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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Sonata a Kreutzer / Leon Tolstoi
Sonata a Kreutzer / Leon Tolstoi

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Sonata a Kreutzer

 

I

 

Estávamos no princípio da Primavera. Havia dois longos dias, e uma não menos longa noite que viajávamos de comboio.

Em todas as estações, passageiros entravam ou saíam do nosso compartimento. Por fim ficaram só três viajantes: uma senhora de meia-idade, feições envelhecidas e feia, de cigarro na boca, gorro na cabeça, e um casacão de corte masculino; um amigo alegre que aparentava quarenta anos, com bagagens novas e elegantes; e, afastado de todos, um homem baixo, de movimentos nervosos; não era velho e os cabelos embranquecidos antes de tempo, ainda se conservavam ondulados. Tinha uns olhos brilhantes e de extrema mobilidade. Vestia um casaco coçado, com gola de cordeiro e com a marca de um bom alfaiate; na cabeça, gorro alto da mesma pele. Sob o casaco, quando o desabotoava, via-se colete comprido e blusa russa bordada.

Tinha ainda outra particularidade. De vez em quando, soltava sons estranhos que se assemelhavam a um soluço ou a um riso abafado.

Durante toda a viagem não dirigiu a palavra a qualquer dos passageiros. Lia, fumava, ou olhava pela janela; bebia chá, comia pão com manteiga que tirava de um saco velho de couro.

Se lhe dirigiam a palavra, as respostas eram breves e secas e o seu olhar ia perder-se na paisagem fugidia. Notei, contudo, que a solidão lhe pesava. Tentei, por várias vezes, falar-lhe.

Parecia adivinhar o meu pensamento, e quando os nossos olhares se encontravam — o que era frequente, pois ocupávamos lugares fronteiros — desviava o olhar e enfronhava-se na leitura. Ao cair da noite o comboio parou numa estação importante. O senhor de cabelos brancos desceu para ir buscar água a ferver e fazer chá novo.

O homem das malas novas e elegantes — um advogado — desceu com a sua companheira para ir ao bufete tomar uma chávena de chá.

Novos passageiros subiram, um velho alto com a barba feita de fresco e a fronte sulcada de rugas, um negociante sem dúvida — envolto numa pelica de lontra, a cabeça coberta por um boné de grande pala. Sentou-se no lugar em frente da companheira do advogado e entabulou imediatamente conversa com um rapaz novo, tipo de caixeiro-viajante, que entrara na mesma carruagem e na mesma estação.

Eu estava perto deles e com o comboio parado pude ouvir alguns trechos da conversa... Falaram da viagem, do comércio, de uma pessoa que ambos conheciam e, por último, de Nijni-Novgorod.

O caixeiro quis contar o casamento de um negociante conhecido de ambos, mas o velho interrompeu-o para descrever as pândegas em que outrora tomara parte em Kounavino. Evocava essas recordações com certo desvanecimento, persuadido de que essas histórias em nada prejudicavam nem o seu brio nem a sua dignidade. Orgulhoso dessas façanhas contava, como um dia, em Kounavino, estando embriagado, se entregara a tal orgia, que só ao ouvido podia ser contada. O caixeiro, ao ouvir a confidência, riu desabaladamente e, o velho, ria também, mostrando dois dentes amarelados.

A conversa não tinha interesse para mim. Desci para desentorpecer as pernas enquanto não dava o sinal da partida.

Na gare encontrei o advogado e a sua companheira, conversando animadamente.

 

— Não se demore — disse ele —, o comboio vai partir. Efectivamente, mal eu atingira a cauda do comboio, deram o segundo sinal.

 

Quando subi para a carruagem, o advogado e a sua cliente prosseguiam a conversa animadíssimos. O velho negociante sentado em frente deles não dizia uma palavra, olhando-os com ar severo e desdenhoso. Quando eu passava, o advogado dizia, sorrindo:

 

— Ela então declarou ao marido que não podia, nem queria, continuar a viver com ele, tendo-se dado o caso...

 

Não ouvi o resto. Passava o revisor e entravam mais passageiros. Restabelecido o silêncio, ouvi novamente a voz do advogado, e pareceu-me que a conversa se desviara, de um caso particular, para considerações gerais.

O advogado observava que, a questão do divórcio interessava hoje toda a Europa e que na Rússia, os casos eram cada vez mais frequentes. Sorriu ao notar que era o único a falar e, voltando-se para o comerciante, perguntou-lhe:

 

— Era questão que não existia nos bons tempos de outrora, não é verdade?

 

O comboio pôs-se em movimento. Sem responder, o velho descobriu-se, persignou-se, murmurou uma oração em voz baixa, enterrou o boné até às orelhas e disse:

 

— Existia... mas menos. Hoje não pode ser de outro modo. As pessoas instruem-se de mais.

 

O advogado replicou. Mas o barulho do comboio, que aumentava de velocidade, impediu-me de perceber. Aproximei-me cheio de curiosidade para ouvir a resposta do velho. A conversa parecia interessar também o meu vizinho — o senhor de olhos brilhantes — que prestava toda a atenção, embora não abandonasse o seu lugar.

 

— Que culpa tem a instrução? — perguntou a senhora, esboçando um sorriso. — Era melhor o casamento quando os noivos mal se conheciam? — continuou ela, respondendo: — hábito frequente entre as mulheres — não aos argumentos apresentados mas àqueles que podiam ter sido.

 

— Amavam-se? Poder-se-iam amar? Não o sabiam. A mulher desposava o primeiro que aparecia e habilitava-se, assim, a uma vida de tormento. Isto era preferível? — concluiu, dirigindo-se, mais ao advogado e a mim, do que ao velho com quem principiara a discussão.

 

— Nos nossos dias há demasiada instrução — repetiu o velho, respondendo à pergunta e olhando desdenhosamente.

 

— Gostava de ouvi-lo explicar a ligação entre a instrução e as desavenças conjugais — disse o advogado, disfarçando um sorriso.

 

O comerciante ia responder, mas a senhora interrompeu-o:

 

— Esse tempo acabou.

 

— Permita que este senhor exponha as suas ideias — disse o advogado.

 

— Todas as tolices vêm da instrução — disse o velho em tom categórico.

 

— Como podem entender-se pessoas que se não amam? — apressou-se a perguntar a senhora, olhando para o advogado, depois para mim e para o caixeiro que, de pé, encostado ao banco, seguia, sorridente, a discussão.

 

— Só os animais se podem acasalar, segundo a vontade do dono; os homens têm as suas inclinações, as suas simpatias — disse ela com a intenção de ferir o negociante.

 

— É um erro, minha senhora — disse o velho. — O animal é um animal; ao homem foi dada uma lei.

 

— Mas como pode o homem viver sem amor? — replicou a senhora, convencida que emitia ideias originais.

 

— Modernismos — teimou o velho. — Outrora não se pensava em tal.

 

Hoje, à mais leve questão, a mulher moderna declara ao homem que o deixa; e até as camponesas atiram com as camisas e as peúgas ao marido para se lançarem nos braços de outro homem, por ter o cabelo mais frisado... De que servem palavras? O dever da mulher é respeitar o marido, o único sentimento que a mulher deve sentir é o temor.

O caixeiro olhou para o advogado, para a senhora e para mim, reprimindo um sorriso, pronto a ridicularizar ou a aplaudir as palavras do comerciante, segundo a nossa atitude.

 

— Mas que temor? — perguntou a senhora.

 

— Eu explico... «As mulheres estejam sujeitas a seus maridos».

 

— Meu caro senhor, esse tempo já Ia vai...

 

— Não tanto como parece, minha senhora. Eva, a primeira mulher, nasceu de uma costela do homem e assim permanecerá até ao fim do mundo.

 

Disse isto, sacudindo a cabeça, num gesto tão triunfante e tão severo que o caixeiro lhe concedeu os louros da vitória, fazendo ouvir uma sonora gargalhada.

 

— Eis a maneira de os homens julgarem — disse a mulher, não querendo dar-se por vencida. — Querem a liberdade para si e a escravidão para a mulher. Aos homens tudo é permitido, não é assim?...

 

— O homem é outro caso...

 

— É essa a sua opinião?...

 

— Ao homem tudo é permitido?...

 

— Ninguém diz tal. O mau comportamento do homem não atinge a família. A mulher é frágil como o vidro — continuou ele. O calor das suas palavras convenceu os que o ouviam; mas a senhora não se deu por vencida e continuou: — No entanto a mulher é pessoa humana, tem sentimentos como o homem. Que há-de fazer, se não amar o marido?

 

— Não amar o marido?... — gritou o velho. — Aprenderá a amá-lo. Não receie...

 

Esta conclusão imprevista encantou o caixeiro que teve um murmúrio de aprovação.

 

— Engana-se. Nunca aprenderá. O amor não se impõe.

 

— E se a mulher enganar o marido? — perguntou o advogado.

 

— É questão que se não pode pôr — disse o velho. — Esteja-se atento.

 

— Mas se, apesar de tudo, o facto se der? São coisas que podem acontecer...

 

— Noutros meios isso pode acontecer; no nosso não — disse o velho. Todos se calaram. O caixeiro parecia agitado; aproximou-se mais e não querendo deixar de tomar parte na conversa disse com o seu eterno sorriso:

 

— Um dos meus amigos foi vítima de um escândalo bem triste. A mulher, leviana, começou a fazer das suas. O marido era instruído e sério. O primeiro amante da mulher foi o caixeiro-viajante O marido tentou levá-la ao bom caminho, admoestando-a brandamente. Ela não fez caso e desceu o máximo; começou a roubar-lhe dinheiro. Ele bateu-lhe. A situação agravou-se. Entregou-se a um judeu e depois a outros... Que podia ele fazer? Expulsou-a de casa, de uma vez para sempre.

 

Ela agora corre mundo e ele vive solteiro.

 

— Era um imbecil — disse o velho. — Se ele tem sabido domá-la desde o princípio ainda hoje a teria em casa. É preciso ter sempre as rédeas altas, em casa, à mulher, na estrada ao cavalo.

 

Neste momento entrou o revisor para controlar os bilhetes, antes da próxima estação. O velho entregou o seu e continuou:

 

— Pode crer, as mulheres devem ser refreadas a tempo, de contrário está tudo perdido.

 

— Isso não impede que se divirta com as raparigas bonitas de Kounavino — disse o advogado, com um sorriso irónico.

 

— O senhor afasta-se da questão — replicou friamente o comerciante e manteve-se num silêncio absoluto.

 

Daí a pouco ouviu-se um apito agudo. O comboio parava. O velho ergueu-se, embrulhou-se na pelica, levou a mão ao boné e desceu.

 

II

 

Apenas o velho saiu, travou-se animada conversa.

 

— Um homem do Velho Testamento — disse o caixeiro.

 

— Um verdadeiro Demostoroi — disse a senhora. — Que ideias atrasadas sobre o casamento!...

 

— Estamos ainda longe de ter sobre o casamento as ideias do resto da Europa — disse o advogado

 

— Não é possível fazer compreender a esta gente — interrompeu a senhora — que só o amor consagra o casamento e, que, só o casamento consagrado pelo amor é realmente legítimo.

 

O caixeiro sorria atento, desejando reter na memória, quanto possível, estas inteligentes opiniões, para as emitir em ocasião oportuna.

No meio da tirada da senhora, atrás de mim, ouviu-se um som semelhante a uma gargalhada ou a um soluço. Quando me voltei vi o meu vizinho, o senhor solitário de cabelos brancos e de olhar brilhante que, aparentemente interessado, se tinha aproximado, durante a discussão, sem que déssemos por isso.

Estava de pé, apoiando as mãos no estofo do banco, visivelmente comovido, a face congestionada e estremecendo-lhe um dos músculos.

 

— Que amor é esse que consagra o casamento? — perguntou.

 

— Que amor?... — repetiu a senhora. — O amor conjugal que santifica o casamento. O verdadeiro amor. Se esse amor existe entre o homem e a mulher o casamento é possível.

 

— Está bem. Mas o que entende por verdadeiro amor? — disse timidamente o senhor de olhar brilhante, com um sorriso contrafeito

 

— Todo o mundo o sabe! — disse a senhora, declarada-mente desejosa de interromper a conversa.

 

— Pois eu desconheço tal amor — disse o senhor — e gostava que me explicasse o que entende por verdadeiro amor.

 

— Como?... É uma coisa bem simples — disse a senhora. E reflectindo um instante acrescentou: — O amor é a predilecção exclusiva de um homem ou de uma mulher pelo indivíduo de sexo diferente.

 

— Por quanto tempo essa predilecção? Por um mês? Por dois dias? Por meia hora? — perguntou o senhor de cabelos brancos, desatando a rir.

 

— Quer dizer — interveio o advogado, designando a senhora — que o casamento deve ter origem numa afeição, no amor, se você quiser, e, que, se realmente o amor existe, e somente nesse caso, o casamento tem alguma coisa de sagrado. Compreendi o seu pensamento, minha senhora?

 

A senhora aprovou com a cabeça este esclarecimento.

 

— Depois disto... — retomou o advogado, seguindo o curso do seu raciocínio. Mas o primeiro senhor, que tinha agora os olhos brilhantes e se continha com manifesta dificuldade, sem deixar o advogado acabar, começou:

 

— Eu falo precisamente dessa predilecção de um homem por uma mulher ou de uma mulher por um homem entre todos ou todas. Mas pergunto simplesmente: Predilecção por quanto tempo?

 

— Por quanto tempo? Por muito... por toda a vida... — disse à senhora, sacudindo os ombros.

 

— Nos romances, talvez. Na vida real, nunca. É muito raro essa preferência durar anos. Na maioria dos casos, dura meses, semanas, dias, ou mesmo horas.

 

Ele sabia que estas opiniões, evidentemente, espantavam todos e sentia-se satisfeito.

 

— Não, não é verdade — disseram todos. O próprio caixeiro-viajante teve um gesto de aprovação.

 

— Eu sei... Os senhores falam do que deveria ser. Eu falo do que realmente é. Todo o homem sente o que os senhores chamam amor, por qualquer mulher bonita.

 

— É horrível o que o senhor diz. O amor existe, e dura, não só meses, não só anos, mas toda a vida.

 

— Não. Não é verdade. Mesmo admitindo que um homem prefira uma mulher toda a vida, essa mulher preferirá outro. Foi sempre assim e assim continuará a ser.

 

Pegou na cigarreira, tirou um cigarro e acendeu-o.

 

— Mas a reciprocidade existe — disse o advogado.

 

— Não. É tão impossível como encontrarem-se num vagão cheio de grãos, dois grãos previamente marcados. Amar um homem, ou amar uma mulher toda a vida é teimar que uma vela acesa pode arder eternamente — concluiu ele, aspirando avidamente o fumo do cigarro.

 

— Mas o senhor refere-se somente ao amor carnal. Não admite o amor nascido da comunhão de um mesmo ideal, de afinidades espirituais? — disse a senhora.

 

— Afinidades espirituais?... Comunhão de ideal? — repetiu ele, emitindo o gemido que lhe era peculiar. — Ter o mesmo ideal não é razão para ter o mesmo leito.

 

— Os factores provam o contrário — disse o advogado. — O casamento existe, não só entre nós, mas na maioria dos povos, e, muitos casais vivem durante muito tempo unidos e felizes.

 

O senhor de cabelos brancos riu novamente.

 

— Perdão. O senhor afirmou que o amor é a base do casamento. Eu emito a dúvida da existência de outro amor, que não seja o amor sensual e o senhor dá-me como prova que o casamento existe. Mas esse casamento no nosso tempo não é senão uma impostura.

 

— Perdão!... — disse o advogado. — Eu disse que houve e há ainda casamentos.

 

— De acordo. Mas porquê? Porque há ainda pessoas que consideram o casamento como um acto sacramental, um laço perante Deus. Para aqueles que assim pensam, o casamento existe realmente. Mas só para esses.

 

«Entre nós os homens casam sem considerar o casamento outra coisa que não sejam benefícios materiais ou de ordem sexual; e a ligação tende então ou para a fraude ou para o constrangimento. Quando é fraude é fácil de suportar..

«Então o marido e a mulher procuram fazer acreditar aos outros que vivem em monogamia quando, de facto, vivem na poligamia ou poliandria. É repugnante. Mas quando isto acontece, e dá-se muitas vezes, tomam como obrigação exterior viverem juntos toda a vida, quando desde o segundo mês se odeiam, nesse tremendo inferno que leva muitos ao suicídio, à embriaguez, a fazer desaparecer, e envenenar o companheiro ou a companheira — isto disse o senhor de cabelos brancos apressadamente, sem dar tempo a que ninguém abrisse a boca e entusiasmando-se cada vez mais.

Todos se calaram. Ninguém estava à vontade.

 

— De facto há momentos de crise na vida conjugal — disse o advogado para interromper uma conversa mais acalorada do que conveniente.

 

— Você reconheceu-me, pelo que vejo — disse o senhor de cabelos brancos com uma voz delicada e apaziguadora. — Não. Não tenho esse prazer.

 

— Não deve ser grande o prazer. Eu sou Pozdnychev, que atravessou na sua vida conjugal um desses momentos de crise a que você fez referência; momento tão crítico que matei a minha mulher — disse ele, fitando rapidamente cada um de nós.

 

Ninguém encontrou palavras para responder; todos se calaram.

 

— E o mesmo — disse ele, produzindo aquele som mistura de soluço e de gargalhada. — Perdoem-me, não quero incomodá-los!

 

— De maneira nenhuma. Esteja a sua vontade!... — disse o advogado sem saber ao certo porque dizia aquele «à vontade».

 

Mas Pozdnychev virou-se bruscamente e foi de novo sentar-se no seu lugar. O senhor e a senhora começaram a cochichar. Eu estava sentado, ao lado de Pozdnychev e conservava-me calado, sem saber o que havia de dizer.

Havia já pouca luz. Fechei os olhos, fingindo que queria dormir. Chegámos assim à estação seguinte.

Durante a paragem o senhor e a senhora passaram para uma outra carruagem; tinham previamente combinado a mudança com o revisor. O caixeiro instalou-se comodamente e deixou-se dormir...

Quanto a Pozdnychev, não parava de fumar e beber chá, que havia preparado na estação anterior. Quando abri os olhos e olhei para ele, voltou-se subitamente para mim e com um ar ao mesmo tempo resoluto e exasperado perguntou-me:

 

— Certamente lhe é muito desagradável ficar sentado ao pé de mim, sabendo quem eu sou. Se você quiser, vou-me embora.

 

— Não se vá embora, pelo amor de Deus!

 

— Quer então tomar uma chávena de chá? Está muito forte. Serviu-me o chá.

 

— Eles dizem... Não fazem outra coisa senão mentir — disse ele.

 

— De que é que está a falar? — perguntei-lhe.

 

— Sempre da mesma coisa, desse amor de que eles falam e do que ele é na realidade. Tem sono?

 

— Nenhum.

 

— Então, se me dá licença, vou contar-lhe como por esse amor eu fui arrastado ao crime.

 

— Se lhe não custa contar-me a história...

 

— O que custa é calar-me. Sirva-se de chá. Está talvez muito forte...

 

Estava realmente muito forte. Parecia tinta de escrever; no entanto, tomei um copo.

Neste momento entrou de novo o revisor. O meu companheiro seguiu-o com um olhar sombrio e só começou a história quando o outro desapareceu.

 

III

 

— Contar-lhe-ei a minha história, se, realmente, a você lhe interessa. Repeti-lhe que a desejava ouvir.

 

Calou-se por momentos. Passou a mão pela cara e começou:

 

— Antes de me casar eu fazia a vida que fazem todos os rapazes do nosso meio. Era proprietário. Estudava na Universidade. Meu pai era da alta nobreza. Como todos os homens do nosso meio vivia amoralmente, convencido de que vivia como deve viver um homem do nosso meio. Pensava, de mim para mim, que era um rapaz encantador e de uma excelente moralidade. Não era um sedutor, e não tinha hábitos contra a natureza; nem tinha como fim último da minha existência os prazeres da carne — o que acontecia com a maior parte dos rapazes da minha idade.

 

Procedia com medida e decência, sempre preocupado com a saúde. Evitei relações que pudessem ter consequências sérias, filhos ou grandes afeições. Talvez tivesse havido filhos e mesmo ligações com raparigas desinteressadas e sérias, nunca me interessou sabê-lo; era como se nada tivesse acontecido. E não só achava esse procedimento moral, mas até me sentia orgulhoso dele.

Parou e emitiu aquele som particular que fazia todas as vezes que lhe vinha uma ideia nova.

 

— É uma das piores infâmias — gritou ele. — O desregramento nunca é físico; nenhuma desordem física é desregramento. O desregramento, o verdadeiro desregramento consiste, precisamente, no facto de nos libertarmos de todas as ligações morais com a mulher com que houve comércio físico. Até então considerava uma alta virtude essa libertação. Lembro-me do terror que senti no dia em que não paguei a uma mulher, verdadeiramente apaixonada por mim e que se me entregou. Só me tranquilizei quando lhe pude enviar o dinheiro, porque só assim me sentia moralmente desligado dela.

 

«Não abane a cabeça, como se você fosse da minha opinião — gritou ele, olhando para mim. — Conheço a cantiga. Vós todos, e você também, se não é uma excepção rara, vêem as coisas como eu as via. Perdoe-me, mas o facto é horrível, horrível, horrível!...

 

— Mas o que é horrível? — perguntei-lhe.

 

— Este abismo de delírio em que vivemos com as mulheres. Eu não posso falar calmamente; não é pelo que se deu, como disse o outro, mas porque desde que se deu o caso, os meus olhos se abriram e eu vejo com uma luz diferente. Tudo está ao contrário; tudo está ao contrário...

 

Acendeu um cigarro e com os cotovelos apoiados nos joelhos continuou a falar.

 

No escuro eu não podia ver-lhe a cara. Ouvia somente a sua voz agradável e convincente misturada ao rodar do comboio.

 

IV

 

— Foi só depois do suplício que suportei e, só graças a ele é que compreendi onde estava a raiz do mal. Compreendi o que devia ser e, por conseguinte, vi todo o horror do que era. Dir-lhe-ei como começou o que me havia de levar ao momento crítico da minha vida conjugal.

 

«Eu tinha dezasseis anos e frequentava o liceu; meu irmão mais velho já era aluno do primeiro ano. Eu não era puro. Tinha sido pervertido pêlos meus colegas, como acontece a todos os rapazes da nossa sociedade.

«Sofria, como sofrem noventa e nove por cento dos nossos rapazes. Andava aterrado; rezava, mas sucumbia. Tinha já o pensamento corrompido mas ainda não transpusera o último passo.

«Foi então que um camarada de meu irmão — bom rapaz —, por ser o pior dos biltres (foi ele que nos ensinou a beber e a jogar) nos persuadiu, depois de nos ter embebedado, a irmos a uma casa de tolerância. Meu irmão conspurcou-se nessa mesma noite. Imitei-o, indiferente; nunca tinha ouvido dizer a ninguém mais velho e respeitável serem infamantes actos, aqueles a que eu assistira. E ninguém talvez ainda hoje seja capaz de o dizer.

«E verdade que há os mandamentos. Mas você sabe como os mandamentos só servem para responder ao pároco no dia dos exames e é assunto considerado, na ordem dos conhecimentos, inferior ao emprego do ut nas conjunções condicionais. Nunca ouvi a nenhuma das pessoas que respeitava, dizer serem actos condenáveis, e, pelo contrário, ouvi a pessoas que eu respeitava, dizer que não podia ser de outro modo.

«Afirmaram-me que, depois, da iniciação os meus sofrimentos se aplacariam. Ouvi defender muitas vezes essa teoria. Lia-a muitas vezes e, os meus colegas, com a sua experiência, asseguravam-mo.

«Os mais velhos diziam que era conveniente para a saúde; e consideravam-nos, até, uma demonstração de virilidade.

«De modo que estes actos tinham muitas atenuantes.

«Perigos de contágio? De modo nenhum. O governo, cheio de solicitude, prevê e vigia o bom funcionamento das casas de tolerância e protege a depravação da juventude. Os próprios médicos acham bem, e afirmam que o desregramento moral é proveitoso para a saúde e, eles próprios, metodizam este desregramento legalizado.

