicatrizado rapidamente.
Seu olhar voou para Damien e sacudiu a cabeça com incredulidade.
—Não passa nada, Shannon. Não há nada do que deva ter medo —deu um passo para ela e elevou a mão— Já nunca voltará a estar doente. Não morrerá. Não morrerá nunca.
—Meu deus! —Shannon retrocedeu, mas Damien seguiu avançando—. Meu Deus, é verdade! É... Um vampiro.
—E você também.
—Não! —mas inclusive enquanto o gritava, sabia que era certo—. Como pudeste Damien? Como pôde me fazer algo assim?
—Shannon, tinha que fazê-lo. Estava-te morrendo. Não podia permitir que morresse depois de que me houvesse dito o muito que desejava viver.
—Não pode me fazer isto, maldito seja!
—Já parece.
—E agora, o que ocorrerá? Reterá-me para sempre a seu lado? Era isso o que pretendia Damien? Claro, sabia que dessa maneira seria incapaz de sobreviver por minha conta. Essa era a idéia? —Estava aterrada.
Damien sacudiu a cabeça, confundido.
—É obvio que pode depender de mim.
—E um inferno! —gritou, com uma voz muito potente para ser natural—. Que coisas podem nos matar, Damien?
Damien pestanejou brandamente antes de responder.
—A luz do sol. O mais ligeiro roce de uma chama. Qualquer ferida pode nos provocar uma hemorragia severa. Se não conseguir detê-la... —lhe quebrou a voz—. Shannon, por que me está perguntando estas coisas?
—Porque preciso as saber. Porque não sei o que é viver desta maneira. Por que...
Cobriu-se o rosto com as duas mãos e se voltou. Estava mentindo como uma covarde. Ela não queria morrer e sabia. Mas que alternativa ficava? Soluçando, deu uns passos para a boca da cova.
—Aonde vai?
—Vou, simplesmente, vou.
Damien a agarrou pelos ombros.
—Shannon, não pode sair sozinha. Por favor, sente-se, date algum tempo para te acostumar. Me deixe te explicar o que significa tudo isto.
—Me deixe em paz! —voltou-se para ele, estava tão furiosa que lhe faltava a respiração— Te juro Por Deus que se não me deixa partir, odiarei-te durante toda a eternidade —se voltou de novo e entrou no bosque, em meio da noite.
Damien não foi atrás dela. Não podia. A tristeza e a dor o paralisavam. Sofria por ela. Por sua confusão, por seu medo. E mesmo assim, não se arrependia do que tinha feito. Não podia deixar de alegrar-se de que estivesse viva. De modo que não se arrependia. Quão único desejava era ter feito às coisas de forma diferente, ter podido explicar-lhe antes de ter que tomar uma decisão. Haver-lhe permitido escolher.
Começou a caminhar atrás dela, mas descobriu seu caminho bloqueado por uma forma sólida. Seus olhos se encontraram com os de Eric e encontrou neles compreensão, compaixão, inclusive.
—Deixa-a, Damien. Necessita tempo.
Damien apartou Eric de um empurrão e caminhou a grandes pernadas.
—Como vou deixar que se vá? Crie que quero vê-la convertida em objeto de estudo desse animal do Bachman? E o que me diz desse vampiro que está fazendo estragos na cidade?
—Eu não hei dito que não possamos vigiá-la. Não a perderemos de vista, mas manteremos a distância. Damien tem que deixar que aceite sua nova identidade, não te dá conta?
Damien se deteve, voltou-se e olhou fixamente ao outro homem.
—É muito perspicaz, Eric. Isso tem que reconhecer em você.
—Me alegro de que o pense. Porque tenho algumas outras coisas que comentar com você. Não quis envolver a minha companheira neste assunto porque me parecia muito arriscado.
—Arriscado?
—A primeira vez que me aproximei de você, não tinha a menor idéia de qual era seu caráter, Damien.
—E agora?
—Agora não acredito que seja pior que a maioria. E acredito que Támara poderia lhe servir a Shannon de ajuda.
—Poderia ser —Damien continuou caminhando, mas tinha diminuído o ritmo de seus passos—. Mas continua existindo Bachman, e esse vampiro ao que temos descoberto.
—Se tivesse podido escolher, não teria trazido para cá Támara. Mas, eu goste ou não, já está vindo para aqui. Dentro de uma hora chegará à casa que aluguei.
Damien se limitou a olhá-lo com expressão interrogante.
—Está preocupada comigo. Inteirou-se da presença de Bachman e já nada pôde evitar que se reúna comigo.
—É um homem afortunado, Marquand.
—Sim, sou-o.
—Vete a sua casa a esperá-la. Eu irei à mansão vigiar Shannon —ao ver o cenho franzido de Damien, acrescentou—: A distância.
Quando chegou a casa de Damien, Shannon saltou a taipa assombrada por sua própria agilidade e suas novas forças. Entrou em seu interior e estava começando a cruzar a habitação circular quando algo que não acabava de entender fez que lhe arrepiasse o pêlo da nuca. Ficou muito quieta, tentando encontrar a fonte daquela sensação. Girou lentamente. Seu olhar se dirigiu para o arco da porta. Imediatamente, saiu Bachman de detrás de uma cortina, assinalando-a com a pistola.
—Bachman, o que está fazendo aqui?
—Onde está, Shannon?
Shannon se encolheu de ombros.
—Aqui não, mas suponho que isso já sabe.
Bachman franziu o cenho e escrutinou seu rosto. Shannon se esticou, perguntando-se o que estaria vendo. Esperou, contendo a respiração.
—Estiveste chorando, por quê?
Shannon pestanejou e esteve a ponto de gritar de alívio. Bachman não tinha percebido a mudança.
—OH, Bachman. Por que não te terei feito conta? —Deixou que as lágrimas empanassem seus olhos— Eu pensava que o queria, sabe? Mas me deixou. Foi-se.
—E não sabe aonde foi?
Shannon sacudiu a cabeça com tristeza.
—Agora o odeio.
Bachman assentiu, mas não apartou a pistola.
—Shannon, vêem comigo ao instituto. Ali poderemos ajudar você.
Não era certo. Shannon soube no instante no que as palavras saíram de seus lábios. Não estava segura de que Bachman soubesse realmente que era mentira, mas ela sabia.
—Ali há outros como eu?
Bachman assentiu e, por um instante, Shannon visualizou uma imagem aterradora. Homens e mulheres encerrados em celas e maços a macas, com a desolação refletida no rosto.
—Não sei. Tenho que pensá-lo. Me deixe até manhã.
Bachman entrecerro os olhos e sacudiu a cabeça.
—Não, Shannon, vais vir comigo agora. Não penso ir daqui sem ti. Queria esperar até apanhá-lo, mas ele se foi. E não penso voltar para o White Plains com as mãos vazias —sacudiu a cabeça—. Além disso, não estou seguro de que não saiba onde está.
—Já lhe hei isso dito. Não sei. Foi-se. E não voltará —defendia Damien sem vacilar.
—Voltará se souber que tem problemas. Não quereria fazer as coisas deste modo, Shannon, mas sei que se te disparasse, Damien estaria aqui em questão de minutos. Desde segundos, possivelmente —lhe tirou o seguro à pistola.
