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A mãe está sentada ao piano e toca. Cai o crepúsculo. Fora, no largo, mesmo junto aos vidros, correm as nuvens. Aquele canto por trás do piano, é sombrio e pleno de mistério e é aí que está escondida Inês para ouvir as notas. Os sons caem das teclas como se fossem coleantes fitas em tom verde-pálido, riscando a cor cinzenta da sala, misturados com reflexos de seda e, de vez em quando, com misteriosos risos. O piano vibra, Ina encosta o rosto à madeira: o piano está vivo.
É deste canto que sai a escuridão em que a sala está envolta. Ina, que não tem mais de cinco anos, sente-a espalhar-se e encolhe-se toda. O horrível tapete, castanho com desenhos pretos, que tanta vez lhe meteu medo, é o primeiro a ser devorado pela sombra. Em seguida, a credencia com as pratas antigas e depois a máquina de costura - só ficam então os rectângulos claros das janelas e os sons que saem do teclado.
Na sala que nunca mais acaba, surge uma floresta atravessada por certa estrada e uma petizita - será a Ina?- faz um gesto: na relva, ao luar, o rapazinho das botas de sete léguas dança com os elfos. No céu está suspensa uma estrela, tão baixa que se pode agarrar. Seduzida pela música, Ina sai lentamente do seu canto, ergue-se nas pontas dos pés, levanta os braços, apanha a estrela do céu tão baixo e começa a dar voltas, suavemente.
Segura a estrela na sua frente e a música tão de-pressa a faz brilhar como a apaga por completo. Agora está escuro, faz frio e há uma grande tristeza na floresta dos sons: o menino das botas de sete léguas foi-se embora e os elfos também. Ina anda à roda cada vez mais de-pressa e uma voz canta nela: Só. sozinha." A estrela torna a acender-se. levante-a bem alto acima da sua cabeça, vê-lhe o brilho. Ri-se mas ao mesmo tempo sente uma tristeza tão grande que tem os olhos húmidos. Depois, a música cessa e, tonta, a pequenita cai sobre o tapete.
- Que estás a fazer, Ina ? - pregunta a mamã, voltando-se no banco que range, com o rosto e as mãos muito brancas na escuridão e com olhos estranhos.
- Estou a dançar, mamã. Oh, como é bonito isso que estava a tocar, com a floresta a estrela e tudo!
- Ah, sim ? - disse a mãe e pela sua voz parecia estar com pena de Ina. - Então viste uma floresta e uma estrela ? Tu viste isso tudo ?
E colocou as mãos nos joelhos como se estivessem muito fatigados e quisessem adormecer e murmurou, como se se dirigisse a uma pessoa crescida:-Era Schubert, a sonata
em lá menor: com isto não se dança.
E então a criada trouxe o candeeiro de petróleo e tudo acabou.
O candeeiro de petróleo nas pequenas casas dos arredores é sinal de decadência, assim como o piano vertical, desafinado, em promiscuidade com a mesa das refeições
e a máquina de costura. Outrora havia gás, cinco bicos num lustre de cobre, a máquina estava no quarto da menina e o piano de cauda no salão. Naquele tempo, o sr.
Rafay, sempre de sobrecasaca, chapéu alto e sapatos de polimento, fazia rendosos negócios com a companhia de seguros Danubia e, à noite, dirigia com toda a elegância,
as lições na Escola de Dança Raffay, que numerosos cartazes vermelhos e verdes afirmavam ser a primeira, no género. Mas a moda varia: pessoas frívolas já não pensam
em proteger mulheres, crianças e bens por meio de seguros na Danubia. Na escola de dança que, ainda há pouco tempo, tinha por alunas duas baronesas, o nível social
não deixou de baixar desde que Javelot, o professor do corpo de baile da Ópera Real, abriu também uma escola. Às filhas de porteiras e os filhos de merceeiros estudam
hoje os princípios da estética e as regras de etiqueta no dancing Perfeição; todas as caixeiras, por um florim de entrada, podem embriagar-se de valsas com os seus
apaixonados. O próprio sr. Rafay, o belo Rafay está muito longe de ser o que era.
O candeeiro de petróleo baixa e deita fumo; a pequenita está deitada na caminha de grades, mas com os olhos abertos; um raio de luz, fino como um lápis branco, penetra
no quarto; ao lado, a mamã limpa com uma velha escova de dentes as pratas antigas que têm o brasão dos Delarès. Cheira horrivelmente a amoníaco nos três compartimentos,
o papá vai barafustar quando entrar: zanga-se todos os sábados à noite, o que não impede a mamã de puxar conscienciosamente o lustro às três peças a que chama, desvanecida,
as pratas da família.
Desde que o sr. Raffay fez cinquenta anos fala, sem cessar, da morte como dum inimigo pessoal, como de concorrentes da Danubia ou do professor do corpo de baile
Javelot, que abriu a escola de dança. Tem uma coriza perpétua, as algibeiras cheias de caixas de pastilhas e está sempre de mau humor; a esposa, que tem apenas trinta
anos, fita o com os seus grandes olhos azues e não consegue compreendê-lo.
- Margit, sirva o jantar do senhor. - diz calmamente.
E Margit, a criada húngara, desliza por aqui e por ali nas alpargatas de feltro; sobe-lhe da roupa um cheiro a cebola e pelos buracos das meias, redondos como
grandes moedas, vêem-se os calcanhares luzidios e claros. Os Raffay têm sempre criadas húngaras, sujas, ladras e que se mandam embora com frequência porque aparecem
com um filho, mas fazem ao patrão uma boa cozinha substancial: guisados de porco, folhas de vinha recheadas e vagens de paprics de conserva.
O sr. Raffay descalça-se, dizendo: "Doem-me os pés!" e tira a sobrecasaca coçada nas costuras. Os cabelos apresentam um aspecto esverdeado e poeirento, embora todos
os domingos Ina arranque as brancas; tem as pálpebras inchadas e o bigode demasiadamente negro devido ao abuso da tinta-é ele que lhe torna o rosto ainda mais fatigado.
As mãos são vulgares, mal cuidadas, dando uma impressão de avidez, e tremem, ao de leve, quando pegam no copo de vinho tinto. Assim que a esposa vê aquelas mãos
agarrarem a garrafa de aguardente húngara, toda a sua vida lhe parece falhada e inconcebível.
Surge o livro das contas, os gastos da semana, a cena de sábado à noite. Ela não é económica: não o aprendeu a ser, porque a mãe era a baronesa Delarès. O sr. Raffay,
pelo seu lado, faz despesas exageradas no Café. É obrigado a lá ir e a jogar as cartas afim de recrutar clientes para a Danúbia. Sacrifica-se pela família. Sobe
cem degraus por dia, tenta entontecer gente estúpida com a sua eloquência e faz-se pôr fora da porta umas cinquenta vezes, a-pesar-do seu chapéu alto e do seu cache
col de seda. Apanha as reprimendas do agente geral da Danúbia, um homem novo, malcriado que, além disso, tenta roubá-lo nas comissões. Depois, à noite, dentro dos
sapatos de verniz que o magoam, com os brônquios a arder, tem que ensinar valsas às filhas de porteiras e aos filhos de merceeiros e organizar quadrilhas. Todas
as noites: "formem a cadeia. balancez vos dames."
A esposa lamenta-o, é evidente o seu sacrifício. No entanto, também ela se sente sacrificada, mas duma forma que não se vê nem se diz. Mora numa casa exígua, alumiada
a petróleo e passa a vida a passajar peúgas e a vigiar uma suja Margit. É claro que todas as boas
donas de casa fazem o mesmo e estão contentes com a sua sorte. Mas foi preciso vender o piano de cauda, o carniceiro faz cenas desagradáveis porque há meses que
,se lhe compra a crédito. A sr.a Rafay tortura-se para encontrar uma expressão; no seu íntimo, chama a tudo aquilo - marido, candeeiro de petróleo, dívidas, queda
- a "realidade". e a realidade é tão cruel! Separa-a um abismo daquilo a que chama a "verdade": a sonata em lá menor, tocar piano ao crepúsculo, as recordações dum
sr. Raffay que era outrora duma beleza resplandecente e sedutora, Chopin. Gosta sobretudo de Chopin porque é sentimental, incerta e não tem vontade própria. E depois,
ainda tem no mundo a filha, essa criança de corpo delicado como o duma princesa, com os olhos cor de violeta dos Delarès, a imaginação cheia de contos. a criança
que dança sonhando com florestas e estrelas. A pequenita está acordada; ouve a discussão, conhece cada palavra pronunciada.
- Ina tornou a dançar. - diz a mamã.
- Sim? E bem? - pregunta o papá.-Com gosto? Não fica tonta? É uma verdadeira Raffay.
- Uma Raffay? Deus nos livre! É mas é uma Delarès: tem os nossos olhos. É absolutamente a avó.
Ina ouve apaixonadamente. Começa aqui a segunda parte da questão e isto diz-lhe respeito. Volta-se, febril, na sua caminha. Não percebe lá muito bem mas sente que
é preciso decidirem-se por um lado ou por outro. Suspira: há móveis vivos em seu redor, mexendo-se na escuridão do quarto, têm rosto e os seus estalidos metem-se
na conversa.
- Os Raffay possuem mãos grossas, - diz a mamã ossos grandes e não são finos nem cultos. Pensam muito na comida e têm várias paixões: são boémios e eslovacos.
- Os Delarès são tão delicados que há lá vários aleijados. - afirma o papá.-É uma raça degenerada, cujo sangue é tão claro, tão doente que não serve para nada. São
uns românticos.
Pelo tom da voz, Ina compreende bem que aquela palavra quere dizer qualquer coisa feia.
O sr. Raffay gaba-se numa voz que vai tomando
entusiasmo: "Quando eu era estudante em Budapest. o melhor dançarino de czardas. as festas na ilha Margaret." A mamã replica: "Antes de te conhecer. a garden-party
no parque do meu tio, o barão Delarès. tinha sempre vestidos de tom lilás."
Ina vê tudo: o pai, muito novo, a caminhar sob uma bandeira flutuante e a mãe com os cabelos soltos e um véu: exactamente a imagem do livro de contos. Sente confusamente
como a vida é múltipla; imagina-a como uma casa desconhecida com cem portas: todas estão por abrir e o seu coraçãozito aspira a tudo. Quere ser uma Delarès e uma
Rafay, deseja dançar as czardas à noite, na ilha, com um vestido lilás, quere assistir às garden-parties-vê grandes nuvens de macieiras em flor e não desdenha viver
um pouco para comer. Também está pronta para as coisas que não compreende: ser uma boémia, sentir muitas paixões e, se for preciso, tentar também ser aquilo que
há de pior: uma romântica.
Em maio, há na escola de dança a reunião final, a noite de benefício, e da sua saca de couro preto o papá esvazia sobre a mesa uma tilintante montanha de moedas
de cinco coroas. Se a mamã tivesse aprendido a economizar e se o papá não fosse tão infeliz ao jogo, poderia chegar-se com aquilo até ao fim de setembro. Mas assim
é impossível, e agosto, interminável no calor sufocante e no ardente ar da grande cidade, não é um mês nada agradável.
Em setembro, entra Ina para a escola e começa então a compreender aquilo a que a mamã chama a "realidade". Tudo se torna regular e impenetrável, os dias marcham
em fila como se fossem soldados pequeninos. Plano de estudos, alfabeto, duas vezes dois, coisas difíceis que há toda a vontade de dominar, visto
que se é espantosamente ambiciosa. As fadas, os elfos e o tal rapaz das botas de sete léguas que até aí estavam sempre prontos a acompanhar Ina, refugiam-se no recanto
negro atrás do piano e só de lá saem à noite, exactamente no minuto em que ela vai adormecer. Na aula, as crianças são estranhas: são "os outros", Ina está sentada
só consigo própria, no seu banco, como sob uma redoma de vidro. Os professores estimam-na por causa dos seus olhos atentos. Na aula de religião chega a chorar porque
Jacob anda atrás da Raquel durante sete penosos anos e por fim troçam dele dando-lhe a Lia. Na gimnástica e no canto é a melhor. No dia de Ano Novo sabe ler e pega
no seu livro de contos: o mais lindo é o da Pequena Sereia. Ina tenta dançar ao crepúsculo mas o que a mamã toca não serve e tornou-se tímida e hesitante. Tem um
bibe de alpaca preta e mãos como as de toda a gente. Não conseguem apanhar nenhuma estrela porque estão cheias de tinta.
Ao domingo, a mamã põe-lhe um vestido de seda, da sua invenção - é um resto, um pálido reflexo dos tecidos de tom lilás - e vão visitar os avós.
No patamar circula um ar novo e fresco, um encantador aroma a subterrâneo e a maçãs. Na porta há uma placa de cobre que sempre maravilhou Ina; agora já pode ler
o que lá está escrito: Herbst (outono). É o nome do avô e para ela que tudo transforma em imagens, está intimamente ligado à idea de oiro caindo lentamente no ar
azul. Os avós são pessoas distintas. Têm uma sala com móveis de damasco vermelho e um grande piano de cauda ao qual está sentado o avô que, com a sobrecasaca preta
muito cintada, usa uma calça "pepita" à moda antiga; tem os olhos azues da mamã, aqueles olhos que ficam tão estranhos quando ela interpreta Chopin. Â avó, da família
dos barões, pertence à categoria Delarès a que o papá chama "os imbecis". Ina gosta dela precisamente por isso, gosta tanto que, ao beijar-lhe a mão, sente no coração
uma familiar e doce ternura. A fraqueza de espírito da avó consiste em ela ser incapaz, como faz a mamã, de dividir o mundo em "realidade" e "verdade".
Nega por completo a "realidade" que considera inexistente. Se ouve falar de coisas penosas, rudes ou tristes, diz com pueril sorriso: "Estás a brincar, minha filha,
isso não existe!" e com o indolente gesto em que move as lindas mãos, afasta a importuna "realidade". Nunca admitiria que os Raffay têm dívidas, um candeeiro de
petróleo na pobre casa fora da cidade, que ela própria desceu de classe e que o sr. Herbst, o avô, só consegue sustentá-los, a ela e ao salão de damasco vermelho,
graças à mensalidade que regularmente envia o irmão, o barão rico. Usa vestidos claros, infantis, guarnecidos à moda antiga, com folhos e fitas. Na rua, as crianças
correm atrás dela: sorri-lhes e os seus olhos cor de violeta brilham no rosto envelhecido.
Há coroas pequeninas na toalha e nas porcelanas, comem-se acepipes delicados; Ina bebe xarope de framboeza, o avô faz girar o anel de brasão e dirige às senhoras
ditos galantes e leves, piscando o olho à neta. Depois da refeição, a avó senta-se com Ina em frente da janela e pegam no cofre das imagens. E aparecem então gravuras,
aguarelas, daguerreótipos, estampas e figuras variadas. Todos os rostos têm os olhos dos Delarès, com sobrancelhas a unir-se e pálpebras pesadas. A avó conta o belo
passado espanhol e, sobre tudo o que contém o cofre lembra lindas e comoventes histórias que nada tem que ver com a "realidade" e que despertam no coração da pequenita
o desejo da viagem e da aventura. Mas, de-repente, deixa de prestar atenção porque o avô começa a tocar piano e fá-lo ainda melhor do que a mamã. "Minha filha",
diz a avó, "a tua mãe tem talento mas o teu avô é um génio". Quando ele toca, fica misterioso como um feiticeiro, respira profundamente e as suas mãos lançam se
para cima das teclas como se fossem animais. Em seguida, toma-se chá em frágeis chávenas chinesas através as quais transparece a colherinha de prata e todos aqueles
desenhos são contos vivos.
A avó, no seu vestido infantil, saltita através do salão, com duas velas acesas que vai fixar no piano. Os móveis criam estiradas e trémulas sombras, e a mamã, cujo
rosto está muito pálido, toca a quatro mãos com o avô.
Quanto à avó, às escondidas, faz um sinal a dar coragem a Ina. Chegou a sua hora; vai dançar.
Baila com um rosto grave, absorto, baixando as pesadas pálpebras, de tal forma que as longas pestanas estendem a sua sombra pelas faces.
"Rococo" explica baixinho, o avô, à pálida luz das velas começando os acordes dum minuete de Mozart. Ela tem um vestido de tafetá cor de rosa, muito hirto, a toilete
do noivado da avó, encurtada à pressa com grandes pregas irregulares e nos cabelos empoados enrola-se um colar de pérolas acinzentadas.
Ina dança com toda a solenidade, como num sonho; o avô e a avó sorriem. Mas a mamã, tirando as mãos do teclado, exclama: "Que estás a fazer, Ina?" e na sua voz há
angústia.
No quarto, a avó despe Ina como se fosse uma boneca sem articulações. Enche as mangas tufadas do vestido cor de rosa com papel de seda e um barrigudo armário engole
as peças todas do vestuário; por fim, as pérolas vão dormir para o seu leito de veludo branco, Ina faz esforços para não chorar.
A avó sorri; cintilam os olhos Delarès, emquanto diz alegremente:
- Quandoeu morrer terás as pérolas mas, nessa altura, quero que estejas alegre.
- E a avó estará contente por ter morrido? - pregunta a pequenita, orgulhosa com a dádiva mas surpreendida com as palavras.
E a avòzinha, que tem o espírito fraco e não vê a realidade, responde com o seu riso que soa docemente:
- Estar morta ou viva, minha filha, é tudo a mesma coisa,
O largo onde está o prédio da escola de dança do papá chama-se praça dos Judeus, o que é sinistro. As
velhas casas dormem enrugadas sobre si próprias com as janelas tapadas, quem sabe até se visitadas pelas bruxas. Em todo o caso, Ina não se admiraria nada se a praça
um belo dia desaparecesse com a escola de dança, a fonte de Pest e o papá. Nos contos, a pena de morte cumpre-se assim na praça dos Judeus, precisamente sob a tabuleta
a preto e oiro da escola de dança Rafay. Mas por cima da tabuleta brilham as janelas iluminadas diante das quais as sombras passam em cadência.
A escada está cheia duma música que faz cócegas nos dedos, nas plantas dos pés e também no céu da boca. A mão da mamã, numa passajada luva de algodão, segura com
força a de Ina e ela aperta os lábios com uma careta hostil. Na sala da Perfeição dançam-se valsas, os candeeiros de gás oscilam suavemente, o papel das paredes
foi maculado na altura da cabeça, por gerações de mais e companhias-e um par ideal, em gesso e na flor da idade, sorri com bondade. As raparigas da Perfeição não
têm senão nomes próprios; Ina conhece as mais bonitas que, ao passar, lhe sorriem, semi-cerrando os olhos. Têm blusas claras, saias que rodopiam e os sapatinhos
de polimento reflectem a luz. Os rapazes ricos, de fatos bem feitos, fingem desdenhar a dança mas Ina, que vibra dos pés à cabeça, sente que desejaria poder gritar
de contentamento. O papá tem nos braços a rapariga mais bonita, a Olga dos cabelos negros; a pouco e pouco forma-se em redor do par um círculo vazio. Eles dançam
tão bem que ainda está mais calor na sala, de sufocante atmosfera. Ina encontra-se fascinada, tem o coração a bater emquanto olha para o pai. A mamã aperta-lhe a
mão e cerra os lábios para não proferir uma palavra amarga.
- Vem ao vestiário, Ina. Aqui respira-se mal.
A pequenita acha que ali se respira deliciosamente, embora o ar não seja transparente e cheire a suor, a perfume e a pó. Onde estão os abafos está menos calor; ao
longo da parede vêem-se pendurados os sacos de sapatos e, perto da torneira, fráulein Irma Zwillingsbauer espreme os limões para os copos mal enxutos e assemelha-se
ela própria a um limão demasiadamente maduro.
Pronuncia palavras ácidas que lhe arreganham a boca; sofre da decadência mundana da escola, acha escandalosas as raparigas da Perfeição e vulgares os rapazes ricos
que lá levam as suas camaradas. Quanto ao sr, Raffay, que foi a admiração da sua juventude, ficou sendo sempre o modelo e o tipo supremo da elegância masculina.
A sr.a Rafay está sentada ao lado de fráulein Zwillingsbauer no aposento pintado de verde, em que a chama do gás quási extinta assobia e onde, em parcimoniosa luz,
caem regularmente as gotas da torneira. A ardente dança com a Olga faz parte do ofício, assim como o boémio olhar negro do sr. Raffay e a ondulação do seu corpo.
O papel da mulher consiste em lamentar o verdadeiro Raffay, o fatigado quinquagenário, remendar-lhe as peúgas, esfregar-lhe os pés com vaselina e tratá-lo quando
tem cólicas nefríticas.
A música deixa de se ouvir. Pares com as mãos agarradas, procuram a semi-escuridão do vestiário e roçam a sr.a Raffay, ao passar. Sentada muito direita, ela aperta
bem a saia de encontro a si. Ina foge dali e, encostada às paredes da sala, vai ter com o seu único amigo, o pianista Conradin que lhe estende a mão fria, a sua
mão de ébrio, riscada de veias azues.
- Boa noite, princezinha. Até que emfim chegaste! Desejava tanto ver-te que estava quási a chorar.
- Boa noite, Conradin, Não quero que faças troça como as outras pessoas crescidas, ouviste?
- Deus me livre! Não fiz troça, estive triste. Bem sabes que quando te não vejo ao domingo, o diabo apodera-se de mim à segunda feira. Mas cá estás.
E passa os dedos frios e sempre trémulos pelos cabelos negros da criança que estão quentes e sedosos.
- Que fizeste em toda a semana, princezinha ?
- Já sei multiplicar por nove.
- É muito aborrecido! E além disso ? Pensaste neste teu pobre criado?
- Claro que sim.
- E rezaste por ele ?
- Rezei. Ouve, Conradin, diz-me que número tinhas antes ?
- Antes ? Um número ? Mas então, princezinha, julgas que eu faço parte da tabuada da multiplicação ?
- O papá disse; "antigamente o Conradin era um bom número, antes de estar subjugado pelo seu vício".
- Ah, sim, compreendo. Dantes, eu era um número elevado, pelo menos mil. Compus uma ópera e tinha uma batuta mágica: bastava andar com ela dum lado para outro e
cem artistas punham-se a cantar, assopravam nos instrumentos ou tocavam magnífica música nas cordas; era o que se chama um maestro. E depois o vício tomou conta
de mim, como diz o teu pai, dominou-me, venceu-me, lançou-me à lama. Em seguida, levantei-me, depois apoderou-se outra vez de mim e assim sempre. Podes perceber
isto ?
- Como tu és engraçado !
- Muito, princezinha. Vem para aqui, fita-me bem. Mas nunca fales do que te vou dizer, an ? Não és capaz de adivinhar onde eu estive na semana passada. Na índia,
em casa da rainha Raipur. Tinha mandado chamar-me, encheu-me de chocolate e cem das suas mais lindas escravas dançaram na minha frente. Fui eu que escrevi a música.
Ora ouve.
Ele toca baixinho. ergue-se um muro em redor do estrado, à volta do velho pianista e da criança. a sala da Perfeição desaparece por completo por trás duns véus verdes.
Ina vê dançar as escravas e a música torna a fazer-lhe cócegas nos pés, nas mãos e no céu da boca.
- Na próxima semana, se o diabo não me levar antes, irei ao Egipto ver como dançam os pavões brancos e comporei uma pavana só para ti. Já viste dançar um pavão ?
- Nunca vi nenhum.
- Mas é preciso ver, princezinha, é mais necessário do que saber quantos são duas vezes dois. Iremos buscar um pavão e obrigá-lo-emos a dançar para nós. Valeu ?
- Pois sim, mas eu também sei dançar, - disse Ina, invejosa - e melhor do que um pavão . não tão bem como o papá e a Olga, mas também sei.
- Ah, minha filha! Que número alto tu serás um dia.
O papá bateu as palmas:
- Ocupem os seus lugares para a quadrilha, por favor. Falta um vis-à vis. Primeiro as senhoras.
E volta a ver-se a sala com o papel velho, os aromas e os risos, as raparigas que dão gritinhos quando as apertam e os rapazes cujas mãos e olhos começam a ousar.
A mamã lá está, cinzenta e hirta, à porta. O papá organiza, conduz e dirige com elegância. embora, às vezes, tenha que se retirar para um canto afim de poder tossir
no lenço. O Conradin deixa cair sobre o teclado as mãos frias, azuladas e letárgicas e Ina, fatigada por tantas emoções, adormece de-repente, com a cabecinha apoiada
sobre um tamborete de veludo vermelho .
Conradin é um bom amigo. Aparece - de casaco amarrotado e os cabelos grisalhos esvoaçando sob as abas do chapéu - para a levar a ver os pavões. Através as ruas pobres
do bairro vão a pé até Schoenbrunn. Ina engole tudo com os olhos muito abertos: filas de casas cinzentas, de operários; num nicho cavado na parede duma igreja, a
madona sarapintada e coroada de flores; os longos olhares dos cavalos; homens de passo pesado; longínquos sons de realejos. Encantam-na os pavões brancos, mexe mesmo
a cabeça como eles, sem dar por isso, mas acha que não dançam bem. À volta, os joelhos estalam-lhe, de cansaço. Ao canto da praça, Ina enche ainda os olhos com uma
nuvem verde, amarela, brilhante como uma pedra preciosa e rara.
Conradin espera-a em frente da escola; tem os olhos turvos como chumbo, as mãos tremem violentamente, mas encontrou as primeiras campainhas de inverno. Ina dá um
grito de alegria.
- Umas princezinhas quási tão delicadas como tu.
- diz ele.
Ina pega-lhe na mão e por trás deles sobe o riso das outras crianças, ainda mais estranhas a Ina quando o Conradin está presente. Leva-a ao parque municipal e mostra-lhe
o primeiro voo de frágeis andorinhas que se recortam no céu de prata. O riozito desgela e nas margens nevadas há pequenas poças de água cheias de
céu azul. O estreito curso de água está constantemente a correr, brilha o fundo de pedras, cor de rosa, vagas minúsculas correm umas a seguir às outras com caudas
pretas e doiradas, como lagartinhos. A água passa sempre : está viva.
Sob o tépido vento, Conradin começa de súbito a cambalear; senta-se num banco com o rosto crispado, exprimindo angústia. Voltam para casa de carro eléctrico.
- Gastou dinheiro, Conradin. Estraga a pequena com mimo.
- Eu, minha senhora ? De modo nenhum .
- Ao menos fique e jante connosco. O meu marido há-de gostar de o ver cá.
Mas Conradin recusa. A mamã vai à cozinha e diz à Margit que ponha na algibeira do velho casaco pendurado no vestíbulo, um embrulho com salchichas e carne. Durante
este tempo, Conradin fala do seu castelo. Habita em Dóbling, num castelo. A grande imperatriz dormiu outrora no seu leito. Tirou todos os quadros das paredes porque
Deus pintou na janela uma coisa magnífica.
- Uma coisa magnífica ? E o que foi ?
- As montanhas azues.
- As montanhas azues . - repete Ina - Também queria ver isso.
- A princesa está convidada. Digne-se Vossa Alteza, no primeiro dia de sol que houver, honrar o meu castelo com a sua presença. - replica ele com grande solenidade.
A mamã volta. "Beba, ao menos um cálice de slibovitz" diz docemente. Conradin abaixa as pálpebras sombrias e enrugadas; a mão que estende para o licor está gelada
e treme.
Chega uma semana em que Conradin vem quási todos os dias esperá-la à escola; fala pouco, já não lhe chama princezinha, não brinca, parece não ver as nuvens, os pássaros
e as árvores exquisitas. Não faz senão andar, avançar sempre, arrastando os pés lassos. Sente na sua, a mãozinha morna da criança e isso deve dar-lhe
coragem. Mas está mais em baixo de dia para dia, a bôca não deixa de se agitar, os olhos tornam-se amarelos e estão raiados de sangue e o lábio inferior, muito mole,
tomba, deixando ver os dentes. "Reza pelo pobre Conradin, servidor de Deus", murmura no limiar da porta e vai-se embora muito de-pressa.
No domingo, está ao piano da Perfeição um estranho, um rapaz bem vestido, de smoking.
- O vício dominou-o mais uma vez. - diz Raffay.
- É preciso mandá-lo embora. - aconselha a mamã
- É impossível trabalhar com um ébrio.
O coração da pequenita treme por causa do seu amigo, mas o papá declara:
- Mandar embora Conradin Rahl? Queidea! Não há ninguém em Viena que faça dançar como ele. O Javelot agarrá-lo-ia imediatamente. Conheceu-o quando ele era célebre.
Em abril, aparece à porta um mendigo magro, esfarrapado, sem chapéu nem casaco.
- Oh! Conradin! - diz a mamã.
Depois comprime os lábios e vai buscar aos velhos fatos do papá um casaco e calçado.
- Pareces um cão doente. - diz-lhe Ina com afectuosa intenção.
Conradin percebe-o e, erguendo da testa as madeixas grisalhas, responde com um bom sorriso:
- Não rezaste bem por mim, princezinha. Foi por isso que o diabo me raptou e me deitou no azeite a ferver. Mas, desta vez, ainda lhe escapei.
Ina fita-o muito seriamente nos olhos e sente no coração a dor familiar e doce da compaixão e da ternura.
Na sexta-feira Santa, a escola está fechada. Conradin, que é quási um mendigo, aparece num trem para levar Ina ao seu castelo. A pequenita não diz nada e a mamã
pregunta com severidade:
- Onde vai buscar dinheiro para estas loucuras, Conradin ?
Ele replica, contraindo o rosto num sorriso mundano:
- Loucuras, minha senhora? Mas é só para as fazer que vale a pena ter dinheiro. De resto, não assaltei nenhum Banco, esta riqueza vem dum maluco por musica que quere
compor e não tem nenhuma idea na cabeça. E eu voei em socorro duma imaginação indigente nada mais Foi o meu amigo Javelot quem nos pôs em
relação. Ina encosta-se ao estofo do carro, o cavalo lá vai trotando, o cocheiro, meio adormecido, balanceia para a frente.
Olha, repara bem: olha que estamos num coche doirado, puxado por seis cavalos brancos, com um escudeiro vestido de branco a cada porta.
Ina vê isto distintamente. Conradin fala sem cessar, descrevendo terras, homens e animais misturando ao seu palavriado o céu e o inferno: Ina acredita em tudo. No
céu desabrocham lindas nuvens semelhantes a flores de macieira, o ar sopra nas ruas, muito húmido e puro, desenha as molduras e as cornijas das velhas casas. Diante
do castelo - antigo barracão esbarrondado num jardim selvagem - está uma bruxa ameaçando com o cabo da vassoura. Um poleiro de capoeira serve para se subir ao telhado,
mas o quarto de que Conradin abre a porta é todo de oiro. Está vazio: só o sol apenas o sol entrando pela janela aberta, o doira completamente. -Bemvinda seja a
princesa! - exclama Conradin, aproximando-se ao centro do quarto. E logo, em disposição de representar um conto, num gesto principesco que nada tem de infantil,
estende a mão dobrando o pulso. Numa alcova está a cama na qual ninguém dirá que dormiu a grande imperatriz. Por cima do leito fora gravada na parede em grandes
letras pretas a inscrição: Mane, thecel, phaaes P -Que quere isto dizer, Conradm?-preguntou ela, depois de ter soletrado.
- Isto quere dizer. é chinês, Ina e não tem tradução. Significa pouco mais ou menos isto: "Conradin não tem juízo". E também: "Conradin ficou idiota por ter sofrido
muito". Significa que uma pessoa que esteja aí estendida de noite, farta-se de morder as mãos e isso não lhe serve de nada. E que então se erguem os dias defuntos,
os dias estragados, perdidos para sempre.
e a mulher anda pelo quarto, docemente, com os negros cabelos sedosos e a criança olha para mim e diz: "Perdido!" E quere dizer ainda: "No fecho exterior da janela
não tardará muito a aparecer um homem enforcado, com a língua de fora ."
Conradin esconde o rosto nas mãos, aperta os dedos na cabeça, tão convulsivamente que as articulações ficam brancas. Quando os afasta, o seu devastado rosto de alcoólico,
retomou penosamente a expressão fidalga. Diz, sorrindo:
- É uma história chinesa, e não tem pés nem cabeça.
Um pouco mais tarde, Ina pode ver as montanhas azues. Molemente onduladas, tocam mesmo no céu, afundam se em vales e no horizonte envolvem-se em véus. Árvores em
flor cobrem-lhes as vertentes, como raparigas coroadas, e descem para a planície entre casinhas pequenas florindo mesmo as janelas. A flor de cerejeira exala um
perfume de amêndoa e entre os ramos um melro branco toca flauta.
- Que está ele a cantar ? - pregunta a pequenita.
- cQuero dar-te o meu coração", isto na língua dos melros, é claro. Permite-me, princezinha, que eu me sirva da mesma expressão. O meu coração pertence-te desde
sempre, minha filha, és tudo o que me resta, Ina. Agarro-me a ti para não estoirar. não, não ponhas esses olhos de espanto. não podes compreender. ainda não, Ina.
Tive um filho, uma filha. mas mudemos de assunto. Quero, portanto, dar-te o meu coração princezinha e para que esteja fresco e puro pendurei-o lá fora, diante da
janela. Ora olha, está num prego, aí à direita.
- Um balão ! Um lindo balão vermelho! - grita a pequena, já sossegada.
- Parece. mas podes crer que é o meu coração, basta ver a cor. E olha como ele estremece e se atormenta, quere subir, subir pelo menos até ao céu. Mas o velho cordel
que está atado ao coração prende-o cá em baixo. É o que se chama um símbolo, Ina: dou-to de presente e, com ele, vamos fazer uma linda coisa.
- E que é ?
- Anda comigo e espera.
Partem. Solidamente atado à mão de Ina, o balão oscila no ar.
Atravessam os campos e já a tarde envia oblíquos raios de sol e o primeiro orvalho beija as vertentes. Tudo está silencioso. Sob os pés curva-se a erva em doce ruído.
Ina volta-se para olhar: pisou uma anémona. A flor levanta-se, a flexível haste estende-se, o rosto da planta faz um sinal, as folhas magoadas estremecem mas agitam-se
com juízo: a flor e a erva estão vivas. Sobre os lábios coloca-se um aroma húmido, de terra, e o ar escorrega pelas mãos. O horizonte azula-se e Ina sente o coração
a dilatar-se-lhe sob uma impressão que ainda não tem nome.
- Já tiveste muitos balões como este, princezinha ?
- Tive um que me deu o papá quando fiz anos e outro quando era pequenina.
- E que lhes fizeste ?
- Atei-os à minha cama.
- E depois ?
- Mais nada. Então tornaram-se pequenos, cada vez mais pequenos e no dia seguinte, de manhã, não havia senão uma feia pele toda enrugada. Chorei muito.
- Sim, é o que acontece quando se trata mal os corações encantados. Desta vez não chorarás: vamos tornar feliz este balão, ou antes, este coração enfeitiçado, palpitante,
impaciente. Olha.
O fio está cortado. O balão oscila dum lado para outro sem perceber logo que está livre. Depois lança-se para cima, para o alto: o vento dá-lhe um empurrão e ele
voa, cada vez mais pequeno.
Afasta-se o ponto negro no azul imenso, toma uma direcção enviezada e vai ao encontro das montanhas de turquesa. As andorinhas cortam a vermelhidão do poente muito
abaixo dele e o ar fresco acaricia o rosto erguido de Ina.
Um ponto desaparece, feliz, em qualquer parte entre as nuvens da tarde.
Ina respira fundo, está satisfeita, o seu coração palpita
docemente, cheio de aspirações. Tem as mãos ávidas. Conradin não olhou para o balão; fitou apenas os olhos da criança. E diz lhe em voz baixa:
- Agora, Ina, já sabes o que é o desejo.
Ina tem desejos, agora tem a consciência disso. Tem-nos constantemente, de dia, e principalmente à noite, antes de adormecer e também em sonhos. É maravilhoso desejar.
Estende o corpinho, sente-se diferente das condiscípulas, aparentada com todos os seres que podem voar ou transformar-se, com tudo o que é belo e a que ela chama
"vivo". Cresce e o que a torna diferente das outras crianças é o olhar Delarès, a perscrutar, e o seu andar alado. Caminha colocando primeiro a ponta do pé, a planta
não toca no chão senão durante um segundo e logo descola com o tacão elástico. Os joelhos lançam-se para a frente, a cabeça e o pescoço fogem para trás afim de dar
leveza ao corpo. É o andar das crianças índias, dos guerreiros africanos, nus, e das vasconças, raças que têm o peito do pé muito saliente e o dedo grande muito
longo.
Aos oito anos, Ina descobre o espelho que bem de-pressa se torna um amigo mais íntimo do que Conradin, e que merece mais confiança. O espelho é um mistério, uma
das cem portas que abrem do mundo para o desconhecido. Passa horas em frente dêle, com colchas, trapos, chailes e contempla-se: agrada-se muito. Deixa soltos os
cabelos que se tornaram compridos e pesados, onde correm pequenos reflexos azues e sedosos e descobre também a testa. Nenhuma aluna da escola tem uma testa assim,
nem a mamã nem mesmo a avó, a-pesar-de ser da família dos barões. Mas a imperatriz do busto de gesso, a das gravuras na aula e a dos livros, tem a mesma testa que
a Ina Raffey,
O retrato duma mulher nua, exposta num armazém, do Ring, é um acontecimento. Está deitada sobre almofadas e sente-se o calor da sua pele muito lisa. Um preto traz
flores e ela chama-se Olímpia. Ina também desejaria ver-se nua num espelho, mas tem vergonha. No entanto, na manhã de domingo, ela faz de Olímpia, na banheira, estendida
na água quente que cheira bem, a sabonete. Acaricia os joelhos, brilhantes como cetim, os ombros que saem da água, pequenos e frescos como cabeças de montanhas redondas.
Quando sai do banho, os pés molhados deixam no chão um vestígio onde se distingue um sítio seco no lugar onde a planta arqueada não toca no solo. Ina tem uma grande
ternura por estas pegadas e grava-as em toda a parte, às centenas, sobre os ladrilhos da sala de banho. Aranka, a nova criada, resmunga em húngaro por causa de toda
aquela porcaria.
Ina adora tudo o que se mexe. Há movimentos, surpreendidos não se sabe onde, que a seguem durante muito tempo, que se repetem à noite, diante dos olhos fechados,
na cama: um gato salta molemente dum carro; uma criada aperta o chale preto em redor do peito; ao canto duma rua, dois namorados despedem-se, ele, uma criança quási,
não deixa de se voltar para trás; certa mulher faz sinais duma janela; um cavaleiro monta no Ring, o cavalo ergue garridamente as finas pernas da frente e arredonda-as
com elegância.
Ina tenta imitar tudo isto em frente do espelho. Há ainda outros gestos maravilhosos, mas inimitáveis. Tílias esvoaçam no ar, há frutos munidos dum pequenino pé
que têm uma folhinha doirada a vesti-los e que giram como a Olga dos cabelos negros. E nuvens passam todos os dias por cima da praça, de manhã apressadas como crianças,
envoltas em agasalhos, que correm para a escola, à tarde sereias de vestido verde e mulheres altas que levantam os braços e desaparecem. Do que Ina gosta acima de
tudo é do vento: corre sobre um maciço de tulipas e as flores inclinam-se em reverência como numa festa da corte. Quando ele sopra, o lago azul do parque toma o
tom cinzento da pedra e fica enrugado como um rosto
de velho; mas longe, em Dóbling, um campo verde, de trigo, transforma-se no mar com vagas de claras cristas e abismos cheios de sombra.
O vento luta com ela, apanha-a pelas costas, expulsa-a do caminho da escola, depois desaparece de súbito, soprando-lhe, só para brincar, um pouco de ar fresco para
o rosto e enchendo-lhe as mãos. À esquina da rua está outra vez à espera dela e deita-se-lhe em cima. Ela sente-o no corpo todo e mostra-lhe os punhos, empurrando
o com as coxas e os joelhos, gritando de prazer. À noite, em frente do espelho, tenta fazer redemoinhar a beira da saia, como faz o vento, mas não consegue.
Ina adora muitíssimas coisas: o fogão, a cama, o piano, os livros, os sapatos de polimento do papá, o cofre da avó e as suas chávenas de porcelana. coisas que é
impossível enumerar. Cada objecto tem o seu aroma, a sua voz e todos lhe são familiares - são vivos.
Gosta de perfumes; muitos são ternos como recordações, outros suaves, e tantos convidam a sonhar e a desejar. Mas acima de tudo, Ina adora as cores, as que gritam
e praguejam, o vermelho, por exemplo, e outras delicadas e tímidas. Mas detesta o cinzento e é por isso que chora com inexplicável violência quando, com a ajuda
de fráulein Zwillingsbauer, que anda a coser pelas casas, lhe arranjam um vestido com a velha toilette cinzenta da mamã que tem agora uma nova, também gris e exactamente
igual à outra. Ina não compreende este sistema, tanto mais que fica com o aspecto duma criança pobre sendo ela imensamente rica.
São estes os pequenos acontecimentos. Os grandes dão-se pouco antes de completar os dez anos.
A escola de dança vai de mal a pior. Ina é, sem dúvida, imensamente rica mas o sr. Rafay não tem dinheiro. Os seus convites para o grande baile de benefício alcançam
pouco sucesso e vê se forçado a fazer grandes despesas: manda imprimir novos programas que prometem mundos e fundos.
Trabalha como uma besta de carga. Só de madrugada sai do Café onde distribuiu convites, desperdiçou algum dinheiro - não vale a pena falar nisto - e vendeu
quatro bilhetes a cinco coroas. Entendeu-se também com o seu amigo conselheiro, o jornalista Pratt que está disposto a pôr-lhe um anúncio no Jornal mas que lhe diz:
"Falta à sua festa uma atracção, ouviu Raffay? Não sei o quê mas qualquer coisa extraordinária. Há neste momento, oitenta festas da primavera em cada noite, todas
com cotillon e tômbola. Uma atracção, é o que lhe digo!"
O sr. Raffay reanima com um pouco de slibovitz a sua imaginação cansada e abatida. A esposa executa máscaras cómicas, rostos grotescos e avermelhados e cabeças de
animais que cheiram a cola. Toda a noite trabalhou para a tômbola e está tão fatigada que procede como em sonhos e que, acordada mas como num pesadelo, tem medo
que as horríveis imagens criadas no papelão se animem e a persigam.
No quarto de dormir, o sr. Rafay tropeça, em frente do espelho, nas gazes e nos trapos de veludo com os quais Ina esteve a brincar.
com a vela aproxima-se da cama e vê-a estendida, com o rosto apoiado nos morenos braços de criança, os cabelos tombando para a testa de imperatriz e sob a colcha,
o corpito, não abandonado como o de qualquer rapariguinha, mas ardente e trémulo, a sonhar.
O sr. Raffay parece ter encontrado a sua atracção.
Dá a Ina a primeira lição de dança. Em casa, a mamã e fràulain Zwillingsbauer sentadas à máquina de costura, confeccionam com os farrapos de Ina, qualquer coisa
que dá a ilusão de ser um trajo espanhol. Durante esse tempo, entre as espantadas paredes da escola, o sr. Rafay ensina à filha um fandango que é invenção sua. De
manhã, a sala tem um aspecto lúgubre. Todas
as vezes que, depois dum salto, o papá se firma no soalho, o doirado dos lustres esvoaça como poeira. O chão estala ruidosamente na sala vazia, os bustos de gesso
têm pó nos mínimos refegos, os bancos de veludo vermelho apresentam nódoas e as desbotadas beiras usadas estão todas esfiapadas. Fechado, o piano geme surdamente
e, no vestiário, os copos da limonada estremecem a cada passo do professor. Mas Ina está longe de ver tudo isto. O coração bate-lhe na garganta, olha para o
papá e as mãos e os músculos das pernas tendem-se extraordinariamente. É a sua vez de dançar, O papá marca o compasso, batendo nas mãos. "Um . dois. Um. dois. rodar
sobre o tacão. não, foi mal." O papá agarra-a pela cintura e obriga-a a rodopiar, prendendo-a com as pesadas mãos: "Um . dois . salto à direita. um . dois. salto
à esquerda. um . dois. ? roda sobre o tacão ."
Ina senta-se num banco, tonta ; nunca julgou que fosse tão difícil bailar. O sr. Raffay, a transpirar, chupa certas pastilhas contra a tosse. Ina pensa nas danças
ao crepúsculo quando a mamã interpretava Chopin e nas outras em casa dos avós, à luz das velas. E sorri ao passado.
Na segunda lição já tudo corre melhor. Há sol no estrado, o teclado ri com todos os seus dentes amarelos e Conradin está na sua frente. Conradin encontra se apresentável,
o casaco está escovado e os cabelos grisalhos não se pode dizer que estejam muito despenteados.
- Então, princezinha, vais misturar-te com a vulgaridade ?
A música faz bater o coração de Ina sob um novo ritmo desconhecido; o papá já não existe. Sentado com as pernas afastadas não deixa de olhar para Ina que murmura:
"Um. dois. salto à direita. um. dois. salto à esquerda. um. dois. rodar sobre o tacão."
Tem o seu vestido cinzento e o bibe de alpaca.
Quando no fim, deve fazer o turbilhão, sente o seu peso. Achando-se pesada, fica desiludida e todos os movimentos a fatigam. É preciso que a Aranka lhe cosa uma
cruz vermelha na manga direita, se não é impossível distinguir este braço do esquerdo.
Mas consegue. O sr. Raffay, muito agitado, anda dum lado para outro.
- Isto agora sim! Dêem-me pessoas com disposições, dêem-me criaturas dotadas e mando passear todos os Javelot deste mundo! Ideas, ideas, compreende, Conradin? Tem-se
a cabeça cheia de ideas e é-se obrigado a ensinar a polca a hipopótamos! E com isto tudo, ainda não vendi setenta entradas. É preciso fazer qualquer
coisa. vou ensaiar uma quadrilha de primavera com os hipopótamos. Ilm anda a estudar um minuete e eu estou convencido de que acabo por ter um ataque. De tarde, no
Café, o seu amigo Pratt oferece-lhe duas borlas para a Ópera. Há um ballet: O Conto dançante. Ina tem licença para ir, em recompensa de ter tão heroicamente aprendido
o fandango. Senta-se, no seu vestido lilás, ao lado do pai e, com as mãos geladas, fala febrilmente até ao erguer do pano. Depois arregala muito os olhos e retém
a respiração e o papá ouve-lhe os suspiros trémulos. No intervalo está silenciosa.
- Não mordas os lábios, Ina! - diz o sr. Raffay. ? Toca-lhe no cotovelo :
- A primeira dançarina. Olha, é a estrela, a melhor bailarina.
Ela rodopia ao longo do palco, com os cotovelos ? presos atrás, como asas, e gira num só pé. O sr. Raffay espera, com a boca aberta.
- Vinte e quatro voltas, Ina. É duro. Mas a Taglioni dava trinta e duas.
A pequenita analisa as coisas de forma diversa. Vê sonhos transformados em realidade, fadas, sereias e elfos de corpos muito brancos, imponderáveis, paisagens de
nuvens, oiro e rosas, torrentes de luz e cor. Sobre árvores de prata crescem frutos de oiro, o luar e o sol alternam de minuto a minuto e o impossível torna-se possível.
- Tudo isto é verdadeiro ?-pregunta. Ela tem os olhos Delarès e o sr. Rafay não responde a preguntastão absurdas.
Na próxima lição reclama:
- Também quero dançar com os braços, quero fazer assim e assim. como a primeira bailarina.
E toma uma graciosa posição, como a do palco. Conradin, interessado, estica o pescoço e olha por cima do piano.
- No final vou morrer. - declara ela, resolutamente.
- Estás doida?- indigna-se o pai.
- A primeira bailarina morreu no fim e era muitO bonito.
Enterra no coração um punhal imaginário, cambaleia, tomba no chão esvoaçando sempre, ergue-se e torna a cair definitivamente morta com o corpo em harmoniosa atitude.
- Aqui estão as ideas românticas do Javelot. - diz o papá, furioso. - Não se brinca com a morte. Levanta-te de-pressa.
A sua bronquite está agravada. Mostra mau humor.
Mas Conradin deixa de tocar e, com os olhos singularmente atentos, contempla a criança estendida.
No caminho do regresso, com a quente mãozinha metida entre os dedos gelados do pianista, faz-lhe as suas confidências:
- Eu também quero ser primeira bailarina. uma estrela, sabes? Tenho tanta vontade, que sinto o coração a bater, a bater.
- Ah, sim ?
E continua a fitar a maravilhosa e surpreendente criança.
Decorre com brilho a festa da primavera na escola Raffay. Sempre se chegaram a passar uns cem bilhetes. As senhoras estão mascaradas: violetas, bonecas e ciganas;
os seus cabelos cheiram levemente a queimado. Em compensação, os cavalheiros exalam um adocicado aroma a cosmético. Está calor, abriram-se as janelas e, entre dois
números de dança, ouvem-se as horas soando nas igrejas que estão na praça dos Judeus. Fràulein Zwillingsbauer estreou um avental de tafetá, dum brilho extraordinário
e, com duas marcantes nódoas vermelhas nas faces cor de limão, anda extremamente atarefada no vestiário, em roda do bufete e das flores. Mais dentro de seda preta
estão alinhadas ao longo das paredes e o centro mundano é constituído pela sr.a Ilm, viúva dum escrivão, que tem a sua corte sob o busto do Imperador. Ao seu lado
está sentada a sr.a Raffay, de sorriso lasso, as mãos, como que adormecidas, colocadas sobre os joelhos e com as luvas brancas cheirando a benzina. O sr. Raffay
arvora a sua casaca nova e Conradin a velha, aquela com que se casou o professor de dança. Diz graças com que toda a sala ri - excepto
a esposa e Conradin para quem aqueles ditos têm barbas - dança com a menina Ilm que, em trajo Luís XV, parece mais pequena ainda, com sardas, uma perna arqueada
e outra direita. Raffay fica tendo no peito uma leve mancha de pó dos empoados cabelos dela.
Vai ao vestiário e o seu rosto, subitamente normal, mostra-se cinzento e grave.
- Quanto, Irma ?
- Seiscentas entradas, catorze ramos. As rifas da tômbola é que não há maneira .
- Ainda hão-de vir algumas pessoas da Perfeição. E deixa se cair numa cadeira, limpando o rosto
com o lenço de seda.
- Ai, Irma, quem me dera que isto acabasse. estou tão cansado!
Fráulein Zwillingsbauer, acanhada, ergue os seus pobres dedos picados, de costureira, como se quisesse acariciar-lhe os cabelos pintados. Mas há muito tempo que
tudo acabou entre eles .
A valsa finda e o sr. Raffay volta precipitadamente para a sala. O sr. Pratt chegou, baixo, com uma grande casaca triste e um lenço de seda vermelha no colete. Cada
impressão recebida o perturba até que a tenha exprimido numa frase feita. Armazena dentro da cabeça: "A juventude de hoje dança a um compasso de três tempos".
O sr. Raffay transpira. "Quanto, Irma?" Dança com a Olga uma valsa artística sobre a mesa que lhe trouxeram com afã.
"O entusiasmo atinge o seu apogeu", nota Pratt.
Onze horas. Os moços hipopótamos executam a quadrilha da primavera sob um arco-íris de flores em papel de seda. Conradin toca uma delicada e terna composição sua,
que ninguém ouve: toca para Ina.
- Daqui a pouco chegará a tua vez, princezinha. Não tens sono?
Ina está sentada no estrado, perto de Conradin, por trás do piano; não deve mostrar-se porque já está vestida de espanhola. Bate-lhe o coração, de angústia e felicidade.
Volta para ele os olhos vivos e ardentes.
- Sono, Conradin ? Mas isto é maravilhoso !
- Minha pequenina! - murmura ele em voz terna e quebrada.
Tem tanta pena ao ver a criança metida no seu corpete de veludo! E principalmente por saber como ela se sente feliz assim mascarada.
A menina Ilm dança um minuete e trota a compasso, para a direita, para a esquerda, avançando tanto a perna arqueada como a direita. A sr.a Rafay bate as palmas,
adormecidamente, e diz à viúva Ilm:
- Delicioso, na verdade .
Por trás do piano, a pequenita treme.
- Estás comovida, princezinha ?
- Não sei. dobram-se-me os joelhos . espera Conradin . não comeces . ainda não .
Mas o sr. Raffay dá o sinal. O músico larga os cabelos de Ina e os olhos perturbam-se-lhe. Há um grande silêncio e depois soam os primeiros acordes.
- Para a frente, coos demónios! - intima o sr. Raffay entre dentes.
No meio do salão, Ina sorri: "Um, dois . salto à direita, salto à esquerda . um . dois . virar sobre o tacão." Tudo está tranquilo, julga-se absolutamente só com
a música; as paredes e as pessoas rodopiam confusamente em seu redor, sente-se ligeira e pode fazer ondular a beira da sua saia, como faz o vento. O que lhe vai
lá dentro não poderia dizê-lo, mas pode dançá-lo, levada pelo movimento e abandonando-se à força arrastadora do ritmo espanhol. Interpreta lindamente o turbilhão
final com as costas muito dobradas para trás, e depois fica ofegante, em pé - e os aplausos estalam.
Olha primeiro para o papá, cujos olhos negros, de boémio, se riem, depois para a mamã cujo rosto, muito pálido, está extraordinariamente triste. Conradin não olha
para Ina, está imóvel, prostrado como se ouvisse uma voz interior. Vê tudo isto no primeiro segundo, porque imediatamente toda a gente se precipita para ela, cobre-lhe
o rosto de beijos, mete-lhe chocolates na boca, levanta-a nos braços e fala-lhe ruidosamente.
- A atracção da noite. - declara o sr. Pratt. Num canto, senta-a nos joelhos.
- Aqui temos uma primeira bailarina: a linha, o fogo, o temperamento. Deixa ver o teu pé. podes dobrá-lo? É verdade. serás uma Taglioni, uma Fanny Essler, ou eu
não percebo nada disto. Você bem o sabe, an, Rafay?
O pai sabe-o. Pratt adora os bailados, não falta a nenhum, na Ópera. Outrora, quando era rico, viajava meses e meses atrás duma dançarina. Conhece todas as estrelas
célebres: a Tosti, a Salvatini, a Almedas, a Krasiuskaia. Tem uma colecção de sapatinhos de dança, a sua casa está forrada de retratos, todos a sorrir, em pé sobre
uma perna, os braços em arco, firmando a pose. Hoje é a sua única riqueza - outrora foi milionário.
- Queres ser primeira bailarina ? - pregunta à pequenita.
- Claro que sim! - responde ela com toda a naturalidade.
É preciso que dance mais uma vez, o entusiasmo canta no seu pequeno ser. Recomeça, mas agora sem contar e no fim "morre, sem se preocupar se o papá gostará ou não.
Aplausos, beijos, barulho, rosto pálido da mamã, sorriso terno e perturbado de Conradin.
- Sabes dançar outra coisa ? - preguntam-lhe.
- Eu danço tudo ! - grita ela, embriagada. -Não; foi só isto que aprendeu, não sabe mais nada.-diz o papá.
- Sei dançar tudo. E o minuete também. E dança-o.
Palmas. Toda a gente rodeia Ina, com grande entusiasmo. A sr.a Ilm tosse.
- Basta! - grita o papá - Uma valsa! Formem os pares para a valsa, por favor.
E convida a menina Ilm.
- Eu também posso valsar, - declara Ina. Gargalhadas. Uma casaca inclina-se na sua frente.
Os rapazes ricos da Perfeição, apressam-se a convidá-la. Rodeiam com os braços o corpinho ligeiro e valsam,
inclinados para ela. Ina perdeu a noção de tudo; apenas sabe que é capaz de voar.
- Tem sangue espanhol nas veias.- diz o sr. Pratt à sr.a Raffay. - V. Ex.â também deve dançar bem.
- Não: nunca houve nenhuma bailarina na família; aquilo vem-lhe do pai.
A seu lado, dois rapazes falam da pequenita:
- Apre, como ela dança, a garota! Aquela é que sabe o que é uma valsa!
- Livra! O que será, quando tiver mais dez anos.
Duas horas. Os penteados e os vestidos começam a murchar, na sala pesada de aromas vários. Ina refugia-se atrás do piano, junto de Conradin, E ele pregunta-lhe,
sem deixar de tocar:
- Então, minha jóia, não estás cansada ?
Ina deita a cabeça para trás, ri-se e diz apenas:
- Cansada, eu! .
- Já devia estar a dormir. -murmura, compassiva, fràulein Irma que circula com os copos de limonada. Os seus dedos rudes afagam a cabeça da criança.
- Nunca me senti tão feliz, Conradin, nunca, nunca!
- Parece-me que o diabo quere agora meter-se contigo.
- Hei-de ser primeira bailarina.
- Não digo que não, príncezinha.
Ao lado da mamã, muito hirta, a sr.a Ilm tossica e diz:
- Uma criança inquietante. Se eu fosse sua mãe, não tinha sossego.
- Talvez,- responde a mamã, com tranquilidade. Dirige-se para a janela. Está uma noite de lua, azul e fresca. Junto dos telhados, o céu aclara-se devagarinho; em
baixo, corre a sonolenta fonte. Passam as primeiras carroças levando a mercadoria para a praça.
A mamã põe diante dos olhos as mãos enluvadas de branco e chora.
Range a porta de ferro. Os cães ladram dentro de casa e uma voz grita: "Calem-se. então ?" Na escada, Conradin recomenda mais uma vez:
- Beija-se a mão ao sr. Javelot.
- Eu sei.
O bul dog espera à porta como se fosse um criado, lança o seu quente bafo para o rosto de Ina. Como ela lhe sorri confiante, o bicho coloca-lhe uma pesada pata no
ombro, mexe amigavelmente a cauda, ergue-se e abre a porta.
No compartimento cheio de sol, o sr. Javelot exclama:
- Conradin Rahl, meu caro amigo, como estou contente. Que me traz aí?
O sr. Javelot é alto, fino, com os cabelos cinzentos e claros como que empoados, caindo em caracóis nas fontes. Do colarinho branco sai um pescoço de estátua, as
marfíneas mãos são duma beleza perfeita. Ina abre os olhos suplicantes.
- Querido mestre, aqui lhe apresento uma jovem ambiciosa que quere absolutamente ser primeira bailarina. Já uma vez lhe falei nela .
- Não tem nada o tipo da bailarina. nada que seduza. É bonita? Não. mas é mais do que isso. Há-de ter estilo. Que idade ?
- Dez anos.
- Velha, muito velha. mas tem raça. Daqui a dez anos.
- As articulações, mestre, o pé.
O sr. Javelot pega nos cotovelos de Ina e aproxima-os pelas costas, fá-la ajoelhar e obriga-a a tocar na cabeça tombada para trás com os calcanhares erguidos. Põe-lhe
a mão nos rins e levanta-a: ela conserva-se rígida e faz-se leve.
- Bem. - declara o sr. Javelot - Não é demasiado
tarde. Pode entrar em agosto na escola de baile, mas será preciso apresentar-ma oficialmente na Ópera. Será admitida.
- Todas são admitidas, mestre, isso sei eu. Mas é preciso mais: isto é um caso particular, tem talento.
- Talento ? Mas quem demónio tem talento hoje, meu caro? A Almedas, a Tosti, essas sim, tinham talento. Mas agora: nada.
Deixa tombar as mãos e este gesto exprime um abismo de resignação.
- A nossa Galiena? Uma primeira bailarina? Ora! Uma boneca. Um recipiente vazio. Olhe.
E o sr. Javelot pega num copo vazio que está em cima da mesa e volta-o; nada cai.
- Aqui está. Dali não sai nada!
O cão espreguiça-se, deita o bafo para o rosto de Ina, põe-lhe outra vez a pesada pata no ombro. Ina sorri-lhe e o sr. Javelot anima-se.
- Mas então que modos são esses, sr. Frederico? Simpatiza com a pequena? Este cão tem o gosto mais delicado do mundo. É incapaz de aceitar um quadrado de açúcar
da Galiena. Então acha esta garota bonita, sr. Frederico?
O sr. Frederico fita Ina com os seus olhos castanhos. Ela pega-lhe na cabeça com as duas mãos e apoia-a no seu ombro. O sr. Javelot bebe com os olhos este gesto,
este abraço impulsivo das pequeninas mãos morenas e exclama, espantado:
-Oh!
O sr. Javelot conduz Ina até à sala. Está com sapatinhos de dança no claro mosaico que é levemente inclinado; há barras ao longo das paredes. O aroma familiar da
escola de dança enche o ar. Os dedos de Ina batem na parte dura que está na frente do sapato.
Dança o fandango: "Um . dois . salto à direita. um. dois. salto à esquerda. um. dois. virar sobre o tacão."
-Abominável! - exclama o sr. Javelot ao fim de oito compassos - Método sem gosto.
Do piano, Conradin murmura qualquer coisa em francês. Vexada, Ina sente a pele a arder como se lhe dessem açoites. Crispa os punhos e reteza os músculos das barrigas
das pernas.
Declara, desesperada:
- vou dançar outra coisa também com os braços e no fim morro.
Morre. O sr. Javelot não diz nada. Dum lado para outro anda sempre, no seu passo elástico.
- Ouve, minha filha: há aqui um jardim, tu procuras flores, encontras uma rosa e vais colhê-la. Vês se cheira bem. fazes emfim aquilo que quiseres. Podes?
Ina pode fazer aquilo, visto que é exactamente o que fazia ao crepúsculo, em frente do espelho. O sr. Javelot torna a falar francês com o pianista.
Depois:
- Ouve, minha filha, a luz cintila, vens a correr pelo palco e deparas, no chão, com o cadáver do teu bem-amado que tem um punhal enterrado no peito. cais desesperada
. saberás fazer isto ?
As ideas de Ina sobre um cadáver e um bem-amado, são vagas e imprecisas. No entanto, encontra o corpo, vê o punhal, tomba desesperada e acrescenta uma coisa : arranca
a arma do peito do bem-amado, enterra-a no seu coração e morre outra vez - agora como virtuose e com arte.
- Então, sr. Frederico, que diz a isto ? - pregunta o sr, Javelot ao bul dog, como se fosse ele que tivesse duvidado do talento de Ina.
Ela tem os joelhos a tremer. O sr. Javelot, num gesto incomparável, inclina-se para a sua mãozinha e beija-lha.
- É como as do nosso tempo, Conradin Ral: romantismo, meu amigo, e poesia. Ah! Onde está a poesia ? A sua ópera . lembro-me ainda . a ária da Bethsalée.
E trauteia uma melodia. Conradin ouve, absorvido pelos seus pensamentos.
Em Stuttgart, lembra-se ? O rei! Aquilo é que era uma época! Hoje ? Que decadência! Um mundo
de novos-ricos. A dança morre, atingida pela arterioesclerose. Naturalismo, verdadeirismo. a natureza dança, a cultura dança. Os Acantos, os Gregos, os índios, os
Egípcios do século XVIII têm bailados. Nós, sem natureza, sem cultura, não temos. Nós inventamos o automóvel. Sim . temos a civilização. Representava Excelsior,
meu amigo - um bailado com barco a vapor, caminho de ferro e um túnel a esbarrondar-se. A dança está morta. Matam-nos com a sua civilização. E onde foi a criança
buscar este dom ? Olha para nós como se desejasse voar. Se a Galiena tivesse isto, o desejo de voar, talvez fosse uma artista. Hás-de estudar muito, minha filha
? Sim ? Serás aplicada ? Mais tarde. mais tarde trabalharemos muito. Primeiro, é claro que é preciso adquirir a técnica. Hoje falando disto, gritam, urram: Nós temos
técnica, sim senhores, ora olhem para a nossa famosa técnica!" No nosso tempo não era assim, an, Conradin? Tinha-se técnica mas não se falava nela. Quere dar-me
a honra de tomar uma chávena de chá com a minha família ?
A família do sr. Javelot vive nuns compartimentos minúsculos, visto que a sala de baile toma o lugar todo na casa. Bebe-se chocolate no meio de coroas, laços e retratos
com dedicatórias. A sr.a Javelot, baixinha, com o rosto de maçã mirrada, cercado pelos caracóis que estavam na moda quando ela fazia parte do corpo de baile, palra
num franco-alemão infantil. O sr. Frederico está sentado ao lado do dono da casa que lhe vai dando pedaços de pão encharcados de chocolate. Também põe um pedaço
na boca de Ina, o que leva Conradin a preguntar-lhe:
- Espero que o mestre não deixe de vigiar a pequena.
É neste momento que aparece Eugenia Javelot, primeira actriz de mimos da Ópera, alta, esguia, escultural e tomando sempre atitudes. Já tem umas rugazitas cansadas
sob os olhos e traz pela mão um lindo rapazinho.
- Ora veja esta testa. é exactamente a mesma. murmura a sr.a Javelot.
Ina segue-lhe o olhar e ruboriza-se, encantada: Eugénia
Javelot tem a testa da imperatriz, Conradin fala em coup de foudre, romance e Ina imagina qualquer coisa semelhante a uma tempestade. O sr. Javelot recomeça a falar
de dança: a antiga morreu e a nova não nasceu ainda. Nós não podemos, somos muito fracos - e deixa cair as mãos sem força - muito velhos. Talvez a criança a venha
a ver: o futuro tornará a descobrir a alma da dança.
- Minha filha, como eu desejaria viver ainda quando dançares, daqui a quinze anos!-diz tristemente.
E, durante um instante, o rosto do velho, deitando fora a máscara, torna-se terno.
Leva Ina por uma escada até um quarto onde sete cães se erguem do cesto, vindo alinhar em frente do dono.
- Tenho o prazer de vos apresentar a grande Ina Raffay, estrela do futuro.
Os cães ladram e beija-se a mão do sr. Javelot.
O sr. Frederico acompanha-os até à saída, torna a pôr a cabeça no ombro da pequenita e abre a porta de ferro, que range. Conradin e Ina estão na rua. Esgotado, ele
afasta os cabelos da testa. No cérebro de Ina, os pensamentos turbilhonam como em sonhos. Não compreendeu senão uma coisa: que será admitida no corpo de baile e
que deverá estudar. Vago e longínquo, um conto atravessa-lhe a mente: é o de Nez, o anão, que aprende a cozinhar em casa dos esquilos. E pensa, pelo meio da história:
é preciso falar francês.
Conradin ergue avidamente o queixo para o céu e diz em voz baixa:
- Olha que linda nuvem!
Mas Ina já não se interessa pelas nuvens.
Ina deixa Conradin e a mamã, deixa os avós, deixa as danças de criança para se enterrar profundamente na realidade.
Não se baila colhendo estrelas nas florestas dos contos de fadas, tem-se um plano de estudos, exercícios com barra e sem barra - primeira, segunda e terceira posição.
Os músculos estão doridos, à noite tomba-se pesadamente na cama, os sonhos e as aspirações desapareceram. Mas lá que a Mariana Marshall possa já atravessar a sala
nas pontas dos pés, e a Ina ainda não, isso é que é motivo para escurecer todos os seus pensamentos. O mosaico, levemente inclinado da sala de baile, está sombreado
e polido por inúmeros passos. A um canto, cabeceia o homem de cabelos grisalhos que toca violino com os dedos cinzentos. Mesmo a dormir, extrai sempre do instrumento
os mesmos miseráveis compassos duma ária que lembra um cordel tenaz e interminável. As "antigas", é sobre aquela ária que executam os seus passos, as novas labutam
na barra, sem música. Fráulein Graf, a professora, comanda a meia voz, de maneira monótona ; sobre o seu velho rosto magro foram pintadas duas pequenas faces redondas
e, por hábito, está constantemente a deitar o peito para fora e a passar as mãos pelas ancas.
- A perna esquerda para fora, mais . ainda mais. ainda mais. A Marshall fez bem e a Rafay mal.
Raffay é a mais moça das novas, custa-lhe.
Na escola, chamam ao sr. Javelot "o velho". ? É tão temido como Deus e não menos invisível. As antigas afirmam que ele está num escritório do intendente com móveis
de peluche verde, que tem, ao domingo, uma hora de recepção à qual toda a gente se pode apresentar - mas nenhuma ainda lá foi. Dirige os exames na sala grande com
uma bengala de marfim na mão, e não regula bem da cabeça. Isto dizem as antigas que já foram a exame.
