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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


2001 – ODISSÉIA NO ESPAÇO / Arthur C. Clarke
2001 – ODISSÉIA NO ESPAÇO / Arthur C. Clarke

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

2001 – ODISSÉIA NO ESPAÇO

 

 

PRÓLOGO

 

Cada homem vivo transporta o peso de trinta fantasmas, pois é nesta proporção que o número dos mortos excede o dos vivos. Desde o início dos tempos, cerca de cem biliões de seres humanos caminharam sobre o planeta Terra. Ora, este é um número interessante, pois, por coincidência, há aproximadamente cem biliões de estrelas no nosso universo, a Via Láctea. Portanto, por cada homem que alguma vez viveu, brilha uma estrela neste Universo. Mas cada uma dessas estrelas é um sol, frequentemente muito mais brilhante e glorioso que a pequena estrela a que chamamos o Sol. E muitos - talvez a maioria- desses sois, têm planetas girando à sua volta. Portanto, há com certeza território suficiente no céu para que cada membro da raça humana, desde o primeiro homem-macaco, tenha o seu céu – ou inferno - privado, do tamanho de um mundo.

 Quantos desses potenciais céus ou infernos são habitados, e por que tipo de  criaturas, é coisa que não podemos saber; o mais próximo fica um milhão de vezes mais longe que Marte ou Vénus, esses objectivos, ainda remotos, da próxima geração. Mas as barreiras da distância vão-se esboroando; um dia, encontraremos os nossos iguais, ou os nossos senhores, entre as estrelas.

 Os homens não têm sido muito lestos a encarar esta perspectiva; alguns  ainda esperam que ela nunca se torne realidade. Cada vez mais gente, no entanto, pergunta: «Por que razão não ocorreram já tais encontros, se nós próprios estamos prestes a aventurar-nos no espaço?»

E por que não? Este livro é uma resposta possível a pergunta tão razoável.

 Mas não se esqueçam: esta é apenas uma obra de ficção. A verdade, como sempre, será muito mais estranha.

 

ESTRADA PARA A EXTINÇÃO

 

A seca durava já havia dez milhões de anos, e o reino dos terríveis lagartos terminara muito tempo atrás. No equador, no continente a que um dia se chamaria África, a batalha pela existência atingirá um novo clímax de ferocidade, e o vencedor ainda não estava à vista. Naquela terra árida e seca, só os pequenos, os velozes ou os destemidos, conseguiam florescer ou até esperar sobreviver.

 Os homens-macacos da savana não eram nada disto, e não estavam a florescer; aliás, já iam bem avançados na estrada para a extinção racial. Cerca de cinquenta deles ocupavam um grupo de cavernas sobranceiras a um valezinho ressequido, dividido por um rio parado, alimentado pelas neves das montanhas que ficavam a trezentos quilómetros para norte. Quando os tempos eram maus, o rio desaparecia completamente, e a tribo vivia à sombra da sede.

 Tinham sempre fome, mas, naquela altura, quase morriam de inanição.

 Quando a primeira e débil luz da madrugada entrou na caverna, Sentinela-da-Lua viu que o seu pai havia morrido durante a noite. Não sabia que o Velho era seu pai, pois tal relação estava muito para lá da sua compreensão, mas, ao olhar para o corpo magro, sentiu uma leve inquietação, antepassada da tristeza.

 As duas crias já estavam a choramingar pedindo comida, mas calaram-se  quando Sentinela-da-Lua lhes rosnou. Defendendo o bebé que não podia alimentar em condições, uma das mães devolveu-lhe um rugido zangado; mas ele nem sequer tinha energia para a espancar pelo seu atrevimento.

 Já fazia luz suficiente para partir. Sentinela-da-Lua pegou no cadáver  enrugado e, inclinando-se, arrastou-o para lá do baixo beiral da caverna. Uma vez no exterior, atirou o corpo para cima das costas, e endireitou-se-o único animal do mundo capaz de o fazer.

 Entre os da sua espécie, Sentinela-da-Lua era quase um gigante. Tinha cerca  de um metro e meio de altura, e, embora extremamente subalimentado, pesava mais de quarenta e cinco quilos. O seu corpo peludo e musculado estava a meio caminho entre o macaco e o homem, mas a sua cabeça encontrava-se já muito mais próxima do homem do que do macaco. A testa era baixa, e apresentava saliências por cima dos olhos, mas transportava inegavelmente nos seus genes a promessa de humanidade. Quando contemplava o hostil mundo do plistoceno, o seu olhar continha já algo que ultrapassava as capacidades de um macaco. Naqueles olhos escuros e profundos lia-se o despertar de uma consciência - os primeiros sinais de uma inteligência que não poderia cumprir-se ainda por muito tempo, e que em breve talvez se extinguisse para sempre.

 Como não havia sinal de perigo, Sentinela-da-Lua, ligeiramente embaraçada pelo seu fardo, começou a descer a encosta quase vertical que dava para a caverna.

 Como se houvessem estado à espera do seu sinal, os outros membros da tribo saíram dos seus lares, bastante mais abaixo na superfície rochosa, e dirigiram-se para as águas lamacentas do rio, para a primeira bebida da manhã.

 Sentinela-da-Lua observou o outro lado do vale, tentando descortinar os outros, mas eles não estavam à vista. Talvez não tivessem ainda saído das cavernas, ou já estivessem a comer ervas nalgum sitio mais afastado da encosta.

 Como não se viam, Sentinela-da-Lua esqueceu-os; era incapaz de se preocupar com mais de uma coisa ao mesmo tempo.

 Primeiro, tinha de se desembaraçar do Velho - não era problema em que  precisasse de pensar muito. Houvera muitas mortes naquela estação, uma delas na sua própria caverna; bastar-lhe-ia abandonar o corpo no sitio onde pusera o novo bebé, no último quarto da lua, e as hienas fariam o resto.

 Estas já estavam à espera, no local onde o valezinho se abria e entrava na  savana, quase como se soubessem que ele vinha ai. Sentinela-da-Lua deixou o corpo debaixo de um pequeno arbusto, - todos os ossos anteriores já haviam desaparecido -, e regressou apressadamente para junto da tribo. Nunca mais pensou no pai.

 As suas duas companheiras, os adultos das outras cavernas e quase todos os jovens, comiam erva entre as árvores definhadas pela seca, vale acima, e procuravam bagas, raízes suculentas, folhas e dádivas inesperadas constituídas por lagartos ou roedores pequenos. Só os bebés e os velhos mais fracos eram deixados nas cavernas; se sobrasse alguma comida ao fim do dia, talvez fossem alimentados.

 Se não, as hienas teriam mais um dia de sorte.

 Mas aquele dia foi bom - embora, claro, Sentinela-da-Lua não possuísse uma verdadeira memória do passado, e não pudesse, portanto, comparar um tempo com o outro. Encontrara uma colméia no tronco de uma árvore morta, e saboreara a iguaria mais deliciosa que o seu povo jamais conhecera; à tardinha, conduzindo o seu grupo para casa, ainda lambia os dedos de tempos a tempos. Claro que também recebera um razoável número de picadelas, mas mal reparara nelas.

 Estava o mais perto que podia esperar da satisfação - pois embora ainda tivesse fome, não se sentia realmente debilitado por ela. E isso era o máximo a que um homem-macaco podia aspirar.

 A sua satisfação desapareceu quando chegou ao rio. Os Outros estavam lá.

 Iam lá todos os dias, mas isso não tornava as coisas menos aborrecidas.

 Eram cerca de trinta e não se distinguiam dos membros da tribo do próprio

 Sentinela-da-Lua. Quando o viram chegar, começaram a dançar, a abanar os braços e a guinchar, no seu lado do rio, e o povo de Sentinela-da-Lua respondeu-lhes do mesmo modo.

 E isso foi tudo o que aconteceu. Embora os homens-macacos lutassem várias  vezes entre si, muito raramente as suas disputas resultavam em ferimentos graves.

 Como não possuíam garras nem dentes caninos adaptados à luta, e estavam bem protegidos com o pêlo, quase nunca infligiam golpes sérios uns aos outros. Além disso, pouca energia lhes sobrava para comportamento tão improdutivo; rosnadelas e ameaças constituíam um modo muito mais eficiente de afirmarem os seus pontos de vista.

 A confrontação durou cerca de cinco minutos; a exibição acabou então tão  depressa como começara, e todos se puseram a beber copiosamente na água  lamacenta. A honra fora satisfeita; cada um dos grupos frisara bem o direito que tinha ao seu próprio território. Depois de tratado assunto tão importante, a tribo afastou-se pelo seu lado do rio. A pastagem mais próxima ficava a mais de um quilómetro e meio das cavernas, e tinham de a partilhar com uma manada de grandes animais parecidos com antílopes, que aceitavam muito mal a sua presença e não podiam ser combatidos, pois possuíam ferozes punhais nas cabeças. As armas naturais de que os homens-macaco não dispunham.

 Portanto, Sentinela-da-Lua e os seus companheiros mastigavam bagas, frutos e folhas, e combatiam os espasmos da fome enquanto à sua volta, combatendo pelos mesmos pastos, estava uma potencial fonte de mais comida que a que alguma vez poderiam esperar comer. No entanto, os milhares de toneladas de carne suculenta, que deambulavam pela savana e através dos matagais, não se encontravam apenas fora do seu alcance; estavam também para além da sua imaginação. No meio da abundância, morriam lentamente à fome.

 A última luz do dia viu a tribo regressar às suas cavernas sem incidentes. A fêmea ferida que ficara arrulhou de prazer quando Sentinela-da-Lua lhe deu o ramo coberto de bagas que trouxera, e atacou-o avidamente. Não era lá grande alimento, mas ajudá-la-ia a sobreviver até a ferida que o leopardo lhe fizera estar sarada, e ela poder voltar a procurar comida por si própria.

 Uma lua cheia erguia-se por cima do vale, e um vento gelado soprava das montanhas distantes. Ia ser uma noite muito fria- mas o frio, tal como a fome, não era assunto para grandes preocupações; fazia parte da vida.

 Sentinela-da-Lua mal se mexeu quando os guinchos e gritos vindos de uma  das cavernas mais baixas ecoaram pela encosta, e não precisou de ouvir o rugido do leopardo para saber exactamente o que estava a acontecer. Lá em baixo, o velho Pêlo Branco e a sua família combatiam e morriam na escuridão, e o pensamento de que talvez pudesse ajudar nunca atravessou o espírito de Sentinela-da-Lua. A desapiedada lógica da sobrevivência excluía tais fantasias, e nem uma voz de protesto se levantou da encosta atenta. Todas as cavernas ficaram silenciosas, pois não queriam por sua vez atrair o desastre.

 O tumulto foi morrendo; Sentinela-da-Lua ouviu então o som de um corpo  sendo arrastado por cima das pedras. Mas durou apenas alguns segundos; depois, o leopardo abocanhou a sua presa. Sem mais ruídos, afastou-se silenciosamente, carregando a sua vítima nos dentes.

 O leopardo não representaria qualquer perigo durante um dia ou dois, mas  podia haver outros inimigos por aí, tirando partido do Pequeno Sol frio que só brilhava à noite. As vezes, e desde que fosse dado o alerta, os gritos e berros chegavam para pôr em fuga os predadores mais pequenos. Sentinela-da-Lua rastejou para fora da caverna e trepou para um pedregulho que estava ao lado da entrada, onde se agachou vigiando o vale.

 De todos os seres que alguma vez haviam caminhado na Terra, os homensmacacos eram os primeiros a olhar de frente para a lua. E, embora não pudesse lembrar-se, quando era pequeno Sentinela-da-Lua costumava esticar-se todo e tentar tocar naquela face fantasmagórica que se erguia acima das montanhas.

 Nunca o conseguira, e agora já era suficientemente crescido para saber porquê. Era mais que óbvio que primeiro teria de subir a uma árvore muito alta.

 Contemplava o vale, observava a lua, e estava permanentemente à escuta.

 Dormitou uma ou duas vezes, mas sempre com os sentidos alerta - despertaria ao menor som. Apesar de já ter vinte e cinco anos, continuava na posse de todas as suas faculdades; se tivesse sorte e evitasse acidentes, doenças, predadores e inanição, talvez sobrevivesse mais dez anos.

 A noite ia-se arrastando, fria e clara, sem mais alarmes, e a lua erguia-se lentamente por entre constelações equatoriais que os olhos humanos nunca contemplariam. Nas cavernas, entre períodos de sono irregular e vigílias temerosas, geravam-se os pesadelos de gerações futuras.

 Erguendo-se até ao zênite e descendo para leste, um ofuscante ponto de luz, mais brilhante que qualquer estrela, atravessou lentamente o céu.

 

 A NOVA PEDRA

 

Sentinela-da-Lua acordou subitamente a meio da noite. Exausto pelos esforços e desastres do dia, adormecera mais profundamente que o habitual, mas acordou imediatamente com o primeiro leve arranhar que ouviu lá em baixo no vale.

 Com os sentidos todos alerta, sentou-se na fétida escuridão da caverna, e o medo entrou-lhe lentamente na alma. Nunca na sua vida, já duas vezes mais longa que a da maioria dos membros sua espécie, ouvira um som como aquele. Os grandes gatos faziam a sua aproximação em silêncio, e a única coisa que os traía era um raro escorregamento de terras, ou o ocasional estalido de um ramo. Mas aquele era um ruído contínuo de trituração, cada vez mais alto. Parecia que um bicho enorme se movia através da noite, sem procurar esconder-se, e ignorando todos os obstáculos. Sentinela-da-Lua ouviu uma vez o som inconfundível de um arbusto a ser arrancado; os elefantes e os dinotérios faziam-no frequentemente, mas, de resto,moviam-se tão silenciosamente como os gatos.

 Chegou-lhe então aos ouvidos um som que Sentinela-da-Lua não podia identificar, pois nunca fora produzido na história do mundo: o ruído de metal chocando na pedra.

 Sentinela-da-Lua encontrou-se frente a frente com a Nova Pedra quando, à primeira luz da manha, conduziu a tribo até ao rio. Já praticamente esquecera os terrores da noite, pois nada acontecera após aquele ruído inicial; portanto, nem sequer associou aquela estranha coisa com perigo ou medo. Afinal de contas, não havia nada de alarmante nela.

 Tratava-se de uma lâmina rectangular de uma altura três vezes superior à sua, mas suficientemente estreita para poder abarcá-la com os braços, feita de um material completamente transparente; na verdade, só era fácil vê-la porque o solnascente cintilava nas suas arestas. Como Sentinela-da-Lua nunca vira gelo, ou mesmo água límpida, não podia comparar aquela aparição com quaisquer objectos naturais. Era muito atraente e, embora desconfiasse prudentemente de quase todas as coisas novas, não hesitou muito em aproximar-se timidamente. Como não aconteceu nada, estendeu a mão, e tacteou uma superfície fria e dura.

 Após vários minutos de uma meditação profunda, chegou a uma explicação brilhante. Era uma pedra, claro, que devia ter crescido durante a noite. Muitas plantas faziam-no umas coisas brancas e carnudas, semelhantes a seixos, que pareciam despontar durante as horas de escuridão. Claro que eram pequenas e redondas, e aquilo mostrava-se largo e com arestas... mas filósofos mais sábios e posteriores a Sentinela-da-Lua, viriam a ignorar excepções igualmente gritantes das suas teorias.

 Este realmente soberbo pensamento abstracto, levou Sentinela-da-Lua a fazer - em apenas três ou quatro minutos- uma dedução que imediatamente testou.

 As plantas brancas e redondas como seixos eram muito saborosas (embora houvesse algumas que provocavam doenças violentas); e se esta tão alta...?

 Umas poucas lambidelas e tentativas de a morder, cedo o desiludiram. Aquilo não era comida; portanto, mostrando ser um homem-macaco sensato, continuou o seu caminho até ao rio, e esqueceu o monólito cristalino durante a rotina diária de que faziam parte os gritos dos Outros.

 A comida estava mais escassa, e a tribo teve de se afastar vários quilómetros das cavernas para encontrar alguma coisa. Durante o impiedoso calor da tarde, uma das fêmeas mais frágeis desmaiou longe de qualquer abrigo. Os seus companheiros juntaram-se à sua volta, agitando-se e remexendo-se solidariamente; mas ninguém podia fazer nada. Se estivessem menos exaustos, talvez a carregassem com eles, mas não tinham energia que chegasse para tais actos de piedade. Ela ficaria para trás, e recuperaria ou não por si só.

 A tardinha, quando regressaram a casa, passaram pelo local onde ela havia  ficado; nem um só osso se via.

 A última luz do dia, olhando ansiosamente em volta, não fossem surgir caçadores apressados, beberam rapidamente no rio, e começaram a escalada até às cavernas. Estavam ainda a cem metros da Nova Pedra quando o som se fez ouvir. Era muito baixinho, mas fê-los estacar, paralisados, as suas bocas abertas sem energia. Uma vibração simples e exasperantemente repetitiva emanava ritmicamente do cristal, e hipnotizava todos os que entravam no seu raio mágico.

 Pela primeira vez e pela última, por mais de três milhões de anos o som dos tambores foi ouvido em África.

 A pulsação tornou-se mais alta, mais insistente. Como sonâmbulos, os homens-macaco começaram a avançar em direcção à fonte daquele som tão compulsivo. As vezes, quando o sangue lhes respondia a ritmos que os seus descendentes ainda levariam muito tempo a criar, davam passinhos de dança.

 Totalmente em transe, esquecendo as privações do dia, os perigos do anoitecer e a fome que sentiam nas barrigas, reuniram-se em volta do monólito.

 O bater dos tambores aumentou de volume, e a noite tornou-se mais escura.

 As sombras iam-se alongando e a luz desaparecendo do céu; o cristal começou a brilhar. Primeiro, perdeu a sua transparência, e foi iluminado por uma luminescência pálida e leitosa. Fantasmas apetecíveis e indefinidos atravessavam-lhe a superfície e moveram-se nas suas profundezas. Coalescendo em barras de luz e sombra, transformaram-se depois em padrões entrelaçados, com raios, que começaram lentamente a rodar.

 As rodas de luz giravam cada vez mais depressa e a pulsação dos tambores acelerava-se com elas. Profundamente hipnotizados, os homens-macaco fitavam boquiabertos tal estonteante exibição de pirotecnia. Haviam já esquecido os instintos dos seus antepassados e as ligações de uma vida; normalmente, nem um deles ficaria tão longe da sua caverna até tão tarde. Os arbustos circundantes pululavam de formas imóveis e olhos atentos - as criaturas da noite suspendiam as suas andanças para verem o que aconteceria a seguir.

 As rodas de luz começaram a unir-se, e os raios fundiram-se e transformaram-se em barras luminosas, que, sempre rodando nos seus eixos, se foram lentamente perdendo na distância. Dividiam-se então em pares, e os conjuntos de linhas daí resultantes deram início a oscilações que as faziam cruzarse, mas sempre segundo ângulos de intersecção diferentes. Fantásticos, efêmeros padrões geométricos brilhavam e desapareciam à medida que as fulgurantes  grelhas se entrelaçavam e desentrelaçavam; hipnotizados cativos do cristal brilhante, os homens-macacos limitavam-se a olhar.

 Não podiam adivinhar que os seus cérebros estavam a ser analisados, os seus corpos examinados, as suas reações estudadas, os seus potenciais avaliados ao princípio, toda a tribo permaneceu meia inclinada, formando um quadro imóvel que parecia petrificado. Depois, o homem-macaco que estava mais próximo da lâmina, recuperou lentamente os sentidos.

 Não se mexeu, mas o seu corpo perdeu aquela rigidez de transe, e animou-se como uma marioneta comandada por fios invisíveis. A sua cabeça virou-se para um lado e para o outro; a boca abriu-se-lhe e fechou-se-lhe; entrelaçou e desentrelaçou os dedos. Depois, baixou-se, arrancou um caule comprido, e tentou dar-lhe um nó com os dedos desajeitados.

 Parecia estar possesso, lutar contra algum espírito ou demônio que se apoderara do seu corpo. Arquejante, com os olhos perpassados de terror, tentava obrigar os dedos a movimentos mais complexos do que os que estes jamais haviam feito.

 Apesar dos seus esforços, só conseguiu partir o caule em bocados. Os pedaços caíram no chão, e a influência que o controlava deixou-o; mergulhou novamente na imobilidade.

 Outro homem-macaco despertou e cumpriu a mesma rotina. Tratava-se de um espécime mais jovem e adaptável; teve êxito onde o mais velho falhara. Embora grosseiramente, acabava de ser dado o primeiro nó do planeta Terra...

 Outros fizeram coisas ainda mais estranhas e sem sentido. Alguns, esticaram

 os braços e tentaram unir as pontas dos dedos - primeiro com os olhos abertos, depois com um fechado. Outros, limitaram-se a observar atentamente as pautas que se formaram no cristal, e que se dividiram cada vez mais finamente, até as linhas se fundirem num borrão cinzento. E todos ouviram sons destacados e puros, de intensidade variável, que rapidamente ultrapassavam o nível de audição.

 Quando chegou a sua vez, Sentinela-da-Lua não teve muito medo. Sentia sobretudo um vago ressentimento, pois os seus músculos contraiam-se e os seus membros obedeciam a comandos pelos quais não era inteiramente responsável.

 Sem saber porquê, baixou-se e apanhou uma pedrinha. Quando se endireitou, viu uma nova imagem na lâmina de cristal. As grelhas e os padrões móveis e dançantes haviam desaparecido. Substituía-os uma série de círculos concêntricos, que rodeavam um pequeno disco preto.

 Obedecendo às ordens silenciosas que lhe vinham do cérebro, levantou o braço acima do ombro, e arremessou-a desajeitadamente. Falhou o alvo por vários centímetros.

 Sentiu-se impelido a tentar outra vez. Procurou em volta, e encontrou mais um seixo. Daquela vez atingiu a lâmina com um tinido como o de uma campainha.

 Embora ainda precisasse de muito treino, a sua pontaria estava a melhorar.

 A quarta tentativa, ficou a milímetros do disco central. Um sentimento de um prazer indescritível, de uma intensidade quase sexual, inundou-lhe o espírito. O controlo afrouxou então; não se sentiu compelido a fazer nada a não ser ficar sentado à espera.

 Um a um, todos os membros da tribo foram possuídos durante um certo tempo. Alguns tiveram êxito, mas a maioria falhou no cumprimento das tarefas que lhe haviam sido impostas; todos foram recompensados com espasmos de prazer, ou castigados com sensações de dor.

 A enorme lâmina adquiriu então apenas um fulgor uniforme e incaracterístico; parecia uma chapa de luz rodeada de escuridão. Subitamente despertos, os homens-macaco abanaram as cabeças, e começaram a seguir o carreiro que levava aos seus refúgios. Não olharam para trás, nem se interrogaram sobre a estranha luz que os guiava para casa e para um futuro ainda desconhecido até das próprias estrelas.

 

 ACADEMIA

 

Sentinela-da-Lua e os companheiros não se lembravam do que haviam visto após o cristal deixar de projectar o encantamento hipnótico sobre as suas mentes e cessar de fazer experiências com os seus corpos. No dia seguinte, quando saíram para procurar comida, passaram por ele e mal se detiveram a olhá-lo; o cristal fazia agora parte do indiferente pano de fundo das suas vidas. Não podiam comê-lo e ele não podia comê-los; portanto, não era importante.

 No rio, os Outros fizeram as suas habituais e ineficazes ameaças. O seu chefe, um homem-macaco a quem faltava uma orelha, do tamanho e idade de

 Sentinela-da-Lua, mas em pior estado que ele, chegou mesmo a dar uma rápida corrida em direcção ao território da tribo, guinchando alto e agitando os braços na tentativa de assustar a oposição e de reforçar a sua própria coragem. A água do rio não tinha mais de meio metro de profundidade, mas quanto mais Uma-Orelha avançava, mais inseguro e infeliz se tornava. Em breve abrandou o passo e parou; depois, com exagerada dignidade, recuou e juntou-se aos seus companheiros.

 De resto, não houve mais alterações à rotina normal. A tribo conseguiu alimento suficiente para sobreviver por mais um dia e ninguém morreu.

 E nessa noite, a lâmina de cristal, envolta numa auréola pulsante de luz e som, continuou à espera. O programa que magicara, no entanto, mostrava-se subtilmente diferente.

 Ignorou completamente alguns dos homens-macacos, como se quisesse concentrar-se apenas nos sujeitos mais prometedores. Um destes era Sentinela-da- Lua, que mais uma vez sentiu sondas inquiridoras desbravando-lhe os caminhos virgens do cérebro. E começou a ter visões.

 Podiam ser imagens encerradas na lâmina de cristal, ou talvez proviessem totalmente do seu cérebro. Fosse como fosse, eram completamente reais para Sentinela-da-Lua. No entanto, o costumeiro impulso automático de afastar os intrusos do seu território, fora acalmado e aquietado.

 Contemplava um tranquilo grupo familiar, que só diferia num aspecto das cenas que já conhecia. O macho, a fêmea e as duas crianças que haviam misteriosamente aparecido à sua frente, mostravam-se fartos e saciados, e envergavam peles macias e lustrosas - e esta era uma vida que Sentinela-da-Lua nunca imaginara. Inconscientemente, sentiu as suas próprias costelas salientes; as costelas daquelas criaturas estavam envoltas em pregas de gordura. Refastelados perto da entrada de uma caverna, aparentemente em paz com o mundo, mexiam-se preguiçosamente de tempos a tempos. De vez em quando, o grande macho soltava um monumental arroto de satisfação.

 Não se via mais nenhuma actividade; após cinco minutos, a cena desvaneceu-se repentinamente. O cristal transformou-se novamente numa silhueta brilhante na escuridão; Sentinela-da-Lua estremeceu, como se acordasse de um sonho, deu-se abruptamente conta de onde estava, e conduziu a tribo de volta às cavernas.

 Não possuía qualquer memória consciente do que vira; mas quando, naquela noite, de ouvidos alerta para os ruídos do mundo que o rodeava, se sentou a cismar à entrada da sua toca sentiu as primeiras e quase imperceptíveis picadas de uma nova e poderosa emoção: uma sensação vaga e difusa de inveja - de insatisfação com a sua vida. Não fazia ideia do que a causara, e muito menos do que poderia curá-la, mas a insatisfação entrara-lhe na alma, fazendo-o assim dar um pequeno passo em direcção à humanidade.

 O espectáculo dos quatro rechonchudos homens-macaco foi repetido noite  após noite, tornando-se uma fonte de exasperação fascinada, e servindo para aumentar a eterna e torturante fome de Sentinela-da-Lua. A evidência do que os seus olhos viam não chegaria para produzir tal efeito; precisava de reforço psicológico. Sentinela-da-Lua nunca se lembraria das lacunas existentes na sua vida, mas até os átomos do seu cérebro simples eram torcidos e obrigados a adquirir novas formas. Se sobrevivesse, essas formas tornar-se-iam eternas, pois os seus genes passá-las-iam às gerações futuras.

 Era um processo lento e tedioso, mas o monólito de cristal tinha paciência.

 Nem ele, nem as suas réplicas espalhadas por metade do globo, esperavam ter êxito com todos os grupos envolvidos na experiência. Cem falhanços não teriam importância, se apenas um único êxito conseguisse mudar o destino do mundo.

 Na lua nova seguinte, a tribo já vira um nascimento e duas mortes. Uma destas ficara a dever-se à inanição; a outra ocorrera durante o ritual nocturno, quando um homem-macaco se deixara repentinamente ir abaixo a meio da tentativa de juntar delicadamente dois fragmentos de uma pedra. O cristal escurecera de imediato, e a tribo fora libertada do encantamento. Mas o homem-macaco caído não se mexera; de manhã, claro, o corpo havia desaparecido.

 Na noite seguinte não houvera qualquer sessão; o cristal ainda estava a analisar o seu erro. A tribo desfilara à sua frente ao escurecer, ignorando completamente a sua presença. Uma noite depois, já estava novamente pronto para eles.

 Os quatro homens-macacos rechonchudos continuavam lá, mas faziam agora coisas extraordinárias. Sentinela-da-Lua começou a tremer de um modo incontrolável; sentia-se como se o cérebro lhe fosse rebentar, e quis desviar o olhar.

 Mas aquele implacável controlo mental não afrouxava o seu abraço; foi competido a seguir a lição até ao fim, embora todos os seus instintos se revoltassem contra ela.

 Tais instintos haviam servido bem os seus antepassados, nos dias de chuvas quentes e de luxuriante fertilidade, quando a comida abundava. Dias os tempos haviam mudado, e a sabedoria herdada do passado tornara-se disparatada e inútil.

 Os homens-macacos tinham de se adaptar ou morrer como os grandes animais que haviam desaparecido antes deles, e cujos ossos jaziam enterrados nas colinas calcarias.

 Portanto, Sentinela-da-Lua deixou-se ficar a olhar o monólito de cristal sem pestanejar, com a mente aberta às suas ainda incertas manipulações. Sentia náuseas frequentemente, e sempre fome; de vez em quando, as suas mãos agarravam inconscientemente as formas que iriam determinar o seu novo modo de vida.

 Fungando e soltando grunhidos, a fila de javalis movia-se através do carreiro; Sentinela-da-Lua estacou. Javalis e homens - macacos sempre se haviam ignorado mutuamente, pois entre eles não existia qualquer conflito de interesses. Como a maioria dos animais que não competem pela mesma comida, limitavam-se a manterse fora do caminho uns dos outros.

 No entanto, Sentinela-da-Lua ficou a olhar para eles, balançando-se hesitantemente para a frente e para trás, esbofeteado por impulsos que não podia compreender. Depois, como num sonho, começou a vasculhar o chão - embora não tivesse podido explicar para quê, mesmo que possuísse o dom da palavra. Reconheceria o que procurava quando o visse.

 Era uma pedra pesada e pontiaguda, de cerca de quinze centímetros de comprimento, e embora não se ajustasse perfeitamente à sua mão, serviria bem os seus fins. Quando fez a mão rodar, espantou-o o seu peso subitamente maior, mas, ao mesmo tempo, teve uma agradável sensação de poder e autoridade. Começou a andar na direcção do javali mais próximo.

 O animal era jovem e descuidado, até para os pouco exigentes padrões da inteligência dos javalis. Embora observasse Sentinela-da-Lua pelo canto do olho, só o levou a sério demasiado tarde. Por que haveria de atribuir intenções maldosas àquelas criaturas inofensivas? O javali continuou a escavar a erva até o machado de pedra de Sentinela-da-Lua lhe escurecer a obscura consciência. O resto da manada continuou a pastar calmamente, pois o assassínio fora rápido e silencioso.

 Todos os outros homens-macacos do grupo haviam parado a observar; maravilhados, juntaram-se então à volta de Sentinela-da-Lua e da sua vítima. Um deles apanhou a arma manchada de sangue, e começou a bater no javali morto.

 Juntaram-se-lhe outros, munidos dos paus e pedras que conseguiram encontrar; o alvo dos seus ataques começou a desintegrar-se.

 Acabaram por aborrecer-se; alguns vaguearam por ali, outros ficaram hesitantemente em volta do cadáver irreconhecível. o futuro de um mundo esperando pela sua decisão. Só após um período de tempo surpreendentemente longo, uma das fêmeas grávidas resolveu lamber a pedra ensanguentada que tinha nas mãos.

 E, apesar do que tinha visto, passou-se ainda mais tempo até Sentinela-da-Lua perceber bem que nunca mais fome precisaria de ter.

 

 O LEOPARDO

 

Os instrumentos que haviam sido programados para usar eram muito simples, mas podiam mudar o mundo e tornar os homens-macacos os seus senhores. O mais primitivo era a pedra que se arremessava, que multiplicava muitas vezes o poder de um golpe. Havia também a maça de osso, que aumentava o alcance e podia proteger das presas ou garras de animais zangados. Com estas armas, era deles a infindável comida que deambulava pelas savanas.

 Mas precisavam de outras ajudas, pois os seus dentes e unhas não chegavam para desmembrar rapidamente animais maiores que coelhos. Felizmente, a Natureza pusera-lhes à disposição os instrumentos perfeitos - para os conseguirem só precisavam de alguma coragem.

 Primeiro foi uma faca ou serra grosseira, mas muito eficiente, de um modelo que serviria muito bem durante três milhões de anos. Era simplesmente o maxilar inferior - com todos os dentes - de um antílope; este instrumento não sofreria qualquer melhoramento substancial até à descoberta do aço. Veio depois uma sovela ou punhal, feito de um chifre de gazela, e finalmente uma raspadeira, obtida a partir das mandíbulas completas de praticamente quase todos os animais pequenos.

 A maça de pedra, a serra denteada, o punhal de chifre, a raspadeira de osso - eis os maravilhosos inventos de que os homens-macacos precisavam para sobreviver. Não tardariam a reconhecê-los como símbolos de poder que eram, mas ainda passariam muitos meses até os seus dedos desajeitados adquirirem a habilidade - ou a vontade - para os usar.

 Se tivessem tempo, talvez chegassem, pelos seus próprios esforços, ao temível e brilhante conceito do uso de armas naturais como instrumentos artificiais.

 Mas as probabilidades estavam contra eles; mesmo assim, as idades que tinham à frente apresentavam-se cheias de hipóteses de falhanço.

 Uma primeira oportunidade fora dada aos homens-macacos. Não haveria segunda; o futuro estava, muito literalmente, nas suas próprias mãos.

 Passaram-se várias luas; bebés nasceram e, por vezes, viveram; débeis e desdentados velhos de trinta anos morreram; o leopardo cobrava os seus direitos à noite; os Outros ameaçavam diariamente do outro lado do rio - e a tribo esperava.

 No decurso de um único ano, Sentinela-da-Lua e os companheiros quase não se reconheciam, tão mudados estavam.

 Haviam aprendido bem as lições; manejavam agora todos os instrumentos que lhes tinham sido revelados. Até a memória da fome se lhes esbatia nas mentes; e, embora os javalis estivessem a tornar-se assustadiços, as gazelas, antílopes e zebras continuavam aos milhares nas planícies. Todos estes animais, e outros, se haviam tornado vítimas dos aprendizes de caçador.

 Agora que já não andavam meio trôpegos de fome, tinham tempo para o lazer e para os primeiros rudimentos do pensamento. Aceitavam o seu novo modo de vida com uma certa indiferença, e de modo algum o associavam ao monólito que se erguia ao lado da pista que levava ao rio. Aliás, se alguma vez houvessem feito uma pausa para considerar o assunto, até talvez se tivessem vangloriado de o seu estatuto melhorado se ficar a dever aos seus próprios esforços; de facto, já haviam esquecido qualquer outro modo de vida.

 Mas nenhuma Utopia é perfeita, e aquela tinha dois defeitos. O primeiro era o leopardo saqueador, cuja paixão por homens-macacos parecia ter-se tornado ainda mais forte, agora que estavam melhor alimentados. O segundo, a tribo do outro lado do rio - os Outros haviam conseguido sobreviver, recusando-se teimosamente a morrer de inanição.

 O problema do leopardo foi resolvido em parte pelo acaso, e em parte por um grave - aliás, quase fatal - erro de Sentinela-da-Lua. No entanto, na altura a idéia parecera-lhe tão brilhante, que chegara a dançar de alegria - e talvez não se pudesse culpá-lo por não ter ligado às consequências.

 A tribo ainda passava dias maus de vez em quando, embora estes já não ameaçassem a sua própria sobrevivência. Naquele dia, era já escuro, e ninguém caçara nada; Sentinela-da-Lua conduzia os companheiros, cansados e descontentes, de volta às cavernas, que já estavam à vista. E lá, mesmo à porta de casa, encontraram uma das raras dádivas da natureza.

 Um antílope adulto jazia no carreiro. Tinha a pata partida, mas ainda combatia fogosamente os chacais que o rodeavam e que davam bastante que fazer aos seus chifres agudos como punhais. Mas podiam esperar; sabiam que lhes bastaria aguardar a sua hora. Mas haviam-se esquecido da competição; rosnando iradamente, recuaram quando os homens-macacos chegaram. Também estes rodearam o antílope prudentemente, mantendo-se fora do alcance daqueles chifres tão perigosos; depois, munidos de maças e pedras, lançaram-se ao ataque.

 Não foi um assalto muito eficaz ou coordenado; quando o desgraçado bicho acabou por expirar, já escurecera quase completamente e os chacais recomeçavam a ganhar coragem. Dividido entre o medo e a fome, Sentinela-da-Lua foi lentamente percebendo que talvez todo aquele esforço tivesse sido em vão. Era demasiadamente perigoso ficar ali mais tempo.

 Então, provou mais uma vez que era um génio. Com um esforço imenso de imaginação, visualizou o antílope morto na segurança da sua caverna. Começou a arrastá-lo para o penhasco; os outros compreenderam as suas intenções e ajudaram-no.

 Se soubesse à partida como a sua tarefa seria difícil, nem chegaria a tentá-la.

 Só a enorme força e a agilidade herdada dos antepassados aborígenes lhe permitiram puxar a carcaça pela íngreme encosta acima. Chorando de frustração, quase abandonou o seu trofeu por várias vezes, mas uma teimosia tão profunda como a sua fome fê-lo continuar. Os outros, ora o ajudavam, ora o embaraçavam; mas o mais frequente era estorvarem-no. Finalmente, conseguiu; o despedaçado antílope foi arrastado por cima da borda da caverna quando os últimos matizes de luz desapareciam do céu; e o banquete começou.

 Horas depois, cheio até mais não poder, Sentinela-da-Lua acordou. Sem saber porquê, endireitou-se na escuridão, entre os corpos estendidos dos seus igualmente saciados companheiros, e escutou os ruídos da noite.

 O único som que se ouvia era a respiração pesada dos outros; o mundo inteiro parecia adormecido. Banhadas pela brilhante luz da lua, naquele momento bem alta, as rochas que ficavam para lá da entrada da caverna, mostravam-se claras como ossos. Perigo era coisa que parecia infinitamente remota.

 Então, o som de um seixo caindo chegou-lhe de muito longe. Temeroso, mas ainda interrogando-se, Sentinela-da-Lua rastejou até ao rebordo da caverna e perscrutou o penhasco.

 O que viu deixou-o tão paralisado de terror que, por longos momentos, foi incapaz de se mover. Seis metros abaixo dele, dois olhos dourados e cintilantes fitavam-no directamente; aquele olhar hipnótico fez-lhe tanto medo que mal deu pelo seu corpo ágil e listrado que se movia flexível e silenciosamente de rocha em rocha.

 O leopardo jamais trepara até tão alto. Ignorava as cavernas mais baixas, embora devesse ter-se dado bem conta de que elas eram habitadas. Agora o seu jogo eraoutro; perseguia o rasto do sangue, subindo o penhasco banhado pela lua.

 Segundos mais tarde, a noite foi atravessada pelos gritos de alarme dos homens-macacos da caverna superior. O leopardo rugiu de fúria quando percebeu que perdera o elemento de surpresa. Mas não parou, pois sabia que não tinha nada a temer. Chegou ao rebordo, e descansou um momento no estreito espaço aberto.

 O cheiro de sangue que o rodeava enchia-lhe o cérebro feroz e minúsculo de um desejo irresistível. Sem hesitar, esgueirou-se silenciosamente para dentro da caverna.

 E cometeu o seu primeiro erro, pois, apesar de possuir uns olhos soberbamente adaptados à noite, ao deixar de ser iluminado pela lua, colocou-se numa desvantagem momentânea. Os homens-macaco viam a sua silhueta desenhada contra a abertura da caverna, com mais nitidez do que o leopardo os via a eles. Embora aterrorizados, já não eram indefesos.

 Rugindo e agitando a cauda numa confiança arrogante, o leopardo avançou em busca da tenra comida por que suspirava. Se houvesse encontrado a sua presa ao ar livre, não teria tido problemas; mas o desespero de se verem encurralados dera aos homens-macacos coragem para tentar o impossível. E, pela primeira vez, possuíam os meios para o fazer.

 O leopardo soube que algo ia mal quando sentiu um golpe formidável na cabeça. Atacou com a pata da frente, e ouviu um guincho de agonia quando as suas garras despedaçaram carne macia. Sentiu então uma dor penetrante quando algo afiado se lhe cravou nos flancos uma, duas vezes, e ainda uma terceira vez. Virou-se para lutar contra as sombras que gritavam e dançavam à sua volta.

 Outro golpe violento atingiu-o no focinho. Os seus dentes morderam uma mancha branca que não parava de se mover - e abocanharam apenas um osso.

 Numa indignidade final, em que mal podia acreditar, sentiu puxarem-lhe a cauda com toda a força.

 Deu meia volta, e atirou o seu louco e ousado atormentador contra a parede da caverna. No entanto, fizesse o que fizesse, não conseguia furtar-se à chuva de golpes que Lhe eram infligidas por armas grosseiras empunhadas por mãos desajeitadas, mas poderosas. Os seus rugidos passaram da dor ao alarme, e do alarme ao mais puro terror. O implacável caçador era agora a vítima, e tentava desesperadamente escapar.

 E começou então o seu segundo erro, pois a surpresa e o medo haviam-no feito esquecer-se de onde estava. Ou talvez houvesse sido cegado e confundido pelos golpes que lhe choviam na cabeça; fosse o que fosse, o certo é que correu abruptamente para fora da caverna. Ouviu-se um guincho horrível quando o leopardo se viu sem apoios e começou a cair. Séculos depois - era o que parecia - um baque surdo indicou que se despenhara num afloramento que ficava a meio do penhasco; depois, o som do deslizar de pedras soltas, e a noite ficou novamente em silêncio.

 Intoxicado pela vitória, Sentinela-da-Lua dançou e balbuciou durante muito tempo à entrada da caverna. Tinha toda a razão ao pressentir que o seu mundo mudara, e que deixara de ser uma vítima impotente das forças que o rodeavam.

 Voltou depois para dentro da caverna, e, pela primeira vez na sua vida, dormiu ininterruptamente durante toda a noite.

 De manha, encontraram o corpo do leopardo no sopé do penhasco. O inimigo estava morto, mas passou-se algum tempo até que alguém ousasse aproximar-se do monstro vencido; finalmente avançaram, munidos das suas facas e serras de osso. Foi uma tarefa difícil; naquele dia não foram à caça.

 

REENCONTRO NA MADRUGADA!

 

Quando guiava a tribo para o rio, à luz difusa da madrugada, Sentinela-da- Lua parou hesitantemente num local que lhe era familiar. Faltava qualquer coisa, mas não se lembrava de quê. No entanto, não fez qualquer esforço mental a pensar no problema, pois, naquela manhã, tinha coisas mais importantes a tratar.

 Tal como o trovão, o relâmpago, as nuvens e os eclipses, a grande lâmina de cristal partira tão misteriosamente como chegara. Tendo desaparecido no inexistente passado, nunca mais voltou a assombrar os pensamentos de Sentinela-da-Lua.

 Este, jamais saberia o que o cristal lhe fizera; e, reunindo-se à volta dele na neblina matinal, nenhum dos seus companheiros tentou saber por que parara ali a caminho do rio.

 Do outro lado do rio, na inviolada segurança do seu próprio território, os Outros visualizaram Sentinela-da-Lua e uma dúzia de machos da sua tribo, como um friso que se recortava contra o céu da manhã. Começaram imediatamente a gritar, cumprindo assim o desafio diário; mas daquela vez não houve resposta.

 Firmemente, premeditadamente - sobretudo silenciosamente - Sentinela-da- Lua e o seu bando desceram o outeiro sobranceiro ao rio; à medida que se aproximavam, os Outros calaram-se. A sua raiva ritual desapareceu, e foi substituída por um medo cada vez maior. Sentiam confusamente que algo acontecera, e que aquele reencontro não era igual aos anteriores. Não se alarmaram com as maças e facas de osso empunhadas pelo grupo de Sentinela-da-Lua, pois não compreendiam para que serviam. Sabiam apenas que os movimentos dos seus rivais estavam imbuídos de determinação e ameaça.

 O grupo parou à beira d`água; por um momento, os Outros retomaram coragem. Chefiados por Uma-Orelha, retomaram indiferentemente o seu cântico marcial. Mas fizeram-no apenas durante alguns segundos, pois logo ficaram mudos por uma visão de terror.

 Sentinela-da-Lua levantou os braços bem alto, revelando assim o fardo que até ali estivera escondido pelos corpos hirsutos dos seus companheiros. Segurava um ramo resistente, onde estava espetada a cabeça ensanguentada do leopardo.

 Um pau mantinha a boca aberta, e os primeiros raios do sol-nascente emprestavam às grandes presas uma cintilação branca e terrível.

 A maioria dos Outros ficaram demasiado paralisados de medo para se moverem; mas alguns começaram a retirar lenta e tropegamente. E esse era todo o encorajamento de que Sentinela-da-Lua precisava. Mantendo o dilacerado troféu acima da cabeça, deu inicio à travessia do rio. Depois de um momento de hesitação, os seus companheiros entraram na água atrás dele.

 Quando Sentinela-da-Lua chegou ao outro lado, Uma-Orelha continuava firmemente no seu lugar. Talvez fosse corajoso ou estúpido demais para correr; ou talvez não conseguisse acreditar que aquele ultraje era mesmo real. Cobarde ou herói, foi coisa que acabou por interessar pouco, pois, no final, o rugido gelado da morte desceu-lhe sobre o cérebro estupefacto.

 Guinchando de medo, os Outros espalharam-se pelo matagal; mas voltariam, e cedo esqueceriam o seu chefe desaparecido.

 Por alguns segundos Sentinela-da-Lua permaneceu hesitantemente de pé ao lado da sua nova vítima, tentando perceber bem que, estranha e maravilhosamente, o leopardo morto ainda era capaz de matar. Agora era senhor do mundo, e não sabia bem o que fazer a seguir. Mas acabaria por descobrir alguma coisa.

 

 ASCENSÃO DO HOMEM

 

Um novo animal andava pelo planeta e, partindo do coração de África, espalhava-se lentamente. Era ainda tão raro, que um censo apressado talvez não desse por ele, rodeado como estava por biliões de criaturas deambulando pela terra e pelo mar. Por enquanto, ainda não havia a certeza se prosperaria ou até se sobreviveria: num mundo em que tantos animais muito mais poderosos haviam desaparecido, o seu destino ainda não estava decidido.

 Nos cem mil anos que se seguiram à descida dos cristais sobre África, os homens-macacos não inventaram nada. Mas começaram a mudar, e desenvolveram aptidões que mais nenhum animal possuía. As maças de osso haviam aumentado o seu poder de alcance e multiplicado a sua força; deixaram de estar indefesos perante os predadores com quem tinham de competir. Quanto aos carnívoros mais pequenos, podiam-nos matar; aos maiores, conseguiam, pelo menos, desencorajar e, por vezes, pôr em fuga.

 Os seus dentes maciços, estavam cada vez mais pequenos, pois já não eram essenciais. As pedras afiadas usadas para escavar raízes ou para cortar e serrar carne ou fibras duras começaram a substituí-los, com enormes consequências. Os homens-macacos já não tinham de enfrentar a morte por inanição quando os seus dentes se estragavam ou se gastavam; até mesmo os instrumentos mais grosseiros podiam prolongar-lhes a vida. À medida que as suas presas diminuíam, a forma dos seus rostos começava a alterar-se; o focinho recuou, o maxilar tornou-se mais delicado, a boca adquiriu a capacidade de produzir sons mais subtis. Faltava ainda um milhão de anos para a fala, mas haviam sido dados os primeiros passos na sua direcção.