O medo a invadia e sua mente procurava desesperadamente uma resposta. Mas o sexto sentido que minutos antes tinha percebido em si mesmo parecia havê-la abandonado. Elevou as mãos.
—Não, não dispare. Direi-te onde está de verdade...
Bachman assentiu.
—Imaginava que trocaria de opinião. Não se preocupe por ele, Shannon. Não sofrerá. Isso no caso de que dita lhe deixar viver o tempo suficiente. Porque possivelmente não o faça. É um assassino. Alguém tem que detê-lo. Alguém tem que detê-los todos.
De modo que havia outros. Outras pessoas como Damien às que perseguiam tipos como Bachman. Possivelmente inclusive os matavam como explicava Eric em suas notas.
Baixou a cabeça e fingiu soluçar. Deu um passo para Bachman, como se os joelhos não a suportassem, e depois outro. Balançou-se para os lados e se aferrou à mesa.
Bachman caminhou a grandes pernadas para ela e a agarrou pelo braço sem nenhuma delicadeza. Doeu-lhe. Shannon não acreditava que fora essa sua intenção, mas sua pele parecia mais sensível que antes.
Elevou a outra mão e a apoiou no ombro de Bachman, como se necessitasse seu apoio. Afundou então os dedos em sua carne, elevou o joelho e lhe golpeou com ela na virilha. Esperava que Bachman se dobrasse sobre si mesmo pela dor, para assim ter ela tempo para escapar. Mas saiu disparado e caiu a uns três metros de distância.
Shannon levou a mão à boca; os olhos estiveram a ponto de sair-se o das órbitas.
—Eu tenho feito isso? —sussurrou.
Bachman lutava para levantar-se, com os olhos cheios de raiva.
—Você é um deles.
—Não porque o tenha elegido —murmurou ela—. Olhe, Bachman, por que não vai daqui antes de que te faça mal de verdade?
Bachman olhou para a pistola que tinha perdido em sua queda. Shannon deu um salto de gazela e se interpôs entre Bachman e a arma. Mas Bachman colocou a mão no bolso e tirou um canivete.
—Vamos, Shannon. Aproxime-te e volta a tentá-lo —estava ofegando, sem respiração e evidentemente dolorido.
Shannon elevou a mão para lhe pedir que se detivera.
—Não o faça —disse brandamente—. Não...
—Acreditar que quero fazê-lo? —continuou aproximando-se dela, agitando o canivete. Shannon retrocedeu, mas ele continuava avançando—. Poderia matar você, sabe. Um pequeno corte e você sangraria até morrer. Te renda, Shannon. Não me faça fazer isto.
Equilibrou-se para ela com o canivete, mas Shannon retrocedeu e Bachman falhou, deliberadamente possivelmente, pensou a jovem. Não podia estar segura, mas de repente se encontrou apanhada contra o suporte da chaminé. Já não tinha escapatória. Bachman permanecia frente a ela, com o semblante sombrio.
Elevou o canivete e a posou em seu pescoço.
—Virá comigo, Shannon. Não me faça te fazer dano.
Shannon preferia morrer a ir-se com ele. Tinha que fazer algo. Dissimuladamente, muito devagar para não alertá-lo, jogou a mão para trás e tomou um dos cubos de cristal que encerravam os apreciados objetos de Damien. Elevou o cristal, deixou-o a um lado e fechou o punho sobre a pedra que protegia.
Nesse mesmo instante, sentiu o fio do canivete afundando-se em sua pele e soube que Bachman estava disposto a matá-la se não cooperava. E ela só sabia uma coisa, que não queria morrer. Damien tinha razão nisso.
Com uma força nascida do pânico, golpeou-o com força na cabeça.
Bachman se cambaleou e caiu no chão com tanta violência que Shannon pensou que ia romper o mármore. Shannon correu para a porta, abriu-a de par em par... E chocou contra uma dura parede de músculos.
—Shannon...
Damien a abraçou e Shannon se aferrou a seu pescoço, soluçando.
—Acredito que o matei. OH, Meu deus, acredito que o matei...
—Sinto muito, Shannon. Vim assim que sentido que algo andava mau... —interrompeu-se para levantá-la em braços, subiu-a a habitação em que ele descansava habitualmente e a deixou na cama.
—Shannon, sinto muito. Sinto-o muito. Não sei que mais posso te dizer.
Shannon procurou seu rosto. Seu adorado rosto, e tampouco soube o que dizer.
Quando Damien baixou à habitação circular, Bachman tinha desaparecido. De modo que Shannon não o tinha matado. Certamente seria um alívio para ela sabê-lo.
A voz do Eric lhe chegou do marco da porta.
—Está bem?
Antes de que Damien tivesse podido responder, a companheira do Eric deu um passo adiante com a graça de uma bailarina. Tirou um frasco do bolso interior de seu casaco e o ofereceu.
—Toma, Damien. Está branco como o papel. Bebe.
—Támara, amor, essa não é... —começou a dizer Eric, mas se interrompeu ao ver a expressão de Damien—. O que te ocorre, meu amigo?
Damien se sentia como se tirou um enorme peso de cima.
—O desejo. A sede Pelo amor da Inanna, trocou. Já não o sinto.
Sorriu brandamente e tomou o frasco que Támara lhe tendia. Esvaziou-o e sentiu sua sede satisfeita como não a tinha sentido desde fazia milhares de anos.
Eric estudou seu rosto.
—Assombroso —murmurou Damien.
—Não é tão assombroso —Támara inclinou a cabeça, sacudindo ao fazê-lo seus cachos azeviches—. Sabia de seus problemas com a alimentação, Damien. Eric e eu não temos segredos. Mas, sinceramente, os homens são tão obtusos com algumas coisas... Todas as espécies procriam, a natureza urge a isso. Não é estranho que também nós sintamos a necessidade de fazê-lo. A necessidade de beber se vai fazendo mais demandante até que se cumpre com o ritual e se cria a outro de nós. Então desaparece.
Damien se aproximou do sofá e se sentou.
—Um problema menos ao que nos enfrentar. Mas por que mesmo assim continuo me sentindo fatal?
—Deveria descansar. Está a ponto de amanhecer. E Shannon deveria tirar a desse dormitório com as janelas tão enormes —Támara enrugou o nariz—. Embora não acredito que esteja preparada ainda para despertar em um ataúde.
—Não. Acredito que hoje estaremos seguros em minha casa. Mas eu gostaria de saber o que passou ao Bachman.
—Não teremos que nos preocupar com ele durante uma temporada —disse Eric—. Saiu à rua cambaleando-se e se deprimiu. Um grupo de adolescentes o viu e chamou a uma ambulância. Mas embora Bachman comece a falar, não lhe emprestarão muita atenção. Um homem com uma ferida na cabeça e falando de vampiros não é muito de confiar. Por certo, o que passou com Netty?
—Comprei-lhe um bilhete para um cruzeiro e lhe paguei o suficiente como para que o pense duas vezes antes de voltar a me trair.
—Estupendo. Seus problemas estão desaparecendo, amigo —disse Eric alegremente—. De momento ficaram reduzidos a dois: Shannon e esse vampiro criminal que anda pela cidade.
—Já nos ocuparemos disso esta noite —Támara atirou do braço de Eric—. Se houvéssemos trazido para o Rhiannon, esse vampiro estaria aqui à hora do café da manhã.
