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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Viagem ao Centro da Terra / Júlio Verne
Viagem ao Centro da Terra / Júlio Verne

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Viagem ao Centro da Terra

 

 

I

A 24 de maio de 1863, um domingo, meu tio, o professor Lidenbrock, voltou precipitadamente para sua casinha no número 19 da Königstrasse, uma das ruas mais antigas do velho bairro de Hamburgo.

A boa Marthe deve ter achado que estava muito atrasada, pois o jantar mal começara a chiar no fogão da cozinha.

"Bem", pensei, "se estiver com fome, meu tio, que é o mais impaciente dos homens, vai dar gritos de aflição".

- O senhor Lidenbrock já chegou! - exclamou Marthe, estupefata, entreabrindo a porta da sala de jantar.

- Já, Marthe; mas o jantar tem o direito de não estar pronto, pois não são nem duas horas. Acabou de dar a meia hora em São Miguel.

- Então por que o senhor Lidenbrock está de volta? - Logo saberemos por ele mesmo.

- Ei-lo! Vou sumir, senhor Axel; o senhor se encarregue de fazer com que se mostre razoável.

E a boa Marthe desapareceu em seu laboratório culinário.

Fiquei sozinho. Fazer com que o mais irascível dos professores se mostrasse razoável era algo que o meu temperamento um tanto indeciso não permitia. Preparava-me para voltar ao meu quartinho no último andar quando as dobradiças da porta rangeram; a escada de madeira estalou sob os grandes pés, e o dono da casa, depois de atravessar a sala de jantar, precipitou-se imediatamente para seu gabinete de trabalho.

Durante a rápida passagem jogara num canto sua bengala com um quebra-nozes na ponta, seu grande chapéu de pêlos arrepiados na mesa, e as seguintes palavras retumbantes a seu sobrinho: - Axel, siga-me! Eu mal tivera tempo de me mexer, e o professor já gritava num tom vivo de impaciência: - Vamos! Por que ainda não está aqui? Corri para o gabinete de meu temível mestre.

Tenho de convir que Otto Lidenbrock não era um homem mau; mas, a não ser que ocorressem mudanças improváveis, morreria como um terrível excêntrico.

Era professor no Johannaeum, onde dava um curso de mineralogia, durante o qual se enraivecia pelo menos duas vezes.

Não que se preocupasse com a assiduidade ou a atenção dos alunos, nem com o seu sucesso depois de formados; eram detalhes nos quais nem pensava. Ele lecionava "subjetivamente", para empregar uma expressão da filosofia alemã, para si, e não para os outros. Era um cientista egoísta, um poço de ciência cuja roldana guinchava quando alguém tentava extrair algo dele: em suma, um avaro.

Há alguns professores assim na Alemanha.

Infelizmente, meu tio não tinha grande facilidade de expressão, nem na intimidade, quanto mais quando falava em público, o que era um lamentável defeito em um orador. De fato, em suas palestras no Johannaeum, muitas vezes o professor parava de falar de repente. Lutava com uma palavra recalcitrante que não queria sair de sua boca, uma dessas palavras que resistem, incham e acabam saindo sob a forma pouco científica de um palavrão.

Daí grandes acessos de cólera.

Ora, em mineralogia, há muitas denominações semigregas, semilatinas, difíceis de pronunciar, nomes rudes que esfolariam os lábios de um poeta. Não que eu queira falar mal dessa ciência.

Longe de mim. Mas quando estamos diante de cristalizações romboédricas, de resinas retinasfálticas, de guelenitas, de fangasitas, de molibdênio de chumbo, de tungstato de manganésio, de titanato de zircônio, até as línguas mais bem treinadas perdem o prumo.

De qualquer forma, digo e repito, meu tio era um verdadeiro cientista. Apesar de quebrar por vezes suas amostras pela sua brusquidão, reunia a visão do mineralogista ao gênio do geólogo.

Com seu martelo, seu buril de aço, sua agulha imantada, seu maçarico e seu frasquinho de ácido nítrico, era um grande profissional. Pela fratura, pelo aspecto, pela dureza, pela fusibilidade, pelo som, pelo cheiro ou pelo gosto, era capaz de classificar sem hesitação um mineral qualquer entre as seiscentas espécies com que a ciência conta hoje em dia.

O nome Lidenbrock resplandecia com honra nos ginásios e associações nacionais. Quando passaram por Hamburgo, Humphry Davy, de Humboldt e os capitães Franklin e Sabine fizeram questão de encontrar-se com ele. Becquerel, Ebelmen, Brewster, Dumas, Milne-Edwards, Sainte-Claire-Deville gostavam de consultá-lo a respeito das descobertas mais palpitantes da química, que lhe devia umas tantas das descobertas, e em 1853 foi publicado em Leipzig um Tratado de cristalografia transcendente do professor Otto Lidenbrock, grande in-fólio com ilustrações, que infelizmente não cobriu seus custos.

Acrescentarei que meu tio era o conservador do museu mineralógico de Struve, embaixador da Rússia, preciosa coleção, célebre em toda a Europa.

Eis, portanto, o personagem que me interpelava com tanta impaciência. Imaginem um homem alto, magro, saúde de ferro, lourice juvenil, que fazia com que parecesse um quarentão e não o cinqüentão que era. Seus olhos grandes não paravam atrás dos óculos consideráveis. Seu nariz comprido e fino parecia uma lâmina afiada. Os mexeriqueiros até pretendiam que era imantado e atraía limalha de ferro. Pura calúnia: só atraía tabaco, mas em grande abundância, para ninguém dizer que sou mentiroso.

Se eu acrescentar que os passos de meu tio mediam matematicamente meia-toesa' e se disser que, ao caminhar, mantinha os punhos solidamente fechados, sinal de um temperamento impetuoso, terei dito o bastante para ninguém se mostrar ansioso por sua companhia.

Morava em sua casinha da Königstrasse, de madeira e tijolos, empena rendada, que dava para um dos canais sinuosos que se cruzam no meio do bairro mais antigo de Hamburgo, respeitado, felizmente, pelo incêndio de 1842.

É verdade que a velha casa era um pouco inclinada e mostrava a barriga aos transeuntes. Seu teto inclinava-se sobre a orelha, como o boné de um estudante da Tugendbund. O aprumo de suas linhas deixava a desejar, mas, em suma, conseguia sustentar-se graças a um velho olmo engastado com vigor na fachada, cujos brotos em flor penetravam na primavera pelos vidros das janelas.

Meu tio até que era rico para um professor alemão. Tudo na casa, conteúdo e continente, pertencia-lhe. O conteúdo consistia em sua afilhada Grauben, jovem Virlandesa de dezessete anos, a boa Marthe e eu. Em minha dupla qualidade de sobrinho e órfão, tornei-me auxiliar-assistente em suas experiências.

Confesso que me entreguei com grande apetite às ciências geológicas. Tinha sangue de mineralogista nas veias e nunca me entediei na companhia de meus preciosos pedregulhos.

Em suma, era possível viver feliz na casinha da Königstrasse apesar da impaciência de seu proprietário, pois, embora agisse com um pouco de brutalidade, meu tio não deixava de me amar.

Contudo, era um homem que não sabia esperar e mais apressado que o normal.

Quando, em abril, plantava, nos vasos de porcelana da sala, seus pés de resedá ou volubilis, ia, todas as manhãs, puxar-lhes as folhas para apressar seu crescimento.

A única forma de lidar com um excêntrico daqueles era obedecer-lhe.

Precipitei-me para o seu gabinete.

II

O gabinete era um verdadeiro museu, onde todas as amostras estavam etiquetadas na mais perfeita ordem, de acordo com as três grandes divisões dos minerais: inflamáveis, metálicos e litóides.

Como eu conhecia aqueles bibelôs da ciência mineralógica! Quantas vezes, em vez de ir brincar com as crianças de minha idade, preferi ficar espanando as grafitas, os antracitos, hulhas, linhitas, turfas! E os betumes, as resinas e os sais orgânicos, que era necessário proteger do menor grão de poeira! E aqueles metais, do ferro ao ouro, cujo valor relativo desaparecia diante da igualdade absoluta dos espécimes específicos! E todas aquelas pedras que dariam para reconstruir a casa da Königstrasse, até com mais um quarto, o que eu não acharia nada mal! Mas, ao entrar no gabinete, não estava pensando naquelas maravilhas. Só tinha meu tio em mente. Estava escondido em sua enorme poltrona de veludo de Utrecht com um livro que considerava com a mais profunda admiração.

- Que livro! Que livro! - exclamava.

A exclamação lembrou-me de que o professor Lidenbrock era também bibliomaníaco nas horas vagas. Mas, para ele, um livro só tinha valor se fosse impossível encontrá-lo ou se fosse ilegível.

- Você não está vendo? - disse-me. - Hoje de manhã encontrei um tesouro inestimável remexendo no sebo do judeu Hevelius.

- Que maravilha! - respondi, com um entusiasmo um tanto artificial.

Afinal, para que tanto barulho por causa de um velho inquarto encadernado com camurça grosseira, um livro amarelado do qual pendia um marcador descolorido! O professor não parava de soltar interjeições de admiração.

- Veja - dizia, fazendo perguntas às quais ele mesmo respondia -, não é uma beleza? É admirável! E que encadernação! Não é fácil abrir esse livro? Facílimo, fica aberto em qualquer página! Fecha fácil? Sim, pois a capa e as folhas formam um todo bem unido, não se separam ou abrem em nenhum lugar! E esse dorso, que não tem uma única rachadura apesar de seus sete séculos de existência! Ah! Que encadernação! Deixaria qualquer Bozerian, Closs ou Purgold orgulhosos! Enquanto falava, meu tio abria e fechava o velho livro. A única coisa que eu poderia fazer era perguntar sobre o que versava, embora absolutamente não estivesse interessado.

- E qual o título desse volume maravilhoso? - perguntei com um ardor um tanto entusiasmado demais para ser sincero.

- Essa obra... - animou-se meu tio - é o Heims-Kringla de Snorre Turleson, o famoso autor islandês do século XII! É a crônica dos príncipes noruegueses que reinaram na Islândia! - Sério? - exclamei como pude. - E, com toda a certeza, é uma tradução para o alemão? - Uma tradução! - replicou o professor com vivacidade. Uma tradução! O que eu faria com uma tradução? Quem quer uma tradução? É a obra original em islandês, esse idioma magnífico, ao mesmo tempo rico e simples, que permite as combinações gramaticais mais variadas e inúmeras modificações de palavras! - Como o alemão - insinuei, com bastante felicidade.

- Sim - respondeu meu tio dando de ombros -, sem contar que o islandês admite os três gêneros como no grego e declina os nomes próprios como no latim! - Ah! - minha indiferença foi um pouco abalada. - E os caracteres desse livro são bonitos? - Caracteres? Que caracteres, infeliz? Caracteres... Ah, você está achando que é um impresso? Santa ignorância, é um manuscrito, e um manuscrito rúnico! - Rúnico? - Claro! Só falta agora você pedir-me que eu lhe explique essa palavra.

- De jeito nenhum - repliquei no tom de um homem ferido em seu amor-próprio.

Mas meu tio não deu importância às minhas palavras e ensinou-me, contra a minha vontade, coisas que eu não fazia a menor questão de saber.

- As runas - continuou - eram caracteres de escrita empregados outrora na Islândia, que, de acordo com a tradição, foram inventados pelo próprio Odin! Olhe, admire, ímpio, esses tipos procedentes da imaginação de um deus! Como não sabia o que responder, ia me prosternar, que era uma espécie de reação que deve agradar tanto aos deuses quanto aos reis, pois tem a vantagem de nunca embaraçá-los, quando um incidente desviou o curso da conversa.

Foi o surgimento de um pergaminho imundo, que escorregou do livro e caiu no chão.

Meu tio precipitou-se sobre aquela ninharia com uma avidez fácil de compreender. Um velho documento encerrado desde tempos imemoriais num velho livro não podia deixar de ser muito valioso para ele.

- O que é isso? - exclamou.

E desdobrou cuidadosamente em sua mesa um pedaço de pergaminho de cinco polegadas de comprimento e três de largura, no qual se distribuíam em linhas transversais caracteres ilegíveis.

Aqui está seu fac-símile exato. Faço questão de apresentar esses sinais estranhos, pois levaram o professor Lidenbrock e seu sobrinho à expedição mais estranha do século XIX: öx.ö,l,ööh öhö,tntö ö,ör:rrlblö h dThh'YP ntö.Y.Ylö'F!ö ITbööö T! 1ö' I ötö t11öÞ YT öh ö Ibö ö1ö öTn öö ö, . I, h Y,ö r ö r r b ,öör I .r .r n T n r F ö,ö t,T n bTö Iö r kh.öI Bk YtbIlI

O professor considerou por alguns instantes a série de caracteres; depois disse, erguendo seus óculos: - É rúnico; esses tipos são idênticos aos do manuscrito de Snorre Turleson! Mas... o que será que tudo isso significa? Como eu acreditava ser o rúnico uma invenção dos cientistas para ludibriar o pobre mundo, não fiquei aborrecido com o fato de meu tio não entender nada. Pelo menos é o que parecia pelo movimento de seus dedos, que começavam a tremer muito.

- Mas é islandês antigo! - murmurava entre os dentes.

E o professor Lidenbrock devia entender disso, pois passava por um verdadeiro poliglota. Não que falasse correntemente as duas mil línguas e os quatro mil idiomas empregados na superfície do globo, mas conhecia boa parte deles.

Toda a impetuosidade de seu temperamento estava prestes a mostrar-se diante dessa dificuldade, e eu começava a prever uma cena violenta, quando soaram duas horas no reloginho da lareira.

A boa Marthe abriu a porta do gabinete e disse: - O jantar está na mesa.

- Ao diabo o jantar, quem o fez e os que vão comê-lo! - exclamou meu tio.

Marthe saiu correndo. Corri atrás dela e, sem saber como, encontrei-me sentado no meu lugar habitual na sala de jantar.

Esperei alguns instantes. O professor não apareceu. Era a primeira vez, que eu saiba, que ele não comparecia à solenidade do jantar. E que jantar! Uma sopa com muita salsinha, uma omelete de presunto, temperada com azedinha e noz-moscada, um lombo de vitela na compota de ameixas, e, de sobremesa, camarões açucarados, tudo regado por um belo vinho do Mosel.

Eis o que um papel velho custaria a meu tio. É óbvio que, na qualidade de sobrinho dedicado, achei que era minha obrigação comer por ele e por mim. O que fiz conscienciosamente.

- Nunca vi isso! - dizia a boa Marthe. - O senhor Lidenbrock não aparecer para o jantar! - Inacreditável.

- É o presságio de um acontecimento muito grave! - continuou a velha criada, balançando a cabeça.

No meu entender, aquilo não significava nada, a não ser uma cena horrorosa quando meu tio encontrasse seu jantar devorado.

Estava no último camarão, quando uma voz tonitruante arrancou-me das voluptuosidades da sobremesa. Em um salto, eu estava no gabinete.

III

- É evidente que é rúnico - dizia o professor franzindo o cenho. - Mas existe algum segredo que descobrirei, senão...

Um gesto violento arrematou seu raciocínio.

- Sente-se ali - acrescentou, indicando-me a mesa com o punho - e escreva...

Em um instante eu estava a postos.

- Agora vou ditar-lhe as letras correspondentes aos caracteres islandeses em nosso alfabeto. Veremos o que acontece. Mas, por São Miguel, trate de não errar! Começou o ditado, durante o qual fiz o melhor que pude.

As letras foram soletradas uma a uma e formaram a seguinte sucessão de palavras:

m.rnlls esreuel seecJde sgtssmf unteief niedrke rt,samn atrate5 Saodrrn emtnael nuaect rrilsa Atvaar .nscrc ieaabs ccdrmi eeutul frantu dt,iac oseibo Kedii Y

Assim que concluímos o trabalho, meu tio pegou bruscamente a folha na qual eu acabara de escrever e examinou-a por muito tempo com atenção.

- O que quer dizer isso? - repetia maquinalmente.

Juro que eu não saberia explicar-lhe. Aliás, ele não estava me perguntando nada e continuou a falar consigo mesmo: - É o que chamamos de criptograma - dizia -, no qual o sentido está escondido nas letras misturadas de propósito e que, dispostas adequadamente, formariam uma frase inteligível.

Quando penso que talvez esteja diante da explicação ou da indicação de uma grande descoberta...

Quanto a mim, achava que aquilo não queria dizer nada, mas não ousava formular minha opinião.

Então, o professor pegou o livro e o pergaminho e comparou-os.

- As letras não pertencem à mesma pessoa - disse. - O criptograma é posterior ao livro, é irrefutável. A primeira letra é um M duplo que se procurava em vão no livro de Turleson, pois só foi adicionada ao alfabeto islandês no século XIV. Desta forma, há pelo menos duzentos anos entre o manuscrito e o documento.

Isso me pareceu bastante lógico.

- Sou levado a pensar - continuou meu tio - que um dos proprietários desse livro traçou esses caracteres misteriosos.

Mas quem diabo era esse proprietário? Não teria escrito seu nome em algum lugar do manuscrito? Meu tio ergueu os óculos, pegou uma lupa potente e, com todo o cuidado, passou em revista as primeiras páginas do livro.

No verso da segunda, a do ante-rosto, descobriu uma espécie de mácula que parecia uma mancha de tinta. No entanto, examinando-se com maior cuidado, era possível distinguir alguns caracteres semi-apagados. Meu tio achou ter descoberto um ponto interessante; deteve-se na mácula e, com o auxílio de sua enorme lupa, acabou reconhecendo os seguintes sinais, caracteres rúnicos, que leu sem hesitar:

- Arne Saknussemm! - exclamou com um ar de triunfo.

- Isso é que é nome e ainda por cima um nome islandês, de um cientista do século XVI, célebre alquimista! Eu olhava para o meu tio com uma certa admiração.

- Esses alquimistas - continuou -, Avicena, Bacon, Lulle, Paracelso eram os únicos e verdadeiros cientistas de seu tempo.

Fizeram descobertas que nos surpreendem até hoje. Por que não teria esse Saknussemm escondido sob esse criptograma incompreensível alguma invenção surpreendente? Deve ser isso! Deve ser! Essa hipótese estimulava a imaginação do professor.

- Com certeza - ousei responder. - Mas que interesse teria o sábio em esconder dessa forma sua maravilhosa descoberta? - Que interesse? Que interesse? E eu sei? Galileu não agiu da mesma forma com Saturno? Além disso, logo saberemos: descobrirei o segredo desse documento e não comerei nem dormirei antes de tê-lo adivinhado.

"Oh! ", pensei.

- Nem você, Axel - ordenou.

"Que diabo!", disse para mim mesmo, "ainda bem que comi por dois".

- Antes de mais nada - falou meu tio - precisamos encontrar a chave dessa "cifra". Não deve ser difícil.

Ao ouvir essas palavras, ergui a cabeça bruscamente. Meu tio continuou seu solilóquio: - Nada mais fácil. Nesse documento há cento e trinta e duas letras, setenta e nove consoantes e cinqüenta e três vogais.

Ora, as palavras das línguas meridionais são formadas mais ou menos nessa proporção, enquanto os idiomas do norte são infinitamente mais ricos em consoantes. Trata-se portanto de uma língua do sul.

Suas conclusões eram extremamente corretas.

- Mas que língua é essa? É isso o que eu queria saber de meu cientista, no qual acabara de descobrir um profundo analista.

- Saknussemm era um homem culto - continuou. - Ora, já que não estava escrevendo em sua língua materna, deve ter escolhido de preferência a língua corrente entre as mentes cultas do século XVI, ou seja, o latim. Se eu estiver enganado, poderei tentar o espanhol, o francês, o italiano, o grego e o hebraico.

Mas os cientistas do século XVI escreviam geralmente em latim.

Tenho, portanto, o direito de dizer a priori: é latim.

Dei um pulo na cadeira. Minhas lembranças de latinista revoltavam-se ante a pretensão de pertencer essa seqüência de palavras barrocas à doce língua de Virgílio.

- Claro, latim - continuou meu tio -, mas latim misturado.

"Ainda bem", pensei, "e haja sutileza para destrinçá-lo!" - Examinemos com cuidado - disse, tornando a pegar a folha na qual eu escrevera. - Eis uma série de cento e trinta e duas letras em aparente desordem. Há palavras formadas apenas de consoantes, como a primeira, "mürnlls", outras em que, ao contrário, há uma abundância de vogais, a quinta, por exemplo, "unteieet" ou a antepenúltima, "oseibo". Ora, é evidente que essa disposição não foi elaborada: é apresentada matematicamente pela razão desconhecida que presidiu à sucessão dessas letras. Parece-me certo que a frase primitiva tenha sido escrita normalmente e depois invertida de acordo com uma lei que temos de descobrir.

Assim que possuirmos a chave da cifra, poderemos lê-la correntemente. Mas qual é a chave? Você sabe, Axel? Não respondi a essa pergunta pela seguinte razão. Meu olhar detivera-se num encantador retrato pendurado na parede, o retrato de Grauben. A pupila de meu tio encontrava-se então em Altona, na casa de um de seus parentes, e sua ausência deixava-me bem triste, pois, devo confessar, a jovem Virlandesa e o sobrinho do professor amavam-se com toda a paciência e a tranqüilidade alemãs. Havíamos ficado noivos à revelia de meu tio, geólogo demáis para compreender tais sentimentos. Grauben era uma loura encantadora de olhos azuis, temperamento um tanto grave, caráter um tanto sério. Mas não era por isso que gostava menos de mim.

Eu simplesmente a adorava, se é que esse verbo existe na língua germânica! A imagem de minha pequena Virlandesa transportou-me num instante do mundo das realidades ao mundo dos sonhos, das lembranças...