«Há mães que, solícitas, cuidam desta parte da saúde dos filhos.

«E a ciência mesmo manda-os para as casas de tolerância.»

 

— A ciência? — perguntei eu.

 

— Quem são os médicos? Sacerdotes da ciência.

 

«Quem perverte os jovens, afirmando que é necessário para a saúde? Os médicos.

 

«E logo a seguir curam as doenças consequentes das suas receitas. E tudo isto com uma espantosa seriedade.

 

— Por que se não hão-de tratar essas doenças?

 

— Porque a centésima parte do esforço para acabar com as doenças venéreas devia ser empregada no combate ao desregramento moral e, só então, elas desapareceriam totalmente.

 

«Mas o problema não consiste só nisto.

«O problema reside no facto que me aconteceu a mim, como acontece em nove de dez rapazes, não somente do nosso meio, mas mesmo entre os camponeses, o de se sucumbir ao encanto natural de uma qualquer mulher.

«Sucumbi porque o meio que me rodeava — ao que de facto é uma queda — consideravam uns uma função legítima, necessária à saúde, outros uma distracção, a mais natural para um rapaz, a mais perdoável, mesmo a mais inocente.

«Não compreendi então que era uma queda; e comecei a entregar-me ao que era meio prazer, meio necessidade. Entreguei-me a este desregramento como comecei a beber e a fumar.

«Houve entretanto na primeira queda qualquer coisa de particular e de tocante. Lembro-me que depois de se ter consumado o acto me senti profundamente triste. Arrasaram-se-me os olhos de lágrimas, ao pensar na profanação da minha inocência, na eterna profanação das minhas relações normais com a mulher. Não era o mesmo homem. Degradara-me. Considerava-me como o fumador de ópio ou como um bêbedo. O fumador de ópio e o bêbedo não são criaturas normais; e o mesmo acontece ao homem que tem ligações com várias mulheres.

«Este homem poderá lutar contra as suas paixões, será em vão. Nunca mais poderá ter relações fraternais, puras, com qualquer rapariga.

«Até pela maneira de olhar se conhece o homem devasso.»

 

V

 

— Quando evoco as torpezas que até então cometi, sinto-me horrorizado! E pasmo da troça que faziam de mim, dos meus escrúpulos, os meus companheiros.

 

«Que juventude!... Oficiais, estudantes universitários, elegantes parisienses!... Quando penso no ar digno — com trinta anos de devassidão e a consciência carregada de milhentos crimes contra as mulheres — que tomamos ao entrar numa sala de baile, muito correctos, bem barbeados e perfumados, as camisas alvas de neve (emblema da pureza), de casaca ou de uniforme! Que ridículo!

«Meditemos um instante no que é, e no que devia ser.

«Quando um desses desgraçados carregados de vícios se aproxima das nossas filhas ou de alguma das nossas irmãs, nós — que sabemos a vida que levam — devíamo-nos aproximar e dizer-lhes ao ouvido:

 

— «Meu caro amigo, conheço-te, sei como passas as noites e com quem. O teu lugar não é aqui. Aqui só há raparigas puras. Sai!»

 

«Eis o que devia ser. Eis o que é. Quando um senhor desta categoria faz a sua aparição numa sala e dança, apertando nos braços uma irmã ou uma filha, rejubilamos, se ele é rico e está bem aparentado.

«Conheço algumas raparigas da primeira sociedade que os pais casaram com verdadeiros estropiados físicos e morais... Que coisa abominável!

«Tempo virá em que todas estas abominações sejam desmascaradas.»

E de novo fez ouvir o som que lhe era peculiar quando lhe ocorriam pensamentos torpes. Voltou a tomar chá. O chá estava horrivelmente forte e não havia água. Sentia-me agitadíssimo. Certamente o chá produzia os mesmos efeitos sobre o nosso homem. A sua agitação ia num crescendo terrível. Mudava a cada instante de atitude; tão depressa tirava o boné, como o enterrava até às orelhas; a sua fisionomia alterava-se estranhamente na penumbra que nos envolvia. A voz tornava-se cada vez mais cantante e expressiva.

 

— Assim vivi até aos trinta anos, sem contudo perder a ideia de me casar com uma rapariga pura e realizar uma vida conjugal perfeitamente sã e nobre. Nessa ideia comecei a deitar as minhas vistas para rapariga que me conviesse. E embora continuasse a minha vida desregrada, atrevia-me a procurar raparigas dignas de mim. Houve muitas raparigas que eu pus de lado por não as achar perfeitamente puras para presidirem aos destinos do meu lar.

 

«Por fim encontrei a filha de um proprietário da província de Penza que outrora fora muito rico e estava arruinado.

«Fomos dar um passeio de barco. Era uma noite de luar. Sentei-me a seu lado onde podia admirar a beleza dos seus cabelos caprichosamente ondulados, e as formas harmoniosas modeladas pelo jersey. Naquele momento decidi escolhê-la para companheira do meu lar.

«Pareceu-me naquela noite que ela compreendia tudo o que eu sentia e pensava. Os meus pensamentos eram nesse momento os mais elevados e puros. Contudo, nada de extraordinário se passara; somente o seu jersey lhe moldava particularmente as formas e os cabelos emolduravam-lhe graciosamente o rosto, tornando-a encantadora. Desde esse momento desejei uma aproximação mais íntima.

«É estranha a ilusão de que a beleza é o único bem total!

«Se uma mulher bonita diz coisas estúpidas, escutamo-la e, longe de a acharmos estúpida, consideramo-la um espírito brilhante. Ela não faz nem diz senão disparates, mas nós achamo-la encantadora. E, quando não diz nem faz senão parvoíces, desde que seja bonita, persuadimo-nos de que ela é estupendamente inteligente e de uma estranha moralidade.

«Voltei para casa convencido de que encontrara a perfeição. Profundamente emocionado, decidi que seria esta, a minha mulher.

«No dia seguinte pedia-a em casamento.

«Que confusão!... Em milhares de homens que se casam, no nosso meio e infelizmente entre o povo, encontrar-se-á, talvez, um que seja puro, que não tenha sido um outro D. Juan, antes do casamento.

«Há hoje rapazes, segundo creio, e pelo que ouço dizer e eu próprio tenho observado, para quem o casamento não é uma brincadeira, mas grande obra. Deus os ajude!... No meu tempo, haveria um em dez mil. Todos o sabem, mas fingem ignorá-lo.

«Nos romances descrevem-se com todos os pormenores os sentimentos dos heróis, as suas façanhas, os seus devotamentos às grandes causas, mas nunca se faz referência às acções infamantes cometidas por eles.

«Ao pintarem o amor dos heróis por suas damas, nem de longe se referem às humildes criaturas que serviram de divertimento a essas extraordinárias personagens.

«Os romances que abordam esses assuntos são interditos às raparigas a quem mais interessava dar a conhecer.

«Procura esconder-se das raparigas o cancro social que ocupa metade da vida dos rapazes; depois habituamo-nos de tal modo a uma vida de dissimulação que chegamos, como os Ingleses, a convencermo-nos de que somos todos gente muito de bem e vivemos num mundo moral.

«As raparigas acreditam em tudo isto. A minha desgraçada mulher, como de resto a maior parte das raparigas, acreditava na pureza do sentimento.

«Quando ainda era noivo mostrei-lhe o diário onde ela podia descobrir uma parte da minha vida e, sobretudo, ter conhecimento da minha última ligação, e de que entendi dever falar-lhe para que o não viesse a saber por outros. Lembro-me do seu horror, do seu desespero ao compreender do que se tratava. Tenho a certeza de que, nesse momento, ela teve a intenção de cortar comigo. Por que o não teria feito?...»

Repetiu o soluço estrangulado. Calou-se. Bebeu mais um gole de chá.

 

VI

 

— Talvez não... Talvez fosse melhor assim. Recebi o castigo merecido. Mas não é disso que se trata.

 

«Afirmo que na maioria dos casos, as raparigas são vilmente enganadas. As mães nada ignoram. Fingem acreditar na pureza das intenções dos homens, mas procedem como quem não tem ilusões. Conhecem o anzol com que hão-de engodar os rapazes. Os homens, esses, não vêem, porque não querem ver. As mulheres sabem perfeitamente que o amor, mesmo o mais elevado, o mais, poético — como nós dizemos — depende mais dos dotes físicos do que dos méritos. Perturba mais uma cabeça bem penteada, um vestido de bom corte, modelando bem as formas do que uma frase reveladora de excelsas qualidades morais.

«Pergunte a uma mulher experimentada qual é preferível, passar por mentirosa ou aparecer mal arranjada ao homem que pretende cativar. Ela preferirá a primeira alternativa.

«Sabem perfeitamente que mentimos quando falamos de sentimentos puros. Sabem que só fisicamente as pretendemos. E perdoamos mais facilmente uma vilania do que o ridículo de um vestido de mau gosto.

«As mulheres experimentadas procedem conscientes; as rapariguinhas inocentes fazem-no inconscientemente.

«As mulheres casadas sabem que, por mais atraente que seja a conversa de uma mulher, o que interessa ao homem, quando se aproxima, é tudo o que lhe desperte os sentidos. E por isso, procuram, principalmente, o que possa torná-las mais provocadoras. Não sei quando estes costumes entraram na sociedade, mas parece-me que toda esta sociedade é uma imensa casa de tolerância. Que diz você?... Permita que lho demonstre. Diz que as senhoras da nossa sociedade têm interesses diferentes das mulheres toleradas, eu afirmo o contrário e provo-o.

«Se as pessoas diferem pêlos seus fins, pelo conteúdo interno da sua vida, essa diversidade reflectir-se-á inevitavelmente no exterior, e esse exterior será diferente.

«Comparemos agora essas desgraçadas infelizes de todo o mundo com algumas outras mulheres: as roupas interiores, os gestos, o modo de andar, os braços nus, as espáduas desnudadas, a nudez do peito, o jeito de bambolear o corpo, a paixão das jóias e dos objectos brilhantes, os divertimentos, as danças, a música e as canções, tudo é igual. Umas e outras procuram seduzir. Só há uma diferença, umas são as senhoras bem, outras, as banidas da sociedade.»

 

VII

 

— Assim caí na ratoeira dos jersey, dos penteados e enfeites postiços. Era, aliás, fácil de conseguir, porque fui educado nas condições em que se criam e formam os jovens amorosos, como pepinos em viveiros.

 

«Com efeito, a alimentação excitante e abundante, sem nenhum exercício, são estimulantes sistemáticos do desejo físico. Embora isto lhe cause admiração é assim mesmo. Eu próprio, até há pouco, não via nada disto, mas agora vejo. O que me tortura é que ninguém nota estas anormalidades. E a maior parte diz baboseiras, como há pouco aquela senhora.

«Na Primavera, quando os camponeses trabalhavam perto da minha casa num aterro do caminho-de-ferro, assisti à refeição habitual de um camponês, que é constituída por pão, kuass e alhos; o camponês é vivo, são e realiza o seu trabalho do campo, com facilidade.

«Quando vem para o trabalho no caminho-de-ferro distribuem-lhe todos os dias gruau e uma libra de carne; aumentam-lhe a ração e tornam-lha mais forte; e ele con-some-a, trabalhando dezasseis horas por dia, puxando uma carrinha. É o que é preciso.

«Nós, que absorvemos, cada um, duas libras de carne de veado ou javali e todas as espécies de petiscos picantes e bebidas alcoólicas; onde desgastamos esses alimentos? Em excessos sexuais. Se abrimos a válvula de segurança, tudo vai bem, mas se a fechamos, como eu a fechei várias vezes, produz-se a tal excitação doentia, que, sob a influência da música e dos romances, acaba por apresentar todos os sintomas do amor.

«Apaixonei-me como toda a gente. Conheci as deliciosas emoções, os poéticos enternecimentos, os enlevos que lembram êxtases.

«E, afinal, esta paixão era obra da mãe e da modista, das refeições suculentas e da falta de exercício físico.

«Se não fossem os passeios de barco, os vestidos que modelam as formas e realçam a elegância, nunca me teria apaixonado! Nunca teria caído no laço!»

 

VIII

 

— Desta vez o plano teve êxito. O passeio de barco, um vestido elegante e o meu estado de espírito deram resultado. Vinte vezes o plano falhara. Não estou a brincar. Desta vez a ratoeira fora bem armada.

 

«Hoje prepara-se um casamento como quem prepara uma esparrela.

«É natural que, quando a rapariga chega à idade de casar, seja preciso casá-la, e é fácil, quando não é um monstro e há homens que se encontram na mesma situação.

«Assim se procedia outrora; quando chegava esse momento, os pais casavam as filhas. É isto o que se passava e se continua a passar em toda a humanidade; é o que se passa entre os chineses, os hindus, os maometanos e entre o nosso povo em todo o género humano, numa proporção de noventa e nove por cento.

«Mas a centésima parte, os devassos, não considerámos bem e que era necessário encontrar alguma coisa de novo. E qual foi essa coisa nova?... — Nas salas, nos salões, nos passeios públicos as raparigas sentam-se e os homens passeiam de diante para trás e de trás para diante, fazendo a sua escolha.

«As raparigas esperam e pensam sem ousar dizer: — A mim, meu querido!... Não repares nas outras... Repara em mim... Repara como são belas as minhas espáduas e bem lançado o meu colo...

«Os homens continuam a passar, tornam a passar, despem-nas com os olhos e sentem-se satisfeitos e vão passando e dizendo, às vezes: — A mim não me apanham vocês.

«Sentimo-nos vaidosos por a feira se fazer por nossa causa, mas, sem darmos conta, lá vamos cair na ratoeira que habilidosamente nos foi preparada.»

 

— Mas como proceder de outro modo?... Deverá ser a mulher a pedir o homem em casamento?

 

— Verdadeiramente, não sei o que lhes hei-de responder. Mas, se se fala em direitos da mulher, que haja realmente igualdade. Achavam o pedido de casamento humilhante, mas o que se passa é muito pior. A mulher correria os mesmos riscos que o homem. Assim, ou é escrava no mercado, ou isco no anzol.

 

«Experimente dizer às mães, ou às filhas que estão preparando a rede onde há-de cair o noivo... Meu Deus! Que grave ofensa!...

«Contudo não procedem de outro modo. É horrível saber as raparigas absorvidas sempre por este pensamento. E, se ao menos, as coisas se passassem de uma forma clara e séria!... Mas há qualquer coisa de bruxaria...

«Diz a mãe: Que interessante é o estudo da origem das espécies... — Lisa é uma apaixonada da pintura!... Você vai à exposição? É muito interessante e instrutiva... — A minha Lisa adora a música... Você costuma ir aos concertos.... Têm estado estupendos!... Você não calcula!... Vocês deviam entender-se...

«E é sempre o mesmo pansamento: casa com a minha Lisa...»

 

— Que abjecção! Que mentira! — concluiu ele. E como tinha acabado de tomar o último gole de chá começou a arrumar as chávenas e tudo de que se servira.

 

IX

 

— Você acredite — continuou ele, metendo o chá e o açúcar no saco de couro. — O domínio da mulher que nós sentimos, vem afinal somente de um interesse físico.

 

— Mas que domínio? — perguntei eu. — Todos os direitos e privilégios estão na posse do homem.

 

— Justamente — interrompeu ele. — É um facto curioso. Por um lado é perfeitamente justo dizermos que a mulher está numa situação humilhante, por outro que ela é dominadora.

 

«As mulheres têm a mesma situação que os judeus, que se vingam da opressão em que vivem pelo poder do dinheiro.

«— Vocês querem que não passemos de comerciantes? Pois bem.

Como comerciantes nós vos dominaremos — dizem os judeus.

«— Vocês só nos consideram como objecto de sensualidade? Pois bem, será pela sensualidade que vos dominaremos.

«A ausência de direitos na mulher não está no facto de ela não poder votar ou de não ser juiz (ocuparmo-nos dos nossos interesses não é um direito); está no facto de ela poder ter o direito de escolher e não ser escolhida. Você diz que não é conveniente. Mas então que o homem seja privado dessas regalias. Por agora a mulher está privada desse direito e, como compensação, ela actua sobre a sensualidade do homem, submete-o pêlos sentidos de tal forma que, na realidade, quem escolhe é a mulher. Quando a mulher possui a arte de seduzir, abusa dela e adquire um terrível ascendente.

 

— Mas como me prova esse poder temível da mulher? Como se manifesta? — perguntei-lhe eu.

 

— Manifesta-se em tudo e por toda a parte. Visite os grandes armazéns de qualquer cidade, não importa qual. Verá objectos avaliados em milhões, trabalho gigantesco, quase incalculável, só para a mulher.

 

«Quantos vendem artigos para homens? Dez em cem.

«Todo o luxo da existência é exigido e mantido pela mulher. A maior parte das fábricas produz, na sua grande maioria, ornamentos fúteis...

«Milhões de homens, gerações de escravos, morrem no decorrer desses trabalhos forçados unicamente pelo capricho das mulheres. Elas são como imperatrizes, e têm na escravatura de um trabalho extenuante, nove décimos da humanidade. E tudo isto porque as mulheres vivem em situação humilhante; porque lhe recusamos direitos iguais aos homens. Vingam-se, actuando sobre os nossos sentidos. E todo o problema gira à volta deste tema.

«Desde que um homem se aproxima de uma mulher, deixa-se influenciar pêlos seus sortilégios e torna-se louco.

«Outrora sentia-me sempre mal quando via uma mulher metida no seu vestido de baile. Agora isso inspira-me terror. Vejo, nitidamente, qualquer coisa de perigoso, qualquer coisa de ilegal e tenho vontade de chamar a polícia, de exigir que a levem como um objecto terrível.

«Você ri-se — exclamou ele, olhando para mim. — Não é coisa para rir. Estou convencido de que virá depressa o tempo, mais depressa do que nós supomos e em que todos compreenderão e se espantarão que tenha podido existir uma sociedade em que se tolerem actos tão contrários à tranquilidade pública e à felicidade das famílias, como é a maneira de expor o corpo das mulheres, tão provocantemente.

«Por toda a parte surgem mulheres hediondamente vestidas, nas praças, nos passeios públicos, nos caminhos, nos bailes, nos concertos e até nas próprias famílias. Verdadeiras emboscadas aos nossos sentidos.

«Por que se proíbem os jogos de azar e se consente que, publicamente, apareçam mulheres seminuas, o que é mil vezes mais imoral?

«Estranho critério!...»

 

X

 

— E assim fui apanhado. E assim fiquei enamorado. Não só considerava a minha noiva a mulher mais perfeita, mas eu próprio me considerei, durante o noivado, o mais perfeito dos homens.

 

«Não há ninguém tão mau que não encontre outro pior. E este pensamento é um manancial de prazer e de orgulho. Era este o meu caso.

«Não casava por dinheiro, como sucedia à maior parte dos meus amigos. Eu era rico, ela era pobre. E outra coisa me envaidecia. Os outros casavam, mas com a intenção de continuarem a viver na poligamia, como antes do casamento. Eu estava absolutamente resolvido a manter-me em monogamia, depois de casado. Era um miserável mas julgava-me um anjo.

«O período de noivado durou pouco. Não posso lembrar esta época sem corar de vergonha.

«Que ignomínia!

«Se o amor é espiritual, só por palavras deve exprimir-se. Mas não é. Quando estávamos juntos era-nos difícil sustentar uma conversa. O assunto esgotara-se. Nada tínhamos para dizer. Tudo, sobre a nossa vida futura, estava dito. Se fôssemos animais sabíamos, de antemão, que não era assunto de conversa. Connosco o caso era diferente. Éramos obrigados a falar e não tínhamos nada para dizer. O assunto que nos interessava não se resolvia com palavras. E havia ainda o terrível costume de oferecer bombons, comer gulodices e tratar dos abjectos preparativos para o novo lar: escolha da casa, do quarto de cama, do leito nupcial e de todas as pequenas coisas da futura vida doméstica.

«Se nos casássemos, segundo os preceitos de Demostoroi, como queria o velho senhor do comboio, os edredons e o enxoval do leito eram pormenores que faziam parte do sacramento. Mas para nós, em que dez pessoas que contraem casamento só uma crê no sacramento, ou pelo menos pensa que é um dever; quando em cem homens há apenas um, que não tenha faltado à castidade e que não esteja na disposição de atraiçoar a mulher legítima; para nós em que a maior parte considera o ir à igreja uma mera formalidade para ter a posse de uma mulher, em particular, que significação podem ter os preparativos pré-nupciais?

«É uma espécie de mercado. Vende-se uma filha a um devasso mas a venda faz-se sob as mais puras e poéticas aparências.»

 

XI

 

— Casei-me como qualquer pessoa e começou a tão desejada lua-de-mel. Como é reles esta expressão! — disse entredentes. — Um dia em Paris fui assistir a todos os espectáculos e entrei, também, levado por um excitante anúncio, a ver uma mulher com barbas e um cão aquático; a mulher era um homem com um vestido decotado e o cão estava metido na pele de uma foca e nadava numa banheira, cheia de água; à primeira vista isto nada tem de comum com a lua-de-mel e nada tem de interessante. Quando saí, porém, o homem que fazia a arenga acompanhou-me amavelmente e dirigindo-se ao público, mesmo à entrada disse, apontando para mim:

 

«— Perguntem a este senhor se não vale a pena ver tão estupendo espectáculo! Entrai! Entrai! É um escudo por pessoa!»

« Não ousei desmenti-lo, claro, e o charlatão tinha a certeza disso. É isto o que provavelmente acontece aos que experimentaram a abominação da lua-de-mel e não têm coragem para desfazer as ilusões dos outros e as suas próprias ilusões.

«Mas eu não desenganei ninguém. Hoje, no entanto, não vejo razão para que não os desengane. Julgo mesmo que é necessário dizer toda a verdade sobre o assunto. A lua-de-mel, como se pratica, é uma coisa terrível, abjecta, insuportável de tédio e cansaço. É, mais ou memos, o que acontece quando se principia a fumar; vontade de vomitar, náuseas, e vai-se engolindo a saliva para fingir que se tem um grande prazer. O cigarro, como o casamento, só provoca prazer depois do hábito, quer dizer, depois da adaptação dos casados.

«É necessário que os esposos saibam regular o vício para que desses actos lhe venham compensações.»

 

— Regular o vício?... — perguntei eu. — Que vício? Você esquece-se de que é uma das manifestações mais naturais da espécie humana.

 

— Natural? — exclamou ele. — Natural? Não, pelo contrário. Cheguei à conclusão de que não é um acto natural. Não é, de nenhum modo, natural. Tive uma irmã que se casou muito nova com um homem dez vezes mais velho do que ela, um devasso. Lembro-me do nosso espanto quando na noite do casamento fugiu de casa e, toda a tremer, nos disse que por nada no mundo... por nada do mundo... nos podia dizer o que ele pretendia dela.

 

«Você diz que é uma coisa natural!... Natural é comer. Comer é uma coisa agradável, fácil e alegre; não inspira vergonha nem mesmo no princípio. Mas isto é uma coisa abjecta, vergonhosa e dolorosa. Não. Não é uma coisa natural. E uma rapariga pura, estou convencido, odiará sempre esse acto.»

 

— Mas, diga-me... Como se reproduziria o género humano?

 

— Sim. É verdade. Conquanto que o género humano não acabe! — disse ele com uma cruel ironia e como se esperasse esta réplica habitual e de má-fé.

 

«Pregar que se devem evitar os filhos para que os lordes ingleses possam comer mais à vontade... é possível.

«Pregar que se abstenham de ter filhos para que a vida seja mais fácil e se possa gozá-la melhor... é possível.

«Mas insinuar que se devem evitar os filhos a bem da moral...

«Meu Deus, que calamidade! Mas irá o género humano desaparecer porque uma dúzia ou vinte homens desejam não viver como porcos?

«Dá-me licença?... A luz incomoda-me, posso apagada?», perguntou ele, apontando para a lâmpada.

 

— É-me indiferente...

 

Precipitadamente, como tudo o que fazia, subiu ao banco e apagou a lâmpada.

 

— De qualquer maneira — disse eu. — Se dessa teoria se fizesse uma lei, o género humano desapareceria. Ele não respondeu imediatamente.

