O velho sacerdote do templo se curvou e lentamente encheu de leite os pratos de metal em forma de folhas de nenúfares. Enquanto fazia isso, ratos sagrados saíram correndo das sombras para beber. Segundo a crença do velho, eram pessoas reencarnadas. O sacerdote deu um risinho enquanto eles corriam por cima de seus pés e largou um punhado de doces no chão. Fez uma reverência para a estátua do deus de muitos braços, tocou a marca roxa na testa e depois se agachou sobre os calcanhares tortos.
Pensou em como os pratos grandes e rasos eram bonitos — cada um como uma lua branca com vinte ratos cinza-escuros ao redor, bebendo o leite. Os ratos pareciam pétalas peludas, as caudas cor-de-rosa se agitando como galhos ao vento.
Olhou através das colunas do templo para a rua ensolarada lá fora. Três vendedores de pôneis discutiam por causa de dinheiro e, ali perto, crianças conversavam ruidosamente enquanto olhavam alguns leitõezinhos fuçando na sarjeta.
Mulheres vestidas de sári fofocavam pegando água num poço de pedra, e mais adiante um camelo gemeu quando lhe puseram a carga às costas. Um mendigo estava sentado de pernas cruzadas tocando flauta pelo nariz. Uma vaca sagrada espantava moscas com o rabo e examinava a cena.
Atrás da vaca havia uma velha banca de madeira onde se vendia paan. Ali, um homem com rosto fino como de um rato, grande bigode e turbante roxo, desmontou de seu cavalo.
Ajeitando o casaco de seda, ficou de pé impaciente, batendo na rua empoeirada com o pé calçado de mocassim. O vendedor de paan salpicou um pouco de noz de bétele moída sobre uma folha verde de bétele. Acrescentou coco ralado, semente de anis e espremeu em cima um pouco de xarope vermelho e pegajoso. Depois enrolou tudo e finalmente ofereceu a refrescante bebida ao cliente. Sem dar importância ao vendedor, o homem elegante pegou o paan e colocou na boca. Largou algumas moedas aos pés do vendedor e, mastigando, montou de novo no cavalo.
Enquanto o vendedor de paan se virava, aconteceu uma coisa incrível. Houve um BUM — e o cavalo e seu cavaleiro desapareceram no ar.
O homem caiu de joelhos, cheio de medo.
No templo, o sacerdote balançou a cabeça de um lado para o outro. Depois se curvou para os ratos diante dele, juntou as mãos e fez uma oração.
Molly Moon passou os braços ossudos por cima do encosto alto de um sofá de veludo verde e apoiou o rosto nas mãos. Olhou pela janela alta, para o jardim da mansão Parque Briersville. O gramado listado se estendia até a distância, onde lhamas de estimação pastavam e um rebanho de arbustos em forma de animais se mantinha imobilizado na névoa da manhã. Um canguru, um rinoceronte, um urso, um cavalo e um monte de outros animais feitos de topiaria estavam de pé ou reclinados na grama nevoenta, ameaçadoramente, como se esperassem alguma magia para trazê-los à vida.
E, movendo-se entre os bichos, como se procurasse uma chave no meio do orvalho, estava uma mulher de casaco cinza. De trás parecia curvada e triste, o que fez Molly suspirar porque sabia que a mulher estava mesmo triste.
Molly não a conhecia há muito tempo. Até um mês atrás era órfã, pensava que seus pais estivessem mortos. Então descobriu que tinha mãe e pai. É de se pensar que uma mãe quetivesse encontrado a filha depois de onze anos ficaria num êxtase de felicidade, e era exatamente assim que Molly esperava que a mãe ficasse. Mas a mãe de Molly não estava feliz. Em vez de satisfeita, só conseguia pensar no passado e no quanto lhe haviam roubado.
E fora roubada mesmo.
Porque Lucy Logan havia sido hipnotizada, posta num transe profundo e controlada durante onze anos por seu próprio irmão gêmeo, o brilhante hipnotizador Cornelius Logan. Ele tinha roubado a filha de Lucy Logan, Molly, e a colocado num orfanato medonho.
Foi Molly quem salvou a vida de Lucy. A própria Molly libertou a mãe, Lucy, de todos os comandos hipnóticos de Cornelius, porque, mesmo tendo apenas onze anos, era uma hipnotizadora fantástica.
Sim, este é um detalhe muito importante. Molly era uma hipnotizadora fantástica.
Molly nem sempre soube que era hipnotizadora. Na verdade só percebeu isso quando tinha dez anos. Mas aprendeu depressa. Até agora tinha usado seus dons de hipnotismo para si mesma e contra pessoas mal-intencionadas. Agora queria usá-los para algo diferente.
Olhou de lado, para as alas da construção gigantesca onde estava. Parque Briersville era uma mansão enorme. Molly queria transformar parte dela num hospital hipnótico — um lugar onde pessoas com problemas poderiam ser curadas. Quer os problemas fossem medo de altura ou de aranhas ou vício em rosquinhas doces, o hospital hipnótico de Molly daria um jeito. Olhou para Lucy. Achava difícil acreditar que aquela mulher fosse uma hipnotizadora de primeira. Parecia tão frouxa e inútil! Talvez devesse ser sua primeira paciente.
Molly não conseguia entender Lucy. Achava que ela deveria estar cheia de alegria. Não somente por ter se reunido à filha, mas também porque iria se encontrar com o esposo há muito perdido, já que esta era outra coisa que Molly havia arranjado. Molly tinha descoberto quem era o marido de Lucy (e seu pai). O nome dele era Primo Cell. Também fora hipnotizado e controlado por Cornelius Logan durante onze anos.
Nesse ponto você deve estar se perguntando como uma garota, mesmo sendo mestre em hipnotismo como Molly, poderia desafiar um hipnotizador adulto e brilhante como Cornelius Logan. Bem, os mestres do hipnotismo têm o poder de fazer o mundo parar. Molly possuía esse dom. E numa batalha hipnótica de parar o mundo pudera vencer Cornelius c convencê-lo de que ele era um carneiro.
Tudo isso tinha acontecido no último capítulo da vida de Molly — um capítulo do qual Molly ainda estava saindo. Ela viu sua mãe parar junto de dois arbustos em forma de coalas. Lucy acariciou um e pôs a mão no outro, com tristeza, como se ele fosse a lápide do túmulo de uma pessoa amada. Molly suspirou. Sua mãe estava tão cheia de sofrimento que aquilo dominava sua vida.
Pegou uma foto com moldura de prata no aparador de vidro e se deitou no chão para olhá-la. Os órfãos com quem tinha crescido acenavam felizes no retrato, que fora tirado no Natal. Molly também sorria na foto, o cabelo encaracolado parecendo mais maluco do que nunca, balançando ao vento, o nariz de batata, os olhos verdes muito próximos rindo. Seus amigos continuavam se divertindo na quente Los Angeles, nos Estados Unidos, enquanto Molly estava ali, longe, na fria Briersville, com a mãe triste.
Mordeu a parte de dentro da bochecha. Lucy Logan arrastando os pés pela casa, deprimida, de roupão, estava começando a lhe dar nos nervos. O mau humor da mãe pairava no ar como uma gripe contagiosa, esperando para ser apanhada. De fato Molly já estava contraindo a doença. Também tinha começado a revirar na mente a idéia de que sua vida poderia ter sido muito melhor se não fosse por aquele sujeito revoltante, Cornelius.
E havia outra coisa. Molly estremeceu. Passou a mão no cristal de parada do tempo, pendurado como um diamante enorme no pescoço. Sentiu-se apreensiva, como se algo estranho estivesse para acontecer. Talvez fosse apenas aquela situação esquisita em que se encontrava com a mãe o que a deixava inquieta.
Pôs os dois dedos na boca e assobiou. Um segundo depois ouviu o som de unhas batendo no piso de carvalho encerado enquanto Petula, sua cadelinha preta, chegava escorregando na sala. De um salto só voou e pousou na barriga de Molly, largou uma pedra que estivera chupando e começou a lamber o pescoço da menina. Petula sempre fazia Molly se sentir bem. Ela a amava tanto que, desde que Petula estivesse perto, achava que tudo ia bem.
— Treinando para o circo, é? Na próxima vez, que tal um salto mortal?
Molly apertou Petula e coçou sua barriga vigorosamente.
— Aaah, você é uma menina boazinha. É sim! — Petula deu uma lambida no nariz de Molly. — É sim. — Molly abraçou Petula.
Depois, levantando-se, levou-a até a janela. Apontando para Lucy, confidenciou:
— Olhe para ela, Petula. Nunca vi ninguém tão arrasada. Nós estamos aqui, nesta casa linda, que agora é toda dela, com jardins, campos, cavalos e tudo que precisamos, temos a vida toda pela frente, para curtir, e ela está assim. Por que não consegue superar o passado? Isso está começando a fazer com que eu me sinta mal. O que vamos fazer? — Petula soltou um latido. — Algumas vezes sinto vontade de hipnotizá-la para que ela se anime, mas não posso hipnotizar minha própria mãe, Petula, posso? — Petula deu uma lambida em seus lábios. Molly bateu palmas. —Você entendeu, Petula! Talvez ela não esteja comendo direito.
Petula ganiu baixinho, como se concordasse que esse era exatamente o problema, e assim, decidindo que um bom café da manhã era do que a mãe precisava, Molly saiu da sala. Juntas passaram pela Passagem do Bonsai onde, em cada alcova ao longo da parede, árvores japonesas em miniatura, de quatrocentos anos, ficavam sobre mesas elegantes. Lado a lado desceram a grande Escadaria do Tempo, toda de pedra, onde centenas de relógios tiquetaqueavam numa cacofonia nas paredes.
A janela da escadaria era superalta e estava inundada pela luz de janeiro. Molly pôs a mão sobre a testa enquanto franzia os olhos para a entrada de veículos, lá fora. Um furgão branco, em cuja lateral estava escrito
DEDOS VERDES Os Jardineiros em Quem Você Pode Confiar
Havia parado sobre o cascalho. Um dos trabalhadores da Dedos Verdes estava ali, com o inconfundível macacão amarelo da empresa, descarregando um saco com tesouras de poda e outras ferramentas. Os homens amarelos — que era como Molly pensava neles — estavam sempre por ali, já que na mansão Parque Briersville havia incontáveis animais de topiaria para podar e moldar e muitos gramados e canteiros para cuidar. Molly sabia o nome da maioria dos jardineiros, mas não daquele sujeito velho. Ele era novo ali. Admirou seu turbante roxo, o bigodão e os sapatos esquisitos.
Petula soltou um latido.
— Tá bom, já vou. — Molly montou no corrimão e deslizou até o pé da escada, testando o eco pelo caminho.
— Pe-tuuuuu-la.
— Pe-tuuuuu-la. Pe-tuuuuu-la... — redemoinhou o eco em volta.
Seu ancestral, o primeiro grande hipnotizador, o Dr. Cornelius Logan, sorriu no retrato. Molly pegou três pedrinhas que Petula havia apanhado no jardim, tentou fazer malabarismo com elas, deixou-as cair e depois seguiu pelo grande corredor até a cozinha.
Petula deixou Molly ir sozinha. Parou no corredor e farejou o ar. Havia cheiros estranhos por ali. Cheiros exóticos. Vinham do novo jardineiro. Não tinha certeza se confiava nele. Sob as pimentas e as especiarias o cheiro dele era de nervosismo. Ela já havia tentado comunicar suas preocupações a Molly, mas sem sucesso. Molly havia interpretado seus latidos e as lambidas nos lábios como uma mensagem de que deveria ir correndo cozinhar alguma coisa.
Petula decidiu ficar no seu cesto embaixo da escada e guardar a porta da frente.
Pulou dentro dele, jogou seu ratinho de brinquedo para fora e pegou sua pedra especial para chupar. Depois, achando que a almofada estava muito cheia de calombos, circulou cinco vezes para achatá-la exatamente como gostava.
Por fim sentou-se para pensar direito.
O homem lá fora poderia ser uma ameaça para Molly. E se fosse perigoso, quem iria proteger Molly? A mulher não ajudava em nada. A mulher fazia Petula se lembrar de um labrador que tinha visto uma vez, que caiu num rio e quase se afogou.
Petula chupou a pedra. Tinha-a encontrado no grande cômodo lá de cima, embaixo da cama. Era uma daquelas pedras especiais, como a que Molly usava pendurada no pescoço. Sabia que Molly podia fazer o tempo parar quando estava segurando sua pedra especial. Imaginou se poderia fazer isso também. Realmente poderia proteger Molly, se conseguisse isso.
Petula já dominava um hipnotismo rudimentar. Tinha hipnotizado uns camundongos de estimação em Los Angeles. Também tinha visto e sentido como Molly fazia o tempo parar, e achava que isso não parecia muito difícil. Agora, com o homem suspeito lá fora, achava que era seu dever testar suas habilidades.
E assim, sugando a pedra de cristal, começou a se concentrar.
Olhou para seu ratinho de brinquedo como se estivesse tentando hipnotizá-lo. Imediatamente, a quente sensação de fusão, a sensação que sempre acompanhava o hipnotismo, começou a coçar em suas patas. Mas Petula sabia que essa não era a sensação correta. Quando Molly hipnotizava o mundo para ficar parado, havia sempre uma sensação gelada no ar. Petula olhou para o ratinho com tanta intensidade que seus olhos grandes começaram a lacrimejar.
Nada aconteceu. Mas Petula não se frustrou. Era uma criatura paciente. Tentou de novo.
E então começou. A ponta de sua cauda começou a esfriar. Seus olhos tiveram um tremor involuntário. Agora o frio estava se espalhando, muito devagar, em direção às patas de trás, como se o rabo estivesse se transformando num pedaço de gelo. Ao mesmo tempo era como se alguém tivesse borrifado água gelada em seu pêlo. Petula manteve os olhos fixos no ratinho de brinquedo. Agora a pedra em sua boca estava começando a esfriar. Fazia seus dentes doerem. No entanto os relógios do corredor continuavam tiquetaqueando. Petula cravou o olhar no ratinho vermelho. Sua boca parecia a parte de dentro de um freezer — tão fria que era quase quente. Mas os relógios continuavam tiquetaqueando.
Então um cheiro de salsichas fritas veio do andar de baixo, enrolando-se na direção de seu focinho. Petula soltou a pedra na almofada e enxugou o queixo com a pata da frente. Parar o tempo era obviamente um pouco mais difícil do que havia pensado.
Apontou as patas da frente para fora do cesto e deixou-as deslizar para fora enquanto se espreguiçava e bocejava. Daria um pulo lá embaixo para comer um pouco de salsicha, decidiu, e continuaria mais tarde com seu treino de parar o tempo.
Cornelius Logan tinha vivido na casa antes da chegada de Molly. Ele não se interessava por cozinhar, sempre empregava um cozinheiro e era pão-duro. Por isso nunca havia gastado dinheiro na cozinha. O fogão era velho e pesado, com placas de ferro enegrecido e dois fornos enferrujados. A pia de louça estava lascada e a geladeira que zumbia e chacoalhava parecia pertencer a um museu. Panelas de cobre pendiam do teto como se fossem frutas de metal, maduras, sem poeira e prontas para serem colhidas.
Certamente não era nenhuma cozinha da era espacial, mas estava sempre quente e aconchegante, e Molly a adorava.
Abriu a porta do quintal. Depois de quinze minutos com tomates no forno e salsichas numa panela estava na hora de fazer os ovos mexidos. Molly preparou a mesa e chamou a mãe para dentro.
— Mããããããe! — gritou para fora, ao ar frio da manhã. Mãe... A palavra sempre parecia estranha para Molly quando saía de sua boca.
— Luuuuucy. Café da manhã — gritou.
Petula apareceu e trotou para o quintal. Percebeu que as salsichas estavam quentes demais para comer agora. Voltaria quando tivessem esfriado.
Cinco minutos depois, com o cômodo cheio de fumaça porque Molly havia queimado a torrada, Lucy estava sentada à mesa. Usava um casaco comprido e, por baixo, sua camisola de dormir. Nos pés sem meias tinha um par de tênis molhados de orvalho. Um magnífico prato de comida fumegante estava à sua frente. No entanto os olhos azul-celestes de Lucy não demonstravam qualquer interesse. Um pequeno sorriso fugaz surgiu em seus lábios, mas então a expressão deprimida voltou.
— Quer um pouco de ketchup? — perguntou Molly, enquanto mordia um sanduíche de ketchup, sua comida predileta. Lucy balançou a cabeça e pôs um pedaço minúsculo de torrada na boca. O tomate que estava em cima escorregou e caiu em seu colo, mas Lucy não pareceu notar. Mastigou umas vinte vezes um pedaço de torrada, os olhos acompanhando uma rachadura no teto.
— Você não está se sentindo bem, não é? — perguntou Molly, hesitando. — Por que não toma um pouco disso? — ela pegou seu copo de suco de laranja concentrado. — Na verdade não passa de açúcar líquido com um pouco de essência. Vai animar você. É minha bebida favorita. — Lucy balançou a cabeça. — Sabe, se você comer um pouco vai ficar mais forte e as coisas não vão parecer tão ruins — instigou Molly. Lucy fungou, enxugou o nariz e, como se esse gesto fosse um gatilho, Molly descobriu que alguma parte sua estava começando a ficar irritada. As coisas não vão parecer tão ruins? Lucy não era a única pessoa cuja vida fora prejudicada. Molly não estava reclamando. Estava indo em frente. Segurando o mundo pelos chifres e avançando. Por que Lucy não podia fazer a mesma coisa? Molly não bastava para fazê-la feliz? Talvez a filha não significasse tanto para ela. De repente a tristeza choveu e encharcou Molly também. Isso era terrível. Ali estava ela, com a mãe — uma pessoa com quem deveria se sentir completamente feliz e confortável — e em vez disso era como se estivesse com uma estranha esquisita cujo humor fosse uma tempestade no horizonte, em vias de explodir. Molly desejou que Lucy explodisse e deixasse toda a tristeza ir para fora.
Molly espiou o prato da mãe. As duas ficaram olhando os ovos mexidos de Lucy.
Então, felizmente, Molly entendeu.
Sabia, por experiência, que quanto mais uma pessoa pensava de um certo modo, mais esse modo de pensar se tornava um hábito.
Não se deixaria arrastar pela tristeza sombria.
— Lucy, você precisa tomar jeito — disse de repente, sentindo-se mais mãe do que filha. — O que vai fazer, sofrer pelo resto da vida? E lamento puxar esse assunto, mas você não é exatamente muito divertida para mim e Petula. Quero dizer, agora Petula evita você porque você sempre dá uma espécie de gemido triste quando faz carinho nela... e eu... bem, simplesmente não consigo lidar com isso. Você deveria estar se sentindo bem. Primo vem amanhã. Ele sabe exatamente como você se sente. Quero dizer, Cornelius tirou anos da vida dele também, de modo que você pode falar disso com ele. E Forest vem, lembre-se. Ele vai ajudar você a se sentir melhor.
Molly ficou olhando enquanto a mãe tomava um gole de chá e o deixava escorrer pelo queixo. Como uma pessoa podia fazer isso?, pensou. Então notou manchas de ketchup na sua própria blusa. Mas deixar o chá escorrer da boca era meio diferente. Era como se o choque de ser acordada do transe hipnótico deixasse a mãe com seqüelas cerebrais. Era como se suas baterias não estivessem funcionando direito.
Então Molly se sentiu mal. Sua mãe não era uma máquina. O que estava fazendo ao compará-la com uma máquina? Sua mãe era uma pessoa viva, que respirava, mas estava abalada. Era demais para suportar.
Levantou-se. Precisava tomar um bocado de ar e sair um pouco. Aquela névoa de Lucy era sufocante. Mal podia esperar a chegada de Rocky. Rocky ajudaria Molly a ficar melhor.
— Vou lá fora conversar com o novo jardineiro — disse sem jeito. — Vejo você mais tarde.
Molly subiu, foi até a varanda e abriu a porta da frente. Petula estava do outro lado do caminho de cascalho, ao lado do jardineiro de turbante, que a acariciava. Molly sorriu, porque era um alívio ver alguém normal, alguém que gostava de animais, fazendo uma coisa amigável.
Mas então uma coisa muito esquisita e apavorante aconteceu. Houve um BUM alto e Petula e o homem desapareceram no ar.
— Então vamos repetir isso mais uma vez. — Primo Cell estava parado na lateral da biblioteca repuxando as mangas de seu terno azul bem cortado, tentando ser profissional mas descobrindo que seus poderes usuais de dedução haviam se desconcertado. — Petula estava na entrada de veículos e... — Ele girou, com o sapato de sola de borracha fazendo uma pirueta no tapete persa. — Tem certeza de que era Petula? Quero dizer, poderia ser outro cachorro.
— É, cara, é isso aí — disse Forest entusiasmado, sacudindo os dreadlocks grisalhos. Forest era um velho hippie de Los Angeles que tinha viajado pelo mundo. Tinha vivido com esquimós e bosquímanos, monges chineses e sábios indianos. Agora morava em Los Angeles onde plantava legumes, criava galinhas e comia um monte de nabos com tofu. — Algumas vezes a memória engana a gente — disse ajeitando os óculos de fundo de garrafa. — Pode ter sido outro cachorro, ou até mesmo a mochila do sujeito. — Forest tinha hábitosestranhos e algumas vezes falava besteira. Agora Molly prestava atenção a ele. — Ou talvez fosse um grande saco de biscoitos com a foto de um cachorro na frente.
— Não. — Molly bateu na lareira com o atiçador enquanto se lembrava do momento horrível. — Era Petula, sem dúvida. Ela me olhou bem no olho e balançou o rabo logo antes de ser levada. Se ao menos ela não fosse tão amigável... Se ao menos tivesse fugido dele ou lhe dado uma mordida...
— Por que não telefonamos para a empresa de jardinagem e descobrimos quem era o jardineiro? — sugeriu Forest.
— Já fiz isso — disse Molly. — Nenhum funcionário deles esteve aqui ontem. O sujeito era um impostor. Ah, espero que Petula esteja bem. — Rocky, o melhor amigo de Molly, estava parado junto dela. Ele deu um tapinha em seu ombro.
Rocky Scarlate havia crescido no orfanato, com Molly — tinha dividido um berço com ela quando eram bebês e a conhecia melhor do que ninguém. Também era um hipnotizador hábil, mas nem de longe tão bom quanto Molly. Sua especialidade era “hipnose de voz”. Ele possuía uma voz linda.
— Vamos encontrá-la, Molly. É só uma questão de tempo. Eu não ficaria surpreso se a gente recebesse um telefonema pedindo resgate. Quem quer que seja, provavelmente só vai pedir alguma coisa em troca. Acho que não passa de um miserável seqüestrador de cachorros.
Molly olhou o rosto de Rocky. Estava de um negro profundo porque ele havia passado muito tempo ao sol de Los Angeles. E seus olhos sorridentes eram sempre tranqüilizadores, mesmo que desta vez Molly não tenha ficado tranqüila.
Rocky foi até a escrivaninha e se sentou. Pegou uma esferográfica e, cantarolando, começou a rabiscar nas costas da mão. Desenhou Petula e um relógio. Para ele, só precisavam esperar. Era calmo, paciente e lógico, e tinha certeza de que o sumiço de Petula seria explicado.
Molly bateu nos jeans, deixou-se afundar de novo no sofá e abraçou os joelhos ossudos.
— Não sei como isso pode ter acontecido. Como uma pessoa simplesmente desaparece, assim? Eu sentiria, se o homem tivesse feito o mundo parar.
— É, você sentiria aquela vibração fria — concordou Forest em sua posição de ioga, de pernas cruzadas, no braço da poltrona. —Você estava usando seu cristal de parar o tempo, não estava?
Molly puxou o cristal pendurado no cordão, embaixo da blusa.
Forest cutucou um buraco no dedão da meia cor de laranja, buscando inspiração.
— O que acha, Primo? O Rocky e eu aqui, bem, nós não somos hipnotizadores especialistas em parar o mundo, como você e Molly. Acha que o cara de turbante fez o mundo parar sem que Molly sentisse? Quero dizer, ela poderia estar olhando para aquela entrada de veículos com Petula balançando o rabo e, BAM, de repente ele pode ter parado o tempo e congelado Molly, dura que nem um pedaço de gelo. E aí o cara simplesmente pegou Petula e foi embora. Quando estava longe, fez o mundo rodar de novo. Bem, claro, como estava congelada, Molly não teria visto como ele levou Petula. Foi como se eles tivessem sumido num sopro de fumaça.
Primo balançou a cabeça e pegou um elefante de porcelana em cima da lareira.
— Não gosto disso — disse ele, como se falasse com a pequena escultura. —Não gosto nem um pouco. Teoricamente não deveria acontecer. Se um hipnotizador hipnotiza o mundo para ficar parado, outros hipnotizadores que estejam usando seus cristais sentem isso e podem resistir ao congelamento. E o que foi aquele BUM que Molly escutou?
— Talvez — suspirou Forest, deitando-se no chão e pondo os tornozelos em volta das orelhas — talvez o jardineiro estivesse sobre uma linha de energia ou algo assim. Quero dizer, neste país vocês têm aqueles círculos de pedras dos druidas, um negócio muito doido, e aqui as linhas de energia são espantosas... hmmm... — Forest se perdeu de novo em seus pensamentos.
Rocky ignorou Forest. Em vez disso se aproximou de Molly para examinar seu cristal.
— Este é o cristal original, não é?
— É, olha, tem aquela aparência de gelo. Eu fico com ele o tempo todo. Mesmo se alguém quisesse trocar enquanto eu estivesse dormindo não poderia. Eu iria acordar. Ainda mais ultimamente. Não tenho conseguido dormir bem. — Molly baixou a voz. — Rocky, isso aqui parece um túmulo, e Lucy fica andando que nem uma... que nem uma múmia.
Primo foi até a janela e olhou para o homem magro e de cabelos claros que estava dando chutes para trás, correndo pelo gramado e pulando por cima dos aros de croquê.
— É melhor eu ir resgatar Lucy antes que Cornelius comece a balir para ela. E, para o caso de vocês estarem imaginando, Lucy não tem nada a ver com o desaparecimento de Petula. Eu sei. Conversei com ela. Parece que Lucy só está pela metade aqui, mas não se encontra sob o feitiço de ninguém, hipnotizada. Só está arrasada e traumatizada pelo que aconteceu. Coitada. Acho que posso ajudá-la a sair do sofrimento. — Primo ficou olhando Cornelius de quatro, mordiscando a grama. — É incrível como aquele homem- carneiro ali já foi tão poderoso. Mal acredito que me hipnotizou uma vez para que eu quisesse ser presidente dos Estados Unidos para ele. E eu teria sido, se você, Molly, não tivesse me salvado.
Primo sorriu para a filha.
Primo e Molly tinham decidido começar fingindo que não eram pai e filha. Afinal de contas, se você nunca teve um pai e, de repente, surge um, realmente não sente vontade de ficar pulando para abraçá-lo, gritando “Papai!”. Primeiro você quer conhecê-lo. Por isso Molly o chamava de Primo. Gostava dele, Ele era positivo.
— Vou sair e caminhar um pouco com Lucy — disse ele esfregando as mãos, tentando parecer que tudo estava sob controle e que se sentia ansioso por isso. — Vejo vocês depois. Vamos resolver todos esses problemas. Tudo vai ficar bem, não se preocupem. — Ele piscou e, fazendo aquele upa, upa animado e encorajador que as pessoas fazem para os cavalos, saiu da biblioteca.
— Vou entrar no Aqui e Agora — disse Forest, fechando os olhos e começando a meditar.
Molly e Rocky seguiram pelo corredor do andar de cima até a escadaria dos relógios. O teto em cúpula ecoava com os tique-taques.
— Não gosto da idéia de que existe alguém que consegue nos enganar desse jeito — disse Molly enquanto desciam.
— É melhor prestar atenção, Molly. — Rocky franziu os lábios. — Ficar de guarda.
Rocky nunca exagerava. Também era raro entrar em pânico. De modo que, ao receber um aviso assim, Molly estremeceu. Segurou o braço dele.
— Vamos ficar juntos.
— Bem, você vai ter de me esperar aqui; preciso ir ao banheiro.
— Mas quanto tempo vai demorar?
— Ah, umas três horas?
— Ro-cky...
A porta da sala de guardar casacos se fechou rangendo. Uma enorme aranha preta veio andando pelo chão.
Molly estava no salão da frente tirando o ketchup seco da camiseta. Era um lugar estranho. As paredes eram cobertas de cabeças de animais empalhados. Os olhos de vidro a encaravam. E em meio às cabeças havia antigas tesouras de jardinagem — outra coleção do doido Cornelius Logan. Um homem obcecado pelo controle — por controlar pessoas através do hipnotismo — e também havia criado os animais de arbustos em toda a sua propriedade.
Enquanto esperava por Rocky, Molly andou em volta da mesa do salão inspecionando algumas plumas iridescentes de pavão que estavam num vaso. Em cada canto da mesa um grupo diferente de animais a encarava como se ela fosse culpada por sua morte. Num salto horrível a mente de Molly imaginou subitamente a cabeça de Petula empalhada e olhando para baixo, dura no rigor cadavérico. Sentiu que iria desmaiar.
Lembrou-se de uma crendice popular, que dizia que penas de pavão traziam azar para a casa. Então, pegando todas as plumas, tirou-as do vaso, marchou até a porta da frente e abriu-a.
O ar frio entrou. Molly saiu ao sol da manhã e desceu a escada da frente da casa.
Um cortador distante rosnava aparando a grama do inverno. A luz ricocheteava no local onde Molly tinha visto
Petula pela última vez; e então, enquanto caminhava pelo círculo de cascalho, passando pela escultura de arbusto mostrando um pássaro no vôo, uma nuvem lançou uma sombra gigante no terreno da mansão Parque Briersville.
Alguma coisa azul piscou na periferia da visão de Molly. Ela se virou rapidamente, mas não havia nada ali. Devia ser um pássaro ou a sombra de um pássaro. Ou talvez fosse aquele seqüestrador de cachorros com o turbante. Molly girou de repente. Se ele estivesse espreitando por ali, ela iria vê-lo se esgueirando para perto. As colunas brancas da varanda da frente pareciam guardas e as janelas pareciam vigias, mas Molly sabia que ali fora estava tão vulnerável como Petula estivera.
De novo uma sombra azul tremulou à sua esquerda. Desta vez Molly não girou. Tentou ver o que era sem se mexer. Aquilo pairou e depois desapareceu. Trinta segundos depois apareceu à sua direita. Seria um fantasma? Um poltergeist era um fantasma capaz de mover coisas. Será que um poltergeist havia mudado Petula de lugar? Molly estava decidida a descobrir. Mesmo morrendo de medo, deixou a sombra tremular à esquerda, depois outra vez à direita. Ficou imóvel como uma pedra. De novo aquilo estava lá — mais perto, e de novo à direita, mais perto ainda. Cada vez mais perto. Direita... esquerda... direita... Ali estava, à esquerda.... à direita... à esquerda. Esquerda, direita, esquerda. Seus olhos iam de um lado para o outro. Molly estava tão atenta em descobrir a verdade que não conseguiu perceber que estava caindo. Caindo numa armadilha hipnótica.
Quando enfim o homem de turbante roxo parou à sua frente ela simplesmente olhou direto nos olhos escuros dele. Não questionou o figurino do sujeito: a roupa azul-índigo amarrada na cintura com uma faixa de seda e descendo, como um vestido, até os joelhos, a calça branca e justa que ele usava por baixo ou os mocassins vermelhos curvados para cima e pontudos. Simplesmente absorveu a aparência dele, tão calmamente como se olhasse uma figura num livro. Registrou o bigode revirado para cima dos dois lados do rosto seco e enrugado, com costeletas sob as orelhas. Notou os dentes alaranjados e tortos, e que ele estava mascando alguma coisa. Observou a corrente de ouro em volta do pescoço com três cristais pendurados: um incolor, um verde e um vermelho.
Então escutou sua voz rouca:
— Srta. Moon, você está agora num transe leve. Fará o que eu mandar e virá comigo. — Molly relaxou completamente, largou as penas de pavão e ficou imóvel e silenciosa num atordoamento hipnótico.
Depois sentiu o velho segurar seu braço, ouviu um BUM distante e o mundo ao redor virou um borrão completo. Cores passaram correndo por ela. Até as cores sob seus pés mudaram de ocres para marrons, depois amarelos, verdes e azuis luminosos. Era como viajar por um caleidoscópio de cor. E enquanto se deslocavam por ele um vento frio roçou a pele de Molly e o barulho do cortador de grama foi substituído por um zumbido diferente, um ruído constante mas variando de volume e timbre. Num momento parecia uma tempestade, no segundo seguinte era como chuva batendo e pássaros cantando. E então, de repente, o mundo borrado ficou sólido de novo. O chão sob os pés de Molly era de um verde firme e o céu em cima de um azul jacinto. O mundo parou de girar.
A mente de Molly demorou alguns instantes até ficar acomodada. Mesmo ainda dominada por um atordoamento hipnótico, podia entender que o mundo ao redor havia mudado. Não estavam num local diferente; a mansão Parque Briersville continuava ali, em toda a sua majestade. Mas a estação era outra. Em vez de inverno, como tinha sido há instantes, era verão. Havia gigantescos canteiros de flores à esquerda e à direita, cobertos de rosas. Não existiam arbustos de topiaria em forma de bichos. E mais, em vez de um carro parado na entrada havia uma carruagem, com um cavalo malhado e um cavalariço antiquado junto ao animal. Um jardineiro com camisa e calça de lã e avental de couro marrom estava de quatro, segurando uma pequena pá. Havia uma grande pilha de ervas daninhas no chão ao lado dele e os restos de uma torta de carne de porco meio comida.
— Droga, época errada de novo — murmurou o acompanhante de Molly, com rosto pétreo, olhando para um fino aparelho de prata na mão. Em seu transe hipnótico, Molly supôs que o instrumento se destinava a ajudá-lo a viajar no tempo, já que uma viagem no tempo, pelo que viu, era exatamente o que haviam feito.
— Com licença, em que posso ajudá-los? — disse o jardineiro. Ele franziu a testa e se levantou rapidamente, ajeitando o boné.
O homem de turbante segurou o braço de Molly e começou a ir em direção a um pequeno bosque, onde uma gargalhada ressoou.
— Ei! — gritou o jardineiro, mas foi ignorado pelo sujeito de bigode. —Vocês não podem entrar aqui. É propriedade particular.
O passo do companheiro de Molly se acelerou e ele continuou puxando-a. O jardineiro largou a pá e começou a correr atrás deles.
Nunca vamos escapar desse jardineiro de pernas compridas, pegou-se Molly pensando calmamente. E então, no momento em que passavam pela primeira árvore, o homem de turbante consultou seu aparelho prateado. Virou um mostrador e apertou um botão. Em seguida apertou o pé sobre o de Molly e segurou com força o cristal verde pendurado no pescoço.
Num instante o mundo se transformou num borrão de cores. Quando ficou sólido de novo, Molly pôde ver para além da árvore. O jardineiro não estava mais perseguindo-os. Estava de novo de joelhos arrancando ervas daninhas. Mas havia apenas um punhado de ervas ao lado. E mais, a torta de carne de porco estava intocada, enrolada num pedaço de papel impermeável amarelo. O acompanhante de Molly tinha-os levado de volta no tempo.
— O qu... q... qu... queeê? — Molly tentou com toda a força perguntar ao homem. Mas sua língua se recusava a funcionar direito. O homem a ignorou.
Atrás das árvores havia uma clareira gramada, e ali, num tapete, estava uma visão muito estranha. Crianças com roupas da era vitoriana brincavam e riam. Duas meninas com vestidos cor-de-rosa, com corpetes, estavam sentadas ao lado de um jogo de chá de porcelana, e dois meninos com calças curtas e coletes de tweed lançavam um aro para um lado e para o outro, usando pedaços de pau. No carrinho de bebê das meninas estava sentada uma boneca com touca cheia de babados. E então Molly notou que não era uma boneca. Como se fosse algum sonho ridículo, Petula, com um vestidinho e um chapéu idiota na cabeça, ofegava sob a cobertura do carrinho de bebê.
Assim que farejou Molly, Petula tentou pular do carrinho. Irritadas com os recém-chegados que as distraíam, as meninas se viraram. Uma delas pareceu horrorizada pela aparição de Molly e o homem de turbante. A outra ficou deliciada.
— Que roupas engraçadas vocês têm! Vieram de uma festa, à fantasia?
Agora os dois garotos também estavam olhando.
Molly sabia que seus jeans e a camiseta com a silhueta de um rato dançarino é que deviam parecer esquisitos para eles. Como a gente costuma aceitar as coisas estranhas que acontecem nos sonhos, ela já havia aceitado, sem se abalar, que tinha chegado a uma época diferente da sua. Estava respirando o ar do século XIX.
A parte dela que normalmente teria corrido em frente e resgatado Petula estava rígida e hipnotizada. Em vez disso Molly se pegou pensando: Petula está tentando pular daquele carrinho de bebê, ah, e o velho está andando na direção dela.
Ele pegou uma cápsula roxa no chão e enfiou no bolso. Aquela coisa roxa nos guiou até aqui. Ela deve mandar sinais até sua máquina prateada. Então pensou: aquelas garotas são pequenas, mas seus gritos são altos. O homem não parece se incomodar em ser acertado pelo bastão daquele garoto. Ou talvez se incomode: ele empurrou o garoto e o fez perder o fôlego. E agora o homem está trazendo Petula para cá, está tirando aquele vestido e a touca dela.
Nesse ponto as crianças faziam tanto barulho que atraíram a atenção do jardineiro. Enquanto ele entrava correndo no bosque o homem de turbante lançou-lhe um olhar irritado e, com a ajuda do cristal incolor pendurado no pescoço, fez uma coisa com a qual Molly era muito familiarizada: congelou o mundo.
Imediatamente o mundo ficou totalmente imóvel. Não era gelado, mas era fresco, e Molly teve a familiar sensação da fusão fria que acompanhava a parada do mundo, pulsando em suas veias. Com Petula embaixo de um braço e segurando o ombro de Molly, o homem lançou calor em Molly para garantir que ela ainda podia se mexer.
Mas manteve Petula congelada, já que era mais fácil controlá-la assim. Depois levou Molly para longe da cena caótica, deixando para trás as pessoas gritando, agora em silêncio, presas nas posições como gigantescos picolés humanos — os meninos com os bastões levantados, as meninas com a boca aberta gritando e o rosto molhado de lágrimas, e o jardineiro apoiado numa das pernas enquanto corria para a clareira.
Andaram até o cabriolé com seu cavalo e o cavalariço imóveis. Assim que chegaram, o homem sinalizou para Molly subir no lugar do cocheiro e lhe entregou Petula, ainda imóvel. Em seu transe Molly calculou calmamente que, quando ele soltasse seu braço, ela deveria se concentrar em seu próprio cristal de parada do tempo e resistir ao mundo congelado, para que seu corpo não enrijecesse e ficasse imóvel como o dos outros. E fez isso. Notou que o seqüestrador pareceu impressionado.
Assim que subiu ao seu lado ele pegou o chicote e descongelou o mundo. Com um estalido fez o cavalo voltar a si e partiram. Petula soltou um latido. As rodas do cabriolé rodaram no cascalho e o cavalariço, vestido com calções justos, ergueu os olhos, surpreso. Antes que pudesse impedir, sua carruagem estava longe.
O cavalo seguiu a meio galope relinchando pelo caminho, deixando outro homem berrando.
O seqüestrador de Molly não olhou para trás. Respirando pesado, enxugou o suor da testa enrugada e começou a murmurar alto:
— É, ele ficará impressionado com a cadela... é um daqueles estranhos cães chineses. Pela primeira vez fiz tudo certo.
Molly não sabia do que o homem estava falando, mas em seu transe não se importava.
Enquanto aceleravam ela reconheceu para onde iam. Estavam na estrada em direção a Briersville. Claro, não era a estrada de asfalto que ela conhecia, e sim uma acidentada estradinha rural com margaridas crescendo no meio do capim ao longo do caminho. Oitocentos metros depois chegaram perto de um carro de boi. O cabriolé teve de parar enquanto o carro de boi se colocava lentamente na beira do caminho para que eles passassem. Por um momento tudo ficou silencioso, a não ser por uma cotovia cantando no ar, acima. E então Molly ouviu o som de cascos na estrada, atrás.
O homem olhou, vendo o jardineiro e o cavalariço furiosos, galopando depressa. Xingando, saltou desajeitadamente no cavalo que puxava a carruagem e o obrigou a trotar passando pelo carro de boi. Agora os perseguidores montados estavam a apenas alguns metros. O seqüestrador de Molly congelou o mundo outra vez.
Como seu corpo estava em contato com o cavalo, a criatura continuou a se mover para a frente e para longe. Molly havia se concentrado, por isso também continuou em movimento. Segurando Petula, olhou para trás vendo com interesse calmo os perseguidores. Eram como brilhantes estátuas de cavaleiros galopando seus garanhões. Até a poeira levantada pelos cascos dos animais estava presa, imóvel, numa nuvem fixa.
Olhou o velho bamboleando à sua frente, montado no cavalo que puxava o cabriolé, e ficou impressionada ao ver como ele era notavelmente hábil e ágil para a idade. E o mundo congelado do século XIX foi passando. Molly não sentia mais vontade de questionar o homem. Sorriu como se o ambiente alterado fosse apenas um delicioso espetáculo de diversão. Uma doce música de violão poderia estar tocando, pelo modo como ela sorria.
Uma mulher imóvel, usando vestido marrom comprido, tirava água de um poço. Passaram por um menino maltrapilho que guiava um bando de gansos junto à vala. Todos imóveis como esculturas.
Quando chegaram aos arredores de Briersville, Molly olhou para o topo da colina onde deveria estar o orfanato onde havia crescido. Aquele mesmo prédio erguia-se todo cinzento e de aparência triste, exposto aos elementos. Imaginou se havia sido um orfanato em 1850, 1860, 1870 — onde quer que estivesse agora.
Seu seqüestrador conduzia o cavalo para dentro de Briersville. Passaram pela prefeitura com seu teto parecendo um frasco de pimenta. Tudo estava completamente parado. As mulheres usavam vestidos compridos com anquinhas e chapéus. Na cabeça os homens levavam desde cartolas até bonés ou frouxos gorros de lã. O sujeito de turbante instigou o cavalo, ignorando o alarme do bicho diante do mundo imóvel. Resmungando sozinho, fez o cabriolé se desviar pela pista de obstáculos formada por carroças e carruagens puxadas por cavalos.
Uma feira movimentada acontecia numa rua lateral. Havia barraquinhas de bolos, de pão e gaiolas cheias de galinhas vivas que poderiam ser compradas e mortas no ato. Um açougueiro de rosto carnudo segurava uma galinha em posição sobre uma tábua de corte, a outra mão erguida com um cutelo preparado. O nariz sensível de Petula captou os cheiros no ar: de sangue, esgoto, cerveja, pão assando, palha, animais e fumaça, e ela tentou entender por que tudo cheirava tão diferente.
Por fim chegaram ao outro lado da cidade, perto da praça. O seqüestrador de Molly desceu do cavalo e deixou o mundo se mover outra vez. Desgrenhado pela corrida, exausto pelo esforço de congelar o mundo e impaciente, sinalizou para Molly e Petula descerem. Estendeu a mão. Nela havia outra cápsula metálica roxa, que havia retirado da lateral do aparelho prateado.
— Engula isso — ordenou ele, as palavras temperadas por um forte sotaque indiano. Molly parou, tentou recusar e então obedeceu. A pílula de metal era desconfortável descendo pela garganta. O homem consultou seu instrumento, que tinha um mostrador aceso e um teclado. Franziu a vista para os botões minúsculos e, com um alfinete do turbante, começou a digitar números. Molly ficou olhando. Por fim ele apertou um botão prateado e segurou a mão dela.
— Você está me esgotando — resmungou. Depois levantou o mecanismo prateado até o pescoço e, com o dedinho, segurou o cristal vermelho pendurado ali.
Seu rosto se esforçou e ficou rubro de concentração. Houve o BUM distante e familiar e o mundo ao redor de Molly e Petula começou a mudar, derreter e mudar de novo.
Um vento quente soprou. Molly percebeu que agora estavam indo para a frente no tempo. Uma rápida sucessão de ruídos passou zumbindo por seus ouvidos até que o negócio prateado emitiu um forte clarão de luz. O homem desgrenhado os fez parar. Quando os redemoinhos acabaram Molly viu um mundo familiar. A praça era um moderno campo de jogo. Dois garotos com agasalhos esportivos azuis-escuros chutavam uma bola de futebol, tão concentrados que não notaram os três viajantes do tempo aparecendo.
— So... orr! — tentou gritar Molly, mas sua voz estava trancada na garganta.
O homem desgrenhado passou a mão sobre o rosto seco e enrugado e foi em direção a um banco de madeira. Pegou outra pílula de metal, que Molly deduziu que ele devia ter escondido ali, para ajudá-lo a encontrar o local exato de novo.
Então ele gritou para os garotos:
— Que horas são no seu relógio?
Um dos garotos parou com a bola sob o pé.
— Tá falando comigo?
— É, com você, garoto.
O garoto deu um olhar para o colega, como se dissesse: «Olha o maluco aí. «
— Dez para as quatro — gritou de volta. Quando fez isso, Molly o reconheceu. Era da Escola Briersville. Estudava num ano à frente de Molly e algumas vezes jogava futebol com Rocky. Mas parecia mais novo — muito mais novo do que quando Molly o tinha visto pela última vez. Deviam ter pousado num tempo bem antes de ela ter encontrado o livro de hipnotismo, o livro onde aprendera suas habilidades.
Se não tivesse sido hipnotizada poderia ter rido de espanto ou gritado de medo. Porque Molly estava num tempo em que ela própria já vivera.
— Mi.. eal — grunhiu, tentando chamar o nome dele. Olhou por cima do ombro, para os campos e florestas que formavam o atalho entre a Escola Briersville e o Orfanato Lar Vidadura.
A colina era o caminho que as crianças do orfanato costumavam pegar. Se fosse um dia de aula elas já estariam indo para casa, já que o lanche era às quatro em ponto. É de fato, um grupo de crianças estava perto do topo. E, mais embaixo, duas pequenas figuras emergiram da floresta. Uma tinha cabelo preto, a outra usava um agasalho marrom com um redemoinho nas costas. Estavam longe demais para serem reconhecíveis. No entanto, ao ver como a primeira andava num passo decidido e a segunda caminhava preguiçosamente atrás, Molly lembrou-se claramente de Rocky e de si mesma. E mais, ela já tivera um agasalho com um desenho em espiral nas costas.
Em seu estado hipnótico Molly concluiu de um modo casual que, por mais milagroso que fosse, havia uma possibilidade de que a pessoa que ia ficando para trás na colina era ela própria três anos antes.
Então notou um zumbido mecânico que ia ficando cada vez mais alto.
Um helicóptero pousava no campo de futebol. O ruído das pás e dos motores era ensurdecedor.
Os garotos que jogavam bola cobriram os ouvidos e olharam o veículo pousar. Enquanto o rotor ainda estava girando, o seqüestrador empurrou Molly para dentro. O cabelo dela se agitou enquanto subia os degraus metálicos. Petula se enrolou em seus braços, com medo, e enterrou o rosto na axila de Molly. As duas se perguntaram aonde estariam indo.
De novo Molly tentou falar. A paz hipnótica que sentira antes havia sumido.
— O... ond... cê... támele.... vando?
O seqüestrador a ignorou.
Enquanto a máquina-inseto saía voando, Molly tentou ver o rosto das crianças na encosta, mas era impossível. No entanto, ao sobrevoarem o orfanato, conseguiu identificar a Srta. Viborípedes, a diretora do orfanato, sentada junto a uma mesa de jardim, com Edna, a cozinheira, servindo-lhe o chá. Viborípedes ergueu a cabeça rapidamente para o helicóptero e cobriu os ouvidos, enquanto Edna levantava o punho e gritava. Molly só pôde imaginar os palavrões que voavam de sua boca.
Embaixo, os campos eram uma colcha de retalhos em verde. Vinte minutos depois estavam no aeroporto. O helicóptero pousou e, como se tudo estivesse combinado antecipadamente, foram recebidos por um carrinho de golfe, que foi dirigido pela pista até um jato particular, e foram postos a bordo. Molly, com Petula alerta embaixo do braço, caminhava atordoada.
Nove horas mais tarde o jato pousou. Suas portas e um ar quente cheirando a fogueiras, ervas e temperos invadiu a aeronave. Um sol quente cobriu os ombros dos passageiros. Molly franziu os olhos enquanto espiava ao redor.
Todo o aeroporto, com suas torres de controle e birutas laranjas, tremulava no calor. Na pista aguardava um carro preto e brilhante, com uma bandeira que tinha a imagem de um pavão.
— Agen... tstá... naíndia? — perguntou Molly, mas suas palavras caíam em ouvidos surdos.
Logo seguiam de carro, e em pouco tempo Molly soube que tinha adivinhado.
As estradas eram apinhadas. Camelos e cavalos puxavam carroças e charretes. Os caminhões multicoloridos com cabines decoradas, pintadas à mão com imagens de flores e elefantes, eram totalmente diferentes de todos os caminhões que Molly já vira. Na traseira de cada um deles estava escrito “Usea Buzina”. O motorista do carro certamente usava. E outros motoristas buzinavam para ele. Camelos e búfalos puxando suas cargas chegavam perto do acostamento, onde bicicletas passavam chacoalhando, enquanto o tráfego mais barulhento e mais rápido seguia na pista principal. Minúsculos riquixás amarelos e pretos como vespas gigantescas, passavam zumbindo. Mulheres vestindo sáris coloridos andavam de motoneta ou iam empilhadas nas garupas das motocicletas.
Era tudo muito movimentado. Passaram por um enorme campo onde centenas de crianças jogavam críquete, depois por uma clareira onde moravam ciganos. Acima das barracas um cartaz anunciava que vendiam sáris de casamento feitos de seda. Logo estavam numa cidade.
— On... dcê... támele... vando? — conseguiu perguntar Molly, mas o seqüestrador olhava pela janela, para a rua e os prédios empoeirados. Molly sentia-se pegajosa e com calor.
Petula ofegava. Com grande esforço Molly pegou uma garrafa de água mineral na bolsa do banco do carro. Derramou nas mãos em concha e deu para Petula beber.
Notou que as ruas estavam ficando mais largas e os prédios mais grandiosos. Seguiram por uma longa avenida com embaixadas elegantes dos dois lados. Bandeiras pendiam frouxas do lado de fora, no ar sem vento.
Molly pensou em como se sentia frouxa, e que era assim a sensação de estar hipnotizada. Estava exausta, também. Viajar no tempo era cansativo.
Estou sozinha na índia com Petula e um homem completamente estranho, pensou. Por quê?
Fechou os olhos. Insistiu consigo mesma para não ficar prisioneira desse hipnotismo, mas era impossível. Sua mente não conseguia romper o escudo que a cercava. Lembrou-se de pesadelos que tivera, onde atravessava uma rua, um ônibus enorme se aproximava, mas ela não era capaz de se mexer. Os pés ficavam presos e o corpo paralisado. Agora sua mente parecia paralisada.
Quando abriu os olhos de novo tinham parado perto do que parecia um local turístico. Era uma magnífica fortaleza vermelha, meio caindo aos pedaços, com lojas de turismo na entrada e uma fila de táxis junto ao portão.
— Desce — disse o homem de turbante com grosseria. Molly abriu a porta do carro. Petula farejou o ar e o homem pegou-a. De novo ele segurou o aparelho prateado, de viagem no tempo, e começou a mexer naquilo. Satisfeito com a programação, apertou o braço de Molly.
Lá vamos outra vez, pensou ela. Para onde estará me levando agora?
Com Petula presa embaixo da axila direita, o homem de turbante tateou procurando o cristal verde. As veias de seu pescoço se destacaram enquanto ele se concentrava. Houve um BUM, o mundo relampejou em cores. O ruído era quase ensurdecedor enquanto eles disparavam para trás no tempo. Um vento frio girou ao redor, brincando com as pontas dos cabelos de Molly e agitando o bigode do homem. A caixa prateada soltou um clarão. Pararam.
Um elefante pintado para festa estava ao lado deles. O homem resmungou e bateu os pés, irritado. Apertou um botão no medidor de tempo e segurou a pedra vermelha. Com outro BUM e um redemoinho quente de ventos coloridos eles avançaram no tempo. Desta vez, quando pararam, estava chovendo. Torrencialmente.
— Aaaaaahhhh! — rugiu o homem, agora encharcado e numa fúria terrível. — Por que nunca acerto? Esses ventos do tempo vão me mandar mais cedo para o túmulo! — E segurou o cristal verde.
Molly percebeu que ele obviamente queria estar junto ao portão num dia específico de uma determinada época, e achava isso tremendamente difícil. Enquanto avançavam e recuavam no tempo era como se ele estivesse tentando atracar uma nave do tempo numa estação espacial particularmente complicada. Molly não achou divertido. Também não achou amedrontador. Não sentia grande coisa, mas sua curiosidade continuava acesa.
— Pfa... vor... on... dagen... t... vai? — tentou de novo.
A caixa prateada relampejou. Pararam. Era de manhã.
Outro sol feroz chamejava.
Uma expressão de alívio surgiu no rosto do seqüestrador. Agora dez palmeiras cresciam junto aos muros vermelhos da fortaleza, e perto da entrada, em vez das lojas para turistas, havia dois guardas ameaçadores, segurando espadas. O acompanhante de Molly indicou que ela deveria esperar. Espanando a água da chuva dos ombros ele foi até um grande guarda-sol e, no chão duro como ferro, pegou outra de suas estranhas pílulas roxas. Entregando a encharcada Petula a um serviçal, demorou alguns instantes ajeitando as roupas. Uma tigela d’água e uma toalha foram trazidas para ele lavar e enxugar o rosto. Um serviçal trouxe um pequeno pote de alguma coisa e um espelho em que ele verificou a aparência cuidadosamente. Esfregou um ungüento na pele seca da bochecha, exclamando:
— Pior, está pior. Vou apodrecer antes de ficar jovem de novo!
Então o empregado lhe trouxe uma bandeja com pequenos embrulhos verdes. O acompanhante de Molly cuspiu no chão, deixando ali um monte de cuspe laranja, e enfiou um dos embrulhinhos na boca.
— Ah! Paan! Pelo menos há alguma coisa boa neste mundo — murmurou. Então, mastigando, segurou Petula, voltou c cutucou Molly para acompanhá-lo.
Os guardas bigodudos fizeram uma reverência enquanto ele passava. Quando atravessaram o grande portão em arco outros serviçais se curvaram mais ainda nas reverências. Molly percebeu que seu seqüestrador era bem importante.
Mas não importante o suficiente para ficar totalmente à vontade neste belo palácio, pensou. Porque enquanto andavam pelos frescos corredores de mármore ela percebeu que o sujeito ia ficando cada vez mais nervoso.
Quando subiram alguns degraus verde-claros até uma gigantesca entrada de âmbar e ouro, Molly notou que as mãos dele estavam tremendo. O sujeito estremeceu nervoso no último degrau, como se tentasse decidir alguma coisa, e depois colocou Petula nos braços de Molly. Sentindo a situação tensa, Petula mergulhou embaixo da camiseta larga de Molly e se acomodou lá dentro, para se esconder.
Um lacaio de turbante, vestido de branco, fez uma reverência com as mãos em posição de oração. Depois, em silêncio, abriu a porta.
Tremendo, o homem de bigode conduziu Molly para dentro.
Estavam numa comprida sala dourada com milhares de pontas de prata no teto. As paredes douradas eram decoradas com vidro colorido em forma de elefantes, o piso era coberto por tapetes grossos e suntuosos e gigantescas almofadas de veludo. O ar tinha um forte cheiro de incenso. O olhar de Molly passou rapidamente pelas baixas mesas de mosaico até o fim da sala. Ali havia uma cama escarlate com um encosto púrpura e, reclinado nela, um homem usando um brilhante casaco vermelho.
Por um momento Molly pensou que seus olhos hipnotizados a estivessem enganando, porque o sujeito reclinado parecia enorme. Parecia ter sido ampliado. A cabeça escura, como de uma tartaruga, e o corpo gigantesco pareciam ter o dobro do tamanho do serviçal ao seu lado, que com um largo leque de penas de pavão o abanava. Será que o serviçal era anão?
O gigante estalou os dedos compridos e o barulho ecoou na sala. O acompanhante de Molly se adiantou rapidamente, puxando-a. Quanto mais perto chegavam, maior parecia o homem na cama. Molly nunca tinha visto um homem tão grande, nem alguém tão reptiliano. A pele do rosto era seca e escamosa como de uma tartaruga. O nariz largo e seco era áspero como pedra pomes. Se Molly não estivesse hipnotizada, sentiria horror da aparência monstruosa. Quando estavam a dez passos de distância ele ergueu um pedaço de vidro diante do olho direito. Depois soltou um rugido ensurdecedor.
— SEU IMBECIL — trovejou ele. — ZACKYA, SEU IDIOTA! É A ROLLY EMADA. VOCÊ PEGOU A ROLLY ROON EMADA!
Aterrorizada, Petula se enrolou numa bola dentro da camiseta de Molly e tentou fingir que não estava ali. O acompanhante de Molly na viagem pelo tempo deu-lhe um olhar chocado e depois de completa repulsa.
— Ah, cocô de pavão! Errei... de novo — xingou. O branco de seus olhos brilhou de medo. Ele se virou guinchando para o patrão.
— A Molly errada, sahib, mas não pode ser. Marajá, eu avancei exatamente até a época exata e a peguei. Ela estava na mansão Parque Briersville.
— Parque Briersville? PARQUE BRIERSVILLE? Seu IDIO-OOOTA — trovejou o gigante numa voz profunda, de arrepiar. Em seguida pegou o leque de penas de pavão com o serviçal e jogou na direção deles, de modo que o seqüestrador de Molly teve de se desviar. — Zackya, você pealmente rensa que ela estaria na mansão Parque Briersville antes de encontrar o livro de hipnotismo? Eu queria a Molly Moon de um tempo anterior aisso. Queria Molly Moon do tempo em que ela morava no orfanato, seu imbecil. Cornelius Logan mantinha sua residência soltalmente tecreta. Ele jamais a deixaria chegar à mansão Parque Briersville antes de encontrar o livro de hipnotismo.
— Cornelius podia querer treiná-la antes de ela encontrar o livro, Sua Alt...
— Não me responda. Que IDIOOOOOOOTA! — O rugido pavoroso que saiu da boca do homem enquanto ele se levantava deslocou ar suficiente para agitar o cabelo de Molly. Os olhos de Molly não a estavam enganando: o sujeito era mesmo enorme, mas agora ela descobriu que havia algo estranho com as orelhas dele.
— Claro que é a Rolly Roon emada. Está cego? Essa aí está usando um triscal. — Ele apontou um dedo grande na direção do pescoço de Molly. — Ela já é capaz de parar o mundo, seu pedaço inconseqüente de cocô de camelo. Só hipnotizadores param o mundo. Por que outro motivo ela estaria usando um TRISCAL?