Revia minha fiel companheira de trabalho e de prazer. Todo dia ajudava-me a arrumar as preciosas pedras de meu tio. Ela as etiquetava comigo. A senhorita Grauben era uma mineralogista e tanto! Poderia dar aulas a mais de um cientista. Gostava de aprofundar as questões mais difíceis da ciência. Quantas horas passamos estudando juntos! E quantas vezes invejei aquelas pedras insensíveis que ela tocava com suas mãos encantadoras! Depois, nos momentos de folga, saíamos os dois para percorrer as aléias frondosas de Alster e íamos juntos ao velho moinho alcatroado, tão lindo no canto do lago. Enquanto andávamos, conversávamos de mãos dadas. Contava-lhe coisas que a faziam rir com gosto. Chegávamos assim até a beira do Elba e, depois de cumprimentarmos os cisnes que nadam entre os grandes nenúfares brancos, voltávamos ao cais com o barco a vapor.

Estava nesse ponto do meu sonho, quando meu tio me trouxe de volta à realidade, batendo com o punho na mesa.

- Vejamos - disse -, a primeira idéia que temos ao tentarmos misturar as letras de uma frase é, acho, escrever as palavras na vertical, em vez de na horizontal.

"Perfeito!", pensei.

- Temos de verificar o que isso dá. Axel, escreva uma frase qualquer num pedaço de papel, mas, em vez de colocar as letras uma após a outra, coloque-as sucessivamente em colunas verticais, de forma a agrupá-las em cinco ou seis.

Imediatamente escrevi de cima para baixo:

E o o h u r n u m, a e a! a u m p n u a i i e a b m t n q G e

- Bem - disse o professor sem ter lido. - Agora disponha essas letras numa linha horizontal.

Obedeci e consegui a seguinte frase:

EmtnqGeuoohurnam. aealaumpniuiieab.

- Perfeito! - considerou meu tio, arrancando-me o papel das mãos. - Já parece com o velho documento: as vogais e as consoantes estão agrupadas na mesma desordem; tem até maiúsculas e vírgulas no meio das palavras, como no pergaminho de Saknussemm! Não pude evitar achar as observações bastante engenhosas.

- Ora - continuou meu tio, dirigindo-se diretamente a mim -, para ler a frase que você acabou de escrever e que não conheço, basta que eu pegue sucessivamente a primeira letra de cada palavra, depois a segunda, depois a terceira e assim por diante.

E para sua grande surpresa - e principalmente para a minha -, meu tio leu:

Eu a amo muito, minha pequena Grauben!

- O quê? - espantou-se o professor.

Sim, sem perceber, como apaixonado desastrado, traçara aquela frase comprometedora! - Ah, você gosta de Grauben? - retomou meu tio, num tom de verdadeiro tutor.

- Sim... Não... - balbuciei.

- Ah, você ama Grauben? - continuou maquinalmente.

- Muito bem, apliquemos esse método ao documento em questão.

Voltando a cair em sua contemplação absorta, meu tio já esquecera minhas palavras imprudentes. Imprudentes, pois o cérebro de um cientista não compreenderia as coisas do coração.

Felizmente, prevaleceu a importância do documento.

No momento de fazer sua experiência capital, os olhos do professor Lidenbrock reluziram através dos óculos. Seus dedos tremeram ao pegar o velho pergaminho. Estava seriamente emocionado. Finalmente, tossiu com força e, a voz grave soletrando sucessivamente a primeira letra e depois a segunda de cada palavra, ditou-me a seguinte série:

messunkaSenrA.icefdoK.segnittamurtn: erertserrette, rotaivsadua, ednecsedsadne lacartniiiluJsiratracSarbmutabiledmek meretarcsilucoYsleffenSnl

Confesso que estava comovido quando acabei; essas letras, pronunciadas uma a uma, não tinham qualquer significado para mim; esperava portanto que o professor deixasse escapar de seus lábios uma frase de magnífica latinidade.

Mas quem poderia prever? A mesa foi abalada pelo seu punho violento. A tinta esparramou-se, a pena caiu de minha mão.

- Não é nada disso! - exclamou meu tio. - Isso não tem sentido! Depois, atravessando o gabinete como uma bala, descendo as escadas como uma avalanche, precipitou-se para a Königstrasse e. num instante, desapareceu.

IV

- Ele saiu? - exclamou Marthe, acorrendo ao barulho da porta da rua, que abalou a casa inteira pela violência com que foi fechada.

- Saiu mesmo - respondi.

- E o almoço? - resmungou a velha criada.

- Não vai almoçar.

- E o jantar? - Não vai jantar.

- Como? - disse Marthe, unindo as mãos.

- Minha boa Marthe, ele não vai mais comer, nem ninguém nesta casa! Meu tio Lidenbrock vai obrigar-nos a todos nesta casa a jejuar até decifrar aquele pergaminho indecifrável! - Jesus! Vamos todos morrer de fome! Não ousei confessar que, com um homem tão fanático quanto meu tio, era um destino inevitável.

Seriamente alarmada, a velha criada voltou para a cozinha gemendo.

Quando fiquei sozinho, passou-me pela cabeça ir contar tudo a Grauben. Mas como sair de casa? O professor podia voltar a qualquer momento. E se me chamasse? E se quisesse recomeçar o trabalho logogrífico que poderia ser proposto em vão ao velho Édipo? E se eu não acorresse a seu chamado, o que aconteceria? Era mais sensato ficar. Justamente, um mineralogista de Besançon acabara de nos enviar uma coleção de geodos siliciosos que era preciso classificar. Comecei a trabalhar. Triava, etiquetava e dispunha em sua vitrina todas aquelas pedras ocas dentro das quais se agitavam cristaizinhos.

Mas não consegui me envolver naquela ocupação. O caso do velho documento não deixava de preocupar-me de forma estranha. Minha cabeça fervilhava, e eu me sentia vagamente perturbado. Pressentia uma catástrofe iminente.

Ao final de uma hora, os geodos estavam arrumados. Fui sentar-me na grande poltrona de Utrecht, braços pendentes e cabeça caída. Acendi meu cachimbo de longo tubo curvo, cujo fornilho esculpido representava uma náiade deitada com descontração; depois, diverti-me em seguir as evoluções da carbonização que transformava minha náiade numa negra. De vez em quando, prestava atenção para tentar ouvir algum passo ressoando na escada. Nada. Onde estaria meu tio naquele momento? Via-o correndo sob as belas árvores da estrada de Altona, gesticulando, batendo nos muros com sua bengala, atacando a relva com violência, decapitando os espinhos e perturbando o repouso das cegonhas solitárias.

Como voltaria, triunfante ou desanimado? Quem venceria, o segredo ou ele? Enquanto falava comigo mesmo, peguei maquinalmente entre meus dedos a folha de papel sobre a qual se estendia a incompreensível série de letras traçadas por mim. Perguntava-me todo o tempo: - O que significa isso? Tentava agrupar as letras de modo a formar palavras. Impossível! Por mais que as reunisse em grupos de duas, três, cinco ou seis, não dava nada de inteligível. Bem que as décima quarta, décima quinta e décima sexta palavras formavam o termo inglês "ice". A octagésima quarta, a octagésima quinta e a octagésima sexta, formavam a palavra "sir". Finalmente, observei também as palavras latinas "rota", "mutabile", "ira", "nec" e "atra" no corpo do documento.

"Diabos", pensei, "essas últimas palavras parecem dizer que meu tio tem razão quanto à língua do documento! E vejo na linha quatro a palavra "luco", que pode ser traduzida por "bosque sagrado". É verdade que na terceira linha, podemos ler o termo "tabiled", completamente hebraico, e, na última, os vocábulos mer, arc, mŠre, puramente franceses ''.

Era de enlouquecer! Quatro idiomas naquela frase absurda! Que relação poderia haver entre as palavras "gelo, senhor, cólera, cruel, bosque sagrado,  mutante, mãe, arco ou mar. Apenas  o primeiro e o último teriham uma certa coerência entre si: não era nada surpreendente mencionarem num documento escrito na Islândia um "mar de gelo". Mas daí a entender o resto do criptograma, era outro caso.

Lutava com uma dificuldade insolúvel; meu cérebro fervia, meus olhos piscavam diante da folha de papel. As cento e trinta e duas letras pareciam esvoaçar ao meu redor, como aqueles pontos negros que aparecem no ar quando o sangue sobe muito violentamente à cabeça.

Parecia-me estar vivendo uma alucinação. Sufocava, sentia falta de ar. Maquinalmente, abanei-me com a folha de papel, e fiquei olhando sucessivamente sua frente e seu verso.

Qual a minha surpresa quando, numa dessas reviravoltas rápidas, no momento em que o verso se voltava para mim, acreditei estar vendo aparecer palavras perfeitamente legíveis, palavras latinas, entre outras, "craterem" e "terrestre"! De repente, compreendi tudo; esses indícios haviam-me mostrado o caminho da verdade; eu descobrira a lei da cifra. Para entender o documento, nem era necessário lê-lo pela folha invertida! Não. Era assim, assim me fora ditado, assim podia ser soletrado normalmente. Todas as combinações engenhosas do professor realizavam-se. Tinha razão quanto à disposição das letras, quanto à língua do documento! Nada era necessário para ler do começo ao fim a frase latina, e o acaso acabara de oferecer-me esse "nada".

Dá para imaginar como fiquei emocionado! Meus olhos turvaram-se, tornando-se inúteis. Havia disposto a folha de papel sobre a mesa. Bastava olhá-la para tornar-me detentor do segredo.

Finalmente consegui acalmar-me. Condenei-me a dar duas voltas no quarto para tranqüilizar meus nervos e fui meter-me novamente na vasta poltrona.

- Bem, leiamos - exclamei para mim mesmo, após ter abastecido meus pulmões com muito ar.

Debrucei-me sobre a mesa; colocava meu dedo sobre cada letra e, sem parar, sem hesitar, pronunciei a frase inteira em voz alta.

Por que estupefação, por que desvario fui invadido! Sentia-me como que atingido por um raio. O quê! O que eu acabara de saber acontecera! Um homem tivera audácia suficiente para penetrar...! "Ah, não", exclamei dando um pulo, "não, não, meu tio não saberá disso! Só faltava ele saber de tal viagem! Vai querer fazêla! Nada conseguirá detê-lo! Um geólogo tão determinado! Vai fazê-la de qualquer forma, apesar de tudo, a despeito de tudo! E vai levar-me com ele, e nós não voltaremos! Nunca! Nunca! É difícil descrever minha excitação.

- Não, não, de jeito nenhum - disse com energia -, e como não posso evitar que meu tirano tenha tal idéia, vou fazê-lo.

De tanto virar e revirar esse documento, vai acabar descobrindo sua chave! Vou destruí-lo! Ainda havia brasas na lareira. Peguei não somente a folha de papel, como também o pergaminho de Saknussemm; as mãos febris, ia jogar tudo sobre os carvões e aniquilar o segredo perigoso, quando a porta do gabinete abriu-se. Meu tio apareceu.

V

Mal deu tempo para voltar a depor o infeliz documento sobre a mesa.

O professor Lidenbrock parecia profundamente absorto. A idéia fixa não lhe dava um único momento de descanso. Era evidente que havia perscrutado e analisado o caso, que lançara mão de todos os recursos de sua imaginação durante o passeio e que vinha aplicar alguma nova combinação.

De fato, sentou-se em sua poltrona e, pena na mão, começou a estabelecer fórmulas que pareciam um cálculo algébrico.

Eu seguia com os olhos sua mão fremente; não perdia um único movimento seu. Surgiria algum resultado inesperado? Eu tremia sem motivo, pois, como já encontrara a verdadeira combinação, qualquer outra pesquisa era forçosamente vã.

Meu tio trabalhou sem parar por três horas, sem erguer a cabeça, apagando, rasurando, recomeçando mil vezes a tarefa.

Eu bem sabia que, se conseguisse organizar as letras de acordo com todas as posições relativas que podiam ocupar, encontraria a frase.

Mas também sabia que apenas vinte letras podem formar dois quinquilhões quatrocentos e trinta e dois quatrilhões novecentos e dois trilhões oito bilhões cento e setenta e seis milhões seiscentas e quarenta mil combinações. Ora, havia cento e trinta e duas letras na frase, e essas cento e trinta e duas letras davam um número de frases diferentes composto de cento e trinta e três números pelo menos, número quase impossível de enunciar e que escapa a qualquer avaliação.

Fiquei mais tranqüilo com esse meio heróico de resolver o problema.

O tempo passou. A noite caiu. Os ruídos da rua diminuíram.

Ainda debruçado em sua tarefa, meu tio nada viu, nem mesmo a boa Marthe, que entreabriu a porta; nada ouviu, nem mesmo a voz da digna criada, que disse: - O senhor não vai jantar hoje? Marthe teve que ir embora sem resposta. Quanto a mim, após ter resistido por algum tempo, fui tomado por um sono invencível e adormeci num canto do canapé, enquanto o meu tio Lidenbrock continuava a calcular e rasurar.

Quando acordei no dia seguinte, o trabalhador incansável continuava em suas pesquisas. Olhos vermelhos, rosto lívido, cabelos despenteados por suas mãos febris, maçãs do rosto avermelhadas, indicavam sua terrível luta contra o impossível e o cansaço mental, contra o esforço cerebral das últimas horas.

Fiquei realmente com pena dele. Embora eu achasse que tinha o direito de censurá-lo, começava a sentir uma certa emoção.

O pobre homem estava tão possuído por sua idéia que se esquecia de encolerizar-se. Todas as suas forças vitais encontravam-se num único ponto, e, como não escoavam por seu exutório normal, era de temer-se que sua tensão fizesse com que explodisse de uma hora para outra.

Com um gesto, com uma única palavra poderia desapertar o anel de ferro que lhe esmagava o crânio! Mas não me mexi.

E, no entanto, eu tinha um bom coração. Por que ficava mudo naquelas circunstâncias? No próprio interesse de meu tio.

"Não, não", repetia, "não falarei". Vai querer ir até lá, conheço-o bem, nada o deterá. Tem uma imaginação vulcânica e, para fazer o que os outros geólogos não fizeram, arriscaria sua vida. Não falarei nada. Guardarei esse segredo que me foi revelado por acaso! Revelá-lo seria matar o professor Lidenbrock! Ele que adivinhe, se conseguir. Não quero carregar a culpa de tê-lo conduzido à perdição! '' Resolvido isso, cruzei os braços e esperei. Mas não contara com um incidente que aconteceu algumas horas depois.

Quando a boa Marthe quis sair de casa para ir ao mercado, encontrou a porta fechada. A chave sumira da fechadura. Quem a tirara? É claro que meu tio, quando voltara, na véspera, de sua excursão apressada.

Fizera de propósito ou fora distração? Queria submeter-nos aos rigores da fome? Achei que era demais. Imaginem! Marthe e eu, vítimas de uma situação com a qual nada tínhamos a ver! Com certeza, e lembrei-me de um precedente de dar medo. De fato, há alguns anos, na época em que meu tio trabalhava em sua grande classificação mineralógica, ficou quarenta e oito horas sem comer, e toda a casa teve de se conformar à sua dieta científica. Tive cãimbras no estômago bem pouco recreativas para um moço bastante voraz por natureza.

Ora, constatei que não iríamos ter café da manhã, assim como não tivéramos jantar. Resolvi, contudo, ser heróico e não ceder às exigências da fome. Marthe levava o caso muito a sério e estava desolada, pobre mulher! Já eu estava mais preocupado com a impossibilidade de sair de casa, e com razão. Estou certo de que todos me compreenderão.

Por volta do meio-dia, comecei realmente a sentir fome. Muito inocentemente, Marthe devorara na véspera as provisões da despensa; não havia mais nada em casa. Assim mesmo, resisti. Era uma espécie de questão de honra.

Deram duas horas. Aquilo começava a tornar-se ridículo e até intolerável. Esbugalhava os olhos. Começava a achar que havia exagerado na importância do documento; que meu tio não acreditaria em minhas deduções, que só veria nelas uma simples mistificação, que, na pior das hipóteses, conseguiria detê-lo contra sua vontade se quisesse arriscar a aventura e que, finalmente, ele mesmo poderia descobrir a chave da "cifra", o que tornaria minha abstinência completamente inútil.

Esses motivos, que eu teria rejeitado na véspera com indignação, pareceram-me excelentes; achei até completamente absurdo ter esperado por tanto tempo e decidi contar tudo.

Procurava, portanto, uma forma de entrar no assunto que não fosse muito brusca, quando o professor levantou-se, enfiou o chapéu e preparou-se para sair.

O quê! Sair de casa e deixar-nos trancados. Nunca! - Meu tio! - chamei.

Não pareceu ter me ouvido.

- Meu tio Lidenbrock! - repeti, falando mais alto.

- Hum? - resmungou como um homem que acaba de despertar.

- Então, e a chave? - Que chave? A chave da porta? - Não - exclamei -, a chave do documento! O professor encarou-me por cima dos óculos; sem dúvida notara algo de insólito na minha fisionomia, pois agarrou meu braço e, sem conseguir falar, interrogou-me com o olhar. No entanto, nunca uma pergunta foi formulada mais claramente.

Concordei com a cabeça.

Ele sacudiu a sua mão com uma espécie de piedade, como se estivesse falando com um louco.

Fiz um gesto ainda mais afirmativo.

Seus olhos brilharam; sua mão tornou-se ameaçadora.

Essa conversa muda naquelas circunstâncias interessaria o espectador mais indiferente. E realmente começava a achar que não ousaria falar, pois temia que meu tio me sufocasse com seus primeiros abraços de alegria. Mas ele estava tão ansioso que tive de responder.

- Sim, essa chave... o acaso!..

- O que você está dizendo? - exclamou com uma emoção indescritível.

- Veja - eu disse, apresentando-lhe a folha de papel na qual havia escrito. - Leia.

- Mas isso não quer dizer nada! - respondeu amarrotando a folha.

- Não quer dizer nada se começarmos a ler pelo começo, mas lendo a partir do fim...

Mal havia terminado a frase, e o professor já dava um grito, mais do que um grito, um verdadeiro rugido! Acabara de ter a revelação. Estava transfigurado.

- Ah! Engenhoso Saknussemm! - exclamou. - Então você escreveu a frase ao contrário? E precipitando-se para a folha de papel, olhar turvo, voz emocionada, leu o documento inteiro, seguindo da última letra até a primeira.

Eram esses os termos da mensagem: In Sneffeis Yoculis craterem kem delibat umbra Scartaris Julii intra calendas descende, audas viator, et terrestre centrum attinges.

Kod feci. Arne Saknussemm.

em mau latim pode ser traduzido dessa maneira:

Desça à cratera de Yocul do Sneffels, que a sombra do Scartaris vem acariciar antes das calendas de julho, viajante audacioso, e chegarás ao centro da Terra. Foi o que fiz.

Arne Saknussemm.

Ao final da leitura, meu tio pulou como se tivesse tocado sem querer numa garrafa de Leyde. Estava magnífico em sua audácia, alegria e convicção. Ia e vinha; pegava a cabeça com as duas mãos; tirava as cadeiras do lugar; empilhava livros; fazia malabarismos com seus preciosos geodos, o que parecia inacreditável; batia com o punho aqui, dava um tapa acolá. Finalmente acalmou-se e, como homem esgotado por um grande desperdício de energia, voltou a cair em sua poltrona.

- Que horas são, afinal? - perguntou após alguns minutos de silêncio.

- Três horas - respondi.

- Que coisa! Digeri o almoço depressa demais. Estou morrendo de fome. Vamos comer. Depois...

- Depois? - Vá fazer minha mala.

- O quê? - exclamei.

- E a sua também! - respondeu o implacável professor, entrando     na sala de jantar.

VI

Ao ouvir essas palavras, senti um arrepio percorrer todo o meu corpo, mas     me contive. Resolvi até parecer tranqüilo. Somente argumentos     científicos poderiam deter o professor Lidenbrock. Ora, havia muitos     e bons contra a possibilidade de tal viagem. Ir ao centro da Terra! Que loucura!     Guardei minha dialética para o momento oportuno e tratei de comer.

Inútil mencionar as imprecações de meu tio contra a     refeição pobre, mas acabou acatando as explicações.     A boa Marthe foi libertada. Ela correu ao mercado e abasteceu tão bem     a casa que uma hora depois, já sem fome, voltei e consegui pensar em     todas as implicações da situação.

Meu tio estava quase alegre durante a refeição; soltava algumas     piadinhas de cientista que nunca são demasiadamente perigosas. Após     a sobremesa, fez-me um sinal para que o acompanhasse ao gabinete Obedeci.     Ele sentou-se numa ponta de sua mesa de trabalho, eu na outra.

- Axel - disse-me, numa voz bastante suave-, você é um rapaz     muito esperto. Prestou-me um grande favor quando eu, extenuado, ia abandonar     as pesquisas. Para onde eu seria levado? Ninguém sabe! Nunca me esquecerei     disso, meu filho, e você terá sua parte em nossa glória.

"Vamos!", pensei, "ele está de bom humor. Está     na hora de discutirmos essa glória".

- Antes de mais nada - continuou meu tio -, peço-lhe que guarde segredo     de nossa descoberta. Não faltam invejosos no mundo da ciência,     e muitos deles gostariam de fazer essa viagem, da qual só tomarão     conhecimento após nosso retorno.

- O senhor acha que o número de audaciosos é tão grande     assim? - perguntei.

- Claro, quem hesitaria em conquistar tamanha celebridade? Se esse documento     fosse divulgado, todo um exército de geólogos correria para     seguir os rastros de Arne Saknussemm! - Não estou tão certo     disso, meu tio, pois nada comprova a autenticidade do documento.