 

— Você quer saber como se perpetuaria o género humano? — disse ele, instalando-se de novo na minha frente, e abriu as pernas, apoiando os cotovelos sobre os joelhos. — Para quê perpetuar o género humano? Para quê?

 

— Para quê?... Sem isso deixaríamos de existir.

 

— E para quê existir?

 

— Para quê?! Para vivermos...

 

— Mas viver para quê? Se não se tem um fim na vida, se a vida nos foi dada por si mesma não há razão para vivermos. Se isto é assim os Schopenhauer, ou os Hartman e todos os budistas têm razão. Se há um fim, desde que é atingido, a vida deve cessar. É esta a conclusão a que chegamos», disse ele com manifesta emoção (dava muita importância ao seu pensamento).

 

«Se o fim da vida é o bem, o amor, como você o entende; se o fim da humanidade é o que dizem as profecias, que todos os homens se unirão pelo amor, e que hão-de forjar-se foices com os ferros das lanças; o que se opõe à realização desse fim? As paixões.

«E de todas as paixões, a mais forte, a mais pérfida, a mais obstinada é a paixão da carne. Por consequência, se suprimirem as paixões, e principalmente a maior de todas, realizar-se-á a profecia; os homens unir-se-ão, o fim da humanidade será atingido e, portanto, não haverá razão para existirmos. Mas enquanto dura a humanidade ela tem de realizar o seu ideal que não é de maneira nenhuma o ideal dos coelhos nem dos porcos que é o de se reproduzirem o mais depressa possível, nem o dos macacos ou dos parisienses que é tirarem o máximo rendimento dos prazeres sexuais. Mas sim o ideal do bem que se atinge pela continência e pela pureza. É para aí que tendem os homens e sempre tenderão.

«Veja o que daqui resulta. Resulta que o amor carnal é uma válvula de segurança. Se a geração dos homens actualmente viva não atinge esse fim é unicamente porque tem paixões e a mais forte de todas, a paixão dos sentidos. Virá então uma geração que talvez cumpra a lei, mas se essa não atingir o fim para que foi criada outra virá até que se realize a profecia, a união de todos os homens. O amor sensual é o sinal do desprezo pela lei. Enquanto esse amor existir ir-se-ão formando gerações umas após outras até que a lei se cumpra.

«A espécie mais elevada dos animais, a espécie humana, devia, para se manter na luta contra os outros animais, assemelhar-se em tudo a um enxame de abelhas; não se multiplicar até ao infinito. Devia, como as abelhas, criar assexuados, isto é, caminhar para a continência e não para o sensualismo para o qual está organizada a vida moderna.»

 

Calou-se por momentos.

 

— O género humano deve desaparecer? De qualquer maneira que encaremos o problema não se pode duvidar. É certo como a morte. Segundo a doutrina da Igreja o mundo terá um fim; segundo os ensinamentos da ciência esse fim é indubitável. Que admira pois que o ensino da moral nos conduza à mesma conclusão?

 

Esteve calado durante muito tempo, depois bebeu mais um gole de chá, acabou o cigarro, tirou outros do saco e meteu-os na sua velha cigarreira.

 

— Compreendo o seu pensamento, os Shakers sustentam uma tese, mais ou menos parecida.

 

— Sim. Eles têm razão. A paixão sexual, qualquer que seja o cenário que a envolva é um mal horrível que é preciso combater e não encorajar como se procede entre nós.

 

«Quando o Evangelho diz que um homem que olha para uma mulher com cobiça já cometeu com ela adultério no seu coração — tem em vista não só as mulheres dos outros mas expressamente, e sobretudo, a sua própria mulher.»

 

XII

 

— Na nossa sociedade é exactamente o contrário; se um homem pensa quando é solteiro que deve ser continente, ao casar entende que tem de deixar de o ser.

 

«As viagens depois da cerimónia nupcial, o isolamento em que se colocam os recém-casados, com a autorização dos pais, não são outra coisa que a permissão de se entregarem ao prazer.

«Apesar de todos os meus esforços eu não consegui organizar a minha lua-de-mel.

«Esta época da minha vida foi horrorosamente aborrecida e ignominiosa. E muito depressa se tornou intolerável. Começou cedo. No terceiro ou quarto dia pareceu-me que a minha mulher estava triste e, pensando que ela precisava de carinhos, perguntei-lhe o que tinha e tentei beijá-la; repeliu-me e desatou a chorar. Porquê?... ela não o sabia dizer. Estava triste e mal disposta. Sem dúvida os nervos gastos deixaram-na compreender a verdade sobre a infâmia das nossas relações. Mas ela não o sabia explicar. Como eu continuasse a interrogá-la, confessou-me que sentia muito a falta da mãe. Tive a impressão de que não era verdade. Sem lhe falar na mãe, comecei a chamá-la à razão.

 

«Eu compreendera que ela atravessava um momento difícil e a razão que me dera era um pretexto.

«Ofendeu-se por lhe não ter falado na mãe e por não a ter acreditado. Confessou-me que percebia, claramente, que eu já não a amava. Censurei-a por ser caprichosa. Então a sua fisionomia alterou-se completamente. Em vez de tristeza exprimia irritação e, em frases mordazes, censurou o meu egoísmo e a minha crueldade. Fitei-a. Não parecia a mesma. A expressão era de hostilidade, quase ódio. Lembro-me que senti pavor ao fazer esta descoberta.

 

— Como pode isto ser — pensei eu. — O amor é a união das almas.

 

«Tentei acalmá-la, mas embati num muro tão intransponível de hostilidade e frio amargor que, antes de ter tempo de me vencer, tomou-me uma funda irritação e vomitámos um sobre o outro uma avalanche de palavras desagradáveis.

«A impressão do primeiro desentendimento foi atroz. Chamo a isto desentendimento, mas não foi desentendimento foi a revelação do abismo que, na realidade, nos separava. Era a consequência do amortecimento das nossas relações mais íntimas. Eu não compreendi logo, porque esta hostilidade nos primeiros tempos desvanecia-se com um novo sobressalto dos nossos sentidos.

«Julguei a princípio que estas cenas não recomeçariam. Porém, passada a lua-de-mel houve um novo período de saciedade. Deixámos de precisar um do outro e deu-se uma nova discussão.

«Esta segunda disputa feriu-me mais do que a primeira, porque surgiu sob um pretexto inverosímil; por causa de uma economia de dinheiro que eu era incapaz de fazer para mim e muito menos para a minha mulher.

«Lembro-me dela ter conseguido virar completamente o sentido de uma expressão que eu empregara e servir-se dela como argumento para provar que eu a queria subjugar pela força do meu dinheiro... Foi insuportável, estúpida, reles, indigna dela e de mim.

«Irritei-me. Reprovei-lhe a sua falta de delicadeza. Ela censurou-me asperamente e tudo recomeçou. Nas palavras pronunciadas e na expressão da sua fisionomia e no seu olhar percebi, de novo, essa mesma hostilidade dos primeiros dias que tanto me ferira.

«Discuti muitas vezes com meu irmão, com os meus amigos, com meu pai, mas, nunca entre nós se manifestou o ressentimento pessoal e venenoso que notei na minha mulher. Mais uma vez ainda este ódio recíproco se atenuou com um novo sobressalto dos sentidos e eu cheguei a ter esperança de que estas discussões eram reparáveis. Mas outros desentendimentos surgiram por tudo e por nada e eu compreendi que não era o acaso, e, era este, para sempre, o inferno que me esperava.

«Além disso estava convencido de que só a mim isto acontecia, ser eu o único a suportar esta dolorosa vida com a minha própria mulher e em todos os outros lares as coisas se passavam de modo diferente.

«Nessa época eu ignorava que é esta a sorte comum da maior parte das famílias, mas todos, como eu, se julgam casos únicos e guardam para si esta desgraçada vergonha. Esta situação começou nos primeiros dias e continuou sempre e, cada vez, com maior intensidade.

«No fundo da minha alma eu compreendi depois das primeiras semanas ter caído na ratoeira: nada do que se passava era o que eu esperava e o casamento não só não dava felicidade mas era qualquer coisa de amargurante. Como toda a gente eu recusava-me a confessá-lo (eu não o confessaria ainda hoje, se não se tivesse dado o trágico desenlace) e guardei dos outros, e até de mim, esta verdade.

«Admiro-me agora de não ter visto, de princípio, a minha verdadeira situação. E eu podia tê-la visto desde essa época, porque as nossas discussões começavam por tais ninharias que quando acabavam era impossível saber por que tinham principiado. Mas se os motivos das discussões eram inverosímeis muito mais inverosímeis eram os motivos da reconciliação. Algumas vezes eram só palavras, explicações e mesmo lágrimas de parte a parte, mas algumas vezes... repugna-me lembrá-lo. As insinuações mais cruéis transformavam-se, de súbito, sem uma palavra, em sorrisos, beijos e profundos enternecimentos.

«Que abominação!... Por que não compreendi então toda a abjecção do nosso procedimento?»

 

XIII

 

Entraram dois novos viajantes e instalaram-se num lugar afastado. Ele calou-se, enquanto eles se instalaram, mas logo que cessou o burburinho continuou, dando a impressão de que não perdera o fio do pensamento:

 

— ... O que é imundo é que, em teoria, se considere o amor como uma coisa ideal, nobre, quando afinal a prática do amor é qualquer coisa de sórdido que nos avilta e nos põe a par dos porcos, coisa abominável e vergonhosa de se falar em frente de quem quer que seja! Mas os homens querem tornar admirável e superior o que não é senão sórdido e reles.

 

«Quais foram os primeiros sinais do meu amor?... Entregar-me a uma exuberância animal. E não só não tinha vergonha mas blasonava desta minha possibilidade de transportes físicos, sem pensar na vida espiritual nem mesmo na vida física.

«Muitas vezes procurei a razão da nossa profunda animosidade um contra o outro, e contudo era bem compreensível e claro: esta animosidade não era outra coisa do que o protesto da natureza humana contra a animalidade que a abafava. Confrangia-me a nossa aversão; mas não podia ser de outro modo. Esta aversão não era outra coisa do que o ódio recíproco dos cúmplices de um crime... por instigação e por participação. Era um verdadeiro crime.

«Minha mulher concebeu desde o primeiro mês e, apesar disso, a nossa vida em comum continuou, como verdadeiros animais.

«Julga que me estou a afastar do assunto? De maneira nenhuma. Continuo a contar-lhe como matei a minha mulher.

«No tribunal perguntaram-me com que havia morto minha mulher. Cambada de imbecis!... Estavam convencidos de que a havia morto no dia cinco de Outubro, com uma faca. Não foi nesse dia que a matei; foi muito antes. Como eles matam continuamente...»

 

— Mas, não percebo... Como matam?...

 

— Eis o que é espantoso; ninguém quer saber o que é evidente e claro, o que devem saber e difundir os médicos e é horrorosamente simples.

 

«O homem e a mulher foram criados como os animais de tal modo que, depois do amor carnal começa a gestação, depois o aleitamento, estados em que o amor carnal é nocivo à criança e à mulher.

 

«Não é necessário uma grande ciência para se concluir que, como afinal concluem os animais, no período de gestação e aleitamento deve haver continência. Mas não. A ciência já chegou a descobrir não sei que leucócitos que correm no sangue e outras inépcias que não servem para nada mas não pôde ou não quis descobrir isto. Pelo menos nunca ouvi dizer que tenha sido abordado tal assunto. De modo que para a mulher só há duas saídas: a primeira fazer de si própria um monstro, destruir ou tentar destruir em si, segundo as necessidades, a faculdade de ser mulher, isto é, mãe, a fim de que o homem possa, tranquilamente e de uma maneira constante, satisfazer-se; a segunda modalidade, que não é um expediente mas a violação directa, simples e grosseira das leis da natureza e se pratica em todas as famílias consideradas honestas. A mulher, violentando a sua própria natureza deve ser ao mesmo tempo grávida, ama e amante e deve ser rebaixada até onde não são os animais.

«Esgotam-se-lhe as forças. E daí provêm os muitos casos de histeria; de doenças de nervos e no povo... as possessas. Note você que os casos das possessas não se encontram entre raparigas puras, mas somente entre as mulheres casadas e entre as casadas as que coabitam com os maridos.

«E assim entre nós e é assim na Europa. Os hospitais estão cheios de mulheres histéricas porque infringiram as leis da natureza.

«As possessas e as doentes de Charcot são verdadeiras doentes, e o mundo está cheio de estropiadas.

«Se pensássemos na grande obra que se realiza na mulher quando ela traz dentro de si um filho, ou quando o amamenta!...

«O que ela traz em si é a nossa continuação, quem nos substituirá... e esta obra sagrada é comprometida... Porquê?

«É acabrunhante meditar nisto. Fala-se muito nos direitos da mulher e, afinal, é como se os antropófagos engordassem os prisioneiros para os comer, afirmando contudo que muito os interessa os direitos e liberdade desses mesmos prisioneiros.»

Tudo isto era novo para mim e interessou-me:

 

— Mas nesse caso um homem só pode amar a mulher uma vez, de dois em dois anos, e o homem...

 

— E o homem não pode sujeitar-se a tanto...

 

«Os ilustres sacerdotes da ciência assim o fazem crer a todo o mundo. Gostaria de poder obrigar estes magos da ciência a substituir as mulheres nestas obrigações que, segundo eles, são indispensáveis aos homens.

«Convença um homem de que é indispensável à vida a vodca, o tabaco, o ópio e tudo isto se tornará indispensável.

«Deus porque não consultou esses adivinhos da ciência, não compreendeu o que era necessário e falhou. Há portanto qualquer coisa que não está certa.

«Se para o homem (os magos assim o determinam) é uma necessidade satisfazer a sua concupiscência e se a procriação e o aleitamento são um obstáculo à satisfação dessa necessidade, que fazer então? Dirigirem-se aos magos e tudo se arranja. Eles têm a solução para todos os problemas.

«Quando serão destronados estes adivinhos e as suas imposturices?...

É tempo!

«Veja ao que chegamos; uns enlouquecem, outros suicidam-se, e tudo tem a mesma causa.

«Mas como proceder de outro modo?

«Os animais parecem compreender que a descendência assegura a continuidade da espécie e observam a esse propósito a lei que a regula. Só um animal a ignora e faz por ignorar. De quem se trata? Do rei da natureza. Do homem!

«Note que os animais se acasalam quando pressentem que podem ter descendência, e que ao imundo rei da natureza todo o tempo lhe serve, conquanto tire disso proveito. E ainda mais, esta ocupação de macaco é exaltada como a pérola da criação, o amor. Em nome deste amor, ou melhor, desta abominação, assegura a perda de quem? De metade do género humano! De todas as mulheres que deveriam ser suas colaboradoras na evolução da humanidade para o bem e para a verdade, mas em nome do prazer se fazem, não auxiliares, mas inimigas.

«Observe o que refreia o movimento de avanço da humanidade: as mulheres. E porquê? Unicamente por isto. Sim. Sim», repetiu ele várias vezes e pôs-se muito agitado. Procurou os cigarros, acendeu um com o desejo evidente de se acalmar.

 

XIV

 

— Vivi assim, como um porco — continuou ele no mesmo tom que dantes.

 

«E o pior era que levando esta vida infame, considerava-me — porque não seduzia outras mulheres e levava uma existência conjugal honesta — um homem irrepreensível. Não me sentia culpado e atribuía as questões que surgiam, entre nós, ao mau carácter da minha mulher.

 

«Mas não era ela a culpada. Ela era como a maior parte.

«Tinha sido educada como são quase todas as mulheres da nossa sociedade. Há quem se queixe da forma como a mulher é educada. Há quem deseje dar-lhe outra orientação. É fogo de vista.

«A mulher recebe e receberá a educação dentro do espírito em que a considerem. A educação da mulher corresponderá sempre à maneira como o homem a julgue.

«Sabemos todos o que o homem pensa da mulher.

«Tanto na poesia, como na pintura ou na escultura, só se considera a mulher como instrumento de prazer; começando pela poesia amorosa, pelas Vénus e as Phrineas nuas todas elas e isto é assim em Trouba, em Gratchevka e nos bailes da corte. Quando se fala de voluptuosidade e de prazer pensa-se na mulher.

«No princípio, os cavaleiros divinizavam a mulher (divinizavam-na mas, mesmo assim consideravam-na um instrumento de prazer).

«Hoje pretende dizer-se que se respeita a mulher. E assim uns cedem-lhe os seus lugares e apanham-lhe o lenço; outros reconhecem-lhe o direito de exercer todas as funções e de tomarem parte na administração.

«Fazem tudo isto, mas a opinião é sempre a mesma: o corpo da mulher é um instrumento de prazer. E a mulher sabe-o. Esta atitude não difere muito da escravatura. A escravatura é a exploração por uns do trabalho forçado de um grande número. Para que não haja escravatura é necessário que os homens não queiram usufruir o trabalho forçado de outros e considerem isto como pecado ou uma desonra. Enquanto isto se não der suprime-se a forma exterior da escravatura, tomam-se disposições para impedir os mercados de escravas e fica-se persuadido de que a escravatura foi abolida. Não vêem, não querem ver que a escravatura continua a existir porque se continua a amar da mesma maneira, e se julga bom e justo aproveitar o trabalho forçado dos outros. E porque se julga bom este procedimento haverá sempre mais fortes e mais manhosos para passarem do pensamento aos actos. O mesmo se dá com a emancipação das mulheres. A escravatura da mulher consiste só no facto de os homens a considerarem como instrumento de prazer. Modernamente emancipam-na, concedem-lhe todos os direitos do homem, mas como é imprescindível para a satisfação das suas necessidades fisiológicas educam-na neste sentido desde a infância. Assim ela é uma escrava, humilhada, pervertida, e o homem um corrompido senhor de escravos.

«Emancipam a mulher nas universidades e nos parlamentos mas, de facto, só a consideram escrava dos sentidos. Ensinai-a como entre nós a considerá-la da mesma maneira e a mulher será sempre uma criatura inferior.

E com a ajuda dos médicos ela impedirá a concepção, e cruelmente diremos que não passa de uma prostituta, descerá ao mais baixo nível, descerá abaixo dos animais e será um objecto ou em muitos casos, uma doente moral, uma histérica, uma infeliz, o que elas são na realidade sem possibilidades de se desenvolverem espiritualmente.

«Os liceus e as universidades não têm possibilidades de modificar este estado de coisas. Só a mudança radical da opinião que os homens têm das mulheres e as mulheres não têm dos homens pode modificar um tal estado de coisas. Isto acabará quando a mulher se convencer de que o estado mais perfeito é o da virgindade.

«Enquanto o ideal de toda a rapariga, qualquer que seja a sua formação, for o de atrair o maior número de homens para poder fazer a sua escolha, nada mudará.

«Ou seja instruída nas matemáticas ou saiba executar maravilhosamente trechos de harpa nada mudará...

«A mulher só é absolutamente feliz se obtém o que pode desejar, isto é, conseguir embruxar um homem. Será sempre assim... Isto passa-se na nossa sociedade, na vida das raparigas solteiras, e depois, na vida de casadas, o fim é sempre o mesmo: dominar o homem.

«A única coisa que põe termo a esta situação é o nascimento dos filhos.

E quando a mulher não é um monstro, a sua criação.

«É então que intervêm mais uma vez os sacerdotes da ciência.

«Minha mulher, que quis, por todos os modos amamentar o primeiro filho e alimentou todos os outros cinco teve durante a primeira gravidez umas pequenas crises.

«Os médicos cinicamente obrigavam-na a despir-se, apalpavam-na em todos os sentidos (e eu tive que lhes pagar por esse trabalho) e por fim estes caros doutores decretaram que ela não devia criar o bebé e assim ficou privada durante os primeiros tempos do único meio de se subtrair à coqueteria.

«O nosso primeiro filho foi criado por ama e dizendo por forma mais rude: “Aproveitámos a miséria, a indigência, e a ignorância de uma pobre mulher tirámo-la ao filho e sob este pretexto enfeitámos-lhe a cabeça com uma coifa de fitas.” Mas não é disso que se trata.

«O problema é que desde que ela se libertou da gravidez e da criação a coqueteria feminina que estava entorpecida despertou com uma força particular. E ao mesmo tempo sobrevieram-me, paralelamente e com a mesma força, os tormentos do ciúme.

«Dilaceraram-me sem tréguas durante todo o tempo que vivi com minha mulher da mesma maneira que dilaceram todos os casais que vivem com as suas mulheres como eu vivia, isto é, de uma maneira perfeitamente imoral.»

 

XV

 

— Durante todo o tempo que vivi com a minha mulher nunca deixei de experimentar os tormentos do ciúme. E houve mesmo períodos em que sofri com profunda acuidade. Um desses períodos foi depois do nascimento do primeiro filho quando os médicos proibiram que minha mulher o amamentasse.

 

«Sofri horrorosamente, primeiro porque minha mulher sentia uma inquietação própria de todos os que sem razão perturbam a marcha regular da existência; segundo porque vendo-a enjeitar a sua responsabilidade de mãe conclui, inconscientemente, que lhe seria fácil fugir às suas responsabilidades de mulher casada, tanto mais que ela estava de perfeita saúde. Apesar da interdição dos médicos ela criou ao peito todos os outros filhos.»

 

— Decididamente você não gosta dos médicos — disse-lhe eu. Notara que sempre que falava dos médicos dava uma entoação particularmente odiosa às palavras.

 

— Não é questão de gostar ou não gostar; arruinaram-me a vida como arruinaram e continuam a arruinar a vida de milhares, de centenas de milhar de pessoas. Compreendo que eles desejem ganhar dinheiro, como os advogados e outros profissionais.

 

«Conceder-lhes-ia metade dos meus rendimentos e todas as pessoas, se compreendessem bem o que eles fazem, lhes cederiam, de bom grado, metade dos seus rendimentos, só para que eles se não metessem na nossa vida.

«Não juntei todas as minhas informações, mas conheço dezenas de casos e há muitos mais em que, umas vezes mataram o filho no ventre da mãe, outras vezes mataram a mãe sobre o pretexto de não sei que operação. É impossível de enumerar os crimes que cometeram. Mas todos estes crimes não são nada comparados com a corrupção moral e com o materialismo que eles têm introduzido no mundo, por intermédio das mulheres. Eu não falo das prescrições que eles exigem (a respeito por exemplo dos contágios) e fazem a desunião entre os homens; segundo eles devíamos andar sempre com uma seringa de fenol na boca. Mas isto não é nada. O principal veneno é a corrupção dos seres, principalmente das mulheres. Hoje é quase impossível dizer: “Vives mal, procura viver melhor.” Não se pode dizer isto nem a si próprio nem a ninguém. Se se vive mal a causa está no mau funcionamento dos nervos ou outra qualquer coisa do mesmo género. Então vamos a correr ao médico e prescrevem-nos trinta e cinco copeques de medicamentos e devoramo-los. Você piora, corre a outros médicos, são precisas novas drogas, outros médicos! Uma fantochada! Mas a questão não é essa.

«A minha mulher amamentou perfeitamente os filhos e só a gravidez e a amamentação me salvaram da tortura dos ciúmes e sem os filhos, o que aconteceu, ter-se-ia dado mais cedo... Os filhos salvaram-na e salvaram-me. Em oito anos deu à luz cinco filhos. E foi ela quem os amamentou.»

 

— Onde estão agora os seus filhos? — perguntei.

 

— Onde estão os meus filhos?— repetiu ele com um ar desvairado.

 

— Desculpe, talvez lhe custe responder-me.

 

— Não. É-me indiferente. Os irmãos de minha mulher tomaram conta deles. Não mós entregaram. Deixei-lhes os meus bens, mas eles não mós entregaram. Sabe, eu sou uma espécie de louco. Venho agora de casa deles.

 

Vi-os. Mas não mós entregarão. Porque eu os educaria de modo diferente, para que não fossem como os pais. Ora é preciso que eles sejam como os pais. Que fazer? Compreendo que eles mós não entreguem e que não tenham confiança em mim. Nem sei mesmo se teria força para os educar. Penso que não. Eu sou uma ruína, um estropiado. Não há senão uma coisa para mim.

Eu sei. Sim. É verdade. Eu sei o que os outros não saberão tão cedo. Sim, os meus filhos estão vivos. E crescem como selvagens, como todos em volta deles. Vi-os umas três vezes ao todo. Não posso fazer nada por eles. Nada. Por agora vou para minha casa no Sul. Eu tenho uma casita e um jardim pequeno.