Triscal?, pensou Molly. Ah, ele está falando do cristal de parar o mundo. A voz do gigante trovejou furiosa, ricocheteando nas paredes da sala dourada.
— Você me trouxe uma Molly Moon muito adiantada no futuro, sua barata inútil. Eu disse. Expliquei vês treses. — O gigante deu quatro passos enormes na direção deles, ficando maior à medida que chegava perto. Inclinou o corpo parecido com uma árvore e, como se o subordinado não passasse de um menino, segurou a orelha dele e lhe deu uma boa sacudida na cabeça. — Ou a coisa entrou por um ouvido e saiu pelo outro?
— Eu penseeeeiiiiii.... pensei que essa era a ceeeeer... — O sujeito mal conseguia fazer as palavras saírem em meio às sacudidas.
— Você pensou. Que piada! — disse o gigante, largando-o enojado. — Como sempre, vou ter de pesolver ressoalmente. — Então, com um gesto rápido, cuspiu. — É assim que a coisa funciona, seu idiota. Terei de tirar Molly Moon do tempo em que ela não havia encontrado o livro de hipnotismo. Antes de ela encontrá-lo. Endenteu? Assim, quando eu matá-la, ela não poderá virar hipnotizadora nem causar os problemas que causou, certo? Não vai apatralhar meus planos e impedir Primo Cell de virar presidente dos Estados Unidos, como fez... e Cornelius de governar todo o mundo para mim. E por quê? Porque terá morrido antes de descobrir como se hipnotiza os outros. — Ele segurou de novo a cabeça do homem com as mãos enormes e começou a sacudir.
— ESCÁ TLARO? — gritou ele.
Molly percebeu alguns pensamentos lutando para atrair atenção em sua cabeça, ainda que todos fossem turvos, porque estava hipnotizada. O primeiro era que parecia que aquele colosso de homem do passado já havia controlado Cornelius Logan. O gigante que viajava no tempo evidentemente tinha avançado, saindo deste tempo, e hipnotizado Cornelius para realizar seu plano magistral. Cornelius, a quem Molly havia hipnotizado para virar um carneiro tagarela que não parava de balir! Era quase inacreditável. Sem dúvida o gigante queria ser poderoso no tempo de Molly. Ela tentou imaginar por quê.
Sua mente bebericou esse pensamento como se fosse uma bela xícara de chá de ondas cerebrais. Percebeu que, involuntariamente, havia atrapalhado os planos dele. Havia retirado Cornelius do caminho. Portanto, pensou Molly, logicamente o gigante queria pegá-la antes que ela encontrasse o livro de hipnotismo para matá-la antes que ela pudesse causar encrenca.
Fazia sentido. Molly sacudiu esse pensamento na cabeça e piscou enquanto digeria a situação. E por fim observou que não havia nada de errado com as orelhas dele. O gigante de pele igual a couro (que parecia ter a mesma doença de pele do trêmulo seqüestrador de turbante) tinha algo errado era no modo como falava. Falava as palavras de trás para a frente, de frás para a trente. Trocava letras.
O gigante largou o seqüestrador, que agora estava ao lado de Molly ajeitando o pescoço que tinha um leve torcicolo. O suco vermelho do paan que o homem estivera mastigando escorria pelo queixo. Ele o enxugou com um lenço.
— Além disso você demorou demais — reclamou o gigante. —Acho que ficou nervoso demais em viajar pelo véculo sinte e um, seu molenga.
— Alteza... marajá... achei melhor garantir a chegada dela. Não confio naqueles jatos supervelozes do século vinte e cinco. Vou treinar sozinho e melhorar minhas habilidades, garanto, mas não queria perder a Srta. Moon num aeroporto. — O homem expôs os dentes manchados de vermelho num sorriso submisso.
O marajá não estava escutando. Agora examinava Molly. Seus enormes olhos injetados moviam-se de um lado para o outro enquanto ele registrava sua aparência desgrenhada, seu tamanho e os olhos muito próximos um do outro.
— Quem imaginaria que alguém pão tequena... E olhe! Os ventos do tempo já estão afetando-a. Zackya, libere-a do transe.
— Tem... certeza, alteza?
— Faça o que eu mando, idiota.
Zackya, o seqüestrador de Molly, se postou obedientemente diante dela. Levou os dedos secos e nodosos à testa da garota e os estalou.
— Você está livre.
O hipnotismo estava quebrado. O véu de névoa que cobria os sentimentos de Molly se ergueu e ela ficou absolutamente presente. Agora sabia como Petula se sentia, enterrada sob sua camiseta; o ardente desejo imediato de Molly era desaparecer também.
Agora todo o peso da situação despencou sobre ela. Fora apanhada numa armadilha terrível. Presa em outro país e outro tempo. Mesmo que conseguisse escapar do marajá gigante e do seu assistente, ainda estaria presa num tempo que não era o seu, porque Molly não tinha absolutamente nenhuma idéia de como viajar no tempo. Sentia-se vulnerável como uma minhoca no bico de um pavão, desamparada como um prisioneiro diante do carrasco. As palmas de suas mãos ficaram úmidas enquanto o medo a dominava. Nunca havia se sentido tão desamparada, e foi necessário um imenso autocontrole para não cair no choro.
Porém Molly tinha experiência com pessoas sem gentileza e sem coração, e sabia pelo rosto frio e imóvel do gigante que não adiantaria implorar. Tinha conhecimento suficiente do sadismo para saber que, se chorasse agora, ele curtiria o espetáculo por um tempo e depois perderia o interesse por ela. Pelo modo como o sujeito estava se inclinando agora, olhando fascinado para as laterais de seus olhos, tinha certeza de que a melhor chance de sobrevivência era ficar o mais calma e misteriosa possível. Ignorou o úmido hálito de alho e sua pele de rinoceronte. Ignorou o próprio medo. Cruzou os braços sobre Petula, mal escondida sob a camiseta larga, e conseguiu acalmar a mente e fazer alguns cálculos.
O primeiro era que esse homem e seu assistente eram obviamente muito bons hipnotizadores, assim como Molly.
O segundo era que os dois também sabiam parar o mundo. Os dois podiam parar o tempo, como ela.
Molly suspeitava que eles pudessem ser melhores hipnotizadores do que ela (afinal de contas, ambos eram viajantes no tempo) e por esse motivo decidiu não usar seu cristal de parar o tempo. Mas tinha certeza de que, quanto à viagem no tempo, um deles não era muito bom nisso. Percebeu que, se o melhor ajudante que esse gigante rico e poderoso podia encontrar era o tal de Zackya, que estava agachado no canto, os bons viajantes do tempo deviam ser raros.
Olhou direto em frente e ignorou o marajá e seu dedo pesado, parecendo um bastão, cutucando sua testa. Sentia-se muito sozinha e realmente apavorada, mas sabia que não deveria aparentar isso. Para se proteger fingiu uma expressão de orgulho altivo, como se estivesse profundamente insultada por ter sido arrastada pelo tempo de modo tão grosseiro.
Lembrou-se de um personagem metido a besta num filme antigo que tinha assistido em vídeo um monte de vezes no orfanato. Era um general que fora capturado pelos inimigos e, em vez de ficar esperto e subserviente, vivia reclamando aos gritos. Molly sabia que devia tentar imitá-lo, o que significava uma grande encenação. Não tinha muita confiança na sua capacidade de interpretar, mas podia se lembrar das falas do general, já que ela e Rocky as repetiam um para o outro. A adrenalina que bombeava por dentro lhe deu coragem, e ela se surpreendeu quando algumas palavras pomposas do general voaram subitamente de sua boca.
— Considero esta imposição inconveniente e degradante. Na verdade é de uma impertinência absoluta!
Estremeceu quando «impertinência» saiu de sua boca, porque sabia que se comportar desse jeito era uma jogada de risco.
O homem alto estreitou os olhos e a encarou irritado. Molly trincou os dentes.
— É mesmo? — disse ele devagar.
— Sim. — Ela forçou a mente para lembrar e imaginar o general do filme, e continuou: — Sim. Ter sido arrancada sorrateiramente, de modo tão ilícito por seu subalterno... — Molly não tinha certeza do que significava “subalterno”, mas foi em frente mesmo assim. — Eu deveria ter sido devidamente desafiada num duelo hipnótico. E depois, ser acompanhada pelo tempo por alguém tão... tão inesperto e incapacitado! — Enquanto ouvia as próprias palavras Molly se lembrou de que deveria ter dito inexperiente e incapaz. — Continuou: — Não é o tipo de tratamento que eu, uma hipnotizadora de primeira classe, esperaria de você, outro hipnotizador de primeira. Se eu estivesse na sua situação, teria arranjado um acompanhante muito mais digno. Demonstraria mais respeito.
Molly mal podia acreditar que aquelas frases saíam de sua boca. Ou elas cavariam sua própria sepultura ou a arrastariam para longe da encrenca — não fazia idéia de qual das duas hipóteses. Mas sabendo que precisava representar o papel até o fim, concentrou sua energia hipnótica e virou os olhos para os do gigante. Ele já estava com os olhos brilhando hipnoticamente. Seus olhos grandes, saltados, engastados nas órbitas escuras, eram horríveis. Ao redor das pupilas marrons os brancos eram cheios de veias e injetados de sangue. Molly nunca tinha visto olhos tão grandes nem tão repulsivos, no entanto seus olhos verdes os enfrentaram. Firmou o olhar no dele e sentiu seu poder. Com força, olhou direto nos olhos do homem gasto, com pele de morsa e rosto de tartaruga.
Fascinado por estar diante de olhos do calibre dos de Molly, o gigante desfrutou a sensação incomum do desafio.
Agora podia ver como aquela garota magricela com nariz de batata havia derrubado seus planos muito bem organizados. O poder dela não se parecia com o de nenhum outro hipnotizador que ele já conhecera. E era experiente, dava para sentir. Porque cada vez que ele focalizava de novo, para apanhá-la e derrubá-la hipnoticamente, ela previa seu movimento e repelia o olhar. Ela era boa, muito boa, especialmente para a sua idade. Mas não sabia nada sobre as regras da viagem no tempo, de modo que isso o colocava quilômetros à frente dela. Ele admirou seu talento e sua coragem. Era quase um prazer conhecê-la. Mesmo sendo um pouquinho metida demais, pensou. Talvez valesse a pena jogar com ela. Talvez ele devesse colocá-la em seu devido lugar. Talvez fizesse isso. Baixou os olhos.
— Hmmm — murmurou. — Então você se vê como uma princesa lorbobeta. — Ele bateu as palmas enormes. — Talvez a princesa queira tomar um chouco de pá.
Imediatamente as portas distantes se abriram e oito empregados com turbantes vieram rapidamente com bandejas. Nas bandejas havia bules e jarros de prata, pratos, xícaras e copos de porcelana e, no tempo que Molly e o gigante levaram para andar pela sala, uma pequena mesa de nogueira foi arrumada. A cadeira de Molly era virada para uma parede pintada, onde um mural com uma cena de caça mostrava em detalhes o gigantesco marajá num elefante, com um rifle na mão, matando um tigre. Era uma bela pintura, mas Molly não gostou do tema. A floresta verdejante ao fundo mostrou a Molly algo da região ao redor da fortaleza.
— É uma mudança revigorante — admitiu o gigante, pegando um bolinho enorme que um criado meio morto de fome lhe ofereceu — conhecer alguém que não se encolhe na minha frente como um cão espancado. — Ele deu um rápido olhar na direção de Zackya. — Peço desculpas pelo incebil que trouxe você aqui. Na verdade ele é um “intocável”.
— Intocável? — perguntou Molly, esperando que o anfitrião não notasse como sua mão tremia quando escolheu um bolinho.
— Sim. Ele nasceu na casta mais baixa, o nível mais inferior dos hindus. A maioria dos indianos hindus acharia que ele não é melhor do que um rato de esgoto. Mas não sou hindu, por isso simplesmente vejo seu valor real e o considero a priatura catética que ele é. Por minha causa ele é livre. Eu o LIBERTEI. — O gigante levantou a voz ligeiramente, enchendo o ar com ameaça. Molly sentiu que agora, mesmo olhando para ela, ele na verdade se dirigia a Zackya. — Eu o LIBERTEI e OLHA como ele me paga. NÃO CUMPRINDO MINHAS INSTRUÇÕES! — Essas palavras foram gritadas tão alto e com tanta fúria que a louça na mesa estremeceu. E então, subitamente, o mau humor do gigante explodiu fora de controle.
— VOCÊ É INÚTIL, NÃO É? SEMPRE FOI, ZACKYAZINHO. CUIDADO, CUIDADO. VOU PICOTAR VOCÊ COM FACAS AFIADAS. DAR VOCÊ DE COMER AOS VAPÕES. — Sua voz baixou até um ronronado. — Ou talvez eu simplesmente o hipnotize. Você não gostaria disso, gostaria? Evitou isso por tanto tempo. Não gostaria de ser HIPNOTIZADO?
Molly ficou chocada com as bruscas mudanças de humor do gigante, e mais ainda pelo que ele estava dizendo. Zackya fez uma reverência, ajoelhou-se e se curvou mais ainda, as mãos estendidas no chão. Depois, tão rapidamente quanto havia explodido, o mau humor do gigante desapareceu.
— Sou bem esperto — disse ele, o rosto pesado se franzindo com um sorriso horrendo e torto. — Veja bem, tenho de zafer uma coisa no futuro. Zafer uma coisa que não pode ser feita neste tempo.
Molly tentou fingir que aquele ataque não a havia incomodado nem um pouco.
— O quê? — disse dando uma mordidinha elegante em se u bolinho e recolocando-o no prato que um serviçal pôs num guardanapo sobre seus joelhos. Por dentro estava trêmula. Esperava que sua interpretação de princesa mimada lhe desse uma chance contra seu anfitrião desequilibrado. O temperamento instável do sujeito a amedrontava, porque fazia lembrar um louco que ela e Rocky tinham visto uma vez na rua em Briersville. O homem havia escapado do hospital psiquiátrico da região. Primeiro ficou sentado cantando para os pombos. De repente pulou e começou a bater neles com um pedaço de pau. O gigante tinha o mesmo temperamento imprevisível. Ela precisava tomar muito cuidado para não virar comida de pavão. Petula se remexeu, começando a se sentir abafada. Molly apertou-a para se aquietar.
O gigante bateu com a unha pintada de dourado nos enormes cristais vermelhos e verdes pendurados no pescoço.
— Preciso mandar minerar mais um pouco desses triscais. Cristais de viagem no tempo. Eles vêm lá do fundo, quilômetros abaixo da tuperfície da serra. Preciso deles. — O marajá pôs um grande pedaço de bolo na boca.
— Por quê? — perguntou Molly, tentando tomar a bebida com tranqüilidade. Engasgou. Era água temperada com lima e sal.
— Porque... — migalhas voaram da boca do gigante enquanto ele explicava — quando eu tiver viajado de volta ao início dos tempos com um único cristal, se eu tiver grandes quantidades de triscais comigo, posso ser levitado até a “Bolha”. Na Bolha há uma luz maravilhosa que, se a gente se banhar nela, fica jovem! — Ele passou as duas mãos no rosto como se imaginasse a luz e acrescentou: — Eu nem sempre fui assim.
Molly engoliu um pedaço do bolinho e imaginou, pela primeira vez, se estaria sonhando. Uma luz maravilhosa que fazia a gente ficar mais jovem, que brilhava num lugar chamado de “Bolha” no início dos tempos? Quem já ouvira falar de banho de sol rejuvenescedor? O gigante era mais doido do que ela pensava. Por um instante imaginou — caso tivesse um hospital que usasse hipnotismo para curar as pessoas e se esse gigante fosse um paciente — se Rocky e ela poderiam descobrir um modo de curá-lo. Num clarão desejou que Rocky estivesse ali. Só podia imaginar o que ele diria agora, e as palavras saíram de sua boca.
— Eu achava que o início dos tempos era cheio de fogo e explosões. Você não seria queimado vivo se pousasse lá?
— Não. No século vinte e nove descobriram que o início dos tempos é um lugar parecido com uma peneira cheio de luz branca que vem da Bolha. Se uma pessoa puder levitar até essa luz, receberá força vital e juventude. A levitação até a Bolha é difícil, só é possível com um bom suprimento de cristais de viagem no tempo.
— Ah... sei. — Molly ergueu as sobrancelhas. — E você diz que precisa minerar os cristais no meu tempo... no século vinte e um.
— Sim, porque agora, na década de 1870, é impossível. Somente no véculo sinte e um a tecnologia de minerar a uma profundidade suficiente para tirar os triscais da terra é possível. É muito, muito cara de se fazer. Só com os recursos de muitos países é possível. Por isso preciso ter Cornelius Logan no troncole completo do mundo no véculo sinte e um. Ele vai hipnotizar todos os líderes mundiais. — Nesse ponto o gigante deu um olhar sombrio para Molly, como se fosse perder as estribeiras de novo, mas não perdeu. — Você atravessou meu caminho, mas vou recolocar meus planos nos trilhos — sibilou ele. — Então, assim que Cornelius estiver no troncole, terei o poder e a riqueza de muitos, muitos países, nas dontas dos pedos. A mineração poderá começar e eu terei montanhas de triscais. Armado com toneladas e toneladas de triscais poderei ir ao início dos tempos e obter juventude. Simples, veja bem. E isso já teria sido feito se não fosse um problema que ocorreu: você, Srta. Moon, foi o macaco extraviado que fugiu do latorabório. — O gigante fungou impaciente. — Devo dizer que estou chateado. Demorei anos para deduzir como minerar os triscais. Depois bolei o plano engenhoso de usar hipnotizadores do seu tempo para fazer o trabalho para mim. Fui ao futuro, ao seu tempo, ao tempo em que você tinha acabado de nascer, e hipnotizei Cornelius. Pus todo o plano em ação. O bebê de Primo Cell e Lucy Logan foi posto num orfanato. Era você, claro. Primo Cell e sua mãe foram separados. Tudo foi orzanigado. Foi preciso um monte de esforço para ajustar as coisas de modo que a vida de Cornelius o levasse ao ponto de governar o mundo para mim. Foi um trabalho exaustivo. A viagem no tempo é exaustiva. Mas eu sabia que o esforço valeria a pena. — Ele encarou Molly, furioso.
— Viajei pelo tempo até a índia moderna e liguei para a Brasa Canca nos Estados Unidos, esperando falar com Primo Cell e Cornelius, esperando ouvir falar de salas cheias de triscais minerados. Mas em vez disso outro homem era o presidente. Meus planos tinham sido destruídos.
De novo Molly tentou parecer inabalável. Fez uma expressão despreocupada, rígida, e tomou um gole de uma bebida amarela. Estava tão apavorada que o açúcar da bebida pareceu elétrico em sua língua.
— Depois de mais trabalhos exaustivos de investigação — continuou o gigante — percebi que você era a responsável. Hmm. Cedi estupidamente ao cansaço e mandei aquele imbecil do Yackza pegar você. E ele pegou a você errada. Não concorda? Ele deveria ter recuado no tempo e pegado a Molly Moon de dez anos, que ainda não tinha aprendido a hipnotizar. Para que eu a matasse. Assim meus planos teriam se cumprido direitinho, já que Molly Moon estaria morta demais para arruiná-los. Entende?
Ainda fazendo seu papel, Molly ergueu o nariz e deu de ombros.
— Claro que entendo. Viagem no tempo não é o mesmo que ciência espacial.
E então aconteceu uma coisa medonha.
Petula, que tinha permanecido invisível por tanto tempo embaixo da camiseta de Molly, ficou incomodada. Estava assando ali embaixo. Começou a se retorcer e pôr a cara para fora. E imediatamente o gigante a viu.
— QUE GUENÓCIO É ESSE? — esbravejou ele. Em seguida se inclinou para a frente e seu braço que parecia uma grua disparou e arrancou Petula de seu esconderijo. — COMO ESSE ANIMAL PASSOU PELA REDE, YACKZA? VOCÊ QUERIA ESSE MONTE DE CARNE COMO BICHO DE ESTIMAÇÃO, NÃO É, SEU IMBECIL?
Segura de cabeça para baixo pelas patas traseiras, Petula soltou um ganido e começou a gemer alto. Nas mãos do gigante ela parecia mais do tamanho de um porquinho-da-índia do que de um cachorro. O primeiro impulso de Molly foi gritar, mas conseguiu controlá-lo e transformar o grito.
— Como OUSA! — berrou furiosa, batendo o copo na mesa. — Largue-a imediatamente. Se maltratar essa cadela, não vai ser bom para você.
Essa fala fez o marajá levantar os olhos. Virou Petula do jeito certo e começou a rir.
— Não vai ber som... ha, ha, ha... não vai ber som? HA, HA, HA. Devo dizer, HA, que nunca pensei que você seria tão divertida! — O gigante riu. Seus dentes eram horríveis. Todos manchados de laranja. — Vou lhe dizer uma coisa, minha cara: por que não fazemos um gojo?
— Um jogo?
— É. O prêmio vai ser esse cachorro. É assim: eu vou lhe mostrar os rudimentos da viagem no tempo. Daí você vai voltar no tempo e pegar uma coisa para mim. Se conseguir pegar a coisa, bem, o cachorro... presumo que seja um cachorro, de tão feio que é, de que lado fica o traseiro?... o cachorro vive. Se fracassar, o cachorro morre. Pug ao curry é uma iguaria que pode nascer hoje!
Molly acompanhou o marajá gigante, passando por Zackya que ainda estava encolhido, e atravessaram uma alta porta dourada. Subiram uma escada estreita.
— Essa escada foi construída tuzentos e drinta anos atrás — reclamou o marajá espremendo o corpo enorme no espaço apertado. — Eu vivo pensando em voltar a 1638 para hipnotizar o arquiteto mogol daquela época para projetá-la maior, mas ando ocupado demais.
Saíram num amplo pátio sem cobertura, com paredes de arenito vermelho-escuro pontuadas por janelas em arco, sem vidro. Pontudas cúpulas de arenito e mármore branco coroavam as paredes e uma bandeira com a imagem de um pavão balançava num mastro que subia alto no céu azul. Era um dia quentíssimo, mas nessa altitude uma brisa fresca soprava do campo ao redor. Molly podia ver a cidade simples e antiga, com seus jardins floridos e as colinas próximas, marrons e cobertas de arbustos. A oeste havia outra construção de pedra vermelha com minaretes e cúpulas em forma de cebola. À distância havia torres de construções brancas em forma de pepino, além de casas pequenas, parecendo cabanas. E no intervalo havia palmeiras, áreas pavimentadas e ruas assadas pelo sol onde pessoas e animais caminhavam. Sons vinham da cidade — gritos de barraqueiros vendendo suas mercadorias, de cocheiros guiando os cavalos, búfalos, camelos ou elefantes. Acima disso vinha o zumbido de uma colméia de abelhas pendurada do lado de fora de uma das janelas junto ao teto, e de água caindo num laguinho no centro do pátio. Molly notou uma fileira de serviçais indianos silenciosamente passando baldes uns para os outros, o de cima derramando a água em algum buraco no alto, de modo que ela escorria no belo canal que ia até o laguinho no centro. Era um trabalho árduo para eles.
— Então — disse o marajá coçando o queixo escamoso e pondo Petula em cima da base de uma coluna de pedra. — Eis o desafio para salvar seu cachorro de virar pug ao curry. Hoje cedo, antes do meu banho, um vapão entrou nesse tápio e evaporou. Quero que você volte no tempo e pegue aquele vapão para mim. — O gigante estalou os dedos e falou com um criado, que assentiu e saiu correndo.
— Mas não sei lidar com pavões — protestou Molly. — Como é que eu pego o bicho? Ele vai me bicar?
— Ha! Que dirrículo! Ficar preocupada em como capturar um vapão. Acho que você vai descobrir que a tiagem no vempo é que vai desafiá-la. HA! — Ele batia no casaco de seda vermelha enquanto gargalhava.
Molly o encarou irritada, porque sabia que isso não era engraçado. Zackya surgiu da escada estreita e chegou ao pátio.
— Yackza, pegue o cachorro e casse uma porda no pescoço dele.
Zackya deslizou dissimuladamente e pegou Petula.
— Por sinal, Yackza, não imagine que não percebi sua incompetência. Sei que esse aminal fedorento está aqui por sua causa. O único motivo para não puni-lo é que, sem querer, você me trouxe uma diversão.
Zackya fez uma reverência e lançou disfarçadamente um olhar de ódio para Molly.
O gigante bateu palmas e o serviçal que havia saído correndo voltou. Estava carregando uma almofada de veludo preta onde estavam diversos cristais vermelhos e verdes. Podiam ser rubis, esmeraldas — Molly não sabia o que eram.
— Verde é para viajar para trás. Vermelho é para ir para a frente. Folha a sua escaça.
Molly deu uma rápida olhada, como se escolhesse um chocolate. Cada cristal colorido tinha um tom de verde ou vermelho ligeiramente diferente, e cada um tinha um defeito ligeiramente diferente. Um defeito como uma cicatriz minúscula, como se ele já tivesse sido aberto com um corte. Nenhum era perfeito. Molly se decidiu pelos dois cristais mais brilhantes. Enquanto os pegava notou um leve jorro de energia vindo de cada um deles. Tentou não reagir.
— E agora?
— Ha! Quanta confiança! Espere só. HA!
Molly estava cheia daquele gigante tratando-a com superioridade.
— Gostaria que me mostrasse como fazer isso, por favor, caso contrário como é que vou pegar sua galinhona?
O gigante franziu a testa. Levantando o lábio num riso de desprezo, começou:
— É simples, mas é necessário prática. Para que você tenha pelo menos uma chance de salvar seu cachorro, irei me esforçar para explicar como se faz a viagem no tempo. Mas só uma vez, não sou do tipo paciente, portanto ouça bem. Concentre-se no triscal verde ou vermelho, dependendo da dicerão em que quer viajar. Depois ponha a mente num semitranse, como faz quando pára o mundo. Olhe agora para o espaço e invoque a sensação de fusão fria da parada do mundo. Quando ela chegar, não pare o mundo, em vez disso focalize a mente no triscal da tiagem no vempo até que sua mente fique da cor do triscal. Assim que o mundo começar a ficar turvo, e a brisa da viagem no tempo começar a soprar em você, você saberá que está se deslocando. Também ouvirá um estrondo distante, atrás de você. Para qualquer um que esteja olhando você desaparecer, esse estrondo será muito alto, a não ser que você tenha um instrumento antiestrondo, claro. O estrondo é o ruído feito pelo desaparecimento súbito do seu corpo: o ar precisa preencher de repente o lugar onde seu corpo estava, e isso provoca um estrondo. Física simples. Esta é a parte fácil. A parte difícil é parar no tempo correto. É preciso instinto e prática. Está pronta?
— Então você não vai me dar mais nenhuma pista para saber se estou no lugar certo do tempo e como parar? — perguntou Molly preocupada. — Não vou receber um aparelho igual ao do Zackya?
— Aquele aparelho é para idiotas completos.
Molly olhou para Petula, que agora usava uma guia de corda. Estava sentada nervosa no chão, ao lado de Zackya e do criado com a almofada de cristais.
— Verei você em um minuto — disse-lhe Molly, tentando reunir confiança. Por dentro estava tão insegura quanto um filhote de pássaro sendo empurrado do ninho.
Segurou o cristal verde na mão direita. Olhou para o chão. Trouxe o foco hipnótico para a frente da mente, como quando fazia o tempo parar. A sensação de fusão fria a atravessou e tudo ao redor se imobilizou, a não ser Zackya e o marajá.
— ERRADO! — trovejou o gigante. Molly o ignorou e tentou de novo. Desta vez, enquanto o gélido sentimento de fusão provocava um levíssimo tremor em suas veias, concentrou-se totalmente no cristal verde, mergulhando a mente na idéia do verde, e então, como se tivesse seguido perfeitamente um mapa, sua viagem no tempo começou. Houve um BUM distante, um vento frio começou a soprar ao seu redor e o mundo se fundiu num borrão de cores. Sons mergulhavam, mudavam e ressoavam em seus ouvidos.
E o gigante de casaco vermelho estava ao seu lado, provocando-a, viajando no tempo na mesmíssima velocidade que ela, com as cores do mundo que mudava girando em redemoinho ao redor.
— Aonde você vai, Molly? — zombou ele. — Não faz a mínima idéia, faz? — O sujeito enorme saltou da visão de Molly. Tudo estava acontecendo tão depressa que ela se sentiu totalmente descontrolada, como se sentiria num cavalo desembestado. Com a mente puxou as rédeas imaginárias do vento frio como se quisesse parar, e isso deu certo. Parou. Estava frio. Não fazia idéia de até onde tinha viajado para trás no tempo.
Uma mulher de sári laranja, segurando uma vassoura, apontou para ela e gritou. Molly percebeu que devia ter sido como se ela houvesse brotado do ar. Olhou pela janela e viu que a construção em cúpula do lado de fora não existia. Devia ter viajado muito para trás no tempo.
Imediatamente agarrou o cristal vermelho para avançar no tempo e tentou pensar em vermelho. Num instante deixou para trás a mulher gritando e estava viajando através de um quente vento do tempo. Parou de novo. Desta vez uma lua pairava sobre o pátio. A sua frente estava um menino indiano muito alto, lendo.
— Vraz uma tela. Está escuro demais para ler — gritou ele através da sala sem teto, para um jovem criado que estava sentado nas sombras.
O criado viu Molly e abriu a boca de espanto:
— Sahib, sahib — gritou ele, apontando para Molly. O estudante fechou o livro e se virou furioso para o sujeito.
Molly segurou o cristal vermelho e saiu daquele tempo. Estava espantada. Sabia que tinha acabado de ver o marajá e Zackya quando crianças. Tinha-os reconhecido.
Agora um quente gêiser de pânico subiu por dentro dela. Se não dominasse essa viagem ficaria presa no tempo e Petula estaria à mercê do gigante. Molly se lembrou de outra vez em que havia entrado em pânico. Tinha cortado o polegar numa garrafa de molho de salada e o sangue espirrou em cima da alface e do pepino. Rocky havia lhe dito para exalar lentamente para aliviar a dor e impedir o pânico. Molly desejou que ele estivesse ali agora, e lágrimas encheram seus olhos. Então respirou fundo e exalou muito, muito lentamente, cantarolando enquanto as narinas expeliam o ar, e a calma chegou.
Acima de sua cabeça o céu piscava dia, noite, dia, noite. Por um instante houve uma chuvarada. Por outro nanossegundo o sol brilhou. Todos os elementos estavam ao redor: vento, fogo, água, mas em sua cápsula do tempo Molly ficava abrigada deles.
Tentou se lembrar de quanto tempo levara para recuar desde Petula em 1870 até a época da mulher que havia gritado. Se simplesmente levasse o mesmo tempo para avançar, voltaria ao pátio onde estava Petula. Parou. Infelizmente agora tinha chegado a uma época em que havia um monte de gente no pátio. Estava molhado. As pessoas a viram e apontaram alarmadas. Mas Molly não prestou atenção. Viu uma pequena colméia pendurada no arco da janela e soube que estava perto. Segurou o cristal vermelho de novo e desta vez olhou para o céu para fazer uma avaliação. Pretos e azuis relampejaram acima da cabeça. Tentou pensar em quanto tempo um ano demorava para passar. Seria um segundo? Quanto tempo aquelas abelhas selvagens demoravam para construir uma colméia? Parou. A colméia estava do tamanho certo. Mas o ambiente não parecia direito. Desta vez Molly fechou os olhos. A única coisa que restava era confiar no instinto. Concentrou-se em seus sentidos e tentou visualizar quando o pátio estaria pavoneado. Avançou mais um pouco e abriu de novo os olhos. Um pássaro assustado soltou um grito. Era um pavão, mas seria o pavão certo? Molly olhou para o laguinho e viu que a água estava coberta de pétalas de rosa cor-de-rosa. Numa cadeira havia roupas de seda. Roupas enormes. Molly não sabia como tinha conseguido, mas havia pousado no tempo correto. A hora do banho do marajá.
Petula estava com a cabeça pousada nas patas da frente e tentava não tremer. Sentia um pavor enorme porque percebia que o gigante andando de um lado para o outro no pátio não gostava nem um pouco de animais. Ele cheirava ligeiramente a rosas, mas também a alho e mau humor. O cheiro de mau humor era horrível. Era cheiro de cabelo queimado e piche quente. O fedor saía de todos os poros do corpo do gigante. Petula pôs as patas sobre o nariz e tentou ignorá-lo.
Pensou no modo como Molly havia simplesmente desaparecido no ar.
Em Briersville o homem de turbante tinha desaparecido do mesmo modo depois de deixá-la com as crianças que a puseram no carrinho de bebê. Toda vez que Molly e o seqüestrador tinham viajado pelos túneis coloridos e cheios de vento Petula supôs que eles tinham desaparecido também. Será que Molly estava agora num túnel de vento?
Um pedaço de carne seca tombou no chão ao seu lado e um mocassim o empurrou na direção da boca de Petula.
— Coma — sibilou Zackya.
Petula olhou para o chão. Não conseguia comer nada. Estava preocupada demais com Molly e com o que o gigante faria em seguida. Sua pata traseira ainda doía onde ele a havia segurado de cabeça para baixo. Petula ficou olhando-o examinar o ninho de abelhas pendurado perto da janela. Desejou que as abelhas saíssem em bando e o picassem.
Agora Molly só precisava pegar o pavão. Como era a expressão que o gigante havia usado? “Capturar um pavão. “ Pôs os cristais no bolso. O pássaro estava empoleirado num galho de árvore, remexendo-se nervoso, com a cauda de plumas verdes pendendo atrás. Molly se aproximou fazendo um som amigável que sabia que galinhas e papagaios gostavam. Quando estava a pouco mais de um metro, pulou e tentou agarrar o corpo do bicho. Mas o pássaro não se enganou com seu truque. Soltou um guincho e pulou para longe de seus braços, com as pontas sujas da cauda chicoteando o rosto dela. O nariz de Molly se encheu de um cheiro rançoso, poeirento, de galinha suja. Molly tossiu. Precisava de uma rede. Então percebeu que havia um modo muito mais simples de resolver isso. Só precisava parar o mundo.
O pavão estava imóvel numa pequena coluna num canto do pátio, planejando o passo seguinte. Seu cérebro minúsculo achava difícil se equilibrar na coluna e ao mesmo tempo decidir o que faria com relação a Molly. Ela pegou um short enorme na cadeira e, com seu próprio cristal incolor, parou o mundo. Tudo ficou totalmente imóvel. Todos os sinos na cidade lá fora pararam de tocar e as vacas barulhentas e os camelos resmungões ficaram quietos. O pavão se imobilizou como uma escultura lindamente pintada sobre uma base em forma de coluna. Molly foi até ele e pôs o buraco da perna do short na cabeça do bicho. Depois apertou com força o resto do pano em volta das asas e das pernas de modo que ele não pudesse bater asas nem raspar. Estava muito bem apanhado. Por um momento Molly relaxou. Coçou o queixo. Sentiu a pele muito seca. Caminhou pelo mundo gelado, congelado, até o laguinho cheio de flores, pegou um pouco d›água e jogou no rosto.
Então percebeu que estava louca para fazer xixi. Olhou em volta procurando um lugar. Seus olhos pousaram na banheira do gigante. Ela serviria como um enorme vaso sanitário. Uma pena que a descarga não seria dada antes do banho dele.
Sentiu-se muito melhor depois disso. Enquanto voltava ao pavão percebeu que, com aquelas pedras preciosas, poderia escapar do marajá. Até mesmo poderia voltar no tempo, viajar para Briersville e mandar outro jardineiro derrubar Zackya antes mesmo que ele pudesse pegar Petula. Seria difícil, mas poderia fazer isso, não poderia? Mas o problema não era Zackya. Era o marajá. Se Zackya desaparecesse — se ele jamais surgisse na fortaleza com Molly hipnotizada — o gigante, furioso, iria pessoalmente pegar Molly. Poderia ir até Briersville quando Molly tinha oito anos e matá-la. Molly não gostava da situação em que estava, mas pelo menos a entendia um pouco, e seu jogo de bancar a prima-dona metida a besta estava funcionando. Decidiu permanecer na encrenca que já conhecia. Pegou o pavão. Descongelou o mundo e o pássaro ficou rígido de medo em seus braços.
Desta vez não segurou o cristal vermelho. Tinha de lidar com um pássaro pesado. Mas pensou nisso e, como o cristal estava em seu bolso, a coisa funcionou. Era difícil se concentrar o bastante para levar o pavão, mas finalmente percebeu que os dois estavam viajando no tempo.
Sabia que só era preciso uma pequena viagem. Abriu os olhos. O pátio continuava vazio. Um pouquinho mais. O gigante estava tomando banho, com serviçais derramando grandes jarras de água quente em seus ombros escamosos. Ele tinha realmente uma terrível doença de pele, pensou Molly. O pavão lutou. Mais um pequeno salto. Ali estavam. O gigante estava vestido, Zackya parado ao lado do criado com a almofada de cristais. E Petula, cheia de pavor, estava enrolada no chão.
— Cheguei tarde? — perguntou Molly pondo o pavão apavorado nos braços de Zackya. O pássaro começou a guinchar e bicar o peito dele.
Zackya largou-o, boquiaberto. Nunca havia esperado que Molly completasse o desafio. E ficou chocado ao ver o pavão se desenrolando da cueca do patrão, arrastando-a pelo pátio.
— Leve-o para fora! — gritou o marajá irritado, optando por ignorar a visão de sua cueca. Zackya agarrou o calção gigantesco antes que o pássaro escapasse dele. Arrastou-o guinchando em direção à porta do pátio.
— Então — disse Molly enquanto os gritos do pássaro ficavam mais distantes. — Espero que você seja um homem de palavra.
— Hmm. Geralmente, não. — O gigante não achou divertido o sucesso de Molly. De fato achava muito irritante suas realizações na viagem pelo tempo. Era competitivo por natureza e não gostava de ser superado por ninguém, em particular por uma garota magricela.
— Eu era melhor do que você quando comecei — alardeou ele. — Você acha que é boa, e é. Mas não tão boa assim. Devolva os triscais e pode ter sua cachorra de volta. — Molly entregou as duas pedras. —Agora venha comigo.
— Aonde? — perguntou Molly, o medo voltando como uma visita indesejada.
— Preciso pegar uma coisa para trosmar a você.
— O quê?
— Ah, espere e veja.
Já vi, obrigada, pensou Molly.
O marajá pôs as mãos nos quadris gigantescos e deu um riso de barriga frouxa que ecoou no pátio e no ar acima da fortaleza.
— Vou mostrar seu verdadeiro talento, mara cadame! — esbravejou.
Em seguida caminhou até Molly e agarrou-a. Petula se agachou, latindo, preparando-se para atacar. Mas o marajá a ignorou. Como se Molly fosse leve que nem um travesseiro, o marajá arrancou-a do pátio e seguiu por um corredor estreito. Petula foi atrás, latindo, mordiscando os calcanhares dele. Molly seguiu lutando e tropeçando atrás do grandalhão curvado. Ele era grande demais para o corredor e achava muito cansativo passar por ali. Por fim empurrou-a para dentro de um quarto ornamentado e empertigou-se inteiro de novo.
— Mande sua cachorra ficar quieta ou, estou avisando, eu faço com que ela se cale.
Molly pegou Petula nos braços e apertou-a com força.
O quarto sem janelas tinha um teto alto, em formato de cúpula. Nas traves do alto estavam pendurados lampiões de vidro e duas grandes camas suspensas. As camas eram de madeira e esculpidas com padrões exóticos. As pesadas correntes de prata que as seguravam tinham elos em forma de elefantes e cavalos. Havia baús e caixas de prata encostados nas paredes e mais acima prateleiras cheias de almofadas de seda e macios cobertores coloridos. O chão era coberto por um tapete estampado e as paredes eram decoradas com grossos elos de prata, do tamanho de pulseiras. O marajá ergueu Molly e Petula como se fossem brinquedos e largou-as numa das camas-balanço.
— Você vai esperar aqui — ordenou. — Agora vou mostrar o verdadeiro talento de viajante no tempo.
Dizendo isso ele saiu e trancou a pesada porta esculpida.
Molly estava deitada na cama coberta de brocados que balançava ligeiramente. Olhou para o teto decorado com centenas de espelhinhos. Podia ver múltiplas imagens de si mesma deitada. Cobriu os olhos com as mãos e, agora que estava sozinha com Petula, soltou um choro sofrido. Enrolou-se numa bola e sentiu vontade de desaparecer. Petula se aninhou junto dela, cutucando-a com o nariz úmido, como se dissesse: “Não se preocupe, Molly, tudo vai ficar bem. Vou ajudar você, prometo.”
Molly estava apavorada e apreensiva demais até mesmo para acariciar Petula. Sabia, pelo modo como o marajá vinha se comportando, que o que ele realmente queria era amedrontá-la.
— Claro que ele vai poder me amedrontar — gemeu, meio para Petula e meio para as muitas Mollys refletidas no teto. — Eu não passo de Molly, e ele é um viajante no tempo hipnotizador, desalmado, cruel, fedorento, enorme, cara delagarto... — Não pôde continuar. Sabia que, se ficasse pensando no caráter do marajá e no que ele poderia ter planejado para ela, logo estaria apavorada demais para ao menos respirar.
Pensou em Rocky e em todas as pessoas que amava, e desejou de todo o coração estar com eles. Depois, exausta, caiu no sono.
Enquanto dormia, teve sonhos muito estranhos.
O primeiro se passava no orfanato Lar Vidadura, onde havia crescido. No sonho era um dia de verão mas ela, seu eu de dez anos, estava ajoelhada na sala da Srta. Viborípedes, no térreo. Estava no meio de uma punição horrível ordenada por Viborípedes. Molly tinha de afofar o tapete imundo com sua própria escova de cabelo, tentando fazer com que ele parecesse novo. De repente, no sonho, a janela foi escancarada e um aterrorizante homem alto e escamoso, com mantos esvoaçantes, que parecia ter saído de uma peça de teatro, enfiou a mão na sala e puxou-a de lá. O medo a atravessou como se, no sonho, o homem segurasse sua cabeça nas mãos enormes e a obrigasse a olhar em seus olhos. Ela estava hipnotizada. Então tudo ficou ligeiramente turvo. Cores dançavam ao seu redor.
O próximo sonho de Molly se passava antes disso, em sua vida. Tinha uns seis anos, e o sonho não era tão claro quanto o primeiro. Mais parecia uma lembrança distante. Estava sentada no jardim cheio de espinheiros do orfanato. No sonho Molly ficou de repente muito apavorada, porque, em vez de seu amigo Rocky, de seis anos, saindo do prédio com o frisbee que ele tinha prometido pegar, um gigante vestido como um personagem de contos de fadas se materializou. Apareceu no ar, como se por magia. A cachorrinha de Viborípedes, Petula, estava embaixo do braço dele. Molly gritou até que, de novo, o homem a encarou e o sonho se desfez em lampejos de cores.
As últimas partes do sonho eram muito confusas e muito distantes. Molly estava brincando com um trenzinho. Um homem grande pegou-a e todas as cores do arco-íris começaram a girar baixando sobre ela.
Enquanto se retorcia e se revirava no sono desconfortável, Molly soube quem o homem era. Era o marajá. Em seus sonhos ele a levava do Orfanato Lar Vidadura para bem longe. Eles viajavam numa máquina muito rápida, em forma de disco voador. E um Rocky de onze anos estava no sonho, além de Forest, o hippie. Os dois estavam hipnotizados.
Molly abriu os olhos e imaginou quanto tempo havia dormido. Petula estava roncando ao lado. Molly balançou a cabeça, esperando que aquele quarto e aquela realidade também fossem um sonho. Mas não eram. Sentia-se atolada. E então pensou nos sonhos. Curiosamente agora eles pareciam lembranças. Percebeu, com um horror que crescia lentamente, que as histórias reveladas em sua cabeça não eram fantasias. Eram lembranças verdadeiras. Lembranças que tinham acabado de ser postas ali pelo gigante.
E, em vez de irem se apagando, como acontece com os sonhos, essas lembranças se moviam e cresciam. Agora podia se lembrar de ter vindo a este palácio quando tinha dez anos. Molly pôs as mãos na cabeça e sacudiu-a. Estaria ficando maluca? O que estava acontecendo? Sua mente estava recriando o passado. Novas lembranças cresciam na cabeça a cada segundo! Era como se partes de sua vida quando tinha dez, seis e até mesmo três anos estivessem sendo revividas, de modo que estava tendo novas lembranças. Recordou de algo muito distante, de quando era absolutamente minúscula, de ter chegado a um grande castelo vermelho e ter sido obrigada a subir uma longa escadaria, e de uma garota grande e gentil com cabelos desgrenhados ajudando-a.
Molly também se lembrou de ter chegado a uma fortaleza vermelha quando tinha dez anos e de ajudar uma menina de três anos a subir a escada.
Lembrou-se de ter se perguntado, aos dez anos, quem era aquele homem enorme enquanto ele levava todo mundo por um corredor estreito demais para ele. Mas Molly não estava apenas se lembrando disso como uma menina de dez anos. Molly estava se lembrando de ter vindo pelo corredor como uma menina de seis anos e uma menina de três anos, também. Lembrava-se de ter pensado que o homem parecia um grande babuíno enfiando-se num pequeno buraco de coelho, e se lembrou de ter se sentido como um pequeno coelho sendo arrastado. Um coelho hipnotizado.
— MEXA-SE!
Molly olhou para cima. Podia ouvir o marajá enorme chegando. Ele estava voltando! E mais, ela sabia exatamente com quem ele estava voltando.
Encolheu-se e apertou os olhos. Estava com a respiração ofegante e aterrorizada, e gemeu. Não podia suportar. Isso era real, mas era mais apavorante do que qualquer pesadelo.
Então ouviu uma batida na porta.
— Boa tarde, Lommy — ressoou a voz cruel e deturpada do marajá. — Posso entrar? Tenho visitas para você.
Molly enterrou a cabeça nos braços para não ver. Não precisava olhar. Mesmo sem lembranças de ter entrado naquele quarto quando tinha seis ou três anos, suas lembranças de dez anos estavam frescas como botões de nenúfares. O marajá tinha aberto a porta. Molly na cama lembrou-se de como, aos dez anos e hipnotizada, havia imaginado quem seria o hippie hipnotizado com a cadelinha filhote embaixo do braço e por que Rocky estava segurando um bebê. Lembrou-se de ter olhado no quarto e visto uma garota numa cama de balanço com um cachorro igualzinho a Petula. A cadelinha até estava chupando uma pedra, como Petula gostava de fazer.
— Ah, então você ainda está aí! — riu o marajá com maldade. Petula sentou-se e gemeu. Inclinou a cabeça e farejou o ar, extremamente confusa. Três Mollys tinham entrado andando, e Rocky e Forest, que geralmente eram tão cheios de vida, estavam parados feito zumbis, um segurando um bebêe o outro um filhote de cachorro; um filhote que cheirava estranhamente como ela mesma!
Na cama, Molly cruzou os braços diante do rosto e espiou através de uma fenda para Rocky e Forest. Seriam eles mesmos? Estavam exatamente com as mesmas roupas que tinham usado naquela manhã fria na mansão Parque Briersville. Será que o marajá realmente conseguira viajar ao futuro, pegá-los e trazê-los para a índia de 1870? Por que não? Aquele imbecil do Zackya tinha trazido Molly para cá. Mas por que o marajá havia trazido Rocky e Forest? Para se mostrar, supôs Molly. Morria de medo de pensar nos planos horríveis que o gigante teria para eles. Odiou-o por ter mexido também com a vida dos amigos.
Recusou-se a levantar a cabeça. Sabia que, se fizesse isso, tudo ficaria muito mais complicado quando todo mundo a reconhecesse, e Molly teria o choque de ver as versões mais jovens de si mesma ao mesmo tempo em que teria as lembranças delas. E sentia que isso seria tão apavorante que poderia gritar ou desmaiar.
E não deveria reagir. Era exatamente isso que o gigante queria. Se gritasse, ele sentiria que havia ganhado — saberia que a impressionara. Não queria que ele a visse fraca. Precisava fingir que era dura como um guerreiro empedernido. Se pudesse enganá-lo fazendo-o pensar que ela era mais forte do que qualquer pessoa que ele já havia conhecido, talvez ganhasse mais tempo — mais tempo para pensar em como suplantá-lo, até mesmo destruí-lo.
Enquanto olhava pelo V de luz entre os braços fechados, soube que jamais tinha se sentido tão violenta com relação a alguém. E então o marajá fez uma coisa que piorou a situação. Bateu palmas.
Imediatamente sentimentos ferozes, apavorados, subiram através de Molly, colunas de tensão, enquanto o medo irrompia entre as Mollys mais novas no quarto. Enquanto o gigante as arrancava do transe a realidade da situação as golpeava. A mente de Molly estava cheia de lembranças horríveis.
A Molly de dez anos olhou ao redor, alarmada, e largou a escova de cabelo que estava segurando. Imaginou se estaria dormindo, mas apenas por uma fração de segundo. Seu medo era um medo totalmente desperto. Entendeu que, nas últimas horas, fora hipnotizada e agora tinha sido liberada. Também sabia que tinha viajado para trás no tempo. Mas como ou por que tudo isso estava acontecendo era um mistério completo. Olhou para Rocky, chocada ao ver que ele parecia mais velho.
— É você? — sussurrou ela.
A testa de Rocky estava franzida com pensamentos intensos enquanto olhava o bebê em seus braços.
— Sou — respondeu lentamente.
A Molly de dez anos olhou para a de seis, chorando ao lado, e para a de três que segurava sua mão.
— E essas crianças... Elas se parecem comigo... elas são eu, Rocky?
Rocky confirmou com a cabeça.
A de dez anos ficou gelada.
— Por quê? E como?
— Não sei. Este é Forest, e a garota na cama é uma versão mais velha de você. É uma Molly de onze anos.
Para Molly, na cama, essas lembranças eram tão nítidas e tão profundamente perturbadoras que sentiu cãibras convulsivas no estômago,
O gigante marajá examinou a cena com crueldade.
— Ha. Incrível, Molly, não é? — comentou secamente, envaidecendo-se. — Você entende como fiz isso?
Molly fechou os olhos. Sabia que precisava acalmar as emoções e ignorar aquelas lembranças e sentimentos recém-construídos que inundavam sua mente e seus músculos. Afastou os pensamentos para se concentrar na respiração. Inspirou e expirou devagar. Eu sou eu agora, pensou. Eu sou eu, e elas são meu passado. Elas estão aqui, mas eu sou eu agora. Sou a última Molly, a Molly mais completa. Sou eu. Elas são eu, mas eu estou no controle. Vivi mais tempo. Sou a mais velha. Eu estou no controle. A mente delas, que está criando minhas lembranças, está cheia de medo, mas não vou pirar de vez, não preciso ter medo porque entendo o que está acontecendo, por isso estou no controle. Elas não entendem, mas eu entendo. Eu estou no controle. Molly respirou fundo, soltando o ar lenta e deliberadamente, e focalizou o pensamento. Depois levantou o olhar.
Seu eu de dez anos reconheceu a Molly na cama e gritou. Mas Molly bloqueou os pensamentos que vinham de si mesma aos dez anos. Recusava-se a deixar que as lembranças a afetassem.
— Claro que entendo como você fez isso — disse ela empertigando-se, aparentemente inabalável como o mar num dia sem vento. — No momento em que seu assistente me acompanhou até aqui, naquela pequena viagem pelo tempo, eu já sabia que esse tipo de truque poderia ser feito. O que acha que eu sou? Idiota? Acho que jamais encontrou alguém com habilidades como as suas. Parece não notar que sou tão esperta quanto o senhor, Sr... Ah, vejo que não fomos apresentados formalmente. Que grosseria de sua parte! — Molly baixou uma cortina de ferro sobre suas lembranças, que estavam guinchando para serem ouvidas. Mas afastou da mente as lembranças de seus eus anteriores.
O marajá ficou chocado — e demonstrou isso. Seu espírito competitivo foi ferido. Ele considerava o truque das mentes paralelas que havia acabado de realizar como algo genial: insuperável. O mesmo truque havia transformado os maiores e mais poderosos marajás e suas princesas em zumbis trêmulos. Alguns ficaram loucos com a experiência. Todos foram reduzidos a sombras de seus eus anteriores. E ali estava uma criança de onze anos, absolutamente sem se impressionar, dizendo que poderia fazer isso também, sem se afetar com a experiência de se ver em várias formas mais jovens. Mal podia acreditar. Examinou o rosto de Molly. Será que ela estaria mentindo? Fingindo?
— Por que os seus eus mais jovens estão chorando de modo tão patético? Sua frieza não passa de fingimento — concluiu ele.
— Sr. Marajá, se não tem sequer a decência de se apresentar adequadamente, serei obrigada a chamá-lo de Sr. M. Respondendo à sua pergunta, elas estão perturbadas, claro, porque não entendem o que está acontecendo. Eu sou uma hipnotizadora completa. Elas não sabem nada sobre hipnotismo, sobre parar o mundo, viajar no tempo. O que você esperava? Eu sou uma pessoa diferente destas Mollys. Elas são eu antes de aprender o hipnotismo, antes de me endurecer. Você esquece que eu passei por muita coisa em Nova York e Los Angeles. Não faz idéia. Não tenho medo porque entendo. Elas têm medo porque não entendem. E mais, acho que você exagerou no glacê do bolo ao seqüestrar Petula quando era filhote.
Molly engoliu em seco. Suas mãos estavam ficando suadas, o que sempre era mau sinal. Nunca havia falado assim antes e achou que estava parecendo um personagem de um seriado de ficção científica se dirigindo a um alienígena. A Molly de dez anos olhava espantada para seu eu de onze. Aquela garota parecia muito forte e confiante. Não podia imaginar que um dia falaria de modo tão arrogante — fazia com que ela se lembrasse do modo como um general capturado falava num filme ao qual costumava assistir com Rocky.
Enquanto isso o marajá estava pasmo. E um novo pensamento havia posto a semente em sua cabeça e estava crescendo e penetrando em seus planos. Olhou para o bebê que o menino negro segurava. Até agora nunca desejara ter um herdeiro. Em parte porque não achava que precisasse. Seu objetivo era viajar à Bolha de Luz no início dos tempos e se rejuvenescer repetidamente. Poderia viver mil anos. Também nunca quisera um filho porque odiava a idéia de ter um herdeiro tão brilhante quanto ele. Mas ali estava um bebê que obviamente se transformaria numa criança-prodígio, um gênio do hipnotismo, com um caráter endurecido e sofisticado. Não precisava de herdeiro, mas talvez fosse bom ter uma companheira.
Até agora Zackya era tudo que ele possuía. Quando criança, o marajá tivera problemas. Possuía um desequilíbrio químico no cérebro que significava que freqüentemente perdia o controle. Era mal-humorado demais, grande demais e perigoso demais para ser o tipo de filho que seus pais quisessem mostrar. Na verdade eles o achavam embaraçoso. E assim, de modo cruel, desumano, trancaram-no. Ele vivera longe das vistas das pessoas, a não ser dos serviçais que lhe traziam comida, várias babás diferentes, tutores e Zackya.
A mãe e o pai tinham se afastado como se ele fosse doente. As pessoas o evitavam e com isso ele aprendeu a desprezar todo mundo. Mas este bebê era diferente. Tinha um potencial gigantosco. Ele poderia moldá-lo a partir de si mesmo e, quando ele crescesse, iria entendê-lo e amá-lo. Pela primeira vez em muito tempo o gigante sentiu-se caloroso com relação a outro ser humano. E imediatamente soube o que faria em seguida.
— Meu nome — disse educadamente — é Uarajá de Maqt... Marajá de Uaqt. — Nesse ponto a Molly de três anos começou a gritar incontrolavelmente. — Cala a boca! Estou fentando talar — gritou. E empurrou a menininha na direção da Molly que estava na cama. Molly se viu na situação mais estranha em que já estivera. Tinha de se pegar no colo.
Estava segurando a si mesma, e a menininha parou de chorar. E como se algum calor substituísse o medo, Molly teve uma lembrança de um sentimento, muitíssimo débil, de ser pequenina e estar aninhada no colo. Era ótimo. Seu carinho estava começando a fazer com que ela própria se sentisse melhor. Mal podia acreditar. Abraçou a Molly pequenina.
— Não se preocupe — sussurrou. —Não se preocupe mais.
Rocky ficou olhando incrédulo. Não notou as grandes
mãos de Uaqt se aproximando. Num átimo o Marajá pegou o bebê Molly e se afastou para o outro lado do quarto.
— Devolva! — gritou Rocky correndo para ele.
— Eu não tentaria tirá-la de mim — cuspiu Uaqt, as palavras saindo como tiros de metralhadora da boca. E levantou o pé para impedir que Rocky chegasse mais perto. — Se fizer isso, serei obrigado a largá-la em outra zona de tempo onde você nunca mais poderá vê-la. — Rocky parou imediatamente e a Molly de seis anos correu para Molly. Não entendia como fora transportada para ali, mas sabia que o melhor lugar no quarto era longe do gigante e ao lado da garota grande na cama. Mais ondas de calor e segurança inundaram a Molly mais velha enquanto segurava seus eus mais novos.
Rocky começou a falar devagar e deliberadamente.
— Por favor, me devolva ela, está bem? Devolva. Seria... muito... melhor...
— Ha! Você realmente acredita, garoto, que pode me hipnotizar usando sua voz patética? Ha!
Rocky ficou vermelho e com raiva.
— O que vai fazer com este bebê? — perguntou Forest, ligeiramente recuperado, entregando a cadelinha para a Molly de dez anos. Esta Molly examinou o homem cabeludo diante dela. Nunca havia encontrado um hippie.
— Quem é este bebê, afinal? — estava dizendo ele, com os óculos redondos escorregando pelo nariz. — E por que estamos aqui? Cara, seqüestrar pessoas e... tipo... levá-las para outras zonas de tempo gera carma ruim. Puxa, a gente gosta da nossa zona. Podemos ir para casa?
O marajá ignorou Forest. Bateu na cabeça do bebê com o dedo ossudo.
Molly não pôde suportar. Bastaria um escorregão, um apertão, e o gigante poderia matar o bebê que estava segurando. O bebê era ela. Se ele a matasse quando era bebê, Molly não poderia existir agora. Todas as Mollys do quarto deixariam de existir. Será que simplesmente virariam fumaça? O que aconteceria? Não queria descobrir. Precisava pegar-se de volta. Concentrou-se no cristal incolor e deu uma cambalhota mental, fazendo o mundo se imobilizar. Parou o mundo.
Mas, claro, o gigante era rápido no gatilho, rápido como um raio de luz. Sua habilidade era maior do que qualquer uma que ela já havia encontrado. Todo mundo no quarto ficou rígido como um pedaço de gelo, a não ser o marajá de Uaqt e o bebê adormecido em seus braços.
— PEGUEI você — disse ele numa voz cantarolada, girando a cabeça rapidamente para encarar Molly. Olhou-a hipnoticamente e ela resistiu ao olhar. Se a energia entre os olhos dos dois fosse visível, pareceria dois raios elétricos de luz — os verdes de Molly e os castanhos do marajá com uma mancha cor de sangue.