- O quê! E o livro em que o descobrimos? - Bom, concordo que Saknussemm     tenha escrito essas linhas, mas será que realmente fez essa viagem?     Quem sabe se esse documento não passa de uma mistificação?     Quase lamentei ter pronunciado a última palavra, um tanto arriscada.     O professor franziu suas espessas sobrancelhas e temi ter comprometido o resto     da conversa. Mas não. Meu severo interlocutor esboçou uma espécie     de sorriso e respondeu: - É o que veremos.

- Ah - balbuciei, um tanto melindrado -, permita-me esgotar a série     de objeções relativas ao documento.

- Fale, meu filho, à vontade. Dou-lhe toda a liberdade de exprimir     sua opinião. Você não é mais meu sobrinho, mas     meu colega. Fale.

- Antes de mais nada, gostaria de saber o que são esses Yocul, Sneffels     e Scartaris, dos quais nunca ouvi falar.

- Nada mais simples. Por coincidência, recebi há algum tempo     um mapa de meu amigo Augustos Peterman de Leipzig, que vem a calhar. Pegue     o terceiro atlas na segunda prateleira da biblioteca grande, série     Z, prancha 4.

Levantei-me e, graças às indicações precisas,     encontrei rapidamente o atlas. Meu tio abriu-o e disse: - Esse é um     dos melhores mapas da Islândia, o de Handerson, e creio que poderá     resolver todas as suas dúvidas.

Debrucei-me sobre o mapa.

- Veja essa linha formada de vulcões - disse o professor - e observe     que todos têm o nome de Yocul, palavra que significa "geleira"     em islandês. Sob a latitude alta da Islândia, a maioria das erupções     atravessa camadas de gelo. Daí o nome de Yocul, comum a todos os montes     ignívomos da ilha.

- Bem - respondi -, e o que é Sneffels? Achei que ele não     teria resposta a essa pergunta, no que estava enganado. Meu tio continuou:      - Acompanhe-me pela costa ocidental da Islândia. Está vendo Reykjavik,     a capital? Muito bem, suba pelos inúmeros fiordes dessa região     corroída pelo mar e pare um pouco abaixo do sexagésimo quinto     grau de latitude. O que você vê ali? - Uma espécie de península     parecida com um osso descarnado, arrematado por uma rótula enorme.

- É uma comparação bastante correta, meu filho; e o     que há nessa rótula? - Um monte que parece ter brotado do mar.

- É o Sneffels.

- O Sneffels? O próprio, uma montanha de cinco mil pés de     altura, uma das mais notáveis da ilha e, com certeza, a mais célebre     do mundo se a sua cratera terminar no centro do globo.

- Mas é impossível! - exclamei, erguendo os ombros e revoltado     com tal suposição.

- Impossível? - retorquiu o professor Lidenbrock num tom severo.      - Por quê? - Porque com certeza essa cratera está obstruída     por lavas, rochas incandescentes e então...

- E se for uma cratera extinta? - Extinta? - Exatamente. Atualmente só     há trezentos vulcões em atividade na superfície do globo,     mas há uma quantidade bem maior de vulcões extintos. Ora, inclui-se     o Sneffels nessa última categoria, e desde os tempos históricos     só entrou em erupção uma única vez, em 1219. A     partir de então, foi acalmando-se e não é mais um vulcão     em atividade.

Não me era possível contestar tais afirmações;     lancei-me então nas outras dúvidas levantadas pelo documento.

- O que significa a palavra Scartaris - perguntei - e o que tem tudo isso     a ver com as calendas de julho? Meu tio refletiu por alguns instantes. Tive     um momento de esperança, mas só um, pois logo ele me respondeu     nestes termos: - O que você chama de dúvidas, para mim são     soluções, que provam os cuidados engenhosos com os quais Saknussemm     quis precisar sua descoberta. O Sneffels é formado por muitas crateras;     era, portanto, necessário indicar qual delas leva ao centro do globo.     O que fez o sábio islandês? Observou que próximo às     calendas de julho, ou seja, nos últimos dias de junho, um dos picos     da montanha, o Scartaris, projetava a sua sombra na abertura da cratera em     questão e anotou o fato em seu documento. Que indicação     poderia ser mais exata? E, assim que chegarmos ao topo do Sneffels, creio     que não hesitaremos quanto à direção a seguir.

Decididamente, meu tio tinha resposta para tudo. Percebi que seria impossível     atacá-lo com as palavras do velho pergaminho.

Parei, portanto, de atormentá-lo a esse respeito, e como era preciso,     antes de mais nada, demovê-lo da idéia da viagem, passei às     objeções científicas que achava bem mais graves.

- Tudo bem - disse -, a frase de Saknussemm é clara e não     deixa qualquer dúvida. Concordo até que o documento pareça     autêntico. Esse cientista foi ao fundo do Sneffels, viu a sombra do     Scartaris acariciar as bordas da cratera antes das calendas de julho; até     ouviu lendas de seu tempo que afirmavam a cratera dar no centro da Terra,     mas que ele próprio tenha ido ao centro da Terra e voltado, não     acredito, não acredito mesmo! - E por quê? - quis saber meu tio     num tom de mofa.

- Todas as teorias da ciência demonstram que tal aventura é     impraticável! - As teorias provam isso? - respondeu o professor com     um ar de benevolência. - Ah, que teorias malvadas! Como essas teorias     nos atrapalham! Percebi que estava zombando de mim, mas assim mesmo continuei:      - Claro! Está provado que o calor aumenta em um grau a cada setenta     pés de profundidade da superfície do globo; admitindo-se essa     proporcionalidade constante, e sendo o raio terrestre de mil e quinhentas     léguas', a temperatura no centro passa de duzentos mil graus. As matérias     do interior da Terra estão, portanto, em estado de gás incandescente,     pois os metais, o ouro, a platina, as rochas mais duras, não resistem     a tamanho calor. Tenho então motivos para questionar a possibilidade     de penetrar-se em tal ambiente! - Então o seu problema é o calor,     Axel? - Claro, chegando a uma profundidade de apenas dez léguas, já     teríamos alcançado o limite da crosta terrestre, e a temperatura     já seria superior a mil e trezentos graus.

- E você tem medo de entrar em fusão? - Cabe ao senhor resolver     esse problema - respondi com humor.

- Resolvo da seguinte forma - replicou o professor Lidenbrock, assumindo     ares de grande sábio : nem você, nem ninguém tem certeza     do que acontece no interior do globo, já que se conhece apenas doze     milésimos de seu raio; a ciência é eminentemente perfectível     e cada nova teoria destrói uma velha.

Não se acreditou até Fourier que a temperatura dos espaços     planetários diminuía todo o tempo, e hoje está provado     que a temperatura das regiões etéreas não ultrapassa     quarenta ou cinqüenta graus abaixo de zero? Por que não aconteceria     o mesmo com o calor interno? Por que, numa determinada profundidade, não     atingiria um limite intransponível em vez de aumentar até o     grau de fusão dos minerais mais refratários? Como meu tio colocou     a questão no campo das hipóteses, não tive o que responder.

- Muito bem, digo-lhe que verdadeiros sábios, entre outros, Poisson,     provaram que, se existisse um calor de duzentos mil graus no interior do globo,     o gás incandescente das matérias fundidas adquiriria tamanha     elasticidade que a crosta terrestre não resistiria e estouraria como     as paredes de uma caldeira sob a pressão do vapor.

- É apenas a opinião de Poisson, meu tio...

- Está certo, mas outros geólogos célebres também     acreditam que o interior do globo não é formado nem de gases,     nem de água, nem das pedras mais pesadas que conhecemos, pois, nesse     caso, o peso da Terra seria duas vezes menor.

- Ora, com números podemos provar tudo o que quisermos! - E com fatos     não? O número dos vulcões não diminuiu consideravelmente     desde os primeiros dias do mundo numa proporção constante? E     se é que existe esse calor central, será que não tende     a diminuir? - Meu tio, se o senhor entrar no campo das suposições,     não teremos mais como discutir.

- Mas eu digo que gente muito competente é da mesma opinião     que eu. Lembra-se de quando o célebre químico inglês Humphry     Davy me visitou em 1825? - Não posso lembrar, só nasci dezenove     anos depois.

- Bem, Humphry Davy veio me visitar quando passou por Hamburgo. Ficamos     conversando por um bom tempo e, entre outros problemas, discutimos a hipótese     da liquidez do interior da Terra. Ambos concordávamos que essa liquidez     não podia existir por uma razão que a ciência nunca conseguiu     encontrar.

- Qual? - Essa massa líquida estaria sujeita, como o oceano, à     atração da Lua, e, conseqüentemente, duas vezes por dia     existiriam marés internas que, ao erguerem a crosta terrestre, provocariam     terremotos periódicos! -É, no entanto, certo que a superfície     do globo foi submetida à combustão, e é possível     supor que a crosta exterior resfriou antes, enquanto o calor se refugiou no     centro.

- Errado - respondeu meu tio; - a Terra foi aquecida pela combustão     de sua superfície e não por qualquer outro meio.

Sua superfície era composta de uma grande quantidade de metais, como     o potássio e o sódio, que têm a propriedade de incendiar-se     apenas ao contato com a terra e a água; esses metais pegaram fogo quando     os vapores atmosféricos precipitaram-se como chuva no solo; pouco a     pouco, quando as águas penetraram nas fissuras da crosta terrestre,     determinaram novos incêndios com explosões e erupções.     Daí os inúmeros vulcões dos primeiros dias do mundo.

- Que hipótese engenhosa! - Exclamei um pouco contra a minha vontade.

- Que Humphry Davy comprovou, aqui mesmo com uma experiência muito     simples. Fez uma bola metálica, que representava nosso globo, com os     metais que acabei de falar: quando vertíamos um pouco de orvalho em     sua superfície, ela se dilatava, oxidava e formava uma pequena montanha,     com uma cratera em cima; ocorria uma erupção que transmitia     à bola inteira tanto calor que se tornava impossível segurá-la     com as mãos.

Eu estava começando a convencer-me com os argumentos do professor,     temperados, aliás, por seu ardor e entusiasmo habituais.

- Como você vê, Axel - acrescentou -, o estado do núcleo     central inspirou muitas hipóteses aos geólogos; nada menos comprovado     que o calor interno; eu acho que não existe, nem poderia; é     o que veremos, e, como Arne Saknussemm, saberemos em que nos basear a respeito     desse grande problema.

- É claro - respondi, sentindo-me atingido pelo entusiasmo - veremos     se enxergarmos...

- Por que não enxergaríamos? Podemos contar com fenômenos     elétricos para iluminar nosso caminho e até com a atmosfera     que sua pressão pode tornar luminosa à aproximação     do centro.

- Claro, Claro! - concordei - Afinal, isso bem pode ser possível.

- É mais do que certo! - respondeu triunfalmente meu tio.

- Mas silêncio, entendeu? Silêncio sobre tudo isso para que     ninguém tenha a idéia de descobrir o centro da Terra antes de     nós.

VII

Assim terminou a memorável seção que muito me excitou.

Saí do gabinete do meu tio completamente perdido, e não havia     ar suficiente nas ruas de Hamburgo para que eu me recuperasse.

Fui até as margens do Elba, junto à barcaça a vapor     que liga a cidade à estrada de ferro de Harburg.

Estava realmente convencido? Não fora subjugado pelo professor Lidenbrock?     Deveria levar a sério sua decisão de ir ao centro do maciço     terrestre? Acabara de ouvir as especulações insensatas de um     louco ou as deduções científicas de um grande gênio?     Quais eram os limites entre a realidade e o erro? Flutuava entre mil hipóteses     contraditórias sem conseguir me agarrar a nenhuma.

Lembrava-me, entretanto, de ter me convencido, embora meu entusiasmo começasse     a diminuir; gostaria de partir imediatamente para não ter tempo de     pensar. Sim, no momento não teria me faltado coragem para fechar as     malas.

Devo confessar, no entanto, que, uma hora depois, minha excitação     arrefeceu. Senti meus nervos relaxarem-se e, dos profundos abismos da terra,     voltei à superfície.

- É um absurdo! - exclamei. - Insensato! Isso não é     proposta que se faça a um rapaz de bom senso. Nada disso existe.

Dormi mal, tive um pesadelo.

Enquanto pensava, seguira pelas margens do Elba e dera a volta na cidade.     Após ter passado pelo porto, chegara à estrada de Altona. Era     conduzido por um pressentimento, justificado, pois logo vi minha pequena Grauben,     que voltava corajosamente a Hamburgo em passadas apressadas.

- Grauben! - gritei de longe.

A jovem parou, creio que um tanto perturbada por ouvir seu nome dessa forma     numa estrada. Dez passos e estava a seu lado.

- Axel - surpreendeu-se. - Você veio me encontrar! Que bom! Mas, ao     olhar para mim, Grauben não se deixou enganar pelo meu ar inquieto,     transtornado.

- O que há com você? - disse-me, estendendo a mão.

- O que há comigo, Grauben? - exclamei.

Em dois segundos e três frases pus minha bela Virlandesa a par da     situação. Ela ficou em silêncio por alguns instantes.     Seu coração palpitava tanto quanto o meu? Não sei, mas     sua mão não tremia na minha. Andamos uns cem passos em silêncio.

- Axel! - disse-me finalmente.

- Minha querida Grauben! - Será uma bela viagem.

Fiquei estupefato com essas palavras.

- Sim, Axel, uma viagem digna do sobrinho de um sábio.

Um homem deve distinguir-se por algum grande feito! - O quê, Grauben,     você não vai tentar demover-me da idéia de tal expedição?      - Não, caro Axel, e bem que eu acompanharia você e seu tio, se     uma pobre moça não os fosse atrapalhar...

- Sério? - Sério.

Ah, mulheres, moças, corações femininos sempre incompreensíveis!     Quando não são os mais tímidos dos seres, são     os mais corajosos de todos! Nunca usam a razão. Imaginem! Aquela criança     encorajava-me à expedição! Não teria medo de tentar     a aventura! Ela me empurrava à viagem, eu a quem ela amava tanto! Estava     desconcertado, e por que não dizer, envergonhado.

- Grauben - tornei -, vamos ver se amanhã você dirá     a mesma coisa.

- Com toda a certeza, Axel querido.

De mãos dadas, mas mudos, Grauben e eu continuamos andando. Estava     alquebrado pelas emoções do dia.

"Afinal de contas", pensei, "ainda falta muito tempo para     as calendas de julho, e daqui até lá talvez os acontecimentos     façam com que meu tio se cure de sua mania de viajar sob a terra".

A noite já caíra quando chegamos à Königstrasse.     Esperava encontrar a casa sossegada, meu tio deitado de acordo com seus hábitos     e a boa Marthe dando suas últimas espanadas da noite na sala de jantar.

Esquecera-me, contudo, da impaciência do professor. Encontrei-o gritando     e agitando-se no meio de uma tropa de carregadores que descarregava certas     mercadorias na rua; a velha criada não sabia o que fazer.

- Ande, Axel, venha de uma vez, infeliz! - gritou meu tio quando me viu     ao longe. - Ainda não fez sua mala, meus papéis não estão     em ordem, não acho a chave de minha sacola de viagem, e minhas polainas     que não chegam! Fiquei pasmo. Perdi a voz. Mal consegui articular estas     palavras: - Então estamos de partida? - Claro, infeliz, que vai passear     em vez de ficar por aqui! - Estamos de partida? - repeti, a voz mais fraca.

Não quis ouvir mais nada; fugi para o meu quartinho.

Não havia mais dúvidas. Meu tio empregara sua tarde comprando     uma parte dos objetos e utensílios necessários à sua     viagem; a calçada estava atulhada de escadas de corda, cordas com nós,     tochas, cantis, ganchos de ferro, picaretas, bastões de ferro, pás,     carregamento para, no mínimo, dez homens.

Passei uma noite horrorosa. No dia seguinte, acordaram-me muito cedo. Tinha     decidido não abrir a porta. Mas como resistir à voz suave que     dizia: "Meu querido Axel"? Saí do quarto. Achei que meu ar     desfigurado, minha palidez e meus olhos vermelhos pela falta de sono iriam     comover Grauben e fazê-la mudar de idéia.

- Ah, meu querido Axel - disse-me ela -, estou vendo que você está     melhor e que a noite o acalmou.

- Acalmou! - exclamei.

Corri para o espelho e constatei... que meu aspecto não estava tão     ruim quanto supunha. Era inacreditável.

- Axel - disse-me Grauben -, conversei muito com meu tutor. É um cientista     ousado, homem de muita coragem, e vócê deve lembrar-se de que     o sangue dele corre em suas veias. Contou-me sobre seus planos, suas esperanças,     por que e como pretende alcançar seu objetivo. Tenho certeza de que     conseguirá! Ah! Caro Axel, como é bonito dedicar-se à     ciência com tanto empenho! Quanta glória aguarda o senhor Lidenbrock     e seu companheiro! Quando voltar, Axel, você será um homem, seu     igual, livre para falar, livre para agir, livre enfim para...

A jovem, corando, não conseguiu concluir. Suas palavras reanimaram-me.     Contudo, ainda não queria acreditar em nossa partida. Arrastei Grauben     para o gabinete do professor.

- Tio - disse -, então iremos mesmo? - O quê? Você ainda     tem dúvidas? - Não - disse para não o contrariar. - Só     quero saber o porquê de tanta pressa.

- O tempo urge! O tempo corre com uma velocidade irreparável.

- Mas hoje é apenas 26 de maio, e até o fim de junho...

- E você acha, seu ignorante, que é tão fácil     assim chegar à Islândia? Se você não tivesse saído     correndo como um louco, teria me acompanhado à Representação     de Copenhague, Liffender e Cia., e teria constatado que o único transporte     de Copenhague a Reykjavik parte todo mês, no dia 22.

- E então? - E então, se esperássemos o dia 22 de junho,     chegaríamos tarde demais para ver a sombra do Scartaris acariciar a     cratera do Sneffels. Temos que ir a Copenhague o mais rápido possível     para tentar achar por lá um outro meio de transporte. Vá arrumar     sua mala! Não havia o que responder. Voltei a subir para o meu quarto.

Grauben acompanhou-me e encarregou-se de arrumar numa malinha os objetos     necessários à minha viagem. Ela agia como se eu estivesse partindo     para um passeio em Lübeck ou Heligoland.

Suas mãozinhas iam e vinham sem precipitação. Conversava     com a maior calma. Dava razões das mais sensatas para nossa expedição.     Enfeitiçava-me e eu sentia a maior raiva dela. Por vezes, fiz menção     de enfurecer-me, mas ela não deu a menor atenção e continuou     a executar sua tarefa com a maior tranqüilidade.

Finalmente fechou a última fivela da mala. Desci para o térreo.

No decorrer daquele dia, os fornecedores de instrumentos de física,     de armas, de aparelhos elétricos multiplicaram-se. A boa Marthe estava     atordoada.

- O patrão enlouqueceu? - perguntou-me.

Fiz um sinal afirmativo.

- E vai levar o senhor com ele? Mais uma afirmação.

- Para onde? - quis saber.

Indiquei o centro da Terra com o dedo.

- Ao porão? - exclamou a velha criada.

- Não - disse finalmente -, ainda mais para baixo! A noite caiu.     Nem havia percebido o tempo passar.

- Até amanhã - disse meu tio. - Partiremos às seis     em ponto.

Às dez horas caí na cama como uma massa inerte.

Durante a noite voltei a ficar apavorado.

Só sonhei com abismos! Estava à beira do delírio. Sentia     a mão vigorosa do professor apertar-me, arrastar-me, afundar-me, enterrar-me!     Caía no fundo de precipícios insondáveis na velocidade     crescente dos corpos abandonados no espaço. Minha vida não passava     de uma queda interminável.

Acordei às cinco horas, morto de cansaço e de emoção.     Desci para a sala de jantar. Meu tio estava sentado à mesa e devorava     a refeição. Olhei-o com um sentimento de horror. Grauben estava     ali. Não disse nada. Não consegui comer.

Às cinco e meia, ouvi o ruído de um veículo na rua.     Chegava para levar-nos à estação de Altona. Logo estava     atulhado de pacotes de meu tio.

- E a sua mala? - perguntou-me.

- Está pronta - respondi desfalecendo.

- Então ande logo, senão perderemos o trem! Pareceu-me impossível     lutar contra o destino. Subi até meu quarto e, deixando a mala escorregar     pelos degraus da escada, corri atrás dele.

Naquele momento, meu tio passava às mãos de Grauben as "rédeas"     da casa. Minha bela Virlandesa estava calma como de hábito. Deu um     beijo em seu tutor e não conseguiu evitar uma lágrima que roçou     meu rosto através de seus lábios suaves.

Marthe e a jovem deram-nos um último adeus.

- Grauben! - gritei.

- Vá, meu querido Axel - disse-me -, você está abandonando     sua noiva, mas, quando voltar, encontrará sua mulher.

Apertei Grauben em meus braços e entrei no carro. Da porta, Marthe     e a moça deram-nos o último adeus. Depois, os dois cavalos,     excitados pelo assobio do cocheiro, lançaram-se a galope pela estrada     de Altona.

VIII

Altona, verdadeiro subúrbio de Hamburgo é a primeira estação     da estrada de ferro de Kiel, que deveria nos levar às costas dos estreitos     de Belt. Em menos de vinte minutos, entrávamos no território     de Holstein.

Às seis e meia, o carro parou diante da estação; os     inúmeros pacotes de meu tio, seus volumosos artigos de viagem, foram     descarregados, transportados, pesados, etiquetados, recarregados no vagão     de bagagem e, às sete horas, estávamos sentados um diante do     outro no mesmo compartimento. O vapor assobiou, a locomotiva começou     a andar. Havíamos partido.