Nas nuvens, a seu lado, impera a Galiena, a primeira bailarina. Vêem-na, às vezes, quando passa em frente do vestiário das alunas, em branco "tutu" de trabalho,
com as pernas redondas, de grossos tornozelos. Precipitam-se para a porta para lhe beijarem a mão, que cheira a sabonete.
Abaixo da primeira bailarina há uma escala interminável, composta de primeiras figuras, primeiras actrizes
de mimos, corifeus, dançarinas do corpo de baile, as de cinquenta, trinta ou dezasseis anos. As melhores, as novas, colocam-se à frente, as idosas, murchas e sem
graça dissimulam-se atrás mastigando as suas azedas ambições. Em seguida, vêm as três classes de baile e também aí há intervalos entre a primeira e a última filas,
as antigas e as novas. E todas querem avançar, subir, todas trabalham com afinco na barra e cerram os dentes e arqueiam os músculos. As salas de exercício cheiram
sempre a suor.
Ina Raffay é a pior da última classe; a mais bonita e melhor é Mila Merz, com os cabelos de um loiro-claro e os olhos negros; está sempre alegre e é perfeita em
todos os passos, como se fossem duma infantil facilidade : tem apenas nove anos e já pode dar duas voltas num só pé. Ina dedica-se a ela com todas as forças do seu
coraçãozinho apaixonado. Oferece-lhe o seu lanche, as suas figuras de passar, os seus trapos de seda e até lhe dá um laço de fita vermelha que, nos cabelos de Mila,
toma logo um aspecto audacioso e aliciante. Acompanha todos os dias Mila Merz até casa, embora os dedos dos pés, as coxas e as nádegas lhe doam de fadiga. Mila deixa-se
conquistar. Para Ina, ela é um ser precioso, e quando caminha a seu lado, acontece que, a-pesar-de estar mergulhada em plena realidade, o seu coração recomeça a
sofrer deliciosamente e a ter aspirações.
Mila Merz possue um quarto com móveis brancos e um édredon de cetim e plumas. segundo ela diz. À tarde, vai de trem ao "Pavilhão" com a irmã, que é dançarina-solo
e tem um apaixonado. Aos dezassete anos também será dançarina-solo e terá um apaixonado, muito rico e elegante, que usará belas luvas de camurça, i Mila anda com
segurança, bem firme nas pernas, calçada de meias de seda e riem-lhe os olhos negros:
- E tu, Raffay, que farás aos dezassete anos ? - pregunta à sua amiga, silenciosa e pensativa.
-Serei primeira bailarina. - responde Ina, com timidez.
Mila ergue os braços ao céu e ri-se muito. Depois, diz:
- Toda a gente deseja isso mesmo! - e tal voto parece-lhe extremamente cómico.
Mas Ina atormenta-se para encontrar uma expressão que lhe foge. Desejaria realmente ser primeira bailarina, isso e mais ainda. Só com muito esforço consegue dar
uma volta e a Galiena lá no alto da escada, dá vinte e quatro; mas no fundo, Ina sente que é a mesma coisa. Os seus olhos, os olhos inquisitoriais dos Delarès levantam-se
sem objectivo e pedem qualquer coisa que não tenha dificuldade nem traga decepções. "Não devia haver a um canto um violinista de cabelo grisalho."
- murmura. - Mas Mila não compreende.
Em casa, a mamã acaricia-lhe os cabelos:
- Estás sempre pálida, minha filha . Tens alguma coisa? Sentes-te cansada?
-Não.-responde ela, e adormece imediatamente no canto, atrás do piano. - Quando acorda, o candeeiro de petróleo está aceso. Tem os pés frios e a cabeça a escaldar
e a zumbir. Ainda vai estudar, precisa de aprender francês: é Conradin que lhe dá lições. De noite, acorda com as mãos enclavinhadas: sonhou com a Mariana Marshall
que, na grande sala de estudo, dançava num passo especial com o sr. Javelot.
Ina desce da caminha: está um frio horrível, sente o chão gelado sob os pés. Na escuridão, agarra-se à barra do leito e faz exercícios.
Em fevereiro, as novas são admitidas à grande sala de exames para executarem um bailado. Até a descolorida fráulein Grabs está iluminada de animação e fráu Bienert,
a apopléctica vigilante que, por um corredor escuro conduz a tropa habitual para a grande sala, está na iminência de ter um ataque.
Esta grande sala é uma reprodução da pequena: chão inclinado, sombrio e polido, barras nas paredes, o mesmo cheiro. Ina olha de-pressa para o canto. Não; não é um
velho violinista adormecido que hoje temos mas um rapaz bem acordado.
O corpo de baile forma círculo em roda do sr. Javelot que tem a sua bengala de marfim. Beijam-lhe a mão. Terá reconhecido Ina? Não é nada certo, mas ela fita-o
com os seus grandes olhos e sente que ele lhe é familiar como um amigo a quem tenha contado todos os seus segredos. De-certo é ela a única a saber, na vasta sala,
que a Galiena é uma boneca. Ora! "um copo de água, vazio." O que não a impede de contemplar com pequenos arrepios de respeito e inveja os fulminantes turbilhões
da estrela.
Ina está devorada pelo desejo de, no bailado em conjunto, mostrar ao sr. Javelot do que é capaz, mas não se lhe proporciona a ocasião. As novas alunas devem atravessar
a sala em fila indiana, baloiçando os braços; o sr. Javelot bate na mesa com a bengala: um, dois, três, quatro. À terceira vez está bem. Então fraulein Bienert leva-as
para a sala pequena fazer exercícios.
À noite, os vestiários estão febris. Mariana Marshall, a primeira que está pronta, dirige-se para o espelho rodando em pontas. Ao longo da parede estão hoje penduradas
as calcinhas de trabalho; resplandece a tarlatana branca. Mila Merz pinta Ina e o rimmel arranca-lhe escaldantes lágrimas. Uma campainha precipita-as para perto
do palco.
O sr, Friedrichs, o inspector todo poderoso, do alto dum estrado, nos bastidores, dirige, fazendo sinais com uma campainha. Do holofote cai sobre o palco uma luz
vermelha; incolores, os maquinistas escorregam nas solas de feltro; de fora vem o barulho dos inúmeros sapatos de dança, agitando-se; chegam as figuras principais,
corifeu e participantes do corpo de baile; rostos de cera sorriem banhados de luz; não se sabe onde, o sr. Javelot dá ordens em voz abafada.
O palco esvazia-se para o "Passo duplos e o corpo de baile espera ao fundo, na primeira posição. com intervalos iguais, ouve-se a Galiena cair no sobrado e o sr.
Forli, o primeiro dançarino, anda à sua roda, ouvindo-se-lhe a ruidosa respiração passando pelos dentes cerrados.
- Vamos! - murmura o sr. Friedrichs nos bastidores.
- Vamos! - repete fraulein Bienert.
As novas aparecem em cena, a luz fustiga-as, a música que vem de longe faz-lhes levantar as pernas a
compasso. Reina um silêncio inquietante no grande buraco preto. O palco parece imenso e lá no alto perde-se no pó o emmaranhado rebarbativo dos cenários. Todas as
novas, com o coração a bater muito, contam um, dois, três, quatro.
Mila Merz sorri, com o verdadeiro e encantador sorriso dos corifeus. Mariana Marshall, que conduz a quadrilha, é a primeira a chegar aos bastidores do outro lado,
onde o sr. Javelot está encostado à bengala. Mal lá chegam todas, logo o palco fica às escuras. Nesta obscuridade Ina sente uns dedos pousarem-lhe nos cabelos, "Minha
pequeni na . - diz o sr. Javelot em voz baixa, como num segredo. Ina sente os olhos cheios de lágrimas de felicidade.
A primeira noite no palco é uma aventura, a vigésima é uma estopada. Estão fartas. Figuram nas óperas, formam grupos sobre pedestais, agitam os braços nas apoteoses,
saltam para a cena vestidas de moscas, de moedas, de gatas, de bonecas. E é sempre o mesmo desfile, um, dois, três, quatro. Os camarotes, o palco, o teto e os bastidores
perdem encanto e mistério e, em todos os cantos, se encontra o violinista de cabelos grisalhos. Passam a vida em serviço: lições, exercícios com barra e sem barra,
ensaios na sala pequena, na grande e no palco - serviço para o bailado, serviço para a ópera.
Depois vem a fadiga, um peso de chumbo e, nos lábios, o sabor a ranço dos cremes baratos. Mila Merz ri-se, mas Ina tem vontade de chorar.
No nevoeiro, à porta da caixa, Conradin espera-a, depois do espectáculo. Ultimamente, o diabo tornou a apoderar-se dele e fez uma longa ausência. Ei-lo que volta,
de novo, magro e todo amarrotado.
- Então como estás, princezinha ?
- Bem, obrigada.
- Que tens feito ?
- Agora estou na segunda fila e já bato melhor com os pés do que a Marshall; o velho ainda ontem o disse: "A Raffay vai muito bem". O sr. Friedrichs prometeu-nos,
a mim e à Mila, que havíamos de fazer os dois pretinhos da Alda.
- Realmente ? - extasia-se Conradin.
Sob um candeeiro, examina o rosto de Ina: as pálpebras caem pesadamente sobre os olhos e a boca mudou, e Não é uma boca de criança"-pensa ele.
com precaução, pregunta-lhe:
- Desejava saber, mas é como estás. interiormente.
- Interiormente. que vem a ser isso? -interroga a pequenita, fingindo não compreender.
Interiormente está fatigada e gelada, estranha aos outros, e as coisas familiares e vivas da sua infância, ou morreram ou estão inertes. Mas o pior é que as aspirações
desapareceram, nunca mais o seu coração sofreu aquela deliciosa, exaustiva dor. Mas a isto não se refere.
- E que tens dançado, Ina?
- Na escola não se dança. Temos tantos exercícios, sabes, tão difíceis e maçadores, acompanhados por um violinista a dormir! Dançar! Não; há muito tempo que não
danço, muito tempo!
Continuam a furar o nevoeiro. Depois ela torna:
- Sabes, Conradin, às vezes queria ir-me embora. para longe . para sempre.
- Ir para onde, princezinha ?
- Não sei. ir-me embora, apenas.
Conradin fica silencioso. Mas Ina Raffay, que tem doze anos, começa a sorrir, com o sorriso de cera do bailado.
-Ah! deixemos isso. parlons plutôt français, mon ami.
O avô morreu em junho e o papá herdou uma grande quantidade de calças cor de "pepita-e foi tudo. A mamã está ainda mais silenciosa e passiva do que antigamente,
toca à tarde o adágio da Sonata Patética e tem no chapéu um longo véu de crepe que espalha um maravilhoso odor agridoce. Ina permanece muito tempo no vestíbulo sombrio,
com o rosto apoiado ao véu e os olhos fechados a respirar aquele aroma. Ao domingo continua a haver a visita obrigatória à avó, no mundo cada vez mais estranho dos
Delarès. A avó está vestida de verde-claro, sorridente como sempre e o salão encontra-se silencioso.
- Vieram interromper o avô. - diz a viúva - Estava a tocar piano.
O talher está posto para o avô que não come nada, é claro, mas a avó sustenta com ele uma conversa tão animada que as ideas de Ina sobre a morte, já de si bastante
incertas, se encontram mais abaladas ainda. Parece que ela faz parte daquela realidade" que nem a mamã nem a avó podem suportar.
Mas acontece que, à tarde, o irmão mais novo da avó, aquele rico barão Delarès que Ina classificara sempre entre as coisas irreais, vem fazer uma visita. É duma
idade indefinida, alto, esguio, moreno e tem os olhos dos Delarès, ainda mais altivos e frios do que aqueles que Ina conhece pela mamã e pelo espelho.
Vem convidar a avó a retirar se para Amrun, "o pequeno castelo na floresta onde passámos um verão quando estavas noiva" - e a avó consente com alegria. O barão fuma
um cigarro e olha para Ina; não a trata por tu, dando-lhe o titulo de fràulein.
- Que faz durante o dia, fraulein Inês?
- Trabalho. tenho o meu serviço.
- Ah! As meninas tão pequenas já têm serviço ?
- Faço parte do corpo de baile! - declara Ina, com altivez.
O barão engole dificilmente, une as sobrancelhas.
- Tu ? - diz com precaução - Tu, com esses olhos ? Coloca a mão sob o queixo da pequenita e procura-lhe qualquer coisa no rosto.
- Fatigada . pálida. E no corpo de baile ? O teu lugar é também em Amrun, onde está o meu filho.
Ina também irá para Amrun. Uma tarde, desce com a avó do comboio que pára na minúscula estação. Pelas janelas de todos os compartimentos há olhos a segui-las pois
a avó, com o seu antigo vestido de flores, faz sensação. Um rapaz moreno aproxima-se, à vontade e beija a mão da avó. Declara:
- Sou o Fernando Delarès. Se a tia quiser, vamos para o carro que está ali.
Mal cumprimenta Ina que o olha atenta: também ele possue os famosos olhos. Brilham, grandes e sombrios, num notável rosto que se enterra entre dois
altos ombros. Tanto pode ter doze como vinte anos - é corcunda.
- O meu professor, dr. Witram. - apresenta.
Ao lado da velha caleche, inclina-se uma personagem magra e amarela.
- Ele acompanhá-la-á, minha tia. Eu vou pelo campo.
Ina aspira profundamente o ar vivo carregado pelo aroma dos milefólios em flor; no flanco da colina uma sombria floresta recorta a sua linha arrendada sobre o doirado
sol de verão, ergue-se da planície uma ténue bruma branca, os vidoeiros e as sorveiras orlam a estrada, as patas dos cavalos enterram-se no chão mole do bosque.
Ina volta-se para ver o campo por onde Fernando, o corcunda, avança na névoa como uma pequena sombra errante. "Prefere vir a pé" pensa ela. E bruscamente, duma forma
terrível, o seu coração começa a bater de desejo e dum inexprimível sentimento de insatisfação e esperança.
Sobre a colina ergue-se o castelo de Amrun, envolto num pesado perfume de acácia. A caleche rola pesadamente sobre a calçada, que está sob um alpendre pouco elevado.
No estreito pátio, as paredes assentam num solo rochoso, perfuradas por janelas altas. O poço ergue o braço da cegonha na claridade lunar. Na estranha escada recuada,
o porteiro faz uma reverência e, na cozinha, a mulher manobra com grande barulho os utensílios domésticos. Uiva um cão, insistentemente. Ina sobe a escada, como
se fosse a do palco, no seu passo cadenciado. Parece-lhe que toda a vida sonhou com este castelo, tão isolado, silencioso e encantado.
A cama, de colunas e cortinados, é grande como uma casa. "Têm uma assim, no Lohengrin" pensa ela, esquecendo imediatamente tal idea. Os colchões são frescos e os
lençóis húmidos, a luz da lua entra pela janela aberta. Negros e graves, erguem-se os pinheiros adormecidos, perto murmura um regato e longe as rãs deixam ouvir
o seu monótono coaxar. Em baixo, a porta de entrada torna-se a fechar com estrondo: Fernando Delarès regressou do passeio através dos campos.
Por cima do pórtico da entrada, ergue-se o castelo nos seus três andares, mas atrás, perto da torre, a rocha sobe além dos muros e no planalto lá de cima ostenta
um jardinzinho para o qual dá o quarto circular habitado por Fernando. Os sabugueiros exalam o seu forte perfume de raios de luar e um santo bizarro e extasiado
ergue para o céu os braços alvos. O dr. Witram, com Om telescópio, olha para o céu, vendo cintilar muitas estrelas. Fernando, sentado num banco de pedra, contempla
a abóbada celeste, com a cabeça deitada entre os altos ombros.
- Continua a procurar o seu infinito, doutor ?
E como nenhuma resposta vem, prossegue ao cabo dum momento :
- Fecho os olhos e imagino : o infinito . qualquer coisa de negro onde rolam glóbulos luminosos. sim, mas não deve ser assim. Penso: eterno. e no mesmo instante
em que pronuncio esta palavra, sinto a cabeça à roda. Desmaiaria se pensasse nisto muito tempo a seguir e quem sabe mesmo se morreria.
- Então, Nando . - diz o dr. Witram para o acalmar.
- Hoje tem que me falar outra vez da índia, é um calmante. Querido doutor, é preciso que se sente ao lado da minha cama e me conte coisas até que eu adormeça, sim
? Esta lua perturba-nos o espírito, arranca-nos a nós próprios.
- Então, Nando, estás nervoso, pensas demasiado em ti, por isso ficas agitado.
- Agitado. sim. Eu sei, doutor. O infinito é grande e eu sou pequeno, oh, sim, encarquilhado como uma pêra cozida. Bem sei que nada é importante. O escaravelho é
meu irmão, sente o mesmo que eu. não, fale me da índia, mas histórias, nada de filosofias. Hoje não estou nada filósofo. Doutor, doutor, sou eu que estou a gritar.
Tenho dezassete anos, Witram, pense bem nisso .
- Então meu filho.
- É bondoso e agradeço-lhe, é muito bom. Já não sou uma criança, tenho pensado no senhor e na maneira como me educa, a mim, o último dos Delarès. Tem
razão em me mostrar esse caminho que me arranca a mim próprio e eu quero segui-lo, é o que me convém. Mas acredite, doutor: se eu fosse como eram os antigos Delarès,
se tivesse a sua força, o seu vigoroso sangue e as suas mãos capazes de agarrar em tudo, dedicar-me-ia apaixonadamente ao budismo e aprenderia as cinco meditações.
Olhe à sua volta: tudo diz sim à vida, a verdadeira vida enérgica. Porque motivo hei-de ser eu, precisamente, que hei-de dizer que não, que hei-de renunciar a unir-me
às outras criaturas ? E não passo dum adolescente. Os da aldeia que têm a minha idade, são crianças, brinco com eles. E quando deixam de ser crianças, então apoderam-se
do mundo no que ele tem de mais ardente. ah, Deus do céu, não se pode falar disto nem pensar sequer -e eu sou um adolescente, Witram. Fernando está sentado, muito
hirto, com as mãos entrelaçadas; Witram deita-lhe um olhar e, depois de breve silêncio, ouve-o acrescentar:
- Embora seja aleijado.
Em baixo, na aldeia, uma voz passa a cantar:
Três caracóis, três rosas, três estios no campo
e o meu tesoiro encheu me o coração de fogo.
- E nós ficamos em Amrun ! - diz Fernando noutro tom. - Ambos postos de lado, sem esperança. O doutor com as suas febres e o seu quinino e a convicção de que não
existe e eu com a minha corcova e o pouco sangue que me deixaram os meus dignos antepassados e que o maldito ardor dos Delarès enlouquece. O meu pai ainda vale alguma
coisa. Ah! A altivez daqueles olhos quando, uma vez por mês, vem visitar o aleijado do filho. até sinto calor quando penso nisso. E depois parte para Viena, Paris
e Monte Carlo. De verão, recebe no castelo de Larstein, organiza caçadas e sei lá que mais. Mandam-nos para Amrun quando se está fatigado ou se não presta ou se
vai morrer. Bem me lembro como trouxeram a minha mãe, tão pálida e fraca. Esta casa está sempre vazia, como que encantada, mas o jazigo lá no alto da colina, perto
dos vidoeiros,
está cheio de Delarès. Hoje enviam-nos mais um resíduo da família: não faltava mais nada além desta velha senhora com a sua crinoline de flores e o seu olhar inconsciente.
- Estás fora de ti, Fernando, estás a dizer coisas de que amanhã te arrependerás. Prejudicas-te a ti próprio: desconheço-te.
- É por causa da lua, doutor: virou-me como uma luva. Tem razão : disse uma data de tolices. Chega por hoje, vamo-nos deitar.
Parando à porta da torre, iluminado pela lua cuja claridade inunda o jardim, pregunta ainda:
- Mas a criança, doutor ? A pequenita . que terá ela ? com certeza que está doente, visto que a mandam para Amrun .
- O teu pai escreveu: uma espécie de sobrinha . parentes em más circunstâncias, creio eu. Está cansada, a pequenita, afirma ele. Faz parte do corpo de baile, sabes ?
- O corpo de baile? No teatro? Uma bailarina? Mas então isso existe realmente ? Julguei que era uma coisa que só aparecia nos livros estúpidos. Que mundo! -Reflecte
e depois começa a rir, com ar encantado.-Compreendo.-continua, divertido.-Estar no corpo de baile é quási tão mau como ser corcunda e por isso a mandam para Amrun.
Não é verdade, doutor?
- Vamos, Nando, és uma verdadeira criança . vai dormir.
De pé sob a lua, Fernando coloca as mãos sobre os olhos, o que lhe permite evocar Inês. Absorto, diz:
- Ela tem os nossos olhos. E que andar. nunca vi ninguém tão bonito .
É na colina, por trás do castelo, que Ina e o Fernando iniciam a sua amizade. Aí se ergue a enorme
bétula de dois troncos gémeos, cujas folhas se espalham como água verde e sob a qual se encontram, enterradas na erva, as pedras das tumbas onde dormem os defuntos
Delarès. Por todos os lados florescem maciços, de cravos vermelhos, veludíneos, viscosos e por cima volitam borboletas azuladas, a que, em Amrun, chamam "alminhas".
Ina descobre o local, colhendo morangos, e agrada-lhe muito. Ajoelha-se para decifrar as inscrições quási apagadas: "Aqui jaz Fernando Delarès." "Aquíl jaz Inês
Delarès". Ò calor sobe da erva e da terra até aos seus joelhos e mãos. Estende-se ao comprido sobre uma lage. Por cima do seu corpo palpitam as folhas da bétula;
azul e doirado, inclina-se o céu; ouvem se zumbir as abelhas e as borboletas roçam-lhe pelas mãos e pelos lábios. Repousa imóvel, deitada naquela serenidade, e experimenta
uma inconcebível ventura.
- Deitas-te aí?-pregunta-lhe Fernando, ao meio-dia, saindo da floresta, - Para que te deitas aí sempre? É o meu lugar. ?
- Aqui? Está cá escrito Inês. Por isso cá estou. O teu lugar é aí onde diz Fernando.
O rapaz ri-se baixinho e estende-se na pedra tumular como num leito.
- Chamas-te então Inês? É claro, todas têm êsse nome. Olha: Inês e Fernando, Fernando, Inês, Inês. está aqui também Maria Dorotea, era a mãe do meu pai. Mas, em
geral, uma Inês desposou um Fernando. E eram primos: chama-se a isto casamento consangúineo; E é muito mau por causa dos filhos.
- Sim, o papá diz que se tornam idiotas ou românticos.
O Fernando ri-se infantilmente e pregunta:
- Tu és romântica ou quê ?
- Eu não sou uma verdadeira Delarès, sou meio boémia, diz a mamã. Chamo-me Raffay.
-Eu sei: E estás no corpo de baile? Num teatro? Tens que me contar isso com todas as minúcias; sou muito curioso, quero saber sempre qual é a vida que os outros
levam.
- O corpo de baile. não, agora não posso ver
aquilo tal como é. Quando se está deitado na erva, com o céu por cima da cabeça, não se pode imaginar toda a realidade, a sala, o serviço e o velho professor. Pelo
contrário, quando se está no teatro, não se pode imaginar que há campos e florestas e que existe qualquer coisa fora daquilo. O Conradin diz que.
- Quem é Conradin?
- É o meu amigo, um homem velho que me ensina piano e francês e mais uma data de coisas. É bom e inteligente.
- Também é budista como o meu dr. Witram? -Não; é alcoólico.-responde Ina, em tom digno. Fernando, a rir, pregunta:
- Então não vais ao colégio, não aprendes nada?
- O teatro toma muito tempo, estudo pouco. Mas a Mila Merz diz que se aprende de-pressa aquilo que é preciso saber para o nosso adorador. Mais tarde, serei primeira
dançarina e terei um adorador.
Fernando sacode a cabeça, sem compreender. Ina olha cm redor e tem, de-repente, a impressão de que o teatro, a Mila Merz, o corpo de baile e o futuro não passam
dum sonho.
- Eu quero ser médico. - declara ele. - Daqui a dois anos farei exame e em seguida irei estudar para Zurique ou Paris. E então também hei-de ver gente. Não conheço
senão Amrun. e os livros. Ah, sim, conheço os livros e distingo cada pássaro pelo seu canto e os animais pelos vestígios ou pela maneira de fugir e também sei muito
bem como vivem os escaravelhos. Mas não conheço ninguém. Às vezes, parece que tenho em mim vários seres, muitos homens diferentes, e isso dá-me o desejo de fazer
qualquer coisa .
Ina olha para aquele rapaz em camisa, botas e calça de montar. Inspira-lhe confiança com os olhos profundos e a grande boca entreaberta. Também ele a examina, o
que lhe causa um bocadinho de mal porque lhe queima o coração e a beira das pálpebras. Depois ficam silenciosos e fecham os olhos. E ouvem então os fiozinhos da
erva roçando uns pelos outros, as folhas dos vidoeiros murmurarem ao vento. Lá no alto, voga
preguiçosamente uma nuvenzinha, e um falcão negro plana, imóvel, sob a campânula do céu azul.
- Em que estavas a pensar, Inês? - pregunta o Fernando.
-Eu? Em nada. Senti qualquer coisa que não posso dizer. Tinha partido para muito longe.
- É verdade que sentiste isso? Ainda bem. É um segredo, diz o dr. Witram, e quem não pode sentir isso, nada sabe.
Sem se levantar, Fernando pega nas mãos de Ina e, sem a olhar, pregunta:
- Havemos de ser amigos? Mostrar-te-ei tudo, ensinar-te-ei a montar a cavalo e ler no pensamento; ficarás a saber onde há mais morangos e tudo que existe em Amrun:
os campos de papoilas e a velha Bíblia e a rainha das serpentes e o prado onde dançam os elfos. Mas este local sob os vidoeiros é o melhor que cá temos.
Chegam então os dias mais lindos que Ina jamais conheceu na sua curta existência. Escola de bailados, ambição, velho violinista, e toda a escada que penosamente
se sobe, são relegados para longe, a realidade desaparece com pletamente. O coração de Ina bate com força e lança-se avidamente sobre as coisas que Fernando lhe
mostra, e que são apenas produtos da terra mas tão maravilhosos que apaixonam. Ina presta toda a sua atenção. Logo de manhã cedo, o Fernando espera no pátio com
o Turco, o cão, e os dois cavalos, Bless e Bráun. Ao fim de oito dias sabe montar e dá gritos de alegria quando Fernando afirma que ela tem a equitação no sangue.
Leva-a para a alta e solene floresta da propriedade, onde os pinheiros se erguem como pilares de igreja e onde os cumes cantam como órgãos. Às vezes, uma pinha cai
com ruído surdo sobre o espesso leito de musgo. Ina fica silenciosa. Já não acontece assim no bosque dos mochos onde é preciso falar alto e rir porque é sinistro;
há vozes que estridulam e enrouquecem, os fetos amargos sobem até à cinta, os juncos e as plantas pantanosas sussurram quando uma serpente nelas se enrola. A beladona
cresce na orla duma floresta virgem, em miniatura. Os pinheiros parecem gente, todos diversos. Fernando mostra
uma árvore de tronco torcido e cheio de cicatrizes, que talha na luz uma larga coroa. E diz:
- Chama-se Fernando. Teve um desastre, em pequeno, mas não admite a compaixão.
Quando ele fala assim, a pequenita tem medo, desvia o olhar e procura acariciá-lo. Mas ele assobia pelo Turco e abandona-a em pleno bosque dos mochos,
No quarto da torre, o dr. Witram está estendido no sofá, muito amarelo e cheio de febre. Olha para o rosto atormentado, sombrio, de Fernando e não diz nada mas pensa:
- Meu Nando, meu querido filho, sofres assim tanto ?
À janela, o rapaz examina com extraordinária curiosidade as veias roxas que correm sobre as mãos, subindo até ao pulso, sob a pele morena. "Tão pouco sangue." diz
pensativo e irónico. Em sonhos, teve Ina nos braços, a ardente e flexível mulher-criança, sentiu a respirar contra o seu peito e desde então, à sua amizade, misturaram-se
a doçura, o perigo e a amargura. E as acácias floridas, em redor do castelo, tornam as noites torturantes.
Fernando também mostra a Ina a grande sala e a capela do castelo. Quando se está muito calado, na sala, ouve-se o rique-raque do caruncho, num murmúrio contínuo
dentro da madeira. Na capela vazia, sem alma, correm pelas paredes ornamentos em estilo barroco, um cheiro a incenso flutua ainda no ar e num nicho repousa a velha
Bíblia com fechos de prata.
Lêem-na ambos em voz alta, sob os vidoeiros, onde se vão sentar todas as tardes para ver o crepúsculo subir do vale sobre a colina e invadir os campos. O céu torna-se
esverdeado e a erva húmida, os penugentos cravos fecham o seu cálice, tontos de sol e inclinados para as
pedras tumulares. Fernando lê a vida de Jesus, o rosto torna-se-lhe estranho e transparente; meio adormecido, canta um pássaro e a ramaria dos vidoeiros ainda rumoreja.
Ina vagueia pelo país dos pastores e dos lagos e agora conhece muito bem Jesus: tem os olhos de pesadas pálpebras como Fernando e a barba de Conradin, ignora tudo
do corpo de baile e da realidade. Quando erguem as cabeças, que haviam inclinado sobre o livro, a noite invade a paisagem, na imensidade do céu recorta-se o negro
pinheiro solitário erguido no declive de longínqua montanha, A primeira estrela sobe acima do horizonte, emquanto que em baixo, na aldeia, adormecem os teares e
os tecelões.
Fernando mostra-lhe os campos de papoilas vermelhas, cujo lento ondular exala estranho perfume, ao mesmo tempo doce e amargo, e Ina, que olhou para o fundo duma
flor, fecha os olhos. Ele colhe algumas e obriga a a colocá-las nos cabelos. Sente-se então diferente e tem a impressão de estar no teatro. "Não penses no teatro",
diz-lhe Fernando que, às vezes, sabe ler no pensamento. Quando quere, pode ouvir os pensamentos como se o chamassem e os seus podem comunicar com os de Ina com tanta
força que, de noite, ouve-os e acorda, como se lhe tivessem batido na porta e na testa.
Ele diz que não deve pensar no teatro porque é ciumento. Um dia, obrigou-a a descrever-lho minuciosamente e desde então ficou a imaginá-lo como um monstro que, com
a sua enorme bocarra negra, devora muitas Inas lindas emquanto um grotesco sr. Javelot está de guarda, sempre com a tradicional bengala.
Ina absorve tudo em si, de manhã até à noite, e mesmo em sonhos. Deita-se muitas vezes no chão, a todo o comprimento, beija a relva e as flores e apoia ardentemente
o rosto sobre rudes almofadas de tomilho. Contempla as árvores, os pássaros, as formigas, os peixes e estende-se sob os vidoeiros, evadindo-se docemente de si própria.
Sente que tudo vive e é com felicidade que se amalgama no universo.
Em agosto, sobe do vale um novo perfume: corta-se o restolho no prado, as foices ficam molhadas pela
verde seiva do feno e durante todo o dia soam os martelos nas bigornas portáteis.
- Só quinze dias! -diz ao Turco Fernando, que está muito sombrio e não quere falar a Ina. - Preferia que nunca tivesse vindo, que ficasse lá onde estava.
Depois dirige-se-lhe:
- Voltas para junto dos teus salta-pocinhas, e eu fico aqui só. Ah, Deus do céu! Nunca senti tanto como estava sozinho!
Ina responde:
- Tu é que tens sorte porque ficas aqui. Mas eu.
Num segundo, vê tudo que a espera: a sala de jantar, o horrível tapete, o candeeiro de petróleo, a mamã vestida de cinzento, o papá a tomar um banho de pés, a sala
dos ensaios, o camarim, a Mariana que de-certo se fartou de fazer exercícios durante o verão, emquanto que ela passava a vida deitada na erva .
- O dr. Wítram assegura que nada tem importância. Mas para mim tem. - declara Fernando cerrando os lábios.
E arranca um pedaço da casca dum salgueiro que se descola semelhante a um bocado de marfim. Por toda a parte, quer esteja parado ou a andar, esfola os ramos. O dr.
Witram zanga se e diz-lhe: "Ouve, meu pequeno, para que fazes sofrer seres vivos ? Não dás por isso ?" O Fernando é claro que dá por isso, mas continua, apertando
os maxilares. Cada ramo é uma mulher que vem para ele : nua, esguia, macia e branca.
- Não te zangues e deixa a árvore em paz. Julgas talvez que estou contente por me ir embora? Pensarei intensamente em ti, sabes? Para que o possas sentir, mas é
preciso que tu também não me deixes só .
- Sabes lá o que é estar só no meio da tua cidade e de todos esses saltões!
"Melhor do que tu", pensa Ina mas não o diz. Aproxima-se do rapaz e coloca a sua cabeça sobre o ombro tão alto, como à noite quando lêem a Bíblia. com uma gravidade
que já não é de criança, segue uma nuvenzinha esverdeada .
Bem de-pressa chegam os dias cinzentos. O trigo
está cortado e no colmo serpenteiam silvas; de manhã, a cavalo, o ar frio fustiga o rosto, os campos aparecem cobertos de geada branca e dum ramo para o seguinte
penduram-se alvas charpas. Ina anda dum lado para outro, na floresta, e começa as despedidas. O rapaz está junto dela e, absorto, mordisca um fiozinho de erva.
- Desejaria ser o dr, Witram, - declara - ser já um budista perfeito, erudito, ter um pouco de febre, estendido num sofá e que tudo me fosse indiferente.
Depois apanha um escaravelho, um minúsculo ponto vivo no cinzento solo da floresta e coloca-o delicadamente sobre uma folha. Ao fazer isto, o rosto distende-se,
toma uma expressão de bondade e repouso. O Fernando está inteirinho neste pequeno gesto .
À tarde, a velha caleche roda ruidosamente para a estação, com o dr. Witram e os dois pequenos. O sr. Raffay veio buscar a filha, Tem uma calça do avô o que, aos
olhos de Ina é, ao mesmo tempo, uma prova de elegância e de falta de tacto. Olha-o atentamente: tornou-se-lhe estranho com os olhos vivos e o bigode pintado. Fernando
examina-lhe as atitudes graciosas, forçadas e típicas como se se tratasse dum prodígio cómico.
Em casa, no quarto azul, a avó faz as honras ao sr. Raffay: conta-lhe os seus passeios com o avô e ressuscita velhas histórias. O sr. Rafay narra os esforços inauditos
que é preciso fazer para manter a escola no brilho em que está. É preciso fazer reclamo à americana, diz o seu amigo Pratt. Ele tenciona fazer circular na rua Kantner,
à hora elegante, uns homens sandwichs com cartazes no peito e nas costas. A avó sorri sem compreender. As preocupações do sr. Raffay são tão reais que para ela não
existem. Fernando ouve com os olhos muito abertos: sente uma grande curiosidade pelas pessoas.
Os homens são espantosos: o que dizem é absolutamente diferente do que pensam; ele concentra a sua vontade e penetra-lhes nas ideas - e acaba por ter pena deles.
Lamenta o sr. Raffay, tão laboriosamente pintado, lamenta os homens sandwiches e empalidece um pouco, de
tal forma se coloca no lugar dos entes que hão-de andar pelas ruas com um cartaz no peito e outro nas costas. O dr. Witram estuda-lhe os olhos emquanto que Ina,
secretamente, estende os pés e faz mover os calcanhares. Comoveu-a essa coisa da rua Kartner e do sr. Pratt; afasta-se de Amrun para ir encontrar o sr. Javelot,
a sala, o teatro. Ao mesmo tempo pensa: "Nunca terei nada tão belo como Amrun .
"Querida Ina, Amrun está todo envolto em neve. vê se podes imaginar como é. Tudo é tão ilimitado e vasto e branco e silencioso quando a neve cai! Às vezes, ouve-se
um estalo na floresta, quando um ramo quebra sob o pê"o da neve, e mais nada. Já se não pode estar por baixo dos vidoeiros.
"Querida Ina, prometeste pensar em mim e não me deixar só. Mas sinto que não fazes o que prometeste e eu vejo-me só. Minha pequenina, continuas a ser tão criança
como neste verão ? Ou também já descobriste que se é velho, muito velho e que as coisas são muito antigas? Sei que tens os olhos dos Delarès mas terás também o seu
sangue? Às vezes, eras-me familiar como uma irmãzinha e outras vezes eras tão diferente! Mas não podes compreender isto. Adivinhas quando te chamo? Em Amrun adivinhavas.
Quando fecho os olhos, posso, à-vontade, ver-te; ou tens um vestido escuro, ou ris na tua maneira tão pessoal, ou então ilumina-te um enorme clarão.
"Preciso que me escrevas, querida Ina. O dr. Witram está bem doente; quando tem febre ou lhe dói a cabeça coloco os meus dedos nas suas fontes e isto acalma-o. Sinto
então que em mim não há só fraqueza mas também força.
"Queres alguma coisa, Inazinha ? Querer é todo O segredo da vida,
"Bráunl e Turco enviam-te lembranças. Falo muito com eles a teu respeito e quando digo Ina ou a nossa mulherzinha, ficam logo com as orelhas em pé. Muitas saudades
do Fernando Delarès."
"Peço-te para me escreveres, Ina."
"Querido amigo. Desculpa-me por não ter papel próprio; é a primeira carta que escrevo na minha vida, por isso vai mesmo em folhas do caderno. E sem linhas a minha
letra sobe sempre como se quisesse voar. é talvez uma consequência da dança.
"É claro que penso em ti, querido Fernando, mas durante o dia não tenho nenhum sossego: a escola, as lições, o serviço que é terrível e ainda o piano e o francês
com o Conradin. Mas antes de adormecer, penso sempre nos vidoeiros e em ti: e tu não sentes nada antes de adormecer?
"Toda a gente diz que mudei muito este verão e o Conradin, que me conhece como ninguém, afirma que estou uma beleza. Cresci muito e tenho que me tornar realmente
uma beleza para vir a ser primeira bailarina. Mas ainda tenho as pernas um tanto magras e também nos ombros falta qualquer coisa. A Mariana Marshall chama-me "pau
de virar tripas", mas aquilo tudo é inveja. Imagina: o sr. Javelot dá-me de dois em dois dias uma lição particular e por nada, só para seu prazer, simplesmente porque
eu tenho a vocação e aquele romanesco que o papá não pode suportar.
"Não calculas como o sr. Javelot é adorável. Aprendo imenso com ele, mostra-me coisas magníficas, atitudes e tudo, mas também, às vezes, me deixa seguir a minha
inspiração, o que não permite senão às primeiras figuras. Quando está contente, mal a lição acaba, dá-me um beijo na testa; é delicioso: como se uma borboleta me
tocasse. Depois permite-me que tome o café com ele e dá-nos pão branco, ao sr. Frederico e a mim: é uma grande honra. Mas no teatro, é como se não me
conhecesse, o que é encantador. As outras andam sempre com segredinhos sobre os seus apaixonados mas o meu é o mais belo de todos.
"Não tenho nenhuma intimidade com as colegas.
"Nós não temos ainda nenhum verdadeiro admirador - a mais velha da aula fez quinze anos - mas elas estão todas apaixonadas. excepto eu, e os admiradores das primeiras
que tenho visto, não me agradam. Tenho uma paixão por fráulein Javelot, é maravilhosamente bela e fria como uma estátua; de resto, tem sempre as mãos geladas, o
que me agrada: é uma coisa fora do vulgar.
"Inventei um bailado - ainda não está completo para o qual precisaria dum vestido verde, entre o amarelo e o verde-claro, como os limões.
"Conheces estes momentos em que a gente chora sem saber porquê, meu querido Fernando? quando se tem as mãos ávidas e se não pode voar. Mas é impossível escrever
isto.
"Envio-te os mais afectuosos pensamentos
Tua Ina."
"Achas que irei um dia à América? O sr. Pratt está convencido disso."
"Querida Ina, já não fico só no meu quarto, o dr. Witram está muito doente e vai morrer. Instalei-o cá em cima comigo, assim pode ver o jardim e um grande bocado
de céu. Lembras-te quando a gente preguntava um ao outro se morrer seria horrível ? Parece-me que não. O doutor, o que está é muito fatigado e quando sorri reina
uma grande paz no quarto. Diz que gosta de adormecer e profere estas palavras em tom tão calmo que até faz inveja.
"Desejaria estar tão tranquilo como ele e ter aquele sorriso. Ainda li mais coisas na nossa Bíblia. E lembras-te das lendas do Buda ? Quando Jesus tem o poder todo
também possui aquele sorriso, um pouco amargo e
muito doce, tudo conhecendo. O Buda também sorri assim: vejo-o fechando os olhos.
"Estou a aprender muito com o doutor, nestes últimos dias. Mostra-me o caminho e estou pronto a segui-lo.
"Mas que estou eu a escrever-te, minha querida Ina ? Tu não podes compreender. ou quem sabe se percebes, minha almazinha gémea? Às vezes, nas longas noites em que
velo junto do doente, chamo por ti e parece que te sinto perto. Sonhas comigo, Ina? Vês o círculo luminoso do candeeiro sobre a Bíblia e a minha aleijada sombra
no mosaico? Adivinhas que tenho momentos terríveis e ouves ranger os meus dentes? Querida Ina, tão bonita e sã, não, ainda não compreendes nada disto.
"Estou muito contente por não quereres ter admirador, de resto não vejo ninguém que te possa convir, mas a tua carta causou-me tristeza: como estás longe de nós,
de mim, dos vidoeiros e de Amrun ! Não te percas, minha irmãzinha! Se dançares com o vestido verde, pedirei ao meu pai para me deixar ir ver-te a Viena.
"Querida Ina, tu no meio dos teus amigos, com o maravilhoso sr. Javelot e com o Conradin, vais com certeza fazer troça de mim por te escrever uma carta tão estúpida
e tão triste. Mas não julgues que tenho ciúmes - isso não estaria de acordo com a idea que faço do mundo.
"Uma luz cinzenta enche pouco a pouco o quarto e, no jardim, paira o primeiro pássaro. Agora vou apagar a luz e subir até aos vidoeiros, para ver se ainda há neve
lá em cima. Já anda a primavera no ar. Voltarás a Amrun este verão, Ina ?
"Muitas lembranças do teu
Nando."
"Querido Fernando, escrevo-te no nosso camarim porque temos meia hora até à próxima entrada. Não me queiras mal por esta carta ser confusa, fazem imenso barulho
em redor de mim e estão todas a dizer que
também tenho um apaixonado a quem escrevo missivas de amor. É um meio muito estúpido e seria preciso ser como a Mila Merz que não se rala e é querida por todos.
Mas eu sinto-me tão isolada a-pesar-de já cá estar há cinco anos! Só me falta um exame e depois serei figurante. Fica sabendo que houve um grande chinfrim porque
a Galiena descobriu que o sr. Javelot me dá lições particulares: viu nisso uma coisa escandalosa e chamou-lhe ogro. A menina Javelot quási que lhe deu uma bofetada
no camarim; estava magnífica. Depois beijei a mão fria da estátua - coisa que não faço a ninguém. Mas, no fundo, não foi por minha causa, nem lá por o sr. Javelot
ser um ogro - como se pode dizer semelhante coisa!-mas simplesmente porque se detestam há muito por causa do barítono, o sr. Rolando, sabes? Viveu com a Javelot
que tem um filho dele, um lindo petiz, e depois, a Galiena, aquela mulher horrível, tirou-lho. Compreendo agora por que motivo a Javelot está a tremer quando nós
dançamos e ele canta. com certeza que ainda gosta dele. E tu, nunca pensas no amor, sábio budista? Eu penso muito mas isto é um assunto que faz parte do corpo de
baile; não se ouve falar doutra coisa e eu vou fazer quinze anos.
"O sr. Rolando tem a voz mais linda do mundo. É de prata e ele é também destas pessoas de prata, como a Mila Merz, completamente diversos de nós, sabes? Se alguém
lhe falasse de aspirações ou de qualquer coisa deste género era como se lhe falassem chinês. Gosto muito das pessoas assim, despertam-me curiosidade e inveja; gostaria
de os ver quando estão sós e saber se nunca pensam, se são apenas levianos ou se também podem ser sérios.
"O sr. Forli também estava por trás desta história; anda sempre com intrigas contra o mestre e desejaria tomar-lhe o lugar. Foi mesmo procurar o director. Todo o
teatro estava revolucionado por minha causa, soube-o pelo sr. Pratt, que passa a vida no porteiro para saber o que há. Se eu já fosse figurante destacada, talvez
isto me fizesse reclame, mas sendo aluna é absolutamente nojento pensar que o sr. Javelot me faz a corte.
"Estou tão alvoroçada com tudo isto que não posso falar doutro assunto.
"Muitas saudades Tua Ina."
"Querida Ina, é-me impossível responder à tua última carta: falta-me tempo. Envio-te os parabéns pelos teus quinze anos. Mando-te uma coisa mas não sei se a reconhecerás
e se o devia fazer.- O dr. Witram morreu; eu estava à sua cabeceira; foi belo.
Fernando."
Querido Fernando, muito agradeço a terra da colina dos vidoeiros: reconheci-a logo e achei muito bem. Já não sou tão criança como julgas, Nando, eu própria dou por
isso, quando a realidade me quere devorar. Mas não conheces isto: o desejo que a gente, às vezes, tem de pertencer aos outros? Nessa altura representa-se uma comédia
e procede-se como faria a Mila Merz, Tu nunca dás importância a ti próprio ? Eu sim, principalmente em frente do espelho, que é quando tenho o espírito vazio.
"Em Amrun estava sempre cheio, por isso fizeste muito bem em me mandar terra daí. Reconheci a logo pelo cheiro doce e amargo, como no momento em que as primeiras
gotas de água caem numa estrada cheia de pó. É um aroma que nunca esquecerei. Pu-la numa caixa de cigarros, no parapeito da minha janela; contém germes e já estão
saindo rebentos de erva, o que me dá grande alegria. Assim, também eu tenho a minha primavera, Nando, e é muito agradável. Sento-me muitas vezes ao pé da minha caixinha,
fecho os olhos e possuo Amrun inteiro e quando, na escola, escrevemos a palavra "lar", já sei o que significa.
"Assim, com os olhos fechados, vejo a colina dos vidoeiros, os troncos gémeos, os penugentos cravos, e oiço zumbir os insectos. Fico imóvel, torno-me leve e sou
ao mesmo tempo eu e uma nuvenzinha que vagueia pelo céu.
Há uma coisa que desejo pedír-te há muito tempo, Nando, mas não faças troça de mim: é verdade que estivemos na floresta e vimos dançar os elfos ou sonhámo-lo simplesmente
? Isso é muito importante para mim.
Tua Ina."
"Querido Nando, como te estou grata! Já te disse que o teu pai me enviou flores ? Mas não para o camarim, para casa como a qualquer menina. Ele está sempre no camarote
do Jockey Club e tem os nossos olhos."
"Querida Ina, mal posso escrever-te, trabalho imenso para fazer exame e assim sozinho, sem o dr. Witram, não é nada fácil. O meu pai autoriza-me a estudar medicína
em Zurique, estou muito contente, e de resto tenho mãos de médico. Já ajudei muitas vezes na aldeia, vêm buscar-me quando uma criança morre ou para os epilépticos
- há tantos entre os pobres tecelões! - e há uma crença existente entre o povo de que os corcundas têm um certo poder mágico - e não deixa de ser verdade: tenho-o
quando desejo com força.
"Se viste os elfos na floresta ou se foi sonho, aí está uma coisa que eu nunca te direi, Inazinha. De resto não tem importância; se és uma verdadeira Delarès não
deves fazer tal pregunta. Olha, não faças tanta diferença entre o sonho e a vida: os sonhos são a nossa maior riqueza ! Que aconteceria sem eles às pessoas que não
teriam senão os da noite?
"Teu primo Fernando."
"Querido Nando, o teu pai veio ver-me e convidou-me a voltar para Amrun. Salto, danço e dou gritos de alegria. Vem buscar-me no domingo, à estação. Beijos para Amrun,
Bráunl, Turco e para ti. e para tudo.
Tua Ina que está maluca."
"Minha querida, minha tão querida, o verão acabou e tu partiste! Não te disse nada, nem uma palavra, não te beijei. Não quero beijar os lábios duma irmã. Mal te
olhei para que os meus olhos não falassem, querida, maravilhosa, incomparável bem amada! De noite, mordia as mãos e levantei-me durante a tempestade para ouvir os
animais gritarem nas trevas da floresta. Como eu sou forte, minha jóia, minha alma adorada! Há tantos milagres, todos os dias os vejo e um único é incapaz de se
dar; que tu possas gostar de mim como eu te adoro. Uma vez, uma só, estende sobre nós os teus cabelos como uma colcha de seda preta para que faça escuro e que eu
não seja feio, aleijado, repelente e para que esqueça este sangue doente dos Delarès a queimar-me, este sangue que anda sempre à procura dentro de si próprio. irmã,
irmã, tu, a única que eu posso amar! Põe uma vez as tuas mãos nos meus cabelos, não da maneira firme e amigável como o fazes ao cão e a mim e aos cavalos: desejaria
senti-las tremer e que delas escorresse fogo. Desejaria ver as tuas pálpebras a baixar-se e a tua boca abrir-se para me dar de beber. Desejaria uma noite deitar-me
a teu lado, ouvir-te respirar, ver-te dormir e saber que me pertences, não tendo que seguir a via dolorosa, longe de mim e do meu coração todo inclinado para o sofrimento
dos outros. Mas o milagre não se realizará. nunca, Ina, nunca, nunca, nunca."
É esta uma das cem cartas que Fernando Delarès nunca mandou.
No fim de outubro, Fernando anda lentamente dum lado para o outro, em Viena. Sem chapéu nem casaco porque acha o ar da cidade muito agradável, enterra, com prazer,
as mãos nas algibeiras do fato de
viagem, não parecendo suspeitar como é estranha a sua disforme silhueta. Encontra olhares cheios de simpatia; em Viena gosta-se da originalidade e, além disso, o
velado sorriso que constantemente lhe ilumina o rosto atrai a reciprocidade.
Diante da casa do sr. Javelot as árvores começam a despir-se e os pés fazem ranger folhas mortas. Soam cinco horas numa pequena igreja, a noite vai cair. Fernando
senta-se num banco, para esperar, e fecha os olhos. "Logo às onze horas - pensa ele - tudo terá acabado, dormirei no comboio e ficarei fatigado como depois duma
operação." Tem por baixo do coração um ponto extremamente doloroso, mas não quere sofrer e aquilo cessa.
Chega então um homem que acende um pequeno bico de gás, embora ainda haja sol a brincar nos telhados. Depois, da bruma que sobe do rio, surge uma sombra que se adianta
em passos regulares para Fernando, com os olhos obstinadamente fixos na casa do sr. Javelot. Traz um impermeável e do chapéu saem algumas grisalhas madeixas.
- O sr. Conradin ? - pregunta com receio, fitando-o.
- Não quere sentar-se ? A minha presença neste banco afasta-o? Daqui vê-se melhor a janela e há pouco deixava sair música.
- Quem será este ponto? - resmunga Conradin em voz rouca. - Ah, ah, pela silhueta deve ser o Fernando Delarès, o incomparável e tão estimado primo da Ina, o mais
amigo de todos os amigos, como diz Wagner. Os meus cumprimentos pela sua idea de fornecer à princezinha a quantidade necessária de terra de cemitério. Por agora,
uma caixa de charutos chega. Se quiser ter a gentileza de me dar alguma, preciso de mais, barão.
- Como estou contente por o conhecer antes de partir! Ela falou-me muito de si. nem imagina como lhe quere!
E Fernando pega na mão de Conradin, que, imóvel, com o beiço descaído, presta atenção a imperceptíveis sons.
- As suas mãos são extraordinárias, barão. - diz a
Fernando, em voz baixa. - Se eu tivesse um amigo com mãos semelhantes pedir-lhe-ia qualquer coisa. Há nas suas mãos a mesma força apaziguadora para a dor que nos
cabelos de Ina, sabe?
- Quero ser médico e parto esta noite para Zurique.
-Invejo a certeza com que vai dispor de si, barão. "Parto esta noite para Zurique". É verdade. Subjuga-me. Se eu falasse com essa mesma certeza, que resultaria ?
"Embriagar-me-ei esta noite como um animal" ou então: Enforcar-me-ei esta noite". Mas o melhor é esperar a princesa, com os pés encharcados, em face da Ópera. Depois
levá-la-ei a casa, com os pés gelados, sim, mas o coração a arder. E à meia-noite lá estarei outra vez em face da deliciosa alternativa: embriagar me ou enforcar-me.
Fernando aperta nas suas mãos a de Conradin,
- É claro que não sou capaz de o impedir de fazer uma coisa ou outra . seguimos todos o nosso caminho. mas tenho pena por causa da Ina: ela precisa de si, sr. Conradin.
- A princesa? De mim? Engana-se por completo. Já descalçou os sapatinhos de criança e de senhora e agora está completamente interessada pelos de bailarina. Ela precisa
do sr. Javelot com as suas atitudes, da menina Javelot para a lânguida música que é preciso aprender, precisa também do seu pai, o sr. barão Delarès porque a admira
e sustém, sem se fatigar, as periclitantes finanças dos Rafay, ensinando-lhe a arte de subir para uma carruagem, comer ostras e fazer gestos mundanos. Tem para ela
o inestimável valor dum admirador dotado de todas as qualidades mas sem nenhuma exigência. A princesa precisa ainda do sr. Rolando que é composto por uma voz e duas
pernas admiráveis: é o cabide no qual ela pode pendurar tudo que fermenta nos seus dezasseis anos apaixonados e indecisos, Sabe lá tudo o que os seus pensamentos
contêm de doçura em face dele: é um rebuçado que saboreia. Finalmente, precisa do sr. Pratt porque vai ser o jornalista ligado à sua pessoa e não recuará diante
de nenhuma espécie de reclame, assim que ela estiver no primeiro plano. Mas o senhor
e eu. convença-se que somos supérfluos: já não podemos oferecer-lhe balões vermelhos e ela hoje possue um gosto muito moderado pelas caixas de charutos cheias de
recordações. A sua necessidade de intelectualidade está neste momento, muito reduzida. É a metade Raffay que nela vive agora, sabe?
- Sim, eu sei. vou despedir-me dela, hoje.
- Despedir-se. que bela palavra! Ora veja como contém uma linda melodia. Muito bem ; despede-se e vai para Zurique. e quando volta?
Há um momento de silêncio cortado apenas pelo murmúrio da música saindo da janela vizinha. Depois, Fernando responde:
- Nunca! Calam se.
Ao cabo dum minuto, Conradin torna:
- Nunca é uma palavra que se pronuncia aos vinte anos. Mais tarde, sabe-se que há duas coisas que não existem : nunca e sempre.
- Lá vem Ina.diz Fernando.
Está no limiar da porta. O sr. Javelot com um sobretudo pelos ombros, fala- lhe, pega-lhe na mão e parece não a querer deixar partir. O sr. Frederico, muito carinhoso,
esfrega-se nas suas pernas.
- Oiça,-diz vivamente Conradin - vou-me embora, desapareço. Ina detesta que eu esteja sempre aqui plantado. Quanto a si, é outra coisa, quere despedir-se e precisa
de a ter só para si. No entanto, a questão consiste em saber qual de nós dois a Ina não tornará a ver. É uma noite horrível esta, para mim!
Já havia desaparecido no nevoeiro quando Ina chegou. Fernando respira fundo e crispa os punhos para poder sorrir.
- Ah, és tu, Nando ? Vamos de-pressa. O sr. Javelot vai agora para o teatro e eu queria lá estar ao princípio: só entro mais tarde mas queria ver O segredo de Suzana.
O sr. Javelot desempenha um papel silencioso duma forma estupenda. E o sr. Rolando canta.
Fernando deita um olhar de lado para o lindo e imperativo rosto dos Delarès, com a boca que parece
estar sempre a querer beber. Caminha rapidamente e as asas do nariz não cessam de estremecer.
- Hoje é um grande dia, Nando, um dia especial. Dancei ao mestre o "bailado verde", o primeiro que inventei. e ele beijou-me a mão, sabes? a mão e não a testa. É
impossível dizer como ele se comportou: tão terno e excepcional! Tive vontade de chorar, agora quando me despedi dele. Tu choras facilmente? Eu, não. Sou muito grave,
não achas? Creio que a minha carreira começa hoje. O sr. Javelot diz que não me poderá fazer saltar os degraus, quatro a quatro, mas que avançarei todos os anos.
A Galiena está a envelhecer e aos vinte anos poderei ser primeira bailarina. Mas que idealizarei então? Quando se atingiu o seu fim aos vinte anos, o que se há-de
fazer no resto da vida? Não posso suportar a paragem, sinto que outra coisa se prepara e mais outra. É verdade que posso correr mundo e tornar-me célebre: o sr.
Pratt tem a certeza disto.
- Ouve, Ina. - interrompe Fernando - Reflecti e acho que não poderei ficar em Viena como tu julgavas. Parto esta noite para Zurique.
- Tu. hoje? Mas estás doido, Nando. Sempre és um original! Mas se queres, vai. Eu não te prendo. Isso faz parte da misteriosa "via" do dr. Witram?
- Talvez.
- Queres realmente passar a tua vida a contemplar o umbigo? É isto que fazem os verdadeiros budistas, não é? Achas que é o que te convém?
- Não. Arranjar-me-ei doutra maneira. vou. há tanto que fazer, Ina, tanto que até impressiona!
- Tenho pena que te vás embora, Fernando, tenho tanta vez necessidade que me segurem!
- Dirigir-me-ei a ti quando for preciso e tu poderás chamar-me; penso sempre em ti e ouço-te.
- Isso é verdade ?
- Porque não? Acredito no telefone e no telégrafo, nesta maravilha: vai-se ao correio e obriga-se uma indefinível força a transmitir "mil felicidades". Em compensação,
no planalto do Tibet, os monges não constróem
?postos telegráficos, mas trocam as suas mensagens por telepatia. A diferença do método pouco importa se o
milagre é verdadeiro.
-Ah, Nando, estás a brincar e sinto-me triste!
Porque não podes ficar aqui ?
- É impossível.
- Ouve, Fernando,-diz ela com precaução - é porque estás apaixonado por mim? Julgas que não sei? Que idea! Mas isso não tem importância. Na nossa idade quem não
está apaixonado? Eu também gosto de alguém, fica sabendo. Mas há de passar.
Fernando replica severamente mas calmo:
- És a bailarina-tipo e se te fiz um pouco a corte não tem importância nenhuma. Está na tradição, bem sabes: os numerosos Fernando e Inês da colina dos vidoeiros
que todos casaram entre si e aos quais devo o meu belo fisico. E toma cuidado: previno-te que o meu pai também anda com a sua fisgada.
-Parece que odeias o teu pai?!
- Odiar é uma palavra de teatro. Parece-me ouvir o Rolando a cantar: "O meu ó.ó . ,dio!" Mas creio que não há um único rapaz de dezoito a vinte anos que não odeie
o pai. já que queres empregar essa palavra. Mas não falemos mais disto. Tenho ainda uma coisa para te dar, da parte da tua avó.
E tira da algibeira as pérolas, as grandes pérolas de tão belo oriente que Ina colocava no cabelo quando, em criança, dançava.
Diz a meia voz :
- Conheço-as. Então a avó sempre morreu. escreveste a dizer. mas eu não podia acreditar. Vejo-a sempre a andar dum lado para outro, dentro da crinoline e com o vestido
de flores, a contar histórias antigas. Estas pérolas são admiráveis, não achas? A Mila Merz, vai arregalar os olhos. vou dizer-lhe que me foram dadas por um admirador
e nunca as largarei. Se a gente as não usa, ficam doentes: é por isso que as adoro, sinto-lhes a vida. Um dia, hei-de dançar o bailado das pérolas, em véus cinzentos
e cor de rosa. hei-de pensar nisso.
- Chegamos à Ópera, Ina. - diz Fernando, em voz um pouco rouca.
- E já não é sem tempo: quero estar vestida e arranjada às sete. O sr. Friedrichs deixar-me-á ouvir O segrêdo de Suzana, nos bastidores; é rigorosamente proibido
mas ele gosta imenso de mim.
A Ópera está envolta em nevoeiro, o húmido pavimento reflecte as lanternas dos trens. Fernando sente-se dividido em dois: um Fernando Delarès, calmo e lúcido caminha
ao lado dum Fernando desesperado, doloroso, cuja garganta se aperta e que diz em voz comovida :
- Então adeus, Ina. adeus. tem juízo. adeus.
- Até à vista. - responde ela um pouco triste e muito distraída porque o sr. Javelot já está a descer do carro em frente da porta dos artistas.- Escreve-me, sim
? Quando voltas?
-Adeus.-repete ele, segurando-lhe ainda na mão, sem dar por isso.
- Adeus, Nando, boa viagem. Agora tenho pressa. Mas que há? Estás a chorar?
Não, Fernando não está a chorar, simplesmente tem os lábios gelados e, o que parece estranho, o seu rosto moreno fica subitamente pálido. Ina volta-se mais uma vez
para aquela silhueta em que os ombros estão mais altos que de costume, estremecendo como os dum cão batido. É um movimento muito expressivo que a impressiona e que,
mais tarde, poderá inspirar um bailado de dor e desespero.
Vê-a afastar-se. Tudo vai com ela, tudo. A porta da caixa engole-a. Renuncia.
À entrada do palco reina sempre uma semi-escuridão: as pequenas lâmpadas mal lançam um pobre claro amarelado; por trás do vidro com riscos vermelhos brilha uma luz
de socorro, para longe está ainda mais sombrio e o corredor, que faz um cotovelo, conduz aos camarins dos homens. Os acessórios e os móveis de cena esperam e projectam
informes sombras. Uma série de tirsos está na proximidade de banquinhos em estilo egípcio amontoados a um canto, grinaldas de vinha ondulam e espalham um cheiro
a pó e cola: estão destinadas ao bailado que se vai seguir. Ina senta-se num sofá, já com a saia de tarlatana, e sente frio. Aperta-se-lhe o coração, sente a mesma
angústia que experimenta todas as vezes que vai entrar em cena ou vê o sr. Rolando. Os ruídos e as cerimónias que anunciam a aparição do barítono já começaram. A
campainha tilinta no corredor, a porta do camarim bate surdamente, estala um riso, em seguida há o soar de passos firmes e tranquilos e ele surge no canto, sob a
lâmpada vermelha. Cospe três vezes para trás, põe em ordem os cabelos loiros, tossica, dá três notas pelo nariz, tira o lenço e assoa-se, muito convicto. "com Deus,
vamos lá!" e esta frase tranqúiliza-o. Ina está extática. Sente até ao fundo do coração todos os seus gestos, tão belos e naturais. Quando está só tem exactamente
a mesma atitude do que quando é visto no meio dos companheiros e ela acha que só os animais conservam aquele à-vontade e a ausência de máscara. Dançar-se-á um dia
um bailado com duas máscaras, uma em cada mão, uma alegre e outra triste e colocar-se-ão alternadamente sobre o rosto.
- bom dia, Peter.- diz o sr. Rolando porque, para ele, todas as camaradas se chamam Peter. - Então cá estás outra vez . Como vai isso ?
- Bem, obrigada, sr. Rolando.
- Queres ouvir outra vez, Peter ? Não te aborrece ?
- Oh, não.
-E quando me hás-de dar o teu primeiro beijo? Agora ?
- Não sr. Rolando, assim pintado, não me agradaria o seu beijo. E eu também já me maquilhei.
- Mas depois quando estivermos ao natural ? Suponho
que és uma Peter muito requintada que já sabe o que é bom. Ora confessa: estás apaixonada por mim ?
- Oh, não, sr. Rolando.
-Ouve, Peter, tu que queres? Se continuas assim, tornar-te-ás a rapariga mais linda do corpo de baile. Não tens admirador, não estás apaixonada e há já dois meses
que me prometeste um beijo sem nunca mo dar. És capaz de não ter temperamento.
- É possível.
-Assim mesmo gostava de te possuir, pareces-te com alguém a quem quero muito: um rapazinho. E, além disso, agradam-me as mulheres frias. É magnífico quando alguma
delas desperta e a centelha surge. Nunca se esquece. Porque as outras, aquelas que andam atrás de nós e nos não largam, a gente farta-se logo delas. ?
Ina ouve tranquilamente e sente um ardente desejo de acordar e criar centelhas - mas não pode imaginar como aquilo é.
-Então não é possível ver-te sozinha depois do espectáculo? O velho eunuco de gabardine, espera-te todas as noites? Ouve, Peter, não desejarias saber o que é o amor?
- Sim . desejaria saber o que é,-responde ela lentamente - mas que não fosse uma brincadeira ou qualquer coisa incompleta. Eu queria tudo, imediatamente, o verdadeiro
amor.
- Tudo . imediatamente . com mil demónios! diz o sr. Rolando que toma um ar sério e, sem querer, larga a mão de Ina.
No mesmo instante, há ruído no corredor. O sr. Friedrichs aparece, mostrando a partitura e gritando:
- Rolando! Rolando! Pró palco de-pressa! Já levantaram o pano!
- Então cospe mais três vezes. - diz o barítono.
E desaparece, suspirando, pela porta que se fecha.
Ina fica absorta, preguntando a si própria se faria bem em dar o beijo ao sr. Rolando, se daquilo brotaria um verdadeiro amor e se realmente existe o amor. Às vezes,
desconfia que ele não passa dum objecto de cenário: uma palavra, uma música e alguns passos.
Dos bastidores, assobiando levemente, um projector lança um raio de sol brilhante. O sr. Javelot, de pé em frente duma porta de gaze verde, espera a sua entrada.
Tem um trajo de cetim preto e os músculos vêm-se através as meias de seda; cheiram bem, a pó, os cabelos brancos. Na luz, dum amarelo-avermelhado, parece a Ina que
o seu belo rosto de velho levemente maquilhado, está extraordinariamente fixo e ansioso.
Diz ao médico do teatro que lhe apalpa o pulso e dá um copo de água:
- Uma impressão estranha, doutor, muito estranha, uma espécie de vertigem. Exactamente: uma vertigem. De-repente fica tudo preto; nunca senti isto. Um bailarino
como eu ter vertigens! Tudo negro. tão escuro!
- Um pouco de brometo, querido mestre, e isso passará. Talvez uma indisposição de estômago. Ou zangou se ?
- Irritei-me, sim. Vi hoje o novo bailado, compreende ? O bailado do futuro. Uma dança sem piruetas nem pulsações, sem nada, e onde, no entanto, há desenho, arte,
estilo - uma dança que me enerva porque a não compreendo. Uma dança que me diz: agora é isto, podes morrer, velho Javelot.
- Vamos, Santo, vamos! -grita o sr. Friedrichs. O mestre abre a porta e entra em cena.
- Espero que o pobre velho se saia desta. -resmunga o médico, afastando-se com o seu brometo.
O sr. Javelot triunfa. Extasiada, Ina contempla a graça, o estilo subtil dos seus movimentos: tudo parece fácil mas ela sabe agora como aquilo se obtém e como é
difícil.
- Minha filha.-diz o sr. Javelot vindo do palco um pouco ofegante e tateando para agarrar a mão de Ina. Esta maneira aflige-a em comparação com todos os gestos comedidos
e elegantes que lhe são habituais. As mãos cobertas pelos punhos de renda estão frias e apertam as de Ina contra o peito:
- Sentes, minha filha ? - balbucia. - O meu coração está a bater duma forma tão exquisita, sempre três pancadas.
A gente não sabe que tem coração e, de-repente, ele começa bruscamente a bater e tudo fica negro.
- Sim, bate. -diz Ina a meia-voz apoiando com mais força a mão nas rendas do peito.
Está calor ali, o coração bate, tem a impressão de ter na mão um passarinho que quere voar. Do palco vem uma terna música alada e eis que a Dannot, a linda ruiva,
em Suzana, fuma o seu cigarro e o fino e amargo aroma chega até ali. Num canto, o sr. Rolando aclara a voz. O projector passa da luz vermelha para a verde, o que
faz saltar pequenas centelhas das pérolas de Ina.
- Pérolas, minha filha ! - nota o sr. Javelot. - Já chegaste a isso? Nunca julguei. então já o amor ?
- Não, mestre. - responde Ina que está a ouvir com toda a atenção o canto do barítono.