«Não. Não é tão cedo que os outros saberão o que eu sei. Dentro em breve saber-se-á que no Sol e nas estrelas há muito ferro e outros metais... saber-se-á em breve... Mas o que mascara a nossa vilania... é difícil, muito difícil... horrivelmente difícil de saber.

«Você ao menos ouve-me e eu estou-lhe muito reconhecido.»

 

XVI

 

— Você falou-me dos filhos. A propósito dos filhos tem-se espalhado lamentáveis mentiras. Os filhos são uma bênção do céu. Os filhos são a alegria da casa.

 

«Outrora tudo isto era verdade, mas agora não existe nada de semelhante. Os filhos são um tormento e, nada mais. A maior parte das mães sentem-no e dizem-no francamente. Pergunte à maior parte das senhoras da nossa sociedade, à classe das pessoas abastadas e elas responder-lhe-ão de que o medo de que os filhos adoeçam ou morram faz com que elas os evitem. Não os querem ter; e se os têm não os querem amamentar para não se prenderem e não sofrer. O prazer que lhes proporciona o filho pela graça do pequenino corpo, das mãozinhas, dos pezitos, não compensa o sofrimento que tem com o pensamento que o pequenino ser possa adoecer. E não falamos na doença de facto... e da possível morte. Pesando os prós e os contras verifica-se que não é vantajoso ter filhos e portanto não são desejáveis. Elas dizem-no abertamente e orgulhosamente convencidas de que estes sentimentos provêm do amor, de um sentimento nobre de que se sentem ufanas. E não compreendem que com este raciocínio negam o amor e não mostram senão egoísmo. Elas encontram mais sofrimento do que prazer na graça do filho. Não querem sacrificar-se por um ser amado, elas imolam a si próprias um ser que devia ser amado. Não é amor é egoísmo.

«Quando penso ainda agora na vida e no estado da minha mulher nos primeiros tempos quando tínhamos três e depois quatro filhos e ela estava completamente absorvida por eles apodera-se de mim um verdadeiro terror.

Não era vida era um perigo perpétuo mal se aproximava a salvação; surgia logo de seguida outro perigo, fazíamos esforços desesperados... vivíamos em permanente alerta como num navio em perigo de naufrágio.

«Algumas vezes tive a impressão de que se servia da doença dos filhos para me vencer. Ela resolvia assim os problemas em seu proveito, e tudo o que fazia e dizia nessas ocasiões era premeditado.

«Os filhos eram uma constante tortura para ela e para mim. Não podia estar sem se atormentar. A necessidade de alimentar os filhos, de os adormecer, de os defender, existia nela como na maior parte das mulheres.

«Mas ela não era como os animais: tinha raciocínio e imaginação.

«A galinha não receia o que pode acontecer aos pintos, porque ignora as doenças que os podem matar, desconhece os meios pêlos quais os homens estão convencidos de que se preservam da doença e da morte. Ela faz pêlos pintos o que é natural e agradável fazer; os pintos são para a mãe um motivo de alegria. Se um pinto cai doente os seus cuidados estão determinados: aquece-os, alimenta-os. Fazendo isto, ela sabe que faz tudo o que é necessário.

Se um pinto morre não lhe interessa saber qual a razão por que morreu, solta alguns cacarejes e continua depois a sua vida de galinha.

«Mas para as nossas infelizes mulheres, e portanto para a minha, a coisa é muito diferente. Sem mesmo falar das doenças e da maneira de as tratar e de educar os filhos, ela procurava por todos os modos elementos que a auxiliassem em tudo o que lhes dizia respeito. Nas conversas, nas leituras, procurava regras de conduta que variam até ao infinito e mudam a todo o momento.

«Devem alimentar-se sob certas regras, vestirem-se, e beberem, dormirem, apanharem ar. Nós, mas muito principalmente ela, descobríamos todos os dias novos preceitos. Como se fosse a primeira vez que nascessem bebés. Fora dessas regras se as crianças não se alimentavam como devia ser, se não se lhes dava banho com os preceitos requeridos: e, por fim, se a criança ficava doente era ela que tinha a culpa, porque não tinha feito o que era aconselhável. Isto em períodos de perfeita saúde. E já era um suplício. Mas se algum dos filhos caía doente era o fim do mundo. Um verdadeiro inferno. Admitimos perfeitamente que se trate uma doença. Há para isso uma ciência e homens que sabem, os médicos; nem todos, mas os melhores.

«Uma criança adoece, se conseguimos apanhar o médico, a criança salva-se. Mas se não se encontra o médico ou se não se vive no lugar em que o médico vive a criança morre, com certeza.

«Não é uma característica só da minha mulher é de todas as mulheres do seu meio e de todos os lados não se ouve dizer senão: “Catarina Semenova perdeu dois filhos porque não foi chamado a tempo, o doutor Zakharitch; Ivan Zakharitch salvou a filha mais velha de Ivanovna... Em casa dos Petrov acautelaram-se a tempo. A conselho do médico separaram todos os filhos, que doutro modo se não salvariam. Um outro bebé fraquinho a conselho do médico foi instalar-se no Sul e salvou-se...”

«Como não nos inquietarmos e não se perturbar toda a vida familiar quando a vida das crianças — às quais se está ligado de uma maneira animal — depende do que dirá Ivan Zakharitch? E o que dirá Ivan, ninguém o sabe, como ele próprio não sabe. Perfeitamente só sabe que não sabe nada e nada pode fazer; anda às cegas. Mas é preciso que todos estejam convencidos de que ele sabe qualquer coisa. Se ela fosse um animal não se atormentaria, e se fosse, de facto, uma pessoa humana, teria fé em Deus, diria e pensaria como as camponesas crentes: “Deus mo deu, Deus mo tirou; estamos todas nas mãos de Deus.” Pensaria que a vida e morte de todos os seres como o das crianças escapam ao poder dos homens. Confiaria em Deus e não se atormentaria, julgando que estava na sua mão poder conjurar a doença e a morte dos filhos.

«Mas não. Sentia por eles um amor animal, apaixonado. Eram-lhe confiados mas eram-lhe interditos os meios de os salvaguardar enquanto outras pessoas os possuíam — estranhos cujos serviços e conselhos só podíamos adquirir por muito alto preço, e nem sempre.

«A vida dos filhos foi para a minha mulher e, consequentemente, para mim também, uma tortura. Como não nos atormentarmos? Ela atormentava-se por tudo e por nada.

«Mal saíamos de uma cena de ciúmes ou de uma simples questão e pensávamos poder viver, ler ou reflectir um pouco e empreendíamos qualquer trabalho, sabia-se de repente que, Vassia vomitava, que Macha perdia sangue, que André tinha uma erupção, e era o fim. Não se podia fazer mais nada.

«A que médico devíamos recorrer? Como isolar as crianças? E então começava a cena dos clisteres, das temperaturas, das visitas médicas.

«Mal acabava uma logo começava outra. Não tínhamos vida de família sólida nem regular.

«Era, como lhes digo, uma luta constante contra perigos reais e imaginários.

«E aliás isto o que acontece assim, agora, na maior parte das famílias.

«Mas na minha tinha uma acuidade particular. A minha mulher era especialmente mãe e crédula. A existência de filhos em vez de nos facilitar a vida envenenava-a. Os filhos eram para nós motivo de contínuos dissabores. Desde o momento em que os filhos apareceram e depois cresceram a maior parte das vezes só serviram, como pretexto, da nossa desunião. Eles foram não só os elementos de desunião mas instrumento de combate; batíamo-nos, de qualquer maneira, através dos filhos. Cada um de nós tinha a sua preferência, o seu instrumento de combate. E ainda não é tudo. Quando os filhos começaram a crescer e se foram desenhando os seus caracteres tornaram-se aliados que nós atraímos para o nosso campo. Sofriam horrorosamente, os pobres pequenos, mas na nossa guerra perpétua não tínhamos tempo para pensar neles. A rapariga pertencia ao meu partido; o mais velho dos rapazes, que se parecia muito com a mãe e era o seu preferido, tornou-se-me muitas vezes odioso.»

 

XVII

 

— E assim íamos vivendo. As nossas relações foram-se tornando cada vez mais hostis. E chegámos à situação de serem os nossos dissentimentos que criaram a animosidade e não a animosidade que criava os dissentimentos. Eu estava sempre contra o que ela defendia, e o mesmo se dava com ela.

 

«Ao quarto ano de casados desistimos de nos compreendermos, de tentar explicar-nos e nem sequer nos podíamos ouvir.

«Nas coisas mais simples mas, principalmente em tudo o que se tratasse dos filhos, mantínhamo-nos em atitudes irredutíveis. Na maioria dos casos eu poderia ter cedido nas minhas opiniões; mas isso significava dar-lhe razão e era o que eu de maneira nenhuma queria. Não podíamos mais, nem ela nem eu. Cada um de nós entendia ter sempre razão, e eu até me considerava um santo.

«Qualquer animal podia manter as conversas que nós tínhamos quando estávamos sós — estou disso completamente convencido.

«Que horas são? Que temos hoje para o jantar? .... Onde iremos passar a noite?... Que dizem os jornais?... É preciso ir chamar o médico... A Macha tem a garganta inflamada...

«Se os temas da conversação se afastassem um cabelo deste colóquio, a discussão atingia o auge. Tivemos discussões violentíssimas por causa do café, da toalha da mesa, da carruagem, assuntos que, de resto, não tinham o mais pequeno interesse para nós.

«No fundo de mim borbulhava continuamente um ódio hediondo. Odiava-a por tudo, porque levava a colher à boca, porque sorvia o chá, porque balançava a ponta do pé, como se todos estes actos fossem indignos.

«Nunca tinha dado conta de que os períodos de ódio surgiam regularmente e paralelos aos períodos a que chamamos amor. Um período de amor, um período de ódio; um período de amor intenso, um período longo de ódio, pequenas manifestações de amor, curto período de ódio.

«Não compreendíamos que o amor e o ódio eram manifestações diferentes do mesmo sentimento animal. Seria horrível compreender a situação em que nos encontrávamos, mas, nem sequer a víamos.

«E ao mesmo tempo a salvação e o castigo do homem.

«Quando levamos uma vida irregular envolve-nos uma neblina que nos não deixa distinguir o carácter desastroso do nosso procedimento. Era o que se dava connosco. Ela procurava atordoar-se na tensão e frenesim das suas ocupações de mãe de família: o arranjo da casa, das suas toilettes e da dos filhos, dos estudos e da saúde dos pequenos. Por meu lado tinha a agitação do trabalho, da caça e do jogo. Estávamos sempre ocupados. Sentíamos que, quanto mais tempo estivéssemos ocupados, mais nos feriamos um ao outro.

«“Podes fingir à vontade; massacraste-me toda a noite e eu tenho de ir para uma sessão”, pensava eu. Por seu turno ela não somente pensava mas dizia: “Tu todo repimpado; e eu não consegui pregar olho porque o filho levou a noite inteira a chorar.”

«Vivíamos envolvidos por perpétuo nevoeiro, sem vermos a situação que criáramos. Se o que aconteceu não tivesse acontecido e se continuássemos a viver assim até à velhice, ao morrer pensaríamos que tínhamos levado uma vida muito boa, não particularmente boa, mas como a de toda a gente, e não teríamos compreendido o abismo de infelicidade e odiosa mentira em que nos debatíamos.

«Éramos dois forçados presos à mesma grilheta, odiando-nos mutuamente, e mutuamente nos envenenando a existência e procurando ocultarmo-nos de nós próprios. Eu desconhecia que a maior parte dos casais, noventa e nove por cento, vivem no inferno em que eu vivia e não podia ser de outro modo.

«Há uma série de pormenores nas vidas irregulares como na vida regular. Quando os pais tornam a vida intolerável é indispensável instalar-se a família na cidade, não só para a educação dos filhos como também para serem menos possíveis as questões.»

Aproximávamo-nos de uma estação.

 

— Que horas tem? — perguntou ele. Vi as horas; eram já duas da manhã.

 

— Você já está cansado?— perguntou ele.

 

— Não. Você é que deve estar extenuado.

 

— Eu sufoco. Se me dá licença vou andar um bocado e beber um copo de água.

 

Atravessou a carruagem cambaleando. Fiquei sozinho e fui recapitulando o que ele me dissera e de tal forma estava entregue aos meus pensamentos que o não vi entrar por uma outra portinhola.

 

XVIII

 

— Deixo-me arrastar pelo sofrimento — começou ele. — As minhas opiniões evoluíram e há muitas coisas que encaro, hoje, de forma diferente, mas eu tenho necessidade de desabafar.

 

«Instalámo-nos na cidade. A vida na cidade é mais suportável para as pessoas infelizes... Um homem pode viver cem anos na cidade, estar há muito morto e putrefacto sem que ninguém dê por isso.

«Nunca há tempo de fazer exame de consciência. Estamos sempre ocupados com negócios, com as relações sociais, com as artes, com a saúde e com as doenças dos filhos e com a sua educação. É sempre necessário visitarmos a casa de um ou de outro. Nas cidades há sempre três ou quatro grandes acontecimentos a que se não pode faltar.

«Vivíamos melhor assim e sentíamos menos o sofrimento que no acarretava a coabitação.

«Nos primeiros tempos da mudança tivemos ocupações milagrosas, a nova instalação e as frequentes deslocações da cidade para o campo e do campo para a cidade.

«Passou assim um Inverno.

«No segundo Inverno, porém, deu-se um acontecimento insignificante na aparência, que passou quase despercebido e foi, afinal, a origem de toda a tragédia.

«Ela adoeceu. Os tratantes dos médicos aconselharam-na a não ter filhos e ensinaram-lhe o processo de não conceber. Esta determinação causou-me horror. Tive de aceitar como boa uma decisão que me repugnava, mas que tinha atacado com fraco ardor. Era a última justificação para a nossa vida de porcos. Roubaram-nos os filhos; a nossa situação tornou-se mais abjecta.

«Ao camponês são-lhe necessários os filhos, ainda que lhes custe a educá-los e há por isso uma justificação para as suas relações conjugais. Para nós, porém, que já temos muitos filhos e não temos necessidade deles, os filhos só representam aumento de despesas e são, afinal, uma carga pesada e não temos, por isso, maneira de justificar a nossa vida de porcos. E então ou nos livramos dos filhos artificialmente ou os consideramos uma calamidade como a consequência de uma imprudência, o que é ainda mais repugnante. Caímos tão baixo que nem sequer sentimos necessidade de uma justificação.

A maior parte da sociedade, pretensiosamente, cultivada entrega-se a esta forma de prazer sem o menor remorso. Não há remorso porque não há consciência do pecado.

«Se nos podemos exprimir assim só conta a consciência da opinião pública e a do Código Penal. E quase nem uma nem outra se perturbam. Quase não vale a pena importar-mo-nos com a opinião pública. Todos fazem o mesmo: Maria Pavlovna como Ivan Zakharitch. Não devemos por isso ter escrúpulos, nem temer o Código.

«Só as raparigas de má vida e as mulheres dos soldados deitam os filhos recém-nascidos nos poços e nos lagos; esses, está bem, devem ser castigados, devem ser metidos na cadeia. Entre nós tudo se faz a tempo e com limpeza.

«Vivemos assim dois anos. O processo usado por aqueles velhacos deu excelentes resultados. Ela readquiriu a sua elegância antiga. Engordou um pouco. Era já uma formosura de Outono. Ela percebia isso e tinha muito cuidado consigo. Criou uma beleza provocante e inquietante.

«Possuía toda a pujança de uma mulher de trinta anos. Não concebia e alimentava-se bem. O seu aspecto era perturbador. Era uma égua bem tratada que estivesse muito tempo presa e a quem tivessem soltado as rédeas, como de resto noventa e nove por cento das mulheres. Pressentia isso e tive medo.»

 

XIX

 

De repente levantou-se e foi sentar-se junto da janela.

 

— Desculpe-me — disse ele e esteve três minutos com o olhar fixo. Suspirou profundamente e voltou, de novo, a sentar-se junto de mim.

 

A sua fisionomia alterara-se de uma maneira estranha, os olhos tinham uma expressão implorante e os lábios um sorriso contrafeito e incompreensível.

 

— Estou um pouco fatigado mas quero continuar. Nós temos ainda muito tempo, o dia ainda não vai nascer. Acendeu um novo cigarro.

 

— Ela recompôs-se desde que deixou de ter o sofrimento do parto e as perturbações da gravidez. Voltou a ter bom senso e apercebeu todo o mundo criado por Deus, com a alegria que tinha esquecido ou não soubera viver.

 

«E preciso não deixar escapar esta ocasião. O tempo urge; não se pode voltar atrás... Julgo que era isto que ela pensava ou melhor sentia. Aliás, ela não podia nem sentir, nem pensar de outro modo; fora educada assim; não há outro objecto digno de atenção senão o amor. Quando casou recebeu uma parte desse amor, mas nem era o amor como ela o idealizara nem o que lhe haviam prometido. Tinha experimentado dolorosas desilusões, muitos sofrimentos e acima de tudo os filhos. Esse tormento tinha-a esgotado completamente.

«Mas eis que os médicos complacentes lhe fazem compreender que ela podia passar sem filhos. Ficou contentíssima, pôs o conselho à prova e começou a viver para o amor que ela conhecia. Mas não era o amor com um marido diminuído pelo ciúme, e por todas as espécies de furor. Começou a pensar no outro amor, um amor puro completamente diferente do que até aí sentira — era, pelo menos, o que eu pensava.

«Pôs-se a olhar em volta à espera que surgisse qualquer coisa. Notei todas estas modificações e não pude deixar de me alarmar.

«Falando indirectamente comigo, como fazia quase sempre — quer dizer, falando comigo por intermédio dos outros —, defendia a ideia de que os cuidados das mães eram um erro e que não valia a pena consagrarmo-nos aos filhos quando se é nova e se pode ainda gozar a vida, esquecida de que horas antes tinha defendido opiniões contrárias.

«Ocupava-se muito menos dos filhos e sem o frenesim dos primeiro tempos, cuidava muito mais de si, das suas toilettes, da sua cultura, do seu aperfeiçoamento exterior. Começou a dedicar-se, com entusiasmo, ao piano que, há muito, pusera de parte. E tudo começou assim.

«Voltou de novo para a janela, os olhos cansados mas, retomou, de novo, o fio da narrativa, fazendo um esforço visível...

«Foi então que apareceu o homem...»

Perdeu o sangue-frio e emitiu duas ou três vezes, pelo nariz, os sons que lhe eram peculiares. Compreendi perfeitamente que lhe era doloroso dizer o nome do homem, de o lembrar e de falar dele, mas dominou-se, e, como se tivesse conseguido vencer um obstáculo que o detinha, continuou resolutamente:

«Era uma personagem medíocre, um miserável, não porque tivesse alguma importância para mim, mas porque era tal qual eu pensara dele, um miserável...

«O facto de ele ser medíocre era a prova da irresponsabilidade da minha mulher. Se não fosse este seria outro. Tinha que se dar. — Calou-se mais uma vez. Depois continuou. — Era um músico, um violinista não profissional. Era um meio profissional meio homem de sociedade.

«O pai era proprietário e nosso vizinho. Arruinara-se. Três dos filhos estabeleceram-se; o mais novo, porém, foi para casa de uma madrinha, em Paris. Entrou para o Conservatório porque era dotado para a música; tirou o curso de violinista e deu alguns concertos.

«Era um homem... — teve a tentação de dizer mal mas conteve-se e disse rapidamente: — Eu não sei como ele viveu em Paris; sei que nesse ano reapareceu na Rússia e veio visitar-me.

«Era um rapaz bonito mas banal... olhos rasgados em amêndoa e húmidos, lábios onde se instalara um sorriso sempre igual, bigode frisado e penteado segundo a última moda; de aspecto fraco, traseiro bastante desenvolvido como nas mulheres e nos hotentotes que, segundo creio, também são músicos. Correcto e afável, muito digno, punha-se sempre à parte em qualquer discussão. Tinha um ar parisiense, usava botas abotoadas de lado, gravatas de cores garridas, tudo o que surpreende os estrangeiros em Paris e que, pela originalidade, atrai as mulheres. Apresentava-se sempre bem-disposto. Falava por metáforas e sem sequência, como se soubéssemos, de antemão, o que ele queria dizer e pudéssemos concluir por nós.

«Este homem e o seu violino foram os promotores da catástrofe...

«No processo apresentaram a questão como se o móbil do crime fosse o ciúme. Nada disso. Não quero dizer que não fosse uma das causas. Mas não foi tudo. No julgamento decidiram que eu era um marido ultrajado que matara a minha mulher para defender a honra (é assim que eles se exprimem).

«Fui absolvido por esta razão.

«Durante as audiências, contudo, tentei explicar-lhes as verdadeiras razões do crime mas eles supuseram que eu queria reabilitá-la.

«As suas relações com o músico não tiveram a maior importância nem para mim, nem para ela. O que foi importante foi a minha torpeza. Tudo se deu porque entre nós havia um incomensurável abismo, uma terrível tensão provocada pelo ódio recíproco que o mais insignificante pretexto faria explodir.

«Nos últimos tempos as nossas discussões eram aterradoras por um lado, e tanto mais impressionantes porque eram seguidas de cenas de uma sensualidade animal e exasperante. Se não se tivesse dado a infâmia com o músico dar-se-ia com outro. Insisto neste ponto para que todos os maridos que vivem como eu vivia ou se entreguem a uma vida de licenciosidade ou matem as mulheres.

«Se há algum que escape é uma excepção. Antes do crime eu estive várias vezes à beira do suicídio e ela tentou envenenar-se.»

 

XX

 

— Assim levávamos a vida.

 

«Passámos uns tempos tranquilos, pequenas tréguas, que não tínhamos razão aparente para quebrar. De repente conversava-se a propósito de um cão; eu afirmava que o cão tinha recebido na exposição uma medalha de ouro; ela sustentava que não tinha sido medalha, mas menção honrosa. Levantou-se a discussão. Passámos de uns assuntos para outros. Fizemo-nos censuras recíprocas:

«Sim.... Sim...

«Conheço-te, é sempre a mesma coisa... Tu disseste... Eu não disse tal... Queres dizer que minto?...

«Depois disto desencadearam-se cenas horrorosas em que tive a tentação de me suicidar ou de a matar. Era iminente o perigo. Temia-o como o fogo, e queria-me dominar mas a cólera invadia todo o meu ser. Era o mesmo o estado dela, senão pior; desvirtuava o sentido das frases. Cada uma das suas palavras escorria veneno; procurava ferir-me nos pontos mais dolorosos. E ia aumentando de intensidade as insinuações e os insultos.

«“Cala-te!”, gritei-lhe eu, ou outra qualquer frase...

«Ela saiu correndo do quarto para onde se encontravam os filhos.

«Procurei detê-la e agarrei-a por um braço.

«Fingiu que eu a magoara e gritou:

«“Meus filhos, o pai está a bater-me!”

«Verdadeiramente espantado exclamei:

«“Tu mentes!...”

«Os filhos acorrem aflitos. Ela sossega-os.

«Eu disse-lhe:

«“Não faças comédia...”

«“Para ti tudo é comédia... És capaz de matar um homem e afirmares que está a fazer de morto. Percebo-te muito bem. E é isso o que tu queres...”

«“Oh, se tu estoirasses!...), gritei fora de mim.”

«Lembro-me de que estas palavras me aterrorizaram. Nunca me supus capaz de as pronunciar tão grosseiras e tão repugnantes. Admiro-me como me puderam escapar.

«Depois de ter gritado esta frase abominável meti-me no meu gabinete, sentei-me e pus-me a fumar. Senti-a passar pela antecâmara e preparar-se para sair. Perguntei-lhe para onde ia. Não respondeu.

«“Que a leve o diabo...”, disse para mim mesmo.

«Voltei para o meu gabinete, estiracei-me e voltei a fumar...

«E então no meu espírito formaram-se planos de vingança, para me ver livre dela sem que ninguém o percebesse. Passei em revista todo o passado, fumando cigarros uns após outros.

«Pensei em fugir, esconder-me, partir para a América.

