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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Da Terra à Lua / Júlio Verne
Da Terra à Lua / Júlio Verne

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Da Terra à Lua

 

 

Capítulo 1

O  Clube do Canhão

 

Durante a Guerra de Secessão dos Estados Unidos, um    novo clube muito influente fundou-se na Cidade de Baltimore,    no Estado de Maryland. Sabe-se com que energia o instinto    militar se desenvolveu entre esse povo de armadores,    de comerciantes e de industriais. Simples negociantes deixaram    os seus balcões para se improvisarem capitães, coron    éis, generais, sem terem passado pelas aulas de academias    militares; em breve igualam na ?arte de guerra? os    seus colegas do Velho Continente, e como eles conseguiram    brilhantes vitórias à força de prodigalizarem balas, milh    ões e homens.

    Contudo, no que os americanos ultrapassaram singularmente    os europeus foi na ciência da balística. Não que as    suas armas atingissem mais alto grau de perfeição, mas    porque ofereceram dimensões inusitadas, tendo, por conseq    üência, alcances desconhecidos até então. No que respeita    a tiros rascantes ou de rajada, os ingleses, os franceses    e os prussianos nada mais tinham a aprender; mas os    seus canhões, os seus obuses, os seus morteiros não passavam    de pistolas de bolso comparados com os formidá-     veis engenhos bélicos da artilharia americana.

    Isto não deve espantar ninguém: os ianques, esses primeiros    mecânicos do Mundo, são engenheiros, como os    italianos são músicos e os alemães metafísicos - de nascen    ça. Nada mais natural que vê-los levar para a ciência da    balística a sua audaciosa engenhosidade. Daí esses canhões    gigantescos, muito menos úteis do que máquinas de costura,    mas tão espantosos como elas e ainda mais admirados.

    Portanto, durante essa terrível luta entre nortistas e    sulistas, os artilheiros estiveram em primeiro lugar; os jornais    dos Estados Unidos celebravam as suas invenções com    entusiasmo, e não havia comerciante nem ingênuo    basbaque que não quebrasse a cabeça, de dia e de noite, e    calculando trajetórias absurdas.

    Ora, quando um americano tem uma idéia, procura logo    outro americano que a partilhe com ele.

    Se chegam a ser três, elegem um presidente e um secretá-     rio. Se forem quatro, nomeiam um arquivista e a sociedade    funciona. No caso de serem cinco, convocam uma assembl    éia geral e o clube fica constituído. Foi assim que sucedeu    em Baltimore. 0 primeiro a inventar um novo canh    ão associou-se ao primeiro que o fundiu e ao primeiro    que o forjou. Foi esse o início do Clube do Canhão. Um    mês após a sua formação, contava mil oitocentos e trinta    e três membros efetivos e trinta mil quinhentos e setenta e    cinco sócios correspondentes.

    Uma condição sine qua non era imposta a todos aqueles    que quisessem entrar na associação: ter imaginado ou pelo    menos aperfeiçoado uma arma, qualquer arma de fogo.

    No entanto, para falar a verdade os inventores de revólver    de quinze tiros, de carabinas de repetição ou de sabres e    pistolas não gozavam de grande consideração aos artilheiros    é que era reconhecida primazia em todas as circunst    âncias.

    Fundado o Clube do Canhão, calcula-se facilmente o que    produziu neste gênero o gênio inventivo dos americanos.

        Os engenhos de guerra tomaram proporções colossais, e    os projéteis foram, para além dos limites permitidos, cortar    em dois os transeuntes inofensivos. Todas essas inven-     ções deixaram muito para trás os tímidos instrumentos da    artilharia européia.

    Era uma reunião de ?anjos exterminadores?, que no entanto    continuavam a ser considerados as melhores pessoas    do mundo.

    Deve acrescentar-se que esses ianques, dotados de uma    coragem sem limites, não se limitaram às fórmulas e se    dedicaram de corpo e alma à arte da guerra. Havia entre    eles oficiais de todas as patentes, de tenentes a generais;    militares de todas as idades: os que iniciavam a sua carreira    e os que nela envelheciam. Muitos deles ficaram para    sempre no campo de batalha e os seus nomes passaram a    figurar no livro de honra do Clube do Canhão. Daqueles que    voltaram, a maior parte ostentava honrosos sinais da sua    indiscutível intrepidez: muletas, pernas de pau, braços artificiais,    mãos artificiais, maxilares de borracha, crânios de    prata, narizes de platina, nada faltava à coleção, e Pitcaim    chegou mesmo a calcular igualmente que no Clube do Canh    ão não chegava a haver um braço para quatro pessoas,    e apenas duas pernas para seis.

    Todavia, esses valentes artilheiros não se importavam com    tais ninharias, e sentiam-se com todo o, direito de se ufanarem    quando o boletim de uma batalha mostrava um nú-     mero de vítimas que decuplicava a quantidade dos projéteis    gastos.

    Porém, num dia, num triste e lamentável dia, a paz foi assinada    pêlos sobreviventes da guerra, as detonações cessaram    pouco a pouco, os morteiros calaram-se, as peças de    artilharia foram amordaçadas por muito tempo e os canhões, de cabeça baixa, voltaram para os arsenais, as bala    empilharam-se nos paióis, as recordações sangrentas apagaram-     se, os algodoeiros cresceram magnificamente nos    campos largamente adubados, as roupas de luto acaba    ram por desaparecer com as dores e as saudades, e o    Clube do Canhão estagnou em profunda inatividade.

    - É desolador - disse uma noite o bravo Tom Hunter, enquanto    as pernas de pau se carbonizavam no fogo da lareira    da sala de fumo. - Nada a fazer! Nada a esperar! Que    existência fastidiosa! Aonde vai o tempo em que o canhão    nos acordava todas as manhãs com as suas alegres detona    ções?     - Esse tempo já não existe - respondeu o fogoso Bilsby,    procurando estirar os braços que lhe faltavam. - Então sim,    era um prazer! Inventavam uma peça de artilharia, e logo    que a fundiam corriam a experimentá-la nas fileiras do inimigo;    depois, voltavam ao acampamento com um    encorajamento de Sherman ou um aperto de mão de Mac-     Clellan! Mas hoje, os generais voltaram para as suas ocupa    ções civis, e, em vez de projéteis, ?expedem inofensivos    fardos de algodão! Por Santa Bárbara. 0 futuro da artilharia    está perdido na América.

    - Sim, Bilsby - exclamou o Coronel Blomsberry - que cruéis    decepções! Um dia deixa a gente os hábitos tranqüilos,    exercita-se no manejo das armas, troca-se Baltimore pelos    campos de batalha, porta-se como um herói, e, dois    anos, três anos mais tarde, é preciso desprezar o fruto de    tantas fadigas, adormecer numa deplorável inatividade e    enfiar as mãos nos bolsos.

    Dissesse o que dissesse, o valente coronel seria impedido    de dar um tal sinal da sua inatividade, e, no entanto, não    eram os bolsos que lhe faltavam.

    - E nenhuma guerra em perspectiva - disse então o famoso    J. T. Maston, coçando com a sua mão de ferro o seu    crânio de guta-percha. - Nem uma nuvem no horizonte, e    isso quando há tanto a fazer na ciência da artilharia! Eu    terminei esta manhã o desenho, com plano, perfil e eleva-    ção, de um morteiro destinado a alterar as leis da guerra!     - Verdade? - replicou Tom Hunter, pensando    involuntariamente na última experiência do honrado J. T.

        Maston.

    - É verdade - respondeu Maston. - Mas de que servirão    tantos estudos levados a bom termo, tantas dificuldades    vencidas? Não será trabalhar à toa? Os povos do Novo    Mundo parecem estar decididos a viver em paz, e o nosso    belicoso Tribune chega ao ponto de anunciar catástrofes    iminentes devido ao escandaloso crescimento da popula-     ção.

    - No entanto, Maston - retorquiu o Coronel Blomsberry -,    continuam a bater-se na Europa para manter o princípio    das nacionalidades!     - E então?     - E então! Talvez pudéssemos tentar qualquer coisa lá, se    aceitassem os nossos serviços...

    - Tem pensado nisso? - escandalizou-se Bilsby. - Fazer bal    ística em proveito dos estrangeiros!     - Vale mais isso do que não fazer nada - respondeu o coronel.

    - Sem dúvida - disse J. T. Maston -, seria melhor, mas não    devemos pensar sequer nesse expediente.

    - E por quê? - perguntou o coronel.

    - Porque no Velho Mundo têm idéias que contrariam todos    os nossos hábitos americanos. Essa gente acha que não    se pode ser general-chefe sem ter servido como tenente,    o que equivaleria a dizer que não se pode ser bom artilheiro    a não ser que se tenha fundido o canhão! Ora, isso é simplesmente...

    - Absurdo! - replicou Tom Hunter, rasgando os braços do    seu cadeirão com o seu facão. - E, visto que as coisas    estão neste pé, só nos resta plantar tabaco ou destilar    óleo de baleia.

    - Como! - exclamou J. T. Maston, com voz retumbante. -    Não passaremos os últimos anos da nossa existência aperfei    çoando armas de fogo? Não se apresentará nova ocasi    ão de experimentar o alcance dos nossos projéteis? A    atmosfera não se iluminará mais com o clarão dos nossos        canhões? Não surgirá uma dificuldade internacional que nos    permita declarar guerra a qualquer potência transatlântica?    Os franceses não afundarão um só dos nossos barcos, e    os ingleses não enforcarão, desprezando os direitos humanos,    três ou quatro dos nossos compatriotas?     - Não, Maston - respondeu o Coronel Blomsberry -; não    teremos essa felicidade! Não. Nenhum desses incidentes    se produzirá e, mesmo que se produzisse, não tiraríamos    proveito algum dele. - A suscetibilidade americana vai desaparecendo    de dia para dia e nós vamos nos tornando    efeminados.

    - Sim, nós humilhamo-nos! - replicou Bilsby.

    - E humilham-nos! - retrucou Tom Hunter.

    - Tudo isso é verdade - replicou J. T. Maston com veemência.

    - Há no ar mil razões para nos batermos e no entanto    não nos batemos. Economizam-se braços e pernas, e isso    em proveito de pessoas que não sabem que fazer deles! E    sem precisarmos de ir procurar tão longe um motivo de    guerra... a América do Norte não pertenceu outrora aos    ingleses?     - Sem dúvida - respondeu Tom Hunter, queimando raivosamente    a extremidade da sua muleta.

    - Pois bem! - replicou J. T. Maston. - Por que é que a Inglaterra    não há-de pertencer por sua vez aos americanos? -     isso seria justo - retrucou o Coronel Blomsberry.- Entretanto    - continuou J. T. Maston, para concluir -, se não me    dão ocasião para experimentar o meu novo morteiro num    campo de batalha, demito-me de membro do Clube do    Canhão, e corro a enterrar-me nas savanas do ArKansas!     - E nós segui-lo-emos - responderam em uníssono os    interlocutores do audacioso J. T. Maston.

    Estavam as coisas nesse pé, e os espíritos exaltando-se    cada vez mais, o que ameaçava o clube de próxima dissolu    ção, quando um inesperado acontecimento impediu tão    lamentável catástrofe.

    Logo no dia seguinte, cada membro do clube recebia uma        circular escrita nestes termos:    ?Baltimore, 3 de outubro.

    0 Presidente do Clube do Canhão tem a honra de comunicar    aos caros colegas de que na sessão de 5 do corrente    lhes fará uma exposição da natureza a interessá-los vivamente:    Conseqüentemente, pede-lhes que, pondo de parte    qualquer outro negocio, não deixem de comparecer à    reunião para que são convidados pela presente.

    Muito cordialmente.

    Impey Barbicane    Presidente do Clube do Canhão.?

 

Capítulo 2   

Comunicação do Presidente Barbicane

 

No dia 5 de outubro, às oito horas da noite, encontrava-se    reunida uma compacta multidão nos salões do Clube do    Canhão.

    Entretanto, o grande salão oferecia aos olhares um curioso    espetáculo. Estava maravilhosamente apropriado para o    que se destinava. Altas colunas compostas por canhões    sobrepostos e apoiados em enormes morteiros sustinham    os finos lavores da abóbada. Panóplias de bacamartes, de    arcabuzes, de carabinas, de todas as espécies de armas de    fogo antigas e modernas se entrelaçavam pitorescamente    nas paredes. A luz do gás emergia de centenas de revólveres    agrupados em forma de lustres, enquanto girândolas    de pistolas e candelabros feitos de espingardas reunidas    em feixes completavam a esplêndida iluminação. Os modelos    de canhões, as amostras de bronze, os alvos criva dos de tiros, as chapas quebradas pelo choque das balas    do Clube do Canhão, coleções completas de soquetes e    lanadas, os rosários de bombas, os colares de projéteis, as    grinaldas de obuses - em uma palavra, todos os utensílios    do artilheiro surpreendiam pela sua espantosa e admirável    disposição e faziam pensar que o seu verdadeiro fim era    mais decorativo que mortífero.

    No lugar de honra, resguardado por uma esplêndida vitrina,    um pedaço de culatra, quebrado e torcido, sob os efeitos    da Pólvora, destroço precioso do canhão de J. T. Maston.

    No fundo da sala, o presidente, assistido por quatro secret    ários, ocupava uma espaçosa plataforma. 0 seu lugar, erguido    sobre um reparo esculpido, assemelhava-se, no seu    todo, às robustas formas de um morteiro de trinta e duas    polegadas; estava assestado sob um ângulo de noventa    graus e suspensos em munhões, de tal modo que o presidente    podia imprimir-lhe, como às cadeiras de balanço, um    movimento bastante agradável nas ocasiões de grande    calor. Sobre a secretária, grande placa metálica, apoiada    em seis obuses, via-se um tinteiro de requintado gosto,    admiravelmente cinzelado, e uma campainha de detona-     ção, que soava, nas ocasiões em que era tocada, como    um revólver. Durante as mais veementes discussões, essa    campainha de novo gênero mal chegava no entanto para    cobrir a voz daquela legião de artilheiros entusiasmados.

    Impey Barbicane era um homem de quarenta anos, calmo,    frio, austero, com um espírito eminentemente sério e concentrado;    exato como um cronômetro, de um temperamento    a toda prova e de um caráter inquebrantável; pouco    cavalheiresco, aventureiro, mas levando o seu espírito    prático até para os empreendimentos mais temerários; era    por excelência o homem da Nova Inglaterra, o nortista colonizador,    o descendente desses Cabeças-redondas tão funestos    aos Stuarts, e implacável inimigo dos gentlemen do    Sul, esses antigos cowboys da mãe-pátria. Era de estatura    mediana, tendo, como rara exceção no Clube do Canhão,    todos os seus membros intactos. Em resumo: um ianque    feito de uma única peça.

    Quando soaram as oito horas no relógio da grande sala,    Barbicane, como se fosse movido por uma mola, ergueuse    subitamente; fez-se um silêncio geral e o orador, num    tom um pouco enfático, tomou a palavra nestes termos:     - Bravos colegas, de há muito tempo que uma paz infecunda    veio mergulhar os membros do Clube do Canhão numa    lamentável inatividade. Após um período de alguns anos,    tão cheio de incidentes, foi necessário abandonar os nossos    trabalhos e deter-nos na senda do progresso. Não receio    proclamar em voz alta que uma guerra que voltasse a    colocar as armas nas nossas mãos seria bem-vinda...

    - Sim, a guerra! - exclamou o impetuoso J. T. Maston.

    Ouçam! Ouçam! - gritaram de todos os lados.

    Mas a guerra - continuou Barbicane -, a guerra é impossível    nas circunstâncias atuais, e, apesar do que possa esperar o    meu honrado colega, passar-se-ão muitos anos antes que    os nossos canhões voltem a troar nos campos de batalha.

    Devemos, portanto, tomar uma decisão e procurar em outro    campo de ação alimento para a atividade que nos devora!    A assembléia sentiu que o seu presidente ia abordar o Ponto    delicado. Redobrou, portanto, de atenção.

    - Desde há alguns meses, meus bravos colegas - continuou    Barbicane - que pergunto a mim mesmo se, embora    continuando a manter-nos dentro da nossa especialidade,    não poderíamos empreender alguma grande experiência    digna do século XIX, se os progressos da balística não nos    permitiriam levá-la a bom termo. Procurei, trabalhei, calculei,    e dos meus estudos resultou a convicção de que ?poderemos    ter êxito numa empresa que pareceria impraticável    para qualquer outro país. Este projeto, longamente elaborado,    vai ser o objeto da minha comunicação; é digno de    vós, digno do passado do Clube do Canhão, e não poderá    deixar de fazer sensação no Mundo.

    - Muita sensação? - perguntou um artilheiro apaixonado.

    - Muita sensação no verdadeiro sentido do termo! - respondeu    Barbicane.

    - Não interrompam! - repetiram muitas vozes.

    - Peço-lhes, portanto, caros colegas, para me darem toda    a vossa atenção.

    Um frêmito correu pela assistência. Barbicane, depois de    ter num gesto rápido assegurado a posição de seu chapéu    na cabeça, continuou o seu discurso com voz calma.

    - Não há um só de vós, caros colegas, que não tenha visto    a Lua, ou pelo menos não tenha ouvido falar nela. Não se    admirem de eu vir aqui falar do astro da noite. A nós está    talvez reservado sermos os colombos desse mundo desconhecido.

    Compreendam-me, apoiem todo o vosso poder,    e eu conduzi-los-ei à sua conquista, e o vosso nome    juntar-se-á ao dos trinta e seis Estados que formam este    grande país!     - Viva a Lua! - exclamou o Clube do Canhão numa só voz.

    - A Lua tem sido muito estudada - prosseguiu Barbicane _;    a sua massa, a sua densidade, o seu peso, o seu volume, a    sua constituição, os seus movimentos, a sua distância, o    seu papel no sistema solar estão perfeitamente determinados;    fizeram-se mapas selenográficos com uma perfeição    que iguala, se é que não ultrapassa, a dos mapas terrestres;    a fotografia deu do nosso satélite provas de uma    incomparável beleza. Resumindo, sabe-se da Lua tudo que    as ciências matemáticas, a astronomia, a geologia e a ótica    podem ensinar a seu respeito; mas até agora nunca foi    estabelecida uma ligação direta com ela.

    Esta última frase excitou tal interesse e surpresa que chegou    a produzir grande agitação.

    - Permitam-me - continuou ele - lembrar-lhes como certos    espíritos ardentes, embarcados em viagens imaginárias,    pretenderam ter penetrado os segredos do nosso satélite.

    No século XVII, um certo David Fabricius gabou-se de ter    visto com os seus próprios olhos os habitantes da Lua. Em    1649, um francês, Jean Baudoin, publicou a Viagem Feita    ao Mundo da Lua pelo Aventureiro Espanhol Dominguez    Gonzalez. Na mesma época, Cyrano de Bergerac deu à luz    da publicidade aquela célebre expedição que tanto êxito teve    na França. Mais tarde, outro francês (porque esses indiví-     duos ocupam-se muito da Lua), chamado Fontenelle, escreveu    a Pluralidade dos Mundos, uma obra-prima do seu    tempo; mas o avanço da ciência esmaga as obras-primas1    Por volta de 1835, um folheto traduzido do New York    American contou que Sir John Herschell, enviado ao cabo    da Boa Esperança, para ali fazer estudos astronômicos,    tinha conseguido, por meio de um- telescópio aperfeiçoado    por uma iluminação interna, trazer a Lua para uma dist    ância de oitenta jardas. Teria então visto distintamente as    cavernas em que viviam os hipopótamos, as verdes montanhas    orladas de rendas de ouro, carneiros com chifres de    marfim, cabritos brancos, habitantes com asas    membranosas como as dos morcegos. Esta brochura, obra    de um americano chamado Locke, conheceu grande popularidade.

    Mas em breve se reconheceu tratar-se de uma    mistificação científica, e os franceses foram os primeiros a    rir-se dela.

    - Rir de um americano! - exclamou J. T. Maston. - Mas isso    é um caso de guerra!...

    - Tranqüilize-se, meu digno amigo. Os franceses, antes de    rirem, tinham sido perfeitamente iludidos pelo nosso compatriota.

    Para terminar este rápido relato histórico, acrescentarei    que um certo Hans Pfael, de Roterdã, subindo num    balão cheio de um gás obtido do azoto, e trinta e sete    vezes mais leve do que o hidrogênio, atingiu a Lua após    dezenove dias de travessia. Essa viagem, como as tentativas    precedentes, era simplesmente imaginária, mas tratase    de obra de um escritor popular na América, de um gênio    singular e contemplativo. Refiro-me a Edgar Poe.

    - Viva Edgar Poe! - gritou a assembléia, eletrizada pelas    palavras do presidente.

    - Acabei - continuou Barbicane - com essas tentativas a.

    que chamarei puramente literárias, e perfeitamente insuficientes    para estabelecer relações com o astro da noite.

    Assim, há alguns anos um geómetra alemão propôs enviar    uma comissão de sábios para as estepes da Sibéria. Ali, em    vastas planícies, deviam fazer desenhar imensas figuras    geométricas, por meio de refletores luminosos, entre outras    a do quadrado da hipotenusa. ?Qualquer ser inteligente    ?, dizia este geómetra, ?deve compreender o destino cient    ífico dessa figura. Portanto, os selenitas, se é que existem,    responderão com uma figura semelhante, e, uma ?vez    estabelecida a comunicação, será fácil criar um alfabeto    que permitirá trocar mensagens com os habitantes da Lua.?    Assim falava o geómetra alemão, mas o seu projeto não    foi posto em execução e até agora nenhuma ligação direta    foi estabelecida entre a Terra e o seu satélite. Mas está    reservado ao gênio Prático dos americanos a concretização    da relação com o Mundo sideral. 0 meio de conseguir é    sim?, fácil, certo, infalível, e vai ser o objeto da minha proposta.

    Um barulho ensurdecedor, uma tempestade de aclamações    acolheu estas palavras.

    Quando a agitação se acalmou, Barbicane recomeçou em    tom mais grave o seu interrompido discurso:     - Sabeis bem - disse - que progressos a balística tem feito    desde há alguns anos e a que grau de perfeição teriam    chegado as armas de fogo se a guerra tivesse continuado.

    Também não ignorais que, de modo geral, a força de resist    ência ? dos canhões e o poder expansivo da pólvora são    ilimitados. Pois bem, partindo deste princípio, perguntei a    mim mesmo se, por meio de um instrumento adequado,    em condições de resistência determinadas, não seria poss    ível enviar uma bala para a Lua.

    A estas palavras, uma exclamação de estupefação saiu de    mil peitos ofegantes; depois fez-se um momento de silêncio,    semelhante a essa calma profunda que precede o ruído    do trovão. E, realmente, a tempestade rebentou mas uma    tempestade de aplausos, de gritos, de clamores, que fez    tremer a sala. 0 presidente queria falar, mas não podia. Só    passados dez minutos é que ele conseguiu fazer-se ouvir.

    - Deixem-me concluir - continuou com voz fria. - Examinei    a questão sob todos os aspectos, abordei resolutamente o    problema, e dos meus cálculos, indiscutíveis, resulta que    qualquer projétil dotado de uma velocidade inicial de doze    mil jardas por segundo, e dirigido para a Lua, chegará necessariamente    até lá. Tenho, portanto, a honra de vos propor,    meus valentes colegas, tentarem esta pequena experi    ência!    É impossível descrever o efeito produzido pelas últimas palavras    do honrado presidente:    Era uma desordem, um sussurro de vozes indescritível. As    bocas gritavam, à mãos batiam, os pés faziam estremecer    o pavimento. Todas as armas daquele museu de artilharia,    disparadas ao mesmo tempo, não teriam agitado mais violentamente    as ondas sonoras. Isso não pode surpreender.

    Há artilheiros quase tão ruidosos quanto os seus canh    ões.

    Barbicane permanecia calmo no meio desses clamores entusiastas;    talvez quisesse dirigir ainda algumas palavras aos    seus colegas, pois os seus gestos reclamavam    silêncio, e a sua campainha. fulminante detonou tão inútil    quanto violentamente. Nem sequer o ouviam. Pouco depois    foi arrancado da sua cadeira e levado em triunfo.

    Passou das mãos dos seus fiéis camaradas para os braços    de unia multidão não menos exaltada.

    0 passeio triunfal do presidente prolongou-se pela noite.

    Foi uma verdadeira marcha iluminada por archotes.

    Precisamente, como, se tivesse compreendido que se tratava    dela, a Lua brilhava nesse momento com uma serena    magnificência, eclipsando com a sua intensa radiação as    luzes terrestres. Os ianques voltavam os olhos para o seu    disco cintilante; uns saudavam-na com a mão, outros com    nomes mais meigos; enquanto uns a mediam com o olhar,    havia outros que a ameaçavam.

    Somente por volta das duas horas, a emoção acalmou-se.

    0 Presidente Barbicane conseguiu voltar para a sua casa,    moído, cansado. Um hércules não teria resistido a semelhante    entusiasmo. A multidão abandonou pouco a pouco    as praças e as ruas.

    No dia seguinte, mil e quinhentos jornais diários, ,semaná-     rios, mensais ou bimensais, apoderaram-se da questão,    examinaram-na sob os seus diferentes pontos de vista,    físicos, meteorológicos, econômicos ou morais, pela .perspectiva    da preponderância política ou da civilização. Perguntavam    se a Lua seria um mundo morto, se não estaria    ainda em via de transformação. Se assemelharia à Terra no    tempo em que ainda não tinha atmosfera. Que espetáculo    apresentaria a parte invisível do nosso satélite? Se bem    que se tratasse ainda apenas de enviar uma bala ao astro    da noite, todos viam nela um ponto de partida para uma    série de novas experiências; todos esperavam que um dia    a América penetrasse os últimos segredos desse disco misterioso    e alguns mesmo pareciam temer que a sua conquista    alterasse sensivelmente o equilíbrio europeu.

    Discutido o projeto, nenhum jornal pós em dúvida a possibilidade    da sua realização; as revistas, os panfletos, os boletins    e os magazines publicados pelas sociedades científicas,    literárias ou religiosas, faziam ressaltar as suas vantagens,    e a Sociedade de História Natural de Boston, a Sociedade    Americana das Ciências e das Artes de Alabany, a    Sociedade Geográfica e Estatística de Nova Iorque, a Sociedade    Filosófica Americana de Filadélfia, o Instituto    Smithsoniano de Washington, enviaram em cartas as suas    felicitações ao Clube do Canhão, com ofertas imediatas de    coadjuvação e de dinheiro.

    A verdade, pode dizer-se, é que nunca nenhuma proposta    reuniu tal número de adesões; hesitações, dúvidas, inquieta    ções não ocorreram a ninguém. Quanto às brincadeiras,    às caricaturas, às canções que teriam acolhido na Europa,    e especialmente na França, a idéia de enviar um projétil à    Lua, teriam servido muito mal os seus autores; nem todos    os revólveres do mundo seriam capazes de garantir a sua    segurança contra a indignação geral. Há coisas de que as    pessoas não riem no Novo Mundo. Impey Barbicane tornou-     se, a partir desse dia, um dos maiores cidadãos dos    Estados Unidos, qualquer coisa como o Washington da Ciência.

 

Capitulo 3   

O romance da Lua

 

Um observador dotado de uma vista infinitamente penetrante,    e colocado nesse centro desconhecido em redor do    qual gravita o mundo, teria visto miríades de átomos encherem    o espaço na época caótica do Universo. Mas, pouco    a pouco, com os séculos, produziu-se uma mudança;    manifestou-se uma lei de atração e a ela obedeceram os    átomos outrora errantes; esses átomos combinaram-se    quimicamente segundo as suas afinidades, tornaram-se    moléculas e formaram esses agregados nebulosos de que    estão semeadas as profundezas do céu.

    Animaram-se então esses agregados de um movimento    de rotação em torno do seu ponto central. Esse centro,    formado de moléculas vagas, começou a girar sobre si m    esmo e foi condensando-se progressivamente; de resto,    seguindo as leis imutáveis da mecânica, à medida que o    seu volume diminuía pela condensação, o seu movimento    de rotação acelerava-se e, persistindo esses dois efeitos,    resultou daí o aparecimento de uma estrela principal, novo    centro do agregado nebuloso.

    Se o observador olhasse atentamente teria então visto as    outras moléculas do agregado comportarem-se como a    estrela central, condensando-se a seu modo por um movimento    de rotação progressivamente acelerado, gravitando    em torno da central sob a forma de inúmeras estrelas.

    Assim se formaram as nebulosas, que os astrônomos contam    hoje em número de cinco mil.

    Entre essas cinco mil nebulosas existe uma a que os homens    chamaram Via Láctea, que comporta dezoito milhões    de estrelas, das quais cada uma se tornou o centro de um    sistema solar.

    Se o observador tivesse então examinado especialmente    entre esses dezoito milhões de estrelas uma das modestas    e menos brilhantes, uma estrela de quarta ordem a que    chamamos orgulhosamente ?Sol?, todos os fenômenos aos    quais é devida a formação do Universo desenrolar perante    os seus olhos.

    Efetivamente, teria visto esse sol, ainda no seu estado gasoso    e composto de moléculas móveis, girando sobre o    seu eixo para concluir o seu trabalho de concentração. Esse    movimento, fiel às leis da mecânica, havia de acelerar-se    com a diminuição de volume, e haveria de chegar um momento    em que a força centrífuga venceria a força centrípeta,    que atrai as moléculas exatamente para o centro.

    Então ter-se-ia passado outro fenômeno diante dos olhos    do observador: as moléculas- situadas no plano do equador,    soltando-se como a pedra de uma funda cuja corda se    quebra subitamente, teriam formado, em redor do Sol, vá-     rios anéis concêntricos semelhantes aos de Saturno. Por    sua vez, esses anéis de matéria cósmica, animados por    um movimento de rotação em redor da massa central,    teriam quebrado e decomposto em nebulosidades secund    árias, isto é, em planetas. Se o observador tivesse então    concentrado toda a sua atenção sobre esses planetas, tê-     los-ia visto comportarem-se exatamente como o Sol e provocar    o nascimento de um ou vários anéis cósmicos, origem    desses astros de ordem inferior a que dão o nome de    satélites.

    Assim, indo do átomo à molécula, da molécula ao agregado    nebuloso, do agregado nebuloso à nebulosa, da nebulo20    sa à estrela principal, da estrela principal ao Sol, do Sol ao    planeta, e do. planeta ao satélite, temos toda a série das    transformações sofridas- pelos corpos celestes desde os    primeiros dias do Universo.

    0 Sol parece perdido nas imensidades do mundo estelar e    no entanto está ligado, segundo as atuais teorias da ciência,    à nebulosa chamada Via Láctea. Centro de um mundo,    por mais pequeno que pareça no meio das regiões etéreas,    é no entanto enorme, pois o seu volume é um milhão e    quatrocentas mil vezes o volume da Terra. Em torno dele    gravitam oito planetas que nos primeiros tempos da cria-     ção lhe saíram das próprias entranhas. São estes planetas,    partindo-se do mais próximo para o mais remoto, Mercú-     rio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno, Urano e Netuno.

    Além destes circulam, regularmente, entre Marte e Júpiter,    outros corpos, de volume menos considerável, talvez restos    errantes de algum astro quebrado em milhares de peda    ços. Destes, o telescópio já descobriu noventa e sete.

    Alguns dos corpos que o Sol mantém nas respectivas órbitas    elípticas, por força da grande lei da gravitação, também    têm seus satélites. Urano tem oito, Saturno, oito, Júpiter,    quatro, Netuno, talvez três, a Terra, um apenas, que é dos    menos importantes do mundo solar, a Lua, que o engenho    audaz dos americanos pretendia conquistar.

    0 astro das noites, já pela proximidade relativa a que está,    já por virtude do espetáculo sempre renovado das diversas    fases que apresenta, partilhou sempre com o Sol a    atenção dos habitantes da Terra. A diferença é que olhar    para o Sol cansa e os esplendores da luz solar forçam a    abaixar os olhos. A loura Felye é mais humana e, mais    cheia de modesta graça, deixa-se ver com complacência. É    suave para a vista, pouco ambiciosa e no entanto permitese    por vezes eclipsar o irmão, o radioso Apolo, sem nunca    ser eclipsada por ele. Os maometanos compreenderam o    reconhecimento que deviam a essa fiel amiga da Terra e    por isso regularam os seus meses sobre a sua rotação.

    Os primeiros povos votaram um culto especial a essa casta    deusa. Os egípcios chamavam-lhe Ísis; os fenícios    Astartéia; os gregos adoraram-na com o nome de Febe,    filha de Latona e Júpiter, e explicavam os seus eclipses pelas    visitas misteriosas de Diana ao belo Endimião. A crer na    lenda mitológica, o leão de Neméia percorreu as campinas    da Lua antes do seu aparecimento na Terra, e o poeta    Agenianax, citado por Plutarco, celebrou nos seus versos    os seus olhos meigos, o seu nariz encantador e a sua boca    amável, que figuram as partes luminosas da admirável    Selene.

    Contudo, se os antigos compreenderam bem o caráter, o    temperamento, numa palavra, as qualidades morais da Lua    do ponto de vista mitológico, os mais sábios dentre eles    permaneceram muito ignorantes em selenografia.

    Entretanto, vários astrônomos das épocas longínquas descobriram    certas particularidades confirmadas hoje pela ci-     ência. Se os arcádios pretenderam ter habitado a Terra numa    época em que a Lua ainda não existia, se Tatius a considerou    como um fragmento destacado do disco solar, se    Clearco, discípulo de Aristóteles, fez dela um espelho polido    sobre o qual se refletiam as imagens do oceano, se outros,    enfim, viram apenas nela um amontoado de vapores exalados    pela Terra, ou um globo semi gelado, que girava sobre    si mesmo, alguns sábios, por meio de sagazes observa    ções, à falta de instrumentos de ótica, suspeitaram pelo    menos da existência da maior parte das leis que regem o    astro noturno.

    Assim Tales de Mileto, quatrocentos e sessenta anos antes    de Cristo, emitiu a opinião de que a Lua era iluminada pelo    Sol. Aristarco de Samos deu a verdadeira explicação das    suas fases. Cleômenes ensinou que a Lua brilhava com uma    luz refletida. 0 caldeu Barósio descobriu que a duração dó    seu movimento de rotação era igual à da sua revolução, e    explicou assim o fato de a Lua apresentar sempre a mesma    face. Por fim, Hiparco, dois séculos antes da era cristã,    reconheceu algumas desigualdades nos movimentos aparentes    do satélite da Terra.

    Estas diferentes observações confirmaram-se mais tarde e    serviram aos modernos astrônomos. Ptolomeu, no século    II, o árabe Abul-Wefa, no século X, completaram as observa    ções de Hiparco acerca das desigualdades apresentadas    pela Lua na linha ondulada da sua órbita sob a ação do Sol.

    Depois Copérnico, no século XV, e    Ticho Brahe, no século XVI, explicaram completamente o    sistema do mundo e o papel desempenhado pela Lua no    conjunto dos corpos celestes.

    Nessa época, os seus movimentos estavam mais ou menos    determinados; mas pouco se sabia da sua constituição    física. Foi então que Galileu explicou os fenômenos luminosos    produzidos em certas fases pela existência de montanhas,    às quais atribuía uma altura média de quatro mil e    quinhentas toesas.

    Depois dele, Hevélio, um astrônomo de Dantzig, avaliou as    mais elevadas dessas montanhas em duas mil e seiscentas    toesas; mas o seu confrade Riccioli elevou-as para sete    mil. Herschell, nos fins do século XVIII, armado de um poderoso    telescópio, reduziu singularmente as medidas precedentes.

    Atribuiu mil e novecentas toesas às montanhas    mais altas, e reduziu a média das diferentes alturas para    apenas quatrocentas toesas. Mas também Herschell se    enganava, e foram necessárias as observações de Shroeter,    Louville, Halley, Nasmyth, Bianchini, Partorf, Lohrman,    Gruithuysen, e sobretudo os pacientes estudos de Beer e    de Moedler, para resolver definitivamente a questão. Gra-     ças a esses sábios, a altitude das montanhas da Lua é perfeitamente    conhecida hoje em dia. Beer e Moedier mediram    mil novecentas e cinco altitudes, das quais seis estão    acima das duas mil e seiscentas toesas, e vinte e duas    acima das duas mil e quatrocentas. 0 seu mais alto cume    domina de uma altura de três mil e oitocentas e uma toesas    a superfície do disco lunar.

    Ao mesmo tempo, ia-se completando o conhecimento da    Lua; esse astro mostrava-se crivado de crateras e cada    nova observação confirmava mais a sua natureza essencialmente    vulcânica. Da falta de refração nos raios dos planetas    ocultos por ela, concluiu-se que a atmosfera devia    faltar-lhe quase totalmente., Essa ausência de ar levava à    conclusão de haver igualmente ausência de água. Tomavase,    portanto, evidente que para viver na Lua os seus habitantes    deviam ter um organismo especial, diferindo essencialmente    dos habitantes da Terra.

    Enfim, graças aos novos métodos, instrumentos mais aperfei    çoados perscrutaram a Lua sem descanso, não deixando    por explorar nenhum ponto da sua superfície, e no entanto    o seu diâmetro mede duas mil cento e cinqüenta    milhas, a sua superfície é a décima terceira parte da superf    ície do Globo e o seu volume a quadragésima nona parte    do volume do esferóide terrestre; mas nenhum dos segredos    podia escapar ao olhar dos astrônomos, e esses há-     beis sábios levaram ainda mais longe as suas prodigiosas    observações.

    Assim, notaram que, durante a lua cheia, o disco surgia em    certas partes raiado por linhas brancas e durante as outras    fases raiado por linhas negras. Estudando com maior precis    ão, conseguiram determinar com exatidão a natureza dessas    linhas. Eram sulcos compridos e estreitos, cavados entre    mar. s paralelas, levando geralmente aos contornos das    crateras; tinham um comprimento compreendido entre dez    e cem milhas e uma largura de oitocentas toesas. Os    astrônomos chamaram-lhes ranhuras, mas não passaram    disso. Quanto à questão de se saber se essas ranhuras    eram ou não leitos secos de rios, não puderam resolvê-la    de maneira completa. Os americanos já concebiam tamb    ém a esperança de determinar com exatidão aquele fato    geológico.

Quanto à intensidade da luz lunar, nada mais havia a aprender a esse     respeito; sabia-se que ela era trezentas mil ve24 zes mais fraca que a do     Sol e que o seu calor não tem ação apreciável     sobre os termômetros; quanto ao fenômeno conhecido pelo nome de     luz cendrada, explicasse naturalmente pelo efeito dos raios do Sol refletidos     na Terra e que depois da reflexão se dirigem para a Lua. Parece, por     este fenômeno, completar-se o disco lunar, quando este se apresenta     sob a forma de um crescente na sua primeira e última fase. Era este     o estado dos conhecimentos adquiridos a respeito do satélite da Terra,     e que o Clube do Canhão se Propunha completar em todos os campos: cosmográfico,     geológico, político e moral.

 

Capítulo 4

Barbicane toma as primeiras Providências

 

Entretanto, Barbicane não perdia um só instante. 0 seu primeiro     cuidado foi reunir os colegas nos escritórios do Clube do Canhão.     Ali, após várias discussões, concordaram em consultar     os astrônomos sobre a parte astronômica do empreendimento; uma     vez discutidas as respostas destes, examinaram então os meios mecânicos,     nada sendo negligenciado para assegurar o êxito dessa grande experi-      ência.

Uma nota muito precisa, contendo perguntas específicas, foi redigida     e dirigida ao Observatório de Cambridge, em Massachussetts. Essa cidade,     onde foi fundada a primeira universidade dos Estados Unidos, é justamente     célebre pelo seu observatório astronômico. Ali se encontram     reunidos cientistas do mais alto mérito; também funciona o potente     telescópio que permitiu a Bond detectar a nebulosa de Andrômeda     e a Clarke descobrir o satélite de Sírio. Este estabelecimento,     a todos os títulos célebre, justificava a confiança do     Clube do Canhão.

Assim, dois dias depois, a sua resposta, tão impacientemente esperada,     chegava às mãos do Presidente Barbicane.

Estava assim redigida: ?Cambridge, 7 de outubro.

Do diretor do Observatório de Cambridge ao presidente do Clube do     Canhão.

Logo que recebemos a vossa estimada carta de 6 do corrente, dirigida ao     Observatório de Cambridge, em nome dos membros do Clube do Canhão,     de Baltimore, o nosso gabinete reuniu-se imediatamente e julgou oportuno responder.

Em resumo:

1 - 0 canhão deverá ser instalado numa região     situada entre o equador e o grau 28? de latitude norte ou sul.

2 - Deverá ser apontado para o zênite do lugar.

3 - 0 projétil deverá ser animado de uma velocidade inicial     de doze mil j ardas por segundo.

4 - Deverá ser lançado no dia 1? de dezembro do próximo     ano, às dez horas e quarenta e seis minutos e quarenta segundos.

5 - 0 projétil chegará à Lua quatro dias após     a sua partida, precisamente à meia-noite do dia 4 de dezembro., no     momento em que o astro passa pelo zênite.

Os membros do Clube do Canhão devem, portanto, come çar sem     demora os trabalhos necessários para tal empreendimento, de tal ordem     a estarem prontos a operar no momento determinado, pois, se deixarem passar     essa data de 4 de dezembro, não voltarão a encontrar ,a Lua     nas mesmas condições em relação ao perigeu e ao     zênite senão dezoito anos e onze dias depois.

0 gabinete do Observatório de Cambridge põe-se inteira mente     à vossa disposição para as questões de astronomia     teórica, e pela presente junta as suas felicitações às     da América inteira.

Pelo gabinete, J. M. Belfast Diretor do Observatório de Cambridge.

0 Observatório de Cambridge tinha, na sua memorável carta,     estudado a questão do ponto de vista astronômico; tratava-se     no momento de resolver mecanicamente. Seria então que as dificuldades     práticas pareceriam intransponíveis em qualquer outro país     que não fosse a América. Ali não passaram de brincadeira.

0 Presidente Barbicane nomeara, sem perda de tempo, uma comissão     de execução dentro do Clube do Canhão. Essa comissão     devia, em três sessões, elucidar as três grandes questões     do canhão, do projétil e da pólvora; essa comiss ão     era formada por quatro membros, todos muito sábios nessas matérias:     Barbicane, com direito a voto de desempate no caso de as opiniões diferirem;     o General Morgan, o Major Elphiston e, por fim, o inevitável J. T.     Maston, ao qual foram confiadas as funções de secretário-relator.

No dia 8 de outubro reuniu-se a comissão em casa do Presidente Barbicane.     Como era importante que o estô- mago não perturbasse com os seus     impérios. Os apelos tão séria discussão, os quatro     membros do Clube do Canh ão tomaram lugar a uma mesa coberta de sanduíches     e de grandes bules de chá. Em seguida, J. T Maston atarraxou a caneta     ao gancho de ferro que lhe servia de mão e a sessão começou.

Barbicane tomou a palavra: - Meus caros colegas - disse -, temos de resolver     um dos mais importantes problemas da balística, essa ciência,     por excelência, que trata dos movimentos dos projéteis, isto     é, dos corpos lançados no espaço por determinada força     de impulsão, sendo depois abandonados a si próprios.

- Oh! A balística! A balística! - exclamou J. T. Maston, com     voz comovida.

- Talvez possa parecer mais lógico - continuou Barbicane - consagrar     esta primeira sessão à discussão de engenho...

- Com toda razão - respondeu o General Morgan.

- No entanto - replicou Barbicane -, após maduras reflex ões,     pareceu-me que a questão do projétil devia antecipar- se à     do canhão e que as dimensões deste se subordinariam às     daquele.

- Peço a palavra - exclamou J. T. Maston.

Foi-lhe concedida a palavra com a deferência que o seu prestigioso     passado exigia.

- Meus caros amigos - disse, num tom inspirado o nosso presidente tem razão     em dar a questão do projétil primazia sobre todas as outras!     Essa bala que vamos enviar para a Lua é a nossa mensageira, a nossa     embaixadora, e peço-lhes licença para a considerar de um ponto     de vista puramente moral.

Aquela nova maneira de encarar um projétil despertou singularmente     a curiosidade dos outros membros da comiss ão, e por isso eles prestaram     a mais viva atenção às palavras de J. T. Maston.

- Meus caros colegas - continuou este último serei breve; deixarei     de lado a bala física, a bala que mata, para ver apenas a bala matemática,     a bala moral. A bala é para mim a mais deslumbrante manifestação     do poderio humano; é nela que se resume esse poder por inteiro; foi     criando-a que o homem se aproximou mais do Criador! - Muito bem! - apoiou     o Major Elphiston.

- Realmente - exclamou o orador -, se Deus fez as estrelas e os planetas,     o homem fez a bala, esse criterium das velocidades terrestres, essa miniatura     dos astros errando no espaço, e que são afinal, para falar a     verdade, apenas projéteis! A Deus coube criar a velocidade da eletricidade,     a velocidade da luz, a velocidade das estrelas, dos cometas, dos satélites,     a velocidade do som, a velocidade do vento.

Mas a nós, os homens, pertence a velocidade da bala, cem vezes superior     à das locomotivas e dos mais rápidos cavalos.

J. T. Maston sentia-se transportado pela emoção; a sua voz     tomava acentos líricos cantando esse hino à bala.

- Querem números? - continuou. - Eis alguns e bem eloqüentes!     Tratemos simplesmente da modesta bala de vinte e quatro libras: se tem uma     velocidade oitocentas mil vezes menor do que a da eletricidade, seiscentas     e quarenta vezes menor do que a da luz, setenta e seis vezes menor do que     a da Terra no seu movimento de translação em redor do Sol, mas     que, no entanto, ao sair do canhão, ultrapassa a velocidade do som,     percorre duzentas toesas por segundo, duas mil toesas em dez segundos, quatorze     milhas por minuto, oitocentas e quarenta milhas por hora, vinte mil e cem     milhas por dia, isto é, 7.568.640 milhas por ano, ou seja, a velocidade     dos pontos do equador no movimento de rotação do Globo. Levaria,     portanto, onze dias a chegar à Lua, doze anos para atingir o Sol, trezentos     e sessenta anos para atingir Netuno, nos limites do sistema solar. Eis o que     faria essa modesta bala, obra das nossas mãos! Que sucederá     então quando, tornando essa velocidade vinte vezes maior, nós     a lançarmos com a rapidez de sete milhas por segundo. Ah, Bala esplêndida!     Soberbo projétil! Exulto ao pensar que serás recebida lá     em cima com todas as honras devida á um embaixador terrestre! Vivas     acolheram este retumbante discurso, e J. T. Maston, muito comovido, sentou-se     no meio das felicitações dos seus colegas.

- E agora - disse Barbicane -, que concedemos uma larga parte da nossa sessão     à poesia, ataquemos a questão diretamente.

Estamos prontos - responderam os membros da comiss ão mastigando     ao mesmo tempo cada um deles meia dúzia de sanduíches.

- Sabem qual é o problema a resolver - continuou o presidente.

- Trata-se de imprimir a um projétil uma velocidade de doze mil jardas     por segundo. Tenho razões para pensar que conseguiremos fazê-lo.     Mas observemos por agora as velocidades obtidas até hoje; o General     Morgan poderá esclarecer-nos a esse respeito.

- Muito facilmente - respondeu o general - pois fui durante a guerra membro     da comissão de experiências. Dir-lhes-ei, portanto, que os canhões     de cem de Dahlgreen, que tinham um alcance de duas mil e quinhentas toesas,     imprimiram ao seu projétil uma velocidade inicial de quinhentas j ardas     por ? segundo.

- Bem. E o columbiad de Rodman? - perguntou o presidente.

- 0 columbiad Rodman, experimentado no Forte de Hamilton, perto de Nova     Iorque, lançava uma bala, que pesava meia tonelada, a uma distância     de seis milhas, com uma velocidade de oitocentas jardas por segundo, resultado     que Armstrong e Palliser nunca obtiveram na Inglaterra.

- Oh!, os ingleses1 - exclamou J. T. Maston, apontando para o horizonte     o seu temível gancho.

- Portanto - disse Barbicane -, essas oitocentas jardas foram a velocidade     máxima atingida até hoje.

- Sim - respondeu Morgan.

Diria no entanto - replicou J. T. Maston - que se o meu morteiro não     tivesse explodido.

- Mas explodiu - disse Barbicane com um gesto benevolente.

- Tomemos, portanto, como ponto de partida a velocidade de oitocentas jardas.     Será preciso torná-la vinte vezes mais rápida. Vamos     reservar para outra sessão a discuss ão dos meios necessários     para conseguir essa velocidade.

Agora, chamarei a vossa atenção, caros colegas, sobre as dimensões     que convém dar ao projétil. Bem vêem que não se     trata, no caso presente, de projéteis pesando no máximo meia     tonelada! Por que não? - perguntou o major.

- Porque esse projétil - replicou vivamente J. T. Maston - deve ser     bastante grande para atrair as atenções dos habitantes da Lua,     se eles de fato existirem.

- Sim - respondeu Barbicane -, e por outra razão ainda mais forte.

- Que quer dizer com isso, Barbicane? - perguntou o major.

- Digo que não basta enviarmos um projétil e não nos     ocuparmos mais dele; é preciso que o sigamos durante o seu percurso     até o momento em que ele atingir o seu objetivo.

- 0 quê! - exclamaram a um tempo o general e o major, um pouco surpreendidos     com a proposta.

- Sem dúvida - respondeu Barbicane, muito seguro de si -; do contrário     a nossa experiência não obterá qualquer resultado.

- Mas então - replicou o major - vai dar a esse projétil dimensões     enormes? - Não! queiram ouvir-me: sabem que os instrumentos de ótica     adquiriram uma grande perfeição; com certos telesc ópios     já se conseguiu obter aumentos de seis mil vezes, e trazer a Lua para     cerca de quarenta milhas. Ora, a essa distância, objetos com sessenta     pés de lado são perfeitamente visíveis. Senão     se levou mais para diante o poder de penetração dos telescópios,     é porque esse poder se exerce em detrimento da sua nitidez, e a Lua,     que não é mais do que um espelho refletor, não emite     uma luz suficientemente intensa para que se possa admitiram simplifica- ções     que vão além desse limite.

- Pois bem! Que faremos agora? - perguntou o general. - Daremos ao nosso     projétil um diâmetro de sessenta pés? Não! Encarregar-se-á     então de tornar a Lua mais luminosa? - Perfeitamente! - Esta é     forte! - exclamou J. T. Maston.

- Sim; é muito, mas muito simples - respondeu Barbicane.

- Realmente, se conseguir diminuir a espessura da atmosfera atravessada     pela luz da Lua, poderei tornar essa luz mais intensa.

- Evidentemente.

- Pois bem. Para obter esse resultado, bastar-me-á instalar um telescópio     em qualquer montanha elevada. E é o que faremos.

- Rendo-me, rendo-me - disse o major. - Você tem um tal modo de simplificar     as coisas!... E que amplificação espera obter assim? . - Uma     amplificação de quarenta e oito mil vezes, que trará     a Lua para apenas cinco milhas, pelo que, para se tornarem visíveis,     os objetos apenas terão necessidade de ter nove pés de diâmetro.

- Perfeito! - exclamou J. T. Maston. - 0 nosso projétil terá,     portanto, nove pés de diâmetro? - Precisamente.

- Permita-me no entanto que lhe diga - continuou o Maior Elphiston - que     ele terá ainda um peso tal que...

Olhe, major - respondeu Barbicane. - Antes de discutir o peso do projétil,     deixe-me dizer-lhe que os nos 505 pais fizeram maravilhas nesse gênero.     Longe de mim a idéia de que a balística não fez progressos,     mas é bom sabermos que, desde a Idade Média, se obtêm     resultados surpreendentes, ousarei mesmo dizer mais surpreendentes do que     os nossos.

Esta agora! - replicou Morgan.

Justifique as suas palavras - disse vivamente J. T. Maston.

- Nada mais fácil - retorquiu Barbicane. - Tenho exemplos que apoiam     a minha afirmação. No cerco de Constantinopla, por Maomé     II, em 1453, lançaram balas de pedra que pesavam mil e novecentas libras,     pelo que deviam ter um bom tamanho.

- Oh! 0h1 - exclamou o major. - Mil e novecentas libras já é     um número apreciável.

- Em Malta, no tempo dos cavaleiros, um certo canhão do Forte Saint-Elme     arremessava projéteis que pesavam duas mil e quinhentas libras.

- Não é possível.

- E por fim, segundo um historiador francês, no reinado de Luís     XI, havia um morteiro que lançava bombas de quinhentas libras apenas;     mas essas bombas, partindo da Bastilha, um lugar onde os loucos encerravam     os ajuizados, iam cair em Charenton, um lugar onde os ajuizados encerravam     os loucos I - Muito bem! - disse J. T. Maston.

- Desde então que vimos nós, afinal? Os canhões de     Armstrong lançarem balas de quinhentas libras e os columbiads Rodman     projéteis de meia tonelada! Parece, portanto, que se os projéteis     ganharam em alcance perderam em peso. Ora, se nós pusermos todos os     nossos esfor ços, desse lado, devemos conseguir, com os progressos     da ciência, decuplicar o peso das balas de Maomé II e dos cavaleiros     de Malta.

- É evidente - respondeu o major. - Mas que metal tenciona então     utilizar para o fabrico do projétil? - Ferro fundido, muito simplesmente      - disse o General Morgan.

- Ferro fundido! - exclamou J. T. Maston, com profundo desdém. -      Trata-se de uma coisa muito vulgar para uma bala destinada a ir à Lua.

- Não exageremos, meu estimado amigo - respondeu Morgan -; o ferro     fundido chegará.

- Pois bem! - exclamou então o Major Elphiston. - Visto que o peso     é proporcional ao seu volume, uma bala de ferro fundido, medindo nove     pés de diâmetro, terá ainda um peso espantoso! - Sim,     se for maciça; não se for oca - disse Barbicane.

- Oca! Será então um obus? - Onde se poderão meter     cartas e amostras das produ- ções terrestres? - Sim, um obus      - replicou Barbicane. - É necessário que o seja; uma bala maciça     de cento e oito polegadas pesaria mais de duzentas mil libras, peso evidentemente     demasia do considerável; no entanto, como é necessário     assegurar uma certa estabilidade ao projétil, proponho que lhe demos     um peso de cinco mil libras.

- Qual será então a espessura das paredes do projétil?      - perguntou o major.

- Se adotarmos as proporções regulamentares - continuou Morgan      -, um diâmetro de cento e oito polegadas exigiria paredes de pelo menos     dois pés de espessura.

- Seria demasiado - respondeu Barbicane -; repare bem que não se     trata de uma bala destinada a perfurar chapas metálicas; bastar-lhe-á     ter paredes suficientemente fortes para resistir à pressão dos     gases da pólvora. Qual é portanto o problema? Que espessura     deve ter um obus de ferro fundido para pesar apenas vinte mil libras? 0 nosso     hábil calculador, o valente Maston, vai nos informar daqui a pouco.

- Nada mais fácil - replicou o estimado secretário da comiss     ão.

Ao dizer isto, traçou algumas fórmulas algébricas no     papel; viram surgir sob a sua pena nem elevados à segunda pot ência.     Teve mesmo o ar de extrair, sem lhe pôr a mão, uma certa raiz     cúbica, e disse por fim: - As paredes deverão ter apenas duas     polegadas de espessura.

- Será suficiente? - perguntou o major, com ar de dúvida.

- Não - respondeu o Presidente Barbicane. - Evidentemente que não.

- Então que devemos fazer! - inquiriu Elphiston, com um ar bastante     embaraçado.

- Utilizar outro metal diferente do ferro fundido.

- Cobre? - perguntou Morgan.

- Não; isso é ainda pesado demais. Tenho outra coisa melhor     a propor-lhe.

- 0 quê? - inquiriu o major.

- Alumínio - respondeu Barbicane.