- Ouve, minha filha, não te deixes levar pelo amor, tens talento pessoal, segura-te bem, promete . Podes fazer tudo, serás uma grande bailarina, tudo te é permitido
mas não percas a tua personalidade, minha querida, a aspiração que vive dentro de ti, o desejo de voar. Tens o direito de tudo conquistar, mas não o de estar contente.
não esquecerás isto, não?
- Sr. Javelot, é a sua entrada! - previne o sr. Friedrichs, surgindo com a partitura na mão, por trás do projector.
O mestre entra no palco e representa a última cena muda da ópera. Desempenha-a maravilhosamente, com animação, graça e domínio.
- Atenção! - diz o sr. Friedrichs, ao maquinista que manobra o pano.- Desça!-grita, emquanto na sala estalam os aplausos. - Levante! - ordena o contra-regra.
O sr. Rolando estende a mão à Dannot, cujos olhos brilham de prazer. Têm calor, sorriem, agradecem.
- Desça!
- Onde está Javelot? Tem que vir agradecer.
- Levante!
O sr. Javelot inclina-se também com um sorriso singular e sulcos a furar a maquilhagem. Nos bastidores aparece a filha, vestida para os bailados, e o seu rosto de
estátua impassível não desfita o sr. Rolando.
- Levante !-diz o contra regra.
Aplausos, sorrisos, cumprimentos. O pano torna a descer.
- Levante outra vez!-e a Dannot pega nas mãos dos companheiros.
Quando o pano vai a meio caminho dá-se isto: o sr. Javelot leva as mãos à boca e cai. De súbito, fica estendido diante da rampa como um monte de seda negra. Agita-se
o sapato de fivela.
- Desça o pano! Desça! Desça!-berra o sr. Friedrichs.
Baixam-no mas os aplausos continuam. No meio do tumulto, dois maquinistas pegam no mestre e levam-no.
- Cada um pró seu lugar!-grita o contra-regra,-O teatro antes de tudo! Mudança de cenário !
É então a grande azáfama, os maquinistas tropeçam nos móveis no meio de nuvens de pó, tiram os lados, desce lá do alto um templo de mármore e de baixo sobe um sofá.
À entrada do palco, Ina pregunta, aflita:
- Que aconteceu ?
Mila Merz aparece por baixo da lâmpada vermelha e com as mãos na cara desfaz-se em pranto. Por trás dela, saem murmúrios dos camarins das artistas e há um ruído
de passos rápidos, como uma fuga.
- Que foi?- interroga Ina-Que aconteceu?
- Teve um ataque!-soluça a Mila, olhando, desesperada, para as mãos, nas quais o pó branco, as lágrimas e a maquilhagem deixaram rasto.
Ina, inconsciente, dirige-se para os camarins, sem notar que só ela está calma no meio da agitada multidão. Deixam-na passar e chega à sala onde reina lúgubre silêncio,
embora numerosas sombras se movam. Vê-o primeiro no espelho por cima do qual pende, dum fio, uma potente lâmpada e só então, escorregando da imagem reflectida da
bela máscara adormecida, o seu olhar encontra o mestre.
Está coberto por uma capa espanhola e por um casaco e, emquanto um soluço lhe sobe aos lábios, a disposição
das pregas sedosas mas extremamente hirtas sobre o corpo inanimado grava-se-lhe na memória. Ajoelha-se e beija a gelada mão que está pendurada.
-É então isto?-pensa Ina. Parece-lhe que, no espelho, o sr. Javelot sorri, satisfeito com a decoração. Há um pouco de preciosismo na forma como ali está deitado,
envolto na capa negra e o próprio gesto com que Ina lhe beija e depois deixa cair a mão amarela, é belo mas não absolutamente natural. Naquele momento, a porta abre-se
com brusquidão e dá passagem à Javelot que se deita sobre o pai, tomando-lhe a cabeça nos braços e murmurando, a chorar, palavras meigas, em francês. Beija os pés
do cadáver e então a estátua tomba numa dor que assusta e, ao mesmo tempo, encanta Ina. Por trás dela, encostado à parede, está o sr. Rolando que enterra os dedos
nos fatos ali pendurados. Murmura, sem parar: "Eugenia. Eugenia!"
- Saiam ! - ordena o sr, Friedrichs, aparecendo à porta como uma sombra e retendo os que atrás dele querem entrar. Rolando, Raffay, fora daqui, toda a gente fora
daqui, tudo para os camarins.
Então o corredor mal iluminado esvazia-se e recai no silêncio. Ina esconde-se no canto de sombra por trás dos tamboretes egípcios. "É isto a morte. - pensa ela -
como o sr. Javelot está. Haverá um dia um bailado com a capa negra, dar-se-á a vertigem e a angústia, com o coração a bater, depois o repouso, o sono nas pregas
da capa. É preciso que Conradin componha uma marcha fúnebre."
Sobre o sofá, o sr. Rolando que se julga só, geme.
Os cabelos loiros caem-lhe sobre as mãos ; aninhado ali, com a cabeça nos joelhos, murmura sem parar:
-É horrível, horrível. é atroz morrer, não quero. eu não quero morrer .
E o seu rosto branco está transtornado pela angústia e pelo horror.
Então Ina pregunta a si própria se também aquelas pessoas brilhantes andam sempre de máscara. Fica espantada e tem um lancinante desejo de se aproximar, de enlaçar
aquela cabeça, consolando-o. Levanta-se, mas mal
dá um passo logo vê a filha de Javelot, que desce o corredor a soluçar, sob os ligeiros véus do seu trajo de fada.
- Eugenia. és tu! - murmura Rolando. Mas este murmúrio é como um grito. - Vem para junto de mim, Eugenia, vem, perdoa-me, fica comigo, Eugenia, minha alma.
Estende os braços para a agarrar e a estátua anima-se, tomba a seu lado, num gesto que Ina nunca viu, nunca, nem num bailado, nem no palco, nem mesmo em sonho. Agarram-se
um ao outro, beijam-se, balbuciam, choram, murmuram, passam as mãos pelos cabelos, olham-se e tornam a abismar-se : têm sede um do outro e perdem-se num transporte
de dolorosa angústia e de viva paixão.
Ina, no seu canto, respira ofegante, branca como a neve, com os lábios palpitantes. Abrem-se portas.
Viu a morte, e também o amor.
- Todos para a cena ! - grita o sr. Friedrichs, aparecendo, como um espectro, no corredor. - Todos para a cena. O espectáculo continua.
A dança da pequena sereia
Foi em março, na festa da Imprensa, onde viera dançar, que Ina encontrou o compositor Tomaz Brandt. Estava na escadazita pela qual ela subiu para o estrado e olharam-se.
Tinha o famoso vestido verde e os negros cabelos soltos tocaram nos joelhos do homem. Ele fechou, um instante os olhos, e durante este minuto, envolto no acre perfume,
viu campinas ondulando sob o vento no flanco de montanhas e semeadas de flores de arnica.
Quando Ina terminou o bailado e, com um sorriso tímido e cansado, desceu a escada, mergulhada em aplausos como num banho que arrepia, Tomaz Brandt fitou-a, Alto
e esguio, tinha os cabelos muito escuros, deitados para trás. A testa era branca e tinha se a impressão de que, por trás das sombrias pupilas, brilhava
uma luz bronzeada. Sob a curta barba negra dissimulava-se a boca sensual que denotava falta de vontade. Mas Ina mal o viu naquele dia: sentiu apenas um olhar muito
vivo, ao mesmo tempo maquinal e velado. Um membro da comissão, apressando-se a pôr as luvas brancas, apresentou Tomaz Brandt.
Circulando pela sala abafada, o sr. Pratt espalhava entusiasmo, e com o rosto e a cabeça cheios de transpiração, trabalhava para o sucesso de Ina. O seu lenço de
seda vermelha flutuava entre a assistência como uma auriflama. Fora ele que conseguira meter a bailarina no programa. Muitos estavam desconcertados pelo bailado
de Ina, por aquela forma de dançar absolutamente nova e bizarra. Outros lançavam gritos de entusiasmo e esvaziavam muitas taças de champagne pelo futuro da estrela
que alvorecia. Rapazes queriam depor flores aos pés da dançarina e lançavam olhares admirativos para as suas pernas nuas, que delicadamente se entremostravam sob
a gaze verde. Numa sala ao lado, o papá, cheio de amargura, jogava as cartas; tinha vergonha de Ina, da sua ausência de maillot, dos seus cabelos soltos, da sua
dança fora da tradição e da sua teimosia em seguir a via romântica. A mamã, sentada em qualquer parte, com o vestido de seda preta, afligia-se porque a filha, em
plena realidade, revelava ao público aqueles sonhos em que mal se ousava pensar ao crepúsculo, ouvindo um Nocturno de Chopin.
Da galeria, sob a sombra duma palmeira artificial, Ina olhava para a sala donde subiam aromas diversos e música de dança. Cruzava os pés fatigados nos sapatinhos
de baile.
Tomaz disse-lhe:
- Devia dançar o seu bailado, descalça. Os sapatos têm sempre qualquer coisa de terrestre, de material; é uma dança para pés nus.
- Quem lhe disse isso ? É realmente para ser interpretada com os pés nus, mas o sr. Pratt não deixou. foi ele que tratou do meu número - e não sei como consentiu
que viesse sem maillot. O papá ralha, a mamã chora e isso ainda mais escandaloso seria: ninguém dança sem sapatos.
- Dança, sim. Vi a Isadora Duncan, em Londres. É absolutamente novo, não ouviu falar ? Dança descalça.
- É verdade? - preguntou ela, arregalando muito os olhos. - Julguei que era uma idea minha.
- Oiça, deixe-me ver o seu pé. Imagino-o creme como uma renda antiga, ágil como a mão, com longos dedos, cada um dos quais tem a sua fisionomia e o seu nome.
- É isso, pouco mais ou menos, sr. Brandt. - disse a sorrir.
- Ainda não vi mulher alguma com o pé bonito .
- e como ela não dissesse nada, acrescentou: - e conheço muitas mulheres .
Ina estava calada, febril e trémula.
- E os seus cabelos. sabe que chegam ao chão quando deita a cabeça para trás ?
- Não, não sabia. É verdade, são compridos e dão-me muito trabalho. O sr. Forli - o novo mestre de dança - quere penteados à moda e os meus cabelos são rebeldes,
não se prestam.
- Revelam-se?
- Pois é. Gemem quando quero penteá-los num carrapito, lançam centelhas e fazem barulho. todas se riem lá no camarim. Depois, desesperado, cada cabelo se encaracola
e fica espetado.
- Sim, parecem vivos como plantas. Pode-se tocar nesses rebeldes cabelos ?
- Ah, também sente que uma coisa tem vida ? Que coincidência! Pode tocar-lhes, pode.
Agarrou-os e na fronte branca desenhou-se uma veia ; os seus olhos tomaram uma expressão sombria, alucinada, que cortou a respiração de Ina. Subitamente, puxando
para si, com as duas mãos, os cabelos todos, levou os à boca, afundou neles o pálido rosto e deu a impressão de se estar afogando.
No mesmo instante, uma chama nasceu, pela primeira vez, no corpo de Ina; a sua pele contraiu se e um peso agradável amoleceu lhe as barrigas das pernas.
-O que é. que me está a fazer ?-preguntou aflita.
- Não sabes? Que idade tens? Dezasseis anos. Ainda nada sabes de ti, acho eu . do que és. e da tua dança tão nova. tão extraordinária. tão diferente.
com um gesto brusco deixou cair os cabelos de Ina que o olhou, estremecendo.
Então Conradín apareceu perto da palmeira, com uma velha casaca do papá, os lábios agitados por constante tremor e os olhos baixos. Disse a custo:
- Alteza, o carro está à vossa espera.
Ina prendeu a mão a Tomaz Brandt, cujo pulso sentiu bater contra a pele, atravessou a sala no meio de pessoas que lhe pareciam ser cinzentas e mover se por trás
de vidros. Na sua cama teve, pela primeira vez, consciência de si própria e o mundo pareceu-lhe transformado : abrira-se uma das mil portas.
A segunda vez que Ina viu Tomaz Brandt, foi num chá musical em casa do barão Delarès, onde a Dannot cantava.
A casa estava situada no meio do jardim e os lilazes subiam em massa até às altas janelas. Ina sentia-se fatigada naquela primavera e o barão disse, beijando-lhe
a mão:
- Tem febre, Inês? Noto que há já algum tempo tem as mãos mais quentes do que o normal .
A velha condessa Amadel, que se pavoneava na primeira fila, na sua poltrona vermelha, quis que lhe apresentassem Ina e acariciou lhe a testa. Achou-a encantadora
no seu vestido branco com pérolas cinzentas. O embaixador de França emmudeceu ao vê-la e aquilo queria dizer muito. A princesa Hatzfeldt, declarou na sua voz grave:
- Tem sorte com a sobrinha, este Delarès: olhe para as minhas ao lado dela, querida condessa, as pequenas Wedenbruch, as do ramo boémio, parecem umas solisgas.
As senhoras rodearam Ina; a condessa Morstin, num gesto espontâneo, passou-lhe um braço pela cinta. Ao piano, a linda ruiva folheava partituras, lançando com expressão
perscrutadora, agudos olhares a Ina. No fundo, à porta da estufa acotovelavam-se uniformes e smokings.
Falava-se sobre relações que deviam existir entre a Dannot e o seu compositor e rosnava-se com referência a Ina.
- O velho Delarèa é exactamente um D. Quichote
- dizia Sellmary -recebe-a como a uma grande duquesa e afinal a gente pode vê-la fazer as suas piruetas, todas as noites, por sessenta kreuscrs.
- Nada de má língua, meninos.
- Eu compreendo que se façam estas extravagâncias por uma rapariga assim, estas e outras! E oiçam bem o que profetizo: ele há-de fazer as outras.
- Que idade tem ?
- Dizem que a rapariga inventou um novo género de dança com o menos possível de vestuário: os judeus gritaram isto em todos os Jornais.
- E dançá-la-á aqui ? - preguntou o jovem príncipe Birkenfeld que de pé, à porta, com o seu uniforme de cadete, tomara um ar extremamente preocupado, olhando para
Ina. Sorriram.
- Como esta criança é ingénua! Então o barão era lá capaz de deixar a sobrinha dançar aqui? Ele quere que a menina Raffay seja uma senhora e consegue-o. Ninguém
suspeita sequer que baila . Quando o velho barão a desposar, ninguém se escandalizará; não é verdade, Bebé?
- Deve ser bem bonita a dançar! - exclamou o príncipe, e o seu rosto infantil tomou uma expressão tímida e melancólica.
-Sim, Bebé, sim, não te excites: deve ser linda quando dança. Mas silêncio, a Dannot vai cantar.
Ina estava sentada à frente, com algumas senhoras, ao lado do piano. Tinha as mãos abertas nos joelhos e não calculava que ar apaixonado mostrava. Havia um mês que
via constantemente Tomaz Brandt: a sua imagem estava desenhada no ar, no palco, na sala de exame, no camarim, na orquestra; caminhava a seu lado, na rua, inclinava-se
para ela - fina estátua de marfim dos sonhos que sonhava acordada. Havia-lhe pegado mil vezes nos cabelos, enterrando neles o rosto com aquela expressão dolorosa
e lassa que a fizera estremecer. Desta vez, estava realmente ali, via-lhe o perfil e as mãos e sentia-se muito
fatigada e um pouco desencantada. A Dannot entoava árias de Hugo Wolf e de Brandt. Cantava bem, com uma voz doce mas sem mistério e os caracóis ruivos volitavam
em redor do expressivo rosto. Eram canções sobre trechos japoneses, meigas e agradáveis, fazendo pensar num voo de borboletas. Aplaudiram calorosamente porque desde
o sucesso da sua sinfonia, Tomaz Brandt estava na moda : a condessa Amadei fez-lhe sinais aprovativos com o seu nariz de papagaio e chamou-lhe "mestre". Ina ficou
muito comovida, ao ver que o olhar se lhe extinguiu quando se levantou do piano, ao constatar como o peito palpitava sob a emoção das suas melodias, emquanto contemplava
a assistência com uma polidez oca e banal. Mas quando os olhos tocaram na Ina tornaram se outra vez transparentes e a luz bronzeada acendeu-se por trás das pupilas.
Ela fugiu-lhe mas encontrou-a na estufa vazia e silenciosa, a colher flores que ia colocando nos joelhos.
- Sempre tuberosas, -disse em ar acanhado -tuberosas todos os dias. Não gosto: parecem cadáveres de flores embalsamadas. Mas que perfume! O meu tio oferece-mas para
ver que aroma deixarão na minha pele.
- Que lhe parece isso, Mignon ?
- Fazem todos uma idea de mim ! Mas eu vivo!
- gritou, enterrando a cabeça nas flores. Empalideceu levemente e sobre o rosto de olhos fechados passou uma expressão ardente e abandonada. Ela sentia isto mas
não se compreendia.
- E quem é esse tio de sublime gosto ? - preguntou Brandt, depois dum silêncio.
- É o barão Delarès. não sabia ?
- Não . julgava . ouvi outra interpretação. Então ele é seu tio . desculpe que lhe diga, menina: tem um tio perigoso.
- Perigoso porquê ?
- Quere casar com ele ?
- Oh, não. Talvez ele pense nisso mas o Nando não deixava .
- Nando . E quem é mais esse ?
- Não acha que é muito curioso, sr. Brandt ?
- A seu respeito sou-o terrivelmente, Mignon: nem pode calcular a curiosidade que sinto de si. Tenho pensado dia e noite .
- Ah, sim ? -cortou ela com um sorriso singular e superior emquanto as tuberosas caíam ao chão - Deseja então saber quem é o Nando ? Nada é mais difícil do que dizer-lho:
é um rapaz muito feio e muito bom. Um excelente camarada, mas a valer, sabe ? Como diz o poema: "como se fosse uma parte de mim própria". Estamos muito unidos. Ele
habita em qualquer parte do mundo e vigia para que eu me porte bem e não me afunde na realidade. É a melhor parte de mim própria, como lhe disse já. Por outro lado,
é também o filho do meu tio. - e ao dizer isto ficou muito surpreendida, como se o tivesse descoberto pela primeira vez.
- Bem. Já sei quem é o Nando. E quem lhe ofereceu pérolas? É triste que use uma jóia tão preciosa, faz-me pena! Todas as bailarinas têm. dá-lhe um ar. ordinário,
Mignon.
- Oh, não! São as velhas pérolas Delarès, da minha avó. Tenho que as pôr senão ficavam doentes. Gosto muito delas . desejaria compor um bailado sugerido por elas
. qualquer coisa de brilhante e completamente fechado mas vivo . ah, não . quando falo disto, é estúpido.
- Explique melhor. Desejo escrever a música do seu próximo bailado. Tenho tido tantas ideas desde que a vi!
Ina, inclinada para a frente, tinha as mãos cruzadas sobre os joelhos.
-Conhece o conto da Pequena Sereia? - preguntou,
- Conheço. - respondeu ele, e o seu rosto exprimiu ansiedade.
- Era o que eu desejava dançar . qualquer coisa nesse género, mas tenho só uma vaga idea.
A clara fronte de Brandt tornou-se ainda mais branca, quási como se tivesse medo.
-A Pequena Sereia. como os milagres acontecem! -disse muito animado.-É o meu assunto, a minha idea há tanto tempo! Tenho em casa a ópera começada.e
posta de lado. Mas ainda não resolvi o problema do mutismo: uma heroína de ópera que é muda! Agora já vejo como poderia ser. É um caminho novo, uma coisa completamente
diversa. Agora também já sei o teu nome: Irím, como a minha sereia. Queres representá-la? Queres bailar o seu papel? Queres ajudar-me a compô-lo, Irim ?
- Quero. - disse Ina, muito calma sem saber como o seu sorriso trasbordava de felicidade.
Ele olhou-a, contemplou-lhe as mãos. corria uma veia azul pelo pescoço moreno. viu os delicados ombros de virgem sob a seda branca, e a desejável linha que ia do
queixo erguido à boca.
- Irin,- murmurou, muito baixo - procurei te e espereite tanto! Mesmo antes de te conhecer tive de ti um inexprimível desejo e agora que estás aqui desejo te mais
do que posso dizer.
Ficou imóvel, o coração enchia a em cada palpitação. Não corava como as outras raparigas, apenas as mãos brilhavam, o sangue retirava-se, pouco a pouco, da ambarina
pele e uma palidez de opala invadia-lhe o rosto. Tomaz Brandt foi baixando a cabeça, cada vez mais, e quando colou os lábios às palmas das suas mãos abertas, teve
a impressão que uma chama ardente lhe penetrava profundamente no coração.
Então a Dannot veio buscar Brandt para o conduzir ao piano e o barão Delarés levou o jovem príncipe Birkenfeld para lhe mostrar a sua colecção de miniaturas.
Uma senhora de rosto arruinado sob cabelos grisalhos, virou nas mãos o cartão de visita de Ina, percorreu com rápido olhar a sua cabeça e as brancas luvas de cerimónia
e disse:
- O sr. Brandt pede-lhe que entre, está no seu gabinete de trabalho.
Fechou-se sem ruído uma porta almofadada de verde, como num consultório. Aturdida, ela sorria. Na sua frente, Tomaz Brandt, em face duma estante de músicas, estava
curvado para a frente e com as mãos, que colocara atrás das costas, agarrava-se ao móvel.
- Cá estás! - murmurou.- Graças a Deus que vieste, estás realmente aqui! Não podia mais esperar, não sei que me aconteceria .
Ina sentiu-se envolvida num hálito escaldante.
- Estive no concerto, vi-o dirigir a orquestra.
- extasiou-se ela.-Como era lindo!
- Sente-se Mignon, Irim. Há chá aí sobre a mesa.
- E não se senta ? - preguntou, aflita, vendo-lhe as unhas sempre enclavinhadas na estante.
- Não ouso aproximar-me de si. Esteve tantas vezes sentada aí emquanto eu trabalhava, de dia e de noite, e nunca esteve na verdade! Se me aproximo de ti, agora,
e se realmente estás aqui, ainda terei mais medo.
- De mim ?
- Não. De mim. Esperei-te tanto!
- Desde aquele dia ?
- Desde aquele dia, sim . não. toda a vida . Ela não se movia. Tudo era silêncio. Um soar de sino começou em qualquer parte, um relógio deixou ouvir o seu tíque-taque.
Ina limitou-se a erguer a mão para ele, maquinalmente. Sentiu-o cair e apoiar nos seus joelhos a boca de ofegante respiração. Ela estava de pé, muito direita, afagando-lhe
o pescoço. Levantou o rosto para ela como para uma nascente e os seus olhos queimavam como num sofrimento.
Ela abanou levemente a cabeça, a sorrir, e ficou rodeada de chamas com o rosto calmo, dominando-se com esforço antes de se abandonar, beijando-o. O sino ouviu se
outra vez e o relógio deu horas.
- Não, não ponhas esses olhos angustiados, eu não te faço mal, nunca to farei.
Quando a largou estava muito pálido mas parecia tranquilo. Acariciou-lhe as mãos e os ombros, que tremiam. Murmurou:
- Pobres mãos! Tendes medo? Dormistes até hoje e acordastes agora, queridos lábios sequiosos, queridos ombros, queridos joelhos?
Prosternou se completamente, apoiando a testa nos pés dela. E murmurou:
- Desejaria dormir, poder ainda dormir. não fechei os olhos desde o teu bailado. Tu não calculas, Irim, o que representas para mim. Inundaste-me de pensamentos,
a música vibra onde tu estás. Tive muitas mulheres, muitas, muitas. fui sempre atraído por elas mas eram a banalidade e deixaram-me pobre. Tu, Irim, não sabes o
que dás, minha tão minha, meu outro eu, meu desejo. Não tenhas medo que te não tocarei. Olha para as minhas mãos.
- As tuas mãos - disse Ina, ternamente, pondo nelas as faces - são um fruto que amo. E os teus olhos riu-se profundamente -uma vela a arder, não, deixa ver, estão
polvilhados por um mosaico de oiro, de tal modo brilham. Então não podes dormir? E sentes desejo? É belo, é o que há de mais belo. Agora, mostra-me a tua composição.
Sorriu, emquanto abria o piano e disse:
- Ainda estão a tremer, as minhas mãos. Colocou na sua frente as folhas cobertas por uma rede de notas lembrando renda. Depois, tocou alguns acordes vibrantes, simples,
apaixonados.
- Cordas, harpa, trombeta,-começou-o motivo da Pequena Sereia.
Ina pôs a cabeça nas mãos e ouviu desfiar o conto como se fosse um colar de pérolas. Desapareceram o tempo e o espaço, as paredes afastaram-se e, em frente dos olhos
fechados, deu-se a evocação de várias imagens. Quando Brandt acabou, o sol desaparecera e, à luz do crepúsculo, ela via erguer-se e baixar-se o peito do seu amigo.
Ficou um momento silenciosa, ergueu a cabeça para a janela em frente da qual esvoaçavam andorinhas e pronunciou em voz baixa: Amo-te acima de tudo."
Uma pausa.
- Irim, havemos de ser felizes como nunca o foram dois seres humanos. Não deixaremos o mundo chegar
até nós, mas apenas o que é grande, maravilhoso. A obra será tua, será a nossa filha.
Ela deitou para o aposento um olhar quási adormecido: sobre a mesa estavam retratos, cabeças inclinadas, de músicos, à escuta, e mulheres. Conhecia uma, a Dannot.
Leu a dedicatória: "Ao tom, o seu rapozinho", sem bem compreender mas sentindo uma queimadura.
- As mulheres amimam-te muito? - preguntou, pensando noutra coisa: como ele tinha, a pesar-de ser tão delgado, os ombros firmes e flexíveis!
- Sim, farejam aquele que anda à procura, aspiram a ser isto: a redentora! As mulheres são seres perturbadores: todas querem tornar-nos felizes e sacrificar se.
Depois, é sempre a mesma coisa: fica um gosto amargo.
- Eu também te quero tornar feliz. Então é a usual banalidade?
- Ah, tu, Irim, tu vens do pais dos sonhos, o teu vestido não tocou no pó, os teus pés não pisam solo trivial.
- E também farei sacrifícios por ti. - continuou tranquilamente Ina.- Quero o amor inteiro, o grande, aquele que também traz dor. E sem isso, bem vês! nunca poderia
dançar a Pequena Sereia.
- Tu queres dor, criança? Há de vir e bem de-pressa. Então não me deixes só, Irim. Também tens força, tu, tão terna?
-Sou forte.- disse ela estendendo lhe todo o corpo, o que lhe dava a idea da posse.
- Dá-me mais um beijo, porque é preciso que te vás embora, mais um beijo para a noite sem fim. Quero ver-te amanhã. mais um beijo, hoje.
"Sente-se sempre a mesma embriaguez?" pensava Ina, abandonando se. Bruscamente ele largou a, quási que a repeliu.
- Vai agora. - disse dominando-se. - Vai! Adeus, doce Irim, adeus.
No aposento contíguo, a senhora de cabelos grisalhos levantou-se e ficou de costas para a larga janela. E Ina notava: "Que rosto torturado! Que mãos tão mortas!"
- Queres apresentar-nos, Tomaz? - preguntou a voz sem timbre.
- Perdão, menina Rafay, permita-me que a apresente a minha mulher. - disse um sr. Brandt, absolutamente desconhecido de Ina.
- Muito prazer, minha senhora . -respondeu delicadamente uma menina Raffay aflita, tentando introduzir nas luvas brancas uns dedos gelados e entorpecidos,
O amor nunca é o mesmo para dois seres e é por isso que tem um gosto agridoce. Aquilo a que Tomaz e Ina chamavam o seu grande amor, era muito diferente para cada
um deles.
Ela gostava dele e também do amor como duma coisa que lhe enchia as mãos, até trasbordarem, e também o seio e o coração, de alegria e desespero. Tudo desaparecera,
caminhava como uma sonâmbula numa existência de sonho. Transformava-se absolutamente em Irim, criatura duma região de desejos com reflexos de pérolas, tal como Brandt
a queria ver. Em qualquer parte, por trás de paredes de vidro, rolava um mundo onde habitavam um sr. Forli rabujento, um camarim hostil e cheio de estúpidas intrigas,
um papá desconfiado e quezilento, a mamã que tantas vezes tinha os olhos vermelhos de ter chorado, um sr. Pratt sempre em cata do reclame. Quanto à sombra de Conradin
- cada vez mais caído, encostado à noite aos bastidores, outras fingindo não a ver-algumas vezes era tolerada como se faz a um cão amigo que, em silêncio, compreende
a disposição do dono.
Para Ina tudo era sonho, uma confusão incoerente, e era só nas horas que passava com Brandt que vivia a sua própria vida.
Para Tomaz era o contrário. Levava sempre a vida activa, complicada, dum homem célebre. Compunha, resolvia problemas, recebia visitas, fazia reclame, dirigia
concertos e nada mudara nas suas relações com as coisas, os homens e as mulheres. Simplesmente, achavam aquele homem de quarenta anos rejuvenescido e os críticos
notavam que dirigia com novo vigor. Dormia pouco e trabalhava imenso. Vivia a sua verdadeira vida com maior intensidade e para ele as horas passadas com Ina eram
um sonho à margem que concedia ao seu coração para que ele continuasse a bater com força e se não fatigasse de criar.
Mas uma coisa tornava a ambos o seu amor tão forte, tão penetrante, tão radioso e cada momento que passavam juntos tão precioso: era o sentimento do sem esperança,
do trágico, do irrealizável. Ambos respiravam uma terna aspiração, muito acima do ramerrão quotidiano: o desejo de se pertencerem. Ina recebeu um dia, de Brandt,
um livro com este título: "O amor. é um amor infeliz." Escreveu-lhe:
"Este livro é belo mas as personagens são fracas. Eu e tu somos fortes, amar-nos emos sempre, mas nunca pertenceremos um ao outro, bem sabes".
Brandt sabia-o. Ina nunca vinha a sua casa, nunca falava na mulher. Disse-lhe apenas uma vez: "Não temas que eu seja mesquinha ou medrosa. Mas não quero metades
e não sei partilhar. Ficarei sempre junto de ti mas nunca te pertencerei". E ele leu-lhe nos olhos a irrevogável decisão.
Ela não supunha a que ponto aquilo a tornava feliz e única: estar fora do alcance. A pouco e pouco ele ia se-lhe tornando grato. Ter desejos violentos e insatisfeitos
era um sentimento novo, inconcebível, uma profunda felicidade a que chamava amor - pela primeira vez o verdadeiro amor. Para ela era uma coisa absolutamente natural.
Todo o amor tem o seu dia de apogeu, algumas horas duma tal intensidade luminosa que mesmo passados muitos anos, quando ele está bem esquecido, guardam ainda o fulgor,
assim como as estrelas mortas dão ainda luz durante muito tempo. Aquele dia, começou para ambos por uma linda manhã de sol, na pequena estação da montanha onde ele
chegara adiantado para
se encontrar com ela. Apareceu, saltando os degraus todos duma vez para se lançar nos seus braços, trazendo a frescura das faces e o penetrante aroma dos cabelos.
Tinha um vestido de seda crua e, na cabeça, uma capeline muito ousada, tão roxa como os seus olhos.
- Um dia inteiro - disse - um dia inteiro contigo, é maravilhoso! Quando estivermos na floresta hás de me deixar gritar de alegria.
Meteu-lhe o braço para a sentir tépida e puseram se a caminho. A velha cidadezita espraiava-se sob o sol no silêncio dominical, as casas brilhavam adormecidas no
ar luminoso e apenas os passos dos visitantes faziam ressoar os passeios de tejolo. Da igreja, situada na colina, partiam gaviões para o céu; depois planavam lentamente.
Na orla da floresta, o perfume das rosas campestres gravava-se em recordação. Uma clareira escaldante exalava cheiro a resina e por trás dos silvados, os morangos
vermelhos brilhavam por entre a erva alta. Ficaram sentados muito tempo no parapeito duma janela, nas ruínas do castelo sobre a colina, a ver lá em baixo os cimos
verdes, sempre em movimento, falando de coisas insignificantes, ficando silenciosos ou sorrindo. Depois seguiram o cume da montanha. Brandt rodeava-lhe os ombros
com o braço e sentia transmitir-se-lhe aquele doce calor emquanto ela gritava de felicidade.
-Estamos sós no mundo, tu e eu!-disse Brandi que, mesmo no seio da alegria se mostrava sempre enternecido e sonhador,
- Sozinhos no mundo e durante um dia inteiro. um dia que não acabará! Se me dissessem neste momento: "Menina Raffay, divirta-se bem, porque esta noite, ás dez horas,
quando partir o último comboio, assassiná-la-ão " - eu responderia : - " Muito obrigada, terei muito prazer nisso. A gente tem que morrer um dia e daqui até logo
tenho muito tempo." E quem sabe se não morrerei esta noite ?
"Como é criança ! - pensava ele, olhando-a de lado. Disse com precaução, observando lhe o rosto fechado, que tentava sorrir:
- A tua vida não é feliz, pequena sereia ?
- Não, nem sempre. - respondeu, contendo-se para não confessar as noites de lágrimas, de luta, de desejo. - E a tua, é fácil?
Não respondeu, Mais tarde e sem motivo aparente, preguntou:
- Queria saber uma coisa : és ciumenta ?
Mas ela não abriu a boca. Ia com um ramo ao ombro como em Amrun as mulheres levavam os ancinhos. A sua silhueta, contornada e delicada, desenhava-se no ar, harmoniosa
nas finas curvas e deixando ver o sarie sob a pele dos braços. Ele caminhava atrás dela.
- Ina!
E o seu amor envolveu-o, tão forte, tornando-o tão feliz, cegando-o a tal ponto que fechou os olhos e estendeu os braços. Voltou-se e apertada contra o peito do
amado ouvia cantar o sangue, vendo em frente das pálpebras fechadas brincar raios de sol e passar as sombras da folhagem. Êle sentia-a toda e adivinhava já com que
saudade se lembraria, daí a anos, do perfume das rosas bravas, daquela hora. e, a sonhar, ouvia também uma ária, uma linda melodia em compasso ternário.
- Se pudesse haver um tremor de terra, a estação ficasse em ruínas e a noite nunca, nunca chegasse!
Mas chegou. As casinhas adormeciam no crepúsculo, encostadas umas às outras. De todos os campanários partiam sons lentos. Dum prédio de persianas fechadas esquivava-se
a fraca luz que alumiava a estrada e os maciços de jasmim, húmidos, exalavam perturbador perfume.
- Daqui a momentos estamos em casa. - disse Brandt.
"Poderei entrar?" pensou ela e, involuntariamente, proferiu a frase em voz alta.
- Estaremos sós. Quero mostrar-te o que fiz desde aquele dia, trabalhei muito. vêm-me agora tantas ideas! Já tenho dois actos quási prontos.
Nos degraus da varanda beijou-a. Muitas das suas aventuras perpassavam ante os olhos baixos: trouxera tantas mulheres àquela casa! Não podia compreender
o que tornara aquele dia de tal forma único, encantador, prodigiosamente feliz. Um enternecimento estúpido apertou-lhe a garganta, desejaria demonstrar a Ina o que
sentia. Pegou-lhe ao colo para transpor o limiar, sentou-a na velha poltrona, descalçou a e colocou-lhe os pèzitos no seu peito para os aquecer. "Quando se tem quarenta
anos - pensou-já se conheceu tudo e tudo se experi mentou. Não há mais do que reedições. Mas que o amor seja uma coisa tão forte, isso é que é novo. O resto já existiu.
e é pena !"
Ina, a quem Fernando ensinara a ler no pensamento, implorou:
- Hoje não penses nas outras. pensa só em mim. "As outras" é a mulher de rosto murcho com a qual ela tem, de noite, discussões que terminam de formas bem variadas,
onde dos dois lados há manifestações de generosidade; mas são também as numerosas desconhecidas, uma multidão de mulheres nuas ou elegantes, impudentes ou dedicadas
que aparecem subitamente quando se olha para as mãos do compositor ou para os lábios, ou quando, por acaso, se ouve a Dannot a zombetear, referindo-se ao seu "coração
múltiplo".
Mas ele já estava a tocar a sua ópera, explicando a meia-voz a intenção dramática. Fechando os olhos, Ina via tudo.
- Agora já sei. - disse, quando num acorde interrogativo, ele terminou o momento em que o príncipe, na véspera do casamento, dava as boas noites à pequena Sereia
muda-já sei qual deverá ser o primeiro bailado. Também eu começo a estremecer.
Diante das janelas, os maciços de jasmim parecia OU virem, imóveis na sombra, e do campanário desciam novos sons. Então Tomaz disse-lhe aquilo em que todo o dia
pensara, Ina ergueu vivamente a cabeça e tinha os lábios brancos.
- Deverias viver comigo, ser minha . deverias ser minha mulher.
- Realmente. devia. - murmurou Ina, tomada de vertigem.
- A vida inteira, Ina, a vida inteira. Todos os dias,
todas as horas, como hoje, todas as noites, imagina: todas as noites! Podia pedir-te agora: queres passar esta noite comigo? Mas vês? Não to peço, tanto te quero.
Não quero uma noite, nem um bocadinho de ti - quero-te toda. Viverás comigo, não é verdade? Crês em mim? Viverás comigo. Deixaremos as janelas abertas e, de madrugada,
ouviremos cantar os pássaros. E nada mais teremos para desejar.
Ina sentiu se levada por uma espécie de sonho inconsciente . Mas com a última palavra, abriu os olhos, os verdadeiros olhos Delarès, e disse:
- Não; hei-de ter sempre uma aspiração, mesmo quando te pertencer.
- Quando me pertenceres. Pequenina, pensarás de hoje em diante que me hás de pertencer?
- E tu? - preguntou Ina, fitando-o nos olhos. Como adorava aquelas centelhas de oiro!
- Pensarei nisso sem cessar, minha Irim. Mas agora é preciso partir, vamos para a estação. A lua brilha. Passaremos de-vagar em frente do cemitério. - e repetiu
esta frase, de ouvido à escuta,
- Inspira-te?
- Talvez.
- Talvez dê também um bailado: "passaremos de-vagar em frente do cemitério ." - repetiu ela, emquanto saíam cobertos pela toalha de luz prateada.
Entrando em casa, Tomaz chorou e cantou uma serenata à lua, o que não fizera desde os seus estudos no Conservatório. A meia-noite, anotou um tema, o motivo do casamento,
donde deveria sair todo o seu terceiro acto. Depois, na cama, pensou profundamente em Ina e acabou por apertar a sua imagem nos braços. Adormeceu, perdendo consciência
sob um beijo imaginário, tendo a idea de meter uma viola na orquestra.
Em novembro, quando as ruas, inundadas de chuva, se enchiam de lama, as corridas de carro, no nevoeiro, eram melancólicas e os Cafés estavam à cunha.
Brandt alugou a velha e pequena casinha numa afastada rua de Grinzing. Tinha três compartimentos minúsculos, cheios de móveis fora de moda e quando se
puxava o cordão da campainha, bordado a contas e flores, surgia uma dama de olhos piscos que lambia os lábios e cuja atitude significava: "Nada a temer, discreção
garantida". Ficou surpreendida quando Brandt mandou tirar a cama e pôs um piano em substituição. Encheu a secretária com papel de música, colocou os livros favoritos,
os quadros preferidos para guarnecer as paredes, colchas de seda, um largo e baixo sofá e flores: por toda a parte, flores. Depois trouxe a Ina e apresentou-lhe,
com grande cerimonial, uma enorme chave.
Quanto mais ele se mergulhava no seu trabalho, tanto mais a vida quotidiana o nauseava, repugnando-lhe; os seus nervos excitados vibravam dolorosamente mal, qualquer
insípida banalidade os feria. Precisava da extrema volúpia, do êxtase. e tudo de quanto necessitava julgava encontrá-lo na amada. Quando de inverno trabalhava na
casinha isolada, cheia de Ina, como num sonho encantado, tudo vivia em seu redor e os mínimos sons tomavam cor. A sua ópera avançava. Mantinha uma castidade absoluta,
o que dava àquele amador de mulheres uma extraordinária acuidade dos sentidos e uma extrema actividade: o desejo, nunca satisfeito, imprimia à música os acentos
apaixonados dum Tristão.
Tomaz estava sempre na casinha para receber Ina e quando, depois de intermináveis despedidas à porta, ela se ia embora, ficava ainda muito tempo ao frio, olhando
para os vestígios dos seus passos na neve. Depois, emquanto ela ia para o teatro num carro eléctrico ridiculamente iluminado, mergulhava, de novo, no seu trabalho.
No camarim, Mila Merz examinava os olhos ausentes e rodeados de olheiras de Ina e assobiava uma canção maliciosa.
Quanto à senhora Brandt, aguerrida por doze anos de casamento com um génio, ficava à escuta, na noite, até que os passos do marido batessem nos gastos degraus da
escada, e pensava : "Que mais terá ele feito ?" Preparava-lhe então alguns acepipes. Via na sua mesa de cabeceira um copo de limonada, e, quando estava muito frio,
encontrava na cama uma botija que aceitava com um mixto de irritação e contentamento.
Terminou a partitura numa noite de fevereiro. Batia-lhe, alvoroçado, o coração, quando pousou a caneta, depois, teve a sensação de que todo o sangue se lhe retirava
do corpo, que as mãos e os lábios estavam frios e se esvaziavam. Olhou ainda um instante, exgotado, para o papel que o candeeiro alumiava. Depois foi para a janela.
Fora, a noite não estava absolutamente negra; a terra, coberta de neve a derreter, projectava na sala um macilento clarão, Tomaz Brandt conhecia bem aquele sentimento
de queda num precipício sem fundo, após o finalizar duma obra. Tinha a boca e a garganta cheias de amargor. Tocou os primeiros acordes do prelúdio que soaram com
insuportável e artificial doçura. Sentiu-se gelado e os dentes entrechocaram-se bruscamente: o lume do fogão apagara-se. Lançou-se para cima do sofá, rodeou-se de
mantas e adormeceu quási instantaneamente. Em sonhos, julgou ainda cair, precipitado num fundo acinzentado ; planava imóvel à mesma altura, emquanto o coração continuava
a tombar: julgava então morrer e lançava-se cá para baixo, perseguindo o coração. Aparecia o sol, e Tomaz repousava, envolto em calor, num prado muito sossegado
e muito agradável. Então o coração tornava a bater regularmente, uma borboleta tocava-lhe nas pálpebras. E acordou.
Não compreendeu logo porque motivo o rosto de Ina estava encostado ao seu; ela afastou os cabelos que lhe cobriam a testa e preguntou:
- Sofres emquanto dormes, meu querido ?
Era dia. seria manhã ou tarde ? No quente compartimento, o fogão sussurrava. Sobre a mesa, havia rosas frescas numa taça.
- Donde vens ? - preguntou com ar infantil. - Já é manhã ?
- Manhã ? Sim. Escreveste-me : " vem amanhã, temos um acontecimento a celebrar. Já é amanhã e estou aqui. Quero o meu acontecimento".
Tornou a sentir um gosto insípido na boca e contentou-se, sem falar, em mostrar no piano a partitura acabada. Estava enjoado e disse, hesitando:
- Estou tão fatigado!
Então Ina tomou um ar solene, brilharam-lhe lágrimas nos olhos, o que Tomaz achou ao mesmo tempo comovedor e cómico. No entanto, dominou se para dizer:
- Sim, hoje é dia de festa. Tenho necessidade de me divertir depois de todo este trabalho: não passo duma sombra e sinto-me como um saco absolutamente vazio.
Na espécie de quarto de banho, gelado, inundou-se de água, depois teve vontade de ir para a cidade com Ina e lançar-se no turbilhão da mais barulhenta orgia. Mas
quando voltou para junto dela, encontrou as persianas fechadas, acesas as velas que espalhavam uma luz calma e doirada na noite artificial e um entontecedor perfume
a rosas. E num canto, estava ela, receosa, com o corpo nu vendo-se através de prateados véus egípcios. Baixava as pesadas pálpebras e os braços que lhe estendia
tremiam imperceptivelmente. Estava tão linda que ele teve medo. como a amava! ah, como a adorava!
- É o meu trajo de Irim, - murmurou - o meu trajo de gala, e posso ficar contigo o tempo que quiseres. estou hoje à tua disposição.
Ina surgiu no espelho como uma sombra e quando Brandt lhe pegou e a trouxe para o sofá, teve nitidamente a impressão de qualquer coisa de belo, de magnífico, como
num sonho. Tirou-lhe os véus e ela ficou silenciosa. Cobriu a com uma chuva de rosas e de beijos e os seus lábios estavam mais gelados do que as flores. Ela ouviu-lhe
a voz, uma voz estranha, embriagada, um murmúrio ardente e sem nexo. Depois apagou as velas. Todo o compartimento estava cheio com as pulsações do coração de Ina:
"Vem!" gritava todo o
seu ser.
Os braços estendidos e hirtos, acolheram Brandt quando se apertou contra ela, na escuridão, e as suas bocas se uniram. Vem!" murmurou, sem dar por isso. Mas ele
estava imóvel e ficou assim uma eternidade sem se mover. Ter Ina, a sua Ina adorada, nos braços, sem lhe tocar, era um extremo prazer, o mais extraordinário de todos.
Bem sabia qual seria o frenesi
dum minuto que, ao menor movimento, cortaria aquele encanto - e conhecia a saciedade, a depressão que se lhe seguiriam! Era por isso que se dominava furiosamente
e o que experimentava, era duma intensidade unicamente sentida em sonho. Ina também se não movia e ficaram assim imenso tempo.
De vez em quando, caíam pedacitos de lume fazendo barulho no fogão. Fora, rodavam os carros e as lanternas cortavam um pedaço de treva. Às vezes, caíam, distendidos
por alguns minutos, e não sabiam se no sono se no desmaio. Depois, voltavam a si e sentiam-se outra vez ao lado um do outro, levados pela paixão e sempre imóveis.
A noite ia andando. Houve um momento em que a sentiu estremecer, e puxou uma das mantas com que a cobriu. Ele estava gelado e batiam-lhe os dentes. Depois, houve
um longo período de inconsciência.
A manhã devia estar perto quando Tomaz Brandt se levantou, cambaleante, e acendeu uma vela. Entre as lâminas das persianas, um lívido reflexo de neve escorregava
para o quarto. Ina estava estendida, com os olhos fechados. Não sabia se ela dormia, mas assustou-se com a sua terrível palidez. Viu-se a ele próprio no espelho,
tropeçando como um ébrio, entre sombras de móveis, que também oscilavam. Nunca estivera tão cansado da vida! Pôs a mão no coração que batia fracamente. "Antes de
mais nada café bem forte." murmurou. Depois, dirigindo-se a ela disse, voltando a cabeça:
- Ina, são horas de te vestir e voltar para casa. Já oiço os primeiros eléctricos.
Havia já algum tempo que ela o seguia com os olhos. Tinha um ar transtornado, sofredor e os olhos não eram mais do que duas estranhas manchas, sem cor.
com uma ternura calma, ciciou:
- Meu adorado!
Parecia-lhe que só naquele momento compreendia o amor.
- Sou forte, Irim ? - preguntou molemente. - Estás satisfeita comigo?
- Estou, estou.- respondeu como a uma criança, ameigando-o com o olhar. Depois repetiu :-estou.
estou.
À saída, ao abrir-lhe a pesada porta, disse, de-repente:
- Agora já não posso mais. vou falar à minha mulher, vou retomar a minha liberdade. Agora já não posso viver sem ti.
E foi o fim do encanto para a Ina. Em seguida tudo mudou duma forma inaudita, extinguiu-se a tal luz nos olhos de Tomaz Brandt e dentro dela partiu-se qualquer coisa.
A delicada magia transparente daquele amor desapareceu, a corda, demasiado tensa, partira e já não dava aquele puro som de outrora.
- Posso fazer te notar, princezinha, - disse Conradin
- que a palavra "antigamente" anda sempre na tua boca? Faz o mesmo efeito que "antes de Jesus Cristo" ou "antes da descoberta da América". Antigamente, bastava-te
a minha música, antigamente não tinhas esse não sei quê de vacilante que tão mal te fica! Antigamente, a tua espera diante de certas portas ainda tinha um fim evidente.
Não abras assim esses olhos tão assustados, não quero fazer-te mais mal do que é preciso.
- Espias-me? -preguntou Ina, encolerizada.
- Sim, dentro de certos limites. É uma forma de ver. A gente esconde-se atrás de portões, em cantos sombrios, tremendo de humilhação, ama-se tão loucamente um ser,
um único, a angústia deita-nos para o seu rasto e tem-se o sentimento de que o ar não é respirável senão na sua proximidade. Sim . é-se espião . Julguei que também
tu, agora, sabias o que isto era, princesa.
- Não sei o que queres dizer. - exclamou Ina, para
terminar a conversa.
E arvorou um ar glacial.
Uma tarde em que Ina tomou chá em casa do barão Delarès, ele pôs-se a remexer num cofrezinho. E disse:
- Agora devia usar o diadema que diz com o antigo medalhão. Ficar-lhe-á lindamente porque é muito romântica, sempre nas nuvens, sofrendo do "mal do século", não
é? Está adorável. Sente melhor, mais profundamente e eu compreendo-a. Não gosto do que obedece ao preconceito e está fechado na gaiola. Se eu abrisse o parque ao
público, poria lá grandes tabuletas: "Façam o favor de andar sobre a relva e de colher flores. É proibido prender os cães." Porque se ri, Inês?
- Porque isso mesmo diria o Fernando.
- Ah, não. O Fernando não diz nada disto: fá-lo. Quanto a mim, guardo o meu parque para nós e o público não tem nada que meter cá o nariz.
Isto foi dito em ar desdenhoso mas houve um pequeno músculo que apareceu, contraído, na fonte amarelada.
Ina ficou silenciosa e voltou ao pensamento que a obsecava: porque motivo mudariam o Tomaz, ela e até o amor?
O barão ergueu à luz uma oval pérola cinzenta, suspensa dum fino fio de platina.
-Mais tarde há-de usar isto na testa, Inês, mais tarde, quando for mulher. Por emquanto, é ainda uma criança, não é verdade? E os seus desgostos. não passam de criancices.
- E inclinou-se para lhe fitar os olhos. - Não tome nada disso a sério e permita-me que lhe peça uma coisa: seja mais prudente. De resto, noto que a sua mãe tem
tido um ar adoentado nestes últimos dias.
Era verdade. A casa dos Raffay tornara-se um inferno. O pai, no Café, ouvira contar coisas singulares acerca de Ina e do compositor Brandt. Tiveram cenas violentas
em que Ina nada negou: estava no seu direito, visto que amava. A mamã apertava desesperadamente as mãos e chorava muito; o papá gritava e praguejava sem se dominar,
dizia em húngaro coisas que ninguém
compreendia, excepto a nova criada, Joszika que escutava às portas, tremendo de pavor. Depois, também ele chorara e o bigode tomara-lhe um aspecto desesperado. Em
seguida, tivera cólicas nefríticas e uivara uma noite inteira, como um animal doente.
Ina passava longas tardes em Grinzing, esperando em vão. Estava um frio horrível na casa sem lume, mas diante da janela, o castanheiro perfilava já no azul do céu
primaveril tenros rebentos claros. Durante o trajecto até ao teatro, tremia sempre -a espera fatigara-a tanto! - e engolia as lágrimas que lhe queimavam a garganta.
Brandt marcara-lhe agora dias fixos, depois vinha atrazado e mostrava-se distraído. Iam passear, ele prendia-lhe a mão, sob a manta, mas sem que, nesse gesto, houvesse
qualquer frémito.
Ele pensava nos gaviões da pequena casinha da montanha. Planavam tanto tempo lá em cima sem mover as asas! Que prodigioso esforço seria preciso para planar assim,
com as asas abertas e imóveis! Calculava como deviam estar fatigados quando regressassem ao ninho! Pensava, com ansiedade, com terror, na possibilidade de viver
constantemente com a Ina. E murmurava: "O casamento não deve ser um conto de fadas, ou é uma farça ou uma tragédia. Que a Irim ponha os seus véus prateados e que
tente voar sempre. Muito obrigado. eu já fiz quarenta anos."
No entanto, a sr.a Brandt preparava uma cozinha requintada, dava macgens ao marido, com água de Colónia, escrevia aos editores, copiava com extraordinária paciência
o indecifrável manuscrito de A Pequena Sereia. E havia também, a Dannot, o esperto rapozinho, que convidava muitas vezes Brandt a tomar chá, mostrando se alegre,
expansiva, camarada, evitando qualquer alusão à sua aventura. Apreciava como diletante o encanto de estar de sobreaviso com uma amante que conhecia a fundo. Além
disso, na rua, entrou em relações com uma mulher, uma anónima viúva de Schottenfeld, uma criatura bonita, gorda, nos braços da qual descia das regiões castas e extáticas
da criação musical para um terreno morno e sólido.
Foi o dr. Bertram, o primeiro contra-regra, que teve com o sr. Forli, o novo mestre do corpo de baile, a grande discussão no gabinete do director. Prometera a Tomaz
Brandt dar o papel de Irim à Raffay e impôs esta determinação sem precedentes de dar um primeiro papel a uma dançarina que nunca bailara sozinha - arrazando o sr.
Forli com a sua glacial ironia. O dr. Bertram era um homenzinho frio, que escondia por trás duma luneta que punha e tirava sem cessar, dois olhos azues, infantis.
No palco preferia os cenários da "velha guarda", roxos, indo do lilás ao purpúreo, que iluminava lá do alto com projecções dum inacreditável tom alaranjado. Sustentou
a questão com expressões enérgicas mas perfeitamente calmo; depois, as mãos tremiam-lhe emquanto fazia a distribuição. O sr. Forli, pelo contrário, explodiu, vomitando
um rio de coloridos italianismos e exprimiu a sua opinião no dialecto de Munique com uma crueza que não deixava lugar à mínima dúvida. A Galiena negou se a dançar
e foi Mariana Marshall a "arrivista" que, à noite, dançou o passo a dois tempos na Judia. Por baixo da pintura, estava verde de inveja por causa da Raffay. No camarim
formou-se um mudo círculo de hostilidade em seu redor.
Os ensaios começaram em outubro. Ina, naquela época, estava quási sempre ansiosa, depois dum horrível verão em que Tomaz desaparecera, convidado para uma propriedade
na aldeia, donde raramente escrevia laboriosas cartas. Voltou queimado pelo sol, mudado, estranho. Reinava entre eles um embaraço que os impedia de se exprimirem.
Brandt falava escusando-se, sem finalidade e distraidamente, da representação da ópera, que o ennervava. Ina comprimia o coração, enchia-se de coragem e refugiava
se no trabalho.
Era preciso distinguir-se, criar os sonhos brilhantes e
os bailados de Irim na sala banal onde ensaiava toda a gente. Ali um pianista de mau humor fabricava a música familiar, ali os olhos do dr. Bertram, difíceis de
satisfazer por trás da luneta, criticavam com conhecimento de causa, todos os gestos ou a mínima intenção; ali, o sr. Rolando, com as mãos nas algibeiras, representava
o príncipe com ar aborrecido e dizia: "Peter, Peter, guarda as tuas forças para o espectáculo e não te canses tanto . Repara como eu só imito o canto". Engordara,
casara com a Javelot que esperava o segundo filho e, afastada do teatro, envelhecia rapidamente.
A única que parecia dedicar-se inteiramente ao trabalho era a Dannot que cantava a noiva do príncipe e se mostrava muito amável para com Ina. Sentia muitas vezes
os seus olhares interrogativos pesar sobre ela como qualquer coisa material, nos ombros, nas coxas, nas ancas que os véus deixavam nus.
Brandt, que não falava senão na sua ópera, dizia: "A Dannot elogiou-te muito!" ou então: "A Dannot acha-te extraordinária." Ina, agitada por leve arrepio, respondia,
sorrindo: "Mas Tomaz, a ópera é minha, escreveste-a para mim, encarnaste-me nela. então eu não havia de ir bem ?"
E sorria com amargura, de tal modo ele parecia surpreendido.
Num claro dia de novembro, começaram os ensaios no palco. O sr. Rolando tirara agora as mãos das algibeiras e utilizava-as para fazer numerosos gestos de grande
efeito que não significavam nada. A febre da primeira representação apoderara-se de toda a companhia. No vestido de ensaiar, sem mangas, Ina tinha frio. Quási às
escuras, estava sozinha no meio do palco, isolada, entre portas, escadas e inacabados cenários. A música que a orquestra tocava era bonita mas irreconhecível: ninguém
diria que era aquela a que fora ouvida na casinha de Grinzing.
Um dia, no foyer, encontrou a Dannot que examinava distraidamente os retratos das antigas estrelas, pendurados nas paredes. Muito bonita numa saia escura, com uma
blusa que generosamente descobria o colo alvo, tinha
luvas calçadas pois, como pessoa de ordem que era, receava o pó do palco. Ina sentiu-se-lhe bem inferior no seu vestidinho de trabalho. Sem a olhar, a cantora disse:
- O tom assiste hoje ao ensaio.
- Quem?
- O Tomaz, o nosso Tomaz. Ela ficou silenciosa.
- Não lhe disse que vinha cá?
- Não. - respondeu Ina em voz baixa. Depois acrescentou : - Há muito tempo que o não vejo.
A outra pegou num Jornal que estava em cima da mesa e preguntou:
- Ele já lhe disse que queria divorciar-se ?
- Já. - respondeu maquinalmente a bailarina.
- Calculei isso mesmo. É o princípio do fim: é a sétima vez desde que o conheço. Quis divorciar-se duas vezes por minha causa, quatro por outras e uma por si. Mas
nunca procederá, a não ser que sobrevenham acontecimentos extraordinários. absolutamente extraordinários.-repetiu, como para si própria, contemplando as luvas -
Conhece a mulher ?
- Vagamente. - replicou a rapariga, com os lábios secos. - É uma bela alma. - diz o Brandt.
- Uma bela alma, sim . como nós também . Dá-lhe toda a liberdade. E ele precisa . - nesse ponto aquela mulher dá-nos uma lição, minha cara Raffay. Mas quando há
perigo, ela prega-lhe uma bela partida: pede o divórcio. Ela e não ele: isto comove-o e nunca mais se decide. Além disso, é uma cozinheira espantosa: o nosso querido
tom gosta imenso de comer bem. Trata-o como uma criança. Depois, coloca-lhe debaixo do nariz de guloso uma nova mulher que tem atractivo por contraste. Ah, meu Deus,
como ela conhece bem a nossa criança crescida! Ele vai sempre na fita, sempre! Não me esqueço do que se passou consigo. De-repente, eu estava muito prosaica, muito
prática e metódica, já menos jovem. e adivinhando o que não via. Emfim, eclipsam-se facilmente os cabelos ruivos e você era, na verdade, encantadora com os seus
dezassete anos, era
uma pessoa à parte, por isso não admira que tenha durado tanto. Mas lá isso de ele recomeçar a falar de divórcio, é mau sinal. E temos agora aquela ordinária criatura
de Schottenfeld. E claro: depois do excepcional, o banal. Então que é isso ? Não sabia ? Mais vale estar prevenida. A gente toma conhecimento destas coisas, a rir.
Pode tentar retê-lo. Recomendo-lhe a receita da sr.a Brandt: dê-lhe muita liberdade, mande-o mesmo embora. Custa. eu já passei por isso. Sei o que se sente quando
se desejaria reter o tom; é areia a correr por entre os dedos e que vai diminuindo. diminuindo. E não se pode fazer nada!
-Não quero ouvi-la. é mentira, é odioso estar a falar mal dele!-gritou Ina, sentindo como era infantil o que dizia -Que interesse pode ter em que eu o prenda?
- Tolinha! - replicou a Dannot, acariciando-lhe levemente os cabelos-Sou franca: não tenho senão um desejo, o qual consiste em o reconquistar, Mas acho que ainda
não chegou o momento. E é também por camaradagem. Gosto de si, minha pequena, e vejo que sofre. Eu também já tive dezoito anos. foi quando comecei a amá-lo; hoje
tenho trinta e continuo a querer-lhe, a-pesar-de tudo. E de todas as que me substituiram, é você a melhor, é a si que ele deve a sua ópera: nunca escreveu nada tão
belo. É por isso que tenho pena ao ver que vai deixá-la.
- Mas ele não me deixou . não me deixa! - murmurou Ina.
- Estão a tocar. vou entrar em cena. Vá, dê-me a sua mão. Acho que não percebeu nada.
Não, Ina ficara sem perceber nada. Permaneceu ali muito tempo, sozinha, com uma expressão preocupada no olhar. Os ombros e os braços nus tremiam-lhe levemente.
O ensaio geral começara. O sr. Friedrichs, em pé na sua estante, tinha a partitura aberta diante de si e não
deixava de carregar em botões para fazer sinais. Quási
de seguida, ouviram-se os primeiros violinos, entoando na prima, o tema do desejo.
Ina saía do camarim e, na escada, Mila Merz cuspiu três vezes em intenção da sua amiga, pela qual se mostrava terrivelmente receosa. Ina estava calma. Do outro lado,
chegou o sr. Rolando que se assoou conscienciosamente e disse, muito grave: "Vamos lá, Peter, chegou o momento de te tornares célebre." Depois puseram se na prancha
mágica do alçapão por onde iam surgir. Na orquestra, os metais faziam grande alarido, o prelúdio descrevia uma tempestade e um naufrágio, depois apaziguava-se e
cantavam as vozes das sereias. Os grossos canudos de beiras metálicas, que faziam de vagas, começaram a ondular e o pano ergueu-se. Os maquinistas fizeram subir
a prancha, ela abraçou o sr. Rolando e, sob a maquilhagem, sentiu os lábios frios e brancos, quando da semi-escuridão do subterrâneo surgiu no palco a rosada luz
do sol nascente. Mas o seu tema, o tema de Irim, exprimindo com doçura, a paixão, acolheu a e aqueceu-a dando-lhe entusiasmo. Depôs o príncipe na margem, olhou-o
por algum tempo, colocou lhe a mão no coração e deu-lhe um beijo.
- Para baixo. - ordenou o sr. Friedrichs - e a desagradável descida começou por entre os canudos a rolar.
Ina tinha depois um grande intervalo até ao segundo acto; deslizou, apressada, pelos escuros corredores e sentou-se na sombra duma frisa. À frente, na orquestra,
iluminado por uma lâmpada, o marfíneo rosto de Brandt inclinava se para o papel de música. A seu lado, o dr. Bertram telefonou baixinho as suas observações para
o palco. Mais longe e atrás estavam sentados, sombrios e importantes, os críticos.
Seguia-se um interlúdio triste emquanto as cortinas de tule velavam a cena para figurar a gruta das ondinas. Era ali, no segundo quadro, que a ópera e o papel de
Irim tomavam vulto, era ali que a pequena Sereia cantava, queixosa, o seu amor, o seu desejo pelos humanos e. depois de horríveis preparativos, chegava a sacrificar
a sua voz e a sua língua para subir à terra. Esta cena decorria numa semi-claridade fantástica; uma jovem cantora com o rosto oculto, munida da cauda de peixe das
filhas do Reno, nadava dum lado para outro e cantava. Ina estava descontente: a expressão daquela segunda Irim parecia-lhe fraca, sem bastante amor e sacrifício;
era uma Irim diferente da que ela seria mais tarde, quando dançasse. Sofria por ser realmente muda, por não saber cantar e, de enervamento, fechava as mãos e agitava
os pés. Vinha em seguida o segundo acto, que lhe pertencia. Havia uma centena de espectadores na sala e alguns deram palmas froixas quando o pano desceu. Os críticos,
em grupos, falavam, agitando a cabeça e as mãos. A atmosfera estava morna mas respeitosa.
Ina voltou para dentro e, num canto mal iluminado, perto das frisas laterais do palco, encontrou Tomaz Brandt. Encostado à parede, tinha o rosto pálido e as mãos
moles e frias. Dizia frases sem ligação:
- Toda a ópera é uma porcaria. Estou certo de que vai ser um fiasco. Nada de dramático! Péssima música de câmara . as trombetas deram fífias. tenho a certeza que
o maestro embirra comigo. O crítico do Tagblatt está a fazer caretas. Se a peça cai, só tenho um caminho a seguir: enforcar-me !
Ina, compassiva, pegou-lhe na mão, e num gesto de outrora, muito meiga, colocou nela a cara, emquanto retinha um sorriso. Para ela, aquele medo do último momento
era, ao mesmo tempo, cómico e comovedor.
- Sim, sim, nós dois. tu e eu. - disse Brandt, alucinado. Ao ouvir a campainha fugiu como um doido. Neste acto, Ina tinha três bailados: o primeiro, quando surgia
do mar e que a traziam à presença do príncipe, ao qual queria explicar a sua mudez, o seu desejo e o seu humilde amor; o segundo, que invocava o oceano, as pérolas,
conchas, corais e flutuantes algas para afastar a melancolia do príncipe que chora a bela desaparecida; o terceiro em que, já cansada, com os pés magoados, num mixto
de esperança e desespero, lhe fala da noiva desconhecida, indiferente, que lhe está destinada embora ele não possa amar senão aquela que o salvou e reanimou com
os seus beijos.
Os espectadores estavam atentos e emocionados, sentia subir até si essa atenção, como abrasadora música constituía um todo com ela, a luz envolvia-a derramada sobre
o seu corpo em variadas tonalidades, pelos focos, projectores e ribalta. As danças inventadas, compostas durante meses de trabalho, repetidas centenas de vezes,
em que todos os movimentos logicamente se encadeavam, tinham agora, que as dificuldades técnicas estavam vencidas, o arfar, o alado, a flexibilidade duma improvisação.
Quando, depois do terceiro bailado, Ina tombou na escada, sabia que tudo correra bem. Então rebentou o final. Um solene cortejo trouxe a noiva, a quem o príncipe
arrancou o véu e reconheceu. Foi então um breve duo de alegria delirante : cor, archotes, trombetas, címbalos, alvos braços da linda Dannot erguidos ao alto, o seu
magnífico dó agudo envolvendo o conjunto, dilúvio de acordes em mi bemol, vibrados pelas harpas. Num canto, chora a pequena Sereia muda; o príncipe passa na sua
frente; faz-lhe uma cómica reverência o anão da corte - e o pano desce com rapidez.
Os cem espectadores aproximam-se da orquestra e aplaudem calorosamente. O êxito da primeira representação está assegurado, visto que esta elite aprova. Louvam a
Raffay; alguns pintores que estão entre os convidados mostram se entusiastas: com o polegar traçam linhas no ar e, na sua linguagem expressiva, falam na maravilha
que acaba de se revelar. A surda aspiração à estilização, a simplicidade, o carácter, o desejo de se libertar do realismo e dos moldes convencionais que atormentavam
as artistas novas daquela época, tinha encontrado ali uma forma inédita e espantosa. Irim representava, na ópera, o que era novo e notável e a música dos seus bailados
excedia também a arte habitual de Tomaz Brandt. "Renascença do romantismo" etiquetou o crítico do TagUatt acostumado a estas fórmulas, e
o sr. Pratt, encantado, levou a definição até à última fila das cadeiras.
Já no palco tiravam os cenários. Ina foi levada Pela multidão para o seu camarim. Estendiam-se mãos
para ela e sorriam rostos pintados; ao passar, houve alguém que a beijou no ombro e disso ficou-lhe uma impressão terna e aveludada. Surpreendida, viu a Dannot cumprimentá-la
com a cabeça. No camarim das bailarinas, calaram se todas, fingindo não dar pela sua presença. Ina retocou a maquilhagem e depois, absorta ficou muito tempo no corredor,
em frente duma janela pela qual escorria a chuva. Estava inquieta por causa do terceiro acto, pouco segura, e o dr. Bertram cada vez exigia mais. A campainha soou:
barulho de vozes e passos leves de sapatinhos de baile a descer a escada, ruídos de armaduras perto do camarim das coristas, o bater brusco duma porta, junto do
palco.
Enchendo-se de força de vontade respirou fundo, depois desceu também. No momento em que transpunha o canto do corredor vazio, estremeceu: na outra extremidade, sob
a lâmpada vermelha, duas bocas beijavam-se. Já vira uma vez aquele apaixonado abandono, o esquecimento de tudo na alegria do reencontro, esta embriaguez de dois
corpos enlaçados. "Fantasmas." disse, imóvel, encostada à parede. Todo o sangue lhe fugiu do coração como corre duma ferida. O homem e a mulher separaram-se: eram
o Tomaz e a Dannot!