Eu estava resignado? Ainda não. No entanto, o ar fresco da manhã,     os detalhes da estrada, que se renovavam com rapidez pela velocidade do trem,     distraíam-me de minha grande preocupação.

Quanto à mente do professor, evidentemente adiantava-se àquele     comboio lento demais para sua impaciência. Éramos os únicos     no vagão, mas não nos falávamos. Meu tio revirava seus     bolsos e sua sacola de viagem com uma atenção minuciosa. Percebi     que não lhe faltavam os objetos necessários à execução     de seus projetos.

Entre outras coisas, uma folha de papel dobrada com cuidado levava o cabeçalho     da chancelaria dinamarquesa com a assinatura do senhor Christiensen, cônsul     em Hamburgo e amigo do professor. Essa referência deveria nos facilitar     em Copenhague a obtenção de recomendações para     o governador da Islândia.

O famoso documento estava preciosamente escondido no bolsinho mais secreto     da carteira. Amaldiçoei-o do fundo do coração e voltei     a examinar a região. Consistia numa vasta seqüência de planícies     pouco curiosas, monótonas, lamacentas e bastante férteis: um     campo muito favorável ao estabelecimento de uma ferrovia e propício     àquelas linhas retas tão caras às companhias de estrada     de ferro.

Mas nem deu tempo de cansar-me com aquela monotonia, pois, três horas     depois de nossa partida, o trem parava em Kiel, bem perto do mar.

Como nossas bagagens já haviam sido despachadas para Copenhague,     meu tio não teve de se preocupar com elas. No entanto, acompanhava-as     com um olhar inquieto enquanto eram transportadas para o barco a vapor, onde     desapareceram no porão.

Em sua precipitação, meu tio calculara tão bem os horários     de ligação entre trem e barco que tivemos de aguardar o dia     inteiro. O vapor Ellenora só partiria à noite. Daí uma     ansiedade de nove horas, durante as quais o irascível viajante mandou     aos diabos a empresa de barcos e a ferroviária e os governos que toleravam     tal abuso. Tive de apoiá-lo quando atormentou o capitão do Ellenora     a esse respeito. Queria obrigá-lo a ligar as caldeiras naquele momento.     O outro mandou-o ao inferno.

Como em qualquer outra parte do mundo, em Kiel o dia também passa.     Passeando pelas costas verdejantes da baía, ao fundo da qual se ergue     a cidadezinha, percorrendo os bosques cerrados que lhe dão o aspecto     de um ninho num feixe de ramos, admirando as mansões, cada uma com     sua casinha de banhos frios, finalmente, correndo e praguejando, chegamos     às dez da noite.

Os turbilhões de fumaça do Ellenora erguiam-se no céu;     a ponte estremecia com os tremores da caldeira; a bordo, éramos proprietários     de dois catres no único camarote do barco.

Largaram as amarras às dez e quinze, e o navio singrou rapidamente     pelas águas escuras do Grande Belt.

A noite estava fechada; havia muito vento, e o mar estava bravo; algumas     luzes da costa apareceram nas trevas; mais tarde, não sei onde, um     farol brilhou sobre as ondas; essas são as minhas lembranças     da primeira travessia.

Às sete horas da manhã, desembarcávamos em Korsõr,     cidadezinha situada na margem ocidental do Sjaeland. Ali, saltamos do barco     para outro trem, que nos transportou por uma região não menos     plana do que os campos do Holstein.

Faltavam ainda três horas para chegarmos à capital da Dinamarca.     Meu tio não dormira durante a noite. Em sua impaciência, acho     que empurrava o vagão com os pés.

Finalmente viu um pedaço de mar.

- O Sund! - exclamou.

Havia à nossa esquerda uma ampla construção que parecia     um hospital.

- É um hospício - disse um dos nossos companheiros de viagem.

"Bem", pensei, "eis um estabelecimento onde deveríamos     acabar nossos dias. E por maior que seja, esse hospício ainda seria     pequeno demais para conter toda a loucura do professor Lidenbrock!”      Finalmente, às dez horas da manhã, desembarcávamos em     Copenhague. As bagagens foram colocadas num carro e levadas conosco ao Hotel     Phoenix em Bred-Gale. Foi um trajeto de meia hora, pois a estação     é fora da cidade. Depois de uma toalete sumária, meu tio arrastou-me     com ele. O porteiro do hotel falava alemão e inglês, mas, em     sua qualidade de poliglota, meu tio fez-lhe perguntas em bom dinamarquês,     e foi em bom dinamarquês que esse personagem indicou-lhe como chegar     ao Museu de Antiguidades do Norte.

O diretor do curioso estabelecimento, onde estão amontoadas as maravilhas     que permitem reconstruir a história do país, com suas velhas     armas de pedra, seus hanapos e suas jóias, era um cientista amigo do     cônsul de Hamburgo, o professor Thomson.

Meu tio tinha uma bela carta de recomendação para ele. Geralmente,     um cientista recebe muito mal um outro. Mas não foi nada disso o que     aconteceu. O senhor Thomson, homem prestativo, acolheu cordialmente o professor     Lidenbrock e até seu sobrinho. Não é necessário     mencionar que meu tio nada falou de seu segredo para o excelente diretor do     museu. Queríamos simplesmente visitar a Islândia como turistas     desinteressados.

O senhor Thomson colocou-se à nossa inteira disposição,     e corremos pelo cais para procurar um navio de partida.

Eu esperava que não houvesse qualquer meio de transporte, mas não     foi isso o que aconteceu. Uma pequena escuna dinamarquesa, a Valquiria, singraria     para Reykjavik a 2 de junho. O capitão, senhor Bjarne, encontrava-se     a bordo. Em sua alegria, seu futuro passageiro apertou-lhe tanto a mão     que quase a quebrou. O bom homem ficou um tanto surpreso com tamanha cordialidade.     Achava simples ir à Islândia: era sua profissão. Já     meu tio achava isso sublime. O digno capitão aproveitou o entusiasmo     para cobrar-nos o dobro pela travessia. Mas nem percebemos.

- Estejam a bordo na terça-feira, às sete da manhã     - disse o senhor Bjarne, depois de ter embolsado um número respeitável     de dólares.

Agradecemos ao senhor Thomson pela sua solicitude e voltamos ao Hotel Phoenix.

- Está tudo indo muito bem! Muito bem! - repetia meu tio. - Que coincidência     encontrarmos uma embarcação prestes a partir! Vamos comer e     depois visitar a cidade.

Fomos a Kongens-Nye-Torw, praça irregular, onde há um quartel     com dois canhões inocentes apontados, que não amedrontam ninguém.     Perto dali, no número 5, havia um "restaurante francês,     de propriedade de um cozinheiro chamado Vincent. Comemos o suficiente pelo     preço moderado de quatro marcos cada um.

Foi com o prazer de uma criança que percorri a cidade; meu tio andava     a esmo; aliás, nada viu, nem o insignificante palácio do rei,     nem a linda ponte do século XVII que atravessa o canal diante do museu,     nem o imenso cenotáfio de Torwaldsen, ornado de pinturas murais horrorosas     e dentro do qual há obras desse escultor, nem, num parque bastante     belo, o castelinho de Rosenborg, nem o admirável edifício Renascença     da Bolsa, nem seu campanário formado pelas caudas entrelaçadas     de quatro dragões de bronze, nem os grandes moinhos das muralhas, cujas     asas se inflavam como as velas de um navio ao vento do mar.

Que passeios deliciosos minha bela Virlandesa e eu teríamos dado     perto do porto, onde os barquinhos e as fragatas dormiam tranqüilamente     sob seus telhados vermelhos, pelas margens verdejantes do estreito, entre     as sombras frondosas dentro das quais se esconde a cidadela, cujos canhões     estendem suas goelas enegrecidas entre os ramos dos sabugueiros e dos salgueiros!

Mas infelizmente minha pobre Grauben estava longe. Deveria eu alimentar a     esperança de revê-la um dia? Embora meu tio nem tivesse reparado     nesses sítios encantadores, um certo campanário situado na ilha     de Amak, que forma o bairro sudoeste de Copenhague, chamou-lhe a atenção.

Recebi ordem de ir naquela direção; subi num barquinho que     servia os canais, que em poucos instantes abordou o cais de DockYard.

Após termos atravessado algumas ruas estreitas, onde alguns galerianos     de calças amarelas e cinza trabalhavam sob os cassetetes da polícia,     chegamos a Vor-Frelsers-Kirk, igreja que nada tinha de notável. Fora     seu campanário muito alto que chamara a atenção do professor:     a partir da plataforma, uma escada externa rodeava a flecha, e suas espirais     desenrolavam-se em pleno céu.

- Subamos - disse meu tio.

- E a vertigem? - repliquei.

- Mais um motivo para subirmos, precisamos nos acostumar.

- Mas...

- Ande, vamos, não temos tempo a perder.

Foi preciso obedecer. Um guarda que morava do outro lado da rua cedeu-nos     uma chave e começamos a subir.

Meu tio ia na frente com passos decididos. Eu segui atrás dele, não     sem terror, pois minha cabeça começava a girar com uma facilidade     deplorável. Não tinha nem o aprumo das águias nem a insensibilidade     de seus nervos.

Enquanto estávamos aprisionados na escada em caracol interna, tudo     correu bem; após uns cinqüenta degraus senti o vento açoitar     o meu rosto: chegáramos à plataforma do campanário.

Ali começava a escada aérea, protegida por um frágil     corrimão e cujos degraus, cada vez mais estreitos, pareciam subir até     o infinito.

- Nunca conseguirei! - gritei.

- Você é um covarde, por acaso? Suba! - ordenou o professor     sem a menor compaixão.

Fui obrigado a segui-lo, agarrando-me onde era possível. O vento     atordoava-me, sentia o campanário oscilar com as rajadas; minhas pernas     falhavam. Logo estava subindo de joelhos, depois, de barriga. Sentia vertigens.

Finalmente, com meu tio puxando-me pelo colarinho, chegamos ao topo.

- Olhe, e olhe bem! - disse-me. - Você tem de ter aulas de abismo!     Abri os olhos e vi as casas achatadas, como que esmagadas por uma queda em     meio de uma cerração de fumaça. Sobre minha cabeça     passavam nuvens descabeladas, e por uma inversão de ótica, pareciam-me     imóveis, enquanto o campanário, o topo e eu estávamos     sendo arrastados a uma velocidade fantástica. Ao longe, de um lado,     estendia-se o campo verdejante, de outro, brilhava o mar sob um feixe de raios.     O Sund desenrolava-se na ponta de Helsingör com algumas velas brancas,     verdadeiras asas de gaivota, e na bruma leste ondulavam as costas mal veladas     da Suécia. A meus olhos, toda aquela imensidão rodopiava.

Mesmo assim, tive de levantar-me, endireitar-me e olhar. Minha primeira     aula de vertigem durou uma hora. Quando finalmente obtive permissão     de voltar a descer e pisar no calçamento sólido das ruas, estava     extenuado.

- Amanhã faremos tudo isso de novo - anunciou meu professor.

E, de fato, durante cinco dias prossegui naquele exercício vertiginoso     e, querendo ou não, progredi sensivelmente na arte das "elevadas     contemplações".

IX

Chegou o dia da partida. Na véspera, o gentil senhor Thomson trouxera-nos     cartas de recomendação decisivas para o conde Trampe, governador     da Islândia, para o senhor Pictursson, coadjutor do bispo, e para o     senhor Finsen, prefeito de Reykjavik.

Como retribuição, meu tio outorgou-lhe apertos de mão     dos mais calorosos.

No dia 2, às seis da manhã, nossas bagagens já estavam     a bordo da Valquiria. O capitão conduziu-nos a cabines bastante estreitas     e dispostas sob uma espécie de camarote de convés.

- O vento está bom? - perguntou meu tio.

- Excelente - respondeu o capitão Bjarne -, de sudeste.

Sairemos do Sund com vento propício, todas as velas içadas.

Alguns minutos depois, sob sua mezena, bergantim, gávea e joanete,     a escuna aparelhou e alcançou rapidamente o estreito.

Uma hora depois, a capital da Dinamarca parecia mergulhada nas ondas distantes,     e a Valquiria roçava as costas de Helsingör.

No meu estado de espírito, esperava ver a sombra de Hamlet vagando     no terraço lendário.

"Insensato sublime", eu pensava, "você, com certeza,     aprovaria nossa viagem! Talvez até nos acompanhasse ao centro do globo     para procurar uma solução à sua dúvida eterna!"     Mas nada surgiu nas antigas muralhas. O castelo, aliás, é bem     mais novo que o príncipe heróico da Dinamarca. Hoje em dia serve     de guardião suntuoso àquele estreito, por onde passam, por ano,     quinze mil navios de todas as nações.

Logo o castelo de Krongborg desapareceu nas brumas, assim como a torre de     Helsinborg, na costa sueca, e a escuna inclinou-se levemente sob as brisas     do Kattegat.

A Valquiria era um bom barco a vela, mas nunca se sabe o que esperar de     uma embarcação desse tipo. Transportava para Reykjavik carvão,     utensílios domésticos, cerâmica, roupas de lã e     um carregamento de trigo. Bastavam cinco homens, todos dinamarqueses, para     manobrá-la.

- Quanto tempo levará a travessia? - perguntou meu tio ao capitão.

- Uns dez dias - respondeu o último -, se não depararmos com     muitas rajadas noroeste perto de Féroe.

- Vocês não costumam sofrer atrasos consideráveis, espero...

- Não, senhor Lidenbrock, fique tranqüilo, chegaremos a tempo.     , à noitinha, a escuna dobrou o cabo Skagen na extremidade norte da     Dinamarca, atravessou Skagerrak durante a noite, navegou ao longo dos limites     da Noruega pelo cabo Lindesnes e desembocou no mar do Norte.

Dois dias depois, avistávamos as costas da Escócia na altura     de Peterhead, e a Valquiria dirigiu-se para o Féroe, passando entre     as Órcades e as Shetland.

Logo as ondas do Atlântico batiam contra nossa escuna, que foi obrigada     a enfrentar o vento norte para alcançar, com bastante dificuldade,     o Féroe. No dia 8, o capitão reconheceu Myganness, a ilha mais     oriental, e a partir daquele momento rumou direto para o cabo Portland, situado     na costa meridional da Islândia.

Nenhum incidente notável marcou a travessia. Suportei bastante bem     as provações do mar; para sua grande irritação     e vergonha, meu tio passou o tempo todo enjoado.

Não conseguiu, portanto, discutir com o capitão Bjarne a respeito     do Sneffels, dos meios de comunicação e dos meios de transporte     para alcançá-lo; teve de adiar todas essas informações     para o momento da chegada, e passou o tempo todo deitado em sua cabine, cujas     divisórias rangiam com o balanço. Devo confessar que merecia     essa provação.

No dia 11, avistamos o cabo Portland. Como o tempo estava aberto, foi possível     ver o Myrdals Yocul, que o domina. O cabo é composto por um grande     morro de encostas íngremes, plantado sozinho na praia.

A Valquiria percorreu a costa a uma boa distância, em meio a numerosas     baleias e tubarões. Logo apareceu um imenso rochedo completamente descoberto     no qual o mar espumante batia com fúria. As ilhotas de Westman pareceram     brotar do oceano, como uma disseminação de rochas na planície     líquida. A partir daquele momento a escuna tomou impulso para dobrar     a uma boa distância o cabo de Reykjaness, que forma o ângulo ocidental     da Islândia.

O mar muito bravo impedia que meu tio subisse à ponte para admirar     as costas retalhadas e fustigadas pelo vento sudoeste.

Quarenta e oito horas depois, saindo de uma tempestade que obrigou a escuna     a fugir e recolher o velame, avistamos a leste a baliza da ponta Skagen, cujas     rochas perigosas estendem-se a uma grande distância sob as ondas. Um     piloto islandês subiu a bordo, e três horas depois a Valquiria     abordava Reykjavik na baía de Faxa.

Finalmente, o professor saiu de sua cabine um pouco pálido, um pouco     desfigurado, mas sempre entusiasmado e com ar de satisfação.     A população da cidade, muito interessada pela chegada de um     navio no qual todos têm algo a pegar, amontoava-se no cais.

Meu tio tinha pressa em abandonar sua prisão flutuante, para não     dizer seu hospital. Mas antes de deixar a ponte da escuna, conduziu-me à     proa, de onde me apontou a parte setentrional da ilha, uma montanha alta de     duas pontas, dois cones cobertos de neves eternas.

- O Sneffels! - gritou. - O Sneffels! Depois de ter me recomendado com um     gesto sigilo absoluto, desceu ao bote que o esperava. Segui-o, e logo pisávamos     o solo da Islândia.

Primeiro apareceu um homem bem apessoado em trajes de general. Era, entretanto,     um simples magistrado, o governador da ilha, o senhor barão Trampe     em pessoa. O professor logo reconheceu o personagem. Apresentou ao governador     suas cartas de Copenhague, e conversaram um pouco em dinamarquês, conversa     que não compreendi, é claro. Mas o resultado da primeira entrevista     foi que o barão Trampe colocava-se à disposição     do professor Lidenbrock.

Meu tio foi acolhido com bastante gentileza pelo prefeito, o senhor Finsen,     não menos militar pelo traje do que o governador, mas tão pacífico     quanto por temperamento e condição. Quanto ao coadjutor, o senhor     Pictursson, fazia uma visita episcopal no bailiado do Norte; não seríamos     apresentados a ele tão cedo.

Em compensação, conhecemos um homem encantador, o senhor Fridriksson,     professor de ciências naturais na escola de Reykjavik, que muito nos     ajudou. Esse modesto cientista só falava islandês e latim; ofereceu-me     seus serviços na língua de Horácio, e senti que tínhamos     sido feitos para nos entender. Foi, de fato, a única pessoa com quem     pude conversar durante minha estada na Islândia.

O excelente homem colocou à nossa disposição dois dos     três cômodos de sua casa, onde logo nos instalamos com nossa bagagem,     cujo volume espantou bastante os habitantes de Reykjavik.

- Muito bem, Axel - disse-me meu tio -, está tudo indo muito bem,     já conseguimos fazer o mais difícil.

- Como o mais difícil? - exclamei.

- Claro, agora só falta descer! - Se o senhor encarar o problema     por esse prisma, tem razão; mas depois de descermos, imagino que vai     ser preciso subir? - Ora, isso não me preocupa! Bem, não temos     tempo a perder. Vou à biblioteca. Talvez encontre algum manuscrito     de Saknussemm que seria bom consultar.

- Então, nesse meio tempo vou visitar a cidade, o senhor não     quer ir? - Ah, não me interessa muito. Nesta terra de Islândia,     o mais interessante não está em cima da terra mas debaixo dela.

Saí e comecei a andar a esmo.

Perder-se nas duas ruas de Reykjavik não era nada fácil. Não     fui, portanto, obrigado a pedir informações, o que, na linguagem     dos gestos, teria me exposto a muitos enganos.

A cidade estende-se num solo bastante baixo e pantanoso entre duas colinas.     Uma imensa corrente de lavas cobre-a de um lado e desce em rampas bastante     suaves. Do outro, está a vasta baía de Faxa, cujo limite ao     norte é a imensa geleira do Sneffels, onde apenas a Valquiria estava     ancorada naquele momento. Normalmente, as guardas pesqueiras inglesa e francesa     permanecem ao largo, mas estavam então em serviço nas costas     orientais da ilha.

A rua mais comprida de Reykjavik é paralela à praia; ali moram     os comerciantes e negociantes em cabanas de toras dispostas na horizontal;     a outra rua, situada mais a oeste, corre para um laguinho entre as casas do     bispo e as de outras personalidades que não lidam com comércio.

Em pouco tempo palmilhei as ruas mornas e tristes; por vezes entrevia um     pedacinho de gramado descolorido, como um velho tapete de lã puído     ou uma espécie de horta com poucos legumes - batatas, repolhos e alface      -, que de tão mirrados pareciam crescer para servir de refeição     a anõezinhos; alguns goiveiros doentios tentavam também tomar     um pouco de sol.

No meio da rua não-comercial, dei com um cemitério público     fechado por uma parede de barro, onde não faltava lugar; mais alguns     passos e cheguei à casa do governador, um casebre, se comparado ao     palácio do governo de Hamburgo, mas um palácio ao lado das cabanas     da população islandesa.

Entre o laguinho e a cidade, erguia-se a igreja, construída, segundo     o gosto protestante, com pedras calcinadas que os vulcões fornecem     à vontade; seu teto de telhas vermelhas devia voar pelos ares quando     fustigado pelo vento oeste, para grande prejuízo dos fiéis.

Numa colina próxima, vi a escola nacional onde, como soube mais tarde,     se lecionava hebraico, inglês, francês e dinamarquês, quatro     línguas das quais, para minha vergonha, não conhecia uma única     palavra.

Seria o último dos quarenta alunos do pequeno colégio, e indigno     de dormir com eles naqueles armários de duas divisões, nos quais     os mais delicados se sentiriam sufocados desde a primeira noite.

Em três horas já visitara não somente a cidade como     também os arredores. Tudo parecia extremamente triste. Não havia     árvores ou vegetação. Por toda parte as arestas marcadas     das rochas vulcânicas. As cabanas dos islandeses são feitas de     barro e turfa, as paredes inclinadas por dentro. Parecem tetos colocados no     chão. Só esses tetos são pradarias relativamente férteis.     Graças ao calor da moradia, a relva brota bastante bem. É cortada     na época da ceifa, o que impede os animais domésticos de virem     pastar nas casinhas verdejantes.