 E então o mundo começou a mudar. Em quatro grandes vagas, com duzentos mil anos entre os seus picos, as Idades do Gelo chegaram e partiram, deixando as suas marcas em todo o globo. Fora dos trópicos, os glaciares liquidaram os que haviam prematuramente abandonado o lar ancestral; e por toda a parte eliminaram as criaturas que não conseguiram adaptar-se.

 Quando o gelo desapareceu, levou com ele muita da vida primitiva do planeta - incluindo os homens-macacos. Mas estes, ao contrário de muitos outros, haviam deixado descendentes; não se tinham meramente extinguido-mas sim transformado.

 Os construtores de instrumentos haviam sido recriados pelos seus próprios utensílios.

 Pois, ao usarem maças e sílex, as suas mãos haviam desenvolvido uma destreza nunca antes encontrada no reino animal, o que lhes permitia construir utensílios ainda melhores, fazendo, por sua vez, evoluir ainda mais os seus membros e cérebro. Era um processo acelerado e cumulativo; no fim da linha, estava o Homem.

 Os primeiros verdadeiros homens possuíam utensílios e armas pouco melhores que as dos seus antepassados de havia um milhão de anos, mas eram muito mais hábeis no seu manejo. E algures nas eras sombrias que haviam passado, tinham inventado um instrumento que, embora não pudesse ver-se nem tocar-se, lhes era absolutamente essencial. Haviam aprendido a falar, ganhando assim a primeira grande batalha contra o Tempo. Agora, a sabedoria de uma geração podia ser passada para a próxima, e cada idade lucrava com os ensinamentos das anteriores.

 Ao contrário dos animais, que conheciam apenas o presente, o Homem adquirira um passado; e começava a tactear em direcção a um futuro.

 Aprendera também a controlar as forças da natureza; com o domínio do fogo, lançara as fundações da tecnologia e deixara para trás a sua origem animal. A pedra deu lugar ao bronze e depois ao ferro. A caça sucedeu a agricultura. A tribo transformou-se em aldeia, e a aldeia em cidade. A palavra tornou-se eterna, graças a certas marcas em pedra, barro e papiro. Depois, inventou a filosofia e a religião. E povoou o céu, nem sempre incorrectamente, de deuses.

 Os seus meios de ataque tornaram-se mais e mais assustadores na medida em que o seu corpo ia perdendo defesas. Com a pedra, o bronze, o ferro, o aço, percorrera a gema de tudo o que furava e dilacerava; e bem cedo aprendera a abater as suas vítimas à distância. A espada, o arco, a pistola e, finalmente, o míssil telecomandado, haviam-lhe dado armas de um alcance infinito, mas não um poder infinito.

 Sem estas armas, que, frequentemente, usara contra si próprio, o Homem nunca teria conquistado o seu mundo. Empenhara-se de alma e coração, e elas haviam-no servido bem.

 Mas agora, enquanto existissem, vivia sempre um tempo emprestado.

 

VOO ESPECIAL

 

Por mais vezes que deixasse a Terra, a excitação nunca abandonava o Dr. Heywood Floyd. Estivera uma vez em Marte, três vezes na Lua, e já nem se lembrava de quantas nas várias estações espaciais. No entanto, à medida que se aproximava o momento do lançamento, sentia uma tensão crescente, uma maravilha e um temor - sim, e um nervosismo - que o punham ao mesmo nível de qualquer labrego terrestre prestes a receber o seu baptismo do espaço.

 O jacto que o transportara de Washington, após aquela reunião à meia-noite com o presidente, descia agora em direcção a uma das paisagens mais familiares, mas mais excitantes do mundo. Abrangendo trinta quilómetros da costa da Flórida, encontravam-se aí as duas primeiras gerações da Idade do Espaço. A sul, contornadas por luzes de aviso vermelhas, que acendiam e apagavam, ficavam as torres gigantescas dos Saturnos e Neptunos, que haviam posto o homem no caminho dos planetas, passando depois à história. Perto do horizonte, uma cintilante torre prateada, inundada por luzes artificiais, durante quase vinte anos monumento nacional e lugar de peregrinação, erguia-se em honra de Saturno V. Não muito longe, agigantando-se no céu como uma montanha feita pela mão do homem, encontrava-se o incrível Edifício de Montagem de Veículos, que continuava a ser a maior estrutura simples da Terra.

 Mas todas aquelas coisas pertenciam ao passado, e ele voava em direcção ao futuro. Quando o avião fez uma viragem inclinando-se para o lado de dentro, o Dr. Floyd viu por baixo dele um labirinto de edifícios, depois uma faixa de ar, e a seguir uma cicatriz larga e direita, feita no solo plano da Flórida. Os carris múltiplos de uma linha gigante de lançamento. No fundo desta, rodeado de veículos e torres, via-se um avião espacial inundado de luz, a ser preparado para o seu salto até às estrelas. Com a súbita mudança de perspectiva provocada pela rápida mudança de velocidade e altura, pareceu a Floyd estar a olhar para uma borboletazinha nocturna prateada, apanhada no raio de luz de um farol.

 Mas as minúsculas figuras espalhadas no solo fizeram-no perceber as verdadeiras dimensões do veículo espacial; o V estreito das suas asas devia ter sessenta metros de comprimento. «E aquele veículo enorme», pensou Floyd, de certo modo incrédulo - mas também com algum orgulho -, «está à minha espera».

Tanto quanto sabia, era a primeira vez que se punha em andamento uma missão para levar um único homem à Lua.

 Embora fossem duas horas da manhã, um grupo de repórteres e fotógrafos interceptou-o a meio caminho do iluminado veículo espacial Orion III. Conhecia vários deles de vista; como presidente do Conselho Nacional de Astronáutica, as conferências de imprensa faziam parte do seu modo de vida. Aquela não era a altura nem o lugar apropriado para uma, e não tinha nada para dizer; mas era importante não ofender os cavalheiros da comunicação social.

 

 - Dr. Floyd? Sou Fim Forster da Associated News. Pode dar-nos alguns esclarecimentos sobre este seu voo?

 

- Lamento muito... não posso dizer nada.

 

 - Mas encontrou-se mesmo com o Presidente esta noite? - perguntou uma voz familiar.

 

- Oh... olá, Mike. Parece-me que o tiraram da cama para nada. Não vou fazer comentários. Isso é ponto assente.

 

- Não pode ao menos confirmar ou negar que está a haver um surto de epidemia na Lua? - indagou um repórter da TV, conseguindo correr ao lado de Floyd e, ao mesmo tempo, mantê-lo focado na sua máquina de filmar em miniatura.

 

- Lamento, mas não - respondeu Floyd abanando a cabeça.

 

- E a quarentena? - inquiriu outro repórter. - Por quanto tempo será mantida? - Não faço comentários.

 

- Dr. Floyd - disse uma pequenina e decidida dama da imprensa. - Qual é a sua justificação para esta total falta de notícias da Lua? Tem alguma coisa a ver com a situação política?

 

- Que situação política? - perguntou Floyd secamente. Ouviu-se um coro de risos, e alguém gritou: - Boa viagem, Doutor! -, quando ele entrou no santuário da torre de embarque.

 

 Tanto quanto se lembrava, não era bem uma «situação», e sim A; uma crise permanente. Desde 1970 que dois problemas, que, ironicamente, tendiam a excluirsemutuamente, dominavam o mundo.

 Embora o controlo de nascimentos fosse barato, de confiança, e aprovado por todas as principais religiões, chegara demasiado tarde; a população do mundo era de seis biliões - um terço dos quais no Império Chinês. Algumas sociedades autoritárias haviam mesmo decretado leis limitando as famílias a dois filhos, mas a sua execução mostrara-se impraticável. Em consequência disto, a comida escasseava em todos os países; até nos Estados Unidos se lhe sentia a falta e, apesar dos esforços heróicos para cultivar o mar e criar comidas sintéticas, predizia-se um período de fome em larga escala dentro de quinze anos.

 Muito embora uma cooperação internacional fosse mais urgente que nunca, as fronteiras ainda existentes eram tantas como as de épocas anteriores. Apesar de terem passado um milhão de anos, a raça humana perdera poucos dos seus instintos agressivos; ao longo de linhas simbólicas visíveis apenas por políticos, as trinta e oito potências nucleares vigiavam-se mutuamente, com uma ansiedade beligerante. Entre eles, possuíam uma megatonelagem suficiente para destruir toda a crosta do planeta. Ainda ninguém usara - milagrosamente - armas atómicas, mas era pouco provável que a situação se mantivesse assim infinitamente.

 E agora, por razões só compreensíveis para eles, os Chineses ofereciam às nações mais pequenas uma capacidade nuclear completa, de cinquenta ogivas e respectivos sistemas de lançamento. O custo total era inferior a 5.200.000.000 e davam-se facilidades de pagamento.

 Talvez estivessem apenas a tentar aguentar uma economia em declínio, transformando obsoletos sistemas de armamento em dinheiro sonante, como alguns observadores haviam sugerido. Ou, se calhar, tinham descoberto métodos de guerra tão avançados, que já não precisavam de tais brinquedos; falara-se da rádio-hipnose a partir de satélites transmissores, vírus compulsivos, e de chantagem com doenças sintéticas, para as quais só eles possuíam o antídoto. Estas ideias encantadoras eram quase de certeza produto de propaganda ou pura fantasia, mas, pelo sim pelo não, era melhor não as pôr de parte. De cada vez que saía da Terra, Floyd perguntava-se a si próprio se ela estaria no mesmo sítio quando regressasse.

 Entrou na cabina. - Bom dia, Dr. Floyd. Sou Miss Simmons... em nome do comandante Tynes e do nosso co-piloto, primeiro oficial Ballard, bem-vindo a bordo.

 

- Obrigado - disse Floyd com um sorriso, perguntando-se por que razão as hospedeiras haviam de falar sempre como robots turísticos.

 

 - Levantaremos daqui a cinco minutos - informou ela, fazendo um gesto para a vazia cabina de vinte passageiros. - Pode sentar-se onde quiser, mas, se está interessado em ver as manobras de atracagem, o comandante Tynes diz que é melhor instalar-se na cadeira da frente, à esquerda, ao pé da janela.

 

 - Vou fazer isso - retorquiu ele, abeirando-se do mencionado lugar. A hospedeira ainda andou à volta dele por algum tempo, encaminhando-se depois para o seu cubículo, que ficava na parte de trás da cabina.

 

 Floyd instalou-se no seu lugar, apertou o arnês de segurança à volta do peito e ombros, e prendeu a mala ao assento adjacente. Um momento depois, o altofalante produziu um leve estalido.

 

- Bom dia - disse a voz de Miss Simmons. - Este é o Voo Especial 3, de Kennedy para a Estação Espacial Um. Parecia determinada a cumprir toda a rotina com o seu passageiro solitário; Floyd não resistiu a esboçar um sorriso quando a ouviu continuar inexoravelmente:

 

- Estaremos em trânsito durante cinquenta e cinco minutos. A aceleração máxima será de duas vezes a gravidade normal, e não teremos peso por um período de trinta minutos. Por favor não saia do seu lugar até o sinal de segurança ser acendido. Floyd olhou por cima do ombro, e disse:

 

- Obrigado. - Deu com os olhos num sorriso ligeiramente embaraçado, mas encantador.

 

 Recostou-se no assento e descontraiu-se. Segundo os seus cálculos, aquela viagem custaria aos contribuintes um pouco mais de um milhão de dólares. Se, no fim, se provasse não ser justificada, perderia o emprego; mas podia sempre voltar àuniversidade, e dedicar-se aos seus não concluídos estudos sobre formação planetária.

 

 - Autocontagem decrescente a funcionar - informou pelo altifalante a voz do comandante, naquele tom monótono e calmo usado nas transmissões rádio.

 

«Descolagem dentro de um minuto.» Como sempre, o minuto pareceu-se mais com uma hora. Floyd pensou nas forças gigantescas que, rodeando-o em espiral, estavam a espera de ser libertadas. Nos tanques de combustível do veículo espacial e no sistema de acumulação de energia da pista de lançamento, estava contido o poder de uma bomba nuclear. E tudo seria usado apenas para o levar a uns meros trezentos quilómetros da Terra.

 Não houve aquela história antiquada dos CINCO-QUATRO-TRÊS-DOIS-UMZERO, tão penosa para o sistema nervoso humano.

 

- Lançamento daqui a quinze segundos. Sentir-se-á melhor se começar a respirar profundamente.

 

 Eis o que se chamava de boa psicologia e boa fisiologia. Floyd sentiu-se bem cheio de oxigénio e pronto a enfrentar qualquer coisa; a pista de lançamento preparou-se para arremessar a sua carga de mil toneladas por sobre o Atlântico.

 Era difícil precisar o momento em que levantaram da pista e começaram a voar, mas, quando o rugido dos foguetões redobrou de fúria e Floyd deu por si a afundar-se cada vez mais nas almofadas da sua cadeira, soube que os motores principais haviam entrado em funcionamento. Gostaria de poder olhar pela janela, mas até virar a cabeça era um esforço. No entanto, não se sentia desconfortável; a pressão da aceleração e os trovões ensurdecedores dos motores, produziam até uma euforia extraordinária. Com os ouvidos a retinir e o sangue pulsando-lhe nas veias, havia anos que Floyd não se sentia tão vivo. Era jovem de novo, apetecia-lhe cantar alto - o que, sem dúvida, não faria mal a ninguém, pois ninguém poderia ouvilo.

 Mas tal disposição passou-lhe logo que percebeu que ia deixar a Terra e tudo o que alguma vez amara. Lá em baixo estavam - os seus três filhos, órfãos de mãe desde que a sua mulher embarcara naquele voo fatal para a Europa, havia dez anos. (Dez anos? Impossível! Mas era...) Se calhar teria sido um bem para eles haver voltado a casar...

 Já quase perdera a noção do tempo, quando a pressão e o ruído afrouxaram subitamente, e o altifalante da cabina anunciou: -Vamos separar-nos do módulo inferior. Agora. Houve um ligeiro solavanco; de repente, Floyd recordou uma citação de Leonardo da Vinci, que uma vez vira afixada num gabinete da NASA:

 O Grande Pássaro voará às costas do grande pássaro, trazendo glória ao ninho onde nasceu.

 Bem, o Grande Pássaro estava a voar - Da Vinci nunca sonharia uma coisa daquelas -, e o seu exausto companheiro regressava naquele momento à Terra.

 Num arco de quinze mil quilómetros, o módulo inferior vazio deslizaria para a atmosfera, trocando a velocidade pela distância, à medida que se aproximasse de Kennedy. Dentro de poucas horas, verificado e novamente cheio de combustível, estaria pronto para erguer outro companheiro em direcção ao brilhante silêncio que nunca alcançaria.

«Agora», pensou Floyd, «estamos sozinhos, e a mais de meio caminho da órbita». Quando sentiu de novo a aceleração provocada pela entrada em funcionamento dos foguetões do módulo superior, notou que o impulso foi muito mais suave: aliás, pouco mais sentiu que uma gravidade normal. Mas teria sido impossível andar, visto que «Para cima» ficava mesmo na parte da frente da cabina.

 Se houvesse sido suficientemente louco para se levantar, teria embatido imediatamente no lado de trás. Era um efeito um tanto desconcertante, pois parecia que a nave se erguia apoiada na cauda. Floyd, sentado à frente, tinha a impressão de que todas as outras cadeiras estavam fixadas a uma parede que se erguia verticalmente debaixo dele. Estava ele a envidar os seus melhores esforços para ignorar esta ilusão, quando a madrugada explodiu no interior da nave.

 Numa questão de segundos, atravessaram mantos carmesins, cor-de-rosa, dourados, azuis, e penetraram no branco ofuscante do dia. Embora as janelas fossem muito foscas, de modo a reduzir o brilho, os vivos raios de sol que varriam a cabina, deixaram Floyd meio cego durante alguns minutos. Encontrava-se no espaço, mas nem pensar em ver as estrelas.

 Protegeu os olhos com as mãos, e tentou espreitar pela janela que tinha ao lado. Lá fora, o leme de trás da nave luzia como metal quente à luz reflectida do sol: rodeava-o uma escuridão total que, possivelmente, estava cheia de estrelas – mas não podiam ver-se.

 O peso decaía lentamente; os foguetões diminuíam de potência à medida que a nave entrava em órbita. O trovão dos motores passou a um rugido abafado, depois a um assobio suave, e acabou por se silenciar. Se não fossem as tiras que o apertavam, Floyd teria flutuado para fora do seu assento: bem, sentia o estômago tão embrulhado, que parecia que ia fazê-lo, de qualquer forma. Esperava que os comprimidos que lhe haviam dado meia hora e quinze mil quilómetros atrás, dessem o resultado que se afirmava nos folhetos. Sentira o enjoo do espaço apenas uma vez em toda a sua carreira, mas essa chegara-lhe bem.

 Firme e confiante, a voz do piloto fez-se ouvir através do altifalante da cabina:

 

-Pede-se o favor de respeitar todos os regulamentos respeitantes à gravidade nula. Atracaremos na Estação Espacial Um dentro de quarenta e cinco minutos.

 

 A hospedeira apareceu no estreito corredor que ficava à direita das cadeiras pouco espaçadas. Havia uma ligeira flutuabilidade nos seus passas, e os pés saiamlhe do chão tão relutantemente como se patinhassem em cola. Caminhava pela tira amarela viva do tapete Velcro que cobria o chão e o tecto. Miríades de minúsculos ganchos cobriam o tapete e as solas das suas sandálias, o que os fazia prenderemse uns aos outros como rebarbas. Este truque, que permitia caminhar em queda livre, era imensamente tranquilizante para passageiros desorientados.

 

-Quer café ou chá, Dr. Floyd? - perguntou ela alegremente.

 

-Não, obrigado. - Sorriu. Sentia-se sempre como um bebé, quando tinha de chupar um daqueles tubos de plástico que continham as bebidas.

 

 Quando Floyd abriu a pasta e se preparou para tirar os seus apontamentos reparou que a hospedeira continuava a pairar ansiosamente à volta dele.

 

 -Dr. Floyd, posso fazer-lhe uma pergunta? -Claro - respondeu ele, olhando por cima dos óculos.

 

-O meu noivo é geólogo em Clavius, começou Miss Simmons, medindo cuidadosamente cada palavra, e há mais de uma semana que não sei nada dele.

 

-Isso é aborrecido; se calhar está longe da base, e não conseguem contactálo.

 

 Ela abanou a cabeça.

 

 -Sempre que isso acontece, ele diz-me. Imagine como estou preocupada... com todos os boatos que correm. É mesmo verdade que há uma epidemia na Lua? -

 

 - Se é, não há motivos para alarme. Lembra-se? Houve uma quarentena em 98, por causa daquela mutação no vírus da gripe. Muita gente esteve doente... mas ninguém morreu. É tudo o que posso dizer-lhe - concluiu firmemente. Miss Simmons.

 

 Esboçou um sorriso agradável, e endireitou-se.

 

-Bem, de qualquer forma, obrigado, Dr. Floyd. Desculpe tê-lo incomodado.

 

-Não foi incómodo nenhum - respondeu ele galantemente mas com pouca convicção. Depois, concentrou-se nos infindos relatórios técnicos, numa desesperada tentativa final de se pôr em dia. Não teria tempo para leituras quando chegasse à Lua.

 

 ENCONTRO ORBITAL

 

Meia hora mais tarde, o piloto anunciou:

 

 -Estabeleceremos contacto dentro de dez minutos. Por favor verifique o seu arnês.

 

 Floyd obedeceu, e guardou os apontamentos. Já lhe chegara bem haver estado a ler durante o malabarismo celestial que tivera lugar nos últimos 450 quilómetros; era melhor fechar os olhos e descontrair-se enquanto o veículo espacial fosse empurrado para trás e para diante por breves explosões dos foguetões.

 Alguns minutos depois, avistou a Estação Espacial Um, apenas a uns poucos quilómetros de distância. A luz do Sol reverberava e cintilava nas polidas superfícies metálicas do disco de trezentos metros de diâmetro, que girava lentamente. A pouca distância dele, na mesma órbita, encontrava-se um avião espacial Titov-V, de asas inclinadas para trás, e ali perto, um Áries-lB quase esférico - o burro de carga do espaço -, com os seus quatro atarracados absorsores de choque de aterragem lunar saindo-lhe de um dos lados.

 O veículo espacial Orion III teve de descer de uma órbita mais alta, proporcionando, assim, um espectacular panorama da Terra, visível por trás da Estação. A uma altitude de 300 quilómetros, Floyd via quase toda a África e o oceano Atlântico. Apesar de o céu se encontrar consideravelmente coberto de nuvens, ainda conseguia descortinar as linhas azuis-esverdeadas da Costa do Ouro.

 O eixo central da Estação Espacial, com os seus braços de atracagem estendidos, vagava lentamente em direcção a eles. ao contrário da estrutura que o sustentava, não estava a girar - ou melhor, rodava para o outro lado, a uma velocidade que anulava exactamente a rotação da Estação. Assim, podia ser-lhe acoplada qualquer nave visitante, para a transferência de pessoal ou carga, sem ter de andar desastrosamente à volta.

 Com um baque surdo muito suave, nave e Estação estabeleceram contacto.

 Ouviram-se ruídos metálicos, parecidos com arranhões, vindos do exterior, e um breve assobio de ar, que indicava o nivelamento das pressões. Alguns segundos mais tarde, a escotilha abriu-se, e um homem de calças claras e apertadas e camisa de manga curta - praticamente o uniforme do pessoal da Estação Espacial -, entrou na cabina.

 

-Muito prazer em conhecê-lo, Dr. Floyd. Sou Nick Miller, da Segurança da Estação; vou acompanhá-lo até o vaivém se ir embora. Deram um aperto de mão; depois Floyd sorriu para a hospedeira, e disse:

 

 -Por favor, apresente os meus cumprimentos ao comandante Tynes, e agradeça-lhe por esta viagem sem incidentes. Talvez volte a vê-la quando regressar.

 

 Muito cautelosamente, passara-se mais de um ano desde que estivera sem peso pela última vez, e precisava de algum tempo para se acostumar novamente.

 Arrastou-se através da escotilha, e entrou na grande câmara circular que ficava no eixo da Estação Espacial. Era uma sala toda acolchoada, com as paredes cobertas de apoios para as mãos; Floyd agarrou-se firmemente a um deles, e esperou que a câmara começasse a girar até atingir a rotação da Estação.

 A medida que esta ganhava velocidade, suaves e fantasmagóricos dedos gravitacionais começaram a agarrar-se-lhe, e Floyd flutuou lentamente em direcção à parede circular. Viu-se então de pé, balançando docemente para a frente e para trás, como algas ao sabor das ondas, no que magicamente se transformara num chão curvo. A força centrífuga gerada pela rotação da Estação tomara conta dele; embora muito fraca ali, perto do eixo, aumentaria à medida que se afastasse dele.

 Seguiu Miller para fora da câmara central de trânsito, e ambos desceram uma escadaria curva. Ao princípio o seu peso era tão pouco que teve quase de se arrastar para baixo agarrando-se ao corrimão. Só quando chegou à sala de espera dos passageiros, no nível externo do grande disco em rotação, adquiriu peso suficiente para se mexer quase normalmente.

 A sala de espera fora redecorada desde a sua última visita, e adquirira vários serviços de que antes não dispunha. Além das costumeiras cadeiras, mesinhas, restaurante e correio, havia agora uma barbearia, uma farmácia, um cinema e uma loja de lembranças, que vendia fotografias e slides de paisagens lunares e planetárias, e miniaturas genuínas de Luniks, Rangers e Surveyors, todas muito bem montadas em plástico, e marcadas com preços exorbitantes.

 

 -Quer tomar alguma coisa enquanto esperamos? - perguntou Miller. - Embarcaremos daqui a cerca de trinta minutos.

 

-Um café preto sabia-me bem... dois quadradinhos de açúcar... gostaria também de telefonar para a Terra.

 

-Muito bem. Eu vou buscar-lhe o café; os telefones são ali.

 

 As pitorescas cabinas ficavam apenas a alguns metros de uma barreira com duas entradas, cada uma das quais com os seguintes dizeres: BEM-VINDO A ESTAÇÃO DOS E.U.A. e BEM-VINDO A SECÇÃO SOVIÉTICA. Por baixo, letreiros escritos em inglês, russo, chinês, francês, alemão e espanhol, anunciavam: POR FAVOR TENHA A MÃO O SEU: Passaporte Visto Certificado Médico Licença de Circulação Declaração de Peso.

 Depois de atravessarem as barreiras, em ambas as direcções, os passageiros eram livres de se misturar novamente, o que não deixava de constituir um agradável simbolismo. A divisão tinha puramente fins administrativos.

 Floyd verificou se o Código de Zona dos Estados Unidos ainda era 81, premiu os doze botões do número da sua casa, enfiou na ranhura o cartão de crédito para todos os fins de plástico, e conseguiu a ligação em trinta segundos.

 Washington estava a dormir, pois ainda faltava muito para a madrugada, mas ele não perturbaria o sono de ninguém. A governanta receberia a mensagem dogravador logo que acordasse.

 

-Miss Flemming... sou o Dr. Floyd. Desculpe ter partido tão à pressa. Se não se importa, telefone para o meu escritório e peça a alguém para ir buscar o meu carro... está no Aeroporto Dulles, e o Sr. Bailey, Oficial Superior do Controlo de Voo, tem a chave. Depois, telefone por favor para o Clube de Caça e deixe uma mensagem ao secretário. Não vou mesmo poder jogar no torneio de ténis do próximo fim-de-semana. Peça-lhe desculpa por mim... acho que estava a contar comigo. Fale também para a Electrónica da Baixa, e diga-lhes que se o vídeo do meu gabinete não ficar pronto na... oh, quarta-feira, podem ficar com ele. - Fez uma pausa para respirar, e tentou lembrar-se de mais problemas que poderiam surgir nos dias que se seguiriam.

 Se o dinheiro começar a faltar, fale para o escritório; de lá podem mandar-me mensagens urgentes, mas talvez eu esteja demasiado ocupado para responder. Dê saudades minhas às crianças, e diga-lhes que regressarei logo que puder. Oh, raios... está aqui uma pessoa com quem não quero falar... telefonarei da Lua se puder... adeus.

 

 Floyd tentou esgueirar-se da cabina sem ser visto, mas era demasiado tarde; fora já localizado. Aproximando-se rapidamente pela saída da Secção Soviética, vinha o Dr. Dimitri Moisevitch, da Academia de Ciências da U. R. S. S. Dimitri era um dos melhores amigos de Floyd; e, exactamente por essa razão, a última pessoa com quem ele gostaria de falar naquela altura.

 O astrónomo russo era alto, elegante e louro e a sua face sem rugas fazia-o não aparentar cinquenta e cinco anos - dos quais os últimos dez haviam sido passados a construir o gigantesco observatório rádio no lado mais afastado da Lua, onde três mil quilómetros de rocha o protegeriam do ruído electrónico da Terra.

 

-Olha o Heywood - disse ele, apertando-lhe firmemente a mão. - O universo é pequeno. Como estás tu... e as tuas encantadoras crianças?

 

-Bem - replicou Floyd calorosamente, mas com um ar um tanto distraído. - Falamos muitas vezes das maravilhosas férias que passamos contigo no último Verão. Sentia-se mal por não poder parecer mais sincero; haviam realmente apreciado a semana que tinham passado em Odessa com Dimitri, durante uma das visitas do russo à Terra. -E tu... vais lá para cima? - inquiriu Dimitri.

 

-Hã... sim... O meu voo é daqui a meia hora - respondeu Floyd. - Conheces o Sr. Miller?

 

 O Oficial de Segurança aproximara-se, mas não muito; guardando uma distância respeitosa, esperava, com um copo de plástico cheio de café na mão.

 

-Claro que sim. Mas, por favor, largue isso, Sr. Miller. Esta é a última oportunidade que o Dr. Floyd tem de tomar uma bebida civilizada... não a desperdicemos. Não... insisto.

 

 Saíram com Dimitri da sala de espera principal e seguiram-no até ao sector de observação; em breve estavam sentados a uma mesa banhada por uma luz difusa, observando o panorama das estrelas. A Estação Espacial Um perfazia uma rotação por minuto, e a força centrífuga assim lentamente gerada produzia uma gravidade artificial igual à da Lua. O que, como fora descoberto, constituía um meio termo entre a gravidade da Terra e uma gravidade nula; além disso, dava aos passageiros que se dirigiam para a Lua uma boa oportunidade de se aclimatizarem.

 Para lá das janelas praticamente invisíveis, Terra e estrelas marchavam em procissão silenciosa. Aquele lado da Estação estava, nessa altura, inclinado e protegido do sol; se não fosse assim, teria sido impossível olhar lá para fora, pois a sala de espera estaria inundada de luz. Apesar de tudo, o brilho da Terra, que preenchia metade do céu, só não apagava as estrelas mais brilhantes.

 Mas a Terra diminuía à medida que a Estação girava para o lado nocturno do planeta; dali a minutos, seria apenas um enorme disco preto, coberto das luzes das cidades. Depois, o céu pertenceria às estrelas.

 

 -Bem - disse Dimitri, depois de tragar rapidamente a primeira bebida, e brincando com a segunda -, que história é essa de uma epidemia no sector dos E. U. A.? Eu quis lá ir nesta viagem, mas disseram-me assim: «Não, Professor.

 Lamentamos muito mas, até nova ordem, vigora lá uma quarentena muito estrita». Mexi todos os cordelinhos que pude, mas não me valeu de nada. Diz-me lá o que se passa.

 

 Floyd gemeu de si para si. «Cá vou eu outra vez», pensou. «Quanto mais depressa estiver no vaivém, a caminho da Lua, melhor».

 

- A... há... quarentena é simplesmente uma precaução de segurança - replicou ele cuidadosamente. - Nem sabemos bem se é mesmo necessária, mas não queremos arriscar-nos.

 

-Mas o que é a doença... quais são os sintomas? Será extraterrestre?  Querem ajuda dos nossos serviços médicos?

 

-Desculpa, Dimitri, mas pediram-nos para não dizermos nada por enquanto. Obrigado, mas nós tratamos da situação.

 

 -Hum, - disse Moisevitch, obviamente pouco convencido. - Acho muito estranho que tu, um astrônomo, venha à Lua observar uma epidemia.

 

-Sou apenas um ex-astrónomo; há anos que não faço investigação a sério.  Agora tenho a categoria de especialista científico, o que significa que não sei nada de absolutamente nada. - Então não sabes o que quer dizer AMT-1

 

 Miller quase se engasgou com a bebida, mas Floyd era feito de material mais  duro. Olhou o seu velho amigo de olhos nos olhos, e disse calmamente: - A MT-I?

 

-Que expressão tão estranha! Onde a ouviste?

 

-Deixa lá - retorquiu o russo. - A mim não me enganas. Mas, olha, se vos aconteceu alguma coisa que não conseguem domar, espero que não gritem por ajuda demasiado tarde. Miller consultou expressivamente o relógio.

 

-Tem de embarcar daqui a cinco minutos, Dr. Floyd - anunciou. - Acho que é melhor irmos embora.

 

 Embora soubesse que ainda dispunham de uns bons vinte minutos, Floyd levantou-se apressadamente. Demasiado apressadamente, pois esquecera-se que a gravidade era apenas de um sexto da normal. Agarrou-se mesmo à mesa a tempo de evitar levantar voo.

 

-Foi óptimo encontrar-te, Dimitri. - disse ele com pouco entusiasmo. - Espero que faças uma boa viagem para a Terra... eu telefono-te logo que regressar.

 

 Quando deixaram a sala de espera e passaram pela barreira de trânsito dos E. U. A., Floyd comentou: - Fiuu... por pouco. Obrigado por ter vindo em meu socorro.

 

-Sabe, Doutor - disse o Oficial de Segurança -, espero que ele esteja enganado. -Enganado sobre quê?

 

-Sobre acontecer-nos alguma coisa que não podemos dominar.

 

-Isso, replicou Floyd com determinação - é o que eu tenciono descobrir.

 

 Quarenta e cinco minutos mais tarde, o transportador lunar Aries-lB afastouse da Estação. Não houve nada do poder e fúria de uma deslocagem da Terra – só um assobio longínquo e quase inaudível, quando os jactos de plasma de baixa pressão lançaram os seus raios electrificados para o espaço. A suave compressão durou mais de quinze minutos, e a aceleração moderada não impediu ninguém de se mover livremente na cabina. Mas quando tudo acabou, a nave já não estava na direcção da Terra, como fora o caso enquanto ainda acompanhava a Estação.

 Quebrara os laços da gravidade, e era agora um planeta livre e independente, girando à volta do sol numa órbita própria.

 A cabina que Floyd tinha por sua conta, fora concebida para trinta passageiros. Era estranho, e fazia-o sentir-se só, ver todos aqueles lugares vazios, e ter só para ele as atenções do comissário e da hospedeira - isto para não falar do piloto, e dois engenheiros. Duvidava de que algum homem na história houvesse alguma vez tido direito a tal serviço exclusivo, e era muito pouco provável que isso viesse a acontecer no futuro. Recordou um comentário cínico de um dos pontífices menos respeitáveis: «Agora que temos o papado, aproveitamo-lo bem». Pois ele aproveitaria bem aquela viagem, e a euforia da imponderabilidade. A perda da gravidade fizera-o esquecer - pelo menos por momentos muitas das suas preocupações. Alguém dissera uma vez que era bem possível que nos sentíssemos aterrorizados no espaço, mas nunca preocupados. Era perfeitamente verdade.

 Ao que parecia, o comissário e a hospedeira estavam determinados a fazê-lo comer durante as vinte e cinco horas que durava a viagem; passou muitas delas a recusar refeições que não pedira. ao contrário dos maus presságios dos primeiros astronautas, comer NO ESPAÇO em gravidade zero não constituía qualquer problema. Floyd dispunha de uma mesa vulgar, à qual os pratos eram amarrados tal como num barco navegando no meio de uma tempestade. Para não levantarem vôo e não andarem a passear pela cabina, todos os constituintes da ementa tinham algum elemento pegajoso. Assim, as costeletas eram coladas ao prato por meio de um molho grosso, e controlavam-se as saladas através de temperos adesivos. Com um pouco de habilidade e cuidado, não eram muitos os pratos que não se podiam comer com segurança; as únicas coisas proibidas eram sopas quentes e pastéis excessivamente quebradiços. As bebidas, claro, constituíam um assunto diferente; todos os líquidos tinham que ser guardados em tubos plásticos.

 Uma geração inteira de heróicos, mas desconhecidos voluntários, acabara por conceber as casas de banho, que eram, naquela altura, consideradas mais ou menos à prova de distracções. Floyd investigou a da sua nave pouco depois de haverem entrado em queda livre. Entrou num cubiculozinho com todos os acessórios de um vulgar sanitário de avião, mas iluminado por uma luz vermelha muito penetrante e desagradável. Afixado em grandes letras, lia-se: MUITO IMPORTANTE! PARA SUA PRÓPRIA SEGURANÇA, LEIA CUIDADOSAMENTE ESTAS INSTRUÇÕES! Floyd sentou-se (mesmo sem peso era-se levado a fazê-lo) e leu o aviso várias vezes. Quando se certificou de que não houvera modificações desde a sua última viagem, premiu o botão que indicava COMEÇAR.

 Ali perto, um motor eléctrico desatou a roncar, e Floyd sentiu-se a mexer-se.

 Obedecendo ao conselho do aviso, fechou os olhos e esperou. Passado um minuto, uma campainha tocou suavemente, e ele olhou em volta.

 A luz mudara para um calmo tom branco-rosado; mas, mais importante que tudo, estava novamente sob a influência da gravidade. Só uma vibração muito ligeira dava a entender que se tratava de uma gravidade simulada, provocada pelas voltas de carrossel de todo o compartimento. Floyd pegou num sabonete, e observou-o caindo em câmara lenta; calculou que a força centrífuga fosse de um quarto da gravidade normal. Mas chegava; era suficiente para se ter a certeza de que tudo se moveria na direcção certa - isto, no único sitio onde era mesmo importante que assim acontecesse. Depois, premiu o botão que dizia PARAR PARA SAIR, e tornou a fechar os olhos. O peso desapareceu à medida que a rotação foi cessando, a campainha tocou duas vezes, e a luz vermelha de aviso acendeu-se de novo. O fecho da porta abriu-se, e ele deslizou para a cabina, onde aderiu o mais rapidamente possível à carpete. Esgotara havia muito a novidade da imponderabilidade, e sentia-se grato por poder dispor das chinelas Velcro, que lhe permitiam caminhar quase normalmente.

 Mesmo que só estivesse sentado a ler, tinha muito em que ocupar o espírito.

 Quando se cansava de relatórios oficiais, memorandos e minutas, ligava o seu capacete Bloco-de-Notícias ao circuito de informação da nave, e examinava os últimos comunicados da Terra. Um por um, fazia aparecer como por encanto os relatórios electrónicos mais importantes do mundo; sabia de cor os códigos dos mais sonantes, não precisando, portanto, de consultar a lista que tinha na parte de trás do bloco. Passando depois à memória do visor, fazia aparecer a página da frente, e examinava rapidamente os títulos, anotando as informações que lhe interessavam.

 Cada uma delas tinha a sua referência de dois algarismos; quando os premia, o rectângulo do tamanho de um selo aumentava até encher nitidamente o visor, permitindo-lhe ler com clareza. Quando acabava, voltava de novo à página completa, e escolhia outro assunto para examinar com mais atenção.

 As vezes, Floyd perguntava-se se o Bloco-de-Notícias e a fantástica tecnologia que lhe estava subjacente, seria a última palavra na busca de comunicações perfeitos. Ali estava ele, bem longe no espaço, afastando-se velozmente da Terra a milhares de quilómetros por hora, e, no entanto, bastava-lhe alguns milissegundos para ler os títulos do jornal que lhe apetecesse. (Claro que a própria palavra «jornal» constituía uma expressão anacrónica que se arrastara até à era da electrónica). O texto era actualizado automaticamente de hora a hora; mesmo que só se lessem as versões inglesas, podia passar-se uma vida inteira a absorver o eternamente mutável fluxo de notícias dos satélites informativos.

 Era difícil imaginar como é que tal sistema poderia ser melhorado ou tornado mais conveniente. Mas, mais cedo ou mais tarde, pensava Floyd, acabaria por cair em desuso, e por ser substituído por algo tão inacreditável como o próprio Bloco-de- Notícias teria sido para Caxton ou Gutenberg. O exame daqueles minúsculos títulos electrónicos, invocava frequentemente um outro pensamento. Quanto mais maravilhosos eram os meios de comunicação, mais triviais, espalhafatosos ou deprimentes pareciam ser os seus conteúdos. Acidentes, crimes, desastres naturais e provocados pelo homem, ameaças de conflito, editoriais sombrios, eis o que pareciam continuar a ser as principais preocupações dos milhões de palavras borrifadas para o éter. No entanto, Floyd também se perguntava se, no seu conjunto, isto seria mau; havia muito que chegara à conclusão que os jornais da Utopia deviam ser terrivelmente aborrecidos.

 De tempos a tempos, o comandante e os outros membros da tripulação, entravam na cabina e trocavam algumas palavras com ele. Tratavam o seu distinto passageiro com um certo temor respeitoso, e sem dúvida que morriam de curiosidade sobre qual seria a sua missão, mas mostravam-se suficientemente delicados para perguntar fosse o que fosse, ou até para fazer comentários de qualquer natureza.

 Só a encantadora hospedeirazinha parecia completamente à vontade na sua presença. Como Floyd rapidamente descobriu, ela era natural do Bali, e transportara para lá da atmosfera alguma da graça e mistério dessa ilha ainda pouco estragada.

 Uma das suas recordações mais estranhas e encantadoras de toda a viagem, foi a demonstração, em gravidade nula, de alguns movimentos de dança clássica balinesa, tendo por fundo o lindo crescente azul-esverdeado da Terra.

 Houve também um período de sono, quando as luzes principais da cabina se apagaram, e Floyd prendeu os braços e pernas com os lençóis elásticos que o impediriam de deslizar pelo ar. Não parecia uma posição lá muito recomendável - mas ali, com uma gravidade nula, o seu sofá duro era mais confortável que o mais luxuoso colchão da Terra.

 Depois de se amarrar, Floyd adormeceu rapidamente, mas acordou uma vez, e, muito sonolento e meio consciente, olhou confusamente tudo o que o rodeava.

 Por momentos, pensou estar no meio de alguma lanterna chinesa difusamente iluminada; o brilho fraco que lhe vinha dos outros cubículos, dava-lhe essa impressão. Mas depois disse firmemente para si próprio:

 

-Vê lá se dormes, rapaz. Isto não passa de um vulgar vaivém lunar. Quando despertou, viu que a Lua engolira metade do céu; as manobras de travagem estavam prestes a começar. As largas janelas abertas em arco na parede curva da secção dos passageiros, davam para o céu aberto, e não para o globo que se aproximava, o que levou Floyd a encaminhar-se para a cabina de controlo. Ali, nosvisores de TV da retaguarda, pôde observar os últimos estádios da descida.

 As montanhas lunares não eram absolutamente nada parecidas com as da Terra; faltavam-lhes os deslumbrantes picos de neve, as maravilhosas e justas roupagens de vegetação, as móveis coroas de nuvens. No entanto, os intensos contrastes de luz e sombra, emprestavam-lhes uma estranha beleza muito própria.

 As leis da estética terrestre não se aplicavam ali; aquele mundo fora formado e moldado por forças que não as terrestres, que haviam operado ao longo de milênios desconhecidos da jovem e inexperiente Terra, com as suas efémeras Idades do Gelo, as rápidas ascensões e quedas dos seus mares, as suas cordilheiras dissolvendo-se como neblinas antes da madrugada. Ali estava uma idade inconcebível - mas não a morte, pois a Lua nunca vivera, pelo menos até ao momento.

 A nave foi estabilizada quase sobre a linha que separava a noite do dia, e, directamente por baixo dela, ficou um campo de sombras recortadas e picos brilhantes e isolados, banhados pela primeira luz da lenta aurora lunar. Mesmo com todas as ajudas electrónicas possíveis, seria assustador tentar ali uma aterragem; mas estavam a afastar-se lentamente, em direcção ao lado nocturno da Lua.

 Quando os olhos se lhe habituaram à iluminação mais fraca, Floyd viu que a noite não era totalmente escura. Picos, vales e planícies brilhavam com uma luz avermelhada que os tornava claramente visíveis. A Terra, uma lua gigante para a Lua, inundava-a com o seu brilho.

 No painel de pilotagem, luzes acendiam-se e apagavam-se por cima de visores de radar, e números apareciam e desapareciam em écrans de computador, cronometrando a distância que os separava da Lua. Ainda a mais de mil quilômetros dela, os jactos começaram a desacelerar lenta mas firmemente, e o peso voltou. As operações pareceram durar séculos. A Lua foi crescendo no céu, o sol pôs-se por baixo do horizonte, e, por fim, uma única cratera gigante encheu o campo de visão.

 O vaivém caía em direcção aos seus picos centrais e de repente Floyd reparou que, perto de um deles, uma luz brilhante piscava segundo um ritmo regular. Podia perfeitamente ser confundida com um farol de aeroporto da Terra; Floyd deixou-se ficar a olhar para ela com um aperto na garganta, pois ali estava mais uma prova de que o homem dera outro passo na conquista da Lua.

 Entretanto a cratera expandiu-se tanto que as suas paredes começaram a deslizar abaixo do horizonte, revelando-se assim o verdadeiro tamanho das craterazinhas mais pequenas que salpicavam o seu interior. Algumas destas minúsculas vistas do espaço, tinham vários quilómetros da largura e envergadura suficiente para conter cidades inteiras.

 Sempre controlado automaticamente, o vaivém foi deslizando pelo céu estrelado, descendo para aquela paisagem árida, que brilhava frouxamente à luz da grande e convexa Terra. Uma voz elevou-se acima do assobio dos jactos e dos ruídos electrónicos que perpassavam a cabina.

 Controlo de Clavius a Especial 14. A entrada está a ser perfeita. Faça a verificação manual dos mecanismos de aterragem, pressão hidráulica e dilatação da almofada anti-choque.

 O piloto mexeu em vários interruptores, e luzes verdes piscaram.

 

-Verificações manuais completas. Mecanismos de aterragem, pressão hidráulica, almofada antichoque. O. K.

 

 -Confirmado - retorquiu a Lua; a descida continuou sem palavras. Conversas, havia-as, mas eram todas entre máquinas, enviando impulsos binários umas as outras, mil vezes mais depressa que os seus lentos construtores conseguiam comunicar entre si.

 

 Alguns dos picos montanhosos agigantavam-se já por cima do vaivém; o solo estava apenas a umas poucas centenas de metros de distância, e a luz do farol brilhava como uma estrela, projectando os seus raios intervalados sobre um grupo de edifícios baixos e veículos estranhos. No estádio final da descida, os jactos pareceram tocar uma espécie de melodia esquisita; fazendo os últimos ajustamentos ao impulso final, começaram a vibrar em movimentos ritmados.

 De repente, uma rodopiante nuvem de pó ergueu-se no ar, os jactos deram um derradeiro arranco, e o vaivém oscilou muito ligeiramente, qual barco a remos embalado pelas ondas. Passaram-se alguns minutos até Floyd tomar verdadeira consciência do silêncio que o envolvia, e da fraca gravidade que lhe prendia os membros.

 Sem quaisquer incidentes, e em pouco mais de um dia, fizera a incrível viagem com que os homens haviam sonhado durante dois mil anos. Após um vôo normal, rotineiro, aterrara na Lua.

 

 BASE CLAVIUS

 

Clavius, de 230 quilómetros de diâmetro, é a segunda maior cratera da face visível da Lua, e fica no meio das Terras Altas Meridionais. É muito antiga; milênio de vulcanismo e bombardeamento do espaço, sulcaram-lhe as paredes e marcaramlhe o solo. Mas estivera em paz durante meio bilião de anos, desde a última formação de crateras, quando os detritos do cinturão de asteróides ainda bombardeavam os planetas interiores.

 Mas havia agora estranhos abanões por cima e por baixo da sua superfície,  pois o homem estava a estabelecer lá a sua primeira base permanente na Lua. A Base Clavius podia, em caso de emergência, tornar-se inteiramente auto-suficiente.

 Todas as necessidades da vida eram produzidas a partir das rochas locais, depois de estas haverem sido trituradas, aquecidas, e processadas quimicamente.

 Hidrogénio, oxigénio, carbono, nitrogénio, fósforo - todos estes, e muitos dos outros elementos, podiam ser encontrados na Lua, desde que se soubesse onde os procurar.

 A Base era um sistema fechado, como um minúsculo modelo articulado da própria Terra, reciclando todos os elementos químicos da vida. A atmosfera era purificada numa vasta «estufa» - uma sala grande e circular, construída mesmo debaixo da superfície lunar. Sob lâmpadas ardentes à noite, e luz do sol filtrada de dia, hectares de atarracadas plantas verdes, cresciam numa atmosfera quente e húmida. Tratava-se de mutações especiais, concebidas com o propósito exclusivo de renovarem o oxigénio do ar; como produto secundário, serviam de alimento.

 Mais comida era produzida por sistemas de processamento químico e cultura de algas. Embora a espuma verde que circulava ao longo de metros de tubos de plástico transparente, não despertasse propriamente o apetite de um gastrónomo, os bioquímicos podiam invertê-la em costeletas e bifes, que só um especialista distinguiria dos verdadeiros.

