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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


VERMELHO / William Somerset Maugham
VERMELHO / William Somerset Maugham

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

VERMELHO

 

O capitão meteu a mão numa das algibeiras das calças e, com alguma dificuldade porque as tinha à frente e não aos lados e era corpulento, tirou para fora um grande relógio de prata. Olhou para ele e depois tornou a encarar o sol poente. O kanaka à roda do leme deitou-lhe um olhar rápido, mas não falou. Os olhos do capitão fixaram-se na ilha que se aproximava. Uma linha branca de espuma assinalava os recifes. Ele sabia que havia uma passagem suficientemente larga para o navio, e contava vê-la quando se aproximassem um pouco mais. Ainda tinham uma hora de luz do dia à sua frente. A lagoa era funda e nela poderiam ancorar confortavelmente. O chefe daquela aldeia que já se avistava por entre os coqueiros era amigo do imediato e seria agradável ir passar a noite a terra. Nesse momento o imediato aproximou-se, e o capitão virou-se para ele.

 

- Vamos levar conosco uma garrafa da rija e arranjar algumas raparigas para dançar - disse ele.

 

- Não vejo a passagem - disse o imediato.

 

 Era um kanaka, tipo simpático e moreno, com alguma coisa do aspecto de um dos últimos imperadores de Roma, com tendência para engordar; mas os traços do seu rosto eram finos e bem delineados.

 

- Tenho a certeza absoluta que há uma precisamente por aqui - disse o capitão, olhando pelo binóculo. - Não percebo porque é que a não vejo. Manda um dos homens subir ao mastro para ver se a descobre.

 

 O imediato chamou um homem da tripulação e deu-lhe a ordem. O capitão viu-o trepar ao mastro e esperou que ele dissesse alguma coisa. Mas o kanaka gritou para baixo que não via nada a não ser a ininterrupta linha de espuma. O capitão falava samoano como um nativo, e insultou-o copiosamente.

 

- Quer que ele fique lá em cima? - perguntou o imediato.

 

- Para que diabo servia isso? - respondeu o capitão. - O filho da mãe não vê um palmo adiante do nariz. Podes ter a certeza que eu veria logo a passagem se estivesse lá em cima.

 

 Olhou o delgado mastro com raiva. Era muito fácil para um indígena habituado a trepar aos coqueiros toda a sua vida. Mas ele era gordo e pesado.

 

- Podes descer - gritou. - És tão inútil como um cão morto. Temos de ir ao longo dos recifes até encontrarmos a passagem.

 

 Era uma escuna de setenta toneladas, revestida de parafina; andava, quando não tinha vento contrário, a uma velocidade de quatro a cinco nós por hora. Uma coisa imunda; outrora fora pintada de branco, mas agora estava suja e manchada. Cheirava fortemente a parafina e a copra, que era o seu carregamento habitual. Estavam agora a cerca de trinta metros da linha dos recifes e o capitão disse ao homem do leme que fosse ao longo dela até encontrarem a passagem. Mas depois de algumas milhas compreendeu que a tinham perdido. Mandou voltar para trás, e regressaram lentamente. A espuma branca dos recifes continuava sem interrupção, e já o sol desaparecia no horizonte. Com uma praga para a estupidez da tripulação, o capitão resignou-se a esperar até à manhã seguinte.

 

- Ponham o barco ao largo - disse ele. - Não podemos ancorar aqui.

 

 Saíram um pouco para o mar. Já era noite. Ancoraram. Quando ferraram as velas, o navio começou a balouçar muito. Em Apia diziam que ele um dia ainda se viraria de pernas para o ar; e o proprietário, um alemão-americano que era dono de uma das maiores lojas, dizia que não havia dinheiro no mundo capaz de o fazer viajar nele.

 O cozinheiro, um chinês de calças brancas muito sujas e rasgadas e uma pequena bata branca veio dizer que o jantar estava pronto; quando o capitão entrou na cabina, encontrou o maquinista já sentado à mesa. O maquinista era um homem magro e comprido, de pescoço de galinha. Vestia um fato-macaco azul e uma camisola sem mangas, que mostrava os braços delgados, tatuados do cotovelo ao punho.

 

- Bem, temos de passar a noite a bordo - disse o capitão.

 

 O maquinista não respondeu; jantaram em silêncio. Uma pálida lâmpada de óleo iluminava a cabina. Quando acabaram de comer os damascos de conserva com que terminava o jantar, o china trouxe-lhes uma chávena de chá. O capitão acendeu um charuto e foi para o convés. A ilha agora era apenas uma massa escura de encontro à noite. As estrelas brilhavam intensamente. O único som era o contínuo quebrar da ressaca. O capitão afundou-se numa cadeira de bordo, a fumar ociosamente. Três ou quatro membros da tripulação subiram e sentaram-se. Um deles trazia um banjo e outro uma concertina. Começaram a tocar; um cantou. O cântico nativo soava estranhamente naqueles instrumentos. Depois, a acompanhar a música, dois começaram a dançar. Era uma dança bárbara, selvagem e primitiva, rápida, com movimentos sacudidos das mãos e dos pés e contorções do corpo; sensual, mesmo sexual, mas sexual sem paixão. Era muito animal, direta, estranha, mas sem mistério - natural, em resumo, - e poder-se-ia mesmo dizer infantil. Por fim cansaram-se. Estenderam-se no deck e adormeceram, e tudo ficou em silêncio. O capitão ergueu-se pesadamente da cadeira e desceu pela íngreme escada do tombadilho. Entrou na sua cabina e despiu-se. Depois trepou para o beliche e deitou-se. Arquejava, tal era o calor da noite.

 Mas na manhã seguinte, quando a aurora deslizou ao longo do mar tranqüilo, a tal passagem dos recifes que os arreliara na noite anterior apareceu, um pouco a leste do sítio onde estavam. A escuna entrou na lagoa. Não havia uma prega à superfície da água.

 Viam-se pequenos peixes coloridos, no fundo, a nadarem por entre os bancos de coral. Depois de o navio ter ancorado, o capitão tomou o primeiro almoço e subiu ao convés. O sol brilhava num céu sem nuvens, mas de manhãzinha cedo o ar estava agradável e fresco. Era domingo, e havia uma sensação de quietude, um silêncio, como se a própria natureza estivesse a descansar, que lhe deu uma estranha sensação de conforto. Sentou-se, olhando a costa arborizada, e sentiu-se preguiçoso e bem disposto. Um sorriso assomou-lhe aos lábios; atirou o couto do charuto à água.