«Depois, de novo me assaltaram os pensamentos de me libertar, ligando-me a outra mulher, uma mulher diferente. Mas para me livrar dela era necessário ou que ela morresse ou que nos divorciássemos e principiei a estudar os meios de chegar a um desses resultados.

«Senti que desfalecia, o pensamento diluía-se mas continuava a fumar.

«Entretanto a vida da casa continuava como sempre...

«A governanta veio perguntar-me:

«“Onde está a senhora? Ela volta?”

«“O criado diz-me: “Posso servir o chá?...”

«Fui para a casa de jantar. Os filhos e, principalmente Lisa, a mais velha e que pressente o que se passa, fitou-me com um olhar, ao mesmo tempo interrogador e de censura. Não trocamos uma palavra durante o chá.

«Passou-se a tarde... Passou-se a noite sem ela voltar.

«Dois sentimentos cresciam a par, na minha alma: o rancor por me atormentar a mim e aos filhos e a ansiedade por que atentasse contra a existência, embora eu tivesse a certeza de que ela voltaria.

«Pensei em ir procurá-la Mas aonde? A casa da irmã?... Seria estúpido ir atormentar mais família. Tanto pior para ela se nos quer atormentar; que sofra também. É isso que ela pretende e só isso... Para a próxima vez fará pior...

«E se não está em casa da irmã?... Se tentou suicidar-se?... Se se suicida?...

«Deram as onze horas... a meia-noite...

«Não consegui ir para o quarto; seria idiota tentar dormir.

«Comecei a escrever cartas; tentei ler. Não consegui fazer nada.

«Por fim deixei-me estar sentado completamente só, atormentando-me. Cheguei à última forma de desespero. Pus o ouvido à escuta na esperança de a ouvir chegar. Três horas... Quatro horas... Não regressou. De manhã deixei-me dormir. Quando acordei não tinha ainda regressado.

«Em casa tudo, aparentemente, corria como antes mas todos estavam perplexos, e olhavam-me com ar interrogador e, ao mesmo tempo, cheio de censura.

«Atribuíam-me toda a culpa.

«Dentro de mim os mesmos dois sentimentos se digladiavam: o rancor e a inquietação.

«Às onze horas da manhã chegou a irmã como medianeira. A história começou como sempre:

«“Ela está num estado deplorável... Que é que tudo isto quer dizer?... Não se passou nada?...”

«Queixei-me do seu carácter impossível e confessei que lhe não tinha feito mal.

«“Isto não pode continuar assim....”, disse-me a irmã.

«“Isso é com ela; não é comigo. Eu não darei o primeiro passo. Se ela se quer divorciar, divorciar-nos-emos.”

«A minha cunhada foi-se como tinha vindo.

«Tinha-lhe falado duramente e afirmara-lhe que não daria um passo, mas quando depois da sua partida vi os filhos pálidos, abatidos, resolvi dar o primeiro passo. Sentia nisso contentamento mas, não sabia ao certo, como havia de proceder.

«Pus-me a andar de um lado para o outro e a fumar.

«Ao almoço bebi vodca e vinho e comecei a pressentir o fim para que, inconscientemente, era levado.

«Às três horas da tarde ela voltou. Fui ao seu encontro; não me deu uma palavra. Julgando-a calma tentei explicar-me, que me excedera levado pelas suas censuras injustas.

«Numa atitude agressiva disse-me que não vinha para ouvir explicações. Vinha para levar os filhos e não podia nem queria viver comigo.

«Quis convencê-la de que não era eu o culpado, e que fora ela quem me provocara. Olhou-me friamente e com ar solene disse-me:

«“Não digas mais; tu hás-de arrepender-te. “

«Repeti-lhe:

«“Não posso suportar comédias...”

«Começou a gritar, meteu-se no quarto e fechou-se por dentro.

«Bati. Ninguém respondeu. Afastei-me desesperado.

«Meia hora depois Lisa veio ter comigo debulhada em lágrimas.

«“Que há?... Aconteceu alguma coisa?...”

«“Não se ouve nada no quarto da mamã.”

«“Vamos lá.”

«Meti os ombros à porta. O fecho estava mal corrido e os dois batentes cederam.

«Aproximei-me da cama. Estava sem sentidos meio despida e calçada, numa posição incómoda. Na mesa de toüette um frasquinho de ópio vazio. Fizemo-la vir a si. Lágrimas. A reconciliação...

«Mas dentro da alma de cada um, a mesma animosidade, multiplicada pelo desespero da última questão cujas razões imputávamos um ao outro.

«A vida retomou o seu ramerrão.

«Questões como estas surgiram uma vez por semana, por mês, todos os dias... E eram sempre as mesmas consequências.

«De uma das vezes eu tinha já o passaporte. A zanga durava já há dois dias. Mas houve de novo uma meia explicação, uma meia reconciliação, e eu desisti da partida.»

 

XXI

 

— Eis como as coisas corriam, pouco tempo antes de aparecer esse homem.

 

«Pouco tempo depois de ter chegado a Moscovo, Troukhatchevski veio visitar-me. Era de manhã. Recebi-o. Antigamente havíamo-nos tratado por tu. Por várias vezes ele usou o “tu”, mas eu acentuei bem o emprego da segunda pessoa do plural e ele desistiu da primitiva familiaridade.

«Desagradou-me profundamente, logo à primeira vista, mas uma força estranha, fatal, arrastava-me para ele, obrigava-me a não o afastar, pelo contrário, levava-me a atraí-lo. De facto era simples evitar as relações; bastava que o recebesse friamente durante alguns instantes e despedi-lo sem o apresentar a minha mulher. Mas não procedi assim e, propositadamente, levei a conversa para o assunto que lhe interessava, dizendo-lhe que soubera que ele abandonara o estudo do violino. Respondeu-me que, mais do que nunca, se dedicava à música. Lembrou-se de que eu antigamente também tocava. Respondi-lhe que pusera de parte a música, mas minha mulher tocava piano muito bem.

«Coisa assombrosa!... A minha atitude perante ele desde o primeiro dia do nosso encontro foi o que pode dizer-se uma preparação para o que havia de acontecer. Havia em mim qualquer coisa de premeditado. Observava cada uma das suas palavras, das expressões que empregava e atribuía-lhes muita importância.

«Apresentei-o a minha mulher. A conversa, como é natural, imediatamente deslizou para a música e ele pôs-se logo à disposição para a acompanhar.

«Ela apresentou-se, como nestes últimos tempos, muito elegante, atraente e de uma beleza inquietadora. Ele agradou-lhe desde o primeiro momento e ficou encantada por poder tocar em conjunto. Apreciava muito tocar e, de tempos a tempos, contratava um violinista do teatro para a acompanhar. A alegria reflectia-se-lhe no rosto. Mas quando reparou na minha reacção e compreendeu os meus sentimentos, mudou a sua atitude. Começou assim, entre nós, uma série de disfarces.

«Eu sorria amavelmente, mostrando-me encantado.

«Ele olhava para a minha mulher, como sabem olhar os libertinos para as mulheres bonitas, mas simulava interesse só pelo assunto da conversa, embora o assunto nada lhe interessasse.

«Ela, coitada, esforçava-se por parecer indiferente, mas a minha expressão falsamente amável e sorridente de homem roído de ciúmes e, que ela conhecia perfeitamente, exaltavam-na, coincidindo com o olhar ávido do outro.

«O olhar dela tinha um novo esplendor e, sem dúvida, o meu ciúme tinha estabelecido entre ambos uma espécie de corrente eléctrica que deixava transparecer no rosto de ambos expressões e sorrisos muito semelhantes.

Tudo era simulado entre eles.

«Falámos de música, de Paris, de um sem-número de bagatelas.

«Entretanto ele fez menção de se retirar, com um sorriso nos lábios, inclinando-se um pouco na nossa frente, olhando, ora para mim, ora para ela, à espera do que iríamos fazer.

Lembro-me perfeitamente desse momento, porque eu podia ter deixado de o convidar e nada teria acontecido.

«Olhei para ele, olhei para a minha mulher e disse mentalmente: “Não penses que tenho ciúmes de ti... Nem que te temo, acrescentei interiormente, dirigindo-me a ele e convidando-o a trazer o violino para acompanhar minha mulher, numa qualquer noite.

«Ela olhou-me aterrorizada e quis libertar-se, afirmando que não tocava bem.

«Esta recusa irritou-me e insisti no convite.

«Recordo-me do sentimento bizarro que experimentei ao contemplar a nuca de Troukhatchevski e o pescoço sobre que caíam os cabelos compridos, apartados no meio; caminhando aos saltinhos lembrava um pássaro.

«A presença deste homem torturava-me.

«“Mas, afinal, só depende de mim impedir que este homem volte”, pensava eu.

«Mas, proceder assim é confessar que o temo.

«“Não. Eu não o temo, seria demasiado humilhantes”. E insisti para que ele viesse nessa mesma noite, para o ouvirmos.

«Aceitou o convite e saiu. À noite chegou mas durante algum tempo eles não conseguiram acompanhar-se porque as partituras de que precisavam não estavam em nossa casa e minha mulher precisava de as estudar.

«Eu gostava muito de música e interessava-me conhecer a execução dele. Fui eu que lhe preparei a estante e lhe voltei a página. Executaram algumas romanças sem palavras e uma sonata de Mozart. Ele tocava admiravelmente. Tinha uma dedilhação perfeita. Um gosto delicado e superior que não correspondia ao seu carácter. Era muito mais artista que minha mulher. Aconselhou-a, elogiando cortesmente a sua execução.

«Minha mulher tomara uma atitude simples e natural, parecendo só se interessar pela música.

«Quanto a mim, fingindo interessar-me pela música, toda a noite e continuamente fui torturado pelo ciúme.

«Desde que tinham cruzado o primeiro olhar, desdenhando a sua condição e as conversações sociais, despertado o animal que cada um traz dentro de si, eles interrogavam-se:

«“É possível? Mas sem dúvida...”

«Ele não supunha poder encontrar, numa moscovita, uma mulher tão atraente e ficou deslumbrado. Não duvidou um instante de que era correspondido. Tudo consistia em afastar o marido para os não importunar.

«Se eu fosse um homem honesto não teria compreendido nada disto, mas como a maioria dos homens antes do casamento, eu considerava as mulheres como Troukhatchevski e podia ler-lhes na alma como num livro aberto.

«Fazia-me sofrer a ideia de que minha mulher sentia por mim só irritação, entrecortada, uma vez ou outra, de acessos de sensualidade.

«Por esse homem elegante e de indubitável talento ela sentia-se agradavelmente atraída.

«A intimidade que criava a colaboração musical, a influência da própria música, muito particularmente o violino, que actua profundamente nas naturezas impressionáveis fazia-me pressentir que esse homem a venceria, a dominaria e a dobraria à sua vontade, fazendo dela o que desejasse.

«Eu já não o podia ver e sofria horrivelmente. E entretanto uma força, que se opunha à minha vontade, constrangia-me não só a ser delicado mas a ser afável. Não sei se procedia assim por causa de minha mulher — para provar que o não temia — ou para me enganar a mim próprio. Ignoro-o. O facto é que nunca fui simples nas relações com ele. Eu fugia ao desejo de o matar, lisonjeando-o.

«À ceia servi-lhe vinhos finíssimos, elogiei-lhe a execução, falei-lhe sempre com um sorriso amável, convidando-o para jantar no domingo seguinte e para tocar, acompanhando minha mulher. Convidaria mesmo alguns amigos para terem o prazer de o ouvir. Assim terminou o primeiro serão.»

Pozdnichev, extraordinariamente emocionado, mudou de posição e soltou aquele gemido que lhe era particular.

 

— É estranha a maneira como a personalidade desse homem agiu sobre mim — disse ele, fazendo um esforço para se acalmar.

 

«Passado um dia ou dois, ao voltar de uma exposição, senti, ao entrar, como se uma pedra me caísse no coração. Não percebi porquê. Só depois de ter entrado no meu gabinete me ocorreu que vira qualquer coisa que me lembrara Troukhatchevski. Voltei ao vestíbulo para confirmar a minha suspeita. Não me tinha enganado. Pendurado no cabide estava o casacão dele. Era impossível ter-me passado despercebido porque eu fixava doentiamente tudo o que lhe dissesse respeito.

«Em vez de atravessar a sala de entrada, dirigi-me ao quarto de estudo. Lisa, a minha filha mais velha, estava a ler e a ama, perto da mesa com o mais pequenino, fazia girar uma tampa.

«Eu ouvia os harpejos e o ruído das vozes através da porta fechada. Pus-me a escutar mas não distingui as palavras. Sem dúvida o piano era um pretexto para abafar as palavras e, talvez, os beijo.

«Meu Deus! Neste momento cresceu em mim uma raiva surda. Quando me lembro do animal furioso que reapareceu, o horror abate-me.

«Apertou-se-me o coração bruscamente, tive a sensação que ele deixara de bater. Depois voltou a bater violentamente. O sentimento dominante nos momentos de cólera era o enternecimento por mim próprio. Diante dos filhos!... Diante dos criados!...

«Nesse instante eu devia meter medo, porque Lisa olhava para mim aterrorizada.

«“Que devo fazer?”, perguntei a mim próprio. “Entrar?... É impossível... Não sei o que faria... Mas não podia afastar-me.”

«A criada das crianças olhava-me espantada, compreendendo a minha situação.

«“E impossível não entrar...”, disse eu, e abri a porta subitamente.

«Ele estava sentado ao piano, tocando harpejos; os dedos muito brancos e altamente recurvados. Ela estava de pé, junto ao piano, e seguia a partitura. Ou me pressentiu ou me ouviu e olhou para mim. Teve medo mas dissimulou ou não teve realmente medo?... O que é certo é que se não mexeu e nem levemente pestanejou. Corou um pouco.

«“Como estou contente por teres vindo!... Nós estávamos a escolher o que havemos de tocar no domingo” disse-me ela com uma expressão que não usaria se estivéssemos sós. Esta circunstância e o facto de ela ter empregado o “nós”, referindo-se a ele e a ela, perturbaram-me. Cumprimentei-o sem pronunciar uma palavra. Correspondeu ao meu cumprimento com um sorriso que me pareceu francamente irónico e começou a explicar-me que estavam indecisos sobre o que deveriam executar — uma obra clássica e difícil como uma sonata de Beethoven para piano e violino ou trechos mais curtos e de menos responsabilidade. Aparentemente tudo era natural e simples e não havia razão para me escandalizar. Mas eu estava convencido que tudo era mentira e disfarce e tinham já combinado a maneira de me enganar.

«As convenções sociais favorecem a maior e mais perigosa intimidade entre homens e mulheres e são torturantes para os homens ciumentos (na nossa sociedade todos os homens são ciumentos).

«Expor-nos-íamos ao ridículo se tentássemos impedir a intimidade nos bailes, a intimidade entre o médico e a doente, a intimidade criada pelo estudo em comum das artes, da pintura e, muito particularmente, da música.

«Entregam-se ao estudo da mais bela das artes duas almas e a mais profunda intimidade cresce; nada disto tem aparentemente nada de repreensível ou censurável; só um marido estúpido e ciumento pode reconhecer nesta intimidade qualquer coisa de menos digno. Contudo sabe-se que a maioria dos casos de adultério, na nossa sociedade, tem a sua origem na intimidade artística e intelectual de homens e mulheres.

«Trespassei-lhes a perturbação que me acometera. Durante momentos não pude articular uma palavra.

«Eu era como uma garrafa voltada para baixo que não deixa correr a água por estar muito cheia. Tinha a tentação de a insultar e de correr com ele mas, simultaneamente, compreendia que era necessário ser afável e cortês.

«Assim procedi. Fingi aprovar tudo o que disseram e, sob a acção de um sentimento bizarro, tratei-o com tanta mais afabilidade quanto mais as suas palavras e a sua presença me torturavam. Afirmei-lhe que confiava no seu bom gosto e aconselhei minha mulher a proceder do mesmo modo. Depois das minhas palavras ficou só o tempo necessário para tentar desvanecer a impressão dolorosa da minha entrada súbita na sala, do meu aspecto desorientado e do meu mutismo. Despediu-se asseverando que ficara escolhido já o programa que tocariam no dia seguinte. Eu estava convencido, no entanto, que comparado ao que os preocupava a escolha do trecho que haviam de tocar lhes era totalmente indiferente.

«Conduzi-o até ao vestíbulo com uma delicadeza demasiadamente vincada (como não conduzir para fora de casa um homem que vinha perturbar e comprometer a felicidade de uma família inteira?...

«Apertei-lhe a mão efusivamente, a sua mão branca e flácida.»

 

XXII

 

— Durante todo o dia não dirigi a palavra a minha mulher. Não podia. A sua presença provocava-me um tal ódio que sentia medo de mim próprio.

 

«Ao jantar, em frente dos filhos, perguntou-me quando me ia embora...

«Eu tinha de tomar parte num congresso, na província. Disse-lhe quando tencionava partir. Ela pretendeu saber se era necessário alguma coisa para a viagem. Não respondi. Fiquei à mesa, sem pronunciar uma palavra. Retirei-me para o meu gabinete.

«Nos últimos tempos ela nunca vinha aos meus aposentos, principalmente depois do jantar.

«Estendi-me no divã. Tinha a alma cheia de rancor.

«De repente senti aproximarem-se uns passos conhecidos. Um pensamento diabólico me ocorreu. Tal como a mulher de Urias, ela queria esconder o pecado já consumado e, por essa razão, vinha ter comigo a esta hora imprópria.

«“Será possível que ela venha aqui?”, perguntei a mim mesmo, sentindo que os passos se aproximavam cada vez mais. Era verdade. Eu tinha razão. E na minha alma o ódio crescia de uma maneira indizível. Os passos iam-se aproximando cada vez mais. Certamente irá para o salão... Não entrará... Mas a porta rangeu e, no limiar, surgiu a silhueta alta e harmoniosa. Na sua fisionomia transparecia o desejo de agradar, que contudo pretendia esconder, mas de que eu conhecia, muito bem, o significado.

«Parecia-me que sufocava tão longo foi o momento em que retive a respiração. Sem deixar de a fitar, abri a cigarreira e acendi um cigarro.

«“Então?... Venho passar um bocadinho contigo e acendes um cigarro?...”

«Sentou-se no divã a meu lado e encostou-se a mim. Afastei-me para lhe não tocar.

«“Eu sinto perfeitamente que estás aborrecido por causa do concerto de domingo”, disse ela.

«“De modo nenhum...”, respondi-lhe.

«“Tu julgas que eu não percebo?...”

«“Muito bem. Felicito-te. Quanto a mim, não percebo mais nada a não ser que te comportas como uma mulher”

«“Se continuas a falar como um carroceiro vou-me embora.”

«“Vai. Fica sabendo que se tu não ligas importância à dignidade da família, eu, não por ti (que o diabo te leve!), mas pela própria família, pela sua honra, tenho de me importar.”

«“Como?... Como?...”

«“Vai-te embora pelo amor de Deus. Vai-te...”

«Eu não sei se ela compreendeu as minhas alusões, ou realmente não compreendeu porque se ofendeu e ficou vexadíssima. Levantou-se mas, em vez de sair, ficou de pé, no meio do quarto.

«“Decididamente, tu estás a tornar-te impossível” começou ela, “tens um carácter que só os santos poderiam suportar...”

«E, esforçando-se por me ferir profundamente, referiu-se ao meu procedimento com a irmã (ela sabia que me atormentava, relembrando as palavras grosseiras que, num momento de exaltação, eu proferira).

«“Depois do que se passou nada me admira, vindo de ti...”

«“É assim mesmo. Ofendes-me, humilhas-me, desonras-me e atiras com as culpas para cima de mim.”

«E, subitamente, fui invadido por um sentimento de ódio tão horrível que, pela primeira vez, experimentei a sensação de expressar fisicamente esse ódio.

«Ergui-me bruscamente e aproximei-me. Mas, no momento preciso em que me levantei tive a consciência do que ia fazer e pensei se valeria a pena.

«Mas reconsiderei e disse para mim: “Talvez seja salutar. Ela terá medo”, e assim, foi crescendo em mim a cólera.

«“Foge ou mato-te!”, gritei e, aproximando-me dela agarrei-a por um braço.

«Eu tinha propositadamente exagerado o tom de fúria das minhas palavras

«E devia ter uma aparência de endemoninhado, porque ela perdeu o sangue-frio, não teve força para sair e limitou-se a dizer:

«“Vassia, que tens tu, que te aconteceu?...”

«“Sai-me daqui!”, gritei com força. “Só tu és capaz de me pôr neste estado. Eu não respondo por mim...”

«Deixei-me vencer absolutamente pela raiva, senti-me como embriagado e tive vontade de fazer qualquer coisa de extraordinário que pudesse mostrar a extensão do meu desespero.

«Tinha o desejo terrível de lhe bater, de a matar, mas sabia que era impossível e para dar vazão à minha cólera agarrei num pesa-papéis que estava sobre a mesa, atirei-o para o chão, na direcção dela e gritei:

«“Sai-me da vista!...”

«Ela afastou-se. Não saiu. Parou à entrada da porta.

«Enquanto ela me podia ver, agarrei de cima da mesa em diferentes objectos, no tinteiro, nos castiçais e atirei-os ao chão, gritando:

«“Vai-te, bruxa! Eu não respondo por mim...”

«Ela saiu. No momento em que a deixei de ver acalmei-me.

«Passada uma hora a criada dos pequenos veio prevenir-me de que minha mulher estava com uma crise de nervos. Fui vê-la. Ora soluçava, ora se ria; não podia falar e tremia convulsivamente. Não era comédia; ela estava realmente doente.

«De manhã acalmou-se; reconciliámo-nos sob a influência do sentimento a que chamamos amor.

«Quando lhe confessei que tinha ciúmes de Troukhatchevski ela não se perturbou, pôs-se a rir com a maior naturalidade, de tal forma lhe parecia estranho que alguém se pudesse apaixonar por um tal homem.

«“Acreditas possível que uma mulher decente se possa apaixonar por um homem como Troukhatchevski? O único sentimento possível é o prazer de o ouvir tocar.”

«“Se tu quiseres, não o tornarei a ver e é fácil impedi-lo de vir a nossa casa; basta que o previnas de que estou adoentada, e não posso tocar. Só é aborrecido no domingo por termos convidado muita gente e se poder pensar que temos medo dele e que o consideramos perigoso. Sou realmente bastante orgulhosa para poder permitir que se pense tal coisa.”

«Ela não mentia. Ela acreditava no que dizia. Queria convencer-se da verdade das suas palavras, e fazer nascer em si própria o desprezo por ele e defender-se do perigo que, inconscientemente, temia. Não o conseguiu. Tudo estava contra ela e, em particular, a música maldita. Naquele dia tudo acabou em bem.»

 

XXIII

 

— É escusado dizer que me sentia vaidoso; se não somos vaidosos na vida quotidiana, que é a nossa vida, não há razão de viver.

 

«No domingo seguinte ocupei-me com muito prazer das preparativos para o jantar do nosso serão musical. Fiz eu próprio os convites e as compras.

«Pelas seis horas começaram a chegar os convidados. Ele entrou um pouco mais tarde, de casaca, o peitilho da camisa abotoado com brilhantes de muito mau gosto. Tinha um grande à-vontade, correspondendo a todos com um ar afectuoso, sorridente e compreensivo dando a entender que o que fazíamos e dizíamos era justamente o que esperava.

«Nessa noite notei com particular alegria tudo o que nele era defeituoso.

«Essas observações contribuíram para me sossegar e mostravam-me que minha mulher o considerava, com razão, de um nível tão inferior que não podia — conforme me afirmava — baixar-se a ele. Eu não tinha, por isso, razão para ter ciúmes.

«Além de que o último sofrimento arrasara-me e eu sentia a necessidade absoluta de repouso; precisava de acreditar na minha mulher; e acreditava.

«Durante todo o jantar, na primeira parte do serão, antes de começar o concerto, embora eu não tivesse ciúmes havia em mim qualquer coisa de afectado nas atitudes que tomava. Inconscientemente eu vigiava todos os actos deles.

«O jantar foi, como todos os jantares, uma cerimoniosa maçada.

«Como me lembro de todos os pormenores desse triste serão!...