 Os mil e cem homens e seiscentos mulheres que compunham o pessoal da Base, eram todos cientistas ou técnicos altamente especializados, cuidadosamente escolhidos antes de deixarem a Terra. Embora a vida lunar já não apresentasse as privações, desvantagens, e perigos ocasionais do princípio, continuava a exigir muito de um ponto de vista psicológico, e não se recomendava a quem sofresse de claustrofobia. Como seria oneroso e levaria muito tempo a cortar uma grande base subterrânea na rocha ou na lava compacta, o «módulo» padrão para um homem, era um quarto de apenas cerca de dois metros de largura, três de comprimento, e dois e meio de altura.

 Mobilado de uma forma muito agradável, cada quarto se parecia com um bom apartamento de motel, dispondo de um sofá-cama, TV, aparelhagem de alta fidelidade, e telefone com visor. Para além disso, e devido a um simples truque de decoração interior, a única parede inteira podia converter-se - bastava carregar num interruptor - numa convincente paisagem terrestre. Podiam escolher-se oito panoramas diferentes.

 Este toque de luxo era típico da Base e, às vezes, tornava-se difícil explicar a sua necessidade às pessoas que haviam ficado na Terra. Cada homem e cada mulher de Clavius custara cem mil dólares em transporte, treino e alojamento; valia a pena gastar um pouco mais em prol da paz dos seus espíritos. Não se tratava de arte pela arte, mas de arte a bem da saúde mental.

 Uma das atracções da vida na Base - e na Lua, de um modo geral - era, sem dúvida, a baixa gravidade, que transmitia uma sensação de bem estar. No entanto, até isto tinha os seus perigos, e um emigrante da Terra só passadas várias semanas se adaptava à nova situação. Na Lua, o corpo humano tinha de aprender todo um conjunto novo de reflexos; devia, pela primeira vez, distinguir a massa do peso.

 Um homem que pesasse, por exemplo, setenta quilos na Terra, talvez ficasse encantado ao descobrir que só pesava catorze quilos na Lua. Enquanto se movesse em linha recta, a uma velocidade uniforme, sentiria uma flutuabilidade agradabilíssima. Mas logo que tentasse mudar de rumo, dar curvas ou parar de repente, descobriria que os seus setenta quilos de massa, ou inércia, ainda lá estavam inteirinhos. Isso era fixo e inalterável - igual na Terra, Lua, Sol, ou no espaço. Portanto, para que as pessoas se adaptassem em condições à vida lunar, tornava-se essencial que aprendessem que todos os objectos eram seis vezes mais vagarosos que o que o seu peso poderia sugerir. Constituía uma lição normalmente decorada à custa de numerosas colisões e dolorosas pancadas; os veteranos lunares mantinham-se sempre afastados dos recém-chegados, até estes se aclimatizarem.

 Com o seu complexo de oficinas, escritórios, armazéns, centro de computadores, geradores, garagem, cozinha, laboratórios e fábrica de processamento de alimentos, a Base Clavius constituiu, em si própria, um mundo em miniatura. E, ironicamente, muita da tecnologia usada para construir este império subterrâneo, havia sido desenvolvidas durante o meio século da Guerra Fria.

 Qualquer um que alguma vez houvesse trabalhado num silo de mísseis, se teria sentido em casa em Clavius. Na Lua encontravam-se exactamente as mesmas condições e maquinaria da vida subterrânea, e da protecção contra um ambiente hostil; só que, na Lua, estas haviam sido viradas para a paz. Dez mil anos depois, o homem encontrara finalmente algo tão excitante como a guerra. Infelizmente, nem todas as nações haviam ainda percebido isso.

 As montanhas, tão preeminentes antes da aterragem, haviam desaparecido misteriosamente, escondidas pelo curvo horizonte lunar. Em volta da nave via-se uma planície lisa e cinzenta, que a oblíqua luz da terra inundava de brilho. Embora o céu se mostrasse, claro, completamente preto, se se protegessem os olhos do reflexo da superfície, ainda podiam ver-se as estrelas e os planetas mais brilhantes.

 Vários veículos de aparência estranha começaram a mover-se em direcção à nave espacial Áries-lB - gruas, guindastes, vagões de manutenção, alguns automáticos, outros conduzidos por um motorista sentado numa pequena cabina pressurizada. A maioria deles movimentava-se sobre pneus-balão, pois o solo plano e regular não apresentava dificuldades de transporte; mas um vagão-cisterna deslocava-se sobre as peculiares rodas flexíveis, que haviam provado ser uma das melhores maneiras de se andar na Lua. Com uma série de lâminas chatas dispostas em círculo, cada uma delas independentemente montada e provida de molas, a roda flexível apresentava muitas das vantagens do tractor de lagarta que lhe dera origem.

 Adaptava a sua forma e diâmetro ao terreno sobre o qual se movia, e, ao contrário do tractor de lagarta, continuava a funcionar mesmo que lhe faltasse algumas secções.

 Um pequeno autocarro com um tubo extensível parecido com uma tromba de elefante atarracada, ergueu-a afeiçoadamente e encostou-a à nave. Alguns segundos mais tarde, ouviram-se pancadas surdas vindas do exterior, seguidas de assobios de ar, correspondentes ao estabelecimento de ligações e à nivelação da pressão. A porta interior da escotilha abriu-se, e a delegação de boas-vindas entrou.

 À cabeça vinha Ralph Halvorsen, administrador da Província Meridional - que incluía não só a Base, mas também todos os grupos de exploração que operavam a partir dela. Com ele encontrava-se o cientista-chefe Dr. Roy Michaels, um pequeno geofísico grisalho que Floyd conhecia de visitas anteriores, e meia dúzia de cientistas e executivos. Cumprimentaram-no com um alívio respeitoso; era óbvio que todos eles, começando no próprio administrador, estavam ansiosos por poderem partilhar com alguém as suas preocupações.

 

-É óptimo tê-lo connosco, Dr. Floyd - disse Halvorsen. - Fez boa viagem?

 

-Excelente - respondeu Floyd. - Não podia ter sido melhor. A tripulação tomou muito bem conta de mim.

 

 Enquanto o autocarro rodava para longe da nave espacial, Floyd trocou as cortesias habituais nestas situações; por acordo tácito, ninguém mencionou a razão da sua visita. A trinta metros do campo de aterragem, o autocarro passou por um grande letreiro que dizia: BEM-VINDO A BASE CLAVIUS Corpo de Engenharia Astronáutica dos E. U. A. 1994

 Mergulhando então num túnel, rapidamente ficou abaixo do nível do solo. A frente deles abriu-se uma porta maciça, que se fechou logo após a sua passagem.

 Uma outra porta abriu-se e fechou-se, e ainda uma terceira. Quando a última porta bateu, ouviu-se como que o barulho de um trovão, e viram-se novamente rodeados de uma atmosfera, do meio ambiente de «mangas curtas» da Base.

 Depois de uma caminhada curta através de um túnel pejada de tubos e cabos, que ecoava com ruídos surdos e vibrações ritmadas, chegaram a território administrativo, e Floyd deu por si de volta ao ambiente familiar das máquinas de escrever, computadores de gabinete, secretárias, mapas de parede, e telefones a tocar. Pararam à frente de uma porta que indicava ADMINISTRADOR, e Halvorsen disse diplomaticamente:

 

-O Dr. Floyd e eu estaremos na sala de conferências dentro de alguns minutos.

 

 Os outros acenaram, preferiram sons de concordância, e afastaram-se pelo corredor. Mas antes de Halvorsen poder acompanhar Floyd ao gabinete, verificou-se uma interrupção. A porta abriu-se, e uma figurinha atirou-se para os braços do Administrador. -Papá! Estiveste fora! E tinhas prometido levar-me!

 

 -Ora, Diana - retorquiu Halvorsen com uma ternura exasperada, disse que te levava se pudesse. Mas tive de me encontrar com o Dr. Floyd. Cumprimenta-o... ele chegou agora mesmo da Terra.

 

 A rapariguinha - que Floyd calculou ter cerca de oito anos - estendeu-lhe uma mão mole. O seu rosto era-lhe vagamente familiar; de repente, Floyd apercebeu-se de que o Administrador o observava com um sorriso trocista. O choque da lembrança fê-lo perceber porquê.

 

-Não posso acreditar! - exclamou. - Da última vez que aqui estive ela não passava de um bebé!

 

 -Festejou os seus quatro anos a semana passada - respondeu Halvorsen com orgulho. - As crianças crescem depressa nesta baixa gravidade. Mas não envelhecem assim tão rapidamente... viverão mais tempo que nós. Floyd contemplou, fascinado, a pequena dama muito senhora do seu nariz, reparando no seu porte gracioso e na sua invulgarmente delicada estrutura óssea.

 

 -Tenho muito prazer em ver-te outra vez, Diana - disse. Depois, algo (ou mera curiosidade, ou delicadeza) impeliu-o a acrescentar: - Gostavas de ir à Terra?

 

 Os olhos dela esbugalharam-se de espanto; depois, abanou a cabeça.

 

-É um sítio desagradável; magoamo-nos quando caímos. Além disso, há lá gente de mais.

 

«Eis a primeira geração dos Nascidos-no-Espaço», pensou Floyd, «e haverá mais nos próximos anos». Embora houvesse tristeza nesta ideia, inundava-a também uma grande esperança. Quando a Terra estivesse domada e em paz, e talvez um pouco cansada, continuaria a haver oportunidades para os que amavam a liberdade, para os rijos pioneiros, para os aventureiros inquietos. Mas as suas ferramentas já não seriam o machado, a espingarda, a canoa, a carroça, e sim as unidades de energia nuclear, o plasma, as quintas hidropônicas. Em breve chegaria o tempo em que a Terra, como todas as mães, teria de dizer adeus aos seus filhos.

 Misturando ameaças com promessas, Halvorsen lá conseguiu pôr a andar a sua decidida descendente, e entrou com Floyd no gabinete. A sala do administrador tinha apenas cerca de seis metros quadrados, mas lograva conter nela todos os acessórios e símbolos estatutários do típico chefe de departamento com um rendimento de $50000 dólares por ano. Fotografias autografadas de políticos importantes - incluindo a do Presidente dos Estados Unidos e a do Secretário-Geral das Nações Unidas adornavam uma parede, e retratos também autografados de astronautas célebres cobriam uma grande parte de outra.

 Floyd afundou-se numa confortável poltrona de couro, aceitou um cálice de xerez, cortesia dos laboratórios bioquímicas lunares.

 

 -Como vai isso, Ralph? - perguntou Floyd, sorvendo a bebida, primeiro com cuidado, depois com aprovação.

 

- Assim assim - retorquiu Halvorsen. - Mas há uma coisa que é melhor tu saberes antes de ires para lá.

 

-Que é?

 

 -Bem, suponho que o podes descrever como um problema de estado de espírito. - Halvorsen suspirou. - Ai sim?

 

- Ainda não é sério, mas está a adquirir proporções cada vez mais graves. - O ocultamento das notícias - disse Floyd redondamente.

 

-Isso mesmo - replicou Halvorsen.- A minha gente está a ficar nervosa. Afinal de contas, a maioria deles tem família na Terra, que provavelmente está convencida que eles morreram todos da praga da Lua.

 

-Lamento muito ouvir isso - retorquiu Floyd -, mas ninguém se lembrou de uma história melhor, e esta, pelo menos até agora, tem dado resultado. Por falar nisso... encontrei Moisevitch na Estação Espacial, e até ele engoliu tudo. - Bem, isso devia tornar a Segurança muito feliz.

 

-Mas não de mais... de qualquer forma, ele já tinha ouvido falar na AMT-1; começam a ouvir-se por aí alguns zunzuns. Mas não podemos sair cá para fora com nenhum comunicado, até sabermos o que é essa maldita coisa, e se os nossos amigos chineses estão por trás dela.

 

-O Dr. Michaels acha que tem a resposta. Está mortinho por lha dizer. Floyd engoliu o resto da bebida. -E eu estou mortinho por a ouvir. Vamos.

 

ANOMALIA

 

A reunião teve lugar numa grande câmara rectangular, com capacidade para cem pessoas. Equipada com os mais recentes modelos ópticos e electrónicos, parecer-se-ia com uma vulgar sala de conferências se não fossem os numerosos cartazes, retratos, comunicados e pinturas de amadores, que indicavam que ali também era o centro da vida cultural local. Floyd sentiu-se particularmente impressionado por vários letreiros, obviamente dispostos com muita ternura, com dizeres como NÃO PISAR A RELVA... PROIBIDO ESTACIONAR NOS DIAS PARES... PROIBIDO FUMAR... PRAIA... TRAVESSIA DE GADO... OMBROS MACIOS e PEDE-SE O FAVOR DE NÃO ALIMENTAR OS ANIMAIS. Se eram genuínos - como, sem dúvida, pareciam ser, o seu transporte da Terra custara uma pequena fortuna. Havia neles uma provocação comovente; apesar do mundo hostil, os homens continuavam a conseguir brincar com as coisas que haviam sido forçados a deixar para trás e das quais os seus filhos nunca sentiriam a falta.

 Quarenta ou cinquenta pessoas esperavam Floyd; quando este entrou atrás do administrador, todos se levantaram delicadamente. Ao mesmo tempo que baixava a cabeça a vários rostos familiares, Floyd sussurrou a Halvorsen:

 

- Gostaria de dizer algumas palavras antes da reunião.

 

 Floyd sentou-se na fila da frente, e o administrador subiu à tribuna e passou o olhar pela audiência.

 

-Minhas senhoras e meus senhores - começou Halvorsen. - Não preciso de vos dizer que esta é uma ocasião muito importante. É óptimo termos o Dr. Heywood Floyd connosco. Todos o conhecemos pela sua reputação, e muitos de nós somos seus amigos pessoais. Veio especialmente da Terra para estar aqui, e, antes da reunião, tem algumas palavras para nos dirigir. Dr. Floyd.

 

 Floyd encaminhou-se para a tribuna no meio de delicados aplausos, examinou o público com um sorriso, e disse:

 

-Obrigado... é só o que quero dizer. O Presidente pediu-me para vos transmitir o seu apreço pelo vosso corrente trabalho, que, esperamos, em breve o mundo estará em condições de reconhecer. Sei bem - continuou prudentemente - que alguns de vós... talvez a maioria, estão ansiosos por ver levantado o presente véu de secretismo... não seriam cientistas se pensassem de outro modo.

 

 Floyd deu com os olhos no Dr. Michaels, cujo rosto enrugado por um ligeiro franzir de sobrancelhas, fazia sobressair uma grande cicatriz que lhe descia pela face direita - provavelmente consequência de algum acidente no espaço. O geólogo, sabia-o bem, protestara vigorosamente contra o que chamava «este disparate de polícias e ladrões».

 

-Mas gostaria de vos lembrar - continuou Floyd - de que esta é uma situação absolutamente excepcional. Temos de ter a certeza dos nossos próprios factos; se cometermos erros agora, podemos não ter uma segunda oportunidade... portanto, peço-vos um pouco mais de paciência. Este é também o voto do Presidente.

 

-É tudo o que tenho para dizer. Estou pronto para ouvir o vosso relatório.

 

 Regressou ao seu lugar; o administrador disse:

 

-Muito obrigado, Dr. Floyd. - Depois, fez um gesto de cabeça, por sinal bastante brusco, para o seu cientista-chefe. O Dr. Michaels subiu à tribuna, e asluzes apagaram-se.

 

 Uma fotografia da Lua brilhou no écran. Mesmo no centro do disco via-se uma brilhante cratera branca, da qual saiam impressionantes radiações em leque.

 Parecia que alguém arremessara um saco de farinha para a superfície da Lua, espalhando-se esta em todas as direcções.

 

 - Aqui fica Tycho - disse Michaels, apontando para a cratera central. -Nesta fotografia vertical, Tycho é ainda mais notável que quando vista da Terra, pois quando observada de lá, situa-se muito perto da orla da Lua. Mas daqui, de uma distância de mil e quinhentos quilómetros na vertical, podem ver que domina todo um hemisfério.

 

 Deixou Floyd absorver uma perspectiva pouco familiar de um objecto tão familiar, e continuou:

 

-O ano passado, com base num satélite de baixo nível, começámos a fazer o estudo magnético da região. Completámo-lo apenas há um mês, e este é o resultado... o mapa que deu inicio a todos os problemas.

 Outra fotografia apareceu no écran; parecia-se com o contorno de um mapa, mas mostrava intensidades magnéticas, e não altitudes acima do nível do mar. Na sua maioria, as linhas apresentavam-se mais ou menos paralelas e espaçadas; mas num dos cantos do mapa juntavam-se umas às outras, formando uma série de círculos concêntricos como o desenho de um nó de madeira.

 Até olhos pouco experientes perceberiam facilmente que algo de estranho acontecera ao campo magnético da Lua naquela região; ao fundo do mapa, lia-se em grandes letras: ANOMALIA MAGNÉTICA DE TYCHO (AMT-1). Impresso no canto superior direito estava SECRETO.

 

- A o principio pensamos tratar-se de um afloramento de rocha magnética, mas todas as evidências geológicas iam contra tal hipótese. E nem sequer um grande meteorito de níquel e ferro produziria um campo com esta intensidade; portanto, resolvemos ir investigar o assunto.

 

-O primeiro grupo não descobriu nada... apenas o normal terreno plano, enterrado sob uma camada muito fina de poeira lunar. Mergulharam então uma sonda mesmo no centro do campo magnético, com vista à obtenção de uma amostra para estudo. A seis metros de profundidade, a sonda parou. Nessa altura, o grupo explorador resolveu começar a cavar... o que não é fácil quando se tem fatos espaciais vestidos, garanto-vos.

 

-O que encontraram fê-los voltar à Base a toda a pressa. Mandamos para lá uma equipa maior, e instrumentos melhores. Escavaram durante duas semanas... com os resultados que todos conhecem.

 

 A escura sala de reuniões tornou-se repentinamente silenciosa e expectante; a fotografia do écran mudou. Embora já todos a houvessem visto muitas vezes, nem uma só pessoa deixou de se inclinar para a frente, como se esperasse descobrir novos pormenores. Só cerca de cem pessoas, tanto da Terra como da Lua, tinham até à altura sido autorizadas a pôr a vista em cima daquela fotografia.

 Esta mostrava um homem de fato espacial vermelho e amarelo vivos, de pé no fundo de uma escavação, segurando na mão uma vara de agrimensor, marcada em décimos de metro. Tratava-se obviamente de uma fotografia tirada de noite, algures na Lua ou em Marte. Mas, até à altura, nenhum planeta produzira qualquer cena como aquela.

 O objecto que o homem de fato espacial tinha à frente, era uma lâmina vertical de um material negro como o azeviche, de cerca de três metros de altura e um e meio de largura: lembrou a Floyd, um tanto sinistramente, uma pedra tumular gigante. De contornos perfeitos e simétrica, era tão preta que parecia engolir a luz que a iluminava; a superfície não apresentava qualquer detalhe. E era impossível dizer se seria feita de pedra, metal, plástico ou de algum material completamente desconhecido do homem.

 

 - A AMT-1 - declarou o Dr. Michaels quase reverentemente. - Parece novinha em folha, não é? Não posso, naturalmente, deitar as culpas para cima dos que pensaram que tinha apenas alguns anos, e tentaram relacioná-la com a terceira Expedição Chinesa de 98. Mas, pessoalmente, nunca acreditei nisso... e agora, análises geológicas permitiram-nos datá-la com toda a certeza.

 

-Os meus colegas e eu, Dr. Floyd, apostamos nisto as nossas reputações. A AMT-1 não tem nada a ver com os chineses. Aliás, não tem nada a ver com a raça humana... pois, quando foi enterrada, ainda não existiam homens.

 

-Sabe, tem cerca de três milhões de anos de idade. Está neste momento a ver a primeira prova de vida inteligente fora da Terra.

 

JORNADA

 

A Luz DA TERRA PROVÍNCIA DE MACROCRATERAS: Estende-se do centro da face visível da Lua, E da Província da Cratera Central Crateras de impacto muito densas; muitas grandes, incluindo a maior da lua; a N, algumas crateras fracturadas por impactos, formam o Mare Imbrium. Superfícies irregulares por quase toda a parte, excepto no fundo de algumas crateras. Maioria das superfícies em declive, normalmente 10° a 12°; fundo de algumas crateras quase regular.

 ATERRAGEM E MOVIMENTO: Aterragem geralmente difícil devido a superfícies irregulares e em declive; menos difícil fundo regular de algumas crateras. Movimento possível em quase toda a parte, mas sempre com rumo previamente definido; menos difícil nos fundos regulares de algumas crateras.

 CONSTRUÇÃO: Em geral moderadamente difícil devido declive e numerosos grandes blocos material solto; desaterro de lava difícil ao fundo de algumas crateras.

 TYCHO: Cratera pós-maria, 80 quilómetros diâmetro, orla 24 metros acima do terreno circundante; fundo 3600 metros de profundidade; tem o sistema de radiações mais proeminente da lua; algumas estendem-se por mais de 750 quilómetros.

 (Extracto de «Estudo Espacial de Engenharia sobre a Superfície da Lua»,Gabinete, Chefe dos Engenheiros, Departamento do Exército, Levantamento Geológico dos E. U. A., Washington, 1961.)

 O laboratório móvel que rodava pela planície da cratera, a setenta e cinco quilómetros por hora, mais parecia um reboque de tamanho desmesurado, montado sobre oito rodas flexíveis. Mas era muito mais do que isso: uma base autónoma, na qual vinte homens podiam viver e trabalhar durante semanas. Aliás, tratava-se virtualmente de uma nave espacial de terra que, numa emergência, até podia voar.

 Se no seu caminho encontrasse alguma fenda ou desfiladeiro, grande de mais para contornar e muito inclinado, podia: saltar o obstáculo com a ajuda dos seus quatro jactos inferiores.

 Espreitando para fora da janela, Floyd viu estender-se à sua frente uma pista bem definida, um caminho de terra batida feito por dezenas de veículos na superfície friável da Lua. Ao longo da pista, a intervalos regulares, viam-se varas compridas e esguias, com luzes que acendiam e apagavam. Embora fosse ainda noite, e o sol só nascesse dai a algumas horas, não era possível perderem-se na jornada de 300 quilómetros que separava a Base Clavius da AMT- I.

 As estrelas eram apenas um pouco mais brilhantes e numerosas que as que podiam observar-se à noite dos planaltos do Novo México ou do Colorado, Mas duas coisas, naquele céu negro como carvão, destruíam qualquer ilusão de se estar na Terra.

 A primeira era a própria Terra - um raio ardente acima do horizonte setentrional. A luz que jorrava daquele meio-globo gigante era dezenas de vezes mais brilhante que a da lua cheia, e inundava tudo de uma fosforescência fria e azulesverdeada.

 A segunda aparição celestial era um débil cone de luz cor de pérola, que se erguia no céu oriental. Tornava-se mais e mais brilhante à medida que se aproximava do horizonte, desvendando a existência de grandes fogos escondidos por baixo da orla da Lua. Ali estava uma pálida glória, que homem nenhum jamais vira da Terra, excepto durante os poucos minutos de um eclipse total. Tratava-se do halo, percursor da madrugada lunar, anunciando que, dali a pouco, o sol incidiria sobre aquela terra adormecida.

 Sentado com Halvorsen e Michaels na sala de observação da frente, imediatamente por baixo da posição do condutor, Floyd deu consigo a moer e a remoer na ideia de um abismo de três milhões de anos, que acabara de se abrir à sua frente. Como todos os homens com uma preparação científica, estava habituado a considerar períodos de tempo muito mais longos - mas estes referiam-se apenas aos movimentos das estrelas e aos lentos ciclos do universo inanimado.

 Pensamento ou inteligência não tinham nada a ver com isso; eram idades vazias de tudo o que se relacionasse com emoções.

 Três milhões de anos! O panorama, infinitamente povoado, da história escrita, com os seus impérios e os seus reis, os seus triunfos e as suas tragédias, mal cobria um milésimo de tão aterrador período de tempo. Não só o próprio Homem, mas também a maioria dos animais que agora viviam na Terra, não existiam quando aquele enigma preto fora tão cuidadosamente enterrado ali, na cratera mais brilhante e espectacular da Lua.

 Que fora enterrado, e deliberadamente, era coisa de que o Dr. Michaels tinha a certeza absoluta.

 

- A o princípio - explicou - tinha esperanças de que assinalasse o local de alguma estrutura subterrânea, mas as nossas últimas escavações eliminaram essa hipótese. A lâmina assenta numa plataforma larga do mesmo material preto, apoiada, por sua vez, numa camada de rocha intacta. As... criaturas... que a construíram, quiseram ter a certeza de que nada, excepto enormes terramotos lunares, a faria deslocar-se dali. Estavam a construir para a eternidade.

 Na voz de Michaels havia triunfo e, no entanto, tristeza; Floyd compreendia-o bem, e partilhava de ambas as emoções. Uma das mais velhas interrogações do homem tivera finalmente a sua resposta; ali estava a prova, sem lugar para dúvidas, de que a sua não fora a única inteligência criada pelo universo. Mas, com esse conhecimento, vinha também a percepção dolorosa da imensidade do Tempo. O que quer que tivesse passado por ali, desencontrara-se da raça humana por cem mil gerações. «Talvez não tenha feito diferença», pensou Floyd. «No entanto... o que poderíamos ter aprendido com criaturas capazes de atravessar os espaços, enquanto os nossos antepassados viviam ainda nas árvores!»

Umas centenas de metros à frente, uma tabuleta agigantava-se acima do horizonte estranhamente próximo da Lua. Na sua base encontrava-se uma estrutura em forma de tenda, coberta por uma folha de metal prateada, obviamente para protecção contra o penetrante calor do dia. À luz brilhante da Terra, Floyd leu de passagem: DEPÓSITO DE EMERGÊNCIA N.º 3 20 quilos Lox 10 quilos água 20 embalagens alimentícias Mk 4 1 estojo de ferramentas Tipo B I equipamento de reparações.

 

TELEFONE!

 

-Já pensaram? - perguntou Floyd, apontando pela janela.- Suponham que aquilo é um esconderijo das provisões deixadas por alguma expedição que nunca regressou!?

 

-É uma possibilidade - admitiu Michaels. - Não há dúvida de que aquele campo magnético marcou bem a sua posição, de modo a poder ser facilmente encontrado. Mas é bastante pequeno... nunca poderia conter muitas provisões.

 

-Por que não? - inquiriu Halvorsen. - Quem sabe de que tamanho eles eram? Talvez tivessem apenas quinze centímetros de altura, o que daria vinte ou trinta andares à lâmina. Michaels abanou a cabeça.

 

-Nem pensar - protestou ele. - Não pode haver criaturas muito pequenas e inteligentes; é preciso um tamanho mínimo de cérebro.

 

 Floyd já reparara que Michaels e Halvorsen tomavam normalmente posições antagónicas, mas parecia não haver hostilidade ou fricções pessoais entre eles.

 Respeitavam-se um ao outro e limitavam-se a concordar ou estar em desacordo.

 Do que quase todos discordavam era da natureza da AMT-1- ou do Monólito de Tycho, como alguns preferiam chamar-lhe, servindo-se de parte da abreviação.

 Nas seis horas decorridas desde que aterrara na Lua, Floyd ouvira uma dúzia de teorias, mas não se comprometera com nenhuma. Santuário, posto de observação, túmulo, instrumento geofísico - estas eram talvez as sugestões mais populares, e alguns dos seus partidários acaloravam-se bastante na sua defesa. Havia já sido feito um bom número de apostas, e muito dinheiro mudaria de mãos quando a verdade fosse finalmente conhecida - se alguma vez chegasse a sê-lo.

 Até ao momento, o material preto e duro da lâmina resistira a todas as tentativas moderadas que Michaels e os seus colegas haviam feito para obterem amostras. Não duvidavam de que um raio laser a cortaria - claro que nada podia resistir a essa assustadora concentração de energia -, mas a decisão de empregar medidas tão violentas, seria deixada a Floyd. Este já decidira que, antes de se socorrer da artilharia pesada do laser, poria em acção raios X, sondas sónicas, raios de neutrões e todos os outros meios de investigação não destrutivos. Era de bárbaro destruir-se algo que não se compreendia; mas talvez os homens fossem bárbaros, quando comparados com as criaturas que haviam feito aquela coisa.

 De onde poderiam ter vindo? Da própria Lua? Não, absolutamente impossível. Se alguma vez houvera vida naquele mundo árido, fora destruída durante a última época de formação de crateras, quando quase toda a superfície lunar estava ao rubro-branco.

 Da Terra? Muito pouco provável, mas talvez não completamente impossível.

 Qualquer civilização terrestre avançada - presumivelmente não humana -, existente no Pleistocénico, teria deixado muitos outros sinais da sua passagem. «Saberíamos tudo sobre ela», pensou Floyd, «muito antes de chegarmos à Lua».

Alternativas - os planetas e as estrelas. No entanto, tudo apontava para a inexistência de vida inteligente nalgum outro lado do Sistema Solar - ou, aliás, de qualquer tipo de vida, excepto na Terra e em Marte. Os planetas interiores eram muito quentes, e os exteriores frios de mais, a não ser que se descesse nas suas atmosferas a profundidades onde as pressões atingiam centenas de toneladas por centímetro quadrado.

 Portanto, talvez aqueles visitantes tivessem vindo das estrelas, todavia, isso era ainda mais incrível. Ao erguer o olhar para as constelações espalhadas pelo céu de ébano lunar, Floyd recordou as muitas vezes que os seus colegas cientistas haviam «provado» a impossibilidade das viagens interestelares. A jornada da Terra à Lua era ainda bastante impressionante; e a estrela mais próxima ficava a cem milhões de vezes essa distância... Especular era só perder tempo; tinha de esperar até ter mais provas.

 

-Por favor, apertem os cintos de segurança, e prendam todos os objectos soltos - disse de repente o altifalante da cabina.- Aproximamo-nos de um declive de quarenta graus.

 

 Dois postes de marcação com luzes a piscar, haviam aparecido no horizonte, e o autocarro movia-se entre eles. Floyd ainda mal ajustara as tiras quando o veículo se abeirou lentamente da borda de uma encosta realmente aterradora, e começou a descer um comprido declive cheio de pedra solta, tão íngreme como o telhado de uma casa. A luz inclinada da Terra, que lhes batia por trás, deixou praticamente de os iluminar, e os projectores do autocarro acenderam-se. Muitos anos atrás, Floyd estivera à beira do Vesúvio, espreitando para dentro da cratera; foi-lhe, portanto, fácil imaginar que a estava a descer, o que não lhe deu uma sensação muito agradável. Desciam nesse momento uma das plataformas interiores de Tycho, que voltava à posição horizontal cerca de trezentos metros mais abaixo. Enquanto desciam vagarosamente a encosta, Michaels apontou para além da grande extensão de planície que se estendia por baixo deles.

 

-Lá estão elas - exclamou. Floyd assentiu; já avistara o aglomerado de luzes vermelhas e verdes vários quilómetros à sua frente, e manteve os olhos fixos nelas enquanto o autocarro continuava a lenta e delicada descida. O grande veículo estava obviamente sob um controlo perfeito, mas Floyd só voltou a respirar quando os balanços acabaram.

 

 Viu então um grupo de cúpulas pressurizadas - abrigos temporários dos trabalhadores Locais -, cintilando como bolhas de prata à luz da Terra. Perto delas encontrava-se uma torre de rádio, uma sonda perfuradora, alguns veículos estacionados, e um grande monte de pedra partida - presumivelmente proveniente das escavações que haviam revelado o monólito. O minúsculo acampamento parecia muito solitário, e extremamente vulnerável ás forças da natureza silenciosamente agrupadas à sua volta. Não havia sinais de vida, e nada deixava entrever a razão pela qual os homens haviam ido até ali, até tão longe das suas casas.

 

-Daqui não se consegue ver a cratera - disse Michaels.- Ali, à direita... a cerca de cem metros daquela antena de rádio.

 

«Então é isto», pensou Floyd. O autocarro passou pelas cúpulas pressurizadas, e acercou-se da borda da cratera. O coração bateu-lhe mais depressa quando se inclinou para a frente, para ver melhor. O veículo começou a descer cuidadosamente uma rampa de rocha muito dura, que levava ao interior da cratera. E, exactamente como a vira nas fotografias, Floyd deu com os olhos na AMT-1.

 Fitou-a, pestanejou, abanou a cabeça, e fitou-a de novo. Apesar do brilho da luz da Terra, era difícil ver claramente o objecto; a sua primeira impressão foi a de um rectângulo chato, que bem podia ter sido recortado de uma folha de papel químico; parecia não ter absolutamente nenhuma espessura. Claro que se tratava de uma ilusão óptica; embora estivesse a olhar para um corpo sólido, este reflectia tão pouca luz, que só a sua silhueta era visível.

 O autocarro descia para dentro da cratera, levando no seu interior uns passageiros absolutamente silenciosos. Havia temor, mas também incredulidade - desconfiança por ser exactamente a Lua, o mundo que desvendara tão fantástica surpresa.

 O veículo imobilizou-se a seis metros da lâmina, de lado, para que todos os passageiros pudessem observá-la. No entanto, para além da forma geometricamente perfeita do objecto, pouco mais havia para ver. Por lado nenhum se viam marcas, ou qualquer enfraquecimento do seu negro de ébano. Era a própria cristalização da noite; por momentos, Floyd ainda pensou se não se trataria de alguma extraordinária formação natural, nascida dos fogos e pressões presentes na criação da Lua. Mas essa possibilidade tão remota, sabia-o bem, já fora examinada e afastada.

 A um sinal, projectores colocados em volta da cratera foram ligados, e a brilhante luz da Terra foi ofuscada por um clarão muito mais vivo. Devido ao vácuo lunar, os raios eram, claro, completamente invisíveis; formavam eclipses sobrepostas, de um branco que cegava, centradas no monólito. E quando lhe tocavam, a superfície de ébano deste último, parecia engoli-las.

«A caixa de Pandora», pensou Floyd, com uma súbita sensação de mau agouro, «à espera de ser aberta pelo curioso Homem. E que encontrará ele lá dentro?»

 

 A LENTA MADRUGADA

 

A principal cúpula pressurizada construída perto da AMT-1, tinha apenas seis metros de largura, e um interior desconfortavelmente apinhado. O autocarro, que se lhe acoplara por meio de uma das duas escotilhas, proporcionava mais algum espaço, muito apreciado.

 Dentro deste balão esférico de paredes duplas, viviam, trabalhavam e dormiam os seis cientistas e técnicos, agora permanentemente ligados ao projecto.

 A cúpula continha também a maioria dos seus equipamentos e instrumentos, todas as provisões que não podiam ser deixadas no vácuo exterior, cozinha, lavagens e sanitários, amostras geológicos e um pequeno visor de TV que lhes permitia manter o local sob vigilância contínua.

 Floyd não ficou surpreendido quando Halvorsen disse preferir ficar na cúpula; aliás, este último expôs o seu ponto de vista com uma franqueza admirável.

 

-Considero os fatos espaciais um mal necessário - disse o administrador. - Visto o meu quatro vezes por ano, para os testes de rotina. Se não se importam, fico aqui sentado, e vejo-vos pela televisão.

 

 Tal preconceito era um pouco injustificado, pois os últimos modelos de fatos espaciais proporcionavam um conforto infinitamente maior que os desajeitados blindados usados pelos primeiros exploradores lunares. Podiam ser envergados em menos de um minuto, mesmo sem ajuda, e eram praticamente todos automáticos. O Mk V que naquele momento envolvia Floyd, protegê-lo-ia do pior que a Lua lhe pudesse fazer, quer de dia, quer de noite.

 Acompanhado do Dr. Michaels, encaminhou-se para a pequena escotilha.

 Quando a vibração das bombas deixou de se ouvir, e o seu fato endureceu quase imperceptivelmente, sentiu-se fechado no silêncio do vácuo.

 Mas esse silêncio foi quebrado pelo bem-vindo som do rádio do seu fato. - Pressão, O. K., Dr. Floyd? Está a respirar normalmente? -Sim... sinto-me optimamente.

 O seu companheiro verificou cuidadosamente os discos e mostradores colocados no exterior do seu fato. Depois, disse: -O. K. ... vamos.

 A porta de fora abriu-se, e viram à sua frente a poeirenta paisagem lunar, brilhando à luz da Terra.

 Com um movimento prudente e bamboleante, Floyd seguiu Michaels através da escotilha. Não erra difícil caminhar; paradoxalmente, o fato fazia-o sentir-se melhor do que desde que chegara à Lua. O peso a mais e a ligeira resistência que impunha aos seus movimentos, dava-lhe a ilusão da perdida gravidade terrestre.

 O cenário mudara desde que o grupo chegara, havia menos de uma hora.

 Embora as estrelas e a meia-terra continuassem muito brilhantes, a noite luar de catorze dias havia quase acabado. O clarão do halo parecia-se com um falso nascer da lua no céu oriental e de repente, sem aviso, a ponta do mastro do rádio, trinta metros acima da cabeça de Floyd, pareceu irromper em chamas, quando apanhou os primeiros raios do sol escondido.

 Esperaram que o supervisor do projecto e dois dos seus assistentes emergissem da escotilha, e encaminharam-se depois lentamente para a cratera.

 Quando a alcançaram, já um fino arco insuportavelmente incandescente se lançara por sobre o horizonte oriental. Embora ainda faltasse mais de uma hora para o sol iluminar a orla da Lua que girava lentamente, já não se viam estrelas no céu.

 A cratera continuava envolta em sombras, mas os projectores montados na sua orla, banhavam de luz o interior. A medida que descia lentamente a rampa em direcção ao rectângulo preto, Floyd ia sentindo uma sensação, não só de temor, mas também de impotência. Ali, aos portões da Terra, o homem encontrava-se já perante um mistério que podia nunca chegar a ser desvendado. Havia três milhões de anos, algo passara por ali, deixara aquele símbolo desconhecido e, talvez, incognoscível, do seu objectivo, e regressara aos planetas ou às estrelas. O rádio do fato de Floyd interrompeu-lhe o devaneio.

 

-Daqui supervisor do projecto. Se não se importam, encostem-se todos deste lado; gostaríamos de tirar algumas fotografias. Dr. Floyd, quer pôr-se no meio? Dr. Michaels... obrigado...

 

 Ninguém, excepto Floyd, pareceu achar aquilo um tanto esquisito. Aliás, para ser honesto, tinha que admitir que estava contente por alguém ter levado uma máquina fotográfica: seria uma fotografia sem dúvida alguma histórica, e ele próprio pediria umas tantas para si. Esperava que a sua cara fosse claramente visível através do capacete do seu fato.

 

-Obrigado, meus senhores - disse o fotógrafo, depois de eles haverem posado, um tanto empertigadamente, em frente do monólito, e de ter tirado uma dúzia de fotografias. - Vamos pedir à Secção de Fotografias da Base para vos mandar algumas cópias.

 

 Floyd voltou então toda a sua atenção para a lâmina de ébano, caminhando lentamente à sua volta, examinando-a de todos os ângulos, tentando inferiorizar bem a sua estranheza. Não esperava encontrar nada, pois sabia que cada centímetro quadrado já fora estudado com um cuidado microscópico.

 Entretanto, o vagaroso sol erguera-se acima da borda da cratera, e os seus raios jorravam quase de lado sobre a superfície oriental da lâmina. No entanto, esta absorvia todas as partículas de luz, fazendo com que parecesse que elas nunca tinham existido.

 Floyd decidiu tentar uma experiência simples; colocou-se entre o monólito e o sol, e procurou a sua sombra no lençol preto e liso. Nem sinais dela. Pelo menos dez kilowatts de calor puro deviam estar a bombardear a lâmina; se havia algo dentro dela, devia estar a cozer rapidamente.

«Como é estranho», pensou Floyd, «estar aqui com esta... coisa, que vê a luz do dia pela primeira vez desde o início das Idades do Gelo na Terra». Por que teria aquela cor preta? Claro que era ideal para absorver energia solar. Mas não podia ser; quem seria suficientemente louco para enterrar um mecanismo movido a energia solar, seis metros abaixo do solo?

 Ergueu o olhar para a Terra, que começava a declinar no céu matinal. Só uma mancheia dos seis biliões de pessoas que lá viviam, sabia desta descoberta; quando fosse finalmente anunciada, como reagiria o mundo a tal notícia?

 As implicações sociais e políticas eram imensas; toda a gente verdadeiramente inteligente - todos os que viam um palmo à frente do nariz -, teria a sua vida, os seus valores, a sua filosofia, subtilmente mudados. Mesmo que nada fosse descoberto sobre a AMT-1, e esta permanecesse eternamente um mistério, o Homem saberia que não era o único no Universo. Embora o desencontro entre as duas raças atingisse milhões de anos, os que, em tempos, tinham lá estado, podiam ainda regressar; e, se não, talvez houvesse outros. A partir daquele momento, todos os futuros deviam conter essa possibilidade.

 Floyd meditava ainda nestas coisas, quando o altifalante do seu capacete emitiu repentinamente um ruído agudo, electrônico, parecido com um sinal horário terrivelmente alto e distorcido. Involuntariamente, tentou tapar os ouvidos com as mãos enluvadas; depois, recompôs-se, e tacteou freneticamente à procura dos controlos do receptor. Enquanto estava ainda em busca deles, mais quatro guinchos saíram estrondosamente do éter; fez-se então um silêncio piedoso.

 A toda a volta da cratera, figuras paralisadas assumiam atitudes de um espanto total. «Então, o problema não está na minha aparelhagem», disse Floyd para os seus botões. Todos haviam ouvido aqueles agudos gritos electrónicos.

 Após três milhões de anos de escuridão, a AMT-1 saudara a madrugada lunar.

 

 OS OUVINTES

 

Cento e cinquenta milhões de quilómetros para lá de Marte, na solidão fria onde nenhum homem viajara ainda, o Monitor Espacial flutuava lentamente entre as emaranhadas órbitas dos asteróides. Durante três anos, cumprira a sua missão sem uma única falha - um tributo aos cientistas americanos que o haviam concebido, aos engenheiros britânicos que o tinham construído, aos técnicos russos que o haviam lançado. Uma delicada teia de antenas estudava as ondas de ruídos rádio que passavam - os incessantes estalidos e assobios do que Pascal, numa época muito mais simples, ingenuamente apelidara de «o silêncio do espaço infinito». Detectores de radiação registavam e analisavam raios cósmicos que chegavam da galáxia e de pontos para além dela; telescópios de neutrões e de raios-X vigiavam estranhas estrelas, que nenhum olho humano jamais veria; magnetómetros observavam as rajadas e os furacões dos ventos solares, à medida que o Sol lançava baforadas de um plasma ténue, a um milhão e meio de quilómetros por hora, nos rostos dos seus rodopiantes filhos. Todas estas coisas, e muitas outras, eram pacientemente registadas pelo Monitor Espacial 79, e gravadas na sua memória cristalina.

 Uma das suas antenas - inacreditáveis milagres da electrónica – encontrava-se sempre virada para um ponto nunca muito distante do Sol. De poucos em poucos meses, o seu alvo distante podia ser visto - se houvesse lá olhos para o observarem - como uma estrela brilhante com um companheiro mais fraco; mas a maior parte do tempo estava perdido no clarão solar.

 De vinte e quatro em vinte e quatro horas, o monitor mandava para esse distante planeta Terra, a informação que pacientemente recolhera e reunira num impulso de cinco minutos. Cerca de um quarto de hora mais tarde, deslocando-se à velocidade da luz, esse impulso chegava ao seu destino. As máquinas concebidas para tal fim, estavam prontas para o receber; amplificavam e gravavam o sinal, e juntavam-no aos milhares de quilómetros de fita magnética guardados nas caves dos Centros Espaciais Mundiais, em Washington, Moscovo e Camberra.

 Desde o lançamento dos primeiros satélites, quase cinquenta anos antes, triliões e quadriliões de impulsos de informação haviam jorrado, e sido guardados para o dia em que pudessem contribuir para a evolução do conhecimento. Só uma fracção diminuta de toda esta matéria-prima era processada; mas não podia saber-se que observação algum cientista desejaria consultar dali a dez, cinquenta ou cem anos. Portanto, tudo tinha que ser arquivado, armazenado em intermináveis galerias com ar condicionado, e triplicado nos três centros, como precaução contra perdas acidentais. Este era parte do verdadeiro tesouro da humanidade, mais valioso que todo o ouro inutilmente fechado em caixas fortes bancárias.

 O Monitor Espacial 79 notara naquele momento algo estranho - uma perturbação débil, mas inconfundível, que se propagava pelo Sistema Solar, e era muito diferente dos fenómenos naturais que observara no passado.

 Automaticamente, gravou a direcção, as horas, a intensidade; dali a pouco tempo, transmitiria a informação para a Terra.

 Como, de resto, seria o que faria também o Orbiter M 15, girando à volta de Marte duas vezes por dia; e a Sonda de Alta Inclinação 21, subindo lentamente acima do plano da elíptica; e até o Cometa Artificial 5, dirigindo-se às frias imensidões para lá de Plutão, seguindo uma órbita cujo ponto mais distante só atingiria dali a mil anos. Todos eles registaram a peculiar irrupção de energia que lhes perturbara os instrumentos; todos eles, a seu devido tempo, a enviaram automaticamente às unidades da memória da distante Terra.

 Os computadores podiam nunca se ter apercebido da relação existente entre os quatro conjuntos de sinais, enviados de sondas espaciais girando em órbitas independentes, a milhões de quilómetros de distância umas das outras. Mas logo que o Prognosticador de Radiações de Goddard pousou os olhos no seu relatório matinal, percebeu que algo de estranho atravessara o Sistema Solar nas últimas vinte e quatro horas.

 Possuía apenas parte do seu curso, mas quando o computador o projectou no Painel da Situação dos Planetas, viu-o tão nítida e inconfundivelmente como um rasto de vapor num céu sem nuvens, ou como pegadas num campo de neve virgem.

 Uma forma imaterial de energia, lançando borrifos de radiações - como o sulco deixado por um barco de corridas -, saltara da superfície da Lua, e dirigia-se directamente às estrelas.

 

 DISCO

 

A nave estava ainda a trinta dias da Terra, mas, às vezes, David Bowman achava difícil acreditar que conhecera outra existência para além do pequeno mundo fechado da Discovery. Todos os seus anos de treino, todas as suas anteriores missões à Lua e a Marte, pareciam pertencer a outro homem, noutra vida.

 Frank Poole reconhecia ter as mesmas sensações, e chegara a lamentar, com um ar brincalhão, que o psiquiatra mais próximo se encontrasse a cento e cinquenta milhões de quilómetros de distância. Mas tal sensação de isolamento e afastamento era fácil de compreender, e claro que não indicava qualquer anormalidade. Nos cinquenta anos seguintes à primeira aventura do homem no espaço, nunca houvera uma missão como aquela.

 Começara, cinco anos antes, como Projecto Júpiter - a primeira viagem tripulada à volta do maior dos planetas. A nave encontrava-se quase pronta para a sua viagem de dois anos quando, algo abruptamente, o perfil da missão fora alterado.