—E essa é precisamente a razão pela que te pedi que não lhe comentasse isto nem a ela nem ao Roland. Támara, não temos idéia nem da força nem da idade que pode ter esse renegado. Rhiannon se lançaria por ele sem nenhum medo e possivelmente terminasse morrendo.
—Acredito que merece a pena conhecer essa mulher —comentou Damien com uma meia sorriso.
—Só se estiver de bom humor, me acredite —respondeu Eric.
Damien voltou, tal e como Shannon tinha imaginado que faria. Ao parecer, não era capaz de compreender que necessitava tempo para ela. Deu meia volta na cama e o olhou. Imediatamente desejou não havê-lo feito. Havia uma dor imensa em seus olhos quando a olhava.
Shannon se esticou e se sentou.
—Antes me sentia mais forte, mas agora começo a me debilitar. A força é só temporária?
—Já quase é de dia —lhe explicou Damien—. Os dias nos debilitam. Descansa até a noite e despertará tão forte como sempre —se aproximou lentamente para ela e se sentou na cama—. Suponho que tem milhares de perguntas que me fazer.
Shannon assentiu.
—Mas já está a ponto de amanhecer —se umedeceu os lábios nervoso—. Shannon, já deixaste muito claro que não quer acontecer a eternidade comigo. Que não quer depender absolutamente de mim. Há outros que podem responder a suas perguntas.
Shannon tragou saliva e baixou a cabeça. Tinha-o ferido ao lhe dizer todas aquelas coisas.
—Eu gostaria que amanhã ficasse comigo. Não tive tempo de procurar outro lugar para descansar. Não pretendo te obrigar a estar comigo, prometo-lhe isso. Só quero que esteja a salvo. Há outro vampiro na cidade. Foi ele o que matou ao Tawny. Eric e eu o encontraremos e depois poderá ir aonde queira.
—Eu não pretendia...
—Bachman não está morto —a interrompeu—, mas estará fora de combate durante algum tempo. Mesmo assim, há outros. A organização para a que trabalha pretende nos erradicar. E esse outro vampiro me odeia por razões que não entendo. Eric e eu sairemos ao anoitecer para buscá-lo. E depois poderá partir.
Shannon fechou os olhos sabendo que o tinha ferido além do que era possível reparar. Damien lhe tendeu a mão. Ela se levantou da cama. Sem dizer uma só palavra, Damien a conduziu para as escadas e de ali até uma porta situada no primeiro piso. Meteu-se com ela em um armário e, para assombro de Shannon, a parede interior do mesmo resultou ser outra porta. Assim que a cruzaram, Damien fechou a porta, pressionou um botão e se acenderam as luzes. Começou a música. Sting, o cantor favorito de Shannon.
—Pode ficar na cama —disse Damien com voz rouca—. Eu dormirei no chão.
—Estará incômodo.
—Não, de verdade, eu durmo em qualquer parte.
Deus, o que lhe estava ocorrendo? Não era aquele o mesmo homem do que se apaixonou? Shannon tentou julgar seus sentimentos para Damien. Quando tinha feito o amor com ela, soube-se profundamente apaixonada por ele. Não tinha nenhuma dúvida. Mas, depois do que lhe tinha feito, seria capaz de amá-lo?
Sabia que não queria morrer, mas queria viver daquela maneira?
Sentou-se no bordo da cama. Damien se ajoelhou frente a ela e tomou as mãos.
—Me odeie se quiser, mas não odeie a ti nem o que é. Não trocaste, de verdade. Continua sendo a mesma mulher vibrante e maravilhosa de antes.
-Troquei —desviou o olhar—. Pensava que tinha matado Bachman. Me alegro de que não tenha sido assim, mas poderia havê-lo feito, Damien.
—Não lhe teria feito nenhum dano se não te tivesse obrigada a isso. Ainda desconhece a extensão de sua força, Shannon. E nada disso teria acontecido se eu tivesse sido mais rápido. Portanto, sou mais culpado que você. Shannon, Bachman vai recuperar-se. Não mataste a ninguém, tenta esquecê-lo.
—Mas você não tem que matar para viver? —sacudiu lentamente a cabeça—. Não, não poderia. Nem sequer foi capaz de matar a um camundongo.
—Eu desprezo a morte, Shannon. A morte se levou o meu amigo mais querido e tentou levar também a ti.
Enquanto o escutava, Shannon sentia a cabeça pesada, como quando se despertou. Olhou para a pedra que sustentava ainda na mão e pestanejou.
Damien a estava tombando na cama. Shannon o olhou fixamente e recordou a história que lhe tinha contado, o final da epopéia de Gilgamesh.
—Assim ao final encontrou o segredo. Mas não o converteu em um deus, nem devolveu Enkidu —aventurou—. Só o condenou a uma existência eterna, a contemplar a morte uma e outra vez —elevou a mão e a posou em sua bochecha—. Sim, Gilgamesh foi você.
Ele fechou os olhos, tombou-se a seu lado e a abraçou.
—Sentiu a força do vínculo entre o Enkidu e eu desde a primeira vez que o leste. Chorou por isso, recordo-o. Sabe o que sinto por ele, verdade? —fechou os olhos e escapou deles uma lágrima—. Mas por muito que o quisesse, Shannon, te amo ainda mais. Como ia deixar morrer quando tinha o poder de salvar você? Equivoquei-me, agora sei. E soube então. Mas Shannon, tinha que fazê-lo. E o faria outra vez.
Abraçou-a com força, como se estivesse revivendo o momento no que tinha decidido retê-la a seu lado. Shannon deveria ter os olhos arregalados ante aquela nova revelação, mas sentia as pálpebras pesadas e a chamada do sono. Se aconchegar contra ele e lhe rodeou a cintura com os braços.
—Gilgamesh —sussurrou, e ficou dormida.
Quando despertou, Damien tinha desaparecido. Sentou-se lentamente e arregalou os olhos ao ver uma mulher no marco da porta. Era pequena, magra e tinha uma cascata de cachos azeviches que lhe chegava até a cintura. Sorriu e deu um passo adiante.
—Sou Támara.
—A mulher de Eric?
—Bom, não a mulher exatamente. Não celebramos umas bodas na igreja nem nada parecido.
Ia vestida com uns jeans ajustados, uma blusa de seda verde e umas sapatilhas brancas. Shannon a olhava muito fixamente.
—Sei, não pareço um vampiro, verdade? Rhiannon sim. É alta, elegante e altiva. Mas acredito que era assim quando era mortal. É uma princesa, sabe? E eu... Só sou eu.
—Não pretendia olhar você dessa forma.
Támara se sentou na bordo da cama.
—Só levo uns quantos anos vivendo na escuridão, Shannon. Sei o que está passando. Bom, em parte. Em meu caso, virtualmente supliquei ao Eric que me convertesse. Não sei como me teria enfrentado a isso se o tivesse feito sem me consultar.
Shannon umedeceu os lábios.
—Nem sequer acreditava em sua existência e de repente me acordado convertida em um de vós.
—É difícil acostumar-se em qualquer circunstância, mas se quiser, ajudarei-te —sorriu e elevou a mão para lhe acariciar a juba—. É muito bonita, sabe? Nunca tinha ouvido falar de um vampiro tão loiro. Deve ser tão estranha como um diamante sem mácula.