 

- Vou até terra - disse de. - Lancem o bote à água.

 

 Desceu a escada com ar importante; e o barco levou-o a uma pequena enseada. Os coqueiros vinham até à orla das águas, não em grupos, mas espaçados numa formalidade ordenada. Davam idéia de um grupo de solteironas a dançarem um bailado clássico, em atitudes afetadas com o sorriso tolo de uma idade já passada.

 O capitão vagueou preguiçosamente por entre eles, seguindo um carreiro tão tortuoso que mal se via, que o conduziu até um ribeiro largo. Havia uma ponte por cima; mas uma ponte feita de uma escassa dúzia de troncos de coqueiro, colocados topo a topo e suportados nas juntas por forquilhas de ramos de árvore enterrados no leito da corrente. Tinha de se caminhar por uma superfície redonda e lisa, estreita e escorregadia, e não havia corrimão. Para se atravessar uma ponte dessas é preciso ter pés firmes e coração forte. O capitão hesitou. Mas viu no outro lado, aninhada no meio das árvores, a casa de um homem branco; decidiu-se e, com um passo hesitante, começou a andar. Via onde punha os pés, e, nos sítios em que os troncos se juntavam e onde havia uma diferença de nível, tropeçava um pouco. Foi com um suspiro de alívio que alcançou o último tronco e finalmente pisou chão firme do outro lado. Estivera tão ocupado com a difícil travessia que nem reparara que estava a ser observado, e foi com surpresa que ouviu alguém dirigir-lhe a palavra.

 

- É preciso coragem para atravessar estas pontes, quando se não está habituado a elas.

 

 Ergueu os olhos e viu um homem na sua frente. Tinha saído, evidentemente, da tal casa.

 

- Vi-o hesitar - continuou o homem, com um sorriso nos lábios, e estava à espera de o ver cair.

 

- Isso é coisa que nunca verá - disse o capitão, que tinha recuperado a confiança em si próprio.

 

- Eu próprio já tenho caído. Lembro-me de uma noite em que eu voltava da caça e caí dentro de água com espingarda e tudo. Agora arranjo sempre um rapazinho para me levar a espingarda.

 

 Era um homem de certa idade, com uma pequena barba já um pouco grisalha e um rosto magro. Trazia vestida uma camisola sem mangas e umas calças de lona. Não tinha nem meias nem sapatos.

 Falava inglês com um leve sotaque.

 

- Você chama-se Neilson? - perguntou o capitão.

 

 - Chamo.

 

- Tenho ouvido falar de si. Calculei que morasse por estes sítios.

 

 O capitão, seguindo o dono da casa, entrou no pequeno bungalow e sentou-se pesadamente na cadeira que o outro lhe indicou com um gesto. Enquanto Neilson ia buscar whisky e copos, o capitão passeou o olhar pela sala. Ficou admirado. Nunca vira tantos livros.

 As estantes iam desde o chão até ao teto nas quatro paredes, e encontravam-se apinhadas de livros. Havia um grande piano coberto de músicas, e uma larga mesa com livros e revistas amontoados em desordem. A sala fê-lo sentir-se embaraçado.

 Lembrou-se de que Neilson era um tipo estranho. Ninguém sabia muito acerca dele, embora já vivesse nas ilhas havia muitos anos; mas aqueles que o conheciam concordavam em considerar Neilson estranho. Era sueco.

 

 - Tem aqui uma data de livros - disse ele, quando Neilson voltou.

 

- Não fazem mal a ninguém - respondeu Neilson com um sorriso.

 

- Leu-os todos? - perguntou o capitão.

 

 - A maior parte.

 

- Eu também gosto muito de ler. Leio todas as semanas o Saturday Evening Post.

 

 Neilson encheu um bom copo de whisky forte ao seu visitante e ofereceu-lhe um charuto. O capitão resolveu prestar alguns esclarecimentos.

 

- Cheguei ontem à noite, mas não consegui encontrar a passagem. Por isso tive de ancorar fora. Nunca tinha feito esta viagem, mas lá o meu patrão mandou-me trazer umas coisas para aqui. Para um tal Gray; conhece?

 

 - Sim, tem um estabelecimento aqui perto.

 

- Bem, ele pediu uma grande porção de conservas, e da copra em troca. E eles pensaram que era melhor mandarem-me cá, em vez de estar sem fazer nada em Ápia. Geralmente viajo entre Ápia e Pago-Pago, mas agora anda por lá a varicela e o comércio está parado.

 

 Bebeu um gole de whisky e acendeu o charuto. Era homem de poucas falas, mas havia em Neilson qualquer coisa que o enervava; e essa sensação nervosa obrigava-o a falar. O sueco olhava-o com grandes olhos escuros, em que havia uma expressão de ligeiro divertimento.

 

- Pois aqui é um sítio bem bom este que você tem aqui.

 

- Tenho-o arranjado o melhor que me tem sido possível.

 

- Deve fazer bom dinheiro com as suas árvores. Têm ótimo aspecto. E com a copra ao preço que está... Eu também já tive uma plantaçãozinha, em Upolu, mas tive de a vender.

 

 Tornou a percorrer a sala com os olhos; todos aqueles livros davam-lhe sensação de qualquer coisa incompreensível e hostil.

 

- Deve achar isto um bocado monótono, apesar de tudo.

 

- Habituei-me. Já cá estou há vinte e cinco anos.

 

 O capitão não conseguiu lembrar-se de mais nada para dizer, e continuou a fumar num silêncio que Neilson parecia não ter desejos de quebrar. O sueco fitava com olhar meditativo o seu hóspede. Este era um homem alto, com mais de um metro e oitenta, muito corpulento. O seu rosto era vermelho e manchado, com ramais de pequenas veias purpurinas nas faces, e as feições submergiam-se na gordura. Os olhos, raiados de sangue. O pescoço, enterrado em rolos de banha. Não tinha cabelo, exceto uma comprida farripa encaracolada, quase branca, na parte de trás da cabeça; e essa imensa e brilhante superfície da testa, que lhe poderia dar um falso aspecto de inteligência, dava-lhe pelo contrário um ar de particular imbecilidade. Trazia vestidas uma camisa de flanela azul, aberta no pescoço, que lhe deixava ver o peito gordo, coberto de uma floresta de pelos avermelhados, e umas calças de sarja azul muito velhas. Alastrava na cadeira com uma atitude desajeitada e pesada, e a enorme barriga espetada para a frente e as gordas pernas abertas. Toda a elasticidade desaparecera dos seus membros. Neilson perguntava-se, ociosamente, que espécie de homem fora aquele na mocidade. Era quase impossível imaginar que esta criatura de enorme volume tivesse sido menino, a correr de um lado para o outro. O capitão acabou o seu whisky, e Neilson empurrou a garrafa para o lado dele.

