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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


IMAGINA-ME
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28. KENJI

Quando finalmente chegamos ao complexo, estou exausto, com sede e realmente preciso usar o banheiro. Warner não sente nada disso, aparentemente, porque Warner é feito de urânio, plutônio ou alguma coisa assim, então eu tenho que implorar para que ele me deixe fazer uma pausa rápida. E com implorar para ele eu quero dizer que eu o agarro pelas costas da camisa e o forço a desacelerar – e então basicamente desmorono atrás de uma parede. Warner se afasta de mim, e o som de sua expiração irritada é tudo o que preciso para saber que meu intervalo está a meio segundo de acabar.

— Nós não fazemos pausas — diz ele bruscamente. — Se você não consegue acompanhar, fique aqui.

— Mano, eu não estou pedindo para parar. Eu nem estou pedindo uma pausa de verdade. Eu só preciso de um segundo para recuperar o fôlego. Dois segundos. Talvez cinco segundos. Isso não é loucura. E só porque eu tenho que recuperar o fôlego, não significa que eu não amo J. Isso significa que nós apenas corremos milhares de quilômetros. Isso significa que meus pulmões não são feitos de aço.

— Duas milhas — diz ele. — Corremos duas milhas.

— No sol. Morro acima. Você está com a porra de um terno. Você sequer suou? Como você não está cansado?

— Se agora você não entende, eu certamente não posso te ensinar.

Eu me levanto. Começamos a nos mover novamente.

— Eu não tenho certeza se quero saber do que você está falando — digo, abaixando a voz enquanto pego minha arma. Estamos dobrando a esquina da entrada, onde nosso plano grande e sofisticado de invadir o prédio envolve esperar alguém abrir a porta e passar por ela antes que se feche.

Ainda sem sorte.

— Ei — eu sussurro.

— O quê? — Warner parece irritado.

— Como você fez o pedido?

Silêncio.

— Vamos lá, mano. Estou curioso. Além disso, eu realmente preciso fazer xixi, então, se você não me distrair agora, tudo em que vou pensar é em quanto tenho que fazer xixi.

— Sabe, às vezes eu gostaria de poder remover a parte do meu cérebro que armazena as coisas que você me diz.

Eu ignoro isso.

— Então? Como você fez isso? — Alguém se aproxima da porta e eu fico tenso, pronto para pular para a frente, mas não há tempo suficiente. Meu corpo relaxa de volta contra a parede. — Você conseguiu o anel como eu te disse?

— Não.

— O quê? Como assim, não? — Eu hesito. — Você, pelo menos, acendeu uma vela? Fez o jantar dela?

— Não.

— Comprou chocolates para ela? Ficou de joelhos?

— Não.

— Não? Não, você não fez nenhuma dessas coisas? Nenhuma delas? — Meus sussurros estão se transformando em gritos de sussurro. — Você não fez uma única coisa que eu lhe disse para fazer?

— Não.

— Filho da puta.

— Por que isso importa? — ele pergunta. — Ela disse sim.

Eu gemo.

— Você é o pior, sabe disso? O pior. Você não a merece.

Warner suspira.

— Eu pensei que isso já era óbvio.

— Ei, não ouse me fazer sentir pena de você...

Eu me interrompo quando a porta se abre de repente. Um pequeno grupo de médicos (cientistas? Não sei) sai do prédio, e Warner e eu nos levantamos e ficamos em posição.

Esse grupo tem apenas pessoas suficientes – e elas demoram apenas o suficiente para sair – que quando eu agarro a porta e a abro por mais alguns segundos, parece que ela não registra isso.

Estamos dentro.

E só entramos por menos de um segundo antes de Warner me empurrar na parede, retirando o ar dos meus pulmões.

— Não se mexa — ele sussurra. — Nem uma polegada.

— Por que não? — Eu chio.

— Olhe para cima — ele diz — mas apenas com seus olhos. Não mexa a cabeça. Você vê as câmeras?

— Não.

— Eles nos anteciparam — diz ele. — Eles anteciparam nossos movimentos. Olhe para cima novamente, mas faça-o com cuidado. Esses pequenos pontos pretos são câmeras.

Sensores. Scanners infravermelhos. Termovisores. Eles estão procurando inconsistências nas imagens de segurança.

— Merda.

— Sim.

— Então, o que fazemos?

— Não tenho certeza — diz Warner.

— Você não tem certeza? — Eu digo, tentando não surtar. — Como você pode não ter certeza?

— Estou pensando — ele sussurra, irritado. — E eu não ouço você contribuindo com nenhuma ideia.

— Escute, mano, tudo que eu sei é que eu realmente preciso...

Sou interrompido pelo som distante de uma descarga do banheiro. Um momento depois, uma porta se abre. Viro a cabeça um milímetro e percebo que estamos ao lado do banheiro masculino.

Warner e eu aproveitamos o momento, pegando pegando a porta antes que ela se feche. Uma vez dentro do banheiro, nos pressionamos contra a parede, de costas para o azulejo frio. Estou tentando não pensar em todos os resíduos de xixi que tocam meu corpo, quando Warner exala.

É um som breve e silencioso – mas ele parece aliviado.

Acho que isso significa que não há scanners ou câmeras neste banheiro, mas não tenho certeza, porque Warner não diz uma palavra e não é preciso um gênio para descobrir o porquê.

Não temos certeza se estamos sozinhos aqui.

Não consigo vê-lo fazer isso, mas estou certo de que Warner está verificando as cabines agora. É o que estou fazendo, de qualquer maneira. Este não é um banheiro enorme – como tenho certeza de que é um de muitos – e fica ao lado da entrada/saída do prédio, então, no momento, não parece estar recebendo muito tráfego.

Quando temos certeza de que o banheiro está limpa, Warner diz: — Nós vamos subir, através da abertura. Se você realmente precisa usar o banheiro, faça isso agora.

— Ok, mas por que você tem que parecer tão enojado com isso? Você realmente espera que eu acredite que você nunca precisa usar o banheiro? As necessidades humanas básicas estão abaixo de você?

Warner me ignora.

Vejo a porta da cabine aberta e ouço seus sons cuidadosos enquanto ele sobe nos cubículos de metal. Há uma grande abertura no teto, logo acima de uma dos vasos, e eu observo enquanto as mãos invisíveis dele fazem um pequeno trabalho na grade.

Rapidamente, eu uso o banheiro. E então lavo minhas mãos o mais alto possível, para o caso de Warner sentir a necessidade de fazer um comentário juvenil sobre minha higiene.

Surpreendentemente, ele não faz.

Em vez disso, ele diz:

— Você está pronto? — E eu posso dizer pelo som ecoante de sua voz que ele já está na metade da abertura.

— Estou pronto. Apenas me avise quando estiver dentro.

Mais movimentos cuidadosos, metal tamborilando.

— Estou dentro — diz ele. — Certifique-se de recolocar a grade depois de subir.

— Entendi.

— Em uma nota relacionada, espero que você não seja claustrofóbico. Embora se você for... Boa sorte.

Eu respiro fundo.

Solto.

E começamos nossa jornada para o inferno.


29. ELLA

JULIETTE

Max, Anderson, uma mulher loira e um negro alto estão todos de pé no centro da sala, olhando para um corpo morto, e só olham para cima quando Ibrahim se aproxima.

Os olhos de Anderson se voltam para mim imediatamente.

Eu sinto meu coração pular. Não sei como Max chegou aqui antes de nós, e não sei se vou ser punida por obedecer ao Comandante Supremo Ibrahim.

Minha mente espirala.

— O que ela está fazendo aqui? — Anderson pergunta, sua expressão selvagem. — Eu disse a ela para ficar no q...

— Eu anulei suas ordens — diz Ibrahim bruscamente — e disse a ela para vir comigo.

— Meu quarto é um dos locais mais seguros nesta ala — diz Anderson, mal segurando a raiva. — Você colocou todos nós em risco, movendo-a.

— Atualmente estamos sob ataque — diz Ibrahim. — Você a deixa sozinha, completamente desacompanhada...

— Eu a deixei com Max!

— Max, que tem muito medo de sua própria criação para passar alguns minutos sozinho com a garota. Você esquece que há uma razão para ele nunca ter recebido uma posição militar.

Anderson lança a Max um olhar estranho e confuso. De alguma forma, a confusão no rosto de Anderson me faz sentir melhor por conta própria. Eu não tenho ideia do que está acontecendo. Não faço ideia a quem devo responder. Não faço ideia do que Ibrahim quis dizer com criação.

Max apenas balança a cabeça.

— As crianças estão aqui — diz Ibrahim, mudando de assunto. — Eles estão aqui, em nosso meio, completamente indetectados. Eles estão indo de sala em sala procurando por ela e já mataram quatro de nossos principais cientistas no processo. — Ele acena com a cabeça para o cadáver – um homem grisalho e de meia-idade, com sangue caindo embaixo dele. — Como isso aconteceu? Por que eles ainda não foram vistos?

— Nada foi registrado nas câmeras — diz Anderson. — Ainda não, pelo menos.

— Então você está me dizendo que este – e os outros três cadáveres que encontramos até agora – foi obra de fantasmas?

— Eles devem ter encontrado uma maneira de enganar o sistema — diz a mulher. — É a única resposta possível.

— Sim, Tatiana, eu percebo isso – mas a questão é como. — Ibrahim aperta o nariz entre o polegar e o indicador. E está claro que ele está falando com Anderson quando diz:

— Todos os preparativos que você alegou ter feito antes de um possível ataque – eles foram todos por nada?

— O que você esperava? — Anderson não está mais tentando controlar sua raiva. — Eles são nossos filhos. Nós os criamos para isso. Eu ficaria decepcionado se eles fossem estúpidos o suficiente para cair em nossas armadilhas imediatamente.

Nossos filhos?

— Chega — Ibrahim chora. — Já chega disso. Precisamos iniciar a transferência agora.

— Eu já te disse por que não podemos — diz Max com urgência. — Ainda não. Precisamos de mais tempo. Emmaline ainda precisa cair abaixo da viabilidade de dez por cento para que o procedimento funcione sem problemas e, agora, ela está com doze por cento. Mais alguns dias – talvez algumas semanas – e poderemos avançar. Mas qualquer coisa acima de 10 por cento de viabilidade significa que há uma chance de que ela ainda seja forte o suficiente para resistir...

— Eu não ligo — diz Ibrahim. — Nós esperamos o tempo suficiente. E perdemos tempo e dinheiro suficientes tentando mantê-la viva e sua irmã sob nossa custódia. Não podemos arriscar outra falha.

— Mas iniciar a transferência com doze por cento de viabilidade tem trinta e oito por cento de chance de falha — diz Max, falando rapidamente. — Poderíamos estar arriscando muito...

— Então encontre mais maneiras de reduzir a viabilidade — retruca Ibrahim.

— Já estamos no topo do que podemos fazer agora — diz Max. — Ela ainda é muito forte – ela está lutando contra nossos esforços...

— Essa é apenas mais uma razão para se livrar dela mais cedo — diz Ibrahim, interrompendo-o novamente. — Estamos gastando uma quantidade notória de recursos apenas para manter as outras crianças isoladas de seus avanços – quando Deus sabe apenas que dano ela já causou. Ela está se intrometendo em todos os lugares, causando desastres desnecessários. Precisamos de um novo hospedeiro. Um saudável. E precisamos disso agora.

— Ibrahim, não seja precipitado — diz Anderson, tentando parecer calmo. — Isso pode ser um grande erro. Juliette é um soldado perfeito – ela é mais do que provou a si mesma – e agora ela pode ser uma grande ajuda. Em vez de trancá-la, devemos enviá-la. Dar-lhe uma missão.

— Absolutamente não.

— Ibrahim, ele fez uma boa observação — diz o homem alto e negro. — As crianças não estarão esperando por ela. Ela seria a atração perfeita.

— Vê? Azi concorda comigo.

— Eu não. — Tatiana balança a cabeça. — É muito perigoso — diz ela. — Muitas coisas podem dar errado.