- Alumínio?! - exclamaram os três colegas do presidente.

- Sem dúvida, meus amigos. Sabeis que um ilustre químico francês,     Henri Sainte-Claire Deville, conseguiu, em 1854, obter alumínio em     massa compacta. Ora, esse precioso metal tem a brancura da prata, a inalterabilidade     do ouro a tenacidade do ferro, a fusibilidade do cobre e a leveza do vidro;     trabalha-se facilmente e está muito disseminado na natureza, visto     que forma a base da maior parte das rochas.

É três vezes mais leve que o ferro, e parece ter sido criado     expressamente para nos fornecer o material para o nosso projétil! -      Viva o alumínio! - Exclamou o secretário da comissão,     sempre muito barulhento nos seus momentos de entusiasmo.

- Mas, meu caro presidente - disse o major -, o preço do alumínio     não é extremamente elevado? - Era - respondeu Barbicane -, nos     primeiros tempos da sua descoberta, uma libra de alumínio custava duzentos     e oitenta dólares; depois baixou para vinte dólares, e hoje,     finalmente, vale nove dólares.

- Mas a nove dólares por libra - replicou o major, que não     cedia facilmente - é ainda um preço enorme! Sem dúvida,     meu caro maior, mas não é inacessível.

Nesse caso quanto pesará então o projétil? - perguntou     Morgan.

- Eis o que resulta dos meus cálculos - respondeu Barbicane -; uma     bala de cento e oito polegadas de diâmetro e de doze polegadas de espessura     pesaria, se fosse de ferro fundido, sessenta e sete mil quatrocentas e quarenta     libras; em alumínio, o seu peso será, reduzido a dezenove mil     e duzentas e cinqüenta libras.

- Perfeito! Perfeito! - replicou o major. - Mas não vê que     a nove dólares a libra esse projétil custará...

- Cento e setenta e três mil duzentos e cinqüenta dólares,     sei-o perfeitamente; mas não receiem nada, meus amigos, o dinheiro     não faltará ao nosso empreendimento, asseguro- lhes.

- Há de chover dinheiro nos nossos cofres - afirmou J. T.

Maston.

Pois bem! que pensam do alumínio? - perguntou o presidente.

- Adotado! - responderam os três membros da comissão.

- Quanto à forma do projétil - continuou Barbicane -, importa     pouco, visto que, uma vez ultrapassada a atmosfera, ele se encontrará     no vácuo; proponho, portanto, a bala redonda, que girará sobre     si mesma, se isso lhe agradar, comportando-se conforme ditar a sua real fantasia.

Terminou assim a primeira sessão da comissão; a questão     do projétil estava definitivamente resolvida, e J. T. Maston alegrou-se     muito com a idéia de enviar um projétil de alum ínio     aos selenitas, ?o que lhes daria uma excelente idéia dos habitantes     da Terra?.

As resoluções tomadas nessa sessão produziram um grande     efeito no exterior. Algumas pessoas mais tímidas assustavam- se um     pouco com a idéia de uma bala pesando vinte mil libras se r lançada     através do espaço. Perguntavam a si próprias que canhão     poderia transmitir uma velocidade inicial suficiente para tal massa. A ata     da segunda sessão da comissão devia responder a essas questões.

No dia seguinte à noite, os quatro membros do Clube do Canhão     instalavam-se perante novas montanhas de sandu íches e à beira     de um - verdadeiro oceano de chá. A discussão retomou novamente     o seu curso e dessa vez sem preâmbulos.

- Meus caros colegas disse Barbicane _, vamos ocuparnos do engenho a ser     construído, do seu comprimento, da sua forma, da sua composição     e do seu peso. E provável que cheguemos a dar-lhe dimensões     gigantescas; mas, por maiores que sejam as dificuldades, o nosso engenho industrial     suplantá-las-á facilmente. Queiram, portanto, escutar- me e     não poupem as objeções que tiverem a fazerme.

Eu não receio! - Não esqueçamos - continuou Barbicane      - a que ponto a nossa discussão de ontem nos conduziu; o problema apresenta-      se agora sob esta forma: imprimir uma velocidade inicial de doze mil jardas     por segundo a um obus de cento e oito polegadas de diâmetro e com um     peso de vinte mil libras.

É este o problema. - disse o Major Elphiston.

Vou continuar - disse Barbicane. - Quando um projétil é lançado     no espaço, que se passa? É solicitado por três for- ças     independentes: a resistência do meio, a atração da Terra     e a força do impulso de que é animado.

- Examinemos essas três forças. A resistência ao meio,     isto é, a resistência do ar, será pouco importante. Realmente,     a atmosfera da Terra tem apenas quarenta milhas.

Ora, com uma rapidez de doze mil jardas, o projétil atravessá-la-á     em cinco segundos, e o tempo é bastante curto para que a resistência     do meio possa ser considerada como insignificante. Passemos, portanto, para     a atração da Terra, isto é, para o peso do obus. Sabemos     que esse peso diminuirá em razão inversa do quadrado das distâncias;     realmente, eis o que a física nos ensina: quando um corpo inerte cai     na superfície da Terra, a sua queda é de quinze pés no     primeiro segundo, e se esse mesmo corpo fosse - transportado a duzentas e     cinqüenta e sete mil cento e quarenta e duas milhas, ou, em outras palavras,     à distância a que a Lua se encontra, a sua queda ficaria reduzida     a uma meia linha, aproximadamente no primeiro segundo.

É quase a imobilidade. Trata-se, portanto, de vencer progressivamente     essa ação da gravidade. Como conseguiremos fazê-lo? Pela     força do impulso.

- E esta a dificuldade - disse o major.

É, realmente - replicou o presidente -; mas nós triunfaremos,     pois essa força de impulso que nos é necessária resultar     á do comprimento do engenho e da quantidade de pólvora utilizada,     sendo esta apenas limitada Pela resistência daquele. Portanto, ocupemo-nos     hoje das dimensões a dar ao canhão. É claro que podemos     instalá-lo em condi ções de segurança por assim     dizer infinitas, visto que não há necessidade de o manobrar.

- Tudo isto é claro - concordou o general.

Até aqui - disse Barbicane -, os canhões mais compridos, os     enormes columbiad, não ultrapassaram os vinte e cinco pés de     comprimento; vamos, portanto, espantar muita gente pelas dimensões     que seremos forçados a adotar.

. Sem dúvida! - exclamou J. T. Maston. - Por meu lado, peço     um canhão de pelo menos meia milha de comprimento! - Meia milha - exclamaram     o major e o general.

- Sim, meia milha, e será ainda curto demais.

- Vamos, Maston - respondeu Morgan. - Exagerado.

- Nada disto - respondeu o ardente secretário. - E não sei     por que me chamam exagerado.

- Porque vai longe demais! - Fique sabendo, senhor - respondeu J. T. Maston,     tomando os seus grandes ares -; fique sabendo que um artilheiro é exatamente     como uma bala: nunca vai longe demais! A discussão estava incidindo     sobre as personalidades, mas o presidente interveio.

- Tenham calma, meus amigos, e raciocinemos; é evidente que é     necessário um canhão de grande alcance, visto que o comprimento     da peça aumentará a expansão dos gases acumulados sob     o projétil, mas é inútil ultrapassar certos limites.

- Perfeitamente - disse o major.

Quais as regras estabelecidas em casos semelhantes? Vulgarmente, ó     comprimento de um canhão é de vinte a vinte e cinco vezes o     diâmetro da bala, e pesa duzentas e trinta e cinco a duzentas e quarenta     vezes o seu peso.

Isto não é suficiente - declarou com impetuosidade J.T.

Maston.

- Concordo, meu digno amigo, e, realmente, se nos cingirmos à proporção     referida, para um projétil de nove pés de largura pesando vinte     mil libras, o engenho teria apenas um comprimento de duzentos e vinte e cinco     pés e um peso de sete milhões e duzentas mil libras.

- É ridículo! - afirmou J. T. Maston. - Mais valia usar uma     pistola! - Também penso assim - retorquiu Barbicane -; é por     isso que me proponho quadruplicar esse comprimento e construir um canhão     de novecentos pés.0 general e o major fizeram algumas objeções;     mas no entanto essa proposta, vivamente apoiada pelo secretário do     Clube do Canhão, foi definitivamente adotada.

- Agora - disse Elphiston -, que espessura vamos dar às paredes do     canhão? Uma espessura de seis pés - respondeu Barbicane.

Não pensa por certo em erguer semelhante massa em cima de um reparo      - disse o major.

- Isso é que devia ser soberbo! - exclamou J. T. Maston.

- Mas impraticável - disse Barbicane. - Não, eu penso em moldar     esse engenho no próprio solo, com arcos de ferro forjado, rodeando-o     de um espesso revestimento de pedra e cal, de modo a que adquira toda a resistência     do terreno que o circunde. Uma vez a peça fundida, a alma será     cuidadosamente polida e calibrada, de maneira a impedir o ?vento? do projétil;     desse modo, não haverá qualquer desperdício de gases,     e toda a força expansiva da pólvora será utilizada, totalmente,     no impulso.

- Viva! Viva! - disse J.T. Maston. - Temos o nosso canhão! Ainda     não - disse Barbicane, acalmando o seu impaciente amigo.

- E por quê? - Porque não discutimos a sua forma. Será     um canhão, um obus ou um morteiro? - Um canhão! - replicou Morgan.

- Um obus! - opinou o major.

- Um morteiro! - exclamou J. T. Maston.

Ia iniciar-se nova discussão, bastante viva, pois cada um defendia     a sua arma favorita, quando o presidente os inter rompeu.

- Meus amigos - disse -, vamos ficar todos de acordo; o nosso columbiad     terá qualquer coisa de todas essas bocas de fogo. Será um canhão,     visto que a câmara da pólvora terá o. mesmo diâmetro     que a alma. Já que lançará obuses.

E. finalmente, será um morteiro, porque será apontado por     um ângulo de noventa graus, e porque, sem recuo possí- vel, inflexivelmente     ligado ao solo, comunicará ao projétil toda a força de     impulso acumulada dentro de si.

- Aprovado! Aprovado! - responderam todos os membros da comissão.

- Permitam-me uma simples reflexão - disse Elphiston -: esse canhão-obus-      morteiro será realmente estriado ? - Não - respondeu Barbicane      -, não; precisamos de uma velocidade inicial enorme, e bem sabem que     os projéteis saem menos velozes dos canhões estriados que dos     canh ões com alma lisa.

É isso mesmo.

Finalmente, temos o nosso canhão! - exclamou L ir. Maston.

- Ainda não é tanto assim - retorquiu o presidente.

- E porquê? - Porque ainda não sabemos de que metal será     feito.

- Vamos decidir isso sem demora.

- Ia propor-lhes isso.

Os quatro membros da comissão engoliram cada um deles uma dúzia     de sanduíches, seguida de uma xícara de chá, e a discussão     recomeçou.

- Meus estimados colegas - disse Barbicane -, o nosso canh ão deve     ter uma grande tenacidade, uma grande dureza a ser refratário ao calor,     insolúvel e inoxidável pela ação corrosiva dos     ácidos.

- Não há dúvida a esse respeito - respondeu o major.      - E, como será preciso utilizar uma quantidade considerável     de metal, não havemos de hesitar muito na escolha.

- Pois bem - disse Morgan -: proponho para o fabrico do columbiad a melhor     liga conhecida até hoje, isto é, cem partes de cobre, doze de     estanho e seis de latão.

- Meus amigos. - respondeu o presidente -; confesso que essa composição     deu excelentes resultados; mas, neste caso, custaria cara demais e seu emprego     seria muito difí- cil. Penso, portanto, que será preciso adotar     um material adequado, mas que custe pouco, como o ferro fundido.

Não é esta a sua opinião, major? Exatamente - respondeu     Elphiston.

Realmente - retorquiu Barbicane -, o ferro fundido custa dez vezes menos     do que o bronze; é fácil ? de manipular e molda-se bem em moldes     de areia. É de manipulação rápida, representando     assim economia de dinheiro e de tempo.

De resto, é um material excelente, e eu lembro-me de que, durante     a guerra, no cerco de Atlanta, algumas peças de ferro fundido dispararam     mil tiros cada uma, de vinte em vinte minutos, sem sofrerem qualquer alteração.

- No entanto, o ferro fundido é muito quebradiço - observou     Morgan.

- Sim, mas também é muito resistente; de resto, o canhão     não explodirá. Por isto respondo eu.

- Pode haver o azar de uma- explosão, embora tudo tenha sido feito     com a maior honestidade - replicou sentenciosamente J. T. Maston.

- Evidentemente - respondeu Barbicane. - Vou, portanto, pedir ao nosso digno     secretário para calcular o peso de um canhão de ferro fundido     com o comprimento de novecentos pés, com um diâmetro de interior     de nove pés e com paredes de seis pés de espessura.

- Imediatamente - respondeu J. T. Maston.

E como tinha feito na véspera, alinhou as suas fórmulas com     uma maravilhosa facilidade, dizendo ao fim de um minuto: Esse canhão     pesará sessenta e oito mil e quarenta toneladas.

- E a dois cents a libra (dez cêntimos), custará exatamente?...

- Dois milhões quinhentos e dez mil e setecentos dólares.

J. T. Maston, o major e o general olharam Barbicane com um ar inquieto.

- Pois bem, senhores - disse o presidente -; repetir-lhes-ei o que ontem     lhes disse: estejam tranqüilos, que os milh ões não nos     faltarão! Com esta garantia do presidente, a comissão separou-se,     depois de ter marcado nova sessão para o dia seguinte.

Restava ainda a questão da pólvora para tratar. 0 público     esperava com ansiedade essa última sessão. Dado o volume do     projétil e o comprimento do canhão, qual seria a quantidade     de pólvora necessária para produzir o impulso? Esse agente terrível,     cujos efeitos o homem no entanto, dominou, ia ser chamado a desempenhar o     seu papel em proporções nunca usadas.

Quando no dia seguinte deram início à sessão da comiss     ão, Barbicane deu a palavra ao Major Elphiston, que fora diretor das     fábricas de pólvora durante a guerra.

- Meus caros camaradas - disse aquele distinto químico -, vou começar     por citar números irrecusáveis, que nos servir ão de     base aos nossos cálculos. A bala de vinte e quatro, de que nos falava     anteontem o estimado J. T. Maston em termos tão poéticos, sai     da boca de fogo impelida apenas por dezesseis libras de pólvora.

- Está certo desse número? - perguntou Barbicane.

- Absolutamente certo - respondeu o major. - 0 canhão de Armstrong     utiliza apenas setenta e cinco libras de pólvora para um projétil     de oitocentas libras de peso, e o columbiad de Rodman só gasta cento     e sessenta libras de pólvora para enviar a sua bala de meia tonelada     a seis milhas de distância. Estes fatos não podem ser postos     em dúvida, pois eu próprio os fui tirar das atas da comissão     de artilharia.

- Perfeitamente - respondeu o general.

- Pois bem! - replicou o major. - A ilação a tirar destes     números é que a quantidade de pólvora não aumenta     na proporção do peso da bala: realmente, são precisas     dezesseis libras de pólvora para uma bala de vinte e quatro; em outros     termos, se, nos canhões vulgares, se utiliza uma quantidade de pólvora     equivalente a dois terços do peso do projétil, a proporcionalidade     não é constante. Fa- çam os cálculos e verão     que, para uma bala de meia tonelada, em vez de trezentas e trinta e três     libras de pólvora, essa quantidade foi reduzida para cento e sessenta     libras apenas.

- Aonde quer chegar? - perguntou o presidente.

- Se quer levar a sua teoria ao extremo, meu caro major - disse J. T. Maston     -, chegará à conclusão de que, quando a sua bala for     suficientemente pesada, não precisará de pólvora alguma!      - 0 meu amigo Maston é um brincalhão até com as coisas     sérias - replicou o major -, mas que se tranqüilize; proporei     até quantidades de pólvora que lisonjearão o seu amorpr     óprio de artilheiro. No entanto, quero observar que, durante a guerra,     e para os canhões maiores, o peso da pólvora foi reduzido, após     várias experiências, a um décimo da bala.

- Nada mais exato - disse Morgan. - Mas antes de decidir a quantidade de     pólvora necessária para dar o impulso, penso que é bom     ter conhecimentos sobre a sua natureza.

- Utilizaremos a pólvora de grãos grossos - respondeu o major      -, porque a sua combustão é mais rápida do que a do pólvora.

- Sem dúvida - replicou Morgan -; mas é altamente ?explosiva     e ao fim de algum tempo acaba por alterar a alma das peças.

- Bom! Aquilo que seria um inconveniente para um canhão destinado     a prestar longos serviços, não o é para o nosso columbiad.     Não corremos qualquer perigo de explosão. 0 que é preciso     é que a pólvora se inflame instantaneamente, para que o seu     efeito mecânico seja completo.

- Poder-se-ia - observou J. T. Maston - abrir vários buracos de maneira     a chegar-lhe o fogo em diversos pontos ao mesmo tempo.

- Sem dúvida - respondeu Elphiston -, mas isso tornaria a manobra     mais difícil. Prefiro, portanto, a minha bombardeira, que evita essas     dificuldades.

- Que seja assim - respondeu o general.

- Para carregar o columbiad - continuou o major Rodman utilizava uma pólvora     de grãos grandes como castanhas, feita com carvão de salgueiro,     mal torrado em caldeiras de ferro fundido. Essa pólvora era dura e     brilhante, não deixava quaisquer sinais na mão, continha em     grande proporção oxigênio e hidrogênio, ardia instantaneamente     e, apesar de ser altamente explosiva, não deteriorava sensivelmente     as bocas de fogo.

- Pois bem! - disse J. T. Maston. - Acho que não devemos hesitar     mais, pois a nossa escolha está feita.

- A não ser que prefira ouro pulverizado - replicou o maior, rindo,     o que lhe valeu um gesto ameaçador do seu suscetí- vel amigo.

Até então, Barbicane tinha-se mantido fora da discussão.

Deixava os seus colegas falarem e escutava-os. Era evidente que tinha a     sua idéia. Contentou-se simplesmente em dizer: - Então, meus     caros amigos: que porção de pólvora prop õem?     Os três membros do Clube do Canhão entreolharam-se por instantes.

- Duzentas mil libras - disse por fim Morgan.

- Quinhentas mil - replicou o major.

- Oitocentas mil! - exclamou J. T . Maston.

Dessa vez, Elphiston não ousou acusar o seu colega de ser exagerado.     Realmente, tratava-se de enviar até a Lua um projétil com o     peso de vinte mil libras, dando-lhe uma velocidade inicial de doze mil jardas     por segundo. Um momento de silêncio seguiu-se à tripla proposta     feita pelos membros do clube.

. Esse silêncio foi finalmente quebrado pelo presidente Barbicane.

- Meus estimados camaradas - disse com voz calma.

Parto do princípio de que a resistência do nosso canhão,     construído nas condições requeridas, é ilimitada.     Vou, portanto, surpreender o estimável L T. Maston dizendo-lhe que     foi tímido nos seus cálculos, e proponho que duplique as suas     oitocentas mil libras de pólvora.

- Um milhão e seiscentas mil libras de pólvora exclamou J.

T. Maston saltando na cadeira.

- Isto mesmo.

- Mas nessa altura será preciso pensar no meu canhão de meia     milha de comprimento.

- É evidente - disse o major.

Um milhão e seiscentas mil libras de pólvora - continuou o     secretário da comissão - ocuparão um espaço de     cerca de vinte e dois mil pés cúbicos; ora, como 0 vosso canhão     só tem capacidade para cinqüenta e quatro mil pés cúbicos,     ficará semi cheio, e a sua parte interior não será suficientemente     longa para que a expansão dos gases imprima ao projétil um impulso     suficiente.

Não havia nada a dizer: J. T. Maston dizia a verdade. Ficaram à     espera da resposta de Barbicane - No entanto - replicou o presidente -, continuo     a achar necessária essa quantidade de pólvora. Pensem bem: um     milhão e seiscentas mil libras de pólvora provocarão     o aparecimento de seis milhares de milhões de litros de gás.     Seis milhares de milhões! Percebem bem? - Mas então como devemos     proceder? - inquiriu o general.

É muito simples; é preciso reduzir essa enorme quantidade     de pólvora, conservando-lhe essa potência mecânica.

- Bom, mas por que meio? - Vou dizer-lhe - respondeu simplesmente Barbicane.

Os seus interlocutores devoravam-no com os olhos.

- Nada mais fácil, realmente - respondeu por fim Barbicane -, do     que reduzir essa quantidade de pólvora a um volume quatro vezes menor.     Todos conhecem essa curiosa maté- ria que constitui os tecidos elementares     dos vegetais, e que se chama celulose.

- Ah! - exclamou o maior -, compreendo-o, meu caro Barbicane.

- Essa matéria - disse o presidente - obtém-se no estado de     pureza Perfeita em diversos corpos, e sobretudo do algodão, que não     é mais do que a penugem das sementes do algodoeiro. Ora, o algodão,     combinado com o ácido azótico a frio, transforma-se numa substância     eminentemente insolúvel, eminentemente combustível, eminentemente     explosiva. Há alguns anos, em 1832, um químico francês,     Braconnot, descobriu essa substância, à qual chamou xiloidina.     Em 1838, outro francês, Pelouze, estudou as diversas propriedades dessa     substância, e, por fim, em 1846, Schonbein, professor de química     em Basiléia, a prop ôs como pólvora para a guerra. Essa     pólvora é o algodão azótico...

- Ou piróxilo - respondeu Elphiston.

- Ou o algodão-pólvora - replicou Morgan.

- Não há então nenhum nome americano a pôr por     baixo dessa descoberta? - exclamou J. T. Maston, impelido por um vivo sentimento     de amor-próprio nacional.

_ Infelizmente, não há nenhum - respondeu o major.

- No entanto, para satisfazer Maston - continuou o presidente -, dir-lhe-ei     que os trabalhos de um dos nossos concidadãos podem ser ligados ao     estudo da celulose, pois o colódio, que é um dos principais     agentes da fotografia, é simplesmente piróxilo dissolvido em     éter misturado com álcool, e foi descoberto por Maynard, que     nessa altura era estudante de Medicina em Boston.

- Um viva por Maynard e pelo algodão-pólvora! - exclamou então     o barulhento secretário do Clube do Canhão.

- Mas, voltando ao piróxilo - disse Barbicane.

- Conhecem as suas propriedades, que o tornam tão precioso para nós;     prepara-se com a maior das facilidades; mergulha-se o algodão em ácido     azófico fumegante, durante quinze minutos, depois lava-se em muita     água, secase e está pronto.

- Nada mais simples, realmente - anuiu Morgan.

- Além disso, o piróxilo é inalterável pela     umidade, qualidade preciosa a nosso ver, pois serão necessários     vários dias para carregar o canhão; é inflamável     a cento e setenta graus centígrados, em vez de duzentos e quarenta,     e a sua deflagração é tão rápida que pode     ser inflamado com pólvora vulgar sem que esta tenha tempo de se incendiar.

- Perfeito! - exclamou o major.

- No, entanto, é mais caro! - Que importa? - opinou J. T. Maston.

- Finalmente, comunica aos projéteis uma velocidade quatro vezes     superior à da pólvora. Acrescentarei mesmo que se lhe misturarmos     oito décimos do seu peso de nitrato de potássio, a sua potência     será ainda aumentada numa grande proporção.

Isso será necessário? - perguntou o major.

Creio que não - respondeu Barbicane. - Assim, em vez de um milhão     e seiscentas mil libras de pólvora, precisaremos apenas de quatrocentas     mil libras de algodão-pólvora, e, como se pode sem perigo comprimir     quinhentas libras de algodão em vinte e sete pés cúbicos,     essa matéria não ocupará senão uma altura de vinte     toesas no nosso columbiad.

- Desse modo, a bala terá de percorrer mais de setecentos pés     do cano de canhão, sob o esforço de seis milhões de litros     de gás, antes de levantar vôo para o astro da noite.

Nessa altura, J. T. Maston não pôde conter a sua emoção;     lançou-se nos braços do seu amigo com a violência de um     projétil e tê-lo-ia atirado abaixo se Barbicane não fosse     construído à prova de bomba.

Esse incidente encerrou a terceira sessão da comissão.

Barbicane e os seus audaciosos colegas, aos quais nada parecia impossível,     acabavam de resolver a questão tão complexa do projétil,     do canhão e da pólvora. 0 plano deles estava preparado. Restava     apenas executá-lo.

- Um simples pormenor, uma bagatela - dizia J. T. Maston.

 

Capítulo 5    

O Capitão Nicoles

 

0 público americano analisava com enorme interesse até os mais     insignificantes pormenores do empreendimento do Clube do Canhão e seguia     dia a dia as discussões da Comiss ão. Os mais simples preparativos     desse grande empreendimento, as questões de números que levantava,     as dificuldades mecânicas a resolver, em uma palavra, o ?seu acionamento?     apaixonava a opinião. pública ao mais alto grau.

Mais de um ano iria decorrer entre o início dos trabalhos e o seu     final; mas esse lapso de tempo não devia ser vazio de emoções;     o lugar a escolher para a construção do canh ão e do     projétil, o fabrico dos moldes, a fundição do columbiad,     o seu perigoso carregamento - tudo isso era mais do que o necessário     para excitar a curiosidade pública.

Uma vez lançado, o projétil escaparia aos olhares em poucos     décimos de segundo; o que lhe sucederia depois, o modo como ele se     comportaria no espaço, e por que forma atingiria a Lua, só um     pequeno número de privilegiados poderia ver com os seus próprios     olhos. Assim, os preparativos da experiência e os pormenores da execução     é que constituiriam o verdadeiro interesse para o público em     geral.

No entanto, o atrativo puramente científico do empreendimento foi     de súbito superexcitado por um incidente.

Sabe-se as numerosas legiões de admiradores e de amigos que o projeto     de Barbicane dera ao seu autor. No entanto, por mais honrosa, por mais extraordinária     que fos48 se, essa maioria não era a unanimidade. Um só homem,     um só em todos os Estados Unidos, protestou contra a tentativa do Clube     do Canhão; com violência, e Barbicane, tal é a natureza     humana, foi mais sensível a essa única voz discordante do que     aos aplausos de todos os outros.

No entanto, conhecia bem o motivo dessa antipatia, onde partia essa inimizade     solitária, porque era pessoal e de data, antiga, e por fim em que rivalidades     de amor próprio criaria raízes.

Aquele inimigo perseverante, nunca o presidente do Clube do Canhão     o tinha visto. Felizmente, pois o encontro desses dois homens teria certamente     tido más conseqüências.

Esse rival era um sábio como Barbicane, uma natureza orgulhosa, audaciosa,     convencida, violenta, um puro ianque.

Chamavam-lhe o Capitão Nicoles. Morava em Filadélfia.

Ninguém ignora a curiosa luta que se estabeleceu, durante a Guerra     de Secessão, entre o projétil e a couraça dos navios     blindados; aquele destinava-se a perfurar esta; esta estava decidida a não     se deixar perfurar. Daí adveio uma transformação radical     nos diversos Estados e nos dois continentes.

A bala e a couraça lutaram com um encarniçamento sem precedentes,     uma aumentando o seu volume, a outra adquirindo constantemente mais espessura.

Os navios, armados de peças de artilharia formidáveis, navegavam     debaixo de fogo ao abrigo da sua invulnerável carapaça. Os Merrimac,     os Monitor, os Ram Tênesse, os Weckausen lançavam projéteis     enormes, depois de se terem couraçado contra os projéteis dos     outros. Faziam aos outros aquilo que não queriam que lhes fizessem,     principio imoral sobre o qual se baseia toda a arte da guerra.

Ora, se Barbicane tinha sido um grande fundidor de projéteis, Nicoles     fora um grande forjador de chapas para couraças.

Um fundia noite e dia em Baltimore e o outro forjava dia e noite em Filadélfia.     Cada um seguia uma corrente de idéias radicalmente opostas.

Logo que Barbicane inventava uma nova bala, Nicoles in ventava nova couraça.     0 presidente do Clube do Canhão passava a vida, abrindo buracos, o     capitão impedindo que eles se abrissem. Daí nasceu uma rivalidade     que chegava a atingir as pessoas. Nicoles aparecia nos sonhos de Barbicane     sob a forma de uma couraça impenetrável contra a qual ele se     ia quebrar, e Barbicane aparecia nos sonhos de Nicoles como um projétil     que o trespassava de lado a lado.

No entanto, se bem que seguissem duas linhas divergentes, esses sábios     acabariam? por se encontrar, apesar de todos os axiomas da geometria; mas     seria naturalmente no terreno do duelo. Felizmente para esses cidadãos     tão úteis ao seu país, uma distancia de cinqüenta     a sessenta milhas separava-os um do outro, e os amigos de ambos encheram esse     caminho de tais obstáculos que nunca se encontraram.

Nesse momento, qual dos dois tinham levado a melhor é que não     se sabia; os resultados obtidos tornavam difícil uma apreciação     justa. No fim das contas, no entanto, o mais plausível era que a couraça     deveria ceder à bala.

No entanto, os homens competentes tinham dúvidas. Nas últimas     experiências, os projéteis cifindro-cônícos de Barbicane     foram quebrar-se como alfinetes nas placas de Nicoles; nesse dia, o fundador     de Filadélfia julgou-se vitorioso e passou a desprezar o seu rival;     mas, quando mais tarde este substituiu as balas cônicas por simples     obuses de seiscentas libras, o capitão teve de modificar a sua atitude.

Realmente, esses projéteis, se bem que por uma velocidade medíocre,     partiram, perfuraram, fizeram voar em pedaços as chapas do melhor metal.

Ora, estavam as coisas nesse ponto, a vitória parecia dever ficar     com a bala, quando a guerra acabou no próprio dia em que Nicoles terminava     uma nova couraça de aço forjado! Era uma obra-prima no seu gênero;     desafiava todos os projéteis do mundo. 0 capitão fê-la     transportar para o polígono de Washington, desafiando o presidente     do Clube do Canhão a quebrá-la. Barbicane, como a paz tinha     sido assinada, não quis tentar a experiência.

Então, Nicoles, furioso, ofereceu-se para expor a sua chapa ao choque     das balas mais inverossímeis, maciças, ocas, esféricas     ou cônicas. Recusa do presidente, que decididamente não queria     comprometer o seu último êxito.

Nicoles, ainda mais estimulado por aquela obstinação inqualificável,     quis tentar Barbicane, dando-lhe de partida todas as oportunidades. Propôs,     inclusive, pôr a sua chapa a duzentas jardas do canhão. Barbicane     obstinou-se na sua recusa. A cem jardas? Nem sequer a setenta e cinco.

- Então, a cinqüenta - clamou o capitão pela voz dos jornais.

- Colocarei a minha chapa a vinte e cinco jardas e ficarei por detrás     dela! Barbicane mandou responder que, mesmo que o Capitão Nicoles se     pusesse na frente da chapa; ele não dispararia.

Nicoles, ao saber dessa réplica, não se conteve; insinuou     que a covardia era coisa indivisível, que um homem que se recusa a     disparar um tiro de canhão estava, por certo, muito perto de ter medo;     que, em suma, esses artilheiros que se batem a seis milhas de distância     substituíam prudentemente a coragem individual pelas fórmulas     matemáticas, e que, finalmente, há tanta coragem em esperar     tranqüilamente uma bala atrás de uma couraça, como em arremessá-la     segundo todas as regras da arte.

A essas insinuações, Barbicane nada respondeu; talvez nem     sequer as conhecesse, pois nessa altura os cálculos para o seu grande     empreendimento absorviam-no inteiramente.

Quando Barbicane fez a sua famosa comunicação ao Clube do     Canhão, a cólera do Capitão Nicoles subiu ao paroxismo.

Misturava-se nele uma inveja terrível e um supremo sentimento de     impotência! Como iria inventar qualquer coisa melhor que esse columbiad     de novecentos pés! Que coura ça poderia resistira um projétil     de vinte mil libras! Nicoles ficou primeiro aterrado, aniquilado, partido     por aquele ?tiro de canhão?, depois ergueu-se e resolveu esmagar a     proposta com o peso dos seus argumentos.

Atacou, portanto, muito violentamente os trabalhos do Clube do Canhão;     escreveu numerosas cartas, que os jornais não se recusaram a publicar.     Tentou demolir cientificamente a obra de Barbicane. Uma vez abertas as hostilidades,     chamou em sua ajuda argumentos de toda a ordem e, para falar a verdade, muitas     vezes tendenciosos e de baixo quilate.

Primeiro, Barbicane foi violentamente atacado nos algarismos indicados por     ele. Nicoles procurou provar por A + B a falsidade das fórmulas e acusou-o     de ignorar os princípios fundamentais da balística. Entre outros     erros e segundo os seus cálculos, dizia Nicoles, era absolutamente     impossível imprimir a qualquer corpo uma velocidade de doze mil jardas     por segundo; sustentou, de álgebra na mão, que, mesmo com essa     velocidade, um projétil tão pesado transporia os limites da     atmosfera terrestre! Não atingiria sequer as oito mil léguas.     Mais ainda. Dado, mas não concedido, que se pudesse conseguir tal velocidade,     o obus - não resistiria à pressão dos gases desenvolvidos     pela inflamação de um milhão e seiscentas mi! libras     de pólvora, e mesmo que resistisse a essa pressão não     suportaria pelo menos uma tal temperatura. Certamente se fundiria à     saída do columbiad e voltaria a cair como chuva de fogo sobre a cabeça     dos imprudentes espectadores.

Barbicane nem sequer pestanejava ao saber desses ataques e prosseguia a     sua obra.

Então, Nicoles tratou a questão focalizando outros aspectos;     sem falar da sua inutilidade sob todos os pontos de vista, considerava a experiência     como muito perigosa, quer para os cidadãos que viessem a autorizar     com a sua presen ça um espetáculo tão condenável,     quer para as cidades e vilas vizinhas desse deplorável canhão;     fez igualmente observar que se o projétil não atingisse o seu     objetivo - resultado absolutamente inalcançável - cairia fatalmente     sobre a Terra, e a queda de tal massa, multiplicada pelo quadrado da sua velocidade,     poria singularmente em risco qualquer ponto do Globo. Portanto, em tais circunstâncias,     e sem atacar os direitos dos cidadãos livres, tratava-se de um caso     em que se tornava necessária a intervenção do Governo,     uma vez que não se devia pôr em risco a seguran ça de     todos para satisfazer os caprichos de um só.

Vê-se a que exagero de opinião chegou o Capitão Nicoles.

Mas era ele o único a sustentar esse ponto de vista. Assim, ninguém     prestou atenção às suas agourentas profecias.

Deixaram-no, portanto, gritar à vontade, visto que assim o desejava.     Era o defensor de uma causa perdida antecipadamente; ouviam-no mas não     o escutavam, e não conseguiu arrancar nenhum admirador ao presidente     do Clube do Canhão. Este, de resto, nem sequer se deu ao cuidado de     retorquir aos argumentos do seu rival.

Nicoles, encurralado nas suas últimas trincheiras, e não podendo     sequer pôr em jogo a sua integridade física em prol da sua causa,     resolveu arriscar o seu dinheiro. Propôs, portanto, publicamente, no     Enquirer de Richmond, uma série de apostas concebidas nestes termos     e segundo uma propor ção crescente.

Apostou:

1 - Que os fundos necessários à empresa Clube do     Canhão não seriam atingidos 1.000 dólares

2 - Que a operação da fundição     de um canhão de novecentos pés em impraticável e não     teria 2.000 dólares

3 - Que seria impossível carregar o columbiad,     e que o piróxilo se incendiaria sob a pressão do projétil     3.000     dólares

4 - Que o columbiad explodiria ao primeiro tiro     4.000 dólares

5 - Que o projétil não só não     alcançaria uma distância de seis milhas, mas que cairia na terra     uns segundos após ter sido lançado 5.000     dólares Como se vê, era uma quantia importante que arriscava     Nicoles, apenas para sustentar a sua invencível obstinação.

Apesar da importância da aposta, recebeu, a 19 de outubro, uma carta     lacrada, de um soberbo laconismo, concebida nestes termos: ?Baltimore, 18     de outubro. - Aceito - Barbicane.? Capítulo 6 A Flórida e Texas     Entretanto, restava ainda uma questão a decidir: era necess ário     escolher um local favorável para a experiência.

Segundo a recomendação do Observatório de Cambridge,     o tiro devia ser dirigido perpendicularmente ao plano do horizonte, isto é,     em direção ao zênite; ora, a Lua só sobe ao zênite     nos locais situados entre os 00 e 280 de latitude, ou, em outros termos, como     a declinação lunar máxima é apenas de 280, tratava-se,     portanto, de determinar exatamente o ponto do Globo onde será fundido     o imenso columbiad.

A 20 de outubro, estando o Clube do Canhão reunido em sessão.     magna, Barbicane levou um magnífico mapa dos Estados Unidos, de Z.     Belitropp.

. Contudo, sem lhe dar tempo para o desenrolar, J. T. Maston pediu a palavra     com a sua habitual veemência e iniciou o debate nestes termos: - Estimados     colegas. A questão que aqui se vai tratar hoje te m um a verdade ira     importância nacional, e vai dar-nos ocasião para praticar um     grande ato de patriotismo.

Os membros do Clube do Canhão olharam uns para os outros, sem saber     onde o orador queria chegar.

- Nenhum de vós - prosseguiu o orador - tem a? idéia de transigir     com a glória do seu país, e, se existe um direito que os Estados     Unidos possam reivindicar, é o de ter o formidável canhão     do Clube do Canhão.

- Ora, nas circunstâncias atuais...

- Estimado Maston... - disse o presidente.

- Permita-me desenvolver o meu pensamento - replicou o orador. - Nas circunstâncias     atuais, somos obrigados a escolher um local muito próximo do equador,     para que a experi ência se faça em boas condições...

- Se me permite... - disse Barbicane.

- Peço a livre discussão de idéias - replicou o fervoroso     J. T.

Maston -, e mantenho que o território de onde deverá partir     o glorioso projétil deve pertencer aos Estados Unidos.

- Sem dúvida! - responderam vários sócios.

- Pois bem! Visto que as nossas fronteiras não são suficientemente     extensas, uma vez que ao sul o oceano nos opõe uma barreira intransponível;     já que é preciso procurar para além dos Estados Unidos,     e buscar num país limítrofe esse vigésimo oitavo paralelo,     trata-se de um estado de guerra legítimo e proponho que se declare     guerra ao México! - Não! Isto não! - gritaram de todos     os lados.

- Não!? - replicou J. T. Maston. - Eis uma palavra que me admiro     de ouvir neste recinto! Mas atendei!...

- Nunca! Nunca! - gritou o fogoso orador. - Mais cedo ou mais tarde essa     guerra há-de fazer-se, e peço que ela comece hoje mesmo.

- Maston! - gritou Barbicane, fazendo soar ruidosamente a sua campainha.     - retiro-lhe a palavra! Maston ainda quis replicar, mas alguns dos seus colegas     conseguiram contê-lo.

- Concordo - disse Barbicane - que a experiência só pode e     deve ser tentada em território dos Estados Unidos; mas, se o meu impaciente     amigo me tivesse deixado falar, se tivesse olhado para um mapa, saberia que     é perfeitamente inútil declarar guerra aos nossos vizinhos,     pois veria que certas fronteiras dos Estados Unidos se estendem para além     do vigésimo oitavo paralelo. Vejam que temos à nossa disposi     ção toda a parte meridional do Texas e da Flórida.

0 incidente não teve conseqüências. No entanto, foi com     pena que J. T. Maston se deixou convencer. Ficou, portanto, decidido que o     columbiad seria fundido e moldado ou no solo do Texas ou no da Flórida.     Mas essa decisão iria suscitar uma rivalidade sem precedentes nas cidades     desses dois Estados.

0 vigésimo oitavo paralelo, no seu encontro com a costa americana,     atravessa a Península da Flórida e divide-a em duas zonas mais     ou menos iguais. Depois, lançando-se no golfo do México, passa     pelo arco formado pelas costas do Alabama, do Mississipi e da Luisiana. Daí     passa ao Texas, do qual corta uma saliência, prolonga-se através     do México, transpõe Sonora, salta por cima da velha Califórnia.     e vai perder-se nos mares do Pacífico. Não havia, portanto,     senão as regiões da Flórida e do Texas, situadas ao sul     desse paralelo, que estivessem nas condições de latitude recomendadas     pelo Observatório de Cambridge.

A Flórida, na sua região meridional, não tem cidades     importantes.

Está apenas salpicada de fortes militares que asseguram a defesa     contra os Índios errantes. Uma só cidade, Tampa, podia reclamar     em favor de sua situação na disputa e apresentar-se com algumas     pretensões a ser a escolhida.

No Texas, pelo contrário, as cidades são mais numerosas e     mais importantes. Corpus-Christi, no Condado de Nueces, e todas as cidades     situadas ao longo do Rio Bravo, tais como Laredo, Comalites, San-Ignacio;     no Web, tais como Roma, Rio Grande City; no Starr, tais como Edimburgo; no     Hidalgo, Santa Rita e Panda; Brownsville no Cameran, formaram uma liga imponente     contra as pretensões da Flórida.

Assim, mal foi conhecida a decisão, os deputados do Texas e da Flórida     chegaram a Baltimore pela via mais rápida. A partir desse momento o     Presidente Barbicane e os membros mais influentes do Clube do Canhão     foram ,assediados dia e noite por formidáveis reclamações.     Se sete cidades da Grécia disputaram entre si a honra de ter visto     nascer Homero, aqui dois Estados inteiros ameaçavam baterse por causa     de um canhão.

0 presidente Barbicane não sabia o que fazer. As notas, os documentos,     as cartas cheias de ameaças choviam sobre a sua casa, Que partido deveria     tomar? No que se referia às condições do solo, à     facilidade de comunicações, da rapidez de transportes, os direitos     dos dois Estados eram verdadeiramente iguais. Quanto às personalidades     políticas, não tinham nada a ver com a questão.

Ora, essa hesitação, esse embaraço durava já     há certo tempo, quando Barbicane resolveu sair dele de vez: reuniu     os seus colegas e a solução que lhes propôs foi, como     vão ver, profundamente sensata.

- Pensando bem disse ele -, o que se está passando entre a Flórida     e o Texas reproduzir-se-á entre as cidades do Estado favorecido. A     rivalidade descerá do gênero à espé- cie, do Estado     à cidade e assim continuará. Ora, o Texas possui doze cidades     com as condições requeridas, que disputar ão entre si     a honra do empreendimento e nos arranjar ão novos aborrecimentos, ao     passo que na Flórida existe apenas uma cidade com as condições     necessárias. Vamos, pois, para a Flórida e para Tampa! Esta     decisão, tomada pública, aterrou os deputados do Texas. Apoderou-se     deles um furor indescritível e chegaram mesmo a dirigir provocações     abomináveis aos diversos membros do Clube do Canhão. Os magistrados     de Baltimore tinham apenas um partido a tomar e tomaramno.

Mandaram preparar um trem especial, meteram nele os texanos, de boa ou má     vontade, e obrigaram-nos a deixar a cidade a uma velocidade de trinta milhas     por hora.

Contudo, apesar de terem sido levados a tal velocidade, ainda tiveram tempo     de lançar um último e ameaçador sarcasmo aos seus adversários.

Fazendo alusão à pouca largura da Flórida, uma simples     península apertada entre dois mares, afirmaram que não resistiria     ao abalo do tiro e que se despedaçaria.

- Pois bem! Que se despedace! - responderam os da Flórida, com um     laconismo digno dos tempos antigos.

 

Capítulo 7    

Colina das pedras

 

Resolvidas as dificuldades astronômicas, mecânicas e topogr áficas,     surgiu a questão do dinheiro. Tratava-se de arranjar uma soma enorme     para a execução do projeto. Nenhum particular, nenhum Estado     mesmo, poderia dispor dos milhões necessários.

0 Presidente Barbicane tomou, portanto, o partido de fazer do caso um assunto     de interesse universal e pedira todos os povos a sua colaboração     financeira. Era ao mesmo tempo o direito e o dever de toda a Terra intervir     nos- assuntos do seu satélite. A subscrição aberta com     esse objetivo estendeu- se de Baltimore a todo o Mundo.

A subscrição viria a ter um êxito para além de     toda a expectativa, não obstante tratar-se de quantias dadas, não     emprestadas. A operação em puramente desinteressada no sentido     literal da palavra, e não oferecia possibilidade alguma de lucro.

0 efeito da comunicação de Barbicane não se detivera     nas fronteiras dos Estados Unidos: atravessam o Atlântico e o Pacífico,     invadindo simultaneamente a Ásia e a Europa, a África e a Oceania.     Os observatórios dos Estados Unidos puseram-se imediatamente em ligação     com os observató- rios de outros países. Alguns, como os de     Paris, de São Petersburgo, do Cabo, de Berlim, de Altona, de Estocolmo,     de Varsóvia, de Hamburgo, de Buda, de Bolonha, de Malta, de Lisboa,     de Benares, de Madrasta, de Pequim - enviaram os seus cumprimentos ao Clube     do Canhão; outros mantiveram uma prudente expectativa.

Quanto ao Observatório de Greenwich, apoiado pelos outros vinte e     dois estabelecimentos astronômicos da Grã- Bretanha, foi peremptório:     negou ousadamente a possibilidade de êxito, e adotou as teorias do Capitão     Nicoles. Além disso, enquanto diversas sociedades científicas     prometiam enviar delegados a Tampa, o pessoal do Observatório de Greenwich,     reunido em sessão, passou bruscamente para:* a ordem do dia depois     de conhecida e rejeitada a proposta de Barbicane. Era a bela e boa inveja     inglesa e nada mais.

Resumindo: o efeito foi excelente no mundo científico, e daí     passou para as multidões, que, de uma maneira geral, se apaixonaram     pela questão. Esse fato tinha grande import ância, visto que     as massas iam ser chamadas a contribuir comum capital considerável.

A 8 de outubro, já o Presidente Barbicane havia lançado um     manifesto cheio de entusiasmo, no qual apelava para ?todos os homens de boa     vontade da Terra?. Esse documento, traduzido em todas as línguas, teve     grande êxito.

Foram abertas subscrições nas principais cidades dos Estados     Unidos para serem centralizadas no Banco de Baltimore, em Baltimore Street,     número 9. A subscrição estendeu-se pelos diferentes países     dos dois continentes.

Três dias após o manifesto do Presidente Barbicane, eram recebidos     quatro milhões de dólares nas diferentes cidades dos Estados     Unidos. Com tal quantia o Clube do Canhão podia desde logo começar     o seu projeto.

Contudo, alguns dias mais tarde, os Estados Unidos ficaram a saber que as     subscrições feitas no estrangeiro eram um verdadeiro êxito:     certos países distinguiam-se pela sua generosidade. Outros abriam a     bolsa menos facilmente.

Questão de temperamento.

. Eram cinco milhões quatrocentos e quarenta e seis mil seiscentos     e setenta e cinco dólares, que o público havia despejado nos     cofres do Clube do Canhão.

Que ninguém se surpreenda com a importância de tal soma.

Os trabalhos da fundição e brocagem, obra de pedra e cal,     do transporte dos operários, a sua instalação numa região     quase desabitada, a construção de fomos e de edifícios,     aquisição das ferramentas para as fábricas, a pólvora,     o projétil, deviam, segundo os cálculos, absorver quase inteiramente     essa quantia?. Certos tiros de canhão na Guerra da Secessão     custaram mil dólares; o do Presidente Barbicane, Único na história     da artilharia, podia bem custar cinco mil vezes mais.

A 20 de outubro, foi assinado um contrato com a fábrica de Goldspring,     perto de Nova Iorque, que, durante a guerra, tinha fornecido a Parrott os     seus melhores canhões.

Ficou estipulado entre as partes contratantes que a fábrica de Goldspring     se comprometia a transportar para Tampa, na Flórida Meridional, o material     necessário para a fundição do columbiad. Essa operação     deveria estar terminada, o mais tardar, no dia 15 de outubro próximo,     e o canhão devia ser entregue em bom estado, sob pena de uma indenização     de cem dólares por dia até o momento em que a Lua se apresentasse     nas mesmas condições, isto é, por quantos dias se podem     contar em dezoito anos e onze dias. 0 contato com os operários, o seu     pagamento, os arranjos necessários competiam à companhia de     Goldspring.

Este contrato, feito em duplicata e de bona fide, foi assinado por 1. Barbicane,     presidente do Clube do Canhão e J.

Murchison, como diretor da fábrica de Goldspring, tendo ambas as     partes dado plena aprovação às cláusulas estipuladas.

Desde a escolha feita pelos sócios do Clube do Canhão em detrimento     do Texas, toda a gente na América onde todos sabem ler, se achou no     dever de estudar geografia da Flórida. Nunca os livreiros venderam     tanto exemplares do Bartrams TravelinRorida, do Roman,, Natural History of     Fast and West Rida, do Wiflà2m?,, Territory of Florida, do Ck1and on     the Culture of the Sugar-Cane in East Florida. Foi preciso imprimir novas     e novas edições. Era um furor.

Barbicane tinha mais que fazer do que ler; queria ver com os seus Próprios     olhos e escolher a Posição do columbiad.

Assim, sem perder um instante, pôs à disposição     do Observat ório de Cambridge os fundos para a construção     de u telescópio e tratou com a casa Breadwill & Co., de Albany,     a fabricação do projétil de alumínio, e depois     deixou Baltimore, acompanhado por J . T. Maston, pelo Major Elphiston e pelo     diretor da fábrica de Goldspring.

No dia seguinte, os quatros companheiros chegaram a Nova Orleães.     AR embarcaram imediatamente no Também, aviso da Marinha, que o Governo     pusera à sua disposição.

Aquecidas as fornalhas, em poucos momentos deixaram de ver a costa da Luisiana.

Não foi longa a viagem. Dois dias, 400 milhas, tendo o navio chegado     à vista da costa da Flórida. Ao aproximarse, Barbicane viu-se     em presença de uma terra baixa, plana, com aparência de muito     pouco fértil. Depois de ter passado por unia série de enseadas     ricas em ostras e lagostas, o Tampko chegou finalmente à Baía     do Espírito Santo.

Essa baía divide-se em duas barras alongadas, a de Tampa e a de Hiffisboro,     cuja embocadura o navio. Pouco tempo depois, apareceu o Forte Broocke, com     as suas baterias erguidas acima das ondas, e surgiu a Cidade de Tampa, negligentemente     recostada no fundo do pequeno porto natural formado pela foz do Rio Hillisboro.

Foi ali que o Tampouco ancorou, no dia 22 de outubro, às sete horas     da noite; os quatro passagens desembarcaram imediatamente.

Barbicane sentiu o coração palpitar com violência quando     pisou o solo da Flórida; parecia tateá-lo com os pés,     como faz um arquiteto a uma casa cuja solidez pretenda experi mentar.

J. T. Maston escavava a terra com a ponta do seu gancho.

- Senhores - disse então Barbicane -, não temos tempo a perder,     e a partir de amanhã montaremos a cavalo a fim de efetuar um primeiro     reconhecimento ao território.

No momento em que Barbicane desembarcou, os três má habitantes     de Tampa tinham ido ao seu encontro, honra bem merecida pelo presidente do     Clube do Canhão que os favorecem com a sua escolha. Receberam-no no     meio de aclamações formidáveis; mas Barbicane fugiu às     ovações e dirigiu-se para o seu quarto no Hotel Franklin, negandose     a receber quem quer que fosse. 0 papel de homem célebre não     se coadunava com ele.

No dia seguinte, 23 de outubro, pequenos cavalos de raça espanhola,     cheios de vigor e de fogo, relinchavam sob as suas janelas. Mas em vez de     quatro cavalos, encontravam- se ali cinqüenta, com os seus cavaleiros.     Barbicane desceu, acompanhado pelos companheiros, e ficou admirado por se     encontrar no meio de semelhante cavalaria.

Observou também que cada cavaleiro trazia uma carabina a tiracolo     e estava também armado de pistolas.

A razão de tal armamento foi-lhe dada por um jovem habitante da Flórida,     que lhe disse: - Senhor, é por causa dos índios.

- Que índios? - Os selvagens que percorrem achamos por isso prudente     escoltar-vos.

- Ora! - murmurou J. T. Maston, subindo para a sua montaria.

- É mais seguro! - replicou o jovem natural da Flórida.

- Agradeço-lhe, senhores - disse Barbicane -; e agora, a caminho!     0 pequeno grupo partiu e desapareceu pouco depois numa nuvem de poeira. Eram     cinco horas da manhã. 0 Sol resplandecia e o termômetro marcava     já vinte e oito graus centígrados; mas uma fresca brisa marítima     amenizava essa temperatura excessiva.

Barbicane, ao deixar Tampa, desceu para o sul e seguiu ao longo da costa,     de modo a atingir o riacho. Esse riozinho corre para a Baía Hillisboro,     vinte quilômetro abaixo de Tampa.

Barbicane e sua escolta correram ao longo da margem direita subindo para     leste. Em breve, as ondas da baía desapareceram atrás de um     acidente do terreno e só a campina se oferecia aos olhares dos cavaleiros.

A Florida divide-se em duas partes: uma ao norte, mais populosa, menos abandonada,     tem Taffahassee por capital, e Pensacola, um dos principais arsenais marítimos     dos Estados Unidos; a outra, comprimida entre o Atlântico e o golfo     do México, que a estreitam entre as suas águas, é uma     península corroída pela corrente do Gulf, rio, língua     de terra perdida no meio de um pequeno arquipélago, constantemente     dobrada pelos pequenos navios do canal das Baamas. É a sentinela avançada     do as pradarias, e golfo das grandes tempestades. A superfície desse     Estado é de trinta e oito milhões, trinta e três mil duzentos     e sessenta e sete acres, dentro dos quais era preciso escolher um local situado     para aquém do vigésimo oitavo paralelo e em condi ções     convenientes para o empreendimento. Barbicane, à medida que calvagava,     examinava atentamente a configura ção e a particular distribuição     do solo.

A Florida, descoberta por Juan Ponce de Léon, em 1512, no dia de     Ramos, chamou-se primeiro Páscoa Flórida. Merecia bem pouco     esse nome encantador, dado às suas costas áridas e queimadas.     Mas, a poucos quilômetros da margem, a natureza do terreno mudou pouco     a pouco, e a região mostrou-se digna do primitivo nome; o solo era     entrecortado por uma rede de pequenos cursos de água, de rios, de charcos,     de pequenos lagos; julgar-se-ia a Holanda ou a Guiana; mas o campo dentro     em pouco erguia- se sensivelmente e em breve começou a mostrar as suas     planícies cultivadas, onde se davam todas as produ- ções     vegetais do Norte e do Sul; campos imensos, que o sol dos trópicos     e as águas conservadas na argila do solo beneficiavam, e depois, finalmente,     os seus prados cobertos de ananases, de inhames, de tabaco, de arroz, de algod     ão e de cana-de-açúcar, que se estendiam a perder de     vista, exibindo as suas imensas riquezas com descuidada prodigalidade.

Barbicane pareceu muito satisfeito com a progressiva eleva ção     do terreno, e, quando J. T. Maston o interrogou a esse respeito, disse: -      Meu digno amigo: temos um interesse primordial em fundir o nosso columbiad     em terreno extremamente alto.

- Para ficar mais perto da Lua? - indagou o secretário do Clube do     Canhão.

- Não - respondeu Barbicane, sorrindo. - Que importam alguns metros     a mais ou a menos? Não, mas no meio de terrenos elevados processar-se-ão     mais facilmente: não teremos de lutar contra as águas, o que     nos evitará tubagens compridas e caras, e isso é um pormenor     a considerar, quando se trata de abrir um poço de trezentos metros     de profundidade.

- Tem razão - disse então o engenheiro Murchison.