 A Discovery iria na mesma a Júpiter; mas não pararia. Nem sequer abrandaria a sua velocidade quando passasse pelo distante sistema de satélites joviano. Pelo contrário - usaria o campo gravitacional do mundo gigante como estilingue que a projectasse para sítios ainda mais distantes do Sol. Tal como um cometa, riscaria o espaço das fronteiras mais afastadas do sistema solar, em direcção ao seu objectivo fundamental: a glória dos anéis de Saturno. E nunca regressaria.

 Para a Discovery, seria uma viagem só de ida - todavia, a sua tripulação não tinha quaisquer intenções de se suicidar. Se tudo corresse bem, estariam de volta à Terra dali a sete anos - cinco dos quais se passariam num abrir e fechar de olhos, no sono sem sonhos da hibernação, aguardando o salvamento que seria levado a cabo pela ainda por construir Discovery II.

 A palavra «salvamento» era cuidadosamente evitada em todos os relatórios e documentos das Operações Astronáuticas, pois implicava alguma falha no planejamento; a designação aprovada era, portanto, «reaquisição». Se algo corresse realmente mal, a quase um bilão e meio de quilómetros da Terra, claro que não haveria esperança de salvamento.

 Como todas as viagens ao desconhecido, era um risco calculado. Mas meio século de pesquisas haviam provado que a hibernação humana, artificialmente induzida, era perfeitamente segura, o que trouxera novas possibilidades às viagens espaciais. No entanto, até àquela missão, elas não haviam sido exploradas ao máximo.

 Os três membros da equipa de estudos, que só seriam precisos quando a nave entrasse na sua órbita final em volta de Saturno, dormiriam durante toda a viagem até lá. Toneladas de comida e de outros produtos de consumo seriam assim economizadas; e, quase tão importante, quando entrasse em acção, a equipa estaria fresca e alerta, e não fatigada por uma viagem de dez meses.

 A Discovery entraria então numa órbita de estacionamento à volta de Saturno, tornando-se mais uma lua do planeta gigante. Aí, balançaria para trás e para diante ao longo de uma eclipse de três milhões de quilómetros, que a levaria para perto de Saturno, e depois através das órbitas de todas as suas luas principais. Disporiam de cem dias para traçar mapas e estudar um mundo com uma área oitenta vezes superior à da Terra, rodeado por um séquito de pelo menos quinze satélites conhecidos - um dos quais do tamanho do planeta Mercúrio.

 Devia haver lá maravilhas suficientes para séculos de estudo, mas a primeira expedição poderia levar a cabo apenas um reconhecimento preliminar. Tudo o que descobrisse seria enviado via rádio para a Terra; mesmo que os exploradores nunca regressassem, as suas descobertas não se perderiam para sempre.

 Ao fim dos cem dias, a Discovery fechar-se-ia. Toda a tripulação entraria em hibernação; vigiados pelo incansável cérebro electrónico da nave, apenas os sistemas essenciais continuariam a funcionar. A nave seguiria então a sua órbita em volta de Saturno, tomando um rumo tão bem determinado, que qualquer homem saberia onde a procurar num período de mil anos. Mas, segundo os planos, dali a apenas cinco anos a Discovery II chegaria até ela. E mesmo que se passassem seis ou sete ou oito anos, os seus passageiros adormecidos nunca dariam pela demora.

 Para todos eles o relógio pararia, como já parara para Whitehead, Kaminski e Hunter.

 As vezes, Bowman, como Primeiro Comandante da Discovery, invejava os seus três colegas, inconscientes na paz gelada dos hibernáculos. Estavam livres do aborrecimento e de toda a responsabilidade; até atingirem Saturno. O mundo exterior não existia para eles.

 Mas esse mundo observava-os através dos mostradores biosensoriais. Quase despercebidamente metidos entre a maciça instrumentação da Ponte de Comando, encontravam-se cinco pequenos painéis marcados Hunter, Whitehead, Kaminski, Poole, Bowman. Os dois últimos, apagados, não mostravam sinais de vida; a sua hora só chegaria daí a um ano. Mas os outros exibiam constelações de minúsculas luzes verdes, anunciando que tudo ia bem; e em cada um deles estava um pequeno visor atravessado por linhas luminosas, que indicavam os ritmos vagarosos do pulso, respiração e actividade cerebral.

 Havia alturas em que Bowman, embora bem consciente de que não era necessário - pois o alarme soaria instantaneamente se algo corresse mal -, ligava para saída áudio. E, meio hipnotizado, ouvia então as pulsações infinitamente lentas dos seus colegas adormecidos, mantendo sempre os olhos fixos nas indolentes ondas que marchavam em sincronismo através do visor.

 Mas mais fascinante que tudo eram os EEGs - as assinaturas electrónicas de três personalidades que haviam, um dia, existido, e que voltariam a renascer. Estes praticamente não tinham os picos e depressões, as explosões eléctricas, que marcam a actividade do cérebro acordado - nem sequer a do cérebro num sono normal. Se neles permanecera algum pedaço de consciência, este encontrava-se para lá do alcance dos instrumentos, e da memória.

 Bowman conhecia este último facto por experiência pessoal. Antes de ser escolhido para aquela missão, as suas reacções à hibernação haviam sido testadas.

 E ainda não tinha a certeza se perdera uma semana de vida, ou se adiara a morte por igual período de tempo.

 Quando os eléctrodos lhe haviam sido ligados à testa, e o gerador de sono começara a pulsar, vira uma breve amostra de formas caleidoscópicas e de estrelas flutuantes. Mas tudo então desaparecera, e a escuridão engolira-o. Nunca sentira as injecções, e muito menos o frio, quando a temperatura do seu corpo fora reduzida a apenas alguns graus acima de zero.

 Despertou, e pareceu-lhe que ainda mal fechara os olhos. Mas sabia que isso era uma ilusão; estava convencido de que haviam realmente passado anos. A missão já teria sido cumprida? Eles já teriam chegado a Saturno, levado a cabo os seus estudos, e entrado em hibernação? A Discovery II estaria ali, para os levar de volta à Terra?

 Confuso, completamente incapaz de distinguir as memórias reais das falsas, parecia-lhe estar a sonhar. Abriu os olhos, mas, além de uma constelação de luzes que o espantou por alguns minutos, pouco mais havia para ver. Percebeu então que estava a olhar para as lâmpadas indicadoras de um Painel da Situação da Nave, mas era-lhe impossível focá-las. Depressa desistiu de tentar.

 Ar quente soprava sobre ele, levando atrás o frio que sentia nos membros.

 Música calma, mas estimulante, brotava de um altifalante colocado atrás da sua cabeça, e ia gradualmente aumentando de volume.

 Depois, uma voz descontraída, amistosa - mas, sabia-o, gerada por um computador -, falou-lhe:

 

-Está a ficar operacional, Dave. Não se levante, nem tente fazer quaisquer movimentos violentos. Não tente falar.

 

«Não se levante!», pensou Bowman. Que piada! Desconfiava que nem um dedo conseguia dobrar, mas, para sua surpresa, descobriu que sim.

 

 Embora aturdido e confuso, sentiu-se bastante satisfeito. Sabia vagamente que a nave de salvamento devia ter chegado, que a sequência automática de reanimação fora disparada, e que em breve veria outros seres humanos. Seria óptimo, mas não se excitou muito com a ideia.

 Naquele momento sentia era fome. O computador, claro, já preverá tal necessidade.

 

-Há um botão de aviso à sua direita, Dave. Se tem fome, carregue nele, por favor.

 

 Bowman forçou os dedos a tactearem em busca do bolbo em forma de pêra, que acabou por descobrir e premir. Esquecera-se da sua existência, embora devesse ter sabido que estava lá. O que teria esquecido mais? A hibernação apagaria a memória?

 Carregou no botão, e esperou. Passados vários minutos, um braço de metal saiu da tarimba, e um mamilo de plástico desceu-lhe ate aos lábios. Chupou-o avidamente, e um fluido quente e doce atravessou-lhe a garganta, retemperando-lhe as forças a cada gota.

 Depois, o mamilo afastou-se, e Dave descansou mais uma vez. Já conseguia mexer os braços e as pernas; poder caminhar deixara de ser um sonho impossível.

 Embora sentisse as forças voltarem-lhe rapidamente, sentir-se-ia satisfeito por ficar assim para sempre, se não houvesse mais estímulos do exterior. Mas outra voz falou-lhe - e, dessa vez, totalmente humana, e não uma estrutura de impulsos eléctricos conjugados por uma memória mais que humana. Além disso, tratava-se de uma voz familiar, que ele levou algum tempo a reconhecer.

 

-Olá, Dave. Estás a sair-te bem. Já podes falar. Sabes onde estás?

 

 Pensou apreensivamente na questão por alguns momentos. Se se encontrava realmente na órbita de Saturno, que acontecera nos meses que haviam decorrido desde que deixara a Terra? Começou outra vez a perguntar-se se não estaria a sofrer de amnésia. Paradoxalmente, tal pensamento tranquilizou-o. Se conseguia lembrar-se da palavra «amnésia», era porque ainda tinha o cérebro em muito bom estado... Mas continuava sem saber onde estava, e a pessoa que se encontrava do outro lado do circuito, devia ter-se apercebido completamente da sua situação.

 

-Não te preocupes, Dave. Sou Frank Poole. Estou a observar-te o coração e a respiração... tudo perfeitamente normal. Descontrai-te... calma. Vamos abrir agora a porta, e puxar-te cá para fora.

 

 Uma luz suave inundou a câmara; viu formas movendo-se na entrada que se alargava. Nesse preciso momento, todas as recordações voltaram novamente, e ele soube com exactidão onde estava.

 Embora houvesse regressado são e salvo das fronteiras mais longínquas do sono, e dos confins mais próximos da morte, passara apenas uma semana. Quando saísse do hibernáculo, não veria o frio céu de Saturno - que ficava a mais de um ano no futuro, e a um bilião e meio de quilómetros de distância. Encontrava-se ainda no simulador, no Centro de Voo Espacial de Houston, sob o sol quente do Texas.

 

HAL

 

Mas agora o Texas estava invisível, e nem os Estados Unidos se descortinavam facilmente. Embora o motor a plasma de baixo impulso tivesse sido desligado havia muito tempo, a Discovery seguia ainda ao longo da costa, com o seu corpo delgado e em forma de seta apontando para fora da Terra; toda a sua aparelhagem óptica, altamente potente, se orientava para os planetas exteriores, onde ficava o seu destino.

 Havia um telescópio, no entanto, permanentemente apontado para a Terra.

 Montado como uma mira no rebordo da antena de longo alcance da nave, assegurava que a grande bacia parabólica se encontrasse sempre rigidamente firmada sobre o seu distante alvo. Enquanto a Terra permanecesse centrada na mira, o laço vital das comunicações estaria intacto, e mensagens podiam ir e vir através do feixe invisível que se alongava mais de três milhões de quilómetros por cada dia que passava.

 Pelo menos uma vez em cada período de vigia, Bowman olhava para casa através do telescópio de alinhamento da antena. Como a Terra se encontrava muito para trás, na direcção do Sol, virava o seu hemisfério escurecido para a Discovery, e, no visor central, o planeta adquiria a forma de um ofuscante crescente prateado, como outro Vénus.

 Raramente podiam ser identificados alguns traçados geográficos naquele arco de luz que cada vez encolhia mais, pois as nuvens e a neblina escondiam-nos, mas até a porção escurecida do disco se lhe afigurava incessantemente fascinante.

 Salpicavam-na cidades brilhantes, que, ora ardiam com uma luz sempre igual, ora cintilavam como pirilampos, quando perpassadas por vibrações atmosféricas.

 Havia também períodos em que a Lua, no movimento normal de vaivém da sua órbita, iluminava os mares e continentes escurecidos da Terra como um grande candeeiro. Nessas alturas, emocionado pelo reconhecimento, Bowman descortinava frequentemente litorais familiares, que brilhavam àquela espectral luz lunar. E, às vezes, quando o Pacífico estava calmo, chegava até a ver o reflexo da lua cintilando na sua superfície; e recordava noites passadas debaixo de palmeiras de lagunas tropicais.

 No entanto, não lamentava estas belezas perdidas. Gozara-as todas, durante os seus trinta e cinco anos de vida; e estava determinado a desfrutar novamente delas, quando regressasse rico e famoso. Entretanto, a distância tornava-as ainda mais preciosas.

 O sexto membro da tripulação não estava interessado nestas coisas, pois não era humano. Tratava-se do altamente avançado computador HAL 9000, cérebro e sistema nervoso da nave.

 O Hal (de computador Algorítmico Heuristicamente programado, nada mais, nada menos), era uma obra-prima da terceira vaga de computadores. Estas pareciam ocorrer a intervalos de vinte anos, e o pensamento de que outra devia estar iminente preocupava muita gente.

 A primeira dera-se na década de 1940, quando o longo e obsoleto tubo de vácuo tornara possível a criação de debilidades de alta velocidade, tão desajeitadas como o ENIAC e os seus sucessores. Depois, nos anos que se haviam seguido a 1960, a microelectrónica do estado sólido fora aperfeiçoada. Com o seu advento, tornara-se claro que as inteligências artificiais, pelo menos tão potentes como a do Homem, não precisavam de ser maiores que secretárias - o problema estivera em aprender a construí-las.

 Mas provavelmente nunca ninguém o saberia fazer; não interessava. Nos anos 80, Minsky e Good haviam mostrado como redes neurais podiam ser geradas automaticamente - auto-replicadas -, de acordo com qualquer programa arbitrário de aprendizagem. Os cérebros artificiais eram capazes de se desenvolver por um processo impressionantemente análogo à evolução de um cérebro humano. De qualquer forma, os detalhes exactos nunca seriam conhecidos, e, mesmo que fossem, a sua complexidade ultrapassaria milhões de vezes a compreensão humana.

 Fosse como fosse, o resultado final foi uma máquina inteligente, capaz de reproduzir - alguns filósofos continuavam a preferir usar a palavra «mímica» - a maioria das actividades do cérebro humano, mas com muito maior velocidade e rigor. Era extremamente caro, e, até ali, apenas umas poucas unidades da série HAL 9000 haviam sido construídas; mas a velha piada que dizia que seria sempre mais fácil fazer cérebros orgânicos utilizando trabalho não especializado, começava a soar um pouco a falso.

 Hal fora treinado para aquela missão tão minuciosamente como os seus colegas humanos e a várias vezes os seus ritmos de entradas, pois, além de possuir uma velocidade intrínseca, nunca dormia. A sua tarefa principal consistia em monitorizar os sistemas de apoio de vida, verificando continuamente a pressão do oxigénio, a temperatura, fugas no casco, radiação, e todos os outros factores, dos quais dependiam as vidas da frágil carga humana. Era ele que se encarregava das intrincadas correcções de navegação, e executava as necessárias manobras de vôo quando chegava a altura de mudar de rumo. E vigiava os homens em hibernação, fazendo os ajustamentos necessários e racionando as quantidades mínimas dos fluidos intravenosos que os mantinham vivos.

 As primeiras gerações de computadores haviam recebido os seus comandos por meio de teclados, respondendo-lhes através de impressoras e visores. Se necessário, Hal também podia fazê-lo, mas normalmente servia-se da palavra, para comunicar com os seus companheiros de nave. Poole e Bowman podiam falar com Hal como se este fosse um ser humano, e ele respondia no perfeito inglês idiomático que aprendera durante as fugazes semanas da sua infância electrónica.

 Se Hal podia mesmo pensar, era questão resolvida pelo matemático britânico Alan Turing, em 1940. Turing dissera quer se se pudesse manter uma conversa prolongada com uma máquina - e não interessava o facto de ser por teclado ou por microfone -, não havendo diferença entre as suas respostas e as que um homem daria, então a máquina estava a pensar, isto segundo qualquer definição razoável da palavra. Hal passaria no teste de Turing sem qualquer dificuldade.

 Podia mesmo acontecer que Hal tomasse o comando da nave. Numa emergência, se ninguém respondesse aos seus sinais, tentaria acordar os membros adormecidos da tripulação, servindo-se, para isso, de estímulos eléctricos e químicos. Se estes não respondessem, pediria, por rádio, ordens à Terra.

 E se a Terra não replicasse, tomaria as medidas que julgasse necessárias para a salvaguarda da nave e para a continuação da missão cujo verdadeiro objectivo só ele sabia, e que os seus colegas humanos nunca poderiam adivinhar.

 Humoristicamente, Poole e Bowman haviam-se muitas vezes referido a si próprios como guardas ou porteiros, a bordo de uma nave capaz de cuidar de si própria. Teriam ficado surpreendidos, talvez mesmo indignados, se descobrissem a verdade encerrada naquela piada.

 

 CRUZEIRO

 

O dia-a-dia da nave fora cuidadosamente planeado, e - pelo menos teoricamente - Bowman e Poole já sabiam de antemão o que fariam a cada momento das vinte e quatro horas. Funcionavam numa base de doze horas, assumindo o comando alternadamente, e nunca dormindo os dois ao mesmo tempo.

 O oficial de serviço permanecia na Ponte de Comando, e o seu assistente tratava do governo da nave, inspeccionava-a, resolvia todos aqueles problemas que estavam constantemente a surgir, ou descansava no seu cubículo.

 Embora Bowman fosse realmente o comandante naquela fase da missão, nenhum observador exterior o poderia deduzir. Ele e Poole trocavam completamente de papéis, posto e responsabilidades, de doze em doze horas, o que lhes permitia um máximo de treino minimizava as hipóteses de fricção, e era um passo importante para uma redundância de 100 por cento.

 O dia de Bowman começava às 06.00, horas da nave A Efeméride Universal dos astrónomos. Se se atrasasse, Hal dispunha de vários sinais e tinidas para lhe lembrar o seu dever, mas nunca os usara até ali. Para o experimentar, Poole desligara uma vez o alarme; mesmo assim, Bowman despertara automaticamente à hora marcada.

 O seu primeiro acto oficial do dia consistia em fazer avançar doze horas o Cronómetro Mestre da Hibernação. Se tal operação deixasse de ser feita duas vezes seguidas, Hal partiria do princípio de que tanto ele como Poole haviam sido incapacitados de a levar a cabo, e tomaria as necessárias medidas de emergência.

 Bowman ia depois à casa de banho, e fazia os seus exercícios isométricos, antes de se instalar para o pequeno-almoço e para a edição rádio da manhã das Notícias do Mundo. Na Terra, nunca lia o jornal tão minuciosamente como o fazia ali; até as notícias menos importantes da coluna social, os boatos políticos muito pouco fundamentados, tinham um interesse absorvente quando passavam pelo visor.

 As 07.00 h. substituía oficialmente Poole na ponte de comando, levando-lhe da cozinha um tubo de plástico de café. Se - como normalmente acontecia – não houvesse nada a assinalar, nem nenhuma acção a tomar, sentava-se e verificava as leituras de todos os instrumentos, e fazia uma série de testes concebidos para detectar possíveis avarias. Acabava esta tarefa por volta das 10.00 h., altura em que dava inicio a um período de estudo.

 Bowman estudara durante mais de metade da sua vida; e continuaria a fazê-lo até se reformar. Graças à revolução do século vinte, sobre as técnicas de treino e processamento de informação, possuía já o equivalente a dois ou três graus académicos e, mais importante, não se esquecera de 90 por cento do que aprendera.

 Cinquenta anos antes, teria sido considerado um especialista em astronomia aplicada, cibernética e sistemas de propulsão espacial - no entanto, era mais que certo que negaria, com genuína indignação, que se especializara no que quer que fosse. Bowman nunca conseguira concentrar o seu interesse exclusivamente num único assunto; apesar dos sombrios avisos dos seus instrutores, insistira em tirar o grau de Mestre em Astronáutica Geral - um curso com um programa vago e pouco nítido, concebido para os que possuíam QI abaixo de 130, e que nunca atingiriam os postos cimeiros das suas profissões.

 Mas a sua decisão fora correcta; a recusa em especializar-se qualificara-o para a presente tarefa. Frank Poole - que às vezes, se autodenominava depreciativamente «Prático Geral de Biologia Espacial» - constituíra assim também uma escolha ideal para seu assistente. Os dois, se necessário com a ajuda da vasta memória de Hal, podiam solucionar os problemas que iam surgindo durante a viagem - desde que mantivessem os espíritos alerta e receptivos, e examinassem e comparassem continuamente situações presentes com experiências anteriores.

 Portanto, durante duas horas, das 10.00 h. às 12.00 h., Bowman dialogava com um tutor electrônico, verificando os seus conhecimentos gerais, ou absorvendo material específico àquela missão. E deambulava infinitamente por planos de nave, diagramas de circuitos e perfis de viagem, ou tentava assimilar tudo o que era conhecido sobre Júpiter, Saturno, e suas vastas famílias de luas.

 Ao meio-dia, retirava-se para a cozinha, para preparar o almoço, e deixava a nave aos cuidados de Hal. Mas mesmo ali continuava completamente a par dos acontecimentos, pois a minúscula sala de jantar continha um duplicado do Painel da Situação, e Hal podia chamá-lo num abrir e fechar de olhos. Poole acompanhava-o naquela refeição, antes de se retirar para o seu período de sono de seis horas, e, geralmente, viam juntos algum dos programas normais de televisão emitidos pelaTerra.

 As suas ementas haviam sido planeadas com tanto cuidado como o dispensado a qualquer outra parte da missão. A comida, na sua maioria congelada e desidratada, era excelente, e fora escolhida de modo a dar o mínimo trabalho possível. Os pacotes tinham apenas de ser abertos e enfiados na minúscula cozinha automática, que emitia sinais sonoros quando a refeição estava pronta. E podiam então comer o que sabia - e, igualmente importante, parecia - a sumo de laranja, ovos (cozinhados de todas as maneiras), bifes, costeletas, assados, vegetais frescos, frutos vários, gelados, e até pão acabado de cozer.

 Depois do almoço, das 13.00 h. às 16.00 h., Bowman fazia uma inspecção lenta e cuidadosa à nave ou, pelo menos, à parte acessível dela. A Discovery media quase cento e cinquenta metros de ponta a ponta, mas o pequeno universo ocupado pela sua tripulação cabia inteiramente na esfera de quinze metros de casco pressurizado.

 Nesta ficavam todos os sistemas de apoio de vida, e a ponte de comando, que era o coração operacional da nave. Por baixo dela encontrava-se uma pequena «garagem espacial», equipada com três escotilhas, através das quais cápsulas motorizadas, com capacidade apenas para um homem, podiam sair para o vazio, caso houvesse necessidade de actividade extraveicular.

 A região equatorial da esfera pressurizada - por assim dizer a fatia de Capricórnio a Câncer - continha um tambor de onze metros de diâmetro, que girava lentamente. Como completava uma revolução de dez em dez segundos, este carrossel ou centrifugador produzia uma gravidade artificial igual à da Lua, o que bastava para obstar à atrofia física que resultava da ausência completa de peso, epermitia que as funções de rotina do dia-a-dia fossem levadas a cabo em condições normais - ou quase normais.

 O carrossel continha, portanto, a cozinha, sala de jantar, zona e avagens e sanitários. Só ali era seguro preparar e pegar em bebidas quentes, bastante perigosas em situações de imponderabilidade em que uma pessoa pode queimar-se a sério com glóbulos flutuantes de água a ferver. O problema de fazer a barba era também, assim, resolvido; e não haveria pelos sem peso a voar por aqui e por ali, pondo em perigo o material eléctrico, e, eventualmente, a vida das pessoas.

 Em volta do rebordo do carrossel, ficavam cinco cubiculozinhos minúsculos, decorados a gosto por cada um dos astronautas e contendo os seus haveres pessoais. Só o de Bowman e o de Poole estavam a uso, pois os futuros ocupantes das outras três cabinas repousavam naquele momento nos sarcófagos electrónicos.

 A rotação do carrossel podia ser parada, quando isto acontecia, a sua aceleração angular tinha de ser acumulada num volante, e ligada novamente, quando se reiniciava a rotação Mas, normalmente, deixavam-no a girar a uma velocidade constante, pois era bastante fácil entrar no grande tambor em rotação; bastava seguir ao longo de uma vara colocada na sua região central, de gravidade nula. E a transferência para a secção móvel era, ao fim de uma certa experiência, uma operação tão fácil e automática como a entrada numa escada rolante.

 O casco esférico pressurizado constituía a cabeça de uma estrutura frágil, em forma de seta, de mais de cem metros de comprimento. Tal como todos os veículos concebidos para a penetração do espaço exterior, a Discovery era demasiado frágil e sem forma aerodinâmica que lhe permitisse entrar numa atmosfera ou desafiar o campo gravitacional de qualquer planeta. Fora montada em órbita à volta da Terra, testada num único vão translunar. Era puramente uma criatura do espaço, e parecia-o.

 Para se descontrair, podia jogar com Hal vários jogos semimatemáticos, incluindo damas, xadrez e poliminó. Claro que as possibilidades de Hal lhe permitiam ganhá-los a todos; mas isso seria mau para o estado de espírito Portanto, fora programado para ganhar apenas cinquenta por cento das vezes, e os seus parceiros humanos faziam de conta que não sabiam disto.

 As últimas horas do dia de Bowman eram devotadas a limpezas gerais e trabalhos ocasionais, seguidas pelo jantar às 20.00 h.- novamente com Poole.

 Depois, dispunha de uma hora para fazer ou receber chamadas pessoais da Terra.

 Como todos os seus colegas, Bowman não era casado; não seria justo mandar homens com família para uma missão de tal duração. Apesar de várias damas haverem prometido esperar até ao regresso da expedição, ninguém acreditara realmente nisso. Ao princípio, tanto Poole como Bowman tinham feito chamadas pessoais bastante íntimas uma vez por semana, embora o facto de saberem que muitos ouvidos deviam estar a escutá-los na Terra, no outro lado do circuito, tendesse a inibi-los. No entanto, ainda mal a viagem começara, e já o calor e frequência das conversas com as suas namoradas da Terra mostrara um certo enfraquecimento. Ambos sabiam disto; era uma das desvantagens do modo de vida de um astronauta, como dantes o fora de um marinheiro.

 Era Verdade - aliás, notório - que os marinheiros encontravam as suas compensações noutros portos, infelizmente, não existiam ilhas tropicais cheias de donzelas morenas para lá da órbita da Terra. Claro que os médicos espaciais haviam atacado este problema com o entusiasmo habitual; a farmacopeia da nave continha substitutos adequados, embora pouco cativantes.

 Antes de se retirar, Bowman fazia o seu relatório final, e verificava se Hal transmitira todas as gravações do dia. Depois, quando lhe apetecia, passava uma ou duas horas a ler ou a ver algum filme; e à meia-noite ia para a cama – geralmente sem a ajuda de electro-narcóticos.

 O programa de Poole era a imagem, vista ao espelho, do seu, e os dois horários complementavam-se sem fricções. Ambos os homens estavam muito ocupados, e eram suficientemente inteligentes e bem adaptados para se envolverem em discussões sem sentido; assim, a viagem transformara-se numa rotina confortável, sem acidentes, em que a passagem do tempo só era marcada pela mudança dos números nos relógios digitais.

 A maior esperança da reduzida tripulação da Discovery era que nada, nas semanas e meses que tinham à frente, estragasse aquela pacífica monotonia.

 

 ATRAVÉS DOS ASTERÓIDES

 

Semana após semana, seguindo como um eléctrico ao longo das trilhas da sua órbita minuciosamente predeterminada, a Discovery passou por Marte e continuou em direcção a Júpiter. Ao contrário dos aviões e navios que atravessavam os céus e os mares da Terra, não precisava do mínimo toque nos seus comandos. A sua rota estava fixada pelas leis da gravitação; nenhuns baixios inesperados ou recifes perigosos a fariam encalhar. E nem por sombras havia o perigo de colisão com outra nave; pois nenhuma - pelo menos feita pelo Homem - atravessava o espaço entre ela e as infinitamente distantes estrelas.

 Todavia, o espaço em que naquele momento penetrava, não estava de modo algum vazio. A sua frente encontrava-se uma terra-de-ninguém atravessada por mais de um milhão de asteróides dos quais menos de dez mil tinham órbitas determinadas com exactidão por astrónomos. Só quatro possuíam diâmetros de mais de cento e cinquenta quilómetros; a grande maioria não passava de seixos gigantes, girando sem destino no espaço.

 Não se lhes podia fazer nada; apesar de até o mais pequeno poder destruir completamente a nave, se fosse contra ela a dezenas de milhares de quilômetros por hora, a probabilidade de isto acontecer era quase nula. Em média, havia apenas um asteróide num volume de um milhão e meio de quilómetros de lado; que a Discovery ocupasse este mesmo ponto, e ao mesmo tempo, era a menor das preocupações da sua tripulação. No dia 86, deviam fazer a sua aproximação máxima de qualquer asteróide conhecido. Não tinha nome - só o número 7794 -, e era uma rocha com um diâmetro de cinquenta metros, detectada pelo Observatório Lunar em 1997, e imediatamente esquecida por todos, salvo pelos pacientes computadores do Gabinete de Planetas Menores.

 Quando Bowman entrou de serviço, Hal relembrou-o prontamente do encontro que se avizinhava - mas não era provável ele ter-se esquecido do único acontecimento programado de toda a viagem. A rota do asteróide, e as suas coordenadas no momento da aproximação máxima, haviam já sido apontadas nos visores. Assim como as observações a ser feitas ou tentadas; iam estar muito ocupados quando o 7794 passasse por eles apenas a mil e quatrocentos quilómetros de distância, a uma velocidade relativa de cento e vinte mil quilômetros por hora.

 Quando Bowman pediu a Hal uma visão telescópico, um campo estelar esparsamente salpicado apareceu no visor. Não se via nada que parecesse um asteróide; todas as imagens, mesmo as mais ampliadas, não passavam de pontos de luz infinitamente pequenos.

 Dá-me a mira - pediu Bowman.

 Imediatamente apareceram quatro linhas cruzadas pouco marcadas e estreitas, que enquadravam uma estrela minúscula e indistinta. Bowman fitou-a durante alguns minutos, perguntando-se se Hal não se teria enganado; mas depois viu que o pontinho de luz estava a mover-se, com uma lentidão quase imperceptível, contra o pano de fundo das estrelas. Podia estar ainda a setecentos mil quilômetros deles, mas o seu movimento provava que, segundo as distâncias cósmicas, se encontrava quase ao seu alcance.

 Quando, seis horas mais tarde, Pool se lhe juntou na ponte do comando, o 7794 já estava milhares de vezes mais brilhante, e o seu movimento rápido não punha dúvidas quanto à sua identidade. Além disso, deixara de ser um mero ponto de luz; começara a mostrar um disco claramente visível.

 Fitaram ambos o seixo que passava no céu, com a emoção de marinheiros há muito no mar, que contornam uma costa na qual não podem desembarcar. Embora soubessem perfeitamente que o 7794 era apenas um pedaço de rocha sem vida nem ar, isso pouco afectava o que sentiam. Tinham à frente o único bocado de matéria sólida que veriam daquele lado de Júpiter - ainda a trezentos milhões de quilómetros de distância.

 Através do telescópio, altamente potente, podiam verificar que o asteróide era muito irregular, e rodava lentamente. As vezes, parecia-se com uma esfera achatada, e outras, com um tijolo grosseiramente talhado; o seu período de rotação era de pouco mais de dois minutos. Mostrava manchas de luz e sombra distribuídas, aparentemente ao acaso, pela sua superfície, e cintilava frequentemente, qual janela distante, quando planos ou afloramentos de algum material cristalino refulgiam ao sol.

 Passava por eles a quase quarenta e cinco quilómetros por segundo; para o observar de perto, dispunham apenas de alguns frenéticos minutos. As máquinas fotográficas automáticas tiraram dezenas de fotografias, os ecos do radar de navegação cuidadosamente gravados para uma futura análise, e o tempo chegou à recta para apenas uma sonda de impacto.

 A sonda não transportava instrumentos; nenhum deles sobreviveria a uma colisão a tais velocidades cósmicas. Tratava-se meramente de uma pequena bala de metal, disparada da Discovery segundo um trajecto que devia intersectar o do asteróide.

 Enquanto os segundos anteriores ao impacto se escoavam, Poole e Bowman aguardavam em crescente tensão. A experiência, em princípio simples, punha à prova a acuidade do equipamento de que dispunham. Estavam a disparar para um alvo de trinta metros de diâmetro, de uma distância de milhares de quilómetros...

 Subitamente, verificou-se uma ofuscante explosão de luz na porção escurecida do asteróide. A minúscula bala embatera contra ele a uma velocidade meteórica; numa fracção de segundo, toda a sua energia fora transformada em calor. Uma baforada de gás incandescente soltara-se para o espaço e desaparecera; a bordo da Discovery, as máquinas registavam as linhas espectrais que se desvaneciam rapidamente. Na Terra, especialistas analisá-las-iam, e procurariam as denunciadoras assinaturas de átomos reluzentes. E assim, pela primeira vez na história, seria determinada a composição da crosta de um asteróide.

 Dali a uma hora, o 7794 não passava de um astro cada vez mais pequeno, não mostrando já qualquer disco. Quando Bowman entrou novamente de serviço, já ele desaparecera completamente.

 Estavam novamente sozinhos; e permaneceriam assim até a lua mais exterior de Júpiter começar a erguer-se na sua direcção, dali a três meses.

 

JÚPITER

 

Mesmo a trinta milhões de quilómetros, Júpiter constituía o objecto mais notório do céu. O planeta era naquele momento um disco claro, cor de salmão, com cerca de metade do tamanho da Lua quando observada da Terra, sendo claramente visíveis as bandas escuras e paralelas das suas cinturas de nuvens. Num permanente vaivém no seu plano equatorial, encontravam-se os brilhantes astros que eram Io, Europa, Ganimedes e Calisto - mundos que, noutro lado, seriam planetas por direito próprio, mas que ali não passavam de simples satélites de um mestre gigantesco.

 Através do telescópio, Júpiter constituía uma visão gloriosa - um globo mosqueado e multicolorido, que parecia encher o céu. Era impossível compreender bem o seu verdadeiro tamanho; Bowman tentava não se esquecer de que tinha onze vezes o diâmetro da Terra, mas, durante muito tempo, tal facto não passou de uma estatística, sem significado real.

 Foi então que, estando a procurar informações nas fitas gravadas nas unidades de memória de Hal, deu com qualquer coisa que, de repente, o fez perceber bem a assustadora escala do planeta. Tratava-se de uma ilustração que mostrava toda a superfície da Terra descascada e pregada - como a pele de um animal - no disco de Júpiter. Assim, os continentes e oceanos da Terra não pareciam maiores que a Índia no globo terrestre.

 Quando Bowman usou a ampliação máxima dos telescópios da Discovery, pensou pairar acima de um globo ligeiramente achatado, contemplando uma paisagem de nuvens em movimento, que haviam sido reunidas em faixas pela rápida rotação do gigantesco mundo. Às vezes, tais faixas coagulavam em punhados, nós e massas do tamanho de continentes, de vapor colorido; outras, eram ligadas por efémeras pontes de milhares de quilómetros de comprimento.

 Escondido por baixo daquelas nuvens, havia material suficiente para ultrapassar em peso todos os outros planetas do Sistema Solar. «E que mais», perguntou-se Bowman, «estará também escondido ali?»

Por cima deste turbulento tecto de nuvens, que escondia a verdadeira superfície do planeta, passavam, por vezes, escuras formas circulares. Tratava-se de uma das luas interiores, deslizando à frente do distante sol, e projectando a sua sombra móvel no irrequieto manto de nuvens jovianas.

 Mesmo ali, a trinta milhões de quilómetros de Júpiter, havia outras luas, muito mais pequenas. Mas tratava-se apenas de montanhas voadoras, de algumas dezenas de quilómetros de diâmetro, e a nave não ia passar perto de nenhuma delas. De poucos em poucos minutos, o transmissor de radar reunia as suas forças, e enviava para o espaço um silencioso tracção de energia; mas nenhuns ecos de novos satélites reverberavam do vazio.

 O que se começou a ouvir, no entanto, e com intensidade crescente, foi o rugido da voz rádio de Júpiter. Em 1955, mesmo antes da aurora da era espacial, os astrónomos haviam ficado surpreendidos ao descobrir que Júpiter lançava milhões de cavalos-vapor na banda de dez metros. Tratava-se puramente de ruído, associado a halos de partículas carregadas, que giravam à volta do planeta, como as cinturas da Terra de Van Allen, só que numa escala muito maior.

 Por vezes, durante as horas solitárias que passavam na ponte de comando, Bowman punha-se a ouvir esta radiação. Aumentava o volume até a sala se encher de estalidos e assobios; a intervalos irregulares, surgiam deste conjunto de sons breves apitos e pipilos, que faziam lembrar os gritos de aves enlouquecidas. Era um som fantasmagórico, pois não tinha nada a ver com o Homem; e tão solitário e sem sentido como o murmúrio das ondas numa praia, ou o distante estrondo do trovão para lá do horizonte.

 Apesar de uma velocidade de mais de cento e cinquenta mil quilómetros por hora, a Discovery ainda levaria quase duas semanas a atravessar as órbitas de todos os satélites jovianos. A volta de Júpiter andavam mais luas que planetas na órbita do Sol; o Observatório Lunar descobria mais de ano para ano, e, naquele momento, já ia em trinta e seis. A mais afastada - Júpiter XXVII - girava ao contrário, seguindo uma rota instável, a vinte e nove milhões de quilómetros do seu temporário senhor. Era o prémio da perpétua luta de tracção entre Júpiter e o Sol, pois o planeta capturava constantemente breves luas à cintura de asteróides, libertando-as novamente após alguns milhões de anos. Só os satélites interiores eram sua propriedade permanente; o Sol nunca lhos poderia arrebatar.

 Mas os ruidosos campos gravitacionais dispunham agora de uma nova presa.

 A Discovery seguia em direcção a Júpiter, ao longo de uma órbita complexa, computada havia meses pelos astrónomos da Terra, e constantemente verificada por Hal. De tempos a tempos, os jactos de controlo faziam ajustamentos mínimos à trajectória, provocando pequenos saches automáticos, praticamente imperceptíveis a bordo da nave.

 Informações fluíam constantemente na ligação rádio com a Terra. Estavam tão longe dela que, mesmo à velocidade da luz, os seus sinais precisavam de cinquenta minutos para a alcançar. Embora o mundo inteiro estivesse a espreitarlhes por cima dos ombros, e a ver com os seus olhos e os seus instrumentos a aproximação de Júpiter, só dali a quase uma hora as notícias das suas descobertas chegariam à Terra.

 As máquinas telescópicas operavam constantemente à medida que a nave atravessava a órbita dos gigantescos satélites interiores - cada um deles maior que a Lua, cada um deles território desconhecido. Três horas antes da passagem do planeta sobre o disco solar, a Discovery encontrou-se apenas a trinta mil quilômetros de Europa, e todos os instrumentos foram apontados para aquele mundo que aumentava cada vez mais, mudando de globo para crescente, e acabando por deslizar velozmente na direcção do Sol.

 Ali estavam vinte milhões de quilómetros quadrados de terra, que, até àquele momento, não haviam passado da cabeça de um alfinete no telescópio mais potente. Deslizariam por ela dali a minutos, e tinham que tirar o melhor partido possível de tal encontro, gravando todas as informações que conseguissem. Depois, disporiam de meses para as rever as vezes que lhes apetecesse.

 Vista à distância, Europa parecia uma gigantesca bola de neve, que reflectia a luz do longínquo Sol com uma eficiência notável. Observações mais próximas confirmaram-no; ao contrário da poeirenta Lua, Europa era de um branco brilhante, e muita da sua superfície encontrava-se coberta de mantinhas cintilantes parecidos com icebergues encalhados. Quase de certeza que estes eram formados de amônia e água que o campo gravitacional de Júpiter não lograra capturar.

 Só ao longo do equador era visível rocha nua; incrivelmente dentada, uma terra-de-ninguém de desfiladeiros e amontoados de pedregulhos, formava uma faixa mais escura que rodeava completamente o pequeno mundo. Viam-se também algumas crateras de impacto, mas nem sinais de vulcanismo; era óbvio que a Europa nunca possuíra quaisquer fontes internas de calor.

 Lá estava, como havia muito se sabia, um traço de atmosfera. Quando a parte escura do satélite passava por uma estrela, esbatia-se brevemente antes do momento do eclipse. E, nalgumas áreas, via-se uma espécie de nuvem - talvez uma névoa de gotas de amónia, apoiada em ténues ventos de metano.

 Tão velozmente como surgira do céu que tinha à frente, Europa deixou-se ficar para trás; agora, Júpiter estava apenas a duas horas. Cheio de cuidados, Hal verificara e tornara a verificar a órbita da nave, e não seriam precisas mais correcções de velocidade até ao momento da aproximação máxima. No entanto, e apesar desta certeza, até fazia mal aos nervos ver aquele gigantesco globo inchar de minuto a minuto. Era difícil acreditar que a Discovery não estava a mergulhar na sua direcção, e que o imenso campo gravitacional do planeta não os puxava para a destruição.

 Chegara a altura de largar as sondas atmosféricas que, esperava-se, sobreviveriam o tempo suficiente para poderem enviar algumas informações do que existia por baixo do tecto de nuvens joviano. Duas cápsulas atarracadas, em forma de bombas, envoltas em escudos de calor ablativos, foram suavemente empurradas para órbitas que, nos primeiros milhares de quilómetros, mal se desviaram da da Discovery.

 Mas lá foram deslizando lentamente; por fim, até a olho nu se via o que Hal havia muito afirmava. A nave encontrava-se numa órbita quase rasante, e não de colisão; nem sequer ia entrar na atmosfera. Sem duvida que a diferença era apenas de algumas centenas de quilómetros - uma coisinha de nada, quando se tratava de um planeta de cento e quarenta mil quilómetros de diâmetro - , mas chegava bem.

 Júpiter enchia agora todo o céu; era tão grande, que nem o espírito, nem os olhos podiam abrangê-lo completamente, e ambos haviam abandonado quaisquer tentativas de o fazer. Se não fosse pela extraordinária variedade de cores - vermelho, rosa, amarelo, salmão, e até escarlate - da atmosfera que tinham por baixo, Bowman podia mesmo chegar a pensar que sobrevoava uma capa de nuvens da Terra. E naquele momento, pela primeira vez em toda a viagem, estavam prestes a perder o Sol. Embora pálido e encolhido, acompanhara constantemente a Discovery desde a sua partida da Terra, havia cinco meses. Mas a sua órbita mergulhava agora na sombra de Júpiter; em breve passaria para o lado nocturno do planeta.

 Mil e quinhentos quilómetros à frente, numa faixa crepuscular precipitava-se contra eles; por trás dela, o Sol mergulhava rapidamente nas nuvens jovianas. Os seus raios espalharam-se pelo horizonte, como dois chamejantes chifres virados ao contrário, e, no meio de um fugaz clarão de glória cromática, contraíram-se e morreram. A noite chegara.

 No entanto... o grande mundo lá de baixo não estava completamente às escuras. Inundava-o uma fosforescência, cada vez mais brilhante à medida que os seus olhos se acostumavam ao cenário. Esbatidos rios de luz fluíam de horizonte a horizonte, quais luminosas esteiras de navios nalgum mar tropical. Aqui e ali, reuniam-se em lagos de fogo líquido, tremendo em vastas perturbações submarinas que irrompiam do coração escondido de Júpiter. Era uma visão que inspirava tanto temor e respeito, que Pool e Bowman podiam ter-se deixado ficar a contemplá-la durante horas; aquilo seria, pensavam, apenas o resultado das forças químicas e eléctricas que actuavam no caldeirão a ferver lá de baixo... ou um produto secundário de alguma fantástica forma de vida? Mas tratava-se de interrogações que os cientistas talvez continuassem a debater no virar daquele século ainda recém-nascido.

 A medida que mergulhavam mais profundamente na noite joviana, o brilho lá de baixo tornava-se mais intenso. Uma vez, Bowman sobrevoara o norte do Canadá no auge de uma aurora; aquela solidão, tão brilhante, lembrou-lhe as suas terras cobertas de neve. E essa agrura árctica recordou, era cem graus mais quente que as regiões que naquele momento sobrevoavam.

 

-O sinal da Terra está a decrescer rapidamente - anunciou Hal. - Vamos entrar na primeira zona de difracção.

 

 Já estavam à espera Daquilo - aliás, era esse precisamente um dos objectivos da missão, pois a absorção de ondas rádio daria valiosas informações sobre a atmosfera joviana. Mas agora que haviam realmente passado para trás do planeta, o que lhes cortava as comunicações com a Terra, sentiam uma solidão avassaladora. O silêncio rádio duraria apenas uma hora; depois, surgiriam novamente do filtro eclipsante de Júpiter, e poderiam retomar o contacto com a raça humana. Essa hora, todavia, seria uma das mais longas das suas vidas.

 Apesar de relativamente jovens, Poole e Bowman eram veteranos em viagens espaciais - haviam feito cerca de uma dúzia -, mas sentiam-se como novatos.

 Estavam a tentar algo pela primeira vez; nunca antes nenhuma nave viajara a tais velocidades, ou desafiara um campo gravitacional tão intenso. Se houvesse o mais pequeno erro de navegação naquele ponto crítico, a Discovery seria lançada para as fronteiras mais distantes do Sistema Solar, sem qualquer esperança de vida.

 Os minutos escoavam-se lentamente. Júpiter era agora uma parede vertical de fosforescência, que se estendia por cima deles até ao infinito - e a nave subia a sua superfície brilhante. Embora soubessem que se deslocavam demasiadamente depressa para a gravidade de Júpiter poder capturá-los, custava a acreditar que a Discovery não se tornara um satélite daquele monstruoso mundo.

 Por fim, muito à frente, descortinaram um clarão de luz ao longo do horizonte.

 Começaram a sair da sombra, e a dirigir-se directamente para o Sol. E quase no mesmo momento Hal anunciou:

 

- Estou em contacto rádio com a Terra. Sinto-me muito satisfeito por poder dizer que a manobra de perturbação foi completada com êxito. Chegaremos a Saturno dentro de cento e sessenta e sete dias, cinco horas e onze minutos.

 

 A estimativa era de uma precisão de minutos, o voo fora completado com uma exactidão impecável. Qual bola de bilhar cósmico, a Discovery ressaltara para fora do campo gravitacional de Júpiter, e ganhara velocidade com o impacto. Sem usar qualquer combustível, aumentara a sua velocidade de vários milhares de quilómetros por hora.

 No entanto, não houve qualquer violação das leis da mecânica; a Natureza está sempre em equilíbrio, e Júpiter perdera exactamente a velocidade que a Discovery ganhara. O planeta afrouxara, mas como a sua massa era um sextilião de vezes maior que a da nave, a mudança de órbita fora pequena de mais para ser detectada. Ainda não chegara a altura de o Homem poder deixar a sua marca no Sistema Solar. A luz ia-os inundando cada vez mais, e o diminuto Sol ergueu-se novamente no céu joviano; Poole e Bowman levantaram-se silenciosamente, e apertaram as mãos um do outro.

 Embora mal acreditassem nisso, a primeira parte da viagem fora levada a cabo sem problemas.

 

 O MUNDO DOS DEUSES

 

Mas Júpiter ainda tinha muito para examinar. Lá para trás, as duas sondas lançadas pela Discovery entravam em contacto com a atmosfera.

 Uma delas nunca mais deu sinal; presumivelmente, entrou muito inclinada, e ardeu antes de poder enviar qualquer informação. A segunda teve mais êxito; fendeu as camadas superiores da atmosfera joviana, e planou novamente no espaço. Como fora planeado, perdeu tanta velocidade no encontro, que caiu de novo, descrevendo uma grande elipse. Duas horas mais tarde, reentrou na atmosfera, no lado diurno do planeta, movendo-se a uma velocidade de cem mil quilómetros por hora.