— O que poderia dar errado? — Pergunta Anderson. — Ela é mais poderosa que qualquer um deles e completamente obediente a mim. A nós. Ao movimento. Todos vocês sabem tão bem quanto eu que ela provou sua lealdade repetidas vezes. Ela seria capaz de capturá-los em questão de minutos. Tudo pode acabar em uma hora, e poderemos seguir em frente com nossas vidas. — Anderson trava os olhos comigo. — Você não se importaria de reunir alguns rebeldes, não é, Juliette?

— Eu ficaria feliz, senhor.

— Vê? — Anderson gesticula para mim.

Um alarme repentino soa, o som tão alto que é doloroso. Ainda estou enraizada no lugar, tão sobrecarregada e confusa com essa repentina inundação de informações estonteantes que nem sei o que fazer comigo mesma. Mas os comandantes supremos parecem subitamente aterrorizados.

— Azi, onde está Santiago? — Tatiana chora. — Você foi o último com ele, não foi? Alguém confere com Santiago...

— Ele caiu — diz Azi, batendo contra sua têmpora. — Ele não está respondendo.

— Max — Anderson diz bruscamente, mas Max já está correndo pela porta, Azi e Tatiana nos calcanhares.

— Vá buscar seu filho — Ibrahim late para Anderson.

— Por que você não vai buscar sua filha? — Anderson atira de volta.

Os olhos de Ibrahim se estreitam.

— Estou pegando a garota — diz ele calmamente. — Estou terminando este trabalho e farei isso sozinho, se for necessário.

Anderson olha de mim para Ibrahim. — Você está cometendo um erro — diz ele. — Ela finalmente se tornou nosso patrimônio. Não deixe seu orgulho impedi-lo de ver a resposta diante de nós. Juliette deve ser a pessoa rastreando as crianças agora. O fato de eles não a anteciparem como agressora os torna alvos mais fáceis. É a solução mais óbvia.

— Você está louco — grita Ibrahim — se você acha que sou tolo o suficiente para correr esse risco. Não vou entregá-la aos seus amigos como um idiota comum.

Amigos?

Eu tenho amigos?

— Ei, princesa — alguém sussurra no meu ouvido.


30. KENJI

Warner me dá um tapa na cabeça.

Ele me puxa de volta, me agarrando com força pelo ombro e arrasta nós dois pelo laboratório excessivamente brilhante e extremamente assustador.

Quando estamos longe o suficiente de Anderson, Ibrahim e Robô J, espero que Warner diga alguma coisa – qualquer coisa...

Ele não diz nada.

Nós dois assistimos à conversa distante ficar mais aquecida a cada momento, mas não podemos realmente ouvir o que eles estão dizendo daqui. Embora eu ache que, mesmo que pudéssemos ouvir o que eles estavam dizendo, Warner não estaria prestando atenção. A luta parece ter deixado seu corpo. Eu não posso nem vê-lo agora, mas posso sentir. Algo sobre seus movimentos, seus suspiros silenciosos.

Sua mente está em Juliette.

Juliette, que parece a mesma. Melhor, de fato. Ela parece saudável, os olhos brilhantes, a pele brilhando. Seu cabelo está solto – longo, pesado, escuro – do jeito que era a primeira vez que a vi.

Mas ela não é a mesma. Até eu consigo ver isso.

E é devastador.

Eu acho que isso é de alguma forma melhor do que se ela tivesse substituído Emmaline por completo, mas essa versão estranha, robótica e super soldado de J também é profundamente preocupante.

Eu acho.

Continuo esperando Warner finalmente quebrar o silêncio, para me dar uma indicação de seus sentimentos e/ou teorias sobre o assunto – e talvez, enquanto ele estiver nisso, me oferecer sua opinião profissional sobre o que diabos devemos fazer a seguir – mas os segundos continuam passando em perfeito silêncio.

Finalmente desisto.

— Tudo bem, coloque para fora — eu sussurro. — Diga-me o que você está pensando.

Warner deixa escapar um longo suspiro.

— Isso não faz sentido.

Concordo, mesmo que ele não possa me ver.

— Entendi. Nada faz sentido em situações como estas. Eu sempre sinto que é injusto, você sabe, como o mundo...

— Não estou sendo filosófico — diz Warner, me cortando. — Quero dizer que literalmente não faz sentido. Nouria e Sam disseram que a Operação Síntese tornaria Ella um super soldado – e que, uma vez que o programa entrasse em vigor, o resultado seria irreversível.

— Mas isso não é Operação Síntese — diz ele. — A Operação Síntese é literalmente sobre sintetizar os poderes de Ella e Emmaline, e agora, não há...

— Síntese — eu digo. — Entendi.

— Isso não parece certo. Eles fizeram as coisas fora de ordem.

— Talvez eles tenham surtado depois que a tentativa de Evie de limpar a mente de J não funcionou. Talvez eles precisassem encontrar uma maneira de consertar essa falha, e rápido. Quero dizer, é muito mais fácil mantê-la por perto se ela for dócil, certo? Fiel aos seus interesses. É muito mais fácil do que mantê-la em uma cela, pelo menos. Cuidando dela constantemente. Monitorando cada movimento dela. Sempre preocupados que ela transforme o papel higiênico em uma faca e saia.

— Honestamente — dou de ombros — parece que eles estão ficando preguiçosos. Eu acho que eles estão cansados e exaustos de J sempre irromper e revidar. Esse é literalmente o caminho de menor resistência.

— Sim — diz Warner lentamente. — Exatamente.

— Espere – exatamente o quê?

— O que eles fizeram com ela – iniciando prematuramente essa fase – foi feito às pressas. Foi um trabalho de correção.

Uma lâmpada pisca para a vida na minha cabeça.

— O que significa que o trabalho deles foi desleixado.

— E se o trabalho deles foi desleixado...

— ...definitivamente existem buracos.

— Pare de terminar minhas frases — diz ele, irritado.

— Pare de ser tão previsível.

— Pare de agir como uma criança.

— Pare você de agir como uma criança.

— Você está sendo ridicu...

Warner fica subitamente silencioso quando a voz trêmula e irritada de Ibrahim explode através do laboratório.

— Eu disse, saia do caminho.

— Eu não posso deixar você fazer isso — diz Anderson, sua voz ficando mais alta. — Você não acabou de ouvir esse alarme? Santiago caiu. Eles mataram outro comandante supremo. Por quanto tempo vamos deixar isso continuar? — Juliette — diz Ibrahim bruscamente. — Você vem comigo.

— Sim, senhor.

— Juliette, pare — exige Anderson.

— Sim, senhor.

O que diabos está acontecendo?

Warner e eu nos inclinamos para ver melhor, mas não importa o quão perto chegamos; Eu ainda não consigo acreditar nos meus olhos.

A cena é surreal.

Anderson está protegendo Juliette. O mesmo Anderson que gastou tanto de sua energia tentando matá-la – agora está de pé na frente dela, com os braços estendidos, protegendo-a com a vida.

O que diabos aconteceu enquanto ela estava aqui? Anderson conseguiu um novo cérebro? Um novo coração? Um parasita?

E sei que não estou sozinho em minha confusão quando ouço Warner murmurar: "O que diabos?"

— Pare de ser tolo — diz Anderson. — Você está se aproveitando de uma tragédia para tomar uma decisão não autorizada, quando você sabe, assim como eu, que todos precisamos concordar com algo tão importante antes de avançar. Só estou pedindo para você esperar, Ibrahim. Espere os outros voltarem e nós colocaremos isso em votação. Deixe o conselho decidir.

Ibrahim puxa uma arma para Anderson.

Ibrahim puxa uma arma para Anderson.

Eu quase perco a cabeça. Eu suspiro tão alto que quase assopro.

— Afaste-se, Paris — diz ele. — Você já arruinou esta missão. Eu lhe dei dezenas de chances de acertar. Você me deu sua palavra de que interceptaríamos as crianças antes mesmo de pisarem no prédio, e veja como isso acabou. Você prometeu para mim, para todos nós, uma e outra vez que você faria isso certo e, em vez disso, tudo o que você faz é nos custar nosso tempo, nosso dinheiro, nosso poder, nossas vidas. Tudo.

— Agora cabe a mim corrigir isso — diz Ibrahim, com raiva, deixando sua voz instável.

Ele balança a cabeça.

— Você nem entende, não é? Você não entende o quanto a morte de Evie nos custou. Você não entende quanto do nosso sucesso foi construído com o gênio dela, os avanços tecnológicos dela. Você não entende que Max nunca será o que Evie era – que ele nunca poderia substituí-la. E você parece não entender que ela não está mais aqui para perdoar seus erros constantes.

— Não — ele diz. — Agora depende de mim. Cabe a mim consertar as coisas, porque eu sou o único com a cabeça na vertical. Eu sou o único que parece entender a enormidade do que está à nossa frente. Eu sou o único que vê o quão perto estamos da completa e total ruína. Estou determinado a consertar isso, Paris, mesmo que isso signifique derrubá-lo no processo. Então se afaste.

— Seja razoável — diz Anderson, com os olhos cautelosos. — Eu não posso simplesmente me afastar. Quero nosso movimento – tudo o que trabalhamos tão duro para construir – também quero que seja um sucesso. Certamente você deve perceber isso. Você deve perceber que não desisti da minha vida por nada; você deve saber que minha lealdade é com você, com o conselho, com O Restabelecimento. Mas você também deve saber que ela vale muito. Não posso deixar isso passar tão facilmente. Nós chegamos longe demais.

Todos nós fizemos muitos sacrifícios para estragar tudo agora.

— Não force minha mão, Paris. Não me faça fazer isso.

J dá um passo à frente, prestes a dizer algo, e Anderson empurra seu corpo atrás dele.

— Eu ordenei que você ficasse em silêncio — diz ele, olhando para ela. — E agora estou ordenando que você permaneça segura, a todo custo. Você me ouviu, Juliette? Você...

Quando o tiro soa, eu não acredito.

Eu acho que minha mente está pregando peças em mim. Eu acho que isso é algum tipo de interlúdio esquisito – um sonho estranho, um momento de confusão – eu continuo esperando a cena mudar. Limpar. Redefinir.

Não faz.

Ninguém pensou que isso iria acontecer assim. Ninguém pensou que os comandantes supremos se destruiriam. Ninguém pensou que veríamos Anderson ser derrubado por alguém, ninguém pensou que ele seguraria seu peito sangrando e usaria seu último suspiro para dizer: — Corra, Juliette. Corra...

Ibrahim atira novamente e, desta vez, Anderson fica em silêncio.

— Juliette — diz Ibrahim — você vem comigo.

J não se mexe.

Ela está congelada no lugar, encarando a figura imóvel de Anderson. Isso é tão estranho. Eu continuo esperando ele acordar. Continuo esperando que seus poderes de cura entrem em ação. Continuo aguardando aquele momento irritante em que ele volta à vida, segurando um lenço de bolso em seu ferimento...

Mas ele não se mexe.

— Juliette — diz Ibrahim bruscamente. — Você vai me responder agora. E estou ordenando que você me siga.

J olha para ele. O rosto dela está em branco. Os olhos dela estão em branco.

— Sim, senhor — diz ela.

E é aí que eu sei.

É quando eu sei exatamente o que vai acontecer a seguir. Eu posso sentir, sentir alguma eletricidade estranha no ar antes que ele faça seu movimento. Antes que ele estrague nossa cobertura.

Warner retira sua invisibilidade.

Ele fica ali imóvel por apenas um momento, por tempo suficiente para Ibrahim registrar sua presença, gritar, pegar sua arma. Mas ele não é rápido o suficiente.

Warner está a três metros de distância quando Ibrahim fica subitamente relaxado, quando ele engasga e a arma escapa de sua mão, quando seus olhos se arregalam. Uma fina linha vermelha aparece no meio da testa de Ibrahim, uma corrente aterradora de sangue que precipita o som repentino e suave de seu crânio se abrindo. É o som de rasgar carne, um som inócuo que me lembra o rasgar de uma laranja. E não demora muito para que os joelhos de Ibrahim caiam no chão. Ele cai sem graça, seu corpo desmorona.

Eu sei que ele está morto porque eu posso ver diretamente dentro do seu crânio. Os pedaços de sua matéria cerebral carnuda se espalham pelo chão.

Isso, eu acho, é o tipo de merda horrível que J é capaz.

É disso que ela sempre foi capaz. Ela sempre foi uma pessoa boa demais para usá-lo.