 

- Sirva-se à vontade.

 

 O capitão inclinou-se para a frente e com a sua grande mão pegou na garrafa.

 

- E como é que o senhor veio parar aqui? - disse ele.

 

- Oh, eu vim para estas ilhas por causa da saúde. Estava mal dos pulmões e ninguém me dava mais de um ano de vida. Como vê, enganaram-se.

 

- Quero eu dizer - como é que se decidiu a fixar-se aqui?

 

 - Sou um sentimentalista.

 

 - Oh!

 

 Neilson sabia que o capitão não fazia a mínima idéia do que ele dissera, e mirou-o com um brilho irônico nos olhos escuros. Talvez por o capitão ser um homem tão bruto e estúpido, apeteceu-lhe falar mais.

 

- Você estava demasiadamente ocupado em não perder o equilíbrio para ter reparado, quando atravessou a ponte; mas este lugar é geralmente considerado bastante bonito.

 

- É realmente uma casita engraçada, esta sua.

 

- Ah, não estava cá quando para aqui vim. Havia uma cabana indígena, com o telhado em forma de colméia, sobre pilares, à sombra de uma grande árvore com flores vermelhas; e os arbustos de cróton, com folhas amarelas vermelhas e douradas, formavam uma sebe colorida em volta. E depois havia por toda a parte os coqueiros, garridos como mulheres, e tão fúteis como elas. Ficavam à beira da água e passavam os dias a mirarem a imagem refletida nela. Eu era um homem novo nessa altura - Meu Deus, foi há um quarto de século! – e queria gozar todas as coisas belas do mundo no curto prazo que me restava antes de mergulhar na escuridão eterna. Pensei que era o mais belo sítio que vira em toda a minha vida. Da primeira vez que o vi senti apertar-me o coração, e pensei que ia chorar. Tinha só vinte anos; e, por mais que procurasse conformar-me, não queria morrer. E no entanto parecia que a própria beleza do lugar me tornava mais fácil aceitar o meu destino. Quando cheguei, senti que toda a minha vida passada desaparecera - Estocolmo e a sua Universidade, e depois Bonn: tudo isso me parecia a vida de outra pessoa, como se finalmente tivesse acabado por alcançar a realidade que os nossos doutores em filosofia - sou um deles, sabe? - tanto têm discutido. «Um ano», dizia eu para comigo. «Tenho um ano. Passa-lo-ei aqui e depois poderei morrer.» Aos vinte e cinco anos somos tolos, sentimentais e melodramáticos, mas se o não fossemos talvez tivéssemos menos juízo aos cinqüenta.

 Mas beba, meu amigo. Não preste atenção demasiada à minha tola conversa.

 

 Indicou a garrafa com a mão magra, e o capitão escorropichou o que ficara no copo.

 

- Você não está a beber coisa nenhuma, - disse ele, pegando na garrafa.

 

- Sou de hábitos sóbrios, - sorriu o sueco. - Embriago-me de maneiras que penso serem mais subtis. Seja como for, os efeitos são mais duradouros e os resultados menos deletérios.

 

- Dizem que agora nos Estados Unidos se está a tomar muita cocaína, - disse o capitão.

 

 Neilson riu.

 

- Mas não é muitas vezes que encontro um branco, continuou, e uma vez na vida não será um pouco de whisky que me irá fazer mal.

 

 Deitou um pouco no copo, adicionou alguma soda, e tomou um trago.

 

- E depois descobri porque é que este sítio tinha uma tal beleza extraterrena. Aqui o amor parava por um momento, como uma ave emigrante que encontra um navio no meio do oceano e por um curto instante dobra as asas cansadas. A fragrância de um maravilhoso amor pairava sobre tudo isto como a fragrância das silvas em Maio nos prados da minha terra. Parece-me que os lugares onde os homens amaram ou sofreram conservam para sempre à sua volta um ligeiro aroma de qualquer coisa que não morreu inteiramente. É como se tivessem adquirido um significado espiritual que misteriosamente afeta os outros que por eles passam. Gostaria de saber exprimir-me com clareza. - Sorriu levemente. - Embora creia que mesmo que o fizesse, você não me compreenderia.

 

 Fez uma pausa.

 

- Creio que este sítio era maravilhoso por eu ter sido aqui amado de uma forma maravilhosa. - Encolheu os ombros. - Mas talvez isto seja apenas por ao meu sentido estético ser agradável a feliz conjugação de um amor jovem e de um cenário adequado.

 

 Até mesmo um homem menos imbecil do que o capitão ficaria admirado com as palavras de Neilson. Porque parecia fazer troça daquilo que ele próprio dizia. Era como se falasse movido por uma emoção que o seu cérebro achasse ridícula. Ele próprio dissera que era um sentimentalista, e quando o sentimentalismo anda junto ao cepticismo, as pessoas muitas vezes sofrem os horrores do inferno.

 Calou-se por um momento e contemplou o capitão com um olhar onde havia uma súbita perplexidade.

 

- Sabe, não posso deixar de pensar que creio já o ter visto nalgum lado, - disse ele.

 

- Confesso que não me lembro de si, - respondeu o capitão.

 

- Tenho a curiosa sensação de que a sua cara não me é estranha. Tenho estado a ver se me lembro, mas não consigo situar essa recordação em qualquer lugar ou qualquer época.

 

 O capitão encolheu os ombros maciços.

 

- Já há trinta anos que vim para estas ilhas. Um homem não se pode lembrar de toda a gente que encontrou em trinta anos.

 

 O sueco abanou a cabeça.

 

- Você sabe como a gente às vezes tem a sensação de que um lugar onde nunca se esteve nos e estranhamente familiar. É o que me está a suceder consigo. Talvez eu o tenha conhecido numa existência passada. Talvez, talvez você fosse o chefe de uma galera da Roma antiga e eu um dos escravos aos remos. Há trinta anos que anda por estas regiões?

 

 - Trinta anos certos.

 

- Por acaso terá conhecido um homem chamado Vermelho?

 

 - Vermelho?