— Não se incomode em tentar me superar — disse Uaqt. — Sou invencível. Sempre alerta. Você não vai me pegar de guarda baixa. Nunca. Espero ataques de qualquer dicerão. Do seprente, do sapado e até do futuro. Por isso ando sempre com esta arma de fogo. — Ele bateu no coldre de couro no cinto que, até então, Molly havia suposto que era de uma faca. — Quem sabe quem, em algum lugar do futuro, vai querer voltar e acabar comigo? Pense só em como alguém poderia surgir do nada e me surpreender! Eles não percebem que estou sempre esperando. Espero ataques a cada momento de cada dia. E é por isso que estou sempre preparado. Portanto, Molly, você não tem a chínima mance. — Ao redor deles todo mundo estava imóvel como pedra. — Você derevia arranjar amigos mais talentosos. A tentativa daquele garoto de me hipnotizar foi inútil! Ele precisa de aulas de hipnose de voz.
O ar estava gelado. Molly se sentia apavorada e solitária ali sozinha com Uaqt, mas não demonstrou.
— Agora que seus amigos estão quietos vou lhe dizer o que farei. — Ele pôs o bebê adormecido numa almofada aos seus pés. O bebê ficou imóvel. Depois o marajá foi na direção de Molly. Empurrou-a contra a parede, passou a mão dela através de um dos aros de metal prateado e fechou-o com um estalo. Depois pegou uma chave, a chave das algemas, num gancho na parede junto à porta, e a enfiou no bolso. Pegou a Molly de dez anos que estava segurando Petulazinha, a de seis anos e a menininha Molly como se fossem manequins de loja e, optando por não colocar movimento em seus corpos imobilizados, colocou-os no corredor do lado de fora do quarto.
Levou Rocky congelado até a parede. Até mesmo Forest foi razoavelmente fácil de transportar, já que Uaqt era tão grande. Logo todos estavam algemados. Molly não demonstrou qualquer emoção, mas por dentro estava fervendo.
— O que vai fazer com o bebê e as outras Mollys? — exigiu saber. Uaqt a ignorou e pegou o bebê.
— AONDE VOCÊ VAI ME LEVAR? — gritou Molly.
— Ah, você? Bom, você vai ficar aqui, claro. — O marajá tremia de tanto rir.
— Meus OUTROS EUS — rosnou Molly furiosa.
— Ah... ah, sei. Vou ficar com elas, claro. Vou criar o bebê como se fosse meu. Este é o consolo para você, veja bem, Lommy. Pelo menos você vai sobreviver numa nova forma. Claro, à medida que os anos passarem, todos os seus outros eus vão perder as lembranças do orfanato. A Lommy Moon de três anos, aqui, será a primeira a perder todas as lembranças de que era uma criança órfã. Enquanto este bebê reviver sua vida aqui e quando chegar aos três anos de idade, sua vida nova substituirá os primeiros três anos que você teve antes, porque este bebê reviverá seu passado comigo, aqui. Por exemplo, a criança que eu criar não terá lembranças daquela mulher velha que notei passando roupa quando fui lá, nem da diretora do orfanato. — O gigante parou e fez uma careta azeda. — Claro, eu terei cinco Lommy Moons aqui, o que é provavelmente demais, portanto depois de ter aprendido algo sobre seu caráter com as crianças Mollys (talvez eu as teste um pouco), e depois de tê-las usado como babás, provavelmente vou matá-las. Mandarei uma víbora picar a menininha c, quando ela morrer, a de seis anos, a de dez, e você também, acredite ou não, morrerão igualmente. Porque se você morreu quando tinha três anos, não poderá estar viva hoje. Tenho certeza que entende. — Agora a voz do gigante baixou até um tom gentil, que era profundamente arrepiante porque ele não tinha sequer uma gota de gentileza em sua natureza venenosa. — Mas, Molly — ronronou ele —, lembre-se, existe um consolo. Você viverá de certa forma, porque deixarei este mebê Bolly viver, e assim sua vida será reformada. Meu bebê, que passarei a chamar de Uaqta, terá uma glida voriosa. Uma vida vivida em palácios, com tudo que ela desejar! — Uaqt fechou a porta e gritou do corredor: — Ela terá efelantes de estimação!
Molly descongelou o mundo.
Quando fez isso, Rocky e Forest voltaram a si, chocados porque tinham as mãos em algemas presas à parede.
— Cara, que baixo astral — gemeu Forest.
As crianças lá fora começaram a chorar ruidosamente. Depois ficaram quietas. Molly sentiu um entorpecimento e soube que as outras Mollys tinham sido hipnotizadas de novo.
Rocky fez força contra a algema no pulso.
— Ele vai voltar logo? — perguntou Forest. — Qual é o plano?
— Não sei — respondeu Molly. Em seguida explicou o que tinha acabado de acontecer.
— Eu queria ter hipnotizado ele — disse Rocky. — Ele estava alerta demais. Sabia o que eu estava fazendo assim que comecei. O problema da hipnose de voz é que a gente precisa ficar um minuto falando para a pessoa entrar em transe.
— Não se preocupe — disse Molly. — Eu também não consegui. Ele é bom, Rocky.
— E quanto tempo ele planeja deixar a gente pendurado aqui, como marionetes sem uso? — perguntou Forest. —Assim não posso fazer minha saudação ao sol.
— Forest — disse Rocky, sério — cai na real.
Molly se encolheu. Apenas alguns minutos tinham se passado e seu pulso já doía onde a algema de metal penetrava na pele. Petula farejou o joelho de Molly e gemeu como se dissesse que queria poder ajudar. Mas ao ver que não podia, voltou a se deitar embaixo da cama-balanço para chupar suas pedras.
Molly olhou Petula, querendo desesperadamente estar livre como ela.
— Sabe, ele é tão maluco que provavelmente vai deixar a gente aqui para morrer de sede!
— A não ser que a gente consiga arrancar essas coisas das paredes — disse Rocky. — Ficaríamos com pulseiras grandes e prateadas, mas pelo menos estaríamos livres.
— “Livres para voar”, adoro uma música que diz assim, cara. — Forest se virou e começou a puxar a algema, tentando soltá-la da parede.
— Precisamos de alguma coisa afiada para cavar a parede e arrancar essas coisas — disse Rocky olhando as almofadas em volta.
Molly olhou para Petula.
— As pedras de Petula! — gritou ela. — Aqui, Petula! Vamos ver o que você tem. — Petula veio trotando obedientemente.
— Larga! — disse Molly. E Petula soltou dois pedaços de vidro colorido aos pés de Molly. Eles tilintaram ao cair.
— Cara, você não devia chupar vidro, vai cortar a boca! — disse Forest. Molly demorou alguns segundos para perceber o que Petula estivera guardando.
— UAU! Petula! Onde você conseguiu isso? Nem posso acreditar!
— Vai dar um trabalho enorme — disse Rocky. — Elas nem são afiadas.
— Não vamos precisar raspar a parede! — Molly puxou as pedras para perto usando o tênis. — Rocky, olha! São cristais de viagem no tempo. Nem posso acreditar! Petula deve ter tirado da almofada lá fora. A almofada estava cheia de pedras. O Uaqt estava me mostrando como funciona a viagem no tempo, por isso mandou o empregado trazer um monte delas!
Petula estava muito satisfeita por deixar Molly tão feliz. Sentou-se balançando o rabo.
Rapidamente, porque sabia que o tempo era essencial, Molly explicou a Forest e Rocky como funcionava a viagem hipnótica no tempo e como tinha pegado o pavão.
— Então, se eu voltar no tempo, a algema no meu pulso vai simplesmente desaparecer.
— Mas Forest e eu continuaremos algemados.
— Não se eu pegar a chave no passado e voltar ao futuro para destrancar vocês.
— Uau, igualzinho ao pavão...
— É, só que, diferentemente do pavão, terei de levar a chave de volta no tempo e pendurar no gancho onde ela deve ficar. Senão estará sumida quando aquele velho tiranossauro precisar dela para nos trancar daquele jeito. Ela precisa ser colocada de volta, senão ele vai suspeitar.
— Você acha que consegue, Molly?
— Tenho de conseguir. — Molly tirou os tênis e as meias. Depois agarrou um cristal sob os dedos de cada pé. Respirou fundo e se concentrou.
— Vejo vocês depois — disse. Ouviram um pequeno BUM e ela desapareceu.
Molly foi redemoinhando para trás, por um frio vento do tempo, focalizando a mente no cristal verde sob o pé direito. Como estava no mesmo quarto, sem o céu mudando em cima, as cores em volta praticamente não mudavam. Tentou se lembrar da sensação de quando fora pegar o pavão. O que precisava agora era do instinto do tempo que havia funcionado. Sentiu-se passando pelo momento anterior — quando o marajá estivera provocando-a. O medo a abalou, ao pensar na arma dele. Mas sabia que não deveria pensar nisso porque, se pensasse, jamais receberia o instinto correto para parar. O quarto mudou de cor. Molly parou. A primeira coisa que notou foi que suas mãos estavam livres. O cômodo cheirava a mofo. As paredes eram cor de barro e totalmente sem enfeites. Molly se abaixou depressa e pegou os cristais sob os pés. Foi até a porta onde devia estar o gancho da chave. Em seguida se preparou para ir à frente no tempo. Lembrou-se de como Zackya tinha ficado de cara vermelha quando tentou parar na zona de tempo correta, e agora entendeu como ele se sentia. Decidiu relaxar. Talvez, se relaxasse profundamente, teria o instinto correto. Apertou a pedra vermelha.
Um redemoinho de cores levou-a para a frente no tempo. Parou de novo. O marajá estava no quarto! Estava de costas para ela, com todas as Mollys mais novas ao lado, olhando para a cama à frente. Rocky e Forest também estavam no quarto. Todos hipnotizados. Nenhum deles a viu. Ali, deitada na cama, estava seu eu de onze anos, com as mãos em cima da cabeça e do rosto. O marajá começou a dar um risinho mau e irovejante.
— Ah, então você ainda está aí! — disse ele à Molly sobre a cama, sem notar a de trás. Molly mal podia acreditar. listava visitando um momento que tinha acabado de viver! Recuou para fora do quarto, com o coração acelerado. Na metade da escada concentrou-se na pedra verde e imediatamente desapareceu com um pequeno BUM.
Estendeu sua antena invisível de viagem no tempo e tentou sentir o caminho. Queria uma viagem muito curta de volta no tempo. Parou e subiu correndo a escada em direção ao quarto. Desta vez o cômodo estava totalmente vazio, e ali, na parede, estava a chave. Correu para a frente e pegou-a.
Agora se concentrando na pedra verde, partiu voando para a frente de novo. Tentou sentir o caminho até o tempo de onde tinha vindo. Precisaria ser exata. Não queria chegar ao quarto enquanto o marajá ainda estivesse nele. Pensou levemente, apurando os sentidos, equilibrando o passado e o futuro, tentando chegar exatamente ao momento em que tinha deixado os amigos.
Então parou. E ali, à sua frente, estavam Rocky e Forest aprisionados nos elos de ferro. Correu até lá. Petula pulou para ela.
— Quanto tempo estive fora? — perguntou.
— Uns três minutos! — respondeu Rocky. — Mas você está diferente. Sua pele...
Molly soltou as algemas. Três minutos? Então tinha chegado três minutos depois de tê-los deixado. Queria pousar três segundos depois de tê-los deixado! Mas três minutos estava bastante bom. Melhor do que bom.
— O que quer dizer com estou diferente? Não, me diga daqui a um minuto. — Antes que perdesse a sensação da antena, Molly segurou a pedra verde e o mundo estava girando para trás de novo.
Disparou através de minutos e horas até o tempo que havia sentido antes. Abriu os olhos. Ali estava o gancho vazio na parede. Pendurou a chave e fechou os olhos. Será que conseguiria voltar exatamente ao momento certo, ao lado de Rocky e Forest?
Com um borrão de cor estava em movimento outra vez. Uma certa sensação em sua antena invisível a direcionou. Mas desta vez havia mais do que isso. Quanto mais perto Molly chegava do tempo em que estavam o marajá e seus eus mais novos, mais podia senti-los. Quando a sensação chegou ao auge, Molly soube que se encontrava no mesmo tempo da menina de seis anos, da de dez, da de três e do bebê Molly, como estivera antes. Como se fossem diferentes notas tocadas no mesmo instrumento de sensações, as quatro Mollys mais novas criavam uma harmonia intensa que reverberava nela. Molly também achou que conseguia sentir exatamente de onde ela própria tinha vindo. A combinação ajudou-a a saber quando parar.
Rocky e Forest ficaram surpresos ao vê-la. Ambos estavam sem algemas.
— Cara, é maneiro como você faz isso! Você... tipo... pintou do nada!
— Há quanto tempo eu abri suas algemas? — perguntou Molly, rapidamente calçando de novo as meias e os tênis.
— Há mais ou menos uma hora — disse Rocky. Ele parecia perturbado e preocupado, e muito aliviado por Molly estar de volta.
— Achamos que talvez você tivesse se perdido. Mas, Molly, tem outra coisa — disse Rocky. — Sua pele. Seu rosto começou a enrugar, ou sei lá o quê. Em alguns pontos está tão seco que é quase escamoso. Olhe! — Rocky levou Molly até a parede enfeitada com pequenas lascas de espelhos. Ela se encolheu horrorizada ao ver o próprio reflexo.
— Você provavelmente só precisa de tempo para beber um pouco d’água. — Forest espiou a bochecha de Molly e cutucou-a. — Ou talvez seja alguma doença de pele que esteja surgindo porque você está estressada.
— Ou talvez seja a viagem no tempo — sugeriu Molly, tocando a pele seca e com uma crosta, perto da orelha. Então um barulho no pátio lá fora interrompeu a conversa.
— Vamos cortar o papo de medicina e sair daqui — sugeriu Rocky.
O corredor cheio de jóias lá fora estava escuro e silencioso, a não ser pelos pios ocasionais de um pavão nos jardins do palácio. Eles se esgueiraram para fora e desceram a escada, parando para olhar à esquerda e à direita, sem saber direito aonde ir. Rocky foi até a outra extremidade do corredor e experimentou freneticamente a maçaneta. Ela se abriu e Petula passou correndo.
Viram-se numa sala cheirando a mofo, com lustres cobertos de cera pendurados no teto. À direita havia duas treliças de madeira, através das quais brilhavam milhares de pontos de luz. Uma porta com uma cortina pendurada ficava meio escondida à esquerda. Foram rapidamente na ponta dos pés, em direção a ela. Enquanto seus olhos se acostumavam, Molly pôde ver que o papel de parede com estampa de lótus era pontuado com cabeças de animais mortos. Cervos com galhadas magníficas, javalis com presas ferozes, leopardos rosnando rigidamente, e alinhadas no piso encostadas à parede
havia peles de tigres ainda com as cabeças. Um raio de sol caía sobre um daguerreótipo vitoriano mostrando uma equipe de caça. Na foto, o gigante Uaqt se inclinava orgulhoso sobre um elefante morto, com o rifle pendurado no ombro.
— Venham, vamos sair daqui — disse Molly.
Como se em resposta, um grunhido veio do canto da sala, fazendo todo mundo pular. Viraram-se para ver que animal horrível poderia estar ali.
Mas não era um animal. Sentado de pernas cruzadas no chão estava um homem magro com roupa que ia até a altura dos joelhos: uma blusa creme com pregas na bainha e calças justas cor de laranja. Usava um xale de pêlo de cabra do Tibete e um turbante desbotado com listas verdes e douradas. Uma cansada pluma preta se apoiava debilmente na seda.
O estranho é que bem acima da cabeça do homem havia um grande retrato de um príncipe indiano vestido exatamente com as mesmas roupas. Os dois tinham um broche verde, incrustado de pedras preciosas, no turbante. Ambos estavam cobertos de jóias preciosas. A diferença era que o homem vivo, que respirava, estava sujo e desalinhado. Sua barba preta e malcuidada descia farta até o peito e o bigode caía sobre o maxilar como algas pretas e peludas. Pelo olhar vítreo, Molly soube que ele estava hipnotizado, e quando seus olhos examinaram rapidamente a placa sob o retrato onde estava escrito Maraja da Fortaleza Vermelha.
Soube que ele era o verdadeiro dono do palácio onde se encontravam.
— Não pare — disse Rocky, esperando perto da porta com cortina. — Temos de sair daqui, Molly.
— Mas este homem é o verdadeiro marajá! — Molly se curvou para o sujeito que parecia um zumbi. — Olá, pode me ouvir? — Petula farejou os pés dele calçados com sapatos de sola de seda. — É medonho. Parece que derramou cem pratos de curry na camisa.
— Depressa, Molly, vem alguém aí.
O marajá no chão grunhiu.
— Ah, eu gostaria de poder tirá-lo do transe — disse Molly pedindo desculpas —, mas ele deve estar preso com algum tipo de tranca para parar no tempo ou de viagem no tempo, com senha. E acho que não sei qual ela é.
— Aí, gatinha, é melhor ir andando — disse Forest sacudindo-se como se tivesse uma cobra dentro da camisa. — Tô sentindo um barato... tipo que tem gente chegando logo, logo.
Sons no corredor ecoaram seu alerta. Portas de cobre bateram em paredes ao serem abertas bruscamente. Num instante a fuga deles seria descoberta. Não havia o que fazer, além de deixar o marajá hipnotizado. Molly saltou de pé e acompanhou os amigos passando pela porta com cortina.
Agora estavam num corredor azul e branco. Este tinha seis portas nas paredes laterais.
— Para onde? — perguntou Molly freneticamente. — São tantas portas!
— A entrada principal deve estar à nossa esquerda — insistiu Rocky, abrindo uma.
Havia um grande jardim diante deles, com gramado verde e bordas cheias de flores. Dentro do prédio ouviram um grito. Era a voz enferrujada de Zackya.
— Dêem o alarme. Os prisioneiros escaparam!
Molly, Rocky e Forest correram pelo gramado, com Petula atrás. Podiam ver a entrada da fortaleza através de uma colunata no fim do jardim. Tambores soaram e pavões pousados nas árvores começaram a gritar.
Quatro guardas com turbantes emergiram de trás das colunas à frente e desembainharam as espadas.
Molly agarrou o cristal vermelho no bolso.
— Depressa, Forest, segure meu ombro. Rocky, segure Petula e ponha a mão no meu ombro também. Independentemente de qualquer coisa, não soltem
— Depressa, cara! — insistiu Forest, pulando de um pé para o outro, começando a rir histericamente. — Aqueles caras estão vindo e não parecem que vão convidar a gente pra dançar.
— Forest, cala a boca, tá? — implorou Molly. — Tente ficar frio. Nunca decolei com gente antes, portanto, se quer sair daqui vivo, fique quieto um minuto.
Nesse momento a porta do corredor branco e azul se escancarou e Zackya saiu.
Mudando subitamente de decisão, Molly procurou o cristal incolor pendurado em seu pescoço e, com uma manobra rápida, congelou o mundo.
Zackya sentiu o momento e resistiu ao congelamento. Num segundo os dois estavam parados numa paisagem imóvel. Os soldados pareciam brinquedos gigantes, rígidos e imóveis. As expressões de Forest e Rocky estavam fixas, cheias de pânico. O grito dos pavões cessou e o silêncio reinou.
Zackya evitou os olhos de Molly. Ela escondeu dele o cristal vermelho. Percebeu que ele não fazia idéia de que ela estava com alguns cristais de viagem no tempo. Também viu que ele se sentia nervoso diante dos poderes hipnóticos dela.
— Você não pode fugir de mim — disse ele.
— Mas posso atrasá-lo, Zackya.
— Ah, é? E por quanto tempo? Parar o tempo é cansativo, mesmo para um hipnotizador experiente como eu. Portanto, você não vai demorar muito até despencar por causa do frio. — Ele chutou uma pedra que ricocheteou na direção de Molly. Ela deu de ombros. Não discordava, mesmo que Zackya tivesse avaliado muitíssimo mal sua capacidade. Em vez disso mentiu:
— Realmente estou me sentindo cansada e com frio. Mas prefiro desmaiar a ceder a você.
Zackya riu e chutou outra pedra. Por dentro ele sentia-se mal. Não queria uma competição para ver quem poderia suportar por mais tempo o mundo frio e imóvel — já podia sentir o joelho reumático doendo. E não queria tentar hipnotizar Molly.
— Qual é a senha para libertar o marajá hipnotizado? — perguntou Molly.
Zackya balançou a cabeça. Realmente não estava gostando daquilo. Imaginou o que faria Molly ceder e parar com o congelamento. Então teve uma idéia.
— Não conheço a senha, mas faço um trato com você. Se você descongelar o mundo, eu digo uma coisa sobre o marajá hipnotizado.
Molly fingiu parecer insegura.
— Por que eu concordaria com isso?
— Porque você acabará tendo de ceder, Srta. Moon. Deste modo, pelo menos, quando for aprisionada outra vez terá algo novo em que pensar.
Molly fez uma careta de desagrado e depois assentiu.
E assim Zackya, extremamente satisfeito por ter apanhado Molly, e muito aliviado por não precisar contar a Uaqt que a havia perdido, começou a abrir o bico sobre o homem solitário que estava lá dentro. Mas seu primeiro impulso foi deixar claro as coisas a seu próprio respeito.
— Antes de começar, quero explicar meu relacionamento com Uaqt. Você pode pensar que Uaqt me odeia. Ele pode me chamar de cachorro e cuspir em mim, mas você deve entender que eu sou a coisa mais parecida com um amigo que ele já teve. E ainda que eu já tenha sido um intocável da casta mais baixa, pelo menos nunca fui um pária como ele. Veja bem, Srta. Moon, os régios pais de Uaqt optaram por afastá-lo e trancá-lo como se fosse louco. — Zackya apontou para a construção atrás dele. — Aquele homem lá dentro é o irmão mais novo de Uaqt. Quando era menino viveu como um príncipe, enquanto o irmão mais velho, o gigante, era deixado apodrecendo. — O rosto de Zackya exibiu uma ternura estranha, depois sua boca se retorceu como se tivesse comido alguma coisa amarga. — O pai e a mãe de Uaqt achavam que, se trancassem o filho monstruoso, poderiam fingir que ele e seus ataques de fúria não existiam. Em todos aqueles anos de infância que passei com ele, vi-o ser desprezado e vi seu ódio crescer. Ele teve cinqüenta e sete babás e um número ainda maior de tutores. Era um garoto impossível. Nenhum adulto conseguia enfrentá-lo.
— Onde Uaqt aprendeu sobre hipnotismo? — perguntou Molly. Zackya respondeu como se seus pensamentos estivessem longe.
— Ele encontrou um livro. O garoto vivia lendo. Então escapamos. Fomos à China onde ele aprendeu sobre a viagem no tempo com um velho guerreiro. Com o tempo voltamos. — Zackya fez uma pausa. — Dizem que a vingança é um prato que deve ser comido frio. Bem, quando voltamos, o passado estava frio, mas Uaqt nunca esqueceu como seus pais o haviam tratado. O ódio ainda queimava como fornalha dentro dele. Por isso hipnotizou o irmão e tomou todo o seu poder.
— E você? Odeia o irmão e os pais dele?
Os olhos de Zackya se estreitaram. Agora o mundo frio e imóvel o incomodava. A ponta do nariz estava entorpecida.
— Você está recebendo um pouquinho mais de explicações do que merece, Molly Moon. Acho que está na hora de honrar seu lado do trato e descongelar o mundo.
— Não, primeiro conte mais. Você odeia o irmão e os pais dele?
Zackya resmungou.
— Muito bem. Mais um pouquinho, então, Srta. Moon. Os pais dele estão mortos, mas ainda os odeio. Por causa do monstro que eles criaram, a cada dia vivo com medo de que Uaqt me hipnotize. E sou obrigado a ajudá-lo a conseguir seus preciosos cristais porque, como você pode ver, se não formos à Bolha do início dos tempos nossa pele vai cair do corpo. As viagens no tempo fazem a pele ficar escamosa. Claro, um dia Uaqt vai me recompensar com a liberdade. Mas até então eu terei viajado à Bolha de Luz. Minha pele estará reluzindo e jovem. E nessa época Uaqt será dono de todas as fortalezas e palácios da índia. Dará alguns para mim. Portanto serei jovem e poderoso. É isso que espero. — Zackya cuspiu no chão. — E agora, Moon, você deve deixar o mundo se mover.
Molly sentiu as mãos imóveis de Rocky e Forest em seus ombros. Verificou que Petula estava sob o braço de Rocky.
— Não gosto de quebrar promessas — disse a Zackya —, mas gosto de estar livre.
Com isso Molly se concentrou no cristal vermelho ao mesmo tempo que deixava o mundo descongelar.
Enquanto o ambiente ao redor voltava à ação, ela afundou a mente no cristal vermelho.
— Certo, vou ficar quieto — disse Forest.
Molly instigou os ventos do tempo a envolvê-los. Num segundo houve um BUM e eles estavam em movimento.
Zackya ficou boquiaberto. O sujeitinho correu até o lugar vazio onde Molly e os outros prisioneiros tinham estado e se ajoelhou para tocar a grama. Procurou seu aparelho prateado de viagem no tempo e os cristais, mas, enquanto olhava de volta para a Fortaleza Vermelha, sua mão hesitou no ar. Suor brotou na testa. O marajá tinha lhe dado instruções rígidas para ir imediatamente aos seus aposentos particulares. Uaqt queria fazer alguns testes com as Molly Moons mais jovens. Essa era a tarefa mais premente.
Decidiu que iria até o marajá, mantendo em segredo a fuga de Molly Moon. Depois de cumprir seus deveres usaria o instrumento para rastreá-los. Teria todos trancados de novo antes que alguém soubesse que eles ao menos haviam fugido.
— Então — disse Uaqt. — Vou deixar vocês saírem do transe por cerca de uma hora. Espero que fiquem satisfeitas.
A Molly de dez anos piscou para o enorme homem escamoso à sua frente e olhou o ajudante igualmente reptiliano que tinha acabado de chegar com um caderno e uma caneta. — Está atrasado, Yackza — disse o gigante. Molly tentou deduzir se estava sonhando. Será que havia realmente encontrado uma versão de si mesma com onze anos? Um Rocky mais velho? As menininhas ao seu lado estavam grudadas nela, escondendo os olhos na seda do estranho vestido novo que estava usando. Seriam as versões mais novas de si mesma? Tudo isso era impossível. Concluiu que devia estar sonhando. No entanto sentia-se totalmente acordada. Como se o momento fosse real. Olhou o cômodo ao redor. Era um cômodo lindo, com mármore colorido nas paredes e cadeiras douradas para sentar.
— Quem é o senhor? — perguntou. — E por que estamos aqui?
— O único motivo de estarem aqui é para me trosmar alguma coisa do que será o caráter deste bebê quando crescer.
A Molly de dez anos decidiu não discutir.
— Por que estamos vestindo essas roupas indianas?
O gigante ignorou a pergunta.
Molly balançou a cabeça. Sentia-se totalmente desorientada e confusa. Estaria louca? Talvez estivesse sentada no Lar Vidadura imaginando tudo isso. Talvez o gigante diante dela fosse uma Viborípedes distorcida, a diretora do orfanato.
— Esta é outra das suas punições, Srta. Viborípedes?
Diante disso o homem gigantesco soltou um riso demente.
— Aaaaaaaahhhhhh, que divertiiiiiiido — declarou. — Você é realmente um espetáculo, Srta. Moon.
Molly balançou a cabeça.
— Não fui eu que transbordei a banheira, Srta. Viborípedes. Isso não é justo. O que quer que esteja fazendo, por favor, pare.
— Transbordei a banheira! Transbordei a banheira! HA! Ha ha ha! — Uaqt uivava de tanto rir. — Deixe-me tirá-la de seu sofrimento. Não sou a Srta. Viborípedes. Ha! Sou o Marajá de Uaqt. Nascido em 1835. Com tendência a ter ataques de fúria. Alto, boreno e monito. Não acha? Fui engaiolado pelos meus pais durante quinze anos. Imagine só! Sou bem viajado, para dizer pouco. Europa, África, China, futuro, passado! Mas chega de falar de mim. Estamos aqui para analisar você. Agora vai me trosmar uma coisa a seu respeito. Queremos ver que tipo de talentos o mebê Bolly tem dentro dela. — Ele pôs as mãos nos quadris e assentiu para um criado junto à porta.
Seis homens entraram com vários equipamentos. Um deles pôs um ábaco chinês na lateral da sala, outros arrumaram uma mesa pequena e puseram um grande bloco de papel grosso, além de uma comprida caixa preta e alguns pincéis grandes.
O marajá sentou-se de pernas cruzadas junto à mesa e mandou que Molly fizesse o mesmo. Ela obedeceu nervosamente, decidindo que, se era um sonho, poderia muito bem continuar.
Uaqt pegou um pincel e abriu a caixa. Dentro havia um vidro com água e um bloco de tinta preta e seca.
— A arte da pintura chinesa — disse ele molhando o pincel e passando no bloco, para absorver tinta — é uma coisa que vem naturalmente às pessoas com talento artístico. — Com um floreio e movendo o pincel à esquerda e à direita, pintou a silhueta de uma cena — montanhas escarpadas e um céu tempestuoso com um pinheiro pontudo e um lobo no primeiro plano. — Sempre tive o talento bruto. Refinei-o com anos de treino na China. Agora é sua vez de mostrar seu talento.
A Molly de dez anos sentiu um nó na barriga. Odiava ser testada. Sabia que não tinha nenhum talento.
— Não sou boa em artes.
— Ah, pegue a porcaria do pincel — disse Uaqt.
Molly se inclinou à frente e começou trêmula uma pintura.
Tentou pintar uma montanha, mas só pareceu um calombo. Seu sol parecia uma bola de tênis e seu pinheiro era como uma árvore de Natal que uma criança pequena tivesse desenhado. Em vez de um lobo ela pintou um boneco com alguns traços tortos.
— Ah! — suspirou Uaqt enojado. — Vejo que o bebê não terá talento artístico. — Em seguida gritou: — ANOTE ISSO, YACKZA.
Em seguida passaram ao ábaco. Ali Uaqt testou as habilidades matemáticas da Molly de dez anos. Molly não era muito boa em somas, e como nunca tinha usado um ábaco a coisa ficou ainda pior. Mexeu desajeitadamente as contas.
— INÚTIL EM MATEMÁTICA! — berrou Uaqt. — Anote isso, Yackza.
E assim o teste continuou. Um tocador de citara foi trazido para tentar ensinar Molly a tocar o instrumento de cordas, mas ela mal conseguiu tocar uma nota corretamente. Uma dançarina indiana foi chamada para lhe dar uma aula. As tentativas de Molly para ser graciosa foram desastrosas e Uaqt a interrompeu.
— É INÚTIL! — exclamou.
Por fim bateu palmas e dois homens puseram um grande saco bordado cheio de cristais coloridos diante de Molly.
— Você sente alguma coisa por estes triscais? — perguntou o gigante. — Pode tocá-los, se quiser.
Sem fôlego, Molly pegou um cristal vermelho e cheio de cicatrizes.
— Muito bonito — disse, recolocando-o nervosamente no lugar.
— É só isso que sente por eles? — Molly deu de ombros, confirmando. — Anote, Yackza. Antes de aprender a hipnotizar, os triscais não significam nada para ela. — Depois perguntou: — Você já pensou alguma vez em viajar no tempo?
Molly franziu a testa para o homem e de repente sentiu um enorme antagonismo por ele. Quem era o sujeito para ficar interrogando-a assim? Com raiva, respondeu:
— Por que eu deveria lhe dizer o que pensei ou não pensei? Não conheço o senhor.
— Hmm. Enérgica e cautelosa. Pegou isso, Yackza? — Em seguida se virou para Molly. Curvou-se para ela, esperando a resposta. — Você pode ser braba, mas ainda quero saber: já pensou em viajar no tempo? — O homem estava tão perto que Molly podia ver os resíduos de maquiagem que ele usava para disfarçar a pele de morsa.
— Acho... — Molly revirou o cérebro procurando o que dizer. Não queria dizer que o sujeito era doido, não queria dizer como estava apavorada. Pegou-se pensando no amigo Rocky e desejando que ele estivesse perto. Queria dizer que, se ele estivesse ali, saberia o que falar. E então as palavras de uma canção que ele tinha feito surgiram na sua cabeça e, ecoando-as, a Molly de dez anos disse: — Acho... que não há tempo como o presente.
O gigante franziu os olhos e deu um risinho.
— HA! Poético. Pelo menos tem algum talento. Anote isso, Yackza. — Depois estalou os dedos e Molly foi hipnotizada. Uma lembrança da voz de Rocky ressoou suavemente em sua cabeça:
Não há tempo como o presente
Nem presente como o tempo
E a vida pode acabar num sopro do vento.
Não há presente como a amizade
Nem amor como o que sinto
Me dê seu amor para ser meu a todo momento.
A Molly de onze anos abriu os olhos para verificar se os outros continuavam com ela. Estavam viajando para a frente no tempo. Rocky à direita, de olhos fechados, enquanto os olhos de Forest se arregalavam de prazer e a boca se abria como um peixe dourado surpreso, olhando as cores em redemoinho. Os guardas de Zackya não pareciam estar perseguindo-os. Molly relaxou e imaginou o que deveriam fazer em seguida. Decidiu que seria bom parar um pouco em algum ponto do futuro, já que isso lhes daria tempo para formular um plano.
Deixou sua antena invisível orientá-la, e pelo que sentiu avaliou que deviam estar a uns cem anos no futuro. Então parou.
O sol tinha se movido no céu. Era uma manhã quente. As paredes da Fortaleza Vermelha lançavam sombras curtas. O jardim ao redor não era mais bem cuidado e povoado com pavões. Em vez disso estava seco, e bancos de parque marrons estavam posicionados ao longo das paredes. Uma pequena criança indiana, de macacão vermelho, que estava parada com os pais, apontou para Molly e os amigos e começou a gritar.
— Mamãe. Aquelas pessoas e o cachorro apareceram do nada. Maaammmããããe!
— Está bem, está bem — disse o pai enquanto se virava. Em seguida deu um tapinha carinhoso na cabeça do garoto e riu como se estivesse maravilhado com a imaginação do filho.
— E olha o diamante enorme dela, papai.
— Que maneiro! — disse Forest. — Da próxima vez a gente pode voltar ao passado e conhecer os antigos iogues da índia!
— Ainda não estamos livres — disse Molly retirando o cristal do pescoço e pondo no bolso. Rocky lhe entregou Petula. — Lembrem-se de que Zackya também viaja no tempo. E há uma coisa que eu não contei a vocês. Quando fui hipnotizada, ele me obrigou a engolir uma espécie de pílula roxa. Ainda está na minha barriga. Zackya tem uma máquina especial que pode localizar as pílulas, um instrumento de rastrear. Ele não é muito bom com o aparelho, mas não é totalmente inútil. Eu não ficaria surpresa se ele estivesse seguindo a gente agora mesmo. A máquina pode dizer a ele em que tempo nós estamos.
— Ela também mostra exatamente em que rua você está? — perguntou Rocky. Molly deu de ombros e afastou o cabelo dos olhos. Fazia um calor de rachar.
— Tem um monte de coisas que eu fiz naquela época — disse depressa. — Parei o mundo. Zackya me contou um monte de coisas sobre Uaqt e aquele homem hipnotizado. Ele 6 o irmão de Uaqt e, ah, tem outra coisa. A viagem no tempo faz a gente envelhecer!
— Uau, é a viagem no tempo que está deixando você enrugada.
— Não fale isso como se eu tivesse ganhado na loteria, Forest! — disse Molly. — Não quero ficar parecendo uma velha!
— Shh. — Rocky olhou a bochecha de Molly. — Tenho certeza de que não acontece tão depressa assim. Imagino que Zackya e Uaqt viajam no tempo há anos.
— Deram a volta na China — concordou Molly.
— Você só vai saltitar um pouquinho no tempo — disse Rocky cheio de otimismo — para que a coisa não piore. No momento está só perto da orelha e não aparece muito.
Molly espiou a Fortaleza Vermelha. Agora era um ponto turístico local, com barracas do lado de fora dos portões, vendendo balões, postais, suvenires, bebidas, batasba — algodão-doce, nozes e doces. Ela estava um pouco em dúvida quanto ao que fazer em seguida. Mas sabia que pelo menos deveriam se afastar da fortaleza.
— Daqui a pouco conto mais do que o Zackya me disse. Primeiro vamos sair daqui.
E assim eles seguiram em frente. No acostamento da estrada duas vacas cuidavam da própria vida.
— As vacas têm liberdade de andar soltas por aqui — observou Forest enquanto Molly e Rocky o guiavam rapidamente para longe dos portões, passando pelos curvos táxis Ambassador brancos que esperavam passageiros. — Os indianos hindus consideram as vacas sagradas. Os donos deixam que elas andem por aí e trazem comida. Todo mundo adora as vacas. Em geral elas não são comidas por aqui.
— A melhor coisa que podemos fazer é nos misturarmos à multidão — disse Rocky, ignorando Forest e puxando a manga de Molly. Vamos ficar perto das lojas. Quanto mais gente em volta, mais seguros estaremos.
Passaram por um arco onde uma placa anunciava: “Chandni Chowk. Velha Déli”. Ali a multidão era mais densa e as ruas largas eram movimentadas como o interior de uma colméia. Havia montes de riquixás e hordas de carroças puxadas por homens fortes. Essas carroças tinham pilhas de coisas para vender — lenha, latas d’água ou ferro velho.
As pessoas olhavam para Molly e Rocky com suas roupas ocidentais. Mesmo sendo a índia moderna (Molly não tinha certeza de qual ano), as roupas que as pessoas usavam ali na Velha Déli eram qualquer coisa, menos modernas. Alguns homens usavam lungis — shorts largos, enrolados, feitos com um único pedaço de pano, alguns usavam calças e camisas simples. Outros tinham sarongues compridos. Todas as mulheres usavam sáris ou salivar kameez — uma túnica comprida com calça por baixo. Um homem pedalava um riquixá levando três crianças com uniformes mal cortados, tocando seu sino enquanto passava. Os jovens passageiros apontaram para Petula, depois riram de Forest.
— Isso está me deixando realmente nervosa — gemeu Molly. — Se Zackya nos perseguir até esta época, vai poder nos rastrear facilmente porque estamos chamando muita atenção.
Nesse momento ouviram um berro na rua atrás deles, um berro seguido por outros gritos e um mugido baixo.
— Depressa! — gritou Forest. Em seguida empurrou Molly e Rocky para trás até se encostarem na parede de uma loja coberta de panelas. Diante deles a multidão se afastou correndo do centro da rua onde os ruídos se multiplicavam e iam ficando mais altos.
— É Uaqt? — perguntou Molly a Forest. — Não deveríamos correr? Ainda estou com aquela pílula roxa dentro da barriga. Ele vai rastrear a gente até aqui.
— Não é Uaqt. Suba naquela laje. Olhe!
Molly e Rocky subiram, agarrando Petula. Diante deles havia um mar de cabeças e, como água se dividindo magicamente, a multidão fez uma clareira comprida. Seis vacas pretas corriam por essa abertura, causando tumulto. Já haviam derrubado dois riquixás e uma barraca de frutas. Parecia um estouro de boiada, mas não por maldade; elas estavam com medo — alguma coisa mais adiante na rua as havia amedrontado. Homens tentavam acalmá-las. Um deles conseguiu jogar um pano na frente da líderque mugia, afastando-a para um beco. As outras foram atrás. E, tão rapidamente quanto fora alterado, o ritmo da rua movimentada e suja retornou ao normal.
— Cara, olhem o que é a índia! — exclamou Forest. — Vocês nunca veriam algo assim numa cidade americana ou européia. Um estouro de boiada num bairro comercial! Isso é que é ação. Adoro essas vacas sagradas.
Zackya estava parado na entrada de Chandni Chowk. Tinha recebido permissão para deixar o marajá, por isso agora estava decidido a pegar Molly Moon. Precisava prender os fugitivos antes de Uaqt perceber que eles haviam sumido, mas estava tendo problemas. Os guardas hipnotizados que tinha trazido da década de 1870 já haviam causado problema. As espadas e as roupas antigas haviam amedrontado alguns turistas. Duas mulheres gritaram, assustando um grupo de vacas que, por sua vez, desembestaram pelas movimentadas ruas comerciais. Agora uma velha indiana corajosa estava lhe dando uma bronca, com as mãos nos quadris, e isso tornava impossível ler o aparelho de rastreamento.
— Vocês deveriam ter vergonha de perturbar as vacas sagradas desse jeito — censurou ela, falando em hindi. — Olhe só o problema que você e seu bando causaram. Olhe a multidão. Pessoas poderiam se machucar. — Enquanto ela balançava o dedo, Zackya ergueu os olhos. Deu-lhe um tenebroso olhar hipnótico.
— Uappliglupglup glaap — disse a mulher, ainda balançando o dedo, e ficou quieta.
Zackya se virou e se concentrou na caixa prateada. Ela estava se recusando a funcionar direito. Mostrava que a garota, Molly, estava neste tempo, mas quando perguntava em que direção ela seria encontrada, o instrumento apenas piscava para ele. Desligou-o e chamou os guardas.
Os becos frescos de Chandni Chowk eram muito mais tranqüilos do que as ruas. Forest conduziu Molly e Rocky por um beco com largura suficiente só para um riquixá passar de cada vez. Em volta deles, paredes descascando de antigos prédios de três andares e, no alto, fios elétricos pretos se embolavam como macarrão. Eles pareciam ecoar os sentimentos de Molly, que estava muito confusa e sem saber o que fazer.
— Será que não deveríamos voltar agora? — sugeriu.
— O quê, com estas roupas? — disse Rocky. — Vamos nos destacar como se fôssemos alienígenas. Antes de voltar ao tempo de Uaqt precisamos arranjar umas roupas indianas.
Olharam pelo beco. De cada lado, qualquer espaço disponível era uma loja estreita. Molly nunca tinha visto lojas tão estreitas. Quase todas tinham apenas o tamanho para uma pessoa ficar sentada com as pernas para fora. Algumas eram mais largas, com lindos pisos de tecido almofadado. Todos os vendedores tiravam os sapatos antes de entrar.
— Isso é bem sensato — disse Forest sorrindo. — Não é preciso limpar o chão. Ei, a índia não é um barato?
— Você acha que vamos achar uma loja de roupas? — perguntou Molly enquanto passavam por uma que vendia bijuterias e echarpes vermelhas e douradas.
— Claro, é só continuar andando e pode apostar que vamos encontrar.
E assim continuaram pelo beco. Petula permanecia perto de Molly. Enquanto andavam, ela contou aos outros o que tinha sabido sobre o passado de Uaqt.
— Sujeito infeliz — disse Forest.
— Maluco, é o que você quer dizer — respondeu Rocky. Então parou. — Uau, o que é isso? Tem cheiro de açúcar e rosquinhas doces! — Molly continuou andando nervosa, mas Rocky parou numa padaria onde havia bandejas de doces sob filó branco.
Ao lado dos biscoitos havia um grande pote prateado com um líquido branco leitoso. No centro do pote flutuava um pote mais fino, com gelo dentro, mantendo fria a substância leitosa ao redor. Na outra ponta do balcão havia um pequeno fogareiro a lenha com uma panela de cobre em cima. Um vendedor com blusa lilás olhou Rocky e sorriu.
— Não temos muita eletricidade aqui na Velha Déli — disse ele. — E é assim que mantemos os líquidos frios e frescos. E usamos o velho fogo a lenha para cozinhar. Já comeu doces indianos?
Rocky balançou a cabeça.
— O senhor fala inglês muito bem.
— Claro! — riu o vendedor. — Muitos indianos falam.
Rocky ficou olhando enquanto o homem pegava uma colherada de uma mistura pastosa e a enrolava em forma de bola. Em seguida jogou aquilo na panela com óleo quente. Depois o homem pescou a bola e largou numa tigela cheia de xarope, junto com umas quinze daquelas bolotas douradas.
— É o doce predileto dos meus fregueses. Chamam-se gulab jatnun. Aqui, prove.
Rocky balançou a cabeça.
— Não tenho dinheiro.
— Nem tudo na vida custa dinheiro!
O bolinho era delicioso e Rocky poderia ficar um tempo enorme provando as mercadorias do sujeito, mas Molly o empurrou.
— Obrigado — disse Rocky enquanto seguiam pelo beco. — Aquele homem foi bem gentil.
— O cara que faz macarrão, também — concordou Forest, ainda mastigando o que havia ganhado para provar. — Não estava delicioso, Petula?
— Mas precisamos correr — disse Molly. — Venham, vocês dois. Não estamos de férias. — Enquanto Rocky se agachava para amarrar o tênis, ela se aproximou de um careca atarracado que tinha uma loja de máscaras. — Com licença. Em que ano estamos? — Rostos de tigres, leões, pássaros e elefantes de papel machê a espiavam.
— É 1974, claro! — Ele deu um risinho. — Gostaria de experimentar uma máscara? — O sujeito estendeu um espelho na frente dela. Molly olhou-o e viu a pele escamosa da viagem no tempo, perto da orelha. Já ia desviar o olhar quando notou uma cicatriz de mais de dois centímetros no pescoço. Ficou boquiaberta, tocando-a e imaginando como e quando aquilo havia aparecido.
Nesse instante teve um pensamento. Se estavam em 1974 e Uaqt estava em 1870 com seus eus mais novos, então sua história em 1870 já havia acontecido. Sem dúvida ela agora deveria ter todas as lembranças do seu eu de dez anos em 1870 porque esse tempo já havia passado. Mas ainda assim ela não conseguia se lembrar do tempo em que tinha dez anos na índia. Não podia se lembrar de como tudo havia se passado — como havia terminado. Era como se as lembranças estivessem atrasadas, ainda viajando de 1870 até essa época moderna, e ainda não tivessem chegado. Será que essa cicatriz era do tempo que havia passado na índia em 1870?
O homem estendeu-lhe uma máscara de elefante.
— Quer experimentar?
— Não, obrigada.
De repente Molly se encheu de um medo cortante. Não gostava daquilo nem um pouco. Seus eus mais novos estavam presos no passado, com as lembranças escondidas dela, e agora havia essa misteriosa cicatriz cor-de-rosa em seu pescoço. Percebeu que precisava voltar imediatamente para a década de 1870 e encontrar Uaqt. Sabia que não poderia relaxar enquanto não tivesse salvado seus eus mais novos e derrotado Uaqt de algum modo.
Como conseguiria derrotar Uaqt? Era uma perspectiva aterrorizante. Seria pior do que prender um animal feroz e maligno. Um rosto de tigre, de papel machê, rosnava para ela, lembrando-lhe dos troféus de caça e da arma de Uaqt.
A resposta estava nos cristais, pensou. Se eles pudessem roubar de Uaqt todos os cristais de viagem no tempo e de parada do tempo, teriam uma chance. Sem os cristais Uaqt seria reduzido a um mero hipnotizador poderoso. Seria apenas um marajá com poder sobre centenas de guardas. Molly engoliu em seco e tocou a cicatriz.
— Ei, vocês dois — gritou. Os outros tinham se distraído de novo. Estavam olhando um homem numa oficina consertar alguma coisa com um maçarico. — Realmente acho que devemos voltar. — Molly tentou não parecer muito nervosa. — Agora — disse mais freneticamente, pegando Petula.
— Tudo bem — concordou Forest aproximando-se. Ele enxugou o suor da testa. — Eu curto aqueles ventos do tempo.
Molly achou um canto livre na lateral do beco e logo estavam disparando de novo através das décadas. Ela estendeu suas antenas invisíveis e tentou sentir quando estavam seus outros eus. Sentiu as vibrações deles e parou. Os ventos do tempo se imobilizaram.
Uma vaca sagrada estava bem ao lado deles. O bicho soltou um mugido. O ar estava mais fresco do que antes, mas . linda era quente. Molly havia chegado exatamente na mesma época em que estavam os seus eus anteriores. Por causa disso pôde captar as lembranças deles. Imediatamente se lembrou de quando tinha dez anos e foi testada por Uaqt. Encolheu-se e contou aos outros como ele a fizera pintar, usar um ábaco, dançar e tocar citara.
— Uaqt está viajando numa de diretor de escola! — disse 1’orest.
Molly olhou para um lado e outro do beco. Todo o macarrão de fios elétricos havia sumido, mas as lojas eram aproximadamente do mesmo tamanho e os cheiros também eram parecidos. Até a loja de máscaras estava ali. Molly percebeu que o homem parado dentro dela, pintando uma máscara de leopardo, devia ser o tataravô do homenzinho atarracado com quem tinha falado na índia moderna. Decidiu verificar em que época estavam e, juntando as mãos, baixou a cabeça ligeiramente.
— Namaskar — disse ele.
Molly presumiu que este fosse um modo de dizer olá. Fez exatamente o mesmo.
— Namaskar. — Depois acrescentou: — Com licença, em que ano estamos?
Zackya parou impaciente no meio da rua. O pequeno aparelho de rastreamento escondido em suas roupas soltou um bip. Irritado, enfiou a mão no bolso para pegá-lo.
— Então você passou para outro tempo de novo, Moon — murmurou ele, lendo o mostrador. Olhou em volta procurando os guardas, indicando ao mais próximo que queria que se juntassem rapidamente. O quarto guarda estava perto de uma banca de jornais, fazendo perguntas ao vendedor. Zackya não tinha tempo a perder. Fez os três guardas hipnotizados ao lado ficarem numa posição de viagem no tempo. Eles fizeram isso, com as mãos nos ombros uns dos outros. E com um BUM Zackya tirou-os do ano de 1974 e voltou para 1870.
Não sentiu compaixão pelo guarda que havia deixado num tempo que não era dele. Esse guarda estava só um pouquinho hipnotizado, e em algumas semanas sairia do transe e acharia que ficou louco. Seria uma pessoa de 1870 presa na década de 1970. Ninguém acreditaria quando ele dissesse que era de uma época diferente. Zackya sabia disso, mas não se incomodou nem um pouco. Só queria pegar Molly Moon.
Molly repetiu a pergunta.
— Em que ano estamos, por favor?
O homem pensou.
— Três e meia. — Molly percebeu que não eram muitos os indianos que falavam sua língua em 1870, se é que estavam em 1870. — Obrigada — disse e, fazendo uma reverência, se despediu do homem.
— Ei, você tem talento, Molly — disse Forest.
— Eu fiz a coisa certa?
— Fez. “Namaskar” significa “Oi... Respeito... “, esse tipo de coisa. Meu professor de ioga costumava falar isso.
Molly pôs a mão no pescoço. A cicatriz continuava lá. Sentiu-se muito confusa.
Nesse momento sentiu o bolso direito de sua calça jeans se mexer. O bolso em que ela estava guardando o cristal vermelho e o incolor. Bateu neles, mas era tarde demais. Molly se virou e viu um garoto de sua idade, com uma túnica marrom, velha e manchada de tintura vermelha, correndo pelo beco.
— NÃO! — gritou ela. — Aquele garoto acabou de roubar os cristais!
Rocky saiu correndo como um foguete decolando. Adiante ouviu os passos do ladrão na rua calçada de pedras. Seus tênis faziam barulho no chão, levantando poeira quando ele derrapou na esquina. Sua costela começou a doer pelo esforço da corrida. Mas ignorou a pontada, porque quanto mais corria mais percebia como os cristais eram vitais para todos eles. O cristal vermelho era a passagem para o século XXI. Simplesmente precisava pegá-lo de volta. E então os passos do garoto pararam.
Ofegante e desesperado, Rocky chegou a uma encruzilhada de becos onde crescia uma figueira-de-Bengala. Tentou pensar em que direção iria, se fosse o garoto. Um dos becos tinha três vacas pretas fechando o caminho, com moscas voando ao redor. O segundo beco era o ponto de descanso de pequenos macacos magricelas que comiam um pedaço de pão. O último beco levava ao que parecia um lugar cheio de lojas. Rocky partiu nessa direção. Mas depois de alguns instantespercebeu que os passos do ladrãozinho tinham parado. Num instinto, ergueu os olhos.
Quando fez isso, Molly, Petula e Forest o acompanharam. Rocky ficou parado com as mãos nos quadris, os pulmões arfando, olhando para cima.
— Você está bem, Rocky? — perguntou Molly. Esperava que ele não fosse ter um dos seus ataques de asma.
Rocky assentiu.
— O que vocês vão fazer comigo? — perguntou uma voz macia vinda do alto. O moleque de rosto moreno subiu mais um pouco na figueira. Petula soltou um latido.
— Nada — chiou Rocky. — Só queremos as pedras vermelha e incolor de volta. — E começou a falar lentamente, porque se pudesse mandar sua voz hipnótica para o ladrãozinho por tempo suficiente, poderia convencê-lo a descer. — Por... que... você não traz... as... pedras... para... baixo...
O garoto o interrompeu:
— Está falando das pedras preciosas?
— Os cristais. — Molly afastou o cabelo dos olhos. Notou que o garoto não parava de subir pelo galho, na verdade estava na altura das janelas do prédio mais próximo. Não havia tempo para tentar hipnotizá-lo com a voz de Rocky ou mesmo com os seus olhos. Ele estava se afastando depressa demais e se recusava a fazer contato visual. — Você fala nossa língua muito bem — disse ela, tentando fazer com que ele parasse de subir.
O ladrão olhou para baixo desconfiado, imaginando por que a pessoa de quem tinha acabado de roubar estaria elogiando-o.
— Talvez eu fale. Por quê?
Molly percebeu que a única opção que restava era o suborno.
— Se você devolver esses cristais, vai ganhar muito mais do que se fugir com eles. Com o cristal vermelho eu posso levar você a outro tempo, ao futuro, se você quiser. Que tal?
O garoto franziu a testa e olhou para eles. Era a mentira mais ridícula que já ouvira.
Rocky interveio:
— Molly está dizendo a verdade. Molly pode viajar no tempo porque é uma tremenda hipnotizadora. E com o cristal incolor ela pode parar o tempo. Sério. Eu e o Forest aqui não sabemos fazer com que eles funcionem. Realmente precisamos do cristal vermelho de volta, porque somos do futuro.
O garoto na árvore olhou o grupo estranho embaixo, com o cachorro esquisito, e começou a rir.
— Bem, já ouvi muita mentira, mas nunca uma tão doida.
Forest começou a rir também.
— Forest, isso não tem graça nenhuma — disse Molly. — Se não conseguirmos os cristais de volta, vamos nos dar...
— Tudo bem — disse Forest, e enfiou a mão no bolso do paletó. Pegando um pequeno objeto preto, disse: — Já viu um desses?
Ele apertou um botão e um gravador em sua mão começou a tocar uma música americana, cheia de swing.
“É o Colecionador! Ele vai roubar seu coração e sua alma... Uuuuu aaahhh”, cantou o astro pop Billy Bob Bimble. O garoto lá na árvore quase despencou de pavor.
Nesse momento ouviram um grito baixo. Todos se viraram e viram um policial de uniforme marrom indo na direção deles. Estava segurando um cassetete. O garoto na árvore começou a subir pelo galho até a janela no alto. Deu um salto rápido, mas a túnica prendeu num galho grosso e ele perdeu o equilíbrio, caindo no galho abaixo. Molly ofegou. Agora o policial estava ao lado dela, berrando para o garoto.
— Eu já disse que ia te pegar — gritou ele em hindi. — Esta noite você vai dormir numa cela, seu ladrão desgraçado.
— Pega leve com o garoto, cara — disse Forest, mas o policial baixo e musculoso o ignorou e continuou sacudindo o cassetete e gritando.
Molly sabia que esse barulho logo atrairia atenção, por isso invocou o quente sentimento de fusão e imediatamente seu corpo zumbiu com o calor familiar do hipnotismo. Bateu no ombro do policial. Ele a olhou irritado e instantaneamente caiu presa dos seus poderes. Ficou hipnotizado — silencioso como as vacas que ruminavam mais adiante no beco. Como não falava hindi, Molly apertou os dedos contra os lábios.
— Shh.
O garoto em cima da árvore se pendurou num galho, fascinado pelo que Molly acabara de fazer. Então ela se dirigiu a ele:
— Vou precisar da sua ajuda. Não sei falar a língua deste homem e preciso que você lhe dê algumas instruções hipnóticas.
— Isso é um truque, não é? — disse o garoto. — Você está do lado dele. Mande ele fazer uma coisa idiota, que não faria normalmente. Aí eu acredito.
— Eu já falei, você precisa dizer a ele o que fazer. Não sei falar sua língua.
Um brilho malicioso relampejou nos olhos do garotos.
— Está bem.
Molly deu um tapinha no ombro do sujeito. Em seguida pôs a mão no ouvido e apontou para cima da árvore, indicando que ele deveria escutar o garoto.
— Tire a calça — disse o menino em hindi, de modo que só o policial pudesse entendê-lo. O homem assentiu e imediatamente começou a desabotoar a calça. Logo ela estava caída até a metade das pernas, revelando a cueca laranja. O garoto soltou uma gargalhada, mas então outro olhar de suspeita atravessou seu rosto.
— Grite como um filhote de elefante! — ordenou de novo em hindi.
— Uaaaaauurraaarr! — trombeteou o policial.
O garoto sorriu.
— Pule que nem um corvo!
Agora o homem estava pulando com a calça nos tornozelos. Molly teve de admitir que era engraçado. Olhou para Rocky e tentou não rir.
— Cara, dá um tempo — disse Forest. — Não humilhe o sujeito. E se alguém o vir? A qualquer minuto ele vai tropeçar na calça.
O garoto desceu lentamente da árvore, os olhos cheios de prazer.
— Pode vestir a calça e parar de pular — disse ao policial. Imediatamente o homem ficou imóvel e puxou a calça para cima.
O garoto olhou para o bolso de Forest.
— O que era aquela máquina que canta? — perguntou, agora no chão.
Molly olhou para ele. O garoto tinha olhos verdes como os seus, só que ficavam num belo rosto moreno, de modo que brilhavam ainda mais, e o nariz era reto e atraente, diferente do seu nariz de batata. Ele usava uma túnica rasgada, coberta de tinta, que revelava um peito magro e costelas que pareciam uma escada. Ela se perguntou por que ele era obrigado a roubar coisas das pessoas nas ruas.
— Chama-se gravador portátil — explicou Forest, oferecendo-o. — Na verdade é bem comum no século XXI.
O garoto olhou a camiseta de Molly e os jeans de Rocky.
— Então vocês estão dizendo que são do futuro?
Ele estreitou os olhos e os espiou de lado, como se pensasse de novo se aquilo era um truque. O policial arrotou.
— Não acredito que vocês sejam do futuro. — Ele fez uma pausa. — Mas acredito que você é hipnotizadora.
— Diga ao policial que de agora em diante ele vai pensar que você é uma pessoa boa, que cumpre a lei — sugeriu Molly.
As sobrancelhas do garoto se arquearam.
— Está bem. — E de novo falou em hindi: — De agora em diante você vai pensar que eu sou bom e vai dizer aos outros policiais que sou a melhor criança em Déli. Também vai me dar algumas rúpias sempre que me encontrar. Agora pode ir.
O policial assentiu e fez uma reverência. Depois se levantou, enfiou a mão no bolso e deu ao garoto um punhado de moedas. O garoto olhou o dinheiro na palma da mão.
— Que coisa, você é mesmo hipnotizadora! — E, como se as moedas em sua mão fossem a chave para a confiança, disse: —Vocês são mesmo do futuro?