Warner, por outro lado...

Ele nem parece incomodado pelo fato de ter apenas rasgado o crânio de um homem.

Ele parece totalmente calmo sobre a matéria cerebral pingando no chão. Não, ele só tem olhos para J, que está olhando de volta para ele, confusa. Ela olha do corpo mole de Ibrahim para o corpo mole de Anderson e joga os braços para a frente com um grito repentino e desesperado.

E nada acontece.

Robô J não tem ideia de que Warner pode absorver seus poderes.

Warner dá um passo em sua direção e ela estreita os olhos antes de bater com o punho no chão. A sala começa a tremer. O chão começa a fissurar. Meus dentes estão batendo com tanta força que perco o equilíbrio, bato contra a parede e, acidentalmente, afasto minha invisibilidade. Quando Juliette me vê, ela grita.

Eu saio do caminho, me jogando para frente, mergulhando sobre uma mesa. O vidro cai no chão, estilhaça por toda parte.

Eu ouço alguém gemer.

Eu espio pelas pernas de uma mesa bem a tempo de ver Anderson começar a se mover.

Desta vez, eu realmente ofego.

O mundo inteiro parece estar em pausa.

Anderson se esforça para ficar de pé. Ele não parece bem. Ele parece doente, pálido – uma imitação de seu antigo eu. Algo está errado com seu poder de cura, porque ele parece apenas meio vivo, com sangue escorrendo de dois lugares em seu torso. Ele balança quando se levanta, tossindo sangue. A pele dele fica cinza. Ele usa a manga para limpar o sangue da boca.

J vai correndo em sua direção, mas Anderson levanta a mão na direção dela e ela para.

Seu rosto sombrio registra um momento de surpresa quando ele olha para o corpo morto de Ibrahim.

Ele ri. Tosse. Limpa mais sangue.

— Você fez isso? — ele diz, com os olhos fixos no próprio filho. — Você me fez um favor.

— O que você fez com ela? — Warner exige.

Anderson sorri.

— Por que eu não mostro a você? — Ele olha para J. — Juliette?

— Sim, senhor.

— Mate eles.

— Sim, senhor.

J avança no momento em que Anderson tira algo do bolso, apontando sua luz azul e afiada na direção da Warner. Dessa vez, quando J joga o braço para fora, Warner sai voando, seu corpo batendo com força contra a pedra.

Ele cai no chão com um suspiro, o vento saindo de seus pulmões, e aproveito o momento para avançar, puxando minha invisibilidade ao redor de nós dois.

Ele me afasta.

— Vamos lá, mano, nós temos que sair daqui... isso não é uma luta justa...

— Você vai — diz ele, segurando sua lateral. — Vá encontrar Nazeera e depois encontre as outras crianças. Eu vou ficar bem.

— Você não vai ficar bem — eu assobio. — Ela vai te matar.

— Tudo bem também.

— Não seja estúpido...

A mesa de metal que nos fornece nosso único pedaço de cobertura sai voando, batendo com força contra a parede oposta. Dou uma última olhada em Warner e tomo uma decisão em uma fração de segundo.

Eu me jogo na luta.

Sei que só tenho um segundo antes que minha matéria cerebral se junte à de Ibrahim no chão, então faço isso valer a pena. Puxo minha arma do coldre e atiro três, quatro vezes.

Cinco.

Seis.

Eu enterro chumbo no corpo de Anderson até que ele seja empurrado de volta pela força, caindo no chão com uma tosse ensanguentada. J corre para a frente, mas eu desapareço, correndo atrás de uma mesa, e quando a arma na mão de Anderson cai no chão, eu atiro nela também. A arma estala e quebra, pegando fogo rapidamente enquanto a tecnologia explode.

J grita, caindo de joelhos ao lado dele.

— Mate-os — Anderson suspira, sangue manchando as bordas dos lábios. — Mate todos eles. Mate qualquer um que estiver no seu caminho.

— Sim, senhor — diz Juliette.

Anderson tosse. Sangue fresco escorre de suas feridas.

J se levanta e se vira, examinando a sala procurando por nós, mas já estou correndo para Warner, jogando minha invisibilidade sobre nós dois. Warner parece um pouco atordoado, mas ele milagrosamente não está ferido.

Eu tento ajudá-lo a se levantar e, pela primeira vez, ele não afasta meu braço. Eu o ouço inalar. Expirar.

Não importa, ele está um pouco ferido.

Espero que ele faça alguma coisa, diga alguma coisa, mas ele apenas fica lá, olhando para J. E então...

Ele retira sua invisibilidade.

Eu quase grito.

J gira quando ela o vê e imediatamente corre para a frente. Ela pega uma mesa e joga em nós.

Mergulhamos tão duro que quase quebro meu nariz contra o chão. Ainda consigo ouvir coisas quebrando ao nosso redor quando digo:

— O que diabos você estava pensando? Você acabou de perder nossa chance de sair daqui!

Warner se mexe, o copo triturando embaixo dele. Ele está respirando com dificuldade.

— Eu estava falando sério sobre o que eu disse, Kishimoto. Você deveria ir. Encontre Nazeera. Mas é aqui que eu preciso estar.

— Você quer dizer que precisa ser morto agora? É aqui que você precisa estar? Você se ouve?

— Algo está errado — diz Warner, arrastando-se para a sua frente. — Sua mente está presa, presa dentro de alguma coisa. Um programa. Um vírus. Seja o que for, ela precisa de ajuda.

J grita, enviando outro terremoto pela sala. Eu bato em uma mesa e tropeço para trás.

Uma dor aguda atravessa meu intestino e eu respiro fundo. Xingo.

Warner tem um braço contra a parede, firmando-se. Eu posso dizer que ele está prestes a avançar diretamente na luta, e eu agarro seu braço, puxo-o para trás.

— Não estou dizendo que desistimos dela, ok? Estou dizendo que tem que haver outra maneira. Precisamos sair daqui, nos reagrupar. Criar um plano melhor.

— Não.

— Mano, eu acho que você não entende. — Olho para J, que está seguindo em frente, os olhos ardendo, o chão fissurando diante dela. — Ela realmente vai te matar.

— Então eu vou morrer.

É isso.

As últimas palavras de Warner antes dele continuar.

Ele encontra J no meio da sala e ela não hesita antes de dar um golpe violento em seu rosto.

Ele bloqueia.

Ela investe novamente. Ele bloqueia. Ela chuta. Ele se abaixa.

Ele não está lutando com ela.

Ele apenas encaixa com ela, movimento por movimento, encontrando seus golpes, antecipando sua mente. Isso me lembra sua briga com Anderson no Santuário – como ele nunca bateu no pai, apenas se defendeu. Era óbvio então que ele estava apenas tentando enfurecer o pai.

Mas isso...

Isso é diferente. É claro que ele não está gostando disso. Ele não está tentando enfurecê-la e não está tentando se defender. Ele está lutando com ela por ela. Para protegê-la.

Para salvá-la, de alguma forma.

E não tenho ideia se isso vai funcionar.

J fecha os punhos e grita. As paredes tremem, o chão continua se abrindo. Eu tropeço, me seguro contra uma mesa.

E eu estou aqui parado como um idiota, tentando descobrir uma pista, tentando descobrir o que fazer, como ajudar...

— Puta merda — diz Nazeera. — O que diabos está acontecendo?

Alívio me atravessa rápido e quente. Eu tenho que resistir ao impulso de puxar seu corpo invisível em meus braços. Colocá-la perto do meu peito e impedi-la de sair novamente.

Em vez disso, finjo estar tranquilo.

— Como você chegou aqui? — Eu pergunto. — Como você nos encontrou?

— Eu estava invadindo os sistemas, lembra? Eu vi vocês nas câmeras. Vocês não estão exatamente quietos aqui em cima.

— Certo. Bom argumento.

— Ei, eu tenho novidades, a propósito, eu acho... — Ela se interrompe abruptamente, suas palavras diminuindo em nada. E então, depois de um instante, ela diz baixinho: — Quem matou meu pai?

Meu estômago vira pedra.

Respiro fundo antes de dizer:

— Warner fez isso.

— Oh.

— Você está bem?

Eu a ouço expirar.

— Eu não sei.

J grita novamente e eu olho para cima.

Ela está furiosa.

Eu posso dizer, mesmo daqui, que ela está frustrada. Ela não pode usar seus poderes diretamente em Warner, e ele é um lutador bom demais para ser derrotado sem vantagem.

Ela recorreu a jogar objetos muito grandes e pesados para ele. Tudo o que ela pode encontrar. Equipamentos médicos aleatórios. Peças da parede.

Isso não é bom.

— Ele não quis ir embora — digo a Nazeera. — Ele queria ficar. Ele acha que pode ajudá-la.

Ela suspira.

— Deveríamos deixá-lo tentar. Enquanto isso, eu poderia precisar da sua ajuda.

Eu me viro, reflexivamente, para encará-la, esquecendo por um momento que ela está invisível.

— Minha ajuda com o quê? — Eu pergunto.

— Encontrei as outras crianças — diz ela. — Foi por isso que fiquei tanto tempo fora. Conseguir esse certificado de segurança para vocês foi muito mais fácil do que eu pensava. Então continuei para fazer algumas invasões em nível profundo nas câmeras – e descobri onde eles estão escondendo as outras crianças supremas. Mas não é bonito. E eu poderia precisar de ajuda.

Levanto os olhos para ter um último vislumbre de Warner.

De J.

Mas eles se foram.


31. ELLA

JULIETTE

Corra, Juliette

corra

mais rápido, corra até que seus ossos quebrem e suas canelas se separem e seus músculos se atrofiem

Corra, corra, corra

até que você não possa ouvir os pés atrás de você

Corra até cair morta.

Certifique-se de que seu coração pare antes que eles cheguem até você. Antes que eles te toquem.

Corra, eu disse.

As palavras aparecem espontaneamente em minha mente. Não sei de onde elas vêm e não sei por que as conheço, mas digo para mim mesma enquanto vou, minhas botas batendo no chão, minha cabeça uma confusão estrangulada de caos. Eu não entendo o que aconteceu. Eu não entendo o que está acontecendo comigo. Eu não entendo mais nada.

O garoto está perto.

Ele se move mais rapidamente do que eu esperava, e eu estou surpresa. Eu não esperava que ele fosse capaz de igualar meus golpes. Eu não esperava que ele me encarasse tão facilmente. Principalmente, estou surpresa que ele seja de alguma forma imune ao meu poder. Eu nem sabia que isso era possível.

Eu não entendo.

Estou destruindo meu cérebro, tentando desesperadamente compreender como isso pode ter acontecido – e se eu poderia ter sido responsável pela anomalia – mas nada faz sentido. A presença dele não faz sentido. A atitude dele não faz sentido. Nem mesmo a maneira como ele luta.

O que quer dizer: ele não luta.

Ele nem quer brigar. Ele parece não ter interesse em me derrotar, apesar da ampla evidência de que somos bem parecidos. Ele apenas me afasta, fazendo apenas o esforço mais básico para se proteger, e ainda assim eu não o matei.

Há algo de estranho nele. Algo sobre ele que está ficando sob minha pele. Me perturbando.

Mas ele sumiu de vista quando joguei outra mesa nele e ele está correndo desde então.

Parece uma armadilha.

Eu sei disso e, no entanto, sinto-me compelida a encontrá-lo. Enfrentá-lo. Destruí-lo.

Eu o vejo, de repente, no outro extremo do laboratório, e ele olha nos meus olhos com um sentimento de indiferença que me enfurece. Eu avanço, mas ele se move rapidamente, desaparecendo por uma porta adjacente.

Isso é uma armadilha, eu me lembro.

Por outro lado, não tenho certeza se isso é uma armadilha. Estou sob ordens de encontrá-lo. Matá-lo. Eu só tenho que ser melhor. Mais esperta.

Então eu sigo.

Desde o momento em que encontrei esse garoto – desde o primeiro momento em que começamos a trocar golpes – eu ignorei as sensações vertiginosas que percorriam meu corpo. Tentei negar minha pele repentinamente febril, minhas mãos trêmulas. Mas quando uma nova onda de náusea quase me envia cambaleando, não posso mais negar meu medo: Há algo de errado comigo.