Durante meu passeio, encontrei poucos habitantes. Ao voltar à rua     comercial, vi a maior parte da população ocupada em secar, salgar     e carregar bacalhaus, principal artigo de exportação. Os homens     pareciam robustos mas pesados, uma espécie de alemães louros,     olhar pensativo, que se sente um pouco fora da humanidade, pobres exilados     relegados àquela terra de gelo, onde a natureza podia tê-los     feito esquimós, já que os condenava a viver no limite do círculo     polar! Tentava em vão surpreender um sorriso em seu rosto; riam às     vezes por uma espécie de contração involuntária     dos músculos, mas nunca sorriam.

Seu traje consistia num grosseiro blusão de lã negra, conhecida     nos países escandinavos como vadmel, um chapéu de grandes abas,     calças com barras vermelhas e um pedaço de couro dobrado à     guisa de calçado.

As mulheres, de rosto triste e resignado, aspecto bastante agradável     mas inexpressivo, vestiam um corpete e uma saia de vadmel escura: as mocinhas     usavam em seus cabelos trançados em coroas um bonezinho de tricô     marrom; as casadas amarravam na cabeça um lenço colorido, sobre     o qual colocavam uma cimeira de tecido branco.

Quando voltei de meu longo passeio à casa do senhor Fridriksson,     meu tio já se encontrava em companhia de seu anfitrião.

X

O jantar estava pronto; foi devorado com avidez pelo professor Lidenbrock,     cuja dieta forçada à bordo transformara seu estômago num     abismo profundo. O jantar, mais dinamarquês que islandês, nada     tinha de notável em si; mas nosso anfitrião, mais islandês     do que dinamarquês, lembrou-me os heróis da antiga hospitalidade.     Pareceu-me evidente que nos sentíamos mais em casa do que ele mesmo.

A conversa transcorria em língua indígena, que meu tio entremeava     de alemão, e o senhor Fridriksson, de latim, para que eu compreendesse.     O assunto eram questões científicas, como convém a sábios;     mas o professor manteve-se em sua reserva mais excessiva, e seus olhos recomendavam-me,     a cada frase, um silêncio absoluto quanto aos nossos projetos futuros.

Em primeiro lugar, o senhor Fridriksson interessou-se pelos resultados das     pesquisas de meu tio na biblioteca.

- Sua biblioteca! Não passam de livros truncados em estantes quase     desertas! - exclamou o último.

- O quê! - respondeu o senhor Fridriksson. - Possuímos oito     mil volumes muito raros e preciosos, obras na antiga língua escandinava,     e todas as novidades fornecidas todo ano por Copenhague! - Onde estão     esses oito mil volumes? Só vi...

- Ah, senhor Lidenbrock, eles percorrem o país. Todos gostam de estudar     em nossa velha ilha de gelo, todo fazendeiro, todo pescador sabe ler e lê.     Achamos que, em vez de ficarem embolorando numa estante, distantes de olhares     curiosos, os livros se destinam a ser gastos pelos olhares dos leitores. Esses     volumes passam de mão em mão, são folheados, lidos e     relidos, e em geral só voltam à prateleira depois de um ano     ou dois de ausência.

- Enquanto isso, os estrangeiros... - disse meu tio com um certo despeito.

- O que podemos fazer? Os estrangeiros têm suas próprias bibliotecas,     e, para nós, é mais importante que nossos camponeses se instruam.     Repito-lhe, o islandês tem amor pelo estudo. Em 1816, fundamos uma sociedade     literária que vai indo muito bem; os cientistas estrangeiros sentem-se     honrados de participarem dela; publica livros destinados à educação     de nossos compatriotas e presta inúmeros serviços ao país.     Se o senhor quiser ser um de nossos membros correspondentes, senhor Lidenbrock,     pode estar certo de que nos dará muito prazer.

Meu tio, que já pertencia a uma centena de sociedades científicas,     aceitou o convite com tanto reconhecimento que tocou o senhor Fridriksson.

- Agora - retomou o último -, diga-me quais livros o senhor esperava     encontrar em nossa biblioteca, e talvez eu possa informá-lo a respeito     deles.

Olhei para meu tio, que hesitava em responder, já que isso se referia     diretamente a seus projetos. Após refletir, porém, resolveu     falar.

- Senhor Fridriksson - disse -, gostaria de saber se entre suas obras antigas     não há algumas de Arne Saknussemm.

- Arne Saknussemm! - respondeu o professor de Reykjavik. - O senhor está     falando do cientista do século XVI, ao mesmo tempo grande naturalista,     grande alquimista e grande viajante? - Precisamente.

- Uma das glórias da literatura e da ciência islandesa? - Exatamente.

- Um homem mundialmente ilustre? - Com toda a certeza! - E cuja audácia     beira a genialidade? - Estou vendo que o senhor o conhece bem.

Meu tio quase se afogava na alegria de ouvir falar de seu herói dessa     forma. Devorava o senhor Fridriksson com os olhos.

- E então - perguntou -, onde estão suas obras? - Ah, não     as temos.

- O quê, na Islândia? - Elas não existem nem na Islândia     nem em outra parte.

- Por quê? - Porque Arne Saknussemm foi perseguido por heresia, e     suas obras foram queimadas em Copenhague por um carrasco.

- Que maravilha! Perfeito! - gritou meu tio, para grande escândalo     do professor de ciências naturais.

- Como? - murmurou o último.

- Claro! Está tudo explicado, tudo se encaixa! Agora entendo porque     Saknussemm, colocado no Index e obrigado a esconder as descobertas de seu     gênio, escondeu o segredo naquele criptograma incompreensível...

- Que segredo? - perguntou o senhor Fridriksson com ansiedade.

- Um segredo que... do qual... - respondeu meu tio balbuciando.

- O senhor teria algum documento em especial? - continuou nosso anfitrião.

- Não, foi uma mera suposição.

- Bem - respondeu o senhor Fridriksson, que foi gentil a ponto de não     insistir ao ver a perturbação de seu interlocutor.

- Espero - acrescentou - que o senhor não deixe nossa ilha antes     de esgotar suas riquezas mineralógicas...

- É claro que não - respondeu meu tio. - Mas acho que estou     chegando tarde demais. Já passaram cientistas por aqui? - Sim, senhor     Lidenbrock. Os trabalhos de Olafsen e Povelsen, executados por ordem do rei,     os estudos de Troil, a missão científica de Gaimard e Robert,     a bordo da corveta francesa La Recherche', e, nos últimos tempos, as     observações dos cientistas da fragata La Recne Hortense (A rainha     Hortênsia) contribuíram muito para o reconhecimento da Islândia.     Mas tenho certeza de que ainda há muito por fazer.

- O senhor acha? - perguntou meu tio com um ar ingênuo, tentando atenuar     o brilho de seus olhos.

- Sim, quantas montanhas, geleiras e vulcões pouco conhecidos ainda     há para estudar! Por exemplo, veja aquele monte que se ergue no horizonte.     É o Sneffels.

- Ah! - surpreendeu-se meu tio. - O Sneffels.

- Sim, é um dos vulcões mais curiosos, cuja cratera é     raramente visitada.

- Extinto? - Ah, extinto há quinhentos anos.

- Muito bem - respondeu meu tio, que cruzava as pernas freneticamente para     não pular -, tenho vontade de começar meus estudos por esse     Seffel... Fessel... como se chama? - Sneffels - esclareceu o excelente senhor     Fridriksson.

Essa parte da conversa acontecera em latim; compreendi tudo e mal conseguia     me manter sério ao ver meu tio conter sua satisfação,     que transbordava por todos os lados; tentava assumir um ar de inocência     que parecia uma careta de diabo velho.

- Sim - continuou -, depois do que o senhor falou, tomei uma decisão!     Vamos tentar escalar o Sneffels, talvez até estudar sua cratera! -     Lamento - respondeu o senhor Fridriksson - que minhas ocupações     me impeçam de ausentar-me; teria o maior prazer em acompanhá-los.

- Oh, não, não - respondeu meu tio rapidamente. - Não     queremos incomodar ninguém, senhor Fridriksson; agradeço-lhe     de coração. A presença de um sábio como o senhor     seria muito útil, mas os deveres de sua profissão...

Gosto de pensar que, na sua inocência de alma islandesa, nosso anfitrião     não captou a malícia de meu tio.

- Recomendo-lhe vivamente que comece por esse vulcão, senhor Lidenbrock      - disse. - Conseguirá colher um grande número de observações     interessantes. Mas, diga-me, como espera alcançar a península     de Sneffels? - Por mar, atravessando a baía. É o caminho mais     rápido.

- Com certeza, mas impossível.

- Por quê? - Porque não dispomos de um único bote em     Reykjavik.

- Que diabo! - Será necessário seguir por terra, beirando     o litoral. O trajeto é mais comprido, mas mais interessante.

- Bem, procurarei um guia.

- Justamente tenho alguém para oferecer-lhe.

- Um homem de confiança, inteligente? - Um habitante da península.     É um caçador de êider muito hábil, perfeito para     vocês. Fala correntemente o dinamarquês.

- E quando posso vê-lo? - Amanhã, se quiser.

- Por que não hoje? - Ele só chega amanhã.

- Então amanhã - respondeu meu tio com um suspiro.

Aquela conversa importante terminou alguns minutos depois com agradecimentos     calorosos do professor alemão ao professor islandês.

Meu tio soube de coisas importantes naquele jantar, como a história     de Saknussemm, o motivo de seu documento misterioso, que seu anfitrião     não o acompanharia em sua expedição, e que, a partir     do dia seguinte, teria um guia à sua disposição.

XI

À noite, dei um passeio rápido pelas costas de Reykjavik e     voltei cedo para deitar-me em minha cama de tábuas grandes, onde adormeci     num sono profundo.

Quando acordei, ouvi meu tio falando muito na sala ao lado.

Levantei-me imediatamente e apressei-me em ir ao seu encontro.

Falava em dinamarquês com um homem alto e vigorosamente esbelto.

O rapagão devia ter uma força incomum. Seus olhos pareceram-me     inteligentes numa cabeça muito grande e um tanto ingênua. Eram     de um azul sonhador. Seus longos cabelos, que passariam por ruivos na Inglaterra,     caíam nos ombros atléticos. O indígena tinha movimentos     flexíveis, mas mexia pouco os braços, como um homem que ignorasse     ou desdenhasse a linguagem dos gestos. Tudo nele revelava um temperamento     dos mais calmos, não-indolente, mas tranqüilo. Sentia-se que nada     pedia a ninguém, que trabalhava para a sua comodidade e que, nesse     mundo, sua filosofia não podia ser surpreendida ou perturbada.

Percebi as nuances daquele temperamento pela forma como o islandês     ouvia a verborragia ardente de seu interlocutor. Estava de braços cruzados,     imóvel, em meio às inúmeras gesticulações     de meu tio; para negar sua cabeça virava da esquerda para a direita;     para afirmar inclinava-se tão pouco que seus longos cabelos mal se     mexiam. Uma economia de movimentos que beirava a avareza.

Se eu visse aquele homem, nunca adivinharia sua profissão de caçador;     nunca devia amedrontar a caça, mas então, como a pegava? Tudo     se esclareceu quando o senhor Fridriksson me disse que o tranqüilo personagem     não passava de um "caçador de êider", pássaro     cuja penugem constitui a grande riqueza da ilha. De fato essa penugem chamava-se     edredon, e não é preciso muito movimento para pegá-la.

Nos primeiros dias de verão, a fêmea do êider, espécie     de pato bonito, vai construir seu ninho entre os rochedos dos fiordes, cuja     costa é franjada. Construído o ninho, forra-o com plumas finas     que arranca do ventre. Logo chega o caçador, ou melhor, o negociante,     pega o ninho, e a fêmea faz tudo de novo. Isso continua até que     sua penugem acabe.

Quando a fêmea está completamente depenada, cabe ao macho arrancar     as suas penas. Como sua penugem é dura e grosseira, o caçador     não se dá ao trabalho de roubar o leito da ninhada; o pássaro     consegue assim concluir seu ninho. A fêmea põe os ovos, os passarinhos     nascem, e no ano seguinte recomeça a coleta do edredon.

Ora, como o êider não escolhe para seu ninho as rochas escarpadas     e sim as rochas fáceis e horizontais que vão se perder no mar,     o caçador islandês conseguia exercer sua profissão sem     grande agitação.

Não passava de um fazendeiro que não era obrigado a semear     nem a ceifar, apenas a colher.

O personagem grave, fleumático e silencioso chamava-se Hans Bjelke;     fora recomendado pelo senhor Fridriksson. Era nosso futuro guia. Suas maneiras     contrastavam singularmente com as de meu tio.

Entenderam-se, entretanto, com facilidade. Nenhum dos dois se importava     com o preço, o primeiro, pronto a aceitar o que lhe fosse oferecido,     e o segundo, pronto a dar o que lhe pedissem.

Nunca uma barganha foi tão fácil.

O resultado do acordo foi que Hans se comprometeu a conduzir-nos à     cidadezinha de Stapi, situada na costa meridional da península do Sneffels,     justamente ao pé do vulcão. Eram cerca de vinte e duas milhas'     por terra, uma viagem de dois dias de acordo com meu tio.

Mas, quando soube que se tratava de milhas dinamarquesas de vinte e quatro     mil pés, teve de refazer seus cálculos e, visto as más     condições dos caminhos, contar com sete ou oito dias de marcha.

Teríamos quatro cavalos à nossa disposição,     dois para nós, eu e ele, e dois para nossas bagagens. Segundo seus     hábitos, Hans iria a pé. Conhecia perfeitamente aquela parte     da costa e prometeu pegar o caminho mais curto.

Seu compromisso com meu tio não acabaria em Stapi; ficaria à     sua disposição o tempo necessário às excursões     científicas por três risdales por semana. No entanto, foi combinado     expressamente que o guia seria pago todo sábado à noite, condição     sine qua non do contrato.

Acertaram a partir do dia 16 de junho. Meu tio quis pagar-lhe um sinal,     mas o caçador recusou com uma palavra: - Efier - disse.

- Depois - traduziu-me o professor, para minha edificação.

Concluído o contrato, Hans retirou-se.

- Homem interessante, que nem desconfia do papel maravilhoso que o destino     reservou para ele - exclamou meu tio.

- Então vai nos acompanhar...

- Sim, Axel, até o centro da Terra.

Dispúnhamos ainda de quarenta e oito horas; para meu grande pesar,     tivemos de empregá-las em preparativos; toda a nossa inteligência     foi utilizada para dispor cada objeto da melhor forma possível, os     instrumentos de um lado, as armas do outro, as ferramentas num pacote, os     víveres no outro, no total quatro grupos.

Levávamos os seguintes instrumentos:

1º - Um termômetro     centígrado de Eigel, graduado até cento e cinqüenta graus,     o que me parecia demais ou insuficiente. Demais, se o calor ambiente chegasse     a esse ponto, o que nos cozinharia. Insuficiente, se fosse o caso de medir     a temperatura das nascentes ou de qualquer outro material em fusão.

2º - Um manômetro de ar comprimido para indicar pressões     superiores às da atmosfera no nível do oceano, de fato, um barômetro     comum não bastaria, pois a pressão atmosférica deveria     aumentar proporcionalmente à medida que descêssemos abaixo do     nível da terra.

3º - Um cronômetro de Boissonnas simples de Genebra, perfeitamente     acertado conforme o meridiano de Hamburgo.

4º - Duas bússolas de inclinação e declinação.

5º - Uma luneta de noite.

6º - Dois aparelhos de Ruhmkorff, que, por meio de uma corrente elétrica,     fornecia uma luz muito portátil, segura e fácil de carregar'.

As armas consistiam em duas carabinas Purdley Mor e Co.

e em dois revólveres Colt. Para que armas? Não tínhamos     que temer deparar-nos com selvagens ou animais ferozes, suponho.

Mas meu tio parecia fazer questão de seu arsenal, assim como de uma     notável quantidade de algodão-pólvora inalterável     com a umidade e cuja força de expansão é muito superior     à da pólvora comum.

As ferramentas eram duas pás, duas picaretas, uma escada de seda,     três bastões de ferro, machado, um martelo, uma dúzia     de calços e pregos de ferro e longas cordas de nós, o que não     deixava de formar um enorme pacote, pois a escada media trezentos pés     de comprimento. Finalmente, as provisões; o pacote não era grande     mas tranqüilizador, pois eu sabia que continha víveres para seis     meses entre carne concentrada e biscoitos secos.

Não levávamos água: o líquido consistia em genebra.     Levávamos, entretanto, cantis, e meu tio contava com fontes para enchê-los.

Qualquer objeção que eu fizesse à sua qualidade, temperatura     ou ausência, não seria levada em conta.

Para completar a relação exata de nossos artigos de viagem,     citarei uma farmácia portátil com tesouras de lâminas     cegas, talas para fraturas, uma peça de fita em fio cru, faixas e compressas,     esparadrapo, uma espátula para sangria, todas coisas aterrorizantes.

além disso, uma série de frascos com dextrina, álcool     vulnerário, acetato de chumbo líquido, éter, vinagre     e amoníaco, todas drogas de emprego pouco tranqüilizador, e finalmente     o equipamento necessário para os aparelhos de Ruhmkorff.

Meu tio nem pensou em esquecer sua provisão de tabaco, de pólvora     de caça e de iscas, nem um cinto de couro que usava na cintura, onde     havia em quantidade suficiente moedas de ouro e prata e papel. No grupo dos     instrumentos, colocou também seis bons pares de sapatos impermeabilizados     por uma demão de alcatrão e borracha elástica.

- Vestidos, calçados e equipados dessa forma, não temos qualquer     motivo para não ir longe - disse-me meu tio.

Passamos todo o dia 14 arrumando os diversos objetos. À noite jantamos     na casa do barão Trampe, em companhia do prefeito de Reykjavik e do     doutor Hyaltalin, o maior médico da região. O senhor Fridriksson     não fora convidado; mais tarde soube que o governador e ele haviam     tido uma desavença quanto a um problema de administração     e não se falavam. Não pude portanto, compreender nem uma só     palavra do que se disse durante aquele jantar semi-oficial. Notei apenas que     meu tio falou todo o tempo.

Terminamos os preparativos no dia seguinte, 15 de junho.

Nosso anfitrião agradou enormemente ao professor oferecendo-lhe um     mapa da Islândia, incomparavelmente mais perfeito do que o de Handerson,     o mapa de Olaf Nicolas Olsen, reduzido em 1/480000 e publicado pela Sociedade     Literária Islandesa a partir dos trabalhos geodésicos de Scheel     Frisac e do levantamento topográfico de Bjorn Gumlaugsonn. Era um documento     precioso para um mineralogista.

Passamos a última noite na intimidade do senhor Fridriksson, pelo     qual eu sentia uma viva simpatia; a conversa foi sucedida por um sono bastante     agitado, ao menos de minha parte.

Às cinco da manhã, o relincho de quatro cavalos que pateavam     sob minha janela acordou-me. Vesti-me depressa e desci para a rua. Hans acabava     de carregar nossas bagagens sem se mexer, se é que posso dizer isso.     Trabalhava, entretanto, com uma habilidade incomum. Meu tio mais fazia barulho     do que ajudava, e o guia parecia pouco se importar com suas recomendações.

Ficou tudo pronto às seis horas. O senhor Fridriksson apertou-nos     as mãos. Meu tio agradeceu-lhe enfaticamente em islandês pela     hospitalidade. Eu tentei esboçar no meu melhor latim alguma saudação     cordial; depois montamos, e o senhor Fridriksson endereçou-me, com     seu último adeus, este verso de Virgílio, que parecia ter sido     feito para nós, viajantes de rota incerta:

Et quacumque viam dederit fortuna sequamur.

XII

Partimos com o tempo encoberto mas estável. Não teríamos     de nos preocupar nem com calores cansativos nem com chuvas desastrosas. Um     tempo próprio para o turismo.

O prazer de galopar por um país desconhecido deixava-me de bom humor     naquele início de aventura. Sentia toda a felicidade, todo o prazer     e liberdade de um excursionista. Começava a gostar da viagem.

"Afinal, o que estou arriscando?", dizia-me. "Viajar por     um país dos mais curiosos, escalar uma montanha bastante notável,     na pior das hipóteses, descer ao fundo de uma cratera extinta! É     evidente que Saknussemm só fez isso. Quanto à existência     de uma galeria que acaba no centro do globo, pura imaginação!     Pura impossibilidade! Vou tratar, então, de aproveitar o que a expedição     tem de bom sem maiores problemas".

Quando concluí esse raciocínio, já havíamos     saído de Reykjavik.

Hans caminhava à frente num passo rápido, igual e constante.

Os dois cavalos carregados com nossas bagagens seguiam-no sem que fosse     necessário conduzi-los. Eu e meu tio íamos atrás sem     nos sairmos muito mal em nossos animais pequenos mas vigorosos.

A Islândia é uma das maiores ilhas da Europa. Estende-se por     mil e quatrocentas milhas e só conta com sessenta mil habitantes. Os     geógrafos dividiram-na em quatro quartos, e tínhamos de atravessar     quase obliquamente o que tem o nome de região de quarto do Sudvesterfjordhur.

Ao deixarmos Reykjavik, Hans seguira imediatamente para a beira do mar.     Atravessávamos magras pastagens que faziam o maior esforço para     ser verdes; tinham maior facilidade em ser amarelas. Os cimos rugosos das     massas traquíticas apareciam no horizonte entre as brumas do leste,     e por momentos algumas placas de neve, concentrando a luz difusa, resplandeciam     nas inclinações dos cumes afastados. Alguns picos, mais ousados,     perfuravam as nuvens cinzentas e reapareciam acima dos vapores moventes como     escolhos que emergiam em pleno céu.