Shannon se ruborizou ante aquele completo. Olhou para a porta e se mordeu o lábio.
—Damien e Eric saíram a procurar a esse vampiro que anda por aí.
Shannon voltou a assentir. Teria-lhe gostado de despertar antes que Damien se foi. Tinha-lhe feito mal. Damien pensava que queria afastar-se dele. E não era isso absolutamente o que queria. Já não estava segura do que desejava, só sabia que compreendia Damien. Compreendia sua dor, sua perda. E sabia por que tinha decidido transformá-la quando a estava vendo morrer em seus braços.
—Terá tempo de dizer-lhe Voltará antes do anoitecer.
Shannon pestanejou surpreendida.
—Podemos nos ler o pensamento, Shannon.
—É incrível.
«Ensinarei-te a fazê-lo. Assim surpreenderá Damien quando voltar. Agora, por que não toma banho e te veste? Tenho muitas coisas que contar você sobre nós».
Shannon ouviu tudo claramente, mas Támara não tinha pronunciado um só som. Com a cabeça lhe girando a toda velocidade, Shannon se levantou e obedeceu.
Támara parecia tão normal... Emocionou-se ao ver o carro de Shannon, e mais ainda quando esta lhe tinha deixado conduzi-lo. Tinham estacionado e tinham ido dar um passeio enquanto Támara animava Shannon a praticar a telepatia. Shannon tinha começado a ler os pensamentos das pessoas com as que se cruzavam e os resultados eram hilariantes.
Durante horas Támara esteve ajudando-a a explorar sua nova identidade. E à medida que ia passando o tempo, Shannon começava a pensar que não estava tão mal. Podia saltar da taça de uma árvore até o chão. Podia ver na escuridão. Sentia-se forte, revitalizada. E podia ler as mentes.
—Se agora te parecer incrível, já verá quando... Já sabe —Támara se ruborizou ligeiramente.
—Não, não sei. Já verei quando... o que?
—Quando Damien e você...
—OH, é diferente?
—Em certa maneira.
—Não sei quando poderei averiguá-lo. As coisas não andam muito bem entre nós.
—Quê-lo, verdade?
Shannon pensou nisso e se viu respondendo com ênfase:
—Sim, quero-o. Nunca deixei que querê-lo.
—Bom, pois ele está louco por ti, assim tudo se arrumará.
Shannon assentiu e recordou o que Damien lhe havia dito antes que se ficou dormida aquela manhã. Havia-lhe dito que a amava inclusive mais que ao Enkidu.
Retornaram caminhando ao carro, e descobriram ali a um desconhecido. Um vampiro. Por surpreendente que parecesse, Shannon o reconheceu nada mais vê-lo. Este se aproximou lentamente a elas e Támara agarrou ao Shannon do braço.
—É inútil —lhes recordou o vampiro—, tenho seis mil anos. Não lhes incomodem em sair correndo.
E em questão de décimas de segundo, tinha-as agarrado as duas da cintura.
«Não chame o Eric nem o Damien», advertiu-lhe telepaticamente Támara, «isto poderia ser uma armadilha para eles».
—Não importa —replicou o vampiro—. Deixei-lhes uma nota em casa. Já vai sendo hora de que Gilgamesh se encontre com seu destino.
Tinham estado tentando localizar o vampiro na cidade. Deveriam ter detectado sua presença nos lugares nos que tinham sido encontradas suas vítimas, mas seus esforços tinham sido inúteis.
Retornaram a casa e Damien se preparou para enfrentar-se de novo Shannon, para ver o desespero em seus olhos, seu medo, seu aborrecimento. Possivelmente seu ódio. Mas não podia permitir que partisse até que tivesse desaparecido a ameaça.
Sentiu que Eric se esticava a seu lado. E ele também se esticou. Tinha uma forte sensação de perigo. E a convicção de que o renegado tinha estado ali.
Correu para os degraus da entrada e encontrou uma nota cravada na porta.
Eric a arrancou para lê-la, mas sacudiu a cabeça.
—Não conheço esta língua.
Damien lhe tirou a nota das mãos.
—É escritura cuneiforme —e começou a ler em voz alta—: «Gilgamesh, rei do Uruk, vil traidor dos deuses, imortal, demônio e assassino. Pelo papel que jogou na morte de alguém que te amou, pelo Siduri, minha amada, será julgado no templo da Inanna. O templo já não jaz enterrado nas areias do Uruk. Está enterrado, sim, mas não ali. Jamais voltará a ser visto por olhos mortais. Eu o transladei tijolo a tijolo. Ali te espero; e sua amada espera a meu lado. Anthar».
Damien elevou o olhar da nota para encontrar-se com o medo e o assombro nos olhos do Eric.
—Gilgamesh —sussurrou—. Meu Deus.
—Eu não sou o deus de ninguém. Sou só um imortal, como você. E agora temos que nos mover rápido.
—Mas como? Não sabemos aonde foram.
—Mas Támara...
—Erigirá uma fortaleza ao redor de sua mente antes de permitir que caísse no que certamente considera uma armadilha —Eric fechou os olhos—. O tentarei, mas se ela realmente não quer me deixar saber onde está...
—Que demônios é isto?
Shannon observou deslizá-las enormes leva que davam acesso a um elevador no que caberia um elefante e atirou das mãos que a agarravam. Deus, que forte era aquele homem. Sujeitava-a com tanta força que tinha a sensação de que ia romper lhe o braço. As lágrimas se deslizavam por seu rosto e tinha a garganta tão fechada que logo que podia respirar.
Tinha medo. Tinha medo do que aquele homem podia lhe fazer e do que já tinha feito. A Támara. Tinha-as miserável para o céu a uma velocidade impossível. Tinham pirado tão alto que viam o chão a convertido em uma mancha imprecisa. E de repente, tinha soltado a Támara. Tinha-a solto!
E aí estava ela, naquele elevador, descendendo a uma velocidade de vertigem para as vísceras de uma espécie de estrutura que parecia estar em meio de nenhuma parte.
Comporta-as se abriram e Anthar a conduziu a uma estadia do tamanho de um estádio, em que o eco multiplicava em som de seus passos. No centro da sala viu uma imponente estrutura de tijolo branco, resplandecente, imaculada. Percorreu com o olhar as rampas angulares e os degraus que conduziam para a parte superior. Era uma torre circular de mais de doze metros de altura, elevada pelo que parecia um templo.
—Quem é Anthar?
Damien sacudiu a cabeça.
—Deve ser alguém de minha época, posto que saiba quem sou. E suponho que me conhecia, posto que ouvisse falar do Siduri.
—Uma mulher?
—Sim, já lhe explicarei isso. Agora temos pressa.
Estava sintonizando sua mente com a de Shannon e quão único sentia era seu medo. Uma sensação que fazia empalidecer a todas as demais. Tinha também uma ligeira noção da direção em que se dirigiam e se estava deixando guiar por aquela intuição.
Anthar. Quem demônios era e a que se deveria sua necessidade de vingança? Damien não sabia. Quão único sabia era que se aquele canalha o fazia algum dano Shannon, mataria-o.
Eric levava algum tempo em silêncio e quando Damien interrompeu o curso de seus próprios pensamentos para olhá-lo, viu o torvelinho de emoções que retorcia seu rosto. Deteve-se e se voltou para ele.