É preciso, tanto quanto possível, evitar os cursos de água     durante a perfuração; mas se encontrarmos nascentes não     tem importância; esgotá-las-emos com as nossas máquinas,     ou desviá-las-emos. Não se trata aqui de um poço artesiano,     estreito e escuro, onde a sonda, o cubo, a verruma, em uma palavra, todas     as ferramentas do perfurador trabalham às cegas. Não?, nós     trabalhamos sob o céu aberto, à luz do dia, com a pá     e a picareta na mão, e com o auxílio de algumas minas o nosso     trabalho será feito rapidamente.

- No entanto - replicou Barbicane -, se, pela elevação do     solo ou pela sua natureza, nós pudermos evitar a luta com as águas     subterrâneas, o trabalho será mais rápido e mais perfeito;     procuraremos, portanto, abrir o nosso fosso num terreno situado algumas centenas     de metros acima do ní- vel do mar.

- Tem razão, senhor Barbicane. - E, se não me engano, em breve     encontraremos um local adequado.

- Ah, como gostaria de estar já ouvindo o primeiro golpe de picareta!     - disse o presidente.

- E eu o último! - exclamou J. T. Maston.

- Lá chegaremos, senhores - respondeu o engenheiro -, e, podem crer,     a companhia de Goldspring não terá de lhes pagar a indenização     por mora.

- Por Santa Bárbara!, tem razão - replicou J. T. Maston -      cem dólares por dia até que a Lua se apresente nas mesmas condições,     isto é, durante dezoito anos e onze dias.

Sabe que seriam seiscentos e cinqüenta e oito mil e cem dólares?      - Não senhor, não sabemos - respondeu o engenheiro -, nem teremos     necessidade de o saber.

Por volta das dez horas da manhã, o pequeno de estacamento tinha     percorrido uma boa dúzia de milhas, aos campos férteis sucedera-se     a região das florestas. Ali cresciam as árvores mais variadas     corri uma profusão tropical.

Essas florestas quase impenetráveis eram formadas por limoeiros,     laranjeiras, romãzeiras, figueiras, oliveiras, damasqueiros, bananeiras     e grandes cepas de vinha, cujos frutos e flores rivalizavam em cor e perfume.     A sombra perfumada dessas árvores magníficas esvoaçava     todo um mundo de pássaros de cores brilhantes, no meio dos quais se     distinguiam principalmente os airões, cujo ninho devia ser um cofre     para ser digno dessas preciosidades emplumadas.

J. T. Maston e o major não podiam encontrar-se na presen ça     dessa natureza opulenta sem admirar tão esplêndidas belezas.     Mas o Presidente Barbicane, pouco sensível a essas maravilhas, tinha     pressa de continuar; aquela região tão fértil desagradava-lhe     pela sua própria fertilidade. Sem ser hidróscopo, sentia a água     debaixo dos seus pés e procurava, em vão, sinais de uma incontestável     aridez.

No entanto, iam avançando; foi preciso passar a vau vários     rios, e não sem perigo, pois estavam infestados de crocodilos de quinze     a dezoito pés de comprimento. J. T. Maston ameaçou-os ousadamente     com o seu temível gancho, mas só conseguiu ameaçar os     pelicanos, as narcejas e outras aves selvagens, habitantes daquelas margens,     enquanto grandes flamingos vermelhos o olhavam com ar estúpido.

Finalmente, esses hóspedes das zonas úmidas desapareceram     por sua vez; árvores menos espessas agrupavamse em bosques pouco densos;     alguns grupos isolados destacavam- se no meio de planícies infinitas,     onde perpassavam bandos de gamos assustados.

- Até que enfim! - gritou Barbicane, erguendo-se nos estribos.

- Aqui está a região dos pinheiros! - E dos selvagens! - acrescentou     o major.

Com efeito, surgiram no horizonte alguns índios; agitavamse, corriam     de um lado para o outro nos seus cavalos.

rápidos, brandindo longas lanças ou disparando as suas espingardas     de detonação surda; de resto, limitaram-se a essas demonstrações     hostis, sem inquietarem Barbicane e os seus companheiros., Estes encontravam-se     então no meio de uma planície rochosa, vasto espaço descoberto     de uma extensão de vários acres, que o sol inundava com os seus     raios escaldantes.

Era formado por uma grande elevação do terreno, que parecia     oferecer aos membros do Clube do Canhão todas as condições     requeridas para a instalação do columbiad.

- Alto! - exclamou Barbicane, parando. - Este lugar tem algum nome? - Chama-se     Colina das Pedras - esclareceu um dos da Flórida.

Barbicane, sem dizer palavra, desmontou, pegou nos seus instrumentos e começou     a calcular a posição com uma precisão extrema; o pequeno     grupo, reunido em volta dele, observava-o num silêncio profundo.

Nesse momento, o Sol passava no meridiano. Barbicane, passados alguns momentos,     enumerou rapidamente o resultado das suas observações: - Este     local fica situado a trezentas toesas acima do nível do mar, a 270     7' de latitude e 50 7' de longitude oeste; pela natureza árida e rochosa,     parece-me oferecer todas as condições favoráveis à     experiência; será, portanto, nesta planície que se erguerão     os nossos armazéns, as nossas oficinas, os nossos fornos, os dormitórios     dos nossos oper ários, e será daqui, daqui mesmo - repetiu batendo     com o pé no chão no cimo da Colina das Pedras -, que o nosso     projétil partirá para os espaços do mundo solar!

 

Capítulo 8    

Fundição da peça

 

Essa mesma noite, Barbicane e os seus companheiros voltavam a Tampa e o engenheiro     Murchison reembarcava no Tampico com destino a Nova Orleães, com o     intuito de recrutar um exército de operários e conseguir a maior     parte do material. Os membros do Clube do Canhão permaneceram em Tampa,     a fim de organizar os primeiros trabalhos com o auxílio do pessoal     da região.

Oito dias após a sua partida, o Tampico voltava à Baía     do Espírito Santo com uma frota de barcos a vapor. Murchison reunira     mil e quinhentos trabalhadores. Nos maus dias da escravatura, teria perdido     o seu tempo e o seu trabalho.

Mas desde que a América, a terra da liberdade, só contava     homens livres no seu seio, estes acorriam onde quer que lhes fosse oferecida     uma boa retribuição pelo seu trabalho.

Ora, o dinheiro não faltava ao Clube do Canhão; aos seus homens,     além de um salário alto, gratificações considerá-      veis e proporcionais. 0 operário que 1 tivesse embarcado para a Flórida     podia contar, depois de acabado o trabalho, com um* capital depositado em     seu nome no banco de Baltimore. A Murchison apenas se pôs, portanto,     o emba raço da escolha, e pôde mostrar-se exigente relativamente     à inteligência e habilidade dos seus operários. Podemos     acreditar que ele contratou para a sua legião de trabalhadores a elite     dos mecânicos, dos motoristas, - fundidores, caldeireiros, mineiros,     oleiros e ajudantes de todos os gê- neros, negros ou brancos, sem distinção.     Muitos deles levavam as famílias consigo. Era uma verdadeira emigração.

A 31 de outubro, às dez horas da manhã, toda essa gente desembarcava     no cais de Tampa; compreende-se o movimento e a atividade que reinavam nessa     pequena cidade que duplicava a sua população de um dia para     o outro.

Realmente, Tampa deveria ganhar muito com aquela iniciativa do Clube do     Canhão, não pelo número dos seus oper ários, que     se dirigiam imediatamente para a Colina das Pedras, mas graças à     afluência de curiosos, que convergiram pouco a pouco, de todos os pontos     do Globo, para a península da Florida. Durante os primeiros dias, ocuparamse     em descarregar os utensílios e ferramentas trazidos nos barcos, assim     como uni grande número de casas pré- fabricadas. Ao mesmo tempo,     Barbicane colocava os primeiros trilhos de uma estrada de ferro de quinze     milhas, destinada a ligar a Colina das Pedras a Tampa.

Sabe-se em que condições são construídas as     estradas de ferro na América; caprichosa nas suas voltas, ousadas nas     suas encostas, desprezando as obras de arte e a prudência, subindo colinas,     atravessando os vales, a estrada de ferro corre como um cego e sem se preocupar     com a s linhas retas; não foi dispendioso nem perturbador. No entanto,,     descarrilava e saltava com toda a liberdade. A estrada de ferro de Tampa à     Colina das Pedras foi uma simples bagatela, e não precisou nem de muito     tempo nem de muito dinheiro para que fosse construída.

Barbicane era, de resto, a alma de toda essa gente que acorrera à     sua chamada; animava-a, insuflava-lhe a sua coragem, o seu entusiasmo, a sua     convicção. Encontravase em toda a parte, sempre acompanhado     de J. T. Maston, zumbindo como uma mosca à sua volta. 0 seu espírito     prático engenhava mil invenções. Com ele não havia     obst áculo, dificuldade, embaraço algum. Ele era mineiro, pedreiro,     mecânico e artilheiro, com respostas para todas as perguntas e soluções     para todos os problemas.

Correspondia-se ativamente com o Clube do Canhão e com a fábrica     de Goldspring, e dia e noite, com as caldeiras e o vapor mantido em pressão,     o Tampico esperava as suas ordens na baía de Hillisboro.

No dia 1? de novembro, Barbicane deixou Tampa com um destacamento de trabalhadores     e logo no dia seguinte uma cidade de casas pré-fabricadas se ergueu     em redor da Colina das Pedras. Essas casas foram rodeadas por uma pali- çada,     e pelo seu movimento e ardor em breve parecia uma das grandes cidades dos     Estados Unidos. A vida foi no entanto regulada com toda a disciplina e os     trabalhos iniciaram- se numa ordem perfeita.

Sondagens cuidadosamente praticadas tinham permitido reconhecer a natureza     do terreno, e este pôde começar a ser cavado logo no dia 4 de     novembro. Nesse dia, Barbicane reuniu os chefes de oficina e disse-lhes então:      - Meus amigos, todos sabem por que os reuni nesta parte selvagem da Flórida.     Trata-se de fundir u m canhão com nove pés de diâmetro     interno, seis pés de espessura nas suas paredes e dezenove pés     e meio no seu revestimento de pedra; é, portanto, necessário     escavar um poço com o diâmetro de sessenta pés, e uma     profundidade de novecentos pés. Esta obra, considerável, deve     estar terminada em oito meses; ora, vocês têm dois milhões     quinhentos e quarenta e três mil e quatrocentos pés cúbicos     de terra para extrair em duzentos e cinqüenta e cinco dias, ou seja,     em números redondos, dez mil pés cúbicos por dia. Aquilo     que não oferecia qualquer dificuldade para mil operários trabalhando     à vontade sem embaraços será mais difícil num     espaço relativamente restrito. No entanto, visto que este trabalho     deve ser feito, far-se-á, e conto tanto com a sua coragem como com     a sua habilidade.

Às oito horas da manhã foi dada a primeira enxadada no solo     da Colina das Pedras, e desde esse momento a valente ferramenta não     ficou inativa um único instante na mão dos mineiros. Os operários     revezavam-se em turno de seis horas.

Decorrido o primeiro mês, tinha o poço atingido a profundidade     prevista para essa altura, ou seja, cento e doze pés.

Em dezembro foi duplicada essa profundidade e em janeiro triplicada. Durante     o mês de fevereiro, os trabalhadores tiveram de lutar contra um lençol     de água que surgiu atrav és da crosta terrestre. Foi necessário     utilizar bombas poderosas e aparelhos de ar comprimido para esgotar a água     e poder betumar os orifícios das nascentes, como se faz a um rombo     a bordo de um navio. Finalmente, dominaram essas malfadadas correntes. No     entanto, devido à pouca consistência do terreno, a roda cedeu     parcialmente e houve um pequeno desabamento. Imagine-se qual seria o espantoso     impulso daquele disco de pedra e cal com a altura de setenta e cinco toesas!     Esse acidente custou a vida a vários operários.

Foram necessárias três semanas para escorar o revestimento     de pedra e para voltar a colocar a pedra nas suas primitivas condições     de solidez. Mas, graças à habilidade do engenheiro e à     potência das máquinas utilizadas, voltou ao prumo a edificação,     momentaneamente comprometida, e os trabalhos de perfuração deram     prosseguimento.

Nenhum novo incidente deteve daí em diante a marcha das operações,     e a 10 de junho, vinte dias antes de expirarem os prazos fixados por Barbicane,     o poço, inteiramente revestido de pedra, atingiria a profundidade de     novecentos pés. No fundo, o trabalho dos pedreiros repousava sobre     um cubo maciço medindo trinta pés de espessura, ao passo que     no seu limite superior aflorava 0 solo.

0 Presidente Barbicane e os membros do Clube do Canhão felicitaram     calorosamente o engenheiro Murchison; o seu trabalho ciclópico fora     realizado em extraordinárias condi- ções de rapidez.

Durante esses oito meses, Barbicane não saiu nem por um instante     da Colina das Pedras; enquanto seguia de perto as operações     de perfuração, inquietava-se incessantemente com o bem-estar     e a saúde dos trabalhadores e teve a sorte de conseguir evitar epidemias     comuns às grandes aglomerações de homens, tão     desastrosas nessas regiões do Globo, expostas a todas as influências     climáticas.

É verdade que muitos operários pagaram com a vida as imprudências     inerentes a esses perigosos trabalhos; mas essas deploráveis desgraças     são impossíveis de evitar, e são pormenores com que os     americanos se preocupam muito pouco. Preocupam-se mais com a humanidade e     geral do que com o indivíduo em particular. No entanto, Barbicane professava     os princípios contrários e aplicava os em todas as ocasiões.     Assim, graças aos seus cuidados, à sua inteligência, à     sua útil intervenção nos casos difíceis, à     sua prodigiosa sagacidade, a média das catástrofes não     ultrapassou a dos países do Velho Continente citados pelo seu luxo     de precauções, entre outros a Fraliça, onde, se dá     uma média de um acidente por cada duzentos mil francos de trabalho.

Durante os oito meses que foram utilizados na operação da     perfuração, os trabalhos preparatórios da fundição     tinham sido conduzidos simultaneamente e com extrema rapidez; um estrangeiro     que chegasse na Colina das Pedras ficaria muito surpreendido com o espetáculo     que se oferecia aos seus olhos.

A seiscentas jardas do poço, e dispostos circularmente em redor desse     ponto central, erguiam-se mil e duzentos fornos de reverberação,     com a largura de seis pés cada um e separados uns dos outros por uni     intervalo de meia toesa.

A linha desenvolvida por esses mil e duzentos fornos atingia um comprimento     de duas milhas. Eram todos construídos pelo mesmo modelo, com a sua     alta chaminé quadrangular, e produziam o efeito mais singular. J. T.     Maston achava soberba essa disposição arquitetural. Lembrava-lhe     os monumentos de Washington. Para ele não existia nada mais belo, mesmo     na Grécia, ?onde, de resto, dizia ele, ?nunca estive?.

Lembram-se certamente de que na terceira sessão a comiss ão     se decidiu a utilizar o ferro fundido para columbiad, especialmente ferro     fundido gris. Esse metal é, com efeito, mais tenaz, mais dúctil,     mais macio, apropriado para todas as operações de moldagem,     e tratado com o carvão mineral é de uma qualidade superior para     as peças de grande resistência, como canhões, cilindros     de máquinas a vapor, prensas hidráulicas, etc.

Contudo, a fundição, se sofre apenas uma fusão, raramente     fica suficientemente homogênea, e é por meio de uma segunda fusão     que ?se depura e refina o ferro fundido, desembara çando-o dos seus     últimos depósitos terrosos.

Assim, antes de ser enviado para Tampa, o minério de ferro, tratado     nos altos-fornos de Goldspring e posto em contato com carvão e silício     aquecido a uma alta temperatura, tinha sido carbonado e transformado em ferro     fundido.

Após essa primeira operação, o metal foi transportado     para a Colina das Pedras. Mas tratava-se de cento e trinta e seis milhões     de libras de ferro fundido, quantidade muito difícil de enviar pela     estrada de ferro. Os preços do transporte duplicariam o preço     do material. Pareceu preferível fretar navios em Nova Iorque e carregá-los     com o ferro fundido em barras; foram necessárias nada menos de sessenta     e oito embarcações de mil toneladas, unia verdadeira frota,     que, a 3 de maio, saiu do porto de Nova Iorque e tomou a via do oceano ao     longo das costas americanas.

?Depois entrou no canal das Baamas, dobrou a ponta da Flórida e a     10 do mesmo mês, subindo a baía do Espírito Santo, foi     ancorar no porto de Tampa- Ali, os navios foram descarregados para os vagões     da estrada de ferro da Colina das Pedras, e, em meados de ja neiro, toda aquela     enorme quantidade de metal se encontrava no seu destino.

Compreende-se facilmente que não eram demais mil e duzentos fornos     para liquefazer ao mesmo tempo sessenta mil toneladas de ferro. Cada um -      desses fornos podia conter perto de cento e quatorze mil libras de metal;     tinham sido construídos segundo o modelo daqueles que serviram para     a fundição do canhão de Rodman; eram de forma trapezoidal,     e muito baixos.

A fornalha e a chaminé encontravam-se nas duas extremidades do forno,     de tal modo que este era aquecido em toda a sua extensão. Esses fornos,     construídos com tijolos refratários, compunham-se unicamente     de uma grelha, para queimar a hulha e de um crisol sobre o qual se colocavam     as barras de ferro para serem fundidas; esse crisol, inclinado por uni ângulo     de vinte e cinco graus, permitia que o metal se escoasse para as caldeiras     de recepção, de onde mil e duzentas caldeiras convergentes o     conduziam para o poço central.

No dia seguinte àquele em que os trabalhos de pedreiro e de perfuração     terminaram, Barbicane mandou proceder à confecção do     molde interno; tratava-se de erguer no centro do poço, e na direção     do seu eixo, um cilindro com a altura de novecentos pés e a largura     de nove, que enchesse exatamente o espaço reservado para a alma do     columbiad. Esse cilindro foi feito de uma mistura de terra argilosa e de areia     com feno e palha. 0 intervalo que ficava entre o molde interno e o revestimento     de alvenaria devia ser preenchido pelo metal fundido, que assim formaria uma     parede de seis pés de espessura em tomo do molde.

Esse cilindro, para se manter em equilíbrio, teve de ser consolidado     com armaduras de ferro e amparado de espaço a espaço com escoras     chumbadas, que contornavam o revestimento de pedra; após a fundição,     essas escoras deviam ficar perdidas no grosso da massa de metal, o que, aliás,     não oferecia inconveniente algum.

Essa operação terminou a 8 de julho, e a moldagem foi marcada     para o dia seguinte.

- A festa da fundição vai ser uma bela cerimônia - disse     J. T.

Maston ao seu amigo Barbicane.

- Sem dúvida - respondeu Barbicane -; mas não será     uma festa pública.

- Como! Não quer abrir as portas do recinto a quem aparecer? - Nem     pensar nisso, Maston; a fundição do columbiad é uma operação     delicada, para não dizer perigosa, e prefiro que se efetue a portas     fechadas. À partida do projétil fazemos festa, se quiserem,     mas antes disso não.

0 presidente tinha razão; a operação podia oferecer     perigos inesperados, aos quais uma grande afluência de espectadores     tornaria difícil remediar. Era preciso conservar a liberdade de movimentos.     Não foi, portanto, admitido ningu ém no recinto, com exceção     de uma delegação dos membros do Clube do Canhão, que     fez a viagem até Tampa.

Viu-se então o elegante Bilsby, Tom Hunter, o Coronel Blomsberry,     o Major Elphiston, o General Morgan e tutti quanti para quem a fundição     do columbiad se tornava um assunto pessoal. J. T. Maston tinha-se feito seu     cicerone e não lhes omitiu pormenor algum: conduziu-os por toda a parte,     levou-os aos armazéns, às oficinas, para o meio das máquinas     e forçou os a visitar os mil e duzentos fornos uns após outros.     Na última visita, os homens mostraram-se um tanto cansados.

A fundição devia ter lugar ao meio-dia em ponto; na véspera,     cada forno fora carregado com cento e quatorze libras de metal em barras,     dispostas em pilhas cruzadas, a fim de o ar quente poder circular livremente     entre elas.

Desde essa manhã, as mil e duzentas chaminés vomitavam para     a atmosfera as suas torrentes de chamas, e o solo era atingido por surdas     trepidações. As libras de metal a fundir eram tantas quantas     as libras de hulha a serem queimadas. Eram, portanto, sessenta e oito mil     toneladas de carvão, que projetava diante do disco do Sol uma espessa     cortina de fumaça negra.

0 calor tornou-se em breve insuportável no recinto dos fornos, cujos     roncos se assemelhavam ao ribombar do trov ão; poderosos ventiladores     saturavam continuamente de oxigênio todos aqueles focos incandescentes.

A operação, para ter êxito, precisava de ser rapidamente     conduzida. Ao sinal dado por um tiro de canhão, cada forno devia dar     passagem à fusão e vasar-se rapidamente.

Tomadas essas disposições, chefes e operários tiveram     o momento determinado com uma impaciência misturada com uma certa emoção.     Já não havia mais ninguém no recinto, e cada contramestre     fundidor encontrava-se no seu posto junto das aberturas por onde devia sair     o metal em fusão.

Barbicane e os seus colegas, instalados numa elevação pró-      xima, assistiam à operação. Diante deles encontrava-se     uma peça de artilharia, pronta a fazer fogo a um sinal do engenheiro.

Alguns minutos antes do meio-dia, as primeiras gotinhas de metal começaram     a aparecer, as caldeiras para onde elas corriam encheram-se pouco a pouco,     e, quando a liquefação do metal ficou completa, deixaram-nos     assentar durante alguns instantes, a fim de facilitar a separação     de substâncias estranhas.

Soou o meio-dia. Um tiro de canhão troou subitamente lançando     o seu clarão para os ares. Mil e duzentas aberturas por onde passava     a lava abriram-se ao mesmo tempo, mil e duzentas serpentes de fogo alastraram-se     para o poço central, desenrolando-se em anéis incandescentes.     Ali, precipitaram- se, com um ruído assustador, para uma profundidade     de novecentos pés. Era um espetáculo magnífico e comovente.     0 solo tremia, enquanto aquele oceano de ferro em fusão, lançando     para o céu turbilhões de fumo, volatilizava ao mesmo tempo a     umidade do molde e a expulsava pelas aberturas do revestimento de pedra sob     a forma de vapores impenetráveis. Essas nuvens artificiais desenrolavam     as suas espessas espirais e ergueram-se para o zênite até a uma     altura de quinhentas toesas. Algum indí- gena que vagueasse para além     dos limites do horizonte julgaria tratar-se da formação de uma     nova cratera nas entranhas da Flórida, e no entanto não se tratava     de erup- ção, nem de tromba, nem de tempestade, nem de luta     de elementos, nem de nenhum desses terríveis fenômenos que a     natureza é capaz de produzir! Não! Só o homem criara     aqueles vapores avermelhados, aquelas chamas gigantescas dignas de um vulcão,     aquelas ruidosas trepida- ções semelhantes às sacudidelas     de um tremor de terra, aqueles rugidos rivais dos furacões e das tempestades,     e era a sua mão que precipitava, num abismo cavado por ela, toda uma     catarata de metal em fusão.

Teria a operação da fundição tido êxito?     A resposta não sala de simples conjetura. No entanto, tudo levava a     crer no êxito, visto que o molde absorvera toda a massa do metal fundido     nos fornos. Fosse como fosse, devia ser imposs ível, durante muito     tempo, verificá-lo diretamente.

Realmente, quando o Major Rodman fundiu o seu canhão de cento e sessenta     mil libras, foram necessários quinze dias para se dar o arrefecimento.     Quanto tempo levaria então o monstruoso columbiad, coroado pelos seus     vapores de fumo e defendido pelo seu calor intenso, a aparecer aos olhos dos     seus admiradores? Era difícil de calcular.

A impaciência dos membros do Clube do, Canhão foi posta a uma     dura prova durante esse lapso de tempo. Mas nada se podia fazer. J. T. Maston     quase ia ficando assado devido à sua dedicação. Quinze     dias após a fundição, ainda se erguia para o céu     uma imensa coluna de fumo, e o solo queimava os pés num raio de duzentos     passos em redor do cume da colina.

Os dias foram passando e as semanas somaram-se umas às outras. Não     havia qualquer meio de arrefecer o imenso cilindro. Era preciso paciência,     e os membros do Clube do.

Canhão não tinham outro remédio senão esperar.

- Estamos a 10 de agosto - disse uma manhã J. T. Maston.

- Apenas quatro meses nos separam do dia 1? de dezembro! Retirar o molde     interior, calibrar a alma da peça, carregar o columbiad! Falta fazer     tudo isto! Não estaremos prontos! Nem sequer podemos nos aproximar     do canhão! Nunca mais arrefecerá! Isto seria uma cruel mistificação!     Tentaram acalmar o impaciente secretário, mas debalde..

Só Barbicane não dizia nada, mas o seu silêncio escondia     uma surda irritação. Ver-se detido por um obstáculo que     só o tempo poderia remediar - o tempo, um inimigo temí- vel     nas circunstâncias - e estar à mercê do inimigo era duro     para homens habituados à guerra.

No entanto, as observações diárias permitiram observar     uma certa mudança no estado do solo. Por volta de 15 de agosto, os     vapores projetados tinham diminuído consideravelmente de intensidade     e de espessura. Alguns dias depois, já o terreno exalava apenas um     ligeiro vapor, último alento do monstro fechado no seu caixão     de pedra. Pouco a pouco, os estremecimentos do solo acalmaram-se e o círculo     de calor diminuiu; os espectadores mais impacientes foram-se aproximando;     num dia ganharam duas toesas; no dia seguinte quatro, e no dia 22 de agosto,     Barbicane, os seus colegas e o engenheiro puderam finalmente pisar a parte     de metal solidificado que cobria o cimo da Colina das Pedras, local por certo     muito acolhedor, porque não era permitido ter ali os pés frios.

- Até que enfim! - declarou o presidente do Clube do Canh ão     com um imenso suspiro de satisfação.

Nesse mesmo dia recomeçaram os trabalhos. Procedeuse imediatamente     à extração do molde interior, a fim de libertar a parte     interna da peça; a picareta, o alvião, as ferramentas de broca     funcionaram sem descanso; o barro argiloso e a areia tinham adquirido uma     resistência extrema sob a ação do calor; mas, com a ajuda     das máquinas, conseguiram manobrar a mistura ainda escaldante pelo     contato com as paredes de ferro fundido. Desembarque do projétil em     Stones Hill materiais extraídos foram rapidamente levados em carros     movidos a vapor, e todos trabalharam tão bem, o ardor foi tal, a intervenção     de Barbicane foi tão premente e os argumentos 1 foram apresentados     com tal força sob a forma de dólares que, a 3 de setembro, todos     os vestígios do molde tinham desaparecido.

Começou imediatamente a operação de calibragem; as     máquinas foram instaladas sem demora e as poderosas brocas de polir     começaram a alisar as rugosidades do ferro fundido. Algumas semanas     mais tarde, a superfície interna do imenso tubo tinha totalmente assegurada     a sua forma cilíndrica e a alma da peça adquirido um polimento     perfeito.

Finalmente, a 22 de setembro, menos de um ano após a comunicação     de Barbicane, o enorme engenho, rigorosamente calibrado e de uma verticalidade     absoluta, verificada por meio de instrumentos delicados, estava pronto a funcionar.

Então só era preciso esperar pela Lua, mas tinham a certeza     de que ela não faltaria ao encontro.

A alegria de J. T. Maston não conheceu limites, e esteve prestes     a uma queda horrorosa, quando tentava perscrutar o fundo do enorme tubo de     novecentos pés. Sem o braço direito de Blomsberry, que o digno     coronel tinha felizmente conservado, o secretário do Clube do Canhão,     como um novo Eróstrato, teria encontrado a morte nas Profundezas do     columbiad.

0 canhão estava, portanto, terminado; não restavam dú-      vidas possíveis sobre a sua perfeita construção; assim,     a 6 de outubro, o Capitão? Nicoles pagou a aposta ao Presidente Barbicane     e este inscreveu nos seus livros, na coluna das receitas, uma quantia de dois     mil dólares.

 

Capítulo 9    

Michel Ardan

 

Os grandes trabalhos empreendidos pelo Clube do Canhão estavam, por     assim dizer, terminados, e entretanto iriam decorrer ainda dois meses antes     de chegar o dia em que o projétil seria lançado para a Lua.     Dois meses que deviam parecer longos como anos para a impaciência universal!     Até então as mínimas peripécias da operação     tinham sido diariamente reproduzidas. pelos jornais, que eram? devorados com     um olhar ávido e apaixonado; mas era de temer que daí em diante     esse ?dividendo de notícias e interesses ? distribuído pelo     público fosse diminuindo, e todos se assustavam por ver desaparecer     a sua parte de emo- ções quotidianas.

No entanto, isso não sucedeu; o incidente mais inesperado, mais extraordinário,     mais incrível, veio de novo fanatizar os espíritos e lançar     o Mundo. numa excitação pungente.

No dia 30 de setembro, às três horas e quarenta e sete minutos     da noite, um telegrama, transmitido pelo cabo submarino entre Valentia (Irlanda),     a Terra Nova e a costa americana, chegou endereçado ao Presidente Barbicane.

0 digno presidente abriu o envelope, leu o telegrama e, apesar de todo o     seu autodomínio, os seus lábios empalideceram e os olhos perturbaram-se     com a leitura das palavras desse telegrama.

Eis o texto desse despacho, que agora figura nos arquivos do Clube do Canhão.

França, Paris 30 de setembro, quatro horas da manhã.

Barbicane, Tampa, Flórida - Estados Unidos Substitua obus por projétil     cilindro cônico. Partirei dentro. Chegarei vapor Atlanta.

Michel Ardan. Se aquela notícia fulminante, em vez de voar sobre     os fios elétricos, tivesse chegado simplesmente pelo correio, num envelope     fechado, se os empregados franceses, irlandeses, da Terra Nova, americanos,     não tivessem necessariamente conhecimento do telegrama, Barbicane não     teria hesitado um só momento. Ter-se-ia calado por medida de prudência     e para não desconsiderar a sua obra. Aquele telegrama podia esconder     uma mistificação, sobretudo vindo da parte de um francês.     Era preciso que um homem fosse muito audacioso para conceber sequer a idéia     de uma tal viagem. E, se esse homem existia, não seria um louco que     urgia encerrar numa cela e não numa bala? Todavia, o telegrama era     conhecido, pois os aparelhos de transmissão são pouco discretos     por natureza e a proposta de Michel Ardan corria já pelos diversos     Estados da União.

Assim, Barbicane não tinha qualquer motivo para se calar.

Reuniu, portanto, os seus colegas presentes em Tampa e, sem deixar ver o     seu pensamento, sem discutir o crédito que o telegrama pudesse merecer,     limitou-se a ler friamente o lacônico texto.

- Não é possível! É inverossímil! Pura     brincadeira! Troçaram de nós! Ridículo! Absurdo! - Toda     a série de expressões que servem para exprimir a dúvida,     a incredulidade, a tolice, a loucura prosseguiu durante vários minutos,     gestos que habitualmente acompanham essas expressões. Cada um sorria,     ria, encolhia os ombros ou ria, às gargalhadas, conforme a sua disposição.     Só J. T. Maston teve estas palavras soberbas: - É uma idéia.

- Sim - respondeu-lhe o major -, mas, se algumas vezes nos é permitido     ter idéias como esta, é com a condição de nem     sequer pensar em as pôr em execução.

- E por que não? - replicou vivamente o secretário do Clube     do Canhão, pronto para discutir. Mas não quiseram excitá-      lo mais.

No entanto, o nome de Michel Ardan circulava já na cidade de Tampa.     Os estrangeiros e os do local olhavam-se e dizi am graças, não     a respeito desse europeu - um mito, um indivíduo quimérico -,      mas a respeito de J. T. Maston, que acreditava na existência dessa personagem     lendária.

Quando Barbicane propôs o envio de um projétil à Lua     todos acharam natural, praticável, um puro assunto de balística!     Mas que um ser racional se oferecesse para embarcar nesse projétil     a fim de tentar essa viagem inverossímil, era uma proposta fantasista,     uma brincadeira, uma farsa, e, para utilizar uma palavra de que os franceses     têm a tradu- ção exata na sua linguagem familiar, um humbug     (mistifica- ção).

As troças duraram até a noite e pode dizer-se que toda a América     do Norte foi tomada de riso, o que não é nada habitual num país     em que as empresas impossíveis encontram facilmente adeptos, partidários.

No entanto, a proposta de Michel Ardan, como to as idéias novas,     não deixava de perturbar certos espíritos. Isto alterava o curso     das emoções habituais. ?Não tínhamos pensado nisto!?     Esse incidente tornou-se em breve uma obsess ão pela sua própria     estranheza. Pensavam nele. Quantas coisas negadas na véspera que o     dia seguinte tornou realidade! Por que razão não se faria um     dia essa viagem? Em todo caso, porém, o homem que assim queria arriscar-se     devia ser louco, e decididamente, visto que o seu projeto não podia     ser levado a sério; teria sido melhor calar-se, em vez de perturbar     toda a gente com as suas fantasias ridículas.

. Porém, antes de mais nada, existiria realmente essa personagem?     Grande pergunta! Aquele nome, ?Michel Ardan?, não era desconhecido     na América! Pertencia a um europeu muito citado pelos seus empreendimentos     audaciosos. Depois, o telegrama lançado através das profundezas     do Atlântico, essa designação do navio em que viajava,     a data da chegada próxima - todas essas circunstâncias davam     à proposta um certo caráter de verossimilhança. Era preciso     esclarecer o caso. Em breve, os indivíduos isolados reuniram- se em     grupos; os grupos foram-se condensando sob a influência da curiosidade,     como átomos em virtude da atração molecular, e, finalmente,     resultou dai uma multidão compacta que se dirigiu para a residência     do Presidente Barbicane.

Este, desde a chegada do telegrama não se tinha pronunciado; havia     permitido que se divulgasse a opinião de J. T.

Maston, sem manifestar aprovação nem censura; mantinha- se     calado e propunha-se esperar pelos acontecimentos; mas não contava     com a impaciência pública, e foi com um olhar satisfeito que     viu a população de Tampa amontoar- se sob as suas janelas. Em     breve, os murmúrios e as vociferações o obrigaram a aparecer.

Vemos que ele tinha todos os privilégios e, por conseqüência,     todos os aborrecimentos da celebridade.

Apareceu então à janela. Fez-se silêncio, e um cidadão,     tomando a palavra, fez-lhe claramente a pergunta seguinte: - A personagem     chamada Michel Ardan vem ou não a caminho da América? _ Senhores      - respondeu Barbicane -, sei tanto quanto vós.

- É preciso sabê-lo! - exclamaram vozes impacientes.

- 0 tempo não tem o direito de manter um país inteiro suspenso      - replicou o orador. - Modificou os planos do projétil como pede o     telegrama? - Ainda não, senhores; mas têm razão, temos     de saber com o que contamos. 0 telégrafo, que causou toda esta emoção,     poderá dar-nos as informações que nos faltam.

- Ao telégrafo! Ao telégrafo! - gritou a multidão.

Barbicane desceu e, precedendo a imensa multidão, dirigiuse para     os escritórios da administração.

Alguns minutos mais tarde, era enviado um telegrama para o escritório     dos armadores de navios de Liverpool. Pedia resposta às seguintes perguntas:     ?Que espécie de navio é o Atlanta? ?Quando deixou a Euro pa??     ?Traz a bordo um francês chamado Michel Ardan ? Duas horas depois Barbicane     recebia informações de uma precisão que não dava     lugar à menor dúvida.

?0 navio Atlanta, de Liverpool, partiu a 2 de outubro, para Tampa e leva     a bordo um francês inscrito no livro dos passageiros com o nome de Michel     Ardan.? Ao ter a confirmação do primeiro telegrama, os olhos     do presidente brilharam com uma chama súbita, os seus punhos fecharam-se     violentamente e ouviram-no murmurar: - É então verdade! É,     portanto, possível! Esse francês existe! E dentro de quinze dias     estará aqui! Mas é um louco! Um cérebro inflamado!...     Nunca consentirei...

No entanto, nessa mesma noite escrevia para a casa Breadwill & C?, pedindo-lhe     que suspendesse até nova ordem a fundição do projétil.

No dia 20 de outubro, às nove horas da manhã, os faróis     do Canal das Baamas assinalavam uma espessa fumaça no horizonte. Duas     horas mais tarde, um grande barco a vapor trocava com eles sinais de reconhecimento.     Imediatamente, o nome do Atlanta foi enviado para Tampa. As quatro horas,     o navio inglês dava entrada na Baía do Espírito Santo.     Às cinco passava na Enseada de Hillisboro a todo o vapor. Às     seis, ancorava no porto de Tampa.

A âncora ainda não tinha alcança do o fundo de areia     e já quinhentas embarcações rodeavam o Atlanta, e o navio     era tomado de assalto. Barbicane foi o primeiro a saltar na amurada do navio     e, com uma voz cuja emoção ele queria em vão esconder,     exclamava: - Michel Ardan Presente! - respondeu um indivíduo que se     encontrava no castelo da popa.

Barbicane, de braços cruzados, de olhar interrogador, olhava silenciosamente     o passageiro do Atlanta.

Os discípulos de Lavater ou de Gratiolet teriam decifrado sem dificuldade     no crânio e na fisionomia dessa personagem sinais indiscutíveis     de combatividade, isto é, coragem no perigo e tendência para     deitar abaixo obstáculos; sinais de benevolência e atração     pelo maravilhoso, instinto que leva certas pessoas a se apaixonarem pelas     coisas sobrehumanas; mas, em compensação, as tendências     de possessividade, dessa necessidade instintiva de possuir e de adquirir,     faltavam-lhe por completo.

Para concluirmos o tipo físico do passageiro do Atlanta, convêm     assinalar que as suas roupas eram largas, confort áveis, com as calças     e o casaco feitos com muito tecido, de tal modo que Michel Ardan se denominava     a si mesmo ?o mata-pano?, a gravata larga, o colarinho da camisa aberto, de     onde saía um pescoço robusto. Usava normalmente os punhos da     camisa desabotoados, pondo a descoberto unias mãos febris. Sentia-se     que, mesmo no mais forte inverno e dos perigos, aquele homem nunca teria frio     nem sequer nos olhos.

De resto, no tombadilho do barco, no meio da multidão, ele ia e vinha,     não estando nunca quieto -?navegando sobre as amarras?, como dizem     os marinheiros -, gesticulando, tratando toda a gente por tu e roendo as unhas     com uma avidez nervosa: era um desses originais que o Criador inventa num     momento de fantasia quebrando logo a seguir o molde.

Realmente, a personalidade moral de Michel Ardan oferecia um largo campo     às observações do analista. Esse homem espantoso vivia     numa eterna disposição para a hipérbole e não     tinha ainda ultrapassado a idade dos superlativos: os objetos surgiam na retina     dos seus olhos com dimensões desmedidas; daí uma gigantesca     associação de idéias; via tudo em grande, exceto as dificuldades     e os homens.

Era de resto uma natureza luxuriante, um artista por instinto, uma natureza     espiritual que não fazia fogo cerrado de ditos chistosos mas que sabia     esgrimir, como um hábil atirador, em qualquer conversa.

Nas discussões preocupava-se pouco com a lógica, era rebelde     aos silogismos, que nunca teria inventado, e tinha argumentos próprios.     Verdadeiro quebra-vidros, lançava em pleno peito argumentos ad hominem     de efeito seguro, e gostava de defender a todo o custo as causas desesperadas.

Entre outras manias, tinha a de se declarar ?um ignorante sublime? como     Shakespeare, e fazia profissão de menosprezar os sábios: ?São     pessoas?, dizia, ?que apenas marcam os pontos quando nós é que     jogamos a partida.? Era, em resumo, um boêmio do país dos montes     e das maravilhas, aventuroso, mas não aventureiro, um Faetonte conduzindo     o carro do Sol, um Ícaro com asas sobressalentes.

De resto, era homem que arriscava a sério a própria pessoa     e lançava-se de cabeça nos mais loucos empreendimentos.

Queimava os seus navios com mais pressa que Agátocles, e, pronto     a arriscar apele a todo o momento, acabava sempre por cair de pé, como     esses bonecos joãoteimoso com que as crianças se divertem.

Todavia, esse homem empreendedor tinha os defeitos pró- prios das     suas qualidades! Quem não arrisca não petisca, costuma dizer-se.     Mas Ardan arriscava muitas vezes sem nada conseguir. Era um perdulário,     um tonel das Danaides.

Homem perfeitamente desinteressado, de resto, tinha tão bom coração-      quanto cabeça. Prestável, cavalheiresco, seria incapaz de assinar     a sentença de morte do seu mais cruel inimigo, e vender-se-ia a si     mesmo como escravo para resgatar um negro.

Na França, na Europa, toda a gente conhecia essa brilhante e barulhenta     personagem. Não fazia incessantemente falar dele as cem vozes da Fama     ao seu serviço? Não vivia numa casa de vidro tomando o universo     inteiro por confidente dos seus mais íntimos segredos? Mas possuía     também uma admirável coleção de inimigos, entre     aqueles que ele tinha mais ou menos ferido, atirado abaixo sem piedade, acotovelando-      os para abrir passa em por entre a multidão.

No entanto, geralmente gostavam dele e tratavam-no como criança mimada.     Era, segundo a expressão popular, um homem ?para pegar ou largar?,     e o caso é que lhe pegavam.

Todos se interessavam pelas suas enormes ousadias.

A contemplação a que se entregava o presidente do Clube do     Canhão em presença daquele rival que o vinha relegar para segundo     plano foi rapidamente interrompida pelos vivas e hurras da multidão.     Esses gritos tornaram-se mesmo tão frenéticos e o entusiasmo     tomou formas tão pessoais que Michel Ardan, depois de ter apertado     centenas de mãos, nas quais quase ia deixando os seus dez dedos, teve     de se ir refugiar na sua cabina.

Barbicane segui-o sem ter pronunciado uma só palavra.

- É Barbicane? - perguntou-lhe Michel Ardan, quando ficaram a sós,     no tom em que teria falado a um amigo de há vinte anos.

- Sim - respondeu o presidente do Clube do Canhão.

- Bem! Bom dia, Barbicane. Como vai isso? Muito bem? Então tanto     melhor! Tanto melhor! Então - disse Barbicane entrando logo no assunto      -, está decidido a partir? - Absolutamente decidido.

Nada o deterá? Nada. Modificou o seu projétil como eu pedia     em meu telegrama? - Esperava a sua chegada. Mas - perguntou Barbicane, insistindo     de novo - refletiu bem?...

- Se refleti? Mas tenho algum tempo a perder? Vejo ocasi ão de ir     dar um passeio à Lua aproveito-a, mais nada.

Parece-me que o caso não merece muitas reflexões.

Barbicane devorava com o olhar aquele homem que falava do seu projeto de     viagem com uma leviandade, uma despreocupa ção tão completa     e uma tão perfeita ausência de inquietações.

- Mas, pelo menos - disse-lhe -, tem um plano, meios de execução?      - Excelentes, meu caro Barbicane, Mas permita-me que lhe faça uma observação:     gosto de contar a minha história de uma só vez a toda a gente     e que não se fale mais nisso.

Isso evitará as repetições. Portanto, salvo melhor     opinião, convoque os seus amigos, os seus colegas, toda a cidade, toda     a Flórida, toda a América, se quiser, e amanhã estarei     pronto a expor os meus meios e a responder a todas as objeções,     sejam elas quais forem. Isto lhe convém? - Convém - respondeu     Barbicane.

- Então, o presidente saiu da cabina e comunicou à multid     ão a proposta de Michel Ardan. As suas palavras foram acolhidas com     exclamações de alegria. Isso evitava qualquer dificuldade. No     dia seguinte, todos poderiam contemplar à sua vontade o herói     europeu. No entanto, alguns espectadores mais obstinados não quiserem     deixar a ponte do Atlanta. Passaram a noite a bordo. Entre outros. J. T.

Maston, que tinha atarraxado o gancho na amurada do convés e seria     preciso um cabrestante para o tirar de lá.

- É um herói! - exclamava em todos os tons -, e nós     não passamos de umas mulherzinhas aos pés desse europeu! Quanto     a Barbicane, depois de ter convidado os visitantes a retirarem-se, voltou     para a cabina do passageiro, e só saiu de lá à meia-noite.

 

Capítulo 10  

A Assembléia

 

No dia seguinte, o astro do dia levantou-se muito tarde para a impaciência     pública. Acharam-no preguiçoso, para um Sol que devia iluminar     semelhante festa. Barbicane, temendo as perguntas, indiscretas para Michel     Ardan, teria desejado reduzir os seus ouvintes a um pequeno número     de adeptos, aos seus colegas, por exemplo. Mas era o mesmo que tentar pôr     um dique no Niágara. Teve, portanto, de renunciar ao seu projeto e     deixar o seu novo amigo correr os riscos de uma conferência pública.     A nova sala da Bolsa de Tampai apesar das suas dimensões colossais,     foi considerada insuficiente para a cerimônia, pois a reunião     projetada tomava as proporções de um verdadeiro meeting.

0 local escolhido foi então uma vasta planície situada fora     da cidade; em poucas horas conseguiram abrigá-la. contra os raios do     Sol; os navios do porto - com as suas velas, os seus mastros, os seus aprestos,     forneceram o material necessário para a construção de     uma gigantesca barraca.

Em breve, um imenso toldo se estendia sobre a planície calcinada     defendendo-a dos ardores do Sol. Ali, trezentas mil pessoas encontraram lugar     e enfrentaram durante horas uma temperatura sufocante, esperando a chegada     do francês. Dessa multidão de espectadores a terça parte     podia ver e ouvir; um segundo terço via mal e não ouvia; quanto     ao terceiro, não via nem ouvia nada.

Não foi no entanto esse terço o mais avaro em prodigalizar     os seus aplausos.

Às três horas, Michel Ardan fez a sua aparição,     ?acompanhado pelos principais membros do Clube do Canhão. Dava o braço     direito ao Presidente Barbicane e o esquerdo a J. T.

Maston, mais radioso que o Sol em pleno meio-dia, e quase tão rutilante.     Ardan subiu a uni estrado, do alto do qual o seu olhar abarcava uma imensa     extensão de chapéus pretos.

Não parecia nada embaraçado nem fazia poses. Estava ali como     em casa, alegre, familiar, ? amável. Às aclama- ções     que o acolheram respondeu com uma saudação graciosa; depois,     com a mão, pediu silêncio. Tomou então a palavra em inglês     e exprimiu-se, muito corretamente, nestes termos: - Senhores, apesar de estar     muito calor, vou roubar lhes uns momentos para lhes dar umas explicações     sobre uns projetos que parecem lhes ter interessado. Não sou nem orador     nem sábio e não contava ter de falar em público, mas     o meu amigo Barbicane disse - me que isto lhes daria prazer e eu prontifiquei-me     a faze-lo. Escutem-me, por tanto, com seiscentos mil ouvidos e desculpe In     os erros do autor.

Este começo nada cerimonioso agradou muito aos assistentes, que manifestaram     o seu agrado com um murmúrio de satisfação.

- Senhores - continuou Michel Ardan -, lembrem-se de que não é     proibido qualquer sinal de aprovação ou de desaprova ção.     Dito isto, vou começar. Não esqueçam que estão     tratando com um ignorante e que a sua ignorância vai tão longe     que chega a ignorar até mesmo as dificuldades. Parece- lhe, portanto,     que era uma coisa fácil, simples, natural, arranjar passagem num projétil     e partir para a Lua.

Essa viagem devia fazer-se mais cedo ou mais tarde, e quanto ao modo de     locomoção adotado, segue simplesmente a lei do progresso. 0     homem começou por viajar a quatro patas, depois, um belo dia, sobre     os dois pés, depois de carroça, em seguida de carruagem, depois     navios de carga, estradas de ferro; pois bem! 0 projétil é o     meio de transporte do futuro, e a bem dizer os planetas não são     mais que projéteis, simples balas de canhão lançadas     pela mão do Criador. Mas voltemos ao nosso veiculo. Alguns dos senhores     julgaram que a velocidade que lhe séria imprimida é excessiva;     mas não se verifica isso; todos os astros o superam em rapidez, e a     própria Terra, no seu movimento de translação em redor     do Sol, leva-nos três vezes mais depressa. Eis alguns exemplos. Peço-vos     apenas licença para me exprimir contando em léguas, pois não     estou muito familiarizado com as medidas americanas e receio atrapalhar-me     nos meus cálculos.

0 pedido pareceu simples e não representava qualquer dificuldade.

0 orador retomou o seu discurso: - Eis, senhores, a velocidade dos diferentes     planetas. Sou obrigado a confessar que, apesar da minha ignorância,     conhe ço exatamente esse pequeno pormenor astronômico; mas, antes     de se terem passado dois minutos, ficarão sabendo tanto quanto eu.     Com efeito, Netuno percorre cinco mil léguas por hora; Urano, oito     mil, oitocentas e cinqüenta e oito; Júpiter, onze mil seiscentas     e setenta e cinco; Marte, vinte e duas mil e onze; a Terra, vinte e sete mil     quinhentas; Vênus, trinta e duas mil cento e noventa; Mercú-      rio, cinqüenta e duas mil quinhentas e vinte; certos cometas, um milhão     e quatrocentas mil léguas! Quanto a nós, verdadeiros vagabundos,     pessoas pouco apressadas, a nossa velocidade não ultrapassará     as nove mil e novecentas léguas, e irá sempre decrescendo! Pergunto-lhes     se há razão para se extasiarem com isso, e se não é     evidente que essa velocidade será em breve ultrapassada por outras     ainda maiores, de que a luz e a eletricidade serão provavelmente os     agentes - mecânicos? Ninguém pareceu pôr em dúvida     esta afirmação de Michel Ardan.

- Meus caros ouvintes - continuou ele -, a crer em certos espíritos     limitados (é o qualificativo que lhes convém), a humanidade     será encerrada num círculo que não saberá transpor,     e condenada a vegetar neste Globo sem nunca poder lançar-se para os     espaços planetários. Não é nada disso! Nós     iremos à Lua, aos planetas, às estrelas, como hoje se vai de     Liverpool a Nova Iorque, facilmente, com rapidez e segurança, e em     breve o oceano atmosférico será atravessado, assim como os oceanos     da Lua. A dist ância é apenas uma palavra relativa e acabará     por ser reduzida a zero.

A multidão, apesar de predisposta a favor do herói francês,     ficou um pouco perplexa ao ouvir tão audaciosa teoria.

Michel Ardan pareceu compreender isso.

- Não parecem convencidos, meus estimados anfitriões - continuou     com um sorriso amável. - Pois bem. Raciocinemos um pouco. Sabem quanto     tempo seria necessário a um trem expresso para atingir a Lua? Trezentos     dias. Não mais. Um trajeto de oitenta e seis mil quatrocentas e dez     léguas, o que é isto? Nem sequer nove vezes a volta à     Terra; não existem marinheiros nem viajantes um pouco desembaraçados     que não tenham percorrido mais do que isso durante a sua existência?     Pensei que só levarei oitenta e sete horas no caminho! Julgam que a     Lua fica muito afastada da Terra e que é preciso pensar duas vezes     antes de tentar a aventura. Mas que diriam então se tratasse de ir     a Netuno, que gravita a mil cento e quarenta e sete milhões de léguas.     Eis uma viagem que poucas pessoas poderiam fazer, mesmo que custasse apenas     cinco soldos por quilômetro! 0 pró- prio Barão de Rothschild,     com os seus milhares de milhões, não teria com que pagar o seu     lugar, e por falta de quarenta e sete milhões ficaria pelo caminho!     Esta maneira de argumentar pareceu agradar muito à multid ão;     de resto, Michel Ardan, consciente do que fazia, lan- çava-se na sua     aventura com um impulso soberbo. Sabiase avidamente escutado e sentiu uma     admirável seguran- ça.

- Pois bem, meus amigos, essa distância de Netuno ao Sol não     é ainda nada se comparar à das estrelas; com efeito, para avaliar     o afastamento desses astros, é preciso entrar nessa numeração     deslumbrante em que o mais pequeno número é de nove algarismos,     e tomar por unidade os milhares de milhões. Peço-lhes perdão     por estar sendo tão prolixo sobre esta questão, mas ela é     de um interesse palpitante.

Ouçam e julguem! Alfa de Centauro está a oito mil milhares     de milhões de léguas, Vega a cinqüenta mil milhares de     milhões, Sírio a cinqüenta mil milhares de milhões,     Arturo a cinqüenta e dois mil milhares de milhões, a Estrela Polar     fica a cento e dezessete mil hares de milhões, Cabra a cento e setenta     mil milhares de milhões, as outras estrelas a milhares de milhões     e milhares de bilhões de léguas! E ainda há quem fale     da distância que medeia os planetas do Sol. E afirmariam que essa distância     existe! Erro Falsidade.

Aberração dos sentidos! Querem saber o que eu penso deste     mundo que começa no astro radioso e acaba em Netuno? Querem conhecer     a minha teoria? É muito sim ples! Para mim, o mundo solar é     um corpo sólido, homogêneo; os planetas que o compõem     comprimem-se, tocam-se, aderem e o espaço existente entre eles é     como o espaço que separa as moléculas do metal mais compacto:     prata, ferro, ouro ou platina. Tenho, portanto, o direito de afirmar e repito     com uma convicção que os convencerá a todos: a distância     é uma palavra vã, a distância nem sequer existe! Bem dito!     Bravo! Viva! - exclamou a multidão em uma só voz, eletrizada     pelos gestos, pela expressão do orador, pela ousadia das suas concepções.

- Não exclamou J. T. Maston, mais enérgico do que os outros      -, a distância não existe! E, levado pela violência dos     seus movimentos, pelo impulso do seu corpo, que teve dificuldade em dominar,     quase caiu do estrado abaixo, mas conseguiu recuperar o equilí- brio,     evitando uma queda que lhe teria provado brutalmente que a distância     não era uma palavra vã. Depois o discurso do empolgante orador     continuou: - Meus amigos, penso que esta questão se encontra agora     resolvida. Não os convenci a todos, pois fui tímido nas minhas     demonstrações, fraco nos meus argumentos, mas a culpa é     da insuficiência dos meus estudos teóricos. Seja como for, repito,     a distância da Terra ao seu satélite é realmente pouco     importante e indigna de preocupar um espírito sério. Creio que     não me estou antecipando muito dizendo que em breve serão estabelecidos     comboios de projéteis, nos quais se fará comodamente a viagem     da Terra à Lua.

Não haverá nem choques, nem sacudidelas, nem descarrilamentos     a recear, e o fim da viagem será atingido rapidamente, sem fadigas,     em linha reta, ?a vôo de abelha ?, para utilizar a linguagem dos seus     caçadores. Antes de vinte anos, metade dos habitantes da Terra terá     visitado a Lua! - Viva! Viva Michel Ardan! - gritaram os circunstantes, mesmo     os menos convencidos.

- Viva Barbicane! - respondeu modestamente o orador.

Este ato de reconhecimento para o promotor do empreendimento foi acolhido     por aplausos unânimes.

Agora, meus amigos - disse Michel, Ardan -, se tem algumas perguntas a fazer-me,     ireis embaraçar certamente um pobre homem como eu mas tentarei responder-lhes.

Até aquele momento o presidente do Clube do Canhão tinha razão     para estar satisfeito com a direção que tomava a discussão.     Versando sobre essas teorias especulativas, Michel Ardan, arrastado pela sua     viva imaginação, mostrava- se muito brilhante. Era preciso,     portanto, impedi-lo de se desviar para as questões práticas,     das quais se teria saído menos bem, sem dúvida nenhuma. Barbicane     apressou- se a tomar a palavra, e perguntou ao seu novo amigo se pensava que     a Lua ou os outros planetas fossem habitados.