Muitas vezes essas cadeias de rochas áridas lançavam uma de     suas pontas ao mar e cortavam as pastagens; mas sempre havia lugar suficiente     para passar. Além disso, nossos cavalos escolhiam instintivamente os     lugares propícios sem nunca diminuir a marcha. Meu tio nem tinha o     consolo de excitar sua montaria com a voz ou com o chicote; não lhe     era permitido ser impaciente. Não podia evitar sorrir ao vê-lo     tão alto em seu cavalinho, e, como suas pernas compridas roçavam     o chão, parecia um centauro de seis pés.

- Que ótimo animal, que ótimo animal! - dizia. - Você     vai ver, Axel, nenhum animal é mais inteligente que o cavalo islandês.     Nada o detém, nem neves, nem tempestades, nem caminhos impraticáveis,     nem rochedos, nem geleiras, nada. É corajoso, comedido, seguro. Nunca     dá um passo em falso, nunca tem reações inesperadas.     Diante de qualquer rio, qualquer fiorde, lança-se sem hesitar na água     como um anfíbio e alcança a margem oposta! Não devemos     apressá-lo, deixemo-lo agir, e, estimulando-nos uns aos outros, faremos     dez léguas por dia.

- Nós com certeza - respondi -, mas e o guia? - Ele não me     preocupa. Essa gente caminha sem perceber.

Esse daí mexe-se tão pouco que não deve se cansar.     Além disso, se houver necessidade, poderei ceder-lhe minha montaria.     Logo terei cãimbras se não me movimentar. Os braços vão     bem, mas tenho de pensar nas pernas.

Avançávamos num passo rápido. A região já     era quase deserta. Aqui e ali, algum "boër" solitário     de madeira, barro e pedaços de lava aparecia como um mendigo à     beira de uma trilha vazia.

Aquelas cabanas danificadas pareciam implorar a caridade dos viajantes,     e mais um pouco pensaríamos em oferecer-lhes esmola.

Naquela região não havia estradas nem mesmo trilhas, e a vegetação,     apesar de lenta, logo apagava o rastro dos raros viajantes.

Entretanto, aquela parte interior, bem próxima da capital, é     uma das porções habitadas e cultivadas da Islândia. Como     seriam as áreas mais desertas que aquele deserto? Já havíamos     percorrido meia milha e ainda não encontráramos nem um lavrador     à porta de sua choupana, nem um pastor selvagem tomando conta de um     rebanho menos selvagem que ele; apenas algumas vacas e carneiros abandonados     à sua própria sorte. Como seriam então as regiões     convulsas, abaladas pelos fenômenos eruptivos, nascidas das explosões     vulcânicas e das comoções subterrâneas? Deveríamos     conhecê-las depois; ao consultar, porém, o mapa de Olsen, percebi     que as evitávamos costeando as bordas sinuosas do litoral. De fato,     o grande movimento plutônico concentrou-se sobretudo no interior da     ilha; ali as camadas horizontais de rochas sobrepostas, chamadas trapps em     língua escandinava, as faixas traquíticas, as erupções     de basalto, os tufos, todos os conglomerados vulcânicos, as correntes     de lava e pórfiro em fusão construíram uma região     de horror sobrenatural. Já desconfiava do espetáculo que nos     aguardava na península do Sneffels, onde os desgastes de uma natureza     fogosa formam um caos formidável.

Duas horas depois de termos deixado Reykjavik, chegávamos ao burgo     de Gufunes, chamado Aoalkirkja, ou igreja principal.

Nada tinha de notável. Apenas algumas casas, que formariam uma aldeola     na Alemanha.

Hans parou ali por uma meia hora; compartilhou nosso almoço frugal,     respondeu por sim e não às questões de meu tio sobre     a natureza da estrada, e quando perguntamos onde contava passar a noite: Gardcir      - foi tudo o que disse.

Consultei o mapa para saber o que era Gardcir. Vi um vilarejo com esse nome     às margens do Hvalfjõrd, a quatro milhas de Reykjavik. Mostrei-o     a meu tio.

- Só quatro milhas! - disse. - Quatro milhas em vez de vinte e duas.     Que belo passeio! Ele quis fazer uma observação ao guia, que,     sem responder-lhe passou à frente dos cavalos e recomeçou a     andar.

Três horas depois, sempre calcando a relva descolorida, foi necessário     contornar o Kollafjörd, desvio mais fácil e mais curto do que     a travessia desse golfo. Logo entrávamos num pingstaoer, sítio     de jurisdição comunal chamado Ejulberg, e cujo campanário     soaria meio-dia se as igrejas islandesas tivessem dinheiro suficiente para     possuir um relógio. Mas elas se parecem muito com seus paroquianos,     que não têm relógios e se dão muito bem sem eles.

Ali os cavalos descansaram. Depois, um caminho entre uma cadeia de colinas     e o mar conduziu-nos de uma só vez à aoalkirkja de Brantör     e, uma milha depois, a Saurböer Annexia, igreja anexa situada na margem     meridional do Hvalfjörd.

Eram quatro da tarde e percorrêramos quatro milhas.

Naquele local, o fiorde tinha pelo menos meia milha de comprimento; as ondas     batiam ruidosamente contra rochas agudas; o golfo abria-se entre muralhas     de rochedos, espécie de escarpa pontiaguda de três mil pés     e notável por suas camadas marrons que separavam leitos de tufos avermelhados.     Por mais que acreditasse na inteligência de nossos cavalos, não     conseguia imaginar a travessia de um braço de mar montado num quadrúpede.

- Se são mesmo inteligentes - eu disse -, não tentarão     atravessar. Em todo caso, vou tratar de ser inteligente por eles.

Mas meu tio não queria esperar. Correu à rédea solta     para a margem. Sua montaria farejou a última ondulação     das vagas e parou. Meu tio, que tinha instintos peculiares, voltou a esporeá-lo.

Outra recusa do animal, que sacudiu a cabeça. Palavrões e     chicotadas, mas coices do animal, que começaram a desacorçoar     o cavaleiro. Finalmente, inclinando-se, o cavalinho libertou-se das pernas     do professor e deixou-o plantado sobre duas pedras da margem, como o Colosso     de Rodes.

- Ah, maldito animal! - exclamou o cavaleiro, subitamente transformado em     pedestre, e envergonhado como um oficial de cavalaria rebaixado a soldado     de infantaria.

Sua montaria foi farejar a última ondulação das ondas.

- fuja - murmurou o guia, tocando em seu ombro.

- Como? Uma balsa? - Der - respondeu Hans, apontando para um barco.

- Sim - exclamei -, uma balsa.

- Por que não me disse antes? Vamos! - Tidvatten - continuou o guia.

- O que ele disse? - Disse "maré" - respondeu meu tio,     traduzindo o termo dinamarquês.

- Com certeza temos de esperar a maré...

- Förbida? - perguntou meu tio.

- Ja - respondeu Hans.

Meu tio bateu o pé, enquanto os cavalos se dirigiam para a balsa.     Compreendi perfeitamente a necessidade de esperar a maré por um certo     tempo para atravessar o fiorde, quando o mar, chegando à sua altura     máxima, estaciona. Então o fluxo e o refluxo deixam de ser sensíveis,     e a balsa não se arrisca a ser arrastada para o fundo do golfo ou para     o oceano.

O momento oportuno só chegou às seis da tarde; meu tio, eu,     o guia, os quatro cavalos e mais duas pessoas acomodamo-nos numa espécie     de barcaça chata bastante frágil. Habituado como estava aos     barcos a vapor do Elba, achei os remos dos barqueiros um triste engenho mecânico.     Levamos mais de uma hora para atravessar o fiorde, mas, finalmente, não     houve qualquer incidente durante a travessia.

Meia hora depois chegávamos à aoalkirkja de Gardör.

XIII

Deveria estar escuro, mas no sexagésimo quinto paralelo a claridade     noturna das regiões polares não tinha por que me surpreender.     Durante os meses de junho e julho, o sol não se põe na Islândia.

Assim mesmo, a temperatura baixara. Eu estava com frio e principalmente     com fome. O boër que foi aberto hospitaleiramente para nos receber foi     bem-vindo.

Era a casa de um camponês, mas em matéria de hospitalidade     equivalia à de um rei. Quando chegamos, o dono estendeu-nos as mãos     e, sem maiores cerimônias, fez um sinal para que o acompanhássemos.

Seguimos em fila indiana, pois seria impossível acompanhá-lo     de outra forma. Uma passagem longa, estreita e escura dava acesso àquela     moradia construída com vigas mal esquadriadas e permitia alcançar     cada um dos aposentos, que eram quatro: cozinha, ateliê de tecelagem,     badstofa, quarto de dormir da família, e quarto de hóspedes,     o melhor de todos. Meu tio, em cujo tamanho não pensaram quando construíram     a casa, bateu a cabeça no teto umas três ou quatro vezes.

Apresentaram-nos nosso quarto, uma espécie de grande sala com chão     de terra batida e iluminada por uma janela cujos vidros eram feitos de membranas     de carneiro bastante transparentes. Os colchões eram de forragem seca     jogada em dois catres de madeira pintados de vermelho e enfeitados com provérbios     islandeses.

Não esperava tanto conforto; reinava, porém, na casa um forte     odor de peixe seco, carne macerada e leite azedo que em nada agradou meu olfato.

Assim que depusemos nossa aparelhagem de viajantes, a voz do anfitrião     convidou-nos a passar para a cozinha, único cômodo aquecido da     casa, mesmo no inverno.

Meu tio apressou-se em obedecer à amigável ordem. Eu o segui.

O fogão da cozinha era de um modelo antigo. No meio do cômodo,     uma pedra como lareira; no teto, um buraco pelo qual saía a fumaça.     A cozinha também servia de sala de jantar.

Quando entramos, como se ainda não nos tivesse recebido, nosso anfitrião     saudou-nos com o termo saellvertu, que significa "sejam felizes"     e deu-nos um beijo no rosto.

Sua mulher pronunciou as mesmas palavras acompanhadas do mesmo cerimonial;     depois, colocando a mão direita no coração, o casal inclinou-se     numa reverência.

Apresso-me em dizer que a islandesa era mãe de dezenove crianças,     todos, pequenos e grandes, mexendo-se na maior confusão entre as espirais     de fumaça que a lareira projetava no cômodo. A todo momento,     eu via uma cabecinha loura e um pouco melancólica saindo daquelas brumas.     Pareciam uma guirlanda de anjos sujos.

Meu tio e eu acolhemos muito bem aquela "ninhada"; logo, três     ou quatro tinham subido em nossos ombros, outros em nossos joelhos e o resto     em nossas pernas. Os que falavam repetiam saellvertu em todos os tons imagináveis.     Nem por isso os que não falavam deixavam de gritar.

O concerto foi interrompido pelo anúncio da refeição.     Naquele momento, entrou o caçador que acabara de providenciar a alimentação     para os cavalos, ou seja, economicamente, soltara-os no campo; os pobres animais     deveriam se contentar em pastar o musgo raro dos rochedos, alguns sargaços     pouco nutrientes e, no dia seguinte, não deixariam de voltar por conta     própria para retomar o trabalho da véspera.

- Saellvertu - cumprimentou Hans.

Depois, com tranqüilidade e automaticamente, sem acentuar mais um beijo     do que o outro, beijou o anfitrião, a anfitriã e seus dezenove     filhos.

Terminada a cerimônia, sentamo-nos vinte e quatro à mesa, ou     seja, uns em cima dos outros, no sentido literal do termo. Os mais favorecidos     só contavam com duas crianças no colo.

No entanto, o silêncio caiu sobre esse microcosmo com a chegada da     sopa, e a taciturnidade habitual até das crianças islandesas     voltou a prevalecer. O anfitrião serviu-nos uma sopa de líquen     de sabor nada desagradável, depois uma enorme porção     de peixe seco nadando em manteiga azedada há vinte anos e conseqüentemente     preferível à manteiga fresca, de acordo com as idéias     gastronômicas islandesas. Também havia skyr, espécie de     leite coalhado, acompanhado de biscoitos e temperado com suco de baga de genebra.     Finalmente, como bebida, soro de leite com água, que se chama blanda     na região. Não sei dizer se aquela comida era boa ou ruim. Estava     com fome e, à sobremesa, engoli até a última porção     de um cozido de trigo-mourisco.

Terminado o jantar, as crianças desapareceram; os adultos dispuseram-se     ao redor da lareira, onde queimava turfa, urze, estrume de vaca e ossos de     peixe seco. Depois daquele "aquecimento", cada grupo recolheu-se     a seu respectivo cômodo. A dona da casa ofereceu-se, segundo costumes,     para tirar nossas calças e nossas meias; mas não insistiu diante     da nossa recusa, das mais graciosas, e pude finalmente aconchegar-me em minha     cama de forragem.

No dia seguinte, às cinco horas, despedíamos-nos do camponês     islandês; meu tio teve muita dificuldade em fazer com que aceitasse     uma remuneração decente, e Hans deu o sinal da partida.

A cem passos de Gardör, o terreno começou a mudar de aspecto;     o solo tornou-se pantanoso e menos favorável para a caminhada.

À direita, a série de montanhas prolongava-se indefinidamente     como um imenso sistema de fortificações naturais, cuja contra-escarpa     acompanhávamos; com freqüência éramos obrigados a     atravessar vaus, e sem molhar demais a bagagem.

A região tornava-se cada vez mais desértica; por vezes, no     entanto, uma sombra humana parecia fugir ao longe; se algum desvio de nosso     rumo nos aproximava inesperadamente de um desses espectros, sentia um certo     nojo ao ver a cabeça inchada, sem cabelos, a pele reluzente e as feridas     repelentes que apareciam sob os trapos miseráveis.

A infeliz criatura não estendia sua mão deformada; ao contrário,     fugia, mas não rápido o suficiente para escapar ao saellvertu     costumeiro de Hans.

- Spetelsk - dizia.

- Um leproso! - repetia meu tio.

E só aquela palavra já provocava repulsa. A horrível     afecção da lepra é bastante comum na Islândia;     não é contagiosa, mas hereditária; e esses miseráveis     são proibidos de casar-se.

Aquelas aparições em nada alegravam a paisagem que se tornava     profundamente triste; os últimos tufos de relva vinham morrer a nossos     pés. Nem uma árvore, a não ser alguns feixes de bétulas     anãs parecidas com urzes. Nenhum animal, a não ser alguns cavalos     daqueles que seu dono não conseguia alimentar e que erravam pelas planícies     mornas. Por vezes um falcão planava nas nuvens cinzentas e escapava     voando rápido para as regiões do sul; a melancolia daquela natureza     selvagem impregnava-me, e minhas lembranças levavam-me de volta à     minha terra natal.

Logo foi preciso atravessar vários pequenos fiordes de menor extensão     e, finalmente, um verdadeiro golfo; paralisada, então, a maré     permitiu que o atravessássemos sem aguardar e alcançássemos     a aldeola de Alftanes, situada uma milha além.

À noite, após termos atravessado o vau de dois rios repletos     de trutas e lúcios, o Alfa e o Heta, fomos forçados a abrigar-nos     num casebre abandonado, digno de ser assombrado por todos os duendes escandinavos;     com toda a certeza, o espírito do frio elegera o pardieiro como domicílio     e fez das suas durante toda a noite.

O dia seguinte passou sem qualquer incidente notável. Sempre o mesmo     solo pantanoso, a mesma uniformidade, a mesma fisionomia triste. À     noite já completáramos a metade de nosso percurso e dormimos     na annexia de Krösolbt.

No dia 19 de junho, um terreno de lava estendeu-se sob nossos pés     por cerca de uma milha; essa disposição do solo é chamada     hraun na região; a forma da lava enrugada na superfície era     de cabos ora alongados, ora enrolados sobre si mesmos; uma imensa corrente     descia das montanhas próximas, vulcões hoje extintos, mas cujos     vestígios atestavam a violência passada. Ainda assim, algumas     fumaças de fontes quentes rastejavam aqui e ali.

Não dispúnhamos de tempo para observar esses fenômenos;     precisávamos prosseguir viagem. Logo o solo pantanoso reapareceu a     nossos pés, recortado por laguinhos. Rumávamos então     para oeste; de fato, déramos a volta na grande baía de Faxa,     e o duplo cume branco do Sneffels erguia-se nas nuvens a menos de cinco milhas.

Os cavalos andavam bem; as dificuldades do solo não os detinham;     quanto a mim, começava a ficar muito cansado; meu tio continuava firme     e ereto como no primeiro dia. Não podia deixar de admirá-lo,     nem a ele, nem ao caçador que considerava a expedição     um simples passeio.

No sábado, dia 20 de junho, chegávamos a Büdir, aldeola     situada à beira do mar, e o guia reclamou o pagamento combinado.

Meu tio acertou as contas com ele. Foi a própria família de     Hans, ou seja, seus primos-irmãos e tios, quem nos ofereceu hospitalidade;     fomos muito bem recebidos, e, sem abusar da boa vontade dessa gente simpática,     bem que gostaria de me recuperar em sua casa do cansaço da viagem.     Mas meu tio, que não tinha do que se recuperar, nem pensou no assunto,     e no dia seguinte foi preciso montar novamente em nossos animais.

O solo ressentia-se da vizinhança da montanha, cujas raízes     de granito saíam da terra, como as de um antigo carvalho. Contornávamos     a imensa base do vulcão. O professor não o perdia de vista;     gesticulava, parecia desafiá-lo e dizer: "Eis o gigante que domarei!"     Finalmente, após quatro horas de percurso, os cavalos pararam por conta     própria à porta do presbitério de Stapi.

XIV

Stapi é uma aldeia de cerca de trinta cabanas, construída em     plena lava sob os raios de sol refletidos pelo vulcão. Estende-se no     fundo de um pequeno fiorde encastrado numa muralha basáltica bastante     estranha.

Sabemos que o basalto é uma rocha marrom de origem ígnea.

Suas formas regulares surpreendem por sua disposição. Aqui     a natureza procede de forma geométrica e trabalha à maneira     dos homens, como se manejasse o esquadro, o compasso e o fio de prumo. Em     todos os outros lugares, seus trabalhos artísticos consistem em grandes     massas jogadas desordenadamente, em cones mal esboçados, em pirâmides     imperfeitas, em uma estranha sucessão de linhas; aqui, querendo dar     o exemplo de regularidade e precedendo os arquitetos das primeiras eras, criou     uma ordem rígida, jamais superada pelos esplendores da Babilônia,     nem pelas maravilhas da Grécia antiga.

Já ouvira falar da Calçada dos Gigantes na Irlanda e da gruta     de Fingal numa das Hébridas, mas nunca vira o espetáculo de     uma substrução basáltica.

Em Stapi, esse fenômeno exibia-se em toda a sua magnificência.

A muralha do fiorde, assim como toda a costa da península, era composta     de uma série de colunas verticais de trinta pés de altura. Esses     fustes retos da mais pura proporção sustentavam uma arquivolta     feita de colunas horizontais, cujo desaprumo formava uma semi-abóbada     acima do mar. A intervalos regulares, sob essa cisterna natural, o olhar surpreendia     aberturas ogivais de um desenho admirável, através das quais     as ondas do mar se precipitavam, espumantes. Alguns pedaços de basalto,     arrancados pela fúria do oceano, estendiam-se pelo chão como     ruínas de um templo antigo, ruínas eternamente viçosas     sobre as quais os séculos passavam sem desgastá-las.

Era a última etapa de nossa viagem terrestre, para onde Hans nos     conduzira com inteligência, e eu me sentia tranqüilo com o fato     de que ele continuaria nos acompanhando.

Ao chegarmos à porta da casa do pároco, cabana simples e baixa,     nem mais bela nem mais confortável que as vizinhas, vi um homem ferrando     um cavalo, martelo na mão e avental de couro amarrado à cintura.

- Screllvertu - disse-lhe o caçador.

- God dag - respondeu-lhe o ferrador num perfeito dinamarquês.

- Kyrkoherde - murmurou Hans, voltando-se para meu tio.

- O pároco! - repetiu o professor. - Axel, parece que esse bom homem     é o pároco.

Enquanto isso, o guia colocava o kirkoherde a par da situação.

O pároco parou de trabalhar e deu uma espécie de grito muito     usado entre os criadores de cavalos e contratadores de gado; imediatamente     uma megera enorme saiu da cabana. Se não tinha seis pés de altura,     faltava pouco.

Temi que ela viesse oferecer o beijo islandês aos viajantes; mas nada     disso aconteceu e nem se deu ao trabalho de ser mais gentil ao convidar-nos     para entrar em sua casa.

O cômodo dos forasteiros pareceu-me o pior do presbitério,     estreito, sujo e infecto, mas tivemos de contentar-nos com ele.

O pároco, com certeza, não praticava a hospitalidade à     antiga.

Longe disso. Antes do final do dia, constatei que estávamos tratando     mais com um ferreiro, um pescador, um caçador e um carpinteiro do que     com um ministro de Deus. É verdade que era um dia útil. Talvez     melhorasse aos domingos.

Não quero falar mal desses pobres padres, que afinal de contas são     bem miseráveis; recebem um tratamento ridículo do governo islandês     e seu salário consiste num quarto do dízimo de sua paróquia,     o que nem chega a sessenta marcos. Daí a necessidade de trabalhar para     viver; mas de tanto pescar, caçar e ferrar cavalos, acabam absorvendo     as maneiras, o tom e os costumes dos caçadores, pescadores e outras     pessoas um tanto rudes; naquela mesma noite, percebi que a sobriedade não     era uma das virtudes de nosso anfitrião.

Meu tio logo compreendeu o gênero de homem com que estava lidando;     em vez de um cientista ousado e digno, encontrava um camponês difícil     e grosseiro. Resolveu, portanto, iniciar quanto antes sua grande expedição,     para abandonar aquele cura pouco hospitaleiro. Nem deu atenção     a seu cansaço e resolveu ir passar alguns dias nas montanhas.