—Marquand, o que ocorre?
Com a mandíbula tensa e os olhos brilhantes, Eric continuou avançando mais rápido. E um segundo depois, ajoelhava-se no chão e embalava a Támara, tremendo de raiva.
—Támara!
Damien correu para eles. Támara jazia no chão com a perna dobrada em um ângulo impossível e o braço retorcido sob seu próprio corpo. Evidentemente, o tinha quebrado. O coração de Damien se converteu em gelo ao ver o sofrimento do Eric. Támara bateu suas negras pestanas e olhou ao homem que a sustentava entre seus braços com tanto amor que Damien doía vê-lo.
—Me... Me alegro de verte.
—Támara... —Eric se inclinou para diante e beijou seu rosto.
—Cuidado, Eric... Dói-me.
—Matarei-o pelo que tem feito —sussurrou Eric.
Ao Damien o engasgavam as lágrimas. Quando demônios tinha começado a sentir-se tão unido a aquela gente?
—Tem que movê-la, Eric. Tem que procurar um refúgio para quando chegar o amanhecer.
Eric assentiu e olhou a seu redor.
—Onde demônios estamos?
—Em algum lugar de Ohio, acredito. Há casas, posso...
—Não —Támara tentou elevar a cabeça—. Damien, tem que encontrar Shannon antes de que essa besta lhe faça algum dano. Mas tome cuidado. É a ti a quem busca.
—Sei —Damien se endireitou e fixou o olhar na distância.
—Adiante, vá buscá-los —disse Eric—Eu me encarregarei da Támara.
—Está seguro?
Támara assentiu.
—Porei-me bem assim que passe um dia descansando. Procuraremos reforços e nos reuniremos contigo.
Eric apertou os dentes.
—Támara, não haverá...
—É obvio que sim. Temos que pôr fim às loucuras desse canalha e necessitamos toda a ajuda que possamos conseguir. E compadeço a esse tipo se Rhiannon o encontrar antes que Damien.
—Eu não estaria tão seguro —respondeu Eric, olhando Damien.
—Eu tampouco —respondeu este.
Viu-se obrigado a procurar um refúgio ao amanhecer, mas reatou sua busca assim que anoiteceu. E soube imediatamente o momento no que a tinha encontrado.
A melhor pista foi àquela estrutura situada em meio de uns terrenos ermos que em outro tempo tinham servido para armazenar mísseis e que o governo tinha terminado vendendo a particulares. Aproximou-se das portas e estas se abriram. De modo que aquele canalha sabia que tinha chegado. Damien se meteu no que parecia um elevador. E quando voltaram a abrirem-se suas portas, ficou paralisado ante a sensação de ter retrocedido no tempo. Aquela torre escalonada e piramidal permanecia tão imaculada e altiva como quando tinha sido construída. Era o mesmo templo que tinha sido o centro da que milhares de anos atrás tinha sido sua cidade. Um templo ocupado por sua gente, por seus deuses. Um monstro branco de escadas e rampas. O habitáculo dos deuses, no que lhes ofereciam sacrifícios.
Damien subiu o primeiro lance de degraus, seguindo o mesmo caminho que tinha percorrido milhares de vezes tantos anos atrás. Mas seus passos eram mais rápidos, mais desesperados. Em questão de segundos, estava na entrada do templo. Ergueu as costas e acessou a seu interior.
Uma figura como a de um esqueleto andante saiu a recebê-lo com uma tocha na mão. Damien deu um passo adiante, maravilhado pela precisão com a que aquele lugar tinha sido restaurado. As figuras de pedra que representavam aos adoradores eram tais como as recordava. Homens e mulheres de olhos enormes com as mãos dobradas em atitude de prece.
Damien passou por diante delas, obrigando-se a apartar o olhar daquelas figuras que representavam a sua gente e se concentrou no homem de aspecto gasto que acabava de deter-se no outro extremo da habitação.
—Estou aqui, Anthar. Fiz o que me pediste. Onde está Shannon?
Anthar se limitou a esboçar um sorriso. Apartou-se para um lado e alargou a mão para uma estátua do deus Anu. O cabelo dourado do Anu e sua barba tinham sido abrilhantados até fazê-los resplandecer. A seus pés, sobre o altar sacrifical, estava Shannon tremendo, com as bonecas e os tornozelos atados. Ia vestida com uma túnica branca que se sujeitava o um dos ombros com um broche e deixava o outro ao descoberto.
Damien sentiu seu medo, sua absoluta tristeza. Tentou lhe transmitir força, confiança, consolo. Anthar deu um passo adiante para acender as tochas que emolduravam sua cabeça e seus pés. Shannon se encolheu e lançou um gemido de terror. Damien se equilibrou para ela, mas Anthar se interpôs em seu caminho.
—Olhe a seu redor, Gilgamesh. Olhe aos deuses aos que traíste ao tentar te converter em um deles —elevou a tocha para iluminar às deidades—. A deusa Inanna, cujo nome amaldiçoaste da morte de seu amigo. Ea, o deus dos mananciais, inclusive o ofendeste. E ao Enil, o bom deus da terra e o vento, cujo nome sujou. E Ninurta, deus da guerra, que também está furioso contigo.
Damien tinha que fazer um grande esforço para não perder a paciência.
—Parece-me, Anthar, que o único ao que ofendi é você. Os deuses não atuaram contra mim em todo este tempo. E não acredito que sua justiça seja tão lenta.
—A justiça está a ponto de fazer-se.
—Se isso for certo, então estou disposto a isso, Anthar, mas agora libera a essa mulher. Supõe-se que quer me fazer sofrer, não a ela.
—Ainda não, Gilgamesh.
Damien deu um passo adiante com intenção de liberar Shannon, mas Anthar alargou a mão para uma pequena prateleira de pedra e tomou uma adaga ritual. O fio era tão penetrante como o de uma gilete. Colocou-à frente à garganta do Shannon. Ela gritou e olhou Damien desesperada.
—Se te mover, blasfemo, farei-lhe sofrer. Farei-lhe sofrer terrivelmente. Provavelmente sangrará antes que você possa fazer nada para impedi-lo.
—Sou muito velho —respondeu Damien—. Mais velho que ninguém, exceto o próprio Utnapishtim, que me transformou. Deveria procurar não me zangar.
—Utnapishtim também me fez, também, grande rei do Uruk. Só uns segundos depois que a ti.
—Mas ele não haveria...
—Não teve outra opção. Seu intercâmbio de sangue com um jovem enlouquecido o tinha debilitado. Eu o obriguei a repetir o ritual, queria viver para poder ver sua morte.
A voz do Eric chegou à mente de Damien e soube então que seu amigo estava a par de tudo o que estava acontecendo.
«Quando Anthar fez o intercâmbio, o sangue estava diluído, você continua sendo mais forte», advertiu-lhe.
Damien assentiu; tinha a sensação de que Eric estava protegendo seus pensamentos de Anthar e ele tentou fazer o mesmo.
—Que crime cometi para te zangar tanto?
—Lembra-te de Siduri? Minha formosa Siduri, que entregou o coração a uma besta?
Damien assentiu e deu um passo adiante, mas viu que Anthar pressionava a gilete contra o pescoço de Shannon.