Eu pego outro vislumbre de seus cabelos dourados e minha visão borra, limpa, meu coração diminui. Por um momento, meus músculos parecem espasmos. Há um arrepio, um tremor aterrador ou cerrando o punho em volta dos meus pulmões e eu não o entendo. Eu continuo esperando que o sentimento mude. Limpe. Desapareça. Mas conforme os minutos passam e os sintomas não mostram sinais de diminuir, começo a entrar em pânico.

Eu não estou cansada, não. Meu corpo é muito forte. Eu posso sentir isso – posso sentir meus músculos, sua força, sua firmeza – e posso dizer que poderia continuar lutando assim por horas. Dias. Não estou preocupada em desistir, não estou preocupada em desmoronar.

Estou preocupada com a minha cabeça. Minha confusão. A incerteza está passando por mim, se espalhando como um veneno.

Ibrahim está morto.

Anderson, quase isso.

Ele vai se recuperar? Ele vai morrer? Quem eu seria sem ele? O que Ibrahim queria fazer comigo? Do que Anderson estava tentando me proteger? Quem são essas crianças que eu devo matar? Por que Ibrahim os chamou de meus amigos?

Minhas perguntas são infinitas.

Eu as mato.

Afasto uma série de mesas de aço e vislumbro o garoto antes que ele vire uma esquina.

A raiva me golpeia, disparando uma adrenalina no meu cérebro, e começo a correr de novo, uma determinação renovada focando minha mente. Eu continuo pela sala mal iluminada, abrindo caminho através de um mar sem fim de parafernália médica. Quando paro de me mover, o silêncio desce.

Silêncio tão puro que é ensurdecedor.

Eu giro, procurando. O garoto se foi. Eu pisco, confusa, examinando a sala enquanto meu pulso dispara com um medo renovado. Segundos passam, reúnem-se em momentos que parecem minutos, horas.

Isso é uma armadilha.

O laboratório está perfeitamente parado – as luzes são tão perfeitamente fracas – que, à medida que o silêncio se prolonga, começo a me perguntar se estou presa em um sonho.

De repente me sinto paranóica, incerta. Como se aquele garoto fosse uma invenção da minha imaginação. Talvez tudo isso seja um pesadelo estranho, e talvez eu acorde em breve e Anderson esteja em seu escritório, e Ibrahim seja um homem que eu nunca conheci, e amanhã vou acordar na minha cápsula perto da água.

Talvez, eu penso, isso seja apenas mais um teste.

Uma simulação.

Talvez Anderson esteja desafiando minha lealdade uma última vez. Talvez seja meu trabalho ficar em pé, me manter segura como ele me pediu, e destruir qualquer um que tente ficar no meu caminho. Ou talvez...

Pare.

Eu sinto movimento.

Movimento tão suave que é quase imperceptível. Movimento tão suave que poderia ter sido uma brisa, exceto por uma coisa: Eu ouço um coração batendo.

Alguém está aqui, alguém imóvel, alguém astuto. Eu me endireito, meus sentidos aumentam, meu coração dispara no peito.

Alguém está aqui alguém está aqui alguém está aqui...

Onde?

Lá.

Ele aparece, como se tivesse sonhado, parado diante de mim como uma estátua, imóvel como aço refrescante. Ele olha para mim, olhos verdes da cor do vidro do mar, da cor simonde.

Eu nunca tive a chance de ver seu rosto.

Assim não.

Meu coração dispara quando o avalio, sua camisa branca, jaqueta verde, cabelos dourados. Pele como porcelana. Ele não se agacha nem se mexe e, por um momento, tenho certeza de que estava certa, que talvez ele não seja nada além de uma miragem. Um programa.

Outro holograma.

Estendo a mão, incerta, as pontas dos meus dedos roçando a pele exposta em sua garganta e ele respira fundo e trêmulo.

Real, então.

Aperto minha mão contra seu peito, só para ter certeza, e sinto seu coração batendo sob a palma da minha mão. Rápido, muito rápido.

Eu olho para cima, surpresa.

Ele está nervoso.

Outra respiração instável lhe escapa e, desta vez, leva consigo uma medida de controle.

Ele dá um passo para trás, balança a cabeça, olha para o teto.

Não está nervoso.

Ele está perturbado.

Eu deveria matá-lo agora, eu penso. Mate-o agora.

Uma onda de náusea me atinge com tanta força que quase me derruba. Dou alguns passos instáveis para trás, me escorando contra uma mesa de aço. Meus dedos agarram a borda fria de metal e eu seguro, dentes cerrados, desejando que minha mente se clareie.

O calor inunda meu corpo.

Calor, calor torturante, pressiona contra meus pulmões, enche meu sangue. Meus lábios se separam. Eu me sinto ressecada. Eu olho para cima e ele está bem na minha frente e eu não faço nada. Não faço nada enquanto vejo sua garganta se mover.

Não faço nada quando meus olhos o devoram.

Estou tonta.

Eu estudo a linha afiada de sua mandíbula, a inclinação suave onde seu pescoço encontra o ombro. Seus lábios parecem macios. Sua bochecha é alta, o nariz afiado, as sobrancelhas pesadas, douradas. Ele é finamente feito. Mãos lindas e fortes. Unhas curtas e limpas. Percebo que ele usa um anel de jade no dedo mindinho esquerdo.

Ele suspira.

Ele sacode a jaqueta, dobrando-a cuidadosamente sobre as costas de uma cadeira próxima. Por baixo, ele usa apenas uma camiseta branca simples, os contornos esculpidos de seus braços nus chamando a atenção das luzes escuras. Ele se move devagar, seus movimentos sem pressa. Quando ele começa a andar, eu o observo, estudo a forma dele.

Não me surpreende descobrir que ele se move lindamente. Fico fascinada por ele, por sua forma, seus passos medidos, os músculos afiados sob a pele. Ele parece ter a minha idade, talvez um pouco mais velho, mas há algo na maneira como ele olha para mim que o faz parecer mais velho do que nossas idades juntas.

Seja o que for, eu gosto.

Eu me pergunto o que devo fazer com isso, tudo isso. É realmente um teste? Se sim, por que enviar alguém como ele? Por que um rosto tão refinado? Por que um corpo tão perfeitamente afiado?

Eu deveria aproveitar isso?

Um sentimento estranho e delirante se agita dentro de mim com o pensamento. Algo antigo. Algo maravilhoso. É quase muito ruim, eu penso, que terei que matá-lo. E é o calor, o embotamento, a dormência inexplicável em minha mente que me obriga a dizer:

— Onde eles te fizeram?

Ele se assusta. Eu não pensei que ele iria se assustar. Mas quando ele se vira para mim, ele parece confuso.

Eu explico:

— Você é extraordinariamente bonito.

Os olhos dele se arregalam.

Seus lábios se separam, pressionam juntos, tremem em uma curva que me surpreende.

Surpreende ele.

Ele sorri.

Ele sorri e eu vejo – duas covinhas, dentes retos, olhos brilhantes. Um calor repentino e incompreensível corre pela minha pele, me deixa em chamas. Sinto-me violentamente quente. Doente com febre.

Por fim, ele diz:

— Então você está aí.

— Quem?

— Ella — diz ele, mas agora está falando baixinho. — Juliette. Eles disseram que você iria embora.

— Eu não fui embora — eu digo, minhas mãos tremendo enquanto me recomponho. — Eu sou Juliette Ferrars, soldada supremo do nosso comandante Norte-Americano. Quem é você?

Ele se aproxima. Seus olhos escurecem quando ele me olha, mas não há verdadeira escuridão lá. Eu tento ficar mais alta, mais reta. Lembro-me de que tenho uma tarefa, que este é o meu momento de atacar, de cumprir minhas ordens. Talvez eu dev...

— Amor — ele sussurra.

Calor brilha na minha pele. A dor pressiona minha mente, uma vaga percepção de que estou esquecendo algo. Emoção empoeirada treme dentro de mim, e eu a mato.

Ele dá um passo à frente, pega meu rosto em suas mãos. Eu penso em quebrar os dedos dele. Quebrar seus pulsos. Meu coração está acelerando.

Não posso me mexer.

— Você não deveria me tocar.

Eu digo, ofegando as palavras.

— Por que não?

— Porque eu vou te matar.

Gentilmente, ele inclina minha cabeça para trás, suas mãos possessivas, persuasivas.

Uma dor apreende meus músculos, me mantém no lugar. Meus olhos se fecham reflexivamente. Eu o respiro e minha boca se enche de sabor – ar fresco, flores perfumadas, calor, felicidade – e fico impressionada com a ideia mais estranha de que já estivemos aqui antes, que já vivi isso antes, que o conheci antes e então sinto, sinto sua respiração na minha pele e a sensação, a sensação é...

inebriante,

desorientante.

Estou perdendo a cabeça, tentando desesperadamente localizar meu propósito, concentrar meus pensamentos, quando ele se move a terra se inclina, seus lábios roçam minha mandíbula e eu produzo um som desesperado e inconsciente que me surpreende. Minha pele está frenética, queimando.

Esse calor familiar contamina meu sangue, minha temperatura dispara e meu rosto cora.

— Eu...

Eu tento falar, mas ele beija meu pescoço e eu suspiro, suas mãos ainda presas ao redor do meu rosto. Estou sem fôlego, coração batendo, pulsação batendo, cabeça batendo. Ele me toca como se me conhecesse, soubesse o que eu quero, soubesse o que eu preciso. Eu me sinto louca. Eu nem reconheço o som da minha própria voz quando finalmente consigo dizer:

— Eu conheço você?

— Sim.

Meu coração pula. A simplicidade de sua resposta angula minha mente, procura a verdade. Parece verdade. Parece verdade que eu conheço essas mãos, essa boca, esses olhos.

Parece real.

— Sim — ele diz novamente, sua própria voz rouca de sentimento. Suas mãos deixam meu rosto e eu estou perdida na perda, procurando calor. Estou mais perto dele, sem querer, pedindo algo que não entendo. Mas então suas mãos deslizam sob a minha camisa, suas mãos pressionam contra as minhas costas, e a magnitude do súbito contato pele a pele deixa meu corpo em chamas.

Eu me sinto explosiva.

Sinto-me perigosamente perto de algo que pode me matar, e ainda assim me inclino para ele, cega pelo instinto, surda a tudo, exceto a batida feroz do meu próprio coração.

Ele recua, apenas uma polegada.

Suas mãos ainda estão presas sob minha camisa, seus braços nus envolveram minha pele nua e sua boca fica acima da minha, o calor entre nós ameaçando inflamar. Ele me puxa para mais perto e eu dou um gemido, perdendo minha cabeça enquanto as linhas duras de seu corpo afundam em mim. Ele está em toda parte, seu perfume, sua pele, seu hálito. Não vejo nada além dele, não sinto nada além dele, suas mãos se espalhando pelo meu tronco, meus pulmões se comprimindo sob sua exploração cuidadosa e abrasadora.

Eu me inclino para as sensações, seus dedos roçando meu estômago, a parte inferior das minhas costas. Ele encosta sua testa na minha e eu pressiono meus dedos, pedindo algo, implorando por algo.

— O quê — eu suspiro — o que está acontecendo...

Ele me beija.

Lábios suaves, ondas de sensação. O sentimento transborda os vazios em minha mente. Minhas mãos começam a tremer. Meu coração bate tão forte que mal consigo ficar parada quando ele mantém minha boca aberta, me leva para dentro. Ele tem gosto de calor e menta, como verão, como o sol.

Eu quero mais.

Pego o rosto dele em minhas mãos e o puxo para mais perto, e ele faz um som suave e desesperado no fundo de sua garganta, que envia um pico de prazer diretamente para o meu cérebro. O calor elétrico puro me levanta, fora de mim. Parece que estou flutuando aqui, rendida a esse momento estranho, mantida no lugar por um molde antigo que se encaixa perfeitamente no meu corpo. Sinto-me frenética, tomada por uma necessidade de ter mais, uma necessidade que eu nem entendo.

Quando nós nos afastamos seu peito está arfando e seu rosto fica vermelho e ele diz:

— Volte para mim, amor. Volte.

Eu ainda estou lutando para respirar, procurando desesperadamente seus olhos por respostas. Explicações — Para onde?