Começamos, portanto, a preparar a partida no dia seguinte à     nossa chegada a Stapi. Hans contratou três islandeses para substituir     os cavalos no transporte das bagagens; mas assim que chegássemos ao     fundo da cratera, aqueles indígenas deveriam voltar atrás e     abandonar-nos à nossa própria sorte, ponto claramente estabelecido.

Naquele momento, meu tio teve de contar ao caçador que sua intenção     era explorar o vulcão até seus últimos limites.

Hans contentou-se em inclinar a cabeça. Ir para lá ou para     cá, embrenhar-se nas entranhas de sua ilha ou percorrê-la, não     via qualquer diferença. Quanto a mim, até então distraído     pelos incidentes da viagem, esquecera-me um pouco do futuro; agora, porém,     sentia a emoção voltar com toda a força. O que fazer?     Tinha de ter tentado resistir ao professor Lidenbrock em Hamburgo e não     ao pé do Sneffels.

Uma idéia atormentava-me mais que as outras, idéia aterrorizante     e perfeita para abalar nervos menos sensíveis que os meus.

"Bem", dizia para mim mesmo, "vamos escalar o Sneffels.

Bem, vamos explorar sua cratera. Bem, outros já fizeram isso e não     morreram. Mas tem mais. Se encontrarmos um caminho para descer às entranhas     do solo, se esse infeliz do Saknussemm disse a verdade, vamos nos perder entre     as galerias subterrâneas do vulcão. Ora, nada prova que o Sneffels     esteja extinto! Quem garante que não está preparando uma erupção?     Está certo que o monstro está adormecido desde 1229, mas isso     não significa que não possa acordar... E, se acordar, o que     será de nós?" Era o caso de se refletir sobre essa hipótese,     e eu refletia.

Não conseguia dormir sem sonhar com a erupção. E não     estava gostando nada de fazer o papel de escória.

Finalmente, não consegui mais me conter. Resolvi submeter o problema     a meu tio o mais astuciosamente possível, e sob a forma de uma hipótese     absurda.

Fui procurá-lo. Desabafei minhas preocupações e recuei     para deixá-lo estourar à vontade.

- Estava pensando nisso - respondeu-me com simplicidade.

O que significavam aquelas palavras? Será que ouviria a voz da razão?     Estava pensando em voltar atrás? Era bom demais para ser verdade.

Depois de alguns instantes de silêncio, durante os quais não     ousei pronunciar nem uma palavra, recomeçou a falar: - Estava pensando     nisso. Desde que chegamos a Stapi, estou preocupado com esse grave problema,     pois não devemos ser imprudentes.

- Não - respondi, convicto.

- O Sneffels não se manifesta há seiscentos anos, mas pode     manifestar-se. Ora, as erupções são sempre precedidas     de fenômenos muito conhecidos. Assim, fiz perguntas aos habitantes da     região, estudei o solo e posso afirmar-lhe, Axel, não haverá     erupção.

Fiquei estupefato com essa afirmação, à qual não     pude replicar.

- Você duvida do que estou dizendo? Então, acompanhe-me - disse     meu tio.

Obedeci maquinalmente. Saindo do presbitério, o professor tomou um     caminho reto que, por uma abertura da muralha basáltica, afastava-se     do mar. Logo estávamos em campo aberto, se é que se pode chamar     assim aquele enorme amontoado de dejecções vulcânicas.     A região parecia ter sido esmagada por uma chuva de pedras enormes,     de trapp, basalto, granito e todas as rochas piroxênicas.

Via vapores subindo aqui e ali; aqueles vapores brancos, chamados reykir     em islandês, vinham das fontes termais e, por sua violência, indicavam     a atividade vulcânica do solo. Aquilo parecia justificar meus temores.     Caí das nuvens quando meu tio me disse: - Está vendo, Axel,     esses vapores provam que não temos de temer a fúria do vulcão.

- Essa não! - gritei.

Via vapores vulcânicos subindo aqui e ali.

- Guarde bem isto - continuou o professor: - quando uma erupção     está se aproximando, esses vapores tornam-se duas vezes mais ativos,     para desaparecer completamente durante o fenômeno, pois, como não     têm mais a tensão necessária, os fluidos elásticos     escapam pelas crateras e não mais pelas fissuras do globo. Se esses     vapores se mantiverem em seu estado normal, se sua energia não aumentar,     e ainda, se o vento e a chuva não forem substituídos por um     ar pesado e calmo, é possível afirmar que não haverá     uma erupção a curto prazo.

- Mas...

- Chega. Quando a ciência fala somos obrigados a calar-nos.

Voltei para a cúria de orelhas baixas. Meu tio vencera-me com argumentos     científicos. Ainda assim, alimentava uma certa esperança. Talvez,     quando chegássemos ao fundo da cratera, fosse impossível descer     mais por falta de galerias, isso a despeito de todos os Saknussemm do mundo.

Passei a noite seguinte em pleno pesadelo dentro de um vulcão e das     profundezas da terra. Senti que era lançado para os espaços     planetários sob a forma de rocha eruptiva.

No dia seguinte, 23 de junho, Hans nos aguardava com seus companheiros,     carregados de víveres, ferramentas e instrumentos.

Dois bastões de ferro, dois fuzis, duas cartucheiras estavam reservados     para meu tio e para mim. Hans, que pensava em tudo, acrescentara à     nossa bagagem um odre cheio, que, juntamente com nossos cantis, garantiam     um abastecimento de água por oito dias.

Eram nove horas da manhã. O pároco e sua megera enorme aguardavam     diante da casa. Com certeza queriam dar aos viajantes o adeus supremo do anfitrião.     Mas o adeus assumiu a forma inesperada de uma conta formidável, onde     cobraram até o ar da casa pastoral, bem infecto, aliás. O digno     casal espoliava-nos como hoteleiros suíços, e o preço     de sua hospitalidade era mais do que exagerado.

Meu tio pagou sem regatear. Um homem de partida para o centro da Terra não     liga para alguns risdales.

Acertado esse ponto, Hans deu o sinal de partida, e poucos instantes depois     deixávamos Stapi.

XV

O Sneffels tem cinco mil pés de altura. Com seu cone duplo, acaba     uma faixa traquítica que se destaca do sistema orográfico da     ilha. De nosso ponto de partida, não conseguíamos ver seus dois     picos perfilar-se no fundo acinzentado do céu. Eu só via uma     enorme calota de neve abaixada na fronte do gigante.

Caminhávamos em fila, precedidos pelo caçador, que subia por     trilhas estreitas onde duas pessoas não podiam caminhar de frente.     Era quase impossível conversar.

Além da muralha basáltica do fiorde de Stapi apareceu em primeiro     lugar um solo de turfa herbácea e fibrosa, resíduo da antiga     vegetação dos pântanos da península; a quantidade     desse combustível ainda inexplorado seria suficiente para aquecer toda     a população da Islândia por um século; a vasta     turfeira tinha geralmente setenta pés de altura se medida do fundo     de certas ravinas, e apresentava camadas sucessivas de detritos carbonizados,     separados por folhas de tufo poroso.

Como verdadeiro sobrinho do professor Lidenbrock, e apesar de minhas preocupações,     observava com interesse as curiosidades mineralógicas exibidas naquele     vasto gabinete de história natural; ao mesmo tempo, reconstruía     em minha mente toda a história geológica da Islândia.

Com certeza, aquela ilha tão curiosa saíra do fundo das águas     numa época relativamente moderna. Talvez continue a crescer por um     movimento insensível. Se o fato se confirmar, só é possível     atribuir sua origem à ação de fogos subterrâneos.     Nesse caso, portanto, a teoria de Humphry Davy, o documento de Saknussemm     e as pretensões de meu tio irão por água abaixo. Essa     hipótese levou-me a examinar com atenção a natureza do     solo, e logo percebi a sucessão de fenômenos que presidiram à     sua formação.

Sem qualquer terreno sedimentar, a Islândia compõe-se unicamente     de tufo vulcânico, ou seja, de um aglomerado de pedras e rochas de textura     porosa. Antes do surgimento dos vulcões, era composta por um maciço     que se ergueu lentamente acima das ondas pelo impulso das forças centrais.     O fogo interior ainda não irrompera.

Mas, mais tarde, escavou-se diagonalmente uma grande fenda, do sudoeste     ao nordeste da ilha, pela qual se espalhou pouco a pouco toda a massa traquítica.     O fenômeno aconteceu sem violência; a saída era enorme,     e as matérias fundidas repelidas das entranhas do globo estenderam-se     tranqüilamente em vastos lençóis ou massas onduladas. Nessa     época apareceram os feldspatos, os sienitos e os pórfiros.

Graças, porém, a esse derramamento, a espessura da ilha aumentara     consideravelmente, assim como sua força de resistência.

Dá para imaginar a quantidade de fluidos elásticos que se     armazenou em seu seio, quando deixou de oferecer qualquer saída após     o esfriamento da crosta traquítica. Chegou, portanto, um momento em     que a potência mecânica desses gases foi tão grande que     eles ergueram a crosta pesada e escavaram para si mesmos altas chaminés.     Daí o vulcão formado pelo erguimento da crosta e depois a cratera     subitamente perfurada no topo do vulcão.

Então, os fenômenos eruptivos foram sucedidos por fenômenos     vulcânicos. Pelas aberturas recém-formadas, escaparam, antes     de mais nada, dejecções basálticas; seus maravilhosos     espécimes recobriam a planície que atravessávamos naquele     momento.

Caminhávamos sobre rochas pesadas de um cinza escuro, moldadas em     prismas com bases hexagonais pelo resfriamento.

Ao longe via-se um grande número de cones achatados, outrora bocas     ignívomas.

Em seguida, esgotada a erupção basáltica, o vulcão,     a cuja força se reuniu a das crateras extintas, cedeu passagem às     lavas e àqueles tufos de cinzas e escórias cujas longas correntes     eu via semeadas pelos seus flancos como uma cabeleira opulenta.

Eis a sucessão de fenômenos que constituíram a Islândia,     todos provenientes da ação do fogo interior, e supor que a massa     interna não continuasse num estado permanente de incandescente liquidez     era loucura. Era loucura principalmente pretender atingir o centro do globo.

Tranqüilizava-me, portanto, quanto ao desfecho de nossa aventura enquanto     caminhávamos para tomar o Sneffels de assalto.

O percurso tornava-se cada vez mais difícil; o solo erguia-se, os     estilhaços de pedra vibravam, e era preciso a máxima atenção     para evitar quedas perigosas.

Hans avançava tranqüilamente, como se andasse por um terreno     uniforme; por vezes desaparecia atrás dos grandes blocos, e momentaneamente     o perdíamos de vista; então um assobio agudo de seus lábios     indicava a direção que deveríamos seguir. Muitas vezes     também parava, pegava alguns pedaços de rochas e dispunha-as     de forma adequada, formando assim balizas para indicar o caminho de volta.     Boa precaução em si, que os acontecimentos futuros tornaram     inúteis.

Três horas de caminhada extenuante levaram-nos apenas à base     da montanha. Ali, Hans fez sinal para pararmos e compartilhamos um almoço     frugal. Meu tio engolia porções duplas para ser mais rápido.     Só que, como essa parada para a refeição era também     uma parada de descanso, teve de aguardar a boa vontade do guia, que só     deu o sinal de partida uma hora depois. Os três islandeses, tão     taciturnos quanto seu companheiro caçador, não abriram a boca     e comeram com sobriedade.

Começamos a escalar as encostas do Sneffels. Por uma ilusão     de ótica freqüente nas montanhas, seu pico nevado parecia bem     próximo; mas como demoraríamos para atingi-lo! E, sobretudo,     como seria cansativo! As pedras, soltas pela ausência de qualquer liame     de terra ou de relva, resvalavam sob nossos pés e iam perder-se na     planície com a rapidez de uma avalanche.

Em alguns trechos, os flancos do monte formavam um ângulo de pelo     menos trinta e seis graus com o horizonte; era impossível escalá-los,     e essas ladeiras pedregosas tinham de ser contornadas não sem grandes     dificuldades. Então ajudávamos uns aos outros com nossos bastões.

Não posso deixar de dizer que meu tio mantinha-se o mais perto possível     de mim; não me perdia de vista e várias vezes seus braços     constituíram um sólido apoio para mim. Quanto a ele, tinha,     sem dúvida, um sentimento inato de equilíbrio, pois jamais oscilava.     Apesar de carregados, os islandeses subiam com agilidade de montanheses.

Ao ver a altitude do cume do Sneffels, parecia-me impossível alcançá-lo     por aquela encosta, se o ângulo de inclinação das vertentes     não se fechasse. Felizmente, após uma hora de cansaço     e grandes esforços, apareceu inesperadamente, no meio do vasto tapete     de neve desenvolvido na crosta do vulcão, uma espécie de escada     que simplificou nossa ascensão. Era formada por uma daquelas torrentes     de pedras lançadas pelas erupções, chamadas em islandês     de stinâ. Se essa torrente não tivesse sido detida em sua queda     pela disposição dos flancos da montanha, teria ido precipitar-se     no mar e formar novas ilhas.

Mas foi detida, e muito útil para nós. O declive das encostas     aumentava, mas aqueles degraus de pedra permitiam que subíssemos com     facilidade e até com rapidez, tanto que, tendo ficado por um momento     para trás, enquanto meus companheiros continuavam a ascensão,     já as via reduzidas, pela distância, a uma aparência microscópica.

Às sete da noite, tínhamos subido os dois mil degraus da escada     e dominávamos um inchaço de montanha, espécie de base     sobre a qual assentava o cone propriamente dito da cratera.

O mar estendia-se a uma profundidade de três mil e duzentos pés.     Havíamos ultrapassado o limite das neves eternas, muito pouco elevadas     na Islândia devido à umidade constante do clima.

Fazia um frio intenso. O vento soprava com força. Eu estava exausto.     O professor constatou que minhas pernas recusavam-se a servir-me e, apesar     de sua impaciência, resolveu parar. Fez um sinal para o caçador,     que sacudiu a cabeça, dizendo: - Ofvanför.

- Parece que devemos alcançar um ponto mais elevado - disse meu tio.

Depois perguntou a Hans a razão de sua resposta.

- Mistour - respondeu o guia.

- Ja, mistour - respondeu um dos islandeses, num tom bastante apavorado.

- O que quer dizer isso? - perguntei, aflito.

- Veja - mostrou-me meu tio.

Olhei para a planície. Uma imensa coluna de pedra-pomes pulverizada,     areia e poeira erguia-se, girando como um tufão; o vento fazia com     que se chocasse no flanco do Sneffels, no qual estávamos pendurados.     Essa cortina opaca estendida diante do sol produzia uma grande sombra que     se projetava na montanha.

Se a tromba se inclinasse, iria inevitavelmente abraçar-nos em seus     turbilhões. O fenômeno, muito freqüente quando o vento sopra     das geleiras, chama-se mistour em islandês.

- Hastigt, hastigt - gritava nosso guia.

Mesmo sem saber dinamarquês, compreendi que deveríamos seguir     Hans com toda a rapidez. O guia começou a dar a volta no cone da cratera,     mas obliquamente, para facilitar a caminhada.

Logo a tempestade abateu-se sobre a montanha, que tremeu com o choque; as     pedras envolvidas pelo turbilhão de vento voaram em chuva, como numa     erupção. Felizmente estávamos na vertente oposta, protegidos     do perigo. Sem os cuidados do guia, nossos corpos despedaçados, reduzidos     a pó, teriam caído longe, como os restos de algum meteoro desconhecido.

Hans não achou prudente passarmos a noite nos flancos do cone. Continuamos     nossa ascensão em ziguezague. Levamos quase cinco horas para transpor     os mil e quinhentos pés que faltava subir; os desvios e as contramarchas     mediam pelo menos três léguas. Eu não agüentava mais;     estava morrendo de fome e de frio. O ar, um tanto rarefeito, era insuficiente     para meus pulmões.

Finalmente, às onze da noite, em plena escuridão, alcançamos     o topo do Sneffels, e antes de abrigar-me dentro da cratera ainda consegui     ver "o sol da meia-noite" em seu nível mais baixo, projetando     seus raios pálidos na ilha adormecida a meus pés.

Logo a tempestade abateu-se sobre a montanha.

XVI

O jantar foi rapidamente devorado, e a pequena tropa abrigou-se como pôde.     A cama era dura, o abrigo pouco sólido e a situação bastante     penosa a cinco mil pés acima do nível do mar.

No entanto, meu sono foi particularmente tranqüilo naquela noite, uma     das melhores depois de muito tempo. Nem cheguei a sonhar.

No dia seguinte, acordamos semicongelados por um vento bastante forte, sob     os raios de um belo sol. Abandonei a cama de granito e fui gozar o magnífico     espetáculo que se desenrolava sob meus olhos.

Estava no topo de um dos dois picos do Sneffels, o meridional.

Dali, conseguia ver a maior parte da ilha. A ótica comum a todas     as grandes altitudes erguia as costas, enquanto as partes centrais pareciam     enterradas. Parecia ter a meus pés um desses mapas em relevo de Helbesmer.

Via vales profundos cruzando-se em todos os sentidos, os precipícios     fundos como poços, os lagos transformados em poças, os rios     em riachos. À minha direita sucediam-se incontáveis geleiras     e inúmeros picos, alguns soltando penachos de vapores suaves. As ondulações     daquela infinidade de montanhas, que pareciam espumantes sob suas camadas     de neve, lembravam-me a superfície de um mar agitado. Se me voltava     para oeste, via o oceano desenrolando-se em sua extensão majestosa,     como uma continuação dos picos cobertos de nuvens. Mal conseguia     distinguir onde acabava a terra e onde começavam as ondas.

Mergulhei, assim, no êxtase prestigioso oferecido pelos cumes altos,     e, dessa vez senti vertigem, pois finalmente começava a acostumar-me     com aquelas contemplações sublimes. Meu olhar fascinado banhava-se     na irradiação transparente dos raios de sol.

Esquecia quem era, onde estava, para viver a vida dos elfos ou das sílfides,     habitantes imaginários da mitologia escandinava. A voluptuosidade das     alturas embriagava-me, e nem mais pensava nos abismos para onde, dentro em     pouco, seria levado pelo meu destino. Fui trazido de volta à realidade     com a chegada do professor e de Hans, que se reuniram a mim no cume do pico.

Voltando-se para oeste, meu tio apontou-me um vapor vago, uma bruma, algo     parecido com terra que dominava a linha das ondas.

- A Groenlândia - disse.

- A Groenlândia? - surpreendi-me.

- Sim, estamos a apenas trinta e cinco léguas da Groenlândia,     e, durante os degelos, os ursos brancos chegam até a Islândia     nos blocos de gelo do norte. Mas isso não é muito importante.

Estamos no cume do Sneffels, e eis dois picos, um ao sul, outro ao norte.     Hans vai nos dizer como os islandeses chamam este em que estamos agora.

Formulada a pergunta, o caçador respondeu: - Scartaris.

Meu tio olhou-me triunfante.

- À cratera - disse.

A cratera do Sneffels parecia um cone virado, cujo orifício devia     ter meia légua de diâmetro. Estimei sua profundidade em cerca     de dois mil pés. Deu para imaginar o estado de tal recipiente quando     repleto de trovões e chamas. O fundo do funil não devia medir     mais do que quinhentos pés de diâmetro, de forma que suas vertentes     bastante suaves permitiam que se chegasse com facilidade à sua parte     inferior. Comparei-a involuntariamente a um enorme bacamarte aberto, e a comparação     me apavorou.

"Descer num bacamarte", pensava, "talvez carregado e que     pode disparar de repente é coisa de loucos".

Mas não havia como voltar atrás. Com um ar indiferente, Hans     voltou à frente da tropa. Segui-o sem dizer nada.

Para facilitar a descida, Hans descrevia elipses muito alongadas no interior     do cone. Era preciso caminhar no meio de rochas eruptivas, entre as quaisalgumas,     abaladas em seus alvéolos, precipitavam-se ricocheteando até     o fundo do abismo. Sua queda determinava ecos de sonoridade estranha.

Algumas partes do cone formavam geleiras interiores. Hans só prosseguia     com extremo cuidado, sondando o solo com seu bastão de ferro para descobrir     fendas. Em certas passagens duvidosas, tornou-se necessário amarrar-nos     uns aos outros com longas cordas para que aquele que tropeçasse inadvertidamente     fosse sustentado pelos seus companheiros.

Essa solidariedade era prudente, mas não evitava todos os perigos.

No entanto, e apesar das dificuldades da descida por vertentes desconhecidas     pelo guia, não ocorreu qualquer acidente no percurso, a não     ser a queda de um fardo de cordas que escapou das mãos de um islandês     e foi, pelo caminho mais curto, até o fundo do abismo.

Chegamos ao meio-dia. Ergui a cabeça e vi o orifício superior     do cone que enquadrava um pedaço de céu de uma circunferência     singularmente reduzida, mas quase perfeita. O pico do Scartaris, mergulhado     na imensidão, destacava-se num só ponto.

No fundo da cratera abriram-se três chaminés pelas quais, no     tempo das erupções do Sneffels, o incêndio central soltava     suas lavas e vapores. As chaminés tinham, cada uma, cerca de cem pés     de diâmetro. Escancaravam-se sob nossos pés. Não tive     coragem de olhar para dentro delas.

Já o professor Lidenbrock examinara rapidamente sua disposição.     Estava ofegante; corria de uma à outra, gesticulando e soltando palavras     incompreensíveis. Hans e seus companheiros, sentados em pedaços     de pedras, ficaram olhando para ele; com certeza, achavam que era louco.