"Salve!" cantava o coro "bemvinda seja a noiva!" Dannot pôs as mãos nos olhos e correu para o palco. Antes de entrar, voltou-se e disse: "Logo, tom. logo!"
Ina apoiou-se com as duas mãos à parede que andava à roda. Brandt viu-a então, deu alguns passos, embaraçado, leu qualquer coisa nos seus olhos, quis falar e pronunciou
palavras que não tinham sentido: "É a vida. sê boa, é a vida, sabes?"
Mas sem responder, ela entrou em cena. Um bombeiro recuou assustado, de tal modo tinha um aspecto alucinado. O coração doía-lhe horrivelmente, como se o cortassem;
estava doida de dor e mordia os dedos, pelos quais corriam gotas de sangue. Os joelhos, a tremer, fraquejavam; sentia-os pesados. Murmurou: "Não poderei dançar,
nunca mais!" Mas ouviu a música, o seu motivo. "Não posso dançar!" e ei-la que já estava
nO palco. tendo entrado pelo lado oposto, é verdade, mas dentro do compasso. Em frente, por trás dum pedaço de cenário, o sr. Friedrichs fazia-lhe gestos desesperados
com a partitura.
Ina dançou no casamento da bem amada, depois uma última vez em frente da silenciosa tenda nupcial, e de tal maneira que o esperto dr. Bertram, com o nariz coberto
de gotas de transpiração, disse entusiasmado:
- Palpita-me que isto ainda não é nada; a marota tem muita coisa lá dentro.
Ina precipitou-se da margem para o mar, que era o movimentado amontoado de lonas azues. Zumbiam,lhe os ouvidos, cantavam os violinos. Ficou um minuto imóvel com
os olhos fechados sobre o colchão que a recebeu e pensou vagamente: "Quem me dera nunca mais me levantar daqui!"
Na sala, os cem espectadores de escol aplaudiam. O sucesso não era para Brandt, notou o sr. Pratt, mas para a Raffay.
No dia seguinte à primeira representação, Conradin veio a casa dos Raffay trazer os jornais. E disse:
- És como Byron, princezinha, cresces e tornas-te célebre.
Tinha bem mau aspecto, sem estar embriagado; dava-lhe para contar uma data de histórias inverosímeis.
Ina leu os artigos e teve a impressão de ser sàbiamente dissecada, mas apreciava a doçura do êxito e da ambição realizada. Apenas o crítico do Volksblatt, horrivelmente
reaccionário e amigo íntimo do sr. Forli, ainda ofendido, a arrasava, chamando-lhe "secessionista palavra incompreensível mas extremamente injuriosa, no seu entender.
Também diziam bem da ópera mas com reservas: faltava-lhe força dramática e estilo. Sob o ponto de
vista musical, os bailados eram duma beleza e duma originalidade extraordinárias, no entanto. Ina repeliu os Jornais e disse:
- É verdade. Quando a gente ainda não tem críticas é muito infeliz, mas quando existem, já não tem importância nenhuma, não é verdade Conradin?
- Profunda verdade, alteza, e que se aplica a tudo, na vida, mas sem nenhuma espécie de novidade, princesa. - replicou ele tirando uma flor dum pedaço de papel.
- E uma beleza, parece um nenúfar inclinado sobre a haste, cor de rosa no fundo do cálice e aureolado de tropical encanto.
- Admirável! - exclamou Ina, maravilhada, - Mas onde a arranjaste?
- Oh, uma bagatela. Foi a minha velha amiga, a Rana de Raipur que ma enviou por doze jovens índios.
- Ouve, - disse Ina, com um sorriso comovido confessa que, em troca, deste o teu sobretudo à Rana.
- Já não tens imaginação, princesa. Não. Bem vês que uma flor como esta não me podia vir ter às mãos, senão graças a um romance e se eu pudesse contar-te esse romance.
mas é impossível: pediram-me segredo.
O romance consistia apenas nisto: Conradin fora a Schoenbrunn e, num acesso de audaz loucura, tinha rou bado a flor duma estufa - era preciso fazer qualquer coisa
extraordinária em honra de Ina.
- Esta flor é linda, Conradin, sentir-me-ei feliz olhando a durante horas. Como se chama? Tem um perfume único.
- Não sei. Suponhamos que é um lotus. o lotus, a flor do silêncio e do esquecimento.
- Sim, do esquecimento. - repetiu Ina, suspirando profundamente. - Obrigada, Conradin: tu sabes sempre aquilo de que preciso.
Sim, Ina queria agora continuar o seu caminho, esquecendo Brandt. Sentia que precisava de se desligar dele para não perder a sua alma. Mordia os lábios e fechava
as mãos, mesmo a dormir, até que se distendia nos sonhos. Primeiro tudo foi bem: via ainda o Brandt nas
representações da sua ópera. Ele estendia a mão. e era uma desgraça que aquela mão fosse ainda tão macia. Dizia-lhe algumas palavras quando havia estranhos, guardava
um silêncio embaraçado quando ficavam sós. No princípio, fez algumas fracas tentativas para se aproximar dela, para explicar; depois, meio aliviado e meio perturbado,
deixou correr. Afinal era bom separarem-se assim: na realidade, Irim saíra do seu coração ao mesmo tempo que acabara a ópera e o seu tempo estava outra vez ocupado:
tinha que escrever uma série de canções de amor, chinesas, e o raposinho negava-se. E havia também uma ponta de amargura, no facto de Ina ter obtido mais êxito com
os seus bailados do que ele com a sua ópera .
Os dias da Ina encontravam-se também muito cheios. Tinha cempreocupações: primeiro, o serviço que não era cor de rosa devido à vingança do sr. Forli, depois as exigências
da sua fama nascente, horas no fotógrafo, convites para festas, bailes, exposições, correspondência com os agentes que desejavam a sua estreia no music-hall. À tarde,
trabalhava na vazia sala dos ensaios, em exercícios técnicos principalmente, porque - coisa estranha não tinha ideas para novas criações: pesava sobre tudo uma lassidão
enorme. Às vezes, far-lhe-ia bem chorar, mas não o conseguia.
Outra ansiedade veio ocupá-la muito seriamente: as articulações dos pés perderam a sua finura de gazela, havia um novo músculo que engrossava à medida que trabalhava
mais. Media e tornava a medir o que a perna ganhava em milímetros acima do tornozelo, reflectia e afligia-se. A sua técnica era agora perfeita, as trinta e duas
voltas clássicas, nas pontas, já não representavaam nenhuma dificuldade - excedera a Galiena. Mas isso não era uma razão para ter pernas de elefante, como ela. Dava
maçagens ao pé, voltava-o, tornava-o a virar em todos os sentidos: devia haver qualquer defeito no método.
Consultou o sr. Pratt, o brilhante conhecedor em técnica e em dançarinas famosas. Ele sorriu e disse simplesmente :
- Todas têm o mesmo, é um sinal de vigor muscular e de faculdade adquirida. Tenho em casa moldes em gesso da Tosti, da Almeda. todas têm a perna grossa.
E explicou-lhe a função anatómica do músculo. Ina respondeu, sombria:
-Então é porque dançamos todas mal, fazemos com que todo o peso do corpo seja sustentado por um grupo de músculos que não foi feito para isso. Ò bário Delarès mostrou-me
sapatos de chinesas que caminham sobre o dedo grande. Está decidido: não torno a dançar nas pontas dos pés.
- O quê? Não dançar em pontas? Mas é uma loucura! - exclamou o sr. Pratt. - Mas isso não é apenas a técnica, é um símbolo! Só isso nos pode dar a impressão de que
a bailarina é capaz de voar: uma dançarina que a gente olha sem ter medo que se erga nos ares, de-repente, nunca pode ser uma grande bailarina !
- vou procurar, - replicou ela, teimosa - vou ver se encontro um meio mais profundo, mais autêntico, que dê essa impressão.
Mas, na verdade, o coração pesava-lhe, nada lhe dava vontade de voar.
Falou também deste assunto a Mila Merz, que desatou a rir.
- Alegra-te por teres as barrigas das pernas bem gordas, é bonito, nós todas o desejamos. E agora uma pregunta: porque tens tão má cara ? O que há ? O velho apoquenta-te
muito?
-É revoltante! Como não consegue nada, daqui a pouco, ordena-me que ponha o calção e vá aprender com as principiantes ou então obrigar-me-á a pegar na cauda da Galiena,
como seu pajem. Gostava tanto de me ir embora!
- Ires te embora? Deixares o corpo de baile?
Os olhos da Ina perdiam-se no vácuo como se aí visse o repouso. Como uma criança, disse em tom hesitante :
- Ir-me embora . para sempre.
A mamã olhava para as mãos da filha. Inquietava-a. Desde que ela fizera dez anos, tinha dentro de si aquela silenciosa ansiedade, resignada e desesperada.
Ina recebeu um embrulho: era a partitura manuscrita da Pequena Sereia. Num canto, lia se em letra aguda: "A Irim, em gratidão do que nunca morre". Uma carta acompanhava
o embru lho.
"Está acabado. O amor desapareceu; mesmo que a gente queira sacrificar a vida, nada pode retê-lo."
- Não é possível! - disse ela com um sorriso angustiado.
A carta caiu sobre a mesa, no meio dos restos de comida.
- Que tens ? Sentes-te mal ? - preguntou alguém. Estava tudo negro. rodeavam-na enormes pássaros
pretos, de asas a ranger. Escorregava para o inexistente profundo, libertador .
A mamã pôs lhe uma compressa na testa.
- Estás doente, minha filha ? . Melhorzinha ? Dorme . vê se dormes para esquecer.
Ina pensou: "hoje estou muito cansada, posso matar-me amanhã. Mas como se podem arquitectar semelhantes ideas de quando se têm apenas cinco anos ? A mamã está a
cantar aquela barcarola de que gosto tanto. sou ainda muito pequena . tudo aquilo não Passou dum sonho. Que felicidade a mamã estar sentada junto da sua filhinha
que vai dormir."
Ao acordar, de manhã, Ina sentiu-se muito leve. Ao longe, assobiavam as sereias das fábricas, os móveis estavam nos seus lugares no quarto que, a pouco e pouco,
aclarava numa luz azulada. Então, pela janela que fechou cuidadosamente, entrou um homem. Trazia um trajo preto, meias de seda preta e sapatos, uma ampla capa negra,
uma capa espanhola. Parecia-se com o falecido mestre Javelot, mas não era ele. Ina reconheceu-o
logo: "Notável, como máscara!" pensou. O homem preto agitou delicadamente um pequeno chapéu alto, negro, e disse em voz amável: - "bom dia, desculpe incomodá-la,
mas não tenha receio, nada farei." Ina replicou:
- Como queira, mas eu estou pronta e não tenho medo.
- Oh, uma rapariga tão linda! - disse em tom de pena o homem negro. - Não, está a compreender mal. Não faço nada às pessoas assim tão gentis porque seria mau para
a carreira. Queria apenas apresentar-me, é para a ordem natural das coisas; é preciso que tenha o seu bilhete e que a gente trave conhecimento: é necessário começar
a pensar nisso.
- Peço-lhe que se sente, - convidou graciosamente Ina - estou à sua disposição.
O homem negro sentou-se na beira do leito e sorriu. Ela acha-o simpático e o coração batia-lhe muito lento e fracamente. Em segredo, temia um pouco o momento em
que o homem lhe mostraria as mãos que, até aí, escondera sob a capa.
Ele explicou:
- Torno a dizer-lhe que não tenha medo, minha linda senhora, hoje venho vê-la de luvas. É uma visita de cerimónia; queria apenas trazer-lhe o seu bilhete: aqui o
tem.
Ina ficou menos opressa. Realmente tinha luvas, umas luvas brilhantes, extraordinariamente finas e compridas, que, num gesto elegante, colocaram na sua frente um
pequeno cartão vermelho, parecendo-se com uma placa de vestiário e tendo o número 40.
- Muito obrigada. - disse ela.
O homem de negro, levantando-se correctamente, declarou:
- Pronto ! Hoje alcancei o fim da minha visita. Se não é pedir muito a uma rapariga tão linda, peço-lhe respeitosamente para se lembrar de mim muitas vezes. Agora
nada mais lhe pode acontecer, tudo está em ordem, tem o seu bilhete. Se a vida a colocar numa situação difícil, pense logo: "Tenho o meu bilhete" e
isso tranqúilizá-la-á: é uma boa perspectiva para o futuro. Permita-me agora que me retire . provisoriamente, mi nha linda senhora, provisoriamente .
- Agradeço-lhe imenso.-disse Ina.
Ficou perturbada porque alguém, no quarto, parecia estar à escuta. Disseram em voz baixa para que ela não ouvisse: "Quarenta é muito. Aborrecida agitou a cabeça
dum lado para o outro e, quando ele se aproximou, elevaram-se, assobiando, pequeninas nuvens de vapor.
-Dói-lhe a cabeça?-preguntou o homem negro.- com licença, dói-lhe aqui? E ali, e ali? Bem, bem, isto vai melhor.
Pôs lhe a mão na testa: através das luvas sentiu vir um frio glacial, horrível, que a penetrou até ao cérebro.
- Mamã! - gritou Ina, ficando hirta sob uma impressão
de terror - mamã, não me deixes, fica junto de mim.
- Sossega, minha pequenina, eu estou aqui.- disse a mamã, cujo rosto, muito pálido, estava perto dos olhos da filha.
- Até logo. - disse o homem negro, despedindo-se. Pôs o pequeno chapéu e saiu pela janela. - Desculpe, mas é bom começar a pensar nisso. Até breve.
- Anda, - disse o Fernando - entrega-me o bilhete, eu guardo-o e dar-to ei quando chegar a ocasião. Chamar te-ei. Entretanto, vou a pé pelos campos.
- Ah! - gemeu Ina. - Então tenho que ir de carro ? Não posso acompanhar-te através os campos?
- Não. - respondeu Fernando - Olhas demasiado para o espelho e só reparas em ti.
Ina lançou um olhar ao espelho que estava muito iluminado e era côncavo. Viu nele um rosto novo e alterado: teve medo. "Nunca mais tornarei a ser como dantes porque
vi o homem da capa negra. Agora, quando me pintar, terei que fazer uma máscara".
- Onde estás, irmãzinha ? - gritou Fernando, ao longe.-Não te percas no caminho. Espero-te na colina, perto dos vidoeiros.
- Mudar o saco do gelo de quarto em quarto de
hora, - disse o dr. Witram, tornando a meter o relógio na algibeira. De duas em duas horas, envolvimentos frios. O perigo duma febre cerebral não está afastado.
Ao cabo de muitas semanas emergiu das profundezas e recomeçou a viver. Fê-lo com moderação, semi-exausta e semi acordada. Agora respirava muitas vezes profundamente
e punha a mão no coração que batia tão fraca e prudentemente. Esteve muito tempo sem poder andar. O barão Delarès veio buscá-la, de trem, para a levar à floresta.
Via circular a primavera entre os troncos das árvores: um jovem nu, esbelto e branco, coroado de verde-claro, entoando à terra ousados cantos de amor.
Ina sorria: era bom viver. Por todos os lados não havia senão coisas boas: ar, vento, nuvens, regatos de seda de prata no vale, cheiro a terra, escuros sulcos nas
vinhas, anémonas em flor e pequenas torrentes da montanha cuja canção causava extraordinária felicidade. Havia apenas um ponto particular que era doloroso, embora
não fosse terrivel. Sorria com os lábios mudados, mais firmes. E murmurava: "Cada pessoa tem o seu bilhete na algibeira.
Foram precisas muitas semanas para readquirir alguma força física e, no momento em que, agarrada à cama, ela fazia os primeiros exercícios como quando era criança,
produziram-se dois acontecimentos inesperados.
A morte, que tão cerimoniosamente a visitara e depois se fora embora, veio buscar a mamã. Deitou se com toda a serenidade, na cama, sem se queixar, lá ficou pacientemente
durante seis dias e, resignada, com as mãos juntas, morreu no sétimo. O sr. Raffay não estava em casa. Ina, que se encontrava à sua cabeceira, viu-a encolher-se,
exalar um profundo suspiro e cessar de respirar. Parecia tão feliz, depois de morta! Ocupava no leito um lugar muito maior do que reclamara na vida. Ina estava contente,
não chorou. Ficou ali acariciando a mão da mãe que ia arrefecendo pouco a pouco, e pensava na sonata em lá menor, de Schubert, nos elfos, no rapazinho das botas
de sete léguas e num céu de conto de fadas com inúmeras estrelas brilhantes que a mamã desdobrara sobre a sua filha.
Apenas a mamã se enterrou, chegou um empregado da intendência dos teatros: trazia uma carta anunciando que ela fora despedida. Eram citados os parágrafos tal e tal
que depois de uma interrupção de serviço de determinado número de semanas, autorizava ao Intendente aquela resolução. O sr. Forli realizava o seu desejo e a Galiena
estava vingada. O sr. Pratt alcunhou o caso de escandaloso, na sua crónica: "Nos bastidores". Mas Ina sorriu, quási satisfeita. Durante a febre, o chão em declive
da sala de aula inclinara se tanta vez de modo tão estranho, que ela escorregava desesperadamente sem se poder agarrar, para o desconhecido, onde uma determinada
desgraça a esperava. Não sem afectação, disse a Conradin:
- É melhor assim!
As longas horas da convalescença haviam-lhe inspirado novas ideas extraordinárias sobre a dança. Estava agora cheia de ambição. O que desejava agora dançar nunca
se adaptaria a um bailado dirigido pelo sr. Forli; talvez o próprio sr, Javelot tivesse recuado receoso. Mas Conradin, com quem ia de manhã à vazia sala da escola
paterna, para lá criar novas danças, as suas danças, aprovava, enterrado, por trás do piano, Ele atravessava um período brilhante e, às vezes, tinha mesmo uma flor
na botoeira. Estava muito ocupado, tornara se indispensável, tendo que procurar música para Ina, nas obras de todas as épocas. Sem a bailarina saber, também metia
alguma composição sua, umas árias ternas e bizarras que os gestos dela lhe inspiravam.
Iam outra vez, juntos, a Schcenbrunn. Franzindo as belas sobrancelhas, Ina observava, com perscrutador olhar, os pavões, os flamingos cor de rosa ou os galos anões
que dançavam em redor das fêmeas. O mundo estava cheio de cores e movimentos e o Conradin era hábil. No museu, mostrava-lhe o obelisco egípcio, coberto de figuras
humanas, de ombros largos, ancas estreitas e andar especial. Isto tornava Ina pensativa, inspirava-lhe o desejo de viagens longínquas.
-Devias levar-me à tua Rana de Raipur. -suspirava ela, sorrindo.
- Pois não: Vossa Alteza manda. - replicava ele.
E levavam às salas escuras e pacatas da biblioteca universitária. Durante semanas, foi Ina perseguida pela arte indú e chinesa. Abriram se novas portas.
Em maio, ela anunciou um recital de bailados e a cidade ficou espantada: não sabiam que pensar dum programa tão extraordinário, tal como nunca se vira desde os espectáculos
da Isadora Duncan, objecto de tantas zombarias. No entanto, os bilhetes venderam se. O barão alugara a sala. Ina cortou ela própria os seus vestidos, que fráukin
Zwillingsbauer cosia, vermelha de comoção. O sr. Pratt fazia em seu redor um estrondoso reclame. O sr. Rafay, rejuvenescido, a-pesar-do luto, desde a morte da mamã,
oferecia lhe, no Café, numerosos cocktails. Mas não era isso que convencia o sr. Pratt.
Ina dançou dez números. O primeiro bailado era quási uma marcha solene e representava uma cena de sacrifício. Cada um dos gestos, muito simples, era novo, belo,
original - donde todo o vestígio de rotina desaparecera. Era o mais difícil. Erguer uma ânfora, tirar uma coroa da cabeça, como se fosse a primeira vez, representava
grande dificuldade. O público estava calado, estupefacto. O último número era uma valsa, um turbilhão de alegria e ritmo cadenciado. O público ficou delirante. Havia
ali um progresso considerável, uma desconhecida força de expressão.
Muitos espectadores estavam como doidos: moços pintores, escultores e escritores, mostravam tumultuoso entusiasmo. O sr. Pratt dizia a toda a gente no auge do entusiasmo:
"E nem uma vez dançou em pontas! Só o génio pode permitir isto!" O barão Delarès conversava com o seu amigo ministro, como se este sarau nada o interessasse. No
fundo da sala, a Zwillingsbauer chorava, agarrada ao sr. Raffay que estava perplexo, não compreendendo tamanho triunfo e tendo horror àquele estilo. A um canto,
assobiavam : ele concordava com estes.
Uma parte da crítica falava da renascença da dança, a outra mostrava-se indignada. Rebentaram disputas.
Nos Jornais, apareceram caricaturas. Em todos os chás, na semana seguinte, não se falava senão na Ina Raffay. Deu um segundo sarau. Conradin, completamente doido,
comprou com o ordenado, uns sapatos de polimento. Depois caiu o silêncio, a pouco e pouco. Os Apressados que, depois do êxito da Pequena Sereia se tinham apressado
tanto em querer contratá-la, permaneciam agora calados: aquela arte não era feita para o music hal.
Foi nesta época que Walter Meinart, o jovem artista, apareceu pela primeira vez na vida de Ina. Enfiara um solene par de luvas amarelas, o que não estava nada nos
seus hábitos. Vinha da parte da "Sociedade dos Artistas" pedir-lhe para dançar numa festa que tencionavam organizar nas salas da sua exposição do estio. Tinha, no
rosto infantil, uns olhos bons, muito claros, de cão; sentado, parecia alto, mas de pé mostrava as pernas curtas e grotescas.
- Dançarei, da melhor boa vontade, os meus novos bailados - disse Ina, em ar pensativo, depois de ter sorrido - mas para isso preciso de duas máscaras, uma alegre
e outra triste. Pode fazer-mas?
- Faço. - respondeu ele, tornando-se subitamente sério. Uma triste e outra alegre. Bem. Mas para que precisa disso? Parece-me uma coisa lúgubre para si, Ina Raffay.
Levantou-se maquinalmente e pôs-se em frente do espelho. Pela primeira vez contemplou os seus olhos perspicazes, o rosto novo, mudado, retraído e mais frio. Não
respondeu a Walter Meinart mas, em sinal de protesto, fechou a boca, apertando os lábios firmes e endurecidos.
A "Sociedade dos Artistas fizera uns cartazes em Amarelo e azul, sobre os quais dançava Ina indicada
por alguns traços vagos. Bandeiras dum verde acinzentado esvoaçavam por cima da porta que conduzia às barracas amarelas e brancas onde estava patente a exposição.
Isto era dois dias antes da abertura. Operários, a transpirar, punham pregos e martelavam com frenesi. No pavilhão das artes industriais, um professor dispunha ele
próprio um velário de cor sob o tecto de vidro, donde caía sobre todas as salas uma luz uniformemente branca. Todos os quadros estavam já pendurados, sobre caixotes
vazios erguiam-se braços de mármore e experimentava-se a luz eléctrica. Por toda a parte, a cor indicava mocidade e amor à luta. Do pequeno jardim traçado com arte
subiam acordes musicais: Tomaz Brandt dirigia o seu "Concerto nocturno para doze instrumentos de corda". No terraço do Café vianvse abertas as bizarras sombrinhas,
de vivas cores, e o teatro ao ar livre estava pronto. Paredes brancas, com ornatos a preto e oiro, separavam o palco duma cortina de sombrios teixos. Walter Meinart
lavava as mãos num velho balde. Ina Raffay já podia vir.
Ainda estava de luto e o vestido preto mais fazia realçar o rosto claro e pálido, onde a boca tomava, de dia para dia, mais firmes contornos.
- bom dia, Walt, - disse ela - desculpe-me por vir um pouco atrasada. Queria trazer o pianista que costuma acompanhar-me, Conradin Rahl, mas o velho maluco não apareceu.
- Isso não tem nenhuma importância, nenhuma.- respondeu Walt, olhando-a bem de frente, com ar feliz.
- É tão bom esperar quando temos o coração a bater, a bater! De resto, ainda estou em fato de trabalho - e com as pontas dos dedos erguia a bata pintalgada de tinta.
- Brandt já começou a ensaiar o seu "Nocturno". Temos tempo para ver os quadros.
Por toda a parte cheirava a tinta, verniz, terebintina, argamassa húmida e macieira nova.
- Que bela atmosfera, an? Cheira mesmo a inauguração! - exclamou ela.
Walter, baixando os olhos, preguntou, embaraçado:
Ina, contraria-a que o Tomaz Brandt dirija a orquestra durante os seus bailados?
Não, porquê? - replicou friamente. - É um exce lente maestro.
Walt ergueu os claros olhos de cão para a fronte da imperatriz e começou a rir. Não podia deixar de proceder desta maneira: tudo nele cantava o amor.
- Sou eu, isto? - preguntou Ina, detendo-se em face da água forte. - E ali também? E acolá. Uma parede inteira só comigo - é maravilhoso! Sim, muitas Irins! Fiz
grandes progressos, desde então. Mas estes desenhos são bons, não é verdade? Têm qualquer coisa de japonês -de quem são?
-Dum pobre idiota, dum incapaz.-respondeu Walt, com ar desolado.- Um rapaz que mereceria que o pusessem ao Lido dos piores caudilhos. Está arrependido. chama-se
Walter Meinart.
- Oh! E não me dizia nada? Estudou-me e fez estes desenhos todos em segredo!
Olhou-o nos olhos e concluiu:
- Acho-o falso. pérfido! E desataram ambos a rir.
- Brandt! - gritou ele para o jardim. - A menina Raffay pode começar o ensaio?
Saindo de trás dos arbustos, Tomaz Brandt subiu a escada com os braços caídos e ar embaraçado. Inclinou-se, contrafeito, em face de Ina, muito reservado, sempre
com as mãos tombadas.
Ela estendeu-lhe os dedos e disse tranquilamente: -bom dia, Brandt. Agrada-me que tornemos a trabalhar juntos. Já viste a música do bailado?
- Já. - respondeu ele, muito aliviado. - É uma música encantadora, onde a descobriste? É do Rahl, não é? Há uma ópera dele, que ouvi em pequeno, foi tirada de lá?
É dum precursor: todos os franceses modernos estão ali dentro. É pena que tenha morrido tão cedo!
-Mas não morreu, está bem vivo! Queria trazê-lo Para que ouvisse a sua música mas não apareceu. De resto, já o viste, é o meu velho amigo Conradin: Conradin Rahl.
Estou radiante por a sua composição te
agradar; podemos talvez fazer qualquer coisa pelo pobre velho: devo lhe muito. Vem, podemos ir agora ler a música. Eu indicarei apenas; só no dia próprio dançarei.
"Irím?" - preguntava a si próprio um Brandt estupefacto emquanto a seguia pelo mosaico branco e preto,
- Conhecia bem a linha do pescoço, o andar, o leve ondular das ancas, mas já não era a humilde Irim, esta era mais alta, hirta, diferente - duma beleza completamente
nova. Devia ser delicioso partir as invisíveis muralhas de vidro que se erguiam em seu redor.
- Aqui estão as máscaras. - disse Walt Meinart, do palco.
Lá estava sobre as pequenas pernas de ouriço, com as duas máscaras na mão: uma a sorrir, outra a chorar. Já caía a noite quando Ina entrou em casa. Perfumada, a
poeira do verão subia para o céu doirado e Ina sentia um indefinido mal estar que provinha dos jardins, das janelas donde se evolava música, dos trens onde se divisavam
pares. Os terraços dos Cafés trasbordavam para os passeios, cheios de sussurro em volta dos primeiros candeeiros acesos, iluminando no tom vivo dos abat jours os
animados rostos. A casa estava silenciosa, o sr. Raffay saira e a Joszika desaparecera.
Ina abriu a porta do seu quarto, que rangeu, e fechou-a de-pressa, acolhida por desagradável aroma. Depois vagueou pelos pequenos compartimentos que pareciam grandes
e vazios e cujo silêncio era impressionante desde o falecimento da mamã. Passara despercebida, calma e apagada emquanto vivera: agora faltava em toda a parte. Realmente
já não se podia permanecer ali.
E depois, havia aquelas duas cartas no seu guarda-vestidos. Uma, a do barão Delarès, a-pesar-de todas as reticências, podia passar por um pedido de casamento; a
outra, sob um sobrescrito cinzento, continha uma oferta do novo cabaret de Munique, a Lanterna,
Ina sentou-se à janela, apoiou a fatigada cabeça nas mãos e, pela centésima vez, pesou a situação.
Uma casa escondida entre lilazes, tardes passadas em frente do fogão a ler ou a ver gravuras. Um mordomo
sóbrio e severo. Passeios de carruagem ao lado dum velho marido, tirando pastilhas duma antiga caixa de rapé e fazendo-lhe respirar muitas vezes o perfumado hálito:
Viagens, luxo, um grande leito onde dormiria um sono sem sonhos . Porque não ?
O cabaret: uma nova idea, não aprofundada ainda, de-certo branco e preto, como todas as instalações modernas. Calor, vinho, embriaguez, fumo, pessoas a transpirar,
arte, vibrações de guitarra, ávidas mãos a estender-se, beijos dados com frenesi e recebidos com frieza. queimar-se dançando como uma labareda. Porque não ?
No fundo pouco importa o caminho que se escolhe, visto que se tem o bilhete na algibeira .
"Onde estás, Conradin ? Preciso do teu conselho", pensou Ina, impaciente, voltando a vaguear pelo quarto. "Quando se precisa dele é quando desaparece! Porque não
veio ouvir a sua música ? É bonita, o Brandt estava encantado, o Brandt."
Deteve se a olhar para o espelho: aqui estava o seu novo rosto com as sobrancelhas direitas e a boca de Brandt. até dava vontade de rir! Outrora houve quem quisesse
morrer por causa daquele senhor de barba ponteaguda, fontes a clarear, horríveis berloques na corrente e inúmeras paixões. Naquele tempo era-se rico, hoje, o sangue
bate tão devagarinho.
Ina voltou à janela e olhou para o largo que a sombra ia invadindo. "Tenho que decidir - murmurou - o barão ou o cabaret. Tanto faz. é a vida, tudo é igual. Só no
trabalho sentimos a nossa personalidade e a ambição aquece-nos um pouco. Amanhã hei-de trabalhar mais o bailado das duas máscaras. Onde está o Conradin? Sinto-me
horrivelmente só!"
As estrelas, cada vez mais numerosas, suspendiam-se no céu escuro - eram as mesmas que ela via, na sua infância, por cima da colina do castelo de Amrun.
Em baixo, no largo escuro, uma sombra deslizou encostada às paredes; à luz do candeeiro ela reconheceu aquele andar arrastado.
- Conradin! -chamou sem erguer a voz.-Onde estavas ? Espera, que eu desço.
Conradin estremeceu e parou, espantado. Ina estava já ao pé dele.
- Donde vens? Porque não apareceste no ensaio? Onde estiveste toda a semana ? - preguntou em tom severo.
Ele não respondeu; contentou-se em erguer para ela os olhos perturbados e em pôr um pouco de ordem no desordenado vestuário. Estava desconcertado e já não trazia
os sapatos de polimento.
- Vamos, Conradin. - tornou ela em voz baixa, como a mamã costumava fazer. e só então compreendeu quanta bondade encerravam aquelas palavras - Sobe comigo; porque
andas aqui a rondar pelo largo, como um espectro?
Conradin deixou ouvir uma voz gasta, partida, que pronunciava:
- Sua alteza tem a arte de encontrar em todas as situações a expressão mais bonita, e mais apropriada: um espectro. O espectro do compositor Rahl, o triste, o indizível
resto dum génio aviltado, alcoólico, anda, de noite, pelas ruas, à procura do eu perdido. sem mim. compreendes princezinha?
- Compreendo. - respondeu Ina que sentia uma compaixão dolorosa e familiar a esmagá-la, como se fosse uma riqueza para o seu coração exausto.- Mas tens a tua música,
é nela que reside a tua personalidade. E é linda. O Brandt ficou entusiasmado. "Isto é do célebre Rahl", disse logo. Conhece a tua ópera. Porque não vieste?
- Ah, ah! O glorioso Tomaz Brandt e o célebre Rahl! Que lindo espectáculo seria, princesa, ver-nos aos dois, um ao lado do outro! Estou mesmo com cara que se mostre
em público! O célebre Rahl! Em geral, não me chamam senão pelo primeiro nome, como aos cães, mas sou o célebre Rahl! Aquilo que o sr. Brandt e os colegas compõem
hoje, já foi idea minha há trinta anos. Mas hoje estou calado. Tenho uma fraqueza: os génios são assim - uns, as mulheres, outros, a bebida. "Quere saber como me
chamo? Sou o célebre Rahl!"
- Está quieto, cala-te. Olha, dá-me as tuas mãos.
Estás de todo, hoje! Devias ter vindo ouvir a tua música, far-te-ia bem,
- Imenso bem, princesa. Mas quem te diz que não a ouvi? Eu estava fora, encostado ao muro do jardim, na rua, no lugar que compete aos espectros embriagados, e ouvi
tudo. Os violinos e as flautas de acentos profundos e a voz de oiro das harpas e depois a grande ária em si bemol maior. tornei a ouvi-la ao cabo de trinta anos.
Aquilo iluminou brilhantemente o meu caminho, brilhantemente, asseguro-te; o que eu era e o que sou hoje: um homem que perdeu o seu eu. Agora vou-me embora, princesa.
- Ainda um momento, Conradin, - disse Ina em voz ansiosa - preciso de ti. Queria pedir-te um conselho, não sei que resolver, sem ti sinto-me só. Que devo fazer?
Casar com o barão ou aceitar um contracto para um cabaret?
Conradin respondeu molemente:
- Faz o que o coração te pedir.
- O meu coração está surdo-mudo. Não ouve nada, não diz nada.
- Pobre coração! - replicou ele, ironicamente.-Hoje, o teu coração não me interessa. Faz o que quiseres mas não me fales de ti, hoje, minha filha, hoje não. Não
ouves a voz que grita dentro de mim: eu! eu! eu! Encontrei-me a mim próprio, acabou se, agora vou-me embora. Desejo-lhe uma noite feliz, alteza.
Retirou as mãos frias e trémulas das de Ina e olhou-a, desvairado.
- Está frio, não achas ? Estou gelado. Lembras-te, Ina? Quando eras pequena, deixavas que eu aquecesse as mãos nos teus cabelos.
- E ainda deixo, Conradin.
Pôs lhe a mão na nuca e preguntou-lhe baixinho:
- Ainda te lembras do balão vermelho ?
- Oh, muito bem. Fechando os olhos, torno a vê-lo.
Fechou os e um ponto sombrio desapareceu no vasto céu azul. Sentiu qualquer coisa suave. Pareceu-lhe que Conradin lhe beijou os cabelos.
- Agora, é certo. Boa noite madona. Reza pelo teu pobre escravo Conradin.
O Arlequim sai da cortina de arbustos; uma luz branca arranca à sombra a sua frágil silhueta e a música move-lhe os membros como os dum fantoche. As mãos, que se
juntam nas costas, escondem qualquer coisa. Sob a capa de seda negra aparece uma máscara. O vazio, a indiferença do rosto pintado de branco são tão completos que
os espectadores assustam-se. Um arrepio percorre Arlequim; rígido, solta as mãos e volta-se: e então a máscara parece viva e tem um sorriso pérfido. Arlequim inicia
uma dança grotesca, fica à escuta, pára, dá piruetas; o seu rosto branco tem um olhar de pungente tristeza. "Prodigioso ! - exclama Walt Meinart - Pintei duas máscaras
mas ela dança com três."
Eis de novo a indiferença, o rosto morto, vazio, o verdadeiro. Ao lado dele, as máscaras estão vivas. Mas por detrás do maciço de arbustos eleva-se uma melodia e
o rosto anima-se. Um murmúrio corre entre os espectadores que ainda não compreendem. O rosto torna-se, de minuto para minuto, mais vivo; é um belo rosto, de testa
nobre com olhos expressivos. A dança traz Arlequim para o palco; sorri, eleva a máscara cujo sorriso, ao pé do seu, não passa duma careta. Chovem os acordes em si
menor, Arlequim está cheio de desejos, aflige-se mas a dor não é visível senão nos cantos da boca e no movimento das sobrancelhas: a devoradora tristeza da máscara,
nada é a seu lado.
O bailado torna-se mais ardente, mais rápido, o esbelto corpo rodopia e rostos surgem a cada volta: dez, cem rostos que a ribalta ilumina. As máscaras andam pelo
ar, cobrem o rosto, depois caem. Por trás da lúgubre máscara, Arlequim vive e ri-se, por trás da máscara
está aflito e desolado. Salta, levado pela música, é abafado pelo desespero, esconde o rosto entre os braços cruzados e, num gesto pleno de arte, as mãos seguram
as duas máscaras de cada lado do pescoço inclinado, têm um olhar fixo, morto, o pescoço está vivo, atravessado de soluços, cheio de expressão. Arlequim fica imóvel
e ergue lentamente o rosto que não chora: máscara vazia, branca, impassível, aterradora, a olhar entre as outras duas.
Instante de silêncio profundo; o céu de verão estende-se, estrelado e mudo, ouvem-se ramalhar as árvores, a fonte da pérgola murmura como um sonho e há respirações
ofegantes. depois rebentam os aplausos.
Por trás dos arbustos, Tomaz Brandt, comovido, queixava se:
- Estás tão mudada, Ina, que até se tem medo. outra mulher, completamente diversa. não tão deliciosa como a Irim, mas infinitamente mais perigosa, sabes?
- Sim, cresci alguns centímetros, depois da minha doença, é o que acontece às crianças. É extraordinário que ainda esteja a crescer. - respondeu ela, não querendo
compreender. - Parece-me que estou tão velha como uma tartaruga.
- E tão couraçada ?
- Tão couraçada, sim.
Não olhou para ele; examinava com ar trocista e terno os olhos vazios da máscara.
- Agora desejaria despir-me. Onde está o Meinart ? É ele que tem a chave do meu camarim.
- O Meinart desenha o cartaz e faz as águas-fortes, o Meinart traça o croquis do trajo, o Meinart prepara as máscaras, o Meinart tem a chave. é uma personagem múltipla
esse Meinart, não achas?
- Parece-me que sim. - respondeu ela, secamente. -Quais são os teus projectos para o verão?
- Oh. isto e mais aquilo. E tu. vais para a tua Casinha de campo?
Surgiu uma imagem que logo se desvaneceu. passarinhos riscando um céu azul cheio de sol. perfume de Pinheiros e morangos, prados no flanco de sedosas colinas.
feliz entorpecimento da noite. O dia de felicidade, luz, estonteamento - o dia que nunca deixará de ser feliz.
- Não. para lá não. A casa é dela. vou divorciar-me, não sabias?
- Ah, sim ? - preguntou com um sorriso cortês.- E desta vez é a valer?
- É. Torno a casar daqui a pouco. com a Dannot, Ela. vamos ter um filho.
- Um filho, que alegria! Desejo-te todas as felicidades, Tomaz.
A ele, batia-lhe o coração sob o peitilho engomado.
- Fui um imbecil, Ina, um imbecil! - exclamou em voz baixa e ardente. - Hoje reconheço-o. Desde que te tornei a ver que o compreendo. Hoje estou outra vez de cabeça
perdida e tu, Ina, estás a representar?
Ela deixou simplesmente cair as mãos num gesto lasso, admirado. Não a compreendeu, mas puxando-a para si, colou a sua boca à dela: estava fria e inerte, era a boca
morta, insensível, de Arlequim, que não deu nem recebeu nada, que nem mesmo se defendeu.
- Agora vou despir-me.-disse, quando ele se afastou. E deixou-o entre os arbustos. Caminhando, sentiu
que os braços e as coxas lhe doíam e os pés estavam fatigados mas contentes depois do bailado.
Walt já estava junto do camarim. Não disse uma palavra ; no entanto, quando abriu a porta -ela era conhecedora de expressões - viu que o queixo lhe tremia. Deixou-se
cair numa cadeira. Walt continuava ali, com as pernas tortas, limpando a fechadura com a manga, num gesto desastrado e sem significação.
- Então que há, Walt ? - preguntou num tom em que a zombaria se aliava à bondade.
Já uma vez se lhe lançara aos pés, com o rosto encostado ao seu peito, soluçando, balbuciando, chorando, rindo endoidecido por uma torrente de paixão.
Acariciou-lhe meigamente o cabelo que era loiro e tépido. Como um animalzinho, ele escondeu a cabeça no seio dela.
- Então que é isso, Walt ?
Gemeu sons incoerentes sobre o trajo branco e preto do Arlequim: "Amor. amor. Ina ouvia-o e no seu coração surgia um pouco de terna compaixão. Emquanto ele sonhava
com uma felicidade infinita, ela pensava : "Mas então dizem todos a mesma coisa ?"
- vou ficar noiva amanhã, sabes? -murmurou com ar ausente. - Dá-me tempo para reflectir. Nada me de têm, mas nada me chama para ti.
Numa suprema espectativa, ficou à escuta da sua voz interior, hesitando ainda. Depois, repetiu tranquilamente :
- Não; nada me impele.
- Esperarei. - disse ele, erguendo-se.
Era comovedoramente cómico com os seus claros olhos de cão e as manchas brancas nos joelhos das calças pretas.
- Deixa-me, Ina. Só uma vez, sim ?
E o seu queixo tornou a tremer, emquanto aproximava a boca da de Inês. Ela recuou levemente e disse:
- Mas estou pintada.
- Então nos ombros. - murmurou. - São tãomacias, estas duas meninas vestidas de seda que vejo sempre junto de mim, noite e dia. Posso dar-lhe um beijo, me nina espádua ?
Ina não conteve o riso, e através do tecido penetrou até ela um calor que nada tinha de desagradável. E pensou: "Será possível a gente entregar-se sem amor?"
- Vai-te embora, anda. Estou cansada, quero despir-me.
Quando ela saiu, o céu estendia lá por cima a sua seda verde-pálida. A fonte da pérgola cantarolava baixinho e em frente da porta as bandeiras flutuavam como velas
pandas. Esperava-a uma carruagem; o cocheiro e os cavalos, de cabeça baixa, dormitavam.
O trintanário aproximou-se e disse, abrindo a porta:
- O sr. barão ordenou-nos que esperássemos a menina e que a levássemos a casa. E aqui está uma carta.
O carro começou a andar e Ina abriu a carta. "Estou à espera, tinham lá escrito. Deitou para trás a cabeça estonteada. O céu aclarava. Todas as estrelas haviam
desaparecido. No largo, em frente de casa, sentiu frio. Ina olhou em redor, com a impressão de que Conradin a chamara, mas tudo estava deserto; os candeeiros iluminavam
fracamente a noite cinzenta.
A casa era mesquinha, pequena, os móveis tinham as caras que vira na sua infância. Foi à cozinha e deixou correr água sobre as mãos fatigadas que tantos lábios haviam
tocado. Então, uma porta estalou e ela estremeceu, reconhecendo logo o cheiro enjoativo do quarto da criada. Não se moveu e viu o sr. Rafay, deslizando em camisa
de dormir para o seu quarto. As pernas nuas apresentavam um ar triste e o bigode estava tombado. Ina sentiu uma náusea e ao ouvir como ele se instalava na cama,
pensou: "Dorme na cama onde a mamã morreu!" Deixou correr mais água sobre as mãos e foi sentar-se no seu quarto, vestida e hirta como se fosse uma visita. Nada se
mexia. Depois, de madrugada, elevou-se a primeira chamada de pássaro, uma vozinha doce de comovente beleza, pipilando entre os tetos, as chaminés e as paredes que
enterravam no asfalto as suas raízes de pedras sem vida. Mais intensamente do que nunca, Ina sentiu no leve canto, a eternidade e uma consolação. Sempre há pássaros
a esvoaçar pelo céu, sempre florestas erguendo-se sobre longínquos cimos, sempre fontes a tagarelar sobre o musgo, e sempre os vidoeiros ondulantes, inclinando-se
para o chão.
Quando, no dia seguinte, Ina entrou em casa do barão Delarès, uma coisa escura, saindo dum canto, rompeu em gritos de alegria, saltou sobre ela emquanto uma língua
quente lhe lambia as mãos.
- O Turco! - exclamou, admirada por estar a chorar de alegria. -Turco, meu bom cão, donde vens? Reconheces-me? Então eu estou na mesma?
Pôs-lhe as patas nos ombros e fitou-a com olhos claros e suplicantes. que se pareciam com os de Walt Meinart.
- Ele pertence-lhe, Inês,- disse o barão -é o bizarro presente que o barão Fernando deseja dar-lhe.
- O Fernando ? A mim ? Ele está então em Viena?
- preguntou, invadida por profunda e inexplicável alegria.
- Não. Adora o mistério. Não sei nem me interessa saber onde está agora. Foi o porteiro que apareceu com o cão e um bilhete, que dizia: "Chegou o momento em que
este cão deve ser dado à Ina". Fórmula surpreendente, não acha ?
- Sim . - replicou Ina, absorta. - Que sabe ele de mim ? E, no entanto, encontra sempre o que me convém. Já me deu uma prenda. uma vez.
- Deixemos agora o cão. Também eu desejaria oferecer-lhe uma coisa . sabe . a pérola cinzenta que deve usar depois de casada.
- Sim . - replicou ela, enterrando as mãos hesitantes no quente pêlo do Turco.
Esperava, a ver se o que viesse agora a acontecer, lhe indicaria o caminho.
- Não me ficava bem nem lhe agradaria se eu lhe fizesse uma declaração de amor. Mas dir-lhe-ei isto, Inês: desde que a vi pela primeira vez - e não passava duma
criança - a vida não me parece tão destituída de senso e de valor como até então. É a criatura mais preciosa que encontrei, e tive a felicidade de a ver sempre,
de longe, desenvolvendo se duma forma verdadeiramente magnífica. Ninguém no mundo saberia estimá-la tanto como eu e ninguém deseja tratá-la melhor, acarinhá-la,
satisfazer todos os seus desejos e preservar a sua maravilhosa personalidade.
- Sim, - interrompeu Ina, em voz baixa - sei que tem olhos e mãos de coleccionador.
- Não é só isso: sou um Delarès. Ignora que os Delarès procuram sempre o seu próprio sangue? No meio dos outros, sentimo-nos estranhos, originais, fantásticos seres,
aventureiros sem lar. Temos sempre aspirações e desejos, não é verdade, Inês? E tu, que és com a tua testa e os teus olhos, a mais autêntica Delarès que jamais vi,
nenhum outro homem pode compreender-te melhor do que eu. e falo de compreensão para não falar de amor.
Ina sentiu se fraca e sem vontade. Vapores perfumados e soporíferos evolavam-se dum grotesco deus chinês, de porcelana. "Alma gémea, irmãzinha, agora
tenho que me ir embora", dissera uma vez o Fernando via-lhe o rosto de vencedor pálido e doloroso.
- E se. se eu vivesse consigo, podia continuar a dançar ? - preguntou.
- Publicamente, não; apenas para mim. Será linda e dançará para mim, Inês, tudo para mim.
Estendeu-se para ela a mão requintada e amarela dos Delarès: pele encarquilhada, veias azues e salientes; a mão dum velho febril.
- Não! - gritou com um gesto de fuga e defesa. O cão pôs-se em pé e lançou-se ao barão, mostrando os dentes.
Ele sentou-se, hirto e calmo. Sorria mas tremiam-lhe os dedos.
- Que tem, Inês ? - preguntou num tom quási zombeteiro.
- Estou nervosa.-respondeu, dominando se.-Estou muito cansada e extremamente ennervada. Desde ontem à noite que o Conradin me inquieta; oiço vozes e a do Fernando
também. Não sossego, queria ir a casa do Conradin. Preciso absolutamente de lhe preguntar uma coisa .
Ina não mentia, atravessara-a um relâmpago: Conradin escrevera ao Fernando. E também ele sabia qual o caminho que ela ia seguir e por isso lhe mandara o Turco.
- Ainda não me respondeu, Inês, e há muito tempo que estou à espera. Pois não sabe o que quere ?
- Não, não sei. Parece-me que vou fechar todas as portas atrás de mim.
Murmurou esta resposta e olhou com ar suplicante o barão que escondia os olhos sob as pesadas pálpebras e que disse, cortês:
- Neste momento está inquieta. Quere ir na carruagem a casa do Conradin ? Mas volte, Inês, volte.
O carro estava à porta. O Turco deitou-se aos pés da Ina e ergueu para ela um olhar implorativo. "Meu bom cão, meu querido Turco, que vamos nós fazer?" preguntou
ela quási a chorar. Mas o Turco estava igualmente perplexo. A carruagem ia de-vagar.
Diante da casa habitada pelo Conradin estavam
pessoas silenciosas, de cabeça descoberta, que formavam alas para Ina passar, exactamente como se a esperassem.
- Entre, Disse uma das mulheres, abrindo a porta que dava acesso para a escada das galinhas:
- O médico já veio. Encontrámo-lo há uma hora perto da janela. Era um excelente homem, um tanto esquisito, mas cada um de nós tem a sua falha. A menina desculpe
. mas é verdade o que ele dizia. que era conde ? E há-de vir buscá-lo um coche ? Ou então, irá na maca dos pobres .
Ina, segurando o cão pela coleira, abriu a porta. O quarto era todo de oiro, como na sua infância, o sol entrava a jorros pela janela aberta. Elevavam-se em moles
ondulações as montanhas azues, aprofundavam-se em vales e, lá longe, velavam-se de gazes. Árvores de fruto desciam as colinas, como se fossem raparigas coroadas,
e chegavam até à janela onde ainda baloiçava a corda. Reinava no quarto um silêncio tão impressionante que o cão começou a tremer.
Conradin estava estendido no leito com um pano branco no rosto; as mãos, que já não eram azuladas mas brancas, dormiam, satisfeitas, ao lado do corpo imóvel. Tornara
a calçar os sapatos de polimento que brilhavam, impecáveis. Sobre uma caixa, estava colocada uma folha de papel, tendo esta dedicatória: "Para ti" e em letras mais
pequeninas, irregulares e trémulas: "O último bailado". Num canto traçara algumas linhas, como uma epígrafe e foi o que Ina leu primeiro:
A mais ardente bênção é a mais violenta maldição!
Sofrerás fome e sede.
Não conhecerás paz na terra.
Nunca terás sossego.
Fugir-te-á o sono.
O caminho será duro mas a alma estará iluminada.
Conseguir é morrer, procurar é viver.
Escolhe.
Leu em seguida a música, uma ária simples, radiosa, sob a qual fremia uma lúgubre marcha fúnebre. Ficou
muito tempo à janela, com os olhos cegos de dor. E pensou: "Conradin morreu. Agora não posso casar com o barão.
E pôde finalmente chorar, encostada à mão gelada e querida de Conradin. Quando se levantou, sentia-se mais calma.
Acariciou os sapatos de polimento; agora estavam limpos e tinham brilho.
O bailado das máscaras
O período de Munique: uma confusão de dias turbilhonando como sombras, acontecimentos que se desenhavam vagamente, pessoas mascaradas, noites inconcebíveis. Ina
Raffay levava uma vida de que estava ausente: desenrolava-se na sua frente, de-pressa, muito de-pressa, inalcançável, como a paisagem vista de noite da janela dum
comboio.
Munique tinha um ar azul muito duro que tornava todos os objectos angulosos e todas as cores vivas. Nem parecia real, Ina Raffay percorria as ruas como se fossem
construções para crianças. Não sabia orientar-se, confundia as pessoas e esquecia tudo o que se passava; apenas se gravavam na sua memória manchas de cor ou aromas
que não tinham relação entre si: a parede inclinada com a luz vinda do norte, a sombra das barras de ferro nos vidros sujos, o cheiro a terebintina e tinta, um botão
que faltava na blusa com mil nódoas de cor, do Walt, o bule verde que careteava ao crepúsculo, rolos de desenhos, quadros encostados às paredes. E no meio daquilo
tudo, Walt Meinart com a cara de garoto das ruas e os plissados olhos de pintor, irreal, inexistente como o resto.
O Café onde passavam os dias, os sítios puídos do banco de veludo verde-acastanhado, o mármore ennodoado da mesa e, em cima, os dedos amarelos de tabaco do pintor
que apertavam os seus com amor e sem vergonha.
Desconheciam a vergonha. A ligação era já do domínio público e servia de alvo às amigáveis zombarias dos colegas. O Turco deitava-se debaixo da mesa, Ina enterrava
os pés no seu pêlo e lá encontrava calor e repouso no meio dum mundo que girava como um carrocel. À luz dos candeeiros do Café, as pessoas apagavam-se, agitadas
e fictícias, risíveis e tristes como mascarados, correndo atrás da personalidade e, no entanto, vazios e contorcionados: a pintora, especialista em flores, que não
usava meias e sem se perceber o motivo, visto que tinha umas pernas muito ordinárias com a pele picada de vermelho como as sanguíneas e uma pulseira no tornozelo;
o repórter que andava sempre na boca com a palavra "diáfano", que tremia muito e tinha o rosto coberto de manchas vermelhas, dando como explicação o abuso da cafeína
em injecções; aquele que estivera em Paris onde conhecera Rodin; a estudante apaixonada pela matemática que andava sempre a ruminar problemas, mordendo os lábios
e isolando-se; o rapaz rico que escrevia sonetos em papel requintado e que emprestava dinheiro com escandalosa satisfação. No meio de todos estes espécimes, imperava
como um rei Walt Meinart, o garoto das ruas, cheio de talento, que começava muitos quadros e acabava poucos. Já expusera, o seu nome aparecia na imprensa e representava
uma tendência. Toda a gente achava bem que estivesse com a Raffay e quando Ina lhe via os olhos claros de longas pestanas, ou o quadro Espectativa que não encontrava
comprador-também ela achava isso bem. ou quási.
Só ele não se habituava e tinha sempre na sua frente atitudes de mendigo humilde, em adoração. Tornava-lhe o papel difícil porque não fazia uma carícia nem dava
um beijo e, com olhos e mãos suplicantes, esperava que ela lhe fizesse esses dons. Ela atormentava-se, preferiria a violência, a embriaguez, o estonteamento e aspirava
a qualquer coisa a que fosse necessário resistir. Como isso não vinha, dava-se por lassidão, com um vago desencanto de compaixão e dever.
A embriaguez era para a noite: dançar o bailado das máscaras em trajo de arlequim, diante da cortina
preta do cabaret, exaltava-a sempre. Quando o speaker da Lanterna anunciava o seu número, numa mistura apropriada de francês e espirituoso alemão, emquanto esperava
por trás do pano, então sentia bater o coração como em nenhum outro momento.
Depois, no camarim, ficava um instante com os membros distendidos e satisfeitos. Do cimo da alta escada via-se a sala por uma clarabóia. Em baixo, o speaker apresentava
o número da recitadora. Esguia e magra no vestido de veludo negro, avançava o largo queixo de ave de rapina e, com o rosto impassível, dizia versos libidinosos.
Em alguns traços, o speaker dava ao rosto eslavo o aspecto dum apache parisiense, de quem imitava a maneira de falar. Era um polaco, um alto rapaz tranquilo e distinto
que, intimamente ligado à recitadora, sofria com a vida desordenada que ela levava. Diziam mesmo que ela lhe batia.
Bem contra a vontade de Ina, tinham ambas o mesmo camarim. Tudo naquela mulher lhe desagradava: o perfume muito forte, a roupa guarnecida de rendas verdadeiras pendendo
rasgadas em roda do corpo, os lentos gestos dos braços demasiado musculosos. Quando entrava no camarim, respirava o perfume, via, pendurado na parede, o roupão dum
azul gritante ao lado do vestido preto impresso em tantos cartazes, comprimia os maxilares, nauseada.
- És muito inocente-dizia-lhe o speaker-e muito inteligente. Seduzes mas nunca te deixas seduzir. Porque usas esta roupa singela como uma educanda num colégio de
nobres? Todas estão melindradas com isso: as tuas camisas infantis são uma prova de orgulho. Também detestam que tragas o cão. Confessa: é verdade o que Walt diz
a toda a gente, que por sua causa desmanchaste o casamento com um príncipe ?
- O quê? Pois ele gaba-se? - preguntou ela, surpreendida.
- Claro, Tem tão pouca confiança em ti que precisa de gritar constantemente: "A linda Raffay é minha amante". Se o não dissesse, nem ele próprio o acreditaria. Mudou
muito, estás a arruiná-lo, a aviltá-lo. Basta
estares a seu lado, tu que és mais alta do que ele um palmo, bela e impassível, tomando um ar digno quando te cinge a cinta-para o aviltares. Estás causando a sua
perda,
- Mas ele trabalha!- disse ela, desconcertada.
- Sim, trabalha. Faz mil e um retratos de Ina Rafay. Pinta-te de frente, de costas, de cima, de baixo, faz uma série "a dança" e outra "Pierrot ao luar" e fará destas
séries até que lhe fujas. Até hoje, ele ainda via algumas coisas com os seus olhos, uma flor, um gesto, uma nota de cor. Agora, o mundo inteiro compõe-se para ele
de inúmeras Ina Raffay que é obrigado a pintar; e garoto como é, o seu desejo seria pôr o teu retrato em todas as paredes.
- Conheces bem os homens. - respondeu Ina, amarrotando nervosamente entre os dedos o veludo da cortina, pois esta conversa tinha lugar antes da sua entrada.
- É o meu ofício - respondeu o homem - mas basta: farás agora o que quiseres.
Música, holofotes. Alguém pôs as máscaras na mão de Ina e desviou a cortina. Na sala escura, o olhar de Walt Meinart procurava-a já com avidez.
Ao cabo de dois meses o contrato da bailarina foi renovado, alterou o seu programa e dançou três bailados. O que mais agradava era a valsa vienense. Repetiu também
a sua "dança verde" pois na atmosfera de Munique nenhuma idea lhe vinha à imaginação. Nunca se estava só, as horas passavam sem reflexão nem recolhimento. Meinart
assistia até aos breves exercícios da manhã: perdia assim as horas em que a luz era melhor, mas dava como pretexto o estudo dos movimentos. Tinha uma pasta cheia
de esboços, simples traços incoerentes, e quando Ina modificou o seu programa, pôs de lado a inacabada série. Queria agora pintar qualquer coisa para a exposição
da primavera, qualquer coisa importante, um trabalho de responsabilidade. Sonhava com uma sinfonia em amarelo e azul. O Café ouvia respeitosamente as suas divagações.
Ina seria o modelo e, inclinados sob a luz dos candeeiros, discutiam a beleza das suas longas coxas infantis. No mármore sujo, Walt desenhava o seu corpo, de cor,
e a pintora olhava pensativamente para as
suas pernas nuas, emquanto Ina, indiferente, bebia uma laranjada, chupando pela palhinha. O Turco, a seus pés, mexia as patas e ladrava, a dormir. "Está a sonhar
pensava ela - e isolava-se ainda mais. "Quem sabe se está a sonhar com uma corrida através os campos com o Fernando, o Bráunl e uma rapariguinha que ainda nada suspeita
da vida."
- A minha rãzinha está fatigada. - disse Walt que observava os olhos de Ina. - A minha rãzinha não deixa ouvir o mínimo coaxar. Será o resultado das longas horas
de pose ?
- É. - respondeu ela.
Aquelas horas constituíam um suplício. A luz do norte corria, branca e fria, pelo seu corpo nu, o vento de dezembro assobiava sobre o telhado de vidro e o fogão
queixava-se, de tal modo estava quente. A pele de Ina parece que se encolhia. "A sinfonia azul já cá está" dizia ela. Então Walt rodeava-a de cavaletes com panos
amarelos para obter reflexos mais quentes sobre a sua pele. Então os membros entorpeciam e uma tontura acompanhada por leve zumbido envolvia tudo. Não era desagradável:
através um véu via o Walt fechar um olho, avançar e recuar, traçar espirais no ar, cantando em voz de falsete. Era assim que ela o preferia, quando se contentava
em olhar e pintar, não passando ela dum conjunto de cores e linhas.
Muitas vezes pensava em Tomaz Brandt, no seu êxtase quando compunha - e sorria. Quem sabe se também Walt a abandonaria quando a obra estivesse acabada! No fundo,
todos estes artistas não passavam de espectros vivendo apenas na hora da criação: e ela não era diferente deles.
Na atmosfera azul e enfumarada do Café, Ina, um pouco adormecida e franzindo a linha horizontal das sobrancelhas, lia os jornais. O Turco dormia.
- Onde está o Walt ? - preguntou a pintora.
- Em casa. - respondeu ela, sem erguer os olhos.
- Sintomática maravilha! - exclamou o compositor.- Ina está só no Café a ler as Folhas Volantes e Walt fica eln casa. O casal começa a ser infeliz.
- Infeliz é uma palavra inexpressiva, - lançou o jornalista - diz antes: trágico. Ou então, lê as obras completas de Grabble e procura uma expressão bastante brutal
para exprimir o afundamento progressivo da mentalidade de Walt Meinart. Fez-me uma confissão espantosa: queria desposar a Ina, queria fazer da Raffay "a senhora
sua esposa!"
- Ouve rãzinha: poderias tu lançar com êxito o grito que anuncia o filho?
- A rã não pode casar com o Walt. No meu parecer, a rãzinha precisa dum homem que, no acto do casamento, tenha luvas claras e chapéu alto.
- Dizem que o Walt frequenta um curso de cozinha da rua Leopoldo. Já sabe fazer ovos mexidos com bisnagas de ocre, vazias.
- São seis e meia. Ninguém pinta a esta hora. Se Walt ainda estivesse vivo, vê-lo-íamos aqui. Se o assassinaste e o deitaste para o cesto dos papéis, o melhor é
confessá-lo já, rãzinha.
- Oh! Basta! - disse molemente Ina, por trás do jornal. - Está em casa com uma pessoa que lhe quere comprar um quadro.
Todos se calaram, um tanto comovidos e cheios de respeito. Ina repeliu o jornal, e com uma palhinha e xarope de framboesa, traçou desenhos no mármore. Sentia-se
fatigada, sem acção, e doíam-lhe as fontes onde as pesadas tranças se enrolavam. O vestido de seda barata, de grandes flores - escolha de Walt - roçagava duma forma
exagerada.
Olhando para os outros que fumavam sem dizer palavra, exclamou:
- O ar está irrespirável aqui!
Depois, a pintora fez tilintar a pulseira de falso jade, do tornozelo.
Walt acabava de entrar, conduzindo um rapaz tão belo que a Ina estremeceu.
- Tony de Maaten. - apresentou-o. E acrescentou não sem ironia: - Um rapaz de boa família.
O recém-vindo inclinou-se com uma correcção e uma gravidade perfeitas. Trazia ar fresco no fato; por um instante, dissipou-se a espessa atmosfera do Café e a Ina
aproveitou este minuto para respirar profundamente.
Muito delicado, o rapaz escolheu uma cadeira junto dela e preguntou:
- Permite que me sente aqui ?
- Evidentemente. - respondeu o homem dos sonetos em papel luxuoso, afectando o tom da sociedade elegante.
Divertidos, olhavam uns para os outros. As pessoas nobres que compram quadros têm qualquer coisa de cómico. Lançaram-se numa conversa técnica com um calão propositadamente
exagerado. Walt pegou na mão de Ina, o que também tinha certa intenção. Ela olhou para todos os que a rodeavam e, mais do que nunca, lhe pareceram irreais e mascarados.
Tony de Maaten sentado, muito calmo, ouvia em silêncio. Ela achava muito bem que ele lhe não dirigisse o mínimo galanteio. Os rapazes de "boa família" que costumavam
trazer à sua mesa, diziam-lhos e muito livres. Colocara as mãos no mármore sujo, mãos finas e esguias, plenas de força e tranquilidade. Os dedos de Walt, que aprisionavam
os de Ina, tremiam constantemente e estavam amarelos de nicotina. Ela desprendeu a mão.
A pintora seguira o olhar de Ina, das mãos do Tony às de Walt, e em seguida observara o rosto do rapaz.
- Então, Walt, - disse, fazendo tilintar alegremente a pulseira de jade-parece-me que encontraste o modelo para o teu grande trabalho. Ele anda à procura dum homem,
sabe sr. de Maaten ? Do homem-tipo. E parece-me que o senhor está absolutamente indicado.
Tony inclinou-se em ar impenetrável. E declarou :
- Estou à sua disposição.
preferiram não perceber o tom irónico. Fazendo estalar as articulações, Walt explicou:
- O meu grande trabalho, é verdade . Deve ser magnifico: um díptico, sabe? Um homem, uma mulher e entre eles o mundo inteiro.
- E não encontra modelo . - elucidou o parisiense.
- Sim, os homens são raros . mulheres de diversos tipos há aos milhares. mas nem um único homem. Espanta-me que Vossa Graça se possa mostrar nas ruas de Munique
sem que todos os artistas lhe venham pedir, de joelhos, para posar. Ora veja: encontrar-se em Munique um homem que não seja um criado e não tenha barriga!
- Fizeram-me apenas um retrato. a cavalo. Foi o Trubner que o pintou para a minha mãe.
- O pobre Trubner! - disse uma voz, em tom de comiseração.
- Monta a cavalo ? - preguntou Ina, vivamente.
- Claro.
- Claro. - repetiu ela, baixando a cabeça.
- Não monta? Tem a silhueta duma amazona.
- Aqui ? - respondeu ela, simplesmente. E depois dum momento: - Outrora sim, andei muito a cavalo, na propriedade do meu tio. O Turco acompanhava-me sempre. Ele
bem sabe . não é verdade, Turco?
- Um lindo animal. e bem tratado.
O rosto animou-se-lhe um pouco e com a longa mão acariciou a cabeça do cão.
- Falta-lhe a floresta. Agora fica sempre no atelier a vigiar-me ; é tão bom . compreende tudo que se diz. Vamos muitas vezes ao jardim inglês, é o nosso momento
agradável. Não é verdade, Turco ?
E também ela o afagou.
Partiu com Tony e o cão para bem longe dos outros. Walt mordia os lábios. Alguém dizia que as recompensas académicas eram um contra-senso e havia quem zombasse dos
rapazes de boa família que compram quadros. Paredes de bruma azul erguiam-se entre eles e os outros.
Tony acabou por dizer:
- Na primavera, havemos de montar a cavalo no jardim inglês; concordas, Turco ?
Ina sentiu o aroma da folhagem tenra, do couro e do cavalo, das quantidades de terra lançadas pelas patas Respirou fundo e disse "sim" num absorto sorriso.
Walt pensou naquele sorriso, quando de noite ela se recusou pela primeira vez.
Sem mais explicações, Tony de Maaten declarou-se pronto a servir de modelo a Walt, que ficou maravilhado e encantado. Tony era pontual nas horas de pose, aparecia
também no Café e, às vezes, entrava à noite no Cabaret. Tanto o Café como o Cabaret não lhe atribuíam qualquer intenção, sorriam dele e, duma vez para sempre, crismaram-no
de "retrato de Trúbner". Parecia não dar por nada, era muito simples e nem mesmo tentava fazer a corte à linda Raffay, como toda a gente esperara. Nunca dizia uma
palavra espirituosa nem praticava um acto pessoal; era, nas questões intelectuais, absolutamente inofensivo e sem pretensões. Nada havia nele de especial e era por
isso que se destacava tanto no meio daqueles frenéticos originais.
Ninguém o sentia melhor do que Ina: era ele próprio e os outros não passavam de caretas e artifício, mesmo Walt. Os seus dias haviam-se iluminado desde que Tony
entrara no grupo com os seus gestos maleáveis de esgrimista e o riso altivo e raro, que às vezes a encantava, Era para ela inseparável da baforada de ar fresco que
trouxera da primeira vez ao Café e da visão dum passeio a cavalo, na primavera. De noite, no atelier, sob a luz do lustre de ferro, tinha, às vezes, acerca de Tony,
sonhos que lhe inspiravam grande terror. Mas nem lhe passava pela cabeça que aquilo fosse amor. ? No entanto, Walt manifestava abertamente o seu
afecto por Tony de Maaten e com a mesma liberdade mostrava o seu amor por Ina. Gabava-se tanto da Beleza daquele modelo como das relações fidalgas da bailarina.