«Ele chegou. Abriu o estojo, tirou para fora a cobertura bordada por uma admiradora e começou imediatamente a afinar o violino. Minha mulher sentou-se ao piano com um ar .aparentemente indiferente e sob o qual pretendia esconder a sua timidez... timidez provocada pela destreza do violinista.

«Depois dos “lás” habituais da afinação, foram os pizzicatti do violino e por fim colocaram-se as partituras nas estantes. Recordo o olhar que trocaram; voltaram-se um instante para a assistência, disseram umas breves palavras e começaram o concerto.

«Ela atacou o primeiro acorde. Então a fisionomia de Troukhatchevski tomou uma expressão simpática, severa, séria, e atenta aos próprios sons do violino. Fez vibrar as cordas com os dedos finos e ágeis e respondeu aos acordes do piano. Assim começou tudo.»

Pozdnichev parou de novo. Depois emitiu várias vezes os sons que lhe eram peculiares — gargalhada ou soluço abafado. Quis continuar. Fungou. E parou de novo.

 

— Tocaram a Sonata a Kreutzer, de Beethoven.

 

«“Conhece o primeiro presto? Conhece-o?...”, gritou ele. “Que coisa horrível essa Sonata, sobretudo, esse andamento... A música é qualquer coisa de horrível...”

«O que é exactamente a música?... Eu não o apreendo.

«Qual é a sua acção?

«Dizem que a música actua elevando a alma... Que falsidade!... Que estupidez!

«A música actua de uma maneira terrível, eu falo por mim.

«A música não eleva a alma. A música também não diminui a alma. A música exaspera-a. Nem sei como me hei-de explicar...

«A música obriga a esquecermo-nos da nossa verdadeira personalidade, transporta-nos a um estado que não é o nosso. Sob a influência da música temos a impressão de que sentimos o que não sentimos; que compreendemos o que na realidade não compreendemos; que podemos o que não podemos. É como o bocejo ou o riso. Não temos sono mas bocejamos quando vimos alguém bocejar. Não temos vontade de rir, mas rimo-nos, ouvindo rir. A música transporta-nos, de surpresa e imediatamente, ao estado de alma em que se encontrava o artista no momento da criação, confundimos a nossa alma com a dele e passamos de um estado a outro sem saber por que o fazemos.

«Beethoven quando escreveu a Sonata a Kreutzer sabia por que se encontrava naquele estado de criação, que o levava à prática de determinados actos que tinham para ele um significado. Para nós que somos levados pela música não tem significação.

«A música exaspera, não conclui.

«Se tocam uma marcha militar e os soldados marcham ao seu ritmo, a música atinge o seu fim. Se a música é de dança e dançamos, a música atinge o seu fim. Se se toca a missa e comungamos a música atinge o seu fim. De outro modo é uma sobreexcitação. Por isso às vezes a música exerce uma acção tremenda... A música na China é negócio de Estado. E assim devia ser. Não é de admitir que qualquer desconhecido possa, a seu bel-prazer, hipnotizar uma ou várias pessoas e as maneje. E que por vezes o hipnotizador seja o primeiro homem de maus costumes que se encontrou no caminho.

«Tomemos para exemplo a Sonata a Kreutzer — primeiro andamento. Deve tocar-se este presto numa sala entre mulheres decotadas; aplaudi-la; comer gelados; contar a última anedota da semana?

«Esses trechos só deviam ser tocados em momentos graves e quando é necessário realizar acções que estejam em harmonia com o assunto da música. De outro modo esse chamamento inoportuno a sentimentos que não têm ensejo de se manifestar não podem ter senão um resultado nefasto. Sobre mim, pelo menos, produziu um efeito desastroso. Sentimentos novos, possibilidades até então desconhecidas revelaram-se em mim. Tudo era diferente da vida que até então eu vivera. Eu não podia avaliar o elemento que descobrira mas a consciência deste novo estado dava-me alegria.

«As fisionomias que eram sempre as mesmas, e, no número das quais havia a de minha mulher e a de Troukhatchevski apareciam-me com um aspecto diferente.

«Depois do presto executaram o andante que é belo mas sem originalidade, com variantes banais e um final fraco.

«Em seguida, a pedido dos convidados executaram uma elegia de Ernst e vários pequenos trechos. Todas estas peças eram muito boas, mas nenhuma produziu, em mim, nem um décimo da impressão que me causou a primeira obra. Tudo o mais que senti estava subordinado à impressão que me causara a Sonata.

«Sentia-me leve, alegre toda a noite. Quanto a minha mulher, nunca a tinha visto como naquela noite. Os olhos brilhantes, um leve sorriso extasiado, uma espécie de abandono total enquanto tocava e uma severa expressão quando terminou o concerto. Vi tudo isto mas não lhe liguei nenhuma importância particular.

«Ela experimentava as mesmas sensações que eu. Sentimentos novos e desconhecidos até aí surgiam dentro de mim e dela.

«O serão acabou muito bem. Cada um regressou aos seus aposentos.

«Troukhatchevski ao saber que tinha de partir para um congresso na província disse que esperava ter o prazer de renovar, quando regressasse, o serão que lhe havíamos proporcionado tão agradavelmente.

«Concluí das suas palavras que ele não voltaria a minha casa enquanto eu estivesse por fora. Esta resolução foi-me particularmente agradável. Não nos tornaríamos a ver, porquanto eu não regressaria antes da partida dele. Pela primeira vez eu lhe apertei a mão com verdadeira alegria e lhe agradeci os momentos de agradável convívio que tivéramos. Os cumprimentos de despedida a minha mulher foram convenientes e naturais. Tudo parecia perfeito.

«Eu e minha mulher sentíamo-nos contentes pela forma como decorrera o serão.»

 

XXIV

 

— Parti no dia seguinte para o congresso. Despedi-me de minha mulher nas melhores disposições.

 

«Na capital do distrito eu tinha sempre muito trabalho; cheguei a passar dez horas sentado à secretária. Era uma vida à parte, um pequeno universo particular.

«No dia seguinte ao da minha chegada trouxeram-me uma carta de minha mulher. Falava-me dos filhos, de um nosso tio, da criada, das despesas que fizera, e entre outras coisas, como de uma coisa banal, referia-se a uma visita de Troukhatchevski. Tinha ido levar-lhe umas partituras que lhe prometera. Tinha-se também oferecido para a acompanhar, mas ela recusara. Eu não me lembrava que ele lhe houvesse prometido tais partituras. Julgava até que ele se despedira definitivamente. Esta notícia chocou-me desagradavelmente. Tinha, no entanto, que fazer e não tive tempo de pensar mais na carta. À noite, porém, quando reli a carta, reflecti no que me escrevera minha mulher e a carta então pareceu-me afectada. Estranhei que Troukhatchevski tivesse ido visitar minha mulher na minha ausência.

«A fera raivosa do ciúme pôs-se a rugir dentro de mim. Mas tive medo dela e prendi-a.

«“Que sentimento abjecto é o ciúme”, disse para comigo. “Nada mais natural do que o que ela me escreveu.”

«Deitei-me. Pensei só nos assuntos que tinha para resolver no dia seguinte.

«Quando vinha tomar parte nestes congressos o que mais me custava era ter que dormir num quarto que não era o meu. Desta vez, porém, adormeci rápida e profundamente.

«Nunca lhe aconteceu por vezes ser acordado por uma espécie de descarga eléctrica que nos atravessa? Acordei debaixo dessa impressão. Levantei-me com o pensamento em minha mulher, no amor que, apesar de tudo, sentia por ela, e em Troukhatchevski. Acabrunhava-me o pensamento de que entre ela e ele alguma coisa se consumara. O terror e o ódio apertavam-me o coração. Tentei acalmar-me.

«“Que tolice!”, disse para comigo. “Isto não tem razão de ser! Não há nenhum fundamento! Não é possível. Nada se passou! Como posso rebaixar-me e rebaixá-la, pensando tais horrores?”

«“Ele é um violinista a quem se paga, conhecido por ser um pobre homem.”

«“Minha mulher é uma senhora respeitável, uma honrada mãe de família. Que absurdo!”, pensava eu.

«Por outro lado eu considerava que casara com minha mulher por ter necessidade dela, e que a necessidade que eu sentia também outros a sentiam e, entre muitos, esse músico.

«Não era casado. Tinha uma esplêndida saúde. Lembro-me perfeitamente do prazer com que ele trincava os ossos das costeletas e a avidez com que bebia o vinho que lhe deitavam nos copos. Homem bem alimentado, sem princípios, ou melhor, tendo como princípio gozar todos os prazeres da vida.

«A música, esse terrível excitante, a forma mais perfeita do desejo deveria sem dúvida ser um elo entre eles. O que a pode conter a ela? Nada.

Pelo contrário, tudo a atrai.

«Minha mulher foi sempre para mim um enigma. Eu não a conhecia, senão no período animal. Aos animais ninguém os pode conter.

«E assim me foram vindo à memória pormenores esquecidos. A fisionomia dos dois quando acabaram de tocar um trecho apaixonante cujo autor não me recordo, e que é uma página sensual, até à impudência.

«“Como me atrevi a partir?...”, pensei, depois de ter notado estes pormenores. “Tudo se consumou entre eles, esta noite.”

«Lembrava-me do sorriso de felicidade, ténue e amoroso que ela tinha enquanto passava o lenço pelas faces rosadas, quando me aproximei do piano.

«Eles, é certo, evitavam olhar-se. Somente durante a ceia, quando ele lhe servia a água, os olhos se encontraram e entre si trocaram um sorriso quase imperceptível. Lembrava-me com horror desse olhar e desse sorriso que captara.

«Dentro de mim uma voz dizia-me:

«“Tudo acabou.” Mas outra voz me segredava uma outra linguagem.

«“O que te prende? E impossível...”

«Não pude mais estar às escuras. Acendi um fósforo. E senti verdadeiro horror nesse quarto pequeno. Fumei um cigarro. É sempre assim quando o pensamento gira em volta de contradições insolúveis. Fuma-se. Acendi cigarros uns após outros. Envolvi-me num nevoeiro em que os pensamentos se suspendiam, sem nenhuma consistência. Em toda a noite não dormi uma hora. Às cinco horas da manhã compreendi que não podia por mais tempo manter-me nesta situação. Resolvi partir. Levantei-me. Acordei o criado. Mandei-o chamar uma equipagem. Escrevi para o congresso, pedindo que me fizessem substituir por outro congressista. Fora chamado a Moscovo subitamente.

«Às oito horas subia para um tarantass e partia.»

 

XXV

 

O revisor entrou. E tendo notado que a luz se extinguia acabou por a apagar completamente sem a substituir. Lá fora o dia começava a aparecer.

Pozdnichev manteve-se calado enquanto o revisor ficou na carruagem, suspirando profundamente. Só tornou a falar quando o revisor saiu. No nosso compartimento, completamente às escuras, só se sentia o estremecimento dos vidros produzido pêlos solavancos do comboio e o ressonar regular do caixeiro-viajante. Na meia-luz do amanhecer eu não o via.

Somente a sua voz cada vez mais emocionada, cada vez mais dorida, se ouvia acima de todos os outros sons.

 

— Eu tinha de percorrer trinta e cinco verstas de carruagem e oito horas de caminho-de-ferro. O percurso de carruagem foi agradável.

 

«Estava um dia de Outono frio. O sol era brilhante. Era a época em que as rodas dos carros vão deixando sulcos pêlos caminhos — você conhece certamente. A luz era esplêndida, o ar vivificante. Eu sentia-me perfeitamente livre dentro do tarantass.

«Quando o dia nasceu e me pus a caminho sentia-me bem-disposto.

«Olhando os campos, reparando nos cavalos, vendo as pessoas que se cruzavam no caminho, esquecia-me ao que ia. De tempos a tempos, tinha a impressão de que era uma simples viagem de recreio e nenhum outro motivo me levava para casa.

«Sentia alegria por me esquecer. Se porventura me vinha ao pensamento o que ia fazer dizia para mim:

«“Não pensemos... Depois se verá.”

«Durante o percurso, a meio do caminho, deu-se um desastre. O tarantass avariou-se e foi necessário repará-lo. Este incidente teve muita importância. Em vez de chegar a Moscovo às cinco horas, como tinha previsto, cheguei à meia-noite; cheguei a minha casa à uma hora, porque perdi o expresso e tive de apanhar um omnibus. Procurar abrigo, assistir às reparações, pagar, tomar chá na estalagem, dois dedos de cavaco ao estalajadeiro tudo contribuiu para me distrair. Ao fim do dia tudo estava pronto, e de novo, nos pusemos a caminho.

«A viagem de noite ainda foi mais agradável.

«Caía neve e a lua iluminava a estrada lindíssima. Os cavalos eram esplêndidos e o cocheiro um bom tagarela. Caminhava, saboreando estes momentos sem quase me lembrar do que me esperava, ou talvez, eu experimentasse esta alegria tanto mais intensa quanto sabia que dizia adeus para sempre ao que na vida é belo.

«A paz que neste momento gozava parou no mesmo momento em que parou a viagem de tarantass. Desde que me meti no comboio tudo se transformou. O percurso de comboio foi torturante. Nunca o poderei esquecer. Não sei se era a trepidação do comboio que me excitava, se a ideia de que me ia aproximando de casa. Desde que subi para o comboio não pude mais dominar a imaginação. De uma maneira vivíssima pintavam-se-me quadros, cada uns mais lúbricos um do que o outro e que me excitavam o ciúme. O assunto era sempre o mesmo, o que nessa noite se passava em minha casa e a maneira como ela me enganava. O ciúme, a raiva, a indignação e o sentimento de humilhação ao representarem-se-me estas imagens disputavam-se, dilacerando-me o coração, como abutres esfaimados. Eu não podia deixar de os ver; via-os sempre e quanto mais as imagens se detinham no meu pensamento mais eu acreditava na sua realidade. Um demónio comprazia-se em me torturar, trazendo-me à memória as piores cenas de luxúria.

«Veio-me então à lembrança a conversa que tivera com um irmão de Troukhatchevski em que lhe perguntara se frequentava casas de má nota; ele respondera que um homem não tem necessidade de ir a lugares anti-higiénicos e sórdidos, onde corre risco de apanhar doenças, quando é fácil encontrar uma mulher honesta da qual nada há a temer.

«Eu agora pensava que o irmão tinha encontrado essa mulher, a minha própria mulher. Não era muito nova, faltava-lhe um dente e estava um pouco alentada, mas — que fazer? — é preciso aproveitar as ocasiões.

«“Sim”, pensava eu. “Ele condescende em a aproveitar para amante... não tem perigo para a sua saúde.”

«“Não!... É impossível!... Como posso pensar tais coisas?...”, pensava eu horrorizado. “Não tenho razões para pensar nada disto... Ela afirmou-me que se sentia humilhada por eu ter ciúmes dele.”

«Eram mentirosos os seus protestos... Ela mentia-me... E de novo me vinham ao pensamento os mais lúbricos quadros.

«No meu compartimento iam mais dois passageiros, um homem e uma senhora, ambos pouco faladores. Desceram na primeira estação e eu fiquei só.

«Era uma fera enjaulada.

«Levantava-me. Sentava-me. Debruçava-me da portinhola, batia os pés como se os meus movimentos contribuíssem para apressar a marcha do comboio.

«Os vidros e os bancos do comboio estremeciam a todo o momento, exactamente como acontece a estes.»

Pozdnichev levantou-se, deu duas ou três voltas febris e voltou a sentar-se.

Toda a carruagem me metia pavor. Sentia-me gelar... Sentei-me. Tentei pensar noutra coisa. Por exemplo no dono da estalagem onde tinha tomado chá. Mas surgiu-me na imaginação o criado com a sua barba comprida e o neto, um garotinho da mesma idade que o meu Vassia. O meu Vassia!... Ele com certeza assiste à mãe ser beijada pelo músico.

«Que se passará na sua pobre alma? Ela não faz caso. Está apaixonada.

E de repente tudo em mim se reavivou.

«Não... Não... Eu quero pensar na consulta no hospital. Ontem um doente queixou-se ao médico.. O médico tinha os mesmos bigodes que Troukhatchevski...

«E o pensamento voltava ao mesmo ponto. Com que impudência eles me enganam!

«E tudo voltava de novo. O principal sofrimento era a ignorância, a dúvida, a duplicidade no facto de eu próprio não saber se a devia amar, se a devia odiar.

«O meu sofrimento era tão horrível que me veio a tentação — lembro-me perfeitamente — de descer à linha, deitar-me sobre os rails sob o comboio e acabar definitivamente. Esta ideia dava-me satisfação. Não teria mais dúvidas nem hesitações. Reteve-me a piedade que sentia por mim próprio e que fez nascer imediatamente o ódio contra a minha própria mulher. Por ele, eu sentia o sentimento bizarro, misto de ódio e da consciência da minha humilhação e da sua vitória. Por ela eu sentia um ódio pavoroso.

«“Eu não quero suicidar-me. Não quero deixá-la. E preciso que ela sofra, pelo menos um pouco, para que compreenda o que eu sofro.”

«Desci em todas as estações para mudar de ideias. Numa delas vi que serviam bebidas no bufete, fui imediatamente tomar uma vodca. Perto de mim um judeu bebia também. Meteu conversa e para não ficar sozinho no meu compartimento acompanhei-o à terceira classe, suja, cheia de fumo e juncada de invólucros de sementes de girassol. Sentei-me a seu lado. Ele conversou durante muito tempo. Contou-me inúmeras anedotas. Escutava-o, mas sem compreender, porque ia seguindo o fio dos meus desgraçados pensamentos. A certa altura ele percebeu e quis prender-me a atenção. Nessa altura levantei-me e voltei para o meu compartimento.

«“É preciso que eu me concentre. Se o que eu penso é a verdade tenho razão para me torturar?”

 

«Sentei-me com a intenção de pensar calmamente, mas depressa, em vez de pensamentos calmos tudo recomeçou. As mesmas imagens me perseguiam, as mesmas representações...

«Entretanto pensava:

«“Quantas vezes fui atormentado (lembrava-me então das cenas de ciúmes que tantas vezes sentira e em tudo semelhantes a esta) e depois tudo terminava em bem.”

«“Será talvez, hoje, como outrora. Certamente vou encontrá-la a dormir sossegada; ela acordará contente por me voltar a ver e as suas palavras, o seu olhar dar-me-ão a certeza de que nada se terá passado e que tudo eram tolices forjadas pela minha imaginação doentia. Ah! Como seria maravilhoso que, tudo se passasse assim!”

«Mas não. Isto repetiu-se muitas vezes. Desta vez não será assim — dizia-me uma voz, e tudo recomeçava. O que era horrível é que eu considerava-me com direito incontestável sobre o seu corpo. Como se fosse realmente o meu próprio corpo e ao mesmo tempo reconhecia que aquele corpo não me pertencia, que ela não podia dispor dele como quisesse e que o desejo que ela manifestava não era conforme ao meu. Se ela não tivesse tido nada com ele mas o desejasse, e eu sabia que ela o desejava, era pior ainda. Mais valia que tivesse havido alguma coisa então eu o saberia e não mais haveria incertezas. Eu já não sabia o que queria. Sentia-me enlouquecer.»

 

XXVI

 

— Antes da última estação, quando o revisor veio controlar os bilhetes, juntei as bagagens e saí para a plataforma. O sentimento do que se ia passar, aumentou a minha emoção. Tinha frio de tal modo que batia os queixos e tremia-me o corpo. Saí da gare maquinalmente juntamente com a multidão. Tomei um fiacre, subi e parti. Durante o percurso ia olhando os raros passeantes daquela hora nocturna, os porteiros, as sombras projectadas pêlos revérberos e pela minha própria carruagem, umas vezes pela frente, outras vezes pela parte de trás. Não pensava em nada. Depois de ter percorrido meia versta, tive frio nos pés e lembrei-me de que tinha tirado as minhas peúgas de lã e as tinha metido no saco. E agora onde estava o saco? E o meu cesto? Lembrei-me então que na precipitação me esquecera das bagagens. Pensei que não valia a pena voltar para trás e de que tinha em meu poder a guia.

«Apesar de todos os meus esforços, não posso lembrar-me do estado em que me encontrava então. Em que pensava eu? Ignoro. Lembro-me somente que tinha o sentimento do que ia acontecer, qualquer coisa de tremendo e de muito importante para a minha existência. Este acontecimento medonho deu-se porque eu pensava nele ou porque o pressentia?... Não sei. Talvez também tudo o que se passou nos minutos que precederam o que aconteceu tomou na minha lembrança uma cor sombria.

«Cheguei diante do pátio da minha casa. Passava da meia-noite. Vários fiacres estavam parados em frente à porta, esperando fregueses eventuais porque havia luz nas janelas (nas do salão e nas da sala de jantar do nosso apartamento).

«Sem tentar perceber porque estariam iluminadas as janelas, galguei as escadas, bati à porta com o mesmo sentimento de que qualquer coisa de horrível ia acontecer. O nosso criado de quarto, Egor, homem honesto e dedicadíssimo, abriu-me a porta. O primeiro objecto que me saltou à vista foi, logo na entrada, o casaco de Troukhatchevski, pendurado no cabide juntamente com outros.

«Eu devia ter ficado surpreendido, mas não. Parece que contava com isso.

«“Está bem”, disse para mim.

«Quando perguntei a Egor quem estava com a senhora ele respondeu-me que era Troukhatchevski. Perguntei-lhe se havia mais alguém. Ele respondeu-me negativamente.

«Lembro-me agora que a resposta dele tinha uma intenção particular. Como se ele desejasse ser-me agradável e desvanecer em mim qualquer má impressão, a propósito de qualquer outra pessoa.

«“Ninguém mais! Ninguém mais”, repetia eu.

«“E os meninos?”

«“Graças a Deus estão bem. Adormeceram há já muito tempo.” Eu não podia suster a respiração, nem fazer parar o tremor dos queixos.

«Afinal era o que eu pensava. Antigamente eu pensava numa desgraça mas na realidade tudo se passava bem. Agora não era como antigamente. Tudo o que eu imaginara, tudo o que eu pensara era a realidade. Desta vez era verdade.

«Ia começar a chorar mas, de repente, um demónio soprou-me ao ouvidos:

«“Chora, arma ao sentimento, eles terão tempo de se separarem tranquilamente. Não terás provas e toda a vida viverás na dúvida e te atormentarás.”

«Imediatamente desapareceu o enternecimento por mim próprio e um estranho sentimento surgiu — talvez você não acredite — um sentimento de alegria, ao pensar que as minhas torturas iam acabar e eu a podia castigar, livrar-me dela e podia finalmente satisfazer o meu desejo de vingança. Tornei-me um animal enraivecido, um animal mau e manhoso.

«“Não é preciso nada”, disse eu a Egor que me queria acompanhar ao salão. “Tu tens que ir fazer imediatamente isto. Mete-te num fiacre e vai levantar as minhas bagagens. Tens aqui a guia. Apressa-te.”

«Ele meteu-se pelo corredor para ir buscar o casacão. Temendo que os fosse prevenir, acompanhei-o até ao quarto e só o deixei quando ele já estava pronto para sair.

«No salão que ficava afastado dos quartos continuavam a ouvir-se vozes e o tilintar dos talheres e dos pratos. Estavam à mesa e não tinham ouvido a campainha da entrada.

«“Deus queira que eles não saiam”, dizia de mim para mim.

«Egor pôs o casacão de gola de astracã e partiu. Logo que saiu fechei a porta à chave e fui tomado de verdadeiro pavor quando percebi que estava completamente só e que era preciso agir imediatamente.

«Não sabia ainda como tudo iria acabar. Mas sabia que tudo terminaria porque não havia maneira de ela poder provar a sua inocência e eu tinha de a castigar e pôr fim às nossas relações.

«Noutras ocasiões eu dizia:

«“Talvez não seja verdade. Pode ser que eu me engane.”

«Neste momento tudo desaparecera. Decidira irrevogavelmente.

«“Às minhas escondidas, numa entrevista durante a noite!...” Era o esquecimento de tudo. Ou pior ainda. Este despudor, esta impertinência do crime eram propositadas para testemunhar a sua inocência. Tudo era claro.

Não podia haver dúvidas.