 

- Foi esse o único nome por que eu o conheci. Nunca o conheci pessoalmente. E apesar disso parece-me vê-lo mais nitidamente do que a muitos outros homens - os meus irmãos, por exemplo, com os quais passei a minha vida diária durante muitos anos. Vive na minha imaginação com a nitidez dum Paolo Malatesta ou dum Romeu. Mas você se calhar nunca leu Dante ou Shakespeare?

 

 - Confesso que isso nunca li.

 

 Neilson, fumando um charuto, recostou-se na cadeira e olhou negligentemente o anel de fumo que flutuava no ar parado. Depois olhou para o capitão. Havia na sua larga obesidade qualquer coisa de extraordinariamente repelente. Tinha a pletórica satisfação dos muito-gordos. Era um insulto. Aquilo irritou os nervos de Neilson.

 Mas o contraste entre o homem na sua frente e o homem em que estava a pensar era divertido.

 

 - Parece que Vermelho era o homem mais belo que ainda se viu.

 Tenho falado com muita gente que o conheceu nessa época - homens brancos é claro - e todos concordam que a beleza dele, a primeira vez que o víssemos, até nos tirava o fôlego. Chamavam-lhe Vermelho por causa do cabelo cor de fogo. Era ondeado, e ele usava-o comprido. Devia ser dessa maravilhosa cor de que os prérafaelistas tanto gostavam. Não creio que ele tivesse vaidade nisso, era demasiadamente simples para tal; mas ninguém o poderia censurar se a tivesse. Era alto, com mais de um metro e oitenta - na cabana indígena que aqui estava havia uma marca da sua altura: um golpe de faca no tronco central que sustentava o telhado, - e tinha a figura dum deus grego, largo de ombros e estreito de ancas; era como Apolo, com aquelas linhas maciçamente arredondadas que Praxíteles lhe deu, e aquela graciosidade suave e feminina que tem qualquer coisa de perturbante e misterioso. A sua pele era deslumbrantemente branca, leitosa, como cetim; era como a pele duma mulher.

 

- Eu também tinha a pele muito branca quando era garoto, - disse o capitão, com um brilho nos olhos raiados de sangue.

 

 Mas Neilson não lhe prestou atenção. Estava agora a contar a sua história, e as interrupções impacientavam-no.

 

- E o seu rosto era tão belo como o corpo. Tinha grandes olhos azuis, muito escuros, a tal ponto que muita gente dizia serem negros; e, ao contrário da maior parte das pessoas ruivas, tinha negras as sobrancelhas e as longas pestanas. Os seus traços fisionômicos eram perfeitamente regulares e a sua boca como uma ferida escarlate. Tinha vinte anos.

 

 Aqui o sueco parou, com um certo sentimento do dramático. Bebeu um golo de whisky.

 

- Era único. Nunca houve ninguém mais belo. A sua existência explica-se pela mesma razão por que pode numa planta silvestre desabrochar uma flor maravilhosa. Era um feliz acidente da natureza.

«Um dia aportou àquela enseada onde você deve ter desembarcado esta manhã. Era um marinheiro americano, e desertara dum navio de guerra. Convencera algum indígena de bom coração a dar-lhe uma passagem num cutter que por acaso ia partir de Ápia para Safoto, e trouxeram-no a esta enseada numa canoa.

 Não sei porque desertou. Talvez a vida num barco de guerra com a sua disciplina o irritasse, ou talvez estivesse metido nalgum sarilho; ou então talvez fossem os Mares do Sul e estas ilhas românticas que lhe entraram no corpo. De vez em quando elas tentam estranhamente um homem, fazem dele uma mosca numa teia de aranha. Pode ser que houvesse nele uma certa moleza de fibra, e estes montes verdes com o seu ar macio, este mar azul lhe roubassem a força nórdica - tal como Dalila a de Sansão. Seja como for, pretendia esconder-se e pensou que estaria em segurança neste recanto isolado, até que o navio partisse de

 Samoa.

«Havia uma cabana indígena na enseada; e enquanto ele hesitava, pensando para onde devia ir, uma rapariga saiu da cabana e convidou-o a entrar. Vermelho apenas sabia duas ou três palavras da linguagem indígena, e ela a mesma coisa de inglês. Mas compreendeu perfeitamente o que significavam o sorriso e os graciosos gestos, e seguiu-a. Sentou-se numa esteira, e ela ofereceu-lhe fatias de ananás. Nunca conheci Vermelho pessoalmente, mas vi a rapariga três anos depois de ele a ter encontrado; nessa altura tinha ela dezenove anos. Não pode calcular como era maravilhosa. Tinha a graça apaixonada do

 hibiscus e a sua rica coloração. Era bastante alta, delgada, com as delicadas feições da sua raça, e grandes olhos como lagos tranqüilos sob os palmeirais; o cabelo negro e encaracolado, caía-lhe pelas costas; e trazia uma grinalda de flores perfumadas. As mãos eram lindas - tão pequenas, tão maravilhosamente desenhadas, que faziam parar o coração de quem para elas olhava.

 E nessa época ria-se com facilidade. Um sorriso tão delicioso que perturbava. A pele era como um campo de trigo maduro num dia de verão. Meu Deus, como posso eu descrevê-la? Era bela demais para ser real.

 E esses dois jovens - ela com dezesseis anos e ele com vinte - apaixonaram-se à primeira vista. Esse é o verdadeiro amor, não o amor resultante de simpatia, ou de interesses comuns, ou de afinidade intelectual, mas o amor puro e simples. Esse é o amor que Adão sentiu por Eva quando acordou e a viu no paraíso olhando-o com olhos orvalhados. Esse é o amor que atrai os animais uns para os outros, e os deuses. É esse o amor que dá à vida o seu intenso significado. Você nunca ouviu falar naquele sábio e cínico duque francês que dizia que, entre dois amantes, há sempre um que ama e outro que se deixa amar? É uma amarga verdade, à qual quase todos nós temos de nos resignar; mas, de vez em vez, há dois que se amam e ao mesmo tempo se deixam amar. Então podemos imaginar que o sol pára na sua órbita - como parou quando Josué rezou ao Deus de Israel.

«E mesmo agora, depois de todos estes anos, quando penso nesses dois - tão jovens, tão puros, tão simples - e em todo o seu amor, sinto um baque no coração. Sinto o coração rasgar-me, tal como quando em certas noites vejo a lua cheia a refletir-se na lagoa, do alto dum céu limpo de nuvens. Provoca sempre sofrimento a contemplação da beleza perfeita.