Trabalhava febrilmente no seu quadro. Ela posava de manhã e ele à tarde. Nos intervalos, Walt estava extraordinariamente excitado: tão de pressa fazia palhaçadas
e troçava de si próprio, como ficava durante horas silencioso, fazendo estalar as articulações e deitando fora os cigarros fumados até ao meio. De noite, lutava
com mudo encarniçamento para conquistar Ina que passava da indiferença para a repugnância. Tudo nele lhe desagradava, tanto os cabelos gordurosos que lhe caíam para
a testa como as tristes apreciações que fazia de si próprio. Lutava na sombra, em silêncio e com rancor; a inimizade substituía a ternura mútua e o Turco rosnava
por trás da porta. De manhã, mal o sol raiava, recuperava a pose. Mas nunca mostrava o trabalho, depois de pintar; fechava-o avaramente num pequeno quarto.
Graças a Tony, introduziu-se um pouco de ordem e regularidade naquela vida de boémia. Vinha buscá-la a hora certa para almoçar no restaurante da Suábia, depois subiam
ao atelier, onde ele fazia o café. As suas esguias mãos eram hábeis em todos os serviços. Arranjou a torneira que não parava de correr, pôs ordem nos caixotes vazios
que estavam misturados com veludos de Veneza e velhos cobres flamengos. Arranjou um cantinho onde podiam tomar chá perto do fogão. A vida não corria para Ina tão
fantástica e imaterial: Tony tornara-a ambiciosa e, agora, tentava pôr um pouco de conforto no vasto atelier gelado. Bastou que ele franzisse as sobrancelhas para
que ela renunciasse aos trajos mirabolantes que Walt lhe sugeria e mandou fazer um vestido novo numa boa casa de modas. Gastou nele mais do que ganhava num mês.
Walt suspirava. O dinheiro era uma coisa estranha. Às vezes, tinha-se as mãos cheias dele, pagavam-se as dívidas. e contraíam-se outras, bebia-se vinho no Cabaret,
fazia-se uma pândega e procuravam-se objectos raros no antiquário. Depois havia o essencial para comer; o carvão era devorado com incrível avidez; os homens que
vendiam tintas conduziam-se duma forma infame, não se engoliam senão arenques e salchichas.
Tony, remexendo os desenhos de Walt encontrou um esboço de que se declarou encantado. Pagou o com liberalidade e fingiu ter recebido uma prenda. Ina ficou pensativa
e não o compreendeu. Via bem que Walt não lhe agradava muito, considerava-o com a mesma ironia distante com que olhava para todos os outros pesadões da Suábia. Não
percebia nada dos quadros que comprava. Para com ela mostrava-se sempre indiferente e extremamente delicado. Obedecera ao desejo de Walt, tratando-a por tu, mas
fazia-o constrangido. De vez em quando, falava na noiva que habitava em Hesse, pouco se referia a si próprio e espraiava-se sobre "os habitantes da Suábia". Pertencia
a uma família de diplomatas conhecia a fundo todas as grandes capitais - instalara os seus cavalos na propriedade dum tio, habitava dois quartos no hotel Quatro
Estações e não fazia nada. O que o levava a consagrar o seu tempo a dois estranhos que parecia serem-lhe indiferentes? Era inexplicável e isto provocava em Ina inquietação
e uma prodigiosa cólera.
Um dia, depois duma compra de quadros, emquanto Walt ficou a trabalhar, Tony acompanhou Ina pela cidade. Tiveram uma conversa que a deixou estupefacta. Haviam caminhado
muito tempo em silêncio, porque acontecia-lhe, ficando só com ele, ter acanhamento em falar. O Turco corria entre ambos. Então, no momento em que a porta da Vitória
se erguia na sua frente, esverdeada sob um crepúsculo de neve, Ina disse, seguindo o seu pensamento:
- O Walt é muito bom rapaz.
- Sem dúvida. - replicou cortesmente Tony.
- É como uma criança. Fica feliz se lhe dizes que o seu trabalho te agrada mas nem sequer lhe passa pela cabeça que lhe compras os quadros para o ajudar. É muito
gentil da tua parte, mas porque motivo o fazes, afinal? Passo a vida a pensar nisso.
-Então a minha conduta preocupa-te?-preguntou ele vivamente, com um novo acento que fez deter a Ina. Por fim, ela replicou:
- É verdade. Que homem és tu ? Que procuras no nosso meio? Zombam de ti e tu fazes troça de nós
- e eu gosto imenso do teu riso, Tony: és tão natural! Nós não temos centro de gravidade, trabalhamos constantemente, E tu, porque não fazes coisa alguma? Nada te
interessa. Não tens ambições, Tony?
- E tu, tens? - preguntou, examinando o animado rosto.
-Claro!
- Admira-me. A vida que levas não é duma ambiciosa.
- Eu não desejo colares de pérolas oferecidos por admiradores ricos.
- Bem sei. E não é isso que desejava dizer. mas simplesmente que devias ter deixado Munique há muito tempo. O mundo inteiro deve conhecer-te: aqui perdes o teu tempo.
Parece-me que te esqueceste do que tens dentro de ti.
O Turco levantou a cabeça, como que surpreendido, e a Ina ficou estupefacta. Nunca ouvira Tony exprimir-se de tal maneira!
- Ambição! - continuou ele. - De resto, és uma preguiçosa, Ina, não te treinas bastante, permite a um velho sportman que to diga. Em Viena, tinhas melhor forma física
e técnica. O que não admira em face do horrivel regime a que estás hoje sujeita: alimentação e cerveja de Munique, horas de pose e o resto.
- Pois tu viste-me em Viena? - preguntou ela, que só tinha retido aquilo.
- Claro. Toda a gente te viu em Viena. Daí devias ter ido logo direita a Paris.
- Ficaste muito admirado ao ver-me aqui? Estava consternada. Tony parou e com um riso infantil lançou bem de frente:
- Não. Nada.
Calaram se. A luz duma montra iluminava o rosto de Ina e ela sentia que o Tony a olhava fixamente, de lado, o que lhe dava calor e a queimava como um acesso de cólera
- mas que não deixava de ter doçura.
-No Café, brincas às mulheres frívolas, mas és
duma ingenuidade engraçadíssima, Ina. Não poderia eu ter vindo de Viena a Munique por causa de ti e ter-me deixado chacotear por aqueles maduros, por tua causa?
- Não. Eu ia lá pensar numa coisa dessas! Tu és o senhor Tony de Maaten, um rapaz de boa família, bem afastado do romanesco e da sentimentalidade. És de tal forma
natural, Tony, e não imaginas como isso me agrada! Em criança, tive uma amiga que era como tu: Mila Merz. De resto, estás noivo e. e bem tens demonstrado a que ponto
te sou indiferente.
Ele ríu-se outra vez.
- E isso irrita-te? Deitaste-me um olhar tão feio, Ina. Estás assim tão furiosa? Aprecias realmente o sistema aqui em uso de fazer alarde dos sentimentos?
- Ouve. Disseste há pouco, pela primeira vez, que tenho alguma coisa dentro de mim. Julguei sempre que não ligavas importância nenhuma à minha dança. Que sentiste
quando outrora me viste bailar, em Viena?
- Interessa-te sabê-lo?
- Interessa.
- Pensei. -disse ele sem elevar a voz.-Pensei que era capaz de dar tudo que tinha no mundo para te possuir.
Sem dizer palavra, a Ina agarrou o Turco pela coleira e olhou para as enluvadas mãos do Tony, que apertava fortemente os punhos emquanto o rosto se mostrava impassível.
"Desejaria ver-te dar um beijo sem reflectir." Este pensamento atravessou-lhe o espírito como um relâmpago e o ar bateu-lhe, quente e vibrante, como se fosse um
corpo sólido.
- Não era um lindo pensamento. É o que está escrito nos cartões de visita que todas as noites me mandam ao camarim.
Colocando-se bruscamente a seu lado, ele disse:
- Não sou um impotente, Ina, nem um artista e não tenho a ambição de te decompor em azul e amarelo. Não desejaria ser o espectro desprovido de sangue que pinta o
teu corpo durante horas. Quando te vejo dançar, desejo-te. Realmente, não te passa pela cabeça que és uma mulher e eu sou um homem ? No fundo, não
sabes muito bem em que reside a minha indiferença? Nunca sonhaste comigo, a-pesar-de ser diferente?
- Sonhei. - murmurou ela.
- Eu sonho todas as noites, Ina. todas as noites. repetiu, apertando-lhe os dedos.
Ela não ergueu os olhos. A breve pressão fez-lhe passar pelos membros um frémito que nunca sentira.
- Mas há um ponto em que te enganas. - disse ele, com firmeza, fazendo-a entrar no Café. - Não compro os quadros do Walt para o ajudar, mas porque realmente me agradam.
Foi esta a conversa que deixou Ina febril e desorientada.
Estava-se na época em que Munique endoidece com o Carnaval. De madrugada, Pierrots e Colombines cambaleavam sobre a neve, serpentinas murchavam nas árvores sem folhas
e nos fios eléctricos dos carros. Enchiam as ruas os agudos sons das guitarras e em dezenas de salas os pares enlaçavam-se e empurravam-se numa atmosfera sufocante.
Ao Cabaret chegava muita gente embriagada e o coriandoli corria até para os bancos dos Cafés. Ina detestava o Carnaval, onde tudo lhe parecia rude e grosseiro. Walt
resmungava abertamente: um Carnaval sem Ina não tinha graça nenhuma; obscuramente, tivera a esperança de ver a rebelde perder a cabeça em face da loucura geral.
Nos seus bailados vislumbrava-se às vezes um novo ardor, Walt bem o via. E também Tony que sentia um imperceptível arrepio a percorrer-lhe os ombros e as narinas
a palpitar quando o perfume dela o envolvia. Mas no rosto nada transparecia.
Foi numa festa dos artistas industriais que se inclinou correctamente em face de Ina, convidando-a para dançar. Todos se riram. Estavam numa tenda feita com panos,
onde brilhava uma luz atenuada. A idea dominante daquela festa era criar, numa semi-escuridão colorida, a ilusão duma noite tropical numa floresta virgem. Era cómico
ver a seriedade com que, no meio das maneiras livres dos outros, o "retrato de Trúbner" convidava a dama para dançar.
- Mas que vais fazer, desgraçado ? - exclamou Walt.
- Como queres dançar sem luvas ?
Ina estava muito pálida no vestido vermelho que lhe deixava nus os braços e os ombros.
- Obrigada, Tony. Mas eu não sei dançar. Gargalhada geral. "A Raffay não sabe dançar!" E, aturdida, ela parecia a pequenita da Escola Raffay quando lhe deram champagne
e dançou a valsa. o Conradin estava ao piano. alguém oferecia limonada em copos que se entrechocavam e dizia: "Já passou a hora de se deitar". Sentia a mesma impressão
aflitiva daquele tempo: toda a gente fazia troça dela.
- Mas é verdade que não sei.- repetiu, admirada.- nunca dancei com um homem . sempre só.
- Tens que aprender. - disse Tony.
E levou-a para a floresta dos tecidos multicores, para o meio da multidão.
Ela sentiu se enlaçada, dominada, apertada de encontro a um corpo que tremia. Sentia-lhe o peito e o hálito. Inconsciente, fechou os olhos; em seu redor espraiava-se
um mundo de coloridas vagas no qual se afundava, abandonando-se à sua inexprimível doçura.
Tony baixou o olhar sobre os olhos fechados, sobre a dura boca que amolecia e se entreabria de desejo, sobre as veias azues que, rapidamente, palpitavam na garganta
e, a cada passo, a sentia mais desfalecida embora fizesse esforço para se dominar, acabando por se abandonar. Curvou-se mais e murmurou bem junto da boca ávida :
"É preciso que te dê um beijo ?" Ela não respondeu, oscilou muito tempo sem pensamento, como uma papoila vergada pelo vento, com luzes vermelhas flutuando em frente
das pálpebras descidas. Conservava a sempre cingida e balbuciou segunda vez, num tom imperioso e compassivo, ao mesmo tempo: "Queres que te dê um beijo? Tu é que
deves pedir, Ina." Ela ergueu as pálpebras, perdeu-se na chama cinzenta dos seus olhos cinzentos e murmurou, entre os dentes cerrados: "Peço-te."
Alguns dias depois, Walt convidou o Café para ir ver o seu trabalho acabado. Estava duma palidez de
marfim e fazia espírito, indo dum lado para outro do atelier à procura da melhor luz. O quadro estava voltado para a parede, ninguém o vira ainda, nem mesmo Ina.
Cheia de frio e de nervos, sentada num caixote, perto do fogão aquecido ao rubro, não ousava olhar para o Tony que, muito à-vontade, deslocava os pesados cavaletes.
A pintora mostrava com intenção as pernas e os dentes, o jornalista procurava um adjectivo inédito. Estavam todos silenciosos, adivinhando a esperança doida que
Walt depositava no seu quadro.
Era certo: concebera a idea comovente e desesperada de reconquistar aquela Ina que cada vez se afastava mais, graças à sua obra. Tentara pintar mais do que o problema
do amarelo e do azul, encontrar mais do que uma nova escola, sem raízes na realidade. Pintara tudo o que não podia exprimir por meio de palavras e, fazendo estalar
as articulações, declarava que o seu trabalho era "um raio dum nabo académico". Mas o coração palpitava-lhe de orgulho. Procurava os olhos ausentes da Ina. "A Rãzinha
está distraída!" - gemia. "Estou cansada, dormi mal!" - respondia ela. com efeito, não dormia e passava noites aflitivas. Via o Tony seguro de si e não compreendia
como um só beijo trocado no tumulto do Carnaval a tivesse assim levado para o abismo.
- Bem. Vamos a isto! - disse Walt, acendendo um novo cigarro com os dedos agitados.
O Café alinhou-se numa fila e, em silêncio, abriu olhos de juiz. O quadro era uma vibrante mancha de cor contrastando com a lívida luz da tarde.
Um homem e uma mulher, muito altos, erguiam-se até às nuvens. Entre eles havia um largo espaço; inclinavam-se um para o outro e ela estendia avidamente os braços.
Por cima deles, via-se o céu azul e a seus pés, doirado pelo sol, com os campos, as árvores, as florestas, os rios e as cidades - o mundo.
Walt, de pé, quási lhe virava as costas, erguendo os braços para o dia que tombava de cima, agarrando-se às grades da janela, num gesto espantosamente teatral.
"Monumental!" disse o parisiense. "Que atmosfera!" murmurou o compositor de sonetos. "É o começo duma era nova!" definiu o jornalista. A pintora, traçando linhas
na sua frente, com o polegar, exclamou: "Os planos nos modelos e o ritmo!" E todos olharam então para os corpos.
Ina erguia-se nos pèzinhos arqueados mostrando as longas coxas nervosas; os seios eram pequenos frutos firmes e doirados e comoviam os ombros infantis e delicados.
Os cabelos negros desciam da testa de imperatriz até aos joelhos e os braços estendiam-se para o homem. Este tinha o corpo de esgrimista, do Tony, costas bem desenhadas,
ancas estreitas, ombros largos e levemente descaídos. O pescoço erguia-se, forte, e os olhos cinzentos davam nobreza ao rosto. "É belo!" disse alguém, a meia voz.
Walt voltou para o meio da sala e procurou os olhos de Ina com uma insistência quási dolorosa. A luz tornara-se ainda mais lívida e ele estremeceu.
Ina estava sentada. Inclinada para a frente com a boca gulosa e os olhos febris, o gesto das suas mãos erguidas era como que um grito. Em face dela, encostado à
parede, Tony fitava-a. O seu corpo estava tenso como um arco e, pela primeira vez, o rosto depusera a máscara: também as suas mãos avançavam para ela. Walt deitou
um breve olhar ao quadro: um homem e uma mulher inclinados um para o outro e, entre eles, o vasto espaço.
Caiu súbito silêncio no atelier. O Turco, deitado aos pés de Ina, ergueu a cabeça, farejando, deitou nervosamente as orelhas para trás, depois levantou-se, espreguiçou-se
e, atravessando a sala, dirigiu-se, em linha recta, até o Tony. Walt deitou fora o cigarro meio queimado, tirou o quadro do cavalete e voltou-o para a parede. O
queixo tremia-lhe mas não proferiu palavra.
Não disse uma palavra.
Ina não renovou o contrato com a Lanterna. Uma agência propôs-lhe uma tournée de vinte dias em algU mas cidades centrais da Alemanha. Em Wúrzburg esperou pelo Tony.
E foi ali, no velho quarto de hotel
que soluçando nos braços de Tony de Maaten, Ina se
revelou uma verdadeira mulher.
Cantando, o rio passava sob as janelas, e, na noite aZul, ouviam-se sinos desferindo os seus argênteos sons.
Foi no ano que Ina passou em Paris com o Tony que se tornou a "Raffay". Foi então que criou a sua "dança da papoila", o bailado da flor que desabrocha com sensualidade,
que abre o seu estreito cálice de seda verde, desenvolve, hesitante, as pétalas vermelhas - cintilante e chegada à maturidade. Depois, lentamente, desfolha-se num
impudor quási lascivo, terminando bruscamente numa nudez mal velada. Dançou primeiro no pequeno Teatro dos Funâmbulos, onde Tony lhe arranjara contrato graças às
suas relações parisienses. Situado numa ruasita de Montmartre, era uma engenhosa reprodução da sala do mesmo nome que, no princípio do século dezanove, dirigia o?
genial mímico Deburau. No fundo, aquilo parecia-se muito com a Lanterna de Munique: um Cabaret cheio de espírito e de requinte. Só a atmosfera diferia, era a de
Paris, cintilante, plena de vibração, céptica e sensual. A boémia que lá se via era autêntica e os casais não faziam alarde das suas ligações, que eram a coisa mais
natural deste mundo. Ina, em todo o seu esplendor, produzia novo efeito, sentia que os arrepios que a percorriam faziam estremecer cem nucas e cem bocas; da sala
mal iluminada vagas tépidas subiam até ela, enchendo-a dum novo vigor e duma nova beleza, todas as noites. Gostava outra vez do seu corpo transformado. Em todos
os seus Membros tinham acordado nervos desconhecidos ; em cada um dos seus gestos sentia dormitar secretas carícias. Os parisienses, conhecedores das coisas do amor,
compreendiam e aplaudiam-na com entusiasmo,
Cada artista tinha o seu camarim individual, uma pequena sala ripolinizada a branco onde se comprimiam os visitantes. Tony introduzia-os com o seu ar calmo: aquilo
era necessário na carreira que ele desejava à Ina. Primeiro, vieram os pintores, os escultores, os escritores; encostado à porta, Tony ouvia, a rir, os francos cumprimentos
que lhe faziam. Ina, bem de-pressa se colocou no diapasão; aperfeiçoou o francês de Conradin e respirou um ar que convinha ao sangue aventureiro dos Delarès. Muitas
vezes, de pálpebras baixas, dirigia um sorriso secreto ao impassível rosto de Tony. Conhecia o imperceptível arrepio que lhe acariciava então os ombros; erguia o
braço e as asas do nariz tremiam lhe levemente.
O escultor Lotard, o famoso mestre, deu uma festa onde ela dançou. Paris inteiro estava convidado e acotovelava-se no vasto atelier iluminado, entre as gigantescas
estátuas que se prolongavam até ao pátio. Um tépido vento de outono, na colina de Montmartre, expulsava pequenas nuvens, e por baixo, estendia-se a cidade, velada
de bruma. Ina dançava e encantava. Tony circulava entre os convidados; tinha relações em todas as sociedades: o pai estivera muito tempo na embaixada alemã e ele
fizera os seus estudos num liceu parisiense. A princesa Zamoiska, em casa de quem se encontrava a alta sociedade internacional, convidou Ina para uma matinée. Depois
disso, os outros não deixavam espaço em frente do pequeno teatro, as pessoas elegantes iam lá, deputados, gente da Bolsa, cavalheiros idosos de cabelos pretos e
olhos vermelhos, tais como Forain os desenhava. Ela pensava no pai e sorria.
Quando Ina foi para as Folies-Bergère, Tony alugou-lhe, numa rua sossegada perto da Chaussée dAntin, um palacete mobilado onde já estavam a cozinheira e uma criada
de quarto, bastante desorientadas desde que a precedente proprietária fugira com um fidalgo russo, Ina herdou o salão Luís XVI, de tapeçarias e móveis cor de morango,
e começou a levar a vida de todas as artistas de Paris: tal era o desejo de Tony.
Renovou-lhe o enxoval, escolheu-lhe vestidos que
maravilharam Paris: de tudo que lhe pertencera, só permitiu que conservasse o cão e as pérolas. De manhã, Tony montava com ela, no bosque. Nos últimos dias de outono,
o Turco seguia-os. Depois, ela ficava só, para a maçagem e os exercícios quotidianos. Inventava novos bailados, lascivos e de ousada beleza. À tarde, Tony estava
presente ao chá a que, em geral, assistiam alguns amigos e, à noite, era o seu carro que a levava e trazia do teatro. Isto era a cortina por trás da qual a sua verdadeira
existência se desenrolava. Também aqui as pessoas e as coisas eram para ela imprecisas, irreais, parecendo-se com as de Munique, desaparecendo por trás de véus,
como se as sonhasse.
Apenas Tony tinha realidade.
Um verão passado numa praiazinha da costa bretã havia-os aproximado completamente um do outro e todas as suas horas eram agora vibrantes de paixão. Sentiam prazer
em se separar por pouco tempo, desejando-se no intervalo e tornando-se a encontrar com novo ardor - e também em procederem, em face da sociedade, como dois estranhos,
e a experimentarem o mesmo arrepio com a evocação duma lembrança ou dum gesto. Tudo lhes provocava o desejo de irem em busca de novas sensações. l
Não era aquilo a que na Alemanha se chama amor. Quando Ina pensava no tempo de Tomaz Brandt - e isso acontecia-lhe muitas vezes - sorria com emoção: de-certo aquela
união espiritual fora uma infantil pretensão, talvez uma mentira, talvez um prodígio. Mas agora via que estava na verdade, sentia uma felicidade real, instintiva,
ardente e terrestre. Era o que se chamava em Paris a grande paixão, e Tony não compreenderia outra. Nascera para amante e fizera da Ina uma amante maravilhosa. Estava
cheio de experiência e era um requintado conhecedor em tudo que tinha relação com a vida física: o desporto, o bom gosto, a maneira de vestir. Do resto, troçava
com o seu riso seguro que nenhuma idea turva nnegrecia - e que tanto agradava a Ina. Acontecia-lhe a tarde, durante o passeio pelo Bosque, começar a sorrir sob o
grande chapéu guarnecido de plumas e apertar-se
contra ele: pensava em Mila Merz. Conhecia agora a felicidade da vida ordinária, vazia de reflexão.
O seu êxito no Folies-Bergère não tinha limites. Vignon, o director, acariciou-lhe alegremente um braço e renovou o contrato por mais três meses; o seu ordenado
era magnífico mas pouco representava nas finanças da casa. Ragnier, cujo rosto lembrava um rato muito gordo, apareceu com as algibeiras cheias de propostas. Lejeune,
o sarcástico cantor dos Funâmbulos, dizia-lhe: "Ainda bem que fizeram de ti um número de music-hall, Ina Raffay. Naturalmente é porque a tua beleza rivaliza com
a das focas sábias." A antiga estrela do Folies, uma cantora com voz de porcelana, quis excedê-la. Levantou as pernas, os membros fatigados duma mulher que já fizera
quarenta anos e, de semana para semana, arvorou atitudes mais impudicas. Depois, sentada a meditar no seu camarim, vendo no espelho o rosto esmaltado, declarava
a si própria que não compreendia o público, que parecia estar farto dela. O que ele queria era mocidade, desejando ver paixão sem cordelinhos, entusiasmando-se com
a certeza de que Ina era fiel ao seu amante. A bailarina mergulhava nas aclamações como num banho tépido: era agradável mas não a comovia. Só procurava os olhos
de Tony e as suas mãos no rebordo do camarote, as suas longas mãos que centenas de carícias lhe haviam tornado familiares.
O mundo do music-hall divertia-a como, ao princípio, o da "Suábia". Gostava de ver os artistas nos seus exercícios, logo de manhã. Contemplava com prazer os belos
corpos de músculos distendidos e o Turco, a seu lado, farejava o cheiro da transpiração. Tinha horas dolorosas, invejando os cães sábios de Jimmy Tirnps, que se
sentava sempre ao lado de Ina, impregnando-lhe o vestido com o cheiro dos seus animais. Jimmy Tunps era um homem calvo, melancólico, de rosto comprido velado por
nuvens. A convivência constante com os animais dera-lhe uma excessiva sensibilidade; gostava de recitar versos de Baudelaire e tomava cocaína. O seu trabalho ressentia-se
disto e empregavam-no apenas na falta doutro número melhor. Ò que mais lhe agradava
em Ina eram os seus cabelos onde sentia passar correntes eléctricas. Ela via as mãos geladas e alcoólicas de Conradín e uma cabeça de criança e, na orquestra vazia,
pegava nos longos dedos trémulos de Jimmy e passava-os pelos seus cabelos. O Turco rosnava e Ina pensava: por que motivo hei-de sempre encontrar fantasmas no meu
caminho?" Ficava, durante momentos, cheia de mêdo e a sua existência com Tony dava-lhe a impressão dum sonho.
Em fevereiro foi a Londres, e Tony partiu para a Alemanha onde ia regular certos assuntos de família. Havia desfeito o seu noivado e agora, por obscuras razões,
era preciso acalmar um tio importante. Ina viu no amante um certo nervosismo. Em Londres enclausurou-se, não querendo ver ninguém, a não ser Jimmy também contratado
mas com um mísero ordenado. Suzette, a criada de narizito arrebitado queixava-se do nevoeiro, cheia de indignação. Só o Turco estava de bom humor.
A vida sem Tony era intolerável e ela sentia-se cheia de saudades. O seu corpo cansava-se nos bailados mas não achava repouso.
Quando se encontraram em Bruxelas foi uma alegria sem limites. Em março, dirigiram-se a monte-Carlo de que Tony era habitué; jogou muito, ganhou, perdeu sem que
Ina soubesse qual fora o resultado final. Tinha toilettes fabulosas, arrastava atrás de si um enxame de admiradores e mal aparecia, logo o seu nome famoso corria
de boca em boca. Gastavam rios de dinheiro e o que ganhara em Bruxelas chegara apenas para pagar o calçado e os chapéus. Um dia ganhou dois mil francos e Tony troçou
do infantil orgulho que mostrou. As vezes, preocupava-se com o dinheiro que desaparecia e Preguntava-lhe: "És muito rico, não és?" Ele ria-se e cobria-lhe amorosamente
de beijos a pequena depressão entre a boca e o narizito.
Quando voltaram a Paris toda a gente se admirou: a Raffay gostava sempre do seu belo amigo e continuava a ser-lhe fiel. Mas na primavera deu-se um acontecimento
que projectou uma sombra no caminho que seguiam, felizes e sem pensamentos reservados.
- Choras a dormir ? - pregunta-lhe Tony. Ajoelha-se junto da cama e rodeia-lhe o tornozelo com a mão, Afasta os lábios da planta do pé e torna outra vez a colocá-los
lá, voluptuosamente.
- Tive um sonho horrível!-explica ela. -Vem, dá me a tua boca para o mandar embora. Não, deixa-te estar quieto, quero olhar-te para que a odiosa imagem desapareça.
Olha-o. Está nu. Franzindo as sobrancelhas, pensa: "É extraordinário como a beleza nos pode tornar felizes!"
É cedo, as persianas ainda estão fechadas e, mais longe, a Suzana deixa discretamente correr a água para o banho, uma lâmpada balouça-se molemente por cima do leito.
Ina estende a mão preguiçosa, pega num pêssego e enterra os dentes no fruto macio. gosta tanto!
Uma hora mais tarde vem sentar-se à mesa do pequeno almoço que a Suzana trouxe para o quarto de vestir; a sua pele tem ainda o brilho e a macieza dados pelo banho
e sob o quimono de seda fina sente-se o agradável cheiro dum corpo bem tratado. O Tony chega já vestido, de calção, botas de couro e colarinho mole deixando-lhe
o pescoço livre: vão dar uma volta de carro pela floresta de Fontainebleau e regressarão pela margem do Sena. "O sr. Turco fica em casa, diz Ina ao cão que lhe coloca
no joelho uma pata suplicante, o sr. Turco é malcriado, é ciumento como um marido - e nós não estamos casados, sr. Turco". com triste rosnar, o cão vai deitar-se
em frente do fogão apagado. Está-se no prin cípio da primavera, as árvores reverdecem nas margens do Sena e a floresta, com os seus rebentos, lembra uma renda de
Chantilly.
O chaufeur fica em casa. É Tony que guia na brisa tépida que lhes deita os cabelos para a testa e faz esvoaçar o véu da Ina como se fosse uma linda
jóia de primavera. Paris agita-se numa bruma atravessada de sol, as ruas cantam, os altos omnibus rolam pesadamente como navios, as mesas dos terraços, nos Cafés,
enchem-se; por toda a parte há uma viva e alegre mistura de cores e ruídos.
Almoçam na floresta, dentro do carro, comendo os acepipes com que a Suzana enchera um cesto. O ar tem um forte odor a hortelã-pimenta e, na erva, as anémonas erguem
as infantis cabeças.
- Parecem meninas pequenas no dia da sua primeira comunhão.- murmura Ina, com os cotovelos na relva.
E Tony responde-lhe simplesmente com um riso cheio de indulgência e um ar de compaixão:
- Como és romântica!
Também deitado, ele faz um cigarro.
"Que belo animal!" pensa Ina, e sente que qualquer distância os separa. Mas ele agarra-a e os olhos perturbam-se ; fita-lhe a boca ávida. O homem, sente o impulso
que a lança para ele e, como da primeira vez, pregunta:
- É preciso que te dê um beijo?
E dá-lho, deitado na erva e nas anémonas; o seu hálito tem o forte aroma da terra primaveril. Os olhos da Ina bebem o céu azul que se estende por cima dos cumes.
um melro apaixonado canta num silvado. O rio já tomou a sua tonalidade azul-cinzento do crepúsculo, quando chegam à margem. Em baixo, operários juntam madeiras para
construir um estabelecimento de banhos; ao som duma harmónica, um barquito desce o rio. O Tony olha para o relógio e acelera : a Ina dança à noite numa recepção
dada pelo ministro das finanças. Muito branca, a estrada corre na frente do carro, os choupos desfilam, floridas árvores de fruto fogem como véus rendilhados, surgem
pequenas casas, restaurantes de verão que desaparecem na folhagem. Paris estende-se no horizonte sob uma nuvem avermelhada ; quando atravessam uma rua dos arredores,
já é noite.
Ina espreguiça-se nervosamente e diz:
- É tarde, Tony.
Ele ri, acelera ainda mais e depois duma curva, desvia-se da longa estrada direita. Responde:
- Por aqui é mais perto. Cortamos caminho.
É uma rua horrível com pequenas casas dum bairro operário, alinhando-se, iguais e feias. Parecem soldados cinzentos a querer cair para cima do carro. O crepúsculo
é aqui muito triste e sombrio.
Bruscamente, dá-se a catástrofe.
Do buraco duma porta negra, surge como que uma sombra à beira da estrada. O claxon estridula num grito alarmado. Ina ouve ranger os dentes de Tony e vê-lhe no rosto
uma expressão indescritível enquanto crispa as mãos no volante; dois rudes saltos sacodem o automóvel que depois se alteia e pára, fremente, atravessado na rua.
- O que foi? -pregunta Ina, aflita.
Tony deita-se para trás, na sua cadeira, as mãos pendem-lhe, moles mas trémulas; a boca e os olhos estão lívidos e nas fontes borbulham gotas de suor. Não responde.
Então saem gritos das casas, precipitam-se mulheres, pedras caem sobre a carrosserie, atingindo uma delas Ina. Mãos agarram-se a eles, tiram-nos do carro. Dão-lhes
murros e Ina tem a cara a escorrer sangue. Tony não se defende, continua a ter as mãos moles, o rosto fugidio, inexpressivo. Na rua, por trás do auto, jaz qualquer
coisa que ele não quere ver. Uma voz de mulher domina o barulho com o lamento dum agudo queixume de animal, depois há uma dança de grotescas sombras e selvagens
uivos. Num súbito silêncio, a multidão abre-se diante de dois polícias. Ina ouve ainda a voz estridente, desgarrada, quebrada de soluços . e só então compreende.
Tomada de vertigem, procura as mãos dele. Mas os dois polícias levam-no, a multidão comprime-se por trás deles, negra massa donde se erguem punhos ameaçadores.
Um homem de olhos cinzentos e bigode de soldado, põe a mão no ombro de Ina, dá-se a conhecer como polícia e depois de algumas palavras de explicação, fá-la subir
para o carro, sentando-se ao volante.
A última coisa que ela vê e que para sempre se grava na
sua memória, é a silhueta de dois homens inclinando-se para o chão donde levantam o corpo duma criança cujos braços e pernas estão pendurados como se não tivessem
ossos; a mãe segura na cabeça caída para trás; está muda e esconde os olhos por trás do braço, com um gesto que nunca esquecerá Ina Raffay, a bailarina. No caminho,
o último reflexo do dia cai numa poça de água suja.
- Aqui está ele, minha senhora.- disse o comissário. Tony entrou e fecharam logo a porta. Ainda tinha o seu fato de sport, apenas o colarinho da camisa estava um
pouco sujo: foi a primeira coisa que Ina viu. Depois encontrou-lhe os olhos mudados, fugitivos. surpreendeu-lhe o sorriso lasso e atormentado.
- Como estás, Tony? - preguntou, embaraçada.
O comissário que olhava através a janela, repreendeu:
- É favor falarem francês.
- Estou bem, obrigado. - replicou ele. - Vê se me envias roupa e um fato escuro. Não quero estar assim vestido e não sei quanto tempo aqui ficarei.
- Ouve. Fui falar a várias pessoas, estive no tribunal e fui mesmo a casa do juiz que vai tratar do caso, mas, por emquanto, nada se pode fazer porque o assunto
ainda está entregue à polícia. Já me interrogaram. Também falei a Ducourt que te irá defender, se for preciso. ele não toma isto a sério, diz que é uma ninharia
que estão exagerando de forma inconcebível.
- Uma ninharia infame. - disse Tony, com ênfase. -Mas eis o principal obtido por Ducourt: serás
Posto em liberdade por uma fiança de trinta mil francos. Ele só receia que, por seres estrangeiro, surjam quaisquer outras dificuldades.
- Posto imediatamente em liberdade, ah, ah! - exclamou
Tony olhando para as mãos cheias de nódoas negras e de arranhões.
- Não estás contente ?
- Muito. - replicou com ar distraído, levando a mão ao colarinho sujo. - Uma fiança. muito bem . mas há apenas uma dificuldade: é que, neste momento, não tenho trinta
mil francos.
- Não tens ? Mas és rico . não ? Já não tens dinheiro ?
- Não, mas posso arranjar. Ser rico não passa de palavras, Ina. Mas aqui estou atado de pés e mãos. Trinta mil. não . ninguém mos emprestará.
- Mas talvez a mim, Tony ? Como hei-de fazer ? Sou tão desastrada! Desculpa, mas isto surpreendeu-me tanto!
Falava mais baixo e aflita. Tremiam-lhe os joelhos.
- A ti ? - e viu-a esbelta e bonita no seu vestido cor de tabaco, com o moreno rosto sob o chapelinho azul-pavão feito de mil peninhas sedosas.
Riu-se, mas já não era o riso de outrora.
- A ti? -repetiu, sacudindo a cabeça.-Não, nenhum homem de Paris te emprestará dinheiro sem te pedir qualquer coisa. Poderia dar-te a direcção de vários agiotas
mas exigem a garantia de nomes conhecidos e esses não te darão a sua assinatura pelos teus lindos olhos. De resto, deixemos isto, já é bastante penoso que tenha
de te falar nestas coisas. Não hei-de ficar aqui eternamente, e não estou cá mal. Só tenho sono. e antes de mais nada quero roupa limpa. Ouviste?
- Está bem. - prometeu ela, não sabendo que mais havia de dizer. E fez uma observação insignificante sobre o tempo.
O comissário tamborilava na vidraça. Tony sorriu vagamente.
- Estamos aqui como numa estação, quando se espêra a partida do comboio.
Ina procurou com espanto o seu rosto; já não era a sua boca nem o seu tom de voz.
- Ah, Tony! -disse impetuosamente, estendendo-lhe as duas mãos.
Inclinou-se para a frente e preguntou-lhe baixo, em alemão:
- Hast du Sehnsucht nach mír? (Desejas me?)
Ela respondeu por um movimento de cabeça e o comissário tossicou.
Ina explicou em tom leve;
- Sehnsucht é uma palavra alemã que não tem tradução, sr. comissário.
Ele queria ir-se embora. Preguntou:
- Voltas cá amanhã ?
Esquecera-se de lhe estender a mão e de se informar do essencial.
Antes de o ver desaparecer, Ina disse:
- A criança. sabes ?
Parou para ouvir, mas sem se voltar.
- Não morreu. - murmurou ela, em voz angustiada. Hesitante, Tony murmurou:
- Ah, sim . está viva.
E abriu a porta. Fora estava um polícia, no corredor sombrio de paredes cinzentas com muitas portas. Ele desapareceu e ela fechou um instante os olhos dois homens
inclinavam-se para o chão e levavam o pobre corpinho da criança atropelada.
Em baixo, Turco esperava no trem de praça. Fê-lo saltar e mandou o carro embora. Muito agitada, começou a andar dum lado para outro, como fazia desde que o Tony
estava preso. Conhecia assim um novo Paris, burguês, ignorado. Tinha longas horas de espera nos ministérios e em escritórios. Permanecia em salas de horrível mau
gosto, aguardando a chegada de chefes da polícia, de funcionários do tribunal ou juizes. Agora, fatigada, sentou-se num banco do cais e depois no jardim do Luxemburgo
e ficou a meditar.
Que significava aquilo: já não havia dinheiro ? Habitava-se um rico palacete, possuíam-se bons cavalos, andava-se de carro, ofereciam-se excelentes almoços, lançava-se
a moda - e não se podia arranjar trinta mil francos ? Isto metia-lhe medo mas quási que lhe agradava. Via nitidamente o velho cofre da avó donde Saíam os antigos
Delarès com as suas viagens e aventuras.
"Rastaqouères disse, e a palavra estranha pareceu-lhe saltar dum romance.
Custou-lhe a regressar a casa: tinha perdido o hábito de lá estar; parecia-lhe que na sala só havia visitas para a antiga proprietária. Olhou para o vestido cor
de tabaco onde a luz punha reflexos claros. O Chic Parisien fotografara-o mas estaria ele pago ? Não tinha a certeza. Reflectiu e não encontrou senão duas coisas
que lhe pertencessem: o Turco e o colar de pérolas cinzentas, dos Delarès.
-As pérolas.-disse em voz alta. Este pensamento fê-la voltar para casa. Meteu-se num trem para chegar mais de-pressa, tinha horror aos automóveis. Era preciso pôr
Tony fora da prisão; era doloroso ver como ele perdera o sangue-frio!
com o seu narizito de parisiense prática, Suzana percebeu logo o que Ina queria fazer com as pérolas, que, muito embaraçada, apertava nas mãos. Não era a primeira
vez que levava jóias das patroas a um ourives da rua Pigalle que tinha uma loja pequenina, muito apreciada pelos conhecedores - tanto pelos que desejavam empenhar
como adquirir qualquer peça rara.
Ina respirou mais à vontade quando teve o dinheiro nas mãos, embora lhe custasse imenso a separar-se das pérolas, comquanto fosse por poucos dias. De resto, o dinheiro
não era bastante. Mas Vignon, o director das FoliesBergère veio fazer um contrato de mais algum tempo. O desastre de automóvel da Rafay provocara enorme publicidade,
de que ele se queria aproveitar. Pediu-lhe o bailado verde, o bailado todo graça e inocência, e o público aplaudiu com frenesi, sentindo perverso prazer em ver dançar
aquela sílfide, que estava implicada num caso trágico.
com respeito a Tony, a disposição geral era menos favorável. Os Jornais socialistas haviam tomado conta do assunto e apresentavam-no sob o aspecto que lhes convinha.
O automóvel assassino tornava-se o símbolo dum capitalismo sem alma que não respeitava coisa alguma e esmagava os filhos dos proletários. Tanto o elegante véu roxo
de Ina como o fato desportivo de
Tony se transformavam num desafio à pobreza. À noite, enrouquecidos vendedores de Jornais lançavam no barulho dos boulevards títulos sensacionais. Pelo seu lado,
Vignon mandava para as redacções pequenos ecos picantes que tinham êxito. Fez um adiantamento a Ina que pôde, com alegria, ir entregar os trinta mil francos a Ducourt.
Depois, muito cansada, atravessou o jardim do Luxemburgo e demorou-se um pouco junto do lago. Sentia-se perturbada e exausta, desejosa de se sentar tranquilamente,
com as mãos sobre os joelhos, e de ganhar coragem no meio das sombras da sua incerta vida . Em roda do lago, gritando de alegria, as crianças faziam vogar os seus
barquinhos frágeis.
De-repente, o Turco levantou-se e precipitou-se com delirantes ladridos para um grupo de estudantes que avançava. Ina, admirada, ergueu os olhos e, tranquilamente,
começou a sorrir. Sem mesmo erguer as mãos, murmurou, feliz:
- Fernando! Fernando. Pouco mudara. Embora mais alto, conservava ? o corpo duma criança, mas nos seus olhos interrogativos, ardia agora uma chama doce e contínua.
O rosto era iluminado por um calmo sorriso. com a mão acariciou a cabeça do cão: este gesto familiar acordou nela a lembrança dos dias da infância, e a saudade da
terra natal apertou-lhe a garganta. E logo sentiu na sua, a mão morena dos Delarès, a fraternal mão de apaziguante calor.
- Estás em Paris ? Parece um milagre!
- Pois tu não sabes, Ina, que quando a gente se senta aqui neste jardim, vê passar todas as pessoas que conhece no mundo? De resto, não há milagre: estou aqui a
completar os estudos da minha especialidade. Já me formei em Zurique. Aqui, Frémart permite-me que assista às suas operações -é o cirurgião mais maravilhoso que
existe.
- Então já és médico ! - exclamou Ina, olhando-o com ar feliz.
Sentou-se a seu lado e o cão colocou-lhe a cabeça nos joelhos.
- Já sabias que eu estava em Paris? E não procuraste ver-me?
- Chamaste por mim, Ina ?
Num tom em que se misturava ironia e afecto, ela preguntou:
- Sabes ler no pensamento ?
- Ainda melhor do que antigamente. Agora conheço tanta gente. e não calculas como é interessante! Observa-se as suas mãos, o andar, a maneira de comer, o olhar;
fazem um cigarro, levam um embrulho, conduzem uma criança - tudo coisas triviais mas mal sabes como são reveladoras. É claro que toda a gente usa máscara, os nossos
contemporâneos têm de tal forma vergonha de si próprios. Mas, em geral, é fácil adivinhar. Quando estou só, concentro sobre eles o meu pensamento e logo tiram o
disfarce. A ti, vi te muita vez assim.
Ina levantou a cabeça para dizer qualquer coisa mas ficou silenciosa.
- Em todo o caso, - continuou ele, como se lhe respondesse - havia de ir ver-te agora. Estás atravessando um mau momento, não é verdade, irmãzinha ?
- É verdade. - replicou ela, juntando as mãos. Mal sabia como, para ele, a Raffay era substituída pela pequena Ina de Amrun. Continuou depois duma pausa.
- Dias bem maus. Não é por causa do Tony, toda a gente fala do Tony mas não é isso: é por causa da criança, Fernando-a criança! Vejo-a continuamente: ainda vive
mas sofre muito! Porque há-de sofrer assim o pobre inocente e não eu? Não é possível, é injusto. O Tony, ao menos expiou, prenderam-no, mas a mim deixam-me absolutamente
tranquila, é inadmissível.
- Mas tu não és responsável, Ina, e o sr. de Maaten há-de ser posto em liberdade. Ele também não tem culpa. Falei àquela pobre gente da rua Caillot : agora estão
mais calmos, reconhecem que ninguém foi culpado, o petiz deitou-se para baixo do carro, não se podia evitar o que se deu. Foi uma fatalidade mas ninguém teve culpa.
- É claro que não esmagámos uma criança de-propósito. Mas que isto possa acontecer, que a gente chegue assim num carro. que se seja feliz durante um dia inteiro,
como nós fomos - é isso que me enche de remorsos. Uma desgraça, Fernando ! Mas vive-se impensadamente . é preciso que aconteça uma coisa destas para se reflectir.
nessa mesma noite dançava eu no ministério das finanças! Foste então à rua Caillot ? E porquê ?
- Fui lá porque gosto de estar onde há uma desgraça, parece que me diz respeito, que é comigo. Todos os dias leio nos jornais notícias deste género e acho que não
há nada melhor no mundo do que poder socorrer. De resto, o pequeno está salvo. Frémart operou-o e tudo se passou bem. Hoje fui vê-lo ao hospital e contei-lhe umas
histórias de que ele gosta imenso. Desejaria ter, quando estivesse curado, um animal que lhe fizesse companhia: um cão, um pintassilgo ou um peix- É um belo rapazinho,
muito inteligente. - E Fernando sorriu, ao pensar na criança. - Também tu lá irás vê-lo qualquer dia.
- Não! - exclamou Ina, juntando as mãos. - Nunca poderei, Fernando. Então dizes que o operaram ? Que lhe fizeram?
- Amputaram-lhe as duas pernas e tem o ante-braço partido, mas daqui a pouco ficará consertado: o Frémart tem um novo método sem gesso. Ficará com o pleno uso dos
braços e poderá trabalhar. Vocês não sabem quanta energia reside nos que são infelizes e sós!
- Então eu agora faço parte, para ti, desse vocês ? preguntou em voz que mal se ouvia emquanto o coração cantava : "Irmão! Meu irmão!
- Sim, Ina, tu agora estás muito longe de mim! Erguendo para ele o seu olhar velado, ela disse:
- Nem sei como vivo! Ando dum lado para outro durante dias inteiros, quero reflectir e não sei. Parece-me que esqueci qualquer coisa importante, que perdi o que
tinha de melhor, qualquer coisa de que não me lembro. Que existência levo eu ? Vivo, mas não é a minha vida, sou feliz mas não é a minha felicidade, ou antes: julgava-me
feliz porque não pensava. Mas tudo mudou. A gente acorda e vê que nos falta qualquer coisa importante, mas não sabe o quê. Não sei. e é daí que me vem o remorso.
E tu dizes com sinceridade que não sou culpada ?
Sorrindo, Fernando retorquiu:
- Não percebo nada de culpabilidade. Conheço tanta gente, entro em casas tão sombrias. todos são pobres e levam a vida que lhes é imposta. Todos seguimos o nosso
caminho, Ina. A culpabilidade é uma idea que desconheço: nunca vi nenhum culpado. Há pessoas de que não gosto, que possuem tudo e são egoístas e não têm compaixão,
em roda delas tudo morre, e detesto-as. - mas são precisamente as menos culpadas.
- Conheces o Tony ? - preguntou ela tão de-pressa e tão impulsivamente que o primo fitou-a nos olhos.
- Vagamente. Que espécie de homem é ?
- É belo. - depois sorriu e acrescentou, olhando o calmo rosto de Fernando: - Mas sabes ? É incapaz de ver dançar os elfos.
Ele concordou num gesto de cabeça. Do lago vinham sorrisos de crianças e nos olhos de Ina nasceu a luz dum desejo inquieto. Fernando preguntou em voz baixa:
- Gostarias de ter um filho dele ?
- Não.- respondeu ela, secamente.
- Então não é aquilo de que precisas, Ina.
- Não. E descobri-o há dias. Uma desgraça como esta deve unir-nos mais um ao outro e não separar-nos, como aconteceu. Isto transformou-nos mas em sentidos diversos.
Fico dias inteiros a analisar-me - o que não me acontecia há muito tempo. Mas o Tony não tem nada lá dentro, é só superfície e já não é o que foi. Quási que tenho
medo de o ver voltar. Não, não é aquilo de que preciso. Mas onde está então aquele que me completaria ? Caminho para a frente e aterrorizo-me quando penso: "Como
aconteceu tudo isto?" E o coração pregunta-me: "Em que desperdiçaste a tua vida?"
- Porque ficas com ele ? - preguntou Fernando em voz cautelosa.
Primeiro ficou calada, depois acariciou-lhe a mão e preguntou:
Será preciso dizer tudo aos que lêem no pensamento?
- Bem sei. Gostas de cavalos e de cães, e Tony de Maaten é um belo animal. Tu és aquilo que se chama em Paris "muito mulher".
Levando as mãos à boca, ela disse em voz apaixonada:
- Não. Há mais. Vocês não sabem o que significa isto: "o primeiro homem que desperta uma mulher". É qualquer coisa que nos perturba profundamente, que indica caminhos
que se é forçada a seguir, mesmo sabendo que não são os bons.
Ergueu os olhos para o céu, que lentamente empalidecia, e com a cabeça deitada para trás, continuou em voz mais baixa:
- Talvez seja porque devo morrer nova. Tu tambem tens no sangue esta sede, a sede dos Delarès, d abrir as cem portas da vida ?
Fernando pensou: "Deixei uma fechada" mas não o disse. De resto, era uma idea antiga, como que uma velha canção.
Caíra o silêncio e, no crepúsculo, as crianças haviam todas partido. Longe, rumorejava a cidade como um órgão de notas abafadas e, na serenidade do jardim, as árvores
balbuciavam; ouviu-se também uma frágil voz de passarito gorgeando antes de adormecer.
- É como lá em casa: - disse Ina - perdi-me no bosque dos mochos, tão sinistro, onde as flores más nos atraem para o pântano. Tu chegaste com o Turco e todo o perigo
passou .
- Onde é a nossa casa ? - preguntou Fernando, pegando-lhe na mão.
- A nossa casa é em Amrun, sob os vidoeiros.
E a sua mão arrancou à do primo a calma e o calor- Depois, soaram os sinos duma igreja que cantava no meio do borborinho de Paris, e Ina levantou-se e disse:
- Chegou a hora de ir dançar.
A porta do quarto de hotel fechou-se por trás de Ina e logo ela deixou tombar os braços, ficando em pé, envolta no seu abafo de noite. Na sua frente, no espelho
muito iluminado a luz eléctrica, estava outra Ina Raffay pálida, fatigada, com as mãos moles e o olhar ausente: aqueles olhos triplicados fitavam-na também do espelho
do toucador. Subiam da rua vários ruídos abafados como se tivessem atravessado algodão em rama; campainhas de trenós soavam sobre a neve mas não exalavam nenhuma
nota alegre. Uma voz avinhada cantava. Ina aproximou se da janela e, emquanto tirava o casaco e tentava desfazer o penteado, foi traduzindo maquinalmente as palavras
que passavam através da janela dupla:
Na floresta sombria e profunda
Estou sozinha.
Quando todas as estrelas brilham
Caminho devagar e choro.
O meu desejo é vão
E as minhas lágrimas correm,
As minhas lágrimas correm,
As minhas lágrimas correm.
A voz repetia os últimos versos numa tristeza infinita.
Quando se voltou, o Tony estava no quarto, de casaca e tendo na testa uma leve vermelhidão que fez medo a Ina, embora ela não o demonstrasse. Disse apenas:
- Que vida terrível é esta de Petersburgo! Desde que cá estou parece-me que não respiro. Tudo tem galochas, os trenós são melancólicos, os borrachos e as canções.
Além disso, o clima, a neve e esta fúnebre idea de pintar as casas com riscas amarelas, num tom que só quere dizer tristeza.
Dando-lhe um breve beijo na nuca, Tony retorquiu:
- Estás de mau humor.
Exalava um nauseante cheiro a álcool e a cigarros, preguntou:
- Foste à Ópera ?
- Fui.
- Então ?
- Vi dançar a Garshina.
- E então ?
- Mais nada. - declarou ela, sentando-se na beira do leito.
Tony pôs se a assobiar. Depois interrompeu-se bruscamente e preguntou:
- Grande sucesso ?
- Enorme.
E recomeçou a assobiar sem olhar para ela. Foi ao toucador, pegou numa lima e pôs-se a tratar das unhas.
- Deixa isso! - exasperou-se ela. - Bem sabes que não posso suportar semelhante barulho. Durante o dia inteiro só pensas em ti: barba, maçagem, unhas, perfumes.
Exactamente como uma mulher fútil: se soubesses como isso me ennerva!
Tony espreguiçou o seu esbelto corpo em frente do espelho e replicou:
- Se já não formos ambos belos, Ina, é melhor fazermos as malas e irmo-nos embora: deixar-nos-iam morrer de fome.
- Talvez.
E viu no espelho a imagem do seu amante. De súbito, empalideceu levemente: a casaca estava um pouco lustrosa nas costuras das mangas - primeiro minúsculo sinal de
decadência.
- Sucesso! - exclamou ela, estremecendo e dirigindo-se mais a si própria do que àquele Tony do espelho.
- A questão não consiste em que a Garshina tenha sucesso. Pode ter o que quiser e dançar no mundo inteiro, em Paris, em Londres, é-me completamente indiferente.
Que o Regnier se ponha aos pés da nova estrela, me abandone e me prejudique, ainda não é isso que me aflige. Mas como ela dança, como ela dança, Tony! Um tanto antiquada,
sim, pouca alma, pouco encanto sensual, eu sei, conheço isso tudo. os tornozelos a
engrossar, ah, como eu conheço tudo! Mas é a minha pessoa que ela dança, eu aos dezasseis anos, toda a minha mocidade que volta - o que não torna mais, nem se descreve,
nem se diz! Como ela dança!
- Isso deve ser penoso para uma idosa senhora de vinte e cinco anos, como tu . - troçou ele. Mas a bailarina não o ouviu.
- E precisamente, Irim, porquê aquela ópera? - preguntou, afastando da memória uma imagem. - Dança como o seu instinto ordena, vai levada sem saber que efeito produz.
é isto mesmo: desconhece o efeito que causa. Eu conheço tudo, mal mexo um dedo, logo sei qual será a reacção do público. Dança pela primeira vez. Eu estou aguerrida
com dez anos de carreira.
- Sim, tens consciência do teu poder. - disse Tony tomado de rápido e obscuro desejo.
E olhou para os braços dela, que se erguiam para mexer no cabelo, tiravam o vestido e depois caíam preguiçosamente. Ela não respondeu.
- Depois da Ópera fui cear com Tomás Brandt. Viu-me no teatro e convidou-me.
- Que queria ele ?
- O mesmo que os outros, já estou habituada. Olho para as narinas de todos quando se aproximam de mim: farejam o prazer. Em geral, diverte-me e agora é-me permitido.
Quanto a Brandt, fez-me pena. Ele bem devia saber que dentro do corpo está a alma. Ah, Tony! -disse em voz calma emquanto as mãos juntas pareciam gritar: - Que fizeste
tu de mim ?
Ele recomeçara a assobiar, pegara outra vez na lima, espreguiçou-se, de novo, em frente do espelho, na casaca de impecável corte, um pouco luzidia nas costuras.
Ela riu nervosamente e continuou:
- Achei o Brandt extremamente cómico, não pode suportar os zakouski com os seus copinhos típicos. De casaca, usa sapatos com atacadores e uma corrente de oiro. Estava
guarnecido de decorações como um bife à jardineira. Calculo que a mulher está em casa a engordar tranquilamente, tem um filho todos os anos e a família inteira toma
banho ao sábado. Cheirava a sabonete
barato como todos os homens que são bons. Mas prometeu-me que, quando para o ano, a Pequena Sereia for representada na Ópera Metropolitana, me dará o meu papel.
Veremos . De resto, a Garshina ainda não está madura para a América, ainda não fez o barulho necessário. E o maldito Regnier, com o seu antipático contrato exclusivo,
se lhe pode dar vantagem sobre mim na Europa, lá na América não me consegue atingir. Há já quatro meses que não me dá que fazer para que a Garshina triunfe. Não
percebo aquele homem: lança-me com grande estrondo e depois faz tudo quanto pode para me meter no fundo.
- Há muito tempo que se lhe não dá nada. - respondeu Tony, da janela.
- Dar o quê ?
- Claro! Então julgas que uma carreira como a tua se faz sozinha ? Graças ao dom único de dar piruetas ? Graças unicamente a um corpo perfeito que se não entrega
como pagamento? Como és ingénua, minha filha! Infelizmente, não tenho, nesta ocasião, disponibilidades para pôr o sr. Regnier em melhor disposição.
- Mas porque ficamos nós neste horrível S. Peterburgo?-preguntou ela, dominando-se para se conservar calma.
Como conhecia bem aquele tom desdenhoso e odiento que surgia muitas vezes nas suas conversas! Porque não vamos para uma terra civilizada, para Munique, por exemplo?
- Falta-te o amigo das pernas tortas? Há muito tempo que não sabes o que é o cheiro da benzína e da pobreza? Ou vês qualquer possibilidade de ganhar dinheiro ? Eu
não. Aqui tenho sorte, preciso de cá estar.
O comutador eléctrico estalou. Tony apagara as luzes; apenas na mesa de cabeceira havia uma pálida claridade. Retinha a respiração e esperava, como fazia havia já
alguns meses, com uma angústia desesperada, e ela dissesse: "Fica tu e deixa-me ir embora". Ina não o dizia, porque ele estava enganado: ela sentia-se-lhe ainda
tão acorrentada que não pensava na separação. Esta idéa de ruptura atormentava-o constantemente.
Ela mirava os reflexos vermelhos no seu vestido verde. Preguntou:
- Estiveste no clube ?
- Estive.
- Jogaste ?
- Sim.
- Perdeste ? Encolheu os ombros. Acabrunhada, ela queixou-se:
- Não me devia ter separado das minhas pérolas! Aquilo trouxe-nos desgraça. Desde que as não tenho, tudo corre torto. Não as devias ter deixado perder, devias ter
feito tudo, tudo no mundo: antes de mais nada, as minhas pérolas!
- Fazes bem em me falar finalmente nisso! - exclamou Tony em tom um pouco ameaçador e enlaçando a. - Detesto o teu silêncio, põe-me doido. Já calculava que isso
te afligia: gostas menos de mim, desde então. És bem tu, egoísta! Bem; as tuas pérolas desapareceram, pertenciam-te e sacrificaste-as por minha causa. Mas eu? Não
renunciei a tudo? Julgas que me não custou vender os cavalos? Ora essa! Então eu tinha uma noiva, uma família, uma fortuna, um nome. e tudo isto onde está? Sacrifiquei
tudo por ti, por uma bailarina que chora porque lhe faltam umas pérolas para pôr no pescoço. Quanto valiam? Vinte. trinta mil? Gastei milhares e milhares de francos
contigo. Arruínei-me contigo, mas nunca te falo disto. Estava pronto a pagar fosse o que fosse para te ter - e paguei. Mas fizeste bem em falar dessas desgraçadas
pérolas, muito bem, Ina.
Sentada na beira do leito, muito pálida, ela sentiu que as mãos lhe gelavam emquanto uma terrível dor lhe apertava o coração.
Tremendo de tristeza, disse:
-Não me compreendes, Tony! Não podes com preender o que, na minha existência de desenraizada, representavam aquelas pérolas, as pérolas Delarès! Passas todas as
noites a meu lado e não sabes nada de mim. ? ? nada! Arruinaste-te por minha causa? Mas eu amava-te,
amava-te tanto que, outrora, seria capaz de aceitar contigo todas as misérias .
- E agora ? - murmurou ele, - Agora ?
Ela limitou-se a erguer a mão e deixá-la cair, dizendo:
- Estou junto de ti.
Ele ajoelhou-se a seus pés e apertou-a muito. Lançava um cheiro duvidoso e as palavras que balbuciava parecia virem dum homem embriagado ou quási demente. Ela não
compreendia emquanto ele mastigava confusas palavras sobre o amor, o desejo e as pérolas, outras pérolas. Teve um arrepio de medo quando o viu, com gestos bizarros,
ir remexer as algibeiras e tirar de lá um estojo. Olhou-lhe para os dedos trémulos e os olhos que se fechavam e compreendeu que desejava oferecer-lhe outras pérolas
para que o não acusasse de lhe ter feito perder as suas. Um sentimento de compaixão por ambos apertou-lhe a garganta emquanto estendia a mão para o estojo.
Sobre veludo branco repousavam pérolas cinzentas brilhando na sua pureza perfeita sob a luz vermelha do candeeiro. Contemplou-as por muito tempo, em silêncio, mas
não estava a ver as pérolas: via um Tony esbelto no meio do halo gelado do inverno; um Tony num lindo passeio a cavalo, de verão; um Tony que lhe ensinava a compreender
duma forma nova os seus bailados e o ardor do seu sangue; o homem que, numa noite feliz, despertara nela a mulher, encadeando-a num laço indissolúvel, o homem que
uma sombra negra numa rua pobre tinha para sempre transformado, que se tornara pouco seguro, brutal, vulgar, caindo cada vez mais, que, incapaz de trabalhar, passava
a vida às mesas de jogo, meio embriagado na sua casaca luzidia nas costuras, auma generosidade sempre principesca na sua paixão Doentia e perplexa que tudo ignorava
das coisas da alma. Por isso lhe estendeu a mão num gesto cheio de gratidão.
Depois dos minutos de silêncio em que observara os olhos da Ina, levantou-se e foi outra vez, alto e esbelto, para defronte do espelho. E pensava: "São
assim, as mulheres! Vestidos, jóias -todas iguais. Sou pobre, ela recusa-se; ofereço pérolas, ama-me."
O seu violento desejo fazia-lhe subir o sangue à testa e aos olhos emquanto apertava o colar no pescoço da amante. Ela sentiu a frieza das pérolas na pele que se
retraiu, Na época áurea da Rafay, os jornais falavam da sua paixão pelas pérolas: amava-as porque estavam vivas. Hoje, a pele estremecia sob o contacto duma jóia
sem vida. Observou o arredondado perfeito das pérolas, o seu vivo fulgor e, em seguida, os dedos do Tony que não cessavam de tremer. Tirou vagarosamente o colar
e disse em voz muito baixa:
- São falsas, Tony. Queres comprar-me com pérolas falsas?
Ele nada disse e ela não pôde encontrar-lhe o olhar.
Uma tristeza mortal apertava-lhe o coração como uma
garra feroz. Sacudiu-a um violento soluço sem lágrimas.
- Estás a degradar-te! - exclamou em voz quási
imperceptível, sem o olhar.
Tony, aquecendo-lhe o rosto com o seu hálito, balbuciou quási que em cima da sua boca:
- Estou a degradar-me, Ina, eu sei, não precisas de mo dizer. caio e nada me detém, mas tu cairás comigo, não julgues que te largo. Perdeste-me: ficarás comigo até
à última cambalhota lá no fundo do abismo. Arrasto-te comigo, Ina, cairemos juntos.
Sentiu o ódio que palpitava nas suas palavras e disse com um estranho sorriso:
- Eu? Não, Tony, eu não me envileço, eu não
posso cair,
Cantou quási estas palavras e os seus olhos, os penetrantes olhos dos Delarès, brilhavam singularmente.
- O que tenho cá dentro, o que sou, não pode tornar-se vil. Nada de bom fizeste por mim, Tony . uma cocotte que ainda te pertence e que há-de pertencer a muitos
outros, mais tarde. ou qualquer coisa de pior ainda.
Acabrunhada, via-se sentada na borda do leito, meio despenteada, rodeada de móveis cansados, mal iluminada pelo candeeiro vermelho, e tinha a impressão
que uma fila de estranhos a esperava por trás da porta. "Não te percas, irmãzinha!" dissera uma vez o Fernando, emquanto vidoeiros de sonho balouçavam os seus ramos
como que a avisar. E concluiu:
- Mas eu não posso cair mesmo que me queiras arrastar para o abismo. Que sabes tu acerca do que eu tenho cá dentro?
Era absurdo tornar a pegar na lima das unhas e era também absurdo dizer o que ele disse:
- Espera um pouco. provar-te-ei. tenho probabilidades. prometeram-me uma missão politica . teremos dinheiro. viveremos em Paris. Gostas de mim, sim, tu ainda gostas
de mim sem o saberes .
Ela viu correr uma ou duas gotas de sangue do dedo em que ele estava a limar a unha. Sentiu no coração a dor familiar, exaustiva, da compaixão. Ao mesmo tempo, levada
por um turbilhão que a entontecia, pen sava em cem coisas: "a época está quási acabada. e se não arranjo contrato? Regnier. a Garshina . as dívidas, o vestido da
valsa vienense está um farrapo.? de arlequim também. E o Turco morreu. Não há dinheiro para renovar as toilettes. Onde vai a gente parar?" De-repente, sorriu e estendeu
os braços: "Tenho o meu bilhete na algibeira". Aliviada, fechou os olhos. A escuridão abateu-se bruscamente sobre eles. Interpretando doutra forma o seu sorriso,
Tony agarrou-a violentamente. Ela debateu-se e depois gemeu sob os seus lábios como um cão que apanhou uma sova. com os dentes cerrados, defendendo-se, dava gargalhadas
nervosas, semelhantes a soluços.
Ele bateu-lhe, gritando: "Amo-te! Amo-te! Adoro-te!" Bateu-lhe e, mais uma vez, ela penetrou com ele no infinito, nesse abraço ardente, mórbido e envenenado.
Jimmy Timps fugiu tristemente da cena levando nos braços a Bichette, a sua cadelinha favorita que tremia levemente; atrás dele, em fila indiana, caminhavam os outros
cães, de cabeças baixas. Na sala, ouviam-se raros aplausos e, no palco, no meio do barulho e do pó, mudava-se o cenário para a revista. Mal chegou lá dentro, Jimmy
tirou o postiço nariz azul e o grotesco chapéu alto. Bichette continuava a tremer-lhe nos braços. Levou os outros cães para o canil, verificou que a temperatura
estava bem, cheirou o arroz cozido e, fatigado, foi para o seu camarim.
No sofá estava estendido um rapaz, sob um cobertor de lã. Era um principiante que trabalhava no trapézio; caíra ali exausto de cansaço e sofria imenso de medo. Timps
inclinou-se para ele e disse:
- Hoje foi muito bem, tom, all right. Mas não obteve resposta; apenas as pálpebras descidas palpitaram levemente. Em frente da forte luz que ladeava o espelho, Jimmy
começou a tirar a maquilhagem. De baixo, vinha o som do tambor que rufava estrondosamente. Já começara a revista - o grande chamariz de todo o espectáculo. A música
estalava com fragor: trombetas, saxofones, barulho seco do xilofone, O cómico popular, em frente do buraco do ponto, fixava na memória a letra dos seus estribilhos.
Passavam blasés, criados de Café fazendo tilintar copos e, na sala, pequenas mesas alumiadas por candeeiros velados, esperavam o público emquanto mulheres pintadas
se debruçavam dos camarotes.
O palco era muito pequeno para os cenários que a peça exigia. Os bastidores, em cor de rosa e verde-claro, subiam até às paredes nuas dos tijolos lá de cima. Actores e comparsas acotovelavam-se e à porta da cena
estavam as dançarinas do corpo de baile, um pequeno grupo de Cupidos quási nus com os rostos pintados em tons de porcelana sob as cabeleiras encaracoladas dum loiro
inverosímil. Jimmy Timps pegou na sua cadela, abriu caminho entre o redemoinhar das ancas e dos ombros nus e parou no corredor, deixando passar mais vagas de mulheres
que, cheirando a perfumes baratos, lhe enviavam frescas gracinhas, no barulho dos tacões altos picando os degraus das escadas.
De súbito, Bichette farejou qualquer coisa e, no mesmo instante, Jimmy estremeceu e ergueu a cabeça. Deu rapidamente alguns passos e pegou no braço da ultima bailarina,
balbuciando:
- Menina! Minha senhora! Raffay!
A mulher deteve-se e fez um gesto de medo, levando as duas mãos à boca: era Ina Raffay.
- Oh, mister Timps, há quanto tempo não nos víamos! - exclamou em voz baixa, agarrando-se ao corrimão.
- Desde Londres, minha senhora, há cinco anos. Mas reconhecemo-la imediatamente, sem hesitar, a Bichette e eu. a-pesar-da cabeleira loira. Continua a ter os seus
maravilhosos cabelos ? Não. não era isso que eu queria dizer. Então não está na América? Vê, passo a vida a dizer asneiras . Julguei. como não tenho ouvido falar
de si.
