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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CAMINHO TRAÇADO / Carlos Cunha
CAMINHO TRAÇADO / Carlos Cunha

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CAMINHO TRAÇADO

 

 

Ainda não tinha completado os seus onze anos e ele já havia terminado o curso primário.
Criança cordata, aluno dedicado e esforçado, era muito querido pelas professoras e pelas visinhas de sua mãe, Dona Anita.
Ela ficara viúva cedo. Mãe prestimosa e mulher caseira, assim se mantiveram.
Para ganhar o seu sustento e o do filho, de seus cadernos e seus lápis, ela passava horas costurando em uma máquina SINGER, cansando as pernas e desenvolvendo nelas varizes com o esforço de pedalar para fazê-la costurar.
Quando não estava costurando estava sempre a limpar, lavar, encerar e a tirar o pó da casa.
E sempre sobrava um tempo para se dedicar a Deus.
Todo dia ia a primeira missa, as seis da manhã. Quando ela terminava e os fiéis iam para casa, Dona Anita era a única que ficava na igreja.
Ajudava o padre Eustáquio a dobrar as suas vestes sacerdotais, varria a igreja toda arrastando os pesados de madeira, limpava o pó dos altares e trocava as flores dos santos antes de ir para a rotina de sua casa e de sua costura.
Quando anoitecia, ela depois de dar o jantar para o filho e coloca-lo para dormir, com um rosário nas mãos se ajoelhava em frente ao oratório que tinha na sala e rezava.
Pedia a Deus sempre as mesmas coisas. Que não faltasse o alimento em sua casa, saúde e forças para criar o seu menino, pelo bom padre Eustáquio e pelo descanso da alma do seu falecido marido.
Nunca deixava de pedir pelo maior desejo de sua vida, que seu filho crescesse e se fizesse padre.


Ele se fez moço, concluiu o curso ginasial e as orações de sua mãe foram atendidas.
Com a ajuda do bom padre Eustáquio, ele foi para o seminário onde estudou. Passou lá quatro anos de sua vida, mas não se fez padre.
Aprimorou o seu saber, aprendeu latim e traduzia o francês muito bem. Aprendeu a gostar de ler os clássicos e se apaixonou por Homero, Vergílio, Garret e Herculano.
Só que não havia nascido para a batina. Sentia desejos carnais sempre que via uma mulher bonita.
Logo que sua mãe morreu, antes que lhe fosse aberta à tonsura, ele resolveu deixar o seminário.
A forte educação que lá recebera o ajudou a se reajustar e a se encontrar na vida. Prestou concurso público e se tornou funcionário de um departamento. Conheceu uma moça bonita com a qual casou, montou casa e teve uma linda filha que tinha os olhos, o sorriso e os cabelos negros iguais ao da mãe.
Os anos passaram e ele não tinha o que reclamar da vida.
Como tinha sido a sua falecida mãe ele também era uma pessoa caseira, dedicada à família e que com muito pouco se sentia feliz.
Trabalhava com afinco e era estimado pelos amigos. Passava horas em casa com a filha que adorava e com a mulher que muito amava.
Mas houve um dia em que tudo se tornou negro para ele.
Descobriu que sua amada esposa lhe era infiel.
Enquanto ele passava horas lendo, versejando e atirando ao papel alguns ritmos de sentimentos, sua mulher saia para passear ou fazer compras. Ela se encontrava com um amante e o traia se entregando a outro homem.
Lágrimas surgiram em seus olhos, sentiu-se aviltado e humilhado. Amava ardentemente aquela mulher vil que era a mãe de sua filha.
Chorou e pela primeira vez na vida tomou uma cachaça. O seu caminho estava traçado.


As pessoas que formavam a assistência daquela missa eram todas iguais. Todas eram moças e crianças que tinham o mesmo rosto, o mesmo sorriso e todas tinham cabelos negros. Elas sorriam para padre Eustáquio que rezava a missa, em uma igreja que ficava no centro de uma nuvem, e era nela ajudado por sua mãe.
Atrás do altar, na grande cruz de madeira no lugar do cristo crucificado, era ele que estava preso na cruz e de seus olhos escorriam duas lágrimas.


Ele abriu os olhos e as imagens se esvaeceram. Sentiu dores nas juntas e por todo o corpo, pois tinha passado a noite estendido em um duro banco de madeira de uma praça.
A muito tinha deixado a sua casa e saído à procura do esquecimento.
O pesadelo que tivera o fizera lembrar-se de seu passado há muito escondido pela bebida.
Chorou naquela manhã, chorou por ter pena de si próprio.
Pegou a sacola de lona sebenta que tinha lhe servido de travesseiro, e onde estava tudo o que ele tinha na vida, dela tirou uma garrafa de cachaça e tomou um grande trago, que foi o seu café da manhã.
Com as costas da mão ele enxugou as lágrimas e se dirigiu ao chafariz, no centro da praça. Nele lavou o rosto e com o dedo esfregou os dentes e as gengivas.
Voltou até o banco, que lhe servira de cama naquela noite, e pegou a sua sacola sebenta e remendada.
Com um andar cambaleante e arrastado, em seus trajes encardido e rasgado, ele saiu em direção ao posto de saúde pública. Precisava tratar da ferida que apodrecia a sua perna.

 

Carlos CunhaAutoria & Produção Visual