—Responde em voz alta para que os deuses conheçam seus pecados.
Damien se umedeceu os lábios.
—Naquele estava louco de tristeza pela morte de Enkidu, meu melhor amigo. Continuei procurando a imortalidade com a esperança de lhe fazer voltar para a vida. Quando cheguei à casa de Siduri, estava faminto, sedento e virtualmente louco. Ela me alimentou, vestiu-me e me ajudou a recuperar parte de minha prudência.
—Isso foi o único que te deu?
—Ofereceu-me seu consolo. Compartilhamos seu leito.
—Siduri era minha amada! —gritou Anthar—. A utilizou e depois reatou sua busca. Ela te suplicou que ficasse, mas você foi surdo a suas súplicas.
—Não, ela sabia que me partiria desde dia que cruzei a porta de sua casa. Sabia que...
—Matou-a. Ela pensava que estava apaixonada por ti e lhe demonstrou isso, apesar de que era minha prometida.
—Isso não é nenhum delito! —Damien voltou a avançar—. Sabe tão bem como eu que naquela época um rei tinha direito a tomar a virgindade de uma donzela antes que o fizessem seus maridos. Assim era a lei. Como pode dizer que cometi um crime ao me deitar com sua amada? —era um argumento muito débil, mas não o ocorria nada mais naquele momento.
—Ela perdeu sua alma quando você a deixou. Mas não sabia, verdade? Nunca olhou atrás. Não soube nunca que ao dia seguinte, ao amanhecer, afundou-se no mar. afogou-se pelo amor de um rei indigno que queria converter-se em um deus.
A voz do Eric chegou de novo até ele.
«Não foi tua culpa, Damien. Não deixe que te distraia».
Mas para Damien foi um duro golpe.
—Eu... Não sabia. Siduri foi muito amável comigo, Anthar. Eu a apreciava. Sinto muito. Sinto-o muito mais do que posso expressar com palavras.
—Sua tristeza não é suficiente, Gilgamesh. Deve sofrer tanto como sofri eu.
«Incinera-o».
Damien sacudiu a cabeça rapidamente e respondeu a Eric em silêncio.
«Não estou seguro de que funcione e é necessária uma quantidade incrível de energia. Se fracassar, ficarei virtualmente indefeso».
—Vou tomar a sua mulher como você tomou à minha —Anthar olhava Shannon enquanto falava—.E depois a sangrarei e a deixarei morrer. E você vai presenciar , Gilgamesh, porque quero verte sofrer antes de te matar.
—Não tem força suficiente para me matar.
—Logo o comprovaremos.
Com a adaga na mão, inclinou-se para Shannon e esta gritou.
Nesse mesmo instante, ouviu-se um profundo estrondo seguido por uma chuva de passos na entrada. Sem necessidade de voltar-se, Damien soube que acabavam de chegar os imortais. Ouviu-se uma voz feminina tão potente como a da própria Inanna.
—Exatamente, de que classe de morte você gostaria de desfrutar?
Anthar teve então um momento de distração e aquilo foi tudo o que Damien necessitou. Girou em círculo a uma velocidade de vertigem e, um instante depois, um enorme lobo se equilibrava sobre aquele vampiro perverso.
Shannon tentou aferrar-se a sua escassa prudência enquanto observava horrorizada a aquele lobo que se equilibrava sobre a garganta de Anthar e retrocedia no instante no que este último se transformava em uma cobra. O lobo deu um salto no ar e se converteu em um falcão que se inclinou sobre ela para afastar à serpente. Shannon rodou sobre o altar de pedra, endireitou-se sobre os pés e saltou por volta das duas bestas enfrentadas. A serpente tinha encurralado ao falcão e ela tinha que impedir que o atacasse.
Mas de repente, um puxão a obrigou a deter-se. Uma mulher alta e esbelta, régia como uma rainha e com o cabelo da cor do ébano, agachou-se a seu lado para lhe desatar os tornozelos.
—Sou Rhiannon —disse no mesmo tom no que teria anunciado que era uma rainha.
Apartou Shannon para uma esquina em que estavam esperando Eric, Támara e outro homem que Shannon não conhecia. A seus pés descansava uma pantera negra que observava aos animais em combate com os olhos de um depredador.
—Nenhum deles é para ti, Pandora —a mulher acariciou a cabeça do felino carinhosamente, mas não apartava o olhar do campo de batalha.
Shannon girou médio esperando encontrar Damien agonizando no chão, mas viu um leão e a um jaguar rodando em um nó de garras e dentes.
—Façam algo! —gritou.
Támara posou a mão em seu ombro.
—Não sei o que podemos...
Interrompeu-se quando Shannon viu a adaga que tinha ficado tiragem no chão e se atirou para ela caindo de joelhos. Levantou-se lentamente com o olhar fixo nos combatentes, elevou a adaga por cima de sua cabeça e soltou um grito com uma voz que jamais se ouviu si mesmo.
A mulher alta a agarrou pelos ombros.
—Matarão-lhe, fica conosco! Damien quer que lhe levemos a um lugar seguro.
Shannon se voltou para ela.
—Não penso ir a nenhuma parte. Tenta me obrigar e desejará não havê-lo feito.
Támara arregalou os olhos e os dois homens ficaram em completo silêncio. A mulher olhou fixamente Shannon.
—Perdoarei-te, mas só por esta vez, novata.
Shannon ignorou o tom imperioso de suas palavras e se voltou de novo. Os animais haviam tornado a recuperar sua forma humana e permaneciam o um fronte ao outro ofegando e sangrando por diferentes feridas. Eric e o homem desconhecido se lançaram para eles, mas Damien os deteve elevando a mão.
—Tirem Shannon daqui, pelo amor da Inanna!
—Não me penso ir! —gritou ela.
—Anthar, isto para de uma vez. Não pode você enfrentar a todos nós —advertiu Roland.
—Quer que lhe demonstre isso? —sussurrou Anthar.
Endureceu seu olhar, intensificando a de uma maneira espetacular. Era como se desde seus olhos surgisse uma fonte de energia.
—Roland! —Rhiannon se jogou contra aquele homem, fazendo-o cair ao chão justo no momento no que estalava uma bola de fogo no ar.
Rhiannon se levantou e se enfrentou Anthar furiosa.
—OH, agora me pagará isso.
Anthar riu zombador, empurrou Damien e se agachou para tirar de sua bota uma gilete. Elevou a mão com intenção de afundá-la na garganta de Damien.
—Nãããoo!
Foi o grito de batalha de Shannon, que se atirou contra as costas daquele homem e lhe sujeitou a boneca com as duas mãos, tentando apartar- o de Damien com todas suas forças.
Anthar se desfez dela como o teria feito um cão de uma pulga. Shannon se sentiu voar no ar e aterrissou brutalmente no chão. Golpeou-se a cabeça contra o altar e, em que pese a sentir como se intensificava a dor e seu corpo se debilitava, obrigou-se a manter os olhos abertos.
Damien bulia de raiva. Apartou Anthar dele e concentrou seu olhar naquele canalha enquanto tentava incorporar-se.
O homem pareceu sentir o ódio de seu olhar. Ficou quieto durante um instante e se voltou para Damien.