«Eram como crianças. Ela era meiga, doce, bondosa. Dele não sei nada, mas gosto de imaginar que, então, ele era em tudo simples e franco. É-me agradável imaginar que a sua alma era tão correta quanto o seu corpo. Mas estou em dizer que ele não tinha mais alma do que os habitantes dos bosques e das florestas que faziam flautas de cana e se banhavam nas torrentes da montanha - quando o mundo ainda era jovem, e se podiam ver pequenos faunos galopando escarranchados no lombo de algum centauro barbudo através das clareiras. A alma é um objeto incômodo, e quando o homem a criou perdeu o Jardim do Éden.

«Ora, quando Vermelho chegou à ilha, esta fora recentemente assolada por uma dessas epidemias que os brancos trouxeram para os Mares do Sul, e a terça parte dos habitantes morrera.

 Parece que a rapariga perdera todos os seus parentes próximos e vivia agora em casa duns primos afastados. Nessa casa viviam duas velhotas, curvadas e enrugadas, duas mulheres mais novas, um homem e um rapaz. Durante uns dias ele viveu lá. Mas talvez se sentisse demasiadamente perto da praia, com a possibilidade de dar de cara com algum branco que poderia revelar o seu esconderijo; talvez os amantes não pudessem suportar que a companhia dos outros os roubasse por instante que fosse ao prazer de estarem sozinhos. E assim uma manhã partiram - os dois sozinhos, - com as poucas coisas que pertenciam à rapariga, e caminharam ao longo dum carreiro relvado, por entre os coqueiros, até que chegaram a este regato. Tiveram de atravessar a ponte que você hoje atravessou, e a rapariga ria alegremente porque ele tinha medo. Ela ajudou-o até chegarem ao fim do primeiro tronco, mas aí ele perdeu a coragem e teve de voltar atrás. Foi obrigado a despir a roupa toda antes de se arriscar, e ela levou-lhe à cabeça.

 Instalaram-se na cabana vazia que aqui estava. Se ela tinha ou não direitos sobre essa cabana (aqui nas ilhas a propriedade das terras é uma questão complicada), ou se o dono dela morrera na epidemia, é coisa que não sei. Mas fosse como fosse ninguém os incomodou, e eles apossaram-se dela. A mobília consistia unicamente nas duas esteiras de palha em que dormiam, no fragmento dum espelho, e em duas ou três tigelas. Isso chega para montar casa nesta maravilhosa terra.

«Diz-se que as pessoas felizes não têm história, e na verdade um amor feliz não a tem. Durante todo o dia não faziam coisa alguma - e apesar disso os dias pareciam-lhes curtos. A rapariga tinha um nome indígena, mas Vermelho chamava-lhe Sally. Num instante ele aprendeu a fácil língua indígena, e costumava jazer horas seguidas na esteira a ouvi-la falar-lhe alegremente. Ele era um tipo calado; talvez o seu espírito fosse preguiçoso. Fumava incessantemente os cigarros que ela lhe fazia com tabaco indígena e folhas de pântano, e observava-a enquanto ela fazia esteiras de palha com os dedos ágeis. Freqüentemente apareciam indígenas, e contavam longas histórias dos velhos tempos em que a ilha era agitada pelas guerras das tribos. Às vezes ia pescar para os recifes e voltava trazendo um cesto cheio de peixes coloridos. Às vezes ia à noite com uma lanterna pescar lagostas. Havia frutos nos arredores da cabana, e Sally assava-os para as suas frugais refeições. Sabia fazer deliciosos pratos de coco; e a árvore de pão que havia perto do regato abastecia-os de pão. Em dia de festa matavam um leitão e assavam-no sobre pedras quentes.

 Banhavam-se no regato; e à noite iam até à lagoa, onde passeavam numa canoa indígena. O mar era azul-escuro, cor de vinho ao pôr do sol, como o da Grécia homérica; mas na lagoa a cor da água tinha infinitas variantes - turquesa, ametista, esmeralda; - e o sol poente transformava-a, durante um curto momento, em ouro líquido. E havia também a cor do coral, castanho, branco, cor de rosa, vermelho, púrpura; e as formas que ele tomava eram maravilhosas. Era como um jardim mágico, de que os velozes peixes fossem borboletas. Era estranhamente irreal.

 Entre os bancos de coral havia lagos com fundo de areia branca onde, numa água espantosamente límpida, era muito agradável tomar banho. Depois, ao crepúsculo, frescos e felizes, regressavam lentamente pelo carreiro de erva macia, caminhando de mãos dadas, enquanto os pássaros enchiam os coqueiros com a sua algazarra. E depois a noite, com este enorme céu salpicado de pontos dourados que parece ser maior do que os céus da Europa, e a macia brisa que atravessava suavemente a cabana aberta, a longa noite também era curta. Ela tinha dezesseis anos, ele mal tinha vinte. A aurora rastejava por entre os pilares de madeira da cabana e vinha contemplar essas encantadoras crianças dormindo nos braços uma da outra. O sol escondia-se atrás das grandes e velhas folhas das palmeiras para os não incomodar, e depois, com malícia brincalhona, dardejava um raio dourado nos seus rostos, como a pata estendida dum gato angorá. Abriam os olhos sonolentos e sorriam, em boas-vindas a um novo dia. As semanas cresceram, meses, e um ano passou. E eles pareciam amar-se tão... hesito em dizer apaixonadamente, porque a paixão tem sempre em si uma sombra de tristeza, uma ponta de amargura ou de angústia;... mas tão completamente, tão simples e naturalmente como nesse primeiro dia do seu encontro, em que compreenderam terem um deus dentro de si.

«Se alguém lhes tivesse perguntado, não tenho dúvida de que responderiam ser impossível que o seu amor morresse. Não sabemos nós que o elemento essencial do amor é a crença na sua eternidade? E contudo talvez houvesse já em Vermelho uma pequena semente, desconhecida dele próprio e não suspeitada pela rapariga, que com o correr do tempo cresceria em enfado. Porque um dia um dos indígenas da enseada disse-lhes que um barco inglês de pesca da baleia estava ancorado a alguma distância da costa.

«- Ah, - disse Vermelho, bem gostava de saber se eles queriam trocar por uns cocos e umas bananas uma libra ou duas de tabaco.

