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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


345 / Artur Azevedo
345 / Artur Azevedo

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

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- És o rei dos caiporas, e, além disso, não tens a menor parcela de bom senso! Não fosse eu tua mulher, e não sei o que seria de ti, porque decididamente não te sabes governar!

 

- Exageras, nhanhã!

 

- Não! não sabes! Tens deixado estupidamente um rol de vezes passar a fortuna perto de ti, sem a agarrar pelos cabelos! Dizem que ela é cega: cego és tu!

 

- Já vês que a culpa não é minha...

 

- Quando houve o Encilhamento, só tu não te arranjaste!

 

- Mas também não me desarranjei...

 

- Para seres promovido a 1o oficial da tua Repartição, foi preciso que eu saísse dos meus cuidados e procurasse o ministro.

 

- Fizeste mal.

 

- Se o não fizesse, não passarias da cepa torta!

 

- Não quero obscurecer o mérito da tua diligência, mas olha que estás enganada, nhanhã.

 

- Deveras?

 

- Redondamente enganada. A nomeação era minha. Quando fui agradecê-la ao ministro, este disse-me: "Não era preciso que sua senhora se incomodasse: o decreto estava lavrado."

 

- Pois sim! isso disse ele... E quando o decreto estivesse, efetivamente, lavrado? Á última hora seriam capazes de substitui-lo por outro! Pois se és tão caipora!

 

- Perdoa, nhanhã, mas não sou tão caipora assim... Pelo menos tive uma grande felicidade na vida!

 

- Qual foi, não me dirás?

 

- A de ter casado contigo...

 

Nhanhã mordeu os lábios, porque não achou o que responder, e naquele dia as suas impertinências habituais não foram mais longe.

 

* * *

 

O pobre Reginaldo - assim se chamava o marido - habituara-se de muito àquelas recriminações insensatas, e era um quase fenômeno de resignação e paciência.

 

Ela bem sabia que a coisa seria outra, se realmente a fortuna se deixasse agarrar pelos cabelos: o que nhanhã não lhe perdoava era a sua pobreza, - não era o seu caiporismo. Ela não podia ter em casa do marido o mesmo luxo que tinha em casa do pai; não podia rivalizar com alguma amiga em ostentação: era isto, só isto que a afligia, ou antes, que os afligia a ambos, marido e mulher.

 

* * *

 

Reginaldo tinha aversão ao jogo; nem mesmo a loteria o tentava.

 

Entretanto, uma tarde meteu-se num bonde do Catete, para recolher-se à casa, e no Largo do Machado, onde se apeou, pois morava naquelas imediações, foi perseguido por um garoto que à viva força lhe queria impingir um bilhete de loteria, - uma grande loteria de cem contos de réis, cuja extração estava anunciada para o dia seguinte.

 

Reginaldo resistiu, caminhando apressado sem dar resposta ao garoto, que o acompanhava insistindo; mas de repente lhe acudiu a idéia de que aquele maltrapilho poderia ser a fortuna disfarçada. Era preciso agarrá-la pelos cabelos! Comprou o bilhete, e foi para casa, onde o esperavam os tristes feijões quotidianos.

 

* * *

 

Ele bem sabia que, se dissesse a nhanhã que havia feito essa despesa extra-orçamentária, não teria a sua aprovação; mas que querem, - o pobre rapaz era um desses maridos submissos, que não ficam em paz com a consciência quando não contam por miúdo às caras-metades tudo quanto lhes sucede.

 

Ao saber da compra do bilhete, nhanhã pôs as mãos na cabeça:

 

- Quando eu digo que tu não tens a menor parcela de bom senso...! Aí está! Dez mil-réis deitados fora, e tanta coisa falta nesta casa!...

 

E seguiu-se, durante meia hora, a relação dos objetos que poderiam ser comprados com aqueles dez mil-réis perdidos.

 

Depois disso, nhanhã pediu para ver o bilhete.

 

Reginaldo, sem proferir uma palavra, tirou-o do bolso e entregou-lho.

