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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A MARCELINA / Artur Azevedo
A MARCELINA / Artur Azevedo

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A MARCELINA

 

I

 

Naquele tempo (não há necessidade de precisar a época) era o Doutor Pires de Aguiar o melhor freguês da alfaiataria Raunier e uma das figuras obrigadas da Rua do Ouvidor. Como advogado diziam-no de uma competência um pouco duvidosa, o que aliás não obstava que ele ganhasse muito dinheiro, - mas como janota - força é confessá-lo - não havia rapaz tão elegante no Rio de Janeiro.

Quando lhe perguntavam a idade, respondia invariavelmente:

 

- Orço pelos quarenta, - e durante muito tempo não deu outra resposta. Os seus contemporâneos de Academia atribuíam-lhe cinqüenta, bem puxados. As senhoras, essas não lhe davam mais que trinta e cinco.

 

Ele tinha um fraco pelas mulheres de teatro. Consistia o seu grande luxo em ser publicamente o amante oficial de alguma atriz. Não fazia questão de espírito nem beleza; o indispensável é que ela ocupasse lugar saliente no palco, e fosse aplaudida e festejada pelo público. Não era o amor, era a vaidade que o conduzia à nauseabunda Citera dos bastidores.

Essas ligações depressa se desfaziam; duravam enquanto durava o brilho da estrela; desde que esta começava a ofuscar--se, ele achava um pretexto para afastar-se dela e procurar imediatamente outra. Como era inteligente e generoso - muito mais generoso que inteligente, - nunca ficava mal com o astro caído.

Algumas vezes o rompimento era provocado por elas - pelas de mais espírito, - que facilmente se enfaravam de um indivíduo tão preocupado com a própria pessoa, e tão vaidoso suas roupas.

 

II

 

No tempo em que se passou a ação deste ligeiro conto, a conquista do Doutor Pires de Aguiar era uma atriz portuguesa, a Clorinda, que viera de Lisboa apregoada pelas cem trombetas do reclame, e cuja estréia, num dos nossos teatrinhos de opereta, o público esperava ansiosamente.

Uma hora antes de começar o espetáculo de estréia, entrou advogado triunfantemente na caixa do teatro, levando pelo braço a sua nova amiga, elegantemente envolvida numa soberba de pelúcia. Ia fazer-lhe entrega do camarim, cujo arranjo confiara liberalmente ao bom gosto e à perícia dos mais hábeis tapeceiros e estofadores.

Ela ficou encantadíssima, a agradeceu com beijos quentes sonoros a dedicada solicitude do amante.

Que belo tapete felpudo! que bonitos quadros! que papel escolhido! que delicioso divã! que magnífico espelho de faces, onde o seu vulto airoso se refletia três vezes por inteiro! e que profusão de perfumarias! e que precioso serviço de toilette!.

Nada faltava também sobre a mesinha da maquilagem, risamente iluminada por dois bicos de gás.

O Doutor Pires de Aguiar tinha longa prática desses arranjos; não podia esquecer-se de nenhum dos ingredientes necessários camarim de uma atriz que se respeita; o arsenal estava completo.

Dali a nada ouviu-se um - Dá licença?, - e o diretor cena entrou no camarim, acompanhado por uma mulher já idosa, muito pálida, de aspecto doentio, pobremente trajada.

 

- Dona Clorinda, aqui tem a sua costureira.

 

A estrela não conteve um gesto de despeito. O diretor de cena compreendeu-o, e saiu imediatamente, para não entrar em explicações.

 

- É doente? perguntou Clorinda à costureira.

 

- Não. senhora. Tive uma doença grave, mas agora estou boa. Saí há dois dias da Santa Casa.

 

Clorinda trocou um olhar com o advogado, e este disse-lhe, refestelando-se no divã:

 

- Ma chêre, il faut se contender de cette habilleuse; noos ne sommes pos en Europe.

 

Ele impingiu a frase em francês, para que não a entendesse a costureira, mas a verdade é que Clorinda também não percebeu, o que aliás não a impediu de responder: - Oui.