«Os cigarros que Sally lhe fazia com mãos incansáveis eram fortes e bastante agradáveis, mas deixavam-no insatisfeito; ansiou subitamente por tabaco verdadeiro, áspero, amargo, picante. Não fumava uma cachimbada havia muitos meses. Nascia-lhe a água na boca só de pensar nisso. Supor-se-ia que qualquer pressentimento poderia ter levado Sally a procurar dissuadi-lo, mas o amor possuía-a tão completamente que acreditava não haver poder no mundo capaz de o separar dela. Foram aos montes próximos buscar laranjas bravas, ainda verdes, mas doces e sumarentas, de que encheram um grande cesto; colheram frutos das árvores ao redor da cabana, e cocos, e frutos da árvore de pão, e mangas; e transportaram-nas para a enseada. Carregaram com eles a instável canoa; e Vermelho e o rapaz indígena que trouxera a notícia da chegada do navio embarcaram e remaram em

 direção à linha dos recifes.

«Foi essa a última vez que ela o viu.

«No dia seguinte o rapaz indígena regressou sozinho. Vinha banhado em lágrimas. Eis a história que ele contou. Quando, depois de remarem durante muito tempo, alcançaram o navio e Vermelho chamou pelo capitão, um branco olhou por cima da amurada e disse-lhes que subissem a bordo. Levaram a fruta que haviam trazido e empilharam-na no tombadilho. O branco e Vermelho começaram a conversar e pareceram chegar a um acordo. Um homem da tripulação desceu e voltou trazendo tabaco.

 Vermelho imediatamente pegou nalgum e acendeu o cachimbo. O rapaz imitava a volúpia com que ele soprou uma grande nuvem de fumo. Depois disseram-lhe qualquer coisa e ele entrou na cabina.

 Olhando curiosamente pela porta aberta, o rapaz viu-os tirarem para fora uma garrafa e copos. Vermelho bebia e fumava.

 Pareceram perguntar-lhe qualquer coisa, porque ele abanou a cabeça e riu-se. O homem - o primeiro que lhes falara - riu-se também e tornou a encher o copo de Vermelho. Continuaram a conversar e a beber; e a certa altura o rapaz, cansado de observar um espetáculo que para ele não tinha significado algum, deitou-se no tombadilho e adormeceu. Foi acordado por um pontapé; e, levantando-se dum salto, viu que o navio saía lentamente da lagoa. Avistou Vermelho sentado à mesa com a cabeça descansando pesadamente nos braços, num sono profundo. Fez um movimento na sua direção, com a intenção de o acordar, mas uma rude mão agarrou-o por um braço, e um homem, com cara feroz e palavras que ele não compreendeu, apontou-lhe a amurada. Gritou pelo Vermelho, mas sem resultado, nadou até à canoa que andava por ali à deriva e empurrou-a até aos recifes. Aí subiu para ela e, sempre a soluçar, remou em direção à praia.

«O que acontecera era evidente. O barco da pesca da baleia lutava com falta de homens - por deserção ou por doença - e quando Vermelho subira a bordo, o capitão perguntara-lhe se queria engajar. Perante a sua recusa, embriagara-o e raptara-o.

«Sally quase enlouqueceu de dor. Durante três dias gritou e chorou. Os indígenas fizeram o que puderam para a consolar, mas ela não se conformava. Recusou-se a comer. E então, exausta, caiu numa apatia taciturna. Passava longos dias na enseada, olhando a lagoa, na vã esperança de que Vermelho conseguisse de qualquer maneira escapar. Ficava sentada na areia, durante horas e horas, com as lágrimas a correrem-lhe pela cara, e à noite arrastava-se penosamente até à cabana à beira do regato onde fora feliz. Os parentes com quem vivia antes de Vermelho chegar à ilha queriam que ela fosse viver com eles, mas ela não acedeu; estava convencida de que Vermelho voltaria, e queria que ele a encontrasse onde a tinha deixado. Quatro meses mais tarde deu à luz uma criança morta, e a velha que viera ajudá-la no parto ficou com ela na cabana. Toda a alegria se fora da sua vida. Se a sua angústia com o tempo se tornou menos intolerável, foi substituída por uma melancolia permanente. Ninguém imaginaria que nesse povo, cujas emoções, embora violentas, são passageiras, se encontraria uma mulher capaz duma paixão tão duradoura. Nunca perdeu a profunda convicção de que, mais tarde ou mais cedo, Vermelho voltaria. Estava sempre à espera dele; sempre que alguém atravessava esta pontezinha de troncos de coqueiro ela corria a ver quem era. Podia ser que fosse ele, finalmente. Neilson parou de falar e soltou um ligeiro suspiro.

 

- E depois o que foi feito dela? - perguntou o capitão.

 

 Neilson sorriu amargamente.

 

- Oh, três anos depois juntou-se com outro branco.

 

 O capitão soltou uma larga gargalhada cínica.

 

- É geralmente o que lhes acontece, - disse ele.

 

 O sueco dardejou-lhe um olhar de ódio. Não sabia porque é que esse homem grosseiro e obeso lhe causava uma repulsa tão grande. Mas os seus pensamentos tomaram outra direção e o espírito encheu-lhe de recordações do passado. Voltou vinte e cinco anos atrás. Fora quando pela primeira vez viera a esta ilha, cansado das bebedeiras e do jogo e da grosseira sensualidade de Ápia, doente, procurando resignar-se à perda da carreira que lhe enchera a cabeça de pensamentos ambiciosos. Pusera de parte resolutamente todos os desejos de criar um grande nome e tratara de se contentar com os escassos meses de vida hesitante que eram tudo com que podia contar. Morava em casa de um comerciante mestiço que tinha uma loja a poucas milhas, numa pequena aldeia indígena, na costa; e um dia, vagueando sem objetivo pelos carreiros relvados por entre os coqueiros, deparara-lhe a cabana em que Sally vivia. A beleza do sítio enchera-o de um bem estar tão grande que quase era doloroso; e depois vira Sally.

 Era a mais bela criatura que jamais vira e a tristeza naqueles olhos escuros e magníficos afetou-o estranhamente. Os kanakas eram uma raça de feições simpáticas, e a beleza não era rara entre eles, mas era uma beleza de animais bem conformados. Era vazia. Mas aqueles olhos trágicos eram negros de mistério, e neles pressentia-se a amarga complexidade da obscura alma humana. O comerciante contou-lhe a história dela, que o comoveu.

«E acha que ele voltará?», perguntara-lhe Neilson.

«Não. O contrato de fretamento do navio durará ainda alguns anos, e por essa altura já ele se terá esquecido dela. Calculo como deve ter ficado furioso quando acordou e descobriu que fora raptado, e não me admirava nada que tivesse querido jogar à pancada. Mas teve de sorrir amarelo e agüentar, e aposto que um mês depois já achava que nada melhor lhe poderia ter sucedido do que sair daquela ilha».