—Pode fazê-lo, verdade? —arqueou as sobrancelhas e avançou para ele com expressão ameaçadora. A pantera grunhiu—. Mas tenho uma pergunta melhor: pode fazê-lo suficientemente rápido?
Anthar estendeu o braço, fazendo um arco mortal e aproximando a gilete do pescoço de Damien. O ia decapitar!
Damien permaneceu em seu lugar, endurecendo seu olhar, e Anthar ficou paralisado. Começou a tremer e a vibrar da cabeça aos pés. De seus olhos saía um fio de fumaça que serpenteava até seu cabelo. Um tremor sacudiu o chão do templo e um rugido acompanhou o momento no que Anthar estalou convertido em uma bola de fogo. E de repente o silêncio. Anthar tinha desaparecido.
Damien se deixou cair ao chão como se aquele ato lhe tivesse roubado toda sua energia. Shannon correu para ele e embalou seu rosto entre as mãos. Não podia falar, limitava-se a gemer brandamente e a balançá-lo contra ela enquanto deixava que fluíssem as lágrimas. Deus, amava-o. Não se tinha dado conta de quanto até que tinha pensado que ia morrer por tentar salvá-la.
Damien lhe rodeou a cintura com os braços e posou a cabeça em seu ventre.
—Tudo terminou Shannon. Agora está a salvo —sussurrou, enquanto se incorporava para beijar suas bochechas empapadas em lágrimas—. E livre de mim. Pode ir com outros. Um dia mais, Shannon, e te recuperará. Depois poderá ir onde queira. Só espero que possa encontrar alguma satisfação nesta vida que te condenei a viver.
Shannon pestanejou e as lágrimas cessaram bruscamente.
—Teremos que ficar aqui durante todo o dia —observou Támara.
Estava sentada no chão e observou Eric aproximar-se de Damien. Shannon se tinha retirado repentinamente depois de que Damien lhe houvesse dito que podia ir-se logo. Damien não podia vê-la, não sabia se estava feliz pela notícia ou zangada ao saber que teria que esperar um dia mais. Eric lhe tendeu a mão e Damien a aceitou, deixando que o ajudasse a levantar-se.
—Temo-me que não fui que muita ajuda —comentou Eric em voz alta, e em silêncio acrescentou: «por Deus, Damien, saltou sobre esse vampiro para te salvar».
—Ajudaste-me mais do que criem.
E era certo. Não só sua chegada tinha tirado o Anthar de sua concentração, mas também eles haviam sentido seu apoio. O calor da amizade. Algo que não havia tornado a sentir desde fazia séculos.
«Tentou me ajudar porque sentia que me devia isso por lhe haver salvado a vida».
—Bom, pelo menos posso te curar o pior dessas feridas.
Normalmente, Damien teria rechaçado a ajuda e teria insistido em cuidar de si mesmo. Mas não naquele momento. Permaneceu muito quieto enquanto Eric se arrancava uma manga da camisa e começava a rasgá-la para fazer ataduras com ela.
—Támara tem razão, sabe? —observou Damien em voz suficientemente alta como para que todo mundo, Shannon incluída, pudesse ouvi-lo. Queria que compreendesse que não estava prolongando sua estadia ali deliberadamente—. Não poderíamos ir muito longe antes do amanhecer. É preferível que fiquemos, descansemos e vamos amanhã ao anoitecer.
Olhou Shannon para ver se esta o tinha compreendido. Viu-a ajoelhar-se ao lado da Támara para abraçá-la.
—Pensava que tinha morrido —sussurrou Shannon.
—Quando aterrissei, quase o teria preferido, mas agora estou bem.
Shannon sacudiu a cabeça lentamente. Roland, o recém-chegado, permanecia apoiado contra uma parede enquanto Rhiannon tirava uma tira da prega de seu vestido de cetim e a empregava para lhe fazer uma tipóia. Devia haver-se ferido ao cair no chão. Fez uma careta de dor e Damien viu que a mulher se doía com ele. A preocupação escurecia seus olhos quando o olhava. Damien sentiu a pontada do ciúme. Por que não poderia olhá-lo Shannon daquela maneira?
«Tem-no feito faz uns segundos», disse Eric.
—Deveria ir ao médico —sussurrou Shannon. Olhou Damien, que estava tentando conter a hemorragia de uma pequena ferida no braço—. E também você, Damien.
Támara lhe aconteceu à mão pelo cabelo a sua amiga.
—Todas as feridas sanassem enquanto descansamos durante o dia. Não lhe explicou isso ninguém ainda? —olhou Damien com expressão acusadora.
Damien se limitou a encolher-se de ombros.
—Shannon ainda tem muito que aprender. E tempo mais que suficiente para fazê-lo. Acredito que agora vou procurar uma habitação mais pequena. Depois da briga, só gosta de descansar.
Evitou o olhar de Shannon. Não queria vê-la mais. Doía-lhe saber que logo o abandonaria.
Rhiannon se separou do Roland para aproximar-se de Damien no momento no que este se movia para partir. Estava sorrindo. Parecia flutuar sobre o chão, mais que caminhar, até que se deteve frente a ele com o queixo alta e olhar resplandecente.
—Não até que tenhamos sido apresentados. Assim que você é o grande Damien, do que tanto ouvi falar.
—E você é Rhiannon, princesa do Egito. Eu também ouvi falar de ti.
—Meus amigos estiveram a ponto de morrer por ti.
—Não foi culpa dela, Rhiannon —a voz da Támara não conseguiu aplacar o fogo de seus olhos, mas Roland fechou a mão sobre seu ombro e suas palavras sim o conseguiram.
—Acredito que não são minhas imaginações, Damien. O lobo ao que vi lutando me resultava terrivelmente familiar. Esse lobo e eu nos vimos antes, verdade?
Damien desviou o olhar e Rhiannon olhou ao Roland com o cenho franzido.
—Lobo? Quer dizer que...?
—Na França, meu amor, quando fui capturado por Luden e estava imobilizado, temendo a chegada do amanhecer, veio um lobo para me buscar e me pôs o resguardo em uma cova. Esse lobo tinha um olhar inteligente...
Damien se limitou a assentir e se transladou à habitação mais próxima. Ao ajudar Roland tinha traído sua própria promessa de isolamento. Mas estava de gira por aquela zona e havia sentido claramente o desespero daquele homem. E inclusive ao tomar a decisão de ajudá-lo, tinha decidido fazer o de maneira oculta. Então não queria a gratidão de ninguém. Nem a amizade.
O que equivocado estava. Naquele momento desfrutava da amizade de todos eles. Inclusive do Rhiannon. Sim, contava com sua amizade.
Mas não tinha o que mais desejava. Shannon. Não só a ela, mas também seu coração. Seu amor.
—Procurem encontrar um lugar no que descansar no que estejam seguros de que não pode entrar a luz —se voltou de novo para a escuridão.
Roland baixou a cabeça e desapareceu em outra das habitações. A pantera se separou do Rhiannon para aproximar-se de Shannon e começar a brincar com sua mão. Shannon acariciou ao animal, pestanejando surpreendida.
—Chama-se Pandora. E normalmente lhe dá muito bem julgar às pessoas.
Shannon se voltou para os olhos amendoados do Rhiannon e a viu sorrir ligeiramente.
—Não todo mundo tem o valor de me desafiar. A verdade é que quase ninguém se atreve a fazê-lo.