— Somos — respondeu Molly. O policial se afastou.
— E vão me levar para o seu tempo? — O garoto ainda não tinha certeza se acreditava que isso era possível, mas via que uma amizade com aquelas pessoas provavelmente lhe seria útil.
— Vou levar você numa viagem, sim, depois vou colocá-lo de volta aqui. Mas não posso fazer isso sem os cristais. — Molly estendeu a mão, instigando. —Já se perguntou como o mundo será daqui a cem anos?
O garoto hesitou. Depois pegou o gravador com Forest e estendeu o cristal incolor e o vermelho. Molly pegou-os, agradecida. Pôs o cristal vermelho no bolso e pendurou o incolor no pescoço.
— Não se preocupe — disse. — Eu não quebro minhas promessas.
Zackya rosnou para seu aparelho de rastreamento. Sabia que as leituras dizendo que estava exatamente no mesmo tempo de Molly eram corretas, mas o instrumento parecia sugerir que ela estava ao mesmo tempo a leste e a oeste dele.
— Instrumento estúpido do século vinte e cinco! — disse irritado, enfiando-o no bolso. — Vou pegá-la, Srta. Moon. Você não me escapa. Vou procurar em cada poço, em cada cesto de encantador de serpentes. Não vou dormir enquanto não tiver encontrado você.
O garoto mexeu no botão do gravador e sorriu. Depois olhou para os tênis de Molly e Rocky.
— Vocês do futuro calçam sapatos horríveis! — e gargalhou.
— Na verdade são tênis muito modernos — disse Molly —, mas acho que realmente parecem malucos.
— Você não corta os pés andando por aí descalço? — perguntou Rocky.
— Ah, não! As solas dos meus pés são duras como cascos de vaca. Venham, vocês devem estar com sede depois de tanto correr. Vou levá-los à barraca de chá da minha amiga.
Molly assentiu.
— Seria ótimo, mas estamos com um pouco de pressa. Na verdade estamos sendo perseguidos.
O garoto levantou as sobrancelhas.
— Foi sorte eu ter roubado seus preciosos cristais, porque agora vocês me conheceram. Posso ajudá-los. — Com um
sorriso maroto acrescentou: — Meus serviços não são caros. Vamos tomar um pouco de chai. No caminho podem me contar quem está atrás de vocês e quais são os seus planos.
E assim começou a amizade. Começaram a andar pelo labirinto de becos, através da luz empoeirada e manchada, penetrando cada vez mais fundo no coração de Chandni Chowk. Agora Petula estava mais tranqüila. Seu nervosismo tinha cedido à curiosidade e ela corria de um lado para o outro cheia de empolgação, decifrando cheiros. Esse lugar era diferente de tudo que ela já havia cheirado. Os odores eram complexos, ricos e contavam centenas de histórias.
O nome do garoto era Ojas, que, segundo ele, era hindu e significava “brilho”, “lustro” ou “claridade”. Para começar, queria chamar Rocky e Forest de “sahib”, e a Molly de “memsahib”, porque disse que esse era o modo educado de falar com pessoas de um nível superior ao dele. Mas Forest, Molly e Rocky não quiseram saber disso e insistiram que ele os chamasse pelos nomes. Enquanto caminhavam, Molly e Rocky ficaram sabendo mais sobre o “sistema de castas”.
— Ah, vocês não sabem? — Ojas riu. — Bem, vou contar. Ele existe no povo hindu desde os tempos antigos. E nos divide em níveis de importância. Uma pessoa nunca pode mudar a casta em que nasceu. O nível mais alto é o dos brâmanes ou sacerdotes, depois vêm os governadores e guerreiros. Abaixo deles ficam os agricultores e comerciantes, e por fim vêm os serviçais e trabalhadores braçais. Esta é a minha casta. Cada nível é dividido de novo, e a casta mais baixa de todas faz os serviços mais sujos, como limpar o esgoto. Não é muito legal. — Ojas fez uma careta. — Os mais baixos dos mais baixos são chamados de «intocáveis». — Ojas virou à esquerda passando por uma pilha de caixas. — Uma pessoa da casta mais elevada nem mesmo pisaria na sombra de um intocável, porque eles são considerados baixos demais. — Molly lembrou que Uaqt tinha dito que Zackya era um intocável antes de ser libertado.
— O sistema de castas vai enfraquecer no futuro — disse Forest enquanto se espremiam para passar por outra vaca sagrada.
— Ah, fico feliz com isso! — exclamou Ojas. — Agora venham atrás de mim, vamos atravessar esse prédio. É um atalho.
Ojas não tinha pais. Antes morava com o pai, que era um dos “mahouts”, ou guardiões de elefantes, do marajá, na Fortaleza Vermelha.
— Meu pai morreu por causa de um tumor venenoso no estômago — explicou Ojas.
— Isso é que é azar — disse Forest, enquanto seguiam o garoto por um corredor escuro cheio de roupas lavadas penduradas.
— É.
Todo mundo ficou quieto por um momento. Molly rompeu o silêncio.
— Seu pai falava com você em inglês?
— Falava. O marajá da Fortaleza Vermelha era um homem bom, que gostava de educar os empregados. Não importava de que casta eles viessem, aprendiam a falar inglês. Meu pai me ensinou. A vida era boa antes da morte do meu pai. Depois tudo ficou de cabeça para baixo. O marajá bom ficou maluco. E o irmão, que por algum motivo se chama de Marajá de Uaqt, ocupou o lugar dele como governante. — “Uaqt” significa “Tempo” em hindi, vocês sabem.
— O Marajá do Tempo! — disse Rocky. — Isso é que é se dar importância.
— Então vocês o conhecem?
— O assistente dele está perseguindo a gente — disse Molly. — E Uaqt roubou uma coisa minha... — Molly imaginou se deveria explicar a Ojas que Uaqt estava com seus eus mais jovens, mas decidiu que ele jamais acreditaria —... por isso estamos caçando o Uaqt.
— Estamos? — perguntou Forest coçando a cabeça.
— Sim. Pelo menos eu estou. De algum modo preciso roubar os cristais dele e depois pegar Uaqt.
— Você faz parecer fácil como pegar um coelho — disse Rocky.
— Todo mundo sabe que o Marajá de Uaqt é muito mal-humorado — alertou Ojas. — Tem certeza de que quer persegui-lo? Talvez seja melhor esperar que o Marajá da Fortaleza Vermelha fique melhor. Talvez ele ajude vocês.
— O marajá original não ficou maluco — disse Rocky. — Foi hipnotizado e aprisionado na Fortaleza Vermelha. Nós o vimos.
— Hipnotizado?
— É, por Uaqt.
— Isso é realmente uma novidade — comentou Ojas, passando por cima de uma pilha de tijolos e por um buraco na parede, até outro beco.
De repente havia uma barraca de chá na frente deles.
Era como um armário aberto na lateral da passagem, com um fogão a lenha dentro. Havia uma chaleira de ferro sobre ele, com vapor saindo pelo bico, e uma fileira de latas na parte de trás do balcão. Ao lado de um pote de açúcar havia uma grande peneira numa tigela de cerâmica, e no armário aberto, embaixo, ficavam pilhas de pratos, xícaras e bules de cerâmica. Um menino brincava no chão com uma xícara quebrada e algumas pedras. Ele ficou deliciado ao ver Petula. Sua mãe estava parada perto, usando sári amarelo. Nos braços e nos tornozelos tinha montes de argolas douradas e jóias douradas pendiam das orelhas e também do nariz. Um bindi, um ponto vermelho sagrado, estava pintado em sua testa. Havia um bebê moreno e cheio de pulseiras em seu colo. A mulher sorriu para Ojas quando eles se aproximaram e o menino acenou. Ojas fez uma reverência com as mãos juntas e perguntou algo em hindi. A mulher balançou a cabeça de um lado para o outro e riu. Depois começou a fazer chá.
— Não temos dinheiro — disse Molly. — Será que podíamos pegar um pouco emprestado com você, Ojas?
— Não se preocupe — respondeu ele. — No mês passado impedi que o menininho dela passasse correndo na frente de uma carruagem inglesa, agora ela sempre me dá chá de graça.
— Há ingleses aqui na índia agora, em 1870?
— Ah, sim. Eles estão aqui há muito tempo... desde cerca de 1600. Antes disso os mogóis muçulmanos invadiram a Índia. Parece que todo mundo quer a índia. Os mogóis ficaram aqui por quinhentos anos! Construíram mesquitas lindas. Mas mesmo assim, a maioria dos hindus é indiana, e não muçulmana. E agora temos os ingleses. Eles morrem como moscas por causa do calor e de doenças de estômago. Os portugueses, os franceses e os holandeses também estão aqui, mas os ingleses conseguiram ter mais controle. A índia tem muita coisa para eles comerciarem. Os ingleses ganham muito dinheiro com a índia. Nós somos um país enorme, e o trigo, algodão, chá e café crescem muito bem aqui. E temos lindas pedras preciosas, mármore e madeira-de-lei. Vocês têm uma rainha muito gorda chamada Vitória. Ela deveria vir à índia, talvez assim ficasse mais feliz!
A mulher serviu as xícaras de chai — chá adoçado com açúcar, canela, gengibre, cravo e cardamomo. Ojas tomou um gole e continuou:
— A rainha Vitória tem um monte de oficiais raj que mantêm a índia sob seu comando. E eles construíram muitos prédios aqui. Alguns são bem impressionantes, mas não tão bonitos quanto nossos templos e palácios. Ah, mas as ferrovias que eles construíram... essas são incríveis!
— Mas se o país é governado pelos ingleses, por que os marajás estão aqui? — perguntou Molly.
— Os marajás têm seus estados principescos. A índia é um país muito, muito grande, de modo que há muita coisa a aproveitar. Todo mundo pode ter uma fatia!
A mulher de sári amarelo ofereceu a todo mundo um pedaço de bolo e um copo de bebida doce. E pôs um prato de água no chão para Petula.
— Ah, caldo de cana — suspirou Forest. — Não tomava isso há anos, cara! E tenho uma boa notícia para você, Ojas. No século XX a índia vai ter um cara maneiro, amante da paz, chamado Gandhi, que vai libertar o país. Em 1947 a índia vai ser dona de si mesma.
— Ainda faltam setenta e sete anos — disse Ojas, franzindo os olhos enquanto fazia as contas. — Até lá vou estar velho. Ou morto.
— Que baixo astral, cara! — respondeu Forest.
Sem saber o que Forest queria dizer, Ojas apenas balançou a cabeça de um lado para o outro, como a mulher do chá havia feito, e Molly e Rocky riram.
— Foi muita gentileza da sua amiga — disse Rocky. — Eu gostaria de ter alguma coisa para dar a ela. — Em seguida enfiou a mão no bolso e pegou uma esferográfica. — Talvez ela possa vender isso a uma pessoa rica. Quero dizer, uma esferográfica é um negócio incrível se você estiver em 1870. — Ele mostrou a Ojas e à mulher como a esferográfica funcionava, desenhando em seu braço já coberto de rabiscos.
Enquanto a mulher ria, desenhando uma linha no braço de Ojas, Molly foi dominada outra vez por uma nova lembrança. Veio tão de repente que ela se pegou balançando involuntariamente a cabeça, como se tivesse uma centopéia no ouvido.
— O que foi? — perguntou Rocky. Molly abriu os olhos.
— Tenho lembranças de estar num trem maria-fumaça. É um vagão muito luxuoso. É um trem real, ou algo assim. Eu estava carregando um bebê.
— Uaqt está no trem?
— Está. É uma das partes mais fortes da lembrança. Ele parece idiota, todo apertado no trem. É tão alto que nem cabe direito. Como uma girafa entrando num trem. O trem está partindo. Estou lembrando do barulho e do vapor.
— E, Molly, nós estamos exatamente na mesma época deles?
— Estamos.
— Então eles estão tentando partir agora. O que vamos fazer? Precisamos chegar à estação.
Molly e Rocky se viraram para Ojas.
— Temos de pegar um trem — disse Molly. — Nós não falamos hindi. Você pode ajudar?
— Como você sabe que o Marajá de Uaqt está num trem? Você é mágica? — perguntou Ojas.
— Explico isso mais tarde. Não sou mágica, mas estamos com pressa. Você vai nos ajudar?
Ojas inclinou a cabeça e fechou um dos olhos.
— Como você hipnotizou aquele policial para mim, vou ajudá-los a entrar no trem. Desde que você se lembre da viagem ao futuro que me prometeu. No caminho para a estação pode contar o que Uaqt roubou de você e como sabe onde ele está. Se eu achar que posso ajudá-la, vou dizer qual é o preço. Você pode me empregar como guia.
— Parece bom — disse Molly. — Só que não temos dinheiro para pagar.
Ojas esfregou as mãos, limpando-as das migalhas.
— Tenho certeza, Molly, que com suas habilidades o dinheiro não vai ser difícil de conseguir.
A quinze becos de distância Zackya e seus homens faziam progresso. Ele e os guardas tinham esbarrado num policial uniformizado, sentado numa escada e contando os dedos. A cabeça do sujeito balançava para trás e para a frente e os olhos estremeciam nas órbitas. Zackya reconheceu esses sinais como efeitos pós-hipnotismo, e começou a interrogá-lo.
Ojas guiou Molly, Rocky, Forest e Petula rapidamente por uma série de becos. Enquanto iam correndo, Molly explicou que o Marajá de Uaqt havia seqüestrado seus eus mais jovens. Ojas escutou, meio suspeitando que Molly e seus amigos fossem malucos.
— Então você quer seguir Uaqt em segredo? — perguntou, percebendo que pelo menos essa parte da situação era verdadeira.
— É.
— Com essas roupas? — Ojas bufou, incrédulo.
Molly olhou para o rato dançarino em sua camiseta. A
mente entrou em atividade máxima.
— Diga, Ojas. Existe algum dono de loja de roupas realmente horrível por aí?
— Tem um, mas há muitos donos de lojas muito mais amigáveis, não se preocupe.
— O que o dono de loja mau fez para torná-lo tão horrível? — insistiu Molly.
— Ah, você faz perguntas tão estranhas! Mas vou responder. Há um homem muito rico e cruel, dono de uma loja perto do bazar. Tem um temperamento horrível e bate na mulher e nos filhos. Não gosto dele nem um pouco porque uma vez bateu nos meus ouvidos quando eu só estava sentado na porta da loja tirando um espinho do pé!
— Ele fala inglês?
— Fala, mas não é um homem bom, Molly. Você não entende?
— Entendo. Confie em mim. Você nos leva até lá?
— Como presente especial, levo. Mas você tem de lembrar, Molly, que depois disso meus serviços extras terão de ser pagos.
— Ótimo, mas vamos até lá depressa.
Logo estavam diante de uma loja grande, cheia de prateleiras com roupas dobradas. Forest fechou a cortina de seda na porta da loja depois de terem entrado. Petula farejou o chão atapetado.
— Olá, tem alguém aí? — gritou Molly.
Um homem forte e barrigudo emergiu sonolento de trás do balcão. Como apresentação ele deu uma fungada gutural e pigarreou o catarro no fundo da garganta.
— Boa tarde — disse Molly. — Gostaríamos de algumas roupas.
O vendedor de cara pastosa examinou os jeans de Molly, a camiseta com o rato e deu um risinho. Levantou-se preguiçosamente e então viu Ojas. Por um momento inclinou-se para a frente com ar de desprezo, mas depois, lembrando que talvez houvesse algum negócio a ser feito, resistiu a chutar Ojas para fora.
Molly partiu para cima antes que ele percebesse. Deu-lhe um tapinha no peito e encarou seus olhos saltados. O nariz do sujeito estremeceu com irritação enquanto se preparava para questionar a cutucada, mas na verdade foi moleza. Num segundo os incríveis olhos da garota haviam dado o golpe direto no âmago do cérebro dele, reduzindo-o a um idiota balançando a cabeça.
— Agora você está totalmente sob o meu poder — disse Molly. — Quero roupas para todos nós. E depois disso gostaríamos de um pouco de dinheiro. Um monte.
Ojas assentiu. Já havia decidido que, se ajudasse Molly, o que cobraria seria um monte de dinheiro.
O homem sonâmbulo se adiantou e assentiu para a garota que agora, aos olhos dele, parecia uma deusa. Ele entendia bastante bem a língua dela. Em seu transe começou a escolher roupas nas prateleiras. Ojas ficou olhando, espantado, enquanto ele encontrava para Rocky uma camisa comprida, de gola pequena, cor de vinho, com uma calça que parecia de pijama, combinando.
— Este kurta churinder está bom para o senhor?
Em seguida encontrou uma roupa semelhante na cor cinza para Ojas. Ele colocou-a num saco.
— Vou guardar para uma ocasião melhor. Forest escolheu um kurta churinder branco, e Molly recebeu um sári azul-cinza.
— Isso não serve — disse ela, olhando os quilômetros de tecido que lhe eram apresentados. — Nunca vou conseguir amarrar um negócio desses sozinha.
— O que está fazendo, senhor vendedor? — interrompeu Ojas. — As meninas não usam sáris na índia, só as mulheres usam sáris.
O homem hipnotizado ofereceu a Molly uma roupa comprida, parecida com uma túnica, com calça por baixo.
— Este salwar kameez?
Logo todo mundo estava pronto. Molly tinha um véu para pôr sobre a cabeça e todos os meninos tinham miniturbantes. Nos pés usavam mocassins indianos, a não ser Ojas que se sentia mais confortável descalço. Molly recebeu uma bolsa cheia de moedas e também levou uma bolsa de algodão suficientemente forte para carregar Petula, caso precisasse desaparecer depressa.
— De agora em diante você nunca dirá nenhuma palavra agressiva a ninguém. Vai ser como um santo...
— Eles não têm santos aqui — interrompeu Forest.
— Como um anjo?
— Também não têm anjos. Que tal um jain?
— O que é isso?
— Os jains são hindus que acreditam na paz e na não-violência. Eles tentam não pisar em insetos e até usam máscaras brancas sobre a boca, para não engolir um besouro ou uma mosca por acidente. Isso é que é consideração.
O vendedor esperava as instruções dela.
— Então você será como um jain. E será supergentil com sua mulher e seus filhos, para compensar todas as vezes em que bateu neles. E vai cantar muito mais do que agora, e vai aprender a tocar o... o...
— O shehnai — sugeriu Forest. — É um instrumento indiano bem maneiro. Parece um oboé. É de sopro.
— O shehnai — terminou Molly. Então, sem que ninguém soubesse, ela se concentrou no cristal incolor, congelou o mundo e disse: — E esta instrução está trancada com a senha “Cantando na Chuva”. — Agora sabia que as instruções iriam se manter. Deixou o mundo se mover outra vez.
— Esse homem teve muita sorte em ser hipnotizado por você! — disse Ojas. — Recebeu uma vida nova que vale muito mais do que tudo que você tirou dele.
— É, também acho — concordou Molly, sacudindo as moedas pesadas na bolsa.
Zackya e seus homens chegaram diante de uma barraca de chá. Estavam sedentos e com fome por causa da busca.
— Você, mulher — disse Zackya com grosseria, em hindi —, diga: viu uma garota com um cachorro estranho?
A mulher de sári amarelo jogou um pedaço de pau longe no beco, para o menino pegar de volta. Não queria que ele falasse de Ojas e dos amigos. Enquanto o menino saía correndo, ela balançou a cabeça.
— Gostaria de um chá e bolo? — perguntou virando-se para empurrar a esferográfica dada por Rocky para trás da lata de açúcar. Ali também havia um pequeno pote de argila cheio de pó. O pó era uma tradicional mistura medicinal de ervas moídas, que provocava em quem o ingerisse uma «purgação nas tripas»: em outras palavras, diarréia. A mulher colocou disfarçadamente uma boa dose no chá daquele homem grosseiro. Com sorte isso causaria um atraso na jornada do sujeito e ajudaria seus amigos.
Zackya tomou seu chá. Enquanto a mulher jogava outro graveto para o filho que parecia um cachorrinho, um pensamento horrível passou pela cabeça do perseguidor. Agora a fuga de Molly Moon era um assunto que deveria ser informado a Uaqt.
A oitocentos metros dali, Ojas levou Molly e seus amigos à estação. Era uma longa caminhada por ruas secas e sujas, cheias de tráfego de animais. Búfalos e camelos puxando carroças, elefantes com assentos cobertos por dosséis, às costas. Em suas novas roupas, Molly não se sentia tão visível. Gostou de olhar as mulheres caminharem com grandes potes de latão cheios d›água na cabeça e crianças descalças correndo pelas ruas. O cheiro de incenso queimando, ervas e comida sendo preparada pairava no ar e o sol quente de março brilhava com força. Passaram por um encantador de serpentes sentado diante de um grande cesto redondo, tocando uma flauta com tanta doçura que sua cobra de estimação dançava. Molly queria desfrutar o ambiente, mas sabia que precisava correr. As lembranças que cresciam em seu cérebro diziam que Uaqt já estava bem longe de Déli.
Chegaram à estação de trens de Déli e Molly pôs o véu sobre a cabeça.
— Fiquem aqui, fora de vista, na parte de trás da plataforma — disse Ojas enquanto se misturava às pessoas.
Grupos de ingleses apinhavam a estação. As mulheres usavam desajeitados vestidos vitorianos, apertados na cintura e descendo largos até o chão. Usavam grandes chapéus desconfortáveis, com redes sobre o rosto. Os homens junto delas vestiam ternos brancos e chapéus pesados, em forma de capacete, os “topi”. Soldados com culotes e altas botas de couro batiam papo, espalhados. Aqui e ali havia crianças usando roupas engomadas e “topis” brancos, sufocando no calor.
— Isto é um ultraje! — reclamou uma inglesa idosa ao marido que suava. — Aquele gigante simplesmente roubou nossa locomotiva! — Molly notou um triste conjunto de vagões sem locomotiva num trilho de reserva, atrás da linha principal.
— Ele era tão alto — respondeu o marido numa voz esganiçada e tensa — que ninguém ousou contrariá-lo.
— Se eu estivesse aqui — disse a mulher em voz muito baixa — teria cutucado o sujeito com meu guarda-sol, bem onde dói mais!
— Minha cara, não deixe isto incomodá-la. Só fará suas varizes latejarem. Há outro trem a caminho. E vai exatamente na mesma direção. Para Jaipur.
Nesse momento soou um grito.
— Ladrão! Pega ladrão! —Um homem alto estava apontando para um garoto maltrapilho que corria para longe dele.
— Não acredito — disse Rocky. — É Ojas!
Molly se concentrou no cristal branco e a vida da plataforma se imobilizou imediatamente, congelada num quadro vivo. O chapéu do homem vitoriano ia caindo de sua cabeça enquanto ele corria atrás de Ojas, e as pessoas ao redor estavam imóveis como esculturas em madeira, com expressões de empolgação nos olhos arregalados.
Molly demorou alguns minutos para encontrar Ojas. Ele corria abaixado, por isso, quando tudo parou, estava bem escondido. Em sua mão havia uma carteira de couro de crocodilo. Molly agarrou seu braço, dando movimento a ele. Quando o garoto disparou, ela puxou-o de volta. Num instante ele viu o mundo imóvel ao redor.
— O que... o que aconteceu com todo mundo?— perguntou boquiaberto de espanto. Molly estava furiosa.
— Por que fez isso, Ojas? Você sabia que a gente não queria chamar atenção. Nós dissemos que precisávamos da sua ajuda. Isso não está ajudando. Você poderia ser apanhado. Sabe que podemos pagar. Não precisa roubar uma porcaria de uma carteira. E você não deveria roubar, isso é ruim.
— Ruim? RUIM? — gritou Ojas. —Você roubou aquele vendedor. Me ajudou a roubar aquele policial. Não seja tão metida a certinha. Você é tão ruim quanto eu. A diferença é que eu não tenho ninguém no mundo e preciso cuidar de mim. Não é fácil viver nas ruas. Preciso aproveitar as oportunidades que aparecem!
Molly ficou perplexa. Não tinha tentado se colocar na posição de Ojas. Baixou a cabeça.
— De qualquer modo, eu não iria com vocês — disse Ojas. — Toda aquela conversa sobre Uaqt pegando partes mais novas de você do seu passado... não acreditei. Pareceu maluquice. Achei que todos vocês eram doidos.
— Acho que parece loucura mesmo. — Molly suspirou. Olhou um menino vitoriano ao lado, que segurava uma zarabatana de brinquedo. Seguiu a linha de tiro e viu a ervilha que pairava no ar a caminho de acertar a nuca de uma mulher gorda.
— Olhe, Ojas, desculpe. Você está certo. Eu sou hipócrita. Mas, por favor, será que poderia nos colocar no trem? E você se incomodaria se eu pusesse a carteira desse homem de volta na mão dele? Vou compensar o dinheiro para você. Você pode vestir as roupas novas, para ninguém reconhecê-lo. Então vamos nos despedir.
— Ah, não!
— Por favor, Ojas.
— Molly, você deveria ter mostrado como congela as pessoas assim, como pode fazer os pássaros ficarem parados no ar e a fumaça do trem parecer sólida!
— Não houve tempo.
— Não, mas agora que vi, acredito no resto da sua história.
— É?
— Ah, é, e agora que sei que você não é maluca, vou com vocês.
— Vai?
— Vou. Não tenho família que me prenda e gosto de aventura. Mas lembre-se, faço isso por um preço. Dez mil rúpias.
Molly assentiu.
— Trato feito, Ojas, mas com uma condição: não atraia mais nenhuma atenção batendo carteiras.
— E coloque no trato também aquela viagem ao futuro.
— Vou colocar — disse Molly, e com isso os dois apertaram as mãos.
Cinco minutos depois a carteira tinha voltado à mão do dono e Ojas estava parado nos fundos da estação, vestido com seu novo kurta churinder cinza. Molly deixou o mundo se mover.
Durante alguns minutos a plataforma ficou caótica, enquanto o homem vitoriano descobria a carteira na mão e a multidão em pânico ao redor verificava seus próprios pertences.
Então o trem chegou, apitando como uma chaleira gigante, fervendo sobre rodas, e o incidente foi esquecido.
Era uma locomotiva magnífica. Primeiro vinha o párachoque em forma de gaiola e a alta chaminé de latão, depois a corcova onde ficava o tanque de água. Na lateral estavam pintadas as palavras Foguete de Déli. Atrás disso ficava um grande espaço de ferro, cheio de carvão, e a cabine do maquinista. Um foguista jogava carvão na fornalha, aquecendo a água do tanque. O maquinista parou o trem e puxou o apito de novo, soltando o excesso de vapor na estação. Os passageiros que esperavam começaram a se animar. Todo mundo começou a se empurrar para subir a bordo.
— Por que a gente não recua no tempo e pega o trem em que Uaqt foi? — perguntou Rocky.
— É arriscado demais. Eu pensei nisso. Se ele nos pegar seguindo-o, é o fim. Vamos virar churrasco. Vejam só, esse trem está enchendo depressa demais, não sei como vamos arranjar lugar. — De fato, achando que eram donos do trem, os ingleses haviam lotado os quatro melhores vagões, que tinham ventiladores, na frente do trem, ao passo que os indianos, ao lado de quem os ingleses se recusavam a sentar-se, já estavam transbordando dos últimos dois vagões, mais quentes.
— Olhem isso! Segregação! Uau, é nojento, não é? — disse Forest. — Você vai gostar de saber, Ojas, que nos tempos modernos pessoas de todas as raças se sentam juntas! São cidadãs do mundo, cara!
— Mas não há nenhum lugar para nós — observou Molly. — Os vagões estão explodindo de gente.
— Sem problema — riu Ojas. — Vamos em cima.
Molly encarou-o.
— Em cima do trem?
— Isso mesmo, Molly. Em cima é mais perto dos deuses.
— Nós podemos ir para o futuro e pegar um trem a jato, ou o que quer que eles tenham — lembrou Rocky. Depois balançou a cabeça. — Mas sabe, Molly, ir em cima parece legal.
O trem de Uaqt era superluxuoso. Ele mantinha seus vagões especiais na estação de Déli. Sempre que tinha de ir a algum lugar, só precisava tirar a locomotiva de outro trem, o que havia feito hoje.
Uaqt se recostou num coxim e pensou em como tinha sido divertido ver as pessoas irritadas na estação de Déli.
O ambiente estava ótimo e fresco. Isso porque no centro do vagão havia uma caixa com uma enorme pedra de gelo. Um menino punkah estava sentado no chão, no canto, puxando uma corda que fazia balançar um leque sobre essa caixa de gelo, produzindo uma brisa fresca que soprava sobre Uaqt e suas passageiras.
Diante dele, a Molly de dez anos estava sentada com Petulazinha no colo. A de seis anos e a de três estavam sentadas ao lado, e o bebê Molly ocupava um berço, gorgolejando. Todas, menos a cadelinha, estavam hipnotizadas.
A porta do compartimento se abriu e três criados entraram. Colocaram em silêncio uma toalha de linho branco sobre uma mesa e começaram a arrumar pratos de comida indiana. Um prato de tikka de frango e outro de seekh kebabs. Havia papad, que são pães de lentilha, e raita (iogurte batido com ervas) para mergulhar os papad. Havia delicados pudins temperados com açafrão.
Sentindo o cheiro de comida, Petulazinha abriu os olhos. Pulou do colo da Molly de dez anos e começou a latir para a mesa. O marajá atirou uma almofada contra ela.
— Cale a boca, seu aminal imundo! — gritou ele. Irritado, ordenou que o garoto do leque brincasse com a cadelinha.
O garoto magricelo pulou de pé e puxou o filhote. Enfiou a mão no bolso e pegou uma pedrinha, que jogou mais adiante no chão. Petulazinha pegou-a e, feliz em estar ocupada, começou a chupar a pedra.
Uaqt virou os olhos vermelhos para os hóspedes hipnotizados. O olhar parou na Molly de três anos.
— Hmm. Testar vocês nesta viagem ajudará a passar o tempo. — Em seguida pegou um par daqueles pauzinhos que os orientais usam para comer. Depois, levantando-se, engatinhou (porque era grande demais para andar no trem) em direção à pequena Molly e estalou os dedos diante dos olhos dela.
Imediatamente a Molly de três anos voltou a si. Nas horas anteriores estivera hipnotizada, claro, mas durante todo o tempo observava o marajá. Havia chegado à conclusão de que o gigante se parecia muito com uma tartaruga que tinha visto na televisão. Agora, podendo falar, disse:
— O senhor vai ter de arranjar uma caixa muito, muito, MUITO grande quando tiver de hibernar.
O marajá ficou perplexo. Decidiu que hoje não estava com clima para alguém de três anos. Estalou os dedos e a criança entrou de novo em transe. Virou-se para a de seis anos e, batendo palmas com força, libertou-a do transe.
A Molly de seis anos voltou a si imediatamente. A última vez em que havia saído do transe fora no quarto da cama-balanço, e tinha chorado até inchar os olhos. Agora estava mais contida. O gigante não parecia tão amedrontador quanto antes.
— Quem é o senhor? O senhor me adotou? Porque não quero ser adotada pelo senhor. Pode me levar de volta a Briersville? Não quero morar na África.
— Entendo sua lógica — disse Uaqt. — Não se preocupe, não adotei você. Só estou pegando você emprestada, para ver até que ponto é talentosa.
Molly olhou para as Mollys hipnotizadas, pasma com a semelhança entre elas.
— Por que todas elas estão meio dormindo? O senhor acordou a grandona antes, e o nome dela é Molly também, não é?
— Vejo que é observadora — disse Uaqt apontando para ela os pauzinhos de comer. — Bom, está com fome? Porque vai me mostrar até que ponto você tem habilidade manual. Estes são pauzinhos de comer. Na China todo mundo come com isso.
— Nós estamos na China?
— Não, mas passei quinze anos na China aprendendo a viajar no tempo.
— Quinze anos? Então o senhor não era muito bom nisso? — perguntou Molly cheia de inocência.
Uaqt se irritou.
— Vejamos até que ponto você é boa com isto. É assim que se usa. — Ele engatinhou até a mesa e demonstrou como pegar um pedaço de tikka de frango. — Agora pode comer quanto quiser, mas só se usar os pauzinhos.
A pequenina Molly pegou os pauzinhos e olhou para a mesa cheia de comida. Franziu o nariz.
— Tem ketchup?
— Não.
— Nós estamos na África?
— Use os pauzinhos.
— Austrália?
— Use os pauzinhos.
— Nunca ouvi falar de um país chamado Useospauzinhos — resmungou Molly baixinho. Franziu a testa para o homem ao lado e disse devagar: —E... eu... não... gosto... dessa... comida, por isso não vou usar os pauzinhos! — Em seguida se virou e voltou para a almofada de veludo perto da parede, pegando a cadelinha preta no caminho. — Nem falou por favor — murmurou.
Uaqt ficou chocado. Não estava acostumado à desobediência. Não estava acostumado com crianças.
— Não ouse... — Então ele percebeu que desejava que a Molly bebê crescesse corajosa. — Bom — terminou. — Teimosia é bom. Agora a próxima coisa que vai me mostrar é se você tem aptidão para línguas. Repita comigo: “Elvaleah maleleia ey nuli. “
A pequena Molly segurou Petulazinha contra o peito e fechou os olhos. Na escola havia aula de francês, e ela não era muito boa nisso. Não gostava de ser testada e aquele homem estava começando a amedrontá-la de novo.
— Cachorrinho bom — sussurrou no ouvido de Petula. A cadelinha a ajudou a se sentir mais segura. Fazia com que ela se lembrasse de Rocky e da Sra. Brinklebury, a faxineira do orfanato.
— Ande, repita comigo: “Elvaleah maleleia ey nuli” — ordenou Uaqt. A menina olhou para ele.
— Não vou falar essa coisa boba. E quero ir para casa.
Uaqt rosnou baixo e estalou os dedos.
— Ah, volte ao seu transe. — Em seguida olhou o bebê adormecido.
— Você não é uma grande beldade, não é? — disse para ela. — Nariz de batata, olhos muito próximos um do outro e não parece que vai ser uma criança genial. Nem artista, musicista, dançarina ou matemática.
A boca de Uaqt se franziu ao ver que o bebê que ele esperava criar não seria brilhante em nenhum departamento. Então seus lábios se abriram num sorriso que parecia uma careta.
— Mas seu talento na hipnose vai compensar os defeitos. Pequenina Uaqta, por mais feia que seja, você será um gênio da hipnose. Agora vou levá-la a Jaipur e começar as cerimônias da lua para introduzi-la ao meu mundo. As cerimônias da fonte de cristal! Tenho a sensação, pequenina Uaqta, de que você vai ser um ímã gigantesco para os cristais. — O bebê Molly gorgolejou.
As fontes de cristais. Como Uaqt as amava! Poucos hipnotizadores sabiam de onde vinham os cristais, mas ele sabia, tinha sido iniciado no mundo das fontes de cristais na China. Nunca deixava de se espantar por elas existirem. Em todo o mundo podiam ser encontradas rochas muito especiais, de aparência comum e rachadas, de onde, em certas noites de lua cheia, os cristais incolores, vermelhos e verdes emergiam.
Os grandes hipnotizadores podiam tirá-los da terra. Uaqt tinha certeza de que aquele pequeno bebê poderia fazer isso, e estava muito empolgado com a idéia.
— Parece bom, Uaqta? — disse fazendo cócegas no queixo da menina. — Claro que parece.
Petulazinha observava o gigante. Não gostava da aparência nem do cheiro daquele homem enorme, e seu instinto lhe dizia que não era bom ele estar bafejando sobre o bebê. Aproximou-se e se sentou ao lado da Molly minúscula e latiu de modo protetor.
“Não é sua”, era o que o pequeno latido dizia.
Quilômetros atrás do trem de Uaqt, e com Petula embaixo do braço, a Molly de onze anos subiu a escada de ferro na traseira do Foguete de Déli. Hesitou enquanto novas lembranças preenchiam sua cabeça mas afastou-as, decidida a não ficar pensando nelas. Segurou a mão de Ojas e ele puxou-a para cima. As laterais do trem pareciam penhascos íngremes, mas havia um trecho no meio com mais barras de ferro onde era possível se segurar. Já havia pessoas sentadas ali. Enquanto passavam por elas, Petula farejou uma galinha enfiada embaixo do braço de um garoto e um cabrito sentado muito quietinho ao lado do dono. Petula podia sentir que aqueles animais sabiam algo sobre a viagem adiante. Com sua percepção canina deduziu que ali em cima a viagem seria dez vezes mais cheia de vento do que quando ela colocava a cabeça para fora da janela de um carro. Lambeu os lábios e começou a se enfiar embaixo do véu de Molly.
Quando fez isso, um cheiro nervoso que ela reconheceu atingiu as bordas de sua visão olfativa. O cheiro conjurava a imagem do homem de turbante. Ele estava chegando mais perto a cada segundo. Petula deu um latido para alertar Molly.
— Nós não vamos cair, Petula. Eu seguro você — disse Molly.
Encontraram espaço no terceiro vagão do trem e se acomodaram. A locomotiva à frente soltou um apito e os cobriu de vapor. Uma menina indiana ao lado deles deu um grito de alegria, mas de repente Molly ficou apreensiva.
— Não se preocupe — tranqüilizou Ojas. — Segurem firme e se abaixem sempre que passarmos embaixo de pontes. Vocês vão ficar bem. — Ele fechou os olhos, juntou as mãos e começou a murmurar preces.
Na plataforma, o encarregado da estação soprou seu apito e a locomotiva respondeu muito mais alto, com um guincho de furar os tímpanos. Então teve início um árduo chuque-chuque. As compridas barras de metal que moviam as rodas começaram a girar lentamente e o trem começou a se mexer.
Saíram da estação e Molly examinou a cena atrás. Por um instante pensou ter visto Zackya chegando numa liteira sem rodas, parecendo uma maca transportada por quatro serviçais, mas o trem estava acelerando e, quando fez uma curva, ela o perdeu de vista. Imaginou se o medo a teria feito imaginar aquilo.
Logo a viagem afastou Zackya de sua mente. Olhava a paisagem ao redor ficar dourada enquanto iam para sudoeste, em direção a Jaipur. Molly pensou em Uaqt no trilho adiante. Não tinha a mínima idéia do que ele estaria planejando. Só esperava que os planos não incluíssem matar nenhuma das Mollys que viajavam com ele. Os dedos de Molly foram involuntariamente até a boca e ela mordeu-os enquanto se perguntava o que lhe aconteceria agora se ele realmente matasse um de seus eus anteriores. Enquanto o véu balançava ao vento, sua imaginação começou a redemoinhar. Se Uaqt decepasse um dedo da menina de seis anos, pensou, será que agora ela teria um cotoco cicatrizado há muito? Tocou a cicatriz no pescoço. O que a havia causado? Obviamente um corte bem fundo. Por que suas lembranças tinham desaparecido quando viajou para a frente até o próximo século, mas essa cicatriz havia aparecido? Onde estariam as memórias que acompanhavam a cicatriz?
E, à medida que as horas passavam, uma nova pergunta germinava em sua mente. Por que Uaqt estava querendo tanto ficar com o bebê Molly? Por que a de três anos, a de seis ou mesmo a de dez não serviam? Talvez porque o bebê não teria absolutamente nenhuma lembrança da vida no Lar Vidadura. Mas a suspeita que a incomodava era que o motivo para ele não querer adotar as Mollys mais velhas era porque havia algo de errado com elas. Desde que Lucy Logan tinha sentido tão pouco entusiasmo em se juntar à filha perdida há muito, Molly começou a achar que isso devia ser porque ela não era boa o bastante. E agora Uaqt estava mandando a mesma mensagem — que Molly não era o tipo de pessoa que alguém gostaria de descobrir que era sua filha ou, no caso de Uaqt, que gostaria de adotar. Isso fez com que ela se sentisse mal.
Enquanto o sol batia em seu rosto, quente como fornalha, Molly se reconfortou com novas lembranças de sua viagem a Jaipur com dez anos. Por isso soube que, pelo menos até agora, Uaqt estava tratando seus outros eus razoavelmente bem.
O trem serpenteava pela seca paisagem indiana. A fumaça da locomotiva passava acima das cabeças. O vento ameaçava soprar todo mundo para longe e as orelhas de Petula balançavam como asas. Os dreadlocks de Forest batiam em suas bochechas. Ele sorria, olhando através dos cílios para a bela paisagem montanhosa e torrada pelo sol.
Viram javalis remexendo entre os arbustos. Até vislumbraram um leopardo procurando esconderijo numa colina. Ojas teve de gritar acima do vento para que sua voz fosse ouvida.
— Se olharem com atenção talvez vocês vejam um tigre! Ou um rinoceronte! E olhem aquela manada de elefantes naquele poço! Eu disse que este era o melhor modo de viajar.
O campo era cheio de animais. Rebanhos de cervos partiam correndo enquanto o trem passava com um rugido. Um urso balançou a cabeça para eles de cima de uma colina, com as patas dianteiras encostadas numa árvore onde havia uma colméia.
O trem chegou a uma pequena estação rural e parou, com a missão de pegar pacotes e sacos. Na plataforma pessoas esperavam para vender comida a quem pudesse pagar. Molly sentiu cheiro de molhos picantes e pão quente. Ojas pegou um pouco do dinheiro e pulou no chão para conseguir comida e água fresca para eles.
Petula balançou a cabeça e passou uma pata sobre o focinho empoeirado. Olhou Ojas abrir caminho pela plataforma até a barraca que cheirava a cebola e pão. Deduziu que o trem ficaria parado por um tempo e viu uma oportunidade de esticar as pernas.
Levantou-se, sacudiu-se e bocejou. Depois foi andando pelo trem.
Passou por uma gaiola cheia de galinhas que entraram em pânico e cacarejaram. Petula lhes deu um olhar hipnótico. Enquanto passava pelos passageiros espremidos no teto, mãos se estenderam para acariciá-la. Uma velha lhe deu um suculento pedaço de carneiro. Petula assentiu e aceitou, agradecida. Um menino lhe ofereceu uma fatia de manga. Petula recusou, mas latiu agradecendo.
No fim do trem olhou rapidamente para o topo da locomotiva e farejou. Podia identificar o almoço embrulhado do maquinista. Aparentemente ele ia comer algo com queijo.
Depois voltou pelo trem. As pessoas foram tão amigáveis quanto na ida. As pessoas ali eram maravilhosas, pensou Petula. Se não fosse o gigante e seu assistente, este seria um dos melhores lugares que ela já havia visitado. Agora podia ver Molly, de pé, procurando-a. Latiu e foi vista por Molly.
Nesse momento um cheiro forte atingiu seu focinho. Um fedor pavoroso. Petula reconheceu de quem vinha. Era o odor impaciente e nervoso do seqüestrador—mas com cheiro de ovos podres por cima. Vinha do vagão diretamente abaixo de Molly.
Começou a correr. Precisava avisar Molly.
Molly procurou Petula e a viu andando por cima do trem. Nesse momento percebeu que suas lembranças haviam mudado. Forest e Rocky olharam para ela.
— Ei, cara — disse Forest. — Sua mente acabou de se rearrumar de novo? Acabo de lembrar que o velho Zackya também entrou nesse trem.
— Eu também lembrei — disse Rocky.
— E eu — concordou Molly. — Lembro de tê-lo visto entrar no vagão abaixo de nós. E todos nos abaixamos para que ele não visse. Quando saímos de Déli pensei ter visto o sujeito chegar à estação. Ele obviamente perdeu o trem...
— ... e tem ordens para alcançar Uaqt... — acrescentou Rocky.
— ... por isso voltou no tempo para pular neste trem antes da saída. E é por isso que de repente estamos vendo Zackya na nossa lembrança. Ele mudou nosso passado, além do dele.
— Isso é incrível, cara. Meu cérebro dá um salto mortal só de pensar nisso. — Forest ficou vesgo enquanto tentava entender.
— Por sorte Zackya não sabe que Ojas é nosso amigo. — Molly pôs a mão na barriga enquanto se lembrava da cápsula de metal roxo de Zackya. — Espero que o rastreador só consiga encontrar o tempo em que a pessoa está, não o lugar. Caso contrário, se ele ligá-lo, vai saber que estamos bem aqui em cima.
Molly viu Petula correndo pelo teto do trem em sua direção.
— Devagar, Petula — disse baixinho. — Você não vai querer cair.
Petula chegou ofegando e imediatamente começou a raspar a pata no teto do trem.
— Ojas foi pegar água — disse Molly. — E comida.
Petula suspirou. Olhou para o teto de metal e desejou ser capaz de ver através dele.
No vagão abaixo, Zackya estava deitado no banco do trem, dormindo. O pó que a mulher havia colocado em seu chai já havia começado a fazer efeito, e sua barriga borbulhava. No bolso, o fino aparelho futurista estava desligado. Ele havia desistido daquilo, já que parecia estar com defeito. Duas mulheres de rosto vermelho, usando crinolinas, sentavam-se do outro lado, parecendo extremamente irritadas e refrescando-se com leques de marfim. Estavam enojadas com a grosseria daquele homem e com o comportamento tímido dos maridos. Os maridos, usando coletes, estavam parados junto à porta sorrindo educadamente, parecendo hipnotizados, o que, claro, era verdade.
— Devo dizer — conseguiu falar uma mulher por baixo do chapéu com rede — que o senhor tem modos de um javali selvagem.
Como se concordasse, Zackya soltou um peido, fungou e depois continuou a roncar. Um cheiro de podre encheu o vagão.
— Assim já é demais! —As damas encostaram lenços no nariz e, tossindo, saíram.
Ojas voltou com água, alguns pães roti e um cozido de legumes. Comeram rapidamente, já que se alimentar no alto do trem em movimento seria definitivamente uma experiência “comer contra o vento”. E então, com um apito, o trem partiu de novo.
De cima do trem eles viram avenidas de árvores e distantes conjuntos de bangalôs onde os ingleses viviam e povoados indianos simples. Viram palácios majestosos pertencentes a ricos indianos e antigos templos hindus que pareciam aqueles castelos de areia que se faz pingando areia molhada num mesmo lugar até formar um monte. Viram soldados indianos vestidos com uniformes vitorianos e ocasionalmente oficiais e soldados de cavalaria ingleses. Passaram por multidões coloridas realizando cerimônias religiosas diante de templos e atravessaram centenas de campos onde famílias de agricultores indianos trabalhavam. Por fim, depois de sete horas longas e quentes, chegaram a Jaipur.
Molly e seus amigos ficaram parados enquanto todo mundo desembarcava. Seus ouvidos ainda zumbiam por causa do vento, e os rostos estavam queimados de sol, além de secos e sujos da poeira e da fumaça da locomotiva. Molly vigiou cuidadosamente até que por fim avistou Zackya no meio da multidão. Ele estava andando de modo estranho — como se houvesse algo errado com suas calças. E havia mesmo. Enquanto estivera dormindo, o pó da mulher do chá havia causado uma infeliz explosão em seu traseiro. A multidão parecia abrir caminho para ele passar e Molly notou três crianças indianas segurando o nariz e apontando para ele, rindo. Zackya foi até um ponto de carruagens e se meteu na frente da fila comprida. Dois elegantes oficiais ingleses e suas esposas exageradamente vestidas objetaram ruidosamente, mas logo foram acalmados por uma dose de hipnotismo. Zackya subiu numa charrete e apontou na direção em que desejava ir.
Mas antes que sua charrete puxada por um homem partisse, três adolescentes se aproximaram dela. Levantaram as mãos e jogaram o que pareciam sacos de farinha em cima de Zackya. Os sacos explodiram com o impacto encharcando-o de tinta colorida — vermelha, laranja e azul. Os adolescentes ficaram pulando e rindo enquanto Zackya se levantava e sacudia o punho para eles.
— O que foi aquilo? — perguntou Rocky quando a charrete partiu.
Ojas gargalhou.
— Em março a índia celebra o festival de Holi. As pessoas jogam sacos de tinta colorida umas nas outras. Por que você acha que a túnica que eu estava usando antes era tão manchada? Em Déli as comemorações quase acabaram, mas parece que aqui o pessoal ainda está se divertindo.
Por fim, molhados com tinta azul, vermelha e amarela que fora jogada neles enquanto esperavam transporte na fila, todos se empilharam numa carroça puxada por um búfalo. Ojas tinha descoberto que Zackya fora na direção de um lugar chamado Palácio Âmbar, por isso instruiu o velho agricultor que dirigia a carroça a levá-los até lá.
Quando saíram da estação, viram o festival de Holi acontecendo com força total. Moças dançavam para a multidão. Outras cantavam alegres canções de Holi. Pessoas perseguiam e jogavam tinta umas nas outras, ou disparavam a tintura usando estranhas pistolas d›água do século dezenove. Todas gritavam e riam.
A carroça saiu da cidade até um lugar onde as estradas eram ladeadas por um mato emplumado e os campos eram cheios de cana-de-açúcar. Passaram por bosques de árvores com vagens grandes e gordas penduradas e onde cabritos amarrados pastavam. Forest apontou para mangueiras e árvores de pistache, e para uma cobra que ninguém viu, depois ficou em silêncio. Todos estavam exaustos — em parte pela longa viagem de trem, mas principalmente, para Molly, Rocky e Forest, porque a viagem no tempo era em si muito cansativa. Por isso se ajeitaram do modo mais confortável nos sacos de juta do agricultor e logo, com o balanço da carroça e o canto distante de um templo, adormeceram.
Quando Molly acordou, o sol estava muito baixo no céu. Rocky já estava desperto. Ele sorriu. A carroça bamboleava por uma estrada esburacada e à esquerda o terreno descia até um vale árido. Adiante e mais acima ficava um enorme palácio cinzento. Uma estrada sinuosa e murada subia de um pequeno povoado no pé do morro até a entrada no topo.
Molly descobriu que, enquanto estivera dormindo, sua cabeça havia se enchido de novas lembranças de seu eu de dez anos hipnotizado. Lembrou-se de que Uaqt levou-as de elefante até esse palácio no alto do morro, deixou-as num aposento decorado com conchas e saiu com o bebê Molly.
Rocky se encolheu quando ela contou.
— Isso é esquisito demais — disse ele.
— É horrível. Agora minha vida depende da veneta de Uaqt. Se ele tiver um ataque de mau humor e decidir acabar comigo, estou morta. E eu aqui e agora? Bom, simplesmente desapareço. E se isso acontecer, se ele me matar quando eu for bebê, isso significa que nunca cresci no orfanato e todo o seu passado também vai mudar. Nós não teríamos sido amigos, nunca teríamos ido a Nova York ou Los Angeles juntos. Quem sabe onde você estaria agora?
— Seria um fugitivo nos Estados Unidos. Eu teria sido adotado por aquela família e fugiria.
— Gostaria de pensar num modo de pegar Uaqt. — Molly franziu a testa. — Só persegui-lo já parece uma coisa tão fora de controle. — Petula lambeu sua mão e levantou as orelhas enquanto tentava sentir por que Molly estava tão tensa.
— É preciso pensar do seguinte modo — raciocinou Rocky. — Se ele matar você pequenina, você não vai sentir. De repente não vai estar mais aqui.
Os olhos de Molly se arregalaram como se ela tivesse visto um monstro.
— Mesmo que doa, você não vai sentir agora. Porque o sofrimento vai estar no seu passado. Existiria a lembrança de ele estar quase matando você, acho. O que seria uma lembrança horrível. E então estaria morta. Nesse ponto, você, eu, Petula e Forest não estaríamos aqui na índia, porque o passado teria arrancado você do quadro. Tudo vai se ajustar ao fato de você ter morrido quando era criança, e nenhum de nós terá a mínima idéia do que poderia ter sido. É o que aconteceria. Portanto você não deve se preocupar, Molly. Não adianta se preocupar.
— Mas veja isso, Rocky. — Molly mostrou a cicatriz no pescoço.
— Quando foi que aconteceu?
— Quando fomos para o futuro.
— Mas não veio junto com uma lembrança de como aconteceu?
— Não.
— Estranho.
— Eu sei. Rocky, você sabe que se ele matar meu eu mais novo, antes de eu encontrar o livro de hipnotismo, bem, então Cornelius teria feito tudo que Uaqt queria. E isso será muito ruim para as pessoas do mundo. Portanto há um motivo maior para impedir Uaqt de me matar quando eu era pequena. Mas, de qualquer modo, não quero morrer. Ainda tenho muito o que fazer. Queria inaugurar aquele hospital hipnótico, e não sair caçando esse homem horrendo pela índia. Esse era o meu plano.
Rocky riu.
— Talvez ele seja seu primeiro paciente.
— E você, Rocky, poderá escrever uma música sobre isso, quando esse pesadelo acabar.
Molly sentiu-se melhor. Acordou Ojas e pediu que ele dissesse ao carroceiro enrugado para olhar nos olhos dela, para que ela pudesse hipnotizá-lo.
Logo os olhos do velho, cobertos de catarata, ficaram vidrados e Ojas lhe deu instruções para ele ir até o palácio e dizer que precisava recolher alguns tapetes que deviam ser consertados.
Molly, Rocky, Forest e Petula se esconderam sob o monte de sacos de juta na carroça e Ojas sentou-se ao lado do carroceiro. Ele havia tirado sua nova blusa elegante, de modo que o peito estava nu, e usava a calça velha.
A carroça começou a viagem pela estrada calçada de pedras até o Palácio Âmbar.
Zackya estava andando de um lado para o outro em seus aposentos particulares. Tinha se livrado da calça suja e agora, recém-saído do banho, cheirava a cravo e essência de laranjeira. Nunca antes tivera um acidente assim. Tomou uma infusão de mel e camomila na esperança de acalmar os nervos abalados. Mas isso era impossível, porque no pátio abaixo de seus aposentos podia ver Uaqt com um manto comprido, gesticulando e instruindo ruidosamente um grupo de sacerdotes anciãos reunido em volta dele.
Estavam ao lado da fonte de cristal do Palácio Âmbar. Não parecia grande coisa — era uma pedra comum com uma longa rachadura — mas seu valor era incalculável. Porque, como todas as fontes de cristais, aquela pedra rachada produzia cristais a intervalos de alguns anos. Zackya tinha visitado centenas de fontes de cristais. Na China, Uaqt se apropriara de um antigo mapa-múndi que localizava fontes de cristais e previa quando elas iriam produzir. Assim Uaqt tinha viajado comoum maníaco, de uma fonte à outra, chegando a tempo de colher as pedras preciosas.
A fonte de cristal do palácio de Jaipur produzia pedras a cada lua cheia de março. A presença hipnótica de Uaqt ajudava a retirá-las da terra. Zackya nunca fora convidado a se juntar a ele durante essas cerimônias, já que Uaqt não considerava Zackya um hipnotizador bom o bastante para magnetizar os cristais. Zackya fungou. Ficou olhando enquanto seu patrão explicava aos sacerdotes como a cerimônia deveria acontecer. Sabia que o marajá estava particularmente empolgado com aquela noite, calculando que com as quatro Mollys presentes, em especial o bebê Molly, os cristais jorrariam da terra como nunca. Estava obcecado com aquele bebê, pensou Zackya.
Tudo isso vai acabar em lágrimas — previu, olhando pela janela e observando Uaqt pegar um punhado de cristais do saco de veludo e espalhá-los na pedra. Zackya sempre ficava longe das estranhas cerimônias do patrão. Durante os quinze anos que haviam passado na China tinha visto o patrão montar sua própria religião, uma religião que girava em torno dos cristais. Tinha observado Uaqt pegar uma fatia de uma religião, uma pitada de outra, uma colherada de uma terceira e misturá-las.
O que arrepiava Zackya agora era a perspectiva de que teria de estragar a cerimônia especial do patrão contando que a Molly de onze anos estava desaparecida. Isso poderia ser a gota d’água. Talvez fosse hoje que Uaqt finalmente iria hipnotizar Zackya. Estremeceu. Ser hipnotizado por Uaqt era seu medo mais profundo. Não queria acabar como um zumbi hipnotizado. Zackya desprezava Molly Moon por ter fugido. Odiava-a por ter causado essa situação. Tremeu enquanto tomava a bebida com mel e se preparou para descer ao pátio.
Através de uma abertura entre os sacos Molly podia ver os altos muros da estrada íngreme e os vários arcos por onde passavam. No topo da encosta a carroça parou e o carroceiro explicou aos guardas, em hindi, que viera pegar alguns tapetes que precisavam de conserto. Os guardas o deixaram entrar sem perguntas.
Agora as rodas de madeira da carroça chacoalhavam passando pelo último portão do palácio e entrando no pátio inferior. Molly ousou espiar em meio aos sacos, e o que viu a fez dar um pulo. A toda volta havia elefantes com a cara pintada e enfeites de cabeça feitos de seda amarela. Seus mahouts estavam montados, com as pernas dobradas atrás das orelhas dos animais. Eles conversavam entre si, por isso não notaram as formas na parte de trás da carroça. Mas um elefante investigou e Molly sentiu a tromba sondar e farejar sua perna. O dono do animal deu uma ordem ríspida e a tromba se recolheu depressa. Enquanto passavam, outro elefante fez xixi, molhando um guarda no chão. O guarda ficou furioso e começou a balançar a espada para o elefante mal-educado, e os mahouts riram como se aquilo fosse a coisa mais engraçada que já tivessem visto. Essa distração foi perfeita para a entrada da carroça na área interna.
Molly, Rocky, Forest e Petula ficaram em silêncio embaixo do tecido de juta, tensos e imóveis. Molly podia sentir que estava muito perto de seus eus mais jovens. Havia um certo calor, uma sensação confortável por dentro, logo abaixo das costelas. Imaginou se elas também poderiam senti-la.
Mas por baixo dessa sensação calorosa havia um alarme agudo e muito distante. Sabia instintivamente que esse medo vinha de seu eu bebê. Seu eu bebê estava chorando. Molly quis pular da carroça e ir até onde Uaqt estivesse. Queria arrancar o bebê dele. Queria fazer Uaqt desaparecer. Mas isso era impossível. Sabia que precisava ter paciência.
A carroça foi até uma clareira ao lado da entrada de serviço do palácio. Molly ouviu o carroceiro explicar alguma coisa a alguém. Ojas também deu uma instrução e a carroça foi levada até um lugar calmo e coberto. Ouviu sons de passos se afastando. Ojas cutucou Molly.
— Venha sozinha comigo agora — sibilou ansioso. — Vamos descobrir onde Uaqt está.
Molly jogou para longe os panos que a cobriam e saiu. Petula deu um leve ganido.
— Vejo você depois — sussurrou Molly, e foi rapidamente com Ojas por um corredor coberto de palha. No fim havia uma pequena entrada lateral para o palácio. Ojas empurrou a porta silenciosamente e prestou atenção. Em seguida chamou Molly para dentro. De novo a cabeça de Molly estava se enchendo de lembranças.
A Molly de dez anos estava sentada num banco olhando para um pátio elevado. O marajá gigante estava diante dela, ao lado de uma pedra. Tinha um bebê no colo. A menininha parecia uma boneca minúscula segura por mãos grandes demais. Nas sacadas baixas ao redor, os serviçais do palácio assistiam a tudo. E cantando num círculo em volta do gigante havia quinze homens esquisitos, velhos, com barbas e bigodes brancos, vestindo compridos e largos mantos roxos. O marajá começou a passar o bebê de um para o outro. Cada velho fazia uma reverência enquanto pegava a menininha e depois ia até a pedra para borrifar água, depois pétalas de flores, em seguida poeira. O bebê estava chorando, mas ninguém parecia se importar.