— Aqui — ele sussurra, pressionando minhas mãos em seu coração. — Casa.

— Mas eu não...

Flashes de luz atravessam minha visão. Tropeço para trás, meio cega, como se estivesse sonhando, revivendo a carícia de uma lembrança esquecida, e é como uma dor que parece ser acalmada, é uma panela fumegante jogada em água gelada, é uma bochecha corada e pressionada contra um travesseiro frio em uma noite quente, o calor se acumula atrás de meus olhos, distorcendo visões, diminuindo os sons.

Aqui.

Isso.

Meus ossos contra os ossos dele. Essa é a minha casa.

Volto à minha pele com um súbito arrepio violento e me sinto selvagem, instável. Eu o encaro, meu coração batendo forte, meus pulmões lutando por ar. Ele olha de volta, seus olhos tão pálidos na luz verde que, por um momento, ele nem parece humano.

Algo está acontecendo na minha cabeça.

A dor está se acumulando no meu sangue, calcificando ao redor do meu coração. Sinto-me em guerra comigo mesma, perdida e ferida, minha mente girando com a incerteza.

— Qual é o seu nome? — Eu pergunto.

Ele dá um passo à frente, tão perto que nossos lábios se tocam. Se separam. Sua respiração sussurra em toda a minha pele e meus nervos zumbem, faíscam.

— Você sabe meu nome — diz ele calmamente.

Eu tento balançar a cabeça. Ele pega meu queixo.

Desta vez, ele não é cuidadoso.

Desta vez, ele está desesperado. Desta vez, quando ele me beija, ele me abre, o calor saindo dele em ondas. Ele parece água da nascente e algo doce, algo abrasador.

Eu me sinto tonta. Delirante.

Quando ele se afasta, eu estou tremendo, meus pulmões tremendo, minha respiração tremendo, meu coração tremendo. Eu assisto, como se estivesse em um sonho, quando ele tira a camisa, a joga no chão. E então ele está aqui novamente, ele está de volta novamente, ele me pegou nos braços e me beijou tão profundamente que meus joelhos cederam.

Ele me pega, apoiando meu corpo enquanto me coloca na longa mesa de aço. O metal frio penetra no tecido da minha calça, enviando arrepios ao longo da minha pele aquecida e eu suspiro, meus olhos se fechando quando ele atravessa minhas pernas, reclama minha boca. Ele pressiona minhas mãos em seu peito, arrasta meus dedos por seu torso nu e eu faço um som desesperado e quebrado, prazer e dor me impressionando, me paralisando.

Ele desabotoa minha camisa, suas mãos hábeis se movendo rapidamente, enquanto beija meu pescoço, minhas bochechas, minha boca, minha garganta. Eu choro quando ele se move, seus beijos se espalhando pelo meu corpo, procurando, explorando. Ele empurra as duas partes da minha camisa, sua boca ainda quente contra a minha pele, e então ele fecha a lacuna entre nós, pressionando seu peito nu no meu, e meu coração explode.

Algo se encaixa dentro de mim.

Se rompe.

Um soluço repentino e fraturado escapa da minha garganta. Lágrimas indesejadas ardem nos meus olhos, me assustando quando caem no meu rosto. Emoção desconhecida sobe através de mim, expandindo meu coração, confundindo minha cabeça. Ele me puxa impossivelmente mais perto, nossos corpos soldados juntos. E então ele pressiona a testa na minha clavícula, seu corpo tremendo de emoção quando ele diz: — Volte.

Minha cabeça está cheia de areia, som, sensações girando em minha mente. Não entendo o que está acontecendo comigo, não entendo essa dor, esse prazer inacreditável.

Estou manchando sua pele com minhas lágrimas e ele só me puxa com mais força, pressionando nossos corações até que a sensação afunde seus dentes nos meus ossos, abra meus pulmões. Quero me enterrar neste momento, quero puxá-lo para dentro de mim, quero me arrastar para fora de mim mesma, mas há algo errado, algo bloqueado, algo parado...

Algo quebrado..

A realização chega em ondas suaves, teorias lambendo e se sobrepondo às margens da minha consciência até que eu esteja encharcada de confusão. Consciência.

Terror.

— Você sabe meu nome — ele diz suavemente. — Você sempre me conheceu, amor. Eu sempre te conheci. E eu estou tão... estou desesperadamente apaixonado por você...

A dor começa nos meus ouvidos.

Como pinças, expandindo, aumentando a pressão até um pico tão agudo que se transforma, tornando-se uma tortura que para meu coração.

Primeiro eu fico surda, rígida. Depois eu fico cega, relaxada.

E então, meu coração reinicia.

Volto à vida com uma inspiração repentina e aterrorizante que quase me sufoca, o sangue escorre pelos meus ouvidos, meus olhos, vazando do meu nariz. Eu provo, sinto meu próprio sangue na boca quando começo a entender: há algo dentro de mim. Um veneno. Uma violência. Algo errado algo errado algo errado E então, como se a quilômetros de distância, eu me ouço gritar.

Há ladrilhos frios sob meus joelhos, rejunte áspero pressionando meus dedos. Eu grito no silêncio, construindo poder, eletricamente carregando meu sangue. Minha mente está se separando de si mesma, tentando identificar o veneno, esse parasita residindo dentro de mim.

Eu tenho que matá-lo.

Eu grito, forçando minha própria energia para dentro, gritando até que a energia explosiva que cresce dentro de mim rompe meus tímpanos. Grito até sentir o sangue escorrer dos meus ouvidos e do meu pescoço, grito até as luzes do laboratório começarem a craquelar e quebrar. Grito até meus dentes sangrarem, até o chão se quebrar sob meus pés, até que a pele dos meus joelhos começa a ranger. Eu grito até o monstro dentro de mim começar a morrer.

E só então...

Somente quando tenho certeza de que matei uma pequena parte do meu próprio eu é que finalmente desmaio.

Estou sufocando, tossindo sangue, meu peito arfando pelo esforço despendido. O quarto nada. Girando.

Pressiono minha testa no chão frio e luto contra uma onda de náusea. E então sinto uma mão familiar e pesada nas minhas costas. Com lentidão excruciante, eu consigo levantar a cabeça.

Um borrão de ouro aparece, desaparece diante de mim.

Pisco uma vez, duas vezes, e tento levantar com os braços, mas uma dor aguda e abrasadora no meu pulso quase me cega. Olho para baixo, examinando a visão estranha e nebulosa. Eu pisco novamente. Mais dez vezes.

Finalmente, meus olhos se focam.

A pele dentro do meu braço direito se abriu. Sangue está espalhado pela minha pele, pingando no chão. De dentro da ferida aberta, uma única luz azul pulsa de um objeto circular de aço, cujas bordas empurram contra minha carne rasgada.

Com um último esforço, arranco o mecanismo intermitente do meu braço, o último vestígio desse monstro. Ele cai dos meus dedos trêmulos, cai no chão.

E desta vez, quando olho para cima, vejo o rosto dele.

— Aaron — eu suspiro.

Ele cai de joelhos.

Ele puxa meu corpo sangrando em seus braços e eu quebro, eu quebro, soluços abrindo meu coração. Choro até a dor espirrar e atingir o pico, choro até minha cabeça latejar e meus olhos incharem. Eu choro, pressionando meu rosto contra seu pescoço, meus dedos cavando suas costas, desesperados por alguma vantagem. Alguma prova.

Ele me segura, silencioso e firme, juntando meu sangue e ossos contra seu corpo, enquanto as lágrimas recuam, mesmo quando começo a tremer. Ele me abraça apertado enquanto meu corpo treme, me abraça quando as lágrimas recomeçam, me segura em seus braços e acaricia meus cabelos e me diz que tudo, tudo vai ficar bem.


32. KENJI

Fui designado para vigiar do lado de fora desta porta, o que, inicialmente, deveria ser uma coisa boa – ajudar na missão de resgate etc. – mas quanto mais eu espero aqui fora, guardando Nazeera enquanto ela hackeia os computadores que mantêm as crianças supremas em um estado estranho de hiper-sono, mais as coisas dão errado.

Este lugar está caindo aos pedaços.

Literalmente

As luzes do teto estão começando a brilhar e tremular, as enormes escadas estão começando a gemer. As enormes janelas que revestem os dois lados deste edifício de cinquenta andares estão começando a rachar.

Os médicos estão correndo, gritando. Os alarmes estão piscando como loucos, as sirenes tocando. Alguma voz robótica está anunciando uma crise nos alto-falantes, como se fosse a coisa mais casual do mundo.

Não tenho ideia do que está acontecendo agora, embora, se eu tivesse que adivinhar, diria que tem algo a ver com Emmaline. Mas eu só tenho que ficar aqui, me apoiando contra a porta para não ser pisoteado acidentalmente, e esperar que o que quer que esteja acontecendo chegue ao fim. O problema é que não sei se será um final feliz ou triste...

Para qualquer um.

Não ouvi nada de Warner desde que nos separamos, e estou tentando muito, muito forte não pensar nisso. Estou optando por me concentrar, em vez disso, nas coisas positivas que aconteceram hoje, como o fato de termos conseguido matar três comandantes supremos – quatro se você contar com Evie – e que o trabalho de hackers genial de Nazeera foi um sucesso, porque sem ela, não havia como ter feito muito progresso.

Depois de nossa permanência nos respiradouros, Warner e eu conseguimos cair no coração do complexo, sem sermos detectados. Era mais fácil evitar as câmeras quando estávamos no centro das coisas; as salas estavam mais próximas e, embora as áreas de maior segurança tenham mais pontos de acesso de segurança – algumas têm menos câmeras. Desde que evitássemos certos ângulos, as câmeras não nos notavam e, com a falsa liberação que Nazeera fez para nós, conseguimos passar facilmente. Foi por causa dela que estávamos no lugar certo – depois de matar acidentalmente um cientista super importante – quando todos os comandantes supremos começaram a enxamear.

Foi por causa dela que conseguimos matar Ibrahim e Anderson. E foi por causa dela que Warner está trancado com Robô J em algum lugar. Honestamente, eu nem sei como me sentir sobre tudo isso. Eu realmente não me permiti pensar no fato de que J talvez nunca mais voltasse, que eu nunca pudesse ver minha melhor amiga novamente. Se eu pensar muito sobre isso, começo a sentir que não consigo respirar, e não posso me dar ao luxo de parar de respirar agora. Ainda não.

Então, eu tento não pensar nisso.

Mas Warner...

Warner ou sairá vivo e feliz disso, ou morto, fazendo algo em que acreditava.

E não há nada que eu possa fazer sobre isso.

O problema é que não o vejo há mais de uma hora e não faço ideia do que isso significa. Poderia ser uma notícia muito boa ou muito, muito ruim. Ele nunca compartilhou seu plano comigo – surpresa surpresa – então nem sei exatamente o que ele planejou fazer quando conseguisse ficar a sós com ela. E mesmo sabendo que é melhor não duvidar dele, tenho que admitir que há uma pequena parte de mim que se pergunta se ele está vivo no momento.

Um grunhido antigo e estridente interrompe meus pensamentos.

Olho para cima, em direção à fonte do som, e percebo que o teto está desmoronando. O telhado está se desfazendo. As paredes estão começando a desmoronar. Os longos e tortuosos corredores circundam um pátio interior, dentro do qual vive uma enorme árvore de aparência pré-histórica. Por nenhuma razão que eu possa entender, os trilhos de aço ao redor dos corredores estão começando a derreter. Observo em tempo real a árvore pegar fogo, as chamas rugindo mais alto a uma velocidade espantosa. A fumaça aumenta, curvando-se em minha direção, já começando a sufocar os corredores, e meu coração está acelerado quando olho em volta, meu pânico aumentando. Começo a bater na porta, não me importando com quem me ouve agora.

É o fim da porra do mundo.

Estou gritando por Nazeera, implorando para que ela saia, antes que seja tarde demais, e estou tossindo agora, fumaça nos pulmões, ainda esperando desesperadamente que ela ouça minha voz quando de repente, violentamente...

A porta se abre.

Sou empurrado para trás pela força e, quando olho para cima, com os olhos ardendo, Nazeera está lá. Nazeera, Lena, Stephan, Haider, Valentina, Nicolás e Adam.

Adam.