«Eu só tinha medo que eles se escapassem, inventando uma qualquer artimanha, privando-me de uma prova retumbante e da possibilidade de os castigar. Para os surpreender mais depressa, dirigi-me em bicos de pés para o salão onde se encontravam, não passando pela salinha, mas atravessando o corredor e o quarto dos pequenos.

«No primeiro quarto dormiam os rapazes. No segundo a criada mexeu-se e esteve quase a acordar. Nesse momento pensei o que imaginaria ela quando tivesse conhecimento do que tinha acontecido e senti uma pena tão grande de mim mesmo que não pude suster as lágrimas. Para não ser sentido pêlos pequenos saí a correr para fora do quarto em bicos de pés para o corredor. Entrei no meu gabinete e desatei a chorar convulsivamente enterrado no divã.

«“Que desgraça! Um homem honesto, filho de gente honradíssima, que toda a vida sonhou com a felicidade de um lar!... Cinco filhos e ela beija um músico porque ele tem os lábios vermelhos. Não. Ela não é um ser humano. Ela é uma cadela, uma cadela vil... Junto do quarto dos filhos que ela fingia amar acima de tudo... Escrever o que ela me escreveu e envolvê-lo de seguida nos seus braços.”

«“Talvez tivesse sido sempre assim... Talvez os nossos filhos sejam filhos dalgum dos meus criados.”

«“Se eu tivesse chegado de manhã ela teria vindo ao meu encontro sorridente, formosa com as seus movimentos ondulantes e graciosos (eu revia a sua figura atraente e odiosa) e então a besta raivosa do ciúme ficaria para sempre no meu coração a esfrangalhá-lo.”

«“Que vão pensar o Egor e a criada? E a pobrezinha da Lisa? Ela parece compreender alguma coisa. Que imprudência! Que impostora!”

«Quis levantar-me mas foi em vão. O coração batia-me com tal violência que me não conseguia ter nas pernas. Sem dúvida eu vou morrer de um ataque. Ela mata-me. Era o que era preciso. Era muito cómodo. Não. Não será assim. Seria cómodo de mais. Eu não lhe darei essa satisfação. Muito bonito. Eu aqui sentado sem me poder mexer e eles, comendo, rindo e... Sim. Embora ela não esteja na juventude, ele julgou-a digna dele. Apesar de tudo ela ainda não está má e sobretudo não é um perigo para a sua preciosa saúde.

«“Por que a não estrangulei no outro dia?”, pensava eu recordando a cena em que lhe atirara todos os objectos que tinha sobre a secretária e a tinha expulsado do meu gabinete. Lembrava-me perfeitamente do estado em que me encontrava então; não somente eu recordava nitidamente tudo, mas sentia também a mesma necessidade de bater e de destruir que me assaltara naquele momento.

«Recordo-me de que desejava agir e que todas as espécies de lucubrações fora daquelas que eram necessárias para agir me saíam do cérebro.

«Entrei nas disposições de um animal feroz ou, antes, nas de um homem que está sob a influência de uma excitação física no momento de um perigo. Age com precisão, sem pressa, mas sem perder um minuto e tudo com um fim determinado.»

 

XXVII

 

— A primeira coisa que fiz foi descalçar os sapatos. Em peúgas fui até à parede por cima do divã onde estavam penduradas as espingardas e os punhais. Tirei um punhal curvo marchetado, terrivelmente agudo que nunca tinha servido. Tirei-o da bainha que caiu para trás do divã. Lembro-me que pensei procurá-la mais tarde para que se não perdesse. Depois tirei o sobretudo que tivera vestido todo esse tempo e, caminhando com passos silenciosos sem as botas, dirigi-me para o salão. Depois de ter chegado até à porta, sem nenhum ruído abri-a bruscamente. Lembro-me das suas expressões. Lembro-me perfeitamente, pela alegria que senti perante o horror que elas exprimiam. Era precisamente o que eu pretendia. Eu não posso jamais esquecer o terror desvairado, pintado nas feições dos dois, durante o primeiro segundo... quando eles me viram.

 

«Ele estava — parece-me — sentado à mesa; ao ver-me, ou melhor, ao sentir-me levantou-se repentinamente e ficou de pé, de costas para o armário.

O seu rosto traduzia verdadeiro terror. A cara da minha mulher tinha a mesma expressão. Se a sua fisionomia só tivesse traduzido terror talvez o que aconteceu não tivesse acontecido. Mas ela exprimia — pelo menos foi essa a minha impressão à primeira vista — despeito, desagrado por ter sido interrompida nos seus amores, na sua felicidade com ele. Parecia querer dizer que não a importunassem, que não precisava de nada, porque só precisava, naquele momento, de ser feliz. Mas tudo isto se passou num relance. O terror da expressão de Troukhatchevski foi substituído por um arinterrogador.

«“Devemos   ou não? Se devemos mentir tem que ser já, senão outra coisa vai acontecer.”

«Mas o quê? Ele olhou para ela como a interrogá-la. Sobre a face de minha mulher desapareceram os sinais de desapontamento e tédio para darem lugar à inquietação pelo que podia ir acontecer a Troukhatchevski.

«Fiquei um instante no limiar da porta, com o punhal atrás das costas. Neste preciso momento ele sorriu e começou num ar absolutamente indiferente até ao absurdo:

«“Fazíamos um pouco de música...”

«Por sua vez ela disse:

«“Eu não te esperava!”

«Usou o mesmo tom que ele.

«Nem um nem outro ousaram acabar a frase. A raiva que semanas antes me acometera apoderou-se de mim. Senti novamente o desejo de destruir tudo, uma necessidade de violência, de exaltação. Abandonava-me ao meu furor. Os dois deixaram a sua frase inacabada. Aquela coisa que ele, inconscientemente, temia e que quebrava tudo o que eles diziam começou. Atirei-me a ela, escondendo sempre o punhal que trazia comigo para que ele não me impedisse de a ferir de lado, um pouco abaixo do seio. Desde o princípio que eu escolhera aquele lugar. No momento em que me atirei a ela ele viu o punhal (eu não pensei que ele fosse capaz de proceder assim). Agarrou-me pelo braço e gritou:

«“Acalme-se! Que é que você vai fazer? Socorro!”

«Desprendi o braço brutalmente e sem dizer uma palavra atirei-me a ele. O seu olhar encontrou-se com o meu, tornou-se, como o meu, branco como a cal, os próprios lábios embranqueceram. Os olhos adquiriram um brilho estranho e depois (eu não esperava este desenlace) ele esgueirou-se por debaixo do piano e desapareceu pela porta. Corri atrás dele mas, de repente, senti um peso no meu braço. Era ela. Atirei-me. Ela fez-se mais pesada, reteve-me. Este obstáculo imprevisto, este peso e o seu contacto odioso excitaram-me mais ainda. Eu sentia que estava completa-mente descontrolado, que devia ter um aspecto medonho e sentia-me alegre. Levantei o braço esquerdo com todas as minhas forças e o cotovelo bateu-lhe em cheio na cara. Ela soltou um grito e largou-me o braço. Tentei ainda ir atrás dele mas pensei que seria ridículo correr em meias atrás do amante da minha mulher; eu não queria ser ridículo, queria ser terrível. Apesar do meu frenesim eu tinha a consciência da impressão que causava aos outros e era essa impressão que me guiava. Voltei-me para ela. Tinha caído sobre uma chaise-longue e fitava-me, protegendo com as mãos os olhos feridos. A sua expressão era de ódio e temor; o ódio do inimigo, o do rato quando se abre a ratoeira onde se deixou cair. Pelo menos era o que eu via, horror e medo de mim. Era o horror e o medo que lhe deviam ter feito nascer o amor por outro homem. Eu talvez tivesse conseguido dominar-me e não teria acontecido o que aconteceu se ela não tivesse falado. Mas ela começou a falar e agarrou-me a mão com que eu segurava o punhal.

«“Acalma-te! Que fazes tu?... O que aconteceu? Não há nada... nada... nada... Juro-te!”

«Eu talvez tivesse detido a minha fúria, mas as últimas palavras de que eu tirei a conclusão ao contrário, isto é, que tudo estava consumado, exigiam uma resposta. E a resposta devia ser conforme ao estado em que me encontrava e que ia num crescendo e devia continuar a ampliar-se. A cólera também tem os seus direitos.

«“Não mintas, prostituta!”, berrava eu, e com a mão esquerda agarrei-lhe o braço.

«Mas ela conseguiu libertar-se. Então sem largar o punhal, agarrei-a pela garganta com a mão esquerda, deitei-a para trás e tentei estrangulá-la. Como o seu pescoço era duro! Ela agarrou-se com as duas mãos às minhas, para tentar tirá-las da garganta... e então como se eu não esperasse senão isto, feri-a duas vezes, com muita força, com o punhal no lado esquerdo, abaixo das costelas.

«Quando se afirma que nos não lembramos de nada, num acesso de furor, é uma tolice, e uma mentira. Eu lembro-me de tudo e nem um momento deixei de me lembrar. Quanto mais violenta era a minha cólera mais intenso era o fogo da consciência, à luz da qual eu não podia deixar de ver tudo o que fazia. Em todos os momentos sabia o que estava a fazer. Não poderei dizer que eu sabia de antemão o que ia fazer mas, no momento em que agia, mesmo um pouco antes, sabia bem o que fazia para que fosse possível arrepender-me, e de qualquer maneira, me pudesse deter. Sabia que a feria sob as costelas e que o punhal entrava. Nesse momento, sabia que cometia qualquer coisa de muito horrível, que nunca tinha feito nada de semelhante e que seriam terríveis as consequências. Mas esta consciência desapareceu como um relâmpago e imediatamente o acto se seguiu. Também tenho a consciência nítida do acto. Senti (lembro-me perfeitamente) a resistência do espartilho e depois enterrar-se o punhal em qualquer coisa mole. Ela agarrara a lâmina com as duas mãos e feriu-se mas não a pôde segurar.

«Muito tempo depois, na prisão, quando uma revolução moral se operou em mim, eu meditei nesse minuto, reconstituindo o mais que podia. Lembro-me que num abrir e fechar de olhos durante o segundo que precedeu o meu acto, eu tive o sentimento terrificante de matar, de ter morto uma mulher, uma criatura sem defesa, a minha própria mulher. Lembro-me do horror desse instante e concluí que depois de ter enterrado o punhal eu o tirei (tenho disso uma vaga ideia) com o desejo de reparar o mal, de impedir o que já estava feito. Estive um momento imóvel, esperando o que ia acontecer, se a poderiam salvar. Ela levantou-se bruscamente e gritou:

«“Ama! Ele matou-me!”

«A criada dos pequenos que tinha ouvido barulho estava no limiar da porta. Eu fiquei pregado ao chão, à espera, sem poder render-me à evidência. Neste momento mesmo, o sangue jorrou através do espartilho. Só então compreendi que não poderiam reparar o que tinha feito e verifiquei que era inútil: era precisamente o que eu queria e desejara realizar completamente. Eu esperava que ela caísse. A criada correu para ela gritando:

«“Meu Deus!”

«Então arremessei o punhal para longe e deixei o quarto.

«“É necessário que eu não me perturbe, é preciso que saiba o que faço”, dizia eu, sem olhar, nem para a minha mulher nem para a criada.

«A criada gritava e chamava a outra criada. Eu passei no corredor, mandei a criada para junto de minha mulher e fui para os meus aposentos.

«“Que fazer agora?”, perguntei a mim mesmo e compreendi o que tinha de fazer. Entrando no meu gabinete dirigi-me imediatamente para a parede onde estavam as armas. Tirei um revólver, examinei-o (estava carregado) e coloquei-o em cima da mesa. Em seguida procurei a bainha do punhal e sentei-me sobre o divã.

«Fiquei durante muito tempo assim. Eu não pensava em nada; não me lembrava de nada. Pareceu-me ouvir que transportavam qualquer coisa. Chegou alguém, depois chegou ainda outra pessoa. Em seguida senti e vi Egor trazer para o meu gabinete a bagagem que tinha ficado na gare, como se alguém tivesse necessidade de alguma coisa.

«“Ouviste dizer o que aconteceu? Diz ao porteiro que chame a polícia.”

«Ele calou-se e pouco depois saiu. Levantei-me. Fechei a porta à chave e depois de ter ido buscar cigarros e fósforos pus-me a fumar.

«Ainda não tinha acabado de fumar um cigarro quando o sono me invadiu e me venceu. Dormi, provavelmente, perto de duas horas. Lembro-me que sonhei que éramos bons amigos. Tínhamo-nos zangado mas tínhamos feito as pazes; havia qualquer coisa que nos aborrecia mas éramos bons amigos. Acordei ouvindo bater à porta.

«“É a polícia!”, pensei eu, acordando. “Parece-me que a matei. Ou talvez seja ela e não se tenha passado nada.”

«Tornaram a bater à porta. Eu não respondi, esforçando-me por resolver a questão. Aconteceu ou não aconteceu? Sim, aconteceu. Lembrava-me da resistência do espartilho, o punhal que se enterrava e tive um estremecimento de horror, que me gelou. Sim, aconteceu. Agora é a minha vez. Mas, dizendo isto, eu tinha a certeza que não me mataria. Contudo levantei-me e peguei de novo no revólver. Facto estranho. Lembro-me de que antes disto tinha estado muitas vezes à beira de me suicidar. No dia anterior, no caminho-de-ferro, isso ter-me-ia parecido fácil, precisamente porque supunha dar-lhe um desgosto. Neste momento eu não podia pensar assim.

«“Por que hei-de fazer isto?”, perguntava a mim próprio sem encontrar resposta.

«Bateram de novo à porta. “É preciso saber quem é. Eu tenho tempo.” Pus de nova o revólver sobre a mesa e cobri-o com um jornal. Fui à porta e abri-a. Era a irmã da minha mulher, uma viva, ao mesmo tempo boa e estúpida.

«“Vassia! Que aconteceu?”, disse-me ela entre lágrimas sempre prontas a correr.

«“O que é que tu queres?”, respondi bruscamente. Reconhecia que era perfeitamente inútil e injusto ser brutal com ela mas não podia falar de cutro modo.

«“Vassia! Ela vai morrer. Disse-o Ivan Fédorovitch.” Era o médico, o seu médico, o seu conselheiro.

«“Ele está cá?”, perguntei eu. De novo me veio uma grande má vontade contra ela. “E depois?”

«“Vassia, vai vê-la. Ah! É horrível!”

«“Ir vê-la?”, perguntei a mim próprio. Era necessário ir vê-la. Com certeza era costume. Quando um marido, como eu, mata a mulher é necessário, com certeza, ir vê-la.

«“Se é costume, irei vê-la. Há sempre tempo”, pensei eu a propósito da minha intenção de me suicidar e fui para os aposentos de minha mulher.

“Certamente vai haver frases e gestos mas eu não me deixarei comover.”

«“Espera um pouco”, disse eu para a minha cunhada. «“É estúpido ir em peúgas. Deixa-me, ao menos, calçar as pantufas.”»

 

XXVIII

 

— Coisa extraordinária! Quando saí do meu gabinete e atravessei os compartimentos que me eram familiares tive ainda a esperança de que nada se tivesse passado. Mas o cheiro dos desinfectantes que são prescritos pêlos médicos, o fenol, o iodofórmio, abateram-me. Sim. Era verdade. Quando passei no corredor, em frente do quarto dos filhos, vi Lisa. Fixou-me com os olhos apavorados. Tive mesmo a impressão de que todos os filhos olhavam para mim. Cheguei à porta do quarto; a criada abriu-a e saiu.

 

«A primeira coisa que me saltou aos olhos foi o vestido de minha mulher, um vestido de seda cinzento, em cima de uma cadeira, e todo manchado de sangue. Estava deitada na nossa cama no meu lugar (era o mais acessível), estendida, mas com os joelhos levantados. Tinha o corpete desabotoado e sobre a ferida tinham-lhe colocado qualquer coisa.

«O quarto estava impregnado do cheiro do clorofórmio. Mas o que me horrorizou, antes de mais nada, foi a cara inchada e coberta de nódoas negras num dos olhos e numa parte do nariz. Era o efeito da enorme pancada que eu lhe dera quando ela me agarrou.

«Tinha perdido toda a sua beleza e tinha mesmo um ar repugnante. Parei à entrada.

«“Aproxima-te, vai até junto dela”, disse-me a minha cunhada.

«“Quererá ela confessar-me toda a verdade? Devo perdoar-lhe? Sim. Ela vai morrer, eu devo perdoar”, pensei e esforçando-me por ter um ar magnânimo. Cheguei-me um pouco para mais perto dela. Ergueu para mim, com grande custo, os olhos fatigados (tinha um olho inchadíssimo) e com grande dificuldade e entrecortadamente articulou:

«“Conseguiste o teu fim, mataste-me...” E na sua cara, apesar de todo o sofrimento físico e até da aproximação da morte eu vi o antigo ódio frio e animal que me era familiar. “Mas... os filhos... eu não tos deixarei... Será ela (a sua irmã) que tomará conta deles.”

«Mas do que era mais importante para mim, da sua falta, da sua traição, ela entendia que não valia a pena falar.

«“Revê a tua obra”, disse ela olhando para a porta e desatando a soluçar. A minha cunhada estava à entrada da porta com todos os filhos. “Eis o que tu fizeste.”

«Olhei para os filhos, depois para a sua cara coberta de equimoses, e pela primeira vez esqueci a minha personalidade, os meus direitos, o meu orgulho, vi nela um ser humano. Tudo o que me ofendia, todo o meu ciúme era nada perante a acção que tinha cometido. E tive a tentação de encostar a cabeça à sua mão e pedir-lhe que me perdoasse. Mas não tive coragem. Ela ficou calada, os olhos fechados, visivelmente já fora de si. Depois a cara comple-tamente deformada contraiu-se e cobriu-se de rugas. Repeliu-me.

«“Porquê tudo isto? Porquê?”

«“Perdoa-me”, disse-lhe eu.

«“Perdoar? Tudo isto é absurdo!... O que eu queria era viver”, gritou ela. Soergueu-se, os olhos tinham um brilho febril e fixaram-me: “Conseguiste os teus fins!... Odeio-te. Ai!... Ai!...” Subitamente, em delírio, sob uma impressão de terror. “Mata-me! Mata-me! Eu não tenho medo... Somente... peço-te, mata-nos a todos, e a ele também. Ele foi-se embora... ele foi-se embora!...”

«Nunca mais deixou de delirar. Já não conhecia ninguém. Morreu nesse mesmo dia, pelo meio-dia.

«Às oito horas tinham-me levado para o comissariado e daí para a prisão. Depois de onze meses de prisão em que esperei pela organização do processo, reflecti durante esse tempo sobre a minha maneira de ser e proceder, sobre todo o meu passado e compreendi então tudo. Logo dois dias depois comecei a compreender. E dois dias depois entrava na prisão...»

Ele quis acrescentar mais alguma coisa mas não pôde reter por mais tempo os soluços. Parou a narração. Encheu-se de coragem e continuou:

 

— Eu nada tinha compreendido até que a vi no caixão. — Voltou a soluçar mas continuou precipitadamente: — Foi só quando vi a sua cara de morta, pálida como cera, que compreendi tudo o que tinha feito. Compreendi que a tinha assassinado e que dependera de mim a sua vida, o que a animava, o seu calor, a sua felicidade; e, que por mim, ela se tornara inerte, fria, cor de cera; e eu não podia reparar o mal que fizera em nenhum tempo, em nenhum lugar, de nenhuma maneira. Quem não passou por isto não pode compreender. Que horror!... Que horror!... — gritou ele por diversas vezes. Depois, veio-lhe de novo a calma. Ficámos silenciosos por muito tempo. Ele chorava desabaladamente, sem dizer uma palavra na minha frente, sacudido a todos os instantes, pêlos solavancos do comboio.

 

— Perdoe-me!...

 

Voltou-se. Estendeu-se ao comprido no banco e tapou-se com a manta de viagem. Na estação em que eu me devia apear (eram perto de oito horas da manhã) aproximei-me dele para me despedir. Não sei se dormia se fazia que dormia. Não tinha sequer um leve estremecimento. Toquei-lhe com a mão e afastando a manta que o cobria vi que ele estava acordado.

 

— Adeus — disse-lhe estendendo-lhe a mão. Estendeu-me a sua com um sorriso tão lamentavelmente triste que tive vontade de chorar.

 

— Perdoe-me — disse-me ele, repetindo as mesmas palavras que dissera quando concluíra a sua narrativa.

 

POSFÁCIO

 

Recebi e continuo a receber muitas cartas de desconhecidos, pedindo-me que explique em termos simples e claros o que penso acerca da narrativa que escrevi e intitulei Sonata a Kreutzer.

Vou tentar exprimir brevemente, na medida do possível, o conteúdo do que eu quis dizer nesta narrativa e as conclusões que segundo o meu parecer se podem daqui tirar.

Primeiramente, quis dizer que na nossa sociedade se formou a convicção sólida, comum a todas as classes e aprovada por uma falsa ciência de que as relações sexuais são indispensáveis à saúde; e que portanto, quando o casamento se não torna possível, o comércio sexual, não obrigando o homem a outra preocupação que não seja a de uma determinada despesa, é uma actividade perfeitamente natural e por consequência deve ser encorajada.

Esta convicção tornou-se tão geral e tão sólida que os pais, a conselho dos médicos, asseguram a depravação dos filhos; os governos cujo único fim é o cuidado do bem-estar moral dos seus concidadãos fazem do desregramento físico uma instituição, isto é, regularizam a existência de uma classe de mulheres destinadas a morrer não só física como moralmente para satisfação das pretensas necessidades dos homens, de tal modo que os celibatários entregam-se ao deboche com a consciência perfeitamente tranquila.

Eu quis, portanto, provar que esta tese está errada porque é impossível que para a saúde de uns seja necessário fazer morrer os corpos e as almas dos outros, da mesma maneira que não é possível que para a saúde de uns seja necessário beber o sangue dos outros.

A conclusão que tiramos é de que não se deve ceder a esta aberração e falsidade.

Para não ceder é necessário primeiro não acreditar nas doutrinas imorais, quer elas sejam pseudociências em que se arvoram e, segundo, compreender que a prática das relações sexuais desta espécie nas quais os homens ou se libertam das consequências possíveis — os filhos —, ou então fazem recair todo o peso sobre a mulher, ou obstam à possibilidade concepcional; as relações deste género são na verdade uma transgressão da mais simples exigência moral, uma infâmia e os homens solteiros que não querem ter uma vida infame não devem proceder desta maneira.

Para se poderem abster é preciso além disso levar uma vida conforme à natureza; não beber, não se empanturrar de comida, não comer carne, não fugir ao trabalho (não ginástica mas um trabalho extenuante, que não tenha nada de divertimento), afastar do pensamento a possibilidade de relações físicas com mulheres de outros, da mesma maneira que qualquer homem afasta a possibilidade de ligações desse género entre ele e a mãe, os irmãos, os pais e as mulheres dos amigos.

A continência é possível e muito menos perigosa e prejudicial à saúde que a incontinência. Todos os homens encontrarão à sua volta centenas de provas.

Este é o primeiro ponto.

Segundo ponto: na nossa sociedade considera-se o comércio amoroso não só como uma condição essencial à saúde e um prazer mas uma felicidade poética e sublime; a infidelidade conjugal em todas as classes (sobretudo entre os camponeses — graças ao serviço militar) é um fenómeno corrente.

Eu considero isto mal. A conclusão que daqui resulta é de que se não deve fazer isto.

Para não fazer isto é necessário considerar o amor carnal de uma outra maneira. É preciso que os homens e as mulheres sejam educados nas famílias e na opinião pública de tal maneira que antes e depois do casamento eles considerem o desejo e o amor físico que estão entre si ligados, não como um estado poético e superior, como se considera presentemente, mas como um estado animal degradante para o ser humano e que a violação da promessa de fidelidade, dada no momento do casamento, seja castigada pela opinião pública pelo menos, da mesma maneira que o não pagamento de uma dívida, ou fraude comercial, e não seja celebrada, como se faz agora, nos romances, na poesia, nas canções, nas óperas, etc.

Este é o segundo ponto.