Mas Neilson não conseguiu esquecer a história. Talvez por estar doente e fraco, a radiosa saúde de Vermelho não lhe largava a imaginação. Homem feio, de aparência insignificante, apreciava grandemente a beleza nos outros. Nunca amara apaixonadamente e, com certeza, nunca fora apaixonadamente amado. A atração mútua dessas jovens criaturas dava-lhe um singular prazer. Tinha a inefável beleza do Absoluto. Foi outra vez à pequena cabana junto do regato. Tinha grande facilidade em aprender línguas e um cérebro ágil, habituado a trabalhar, e já dedicara muito tempo ao estudo do idioma local. Por força dos velhos hábitos estava a reunir material para um trabalho sobre o idioma samoano. A velhota que vivia na cabana com Sally convidou-o a entrar e a sentar-se.

 Ofereceu-lhe kava para beber e cigarros. Ela estava contente por ter alguém com quem conversar, e enquanto ela falava ele olhava Sally. Fazia-lhe lembrar a Psique do Museu de Nápoles. Aquelas feições tinham a mesma nítida pureza de linhas; e, embora tivesse tido um filho, conservava um aspecto virginal.

 Só ao fim de duas ou três visitas conseguiu fazê-la falar. E mesmo isso foi para lhe perguntar se não vira em Ápia um homem chamado Vermelho. Tinham passado dois anos desde o seu desaparecimento, mas era evidente que ainda pensava nele incessantemente.

 Neilson não levou muito tempo a perceber que estava apaixonado por ela. Era apenas com intervenção da sua força de vontade que conseguia não ir todos os dias ao regato; quando não estava ao pé de Sally, estavam-no os seus pensamentos. A princípio, considerando-se condenado, apenas desejava vê-la, e ocasionalmente ouvi-la falar; e este amor dava-lhe uma felicidade maravilhosa. A sua pureza exaltava-o. Nada queria de Sally a não ser a oportunidade de tecer à volta da sua graciosa pessoa uma rede de belas fantasias. Mas o ar puro, a temperatura moderada, e repouso, a comida simples, começaram a ter um efeito inesperado sobre a sua saúde. A temperatura já não atingia tão alarmantes alturas de noite, tossia menos freqüentemente e começou a criar peso; passaram-se seis meses sem uma hemoptise; e subitamente entreviu a possibilidade de viver. Tinha estudado a sua doença cuidadosamente, e começou a ter esperança de, com grandes cuidados, poder deter-lhe a marcha. Regozijou-se ao olhar outra vez o futuro. Fez planos. Era evidente que não voltaria nunca a ter uma vida ativa, mas podia viver nas ilhas; e o pequeno rendimento que tinha, magro em qualquer outro sítio, seria suficiente para viver bem aí. Poderia cultivar coqueiros; seria uma ocupação; e mandaria vir os seus livros e um piano. Mas o seu espírito viu imediatamente que, debaixo de todos estes planos, estava a tentar esconder de si próprio o desejo que o obcecava.

 Queria Sally. Amava não só a sua beleza, mas a alma sombria que adivinhava por trás daqueles olhos sofredores. Embriagá-la com a sua paixão. Conseguiria por fim fazê-la esquecer. E num êxtase de rendição, imaginava-se a compartilhar com ela a felicidade que imaginara nunca mais ter e que tão miraculosamente alcançara.

 Pediu-lhe que fosse viver com ele. Ela recusou. Já esperava isso e não desanimou, porque tinha a certeza de que, mais tarde ou mais cedo, ela cederia. O amor dele era irresistível. Contou à velhota os seus desejos, e descobriu com certa surpresa que ela e os vizinhos, sabedores há muito tempo, aconselhavam fortemente Sally a aceitar a proposta. Afinal de contas, todo o indígena gosta de viver com um branco; e Neilson era um branco rico, comparado com o que era habitual na ilha. O comerciante em casa de quem Neilson vivia foi falar com Sally e disse-lhe que não fosse idiota; uma oportunidade dessas não tornaria a aparecer-lhe, e depois de tanto tempo ela certamente não ia acreditar que Vermelho voltasse. A resistência da rapariga apenas aumentava o desejo de Neilson e o que fora um amor puríssimo em breve se transformou numa paixão desvairada. Estava decidido a servir-se de todos os meios para conseguir o que queria. Não dava tréguas a Sally. Por fim, vencida pela persistência dele e pela persuasão – ora implorativa, ora zangada - de toda a gente à sua volta, ela consentiu. Mas quando no dia seguinte, exultante, ele a foi visitar, viu que durante a noite ela queimara completamente a cabana onde ela e Vermelho tinham vivido. A velhota correu ao seu encontro, cheia de queixas zangadas contra Sally; mas ele afastou-a; isso não tinha importância; construiriam um bungalow no sítio onde estivera a cabana. Uma casa européia seria realmente mais conveniente se queria mandar vir um piano e grande número de livros.

 E assim se construiu a pequena casa de madeira onde vivia há muitos anos; e Sally tornou-se mulher dele. Mas depois das primeiras (e poucas) semanas de encantamento durante as quais ele se satisfizera com o que ela lhe dava, sentira-se pouco feliz. Ela cedera por cansaço, mas só cedera naquilo que para ela tinha pouco valor. A alma que ele obscuramente entrevira escapava-lhe.

 Sabia que ela o não amava. Ainda amava Vermelho, e continuava à espera dele. Neilson sabia que, não obstante o seu amor, a sua ternura, a sua simpatia, a sua generosidade, ela o deixaria sem um momento de hesitação a um sinal de Vermelho. E que nem pensaria na sua dor. A angústia apossou-se dele; tentou forçar aquela impenetrável outra parte de Sally que sombriamente lhe resistia. O amor tornou-se amargo. Tentou comovê-la com bondade, mas o coração dela continuou tão duro como antes; fingiu indiferença, mas Sally nem deu por tal. Às vezes perdia a paciência e insultava-a, ela chorava silenciosamente. Muitas vezes pensava que se enganava a seu respeito - aquela alma não passava de simples invenção dele - e que não podia entrar no santuário do seu coração porque tal santuário não existia. O amor tornou-lhe uma prisão da qual ansiava escapar; mas nem sequer tinha força de abrir a porta - bastaria fazer isso - e sair para o ar livre. Era uma tortura. Por fim cansou-se e perdeu as esperanças.