- É um grande problema o que tu me pões, meu digno presidente      - respondeu o orador, sorrindo -; no entanto, se não me engano, homens     de grande inteligência como Plutarco, Swedenborg, Bemardin de Saint-Pierre     e muitos outros pronunciaram-se pela afirmativa. Situando-me do ponto de vista     da filosofia natural, serei levado a pensar como eles; direi que nada de inútil     existe neste mundo, e, respondendo à tua pergunta com outra pergunta,     amigo Barbicane, direi: são os mundos habitáveis? Se o são     é porque são habitados, porque o foram ou porque ainda o hão     de ser.

- Muito bem! - as primeiras filas dos espectadores, cuja opinião     tinha força de lei para as últimas.

- Não se pode responder com mais lógica e justeza - disse     o presidente do Clube do Canhão. - A questão é, portanto,     esta: os mundos são habitáveis? Creio nisto, pela minha parte.

- E eu . tenho a certeza - respondeu Michel Ardan.

- No entanto - replicou um dos assistentes -, há argumentos contra     a habitabilidade dos mundos. Seria preciso evi dentemente que os princípios     da vida fossem modificados.

Assim, para apenas falar de planetas, deve-se ficar queimado e gelado em     outros, conforme eles forem mais ou menos afastados do Sol.

- Lamento muito - respondeu Michel Ardan - não reconhecer pessoalmente     o meu honrado interlocutor, mas tentarei responder-lhe. A objeção     tem o seu valor, mas creio que podemos combatê-la com algum êxito,     assim como todas as que se referem à habitabilidade dos mundos. Se     fosse físico, diria que, se há menos calor em movimento nos     planetas vizinhos do Sol, e, pelo contrário, mais nos planetas afastados,     esse simples fenômeno basta para equilibrar o calor e tornar a temperatura     desses mundos suport ável para seres organizados como nós. Se     eu fosse naturalista, dir-lhe-ia, como - muitos sábios ilustres, que     a natureza nos fornece na Terra exemplos de animais que vivem em condições     bem diferentes de habitabilidade; que os peixes respiram num meio mortal para     os outros animais; que os anfíbios têm uma dupla existência,     bastante difícil de explicar; que certos habitantes dos mares se mant     êm nas camadas de uma grande profundidade, suportando aí, sem     serem esmagados, pressões de cinqüenta ou sessenta atmosferas;     que diversos insetos aquáticos, insens íveis à temperatura,     se encontram simultaneamente nas fontes, de água a ferver e nas planícies     geladas dos oceano polares; e, por fim, que precisamos de reconhecer na natureza     uma diversidade nos meios de ação muitas vezes incompreensível,     mas não menos real, e que vai até o Todo-Poderoso. Se fosse     químico dir-lhe-ia que os aerólitos, esses corpos evidentemente     formados fora do mundo terrestre, revelaram quando analisados traços     indiscut íveis de carbono; que essa substância apenas deve a     sua origem a seres organizados, e que, segundo as experi- ências de     Reichenbach, ela deve ter sido necessariamente ?animalizada?. Por fim, se     fosse teólogo, dir-lhe-ia que a Redenção divina parece,     segundo São Paulo, ter sido apli cada não apenas à Terra     mas a todos os mundos celestes.

Mas não sou teólogo, nem químico, nem naturalista,     nem físico. Assim, na minha perfeita ignorância das grandes leis     que regem o Universo, limito-me a responder: não sei se os mundos são     habitados, e porque não sei é que vou lá ver! Teria o     adversário das teorias de Michel Ardan argumentos para apresentar?     É impossível dizê-lo, pois os gritos da multidão     impediram qualquer voz de se fazer ouvir. Quando o silêncio se restabeleceu     nos grupos mais afastados, o orador, triunfante, contentou-se em acrescentar     as observa ções seguintes: - Pensei bem, meus estimáveis     ianques, que uma questão tão importante mal é aflorada     por mim; não venho aqui fazer curso algum nem defender tese sobre assunto     tão vasto. Existe toda uma série de argumentos a favor da habitabilidade     dos mundos. Deixo-os de lado. Permitamme apenas que insista num ponto; às     pessoas que garantem que os planetas não são habitados é     preciso responder: podem ter razão, se for demonstrado que a Terra     é o melhor dos mundos, mas isto não é verdade, apesar     do que possa ter dito Voltaire. Tem apenas um satélite, enquanto Júpiter,     Urano, Saturno e Netuno têm vários ao seu serviço, vantagem     que não é nada para desdenhar. Mas o que sobretudo torna o nosso     Globo pouco confortável é a inclinação do seu     eixo sobre a sua órbita. Daí a desigualdade dos dias e das noites;     daí a aborrecida diversidade das estações. No nosso infeliz     esferóide, faz ,sempre ou calor demais ou frio excessivo; gela-se no     inverno e arde-se no verão; é o planeta das constipações,     das corizas, dos fluxos do peito, ao passo que à superfície     de Júpiter, por exemplo, em que o eixo está muito pouco inclinado,     os habitantes poderiam gozar de temperaturas invariáveis; há     a zona das primaveras, a zona dos verões, a zona dos outonos e a zona     dos invernos perpétuos; cada habitante pode escolher o clima que mais     lhe agrade e ficar durante toda a vida ao abrigo das variações     da temperatura. Concordarão certamente que Júpiter é     superior ao nosso planeta pelo menos nisto, sem falar já das revoluções     anuais, que duram doze anos cada uma! Além disso, é evidente     que, sob esses auspícios e nessas maravilhosas condições     de existência, os habitantes desse mundo afortunado são seres     superiores, que os sábios são mais sábios, os artistas     mais artistas, os maus menos maus e os bons melhores. Que falta ao nosso esferóide     para atingir tamanha perfeição? Pouca coisa! Um eixo de rotação     menos inclinado sobre a sua órbita.

- Pois bem! - exclamou uma voz impetuosa unamos os nossos esforços,     inventemos máquinas e endireitemos o eixo da Terra! Uma tempestade     de aplausos saudou esta proposta, cujo autor era, como não podia deixar     de ser, J. T. Maston. Era provável que o fogoso secretário se     deixasse arrastar pelos seus instintos de engenheiro ao fazer aquela ousada     proposta. No entanto, é preciso dizê-lo - porque é a verdade     -: muitos o apoiaram com os seus gritos, e, sem dúvida, se tivessem     tido o ponto de, apoio reclamado por Arquimedes, os americanos teriam construído     uma alavanca capaz de erguer o mundo e endireitar o seu eixo. Mas o ponto     de apoio era o que faltava a esses temerários mecâ- nicos.

Entretanto, essa idéia, ?eminentemente prática?, conheceu     enorme êxito.

 

Capitulo 11   

Ataque e réplica

 

Esse incidente parecia pôr termo à discussão. Era a palavra     final e parecia não se poder encontrar melhor. No entanto, quando a     agitação se acalmou, ouviram-se estas palavras pronunciadas     com voz forte e severa: - Agora que o orador deu mais do que deveria dar à     sua fantasia, quererá voltar ao seu assunto, expondo menos teorias,     e discutir a parte prática da sua expedição? Todos os     olhares se dirigiram para a personagem que assim falava. Era um homem magro,     seco, de rosto enérgico e com uma barba cortada à americana,     que se adensava debaixo do queixo. No meio da agitação que de     vez em quando se produzia na multidão, ele tinha pouco a pouco conseguido     chegar à primeira fila dos espectadores. Ali, de braços cruzados,     de olhar brilhante e ousado, fixava imperturbavelmente o herói da assembléia.     Depois de ter formulado o seu pedido, calou-se e não pareceu ficar     nada perturbado pelos milhares de olhos fixos nele, nem pelo murmúrio     desaprovador provocado pelas suas palavras. A resposta fazia-se esperar e     ele voltou a fazer a pergunta, com o mesmo tom preciso, e depois acrescentou:      - Estamos aqui para nos ocuparmos da Lua e não da - Tem razão,     senhor - respondeu Michel Ardan -;a discuss ão afastou-se um tanto     do assunto principal. Voltemos à Lua.

- Senhor - replicou o desconhecido -, pretende que o nosso satélite     seja habitado. Pois bem. Se existem habitantes na Lua devem viver sem respirar,     pois (e previno-o no seu interesse) não há uma única     molécula de ar na superfície da Lua.

Ao ouvir esta afirmação, Ardan endireitou a sua juba fulva;     compreendeu que a luta ia travar-se com aquele homem no mais vivo da questão.     Olhou-o fixamente por sua vez e disse: Ali, sim? Não há ar na     Lua! E quem afirmou isto? - Os sábios.

- Senhor - respondeu Michel -, fora de brincadeira que tenho o maior respeito     pelos que sabem, mas um profundo desdém pelos que não sabem.

- Conhece alguns que pertençam a essa última categoria? -      Claro! Na França existem alguns que afirmam que matematicamente ? o     pássaro não pode voar, e outros cujas teorias demonstram que     o peixe não foi feito para viver na água.

- Não se trata desses, senhor, e eu poderia citar em apoio da minha     afirmação nomes que o senhor não recusaria.

- Nesse caso, senhor, iria embaraçar um pobre ignorante que, de resto,     não deseja mais do que instruir-se.

- Por que aborda então questões científicas se não     as estudou? - perguntou o desconhecido, com bastante rudeza.

- Por quê? - replicou Michel Ardan. - Pela mesma razão que     aquele que não desconfia do perigo é sempre arrojado! É     verdade que nada sei mas é precisamente a minha fraqueza que faz a     minha força.

- A sua fraqueza chega à loucura - respondeu o desconhecido com manifesto     mau humor.

- Tanto melhor - replicou o francês -, se a minha loucura me levar     à Lua! Barbicane e os seus colegas devoravam com o olhar aquele intruso     que tão ousadamente se opunha ao empreendimento.

Ninguém o conhecia, e o presidente, pouco tranqüilo pelas conseqüências     daquela discussão, olhava o seu novo amigo com certa apreensão.     A multidão estava atenta e seriamente inquieta, pois essa luta tinha     como resultado chamar a atenção sobre os perigos ou mesmo sobre     as verdadeiras impossibilidades da expedição.

- Senhor - continuou o adversário de Michel Ardan -, são numerosas     e indiscutíveis as razões que provam a ausência de qualquer     atmosfera na Lua. Direi mesmo, a priori, que se essa atmosfera jamais existiu     deve ter sido subtra- ída pela Terra. Mas prefiro opor-lhe fatos irrecusáveis.

- Oponha, senhor - respondeu Michel Ardan, com uma delicadeza perfeita.     - Oponha tudo quanto lhe agradar! - Sabe - disse o desconhecido - que, quando     os raios luminosos atravessam um meio como o ar são desviados da linha     reta, ou, em outros termos, sofrem uma refração.

Pois bem! Quando as estrelas são ocultas pela Lua, nunca os seus     raios, rasando as margens do disco lunar, sentiram o menor desvio ou deram     o mais ligeiro indício de refração.

Dai a conclusão evidente de que a Lua não é envolvida     numa atmosfera.

Todos olharam para o francês, pois, uma vez admitida a observação,     as conseqüências seriam perfeitamente rigorosas.

- Realmente - respondeu Michel Ardan -, eis o seu melhor argumento, para     não dizer o único, e um sábio sentir-se-ia talvez embaraçado     em lhe responder; eu dir-lhe-ei apenas que esse argumento não tem valor     absoluto, pois supõe o diâmetro angular da Lua perfeitamente     determinado, o que não é assim. Mas passemos à frente,     e diga-me, meu caro senhor, se admite a existência de vulcões     na superfície da Lua? - De vulcões extintos, sim; ativos, não,      - No entanto, deixe-me acreditar, sem os limites da lógica, que esses     vulcões estiveram em atividade durante um certo período! Isto     é certo; mas, como eles podiam fornecer por si pró- prios o     oxigênio necessário para a combustão, a sua erup- ção     não prova de modo nenhum a existência de uma atmosfera lunar.

- Adiante então - respondeu Michel Ardan -, e deixemos de lado esse     gênero de argumentos para passarmos às observa ções     diretas. Mas previno-o de que vou citar nomes para a frente.

- Cite.

- Bem. Em 1715, os astrônomos Louville e Halley, observando o eclipse     do dia 3 de maio, notaram certas cintilações de uma natureza     estranha. Esses jatos de luz, rápidos e freqüentes, foram atribuídos     por eles a tempestades que se desencadeavam na atmosfera da Lua.

- Em 1715 - replicou o desconhecido -, os astrônomos Louville e Halley     tomaram por fenômenos lunares fenômenos puramente terrestres,     tais como bólides ou outros, que se produziam na nossa atmosfera. Eis     o que responderam os sábios ao enunciado desses fatos, e eis o que     eu respondo com eles. ? - Adiante - respondeu Ardan, sem se mostrar perturbado     com a resposta. - Herschell, em 1787, não observou um grande número     de pontos luminosos na superfície da Lua? - Sem dúvida; mas     próprio Herschell não origem desses pontos luminosos - concluiu     daí que houvesse necessariamente uma atmosfera lunar - disse Michel     Ardan.

- Bem respondido que é muito forte o seu adversário -; vejo     em, selenografia. - muito forte, senhor, e acrescento hábeis observadores,     aqueles que mais arduamente estudaram o astro noturno, Os senhores Beer e     Moedler, estão de acordo comigo sobre a absoluta falta de ar na sua     superf ície.

Deu-se um movimento na assistência, que pareceu convencer- se com     os argumentos daquela singular personagem eu ainda Michel Ardan com a - Adiante      - responde um fato importância maior calma -, e cheguemos agora. Um     hábil astrônomo francês, o senhor Laussedat, observando     o eclipse de 18 de julho de 1860, verificou que as extremidades do crescente     solar estavam arredondadas e truncadas. Ora, esse fenômeno só     pode ter sido produzido por um desvio dos raios do Sol através da atmosfera     da Lua, e não existe outra explicação.

- Mas isso é verdade? - perguntou vivamente o desconhecido.

- Absolutamente verdade.

Um movimento inverso levou de novo a multidão para o seu herói     favorito, cujo adversário ficou silencioso. Ardan voltou a falar, e,     sem se envaidecer com a sua última van tagem, disse simplesmente: -      Meu caro senhor, que não nos podemos pronunciar de, um modo absoluto     contra a existência de atmosfera na superfície da Lua; essa atmosfera.     é provavelmente pouco densa, bastante sutil, mas atualmente a ciência     admite geralmente que ele existe.

- Não nas montanhas - replicou o desconhecido, que não queria     perder a partida.

- Não, mas no fundo dos vales, e não ultrapassando em altura     algumas centenas de pés.

- Em todo o caso, fará bem em tomar precauções, pois     esse ar será terrivelmente rarefeito.

- Meu caro senhor, haverá sempre ar suficiente para um homem só;     de resto, uma vez chegado lá em cima, tentarei economizá-lo     o mais possível e só respirarei nas grandes ocasiões!     Uma formidável gargalhada. chegou aos ouvidos do misterioso interlocutor,     que estendeu o olhar pela multidão, enfrentando- a com orgulho.

- Portanto - continuou Michel Ardan, com um ar descontraído -, já     que estamos de acordo sobre a probabilidade da exist ência de uma certa     atmosfera, vemo-nos forçados a admitir a presença de uma certa     quantidade de água. É uma conseqüência que muito     me alegra. De resto, meu amável contraditor, permita-me que lhe faça     ainda uma observa- ção. Nós só conhecemos um dos     lados da Lua, e se ela tem pouco ar no lado que nós vemos pode ser     que tenha muito do outro lado.

- E por que razão? - Porque a Lua, sob a ação da atração     terrestre, tomou a forma de um ovo, que nós vemos da extremidade mais     pequena. Daí essa conseqüência, devida aos cálculos     de Hansen, de que o seu centro de gravidade se encontra situado no outro hemisfério.     Daí a conclusão de que todas as massas de ar e de água     devem ter sido arrastadas para a outra face do nosso satélite nos primeiros     dias da sua criação.

- Pura fantasia! - exclamou o desconhecido.

Não ! Pura teoria, que se apoia nas leis da mecânica e que     me parece difícil refutar. Apelo, portanto, para esta assembl éia     e ponho a questão de saber se a vida, tal como existe na Terra, é     possível à superfície da Lua! Trezentos mil ouvintes     aplaudiram ao mesmo tempo a sua proposta. 0 adversário de Michel queria     continuar falando mas já não conseguia fazer-se ouvir. Os gritos     e as amea- ças caíam sobre ele como uma saraivada.

- Basta! Basta! - diziam uns.

- Expulsem este intruso! - repetiam outros.

- Fora! Fora! - exclamava a multidão, irritada. No entanto, ele,     firme, agarrado ao estrado, não se mexia e deixava passar a tempestade,     que teria tomado proporções formid áveis se Michel Ardan     não a tivesse apaziguado com um gesto. Era demasiadamente cavalheiro     para abandonar o seu adversário em tais extremos.

- Deseja acrescentar mais algumas palavras? - perguntoulhe, no tom mais     gracioso.

- Sim - respondeu o desconhecido, com irritação. - Oha, dizendo     melhor, não; uma só: para perseverar na empresa é preciso     que seja...

- Imprudente! Como pode tratar-me assim, a mim, que pedi ao meu amigo Barbicane,     para que o projétil fosse cilindro-cônico, a fim de não     andar às voltas na viagem, à maneira dos esquilos? - Mas infeliz-     a formidável repercussão do tiro vai fazê-lo em pedaços     logo à partida! - Meu caro contraditor: acaba de mencionar a verdadeira     e única dificuldade; no entanto, acredito demais no gênio industrial     dos americanos para pensar que eles não a possam resolver! - E o calor     desenvolvido pela velocidade do projétil ao atravessar as camadas da     atmosfera? - As paredes do projétil são espessas e eu atravessarei     rapidamente a atmosfera.

- Mas os víveres? E a água? min- Calculei que Poderia levar     víveres para um ano e a ha travessia durará apenas quatro-dias1     - E ar para respirar durante o caminho? - Fabricá-lo-ei por meio de     processos químicos.

- E a queda na Lua, se alguma vez lá chegar? - Será seis vezes     menos rápida do que uma queda na Terra, visto que a gravidade é     seis vezes menor na superfície da Lua.

- Mas mesmo assim será suficiente para o espatifar como se fosse     de vidro! - E quem me impedirá de retardar a minha queda por meio de     foguetes convenientemente dispostos e inflamados na ocasião oportuna?      - Mas, enfim, suponho que todas as dificuldades sejam resolvidas, todos os     obstáculos aplainados reunindo todas as probabilidades em seu favor,     admitindo que chegue à Lua são e salvo, corno volta? - Não     voltarei! Ao ouvir aquela resposta, que pela sua simplicidade, raiava o sublime,     a multidão ficou muda. Mas o seu silêncio foi mais eloqüente     do que teriam sido os seus gritos de entusiasmo.

0 desconhecido aproveitou para protestar uma última vez.

- Morrerá infalivelmente - exclamou -, e a sua morte, que terá     sido a morte de um insensato, nem sequer servirá de coisa alguma para     a ciência.

- Continue, meu generoso desconhecido: verdadeiramente os seus prognósticos     são , realmente, muito agradá- veis.

- Ah! Isto é demais! - exclamou o adversário de Michel Ardan      -, e não sei por que razão continuo uma rosto estava radiante.     Por vezes, o estrado parecia balançar como um navio sobre as ondas.     Mas os dois heróis da assembl éia tinham pés de marinheiro;     não vacilaram e o seu bar co chegou sem avarias ao porto de Tampa.     Michel Ardan conseguiu fugir aos últimos abraços dos seus vigorosos     admiradores; escapou-se para o Hotel Franklin. Entretanto uma cena curta tinha     lugar entre a personagem misteriosa e o presidente do Clube do Canhão.

- Venha - disse num tom seco.

0 seu antagonista seguiu-o até o cais, e em breve os dois se encontravam     sozinhos.

- Que m é o senhor? - perguntou Barbicane.

0 Capitão Nicoles.

- Já o suspeitava. Até agora, o acaso nunca o tinha posto     no meu caminho...

Vim propositadamente para isto! - Insultou-me! - Publicamente.

- E há de justificar esse insulto.

Agora mesmo.

- Não. Desejo que tudo se passe estritamente entre nós.

Existe um bosque situado a três milhas de Tampa: o bosque Skernaw.     Conhece-o? - Conheço.

- Agrada-lhe penetrar lá bem cedo, às cinco horas da manh     ã, por um dos lados? - Sim, se à mesma hora o senhor lá     penetrar pelo outro.

- E não esquecerá a sua espingarda? - perguntou Barbicane.

- Assim como o senhor não esquecerá a sua - respondeu Nicoles.

Depois destas palavras friamente pronunciadas, o Presidente do Clube do     Canhão e o capitão separaram-se.

 

Capítulo12    

Michel Ardan resolve pendência de honra

 

Enquanto as convenções desse duelo eram discutidas en tre o     . presidente e o capitão, que se adivinhava terrível e selvagem,     no qual cada um dos adversários se entregaria a uma verdadeira caça     ao homem, Michel Ardan descansava das fadigas do triunfo. Descansar não     era a expressão justa, pois as camas americanas podem rivalizar em     dureza com as mesas de mármore ou de granito.

Ardan dormia portanto bastante mal, voltando-se e tornando a voltar-se entre     as toalhas que lhe serviam de len- çóis, e pensava em instalar     uma cama mais confortável que aquela no seu projétil, quando     um ruído violento o arrancou aos seus sonhos. Pancadas desordenadas     abalavam a porta. Pareciam ser desferidas por um instrumento de ferro. Gritos     formidáveis misturavam-se com aquelas pancadas na porta, demasiadamente     matinais.

- Abre! - gritavam? - Pelo amor de Deus, abre depressa! Ardan não     tinha qualquer razão para aquiescer a um pedido feito de maneira tão     ruidosa. No entanto, levantou-se e abriu a porta no momento em que esta ia     ceder aos esfor- ços do obstinado visitante. 0 secretário do     Clube do Canh ão entrou de repente no quarto. Uma bomba não     teria entrado com menos cerimônia.

- Ontem à noite - exclamou abruptamente -, o nosso presidente foi     publicamente insultado durante a assembléia.

Provocou o seu adversário, que é, nem mais, nem menos, o Capitão     Nicoles. Batem-se esta manhã no bosque de Skersnaw! Soube tudo pela     boca do próprio Barbicane! Se ele for morto, os nossos projetos ficam     aniquilados! É preciso impedir tal duelo. Ora, um único homem     no mundo pode ter suficiente domínio sobre Barbicane para o deter,     e esse homem é Michel Ardan.

Enquanto J. T. Maston assim falava, Michel Ardan, renunciando a interrompê-lo,     tinha vestido as suas largas calças, e menos de dois minutos depois,     os dois amigos corriam pelas ruas de Tampa.

Foi durante essa rápida correria que Maston pôs Ardan ao corrente     da situação. ?Disse-lhe quais eram as verdadeiras causas da     inimizade de Barbicane e de Nicoles - porque essa inimizade era de velha data      -, quais os motivos que até então, graças a amigos comuns,     tinham impedido o presidente e o capitão de se encontrarem frente a     frente; acrescentou que se tratava unicamente de uma rivalidade entre couraças     e projétis e que finalmente a cena da assembl éia fora apenas     uma ocasião durante muito tempo procurada por Nicoles para satisfazer     antigos rancores.

Nada mais terrível do que esses duelos particulares à americana,     durante os quais os dois adversários se procuram através das     matas, se espreitam no canto dos bosques como animais selvagens. Em momentos     assim é que os adversários devem 1 invejar as qualidades maravilhosas     tão naturais nos índios das planícies, a sua rápida     inteligência e engenhosa astúcia, o seu instinto para encontrar     rastos e sinais do inimigo. Um erro, uma hesitação, um passo     em falso podem conduzir à morte. Nesses encontros, os ianques fazem-se     muitas vezes acompanhar pelos seus cães, e, simultaneamente nos papéis     de caçadores e caça, perseguem-se durante horas.

- Que diabo de pessoas são vocês? - exclamou Michel Ardan,     quando o seu companheiro lhe descreveu com muita energia toda essa encenação.

- Nós somos assim - respondeu modestamente J. T.

Maston. - Mas apressemo-nos.

Michel Ardan e Maston correram através da planície, ainda     úmida do orvalho, atravessaram plantações de arroz e     pequenos rios, meteram por atalhos, mas mesmo assim não conseguiram     atingir antes das cinco horas e meia o bosque de Skersnaw. Barbicane devia     ter transposto a sua orla há cerca de meia hora.

Viram um velho lenhador ocupado em fazer feixes com ramos de árvores     abatidos pelo seu machado.

- Viu entrar no bosque um homem armado com uma .espingarda, Barbicane...     o meu melhor amigo? 0 digno secretário do Clube do Canhão pensava,     ingenua mente, que o seu presidente devia ser conhecido por todos.

- Mas o lenhador não parecia compreendê-lo.

- Um caçador - disse então Michel Ardan.

- Um caçador? Sim - respondeu o lenhador.

- Há muito tempo? - Há pouco mais ou menos uma hora.

- Tarde, demais! - exclamou Maston.

- E ouviu tiros de espingarda? - perguntou Michel Ardan.

- Não.

- Nem um só? . Nem um. Esse caçador parece não estar     fazendo boa caçada.

- Que fazer? - disse Maston.

- Podemos entrar no bosque e correremos o risco de apanhar uma bala que     não nos é destinada.

- Ali! ?- exclamou Maston com uma expressão que não enganava      -, prefiro dez balas na minha cabeça do que uma só na cabeça     de Barbicane.

- Então para a frente - disse Ardan, apertando a mão do seu     companheiro.

Alguns segundos mais tarde, os dois amigos desapareciam no mato. Era um     emaranhado de árvores muito espessas, feito de ciprestes gigantes,     sicômoros, oliveiras, tamarindos, tulipeiros, carvalhos e de magnólias.     Essas diversas árvores emaranhavam os seus ramos numa mistura inextricável,     sem permitir que a vista se estendesse ao longe. Michel Ardan e Maston caminhavam     um perto do outro, passando silenciosamente através das ervas altas,     abrindo caminho através das trepadeiras vigorosas, interrogando com     o olhar os arbustos ou os ramos perdidos na sombria espessura da folhagem     e esperando a cada passo a temível detona- ção das espingardas.     Quanto aos rastos que Barbicane devia ter deixado da sua passagem através     do bosque, eralhes impossível reconhece-los, e eles caminhavam como     cegos pelos caminhos mal desbravados, nos quais um ín dio teria detectado     sem hesitação a pista do seu adversá- rio.

Após uma hora de vãs pesquisas, os dois companheiros detiveram-se.     A sua inquietação redobrava a cada segundo.

- Tudo já deve ter acabado - disse Maston, desencorajado..

- Um homem como Barbicane não podia ter usado astúcia contra     o seu inimigo, nem preparado qualquer armadilha, nem feito qualquer manobra.     É demasiado franco. Demasiado corajoso. Foi para a frente, direto ao     perigo, e chegou sem dúvida bastante distante do lenhador para que     o vento tenha levado até ele a detonação de uma arma.

- Mas nós. Nós. - disse Michel Ardan. - Desde a nossa entrada     no bosque, teríamos ouvido...

- E se chegamos tarde demais! - exclamou J. T. Maston, com uma expressão     de desespero.

Michel Ardan não achou nada para responder; Maston e ele continuaram     o caminho interrompido. De tempos a tempos, soltavam grandes gritos; chamavam     quer Barbicane quer Nicoles; mas nem um nem outro dos dois adversários     respondeu à sua chamada. Alegres bandos de pardais, despertos pelo     ruído, desapareciam por entre as ramadas, e alguns gamos assustados     fugiam precipitadamente pelo meio do mato.

A procura prolongou-se ainda durante uma hora mais. A maior parte do bosque     já tinha, sido explorada. Nada denunciava a presença dos contendores.     Era de porem dúvida a afirmação do lenhador, e Ardan     ia renunciar a prosseguir durante mais tempo um reconhecimento inútil     quando, de repente, Maston o deteve.

- Silêncio! - disse ele.. - Alguém está ali.

- Alguém? - inquiriu Michel Ardan.

Sim, um homem! Parece imóvel. Mas não tem a espingarda nas     mãos. Que faz ele? - Mas você o reconhece? - perguntou Michel     Ardan, cuja vista não o ajudava nessas ocasiões.

- Sim, sim - respondeu Maston. - Está voltando.

- E é?...

- 0 Capitão Nicoles! Nicoles! - exclamou Michel Ardan, que sentiu     um violento aperto no coração.

- Nicoles desarmado! Não tem então nada a recear do seu adversário?      - Vamos ter com ele - disse Michel Ardan -: assim, saberemos o que aconteceu.

Ele e o seu companheiro ainda não tinham dado cinqüenta passos     quando pararam para examinar mais detidamente o capitão. Imaginavam     ir encontrar um homem sedento de sangue e todo entregue aos seus pensamentos     de vingan- ça! Ao vê-lo, ficaram totalmente, espantados.

Uma faixa de malha apertada estendia-se entre dois tulipeiros, e, no meio     dessa rede, um passarinho, com as asas apanhadas nas malhas, debatia-se soltando     pios lastimosos.

0 caçador de pássaros que ali colocara aquela rede inextricável     não era um ser humano, mas, sim, uma aranha venenosa comum na região,     do tamanho de um ovo de pomba e munida de patas enormes. 0 horroroso animal,     no movimento de se precipitar sobre a sua vítima, tivera de retroceder     e procurar asilo nos ramos altos? dos tulipeiros, pois um inimigo temível     viera ameaçá-lo por sua vez.

Realmente, o Capitão Nicoles, com a espingarda por terra, esquecendo     os perigos da sua situação, ocupava-se em libertar o mais delicadamente     possível a vítima apanhada entre as malhas da teia da monstruosa     aranha. Quando terminou, deu a liberdade ao passarinho, que bateu alegremente     as asas e desapareceu, Nicoles, enternecido, viu-o fugir através dos     ramos, e de súbito ouviu estas palavras pronunciadas com voz comovida:      - 0 senhor é um homem corajoso.

Voltou-se. Michel Ardan encontrava-se em frente dele, re petindo em todos     os tons: E um homem gentil.

- Michel Ardan! - exclamou o capitão. - Que vem - fazer aqui, senhor?      - Apertar-lhe a mão, Nicoles, e impedi-lo de matar Barbicane ou de     ser morto por ele.

- Barbicane - exclamou o capitão -, que eu procuro há duas     horas sem o encontrar - Onde se esconde ele?...

- Nicoles! - ? disse Michel Ardan. - Isto não é delicado.     É preciso respeitar sempre o adversário; esteja tranqüilo:     se Barbicane estiver vivo, nós o encontraremos. Por outro lado, e é     Michel Ardan quem lho diz, já não haverá qualquer duelo     entre-os dois.

- Entre o Presidente Barbicane e eu - respondeu gravemente Nicoles - existe     uma tal rivalidade que só a morte de um de nós...

- Vamos! Vamos! - replicou Michel Ardan homens como vocês dois podem     ter-se detestado, mas têm de passar a estimar-se. Não se baterão.

- Bater-me-ei, senhor.

- Não.

- Capitão - disse então J. T. Maston, muito comovido. - Eu,     sou amigo do presidente, sou como se fosse ele próprio; se quer absolutamente     matar alguém, dispare sobre mim, que será exatamente o mesmo.

- Senhor - disse Nicoles apertando convulsivamente a coronha da espingarda     -, essas brincadeiras...

- 0 amigo Maston não graceja e eu compreendo a sua idéia de     se deixar matar em vez do homem de que é amigo! Mas nem ele nem Barbicane     cairão sob as balas do Capitão Nicoles, pois tenho uma proposta     a fazer aos dois rivais, uma proposta tão sedutora que eles se apressarão     a aceitar.

- E qual é? - perguntou Nicoles? com visível incredulidade.

- Um pouco de paciência - replicou Ardan -: só posso comunicá-lo     na presença de Barbicane.

- Vamos então procurá-lo - exclamou o capitão.

Imediatamente, os três homens se puseram a caminho; o capitão,     depois de ter descarregado a sua espingarda, pô- la ao ombro e avançou     com passos irregulares, sem nada dizer.

Durante ainda mais meia hora as pesquisas foram inúteis.

Maston tinha tristes pressentimentos. Observava severamente Nicoles, pensando     se o capitão não teria satisfeito os seus desejos de vingança     e se o pobre Barbicane não se encontraria, ensangüentado, já     sem vida, no fundo de algum talude. Michel Ardan parecia ter os mesmos pensamentos,     e ambos interrogavam já com o olhar o Capitão Nicoles quando,     de súbito, Maston se deteve.

0 busto imóvel de um homem deitado debaixo de uma gigantesca árvore     surgia a vinte passos, semi-escondido pelas folhagens.

- É ele! - disse Maston.

Barbicane não se mexia. Ardan mergulhou o seu olhar no do capitão,     mas este não se mexeu. Ardan deu então alguns passos, gritando:      - Barbicane! Barbicane! Não obteve resposta. Ardan precipitou-se para     o amigo; mas, no momento em que ia agarrar-lhe o braço, detevese, soltando     um grito de surpresa.

Barbicane, de lápis na mão, traçava fórmulas     e figuras geom étricas num papel, enquanto a sua espingarda, descarregada,     jazia por terra.

Absorvido no seu trabalho, o sábio, esquecendo por sua vez o duelo     e a vingança, nada ouvira nem ouvia.

Mas, quando Michel Ardan pousou a mão sobre a dele, levantou- se     e olhou-o com ar espantado.

- Ali! - exclamou finalmente. - Descobri, meu amigo, descobri! - Os meios!     - Masque meios? - Meios de anular o efeito da repercussão na partida     do projétil! - Realmente? - perguntou Michel Ardan, olhando o capitão     pelo canto do olho.

- Sim! Água pura que servirá de mola... Ah, Maston - exclamou     Barbicane -, também aqui.

- Ele mesmo - respondeu Michel Ardan -, e permita-me que te apresente ao     mesmo tempo o digno Capitão Nicoles! - Nicoles! - exclamou Barbicane,     manifestando sua surpresa.

- Perdão, capitão - disse - tinha esquecido... estou pronto...

Michel Ardan interveio sem deixar aos dois inimigos tempo de se interpelarem.

- Por Deus! - disse -, ainda bem que dois valentes homens como os senhores     não se encontraram mais cedo. Teríamos agora a chorar um ou     outro. Mas graças a Deus, que se meteu no caso, já não     temos nada a recear. Quando se esquece o ódio para se mergulhar nos     problemas de mec ânica ou para pregar partidas às aranhas, é     porque esse ódio não é perigoso para ninguém.

E Michel Ardan contou ao presidente a história do capitão.

- Pergunto agora - disse, concluindo - se dois seres bons como os senhores     foram feitos para dilacerarem mutuamente a cabeça a tiros de espingarda?     Havia nessa situação, um pouco ridícula, alguma coisa     de tão inesperado que Barbicane e Nicoles não sabiam bem que     atitude manter em relação um ao outro. Michel Ardan sentiu -      o bem e decidiu apressar a reconciliação.

- Meus bravos amigos - disse, deixando aparecer nos lábios o seu     melhor sorriso -, entre os dois nunca houve sen ão um mal-entendido.     Nada mais. Pois bem! Para provar que está tudo acabado entre vocês,     e visto que são pessoas prontas e arriscar a pele, aceitem francamente     a proposta que lhes vou fazer.

- Fale - disse Nicoles.

- 0 amigo Barbicane julga que o seu projétil irá direitinho     à Lua.

- Sim, certamente - replicou o presidente.

- E o amigo Nicoles tem a certeza de que ele voltará a cair na Terra.

- Estou certo disto - exclamou o capitão.

- Bom! replicou Michel Ardan. - Não tenho a pretensão de os     pôr de acordo; mas digo-lhes muito francamente: venham comigo, e ficarão     sabendo se ficamos pelo caminho.

- Hem? - exclamou J. T. Maston, estupefato.

Ao ouvirem aquela inesperada proposta, os dois rivais tinham olhado um para     o outro. Observavam-se com aten- ção. Barbicane esperava a resposta     do capitão. Nicoles as palavras do presidente.

- Então? - disse Michel Ardan no seu tom mais conciliador.

Visto que não há repercussão a temer...

- Aceito! - exclamou Barbicane.

- Viva! Bravo! Hip! Hip! Hip! Hurra! - exclamou Michel Ardan, estendendo     a mão aos dois adversários. - E agora, que o assunto está     solucionado, meus amigos, permitam-me que os trate à francesa. Vamos     almoçar.

Nesse mesmo dia, toda a América soube o que havia passado entre o     Capitão Nicoles e o Presidente Barbicane, assim como o seu singular     desenlace. 0 papel desempenhado nesse encontro pelo cavalheiresco europeu,     a sua inesperada proposta, que fazia desaparecer as dificuldades, a aceita     ção simultânea dos dois rivais, essa conquista do continente     lunar para a qual a França e os Estados Unidos iam marchar de comum     acordo, tudo se reunia para aumentar mais ainda a popularidade de Michel.

 

Capítulo 13

O vagão-projétil

 

Depois de terminado o célebre columbiad, o interesse do público     incidiu imediatamente sobre o projétil, esse novo veículo destinado     a transportar através do espaço os três ousados aventureiros.     Ninguém se tinha esquecido de que, no seu telegrama de 30 de setembro,     Michel Ardan pedia uma modificação nos planos feitos pelos membros     da Comiss ão.

0 Presidente Barbicane pensava então com razão que a forma     do projétil importava pouco, pois, após ter atravessado a atmosfera     em poucos segundos, o seu percurso devia efetuar-se no vácuo total.     A Comissão adotara, portanto, a forma redonda, a fim de que o projétil     pudesse girar sobre si mesmo e comportar-se segundo a sua fantasia.

Mas, desde o momento em que era transformado em veículo, o caso era     diferente. Michel Ardan não queria viajar à maneira dos esquilos;     queria subir de cabeça para cima e pés para baixo, com tanta     dignidade como na barquinha de uni balão, mais depressa sem dúvida,     mas sem se entregar a uma série de cambalhotas pouco convenientes.

Novos planos foram, portanto, enviados à casa Breadwill & C?,     de Albany, com a recomendação de serem executados sem demora.     0 projétil, assim modificado, foi fundido a 2 de novembro e enviado     imediatamente à Colina das Pedras pela estrada de ferro do leste. A     chegou sem acidentes ao seu local de destino. Michel Ardan, Barbicane e Nicoles     esperavam com a mais viva impaciência aquele ?vagãoproj étil?     no qual deviam tomar lugar para voarem à descoberta de uni novo mundo.

É preciso concordar que se tratava de unia magnífica peça     de metal, de um produto metalúrgico que fazia a honra ao gênio     industrial dos americanos. Acabava-se de obter pela primeira vez o alumínio     numa quantidade tão considerável, o que podia ser justamente     considerado como uni resultado prodigioso. Esse precioso projétil cintilava     sob os raios do Sol. Ao vê-lo com as suas formas imponentes e encimado     pelo seu chapéu cônico, tomar-se-ia de boa vontade por unia dessas     torres em forma de pimenteiros, que os arquitetos da Idade Média suspendiam     nos cantos dos cas telos fortificados.

- Fico à espera -. dizia Michel Ardan -.de ver de lá sair     um homem de armas, usando um arcabuz e armadura de aço.

Estaremos lá dentro como feudais, e com um pouco de artilharia faríamos     frente a todos os exércitos selenitas, se é que os há     na Lua! - Então, o veículo agrada-te? - perguntou Barbicane     ao seu amigo.

- Sim, Sim!, sem dúvida - respondeu Michel Ardan, que o observava     como artista. - Lamento apenas que as suas formas não sejam mais esguias,     o seu cone mais gracioso; devia ser terminado com uni tufo de enfeites em     metal lavrado, com unia quimera, por exemplo, uma carranca ou uma salamandra     saindo do fogo com as fauces escancaradas...

- Para quê? - disse Barbicane, cujo espírito, positivo, era     pouco sensível às belezas da arte.

- Para quê, amigo Barbicane! Visto que me perguntas, creio que nunca     o compreenderás.

- Mas diz, meu caro companheiro.

- Pois bem; conforme a minha opinião, é preciso por sempre     uni pouco de arte naquilo que se faz. É melhor. Conheces unia peça     indiana que se chama 0 Carro da Criança? - Nem sequer de nome - respondeu     Barbicane.

- Isto não me espanta - replicou Michel Ardan. - Fica sabendo que,     nessa peça, há um ladrão que, no momento de furar a parede     de unia casa, pergunta a si mesmo se fará ao seu buraco a forma de     unia lira, de uma flor, de um pássaro ou de uma ânfora. Dize-me,     então, amigo Barbicane, se tu fosses membro do júri condenarias     esse ladrão? - Sem hesitar - respondeu o presidente do Clube do Canh    ão -, e com a agravante do arrombamento.

- E eu absolvê-lo-ia, amigo Barbicane! Por isto, nunca poder ás     compreender-me! - Nem sequer tentarei, meu valente artista.

- Mas pelo menos - replicou Michel Ardan -, visto que o exterior do nosso     projétil deixa muito a desejar, permitamme que o decore à minha     vontade, e com todo o luxo conveniente aos embaixadores da Terra! - A esse     respeito, meu bom Michel - respondeu Barbicane - , podes agir segundo a tua     fantasia, pois te deixaremos proceder à vontade.

Porém, antes do agradável, o presidente do Clube do Canh ão     tinha pensado no útil, e os meios inventados por ele para diminuir     os efeitos de repercussão foram aplicados com perfeita inteligência.

Barbicane havia pensado, não sem razão, que nenhuma mola seria     suficientemente poderosa para amortecer o choque, e, durante o seu famoso     passeio no bosque de Skersnaw, acabara por resolver essa grande dificuldade     de unia forma engenhosa. Era à água que ele ia pedir que lhe     prestasse esse notável serviço. Vamos ver como.

0 projétil devia ser cheio até a altura de três pés     com unia camada de água destinada a suportar uni disco de madeira perfeitamente     estanque, que ficaria encostado às paredes internas do projétil.     Era sobre essa verdadeira jangada que os viajantes tomariam lugar. Quanto     à massa líquida, era dividida por compartimentos horizontais,     que o choque da partida devia quebrar sucessivamente. Então, cada lençol     de água, do mais baixo ao mais alto, saindo por tubos que iam ter à     parte superior do projétil, serviria assim de mola, e o disco, munido     de tampões extremamente poderosos, apenas podia bater na parte inferior     depois do sucessivo esmagamento dos diversos tabiques. Sem dúvida,     os viajantes sentiriam ainda unia violenta sacudidela após a massa     líquida ter saído completamente, mas o primeiro choque devia     ser quase inteiramente anulado por aquele amortecedor de grande potência.

É verdade que três pés de água numa superfície     de cinqüenta e quatro pés quadrados deviam pesar perto de onze     mil e quinhentas libras; mas a expansão dos gases acumulados no columbiad     bastaria, segundo a opinião de Barbicane, para vencer esse acréscimo     de peso; de resto, o choque devia expulsar toda a água em menos de     uni segundo, e o projétil voltaria a ter rapidamente o seu peso normal.

Eis o que tinha imaginado o presidente do Clube do Canh ão, e de     que modo ele pensava ter resolvido a grave questão da repercussão.     Esse trabalho, inteligentemente compreendido pelos engenheiros da Casa Breadwill,     foi maravilhosamente executado; unia vez produzido o efeito e a água     expelida para fora, os viajantes poderiam desembara çar-se facilmente     dos tabiques quebrados e desmontar o disco móvel onde se apoiariam     no momento da partida.

Quanto às paredes superiores do projétil, eram revestidas     de uni espesso acolchoado de couro, aplicado sobre espirais do melhor aço,     que tinham a leveza das molas de reló- gio. Os tubos de escape, dissimulados     sob esse acolchoado, não deixavam sequer desconfiar da sua existência.

Assim, tinham sido tomadas todas as precauções possí-      veis e imaginárias para amortecer o primeiro choque, e para se deixarem     esmagar, como dizia Michel Ardan, era preciso que fossem de muito má     raça?.

0 projétil media exteriormente nove pés de largura por doze     de altura. Para não ultrapassar o peso previsto, tinham diminu ído     ligeiramente a espessura das suas paredes externas e reforçado a parte     inferior, que devia suportar toda a violência dos gases desenvolvidos     pela deflagração do piróxilo. Sucede assim nas bombas     e obuses cilindro-cônicos, cujo fundo é sempre mais espesso.

Penetrava-se nessa torre de metal por unia estreita abertura feita nas paredes     do cone. Fechava hermeticamente por meio de unia chapa de alumínio,     preso no interior por meio de fortes parafusos de pressão. Os viajantes     poderiam sair à vontade da sua prisão móvel, logo que     atingissem o astro da noite.

Contudo, não era preciso apenas ir: forçoso era também     ver. Nada mais fácil. Realmente, sob o acolchoado encontravam- se quatro     vigias de vidro de lente, de grande espessura, duas abertas na parede circular     do projétil, unia terceira na parte inferior e a última no seu     chapéu cônico.

Os viajantes teriam, portanto, oportunidade de observar, durante o seu percurso,     a Terra que acabavam de abandonar, a Lua de onde se aproximavam e os espaços     constelados do céu. No entanto, essas vigias estavam protegidas contra     os choques da partida por placas solidamente presas, fáceis de ser     retiradas desatarraxando os parafusos interiores. Desse modo, o ar contido     no projétil não podia escapar, e as observações     tornavam-se possíveis.

Todos esses mecanismos, admiravelmente estabelecidos, funcionavam com a     maior facilidade, e os engenheiros não se tinham mostrado menos inteligentes     no arranjo do vag ão-projétil.

Recipientes solidamente presos eram destinados a conter a água e     os víveres necessários aos três viajantes; estes podiam     até ter fogo e luz com o gás armazenado num recipiente especial,     sob unia pressão de várias atmosferas.

Bastava virar unia chave e durante seis dias esse gás devia iluminar     e aquecer esse confortável veículo. Como se vê, nada daquilo     que era essencial à vida e mesmo ao bemestar faltava. Além disso,     graças aos instintos de Michel Ardan, o agradável viera juntar-se     ao útil sob a forma de objetos de arte; teria feito do projétil     unia verdadeira galeria de arte se o espaço não lhe faltasse.     De resto, enganarse- iam se julgassem que três pessoas ficassem apertadas     nessa torre de metal. Tinha unia superfície de cinqüenta e quatro     pés quadrados, mais ou menos, por dez pés de altura, o que permitia     unia certa liberdade de movimentos.

Não estariam mais à vontade no mais confortável dos     vag ões de estrada de ferro dos Estados Unidos.

Estamos resolvida a questão dos víveres e da iluminação,     restava a do ar. Era evidente que o ar encerrado dentro do projétil     não seria suficiente para a respiração dos viajantes     durante quatro dias; cada homem consome, em cerca de uma hora, todo o oxigênio     contido em cem litros de ar.

Barbicane, os seus companheiros e os dois cães que tencionavam levar     deviam consumir, em vinte e quatro horas, dois mil e quatrocentos litros de     oxigênio, ou, em peso, aproximadamente sete libras. Era, portanto, necessário     renovar o ar do projétil. Como? Por um processo muito simples, o dos     senhores Reiset e Regnault, indicado por Michel Ardan durante a discussão     da assembléia.

Sabe-se que o ar se compõe principalmente de vinte e unia partes     de oxigênio e de setenta e nove partes de azoto.

Ora, que se passa ao ato da respiração? Um fenômeno     muito simples. 0 homem absorve o oxigênio do ar, eminentemente apropriado     para manter a vida, e repele o azoto intato. 0 ar expirado perdeu perto de     cinco por cento do seu oxigênio e contém um volume aproximadamente     igual de ácido carbônico, produto definitivo da combustão     dos elementos do sangue pelo oxigênio inspirado. Sucede ent ão     que num meio fechado, e após um certo tempo, o ar é substituído     pelo ácido, gás essencialmente venenoso.

A questão reduz-se então ao seguinte: ficando o azoto intato,     *era preciso refazer primeiro o oxigênio absorvido, e depois destruir     o ácido carbônico expirado. Nada mais fácil por meio de     clorato de potássio e de potassa cáustica.

0 clorato de potássio é uni sal que se apresenta sob a forma     de palhetas brancas; quando é levado a uma temperatura superior a quatrocentos     graus, transforma-se em cloreto dê potássio, e o oxigênio     que contém liberta-se inteiramente. Ora, dezoito libras de clorato     de potássio dão sete libras de oxigênio, isto é,     a quantidade necessária aos viajantes durante vinte e quatro horas.     Eis como eles iam rarefazer o oxigênio.

Quanto à potassa cáustica, é uma matéria muito     ávida de ácido carbônico, misturado com o ar, e basta     agitá-lo para que se apodere dele e forme bicarbonato de potássio.     Eis o que eles teriam de fazer para absorver o ácido carbônico.

Combinando esses dois meios, tinham a certeza de dar ao ar viciado todas     as suas propriedades vivificantes. Era o que dois químicos, os senhores     Reiset e Regnault, tinham experimentado com êxito. Mas, é preciso     dizê-lo, a experi- ência tinha-se realizado até então     em animais. Qualquer que fosse a sua precisão científica, ignorava-se     totalmente como os homens a suportariam.

Foi essa a observação feita na sessão onde se tratou     dessa grave questão. Michel Ardan não queria pôr em dúvida     a possibilidade de viver no meio desse ar fictício, e ofereceuse para     experimentar antes da partida. Mas a honra de tentar essa prova foi energicamente     reclamada por J. T.

Maston.

- Visto que não parto - disse o bravo artilheiro posso pelo menos     morar no projétil durante oito dias.

Não teria sido amável recusar-lhe esse pedido. Quantidades     suficientes de clorato de potássio e de potassa cáustica foram     postas à sua disposição, bem como víveres para     oito dias; depois, tendo apertado as mãos dos seus amigos, no dia 12     de novembro, às seis horas da tarde, Maston deslizou para o projétil,     tendo expressamente recomendado que não lhe abrissem a prisão     antes do dia 20. A tampa foi então fechada.

No dia 20 de novembro, às seis horas em ponto, a tampa foi aberta.     Os amigos de J. T. Maston não deixavam de estar uni pouco inquietos.     Mas logo se tranqüilizaram ao ouvirem unia voz alegre que soltava uni     formidável hurra.

Em breve, o secretário do Clube do Canhão aparecia no alto     do cone numa atitude triunfante. Tinha engordado!

 

Capítulo 14

0 telescópio e os últimos preparativos

 

A 20 de outubro do ano precedente, depois de fechada a subscrição,     o presidente do Clube do  Canhão tinha creditado ao Observatório     de Cambridge as quantias necessárias para a construção     de um instrumento de ótica.

Antes do mais, foi preciso optar entre os telescópios e as lunetas.     As lunetas apresentam vantagens sobre os telesc ópios. Com igualdade     de objetivas, permitem obter aumentos mais consideráveis, porque os     raios luminosos que atravessam as lentes perdem menos pela absorção     de que pela reflexão sobre o espelho metálico dos telescópios.     Mas a espessura que se pode dar a uma lente é limitada, pois, sendo     demasiado espessa, não deixa passar os raios luminosos.

Além disso, a construção dessas grandes lentes é     excessivamente difícil e precisa de um tempo considerável, que     se mede em anos.

Portanto, se bem que as imagens fossem mais bem iluminadas nas lunetas,     vantagem inapreciável quando se trata de observar a Lua, cuja luz é     simplesmente refletida, decidiram- se pela utilização de uni     telescópio, que é de execu- ção mais rápida     e permite obter unia ampliação maior. No entanto, como os raios     luminosos perdem unia grande parte da sua intensidade ao atravessar a atmosfera,     o Clube do Canhão resolveu instalar o instrumento numa das mais altas     montanhas dos Estados Unidos, o que diminuiria a espessura das camadas aéreas.

Quanto à questão do local, foi prontamente resolvida. Tratava-      se de escolher unia montanha alta, e as montanhas altas não são     numerosas nos Estados Unidos.

Contudo, visto que o Clube do Canhão queria que o telesc ópio,     assim como o columbiad, ficassem instalados nos Estados Unidos, contentavam-se     com as Montanhas Rochosas, e todo o material necessário foi dirigido     para o cimo de Long?s Peak, no território do Missuri.

Todavia, o telescópio das Montanhas Rochosas, antes de servir ao     Clube do Canhão, prestou imensos serviços à astronomia.     Graças ao seu poder de penetração, as pro fundidades     do céu foram sondadas até os últimos limites, o diâmetro     aparente das estrelas pôde ser rigorosamente medido, e o senhor Clarke,     do Observatório de Cambridge, decompôs a nebulosa com forma de     caranguejo de Taurus, que o refletor de Lorde Rosse nunca pudera decompor.

Estava-se a 22 de novembro. A partida suprema devia ter lugar dez dias mais     tarde. Restava apenas levar a bom termo unia única operação.     Operação delicada, perigosa, exigindo precauções     infinitas e contra o bom sucesso da qual o Capitão Nicoles fizera a     sua terceira aposta. Tratava- se de carregar o columbiad e introduzir-lhe     as quatrocentas mil libras de algodão-pólvora. Nicoles pensara,     e talvez com certa razão, que a manipulação de tal quantidade     de piróxilo poderia provocar graves catástrofes, e que essa     massa eminentemente explosiva se inflamaria por si mesma sob a pressão     do projétil.

Havia, realmente, graves perigos, ainda acrescidos pela despreocupação     e a leviandade dos americanos, que não se preocupavam em nada, durante     a Guerra da Secessão, em ir carregar os seus canhões de charuto     na boca. Mas Barbicane tinha tomado a peito ter êxito e não naufragar     à vista do porto; escolheu, portanto, os seus melhores oper ários     e fê-los trabalhar sob a sua vigilância. Não os deixando     um só momento com o olhar, e à força de prudência     e de precauções, soube pôr do seu lado todas as possibilidades     de êxito.

Antes de tudo, não levou todo o carregamento para a Colina das Pedras.     Fe-lo transportar pouco a pouco em caixotes hermeticamente fechados. A munição     tinha sido dividida em embalagens de quinhentas libras o que perfazia oitocentos     grandes cartuchos cuidadosamente confeccionados pelos mais hábeis operários     de Pensacola. Cada caixote podia conter dez cartuchos e chegava uni após     outro pela estrada de ferro de Tampa; desse modo, não havia nunca mais     de cinco mil libras de piróxilo ao mesmo tempo dentro do recinto. Logo     que cada caixote chegava era des carregado por operários que caminhavam     de pés descal- ços, e cada cartucho transportado para o orifício     do columbiad, para o qual descia por meio de guindastes acionados manualmente.     Todas as máquinas a vapor tinham sido afastadas, e os mais pequenos     fogos apagados numa zona de duas milhas de raio. Era já muito ter de     proteger essa enorme quantidade de algodão-pólvora dos ardores     do sol, mesmo em novembro. Desse modo, trabalhavam de preferência durante     a noite, com unia luz produzida no vácuo, e que, por meio dos aparelhos     de Ruhnlkorff, criava uni dia artificial até ao fundo do columbiad.     Ali, os cartuchos eram arrumados com unia perfeita regularidade e ligados     entre si por meio de uni fio metálico destinado a levar simultaneamente     a faísca elétrica para o centro de cada uni deles. Realmente,     por meio da pilha é que o fogo devia ser comunicado a essa massa de     algodão-pólvora. Todos esses fios, rodeados de material isolante,     iam reunir-se em uni só estreito. orifício aberto na altura     onde devia ser mantido o projétil. Nesse ponto, atravessaram a espessa     parede de ferro fundido, subindo até ao solo por uni dos respiradouros     do revestimento de pedra conservado para esse fim. Unia vez chegado ao cimo     da Colina das Pedras, o fio, preso a postes por unia distância de duas     milhas, ia ter a unia - poderosa pilha de Bunzen munida de uni aparelho interruptor.     Bastava, portanto, carregar com o dedo no botão do aparelho para que     a corrente fosse instantaneamente restabelecida e pegasse fogo as quatrocentas     mil libras de algodão-pólvora. Desnecessário é     dizer que a pilha só devia entrar em atividade no último momento.