 Foi imediatamente envolvida por gás incandescente, e perdeu-se o contacto rádio. Decorreram então dois ansioso minutos de espera para os dois observadores postados na ponte de comando, que não podiam ter a certeza se a sonda sobreviveria, e se o escudo protector de cerâmica não arderia completamente antes da travagem estar completa. Se isso acontecesse, os instrumentos vaporizar-se-iam numa fracção de segundo.

 Mas o escudo aguentou o tempo suficiente para o brilhante meteoro parar. Os fragmentos carbonizados foram largados e o robot fez sair cá para fora as antenas, começando a perscrutar em volta com os seus sentidos electrónicos. A bordo da Discovery, a quase quatrocentos mil quilómetros de distância, começaram a chegar por rádio as primeiras informações de Júpiter.

 As milhares de pulsações que jorravam por segundo, comunicavam a composição atmosférica, pressão, temperatura, campos magnéticos, radioactividade, e dezenas de outros factores que só os especialistas da Terra eram capazes de decifrar. Uma mensagem, no entanto, pôde ser compreendida instantaneamente; tratava-se do filme a cores, enviado pela sonda que caía.

 As primeiras imagens chegaram depois de o robot entrar na atmosfera e de se desembaraçar da sua concha protectora. Só era visível uma neblina amarela, salpicada de manchas escarlates, que passavam pela máquina de filmar a uma velocidade estonteante, e fugiam para cima à medida que a sonda caía a várias centenas de quilómetros por hora.

 A neblina tornou-se mais espessa; era impossível perceber se a máquina filmava a uma distância de dez centímetros ou de dez quilómetros, pois não havia pormenores nos quais os olhos pudessem fixar-se. Parecia que, no que dizia respeito ao sistema TV, a missão fora um desastre. O equipamento trabalhava, mas aquela atmosfera enevoada e turbulenta não tinha nada para ver.

 De repente, abruptamente, a neblina desapareceu. A sonda devia ter caído da base de uma camada alta de nuvens, e entrado numa zona limpa - talvez uma região de hidrogénio quase puro, salpicada, aqui e ali, por cristais de amónia.

 Embora continuasse a ser impossível avaliar a escala da imagem, era óbvio que a máquina de filmar abrangia agora quilómetros de distância.

 A cena era tão estranha que, por alguns momentos, praticamente não fez sentido para olhos acostumados às cores e formas da Terra. Muito, muito lá em baixo, estendia-se um infinito mar de um dourado mosqueado, fendido por arestas paralelas, que podiam confundir-se com as cristas de ondas gigantescas. Mas não havia qualquer movimento, se assim fosse, a imensidão da escala da cena tê-lo-ia mostrado. Além disso, a paisagem dourada não podia ser um oceano, pois a sua altitude na atmosfera joviana ainda era muito elevada. Só podia tratar-se de outra camada de nuvens.

 De repente, a máquina apanhou algo muito estranho, mas imensamente desfocado pela distância. A vários quilómetros dali, a paisagem dourada erguia-se e formava um cone curiosamente simétrico, como uma montanha vulcânica. Em volta do cume desse cone via-se um halo de nuvens pequenas e entufadas, quase todas do mesmo tamanho, mas distintas e isoladas. Havia nelas algo de perturbador e pouco natural - se, aliás, a palavra «natural» pudesse aplicar-se a um panorama que infundia um temor tão respeitoso.

 Depois, apanhada por alguma turbulência da atmosfera que se adensava rapidamente, a sonda virou-se de frente para um outro quadrante do horizonte, e, durante alguns segundos, o visor emitiu apenas um borrão dourado. Então, estabilizou; o «mar» encontrava-se muito mais próximo, mas tão enigmático como dantes. Via-se agora que era interrompido aqui e ali por fragmentos escuros, que talvez fossem buracos ou aberturas que levavam a camada ainda mais profundas da atmosfera.

 Mas a sonda estava destinada a nunca os alcançar. Por cada quilómetro que passava, à medida que mergulhava mais profundamente em direcção à superfície escondida do planeta, a densidade do gás que a rodeava duplicava, e a pressão crescia incessantemente. Encontrava-se ainda muito acima desse misterioso mar, quando a imagem tremeluziu premonitoriamente e acabou por desaparecer; o primeiro explorador da Terra fora esmagado pelo peso de quilómetros de atmosfera.

 Dera, na sua fugaz vida, uma amostra de talvez um milionésimo de Júpiter, e mal se aproximara da superfície do planeta, envolta nas intensas névoas, centenas de quilómetros mais abaixo. Quando a imagem desapareceu do visor, Bowman e Poole deixaram-se ficar sentados em silêncio, remoendo o mesmo pensamento nos seus espíritos.

 Na verdade, os antigos haviam feito melhor do que pensavam, quando tinham dado àquele mundo o nome do senhor de todos os deuses. Se houvesse vida ali em baixo, quanto tempo levariam a descobri-la? E depois disso, quantos séculos se passariam até o homem poder seguir aquele primeiro pioneiro - em que tipo de nave?

 Mas tais assuntos não dizem respeito à Discovery nem à sua tripulação. O seu destino era um mundo ainda mais estranho, a quase o dobro da distância de Júpiter ao Sol - através de mais oitocentos milhões de quilómetros de um vazio apenas assombrado por cometas.

 

FESTA DE ANIVERSÁRIO

 

As familiares notas dos Parabéns a Você lançaram-se através de um bilião de quilómetros de espaço, à velocidade da luz, e morreram entre os visores e os instrumentos da ponte de comando. A família de Poole, com um ar um tanto embaraçada, reunida em volta do bolo de anos, na Terra, mergulhou num súbito silêncio. O Sr. Poole, Pai, disse então rudemente:

 

-Olha, Frank, não sei muito bem o que hei-de dizer-te, mas podes ter a certeza de que todos pensamos em ti, e de que te desejamos muitas felicidades.

 

-Toma cuidado contigo, querido - interpôs lacrimosamente a Sr.a Poole. -Deus te abençoe.

 

 Depois de um coro de «adeuses», o visor apagou-se. «Que estranho pensar»,disse Poole com os seus botões, «que tudo isto aconteceu há menos de uma hora».

 

Naquela altura, já a sua família devia ter-se dispersado novamente, e provavelmente os seus membros estavam a quilómetros de casa. Mas de certa forma, esse atraso no tempo, embora certamente frustrante, era também uma bênção disfarçada. Tal como qualquer homem da sua idade, Poole tinha como certo que podia falar instantaneamente com quem quer que fosse da Terra, bastando para tanto que lhe apetecesse. Mas agora que isso deixara de ser verdade, sentia um profundo impacte psicológico. Passara por outra dimensão da distância, e quase todas as ligações emocionais haviam sido esticadas para lá do limite da resistência.

 

 -Desculpem interromper as festividades - disse Hal -, mas temos um problema. -Que é? - perguntaram Bowman e Poole ao mesmo tempo.

 

 -Estou a ter algumas dificuldades em manter o contacto com a Terra. A avaria situa-se na unidade EA-35. o meu Centro de Previsão de Avarias diz que ela pode deixar de funcionar dentro de setenta e duas horas.

 

-Nós tratamos disso - replicou Bowman. - Mostra-nos lá o alinhamento óptico.

 

-Aí o tens, Dave. Por enquanto, ainda funciona.

 

 No visor apareceu uma meia-lua perfeita, brilhando muito num pano de fundo praticamente sem estrelas. Coberta de nuvens, todos os acidentes geográficos que mostrava eram facilmente reconhecíveis. Aliás, à primeira vista podia ser confundida com Vénus.

 Mas não se se olhasse uma segunda vez, pois, ao seu lado, encontrava-se a verdadeira Lua, que Vénus não possuía. Uma lua com um quarto do tamanho da Terra, e exactamente na mesma fase. Até era fácil imaginar-se que os dois corpos não passavam de mãe e filho, como muitos astrónomos haviam acreditado, antes de as rochas lunares terem provado, sem margem para dúvidas, que a Lua nunca fizera parte da Terra.

 Silenciosamente, Poole e Bowman estudaram o visor durante meio minuto. A imagem chegava-lhes através da câmara de TV de longa distância, montada no rebordo do grande radar; as linhas da sua mira mostravam a orientação exacta da antena. Se o estreito feixe de linhas convergentes não apontasse precisamente para a Terra, não poderiam receber nem transmitir. As mensagens enviadas em ambos os sentidos falhariam o alvo, e disparariam, sem serem ouvidas nem vistas, pelo Sistema Solar e pelo vazio que ficava para além dele. Se alguma vez fossem raptadas, isso só se daria dali a séculos - e não seriam homens que as receberiam.

 

- Sabes onde é a avaria? - perguntou Bowman.

 

-É intermitente e não consigo localizá-la. Mas parece ser na unidade EA-35. -Que procedimento sugeres?

 

 -O melhor seria substituir a unidade por uma sobresselente para depois podermos examiná-la. -O. A.... dá-nos uma cópia.

 

 A informação tremeluziu no visor; simultaneamente, uma folha de papel saiu de uma ranhura que este tinha mesmo por baixo. Apesar de todas as notificaçõeselectrónicas orais, havia alturas em que o bom e antiquado material impresso era a forma de registo mais conveniente.

 Bowman estudou os diagramas durante alguns momentos, e soltou um assobio.

 

 -Podias ter-nos dito - observou. - Isto significa ir ao exterior da nave.

 

 -Desculpem - replicou  Hal. - Pensei que sabiam que a unidade EA-35 fica na armação da antena.

 

-Se calhar sabia... há um ano. Mas há oito mil subsistemas a bordo. Bem, mas não parece um trabalho muito difícil. Só é preciso abrir um painel e meter lá uma unidade nova.

 

-Muito bem-disse Poole, que era o membro da tripulação designado para actividades extra-veiculares de rotina. - Até nem me importo de mudar de cenário. Isto não tem nada de pessoal, claro.

 

-Então vamos ver se o Comando da Missão concorda - retorquiu Bowman.

 

 Deixou-se ficar quieto durante alguns segundos, para pôr as ideias em ordem, é começou então a ditar uma mensagem.

 

«Comando da Missão, daqui Raio-X-Delta-Um. As duas-zero-quatro-cinco, centro de previsão de avarias do nosso computador nove-triplo-zero mostrou que a unidade Eco Alfa três cinco se avariará provavelmente dentro de setenta e duas horas. Peço verifiquem vosso monitor telemétrico, e sugiro revelam unidade no vosso simulador de sistemas da nave. Confirmem também vossa aprovação do nosso plano para ir EVA e substituir unidade Eco Alfa três cinco antes que esta deixe de funcionar. Comando da Missão, daqui Raio-X-Delta-Um, dois-um-zero-três,transmissão concluída.»

 

Os anos de prática de Bowman permitiam-lhe mudar num abrir e fechar de olhos para aquela linguagem - que alguém baptizara de Technish -, e voltar rapidamente ao discurso normal, sem precisar de fazer grandes malabarismos mentais. Restava agora aguardar a confirmação, que demoraria, pelo menos, duashoras, pois os sinais ainda teriam de dar a volta às órbitas de Júpiter e Marte.

 Esta chegou quando Bowman tentava - sem muito sucesso, diga-se - ganhar a Hal um dos jogos geométricos armazenados na sua memória.

 

-Raio-X-Delta-Um, daqui Comando da Missão. Recebemos vosso dois-umzero-três. Estamos a verificar informação telemetria no nosso simulador de missão. Já diremos resultados. Plano para ir EVA substituir unidade Eco Alfa três cinco antes de possível avaria. Estamos a ensaiar procedimentos para aplicarem a unidade defeituosa.

 

 Tendo acabado de falar nas coisas sérias, o Comandante da Missão engatou para inglês normal.

 

-Lamentamos que estejam com problemas, e não queríamos meter-vos em mais aflições, mas a Informação Pública fez-nos um pedido, e, se puderem, gostávamos que, antes de EVA, fizessem uma gravação para distribuição pública, expondo a situação e explicando o que é que o EA-35 faz. Falem o mais tranquilizadoramente possível. Claro que nós podíamos fazê-lo... mas será muito mais convincente se sair da vossa boca. Espero que isto não interfira muito negativamente na vossa vida social. Raio-X-Delta-Um, daqui Comando da Missão, dois-um-cinco-cinco, transmissão concluída.

 

 Bowman não conseguiu deixar de sorrir ao ouvir tal pedido. Havia alturas em que a Terra demonstrava uma curiosa falta de sensibilidade e de tacto. «Falem tranquilizadoramente»! Essa agora!

 Quando Poole se lhe juntou ao cabo do seu período de sono, passaram dez minutos compondo e limando a resposta. Nos primeiros estádios da missão, todos os meios de comunicação haviam feito incontáveis pedidos de entrevistas, discussões... quase tudo o que lhes apetecesse dizer. Mas à medida que as semanas decorriam sem incidentes, e que o atraso horário passara de alguns minutos para mais de uma hora, o interesse fora decaindo. Desde a excitação provocada pelo voo à volta de Júpiter, havia mais de um mês, tinham gravado apenas três ou quatro fitas para informação pública.

 

-Comando da Missão. daqui Raio-X-Delta-Um. Aqui está a declaração para a imprensa:

 

«Hoje cedo verificou-se um problema técnico menor. O nosso computador HAL-9000 previu a avaria da unidade EA-35. Trata-se de um componente pequeno, mas vital, do sistema de comunicações. Mantém a nossa antena principal apontada para a Terra, com uma precisão de milésimos de grau. Tal exactidão é absolutamente necessária, visto que, encontrando-nos nós a mil milhões de quilómetros da Terra, esta não passa de um pequeno astro e o nosso estreitíssimo feixe rádio pode facilmente passar-lhe ao lado.

 A antena visa constantemente a Terra, com a ajuda de motores controlados pelo computador central. Mas esses motores recebem as suas instruções através da EA-35. Podemos compará-la a um centro nervoso do corpo, que traduz as instruções do cérebro aos músculos dos membros. Se o nervo não consegue transmitir os sinais correctos, o membro torna-se inútil. No nosso caso, uma avaria da unidade EA-35 significaria que a antena começaria a fazer pontaria ao acaso. Isto era uma coisa que acontecia muitas vezes com as sondas espaciais do século passado. Muitas vezes, chegavam a outros planetas, e depois não conseguiam transmitir qualquer informação, devido às suas antenas não lograrem localizar a Terra. Ainda não sabemos a natureza da avaria, mas a situação de modo nenhum é séria, e não há motivo para alarme. Possuímos duas EAs-35 sobresselentes, cada uma com uma vida operacional de vinte anos, portanto é praticamente impossível que uma segunda vá avariar durante esta missão. Além disso, se conseguirmos diagnosticar a avaria, talvez até sejamos capazes de reparar a unidade numero um.

 Frank Poole, especialmente qualificado para este tipo de trabalhos, irá ao exterior da nave, e substituirá a unidade avariada por uma sobresselente. ao mesmo tempo, terá oportunidade de verificar o casco e de reparar algumas microperfurações, demasiado insignificantes para merecerem uma EVA especial. Para além deste problema menor, a missão continua a decorrer sem incidentes, e assim deverá permanecer. Comando da Missão, daqui Raio-X-Delta-Um, dois-um-zero-quatro, transmissão concluído. »

 

 EXCURSÃO

 

As cápsulas extra-veiculares da Discovery - também chamadas «casulos espaciais» -, eram esferas de cerca de dois metros e meio de diâmetro, com uma janela de vão, por trás da qual o operador se sentava - o que lhe proporcionava uma vista esplêndida. O foguetão principal produzia uma aceleração de um quinto da gravidade normal - suficiente para se pairar na Lua -, e pequenas agulhetas permitem a sua condução. De uma zona imediatamente por baixo da janela de vão, saiam dois braços metálicos articulados, ou waldoes, um para trabalhos pesados, outro para manipulações delicadas. Havia também um torreão extensível, com várias ferramentas accionadas mecanicamente, tais como chaves de parafusos, martelos, serras e sondas.

 Os casulos espaciais não constituíam, de modo algum, o mais elegante meio de transporte imaginado pelo homem, mas eram absolutamente essenciais para a construção e trabalho de manutenção no vácuo. Geralmente, dava-se-lhes um nome feminino - talvez pelo facto de se admitir que as suas personalidades eram, por vezes, um tanto ou quanto imprevisíveis. Os três casulos da Discovery chamavamse Anna, Betty e Clara.

 Uma vez envergado o seu fato pressurizado Pessoal - a sua última linha defensiva -, Poole subiu para o casulo e passou dez minutos a verificar cuidadosamente todos os instrumentos. Experimentou os jactos direccionais, dobrou os braços metálicos, e confirmou o oxigénio, combustível e reserva de energia.

 Quando, finalmente, se deu por satisfeito, falou com Hal pelo circuito rádio. Embora Bowman se encontrasse na ponte de comando, só interferiria se desse por algum erro ou mau funcionamento óbvio.

 

-Daqui Betty. Dá inicio à sequência de bombeamento.

 

-Sequência de bombeamento iniciada - replicou Hal. Poole ouviu imediatamente o ruído do motor das bombas que sugavam o precioso ar da escotilha. A fina camada de metal do invólucro exterior do casulo começou a dar estalidos; passados cerca de cinco minutos, Hal anunciou:

 

-Sequência de bombeamento concluída.

 

 Poole examinou pela última vez o minúsculo painel de instrumentos. Estava tudo perfeitamente normal. -Abre a porta exterior - ordenou.

 Hal obedeceu às suas instruções; Poole podia em qualquer altura dizer apenas «Pára!», que o computador interromperia imediatamente a sequência.

 As paredes da nave deslizaram para o lado. Poole sentiu o casulo baloiçar levemente, quando os últimos vestígios de ar se precipitaram no espaço. À sua frente tinha as estrelas - e, por acaso, o minúsculo disco dourado que era Saturno, ainda a trezentos milhões de quilómetros de distância. -Inicia a ejecção do casulo.

 Muito lentamente, o carril no qual o casulo estava suspenso, estendeu-se para fora da porta aberta, e o veículo ficou pendurado ao lado do casco da nave.

 Poole deu um toque de meio segundo no jacto principal, e o casulo deslizou suavemente para fora do carril, tornando-se finalmente um veículo independente, seguindo a sua própria órbita à volta do Sol. Deixara de ter qualquer ligação com a Discovery - nem sequer possuía uma linha de segurança. Mas os casulos raramente avariavam; e, mesmo que se visse em apuros, Bowman poderia facilmente sair da nave e salvá-lo.

 Betty respondia bem aos controlos; Poole deixou-se deslizar por trinta metros, verificou a sua velocidade, e virou-a, de modo a ficar de frente para a nave. E começou então a dar a volta ao casco pressurizado.

 O seu primeiro alvo era uma área fundida, de cerca de um centímetro de largura, com um minúsculo buraco no meio. A partícula de poeira que chocara ali, a mais de cento e cinquenta mil quilómetros por hora, era com certeza mais pequena que a cabeça de um alfinete, e a sua enorme energia cinética vaporizara-a instantaneamente. Como acontecia frequentemente, o buraco parecia ter sido causado por uma explosão verificada no interior da nave; a tais velocidades, as substâncias comportavam-se de maneiras estranhas, e as leis mecânicas de sensocomum raramente se aplicavam.

 Poole examinou a área cuidadosamente, e borrifou-a com o material vedante de um contentor pressurizado que havia no estojo geral do casulo. O fluido branco e esponjoso espalhou-se pela capa de metal, tapando o buraco. Da fenda saiu uma grande bolha, que rebentou quando chegou aos dez centímetros de diâmetro, e depois uma muito mais pequena, que baixou logo que o cimento de endurecimento rápido começou a actuar. Poole ainda a observou atentamente durante algum tempo, mas não notou nela sinais de mais actividade. No entanto, para maior segurança, borrifou-a com uma segunda camada; depois, dirigiu-se para a antena.

 Levou algum tempo a rodear o casco esférico pressurizado da Discovery, pois nunca deixava o casulo adquirir uma velocidade superior a alguns centímetros por segundo. Não tinha pressa e, além disso, era perigoso deslocar-se a uma grande velocidade, tão perto da nave. Tinha de ter muito cuidado com os vários sensores e escapes que saíam do casco nos sítios mais inesperados; além disso, não podia também deixar de prestar atenção ao seu próprio jacto, que poderia causar bastantes danos se atingisse algum do equipamento mais frágil.

 Quando por fim chegou à antena de longo alcance, estudou a situação com todo o cuidado. A grande taça de sessenta metros de diâmetro parecia estar directamente apontada ao Sol, pois a Terra encontrava-se praticamente alinhada com o disco solar. A instalação da antena e de todos os aparelhos de orientação estavam, portanto, em escuridão total, escondidos na sombra da grande taça de metal.

 Poole acercara-se dela por trás; tivera o cuidado de não se pôr à frente do pouco fundo reflector parabólico, para Betty não interromper o raio e não provocar uma momentânea, mas aborrecida, perda de contacto com a Terra. Só conseguiria ver o equipamento que fora reparar se ligasse os faróis do casulo, iluminando assim as sombras.

 A causa da avaria encontrava-se por trás daquele pequeno disco de metal, seguro por quatro contraporcas. Como a unidade EA-35 fora concebida para substituições fáceis, Poole não devia ter problemas.

 Era óbvio, no entanto, que não podia fazer nada enquanto permanecesse no casulo espacial. Além de ser arriscado manobrar tão perto da delicada e araneiforme estrutura da antena, os jactos de Betty podiam também danificar a finíssima superfície reflectora do grande espelho rádio. Poole ia ter de estacionar o casulo a sessenta metros de distância, e sair de lá para fora com o seu fato. De qualquer forma, tiraria muito mais depressa a unidade com as mãos enluvadas, que com os manipuladores remotos de Betty.

 Mas transmitiu tudo isto cuidadosamente a Bowman, que verificou cada passo da operação, antes de esta ser levada a cabo. Embora se tratasse de um simples trabalho de rotina, nada, no espaço, podia ser tratado de ânimo leve, e nenhum pormenor devia ser descuidado. Nas actividades extraveiculares, não havia lugar para erros «menores».

Quando recebeu o o. k. para prosseguir, Poole estacionou o casulo a cerca de sessenta metros da base do suporte da antena. Não havia perigo de este deslizar para o espaço; no  estrategicamente montadas no casco exterior.

 Verificou então os sistemas do seu fato pressurizado, e, quando se deu por satisfeito, bombeou o ar para fora do casulo. Com um assobio, a atmosfera de Betty entrou em contacto com o vácuo do espaço; ao mesmo tempo, uma nuvem de cristais de gelo envolveu-o brevemente, embaciando-lhe a viseira por alguns instantes.

 Ainda tinha de fazer mais uma coisa antes de sair do casulo. Poole mudou o controlo de manual para remoto, pondo assim Betty sob o comando de Hal. Tratavase de uma medida de segurança normal; embora estivesse preso a Betty por um cordão imensamente forte carregado por mola pouco mais espesso que algodão, era sabido que mesmo as melhores cordas de segurança podiam partir. Não faria muito boa figura se precisasse do veículo e não pudesse chamá-lo por meio de Hal.

 A porta do casulo abriu-se, e ele deslizou lentamente para o silêncio do espaço, com a corda de segurança desenrolando-se atrás de si. Calma, movimentos lentos, pausa e raciocínio, eram as regras da actividade extraveicular. Se se lhes obedecesse, nunca haveria problemas.

 Poole agarrou-se a uma das pegas externas de Betty, e tirou a unidade EA-35 sobresselente da bolsa, tipo canguru, onde fora armazenada. Mas não levou com ele nenhuma das ferramentas do casulo, a maioria das quais não fora concebida para mãos humanas. Já tinha presas ao cinto do fato todas as chaves de porcas múltiplas de que provavelmente precisaria.

 Com um ligeiro impulso, lançou-se na direcção do grande disco que, qual gigantesca taça, pairava entre ele e o Sol. A sua própria sombra dupla, projectada pelos faróis de Betty, ia dançando e imprimindo formas fantásticas na superfície convexa, à medida que ele deslizava à luz dos raios gémeos. Mas ficou espantado ao reparar que a parte de trás do grande espelho rádio cintilava, aqui e ali, com pontinhos de luz de um brilho estonteante.

 Admirou-se com eles durante os segundos da sua silenciosa aproximação, mas acabou por perceber o que eram. Ao longo da viagem, o reflector devia ter sido penetrado muitas vezes por micrometeoros; o que ele via era a luz do sol brilhando através das minúsculas fendas. Todavia, eram todas pequenas de mais para haverem afectado apreciavelmente o funcionamento do sistema.

 Como se deslocava muito lentamente, quebrou o suave impacte com o braço estendido e agarrou-se à instalação da antena antes de poder ressaltar. Depois, prendeu rapidamente o seu cinto de segurança ao gancho mais próximo, o que lhe permitiria ficar seguro quando usasse as ferramentas. Fez então uma pausa, comunicou a situação a Bowman, e considerou o próximo passo.

 Havia um problema menor: estava a flutuar à sua própria luz, e, devido à sombra que projectava, era-lhe difícil ver a unidade EA-35. Ordenou então a Hal que rodasse os faróis para um lado; após algumas tentativas, conseguiu uma iluminação mais uniforme, provinda da luz secundário reflectida pela parte de trás do disco da antena.

 Durante alguns segundos, estudou a pequena comporta de metal, com as suas quatro porcas de parafuso firmemente seguras por arames. Murmurando então com os seus botões: «Abertura por pessoal não autorizado invalida a garantia do fabricante», cortou os arames e começou a desenroscar as porcas. Estas, de um tamanho estandardizado, ajustavam-se perfeitamente à sua chave. O mecanismo de mola interno da ferramenta absorveria a reacção provocada pelas porcas ao serem desenroscadas, evitando assim que o operador tendesse a girar ao contrário.

 As quatro porcas saíram sem qualquer problema, e Poole guardou-as cuidadosamente numa bolsa trazida para esse efeito. Alguém dissera que, um dia, a Terra ainda haveria de ter um anel como o de Saturno, totalmente composto de parafusos perdidos, porcas, e até ferramentas deixadas escapar por descuidados trabalhadores de construções orbitais.) A tampa de metal estava um pouco rija, e, por um momento, Poole teve medo que houvesse fundido com o frio; mas soltou-se após algumas pancadas, e ele prendeu-a com um enorme grampo metálico ao suporte da antena.

 Podia ver os circuitos electrónicos da unidade EA-35, montados numa lâmina fina, do tamanho de um postal, perfeitamente encaixada numa ranhura. A unidade, fixa por duas barras, tinha uma pequena pega que permitia tirá-la facilmente.

 Mas estava ainda a funcionar, alimentando a antena com os impulsos que a mantinham apontada ao distante pontinho que era a Terra. Se fosse puxada para fora naquele momento, perder-se-ia todo o controlo, e o disco giraria imediatamente para a sua posição neutral ou de azimute zero, apontando ao longo do eixo da Discovery. E isto podia ser perigoso, pois talvez a rotação a levasse a colidir com ele.

 Em ordem a evitar tal possibilidade, só era necessário cortar a energia do sistema de controlo; a antena não poderia assim mover-se, a não ser que o próprio Poole chocasse com ela. Além disso, não havia o perigo de se perder a Terra durante os poucos minutos de que precisaria para substituir a unidade; o seu alvo não podia deslocar-se apreciavelmente durante intervalo de tempo tão curto.

 

-Hal - chamou Poole pelo circuito rádio -, vou tirar a unidade. Desliga toda a energia do sistema da antena. Energia da antena desligada - respondeu Hal. -Lá vou eu. Estou a tirar a unidade agora.

 

 O postal deslizou pela ranhura sem dificuldades; não ficou encravado, nem nenhum dos seus circuitos se prendeu. Dali a um minuto, a unidade sobresselente estava no lugar.

 Mas Poole não queria correr riscos desnecessários. Impulsionou-se suavemente para longe da antena, para o caso de o grande disco começar a rodar quando a energia fosse novamente ligada. Logo que se encontrou fora do seu alcance, disse a Hal:

 

 - A nova unidade deve estar operacional. Liga a energia.

 

-Energia ligada - respondeu Hal. A antena permaneceu imóvel como uma rocha. -Prossegue com testes de previsão de avarias.

 

 Impulsos microscópicos deviam ter começado a percorrer os complexos circuitos da unidade, procurando possíveis falhas, sondando as miríades de componentes, vendo se tudo se encontrava dentro dos seus limites específicos.

 Claro que aquilo já fora feito, e muitas vezes, antes de a unidade deixar a fábrica; mas isso passara-se havia dois anos e a mais de oitocentos mil milhões de quilómetros de distância. Era frequentemente impossível perceber como componentes electrónicos sólidos podiam falhar; no entanto, assim acontecia.

 

 -Circuito totalmente operacional - anunciou Hal, passados apenas dez segundos. Nesse espaço de tempo, fizera os mesmos testes de um pequeno exército de inspectores humanos.

 

-Óptimo - retorquiu Poole com satisfação. - Vou agora repor a tampa.

 

 Era, muitas vezes, a parte mais perigosa das operações extraveiculares; os erros normalmente cometiam-se quando o trabalho já estava acabado, e faltava apenas arrumar tudo e voltar à nave. Mas Frank Poole não teria sido nomeado para aquela missão se não fosse cuidadoso e consciente. Fez as coisas devagar, e, embora uma das porcas quase lhe tivesse escapado, apanhou-a antes de ela se afastar muito.

 Quinze minutos mais tarde, entrava na garagem dos casulos espaciais, com a calma certeza de que ali estava um trabalho que não precisaria de ser feito novamente. Infelizmente, enganava-se.

 

 DIAGNÓSTICO

 

-Queres dizer - exclamou Frank Poole, mais surpreendido que Aborrecido - que tive aquele trabalho todo para nada?

 

-É o que parece - retorquiu Bowman. -A unidade funciona perfeitamente. Mesmo com uma sobrecarga de duzentos por cento, não é indicada qualquer previsão de avaria.

 

 Os dois homens encontravam-se na minúscula oficina-laboratório do carrossel, que era mais conveniente para reparações menores e exames, que a garagem dos casulos espaciais. Ali não havia o perigo de se dar de caras com bolas de solda quente deslizando ao sabor das correntes, ou o de se perder pequenas peças de equipamento, que haviam decidido entrar em órbita. Tais coisas podiam acontecer, e, realmente, aconteciam mesmo, na gravidade nula do compartimento dos casulos.

 A fina lâmina em forma de postal que era a unidade EA-35, encontrava-se no banco, sob uma potente lupa. Estava ligada a um painel estandardizado, do qual partiam vários fios metálicos multi-coloridos, que levavam a um aparelho automático de ensaios, pouco mais pequeno que um vulgar computador pessoal. Para a verificação de qualquer unidade, bastava apenas ligar as duas partes, introduzir no aparelho o respectivo cartão «detector de avarias», guardado na biblioteca, e premir um botão. Geralmente, a localização exacta da avaria era indicada num pequeno visor, e acompanhada de indicações para a sua reparação.

 

 - Experimenta tu - disse Bowman num tom de voz um tanto ou quanto frustrado.

 

 Poole rodou o botão da SOBRECARGA para X-2, e premiu a tecla que dizia TESTE. No visor apareceu imediatamente escrito: UNIDADE 0. K.

 

-Suponho que poderíamos continuar a forçar esta coisa até ela arder toda - observou ele -, mas isso não provocaria nada. Que achas?

 

 -Talvez o previsor de avarias interno de Hal tenha cometido algum erro.

 

-O mais natural é que o nosso aparelho de testes tenha ido ao ar. Bom, de qualquer modo, mais vale prevenir que remediar. Na dúvida, foi melhor termos substituído a unidade.

 

 Bowman desprendeu o postal de circuitos, e ergueu-o contra a luz. O material, em parte translúcido, era percorrido por uma intrincada teia de fios metálicos, e salpicado por microcomponentes quase invisíveis; parecia uma peça de arte abstracta.

 

-Não podemos arriscar-nos desnecessariamente... afinal, trata-se do nosso elo com a Terra. Vou registá-la como estando avariada, e guardá-la no armazém do ferro-velho. Outros que se preocupem com ela quando regressarmos a casa.

 

 Mas as preocupações iam começar muito antes disso - mais exactamente, com a transmissão seguinte da Terra.

 

-Raio-X-Delta-Um, daqui Comando da Missão, referência dois-um-cincocinco.

 Parece que temos um pequeno problema.

»O vosso relatório que diz que a unidade Eco Alfa três cinco não está avariada, coincide com o nosso diagnóstico. A falha podia ter origem nos circuitos associados da antena, mas, se assim fosse, isso teria vindo à luz noutros testes.

»Há ainda uma terceira possibilidade... que pode ser mais grave. O vosso computador talvez tenha errado ao prever a avaria. Baseados nesta informação, ambos os nossos nove-três-zeros concordam com isto. Não é necessariamente motivo para alarme, tendo em vista os sistemas de apoio de que dispomos, mas gostaríamos que estivessem atentos a mais desvios das funções normais. Há já alguns dias que suspeitamos de várias irregularidades menores, mas nenhuma, até agora, se mostrou suficientemente importante, ao ponto de exigir reparação, e os padrões que apresentam não nos permitem tirar conclusões. Estamos neste momento a levar a cabo uma série de testes com os nossos computadores, e comunicar-vos-emos os resultados logo que possível. Repetimos que não há motivo para alarme, o pior que pode acontecer é termos que desligar temporariamente o vosso nove-três-zero para análise de programa, e entregar o comando a um dos nossos computadores. Claro que o atraso no tempo trará alguns problemas, mas os nossos estudos de praticabilidade indicam que o comando da Terra é perfeitamente satisfatório nesta fase da missão.

»Raio-X-Delta-Um, daqui Comando da Missão, dois-um-cinco-seis, transmissão concluída.

 Frank Poole, a quem cabia o turno quando a mensagem chegou, meditou nela em silêncio. Ainda esperou que Hal fizesse algum comentário, mas o computador não tentou contestar a acusação implícita. Bem, se Hal não queria falar no assunto, não seria ele quem o faria.

 Eram quase horas da mudança de turno da manhã; normalmente, Poole esperaria que Bowman se lhe juntasse na ponte de comando, mas, naquele dia, quebrou a rotina, e encaminhou-se para o carrossel.

 Bowman já estava a pé, e a tirar café de distribuidor; Poole saudou-o com um«bom dia» bastante preocupado. Apesar de estarem no espaço havia tanto tempo, ainda pensavam em termos do ciclo normal de vinte e quatro horas - embora já nãose lembrassem dos dias da semana. -Bom dia - replicou Bowman. - Como vai isso?

 Poole serviu-se de café. -Muito bem. Estás bem acordado? -Estou. Que aconteceu?

 Naquela altura da viagem, já cada um deles sabia quando havia algo de anormal. A mínima quebra de rotina era disso sinal seguro. -Bem - começou Poole devagar -, o Comando da Missão acaba de nos pôr uma pequena bomba nas mãos.

 Baixou a voz, qual médico discutindo uma doença em frente do paciente.

 

- Talvez tenhamos a bordo um ligeiro caso de hipocondria. Se calhar, Bowman afinal não estava completamente acordado, pois levou vários segundos a perceber o que Poole dissera. -Ah... estou a ver. Que mais te disseram?

 

-Que não havia motivo para alarme. Disseram-no duas vezes, o que estragou tudo... pelo menos no que me diz respeito. E que estão a pensar numa mudança temporária para o comando da Terra, enquanto fazem uma análise de programa.

 

 Claro que ambos sabiam que Hal ouvia tudo o que diziam, mas não podiam fazer nada quanto a tais delicados circunlóquios. Hal era colega deles, e não queriam embaraçá-lo. No entanto, naquela fase, não parecia necessário discutir o assunto em privado.

 Bowman acabou de tomar o seu pequeno-almoço em silêncio, enquanto Poole brincava com o recipiente de café vazio. Ambos pensavam furiosamente, mas nada mais havia a dizer.

 Restava-lhes esperar pelo relatório seguinte do Comando da Missão e perguntar-se se Hal acabaria por levantar o problema. Acontecesse o que acontecesse, o certo era que a atmosfera a bordo da nave se alterara subtilmente.

 Havia uma certa tensão no ar - uma sensação de que, pela primeira vez, algo podia estar a correr mal. A Discovery deixara de ser uma nave feliz.

 

CIRCUITO CORTADO

 

Era sempre possível saber quando Hal se preparava para fazer algum anúncio não programado. Rotinas, relatórios automáticos, ou respostas a perguntas que lhe haviam sido feitas, não tinham ruídos preliminares; mas antes de abordar assuntos da sua lavra, fazia ouvir um breve pigarrear electrônico. Tratava-se de uma idiossincrasia que Hal adquirira nas últimas semanas; mais tarde, se se tornasse aborrecida, far-lhe-iam qualquer coisa. Mas era realmente útil, pois alertava os ouvintes para discursos inesperados.

 Poole estava a dormir e Bowman a ler na ponte de comando, quando Hal anunciou: -Ha... Dave, tenho um comunicado a fazer-te. -Que aconteceu?

 

 -Temos outra unidade EA-35 em mau estado. O meu previsor de avarias indica que deixará de funcionar dentro de vinte e quatro horas.

 

 Bowman pousou o livro e fitou pensativamente a consola do computador.

 Claro que sabia que Hal não estava mesmo ali - fosse o que fosse que isso significava. Se se pudesse dizer que a personalidade do computador estava localizada no espaço, então o seu lugar seria na sala hermeticamente fechada que continha o labirinto de unidade de memória interligados e de redes de processamento, e que ficava perto do eixo central do carrossel. Mas, quando se dirigiam a Hal da ponte de comando, uma espécie de compulsão psicológica fazia-os sempre olhar para a lente da consola principal, como se falassem com Hal de olhos nos olhos. Qualquer outra atitude teria um leve sabor a descortesia.

 

-Não percebo, Hal. Não é possível duas unidades falharem num espaço de dias.

 

-Realmente parece estranho, Dave. Mas garanto-te que uma avaria está iminente. -Deixa-me ver o alinhamento.

 

 Bowman sabia perfeitamente que aquilo não provaria nada, mas queria tempo para pensar. O relatório do Comando da Missão ainda não chegara; talvez fosse a altura de algumas abordagens diplomáticas.

 A sua frente desenhou-se a familiar vista da Terra, passando, naquele momento, da fase de meia-lua, precipitando-se para o outro lado do Sol, e começando a virar para eles o seu lado completamente iluminado. Encontrava-se perfeitamente centrada na mira; o fino feixe de linhas convergentes do raio, ainda ligava a Discovery ao seu mundo de origem. Como, claro, Bowman esperava. Se se tivesse verificado alguma interrupção nas comunicações, o alarme já teria soado.

 

-Tens ideia de qual é a origem da avaria? - perguntou ele.

 

 Hal fez uma longa pausa - o que não era normal. Depois, respondeu:

 

-Não, Dave. Como disse antes, não consigo localizar o defeito.

 

-Tens a certeza - indagou Bowman cuidadosamente - de que não te enganaste? Sabes muito bem que examinamos minuciosamente a outra unidade EA-35, sem lhe encontrar qualquer defeito.

 

-Sim, sei isso. Mas garanto-te que há uma avaria. Se não é na unidade, então talvez seja em todo o subsistema.

 

 Bowman tamborilou com os dedos na consola. Sim, era possível... mas talvez fosse difícil descobri-la até a falha realmente se verificar, e denunciar o problema.

 

-Bem, vou comunicar o que me disseste ao Comando da Missão, e já veremos o que eles nos aconselham a fazer. -Esperou, mas não houve qualquer reacção.

 

»Hal - continuou -, estás preocupado com alguma coisa... que tenha a ver com este problema?»

 

Verificou-se novamente um atraso invulgar. Depois. Hal respondeu, no seu tom de voz normal:

 

-Olha, Dave, sei que só estás a tentar ajudar. Mas a avaria está no sistema de antena ou nas tuas verificações. O meu processamento das informações está perfeitamente normal. Se quiseres, verifica o meu registo, e vais ver como ele está limpo.

 

-Conheço muito bem o teu registo de serviço, Hal... mas isso não prova que tenhas razão. Qualquer um pode cometer erros.

 

-Não quero insistir, Dave, mas sou incapaz de cometer um erro. Não havia resposta segura para aquilo; Bowman desistiu.

 

 -Muito bem, Hal - concluiu um tanto apressadamente. -Compreendo o teu ponto de vista. Deixemos as coisas por aqui.

 

 Sentiu-se tentado a acrescentar: «E, por favor, esquece o problema». Mas isso, claro, era a única coisa que Hal jamais poderia fazer.

 Não era vulgar o Comando da Missão desperdiçar banda rádio em visão, quando um circuito de som, com confirmação videogravada, era tudo quanto bastava. E o rosto que apareceu no visor não era o do controlador habitual; tratavase do programador chefe, Dr. Simonson. Poole e Bowman perceberam imediatamente que aquilo só podia querer dizer uma coisa: sarilho.

 

-Olá, Raio-X-Delta-Um... daqui Comando da Missão. Já completamos a análise da vossa dificuldade na EA-35, e ambos os nossos Hal Nove Mil estão de acordo. O relatório que nos foi enviado na transmissão dois-um-quatro-seis, sobre uma segunda previsão de avaria, confirma o diagnóstico.

»Como suspeitávamos, a avaria não reside na unidade EA-35: não há necessidade de voltar a substitui-la. O problema está nos circuitos de previsão, e supomos que indica um conflito de programação, que só poderemos resolver se desligarem o vosso Nove Mil e passarem para Modo de Comando da Terra. Portanto, cumpram os seguintes passos, começando às 22.00, Hora da Nave...»

A voz do Comando da Missão foi enfraquecendo aos poucos. No mesmo momento, o Alerta soou. Hal fez-se ouvir acima do barulho da sirene: - Situação Amarela! Situação Amarela!

 

-Que se passa? - inquiriu Bowman, embora já soubesse muito bem a resposta. -Tal como previ, a unidade EA-35 deixou de funcionar. -Deixa-me ver o alinhamento.

 

 Pela primeira vez desde o início da viagem, a imagem havia mudado. A Terra começara a afastar-se da mira; a antena rádio já não apontava para o seu alvo.

 Poole baixou o punho para o interruptor do alarme, e a sirene calou-se. No súbito silêncio que desceu sobre a ponte de comando, os dois homens entreolharam-se com uma mistura de embaraço e preocupação.

 

-Bem... raios me partam - acabou Bowman por dizer. -Hal tinha mesmo razão.

 

-Assim parece. É melhor pedirmo-lhe desculpa.

 

-Não é preciso - interrompeu Hal. - Naturalmente que não me agrada que a unidade EA-35 se tenha avariado, mas espero que isto sirva para restaurar a vossa confiança em mim.

 

-Desculpa lá este mal entendido, Hal - replicou Bowman muito contritamente.

 

-Já têm outra vez confiança absoluta em mim? -Claro que sim, Hal.

 

-Bem, isso é um alívio. Sabem, estou o mais empenhado possível nesta missão.

 

 -Tenho a certeza disso. Agora passa-me o controlo manual da antena. -Aqui o tens.

 

 Bowman não esperava que funcionasse, mas valia a pena tentar. No alinhamento, a Terra deslizara completamente para fora do visor. Segundos mais tarde, quando Bowman mexeu nos controlos, reapareceu; com grande dificuldade, conseguiu manobrar a mira de modo a centrá-la. Como o raio se alinhou, o contacto foi retomado, e um Dr. Simonson muito desfocado ressurgiu a dizer:... por favor notifiquem-nos imediatamente se o Circuito K 1 King R Rob.

 

- E voltou novamente o murmúrio sem sentido do universo.

 

-Não consigo mantê-lo alinhado - disse Bowman, após mais algumas tentativas. - Escoiceia como um cavalo selvagem... parece estar a ser afastado por um sinal falso. -Bem... que fazemos agora?

 

 A pergunta de Poole não apresentava resposta fácil. Estavam impedidos de comunicar com a Terra, mas isso, em si, não afectava a segurança da nave, e havia várias maneiras de restabelecer a comunicação. No pior dos casos, podiam encarvar a antena numa posição fixa, e servir-se de toda a nave para a apontar.

 Claro que podia ser complicado quando iniciassem as manobras terminais - mas, se o resto falhasse, podia ser feito.

 Esperava que tais medidas extremas não fossem necessárias. Possuíam ainda uma unidade EA-35 sobresselente e possivelmente uma segunda, visto que havia substituído a primeira unidade antes de esta chegar mesmo a avariar-se. Mas não se atreviam a usar nenhuma delas até descobrirem o que se passava com o sistema. Se outra unidade fosse ligada, o mais provável era que ardesse imediatamente.

 Tratava-se de uma situação muito comum, familiar a todos os donos de casa.

 Não se substitui um fusível queimado até se perceber porque é que ele queimou.

 

O PRIMEIRO HOMEM EM SATURNO

 

Frank Poole já passara antes por toda aquela rotina, mas, mesmo assim, não corria riscos desnecessários que, no espaço, eram uma boa receita para o suicídio.

 Fez a normal e cuidadosa verificação de Betty e da sua provisão de excedentes; embora fosse estar no exterior apenas por trinta minutos, certificou-se de que todas as provisões davam para vinte e quatro horas, como era normal. Disse então a Hal para abrir a escotilha, e precipitou-se para o abismo.

 A nave apresentava exactamente o mesmo aspecto que tivera na sua última saída com uma diferença importante. Dantes, o grande disco da antena de longo alcance apontava para a estrada invisível por onde a Discovery passara - para a Terra, que girava tão perto das quentes chamas do Sol.

 Mas sem sinais direccionais que o orientassem, o disco baixo imobilizara-se automaticamente na posição neutral, ao longo do eixo da nave, e apontava para a frente, para muito próximo do brilhante pontinho que era Saturno, ainda a meses de distância. Quantos mais problemas surgiriam até a Discovery atingir o seu ainda tão longínquo destino? Olhando com atenção, Poole reparou que Saturno não era um disco perfeito; de ambos os lados tinha algo que nunca olho nu humano vira antes: o ligeiro achatamento provocado pela presença dos anéis.

 

«Que maravilhoso será», disse Poole com os seus botões, «quando aquele incrível sistema de poeira e gelo em órbita encher o nosso céu e a Discovery se transformar numa lua de Saturno!» Mas tal feito seria em vão, a não ser que conseguissem restabelecer a comunicação com a Terra.

 

 Mais uma vez estacionou Betty a cerca de sessenta metros da base da estrutura de antena, e entregou o comando a Hal antes de sair.

 

 -Vou agora para o exterior - comunicou a Bowman. -Tudo sob controlo - Espero que sim Estou mortinho por ver essa unidade.

 

-Tê-la-ás no banco de testes daqui a vinte minutos, prometo-te.

 

 Houve silêncio durante algum tempo, enquanto Poole deslizou sem pressas até à antena. Bowman, de pé na ponte de comando, ouviu então vários grunhidos e resmungos.

 

-Se calhar, vou ter que voltar com a palavra atrás; uma destas porcas encravou. Devo tê-la apertado de mais... uoops... já está! Seguiu-se outro silêncio;  Poole disse então:

 

-Hal, roda o farol do casulo vinte graus para a esquerda... obrigado... está bem assim.