Não sei explicar exatamente o que acontece a seguir. Há tantos gritos. Tanta correria. Stephan perfura um buraco limpo através de uma parede em ruínas, e Nazeera ajuda a levar todos nós em segurança. Isso acontece em um borrão. Eu vejo as coisas se desenrolarem em flashes, em gritos.

Parece um sonho. Meus olhos ardem, lacrimejando.

Eu estou chorando por causa do fogo, eu acho. É o calor, o céu, as chamas rugindo devorando tudo.

Eu assisto a capital da Oceania – todos os cento e vinte acres dela – ser engolida em chamas.

E Warner e Juliette vão junto.


33. ELLA

(JULIETTE)

A primeira coisa que fazemos é encontrar Emmaline.

Eu chego a ela em minha mente e ela responde imediatamente. Calor, dedos de calor, enrolando em volta dos meus ossos. Acendendo à vida em meu coração. Ela estava sempre aqui, sempre comigo.

Eu entendo agora.

Entendo que os momentos que me salvaram foram presentes de minha irmã, presentes que ela só pôde dar se destruindo em troca. Ela está muito mais fraca agora do que há duas semanas atrás, porque gastou muito de si mesma para me manter viva. Para impedir que maquinações deles chegassem ao meu coração. Minha alma.

Eu me lembro de tudo agora. Minha mente está afiada em um novo ponto, afiada a uma clareza que nunca tive antes. Eu vejo tudo. Compreendo tudo.

Não demora muito para encontrá-la.

Não peço desculpas pelas pessoas que disperso, pelas paredes que destroço ao longo do caminho. Não peço desculpas por minha raiva ou dor. Não paro de me mexer quando vejo Tatiana e Azi; Eu não preciso. Eu tiro seus pescoços de onde estou. Eu rasgo seus corpos ao meio com um único gesto.

Quando alcanço minha irmã, a agonia dentro de mim atinge seu auge. Ela está mole dentro de seu aquário, um peixe seco, uma aranha moribunda. Ela está presa em seu canto mais escuro, seus longos cabelos escuros envolvendo sua figura enrugada e flácida. Um lamento baixo emana de seu tanque.

Ela está chorando.

Ela é pequena. Está assustada. Ela me lembra outra versão de mim mesma, uma pessoa da qual mal consigo me lembrar, uma jovem jogada na prisão, muito quebrada pelo mundo para perceber que ela sempre teve o poder de se libertar. De conquistar a terra.

Eu tive esse luxo.

Emmaline não.

A visão dela me faz querer cair em pedaços. Meu coração se enfurece com raiva, devastação. Quando penso no que eles fizeram com ela – no que fizeram com ela...

Não pense nisso.

Eu não penso.

Eu respiro fundo, estremecendo. Tento me recompor. Sinto Aaron pegar minha mão e aperto seus dedos em gratidão. Me firma tê-lo aqui. Saber que ele está ao meu lado.

Meu parceiro em tudo.

Diga-me o que você quer, Eu digo para Emmaline. Qualquer coisa. Seja o que for, eu farei.

Silêncio.

Emmaline?

Um medo agudo e desesperado salta através de mim.

O medo dela, não o meu.

Sensações distorcidas surgem atrás dos meus olhos – explosões de cores, sons de metal – e seu pânico se intensifica. Aperta. Eu sinto isso na minha espinha.

— O que está errado? — Eu digo em voz alta. — O que aconteceu?


Aqui

Aqui

Sua forma leitosa desaparece no tanque, afundando profundamente debaixo d'água. Os solavancos sobem pelos meus braços.

— Você parece ter esquecido de mim.

Meu pai entra na sala, suas altas botas de borracha batendo suavemente no chão.

Eu jogo meus braços imediatamente, esperando arrancar seu baço, mas ele é muito rápido – seus movimentos muito rápidos. Ele pressiona um único botão em um controle remoto pequeno e portátil, e eu mal tenho tempo para respirar antes que meu corpo comece a convulsionar. Eu grito, meus olhos cegos pela luz violenta e violeta, e consigo virar a cabeça apenas em pequenos movimentos excruciantes.

Aaron.

Ele e eu estamos congelados aqui, banhados por uma luz tóxica que emana do teto.

Ofegando. Tremendo incontrolavelmente. Minha mente gira, trabalhando desesperadamente em um plano, uma brecha, uma saída.

— Estou surpreso com a sua arrogância — diz meu pai. — Surpreso que você pensou que poderia simplesmente entrar aqui e ajudar no suicídio de sua irmã. Você pensou que seria simples? Você pensou que não haveria consequências?

Ele gira um botão e meu corpo agarra mais violentamente, levantando do chão. A dor é ofuscante. A luz brilha dentro e fora dos meus olhos, atordoando minha mente, entorpecendo minha capacidade de pensar. Eu fico no ar, não sou mais capaz de virar a cabeça. A gravidade empurra e puxa meu corpo, ameaça rasgar meus membros.

Se eu pudesse gritar, eu o faria.

— De qualquer forma, é bom você estar aqui. Melhor acabar com isso agora. Já esperamos o suficiente. — Ele acena, distraído, para o tanque de Emmaline. — Obviamente, você viu como estamos desesperados por um novo hospedeiro.

NÃO

A palavra é como um grito dentro da minha cabeça.

Max endurece.

Ele olha para cima, encarando precisamente o nada, a raiva em seus olhos mal contida.

Só percebo que ele também pode ouvi-la.

Claro que ele pode.

Emmaline bate contra seu tanque, os sons abafados, o esforço por si só parece exaurir ela. Ainda assim, ela pressiona para frente, sua bochecha afundada achatando-se contra o vidro.

Max hesita, vacilante.

Ele não é bom em esconder suas emoções – e sua atual incerteza é facilmente discernível. É claro, mesmo da minha perspectiva desorientada, que ele está tentando decidir com qual de nós ele precisa lidar primeiro. Emmaline bate o punho novamente, desta vez mais fraca.

NÃO

Outro grito dentro da minha cabeça.

Com um suspiro abafado, Max escolhe Emmaline.

Eu o assisto girar, seguir em direção ao tanque dela. Ele pressiona a mão contra o vidro que se ilumina em um azul neon. A luz azul se expande, depois se espalha pela câmara, revelando lentamente uma intrincada série de circuitos elétricos. As veias de néon são mais espessas em alguns lugares, ocasionalmente trançadas, principalmente finas. Assemelha-se a um sistema cardiovascular não muito diferente do que existe dentro do meu corpo.

Meu próprio corpo.

Algo volta à vida dentro de mim. Razão. Pensamento racional. Estou presa aqui, enganada pela dor em pensar que não tenho controle sobre meus poderes, mas isso não é verdade. Quando me forço a lembrar, posso senti-lo. Minha energia ainda vibra através de mim. É um sussurro fraco e desesperado – mas está lá.

Pedaço por pedaço agonizante, recordo minha mente.

Eu cerro meus dentes, concentrando meus pensamentos, apertando meu corpo a seu ponto de ruptura. Lentamente, trançei juntos os diferentes fios do meu poder, segurando os fios pela vida.

E ainda mais lentamente, eu agarro minha mão através da luz.

O esforço divide meus dedos, as pontas dos meus dedos. Sangue fresco corre pela minha mão e derrama pelo meu pulso enquanto levanto meu braço em um arco lento e torturante acima da minha cabeça.

Como se estivesse a anos-luz de distância, ouço bipes.

Max.

Ele está inserindo novos códigos no tanque de Emmaline. Não tenho ideia do que isso significa para ela, mas não consigo imaginar que seja bom.

Depressa.

Depressa, eu digo a mim mesma.

Violentamente, forço meu braço através da luz, reprimindo um grito enquanto faço. Um por um, meus dedos se desenrolam acima da minha cabeça, sangue pingando de cada dígito no meu pulso sangrando e nos meus olhos. Minha mão se abre, palmas viradas para o teto. Sangue fresco serpenteia pelas faces do meu rosto enquanto eu dirijo minha energia para a luz.

O teto se despedaça.

Aaron e eu caímos no chão com força e ouço algo estalar na minha perna, a dor gritando através de mim.

Eu luto contra isso.

As luzes estalam e gritam, o teto de concreto polido começa a rachar. Max gira, horror agarrando seu rosto enquanto eu jogo minha mão para frente.

Fecho meu punho.

O tanque de Emmaline se quebra com um estalo repentino e violento.

— NÃO! — ele chora. Febrilmente, ele puxa o controle remoto para fora de seu jaleco, apertando seus botões agora inúteis. — Não! Não, não...

O vidro se quebra com um bocejo zangado, cedendo com um rugido final e despedaçado. Max fica comicamente parado.

Atordoado.

Ele morre, então, com exatamente essa expressão no rosto. E não sou eu quem o mata.

É Emmaline.

Emmaline, que retira as mãos com teias do vidro quebrado e pressiona os dedos na cabeça do pai. Ela o mata com nada além da força de sua própria mente.

A mente que ele lhe deu.

Quando ela termina, o crânio dele se abre. Sangue vaza de seus olhos mortos. Seus dentes caíram da boca, sobre a camisa. Seu intestino se derrama devido a uma ruptura grave no torso.

Eu olho para longe.

Emmaline cai no chão. Ela está ofegando através do regulador fundido em seu rosto.

Seus membros já fracos começam a tremer violentamente, e ela está produzindo sons que só posso supor que sejam palavras que ela não é mais capaz de falar.

Ela é mais anfíbia que humana.

Percebo isso apenas agora, somente quando confrontada com a prova de sua incompatibilidade com o nosso ar, com o mundo exterior. Eu rastejo em direção a ela, arrastando minha perna quebrada e ensanguentada atrás de mim.

Aaron tenta ajudar, mas quando trancamos os olhos, ele recua.

Ele entende que eu preciso fazer isso sozinha.

Recolho o corpo pequeno e murcho da minha irmã contra o meu, puxando seus membros molhados para o meu colo, pressionando a cabeça no meu peito. E eu digo a ela, pela segunda vez:

— Me diga o que você quer. Qualquer coisa. Seja o que for, eu farei.

Seus dedos escorregadios se apegam ao meu pescoço, agarrando-se à vida. Uma visão enche minha cabeça, uma visão de tudo queimando em chamas. Uma visão deste complexo, sua prisão, se desintegrando. Ela quer ser destruída, devolvida ao pó.

— Considere feito — eu digo a ela.

Ela tem outro pedido. Apenas mais um.

E não digo nada por muito tempo.

Por favor

A voz dela está no meu coração, implorando. Desesperada. A agonia dela é aguda. O terror dela é palpável.

Lágrimas brotam dos meus olhos.

Pressiono minha bochecha contra seus cabelos molhados. Eu digo a ela o quanto eu a amo. Quanto ela significa para mim. Quanto mais eu gostaria que pudéssemos ter. Eu digo a ela que nunca vou esquecê-la.

Que vou sentir falta dela, todos os dias.

E então peço a ela que me deixe levar seu corpo para casa comigo quando terminar.

Um calor suave inunda minha mente, um sentimento inebriante.

Felicidade.

Ela diz Isso.

Quando acaba, quando rasgo os tubos do corpo dela, quando junto seus ossos úmidos e trêmulos contra o meu corpo, quando aperto minha bochecha venenosa na dela, quando olho para a pouca vida que restou em seu corpo.

Quando acaba, eu me enrolo em seu corpo frio e choro.

Aperto seu corpo oco contra o meu coração e sinto a injustiça de tudo rugir através de mim. Eu sinto isso me fraturar. Eu a sinto tomar parte de mim com ela enquanto vai.

E então eu grito.

Grito até sentir a terra se mover sob meus pés, até sentir o vento mudar de direção.

Grito até as paredes desabarem, até sentir a eletricidade acender, até sentir as luzes pegando fogo. Eu grito até o chão se partir, até tudo cair.

E então levamos minha irmã para casa.


EPÍLOGO


WARNER


um.

A parede é extraordinariamente branca.

Mais branca do que o habitual. A maioria das pessoas pensa que as paredes brancas são realmente brancas, mas a verdade é que elas apenas parecem brancas e, na verdade, não são brancas.