A 28 de novembro, os oitocentos cartuchos estavam colocados no fundo do     columbiad. Essa parte da operação correu sem problemas; todavia,     quantas perturbações, quantas inquietudes e apreensões     tinham assaltado o Presidente Barbicane! Em vão proibira o acesso à     Colina das Pedras; todos os dias os curiosos escalavam as paliçadas,     e alguns, levando a imprudência até a loucura, iam fumar no meio     das embalagens de algodão pólvora. Barbicane enfurecia-se diariamente.,     J. T. Maston secundava-o o melhor possível, caçando os intrusos     com grande vigor e apanhando as pontas de cigarros ainda acesas que os ianques     atiravam para aqui e para ali. Rude tarefa, pois mais de trezentas mil pessoas     se comprimiam em redor das paliçadas.

Michel Ardan tinha-se oferecido para escoltar os caixotes até a boca     do columbiad; mas, tendo sido surpreendido com um enorme charuto na boca,     enquanto afastava os imprudentes aos quais ele dava aquele funesto exemplo,     o presidente do Clube do Canhão viu bem que não podia contar     com aquele intrépido fumador, e foi obrigado a vigiá-lo especialmente.

Finalmente, como há um Deus para os artilheiros, nada explodiu e     o carregamento foi levado sem incidentes. A terceira aposta do Capitão     Nicoles estava, portanto, muito periclitante. Faltava introduzir o projétil     no columbiad e colocá-lo sobre a espessa camada de algodão pólvora.

Todavia, antes de proceder a essa operação, os objetos necessários     aos três, aliás muito numerosos, foram colocados com ordem no     vagão-projétil, e, se tivessem deixado, Michel, Ardan teria     ocupado todo o espaço reservado aos viajantes. Não se pode imaginar     o que esse amável francês queria levar para a Lua. Uma verdadeira     carga de inutilidades. Mas Barbicane interveio e ele teve de se restringir     ao estritamente necessário.

Vários termômetros, barômetros e lunetas foram guardados     na caixa dos instrumentos.

Os viajantes tinham curiosidade em examinar a Lua durante o trajeto, e,     para facilitar o reconhecimento desse mundo novo, levavam um excelente mapa     de Beer e Moedier, o Mapa Selenográfico, publicado em quatro folhas     que passa por verdadeiro, por ser uma obra-prima de observação     e de paciência. Reproduzia com escrupulosa exatidão os mínimos     pormenores dessa parte do astro voltada para a Terra: montanhas, vales, círculos,     crateras, elevações, fen das - viam-se ali nas suas dimensões     exatas, a sua orienta ção fiel, a sua denominação,     desde os montes Doerfel e Leibniz, cujos altos cumes se erguem na parte oriental     do disco, até o Mar do Frio, que se estende pelas regiões circumpolares     do Norte.

Era, portanto, um precioso documento para os viajantes, pois podiam estudar     o território antes de lá chegar.

Levavam também três espingardas e três carabinas de caça     com sistema de balas explosivas; além disso, pólvora e chumbo     em grande quantidade.

_ Não se sabe com quem teremos de tratar - dizia Michel Ardan. -      Homens ou animais, poderão não gostar de visitas! É preciso,     portanto, tomar precauções.

Acrescentemos que às armas de defesa pessoal se juntavam picaretas,     alviões, serras manuais e outros instrumentos indispensáveis,     sem falar do vestuário conveniente para todas as temperaturas, desde     o frio das regiões polares até os calores da zona tórrida.

Michel Ardan gostaria de levar para a sua expedição um certo     número de animais, não um casal de cada espécie, pois     não via necessidade de aclimatar na Lua serpentes, tigres, crocodilos     e outros animais malignos.

- Não - dizia ele a Barbicane -, mas alguns animais de tração,     bois ou vacas, burros ou cavalos, ficariam bem na paisagem e seriam de grande     utilidade para nós.

Concordo, meu caro Ardan - respondia Barbicane -, mas o nosso vagão-projétil     não é a Arca de Noé. Não tem a capacidade nem     se destina ao mesmo fim -. Assim, fiquemos nos limites do possível.

Finalmente, após longas discussões, foi combinado que os viajantes     se contentariam em levar uma excelente cadela de caça, pertencente     a Nicoles, e um vigoroso terra-nova, de força prodigiosa. Várias     caixas dos cereais mais úteis foram postas no número dos objetos     indispensáveis. Se tivessem deixado Michel Ardan fazer o que? queria,     ele teria levado também alguns sacos de sementes para lá os     se mear. Em todo o caso, sempre levou uma dúzia de arbustos, que foram     cuidadosamente envolvidos em palha e guardados a um canto do projétil.

Faltava, ainda, a importante questão dos víveres, pois era     preciso prever o caso de desembarcarem numa zona d a Lua completamente estéril.     Barbicane conseguiu levar ví- veres que chegariam para um ano. Mas,     é preciso acrescentar para não espantar ninguém, que     esses víveres consistiam em conservas de carne e de legumes reduzidos     ao seu mais simples volume sob a ação da prensa hidráulica,     e que essas conservas tinham grande quantidade de elementos nutritivos; não     eram refeições muito variadas, mas em tal viagem não     podiam mostrar-se muito exigentes. Havia, também, uma reserva de aguardente,     que podia chegar a cinqüenta galões. A água chegaria apenas     para dois meses.

Realmente, depois das últimas observações dos astrônomos,     ninguém colocava em dúvida a presença de uma certa quantidade     de água na superfície da Lua. Quanto aos víveres, era     insensato pensar que os habitantes da Terra não encontrariam lá     com que se alimentar. Michel Ardan não tinha dúvida nenhuma     a esse respeito. Se as tivesse, não partiria.

- Por outro lado - disse ele um dia aos seus amigos -, não estaremos     completamente abandonados pelos nossos camaradas da Terra, e eles terão     o cuidado de não nos esquecer.

- Certamente que não - replicou J. T. Maston.

- Como? - perguntou Nicoles.

- Nada mais simples - respondeu Michel Ardan. 0 columbiad fica no mesmo     lugar, não é verdade? Pois bem! Todas ?as vezes que a Lua se     apresentar nas condições favoráveis de zênite,     ou mesmo de perigeu, isto é, mais ou menos uma vez por ano, não     poderão enviar-nos um obus carregado de víveres que nós     esperaremos a uma hora prefixada? - Viva! Viva! - exclamou J. T. Maston, como     homem que tinha a sua idéia -; bem dito. Certamente, meus bons ami     gos, que nós não os esqueceremos.

- Conto com isto! Como vêem, teremos regularmente not ícias     do Globo, e, por nosso lado, seremos bem desajeitados se não conseguirmos     arranjar meio de comunicar com os nossos bons amigos da Terra! , Destas palavras     transpirava uma tal confiança que Michel Ardan, com o seu ar determinado,     a sua soberba valentia, teria arrastado todos os membros do Clube do Canhão     atrás de si. 0 que ele dizia parecia simples, elementar, fácil,     de êxito seguro, e seria preciso gostar verdadeiramente e de um modo     mesquinho deste miserável globo terráqueo para não seguir     os três viajantes na sua expedi- ção lunar.

Quando os diversos objetos foram colocados no projétil, a água     destinada a servir de mola foi introduzida entre os tabiques e o gás     de iluminação no respectivo recipiente.

Quanto ao clorato de potássio e à potassa cáustica,     Barbicane, temendo possíveis atrasos do trajeto, mandou carregar uma     quantidade suficiente para renovar o oxigênio e absorver o ácido     carbônico durante dois meses. Um aparelho extremamente engenhoso, de     funcionamento autom ático, encarregava-se de dar ao ar as suas qualidades     vivificantes e de o purificar de forma completa. Logo estava pronto o projétil,     e só faltava mete-lo no fundo do columbiad. Operação     cheia de. dificuldades e de perigos.

0 enorme obus foi então levado para o cimo da Colina das Pedras._     Ali, poderosos guindastes levantaram-no e mantiveram- no suspenso por cima     do poço de metal.

Foi um momento palpitante. Se as correntes se quebrassem com aquele enorme     peso, a queda de tal massa teria certamente provocado a inflamação     do algodão pólvora..

Felizmente, nada disso se passou e algumas horas mais tarde o vagão-projétil     descia suavemente para a alma do canhão, repousava sobre a camada de     piróxilo, um verdadeiro cobertor fulminante. A sua pressão não     teve outro efeito senão o de calcar mais fortemente a carga do columbiad.

- Perdi - disse o. Capitão Nicoles, entregando ao Presidente Barbicane     uma quantia aproximada de três mil dólares.

Barbicane não queria receber aquele dinheiro da parte de um companheiro     de viagem, mas teve de ceder perante a obstinação do capitão,     que queria cumprir todos os seus compromissos antes de deixar a Terra.

- Agora - disse Michel Ardan -, só me resta desejar-lhe uma coisa.

- Que coisa? - perguntou Nicoles.

- É que perca as outras duas apostas! Desse modo temos a certeza     de não ficarmos pelo caminho.

 

Capítulo 15

Fogo!

 

O dia primeiro de dezembro tinha chegado, dia decisivo, pois se a partida     do projétil não se efetuasse nessa mesma noite, às dez     horas, quarenta e seis minutos e quarenta segundos, passar-se-iam mais de     dezoito anos para que a Lua se apresentasse nas mesmas condições     de zênite e de perigeu.

0 tempo estava magnífico; apesar da aproximação do     inverno, o Sol resplandecia e iluminava com os seus raios esta Terra que três     dos seus habitantes iam deixar em troca de um novo mundo.

Quantas pessoas dormiram mal na véspera desse dia tão impacientemente     aguardado! Quantos peitos estavam oprimidos pelo pesado fardo da espera! Todos     os corações palpitavam de inquietação, exceto     o de Michel Ardan. Essa personagem impassível ia e vinha como habitualmente,     mas nada denunciava nela qualquer preocupação invulgar. 0 seu     sono tinha sido tranqüilo, como o sono de Turenne, antes da batalha,     encostado ao reparo de um canhão.

Desde a manhã que uma multidão imensa cobria as planícies     que se estendem a perder de vista em redor da Colina das Pedras. De quarto     em quarto de hora, o trem de Tampa trazia novos curiosos; essa emigração     tomou rapidamente proporções fantásticas, e, segundo     os relatos do Tampa-Tow Observer, durante esse dia memorável, cerca     de cinco milhões de espectadores pisaram o solo da Flórida.

Desde há um mês que grande parte dessa multidão se encontrava     acampada em redor do recinto, e lançava os alicerces de uma cidade     que depois se veio a chamar Ardan?s.

Barracas, cabanas, tendas, casebres, espalhavam-se pelo campo, e essas habitações     efêmeras abrigavam uma popula ção suficientemente numerosa     para fazer inveja às maiores cidades da Europa.

Todos os povos da Terra ali tinham os seus representantes; todos os dialetos     do Mundo se falavam ali ao mesmo tempo. Dir-se-ia a confusão das línguas,     como nos tempos bíblicos da Torre de Babel. Ali, as diversas classes     da sociedade americana confundiam-se numa igualdade absoluta.

Banqueiros, lavradores, marinheiros, moços de recados, plantadores     de algodão, negociantes, barqueiros, magistrados, acotovelavam - se     numa sem-cerimônia primitiva.

Os crioulos da Lusitânia confraternizavam com os agricultores de Indiana;     os gentlemen de Kentucky e de Tennessee, as senhoras da Virgínia, elegantes     e altivas, conversavam com caçadores semi-selvagens dos lagos e com     os negociantes de gado de Cincinnati. Usavam na cabeça chapéu     de castor branco com abas largas, ou o clássico Panamá e vestiam     calças de algodão azul das fábricas de Opelousas, cobriam     o corpo com blusas elegantes de pano cru, cal- çando botinas de cores     vivas, exibiam extravagantes len- ços de fina cambraia, e faziam cintilar     nos peitilhos das suas camisas, nas suas mangas, nas suas gravatas, nos seus     dez dedos e até mesmo nas orelhas, todo um sortimento de anéis,     de alfinetes, de brincos, cujo alto preço igualava o mau gosto. Mulheres,     crianças, criados, em toaletes não menos opulentas, acompanhavam,     seguiam, precediam, rodeavam, esses maridos, esses pais, esses patrões,     que se assemelhavam a chefes de tribo no meio das suas inumer áveis     famílias.

À hora das refeições toda essa gente precipitava-se     sobre os alimentos peculiares dos Estados do Sul e devorava, com um apetite     ameaçador para o abastecimento da Flórida, esse alimentos que     repugnariam a um estômago europeu, como rãs de fricassê,     macacos recheados, gambá assado e opôs ainda em sangue, grelhado.

Mas, como compensação, que variedade de licores e de bebidas     ajudava essa alimentação indigesta! Que gritos excitantes, que     vociferações ressoavam nas tabernas repletas de copos, frascos     e garrafas de formas inverossímeis! - Aqui há o licor de mentol!     - gritava um desses vendedores com voz tonitroante.

- Sangria de vinho de Bordéus! - replicava outro num tom esganiçado.

- E gin-sling! - repetia este.

E coquetel Brandy-smash! gritava aquele.

- Quem quer provar o verdadeiro mint-julet à última moda -      exclamavam esses hábeis comerciantes, fazendo passar rapidamente, de     uni copo para outro, como prestidigitadores, o açúcar, o limão,     a hortelã-pimenta, o gelo picado, a água, o conhaque e o ananás     fresco que compõem essa bebida refrescante.

Essas incitações, habitualmente dirigidas às gargantas     secas e sedentas sob a ação escaldante das especiarias, repetiam-      se, cruzavam-se no ar e produziam um balindo ensurdecedor.

Mas nesse primeiro de dezembro, esses gritos eram raros. Os vendedores teriam     enrouquecido em vão tentando provocar os fregueses. Ninguém     pensava nem em comer nem em beber, e às quatro horas da tarde circulavam     entre a multidão muitos espectadores que nem sequer tinham comido o     seu almoço habitual Sintoma mais significativo ainda: a violenta paixão     dos americanos pelo jogo tinha sido vencida pela emoção.

Quem reparasse nos pauzinhos do tempins deitados no chão, os dados     do creps a dormir nos copos, a roleta imó- vel, o cribbage abandonado,     as cartas do uíste, do vinte-eum, do vermelho e do negro, do montinho     e do faro, encerradas nos seus invólucros intatos, compreenderia que     o acontecimento do dia absorvia tudo e não deixava lugar para qualquer     outra distração.

Até à noite, uma agitação surda, sem clamor,     como a que precede as grandes catástrofes, correu entre aquela multid     ão ansiosa. Um indescritível mal-estar reinava nos espíritos,     um torpor penoso, um sentimento indefinível que apertava o coração.     Todos desejavam ?que tudo acabasse depressa ?.

No entanto, por volta das sete horas, aquele pesado silêncio dissipou-se     bruscamente. A Lua erguia-se no horizonte.

Vários milhões de vivas saudaram o seu aparecimento: tinha     sido pontual ao encontro. Os clamores subiram até o céu; os     aplausos explodiram de todos os lados, enquanto a loura Febe brilhava tranqüilamente     num céu admirável e acariciava aquela multidão embriagada     pelos seus raios mais afetuosos.

Nesse momento, apareceram os três intrépidos viajantes.

Ao vê-los, a multidão redobrou os seus gritos. Unanimemente,     instantaneamente, o hino nacional dos Estados Unidos saiu de todos os peitos     ofegantes, e o Yankee-Doodle, cantado em coro por cinco milhões de     vozes, ergueu-se como uma tempestade sonora até os últimos limites     da atmosfera.

Depois, após aquele irresistível impulso, o hino calou-se,     as últimas harmonias dissiparam-se pouco a pouco e uni frêmito     silencioso pairou acima da multidão, profundamente impressionada. Entretanto,     o francês e os dois americanos tinham entrado no recinto reservado,     em redor do qual se comprimia a multidão imensa. Estavam acompanhados     pelos membros do Clube do Canhão e missões enviadas pelos observatórios     europeus. Barbicane, frio e calmo, dava tranqüilamente as suas últimas     ordens. Nicoles, de lábios apertados, com as mãos cruzadas atrás     das costas, caminhava com passo firme e medido. Michel Ardan, sempre à     vontade, vestido como uni perfeito viajante, com polainas de couro nos pés,     a sua bolsa de viagem a tiracolo, flutuando no seu vasto traje de veludo castanho,     de charuto na boca, distribuía de passagem calorosos apertos de mão     com unia prodigalidade principesca. Era impagável de verve, de alegria,     rindo, gracejando, fazendo ao digno J. T. Maston molecagem de garoto, em unia     palavra, mostrava-se franc ês, e, pior ainda, parisiense até     o último segundo.

Soaram as dez horas. Tinha chegado o momento de tomarem lugar no projétil;     a manobra necessária para a descida, o aparafusar da tampa, o recuo     dos guindastes e dos andaimes debruçados - sobre a boca do columbiad     levavam certo tempo.

Barbicane tinha acertado o seu relógio com uni décimo de segundo     de diferença pelo do engenheiro Murchison, encarregado de lançar     fogo à pólvora por meio da faísca elétrica; desta     forma, os viajantes, encerrados no seu projétil, poderiam seguir com     o olhar o ponteiro que marcaria o momento preciso da sua partida.

A hora das despedidas havia chegado. A cena foi comovente; apesar da sua     alegria febril, Michel Ardan sentia-se comovido.

J. T. Maston tinha encontrado sob as suas pálpebras secas unia velha     lágrima que reservara sem dúvida para aquela ocasião.     Deixou-a cair sobre a testa do seu querido e bravo presidente.

- Se eu também partisse? - perguntou. - Ainda tem tempo! - Impossível,     meu velho Maston - respondeu Barbicane.

Alguns instantes mais tarde, os três companheiros de viagem estavam     instalados no projétil, cuja tampa tinham aparafusado interiormente,     e a boca do columbiad, inteiramente liberta, abria-se livremente para o céu.

Nicoles, Barbicane e Michel Ardan encontravam-se definiti vamente encerrados     no seu vagão de metal.

Quem poderia descrever a emoção universal, chegada ent ão     ao seu paroxismo? A Lua avançava num firmamento de límpida pureza,     apagando à sua passagem as luzes cintilantes das estrelas; percorria     então a constelação de Gêmeos e encontrava-se quase     a meio caminho do horizonte e do zênite. Todos deviam, portanto, compreender     facilmente que apontavam para a frente do alvo, como o caçador aponta     para diante da lebre que deseja atingir.

Uni silêncio assustador pairava sobre toda essa cena. Não havia     uni sopro de vento na terral Nem uni sopro nos peitos! Os corações     não ousavam bater. Todos os olhares, assustados, fixavam as bocas escancaradas     do columbiad.

Murchison seguia com o olhar o ponteiro do seu cronômetro.

Faltavam apenas quarenta segundos para o momento da partida, e cada segundo     parecia durar um século.

Ao vigésimo, houve um frêmito geral e ocorreu à multidão     que os viajantes encerrados no projétil contavam também esses     terríveis. segundos! Gritos isolados ouviram-se: - Trinta e cinco!     Trinta e seis! Trinta e sete! Trinta e oito! Trinta e nove! Quarenta! Fogo!     Imediatamente, Murchison, premindo o interruptor do aparelho, restabeleceu     a ligação e lançou a faísca elétrica para     o fundo do columbiad.

Uma detonação espantosa, inaudita, sobre-humana, de que nada     poderia dar uma idéia, nem o ribombar do trovão, nem o estrondo     das erupções, produziu-se instantaneamente, Um imenso feixe     luminoso saiu das entranhas do solo como de uma cratera. A terra tremeu, e     algumas pessoas mal puderam ver por instantes o projétil cortando vitoriosamente     o ar por entre vapores chamejantes.

 

Capítulo 16

Um novo astro

 

Um novo astro assa mesma noite, a palpitante notícia tão impacientemente     esperada estourou como uma bomba nos Estados Unidos, e, daí, lançada     através do oceano, correu por todos os fios telegráficos do     Globo. 0 projétil fora visto, graças ao gigantesco refletor     de Long?s Peak.

Eis a nota redigida pelo diretor do Observatório de Cambridge. Contém     a conclusão científica dessa grande experiência do Clube     do Canhão.

?Long?s Peak, 12 de dezembro.

Aos Exmos.. Srs. Membros do Gabinete do Observatório de Cambridge.

0 projétil lançado pelo columbiad da Colina das Pedras foi     visto pelos senhores Belfast e J. T. Maston, a 12 de dezembro, às oito     horas e quarenta e sete minutos da noite, tendo a Lua entrado no seu último     quarto.

Esse projétil não atingiu o seu objetivo. Passou ao lado,     mas suficientemente perto, no entanto, para ser retido pela atração     lunar.

Ali, o seu movimento retilíneo transformou-se num movimento circular     de unia rapidez vertiginosa, e foi arrastado seguindo unia órbita elíptica     em volta da Lua, da qual se tornou uni verdadeiro satélite.

Os elementos desse novo astro não puderam ainda? ser determinados.     Não se conhece nem a sua velocidade de translação, nem     a de rotação. A distância que o separa da superfície     da Lua pode ser avaliada em, aproximadamente, quatro mil quinhentos e cinqüenta     quilômetros.

Agora, podem dar-se duas hipóteses, que poderão levar a unia     modificação no estado das coisas: Ou a atração     da Lua acabará por se impor e os viajantes atingirão o objetivo     da sua viagem; ou, mantido numa ordem imutável, o projétil ficará     gravitando em redor do disco lunar até ao fim dos séculos.

Será isso que as observações hão de mostrar     uni dia, mas até aqui a tentativa do Clube do Canhão só     teve como resultado dotar com um novo astro o nosso sistema solar.

J. M. Belfast.? Quantas questões levantava este inesperado desenlace.     Que situação cheia de mistérios o futuro reservaria às     investiga ções da ciência. Graças à coragem     e dedicação de três homens, aquele empreendimento, bastante     fútil na apar ência, de enviar uni projétil à Lua,     acabava de ter uni resultado imenso, cujas conseqüências eram incalculáveis.     Os viajantes, prisioneiros num novo satélite, não tinham atingido     o seu objetivo, mas faziam pelo menos parte do mundo lunar; gravitavam em     torno do astro da noite, e, pela primeira vez, o olhar humano podia penetrar     todos os seus mistérios. Os nomes de Nicoles, de Barbicane e de Michel     Ardan deverão ficar para sempre célebres nos anais da astronomia,     pois esses ousados exploradores, ávidos por alargar o círculo     dos conhecimentos humanos, se lançaram audaciosamente através     do espaço, e puseram em jogo as suas vidas na mais notável tentativa     dos tempos modernos.

Quando a nota de Long?s Peak foi conhecida, causou no mundo inteiro uma     sensação de surpresa e de receio. Seria possível ir em     auxílio dos ousados habitantes da Terra? Não, sem dúvida,     pois eles encontravam-se fora da humanidade ao transporem os limites impostos     por Deus às criaturas terrestres. Poderiam ter ar durante dois meses.     Tinham víveres para uni ano. Mas depois?... Os corações     mais insens íveis palpitavam com esta terrível questão.

Apenas uni homem não queria admitir que a situação     fosse desesperada. Só uni tinha confiança, era o seu amigo dedicado,     audacioso e resoluto como eles, o valente J. T.

Maston.

Ele não os perdia de vista. A sua residência foi desde então     o posto de Long?s Peak; o seu horizonte, o espelho do imenso refletor. Logo     que a Lua surgia no horizonte, ele enquadrava-a no campo de visão do     telescópio e não a perdia nem uni instante de vista, seguindo-a     ininterruptamente na sua marcha através do espaço; observava     com eterna paciência a passagem do projétil sobre o seu disco     de prata, e verdadeiramente o digno homem estava em perpétua comunicação     com os seus amigos, que não desesperava de voltar a ver um dia.

Havemos de nos corresponder com eles - dizia ele a quem o queria ouvir -,     logo que as circunstâncias o permitam.

Teremos notícias deles e eles terão notícias nossas!     Eu conhe ço-os, são homens engenhosos. Os três levaram     para o espaço todos os recursos da arte, da ciência e da indústria.

Com isso, faz-se o que se quer, e hão de ver que eles se hão     de sair bem da situação!

 

Segunda Parte

A VOLTA DA LUA

 

Capitulo 1

A primeira meia hora

 

Que se teria passado? Que efeito teria produzido aquele espantoso abalo?     0 plano dos construtores do projétil teria sido bem sucedido? E o choque     fora porventura amortecido pelas molas, pelas quatro cunhas, pelas almofadas     de água, pelos tabiques quebradiços? Ter-se-ia conseguido dominar     o terrível impulso da velocidade inicial de doze mil jardas, que bastaria     para atravessar Paris ou Nova Iorque num segundo? Evidentemente, está     era a questão que a si mesma fazia a multidão que testemunhou     aquela emocionante cena. Todos esqueciam o propósito da viagem para     pensar apenas nos viajantes! E se alguém dentre eles - J.

T. Maston, por exemplo - tivesse podido espreitar o interior do projétil,     que teria visto? Naquela altura, nada. A escuridão era profunda dentro     do projétil. Mas as paredes cilindro-cônicas haviam resistido     maravilhosamente. Nem unia fenda, nem unia dobra, nem unia deformação.     0 admirável projétil não sofrera a mínima alteração     apesar da violenta deflagração da pólvora, e muito menos     se transformara numa chuva de alumínio, como muita gente boa temia.

No interior, a desordem era mínima. Alguns dos objetos tinham sido     violentamente atirados de encontro à cúpula, mas os mais importantes     pareciam estar em boas condi- ções. Os respectivos suportes     estavam intatos.

Sobre o disco móvel, que baixara até o fundo do projétil,     depois de quebrados os tabiques e de escoada a agora, jaziam três corpos.     Barbicane, Nicoles e Michel Ardan ainda respirariam? Não se teria transformado     o projétil num ataú- de de metal que transportava três     cadáveres pelo espa- ço?... , Alguns minutos após a partida,     uni dos três corpos fez uni movimento. Depois, agitou os braços,     soergueu a cabeça e conseguiu pôr-se de joelhos. Era Michel Ardan.     Apalpouse, soltou uni sonoro ?hem? e disse: - Michel Ardan, inteiro. Vejamos     os outros.

0 corajoso francês quis levantar-se, mas não conseguiu pôr-se     de pé. A cabeça rodava e o sangue, violentamente injetado, -      cegava-o. Sentia-se como um bêbado.

- Brr! - fez ele. - Isto produz-me o mesmo efeito de duas garrafas de Corton.     Só que talvez seja menos agradável de engolir! Em seguida, passando     repetidas vezes a mão pela testa e esfregando as têmporas, gritou     com voz firme: - Nicoles! Barbicane.

E esperou ansiosamente. Nenhuma resposta. Nem mesmo uni suspiro que indicasse     que o coração dos companheiros continuava a bater. Voltou a     chamá-los, mas o sil êncio persistiu.

- Diabos! - resmungou. Têm todo o ar de quem caiu de cabeça     de uni quinto andar! Bah! - acrescentou com aquela imperturbável confiança     que nada podia afetar -, se uni franc ês conseguiu pôr-se de joelhos,     dois americanos não ter ão qualquer dificuldade em levantar-se.     Mas, antes, o melhor é esclarecer a situação.

Ardan sentia que pouco a pouco as forças lhe voltavam.

Acalmava-se-lhe o sangue, que ia retomando a circulação normal.     Após repetidos esforços, conseguiu equilibrar-se, e levantar-se.     Tirou da algibeira um fósforo e riscou-o.

Em seguida aproximou-o do bico de gás que acendeu. 0 recipiente estava     intato. 0 gás não se escapara. Se tal tivesse acontecido, nem     o odor característico passaria despercebido, nem Michel Ardan teria     podido acender impunemente o fósforo em um ambiente saturado de hidrogênio.

0 gás, combinado com o ar, teria produzido uma mistura detonante,     e a explosão acabaria aquilo que o abalo inicial talvez houvesse começado.

Assim que acendeu o bico de gás, Ardan examinou os corpos dos companheiros,     que estavam tombados uni sobre o outro, como massas inertes: Nicoles por cima,     Barbicane por baixo.

Ardan levantou o capitão, encostou-o a uni sofá e aplicoulhe     vigorosas fricções. Esta massagem, inteligentemente feita, reanimou     Nicoles, que abriu os olhos, recobrou instantaneamente o sangue-frio e agarrou     na mão de Ardan.

Depois, olhando à sua volta, perguntou: - E Barbicane? - Calma, uni     de cada vez - respondeu serenamente Michel Ardan. - Comecei por ti, Nicoles,     porque estavas à mão.

Tratemos agora de Barbicane.

Dito isto, Ardan e Nicoles levantaram o presidente do Clube do Canhão     e deitaram-no no sofá. Barbicane parecia estar mais combalido do que     os companheiros. Perdia sangue.

Mas Nicoles tranqüilizou-o quando verificou que a hemor ragia provinha     de uni ligeiro ferimento no ombro. Unia simples esfoladela que tratou de comprimir     cuidadosamente.

Não obstante, Barbicane levou algum tempo a recuperar os sentidos,     o que assustou uni pouco os seus dois amigos, que se fatigavam a friccioná-lo.

- Respira ainda - dizia Nicoles, aplicando o ouvido no peito do ferido.

- Sim - volvia Ardan -, respira como uni homem que ganhou o hábito     de o fazer todos os dias. Friccionemos, Nicoles, friccionemos! E os dois improvisados     médicos tantas e tão boas massagens lhe deram que Barbicane     recobrou os sentidos. Abriu os olhos, levantou-se, apertou a mão dos     dois amigos e as suas primeiras palavras foram estas: Nicoles, vamos a caminho?     Nicoles e Ardan entreolharam-se. Ainda não tinham tido tempo para pensar     no projétil. Muito naturalmente, haviam- se preocupado primeiro com     eles próprios.

- É verdade... Será que vamos a caminho? - repetiu Michel     Ardan.

- Ou será que estamos tranqüilamente pousados no solo da Flórida?      - aventou por sua vez Nicoles.

- E não estaremos no fundo do golfo do México? - acrescentou     Michel Ardan.

- Esta agora! - exclamou o Presidente Barbicane- A dupla hipótese     sugerida pelos companheiros teve como efeito imediato a recuperação     total de Barbicane.

Como quer que fosse, naquele momento nada podia saber acerca da real situação     do projétil. A sua aparente imobilidade e a falta de comunicação     com o exterior não permitiam a resolução do problema.     Era possível que o projétil seguisse já a sua rota no     espaço. Mas não era menos poss ível que, após     unia curta ascensão, tivesse caído por terra...

ou mesmo no golfo do México - probabilidade que a pouca largura.     da península da Flórida tornava viável.

0 caso era grave, o problema interessante. Era necessário resolvê-lo     e depressa. Barbicane, excitado e triunfando pela energia moral da debilidade     física, levantou-se. Pôs-se à escuta. No exterior, silêncio     absoluto. Mas a espessura do acolchoamento das paredes era suficiente para     absorver todos os ruídos vindos da Terra. Entretanto, houve unia circunstância     que não escapou a Barbicane: a temperatura no interior do projétil     era particularmente elevada. Tirou de imediato uni termômetro da caixa     que o protegia e consultou- o. 0 instrumento assinalava quarenta e cinco graus     cent ígrados.

- Sim! - bradou entusiasmado. - Vamos a caminho! Este calor provém     das paredes do projétil. É a conseqüência do atrito     com as camadas atmosféricas. Em breve diminuirá, porquê     já devemos estar cruzando o vácuo. Não tarda que tenhamos     de suportar um frio intenso.

- Como? - Não se conteve Michel. Ardan. ?És então de     opinião que já estamos fora dos limites da atmosfera terrestre?     - Sem dúvida alguma, Michel. Ouve: são dez horas e cinqüenta     e cinco, o que significa que partimos há perto de oito minutos. Ora,     a menos que a velocidade inicial tenha diminuído com o atrito, seis     segundos bastariam para que ultrapassássemos as dezesseis léguas     de atmosfera que circundam o nosso esferóide.

- Perfeito - intrometeu-se Nicoles -; mas, em sua opinião, em que     proporção terá atuado o atrito. na redução     da velocidade? - Julgo que na proporção de uni terço      - esclareceu Barbicane.

E prosseguiu: - É unia redução considerável,     mas, com base nos meus cálculos, é certa. Logo, se partimos     animados de uma velocidade inicial de doze mil jardas, à saída     da atmosfera ela estaria reduzida a sete mil oitocentas e trinta e duas jardas...     portanto, em qualquer dos casos, já superamos as tais dezesseis léguas.

- E isto significa - concluiu Michel Ardan - que o amigo Nicoles perdeu     mais duas apostas, como, aliás, eu previra: quatro mil dólares     porque o columbiad não explodiu e cinco mil porque o projétil     subiu a unia altitude superior a seis milhas.

Vá, Nicoles, puxa o dinheiro da bolsa! - Nada de pressas - respondeu     o capitão. ~ Primeiro, asseguremo-nos da situação, depois     faremos contas... É muito provável que as previsões de     Barbicane estejam certas e eu tenha perdido os nove mil dólares; mas     ocorreume unia outra hipótese que pode tornar nula a aposta.

- Qual, pode-se saber? - perguntou muito interessado Barbicane.

- Suponham que, por qualquer motivo, a pólvora não foi inflamada     e que, portanto, ainda não partimos.

Com a breca, capitão! - exclamou Michel Ardan.

Eis unia hipótese digna da minha cabeça. Não falas     a sério! Acaso não saímos machucados do abalo provocado     pelo disparo? Não me vi obrigado a reanimar-te? E o ombro do presidente     não sangra ainda? - De acordo, Michel; todavia, permite-me unia pergunta      - insistiu Nicoles.

À vontade, capitão.

- A detonação foi com certeza formidável. Ouviste-a?      - Não - respondeu Ardan, muito surpreendido. -.Para falar a verdade,     não ouvi nenhuma detonação.

E você, Barbicane? Também não.

- E então? - rematou Nicoles.

- De fato.,.. murmurou o presidente. - Por que não a ouvimos? Os     três amigos entreolharam-se, perplexos. Encontravamse perante um fenômeno     inexplicável. E, no entanto, o projétil partira, pelo que a     detonação teve de produzir-se.

- Em primeiro lugar é preciso saber onde estamos - comandou Barbicane.     - Desçamos as portinholas! Essa operação, extremamente     simples, depressa foi executada.

As porcas que mantinham os parafusos nas chapas exteriores da vigia direita     cederam à pressão de unia chave-inglesa. Tiraram-se os parafusos,     tapando os orifícios por eles deixados com obturadores guarnecidos     com borracha. A chapa exterior descaiu, entrando na respectiva dobradiça,     como unia portinhola, e logo apareceu o vidro penticular que fechava a vigia.     Vigias idênticas estavam localizadas na espessura da parede oposta,     na cúpula e no centro da placa que constituía o 66 chão?     do projétil. Esta disposição possibilitava que fossem     feitas observações em quatro direções diferentes:     do firmamento pelas vigias laterais, da Terra e da Lua pelas aberturas superior     e inferior.

Barbicane e os dois companheiros tinham-se precipitado para a vigia. Nem     uni só raio luminoso a penetrava. Unia profunda obscuridade envolvia     o projétil. Isto não impediu o Presidente Barbicane de bradar:      - Não, meus amigos, não caímos em terra! Nem estamos     imersos no fundo do golfo do México! Sim, elevamo-nos no espaço!     Vejam estas estrelas que cintilam na noite e a impenetrável escuridão     que se adensa entre nós e a Terra! ~ Viva! Viva! - exclamaram em uníssono     Michel Ardan e Nicoles.

Realmente, aquela treva compacta provava que o projétil deixara a     Terra, porque o solo, então vivamente iluminado pelo luar, teria sido     avistado pelos viajantes se nele estivessem pousados. Por outro lado, aquela     obscuridade demonstrava ainda que o projétil passara a camada atmosf     érica,. porque a luz difusa espalhada no ar havia de provocar nas paredes     metálicas uni reflexo, de que também não se vislumbravam     sinais. Esse reflexo teria iluminado a vigia, e a verdade é que da     vigia só se via a noite circundante.

Não havia mais lugar para dúvidas. Os viajantes tinham deixado     a Terra.

- Perdi - disse Nicoles.

- Dou-te os meus parabéns! - acudiu logo Ardan.

- Aqui estão os nove mil dólares - anunciou o capitão,     tirando da algibeira uni maço de notas.

- Quer que lhe passe um recibo? - perguntou Barbicane, agarrando as notas.

- Se isto não o incomoda... - declarou Nicoles. - Sempre é,     como direi... mais regular...

E o Presidente Barbicane, com toda a fleuma e seriedade, tal como se encontrasse     no seu gabinete, arrancou a folha de papel branco do seu bloco de notas, redigiu     a lápis o recibo, datou-o, assinou-o, rubricou-o e o entregou ao capit     ão, que o guardou na carteira.

Michel Ardan, descobrindo-se, fez uma pequena vênia aos companheiros     e não disse palavra. Tanta formalidade em tais circunstâncias     emudecera-o. Nunca tinha visto nada tão ?americano?.

Terminada a cerimônia, Barbicane e Nicoles haviam voltado para junto     da vigia e contemplavam as constelações. As estrelas eram pontos     brilhantes sobre o fundo negro do céu. Mas daquele ponto não     se via o astro da noite, que, deslocando-se de leste para oeste, se elevava     placidamente na direção do zênite. 0 fato provocou unia     dúvida em Ardan.

- E a Lua? - perguntou ele. - Será que ela vai faltar ao nosso encontro?     - Sossega, homem - quem lhe respondia era Barbicane. - 0 nosso satélite     está à nossa espera. Nós é que não podemos     vê-lo desta posição. Abramos a outra vigia lateral.

No momento em que Barbicane ia se afastar para destacar a vigia oposta,     a sua atenção foi despertada pela aparição súbita     de uni objeto brilhante. Era uni disco enorme, cujas colossais dimensões     não podiam ser avaliadas. A face que estava voltada para a Terra apresentava-se     profusamente iluminada. Dir-se-ia uma Lua mais pequena refletindo a luz da     maior. Acercava-se com unia prodigiosa velocidade e parecia descrever em torno     da Terra unia órbita que interceptava a trajetória do projétil.     0 seu movimento de translação era acompanhado por uni movimento     simultâ- neo de rotação. Comportava-se, portanto, como     todos os corpos celestes isolados no espaço.

- Eh! - exclamou Michel Ardan. - Que é aquilo? Uni outro projétil?     Barbicane não respondeu. Aquela aparição surpreendia-o     e inquietava-o. Uni choque não era impossível, e, a dar-se,     teria resultados deploráveis: ou provocaria uni desvio na trajetória     do projétil, ou retirar-lhe-ia a velocidade adquirida, precipitando-o     em direção à Terra, ou, enfim, a força atrativa     do asteróide afastá-lo-ia irresistivelmente.

0 Presidente Barbicane alcançara rapidamente todas as conseq üências     das três hipóteses, que de unia ou de outra maneira comprometiam     fatalmente a experiência. Os companheiros, esses olhavam emudecidos     o espaço. 0 objeto aumentava prodigiosamente de volume à medida     que se aproximava. Todavia, mercê de unia ilusão de ótica,     poderse- ia pensar que era o projétil que lhe corria ao encontro.

- Com mil diabos! - bradou Michel Ardan. - Os dois comboios vão chocar!     Os viajantes recuaram instintivamente. Sentiram um medo terrível, que,     no entanto, se dissipou alguns segundos depois.

0 asteróide passou a umas centenas de metros do projétil e     desapareceu, não tanto devido à velocidade de que ia animado,     mas porque a face oposta à Lua se confundiu imediatamente com a profunda     escuridão do espa- ço.

- Boa viagem! - suspirou aliviado Michel Ardan. - E inacreditável!     Então o infinito não é bastante grande para permitir     que uni pequeno projétil passe sem perigo pelo espaço?... Essa     agora! Mas, afinal, que globo luminoso era aquele? Eu sei... - disse Barbicane.

Por Deus! Sabes tudo! - É uni bólide - prosseguiu Barbicane      -, uni enorme bólide que a força de atração terrestre     transformou em satélite.

_ Ali, sim! - admirou-se Michel Ardan. - Então a Terra tem também     duas luas como Marte? - Sim, meu amigo, embora geralmente se diga que tem     apenas uma. Essa segunda Lua é tão pequena e possui unia velocidade     tão grande que os habitantes da Terra não podem vê-la.     Todavia, tendo em conta determinadas perturba ções, uni astrônomo     francês logrou descobrir esse segundo satélite e estabelecer     a seu respeito alguns dados.

Com base nas suas observações, esse bólide completa     a sua revolução em tomo da Terra somente em três horas     e vinte minutos, o que significa que está animado de prodigiosa velocidade.

- E todos os astrônomos admitem a existência desse saté-      lite? - interrogou Nicoles.

- Não - respondeu Barbicane mas se, como nós, quase lhe tocassem,     não teriam mais dúvidas. É verdade... estou pensando     que esse bólide, que nos causaria graves problemas se chocasse com     o projétil, vai permitimos determinar com precisão a nossa posição     no espaço.

De que maneira? - interessou-se Ardan. Pela distância em que o encontramos,     estávamos exatamente a oito mil cento e quarenta quilômetros     da superfície terrestre.

- Mais de duas mil léguas! - exclamou Michel Ardan. - Isto quer dizer     que batemos os comboios expressos daquele Globo que se chama Terra! - Assim     creio - admitiu Nicoles, consultando o cronômetro.

- São onze horas, o que quer dizer que deixamos a continente americano     há apenas treze minuto.

- Só treze minutos? surpreendeu-se Barbicane.

- E verdade - confirmou Nicoles. - E, se a nossa velocidade inicial de doze     mil jardas se mantivesse constante, atingirí- amos cerca de dez mil     léguas à hora! - As coisas estão correndo muito bem,     meus amigos - declarou o presidente -, mas há uni problema que permanece     insolúvel: por que não ouvimos a detonação do     columbiad? Como a tal pergunta ninguém sabia responder, a conversa     ficou por ali. Barbicane, embora entregue às suas reflex ões,     predispôs-se então a destapar a segunda vigia late ral. A operação     foi bem sucedida, pelo que através dela a Lua iluminou o interior do     projétil com unia fulgurante luz.

Nicoles, como homem econômico que era, apagou o bico de gás,     de que já não careciam, e cuja claridade prejudicava a observação     dos espaços interplanetários.

0 disco lunar refulgia nesse momento em toda a sua pureza.

Os raios que emitia, libertos dos vapores que toldam a atmosfera terrestre,     filtravam-se através da vigia e inundavam de reflexos prateados o interior     do projétil. 0 negro véu do firmamento duplicava o esplendor     da Lua, que, no vácuo do éter, impróprio para a difusão     da luz, não ofuscava o das estrelas vizinhas. 0 céu, visto desta     maneira, oferecia um aspecto totalmente novo, de que os olhos humanos não     podiam suspeitar.

Não é difícil imaginar com que interesse os audazes     companheiros contemplavam o astro da noite, supremo objetivo da sua viagem.     0 satélite da Terra, no seu movimento de translação,     avizinhava-se pouco a pouco do zênite, ponto matemático que devia     atingir cerca de noventa e seis horas depois. As suas planícies e montanhas,     todo o seu relevo, não se distinguiam com maior clareza do que quando     observadas de qualquer ponto da Terra. Contudo, a sua luz, através     do vácuo, desenvolvia-se com unia intensidade incomparável.     0 disco resplandecia como uni espelho de platina. Da Terra, que se perdia     na distância sob os seus pés, os viajantes já quase não     se lembravam.

0 Capitão Nicoles foi o primeiro a recordar o Globo abandonado.

- Sim - concordou Michel Ardan ~, é bom que não sejamos ingratos     para com ele. Unia vez que abandonamos a pá- tria, é justo que     lhe dediquemos os nossos últimos olhares.

Quero rever a Terra antes que desapareça completamente da minha vista!     Para satisfazer os desejos do companheiro, Barbicane come çou a desembaraçar     a vigia do fundo do projétil, precisamente aquela que possibilitava     a observação direta da Terra. 0 disco, que a força da     projeção levara até o ?chão? do projétil,     deu algum trabalho para desmontar. Os seus fragmentos, colocados cuidadosamente     às paredes, podiam ter utilidade, numa emergência. Apareceu,     então, um vão circular, de cinqüenta centímetros     de diâmetro, vazado na parte inferior do projétil, fechado por     meio de um vidro de quinze centímetros de espessura e reforçado     por uma armadura de cobre. Por baixo, tinha adaptada uma chapa de alumínio     segura por parafusos.

Desatarraxadas as porcas e tirados os parafusos, a chapa deslizou, e a comunicação     visual com o exterior ficou estabelecida.

Ardan ajoelhara-se junto ao vidro: estava escuro, como se fosse opaco.

- Então! - exclamou ele. - Onde está a Terra? - A Terra está     ali - apontou Barbicane.

- 0 quê! - estranhou Ardan. - E aquele fiozinho estreito...

aquele crescente prateado? - Aquele mesmo, Michel. Dentro de quatro dias,     na lua cheia, exatamente no instante em que chegarmos ao nosso objetivo, entrará     a Terra na fase da terra nova. Nessa altura, ela aparecer-nos-á sob     a forma de um crescente muito estreito, que não tardará a desaparecer     por alguns dias na sombra impenetrável.

- Aquilo... é a Terra? - repetia Michel Ardan, abrindo os olhos quanto     podia para ver a fatiazinha do planeta natal.

A explicação do Presidente Barbicane era exata. A Terra achava-se     em relação ao satélite na sua última fase. Estava     no minguante, pelo que dela só se avistava uni estreito crescente desenhado     a rigor no fundo negro do céu. A luz, azulada por efeito da espessura     da camada atmosférica, era menos intensa do que a do crescente lunar.     0 crescente terrestre possuía, entretanto, consideráveis dimensões.

Alguns pontos, vivamente iluminados, sobretudo na parte côncava do     arco, denunciavam a presença de altas montanhas.

Mas, de vez em quando, desapareciam sob espessas manchas, que nunca se vêem     na superfície do disco lunar.

Eram os anéis de nuvens, concentricamente dispostos em torno do esferóide     terrestre.

Contudo, devido a uni fenômeno natural, idêntico ao que se dá     na Lua quando está no primeiro e último oitante, podia divisar-se     todo o contorno do globo terrestre. 0 disco deste aparecia bem visível     em virtude de uni efeito de luz cendrada, menos apreciável que a luz     cendrada da Lua.

E a razão desta menor intensidade é fácil de compreender.

Esse reflexo, quando se produz na Lua, é devido aos raios solares     que a Terra reflete na direção do seu satélite; quando     se produz na Terra, resulta do fenômeno contrário, isto é,     passa a ser a Lua a refletir os raios solares na direção da     Terra. Ora, a luz terrestre é, aproximadamente, treze vezes mais intensa     do que a lunar, fato que se explica pela diferença de volumes dos dois     corpos. Daí a razão por que, no fenômeno da luz cendrada,     a parte obscura do disco da Terra se destaca menos nitidamente do que a do     disco da Lua, unia vez que a intensidade do fenômeno é proporcional     ao poder iluminante dos dois astros. Convém acrescentar ainda que o     crescente terrestre parecia desenhar unia curva mais alongada que a do disco.     Puro efeito de irradiação, nada mais.

Em suma, eis tudo o que eles viam desse esferóide perdido na obscuridade      - astro menor do sistema solar, que, para os grandes planetas, se põe     e nasce tal e qual unia simples estrela da manhã ou da noite! Imperceptível     ponto do espa ço, o Globo onde haviam deixado tudo o que mais amavam     na vida era apenas um crescente fugitivo! Os três amigos olharam-no     demoradamente sem falar, mas unidos no mesmo sentimento, enquanto o projétil     se afastava a unia velocidade uniformemente decrescente. Depois, unia irresistível     sonolência venceu-os. Fadiga do corpo e da alma? Certamente, porque,     após a excitação das últimas horas passadas na     Terra, outra reação não era de se esperar.

- Bem já que é preciso dormir, durmamos - disse Michel.

Os três amigos imergiram num profundo sono.

Mas não dormiram nem uni quarto de hora. Barbicane levantou- se subitamente     e, despertando os companheiros, gritou: - Achei! - Que é que tu achaste?     - perguntou Michel Ardan, saltando do seu pequeno leito.

- A razão por que não ouvimos a detonação do     columbiad! - E qual é? - perguntou Nicoles.

- Não ouvimos a detonação, porque o nosso projétil     se deslocava a unia velocidade superior à da propagação     do som!

 

Capítulo 2

A instalação

 

Uma vez ouvida esta curiosa mas por certo exata explica- ção,     os três amigos voltaram a mergulhar num profundo sono. Aquele projétil,     vagando no vazio absoluto, podia oferecer ao seus hóspedes uni repouso     absoluto.

Deste modo, o sono dos três viajantes teria podido prolongar- se indefinidamente     se um imprevisto rumor não os tivesse despertado por volta das sete     horas da manhã de 2 de dezembro, cerca de oito horas depois da partida.

Aquele rumor era um latido muito característico.

- Os cães! São os cães! - exclamou Michel Ardan, levantando-      se de um pulo.

- Têm fome - concluiu Nicoles.

- Meu Deus! - prosseguiu Michel. - Esquecemo-nos deles! - Onde estão?      - quis saber Barbicane.

Procuraram e encontraram um dos animais enroscado debaixo do sofá.     Amedrontado, atordoado pelo choque inicial, conversara-se no seu canto até     o momento em que sentiu o estímulo da fome e, com ele, as forças     para latir.

Era a simpática Diana, que, ainda cheia de medo, ia ,saindo do seu     esconderijo, não sem antes se fazer muito rogada.

Michel Ardan tentava encorajá-la com as suas mais doces palavras:      - Vem, Diana, vem i minha pequenina! Tu, cujo destino será assinalado     nos anais cinegéticos! Tu, que os pagãos teriam dado por companheira     ao deus Anúbis, e os cristãos por amiga a São Roque!     Tu, digna de seres moldada no bronze do rei dos Infernos, como esse cachorrinho     que Júpiter ofereceu à bela Europa em troca de uni beijo! Tu,     cuja celebridade ofuscará a dos heróis de Montargis e do Monte     São Bernardo! Tu, que, elevando-te nos espaços interplanetários,     serás por força a Eva dos cães selenitas! Tu justificarás     lá em cima esta frase de Toussene: ?No início, Deus criou o     homem e, vendo-o tão débil, deu-lhe o cão!? Vem Diana!     Vem aqui! Diana, lisonjeada ou não, avançava lentamente, emitindo     gemidos comovedores.

- Bem! - disse Barbicane. Encontramos a Eu, mas por onde andará o     Adão? Adão! - exclamou Michel Adão não pode estar     longe! Está por aí, em qualquer canto! Chamemo-lo! Satélite,     aqui? Sat élite.

Mas Satélite não aparecia. Diana continuava a gemer. Entretanto,     verificaram que não estava ferida e deram-lhe unia apetitosa mistura     de pão com pedacinhos de carne, que pôs termo aos seus lamentos.

Quanto a Satélite, parecia ter-se volatilizado. Foi necessá-      rio procurar pacientemente para o descobrir num dos compartimentos superiores     do projétil, para onde uni inexplicável impulso o havia violentamente     lançado. 0 pobre animal, muito atordoado, estava num estado lastimoso.

- Com mil diabos? - bradou Michel. - A nossa experiência de aclimatação     está comprometida! Desceram o infeliz cão com as maiores precauções.     A ca beça tinha batido na cúpula e tudo indicava que seria difícil     recuperá-lo de tal pancada. Apesar disso, estenderam-no confortavelmente     sobre uma almofada, e ali Satélite deixou escapar uni longo suspiro.

Vamos curar-te - disse Michel. - Somos responsáveis pela tua existência.     Preferia perder uni braço a perder unia pata do meu pobre Satélite!     E, dizendo isto, deu uni pouco de água ao ferido, que a bebeu avidamente.

Prestados estes cuidados, os viajantes puseram-se a ob5ervar a Terra e a     Lua. A Terra era apenas uni disco cendrado, cujo crescente se esbatera uni     tanto desde a véspera, embora o seu volume permanecesse enorme em relação     ao da Lua, que se aproximava cada vez mais da forma do circulo perfeito.

- Por minha fé! - acabou de dizer Michel. Ardan estou mesmo aborrecido     por não termos partido no momento da terra cheia, quero dizer, quando     o nosso Globo se encontrava em oposição com o Sol.

- Por quê? - inquiriu Nicoles.

- Porque teríamos visto sob a luz inteiramente nova os nossos continentes     e mares, estes resplandecendo sob a projeção dos raios solares,     aqueles mais escuros, tal como se reproduzem em certos mapas-mundi. Como gostaria     de ver os pólos terrestres, sobre os quais nenhum olhar humano pousou     ainda! - Sem dúvida, tudo isso está muito certo - atalhou Barbicane.

- Mas, se a Terra estivesse em terra cheia, a Lua estaria em lua nova, isto     é, invisível no meio da irradiação solar. E a     nós convém mais ver o ponto de chegada que o de partida.

- Tem toda razão - concordou o Capitão Nicoles. - De resto,     quando atingirmos a Lua, teremos tempo, durante as longas noites lunares,     de observar a nosso bel-prazer esse Globo onde formigam os nossos semelhantes!      - Os nossos semelhantes! - surpreendeu-se Michel Ardan.

- Mas agora são tão nossos semelhantes como os selenitas!     Nós habitamos uni mundo novo, cuja a População somos     nós... 0 Projétil! 0 meu semelhante, Barbicane, e Barbicane     o semelhante de Nicoles. Além de nós, fora de nós, a     humanidade acaba. Somos únicos habitantes deste? microcosmo, até     o instante e que rios tornemos simples selenitas! Dentro de oitenta e oito     horas aproximadamente Precisou o capitão.

- 0 que significa?... perguntou Michel Ardan. Que são oito e meia      - esclareceu Nicoles.

- Pois bem - respondeu Michel -, não conseguiu vislumbrar razões     que nos possam impedir de almoce imediatamente.

Na verdade, os habitantes do novo astro não podia sobreviver sem     comer, e os seus estômagos sentiam já o efeitos da fome. Michel     Ardan, como bom francês que era, proclamou-se cozinheiro-chefe, importante     função para a qual não tinha, aliás, concorrentes.     0 gás proporcionou Os Poucos graus de calor suficientes para os preparativos     culin ários e a arca de provisões forneceu os gêneros     para a primeira refeição.

Procederam em seguida ao inventário dos instrumentos.

Os termômetros e os barômetros resistiram, salvo uni termômetro     de mínima, cujo reservatório se partiu. Uni excelente aneróide,     retirado do estojo acolchoado que o protegia, foi pendurado numa das paredes.     Naturalmente, as indicações do aparelho diziam apenas respeito     à press ão da atmosfera existente dentro do projétil,     cujo índice hidrométrico também indicava. Naquele instante     a agulha oscilava entre 760 e 765 milímetros. Assinalava, Portanto,     ?bom tempo?.

Barbicane trouxera também várias bússolas, que foram     encontradas intatas. Compreende-se que naquelas condi- ções     as suas agulhas estivessem ?loucas?, isto é, sem direção     constante. De fato, dada a distância a que o projétil estava     da Terra, o pólo magnético não podia exercer sobre os     instrumentos qualquer ação *sensível. Contudo, aquelas     bússolas, unia vez transportadas para a superfície lunar, talvez     pudessem indicar quaisquer fenômenos magnéticos ali existentes.     Em todo o caso, seria interessante saber-se se o satélite da Terra     estava, como esta, submetido à influ- ência magnética.     Quanto aos utensílios, picaretas, enxadas e outras ferramentas que     Nicoles havia selecionado propositadamente, bem como as sacas de sementes     variadas e as plantas que Michel Ardan se propunha transplantar em solo selenita,     estavam em ordem.