Despojada da mantilha e da bela capa de pelúcia, Clorinda sentou-se entre os dois bicos de gás, e começou a pintar-se, dizendo: - Vamos a isto!

E dirigindo-se à costureira:

 

- Sente-se. Por que está de pé?

 

A pobre mulher sentou-se a medo, como receosa de macular a palhinha doirada da cadeira com o seu miserável vestido de chita.

 

- Sabe que me disseram bonitas coisas a seu respeito? perguntou a atriz ao advogado, olhando-o pelo espelho.

 

- Deveras?

 

- Ao que me parece, você tem sido um gajo!

 

O Doutor Pires de Aguiar teve um sorriso inexprimível. Aquele gajo entrou-lhe pela vaidade adentro como uma grã-cruz.

 

- Com que então, a sua especialidade são as atrizes?

 

- Sou doido pelo teatro.

 

- E há quanto tempo dura essa doidice?

 

- Há muito tempo. Estou velho, bem vê. Orço pelos quarenta.

 

- Ninguém lhe dará mais de trinta e cinco.

 

- São os seus olhos.

 

- Qual foi a sua primeira paixão no teatro?

 

- Ah! isso...

 

O advogado levantou o braço e estalou os dedos.

 

- ... isso é pré-histórico; perde-se na noite dos tempos.

 

- Como se chamava essa colega?

 

- Chamava-se Marcelina.

 

- Que fim levou?

 

Ele encolheu os ombros.

 

- Sei lá! provavelmente morreu. Nunca mais ouvi falar dela. Há mulheres que desaparecem como os passarinhos que não foram mortos a tiro nem engaiolados: ninguém lhes vê os cadáveres.

 

- Gostou dela?

 

- Foi talvez a paixão mais séria da minha vida.

 

- Nunca mais a procurou?

 

- Para quê?

 

- Tinha talento?

 

- Talento? Não. Tinha habilidade.

 

E depois de uma pausa:

 

- Tinha habilidade e era muito boa rapariga.

 

- Brasileira?

 

- Sim. Representava ingênuas em dramalhões de capa e aspada, ali, no São Pedro de Alcântara. Um dia - eu já a tinha deixado - um dia patearam-na por motivos que nada tinham que ver com a arte dramática; ela desgostou-se; andou mourejando pelas províncias, e afinal desapareceu. Requiescat in pace!

 

Entrou o cabeleireiro. Enquanto Clorinda lhe confiou a cabeça, o Doutor Pires de Aguiar divagou longamente sobre os méritos da Marcelina; depois falou de outras atrizes, desfiando o interminável rosário das suas mancebias.

Clorinda, a costureira e o cabeleiro ouviam sem dizer palavra .

Terminado o serviço do cabeleireiro, que logo se retirou, Clorinda ergueu-se:

 

- Agora, meu doutor, há de me dar licença, sim? Vou vestir-me.

 

- Até logo, disse o advogado. O seu penteado ficou esplendido! Vou aplaudi-la. Bonne chonce!

 

Deu-lhe um beijo - na testa para não desmanchar a pintura, - e saiu do camarim, cuja porta a costureira discretamente fechou.

 

III

 

Minutos depois, Clorinda estava completamente nua.

 

- A senhora é muito bem feita de corpo, disse-lhe, num tom adulatório, a costureira, enfiando-lhe pela cabeça uma camisa de seda.

 

- Acha? perguntou desdenhosamente a atriz.

 

- Ah! eu também já fui bem feita de corpo, mas.. - não tive juízo: fiei-me demais nos homens. Se quer aceitar um conselho, filha, preste mais atenção à sua arte do que a todos esses... gajos, que fazem das mulheres um objeto de luxo e nada mais. Só assim a senhora evitará o hospital e a miséria.

 

- Ora esta! exclamou Clorinda. Quem é você, mulher, para me falar assim?

 

- Eu sou... a Marcelina.

 

                                                                                                Artur Azevedo

 

Carlos Cunha Arte & Produção Visual

 

 

 

 

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