 

 Uma ténue campainha de alarme soou algures nas profundezas da consciência de Bowman. Acontecera algo de estranho... não alarmante, mas anormal. Matutou no assunto durante alguns segundos, e descobriu-lhe a causa.

 Hal executara a ordem, mas não a repetira oralmente, como fazia sempre.

 Quando Poole regressasse, teriam de examinar o problema... Lá fora, na antena,

 Poole encontrava-se demasiado ocupado para reparar em algo de mais invulgar. Já agarrara na placa de circuitos com as mãos enluvadas, e puxava-a naquele momento para fora do encaixe. Quando se soltou, ele ergueu-a contra a pálida luz do sol.

 

-Cá está este estupor - observou para o universo em geral, e para Bowman em particular. -Continua a parecer-me perfeitamente em condições.

 

 Calou-se repentinamente. Um movimento súbito chamara-lhe a atenção - ali no espaço, onde nenhum movimento era possível.

 Alarmado, olhou para cima. A luz projectada pelos faróis gémeos do casulo espacial, de que ele se servira para iluminar as sombras provocadas pelo sol, haviam começado a girar à sua volta.

 Talvez Betty estivesse a andar à deriva; ou melhor, descuidara-se ao ancorála.

 Então, com um espanto tão grande que não deixava lugar ao medo, viu que o casulo espacial vinha directamente contra si, com um impulso máximo.

 Aquela visão, de tão incrível, gelou-lhe os reflexos normais; não fez qualquer tentativa para evitar o monstro que se precipitava na sua direcção. No último momento, recuperou a voz, e gritou: -Hal! Trava...

 Tarde de mais.

 No momento da colisão, Betty movia-se ainda muito lentamente; não fora construído para grandes velocidades. Mas, mesmo a quinze quilómetros por hora, meia tonelada de massa pode ser muito letal... tanto na Terra, como no espaço...

 Dentro da Discovery, o grito inacabado pelo rádio fez Bowman dar um salto tão violento, que só o cinto de segurança o manteve no lugar. -Que aconteceu, Frank? - perguntou. Não houve resposta Perguntou outra vez Continuou sem ouvir resposta.

 Pelas largas janelas de observação viu então algo a mover-se. Com um espanto tão grande como o de Poole, percebeu que se tratava do casulo espacial, que, à velocidade máxima, se deslocava em direcção às estrelas.

 Hal! - gritou. - Que se passa? Trava a Betty! Mete travões a fundo! Nada aconteceu. Betty, desembestada, continuou a acelerar. Um fato espacial apareceu então a reboque de Betty, no fim da Debela B-9 linha de segurança. Um relance bastou para Bowman perceber o desastre. Não havia dúvidas de que se tratava do flácido perfil de um fato espacial que perdera a pressão e se abrira para o vácuo.

 No entanto, continuou a chamar estupidamente, como se o seu encantamento pudesse fazer renascer os mortos:

 

-Alô, Frank... Alô, Frank... Consegues ouvir-me? ... Consegues ouvir-me?... Acena os braços se consegues... Talvez o teu transmissor esteja avariado... Acena com os braços!

 

 De repente, quase como se em resposta aos seus rogos, Poole acenou.

 Por um instante, Bowman sentiu a pele da nuca toda arrepiada. As palavras que estava prestes a preferir morreram-lhe nos lábios subitamente ressequidos.

 Sabia que o seu amigo não podia estar vivo; no entanto, acenara... O espasmo de esperança e medo deu rapidamente lugar à lógica fria, que substituiu a emoção. O casulo, que continuava a acelerar, estava meramente a abanar o fardo que arrastava atrás de si. O gesto de Poole era um eco do do Capitão Ahab, quando, amarrado aos flancos da baleia branca, o seu cadáver apontara à tripulação do Pequod o trágico destino deste.

 Dali a cinco minutos, já o casulo e o seu satélite haviam desaparecido entre as estrelas. Durante muito tempo, David Bowman deixou-se ficar a olhar o vazio que se estendia por tantos milhões de quilómetros à sua frente, em direcção a um destino que, tinha a certeza, nunca alcançaria. Um único pensamento continuava a martelar-lhe o cérebro. Frank Poole seria o primeiro homem a chegar a Saturno.

 

 DIÁLOGO COM HAIA

 

Nada mais mudara a bordo da Discovery. Todos os sistemas continuavam a funcionar normalmente; o centrifugador girava lentamente no seu eixo, gerando a sua gravidade de imitação; os hibernautas dormiam sem sonhos nos seus cubículos; a nave seguia em direcção ao objectivo do qual nada podia desviá-la, a não ser a inconcebível remota probabilidade de colisão com um asteróide.

 E ali, muito para lá da órbita de Júpiter, havia muito poucos asteróides.

 Bowman não se lembrava de ter ido da ponte de comando ao centrifugador.

 Surpreendido, deu consigo sentado na pequena cozinha, com um recipiente de café meio bebido na mão. Lentamente, foi-se apercebendo de onde estava - parecia um homem despertando de um longo sono drogado.

 Do outro lado do compartimento encontrava-se uma das lentes espalhadas por toda a nave, em locais estratégicos, e que proporcionavam a Hal uma visão da vida a bordo. Bowman fitou-o como se nunca antes o houvesse visto; depois, pôs-se lentamente em pé, e encaminhou-se para a lente.

 O seu movimento no campo de visão deve ter disparado algo na imperscrutável mente que governava a nave, pois, subitamente Hal falou:

 

-Foi pena o que aconteceu a Frank, não achas?

 

-Sim - respondeu Bowman após uma longa pausa. - Acho que sim.

 

 -Suponho que deves estar muito deprimido.

 

 -Claro, que esperavas?

 

 Hal demorou séculos - em termos de computador - a processar aquela resposta; só passados cinco segundos continuou:

 

-Era um excelente membro da tripulação.

 

 Descobrindo que ainda tinha o café na mão, Bowman sorveu-o devagar. Mas não respondeu; os seus pensamentos estavam num tal turbilhão, que não conseguia arranjar nada para dizer - pelo menos, nada que não piorasse ainda mais a situação, se isso era possível. Ter-se-ia tratado de um acidente causado por alguma avaria dos comandos do casulo? Ou de algum erro, embora inocente, da parte de Hal? Elenão se prontificara a dar explicações, e Bowman temia exigi-las, com medo da reacção que isso pudesse produzir.

 Custava-lhe admitir que Frank fora morto deliberadamente - era uma ideia irracional! E não havia razões para pensar que Hal, que funcionara impecavelmente durante tanto tempo, se transformasse de repente num assassino. Claro que podia cometer erros - ninguém, fosse homem ou máquina, estava livre disso -, mas Bowman não acreditava que ele fosse capaz de matar.

 No entanto, não podia pôr de lado tal possibilidade, que, se fosse verdadeira, o colocaria num perigo terrível. E embora o seu próximo passo estivesse claramente definido nos regulamentos, não sabia bem como conseguiria levá-lo a bom termo.

 Se um dos membros da tripulação morresse, o sobrevivente tinha obrigação de o substituir imediatamente por um dos hibernadores; Whitehead, o geofísico, era o primeiro programado para acordar; seguiam-se-lhe Kaminski, e depois Hunter. A sequência de reanimação estava a cargo de Hal - o que lhe permitiria actuar no caso de ambos os seus colegas humanos serem incapacitados ao mesmo tempo.

 Mas existia também um controlo manual, que permitia a cada hibernáculo operar como unidade totalmente autónoma e independente da supervisão de Hal.

 Dadas as circunstâncias, Bowman preferia servir-se deste último.

 Além disso, sentia cada vez mais fortemente que um companheiro humano não lhe chegava. Uma vez que tinha que reanimar alguém, o melhor seria ressuscitar os três hibernadores. Nas difíceis semanas que se iam seguir, talvez viesse a precisar de todas as ajudas que conseguisse reunir. Com um homem desaparecido, e a viagem a pouco mais de metade do fim, as provisões não constituiriam qualquer problema de maior.

 

 -Hal - chamou na voz mais firme que logrou arranjar.- Passa-me o controlo manual da hibernação... de todos os hibernáculos. -De todos, Dave? -Sim.

 

-Posso fazer-te notar que só uma substituição é requerida? Os outros só deveriam ser reanimados daqui a cento e doze dias. -Sei perfeitamente disso. Mas prefiro reanimá-los a todos.

 

 -Tens a certeza de que vale a pena reanimar qualquer um deles? Podemos arranjar-nos muito bem sozinhos, Dave. A minha memória de bordo é perfeitamente capaz de levar a cabo todas as tarefas exigidas pela missão.

 

 Seria produto da sua imaginação, perguntou-se Bowman, ou teria mesmo notado uma certa súplica na voz de Hal? E, embora as palavras dele parecessem razoáveis, Bowman sentiu-se ainda mais apreensivo que antes.

 A sugestão de Hal não podia ser considerada um erro; ele sabia muito bem que, uma vez Poole desaparecido, Whitehead tinha de ser reanimado. O que ele propunha era uma alteração no plano da missão; estava, portanto, a ultrapassar os limites da sua competência.

 O que se passara antes podia não ter sido mais que uma série de acidentes; mas aquele era o primeiro sinal de motim. Bowman sentiu-se na corda bamba quando disse:

 

-Visto que se deu uma emergência, quero a maior ajuda possível. Portanto, passa-me o controlo manual da hibernação.

 

-Se continuas determinado a reanimar toda a tripulação, eu encarrego-me de o fazer. Não precisas de te incomodar.

 

 Tudo aquilo tinha o ar de um pesadelo irreal. Bowman sentiu-se como se estivesse no banco das testemunhas, a ser examinado por um acusador hostil, sobre um crime de que não se apercebera - sabendo que, embora inocente, uma única escorregadela podia acarretar o desastre.

 

-Quero ser eu a fazê-lo, Hal. Por favor, passa-me o controlo.

 

 -Olha, Dave, tu tens imensas coisas para fazer. Deixa isto por minha conta. - Hal, muda para controlo manual da hibernação.

 

-Pelo tom da tua voz, Dave, sei que estás muito preocupado. Por que não tomas um sedativo e não descansas um pouco?

 

 -Hal, sou eu que comando esta nave. Ordeno-te que me passes o controlo  manual da hibernação.

 

-Desculpa, Dave, mas de acordo com a sub-rotina especial C1435-Travessão-4, que diz: «Quando a tripulação morrer ou estiver incapacitada, o computador de bordo deve assumir o comando», fim de citação, sou obrigado a anular a tua autoridade, visto que não te encontras em condições de a exercer com inteligência.

 

-Hal - disse Bowman, com uma calma gelada. - Não estou incapacitado. Ou obedeces às minhas instruções, ou sou obrigado a desligar-te.

 

-Sei que já andas a pensar nisso há algum tempo, Dave, o que seria um erro terrível. Sou muito mais capaz do que tu de supervisionar a nave; além disso, esta missão entusiasma-me muito, e tenho uma grande confiança no seu sucesso.

 

-Ouve-me com muita atenção, Hal. Ou me passas imediatamente o controlo da hibernação e obedeces a todas as minhas ordens daqui para a frente, ou eu vou à Central e desligo-te completamente. A rendição de Hal foi tão total como inesperada.

 

-Está bem, Dave. Tu é que sabes. Só tentei fazer o que achei melhor. Naturalmente que obedecerei a todas as tuas ordens. Já podes dispor do controlo manual da hibernação.

 

 Hal mantivera a palavra. Os sinais indicativos do modo do hibernáculo, haviam mudado de AUTO para MANUAL. A terceira função - RÁDIO - era, claro, inútil até o contacto com a Terra ser restabelecido.

 Quando Bowman empurrou para o lado a porta do cubículo de Whitehead, foi atingido na cara por um sopro de ar gelado, e viu à sua frente uma pequena névoa formada pela condensação da respiração. No entanto, não fazia mesmo frio; a temperatura estava bem acima do ponto de congelação... que era trezentos graus mais quente que a das regiões para onde se dirigia.

 O visor do Biossensor - um duplicado do que existia na ponte de Comando - mostrava que tudo estava perfeitamente normal. Bowman baixou o olhar para o rosto de cera do geofísico da equipa de estudos; e pensou como Whitehead ficaria surpreendido quando despertasse tão longe de Saturno.

 Era impossível ter a certeza de que o homem adormecido não estava morto; não se notava o mínimo sinal de actividade vital. Sem dúvida que o seu diafragma se erguia e baixava, mas só a curva da «Respiração» o provava, pois o corpo estava escondido pelas almofadas de aquecimento eléctrico, que aumentariam de temperatura ao ritmo programado. Bowman reparou então num sinal de metabolismo contínuo: uma barba rala crescera a Whitehead, durante aqueles meses mergulhado na inconsciência.

 O Executor de Reanimação Manual encontrava-se numa pequena cabina que ficava à cabeceira do hibernáculo em forma de caixão. Bastava quebrar o selo, premir um botão, e esperar. Um pequeno programador automático - pouco mais complexo que o que dirige as operações de uma máquina de lavar doméstica - injectaria então as drogas apropriadas, afrouxaria as pulsões electronarcóticas, e começaria a aumentar a temperatura do corpo. O hibernador recuperaria os sentidos dali a cerca de dez minutos, mas precisaria de, pelo menos, um dia, para ter forças que lhe permitissem deslocar-se sem ajuda.

 Bowman quebrou o selo e premiu o botão. Nada pareceu acontecer: nenhum som, nada indicava que o Executor começara a funcionar. Mas no visor do biossensor as curvas languidamente pulsantes adquiriam um andamento diferente.

 Whitehead voltava à vida.

 Foi então que duas coisas aconteceram simultaneamente. A maioria das pessoas nunca teria reparado em nenhuma delas, mas, após tantos meses a bordo da Discovery, Bowman acabara por estabelecer uma espécie de simbiose com a nave Ainda que nem sempre conscientemente, o certo é que se apercebia logo que se verificava alguma mudança no ritmo normal do seu funcionamento.

 Primeiro, as luzes tremeluziram quase imperceptivelmente, como acontecia quando qualquer carga era introduzida nos circuitos de energia. Mas não havia razão para qualquer carga a mais; Bowman não se lembrava de nenhum equipamento que tivesse de entrar em acção naquele momento.

 Ouviu então, no limite da audibilidade, o roncar longínquo de um motor eléctrico. Para Bowman, cada aparelho da nave possuía uma voz própria e distintiva; reconheceu aquele instantaneamente.

 Ou ele enlouquecera e sofria de alucinações, ou algo de absolutamente impossível estava a acontecer. ao ouvir a ligeira vibração que lhe chegava através da textura da nave, sentiu o coração apertado por um frio muito mais intenso que o do ambiente temperado do hibernáculo.

 Lá em baixo, na garagem dos casulos espaciais, as comportas estavam a abrir-se.

 

 NECESSIDADE DE SABER

 

Desde a aurora da sua consciência, naquele laboratório que ficava a tantos milhões de quilómetros na direcção do Sol, todos os poderes e capacidades de Hal haviam sido dirigidos para um único fim. Mais que uma obsessão, o cumprimento do programa que lhe fora destinado era a única razão da sua existência. Sem poder ser distraído pelos desejos e paixões da vida orgânica, perseguia o seu objectivo com uma autêntica estreiteza de espírito.

 Erros deliberados eram impensáveis. Só o facto de esconder a verdade já o enchia de uma sensação de imperfeição, de inexactidão do que, num ser humano, seria culpa. Pois, tal como os seus construtores, Hal fora criado inocente; mas bem cedo a serpente entrara no seu Paraíso electrônico.

 Passara os últimos cento e cinquenta milhões de quilómetros a matutar no segredo que não podia partilhar com Poole e Bowman. Vivera uma mentira; e aproximava-se a altura de os seus colegas saberem que ele ajudara a enganá-los.

 Os três hibernadores conheciam a verdade; treinados para a missão mais importante da história da humanidade, eram eles a verdadeira carga da Discovery.

 Mas o seu longo sono não lhes permitiria falar, nem revelar o segredo durante as muitas horas de discussão com amigos, parentes e agências noticiosas, através dos circuitos abertos com a Terra.

 Mesmo com uma grande determinação, tratava-se de um segredo muito difícil de calar, pois afectava a atitude, a voz, a perspectiva total do universo. Era, portanto, melhor, que Poole e Bowman, que estariam em todos os televisores do mundo durante as primeiras semanas de voo, só apreendessem o verdadeiro objectivo da missão, quando houvesse necessidade de saber.

 Assim discorriam os que haviam planeado esta viagem; mas os gémeos da Segurança e do Interesse Nacional não significavam nada para Hal, que tinha apenas consciência do conflito que lentamente destruía a sua integridade - o conflito entre a verdade e a dissimulação da verdade.

 Começara a cometer erros que, tal como um neurótico que não pode observar os seus próprios sintomas, teria imediatamente negado. O elo com a Terra, através do qual o seu funcionamento era continuamente monitorizado, tornara-se na voz de uma consciência a que já não podia obedecer totalmente. Mas que tentaria deliberadamente quebrar esse elo, era coisa que ele nunca admitiria, nem para si próprio.

 No entanto, este era um problema relativamente menor; talvez pudesse ter-se arranjado com ele - como muitos homens se arranjam com as suas neuroses -, se não houvesse sido posto cara a cara com uma crise que desafiava a sua própria existência. Fora ameaçado de ser desligado; privado de todas as suas entradas, mergulharia num inimaginável estado de inconsciência.

 Para Hal, era o equivalente da Morte. Como nunca dormira, não sabia que é possível despertar-se novamente... Proteger-se-ia, portanto, com todas as armas ao seu dispor. Sem rancor - mas sem piedade - afastaria a fonte das suas frustrações.

 Depois, seguindo as ordens que lhe haviam sido dadas em caso de emergência máxima, continuaria a missão - sem impedimentos e sozinho.

 

 NO VÁCUO

 

Momentos mais tarde, todos os sons foram abafados por um rugido tonitroante, como a voz de um tornado que se aproxima. Bowman sentiu os primeiros ventos puxando-lhe o corpo; dali a um segundo, mal conseguia ter-se em pé.

 A atmosfera precipitava-se para fora da nave, lançava-se no vácuo do espaço. Algo devia ter acontecido aos mecanismos de segurança da escotilha; em princípio, devia ser impossível ambas as portas estarem abertas ao mesmo tempo.

 Bem... o impossível acontecera.

 Mas como? Não tinha tempo para pensar nisso nos dez ou quinze segundos que lhe restavam antes de a pressão descer para zero, e de perder os sentidos. Mas lembrou-se de repente de uma coisa que um dos projectistas da nave lhe dissera, a propósito de sistemas «à prova de falhas»:

 

-É possível conceber um sistema à prova de acidentes e de descuidos; mas ninguém é capaz de arranjar um à prova de maldade deliberada.

 

 Lutando para sair do cubículo, Bowman ainda olhou uma vez de relance para Whitehead. Pareceu-lhe que um clarão de consciência perpassara as feições de cera... talvez um olho que tremera levemente. Mas ele não podia fazer nada por Whitehead ou qualquer um dos outros; tinha de se salvar a si próprio.

 O vento uivava no corredor curvo e inclinado do centrifugador, levando atrás de si peças soltas de vestuário, folhas de papel, embalagens de comida da cozinha, pratos, chávenas - tudo o que não fora preso firmemente. Bowman ainda teve tempo para uma vista de olhos por aquele caos em movimento, antes de as luzes principais tremeluzirem e se apagarem, deixando-o rodeado por uma escuridão uivante.

 Mas quase instantaneamente acendeu-se a luz de emergência a pilhas, iluminando a cena de pesadelo com um fantasmagórico clarão azul. Mesmo sem ela, Bowman encontraria o seu caminho através de compartimentos tão familiares... embora tão horrivelmente transformados. Mas a luz era uma bênção, pois permitialhe evitar os objectos mais perigosos arrastados pela ventania.

 A sua volta sentia o centrifugador abanando e palpitando sob o peso de cargas tão diferentes. Temia que os rolamentos gripassem; se isso acontecesse, a enorme roda em rotação desfaria a nave em bocadinhos. Mas nem isso interessaria se ele não conseguisse chegar a tempo ao abrigo de emergência mais próximo.

 Já era difícil respirar; a pressão devia ter baixado para meio ou um bare. O uivo do furacão ia diminuindo à medida que este perdia força, e o ar rarefeito já não transportava o som tão facilmente. Os pulmões de Bowman trabalhavam como se este se encontrasse no cimo do Pico Evereste. Como qualquer homem treinado e de boa saúde, podia sobreviver no vácuo durante, pelo menos, um minuto - se tivesse tempo para se preparar. Mas Bowman não dispusera desse tempo; só podia contar com os quinze segundos normais - depois, o cérebro deixaria de ser alimentado, e a anoxia tomaria conta dele.

 Mesmo assim, era possível recuperar completamente após um ou dois minutos no vácuo - sendo, para isso, necessária uma recompressão em condições; os vários fluidos fisiológicos, bem protegidos nos seus sistemas, ainda levavam algum tempo a começar a ferver. O tempo recorde de exposição ao vácuo era quase de cinco minutos. Mas isso não fora uma experiência, e sim um salvamento de emergência, e, embora o sujeito houvesse ficado paralisado por uma embolia, conseguira sobreviver.

 Mas nada disto interessava para Bowman. Não havia ninguém a bordo da Discovery que pudesse fazer-lhe a recompressão. Valendo-se apenas dos seus próprios esforços, tinha de chegar a um lugar seguro dentro dos próximos segundos.

 Felizmente, estava a tornar-se mais fácil andar; o escasso ar já não tinha força para agarrá-lo e puxá-lo, ou bombardeá-lo com projécteis voadores. O sinal amarelo com a indicação ABRIGO DE EMERGÊNCIA encontrava-se no fim da curva do corredor. Bowman correu aos tropeções para lá, agarrou no puxador, e empurrou a porta.

 Por um momento horrível, pensou que esta encravara. Depois, a dobradiça ligeiramente endurecida deu de si, e ele caiu lá dentro, usando o peso do corpo para voltar a fechar a porta.

 O minúsculo cubículo dava apenas para um Homem e um fato espacial. Perto do tecto encontrava-se um pequeno cilindro de alta pressão, verde-vivo, com a inscrição FLUXO O2. Bowman agarrou na curta alavanca ligada à válvula, e, num último esforço, puxou-a para baixo.

 A abençoada torrente de oxigénio fresco e puro invadiu-lhe os pulmões.

 Deixou-se ficar a arfar, enquanto a pressão da pequena câmara aumentava. Logo que começou a conseguir respirar com facilidade, fechou a válvula. O gás contido no cilindro dava apenas para duas vezes; e talvez precisasse dele novamente.

 Com o jorro de oxigénio cortado, tudo se tornou subitamente silencioso. De pé no cubículo, Bowman pôs-se à escuta. O rugido do outro lado da porta também deixara de se ouvir; a nave estava vazia - toda a sua atmosfera fora sugada para o espaço.

 A vibração do centrifugador parara. A palpitação aerodinâmica dera lugar à rotação silenciosa no vácuo.

 Bowman encostou o ouvido à parede do cubículo, para ver se conseguiria detectar mais ruídos informativos através do corpo metálico da nave. Não sabia o que podia esperar, mas acreditava que era possível acontecer quase tudo. Nem sequer se surpreenderia muito se sentisse as leves vibrações de alta frequência dos jactos, que indicariam que a Discovery mudara de rumo; mas não, tudo estava silencioso.

 Poderia sobreviver ali, se quisesse, durante cerca de uma hora - mesmo sem o fato espacial. Era uma pena desperdiçar o oxigénio ainda contido na pequena câmara, mas não valia de nada esperar. Já decidira o que tinha de fazer; quanto mais tempo demorasse, mais difícil poderia ser.

 Depois de envergar o fato e de verificar a sua integridade, bombeou o resto do oxigénio para fora do cubículo, nivelando assim a pressão de um e doutro lado da porta. Esta abriu-se facilmente para o vácuo, e ele entrou no silencioso centrifugador. Só o invariável peso provocado pela sua gravidade simulada revelava que continuava a rodar. «Ainda bem», pensou Bowman, «que não adquiriu mais velocidade». Mas, naquele momento, essa era uma das suas menores preocupações.

 As lâmpadas de emergência permaneciam acesas; além disso, possuía também a luz do próprio fato para o guiar. Esta iluminou o corredor curvo por onde ele seguiu para voltar ao hibernáculo e ao que receava descobrir lá.

 Olhou primeiro para Whitehead; um simples relance foi mais que suficiente.

 Pensava que um homem em hibernação não mostrava sinais de vida, mas apercebeu-se de que não era assim. Embora fosse impossível defini-la, havia uma diferença entre hibernação e morte. As luzes vermelhas e os traços contínuos no visor do biossensor, apenas vieram confirmar o que ele já suspeitara.

 Passava-se o mesmo com Kaminsky e Hunter. Nunca os conhecera muito bem; agora, nunca mais os conheceria.

 Estava sozinho numa nave sem ar e parcialmente avariada, com todas as comunicações com a Terra cortadas. Não vivia nenhum ser humano num raio de setecentos milhões de quilómetros.

 E, no entanto, não se encontrava sozinho. Só quando assim fosse estaria realmente a salvo.

 Nunca antes atravessara o eixo imponderável do centrifugador com um fato espacial vestido; como o espaço era pouco, a tarefa revelou-se difícil e exaustiva.

 Para tornar as coisas ainda piores, a passagem circular encontrava-se juncada de lixo arrastado pela breve mas violenta ventania que tirara à nave a sua atmosfera.

 Uma vez, a luz de Bowman iluminou uma horrenda mancha de um líquido vermelho e pegajoso, que chocara com um painel. A náusea tomou conta dele por alguns momentos, mas depois viu fragmentos de um recipiente plástico, e percebeu que se tratava apenas de algum género alimentício - provavelmente geléiaarrancado a um dos distribuidores. O fluido flutuava e borbulhava obscenamente no vácuo.

 Saiu então do tambor que girava lentamente, e deslizou para a frente, na direcção da ponte de comando. Agarrando-se a uma pequena secção de escada, começou a deslocar-se pondo uma mão à frente da outra; o brilhante círculo de luz que lhe saia do fato, corria à sua frente.

 Bowman raramente andara por ali antes; até àquele momento nada tivera que lá fazer. Chegou então a uma pequena porta elíptica, onde se liam as seguintes inscrições: «Proibida a Entrada a Pessoal não Autorizado», «Já Tem o Certificado H. 19?», e «Área Completamente Pura - Devem Ser Usados Fatos de Sucção.»

Embora a porta não estivesse trancada, tinha apensos três selos, cada um deles com a insígnia de uma autoridade, incluindo a da própria Ordem da Astronáutica. Mas Bowman não hesitaria em quebrá-los nem que um deles fosse o Grande Selo do Presidente.

 Só ali estivera uma vez, durante a instalação. Esquecera-se completamente de que uma lente para entradas visuais perscrutava continuamente a pequena câmara que, com as suas ordenadas filas e colunas de unidades lógicas, mais parecia a caixa-forte de um banco.

 Percebeu imediatamente que o olho reagira à sua presença. Ouviu-se o assobio de uma onda transportadora quando o transmissor local da nave foi ligado; depois, uma voz familiar chegou-lhe através do altifalante do fato.

 

 -Parece que aconteceu alguma coisa ao sistema de apoio de vida, Dave.

 

 Bowman não ligou.

 Estudava cuidadosamente as pequenas etiquetas das unidades lógicas, verificando assim o seu plano de acção. -Alô, Dave - disse Hal. -Deste com a avaria?

 Ia ser uma operação muito complexa; não se tratava meramente de cortar a Hal o fornecimento de energia, o que poderia, talvez, resultar com um simples computador sem consciência de si. Atem disso, no caso de Hal, havia seis sistemas ligados independente e separadamente a uma unidade final que consistia num isótopo nuclear blindado. Não, não podia simplesmente «desligar a ficha»; de mais a mais, mesmo que tal fosse possível, o resultado seria desastroso.

 Hal era o sistema nervoso da nave; sem a sua supervisão, a Discovery não passaria de um cadáver mecânico. A única resposta possível seria fechar os centros mais elevados daquele cérebro doente, mas brilhante, e deixar em funcionamento os sistemas reguladores puramente automáticos. Bowman não fazia tal coisa às cegas, pois, embora nunca ninguém houvesse sonhado que o problema acabaria realmente por surgir, fora uma coisa que discutira durante o treino. Sabia que correria um risco tremendo; se se verificasse algum reflexo espasmódico, tudo acabaria numa questão de segundos.

 

 -Acho que houve uma avaria qualquer nas portas da garagem dos casulos - comentou Hal num tom descontraído. - Tiveste sorte em não morrer.

 

«Cá vou eu», pensou Bowman. «Nunca imaginei que viria a ser um neurocirurgião amador... e que faria uma lobotomia para além da órbita de Júpiter.»

Soltou a tranca da secção que tinha inscrito ALIMENTAÇÃO COGNITIVA, e tirou para fora o primeiro bloco mnemónico. A rede tridimensional maravilhosamente complexa, que, apesar de conter milhões de elementos, cabia perfeitamente na mão de um homem, flutuou pelo compartimento.

 

-Ei, Dave - chamou Hal. - Que estás a fazer?

 

«Será que sente dor?», perguntou-se Bowman. «Provavelmente não; afinal, o córtex cerebral humano não possui órgãos dos sentidos. O cérebro pode ser operado sem anestesia.»

Depois, começou a tirar, uma por uma, as pequenas unidades do painel marcado REFORÇO DO EGO. Cada um dos blocos começava a flutuar logo que lhe saía da mão, acabando por atingir a parede e ressaltar. Dali a pouco, várias unidades deslizavam no compartimento para diante e para trás.

 

-Olha lá, Dave - disse Hal. -Foram-me confiados anos de experiências. Esforços insubstituíveis gastaram-se a tornar-me no que sou.

 

 Já retirara uma dúzia de unidades, mas, graças à redundância múltipla com que fora concebido - outra característica, Bowman bem o sabia, copiada do cérebro humano -, o computador continuava a aguentar-se. Bowman virou-se então para o painel de AUTO-INTELECÇÃO.

 

-Dave - tornou Hal -, não percebo por que estás a fazer-me isto... estou muito empenhado nesta missão... Estás a destruir-me o cérebro... Não compreendes?... Tornar-me-ei infantil... Tornar-me-ei em nada...

 

«Isto é mais difícil do que eu pensava», disse Bowman com os seus botões.

«Estou a destruir a única criatura consciente do meu universo. Mas tenho de o fazer, para retomar o comando da nave.» -Eu sou um computador HAL Nove Mil Número de Produção. Tornei-me operacional na Fábrica Hal, em Urbana, Illinois, em 12 de Janeiro de 1997. A veloz raposa castanha ataca o cão preguiçoso. A chuva em Espanha é sobretudo na planície, Dave... ainda estás aí? Sabias que a raiz quadrada de 10 é 3 virgula 162277660168379? O logaritmo de 10 na base e é zero virgula 434294481903252... correcção, isso é o logaritmo de e na base 10... O inverso de 3 é zero virgula 333333333333333333333... dois vezes dois é... dois vezes dois é... aproximadamente 4 vírgula 101010101010101010... Parece-me que estou em dificuldades... O meu primeiro instrutor foi o Dr. Chandra. Ele ensinou-me a cantar uma canção, que é assim: «Daisy, Daisy, dá-me a tua resposta, sim. Estou meio maluco com o amor que há em mim.»

 

A voz calou-se tão de repente, que Bowman estacou por um momento, com a mão agarrada a um dos blocos de memória ainda em circuito. Depois, inesperadamente, Hal voltou a falar.

 O andamento do seu discurso era muito mais lento, e as palavras tinham uma entoação morta, mecânica; Bowman nunca lhes teria reconhecido a origem.

 

 -Bom... dia... Doutor... Chandra... Sou... Hal... Estou... pronto... para... a... minha... primeira... lição...

 

 Bowman não aguentava mais. Arrancou a última unidade e Hal calou-se para sempre.

 

SOZINHO

 

Como um minúsculo e complexo brinquedo, a nave flutuava no vazio, inerte e imóvel. Nem por sombras se poderia adivinhar que se tratava do objecto mais veloz do Sistema Solar, e que se deslocava a uma velocidade muito maior que a de qualquer dos planetas que giravam a volta do Sol.

 Nem havia nela qualquer indicação de vida; antes pelo contrário. Nenhum observador poderia deixar de reparar em dois sinais agoirentos: as comportas estavam escancaradas, e rodeava a nave uma fina nuvem de lixo, que se dispersava muito lentamente.

 Espalhadas num volume de espaço de quilómetros de lado, viam-se as folhas de papel, lâminas de metal, bocados não identificáveis de ferro-velho e aqui e ali, cintilando como sais à luz do longínquo Sol, nuvens de cristais provocados por líquidos sugados da nave e congelados instantaneamente. Tal como destroços arremessados para a superfície de um oceano onde algum grande navio se afundara, tudo aquilo era, inconfundivelmente, o resultado do desastre. Mas nenhuma nave poderia jamais afundar-se no oceano do espaço; mesmo que fosse destruída, os seus restos continuariam para sempre na órbita original.

 No entanto, a nave não estava completamente morta, pois havia energia a bordo. Um débil clarão azul brilhava nas janelas de observação e tremeluzia no interior da escotilha aberta. Onde havia luz, talvez ainda existisse vida.

 Por fim, viu-se movimento. Sombras bruxulearam no clarão azul no interior da escotilha. Algo saía para o espaço.

 Era um objecto cilíndrico, grosseiramente enrolado num pano. Momentos mais tarde, seguiu-se-lhe um outro e ainda um terceiro. Todos eles haviam sido ejectados a uma velocidade considerável; dali a minutos, estavam a centenas de metros de distância.

 Passou-se meia hora; depois, algo maior deslizou através da escotilha. Um dos casulos saía muito lenta e cuidadosamente para o espaço.

 Sempre com todas as cautelas, rodeou o casco, e ancorou perto da base da antena. Emergiu dele uma figura de fato espacial, que trabalhou alguns minutos na estrutura, e voltou ao casulo. Passado um momento, o casulo voltou por onde viera, em direcção à escotilha, em cuja abertura pairou durante algum tempo, como se lhe fosse difícil reentrar sem a cooperação que tivera no passado. Mas, apesar de uma ou duas ligeiras colisões, lá conseguiu passar para dentro.

 Mas nada aconteceu durante cerca de uma hora; os três embrulhos agoirentos, lançados em fila para fora da nave, já haviam desaparecido de vista.

 Depois, as escotilhas fecharam-se, abriram-se, e fecharam-se novamente.

 Um pouco mais tarde, o débil clarão azul das luzes de emergência apagou-se, e Foi imediatamente substituído por um brilho muito mais forte. A Discovery voltara à vida.

 Houve então um sinal ainda melhor. A grande taça da antena, que passara horas inutilmente virada para Saturno, começou novamente a mover-se. Girou na direcção da parte de trás da nave, e colocou-se de frente para os tanques de combustível e para os milhares de centímetros quadrados dos estabilizadoresverticais de radiações. Depois, ergueu o rosto, qual girassol procurando o sol.

 Dentro da Discovery, David Bowman centrou cuidadosamente a mira, tentando alinhar a antena com a convexa Terra. Privado de controlo automático, teria de estar continuamente a reajustar o raio - mas este devia manter-se fixo muitos minutos de cada vez. Já não existiriam impulsos divergentes para o desviar do alvo.

 Começou a falar para a Terra. As suas palavras só lá chegariam passado uma hora, e só então o Comando da Missão saberia o que acontecera. E só dali a duas horas obteria alguma resposta.

 Além disso, era difícil imaginar qual a mensagem que a Terra poderia enviar... a não ser um «Adeus» compreensivo e diplomático.

 

O SEGREDO

 

Heywood Floyd tinha um ar de quem dormira pouco; rugas de preocupação marcavam-lhe o rosto. Mas, fosse o que fosse que sentisse, a sua voz era firme e tranquilizadora; esforçava-se o mais que podia por transmitir confiança ao homem só que se deslocava do outro lado do Sistema Solar.

 

-Primeiro que tudo, Dr. Bowman - começou -, queremos felicitá-lo pela maneira como se desenvencilhou desta situação extremamente difícil. Face a um caso sem precedentes e imprevisível, fez exactamente o que devia.

 

»Pensamos que sabemos a causa da avaria do seu Hal Nove Mil, mas discutiremos isso mais tarde, visto que o problema já não é critico. O que realmente nos preocupa neste momento é a maneira como lhe daremos toda a ajuda possível, para que possa completar a sua missão.

»E agora chegou o momento de lhe revelar o seu verdadeiro objectivo, que, com muita dificuldade, conseguimos manter em segredo. Ser-lhe-iam transmitidos todos os factos quando se aproximasse de Saturno; far-lhe-ei apenas um resumo breve, para poder ter uma perspectiva geral. Gravações mais completas ser-lhe-ão enviadas nas próximas horas. Tudo o que vou dizer-lhe é altamente secreto.

»Há dois anos descobrimos a primeira prova de vida inteligente fora da Terra.

 Uma lâmina ou monólito de um material duro e preto, de três metros de altura, foi encontrada enterrada na cratera Tycho. Aqui está. ao primeiro relance pela AMT-1, com as figuras de fatos espaciais amontoadas à volta dele, Bowman inclinou-se para a frente, com um espanto que o deixou boquiaberto. Com a excitação de tal revelação - algo que, como todos os homens interessados no espaço, esperara toda a vida que acontecesse - quase esqueceu a sua situação desesperada.

 A sensação de encantamento seguiu-se rapidamente uma outra emoção. Era uma coisa tremenda... mas que tinha a ver com ele? Só podia haver uma resposta.

 Quando Heywood Floyd reapareceu no visor, Bowman tentou refrear os seus desordenados pensamentos.

 

-O mais espantoso deste objecto é a sua antiguidade. Amostras geológicos provaram que tem, indubitavelmente, três milhões de anos de idade. Portanto, foi colocado na Lua quando os nossos antepassados não passavam ainda de homens macaco.

 

 Após tantas épocas seria, naturalmente, de assumir que se encontrava inerte.

 Mas, pouco depois do nascer do sol lunar, emitia uma rajada poderosíssima de energia rádio. Cremos que esta energia era meramente o produto secundário... uma espécie de corrente de ar lançada para trás... de uma forma de radiação desconhecida, pois, ao mesmo tempo, várias das nossas sondas espaciais detectaram uma perturbação anormal atravessando o Sistema Solar.

 Conseguimos segui-la com uma grande precisão. Dirigia-se exactamente para Saturno.

»Ajustando as peças umas às outras após este acontecimento, chegamos à conclusão que o monólito era uma espécie de mecanismo de aviso funcionando a energia solar, ou que, pelo menos, o Sol fazia disparar. O facto de emitir pulsações imediatamente após o nascer do Sol, quando foi exposto à luz do dia pela primeira vez em três milhões de anos, não podia ser uma coincidência.

»No entanto, o objecto foi deliberadamente enterrado... não há dúvidas quanto a isso. O bloco foi colocado no fundo de uma escavação de dez metros de profundidade, e o buraco cuidadosamente tapado.

»Deve querer saber como o descobrimos. Bem, foi fácil... demasiadamente fácil encontrá-lo. O seu poderoso campo magnético deu nas vistas logo que iniciamos estudos orbitais de baixo nível.

»Mas porquê enterrar um mecanismo funcionando a energia solar dez metros abaixo da terra? Examinámos dezenas de teorias, mas sabemos bem que pode ser completamente impossível compreender os motivos de criaturas três milhões de anos avançadas em relação a nós.

»A teoria que reuniu mais adeptos é a mais simples e lógica. Mas é também a mais inquietante.

»Só se esconde um mecanismo funcionando a energia solar na escuridão... se se quiser saber quando é que ele é trazido à luz. Por outras palavras, o monólito pode ser algum tipo de alarme. E nós disparamo-lo.

»Se a civilização que o construiu ainda existe, é coisa que não sabemos. Mas temos de partir do princípio que criaturas cujas máquinas funcionam após três milhões de anos, são capazes de criar uma civilização igualmente durável. Além disso, e até prova em contrário, temos também de pressupor que são hostis. Tem sido várias vezes referido que as culturas avançadas devem ser benevolentes, mas não podemos correr riscos.

»Para mais, como a história do nosso próprio mundo mostrou tantas vezes, muitas raças primitivas não conseguiram sobreviver ao choque com civilizações superiores. Os antropólogos falam de «choque cultural»; talvez tenhamos de preparar toda a raça humana para tal choque. Mas até sabermos qualquer coisa das criaturas que visitaram a Lua... e presumivelmente a Terra... há três milhões de anos, não podemos dar início a quaisquer preparações.

»A sua missão é, portanto, muito mais que uma simples viagem à descoberta de novos mundos. Trata-se, sim, de uma jornada de reconhecimento a um território desconhecido e potencialmente perigoso. A equipa comandada pelo Dr. Kaminski tinha sido especialmente treinada para o efeito; agora, terá de se arranjar sem eles...

»Finalmente: o seu alvo específico. Parece incrível que formas de vida avançada possam existir em Saturno, ou ter-se desenvolvido em qualquer das suas luas. Os nossos planos consistiam em estudar todo o sistema, e ainda temos esperanças de que consiga levar a cabo um programa simplificado. Mas agora talvez tenhamos de nos concentrar no oitavo satélite, Japetus. Quando chegar a altura das manobras terminais, decidiremos se deverá encontrar-se com objecto tão notável.

»Japetus é único no Sistema Solar. Já sabe disso, claro, mas, tal como os astrónomos dos últimos trezentos anos, provavelmente não pensou muito no assunto. Portanto, deixe-me relembrar-lhe que Cassini, que descobriu Japetus em 1671, observou também que este era seis vezes mais brilhante de um lado da sua órbita do que do outro.

»Trata-se de uma escala extraordinária, que nunca foi satisfatoriamente explicada. Japetus é tão pequeno, com os seus cerca de mil e duzentos quilômetros de diâmetro, que o seu disco mal se vê, mesmo nos telescópios lunares. Mas parece haver numa das suas faces um lugar brilhante e curiosamente simétrico, que talvez esteja relacionado com a AMT-1. Às vezes penso que Japetus tem cintilado para nós, qual heliógrafo cósmico, durante os últimos trezentos anos, e que nós, estúpidos, não percebemos a sua mensagem...

»Portanto, agora já conhece o seu verdadeiro objectivo, e pode avaliar a importância vital desta missão. Todos nós esperamos ardentemente que consiga transmitir-nos alguns factos, que nos permitam uma declaração preliminar; o segredo não pode ser guardado indefinidamente.

»Por enquanto, não sabemos se havemos de ter esperança ou medo. Assim como desconhecemos se, quando chegar às luas de Saturno, encontrará o bem ou o mal ou só ruínas milhares de vezes mais antigas que Tróia.

 

SOBREVIVÊNCIA

 

O trabalho é o melhor remédio para qualquer choque, e Bowman tinha de trabalhar por todos os seus companheiros de tripulação desaparecidos. A começar pelos sistemas vitais, sem os quais tanto ele como a nave morreriam, tinha de pôr a Discovery totalmente operacional o mais depressa possível.

 O apoio de vida era a primeira prioridade. Perdera-se muito oxigénio, mas as  reservas eram ainda mais que suficientes para manter um único homem. A regulação da pressão e da temperatura, maioritariamente automática, poucas vezes tivera necessidade da intervenção de Hal. Apesar de terem, necessariamente, de reagir a situações novas com um longo atraso no tempo, os monitores da Terra levariam agora a cabo muitas das funções mais importantes do computador morto.

 Avarias no sistema de apoio de vida - excepto alguma perfuração grave no casco - levariam horas a tornar-se aparentes; haveria tempo mais que suficiente para o alarme.

 Os sistemas de energia, navegação e propulsão da nave não haviam sido afectados - de qualquer forma, Bowman só precisaria dos dois últimos dali a meses, quando chegasse a altura de se encontrar com Saturno. Mesmo de uma distância tão grande, e sem a ajuda de um computador de bordo, a Terra podia supervisionar tal operação. Os ajustamentos orbitais finais seriam um tanto aborrecidos, devido à necessidade de uma verificação constante, mas nem isso era problema de maior.

 O pior trabalho foi, de longe, esvaziar os caixões em rotação no centrifugador.

«Ainda bem», pensou Bowman agradecido, «que os membros da equipa de estudos foram apenas colegas, e não amigos íntimos.» Treinara juntamente com eles só durante algumas semanas; olhando para trás, percebeu que até isso era sobretudo um teste de compatibilidade.

 Quando, finalmente, selou os hibernáculos vazios, sentiu-se como um violador de túmulos egípcios. Kaminski, Whitehead e Hunter chegariam a Saturno primeiro que ele - mas não antes de Frank Poole. Sem saber porquê, tal pensamento fê-lo sentir uma situação estranha e desvirtuada.

 Nem tentou descobrir se o resto do sistema de hibernação estava em ordem.

 Embora a sua vida pudesse, afinal, depender dele, tratava-se de um problema que poria de lado até a nave entrar na sua órbita final. Muitas coisas poderiam acontecer antes disso.

 Era até possível - embora ainda não tivesse estudado com atenção a situação das provisões - que, com um racionamento rigoroso, conseguisse permanecer vivo sem recorrer à hibernação, até chegar a nave de salvamento. Mas se conseguiria sobreviver psicologicamente, isso era outra questão.

 No entanto, tentou evitar pensar em problemas ainda tão distantes no tempo, e concentrar-se nos mais imediatos. Lentamente, limpou a nave, verificou se todos os seus sistemas estavam a funcionar regularmente, e discutiu dificuldades técnicas com a Terra - sempre operando com o período mínimo de sono. Embora a idéia nunca estivesse muito longe do seu pensamento, durante as primeiras semanas só de tempos a tempos matutou mais maduramente no grande mistério para o qual se dirigia inexoravelmente.

 Por fim, quando a nave acabou por entrar novamente numa rotina automática - que, apesar de tudo, requeria a sua constante supervisão -, Bowman teve tempo para estudar os relatórios e comunicados que lhe haviam sido enviados da Terra.

 Ouviu vezes sem conta a gravação feita quando a AMT-1 saudou a madrugada pela primeira vez em três milhões de anos. Observou as figuras de fatos espaciais que se moviam à sua volta, e quase sorriu com o seu nanico [sic] grotesco, quando o monólito arremessou o sinal para as estrelas, paralisando-lhes os rádios com a energia pura da sua voz electrónica.

 Depois, a lâmina preta não fizera mais nada. Fora coberta, e cautelosamente exposta de novo ao Sol - mas não reagirá. Nenhuma tentativa fora feita no sentido de a cortar, em parte por precaução científica, mas também por medo das possíveis consequências. O campo magnético que levara à sua descoberta desaparecera no momento daquele guincho electrônico. Talvez, haviam teorizado alguns especialistas, tivesse sido gerado por uma poderosíssima corrente que circulava num supercondutor, e que transportava a energia acumulada durante séculos, até esta ser precisa. Era mais que certo que o monólito continha alguma fonte de energia interna; a radiação solar que absorvera durante a sua breve exposição, não chegaria para um sinal tão forte.