Ojas foi na frente, até uma escada em espiral.
— Elas estão muito no alto — explicou Molly. — Veja bem, eu tenho lembranças nítidas de elas terem estado no topo do palácio.
— Bem, isto aqui é provavelmente a parte mais alta do palácio — disse Ojas, ofegando. — Só espero que a gente não encontre nenhum guarda.
— Eu posso hipnotizar os guardas, lembre-se — garantiu Molly.
Por fim surgiu uma porta. Estava trancada. Ojas olhou de um lado para o outro e depois pegou um pedaço de arame no bolso.
— O tempo que passei roubando me deu habilidades úteis — disse abrindo a fechadura com o arame.
Viram-se numa sala de uma torre com tapetes vermelhos e desbotados nas paredes. Para desapontamento de Molly, aquele não era o lugar de suas lembranças. Mas dali podiam vê-lo. Através da alta janela da torre, Ojas e ela enxergavam o grande pátio central. As vozes dos estranhos sacerdotes cantando ecoavam pelo palácio.
— OOOhhhdllllyyaaaaaaa! OOOOOhhhhdhhhyyllllyy- yaaaaaaa!
Dois deles giravam como estranhos corvos dando pulos. Acima, uma débil lua cheia pairava no céu empoeirado, como um ator tímido com medo de representar. Uaqt segurou o bebê Molly acima da cabeça e girou-a como se a usasse para atrair a lua. Em seguida colocou-a num cobertor sobre uma pedra atrás das outras Mollys. Elas estavam sentadas hipnotizadas, sem saber (assim como a Molly que observava) das maravilhosas propriedades da rocha rachada, atrás delas. Os velhos sacerdotes dançavam. Seus mantos balançavam enquanto eles giravam como piões.
E então, perto do bebê Molly, a pedra especial deu à luz. Um a um, nove cristais — três vermelhos, três verdes e três incolores — emergiram da rachadura como enormes besouros brilhantes. Uaqt saltou sobre eles e rugiu de prazer.
Do seu posto de observação no alto, Molly e Ojas escutaram os rosnados de Uaqt, parecidos com os de uma morsa, mas não faziam idéia do que os havia provocado. Viram nervosos quando ele se curvou sobre o bebê Molly. Depois viram Zackya saindo cautelosamente do meio da multidão. Ele abriu caminho entre os sacerdotes que pulavam, aproximou-se de Uaqt e o chamou para perto.
Molly pôde ver Zackya pegando o aparelho prateado no bolso e mostrando a Uaqt. Parecia implorar.
Os olhos amarelos de Uaqt se estreitaram e ele rosnou para o seu assistente.
— O que é, Yackza? É melhor que seja importante. Muito importante.
Zackya ficou na ponta dos pés para murmurar no ouvido de Uaqt.
— Talvez eu tenha esperado muito de você, seu idiota incompetente — rosnou Uaqt furioso. — Não é a máquina que precisa de conserto, é o seu cérebro. Não sei por que ainda me incomodo com você. — Então, como se alguma coisa dentro dele houvesse estalado, ele gritou: — «EU DEVERIA ACABAR COM VOCÊ AGORA, SUA CRIATURA INÚTIL!» — O grito ecoou pelo pátio subindo no ar pesado. Os tambores pararam. Os sacerdotes se curvaram até se transformarem em corcovas cobertas pelos mantos. A multidão se manteve num silêncio temeroso. Quatro guardas com sabres ficaram em posição de sentido e o barulho metálico das espadas sendo desembainhadas encheu o ar. Zackya viu a intensidade da explosão e tentou avaliar se realmente seria executado. Seria o fim? Então Uaqt lhe deu as costas e começou a murmurar. Zackya soltou um suspiro de alívio.
— Essa tal de Molly Moon é esperta — observou Uaqt, falando sozinho, estimulado pela idéia daquela hipnotizadora jovem e brilhante. — Esperta o bastante para me seguir, provavelmente usando suas próprias lembranças. Ha! Talvez ela me proporcione alguma diversão. Adoro paçar e quescar. — Em seguida foi até as Mollys de dez, seis e três anos e sussurrou para elas: — De agora em diante vocês vão esquecer tudo que lhes acontecer aqui na índia, a não ser que eu mande lembrar. — E deu um risinho malévolo, gutural.
— Veja bem — continuou, jogando as palavras para Zackya, que estava atrás. — Agora bosso princar de pega-pega com a Molly Moon fujona. Se eu quiser que ela saiba onde estou, posso fazer isso. Posso deixar uma dessas três lembrar de alguma coisa, como pista para ela. Mas se eu quiser, posso impedir que elas lembrem e ela não vai saber onde estamos. Ha! Ha ha ha! Ela terá de seguir as pistas que eu escolher. Ah, que divertido!
Uaqt nunca havia brincado quando era jovem. Agora parecia uma criança mimada e monstruosa criando regras injustas num jogo que ele pretendia vencer.
Lá na torre, Molly e Ojas observavam e tentavam decifrar as palavras de Uaqt. Então ouviram um gemido vindo da coluna atrás deles.
Molly se virou e viu uma pequena figura de pernas cruzadas, vestindo um manto azul sujo, sentada no chão ao lado de um pote cheio d’água. Usava um colar de pérolas e duas argolas nos tornozelos incrustadas com pedras preciosas. A situação do sujeito era muito parecida com a do marajá na Fortaleza Vermelha. Sem dúvida era o verdadeiro dono do Palácio Âmbar.
O homem todo torto estava encurvado como se estivesse ali há anos. Sua barba chegava ao colo e o cabelo branco desgrenhado caía sobre os ombros como uma avalanche.
— Olá... — começou Molly.
O velho olhava atentamente a parede, como se vigiasse um ovo chocando.
Ojas juntou as mãos, ajoelhou-se e fez uma reverência.
— Este é o marajá de Jaipur. Reconheço por causa do retrato, em Déli. Há anos correu a notícia de que, enquanto estava cavalgando, ele foi atacado por um leão da montanha.
O tempo todo ele esteve sentado aqui, com suas belas jóias, mas com roupas imundas! — Ojas estremeceu. — Uaqt tem coração de gelo. Você pode fazer alguma coisa para ajudá-lo?
Molly balançou a cabeça e segurou as mãos do velho.
— Por enquanto, não. Ele foi hipnotizado e Uaqt provavelmente trancou as instruções com uma senha de parada do tempo. Se eu soubesse a senha poderia destrancá-las, mas pode ser qualquer palavra em todo o universo.
Ojas inclinou a cabeça de lado.
— Por que não volta no tempo até quando ele foi hipnotizado e escuta o que Uaqt falou?
A idéia era tão simples que chocou Molly. Se o gigante tivesse terminado de hipnotizá-lo ali na torre, em tese ela poderia escutar.
— O problema... — sussurrou para Ojas —... o problema é que toda vez que eu viajo no tempo minha pele vai ficando escamosa.
— Ah, sei. Ah, isso não é bom, não é, Molly? — disse Ojas examinando a pele cheia de cascas perto do ouvido de Molly.
— Não quero acabar com a cara cheia de escamas como o Uaqt e... — Molly olhou para o pobre marajá aprisionado e hesitou. — Certo, vou tentar.
Foi até as tapeçarias vermelhas, esperando que sempre tivessem estado penduradas ali. Afastou uma delas da parede.
— Não vá a lugar nenhum — disse a Ojas. — Volto em alguns segundos.
— Alguns segundos?
— Hmm. Bem, talvez eu não consiga voltar exatamente no tempo certo, de modo que você deve prestar atenção a qualquer pessoa que apareça. Se eu demorar demais, esconda-se aqui também, certo?
Ojas assentiu e Molly desapareceu atrás da tapeçaria. Segurou o cristal verde na mão esquerda e, depois de respirar concentrada e lentamente algumas vezes, quando pensou de novo em como era incrível poder viajar no tempo, partiu. Enquanto zumbia de volta, com os ventos do tempo acariciando-a, estendeu as antenas invisíveis e tentou localizar um tempo há dois anos. Parou e espiou de trás da cortina. Como não havia ninguém na sala, achou que devia ter ido longe demais. Decidiu se adiantar no tempo o mais lentamente que podia, sem que o corpo ficasse visível, para poder ver o momento em que o marajá de Jaipur foi aprisionado na torre. Esperava ver a silhueta gigantesca de Uaqt hipnotizando-o. Segurou o cristal vermelho.
Lá fora, dia e noite piscavam. Molly se obrigou a ir mais devagar. De repente percebeu um homem sentado de pernas cruzadas no chão. Queria vê-lo chegando na sala, por isso se concentrou na pedra verde e recuou. Lentamente. O mais lentamente que podia. De súbito, através de uma névoa de tempo em movimento, viu um gigante andando para trás na sala. Claro, como ela estava andando para trás no tempo, tudo ia ao contrário. O encurvado marajá de Uaqt andou de um lado para o outro na sala e depois se agachou no piso. Depois andou para trás saindo da sala com o marajá de Jaipur. Era como se Molly tivesse acabado de rebobinar uma fita de vídeo e visto o que iria acontecer, ao contrário. Parou. A névoa da viagem no tempo desapareceu e ela pôde ver tudo com clareza.
Certificou-se de que estava escondida atrás da tapeçaria e esperou.
Então escutou Uaqt subindo a escada. Ele estava com raiva porque, como sempre, o espaço era pequeno demais.
Uaqt abriu a porta e, arrastando o marajá, entrou na sala. Molly mal ousava respirar. Ouvia atentamente e espiava por um buraco na tapeçaria. Viu a arma de Uaqt.
— E de agora em diante você estará sob meu poder — disse Uaqt ao marajá hipnotizado.
Então Molly notou que Uaqt estava segurando um cristal vermelho. Sem dizer nada, ele pôs a mão no ombro do velho príncipe e apertou a pedra. Molly não podia acreditar na própria sorte. Uaqt ia levar o marajá de Jaipur numa pequena viagem no tempo — ia levá-lo um pouco adiante e trancar a hipnose com uma senha enquanto estivessem flutuando no tempo. Sem pensar, Molly segurou também seu cristal vermelho.
Atrás da tapeçaria ela se concentrou e deixou as estranhas antenas sentirem para onde Uaqt estava indo. Era como seguir alguém no escuro.
Uaqt e o marajá de Jaipur não tinham mudado de lugar, no entanto moviam-se lentamente no tempo e Molly os acompanhava. Podia ver as formas deles claramente pela abertura na tapeçaria, mesmo que o resto da sala da torre passasse relampejando — manhã, tarde, noite. Molly libertou a mente e deixou seus sentidos a levarem. Se pudesse acompanhá-los ouviria a senha. Podia escutar trechos do que Uaqt estava dizendo, mas, se não estivesse na zona de tempo exata em que ele falava, perderia as palavras. Era extremamente difícil. Era como ouvir alguém falando ao telefone numa ligação ruim, algumas palavras se perdiam.
— Você... sob o meu... até... Agora e... estará trancada... as palavras.... “Vap”... digo de novo... “Avo”... “Pão”... —Uaqt parou o tempo e Molly se deixou prosseguir para a frente. Não queria continuar seguindo Uaqt. Usando as antenas como controles de pouso, calculou quando havia deixado Ojas. Abriu os olhos e espiou pela cortina.
— Quanto tempo demorei? — perguntou saindo.
Ojas ficou chocado.
— Você só saiu há dois minutos! — Ele olhou-a e, pelo modo como suas sobrancelhas se levantaram, Molly soube que a pele escamosa devia ter piorado.
— Noção de tempo perfeita — disse, ignorando a expressão dele.
A cerimônia lá fora continuava. Todos os homens com mantos estavam ajoelhados, batendo uns nos outros com grandes plumas verdes.
Molly correu até o velho marajá e segurou sua mão. Pegou o cristal vermelho e levou o homem ligeiramente para a frente, pairando no tempo. Porque suspeitava que apenas nesse estado a tranca de viagem no tempo poderia ser aberta.
— Agora o senhor está livre, não mais sob o comando hipnótico do marajá de Uaqt. Liberto-o com as palavras “Vap!”... “Avo!”... —Nada aconteceu. — Com as palavras “Pão!”... “Avo!”
Molly pairou na menor velocidade de viagem no tempo possível. Obviamente perdera algo que Uaqt tinha dito.
— Com a palavra “Vapor!” — tentou. — “Pão a Vapor!”... “Vão se Pôr!”... “Pavor do Pão!” — Nada aconteceu, ainda. Molly desistiu. Ajudaria o marajá de Jaipur mais tarde, mas agora precisava poupar energia. Pousou de volta no tempo de Ojas. Ele parecia preocupado.
— E então?
— Não consigo.
Ojas balançou a cabeça, triste.
— Não se preocupe. Você tentou. Mas agora temos de voltar depressa para a carroça, Molly. Olhe, a cerimônia acabou.
De fato, o pátio lá fora estava vazio.
Molly parou um instante para tocar a bochecha do velho. Ojas acariciou os pés dele e a argola de tornozelo incrustada de jóias.
— Agüente firme — disse Molly. — Vamos voltar para libertá-lo. E vamos nos livrar de Uaqt, não se preocupe. Ele não é tão esperto quanto imagina. Vamos pegá-lo com a guarda baixa. — O marajá piscou e fungou. Ela esperava que ele pudesse entender. Sabia que a promessa ousada que tinha feito era tanto para si própria quanto para o marajá. Bem no fundo sentia tanta confiança quanto um camundongo nas garras de uma águia.
Então ela e Ojas desceram rapidamente a íngreme escada de pedra. Saíram de fininho pela porta.
Para seu horror, a carroça havia desaparecido.
O estômago de Molly deu um salto. Será que Rocky, Petula e Forest haviam sido descobertos? Olhou para o céu da tarde que ia ficando vermelho, como se a resposta estivesse lá.
— Psst.
Com alívio gigantesco, Molly viu o rosto escuro de Rocky surgir por atrás de uma escada que descia até algum lugar embaixo do palácio. Ela e Ojas foram correndo.
— O que aconteceu? — perguntou Rocky. Petula pulou no colo de Molly que a abraçou.
— Uaqt estava fazendo uma cerimônia estranha. Nós descobrimos o velho que é o verdadeiro dono deste palácio. Tentei ajudá-lo, mas não adiantou. O que aconteceu com vocês?
— Uns trabalhadores da cozinha apareceram e começaram a falar com o carroceiro. Jogaram um monte de lixo na carroça e mandaram ele levar aquilo tudo para fora do palácio. Claro, eu não podia usar minha voz com eles, não falo a língua. Só pulamos fora sem que eles vissem.
— Cara, aquele lixo fedia — disse Forest, tirando cascas verdes de cima da cabeça. — Meu cabelo está fedendo!
Petula ergueu o focinho, lendo os cheiros. Ojas também farejou.
— Este odor é muito bom — disse ele como se saboreasse uma sopa deliciosa.
— Se você gosta de repolho podre.
— Não. Tem uma coisa muito melhor. Não sente o cheiro? São elefantes!
À distância, tambores soavam solenemente. Molly sentiu que agora seu eu bebê estava dormindo a sono solto, obviamente exausta com aquele sofrimento terrível, mas, estranhamente, não recebia nenhuma lembrança do seu eu de dez anos, do de seis ou do de três sobre o que teria acontecido depois da cerimônia. Imaginou o motivo.
— Vejam! — disse Ojas, apontando para os degraus escuros atrás deles. — Esta é a entrada dos fundos para os estábulos dos elefantes. — Como uma pessoa faminta que seguisse o cheiro de cebolas fritando, ele começou a descer, e os outros, escutando vozes se aproximando no pátio, foram atrás.
— Onde há elefantes sempre há esperança — disse Ojas.
— Onde há elefantes sempre há montes de cocô de elefante — disse Rocky baixinho. Enquanto desciam, o cheiro forte de elefantes foi aumentando, até que por fim ergueram em silêncio a tranca de uma porta de madeira.
A frente havia um enorme e sombreado estábulo de elefantes, com piso de pedras e altas paredes de mármore que dividiam o espaço em doze grandes baias para elefantes, seis de cada lado, com um amplo corredor no meio. No piso havia palha sobre o mármore gasto. Molly colocou Petula no chão.
— Fique perto — sussurrou para ela.
O portão de cada baia tinha uma coluna de mármore com uma cabeça de elefante esculpida. Em cada coluna havia uma placa de cobre com um nome escrito.
— Ah, que belo estábulo! — suspirou Ojas, admirando. — Meu pai me falou deste lugar. — Ele seguiu pelo corredor entre as baias gigantescas. Por um momento pareceu triste e distante.
Molly olhou em volta do estábulo. Dentro de cada baia havia montes de palha e enormes argolas de ferro engastadas no chão. Havia cochos de água na parte de trás e enormes cestos com guloseimas para os elefantes, como bananas e mangas. No chão, viu monturos de plantas e troncos de palmeiras para os elefantes comerem as folhas. Petula farejou o chão, fascinada com os cheiros fortes.
Molly olhou ansiosa para trás, imaginando se alguém estaria vindo. Na outra extremidade do estábulo havia uma porta entreaberta. A luz do crepúsculo entrava por duas grandes janelas sem vidro.
Foram para lá. Quando fizeram isso, um ronco ecoou no estábulo. Imediatamente eles se esconderam atrás de uma coluna.
Molly assobiou baixinho chamando Petula e sinalizou em silêncio para Ojas. Apontou para a parede e pôs as mãos numa posição como se perguntasse “quem você acha que é?”. Ojas inclinou a cabeça, apurando o ouvido para identificar o tom do ronco.
— Será um guarda dormindo? — sussurrou Molly.
— Eu achava que você não tinha medo de guardas — disse Ojas, sorrindo. Depois se esgueirou e espiou em volta da coluna, examinando a próxima baia. Voltou com um riso enorme no rosto e chamou-os com o dedo.
No cubículo seguinte havia uma visão magnífica — o enorme traseiro de um elefante. O traseiro era pintado de modo a parecer que ele estava usando uma calça florida. E como os elefantes têm a pele muito frouxa no traseiro e nas patas de trás, a calça pintada parecia estar escorregando. O ombro da frente do elefante estava encostado na parede da baia e as gigantescas patas traseiras estavam cruzadas, mostrando os quadris num ângulo estranho. O bicho usava gigantescas tornozeleiras prateadas. Uma corrente passava por elas e ia até a argola de ferro no piso do estábulo. Havia uma almofada de retalhos jogada sobre as costas, e em cima dela uma guddha, ou sela, feita de aniagem cheia de palha. Em cima dessa guddha havia uma caixa com dossel, para transportar pessoas: um howda. Tudo preso com cordas.
— O nome dela é Amrit — disse Ojas, lendo a placa.
— E quem é aquele carinha? — perguntou Forest.
— Carinha?
— Aquele homem no chão.
— Ah, aquele “carinha” é o mahout dela, mas agora está dormindo porque andou bebendo demais.
— Quer dizer que ele está bêbado? — perguntou Molly.
— É, totalmente apagado! — concordou Ojas, balançando a cabeça e rindo.
O homem magro e moreno esparramado na palha atrás da elefanta Amrit estava dormindo a sono solto. A boca aberta emitindo um ronco molhado e gutural. Uma mosca entrou em sua boca e chegou a pousar sobre os dentes, antes de sair de novo. Ojas fez «tsk tsk».
— Um homem assim não deveria ter permissão de cuidar de uma criatura tão maravilhosa.
— A elefanta está dormindo também? — perguntou Molly.
Como se respondesse, a elefanta abriu os olhos pequenos
e brilhantes, apoiou o corpo nas quatro patas, levantou o tronco em direção ao cesto de guloseimas e jogou uma banana aos visitantes. Acertou na cabeça de Forest.
— Cara, o que foi que eu fiz?
Ojas riu. Depois se aproximou de Amrit e casualmente deslizou a mão ao longo de seu lado direito em direção às presas com argolas prateadas. Fez alguns ruídos com a garganta, estalou a língua baixinho e acariciou o ombro cinza.
— Boa menina. — Por sua vez ela sondou a cabeça e o rosto de Ojas com a ponta sardenta e rosada da tromba. Ele tocou o enfeite de cabeça do animal. — Ela obviamente deveria sair com os outros elefantes. O mahout aqui estragou seu dia. Por que não a levamos?
— Nós? — perguntou Molly.
— É, montar nela vai ser «canja», como vocês dizem.
— Eu nunca digo isso — disse Rocky. — Eu digo “moleza”.
— Vai ser moleza, então. “Amrit” significa “Néctar” em hindi. Doce Néctar! Acho que isso significa que ela é boazinha. Amrit não será problema para mim.
— Cara, isso é um barato mastodôntico! — exclamou Forest, rindo do próprio trocadilho. — Mas a dona vai levar todos nós?
— Ah, sim, esta elefanta poderia levar até dois a mais, com facilidade. — Com os movimentos ágeis de um especialista, Ojas começou a andar de um lado para o outro na palha, soltando as amarras de Amrit. — Devemos seguir os outros elefantes. — Ele pegou uma vara comprida com um gancho duplo na ponta. — Isto é um ankush. Não se preocupem. Parece assustador, eu sei, mas, para um elefante, ser cutucado comisso é igual a você ser cutucada com um garfinho. Algumas vezes ele tem de ser usado com um pouco mais de força. Os elefantes podem ser perigosos caso se comportem mal, por isso é importante ter alguma forma de controlá-los.
Molly ficou olhando Ojas tirar o turbante do mahout e colocar na própria cabeça. O homem fez ruídos com a boca, algo como “miâm miâm miâm», antes de se enrolar como um bebê e mergulhar num sono ainda mais profundo.
— Ojas está certo — disse ela. — Devemos seguir os outros elefantes. Os elefantes não estariam tão enfeitados assim, a não ser para o Uaqt. Então, se quisermos permanecer na pista dele, este é o melhor modo. Vamos estar bem disfarçados.
Ojas pegou o casaco do bêbado num gancho da parede.
— Acho que você tem razão — disse Rocky.
Ojas começou a empurrar o enorme peito da elefanta e ela andou de costas para sair da baia.
— Pichay, pichay — disse ele, acrescentando: — Além disso, o que mais você pode fazer? Pode andar para trás e para a frente no tempo, mas em algum momento, Molly, você tem de chegar perto, bem perto de Uaqt. Você vai ter de matá-lo, Molly. Percebe isso?
Molly ficou gelada. Sobre a palha do estábulo ficou olhando Ojas empurrar Amrit. Simplesmente olhava, como se ele não tivesse dito nada, porém o impacto do que ele disse, fora enorme.
A idéia de que o único modo de resolver realmente esta situação era matar Uaqt só havia sido sugerida, mas era tão terrível que ela a havia empurrado para o fundo da mente. Porque não era assassina. Não poderia matar. Como poderia viver consigo mesma se matasse? Mas a não ser que matasse, pensou agora, talvez ela própria seria morta.
Quando Molly saiu do atordoamento, Rocky e Forest montaram em Amrit. Molly pegou Petula e subiu também. Franziu a testa. Um venenoso coquetel de sentimentos borbulhava dentro dela.
Ojas subiu e sentou-se com as pernas atrás das orelhas de Amrit. Atrás dele um dossel cobria os novos amigos, que estavam sentados, meio ocultos no howdah, enrolados em quentes cobertores reais. Por um momento Ojas ficou quieto. Fechou os olhos e rezou a Ganesh, o deus-elefante, pedindo sorte na jornada. As últimas palavras do pai, antes de morrer, preencheram sua mente.
“Sempre vou estar perto, zelando por você, Ojas. Sempre acredite em si mesmo e sempre se lembre de que vou amá-lo eternamente. “
Piscando para conter as lágrimas, Ojas estalou a língua.
Por fim, ouvindo a voz de seu novo senhor — “Agit! Agit!” — Amrit saiu do estábulo.
A paisagem era magnífica e perdia-se de vista. Enquanto Amrit descia majestosamente a encosta que ia do pátio superior até o de baixo, Molly podia ver o topo da cabeça dos soldados. Viu uns dois brincando, jogando pequenos sacos de tintura de Holi um no outro, como se, agora que Uaqt estava longe, pudessem se divertir. Viu os empregados do palácio correndo de um lado para o outro preparando-se para a noite e pôde enxergar, por cima dos muros, o campo ao redor.
Ojas ia na frente, sobre o pescoço grosso e cinza de Amrit. As orelhas da elefanta possuíam um belo tom rosado e eram muito mais macias do que as outras partes cinzentas. Ela as balançava ao andar. Molly tocou a pele cinza e coriácea e descobriu que era coberta por um monte de pêlos pretos e ásperos.
Incenso floral queimava no templo hindu do palácio e lá de dentro vinha o canto suave dos devotos. Amrit seguiu em silêncio sob os arcos gigantescos, construídos para permitir a
passagem dos elefantes, e desceu pela próxima encosta calçada de pedras.
Abaixo ficava o enorme lago do palácio, com sua forma quadrada brilhando à luz do crepúsculo. À distância podiam vislumbrar a procissão dos elefantes de Uaqt seguindo ao longo de uma crista de montanha. Homens carregavam tochas acesas na frente de cada elefante, de modo que o grupo parecia iluminado por um gigantesco fio de lâmpadas de natal.
Molly percebeu que o maior elefante, o terceiro, levava a maior carga. Achou que seria a de Uaqt.
— Rocky — sussurrou preocupada. — Não estou tendo nenhuma lembrança de ter andado de elefante quando tinha dez ou seis anos. Não acha estranho? Esse é o tipo de lembrança que a gente guarda para sempre. Por que não estou lembrando de um passeio de elefante? Será que Uaqt deixou as outras eus no palácio?
— Se ele fez isso — observou Rocky — você não se lembraria de ter sido deixada no palácio? — Ele ficou quieto por um tempo. — Acho mais provável que Uaqt tenha bloqueado sua memória para que você não saiba onde ele está.
Molly fechou os olhos.
— Você deve estar certo. — E suspirou, percebendo que o problema só havia aumentado. Amrit foi bamboleando em silêncio até a estrada principal, na direção dos outros.
Foi uma longa jornada. O balanço do corpo de Amrit e o tilintar de suas tornozeleiras fizeram Molly dormir.
Acordou sob uma lua cheia. Sentou-se, esfregou os ombros e ajeitou Petula, que havia sentado em sua perna.
Estavam numa estrada ladeada de árvores, aproximando-se de alguns prédios meio escondidos por árvores.
— Onde eles estão, Ojas?
— Não se preocupe — respondeu o garoto, cutucando Amrit gentilmente atrás das orelhas, com os pés. — Está vendo aquelas fogueiras lá embaixo? É lá que Uaqt está. Acho que está fazendo outra cerimônia. Ali é o Observatório de Jaipur. Foi construído por um príncipe muito, muito inteligente. Ele queria medir a distância da terra ao sol e às estrelas. Construiu outro observatório em Déli, onde já fui. São lugares muito estranhos, bonitos. Quando Amrit chegar perto, vocês poderão descer. Vão achar bons esconderijos no observatório. O que você vai fazer?
Molly pensou.
— Se puder, vou roubar os cristais de Uaqt. Todos. Talvez chegue suficientemente perto para resgatar meus outros eus.
— É. Vai dar certo, Molly. Está escuro e você está vestida como uma menina indiana. Uaqt não vai estar esperando você. Ele parece obcecado com aquelas cerimônias estranhas.
— Então você nunca tinha visto uma cerimônia como aquela, com aqueles homens esquisitos vestidos de roxo?
Ojas riu.
— Não, claro que não!
— Que religião você acha que é? — perguntou Rocky, espreguiçando-se.
— Uma religião nova? Uma religião criada por Uaqt? Não sei, Rocky! — Ojas riu de novo.
Mas Molly não achou engraçado. Como saber quais seriam as estranhas crenças de Uaqt?
Enquanto Amrit andava, o observatório surgia gradualmente. Perto da parede era possível ver enormes escadarias de pedra que pareciam escorregadores sem a parte de escorregar. A mais alta tinha um telhado em cima. Agora Molly podia ver os outros elefantes mais de perto. Cada qual tinha um mahout com os pés pousados na cabeça do animal, mas os passageiros haviam sumido.
Quando Rocky se levantou em cima de Amrit, pôde ver um grupo dos homens de roxo parados em volta de uma fogueira, com os rostos fantasmagóricos iluminados. Tambores soavam freneticamente, enchendo o ar noturno. Ele se sentou.
— Não vou deixar você ir lá sozinha — disse ele. Molly sorriu e, junto com Rocky, deslizou para o chão.
— Vamos voltar em menos tempo do que vocês conseguem dizer “homem roxo ao molho de curry”.
— Parece gostoso — murmurou Forest meio dormindo.
— Se alguma coisa acontecer conosco, Ojas, você cuida de Forest e Petula?
Ojas examinou o homem adormecido e franziu o nariz. Depois seu olhar pousou em Petula. Ele confirmou com a cabeça.
Molly e Rocky se esgueiraram pelo portão do observatório.
Petula ficou olhando. Não gostou nem um pouco de eles irem embora.
Para começar, conseguia sentir o cheiro do gigante e do seqüestrador. Mas havia algo mais. Algo maligno. Atrás do forte odor de elefantes e de uma fogueira, por trás dos cheiros inocentes que vinham das pessoas comuns, de temperos, assados e flores, Petula podia detectar o cheiro de um animal muito apavorado. O animal era um cabrito. Petula não gostou disso nem um pouco.
Molly havia ido a uma festa com fogueira quando tinha sete anos, e a cena à frente lembrou-a daquilo, se bem que, em vez de chuveirinhos de fogos nas mãos das pessoas havia tochas, e em vez de fogos de artifício uma lua cheia pairava no ar como uma bola de leite no céu. Caminharam rapidamente em meio à multidão, passando por elefantes e por uma daquelas escadas estranhas, até um lugar onde podiam ver sem ser vistos. De pé ao redor da fogueira que estalava, os velhos de Uaqt dançavam com seus mantos roxos, as chamas lançando sombras demoníacas em seus rostos barbudos.
À direita um círculo mais compacto de sacerdotes fantasmagóricos estendia os braços juntando as pontas dos dedos. O tecido que pendia das mangas largas formava uma parede de seda roxa. Os tambores batiam cada vez mais rápido. Enquanto o ritmo chegava a um frenesi, o círculo de homens tombou no chão, revelando Uaqt, com o rosto pintado de branco, agachado sobre uma pedra rachada. Ao seu lado estavam as três Mollys hipnotizadas. O bebê Molly num cobertor sobre a pedra. Uaqt levantou as mãos para a lua e balançou os braços como se fossem compridas algas marinhas. Parecia um diabo de filme de terror.
Então pegou a menina hipnotizada de seis anos. A Molly escondida ficou olhando cheia de repulsa, mal ousando pensar no que ele iria fazer. O fogo ardia ao lado do gigante. Ele foi até lá com a Molly de seis anos no colo. Chegou mais perto, mais perto e mais perto da fogueira até que se virou e entrou de costas nela. A platéia ficou boquiaberta. Uaqt desapareceu nas chamas.
Molly sabia onde ele estava e o que estava fazendo. No instante seguinte teve uma lembrança horrenda.
Uma voz alta havia gritado:
— ACORDE E LEMBRE-SE DISSO! SIGA-ME SE VOCÊ PUDER, MOLLY MOON! — Molly percebeu que essas palavras eram dirigidas a ela agora.
Lembrou-se de ter seis anos e de acordar subitamente encontrando o homem mastodôntico que havia conhecido antes, segurando-a no alto. O rosto dele estava pintando com um pó branco e ele ria como um palhaço enlouquecido. Ela se lembrou de ter gritado, chorando:
— Quero ir para casa!
E o medo da pequena Molly inundou Molly agora.
Uaqt apareceu subitamente, saindo da fogueira.
— Como ele entrou na fogueira assim? — perguntou Rocky.
A Molly de seis anos estava chorando alto e Petulazinha uivava. Uaqt pôs a menina no chão. Petulazinha pulou em cima dela e a menina agarrou a cadelinha que parecia de veludo preto, soluçando.
— Ele simplesmente saiu do tempo — explicou Molly. — Parecia que ele estava na fogueira, mas não estava. Estava pairando fora do tempo das chamas, de modo que as chamas não podiam machucá-lo.
— Os sacerdotes ficaram impressionados.
— Vamos tentar encontrar a coleção de cristais.
Chegaram mais perto, os olhos procurando um saco, uma
almofada ou uma caixa. Então Rocky puxou a manga de Molly e apontou para uma escadaria baixa, perto de Uaqt. Zackya saiu de trás dela e se aproximou do gigante. Estava segurando seu aparelho prateado de viagem no tempo. Subiu num bloco de pedra para alcançar os ouvidos do patrão, e, ofegando, sussurrou algo e apontou para a multidão, perto de onde Molly e Rocky estavam escondidos.
Uaqt deu um cascudo na cabeça de Zackya e riu para a platéia. Molly teve certeza de que o riso era dirigido a ela. Então, como se a testasse, Uaqt se virou para aceitar uma comprida faca com cabo de osso oferecida por um sacerdote e começou a subir a escadaria mais alta. A cauda de seu manto roxo se estendia atrás dele como se fossem longas penas iridescentes de pavão e a lâmina da faca brilhava ao luar.
No alto da escadaria um homem de manto roxo segurava um cabrito branco. Os balidos do animal podiam ser escutados acima do som dos tambores. Agora era óbvio o que Uaqt iria fazer. Os(tambores chegaram a uma cacofonia de ritmo e os sacerdotes começaram a cantar.
— Uuhhhh Dahla... UUUhhhhhlaa Deahliea.
Uaqt se curvou sobre o cabrito indefeso.
Em silêncio cortou a garganta do animal. A faca tombou na escada fazendo barulho.
Um sacerdote carregando uma tigela prateada correu até o lado de Uaqt. O sangue caiu na tigela.
Uaqt desceu a escada e foi até a pedra chata e rachada. Pegou o bebê Molly adormecido. Tirou uma pena de pavão de seu manto e solenemente mergulhou-a na tigela de sangue. Com grande ostentação e um floreio usou a pena encharcada para passar o sangue fresco na cabeça pacífica do bebê.
— Esta noite, pequena Uaqta, veremos quantos cristais você consegue atrair da terra.
Molly e Rocky ficaram olhando horrorizados. Nenhum dos dois sabia que a pedra rachada era uma fonte de cristais, nem que Uaqt estava usando o bebê para atrair os cristais da terra. Quando Molly viu o familiar turbante de Zackya serpenteando pela multidão na direção deles, soube que estava na hora de desaparecer com Rocky.
— Aquele instrumento parece estar dando sua localização exata — disse Rocky. Molly segurou a mão dele e apertou o cristal vermelho. Houve um BUM.
Molly avançou lentamente no tempo, mas não pousou. Os quentes ventos do tempo passaram sobre eles e o mundo era uma visão enevoada movendo-se em câmera lenta.
— Isso é estranho demais para explicar — disse Rocky. — Olhe, ali está Zackya, procurando a gente na multidão, e Uaqt fazendo as coisas dele.
Por um momento, podiam pensar. A voz de Ojas ressoou nos ouvidos de Molly. “Você vai ter de matá-lo, Molly. Percebe isso?”
Se quisesse, poderia chegar bem perto de Uaqt agora. Poderia ir até a faca no chão. Poderia aparecer, pegar a faca e desaparecer de novo. Poderia caminhar pelo espaço na bolha do tempo até posicionar-se bem atrás de Uaqt. E fazer o quê? Matá-lo? Molly jamais poderia matar uma pessoa. E, de qualquer modo, como uma menina de onze anos poderia enfiar uma faca comprida num gigante velho e musculoso como Uaqt? A quem ela queria enganar? Não teria a mínima idéia de onde enfiar a faca. Estragaria tudo. Simplesmente ficaria olhando para ele. Daí ele iria se virar e fazer picadinho dela.
— O que faremos, Rocky?
Rocky franziu a testa.
— Avançar no tempo até amanhã, quando o observatório vai estar vazio? Podemos ir direto até onde a Molly de seis anos foi deixada esta noite, depois podemos viajar de volta no tempo até agora. Quando chegarmos, vamos estar perto dela. Podemos pegá-la e correr até as outras e o bebê, e assim que todos estivermos juntos, podemos partir. Não teremos o saco de cristais dele, mas pelo menos teremos todas vocês!
Parecia um plano muito melhor do que matar Uaqt. Molly se concentrou no cristal vermelho. Como uma flecha bem disparada, lançou-se com Rocky para a tarde seguinte, exatamente quando o sol ia se pondo.
Uma pacífica vaca sagrada estava no observatório, ao lado da escadaria mais alta. Ela olhou calmamente os visitantes e continuou pastando. Molly e Rocky correram até o lugar onde a menina de seis anos tinha sido largada depois do sofrimento da véspera.
Então Molly apertou o cristal verde e segurou o ombro de Rocky.
— Está pronto?
Frios ventos do tempo sopraram neles enquanto Molly fazia mira de volta para a noite anterior. Pairaram no tempo e examinaram a cena. Através da névoa do tempo puderam identificar a silhueta enorme de Uaqt. Ele estava se movendo ao lado da pedra rachada onde se encontravam a Molly de três anos e o bebê. Molly avançou com Rocky um pouquinho no tempo.
— Deve haver um momento em que Uaqt não esteja perto delas — disse. Mas sempre que pairavam Uaqt estava ali, feito uma craca, grudado às Mollys mais jovens.
— Volte ao momento em que a de seis anos está sozinha — disse Rocky. E Molly fez isso.
Pousaram e, cheia de adrenalina, Molly abraçou a menina de seis anos. Rocky pegou rapidamente a cadelinha e segurou o ombro de Molly com força. Focalizando o cristal vermelho, Molly disparou para a frente e para longe. A menininha gritou.
Com os braços em volta de seu eu mais novo, Molly falou no ouvido dela.
— Não se preocupe, Molly, vim salvar você. Tudo vai ficar bem em pouco tempo. — Enquanto dizia essas palavras, Molly se lembrou de que uma pessoa grande tinha dito a mesma coisa para ela. Era uma sensação muito estranha, mas ignorou-a, já que precisava se concentrar na fuga. Avançou até a tarde do dia seguinte e pararam nesse tempo. De novo a vaca ergueu os olhos.
— Certo, Molly — disse ela. — Você está bem?
A Molly de seis anos enxugou as lágrimas e olhou ao redor, aterrorizada.
— Aquele palhaço malvado foi embora?
— Foi. — Molly abraçou seu eu mais novo.
Petulazinha se retorceu e lambeu o rosto de Rocky. Rocky tocou a bochecha para ver quantas escamas haviam surgido, mas sua pele estava lisa. Molly inspecionou o rosto da Molly mais nova e levantou suas mangas.
— Ela tem escamas? — perguntou ele.
— Acho que não. Os cotovelos estão meio sujos, acho.
— Quem é você? — perguntou a pequena Molly, afastando o cotovelo. — Não conheço você. E não gosto da China. Quero a Sra. Brinklebury.
— Vou levar você logo para casa. E então você poderá ver o Rocky e aquela aranha velha, a Srta. Viborípedes. — Isso fez a pequena Molly rir, e depois, infelizmente, chorar. Rocky acariciou sua cabeça.
— Sabe, isto aqui é a índia — disse ele —, e não a China. E não podemos ficar aqui muito tempo, caso contrário essa vaca enxerida vai perguntar o que estamos fazendo. — A Molly pequenina deu um meio soluço, meio riso. — Então — continuou Rocky — temos de ir por ali. — Ele levou a menina até o portão no muro. Agora só precisavam lembrar exatamente onde Ojas havia parado com Amrit. Gotas de suor se juntavam nas têmporas de Molly enquanto tentava avaliar o local.
— Certo, Mollyzinha, agora segure minha mão com força. Rocky vai segurar a cadelinha. Vamos recuar no tempo para pegar nossas outras amigas.
— Mas... — objetou a menina de seis anos. Antes que pudesse falar mais alguma coisa, estavam voando.
— Isso é legal — garantiu Molly à menina de seis anos enquanto o mundo passava em clarões.
Pousaram na quente noite de lua cheia em março de 1870. Um suspiro horrível recebeu-os.
Zackya estava na frente de Amrit. A elefanta bateu no chão com sua grande pata almofadada. Petula estava latindo feito louca.
Quando Molly apareceu, ele deu um risinho.
— Sabia que você ia voltar aqui, sua idiota! Sabia que você deixaria seus amigos e seu transporte aqui fora.
Ojas deu uma rápida instrução a Amrit.
— Baitho! — A elefanta se ajoelhou.
Molly pensou depressa. Mergulhou na direção de Ojas, puxando a menininha.
— Pegue-a — gritou para Forest, e ele ajudou a pequena Molly a subir. Rocky mergulhou para a frente, ainda segurando o filhotinho, e também saltou na elefanta. Molly agarrou seus cristais coloridos e apertou a tromba do animal. Suando, afiou a mente e, com enorme esforço de concentração, tirou todo o grupo para longe de 1870.
Houve um BUM trovejante quando Amrit desapareceu. Por trás desse clamor havia o ruído dos latidos frenéticos de Petula.
— Não deixe que ela caia! — gritou Molly para Forest.
1890, 1900, 1930, 1950... Dispararam para a frente. Molly
segurava a tromba de Amrit. Petula continuava latindo.
Ojas uivava de contentamento. Quentes ventos do tempo os envolveram e o mundo girava em cores.
Molly fechou os olhos e tentou avaliar até onde tinham viajado. Decidiu apertar o freio.
O ruído de carros encheu o ar.
Tinham escapado. Molly baixou as mãos, aliviada. Mal ao fazer isso uma coisa terrível aconteceu. Dois conjuntos de dedos com garras rasparam na palma de sua mão direita, pegando os dois cristais. O latido de Petula ficou mais alto e mais frenético. Molly se virou e viu Zackya correndo para os portões do observatório, com Petula lutando sob seu braço, tentando mordê-lo. Ele olhou para trás. Estava num êxtase tão grande que praticamente dançava.
— Você é uma idiota completa, Srta. Moon! — zombou ele, com os olhos ardendo de triunfo maléfico. — Eu viajei com vocês. Portanto agora tenho seus cristais e sua cachorra! — Ele enfiou os cristais de Molly no bolso e apertou o focinho de Petula com a mão. — Só precisei tocar o elefante também. Só quem notou foi sua cachorra. Ela pulou em cima de mim. Agora você é um alvo fácil para o marajá. — Ele ficou pulando, empolgado.
Molly mal podia suportar a visão dos grandes olhos de Petula piscando por trás da mão de Zackya. “Me ajude, Molly”, imploravam eles. “Me ajude”. Molly não conseguia imaginar o que Zackya planejava fazer com ela. Todos estariam mortos se ela não conseguisse viajar no tempo. Desesperada, tentou a diplomacia.
— Zackya — gritou. — Por favor, pare e escute! Não leve Petula. Por favor. E não leve meus cristais! Você já sabe que Uaqt não gosta de você... como deveria. — Zackya inclinou a cabeça de lado. Por um momento Molly pensou que poderia convencê-lo. — Uaqt acabou com sua vida. Levar Petula e meus cristais para ele não fará diferença. Por que não o enfrenta? Liberte-se! Se você der os cristais a Petula, estará fazendo uma coisa boa. Junte-se a nós. Juntos poderemos ser mais espertos do que ele. Imagine só, Zackya. Imagine nunca mais sentir medo de Uaqt hipnotizá-lo ou matá-lo. Imagine ser livre! Por favor, Zackya. — Molly desejava olhar nos olhos agitados dele por tempo suficiente para hipnotizá-lo, mas era inútil. Zackya balançou a cabeça e o dedo para Molly.
— Sua idiota. Você nunca vai poder me ajudar como Uaqt pode. Eu preciso ir até a Bolha do início dos tempos. Preciso banhar-me na luz da juventude. Olhe para mim. Estou escamoso e velho por causa de todas as viagens no tempo que tive de fazer. Logo meu corpo terá envelhecido tanto que vou estar morto. Antes disso preciso ir até a luz. Você não pode me ajudar, Moon. Você não passa de uma criança. Assim que tivermos cristais suficientes, Uaqt vai me levar até lá. — Ele fez uma careta de lado, mostrando as falhas nos dentes, e apertou Petula.
Em desespero, Molly congelou o mundo. Tudo ficou imóvel — menos Zackya.
— Azar seu! — riu ele. — Você não está lidando com principiantes, Molly!
Molly ergueu os olhos hipnóticos para Zackya, pronta para cravá-los no centro do cérebro dele. Zackya baixou os olhos e pegou algo no bolso. Quando olhou para cima, tinha posto um par de óculos com redemoinhos anti-hipnotismo. O olhar hipnótico de Molly ricocheteou.
Segurando Petula de modo provocador e rindo como se tivesse feito o truque mais engraçado do mundo, Zackya desapareceu.
Os ventos do tempo giraram em volta de Zackya e Petula. — Isso pode demorar um pouco — disse ele, olhando seu aparelho prateado de viagem no tempo. — Cá entre nós, não sou o melhor viajante do tempo que há no mundo. Vamos parar aqui.
O mundo estava luminoso com o sol.
— Ah, viu só? Exatamente o que eu quis dizer. Precisamos da noite. — Ele partiu de novo, xingando o aparelho. Petula rosnou, a boca apertada pela mão de Zackya. Na próxima vez em que pararam, a lua estava baixa e o céu empalidecia com o alvorecer. Zackya olhou o observatório. Os resíduos da cerimônia de Uaqt estavam no chão. Pétalas de flores, sangue seco e restos da fogueira.
— Agora sim — disse Zackya, e seguiu andando para a avenida ladeada de árvores. — Vou levá-la aos meus aposentos no palácio. Você vai ficar bem confortável. — Petula rosnou para ele de novo.
— Ah, você vai se acostumar. O que vou lhe dar de comer, então? — Ele foi caminhando sobre as pedras até o pequeno palácio do observatório.
— Gosta de frango? Assado com temperos? Você vai gostar de perseguir os pavões. Talvez pavão assado seja uma iguaria para você! Para mim, quanto mais tortas de pavão, melhor. Eles são pássaros estúpidos e barulhentos.
Ao redor, corvos grasnavam em coro, anunciando o alvorecer. Zackya tocou o sino no portão do palácio. Enquanto esperava, olhou para Petula.
— Vou tirar a mão de sua boca se você prometer não morder.
Petula estava cansada. De qualquer modo, nunca fora boa mordedora. Quando Zackya tirou a mão, ela ficou parada. Só o espiou com os olhos grandes e úmidos.
— Bom — disse Zackya. Em seguida acariciou suas orelhas caídas. — Então, Petula, gostaria de ser minha cadela de estimação? — Petula fechou os olhos. Estava realmente chateada. Esse homem tinha acabado de roubá-la de Molly e agora esperava que ela fosse boazinha.
— Bem, então está resolvido — disse Zackya. O portão se abriu rangendo. Os olhos de Petula se encheram de lágrimas.
Sussurrando para que o vigia noturno não escutasse, Zackya disse:
— E, você sabe, um dos primeiros presentes que vou lhe dar é um brinco!
Molly ficou boquiaberta. — Ele acabou de levar Petula para outro tempo! — gritou incrédula, como se os outros não tivessem visto. — E não podemos salvá-la. Ele levou os cristais. Estamos presos! — Molly olhou para os arbustos como se, por algum milagre, Zackya tivesse mudado de idéia e fosse sair por ali. Estava furiosa. — Isso é um pesadelo — gemeu.
— Não se preocupe comigo — disse Ojas admirando uma motocicleta que passava. — Adorei isso aqui. Não preciso voltar para 1870. Isto é o futuro!
— Ojas! — censurou Rocky. — Para nós Petula é como uma pessoa. Como pode ficar falando de motos quando Petula acabou de ser levada por um lunático?
— Ah, desculpe. É, sinto muito. Minha nossa, perdão... é que fiquei distraído com aquele negócio de duas rodas. Por favor, aceitem minhas desculpas.
Molly se deixou cair no chão e pôs as mãos na cabeça.
— Tenho partes de mim presas no tempo errado!
— Mas, Molly — disse Forest enquanto Petulazinha lambia algo com gosto de nabo na orelha dele — você não consegue lembrar do que aconteceu com seus outros eus? Quero dizer, elas estão na índia de 1870 e essa época já passou há muito. Não consegue lembrar de como tudo aquilo terminou?
— Não consigo! — chorou Molly. — É um borrão total. Antes, quando avancei no tempo, foi a mesma coisa. É como se houvesse um atraso de memória, ou algo assim.
Molly viu alguns turistas que apontavam para Amrit, depois olhou para as ruínas do observatório. As velhas escadarias estavam gastas e riscadas de pichações, mas o local a fez se arrepiar. A escada fez lembrar que Zackya sabia exatamente onde eles estavam. Poderia facilmente guiar Uaqt até eles. Parte dela queria ver Zackya de novo, já que haveria uma chance de suplantá-lo, resgatar Petula e pegar os cristais de volta. Mas também havia uma chance gigantesca de que, se Zackya retornasse, chegaria com Uaqt para matá-la. Lágrimas cresceram em seus olhos.
— Temos de sair daqui — disse ela, enxugando-as rapidamente.
— Baitho! — exclamou Ojas, e Amrit se apoiou num dos joelhos. Ojas esperou até que Molly estivesse em segurança no alto e depois mandou Amrit andar. Achava melhor ir para a agitação do centro da cidade de Jaipur.
Molly se deitou no howdah e tocou a bochecha. As rugas tinham piorado. A pele estava grossa de escamas sob seus dedos. Sentia-se desesperadamente deprimida.
Ojas ia montado na frente. Rocky e a pequena Molly estavam sentados atrás dela, e Forest atrás de todos, com os olhos fechados.
— Estou fissurado por um pouco de meditação — disse ele tirando os óculos. — Toda essa viagem no tempo está ferrando tanto com minha cabeça, cara, que vou dar o fora um pouquinho, se vocês não se incomodam. Ei, Rocky, cuide da cachorrinha, falou? Chamem se precisarem de mim.
Com isso ele cruzou as pernas e fechou os olhos.
— É melhor arranjarmos comida para todo mundo — disse Molly, falando automaticamente. —Mas como, não sei. Não sei onde conseguir comida para Amrit. — Tentou não chorar. Queria que outra pessoa assumisse o controle da situação por um tempo.
— Deixe a comida por minha conta — disse Ojas, vendo a perturbação dela. Em seguida sacudiu o pé direito sob a orelha direita de Amrit e ela começou a andar. E acrescentou, encorajando: — Sabe, Molly, Ganesh, o deus-elefante, pode estar olhando por nós. — Molly deu de ombros. Ojas continuou: — Acho mesmo. E além disso, Molly, tenho uma coisa na manga que pode nos ajudar.
— Tem? — Molly enterrou o rosto nos joelhos.
— Tenho, mas você precisa prometer que não vai brigar comigo.
Molly ficou quieta. Sentia-se tão arrasada que nada que alguém fizesse teria importância agora. Estava consumida pela idéia de que Petula e seus outros eus estavam presos no passado com Uaqt. Estava se afogando em medo, apreensão e tristeza. E o sentimento mais apavorante, que sugava todos os outros, era o gigantesco vazio porque Petula havia sumido. Sua Petula havia sumido. Sentia um nó na garganta.
— Agit! — Ojas instigou Amrit a passar por um cartaz que anunciava camisas masculinas. Olhou em volta para ver se ninguém no chão estava olhando. Então, habilmente, pegou um objeto brilhante na manga.
— Tirei isso do marajá de Jaipur em 1870 — disse estendendo-o para Molly. — É uma das tornozeleiras dele. Acho que na Jaipur destes tempos modernos será considerado um artigo extremamente precioso!
Molly ergueu os olhos.
— Uau! — exclamou Rocky, fazendo a cachorrinha no colo pular e lamber seu queixo. — Esse negócio é cheio de pedras preciosas!
— Exato — concordou Ojas. — Achei que talvez precisássemos pagar alguma coisa em algum momento. Decidi que, se o marajá estivesse acordado, definitivamente diria que deveríamos tirar a tornozeleira para nos ajudar a derrotar Uaqt. É por uma boa causa, não acham?
Molly escondeu o rosto e envolveu os joelhos com os braços. Uma tristeza terrível estava baixando sobre ela. Uma tristeza dizendo que tinha chegado a um beco sem saída. Nem a tornozeleira poderia ajudar a acabar com essa tristeza.
— Muito bem, Ojas — disse em tom chapado.
— Você não deve ficar tão triste, Molly — afirmou Ojas. — Sei que está triste e perdendo a esperança, mas há uma coisa que você não sabe e deveria saber.
O tráfego do fim de tarde ia passando barulhento. Um homem de motocicleta, com um amigo na garupa, jogou um saco de tinta colorida em outro homem que passava rapidamente por eles. A tinta cor-de-rosa bateu nas costas do paletó branco.
— Bom tiro! — gargalhou Ojas.
— O que ela deveria saber? — perguntou Rocky.
— Ah, sim. Bom, veja só, Jaipur é uma cidade muito interessante.
— É.
— Olhe ali adiante. Agora estamos indo para o centro. Ah, minha nossa, toda aquela família está coberta de tinta laranja!
— É. E o que deveríamos saber? — pressionou Rocky.
— Por acaso, no meu tempo, em 1870, Jaipur era famosa, muito famosa. — Uma motocicleta vermelha passou rapidamente e Ojas bateu palmas. — Olha, que linda!
— Por quê, Ojas? — insistiu Rocky impaciente — Ela era famosa por quê?
— Ah, sim. Era famosa por suas pedras preciosas. Os maiores artesãos de pedras viviam e trabalhavam aqui. O trabalho deles era um dos melhores da índia. Eu pensei que talvez os descendentes desses artesãos ainda estejam lapidando pedras para fazer jóias.
Molly ergueu a cabeça.
— Quer dizer que esta cidade tem um monte de gente que possui pedras preciosas?
— Se continua como antes, sim. Deve haver oficinas que fazem jóias com pedras preciosas e lojas que vendem.
— E você acha que talvez a gente consiga encontrar algum cristal de viagem no tempo? — De repente havia esperança no horizonte.
— Acho que sim.
Molly riu e abraçou Ojas.
— Brilhante, Ojas, você é brilhante. Fico muito feliz por você estar aqui. Ele não é esperto, Rocky?
— Ei, fique deste lado da rua! — disse Rocky.
E Amrit foi em frente, bamboleando. Ojas sorriu e tocou no próprio bolso. Ali estava a outra tornozeleira que ele havia tirado do marajá hipnotizado. Isso fez com que ele se sentisse bem. Aquela tornozeleira significava que ele nunca mais teria de bater carteiras.
Em 1870 eram dez da manhã.
Uaqt estava relaxando numa espreguiçadeira de seda em sua suíte de paredes prateadas no Palácio Âmbar. Em segurança, ao lado, estava o saco de veludo cheio de cristais. Os dois pés estavam sobre banquetas almofadadas. Uma pequena mulher indiana massageava seu calcanhar direito enquanto outra cortava suas gigantescas unhas dos pés. Ele soltou um suspiro cansado e virou a página do livro que estava lendo. Ouviu uma batida na porta.
— Entre!
Zackya entrou cautelosamente no aposento.
— Então — disse Uaqt sem se incomodar em olhar para cima. — Conseguiu pegá-la?
Tremendo de empolgação, Zackya disse:
— Não, alteza, mas peguei isto. — Em seguida abriu as mãos mostrando o cristal verde e o vermelho de Molly. Uaqt meramente passou o dedo pela página do livro, como se ainda estivesse lendo. Não ergueu os olhos. Sem se abalar, Zackya continuou: — E isto, alteza! — E estalou os dedos. Um serviçal entrou puxando Petula por uma guia. As unhas dela rasparam o chão, recusando-se a andar.
— Você sabe, não sabe, Zackya, que já estou furioso com você? — rosnou Uaqt virando uma página e sem levantar os olhos. — Ainda tinha testes de inteligência para fazer com a Molly de seis anos. E ela podia ter atraído mais cristais da terra para mim... não que qualquer uma das Mollys mais velhas pareça ser capaz de magnetizá-los... Mas esse não é o problema. O problema é que, por sua causa, ela sumiu. Você não está me fazendo terder pempo, está, Yackza?
— N... n... não, sahib.
— Se não me engano, estou ouvindo um cachorro.
— Sim, alteza.
— E qual é o sentido de pegar o chacorro? — disse Uaqt em voz lenta e ameaçadora.
— Ela vai voltar para pegar a cachorrinha, alteza!
Uaqt levantou os olhos injetados.
— Seu incebil espítudo — sibilou de modo temível. — Você nunca soube jogar. Eu já tenho uma isca para ela. Ela vai voltar para salvar elas mesmas! Esta é a segunda vez que você roubou esse animal. É óbvio que quer o cachorro para você! Guarda! Pegue o animal e mate!
Um homem alto e rígido saiu do canto do aposento, pegou Petula e saiu. Zackya olhou nervoso para ela, esperando que a porta se fechasse para esconder os latidos de Petula, antes de continuar.
— E... eu tenho estes cristais que roubei para o senhor, alteza!
Um livro passou zumbindo pela cabeça dele, acertando na orelha, e as pequenas mulheres indianas correram para a parede como dois animais se abrigando de uma tempestade de raios. Uaqt se levantou.
— SEU IDIOTA INCOMPETENTE! — explodiu ele. — VOCÊ ESTRAGOU COMPLETAMENTE A BRINCADEIRA. AGORA ELA ESTÁ PRESA NO FUTURO. DE NOVO VOCÊ, VOCÊ, YACKZA, SEU IDIOTA COMPLETO QUE SAIU DO
FUNDO DO ESGOTO, APATRALHOU MINHA DIVERSÃO. AAARGH! — Uaqt jogou as duas banquetas para o alto. Zackya se desviou delas como se fosse um alvo móvel numa barraca de parque de diversões.
— AAAAAAAAAARGH! — O grito de Uaqt encheu o cômodo, fazendo as janelas tremerem. E então, com a mesma rapidez com que havia explodido, seu mau humor parou. Por um momento ele ficou inexpressivo, depois disse:
— Molly pode estar perdida no futuro, mas acho que isso vai nos mostrar o quanto ela é boa. Hmm, sim, vai ser interessante. Se ela for boa como eu era quando aprendi a arte do hipnotismo, retornará. E deixaremos algumas pistas para ela. Pistas que vão levá-la diretamente à morte. Você fez bem, Yackza, meu pequeno rato de estogo. Por enquanto não vai comer raticida. — Depois disse ao outro guarda. — Vá atrás da chacorra. Quando ela estiver morta, pegue o corpo e prepare para um funeral no rio Ganges. — Ele beliscou a sobrancelha. — Amanhã eu gostaria de passar a noite no Palácio Bobenoi, no centro de Jaipur. Lá os prazeres são melhores.
— Olhou para as unhas dos pés e fez um muxoxo. — É impossível conseguir uma boa pedicure hoje em dia. Zackya, livre-se delas.
Zackya bateu palmas e expulsou as mulheres. Quando elas tinham ido embora, ele se ajoelhou para se prostrar aos pés de Uaqt.
— O senhor está sempre certo — gemeu. — O senhor tem muito estilo, alteza, muita sabedoria.