Barbicane verificou, também, que os foguetes e os outros fogos de     artifício não haviam sofrido danos. Eram de fato peças     importantes, dotadas de potentes cargas, que estavam destinadas a atenuar     a queda do projétil quando este arrastado pela força de atração,     caísse na superfície da Lua.

0 mesmo espetáculo! Em toda a sua extensão, a esfera celeste     formigava de estrelas e de constelações de unia maravilhosa     pureza, que fariam perder a cabeça a uni astrônomo. De uni lado     o Sol, qual boca de forno inflamado, disco deslumbrante sem auréola,     destacava-se do fundo negro do céu. Do outro lado, a Lua refletia a     luz do Sol, aparentemente imóvel no meio do mundo estelar. Depois,     unia mancha muito nítida que parecia furar o firmamento e tinha ainda     unia estreita orla prateada: era a Terra! Os observadores não conseguiam     desviar os olhos daquele espetáculo inédito, do qual nenhuma     descrição poderá dar unia pálida idéia.

 

Capítulo3

Um erro de cálculo

 

A noite escoou-se sem novidade. Para falar a verdade, a palavra -noite- não     é lá muito apropriada.

E que a posição do projétil não se alterara     em relação ao Sol. Sob o ponto de vista astronômico, era     dia na parte inferior do projétil e noite na parte superior. Sempre     que se utilizar os termos noite e dia, eles exprimem, conseq üentemente,     o lapso de tempo que transcorre entre o nascer e o por do Sol na Terra.

0 sono dos viajantes foi tanto mais sossegado quanto a ilusão da     imobilidade do projétil parecia ser um fato irrecusável, isto     apesar da extraordinária velocidade de que ia animado.

Naquela manhã do dia 3 de dezembro, os viajantes despertaram com     uni som alegre mas inesperado. 0 canto de uni galo ressoara no interior do     projétil.

Michel Ardan foi o primeiro a pôr-se de pé. Trepou ao topo     do projétil e, fechando uma caixa entreaberta, disse entre dentes:     _ Vê se te calas! Queres botar a perder os meus planos? Nicoles e Barbicane     tinham também acordado.

- Uni galo? - surpreendera-se Nicoles.

- Não, meus amigos! - apressou-se a responder Michel. - Fui eu que     quis despertá-los com esta vocalização de sabor campestre!     Dito isto, soltou uni cocorocó esplêndido, que teria feito honra     ao mais orgulhoso dos galináceos.

Os dois americanos não conseguiram conter o riso.

- Grande talento... - comentou Nicoles, olhando o companheiro com uni ar     de suspeita.

- Bem, sabem... - explicou Michel -, é uma brincadeira da minha terra.     Muito gaulesa. Imita-se o galo na melhor sociedade! - E mudando de assunto:     - Barbicane, sabes em que pensei toda a noite? - Como queres que saiba? -     perguntou Barbicane.

- Nos nossos amigos de Cambridge. Já reparaste que sou uni perfeito     ignorante no que respeita a matemáticas. Ê- me, portanto, impossível     imaginar como puderam os sábios do observatório calcular a velocidade     inicial de que o projétil deveria ser animado ao deixar o columbiad     a fim de conseguir alcançar a Lua.

- Queres dizer - replicou Barbicane -, para atingir o ponto neutro em que     se equilibram as atrações terrestres e lunar, porque a partir     desse ponto, situado a cerca de nove décimos do percurso, há-de     o projétil cair na Lua apenas pelo efeito do seu próprio peso.

- Mas que seja assim - admitiu Michel -; mas, insisto, como puderam eles     calcular a velocidade inicial? - Nada mais simples... - respondeu Barbicane.

- Queres dizer que eras capaz de fazer esse cálculo? - voltou a perguntar     Michel Ardan.

- Com toda a certeza. Nicoles e eu te-lo-íamos estabelecido, se a     nota do observatório não nos tivesse poupado esse trabalho.

- Pois bem, meu velho confessou Michel -; a mim era mais fácil cortar-me     a cabeça, começando pelos pés, do que me obrigarem a     resolver tal quebra-cabeças1 - Ora, porque não sabes álgebra      - replicou tranqüilamente Barbicane.

- E de me ensinar a maneira de calcular a velocidade inicial do nosso projétil?      - Sim, meu bom amigo. Considerando todos os dados do problema, distância     do centro da Terra ao centro da Lua, raio da Terra, massa da Terra e massa     da Lua, posso estabelecer exatamente, através de unia simples fórmula,     a velocidade que devia ter animado à partida 0 nosso projétil.

0 capitão, homem habituado a superar todas as dificuldades, pôs-se     a fazer contas com uma rapidez espantosa.

Divisões e multiplicações nasciam-lhe sob o lápis.     Os algarismos crivavam a página branca. Barbicane seguia a opera ção     com os olhos, enquanto Michel Ardan apertava a cabeça com as mãos     para tentar minorar os efeitos de uma enxaqueca que começava a perturbá-lo.

- E então? - perguntou Barbicane, depois de alguns minutos de siléticio.

- Então, concluídos os cálculos - respondeu Nicoles      -i o zero, isto é, a velocidade do projétil ao sair da atmosfera,     para poder atingir o ponto de igual atração, devia ser de...

- De? ... fez Barbicane.

- De onze mil e cinqüenta e uni metros no primeiro segundo.

- Hem! - exclamou Barbicane, dando uni pulo. -0 que diz? - Onze mil e cinqüenta     e uni metros.

- Maldição! - bradou o presidente, fazendo uni gesto de desespero.

- Que é que te deu? - perguntou muito surpreendido M Michel. Ardan.

- 0 que é que me deu! Deu-me que, se naquele momento a velocidade     houvesse diminuído de um terço, isto significa que a velocidade     inicial deveria ter sido de...de dezesseis mil quinhentos e setenta e seis     metros - precisou Nicoles.

- E o Observatório de Cambridge garantiu que onze mil metros à     partida seriam suficientes! Bonito serviço! E o nosso projétil,     que foi disparado apenas com essa velocidade! - E então? - perguntou     Nicoles.

- Então a velocidade não é suficiente! - Não     é suficiente?...

- Não, nem chegaremos ao ponto neutro! - Com a breca! - Nem sequer     a meio do caminho! - Raio de projétil! - vociferou Michel Ardan, saltando     como se estivessem a ponto de chocar com o esferóide terrestre.

- E voltaremos a cair na Terra!

 

Capítulo 4

Os frios do espaço

 

A revelação teve o efeito de um raio. Quem poderia esperar     uni semelhante erro de cálculo? Barbicane recusava-se a admiti-lo.     Nicoles; reviu os seus cálculos. Estavam certos.

Quanto à fórmula que haviam estabelecido, a sua exatidão     estava fora de dúvidas. Feita a verificação, o resultado     manteve-se: era necessária unia velocidade inicial de dezesseis mil     quinhentos e setenta e seis metros no primeiro segundo para atingir o ponto     neutro.

Os três amigos olharam-se em silêncio. Do almoço ningu     ém mais se lembrou. Com os dentes cerrados, as sobrancelhas carregadas     e os punhos convulsivamente contra ídos, Barbicane olhava através      - da vigia. Nicoles cruzara és braços e reexaminava os cálculos.     Michel. Ardan murmurava: - Grandes sábios, não haja dúvidas.     Bonita confusão em que nos meteram! Daria de bom grado vinte moedas     de ouro para cair em cima do Observatório de Cambridge e esmagá-lo     com todos esses falseadores; de algarismos! De súbito, o capitão     fez unia reflexão que ecoou no espírito de Barbicane.

Agora reparo! - disse ele. - São sete horas da manhã. Partimos,     portanto, há trinta e duas horas. Mais de metade do nosso trajeto está     percorrido e, que eu saiba, não estamos caindo! Barbicane manteve-se     em silêncio. Mas, após ter lançado unia rápida     olhadela na direção do capitão, pegou num compasso que     lhe servia para medir a distância. angular do Globo terrestre. Em seguida,     através da vidraça inferior, procedeu a unia observação     rigorosa, graças à imobilidade aparente do projétil.     Levantou-se então, limpando a testa molhada de suor, e anotou no papel     alguns algarismos.

Nicoles compreendeu que o presidente pretendia deduzir da medida do diâmetro     terrestre a distância do projétil á Terra. Olhava-o ansiosamente.

- Não! - quase gritou Barbicane, alguns instantes depois. - Não,     não caímos! Estamos já a mais de cinqüenta mil lé-      guas da Terra! Transpusemos o ponto em que o projétil pararia se a     velocidade à partida fosse apenas de doze mil jardas! Continuamos a     subir! - É evidente - raciocinou em voz alta Nicoles - que a nossa     velocidade inicial, sob impulso das quatrocentas mil libras de algodão-pólvora,     ultrapassou as doze mil jardas pedidas.

Isto explica que tivéssemos encontrado, passados apenas treze minutos,     o segundo satélite, que gravita a mais de duas mil léguas da     Terra.

- E tal explicação é tanto mais provável - acrescentou     Barbicane quanto é certo que o projétil ficou aliviado de parte     substancial do seu peso quando expeliu a água contida entre tabiques.

- Exato! disse Nicoles.

- Ah!, meu caro Nicoles - exclamou Barbicane estamos salvos! - Se é     assim - rematou tranqüilamente Michel Ardan -, acho melhor almoçarmos.

Nicoles não se enganava. A velocidade inicial fora, felizmente, superior     à indicada pelo Observatório de Cambridge, mas nem por isso     deixara a prestigiosa instituição de se enganar.

Os viajantes, já refeitos do falso alarma, sentaram-se à mesa     e almoçaram alegremente. Se comeram muito, falaram mais ainda. A confiança     era agora maior do que antes do ?incidente algébrico?.

- E por que razão não havemos de vencer? - repetia Michel     Ardan. - Por que não havemos de chegar? Vamos a caminho.

Diante de nós não há obstáculos. Não     há pedras no nosso trajeto. A estrada está livre, mais livre     do que a do navio que se debate no mar, mais livre do que a do balão     que luta com os ventos! Ora, se o navio chega ao porto de destino, se o balão     sobe até onde lhe apraz ? por que não há-de o nosso projétil     atingir o alvo que visou? - Atingirá - assegurou Barbicane.

- Nem que seja apenas para honrar o povo americano - acrescentou Michel     Ardan -, o único povo que seria capaz de levar a bom termo tal empresa,     o único que podia ver nascer no seu seio um Presidente Barbicane! Ah!     Só uma coisa me inquieta: agora, que acabaram as nossas preocupa ções,     em que nos havemos de ocupar? Vamos nos aborrecer terrivelmente! Barbicane     e Nicoles acenaram que não.

- Bem fiz eu em prevenir-me, meus amigos - prosseguiu Michel Ardan. - Basta     que peçam. Tenho à disposição de vocês xadrez,     damas, baralhos de cartas e dominós! Só me falta um bilhar!     - 0 quê? Trouxeste semelhantes ninharias? - perguntou Barbicane.

- Trouxe - respondeu Michel -, e não só para nossa distração,     mas também na louvável intenção de introduzir     esses nos botequins da Lua.

- Meu amigo - disse Barbicane -, se a Lua é habitada, os seus habitantes     apareceram alguns milhares de anos antes dos da Terra, porque ninguém     pode pôr em dúvida, que esse astro seja mais velho que o nosso.     Se, por conseguinte, os selenitas existem há centenas de milhares de     anos, se tem o cérebro estruturado como o nosso, inventaram já     tudo o que nós inventamos e até aquilo que havemos de inventar     no decurso dos séculos vindouros.

Em outras palavras, nada têm a aprender conosco, enquanto nós     teremos tudo a aprender com eles.

- Que dizes? - perguntou Michel Ardan. - Pensas então que tiveram     artistas com Fídias, Miguel Angelo e Rafael? - Sim.

- E poetas como Homero, Virgilio, Milton, Lamartine e Hugo? - Tenho certeza.

E filósofos como Platão, Aristóteles, Descartes e Kant?      - Não duvido.

- E sábios como Arquimedes, Euclides, Pascal e Newton? - Jurá-lo-ia.

- E cômicos como Arnal e fotógrafos como... como Nadar? - Com     certeza.? - Bem, amigo Barbicane, se eles são assim tão evoluídos,     por que não tentaram comunicar-se com a Terra? Por que não lançaram     uni projétil lunar em direção à superfície     terrestre? - E quem te disse que não o fizeram? - perguntou por sua     vez Barbicane, muito sério.

- Realmente - acrescentou Nicoles -, isso até seria mais fácil     para eles do que para nós, e por dois motivos: primeiro, porque a atração     é seis vezes menos intensa na superf ície da Lua do que na da     Terra, o que possibilitaria imprimirlhe unia velocidade de oito mil léguas     em vez de oitenta mil, o que requereria unia força propulsora dez vezes     menor.

- Então - insistiu Michel -, eu repito: por que não o fizeram?      - E eu - replicou Barbicane - volto a insistir: quem te disse que não     o fizeram? - Quando? - Há milhares de anos, antes da aparição     do homem na Terra.

- E o projétil? Onde está o projétil? - Meu amigo -      contemporizou Barbicane -, o mar cobre cinco sextos do nosso Globo. - Por     isto, há cinco boas razoes para supor que o projétil lunar,     se foi lançado, esteja agora no fundo do Atlântico ou do Pacífico.     A menos que se tivesse enterrado em alguma fenda, na época em que a     crosta terrestre não estava suficientemente solidificada.

- Meu velho - retorquiu Michel -, tens sempre unia explica- ção     para tudo. Inclino-me diante da tua sabedoria. Todavia, há unia hipótese     que me é mais cara: a de que os selenitas, sendo mais velhos e sábios     que nós, nem sequer tenham inventado a pólvora.

Nessa altura, Diana intrometeu-se na conversa, soltando uni sonoro latido.     Reclamava a sua ração.

- Ah! - fez Michel Ardan. - Com a discussão até nos esquecemos     de Diana e de Satélite.

Unia abundante sopa foi rapidamente preparada e oferecida à cadela,     que a devorou com grande apetite.

- Olha, Barbicane - dizia Michel -, o que deveríamos ter feito era     transformar o projétil numa segunda Arca de Noé e levar para     a Lua uni casal de todos os animais domésticos.

- Sem dúvida - respondeu Barbicane -, mas não teríamos     espaço. Ora, dava-se um jeito! - disse Michel. - Apertávamos     um pouco.

- A verdade é que um boi, uma vaca, uma égua e um cavalo ser-nos-íam,     muito úteis no continente lunar - opinou Nicoles. - Mas este foguete     não podia transformar-se numa estrebaria, nem num estábulo.

- Mas ao menos - disse Michel Ardan - poderíamos ter trazido uni     burro, uni pequeno e simples burro, o corajoso e paciente animal que o velho     Sileno gostava de montar! Como eu gosto dos pobres burros! São os animais     menos favorecidos da criação: não só lhes batem     enquanto vivos, como ainda depois de mortos.

- Que queres dizer? - inquiriu Barbicane.

- Ora essa - exclamou Michel Ardan. - Então não lhes aproveitam     a pele para fazer tambores? Barbicane e Nicoles não puderam deixar     de rir perante tão extravagante reflexão. Mas- a uni grito do     alegre companheiro calaram-se: Michel. estava curvado sobre o nicho de Satélite.     Quando se levantou, disse: - Satélite já não está     doente.

- Ali! - fez Nicoles.

- Não - prosseguiu Michel -, está morto. É uma pena     - acrescentou com unia voz melancólica. - Temo, minha pobre Diana,     que não possas perpetuar a tua espécie na Lua? Realmente ? o     infortunado Satélite não conseguira sobreviver ao grave ferimento.     Estava morto, bem morto. Michel Ardan, muito perturbado, olhava os amigos.

- Agora temos uni problema - murmurou Barbicane. - Não podemos manter     aqui o seu cadáver por mais quarenta e oito horas.

- Não, claro que não - apoiou Nicoles. - As nossas vigias     estão fixadas por dobradiças, podem abrir-se. Abriremos unia     e lançaremos o corpo no espaço.

Após ter refletido durante alguns instantes, o presidente disse:     Sim, teremos: de ir para essa solução, mas será necessá-      rio que observemos com rigor as precauções.

- Por quê? - perguntou Michel.

- Por duas razões fáceis de compreender - respondeu Barbicane.      - A primeira relaciona-se com o ar existente dentro do projétil, que     não podemos desperdiçar.

- Mas se nós o podemos refazer!...

- Só em parte. Apenas refazemos o oxigênio, meu caro Michel.     A propósito, temos de estar atentos ao aparelho, não vá     ele fornecer oxigênio em quantidade excessiva, porque tal excesso nos     traria perturbações fisiológicas muito graves. Se, porém,     refazemos o oxigênio, não produzimos o azoto, gás que     os pulmões não absorvem e que deve permanecer intato. Ora o     azoto escapar-se-ia rapidamente pela vigia aberta.

- Oh! Mas é só o tempo de lançar o pobre Satélite...     disse Michel.

- De acordo, mas temos que ser rápidos.

- E qual é a segunda razão? - perguntou Michel.

- A segunda razão diz respeito ao frio exterior. Porque é     intensíssimo, não o podemos deixar penetrar no projétil,     sob pena de nos gelarmos vivos.

Todavia o Sol...

0 Sol aquece o nosso projétil, que lhe absorve os raios, mas não     o vácuo em que flutuamos neste momento. Onde não há ar,     não há calor, nem luz difusa, e do mesmo modo que há     noite, há frio onde os raios do Sol não batem diretamente. A     temperatura exterior é apenas a que prov ém da irradiação     estelar, isto é, a mesma que banharia o Globo terrestre se um dia o     Sol se extinguisse.

- 0 que não é de temer... - considerou Nicoles.

- Quem sabe? - contrapôs Michel Ardan. - De resto, mesmo admitindo     que o Sol não se extinga, não pode dar-se o caso de a Terra     se afastar dele? - Pronto! - exclamou Barbicane. - Aí está Michel     com as suas idéias! - Oh! Acaso não se sabe que a Terra atravessou     a cauda de uni cometa em 1861? Ora, suponhamos que uni cometa, com unia força     de atração superior à atração solar, se     avizinha da Terra. A órbita terrestre inclinaria na direção     do astro errante e a Terra, transformada em satélite, seria arrastada     a unia distância tal que os raios do Sol deixariam de ter qualquer ação     na sua superfície.

- Isso pode acontecer, realmente - confirmou Barbicane -, mas as conseqüências     de semelhante afastamento poderiam ser bem menos temíveis do que tu     supões.

- E por quê? - Porque o frio e o calor se equilibrariam ainda no li     o Globo.

Estimou-se que, se tivesse sido arrastada pelo cometa de 1861, a Terra não     chegaria a receber, â máxima distância do Sol, calor igual     a dezesseis vezes o calor que na situa- ção atual a Lua lhe     envia, calor esse que, concentrado no foco das lentes mais potentes, não     produz qualquer efeito apreciável.

- E então? - insistiu Michel.

- Calma - aconselhou Barbicane. E prosseguiu: - Estimouse também     que no seu periélio, isto é, à distância mais próxima     do Sol, a Terra teria suportado uni calor igual a vinte e oito mil vezes o     do verão. Contudo, esse calor, capaz de vitrificar as matérias     terrestres e de vaporizar as águas, teria dado origem a uni anel de     nuvens de tal maneira espesso que atenuaria a excessiva temperatura. Daí     unia compensação entre os frios do afélio e os calores     do periélio e unia temperatura média provavelmente suportável.

- Mas em quantos graus se estima a temperatura dos espa ços interplanetários?      - perguntou Nicoles.

- Outrora - respondeu Barbicane -, acreditava que era unia temperatura excepcionalmente     baixa. Calculando o seu decrescimento termométrico, chegava-se a números     da ordem dos milhões de graus abaixo de zero. Foi Fourier, compatriota     de Michel e ilustre sábio da Academia das Ci- ências, quem reduziu     esses números a estimativas mais exatas. Segundo ele, a temperatura     do espaço não vai além dos sessenta graus negativos.

Ora! - disse Michel.

É mais ou menos a temperatura - prosseguiu Barbicane - que foi observada     nas regiões polares, na Ilha Melville e em Forte Refiance, que era     de cerca de cinqüenta e seis graus centígrados abaixo de zero.

- Resta saber - observou Nicoles - se Fourier se enganou nas avaliações.     Se bem me lembro, uni outro sábio franc ês, Pouillet, estima     a temperatura do espaço em cento e sessenta graus abaixo de zero. E     que nós verificaremos.

- Não por hora - advertiu Barbicane -, porque os raios solares, incidindo     diretamente no nosso termômetro, dar-nosiam, ao contrário, unia     temperatura muito elevada. Mas, quando chegarmos à Lua, durante as     noites de quinze dias que alternadamente ensombram cada uma das faces do astro,     teremos tempo para levar a cabo essa experiência, porque o nosso satélite     move-se no vácuo.

- Afinal, que entendes tu por vácuo? - perguntou Michel. - E o vácuo     absoluto? - É o vácuo completamente privado de ar.

- E nesse vácuo o ar não é substituído por nada?      - É. Pelo éter - precisou Barbicane.

- Ali! E o que é o éter? - 0 éter, meu amigo, é     unia aglomeração de átomos imponderáveis, que,     relativamente às suas dimensões, segundo dizem as obras de física     molecular, estão tão afastados uns dos outros como o estão     os corpos celestes entre si no espaço. Essa distância, porém,     é inferior a um terço de milionésimo de milímetro.     São esses átomos que, através do movimento vibratório     de que estão animados, produzem a luz e o calor, chegando a alcançar     quatrocentos e trinta trilhões de vibrações por segundo,     numa amplitude que não excede quatro ou seis décimos milésimos     de milímetro.

- Bilhões de bilhões! - exclamou Michel Ardan. - Enfim, algu     ém já mediu essas oscilações? Tudo isso, amigo     Barbicane, são números de sábios que enchem os ouvidos     mas nada dizem ao espírito.

- Mas é indispensável calcular...

- Não. É preferível comparar. Uni trilhão nada     diz. Uni termo de comparação, ao contrário, diz tudo.     Exemplo: se me disseres que o volume de Urano é setenta e seis vezes     superior ao da Terra, o de Saturno novecentas, o de Júpiter mil e trezentas     e o do Sol um milhão e trezentas mil, fico absolutamente indiferente.     Por isso, prefiro, e de longe, as antigas comparações do Double     Liégeois, que nos informam muito por baixo: o Sol é unia abóbora     com dois pés de diâmetro, Júpiter unia laranja, Saturno     unia pequena maçã avermelhada, Netuno uma tangerina, Urano unia     enorme cereja, a Terra uni grão-de-bico, Venus uma ervilha, Marte uma     grande cabeça de alfinete, Mercúrio um grão de mostarda,     e Juno, Ceres, Vêsta e Palas simples grãos de areia! Ao menos     assim a gente sabe a que ater-se! Depois desta tirada de Michel Ardan contra     os sábios e os trilhões que rabiscam sem pestanejar, trataram     de desembara çar-se do corpo de Satélite. Nada mais havia a     fazer do que lançá-lo no espaço, do mesmo modo que os     marinheiros lançam os cadáveres ao mar.

A 4 de dezembro, os cronômetros marcavam 1 cinco horas da manhã,     quando os viajantes acordaram. Iam decorridas cinqüenta e quatro horas     de viagem. No que respeita a tempo, apenas haviam excedido em cinco horas     e quarenta minutos a metade da duração prevista para a sua permanência     no projétil; mas, quando a trajeto, tinham já cumprido perto     de sete décimas partes do percurso total, particularidade esta que     era conseqüência da regular diminui ção da velocidade.

Assim que Michel desceu, aproximou-se da vigia lateral e, de súbito,     deixou escapar unia exclamação de surpresa.

- Que é que foi agora? - inquiriu Barbicane.

0 presidente aproximara-se também da vigia. Avistou uma espécie     de saco espalmado, que flutuava no exterior e alguns metros do projétil.     0 objeto parecia imóvel e, no entanto, estava animado do mesmo movimento     ascensional que impulsionava o projétil.

- Que raio de coisa é aquela? - repetia Michel Ardan, estupefato.     - Será uni desses corpúsculos espaciais que o nosso projétil     retém no seu raio de atração e que nos vai acompanhar     até a Lua? 0 que me espanta - confessou Nicoles - é que o peso     espec ífico daquele corpo, por certo inferior ao do projétil,     lhe permita manter-se tão rigorosamente ao mesmo nível! - Nicoles      - disse Barbicane, após um momento de reflexão -, não     sei que objeto é aquele, mas sei perfeitamente a razão por que     se mantém ao lado do projétil.

- E qual é? - Não nos esqueçamos, meu caro capitão,     que flutuamos no vácuo e que no vácuo os corpos caem ou movem-se,     o que é a mesma coisa, com unia velocidade igual, seja qual for o seu     peso e a sua forma. É o ar que, pela sua resistência, determina     as diferenças de peso. Quando se obtém pneumaticamente o vácuo     num tubo, os objetos lá existentes, quer se trate de grãos de     poeira ou de chumbo, caem todos com a mesma rapidez. Aqui, no espaço,     - a mesma causa determina o mesmo efeito.

- Certíssimo - disse Nicoles. - Tudo o que alijarmos acabará     por acompanhar o projétil na sua viagem até a Lua.

- Ali! - gritou Michel.

- Que tens, homem de Deus? - perguntou Nicoles.

- Eu sei, eu advinho o que é aquele falso bólide! Não     é uni asteróide o que nos acompanha! Nem sequer uni fragmen     to de planeta! - Que é então? - perguntou Barbicane.

- É o nosso infeliz cão! É o companheiro de Diana!     Na verdade, aquele objeto deformado, irreconhecível, reduzido a nada,     era o corpo de Satélite, espalmado como uma gaita de fole vazia, que     subia, subia sempre! Era o corpo de Satélite.

 

Capítulo 5

Um momento de embriaguez

 

Eis como um fenômeno curioso, mas lógico, fora do comum, mas     explicável, se produzia em singulares condições.

Todo o objeto alijado do projétil tendia a seguir a mesma trajetória     e a parar apenas quando ele parasse. Esta a mat éria que uma noite     inteira de conversa não pode esgotar.

A emoção dos três companheiros crescia, aliás,     à medida que se aproximava o fim da viagem. Esperavam o imprevisto,     os fenômenos mais fantásticos. Na disposição de     espírito em que estavam, nada os teria espantado.

Superexcitada, a imaginação ia-lhes adiante do projétil,     cuja velocidade diminuía acentuadamente, sem que disso se apercebessem.     Mas a Lua aumentava de dimensão a olhos vistos, a tal ponto que acreditavam     bastar-lhes estender a mão para nela tocar.

No dia seguinte, 5 de dezembro, logo às cinco da manhã, todos     estavam de pé. Este devia ser o último dia de viagem, se os     cálculos estivessem exatos. Nessa mesma noite, à meia-noite,     dentro de dezoito horas e no preciso momento da lua cheia, alcançariam     o resplandecente disco.

Avizinhava-se a hora em que se completaria aquela viagem - a mais extraordinária     de todos os tempos. Não admira, portanto, que desde manhã, através     das vigias prateadas pelo luar, os três viajantes não cessassem     de sau dar o astro da noite, a lua, com confiantes e alegres burras! A lua     avançava majestosamente no firmamento estrelado.

Apenas alguns graus mais, e ela alcançaria o ponto exato do espaço     onde se daria o seu encontro com o projétil. De acordo com as suas     próprias observações, Barbicane calculou que a abordariam     pelo hemisfério norte lá onde se alongam as imensas planícies     e rareiam as montanhas. Circunst ância favorável, se a atmosfera     lunar, como se pensava, estivesse apenas concentrada nos locais mais baixos.

- Por outro lado - considerou Michel Ardan -, uma planície é     mais adequada a um desembarque do que uma montanha.

Um selenita que descesse na Europa no cimo do Monte Branco, ou na Ásia     no pico do Himalaia, não teria propriamente chegado! - De mais a mais      - acrescentou Nicoles -, num terreno plano o projétil ficará     imóvel logo que o toque. Numa vertente, pelo contrário, rolaria     como uma bola, e, como não somos esquilos, não sairíamos     de lá sãos e salvos. Logo, tudo vai bem.

Na verdade, o êxito da audaciosa experiência parecia assegurado.

Apesar disso, algo preocupava Barbicane. Por ém, como não     queria inquietar os companheiros, nada disse.

0 fato é que a direção que o projétil tomava,     rumava para o hemisfério norte da Lua, provava que a sua trajetória     fora ligeiramente modificada. 0 tiro, matematicamente calculado, deveria levar     o projétil mesmo até o centro do disco lunar. Se não     o alcançasse, era porque tinha havido um desvio. Que circunstância     o teria provocado? Barbicane não o sabia, assim como estava impedido     de determinar a import ância do fato por lhe faltarem pontos de referência.

Esperava, todavia, que não tivesse outro resultado senão o     de levá-lo na direção do bordo superior da Lua, região     muito mais propícia à alunissagem.

Barbicane contentou-se, portanto, em observar freqüentemente a Lua     para ver se a trajetória do projétil se mantinha, e decidiu     guardar para si a inquietação que sentia.

A situação tornar-se-ia dramática se o projétil,     falhando o alvo, se perdesse nos espaços interplanetários.

Naquele momento, a Lua, em vez do aspecto achatado de um disco, deixava     perceber a sua convexidade. Se o Sol a tivesse iluminado obliquamente com     os seus raios, a sombra projetada teria feito sobressair as altas montanhas     em nítido relevo. 0 olhar teria podido mergulhar nos escancarados abismos     das crateras e seguir as caprichosas fendas que zebram a imensidade das planícies.     Mas todo o relevo estava ainda nivelado por um intenso esplendor. Distinguiam-      se apenas as largas manchas que dão à Lua a aparência     de um rosto humano.

- Rosto? Seja - dizia Michel Ardan. - Mas, e sinto-o muito pela amável     irmã de Apolo, um rosto crivadinho de bexigas1 Já muito próximos     do destino, os viajantes olhavam fascinados aquele mundo novo. A imaginação     levava-os a passear por aquelas regiões desconhecidas. Trepavam aos     picos elevados, desciam às profundezas? das enormes crateras.

Aqui e ali, julgavam ver vastos mares mal contidos pela atmosfera rarefeita,     e cursos de água que colhiam o tributo das montanhas. Debruçados     no abismo, esperavam surpreender os rumores daquele astro, eternamente mudo     nas solidões do espaço.

Essa última parte da jornada deixou-lhes palpitantes recorda ções.     Anotaram-lhes os mais ínfimos pormenores. Uma vaga inquietação     penetrava-os à medida que se acercavam do fim da viagem. Tal inquietude     teria redobrado se tivessem apercebido de quanto era medíocre a velocidade     até o almejado alvo. É que então o projétil já     quase não pesava. 0 seu peso decrescia sem cessar e devia desaparecer     totalmente sobre a linha onde as atrações lunar e terrestre     se neutralizam, o que iria provoca surpreenden tes efeitos.

A despeito das suas preocupações, Michel. Ardan não     se esqueceu de preparar a refeição matinal com a habitual pontualidade.     Comeram com grande apetite. Nada mais excelente do que as carnes em conserva.     Alguns copos de um bom vinho francês coroaram a refeição.     A este propó- sito, Michel Ardan fez notar que as vinhas lunares, aquecidas     por aquele ardente sol, deviam produzir vinhos dos mais generosos - se é     que lá existiam. Em todo o caso, o previdente francês não     se esquecera de incluir na sua bagagem algumas preciosas cepas do Médoe     e da Côte-D?Or, nas quais depositava grandes esperanças.

0 aparelho Reiset e Regnault funcionava com extrema precis ão. 0     ar mantinha-se num estado de perfeita pureza.

Nenhuma molécula de ácido carbônico resistia à     potassa, e quanto ao oxigênio era certamente de primeira qualidade,     dizia o Capitão Nicoles. 0 reduzido vapor de água existente     no projétil misturava-se com o ar, atenuando-lhe a secura.

Muitas das casas de Paris, Londres ou Nova Iorque, tal como muitas salas     de teatro, não possuíam decerto condições tão     higiênicas.

Contudo, para funcionar cem por cento era necessário que o aparelho     fosse mantido em perfeito estado, pelo que todas as manhãs Michel inspecionava     os reguladores de saí- da, experimentava as torneiras e regulava com     o pirômetro a intensidade do gás. Até ali tudo tinha corrido     bem, e os viajantes, imitando o respeitável J. T. Maston, começavam     a ganhar carnes, de tal forma que ninguém os reconheceriam se o seu     encerramento durasse mais alguns meses.

Em uma palavra, sucedia-lhes o que acontece aos frangos na capoeira: engordavam.

Olhando através das vigias, Barbicane viu o cadáver do cão     e os diversos objetos lançados do projétil, que o acompanhavam     obstinadamente. Diana uivava lugubremente ao pressentir os restos de Satélite.     Todos aqueles despojos pareciam tão imóveis como se estivessem     pousados em terreno sólido.

- Sabem, meus amigos - dizia Michel Ardan -, que se um de nós não     tivesse resistido ao abalo da partida, teríamos sido forçados,     com muita pena embora, a enterrá-lo, que digo eu, a ?eterizá-lo?,     uma vez que aqui o éter substitui a terra! Imaginem que esse cadáver     acusador nos seguiria pelo espa ço como um remorso! - Teria sido muito     triste - disse Nicoles.

Finalmente, os três companheiros de viagem, cujos pulm ões     estavam afetados por incompreensível causa, mais do que ébrios,     queimados pelo ar que lhes incendiava o aparelho respiratório, caíram     sem sentidos no pavimento do projétil.

Que se passava? De onde provinha a causa daquela estranha embriaguez, cujas     conseqüências podiam ser desastrosas? De uma simples imprudência     de Michel, que, com rara felicidade, Nicoles pôde remediar a tempo.

Depois de um desmaio que durou alguns minutos, o capit ão foi o primeiro     a recuperar os sentidos e as faculdades intelectuais.

Apesar de ter almoçado apenas há duas horas, sentia uma fome     terrível que o atormentava como se não comesse há vários     dias. Tudo nele, estômago e cérebro, estava superexcitado no     mais alto grau.

Levantou-se e naturalmente pediu a Michel uma refeição suplementar.     Michel, desmaiado ainda, não respondeu.

Nicoles quis então preparar algumas chávenas de chá,     destinadas a facilitar a ingestão de uma dúzia de sanduíches.

Em primeiro lugar, tratou de arranjar lume, pelo que acendeu um fósforo.     Foi enorme a surpresa ao ver brilhar o enxofre com um clarão tão     intenso que os olhos só a custo podiam suportar. Do bico de gás,     que acendeu também, jorrou uma chama comparável aos jatos de     luz elétrica.

Uma revelação acudiu de imediato ao espírito de Nicoles.     A intensidade da luz, as perturbações psicológicas que     experimentara, a excitação das faculdades morais e afetivas      - tudo se explicava e compreendia.

- 0 oxigênio! - exclamou ele.

E, curvando-se para o aparelho de ar, notou que a torneira vertia jorros     de gás incolor, insípido e inodoro, eminentemente vital, mas     que, no estado puro, ocasiona as mais graves perturbações no     organismo. Por desatino, Michel deixara completamente aberta a torneira do     aparelho! Nicoles tratou de estancar o escoamento do oxigênio, de que     a atmosfera estava saturada, e que teria causado a morte aos viajantes, não     por asfixia, mas por combustão.

Uma hora depois, o ar, menos carregado, permitia aos pulm ões um     funcionamento normal. Pouco a pouco, os três amigos restabeleciam -      se da embriaguez, mas tiveram de curtir o oxigênio como o bêbado     curte o vinho.

Quando soube qual era a parte de responsabilidade que lhe tocava no incidente,     Michel nem por isso se mostrou muito preocupado. Afinal, aquela inesperada     embriaguez quebrara a monotonia da viagem. Muitas tolices foram ditas sob     o efeito dessa ebriedade, mas tão depressa se disseram como se esqueceram.

- Depois - acrescentou o alegre francês -, não estou nada aborrecido     por ter provado um pouco desse capitoso gás.

Sabem, meus amigos, que seria Curioso fundar um estabelecimento com salas     de oxigênio, onde as pessoas de organismo débil pudessem viver     uma vida mais ativa durante algumas horas? Imaginem reuniões em que     o ar estivesse saturado desse fluido heróico, teatros cujas administra     ções o fornecessem em alta dose no decurso dos espetáculos...     Que paixão, que fogo, que entusiasmo na alma dos atores e dos espectadores!     E se, em vez de uma simples assembléia, se pudesse saturar um povo     inteiro, que acréscimo de produção e. de vida o gás     lhe proporcionaria! De uma nação esgotada talvez se fizesse     uma na- ção cheia de vitalidade, e mais de uma conheço     eu, na nossa velha Europa, que deveria ser submetida a um rigoroso regime     de oxigênio, a bem da sua saúde! - Michel falava com tal animação     que quase se acreditava estar a torneira ainda demasiado aberta. Mas, apenas     com uma frase, Barbicane esfriou-lhe o entusiasmo.

- Tudo isso está muito bem, amigo Michel - disse-lhe -, mas és     capaz de nos explicar de onde vieram estas galinhas que entraram na nossa     representação? - As galinhas? - Sim.

De fato, uma meia dúzia de galinhas e um soberbo galo passeavam de     um lado para o outro, esvoaçando e cacarejando.

- As desajeitadas! - exclamou Michel. - Foi o oxigênio que lhes deu     volta à cabeça! - Mas, com a breca, que queres fazer destas     galinhas? - perguntou Barbicane.

- Aclimatá-las à Lua, ora essa! - Então por que as     escondidas? - Por brincadeira, meu estimado presidente, uma simples brincadeira     que afinal se malogrou ingloriamente! 0 meu plano era largá-las na     Lua sem vos dizer nada. Hem? Qual seria o vosso espanto ao ver estes voláteis     terrestres debicando nos campos lunares?...

- Ah, garoto, eterno garoto! - replicou Barbicane. - Nem precisas que o     oxigênio te suba à cabeçal Estás sempre como nós     estávamos sob a influência desse gás. És um louco!      - Ah, sim! E quem te diz que não estávamos então no nosso     perfeito juízo? - perguntou Michel Ardan.

Após esta reflexão filosófica, os três amigos     trataram de arrumar o projétil. Galinhas e galos voltaram às     gaiolas.

Contudo, enquanto procediam a essa operação, Barbicane e os     dois companheiros tiveram a nítida sensação de um novo     fenômeno.

A partir do momento em que deixaram a Terra, tanto o peso deles como o do     projétil e dos objetos que continha haviam sofrido uma progressiva     redução. Se não podiam verificar tal perda em relação     ao projétil, chegaria o momento em que esse efeito se lhes tomaria     sensível a eles próprios e aos utensílios e instrumentos     de que se serviam.

Escusado será dizer que uma balança normal não poderia     acusar tal redução porque o peso destinado a pesar o objeto     perderia precisamente o mesmo que o próprio objeto. Todavia, por meio     de uma balança de mola, por exemplo, cuja tensão é independente     da atração, conseguir-se-ia a exata avaliação     dessa perda.

Sabe-se que a atração, ou, dito de outro modo, a gravidade,     é proporcional às massas e está na razão inversa     do quadrado das distâncias. Daí a seguinte conseqüência:     se a Terra estivesse sozinha no espaço, se os outros corpos celestes     desaparecessem subitamente, o projétil, de acordo com a lei de Newton,     haveria de pesar tanto menos quanto mais afastado estivesse da Terra, mas     sem nunca perder por completo o peso, visto que a atração terrestre     sempre havia de fazer-se sentir, fosse que tal fosse a dist ância.

No caso presente, porém, havia de chegar o momento em que o projétil     deixaria de estar sujeito às leis da gravidade, pondo de parte os demais     corpos celestes, cuja ação se podia considerar como nula.

Realmente, a trajetória do projétil estava traçada     entre a Terra e a Lua. À medida que se afastava da terra, a atração     terrestre descrevia na razão inversa do quadrado das dist âncias,     mas simultaneamente a atração lunar .aumentava na mesma proporção.     Assim, havia de chegar a um ponto em que, neutralizadas as duas atrações,     o projétil deixaria de ter peso. Se a massa da Lua e a da Terra fossem     iguais, esse ponto localizar-se-ia precisamente a meio da distância     entre os dois astros. Porém,, tendo em consideração a     diferença de massas, fácil se tornava calcular que o tal ponto     se situava aos 47/52 da viagem, ou seja, em números mais claros, a     setenta e oito mil cento e quatorze léguas da Terra.

Nesse ponto, qualquer corpo que não contivesse em si mesmo meios     de deslocação ou de velocidade ficaria eternamente imóvel,     visto que a força de atração dos dois astros se equivaleria     e não haveria, conseqüentemente, preponder ância de nenhuma     delas.

- Ora, se a força de impulsão tivesse sido calculada com rigor,     o projétil devia atingir esse ponto com uma velocidade nula e total     ausência de gravidade, extensível aos objetos que transportava.

- Que aconteceria então? Três hipóteses e se apresentavam:     Ou o projétil, se porventura conservasse ainda uma certa velocidade     que lhe permitisse transpor o ponto de igual atração, cairia     na Lua em virtude da preponderância da atração lunar em     relação à terrestre.

Ou, por falta de velocidade para atingir esse ponto, voltaria a cair na     Terra, graças ao predomínio da atração terrestre     sobre a lunar.

OU, finalmente, animado de uma velocidade suficiente para atingir o ponto     neutro, mas insuficiente para ir além dele, ficaria eternamente suspenso     nesse lugar, como o pretenso túmulo de Maomé, entre o zênite     e o nada.

Tal era a situação, cujas conseqüências Barbicane     explicou de forma clara aos companheiros. A questão interessavalhes     profundamente. Então, como haviam de saber se o projétil atingiria     esse ponto neutro, situado a setenta e oito mil cento e quatorze léguas     da Terra? No preciso instante em que eles e os objetos que os rodeavam deixassem     de estar sujeitos aos efeitos da gravidade.

Até ali, os viajantes, embora verificando que tais efeitos decresciam     progressivamente, ainda não tinham sentido a ausência total daquela     força. Mas naquele dia, por volta das onze horas da manhã, Nicoles,     ao largar um copo na mão, viu que o mesmo, em vez de cair, ficava suspenso     no ar.

- Ah! - exclamou Michel Ardan. - Ora aí está um passe de física     recreativa.

E logo tratou de tirar dos apoios respectivos diversos objetos, como armas     e garrafas, que, abandonados a si mesmos, se mantiveram suspensos como por     milagre. Até Diana, uma - vez colocada no espaço recriou, mas     sem qualquer astúcia, a maravilhosa suspensão inventada pelos     Gaston e pelos Rober-Houdin. A cadela, aliás, não parecia aperceber-se     de que flutuava no ar.

Os três companheiros, eles próprios, transportados aos domínios     do maravilhoso, experimentavam, entre surpreendidos e estupefatos, apesar     dos raciocínios científicos, uma sensação de total     leveza, que lhes era proporcionada pela ausência de peso. Se estendiam     um braço, nada o impedia de ficar estendido. A cabeça vacilavallíes     sobre os ombros. Os pés já não se apoiavam no chão     do projétil.

Estavam como ébrios, com o sentido de equilíbrio desequilibrado.

0 fantástico criou homens sem imagem reflexa ou sem sombra. Mas no     projétil, a realidade, mediante a neutralização das forças     atrativas, criara homens sem peão e a quem nada pesava! De repente,     Michel, tomando impulso, deixou o projétil e ficou suspenso ?no ar,     como o - monge da Cuisine des Anges, de Murillo.

Poucos instantes depois, juntavam-se-lhe os dois amigos, e os três,     no centro do projétil, simbolizavam uma ascens ão maravilhosa.

- É isto possível? É verossímil? É real?     - perguntou Michel.

Não. E todavia é1 Ah, se Rafael nos visse assim, que Assun     ção não teria esboçado na tela.

- A assunção não pode durar - disse Barbicane. - Logo     que o projétil passe o ponto neutro, ficaremos sujeitos à atração     lunar.

- E apoiaremos os pés na cúpula do projétil - concluiu     Michel.

- - Não - emendou Barbicane -, porque o projétil, cujo centro     de gravidade é muito baixo, há de voltar-se pouco a pouco.

- Bom, já percebi. Vai ficar tudo de pernas para o ar.

- Descansa, Michel - interveio Nicoles. - Não há que temer     a mínima desarrumação. Nenhum objeto sairá do     seu lugar, porquanto a evolução do projétil far-se-á     de um modo insensível.

- De fato - explicou Barbicane -, quando o projétil passar para além     do ponto em que as atrações se anulam, a sua base, porque é     relativamente mais pesada, arrastá-lo-á para uma posição     perpendicular à Lua. Mas para que este fenô- meno ocorra é     preciso que tenhamos passado a linha neutra.

- Passar a linha neutra! - exclamou Michel. -,Façamos como os marinheiros     que passam o equador: festejemos condignamente o fato! Um ligeiro movimento     lateral levou Michel até a parede acolchoada.

Ali, pegou numa garrafa e em copos, que foi colocar no espaço, diante     dos companheiros. Em seguida, bebericando alegremente, saudaram a linha com     um tríplice hurra 0 equilíbrio de atrações durou     apenas uma hora, ao fim da qual os viajantes começaram a se sentir     atraídos para o fundo do projétil. Barbicane julgou mesmo ver     que a ponta cônica do projétil se afastava um pouco da posição     precedente, que o apontava para a Lua, ao mesmo tempo que a base, por um movimento     inverso, dela se aproximava. A atração lunar predominava portanto     sobre a terrestre. A descida em direção ao astro da noite começava     de uma forma ainda imperceptível, já que devia ser apenas, no     primeiro segundo, de um milímetro e um terço, isto é,     quinhentos e noventa milésimos de finha. Mas, pouco apouco, a força     de atração acentuaria, a descida tornar-se-ia mais perceptível     e o projétil, arrastado pelo peso da base, voltaria o cone superior     para a Terra e desceria, com uma velocidade crescente, até a superfície     lunar. 0 objetivo seria, portanto, atingido. Nesse momento nada podia impedir     o êxito da empresa, e Nicoles e Michel Ardan partilharam da alegria     de Barbicane.

 

Capítulo 6

Conseqüências de um desvio

 

Barbicane já não sentia qualquer inquietação,     se não sobre o êxito da viagem, pelo menos a respeito da força     de impulsão do projétil, cuja velocidade virtual o levava a     ultrapassar a linha neutra. Portanto, nem voltaria à Terra nem se imobilizaria     no ponto de anulação das atrações. Das hip óteses     aventadas, uma única ainda não se realizara: a chegada do projétil     ao alvo pela ação da atração lunar.

Na realidade, era uma queda de oito mil duzentas e noventa e seis léguas     sobre um astro onde a gravidade tem apenas a sexta parte do valor da terrestre.     Apesar disso, a queda seria formidável, pelo que todas as precauções     deviam ser tomadas sem demora.

Havia a considerar duas espécies de precauções: uma     destinada a amortecer o choque no momento em que o projétil caísse     no solo lunar, outra tendente a retardar-lhe a queda, tornando-a, conseqüentemente,     mais suave.

Para amortecer o choque, pena era que Barbicane não dispusesse dos     mesmos meios que tão eficazmente haviam atenuado o abalo da partida,     isto é, da água para servir de almofada e dos tabiques quebradiços.     Estes ainda existiam, mas faltava a água, visto que nada aconselhava     a utilizar para esse fim a reserva de que dispunham, reserva preciosa no caso     de vir a faltar-lhes o elemento líquido nos primeiros dias de permanência     no solo lunar.

A reserva era insuficiente para servir de almofada. A camada de água     armazenada no projétil à partida, sobre a qual assentava o disco     estanque, ocupava nada menos de aos pés de altura, tendo por base uma     área de cinqüenta pés quadrados. Era uni volume de seis     metros cúbicos, que pe178 sava cinco mil setecentos e cinqüenta     quilos. Ora, os recipientes da reserva não comportavam nem a quinta     parte daquele volume. Obviamente, havia que renunciar ao emprego desse poderoso     meio de amortecer o choque da chegada.

Por uni feliz acaso, Barbicane não se contentara em empregar apenas     água e munira o disco móvel com fortíssimas molas, destinadas     a minorar o choque na base do projétil, depois da destruição     dos tabiques horizontais. Essas molas também não se haviam perdido,     mas necessitavam de ser reajustadas, assim como o disco móvel precisava     de ser reposto na posição inicial. Tornava-se fácil manipular     e levantar todas essas peças, dado que o seu peso era naquele momento     diminuto.

E assim se fez. As diferentes partes foram reajustadas sem qualquer dificuldade.     Com alguns parafusos e porcas, a quest ão resolveu-se, já que     a respeito de ferramentas estavam os viajantes bem fornecidos. Em breve, o     disco, totalmente recomposto, assentou sobre os seus suportes de aço,     como unia mesa nos seus pés. A recolocarão apresentava, contudo,     um inconveniente: a vidraça inferior ficava obstruída, o que     impossibilitaria os viajantes de observar a Lua por aquela abertura, quando     começassem a cair na perpendicular do globo lunar. Mas assim tinha     de ser. Mas ainda se poderia avistar vastas regiões lunares pelas vigias     laterais, como se vê a Terra da barquinha de uni aeróstato.

A montagem do disco exigiu unia hora de trabalho. Passava do meio-dia quando     os preparativos foram dados por concluídos. Depois, Barbicane procedeu     a novas observa- ções sobre a inclinação do projétil;     mas, com grande pesar, verificou que ele não se voltara o suficiente     para iniciar a queda, antes parecia seguir unia curva paralela ao disco lunar.     0 astro da noite brilhava esplendidamente no espaço, enquanto do lado     oposto o astro do dia o incendiava com os seus raios de fogo.

A situação era inquietante.

Conseguiremos chegar? - perguntou Nicoles.

- Procedamos como se estivéssemos para chegar - respondeu laconicamente     Barbicane.

- Grandes medrosos me saíram! - censurou Michel Ardan.

- Chegaremos e mais depressa do que desejamos.

Tal resposta fez com que Barbicane retomasse os trabalhos preparatórios     e se ocupasse de imediato com a inspeção dos engenhos destinados     a amortecer a queda.

Convém aqui lembrar o meeting que teve lugar em Tampa, na Flórida,     durante o qual o Capitão Nicoles se apresentou como inimigo de Barbicane     e como adversário de Michel Ardan. Ao Capitão Nicoles, que sustentava     que o projétil se partiria como uni vidro, Michel respondera que lhe     amorteceria a descida por meio de foguetes convenientemente dispostos.

Realmente, possantes engenhos pirotécnicos, montados na base de projétil     para funcionar no exterior, podiam produzir uni movimento de recuo e, com     seqüentemente, diminuir numa certa proporção a velocidade     do projétil. É verdade que esses foguetes tinham de arder no     vácuo, mas o oxigênio não lhes, faltaria, porque a própria     combinação pirotécnica o forneceria, como acontece com     os vulcões lunares, cuja erupção nunca deixou de dar-se     por falta de atmosfera em torno da Lua.

Barbicane munira-se, portanto, de vários engenhos pirotécnicos,     contidos em pequenos tubos de aço que dispunham de rosca, que se podiam     atarraxar à base do projétil.

Interiormente, os tubos afloravam-lhe o fundo. Exteriormente destacavam-se-lhe     em cerca de meio pé. Eram ao todo vinte. Unia abertura, especialmente     contra o efeito e localizada no disco móvel permitia acender a mecha     de que uni estava provido. Devido à sua colocação todo     o efeito se produzia para o lado de fora. As misturas que entrariam em fusão     foram previamente introduzidas sob pressão nos tubos. Bastava, portanto,     retirar os obturadores metálicos engastados na base do projétil     e substituí-los pelos tubos, que se ajustavam rigorosamente às     aberturas deixadas por aqueles.

Essa operação foi concluída às três horas.     Tomadas tais precauções, nada mais havia a fazer senão     esperar. .

Entretanto, o projétil aproximava-se visivelmente da Lua.

Era evidente que estava submetido à sua influência numa certa     proporção. Mas a velocidade própria, impulsionava-o também     numa direção oblíqua. A resultante destas duas forças     era unia linha que muito provavelmente se transformaria numa tangente. Unia     coisa, porém, era clara: o projétil não cairia normalmente     para a superfície da Lua, porque, sendo assim, a parte inferior, em     virtude do seu peso, deveria estar voltada para o astro.

As inquietações de Barbicane redobravam, visto que o projétil     resistia às influências da gravitação. 0 desconhecido     dos espaços interestelares, abria-se diante dele. Ele, o homem de ciência,     julgara ter previsto todas as hipóteses possí- veis: regresso     à Terra, queda na Lua ou imobilidade sobre a linha neutral E eis que     unia outra, carregada de todos os terrores do infinito, surgia inopinadamente.     Para enfrentá- la sem desânimo, era preciso ser-se uni sábio     resoluto como Barbicane, uni ente fleumático como Nicoles ou uni audacioso     aventureiro como Michel Ardan.

0 assunto dominou daí em diante todas as conversas. Outros homens     teriam considerado o problema do ponto de vista prático. A si próprios     teriam perguntado para onde os arrastaria o vagão-projétil.     Eles, não. Limitaram-se a tentar descobrir a causa que provocara aquele     efeito.

- Quer dizer que descarrilhamos. Mas porquê? - Receio - aventou Nicoles      - que o columbiad, apesar de todas as precauções tomadas, não     tenha sido apontado com a exatidão necessária. Uni erro, por     muito pequeno que fosse, bastava para nos pôr fora da atração     lunar.

- Teria sido então uni erro de pontaria? - perguntou Michel.

- Não, não o creio - disse Barbicane. - A perpendicularidade     do canhão era rigorosa; a direção para o zênite     do lugar incontestável. Ora, como a Lua passava pelo zênite,     devíamos atingi-la em cheio. Há outra razão, mas não     atino com ela...

- Não chegaremos muito tarde? perguntou de chofre Nicoles.

- Muito tarde? - ecoou Barbicane.

Sim - explicou Nicoles. - A nota do Observatório de Cambridge diz     que o trajeto deve completar-se em noventa e sete horas, treze minutos e vinte     segundos. 0 que quer dizer que, mais cedo, a Lua não estará     ainda no ponto indicado, e que, mais tarde, já lá não     se encontrará.

- De acordo - replicou Barbicane. - Mas nós partimos em 1? de dezembro,     às dez horas, quarenta e seis minutos e setenta e cinco segundos da     noite, e devemos chegar à meia-noite do dia 5, no momento preciso em     que a Lua estiver em plenilúnio. Pois bem, estamos a 5 de dezembro     e são três e meia da tarde. Deveriam bastar, portanto, oito horas     e meia para atingirmos o alvo. Então por que é que não     chegamos? - Não será por excesso de velocidade? - lembrou Nicoles.     - Porque sabemos agora que a velocidade inicial foi maior do que supúnhamos.

- Não! Cem vezes não! - bradou Barbicane. - Uni excesso de     velocidade, se a direção do projétil fosse boa, não     nos impediria de atingir a Lua. Não! Houve um desvio! Fomos desviados.

- Por quem? Por quê? - interrogou Nicoles.

- Nada posso dizer - confessou Barbicane.

- Olha, Barbicane - disse então Michel -, tens interesse em saber     a minha opinião sobre o desvio? - Fala, homem.

- Eu nem meio dólar dava para o saber! Desviamo-nos, é um     fato. Para onde vamos, tanto faz como tanto fez! Vê-lo-emos na altura     própria. Que diabo! Uma vez que estamos sendo arrastados por esse espaço,     acabaremos por ir parar a algum centro de atração.

A indiferença de Michel Ardan não podia contentar Barbicane.

Não que este se inquietasse com o futuro! 0 que o preocupava era     o desvio do seu projétil, cuja razão queria conhecer custasse     o que custasse.