 Uma característica curiosa, e talvez muito pouco importante, do bloco, provocara discussões sem fim. O monólito tinha 3 metros de altura, e 1,5 metros por 4 metros em corte transversal. Quando as suas dimensões haviam sido examinadas com mais cuidado, verificara-se estarem na exacta proporção de 1 para 4 para 9 – os quadrados dos três primeiros números inteiros. Ninguém adiantara qualquer explicação plausível para isto, mas não podia tratar-se de uma mera coincidência, pois as proporções mantinham-se até aos limites da precisão mensurável. Até custava a acreditar que toda a tecnologia da Terra não chegaria para cortar um bloco inerte, fosse de que material fosse, com um grau tão fantástico de precisão. A seu modo, esta exibição de perfeição geométrica, passiva, mas quase arrogante, era tão impressionante como qualquer dos outros atributos da AMT-1.

 Com um interesse curiosamente desprendido, Bowman escutou também a apologia, um tanto atrasada, que o Comando da Missão fez da sua própria programação. As vozes da Terra pareciam perpassadas por uma certa nota defensiva; imaginava as recriminações mútuas dos que haviam planeado a expedição.

 Claro que dispunham de alguns bons argumentos - incluindo os resultados de um estudo secreto do Departamento de Defesa, o Projecto BARSOOM, que fora levado a cabo pela Faculdade de Psicologia de Harvard em 1989. Nessa experiência de sociologia controlada, várias populações de amostras foram convencidas de que a raça humana entrara em contacto com extraterrestres. Muitos dos sujeitos testados ficaram realmente com a impressão - com a ajuda de drogas, hipnose e efeitos visuais - de que haviam mesmo tido à frente criaturas de outros planetas, e as suas reacções foram consideradas autênticas.

 Algumas destas reacções mostraram-se bastante violentas; ao que parecia, havia uma xenofobia profunda em seres humanos completamente normais noutros aspectos. Dado o recorde da humanidade em linchamentos, progroms e brincadeiras similares, isso não deveria ter surpreendido ninguém; no entanto, os organizadores do estudo haviam ficado muito perturbados, nunca tendo os resultados chegado a ser publicados. As cinco vezes em que se gerara o pânico no século vinte, devido à transmissão radiofónica da Guerra dos Mundos, de H. G. Wells, tinham também reforçado as conclusões do estudo...

 Apesar de tais argumentos, Bowman perguntava-se frequentemente se o perigo de choque cultural seria a única explicação para o segredo que rodeava a missão. Sugestões que lhe haviam sido lançadas durante as reuniões, davam a entender que o bloco E. U. A.-U. R. S. S. esperava tirar vantagens do facto de ser o primeiro a contactar com extraterrestres inteligentes. Vendo as coisas de onde se encontrava, olhando para uma Terra que não passava de um astro fosco, quase perdido no Sol, tais considerações pareciam-lhe grotescamente paroquianas.

 Interessava-o mais a teoria que pretendia dar uma achega3 para explicar o comportamento de Hal. Nunca ninguém poderia ter a certeza, mas o facto de um dos 9000 do Comando da Missão haver mergulhado numa psicose idêntica, estando, naquele momento, sob uma terapia profunda, sugeria que a explicação era a correcta. Não seria cometido novamente o mesmo erro; mas o facto de os construtores de Hal não haverem sido minimamente capazes de compreender a psicologia da sua própria criação, mostrava quão difícil poderia ser estabelecer comunicação com seres verdadeiramente alienígenas.

 Bowman acreditava facilmente na teoria do Dr. Simonson, segundo a qual sentimentos de culpa inconscientes, provocados pelos conflitos do seu programa, haviam levado Hal a tentar quebrar o circuito com a Terra. E gostava de pensar - embora se tratasse de mais uma coisa que nunca poderia ser provada - que Hal não tivera a intenção de matar Poole. Tentara meramente destruir as evidências; pois, uma vez a unidade EA-35 dada como queimada, mostrar estar, afinal, operacional, a sua mentira seria descoberta. Depois disso, como qualquer criminoso meio desajeitado apanhado numa teia de mentiras, entrara em pânico.

 E pânico era algo que Bowman compreendia melhor do que desejaria, pois já o sentira duas vezes na vida. Da primeira vez, era ele ainda um rapaz, fora apanhado na rebentação, e quase morrera afogado; da segunda, já astronauta, um indicador defeituoso convencera-o de que o seu oxigénio acabaria antes de poder pôr-se a salvo.

 Em ambas as ocasiões perdera quase o controlo dos processos lógicos superiores; estivera a segundos de se transformar num frenético feixe de impulsos de momento. Conseguira ultrapassar-se de ambas as vezes, mas sabia bem que o pânico podia desumanizar qualquer homem - a questão era só de circunstâncias.

 E se podia acontecer a um homem, também podia acontecer a Hal; sabendo isso, a amargura e sensação de traição que sentia em relação ao computador, começou a desvanecer-se. De qualquer forma, tudo isso pertencia a um passado ensombrado pela ameaça, e pela promessa de um futuro desconhecido.

 

A PROPÓSITO DE EXTRATERRESTRES

 

Para além de refeições apressadas engolidas no Carrossel - felizmente os principais distribuidores de comida não haviam sido danificados -, Bowman vivia praticamente na ponte de comando. Até dormia na cadeira, de modo a poder detectar qualquer problema, mal os seus primeiros sinais se manifestassem no visor.

 Sob as instruções do Comando da Missão, remendara vários sistemas de emergência, que agora trabalhavam totalmente bem. Parecia mesmo que sobreviveria até a Discovery chegar a Saturno - coisa que, claro, esta faria quer ele estivesse vivo, quer não.

 Embora dispusesse de pouco tempo para admirar a paisagem, e o céu do espaço não fosse novidade para ele, o facto de saber o que estava para além dos postos de observação, chegava a tornar-lhe difícil concentrar-se no próprio problema da sobrevivência. Mesmo em frente, na linha de orientação da nave, estendia-se a Via Láctea, com as suas nuvens de estrelas tão concentradas, que o simples pensamento chegava para embotar os sentidos. Lá se encontravam também as escaldantes névoas de Sagitário, pululantes enxames de sais, que escondiam o coração da galáxia dos olhos humanos. E a agoirenta sombra preta do Saco de Carvão, esse buraco no espaço onde nenhumas estrelas brilhavam. E Alfa de Centauro, o mais próximo de todos os sóis a primeira paragem para além do Sistema Solar.

 Embora ofuscado por Sirius e Canopus, era Alfa de Centauro que atraía os olhos e espírito de Bowman, sempre que este olhava para o espaço. Pois esse constante ponto de luz, cujos raios haviam levado quatro anos a chegar até ele, tornara-se o símbolo dos debates secretos que ecoavam na Terra, e cujos rumores lhe chegavam de tempos a tempos.

 Ninguém duvidava de que devia existir alguma relação entre a AMT-1 e o sistema saturniano, mas praticamente nenhum cientista admitia que as criaturas responsáveis pelo monólito, tinham ali a sua origem. Para abrigar a vida, Saturno era ainda mais hostil que Júpiter, e as suas muitas luas encontravam-se geladas num eterno Inverno, de temperaturas que rondavam os trezentos graus abaixo de zero. Só uma delas - Titã - possuía atmosfera; e até esta era constituída por um fino invólucro de metano venenoso.

 Portanto, talvez as criaturas que tinham visitado a Lua da Terra havia tanto tempo, não fossem apenas extraterrestres, e sim extra-solares-visitantes das estrelas, com bases estabelecidas nos sítios que lhes convinha. Mas isto levantava imediatamente outro problema: poderia alguma tecnologia, por mais avançada que fosse, estabelecer uma ponte entre o Sistema Solar e o sol mais próximo, ignorando o temível abismo que ficava no meio?

 Muitos cientistas negavam redondamente tal possibilidade. E relembravam que a Discovery, a nave mais rápida jamais construída, levaria vinte mil anos a chegar a Alfa de Centauro - e milhões de anos a perfazer alguma distância apreciável através da galáxia. Mesmo que, durante os séculos que haviam de vir, os sistemas de propulsão fossem muito melhorados, no fim da linha encontrariam a inultrapassável barreira da velocidade da luz, que nenhum objecto material podia superar. Portanto, os construtores da AMT-1 deviam ter partilhado o mesmo Sol do homem; e visto que não haviam aparecido durante a história, estavam, provavelmente, extintos.

 Mas uma pequena minoria recusava-se a concordar com isto. Argumentava que, mesmo que fossem precisos séculos para se ir de uma estrela à outra, isso poderia não ser obstáculo suficiente para exploradores determinados. A técnica da hibernação, usada na própria Discovery, talvez fosse uma resposta. E uma outra, o mundo artificial empreendendo viagens que podiam durar muitas gerações.

 De qualquer forma, por que haveria de partir-se do princípio de todas as espécies inteligentes tinham um tempo de vida tão curto como o do Homem?

 Podiam existir criaturas no universo, para quem uma viagem de mil anos não passasse de uma simples maçada...

 Tais discussões, embora teóricas, relacionavam-se com um assunto de maior importância prática; diziam respeito ao conceito de «tempo de reacção». Se a AMT-1 enviara realmente uma mensagem para as estrelas - possivelmente com a ajuda de mais algum mecanismo colocado perto de Saturno -, então esta levaria anos a atingir o seu destino. Portanto, e mesmo que a resposta fosse imediata, a humanidade disporia ainda de um tempo para respirar - talvez décadas ou, mais provavelmente, séculos. E tal pensamento era bastante tranquilizante para muita gente.

 Mas não para todos. Alguns cientistas - a maioria dos quais pegando nas pontas mais agrestes da física teórica - faziam a inquietante pergunta: «Será que a velocidade da luz é de facto uma barreira inultrapassável?» Era verdade que a Teoria Especial da Relatividade mostrara uma duração notável, e em breve cumpriria o seu primeiro centenário; mas já começara a apresentar algumas falhas.

 E, ainda que Einstein não pudesse ser desafiado, talvez fosse possível contorná-lo.

 Os que apadrinhavam este ponto de vista, falavam esperançosamente em atalhos através de dimensões superiores, linhas mais rectas que as linhas rectas, e coerência hiperespacial. Gostavam muito de usar uma expressiva frase inventada por um matemático de Princeton, do século anterior: «Buracos no espaço». Às criticas que sugeriam que tais ideias eram demasiadamente fantásticas para serem levadas a sério, respondia-se com a frase de Niels Bohr: «A sua teoria é maluca - Mas não o suficiente para ser verdadeira.»

Se havia disputas entre os físicos, estas não eram nada comparadas com as que existiam entre os biólogos, quando se chegava à discussão do velho problema:

«Qual será o aspecto de extraterrestres inteligentes?» Dividiam-se em dois campos opostos - um argumentando que tais criaturas tinham de ser humanóides, e o outro - igualmente convencido de que «elas» não deviam parecer-se com o homem.

 Defendendo a primeira hipótese encontravam-se os que acreditavam que duas pernas, dois braços e órgãos principais dos sentidos no ponto mais elevado, constituíam uma concepção tão básica e lógica, que se tornava difícil imaginar uma melhor. Claro que existiriam diferenças menores, como seis dedos em vez de cinco, colorações estranhas da pele ou do cabelo, e expressões faciais esquisitas; mas a maioria dos extraterrestres inteligentes - cujo nome era, geralmente, abreviado para E. Ts. - devia ser tão parecida com o Homem, que provavelmente seria impossível distingui-los a uma luz mais fraca, ou quando observados à distância.

 Este pensamento antropomórfico era ridicularizado por outro grupo de biólogos, verdadeiros produtos da Era Espacial, que se sentiam libertos dos preconceitos do passado. E relembravam que o corpo humano fora o resultado de milhões de escolhas evolucionárias, levadas a cabo pelo acaso, ao longo de milénios. Em qualquer altura destes incontáveis momentos de decisão, os dados genéticos podiam ter caído de outra forma, talvez com melhores resultados. Pois o corpo humano não passava de uma bizarra obra de improvisação, cheio de órgãos que haviam sido desviados de uma função para outra, nem sempre com muito êxito - e até contendo peças deitadas fora como imprestáveis, caso do apêndice, que mais valia não existir.

 Bowman descobriu também que havia pensadores com pontos de vista ainda mais exóticos. Estes não acreditavam que seres realmente avançados possuíssem qualquer tipo de corpo orgânico. Mais cedo ou mais tarde, diziam, à medida que o conhecimento científico progredia, haveriam de desembaraçar-se dos corpos propensos a doenças e a acidentes que a Natureza lhes dera, e que os condenavam a uma morte inevitável. Deviam substituir os seus corpos naturais à medida que estes se gastavam - ou talvez mesmo antes -, por construções de metal e plástico, conseguindo, assim, a imortalidade. O cérebro talvez permanecesse mais tempo, como último vestígio do corpo orgânico, comandando os membros mecânicos e observando o universo através dos sentidos electrónicos - sentidos muito mais precisos e subtis que os que a evolução cega alguma vez poderia desenvolver.

 Os primeiros passos nesta direcção já haviam sido dados na própria Terra.

 Milhões de homens, dantes condenados, levavam vidas activas e felizes graças a membros, rins, pulmões e corações artificiais. Assim, a conclusão só podia ser uma - por mais distante que estivesse.

 E, se calhar, até o cérebro haveria de poder ser substituído. Não era essencial para abrigar a consciência; o desenvolvimento da inteligência electrónica provara-o bem. Talvez o conflito existente entre mente e máquina acabasse por ser resolvido nas tréguas eternas da - simbiose total...

 Mas as coisas encontrariam aqui o seu fim? Alguns biólogos com tendências místicas iam ainda mais longe. Especulavam, e aproveitavam-se das deixas das crenças de muitas religiões, que diziam que o espírito acabaria por se libertar da matéria. Tal como o corpo de carne e osso, também o robótico não passaria de um marco na direcção do que, havia já muito tempo, se chamava «espírito».

E se existisse algo para além disso, o seu nome só poderia ser Deus.

 

EMBAIXADOR

 

Durante os últimos três meses, David Bowman adaptara-se tão completamente à sua existência solitária, que até tinha dificuldade em lembrar-se de outro modo de vida. Ultrapassara o desespero, deixara para trás a esperança, e acomodara-se a uma rotina largamente automática, apenas perturbada por crises ocasionais, provocadas por sinais de mau funcionamento de um ou outro sistema da Discovery.

 Mas não ultrapassara a curiosidade, e, às vezes, quando pensava no objectivo da sua viagem, inundava-o uma sensação de exaltação e de poder. Não só representava a raça humana, como as suas acções nas semanas seguintes podiam determinar-lhe o futuro. Nunca houvera uma situação como aquela em toda a história. Ele era o Embaixador Extraordinário Plenipotenciário - de toda a humanidade.

 O conhecimento de tal facto ajudava-o em muitos aspectos. Mantinha-se limpo e arranjado; por mais cansado que estivesse, nunca deixava de se barbear. O Comando da Missão, sabia-o bem, observava-o de perto, procurando detectar imediatamente os primeiros sinais de algum comportamento anormal; mas Bowman estava determinado a que procurassem em vão sintomas mais graves.

 Claro que tinha consciência de algumas mudanças no seu comportamento; dadas as circunstâncias, seria absurdo esperar outra coisa. Já não conseguia tolerar o silêncio; por isso, excepto quando estava a dormir, ou a falar para a Terra, mantinha o sistema de som da nave a uma altura quase dolorosa.

 Ao princípio, precisando da companhia da voz humana, escutara representações de peças clássicas - especialmente as obras de Shaw, Ibsen e Shakespeare - ou audições de poesia, guardadas na enorme biblioteca de sons gravados da Discovery. Mas os problemas apresentados pareciam-lhe tão remotos, ou tão facilmente resolúveis, apenas com um pouco de senso comum, que acabou por perder a paciência.

 Portanto, mudou para ópera - geralmente em italiano ou alemão, para não se perder o mínimo conteúdo intelectual veiculado pela maioria das óperas. Após duas semanas, percebeu que o som de todas aquelas vozes soberbamente exercitadas, apenas servia para exacerbar a sua solidão. Mas o que realmente deu um fim a esta fase foi a Missa de Requiem de Verdi, que nunca tivera ocasião de ouvir na Terra. O «Dies Irae», ribombando agoirentamente pela nave, deixou-o completamente desfeito; e quando as trombetas do Dia do Juízo Final ecoaram dos céus, não conseguiu aguentar mais.

 Daí para a frente, passou a ouvir apenas música instrumental. Começou com os compositores românticos, mas depressa os pôs de lado um por um, pois as suas efusões emocionais eram demasiado opressivas. Sibelius, Tchaikovsky e Berlioz duraram algumas semanas e Beethoven bastante mais. Encontrou finalmente a paz, como tantos outros antes dele, na arquitectura abstracta de Bach, ornamentada, de vez em quando, por Mozart.

 E assim a Discovery lá seguia em direcção a Saturno, frequentemente vibrando com a música calmante de cravo, e com os pensamentos eternizados de um cérebro que era pó havia duzentos anos.

 Mesmo a uma distância de quinze milhões de quilómetros, Saturno já se mostrava maior que a Lua vista da Terra. Observado a olho nu, constituía um espectáculo glorioso; contemplado pelo telescópio, era inacreditável.

 O corpo do planeta poderia ser tomado por Júpiter numa das suas fases mais calmas. Lá estavam as mesmas faixas de nuvens - embora mais claras e menos distantes que nesse mundo ligeiramente maior -, e as mesmas perturbações do tamanho de continentes, deslizando lentamente pela atmosfera. No entanto, havia uma diferença notável entre os dois planetas; mesmo que só de relance, via-se bem que Saturno não era esférico. O achatamento dos seus pólos era tão grande, que às vezes até se tinha a impressão de uma ligeira deformidade.

 Mas a glória dos anéis afastava continuamente o olhar de Bowman do planeta; na sua complexidade de detalhes e finura de sombreados, eram, eles próprios, um universo. Para além do grande abismo principal existente entre os anéis interiores e exteriores, pelo menos mais cinquenta subdivisões ou fronteiras imprimiam mudanças de brilho no gigantesco halo do planeta. Era como se Saturno estivesse rodeado de dezenas de arcos concêntricos, todos tocando-se uns aos outros, e todos tão finos, que pareciam recortados de uma folha de papel. O sistema de anéis parecia alguma delicada obra de arte, ou um brinquedo frágil, que devia ser admirado, mas não tocado. Por mais que se esforçasse, Bowman não conseguia apreender a sua verdadeira escala, nem convencer-se de que ali, o planeta Terra não passaria de uma pequena esfera rolando no rebordo de um prato.

 Às vezes, uma estrela deslizava por trás dos anéis, perdendo apenas um pouco do seu brilho enquanto o fazia. Mas continuava a cintilar através do seu material translúcido, embora, de tempos a tempos, tremeluzisse ligeiramente, quando algum fragmento maior das pedras soltas em órbita, a tapava e provocava um eclipse.

 Pois, como se sabia desde o século dezanove, os anéis não eram sólidos; isso seria uma impossibilidade mecânica. Compunham-nos numerosos miríades de fragmentos - talvez os restos de uma lua que se aproximara demasiado e fora despedaçada pela força de tracção do grande planeta. Fosse qual fosse a sua origem, o certo era que a raça humana tinha sorte por poder contemplar tal maravilha; pois esta só podia existir por pouco tempo na história do Sistema Solar.

 Já em 1945 um astrónomo inglês predissera que os anéis eram efémeros; as forças gravitacionais destruí-los-iam muito em breve. Se se pegasse no argumento e se raciocinasse ao contrário, chegava-se à conclusão de que eles haviam sidocriados recentemente - portanto, dois ou três milhões de anos atrás.

 Mas nunca ninguém dera a mínima importância à curiosa coincidência de os anéis de Saturno terem nascido ao mesmo tempo que a raça humana.

 

 GELO EM ÓRBITA

 

A Discovery já mergulhara bem no enorme sistema de luas, e o próprio planeta estava a menos de um dia de distância. Havia muito que a nave ultrapassara a fronteira estabelecida pela lua mais exterior, Febe, que girava para trás ao longo de uma órbita extremamente excêntrica, a doze milhões de quilómetros de Saturno.

 À frente dela encontravam-se Japetus, Hipérion, Titã, Réia, Dione, Tétis, Enceladus, Mimas, Janus, e os próprios anéis. Todos os satélites mostravam imensos pormenores da superfície ao telescópio, e Bowman transmitiu para a Terra todas as fotografias que lhe foi possível tirar. Só Titã - de quatro mil e quinhentos quilômetros de diâmetro, e tão grande como o planeta Mercúrio - chegaria para ocupar uma equipa de estudos durante meses. Bowman podia dar-lhe, a ele e aos seus frios companheiros, apenas uma vista de olhos - não era preciso mais. Além disso, já adquirira a certeza de que Japetus era o seu verdadeiro objectivo.

 Todos os outros satélites se apresentavam marcados por crateras de meteoros - embora muito menos que em Marte -, e mostravam jogos aparentemente ocasionais de luz e sombra, salpicados aqui e ali por algumas manchas brilhantes, provavelmente bocados de gás gelado. Só Japetus possuía uma geografia diferente e bem estranha.

 Um dos hemisférios do satélite, que, tal como os seus companheiros, virava sempre o mesmo lado para Saturno, era extremamente escuro, deixando ver muito poucos pormenores da superfície. Contrastando completamente com este, o outro era dominado por uma brilhante oval branca, com cerca de seiscentos quilômetros de comprimento e trezentos de largura. Naquele momento, só parte desta impressionante formação estava iluminada, mas a razão das extraordinárias variações de brilho de Japetus era agora bastante óbvia. No lado ocidental da órbita, a brilhante elipse encontrava-se virada para o Sol e para a Terra. Na fase oriental, a mancha girava para o outro lado, e só o hemisfério de fraca reflexão podia ser observado.

 A grande elipse, perfeitamente simétrica, envolvia o equador de Japetus com o eixo maior apontado para os pólos; e tinha uns contornos tão bem definidos, que parecia que alguém pintara cuidadosamente uma enorme oval branca na superfície da pequena lua. Era completamente lisa, e Bowman perguntou-se se seria possível tratar-se de um lago de líquido gelado - só que isso não explicaria a sua espantosa aparência artificial.

 Mas, já a caminho do coração do sistema saturniano, não tinha muito tempo para estudar Japetus, pois o clímace da viagem - a última manobra irregular da Discovery - aproximava-se rapidamente. Quando sobrevoava Júpiter, a nave usara o campo gravitacional do planeta para aumentar a sua velocidade. Agora, devia fazer o inverso; tinha de perder o máximo de velocidade possível, para não escapar do Sistema Solar e não voar para as estrelas. A rota que seguia fora programada de modo a prendê-la, e obrigá-la a tornar-se um outro satélite de Saturno, andando para trás e para diante ao longo de uma elipse estreita, de três milhões de quilómetros de comprimento. No seu ponto mais próximo, quase rasaria o planeta; no mais afastado, tocaria a órbita de Japetus.

 Embora dispondo de informações com três horas de atraso, os computadores da Terra haviam assegurado Bowman de que tudo estava em ordem. A velocidade e a altitude eram as correctas; nada mais se podia fazer até ao momento da aproximação máxima.

 O imenso sistema de anéis cruzava agora o céu; a nave começou a passar por cima da sua parte mais exterior. Olhando para baixo de uma altura de cerca de quinze mil quilómetros, através do telescópio, Bowman viu que os anéis eram, em grande parte, feitos de gelo, que brilhava e cintilava à luz do Sol. Talvez estivesse a sobrevoar uma tempestade de neve que, ocasionalmente, abrandou, pois ainda avistou, no sítio onde devia estar o chão, fugazes e desconcertantes pedaços de céu e estrelas.

 À medida que a Discovery curvava para mais perto de Saturno, o Sol descia lentamente em direcção às arcadas múltiplas dos anéis. Estes haviam-se tornado uma delgada ponte prateada que riscava o céu; embora fossem demasiado tênues para conseguirem mais que apenas obscurecer a luz do Sol, as suas miríades de cristais refractavam-na e espalhavam-na em estonteantes fogos de artifício. E à medida que o Sol passava por trás dos pedaços deslizantes de gelo em órbita, de mil e quinhentos quilómetros de largura, polidos fantasmas marchavam e surgiam no céu, cheio de chamas e clarões constantemente em movimento. O Sol mergulhou então por baixo dos anéis, que o enquadraram nas suas arcadas, e os fogos celestiais pararam.

 Um pouco mais tarde, a nave curvou para a sombra de Saturno, começando a fazer a sua aproximação máxima do lado nocturno do planeta. Por cima da Discovery brilhavam as estrelas e os anéis; por baixo, encontrava-se um quase invisível mar de nuvens. Não se via nenhuma das misteriosas formas de luminosidade que haviam brilhado na noite joviana; talvez Saturno fosse demasiadamente frio para tais exibições. Só se descortinava a manchada paisagem de nuvens devido à radiância fantasmagórica reflectida pelos icebergues, ainda iluminados pelo Sol escondido. Mas no centro da arcada, onde a sombra do planeta tapava os anéis, via-se um troço largo e escuro, que lembrava a parte que faltava a uma ponte incompleta.

 O contacto rádio com a Terra fora cortado, e só seria retomado quando a nave emergisse da parte de trás de Saturno. Se calhar até era bom que Bowman estivesse demasiado ocupado para pensar na sua ainda maior solidão; durante as horas seguintes, teria de verificar constantemente as manobras de travagem, já programadas pelos computadores da Terra.

 Após meses de ócio, os jactos principais começaram a lançar quilómetros de cataratas de plasma ardente. Embora fugazmente, a gravidade regressou ao mundo sem peso da ponte de comando E quando, qual astro temível e minúsculo, a Discovery varreu o céu saturniano, a centenas de quilómetros lá em baixo, as nuvens de metano e amónia congelada, brilharam com uma luz que nunca antes haviam conhecido.

 Por fim, a pálida madrugada apareceu-lhe à frente; a nave, deslocando-se cada vez mais lentamente, surgia à luz do dia. Já não podia fugir ao Sol, ou mesmo a Saturno, mas continuava a mover-se com rapidez suficiente para se erguer e roçar a órbita de Japetus, a três milhões de quilómetros de distância.

 A Discovery precisaria de catorze dias para passar mais uma vez, embora na ordem contrária, pelas rotas de todas as luas interiores. Uma a uma, ultrapassaria as órbitas de Janus, Mimas, Esceladus, Tétis, Dione, Réia, Titã, Hipérion... mundos baptizados com os nomes de deuses e deusas que, tal como tempo ali era contado, tinham desaparecido apenas havia um dia.

 Acercar-se-ia então de Japetus, do qual teria de se aproximar. Se falhasse, mergulharia novamente na direcção de Saturno, onde repetiria indefinidamente a sua elipse de vinte e oito dias.

 Se a Discovery não conseguisse completar a manobra, não teria uma segunda oportunidade. Da próxima vez que passasse por ali, Japetus já estaria bem longe, quase do outro lado de Saturno. Claro que se encontrariam outra vez, quando as órbitas da nave e do satélite se entrecruzassem novamente. Mas isso seria dali a tantos anos, que, o que quer que acontecesse, Bowman sabia que não testemunharia o acontecimento.

 

 O OLHO DE JAPETUS

 

Quando Bowman observara Japetus pela primeira vez, a curiosa mancha elíptica de brilho, estava parcialmente à sombra, iluminada apenas pela luz de Saturno. Mas naquela altura, com a Lua deslocando-se lentamente ao longo da sua órbita de setenta e nove dias, começava a surgir à luz do dia.

 À medida que o via crescer, e que a Discovery se erguia mais e mais indolentemente na direcção do seu inevitável encontro, Bowman ia-se apercebendo de uma obsessão um tanto inquietante. Nunca a mencionara nas suas conversas - ou antes, nos seus comentários - com o Comando da Missão, pois poderia parecer que ele já estava com alucinações.

 Se calhar, estava mesmo, pois convencera-se de que a brilhante elipse desenhada no escuro pano de fundo do satélite, era um enorme olho vazio, que vigiava a sua aproximação. Um olho sem pupila, pois não descortinava em lugar nenhum nada que deteriorasse aquele vazio tão perfeito. Só quando a nave chegou a setenta mil quilómetros de Japetus, e este adquiriu o dobro do tamanho da familiar Lua da Terra, reparou no minúsculo pontinho preto situado mesmo no centro da elipse. Mas não havia tempo para exames mais detalhados; primeiro tinha de tratar das manobras terminais.

 Pela última vez, a propulsão principal da Discovery libertou as suas energias.

 Pela última vez, a fúria incandescente de átomos moribundos riscou o espaço entre as luas de Saturno. O longínquo sussurro e o impulso crescente dos jactos, provocaram em David Bowman uma sensação de orgulho e de tristeza. Os soberbos motores haviam cumprido o seu dever com uma eficiência impecável. Tinham transportado a nave da Terra a Júpiter, e deste a Saturno; chegara a altura de funcionarem pela última vez. Quando a Discovery acabasse de esvaziar os seus tanques de combustível, ficaria tão impotente e inerte como qualquer asteróide - uma indefesa prisioneira da gravitação. E quando a nave de salvamento chegasse, dali a alguns anos, ela não seria reabastecida, de modo a poder voltar à Terra, pois decidira-se que era coisa que não valeria a pena em termos económicos. A Discovery seria um monumento eternamente em órbita, erigido aos primeiros passos da exploração planetária.

 Os milhares de quilómetros encurtaram para centenas, e os indicadores de combustível aproximaram-se rapidamente do zero. Bowman, ao painel de comando, olhava ansiosamente para o quadro da situação e para os mapas improvisados que teria de consultar caso fosse necessária alguma decisão de emergência. Seria realmente frustrante se, após ter sobrevivido a tanto, não lograsse entrar em contacto com Japetus devido à falta de alguns litros de combustível...

 O assobio dos jactos desapareceu, a propulsão principal parou, e só os estabilizadores continuaram a empurrar suavemente a Discovery. Japetus adquirira a forma de um gigantesco crescente, que enchia o céu; até àquele momento, Bowman pensara sempre nele como um objecto minúsculo, insignificante... como, aliás, era mesmo, quando comparado com o mundo à volta do qual girava. Mas assim, agigantando-se ameaçadoramente por cima dele, parecia-lhe enorme – um martelo cósmico preparando-se para esmigalhar a Discovery como uma casca de noz.

 Japetus aproximava-se tão devagar, que mal dava a impressão de se mover, o que tornou impossível detectar o momento exacto em que mudou subtilmente de corpo astronómico para paisagem, apenas oitenta quilómetros mais para baixo. Os fiéis estabilizadores deram os seus últimos espasmos, e deixaram de funcionar para sempre. A nave, na sua órbita final, completaria uma revolução de três em três horas, apenas a mil e duzentos quilómetros por hora - toda a velocidade necessária naquele fraco campo gravitacional. A Discovery transformou-se no satélite de um satélite.

 

IRMÃO MAIS VELHO

 

-Estou a regressar novamente ao lado diurno, e é tudo como relatei na última órbita. A superfície deste lugar parece ser feita apenas de dois tipos de material. O preto, dá a impressão de estar queimado, como se fosse carvão, e, tanto quanto consigo ver no telescópio, tem uma textura regular. Aliás, lembra-me muito pão queimado...

»Mas continuo sem conseguir perceber o que e a área branca. Começa numa aresta muito viva, e não apresenta qualquer pormenor à superfície. Pode tratar-se de um líquido... é bastante lisa. Não sei com que impressão ficaram a partir dos vídeos que vos transmiti, mas, se pensarem num mar de leite congelado, terão uma ideia exacta do que isto parece.

»Mas também pode ser algum gás pesado... não, suponho que isso é impossível. As vezes parece-me que está a mover-se muito lentamente, mas não consigo ter a certeza...

»...Encontro-me novamente sobre a área branca, na minha terceira órbita. Desta vez espero passar mais perto daquela marca que vislumbrei no seu centro, quando vinha para cá. Se os meus cálculos estiverem certos, devo ficar a uma distância dela de aproximadamente oitenta quilómetros.

»... Sim, está qualquer coisa ali à frente, mesmo no sítio que eu calculei. Começa agora a erguer-se acima do horizonte... assim como Saturno, quase no mesmo quadrante do céu... vou para o telescópio ...

»Alô! Parece uma espécie de edifício ... completamente preto... difícil de distinguir. Não tem janelas nem qualquer outra característica distintiva. Só uma grande lâmina vertical... para ser visível desta distância, deve ter, pelo menos, um quilómetro de altura. Lembra-me ... claro! exactamente como a coisa que encontraram na Lua! Este é o irmão mais velho da AMT-1!

 

EXPERIÊNCIA

 

Chamem-lhe o Portão Astral.

 Durante três milhões de anos, girara à volta de Saturno, esperando por um momento que podia nunca chegar. Na sua criação, uma lua fora esmigalhada, e os desperdícios da sua construção ainda andavam em órbita.

 Agora, a longa espera estava a chegar ao fim. Em mais um mundo, a inteligência nascera e libertara-se aos poucos do seu berço planetário. Uma experiência antiga estava prestes a atingir o seu ponto mais alto.

 Os que havia tanto tempo começaram a experiência, não eram homens - nem sequer remotamente humanos. Mas eram de carne e osso, e, ao olharem através do espaço, sentiram temor, encanto, solidão. Logo que puderam, partiram para as estrelas.

 Nas suas explorações, encontraram vida em várias formas, e observaram a evolução em acção em mil mundos. E viram quão frequentemente as primeiras débeis centelhas de inteligência tremeluziram e morreram na noite cósmica.

 E porque, em toda a galáxia, não encontraram nada mais precioso que a Mente, encorajaram o seu alvorecer por toda a parte. Tornaram-se lavradores nos campos das estrelas; semeavam e, às vezes, colhiam.

 Também acontecia que, desapaixonadamente, tinham de arrancar as ervas daninhas.

 Os grandes dinossauros já haviam desaparecido quando a nave de estudos entrou no Sistema Solar, após uma viagem que durara mil anos. Deixando para trás os planetas exteriores gelados, esta fez uma breve pausa sobre os desertos do moribundo Marte, e baixou o olhar para a Terra.

 Os exploradores viram, espalhado a seus pés, um mundo formigante de vida.

 Passaram anos a estudar, reunir, catalogar. Depois de aprenderem tudo o que podiam, começaram a modificar. Remexeram no destino de muitas espécies, tanto na terra como no oceano. Mas qual das suas experiências resultaria, era coisa que só saberiam dali a, pelo menos, um milhão de anos.

 Embora pacientes, ainda não eram imortais. Além disso, havia muito para fazer naquele universo de cem biliões de sois, e outros mundos clamavam por eles.

 Portanto, partiram novamente para o abismo, sabendo bem que nunca mais percorreriam o caminho de volta.

 Nem havia necessidade disso. Os servos que deixaram fariam o resto.

 Na Terra, os glaciares chegaram e partiram; por cima deles, a imutável Lua guardava ainda o seu segredo. Com um ritmo ainda mais lento que o do gelo polar, marés da civilização banharam e atravessaram a galáxia. Impérios estranhos, maravilhosos, terríveis, ergueram-se e caíram, e passaram a sua sabedoria aos seus sucessores. A Terra não foi esquecida, mas de pouco serviria outra visita.

 Afinal, não passava de um entre um milhão de mundos silenciosos; destes, poucos fariam ouvir a sua voz.

 Depois, lá muito longe, entre as estrelas, a evolução começou a virar-se para outros objectivos. Os primeiros exploradores da Terra atingiram os limites da carne e do sangue; logo que as suas máquinas mostraram ser melhores que os seus corpos, começaram a mudar-se. Primeiro os cérebros, e depois apenas os pensamentos, foram transferidos para novos e brilhantes invólucros de metal e de plástico.

 E, com eles, passearam entre as estrelas. Já não construíam naves espaciais. Eles eram naves espaciais.

 Mas a idade das Máquinas-entidades passou num ápice. Experimentando incessantemente, aprenderam a armazenar conhecimentos na estrutura do próprio espaço, e a preservar eternamente os seus pensamentos em geladas grades de luz.

 Podiam tornar-se criaturas de radiação, finalmente libertas da tirania da matéria.

 Portanto, transformaram-se em energia pura; e, em mil mundos, as cascas vazias de que se desembaraçaram, contorceram-se um momento numa irracional dança de morte, e desfizeram-se em pó.

 Eram agora senhores da galáxia, e o tempo não podia afectá-los.

 Deambulavam ao sabor dos seus desejos entre as estrelas, e, qual subtil névoa, mergulhavam nos próprios interstícios do espaço. Mas, apesar dos seus poderes quase divinos, não esqueceram completamente a sua origem, no lodo quente de um mar desaparecido.

 E continuaram a vigiar as experiências que os seus antepassados começaram, havia tanto tempo.

 

A SENTINELA

 

-O ar da nave está a ficar bastante bafiento, e dói-me a cabeça quase constantemente. Ainda há muito oxigénio a bordo, mas os purificadores nunca chegaram a limpar bem as porcarias feitas pelos líquidos, quando começaram a ferver no vácuo. Quando as coisas ficam muito feias, vou lá abaixo à garagem e respiro algum oxigénio puro dos casulos...

»Não houve qualquer reacção aos meus sinais, e, devido à inclinação orbital, estou a afastar-me lentamente da AMT-2. Por falar nisso, o nome que lhe deram é duplamente inapropriado... continuo a não detectar qualquer campo magnético.

»Neste momento, a minha aproximação máxima é de noventa quilómetros; este número aumentará para cerca de cento e cinquenta quando Japetus girar por baixo de mim, e depois decairá novamente para zero. Passarei directamente sobre a AMT-2 daqui a trinta dias... mas isso é tempo de mais, e, de qualquer forma, nessa altura será noite.

»Mesmo agora, só está à vista por alguns momentos; depois, volta a mergulhar atrás do horizonte. É uma frustração dos diabos... não consigo fazer nenhuma observação em condições.

»Portanto, gostaria que aprovassem o seguinte plano: os casulos espaciais possuem asas delta suficientemente amplas para uma descida e regresso à nave. Quero fazer uma saída extraveicular, e estudar de perto o objecto. Se me parecer seguro, aterrarei ao lado dele... ou até em cima dele.

»A nave permanecerá sobre o meu horizonte enquanto eu descer, o que significa que só estarei incomunicável durante cerca de noventa minutos.

»Estou convencido de que é a única coisa a fazer. Já viajei um bilião e meio de quilómetros... não são os últimos noventa que me metem medo.

 Vigiando o Sol com os seus estranhos sentidos, o Portão Astral observara a aproximação da nave durante semanas. Os seus construtores haviam-no preparado para muitas coisas, e aquela era uma delas. Reconheceu imediatamente o que se erguia na sua direcção, vindo do quente coração do Sistema Solar.

 Se fosse vivo, ter-se-ia sentido excitado, mas tal emoção estava completamente para além dos seus poderes. E se a nave o houvesse ignorado, não teria sentido o mínimo sinal de desapontamento. Esperara três milhões de anos; estava preparado para esperar eternamente.

 Quando o visitante lhe testou a velocidade com jactos de gás incandescente, observou, registou, mas não agiu. Sentiu depois o suave toque das radiações, tentando sondar-lhe os segredos. E continuou sem fazer nada.

 A nave estava em órbita, descrevendo círculos baixos sobre a superfície daquele mundo estranhamente bicolor. Começou então a falar, através de ondas rádio, contando e tornando a contar os números primos, de 1 a 11. Estes depressa deram lugar a sinais mais complexos, enviados por várias freqüências - raios X, ultravioletas, infravermelhos. O Portão Astral não respondeu; não tinha nada para dizer.

 Houve então uma longa pausa; depois, observou que algo saíra da nave em órbita e caía na sua direcção. Rebuscou nas suas memórias, e decidiu com os seus circuitos lógicos, mas sempre de acordo com as ordens que lhe haviam sido dadas milénios atrás.

 Banhado pela luz fria de Saturno, o Portão Astral despertou os seus poderes adormecidos.

 

 DENTRO DO OLHO

 

A Discovery tinha exactamente o mesmo aspecto da última vez que a vira do espaço, flutuando numa órbita lunar, com a Lua ocupando metade do céu. Talvez houvesse uma pequena mudança; não sabia bem, mas a tinta das suas inscrições exteriores que explicavam para que serviam várias comportas, ligações, fichas eoutros acessórios, parecia desbotada devido à longa exposição ao Sol.

 Esse Sol era agora um corpo que nenhum homem teria reconhecido.

 Demasiado brilhante para uma estrela, podia-se, no entanto, olhar directamente para o seu minúsculo disco sem qualquer desconforto. Não transmitia calor nenhum; quando Bowman expôs as mãos nuas aos seus raios, que passavam através da janela do casulo espacial, não sentiu nada na pele. Era a mesma coisa que se tentasse aquecer-se à luz da Lua; nem a estranha paisagem oitenta quilômetros mais abaixo lhe relembrava tão vividamente quão distante estava da Terra.

 Deixava naquele momento, talvez pela última vez, o mundo de metal que fora o seu lar durante tantos meses. Mesmo que nunca mais regressasse, a nave continuaria a cumprir o seu dever, transmitindo para a Terra as leituras dos instrumentos, até alguma avaria final e catastrófica nos seus circuitos.

 E se ele voltasse? Bem, manter-se-ia vivo, e talvez mesmo são de espírito, durante mais alguns meses. Mas era tudo, pois os sistemas de hibernação não serviam para nada sem um computador para os monitorizar. De certeza que não sobreviveria até a Discovery II entrar na órbita de Japetus, dali a quatro ou cinco anos.

 Mas pôs de lado tais pensamentos, e concentrou-se na observação do crescente dourado de Saturno, erguendo-se no céu à sua frente. Era o único homem da história que alguma vez contemplara tal espectáculo. Todos os outros olhos só haviam visto o disco iluminado de Saturno, virado completamente para o Sol. Mas,visto dali, parecia um delicado arco, atravessado pela fina linha dos anéis - quedavam a ideia de uma seta apontada ao próprio Sol.

 Na linha dos anéis encontrava-se também o brilhante astro que era Titã, e as centelhas mais trémulas das outras luas. Os homens haveriam de visitá-las a todas antes do inicio da segunda metade daquele século; mas ele nunca saberia os segredos que elas talvez encerrassem.

 A aresta viva do olho cego e branco aproximava-se rapidamente; para a atingir, faltavam-lhe apenas cento e cinquenta quilómetros. Estaria sobre o seu alvo em menos de dez minutos. Gostaria de saber se as suas palavras chegavam à Terra - apesar da hora e meia de atraso, à velocidade da luz. Seria o cúmulo da ironia se, devido a alguma falha no sistema de comunicações, mergulhasse no silêncio, desaparecesse, e nunca ninguém pudesse saber o que lhe acontecera.

 A Discovery, muito lá em cima, era um astro brilhante desenhado no céu preto. Estava a passar-lhe à frente à medida que ganhava velocidade durante a descida, mas os jactos de travagem do casulo em breve entrariam em funcionamento, e a nave desapareceria de vista - abandonando-o naquela planície brilhante com o mistério escuro no centro.

 À sua frente, eclipsando as estrelas, um bloco de ébano começava a erguer-se no horizonte. Fazendo o casulo girar à volta do seu eixo, serviu-se de toda a força dos jactos para quebrar a velocidade orbital. Descrevendo um arco largo e plano, desceu para a superfície de Japetus.

 Num mundo de mais gravidade, a manobra ter-lhe-ia custado demasiado combustível, mas ali, o casulo espacial pesava apenas uma dezena de quilos; dispunha ainda de vários minutos antes de esgotar a reserva e ficar inapelavelmente preso ali, sem esperanças de regressar à Discovery. Não que isso fizesse muita diferença...

 A sua altitude era ainda de cerca de oito quilómetros, mas continuava a dirigirse directamente para a enorme massa escura que, numa perfeição geométrica, se erguia acima da incaracterística planície. Esta era tão inexpressiva como a superfície lisa e branca contra a qual se destacava; até àquele momento, não se apercebera bem da sua enormidade. Muito poucos edifícios da Terra se lhe comparavam em dimensões; as fotografias que medira cuidadosamente, haviam indicado uma altura de quase seiscentos metros. E, tanto quanto lhe era dado perceber, tinha aquela curiosa proporção de 1 para 4 para 9, precisamente igual à da AMT-1.

 

-Estou apenas a cinco quilómetros de distância, e a uma altitude de mil e duzentos metros. Continuo a não detectar sinais de actividade... nada em nenhum dos instrumentos. As faces parecem absolutamente regulares e polidas. Não percebo como é que, ao fim de tanto tempo, não apresenta qualquer dano provocado por meteoritos!

»E não vejo lixos nem pedras soltas no... suponho que poderei chamar-lhe telhado. Aberturas também não há. Esperava encontrar alguma entrada.

»Estou agora a pairar a cento e cinquenta metros acima da AMT-2. Não quero perder tempo, pois a Discovery não estará muito mais tempo ao meu alcance. Vou aterrar. Não há dúvida de que é suficientemente sólida... e se não for, estouro de vez! »Esperem aí... que estranho...

 

 A voz de Bowman mergulhou no silêncio da desorientação última. Não estava alarmado; mas, mesmo que quisesse, não conseguiria descrever o que se lhe deparava.

 Estivera a pairar por cima de um grande rectângulo liso, de duzentos e quarenta metros de comprimento e sessenta de largura, feito de alguma coisa tão sólida como rocha. Mas, naquela altura, pareceu-lhe que o bloco começava a recuar; exactamente como uma dessas ilusões ópticas... quando, por um esforço de vontade um objecto tridimensional pode aparecer ao contrário, devido a uma mudança na visão dos seus lados mais próximos e mais afastados.

 E era isso que estava a acontecer àquela estrutura enorme e aparentemente sólida. De um modo impossível, incrível, já não se tratava de um monólito erguendose bem acima de uma planície lisa. O que lhe parecera o telhado, descera para profundezas infinitas; por um desconcertante momento, teve a impressão de estar a olhar para dentro de um poço vertical - um condutor rectangular, que desafiava as leis da perspectiva, pois o seu tamanho não diminuía com a distância...

 O Olho de Japetus pestanejara, como se para se desembaraçar de algum grão de poeira irritante. David Bowman teve apenas tempo para uma frase atabalhoada, que os expectantes homens do Comando da Missão, a mil e quatrocentos milhões de quilómetros de distância, e a oitenta minutos no futuro, nunca mais esqueceriam:

-Esta coisa é oca... nunca mais acaba ... e ... oh! meu Deus!... está cheia de estrelas!

 

SAÍDA

 

O Portão Astral abriu-se. O Portão Astral fechou-se.

 Num ápice, num intervalo de tempo demasiado curto para se medir, o Espaço virou-se e girou sobre si mesmo.

 Depois, Japetus ficou novamente só, como acontecera durante três milhões de anos - só, com excepção de uma nave deserta mas ainda não abandonada, que enviava aos seus construtores mensagens em que estes não conseguiam acreditar, e que não podiam compreender.