Terceiro ponto: na nossa sociedade, sempre, como consequência do significado errado atribuído ao amor carnal, a procriação perdeu o seu verdadeiro significado: em vez de ser o fim e a qualificação das ligações conjugais ela não é senão um obstáculo ao prolongamento agradável das relações amorosas. Consequentemente, tanto fora como dentro do casamento, sob o conselho dos servidores da ciência médica, por um lado, o emprego de processos para privarem a mulher da possibilidade de conceber começou a espalhar-se, por outro lado, uma prática que não existia outrora nas famílias patriarcais camponesas começa a entrar em uso: a continuação das relações conjugais durante a gravidez e o aleitamento.

Eu considero isso um mal. É um mal o emprego dos processos anticoncepcionais; primeiro porque liberta as pessoas dos cuidados e dos sofrimentos que dão os filhos e eram um resgate do amor carnal; segundo, porque é qualquer coisa muito próxima do acto que mais repugna à consciência humana, o assassínio. A incontinência durante a gravidez e o aleitamento é reprovável porque atinge a mulher nas suas forças físicas e sobretudo morais.

A conclusão que daqui resulta é de que se não deve fazer isto. E para não o fazer é necessário compreender que a continência, condição essencial da dignidade humana fora do casamento, é ainda mais necessária no matrimónio.

Este é o terceiro ponto.

Quarto ponto: na nossa sociedade, em que os filhos são considerados, tanto como um obstáculo à felicidade, tanto como um perigo desastroso ou como uma felicidade quando se lhes determina o número de antemão, os filhos são criados não no sentido das tarefas da vida humana que os espera como seres inteligentes e amáveis mas somente no sentido dos prazeres que eles podem proporcionar aos pais.

Por consequência, os filhos dos homens são criados como animaizinhos e o principal cuidado dos pais não é prepará-los para as actividades dignas dos homens mas (e nisto os pais são sustentados pela falsa ciência a que se chama medicina) de os fartar o mais possível, de fazer deles homens de boa estatura, musculosos, brancos, gordos e bonitos (se não se faz o mesmo nas classes inferiores é unicamente porque a necessidade se opõe, mas o critério é o mesmo). É entre as crianças molengas como entre os animais superalimentados, manifesta-se cedo e anormalmente uma sensualidade invencível que lhes causa tormentos horríveis na adolescência. Os enfeites, as leituras, os espectáculos, a música, as danças, as guloseimas, todo o cenário da vida, desde os bonecos das caixas de bombons até aos romances, novelas e poemas, incitam e exaltam ainda mais a sensualidade; em consequência disto surgem as mais tremendas depravações e as doenças sexuais tornam-se o elemento habitual no crescimento das crianças dos dois sexos e permanecem, muitas vezes, até na idade adulta.

Eu considero isto um mal. A conclusão que se pode tirar é que é necessário deixar de educar os filhos dos homens como os filhos dos animais e para educar os filhos dos homens devem fixar-se outras regras que não sejam as de criar corpos bonitos e amimados.

É o quarto ponto.

Quinto ponto: na nossa sociedade em que a paixão entre um rapaz e uma rapariga, cuja base é o amor carnal, é considerada no plano de um resultado nobre e poético das aspirações dos seres (toda a arte e a poesia da nossa sociedade são disso testemunhos) os jovens consagram-lhe grande parte da vida: os homens a procurar o objecto mais digno do seu amor e tomar posse dele ou sob a forma de uma ligação ou de um casamento; as mulheres e as raparigas a seduzir e a atrair os homens para uma ligação ou para o casamento.

Deste modo, as melhores forças dos indivíduos são empregadas numa tarefa não somente improdutiva, mas aborrecida. Daí provém a maior parte do luxo insensato da nossa vida quotidiana, daí a ociosidade dos homens, o impudor das mulheres que não hesitam em expor, com a ajuda das modas provenientes de mulheres notoriamente depravadas, as partes do corpo mais provocantes para os sentidos.

Ora eu considero isto um mal.

E mal porque a procura da união, no casamento ou fora do casamento, com o objecto amado, qualquer que seja a maneira como o poetizem é um fim indigno do homem, da mesma maneira que é indigno do homem andar à procura (embora seja para muitos o maior bem) de uma alimentação saborosa e abundante. A conclusão que devemos tirar é de que o amor carnal nada tem de particularmente nobre e que a finalidade superior do homem, quer seja o serviço da humanidade, da pátria, da ciência, da arte (não falando no serviço de Deus) não se atinge através da união com o objecto amado, no casamento ou fora dele. Pelo contrário, o amor, a união com o objecto amado — é debalde que se procura demonstrar o contrário, seja em prosa, seja em verso — não facilita o alcance desse fim, antes o dificulta.

É este o quinto ponto.

Resumindo era isto o que eu queria dizer e julgara mesmo tê-lo dito na minha narrativa. Supunha que o mal que a minha tese denuncia faria reflectir no meio de remediar mal tão profundo.

É impossível rebater os argumentos que apresentei, primeiro porque estão em acordo perfeito com o progresso da humanidade que tende para a castidade, com a consciência moral da sociedade, com a nossa consciência pessoal que condenou sempre a incontinência e apreciou a pureza; segundo porque os argumentos apresentados são a consequência inevitável dos ensinamentos do Evangelho que praticamos, ou pelo menos, reconhecemos, por vezes inconscientemente, como fundamento da nossa concepção moral. Ninguém, certamente, contesta os argumentos que condenam o desregramento, antes e depois do casamento, nem os de que se não deve impedir a concepção; nem que os filhos não devem ser motivo de divertimento, nem que se deve colocar acima de tudo a união carnal; ninguém negará que a castidade é preferível à libertinagem.

Argumenta-se: se o celibato é um estado mais perfeito do que o casamento, evidentemente devemos praticar o que é melhor, mas nesse caso desaparecerá o género humano. Ora, o ideal do género humano não deve ser o seu aniquilamento.

O aniquilamento do género humano não é uma concepção nova. É um dogma para os crentes. É uma dedução inevitável das observações para os cientistas. Há nesta objecção um grande mal-entendido (que não é de hoje e está muito espalhado).

Se os homens atingem o ideal da perfeita castidade aniquilam-se, logo o ideal é falso. Os que afirmam isto misturam, consciente ou inconscientemente, duas coisas de natureza diferente, a lei (a prescrição) e o ideal.

A castidade não é uma lei, é ideal, ou melhor, uma das condições do ideal. E o ideal só é ideal quando a sua realização não é possível, senão como ideia e pensamento. O ideal só deve ser possível de atingir no infinito e por consequência a possibilidade de aproximação é infinita. Se o ideal se atinge e podemos representar a sua realização deixa de ser ideal. Tal é o ideal de Cristo.

O advento do reino de Deus sobre a Terra, ideal já anunciado pêlos profetas e em que os homens instruídos por Deus transformariam o ferro das espadas em charruas, as lanças em foices, o leão se deitaria ao lado do cordeiro e os homens estariam unidos pelo Amor.

Todo o sentido da vida humana é um movimento que tende para este ideal; no seu conjunto e aspiração para o ideal cristão, e em particular a castidade como uma das condições deste ideal, não exclui a possibilidade da vida mas pelo contrário a ausência deste ideal cristão impede toda a possibilidade da vida.

A hipótese de que o género humano acabaria se os homens tendessem para uma castidade perfeita assemelha-se à de que o género humano poderia acabar se os homens em vez de lutarem pela existência tendessem para realizar perfeitamente a caridade amando o próximo como a si próprio, amigos e inimigos, todos os seres vivos.

Estas afirmações derivam da incompreensão da diferença dos dois aspectos da conduta moral.

Assim como se pode indicar de duas maneiras o caminho ao viajante que o procura, há duas regras de conduta moral para o homem que procura a verdade. Uma consiste em mostrar ao homem objectos que tem de encontrar e ele orienta-se segundo esses objectos. A outra consiste em dar ao homem somente uma direcção indicada pela bússola que o homem traz consigo e em que é marcada a direcção imutável e por consequência ele poderá apreciar os seus próprios desvios.

A primeira regra de conduta moral baseia-se em regras exteriores — determinam-se ao homem actos determinados que ele pode ou não realizar.

 

— Respeita o sábado — emprega a circuncisão, não bebas bebidas alcoólicas, não mates seres vivos, dá o dinheiro aos pobres, não cometas adultério, faz as tuas abluções, reza cinco vezes por dia, baptiza-te, comunga, etc. Eis os pontos das doutrinas exteriores das religiões, bramânica, budista, muçulmana, hebraica, eclesiástica, abusivamente chamada cristã.

 

A outra regra mostra ao homem uma perfeição impossível de atingir, à qual ele aspira no fundo de si próprio; indica-se ao homem um ideal e ele pode sempre medir a distância que o separa.

 

— Ama a Deus com todo o coração, com toda a tua alma, com toda a tua razão, e ao teu próximo como a ti mesmo. Sede perfeitos como vosso Pai Celeste.

 

É a doutrina de Cristo.

Pode-se verificar a realização das doutrinas exteriores da religião pela concordância dos actos com os pontos destas doutrinas, esta concordância é possível.

Pode-se verificar a realização da doutrina de Cristo pela consciência do grau de afastamento do ideal de perfeição. (O grau de aproximação não é visível; não se apreende senão a distância que nos separa da perfeição.)

O homem, praticando a lei exterior, é um homem de pé à luz de uma lanterna aparafusada num poste. Se ele se mantém na luz desta lanterna vê claro, e não tem necessidade de ir mais longe. O homem que pratica a doutrina de Cristo assemelha-se a um homem que traz uma lanterna diante dele ao fim de uma vara mais ou menos comprida; a luz está sempre diante dele, incita-o continuamente a continuar o seu caminho e revela-lhe a todos os momentos um espaço novo que ela ilumina.

O fariseu dá graças a Deus porque cumpriu todos os seus deveres.

O rapaz rico também cumpriu todos os deveres desde a infância e não vê o que pode faltar-lhe. Eles não podem pensar de outra maneira e não há mais nada a que possam aspirar. Pagam o dízimo, observam o sábado, respeitam os pais, não cometem adultério, nem roubo, nem assassínio. Que mais é preciso?

Mas para o que pratica a doutrina cristã, o acesso a cada grau da perfeição faz nascer a necessidade de subir ao grau seguinte de onde se descobre um outro, ainda mais elevado. O que pratica a lei de Cristo está perpetuamente na situação do publicano. Ele sente-se sempre imperfeito; não vê o caminho percorrido, mas vê sempre o caminho que ainda lhe é necessário percorrer.

E aqui que se encontra a diferença entre a doutrina de Cristo e todas as outras doutrinas religiosas; esta diferença reside não nas exigências mas na maneira de dirigir os homens. Cristo não deu nenhuma regra de vida; ele nem mesmo instituiu o matrimónio — mas as pessoas que não compreendem a singularidade da doutrina de Cristo, habituadas às doutrinas exteriores e desejosas de se sentirem justas da mesma maneira que o fariseu se sente justo — contrariamente a todo o espírito da doutrina de Cristo —, tomaram os seus ensinamentos à letra e fizeram um conjunto de regras exteriores, chamado doutrina cristã da Igreja e que substitui a verdadeira doutrina de ideal de Cristo.

Este ensino da Igreja que se baptiza cristã instituiu no lugar do ensino do ideal em tudo o que concerne às regras exteriores contrárias ao espírito da doutrina — isto no que diz respeito ao poder da justiça, do exército, da Igreja, do culto e também no que diz respeito ao casamento; se bem que Cristo nunca tenha instituído o matrimónio, mas, se se procuram as regras exteriores, tenha antes negado (deixa a tua mulher e segue-me), o ensino da Igreja que se baptiza cristã, instituiu o casamento como base da vida cristã — dizendo de outro modo, fixou as condições exteriores, graças às quais o amor carnal pode parecer ao cristão perfeitamente inocente e legítimo. Mas como na verdade a doutrina cristã não tem nenhuma base para a instituição do casamento, resulta que as pessoas do mundo deixaram uma margem sem abordar à outra: eles não crêem no fundo nas disposições da Igreja que dizem respeito ao casamento, porque sentem que esta instituição não tem fundamento na doutrina cristã e ao mesmo tempo perdem de vista o ideal de Cristo, escondido pelo ensino da Igreja, a aspiração para uma castidade absoluta, e ficam quanto ao casamento sem nenhuma direcção. Daí vem este fenómeno que a princípio pareceu estranho: entre os judeus, os maometanos, os lamaístas e outros que professam doutrinas religiosas de um nível muito mais baixo que o cristianismo, mas que têm regras exteriores do casamento precisas, o princípio filial e a fidelidade conjugal são incomparavelmente mais firmes que entre os nossos pretensos cristãos.

Eles praticam uma concubinagem, uma poligamia regulamentada, fechada dentro de certos limites. Enquanto entre nós, a desvergonha absoluta, a concubinagem, a poligamia e a poliandria, escapando a todas as regras, revestem o aspecto de uma monogamia imaginária.

Unicamente porque, para uma certa classe o clero celebra, por dinheiro, uma determinada cerimónia chamada matrimónio cristão. As pessoas do mundo então, inocente ou hipocritamente, imaginam que vivem na monogamia.

Não houve nunca nem pode haver matrimónio cristão como não há nem nunca poderia haver culto cristão, nem professores ou padres cristãos, nem propriedade cristã, nem exército, nem justiça ou estados cristãos. Isto foi sempre compreendido pêlos verdadeiros cristãos dos primeiros séculos e dos séculos seguintes.

O ideal cristão é o amor de Deus e do próximo, é a renúncia a si próprio para servir Deus e o próximo; o amor carnal, o matrimónio, não é serviço senão de si próprio e assim ele é em todos os casos um obstáculo ao serviço de Deus e os homens, por consequência, sob o ponto de vista cristão estão em pecado. O facto de se contrair matrimónio não é prestar serviço a Deus nem mesmo no caso em que os contratantes têm como fim a propagação da espécie. Em vez dessa gente contrair matrimónio a fim de procriarem vidas infantis seria muito mais simples sustentar e salvar milhares de crianças que morrem à nossa volta à míngua de alimentos — já não digo de alimento espiritual, mas material.

Um cristão não deveria contrair matrimónio sem a consciência de pecado senão no caso em que ele visse e soubesse que a vida de todas as crianças que existem está assegurada. Pode-se não aceitar a doutrina de Cristo, doutrina que impregna toda a nossa vida e sobre a qual assenta toda a moral; mas se se aceita não se pode negar que ela nos indica um ideal de perfeita castidade.

Diz-se claramente no Evangelho e sem nenhuma possibilidade de outra interpretação, primeiramente, que um homem casado não pode repudiar a sua mulher para tomar outra mas deve viver com aquela à qual se uniu uma vez — segundo, que é pecado geral, e então tanto para o homem casado como para o que o não é, considerar a mulher como um objecto de prazer; terceiro, que um homem não casado, melhor é não casar, quer dizer, deve guardar castidade.

Para um grande número estas ideias parecem estranhas e contraditórias. Elas são realmente contraditórias mas não entre si; elas contradizem toda a nossa vida, de tal modo que se levanta involuntariamente uma dúvida: quem tem razão? Estas ideias ou a vida de milhões de seres, compreendendo a minha? Eu próprio tenho experimentado este sentimento no mais alto ponto quando cheguei às convicções a que cheguei e exponho nesta narrativa — nunca pensei que o desenvolvimento dos meus pensamentos me levasse até aqui. Tive medo perante as minhas conclusões e tentei não lhes juntar fé, mas era impossível. Estas conclusões contradizem toda a ordem da nossa vida, contradizem o que pensei e expus outrora, mas devo aceitá-las. Não são senão considerações gerais, são talvez justas, mas reportam-se à doutrina de Cristo e não obrigam senão aqueles que a professam; a vida é a vida e não se pode, depois de se ter mostrado o ideal inacessível de Cristo, abandonar os povos no seio de um dos problemas mais intensos, os mais gerais e os mais geradores de catástrofes, só com este ideal, sem nenhuma espécie de direcção.

Um rapaz apaixonado será, a princípio, guiado por este ideal, mas não perseverará; desligar-se-á dele, e sem conhecer, nem reconhecer outra regra, cairá no deboche.

Assim se raciocina ordinariamente:

«O ideal de Cristo é inacessível, portanto, não pode seguir-nos de guia na vida; pode-se falar dele e sonhá-lo mas não aplicá-lo à vida, portanto, é preciso abandoná-lo. O que nos é preciso não é um ideal, é uma regra, uma conduta correspondente às nossas forças, ao nível médio das forças morais da nossa sociedade: o matrimónio honesto da Igreja, ou mesmo o casamento não completamente honesto, no qual um dos contratantes, entre nós o homem, se uniu já a muitas mulheres, ou mesmo o casamento com possibilidade de divórcio, ou mesmo o casamento civil, ou mesmo (se vamos por este caminho) o matrimónio japonês a prazo... e porque não então as casas de tolerância? Diz-se que vale mais do que a aliciação na rua. É justamente essa a desgraça: quando se pode baixar um ideal ao nível da sua própria fraqueza, não se pode achar o limite onde devemos parar.»

Este raciocínio é falso desde o princípio; antes de mais nada é falso dizer que um ideal de perfeição absoluta não pode ser guia na vida e que devemos contemplando-o, ou renunciar a esse ideal, dizendo que nos não serve para nada porque não conseguimos atingi-lo, ou então baixá-lo até ao nível em que se mantém a nossa fraqueza. Raciocinar assim é agir como um navegador que dissesse: Como não posso seguir a direcção que me indica a bússola, vou deitá-la fora ou vou deixar de me guiar por ela, quer dizer abandonarei o meu ideal; ou melhor, ligarei a agulha da bússola ao lugar que corresponderá à marcha do navio, num movimento dado e assim baixarei o meu ideal ao nível da minha fraqueza.

O ideal de perfeição dado por Cristo, não é um sonho, nem assunto de discurso retórico, é guia necessário e acessível a todos da vida moral dos homens, da mesma maneira que a bússola é um guia necessário e acessível da navegação; somente o que é necessário é acreditar tanto num como noutro.

Em qualquer situação que se encontre um homem encontrará sempre na doutrina cristã as directivas mais seguras quanto aos actos que lhe convém ou não realizar — mas é preciso acreditar completamente nesses ensinamentos, deixar de acreditar nos ensinamentos de outras doutrinas, da mesma maneira que o navegador deve acreditar na bússola, e cessar de examinar o que vê ao lado dele. É necessário sabermo-nos guiar com o auxílio da doutrina cristã como com o auxílio da bússola e para isto é preciso antes de mais nada compreender a sua situação e não temer de determinar com precisão a distância que nos separa da direcção ideal dada. Em qualquer nível que se encontre um homem, há sempre para ele uma possibilidade de se aproximar deste ideal — e não pode haver para ele situação em que possa dizer que atingiu o ideal e não possa aspirar a aproximar-se cada vez mais. Tal é a tendência do homem para o ideal cristão em geral e para a castidade em particular.

Se considerarmos, no que diz respeito ao problema sexual, as mais diferentes situações (desde a infância até ao casamento), nas quais não se observa a continência, em cada passo, entre estas duas posições, a doutrina de Cristo e o ideal que nela se expõe servirá sempre de guia claro e preciso para o que o homem deve ou não deve fazer em cada um desses passos.

Como devem proceder um adolescente e uma rapariga pura? Evitar as tentações a fim de poder consagrar-se completamente ao serviço de Deus e dos homens, e tender para uma pureza cada vez maior em pensamento e desejo.

Que devem fazer um adolescente e uma rapariga que sucumbiram àstentações, absorvidos pelo pensamento de um amor sem objecto, ou de um amor por um ser determinado, e tendo perdido, de facto uma parte da faculdade de servir a Deus e aos homens? A mesma coisa: não renovar a queda sabendo que «deixar ir», longe de os libertar da tentação, não faz mais do que reforçá-la, e tender sempre da mesma maneira para uma pureza cada vez maior a fim de poder servir plenamente Deus e os homens.

Que devem fazer os que se deixaram vencer nesta luta e que caíram? Considerar a sua queda não como uma alegria legítima, como se faz agora quando essa queda é absolvida pelo rito do casamento, nem como prazer acidental que se pode repetir como outros, nem como uma desgraça quando a queda se consumou com um ser que não é nosso igual e sem rito, mas considerar esta primeira queda como a única, como a conclusão de um casamento indissolúvel. O facto de contrair casamento acarretando uma consequência: a concepção de filhos, determina para os esposos uma nova forma mais limitada do serviço de Deus e dos homens. Antes do casamento, o homem, directamente, sob as formas mais variadas, podia servir a Deus e aos homens; o facto de contrair casamento reduz o seu raio de acção e obriga-o a criar e a educar a sua descendência, composta de futuros servidores de Deus e dos homens.

Que devem fazer um homem e uma mulher que vivam no casamento, e completam este serviço limitado de Deus e dos homens, através da educação e da instrução dos filhos que derivam da sua posição?

A mesma coisa: aspirar em conjunto a libertar-se das tentações, a purificar-se, a abster-se de pecar, a substituir as relações conjugais, que se opõem ao serviço geral e particular de Deus e dos homens; substituir o amor carnal pelas relações puras de um homem e de uma irmã.

É por isso que é falso dizer que não podemos guiar-nos segundo o ideal de Cristo porque é demasiado elevado, demasiado perfeito e inacessível; se não nos podemos guiar segundo o ideal de Cristo, é unicamente porque mentimos a nós próprios e nos procuramos enganar.

Com efeito, quando dizemos que temos necessidade de regras mais praticáveis que o ideal de Cristo e que de outro modo, porque não podemos atingir esse ideal, caímos no deboche, não dizemos que o ideal de Cristo é demasiado elevado para nós mas somente que não acreditamos na nossa vontade de conformar os nossos actos com os seus ensinamentos.

Dizendo que uma vez caídos, tornaremos a cair no deboche, dizemos somente que antecipadamente, tínhamos já decidido que a queda com uma inferior não é um pecado, mas um divertimento, um arrebatamento que não somos obrigados a reparar por aquilo a que chamamos casamento. Em contrapartida, se compreendêssemos que a queda é um pecado que deve ser resgatado e não pode sê-lo senão pela indissolubilidade do casamento e por toda a actividade que ressalta da educação dos filhos nascidos desse casamento, da queda não poderia jamais resultar a recaída no deboche. É exactamente como se um cultivador recusasse o nome de sementeira às sementeiras que não tivessem resultado e não chamasse verdadeiras sementeiras, depois de semear várias terras, senão às que tivessem germinado.

Visivelmente este homem malbarataria muitas terras e sementeiras e nunca aprenderia a semear.

Fazei da castidade um ideal, considerai que toda a queda de quem quer que seja, com quem quer que seja, é um casamento único e indissolúvel para toda a vida e será evidente que a linha de conduta que nos deu Cristo é não só suficiente mas a única possível.

O homem é fraco, é preciso dar-lhe uma tarefa segundo as suas forças, diz o povo. Isto quer exactamente dizer: os meus braços são fracos e não posso seguir a linha que deveria ser direita — isto é, a mais curta distância de um ponto a outro; contudo, para me consolar, desejando seguir essa linha directa, vou tomar como modelo uma linha curva ou quebrada. Quanto mais fraco é o braço, maior é a necessidade de um modelo perfeito.

Desde que uma vez se compreendeu a doutrina cristã do ideal, não se pode proceder como se a desconhecêssemos e substituí-la por regras exteriores. A doutrina cristã do ideal foi revelada à humanidade precisamente porque pode dirigi-la na idade que ela agora atingiu. A humanidade ultrapassou o período das regras religiosas exteriores mas ninguém acredita nisso. A doutrina cristã do ideal é a única doutrina capaz de conduzir a humanidade. Não se pode, não se deve substituir o ideal de Cristo por regras exteriores, é preciso, ao contrário, manter firmemente este ideal diante de si, em toda a sua pureza e sobretudo acreditar. A um homem que navegue perto da margem poder-se-ia dizer: orienta-te por esta iminência, por este cabo, por esta torre, etc. Mas chega o momento em que o navegador se afasta da margem, onde só os astros são acessíveis e a bússola que lhe indica a direcção devem e podem servir-lhe de guia.

São-nos dados um e outro. 

 

                                                                                                  Leon Tolstoi

 

Carlos Cunha    Arte & Produção Visual

 

 

 

 

 

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