- Quere dizer. porque estou aqui e nesta situação. ? Baixou os olhos para a sua calcinha de Cupido e as coxas nuas. Depois, disse num sorriso contrafeito:
- Foi uma aposta, mr. Timps e peço-lhe que guarde segredo.
- Nem uma palavra . descanse . uma aposta . então está bem, minha senhora, nada pregunto. mas poderia talvez dar-lhe um conselho. ajudá-la. Há muito tempo que estou
nesta vida, conheço bem altos e baixos. Já esteve no scenic railway do Luna Park ? Umas vezes, é agradável e outras é atroz. Anda, cala-te Jimmy, ninguém tem confiança
em ti.
Voltando-se e estendendo as mãos a uma sombra, à de Conradin, com o cabelo raro no alto da cabeça e aos olhos afectuosos e encovados, Ina disse:
- Tenho confiança em si. Havemos de conversar. Espere-me na cantina Tenho que mudar de trajo mas depois terei um quarto de hora de intervalo. Mas não diga nada,
mr. Timps. Chamo-me Mila Merz, um verdadeiro nome de dançarina em conjunto, não acha ? Toda a gente gosta de mim no nosso camarim porque sou alegre. Míla Merz. era
um papel que sempre estive tentada a representar.
A cantina estava quási deserta. O dono apagara metade das luzes e dormia atrás do balcão. A máquina do café estalava às vezes e tudo cheirava a cerveja azeda e a
salchichas. Num canto, dois músicos inactivos discutiam em voz baixa. Um comparsa resplandecia em gibão de veludo sob os caracóis loiros e o maillot de algodão pregueava-se
tristemente nas pernas escanzeladas. Oferecia-lhe um cálice de licor uma mulher idosa e demasiadamente pintada. Bichette aconchegava-se no casaco de Timps que sorria
vagamente, sentindo-lhe o doce calor. Nisto, apareceu Ina com uma curta saia de camponesa. Emquanto por trás da porta de ferro se fazia ouvir a banal música da orquestra
e Jimmy Timps traçava, pensativamente, desenhos no mármore da mesa, ela contou:
Fora em Paris que a desgraça começara. No minuto em que vira a verdade, tudo mudara. Então o Tony deixou perder as pérolas Delarès, os amigos abandonaram-na, a fortuna
gastou-se e a vida de luxo, baseada em parte sobre o crédito, findou. A tournée pela América do Sul fizera-a cair ainda mais. Ele jogava, bebia, ganhava e perdia.
Ina arrastava-o atrás de si e precisava de ganhar dinheiro. Os bailados tornavam-se cada vez mais penosos devido ao seu estado de espírito. Embora ganhasse muito,
o dinheiro escorregava das mãos como areia. O Tony era incapaz de trabalhar. Na puritana América passava por seu secretário e fazia boa figura, mas aquilo ainda
o rebaixava mais. Quando voltou para a Europa, o Regnier lançava a Garshina com grande reclame - não renovou o seu con trato. Então começaram os recitais de dança
à sua custa. Pouco davam, apenas o suficiente para poderem viver em hotéis luxuosos sem fazer dívidas. Mas o Tony fê-las: frequentava os clubes, as casas de batota
clandestinas, e ganhava raramente porque jogava com febre e no ar, sem vontade firme. E começaram então os contratos de segunda categoria, durante um mês, em qualquer
cabaret, nos "inste halls de Magdeburgo, Kónisberg, Riga. O seu nome perdeu valor. Os grandes teatros trabalhavam com Regnier que já não a apreciava.
?franzia a sua cara de rato para dizer: "Tenho muita pena, minha senhora, mas para lhe falar com franqueza, não a acho lá muito bem, agora. Dê-nos qualquer coisa
nova: a sua valsa vienense, o seu bailado das máscaras, não há nenhuma pessoa civilizada da Europa, que a não conheça e quanto à dança das papoilas, está insuportável!
Olhe para a moda: penteado à Madona, olhos púdicos, pre-rafaelismo. Poiret está a lançar vestidos duma simplicidade evangélica, Olhe também para a Garshina: está
na voga, imite-a, se puder". Em voz quebrada, Ina disse:
-A Garshina é nova!-e os cantos da sua boca
Rombaram como quando uma criança está desgostosa,
Jimmy olhou-a e viu no rosto pintado a primeira
rugazinha de lassitude e resignação.
De regresso da viagem pela Europa, a Garshina fora
acolhida em S. Petersburgo, com entusiasmo. A Opera
pusera em cena A Pequena Sereia para ela, dando-lhe
além disso dois bailados por semana. Regnier tivera a
diabólica idea de fazer aparecer ao mesmo tempo a
Rafay no musk hall, o que fazia encher as duas salas.
- Eu também tinha público. - disse Ina, deixando cair as mãos em cima da mesa - eu também.
Em seguida, houve alguns meses sem nada - como viveram foi um enigma - por fim um contrato para Sofia, num music-hall. uma casa reles. A época de Londres pertencia
à Garshina. Ina dançou cinco vezes em Ostende e o Tony ganhou alguns milhares de francos, mais nada. Se ela aceitasse os contratos que se ofereceram, seria a perda
absoluta do seu nome.
- Devo voltar para a América no mês de fevereiro, para a Ópera Metropolitana. Prometeram-me que iria lá dançar A Pequena Sereia. Não o creio, mas emfim.
Ninguém acreditaria nessa asserção, vendo-a ali sentada no vestido de camponesa, envolta pelos vulgares aromas da cantina.
- Tony é atraído por Berlim, fala constantemente das probabilidades que lá tem. Para não morrer de fome, entrei para aqui sob um nome falso. Ninguém me reconheceu
; olham mais para as pernas do que para as
caras. Vivemos numa casa de hóspedes, sem janela para a rua, com cento e cinquenta marcos por mês e estamos à espera. Mais nada.
E, num gesto que significava muito, cruzou as mãos sobre os joelhos e repetiu :
- Mais nada.
O sr. Timps ficou algum tempo silencioso, depois, com um gesto do braço, varreu de cima da mesa tudo que fora confessado. Disse :
- É um mau bocado. Todos nós conhecemos isso. Está-se na miséria durante meses-sem contrato. Conheço isso. Poderia desenhar-lhe o quarto que habita: o guarda-vestidos
é estreito, a bacia do lavatório é pequena e está rachada e as nódoas de gordura na parede indicam o sítio onde os locatários antecedentes encostavam a cabeça. O
seu amigo dorme no sofá, declaram que são casados, a dona da casa finge que acredita e leva-lhes mais dez marcos por semana. Muitas vezes não há nada para o jantar
e então declara-se que se não tem apetite. Isto nada quere dizer, é um mau bocado a passar. No próximo ano estará na América.
- Talvez.
Jimmy Timps endireitou a sua frágil silhueta, pegou nas mãos de Ina que não eram senão dois novelos de nervos e fixou nela o seu olhar de domesticador de animais,
um olhar frio que se tornara muito claro e fitando-lhe, não os olhos, mas um ponto entre as sobrancelhas, disse com decisão:
- Precisa de se separar dele se não quiser cair por
completo.
- Acho que é impossível, sr. Timps. - replicou Ina,
molemente.
- Deshabituei-me da cocaína. - disse o homem depois dum silêncio. - Pode-se viver sem cocaína.
- Julga que o Tony é a minha cocaína ? Não; há muito tempo que isso acabou. Bem sei o que quere dizer: o amor como narcótico, como forma de embriaguez, uma porta
para o infinito, um meio de evasão. Há seis meses ainda era isso, agora também passou. Eu não preciso dele mas ele precisa de mim: é por isso
ume a separação é impossível, era necessário que ele
achasse uma porta de saída antes de nos devorarmos um
ao outro.
A Bichette dormia no sobretudo do dono. Ina olhou para a cadela e invadiu-a um inconcebível desejo de se sentir assim abrigada. Depois disse como uma criança e com
voz estrangulada:
- Queria ir me embora. partir para sempre. Timps sacudia a cabeça e pensava:
- Que felicidade viver só com animais! E disse-lhe:
- Sinto que a Raffay caminha como uma sonâmbula. Queria despertá-la. Não ouve nada quando se pronuncia o seu nome? Ina Raffay! Ina Raffay!
Ela ouvia um incentivo no som destas sílabas: Ina Raffay, uma fanfarra vermelha, verde e amarelo nos cartazes. Ela ouviu-o soar, como murmuram as fontes, quando
estava em cena, ou no camarim, ou no eléctrico ou mesmo em casa quando o Tony, observando-a à chama verde do gás disse com ar sombrio:
- Atrasada.
O quarto era ainda mais sinistro do que o sr. Timps imaginara: de todos os cantos espreitava a nua pobreza; da cozinha subia mau cheiro. Sobre a mesa estava colocada
metade dum pão e no prato esbotenado viam-se dois arenques. Ao lado, duas cartas com numerosas direcções modificadas. Estavam abertas. A Ina, parecia-lhe que tudo
aquilo se afastava dela, toda aquela porcaria. Fundia se-lhe o coração, gelado, tornava a sentir-se ela própria e, bailados que não podia esquecer, corriam-lhe através
dos membros.
- É preciso mudar de vestido imediatamente, ordenou Tony - pôr o de veludo preto. Tenho uma entrevista no bar Louison com um velho amigo meu, Redern : é muito importante
para mim e prometi levar-te.
Tirou-lhe a blusa e, quási à força, pôs-lhe o vestido de noite, o último que ela tinha. Sentiu na pele os dedos que detestava e sorriu, tonta.
- Ao bar ? Então tens dinheiro ? - preguntou enquanto procedia realmente como uma sonâmbula. A
verdadeira Raffay seguia uma arrebatadora melodia, um início, uma recordação.
Tony deu uma grande gargalhada fanfarrona, procurou na algibeira do casaco e deitou para cima da mesa uma nota de mil marcos.
- Dinheiro! - gritou ele. - Aqui está algum e, se tiveres juizinho, virá mais.
Ela olhou-o, pensando: cPobre ser envilecido!" e acariciou-lhe levemente os cabelos.
- Deixa-me! - disse ele, rudemente. - Isso já nada significa para nós.
Viu que tinha os olhos febris e teve medo.
- Onde arranjaste isto?
- Ganhei-o. Não preguntes nada. Vem.
- As cartas, Tony. então agora abres-me as cartas? Não respondeu. Estava à porta e fazia ranger os
gonzos emquanto ela lia. Devorava com os olhos aquele rosto lívido e descolorido agora que não tinha pintura e sentia ódio, detestando a expressão que o desviava
dele. Ina pegou nos sobrescritos; dum caiu uma folha orlada a negro.
Fraukin Zwillingsbauer, em termos respeitosos e circunstanciados que produziam um efeito ora cómico ora comovente, anunciava o falecimento do sr. Rafay. Misturava
a história de Joszika, a desavergonhada que roubara roupa, com as flores da tumba e a sua solidão; fazia alusão ao trajo espanhol e, para terminar, oferecia em frases
embrulhadas os seus serviços como criada grave, visto que estava sozinha e percebia muito de costura, engomados e penteados, sabendo que a Menina estava habituada
a viver no meio do maior conforto. A signatária lançar-se-ia ao fogo pela Menina, seguindo-a até ao fim do mundo como se fosse sua própria filha. E terminava, enviando-lhe
respeitosas saudações.
Ina, com o espírito longe, olhava para Tony sem o ver. Sentia nos cabelos aquela mão firme e quente, en quanto a voz dizia: "Já passou a hora de se deitar." E sorriu
amargamente. "No meio do maior conforto" e olhou para o mísero quarto. Pegou na outra carta e tornou-se ainda mais pálida; era o contrato com a Ópera
metropolitana. Leu duas vezes, do princípio ao fim, e deu uma gargalhada que soou como um soluço. - Então? - disse Tony, da porta.
Éo meu contrato. Sempre é certo eu ir à América !
Dizia eu e ouvindo-a, Tony estremeceu. com um gesto que não pôde dominar, empurrou-a para a escada. Muito forte, soou dentro dela a longínqua melodia, o motivo de
Irim, a um tempo desejo, recordação e começo. Luzes coloridas atravessavam a escuridão, o cigarro de Tony, que brilhava acima da sua cabeça, parecia estar infinitamente
distante. Quando o amante chamou um automóvel, ela tornou a preguntar, com angústia: "Mas donde veio esse dinheiro ?" Depois, fechou-se em seu redor uma alta e clara
campânula de vidro que a tornou inacessível a tudo.
O bar: uma primeira sala onde reinava solene silêncio sob a luz amarela das lâmpadas; uma fila de smokings empoleirados, como gafanhotos, em frente do balcão; mulheres
de sorriso fanado, cabelos amarelos como a luz. Garrafas alinhadas lembrando pedras preciosas e o cerimonioso mixer, vestido de branco, preparando exóticas misturas.
Pelos cantos, amadores sonolentos com uma palha colada aos lábios moles, respirando o cheiro a álcool e a violeta. Na segunda sala, por trás dum biombo, o piano
e o violino executavam discreta melodia, uma romântica música que emocionava o rosto das mulheres. Risos estalavam aqui e ali sob os círculos luminosos dos candeeiros
velados.
Um cavalheiro, no medíocre fato do oficial à paisana, inclinou se de modo exagerado em frente de Ina que adivinhou uma intenção escondida no beijo que lhe depôs
na mão. Tony tomou o bonacheirão ar de proprietário e esboçou mesmo um sorriso cúmplice. Ina inclinou-se para um copo em que violetas nadavam num líquido vermelho-escuro.
- Á especialidade do bar: - disse o sr. Redern - é o cocktail Louison.
"É bonito!" pensou Ina, mergulhada naquela harmonia de roxo e rubi. Esteve muito tempo cega e agora viu pela primeira vez qualquer coisa. A impressão foi
tão forte que teve desejo de chorar. De repente, apareceu um quadro, primeiro uma cascata de pedrarias vermelhas e roxas, depois nasceu um gesto; depois outro, um
véu prateado, braços morenos erguendo-se, todos cobertos de pulseiras. um bailado de baiadeira, talvez.
O coração de Ina bateu com uma alegria feroz de que havia muito perdera o hábito e que lhe pertencia exclusivamente.
Tony e o oficial falavam de coisas militares e ela ficou vagamente admirada. Depois mergulhou, de novo, nas suas visões e pensamentos. Sob a mesa, a mão de Tony,
apoiada à sua anca, fez-lhe sinais cabalísticos que não percebeu. O Sr. Redern adiantou um joelho atrevido. ele bem sabia como era costume tratar as bailarinas.
A música continuava infatigavelmente: o pianista e o violinista estavam quási adormecidos por trás do biombo, tinham o dorso curvado para cima dos seus instrumentos
mas não deixavam de espalhar sensualidade no ambiente.
Ina continuava a pensar: "Qualquer coisa azul como uma chama de enxofre no meio da cena escura, punhais curvos. gestos ímpios e os sacrilégios do bailado do sacrifício".
Tony estava a falar. Falava bem e de forma interessante sobre os efeitos dos projécteis; o oficial demonstrava um espírito positivo emquanto com o pé ia acariciando
a meia da dançarina. Várias vezes lhe lançou galanteios, cumprimentos sem rodeios. Tony devia esbofeteá-lo. Mas tinha um sorriso vazio, quási satisfeito, e voltou
a falar nos novos projécteis. Ela notou-lhe o arfar das narinas e viu como tremiam as suas mãos que o mármore negro da mesa reflectia. Olhou-o. As pálpebras franziam-se
quando se informava dum novo explosivo, exactamente como as dos acrobatas quando vão dar o salto da morte e que se cala a música, quando o público fica silencioso
e o tambor rufa surdamente.
O sr. Redern dava o esclarecimento com todos os pormenores.
A mão do Tony crispou-se outra vez sobre a mesa e ela recordou-se dessa mão lançando em gesto fanfarrão
mil marcos ao lado do prato rachado, sob a luz esverdeada do seu quarto. Olhou-o e empalideceu. Sob o seu olhar ele ficou lívido-tendo apenas uma vermelhidão no
sítio onde começa o nariz.
"Espião!" murmurou, mas o pensamento não surgia com nitidez. Passou na sua frente como um relâmpago revelador. A campânula de vidro tornou a isolá-la. A música continuou.
Havia barulho na sala, arranjavam espaço entre as mesas, surgiam mulheres que iam fazer uma exibição de danças modernas. O sr. Redern, cada vez mais alegre, comprou
rosas, colocouas na frente de Ina e para fazer espírito pôs-lhas no ombro. Tony permaneceu apático como depois dum trabalho exaustivo. As mulheres dançavam, cantava-se
na sala, estava se à vontade.
com o ardor que mostrava em criança, Ina disse:
- Eu também quero dançar!
O sr. Redern bateu palmas e devorou com o olhar todo o seu corpo. Tony colocou levemente a mão no veludo do vestido, caiu uma cadeira e Ina foi levada no turbilhão.
Não sentia senão o seu próprio corpo que acordava depois de longo entorpecimento e, de novo, se entregou, extática, à dança. Tony, inclinado para ela, enganou se
e preguntou:
- Estás excitada ?
- Estou. - respondeu ela, querendo dançar mais.
- Desejas-me? - murmurou-lhe sobre a boca, em tom falso.
- Não. - respondeu ela, distraidamente, notando como tinha um lindo cadenciar de quadris.
- Desejas outros homens ?-preguntou com os olhos brilhantes.
Ela sacudiu a cabeça.
- Mentes! Adivinho-te, conheço-te, desejas qualquer coisa . O que é ? Diz-me o que queres. Um beijo meu ? Vamos já para casa? Queres que te bata ? Onde estás? Porque
te afastaste? Consinto em tudo o que quiseres. O meu camarada agrada-te? Queres ir com ele ? Eu deixo. podes crer que deixo. dize
o que queres.
Dançando sempre, cada vez mais leve, ela respondeu :
- Para ti não há mais nada no mundo. Mostrou os seus dentes como um animal.
- É escusado representares uma comédia: conhecemo-nos bem a fundo. Bem sinto como tremes, estás embriagada. Se me não desejas então quem queres tu ? Este ? Aquele
? Olha para mim, responde-me ou estrangulo-te !
O ódio exaltava-os, a ambos, a música continuava sem parar e não deixavam de dançar. Ela disse em voz alta:
- Ser espião não te basta; agora queres ser souteneur.
Ele enterrou-lhe as unhas na carne, lançou-lhe olhares furiosos, e continuaram a dançar. Os cabelos da Ina crepitavam, abriu-se um círculo para admirar o magnífico
par.
Ele disse em voz baixa:
- Infame! Tu é que fizeste de mim o que sou hoje!
Calaram-se porque a música parara.
- Foi a última vez que dançámos, Tony! - declarou Ina, fugindo-lhe dos braços.
O sr. Redern agarrou a e levou-a numa nova cadência. Apertou-a muito, pôs-lhe as mãos na pele, lançou-lhe o hálito quente para o rosto. Ela soltou-se. A música continuava,
o bar endoidecera, toda a gente se agitava, flutuavam pesados e persistentes perfumes, o álcool ardia dentro das pessoas. Tonta, Ina lançou o olhar em seu redor
e rodeou com o braço uma dançarina negra.
-Queres? -e começou a conduzi-la, sorrindo ao cheiro da maquilhagem, do pó e da transpiração, ao cheiro peculiar ao camarim, que lhe dava a impressão de estar no
seu ambiente.
- Também és bailarina ? - preguntou a preta.
O silêncio e o vácuo fizeram-se na sala, o círculo aumentou em redor das duas dançarinas, as cores mistUravam-se e Ina, evadindo-se dos limites da dança moderna,
ergueu-se a uma improvisação: aplausos, clamores,
voo de flores. O ritmo da música soou com mais vivacidade e entusiasmou toda a gente.
"A Rafay!" gritou uma voz. Ina acordou e olhou em seu redor. "A Raffay! A Rafay!" O alarido cresceu, O que primeiro gritou, ergueu uma taça e em cima duma cadeira
escancarou uma boca escura, reluzindo como se estivesse untado de azeite. Rostos amontoavam-se junto da Ina, parece que reconheceu alguns. Os homens beijaram-lhe
a mão e encheram lhe os braços de flores. Uma voz cantou, era talvez Lejeune, o "cantor perverso" de Paris e vindo não se sabe donde, fixara-se nela o olhar de Jimmy
Timps. Um homem estava de costas voltadas, sentado a uma mesa, mas ela conheceu aquelas mãos amarelecidas pela nicotina, eram as de Walt Meinart. Sonhou também que
o Fernando lhe sorria, encostado ao biombo. e o seu sorriso era extremamente calmo.
- Máscaras. tudo máscaras. - balbuciou.
A música continuava e a bailarina arrancou-se ao tumulto, às mãos que a queriam agarrar, ao ruído das vozes. Fechou-se uma porta atrás de si. No céu, brilhavam estrelas.
No Triergaten o ar estava fresco; entre as árvores nuas corria a luz dos candeeiros; as últimas folhas apodreciam no chão. O sr. Redern desaparecera, o Tony caminhava
a seu lado mas estavam bem separados e conservavam-se silenciosos. Depois ela disse, deixando-se cair num banco.
- Tens alguma coisa para me dizer, Tony ? Tentou falar uma ou duas vezes. Finalmente, preguntou em voz que dava a ilusão de ter encontrado o seu domínio de outrora:
- Partes sozinha para a América ?
- Parto.
- Então tudo acabou entre nós ?
- Completamente.
- Ainda não te conheces bem, Ina. Mal sabes como o amor te fará falta.
-Se isto é amor, garanto-te que estou farta, bem farta dele.
- Não podes passar sem um homem, Ina.
- Quando precisar. o remédio é simples. Não tem importância. As mulheres estragam a sua vida julgando que o homem é uma coisa muito importante. Mas há coisas mais
sérias.
- O quê ?
- Outras coisas.- murmurou ela, absorta, olhando para a luz do candeeiro que começava a empalidecer na madrugada. Tu não percebes que. que se possa ver dançar os
elfos. - Os olhos velaram-se e acrescentou, mais baixo:-Ou ter aspirações, ou trabalho, ou um filho.
Não sabia de que profundidade lhe vinha a emoção que lhe fez pronunciar a última palavra com as lágrimas nos olhos.
Agarrando-a, Tony disse :
- Uma noite comigo e terás um.
- De ti ? - Sorriu. - Teu ? Para ser um tarado ?! Tony fez um gesto violento e rangeu os dentes.
Ina tornou serenamente :
- Deixa. Conheço bem a ameaça do revólver, já não pega. Nem me matarás a mim nem te matarás a ti. Nada de tragédias, Tony. Vai-te embora. Queria ficar só, agora.
Estava impaciente. Fechando os olhos, viu o seu novo bailado.
- Olha, agradeço tudo o que fizeste por mim. Agora deixa-me, sim ?
Ele não se mexeu. Por fim, disse:
- Está bem. Vou-me embora; até à vista. Dizes sempre isto desde que viemos de Paris. Se eu te deixasse como tu me abandonas, o que farias, Ina ?
- Matar-me-ia.- respondeu ela. - Mas eu não sou como tu, Tony.
Não respondeu e afastou-se. Esqueceram-se de apertar as mãos, à despedida. Desapareceu na sombra das árvores sobre as quais já tombava a fria humidade da madrugada.
Ina reteve a respiração e ficou à escuta. Silêncio profundo. Talvez se fosse ouvir um grito ou um tiro. quási que o esperava. Passou bastante tempo.
AO longe, ouve um ruído, o choque surdo dum fruto maduro que o outono fazia cair na erva.
Depois o silêncio foi ainda mais absoluto. Ina juntou maquinalmente as mãos.
Então, numa árvore, acordou uma vozita de pássaro e em seguida apareceu um empregado grisalho que apagou os candeeiros de gaz.
A Ronda do Sacrifício
Reinava profundo silêncio na cabine. Um copo tilintava tão apagadamente, tão regularmente no seu suporte de níquel, que nem se ouvia: este barulho adormecia como
o canto dos grilos no campo, ao meio-dia. Ina, coberta apenas por um fino quimono, estava deitada sobre a cama, imóvel. Transpirava e colocara uma compressa gelada
na testa. Aproximava-se de Aden e o navio escorregava insensivelmente sobre a superfície negra e metálica do mar nocturno, deixando atrás de si o prateado rasto.
Ina abriu preguiçosamente os olhos e fitou Irma Zwillingsbauer que, inclinada sob o candeeiro, cosia. O ácido rosto tinha-se encarquilhado, bronzeado com a viagem
à índia, mas sob os caracóis cinzentos da testa havia ainda um certo ar de juventude. Sentiu o risonho olhar da Ina e ergueu os olhos.
- A dor de cabeça passou mais? - preguntou. - A Menina devia dormir.
- Quem é que pode dormir com este calor ? E tu, podes coser? Admiro-te. Eu não poderia mexer um dedo. Ouve. coitados dos músicos da orquestra!
-A Valsa dos Malmequeres. Quantas vezes a ouvimos na escola de dança! A Menina ainda se lembra? Quando o pobre Conradin era vivo.
- É verdade, o velho Conradin .
Ina fechou os olhos. Era agradável aquela música, ao longe. A escola de dança!
- Gosto que tragas sempre contigo um pouco do passado. Faz-me bem. És como o caracol que só deixa sair da casca as antenas. Há quanto tempo andas a viajar comigo?
E o que tens visto! Entretanto, houve a guerra e tornámo-nos americanas. Mas tu continuas a viver sempre na tua escola de dança. Quando olho para ti, tenho sempre
vontade de beber uma limonada, como quando era pequena. E também queria que me lamentasses como naquele tempo.
- Deve haver cinco anos que o seu pai morreu e dois que a guerra acabou. É verdade: o que nós vimos nesse intervalo! A América, o Japão, a índia. Ninguém lá em casa
acreditaria.
E a Irma, depois de ter dobrado o vestido branco, pô-lo numa gaveta.
- Cinco anos! Desejaria saber o que terás pensado algumas vezes.
As faces de fraulein Zwillingsbauer coraram bruscamente.
- O que pensei ? Reconheço em si o sangue do seu defunto papá. Conheço-o bem.
Mudou-lhe a compressa e com a rude mão acariciou, hesitante, a testa e os cabelos erguidos da Ina. Depois acrescentou em voz muito baixa:
- Se o meu filho fosse vivo, teria o mesmo temperamento e gostaria de aventuras como a Ina.
Ela não respondeu mas um pouco mais tarde disse, sem abrir os olhos:
- Amanhã, mister Ramley desembarca e também esta história acabará, Irma .
Fraulein Zwillingsbauer fez uma careta, engoliu com esforço e disse :
- Também isto não tinha jeito nenhum, não era o homem que convinha à Ina; não era um verdadeiro casal. Esta maneira de proceder dos americanos não me agrada; casam.
passam um, dois, três anos. divorciam-se. Não tivemos um filho, nem vida regular, nem mesmo uma casa durante o tempo em que esse casamento durou. Casamo-nos para
dar a volta ao mundo com um estranho, divorciamo-nos e pronto. Não é o meu género:
sempre em hotéis, cada um no seu quarto e uma língua em que marido e mulher se tratam por você. Portanto, o mister desembarca e nós continuamos o nosso caminho.
E o que vai agora a Menina fazer ?
- Não me preguntes isso quando estou a morrer de calor. O que vamos fazer ? Antes de mais nada à Europa e depois, de-certo o mesmo que antes: bailados, êxito, comboios,
navios, hotéis, malas por desfazer, jornalistas, admiradores. Tão de-pressa a gente se deita por baixo dum mosquiteiro e tão de-pressa há neve - mas, no fundo, é
sempre a mesma coisa. Já não tem encantos para mim. Agora vai dormir, Irma, é tarde. Não, dá-me primeiro o espelho pequeno e não me preguntes o que vai acontecer.
Boa-noite. Ouves o barco a ofegar? Sente-lo tremer? Não se sente já, está-se habituado. Em baixo estão os fogueiros, em baixo tudo está a arder, incandescente e
batem e lutam e trabalham. E amanhã, toma sentido, quando entrarmos no porto, tudo se calará. Então toda a animação cessa, tudo se torna simples, fácil como quando
uma inflamação desaparece e uma dor de cabeça acalma. É o que me agrada, é o momento em que gosto do barco e da viagem. Bem, boa-noite, Irma, já tens os olhos piscos.
Dorme bem.
O barulho da orquestra subiu um momento, depois afastou-se de novo, quando a porta se fechou. Ina pegou no espelho e viu o seu rosto escuro e fatigad. "Trinta e
dois anos" pensou e procurou as rugas. Havia um pouco de lassidão em redor da boca, os olhos não tinham o mesmo brilho de outrora e velavam-se mais frequentemente
sob as pesadas pálpebras dos Delarè mas conservavam o seu poder de observação. A pele tinha reflexos sombrios e um pouco fanados. Apenas a testa não mudara -era
sempre a mesma fronte de imperatriz.
O teto da cabine pesava-lhe, o calor era intolerável, o ar colocava-se-lhe nos lábios como um pano quente e húmido, o copo continuava a tilintar no seu suporte de
metal. Ouviram-se passos em frente da porta. Talvez que Ralph Ramley viesse ainda mais uma vez despedir-se, depois dum ano de vida conjugal, sem
guardar a sua máscara de camaradagem mundana. Seria lamentável. Tivera com ele um lindo período, um período de luxo isento de sentimentalidade e de emoções. Apagou-se
a luz. os passos pararam e depois afastaram-se. Ralph Ramley nunca tivera uma falta de tato. Amanhã diria cortesmente adeus, estaria vestido de branco e participaria
que tinha negócios a resolver em Aden, uma cidade onde ninguém os tinha. Ina previa já que daí a um ano não poderia lembrar-se do rosto claro, de feições regulares,
daquele Ralph.
Esperou que nada mais se mexesse no corredor e então, cobrindo o quimono com um casaco, saiu da cabine. A música emmudecera. Na semi-escuridão do corredor passou
uma criada. Mais nada. Tudo dormia. Na ponte estava negro mas o céu era transparente e as estrelas pareciam enormes no infinito dossel. Na obscuridade, o navio estava
rodeado por um cinto de prata, o ar estremeceu, tudo estava vazio e silencioso. Puxou a sua cadeira para a parede, encostou a cabeça para trás, sobre os braços,
e cruzou os pés nus. Depois ergueu os olhos para o céu e quási se incorporou com as nuvens.
- Não esqueceste o grande segredo. -disse Fernando que, com a blusa branca, de médico, estava encostado à amurada e cujo rosto sereno era iluminado pelo reflexo
do mar.
- Que segredo, Fernando ?
- O segredo das crianças e dos sábios: fugirmos de nós para o infinito.
- Não sou uma criança nem um sábio, mas, fechada dentro de mim, ando sempre à procura. Imagino a vida como uma casa de cem portas abrindo para o infi nito; abro-as
todas, umas após outras, e nunca abro a boa.
- Coração inquieto, coração inquieto . Então não conheces a palavra da Bíblia: ". e atormentaram-se inutilmente."?
- Inutilmente. é isso mesmo, Fernando. trabalho, arte, bailados, ambição, amor, paixão, quantos tormentos inúteis! Desejaria fazer o que é importante e faço o que
é insignificante. Mas afinal, o que é importante ?
- Fazes essa pregunta como uma criança, Ina! Nada, minha irmãzinha, nada é importante. e tudo é. Nascer, morrer, ressuscitar, eis o que para nós tem importância.
e para a eternidade nada vale! Nada pode ?perturbar a serenidade eterna!
? -A eternidade! Mas não é nela que eu penso! O que é bom para mim, para a minha eternidade? Porque me escorre tudo dos dedos, como areia ? Não há nada que possa
encher-me as mãos e o coração ? Porque havemos de seguir sempre um caminho angustiado, sendo ?eternamente perseguidos sem podermos encontrar re?pouso nem felicidade
? Não sabes que sofremos do vácuo como se fosse uma doença ? Desejaria ser feliz uma vez, feliz na maior profundidade do meu ser - um ?instante apenas. Tu já foste
feliz, Fernando ? - Fui infeliz. - respondeu ele com incompreensível sorriso.- Feliz sou quási sempre. - Donde vem a causa de poderes falar assim ? - De baixo. de
longe. - disse ele com gesto vago.- Talvez um dia te explique. Eu sigo um camInho e tu outro. Acabei com tudo que me dizia respeito e vivo fora de mim; tu procuras
o que te é pessoal e vives dentro de ti própria. No fim, encontrar-nos-emos.
-Quando? Onde?
- No grande repouso, querida alma irmã.
"Estou a sonhar!" exclamou Ina. Tudo era trans ?parente e irreal: a lua erguia acima do mar o rosto adormecido que deitava prata no ar e longe, as vagas levavam
Ina, poalha de luar. Os botões de madre-pérola do seu casaco brilharam. Esfregou-os, agradando-lhe a polida frescura. Viu os seus pés brancos e a silhueta do Fernando
projectou-se na sombra. -Podes dar-me a tua mão? - preguntou ela, hesitante. O primo sorriu como a uma criança. Sentiu lhe a mão, era o fluxo familiar da vontade
e da tépida força que dele emanavam.
- Estás realmente aqui, Fernando ? Donde vens ? Há tanto sossego em teu redor. terás morrido? - Não é preciso morrer para se estar calmo. - respondeu
ele em voz firme emquanto o olhar se aprofundava nela como um gérmen.
Inclinou a cabeça que já lhe não doía mas que, fatigada, procurava o repouso nas suas mãos, Houve um longo silêncio.
Qualquer coisa bateu no coração da Ina e levou-o a abrir-se. Saltou uma torrente de lágrimas, lágrimas apaziguadoras que lhe corriam pelos dedos, brilhando nos raios
da lua e empalidecendo com eles, visto que o astro desaparecia no horizonte.
Quando Ina ergueu a cabeça já não estava ninguém junto da amurada. Um sopro de ar veio refrescar-lhe os lábios fechados. No oriente, o mar coloria-se já com o imperceptível
reflexo da aurora.
A primeira pessoa que Ina encontrou em Génova foi o príncipe Birkenfeld. Sentada no hall do hotel, olhava para a palma das mãos e dizia perplexa: - E agora ?
Não o reconheceu. Muitas pessoas haviam passado na sua frente e a Europa tomara um aspecto estranhamente sombrio e diverso. Mas ele reconheceu-a logo e dirigiu-se-lhe
com um vivo impulso de todo o seu ser:
- Ina Rafay, voltou! Ina Rafay!
E beijou a atmosfera a um centímetro dos seus dedos, como se faz na corte.
- Consigo emfim tornar a vê-la, minha senhora. É claro que não se lembra de mim. Mas eu considerei-a sempre como uma espécie de símbolo, de bandeira, de estandarte,
desde a época em que, cadete, a vi em Viena. Volta do Novo Mundo ? Vai encontrar-nos muito mudados. Tivemos a guerra e tivemos a paz. Nem uma nem outra nos tornaram
nem mais amáveis, nem mais belos. mas como a Ina Raffay vai outra vez dançar na Europa, tudo se transformará.
Ina olhou-o, surpreendida. Viu-lhe um rosto severo, velho demais para a idade que devia ter. Ela experimentava a impressão de lhe ter sentido o olhar guardando-o
em si. Dirigiu-lhe o seu sorriso mundano. Glad to see you (feliz por tornar a vê-lo) - disse maquinalmente. Mas logo se dominou e veio do inglês para o alemão, da
rotina para o interesse.
- Que vida se leva hoje na Alemanha ? Vocês que fazem ? - preguntou, inclinada para ele. Eu acabo de chegar e tenho remorsos para com todos daqui.
-Não, a guerra não tinha nada que ver consigo, minha senhora. De resto, eu também sou uma espécie de desertor. O pouco que me restava de pulmão, não teria resistido
na minha pátria. Por isso me mandaram para o Tessim. No verão voltarei para Birkenfeld. Tenho a nostalgia da minha terra, o que dá sempre um pouco de febre e então
os médicos não acabam com as censuras. No exílio, não presto para nada. - No exílio, alteza?
? -Sim, mais ou menos. Mas não é correcto chamar-me alteza. Tornei-me um cidadão da república de
? Birkenfeld, um valente, zeloso e muito patriota cidadão. Ainda lá tenho uma propriedade minha, sabe? o velho
? palácio, algumas terras, uma casinha de campo, um pedaço de floresta, alguma planície. Então, torno-me útil
como simples cidadão, o melhor que posso. Construi um museu, compro um objecto para a colecção e ressuscito a porcelana da região - o que me parece não dar prazer
a ninguém senão a mim. e talvez ao dr. Hunold, meu amigo e conselheiro.
O dr. Hunold, que estava três passos atrás do príncipe, inclinou-se. O fidalgo preguntou a Ina quais eram as suas intenções, mas ela limitou se a encolher os ombros.
-O seu Birkenfeld é bonito, alteza? - preguntou.
- É um nome próprio para inspirar nostalgia: um campo (Feld) com bétulas (Birken). Lembro-me ainda do que pensei na primeira vez em que ouvi esse nome, em criança,
na aula de geografia. numa longa fila de bétulas no flanco duma colina . parecia-se com raparigas de véu.
- É uma honra para mim que se tenham ocupado do meu cantinho de terra na sua aula de geografia.- replicou o príncipe, corando levemente. - No que pensava em pequenina
já residia toda a Ina Raffay. Se Birkenfeld é bonito? Quem pode dizer com o que se parece a sua pequena pátria? V. Ex.a nasceu numa grande cidade, deve ser muito
diferente.
- Oh, não. Eu também tenho uma pequena pátria onde rumorejam os vidoeiros . - disse Ina, mergulhada nas suas recordações.
- Hunold dir-lhe-á melhor do que eu o que é Birkenfeld, escreveu a esse respeito um grande livro.
- Birkenfeld é belo,-começou logo a explicar o dr. Hunold -o campo é bonito e sobretudo a cidade é muito graciosa. O velho castelo dorme, inclinado sobre os seus
baluartes, cisnes vogam no lago, no parque erguem-se árvores centenárias, não se corta a erva que é muito alta e dum verde sombrio, também lá há vidoeiros, minha
senhora, alinhando ao longo dum riozito até ao "Favorito". É um pequeno castelo de estilo rococó, onde antigamente viviam as amantes dos príncipes, mas que hoje
está vazio. Há lá um encantador salão com um tapete chinês, onde organizámos no ano passado uma exposição de miniaturas alemãs. Este ano apresentar-se-ão porcelanas
de Birkenfeld, tanto antigas como modernas. Talvez nos dê a honra de ir vê-las?! É uma cidade parecida com a rosa brava, mergulhada em sonho. Só há lá uma coisa
bem real: o sino da torre branca que, de hora a hora, deixa ouvir a sua musicazita de notas falsas.
- É poeta ! - exclamou Ina, imperceptivelmente irónica.
Hunold protestou com um gesto, e o príncipe disse:
- É um literato capaz de escrever seja sobre que for - e bem. Infelizmente tem demasiada ambição, o que não acontece com os poetas.
Ina observou o ambicioso Hunold: era um homem alto e tudo nele era grande: o corpo, os pés, as mãos, a cabeça e nesta, a fronte e os olhos claros e atentos, eram
extraordinàriamente notáveis. Tinha uma voz calma e grave.
Fráulein Zwillingsbauer apareceu, fez aos dois cavalheiros a sua complicada reverência da escola de dança e deu a Ina a sombrinha e as luvas. Génova ardia, inundada
de luz, nos terraços encostados à montanha. O aroma do porto flutuava no ar e vozes italianas, vivas e rápidas, soavam pelas ruas. O príncipe caminhava na frente
com Ina e ela via de lado o seu rosto estreito e as inchadas artérias que lhe batiam nas fontes côncavas. Ele ia calado, pensativo, e Ina também pouco falava. Três
passos à rectaguarda, o dr. Hunold fazia observações de história e erudição.
À tarde, sob os velados candeeiros do vazio salão de chá, o príncipe disse:
- Estou contente, minha senhora, por, de novo, a encontrar na Europa: vê-la dançar foi sempre para mim uma riqueza - uma felicidade. Tenho sido cruelmente privado
dessa alegria e é com a impaciência duma criança que espero a sua reaparição no palco.
Ina ficou silenciosa. Depois disse:
- Parece-me, alteza, que nunca mais dançarei.
- Está fatigada ? - preguntou com precaução o dr, Hunold, como se faz a uma criança doente a quem se quere adormecer.
Ina reparou para as grandes mãos e para o enorme peito do colosso. Respondeu docilmente :
- Sim, também estou fatigada. E depois, os meus bailados dão-me a idea de serem uma coisa secundária, já não creio neles. Ou antes: acho que não devo dançar mais
e uma coisa que se não deve fazer mais é como uma maldição: já não é arte. Não quero dançar mais.
- Como pode dizer que a dança é uma coisa secundária?-preguntou vivamente o príncipe, sentindo-se lesado.
"Tem febre, pensou Ina, os seus olhos brilham, toda a sua delgada silhueta de galgo está a tremer."
- Quere isso dizer que a dança é um acessório ? Mas é a mais bela flor que a nossa época produziu, talvez a única. Olhe para os nossos artistas, conheço muitos.
tenho lá amigos. Nota-se neles todos a ruptura, a separação, a falta de unidade entre a sua existência e as
suas criações. Ao lado disso repare para si, para a harmonia da sua existência. Olhe para a sua mão segurando nessa chávena de chá: mostra o que nos faltou a todos,
a fusão da arte e da vida.
- A harmonia da minha existência . - disse Ina com um sorriso contido.
Colocou a chávena no pires. A fina porcelana tilintou e todos olharam para a sua mão.
- Não dançará mais. está bem, Ina Raffay, não dançará mais, mas nem por isso será menos perfeita. Andará pelas ruas e sentir-se-á uma apaziguadora alegria, como
quando se ouvem os sinos. Basta-lhe estar sentada e atenta como neste momento, com a mão sobre as costas da sua cadeira e um cotovelo no joelho e sentir-se-á um
prazer, como se, pela primeira vez, se ouvisse alguém à escuta. O que levou anos a construir, é indestrutível: é linda, Ina Rafay.
Embora uma grande vermelhidão se espalhasse das fontes até à boca do príncipe, falava sem o menor vestígio de sentimento ou galantaria, objectivamente, como diante
duma estátua. Hunold deitou-lhe de lado um olhar agudo, atento.
- É pena,- disse cautelosamente mas com interêsse
- que se não possa comprar uma Raffay como um Holbein afim de o levar para Birkenfeld.
O príncipe lançou-lhe um rápido olhar e todos se calaram bruscamente.
- Pode-se fumar ? - preguntou depois o doutor em ar contrafeito.
- A minha terra está situada na antiga estrada ro mana-disse o príncipe, dominando-se após um silêncio
- e muitas vezes desenterramos de lá moedas e urnas. Acho que a gente da terra conserva ainda desse tempo uma feliz mistura de sangue: o tipo é belo, de nariz aquilino,
ombros largos e ancas estreitas. Desejaria realizar o cortejo das raparigas de véus verdes, ao longo da fila de bétulas, exactamente como imaginou, minha senhora.
E endireitando-se, preguntou, fitando-a com insiS tência:
- Quere-me ajudar?
- Eu ? E como poderei ? - preguntou ela, embaraçada. As suas cabeças inclinaram-se ambas para o luminoso círculo do candeeiro.
- Instruirá as mais belas crianças da região, depois de rigorosa escolha, rapazes e raparigas, filhos dos nossos camponeses e das nossas velhas famílias -os que
forem suficientemente jovens para ter almas e membros maleáveis. Habitarão no "Favorito", nadarão sob as árvores, correrão pelos campos, lançarão a bola na palestra,
aprenderão tudo o que nós deixámos de aprender: como o corpo é belo e importante. Desejaria, depois desta guerra, formar homens novos, belos, fortes e harmoniosos
em todo o corpo. Cresceriam felizes e não seriam soldados. Emfim . toda a gente diz que sou um sonhador. e não sonho com outra coisa. Mas o dr. Hunold, que é uma
pessoa prática, poderia discutir tudo isto consigo e tratar das coisas como a Ina Raffay desejasse.
- Estar rodeada de crianças . - disse ela, perdida num sonho.
Já as via: tinham membros macios e firmes sob uma pele de flor, davam as mãozitas umas às outras, os graciosos pés andavam sobre o orvalho. Sob um grupo de bétulas,
as rapariguinhas saltavam com os braços erguidos para a luz. Todas tinham coroas na cabeça nos olhos um reflexo do céu.
-Havia de ser belo!-disse, perturbada.-" preciso de reflectir, seja paciente, alteza.
- Não posso ter paciência.- disse nervosamente o príncipe - Isso é bom para quem já fez oitenta anos: os novos como nós, ignoram a paciência.
"Os novos como nós", pensou Ina. Num relâmpago, apresentou-se nitidamente na sua frente um disco com o número 40.
Nesse relâmpago, qualquer coisa adejou, uma angústia, um desejo, um pressentimento: era preciso realizar o que ainda lhe faltava.
Sorriu e disse:
- Irei.
Quando Hunold chegou ao "Favorito para dar aos mais velhos a sua aula de história de arte, o príncipe já estava sentado no seu lugar habitual na colina, debaixo
da velha macieira, que espalhava em redor os frutos verdes. Mais abaixo, Ina, com a curta túnica branca, lançava para o ar os seus leves membros brancos que lembravam
elegantes pássaros. A colina estava pintalgada de silhuetas claras: eram os corpos nus das crianças que se aplicavam conscienciosamente a imitar lhe os movimentos.
Do regato subiam os risos dos que se banhavam e sob as faias estava um petiz que, numa atitude cheia de graça tímida e altiva, extraía duma frauta campestre hesitantes
sons.
- Mesmo Deus, Nosso Senhor nos ajuda com o seu céu dum azul intenso. - disse Hunold, cumprimentando.
Mas o príncipe não estava disposto a conversar. Parecia sonhar. Fràulein Zwillíngsbauer chegou ao terraço fazendo um alegre ruído de pratos. Depois veio Ina rodeada
pelos mais pequenos, declarando que eles estavam cansados e tinham fome. Distribuíram leite, cerejas e os primeiros morangos. Por trás da casa, no alto, havia um
ar e um sol que davam vontade de gritar de alegria.
Era esta agora a vida de Ina Raffay. Examinava-a frequentemente, voltava-a e tornava a voltá-la de todos os lados e admirava-se de que consistisse apenas em coisas
tão agradáveis. Ouvia rumorejar as árvores, via o vento dançar nos campos, os frutos maduros oferecerem-se às suas mãos e sentia junto do corpo o tépido calor das
crianças. À noite, atravessava o dormitório e ouvia-as respirar nas suas caminhas brancas - era um ruído cheio de felicidade e de paz que, no entanto, despertava
um desejo. As andorinhas prateadas faziam os ninhos no telhado e os cisnes vogavam gravemente ao correr 203
da água emquanto os choupos conversavam no crepúsculo. Até aí só conhecera seasons, agora descobria, estendendo-se sob um céu imenso, as estações do ano.
Colocou as mãos no coração; batia, tornando-se outra vez humano. Saiu, encostou-se ao tronco duma bétula que rumorejava, pacífica e adormecida, e experimentou uma
espécie de medo ao sentir que também a árvore tinha movimentos de vida. Enlaçou o tronco com os braços e não pôde reter as lágrimas. Estava cheia de desejo.
Sentiu-se outra vez atraída pelas crianças: estendidas nos leitos, respiravam calmamente, dormindo. Ina gostava de todas em conjunto e segundo a sua espécie. O calor
e o aroma, a fruta dos pequenos corpos dava-lhe alegria; quando lhes sentia os bracitos em redor do ?pescoço, experimentava uma felicidade nova, profunda, estranha,
que a levava até às lágrimas. Beijava então um dos pequenos e depois tinha vergonha, como se envergonhava de lhes contar histórias - sabia tantas!- sobre as flores,
os animais, os objectos. Mas não as contava a crianças estrangeiras. Todas tinham olhos claros, despertos, atentos, como Mila Merz ou o dr. Hunold, Examinava-as,
procurando nos seus olhares a mesma interrogação que havia no seu ou no do Fernando: mas os petizes permaneciam estranhos. Silencioso, debaixo da sua macieira, o
príncipe tinha muitas vezes no rosto uma expressão de desejo ansioso, desvairado, mas Ina não lhe falava muito.
Em Birkenfeld sacudiam a cabeça em ar de censura. Desde meses que a gimnástica desempenhava um papel primacial: seguia-se a moda. Mandavam as crianças para o castelo
"Favorito" porque era uma honra que se devia aproveitar, ser lá admitido. Mas continuavam a murmurar.
Viam muitas vezes o príncipe dirigir se a pé, quando fazia bom tempo, para o "Favorito" e erguer o pálido rosto para o cimo das árvores. Quando chovia, o seu trem
atravessava a floresta e metia pela estrada que levava ao castelo. Fraulein Zwillingsbauer servia então o chá nas porcelanas de Birkenfeld.
O dr. Hunold também lá ia frequentemente, umas vezes levado pelo príncipe, outras sozinho. Ina descobriu que conhecia dois Hunold diferentes. Um era amável, simples
e recto, e de convívio agradável Quando Ina estava num dos seus dias de requinte, como ele dizia, quando obscura inquietação a tornava impa ciente, rebelde, atormentada
por qualquer coisa que ainda não compreendia, contentava-se em a troçar com o seu largo riso amigável, e tudo estava bem. O pai era jardineiro num castelo de Holstein
e a mãe morrera cedo. Patos bravos voavam por entre os arbustos, o joeirador chamava, a álea das tílias estava toda sussurrante de abelhas, as avelãs maduras estalavam.
Depois chegou o desagradável momento em que ele teve vontade de sair do jardim, de deixar os canteiros, as árvores e o lago, em que desejou tornar-se um cavalheiro
de tino e quis estudar. Nada dizia acerca da sua formatura, na capital, nem da guerra. "Foi um mau período" declarara - e mais nada.
Durante esse tempo, Ina olhava-lhe para as mãos e tinha vontade de lhes tocar; eram tão grandes, tão quentes que davam o desejo de se encostar a cabeça àquele enorme
peito e lá adormecer: devia ser o asilo mais tranquilo e mais seguro do mundo.
O outro Hunold era completamente diverso: tensão hirta, ambição e actividade. Caminhava direito para o seu fim saltando por cima de tudo, em todos os campos. Servia
para tudo, tendo acumulado no cérebro uma ciência espantosa. Havia épocas em que trabalhava de dia e de noite como uma besta de carga, surdo e cego para o resto.
Mantinha com cem Jornais uma correspondência trigi-cómica: escrevia, não recebia resposta, tornava a escrever, enviava manuscritos, reenviavam-lhos sem os ter lido,
mandava-os de novo, obstinadamente e acabavam por os ler e aceitar. O seu nome aparecia aqui e ali assinando artigos referentes aos mais variados assuntos. Obrigava
a sua maciça cabeça a descobrir subtilezas, educava-se, encontrava o estilo que alcança êxito e envolvia-se nele como numa casaca muito pequena para o seu corpo.
O príncipe queixava-se: "A ambição dá cabo dele, devora-o -não é uma ambição
pobre. Que deseja ele vir a ser: director de Jornal, ministro, imperador? Desconhece então que lamentável
coisa é o poder? É capaz de vender a alma por um
pRato de lentilhas. Devia antes fazer versos".
Ina não tomava as coisas tanto a sério. E dizia:
?Aquilo não passa de máscara e o pior é que não está
sem presa e de-pressa cairá. É talvez porque viveu
muito tempo na sombra e tem atrás de si uma juventude
dolorosa. E resolveu confessá-lo. Preguntou-lhe:
- Nunca fez versos ?
- Não, - respondeu com uma gargalhada. -A poesia
e eu! Somos incompatíveis. Já escrevo bastantes disparates sem precisar de acrescentar mais esse.
Era um dia dos bons. Olhando para ela tornou-se
grave.
- Posso fazer tudo, até versos se for preciso; basta
que publique nos Jornais ou em livros coisas fabricadas.
Agora um poema, não se fabrica: tem que sair cá de
dentro.
- Então ? - esperou ela.
Era no fim da tarde, as andorinhas riscavam o céu com seus voos de aço.
Ele continuou, tendo nos olhos uma expressão que lhe não conhecia:
- Não gosto de falar de mim, sou muito concentrado ; se sentisse alguma coisa, profundamente e com
presença, alguma coisa importante, seria incapaz de a exprimir. l
-Diz: "se eu sentisse". então não sente nada, então nunca sentiu nada profundamente e com força?
- E o que havia de ser, minha senhora?
- Está hoje num dos seus dias de feroz barricada Hunold; a gente quebra-se de encontro a ela e não o obriga a recuar um centímetro. O que havia de ser? Mas a música.
qualquer paixão. uma mulher.
- Não percebo nada de música e não tenho tempo para paixões. Dos quinze aos trinta anos vivi nos bairros Pobres duma grande cidade ou nas trincheiras. Não conheço
mulher nenhuma.
- O quê ? - exclamou Ina, perplexa.
-Não conheço nenhuma mulher, é simples. No sentido bíblico: não conheço nenhuma mulher. O mesmo se dá com a poesia: a grande é para mim inacessível e acho que não
vale a pena perder tempo com bagatelas.
Fechou a boca como quando se põe uma tampa; nenhum som tornou a sair.
Era isso que preocupava Ina e em que pensava, entregue às suas ocupações: ele não conhecia a mulher. Ali estava um homem forte, alto e simples como um animal - um
homem virgem. Ela conhecia muitos homens e neles nada a obrigava a uma consideração particular. Eram todos egoístas, frívolos e baixos-não havia maneira de os tomar
a sério. A pureza era qualquer coisa diferente que lhe inspirava respeito. Isto levava-a a imaginar certas cenas. Via a mulher que ele apertaria nos braços, a primeira:
uma rapariga virgem como ele, alta e sã, talvez uma camponesa de cabelos de linho e olhos azues, acinzentados como o mar e que lhe daria um filho maravilhoso. Invejava-a
no mais íntimo do seu ser.
Ina Raffay tinha trinta anos. Instintos adormecidos acordavam nela, sufocava-a um imperioso desejo de maternidade. Conhecia este murmúrio do sangue muito tempo adormecido:
agora os seus pensamentos metiam-lhe medo. De noite, fugia para o campo ou refugiava-se junto das crianças adormecidas. Tocava-lhes nas cabecitas, nas mãos que estremeciam
em sonhos, e aquilo dava-lhe um desejo: a criança. Voltava para o seu quarto e o pensamento continuava a obsecá-la: filho . um filho !
Fráulein Zwillingsbauer tinha que lhe trazer muitas vezes brometos à cama e sentava-se ali com o seu avental de seda preta que parecia o mesmo da escola de dança.
com a sua voz seca dava conselhos de apaziguamento. Era preciso que falasse do seu filho, da gravidez, da nascença, de tudo - e não podia!
- Era encantador, tão pequeno e delicioso! - era só isto que conseguia dizer.
- Quero ter um filho! -E esta declaração franca aliviava-a.
- Mas de quem? Isso é que eu gostava de saber!
- replicava a dama de companhia, compreendendo-a.
Ina fechava os olhos, colocava o travesseiro entre os braços e a nuca, tocava nas cabeças de delfins do antigo leito das amantes de príncipes e, à luz das velas
que lhe doiravam as pálpebras, dizia:
- Era preciso um homem alto, simples e forte, um homem. que não quere uma mulher como eu!
Fráulein Zwillingsbauer fazia de conta que não ouvia, apanhava a roupa deitada por aqui e por ali - mas sabia muito bem do que se tratava. Na escola de dança havia
observado várias gerações de gente moça. Pensava : "Há homens requintados como o pobre sr. Raffay que usam sempre sapatos de polimento e outros que não os põem senão
quando estão apaixonados. O dr. Hunold não é um homem requintado; quando a gente o encontra, por acaso, vai com sapatos cambados. Mas vem ver-nos de botas de verniz
e leva uma hora a limpá-las antes de entrar. O dr. Hunold anda a enganar-nos, mas a gente já lhe descobriu o segredo."
Conservando a mesma calma, o príncipe Perdia o processo e os seus domínios voltaram para o Estado. Veio despedir-se e mostrava mau aspecto; o inverno que passara
no Cairo pouco bem lhe fizera e o verão de Birkinfeld foi-lhe prejudicial: estava muito fatigado e tinha sempre febre. Falava em viajar fosse para onde fosse e por
que tempo fosse.
O "Favorito" deu uma festa de despedida. As crianças iam-se embora: o governo destinava os edifícios a outra aplicação. Os habitantes de Birkenfeld foram convidados.
Ao longo do rio avançavam silhuetas de casaca preta com pequenos estojos debaixo dos braços: era a antiga orquestra do príncipe que ia tocar Gluck
Para o príncipe, estava instalada sob a habitual macieira a sua cadeira de verga. Fráulein tinha o avental de tafetá preto que só arvorava outrora nas festas. Trazia
uma almofada na mão. Então chegou o príncipe, que tinha mau aspecto e parecia maquilhado, com os olhos orlados de negro, muito brilhantes, e as faces vermelhas no
rosto transparente. Sentou-se. Por trás da parede de erva, um rapaz fez um sinal com o lenço e o velho maestro da corte, antes de começar, limpou a transpiração.
Depois ergueu a batuta.
A música fazia reinar o silêncio, apenas as folhas das bétulas tagarelavam e um melro na mata começou a cantar mais alto. Primeiro, tudo estava tranquilo, os espectadores
olhavam para o declive da colina que, talvez pela primeira vez, viam em toda a beleza dos seus silvados, árvores e prados. De súbito, surgiu uma ninfa jovem, magrita,
esbelta e tímida que saiu da sombra dos arbustos, estendeu os braços e correu harmoniosamente. Fez um sinal e, da floresta, surgiram outras, loiras, morenas, escuras,
infantis movendo-se nos seus véus, em plena luz, formando rodas alegres e leves. Tinham a pele da cor do sol. Apareceram depois os rapazes e as ninfas fugiram. Eles
lançavam-lhes flechas e bolas, agitavam-se e debatiam-se, subiam às árvores, deitavam-se à água onde os sinos gravemente olhavam para elas. A música adquiriu asas
plenas de ardor e no parque estavam petizes nus que deitavam ao ar e tornavam a apanhar os balões doirados. Dos seus gestos desprendia-se paz, doce emoção e indescritível
serenidade.
Do terraço elevava-se fumo em espiral. Havia lá um altar, uma sacerdotisa vestida de branco que ergueu a cabeça morena e pálida, de olhos pesados, e que desceu os
degraus. Ela não dançava mas vinha caminhando pelo prado com o seu porte de imperatriz; depois parou e deu uma forte impressão de tranquilidade. Ergueu os braços
para saudar o pálido céu do outono, os silvados coloridos pelo reflexo vermelho, a macieira sobrecarregada, a planície toda esmaltada de florzinhas lilases. As crianças
voltaram, rapazes e ninfas de quinze anos; deram as mãos para formar a roda e, pelos rostos, perpassou-lhes grave
emoção. Traziam ao altar grinaldas de folhagem, frutos e flores; a sacerdotisa ergueu um entrançado de lilases, outro de cólquicos e colocou-os no altar. Curvou-se;
os pequenos comprimiram-se em seu redor, o fumo do sacrifício subiu e espalhou o seu aroma que era doce e amargo, ao mesmo tempo.
"Será este o meu último bailado ?" preguntou a si própria Ina Rafay, colocando as mãos nas quentes cabeças das crianças. E chorou, não pôde deixar de chorar. Fez
um gesto, um único e levou o véu aos olhos e ao peito para suster o coração, que lhe doeu. Ninguém o notou, apenas o príncipe se inclinou um instante para a frente
e passou pela testa as mãos largas e finas.
A festa terminou.
Calou-se a música. O velho maestro pousou a batuta e, durante segundos, prestou atenção ao canto do melro que se ouvia outra vez. Os músicos guardaram os seus instrumentos,
as crianças entraram em casa e fráukin Zwillingsbauer, ao recebê-las com as suas mãos duras e maternais, afastava-lhes os cabelos das faces ardentes. Como o príncipe
ficou na sua cadeira a contemplar a paisagem cheia de sol, os habitantes de Birkenfeld permaneceram sentados nos seus lugares, meio desconcertados, meio comovidos.
Anunciava-se o crepúsculo.
Um velho criado preguntou, cuidadoso:
- Sua alteza deseja o carro ?
- Não. vou a pé. Onde está Hunold ? Ele me acompanhará.
Mas o ambicioso e laborioso Hunold desaparecera.
O príncipe levantou-se por fim e ergueu-se, alto e os ombros descaídos e como que desanimados. Dirigiu aos circunstantes um vago sorriso. O melro cantava cada vez
mais alto, mas ninguém o ouvia e o prado esvasiou-se e por fim, afastando-se o último cidadão de Birkenfeld com um discreto olhar para trás.
O príncipe ainda estava em pé por baixo da macieira e Ina Rafay permanecia no alto da escada. Reinava o silêncio.
- Agradeço-lhe. - disse o príncipe na sua doente voz rouca.-Foi muito lindo, estou-lhe profundamente grato.
Nunca julguei que um adeus pudesse ser tão belo. Ensinou-me imenso, minha senhora, imenso.
Ina desceu as escadas, sem falar. Já não estava em unísono porque, durante segundos, a emoção invadira-a e interrompera nela a pura e consciente construção da obra
de arte. E pensava: "Já não sou uma artista, sou a amadora. e verificar isto custa um pouco". Disse depois, maquinalmente:
- Vossa alteza parte já amanhã ?
- Parto. E quanto à senhora, quais são os seus projectos de futuro?
- Oh . eu.-respondeu, expulsando certos pensamentos da fronte-Tudo é incerto. Não posso ficar aqui, era belo de mais! Agora vou tornar a ver o desfile dos quartos
de hotel, as malas feitas e desfeitas sem cessar e os fios do telégrafo em frente das janelas do comboio. Talvez vá estudar para Espanha; ainda a não conheço. Preciso
de tornar a dançar, visto que não tenho fortuna. Não faço ainda idea do que farei. Hei-de ter sempre muitas, muitas saudades dos pequenos, isso sei eu . Mas o futuro
não tem importância: temos o nosso bilhete na algibeira.
O príncipe dava a impressão de não ter ouvido, fitando a forma branca da bailarina. Respondeu:
- Sim, agora é preciso ter energia e pôr tudo em ordem, Colocarão um tapete cinzento no salão chinês e os quartos serão transformados em escritórios cheios de empregados
meticulosos, boas pessoas feias e úteis. Tossiu levemente-Lembro-me hoje, melhor do que nunca, da primeira vez que a vi: tinha um vestido branco como este e um colar
de pérolas. era em casa de seu tio, recorda-se ? Convenci-me então, pela primeira vez, que o sonho se pode tornar realidade, que há beleza mesmo na nossa época tão
banal, grosseira e horrível. Foi este sentimento que, do aspirante doente, incapaz, mal educado que eu era, fez um homem. Foi a Ina que me mostrou o caminho, o fim,
que me deu forças para poder fazer alguma coisa desta miserável vida quebrada. Agradeço-lhe Ina Raffay, estou-lhe infinitamente grato. Se eu partir agora e não voltar
mais, o Holbein continuará, no
entanto, a ser um quadro de museu e as preciosas porcelanas persistirão e as crianças que permaneceram dois anos no "Favorito" nunca mais esquecerão o inolvidável
ensinamento aqui recebido.
De súbito, começava a sorrir e era uma coisa rara num rosto que precisava sempre de se dominar para não mostrar fadiga.
- Perdoe-me. Ponho-me para aqui a falar, a falar e sou um sentimental. Mas sabe, é uma coisa que me custa imenso: despedir-me da minha terra e de si. Ouve o melro?
Canta-me todo o dia: "Nunca mais! Nunca mais!" Parece-me sempre que não lhe agradeci bastante tudo que lhe devo. Então adeus, minha senhora. Talvez que na outra
margem tudo seja beleza.
Ina ficou absolutamente imóvel, apenas as pregas do seu vestido branco estremeciam levemente. Estava de tal forma comovida que cada palavra lhe penetrava até ao
fundo do coração. Também ela agora ouvia cantar o melro.
- Nunca mais voltará, alteza ?
Acentuou se o sorriso do príncipe. Respondeu na sua voz doente, cada vez mais rouca:
- Não é provável.
- Adeus. - disse Ina, tirando as mãos das pregas do vestido onde, até então, haviam estado escondidas.
Depois, no momento derradeiro, emquanto o príncipe se inclinava para beijar a atmosfera por cima dos seus dedos, ela fez, ansiosa, a pregunta que não queria:
- O dr. Hunold acompanha vossa alteza ? - O príncipe notou: "como está pálida"- e respondeu: -Hunold? Não. Que pode ele esperar agora de mim? Lançou-se na política
e apareceu-lhe uma Ocasião inesperada. Vai fundar um grande Jornal em Francfort, é uma situação magnífica. Fui eu que o levei até lá, mas agora pertence exclusivamente
a essa idea e nada tem que ver comigo. Nada lhe ensinei. Vê-me morrer. há muitos anos que me vê morrer, mas nem isso lhe ensinou aquilo que dá valor à vida. É máscara,
talvez, mas aquela máscara não cai, incrusta-se no homem,
devora-o inteiro. O êxito roê-lo-á ainda mais. Daqui a tempos pense em mim, Ina, mais tarde, quando tentar abraçar um homem e vir que não passa duma casca vazia.
Ina limitou-se a fazer um gesto de angústia. O seu coração apertou-se, como que esmagado por ouvir o príncipe falar tão tranquilamente de coisas que ela não confessara
nunca a si própria.
Cerimoniosamente, replicou:
- Espero que vossa alteza se engane, sob todos os pontos de vista.
O príncipe inclinou-se profundamente, aproximando cada vez mais o rosto dolorosamente contraído das mãos dela. Mas, desta vez, em lugar de lhas beijar, colocou nelas
a testa, as fontes que batiam, como sobre uma almofada onde encontrasse maravilhoso descanso. Ela sentiu durante um segundo a pele húmida e febril sob a qual se
desenhavam os ossos, compreendeu a sua profunda lassidão e com que alegria acolheria a morte e o repouso. Mas estava profundamente nervosa e desorientada.
As crianças dormiam pela última vez nos seus leitos; à porta, as sandálias estavam alinhadas como soldadinhos, na parede viam-se penduradas as curtas túnicas. Fràukin
Zwillingsbauer bocejava emquanto ia contando os pratos, os copos e as colheres. No terraço, as cadeiras estavam postas ao acaso, o que tirava todo o carácter de
hospitalidade.
Ina vagueava pela casa, atraída por uma coisa e outra. Desejaria tirar os petizes das camitas, apertá-los muito e sentir os bracitos no seu pescoço. Deteve-se no
salão chinês e encostou a cabeça febril aos gigantescos jarrões de fresca porcelana. Depois voltou para o terraço e olhou para os campos, à espera nem ela sabia
de quê. Fràukin Zwillingsbauer passou na sua frente batendo com os saltos; trouxe o jantar e disse em ar misterioso:
- Sim, sim, sim .
- Não quero comer, Irma.
- São as despedidas que lhe tiram o apetite?
E afastou-se. Mas pouco depois voltou e viu-se à porta o seu rosto inquieto.
- A Menina está nervosa ? Brometo ? Uma chávena de hortelã-pimenta ? O quimono ? Um banho morno ?
- Deixa-me, Irma. Não sei o que tenho. Nervos.
Ando a correr dum lado para outro como se tivesse perdido ou esquecido qualquer coisa, o melhor, o mais importante. A gente envelhece, sabes? Antigamente, dizia-se:
"Há-de vir, a verdadeira felicidade." Agora, examina-se a vida e pregunta-se: "Não há mais nada? E É só isto?"
- Acho que Ina Rafay já viveu até demais. murmurou Irma com precaução, endireitando o avental. - Oh, não! - protestou ela.
E Em pé, defronte da redonda janela secular, respirando os outonais perfumes, ela pensava: "Só o corpo viveu, à concha - ao coração, nada chegou. E para onde te
hei-de levar agora, alma errante?" Em voz ácida, a outra participou: -Na próxima semana já vêm para aqui pintores e marceneiros. A Menina já decidiu o que vamos
fazer? -Queres acompanhar-me até Espanha? É muito longe. Deve ser uma linda terra. Talvez lá toda a gente tenha pés e mãos iguais aos meus. Talvez toda a gente l!
saiba dançar.