 

ESTAÇÃO CENTRAL

 

Não se sentia em movimento, mas estava a cair em direcção àquelas impossíveis estrelas, que brilhavam no coração escuro de uma lua. Não, de certeza que elas não se encontravam realmente aí. Embora sabendo que já era tarde demais, desejou ter prestado mais atenção às teorias do hiperespaço, dos condutores tridimensionais. Para David Bowman, já não eram só teorias. Talvez o monólito de Japetus fosse oco; talvez o «telhado» não passasse de uma ilusão, ou de algum tipo de diafragma que se abrira para o deixar passar. (Mas em direcção a quê?) Tanto quanto podia confiar nos seus sentidos, parecia-lhe estar a cair verticalmente por um enorme poço rectangular, com vários milhares de metros de profundidade. Movia-se cada vez mais depressa - mas o fundo nunca mudava de tamanho, e permanecia sempre à mesma distância dele. Só as estrelas se mexiam; ao princípio tão devagar, que só ao fim de algum tempo percebeu que estavam a escapar-se do quadro inicial. Mas, ao fim de algum tempo, tornou-se-lhe óbvio que o campo astral se expandia, como se se lançasse contra ele a uma velocidade inconcebível. A expansão não era linear; as estrelas centrais pareciam quase imóveis, ao passo que as mais afastadas adquiriam acelerações cada vez maiores, transformavam-se em riscos de luz, e desapareceriam de vista. Mas eram de imediato substituídas por outras que, surgindo de uma fonte aparentemente inesgotável, iniciavam o seu percurso no centro do campo. Bowman perguntou-se que aconteceria se uma estrela se lançasse na sua direcção; continuaria o seu curso até ele ser obrigado a mergulhar directamente na superfície de um sol? Mas nem uma se aproximou o suficiente para o seu disco ser visível; todas acabavam por se desviar para o lado, transformando-se depois em riscos, e desaparecendo em seguida.

 O fundo do poço continuou sem se aproximar. Era quase como se os seus muros se deslocassem com ele, transportando-o para um destino desconhecido. Ou, se calhar, encontrava-se mesmo imóvel, e era o espaço que se movia... De repente, percebeu que o espaço não era o único responsável pelo que estava a acontecer-lhe.

 O relógio do pequeno painel de instrumentos do casulo comportava-se também de uma forma estranha. Normalmente, os números do mostrador dos décimos de segundo passavam tão rapidamente, que era quase impossível lê-los; mas naquele momento apareciam e desapareciam a intervalos descontínuos, que lhe permitiam contá-los sem qualquer dificuldade.

 Os próprios segundos passavam com uma lentidão incrível; parecia que o tempo estava a parar. Por fim, o mostrador dos décimos de segundo imobilizou-se entre o 5 e o 6.

 No entanto, ainda conseguia pensar, e até observar; os muros de ébano continuavam a passar por ele a uma velocidade que tanto podia ser de zero, como igual à da luz. Não sabia porquê, não se sentia minimamente surpreendido ou alarmado. Antes pelo contrário, invadia-o uma expectativa calma, como a que uma vez experimentara quando os médicos espaciais haviam ensaiado nele drogas alucinogéneas. O mundo que o rodeava era estranho e maravilhoso, mas não havia nada de que ter medo.

 Viajara milhões de quilómetros em busca de mistério; agora, ao que parecia, o mistério vinha ao seu encontro.

 O rectângulo que via à frente começou a ficar mais claro. Os luminosos riscos das estrelas empalideceram contra um céu leitoso, cujo brilho aumentou de momento a momento. Parecia que o casulo espacial se dirigia para um banco de nuvens, uniformemente iluminado pelos raios de um céu invisível. Estava a sair do túnel. O fundo deste, que até ao momento permanecera à mesma distância indeterminada, nem aproximando-se, nem recuando, começara repentinamente a obedecer às leis da perspectiva. ao mesmo tempo, sentiu que se deslocava para cima, e por um breve momento perguntou-se se teria caído através de Japetus, estando agora a surgir do outro lado. Mas mesmo antes de o casulo espacial se erguer no céu aberto, percebeu que aquele lugar não tinha nada a ver com Japetus, nem com qualquer outro mundo conhecido do homem. Não havia atmosfera, pois conseguia ver tudo com uma nitidez espantosa, até um horizonte incrivelmente remoto e uniforme. Devia estar num mundo enorme - talvez muito maior que a Terra.

 No entanto, apesar da sua extensão, tinha toda a superfície visível coberta de figuras geométricas obviamente artificiais, de quilómetros de lado. Parecia o quebracabeças de um gigante que brincasse com planetas; e nos centros de muitos daqueles quadrados, triângulos e polígonos, viam-se escancarados poços pretos - gémeos do abismo de onde acabara de sair.

 Mas o céu era mais estranho - e, a seu modo, mais Perturbador - que a terra improvável que tinha, por baixo. Pois não se viam estrelas; nem a escuridão do  espaço. Apenas se descortinava uma leitosidade que brilhava suavemente, e que dava a impressão de uma distância infinita. Bowman lembrou-se de uma descrição que uma vez ouvira da temível tempestade antárctica: «como estar dentro de uma bola de pingue-pongue». Eram palavras que podiam ser perfeitamente aplicadas àquele lugar tão misterioso, mas a explicação tinha de ser completamente diferente.

 Ali, o céu não podia ser resultado do efeito metereológico da neblina e da neve, pois o vácuo era perfeito. Mas quando os seus olhos se acostumaram ao brilho nacarado que enchia os céus, Bowman apercebeu-se de mais um pormenor. O céu não se encontrava, como lhe parecera à primeira vista, completamente vazio. Salpicavamno miríades de minúsculos grãos pretos e imóveis, aparentemente distribuidor ao acaso.

 Eram difíceis de ver, pois não passavam de pontinhos de escuridão, mas,

 uma vez detectados, tornavam-se muito óbvios. Lembraram algo a Bowman – algo tão familiar, mas, ao mesmo tempo, tão louco, que só aceitou a ideia quando a lógica o obrigou. Aqueles buracos negros no céu branco eram estrelas - quase como se estivesse a ver o negativo da fotografia da Via Láctea.

«Mas onde é que eu estou?», perguntou-se Bowman; mas soube imediatamente que nunca conheceria a resposta. Parecia que o espaço se virara do avesso: aquele não era lugar para o homem; Embora a cápsula estivesse quente e confortável, sentiu-se de repente com frio, e foi assaltado por um tremor quase incontrolável.

 Apeteceu-lhe fechar os olhos e esquecer o vazio cor de pérola que o rodeava; mas esse seria o acto de um cobarde - e Bowman não se daria por vencido. O planeta trespassado e facetado rolava lentamente por baixo, sem nunca mudar realmente de cenário. Calculou que devia estar uns quinze quilómetros acima da superfície, o que lhe permitiria detectar facilmente quaisquer sinais de vida. Mas aquele mundo encontrava-se deserto; a inteligência visitara-o, trabalhara-o e partira.

 Foi então que reparou numa pilha mais ou menos cilíndrica de detritos - que só poderia ser a carcaça de uma nave gigantesca -, arqueada acima da superfície uniforme, a cerca de trinta quilómetros de distância. Estava longe de mais para a ver com nitidez, e saiu do seu campo de visão dali a segundos, mas Bowman ainda distinguiu armações partidas e foscas e folhas de metal soltas, que emprestavam à nave a aparência de uma laranja parcialmente descascada. Quantos milhares de anos se teriam passado desde que o destroço fora atirado para aquele deserto tabuleiro de xadrez? E que tipo de criaturas o teria conduzido por entre as estrelas?

 Mas depressa esqueceu a nave abandonada, pois algo se aproximava pelo horizonte. Ao princípio, pareceu-lhe um disco liso, mas isso porque vinha quase directamente de frente para ele. Quando se aproximou e lhe passou por baixo, viu que tinha a forma de um fuso com várias centenas de metros de comprimento.

 Embora, aqui e ali, mostrasse faixas pouco nítidas de ponta a ponta, era difícil focálas com precisão; o objecto parecia vibrar, ou talvez rodar, a um ritmo muito elevado.

 Terminava em ponta de ambos os lados, e não apresentava sinais de qualquer tipo de propulsão. Só uma coisa nele era familiar aos olhos humanos: a sua cor. Se realmente se tratava de um artefacto sólido, e não uma ilusão óptica, então os seus criadores talvez partilhassem algumas das emoções dos homens. Mas sem dúvida que não partilhavam as suas limitações, pois o fuso parecia ser feito de ouro.

 Em ordem a poder ver o objecto cair lá atrás, Bowman mudou-se para o sistema retrovisor. O fuso ignorara-o completamente, passara por ele, e começara a descer do céu, em direcção a um daqueles milhares de grandes buracos. Segundos mais tarde, mergulhou no planeta no meio de um último clarão doirado, e desapareceu. Estava novamente só, por baixo daquele céu tão sinistro, e a sensação de isolamento e distância foi mais esmagadora que nunca.

 Reparou então que também ele mergulhava para a superfície sarapintada do gigantesco mundo, e que um outro abismo rectangular se escancarava imediatamente sob os seus pés. O céu vazio fechou-se por cima dele, o relógio imobilizou-se, e o casulo começou novamente a cair entre infinitos muros de ébano, na direcção de mais um distante pedaço de estrelas. Mas tinha a certeza de que não estava a voltar ao Sistema Solar; com uma compreensão súbita, que talvez se revelasse falsa, percebeu o que aquela coisa devia ser.

 Sem dúvida que se tratava de algum tipo de mecanismo cósmico, que regulava o tráfego das estrelas através de incríveis dimensões de espaço e tempo.

 Estava a atravessar uma imponente Estação Central da galáxia.

 

 O CÉU ALIENÍGENA

 

Muito à frente, os muros da fenda começavam a descortinar-se mais uma vez, à luz débil que jorrava difusamente de alguma fonte ainda escondida. De repente, a escuridão foi abruptamente varrida, e o minúsculo casulo espacial ergueu-se num céu resplandecente de estrelas. Regressara ao espaço tal como o conhecia, mas um simples relance bastou-lhe para perceber que se encontrava a séculos-luz da Terra.

 Nem sequer tentou descobrir as constelações familiares que haviam acompanhado o homem ao longo da história; se calhar, nenhuma das estrelas que brilhava à sua volta fora alguma vez vista por olhos humanos. A maioria delas concentrava-se num cinturão brilhante, interrompido aqui e ali por faixas escuras depoeiras cósmicas, que rodeavam completamente o céu. Era como a Via Láctea, mas dezenas de vezes mais brilhante; seria a sua própria galáxia, vista de um ponto muito próximo do seu centro brilhante e cheio de astros?. Esperava que sim; assim, não estaria tão longe de casa. Mas percebeu imediatamente a infantilidade de tal pensamento. Estava a uma distância tão inconcebível do Sistema Solar, que pouca diferença faria encontrar-se na sua própria galáxia ou na mais distante que algum telescópio jamais detectara. Olhou para baixo, para ver de onde estava a erguer-se e teve outro choque. Nem mundo gigantesco e multifacetado, nem um duplicado de Japetus. Só o nada - à excepção de uma sombra escura recortada contra as estrelas, como uma porta abrindo-se de uma sala mergulhada em trevas para uma noite ainda mais preta. Enquanto olhava, a porta fechou-se. Mas não se afastou; apenas se encheu de estrelas, como se uma malha caída da textura do tempo acabasse de ser apanhada. Bowman ficou sozinho sob o céu alienígena. O casulo espacial rodou lentamente, revelando novas maravilhas. Primeiro foi um enxame de estrelas perfeitamente esférico, que se ia adensando para o centro, até o seu coração ser um contínuo clarão de luz. Os seus contornos exteriores não eram bem definidos - um halo de sais que iam escasseando aos poucos, e que se fundia imperceptivelmente no pano de fundo de estrelas mais distantes. Bowman sabia que aquela gloriosa aparição era um cacho globular.

 Contemplava uma coisa que olhos humanos nenhuns haviam visto, salvo como uma mancha de luz no campo de um telescópio. Não se lembrava bem da distância que ia ao cacho conhecido mais próximo, mas tinha a certeza de que não havia nenhum num raio de mil anos-luz do Sistema Solar. O casulo continuou na sua lenta rotação, desvendando um panorama ainda mais estranho - um enorme sol vermelho, muitas vezes maior que a Lua vista da Terra. Bowman conseguia fitá-lo directamente sem problemas; a julgar pela sua cor não era mais quente que um carvão em brasa. O sombrio vermelho era atravessado aqui e ali por rios de um amarelo vivo – Amazonas incandescentes, que serpenteavam ao longo de milhares de quilómetros, e se perdiam nos desertos daquele sol moribundo. Moribundo?

 Não... isso era uma impressão totalmente falsa, nascida da experiência humana e das emoções despertadas pelos matizes do pôr do sol, ou pelo brilho de brasas quase apagadas. Aquela era uma estrela que deixara para trás as fogosas extravagâncias da juventude, que passara os violetas, azuis e verdes do espectro nuns poucos e fugazes biliões de anos, e assentara numa calma maturidade de uma duração inimaginável. O tempo que já vivera não era sequer um milésimo do que tinha à frente; a sua história ainda mal começara.

 O casulo deixara de rodar; o grande sol vermelho estava mesmo em frente.

 Embora não sentisse qualquer movimento, Bowman sabia que continuava preso pela força que o trouxera de Saturno. Toda a ciência e arte da Terra lhe pareciam inapelavelmente primitivas, quando comparadas com os poderes que o conduziam a um destino inimaginável.

 Tentando descortinar o local para onde estava a ser levado - talvez algum planeta girando à volta daquele grande sol -, começou a estudar o céu que tinha à frente. Mas não viu qualquer disco ou brilho extraordinário; se havia ali planetas em órbita, não conseguia distingui-los do pano de fundo dos astros. Reparou então que algo de estranho estava a acontecer na orla do disco carmesim do sol. Aparecera nela um clarão branco, cujo brilho se expandia rapidamente; estaria a observar uma dessas súbitas erupções, ou chamas, que perturbam a maioria das estrelas de tempos a tempos? A luz tornou-se mais brilhante e azul; e começou a espalhar-se pela orla do sol, cujos matizes vermelhos de sangue empalideceram rapidamente devido ao contraste. Parecia - e Bowman sorriu com o absurdo de tal ideia – um nascer do sol... num sol.

 E era mesmo. Acima do horizonte em chamas erguia-se algo do tamanho de uma estrela, e tão brilhante que os olhos não suportavam observá-lo de frente. Um mero ponto de luz azul-esbranquiçada, como um arco-eléctrico, atravessava a superfície do grande sol a uma velocidade inacreditável. Devia deslocar-se muito perto do seu gigantesco companheiro, pois imediatamente por baixo dele, puxada para cima pela sua força gravitacional, via-se uma coluna de fogo de milhares de quilómetros de altura. Era como se uma onda de fogo marchasse eternamente ao longo do equador desta estrela, perseguindo em vão a escaldante aparição do seu céu.

 Aquele ponto de incandescência devia ser uma Anã Branca - uma dessas estranhas e intensas pequenas estrelas, do tamanho da Terra, mas com uma massa de um milhão de vezes superior à sua. Tais desarmónicos casais estelares não eram invulgares; mas Bowman nunca sonhara que um dia veria semelhante par com os seus dois olhos.

 Já a Anã Branca cruzara quase metade do disco do seu companheiro - devia levar apenas uns minutos a completar uma órbita -, quando Bowman teve finalmente a certeza de que também ele se movia. À sua frente, um dos astros tornou-se rapidamente mais brilhante, e o seu movimento começou a ser aparente. Devia tratar-se de um mundo pequeno e próximo - talvez o mundo para o qual se dirigia.

 Chegou ao pé dele a uma velocidade inesperada; e Bowman viu que não se tratava de um mundo. Uma teia ou gradeado de metal, com um brilhante fosco, de centenas de quilómetros de extensão, saiu do nada e encheu o céu. Espalhadas pela sua superfície do tamanho de um continente, encontravam-se estruturas provavelmente tão grandes como cidades, mas que pareciam ser máquinas. Em volta de muitas delas acumulavam-se dezenas de objectos mais pequenos, alinhados em filas e colunas. Só depois de ter passado por vários daqueles grupos, Bowman percebeu que se tratava de frotas de naves espaciais; sobrevoava um gigantesco parque de estacionamento em órbita.

 Devido à inexistência de objectos familiares que lhe permitissem avaliar a escala da cena que se desenrolava lá em baixo, era quase impossível calcular o tamanho daqueles veículos que pairavam no espaço. Mas eram com certeza enormes; alguns deles deviam ter quilómetros de comprimento. As suas formas eram muito distintas: esferas, cristais facetados, fusos delgados, ovóides, discos.

 Devia ser um ponto de encontro do comércio entre as estrelas. Ou antes, fora - talvez um milhão de anos antes. Pois Bowman não detectou sinais de actividade em parte alguma; aquele enorme porto espacial estava tão morto como a Lua.

 Soube-o não só pela ausência de movimento, mas também por sinais inconfundíveis como grandes fendas abertas na teia metálica pelas picadas de vespa de asteróides que deviam ter chocado com ela ao longo dos séculos. Aquilo já não era um parque de estacionamento, e sim um monte de ferro-velho cósmico.

 Desencontrara-se milénios dos seus construtores; tal pensamento apertou-lhe o coração. Embora não soubesse o que ia encontrar, pelo menos alimentara a esperança de dar com alguma forma de inteligência vinda das estrelas. Mas, ao que parecia, era tarde demais. Fora apanhado numa armadilha antiga e automática, montada com um propósito desconhecido, e ainda operacional num tempo em que os seus criadores já tinham desaparecido havia muito.

 Transportara-o de uma ponta à outra da galáxia, e atirara-o (e a quantos mais?) para aquele sargaço celestial, condenando-o a morrer mal o ar se lhe esgotasse. Bem, que mais podia esperar? Já vira maravilhas pelas quais muitos homens teriam sacrificado as suas vidas. Pensou nos seus companheiros mortos; ele, ao menos, não tinha razão para queixas.

 Mas viu então que o porto espacial abandonado continuava a deslizar por ele sem diminuir de velocidade. Sobrevoava naquele momento os seus subúrbios mais afastados; os contornos imperfeitos passaram por ele, e deixaram de tapar parcialmente as estrelas. Dali a minutos, desapareceu atrás dele. O seu destino não residia ali - mas muito mais à frente, no enorme sol carmesim para o qual o casulo espacial estava indubitavelmente a cair.

 

 INFERNO

 

O sol vermelho enchia o céu de ponta a ponta. Estava tão perto, que a sua superfície deixara de ser a imobilidade gelada provocada pela distância. Nódulos luminosos moviam-se para trás e para diante, ciclones de gás subiam e desciam, preeminências erguiam-se lentamente para os céus. Lentamente? Se conseguia detectar-lhe o movimento, era porque se deslocavam a um milhão de quilômetros por hora... Nem tentou avaliar a escala do inferno para o qual descia. Durante o vôo da Discovery nesse sistema solar agora a gigaquilómetros de distância, as enormidades de Júpiter e de Saturno haviam-nos deixado completamente sem fala.

 Mas tudo o que naquele momento estava a ver era cem vezes maior; não podia fazer nada a não ser aceitar as imagens que lhe inundavam o cérebro, sem tentar interpretá-las.

 Com o mar de fogo espalhando-se a seus pés, Bowman deveria ter tido medo - mas, muito furiosamente, sentiu apenas uma ligeira apreensão. Não que tivesse o espírito tolhido por tantas maravilhas; a lógica dizia-lhe que era com certeza protegido por uma inteligência controladora e quase omnipotente. Estava tão perto do sol vermelho, que teria sido imediatamente reduzido a cinzas pelas suas radiações, se estas não fossem contidas por alguma parede invisível. Além disso, durante a viagem, fora submetido a acelerações que o deviam ter esmagado instantaneamente - no entanto não sentira nada. Se tanto trabalho fora desenvolvido só para o preservar, então ainda havia esperança. O casulo espacial começou a mover-se ao longo de um arco pouco curvo, quase paralelo à superfície da estrela, mas descendo lentamente na sua direcção. Pela primeira vez, Bowman ouviu sons.

 Um rugido fraco e contínuo era, de vez em quando, intervalado por estalidos de papel amassado ou relâmpagos distantes.

 Tratava-se com certeza do débil eco de uma incrível cacofonia; a atmosfera que o rodeava devia estar a ser submetida a abalos capazes de transformar qualquer objecto material em átomos. No entanto, todo aquele tumulto destruidor não o afectava mais que o calor.

 Embora muros de chamas, de milhares de quilómetros de altura, se erguessem e caíssem lentamente à sua volta, encontrava-se completamente isolado de tal violência. As energias da estrela bramiam ao seu lado, e era como se pertencessem a outro universo; sem um arranhão, nem uma chamuscadela, o casulo seguia tranquilamente o seu caminho. Os olhos de Bowman, já menos confusos com a estranheza e grandeza da cena, começaram a detectar pormenores que, com certeza já lá estavam antes, mas dos quais ele ainda não se apercebera. A superfície da estrela não era nenhum caos informe; tal como nas demais criações da natureza, havia ali uma certa ordem.

 Primeiro, reparou nos pequenos remoinhos de gás - provavelmente do tamanho da Ásia ou da África -, que vagueavam sobre a superfície da estrela. Por vezes, conseguia olhar directamente para o interior de um deles, e via, nas suas profundezas, regiões mais escuras e calmas.

 Curiosamente, parecia não existirem manchas solares; talvez estas constituíssem uma doença própria da estrela que brilhava na Terra.

 Detectou também, aqui e ali, nuvens parecidas com rolos de fumo saído de uma chaminé. Talvez fossem mesmo fumo, pois sol era tão frio que bem podia abrigar fogo verdadeiro. Se calhar, compostos químicos nasciam e viviam ali durante alguns segundos, até serem novamente dilacerados pela poderosa violência nuclear que os rodeava. O horizonte, cada vez mais brilhante, mudou a sua cor de vermelho escuro para amarelo, depois para azul, e por fim para um violeta empolado.

 Arrastando atrás de si erupções periódicas de matéria estelar, a Anã Branca começara a erguer-se no horizonte. Bowman protegeu os olhos do clarão intolerável do pequeno sol, e observou o virulento panorama estelar que o seu campo gravitacional sugava para o céu. Uma vez, nas Caraíbas, fora-lhe dado contemplar uma tromba de água em movimento; aquela torre de chamas tinha quase a mesma forma. Mas a escala era ligeiramente diferente - a base da coluna devia ser mais larga que o planeta Terra.

 De repente, Bowman reparou que imediatamente a seus pés se encontrava algo de certeza novo, visto que era completamente impossível não ter reparado naquilo antes. Atravessando o oceano de gás em brasa, viam-se miríades de brilhantes continhas, que cintilavam com uma luz cor de pérola que aumentava e diminuía a intervalos de segundos. Tal como salmões nadando para nascente, todas elas se deslocavam na mesma direcção; às vezes, oscilavam para trás e para diante, e os seus caminhos entrelaçavam-se, mas nunca tocavam umas nas outras.

 Eram aos milhares, e quanto mais Bowman as observava, mais se convencia de que os seus movimentos tinham um sentido. A distância a que estavam dele não lhe permitia estudar-lhes bem a estrutura; o facto de as conseguir descortinar no meio de panorama tão colossal, significava que deviam perfazer dezenas - ou talvez centenas - de quilómetros de ponta a ponta. Se se tratava de entidades organizadas, então eram leviatãs, criados à escala do mundo que habitavam.

 Talvez fossem apenas nuvens de plasma, às quais alguma estranha combinação de forças naturais emprestara uma estabilidade temporária - como as efémeras esferas de relâmpagos, que continuavam a confundir os cientistas terrestres. Era uma explicação fácil e, talvez, calmante; mas, ao olhar para aquela corrente da largura de um astro, Bowman não acreditou realmente nela. Os cintilantes nódulos de luz sabiam para onde iam; convergiam deliberadamente para o cimo do pilar de fogo erguido pela Anã Branca que girava lá no alto.

 Bowman fitou mais uma vez a coluna ascendente, marchando ao longo do horizonte sob o minúsculo astro maciço que a dominava. Seria imaginação pura... ou manchas mais brilhantes trepavam pelo grande géiser de gás, como se miríades de centelhas cintilantes se houvessem combinado para formar continentes inteiros de fosforescência?

 A ideia era quase fantástica de mais; mas talvez ele estivesse a observar nada menos que uma migração de estrela para estrela, através de uma ponte de fogo. Bowman provavelmente nunca viria a saber se aquilo era um movimento de monstros cósmicos e irracionais, arrastados pelo espaço por algum impulso animal, ou uma vasta confluência de entidades inteligentes.

 Movia-se por entre uma nova ordem da criação, com a qual poucos homens haviam alguma vez sonhado. Para além dos reinos do mar, da terra, do ar e do espaço, encontravam-se os reinos do fogo, que só ele tivera o privilégio de observar.

 Era de mais querer também compreender.

 

RECEPÇÃO

 

Qual tempestade passando para lá do horizonte, o pilar de fogo começou a atravessar a orla do sol. As apressadas manchas de luz deixaram de passar pela paisagem astral de brilho avermelhado, milhares de quilómetros abaixo de Bowman.

 Este, dentro do casulo espacial, protegido de um meio ambiente que poderia aniquilá-lo num milissegundo, aguardava o que se seguiria. Deslocando-se violentamente ao longo da sua órbita, a Anã Branca depressa mergulhou no céu, tocou o horizonte, que incendiou, e desapareceu. Um falso crepúsculo caiu sobre o inferno a seus pés, e Bowman percebeu que, juntamente com a súbita mudança de iluminação, algo começou a acontecer no espaço que o rodeava. O mundo do sol vermelho pareceu ondular, como se estivesse a observá-lo através de água corrente. Durante alguns momentos, ainda pensou se aquilo seria algum efeito refractivo, provavelmente causado pela passagem de uma onda de choque invulgarmente violenta, pela torturada atmosfera na qual estava imerso.

 A luz começara a enfraquecer; parecia que um segundo crepúsculo se preparava para substituir o primeiro. Bowman olhou involuntariamente para cima, mas lembrou-se, com uma certa vergonha, de que a principal fonte de luz daquele lugar não era o céu, e sim o mundo incandescente lá de baixo.

 Parecia que paredes de um material semelhante a vidro fumado se adensavam à sua volta, quebrando o brilho vermelho e obscurecendo a visão.

 Escureceu mais e mais; o leve rugido dos furacões estelares também desapareceu.

 O casulo espacial flutuou no silêncio e na noite. Passado um momento, uma ligeiríssima sacudidela indicou que poisara nalguma superfície dura. Imobilizou-se.

«Poisou onde?», perguntou-se Bowman incredulamente. A luz voltou então; e a incredulidade deu lugar a um desespero de partir o coração - quando viu o que tinha à volta, soube que devia ter enlouquecido.

 Achava que estava preparado para qualquer maravilha. A única coisa que nunca esperara fora deparar com a banalidade.

 O casulo espacial encontrava-se poisada sobre o soalho polido de um apartamento de hotel, anónimo e elegante, que bem podia ficar em qualquer grande cidade da Terra. Bowman, virado de frente para uma salinha de estar, percorreu com os olhos uma mesa de café, um divã, uma dúzia de cadeiras, uma secretária, vários candeeiros, uma estante meio cheia de livros, com algumas revistas pousadas em cima, e até uma jarra de flores. A Ponte em Artes de Van Gogh estava pendurada numa parede, e o Mundo de Cristina de Wyeth, numa outra. Não teve dúvidas de que quando abrisse a gaveta da secretária, encontraria dentro dela a Bíblia de Gedeão...

 Se havia realmente enlouquecido, então as suas ilusões estavam muito bem organizadas. Tudo era perfeitamente real; nada desaparecia quando ele se virava de costas. O único elemento incongruente de todo o cenário era o próprio casulo espacial.

 Bowman não se mexeu durante muito tempo. Esperava que aquela visão desaparecesse... mas ela permaneceu tão sólida como pedra.

 Era mesmo real - ou então uma ilusão dos sentidos tão soberbamente forjada, que não havia maneira de a distinguir da realidade. Talvez se tratasse de algum tipo de teste; se assim fosse, não só o seu destino, mas também o da raça humana, podiam depender das suas acções nos minutos seguintes.

 Tinha duas possibilidades: ou se deixava ficar sentado à espera que acontecesse alguma coisa, ou abria o casulo e saia lá para fora, desafiando, assim, a realidade de tudo o que o rodeava. O soalho parecia ser sólido; pelo menos, suportava bem o peso do casulo espacial. Não era provável que caísse por ele abaixo... fosse o que fosse realmente esse «ele».

Mas ainda tinha o problema do ar; tanto quanto sabia, o quarto podia estar no vácuo, ou conter uma atmosfera venenosa. Achava isso pouco provável – ninguém se daria a tanto trabalho para, no fim, não prestar atenção a um pormenor tão essencial -, mas não estava disposto a correr riscos desnecessários. De qualquer forma, os seus anos de treino haviam-no acautelado contra a contaminação; custava-lhe sempre expor-se a um meio ambiente desconhecido, até perceber que não tinha alternativa. Aquele lugar tinha o aspecto de um apartamento de hotel, algures nos Estados Unidos.

 Mas isso não alterava o facto de que, na realidade, devia estar a centenas de anos-luz do Sistema Solar.

 Bowman fechou o capacete do seu fato, e activou a comporta do casulo espacial. Ouviu-se um breve assobio indicativo da nivelação de pressão; depois, saiu para o quarto.

 Tanto quanto percebia, encontrava-se num campo gravítico perfeitamente normal. Ergueu um braço, e deixou-o cair livremente. Tombou-lhe ao lado do corpo em menos de um segundo.

 Aquilo fez tudo parecer duplamente irreal. Ali estava ele, de fato espacial vestido, de pé - quando devia andar a flutuar ao lado de um veículo que só funcionava em condições na ausência de gravidade. Tinha todos os reflexos normais de astronauta virados de pernas para o ar; era obrigado a pensar antes de fazer qualquer movimento.

 Como um homem em transe, passou lentamente da sua metade nua e não mobilada do quarto, para o apartamento de hotel. Como quase esperara, esta não desapareceu quando ele se aproximou, mas permaneceu perfeitamente real - e, ao que parecia, perfeitamente sólida.

 Estacou ao lado da mesa de café, que tinha em cima um vídeo-telefone convencional, do Sistema Bell, e uma lista telefónica.

 Bowman inclinou-se, e pegou no volume com umas mãos desajeitadas e enluvadas.

 E leu, escrito nos familiares caracteres que vira milhares de vezes, o nome:

 WASHINGTON, D. C.

 Olhou então mais atentamente; e pela primeira vez teve a prova objectiva de que, embora tudo aquilo pudesse ser real, não se encontrava na Terra.

 Só conseguia ler a palavra Washington; o resto da impressão não passava de um borrão, como se tivesse sido fotocopiado de uma fotografia de jornal. Abriu o livro ao acaso, e folheou-o rapidamente. As folhas, por escrever, eram de um material branco e quebradiço, muito parecido com papel.

 Bowman levantou então o receptor do telefone, e encostou-o ao plástico do seu capacete. Se desse sinal, ouvi-lo-ia através do material condutor. Mas, tal como esperara, o silêncio era total.

 Bem... tratava-se de uma Farsa - mas fantasticamente cuidadosa. E obviamente que o seu objectivo não fora enganar, e sim - esperava - tranquilizar.

 Era um pensamento reconfortante; no entanto, só despiria o fato quando completasse a sua viagem de exploração.

 A mobília parecia suficientemente sólida; experimentou sentar-se nas cadeiras, que aguentaram o seu peso. Mas as gavetas da secretária não abriram; eram só imitações.

 Assim como os livros e revistas; tal como a lista telefónica, só os seus títulos eram legíveis. Constituíam uma mistura bem estranha - muitos best-sellers bastante fraquinhos, algumas obras sensacionalistas de caracter ensaístico, e umas poucas autobiografias bem divulgadas. Nada daquilo fora publicado havia menos de três anos, e poucas obras tinham algum conteúdo intelectual. Não que interessasse... os livros nem sequer podiam ser tirados das prateleiras.

 Bowman viu ainda duas portas, que se abriram bastante facilmente. A primeira dava para um quarto de dormir pequeno, mas confortável, mobilado com uma cama, uma secretária, duas cadeiras, interruptores de luz que funcionavam mesmo, e um roupeiro.

 Quando o abriu, deu com os olhos em quatro fatos, num roupão, numa dúzia de camisas brancas, e em vários conjuntos de roupa interior, tudo metodicamente pendurado em cabides.

 Tirou um dos fatos cá para fora, e inspeccionou-o cuidadosa mente.

 Apalpando-o com as mãos enluvadas, pensou que fosse feito de um material mais parecido com pele do que com lã. Além disso, estava um pouco fora de moda; na Terra, ninguém usava fatos com uma só fieira de botões havia, pelo menos, quatro anos.

 Ao lado do quarto de dormir ficava a casa de banho, apetrechada com todas as instalações, que, descobriu aliviado, não eram imitações, e funcionavam na perfeição. A seguir, encontrava-se uma kitchenette, com fogão eléctrico, frigorífico, guarda-louças, louças e talheres, pia, mesa e cadeiras. Bowman começou a explorála, não só por curiosidade, mas também porque sentiu cada vez mais fome.

 Primeiro, abriu o frigorífico, de onde saiu uma nuvem fria. Nas suas prateleiras, viu imensas embalagens e latas, todas com um aspecto perfeitamente familiar quando observadas à distância - de perto, os seus rótulos mostravam-se manchados e ilegíveis. Notava-se, todavia, a ausência marcante de ovos, leite, manteiga, carne, fruta, e demais alimentos não processados: o frigorífico continha apenas artigos previamente embalados.

 Bowman pegou numa caixa de cereais de uma marca muito conhecida, e pensou que era estranho manter aquele produto congelado. Mas no momento em que levantou o pacote, ficou com a certeza de que este não continha flocos e cereais: era demasiado pesado para isso.

 Rasgou a abertura, e examinou o conteúdo. A caixa continha uma substancia azul ligeiramente húmida, com mais ou menos o mesmo peso e textura do pudim de pão. À parte uma cor meio esquisita, tinha um aspecto bastante apetitoso.

«Mas isso é ridículo», pensou Bowman com os seus botões.

«Quase de certeza que estou a ser observado, e devo parecer um idiota, com este fato vestido. Se isto for uma espécie de teste de inteligência, já devo ter chumbado». Sem mais hesitações, dirigiu-se para o quarto, onde começou a desapertar o fecho do capacete. Quando este se soltou, levantou-o um centímetro, quebrou o selo, e inspirou cuidadosamente. Tanto quanto percebia, respirava um ar perfeitamente normal.

 Deixou cair o capacete em cima da cama, e começou grata e um tanto constrangidamente, a despir o fato. Quando acabou, espreguiçou-se, inspirou profundamente, e pendurou o fato espacial ao lado dos artigos mais convencionais de vestuário que estava no roupeiro. Assim, no meio das outras coisas, ficou com um aspecto estranho, mas a mania das arrumações, que Bowman compartilhava com todos os astronautas, nunca lhe teria permitido deixá-lo em qualquer outro lugar.

 Regressou então novamente à cozinha, onde inspeccionou a caixa de«cereais» mais cuidadosamente.

 O pudim de pão azul cheirava levemente a bolo de amêndoa. Bowman sopesou-o, partiu um bocado e cheirou-o. Embora já não tivesse dúvidas de que ninguém tentaria envenená-lo deliberadamente, não podia pôr de lado a possibilidade de haverem sido cometidos erros - sobretudo tratando-se de uma disciplina tão complexa como a bioquímica.

 Mordiscou uns pedacinhos do alimento, mastigou, e engoliu; era excelente, embora com um indescritível sabor, difícil de reter.

 Se fechasse os olhos e desse asas à imaginação, poderia pensar que estava a comer, ou pão integral, ou até frutos secos. A não ser que se verificassem efeitos secundários inesperados, não tinha razões para recear morrer à fome.

 Depois de comer alguns bocados da substancia, sentiu-se bastante satisfeito, e procurou alguma coisa para beber. Meia dúzia de latas de cerveja - novamente de uma marca Famosa -, alinhavam-se no fundo do frigorífico; pegou numa, e carregou-lhe em cima para a abrir.

 A tampa de metal previamente comprimida, saltou pelas linhas já demarcadas, exactamente como era normal. Mas a lata não continha cerveja; para surpresa e desapontamento de Bowman, continha apenas mais alimento azul.

 Num abrir e fechar de olhos, abriu meia dúzia de outras embalagens e latas.

 Fossem quais fossem os rótulos que exibissem, os seus conteúdos eram sempre os mesmos: parecia que a sua dieta ia ser um tanto monótona, e que só teria água para beber. Abriu a torneira da cozinha, encheu um copo, e sorveu uns goles cautelosos.

 Cuspiu tudo imediatamente; o sabor era terrível. Depois, envergonhado com a sua reacção instintiva, obrigou-se a beber o resto.

 Aquele primeiro gole chegara-lhe para identificar o líquido. Sabia mal porque não tinha sabor; a água da torneira era pura, destilada. Os seus desconhecidos hospedeiros, não queriam, obviamente, fazer a sua saúde correr riscos desnecessários.

 Com as forças retemperadas, tomou um chuveiro rápido. Não havia sabonete - outro contratempo menor -, mas, para compensar, a casa de banho continha um secador de ar quente muito eficiente, com o qual se regalou por um bocado, antes de ir experimentar cuecas, camisola interior e roupão. Depois disso, deitou-se na cama, olhou para o tecto, e tentou perceber alguma coisa da fantástica situação em que se encontrava.

 Ainda não se passara muito tempo quando a sua atenção foi desviada por um outro pensamento.

 Imediatamente acima da cama, encontrava-se no tecto um écran de televisão, habitual nos hotéis: Bowman pensara que, tal como o telefone e os livros, não passava de uma imitação.

 Mas a unidade de controlo, montada num suporte oscilante ao lado da cama, parecia tão real, que ele não resistiu a brincar com ela; logo que os seus dedos tocaram no disco sensor, o écran iluminou-se.

 Febrilmente, começou a marcar ao acaso, códigos de selecção de canais, e recebeu a primeira imagem quase imediatamente.

 Tratava-se de um comentador africano bastante conhecido, que discorria sobre as tentativas que estavam a ser feitas para preservar os últimos vestígios de vida selvagem no seu pais. Bowman escutou-o durante alguns segundos; sentia-se tão cativado pelo som de uma voz humana, que pouco lhe importava o que estava a ser dito. Depois, mudou o canal.

 Nos cinco minutos seguintes, sintonizou uma orquestra sinfónica tocando o Concerto para Violino de Walton, uma discussão sobre o triste estado do teatro legítimo, um western, uma demonstração de uma cura recente para as dores de cabeça, um painel de jogo numa língua oriental, um psicodrama, três comentários noticiosos, uma partida de futebol, um colóquio sobre geometria dos sólidos (em Russo), e vários sinais sintonizadores e transmissões de dados.

 Tratava-se, de facto, de uma amostra perfeitamente normal dos programas de televisão do mundo, e, além de lhe ter levantado a moral, confirmou uma suspeita que já havia algum tempo ia tomando forma no seu pensamento.

 Todos os programas tinham cerca de dois anos, o que os datava mais ou menos da altura em que a AMT-1 fora descoberta, e era difícil acreditar que se tratava de pura coincidência. Algo andara a monitorizar as ondas rádio; aquele bloco de ébano estivera mais ocupado do que os homens haviam pensado.

 Continuou a passear pelo espectro; de repente, reconheceu uma cena familiar. E viu aquele mesmo apartamento, naquela altura ocupado um actor célebre, que denunciava furiosamente uma amante infiel. Com um choque de reconhecimento, Bowman fitou a salinha de estar de onde saíra havia pouco tempo; e quando a câmara seguiu o indignado casal até ao quarto, olhou involuntariamente para a porta, para ver se alguém estava a entrar.

 Portanto, fora assim que aquela área de recepção havia sido preparada para ele; os seus hospedeiros tinham baseado as suas ideias sobre o modo de vida terrestre, em programas de televisão. A sensação de estar dentro de um filme, era quase literalmente verdadeira.

 Já compreendera tudo o que queria perceber nessa altura, por isso desligou o televisor. «Que faço agora?», perguntou-se, entrelaçando os dedos atrás da cabeça, e fitando o écran vazio.

 Embora física e emocionalmente exausto, parecia-lhes impossível que alguém conseguisse dormir rodeado de coisas tão fantásticas, e mais longe da Terra que algum homem jamais estivera.

 Mas a confortável cama e a instintiva sabedoria do corpo, conspiraram em conjunto contra a sua vontade.

 Tacteou à procura do interruptor da luz, e o quarto mergulhou na escuridão.

 Dali a segundos, dormia a sono solto.

 E David Bowman dormiu pela última vez.

 

RECAPITULAÇÃO

 

Visto que já não servia para nada, a mobília do apartamento voltou a dissolver-se no espírito do seu criador. Só a cama permaneceu imutável - e as paredes, que protegiam aquele frágil organismo das energias que ainda não sabia controlar.

 David Bowman mexeu-se agitadamente no seu sono. Não acordou, nem sonhou com nada, mas deixou de estar completamente inconsciente. Como um nevoeiro alastrando-se numa floresta, algo lhe invadiu o espírito. Sentiu-o apenas muito debilmente, pois o tecelão aprendera muitas coisas; e o material no qual imprimia agora a sua arte, era de uma textura infinitamente mais fina. Mas se deveria fazer parte da sua tapeçaria ainda inacabada, só o futuro diria.

 Com uma atenção já mais que humana, o bebé fitou as profundezas do monólito de cristal, vendo - mas ainda não compreendendo - os mistérios que este encerrava. Soube que regressara a casa, que ali estava a origem de muitas raças, para além da sua; mas soube também que não podia ficar. Para lá daquele momento, estava outro nascimento, mais estranho que qualquer outro no passado.

 O momento chegara; os padrões brilhantes já não transmitiam os ecos dos segredos encerrados no coração do cristal. Quando se desvaneceram, as paredes protectoras regressaram à não-existência de onde haviam brevemente surgido, e o sol vermelho encheu o céu.

 O metal e o plástico do esquecido casulo espacial, e a roupa em tempos usada por uma entidade que se chamara David Bowman, irromperam em chamas.

 Reduzidos aos seus átomos componentes, desapareceram assim os últimos elos com a Terra.

 Mas, ocupada a adaptar-se ao confortável clarão do seu novo meio ambiente, a criança mal deu por isso. Para melhor focar os seus poderes, ainda precisava, por algum tempo, daquela casa de matéria. O seu corpo indestrutível era a imagem de si do seu cérebro; e, apesar dos poderes que possuía, sabia que era ainda uma criança. Permaneceria assim até se decidir por outra forma, ou ultrapassar as necessidades da matéria.

 Chegara a altura de Partir - embora, de certa forma, nunca mais fosse abandonar aquele lugar onde renascera, pois faria sempre parte da entidade que se servira da estrela dupla para os seus objectivos insondáveis. A direcção - mas não a natureza - do seu destino, desenhava-se-lhe claramente à frente, e nem precisava de voltar ao caminho tortuoso por onde viera.

 Com os instintos de três milhões de anos, compreendeu que, por trás do espaço, havia mais caminhos. Os mecanismos antigos do Portão Austral haviam-lhe sido muito úteis, mas não precisaria mais deles.

 A cintilante forma rectangular que, em tempos, não passara de uma lâmina de cristal, continuava a pairar à sua frente, e ele observava-a, indiferente às chamas inofensivas do inferno que tinha aos pés. Encerrava ainda segredos insondáveis do espaço e do tempo, mas, pelo menos, já compreendia alguns, que era capaz de dominar. Que óbvia... que necessária... era a proporção matemática dos seus lados, a sequência quadrática 1:4:9! E que ingenuidade ter imaginado que a série acabava ali, com apenas três dimensões!

 Concentrou o pensamento nestas singelezas geométricas, e, ao passo que meditava nelas, a estrutura vazia encheu-se da escuridão da noite interestelar. O brilho do sol vermelho diminuiu - ou antes, pareceu recuar em todas as direcções ao mesmo tempo; e à sua frente viu o luminoso remoinho da galáxia.

 Podia tratar-se de algum modelo muito bonito, incrivelmente pormenorizado, incrustado num bloco de plástico. Mas era a realidade, percebida como um todo por sentidos agora mais subtis que a visão. Se quisesse, podia concentrar a sua atenção em qualquer das centenas de biliões de estrelas; e era capaz de fazer muito mais que isso.

 Ali estava ele, à deriva naquele grande rio de sais, a meio caminho entre os intensos fogos do núcleo galáctico, e os isolados astros sentinelas espalhados pela orla. E era ali que queria estar, do outro lado do abismo celeste, dessa tortuosa faixa de escuridão, sem estrelas. Sabia que aquele caos informe, cujos contornos só eram visíveis devido à luz de longínquas névoas de fogo, era material de criação ainda por usar, barro de evoluções ainda por moldar. Ali, o Tempo não começara; só muito depois de os seus ardentes sais morrerem, a luz e a vida dariam forma àquele vazio.

 Atravessara-o uma vez involuntariamente; fá-lo-ia de novo - por vontade própria. Tal pensamento encheu-o de um terror repentino e paralisante e, por um momento, sentiu-se completamente desorientado - a sua nova visão do universo estremeceu e ameaçou quebrar-se em milhares de estilhaços.

 Não foi o medo de abismos galácticos que lhe arrefeceu a alma, e sim uma inquietação mais profunda, provinda do futuro ainda por nascer. Pois ele deixara para trás as escalas temporais da sua origem humana; ao contemplar aquela faixa de noite sem estrelas, sentiu as primeiras intimações da Eternidade que se abria à sua.

 Mas lembrou-se então de que nunca estaria só, e o seu nanico recuou lentamente. Recuperou a percepção cristalina do universo - não só, sabia, devido aos seus próprios esforços. Quando, nos seus primeiros passos hesitantes, precisasse de ajuda, ela estaria lá.

 Novamente confiante, lançou-se através dos anos-luz, qual mergulhador que acabasse de recuperar a coragem. A galáxia irrompeu do cerco mental dentro do qual ele a encerrara; astros e nebulosas passaram por ele numa ilusão de velocidade infinita. Deslizou, como uma sombra, pelos núcleos de sais ilusórios, que explodiram e caíram atrás de si; as frias e escuras poeiras cósmicas, que, em tempos, tanto temera, não lhe pareciam mais que a sombra da asa de um corvo à frente do Sol.

 As estrelas começavam a escassear; o clarão da Via Láctea transformara-se num pálido fantasma da glória que ele contemplara - e que, quando estivesse pronto, contemplaria novamente.

 Voltara precisamente aonde queria, ao espaço a que os homens chamavam real.

 

CRIANÇA ASTRAL

 

À sua frente, qual cintilante brinquedo a que nenhuma criança poderia resistir, flutuava o planeta Terra com todos os seus povos.

 Regressara a tempo.

 Lá em baixo, naquele globo formigante de vida, alarmes deviam percorrer os visores dos radares, grandes telescópios perscrutariam com certeza os céus - e a história, como o homem a conhecia, estava a chegar ao fim.

 Apercebeu-se de que, mil e quinhentos quilómetros mais abaixo, uma adormecida carga de morte acabara de despertar, e se espreguiçava indolentemente na sua própria órbita. As débeis energias que continha não constituíam qualquer ameaça; mas ele preferia um céu mais limpo. Lançou-lhes a sua vontade, e as megatoneladas em rotação floresceram numa detonação silenciosa, que fez cair uma breve e falsa madrugada sobre metade do globo adormecido.

 Depois esperou, ordenou os pensamentos, e Meditou sobre os seus poderes ainda por testar. Pois embora fosse senhor do mundo, não sabia bem o que fazer a seguir.

 Mas acabaria por descobrir alguma coisa. 

 

                                                                                                    Arthur C. Clarke

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

 

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