Andar de elefante na Jaipur moderna era uma tremenda experiência. Rocky ia sentado atrás de Ojas, explicando como o tráfego funcionava. Amrit estava calma, sem se importar com os camelos e búfalos ao seu lado, mesmo quando uma bomba de tinta explodiu em seu lombo. Um monte de gente olhava para eles, e um casal bronzeado, com mochilas às costas, aproveitou quando Amrit parou num sinal de trânsito.
— Com licença — perguntaram a Ojas — serr possível marrcar uma passeio com seu elefanta pela cidade amanhã?
— Sinto muito — disse Ojas, cheio de charme. — Eu adoraria, mas amanhã estarei ocupado viajando no tempo.
Os olhos dos turistas se arregalaram. Eles abriram seu dicionário procurando o que “viajando no tempo” devia significar realmente.
— Você é otimista — observou Molly.
— Acho que este é o melhor modo de ser—respondeu Ojas.
As ruas foram ficando mais movimentadas e cheias de gente. O calçamento e as paredes dos prédios estavam de todas as cores do arco-íris, onde as tintas jogadas haviam secado, e o chão estava manchado com marcas laranjas de gente que mascava paan e cuspia as folhas cheias de noz de bétel.
— Acho que o Holi está quase acabando — disse Ojas. Amrit levou-os pela rua, passando pelas arcadas do bazar, e Molly examinou as vitrines das lojas. Ainda que muitas vendessem sandálias de couro ou material de cozinha, a maioria vendia jóias. Passaram por um mercado onde havia homens sentados no chão queimando fios de prata, coletando a prata que pingava em pequenas pilhas. Vendedores de flores sentavam-se de pernas cruzadas em altas barracas, furando flores laranjas e amarelas com agulhas e passando fios para fazer colares de margaridas e frangipanas.
Do lado direito as lojas estavam começando a parecer mais especiais. Então algo atraiu o olhar de Molly.
O REINO DO RUBI
— Fique aqui com Amrit, Petulazinha e Forest — sugeriu Molly. — Vou levar a pequena Molly e Rocky, para ver se encontro algum cristal.
— Sim, Molly. Eu cuido do Homem das Arvores — concordou Ojas, olhando por sobre o ombro para Forest, que estava roncando. — Aqui está a tornozeleira, Rocky.
— E também vamos arranjar um monte de dinheiro — disse Molly — para conseguirmos alguma comida para Amrit.
— Ah, sim, Molly, ela está faminta. — Amrit se abaixou para que Molly, Rocky e a pequena Molly descessem.
— Então, o que os elefantes gostam de comer? — perguntou Molly enquanto Amrit balançava os cílios compridos para ela.
— Folhas de palmeira, folhas de bambu, cana-de-açúcar, banana, arroz, bolos, doces e sempre gur.
— Gur?
— Gur é melaço não refinado. Os elefantes adoram gur.
Molly assentiu.
— Saindo um gur com fritas!
Molly bateu à porta de vidro da joalheria. Por fim um homem com bigode sedoso puxou a cortina de renda.
— Podemos entrar, por favor? — perguntou Molly, articulando bem as palavras para que ele pudesse entender.
O vendedor olhou para Amrit, que estava na rua atrás, depois bateu no relógio e balançou a cabeça. Molly cutucou Rocky, que rapidamente mostrou a tornozeleira antiga. As sobrancelhas do vendedor fizeram uma pequena dança em sua testa; ele disse algo a alguém dentro e depois apontou para a lateral do prédio.
Na lateral da loja havia uma entrada com um pesado portão de metal e um grande cadeado.
Um homem maltrapilho estava sentado no chão ao lado do portão, com uma tigela perto das pernas. Um de seus olhos era coberto por um curativo, o outro era branco, nublado pela catarata. A tigela estava cheia de dinheiro. Molly enfiou a mão no bolso e pôs na tigela uma moeda de 1870.
— Tenho certeza de que o dono da loja vai lhe pagar alguma coisa por isso — disse ela esperando que ele entendesse inglês. — Não tenho dinheiro atual.
Na lateral da loja um segurança de queixo duplo estava esperando. Ele os fez passar sob um arco, entrando num minúsculo saguão com cadeiras de veludo verde.
As paredes da loja eram cheias de armários de vidro cheios de objetos indianos antigos: um jogo de xadrez de ouro, com o rei e a rainha montados em elefantes, e os peões eram homens de turbantes sobre camelos; um navio ornamental de prata decorado com filigranas; uma cobra comprida feita de elos dourados; um ovo de mármore com pedras coloridas incrustadas em padrões delicados. Havia prateleiras forradas de veludo preto de onde pendiam colares fabulosos feitos de diamantes, pedras preciosas e pérolas. No meio da sala ficavam mostruários com tampos de vidro, cheios de anéis, pulseiras e pedras preciosas.
E no meio da sala estava o dono da loja, de calça marrom e camisa branca engomada. Parecia cheio de expectativa. Indicou que o segurança podia sair.
— Boa tarde — disse ele. — Então vocês têm algo que gostariam que eu visse.
Molly imaginou se deveria hipnotizá-lo. O sujeito parecia gentil. Mas estava ficando tarde e ela não tinha tempo para fazer amigos. Ele jamais acreditaria na viagem no tempo, por isso, para acelerar as coisas, sorriu e assim que os olhos dos dois se encontraram ela lançou um raio visual. O homem cambaleou para trás e depois se reequilibrou. Quando ergueu o olhar, trêmulo, seus olhos tinham ficado vítreos e a menina à sua frente parecia muito importante.
— Muito bem — disse Molly. — Agora, Sr.... é... qual é o seu nome?
— Sr. Chengelpet — disse o dono da loja.
— Bem, Sr. Chengelpet, o senhor está totalmente sob o meu comando. Vou explicar uma coisa de que preciso e quero que o senhor acredite completamente. Depois quero ver se pode me ajudar.
O homem de rosto afável sorriu. E então Molly começou. Disse tudo sobre os cristais, a viagem no tempo e perguntou se ele tinha alguma idéia do que poderiam ser os cristais verde e vermelho.
— Não... sei bem — respondeu o homem cooperando. — Tenho... alguns cristais dessas cores... que poderia mostrar... Esmeraldas verdes... rubis, granadas e jaspes vermelhos. Estão... no meu cofre na... sala dos fundos. São... pedras antigas que... meu bisavô comprou. Meu... pai não quis vender... e eu também não venderei. Elas são... muito... especiais.
Os olhos de Molly se iluminaram.
— Certo, parecem boas. — Molly olhou longamente para Rocky, que estava ao lado da pequena Molly, vigiando para que ela não quebrasse nada. — Mostre, por favor.
O homem os levou através de uma porta esculpida, descendo um curto lance de escada até um escritório pequeno, atulhado e sem janelas. Havia dois cofres grandes no fundo da sala e uma mesa com cadeiras dos dois lados. A mesa estava coberta de bandejas cheias de papéis de aparência importante, com balanças, pesos e uma variedade de lentes de aumento. Enquanto o Sr. Chengelpet girava a fechadura de um dos cofres, Molly sentou-se numa cadeira e olhou as fotos de família que mostravam o dono da loja, a mulher e dois filhos pequenos.
— Tenho... estas pedras... vermelhas — disse ele, tirando caixas de couro do cofre e abrindo-as.
— Uau! Elas são bonitas! — disse a pequena Molly.
Em dúvida, a Molly mais velha pegou uma pedra. Era minúscula. E mais: infelizmente, quando fechou os olhos, não pôde sentir qualquer poder nela.
— Que tipo de pedra é? — perguntou.
— Um... rubi. Este... é grande... mas este aqui... é ainda... maior. — O joalheiro desamarrou uma bolsinha de camurça, tirou um rubi do tamanho de uma ervilha e entregou a ela.
Molly segurou a pedra, cheia de esperança, mas de novo não havia poder. Seu coração se encolheu. Rocky olhou-a interrogativamente. Ela balançou a cabeça.
— A pedra vermelha que usei antes era oito vezes maior do que esta.
— Não posso... ajudar você... com um rubi... tão grande — disse o Sr. Chengelpet. — Existem maiores... como o... Héracles... de dezoito mil quilates... na Tailândia... O rubi que mostrei a você... é grande... segundo qualquer padrão... Não vou... vendê-lo porque... é muito raro... e muito grande.
— Eu acho miudinho — respondeu a pequena Molly.
— Ei, Molly, fica quieta — disse Rocky. — Molly grande está tentando se concentrar.
Molly se perguntou se os cristais da viagem no tempo seriam rubis ou outras pedras totalmente diferentes.
— O senhor tem outros cristais vermelhos?
— Tenho estas pedras... são... turmalinas... e estas... pedaços de topázio — declarou o vendedor. As lindas pedras vermelhas que ele lhe entregou também eram totalmente sem vida.
Molly sentiu um desespero frenético subindo por dentro.
— E cristais verdes?
— Algumas... esmeraldas... sim. Tenho algumas... muito boas... esmeraldas que raramente mostro... a qualquer pessoa!... E algumas... safiras verdes e... opalas verdes. — Molly sentiu-se mais otimista e ficou olhando enquanto mais bandejas cheias de pedras saíam dos gordos cofres. Dentro havia mais cristais pequenos.
— Aaaah, essas são bonitas mesmo — disse a pequena Molly, incapaz de se conter.
Molly tocou as pequenas pedras preciosas. Uma a uma, seu dedo passou sobre elas. Todas eram lindas, mas nenhuma tinha qualquer poder.
— Isto é inútil! — sussurrou para Rocky. Então, enquanto se inclinava para a frente para empurrar a bandeja, a Mollyzinha exclamou: —Aaaargh! Olhe aquela suja e horrorosa ali atrás!
Todos os olhares pousaram sobre um cristal verde e turvo, do tamanho de uma lichia, meio camuflado no veludo desbotado. Parecia muito sem graça, com uma estranha cicatriz em forma de bumerangue na lateral.
— O que é isso? — perguntou Molly, pegando-o. Fechou os olhos e, antes mesmo de se concentrar no cristal, notou uma corrente de energia saindo dele.
— Não sei bem... É uma pedra estranha... Um tipo de quartzo, talvez... Não é preciosa, mas é estranha... Por isso... eu guardo.
Molly assentiu para Rocky. Ele tirou a tornozeleira da manga.
— O que o senhor acha disto? — perguntou ele.
O joalheiro balançou a cabeça e segurou o objeto pesado. Virou-o e, de um modo hipnotizado, admirou as safiras azuis e as pérolas brancas incrustadas.
— Este... é um... maravilhoso exemplo de... jóia de cerca de... 1750... Vi peças... assim... apenas em coleções... de museus.
Então a tornozeleira era mais antiga ainda do que eles pensavam.
— Gostaria de comprá-la? Qual é o preço certo?
— Dois milhões de rúpias. Se eu quisesse... ter algum lucro... compraria... por um milhão e meio... de rúpias.
— Sabe quanto é isso em libras ou dólares?
— Dezoito mil... libras, ou trinta e cinco... mil dólares.
— Isso é um monte de dinheiro! — exclamou a pequena Molly.
— E por quanto o senhor venderia aquela pedra verde com uma cicatriz?
— Aquela pedra verde e suja? — protestou a pequena Molly. — Não compre aquela pedra!
— Shh, Molly.
— Na verdade... ela não está... à venda — continuou o joalheiro, ignorando a menininha — porque eu gosto... muito dela. Nunca... pensei... no preço. Não acho... que seja muito vendável.
— Hmm. — Molly pegou o cristal com a cicatriz. — Certo, então. O trato é o seguinte: vamos vender essa tornozeleira por setecentas mil rúpias, de modo que o senhor está comprando muito barato, e em troca vai nos dar o cristal.
O vendedor assentiu, com a cabeça balançando como um galho de árvore numa brisa. Molly empurrou a tornozeleira para ele e colocou o cristal verde e turvo no bolso.
— É realmente um péssimo negócio — murmurou a pequena Molly e, exasperada com a aparente burrice dos companheiros, virou as costas e subiu a escada do escritório.
— O senhor tem as rúpias aí? — perguntou Rocky.
— Claro. — O Sr. Chengelpet virou-se e abriu uma pasta. Tirou quatorze maços de notas, cada um preso com um elástico. Rocky pegou-os e colocou na bolsa de Molly. Indicou a Molly que deveriam ir embora.
— Foi muito bom fazer negócio com o senhor — disse Molly assim que voltaram à loja aconchegante. — Daqui a um minuto vou tirá-lo do transe. O senhor vai pensar que acabou de fazer negócio com um francês que já foi embora e lhe vendeu a tornozeleira por um preço tão bom que o senhor lhe deu o cristal verde. Vai esquecer que tivemos algo a ver com a tornozeleira. Em vez disso vai pensar que somos apenas umas crianças boazinhas que queriam olhar sua loja.
— E assim que tivermos saído vai se esquecer de nós e do elefante que está lá fora — acrescentou Rocky.
Molly bateu palmas. O Sr. Chengelpet acordou. Ele demorou alguns segundos organizando os pensamentos para que as instruções de Molly e Rocky fossem digeridas. Depois começou a parecer realmente feliz.
— Ah, crianças, crianças, foi um prazer tê-las aqui — disse ele. — Mas preciso mesmo ir para casa. Tenho de comemorar.
— Um aniversário? — perguntou Molly.
— Ah, não. É só que tive um dia extremamente bom nos negócios.
— Ah, teve sim! — disse a pequena Molly. Rocky cutucou-a para ficar quieta.
Molly sentiu o cristal no bolso e esperou que não tivesse se enganado com o valor dele.
— Espero que o senhor e seus filhos tenham uma noite ótima! — disse ela.
— Como sabe que eu tenho filhos? — riu o homem, levando-os à porta.
Ojas estava esperando do lado de fora. Havia pessoas amontoadas ao redor de Amrit, que descansava cochilando, as pernas de trás cruzadas como as de uma pessoa encostada numa cerca.
Os dois puseram a pequena Molly em cima dela.
— Foi a pior compra que eu já vi — disse ela revoltada, assim que todos estavam em cima.
Ojas estava explodindo de curiosidade.
— Conseguiu o que precisava?
— Espero que sim — respondeu Molly. — Bem, consegui uma parte, este cristal verde. Olhe.
— Não conseguiu um vermelho?
— Não.
— Então você só pode ir para trás no tempo? — sussurrou Ojas. — Mesmo assim, se voltar ao lugar certo pode encontrar um cristal lá, não acha?
— Exatamente. Desde que este aqui funcione. Vou tentar em um minuto. A sensação é diferente dos outros. Mas agora tenho alguma esperança. Obrigada, Ojas. Foi realmente gentileza sua ter dado a tornozeleira. Você poderia ter ficado com ela.
— O prazer foi meu!
— Acho que não devemos experimentar o cristal agora, Molly — disse Rocky. — Precisamos dar um tempo. Precisamos de descanso e uma boa refeição antes de enfrentarmos Uaqt de novo.
— E comida para Amrit — acrescentou Ojas, recuando a elefanta de sua vaga de estacionamento.
— Acho que vocês estão certos — disse Molly. — Agora temos toneladas de dinheiro nesta bolsa. Podemos ir ao hotel mais elegante da cidade. Eles vão arranjar algo para ela comer.
— Se você puder pagar, sem dúvida eles vão arranjar. — Ojas gritou com um homem embaixo. O velho apontou para o centro de Jaipur e disse algo em hindi.
— O melhor hotel da cidade é um antigo palácio! — exclamou Ojas. — Isso vai ser muito legal — acrescentou balançando a cabeça de um lado para o outro, no típico modo indiano.
O Palácio Bobenoi ficava no centro de Jaipur. Era um palácio pequeno e lindamente preservado, pertencente a uma rica família indiana. Assim que os donos ficaram sabendo que Uaqt estava indo para lá, o patriarca da família mandou selar cavalos e que sua esposa organizasse um piquenique às pressas. O mau humor de Uaqt era lendário, bem como seu poder, e a família não desejava encontrá-lo. Pegando apenas o básico para a viagem, o casal, os seis filhos e alguns criados se empilharam nas maiores carruagens que tinham e partiram para uma casa de campo nas colinas.
Quando Uaqt chegou, não havia ninguém da família para recebê-lo, só os serviçais do palácio. Tiraram os móveis da sala de estar de teto alto e puseram uma cama grande ali, para que ele não tivesse de ir aos cômodos mais baixos no segundo andar, para dormir. Esvaziaram o laguinho dos peixes dourados e o limparam totalmente, preparados para trazer baldes e baldes de água quente, caso Uaqt quisesse tomar banho.
Os serviçais ficaram olhando enquanto duas garotas magras, de cabelos desgrenhados e com cerca de dez e três anos, parecendo irmãs, desciam de um elefante e entravam. Uma delas carregava um bebê. Não havia sinal da mãe.
Uaqt, carregando seu saco de veludo com cristais, guiou as cativas pelo corredor até os jardins ornamentais. Ordenou que almofadas e tapetes fossem trazidos para fora. Logo estava reclinando preguiçosamente, enquanto enrolavam uma folha de bétel para ele. Colocou o paan na boca, deu um tapinha no saco de cristais e olhou seus troféus. Depois pegou o caderno e estalou os dedos.
— Molly de três anos, acorde!
A menina voltou a si.
Em seu transe, ela havia registrado o balanço no fundo do jardim do palácio. Piscou e viu-o de novo. E imediatamente saltou de pé, correndo pelo gramado.
— VOLTE AQUI! — berrou Uaqt. Mas a pequenina Molly não ouviu. Toda a sua mente estava fixada na idéia do balanço. — Ah, desisto — disse Uaqt sem paciência. Virou-se para a outra Molly.
— Molly de dez anos! Acorde e lembre-se!
A Molly de dez anos agora estava totalmente consciente de tudo ao redor. A última vez em que tivera permissão de sair do transe havia sido na Fortaleza Vermelha, quando foi testada. Na ocasião tinha ficado muito confusa, mas agora sua mente clareara. Como desde então vinha absorvendo a viagem e o que acontecera, Molly havia deduzido algumas coisas básicas.
A primeira é que fora hipnotizada, a segunda, que estavam na índia, a terceira, que tinham viajado para trás no tempo. Sabia que os cristais em volta do pescoço do marajá eram para viajar no tempo. Havia deduzido que a menininha e o bebê que estavam com ela eram ela própria. E tinha certeza de que o marajá era mau e que a garota grande parecida com cia, que havia aparecido perto da fogueira e levado a de seis anos, estava do seu lado. Ela se lembrava de ter sido salva pela garota maior quando tinha seis anos, de ter sido levada num elefante e de ser protegida. Molly sabia que precisaria ajudar essa Molly mais velha, se pudesse.
— Muito bem — disse Uaqt esticando as pernas. — Hoje quero descobrir até que ponto seus dons hipnóticos eram bons antes de você descobrir sobre o hipnotismo. Quando o bebê Uaqta tiver crescido, quero ensiná-la, portanto hoje vou treinar com você. — Molly olhou para a menina de três anos brincando no balanço. — Daqui a um minuto você vai olhar nos meus olhos — disse Uaqt —, e quando fizer isso vai tentar se proteger do forte olhar hipnótico que eu darei. Olhe.
Molly repassou na cabeça o que Uaqt havia acabado de dizer. “... quero descobrir até que ponto seus dons hipnóticos eram bons antes de você descobrir sobre o hipnotismo... “ Aparentemente um dia ela saberia muito sobre hipnotismo. Será que a garota mais velha era uma grande hipnotizadora? Será que aquela garota era o seu futuro? Molly olhou para o gigante e se lembrou das pessoas ruins que tinha conhecido na vida: a Srta. Viborípedes, Edna e a Sra. Assapa, sua professora má na escola. Freqüentemente Molly se encrencava com ela, e o modo como enfrentava a situação era deixar a mente voar como se estivesse sonhando. E foi exatamente isso que fez agora. Quando olhou nos olhos do gigante, foi como se os seus olhos não lhe pertencessem. Sentiu-se como se olhasse por trás deles, de uma distância segura. A silhueta do marajá ficou turva.
— Olhe nos meus olhos! — A voz de Uaqt parecia estar saindo por um cano de esgoto.
Molly se manteve em seu transe suspenso, sem se deixar interagir. Sua técnica se mostrou muito bem-sucedida, porque enquanto olhava para a garota, Uaqt descobriu que os olhos dela não estavam fazendo contato. Ele não conseguia penetrar nas pupilas. Elas estavam abrigadas. Não sabia bem como Molly havia feito isso. Por um lado estava animado com o futuro do bebê que havia adotado, mas, por outro, sentia-se inquieto, pensando em como poderia colocar essa garota de novo em transe. Depois relaxou. Sempre poderia recuar dez minutos no tempo e resolver isso. De qualquer modo, concluiu, ela não era uma ameaça, nem mesmo sem estar hipnotizada. Mas precisaria mantê-la sob vigilância. Para que ela não deixasse grandes pistas para a Molly mais velha, iria mantê-la vendada.
E assim a garota de dez anos descobriu, para sua grande surpresa, que Uaqt não estava mais interessado em mantê-la sob transe. Com curiosidade, deixou-se descer da nuvem. Mas antes de ter oportunidade de olhar em volta, descobriu que uma venda estava sendo posta sobre seus olhos.
Por isso a Molly de dez anos não viu como o Palácio Bobenoi era lindo. Mas podia sentir gostos, cheirar, tocar e ouvir.
Vendada, comeu um delicioso almoço indiano e ouviu os pássaros cantando. Ouviu uma tranqüilizadora música indiana e a menina de três anos dizendo ao marajá que queria doces. Enquanto estava sentada com suas pernas cor-de-rosa e manchadas estendidas à frente, percebeu que, a não ser por não ter seu amigo Rocky e a Sra. Brinklebury com quem conversar, aquele lugar era muito bom — melhor do que o orfanato. O único problema era o marajá louco e não saber quais eram os planos dele. Imaginou quanto tempo teria de usar a venda. Imaginou onde estaria a Molly mais velha. Ela poderia aparecer do nada outra vez e salvá-la junto com a de três anos e o bebê. Talvez precisasse de ajuda. Molly sentiu que nunca fora muito útil para ninguém na vida até agora. Decidiu pensar em como poderia ajudar a garota mais velha.
No ano 2000 o melhor hotel de Jaipur era o Bobenoi Palace Hotel. O lugar nem sempre fora um hotel. Já havia pertencido a uma elegante família indiana.
Ojas guiou Amrit até um belo pátio florido e todo mundo desceu.
— Eu gostaria de não ter engolido aquela cápsula roxa
— disse Molly baixinho a Rocky e Forest enquanto ajeitavam as roupas. — Não gosto do modo como Zackya e Uaqt podem me rastrear. Eles podem aparecer a qualquer momento. Podem estar em qualquer lugar. Quero dizer, como é que nós vamos encontrá-los?
— Uaqt não vai resistir a provocar você — disse Rocky.
— Aposto que vai deixar alguma pista. Ele gosta de brincar com você, Molly. Assim que voltarmos a 1870 vamos encontrar pistas. Quando você voltar à mesma zona do tempo das Mollys mais novas e não houver esse atraso de memória, tenho certeza de que vai lembrar exatamente para onde eles foram. E onde estão.
— Mas só tenho este cristal verde. Só posso ir numa direção, para trás no tempo. Posso ficar presa lá.
— Não se você conseguir um cristal vermelho quando estiver lá.
— E se não conseguir?
— Bem, então você estará mais atolada do que uma vaca sagrada numa estrada enlameada — disse Forest.
— Forest! — censurou Rocky. — Você não deveria ter dito isso.
— Ah, desculpe, cara. — Rocky pôs a mão no ombro de Molly. — Por enquanto esqueça. Estamos todos cansados. Precisamos de uma boa noite de sono.
E assim, deixando os outros com Amrit, Molly e Rocky foram até a portaria ornamentada do Bobenoi Palace Hotel. Um enorme sikh com turbante e bigode farto surgiu, mais parecendo um guerreiro do que um porteiro. Molly cobriu o rosto escamoso com uma echarpe. O homem sorriu e fez uma reverência. Molly retribuiu.
— Namaskar.
Dentro, o hotel era fresco, tranqüilo e elegante, com piso de mármore em xadrez marrom e branco e teto alto. Alguns turistas japoneses estavam sentados ao redor de uma mesa de vidro olhando com reverência um livro antigo e pesado com assinaturas. Parecia uma espécie de livro de visitas. Uma indiana com um sári que combinava com as colunas de bronze ao redor estava parada atrás do balcão.
— Bem-vindos ao Bobenoi Palace Hotel. Em que posso ajudá-los?
Por experiência própria, Molly sabia que os adultos jamais faziam negócios com crianças, e tinha esperado uma recepcionista desconfiada, mas ficou pasma com a solicitude da mulher.
— Não estamos com um adulto — disse ela. — Bem, estamos, mas ele não é como os adultos normais. Quero dizer, ele não é doido nem nada, só está... é... meditando lá fora num elefante.
Rocky olhou para Molly como se dissesse: “você pirou?”
A mulher sorriu.
— O que posso fazer por vocês?
— Gostaríamos de três quartos, por favor — disse Rocky. — Podemos pagar adiantado. E temos uma elefanta com fome, que precisa de cama também... obviamente não no hotel, mas será que a senhora teria um lugar no pátio onde ela pudesse dormir... ? O mais urgente é que ela está com muita fome. Podemos pagar o que vocês cobrarem para lhe dar comida... folhas de palmeiras, esse tipo de coisa. Imagino que não tenham isso na cozinha, não é? — acrescentou debilmente.
— Bem, que pedido interessante! — disse a mulher, cujos dentes pareciam duas fileiras de pérolas brilhantes no rosto belo e sorridente. Molly e Rocky ficaram surpresos ao ver como ela era tranqüila.
— Nosso lema aqui é “No que pudermos ajudar ajudaremos. E no que não pudermos também ajudaremos”. Veja bem, está escrito ali na parede. — Ela apontou para uma placa.
— Ah! — disse Molly. — Então este é um caso em que vocês não podem ajudar mas tentarão mesmo assim, ou em que podem ajudar portanto ajudarão sem dúvida?
— Ah, de fato podemos ajudar! Nós adoramos ter elefantes hospedados. É nosso privilégio. Obrigada por nos escolher! Sua elefanta nos trará todo tipo de boa sorte!
— Uau, então está resolvido — disse Molly. Estava espantada. Não podia imaginar o hotel de Briersville aceitando um elefante como hóspede.
Durante dez minutos a mulher deu alguns telefonemas e aparentemente tudo foi encaminhado.
— O mensageiro está dizendo aos seus amigos para levar a elefanta pelo jardim, até o fundo, onde ficam os chalés. Vou encontrá-los lá e mostrarei seus quartos. O jantar da elefanta está a caminho.
E assim eles saíram.
Os jardins do hotel eram muito exóticos, com papagaios verdes voando sobre os gramados e macacos pulando nas árvores. Havia uma grande piscina turquesa com estátuas de elefantes que espirravam jorros de água pelas trombas. Havia um campo para jogos de bola e um local parecido com um templo, para ioga, e um belo restaurante ao ar livre onde as pessoas comiam em gazebos de teto vermelho. Elas apontavam deliciadas para Amrit que bamboleava atrás de Ojas pelo gramado e para Petulazinha que tropeçava enquanto tentava acompanhá-los. Ojas levou Amrit até uma árvore de frangipana onde um porteiro disse que ela poderia ser amarrada.
Os quartos dos chalés eram muito bons, com camas de dossel cobertas por seda colorida. As banheiras eram fundas, com degraus, e as duchas externas eram cercadas por paredes cobertas de buganvílias e o teto coberto por folhagens. Uma placa advertia:
Molly colocou o novo cristal cuidadosamente numa tigela dourada sobre a mesa e se jogou numa cama. A pequena Molly fez o mesmo. Ambas estavam exaustas.
— O que acha disso? Legal, não é?
— É como um lugar de contos de fada — disse a de seis anos.
— Ei, isso é demais — exclamou Forest. Depois, abrindo o frigobar e se servindo de suco de abacaxi, acrescentou: — Molly, estive meditando sobre que tipo de posturas de ioga você precisa fazer para botar para fora os chips de silício de Zackya. Há algumas poções que conheço que vão ajudar a tirar aquela pílula roxa de sua barriga. Vou conversar com o cozinheiro sobre os ingredientes. Você vai ter um jantar tipo “arrancando a pílula roxa”.
— Eu estava pensando num sanduíche de ketchup e um copo de suco de laranja concentrado — admitiu Molly.
— Esta noite nada de iguarias assim. Se quiser pôr aquela coisa para fora, terá de comer o que eu disser.
Mais tarde, enquanto a cadelinha roía um osso, Molly começou a mastigar um negócio duro, pegajoso e amargo. Uma bandeja com garrafas contendo líquidos escuros estava ao lado.
A pequena Molly foi posta na cama e Ojas se acomodou no quarto que estava compartilhando com Rocky. Estava mesmerizado pela televisão. Rocky deixou-o arregalado assistindo a um colorido filme indiano. Enquanto isso Molly recebia uma aula de ioga muito intensa, dada por Forest. Rocky ria quando Forest torcia e cutucava o corpo de Molly em contorções circenses.
— Você vai agradecer por eu ter feito isso — disse Forest enquanto Molly ficava plantando bananeira com as pernas cruzadas. — Esta combinação de tratamentos sempre funciona. Ela põe tudo para fora. De modo que amanhã você não terá aquela pílula rastreadora dentro do corpo. Só não esqueça de dormir perto do banheiro.
— Ótimo. Obrigada — disse Molly enquanto sua barriga gorgolejava. — Espero que você esteja certo.
Naquela noite, com um ventilador soprando no quarto, Molly dormiu mal. Revirou-se na cama enquanto a mente em redemoinho tentava lidar com seus problemas.
Sonhou que tinha se transformado numa velha encurvada, escamosa e seca de tanto viajar no tempo. No sonho caminhava por uma floresta enlameada, seguindo uma trilha de pegadas de crianças. Ao lado havia pegadas de patas, e rastros do tamanho dos pés do abominável homem das neves iam na frente. No pesadelo Molly era levada cada vez mais para o fundo da floresta. Enquanto andava, as árvores iam ficando mais densas até que a floresta ficou totalmente escura e ela não pôde mais ver o chão. E então a lama começou a gorgolejar, mover-se e engoli-la. Enquanto afundava, viu o cristal verde e rachado desaparecer na gosma.
Acordou com medo, tremendo e aterrorizada com a possibilidade de ter perdido a pedra. Levantou-se e a encontrou na tigela dourada sobre a mesa. Aliviada, mas ainda tonta do pesadelo, pegou-a e foi tomar um gole d’água. No banheiro espelhado acendeu a luz e olhou para o seu reflexo. Parecia que um maquiador do cinema indiano havia começado a maquiar o seu rosto, cobrindo as bochechas com escamas, e depois largara o serviço pelo meio. Mas agora o rosto praticamente não a incomodava. Sacrificaria todo o corpo às escamas se a recompensa fosse recuperar Petula e seus eus mais jovens. E esse, percebeu, talvez fosse o preço a pagar.
Voltou para a cama, colocando a pedra sob o travesseiro junto com o cristal incolor. No escuro pensou de novo no motivo para Uaqt querer adotar seu eu bebê e não uma das Mollys mais velhas. Pensou de novo em sua mãe, Lucy, e em como ela havia parecido tão triste e desapontada com Molly.
Sentindo-se triste e inútil, caiu num sono profundo e sem sonhos.
As sete horas a barriga a acordou.
Estava com uma cólica terrível. Parecia haver monstros dentro dela, agarrando e beliscando os intestinos. Voou da cama e passou uma hora no banheiro.
— Eu pego você, Forest! — gritou de lá.
Mas quando saiu sentia-se fantástica. E agora a cápsula roxa havia sumido. Levada pela descarga, correndo pelos canos de esgoto de Jaipur.
Forest não tinha se saído tão bem. Depois de tomar uma ducha pela manhã, esquecera de fechar a porta do banheiro. Por isso, enquanto estava na plataforma de ioga saudando o sol nascente, macacos haviam entrado em seu quarto. Quando voltou ao quarto, parecia que uma bomba explodira na bandeja do café da manhã. Havia comida por toda parte. Os macacos não tinham só tomado o seu café da manhã — tinham decidido jogar bola com ele, ou algo assim, porque as janelas estavam sujas de molho verde e havia três ovos fritos grudados no teto. E os dez diferentes sucos de frutas que ele pedira agora pingavam nas paredes e escorriam no dossel da cama. Travesseiros tinham sido abertos e penas flutuavam, e os livros que estavam no quarto haviam sido rasgados. O banheiro era um desastre ainda maior. Os macacos tinham se servido de pasta de dente e usado espuma para a banheira, e o chão estava todo molhado e escorregadio depois de eles terem chafurdado no vaso sanitário, que agora estava entupido com rolos de papel higiênico. Um terceiro rolo fora desenrolado e espalhado pelo quarto. Mas o maior sofrimento de Forest foi porque os macacos haviam tirado dos pacotes e comido cada uma de suas pílulas super-hiper, especialmente projetadas para relaxar.
— Cara, comeram minhas ervas medicinais, um remédio preparado especialmente para mim pelo meu terapeuta de shiatsu — gemeu ele.
Fora dos chalés as coisas estavam igualmente caóticas. Amrit, que fora amarrada a árvore centenária para passar a noite, arrancara-a do chão perto do muro e se soltou. A velha árvore estava prostrada e morrendo no gramado. Depois a elefanta havia entrado na piscina, onde agora estava sentada espirrando água pela tromba, felicíssima. Ali perto, sob os guarda-sóis e imitando os preguiçosos humanos que costumavam ver tomando banho de sol, quatro macacos marrons estavam esparramados nas espreguiçadeiras.
Por incrível que pareça os funcionários do hotel não estavam abalados com os acontecimentos. Apesar dos avisos, era comum os macacos entrarem nos quartos. Eles acharam realmente engraçado Amrit dentro da piscina e ficavam dizendo como o hotel teria sorte agora. Pediram desculpas por terem sugerido que Ojas a amarrasse na velha frangipana, insistindo que fora culpa deles. Decidiram deixar os macacos saírem quando quisessem, já que ninguém desejava se arriscar a ser mordido.
Rocky tinha dormido bem. Fora dormir imaginando se sua pele não estaria afetada pela viagem no tempo, mas de manhã percebeu que talvez estivesse. A área atrás dos joelhos estava muito seca e escamosa. Os efeitos da viagem no tempo certamente não eram tão ruins para ele quanto para Molly. Talvez porque ela estivesse fazendo a viagem no tempo acontecer, enquanto ele só pegava carona. Pensando nisso, terminou o café da manhã e foi à recepção pagar a conta. Enquanto atravessava o gramado, o grande maço de notas batia em sua perna. Rocky pretendia garantir que o hotel não ficasse no prejuízo por causa de todos os danos que Amrit e Forest haviam causado.
No saguão os turistas japoneses também estavam partindo. Estavam perto do balcão segurando as carteiras, de modo que, no momento, o caixa estava ocupado. Rocky olhou ao redor, admirando o esplêndido teto em cúpula. Então seu olhar pousou no antigo livro que os outros hóspedes tinham examinado na noite anterior. Aproximando-se da mesa de vidro onde ele estava, notou como era velho e chamuscado. Uma etiqueta ao lado dizia:
Este foi o primeiro livro de visitas do Palácio Bobenoi. Por favor manuseie com cuidado, já que foi danificado pelo incêndio de 1903 e é muito frágil.
Rocky abriu cuidadosamente a capa. Dentro, a primeira anotação era de setembro de 1862. Havia uma assinatura em tinta preta. A página seguinte tinha três anotações, acrescentadas em outubro de 1862. Imediatamente Rocky pensou em 1870. Imaginou se o verdadeiro marajá de Jaipur ou se o decaído marajá da Fortaleza Vermelha tinham se hospedado ali, e delicadamente folheou o livro passando por 1863, 1865, 1867, 1868... Dentre as assinaturas de estrangeiros e dignitários locais não viu nenhum nome que conhecesse. Por fim chegou às anotações do ano de 1870. Janeiro, fevereiro e março. De repente, ali na página amarelada, em letras grandes e elaboradas, estava escrito:
A parte de baixo da página estava chamuscada, de modo que o resto da frase era um mistério. Mas para Rocky bastava. Rapidamente examinou o resto do livro para verificar se Uaqt havia retornado, o que não aconteceu. Então, vendo o balcão vazio, foi até a recepcionista e rapidamente pagou a conta.
Ojas estava perto da piscina, tentando atrair Amrit para fora com um grande cacho de bananas. Molly estava sentada na grama olhando Amrit sair e gulosamente enfiar as dezesseis bananas na boca, com casca e tudo. Algumas, meio mastigadas, caíram no chão. Então, brincando, ela derrubou Petulazinha com a tromba. Molly tirou o cristal verde do bolso e o revirou na mão.
— Não podemos ficar aqui? — perguntou a pequena Molly enquanto Forest e Rocky seguravam suas mãos e a levavam até Amrit.
Molly sabia como ela se sentia, porque aquele era o lugar mais lindo em que a menina já estivera.
Rocky deu-lhe um tapinha no ombro.
— Adivinha só!
Molly sorriu.
— Hm... Zackya foi encolhido até o tamanho de uma barata e está sapateando na cozinha do hotel?
— Encontrei uma coisa realmente útil! — Assim que Rocky disse isso, todos prestaram atenção. — Tem um antigo livro de visitas no hotel! — Em seguida o garoto contou sobre as anotações e sobre o que fora escrito por Uaqt. — Ele disse que o tempo está fluindo e as fontes de cristal estão jorrando.
— O que isso significa? — perguntou Molly.
— Sei lá, mas escute. Ele disse que esteve em Jaipur e vai para Agra e Udaipur, depois vai de barco a algum lugar, mas essa parte estava queimada. E menciona meses. Março, julho, agosto, novembro. Ele esteve em Jaipur em março, então talvez esteja em Agra em julho, em Udaipur em agosto e no tal lugar aonde vai de barco em novembro!
— Incrível — disse Forest. — Sabe, Agra fica bem perto daqui. Por que não vamos até lá, recuamos a julho de 1870 e armamos uma emboscada para ele?
— Ou voltamos a março de 1870 e armamos uma emboscada para ele aqui mesmo no Palácio Bobenoi — sugeriu Rocky.
— Você acha que a anotação no livro pode ser um truque? — perguntou Molly.
— Pode ser — considerou Rocky. — Nós não temos outras pistas. Se Uaqt escreveu naquele livro sem saber que nós iríamos encontrar, realmente estamos um passo à frente dele, porque agora sabemos aonde ele vai.
— Pukka! — exclamou Ojas, e começou a fazer uma pequena cerimônia puja preparando-se para a viagem.
Então levou Amrit até um bosque calmo. Ali, com grande esforço, ele, Forest e Rocky amarraram o howdah às costas dela. Logo todo mundo estava montado. Antes que o pessoal do hotel os notasse, Molly fechou os olhos.
— Boa sorte — disse Rocky.
— Então você opta por março de 1870?
— Sim.
— Se segurem agora. — Molly segurou a pedra turva sem apertar e entrou em transe. Estava realmente nervosa, já que era fundamental chegar mais ou menos no tempo em que estavam seus eus mais novos. Se recuasse demais no tempo, era o fim. Estariam condenados. Tentando não fazer isso, concentrou-se no cristal. Imediatamente ouviu um BUM e sentiu que partiam. Estavam indo, zunindo de volta no tempo. As estações correram. Chuva, sol, tempestades e ventos eram clarões momentâneos. Voavam recuando através dos elementos. Mas a viagem não era como antes. Molly não se sentia tão no controle. Era como se os cristais que tinha usado antes fossem versões de alta tecnologia e, em comparação, este estivesse enferrujado e quebrado. Os movimentos eram bruscos. Viajavam apenas cinco anos por segundo e de repente cobriam cinqüenta anos num segundo. O cristal não funcionava muito bem. Mas pelo menos estava levando-os para o passado.
Molly tentou calcular quando devia parar, mas o cristal se movia de modo tão imprevisível que ela não sentia confiança com relação ao tempo em que estavam. Olhou a pedra suja e decidiu que ela era turva porque estava quebrada.
Uaqt estava deitado na cama com as mãos atrás da cabeça. Uma pilha de cristais vermelhos, verdes e incolores se encontrava na colcha ao lado. Para ele aquele era o maior tesouro do mundo. E sentia-se bem, como não se sentia há anos.
Suas recentes cerimônias nas fontes de cristais tinham sido excelentes. Em Jaipur, Agra e Udaipur os cristais haviam jorrado da terra. Tinham aberto caminho pelas rochas, brilhando como sementes de romã, atraídas pelo bebê Molly Moon. Ela era o ímã perfeito. Até as Mollys mais velhas pareciam atrair os cristais algumas vezes. Ele tinha grandes esperanças para a cerimônia em Benares em novembro — sem dúvida a coincidência da colheita de cristais com o Diwali, o festival indiano das luzes, seria auspiciosa.
Além disso tinha gostado de fazer seu jogo com a Molly Moon mais velha. Na verdade fora divertido deixar pistas para ela. Divertido! Tão divertido quanto caçar! Imaginou quantas pistas ela acharia.
Tinha escrito em árvores, mandado plantar canteiros de flores para que os arbustos mostrassem palavras. Bandeiras haviam sido confeccionadas com seu paradeiro bordado. Até mesmo mandara algumas máquinas do século XXV voar sobre as cidades à noite, iluminando os céus escuros com frases que diziam exatamente onde ele estava. Tinha deixado a Molly de três anos lembrar de coisas. E no entanto a de onze anos ainda não havia aparecido. Ele sempre poderia mandar Zackya rastreá-la com o aparelho, mas, claro, isso estragaria a brincadeira.
Precisava atraí-la. Tentá-la. Fisgá-la. Depois a armadilha se fecharia.
Molly decidiu parar. Será que estavam em março de 1870 ou teriam recuado mais? O mundo se materializou em volta deles e imediatamente foram cercados por água. Petulazinha ganiu quando uma torrente acertou seu focinho e ela se enfiou no casaco de Rocky. Molly nunca tinha visto um lugar tão molhado. A chuva caía com força e obviamente vinha chovendo há dias. O velho prédio do hotel continuava atrás deles. Mas não era um hotel. Agora era um palácio de verdade, com jardins ornamentais. O chão seco onde haviam estado tinha água que chegava aos joelhos de Amrit.
A elefanta adorou e imediatamente começou a bater os pés e espadanar. Enfiou a tromba na água, sugou um bocado e, toda feliz, espirrou-a por cima da cabeça. O jorro bateu nas pernas de Ojas.
— NÃO. Pára com isso! — gritou ele irritado, pulando e pegando uma grande folha de bananeira, que segurou sobre a cabeça como um guarda-chuva.
— Cara, ela só está se divertindo um pouco! — disse Forest, de dentro do howdah.
— Não vai ser divertido se ela molhar você — respondeu Ojas sério, voltando para cima. — Com uma chuva de monção como esta, onde você vai secar, se ela o encharcar? Hein? — Agora ele estava pingando.
Molly encolheu as pernas dentro do howdah. Mesmo debaixo da cobertura eles continuavam se molhando, e ela começava a afundar com o excesso de água. Ojas cutucou-a com a ponta de madeira de seu ankush e a água jorrou pelas costas e pelo traseiro de Amrit.
— Está chovendo baldes! Teremos de ficar tirando água continuamente — comentou. — Se não a cobertura vai cair.
Petulazinha latiu para o céu.
— Estou com frio! — disse a pequena Molly, apertando o braço de Rocky em busca de calor.
— Isto não é março. Esse clima é de dezembro? — perguntou Rocky a Ojas.
— Ah, não, Rocky. Deve ser julho ou agosto. Tempo das monções.
— Desculpe — disse Molly. — Calculei mal. Este cristal não funciona direito.
— Você está tendo alguma lembrança, agora que estamos mais perto dos seus outros eus, Molly?
Molly assentiu, sentindo as estranhas vibrações que emanavam de seus eus mais jovens. Lembrou-se de quando tinha dez anos e Uaqt a deixou sair do transe.
— Mas ele vendou os olhos do meu eu de dez anos, por isso não consigo me lembrar de onde elas estão. Mas posso sentir. Elas estão em algum lugar por lá. — Molly apontou
para o sudoeste. — Ah, como eu gostaria de estar captando a memória de Petula!
— Lá fica na direção de Udaipur — disse Forest. — Mas é bem longe. Para onde o livro de visitas disse que eles iriam depois de Udaipur?
— Iriam de barco — respondeu Rocky. — Mas não sabemos para onde nem em que rio.
— Eu sei — gritou a Molly de seis anos, evidentemente deliciada por algum pensamento. Ela bateu nos joelhos e gargalhou. — Adivinhem o nome do rio que eles vão pegar. Adivinhem!
Todo mundo olhou para a menininha desgrenhada que subitamente gargalhava sob o teto do howdah, na chuva.
— O que há de tão engraçado? — perguntou Forest.
Todo mundo estava inexpressivo.
— Como você sabe o nome do rio? — perguntou Molly.
— Eu lembro!
— Uaqt deixou a de três anos lembrar! — disse Rocky. — É uma pista.
— A Molly de seis anos tem as recordações da de três, mas você esqueceu — disse Forest.
— Por que você não diz o nome? — pediu Molly, ligeiramente envergonhada porque essa versão mais nova de si mesma estava deixando todo mundo à espera.
— Ah, ela quer brincar — disse Ojas, com água escorrendo pelo nariz. — Então por que não dá uma pista, pequena Molly?
— Bom, é uma coisa que a gente passa na torrada — disse a menina de seis anos, batendo palmas alegre.
— Ketchup — respondeu Molly.
— Manteiga — disse Rocky.
— Ghee — sugeriu Ojas.
— Pasta de pepino — disse Forest.
A chuva caía fazendo chacoalhar os dentes de todos.
— Não! — exclamou a pequena Molly.
— Certo, nós desistimos. Diga o que é — pediu Forest.
— Não, é segredo — respondeu a menininha.
— Patê?
— Pasta de amendoim?
— Ovo?
— Pasta de Molly — disse Molly.
— Queijo?
— Não gosto de queijo com torrada — disse a pequena Molly.
— O quê você gosta de passar na torrada? — perguntou Rocky, maroto.
— Bem, principalmente ketchup, se me deixarem, ou manteiga ou geléia de jabuticaba — admitiu a menininha.
— O nome do rio é “geléia de jabuticaba”? — perguntou Rocky.
— É! É! Jabuticaba! Não é o nome mais engraçado do mundo para um rio? Pense só, estar num barco num rio de jabuticaba! — Ela riu como se fosse a piada mais engraçada do mundo. Rocky riu para agradar à menina. Depois se virou para Ojas e Forest. —Já ouviram falar desse rio?
— Bem — disse Forest, franzindo a testa. — Há um rio de nome parecido chamado Yamuna, ou Jamuna... Ele nasce nas montanhas do Himalaia e desce pelo centro da índia. Passa por Agra. Depois se une ao rio Ganges. E depois disso, o lugar muito importante e místico pelo qual ele passa, e no qual tenho certeza de que Uaqt vai estar interessado, é Benares, a Cidade da Luz. É, cara. É um daqueles lugares incríveis. No nosso tempo chama-se Varanasi. Aquele maluco definitivamente vai querer ir para lá.
— Varanasi deve ser o lugar para onde Uaqt vai em novembro — disse Rocky. — É para lá que ele vai de barco.
— Será que Uaqt terá de voltar a Agra para pegar o rio Jamuna? — perguntou Molly.
— É — respondeu Forest. — Acho que sim.
— Bem — disse Molly. — Vamos a Agra. Então teremos uma chance de alcançá-lo.
— Agra fica a leste, a cerca de duzentos e quinze quilômetros — disse Ojas. — Eu perguntei ao mensageiro do hotel. A seis quilômetros por hora, e esse é um bom ritmo para um elefante, vamos levar... — Ojas ficou quieto um momento.
— Umas trinta e cinco horas — calculou Rocky. — O que é isso para quem está três dias andando? — Ele ficou quieto e Ojas cutucou a cobertura com seu ankush e mais água escorreu pelo traseiro de Amrit. — Acho o seguinte: ou nós vamos a Agra agora e chegamos antes de Uaqt ou podemos recuar no tempo e emboscá-lo aqui em Jaipur, em março, como eu disse.
— Com este cristal — disse Molly — não sei se poderei chegar no tempo exato. Este cristal não funciona muito bem. É mais seguro ir para Agra.
— Então acho que devemos ir logo — respondeu Ojas cutucando Amrit com o pé. — De qualquer modo, aquelas crianças na janela estão olhando para a gente. Nós estamos no jardim delas.
E assim partiram por esse novo mundo aquoso. Amrit seguiu pelos jardins verdes e inundados, passando pelo arco de pedra que dava na rua. E quando chegaram lá, que visão!
A rua havia se tornado um rio.
— Tudo está encharcado! — exclamou Molly.
— É normal — disse Ojas. — As chuvas de monção duram dez semanas nesta parte da índia. As pessoas agradecem por elas, porque fica muito quente em maio, junho e julho. Se houver uma seca forte todas as colheitas se perdem. E as pessoas passam fome. De modo que quando o céu se abre, todo mundo fica muito feliz.
Dez minutos depois a chuva parou. Pessoas saíram das casas e continuaram com a vida como se ir à escola ou trabalhar usando a rua-rio fosse a coisa mais natural do mundo. Quatro crianças passaram chapinhando felizes, gritando para Ojas e apontando a cadelinha. Um alfaiate se aventurou fora de sua oficina com um rolo de tecido no ombro; uma mãe empurrava dois barcos minúsculos, cada um feito com metade de um barril e contendo uma criancinha que gargalhava, seguindo pela rua-rio. Um cachorro passou com a cauda balançando enquanto nadava.
Logo estavam em uma estrada em campo aberto, onde a água era mais rasa. O sol atravessou as nuvens pesadas e, por um tempo, todo mundo secou. Desceram de Amrit e pegaram grandes folhas para servir de guarda-chuva. Não demorou muito até que o céu escurecesse de novo. As nuvens desceram como se quisessem esmagar a terra, e outra vez começou a chover. Tudo em volta deles ficou submerso, e gotas prateadas ricocheteavam na superfície cinzenta. O ruído da chuva era uma cacofonia. Batia na poça da cobertura acima deles. De vez em quando os céus trovejavam, um ronco profundo enquanto os elementos no ar resmungavam e arrotavam.
— Olhem — disse Ojas. — As chuvas devem estar quase terminando, porque aquelas flores roxas estão crescendo. E aquelas amarelas e aqueles cogumelos. Deve ser fim de agosto.
Molly pensou em Petula.
— Molly — disse ela ao seu eu de seis anos. — Você se lembra se uma cachorrinha, uma cachorrinha preta, estava junto quando você ficou com o gigante quando era pequenina? — O rosto da menina ficou sério. A Molly de onze anos percebeu que na cabeça da menina de seis anos provavelmente havia apenas algumas poucas lembranças nítidas de quando ela estava com três. Mesmo assim esperava que Petula fosse uma dessas lembranças.
A pequena Molly franziu o rosto, tentando lembrar coisas de sua vida curta.
— Lembro de ter ido a um palácio grande que parecia um bolo com cobertura de merengue.
— Deve ser Agra — disse Forest.
— E lembro de ter ido a uma casa grande no meio do mar e havia um monte de homens de roxo, todos pulando. E estava chovendo e o neném ficou todo molhado, mas não tinha nenhum cachorro.
— Parece a cidade de Udaipur. O palácio fica num lago.
De repente um pensamento inteligente ocorreu a Molly. Se podia se lembrar das experiências da menina de dez anos e se a de seis podia ter as lembranças da de três, certamente a de dez anos poderia se lembrar de quando tinha seis. Seu eu de seis anos poderia mandar uma mensagem ao seu eu de dez. Valia a pena tentar. Molly explicou rapidamente sua idéia aos outros.
E assim começaram a ensinar uma cantiga à menina de seis anos. Não era melódica. Na verdade era bem irritante. Mas era o tipo de cantiga que uma criança de seis anos cantaria repetidamente. Era assim:
Vamos salvar vocês, Mollys, Salvar vocês, Salvar vocês.
Vamos salvar vocês, Mollys,
E quando chegarmos queremos sua ajuda!
Molly e seu grupo foram a passo de elefanta até a cidade de Agra e ao rio Jamuna. Enquanto Amrit bamboleava eles cantaram a musiquinha do resgate, até ficar bem entranhada na mente da Molly de seis anos. E Molly também pôs outras lembranças lá. Uma tarde, quando Forest estava dormindo e ela andava pela estrada cheia de poças com a pequena Molly, fez com que ela risse. Imitou uma galinha engraçada, depois a dança do camelo com prisão-de-ventre e por fim imitou Forest. Quando fez as três coisas ao mesmo tempo, a pequena Molly estava gargalhando. Molly sabia exatamente como fazer seu eu mais novo rir. E o bom foi que, depois de terem voltado a viajar, sentiu-se cheia de uma lembrança estranha e distorcida de uma garota grande chamada Molly que a fez rir uma vez. Alguns detalhes eram confusos, mas era uma de suas lembranças mais fortes, e a sensação agradável gerada pelo momento continuava intacta.
Molly ficou espantada ao ver como um momento de risos injetava tanta energia positiva. Olhou para os amigos e percebeu como era importante para as pessoas ter momentos felizes — porque os sentimentos positivos dos momentos felizes ficam para sempre no coração e na mente.
Uaqt estava sentado em sua enorme barca, esparramado em luxuosas almofadas enfeitadas com borlas. Um indiano muito moreno, vestido de branco, cortava os pêlos de seus ouvidos, deixando os fios caírem num prato de ouro. Quando o sujeito recolocou o turbante com pluma, Uaqt se empertigou e bateu palmas.
A Molly de dez anos foi trazida à sua frente. Ele assentiu para os guardas que retiraram a venda.
Molly esfregou os olhos e eles se acostumaram à luz. Enquanto estava presa havia recebido todo tipo de lembranças de quando tinha cerca de seis anos. Acima de tudo lembrava-se de uma cantiga que havia cantado sem parar. Olhou o gigante à sua frente e se perguntou se a Molly grande viria resgatá-la agora.
Serviçais entraram correndo no aposento, carregando pratos com tampas de prata. A comida tinha um cheiro irresistivelmente delicioso.
— Coma! Esta defeição reliciosa é toda para você, Lommy!
A garota hesitou. Por que o marajá estava sendo tão gentil? Desconfiada, começou a comer.
Depois do primeiro bocado Molly percebeu a tortura que estava sendo infligida. A comida estava muito apimentada. Tossiu e tentou pegar um guardanapo para cuspir nele.
— Eu mandei COMER!
Molly tentou de novo. Nunca havia provado uma coisa tão apimentada. Sua boca começou a parecer um inferno em chamas.
— Não consigo!
— Você vai comer. — O rosto de Uaqt chegou perto. — Vai comer ou vai morrer — disse ele sorrindo.
Então Molly comeu. Sua boca ficou entorpecida. Tomou três jarras d’água, mas a boca continuava pegando fogo.
— Bom tempero! Tempero bom! — provocava Uaqt. Era uma tortura. E quanto mais ela engasgava e bebia, mais o gigante cruel gargalhava.
— Você se dembra lisso? — riu ele. — Você se dembra lisso? — era a estranha pergunta que ele ficava fazendo. Molly não sabia o que ele queria dizer.
Molly acordou suando depois de um cochilo no fim da tarde. Enquanto estivera dormindo no howdah, as lembranças de seu eu mais novo tinham se materializado. O “Você se dembra lisso?” de Uaqt era dirigido a ela agora. Ele estava falando com ela agora através de seu eu de dez anos.
Lembrou-se de que tinha acabado de comer aquela gororoba e ido para o aposento onde dormiam a menina de três anos e o bebê. Depois de duas horas a sensação havia retornado à sua língua.
Molly aninhou Petulazinha e pensou em como ela cheirava como a sua Petula. Isso a fez sorrir, porque, claro, as duas eram a mesma.
Se Petula estava viva, talvez se lembrasse desse carinho, pensou Molly. Em seguida mergulhou o nariz no pêlo aveludado e fechou os olhos.
Naquele fim de tarde, enquanto o céu ficava dourado, eles chegaram a Agra.
— Eu falei que já estive aqui — disse a Molly de seis anos, apontando. O Taj Mahal era como a pequena Molly havia descrito — o teto de mármore erguendo-se sobre colunas elegantes era exatamente um merengue.
— Incrível, não é? — disse Forest.
Ojas cutucou Amrit para virar à esquerda e eles seguiram até o cais no rio. O rio Jamuna.
Não era um cais sofisticado. Na verdade era mais uma margem lamacenta por causa da chuva. Mas havia um pequeno atracadouro de madeira e alguns barcos estavam presos à margem. Duas garotas estavam sentadas nos calcanhares perto de sua colheita de melões aninhados em palha. O outro lado do rio era uma planície aluvial vazia, coberta de capim. Todos desmontaram.
— Então — disse Ojas apontando a vastidão verde do rio. — Benares, a Cidade da Luz, fica para lá. — Molly acompanhou o dedo dele e algo luminoso atraiu seu olhar, fazendo-a dar um pulo.
— O que são aquelas coisas queimando? — perguntou indo para a margem do rio.
Lá, ao lado do cais, balançando na água, havia coisas que pareciam bonecas feitas à mão, enroladas em seda branca e amarela. Os rostos das bonecas estavam descobertos. E era perfeitamente claro que cada boneca representava alguém de seu grupo. Ali estavam Forest, Rocky, ela própria, Ojas, a pequena Molly e Petulazinha. Todas as bonecas estavam pegando fogo, e as chamas lambiam suas feições.
— São como bonecas de vodu! — ofegou Molly.
— Não acredito em vodu — disse Rocky, olhando cheio de repulsa as efígies na água.
— É uma pista — gritou Ojas. — As pessoas vão à Cidade da Luz para morrer. Quando morrem, seus corpos são enrolados em seda e queimados! Uaqt deixou esta pista para você encontrar, para você saber que ele foi à Cidade da Luz.
— Mas eu não quero ser embrulhada como um presente de aniversário e pegar fogo! — guinchou a Molly de seis anos.
— Não, não, claro que não vai ser — consolou Rocky. — Isso é só uma... é só uma brincadeira.
— Uma brincadeira? Ah. — Satisfeita com a resposta, a menina sentou-se numa pedra e começou a brincar com a cadelinha.
— Esse cara é doente demais — disse Rocky. — Precisa ser posto num hospício de segurança máxima.
Molly olhou rio acima e viu uma grande embarcação de madeira com teto de bambu arqueado. A proa do barco era pontuda, com um pequeno convés na frente. A comprida parte do meio era totalmente abrigada, mas a parte de trás, antes da popa, era uma plataforma aberta, para transporte de carga.
— Ojas — disse ela —, você pode perguntar àquele homem se podemos alugar o barco dele? — Ela pegou a bolsa cheia com o dinheiro do vendedor de roupas.
Ojas assentiu.
— Boa idéia, Molly. — Em seguida pôs dois dedos na boca e assoviou.
O capitão, um homem moreno com nariz chato e quebrado, pôs a cabeça para fora de uma lona embaixo da qual estivera cochilando.
Foi assim que Molly e seus amigos se viram num tradicional barco indiano com uma elefanta.