- Tem então dinheiro para uma viagem dessas ?
- Não. Sei lá para onde foi tudo quanto ganhei na
minha vida. em hotéis, comissões aos agentes e vestidos!
Mas apetece-me viajar: já que não posso fugir de mim
própria, desejaria, ao menos, viajar. ir para bem longe
das pessoas que me tornam nervosa. Ou iremos instalar-nos em qualquer linda cidade, em Francfort por
exemplo, e abriremos lá uma escola de dança : O
Instituto de Dança Rafay". Que dizes?
E, pronunciando estas palavras, Ina estava cheia de ironia e de irritação contra si própria.
- Se o dr. Hunold vem ver a Menina todos os dias,
isso torná-la-á nervosa e se ficar uma ou duas semanas
sem vir, atormentar-se-á imenso.- declarou a experiente
Zwillingsbauer, sem que, aparentemente, esta observação
tivesse a menor correlação com o que se estava dizendo.
Ina, cerrando os punhos, ordenou-lhe:
- Vai-te embora e deixa-me sossegada.
E começou a andar dum lado para o outro, na sala.
E eis que chegou o tormento dum ano, eis que reapareceu o alto e maciço homem que inspira respeito, que perturba quando está presente, que se deseja quando está
longe e que, no entanto, é sempre o mesmo, impassível, fechado em si próprio, absorvido pelo trabalho, pelo caminho que segue, pela ambição. É possível que nem repare
que Ina é uma mulher. Mas ela vê nele, mais completamente que em nenhum outro: um homem. Examina-se, estuda-se e troça do seu insensato ardor, da sua cólera, da
sua ansiedade. E diz: "uma rapariguinha ingénua chamaria a isto amor, este sentimento exclusivo, único, tão forte e novo. o grande amor, o amor infeliz. mas Ina
Raffay tem tanta experiência!"
Apagou as velas. a planta dos pés cheirava a cera do chão. procurou as lajes do terraço e a erva molhada de orvalho. Murmurou por entre os ramos o vento da noite
que lhe erguia a seda do quimono e acariciava a pele tépida. Brilhou um relâmpago na floresta; de vez em quando, súbita luz destacou do resto uma clareira no bosque,
longínquos cumes, ou a branca torre do outro lado da cidade. A tremer, como num sonho, um relógio antigo deu meia-noite. Não havia estrelas no céu mas a noite, a-pesar-das
nuvens, estava transparente e clara.
Na relva, via-se deitado um homem, estendido de bizarra maneira, com os largos ombros apoiados no chão, os braços afastados, os dedos enterrados na erva húmida.
Ina reconheceu-o logo e, no primeiro momento, não viu senão a extraordinária força expressiva daquela atitude, do corpo abandonado e parece que soluçante. Precipitou-se
para ele e preguntou, sufocada:
- Tu? Tu? Que tens? Que te aconteceu? Ah, és tu!
Mãos quentes, húmidas de orvalho, agarraram-se aos pés nus de Ina, com uma força capaz de lhe quebrar os tornozelos. Um rosto que a paixão desordenada tornava irreconhecível,
ergueu-se, balbuciou, soluçou, quási que se asfixiou:
-Amo-te! ah, como gosto de ti! Não posso mais.
?realmente não posso mais!
Ela ficou submersa, não o compreendeu, não se percebeu a si própria. Mais forte do que tudo até aí experimentado, qualquer coisa estalou em si. Os cimos murmuraram,
o campo cintilou. Deitou-se na terra, a seu lado, e balbuciou dominada por ele:
- É verdade? Gostas de mim? Tu? Porque não mo disseste há mais tempo? Gostas de mim!
- Gostei sempre. sempre. Pois não tinhas adivinhado? Eu não posso falar. custa muito. é-me quási impossível explicar.
- Mas que homem concentrado e mudo!
E não se pôde mostrar meigo. Era força o que lhe escorria das mãos e o sentimento contido tanto tempo esmagava-os.
Relâmpagos chicoteavam a noite, a tempestade estalou no céu. Ina mergulhou no hálito da terra, um poder estranho apoderou-se do seu ser, levou-a em turbilhões, fez
dela uma nova mulher, uma virgem, Chamas cintilantes, vozes do mundo primitivo. Abóbadas erguiam-se até ao infinito. inundava-lhe o seio uma chuva de estrelas.
Foi numa casinha da colina de Holstein que Ina
deu à luz o seu filho. Gaivotas voavam em frente da janela, cor de rosa erguia-se o dia sobre o mar, a criança deu o primeiro grito e Ina, de olhos abertos e transformados,
fitou o sol. Quando a parteira inclinou para ela o seu rosto grave, talhado em madeira, Ina pronunciou esta frase prodigiosa:
- Agora sou inteiramente feliz!
A pequena maravilha dormia, respirava e quando se lhe tocava, sentia-se que estava quente e viva. Sabia beber, mexer minúsculos dedos, tinha pés pequeninos
como pétalas de flores; podia ficar quieta durante um dia inteiro e de-repente abrir a boquinha rosada e gritar furiosamente com uma obstinação espantosa. "Um verdadeiro
Martinho Hunold", dizia a mãe, a rir. Era uma gotinha de carne no rústico berço e, afinal, enchia o mundo inteiro.
Tudo era novo. Ina levantou-se bem disposta. O seu corpo gimnasticado suportara lindamente o trabalho da maternidade e tudo nela se encontrava agora novo e apaziguado.
Chamava à terra "sua mãe" e às cerejeiras carregadas de fruta "suas irmãs". Tudo nela era harmonioso. Sentia a seiva que subia e se transformaria em sangue: verde
para as plantas, vermelha para ela e feita leite para o seu filho.
O pequeno Martinho Hunold era um robusto cavalheiro com o seu miniatural caracol loiro, erguido acima dos olhos espantados: mamava, dormia, gritava e crescia. O
Martinho grande não voltou senão daí a quinze dias, visto ter estado retido em Genebra por causa da Sociedade das Nações. Bateu com a cabeça nas traves grossas do
baixo teto e Ina riu-se, feliz. Envolveu a nos braços como se fosse um embrulhinho e levou-a para o jardim : a sua ternura era dum tamanho proporcionado às suas
mãos. Ela adorava-o mas não podia deixar de se rir, com o seu novo riso sonoro, quando via aquele homem enorme e reservado.
Compreendia-o melhor desde que conhecia a terra em que ele nascera, onde se desenhava no céu a linha azul-escura, imóvel, do calmo Báltico e em que tílias antigas
se alinhavam, numa longa avenida, até ao pátio da propriedade. Havia um lago metido dentro das terras. Os campos eram dum verde uniforme; não cresciam lá flores
mas o kiwi chamava dos pântanos e as gaivotas riam-se e vinham até às janelas mostrar o rosto velhaco. O imutável céu nunca estava completamente azul, a noite era
silenciosa e de nórdica claridade. Ina encostava-se ao ombro de Martinho e o duplo sentimento do lar e dum país estranho fundiam-se admiravelmente na sua ternura.
"O meu marido", dizia ela, e esta palavra que jamais
pronunciara, tinha uma plenitude absoluta. Continha a ?força do homem, a força devida ao silêncio e às explosões bruscas, as suas mãos grandes e quentes, o que nele
?havia de cómico e comovedor, os pensamentos rectos e simples dos bons momentos, o estranho aroma do seu corpo e a bela qualidade viril do seu coração. Também a
criança estava compreendida nestas palavras "meu marirido" - mas não tinham lá o menor lugar a ambição, a actividade, a ânsia de triunfar.
E Ina tinha a ilusão de que o ambicioso Hunold fora amortalhado com a Ina Rafay, muito vivida, requintada e consciente.
-A Ina a cantar! -dizia, estupefacta, fráulein Zwiltlingsbauer, que trabalhava na cozinha.-Conheço-a desde
que nasceu e nunca ouvi isto: ela a cantar!
Era verdade. Sentada no jardim, estava a cantar. A criança, nua em cima dum cobertor, com os redondos membros bronzeados pelo sol, tagarelava ao ver as moscas e
os raios de sol. E a mãe cantava. Tinha uma voz grossa e quebrada, inexperiente, que era duma comicidade tocante. O petizinho voltou para a mãe os olhos admirados
e riu-se pela primeira vez. Da aldeia,
chegavam leves sons de sinos e o ar cheirava a alcatrão
e a água. O portão abriu-se e fechou-se: Martinho
chegara. Deixando cair na erva um pesado peixe de
prata, abriu os braços. Ina devia pensar muitas vezes,
neste minuto, quando estivesse na cidade e, mais tarde,
magoada de desgosto.
Porque na cidade tudo era diferente. Martinho Hunold transformava-se rápida e lugubremente. Já não era um homem mas simplesmente um chefe de redacção. Na cidade,
vivia-se em altos aposentos de cores sombrias com pesados reposteiros nas portas. Ina detestava aquilo mas o marido achava ser necessário à actual existência. No
seu crânio de camponês do Holstein existia um tremendo respeito pelas coisas espessas, duráveis, sólidas. Os móveis eram caros e respeitáveis; reúnira-os com a sua
maneira de ser silenciosa, pessoal, teimosa, e Ina desconfiava que ele desejava viver num quadro semelhante ao que outrora, filho de jardineiro, admirara em casa
dos patrões, no castelo. Também possuíam um jardim, um pobre pedaço de relva, e o velho ácer que baloiçava os ramos em frente da janela da criança, tinha ramos dum
vermelho doirado no verão, de prata no inverno, tomando sons de alegre verde-claro quando o sol reaparecia. "Árvore" foi a primeira palavra que o petizito pronunciou;
estendia os bracinhos para a janela e chamava aquela coisa viva e amiga que estava lá fora -mesmo antes de saber dizer mamã e papá. A segunda palavra, acompanhada
por um grito de feliz alegria, foi para uma flor, um jacinto vermelho que estava no quarto de Ina. "É uma criança da floresta", disse ela, pensando, naquela hora
impregnada de perfume, na terra em que o havia concebido.
O dr. Hunold pensaria ainda nisso ? Podia-se lá saber! Ina estudava aquele homem embrenhado nos negócios, cheio de trabalho, longínquo e não absolutamente simpático,
com o qual estava casada - e não perdia a paciência. Amava-o por detrás da sua máscara: fora sincero uma vez, havia de tornar a sê Io. E, risonha, esperava.
Tinha o quarto do filho, de paredes pintadas em tons vivos, onde se desenrolava um mundo. Ali, abriam-se olhos azues, ali, as pequeninas mãos tentavam agarrar as
gravuras de contos que pintalgavam os reposteiros, ali, numa boca hesitante, onde os primeiros dentes apareciam, formavam-se palavras e preguntas. O Martinho pequeno
crescia e prosperava. Em breve, conseguiu ficar de pé sobre as morenas perninhas gordas, em breve se lançou, tateando, na vida que se lhe oferecia, ardente e múltipla.
A criança tinha mais de um ano quando, pela pri meira vez, viu o pai, sentado, arrastar-se até ela, olhar lhe para o rosto e familiarizar-se. Era depois do almoço,
no gabinete de trabalho. Tivera convidados, repórteres, militares belgas e ingleses que partiam para a África do Norte onde havia perturbações. As janelas estavam
abertas, era um dia de calor e um realejo tocava ao longe. No aposento, flutuava um cheiro a café e charutos. Hunold, confortàvelmente enterrado
numa poltrona, tinha, pela primeira vez, o filho nos joelhos e as suas duas mãos, mesmo sem ele dar por isso, estavam cheias e satisfeitas: a esquerda, encostada
no braço da larga cadeira, cheirava a couro liso e fresco, a direita enroscava-se na perna tépida e firme do bebé. Hunold respirou fundo e disse:
- É bom estar em casa.
Ina, em pé defronte da estante, arrumava os mapas que acabavam de ser consultados. Voltou a cabeça e, por cima do ombro, concordou com um sorriso. Ele viu a graciosidade,
sem par, do seu gesto, sem, no entanto, a notar: era naturalmente que pensava serem sua exclusiva propriedade todos aqueles gestos alados e preciosos.
-Então quando julgas que poderemos ir para a
praia? - preguntou Ina, retomando um assunto de discussão que durava havia semanas.
- Agora, não. Como vês, sou obrigado a ficar aqui. Bem ouviste: é quási certo estar uma crise a preparar-se.
- Desde que tens o Jornal, há sempre uma crise. Não podes comer em casa, não podes ler um livro, não podes dar um passeio: vai haver uma crise. O chanceler, o ministro,
o partido, a direcção, a política exterior, a política interna, tudo é perpetuamente instável. Dir-se-ia que a política não é constituída senão por crises.
- E é verdade.- declarou Hunold, encantado com a descoberta.
- É uma triste coisa, essa tua política: não compreendo o que possa ter de comum contigo, com o teu ser, com a tua vida íntima. Antigamente, ainda tinhas tempo para
tomar chá comigo, em Birkenfeld!
- Sim, em Birkenfeld. - disse ele com um riso indulgente, como se se tratasse duma criancice desaparecida há muito.
- Em Birkenfeld ainda tinhas olhos, Martinho, vias o céu e o campo. Nunca viste o irreal e, de resto, não te ficaria bem, mas agora parece que estás cego. Não, Martinho,
chegou o momento de irmos para a beira mar, para a nossa casinha; precisas de bater com a cabeça nas vigas do teto.
Hunold fez saltar o pequeno nos joelhos, com precaução, e respondeu:
- Tenho de ir a Berlim na próxima semana, tu podes partir para a praia com o pequenito e a Irma. Se não surgirem complicações, irei lá ter.
-Surgem, com certeza. Surgem sempre. Por trás da cadeira, pôs-lhe a mão no ombro e disse em voz baixa:
- Tive tanta paciência durante todo o ano, esperei tanto pelo verão. podes crer, temos necessidade de ir.
- Mas a crise .
- Ouve, Martinho, e se também eu estiver num momento de crise?
Ela sorria timidamente e tinha os olhos cheios de lágrimas. Ele não deu por nada e, pensativo, disse:
- Mesmo que me arrancasses ao meu trabalho e me levasses para Holstein, isso de que serviria ? Tenho a cabeça de tal forma cheia de coisas importantes!
"Coisas importantes", pensou Ina com uma tristeza misturada de ironia. E disse:
- Queria tornar a sentar-me no jardim com o bebé, e cantar: era uma coisa importante.
- Mas, minha querida, para isso não precisas de mim.
O realejo aproximara-se e provocava gritinhos de alegria no pequeno. Ina desviou os olhos de Hunold e declarou lentamente:
- Não; sem ti não posso cantar. É preciso que venhas pela porta do jardim, que tragas um grande peixe e que o deixes cair no chão para me abrires os braços.
Ele não viu o olhar infantil, sonhador, com o qual ela construía no ar o quadro que se tornara símbolo da sua felicidade e disse com uma ternura laivada de impa
ciência:
- Como és criança, minha querida !
Ina deixou cair os braços e, ao cabo dum instante, disse em voz tranquila:
- Parece-me que não gostas de mim como deve ser. Ele levantou-se, de súbito, comovido pelo tom das
suas palavras, aproximou-se com o pequenito nos braços e
ergueu para si o rosto de Ina que estava baixo e fechado, esperou ainda um momento e depois disse:
- Amo-te como devo, Ina: casei contigo.
Havia qualquer coisa de singularmente combativo, sério, ameaçador, no seu olhar e na grande testa quadrada : foram precisos alguns segundos para que Ina compreendesse.
Mas depois atingiu tudo: a luta e a resistência de Hunold, a dolorosa vitória sobre si próprio para evitar Ina antes da famosa noite de Birkenfeld e o que tinha
custado àquele taciturno fazê-la entrar completamente na sua vida. Pegou na criança que ele tinha nos braços e havia um ar protector no gesto com que a apertou contra
si. Num relâmpago, viu-se como ele a via: Ina Raffay, a bailarina, a mulher quási nua, iluminada pela ribalta, a aventureira de passado desconhecido e, no entanto,
a mãe do seu filho, a esposa do seu lar. Isto queimou-a como um ultraje e, ao mesmo tempo, tornou-a feliz.
Um pouco tonta, aproximou-se da janela aberta e o pequenito estendeu os braços para os sons do realejo. Aí, em pé e com estranho sorriso, viu a curva da sua existência:
partindo do sonho e da pureza, ia caindo de desilusão em desilusão, arrastada pelo redemoinho da sensualidade, tocando o fundo do abismo na temporada de Berlim,
e, a-pesar-de tudo, erguendo-se de novo, tornando a galgar a encosta graças ao seu trabalho espiritual, à sua obra, às alegrias da sua arte. Depois amortalhara-se
na rotina, na virtuosidade e na indiferença, subindo aparentemente. Acordara numa noite imprecisa, talvez de sonho, no meio do mar. Entregue a si própria, fôra-se
rehabilitando em anos de calma e, renovada, tornara a nascer com um marido e um filho. Via a curva da sua vida e uma voz interior preguntava-lhe: "Tendo atravessado
todas as aventuras que nenhuma mulher pode conhecer, foste feliz ? Mas porque estás sempre insatisfeita, minha alma?"
E a alma respondia: "Sim, profundamente feliz A mas nunca satisfeita."
Como pérolas caindo dum colar partido, as imagens iam se desenrolando. Ina percorreu os anos e quando
chegou à realidade, o realejo ainda não acabara a sua ária e o marido ainda não desviara dela o seu olhar severo. "Não somos senão ilhas-pensava Ina -e nunca nos
conheceremos uns aos outros." Através do espaço que os separava, ela estendeu-lhe a mão e com um gesto terno, altivo e, ao mesmo tempo, de submissa escrava, colocou
a fronte na larga costa da sua mão -a inalterável fronte de imperatriz.
Neste momento, fráulein Zwillingsbauer trouxe a correspondência da tarde, depois telefonaram da redacção, em seguida chegaram os telegramas de Londres.
De resto, Ina resolveu não ir para a praia. Chegara ao ponto em que o ar que não era respirado pelo marido, se lhe tornava irrespirável, casa em que ele não estivesse
parecia-lhe lúgubre e um dia sem ele nunca mais tinha fim. Deu se a crise anunciada, ele foi a Berlim, voltou descontente, tornou a partir para a região industrial,
fez conferências, deliberou, ditou artigos pelo telefone, persuadiu, teve êxito. Depois, Ina notou que se elevava alguns graus, o seu nome começava a ter força e
futuro e o que dizia e escrevia, tornava-se, na forma, mais cortante, breve, sintético.
Mas assustava se: ele perdera a sinceridade. Trazia tudo para o seu fim pessoal e quando abria imensas perspectivas, via claramente o desejo mesquinho, a estreita
ambição egoísta que tudo pusera em acção.
Exprimiu um dia esta idea, depois duma reunião em que cada um procurara defender os seus interesses, tendo conseguido ele ficar com o bloco.
- Acho que te lançaste na política como se toma um automóvel, para se ir mais de-pressa. No fundo, não te interessa mais do que os assuntos sobre que escrevias dantes.
Mas haverá realmente alguma coisa que te interesse verdadeiramente? O poder? Já tens visto que as acções sobem ou descem segundo uma palavra tua. A mim, aflige-me
que enriqueçamos tão de-pressa, tenho medo por tua causa.
com leve sorriso, ele notou :
- Julguei que gostavas de ser rica.
- Para mim, tanto faz ser rica como pobre.
Riu-se para dentro e lançou um olhar quási zombeteiro para aquela que, em frente do grande espelho, num vestido todo guarnecido a verdadeiras rendas valencianas,
arranjava o cabelo com um pente de madre-pérola.
- Criança amimada! - disse, a brincar.
No espelho, ela via-o ir e vir, despir-se, espreguiçar-se, depois deter-se e dizer em tom grave:
- Tanto faz. porque não conheces a pobreza, mas eu conheci-a bem e sonho muitas vezes com o buraco onde vivia, a horrível comida que engolia, as angústias e humilhações
que sofre um pobre diabo. Tu não sabes o que isso é, mulher luxuosa.
Absorta, ela olhava para o espelho e pensava: "Sei o que é ser pobre e ser rica, mas isso nada tem que ver comigo, nem com a vida nem com a felicidade. O quarto
reflectia-se na sua frente, enviesado e vacilante, com as duas camas abertas. O homem ia dum lado para o outro, com a sua camisa de noite e dava corda aos relógios,
o pequeno lá ao canto, o despertador e finalmente o seu, de oiro, que cuidadosamente pendurava no estojo de veludo. Zelosamente, todos deixavam ouvir o seu tique-taque.
O leito metálico rangeu quando ele se deitou, Pegou ao acaso numa das brochuras colocadas sobre a mesa de cabeceira e com horríveis capas verdes, amarelas ou dum
branco sujo. Ina deixou tombar as mãos e murmurou em voz baixa e queixosa: "Tudo se tornou tão banal!" Ficou ainda muito tempo no quarto pegado, junto da camita
do filho, com o coração palpitando de ternura e as mãos absorvendo felicidade nos tépidos cabelos da criança adormecida e que estava a sonhar.
Fráulein Zwillingsbauer permitia-se às vezes sacudir a cabeça de caracóis brancos, emquanto dizia com a sua cara de limão azedo:
- Não é saudável para o bebé fazer o que a senhora faz.
- Achas ? - replicava Ina, a rir. - Ora olha para l e!
Em pé na sua pequena banheira, era magnifico com o corpo redondo e duro e a vassourinha de cabelo erguendo-se, voluntariosa, no alto da fronte que já comeÇava a
ser quadrada, como a do pai.
Irma obstinava-se:
- Tem os olhos duma criança mais velha.
"Tem os olhos Delarès pensava Ina. Sob pesadas pálpebras, eram azues, mas mudavam de cor como uma paisagem sob a sombra de nuvens móveis. Às vezes lia-se neles uma
estranha interrogação velada, realmente desusada na sua idade. Tirando isto, era turbulento, indomável, egoísta; principalmente quando se lhe metia em cabeça partir
um brinquedo, mostrava uma obstinação calma, séria, que fazia rir a mãe. Parecia-se em algumas coisas com o pai mas era o retrato da mãe.
Na primavera, compraram um carro. A preparação das eleições, em que era candidato, dava muito que fazer ao dr. Hunold. Estava constantemente em viagem, ia ver os
proprietários de terras, presidia a reuniões nas aldeias, aprendia conscienciosamente o dialecto da região e poucas vezes vinha a casa. Ina passava os dias no quarto
do filho, no meio das ilustrações da "Pequena Aurora" e da "Branca de Neve": sentia dolorosamente a falta do marido.
A-pesar de tudo, naquele verão, o dr. Hunold sempre arranjou tempo para ir à casinha de Holstein. Ina tornou a sentar-se no jardim, o pequeno brincou todo nu, na
erva, o portão rangeu, ele voltou da pesca e acolheu-a nos braços. Mas ela não cantou, a hora já não era embriagadora, não tinha o brilho da madre-pérola, não soava
como um sino cristalino. Pela primeira vez, Ina compreendeu nitidamente que a felicidade estava bem longe de tudo o que é real, palpável - era apenas um sopro, uma
encantada impressão. E preguntava a si própria: "Quando é que eu fui feliz?"
Um passeio matinal ao longo do rio, uma corrida a galope no bosque, ao longe, gaviões planando no céu azul - tudo resplandecia. Mais longe ainda, rumorejavam vidoeiros
por sobre tumbas escondidas - como se haviam calado tão de-pressa todas aquelas vozes ? - e depois, no nevoeiro, à luz do poente, erguia-se uma rapariguinha-ainda
não esquecera o aroma daquela terra -e lá em cima, no céu, desaparecia um ponto a voar, um feliz balão vermelho. Ina, sorrindo,
voltava a si e pensava que, daí a pouco, seria preciso dar um balão igual ao filho e via-o com a expressão que teria quando, pela primeira vez, conhecesse o desejo.
Sentado na terra dava bolos aos seus ursos. Ela sentou-se a seu lado e, num gesto apaixonado, apertou ao seio a pequenina cabeça. Sentia profundamente que toda a
alegria da sua vida, todo o seu futuro estavam encerrados naquelas mãos pequeninas, cheias de terra. Havia no sótão um armário onde estavam guardados os velhos trajos
de cena. Pediu a chave. i Desviando os olhos, fráulein Zwillingsbauer disse-lhe: - Perdi-a.
Ina calou-se mas encontrou outra chave que abriu a ferrugenta fechadura e então ficou, durante horas, sentada em frente do armário, na semi-escuridão, com os olhos
perdidos no vácuo, quási que sem pensar. Em frente da janelita havia teias de aranha, tudo cheirava a morte. Metia as mãos nas sedas e deixava-as ficar durante muito
tempo. A sua vida estava pendurada naquele armário: o vestido verde dos primeiros bailados, a túnica de Irim, a Pequena Sereia, o fato do Arlequim, das máscaras,
o vestido-papoila num vermelho desbotado e os trajos do mundo inteiro geishas e baiadeiras-numa multidão de tecidos e cores.
Ina Raffay tinha trinta e cinco anos e não era feliz. Pior ainda: não era infeliz. Tornara-se apática, indiferente, afundara-se na realidade. Às vezes, tinha sonhos
que lhe perturbavam o coração: o homem da capa negra inclinava-se e apresentava-lhe o seu cartão que tinha o número 40. "Está bem" dizia ela, contente, e tornava
a adormecer. Mas ficava-lhe sempre o terror das mãos que ele escondia. Fernando chamava-a, batia à porta da sua casa de reposteiros e móveis maciços.
- Uma chávena de café ? Um bom charuto? preguntava o dr. Hunold, atencioso, do fundo da cadeira.
"Como te perdeste?"-preguntava Fernando. "Como te perdeste ?" -repetia-lhe o coração. Os adornos mortos do armário cantavam-no e as portas que fechava, também: "Como
te perdeste?"
Desceu do sótão e foi à cozinha combinar a ementa para a próxima recepção. O telefone tocou.
- O sr. doutor manda dizer à senhora que o não espere para almoçar; não pode vir - anunciou Irma. Pensou: "Mas que ar impertinente ela está tomando!" E resolveu
comer com o filho.
Mas ele já almoçara e estava a dormir. Evitou entrar no quartinho e censurou-se por, havendo-se demorado junto do armário do sótão, ter perdido o beijo do meiodia,
do pequenito.
Almoçou só, escreveu algumas cartas de cortesia, regou as flores. De tarde, tinha que assistir a uma reunião de caridade. Senhoras de lorgnon, em vestidos de seda
preta, proferiam acerca do bem-fazer, banalidades que Ina mal podia suportar; desculpou-se dizendo que lhe doía a cabeça e retirou-se antes do fim.
Estava-se numa tépida tarde de outono, o crepúsculo começava a tombar e só os campanários cintilavam ainda com alguns raios de sol. Nos passeios, o vento expulsava
as folhas secas, numa casa flutuava molemente uma bandeira preta que lhe despertou uma vaga sensação de dor. Apressou o passo, esperando encontrar o filho no regresso
a casa. Mas, em vão, procurou o seu casaquinho vermelho. Aquilo lembrou-lhe a cor dos lindos copos da Boémia que vira num antiquário da cidade antiga : para se distrair,
começara havia pouco, a coleccionar objectos antigos. Foi por pequenas ruas em que as empenas se inclinavam umas para as outras, e estreitas portas se abriam para
pátios donde saía ácido cheiro a cidra. Quis ver os copos, assegurou-se com a unha do polegar que não estavam rachados, ficou com um durante muito tempo na mão.
A frescura do vidro polido acalmou um vago tormento que a oprimia e comprou-o para oferecer ao marido: ele tinha uMma existência tão descolorida!
Diante da porta do Jornal, hesitou ainda um momento: sobre o telhado começavam a brilhar os anúncios luminosos no céu verde-pálido e, em baixo, as cabeças aglomeravam-se
em face das últimas novidades e das fotografias. O vestíbulo fora sujo por inúmeros
passos e estava ali calor; as rotativas, trabalhando nos subterrâneos, faziam estremecer as paredes com o regular movimento. Apressados, alguns tipógrafos subiam
a escada; a corrente de ar fazia tremer os papéis que levavam nas mãos. Na mal iluminada antecâmara da redacção, sobre um banco de usado couro, algumas pYssoas de
rosto acinzentado ou amarelado, bocejavam, cansadas de esperar. O contínuo fez uma grande reverência a Ina. O chefe encontrava-se ausente mas não devia tardar: o
Jornal estava pronto, só faltava ele chegar.
- Bem; então vou esperá-lo também. A-pesar-de cheirar a pouco arejado, estava fresco no escritório do dr. Hunold. Abriu a janela. Sobre a mesa, o candeeiro lançava
a sua luz verde e um cheiro a papel e pó misturava-se com o de cigarro frio. No aposento nu, fazia um efeito exquisito o pesado reposteiro. "Pobre homem!" disse
Ina, a sorrir. O autor do folhetim entroU para a cumprimentar, depois o crítico musical passou a cabeça pela porta; ao vê-la, arvorou um grande ar de homem de sociedade:
tomava, muitas vezes, o chá lá em casa e tinha uma paixoneta por ela.
- Que quere, minha senhora, somos escravos! Ao meio-dia, música religiosa na catedral, à tarde, concerto no museu, depois um acto do Crepúsculo dos Deuses e, em
seguida, o artigo. Tomaz Brandt dirige ele próprio a sua Sinfonia do Mar. Mas está acabado: nem uma idea, nada! Faz pena com as suas contínuas mudanças de tons e
as suas modulações cromáticas sobre a harmonia maior, Hoje, qualquer pessoa faria o mesmo: envelheceu !
- Sim ?-preguntou Ina, emquanto, sorridente, olhava para o reflexo de rubi que o seu copo lançava para a mesa suja. - Então o Tomaz Brandt envelhece ? Há muito tempo
que o não vejo, a última vez foi na América. Tenho vontade de me ir embora mas primeiro queria falar para casa.
No telefone, depois dum som alto, prolongado e bizarro que lhe fez mal aos nervos, foi a voz de Irma que disse:
- Era bom que a senhora viesse já. estou em cuidado por causa do menino.
- Mas que há? - preguntou ela, retendo a respiração.
- Está sempre a chorar. Só quere a mamã. Não me agrada nada.
Estava a chorar. Ina reconheceu o tal som tão bizarro e infeliz.
- vou já.
Nunca mais pensara no concerto de Tomaz Brandt. Na porta, encontrou-se com o marido.
- Ah! És tu? -preguntou ele, pesadamente. - Mas que honra!
- Posso ir no carro? O pequeno não está bem.- disse em voz alta, fugindo.
- Como as mulheres são exageradas! - comentou o dr. Hunold dirigindo-se aos seus colaboradores. - Se tocarem de Berlim chamem-me. Talvez tenha que lá ir hoje ainda.
Depois, pegou no copo vermelho que encontrou sobre a mesa, virou-o e tornou a virá-lo na mão, um tanto perplexo. Depois repeliu-o. Fechou a janela; precisava de
silêncio para trabalhar.
Sentado no tapete, o pequenito chorava, e para tentar consolar-se, esfregava a cabeça no corpo do seu pequeno teddy bear. No chão, estavam os cubos em maravilhosas
construções; ao lado, uma vaca, que só tinha três patas, olhava com ar estúpido. Perto da mesa, fráwíetn Zwillingsbauer com aspecto preocupado e a boca franzida,
preparava uma limonada.
Ina tirou as luvas e pegou no pequeno que logo se acalmou, colocando a cabeça no peito da mãe. Ela apalpou-o; não tinha febre mas a respiração era opressa e em redor
dos olhos havia um circulo cinzento.
- Onde te dói ? - preguntou.
Mas ele tomou o seu ar teimoso e ela compreendeu que ficaria mudo como o pai.
- Afirma que uma coisa má lhe entrou na boca. disse Irma, aproximando-se com a limonada.
Então a criança deu um breve grito rouco e os olhos encheram-se-lhe de ansiedade.
- Não quere beber nem comer!-gemeu ela.
- com certeza que lhe dói a garganta e não pode engolir. - explicou Ina com segurança maternal. - Não deve ser nada.
No entanto, as mãos tremiam-lhe ao despi-lo, mas quando viu o saudável corpinho nu, sossegou, sorrindo. Tinha um ar tão vigoroso! Apenas o caracol denotava certa
perturbação caindo molemente para a testa. Nos braços da mãe, fechou os olhos cheios de lágrimas e adormeceu. Ela pô-lo na cama e telefonou ao médico. O dr. Bentheim
não estava, fora ao concerto do museu e só viria na manhã seguinte.
Voltou para o quarto do pequenito que continuava à dormir. Na escuridão, ouviu lhe a respiração rápida e irregular que fazia um barulho estranho, angustiante. A
casa estava mergulhada em singular silêncio: Irma calçara pantufas de feltro e deslizava pelo soalho. Limpava o pó, o que não fazia sentido àquela hora. Ina olhava-a
em silêncio, compreendendo bem aquelas mãos duras e enrugadas que procuravam esconder a sua agitação. Ela segurava na mão um livro que não lia.
O telefone tocou e a voz apressada de Hunold disse: - Manda arranjar a minha maleta, peço-te. O chauffeur vai aí buscá-la. Tenho que partir hoje para Berlim. - Tão
bruscamente?
- É verdade. Tem que ser. Muito importante. - Não podes adiar isso, Martinho? O pequeno está doente, estou muito aflita.
Sentia a necessidade infantil da sua calma, da serenidade que as suas largas mãos lhe trariam.
- Impossível adiar; é realmente muito importante . não te posso explicar pelo telefone. O que tem o Martinho ? Febre ?
- Não.
- Dói-lhe alguma coisa ?
- Não sei, talvez a garganta,
Nada sei, ele não fala.
- Que está a fazer ?
- A dormir.
Ouviu o sonoro riso de Hunold.
- Estás doida, Ina. Exageras tudo com essa criança! Não tem febre nem dores e está a dormir. Amanhã vai acordar perfeitamente bem, verás. Então por isso é que eu
não devia ir a Berlim ? Tem juízo, minha filha.
- É a terceira vez que te ausentas este mês. Se hoje te peço. é porque estou muito inquieta. nervosíssima . peço-te.
- É uma criancice, Ina. São coisas muito importantes. Não devias ter casado com um deputado.
com os lábios duros e cerrados, ela pensou : "Não casei com um deputado". E disse:
- Está bem, Martinho. O chaufeur pode vir buscar a mala. Quando voltares, telegrafa.
- E tu, dá-me notícias em telegrama. - gritou ele ainda.
Mas Ina já tinha desligado. Ele encolheu os ombros e apagou a luz do seu escritório. A última coisa que viu, foi um reflexo de rubi sobre a mesa.
"Não há-de ser nada, murmurou Ina, ele não tem febre". Ficou ainda muito tempo junto do pequeno leito, antes de se deitar. Tinha sobressaltos e a sua respiração
era anormal, irregular - mas dormia. Estavam no chão as casinhas que ele construíra, e Teddy, o urso e a vaca de três patas olhavam fixamente para elas. Ina sorriu
e tranqúilizou-se: "Amanhã continuará com as suas construções". Pareceu lhe que os brinquedos tinham algo de apaziguador.
Mas na manhã seguinte, o Martinho estava cheio de febre. O dr. Bentheim chegou, esfregou as mãos de unhas curtas e falou, para fazer diversão, do concerto da véspera,
emquanto ia auscultando a criança, obstinadamente muda e respirando com dificuldade. Ina colocou o pequeno em frente da luz e os maxilares doíam-lhe enquanto
o doutor, com uma faca, abria a boca para examinar a garganta.
Ao cabo de alguns instantes, ergueu a cabeça e as
pupilas dos seus olhos abaulados tremiam um pouco.
De resto, estava impassível.
- Bem. Vamos dar-lhe uma pequena injecção.
- Que é ? Difteria ?
- Sim. Colocou a criança na cama, sem dizer palavra.
A cabeça andava-lhe à roda. Olhou para fora sem nada ver. O outono fizera cair as primeiras folhas do ácer, que se agrupavam em montinhos no chão. Lá em baixo, a
cozinheira cantava em voz arrastada a ária duma opereta em voga.
- É perigoso ? - preguntou, voltando-se para o médico.
- Não há-de ser, minha senhora. - respondeu ele, evasivo.
Considerava-se sempre um charlatão quando era obrigado a prodigalizar consolações profissionais. O pequenito não gritou quando lhe enterrou a seringa no braço; ficou
insensível mas com uma expressão extraordinariamente grave e reflectida. Ina tinha a impressão de que juntava todas as suas forças para poder respirar uma vez e
outra vez ainda, por muito penoso que lhe fosse.
- Voltarei logo; os meus cumprimentos ao dr. Hunold. - disse o médico.
E saiu.
A criança, ardendo em febre, sempre calada, lutava hora a hora para respirar fracamente. Sentada a seu lado" a mãe contemplava o rosto grave, contraído, de olhos
fechados e faces vermelhas; segurava-lhe na mão e o pulso batia com violência; colocava a outra mão no coraçãozito de que sentia o palpitar ofegante, precipitado.
Ina sofria horrivelmente, com uma intensidade nunca experimentada. As horas corriam desesperadamente longas, o crepúsculo chegava, depois a noite. De vez em quando,
dirigia ao filho palavras de ternura que ele parecia não compreender. Uma vez, ergueu-se um
pouco, abriu as pálpebras e deitou à mãe um olhar de lado, que ela não reconheceu. Tornava a cair, depois erguia-se de novo, sentava-se, aflito por poder respirar;
mas não gritava. O suor inundava-lhe o rosto afilado que as rugas em redor da boca e do nariz alteravam.
O médico entrou e saiu, tentando aliviar o doente, mas sem nada conseguir. A cozinheira já não cantava; Irma, deslizou pelo quarto com um leve ruído de louça e murmurou:
- A senhora devia comer alguma coisa . devia descansar um pouco.
Mas Ina ficou sentada, sempre com a mãozinha entre as suas, e tudo nela denunciava vontade distendida ao extremo. Nunca sentira tamanha angústia, nem semelhante
dor, nem uma resolução tão feroz. De noite, o homem da capa negra, estava em frente da casa, encostado ao tronco do ácer. à espera. Até aí, havia sido um amigo,
uma pessoa de família, uma imagem de sonho, o fantasma dum bailado; agora mostrava as mãos sinistras e tornara-se inimigo. Lutava contra ele, fascinada pelo leito
do doente, rígida como num acesso de vontade espasmódica. Também a criança lutava e sofria atrozmente. com violento esforço, conquistava inspiração após inspiração;
às vezes, obtinha um momento de alívio, de febril sonolência. Então Ina sossegava um pouco e pensava: "Não é possível. não, não é possível!"
Ela própria, num desses instantes, mergulhou em sono agitado: percorreu uma avenida onde as folhas secas atapetavam o chão, chovendo das árvores; e ela pensava:
caem tantas folhas, morrem tantas crianças! Uma bandeira de luto vinha lá de cima das nuvens até aos seus pés. Procurava o casaquinho vermelho e não o encontrava,
ia dum lado para outro, sempre à procura e não descobria a menor mancha vermelha! Homens de largos ombros curvavam-se para o chão e levantavam um fardo; gritava
uma estridente voz de mulher -Ina estremecia como uma culpada e não podia lembrar-se onde assistira já a semelhante cena. Acordou.
A criança, sentada no leito, estertorava à procura de
ar, com os olhos esbugalhados de angústia. Os olhos da mãe tornavam-se secos e dilatados de terror. depois aquilo passava mais uma vez.
Irma voltou de novo ao quarto, com um trapo na mão. Baixou-se maquinalmente e quis arrumar os brinquedos, o urso, a vaca, as construções e os cubos. Ina zangou-se
e gritou:
- Não, não! Deixa isso tudo. Quando ele se levantar, continuará a brincar.
Fráulein Zwillingsbauer sacudiu a cabeça, não disse palavra, e desapareceu sem fazer ruído. Não sabia que Ina tinha contemplado aquelas casinhas durante horas, o
inacabado trabalho das pequenas mãos e da pequena alma: para ela as construções viviam, significavam mais do que tudo, consolação e esperança: o filho curar-se-ia
para as terminar,
Também o médico dava esperança, muita esperança, se bem que os seus olhos abaulados, de míope, estivessem perturbados, emquanto dizia:
- Não chore, minha senhora, é uma doença de crianças.
Mas Ina estava longe das lágrimas: tudo nela era duro e hirto como ferro.
Trocava telegramas com o marido. Ele chamava-a muitas vezes ao telefone e ela dava-lhe notícias como uma sonâmbula. O aparelho rumorejava, as meninas do telefone
misturavam a repetição de outros números à conversa, a voz de Hunold, fraca e longínqua, era diferente. Ina mal podia falar-lhe. Só sabia dizer-lhe: "Volta de-pressa".
Ele ia voltar, só lhe faltava uma reunião importante. "Coisas extremamente importantes." Ao ouvir isto, Ina sorria, cruel e amargamente. Todos os dias se ia meter
no comboio e nunca chegava.
- O pequeno está mal ? - preguntava ele quando ela insistia.
-Não.
A angústia terrível, o medo de atrair a desgraça, impediam-na de dizer que sim.
- Bem; irei esta noite. Que o diabo leve o ministério ! - exclamava ele, de Berlim. - Dá um beijo ao pequeno.
Não te fatigues demais, não te aflijas muito: são doenças de crianças. Até logo.
- Acabou ? - preguntava a telefonista.
- Acabei. - respondia Ina.
Ignorava como o marido pensava, com que ternura e ansiedade, emquanto tratava dos negócios, pensava nela e no filho. Pelo seu lado, Hunold não suspeitava como ela
já estava separada dele e como o derradeiro combate se estava a travar nas mãos do seu filho.
Foi numa noite tépida e chuvosa que a calma desceu ao quarto do doente. A criança já não abafava, não se levantava bruscamente em espasmos, não lançava aqueles horrorosos
gritos do princípio. Estendida, com os olhos quási fechados, deixando ver pela fenda das pálpebras uma pupila sombria, mexia os deditos como um animal move as patas
quando sonha que está sendo perseguido. O dr. Bentheim, vindo às onze horas, olhara para o doente, em silêncio, e murmurara a palavra "crise. Tinha aconselhado café
em pequenas doses-para facilitar o trabalho do coração, explicou emquanto lavava as mãos. Também Ina bebeu café: também o seu coração estava fraco e se recusava
a continuar, depois da tensão que sofrera e que diminuia agora, pois julgava que o filho estava melhor.
Aproximou-se da janela aberta e olhou para fora. O tronco da árvore brilhava à luz dos candeeiros, o ar parecia roupa húmida e quente. Não chovia já, as fô lhas
caídas flutuavam nas grandes poças que reflectiam a noite negra e a luz esverdeada do quarto. Respirou fundo. Os seus nervos sobre-excitados já lhe não mostravam
o homem da capa negra encostado ao tronco do ácer. Sentia, pela primeira vez, como estava fatigada, como tinha os olhos a arder e os joelhos a vacilar de fraqueza.
O petizinho respirava serenamente. a vontade de Ina deixou de estar tão retezada: adormeceu à janela.
Acordou-a uma voz desconhecida, alta e rouca. "Mamã, dizia o pequenito, Era a primeira palavra que pronunciava nitidamente, após tantos dias. Encostado à almofada,
fitava-a com os olhos mudados num rosto
muito diferente, com uma expressão transfigurada, primitIva, lúcida. Uma ternura nunca experimentada, prodigiosa, lançou-a sobre o leito. Balbuciava nem sabia o
quê,
levou as mãozinhas dele à boca e beijou-as longamente.
O filho olhava-a com serenidade. Mamã. ficar ao pé
mim." balbuciou com esforço. Voltou a deitar o
corpinho, de membros ainda ardentes de febre. Mas
tornara a encontrar o sorriso.
O pequerrucho fez então um gesto singular: procurou as mãos da mãe e assim que as encontrou, puxou-lhas para a sua cabeça e pôs nelas as fontes, a testa e os olhos.
Havia neste gesto uma ternura, um desejo de repouso nada infantil, quási viril, e Ina ficou profundamente comovida.
Durante um segundo, viu o filho adulto, um belo rapaz de rosto voluntarioso, um filho bem vivo que se inclinava para as mãos da mãe; durante um segundo, esta imagem
causou-lhe enorme felicidade. Finalmente, a cabecinha tombou molemente na almofada, os olhos apagaram-se, uma sombra estranha, sinistra, espalhou-se pelo seu rosto
e as mãos emmagrecidas caíram inertes.
"Nunca!", disse uma voz no Universo; "nunca!", soou no coração de Ina. Tudo o gritava, a cama desfeita, o relógio parado, o candeeiro velado de verde, os pequenos
cubos da construção. nunca, nunca !
De madrugada, Irma passou a cabeça pela porta entreaberta, olhou sem falar para o leito da criança.
- Está a dormir. - murmurou Ina, que colocara a mão sobre o peito do pequenito. Dormia, ainda respirava, o coração batia-lhe. Irma, que já perdera um filho, desceu
a escada cega pelas lágrimas, e telefonou ao médico.
Ina estava sentada junto da cama, com os dentes cerrados, os lábios gelados. O seu sangue corria como duma ferida. Toda a força se concentrava na mão que estava
sobre o coração do pequenito. Os ramos do ácer estremeceram com a brisa matinal, um passarito chamou dèbilmente. o pequerrucho ergueu se mais uma vez e tornou a
cair.
Foi muito mais tarde que Ina tentou tirar a mão de
sobre o coraçãozinho que se imobilizara. Tinha que percorrer uma distância infinita. A mão pesada, impossível de se mover, estava fria, uma coisa morta e crispada.
Deslizou sobre os lábios infantis, imóveis e fechados, que já não respiravam, mas ainda estavam mornos. a roupa ainda conservava o calor.
O mundo desfêz-se. Ina olhou para o corpinho e disse com um sorriso desvairado:
- Não é possível. não é possível.
Na rua, alguém assobiava uma canção melancólica, passavam os carros do leite. Parou um automóvel. Ina Raffay levantou-se, cambaleante, e teve a impressão de que
ia ficar doida.
"Pensa no infinito, minha alma, minha alma irmã", dizia Fernando. Barulhos, escuridão, círculo de luzes, libertação.
O pior foi ver os brinquedos, já sem utilidade, no meio do chão do quarto mortuário: Teddy, o urso, a vaca de três patas e as construções por acabar.
A dança com a capa negra
- Nervos. minha querida senhora. - disse o dr. Bentheim esfregando o queixo.
A sua arrastada entoação pareceu intolerável a Ina. No armário envidraçado, a aparelhagem cirúrgica lançava faíscas, a abaulada tampa do esterilizador de níquel,
reenviava à cliente a sua imagem deformada de risível forma; a chuva colocava cortinas opacas nas janelas. Ina encostou-se para trás e fechou os olhos, fazendo vagamente
o voto de nunca mais se levantar e de dirigir o seu adeus à vida. Era o que sentia nestes últimos tempos: a mi nima bagatela exigia-lhe um enorme dispêndio de energia.
O doutor lançou um olhar rápido e conhecedor sobre o exausto rosto da doente, sobre as rugas que iam das frementes narinas ao queixo, e disse:
- Os nervos . Quando o seu filho morreu sofreu
um abalo de que o seu sistema nervoso nunca se restabeleceu. Desejaria, no interesse da sua saúde, que tivesse outro filho: isso atenuaria a dor.
- Talvez. atenuasse. Mas quem lhe diz que eu quero ver essa dor atenuada ? Não. É exactamente isso que eu não quero! Foi talvez na dor que eu compreendi a vida,
foi talvez essa a única vez em que a senti a fundo. Foi uma coisa muito grande que eagiu no esforço de todo o meu ser. Emfim . não posso explicar-lhe. Mas agora
. Tudo ficou escrito na areia e uma dor que não dá fruto é uma doença perigosa, doutor.
- Deveria procurar uma distracção, minha senhora. - Distracção? Não, não. A saudade, apenas a recordação. - replicou ela com ardor. - Mas para a cultiH var é preciso
ter força e eu perdi a minha. - Deve dominar-se, minha senhora, tem os seus deveres que são bem agradáveis, a sua casa, a sua situação, o seu marido.
- Pois é. - respondeu ela.
O médico calou-se e pensou nesse dr. Hunold que
acabara de reunir num consórcio quatro Jornais importantes e que, um dia, viria a ser ministro. Também Ina pensou nele: "Julgará que tem na mão um homem e apertará
ao coração uma casca vazia!" dizia alguém ali perto. Olhou vivamente para todos os lados mas não havia senão as primeiras sombras do crepúsculo e um relógio a dar
horas no seu grave timbre. Véus suspendiam-se pelo aposento. Ina endireitou-se com esforço. - Em todo o caso, - continuou o médico, a coçar o
queixo-o melhor remédio para a senhora consistiria em distracção e trabalho. A crise nervosa que está sentindo não é rara perto dos quarenta anos. Depressão, sôbre-excitação
sem motivo, fadiga, uma certa abolição de limites entre o sonho e a realidade, um estado crepusclar, eis mais ou menos os sintomas que dizem respeito à sua idade.
Talvez uma viagem lhe fizesse bem, quando estiver mais frio. Poderá ir para Saint-Moritz, um pouco de desportos de inverno, neve .
- A neve. - replicou Ina, comovida por um vago
desejo : via um frio calmo, puro, de azulada brancura. Depois tomou coragem e disse: - Por outro lado, queria mostrar-lhe ainda uma coisita.
Depois de hesitar, desapertou a blusa.
- Mas não troce de mim. É um pequeno defeito, uma coisa dura que tenho no peito: não se ria, não o interrogo por coquetismo, mas há muito que me habituei a vigiar
o meu corpo. Já experimentei dar maçagens.
O doutor aproximou os seus olhos de míope da pele morena, macia e mate, onde nada se via. Pegou num reflector e, com os dedos práticos, começou a apalpar.
-Dói-lhe?
-Não.
- Há muito tempo que descobriu isto ?
- Não sei.- respondeu ela, sem ligar importância. O relógio tornou a soar e, no silêncio, ouviam-se
as gotas da chuva a bater nos vidros.
Ao cabo dum momento, o dr. Bentheim ergueu a cabeça. As pupilas estremeciam nos olhos abaulados. De resto, estava impassível. Ina já vira aquele olhar.
- Bem.-disse, lavando as mãos na torneira da água quente.
- Então não é nada ? - preguntou ela, de pé, muito direita ao lado da cadeira.
Tinha arrepios na nuca, mas não estava mais fatigada do que quando chegara e já não via tanto nevoeiro na sala.
- Para o médico tudo tem importância, minha senhora. Aconselho-a a consultar um especialista. Mas é claro que não é motivo para se atormentar.
- Meu caro doutor, escusa de me enganar com lindas palavras. Eu não me importo. Diga-me o que é.
O médico fitou-a bem nos olhos. Viu lá uma tal expressão de zombaria e talvez de alívio que explicou docilmente:
- Parece-me que é de formação recente.
- Um cancro ?
- Também há formas benignas. De resto, mesmo que seja canceroso, assim no princípio é curável. Um especialista dir-lhe-á.
- Que é preciso fazer a operação.
- Não digo tanto. Ultimamente têm-se obtido resultados surpreendentes com o radium. Tenho ali um livro que fala no tratamento com o mesoiborium. É do professor Delarès,
de Viena.
- Do Fernando. - disse ela, respirando fundo.
Ele chamara-a muita vez em sonhos, nas horas perturbadas da noite; agora era ela que precisava dele. Uma força escura envolveu-a, entonteceu-a durante segundos.
"Irmãzinha", respondia-lhe uma voz que era longínqua, e ao mesmo tempo vibrava dentro de si. Depois voltou ao dr. Bentheim, que acendera a luz e folheava livros.
- Delarès, de Viena, - repetiu ele. - Foi quem fez o maravilhoso trabalho Sobre a Morte. Um rapaz prodigioso, o Delarès de Viena. Falarei a seu marido. Acho que
devia ir consultar o dr. Delarès. Mas quanto mais de-pressa, melhor.
- Não me demorarei. -afirmou ela com o seu sorriso de sociedade. - Mas escusa de falar a meu marido, creia, doutor. Ele tem tão pouco tempo. eu própria lhe falarei.
prefiro. Depois participar-lhe-ei tudo que se for passando.
O médico beijou-lhe a mão e abriu-lhe a porta acolchoada de verde. E ficou a pensar: "Que mulher espantosa! Não chorou na morte do filho e hoje nem empalideceu.
E ainda se queixa de não ter bons nervos!
Sob a chuva, o carro esperava em baixo. Ina mandou o embora e pôs-se a caminhar na cinzenta tarde, oferecendo os lábios ao ar com um sorriso estranhamente ávido,
um sorriso de libertação. Parecia-lhe que era conduzida pela mão quente e familiar que tão bem conhecia e tinha a impressão de que uma porta se abria sobre um novo
caminho que a levava da realidade para o mais íntimo domínio da sua alma. Sob um candeeiro já aceso viu o homem da capa negra ; fez-lhe um sinal ao qual ele respondeu
com familiaridade e certo afecto. Parecia-se com Javelot e também com o Conradin. Uma pequenita deslizava pelo mosaico inclinado e dizia ambiciosamente: "Também
eu quero morrer!"
Depois Ina viu um gesto, a ondulação da capa negra que cobria o homem. Sentiu um choque no coração, "o último bailado" murmurou, e sorriu ao mundo alado que nela
despertava.
Era tarde e estava escuro quando chegou a casa como se viesse duma longa viagem. Procurou o botão da campainha e levou tempo a encontrá-lo, de tal modo aquela casa
lhe era estranha. Saindo do rés-do-chão, a luz dava claridade aos pequenos arbustos e, na cozinha, irrepreensivelmente limpa, a cozinheira cortava a carne em fatias.
Ina, olhou com curiosidade pela janela como para um prédio estranho e chegou mesmo a rir-se, maravilhada por os cobres do vestíbulo terem tanto lustro. Em ar de
censura, a criada tirou-lhe o casaco encharcado. Na sala de jantar, fràukin Zwillingsbauer preparava torradas num aparelho eléctrico.
No quarto de banho, Hunold, com a cara cheia de sabonete, fazia a barba, em frente do espelho. Ina sentou-se num canto, cruzou as mãos em redor dum joelho e deixou-se
ficar, calada, olhando atentamente. Ò que estava na sua frente era mesquinho, bizarro - brinquedos dum mundo estranho. Estava doente, podia levantar-se e deixá-los,
ir-se embora, exactamente como fora o pequenito, abandonando os cubos das construções. O dr. Hunold fechou a navalha e pulverizou as faces com vinagre de toilette.
Engordara muito e os seus gestos faziam pensar nos dum elefante. Também o rosto mudara, tornara-se mais profundamente germânico, mais decorativo, e as suas feições,
obrigadas pela profissão a nada deixarem transparecer, quási que tinham perdido toda a expressão. Ina via, pela primeira vez, estas mudanças, com extrema nitidez
porque tinha na memória um Martinho Hunold muito alto, a abrir o portão do jardim e a estender os braços em que ela se refugiava.
- É espantoso . - disse. - Quando fecho os olhos, vejo exactamente uma árvore que conheci em pequena, um pinheiro todo torcido e distingo ainda cada fenda e cada
rugosidade da casca. Mas quando penso no nosso filho, tudo se torna confuso e se afasta. um ser humano pode então esquecer com o que se parecia o seu filho?!-
Sem erguer os olhos, o marido disse:
- Estás nervosa. Devias decidir-te a ir ver o doutor Bentheim.
- Venho de lá.
- Então? Ela não respondeu mas preguntou:
- Vais viajar outra vez ?
- Então já não te lembras? Falamos ontem nisso durante mais duma hora. Tenho que ir a Hamburgo para o lançamento do Heligoland. Vai lá estar gente de todo o mundo.
Tem também um significado político.
Apertou mais as mãos em redor do joelho e preguntou :
-Não te importas que, durante esse tempo, eu vá a Viena ?
- Que vais fazer a Viena ?
- Mandaram-me dizer que estão lá duas miniaturas de Daffinger. Interessa-me vê-las. Poderei também visitar a exposição das Artes Industriais para estudar os quartos
para mulheres. É em Viena que melhor fazem estas instalações. Além disso, Bentheim aconselhou-me a ir ver um médico de lá.
- O que achou ele ?
- Nada de grave. Nervos. idade crítica .-disse com um sorriso, como que a desculpar-se.
Hunold olhou para a mulher e sacudiu a cabeça.
-Como se pode assim ter nervos! É coisa que eu não compreendo!
- Portanto, se não te importas, irei no comboio
desta noite. - concluiu ela.
Virava as palmas das mãos para ele, como se ainda esperassem alguma coisa. Mas o marido não tinha nenhuma objecção a fazer. Apenas ficou um pouco surpreendido. Depois
desceu, foi ver o guia dos comboios e ler os Jornais da tarde.
Quando, um pouco mais tarde, Irma entrou na sala
de banho, em frente da janela Ina via cair a chuva, na
noite sombria. Experimentava uma sensação que havia muito não sentia: a noite a bater à porta do seu coração com um amontoado de nuvens lá no alto e o ruído regular,
calmo e mole da água na erva e nos telhados. A letra duma poesia esquecida voltou-lhe ao espírito com a música que Tomaz Brandt compusera outrora: "Querida noite,
dá-me a tua alma, entrega-te a mim e que o teu sombrio céu só a mim ilumine ."
- vou viajar, Irma. -disse ela sem se voltar.-Prepara a minha maleta e o meu nécessaire. Bem sabes o que preciso de levar.
- Vai com o sr. doutor ?
vou só. - respondeu, afastando-se. " Dá a chuva que, apaziguadora, corre sobre os cimos e pelas minhas fontes, dá-te a mim, ó noite, para que finalmente eu saiba
outra vez chorar!"
O vestíbulo estava mal alumiado. Ina deteve-se um momento à porta do quarto da criança desaparecida e depois abriu-a. Cheirava a fechado e, na escuridão, nenhuma
respiração se ouvia. Deu volta ao comutador e o candeeiro cheio de pó espalhou uma luz turva. O aposento, como que irreal, cheirava a morte, a caminha dormia com
a almofada imóvel e sem uma única ruga. Teddy, o urso, olhava, espantado, com os brancos olhos de porcelana, para as casinhas que a criança havia outrora imaginado
e construído. Foi até à janela que abriu com precaução para não acordar o que estava adormecido. Fora, sob o ácer, o barulho da chuva assemelhava se a um canto grave.
O ar fresco entrou e apoderou-se da testa e das mãos dela. Ajoelhou-se junto da cama e colocou a cabeça na almofada. Nenhum aroma persistira. Ficou com os olhos
fechados. Nenhuma imagem, nenhum rosto lhe apareceu, apenas imprecisas manchas flutuavam na sua frente: o casaco vermelho, a beira dum vestidinho, a mãozita duma
criança, toda suja de terra. Ina ergueu-se e veio ajoelhar entre o urso e a vaca de três patas, pegou ao de leve nos cubos e arrumou os na caixa que estava ao lado.
A janela ficara aberta e também a porta do quarto vazio. Fràulein Zwillingsbauer, ainda ocupada na sala de banho, viu o rosto de Ina quando metia a construção na
caixa. De-certo notou qualquer coisa extraordinária, porque preguntou, sem notar que a tratava por tu:
- Estás doente, Ina ?
Mas ela sacudiu a cabeça com um sorriso distraído. E pensava: "Afinal, a doença é também uma das cem portas, passa-se para o lado de lá e pronto, fica-se absolutamente
separado da vida dos outros." Sem que desse por isso, tudo o que sentira nas últimas horas tomava já uma forma de bailado, naquele adeus feliz em que o acompanhamento
era uma ritmada marcha fúnebre.
Um relógio deu horas, o dr. Hunold chamou, as criadas correram com a bagagem, tornaram a cair os reposteiros. À porta, estava fraulein Zwillingsbauer emquanto que
tudo se apagava, Ina viu distintamente correr duas lágrimas. O automóvel arrancou, Hunold falou discretamente doma carta de crédito num Banco de Viena, depois apareceu
a estação cheia de gente e movimento sob a luz fria dos altos candeeiros. Ina foi levada pela multidão, o fumo subia sem barulho para a abóbada de ferro e vidro,
pessoas desapareciam ao longe, como sombras, sinais luminosos acendiam-se nas linhas.
Ina ficou no corredor bem aquecido do vagão-leito, donde via o marido, com rosto preocupado, a dar uma gorjeta ao chefe do comboio. Foi nesse momento que acordou,
como se tivesse recebido uma pancada. "O meu marido" - dizia uma voz lá no fundo de si própria, e a garganta enchia-se-lhe de lágrimas. Hunold olhou-a com espanto
quando, tendo ela descido ao cais, lhe pegou nas duas mãos e o puxou para a sombra Disse-lhe em voz baixa e entrecortada:
- Houve, no entanto, qualquer coisa muito bela entre nós. Amámo-nos muito, Martinho. Já não res?tará nada ?
- Minha filha, minha querida . - respondeu ele na ?sua voz grave e serena -que pregunta! Estás excitada. até me arrependo de te deixar ir. - Gostas então de mim
- Mas se eu.
-Casaste comigo, eu sei. Fizeste-o contra a tua Vontade, foi mais forte do que tu, em determinado momento. Mas agora, Martinho? Agora, podes viver sem mim, não é
verdade?
com impaciência, ele respondeu :
- Porque me fazes preguntas infantis ?
E pensava com dolorosa comoção : "A idade crítica e a falta do filho".
I na largou-lhe as mãos.
- Partida! - gritavam os empregados. Rodeou a mulher com os braços e ela sentiu a grande boca morna que já lhe não era familiar. Já estava do outro lado da porta,
no seu mundo pessoal.
- Vai logo ver o médico e telegrafa, dizendo o que ele tiver encontrado. - gritou-lhe ainda.
- Está bem.
-Tens o teu bilhete?
- Tenho. - respondeu ela numa voz extraordináriamente serena.
A estação já se afastava e desaparecia. Uma enorme mão fazia ainda sinais, ou iluminada ou mergulhada na sombra do comboio que rodava. Depois, de encontro às janelas,
vieram bater a noite e a chuva. Ina olhou para trás, até que a cidade reapareceu com os altos prédios perfilando-se no céu ennevoado. As luzes reflectiam-se na mão.
O ritmo das rodas soava na ponte, levava Ina, transformava-se naquela oculta marcha fúnebre do último bailado.
com os gestos maquinais duma mulher muito habituada a viagens, Ina instalou a bagagem, arranjou o compartimento para passar a noite e deitou-se na cama. O comboio
deixava ouvir a canção do ferro nas trevas. Ela estava estendida com um braço sob a cabeça. Afastou o quimono e palpou o seio. Não era doloroso, havia apenas aquele
pequeno, tão pequenino sítio sob a pele perfeitamente lisa. Era um pouco duro, não tinha maleabilidade e era desconcertante. O homem da capa negra tinha outra vez
estendido as mãos sinistras. O pior era não saber que espécie de tormentos e dores seria preciso atravessar antes de chegar ao fim.
Ficou imóvel com a mão apoiada no ponto doente. com os dentes cerrados, respirava com dificuldade e tremia. No entanto, o coração batia-lhe, sentia-o com uma tristeza
de penetrante doçura. O comboio continuava
na sua canção. Tranqúiliza-te, írmãzinha - dizia Fernando lá longe, inclinando-se para ela - nada temas, hás-de adormecer."
Deu um grande suspiro e, pela primeira vez, mergulhou num profundo sono sem sonhos.
Quando Fernando terminou o exame, afastou-se e foi até à janela. Sem blusa, Ina estava em pé no meio da sala e tremia de comoção contida. As paredes, pintadas de
azul sombrio, espalhavam uma impressão de calma, o sol de outono agarrava-se aos raros móveis brancos, e uma grande paisagem a óleo dava ar e espaço à sala. Foi
por causa das altas janelas à francesa que Ina reconheceu o antigo salão de música, do palácio Delarès. Vestiu-se e depois aproximou-se do primo, procurando-lhe
o olhar que seguia o voo das andorinhas. Antigamente, havia no jardim um maciço de lilases; agora, convalescentes com a bata branca da casa de saúde passeavam entre
os poucos arbustos que restavam. Ao longe, zumbia o rumorejar da cidade, a cidade da juventude que, argêntea, se perfilava no céu de outono. Fernando tomou a mão
de Ina entre as suas e ela esperou estar bem calma, ter a voz bem serena para preguntar:
- Então, Fernando?
- Porque vieste tão tarde ?
- Tarde demais ?
- Temos que operar.
- E então ?
- Então tudo ficará como dantes, espero eu. Estás decidida a fazer a operação? Não é grave.
O rosto de Ina contraiu se. Murmurou:
- Espera. Deixa-me reflectir.
Havia em cima da secretária um vaso com ciclames.
Do conjunto vermelho sombrio, colheu dois ou três já murchos e, distraída, deitou-os pela janela fora. Fernando que, com os olhos lhe seguia o gesto, preguntou:
- Tens medo, Ina ?
- Medo, não. - suspirou e depois acrescentou: Medo da operação não tenho.
- De quê, então ?
- Talvez. talvez da cura. - murmurou hesitante, levada por um turbilhão de pensamentos.
O médico olhou-a sem surpresa.
- E se não me operares, o que acontecerá ?
- Morrerás. - disse, fitando a.
- Em breve ?
- Sim. Daqui a seis meses, talvez um ano.
Ela sentou se, encostou-se nas costas da cadeira e olhou para o quadro da parede. Representava um vasto campo estendido ao sol, à beira do qual cresciam muitas flores.
Preguntou ao de leve:
- Estiveste no Japão ? Entre os inúmeros deuses que eles lá têm há uma pequena personagem de testa baixa e orelhas compridas: Sbinighami, o desejo da morte.
- E então ? - preguntou Fernando, que esperava a continuação.
Na paisagem pintada havia mil-flores, ervas dos prados, trevos cor de rosa, em delicioso formigar que dava o desejo de respirar o vivo aroma da terra.
- E se me operarem, não morrerei ?
Fernando riu-se como se estivesse tratando com uma criança, e replicou:
- Não morrer seria uma excepção como nunca se viu; em geral, toda a gente morre, mais cedo ou mais tarde, não é verdade, irmãzinha ? Nós só podemos adiar o desfecho.
- Bem. - disse Ina, rindo-se igualmente. Durante um instante, fitaram-se os fraternais olhos dos Delarès. Ela continuou pouco depois : - Então ficarei com o meu
Shinighami, não me farei operar e viverei os meus seis meses ou o meu ano. Depois morrerei. E é tão comprido! É uma impressão maravilhosa esta de sentir a
vida e a morte na mão e dizer: "Eu quero". Eu quero, Fernando. Acho que tenho dito bem poucas vezes esta palavra. Talvez por isso a minha existência haja sido tão
sacudida, baloiçada dum lado para outro, sem peso. areia a correr. Uma verdadeira vida de bailarina. Lembras-te como definias isto quando eras pequeno: saltaricos?
Mas agora quero outra coisa. Não te posso explicar o que hoje experimentei quando aqui vim. Um céu como nunca, um céu de adeus. Tudo está transparente e iluminado
por dentro. Como a gente, quando vai morrer, acha a vida magnífica, Nando! Porque me olhas sem dizer nada ?
-Estou a examinar-te Ina, deixa-me fazê-lo em silêncio.
Destacava-se no quadro cheio de sol, da janela, Fino na sua bata branca, tinha nos olhos um sorriso de inconcebível serenidade. Já estava um pouco grisalho; olhando-o
ela quásí que teve receio. "Como é belo,- pensou - mais belo do que Tony de Maaten e todos os que o precederam ou lhe sucederam." Via as suas próprias feições como
num espelho muito puro, os olhos, a testa, o queixo. Um estranho pensamento atravessou-lhe o espírito: "Quando estiver morta, parecer-me-ei com ele."
- Ainda bem que vieste procurar-me na realidade e não em sonho. Quando voltas para junto de teu marido?
- Não voltarei.
Fernando calou-se e tornou a olhar para as andorinhas, cujo voo riscava o céu de fios de prata.