A maioria dos tons de branco é misturada com um pouco de amarelo, o que ajuda a suavizar as bordas ásperas de um branco puro, tornando-o mais como pérola ou marfim. Vários tons de creme. Clara de ovo, até. O branco verdadeiro é praticamente intolerável como uma cor, então o branco é quase azul.

Esse muro, em particular, não é tão branco a ponto de ser ofensivo, mas um tom de branco bastante nítido para despertar minha curiosidade, o que não é nada menos que um milagre, na verdade, porque eu o observei pela maior parte de uma hora. Trinta e sete minutos, para ser exato.

Estou sendo refém por trajes. Etiquetas.

— Mais cinco minutos — diz ela. — Eu prometo.

Eu ouço o farfalhar do tecido. Zíperes. Um tremor de...

— Isso é tule?

— Você não deveria estar ouvindo!

— Sabe, amor, me ocorre agora que vivi situações reais em que fui capturado que foram muito menos torturantes que isso.

— Ok, ok, já tirei. Estou embalando. Eu só preciso de um segundo para colocar minhas r...

— Isso não será necessário — eu digo, me virando. — Certamente essa parte eu deveria poder assistir.

Eu me inclino contra a parede incomumente branca, estudando-a enquanto ela franze a testa para mim, com os lábios ainda abertos em torno da forma de uma palavra que ela parece ter esquecido.

— Por favor, continue — eu digo, gesticulando com um aceno de cabeça. — O que você estava fazendo antes.

Ela se segura por um momento a mais do que é honesto, seus olhos se estreitando em uma demonstração de frustração que é pura fraude. Ela agrava essa farsa segurando uma peça de roupa no peito, fingindo modéstia.

Eu não me importo, nem um pouco.

Eu a bebo, suas curvas suaves, sua pele macia. Seu cabelo é lindo em qualquer comprimento, mas está mais longo ultimamente.

Longo e rico, sedoso contra a pele dela, e quando tenho sorte – contra a minha.

Lentamente, ela deixa cair a camisa.

De repente eu fico mais reto.

— Eu deveria usar isso por baixo do vestido — diz ela, sua raiva já esquecida. Ela mexe com a desossa de um espartilho de cor creme, os dedos demorando-se distraidamente ao longo da cinta-liga, as meias enfeitadas com rendas. Ela não pode encontrar meus olhos. De repente, ela ficou tímida e, desta vez, é real.

Você gosta disso?

A pergunta não dita.

Eu assumi, quando ela me chamou para este provador, que era por razões além de mim encarando as variações de cores em uma parede branca incomum. Eu assumi que ela me queria aqui para que eu visse alguma coisa.

Para vê-la.

Vejo agora que estava certo.

— Você é tão bonita — eu digo, incapaz de derramar a admiração em minha voz. Eu ouço, a maravilha infantil no meu tom, e isso me envergonha mais do que deveria. Eu sei que não deveria ter vergonha de sentir profundamente. De estar emocionado.

Ainda assim, me sinto estranho.

Jovem.

Silenciosamente, ela diz:

— Sinto como se tivesse estragado a surpresa. Você não deveria ver nada disso até a noite de núpcias.

Meu coração realmente para por um momento.

A noite de núpcias.

Ela diminui a distância entre nós e enlaça meus braços, me libertando da minha momentânea paralisia. Meu coração bate mais rápido com ela aqui, tão perto. E embora eu não saiba como ela soube que de repente precisava da garantia de seu toque, estou agradecido. Eu expiro, puxando-a totalmente contra mim, nossos corpos relaxando, lembrando um do outro.

Pressiono meu rosto em seus cabelos, inspiro o doce aroma de seu xampu, sua pele. Faz apenas duas semanas. Duas semanas desde o fim de um mundo antigo. O começo de um novo.

Ela ainda parece um sonho para mim.

— Isso está realmente acontecendo? — Eu sussurro.

Uma batida forte na porta me assusta.

Ella franze a testa ao ouvir o som.

— Sim?

— Sinto muito incomodá-la agora, senhorita, mas há um cavalheiro aqui que deseja falar com o Sr. Warner.

Ella e eu travamos os olhos.

— Ok — ela diz rapidamente. — Não fique bravo.

Meus olhos se estreitam.

— Por que eu ficaria bravo?

Ella se afasta para me olhar melhor nos olhos. Seus próprios olhos são brilhantes, bonitos. Cheio de preocupação.

— É Kenji.

Eu forço uma onda de raiva tão violenta que acho que tenho um derrame. Isso me deixa tonto.

— O que ele está fazendo aqui? — Eu consigo falar. — Como diabos ele sabia como nos encontrar?

Ela morde o lábio.

— Levamos Amir e Olivier conosco.

— Entendo. — Levamos guardas extras, o que significa que nossa excursão foi publicada no boletim de segurança pública. Claro.

Ella assente.

— Ele me encontrou logo antes de partirmos. Ele estava preocupado – ele queria saber por que estávamos voltando para as antigas terras regulamentadas.

Tento dizer algo então, para me maravilhar com a incapacidade de Kenji de fazer uma dedução simples, apesar da abundância de pistas contextuais bem diante de seus olhos – mas ela levanta um dedo.

— Eu disse a ele — diz ela — que estávamos procurando roupas de reposição e lembrei que, por enquanto, os centros de suprimentos ainda são os únicos lugares para comprar comida ou roupas ou... — ela acena com a mão, franze a testa — Qualquer coisa, no momento. De qualquer forma, ele disse que tentaria nos encontrar aqui. Ele disse que queria ajudar.

Meus olhos se arregalam um pouco. Sinto outro golpe vindo.

— Ele disse que queria ajudar.

Ela assente.

— Surpreendente. — Um músculo bate na minha mandíbula.

— E engraçado, também, porque ele já ajudou muito – ontem à noite ele nos ajudou bastante ao destruir meu terno e seu vestido, forçando-nos a comprar roupas de... — olho em volta, gesticulo para o nada. — ...uma loja no mesmo dia em que devemos nos casar.

— Aaron — ela sussurra. Ela se aproxima mais uma vez.

Coloca a mão no meu peito.

— Ele se sente péssimo com isso.

— E você? — Eu digo, estudando seu rosto, seus sentimentos. — Você não se sente mal por isso? Alia e Winston trabalharam tanto para fazer para você algo lindo, algo projetado exatamente para você...

— Eu não me importo. — Ela encolhe os ombros. — É apenas um vestido.

— Mas era o seu vestido de noiva — eu digo, minha voz falhando agora, praticamente quebrando a palavra.

Ela suspira, e no som eu ouço seu coração quebrar, mais por mim do que por si mesma. Ela se vira e abre o zíper da enorme capa de roupas pendurada em um gancho acima da cabeça.

— Você não deveria ver isso — diz ela, puxando jardas de tule da capa — mas acho que pode significar mais para você do que para mim, então — ela se vira, sorri — vou deixar você me ajudar a decidir o que vestir hoje à noite.

Eu quase grunho alto com o lembrete.

Um casamento noturno. Quem na terra se casa à noite?

Apenas os infelizes. Os desaventurados. Embora eu suponha que agora contemos entre suas fileiras.

Em vez de reprogramar a coisa toda, adiamos por algumas horas para termos tempo para comprar roupas novas. Bem, eu tenho roupas. Minhas roupas não importam tanto.

Mas o vestido dela. Ele destruiu o vestido dela na noite anterior ao nosso casamento. Como um monstro.

Eu vou matá-lo.

— Você não pode matá-lo — diz ela, ainda puxando punhados de tecido da bolsa.

— Tenho certeza de que não disse nada disso em voz alta.

— Não — ela diz — mas você estava pensando, não estava?

— De todo o coração.

— Você não pode matá-lo — ela diz simplesmente. — Agora não. Nem nunca.

Eu suspiro.

Ela ainda está lutando para desempacotar o vestido.

— Perdoe-me, amor, mas se tudo isso... — eu aceno para a capa de roupas, a explosão de tule — ...é um único vestido, temo que eu já saiba como me sinto sobre isso.

Ela para de puxar. Se vira, os olhos arregalados.

— Você não gostou? Você nem viu ainda.

— Já vi o suficiente para saber que seja o que for, não é um vestido. Essa é uma camada aleatória de poliéster. — Inclino-me ao redor dela, beliscando o tecido entre meus dedos. — Eles não têm tule de seda nesta loja? Talvez possamos falar com a costureira.

— Eles não têm costureira aqui.

— Esta é uma loja de roupas — eu digo. Viro o corpete do avesso, franzindo a testa para os pontos. — Certamente deve haver uma costureira. Não é muito boa, claro, mas...

— Esses vestidos são feitos em uma fábrica — ela me diz. — Principalmente por máquinas.

Eu me endireito.

— Você sabe, a maioria das pessoas não cresceu com alfaiates particulares à sua disposição — diz ela, um sorriso brincando nos lábios. — O resto de nós teve que comprar roupas da prateleira. Já prontas. Mal ajustadas.

— Sim — eu digo rigidamente. De repente me sinto idiota. —

Claro. Me perdoe. O vestido é muito bonito. Talvez eu deva esperar que você experimente. Eu dei minha opinião muito apressadamente.

Por alguma razão, minha resposta só piora as coisas.

Ela geme, me lançando um olhar derrotado antes de se jogo na pequena cadeira do provador.

Meu coração despenca.

Ela deixa cair o rosto nas mãos.

— É realmente um desastre, não é?

Outra batida rápida na porta.

— Senhor? O cavalheiro parece muito ansioso para...

— Ele certamente não é um cavalheiro — digo bruscamente.

— Diga a ele para esperar.

Um momento de hesitação. Então, calmamente:

— Sim, senhor.

— Aaron.

Não preciso levantar os olhos para saber que ela está descontente com a minha grosseria. Os proprietários desse centro de suprimentos particular fecharam a loja inteira para nós, e eles foram extremamente gentis. Eu sei que estou sendo cruel. No momento, parece que não consigo evitar.

— Aaron.

— Hoje é o dia do seu casamento — eu digo, incapaz de encontrar seus olhos. — Ele arruinou o dia do seu casamento. O dia do nosso casamento.

Ela se levanta. Eu sinto sua frustração desaparecer.

Se transformando. Misturando tristeza, felicidade, esperança, medo e, finalmente: renúncia.

Um dos piores sentimentos possíveis sobre o que deveria ser um dia feliz. A renúncia é pior do que a frustração. Muito pior.

Minha raiva se calcifica.

— Ele não arruinou — diz ela finalmente. — Ainda podemos fazer isso funcionar.

— Você está certa — eu digo, puxando-a em meus braços. — Claro que você está certa. Realmente não importa. Nada disso importa.

— Mas é o dia do meu casamento — diz ela. — E não tenho nada para vestir.

— Você está certa. — Eu beijo o topo da cabeça dela. — Eu vou matá-lo.

Uma batida repentina na porta.

Eu endureço. Me viro.

— Ei pessoal? — Mais pancadas. — Eu sei que vocês estão super chateados comigo, mas eu tenho boas notícias, eu juro. Eu vou consertar isso. Eu vou compensar vocês.

Estou prestes a responder quando Ella puxa minha mão, silenciando minha retorcida resposta com um único movimento. Ela me lança um olhar que diz claramente:

Dê uma chance a ele.

Suspiro quando a raiva se instala no meu corpo, meus ombros caem com o peso disso. Relutantemente, me afasto para permitir que ela lide com esse idiota da maneira que ela prefere.

Afinal, é o dia do casamento dela.

Ella se aproxima da porta. Aponta para ela, passando o dedo na incomum tinta branca enquanto ela fala.

— É melhor que isso seja bom, Kenji, ou Warner vai matar você, e eu vou ajudá-lo.

E então, simples assim...

Eu estou sorrindo de novo.


dois.

Estamos voltando ao Santuário da mesma maneira que vamos a todos os lugares hoje em dia – em um SUV preto e à prova de balas – mas o carro e suas janelas fortemente pintadas só nos tornam mais visíveis, o que acho preocupante. Mas então, como Castle gosta de ressaltar, não tenho uma solução pronta para o problema, então permanecemos em um impasse.

Eu tento esconder minha reação enquanto dirigimos pela área arborizada nos arredores do Santuário, mas não posso evitar minha careta ou a maneira como meu corpo trava, me preparando para uma briga. Após a queda do Restabelecimento, a maioria dos grupos rebeldes saiu do esconderijo para se juntar ao mundo...