O capitão levantou uma vela pequena e suja e eles partiram. Guiando o barco com um remo-leme, levou-os para longe de Agra. Carregados pela rápida correnteza do Jamuna, foram em direção ao Ganges onde ficava Varanasi, a Cidade da Luz.
Dias e noites se desdobraram e rolaram. O rio serpenteava embaixo deles.
Não havia muito a fazer no rio. Molly e seus amigos passavam horas vigiando o mundo passar: olhando pássaros e as pessoas que viviam nas margens.
As chuvas haviam passado. De manhã e à tarde lavavam o cocô de Amrit na popa da embarcação, no fim de tarde atracavam o barco e iam nadar. Amrit se deitava de lado na parte rasa e alguém subia em cima dela para esfregá-la com uma vassoura. Quando todos tinham mergulhado na água, ela se afundava completamente, nadando no rio como um enorme hipopótamo.
As horas das refeições pontuavam o dia, com pratos deliciosos preparados pelo imediato do capitão.
Molly brincava com Petulazinha. Ainda que, de certa forma, a vida no barco fosse perfeita, o tempo todo ela se torturava com a ansiedade enquanto imaginava se sua Petula grande estava sendo bem cuidada.
Uma noite Rocky e Molly estavam deitados no convés do barco olhando as estrelas.
— Desculpe eu não ter podido ajudar você mais — disse Rocky subitamente.
— Por que está falando isso?
— Bem, você sabe, minha hipnose de voz não tem sido muito útil.
— Não é sua culpa. As pessoas daqui não falam a mesma língua que você. E, de qualquer modo, você ajuda demais, Rocky. Sempre dá o conselho certo. Você encontrou o livro de visitas e mantém todos nós calmos. Você é sábio, Rocky.
— É, bem. Mas não consigo fazer as ações realmente impressionantes.
— O quê?... Você acha que as ações impressionantes são mais importantes do que o que você faz?
— Bem, você sabe, eu não sou exatamente o Herói-do-Pedaço.
— Rocky! Você é o Doce-de-Coco-Que-Todo-Mundo-Gosta-e-Que-Faz-Todo-Mundo-Se~Sentir-Bem. Eu preferiria ser isso do que a Heroína-do-Pedaço. Se sua mãe de verdade o encontrasse, ela realmente gostaria de você, eu sei. Você é fácil de gostar. É calmo e tranqüilizador. Rocky, sem você a Molly de seis anos estaria totalmente pirada.
— Verdade?
— É. Ela adora você. Ela gosta de você mais do que de mim! — Molly riu. — Ela deveria gostar mais de mim porque eu sou ela. Mas não! Ela gosta mais de você! — Rocky sorriu. — Você tem um talento especial para fazer as pessoas se sentirem bem. Se isso não é uma coisa especial, não sei de mais nada. Você vai ser um astro da medicina no nosso hospital hipnótico quando voltarmos para casa.
— Obrigado, Molly.
Num fim de tarde, enquanto o sol se punha, passaram por um pequeno templo branco à margem do rio. Diante dele havia um velho que Ojas ficou muito empolgado em ver. Explicou que o homem era um lendário sadu. Os dois braços do homem estavam esticados para o alto e ele se sustentava apenas num dos pés. Suas unhas eram tão grandes que se enrolavam. Aparentemente estava naquela posição há quarenta e três anos.
— Ele é louco? — perguntou Molly enquanto o barco passava.
— Não, ele é dedicado — disse Ojas cheio de espanto. — Está fazendo isso para mostrar aos deuses o quanto os ama. Se fizer esse tipo de sacrifício há uma chance maior de não nascer de novo depois de morrer. Em vez disso irá para o céu.
— Vamos esperar que os deuses notem! — comentou Rocky secamente. — Caso contrário ele terá ficado duro como um poste durante toda a vida em troca de nada!
— Então os hindus acreditam que depois da vida a gente nasce de novo? — perguntou Molly.
— Sim — respondeu Ojas. — Nasce de novo como uma abelha, um mosquito, um lindo elefante ou uma hipnotizadora fantástica! Dependendo do quanto você foi boa!
— Você acredita nisso?
— Talvez. — Ojas riu. — Eu nasci hindu. E qual é a sua religião, Molly?
— Não tenho realmente uma religião. Acho que só acredito em ser legal com as pessoas. Sabe como é, tão legal quanto a gente espera que elas sejam. Ajudar às pessoas se elas estiverem na pior, esse tipo de coisa.
— Parece uma boa religião — disse Ojas. — Se todo mundo fosse assim, acho que a vida seria melhor, e é muito importante deixar que as pessoas acreditem no que quiserem, desde que a religião delas não faça mal aos outros. Algumas pessoas religiosas brigam ou matam outras que não acreditam nas mesmas coisas! Quem quer que seja Deus, não acho que ele, ou ela, gostaria desse comportamento. Deus gosta que os homens sejam gentis. — Ele jogou um pedaço de madeira nodosa para Amrit, que o pegou com a tromba.
— Acho que toda religião tenta adivinhar o que há por trás do mistério da vida — disse Molly. — Quando a gente pensa, vê que provavelmente há homens e mulheres em todo o mundo com cérebros igualmente inteligentes e que têm religiões diferentes. Acho que a religião da pessoa provavelmente depende de onde ela cresceu. Quero dizer, não acredito que haja muitos esquimós hindus, porque o hinduísmo vem da índia e ainda não chegou ao Pólo Norte! Qual é o nome de Deus na religião hindu?
— Brahma é o criador — disse Ojas. — Há dois outros tão importantes quanto ele: Vishnu e Shiva. — Alá é o nome muçulmano de Deus. Os cristãos dizem “Deus”, não é? — Molly olhou para o sadu junto ao rio, lá atrás, e imaginou como ele dormia.
— Acho que todas as religiões são inventadas pelos seres humanos — disse Rocky.
— Ah, não! — exclamou Ojas. — Uma religião é escrita por pessoas que escutam a verdadeira voz de seu Deus.
— Uma religião é apenas um conjunto de regras de vida — declarou Rocky. — Ela dá às pessoas alguma coisa em que se segurar, porque a idéia de não existir Deus faz com que elas fiquem apavoradas. E os governos gostam das religiões porque elas mantêm as pessoas sob controle. Eu poderia inventar uma religião enquanto vamos até Varanasi.
— Algumas vezes os governantes declaram que as religiões são ilegais — disse Forest. — Eles... tipo... proíbem a religião.
— Mas, Rocky, você tem de admitir que há alguma coisa — disse Molly. — Algum poder no mundo e um monte de mistério. Talvez seja Deus.
Uaqt se erguia, alto, na proa de sua barca. Finalmente estavam chegando a Benares. Sentiu os cheiros da cidade entrando em suas narinas e admirou o modo como as construções se estendiam ao longo de um dos lados do rio Ganges, e como os ghats — as escadarias — vinham daquelas construções direto até a água.
Virou o nariz enojado quando viu hordas de gente se banhando no rio, mergulhando como se fossem biscoitos numa xícara de chá. Faziam isso porque acreditavam que, se mergulhassem no rio mais sagrado da índia, teriam seus pecados perdoados e seriam abençoadas pelo Espírito Santo.
— VOCÊS DEVERIAM ADORAR A MIM — gritou ele, mas suas palavras foram arrastadas pelo vento. — Talvez isso aconteça — acrescentou em voz baixa. — Yackza!
Tão depressa quanto uma erupção alérgica, Zackya estava ao lado dele.
— Traga-me as pequenas Mollys.
Zackya fez uma reverência e voltou com a de três anos hipnotizada e a de dez anos, vendada, que estava segurando o bebê.
— Então — disse Uaqt, pegando a criança que estava com ela. O bebê se contorceu em seus braços e fez um gorgolejo.
— Sim. Hmm. E você, minha pequena Uaqta — disse ele. — Vou lhe arranjar uma frota de vabás de berdade, basta mais uma cerimônia numa fonte de triscais e você será devidamente iniciada. — Em seguida olhou para as garotas mais velhas.
— Então isso vai estar terminado e poderemos continuar com nossa vida. — E entregou o bebê de volta à Molly vendada.
— Eles estão no Ganges agora, não estão? — perguntou a ela. — Recebi a notícia de que estão viajando com um elefante. Ha!
Molly ficou quieta. Tinha lindas lembranças de estar com seis anos, brincando com um elefante e uma cadelinha num barco. A cantiga que tinha cantado tanto ainda estava gravada em sua mente.
— Continua ferozmente leal, estou vendo. Isso é bom. — Uaqt estalou os nós dos dedos. — Parece que Molly conseguiu alguns triscais de viagem no tempo. Esperta! Imagino que você não vá me contar como, não é?
A de dez anos continuou quieta.
— Fico feliz em saber que Uaqta será inteligente. Podem ir
— disse Uaqt, desistindo, e elas foram retiradas pelos guardas.
— YACKZA!
— Sim, sahib?
— O jogo vai bem. Molly Moon tem triscais, por isso pode me seguir. Mas está ficando um pouco convencida. Precisa ficar sabendo qual é seu devido lugar. Quero lhe dar um fosto do guturo. A cadelinha morta. Você a preparou para o funeral?
— Sim, sahib — disse Zackya fazendo uma reverência.
O velho barco chegou finalmente a Benares. O verde rio Ganges fez uma curva e de repente ali estava. Benares, ou Varanasi — a cidade mais sagrada da índia. Molly estendeu suas antenas para tentar sentir onde se encontravam seus eus mais jovens. Estavam perto, em algum lugar do interior.
O capitão levou o barco até perto da margem. Ali viram mulheres vestidas de sári mergulhando no rio, homens usando lungis nadando sob a água e sadus com fraldões, rezando. E flutuando no Ganges havia centenas de flores e velas acesas — oferendas aos deuses. Vacas sagradas ficavam imóveis ou caminhavam pelos degraus e plataformas dos ghats, e macacos pulavam de um prédio ao outro, lá em cima. Passaram por um lugar onde havia fogueiras acesas na margem. Perto havia enormes pilhas de madeira para mais fogueiras. Petulazinha e Amrit farejaram o ar. Os outros ficaram sentados na lateral do barco, olhando.
— Aquelas são piras funerárias — explicou Ojas. — Logo vocês vão ver uma procissão.
Sem dúvida, no minuto seguinte um grupo de pessoas emergiu das ruas acima dos ghats. Seis delas carregavam um corpo enrolado em tecido amarelo. Trouxeram-no até as fogueiras na margem do rio e o colocaram no chão.
— Queimar numa fogueira é um ótimo modo de partir — continuou Ojas. — Lembrem-se, é apenas um corpo. Morto como um inseto. Ele queima e a fumaça vai para o céu. Se o corpo estiver enrolado de amarelo é homem. As mulheres são enroladas em branco.
Um pequeno barco a remo com sete homens vestidos de branco passou por eles indo para as águas mais profundas. Tinham a bordo um corpo embrulhado e com pesos. Empurraram-no para dentro do rio, onde flutuou durante um segundo antes de afundar.
— Ah, bom, aquele corpo era de um sadu ou de um sacerdote muito, muito santo. Só eles têm permissão de ser jogados no Ganges assim! — Ojas se inclinou, mergulhou um copo na água verde e bebeu.
— Argh — disse Rocky. — Como você pode fazer isso? Já parou para pensar nos tipos de bactéria que há neste rio?
— Não sei o que você quer dizer com bactéria. — Riu Ojas. — Mas sei que vocês têm organismos muito fracos. Meu estômago parece de ferro, nunca fico doente.
Então Molly viu outra coisa enrolada em bandagens brancas queimando na água. Vinha na direção deles, carregada pela corrente.
— E o que é aquilo? — perguntou a Ojas, percebendo que o embrulho pegando fogo era do tamanho de um cão ou um gato.
Ojas examinou o objeto balançando na água. Olhou em volta e seus olhos se arregalaram.
— Não há nenhum grupo trazendo ele.
— Os bichos de estimação mortos são sempre queimados na água? — perguntou Molly.
— Isso... — Ojas achava difícil encontrar as palavras. — Isso não é normal, Molly.
As pequenas bonecas que eles tinham visto pegando fogo na água em Agra vieram à mente de Molly, e imediatamente ela soube o que era o embrulho pegando fogo.
— Não pode ser Petula! Não pode ser! — Molly viu as chamas laranjas se enrolando nas bandagens brancas, enegrecendo-as. Enquanto o corpo enrolado chegava mais perto, seis letras marrons pintadas nas bandagens saltaram em sua visão. Estava escrito “PETULA”. Ojas se ajoelhou e começou a balançar a cabeça para trás e para a frente, rezando.
— Isso é horrível — ofegou Rocky.
A cabeça de Molly girou e um sofrimento terrível a preencheu. Sua pele ficou arrepiada enquanto a tristeza saltava através dela. Sem Petula não se sentia inteira. Petula, que estivera do seu lado, que tinha compartilhado sua vida. Ver o corpo de Petula queimando na água agora não parecia possível. Mas era real. Uma dor que se cravava no fundo do coração atravessou Molly, fazendo-a estremecer. Pegou-se gritando:
— UAQT, SEU ASSASSINO. SEU ASSASSINO IMUNDO É CRUEL. — Depois desmoronou.
Enquanto estava ali soluçando, sentiu um pequeno nariz úmido em sua bochecha. Era Petulazinha, e era como se ela estivesse dizendo: “Não se preocupe, Molly. Ainda estou aqui. “ Molly abraçou a cadelinha mas não se sentiu melhor. Porque sabia que, se voltasse ao futuro, esta cadelinha teria de ser devolvida ao seu tempo correto. A Petula que Molly conhecia estava morta. Molly enterrou o rosto no pêlo da cadelinha.
O barco levou-os ao longo da margem do rio até estarem longe dos ghats e suas fogueiras. Molly nunca havia se sentido tão triste. Mais do que nunca, agora sabia que Uaqt era perfeitamente capaz de matar as Mollys mais jovens. Sentou-se empertigada e tentou se controlar. Enquanto fazia isso, percebeu com súbito horror que, enquanto estivera chorando por causa de Petula, as Mollys mais novas tinham se retirado deste tempo. E mais, o sentimento com relação a elas estava ficando cada vez mais débil — como personagens num trem saindo de uma estação, iam se tornando cada vez mais distantes. Mas não estavam num trem. Uaqt estava carregando seus eus mais novos para longe, longe no futuro.
— Uaqt está levando as outras eus para a frente, no tempo! — ofegou. — Elas estavam aqui, mas ele levou todas para o futuro.
— Agora? — perguntou Rocky.
— É. Parece que agora estão meses adiante. Eles pararam meses adiante. Isso significa que teremos de esperar meses aqui até chegarmos à mesma zona de tempo deles! E mais, Uaqt pode se mover no tempo de novo. Mas não ligo. Nada mais importa, agora que Petula morreu. — Molly pôs a cabeça nas mãos e massageou a testa. Estava começando a se sentir realmente cansada, como um alpinista exausto preso na encosta de uma vasta montanha.
— Eu gostaria de poder ajudar — disse Forest. Ele ficou quieto um momento, depois disse: — Talvez possa.
Molly balançou a cabeça. Duvidava disso.
Por um tempo ficaram ouvindo os sons de Benares.
Os sons ocos dos sinos de cobre dos templos pairava sobre a água, e sinos de madeira nas vacas faziam um CLOC-CLOC enquanto os animais caminhavam pelos ghats. Peregrinos cantavam, em algum lugar alguém rachava lenha, lavadeiras conversavam e remos chapinhavam no rio.
— Sabe, essas viagens no tempo me fizeram pensar — disse Forest. — Pensar nos anos que passei com os monges budistas. Eles têm uma palavra, kalachakra. Significa “roda do tempo”. Uma vez um sacerdote me disse que a palavra hindu para tempo é kaal. Os hindus também acreditam que o tempo gira como uma roda, e há cientistas que também acham isso. Interessante, não é? — Todos olhavam para a margem, como se não estivessem prestando atenção em Forest. Mas Molly ouvia. Enxugou os olhos.
— Uma roda do tempo? — disse lentamente. — Se o tempo é uma roda, isso significa que o fim se junta ao começo.
— É, mas... tipo... de um modo grande, estranho, espacial.
Molly inclinou a cabeça como se deixasse uma idéia exótica e nova entrar pelo ouvido. Então seus olhos começaram a se iluminar.
— Então, se o tempo é uma roda e o fim dos tempos se junta ao começo, se eu voltar até o início dos tempos e continuar seguindo, automaticamente vou viajar até o fim dos tempos. Você está dizendo que tudo que preciso fazer é voltar no tempo a partir de lá. Acabaria passando pelo ano 3000, depois pelo 2000 e continuaria voltando no tempo até chegar a novembro de 1870 e chegaria aonde Uaqt está agora...
— Isso é loucura, Molly — interrompeu Rocky, virando-se. — Você não sabe se o início dos tempos se junta ao fim. É uma teoria maluca. E se não se juntar? Pode não haver um princípio dos tempos. E então você estaria presa em algum lugar terrível, há trilhões de anos. Não seja idiota, Molly.
— Não sei — disse Forest. — Ninguém acreditava que o mundo era redondo. Parece uma idiotice o mundo ser redondo, como se a gente fosse cair como insetos despencando de uma bola. Talvez o tempo seja uma roda.
De repente Rocky gritou:
— Pára com isso, Forest! É muito irresponsável você dizer a Molly que o tempo é uma roda. Ninguém sabe o que há no início dos tempos. E você certamente não sabe.
— Cara, desculpe. Eu só estava tentando ajudar.
— Eu tenho a sensação de que o tempo é uma roda — disse Molly de repente.
O rosto de Rocky ficou sombrio.
— Molly, não seja idiota. Você não é idiota. Não vá atrás de uma intuição. Vamos esperar que o futuro chegue de uma forma normal, humana. Então você poderá conseguir cristais melhores para viajar no tempo. Não precisa viajar para trás no tempo até chegar ao futuro. E, de qualquer modo, quem sabe como esse tipo de viagem iria afetar sua pele? Ela poderia criar escamas por dentro, e não só por fora, Molly. Você poderia ficar velha a ponto de morrer!
— Rocky — disse Molly devagar. — Eu preciso tentar arranjar um modo de caçar Uaqt até o futuro e pegá-lo antes que ele mate meus eus mais novos.
Molly viu que o barco havia chegado quase à beira da água e o capitão estava pronto para atracar. Na margem, uma multidão se reunia. Em silêncio ela enfiou a mão no bolso procurando a pedra verde e turva.
Rocky viu sua mão se mexendo.
— Não faça isso, Molly!
— Vejo vocês logo — disse ela e, fechando os olhos, desapareceu desse tempo.
Assim que estava recuando no tempo Molly percebeu a decisão louca que havia tomado. Sua tarefa parecia tão inútil e impossível quanto a tentativa de voar através de um oceano gigante usando um minúsculo ultraleve com motor de cortador de grama. Porque o cristal verde tornava a viagem irregular e nem sempre respondia a ela. Molly exigiu que ele a levasse para trás no tempo o mais rápido possível. Apertou-o e se concentrou em seguir em alta velocidade porque sabia que, para chegar ao princípio dos tempos tinha de viajar uma distância gigantesca. Mas viajar com esse cristal era como se estivesse num veículo velho e enferrujado com embreagem defeituosa e acelerador quebrado.
Percebeu que havia recuado trezentos anos. E então um horrendo pensamento matemático lhe veio: nesse ritmo ela seria uma velha antes de chegar ao início dos tempos. Sentiu os anos passarem relampejando e decidiu que provavelmenteagora estava no século onze. Mas isso era o mais rápido que iria com aquele cristal.
Percebeu que tinha feito uma avaliação pavorosa. Atordoada com a notícia da morte de Petula, não havia pensado direito. Sentia-se como se estivesse viajando uns cem anos por minuto, seis mil anos por hora. Em doze horas teria voltado... Molly fez algumas contas de cabeça... setenta e dois mil anos. Só isso. E precisaria dormir, comer e beber. Não havia pensado nesse problema. O que deveria fazer? Parar e dormir?
Não podia acreditar no erro horrorosamente estúpido que havia cometido. Enquanto fechava os olhos, uma lição antiga emergiu do fundo de sua mente. Lembrou-se de sua professora mal-humorada, a Sra. Assapa, fazendo a turma recitar um poeminha sobre o tempo. O poema ressoou em sua cabeça como uma horrível canção provocadora.
Há cento e cinqüenta mil anos
Chegaram ao mundo os humanos,
Há sessenta e cinco milhões de anos, se não minto,
Os dinossauros foram extintos,
Dois milhões de anos no passado
Os dinossauros haviam chegado,
Há três bilhões de anos e meio,
A vida unicelular é que veio,
Há quatro bilhões de anos e meio, digo eu,
O nosso mundo nasceu,
Há quatorze bilhões de anos, vou insistir:
O tempo fez “BANG”e começou a existir.
Molly engoliu em seco enquanto fazia mais somas. Seus cálculos demoraram algum tempo. No ritmo em que estava viajando, se parasse para dormir teria sorte em viajar noventa e seis mil anos num dia. Demoraria um ano inteiro para viajar trinta e cinco milhões de anos no passado. Em dez anos teria recuado trezentos e cinqüenta milhões de anos. Isso nem de longe se aproximava de quatorze bilhões de anos. Começou a entrar em pânico e suas mãos ficaram muito úmidas. O mundo zunia passando por ela. Não tinha idéia de onde, no tempo, estava agora. Apertou o cristal e implorou: “Você PRECISA ir mais rápido. Precisa. Tem que ir, caso contrário nunca vamos chegar ao início do tempo. Por favor. Por favor. “
Sabia que estava condenada e seus olhos se encheram de lágrimas. Agora tinha certeza de que morreria em algum lugar a milhares de anos longe de tudo e de todos que amava. Precisaria parar, e no tempo em que parasse teria de viver, para sempre, até ficar velha e morrer. Então percebeu que, se era impossível ir até o início dos tempos, deveria parar assim que pudesse, claro. Por isso foi lentamente pairando até que pôde ver que o rio Ganges estava abaixo dela, e a margem a um metro de distância.
Parou e ao mesmo tempo pulou, para pousar na lama da margem. Quando ergueu os olhos, viu que havia um homem perto. Ele segurava uma tigela de mendigo e estava sentado com as pernas cruzadas diante dela. Era velho e cego. Um de seus olhos estava fechado; o outro era branco com catarata. Quando ela pousou, o homem levantou a cabeça. Molly olhou ao redor. Benares era menor e mais primitiva. Talvez estivesse no século um ou dois.
Despencou na lama.
— Não posso viver aqui! — soluçou alto. — O que eu fiz? — Olhou para o cristal em sua mão e virou-o. — Seu pedaço de porcaria idiota! — e cuspiu na direção do cristal.
Em seguida olhou para o rio, onde os primeiros raios do sol se espalhavam como fogo na água. Viu um reflexo tremeluzente de si mesma e instintivamente levou a mão ao rosto. Agora as escamas quase cobriam o nariz e estavam engrossando embaixo da boca. Todo o rosto estava rígido e seco. Olhou para as mãos. A pele parecia a de um lagarto. Sentiu-se entorpecida, entorpecida demais para se incomodar em ser uma pessoa réptil.
Estendeu o cristal, pronta para jogá-lo no rio, mas não pôde. O pensamento insuportável de nunca mais ver as pessoas amadas a dominou. Elas estavam centenas de anos à sua frente, presas em 1870, e ela estava presa aqui. Lágrimas incharam nos olhos de Molly até escorrerem pelas bochechas e pingarem do queixo. Soluços violentos que ela não conseguia controlar saíam tossindo do peito. Tudo que queria era ver as pessoas que amava. Não suportava perdê-las, além de Petula.
Por um tempo ficou sentada na lama, chorando. Chorou até sentir que não restavam mais lágrimas. Então se lembrou do cego que estivera sentado em silêncio na margem do rio. E agora, ligeiramente sem graça, virou-se para ele. O homem estava olhando para o céu com o olho aberto e cego. Ela notou um pequeno sorriso em seus lábios. E então notou outra coisa.
Ele estava acariciando com o dedo a pálpebra do olho fechado. Molly ficou olhando. Era como se o homem estivesse reconfortando o olho. Então notou que o olho fechado tinha a forma de um bumerangue. Lembrou-a da forma da cicatriz no cristal verde em sua mão. Examinou a cicatriz no cristal. Agora ela parecia um olho fechado.
Olhos sempre faziam Molly pensar em hipnotismo. E imediatamente viu um brilho de esperança. Se pudesse hipnotizar o cristal, talvez, apenas talvez, pudesse fazê-lo viajar mais depressa.
Aninhou o cristal na palma da mão e, respirando fundo, começou a focalizar a mente. Mandou toda a concentração para ele. Nada aconteceu. Largou o cristal, em desespero. Estava arrasada. Olhou para o cristal marcado e tocou-o.
— Por favor, deixe-me hipnotizar você — sussurrou. Lágrimas cresceram em seus olhos. — Por favor — soluçou. O facho hipnótico de seu olho se distorceu enquanto atravessava o prisma das lágrimas. — Não sei o que farei se não encontrá-los de novo. Eu amo todos eles, veja bem. E amo o mundo do meu tempo. Adoro. Ah, por favor. — Por dentro, o amor de Molly gritava em silêncio.
Desta vez aconteceu uma coisa extraordinária. Enquanto Molly cravava seu poder hipnótico no cristal, a cicatriz se abriu. Abriu-se como uma flor se desdobrando muito rapidamente à luz do alvorecer. E entre as linhas da cicatriz havia um profundo redemoinho verde que parecia espiralar para baixo como água escorrendo por um ralo. Molly ofegou e imediatamente se postou numa posição de pairar no tempo. Por um momento imaginou se não estaria imaginando o olho aberto, mas então sentiu o poder dele e soube que era real. Agora o cristal parecia pelo menos tão poderoso quanto as duas pedras que ela havia usado antes. Apertou-o com força. Enquanto se preparava para acelerar ao máximo, ergueu os olhos e viu um pássaro vermelho voando acima. Sua mente se esticou como um laço e, enquanto apertava o acelerador da viagem no tempo, viu o pássaro preso por seu poder e viajando com ela. Chocada, parou. O pássaro voou para longe. Molly estava espantada. Havia sido facílimo levar o pássaro. Agora tinha grandes esperanças para o que mais aquele cristal podia fazer.
Usando sua força hipnótica mais concentrada, e juntando todo o poder da mente, desejou que o cristal se movesse o mais rápido possível. De imediato os movimentos bruscos e irregulares foram substituídos pelo que parecia uma velocidade supersônica. Os séculos passavam tão depressa que Molly achava difícil calcular a velocidade em que viajava. Para testar o cristal, reduziu até ficar flutuando no tempo, e parou. O mundo se materializou. Molly ficou boquiaberta. Havia pegadas gigantescas na lama, ao seu lado. Pegadas de dinossauro? As mãos de Molly eram igualmente chocantes. A pele era uma crosta como uma casca de pão. Sentindo repugnância, partiu de novo imediatamente. Lembrou-se do poeminha sobre o tempo.
Há sessenta e cinco milhões de anos, se não minto,
Os dinossauros foram extintos,
Dois milhões de anos no passado
Os dinossauros haviam chegado...
Tinha viajado pelo menos sessenta e cinco milhões de anos! Seria possível? Os milênios passavam ronronando com tanta facilidade quanto as páginas de um livro sendo folheadas. Olhou para o cristal e o instigou. Agora adorava aquele cristal. Era o melhor. O melhor de todos. Em sua mente pediu desculpas por chamá-lo de pedaço de porcaria idiota.
De vez em quando diminuía a velocidade para ver onde estava. Primeiro sentiu que estava embaixo d’água e depois dentro de uma rocha, a rocha que estivera ali antes que o rio Ganges e as chuvas primitivas a desgastassem. E era negra. Não parou, pois achou que poderia morrer caso pousasse dentro de uma rocha. Mas pelo menos enquanto a rocha estava ali soube que o mundo também existia. Imaginou aonde estaria antes que o planeta terra se formasse — há cinco bilhões de anos, por exemplo. Instigou o cristal a prosseguir. Os frios ventos do tempo a envolveram. Molly sentiu-se na rocha negra durante muito tempo, e de repente tudo ficou laranja e amarelo. Branco-alaranjado de calor. Fechou os olhos bem apertados. Sabia que não deveria parar agora, caso contrário seria totalmente queimada. Pensou que talvez estivesse no início do planeta terra. Podia sentir o calor, sentir um cheiro sulfuroso, de ovo podre, e ouvir explosões, mas estava segura em sua cápsula de viagem no tempo. Ela a abraçava e a carregava para trás. Cada vez mais para trás no tempo.
Então o calor passou por um momento. Milhões de anos passaram rapidamente. Molly abriu os olhos e viu o espaço negro ao redor, espaço negro com um borrão laranja e milhares de bolas ferozes. Era como se o espaço fosse uma gigantesca explosão. Então o calor aumentou e tudo ficou de um laranja flamejante.
Molly teve uma sensação antiga nos ossos. Podia sentir que estava quase no início dos tempos. E então imaginou se o cristal rachado poderia fazer o que ela queria — levá-la para a fronteira do início dos tempos com o fim dos tempos... se fosse assim que as coisas funcionavam — se Forest estivesse certo sobre a roda do tempo. Olhou no fundo do redemoinho verde do cristal e teve a sensação mais estranha — que a pedra a estava hipnotizando enquanto ela a hipnotizava. Era como se as duas estivessem se ajudando a fazer essa jornada impossível.
E então o espaço negro se encheu de ruído. Mesmo Molly estando protegida, o ruído quase rompeu a cápsula. Um trovão gigantesco, ensurdecedor, sacudiu-a, e uma luz branca ofuscou-a. Fechou os olhos para protegê-los, mas mesmo assim a luz atravessava. E o calor era quase insuportável. Agora o frio vento do tempo parecia ar saído de um forno. O corpo de Molly porejava de suor. Estava realmente apavorada. Segurou o cristal e insistiu para que fosse ainda mais depressa.
Tudo foi ficando cada vez mais quente, cada vez mais luminoso, cada vez mais barulhento, e Molly sentia como se estivesse encolhendo. Seus sentidos estavam sendo bombardeados. Aterrorizada, concentrou-se no cristal e o imaginou como um cavalo verde que ela estivesse montando. Visualizou os dois galopando por um longo túnel derretido. Instigou o corcel. Sentia-se mais apertada e menor, até mesmo minúscula enquanto o espaço ao redor se comprimia. Era como se estivesse sendo espremida e esticada até ficar fina como um pedaço de linha. Sua cabeça parecia mais fina do que um arame. Instigou o cristal até o primeiro momento do tempo, o momento menor do que um nanossegundo. Sentiu-se como se tivesse encolhido até o tamanho de um microátomo, então pensou que não existia. Tudo ficou imóvel, silencioso e vazio.
Deixou a velocidade diminuir até flutuar no tempo e ousou abrir os olhos.
Parecia estar pairando no meio de uma gigantesca peneira de extremidade oval, com milhões e milhões de buracos. Os buracos próximos eram visíveis, mas a estrutura oval em forma de peneira desaparecia à distância, com os buracos ficando cada vez menores até desaparecerem também. Uma luz azul jorrava através dos buracos e encharcava Molly com seus raios fortes. Ela pairou e olhou em volta, imaginando onde estaria a preciosa bolha de Uaqt — o lugar onde ele achava que brilhava a luz especial da juventude. Mas não conseguiu ver. Molly se demorou e se pegou girando, flutuando num redemoinho. Era um minúsculo ponto balançando num abismo gigantesco.
Insistiu com o cristal para recuar no tempo e mergulhou na escuridão em que os outros buracos desapareceram — e mais além.
A uma velocidade assustadora, disparou como uma flecha através da luz ofuscante da peneira. E enquanto seguia velozmente pelo vazio nada, todo tipo de pensamento passou por sua cabeça. Pensou nas pessoas que amava. Rocky, Forest, Ojas, a Sra. Brinklebury, Primo Cell, as outras crianças do orfanato. Pensou nos lugares que amava. Pensou em Petula e também em Amrit. Pensou em Lucy Logan. Pensou em seus planos para construir um hospital hipnótico e os planos pareceram pequenos e irreais. Então outra parede com buracos se aproximou, e num momento o corpo de Molly pareceu se vaporizar num jorro de fumaça e atravessou um deles. Quando isso aconteceu, ela ficou cega. Não conseguia respirar. E então sentiu que estava se expandindo de novo. Era um calor insuportável. Houve um estrondo a sua volta e depois tudo ficou em silêncio. Molly, então, sentiu que havia passado para o fim dos tempos. O universo parecia velho, gasto e agonizante.
Por um longo tempo nada aconteceu embaixo dela. E de repente surgiu terra sob seus pés. Molly se concentrou no cristal, instigando-o. Ainda viajava rápido. Não ousava parar para ver o que aconteceria com a terra no futuro. Seu único objetivo era voltar e encontrar Uaqt.
Instigou o cristal a levá-la a novembro de 1870. Sentiu a eletricidade de sua própria vida adulta enquanto passava pelo século vinte e um, depois pôde sentir seus eus raptados no momento em que se aproximava da década de 1870.
Por fim pousou na margem do rio. Era noite e a lua cheia pairava no céu estrelado. Deixou-se cair no chão. Tinha conseguido. Sua boca estava seca. Enquanto dava um suspiro de alívio, notou que as bochechas não estavam mais secas e retesadas. Levou a mão para tocar o rosto e olhou para a água lisa refletindo a lua. Seu reflexo espiava de volta. A pele estava limpa. As escamas tinham desaparecido.
Molly apanhou sua salwar kameez e começou a correr. Subiu correndo a escada de pedra dos ghats em direção aos becos iluminados por velas mais adiante. O tempo todo examinava o cérebro em busca de lembranças, de pistas do paradeiro de seus outros eus.
Enquanto corria, pensava.
Então Uaqt estava certo quanto ao início dos tempos. Ele realmente curava a pele escamosa. Fazia a pessoa parecer jovem de novo. Mas estava errado ao pensar que acontecia apenas numa bolha especial. E estava errado ao pensar que eram necessários milhares de cristais para alcançar a luz.
Chegou a uma pequena praça meio arruinada, iluminada por barracas noturnas que vendiam doces, frutas e lanternas de papel multicoloridas. Pessoas estavam reunidas para o Diwali, o festival da luz, de novembro. À multidão olhava cheia de expectativa para a lua cheia e o céu negro e azul. De repente houve uma luz explosiva. Grandes fogos de artifíciopipocaram na noite. Molly parou para recuperar o fôlego, imaginando onde conseguiria água para beber.
Então lembranças começaram a se formar. Lembranças de seu eu de dez anos. Elas estavam na fortaleza adiante.
Aproximou-se cautelosamente do canto mais escuro da praça.
Ali havia pilhas de trapos na calçada, eram grupos de mendigos. Molly se esgueirou por eles e seguiu pela rua sinuosa em direção à fortaleza.
Dentro da fortaleza a Molly de dez anos estava sentada num cômodo com a de três. Nenhuma das duas estava hipnotizada. Ambas usavam vestidos vermelho-escuros. As mãos de Molly estavam algemadas, mas a venda fora retirada. A pequena Molly segurava o parapeito da janela, olhando para o céu e os fogos de artifício que explodiam.
— É tããão bonito, né, Molly? — disse ela.
O bebê, com um belo vestido branco, estava quieto num berço. Uaqt, vestido com um manto prateado, espreitava do lado de fora da porta como um fantasma. Seus sacerdotes barbudos o rodeavam parecendo um bando de corvos pretos. Então um deles entrou no quarto, pegou o bebê no berço e o levou para o pátio. A criança foi posta numa almofada roxa sobre uma grande pedra chata e rachada. A lua cheia pairava acima.
— Acho que a neném não gosta de fogos — disse a Molly de três anos, vindo sentar-se junto de seu eu mais velho.
A cerimônia final de iniciação começou.
Dois serviçais trouxeram a Uaqt o pesado saco de veludo onde estava sua coleção de cristais. Enquanto o céu explodia em luz vermelha e prateada, Uaqt ordenou que os sacerdotes pusessem os cristais num círculo em volta da rocha e da criancinha adormecida.
Molly chegou ao portão da fortaleza. Um guarda sonolento estava encostado no muro, meio dormindo. Ela passou por ele, entrando nas sombras, e seguiu junto a perfumadas paredes cobertas de flores, em direção ao segundo portão da fortaleza. Ali os guardas estavam numa pequena cabana jogando dados, absortos demais para notar a garota que se esgueirava.
Por fim pôde ver o brilho de tochas emanando do pátio interno da fortaleza. Seguiu por uma passagem em arco e foi em direção à luz.
Ali perto havia uma plataforma para montar em elefantes. Subiu nela e depois se esticou para subir mais ainda, até estar deitada em cima do muro. Abaixo, a área cerimonial estava iluminada como um palco. Centenas de cristais tinham sido arrumados em círculo em volta de uma pedra onde se encontrava a bebê Molly, e agora os sacerdotes cantavam. Estavam marchando sem sair do lugar, levantando os joelhos e batendo vigorosamente no chão com os bastões cuja extremidade superior tinha o formato de cabeça de pavão. O barulho reverberava no pátio de pedras, mas o bebê continuava dormindo pacificamente.
Os fogos de artifício pararam. Uaqt se levantou, alto como um poste, com as mãos erguidas para a lua. E então, quando o canto chegou ao auge e a marcha e as batidas no chão ficaram cada vez mais rápidas, a luz da lua brilhou subitamente no centro daquele círculo de cristais, na pedra rachada e na criança ainda adormecida.
Uaqt deu um grito terrível que foi ecoado por guinchos fantasmagóricos de cada um dos sacerdotes. Apavorado com o barulho, o bebê acordou e começou a chorar. Os sacerdotes, como um túnel vazio, ecoaram o choro.
Molly não perdeu tempo. Pulando do muro para uma sombra escura, esgueirou-se até ficar atrás de Uaqt. Agora ele estava recolhendo suas pedras maiores e mais preciosas. Pareciam alojadas na rachadura da pedra. Pegou uma e, com um floreio ridículo do braço direito, jogou-a no saco. Em volta dele os sacerdotes pegaram os outros cristais e trouxeram até ele. Molly chegou mais perto. Sua boca estava seca como a de um papagaio.
Por fim o saco estava cheio de novo. Dois criados levaram-no até uma prateleira de pedra atrás de Uaqt, perto de onde Molly estava escondida.
Ela olhou e esperou. Seu coração batia dentro do peito como as asas de uma borboleta poderosa. Os ouvidos zumbiam com a adrenalina que corria no sangue. Estava tão tensa que mal podia se mexer. Mas precisava ir até aquela prateleira.
A Molly de dez anos estava encolhida num banco no lado mais distante do pátio, com medo e solitária. A de três estava sentada em seu colo, o rosto enterrado em seu peito.
— Por que eles fazem a neném chorar? — perguntou a menininha. — Molly, num gosto daqueles velhos. Eles dão medo. — As palavras da cantiga que havia cantado aos seis anos ressoaram na cabeça da menina de dez anos.
Vamos salvar vocês, Mollys, Salvar vocês, Salvar vocês.
Imaginou se a Molly de onze anos apareceria de novo. À frente dela o bebê chorou e Uaqt ficou parado com as mãos estendidas.
Então, no clarão luminoso de um fogo de artifício, ela viu uma garota deitada no chão atrás dele.
Uaqt baixou as mãos e começou a se virar.
As últimas palavras da cantiga ressoaram nos ouvidos da Molly de dez anos.
“E quando chegarmos queremos sua ajuda!”
Imediatamente Molly viu que o momento era esse. Pulou, empurrando do colo a pequena Molly.
— Uaaaaaaaaaqt! — gritou.
Uaqt parou de se virar e encarou-a. Agora a menina de dez anos gritou a primeira coisa que lhe veio à cabeça. Não importava o que fosse.
— MANTOS VERMELHOS! VELHOS ROXOS! VOCÊS SÃO UNS VELHOS IDIOTAS! IDIOTAS! — berrou a plenos pulmões.
A Molly de onze anos rastejou de barriga em direção à prateleira. Com o canto do olho viu a agitação. Sabia o que estava acontecendo — lembrou-se de ter feito todo aquele barulho. Era o momento de roubar o saco.
Silencioso como uma serpente, seu braço penetrou na luz e seus dedos de marfim se enrolaram na cordinha do saco. Muito devagar, para não atrair a atenção de ninguém, puxou-o. Era pesado. Suas costas pinicaram enquanto o mundo oscilava. Arrastando o saco, afastou-se. A Molly de dez anos gritava. E então houve silêncio enquanto ela era amordaçada.
—Não! Não faz isso com ela — gritou a de três anos.
Ao lado do muro alto Molly examinou o saco. Tirou alguns cristais — um verde, um vermelho, outro verde. A luz prateada viu que alguns tinham cicatrizes e outros não. Suas mãos estavam tremendo e ela quase deixou as pedras caírem, então os dedos se enrolaram numa pedra vermelha com uma grande cicatriz. Olhou para ela e cravou sua vontade hipnótica, pensando no quanto amava Petula, Rocky e todas as outras pessoas que lhe eram próximas. Seu amor pelo mundo irradiou-se e, com uma piscadela vermelha, o olho espiralado do cristal se abriu. Molly sorriu aliviada, agradeceu ao cristal e o fez se fechar de novo. Depois colocou-o no bolso com seu cristal verde que também tinha uma cicatriz. Escondeu cuidadosamente o saco com o resto dos cristais atrás de uma pedra.
Sem saber o que tinha acabado de acontecer, o marajá de Uaqt continuou sua cerimônia. Um sino tocou e a menina de dez anos, amordaçada, e a de três foram levadas à rocha dos cristais. O bebê Molly continuava chorando intermitentemente na almofada no chão. Uaqt foi em direção à de três anos.
A pequena Molly olhou alarmada para o marajá gigante e então correu para se esconder atrás da Molly de dez anos. A de dez anos a protegeu, notando ao mesmo tempo que um dos homens ali perto usava um capuz e segurava uma foice brilhante, de lâmina curva.
Uaqt se virou para pegar seu saco de cristais. Uma careta de intensa confusão e raiva atravessou seu rosto.
Nesse momento Molly saiu das sombras. Tentando não deixar que sua voz tremesse, disse em tom alto e claro:
— Eu peguei o saco de cristais.
Por um instante o marajá ficou surpreso, depois enfiou as mãos nos bolsos e começou a rir como um ensandecido. Pegou dois cristais de viagem no tempo.
— Sua resta bidícula! Acho que seu plano fracassou, Molly, já que só preciso voltar no tempo. Vou pegar meu saco antes de você pegá-lo e vou me certificar de matar seus eus mais novos também. — Ele apertou o cristal verde e desapareceu. Molly correu para onde Uaqt havia estado e apertou seu cristal verde. De repente pôde ver Uaqt através do borrão do tempo.
Os dois estavam recuando no tempo e Molly viajava exatamente à mesma velocidade dele, de modo que um estava visível ao outro. O manto prateado de Uaqt balançava ligeiramente com os frios ventos da viagem no tempo.
— Muito bem! — disse ele. — É uma pena que alguém tão talentosa como você não possa usar seu poder de modo útil!
— Quer dizer, usar meu poder para realizar os seus objetivos?
— Sim, Molly. — Uaqt riu. — Você me endenteu muito bem.
Molly viu finalmente que havia chegado uma chance de enganar o marajá. Impelida pela urgência da situação, sua mente formulou um plano.
— Mas eu usei meu poder para realizar seus objetivos! — mentiu ela.
— Ah, sim, Molly, tenho certeza que sim — disse Uaqt com sarcasmo.
— Estive no início dos tempos e fui até a Bolha de Luz para você!
Uaqt riu de novo. Parecia estar achando Molly muito divertida.
— E, se posso perguntar, como é que você conguessiu chegar à Bolha no início dos tempos sem ter milhares de triscais?
— Eu consegui. Por favor, acredite. Vou mostrar. Eu me banhei na luz. Olhe minha pele.
Uaqt estreitou os olhos. A pele seca da menina havia mesmo desaparecido. De fato ela parecia mais nova do que quando a vira pela última vez. Estaria imaginando aquilo?
— Siga-me — disse Molly. Por um momento Uaqt ficou travado. Então, dominado pela curiosidade, concordou.
Molly lançou pensamentos ao seu cristal verde. Puxe-o tão rápido quanto nós estamos indo, pensou. E mova-se o mais rápido que pudermos. E o cristal lançou ondas de energia em forma de laço e, exatamente como o pássaro vermelho, Uaqt foi puxado. Estavam viajando tão depressa que era como se não se movessem. A luz piscava ao redor e o céu em cima era pálido porque todas as suas cores se fundiam num cinza turvo.
Uaqt ria enquanto viajavam. Então, de repente, mergulhou na direção de Molly. A mão dele saltou para pegar o cristal transparente ao redor do pescoço dela. Molly pulou se afastando enquanto os dedos dele tentavam arrancá-lo.
— Fique com essas mãos longe de mim — disse ela com raiva. Pensou com horror na arma que ele disse que sempre carregava.
— Sabe, Molly, é imsopível chegar ao início dos tempos. Você precisa de milhares de triscais para entrar na Bolha e precisa de milhares para viajar tão longe. Mesmo eu nunca estive lá! Só o mundo foi formado há mais de buatro quilhões de anos, e o tempo começou bilhões de anos antes disso. Dezoito bilhões de anos, para ser exato. Se você tivesse cérebro para fazer a conta na cabeça, perceberia que com um desses triscais ridículos você demoraria centenas de anos para chegar lá. Onde está o seu bom senso?
— Até onde no tempo você acha que nós viajamos agora?
— Pela minha experiência... — Uaqt suspirou — estamos mais ou menos no ano duzentos.
— Então vamos parar?
A impaciência dominou a expressão de Uaqt, que não parecia mais estar se divertindo.
— Você verá. Vamos parar.
No pátio da fortaleza os sacerdotes viram o marajá desaparecer e imediatamente ficaram agitados. Esse desaparecimento súbito era obra de magia — era sinal de que os estranhos espíritos que eles cultuavam estavam presentes.
A Molly de dez anos ficou olhando ansiosa enquanto os velhos vestidos de mantos pulavam como corvos bêbados. Então eles se aproximaram. Três deles levantaram os braços e, com asas roxas, empurraram-na para o centro do círculo do pátio, onde o homem de máscara e capuz estava parado segurando a foice. A lâmina brilhava, com o gume afiado como navalha se expandindo até o ferro grosso e rombudo. Molly pensou que as foices eram para cortar capim, e não meninas. Lembrou-se do cabrito sacrificado. Do sangue. Nunca havia se sentido tão apavorada. Seu medo cresceu amargo e metálico na língua.
A Molly de três anos estava chorando na borda da arena.
E então a de dez anos tentou correr. Dois homens de mantos roxos pegaram-na.
Uaqt farejou e tentou parecer tranqüilo enquanto olhava ao redor. Onde a cidade deveria estar, havia areia e rocha. E o rio diante dele fluía torrencialmente.
— Então parece que viajamos até um ceríodo antes da pivilização da índia.
Molly podia ver que ele havia calculado mal a época em que se encontravam e estava tentando se orientar.
De repente uma rocha gigantesca a quatrocentos metros de distância do outro lado do rio se levantou. Era a fera mais aterrorizante que Molly já vira — uma espécie de crocodilodinossauro gigante. Ele farejou o ar e apontou os olhos pequenos na direção dos dois.
— Muito imseprionante — disse Uaqt, tentando não demonstrar seu medo ao perceber que tinham viajado cem milhões de anos para trás, uma distância que ele levaria três anos para percorrer. — Mas isto não é o início dos tempos, Lommy. E só o período jurássico. Todo viajante do tempo já esteve aqui. — Ele olhou o cristal de Molly. O dinossauro soltou um rugido terrível que reverberou pelas corredeiras do antigo Ganges.
— Vou lhe dizer uma coisa — sugeriu Molly. — Você pode voltar sozinho ao nosso tempo, se quiser.
A criatura deslizou para dentro do rio.
— Não. Acho que vou viajar com você — respondeu Uaqt, sem perder o controle. Em seguida trincou os dentes. Recusava-se a deixar que o pânico crescente o dominasse. — Estranhamente, gosto da companhia. Mas deixe-me ver esse seu triscal.
— Claro — disse Molly. — Então ela pediu que o cristal fechasse o olho antes de estendê-lo para que Uaqt o visse, à distância. — Deixe-me ver o seu. — Uaqt estendeu o dele. Tinha uma pequena cicatriz.
— O seu triscal parece ter passado por guerras — disse ele, tentando deduzir como ela os havia transportado para tão longe tão depressa. Tateou em busca do revólver, enfiado no coldre sob o manto, e se perguntou o que deveria fazer. Precisava de Molly viva para voltar para casa. Jamais sobreviveria a três anos de viagem para voltar do período jurássico. Como se concordasse, o crocodilo-dinossauro saiu do rio enlameado perto deles e deu um guincho horrendo.
As palavras de Ojas sobre Uaqt ecoaram de novo na mente de Molly. “Você terá de matá-lo, Molly. Percebe isso?” E Molly soube que poderia dar fim a Uaqt aqui e agora, se simplesmente o deixasse. Ele poderia evitar o dinossauro pulando à frente no tempo, mas acabaria sendo comido, mesmo se estivesse carregando sua arma.
Molly não poderia deixá-lo sem esperança, largado num tempo distante. Não tinha esse tipo de crueldade no coração. Olhou o cristal verde e o fez abrir o olho. Deixou a energia laçar Uaqt e os dois partiram de novo.
Os anos passaram velozmente. Molly olhou para Uaqt. Ele estava decididamente apavorado.
— Mealrente não quero enfrentar toda a eternidade hoje — disse ele cauteloso, enquanto viajavam.
— Tem certeza? — perguntou Molly, provocando. — Ou está preocupado com a possibilidade de ficar tão longe no passado que nunca poderá voltar ao seu tempo real?
Uaqt fez uma careta.
— Você é uma triacurinha maligna, Lommy Moon.
— Se eu fosse você, não me insultaria assim, caso contrário posso deixá-lo aqui. E nem pense em pegar sua arma porque, lembre-se, eu sou sua passagem de volta. Estamos um bilhão de anos no passado. — Molly deixou que os dois pairassem. Ao redor de sua cápsula de viagem no tempo havia água passando. Uaqt estremeceu. Molly continuou: — Acho que isso é um pouquinho longe demais para nós, não é?
Uaqt assentiu debilmente.
Molly olhou para seu cristal vermelho. O olho dele já estava aberto e pronto. Imediatamente, com um redemoinho, estavam saltando para a frente no tempo. O mundo passou num clarão.
Quando estavam num ponto a cerca de trezentos milhões de anos no passado, um tempo em que Molly sabia que os dinossauros ainda não existiam, mas o mundo estava cheio de vida vegetal, fez com que os dois parassem.
O mundo ao redor estava verde, cheio de vegetação luxuriante. Quando pousaram, ela começou a se afastar de Uaqt.
— Por que paramos aqui? — perguntou ele, nervoso.
— Este lugar me interessa — respondeu Molly em tom casual. Em seguida subiu até o alto de um pequeno monte arroxeado e lamacento e olhou para a planície verde que se estendia à esquerda e à direita.
— Aonde você vai?
— Provavelmente são uns nove anos de viagem daqui ao nosso tempo, se você viajar ao modo antigo — disse ela.
— Você não pode me deixar aqui! — gritou Uaqt. — Nenhum ser humano, nem mesmo um escravo desçagrado poderia sobreviver aqui!
— Você poderia, e sabe disso. — Molly se inclinou e tirou uma raiz do chão. — Isso aqui parece um nabo. Algumas pessoas adoram. Veja bem, você não vai poder fazer nabos com tofu aqui. Mas aposto que há brotos de alfafa e todo tipo de saudáveis coisas vegetarianas crescendo por aí. — Molly sentia-se inquieta, porque sabia que estava para selar o destino de Uaqt. Firmou-se para o que tinha de fazer.
Uaqt adivinhou o humor dela e seus olhos vermelhos se franziram. Baixou a cabeça, como um touro prestes a atacar, e seus olhos procuraram os dela. Molly olhou por cima da cabeça dele, evitando o olhar hipnótico.
— Eu não tentaria isso, se fosse você — disse ela, séria.
— Caso contrário simplesmente deixo você aqui e nunca vai descobrir como os cristais funcionam.
Uaqt se ajoelhou e, de modo falso, gemeu:
— Por favor, conte, Molly, e eu brometo que vou ser pom.
— Molly inclinou a cabeça. Esse era o homem que havia matado Petula. Como o odiava!
— Eu deveria deixar você aqui para morrer — disse com a voz dura como granito. — Você matou minha cachorrinha. Nunca vai saber o quanto eu o odeio por causa disso. Mas não quero ser má como você. Vou lhe dar uma chance. Olhe os seus cristais. — Uaqt olhou idiotamente. — Essas cicatrizes são como pálpebras. Você pode fazer com que elas se abram. E quando elas estiverem abertas, os cristais vão permitir que você viaje com a rapidez que quiser.
A boca enorme de Uaqt ficou escancarada enquanto ele revirava os dois cristais na mão.
— Como você faz para eles se abrirem? — perguntou, suspeitando que Molly estivesse pregando alguma peça.
— Quando realmente entender o quanto eu o odeio por ter matado Petula, talvez os olhos dos cristais se abram para você. Porque, Uaqt, só então você terá compaixão pelas pessoas, pelos animais e pelo mundo. Você poderá hipnotizar os olhos dos cristais para que se abram quando tiver aberto os seus e tiver amor no coração.
Molly sabia que isso era verdade. Enquanto Uaqt permanecesse frio e sem coração, ele permaneceria ali, e isso seria uma punição justa. Se encontrasse compaixão no coração, se aprendesse como usar o poder dos cristais, não seria mais uma pessoa perigosa.
— Amor no coçarão! — zombou Uaqt. — Que bobagem. E era só um animal idiota. — Ele ergueu os olhos e viu Molly andando até uma crista de rocha coberta de musgo a uma certa distância. — Você não Iode me pargar aqui! — exclamou. E levou a mão à arma.
Mas Molly não ouviu o resto do que ele disse, nem o tiro, porque havia sumido.
Molly voou para a frente no tempo. Estremeceu enquanto refletia em como Uaqt havia parecido abandonado, uma criatura enorme, solitária, agachada, presa no tempo. Mas sabia que fizera a coisa certa. Desse modo Uaqt tinha uma chance. Se ele mudasse por dentro sobreviveria. Se não, ficaria preso onde merecia estar, vivendo de musgo e insetos gosmentos.
Agora a sede de Molly era quase avassaladora. Baixou a cabeça para se concentrar em acelerar ainda mais. Ao fazer isso, seu cristal transparente, o que Uaqt havia puxado com tanta força, balançou. O elo que o mantinha no cordão havia se partido, e agora esse leve movimento da parte de Molly fez com que ele caísse. Ela ofegou ao perceber que o cristal tinha caído em algum lugar há milhões de anos. Mas agora não poderia parar para pegá-lo. Ficou cheia de tristeza — ela e aquele cristal haviam passado por muita coisa juntos.
Instigou o cristal vermelho a avançar. Estava quase terminando. Agora só precisava chegar no tempo certo — um tempo depois de ter levado Uaqt, de modo que ele não estivesse mais lá — e resgatar seus outros eus.
Não percebia como o fio em que sua vida estava pendurada era fino.
Em Benares, sob uma lua cheia, a Molly de dez anos foi arrastada de volta ao centro do pátio e dois sacerdotes amarraram seus braços. A Molly de três anos estava tão apavorada que tinha se enrolado feito uma bola no chão. A de dez lutava e tentava gritar através da mordaça, mas seus gritos eram praticamente inaudíveis acima dos cantos. Os tambores incessantes chegavam ao pico de um ritmo enlouquecido. Nunca havia se sentido tão petrificada. Agora nada importava, a não ser continuar viva.
O carrasco encapuzado levantou a foice. Ela brilhou ao luar. Como um jogador de golfe de pesadelo, o homem pousou a lâmina fria no pescoço da Molly de dez anos.
Molly pensou que iria desmaiar. Preparou-se para a morte.
Enquanto a Molly de onze anos viajava para a frente no tempo, um súbito sentimento intenso, parecendo uma eletricidade áspera, saltou entre suas costelas — um sentimento de que alguma coisa ruim estava acontecendo. Será que iria morrer? Ainda estava a um milhão de anos de 1870.
Em 1870 a foice pairou no ar e desceu.
A Molly que viajava no tempo sentiu uma pontada de dor na cicatriz do pescoço. Ao mesmo tempo sentiu um frio atravessá-la. Então era isso. A morte era fria.
E percebeu o que estava acontecendo. Alguém havia parado o tempo. Havia parado o tempo para todo mundo que não possuísse cristais. No entanto Molly havia largado seu cristal transparente. Seu cristal vermelho devia estar lhe dando proteção contra a imobilidade. Ainda avançava pelo tempo.
O carrasco estava imóvel como uma estátua, assim como a Molly de dez anos. A lâmina da foice penetrava na pele do pescoço da menina. Sangue escorria pelo pescoço, mas tudo estava congelado. A cena parecia um terrível quadro vivo inspirado numa pintura clássica.
Molly era uma flecha invisível cortando os séculos.
Seu cristal cortava os anos, dias, horas e segundos em direção ao momento exato em que o mundo havia congelado. Por fim Molly soube que deveria parar. O mundo se materializou. Ali estava a Molly de dez anos, com o pescoço coberto de sangue.
Todas as lembranças de seus eus mais novos penetraram nela, mas Molly os bloqueou. Partiu em direção ao carrasco, empurrou-o para longe e arrancou a foice de sua mão. Jogou-a longe.
Houve um ruído de algo raspando atrás dela. Molly se virou para ver quem havia parado o tempo.
E então teve uma das maiores e mais felizes visões de sua vida.
Petula estava correndo pelo pavimento de pedra. A visão parecia irreal. Seria um truque? Será que Petula era um fantasma? Algo criado por sua imaginação? Molly não conseguiu se conter. Não importava se a visão era irreal. Precisava abraçar Petula de novo. Agachou-se e abriu os braços.
— Petula! — Imediatamente percebeu algo crucial. Petula estava se mexendo e todo o resto do mundo estava imóvel. Petula tinha parado o mundo.
— Petula, não largue a pedra! — gritou Molly, e saltou para a frente. Mas Petula estava empolgada demais para escutar e, nesse momento, abriu a boca para latir um olá. O cristal transparente que ela estivera segurando na boca tombou no chão, e ao mesmo tempo o mundo imóvel começou a se mover. O velho que Molly havia empurrado deu um grito rouco. A Molly de dez anos gritou. E Zackya saiu das sombras. Viu o cristal no chão e viu Petula correndo para longe. Viu Molly correndo para o cristal. Sua mente entorpecida demorou alguns segundos para perceber o que estava acontecendo. Deduziu que Molly precisava desesperadamente daquele cristal. Parou e, com um rápido movimento de aranha, enfiou a mão no bolso para pegar seu cristal. E ficou imóvel.
O cristal transparente no chão era seu. Petula o havia apanhado.