Enquanto isto, o projétil continuava a deslocar-se lateralmente em     relação à Lua, e com ele todo o cortejo de objetos alijados.     Tomando pontos de referência na Lua, que estava a menos de duas mil     léguas, Barbicane pôde até concluir que a velocidade se     ia tornando uniforme. Nova prova de que não haveria queda. A força     de impulsão sobrepunha- se ainda à atração lunar,     mas a trajetória do projétil aproximava-o decerto do disco lunar,     pelo que podia esperar-se que, a menor distância, a ação     da gravidade predominasse e provocasse finalmente a queda.

Os três companheiros, por nada de melhor terem para fazer, prosseguiam     com as observações. Continuavam, por ém, sem poder determinar     a disposição topográfica do satélite. A projeção     dos raios solares nivelava todos os relevos.

Barbicane obstinava-se em encontrar unia solução para o insolúvel     problema que se lhe deparava.

As horas decorriam e a situação mantinha-se. 0 projétil     aproximava-se visivelmente da Lua, mas era também visí- vel     que não a atingiria. Quanto a saber-se até que distância     o projétil se aproximaria da sua superfície pouco ou nada se     podia avançar, visto que essa distância seria a resultante das     duas forças - a atrativa e a repulsiva - que atuavam sobre o móvel.

- Só peço unia coisa - repetia Michel. -: passar tão     perto da Lua quanto possível para lhe desvendar os segredos! - Amaldiçoada     seja a causa que fez - desviar o nosso projétil - desabafou Nicoles.

- Amaldiçoada seja - apoiou Barbicane, como se de repente se fizesse     luz no seu espírito -; maldito seja o bólide que se cruzou conosco!      - Hem! - fez Michel Ardan.

- Que quer dizer? - perguntou Nicoles, surpreendido.

- Quero dizer - respondeu convictamente Barbicane - que o nosso desvio se     deve apenas a esse corpo errante.

- Mas ele nem sequer nos roçou... - objetou Michel.

- Não importa. A sua massa, comparada com a do nosso projétil,     era enorme, e bastou essa atração para afetar a nossa direção.

Tão pouco! - exclamou Nicoles.

É verdade, Nicoles; mas por pouco que fosse - replicou Barbicane     -, numa distância de oitenta e quatro mil léguas, seria o bastante     para nos fazer errar a Lua! A direção seguida pelo projétil     arrastava-o para o hemisfé- rio setentrional da Lua. Os viajantes estavam     longe daquele ponto central onde deveriam cair, se a trajetória não     tivesse sofrido uni irremediável desvio.

Passava meia hora da meia-noite. Barbicane estimou em mil e quatrocentos     quilômetros a distância que os separava da Lua - distância     um pouco superior ao comprimento do raio lunar, e que devia diminuir à     medida que avançassem em direção ao pólo norte.     Na ocasião, o projétil encontrava- se, não à altura     do equador, mas na direção do décimo paralelo, e a partir     dessa latitude, cuidadosamente assinalada no mapa até o pólo,     Barbicane e os companheiros puderam observar a Lua em melhores condições.

Realmente, mediante o uso dos binóculos, a distância de mil     e quatrocentos quilômetros reduziu-se a quatorze ou seja, três     léguas e meia. 0 telescópio das Montanhas Rochosas estava ainda     em ?vantagem, mas a atmosfera terrestre afetava-lhe consideravelmente a potência     ótica. Eis a razão por que, postado no projétil, Barbicane     alcançava com o seu binóculo certos pormenores que não     podiam ser observados da terra.

- Meus amigos - disse então o presidente com unia voz grave -, não     sei para onde vamos, não sei se voltaremos a ver o globo terrestre.     Apesar disso, procedamos como se uni dia estes trabalhos pudessem vir a ser     úteis aos nossos semelhantes. Mantenhamos o espírito liberto     de toda e qualquer preocupação. Somos astrônomos. Este     projétil é uni posto espacial do Observatório de Cambridge.     Façamos o que temos a fazer: observemos! Dito isto, o trabalho foi     iniciado com extrema precisão, de tal maneira que conseguiram reproduzir     fielmente os diversos aspectos da Lua às distâncias variáveis     que o projétil foi ocupando em relação ao astro.

Cerca das duas da manhã, Barbicane encontrava-se à altura     do vigésimo paralelo lunar, não longe da pequena montanha de     mil quinhentos e cinqüenta e nove metros que tem o nome de Pítias.     A distância do projétil à Lua não excedia os mil     e duzentos quilômetros, que os binóculos reduziam para três     léguas.

As duas e meia da manhã, o projétil encontrava-se em frente     do trigésimo paralelo lunar, a unia distância de mil quilômetros,     reduzida a dez pelos instrumentos óticos.

Continuava a parecer impossível que pudesse atingir qualquer ponto     do disco. A velocidade de translação do projétil, relativamente     medíocre, era inexplicável para o Presidente Barbicane. Aquela     distância da Lua, essa velocidade deveria ser. considerável para     manter o projétil, apesar da força de atração.     Havia nesse fato uni fenômeno cuja razão lhe escapava ainda.     Não tinha tempo para investigar-lhe as causas.

0 relevo lunar desfilava sob os olhos dos viajantes, que dele não     queriam perder o mínimo pormenor.

Perto das quatro horas da manhã, na altura do qüinquagésimo     paralelo, a distância do projétil à Lua reduzia- se a     seiscentos quilômetros. À esquerda, corria uma linha de montanhas     caprichosamente recortada por unia luz intensa. À direita, ao contrário,     cavava-se um buraco negro, como uni imenso poço, insondável     e escuro, furado no solo lunar.

Às seis horas, o pólo lunar fez a sua aparição.     0 disco não era mais aos olhos dos viajantes do que uma metade violentamente     iluminada. A outra desaparecera nas trevas.

Subitamente, o projétil transpôs a linha de demarcação     entre a luz intensa e a sombra absoluta, e mergulhou instantaneamente numa     noite profunda.

Na altura em que se produzia tão bruscamente aquele fen ômeno,     o projétil rasava o pólo norte da Lua a menos de cinqüenta     quilômetros de distância. Tinham-lhe bastado portanto alguns segundos     para mergulhar nas trevas eternas do espaço. A transição     operara-se de forma tão rápida, sem matizes, sem diminuição     gradual da luz, sem atenua ção das ondulações     luminosas, que o astro parecia terse apagado sob a influência de uni     poderoso sopro.

- A Lua fundiu-se, desapareceu! - exclamou Michel Ardan.

Na verdade, não se enxergava qualquer reflexo ou sombra.

Do disco, ainda há pouco resplandecente, nada restava.

A obscuridade era completa e tornava-se ainda mais profunda devido à     cintilação das estrelas. Era o ?negro? de que se impregnam as     noites lunares, que 1 duram trezentas e cinqüenta e quatro horas e meia     em cada ponto do disco - longa noite que resulta da igualdade existente entre     os movimentos de translação e rotação do satélite,     uni sobre si próprio, outro à volta da Terra. 0 projétil,     imerso no cone de sombra do disco, estava fora do alcance dos raios solares     como qualquer dos pontos da sua parte invis ível.

 

Capítulo 7

Parábola ou Hipérbole

 

Passavam o tempo fazendo experiências, como se estivessem tranqüilamente     instalados num confortável gabinete de trabalho.

A isto poder-se-ia contrapor que homens de tão rija têmpera,     que não se atemorizavam por tão pouco, ou que tinham mais que     fazer do que se abandonar à incógnita da sua sorte, estavam     acima de semelhantes preocupações.

A verdade, porém, é que não eram senhores do projétil.

Não podiam travar-lhe a marcha nem modificar-lhe a direção.

0 marinheiro muda a seu bel-prazer o rumo do navio; o aeronauta pode imprimir     ao seu balão movimentos verticais.

Eles, porém, não podiam exercer qualquer ação     sobre o seu veículo. Nenhuma manobra lhes era possível. E daí     aquela disposição de deixar andar, de ?deixar correr?, segundo     a expressão marítima.

Onde estavam naquele momento, às oito da manhã do dia que     na Terra era o sexto do mês de dezembro? Decerto nas vizinhanças     da Lua, de tal maneira perto que o astro lhes parecia com o aspecto de uni     imenso quebra-luz negro desdobrado no firmamento. Quanto à distância     que os separava, era impossível avaliá-la. 0 projétil,     mantido por forças inexplicáveis, rasara o pólo norte     do satélite a menos de cinqüenta quilômetros. Mas, decorridas     duas horas sobre o instante em que o projétil entrevia no cone de sombra,     teria aquela distância diminuído ou aumentado? A falta de pontos     de referência para estimar a direção e a velocidade do     projétil era total. Talvez se afastasse rapidamente do disco, de forma     a deixar em breve a sombra pura. Talvez se aproximasse sensivelmente, a ponto     de chocar com qualquer pico elevado do hemisfério invisível,     o que poria fim à viagem, mas sem dúvida com prejuízo     dos viajantes.

Levantou-se a este propósito uma discussão, em que Michel     Ardan, sempre pródigo em explicações, emitiu a opinião     de que o projétil, retido pela atração lunar, acabaria     por cair no astro, como os aeró1itos caem na superfície do globo     terrestre.

- Em primeiro lugar, meu amigo - respondeu-lhe Barbicane -, nem todos os     aer61itos caem na Terra, mas apenas uma pequena parte. Logo, se de fato passamos     ao estado de aerólito, isto não significa, necessariamente,     que nos despenquemos na superfície da Lua.

- No entanto - insistiu Michel -, se nos aproximássemos bastante...

- Puro erro - atalhou Barbicane. - Pois não viste já milhares     de estrelas cadentes riscar o céu, em certas épocas? - Pois     bem, essas estrelas, ou, melhor, esses corpúsculos, só brilham     porque aquecem quando deslizam nas camadas atmosféricas. Ora, se atravessam     a atmosfera, passam a menos de dezesseis léguas do Globo, onde, todavia,     caem raramente. 0 mesmo pode acontecer ao nosso projétil: passar perto,     muito perto mesmo da Lua e, apesar disso, não cair lá.

- Visto isso - declarou Michel. -, tenho muita curiosidade em saber como     se comportará no espaço o nosso veículo errante.

- Há duas hipóteses - esclareceu Barbicane, depois de alguns     instantes de reflexão.

- Quais são? - -0 projétil pode descrever uma de duas curvas     matemá- ticas, e seguirá uma ou outra, consoante a velocidade     de que estiver animado, velocidade que neste momento não sei avaliar.

- Sim - interveio Nicoles -, descreverá uma parábola ou uma     hipérbole.

- Certo - confirmou Barbicane. - Até uma certa velocidade seguirá     a parábola, e a hipérbole se a velocidade for mais acentuada.

- Gosto desses palavrões - exclamou Michel Ardan. - É ouvi-los     e compreendê-los, está bem1 Mas, por favor, o que é isso     de parábola? - Meu amigo - explicou Barbicane -; parábola é     uma curva de segunda ordem que resulta da seção de um cone por     um plano paralelo a um plano tangente ao cone.

- Ah! Ah! - fez Michel Ardan, com um ar satisfeito.

- É isto mais ou menos - ajudou Nicoles - a trajetória que     descreve uma bomba lançada por um morteiro.

- Muito bem. E a hipérbole? - quis saber Michel Ardan.

- A hipérbole, Michel, é uma curva de segunda ordem produzida     pela interseção de uma superfície cônica e de um     plano paralelo ao seu eixo. Tem dois ramos separados um do outro, que se prolongam     indefinidamente nos dois sentidos.

- É possível i - exclamou Michel, Ardan, com a maior seriedade,     como se acabassem de lhe dar uma notícia grave. - Nicoles, presta muita     atenção ao que vou dizer. Do que eu gosto na tua definição     de hipérbole (eu ia dizer ?hiperpatranha?) é que ainda é     menos clara do que a palavra que quiseste definir! Nicoles e Barbicane pouco     ligaram aos gracejos de Michel Ardan, já que se haviam envolvido numa     discussão científica.

Que curva seguiria o projétil? Eis o que os apaixonava.

Um teimava na hipérbole, o outro insistia na parábola. Fundamentavam     as respectivas afirmações em razões eriçadas de     x. A argumentação era feita numa linguagem que fazia pular Michel.     A discussão decorria acesa, e nenhum dos adversários queria     sacrificar ao outro a curva da sua predileção.

Como a disputa científica se prolongava, Michel Ardan acabou por     se impacientar.

- Ora esta! - disse ele. Senhores de co-seno, acabam ou não de atirar     à cabeça um do outro parábolas e hipérboles? Eu     só quero saber a única coisa que interessa no meio de tudo isto.     Já se sabe que seguimos uma das suas curvas.

Muito bem. Agora pergunto: para onde nos levarão elas? - A parte     nenhuma - respondeu Nicoles.

- Como? A parte nenhuma? - Mas é evidente - corroborou Barbicane.     - São curvas que não se fecham, que se prolongam até     o infinito! - Ah, sábios1 - exclamou Michel. - Sábios do meu     cora ção!... Eh, olhem lá? Que nos importa a parábola     ou a hipérbole, se ambas nos mandam para o espaço infinito!     Barbicane e Nicoles não puderam, dessa vez, deixar de sorrir.

Nunca uma questão mais ociosa fora tratada em momento menos oportuno.     A sinistra verdade era que o projétil, marchando hiperbólica     ou parabolicamente, nunca mais regressaria à Terra ou reencontraria     a Lua.

Que sucederia aos audaciosos viajantes num futuro muito próximo?     Se não morressem de fome, se não soçobrassem pela sede,     pereceriam dentro de dias à míngua de ar, quando o gás     se esgotasse. Isto se o frio não os enregelasse primeiro.

0 certo é que, por mais importante que fosse a economia de gás,     o excessivo abaixamento da temperatura ambiente os obrigaria ao consumo de     uma certa quantidade. Em rigor, podiam passar sem luz, mas nunca sem calor.     Por felicidade, o calor desenvolvido pelo aparelho Reiset e Regnault ajudava     a elevar um pouco a temperatura do interior do projétil, pelo que,     sem grandes gastos, pôde manter- se num grau suportável.

Como já foi dito, as observações através das     vigias tornaram- se difíceis. A umidade do interior do projétil     condensavase nos vidros e congelava de imediato. Era necessário combater     aquela opacidade com sucessivas fricções. Mesmo assim, foi possível     verificar alguns fenômenos do mais alto interesse.

Realmente, se aquele disco invisível tivesse atmosfera, não     era natural que se vissem estrelas cadentes a sulcá-la com as suas     trajetórias? Se o próprio projétil atravessasse as camadas     fluidas, não era provável que se surpreendesse algum ruído     repercutido pelo ecos lunares, tal como o ribombar de um trovão, o     estrépito de uma avalancha, as detonações de um vulcão     em atividade? E se alguma montanha vulcânica as ornamentasse com um     rubro penacho de relâmpagos, não se avistariam as suas intensas     fulgurações? Tais fatos, se cuidadosamente observados, serviriam     para elucidar de forma decisiva a obscura quest ão da constituição     lunar. Eis por que Barbicane e Nicoles, postados junto às vigias, como     se fossem astrônomos, observavam com escrupulosa paciência a noite     circundante.

Até então, o disco permanecera mudo e escuro, sem responder     às múltiplas interrogações que lhe punham aqueles     ardentes espíritos.

Tal silêncio sugeriu a Michel esta reflexão aparentemente justa:      - Se alguma vez voltássemos a fazer esta viagem, seria bom que escolhêssemos     a fase da lua nova.

- Tens razão - disse Nicoles -: essa circunstância seria mais     favorável. É certo que a Lua, mergulhada nos raios solares,     não seria visível durante a viagem; mas, em compensa- ção,     ver-se-ia a Terra, que estaria ?cheia?. Além disso, se fôssemos     arrastados à volta da Lua, como agora acontece, teríamos pelo     menos a vantagem de lhe ver o solo, agora invisível, magnificamente     iluminado! - Isto é que é falar, Nicoles! - aplaudiu Michel     Ardan. - Que pensas tu disto, Barbicane.

- Penso - respondeu o ponderado presidente - que, se alguma vez voltássemos     a fazer esta viagem, partiríamos na mesma época e nas mesmas     condições. Suponham que tivéssemos alcançado o     nosso objetivo; não seria melhor encontrar continentes cheios de luz     do que regiões mergulhadas numa noite escura? A nossa instalação     não se faria em circunstâncias mais favoráveis? Claro     que sim. Quanto ao lado invisível, tê-lo-íamos visitado     durante as viagens de reconhecimento no globo lunar. Assim, a fase de lua     cheia foi muito bem escolhida. A idéia era chegar ao objetivo, mas,     para lá chegar, era necessário que não houvesse desvios     de rota.

Quanto a isso, nada tenho a objetar - disse Michel Ardan. - A verdade é     que perdemos uma bela oportunidade de ob servar a outra face da Lua. Quem     sabe se os habitantes dos outros planetas não estão mais adiantados     do que os sábios da Terra no que diz respeito aos seus satélites?     A esta observação de Michel Ardan, poder-se-ia responder muito     simplesmente do seguinte modo: sim, há outros sat élites, cujo     estudo, por estarem mais pr6ximos, se torna mais fácil. Os habitantes     de Saturno, de Júpiter e de Urano, se é que existem, puderam     estabelecer com suas luas comunica ções mais fáceis.     Os quatro satélites de Júpiter gravitam às distâncias     de cento e oito mil duzentas e sessenta léguas, cento e setenta e duas     mil e duzentas léguas, duzentas e setenta e quatro mil e setecentas     léguas e quatrocentas e oitenta mil cento e trinta léguas. Todavia,     essas distâncias são contadas a partir do centro do planeta.     Subtraindo- lhes o comprimento do respectivo raio, que é de dezesseis     a dezoito mil léguas, vê-se que o primeiro satélite está     menos afastado dá superfície de Júpiter do que a Lua     está da Terra. Das oito luas de Saturno, quatro estão igualmente     mais próximas: Diana está a oitenta e quatro mil e seiscentas     léguas; Tétis a sessenta e duas mil novecentas e sessenta e     seis; a quarenta e oito mil cento e noventa e uma, e, finalmente, Mimas a     uma distância mé- dia de trinta e quatro mil e quinhentas. Dos     oito satélites de Urano, o primeiro, Ariel, está apenas a cinqüenta     e uma mil quinhentas e vinte léguas do planeta.

Isto significa que, na superfície desses três astros, uma experi     ência análoga à do Presidente Barbicane teria apresentado     menores dificuldades. Assim, se os respectivos habitantes tentaram a aventura,     é possível que tenham reconhecido a constituição     daquela metade do disco que todos os satélites ocultam eternamente     dos olhos dos habitantes dos outros astros principais. Mas, se nunca deixarem     os seus planetas, não estão mais avançados que os astrônomos     da Terra.

. Entretanto, o projétil descrevia nas trevas uma trajetória     que a inexistência de pontos de referência não permitia     cal cular. Ter-se-ia modificado a sua direção, quer por influência     da atração lunar, quer pela ação de algum astro     desconhecido? Barbicane não podia dizê-lo. Mas a verdade é     que se dera uma alteração na posição relativa     do veículo, altera ção de que Barbicane se apercebeu     por volta das quatro horas da manhã.

Consistia a alteração no seguinte: a base do projétil     voltara- se para a superfície lunar e mantinha-se na perpendicular     que passava pelo eixo da Lua. A atração., ou seja, a gravidade,     operara tal modificação. A parte mais pesada do projétil     inclinara-se para o disco, exatamente como se nele fosse cair.

E cairia? Os viajantes iam finalmente atingir o tão almejado alvo?     Não. Com a ajuda de um ponto de referência, aliás pouco     explicável, Barbicane teve a certeza de que o projétil não     se aproximava da Lua: deslocava-se descrevendo uma curva concêntrica     ao astro.

0 ponto de referência atrás citado foi um clarão luminoso     que Nicoles assinalou de ;súbito no limite do horizonte formado pelo     disco negro. Aquele clarão não podia ser confundido com uma     estrela. Era uma incandescência avermelhada, que, pouco a pouco, se     avolumava - prova incontestável de que o projétil se deslocava     na sua direção, e de que não se dirigia normalmente para     a superfície do astro.

- Um vulcão! E um vulcão em atividade - gritou Nicoles. -     Uma erupção dos fogos interiores da Lua. Aquele mundo não     está, portanto, extinto.

- Sim! É uma erupção - confirmou Barbicane, que estudava     cuidadosamente o fenômeno com o seu binóculo de noite.

- Que outra coisa poderia ser senão um vulcão? - Mas então      - raciocinou Michel Ardan -, para alimentar aquela combustão, é     preciso ar. Portanto, há uma atmosfera envolvendo aquela parte da Lua.

- Talvez haja - admitiu Barbicane -, ou talvez não. 0 vulcão     pode, mercê da decomposição de certas matérias,     forne cer a si próprio o oxigênio e lançar assim chamas     no vá- cuo. ?Estou mesmo para crer que aquela deflagração     tem a intensidade e o brilho dos objetos cuja combustão ocorre no meio     de oxigênio puro. Não nos apressemos, portanto, em afirmar a     existência de uma atmosfera lunar.

A montanha vulcânica devia estar situada perto do quadrag ésimo     quinto grau de latitude sul da parte invisível do astro.

Mas, com grande decepção de Barbicane, a curva que o projétil     descrevia levava-o para longe do ponto onde fora assinalada a erupção,     pelo que não lhe foi possível estudá- la convenientemente.

Meia hora depois, o tal ponto luminoso desaparecia por detrás do     escuro horizonte. De qualquer forma, a simples verificação do     fenômeno era já um fato notável para os estudos selenográficos:     provava que o calor não desaparecera ainda das entranhas daquele globo.     Ora, se há por lá calor, quem pode garantir que o reino vegetal     e mesmo o reino animal não tenham resistido até hoje às     influências destrutivas? A existência daquele vulcão em     atividade, se viesse a ser reconhecida sem reservas pelos sábios da     Terra, daria sem dúvida muitos argumentos favoráveis à     controversa teoria da habitabilidade da Lua.

Barbicane abandonara-se às suas reflexões, ao mudo devaneio     onde se encastelavam os misteriosos segredos do mundo lunar. Tentava descobrir     o fio comum a todos os fatos até então observados, quando um     novo incidente o trouxe bruscamente à realidade.

Era mais do que um fenômeno cósmico: era um verdadeiro perigo,     cujas conseqüências podiam ser desastrosas.

De repente, do meio do éter, daquelas profundas trevas, uma enorme     massa aparecera. Era como que uma lua, mas uma lua incandescente, com um brilho     tanto mais insustent ável quanto brusco era o contraste com a completa     escuridão do espaço. A massa, de forma circular, lançava     uma luz que enchia o projétil. Os rostos de Barbicane, Nicoles e Michel     Ardan, violentamente. banhados por aque les feixes esbranquiçados,     ganhavam a aparência espectral, lívida, baça, que os físicos     produzem com a luz artificial de álcool impregnado de sal.

- Com mil diabos! - exclamou Michel Ardan. Como nós estamos horrendos!     Que raio de lua é aquela? - É um bólide - esclareceu     Barbicane. Um bólide inflamado, no vácuo? - Sim.

0 globo de fogo era de fato um bólide. Barbicane não se enganava.     Mas se os meteoros cósmicos observados da Terra apresentam, de uma     maneira geral, uma luz um pouco inferior à da Lua, ali, no sombrio     éter, resplandecem.

Esses corpos errantes trazem consigo o princípio da sua incandescência.     0 ar ambiente não é necessário à sua deflagração.     E se, realmente, alguns desses bólides atravessam as camadas a atmosféricas     a duas ou três léguas da Terra, outros há que, ao contrário,     descrevem a sua trajetória a uma distância em que não     existe atmosfera.

Vem a propósito lembrar que, em 27 de outubro de 1844, um desses     bólides desapareceu à distância de cento e oitenta e duas     léguas. Alguns desses meteoros têm de três a quatro quilômetros     de diâmetro e são animados de velocidades que podem ir até     setenta e cinco quilômetros por segundo, na direção inversa     do movimento da Terra.

0 globo cadente, subitamente aparecido da sombra a uma distância de     pelo menos cem léguas, devia ter de diâmetro dois mil metros,     segundo cálculo de Barbicane. Avançava com uma velocidade próxima     de dois qui18metros por segundo, ou seja, trinta léguas por minuto,     e a sua trajetória cortava a rota do projétil, pelo que devia     atingi-lo dentro de alguns minutos. Conforme se aproximava, aumentava de volume     em enorme proporção.

. Imagine-se, se puder, a situação dos viajantes. É     impossí- vel descrevê-la. Apesar da sua coragem, do seu sanguefrio,     da sua indiferença perante o perigo, estavam mudos, imóveis,     com os membros contraídos, tomados por um horrível pavor. 0     projétil, a que não podiam alterar a marcha..

corria na direção daquela massa ígnea, mais intensa     do que as goelas abertas de um forno de reverberação.

Parecia que ia precipitar-se num abismo de fogo.

Barbicane agarra as mãos dos companheiros, e os três olhavam,     através das pálpebras semicerradas, aquele asteróide     incandescente. Se neles não estivesse embotado ,o pensamento; se, no     meio daquele pavor, ainda o cérebro fosse capaz de raciocinar, considerar-se-iam     por certo perdidos! Dois minutos depois da brusca aparição do     bólide - dois séculos de angústia! -, o projétil     parecia prestes a colidir.

De repente, porém, o globo de fogo explodiu como uma bomba, mas sem     ruído, como, aliás, era natural, já que o som não     podia produzir-se no meio do vácuo, por ser causado apenas pela agitação     das camadas de ar.

Nicoles soltou um grito. Ele e os companheiros precipitaram- se para as     vigias. Que espetáculo! Que pena poderia descrevê-lo? Que paleta     poderia reproduzir aquela riqueza de cores? A luz que saturava o éter     propagava-se com uma incompar ável intensidade, porque os asteróides;     a dispersavam em todos os sentidos. Num dado momento, chegou a sert ão     viva que Michel, arrastando Barbicane e Nicoles para junto da vigia em que     se encontrava, exclamou: - Ei-la visível, enfim! Eis a invisível     Lua.

E os três, através do eflúvio luminoso de alguns segundos,     entreviram a misteriosa face oculta, que o olhar humano via pela primeira     vez.

Que distinguiram, àquela distância que não podiam avaliar?     Algumas faixas alongadas sobre o disco, verdadeiras nuvens formadas num meio     atmosférico muito restrito, do qual emergiam, não só     todas as montanhas, mas também relevos de pouca importância,     círculos, crateras escancaradas, caprichosamente dispostas, análogas     às da face vis ível. Depois, imensos espaços, não     já planos áridos, mas verdadeiros mares, oceanos largamente     espraiados, que refletiam no seu liquido espelho toda a deslumbrante magia     dos fogos do espaço. Finalmente, na superfície dos continentes,     vastas manchas escuras, idênticas às produzidas por imensas florestas     sob o rápido clarão de um relâmpago...

Seria isto um erro, uma miragem, uma ilusão de ótica? Poderiam     eles sancionar cientificamente uma observação tão superficial?     Ousariam pronunciar-se sobre o problema da habitabilidade do satélite,     fundados em tão precário exame da face invisível? Amorteceram,     entretanto, as fulgurações do espaço. Decresceu pouco     a pouco o fugaz brilho. Os asteróides foram- se dispersando, seguindo     diferentes trajetórias, e apagaram- se na distância. 0 éter     retomou a habitual tenebrosidade. As estrelas, eclipsadas por instantes, cintilaram     no firmamento, e o disco, que fora apenas entrevisto, perdeu-se de novo na     impenetrável noite.

 

Capítulo 8    

O hemisfério meridional

 

O projétil acabava de escapar a um terrível e imprevisto perigo.     Quem poderia imaginar que viessem a encontrarse com esses bólides?     Esses corpos errantes podiam pôr os viajantes em sérios perigos.     Eram, para eles, outros tantos perigos disseminados por aquele mar etéreo,     aos quais, ao contrário dos navegadores, não podiam fugir. Mas     acaso se queixavam aqueles aventureiros do espaço? Não, visto     que a natureza lhes proporcionara o esplêndido espetáculo da     explosão de um meteoro cósmico, e esse incomparável fogo     de artifício, que nenhum saberia imitar, iluminara durante alguns segundos     a face oculta da Lua.

Através dessa rápida vista, apareceram continentes, ma197     res e florestas. Emprestaria, portanto, a atmosfera as suas moléculas     vivificantes àquela face desconhecida? Problema ainda sem solução,     eternamente posto à curiosidade humana! Eram então três     horas e meia da tarde. 0 projétil prosseguia a sua órbita em     volta da Lua. Ter-lhe-ia o meteoro modificado a trajetória? Havia motivos     para receá-lo. Todavia, o projétil devia descrever uma curva     rigorosamente submetida às leis da mecânica racional. Barbicane     continuava a pensar que essa curva era uma parábola e não uma     hipérbole. No entanto, se esta hipótese se confirmasse, o projétil     deveria sair muito rapidamente do cone de sombra projetado no espaço     do lado oposto do Sol. Realmente, esse cone é muito estreito, tão     pequeno é o diâmetro angular da Lua quando comparado com o do     astro do dia.

Ora, até esse momento, o projétil vagara na sombra profunda.

Qualquer que fosse a sua velocidade - e não podia ser pequena -,      o período de ocultação persistia. Este era um fato evidente,     mas que talvez não devesse ocorrer no suposto caso da trajetória     rigorosamente parabólica. Mais um problema para atormentar o cérebro     de Barbicane, verdadeiramente aprisionado num círculo de incógnitas     de que não conseguia desembaraçar-se.

Nenhum dos viajantes pensava em repousar. Todos aguardavam que algum fato     inesperado viesse lançar uma nova luz sobre os estudos uranográficos.     Cerca das cinco horas, Michel Ardan distribuiu, à maneira de jantar,     alguns pedaços de pão e carne fria, que foram engolidos rapidamente     pelos três amigos, sem que nenhum abandonasse, por um instante sequer,     as vigias, cujos vidros se embaciavam incessantemente com a condensação     dos vapores.

Às cinco horas e quarenta e cinco minutos da tarde, Nicoles, de binóculo     assestado, assinalou nas proximidades do bordo meridional da Lua e na direção     seguida pelo projétil alguns pontos brilhantes, que se destacavam da     sombria cortina do céu. Dir-se-ia uma sucessão de pontos afilados,     dispostos numa linha sinuosa. Estavam vivamente iluminados.

Assim aparece o lineamento terminal da Lua. Não havia engano. Não     se tratava já de um simples meteoro: aquela aresta luminosa não     apresentava nem a cor nem a mobilidade próprias desses corpos errantes.     Muito menos, seria um vulcão em atividade. Desse modo, Barbicane não     hesitou em exclamar: - 0 Sol! - Quê? 0 Sol? - perguntaram Nicoles e     Michel Ardan.

- Sim, meus amigos, é o próprio astro radiante que ilumina     os cimos daquelas montanhas situadas no bordo meridional da Lua. É     evidente que nos acercamos do,010 sul! - Depois de termos passado pelo pólo     norte... - murmurou Michel. - Isto quer dizer que demos a volta ao nosso saté-      lite! - Sim, meu caro Michel.

- E que já não temos que recear as tais hipérboles,     parábolas ou outras curvas abertas.

- Não. Agora a curva é fechada.

- Como se chama?...

- Eclipse. Em vez de se perder nos espaços interplanetários,     é provável que o projétil comece a descrever uma órbita     elíptica em volta da Lua.

- É verdade! - E que se transforme em satélite.

- Lua da Lua! - exclamou Michel Ardan.

- Contudo, convém que saibas, meu bom amigo - avisou Barbicane -,      que nem por isto ficamos em melhor situação! - Sim, mas de outra     maneira, bem mais agradável! - rematou o despreocupado francês,     com o mais agradável dos sorrisos.

0 Presidente Barbicane tinha razão. Ao descrever uma órbita     elíptica, o projétil ia, sem dúvida, gravitar eternamente     à volta da Lua, como um subsatélite. Seria um novo astro do     mundo solar, um microcosmo povoado por três habitantes, que, dentro     em pouco, pereceriam por falta de ar.

Barbicane não podia, portanto, contentar-se com tal situa- ção,     imposta ao, projétil pela dupla influência das forças     centrípeta e centrífuga. Ele e os companheiros iam rever a face     iluminada do disco lunar. Talvez que a existência se lhes prolongasse     o bastante para poderem uma última vez a terra cheia, soberbamente     iluminada pelos raios de Sol! Talvez pudessem dizer um último adeus     àquele Globo que não deviam voltar a avistar! Depois, o projétil     não seria mais do que uma massa extinta, morta, semelhante a esses     inertes asteróides que circulam no éter. Uma única consola     ção lhes; restava: iam deixar enfim aquelas insondá-      veis trevas e voltar à luz, às zonas banhadas pela irradia-      ção solar! Entretanto, as montanhas que Barbicane reconhecera     iamse destacando cada vez mais da massa escura. Eram os Montes Doerfel e Leibniz;     que se elevam ao sul da região circumpolar da Lua.

 

Capitulo 9    

Ticho

 

Às seis horas da tarde, o projétil passava pelo pólo     sul, a menos de sessenta quilômetros, distância igual à     de que se tinha aproximado do pólo norte. A curva elíptica desenhava-      se, portanto, rigorosamente.

Naquele momento, os viajantes reentraram no benfazejo eflúvio dos     raios solares. Reviam as estrelas que se moviam com lentidão de oriente     para ocidente. Saudaram o astro radiante com um triplo hurra. Além     da luz, o Sol enviava- lhe o calor, que aquecia as paredes de metal.

- Ah! - disse Nicoles -, como fazem bem estes raios de calor! Com que impaciência,     depois de tamanha noite, os selenitas devem esperar a reaparição     do astro do dial - Sim - concordou Michel Ardan, saboreando, por assim dizer,     aquele luminoso éter -; a vida é luz e calor! Naquele instante,     a base do projétil tendia a afastar-se li geiramente da superfície     lunar, de maneira a seguir uma órbita elíptica bastante alongada.     Daquele ponto, se a Terra estivesse ?cheia?, Barbicane e os companheiros poderiam     te-la visto. Mas, como estava mergulhada na irradiação do Sol,     mantinha-se absolutamente invisível. Um outro espetáculo atraiu-lhes     o olhar, o que oferecia a região austral da Lua, que os binóculos     aproximavam a um oitavo de légua. Os três. amigos não     arredavam pé das vigias e examinavam os mínimos pormenores daquele     estranho continente.

Os montes Doerfel e Leibniz formam dois grupos distintos, que se desenvolvem     perto do pólo sul. 0 primeiro grupo alonga-se desde o pólo até     o octogésimo quarto paralelo, sobre a parte oriental do astro; o segundo,     que se recorta no bordo oriental, vai do sexagésimo quinto grau ao     pólo.

Sobre os caprichosos contornos das suas arestas, apareciam camadas extensas     e deslumbrantes, tal como as assinalou o Padre Secchi. Com mais segurança     do que o ilustre astrônomo romano, Barbicane não teve dificuldade     em reconhecer- lhes a natureza.

É neve! - exclamou ele. Neve? - repetiu Nicoles.

- Sim, Nicoles; neve cuja superfície está profundamente gelada.     Vejam como reflete os raios luminosos. As lavas arrefecidas não dariam     uma reflexão tão intensa. Há, portanto, água e     ar na Lua. Menos do que se poderia desejar, mas o fato já não     pode ser contestado.

Não, não podia sê-lo! E, se algum dia Barbicane voltasse     à Terra, as suas notas testemunhariam o fato, a todos os títulos     notável no domínio das observações selenográficas.

0 projétil prosseguia, indiferente, a sua rota, mas lá embaixo     aquele caos não se modificava, Sucediam-se incessantemente círculos,     crateras e montanhas esburacadas. Nem uma planície, nem um mar. Era     uma Suíça, uma Noruega intermináveis. Finalmente, no     centro daquela região gretada, precisamente no ponto culminante, apareceu     o deslumbrante Ticho, a mais esplêndida montanha do disco. lu nar, à     qual a posteridade ligará sempre o nome do ilustre astrônomo     dinamarquês.

Ticho concentra em si uma tal luminosidade que os habitantes da Terra podem     avistá-la sem a ajuda de embora esteja a uma distância de cem     binóculos, muito mil léguas.

Imagine-se, naquele momento, qual deveria ser a intensidade daquela luz     para os olhos de observadores colocados a centro e cinqüenta léguas     apenas! Através daquele puro éter, o seu fulgar era de tal forma     insustentável que Barbicane e os seus amigos tiveram de escurecer as     lentes dos binóculos com o fumo do gás, a fim de lhe poder suportar     o brilho. Depois, atônitos, emitindo apenas algumas interjeições     admirativas, limitaram-se a olhar, a contemplar.

Todos os sentimentos, todos os sentidos se lhes concentraram no olhar, tal     como a vida, sob o domínio de uma emoção violenta, se     concentra por inteiro no coração.

Como Aristarco e Copérnico, Ticho pertence ao sistema de montanhas     radiantes. Mas é de todas a mais completa e característica e,     conseqüentemente, o melhor testemunho dessa extraordinária ação     vulcânica que originou a forma- ção da Lua.

A distância que separava os viajantes dos cumes anulares de Ticho     não era assim tão considerável que não pudessem     observar-lhe os principais pormenores. Mesmo sobre o aterro que constitui     a circunvalação de Ticho, as montanhas, agarradas aos flancos     dos taludes interiores e exteriores, dispunham-se em gigantescos degraus.     A oeste pareciam mais elevados uns trezentos a quatrocentos metros do que     a leste. Nenhum sistema de castrametação terrestre era comparável     àquela fortificação. Uma cidade que tivesse sido construída     no fundo daquela cavidade circular seria absolutamente inacessível.

Inacessível e maravilhosamente deitada sobre aquele solo rico em     acidentes pitorescos! A natureza, realmente, não deixara plano e vazio     o fundo da cratera, que possuía a sua orografia especial, um sistema     de montanhas que dela fa ziam um mundo à parte. Os viajantes distinguiram     nitidamente cones, colinas centrais, notáveis movimentos de terreno,     naturalmente dispostos para receber as obras primas da arquitetura selenita.     Ali, desenhava-se um local prop ício para a construção     de um templo; aqui, o lugar próprio para um fórum; além,     o que poderia comparar-se aos alicerces de um palácio; mais além,     o plano de uma cidadela.

E tudo isto dominado por uma montanha central. Tratavase de um vasto circuito,     onde a antiga Roma caberia dez vezes! - Ali! - exclamou Michel Ardan entusiasmado     com o que via. - Que grandiosa cidade se construiria naquele anel de montanhas!     Cidade tranqüila, refúgio pacífico, longe de todas as misérias     humanas. Como viveriam ali, calmos e isolados, todos os misantropos, todos     os que odeiam a humanidade, todos aos que aborrecem a vida social! - Todos!     Não haveria espaço para eles! - comentou simplesmente Barbicane.

 

Capítulo 10    

Questões graves

 

O projétil transpusera, entretanto, a cintura de muralhas de Ticho.     Barbicane e os dois amigos observaram então com escrupulosa atenção     aqueles riscos brilhantes que a célebre montanha dispersa tão     curiosamente por todos os horizontes.

A que se deveria aquela radiosa auréola? Que fenômeno geológico     originaria aquela ardente cabeleira? Esta questão preocupava com razão     Barbicane.

Na verdade, sob os seus olhos alongavam-se em todas as direções,     feixes luminosos de bordos levantados e côncavos no meio, uns de vinte,     outros de cinqüenta quilômetros de largura. Aqueles brilhantes     rastros corriam, em certos lugares, até trezentas léguas de     Ticho, e pareciam cobrir, sobretudo a leste, nordeste e norte, metade do hemisfério     meridional. Um dos jatos de luz espraiava-se até o círculo de     Neandro, situado no quadragésimo meridiano. Um outro ia sulcar, encurvando-se,     o Mar do Néctar e quebrar-se na cadeia dos Pireneus, depois de ter     percorrido quatrocentas léguas. Outros ainda, para as bandas do oeste,     cobriam de uma luminosa rede os Mares das Nuvens e dos Humores.

Qual seria a origem daqueles cintilantes raios que apareciam tanto nas planícies     quanto nos relevos, qualquer que fosse a altura que atingissem? Partiam todos     de um centro comum: a cratera de Ticho. Dela emanavam.

Herschel atribui aquele fulgurante aspecto às primitivas correntes     de lava coaguladas pelo frio, opinião que não foi aceita. Outros     astrônomos viram nesses inexplicáveis raios uma espécie     de fragmentos de rocha, que se amontoam por norma em volta das geleiras, fiadas     de blocos erráticos, que tivessem sido projetados na época da     forma ção de Ticho.

- E por que não? - perguntou Nicoles a Barbicane, que citava as diversas     opiniões, rejeitando-as todas.

- Porque a regularidade das linhas luminosas e a violência necessária     para levar a tais distâncias as matérias vulcânicas são     inexplicáveis.

- Na verdade! - intrometeu-se Michel Ardan. - Parece-me fácil explicar     a origem desses raios.

- Achas que sim? - interpelou-o Barbicane.

- Acho - prosseguiu Michel. - Basta dizer que é uma gigantesca fratura     em forma de estrela, idêntica à que produz a colisão de     urna bala ou de uma pedra numa vidraça! Ah, sim!?- retrucou Barbicane,     sorrindo. - E que mão seria capaz de atirar a pedra e provocar um tal     choque? - A mão não é necessária - replicou Michel,     que não desistia tão facilmente. - Quanto à pedra, admitamos     que seja um cometa.

- Claro, os cometas! - exclamou Barbicane - Abusa-se deles! Meu caro Michel,     a tua explicação não é de toda má, mas     o teu cometa é que está a mais. 0 choque que produziu aquela     fratura pode ter vindo do interior do astro. Uma contração violenta     da crosta lunar, provocada pelo resfriamento, bastaria, segundo penso, para     justificar tal efeito.

- Uma contração, qualquer coisa como uma cólica lunar...      - concordou Michel Ardan.

- De resto - acrescentou Barbicane ?_, esta é também a opinião     do sábio inglês Nasmyth, e parece-me explicar cabalmente a irradiação     dessas montanhas.

- 0 tal Nasmyth não é nenhum tolo - concedeu Michel Ardan.

Os viajantes, a quem um tal espetáculo não podia cansar, admiraram     por muito tempo ainda os esplendores de Ticho.

0 projétil, impregnado de eflúvios luminosos, no meio da dupla     irradiação do Sol e da Lua, devia assemelhar-se a um globo incandescente.     Os três companheiros passaram subitamente de um frio penetrante a um     calor intenso. A natureza preparava-os assim para se tornarem selenitas.

Tornarem-se selenitas. Esta idéia trouxe de novo à baila a     questão da habitabilidade da Lua. Depois do que tinham visto, poderiam     resolvê-la? Poderiam estar a favor ou contra? Michel Ardan levou os     dois amigos a emitir a esse respeito uma opinião, perguntando-lhes     se admitiam a exist ência de animalidade e de humanidade no mundo lunar.

- Creio que podemos responder - disse Barbicane -; mas, quanto a mim, a     pergunta deve ser formulada de outro modo. Pô-la-ei em outros termos,     se não te importas...

- Fica à vontade - concordou Michel.

- Ora bem - prosseguiu Barbicane -: o problema é duplo e exige uma     dupla solução. É a Lua habitável? Foi a Lua habitada?      - Muito bem - disse Nicoles. - Comecemos por indagar se é habitável.

- Para falar a verdade, nada sei a esse respeito - adiantou Michel Ardan.

- E eu respondo que não - afirmou Barbicane. - No estado atual, com     aquele invólucro atmosférico, decerto muito reduzido, e a maioria     dos mares secos, com insuficiência de água e de vegetação,     com dias e noites de trezentas e cinqüenta e quatro horas, a Lua não     me parece habitável, e não se me afigura propícia ao     desenvolvimento do reino animal, nem capaz de ocorrer às necessidades     da existência, tal como nós a compreendemos.

- De acordo - interveio Nicoles. - Mas não será habitada por     seres diferentes de nós? - Ora aí está uma pergunta -     replicou Barbicane - cuja resposta é bem mais difícil. Apesar     disso, tentarei dá-la. Antes, porém, perguntarei a Nicoles o     seguinte: é ou não o movimento o resultado lógico da     vida, qualquer que seja a sua organização? É evidente     que sim - respondeu Nicoles.

Pois bem, meu caro companheiro: nesse caso, responderlhe- ei que observamos     os continentes lunares a uma dist ância de quinhentos metros, e que     nada nos pareceu dotado de movimento na superfície da Lua. A presença     de uma qualquer humanidade ter-se-ia revelado através de apropriações,     de construções diversas, ou mesmo de ruí- nas. Ora, que     vimos nós? Por todo o lado, e sempre, o trabalho geológico da     natureza, nunca o trabalho do homem.

Se existem portanto na Lua representantes do reino animal, só podem     estar escondidos nas insondáveis cavidades que o olhar não consegue     atingir. E isto eu não admito, porque, mesmo assim, teriam deixado     indícios da sua passagem por aquelas planícies, que uma camada     atmosf érica decerto cobre, por pouco elevada que seja. Ora, a verdade     é que tais indícios não são visíveis em     parte alguma.

Sobra, conseqüentemente, a hipótese de uma espécie de     seres vivos à qual o movimento, que é a vida, seja estranho!     - Em outras palavras: criaturas vivas que não vivem - sintetizou Michel     Ardan.

- Precisamente - concordou Barbicane. - 0 que para nós não     tem qualquer sentido.

- Podemos então formular a nossa opinião - concluiu Michel.

- Sim - disse Barbicane.

- Pois ai vai - prosseguiu Michel Ardan -: a comissão cientí-      fica reunida no projétil do Clube do Canhão, depois de ter fundamentado     a sua argumentação em fatos perfeitamente confirmados, decidiu     por unanimidade de votos, acerca da questão da atual habitabilidade     da Lua, o seguinte: não, a Lua não é habitável.

Esta decisão foi consignada pelo Presidente Barbicane no seu bloco     de notas, onde figura a ata da sessão de 6 de dezembro.

- Agora - sugeriu Nicoles - abordemos a segunda questão, que me parece     indissociável da primeira. Assim, perguntarei à digna comissão:     se a Lua não é habitável, será que já foi     habitada? - Tem a palavra o cidadão Barbicane - anunciou Michel.

- Meus amigos - começou Barbicane -, não precisei de fazer     esta viagem para ter uma opinião sobre a passada habitabilidade do     nosso satélite. Acrescentarei que as nossas observações     mais não fizeram do que confirmá-la.

Creio, afirmo mesmo que a Lua foi habitada por uma espé- cie humana     organizada à semelhança da nossa, que produziu animais anatomicamente     análogos aos terrestres, mas acrescento que o tempo dessas espécies     humanas ou animais passou, e que estão para sempre extintas! - Isso     significa que a Lua é um mundo mais velho do que a Terra? - perguntou     Nicoles.

- Não - declarou com convicção Barbicane -; é     um mundo que envelheceu mais depressa, e cuja formação e deforma     ção foram mais rápidas. Relativamente, as forças     organizadoras da matéria foram muito mais violentas no interior da     Lua do que no do Globo terrestre. 0 atual aspec to daquele disco gretado,     atormentado e rugoso, prova-o demasiado. A Lua e a Terra mais. não     eram, na sua origem, do que massas gasosas. Esse gases passaram ao estado     líquido sob diversas influências, e, mais tarde, formou-se a     massa sólida. Mas, quase com certeza, o nosso esferóide era     ainda gasoso ou líquido, quando a Lua, já solidificada pelo     arrefecimento, se tornou habitável.

Depois, Nicoles, que pretendia concluir o que havia come- çado, pôs     de novo a seguinte questão sobre o problema que acabavam de abordar:      - A Lua foi habitada? A resposta foi unânime e afirmativa.

Entretanto, durante aquela discussão, fértil em teorias um     tanto arrojadas, embora fossem apenas o resumo de idéias gerais adquiridas     pela ciência neste domínio, o projétil aproximara-se rapidamente     do equador lunar, afastandose simultânea e regularmente do disco.

 

Capítulo 11    

Luta contra o impossível

 

Durante muito tempo, Barbicane e os companheiros olharam, mudos e pensativos,     aquele mundo que apenas tinham visto de longe, como Moisés a terra     de Canaã, e de que se afastavam definitivamente. A posição     do projétil em relação à Lua modificara-se. A     sua base estava nesse momento voltada para a Terra.

Ao verificar tal alteração, Barbicane não deixou de     surpreender- se. Se o projétil devia gravitar à volta do satélite,     seguindo uma órbita elíptica, por que razão não     lhe apresentava a parte mais pesada, como faz, a Lua em face da Terra? Havia     algo de obscuro nisto.

Pela simples observação da marcha do projétil, podia     verificar- se que ele seguia, ao afastar-se da Lua, uma curva idêntica     à que havia quando da aproximação. Traçava, portanto,     uma elipse muito alongada, que se prolongava provavelmente até o ponto     de igual atração, onde se neutralizam as influências da     Terra e do seu satélite.

Tal foi a conclusão que Barbicane tirou dos fatos observados, conclusão     que, aliás, foi partilhada pelos seus dois amigos.

- E logo choveram as perguntas.

- E chegados a esse ponto morto, que nos acontecerá? - perguntou     Michel Ardan.

- Isso é uma incógnita - respondeu Barbicane.

- Mas podem antecipar-se algumas hipóteses, suponho...

- Duas - precisou Barbicane -: ou a velocidade do projétil é     insuficiente, e nesse caso ficará eternamente imóvel nessa linha     de dupla atração...

Prefiro a outra, seja qual for - comentou Michel. Velocidade é suficiente     - concluiu Barbicane -, e então retomará a rota elícita,     e gravitará eternamente à volta do astro da noite.

- Alternativa pouco consoladora - opinou Michel.

- Passar ao estado de humildes servidores de uma Lua que estamos habituados     a considerar como nossa serva. Eis o futuro que nos espera.

Barbicane e Nicoles nada disseram.

- Ali! calam-se? - continuou o impaciente Michel.

- Mas se não há nada a dizer... - justificou-se Nicoles.

- E não haverá nada a tentar? - Nada - respondeu Barbicane.     - Ou pretendes lutar contra o impossível? - E por que não? Um     francês e dois americanos hão de recuar diante de semelhante     palavra? - Mas que queres fazer ? - Dominar este movimento que nos arrasta!      - Dominá-lo? - Sim - insistiu Michel, entusiasmando-se.

- Travá-lo, modificá-lo, usá-lo, enfim, de maneira     a realizarmos os nossos projetos.

- E como? - 0 problema é vosso! Os artilheiros que não são     senhores dos seus projéteis não são artilheiros. Se é     o projétil que manda no artilheiro, o melhor é que o artilheiro     se meta dentro do canhão lugar do projétil.

Belos sábios, sim, senhor. Ei-los que não sabem o que há     de fazer depois de me terem induzido...

- Induzido - exclamaram Barbicane e Nicoles. - Induzido! Que queres dizer?     - Nada de recriminações! - avisou Michel. Eu não me queixo!     0 passeio agrada mel. 0 projétil convém-me! Mas, por favor,     façamos tudo o que for humanamente possível para cairmos em     qualquer lugar, já que não o podemos fazer na Lua! - Mas nós     também não queremos outra coisa, meu caro Michel - replicou     Barbicane. - Só que não temos meios.

- Não podemos modificar o movimento do projétil? - Não.

- Nem diminuir-lhe a velocidade? - Não.

- Nem mesmo aliviando-o, como se alivia um navio com excesso de carga? -     Que queres alijar? - perguntou por sua vez Nicoles. - Não temos lastro     a bordo. E, de resto, parece-me que, se alivi- ássemos o projétil,     a velocidade aumentaria.

Diminuiria - insistiu Michel.

Aumentaria - teimou Nicoles.

- Nem diminuiria nem aumentaria - asseverou Barbicane, pondo fim à     disputa dos dois amigos -, porque flutuamos no vácuo, onde o peso específico     não conta.

Sendo assim - exclamou resolutamente Michel Ardan -, só há     uma coisa a fazer.

- 0 quê? - quis saber Nicoles.

- Almoçar! - respondeu o imperturbável e audacioso franc ês,     que propunha sempre esta solução quando se apresentavam as mais     difíceis conjunturas.

De fato, se esta operação não podia ter qualquer influência     sobre a direção do projétil, podia ser tentada sem inconveniente,     e até com muito êxito do ponto de vista do estô- mago.     Decididamente, aquele Michel tinha boas idéias.

Almoçaram, portanto, às duas horas da manhã, mas a     hora pouco importava. Michel serviu a habitual refeição, coroada     com uma preciosa garrafa da sua reserva secreta. Se, depois disto, as idéias     não lhes brotassem do cérebro, seria de pôr em dúvida     a qualidade do Chamberti.

Terminada a refeição, recomeçaram as observações.

Em volta do projétil mantinham-se, a uma distância invari-      ável, os objetos que haviam sido alijados. Era evidente que o projétil,     no seu movimento de translação à volta da Lua, - não     atravessara nenhuma atmosfera, porque o peso espec ífico daquele s     diferentes objetos lhes teria alterado a marcha relativa.

Do lado do esferóide terrestre nada havia a assinalar. A Terra, que     fora ?nova? na véspera à meia-noite, tinha apenas um dia. Seria     necessário que decorressem mais dois dias, para que o seu crescente,     desembaraçado dos raios solares, viesse servir de relógio, aos     selenitas, visto que, mercê do movimento de rotação ,     cada um dos seus pontos passam de vinte e quatro em vinte e quatro horas pelo     mesmo meridiano da Lua.

Do lado da Lua o espetáculo era diferente. 0 astro brilhava em todo     o seu esplendor, no meio de inumeráveis constela ções,     sem que os seus, raios lhes diminuíssem a pureza.

No disco, as planícies retomavam já aquele tom escuro que     se vê da Terra. 0 resto do nimbo continuava cintilante, e, no meio de     toda aquela cintilação, destacava-se ainda Ticho, como um sol.

Barbicane não tinha maneira de avaliar a velocidade do projétil,     mas o raciocínio demonstrava-lhe que essa velocidade devia decrescer     uniformemente, de acordo com as leis da, mecânica racional.

Realmente, admitido foi que o projétil ia descrever uma órbita     à volta da Lua, essa órbita tinha de ser necessariamente elíptica.     A ciência assim o demonstra. Nenhum mó- vel que gravite em volta     de um corpo atraente escapa a essa lei. Todas as órbitas descritas     no espaço são elíticas, tanto as dos satélites     em volta dos planetas, quanto as dos planetas em volta do Sol, como ainda     a do Sol em volta do astro desconhecido que lhe serve de um dos focos.

Por que razão o projétil do Clube do Canhão contrariava     esta disposição natural? Ora, nas órbitas elípticas,     o corpo atraente ocupa sempre um dos focos da elipse. Há portanto um     momento em que o satélite está mais próximo, e outro     em que se encontra mais afastado do astro em volta do qual gravita. Quando     a Terra está mais perto do Sol, diz-se que se encontra no periélio,     e no afélio no caso contrário. Com a Lua passa-se algo de idêntico:     dizemos que está no perigeu ou no apogeu consoante e encontre mais     próxima ou mais distante da Terra. Se o projétil se tornasse     satélite da Lua e quiséssemos usar expressões análogas,     com as quais se enriquecer á a linguagem dos astrônomos deveríamos     dizer que atingiria o ?aposselenico? no ponto mais distante e o ?perisselênico?     no mais próximo.

Nesse último caso, o projétil devia atingir o máximo     de velocidade; no primeiro, o mínimo. Ora, era evidente que ele - se     dirigia para o ponto ?aposselénico?, pelo que Barbicane tinha razão     em pensar que a velocidade havia de decrescer até esse ponto, para     depois voltar a aumentar, pouco a pouco, à medida que se aproximasse     de novo da Lua. A velocidade chegaria mesmo a ser absolutamente nula se aquele     ponto coincidisse com o de igual atração.

