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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CAPITOA / Claude Ferrère
A CAPITOA / Claude Ferrère

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A CAPITOA

 

A meu mestre Pierre Louys.

 

Relatório do senhor Jacques-Constant d’Erlob, capitão de nau de guerra de quinta classe, comandante da nau Ceres, Sua Majestade, – ao senhor rnarquês Desherbiers, de l´Estenduère, Comandante da Esquadra, no porto de Quiberon.

 

Senhor marquês:

 

De acordo com suas ordens, tenho a honra. de enviar-lhe o presente relatório, no intuito de prestar-lhe contas da missão que o senhor se dignou de me confiar, e da qual me desincumbi com felicidade para o serviço do rei, a partir de terça-feira, 12 de abril, dia em que recebi do senhor, por uma nota, liberdade de manobras para seguir meu destino secreto, até esta sexta-feira, 6 de maio, dia em que me encontro de regresso ao vosso pavilhão, tendo cumprido minha tarefa, com a ajuda de Deus.

 

Senhor marquês, tendo aparelhado a “Ceres” na data indicada acima, e tomado rumo S. S. 0., conforme o rumo que o senhor me havia marcado, corri primeiro cerca de cento e vinte milhas nessa direção, até o dia seguinte pelo meio-dia, com uma fresca brisa do norte. A “Ceres” conduziu-se, a essa velocidade de alto mar, tão bem quanto se podia esperar de uma fragata de escantilhão medíocre, provida apenas de quatorze bocas de fogo, pois correu sete a oito nós por hora, sem fadiga. A limpeza da quilha, que o senhor me permitira realizar recentemente, libertara bastante nossas obras vivas das algas, sargaços, conchas e outros parasitas que antigamente prejudicavam a marcha da fragata. Por isso desde logo pude prever um resultado venturoso para as nossas armas.

 

Obedecendo, então, às suas instruções verbais, rompi ao meio dia de quarta-feira, 13 de abril, o sinete da sobrecarta que o senhor se dignara de me confiar. Como sabe, nela encontrei a ordem, com todos os requisitos, referendada pelo sr. Almirante de França, conde de Tolosa, para perseguir por toda parte e exterminar determinado navio pirata muitas vezes aprestado como bergantim, arvorando quando queria o pavilhão negro com caveiras brancas, e sucessivamente chamado, conforme o lugar, a época e a oportunidade: Corvo, Pavão, Aleto ou Terçó. Esse bergantim de múltiplas denominações incorrera repetidas vezes na cólera do rei, por deter, saquear, incendiar e afundai numerosos navios mercantes franceses, que seus documentos em boa e devida forma não conseguiam proteger contra o furor assassino de flibusteiros sem fé nem lei. Por isso, Sua Majestade, disposta a restaurar sem detença a segurança necessária em todos os mares batidos por seu pavilhão, ordenava e dispunha a todos os seus capitães que atacassem e capturassem, onde quer que o encontrassem, o referido bergantim. 0 senhor mesmo, senhor marquês, incumbia-me particularmente da execução imediata das ordens e disposições de Sua Majestade.

 

Estavam anexadas à sobrecarta lacrada muitas indicações de seu punho. Delas depreendia-se a probabilidade de o pirata estar na ocasião infestando a costa ocidental da Irlanda, onde diversos crimes os tinham infelizmente assinalado. Encontrando-me eu a 44 graus e 20 minutos de latitude norte e 9 graus e 40 minutos de longitude oeste, isto é, muito ao sul e a leste do luar indicado, apressei-me em me dirigir para 0. N. O., a fim de ganhar em latitude. É durante todo o dia 13, bem como a 14, 15, 16 e 17, demos bordadas para alcançar a costa irlandesa, que foi assinalada pelos vigias, na manhã de 18, a 52 graus e 10 minutos de L. Norte e 13 graus e 15minutos de G. Oeste. A “Ceres”, durante toda essa navegação à bolina, deu provas de possuir qualidades apreciáveis.

 

Na tarde desse dia 18 de abril, ancorei com oito braças de água, fundo de areia e cascalho, à entrada de uma baía muito desabrigada, não longe de uma aldeia que as minhas cartas denominaram Clifden. Completei minha provisão d’água e entrei em relações com os habitantes do lugar, que me acolheram muito bem. 0 pirata havia sido, na semana anterior, avistado ao largo do litoral. Tinha mesmo, por várias vezes, levado a audácia a ponto de ancorar à distância de um tiro de mosquete e sem temer nenhuma represália, desembarcado e exigido contribuição da aldeia. Duas fragatas de Sua Majestade Britânica tinham, posteriormente, esquadrinhado em vão todos os recantos da costa sem descobrir o menor casco suspeito. Haviam então velejado juntos para alcançar as Hébridas, persuadidas de que o bergantim perseguido se refugiara aí e, sem a menor dúvida, encontrara ajuda e cumplicidade por parte dos pescadores nativos daquelas ilhas, que são criaturas selvagens por natureza e recolhedores de despojos de naufrágios por verdadeira profissão, porque seu principal meio de subsistência provém menos dos peixes que pescam que dos destroços que eles saqueiam após terem provocado, com luzes mórbidas e pérfidas, o naufrágio de navios sem rumo. Julguei, todavia, pouco provável fossem os piratas tão estúpidos que escolhessem como centro de operações um estuário fora de todas as rotas marítimas, e continuei certo de que me encontrava onde era necessário para satisfazer sem detença a vontade do rei.