Zackya sentiu-se traído. Tinha arriscado a vida por Petula; ele a amara, a ela e seus olhos grandes, e ela o havia traído. Tinha salvado Petula da espada do guarda. Ele a escondera e mentira a Uaqt dizendo que ela estava morta. Deu a ela jantares de carne de pavão, uma cama de pele de coelho e a cobriu de jóias.
Enquanto mergulhava para o cristal, Molly lançou-lhe um olhar imundo. Dois segundos depois ele estava hipnotizado.
Molly segurou o cristal. A sua volta o mundo se imobilizou de novo. Desta vez até a doce Petula estava congelada. Molly foi até ela, pegou-a e a encheu de calor.
Petula se contorcia e pulava nos braços de Molly. Bebia o cheiro adorável de Molly. Lambeu seu rosto como se quisesse comê-lo. Nunca tinha se sentido tão empolgada, tão feliz, tão aliviada. Adorava Molly — a vida sem ela havia sido sem graça e solitária. Nunca, nunca mais deixaria que se separassem. Molly cobriu Petula de beijos. Acariciou suas orelhas e encontrou uma coisa dura numa delas. A orelha esquerda de Petula havia sido furada e um brinco com pedras preciosas pendia dela. Molly espiou os olhos de Petula e soltou um enorme suspiro de alívio. Então colocou-a no chão e Petula ficou imóvel.
Examinou a cena. Os sacerdotes roxos estavam imobilizados nas formas mais estranhas, pulando e sacudindo seus bastões para o céu. Zackya continuava imóvel e hipnotizado. O bebê estava num cobertor sobre a rocha lisa e rachada, e a Molly de três anos estava enrolada no chão, com os braços envolvendo o corpo.
Logo Molly estava ao lado dela. Tocou seu braço e a descongelou. Os olhos da pequena Molly giraram em pânico.
— Quero Rocky! — Começou a chorar. — E quero Rocky agora! — Molly sentou-se e a hipnotizou. Logo a pequena Molly estava sorrindo.
— Agora segure bem a minha saia — disse Molly — e venha atrás de mim.
Molly foi até seu eu bebê e pegou-a. Em seguida apanhou o cesto de bebê na lateral do pátio. Nele havia garrafas de leite e água, além de alguns tecidos de musselina e fraldas.
Abriu a garrafa d’água e bebeu. Sua sede finalmente foi saciada. E agora, com a menininha andando atrás e segurando o bebê, caminhou pelo mundo frio e imóvel.
Seu eu de dez anos, imobilizado, estava com a mão no pescoço, onde fora cortada pela foice. Ainda segurando o bebê, Molly improvisou uma bandagem com a musselina e a amarrou no lugar. Então tocou o ombro da menina, liberando-a da imobilidade. Imediatamente hipnotizou-a.
— Agora você não vai sentir dor — disse em voz suave, tirando a mordaça — e vai esquecer tudo que viu aqui. Vai se sentir feliz. Segure este bebê agora, tendo tanto cuidado como se estivesse segurando você mesma. Com a mão esquerda vai segurar meu braço. Não perca o contato.
Colocou Petula no cesto. Ao redor o mundo estava gélido.
Agora o estranho agrupamento de Mollys se aproximou da parede onde ela havia escondido o saco de Uaqt. Pousou o cesto no chão e instruiu as garotas a esperar. Olhou à direita.
Ali estava Zackya, parecendo um rato congelado. Molly parou. O que deveria fazer com ele?
Tocou o peito de Zackya e olhou no fundo de seus olhos. A vontade de Zackya ficou mole feito uma piscina de manteiga derretida.
— Zackya, já estou cheia de você — começou enquanto o homem a olhava com espírito de geléia. — Você me causou um monte de problemas. Seqüestrou minha cadelinha duas vezes. Me seqüestrou. Tentou ajudar Uaqt a me matar. Sei que você fez tudo isso para tentar impressionar o seu patrão. Mas agora ele está preso a trezentos milhões de anos no passado, portanto acho que você não vai vê-lo de novo. — Ela parou para respirar. — Zackya, eis uma pergunta: o que você faria com você se você fosse eu?
A boca de Zackya se franziu enquanto ele pensava.
— Eu... me jogaria... num... poço.
— Verdade? Não sentiria nenhuma gentileza?
— Não, porque... é isso... que eu... mereço.
— Você não acha que merece uma segunda chance?
— Não.
— Você é um homem muito duro, Zackya. Por quê?
— A vida... me ensinou... a ser duro... E não mole.
Molly balançou a cabeça. Suas experiências lhe haviam ensinado que tudo que acontece na vida faz a gente ser quem é.
Se uma coisa horrível acontece conosco, isso nos faz mudar; se uma coisa ótima acontece conosco, isso também nos faz mudar. Podemos passar por uma coisa apavorante — as lembranças assustadoras disso estarão sempre dentro de nós. Sempre em algum lugar. Podemos ter uma experiência fantástica, e ela vai estar sempre dentro de nós, enchendo-nos de confiança. Sempre.
Molly pensou em como a vida de Zackya devia ter sido horrível para que ninguém fosse bom com ele, e sentiu pena.
— Certo — anunciou. — Bem, para sua sorte, Zackya, eu tive um número suficiente de pessoas boas na vida para ser gentil com você agora. Parece que você precisa aprender a não ser esse velho duro e mau que é agora. Portanto o que faremos é o seguinte... — Molly parou e olhou para a lua, procurando inspiração. — De agora em diante, sempre que você vir uma pessoa que precisa de ajuda para fazer alguma coisa, desde que não seja roubar, bater, matar ou qualquer outra coisa ruim, sempre que você vir alguém precisando de ajuda, vai sentir-se macio como um travesseiro de plumas e vai ajudar. E, enquanto estiver ajudando, vai imaginar que também foi ajudado exatamente do mesmo modo. E vai começar a criar lembranças de pessoas sendo boas para você. E quanto mais lembranças dessas você tiver, mais partes duras de você serão apagadas. Cada boa ação que você fizer vai ajudar a apagar seu lado ruim. Que tal?
— Posso lhe dar uma massagem indiana? — respondeu Zackya, já tentando ajudar. Molly sorriu.
— Agora, não, muito obrigada. Bom, você sabe quais são as senhas de Uaqt, as que trancaram os outros marajás em transes?
Zackya balançou a cabeça.
— Não faz mal — disse Molly. Em seguida pegou o cristal vermelho e tirou Zackya ligeiramente do tempo para uma tranca de viagem no tempo. — Zackya, estou lacrando as instruções que lhe dei com uma senha que você não vai lembrar. A senha é “Folha Nova”!
Molly estava exausta.
Pegou Petula, seus eus mais novos e o saco de cristais, pronta para viajar de volta ao futuro. Então focalizou a mente nos cristais e deixou o mundo se mover. A cena ao redor entrou em ação.
A última coisa que viu foi Zackya correndo para o sacerdote idoso esparramado no chão. Estava correndo para ajudá-lo.
— Boa menina! — disse Molly a Petula, tocando sua cabeça preta e aveludada. As orelhas de Petula balançavam ao vento do tempo e ela olhou para Molly, obediente. Seu olhar pousou nas outras Mollys, porque sentia quem elas eram, mas achava o conceito de quatro Mollys ao mesmo tempo confuso demais. Por isso resolveu olhar os meses que passavam correndo.
Como se atracasse uma espaçonave, Molly manobrou até um momento muito próximo do tempo em que havia deixado Rocky e os outros no barco. Pairou em câmera lenta. Através do éter que era a cortina do tempo, esperou até poder ver um sol da tarde no céu. Imaginou que o barco deles havia atracado. Enquanto pairavam puderam ver um mundo turvo ao redor. Sem pousar exatamente no tempo, Molly levou as outras Mollys para fora dos portões da fortaleza e seguiram pelas ruas e becos de Benares. Caminhavam em fantasmagóricos passos flutuantes, voltando pelo caminho até a beira do rio.
Ao redor as pessoas faziam suas tarefas de fim de tarde. E Molly descobriu que, como não havia se materializado totalmente no tempo, ela e as outras Mollys podiam passar direto através delas. Até mesmo atravessaram o capitão e o cozinheiro do barco, que estavam indo a uma casa de jogos, jogar baralho.
O barco fora amarrado a uma estaca no cais. Molly viu que Rocky e Forest estavam sentados de costas um para o outro, Rocky obviamente furioso com Forest por ter sugerido a Molly que o tempo era como uma roda. Na popa do barco podia ver a Molly de seis anos brincando com Amrit e Petulazinha, dando-lhes algumas flores que havia apanhado no rio.
As pernas de Rocky balançavam na lateral do barco. Ainda que suas feições estivessem lentamente recuando em câmera lenta, Molly pôde ver que na verdade ele não estava com raiva. Estava preocupado. Através do borrão podia ver que o rosto dele estava molhado de lágrimas.
Molly subiu no barco, trazendo as outras Mollys. Eram invisíveis para Rocky, porque ainda pairavam no tempo.
Foram para trás dele. E então, gentilmente, Molly deixou que todas aparecessem.
Imediatamente o som de sinos, de vacas mugindo, de pessoas cantando e rezando, de música e água espadanando enquanto pessoas se banhavam no rio preencheu seus ouvidos.
— Rocky, nós voltamos — disse em voz baixa. Rocky levou um susto e começou a girar. Olhou Molly com todas as outras Mollys e Petula, e seus olhos se arregalaram até o tamanho de bolas de pingue-pongue. Molly sorriu. — Você achou que eu fiquei presa no tempo há trilhões de anos sem nada para comer além de lesmas?
Rocky apertou os lábios solenemente e assentiu, parecendo em vias de irromper em lágrimas.
— Bem, não fiquei. — Molly fez uma pausa. — Uaqt está comendo lesmas e eu VOLTEI! E estou com o saco de cristais dele. — Ela pôs o saco no convés e correu para dar um enorme abraço no amigo de toda a vida, um abraço que quase o derrubou na água.
— QUE DIABO, Molly — disse Rocky quando os dois haviam se recuperado. — NUNCA mais saia e se arrisque assim. — Depois acrescentou: — Mas espera aí, isso significa que você foi no... no... ?
— É, eu passei pelo ponto de partida. E segui em frente. Fui, Rocky, dá para acreditar? Passei pelo início e pelo fim dos tempos! Era muito quente!
Rocky começou a rir e abraçou Petula, cuja cauda balançava tanto que parecia a ponto de cair.
— Muito quente?! Molly você passou por coisas derretidas tão quentes que, desde então, o universo nunca esteve tão quente. Você tem sorte de não ter virado um pedaço de carvão! E sua pele... Olha, está melhor! Você até parece um pouco mais nova!
— Eu sei. Acho que vou montar um salão de beleza lá no início dos tempos!
Molly e Rocky riram tanto que tiraram Forest de sua meditação e Ojas de seu cochilo da tarde. A pequena Molly estava absorvida demais em seu jogo com Amrit para notar, mas Petulazinha veio pulando e Petula cheirou-a com curiosidade, tentando deduzir por que aquela cadelinha a fazia se lembrar de si mesma.
— E como você trouxe Petula de volta dos mortos? — perguntou Rocky.
— Para começar, ela não morreu.
— É você? É você mesma, Molly? — perguntou Ojas, esfregando os olhos.
— Cara — exclamou Forest —, então você conseguiu. Isso quer dizer...
— É, o tempo é como uma roda — disse Molly, pulando e abraçando-o. — Você é um hippie maneiro, Forest!
— Bem — respondeu Forest —, foi idiotice minha sugerir uma coisa baseada em algumas religiões e um punhado de cientistas. E assim que você foi embora, cara, todo mundo pensou que você tinha ido de vez. Ojas e Rocky ficaram furiosos comigo. E estavam certos. Desculpe, Rocky. — Rocky inclinou a cabeça de lado, como se admitisse que, como tudo tinha dado certo, tudo estava perdoado. Forest abriu um sorriso. — Ei, Molly, mas sua pele está melhor. — Molly confirmou com a cabeça. — E não vai me apresentar a esse pessoal?
— Agora, não — disse Molly, sorrindo. — De qualquer modo, como você pode ver, elas estão muito bem hipnotizadas. Neste momento só quero que a gente volte ao século vinte e um e quero colocar todas essas eus de volta no lugar certo. E colocar Petulazinha de volta. Mas primeiro devo hipnotizar meu eu de seis anos antes que ela se veja quatro vezes e pire de vez.
Ojas foi com Amrit até os degraus mais baixos da beira do rio. Tinha a sensação de que, se fosse com Molly para o futuro dela agora, talvez demorasse um bocado para voltar ao seu tempo, se é que voltaria.
Firmou Amrit enquanto todo mundo montava, depois segurou o braço de Molly antes de ela subir.
— Molly — disse ele —, se eu não gostar do seu tempo, você me traz de volta a 1870?
Molly abriu um sorriso.
— Claro! Lembre-se, Ojas, eu sei, melhor do que ninguém, o que é ficar presa no tempo errado. Mas tenho a sensação de que você vai gostar. Ah, e não esqueci de suas rúpias. — Ela puxou a corda no pescoço de Amrit, subiu e escondeu o saco de cristais num bolso do howdah.
— O século vinte e um! — Ojas suspirou, e sussurrou baixinho. — Mamãe, papai, onde quer que estiverem, desejem boa viagem para mim!
Uma multidão estava se reunindo.
— Isso vai ser uma coisa que eles lembrarão para sempre! — disse Molly.
— Pode apostar — concordou Rocky. — Não é todo dia que a gente vê um elefante desaparecer no ar.
A multidão começou a abrir espaço para deixar Amrit subir a escadaria e ir embora, mas é claro que isso não era necessário, porque em alguns segundos houve um BUM enorme e, no sopro de um instante, eles haviam sumido.
Se algum dia você já sentiu o que é voltar para casa depois de uma longa viagem, imagine isso e multiplique por cem. Porque foi assim que Molly, Rocky, Petula e Forest se sentiram enquanto partiam da década de 1870 e avançavam para seu tempo.
Molly sentia tanta confiança no cristal vermelho com cicatriz quanto um piloto sentiria num jato de alta tecnologia, de modo que a viagem foi perfeita. Algumas vezes eles reduziam a velocidade para desfrutar da vista do rio Ganges subindo e descendo. O céu acima piscava como um camaleão supersônico mudando a cor da pele e a lua percorria repetidamente a escuridão como um cometa. O tempo ronronava enquanto minutos, horas e anos passavam.
— Onde estamos agora? — perguntou Rocky.
— Acho que por volta dos anos 1950 — respondeu Molly calmamente. Acelerou a viagem. — Agora parece... um pouquinho mais... hmm... ainda não... Agora estamos quase lá.
— O mundo ao redor ficou mais visível, mas ainda era nebuloso. Molly escolheu um momento em que o céu no alto era um fim de tarde dourada, porque sabia que todo mundo iria querer dormir logo. Esperou até haver apenas algumas pessoas na escadaria onde estava Amrit, então deixou o mundo aparecer.
Era uma tarde quente de meados de janeiro.
Uma mulher que lavava panelas na água do rio gritou, largou a panela de cobre que estava segurando, repuxou o sári, ficou de pé e subiu a escadaria correndo e gritando.
— Voltamos? — perguntou Forest.
— Com tanta certeza quanto nabo com tofu é nabo com tofu — riu Molly.
— Uau e uau de novo.
Ojas cutucou Amrit atrás das orelhas e a elefanta de natureza doce começou a andar. Molly viu que os becos adiante eram apertados demais para eles, por isso continuaram pelas escadarias sujas, passando por búfalos-da-índia, turistas e indianos em peregrinação na cidade sagrada de Varanasi. O rio parecia vidro âmbar à luz do fim de tarde.
Mais tarde, naquela noite, encontraram transporte até o aeroporto e Molly conseguiu, através de hipnose, que um médico viesse dar alguns pontos no pescoço da Molly de dez anos. Também providenciou para que um avião de carga, capaz de levar Amrit, fosse retirado do hangar e trazido a Varanasi. A uma da madrugada partiram para a Europa.
Aterrissaram dez horas depois. Eram seis da manhã, horário de Briersville.
Molly, Rocky, Forest, Ojas e as jovens Mollys hipnotizadas se amontoaram num gigantesco caminhão alugado, com Amrit atrás e as duas Petulas no colo de Molly, e logo Forest estava levando-os pela estrada coberta de geada, indo para Briersville. Todo mundo usava cobertores do avião por cima das roupas novas que haviam comprado no aeroporto. Ojas tremia em seus tênis novos. Os olhos do garoto estavam grudados à janela.
— Pukka! — exclamava ao ver cada carro veloz que passava rapidamente.
Molly ligou o aquecimento e pensou em como tudo parecia novo em folha, comparado à índia. Pensou nos caminhões de Déli, pintados com imagens de flores e elefantes. Ojas olhava os veículos do século vinte e um passando. Carros esportivos, carros de luxo, carros minúsculos, caminhões, furgões e motocicletas. O mundo nunca parecera tão rápido, e ele se grudava à beira do assento como se estivesse num foguete.
Por fim surgiu a entrada para Briersville. Logo estavam na rua gelada que levava ao Lar da Felicidade, que já fora o orfanato Lar Vidadura.
Molly sabia que o prédio estava vazio, já que todos os ocupantes se encontravam em Los Angeles. Mas não planejava visitar o local agora. Precisava fazer uma pequena viagem pela estrada da memória.
— Boa sorte — disse Rocky enquanto o caminhão gemia subindo a parte final da encosta e entrava no caminho de cascalho.
— Obrigada. — Molly desceu. — Vou levar o bebê primeiro.
O bebê se mexeu e olhou em volta, alerta e interessado no mundo enquanto era passado de Ojas para Molly.
Assim que estava nos braços dela, o bebê segurou a mão de Molly e puxou-a para a boca. Começou a chupar o dedo da menina.
De repente Molly se sentiu muito triste. Triste pelo bebezinho que era ela mesma. Olhou o prédio recém-pintado, sabendo como a vida ali seria horrível para a criança. Sentia-se mal, sabendo que tinha de pôr esse bebê ali num tempo em que aquele era um lugar frio, desconfortável e sem enfeites.
Parte dela queria ficar com o bebê e levá-lo para um lugar mais feliz, mas um olhar para Rocky no caminhão lhe disse que isso era impossível — porque se o fizesse mudaria o passado. Precisava se colocar de volta. Sabia que o futuro da criança seria cheio de atribulações e dificuldades, mas também sabia que o bebê Rocky estava no passado, e que a Sra. Brinklebury, a única pessoa gentil do orfanato, estava lá para amá-la.
Assim, piscando para Rocky e tentando parecer mais corajosa do que se sentia, Molly foi até a porta da frente.
Molly segurou o cristal verde e pediu que o olho dele se abrisse. Imediatamente aquele poço em redemoinho, todo vítreo e verde, espiralou e brilhou. Molly desejou que ele a levasse para trás no tempo, junto com o bebê. O mundo ao redor tremeluziu e se tornou um borrão. Partiram para trás. Os anos se descascaram como camadas de papel de parede mostrando imagens de seu passado. Molly podia sentir vários buracos em sua vida, onde seus outros eus estavam faltando e precisavam ser postos de volta. Então reduziu a velocidade e começou a sentir o vazio em sua vida de bebê. Pôde sentir um tempo em que seu eu bebê não estava ali — calculou que até agora esse período havia durado apenas cerca de uma semana e meia.
Molly poderia colocar o bebê de volta uma hora depois de Uaqt pegá-la ou, com mais precisão, uma semana e meia depois. Decidiu colocá-la de volta no tempo correto — um tempo compatível com o período que o bebê havia passado na índia.
Sabia que precisaria de muito cuidado, porque Uaqt também tinha recuado no tempo para pegar o bebê. Não queria que ele soubesse de Molly agora, ou isso poderia mudar todo o rumo da semana e meia. Focalizou a mente no vazio que sentia no passado e mirou.
Deixou a velocidade diminuir até estar flutuando no mundo, e parou. Ao fazer isso percebeu uma sensação curiosa — de unir o ponto onde a vida do bebê continuava.
Eram cerca de duas da tarde de um dia de setembro. O Lar Vidadura era decrépito e meio caindo aos pedaços. Molly experimentou a porta da frente, que se abriu.
Dentro, os cheiros familiares e institucionais do orfanato — de desinfetante e repolho cozido — encheram seu nariz e fizeram com que ela se sentisse extremamente desconfortável. Tudo aquilo estava em seu passado, mas visitá-lo a deixava com saudade do conforto futuro e triste porque aquele ambiente vazio e gélido era onde o bebê deveria crescer.
Apertou gentilmente a criança. E de repente escutou uma voz familiar.
— O que está fazendo parada aí, sua mulher estúpida? Você é paga para trabalhar, não para tomar chá.
— S... ss... srta. Viborípedes, eu só est... t... tava dando uma p... paradinha... P.. p... pasei três horas lav... v... vando o chão da c... cozinha.
— Então suba e faça alguma coisa de útil. E se vai ficar choramingando por causa daquele bebê que você perdeu, contenha-se e vá trabalhar!
Nesse ponto a Sra. Brinklebury soltou um soluço horrível e Molly ouviu-a ir em direção à porta. Molly subiu a escada na ponta dos pés e foi pelo corredor até o quarto dos bebês. Era o mesmo do qual se lembrava, de quando era pequena.
As cortinas estavam fechadas e uma luz rosada se filtrava sobre um berço onde um menininho angelical e de pele escura dormia. Molly tocou a cabeça do bebê Rocky. Colocou seu eu bebê ao lado dele. O bebê Molly parecia ligeiramente deslocado, usando um vestido de seda branca finamente bordado. Molly fez cócegas no queixo dela, fazendo-a rir.
Então sentou-se numa cadeira nas sombras no fundo do quarto.
Ouviu a arrasada Sra. Brinklebury vir arrastando os pés pelo corredor, entrar na sala e ir até o berço, onde viu imediatamente o bebê Molly.
— Ah, meu Deus! — exclamou ela com um pequeno grito. Depois acrescentou: —Ah, meu Senhor! Você é real? — E então irrompeu num jorro das lágrimas mais sentidas e agradecidas que Molly já vira. A mulher idosa, gentil e gaguejante chorava, ria e abraçava o bebê, e o bebê dava gritinhos de alegria por estar de novo com ela.
No fundo da memória Molly sentiu essa alegria. Saiu das sombras, em silêncio, na direção da Sra. Brinklebury e deu um tapinha no seu ombro. Quando a mulher gorducha se virou, Molly encarou seus olhos rosados e inchados. Ela foi hipnotizada imediatamente. Molly pôs a mão na cabeça da Sra. Brinklebury e disse:
— A senhora não vai mais pensar que essa criança estava desaparecida. Vai esquecer o acontecido. Se alguém perguntar, a senhora não vai saber do que estão falando. Para a senhora, isso nunca aconteceu. Entendeu?
A Sra. Brinklebury assentiu.
— E de agora em diante não vai levar a sério as grosserias da Srta. Viborípedes. De fato vai pensar que ela não passa de uma criatura velha e triste. Quando eu tiver ido embora, a senhora sairá deste transe e esquecerá que me viu. — Molly se inclinou e beijou-a na bochecha. — Lembre-se, Sra. Brinklebury, que Rocky, Molly e todas as outras crianças a amam demais. — Molly fez a Sra. Brinklebury pairar fora do tempo. — E tranco essas instruções com a senha “Bolinho de Chuva”.
Então, tendo colocado as duas no tempo correto, Molly saiu do quarto. Atrás ouviu a Sra. Brinklebury rindo.
— Aaah, que coisa mais doce — estava dizendo ela. — Você me faz ficar toda boba. Olha só, estou chorando! Não sei por quê, mas estou!
Molly desceu a escada até o corredor. Ouviu Viborípedes na cozinha embaixo falando alto. Abriu a porta de vaivém e se aventurou descendo a escada para a cozinha. Um cheiro nauseabundo de cozido de enguia foi ficando mais forte à medida que ela se aproximava.
— Como uma criança pode sumir assim, é o que eu queria saber! — disse a voz engrolada de Viborípedes.
— Talvez ela não seja tão idiota quanto parece — disse outra pessoa, falando de boca cheia. Molly reconheceu a voz de Edna. Edna era a mastodôntica e mal-humorada cozinheira do orfanato. —Acho que ela vendeu aquela pirralha. Quanto será que conseguiu por ela? Provavelmente vai vender o negrinho daqui a pouco.
— Ela estaria nos fazendo um favor — disse a Srta. Viborípedes, com o garfo raspando o prato enquanto prendia a enguia cinzenta e a cortava ao meio. — Teríamos sorte se nos livrássemos deles. Dois pirralhos chorões e fedorentos, uma branca e pálida como uma minhoca de pântano, o outro preto como o próprio pântano!
Molly espiou pela janela de vidro aramado na porta da cozinha e viu as duas solteironas maldosas sentadas nas extremidades da mesa da cozinha. A Srta. Viborípedes estava junto a uma garrafa de xerez. Um sorriso maligno brincava em seus lábios apertados enquanto ela bebericava num copo. Edna fumava um cigarro e bateu a cinza num manjar branco que seria servido às crianças do orfanato naquela noite.
Molly entrou. As duas mulheres levantaram os olhos, surpresas.
— Com licença — disse Molly —, mas estou perdida. Esta é a casa da bruxa velha e sua ajudante horrenda com cara de bicho-papão?
A Srta. Viborípedes cuspiu o xerez enquanto Edna murmurava:
— Que diabo é isso!?
Imediatamente Molly lançou seus poderosos raios hipnóticos na direção das duas.
Elas ficaram sentadas, imóveis e silenciosas como perus empalhados, em meio à fumaça e ao cheiro de enguias. Estavam à mercê de Molly.
Claro, o impulso que rugia dentro de Molly implorava para punir aquelas mulheres terríveis — mudá-las para que nunca fossem ruins com ela, com Rocky ou com qualquer criança do orfanato. Queria consertá-las de vez. Queria remodelá-las. Mas o lado calmo e lógico de seu cérebro a conteve. Porque sabia que, se mudasse essas mulheres, certamente seu passado também mudaria. Se hipnotizasse Viborípedes e Edna para subitamente virarem anjos, a vida de Molly definitivamente mudaria, assim como seu caráter.
Até agora a personalidade de Molly a havia levado até onde ela estava, e esse era um bom lugar. Realmente não deveria mexer com nada disso. Se mudasse as coisas, talvez nunca tivesse encontrado o livro de hipnotismo. Talvez nunca fugisse. Perderia as lembranças de como havia sido ficar sozinha em Nova York e depois com Rocky em Los Angeles. Suas aventuras seriam apagadas. E quanto a Petula? Se a Srta. Viborípedes fosse diferente, talvez criasse gatos. Talvez nunca comprasse uma filhotinha de pug. Molly não podia se imaginar amando outro animal tanto quanto amava Petula. Todo esse amor entre ela e Petula poderia desaparecer se ela mudasse o passado. Talvez o amor entre ela e a Sra. Brinklebury também não existisse. E Rocky? Se Viborípedes fosse uma pessoa amável, talvez um bom amigo dela o adotasse enquanto ele era um bebê. Talvez a vida nova que ela criasse fosse muito menos cheia de amor do que sua vida era agora. Não podia garantir que sua vida teria mais amor.
Pensou em Forest e Ojas sentados no caminhão. Gostava deles mais do que poderia dizer. Estava realmente animada com o futuro. E essa era a parte importante, não era? O futuro. Molly se sentia fantástica com isso.
Enquanto olhava as mulheres horríveis à sua frente soube que não poderia interferir no passado. Mesmo tendo tido grandes dificuldades, havia sobrevivido. Tinha orgulho de ser quem era. Na verdade adorava sua vida.
E assim, tudo que disse às bruxas foi:
— Quando eu sair deste cômodo vocês vão esquecer que estive aqui. Também vão esquecer que o bebê Molly, que está lá em cima, desapareceu. Se alguém falar disso, vocês dirão que nunca aconteceu. E quando Molly sumir no futuro, quando ela tiver três, seis e dez anos, vocês esquecerão disso também, vão negar que aconteceu. Quando eu for embora, vocês sairão do transe e... e... — Molly não conseguia resistir a mudar as coisas só um pouquinho. — E vão subir lá em cima e pedir desculpas à Sra. Brinklebury por todas as vezes que foram grosseiras com ela, e vão dizer que, mesmo que provavelmente sejam grosseiras de novo, ela sempre deve lembrar que é uma pessoa muito melhor, mais legal e mais divertida do que vocês duas e que vocês são duas porcas ressecadas, podres e mal-humoradas. Além disso... — a tentação era grande demais — de agora em diante, sempre que tiverem convidados no orfanato, vocês duas vão descobrir que precisam peidar e arrotar muito. — Então, tocando no ombro da Srta. Viborípedes e de Edna, Molly fez com que elas pairassem fora do tempo. — E tranco essas instruções com as palavras “Cozido de Enguia”.
Molly trouxe as duas mulheres de volta ao tempo certo e depois saiu da cozinha. Na porta da frente pôs a mão no bolso pegando o cristal vermelho e partiu para o futuro.
De volta ao século vinte e um, Rocky, Forest, Ojas e as Mollys hipnotizadas estavam espremidos na cabine do caminhão. As Petulas dormiam no colo de Rocky.
— E aqueles marajás hipnotizados? O que ela vai fazer com eles? — perguntou Forest, desenhando um homem de pernas cruzadas e com turbante no pára-brisa embaçado.
— Ah, ela vai resolver tudo isso mais tarde — disse Rocky. — Molly terá de voltar à índia e recuar no tempo. Não importa se vai fazer isso nesta semana ou no ano que vem, porque de qualquer modo isso está no passado. Ela precisa deduzir a senha.
— Ela vai ficar meio escamosa — observou Ojas, brincando com a preciosa tornozeleira guardada no bolso.
— Não sei — disse Rocky, abrindo o porta-luvas. —Acho que Molly passou um bocado de tempo naquela luz do início dos tempos. Realmente acho que ela parecia mais nova quando voltou. De modo que talvez as escamas não apareçam tão depressa se ela viajar no tempo de novo. Querem um caramelo?
Todo mundo pegou um e começou a mastigar.
— Pessoal, algum de vocês... tipo... ficou escamado? — perguntou Forest.
— Fiquei. Um pouquinho atrás dos joelhos — respondeu Rocky. — O cotovelo das Mollys mais novas está também.
— Meus tornozelos estão muito ressecados — disse Ojas.
— Acho que é o principal viajante do tempo que sofre mais — sugeriu Rocky. Ojas e Forest confirmaram com a cabeça. Todos mastigaram mais um pouco.
— E você, Forest? — perguntou Ojas.
— Eu o quê? — Forest tirou os óculos para limpá-los.
— Ficou seco também?
— É... bem... — Forest ficou quieto.
— Sua pele escamou? — insistiu Ojas.
Forest fez uma pausa. Depois respondeu depressa:
— É, bem, a verdade é que... meu... minha... bunda ficou meio ressecada.
Nem Ojas nem Rocky sabiam o que dizer. Ojas mastigou. Forest mastigou. Rocky mastigou.
— Lamento muito saber isso, Forest.
— Obrigado, Rocky.
— Missão bebê: cumprida! — declarou Molly quando voltou ao caminhão e abriu a porta da cabine. — Isso é esquisito demais. Sabe, Rocky, você era um bebezinho lindo.
Rocky sorriu e ajudou a menina de três anos, hipnotizada, a descer.
Pegando a mão de seu eu mais novo, Molly se aproximou do Lar da Felicidade.
— Conto tudo quando voltar — gritou, acenando para os amigos. Depois desapareceu.
De novo estava recuando no tempo, direcionando o cristal verde em sua mão, instigando-o a colocá-las no lugar onde a vida da pequena Molly esperava para ser retomada. Passaram pelo ano em que Molly podia sentir seu eu de quatro anos no orfanato. Sentiu que estava passando pelos zilhões de momentos que constituíam sua vida. Cada momento era uma imagem parada das muitas e muitas imagens que compõemum filme de animação, só que esse não era um desenho animado; era sua própria vida se enrolando para trás. Sua vida era composta de trocentos milhões de momentos separados de Molly, todos reunidos num tempo contínuo.
E então sentiu que ia se aproximando um tempo em que ela não era. O tempo ao qual pertencia essa Molly de três anos, ao seu lado. Reduziu a velocidade e parou.
Era uma manhã fria e cinzenta e a névoa flutuava sobre a grama. Pegou a menininha e abriu em silêncio a porta do Orfanato Lar Vidadura. Subiu a escada e foi pelo corredor. Os ocupantes de todos os dormitórios estavam dormindo a sono solto. Molly podia ouvir roncos. O cheiro de crianças dormindo enchia o ar. Do lado de fora do quarto dos bebês ouviu uma criancinha cantando.
— Passarinho, passarinho, não me empurre do meu ninho!
Abriu a porta. O Rocky de três anos estava sentado em seu berço.
— Quem tá aí? Quem é? — perguntou ele.
— Só estou trazendo sua amiguinha de volta! — disse Molly. Em seguida olhou nos olhos da Molly hipnotizada, pensou no cristal vermelho e pairou com ela fora do tempo, para trancar algumas instruções que permaneceriam para sempre.
— Você, pequena Molly, vai esquecer todas as coisas apavorantes que aconteceram quando aquele gigante malvado levou você embora. E também vai esquecer dele. Entendeu?
— A menininha assentiu. Molly foi em frente: — E esta ordem está trancada com as palavras “Agua-viva Saltadora”.
— Molly tirou a menina do transe e voltou com ela ao mundo. Assim que viu Rocky, a garota de três anos gritou e começou a rir.
— Rocky! O que cê tá fazendo?
Molly colocou-a no berço com ele. As crianças se abraçaram desajeitadamente e acabaram tombando, e a Molly mais velha as deixou ali. Decidiu não mexer com as outras lembranças da pequena Molly sobre a índia, já que logo iriam se fundir com seus sonhos e a Sra. Brinklebury só diria “Sim, querida”, se ela falasse que havia montado num elefante.
Enquanto partia de novo para o futuro, Molly se perguntou se Lucy Logan teria ficado feliz caso recebesse de presente a Molly de três anos. A pequena Molly era tão doce que ela certamente a teria amado. Com esses pensamentos na cabeça, voltou ao caminhão.
— Missão três anos: cumprida — disse sorrindo. —Agora a Molly de seis anos e a pequena Petula.
Rocky ajudou a Molly mais nova a sair da cabine e Molly pegou a cadelinha. Elas viajaram de volta no tempo. Era um dia de outono e as folhas estavam marrons e alaranjadas nas árvores. Molly guiou a garota hipnotizada até a lateral do Lar Vidadura. Lá dentro podia ver a feia Srta. Viborípedes indo de um cômodo ao outro.
Rapidamente falou com a menina:
— Agora, Molly, você e Petula estão de volta. Mas não quero que diga a ninguém que esteve na índia. Na verdade você vai esquecer que esteve lá, mas algumas vezes vai sonhar com as coisas lindas que viu. Você pode manter as lembranças de estar rindo na estrada. Não vai se lembrar de nenhuma coisa amedrontadora. E certamente não vai se lembrar do gigante. Mas um dia, quando tiver onze anos e voltar à índia, todas as suas lembranças vão retornar. — Depois Molly foi com a menina para fora do tempo. — E tranco essas instruções com as palavras “Hippie Cabeludo”.
Em seguida fez o mundo se mover. Petulazinha começou a chupar uma pedra. Molly supôs que os filhotinhos de cachorro não lembravam muita coisa, por isso não se preocupou com Petula.
A Srta. Viborípedes saiu pela porta dos fundos do orfanato com uma expressão nitidamente azeda.
— Quero deixar claro que isto aqui é propriedade particular — começou. Ao ver a menina de seis anos, fez uma careta de desagrado. — Ah! Aquela menina. Você é de uma família que quer adotá-la? — Depois acrescentou: — Garota, eu lhe disse para não brincar com minha cachorra! E que roupas ridículas você está usando! — Molly percebeu que Viborípedes já havia esquecido que a Molly de seis anos estivera sumida, segundo as instruções.
— Nada de adoções hoje, obrigada — respondeu Molly. Em seguida olhou o rosto terno de seu eu mais novo e um horrendo sentimento de saudade a atravessou. Não podia suportar que o passado permanecesse como havia sido. Tinha de fazer alguma coisa, só uma coisa pequena, para tornar a vida um pouquinho melhor para todas as crianças dali. Encarou os olhos pequenos da velha e, de novo, Viborípedes estava sob seu feitiço.
— Srta. Viborípedes — disse ela. — Hoje vai tratar esta criança com gentileza. E nos próximos dias, sempre que estiver realmente bêbada, vai ser gentil com as crianças aos seus cuidados. Está claro?
— Sim. Agora só estou um pouquinho bêbada — respondeu a solteirona magra.
Molly se inclinou e sussurrou no ouvido da menina de seis anos.
— E você, pequena Molly, sempre vai lembrar, que, não importando o quanto sua vida neste lugar seja horrível, um dia ela vai mudar para melhor.
Então levou-a para dentro, até um cômodo onde pôde escutar a voz de Rocky.
— Daqui a pouco você vai ver o Rocky. Quando se encontrar com ele, você não estará mais hipnotizada. Se ele perguntar onde você esteve, você vai dizer que não lembra. Vai esquecer que me viu. — A menina confirmou com a cabeça e Molly cutucou-a em direção à sala de estar.
Em seguida voltou à Srta. Viborípedes e estalou os dedos diante dos olhos dela, acordando-a do transe.
— Aonde foi a criança? — perguntou a velha, esticando o pescoço com movimentos bruscos como um avestruz confuso.
— Está lá dentro.
— BAAARRRP! — A Srta. Viborípedes soltou um sonoroso arroto. — Gostaria de entrar para tomar uma xícara de chá? — Enquanto ela punha a mão na boca, um peido estrondoso atravessou sua saia de tweed. e um fedor insuportável de carne velha e repolho que haviam passado por seu sistema digestivo enrugado e velho encheu o ar. Molly recuou. O cheiro era nojento. Mesmo assim ficou impressionada ao ver que a instrução hipnótica que havia deixado para Viborípedes peidar e arrotar diante de outras pessoas ainda estava funcionando.
— Já estou indo.
Com isso, Molly desapareceu. Um BUM encheu o ar. Tudo que restou foram pegadas no gramado úmido.
A Srta. Viborípedes olhou perplexa em volta e, vendo as marcas na grama, ficou de joelhos.
— FANTASMAS! —gritou ela, batendo no chão. Depois, para si mesma, disse: — Não, Agnes, é a bebida!
Molly estava girando pelo tempo de novo. Tinha apanhado seu eu de dez anos e agora ia levando-a de volta ao tempo correto.
Pousaram numa noite fria de novembro. A porta da frente estava trancada. Molly empurrou a janela da sala de estar.
— Daqui a um minuto você vai subir de fininho e entrar de volta na sua cama. Amanhã, quando todo mundo perguntar onde você esteve durante uma semana e meia, você vai dizer que estava doente e não quer falar sobre isso. E não vai falar. Vai pensar que esteve no hospital e que dormiu na maior parte do tempo. Vai pensar que leu uma longa história sobre a índia, mas não vai conseguir lembrar a história direito, e vai pensar que foi porque estava doente. Um dia, quando tiver onze anos e estiver de volta à índia, suas lembranças vão retornar, mas não antes. E, Molly, continue indo à biblioteca.
— Molly mordeu o lábio. Não deveria dar pistas a si mesma para encontrar o livro de hipnotismo. — Agora vá para a cama e, quando acordar, não vai saber como chegou lá. Vai se esquecer de mim e que eu a hipnotizei. Tudo isso está trancado... — Molly foi com a menina mais nova para fora do tempo
— com a senha “Roda do Tempo”. — Molly pousou de novo no tempo correto. — E lembre-se, Molly, uma coisa especial vai acontecer com você em pouco tempo.
Molly olhou pela última vez para seu eu de dez anos e se perguntou se Lucy teria gostado dela. Provavelmente não, pensou. Talvez Lucy tivesse problema com crianças maiores. Suspirou e tentou pensar em algo diferente, mas era difícil, porque sabia que hoje veria Lucy de novo, e o desapontamento de sempre estaria escrito com clareza no rosto dela.
— Bom, vejo que você mudou algumas coisas lá atrás — disse Rocky quando Molly apareceu. — Estou com algumas lembranças novas, tipo a Srta. Viborípedes levando a gente ao cinema e distribuindo pipoca quando estava bêbada.
— Não pude resistir — disse Molly enquanto pulava de volta no caminhão. E deu um enorme abraço em Rocky. — Iu-hu, Rocky, não acredito, mas está feito! MISSÃO CUMPRIDA!
— Iu-hu — ecoou Ojas.
— Maneiro — concordou Forest.
— Maneiro, Forest? — perguntou Molly, virando-se para ele. — Só isso?
— Certo, certo... é um alívio psicodelicamente fabuloso e cosmicamente espantoso.
— Uuuuuuuurahfr! — concordou Petula. E Amrit enfiou a tromba na cabine do caminhão, imaginando se haveria umou dois caramelos que poderia afanar enquanto todo mundo estava comemorando.
O caminhão foi meio deslizando pela rua gelada, de volta à estrada Briersville.
— Certo, hora de ver como estão os bolinhos rançosos. — Molly não sabia exatamente por que chamou o pai e a mãe assim. Talvez porque, bem no fundo, estivesse tão empolgada para encontrá-los quanto poderia se sentir com a perspectiva de comer dois bolinhos rançosos. Rocky entendeu.
— Não se preocupe — disse ele dando um tapinha em sua mão. — Você não tem de ser automaticamente a filha perfeita, você sabe. Na verdade tem o direito de ser apenas amiga deles, se quiser.
— Não sei se quero ser amiga de Lucy Logan — respondeu Molly enquanto Forest freava para não atropelar um faisão. — Ela não ficou exatamente feliz ao descobrir que eu era sua filha. Fui um desapontamento. Mas sabe, Rocky, não posso fazer nada se não sou visível e automaticamente legal, como você.
— Molly, você não deveria se incomodar muito com isso. Provavelmente há um bom motivo para ela se comportar desse jeito.
— Há: ela não gosta de mim.
Forest levou o caminhão até a rua principal que atravessava a cidade de Briersville.
— É estranho não ter as pequenas Mollys com a gente. Sinto falta delas. Espero que estejam bem — disse Molly.
— Cara, esta é a coisa mais maluca que você já disse. — Forest começou a rir como uma hiena. — Claro que elas estão bem. Elas estão em você, Molly.
— Acho que sim.
O nariz de Ojas ainda estava grudado à janela.
— Então isso é o futuro! — ofegou enquanto passavam por uma fazenda com grandes celeiros de metal corrugado.
— Isso é só uma fazenda — disse Rocky. — Espere até jogar videogame. Vai pirar você de vez!
— Vai me pirar de vez... — Ojas experimentou a nova expressão.
Petula se empertigou tentando enxergar lá fora. Podia sentir as lhamas da mansão Parque Briersville. Começou a se agitar, empolgada. Mal podia esperar para correr pelos gramados. Imaginou se suas pedras especiais ainda estariam enterradas em segurança nos lugares onde as havia deixado.
Estremeceu e por um momento pensou no calor maravilhoso da índia. Tinha sido uma tremenda viagem, pensou. Aquela torta de pavão era deliciosa, e os encarregados do tratamento de beleza no palácio tinham sido muito legais. Suas unhas ainda estavam cor-de-rosa, pintadas com esmalte. Mas mal podia esperar para caçar uns coelhos.
— E os seus pais? Como eles são? — perguntou Ojas.
— Eles não são meus pais de verdade — respondeu Molly.
— Não?
— Não. Quero dizer, os pais deles eram meus avós, mas eu conheci os dois há pouco tempo. Eles não me conhecem e eu não conheço eles.
— Você gosta deles? Molly pensou.
— Bem, eles são meio estranhos. Você vai ver. Os dois estão meio perturbados, acho. Mas não são de dar medo nem nada.
O caminhão passou por estradinhas congeladas e finalmente chegou ao portão preto do Parque Briersville. Logo seguiam pelo comprido caminho sinuoso, passando por pastos com lhamas e arbustos em forma de animais nos campos.
— Ah, tenho certeza de que eles vão gostar de Amrit — disse Ojas. E apontou para um arbusto em forma de elefante.
— Bom — explicou Molly. — Na verdade esses arbustos foram postos aqui pelo meu tio. O nome dele é Cornelius. Por sinal, atualmente ele acha que é um carneiro. Olhe, ali está! — Forest diminuiu a velocidade do caminhão.
Cornelius Logan, vestido com roupa de esquiador, estava parado numa campina com um rebanho de ovelhas.
— Acho que Cornelius foi hipnotizado por Uaqt para se comportar como se comportou — disse Rocky.
— Pobre Cornelius — concordou Molly. — Uaqt o pegou há muito, muito tempo. Lembro que Cornelius tinha inveja da irmã gêmea, Lucy, durante toda a vida. Uaqt deve tê-lo hipnotizado quando ele era um menininho. Coitado, coitado do Cornelius. Quero dizer, passar toda a vida hipnotizado, desde que tinha uns três anos... é muita doideira. Se eu destrancar a hipnose feita por Uaqt, Cornelius pode ficar louco com o choque. Ele parece tão feliz ali, mordiscando a grama!
— É, mas está na prisão. Está numa prisão hipnótica — disse Rocky. — Ele tem direito à sua vida de verdade. — O motor do caminhão roncou entrando em ponto morto.
— Um dia você vai descobrir a senha de Uaqt — observou Forest, mudando de marcha e movimentando o caminhão. — Então poderá voltar e libertar Cornelius e aqueles marajás.
— Vou fazer isso. Bem provavelmente na semana que vem. Mas a senha vai ser um problema. — “Van”, “Avo” e “Pão” não funcionam. Deve haver outras palavras. É como uma algaravia maluca. Só sei que terminava ou começava com “Van”, “Avo” ou “Pão”. Vai ser praticamente impossível descobrir o resto.
Forest parou no pátio de cascalho na frente da mansão Parque Briersville. Quando ele fez isso, Ojas foi para a traseira do caminhão, preparar Amrit para a chegada.
A alta porta de mogno se escancarou. Primo Cell pôs a palma da mão na testa e franziu os olhos diante do sol frio, imaginando por que um caminhão enorme estaria parando diante da mansão Parque Briersville.
— Molly, Rocky, Forest — gritou preocupado. — São vocês?
Petula pulou da cabine. Estava extremamente empolgada por voltar. Enquanto ela subia bamboleando os degraus, Molly, Rocky e Forest saíram do caminhão.
— É, nós voltamos! — disse Molly o mais calmamente que pôde, como se tivesse ido comprar uma garrafa de leite.
— Lucy! — gritou Primo. — Eles voltaram. Eles todos voltaram. — Em seguida desceu correndo os degraus e agarrou Molly e Rocky. — Meu Deus, achamos que nunca mais iríamos ver vocês! — disse ele, apertando-os um com cada braço. — Pensamos que vocês tinham... que tinham...
— Morrido? De jeito nenhum, cara. A morte nos cortejou, mas não casou — brincou Forest.
— Ah, graças a Deus. — Primo Cell enterrou o rosto nos ombros de Molly e Rocky. Rocky piscou para Molly como se dissesse “acho que ele gosta de nós”.
Então Lucy Logan saiu correndo da casa. Hesitou no alto da escada e desceu correndo. Não abraçou Molly e Rocky. Em vez disso sorriu e sorriu, e sua testa era uma massa de surpresas linhas horizontais. Molly evitou encará-la.
Primo riu.
— Então, onde vocês estiveram?
— É uma longa história — começou Molly. Ligeiramente sem graça, virou os olhos na direção de Lucy. Primo notou.
— Agora Lucy está muito melhor — disse ele. — Conversamos um bocado e chegamos ao motivo da tristeza dela.
O coração de Molly deu uma cambalhota. Será que eles haviam conversado sobre os motivos para Lucy ter achado Molly um desapontamento tão grande?
— Ah, Molly! — ofegou Lucy, chocada ao ver o nervosismo cobrindo o rosto da filha. — Você provavelmente estava morrendo de medo de me ver! — Ela bateu palmas e implorou: —Não se preocupe. Prometo que não vou ser aquela pessoa arrasada de novo. — Em seguida explodiu: — Sinto tanto, Molly! Eu estava parecendo um biscoito molhado e triste! Quando nós nos encontramos eu deveria ter ficado feliz de verdade, mas não conseguia deixar de ficar revirando na cabeça o que havia perdido. Não conseguia aceitar meu passado. Ficava desejando que tivesse sido diferente. Ficava esperando que você e... e... não tivessem sido tirados de mim.
Molly só estava escutando pela metade. Zumbia com uma mistura de raiva e medo do que Lucy diria em seguida.
— Lucy — disse Primo, torcendo a boca sem jeito. — Acho que devemos esperar para contar a Molly. Ela vai ficar tão chocada quanto eu fiquei. Aqui, na entrada, não parece...
— É, desculpe, escapou. Mais tarde.
— Mais tarde o quê? — perguntou Molly ignorando Petula, que estava pulando nela. Repassou na cabeça o que Lucy havia acabado de dizer. — Você ficava esperando que eu e o quê não tivéssemos sido tirados de você?
— Eu ficava esperando que você e... e...
— Cornelius? — supôs Molly. — Nós sabemos que Uaqt o pegou. Isso não é novidade. Nós sabemos.
— Uaqt? Quem é ele?
— Vocês não conhecem Uaqt?
Lucy balançou a cabeça.
— É o homem que mandou levar Petula — disse Molly.
— Um homem chamado Uaqt pegou Cornelius? Como assim? Como? — Molly se viu numa situação incômoda. Tinha decidido não contar a Lucy que Uaqt havia hipnotizado Cornelius na infância. Virou-se para Forest e Rocky. Os dois pareciam constrangidos, olhando os pés. Todos tinham achado melhor não contar a Lucy por enquanto, porque a notícia seria perturbadora para ela. Mas agora metade havia escapado. Exatamente o que Lucy tinha feito: deixado algo escapar.
Molly tentou mudar de assunto.
— Você primeiro. Conte que outra coisa foi tirada de você — disse tentando ganhar tempo.
Lucy balançou a cabeça e olhou para Primo, procurando orientação.
— Conte — disse Primo.
Houve um longo silêncio enquanto Lucy juntava coragem para contar a Molly por que tinha estado tão triste. Molly começou a perceber que o motivo era algo de muito grave. E daí começou realmente a se perguntar o que seria.
— Você sabe, Molly — começou Lucy, com as lágrimas se juntando nos olhos azuis —, que Cornelius é meu irmão gêmeo.
— Sei — disse Molly franzindo a testa enquanto tentava adivinhar o que Lucy estava tentando dizer.
— Sim, bem, como você sabe, eu e Cornelius somos gêmeos, e os gêmeos costumam se repetir nas famílias... e... e... e você... — Lucy pôs as mãos no rosto.
— E você também é, é o que ela está tentando dizer — completou Primo. — Você também teve.
— Sou o quê?
— Gêmea.
— O quê? Eu sou gêmea? — disse Molly, atarantada. — Gêmea? Mas onde ela está?
— Ele.
— Ele? Ele? Onde ele está?
— Não sabemos, Molly — respondeu Primo. Lucy, ao lado dele, estava enxugando os olhos com um lenço.
— Desculpe — disse ela. — Achei que tinha terminado de chorar por causa disso, mas é difícil... aceitar sem ficar dominada pelas... — Ela conteve um soluço —... pelas lá... -á... grimas.
Molly encarou-a.
— Um irmão? — foi tudo que pôde dizer.
De repente imagens de um menino um pouquinho mais alto do que ela, parado junto dela, encheram sua cabeça.
Olhou para Rocky.
— Alguma vez você o viu? — perguntou Molly a Lucy.
— Sim, antes... antes de alguém aparecer e pegá-lo.
— Cornelius não sabe realmente o que aconteceu com o menino — disse Primo. — Foi um golpe terrível para nós dois não saber aonde ele foi, ou se está vivo ou não. — Primo estava sério como Molly nunca o vira antes. Seu lábio inferior tremia. — Minha nossa, foi realmente a hora errada e o lugar errado de contar isso — disse passando o pé ao longo do degrau.
— Não, não foi! — reagiu Molly. Imediatamente toda a sua paranóia sobre não ser suficientemente boa sumiu. Uma nova confiança tomou conta dela. Para Molly, a má notícia era boa, porque a fez ver que Lucy não estava desapontada por ela ser sua filha. Estivera triste por um motivo totalmente diferente. Um motivo sobre o qual Molly não tinha poder. Mas agora Molly poderia ajudar. De novo viu-se na situação de estar calma enquanto os pais abalados andavam numa montanha-russa de emoções. Tentou tranqüilizá-los. — Vocês não devem se preocupar. Agora eu sei de coisas que significam que posso descobrir o que aconteceu com ele. Posso mesmo! Hoje, não — acrescentou depressa — porque estou realmente cansada. E gostaria de passar pelo menos um dia no meu “aqui e agora” antes de partir de novo para outro.
— Como assim? — perguntou Primo.
— Ela é uma viajante no tempo, cara — explicou Forest. — A Molly aqui pode pular de um lado para o outro no tempo. Ela vai encontrar o seu filho.
— Vou sim — disse Molly. Em seguida foi até Lucy e apertou a mão dela. — Portanto pare de ficar triste, Lucy. Há alguma esperança. — Molly se perguntou onde seu irmão estaria. Em outro país, em outro tempo? Ou estaria na cidade ao lado, em outro orfanato? — Vou encontrá-lo. E vou fazer o máximo para trazê-lo de volta.
— Você realmente pode fazer isso, Molly? — Lucy beliscou a bochecha. —Ah, minha nossa, será que estou sonhando?
Nesse ponto Ojas, enrolado em três cobertores, saiu de trás do caminhão.
— Não está sonhando, memsahib — disse ele estremecendo. — A Molly aqui é uma maravilhosa viajante no tempo.
— Este é Ojas — disse Molly. Lucy sorriu perplexa e apertou a mão dele. Em seguida Ojas apertou a mão de Primo.
— É um prazer enorme conhecê-los — disse ele. — E é um privilégio estar no século de vocês!
Primo e Lucy olharam para Ojas. Primo perguntou:
— Então, é... de que tempo você é?
— Ah, 1870. Vim de Déli, na índia. Em Déli nunca faz frio assim! Amrit também está aqui. Amrit vai precisar que façam um casaco, se quiserem que ela more aqui.
— Amrit?
Rocky já estava abrindo a traseira do caminhão. Ele baixou a prancha. Amrit não precisou ser atraída. Estava ansiosa para investigar o novo ambiente e começou a recuar o enorme corpo cinzento pela prancha de metal. Em seguida se aproximou de Primo e Lucy, farejando o ar com a tromba.
— Meu Deus! — exclamou Lucy. — Sempre adorei elefantes — Ah, que fantástico. Ela pode morar no pavilhão perto da piscina.
— Ela vai gostar disso — disse Ojas, dando um tapinha na tromba de Amrit. — Ela gosta muito de nadar.
— Quer dar uma voltinha nela? — perguntou Molly.
— Uma volta? Eu adoraria! — disse Lucy. E finalmente Molly ouviu uma coisa que já muito havia esperado. Ouviu Lucy rir.
Assim Ojas fez Amrit se ajoelhar, e logo Lucy estava montada. Mas antes que partissem Ojas fez outra coisa. Pôs um objeto na tromba de Amrit e deu um pequeno assobio. A tromba de Amrit seguiu obedientemente sua ordem.
— O que é isso?—perguntou Lucy quando a ponta da tromba de Amrit lhe entregava um embrulho. Ela abriu o papel e descobriu uma enorme pulseira incrustada de pedras preciosas.
— Um presente para a senhora—disse Ojas. —Para usar. Na semana que vem ele tem de voltar ao dono de direito, mas até lá a senhora pode aproveitar à vontade. — E deu um sorriso sem graça para Molly.
— Ah, obrigada, Ojas — respondeu Lucy colocando-a no braço e descobrindo que era grande demais. — Deve ter pertencido a uma mulher muito grande!
Todo mundo riu.
— Ah, não, Lucy, não é para o braço. A senhora deve usar no tornozelo!
Primo entregou a Ojas seu casaco acolchoado.
— Por que não vamos ver se Amrit gosta da casa nova? — disse ele com um riso largo.
E assim, reunidos, todos foram pelo gramado até a piscina.
— Vocês devem ter tido aventuras incríveis — disse Primo, dando tapinhas carinhosos nos ombros de Molly e Rocky enquanto andava. — Quase morremos de preocupação desde que vocês sumiram. Quando tiverem comido e dormido ficarei muito interessado em saber o que aconteceu e descobrir como funciona a viagem no tempo.
— Ah, temos muito tempo para isso — disse Molly sorrindo para ele.
Amrit seguiu com seu grande traseiro balançando enquanto caminhava atrás de Ojas.
— Devo dizer — observou Primo — que, agora que Amrit está aqui, percebo que o que esse lugar realmente precisava era de um elefante! Uma casa sempre fica mais cheia quando tem crianças e elefantes!
— E adultos divertidos — disse Rocky, sorrindo enquanto Forest dava uma cambalhota no gramado. Petula passou correndo por eles.
— E bichos de estimação — acrescentou Molly. — Especialmente os do tipo Petula! — Em seguida se agachou para amarrar os cordões molhados dos tênis. — Eu alcanço vocês.
O chão diante dela estava úmido de orvalho e coberto de pegadas: de Amrit, Ojas, Rocky, Primo e Petula. Molly olhou para a sua.
O passado era feito das pegadas e impressões da vida, pensou. Imaginou aonde a vida a estaria levando agora. Pretendia fundar um hospital hipnótico, mas de novo parecia que seus planos seriam interrompidos. Agora precisava encontrar o irmão gêmeo. Metade dela não sabia se desejava um irmão; a outra metade tinha um desejo ardente de conhecê-lo.
Adiante, Rocky assobiava. Era uma canção que ele havia feito. Molly sabia a letra muito bem, e agora cantou-a na cabeça:
Não há tempo como o presente
Nem presente como o tempo
E a vida pode acabar num sopro do vento.
Não há presente como a amizade
Nem amor como o que sinto
Me dê seu amor para ser meu a todo momento.
Sorriu. Amava seus amigos e sua vida. De agora em diante, quer estivesse no princípio, no fim ou pulando de um lado para o outro no meio do tempo, aproveitaria cada momento ao máximo.
Enquanto isso, a alguns milhares de quilômetros dali, nos arredores de Jaipur, numa área que servia como fossa de esgoto, um verme enorme deslizava pela lama. Uma figura igualmente escorregadia foi abrindo caminho pelo esgoto.
O aparelho prateado de rastreamento de Zackya estava ligado. Ele pôs o cachecol no nariz e tentou ignorar o fedor sulfuroso.
— Vou encontrá-la, onde quer que esteja — murmurou idiotamente, levando a máquina que apitava para perto da lama fétida. A água marrom esguichava entre os dedos dos seus pés. — SEI QUE VOCÊ ESTÁ AÍ EMBAIXO, MOLLY MOON! — gritou feito louco. — POSSO AJUDAR VOCÊ!
Jogando o aparelho prateado na margem, começou a remexer a sujeira com as mãos.
Cavou a noite toda, e a lua e as estrelas saíram para olhá-lo. No fundo da gosma, uma gasta pílula metálica lançou seu último sinal. Depois se desligou e começou a enferrujar.
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