 O fogo apagou-se; e quando via o olhar dela pousar por um instante na delgada ponte, já não era a raiva que lhe enchia o peito, mas a impaciência. E agora viviam há muitos anos ligados pelos laços de hábito e da conveniência, e era com um sorriso que pensava na sua antiga paixão. Ela estava uma velha, porque as mulheres nas ilhas envelhecem rapidamente; e, embora já lhe não tivesse amor, tolerava-a. Deixava-o em paz. A ele bastavam-lhe o piano e os livros.

 Aqueles pensamentos provocaram-lhe o desejo de falar.

 

- Quando agora olho para trás e reflito nesse breve e ardente amor de Vermelho e Sally, penso que talvez devam agradecer-lhe ao implacável destino que os separou quando o seu amor parecia estar no auge. Sofreram, mas tiveram um sofrimento belo. Foram poupados à verdadeira tragédia do amor.

 

- Não percebo muito bem o que quer dizer - disse o capitão.

 

- A tragédia do amor não é a morte ou a separação. Quanto tempo acha você que demoraria um deles a ficar farto do outro? Oh, é horrivelmente amargo olhar para uma mulher que amamos com todo o coração, com toda a alma, - tanto, que sentíamos não nos podermos separar nunca dela, - e compreender que se nunca mais a víssemos não teríamos desgosto nenhum. A tragédia do amor é a indiferença.

 

 Mas enquanto falava sucedeu-lhe uma coisa extraordinária.

 Conquanto se tivesse dirigido ao capitão, não falava para ele; pusera os pensamentos em palavras para si próprio; e, com os olhos fixos no homem em sua frente, não o vira. Mas, de repente, uma imagem apresentou-se aos seus olhos, não a do homem que via, mas dum outro homem. Era como se estivesse a olhar para um daqueles espelhos curvos, que alteram as figuras, fazendo-as extraordinariamente altas ou ultrajosamente atarracadas. Mas aqui sucedia precisamente o contrário; e, no homem gordo e feio, entreviu o vago aspecto dum rapaz. Examinou-o, com um olhar rápido e perscrutador. Porque o teria trazido a este sítio uma viagem de acaso? Um súbito baque no coração fê-lo ficar com a respiração suspensa. Uma suspeita absurda apoderou-se dele. O que lhe ocorrera era impossível - e contudo podia ser verdadeiro.

 

- Como é que você se chama? - perguntou brutamente.

 

 O rosto do capitão encheu-se de pequeninas rugas e ele soltou uma gargalhada sabida.

 

- Já há tanto tempo que não ouço o meu nome, que quase me esqueci dele. Mas há trinta anos que sou conhecido aqui nas ilhas por Vermelho.

 

 O seu corpo balofo tremia num riso baixo, quase silencioso. Era um espetáculo obsceno. Neilson estremeceu. Vermelho estava divertidíssimo, e lágrimas escorriam-lhe dos olhos raiados de

 sangue pela cara abaixo.

 Neilson ficou suspenso - porque nesse momento uma mulher entrou na sala. Era uma mulher indígena de aspecto um tanto impotente, forte sem ser corpulenta, escura, porque os indígenas escurecem com a idade, de cabelo grisalho. Trazia vestida uma bata preta, curta e larga - usada pelas indígenas dos Mar do Sul, que deixava adivinhar, por baixo do pano fino, os seios pesados.

 Tinha chegado o momento.

 Fez uma observação a Neilson a respeito de qualquer assunto doméstico, e ele respondeu. Perguntou a si mesmo se a voz lhe soaria tão pouco natural como a ele próprio parecia. Ela deitou um olhar indiferente ao homem sentado ao pé da janela, e saiu da sala. O momento tinha chegado - e passado.

 Neilson não pôde falar por instantes. Estava estranhamente

 abalado. Depois:

 

- Teria imenso prazer em que ficasse para jantar comigo. Terá é de se sujeitar ao que houver.

 

- Creio que não posso, - disse Vermelho. - Tenho de ir à procura desse tipo Gray. Entrego-lhe a mercadoria e depois vou-me embora. Quero estar amanhã em Ápia.

 

 - Vou mandar-lhe um garoto para lhe ensinar o caminho.

 

- Ótimo.

 

 Vermelho ergueu-se com custo da cadeira, enquanto o sueco chamava um dos rapazes que trabalhava na plantação. Disse-lhe para onde o capitão queria ir, e o rapaz começou atravessar a ponte. Vermelho preparou-se para o seguir.

 

- Não caia, - disse o sueco.

 

 Neilson viu-o fazer a travessia; e, já o outro desaparecera por entre os coqueiros, ainda olhava. Depois deixou-se cair pesadamente na cadeira. Era então esse o homem que o impedira de ser feliz? Era esse o homem que Sally amara durante todos esses anos e por quem esperara tão desesperadamente? Era uma coisa grotesca. Apoderou-se dele uma fúria repentina; apetecia-lhe levantar-se e partir tudo à sua volta. Fora ludibriado. Eles tinham-se visto um ao outro, finalmente, e não se tinham reconhecido.

 Começou a rir, sem alegria; o riso aumentou-lhe até se tornar histérico. Os deuses haviam-lhe pregado uma partida cruel. E agora estava velho.

 Até Sally entrou para lhe dizer que o jantar estava pronto. Sentou-se em frente dela e tentou comer. Perguntava-se o que diria se lhe contasse que o homem gordo e velho sentado na cadeira era o amante de quem se recordava ainda com o apaixonado abandono da sua juventude. Alguns anos atrás, quando a odiava por o tornar tão infeliz, teria sentido prazer em fazê-lo. Nessa altura queria feri-la como ela o feria, porque o seu ódio apenas era amor. Mas agora tanto lhe fazia. Encolheu os ombros, com indiferença.

 

 - Que queria aquele homem? - perguntou ela.

 

 Não lhe respondeu logo. Ela também estava velha, uma indígena velha e gorda. Ele pensava: como pudera tê-la amado tão loucamente? Espalhara aos seus pés todos os tesouros da sua alma, e ela não lhes ligara nenhuma. Desperdício – que desperdício! E agora, quando a olhava, apenas sentia desprezo. A paciência acabara-lhe. Respondeu à sua pergunta:

 

- É o capitão de uma escuna. Veio de Ápia.

 

 - Sim?

 

- Trouxe-me notícias de casa. O meu irmão mais velho está muito doente e tenho de lá ir.

 

 - Demoras-te muito?

 

 Ele encolheu os ombros. 

 

William Somerset Maugham

 

Carlos Cunha  Arte & Produção Visual