Estudava Barbicane as conseqüências dessas diferentes situa ções,     para procurar tirar o melhor partido delas, quando foi subitamente interrompido     por um grito de Michel Ardan.

- Santo Deus! - exclamava ele. - Temos de confessar que somos mesmo estúpidos!     Não digo que não - disse Barbicane. - Mas por - Porque temos     um meio bem simples de reduzir a velocidade que nos afasta da Lua, e não     a usamos.

- E que meio é esse? - A força de recuo dos nossos foguetes.

- É verdade! - exclamou Nicoles.

- Não a utilizamos - volveu Barbicane -, mas vamos utilizá-      la.

Quando? - inquiriu Michel.

Quando chegar o momento. Reparem, meus amigos, que, na posição     em que está o projétil, posição ainda oblíqua     em relação ao disco lunar, os foguetes poderiam alterarlhe a     direção e afastá-lo em vez de aproximá-lo da Lua.

Ora, eu creio que é a Lua que pretendem atingir. Não é     verdade? De preferência - respondeu Michel.

- Então esperem. Por qualquer razão inexplicável, o     projétil tende a voltar a base para a Terra. É provável     que, no ponto de igual atração, o seu chapéu cônico     esteja rigorosamente apontado para a Lua. Nesse momento, é também     possível que a velocidade seja nula. Esse será o instante de     agir; e, com a ajuda dos nossos foguetes, talvez possamos provocar uma queda     direta na superfície do disco lunar.

Bravo! - entusiasmou-se Michel.

- 0 que não fizemos nem poderíamos ter feito na nossa primeira     passagem pelo ponto neutro, porque o projétil estava ainda animado     de uma velocidade muito elevada.

- Bem pensado - disse Nicoles.

- Aguardemos pacientemente - prosseguiu Barbicane. - Coloquemos todos os     trunfos do nosso lado. Depois de tanto ter desesperado, começo a acreditar     que alcançaremos o nosso objetivo! Este otimismo provocou os sonoros     vivas de Michel Ardan.

E nenhum daqueles audazes loucos se recordava já das perguntas a     que tinham dado uma resposta negativa: ?Não! A Lua não é     habitada! Não! A Lua nem provavelmente é habitável!?     E, não obstante, iam fazer tudo para lá chegar! Faltava resolver     um único problema: em que momento preciso atingiria o projétil     o ponto de igual atração, onde os viajantes arriscariam tudo?     Para calcular, com a diferença de alguns segundos, esse momento, Barbicane     mais não tinha do que recorrer às suas notas de viagem e extrair     delas as diferentes alturas tomadas nos paralelos lunares. Deste modo, o tempo     gasto a percorrer a distância que separava o ponto neutro e o pólo     sul devia ser igual à distância existente entre o pólo     norte e o ponto neutro. As horas que representavam os tempos observados no     percurso estavam cuidadosamente anotadas, pelo que o cálculo se tornava     fácil.

Barbicane concluiu que o ponto neutro seria atingido à uma hora da     madrugada de 8 de dezembro. Eram naquele momento três horas da madrugada     de 7 de dezembro. Desta forma, se nada lhe perturbasse a marcha, o projétil     atingiria o ponto desejado dentro de vinte e duas horas.

Os foguetes, que tinham sido concebidos para amortecer a queda. do projétil     na Lua, iam então ser utilizados pelos ousados viajantes para obterem     um efeito absolutamente contrário. Como quer que fosse, estavam prontos,     e nada mais havia a fazer do que esperar pelo momento de lhes lançar     fogo.

- Como não há nada que fazer - disse Nicoles faço uma     proposta.

Que proposta? - perguntou Barbicane.

- Proponho que durmamos.

- A esta hora! - disse Michel Ardan.

- Há quarenta horas que não fechamos os olhos - lembrou Nicoles.      - Algumas horas de sono ajudar a restabelecer as forças.

- Nunca! - replicou Michel.

- Bem - rematou Nicoles façam o que entenderem! Eu vou dormir! E,     deitando-se no divã, Nicoles não tardou a roncar como uma bala     de quarenta e oito.

- Este Nicoles; é um homem de juízo - disse daí a pouco     Barbicane. - Vou seguir-lhe o exemplo.

Instantes depois, secundava com o seu baixo contínuo o roncar abaritonado     do capitão.

-, Decididamente - ponderou Michel Ardan, quando se viu sozinho -, estes     homens práticos saem-se às vezes com idéias oportunas.

E, estendendo as compridas pernas, apoiando a cabeça nos grandes     braços, Michel Ardan acabou também por adormecer.

Todavia, aquele sono não podia se nem prolonga sossegado.

No espírito dos três homens agitavam-se demasiadas preocupações,     pelo que, algumas horas depois, cerca das sete horas da manhã, estavam     todos de pé.- 0 projétil continuava a afastar-se da Lua, inclinando     cada vez mais a sua parte cônica para o astro. Fenômeno inexplicável     até então, mas que servia inteiramente os projetos de Barbicane.

Mais dezessete horas e o momento de agir chegaria.

Aquele dia parecia interminável. Por muito audazes que fossem, os     viajantes estavam vivamente impressionados com a aproximação     daquele instante em que tudo se decidiria: ou cairiam na Lua, ou ficavam eternamente     acorrentados a uma órbita imutável. Contaram, uma a uma, as     horas, que passavam com uma lentidão exasperante. Barbicane e Nicoles     embrenharam-se obstinadamente nos seus cálculos.

Michel passeou de um lado para o outro, no estreito espaço existente     entre as paredes do projétil, lançando ávidos olhares     ao impassível satélite.

Por vezes, recordações da Terra atravessavam-lhes rapidamente     o espírito. Reviam os amigos do Clube do Canh ão, sobretudo     o que lhes era mais caro, J. T. Maston.

Naquele momento, o digno secretário devia estar no seu posto das     montanhas Rochosas. Se acaso avistava o projétil no espelho do seu     gigantesco telescópio, que pen saria? É que depois de tê-lo     visto desaparecer por detrás do pólo sul da Lua, via-o reaparecer     pelo pólo norte! Era, portanto, o satélite de um satélite!     Teria J. T. Maston anunciado ao Mundo aquela inesperada notícia? Seria     aquele o desenlace da grande empresa?...

Entretanto, o dia passou-se sem incidentes. A meia-noite terrestre chegou.     0 dia 8 de dezembro ia começar. Mais uma hora e o ponto de igual atração     seria alcançado. Que velocidade animava então o projétil?     Era impossível avaliá- la. Mas nenhum erro iria fazer gorar     os cálculos de Barbicane.

À uma hora da manhã, a velocidade devia ser e seria nula.

Por outro lado, um outro fenômeno havia de assinalar a passagem do     projétil pela linha neutra. Ali, as duas atrações, a     terrestre e a lunar, anular-se-iam. Os objetos ?deixariam de ter peso?. Esse     fato singular, que no percurso da ida tanto surpreendera Barbicane e os companheiros,     devia ocorrer de novo no regresso em idênticas condições.     Seria nesse exato momento que deviam atuar.

-0 chapéu cônico estava já sensivelmente voltado para     o disco lunar, pelo que o projétil se apresentava na posição     ideal para o integral aproveitamento da força de recuo produzida pela     impulsão dos foguetes. Os viajantes tinham, portanto, a seu favor todas     as probabilidades de êxito. Se a velocidade do projétil fosse     completamente anulada no ponto morto, qualquer movimento na direção     da Lua, por muito ligeiro que se revelasse, bastaria para provocar a queda     na superfície lunar.

- Faltam cinco minutos para uma - revelou Nicoles.

- Está tudo a postos - volveu Michel Ardan, aproximando uma mecha     da chama de gás.

Espera - disse Barbicane, com o cronômetro na mão. Naquele     momento, a gravidade já não produzia qualquer efeito.

Os viajantes sentiam-lhe bem a ausência. Estavam muito perto do ponto     neutro, se é que não o ,tinham mesmo atingido I ...

- Uma hora! - anunciou Barbicane.

Michel Ardan aproximou a mecha inflamada de um rastilho que acionava instantaneamente     os foguetes. Nó interior do projétil, não se. ouviu nenhuma     detonação. Mas, pelas vigias, Barbicane avistou um clarão,     que depressa se extinguiu.

0 projétil experimentou um certo abalo, que foi sentido no interior.

Os três amigos se olhavam, escutavam sem falar, respirando apenas.     Era possível ouvir-lhes o bater do coração no meio de     tão absoluto silêncio.

Caímos? - perguntou por fim Michel Ardan.

- Não - respondeu Nicoles -, visto que a base do projétil     não se voltou para o disco lunar.

Entretanto, Barbicane, que abandonara as vigias, voltou-se para os dois     companheiros. Estava horrivelmente pálido, tinha a fronte enrugada     e os lábios contraídos.

- Caímos, sim! - disse ele.

Ah!?- exclamou Michel Ardan - Para a Lua? Para a Terra! - respondeu Barbicane.

A verdade é que uma tremenda queda começara. A velocidade     que o projétil conservava levara-o para além do ponto morto.     A explosão dos foguetes não o sustivera. Essa velocidade, que     na ida arrastara o projétil para fora da linha neutra, arrastava-o     ainda no regresso. A física impunha que, na sua órbita elíptica,     o projétil voltasse a passar por todos os pontos por onde já     passara.

Era uma queda terrível, de setenta e oito mil léguas de altura,     que nenhuma mola poderia amortecer. De acordo com as leis da balística,     o projétil devia se chocar com a Terra a uma velocidade igual à     que o animava ao sair do columbiad, ou seja, a uma velocidade de ?dezesseis     mil metros no último segundo!? Estamos perdidos - disse friamente Nicoles.

- Pois bem; se morrermos - redargüiu Barbicane, com uma espécie     de entusiasmo religioso -, o resultado da nossa viagem será magnificamente     alargado! É o Seu próprio se gredo que Deus nos revelará!     Na outra vida, a alma não necessitará, para saber, de máquinas     ou de instrumentos, porque se identificará com a sabedoria eterna!     - De fato - comentou Michel Ardan -, o Outro Mundo todo é bem capaz     de nos fazer esquecer esse astro ínfimo que se chama Lua.

Barbicane cruzou os braços sobre o peito, com um movimento de sublime     resignação e exclamou: - Que o Céu nos guarde!

 

Capítulo 12

As sondagens da Susquebanna

 

- Então, tenente, como vai a sondagem? - Creio, senhor, que a operação     está perto do fim - respondeu o Tenente Bronsfield. - Mas quem havia     de dizer que encontraríamos uma tal profundidade tão perto de     terra, a uma centena de léguas apenas da costa americana - Realmente,     Bronsfield, é uma enorme depressão - concordou o Capitão     Blomsberry. - Neste local há um vale submarino escavado pela Corrente     de Humboldt, que segue as costas da América até o Estreito de     Magalhães.

- Estas grandes profundidades - prosseguiu o tenente - são bem pouco     favoráveis à colocação dos cabos telegráficos.

0 ideal é uma planície lisa, como aquela em que assenta o     cabo americano entre Valentia e a Terra Nova.

- Sem dúvida, Bronsfield. Mas, com sua licença, em que ponto     estamos? - Senhor - respondeu o tenente -, neste momento, temos vinte e um     mil e quinhentos pés de linha fora, e a bala da sonda ainda não     tocou no fundo, porque, nesse caso, a sonda subiria por si própria.

- Engenhoso aparelho, o do tal Brook - disse o Capitão Blomsberry.      - Com ele, obtêm-se sondagens de grande exatidão.

- Fundo! - gritou um dos timoneiros da proa, que vigiava a operação.

- Qual é a profundidade? - perguntou o Capitão Blomsberry.

- Qual é a profundidade? - perguntou o capitão.

- Vinte e um mil setecentos e sessenta e dois pés - respondeu o tenente,     anotando o número na sua agenda.

- Bem, Bronsfield - disse o capitão -, vou registrar esse resultado     no meu mapa. Agora, mande içar a sonda para bordo. É trabalho     para várias horas. Entretanto, o maquinista que acenda as fornalhas,     a fim de que estejamos prontos para partir logo que terminem. São dez     horas da noite, tenente. Vou-me deitar.

- Faz muito bem, senhor! - replicou cortesmente o Tenente Bronsfield.

0 capitão da Susquehanna, um homem bom como poucos, e um humilde     servidor dos seus oficiais, regressou ao camarote, tomou um gole de aguardente,     o que mereceu do despenseiro intermináveis mostras de satisfação,     deitou- se, não sem ter saudado o seu camareiro pelo modo como fazia     a cama, e adormeceu profunda e pacificamente.

Eram então dez horas da noite. 0 décimo primeiro dia do mês     de dezembro ia terminar numa magnífica noite.

A Susquehanna, corveta de quinhentos cavalos, da marinha dos Estados Unidos,     procedia as sondagens no Pacífico, aproximadamente a cem léguas     da costa americana, frente à alongada península que se destaca     da costa do Novo México.

0 vento amainara pouco a pouco. Não havia a menor perturba ção     nas camadas atmosféricas. A flâmula da corveta, imóvel,     pendia inerte do mastaréu do joanete.

0 Capitão Jonathan Blomsberry - primo direto do Coronel Blomsberry,     um dos membros mais ardentes do Clube do Canhão, que desposara uma     Horschbidden, tia do capitão e filha de um honrado comerciante do Kentucky      -, o Capit ão Blomsberry, dizíamos, não poderia ter desejado     melhor tempo para levar a bom termo as delicadas operações de     sondagem. A sua corveta nem mesmo tinha sentido a enorme tempestade que, varrendo     as nuvens amontoadas sobre as Montanhas Rochosas, havia de permitir que se     observasse a marcha do famoso projétil. Tudo corria de feição,     e ele, com o fervor de um presbiteriano, não se cansava de agradecer     ao Céu essa graça.

A série de sondagens levadas ao cabo pela Susquehanna tinha por fim     reconhecer os fundos mais propícios ao estabelecimento de um cabo submarino,     que devia ligar as ilhas Havaí à costa americana.

Era um importante projeto, devido à iniciativa de uma poderosa companhia,     cujo diretor, o inteligente Cyrus Field, planejara mesmo dotar todas as ilhas     da Oceânica com unia vasta rede elétrica, empresa grandiosa e     digna do gê- nio americano.

À corveta Susquehanna estavam justamente confiadas as primeiras operações     de sondagem. Durante a noite de 11 para 12 de, dezembro, a sua posição     era exatamente a seguinte: 270 7' de latitude norte e 410 37' de longitude     a oeste do meridiano de Washington.

A Lua, na altura no último quarto, despontava no horizonte.

Depois da retirada do Capitão Blomsberry, o Tenente Bronsfield reuniu-se     com outros oficiais no tombadilho. 0 aparecimento da Lua fez com que devotassem     todos os seus pensamentos ao astro, que os olhos de um hemisfé- rio     inteiro então contemplavam. Os melhores binóculos de marinha     não poderiam descortinar o projétil que errava em torno do globo     lunar. Contudo todos estavam assestados na direção do disco     cintilante, que milhões de olhares miravam ao mesmo tempo.

- Partiram há dez dias - disse em dado momento o Tenente Bronsfield.     - Que lhes terá acontecido? - Chegaram, meu tenente! - exclamou um     jovem aspirante -, e fazem o que faz todo o viajante que chega a um novo país:     passeiam i - Estou certo disso, visto que é você que me diz,     meu jovem amigo - comentou, sorridente, o Tenente Bronsfield.

- No entanto - continuou outro oficial -, não se pode pôr em     dúvida que chegaram. 0 projétil deve ter atingido a Lua no momento     em que estava cheia, no dia 5 à meia-noite: Estamos a 11 de dezembro,     o que perfaz seis dias. Ora, seis vezes vinte e quatro horas, sem obscuridade,     há tempo de sobra para uma pessoa se instalar confortavelmente.

Parece que estou vendo os nossos corajosos viajantes acampados no fundo     de um vaie, na margem de um rio lunar, perto do projétil semi enterrado     nos fragmentos vulc ânicos: o Capitão Nicoles começando     as suas operações de nivelamento, o Presidente Barbicane a passar     a limpo as notas de viagem e Michel Ardan a perfumar as solidões lunares     com o aroma das suas cigarrilhas.

- Sim, deve ter sido assim; foi assim! - exclamou o jovem aspirante, entusiasmado     com a bela descrição do superior.

- Quero acreditar nisso - declarou o Tenente Bronsfield, que não     se entusiasmava tão facilmente. - Infelizmente, nunca teremos notícias     diretas do mundo lunar.

- Perdão, meu tenente - objetou o aspirante -; então o Presidente     Barbicane não pode escrever? Uma gargalhada geral acolheu esta pergunta.

- Não me refiro a cartas - precisou vivamente o jovem.

- A administração dos correios não é para aqui     chamada.

- E a administração das linhas telegráficas? - inquiriu     ironicamente um dos oficiais.

- Também não - respondeu o aspirante, que não desarmava.

- Mas é fácil estabelecer comunicações gráficas     com a Terra.

- Ah, sim! E como? - Através do telescópio de Long?s Peak.     Bem sabe que ele pode aproximar a Lua a duas léguas das Montanhas Rochosas,     o que permite ver na superfície lunar objetos que tenham nove pés     de diâmetro. Pois bem; bastava que os nossos engenhosos amigos construíssem     um gigantesco alfabeto! Que escrevessem palavras de cem toesas de comprimento     e frases de uma légua, para poderem enviarnos notícias.

0 jovem aspirante foi ruidosamente aplaudido, já que imagina ção     não lhe faltava. 0 próprio Tenente Bronsfield acabou por concordar     que a idéia até era realizável, e acrescentou que, através     da emissão de feixes de raios luminosos, por meio de espelhos parabólicos,     se conseguiria tamb ém estabelecer comunicações diretas.     De fato, esses raios seriam tão visíveis em Vênus e Marte     como o é da Terra o planeta Netuno. Acabou por dizer que os pontos     brilhantes já observados nos planetas mais próximos poderiam     muito bem ser sinais feitos à Terra. Contudo, observou ainda que, se     por aquele meio ? se pudessem conseguir, notícias do mundo lunar, não     era possível enviar para lá notícias do mundo terrestre,     a menos que os selenitas tivessem à sua disposição instrumentos     apropriados às observações a grande distância.

- Evidentemente - volveu um dos oficiais. - Mas o que sobretudo nos deve     interessar é o que aconteceu aos viajantes, o que fizeram e o que viram.     Se a experiência for coroada de êxito, do que não duvido,     será repetida. 0 columbiad continua embutido no solo da F16rida. É     apenas uma questão de pólvora e de projéteis, e todas     as vezes que a Lua passar pelo zênite poder-se-lhe-á enviar um     ?carregamento ? de visitantes.

- 0 evidente - disse o Tenente Bronsfield - é que J.T. Maston irá     juntar-se, um destes dias, aos seus amigos.

- Se ele me quiser - garantiu o aspirante -, estou pronto para acompanhá-lo.

- Oh! voluntários não faltarão - replicou Bronsfield.

- Metade dos habitantes da Terra, se os deixarem, terão em breve     emigrado para a Lua! Esta conversa entre os oficiais da Susquehanna prolongouse     até muito perto da uma hora da manhã. Seria difícil relatar     os assombrosos sistemas, as espantosas teorias que foram emitidas por aqueles     audaciosos espíritos. Depois da experiência que Barbicane intentara,     nada parecia impossí- vel aos americanos. Já projetavam expedir     não uma comiss ão de sábios, mas uma colônia inteira,     e um exército completo, com infantaria, artilharia, para conquistar     o mundo lunar.

À uma hora da manhã, a sonda ainda não estava completamente     içada. Faltavam dez mil pés, o que requeria ainda um trabalho     de várias horas. Tal como o comandante havia ordenado, as fornalhas     haviam sido acessas, e a pressão subia. A Susquehanna poderia partir     no mesmo instante.

Naquele momento - era uma hora e dezessete minutos da manhã -, dispunha-se     o Tenente Bronsfíeld a deixar o tombadilho e a se recolher ao seu camarote,     quando um silvo longínquo e perfeitamente inesperado lhe despertou     a atenção.

Ele e os camaradas começaram por atribuir aquele silvo a uma fuga     de vapor. Mas, levantando a cabeça, aperceberam- se de que tal rumor     se produzia nas camadas mais elevadas da atmosfera.

Não tiveram tempo para se interrogar. 0 silvo ganhara uma assustadora     intensidade, e de súbito apareceu-lhes, diante dos olhos deslumbrados,     um enorme bólide, inflamado pela velocidade da queda e pelo atrito     nas camadas atmosféricas.

A massa ígnea avolumou-se, caiu com barulho sobre o gurupés     da corveta, partindo-o rente pela roda da proa, e afundou-se nas ondas com     um rumor de ensurdecer.

Alguns pés mais perto, e a Susquehanna soçobraria com vidas     e bens.

Nesse instante, o Capitão Blomsberry apareceu semi vestido, e, precipitando-se     para o castelo da proa, para onde tinham corrido os oficiais, perguntou: -      Com licença, meus senhores; que aconteceu? E o aspirante, fazendo-se     por assim dizer eco de todos, exclamou:  - Meu comandante, são eles     que voltam!

 

Capítulo 13    

J. T. Maston volta à cena

 

A emoção foi grande a bordo da Susquehanna. Oficiais e marinheiros     esqueciam o terrível perigo que acabavam de correr, o quanto estiveram     perto de ser esmagados e de ir a pique. Só se lembravam da catástrofe     que culminava aquela viagem. A mais audaciosa empresa de todos os tempos exigira,     como tributo, a vida dos audazes aventureiros que a intentaram.

?São eles que voltam?, dissera o jovem aspirante, e todos o compreenderam.     Ninguém duvidava que o bólide fosse o projétil do Clube     do Canhão. Quanto à sorte dos viajantes, as opiniões     dividiam-se.

- Estão mortos! - garantia um.

- Estão vivos - teimava outro. - As águas são profundas     e amorteceram-lhes a queda.

- Mas faltou-lhes o ar - opinava ainda outro -, e morreram com certeza asfixiados!     - Queimados! - exclamavam outros. - 0 projétil, ao atravessar a atmosfera,     nada mais era do que uma massa incandescente.

- Que importa! - concluíram por unanimidade. - Vivos ou mortos, o     importante é tirá-los de lá.

Entretanto, o Capitão Blomsberry reunira os oficiais e, com a concordância     de todos, conduzia o conselho. Tratava-se de tomar uma rápida decisão.     0 mais urgente era pescar o projétil. A operação era     difícil, mas não impossível. Faltavam, porém,     à corveta os engenhos necessários, que teriam de ser simultaneamente     possantes e precisos. Resolveu- se, portanto, demandar o porto mais próximo     e avisar o Clube do Canhão da queda do referido projétil.

Esta resolução foi tomada por unanimidade. A escolha do porto     levantou alguma discussão. É que a costa vizinha não     possuía qualquer ancoradouro no vigésimo sétimo grau     de latitude. Mais acima, para além da península de Monterey,     localizava-se a importante cidade que lhe. deu o nome.

Mas, construída nos confins de um verdadeiro deserto, nem sequer     estava ligada ao interior por uma rede telegráfica, e só a eletricidade     podia difundir com a necessária rapidez aquela grave notícia.

Alguns graus mais além, abria-se a baía de São Francisco.

A partir da capital da região do ouro, as comunicações     com o centro da União eram fáceis?. A todo o vapor, a Susquehanna     chegaria ao porto de São Francisco em menos de dois dias. A corveta     devia, portanto, zarpar sem demora.

As caldeiras estavam sob pressão. Podia-se partir imediatamente.

Havia ainda no fundo duas mil braças de sonda. 0 Capitão Blomsberry,     porém, não quis perder um tempo precioso a içá-la     e resolveu mandar cortar a linha.

- Prender-lhe-emos a ponta a uma bóia - sugeriu ele -, e esta sinalizará     o ponto exato onde caiu o projétil.

- De resto - acrescentou o Tenente Bronsfield sabemos qual é, rigorosamente,     a nossa posição: vinte e sete graus e sete minutos de latitude     norte por quarenta e um graus e trinta e sete minutos de longitude oeste.

- Bem, senhor Bronsfield - prosseguiu o capitão peço licen-      ça para lhe recomendar que mande cortar a linha. Uma resistente bóia,     reforçada com um par de chapas, foi lançada ao mar. A ponta     da linha foi-lhe solidamente fixada por cima.

Aquela bóia, sujeita apenas à oscilação da vaga,     não devia derivar muito.

Foi nessa altura que o engenheiro mandou prevenir o capit ão que     havia pressão e que, conseqüentemente, podiam partir. 0 capitão     enviou-lhe os seus agradecimentos por esta excelente comunicação.     Depois fixou a rota na direção nor-nordeste. A corveta manobrou     e dirigiu-se a todo o vapor para a baía de São Francisco. Eram     três horas da manhã.

Um percurso de duzentas léguas não era grande coisa para um     navio rápido como a Susquehanna. Bastariam trinta e seis horas para     devorar aquela distância. Assim, treze horas e vinte e sete minutos     da tarde do dia 14 de dezembro, entrava em São Francisco.

À vista daquele navio da marinha nacional, que chegava a grande velocidade,     com o gurupés raso e o mastro do traquete escorado, atraiu singularmente     a curiosidade pú- blica. Uma multidão compacta amontoou-se de     imediato no cais, para seguir de perto o desembarque.

Depois de fundearem, o Capitão Blomsberry e o Tenente Bronsfíeld     desceram para um escaler de oito remos, que os pôs rapidamente em terra.

Saltaram para o cais.

- 0 telégrafo? - perguntaram, sem responder às mil perguntas     que lhes eram dirigidas.

Foi o próprio capitão do porto que os conduziu â estação     telegráfica, no meio de uma imensa multidão.

Blomsberry e Bronsfield entraram na estação, enquanto a multidão     se acotovelava à porta.

Minutos mais tarde, um despacho em quadruplicado foi expedido: o primeiro     para o secretário da Marinha, Washington; o segundo para o vice-presidente     do Clube do Canh ão, Baltimore; o terceiro para o digno J. T. Maston,     Long?s Peak, Montanhas Rochosas; e o quarto para o subdiretor do Observatório     de Cambridge, Massachussets.

Estava concebido nestes tempos: ?A 200 7' latitude norte por 410 37' longitude     oeste, em 12 de dezembro, à uma hora e dezessete minutos, projétil     columbiad caiu Pacífico.

Enviem instruções. Blomsberry, comandante Susquehanna.

Cinco minutos depois, toda a cidade de São Francisco sabia o que     se passara. Antes das seis da tarde, os restantes Estados da União     tiveram conhecimento de catástrofe.

Depois da meia-noite, através do cabo telegráfico, toda a     Europa sabia o resultado da grande experiência americana.

Renunciamos a descrever o efeito produzido em todo o Mundo por aquele inesperado     desenlace.

Logo que recebeu o despacho, o secretário da Marinha ordenou por     telégrafo ao Susquehanna para se manter na baía de São     Francisco, com as caldeiras sob pressão. Dia e noite devia estar pronta     a fazer-se ao mar.

0 Observatório de Cambridge reuniu-se em sessão extraordin     ária, e, com a peculiar serenidade que distingue as corporações     de sábios, discutiu paulatinamente a questão sob o ponto de     vista científico.

No Clube do Canhão houve explosão. Os artilheiros estavam     todos reunidos. 0 vice-presidente, o digníssimo Wilcome, lia precisamente     aquele prematuro telegrama, no qual J. T. Maston e Belfast anunciavam que     o projétil acabava de ser avistado no gigantesco refletor de Long?s     Peak.

Esta comunicação afirmava, ainda por cima, que o projétil,     retido pela atração da Lua, desempenhava o papel de subsatélite     do mundo solar.

- Sabemos agora que o aconteceu na realidade.

Entretanto, a chegada do despacho de Blomsberry, que tão formalmente     contradizia o telegrama de J. T. Maston, provocou a divisão no seio     do Clube do Canhão. Formaram- se dois partidos. De um lado, o das pessoas     que admitiam a queda do projétil e, conseqüentemente, o regresso     dos viajantes. Do outro, o dos que, fazendo fé nas observa ções     de Long?s Peak, opinavam que o comandante da Susquehanna errara. Para estes     últimos, o suposto projétil não passava de um bólide,     nada mais do que um bólide, um globo cadente que, na sua queda, atingira     e avariara a proa da corveta. Não se sabia lá muito bem como     rebater tal argumentação, porque a velocidade de que o corpo     ia animado devia ter dificultado a sua observação. Daí     que o comandante e os oficiais da Susquehanna pudessem terse enganado, de     boa-fé, embora. Contudo, havia um argumento que militava a seu favor:     é que se o projétil tivesse caído em terra, o embate     com o esferóide terrestre só poderia ter ocorrido no vigésimo     sétimo grau de latitude norte, e - tendo em conta o tempo decorrido     e o movimento de rotação da Terra - entre o quadragésimo     primeiro e o quadragésimo segundo grau de latitude oeste.

Como quer que fosse, o Clube do Canhão decidiu por unanimidade que     o irmão de Blomsberry, Bilsby e o Major Elphiston se dirigissem sem     demora para São Francisco, e, uma vez lá chegados, arranjassem     os meios de retirar o projétil das profundezas do oceano.

Esses dedicados homens partiram de imediato, estrada de ferro, que em breve     atravessaria toda a América Central, levou-os a Saint-Louis, onde os     esperava um rápido coachmail.

Justamente no mesmo instante em que o secretário da Marinha, o vice-presidente     do Clube do Canhão e o subdiretor do Observatório de Cambridge     recebiam o despacho de São Francisco, experimentava o digno J. T. Maston     a mais violenta emoção de toda a sua vida - emoção     que nem a explosão do seu célebre morteiro lhe causara, e que     por pouco lhe ia custando a vida.

0 leitor lembra-se, por certo, de que o secretário do Clube do Canhão     partira alguns instantes depois do projétil - e qua ? se tão     depressa como este - para a estação de Long?s Peak, nas Montanhas     Rochosas. 0 sábio J. Belfast, diretor do Observatório de Cambridge,     acompanhava-o. Assim que chegaram, os dois amigos instalaram-se sumariamente     e nunca mais deixaram o cimo do enorme telescópio.

Sabe-se que o gigantesco instrumento fora concebido segundo o sistema de     refletores a que os ingleses chamam front view. Esta disposição     fazia com que os objetos sofressem uma só reflexão, tornando-os,     conseqüentemente, mais nítidos. Deste fato resulta que J. T. Maston     e Belfast, para procederem às observações, tinham de     se colocar na parte superior do instrumento e não na parte inferior.     Subiam até lá através de uma escada de caracol, obra-prima     de leveza. Por baixo, abria-se-lhes um verdadeiro poço de metal, cujo     fundo era um espelho metálico, e que tinha duzentos e oitenta pés     de profundidade.

Ora, era na estreita plataforma, que circundava o cimo do telescópio,     que os dois sábios passavam a vida a maldizer a luz do dia que lhes;     escondia da vista, a Lua, e as nuvens que a velavam durante a noite.

Imagine-se, portanto, qual foi a sua alegria, quando, decorridos alguns     longos dias de espera, avistaram o veículo que transportava os amigos     no espaço. Esta alegria deu lugar a uma profunda decepção,     quando, fiando-se em observa ções incompletas, puseram a correr     mundo a errada afirmação de que o projétil se tornara     um satélite da Lua, gravitando numa órbita imutável.

Desde aquele instante, o projétil desaparecera, desaparecimento tanto     mais explicável quanto é certo que passava, naquela altura,     por detrás do disco visível da Lua. Avalie-se então a     impaciência do impetuoso J. T. Maston e do não menos ardoroso     companheiro, quando chegou o momento em que o projétil devia reaparecer     sobre o disco visível! A cada minuto da noite procuraram avistá-lo     de novo, mas debalde! Desta frustração resultaram discussões     incessantes e violentas entre. eles. Belfast afirmava que o projétil     não estava visível, enquanto J. T. Maston sustentava que ele     ?se lhe metia pelos olhos dentro!? - É o projétil! - insistiu     J. T. Maston.

- Que projétil! _? negava Belfast. - É uma avalancha que rola     por alguma montanha lunar.

- Então, vê-lo-emos amanhã.

- Não! Nunca mais o veremos1 Desapareceu no espaço.

- Sim! - Não! E naqueles momentos em que as intenções     choviam como granizo, a bem conhecida irritabilidade do secretário     do Clube do Canhão constituía um permanente perigo para o estim     ável Belfast.

Aquela existência a dois cedo se tornaria impossível se um     inesperado acontecimento não viesse cortar as constantes discussões.

Na noite de 14 para 15 de dezembro, os dois irreconciliá- veis amigos     estavam ocupados em observar o disco - lunar.

Como era hábito, J. T. Maston injuriava o sábio Belfast, que,     por seu lado, lhe respondia ao pé da letra. 0 secretário do     Clube do Canhão teimava, pela milésima vez, que tinha avistado     o projétil, acrescentando mesmo que conseguira divisar a cara de Michel     Ardan através de uma das vigias.

Em dado momento, o criado de Belfast apareceu na plataforma - eram dez horas     da noite - e entregou-lhe o telegrama enviado pelo comandante da Susquehanna.

Belfast rasgou o envelope, leu e soltou um grito.

- Hem! - fez J. T. Maston.

- 0 projétil! - E então? - Caiu na Terra! Um novo grito, um     verdadeiro urro desta vez, respondeulhe.

Belfast voltou-se para J. T. Maston. 0 infeliz, imprudentemente debruçado     no tubo de metal, desaparecera no imenso telescópio. Uma queda de duzentos     e oitenta pés! Belfast, fora de si, precipitou-se para a abertura do     refletor.

Respirou. J. T. Maston, pendurado pelo seu gancho de metal, estava suspenso     num dos esteios que mantinham o afastamento do telescópio, de onde     soltava formidáveis berros.

Belfast clamou pelos ajudantes, que não tardaram a acorrer.

Montaram talhas e içaram a custo o imprudente secret ário     do Clube do Canhão.

Um quarto de hora depois, os dois sábios desciam a vertente das Montanhas     Rochosas, e dois dias mais tarde chegavam, ao mesmo tempo que os seus amigos     do Clube do Canhão, a São Francisco.

Elphiston, o irmão de Blomsberry e Bilsby precipitaram-se ao encontro     deles, assim que chegaram.

- Que vamos fazer? - perguntaram.

- Tirar da água o projétil - respondeu J. T. Maston -, e o     mais depressa possível!

 

Capítulo 14    

0 salvamento

 

O local onde o projétil se afundara estava devidamente assinalado.     Faltavam, porém, os instrumentos para o agarrar e trazer à superfície.     Era preciso concebê-los e depois fabricá-los. Os engenheiros     americanos não podiam sentirse embaraçados com tão pouco.     Estavam certos de içar o projétil, apesar do seu peso, aliás     aligeirado pela densidade do líquido em que estava mergulhado, desde     que as fateixas o fixassem e pudessem contar com a ajuda do vapor.

Não ?era, porém, suficiente pescar o projétil. Era     preciso agir quanto antes para salvaguarda dos viajantes. A ningu ém     passava pela cabeça que não estivessem ainda vivos.

- Sim! - repetia incessantemente J. T. Maston, cuja confian ça era     comunicativa -, os nossos amigos são homens hábeis, e não     podem ter caído como tolos. Estão vivos e bem vivos, mas é     preciso que nos apressemos para os encontrar com vida. Não são     os víveres nem água que me preocupam. Um nos de sobral Mas o     ar, o ar. Não tarda que o ar lhes falte. Vamos! Depressa! Depressa!     E a verdade é que andavam todos numa roda-viva. Adaptou- se a Susquehanna     ao seu novo fim. Prepararam-se as suas poderosas máquinas de molde     a acionar os cabos destinados a içar o projétil. Este, sendo     de alumínio, pesava apenas dezenove mil duzentas e cinqüenta libras,     peso muito inferior ao do cabo que foi levantado em condições     idênticas. A única dificuldade consistia, portanto, em agarrar     um projétil cilindro cônico, cujas paredes, lisas, toma vam a     operação bastante complicada.

Com este fim, o engenheiro Murchison, que acorrera a São Francisco,     construiu enormes arpéus dotados de um sistema automático, que,     se lograssem agarrar o projétil com as suas possantes tenazes, não     mais o largariam. Preparou, também, escafandros, de tal forma impermeáveis     e resistentes, que permitiam aos mergulhadores reconhecer o fundo do mar.     Fez igualmente embarcar na Susquehanna aparelhos de ar comprimido, de uma     concepção muito engenhosa.

Eram verdadeiras câmaras com muitas vigias, e que podiam descer a     grandes profundidades, através da introdução de água     em certos compartimentos. Esses aparelhos existiam já em São     Francisco, onde serviram para a construção de um dique submarino,     o que constituía, um feliz acaso, porque não teria havido tempo     para construí- los.

Não obstante, apesar da perfeição desses aparelhos,     apesar do engenho dos sábios encarregados de os utilizar, o êxito     da operação ainda não era certo. Quantas incertezas persistiam     ainda, e bem justificadas, uma vez que se tratava de trazer o projétil     de uma profundidade de vinte mil pés1 Depois, mesmo que o conseguissem,     como teriam os viajantes suportado aquele terrível choque, que nem     talvez vinte mil pés de água amorteceriam suficientemente? Importava,     em suma, trabalhar e depressa. J. T. Maston pressionava os seus operários     dia e noite. Ele estava disposto quer a envergar o escafandro, quer a experimentar     os aparelhos de ar, para ir verificar a situação dos seus corajosos     amigos.

Contudo, apesar de toda a diligência empregada na constru ção     dos diferentes engenhos, e não obstante as consider áveis somas     postas à disposição do Clube do Canhão pelo Governo     da União, passaram ainda cinco dias - cinco séculos - antes     que todos os preparativos estivessem terminados.

Durante esse período, a opinião pública subira ao rubro.     Através dos fios e dos cabos elétricos, os telegramas cruzavam     o Mundo em todas as direções. 0 salvamento de Barbicane, Nicoles     e Michel Ardan era um assunto de interesse internacional. Todos os povos que     haviam contribuído para a subscrição do Clube do Canhão     atribuí- ram um especial significado à salvação     dos viajantes.

Finalmente, as amarras, as câmaras-de-ar e os arpéus autom     áticos foram embarcados na Susquehanna. J. T. Maston, o engenheiro     Murchison e os delegados do Clube do Canh ão ocupavam já os     seus camarotes. Restava apenas partir.

A 21 de dezembro, às oito horas da noite, a corveta levantou ferro,     com mar de feição. Corria uma brisa de nordeste e fazia frio.     Toda a população de São Francisco estava apinhada no     cais, emocionada e silenciosa. Reservava as manifesta ções de     regozijo para o regresso.

Deu-se ao vapor a máxima pressão, e a hélice da Susquehanna     levou-a rapidamente para o largo.

É inútil relatar as conversas que houve a bordo entre oficiais,     marinheiros e passageiros. Todos comungavam do mesmo pensamento. Todos aqueles     corações palpitavam sob a mesma emoção.

Todavia, enquanto se corria em seu socorro, que faziam Barbicane e os companheiros?     Que lhes teria acontecido? Estariam em condições de tentar alguma     audaciosa manobra para conquistar a liberdade? Ninguém podia dizê-lo.     A verdade é que todos os meios teriam falhado! Imersa a perto de duas     léguas de profundidade, aquela prisão de metal desafiava todos     os esforços dos prisioneiros.

A Susquehanna, depois de uma veloz travessia, devia chegar ao local do acidente     às oito horas da manhã do dia 23 de dezembro. Porém,     foi necessário esperar pelo meio-dia para se obter a posição     exata. A bóia, na qual se fixara a linha da sonda, ainda não     fora avistada.

Ao meio-dia, o Capitão Blomsbeny, ajudado pelos oficiais que controlavam     a observação, calculou a sua posição na presença     dos delegados do Clube do Canhão. Houve um momento de ansiedade. Verificou-se     que a corveta estava a oeste e a escassos minutos do local exato onde o projétil     desaparecera nas ondas.

Corrigiu-se, portanto, a rota do navio, de maneira a que alcançasse     aquele ponto preciso.

Ao meio-dia e quarenta e sete minutos, localizou-se a bóia.

Estava em perfeito estado, e, por certo, pouco derivara.

- Até que enfim! - exclamou J. T. Maston.

- Podemos começar? - perguntou o Capitão Blomsberry.

- Sem perder um- segundo - respondeu J. T. Maston.

Trataram de tomar todas as precauções para que a corveta se     mantivesse em completa imobilidade.

Antes de tentar içar o projétil, o engenheiro Murchison quis     primeiro saber que posição ocupava sobre o fundo oceânico.

Os aparelhos submarinos, destinados a esta operação, receberam     o seu aprovisionamento de ar?. 0 manejo desses engenhos tinha os seus perigos,     porque, a vinte mil pés de profundidade, e sob tão consideráveis     press ões, expunham-se a rupturas cujas conseqüências seriam     desastrosas.

J. T. Maston, o irmão de Blomsberry e o engenheiro Murchison tomaram     lugar na câmara-de-ar, sem se preocuparem com os eventuais perigos.     0 comandante orientava da ponte a operação, pronto a parar ou     a içar as correntes ao menor sinal. A hélice fora desengatada,     e toda a força das máquinas estava aplicada ao cabrestante,     pelo que seria fácil trazer rapidamente para bordo todos os aparelhos.

A descida começou à uma hora e vinte e cinco minutos da tarde,     e a câmara, devido ao peso dos reservatórios, cheios de água,     desapareceu sob a superfície do oceano.

A emoção dos oficiais e dos marinheiros partilhava-se agora     entre os prisioneiros do projétil e os do aparelho submarino.

Quanto a estes, esqueciam-se de si próprios. Colados aos vidros das     vigias, observavam atentamente a massa líquida que atravessavam.

A descida foi rápida. Às duas horas e dezessete minutos, J.

T. Maston e os companheiros atingiram o fundo do Pacífico.

Mas nada viram, a não ser um árido deserto, que já     nem era animado pela fauna e flora marinhas. Á luz das lâmpadas,     dotadas de possantes refletores, podiam ver as sombrias camadas de ? água     num raio bastante extenso, mas o projétil mantinha?se invisível.

A impaciência dos audazes mergulhadores era indescritível.

Como o aparelho estava em comunicação elétrica com     a corveta, fizeram o sinal combinado, e a Susqt4eh.anna passeou a câmara     na distancia, de uma milha, suspensa a alguns metros acima do fundo.

Deste modo, exploraram toda a planície submarina, enganados a cada     instante por ilusões de ótica que lhes cortavam a respiração.     Aqui, um rochedo, além, uma intumesc ência do fundo, que se lhes     afiguravam como sendo o projétil tão procurado. Depois, no momento     seguinte, reconheciam o erro e desesperavam-se.

- Mas onde estão eles? Onde estão? - exclamava J. T.

Maston.

E o pobre homem chamava em altos gritos por Nicoles, Barbicane e Michel     Ardan, como se os seus infelizes amigos pudessem ouvi-lo ou responder-lhe     através daquele impenetr ável meio! A pesquisa continuou nessas     condições, até o momento em que o ar do aparelho, viciado,     obrigou os mergulhadores a subir. Começaram a içá-lo     por volta das seis horas da tarde, e só à meia-noite a operação     terminou.

- Amanhã continuamos - disse J. T. Maston, quando pisou a coberta     da corveta.

Sim - respondeu o Capitão Blomsberry. Mas em outro local.

De acordo.

J. T. Maston continuava a acreditar no êxito das buscas, enquanto     os companheiros, a quem já ia esmorecendo o entusiasmo das primeiras     horas, compreendiam a enorme dificuldade da empresa. 0 que parecia fácil     em São Francisco tornava-se ali, em pleno oceano, quase irrealizável.     As probabilidades de êxito diminuíram numa grande propor- ção.     Só o acaso podia ajudá-los a encontrar o projétil.

No dia seguinte, 24 de dezembro, não obstante as fadigas da véspera,     retomou-se a operação. A corveta deslocouse alguns minutos para     oeste, e o aparelho, cheio de ar, levou os mesmos exploradores para as profundezas     do oceano.

0 dia inteiro foi passado em infrutíferas buscas. 0 leito do mar     estava deserto. 0 dia 25 nada trouxe de novo. 0 dia 26 também não.

Era desesperador. Todos pensavam naqueles desventurados, encerrados no projétil     há vinte e seis dias! Talvez que naquele momento sentissem já     os primeiros sintomas de asfixia, se é que tinham escapado à     formidável queda. 0 ar esgotava-se, e, sem dúvida, com ele a     coragem, o ânimo.

- 0 ar é possível - considerava teimosamente J. T. Maston      - , mas o ânimo nunca.

A 28, após mais dois dias de buscas, perdera-se toda a esperança.     0 projétil era um átomo na imensidade do mar.

Havia que renunciar a encontrá-lo.

Entretanto, J. T. Maston não, queria ouvir falar em renúncia,     em partida. Não queria abandonar o local sem, pelo menos, ter avistado     o túmulo dos seus amigos. Mas o comandante Blomsberry não podia     ceder a essa obstinação, pelo que, a despeito das reclamações     do digno secretário, deu ordem de aparelhar.

As nove horas da manha do dia 29 de dezembro, a Susquehanna, virando a proa     a nordeste, retomou a rota da bala de São Francisco.

Eram dez horas da manhã. A corveta afastava-se em velocidade moderada,     como que com pena, do lugar da cat ástrofe, quando o marinheiro que     estava sentado nas barras do joanete, e que observava o mar, gritou de súbito:      - Bóia a sotavento! Os oficiais olharam na direção indicada.     Com os seus óculos, viram que o objeto assinalado tinha, de fato, o     aspecto dessas bóias que servem para balizar os canais das balas e     dos rios. Mas, pormenor singular, tinha no vértice do seu cone, que     emergia da água cinco a seis pés, uma bandeira que flutuava     ao vento. A bóia- resplandecia ao sol, como se as suas paredes fossem     feitas de chapas de prata.

0 Comandante Blomsberry, J. T. Maston e os delegados do Clube do Canhão     subiram à ponte e examinaram aquele objeto errante que vogava sobre     as ondas.

Olhavam todos com uma febril ansiedade, mas em silêncio.

Ninguém ousava dar voz ao pensamento que atravessava o espírito     de todos.

A corveta aproximou-se a menos de duzentas e quarenta braças do objeto.

Um frêmito perpassou por toda a tripulação. A bandeira     da bóia era a americana.

Ouviu-se então um verdadeiro rugido. Era o bravo J. T.

Maston que acabava de cair como uma massa. Esquecendo, por um lado, que     o seu braço direito fora substituído por um gancho de ferro,     e, por outro, que um simples barrete de guta-percha lhe protegia a - caixa     craniana, acabava de vibrar na própria cabeça uma formidável     pancada.

Precipitaram-se para ele. Levantaram-no. Fizeram com que recuperasse os     sentidos. E quais foram as suas primeiras palavras? - Ali!, grandes brutos1     Grandíssimos idiotas. Refinadíssimos ignorantes que nós     somos.

- O que há?... perguntava-se à sua volta.

- Mas, por favor, explique-se...

0 que há, grandes imbecis - berrou o terrível secretário      -, o projétil pesa apenas dezenove mil duzentas e cinqüenta libras!      - E então? - E que só desloca vinte e oito toneladas, ou seja,     cinqüenta e seis mil libras, e que, conseqüentemente, flutua! Ali!,     como o digno homem sublinhou o verbo flutuar. E era a verdade! Todos, todos     aqueles sábios se haviam esquecido dessa lei fundamental: mercê     do seu menor peso espec ífico, o projétil, depois de ter sido     levado pela queda até às maiores profundidades do oceano, devia     naturalmente voltar à superfície! E agora flutuava tranqüilamente     ao sabor das ondas...

Lançaram-se as embarcações ao mar. J. T. Maston e os     seus amigos precipitaram-se nelas. A emoção estava no auge.     Os corações palpitavam, enquanto os escaleres avan- çavam     para o projétil. Que conteria ele? Vivos ou mortos? Vivos, vivos, a     menos que a morte tivesse levado Barbicane e os dois companheiros depois de     terem arvorado a bandeira.

1 Pairava um profundo silêncio sobre os escaleres. Todos os corações     palpitavam. Os olhos não viam. Uma das vigias do, projétil estava     aberta. Alguns pedaços de vidro, que restavam no caixilho, provavam     que a vidraça fora quebrada.

A vigia estava então a cinco pés do nível da água.

Um dos escaleres acostou ao projétil, o de J. T. Maston.

Este precipitou-se para a vidraça quebrada...

Naquele momento, ouviu-se uma voz alegre e clara, a voz de Michel Ardan,     que exclamava em tom de vitória: - Tudo bem, Barbicane. Tudo bem! Barbicane,     Michel Ardan e Nicoles jogavam dominó.

 

Capítulo 15    

Para terminar

 

não está esquecida, decerto, a enorme simpatia que envolvera     os três viajantes quando da sua partida. Se no come ço da empresa     causaram tal emoção no Velho e no Novo Mundo, qual seria o entusiasmo     que os esperava no regresso? Aqueles milhões de espectadores que na     altura invadiram a península da F16rida não se precipitariam     para rever os sublimes viajantes? Aquelas legiões de estrangeiros,     que acorreram de todos os pontos do Globo às costas americanas, deixariam     porventura o território da União sem voltarem a ver Barbicane,     Nicoles e Michel Ardan? Não, e a ardente paixão do público     iria com certeza corresponder à grandeza da empresa. Criaturas humanas     que tinham deixado o esferóide terrestre, quê regressavam depois     dessa estranha viagem, pelos espaços celestes, não podiam deixar     de ser recebidos como o será, um dia, o profeta Elias quando voltar     a descer à Terra.

Vê-los primeiro, ouvi-los depois, tal era o desejo de todos.

E este desejo seria em breve realizado pela grande maioria dos habitantes     da União.

Barbicane, Michel Ardan, Nicoles e os delegados do Clube do Canhão,     que regressaram sem demora a Baltimore, foram ali acolhidos com um entusiasmo     indescritível. Os apontamentos de viagem do presidente Barbicane estavam     prontos para ser entregues à publicidade.

0 New York Herald comprou o manuscrito por um preço ainda desconhecido,     mas cuja importância foi com certeza muito elevada. De fato, durante     a publicação da Viagem à Lua, a tiragem daquele jornal     ascendeu a cinco milhões de exemplares. Três dias depois do regresso     dos viajantes à Terra, os pormenores mais insignificantes da expedição     eram conhecidos. Restava apenas ver os heróis da aventura sobre- humana.

A exploração de Barbicane e dos seus amigos à volta     da Lua permitira pôr à prova as diversas teorias admitidas no     que respeita ao satélite terrestre. Aqueles sábios tinham observado     de visu, e em condições muito particulares. Sabia- se agora     quais os sistemas que deviam ser rejeitados e quais os que deviam ser admitidos,     no que respeita à forma ção, à origem e à     habitabilidade daquele astro. 0 seu passado, o seu presente e o seu futuro     tinham mesmo desvendado os seus últimos segredos. Que se podia objetar     a observadores conscienciosos, sabendo-se que haviam feito, a menos de quarenta     quilômetros, um levantamento dessa curiosa Montanha de Ticho, a mais     estranha do sistema orográfico lunar? Que responder àqueles     sábios, cujos olhares mergulharam nos abismos do Círculo de     Platão? Como contradizer aqueles audaciosos aventureiros, que os acasos     de uma experiência levaram acima dessa face invis ível do disco,     que até então nenhum olhar humano vira? Cabia-lhes agora o direito     de impor os limites a essa ciência selenográfica que recompusera     o mundo lunar, como Cuvier o esqueleto de um fóssil, e de dizer: ?A     Lua foi um mundo habitável e habitado antes da Terra! A Lua é     um mundo inabitável e agora desabitado!? Para festejar o regresso do     mais ilustre dos seus membros e dos seus dois companheiros, o Clube do Canhão     pensou em organizar um banquete, mas um banquete digno daqueles triunfadores,     digno do povo americano, e em tais condições que todos os habitantes     da União pudessem tomar parte nele.

Todos os grandes terminais de estradas de ferro foram ligados entre si por     meio de carris volantes. Depois, em todas as gares, embandeiradas com as mesmas     bandeiras, decoradas com os mesmos ornatos, armaram-se mesas uniformemente     guarnecidas. A determinadas horas, calculadas com- exatidão e indicadas     em relógios elétricos que estavam certos até o segundo,     a população foi convidada a tomar lugar às mesas do banquete.

Durante quatro dias, de 5 a 9 de janeiro, os trens pararam, como é     normal acontecer aos domingos na União, e todas as vias ficaram livres.

Só a uma locomotiva muito rápida, que puxava, um vagão     de honra, foi permitido circular durante aqueles quatro dias nas linhas das     estradas de ferro dos Estados Unidos.

Na locomotiva, conduzida por um maquinista e o foguista, ia também,     por especial deferência, o digno J. T. Maston, secretário do     Clube do Canhão.

0 vagão fora reservado ao Presidente Barbicane, ao Capit ão     Nicoles e a Michel Ardan.

Ao silvo da máquina, depois dos burras e de todas as onomatopéias     de admiração da língua nativa, o trem deixou a gare de     Baltimore, atingindo em breve uma velocidade de oitenta léguas por     hora. Mas o que. era esta velocidade comparada com, a que alcançaram     os três heróis ao sair do columbiad? Desse modo, foram de uma     cidade a outra encontrando as populações à mesa, que     os saudavam com as mesmas aclamações e os mesmos bravos. Percorreram     o Leste da União, atravessando a Pensilvânia, o Connecticut,     o Massachussetts, o Vermont, o Maine e a Nova Brunswick; o Norte e o Oeste,     passando por Nova Iorque, Ohio, Michigan e Wisconsin; desceram para o Sul     pelo Ilinóis, Missuri, Arkansas, Texas e Luisiana; correram ao Sudeste     pelo Alabama e a Flórida; voltaram a subir pela Geórgia e pelas     Carolinas; visitaram o centro pelo Tennessee, Kentucky, Virgínia e     Indiana; e, finalmente, uma vez passada a estação de Washington,     regressaram a Baltimore.

Durante quatro dias, puderam os três amigos acreditar que os Estados     Unidos estavam à mesa de um único e enorme banquete, para os     saudar em uníssono e com os mesmos hurras! A apoteose era digna daqueles     heróis que a Fábula teria guindado às fileiras dos semideuses.

Contudo, conduzirá a algum resultado prático essa experi-      ência sem precedentes nos anais das viagens? Estabelecer- se-ão     alguma vez comunicações diretas com a Lua? Criar-se-á     um serviço de navegação através do espaço,     para servir a circulação no mundo solar? Ir-se-á de um     planeta a outro, de Júpiter a Mercúrio, ou, mais tarde, de uma     estrela a outra da Polar a Sírio? Descobrir-se-á um meio de     locomoção que permita visitar esses sóis que abundam     no firmamento? A estas perguntas ninguém poderá responder. Mas,     conhecendo- se o audacioso engenho da raça anglo saxônica, ningu     ém por certo se espantará que os americanos procurem tirar o     melhor partido da experiência do Presidente Barbicane. .

A verdade é que, algum tempo depois do regresso dos viajantes, o     público acolheu muito favoravelmente os anúncios de uma sociedade     em comandita (limited), com um capital de cem milhões de dólares,     dividido em cem mil ações de mil dólares cada. Denominava-se     Sociedade Nacional de Comunicações Interestelares e tinha Barbicane     por presidente, o Capitão Nicoles por vice-presidente, J. T.

Maston por secretário da administração e Michel Ardan     por diretor da circulação.

E, como o temperamento americano gosta, no que toca a negócios, de     prever tudo, mesmo a falência, foram antecipadamente designados para     juiz-comissário o digníssimo Harry Troloppe e Francis Dayton     para síndico!

 

                                                                                                      Júlio Verne

 

Carlos Cunha      Arte & Produção Visual

 

 

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