 

Foi então que me acudiu a astúcia de guerra que nos valeu o êxito final. Depois de interrogar demoradamente os habitantes de Clifden sobre o rumo das fragatas inglesas, e tendo assim convencido a população do meu intento de seguir a estratégia das fragatas, completei minhas provisões de boca, meus víveres, minha água e, ostensivamente, orientei-me para o norte, como que tencionando contornar a Irlanda e alcançar as Hébridas. Mas a cerca de vinte e cinco milhas além da baía de Clifden abre-se a baía de Clew, vasta e toda semeada de escolhos e de bancos que a tornam o flagelo dos navegantes e até dos simples pescadores e marinheiros. Foi aí que me pus em capa, certo de que ninguém desconfiaria de a “Ceres” ter-se emboscado naquele lugar temível.

 

Ancorei a fragata, após algumas sondagens prudentes, na entrada do porto, atrás de uma ilha deserta e bastante alta, assinalada em minhas cartas como ilha Clara, a qual devia servir-me simultaneamente de tapagem e abrigo. Depois disse, esperei, persuadido de que em pouco minha paciência seria recompensada por notícias favoráveis.

 

Foi o que não demorou muito. Por um benefício único dos fatos, aconteceu que eu adivinhara mais exatamente do que julgava; e a felicidade constante que favorece fielmente as armas do rei fez com que a baía de Clew servisse justamente naquele caso de antro para os piratas que aí haviam descoberto um canal tortuoso mas praticável, justamente em certas horas de refluxo. Eu ancorara junto à ilha Clara na tarde de vinte e quatro de abril, e na manhã de vinte e seis, na hora de nossa limpeza de bordo, o ninho de corvo assinalou uma vela que surgia bem no meio dos recifes da baía interior. Verifiquei imediatamente a exatidão do fato e reconheci as enxárcias de um bergantim igual em todos os pontos àquele que me fora ordenado capturar. Tomei imediatamente minhas medidas. Mas, antes de a “Ceres” ter-se podido aparelhar, o pirata, levado pela corrente de refluxo que uma forte brisa de oeste aumentava, colocou-se fora de nosso alcance e distanciou-se. Fora-me impossível cochar os cabos pela ponta, por causa do risco de ser levado contra os espigões da ilha. Precisei ancorar pela popa e virar sobre ela. De maneira que o bergantim ganhou sobre nós três a quatro milhas antes de estarmos em condições de persegui-lo.

 

Mas, na continuação, um salto do vento favoreceu-nos muito, porque a brisa passou de leste para sudoeste e soprou fortemente, A “Ceres”, de tonelagem superior à do adversário, arfou menos do que ele, jogou menos e começou a recuperar as milhas perdidas. Em breve pude ler com a lente de meu óculos de alcance o nome do bergantim escrito em letras vermelhas sobre o costado preto. Li: “Corvo”… e minhas últimas dúvidas desfizeram-se.

 

Pelas duas horas da tarde chegávamos ao alcance e desviei-me do rumo para o tiro de advertência, com que reforcei, como é costume, o pavilhão real arvorado na caixa do mastro. Não obtendo resposta do pirata, disparei o tiro de chamada à fala. Dessa vez a escuna teve a impertinência de nos responder com dois canhões de recuo que ela descobriu, e cujas balas furaram nosso velame em muitos pontos.

 

Inquieto com uma possível avaria que teria, se ouso dizer, cortado nossas asas e salvado o pássaro negro das garras de nosso falcão, virei completamente de lado e mandei abrir fogo de toda a minha bordada para destruir a mastreação. 0 inimigo continuou a fugir. Mas, após algumas salvas, seu mastro grande foi despedaçado por uma bala. Eu esperava ver aquela canalha acuada descer seus botes para tentar à força de remos uma evasão duvidosa, uma vez que outra espera31ça não lhe restava. Ora, tal não se verificou e os flibusteiros deram mostra de uma coragem que eu não esperava de uma pessoa sem honra: puseram-se à capa, descobriram as últimas bocas de fogo de sua bordada, embora muito inferior em tudo à nossa, e responderam a nosso fogo, não sem primeiro terem contraposto às nossas flores de lis as suas horripilantes caveiras que eles pregaram na popa, como nem sempre tenho visto fazer, mesmo os mais valentes servidores do rei!