Mas não nós.

Na semana passada, limpamos esse caminho de terra para o SUV, permitindo que ele chegue o mais próximo possível da entrada não marcada, mas não tenho certeza de que esteja fazendo muito para ajudar. Uma multidão de pessoas já se amontoou com tanta força que não nos movemos mais do que uma polegada de cada vez. Muitos são bem-intencionados, mas gritam e batem no carro com o entusiasmo de uma multidão beligerante, e toda vez que suportamos esse circo, tenho que me forçar fisicamente a permanecer calmo. Sentar-me calmamente no meu assento e ignorar o desejo de remover a arma do coldre debaixo da minha jaqueta.

Difícil.

Eu sei que Ella pode se proteger – ela já provou esse fato mil vezes – mas ainda assim, eu me preocupo. Ela se tornou notória a um grau quase aterrador. Até certo ponto, todos nós também. Mas Juliette Ferrars, como é conhecida em todo o mundo, não pode ir a lugar algum e não pode fazer nada sem atrair a multidão.

Eles dizem que a amam.

Mesmo assim, continuamos cautelosos. Ainda existem muitos em todo o mundo que adorariam trazer de volta à vida os restos emaciados de O Restabelecimento, e assassinar uma heroína amada seria o começo mais eficaz desse esquema. Embora tenhamos níveis de privacidade sem precedentes no Santuário, onde a visão e as proteções de Nouria ao redor do terreno nos concedem liberdades que não desfrutamos em nenhum outro lugar, não conseguimos esconder nossa localização precisa. As pessoas sabem, geralmente, onde nos encontrar, e essa pequena informação as alimenta há semanas. Os civis esperam aqui – milhares e milhares deles – todos os dias.

Por não mais do que um vislumbre.

Tivemos que colocar barricadas no lugar. Tivemos que contratar segurança extra, recrutando soldados armados dos setores locais. Esta área é irreconhecível em relação ao que era há um mês atrás. Já é um mundo diferente. E sinto meu corpo ficar sólido quando nos aproximamos da entrada. Quase lá agora.

Eu olho para cima, pronto para dizer algo...

— Não se preocupe. — Kenji encara meus olhos. — Nouria aumentou a segurança. Deve haver uma equipe de pessoas esperando por nós.

— Eu não sei por que tudo isso é necessário — diz Ella, ainda olhando pela janela. — Por que eu não posso parar por um minuto e conversar com eles?

— Porque na última vez que você fez isso, você quase foi pisoteada — diz Kenji, exasperado.

— Apenas uma vez.

Os olhos de Kenji se arregalam de indignação e, nesse ponto, ele e eu estamos de pleno acordo. Sento-me e vejo como ele conta com os dedos.

— No mesmo dia em que você quase foi pisoteada, alguém tentou cortar seu cabelo. Outro dia, um monte de gente tentou te beijar. As pessoas literalmente jogam seus bebês recém-nascidos para você. Além disso, já contei seis pessoas que fizeram xixi nas calças em sua presença, o que, devo acrescentar, não é apenas perturbador, mas insalubre, principalmente quando elas tentam te abraçar enquanto ainda estão fazendo xixi. — Ele balança a cabeça. — A multidão é muito grande, princesa. Muito forte. Muito apaixonada. Todo mundo grita na sua cara, luta para colocar as mãos em você. E metade do tempo não podemos protegê-la.

— Mas...

— Eu sei que a maioria dessas pessoas é bem-intencionada — eu digo, pegando a mão dela. Ela se vira no banco e encontra meus olhos. — Eles são, na maioria das vezes, gentis. Curiosos. Oprimidos pela gratidão e desesperados para colocar um rosto em sua liberdade.

— Eu sei disso — digo — porque sempre checo as multidões, buscando na energia deles por raiva ou violência. E embora a grande maioria deles seja boa — suspiro, balanço minha cabeça — querida, você acabou de fazer muitos inimigos. Essas multidões maciças e não filtradas não são seguras. Ainda não. Talvez nunca.

Ela respira fundo, solta lentamente.

— Eu sei que você está certo — diz ela calmamente.

— Mas de alguma forma parece errado não poder falar com as pessoas pelas quais lutamos. Quero que eles saibam como me sinto. Quero que eles saibam o quanto nos importamos – e o quanto ainda estamos planejando fazer para reconstruir, para acertar as coisas.

— Você vai — eu digo. — Vou garantir que você tenha a chance de dizer todas essas coisas. Mas faz apenas duas semanas, amor. E agora não temos a infraestrutura necessária para que isso aconteça.

— Mas estamos trabalhando nisso, certo?

— Estamos trabalhando nisso — diz Kenji. — O que, na verdade – não que eu esteja dando desculpas ou algo assim – mas se você não tivesse me pedido para priorizar o comitê de reconstrução, provavelmente não teria emitido ordens para derrubar uma série de edifícios inseguros, um dos quais incluía O estúdio de Winston e Alia, que... — ele levanta as mãos — ...para o registro, eu não sabia que era o estúdio deles. E, novamente, não que eu esteja dando desculpas pelo meu comportamento repreensível ou algo assim – mas como diabos eu deveria saber que era um estúdio de arte? Foi oficialmente listado nos livros como inseguro, marcado para demolição...

— Eles não sabiam que estava marcado para demolição — diz Ella, com uma pitada de impaciência em sua voz. — Eles entraram no estúdio justamente porque ninguém estava usando.

— Sim — diz Kenji, apontando para ela. — Certo. Mas veja bem, eu não sabia disso.

— Winston e Alia são seus amigos — indico sem graça. — Não é da sua conta saber coisas assim?

— Escute, cara, faz duas semanas muito agitadas desde que o mundo se desfez, ok? Eu estive ocupado.

— Todos nós estivemos ocupados.

— Ok, chega — diz Ella, levantando a mão. Ela está olhando pela janela, franzindo a testa. — Alguém está vindo.

Kent.

— O que Adam está fazendo aqui? — Ella pergunta. Ela se vira para olhar para Kenji. — Você sabia que ele estava vindo?

Se Kenji responde, eu não o ouço. Estou olhando pelas janelas muito escuras para a cena lá fora, vendo Adam abrir caminho através da multidão em direção ao carro. Ele parece estar desarmado. Ele grita algo para o mar de pessoas, mas elas não serão caladas imediatamente. Mais algumas tentativas – e eles se acalmam. Milhares de rostos se voltam para encará-lo.

Eu luto para entender suas palavras.

E então, lentamente, ele se afasta quando dez homens e mulheres fortemente armados se aproximam do nosso carro. Seus corpos formam uma barricada entre o veículo e a entrada do Santuário, e Kenji salta primeiro, invisível e liderando o caminho. Ele projeta seu poder para proteger Ella, e eu roubo sua invisibilidade para mim. Nós três – nossos corpos invisíveis – nos movemos cautelosamente para proteger a entrada.

Apenas quando estamos do outro lado, em segurança dentro dos limites do Santuário, finalmente relaxo.

Um pouco.

Olho para trás, como sempre faço, para a multidão reunida logo depois da barreira invisível que protege nosso acampamento. Alguns dias eu apenas fico aqui e estudo seus rostos, procurando por algo. Qualquer coisa. Uma ameaça ainda desconhecida, sem nome.

— Ei, incrível — diz Winston, sua voz inesperada me sacudindo do meu devaneio.

Eu me viro para olhá-lo, descobrindo-o suado e sem fôlego enquanto ele se aproxima de nós.

— Que bom que vocês estão de volta — diz ele, ainda ofegante. — Algum de vocês sabe alguma coisa sobre consertar tubos? Temos um tipo de problema de esgoto em uma das tendas e está tudo na área coberta.

Nosso retorno à realidade é rápido.

E humilhante.

Mas Ella dá um passo à frente, já alcançando a – querido Deus, isso está molhado? – chave inglesa na mão de Winston, e quase não consigo acreditar. Envolvo um braço em volta da cintura dela, puxando-a de volta.

— Por favor, amor. Hoje não. Qualquer outro dia, talvez. Mas não hoje.

— O quê? — Ela olha para trás. — Por que não? Eu sou muito boa com uma chave inglesa. Ei, a propósito — ela diz, virando-se para os outros — vocês sabiam que Ian é secretamente muito bom em marcenaria?

Winston ri.

— Só era um segredo para você, princesa — diz Kenji.

Ela faz uma careta. — Bem, estávamos consertando um dos edifícios mais salváveis no outro dia, e ele me ensinou a usar tudo em sua caixa de ferramentas. Ajudei-o a consertar o telhado — ela diz, radiante.

— É uma justificativa estranha passar as horas antes do seu casamento arrancando fezes de um vaso sanitário. — Kent anda até nós. Ele está rindo.

Meu irmão.

Tão estranho.

Ele é uma versão mais feliz e saudável de si mesmo do que eu já vi antes. Ele levou uma semana para se recuperar depois que o trouxemos aqui, mas quando ele recuperou a consciência e contamos o que havia acontecido – e garantimos que James estava seguro – ele desmaiou.

E não acordou por mais dois dias.

Ele se tornou uma pessoa completamente diferente desde então. Praticamente jubilante.

Feliz por todos. Uma escuridão ainda se apega a todos nós – provavelmente se apegará a todos nós para sempre...

Mas Adam parece inegavelmente mudado.

— Eu só queria avisar vocês — ele diz — que estamos fazendo uma coisa nova agora. Nouria quer que eu vá lá e faça uma desativação geral antes que alguém entre ou saia do local. Apenas como precaução. — Ele olha para Ella. — Juliette, está tudo bem com você?

Juliette.

Tantas coisas mudaram quando chegamos em casa, e essa foi uma delas. Ela pegou seu nome de volta. Recuperou-o. Ela disse que, apagando Juliette de sua vida, temia estar dando muito poder ao fantasma de meu pai. Ela percebeu que não queria esquecer seus anos como Juliette – ou diminuir a jovem que era, lutando contra todas as probabilidades de sobreviver. Juliette Ferrars é quem ela era quando ela foi conhecida no mundo, e ela quer que continue assim.

Eu sou o único autorizado a chamá-la de Ella agora.

É só para nós. Uma ligação à nossa história compartilhada, um reconhecimento ao nosso passado, ao amor que sempre senti por ela, não importando o nome que ela use.

Eu a assisto rir com seus amigos, enquanto tira um martelo do cinto de ferramentas de Winston e finge bater em Kenji com ele – sem dúvida por algo que ele merece. Lily e Nazeera saem do nada, Lily carregando um pequeno embrulho em forma de cachorro que ela e Ian salvaram de um prédio cercado nas proximidades. Ella solta o martelo com um brado repentino e Adam pula para trás em alarme. Ela pega a criatura suja em seus braços, sufocando-a com beijos, mesmo que o cachorro esteja latindo com uma ferocidade selvagem. E então ela se vira para mim, o animal ainda está uivando em seu ouvido, e eu percebo que há lágrimas em seus olhos. Ela está chorando por causa de um cachorro.

Juliette Ferrars, uma das heroínas mais temidas e louvadas conhecida no mundo, está chorando por causa de um cachorro. Talvez ninguém mais entenda, mas sei que é a primeira vez que ela segura um. Sem hesitação, sem medo, sem perigo de causar dano a uma criatura inocente. Para ela, isso é a verdadeira alegria.

Para o mundo, ela é formidável.

Para mim?

Ela é o mundo.

Então, quando ela joga a criatura em meus braços relutantes, eu a mantenho firme, sem reclamar quando a besta lambe meu rosto com a mesma língua que usou, sem dúvida, para limpar seu traseiro. Eu permaneço firme, sem revelar nada, mesmo quando a baba quente escorre pelo meu pescoço. Eu fico parado enquanto seu pêlo sujo penetra no meu casaco, prendendo as garras na lã. Na verdade, estou tão quieto que, eventualmente, a criatura se acalma, seus membros ansiosos se apoiando no meu peito. Ele geme enquanto olha para mim, geme até que eu finalmente levanto uma mão e a arrasto sobre sua cabeça.

Quando a ouço rir, fico feliz..

                                                                                                    Tahereh Mafi

 

 

 

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