—Sinto-o —se desculpou Shannon—. Sei que só estava tentando me ajudar —olhou para a habitação em que tinha desaparecido Damien com um nó na garganta—. Mas não podia deixá-lo partir.
—Equilibraste-te sobre uma criatura que poderia te haver matado.
—Tinha que tentá-lo.
—Sim, uma mulher apaixonada sempre tem que tentá-lo —respondeu Rhiannon com um sorriso, e se dirigiu à habitação pela que Roland tinha desaparecido.
Shannon baixou o olhar para o chão, onde permaneciam sentados Eric e Támara com as mãos entrelaçadas. Támara olhou Shannon e assentiu. Umedecendo-os lábios, esta última quadrou os ombros, voltou-se e entrou na habitação a que Damien tinha ido.
Damien soube que estava ali inclusive antes de ouvi-la chegar. Gemeu para si, mas havia outra voz em seu interior que se emocionava ao saber que ia poder desfrutar de uns minutos a sós com ela antes que partisse.
Estava sentado no chão. Shannon cruzou a habitação e se sentou a seu lado.
—Já perdi a conta do número de vezes que me salvaste a vida.
Damien não respondeu. Shannon estava muito perto dele, mas não o roçava. Ele morria por lhe acariciar sua juba sedosa e saborear sua boca uma vez mais.
—Estive pensando muito —sussurrou ela—. Principalmente em ti. No homem que conheci e no que agora conheço. E agora sei que é o mesmo. Damien ou Gilgamesh, mortal ou imortal. O mesmo.
Damien a observava enquanto ela tentava encontrar as palavras adequadas, enquanto esperava a que continuasse e lhe dissesse os motivos pelos que ia deixá-lo.
—Tinha medo de algo que não compreendia e estava zangada porque sentia que tinha tomado o controle da situação.
—Isso se deve a sua infância —disse Damien brandamente, incapaz de continuar em silêncio—. É compreensível, Shannon. Se o homem que tentou abusar de ti não estivesse morto, mataria-o eu mesmo —lutou contra a raiva que crescia em seu interior—. Sei como se sentia. Não tinha nenhum direito a atuar sem seu consentimento.
—Pergunto-me qual teria sido minha resposta — tomou ar e o soltou lentamente—. Também estive pensando muito nisso. E, sabe?, Acredito que se tivesse sabido o que agora sei, teria estado de acordo.
Damien voltou à cabeça e a olhou aos olhos.
—Quando estava lutando com o Anthar... Deus tinha tanto medo de que te matasse... E comecei a me perguntar o que faria como poderia viver sem ti.
—Não tem que depender de mim, Shannon. Qualquer dos outros pode te ensinar o que precisa saber.
Shannon sacudiu a cabeça e o olhou aos olhos.
—Mas eu não quero que me ensine nenhum deles, Damien. Quero que você ensine.
Damien baixou a cabeça. Resultava-lhe muito doloroso continuar olhando-a nos olhos.
—Assim decidiste que pode suportar a idéia de ser imortal e que você gostaria que eu te ensinasse a sê-lo. Mas, Shannon, eu... Não posso fazê-lo. Não posso estar perto de ti sem estar contigo. Desejo-te muito e não sou suficientemente forte para continuar lutando. Amo-te, Shannon —a frustração o urgia a golpear as paredes com os punhos.
Shannon também se levantou. Elevou a mão para o broche que sujeitava sua túnica.
—Não, Shannon.
Um segundo depois, a túnica se converteu em uma nuvem branca que descansava a seus pés.
Damien fechou os olhos, mas nada podia obrigá-lo a voltar-se. Shannon estava tão formosa, nua frente a ele e iluminada pela luz da tocha... Alargou para ela suas mãos vacilantes e se deteve. Mas não podia deter-se. Já fora gratidão ou simples desejo, não podia rechaçá-la quando sabia que seria a última vez.
Posou a mão em seu braço.
—Shannon...
—Hei-te dito que teria aceitado esta opção se me houvesse isso dito antes que caísse doente —lhe disse—. Mas não me perguntaste por que.
Damien deslizou a mão pela curva perfeita de suas costas, estreitou-a contra ele e inclinou a cabeça para beijar seu pescoço, seu queixo, seu rosto. Tomou o lóbulo da orelha do Shannon entre seus dentes. Aquela mulher parecia querer voltá-lo louco.
—Me pergunte por que, Damien.
Damien tomou sua boca e Shannon lhe respondeu da mesma maneira. Maldita fora, como a desejava. Até sabendo que assim só conseguiria sofrer quando partisse. Ajoelhou-se para lhe lamber os seios e seu sangue se inflamou quando Shannon o sustentou frente a ela. Riscou um caminho de beijos por seu ventre, lambeu seu umbigo e continuou descendendo para saborear sua secreta doçura. Desejava-a toda, cada milímetro de seu corpo.
Shannon ofegou, suas mãos tremiam sobre a nuca de Damien enquanto este a levava a loucura com as mãos e a língua. Sussurrou seu nome e ele utilizou os dentes, sorrindo ao sentir que se estremecia.
Shannon cederam os joelhos e ele continuou acompanhando seu corpo com a boca enquanto se desabotoava as calças. Tinha que fazer amor com ela por última vez. Assegurar-se de que nunca o esquecesse.
Alargou a mão até seu rosto, entreabriu seus lábios com a língua e a deslizou em seu interior enquanto a urgia a abrir as coxas e se pressionava contra sua umidade. Shannon arqueou os quadris para que acessasse a seu interior e Damien o fez com entusiasmo.
Conduziu-a sem contemplações pelo caminho do êxtase e quando estava chegando a bordo daquele precipício, sentiu os dentes de Shannon na garganta. Shannon sorveu a essência de seu corpo enquanto alcançava a liberação do clímax. O orgasmo de Damien foi uma réplica do dela e Shannon se aferrou a ele como se estivesse afogando. Depois, relaxou-se sob seu corpo.
—Não se pareceu a nada do que poderia haver imaginado —sussurrou Shannon com assombro.
Damien se tombou a seu lado e lhe fez elevar a cabeça para apoiá-la em seu braço.
—Tem os sentidos mais afinados. Agora sente tudo com muita mais intensidade —lhe deu um beijo na bochecha. Tudo tinha sido muito rápido. Deveria haver tentando prolongá-lo. Mas já tudo tinha terminado. Maldita fora, tudo tinha terminado.
—Certamente —Shannon abriu os olhos e o olhou muito séria—. Me pergunte por que teria eleito viver, Damien.
Damien tragou saliva antes de fazê-lo.
—Por que teria elegido viver, Shannon?
—Não porque tivesse medo à morte. Nem porque queria procurar a vida e a juventude eternas. Nem para vingar a morte de Tawny —se interrompeu e elevou a cabeça até que seus lábios estiveram a menos de um milímetro dos seus—. Mas sim porque te amo.
—Shannon... —Damien emoldurou seu rosto entre as mãos e a beijou afundando a língua em sua boca.
—Jamais te deixarei Damien, Gilgamesh. Sempre serei tua. Jamais terá que caminhar sozinho. E tampouco eu.
Damien lhe devolveu o beijo. E naquele instante, começou a lenta cura de sua mais antiga e profunda ferida.
Maggie Shayne
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