 

Segue-se uma batalha bastante encarniçada, no decorrer da qual tenho o pesar de lhe participar haverem sido sensíveis nossas perdas, que se elevaram a oito mortos, dos quais um oficial e treze feridos, entre eles o quartel-mestre de artilharia. A bravura dos piratas foi estrema e furiosa. Porque, sem mastreação, afundando, com o convés coberto de sangue, não cessaram de combater e de aumentar nossas perdas: muito além do que o bom senso aconselharia a um leal adversário. Desesperando de liquidá-los antes de anoitecer, e disposto, custasse o que custasse, a concluir as ordens do rei, manobrei para a abordagem. Meu imediato, sr. de Soria, teve essa honra. A divisão, reforçada, saltou para o convés do bergantim e acutilou os últimos flibusteiros, nenhum dos quais se rendeu. Foi então que ocorreu um incidente pelo menos singular, cuja descrição, sem dúvida, fará com que o senhor desculpe o tamanho do presente relatório.

 

Os últimos de nossos inimigos haviam-se feito todos matar diante do seu castelo de popa, cuja entrada eles pareciam Ter querido defender até o último alento. Jazendo todos no chão, o 6P, sr. Soria, julgou interessante arrombar a porta e prudente entrar de pistola em punho, porque era provável que esse castelo de popa contivesse alguma coisa ou alguém pouco católico. Muitos de nossos homens entraram atrás do imediato. E a surpresa de todos foi grande: o lugar que servia de quarto para o capitão, como provavam uma quantidade de livros, mapas e instrumentos, estava ocupado por uma bela e jovem senhora ricamente vestida, adornada, pintada, empoada, que se conservava sentada numa poltrona de brocado, e olhava os vencedores entrarem sem nenhum sinal exterior, quer de cólera, quer de satisfação.

 

Sem saber se estava na presença de uma prisioneira ou duma cúmplice dos piratas, o sr. de Soria intimou imediatamente a senhora a se explicar. A única e sangrenta resposta que ele teve foi um tiro que o fez cair, gravemente ferido. Notaram então, um pouco tarde, que a dama tinha em suas pequenas e alvas mãos duas pistolas que sabia utilizar perfeitamente. Duas outras estavam a seu lado, pelo que, quatro homens ficaram fora de combate antes que fosse possível subjugar aquela fúria de aparência tão graciosa. Nossos marinheiros trouxeram-na à minha presença amarrada como era preciso. Ela não teve a menor dificuldade em se glorificar de ter sido, não prisioneira ou cúmplice, mas pirata ela própria e, o que é pior, chefe dos piratas e o próprio capitão… ou a própria capitoa… daquele Corvo que se tornava, a seu bel-prazer, Pavão, Aleto, Alfaneque, ou Terçó. Provou-me, aliás,
complacente e eruditamente, que era de fato o que se gabava de ser, isto é, um marinheiro notável, muito a par das teorias modernas, aplicadas, seja à navegação em alto mar, seja à manobra, seja à astronomia náutica.

 

Informado, mandei enforcar sem mais cerimônia aquela capitoa, ou capitão fêmea, incontestavelmente culpada de mais crimes do que se exige para o enforcamento de pelo menos doze ‘bandidos do outro sexo. A única objeção que a condenada apresentou foi esta: pediu-me, com a maior cortesia deste mundo, que içasse com ela, e na mesma grande verga da “Ceres”, dois de seus antigos companheiros insubordinados que ela me nomeou, um dos quais foi encontrado morto e o outro muito ferido. Julguei poder anuir a esse derradeiro e último desejo de uma criatura que muitas vezes devia ter expressado outros menos aceitáveis, aos quais numerosos homens tinham sem dúvida se sentido muito honrados em se submeter. Prontas as três cordas e passadas as três gravatas nos três pescoços, chamei nosso capelão que veio, misericordioso como de costume, de crucifixo em punho. A mulher pirata beijou de bom grado a santa imagem; mas exigiu depois a mercê de beijar da mesma forma a boca de seus dois companheiros de patíbulo, que ela afirmou estarem mais desejosos do que Nosso Senhor podia estar, de obterem dela esta volúpia suprema e superficial.

 

Interrompi essa tagarelice sacrílega da maneira que o senhor imagina.

 

Depois do que, tendo sido também enforcados os outros piratas feridos ou mortos e incendiado o bergantim, mandei aparelhar e segui caminho para reunir-me a seu pavilhão.

 

Tenho a honra de ser, com o mais profundo respeito, senhor marquês, seu muito humilde, muito obediente e muito fiel servidor.

 

Assinado : Jacques-Constant d’Erlot

 Comandante da “Ceres” a bordo da “Ceres”, navio de Sua Majestade, no porto de Quiberon, a 6 de maio de 1.689

 

                                                                                            Claude Ferrère

 

Carlos Cunha    Arte & Produção Visual