 

- Número 345! exclamou ela. Um número tão baixo numa loteria de cinqüenta mil números! Isto é o que se chama vontade de gastar dinheiro à toa! Algum dia viste, nessas grandes loterias, ser premiado um número de três algarismos?

 

Reginaldo confessou que nem sequer olhara para o número. Como o garoto se lhe afigurou a fortuna disfarçada, ele aceitou o bilhete que lhe fora oferecido, entendendo que não devia argumentar com a fortuna.

 

- 345! Pois isto é lá número que se compre!

 

- Agora não há remédio.

 

- Como não há remédio? Põe o chapéu e volta imediatamente ao Largo do Machado: o garoto ainda lá deve estar. Dá-lhe o bilhete e ele que te dê o dinheiro.

 

- Perdoa, nhanhã, mas isso não faço eu: comprei! Nem o garoto desfazia a compra!

 

- Ao menos vai trocar o bilhete por outro, que tenha, pelo menos, quatro algarismos! Se tiver cinco, melhor!

 

- Faço-te a vontade: mas olha que sempre ouvi dizer que bilhetes de loteria não se trocam...

 

- Faze o que eu disse e não resmungues! Tu és o rei dos caiporas e eu tenho muita sorte!

 

Reginaldo não disse mais nada: pôs o chapéu, saiu de casa, foi ao Largo do Machado, e voltou com outro bilhete.

 

Desta vez o número tinha cinco algarismos: 38788; nhanhã devia ficar satisfeita.

 

Não ficou:

 

- Devias escolher um número mais variado: o 8 fica aqui três vezes.. - Mas, enfim, 38788 sempre inspira mais confiança que 345...

 

* * *

 

Pois, senhores, no dia seguinte o n.0 38788 saiu branco, e o n.0 345 foi premiado com a sorte grande.

 

* * *

 

Imagine-se o desespero de nhanhã:

 

- Então, eu não digo que és o rei dos caiporas?

 

- Perdoa, nhanhã, mas desta vez não fui o rei: tu é que foste a rainha...

 

- Cala-te! Se não fosses um songamonga, não me terias feito a vontade! Ter-me-ias roncado grosso!

 

- Ora essa!

 

- Um marido não se deve deixar dominar assim pela mulher!

 

- Olha que eu pego na palavra...

 

- Trocar um bilhete de loteria! Que absurdo!...

 

- Absurdo aconselhado por ti...

 

- Mas tu já não estás em idade de receber conselhos!

 

- Bom; de hoje em diante baterei com o pé e roncarei grosso todas as vezes que me contrariares! Esta casa vai cheirar a homem!...

 

A boas horas vêm esses protestos de energia!

 

E exclamando com os punhos cerrados e os olhos voltados para o teto: "Cem contos de réis"!, nhanhã deixou-se cair sentada numa cadeira, e desatou a chorar.

 

* * *

 

Mal que a viu naquele estado aflitivo, Reginaldo correu para junto dela, e disse-lhe com muito carinho:

 

- Sossega. Eu fiz uma coisa... mas vê lá! não ralhes comigo...

 

- Que foi?

 

- Não troquei o bilhete!

 

Não trocaste o bilhete? gritou nhanhã erguendo-se de um salto, com os olhos muito abertos.

 

- Não! pois eu fazia lá essa asneira! Seria deixar fugir a fortuna, depois de a ter agarrado pelos cabelos!

 

- Compraste então o outro bilhete?

 

- Comprei...

 

- Nesse caso... estamos ricos?

 

- Temos cem contos.

 

- Ora, graças que um dia fizeste alguma coisa com jeito!

 

- Qual! eu continuo a ser o rei dos caiporas.

 

- Não digas isso!

 

- Digo, porque se o não fosse, o número 38788 teria apanhado a sorte imediata...

 

 (Correio da Manhã, 16 de outubro de 1904)

 

                                                                                                      Artur Azevedo

 

Carlos Cunha     Arte & Produção Visual

 

 

 

 

 

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