- Para o que me resta a fazer, não preciso dele. Escrever-lhe-ei, dizendo que tenho de fazer uma cura num sanatório daqui e as suas ocupações são tantas que nem
terá tempo de pôr em dúvida o que lhe digo. É pena que se tenha tornado tão oco, tão absorvido pela actualidade, um dos muitos homens de hoje cuja máscara se transformou
no verdadeiro rosto. As suas mãos são tão boas, tão calmas! Antigamente, antes da nascença do meu filho, eu pensava às vezes: "Quando eu morrer, hei-de agarrar nestas
mãos." Mas tudo saiu errado: o homem e as mãos.
- E como vais passar agora o tempo, Ina ? - preguntou o médico lentamente. - Já pensaste nisso ?
- Desejaria ficar em Viena, aproximar-me o mais possível da minha infância e tornar a descobrir o mundo em que tudo tinha vida, E ficar ao pé de ti, Fernando, preciso
de ti.
- Porque não vens viver agora para minha casa ? Bem sei que há aqui uma atmosfera de hospital, muitos enfermos e muitos sofrimentos. Mas talvez isto te fosse salutar.
Talvez isto te mostrasse um caminho que ainda não conheces, Ina.
- Não, obrigada, Nando. És muito bom mas esse caminho não é para mim. Sabes ? Desde que estou aqui a falar contigo, não deixo de ouvir uma melodia. Passam-se muitas
coisas dentro de mim, sinto ainda uma sede ardente. Quero ficar sozinha, não fazer outra coisa senão abrir os olhos, as mãos e o coração e sentir como a vida é bela
quando se pensa na morte. E para acabar, tenho a certeza de que há-de sair cá de dentro ainda um bailado, melhor do que os outros, diferente de todos. Zombas de
mim, Fernando, mas se eu fosse capaz de pintar ou de escrever, compreenderias melhor isto e respeitá-lo-ias : a última criação, É verdade, Nando, parece que nasci
surda-muda e só posso explicar a vida, a dançar . Porque estremeces ?
- Não estremeço, estou a pensar noutra coisa. Talvez ta explique quando tu voltares. se voltares.
- Voltarei, e tu não deixes de pensar em mim. Estou hoje alegre e leve. Horas duras hão-de chegar, sinto-as vir. Tu estarás a meu lado. Adeus.
- Adeus, Ina.
Detendo-se na porta, com o rosto pálido e transparente e nos olhos sombrios um novo clarão, preguntou:
- Dize, Fernando, os vidoeiros continuam em Amrun ?
- Continuam, sim, Inês, há sempre vidoeiros em Amrun.
Pelo corredor, vinham dois enfermeiros que traziam sobre a maca um corpo hirto, velado de branco. Fernando pegou na mão da Ina como se fosse preciso protegê-la.
Mas ela olhou-o sem perder o sorriso que lhe flutuava na boca séria.
Havia já muitos anos que o príncipe de Wriedt matara a mulher no seu castelo de Herligenstadí e se suicidara em seguida. Desde então, a propriedade que os herdeiros
colaterais evitavam, ficara desnaturada. Só um velho jardineiro lá estava, aquecendo regularmente a estufa, cultivando plantas raras e sonhando noite e dia em obter
a rosa azul. Morto, o castelo dormia. O parque transformara-se outra vez numa floresta selvagem e a hera invadia em torrente o pequeno pavilhão da colina. Foi aí
que Ina se instalou.
Era uma habitação tranquila com móveis de nogueira escura e espelhos esverdeados. A noite entrava na casa que era alumiada por velas, como um lacaio empoado. Erguiam-se
velhos castanheiros em frente das janelas e subiam acima do telhado. Um melro que dormia na hera saudou a manhã com os seus cantos. Apareceu então a viúva Keslaber,
cujo rosto parecia estar sempre crucificado com dor de dentes, com um arsenal de escovas, vassouras e outros utensílios para limpeza. Durante este tempo, em cima,
no salão das três janelas, Ina dobrava os joelhos e fazia os exercícios de maleabilidade do corpo de baile e os novos moVimentos que vira em Sáo-Vigo. Ao longo da
parede alinhavam-se grandes poltronas antigas, de pés torcidos, guarnecidas com estofo às riscas, calava-se o relógio, o lustre de cristal estava envolto numa gaze
branca que pendia e se agitava ao de leve quando ela activava o seu trabalho. Depois disto, os membros, as costas, os joelhos, ficavam doloridos, a planta dos pés
tinha necessidade de repousar em pantufas. Sentia enorme fadiga mas, a-pesar-dos quarenta anos e da doença, não queria renunciar. "Antes de mais nada, preciso de
estar em forma" dizia a si própria
todas as manhãs e tonificava o corpo com muita água fria e aquela disciplina a que se habituara no tempo do café-concêrto. Depois chegavam as horas agradáveis. Ia
para a floresta em que esplendia o outono. Sobre as vertentes da colina, a folhagem das árvores espraiava-se em acobreadas vagas, a terra exalava um cheiro acre,
doce e amargo ao mesmo tempo, os abrunhos pintavam as sebes com o seu veludo roxo, o ar era um alegre banho de prata de tom azulado. Ina bebia tudo isto em goles
fundos e nem sequer pensava que era o último outono que via. Todo o seu ser estava penetrado desta certeza, o que dava à doirada estação um encanto diferente do
que nunca tivera.
Sobre um muro flamejava a vinha virgem. "Vermelho, pensou ela "nunca soube como era o vermelho! É uma felicidade, um grito de alegria. Seria necessário dançar alguma
coisa que não fosse mais do que isto: vermelho. A dança das papoilas é pálida e não tem vida. Seria preciso refundi-la, agora, com os olhos novos, com a certeza
da morte e a ária do adeus no coração. Mais uma vez!" pedia uma voz dentro dela, desejaria ainda possuir só mais uma vez toda a felicidade deste mundo. Percorria
a terra e achava espantoso que os homens pudessem levar uma vida tão banal. Todos tinham a certeza de morrer: se se lembrassem disso, a existência teria o valor,
o brilho e a beleza do que é inevitável. Mas a morte ficava esquecida a um canto e a vida era um hábito quotidiano.
Tinha muita liberdade naquela época e só fazia o que lhe apetecia. Uma vez viu na rua uma rapariga de dezasseis anos, duma beleza delicada, imprevista. Seguíu-a,
falou-lhe, ofereceu-lhe flores, um vestido verde, lindos sapatos - tudo o que ela desejava. Levou-a de carro ao Prater, deu-lhe doces no pavilhão. A rapariga abria
muito os olhos ao ver em seu redor senhoras tão elegantes e rapazes tão simpáticos. Ina riu-se e chamou-lhe Mila Merz. Foram algumas horas de alegria. Dirigiu também
a palavra a um rapaz que, tiritando em frente da Ópera, olhava para o cartaz com ar ávido. Tinha olhos ardentes, de músico. Levou-o para um camarote
e contemploUO, emquanto, semi-inconsciente, ele se embriagava com Tristão e Isolda. Depois, acompanhou-o através das ruas dum bairro pobre, dando várias vezes a
volta ao mesmo quarteirão de prédios para ouvir o que, balbuciando de comoção, ele lhe contava da sua vida, dos seus projectos, do que tencionava criar. Separando-se
dele, pegou-lhe no rosto e deu-lhe na boca um beijo, que não era de mulher mas sim de artista. Um dia, teve desejo de ver Tomaz Brandt e pôs-se a caminho. Tornava
a encontrar nas ruas o mesmo ambiente de outrora, o mesmo soar dos sinos no céu da tarde. Mas no vestíbulo cheirava a couves. Houve um barulho de pessoa a fugir
quando uma visita é anunciada. Sorrindo, Ina olhou para o poente, através das janelas. Foi preciso esperar muito antes que a criada reaparecesse com um avental limpo
e abrisse a porta verde da sala de música. Tomaz Brandt tinha tomado uma atitude em frente do piano, com a sua imponente cabeça branca e o casaco de veludo castanho.
Ina conteve se para não rir ao ver o seu rosto espantado. Apertaram as mãos e sentiu que a dele estava hesitante. "Que diabo! Como ela envelheceu !" - pensou o compositor.
Ina adivinhou a sua reflexão e riu-se à vontade.
Como resposta, disse :
- Estás exactamente na mesma!
E num rápido olhar, analisou a cómica personagem: os caracóis bem ondulados, o colete de pintinhas sobre o qual saltavam constantemente horríveis os berloques da
corrente, no esforço que fazia para esconder os chinelos. Ina fez algumas observações acerca do tempo, e a conversa desenrolou-se convencionalmente, como sobre rodas
mal untadas. Tomaz Brandt animou-se apenas quando falou do êxito da sua sinfonia sobre" mar: mas nenhuma luz brilhou nos seus olhos de bronze. Foi para o piano e
tocou o tema do segundo tempo que, pelo motivo e pelo carácter, se parecia imenso com o de Irím. Disse:
- Vês? Mais uma impressão sobre o mar, mas que é essencialmente diversa das min.has anteriores composições ; eu não cristalizo, nunca me repito, graças a Deus.
Estou sempre na brecha com os novos, embora eles o não queiram reconhecer, sabes ? E cá vou sempre abrindo caminho, vitoriosamente!
Fatigado, curvou a cabeça para o teclado e começou um adágio que soou duma forma longínqua e comovedora aos ouvidos de Ina.
Do compartimento vizinho vinha um cheiro a café familiar e faziam tremer a porta alguns leves e respeitosos empurrões. Quando Brandt acabou de tocar, ficou um momento
como que aniquilado, olhando para Ina com uma expressão ávida e ansiosa que traía muitas decepções.
- É belo ! Maravilhoso!
Mas os olhos do compositor pediam: "Mais. mais!"
Sem convicção, ela disse :
- É uma melodia tão romântica!
"Mais. mais!" reclamava o rosto crispado, mas por muito amável que fosse, ela não sabia que mais havia de dizer.
Ao lado, havia ruído de chávenas. Ina notava agora que os chinelos eram azues e forrados de flanela por dentro.
- E o acompanhamento ? Como achas o acompanhamento ? Ousado, não é? muito novo. Quem sabe se te surpreende até, tão moderno é.
- Realmente. - disse Ina, muito embaraçada.
E olhou para a porta que abriam com precaução. Apareceu um certo "Raposinho" um tanto murcho, com os cabelos muito vermelhos, rosto enrugado, cheio de pastas de
pó mas onde, no entanto, se lia ainda um esforço de vontade para permanecer jovem. Mas o "Raposinho" continuava a ter o olhar alegre e o aperto de mão firme.
Beijou cordialmente Ina, nas duas faces, e preguntou logo:
- Pai, vamos tomar o café ?
O pai quis mostrar um ar menos abatido. Mas ainda estava muito atrapalhado com os chinelos quando passou para a sala de jantar.
"Também aqui há reposteiros pensou Ina, cheia
de ironia. A mesa parecia uma ilha branca sob a luz do candeeiro e dois rapazes altos, magros e corados, de óculos, inclinaram-se, saudando.
- Os nossos filhos.-apresentou Brandt, deitando-lhes um olhar satisfeito.
- Também tens filhos ? - preguntou o compositor.
- Não.
E apertou-lhe a garganta a brusca recordação das casinhas inacabadas.
Um dos rapazes preguntou a Ina, apresentando-lhe
o prato com ar triunfante:
- Minha senhora, quere provar um destes bolos
com baunilha, feitos pela minha mãe ? São de reputação
? mundial.
- Especialidade dum lugar delicioso: da casa Brandt.
- disse o outro.
Tomaz estava mais à vontade, agora que tinha os pés
debaixo da mesa.
- Não imaginas o prazer que a tua visita me deu.
Mas tu vives em Francfort. que te trouxe a Viena?
- Estou a fazer uma cura e. e talvez dê um recital
de dança.
- O quê ? Pois continuas a dançar ? - preguntou
ele, admirado. Depois ficou muito confuso e meteu o
nariz na chávena.
O "Raposinho" lançava um olhar feminino à linha
que ia, no rosto da Ina, das asas do nariz ao queixo.
Disse num tom amigável e leve:
-Está doente, Raffay? Mas de-certo não é nada
grave?!
Os rapazes deixaram de comer. olharam curiosos,
para a senhora que desejava dançar. Ela não respondeu
e houve um instante de profundo silêncio. De fora,
vinha o som dum relógio de torre a dar horas e aquilo
pareceu uma voz a apertar-lhe o coração. Uma hora
decorrida, uma hora vazia, uma hora perdida que não
mais voltaria.
-Que tens? - preguntou Tomaz, vendo-a empalidecer.
- Os sinos. - murmurou ela, à escuta.
Também ele agora os ouvia. recordava um tema grave que se misturava ao misterioso canto do contrabaixo e do violoncelo. Durante um segundo, brilhou-lhe a tal centelha
nos olhos.
Inquieta, a mulher preguntou :
- Queres mais uma chávena de café, Pai ?
- Café como se bebe aqui, já não há em Viena. declarou um dos rapazes. E o outro completou:
- Negro como o inferno, doce como o pecado, quente como o amor.
Ina levantou-se e disse em tom impaciente:
- Agora vou-me embora.
Quis desesperadamente justificar a visita falhada. Precisava dum pianista, dum rapaz que a acompanhasse durante duas horas todos os dias, nos seus exercícios. Mas
precisava dum pianista bom, não o campeão da valsa nem a máquina. Brandt teria alguém que servisse, entre os seus alunos ?
- Knarr! - gritou logo a mulher.
- Knarr é um estúpido!- respondeu Tomaz.
- Mas é muito pobre. seria um auxílio. E tem talento.
- Não tem ouvido nem gosto. Creio que no fundo, me considera como um filistino impotente.
- Tem-te inveja como todos os que têm valor.
- Ah, as mulheres! -concluiu Tomaz, lisongeado Tem a idea fixa do talento e protege-o sempre que pode!
Ficaram com a morada de Ina. Os rapazes fizeram um cumprimento a rigor.
No vestíbulo, cheirava agora a cebola aloirando no refogado. O compositor escondeu os chinelos atrás do bengaleiro e, de modo eloquente, fitou mais uma vez a visita,
nos olhos. Ela estendeu-lhe a mão; num gesto habitual, antigo, fora da moda, levou-a aos lábios e beijou-a - no sítio em que a luva deixava a pele a descoberto.
Desceu a correr, como se fugisse.
Certo dia, apareceu o sr. Knarr trazido pela viúva Keslaber com um ar de censura. Realmente o seu aspecto nada tinha de recomendável.
Ina disse-lhe amavelmente:
- Tomaz Brandt falou-me do senhor com grande interesse.
- O mestre gosta de representar o papel de bemfeitor, hei-de agradecer-lhe. Consagrar-lhe-ei uma parte do meu tempo; pagar-me-á - é quanto basta. Não dou o mínimo
valor ao elogio mútuo.
Levou o até ao piano que ele considerou como se fosse um monte de estrume onde o mandassem deitar. A música que pôs na sua frente inspirou-lhe igual nojo. Folheou
a com precaução e o rosto carregou-se-lhe logo à segunda página. Quando deu com o "bailado verde", exalou um leve rugido. A partitura da "Pequena Sereia" arrancou-lhe
um ronco abafado. com amarga careta, exclamou, abanando a cabeça:
- Velho decrépito!
Leu do princípio ao fim a "Dança das Máscaras".
- De quem é?
- De Conradin Rahl.
- Celebridade ignorada ! - rangeu o sr. Knarr, pondo a música de lado.
O "bailado das papoilas", dum jovem francês, fê-lo rir abertamente. Quando viu na sua frente a música de Gluck, os olhos abriram-se-lhe aterrorizados e preguntou:
- Quere dançar isto ?
- Quero.
- Muito bem, às suas ordens. Vai ser uma coisa linda.
E sentou-se.
Ina pegou em duas ou três folhas, que levou.
- Que é isso ? - preguntou ele.
- Para isto ainda não estou em forma. Será para mais tarde. - respondeu ela, hesitante.
E pôs de lado o último bailado.
O sr. Knarr tocava bem. De-pressa soube aquilo tudo de cor e então não olhou mais nem para a música nem para o teclado. Mas também não erguia os olhos para a bailarina.
Por trás das lunetas tinha uns olhos baços, como que voltados para dentro e ficava furioso quando ela tentava falar-lhe. Agradava a Ina: 256
facilitava-lhe o trabalho não se ocupando com ela. Olhava-lhe para o rosto de pau, com faces cavadas e desconfiava que ele tinha fome. Punha chá e torradas em cima
do piano e ele devorava tudo com ar pensativo e absorto, mas com incrível rapidez. Aumentava todos os dias a quantidade. O sr, Knarr, esfomeado e distraído, fazia
desaparecer tudo. A viúva Keslaber dava a sua opinião: "Estou certa que lá fora não come nada; fica só com o que lhe damos aqui" - e tinha razão. O sr. Knarr, matando
a fome em casa de Ina, pôde finalmente guardar algum dinheiro para comprar partituras e obras de concerto. Mas nem por isso se tornou mais amável. Um dia em que
a viúva Keslaber lhe preguntou qual era a misteriosa ocupação que os levava a estar fechados tanto tempo na sala lá de cima, respondeu:
- Aquela velha maluca, parece uma possessa, em camisa, a escangalhar as pernas.
- Em camisa? - exclamou a viúva -Jesus, Maria, José!
- Sim, uma espécie de camisa de cor como usam as dançarinas e as mulheres exquisitas.
Disse e foi-se embora.
Isto fez que a viúva reflectisse maduramente no caso, pedisse aumento e tivesse uma séria conversa com o velho jardineiro que alugara o pavilhão a Ina. Mas este
não mudou a boa opinião que tinha da senhora: ela sentava se tanta vez na estufa, junto dele e queria saber o nome das plantas!
Qualquer coisa, a que chamava obscura curiosidade, levava-a a misturar-se com a multidão, nos Cafés e nos eléctricos repletos. Olhava fixamente os rostos estranhos,
penetrava na vida dos outros para ela própria se sentir mais forte, desdobrando-se. Esta curiosidade, este desejo de absorver todas as existências na sua, que tão
curta seria, levava-a a observar também as plantas. Ficava durante horas em face duma flor, respirando-a com doçura, ouvindo a suave barcarola do regato que, em
sua honra cantava, e reparava como a flor e a folha se moviam pouco a pouco, devagarinho, insensivelmente, crescendo e morrendo.
Era muito agradável estar na estufa, podendo acontecer até que se esquecesse de tudo, tendo a ilusão de se transformar em planta alimentada pelas raízes avidamente
voltadas para a luz.
Eram horas suaves, aquelas.
As outras, as que tinham rostos velados, as horas ansiosas e desesperadas, rodeavam-na ainda no seu mudo círculo e esperavam.
E o sono já não era sono, mas doce mergulhar no calor e na inconsciência. De noite, Ina Raffay estava sempre estendida, com o espírito à escuta, os dedos à espera,
colocados sobre o peito doente -emquanto que o último bailado se compunha, gesto por gesto, esforçando-se cada um deles por ser o mais expressivo. Cada riso tinha
já a sua repercussão oculta, cada impressão a sua angústia. Todos os relógios da casa estavam parados e, no entanto, o tempo corria de dia e de noite.
Uma tarde, em dezembro, bateu Ina à casa de saúde Delarès.
Uma enfermeira abriu a porta, outra conduziu-a ao gabinete do professor que ainda estava na consulta. O candeeiro da sala de espera espalhava a sua pacífica luz,
pequenos flocos de neve dura batiam às janelas. Ina olhou para as suas mãos que tremiam, assim como os ombros e o coração. Mordeu com força os lábios e esperou.
Finalmente Fernando chegou, trazendo as suas mãos, os seus olhos, o seu sorriso.
- Fernando, está a nevar. é já a primeira neve . Ele compreendeu e respondeu:
- É verdade, Ina, já lVá vão três meses. E depois duma pausa, acrescentou:
- Ainda estás a tempo. Queres operar-te?
- Não. - murmurou ela. - Mas é que. sabes ? a gente, às vezes, tem medo!
Ele pegou-lhe nas mãos e sentaram-se ao lado um do outro. Ficou calado e apertou-lhe os dedos até que ela deixou de tremer. Depois puxou-lhe a cabeça para o seu
ombro demasiado alto: era a antiga posição em que duas crianças, outrora, em Amrun, viam esconder-se
o sol. Repousar no ombro de Fernando era regressar ao lar.
Ela disse com os olhos fechados:
- Não tornar a ver folhagem doirada nem vinha virgem . nunca mais! Não voltar a sentir o cheiro da terra, não assistir ao ressuscitar da natureza.
- Nada mais ver, sim, Ina, mas ser tudo: a terra e a folha, a vinha e o botãozinho que vai desabrochar .
Ela respirou fundo.
Fernando dirigiu-se para o piano e começou a tocar a sonata de Schubert em lá menor, que ela adorava desde pequenina. O seu pensamento apaziguou se, foi para longe.
Depois recomeçou a construir imagens aladas. "Isto é Schubert, não é música de dança" dizia a mamã e Ina chorava.
Outra vez, num claro e azul dia de frio, emquanto passeava com o primo pelo jardim, parou, de-repente, no meio duma conversa ligeira, para preguntar:
- Dize, Nando: o fim vai ser terrível ?
- Não. - respondeu o médico após uma hesitação. Não se sente o fim, exactamente como não se sente o sono. Hás-de sofrer, irmãzinha, mas o sofrimento faz parte da
vida. Poderei estar junto de ti e suavizar-te a dor, se for possível. Mas julgo que é belo o que vem depois.
Ela não respondeu. Fernando olhou-a com ar perscrutador, com o olhar frio, preciso, do médico. Mais tarde, quando se separaram, preguntou-lhe:
- Queres ir para Amrun ?
- Não; ainda não.
Foi naquela noite que apareceram as dores. Estava deitada na cama, sentia-se bem e os dedos não procuravam o lugar doente, que não alastrara : conservava-se minúsculo,
imperceptível.
E então, pela primeira vez, sentiu qualquer coisa. Ficou imóvel, sem respirar. Era uma dor ténue, apenas uma impressão que a roía, que a perfurava até ao fundo,
longe, sob a pele manchada. Era uma coisa que cavava e parava, depois ia mais fundo ainda. Ina não se
mexia mas tinha frio e os dedos das mãos e, sem ela dar por isso, os dos pés contraíam-se. Pressentia a dor.
"Chegou o momento".- dizia a sua carne atormentada. E as horas da noite sem sono repetiam a fatídica frase: "Chegou o momento".
A janela, pintada de luar, as sombras nos cantos, os cumes das despojadas árvores lá de fora e o seu coração palpitante, murmuravam: "Chegou o momento". Uma voz
de sonho cantava a última dança, a clara melodia cobria o som da marcha fúnebre: "Chegou o momento".
Deitada, com os olhos muito abertos, Ina exclamou no apavorante silêncio da noite sem fim: "Chegou o momento!"
De manhã, a dor adormeceu. Levantou-se tarde, despertou o corpo com um banho e exercícios, depois subiu ao salão. O sr. Knarr já tinha devorado o almoço. Disse,
impaciente:
- Chegou o momento.
Ela colocou umas folhas de papel de música na sua frente e disse em voz suave:
- Agora temos que trabalhar este bailado.
O pianista leu o título: "A última dança. A ti." Abriu muito os olhos.
- É lhe dedicada?
- É.
Fungou, cheio de desprezo, e disse:
- Também eu, era capaz de compor, apetecia-me mais do que tocar isto, Mas começarei a ler a música.
Ina, em pé a ceu lado, ouvia a composição tornada há muito familiar. estava à espera do instante em que devia começar. Ò sr, Knarr inclinou-se para o teclado e parou
num acorde, uma modulação muito comovente, uma frase sobre a qual ela desejava, pela primeira vez, fazer sair a mão da capa negra. O sr. Knarr prestou atenção, deixou
ouvir uma pequena exclamação emocionada, repetiu o compasso e continuou. As suas ágeis mãos executaram tudo até ao fim, depois ficaram um instante colocadas sobre
as teclas que exalavam as últimas vibrações. Declarou:
- Boa. notável música . é realmente pena. Ela preguntou, irritada:
- Contraria-o assim tanto trabalhar comigo?
- Contrariar, porquê? Já toquei num cinema e numa orquestra do Prater: é preciso viver. Não sou destes milionários que podem ficar em casa a compor, para um quarteto
de cordas. Pode dançar quanto lhe apetecer; paga-me e eu toco. Simplesmente, faz-me pena por causa desta música, sinto que ela possue qualquer coisa lá dentro.
- E julga que sou incapaz de dançar o que ela tem dentro ?
- Julgo. - replicou ele sem mais explicações.
- É a primeira pessoa que despreza o que eu crio e não o suportarei. Não posso trabalhar nestas condições.
- Criar ? Pois a senhora também cria ? Então dançar é criar ? Sim, já sei, o velho explicou-me : Ina Rafay, a que reformou a arte de bailar, aquela cujo nome está
nos dicionários, a Pequena Sereia. Mas que linda arte ? Então o que é a arte ? A música ? Â ópera ? Não. A sinfonia ? Não. Às vezes, encontra-se em Beethoven, sim,
mas fora dele ? Efeitos, instrumentação, maquilhagem. A paixão, segundo S. Mateus. sim, isso sim. Um quarteto de cordas, sim : quatro vozes e mais nada, qualquer
coisa de absolutamente puro, nada de disfarces nem pinturas. quatro vozes e com isso construir um mundo. E lutar para isso e viver para isso como um cão, não comer,
não dormir, nada ver, não ser um homem, não fazer senão amassar, torturar e pôr tudo nessas quatro vozes, tudo, tudo o que se tem e de que se é capaz, e dizer finalmente:
a música é insuficiente, a arte é impotente. Ora veja a Mona, ou o Fausto ou o Moisés de Miguel Angelo: tudo isso não passa de simples desespero em face da insuficiência,
E então chega-se, saltita-se um pouco, sorri-se e chama-se a isto: "arte, criação, beleza". Bem, vamos lá, comece a criar.
Ina replicou lentamente, em voz muito baixa:
- Se tudo é insuficiente e se criar é uma tortura,
porque julga que eu desconheço o tormento? Talvez também eu tenha o desejo de meter neste bailado tudo quanto sei, o que posso e o que sou, toda a minha vida e tudo
que o futuro ainda me reserva. Talvez também eu tenha alguma coisa a dizer e não possua outro instrumento senão o meu corpo. insuficiente, bem sei. Mas não admito
que o desprezem.
- Tolices! - respondeu o sr. Knarr, baixando um pouco a cabeça. - Muita conversa para nada. Adágio em ré menor, a quatro tempos. Dance isto, se é capaz.
E tirou do teclado um acorde surdo.
Ina Rafay deu o primeiro passo hirto, envolta na capa negra.
-Quem é esta senhora ?-preguntou o repórter que se cruzara com Ina, à porta.
- Uma dançarina, - resmungou Frank, que, todo ennevoado pelo fumo do cigarro, estava ocupado a escrever um artigo sobre modas.
- Muito bela - declarou o outro.
-Já não é nova - disse Frank. - Não sou eu que porei os pés no seu recital. Seriam dezasseis no mesmo mês. O Blosh que vá.
Blosch, que raramente estava barbeado, pouco espiritual para ser poeta, demasiado sonhador para ser repórter, protegido por qualquer escritor dentro do Jornal e
aí chacoteado por todos, colou o selo que acabara de lamber e disse:
- Acho-lhe aquela morbidezza que se encontra nos velhos quadros italianos.
- Olha o Blosch a fazer literatura.
- Está a dizer asneiras, - notou o repórter - o que não admira num homem que outrora quis traduzir Verlaine.
- Desculpe. - pediu Blosch.
- Desculpo-o, mas acabe o seu artigo sobre o assassinato da Favorita, em vez de perder o seu tempo com bailarinas mórbidas. De resto, que veio aquela ninfa cá fazer?
Pedir o seu reclamozito, an, Frank?
Queria falar com um certo Pratt e o Pérola disse-lhe que ele já tinha morrido havia muito tempo. Então fez-nos uma conferência sobre a arte e a dança e não sei que
mais. Também filosofou. Blosch que lhe conte, ele ouviu. Eu tenho que acabar isto.
- Quando elas metem filosofia no caso, é porque já não têm pernas.
Blosch, do fundo da sala, explicou:
- Ela diz que a sua forma é diferente. Que as outras não se aperfeiçoam e que a dança está decadente. Acha que há muita fazenda e pouca expressão. Por isso quere
dançar sem roupa.
- Sem roupa? Coos diabos! E não será proibido?
- Quem é que quere dançar nu ? - preguntou o crítico literário que acabara de chegar e contemplava no espelho a sua linda barba grisalha, antes de ir mudar de casaco.
- Completamente nua, não, mas com uma túnica, apenas, o bastante para dar uma nota de cor, disse ela explicou Blosch, que ninguém ouviu.
- Como se chama ?
- Ina Raffay.
- O quê? Ina Raffay? Ina Raffay? -berrou o recém-chegado, olhando em seu redor. - Olá jovens sem experiência nem sabedoria: nenhum de vós sabe quem é Ina Raffay!
- Realmente. - replicou Frank, com frieza.
- Realmente refere-se a Ina Raffay aquela donde partiu toda a remodelação da dança moderna ?
- Há lacunas na sua falta de cultura. - zombeteou o repórter.
- Se é ela, - declarou o crítico, coçando a cabeça com um canto do programa - prefiro não a ir ver: deve ter sessenta ou setenta anos. Eu era um petiz quando ela
se achava na sua época áurea. O velho Pratt estava
absolutamente doido por ela e há imenso tempo que ele morreu. A Ina Rafay!
- Não me pareceu assim tão decrépita . - afirmou Blosch.
- Mas tinha um véu. - disse o repórter, céptico.
- Mande vir o Pérola.
O Pérola era o contínuo da redacção. Chamavam-lhe assim porque tinha um nome boémio, incapaz de se pronunciar, e devido às suas excelentes qualidades. com as pernas
tortas, avançou.
- Ó Pérola, quando morreu o sr. Pratt ?
- Em janeiro deve fazer uns quinze anos, talvez,
- Veja se se lembra bem: quando foi a festa da imprensa em que a Rafay dançou, sabe? A Raffay do Pratt?
- LembrO-me lindamente. Ele andava sempre a meter-lhe reclames. Deve haver agora. deixem ver. uns vinte e quatro anos.
- Aí têm. - concluiu o crítico, olhando-os a todos.
- Então, - disse Frank - ou esta história do recital é uma brincadeira ou uma tragédia. O Blosch que vá.
Blosch lavou o seu colarinho de celulóide e foi.
Estava-se numa tarde de abril em que uma leve brisa tépida já acariciava as ruas. Era tentador escrever um artigo sobre os encantos da primavera e Blosch ia ruminando
algumas frases sobre este assunto. Metade da notícia do jornal já estava feita e ainda Ina Rafay, sentada no local dos artistas onde improvisara um camarim com a
ajuda dum biombo, roía as unhas, entregue a um terror absulutamente imprevisto. Estava extraordinariamente fanada e entorpecida. Depois de uma noite de dores cruciantes,
Fernando dera-lhe uma injecção. Sentia-se agora exausta e sem animação; a maquilhagem de cena, de que há tanto perdera o hábito, queimava-lhe os olhos, como a uma
principiante.
- A sala está cheia ? - preguntou.
O sr. Knarr foi informar-se e voltou:
- Nem um gato.
- Esperemos ainda, sr. Knarr. Obrigada. Encostou-se à chauffage porque estava gelada, embora
tivesse a cabeça a arder. Os pés nus pareceram-lhe bizarros, mudados; a pele tornara-se mais fina, as veias mais azues. O ópio secara-lhe o céu da boca: fechou as
mãos e sentiu nelas o sangue a latejar.
Em tom quási suplicante, disse :
- Mais cinco minutos, Knarr!
"Uma atmosfera misteriosa, quási espectral, enche a sala com o prestígio da bailarina esquecida." assim começava o artigo de Blosch. Era inexacto. A sala, no seu
modernismo recentemente estreado era duma extrema banalidade; cheirava a pintura fresca e dois anjos estilizados e de péssimo gosto, tocavam trombeta por cima do
pequeno palco. As cadeiras novas guinchavam com ruído, a iluminação era brutal e estava frio, embora houvesse aquecimento. Ouvia-se uma discussão no vestiário entre
a empregada e o velho mestre de dança Forli que queria absolutamente levar para a sala a sua bengala de cabo de marfim. "Vêem-se várias personalidades marcantes
concluía Blosch.
Forli instalou-se vitoriosamente na primeira fila, não longe do contra-regra, o dr. Bertram, e limpou os vidros da luneta. A Marshall, a bailarina-estrêla, solidamente
esmaltada e coruscante de jóias cumprimentou-os. Tomaz Brandt chegou com a esposa, de ar preocupado. Na última fila estava uma senhora gorda, muito excitada, que
tinha os lindos olhos trocistas de Mila Merz. com uma blusa de grandes desenhos coloridos, contava anedotas da sua juventude ao marido, o fabricante de chapéus Haberl.
A sala ia-se povoando lentamente mas sem se encher. O relógio, que se encontrava entre os dois anjos das trombetas, marcava mais do que a hora anunciada. O palco,
que nenhuma cortina fechava, estava fracamente iluminado e ao fundo caíam as pregas direitas dum veludo de cor indefinida.
"Muitas cabeças grisalhas; a geração do passado século veio festejar mais uma vez a bailarina da sua mocidade"
- tinha escrito de antemão o cronista. Mas também isto não correspondia à verdade. A agência que organizava o recital, distribuíra muitos bilhetes de graça às escolas
superiores e às academias artísticas e via-se mocidade:
pintores, gimnastas, dançarinas de vistosos chapéus que, com ar desdenhoso, esperavam o princípio daquilo.
No último momento, por trás do veludo de cor incerta, Ina balbuciou:
- Knarr, parece-me que tenho medo. pela primeira vez na minha vida, Knarr. estou cheia de terror.
Andava-lhe a cabeça à roda. Mas o Knarr já principiara a tocar. A escuridão envolvera a sala e um projector lançava a luz verde para o palco. Ela fez o primeiro
movimento, arrancou-se ao seu torpor e atirou-se para a frente com a impetuosidade em que principiava aquele bailado da juventude. Sobre um triplo acorde em tom
menor, parou, timidamente enlevada, na trémula atitude duma borboleta a voar. Sentiu então um sopro frio a envolvê-la: tal como um abismo, havia entre ela e a sala
um enorme espaço vazio. Um peso fazia-lhe doer os membros, apertou os maxilares emquanto se começava a baloiçar com ardor e como em sonhos, num ritmo cadente.
Os espectadores não se mostravam hostis mas estavam aborrecidos; já era muito conhecido aquele bailado que outrora fizera uma revolução e que fora executado por
cem bailarinas, jovens, bonitas, ainda mal desabrochadas e também pelas outras, cuja arte se transformara em rotina. Conhecia-se o baloiçar dos braços apaixonadamente
estendidos para a luz, a cabeça inclinada, o ouvido à escuta, os dedos nus a escorregar docemente como sobre musgo. A própria Marshall, a linda-estrêla, depois de
ter feito um grande tratamento aos pés, decidira-se a dançar uma "Valsa Triste" com os pés nus e sem dançar em pontas, envolta em véus: obtivera um resultado satisfatório.
Por fim, aplaudiram Ina-sem entusiasmo, mas com respeito. Por trás do veludo, o sr. Knarr disse em tom de imprimir coragem: "Não foi nada mal." Muito espantado consigo
próprio, sentia compaixão por ela, desde que a vira, assim pintada, entregue à fera do público.
Envolveu-se nos seus opalinos véus de Sereia e fez
uma profunda inspiração; pequenas gotas de transpiração perlavam-lhe a testa.
Preguntou para o lado do veludo:
- O palco está demasiadamente iluminado ou será idea minha ?
- Tudo está como deve estar, menina.-disse o electricista que manobrava o projector, mudando as placas de vidro.
O sr. Knarr encetou o motivo de Irim.
Na sua cadeira, Tomaz Brandt levantou a cabeça e olhou com curiosidade a bailarina que surgia das pesadas pregas do reposteiro. Ina Raffay dançou e, durante todo
aquele tempo, terrivelmente lúcida, via-se desdobrada, a seu lado. Aquilo perturbava-a, torturava-lhe os nervos, aumentava e causava-lhe uma angustiosa impressão:
havia duas pessoas no palco, uma Ina Rafay que movia os membros fatigados dançando com esforço na frente do palco, consciente e vigilante, sofrendo por se não poder
incorporar no que fazia, tentando tornar-se leve e voar; e a outra com lábios encantadores e olhos de dezasseis anos, que se escondia por entre as pregas de veludo
e a fitava com um sorriso semi-compassivo e semi-trocista. Era aflitivo e de tal modo se tornou opressor que Ina foi obrigada a deter-se durante um segundo, estendendo
as mãos e olhando, angustiada, para trás. O holofote enviou-lhe o raio da seca luz mesmo para os olhos. pareceu-lhe ver surgir e desaparecer uma sombra. Pôs as mãos
na cara e recomeçou a dançar. Isto não durou senão um segundo, a sala ficou suspensa e depois aplaudiram com mais entusiasmo.
Voltou a luz. Tomaz Brandt não tirava os olhos do lugar que Ina fitara.
A mulher preguntou:
- Que tens, Paizinho ? Onde estás ? Vendo fantasmas ?
Mas ele não respondeu.
"Um sopro de visionária melancolia", estenografou Bloch no programa.
O dr. Bertram dizia a Forli:
- Isto é que nos mostra como envelhecemos, meu
amigo. Na galera em que remamos, não damos por isso. Lembra-se da primeira desta ópera ? E foi aquilo que fez tanto barulho e desencadeou tantas discussões! Ah,
meu amigo!
- Acho que está muito bem conservada. - disse Forli com uma convicção muito desdenhosa, coçando o nariz com a bola da bengala. - Uma boa base técnica, não há nada
como isso para conservar a mocidade nas mais velhas articulações .
A Marshall fez uma careta.
Ina ficou alguns momentos sentada atrás do biombo, com os braços caídos, antes de mudar de vestuário para o bailado seguinte. Do outro lado, o sr. Knarr andava dum
lado para outro fazendo muito barulho, parava e tornava a partir. Durante todos os ensaios tinha obstinadamente voltado as costas a Ina; hoje, por trás do veludo,
não podia deixar de ver e o que viu tornou-o furioso embora o interessasse. Resmungou qualquer coisa e, lá de trás do biombo, acabou por dizer nitidamente:
- Houve um momento. nada mau. foi sentido.
- Sentido, sim. - respondeu ela, exausta. - Sim, mas também aquilo não foi arte.
O recital continuou pela dança das máscaras.
"A espiritualidade predomina;-estenografou Blosch, não sem vaidade - tem-se pena de já não existir aquela amável sensualidade nos passos coreográficos de hoje."
Interpretou o bailado das papoilas, o vermelho, excedeu-se e a sala entusiasmou-se. Apossou-se mais uma vez do público e sentiu a vaga de calor invadir o palco,
sentiu-se ela mesma liberta, levada na comunhão. Mais uma vez a suprema exaltação lhe arrancou os véus e a fez tombar no chão do palco agora mergulhado na obscurIdade.
Acho isto vergonhoso! - disse Forli, emquanto crepitavam aplausos calorosos.
O declínio da noite" escreveu Blosch, o que não dizia lá muito bem com o tom empolado da crítica; parafusou a ver se achava coisa melhor, mas em vão.
Ina veio agradecer, com um sorriso tímido e olhos que pareciam cegos. Inclinou-se diante da sala quási
deserta que fazia quanto barulho podia. Tremiam-lhe de excitação os joelhos. De cada lado do relógio, os anjos, com os rostos impassíveis, continuavam a soprar nas
suas trombetas.
- Descancemos um pouco, Knarr. - disse a bailarina distendendo os maxilares e os músculos contraídos.
Os pés, cobertos de pó, reclamavam água fresca.
- Para que se esforça tanto por causa deste público dum teatro de macacos ?- preguntou o sr. Knarr depois de ter passado um bocado a roer as unhas.
- Sim, porquê? Ora diga-me, Knarr, porque é que você se obstina a criar para o seu quarteto de cordas ?
- Isso é outra coisa. E eu não faço isso publicamente.
- Pois não. E eu acho que uma música que ninguém ouve não é música. E uma dança que ninguém vê, não é dança.
- Ou então não passa duma vaidosa.
com um sorriso transparente, Ina respondeu:
- Não sou vaidosa. Se o fosse, não me apresentava assim em face das pessoas que me admiraram outrora. Não me interrompa, peço-lhe. Bem sei que este recital é absurdo
. eu sei. Talvez eu julgasse que podia ainda dar qualquer coisa, sentir-me viver. Talvez. ah, Knarr, você não sabe o que leva cada um a fazer um esforço, emquanto
se pode arrastar. A gente tudo tenta e pensa que é importante, e depois o violinista adormecido está sempre lá no seu canto. Bem, acabou a conversa, vamos lá terminar
isto, Knarr.
A ronda do sacrifício, música de Gluck. Graciosa serenidade satisfeita, um passo, pausa, ouvido à escuta. colher de frutas e flores invisíveis, ascensão para um
céu facilmente acessível. Depois um acompanhamento grave em dó sustenido, tom menor; terror, defesa, mãos que imploram, lábios que choram, uma nuca que cada vez
se curva mais, mais, até que a testa toque no chão. Depois, ouve-se outra vez a primeira melodia e volta a serenidade que, desta vez, é resignação. Há mais grinaldas
invisíveis depostas num invisível altar. E por fim,
mãos que tombam, emquanto a boca, no rosto erguido, humildemente sorri.
Os espectadores aborrecem-se. Alguns vão-se embora, conquanto não seja tarde: entre outros, Forli e a Marshall. Blosch boceja em surdina, muito desiludido. Está
ali há duas horas, à espera de qualquer coisa extraordinária que lhe inspirasse uma poesia, uma novela para o suplemento de domingo ou, simplesmente um folhetim,
uma notícia de duas colunas, pelo menos - pagam-lhe à linha. Está irritado contra esta Ina Raffay que não dá nada, que já não é nova mas não é mais velha do que
as outras que ainda dançam, que não faz nada de mau mas que é igual a todas. Na redacção ela gabou-se, afinal. Evidentemente que possue uma certa expressão que chega
a compensar a falta de trajo mas. olha para o relógio e é com dificuldade que procura o seguimento deste mas.
Vê-se o empregado da agência atravessar a sala e desaparecer no foyer dos artistas. O intervalo é muito longo. Há apenas um bailado no programa: "A dança da capa
negra. Alguns espectadores levantam-se irresolutos, as cadeiras guincham, a sala esvazia-se ainda mais. O sr. Knarr que vê tudo isto por trás do veludo, está furioso.
Começa a discutir com o empregado da agência que quere absolutamente mostrar as suas embrulhadas contas; exprime o seu desprezo por meio de algumas interjeições
nasais e afasta o empregado.
No biombo vê-se a capa espanhola - o manto negro. Ina está muito ocupada em frente do espelho, a tirar a maquilhagem com papel de seda. Emmagreceu imenso nos últimos
tempos; donde sai a tinta aparecem os ossos sob a fina pele de veias azues. O desenho dos lábios tornou-se ainda mais nítido, as faces estão cheias de sombra, as
fontes cavam-se emquanto ela escova os cabelos para com eles fazer um capacete de metal azul. Deita a capa sobre os ombros, respira fundo e junta as forças, pela
última vez: o espelho mostra-lhe um rosto cadavérico.
- Tudo isto é pintura ? - pregunta o sr. Knarr, que tem as mãos geladas.
- Não: tudo isto é expressão. - replica ela com um sorriso zombeteiro. A gente deve trazer sempre consigo a sua cabeça de esqueleto .
Escuridão na sala. Iluminação incerta no palco e mais viva ao fundo. Adágio em ré menor. "A derradeira dança".
Primeiro uma sombra nas trevas. qualquer coisa que se esconde nas dobras do veludo, que está ali, muda e que espera. Depois um passo hirto e sombrio no palco -mais
nada. Então, ergue-se o canto, a melodia simples e radiosa da vida, e por trás, no sítio onde há mais claridade, move-se uma rapariga toda envolta em véus brancos,
num ímpeto pleno da aspiração de avançar. Dança, absorvendo-se em si própria como uma criança, sorri por trás dos véus, ouve, assusta-se, sorri ainda e desaparece,
bailando. E eis que volta o sombrio ser a caminhar, delgado nas imóveis pregas do seu manto negro, de olhar inexpressivo. Em seguida, estrondeia aquele acorde que
é como um grito de horror e, pela primeira vez, a mão sai de dentro da capa, a mão de pedra, magra, ossuda, de veias salientes. Passa da sombra para a claridade
e fica um momento numa luz tão forte que parece descarnada depois torna a esconder-se. A rapariga torna a vir, dança outra vez e, no entanto, parece que já vai a
fugir; não deixa de olhar para trás, sempre para trás dela emquanto que a melodia a impele para a frente, cada vez mais para a frente. Na música, há a parte baixa
que exprime angústia e ameaça, a luz vai desaparecendo e a dança torna-se um turbilhão que varre tudo e desaparece. E então, nas trevas, é aterrorizador e sinistro
o duplo jogo: fuga e perseguição; fera ameaçada e caçador; fugitivo que não escapa - tudo parece estar ali ao mesmo tempo, segundo a luz tira um ou outro da escuridão.
Depois cai o silêncio e, em seguida, ergue-se outra vez o canto da vida que atrai ao palco a forma clara mais calma e quási solene. Por fim, a marcha fúnebre é martelada
com vigor, a grande figura negra, muito alta, avança e levanta as mãos que estão agora plenas de doçura, um belo rosto firme ilumina-se com um sorriso misterioso,
a capa abre-se, estende-se, parece cobrir todo o palco e torna a cair sobre
si própria em pregas rígidas e sem vida. Volta a luz, a música deixa ouvir acordes em ré menor, as duas figuras desapareceram: a forma clara da vida, o espectro
sombrio da morte. Apenas o manto preto está ainda estendido no chão.
Estupefacta, a assistência ficou ainda um instante silenciosa, depois ouviram-se alguns aplausos, o que produziu um efeito lúgubre. Logo a seguir, as cadeiras rangeram
com ruído e passos impacientes dirigiram-se apressados para o vestiário. Deixaram a sala, tendo, na nuca, uma impressão desagradável, pouco habitual nos recitais
de dança. Alguns sentiram passar pela testa um sopro capaz de lhes cortar o apetite para a ceia. Outros lamentavam sinceramente que aquilo não tivesse acabado por
uma valsa vienense ou um bailado russo.
- Foi um encanto. - disse Mila Merz ao marido, que nada compreendeu.
Blosch sentia, como tantas vezes, que tinha duas almas diferentes: uma escreveria de boa vontade um poema, emquanto que a outra se decidia a acrescentar dez linhas
à notícia feita. No vestiário, pisou Tomaz Brandt que, absorto, pediu desculpa com um sorriso tolo.
Concluiu: "o duplo jogo no último número foi, sob o ponto de vista técnico dum virtuosismo notável, mas a idea "a morte e a vida" ou qualquer coisa neste género,
ficou obscura".
Na sala, um empregado apagava as luzes, apanhava a capa negra, levava-a e punha-a nos ombros da bailarina, adiantando a mão para receber a gorjeta.
Em pé, Ina foi sacudida por um violento arrepio. O efeito da injecção tinha passado e recomeçava a sentir a mordedura sob a pele.
- A insuficiência, Knarr, - disse, a sorrir e cambaleando de forma estranha - a insuficiência.
O sr. Knarr, já de chapéu na cabeça e sobretudo, mastigou maquinalmente qualquer frase e fez uns olhos exquisitos por trás dos óculos: desejaria dizer qualquer coisa
que não saiu. Conseguiu apenas balbuciar:
- Desculpe.
Depois reflectiu, engoliu em seco e repetiu em voz hesitante e trémula:
- Desculpe.
Ina ficou só, com uma única lâmpada acesa. Estava tão fatigada que desejaria desmaiar. seria um prazer. Mas teve apenas um arrepio, maior mordedura de dor e uma
vertigem a cegá-la. Escondeu o rosto nas mãos e depois deixou-as cair. Alguém estava à porta, esperando-a. "O desconhecido da capa negra", pensou Ina, muito excitada,
Atraída, deu três passos rápidos. Não era ele! tinha um impermeável como o defunto Conradin, mas ela não conhecia aquela cara. Seria o velho violinista? E esperou.
- Não se lembra de mim?- preguntou o indivíduo atormentando a beira do velho chapéu.
- Não.
- De resto, aquilo não passou dum episódio, tenho até a impressão de não passar dum episódio na minha própria vida. Um ano, uma mulher, um quadro. o mundo inteiro
em amarelo e azul. sim, sim, minha senhora. Mas o que há que não seja um episódio comparado com o universo e a imensidade ? Também agora o sabe e conhece o gosto
do esquecimento. Mas o seu recital desta noite foi belo, agradeço-lhe, sobretudo Á última dança, a dança sem máscara. Boa-noite, minha senhora.
- Walt Meinart. - exclamou Ina, estendendo-lhe a mão.
Mas já tudo estava completamente vazio, a sala e a escada com a sua lanterna vermelha. Podia ser que houvesse outros espectros desejosos de lhe falar. Ina estava
gelada, ouvia bater os dentes. não tinha senão desejo de dormir.
Em baixo, no ar leve e perfumado da primavera, Fernando esperava-a junto do carro. Sem dizer palavra, rodeou com o braço os ombros que o manto negro envolvia e pouco
depois preguntou em voz muito baixa:
- Queres ir agora para Amrun, irmãzinha ? Ina fechou os olhos e balbuciou:
- Sim, chegou o momento.
A velha caleche escalavrada, a mesma de outrora, caminhava ruidosamente na noite. Vidoeiros e sorveiras orlavam a estrada; sobre a colina recortava-se em zígue-zagues
a sombria floresta projectando-se no céu crepuscular. Dos campos elevava-se uma bruma que os escondia como uma nuvem errante; de longe vinha uma canção. Ina respirou
o ar vivo, o amargo aroma dos milefólios e, de súbito, com assustador encantamento, o seu coração começou a bater num inexplicável sentimento de desejo e esperança.
Imaginara muitas vezes o regresso a Amrun, mas hoje não era um sonho. A floresta negra estava realmente ali, também era real o apelo do passarito que voava por cima
do regato, eram verdadeiros os aromas pacatos do fumo saindo das chaminés, as casinhas baixas, o monótono rumor da lançadeira do tecelão que vivia na escura cabana.
Por cima da obscura massa da floresta, erguia-se o globo prateado da lua e no alto da colina via-se o castelo de Amrun.
Ina sentia que lhe restituíam o seu lar quando ouviu o barulho dos tamancos sob o alpendre e o canto da fonte, no pátio. Subia outra vez a pequena escada de estilo
antigo com o andar a que a fadiga não tirara elasticidade. E emquanto tudo nela se distendia ao encontrar o passado, durante um segundo viu nitidamente a viagem
através de um rio da índia, a passagem, de noite, pela beira da floresta selvagem, mangueiras de cem pés mergulhando as raízes na água. e ouviu estranhas vozes que,
na noite profunda, parecia saírem dos altos ramos entrelaçados. Logo em seguida viu o cofre onde a avó encerrara os defuntos Delarès com as suas aventuras, depois
encontrou-se no quarto azul e disse : "Tenho febre".
No fogão ardia um lume de lenha, sobre a mesa estava preparada a refeição. Algumas campânulas roxas
inclinavam-se e espalhavam o perfume de terra da floresta. A filha da porteira serviu-a e, como boa camponesa que era, não respondeu senão por monossílabos, emquanto,
diligente, fazia o serviço.
Ina colocou a cabeça nas mãos. seres desaparecidos, de ar amigável, atravessaram o quarto. O leito, ao lado, esperava, grande como uma casa com as colunas e os cortinados.
Estavam frescos e húmidos os lençóis; ela arrepiou-se. Era o leito em que os Delarès costumavam morrer.
Pela janela aberta escorria a claridade da lua e lá fora, cheios de gravidade, erguiam-se os pinheiros; água murmurava perto. Longe coaxavam rãs. Em baixo, fechou-se
uma porta. Ina deitou-se, colocou um braço por baixo da cabeça e os dedos sobre o seio doente. Não sofria. Em sonho, sentia-se ficar pequena, muito pequena e a última
coisa em que pensou foi num campo coberto de morangos que Fernando ficara de lhe mostrar.
Também o despertar foi sem sofrimento. Permaneceu algum tempo estendida, de olhos fechados; o cheiro dos pinheiros que entrava pela janela aberta vinha refrescar-lhe
os lábios. Sentia-se agradavelmente oca: já não havia quadros, nem bailados, nem gestos - apenas pensamentos. Quando abriu os olhos, a primeira coisa que se lhe
ofereceu à vista foi a pálida seda do dossel da cama e depois um raio de sol a mover-se sobre os vidros. Aos pés do leito estava uma mulher já de certa idade, com
um rosto correcto, de princesa, e um avental.
- Sou a irmã () Beata. - disse ela. - Venho do asilo. O dr. Delarès deseja que eu fique aqui à inteira disposição de V. Ex.a.
- Do asilo? -preguntou Ina com a atenção desperta. Nestes últimos dias todas as cores lhe pareciam vivas, todos os sons muito fortes, todos os rostos e todas as
palavras cheias de insistência. - Que asilo ?
(1) Esta enfermeira é laica, qualquer enfermeira,
Na Alemanha chama-se irmã.
- O asilo das crianças, na floresta.
- Há aqui um ?
- Há, sim. - respondeu a enfermeira com leve sorriso. - Não sabia ? É o maior asilo do continente, uma das numerosas instituições Delarès. O professor transformou
toda a fortuna da família em asilos ou casas de saúde. pois ignorava isto ? Apenas o castelo de Amrun ficou intacto. Pois é verdade: construiu-se na floresta o grande
asilo das crianças.
- No bosque dos mochos. - murmurou Ina, lembrando-se dos antigos caminhos. - Sente-se aí, minha irmã e conte-me isso tudo.
A irmã Beata sentou-se na beira do leito e pousou sobre a colcha uma longa mão nobre:
- As casas estão lá em cima, na orla do bosque, no começo da charneca; ali o ar é óptimo. Os pequenos estão sempre ao sol. Temos lá crianças cegas, surdas-mudas,
idiotas, aleijadas e doentes de taras hereditárias. Isto parece muito triste, não é verdade? Mas creia que não é. Há-de ver quanta alegria reina entre nós, como
os pequenos são felizes. e também como os professores sabem inculcar optimismo e personalidade nos doentes. Tanto os mestres como os médicos são homens excepcionais;
não sei onde o dr. Delarès os vai encontrar. Na realidade, é um santo, tem um dom de adivinhar. falo por experiência própria.
- E a irmã Beata que crianças tem a seu cargo?
- Tenho os que. não tem esperança.
- Os que estão condenados?
- Sim.
- Já viu morrer muitas crianças? -Já.
- Já. - repetiu Ina, Depois ficou silenciosa.
Na sua frente, sobre a colcha, estava colocada a mão da irmã Beata, a grande mão calma de trabalhadora. Ina tinha as pálpebras a arder. E pensou: "ficarão mais frescas
quando esta mão as fechar.
Preguntou:
- Mas não há lá crianças com saúde ?
-Há. As nossas. - respondeu a enfermeira, sorrindo
e deslocando a mão. - Todas temos filhos. ilegítimos, todas fomos escorraçadas do nosso meio. Formam-nos, mostram-nos a tarefa a executar e temos o direito de guardar
os nossos filhos e de os educar. compreende agora, minha senhora, porque gostamos tanto dos pequenos doentes e porque motivo o nosso asilo é uma bela instituição?
Ina, fatigada, fechou os olhos, Era bom ter calma por trás das pálpebras, um tom cinzento, suave como uma nuvem: acabada a ansiedade dos bailados e das cores e a
vida ardente.
- Sofre? Deseja alguma coisa? - preguntou a enfermeira, vendo-lhe a palidez do rosto.
- Não. - replicou ela sem abrir os olhos. - Estou bem, sem desejos. Mas sinto-me muito preguiçosa, fatigada como nunca . Não sofro, não. Desejaria apenas ficar deitada,
não me mexer nem falar, nem ver. Acho que as plantas vivem nesta indolência, não sabem nada, não querem nada, não fazem nada; existem apenas. Não compreende isto,
minha irmã, porque tem mãos tão activas e um avental branco. Como é bom estar aqui. e mais nada.
Os dias decorriam de-pressa, velados, iguais, sem serem contados, Ina passou-os a dormir. Num semiSonho pensava: "Andei seis meses a dançar com a morte, fatiguei-me
tanto!" Às vezes, mesmo acordada, ficava imóvel sem sofrer e parecia-lhe que a capa negra já a estava a cobrir com as suas pregas duras. Era um maravilhoso descanso.
Quando abria os olhos via o leito antigo, os pinheiros em frente da janela, o sol nos vidros, o rosto da enfermeira, as suas mãos que ajeitavam as almofadas e davam
a injecção quando a dor chegava - o mundo reduzia-se a isto.
Coisa estranha, crescia nela uma impressão de cura quando estava assim deitada e, pela primeira vez criou em si própria, no meio da serenidade, a melodia da sua
vida. Não queria falar, mas escrevia algumas frases em papéis soltos: uma idea, um sentimento, qualquer coisa que tinha a cadência duma canção. É para o Fernando
pensava "é uma carta para o Fernando."
Mas um dia, ouviram-se os cavalos a sair da cocheira, havia certa agitação nos corredores e a enfermeira anunciou:
- O professor Delarès chega hoje. Todos os meses vem passar alguns dias connosco.
- Queria levantar-me, - disse a Ina. - Hoje sinto-me bem. O repouso quási que me curou. Queria levantar-me, não se admire.
Mas Beata nunca se admirava.
Ao princípio, as pernas fraquejaram e a cabeça andava à roda. Depois reapareceu-lhe, nos olhos, a força de vontade. As articulações tornaram-se firmes, sentia-se
mais forte do que quando chegara. Estava calor, o perfume dos junquilhos flutuava pela casa, guarneceram as jarras do quarto azul; tinham brancos rostos de rapariguinhas.
Ina pegou em alguns e olhou-os atentamente: então o seu coração acordou e recomeçou a palpitar de desejo.
- Basta de repouso, já é demasiado, minha irmã. Amanhã quero ir à floresta, estamos em maio. estamos em maio, não é verdade? Não posso faltar. Quero ver com que
se parece o maio aqui.
A carruagem rodou sob o alpendre e quando Fernando desceu, a prima em pé, na escada, radiante, estendeu-lhe a mão com um admirável gesto fidalgo. Disse, a sorrir:
- Quási que tenho vontade de fazer mentir o teu diagnóstico - e de me curar.
Ele adivinhou o tom forçado das palavras, viu que os olhos de Ina já não estavam ansiosos mas que haviam tomado a calma profundidade duma nascente. Trocou um rápido
olhar com a enfermeira e respondeu alegremente, em voz clara:
- Estou vendo isso. O meu velho mestre Frémart tem razão quando declara que a minha mão é boa mas que o meu diagnóstico nada vale.
Certa noite, começaram as grandes dores. Foram horrorosas, Arrancaram-lhe gritos, uivos que se repercutiam por todo o castelo, inquietando os animais do estábulo.
Transformavam Ina Raffay, a bailarina, num
pouco de carne dolorida que, ora paralisada, ora torcendo-se, implorava a libertação. Obrigavam-na a contrair a língua e as mãos, fazendo-lhe saltar os olhos da
cara. A transpiração encharcava-lhe os cabelos e gelava as almofadas. Ficava completamente exausta, miserável farrapo humano a sofrer sob o dossel de seda do leito
antigo.
As mãos da enfermeira lá estavam no meio das agitadas visões vermelhas, dando morfina e emprestando à doente uns instantes de embriaguez, um surdo entorpecimento.
Mas era superficial: lá por baixo continuava o horrível suplício, a indizivel tortura. Adormecia durante algumas horas, gemendo sempre a-pesar-da influência da morfina,
e quando acordava era outra vez levada no turbilhão da dor convulsa. Depois tornava a dormitar e assim levava as noites e as manhãs.
Quando a sineta do asilo anunciava o meio-dia, aquilo cessava tão subitamente como começara. Ina ficava tranquila, sem movimento, exausta como depois dum parto,
com os olhos ainda esgazeados pela desesperada angústia.
A enfermeira lavava-a com água fresca, mudava-lhe a roupa e as almofadas.
- Isto voltará ? - preguntava a Ina em voz muito baixa. - Que atroz tormento! Voltará ? E ainda por muito tempo? Durante quanto tempo, minha irmã? Semanas, meses?
Deixe-me morrer.
A enfermeira desviava-se e não respondia. Ela ficava imóvel, de olhos fechados, e tudo se apaziguava.
- Os pinheiros . - disse um dia.
Erguiam-se em frente da janela, sem se mover, e cheiravam bem no calor do meio-dia. Algumas horas depois quis mexer os pés e não pôde.
- Há um bocado de mim que já está morto.-disse ela, emquanto uma réstea do seu antigo sorriso lhe volitava sobre os lábios que as torturas da noite haviam secado
e gretado, Reparou nas mãos que estavam em cima da colcha e observou-as: ainda viviam mas parecia que não eram suas. Preguntou:
- O d r. Dela rés não vem ?
- Vem, sim. - respondeu a enfermeira.
Caíra a noite quando ele entrou no quarto. A enfermeira saiu. Junto do leito ardia uma vela cuja chamazinha amarela não vacilava, a-pesar-de estar a janela aberta.
Subia, direita e hirta, projectando sombras nas paredes e uma leve claridade nos pregueados cortinados da cama. Ina erguera a mão para se abrigar da luz, de maneira
que, através da pele avermelhada, Fernando viu os ossos.
- Olha! - disse-lhe ela com ar absorto.
E o seu tom lembrava ainda tudo quanto houvera de alado na sua pessoa.
- Como te sentes agora ? - preguntou ele inclinando-se para o seu rosto de sombras azues.
- Agora estou bem, espantosamente calma e bem. Senta-te ao pé de mim, dá-me a tua mão. Como foste bom em teres vindo !
O primo acariciou-lhe o cabelo e, fechando os olhos, ela sorriu.
- As tuas mãos, Fernando, tenho junto de mim as tuas mãos! Nem tu sabes o que elas nos dão: repouso, calor, força. As tuas mãos? Onde estava eu? O que andei depois
disso! O que procurei! Quantas portas abri, quantas mãos estiveram nas minhas . Agora são as tuas que tenho aqui para o último instante . a capa negra, sabes ? Mas
acabou-se a dança . apenas há sofrimento .
Abriu os olhos onde se lia angústia e terror. Quis soerguer-se, mas não pôde.
- O sofrimento é horrível, é atroz. quando voltará, Fernando?
Sentiu tremer as mãos dela. Mergulhando no olhar desvairado de pavor, o seu carregado de vontade, respondeu:
-O sofrimento não voltará mais, Ina; acabou. Agora vais dormir.
-Dormir! repetiu num êxtase de paixão que
era um soluço.
As mãos do médico largaram as de Ina. tilintou uma colher no copo. À luz da vela prepararam um líquido
incolor. Depois aproximaram-Se, serenas e firmes como sempre, ergueram docemente a cabeça da doente e levaram-lhe o copo aos lábios.
- Bebe.
Obedeceu. Era fresco, um pouco açucarado, um pouco amargo - tinha o gosto de tudo que ela encontrara na vida.
- O que é? - preguntou.
- É para te fazer dormir. Fecha os olhos agora e dá-me as tuas mãos. Não te mexas. Se o teu coração bater muito, não te aflijas, isso passa e adormecerás. Quando
acordares. - deteve-se um momento - quando acordares, tudo irá bem.
Ficou sentado sem fazer um gesto, sem desfitar o rosto de pesadas pálpebras caídas. No profundo silêncio, a vela estalou uma vez, o relógio deixou ouvir o seu tique-taque
e algumas folhas do papel de cartas rangeram sobre a colcha.
- Já viste voar um balão vermelho? - preguntou Ina, como em sonho.
- Não. - respondeu ele, inclinando-se sobre os lábios que levemente tremiam.
- É bonito. voa alto, cada vez mais alto, torna-se mais pequeno. um ponto. depois desaparece, engolido pelo céu imenso.
- Sim, Ina. Um silêncio.
- Eu não sabia nada. não sabia, Fernando. agora sei tudo.
- Sim, Ina.
Os lábios tremiam mais no translúcido rosto. Havia uma contracção nas linhas tão puras. As pesadas pálpebras abriram-se mais ainda, mostrando os olhos vagos.
- Gosto de ti, Nando.
- Sim, Ina.
Depois, os pinheiros mexeram-se mesmo a dormir e também as flores da janela. Na aldeia, longe, cantavam:
Três anéis, três rosas, três estios no campo.
Fernando contemplou com fixidez o rosto de Ina. Ela ergueu-se um pouco, a custo, e preguntou com os lábios quási paralisados:
- O que vem aí? O que. que é?
- Nada, irmãzinha. O repouso eterno.
Sempre imóvel, ardia a vela. Fernando moveu-se para dar uma injecção na doente adormecida. Depois tornou a sentar-se, pegou-lhe nas mãos e durante toda a noite não
a desfitou, não deixou de contemplar o maravilhoso rosto. Perpassavam por ele vozes, imagens, um misterioso apelo à noite. Apagou-se a vela. Ouviu-se um grito de
pássaro no jardim da Torre. Já não havia estrelas no céu.
Fernando deixou cair as mãos de Ina e, pela primeira vez, beijou as pálpebras fechadas que já tinham a frieza duma flor.
Na tarde do dia em que haviam enterrado Ina Rafay sob os vidoeiros, Fernando Delarès subiu pela última vez a colina e sentou-se sobre a lage coberta de erva de nomes
quási apagados. Caía já a noite. As plantas que os passos tinham amachucado, haviam-se erguido e, húmidas de orvalho, inclinavam-se para a pedra tumular. com o rosto
fechado, dormiam os cravos; ao vento rumorejava docemente a folhagem das árvores. Fernando deixou-se ali ficar algum tempo, imóvel, com a cabeça apoiada às mãos.
Depois pegou nalgumas folhas de papel encontradas sobre o leito de Ina e, à última claridade que ainda se desprendia do pálido céu, releu-as.
Uma continha isto:
"Minha querida filha:
À pressa e, por este motivo, à máquina. Inquieta-me o teu longo silêncio, No entanto, espero que estejas
bem e que os teus nervos vão em via de cura. Deixa-me dizer-te que começo a sofrer com essa tua estadia numa casa de saúde. Um lar como o nosso, tem absoluta necessidade
duma mulher para o dirigir. A boa Zwillingsbauer - que te manda muitas lembranças é claro que faz tudo quanto lhe é possível mas está velha e já para nada serve.
Não há senão zaragatas com a cozinheira que de-certo não é de confiança. Dei ultimamente um jantar aos meus colegas do Parlamento e nada estava em condições. Por
isso, devido à minha situação e aos deveres que ela me impõe, e para evitar os comentários que a tua ausência provoca, peço-te que apresses o fim da tua cura. Nem
quero dizer quanto sinto a tua falta. vou ver se consigo brevemente pôr em execução o meu projecto de te ir ver, esperando que venhas comigo. Terás lido nos Jornais
que é de grande importância para mim defender o chanceler. Assim que esta crise passar, espero ter tempo para pensar na minha vida particular. Por hoje, entre duas
audiências no Reichstag, não posso senão enviar-te à pressa estas linhas e os mais ternos beijos do Teu marido."
Na outra folha estava o que se segue, a lápis e traçado pela alta e leve caligrafia da Ina:
Estou morta.
Abri as portas E fechei-as atrás de mim.
Agora uma flor está bebendo no meu coração.
O seu rosto radioso é dum suave branco mate.
Sorridente, Ela acredita no sol.
A minha nuca repousa irmãmente no hálito da terra.
Nas minhas mãos cruzadas unem se os pássaros
e os meus olhos fechados, sobre os quais pesa a terra
vêem mil estrelas, milhões de centelhas: a luz!
Quando Fernando deixou cair a folha de papel e ergueu os olhos, já estava escuro no vale. Os vidoeiros rumorejavam no seu sono leve e uma ultima luz alumiava as
alturas.
Sobre uma vertente distante, um pinheiro isolado perfilava-se no infinito do céu.
Vicki Baum
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