De repente meu tio deu um grito. Achei que acabara de pisar em falso e cair     em um dos três abismos. Mas não. Vi-o, os braços estendidos,     as pernas afastadas, de pé diante de uma rocha de granito disposta     no centro da cratera como um enorme pedestal construído para uma estátua     de Plutão. Parecia um homem estupefato, mas logo o estupor cedeu lugar     a uma alegria insensata.

- Axel! Axel! - gritou. - Venha, venha! Corri para ele. Hans e os islandeses     nem se mexeram.

Olhe - disse-me o professor.

- Veja - disse-me o professor.

E, compartilhando seu estupor e até sua alegria, li, na face ocidental     do bloco, em caracteres rúnicos meio apagados pelo tempo, o nome mil     vezes maldito:

öö föö höYIöhhööö

- Arne Saknussemm! - gritou meu tio. - Você ainda tem qualquer dúvida?     Não respondi e voltei consternado a meu banco de lava. A evidência     arrasara-me.

Não sei dizer quanto tempo passei ensimesmado. Tudo o que sei foi     que, ao erguer a cabeça, vi meu tio e Hans sozinhos no fundo da cratera.     Os islandeses haviam sido dispensados, e agora desciam as vertentes exteriores     do Sneffels para voltar a Stapi.

Hans dormia tranqüilamente ao pé de uma rocha, numa corrente     de lava que transformara em leito improvisado. Meu tio dava voltas no fundo     da cratera como um animal selvagem preso numa armadilha. Não tive vontade     nem força para levantar-me, e, a exemplo do guia, deixei que um doloroso     torpor tomasse conta de mim enquanto acreditava ouvir os barulhos e sentir     os tremores nos flancos da montanha.

Assim se passou a primeira noite no fundo da cratera.

No dia seguinte, um céu cinza, coberto de nuvens, pesado, caiu no     topo do cone. Percebi o ocorrido mais pela ira de meu tio do que pela escuridão     do abismo.

Compreendi o motivo de tanta raiva, e voltei a alimentar uma certa esperança.     Vou dizer por quê.

Dos três caminhos que tínhamos a nossos pés, apenas     um fora seguido por Saknussemm. Segundo o cientista islandês, deveríamos     reconhecê-lo por uma particularidade assinalada no criptograma: a sombra     do Scartaris acariciaria suas bordas nos últimos dias do mês     de junho.

Podíamos de fato considerar o pico agudo como um ponteiro de um enorme     relógio solar, cuja sombra, num dia determinado, marcaria o caminho     para o centro do globo.

Ora, sem sol, nada de sombra. Conseqüentemente, nada de indicações.     Era 25 de junho. Se o céu permanecesse encoberto por seis dias, teríamos     de adiar a observação para o ano seguinte.

Desisto de tentar descrever a raiva impotente do professor Lidenbrock. O     dia passou e nenhuma sombra veio esponjar-se no fundo da cratera. Hans não     saiu do lugar; devia, entretanto, perguntar-se o que esperávamos, se     é que jamais se perguntou algo! Meu tio não me dirigiu uma única     palavra. Seus olhos, invariavelmente voltados para o céu, perdiam-se     em seu matiz cinza e brumoso.

No dia 26, a mesma situação. Uma chuva misturada com neve     caiu durante todo o dia. Hans construiu uma cabana com pedaços de lava.     Observei com um certo prazer os milhares de cascatas improvisadas nos flancos     do cone, cujo murmúrio ensurdecedor era aumentado por qualquer pedra.

Meu tio não conseguia mais se conter. O ocorrido irritaria o mais     paciente dos homens, pois era realmente naufragar ao lado do porto.

Mas o céu mistura incessantemente as grandes alegrias às grandes     dores e reservara ao professor Lidenbrock uma satisfação igual     ao seu tédio desesperador.

No dia seguinte, o céu continuava encoberto, mas no domingo, 28 de     junho, antepenúltimo dia do mês, a mudança da lua foi     acompanhada pela mudança do tempo. Os raios de sol cobriram o fundo     da cratera. Cada montícolo, cada rocha, cada pedra, cada aspereza do     solo participou do eflúvio luminoso e projetou instantaneamente sua     sombra no solo. Entre outras, a do Scartaris desenhou-se como uma aresta vívida     e começou a girar insensivelmente com o astro radioso.

Meu tio girava com ela.

Ao meio-dia, seu período mais curto, banhou suavemente as bordas     da chaminé central.

- É ali! É ali! - gritou o professor. - Para o centro do globo!     - acrescentou em dinamarquês.

Olhei para Hans.

- Foriöt - murmurou o guia tranqüilamente.

- Em frente! - respondeu meu tio, Era uma e treze da tarde.

XVII

Começava a verdadeira viagem. Até então, o cansaço     tinha prevalecido sobre as dificuldades; agora iríamos enfrentá-las     realmente.

Ainda não olhara para aquele poço insondável onde iria     embrenhar-me. Chegara o momento. Ainda era possível aceitar a aventura     ou recusar-me a tentá-la. Mas tive vergonha de recuar diante do caçador.     Hans aceitava a aventura tão tranqüilamente, com tal indiferença,     com tamanha despreocupação diante de qualquer perigo que corei     ante a idéia de ser menos corajoso do que ele. Se estivesse sozinho,     não hesitaria em começar uma série de discussões;     na presença do guia, calei-me. Uma parte de minhas lembranças     correu para a minha bela Virlandesa, e aproximei-me da chaminé central.

Disse que media cem pés de diâmetro. Inclinei-me sobre uma     pedra que pendia e olhei. Fiquei com os cabelos em pé. O sentimento     do vazio tomou conta de mim. Senti o centro de gravidade deslocando-se em     mim. E a vertigem subindo à cabeça como uma embriaguez. Nada     mais capitoso do que a atração pelo abismo. Ia cair. Uma mão     segurou-me. A de Hans. Decididamente, não assistira a aulas suficientes     "de abismo" na Frelsers-Kirk de Copenhague.

No entanto, se tivesse pelo menos ousado dar uma olhada naquele poço,     teria percebido sua conformação. Suas paredes praticamente verticais     apresentavam muitas saliências que deveriam facilitar a descida. Mas     embora não faltassem escadas, não havia rampa. Uma corda amarrada     no orifício bastaria para nos sustentar; como desamarrá-la,     porém, quando chegássemos à sua extremidade inferior?     Meu tio empregou um meio bem simples para vencer a dificuldade. Desenrolou     uma corda da grossura de um polegar, com quatrocentos pés de comprimento;     primeiramente deixou metade dela cair, depois enrolou-a ao redor de um bloco     de lava saliente e jogou a outra metade na chaminé.

Cada um de nós poderia então descer reunindo nas mãos     as duas metades da corda que não podia escapar; assim que descêssemos     duzentos pés, nada mais simples do que recolhê-la, soltando uma     ponta e rebocando a outra. Depois continuaríamos o exercício     ad infinitum.

- Agora - disse meu tio, após ter acabado esses preparativos -, trataremos     da bagagem; será dividida em três pacotes; cada um de nós     levará um deles às costas; é claro que estou falando     apenas dos objetos frágeis.

E é claro que o audacioso professor não nos incluía     nessa última categoria.

- Hans, pegue as ferramentas e uma parte dos víveres. Axel, você     fica com mais um terço dos víveres e das armas; eu levarei o     resto dos víveres e os instrumentos delicados.

- Mas - eu disse - e as roupas e essa massa de cordas e escadas, quem as     carregará? - Elas descerão sozinhas.

- Como? - eu quis saber.

- Você já vai ver.

Meu tio gostava de utilizar métodos arriscados sem hesitar.

Às suas ordens, Hans reuniu todos os objetos que não eram     frágeis num único pacote, que, solidamente amarrado, foi simplesmente     jogado no buraco.

Ouvi aquele mugido sonoro provocado pelo deslocamento das camadas de ar.     Debruçado sobre o abismo, meu tio acompanhava com um ar satisfeito     a descida da bagagem e só se levantou após perdê-la de     vista.

- Bem - disse ele -, agora é nossa vez.

Pergunto a qualquer homem de boa fé se é possível escutar     tais palavras sem estremecer.

O professor amarrou o pacote de instrumentos em suas costas; Hans pegou     o das ferramentas e eu, o das armas. A descida começou na seguinte     ordem: Hans, meu tio e eu. Aconteceu num profundo silêncio, perturbado     apenas pela queda de pedaços de pedra que se precipitavam no abismo.

Fui, de certa forma, escorregando; uma de minhas mãos apertava freneticamente     a corda dupla, a outra segurava o bastão de ferro. Era dominado por     uma única idéia: temia perder o ponto de apoio. A corda parecia-me     bem frágil para suportar o peso de três pessoas. Utilizava-a     o mínimo possível, operando milagres de equilíbrio nas     saliências de lava que meu pé tentava agarrar fazendo as vezes     de mão.

Quando um desses degraus escorregadios se abalava sob os pés de Hans,     ele dizia com sua voz tranqüila: - Gif akt! - Cuidado! - repetia meu     tio.

Depois de meia hora, chegamos à superfície de uma rocha bem     encaixada na parede da chaminé.

Hans puxou uma das pontas da corda; a outra ergueu-se no ar; após     ultrapassar o rochedo superior, voltou a cair, raspando nos pedaços     de pedra e de lava, espécie de chuva, ou melhor, de granizo bem perigoso.

Debruçando-me nas bordas de nosso platô estreito, notei que     o fundo do buraco ainda era invisível.

Voltamos a manobrar a corda, e meia hora depois já havíamos     descido mais duzentos pés.

Não sei se um geólogo fanático teria tentado estudar     durante a descida a natureza dos terrenos que o rodeavam. Eu nem me preocupei     com isso; pouco me importava que fossem pliocenos, miocenos, eocenos, cretáceos,     jurássicos, triássicos, permianos, carboníferos, devonianos,     silurianos ou primitivos. Mas com certeza o professor examinou-os ou tomou     nota, pois, numa das paradas, disse-me: - Quanto mais desço, mais tenho     fé. A disposição desses terrenos vulcânicos dá     toda a razão à teoria de Davy. Estamos em pleno solo primordial,     no qual aconteceu a operação química dos metais em chamas     em contato com o ar e a água. Rejeito totalmente o sistema de um calor     central. Aliás, logo poderemos constatá-lo.

Sempre a mesma conclusão. Dá para entender que eu não     visse a menor graça em discutir. Meu silêncio foi considerado     um assentimento e recomeçamos a descer.

Ao final de três horas, ainda não enxergava o fundo da chaminé.     Quando levantava a cabeça, via seu orifício diminuindo sensivelmente.     Em decorrência da leve inclinação, suas paredes tendiam     a aproximar-se. Estava cada vez mais escuro.

Continuávamos descendo. Parecia-me que as pedras que caíam     das paredes desapareciam com uma repercussão mais suave e que estavam     chegando com rapidez ao fundo do abismo.

Como tinha o cuidado de examinar com exatidão nossas manobras com     a corda, sabia exatamente que profundidade havíamos atingido e quanto     tempo passara.

Repetíramos catorze vezes a manobra que durava meia hora.

Isso perfazia sete horas, mais catorze ou quinze minutos de descanso, ou     três horas e meia. Ao todo, dez horas e meia. Partíramos à     uma, deviam ser onze horas.

Quanto à profundidade que havíamos alcançado, essas     catorze manobras com uma corda de duzentos pés davam dois mil e oitocentos     pés.

Naquele momento, Hans falou: - Halt! Parei justamente quando meus pés     estavam por se chocar com a cabeça de meu tio.

- Chegamos - disse o último.

- Onde? - perguntei, escorregando para perto dele.

- No fundo da chaminé perpendicular.

- Não há outra saída? - Claro que há, uma espécie     de corredor que estou entrevendo, e que obliqua para a direita. Veremos isso     amanhã. Agora vamos jantar e dormir.

A escuridão ainda não era total. Abrimos a sacola de provisões,     comemos e tentamos nos acomodar da melhor forma possível numa cama     de pedras e detritos de lava.

E quando, deitado de costas, abri os olhos, vi um ponto brilhante na extremidade     daquele tubo de três mil pés de comprimento que se transformava     numa gigantesca luneta.

Era uma estrela sem qualquer cintilação, que, segundo meus     cálculos, devia ser Beta da Ursa Menor.

Adormeci profundamente.

XVIII

Às oito horas da manhã, fomos acordados por um raio de luz.     As mil facetas da lava das paredes recolhiam-no à sua passagem e distribuíam-no     como uma chuva de faíscas.

A claridade era forte o suficiente para que distinguíssemos os objetos     que nos rodeavam.

- Então, Axel, o que você me diz de tudo isso? - exclamou meu     tio, esfregando as mãos. - Você já passou uma noite tão     tranqüila assim em nossa casa da Königstrasse? Nada de barulho de     charretes, nada de gritos dos comerciantes nem vociferações     dos barqueiros! - É verdade que tudo está bem calmo no fundo     desse poço, mas essa calma tem algo de assustador.

- Vamos - gritou meu tio -, guarde seu medo para mais tarde. Só penetramos     uma polegada nas entranhas da terra! - O que o senhor quer dizer com isso?     - Que alcançamos apenas o solo da ilha. Esse longo tubo vertical que     dá na cratera do Sneffels termina mais ou menos no nível do     mar.

- O senhor tem certeza? - Absoluta. Consulte o barômetro.

De fato, após ter voltado a subir no instrumento à medida     que descíamos, o mercúrio parara em vinte e nove polegadas.

- Como você vê - continuou o professor -, só temos ainda     a pressão de uma atmosfera, e estou impaciente para que o manômetro     substitua o barômetro.

O instrumento iria tornar-se realmente inútil assim que o peso do     ar ultrapassasse sua pressão, calculada no nível do oceano.

- Mas essa pressão sempre crescente não pode se tornar penosa?      - Não. Estamos descendo lentamente, e nossos pulmões irão     acostumar-se a respirar uma atmosfera mais comprimida. Falta ar aos aeronautas     que sobem alto demais nas camadas superiores.

Nós teremos provavelmente ar demais. Prefiro assim. Não percamos     mais tempo. Onde está o pacote que nos precedeu? Lembrei-me então     que o procuráramos em vão na véspera à noite.     Meu tio fez a mesma pergunta a Hans, que, após ter perscrutado com     seus olhos de caçador, respondeu: - Der huppe! - Lá em cima.

De fato, o pacote ficara pendurado numa saliência de rocha, cerca     de cem pés acima de nós. Imediatamente o ágil islandês     subiu até lá como um gato. e em poucos minutos o pacote estava     ao nosso lado.

- Agora - disse meu tio - comamos, mas comamos como pessoas que podem ter     uma longa jornada pela frente.

O biscoito e a carne seca foram regados com alguns goles de água     com genebra.

Terminada a refeição, meu tio tirou do bolso um bloco destinado     às observações; pegou sucessivamente seus vários     instrumentos e anotou os seguintes dados:

Segunda-feira, 1º de julho Cronômetro: 8hr7min da manhã     Barômetro: 29 p. 7 l.

Termômetro: 6" Direção: L-S-L

A última observação concernia à galeria obscura     e foi indicada pela bússola.

- Agora, Axel - exclamou o professor com entusiasmo -, vamos embrenhar-nos     de verdade nas entranhas do globo. É nesse preciso momento que nossa     viagem vai começar.

Com essas palavras, meu tio pegou com uma mão o aparelho de Ruhmkorff     pendurado em seu pescoço; com a outra, provocou o contato da corrente     elétrica com a serpentina da lanterna, e uma luz bastante viva dissipou     as trevas da galeria.

Hans carregava o segundo aparelho, igualmente ativado. Essa aplicação     engenhosa da eletricidade permitia-nos caminhar por muito tempo, criando um     dia artificial, mesmo no meio dos gases mais inflamáveis.

- Em frente! - ordenou meu tio.

Cada um de nós pegou seu fardo. Hans encarregou-se de empurrar o     pacote com as cordas e as roupas. Entramos na galeria, eu em terceiro lugar.

No momento de submergir naquele corredor estreito, ergui a cabeça     e vi, pela última vez, no final do tubo imenso, o céu da Islândia     "que jamais voltaria a ver".

Na última erupção de 1229, a lava abrira um caminho     para si por aquele túnel. Revestia o seu interior com um verniz espesso     e brilhante, onde a luz elétrica se refletia, tornando-se cem vezes     mais intensa.

O problema do percurso consistia em não escorregar depressa demais     por uma vertente com inclinação de mais ou menos quarenta e     cinco graus; felizmente algumas erosões, alguns inchaços faziam     as vezes de degraus, e nós só tínhamos de descer, deixando     nossas bagagens, amarradas a uma longa corda, caírem.

Mas aquilo que formava degraus para nossos pés, tornava-se estalactite     nas outras paredes. Porosa em alguns sítios, a lava apresentava pequenas     ampolas arredondadas: cristais de quartzo opacos, enfeitados por límpidas     gotas de vidro e suspensos na abóbada como lustres, pareciam acender-se     quando passávamos.

Era como se os espíritos do abismo estivessem iluminando seu palácio     para receber os hóspedes da terra.

- É maravilhoso! - gritei involuntariamente. - Meu tio, que espetáculo!     Veja os matizes da lava, que vão do vermelhoamarronzado ao amarelo-brilhante     através de graduações insensíveis! E esses cristais     que parecem globos luminosos! - Ah, finalmente você está entrando     no espírito da expedição! - respondeu meu tio. - Se você     já acha isso maravilhoso, imagine o resto! Vamos, vamos! Deveria ter     dito "escorreguemos", pois largávamos nossos corpos pelas     vertentes inclinadas. Era a Facilis descensus Averni de Virgílio. A     bússola, que eu consultava com freqüência, indicava a direção     sudeste com um rigor imperturbável. Aquela corrente de lava não     obliquava nem numa direção nem noutra. Tinha a inflexibilidade     da linha reta.

Entretanto, o calor não aumentara de maneira sensível. O que     dava razão às teorias de Davy, e por mais de uma vez consultei     o termômetro com surpresa. Duas horas depois da partida, continuava     marcando dez graus, ou seja, um aumento de quatro graus, o que me autorizava     a pensar que nossa descida era mais horizontal do que vertical. Quanto a saber     exatamente a nossa profundidade, nada mais fácil, o professor media     exatamente os ângulos de desvio e de inclinação do percurso,     mas guardava para si o resultado de suas observações. Por volta     de oito horas da noite, mandou que parássemos. Hans sentou-se imediatamente.

Penduramos as lâmpadas numa saliência de lava. Estávamos     numa espécie de caverna onde não faltava ar. Muito pelo contrário.

Éramos atingidos por certos sopros. O que os produzia? A que agitação     atmosférica atribuir sua origem? Era um problema que não tentava     resolver naquele momento. A fome e o cansaço tornavam-me incapaz de     raciocinar. Não é possível descer por sete horas consecutivas     sem gastar energia. Eu estava exausto. Foi com grande prazer, portanto, que     ouvi a ordem de parada. Hans espalhou algumas provisões sobre um bloco     de lava, e todos comemos com apetite. Havia algo que me preocupava: já     consumíramos metade de nossa reserva de água. Meu tio contava     reabastecer-se nas nascentes subterrâneas, mas até então     não havíamos encontrado nenhuma. Não consegui evitar     chamar sua atenção para o problema.

- Essa ausência de nascentes o surpreende? - disse ele.

- Claro, e até me preocupa. Só temos água para mais     cinco dias.

- Fique tranqüilo, Axel, garanto-lhe que encontraremos água     e muito mais do que necessitamos.

- Quando? - Assim que saírmos desse invólucro de lava. Como     você quer que as nascentes jorrem através dessas paredes? - E     se essa corrente se prolongar por muito tempo? Parece que ainda não     descemos muito na vertical.

- Por que essa suspeita? - Porque, se tivéssemos avançado     bastante para dentro da crosta terrestre o calor seria mais forte.

- Segundo a sua opinião - respondeu meu tio. - Qual a temperatura     que o termômetro está indicando? - Apenas quinze graus, o que     indica que a temperatura só aumentou nove graus desde a nossa partida.

- Conclua.

- Eis a minha conclusão. De acordo com as observações     mais precisas, a temperatura aumenta um grau a cada cem pés no interior     do globo. Mas algumas condições de localidade podem modificar     esses números. Assim, em Iacusca, na Sibéria, observou-se que     a temperatura aumentava um grau a cada trinta e seis pés. É     claro que essa diferença depende da condutibilidade das rochas. Acrescentaria     também que, nas proximidades de um vulcão extinto e através     do gnaisse, observou-se que a temperatura aumentava apenas um grau a cada     cento e vinte e cinco pés.

Tomemos, portanto, essa última hipótese, que é a mais     favorável, e façamos nossos cálculos.

- Calcule, meu filho.

- Nada mais fácil - disse, dispondo os números em meu caderninho:      - nove vezes cento e vinte e cinco pés dá mil cento e vinte     e cinco pés de profundidade.

- Corretíssimo.

- E então? - Então que, segundo minhas observações,     já estamos a dez mil pés abaixo do nível do mar.

- Seria possível? - Claro, ou os números não são     mais números! Os cálculos do professor estavam corretos. Já     ultrapassáramos em seis mil pés as maiores profundezas alcançadas     pelo homem, como as minas de Kitz-Bahl, no Tirol, e as de Württemberg,     na Boêmia.

A temperatura, que deveria ser de oitenta e um graus naquele lugar, era     de apenas quinze. O que provocava reflexões.

XIX

No dia seguinte, terça-feira, 30 de junho, recomeçamos a descer.

Continuávamos a seguir a galeria de lava, verdadeira rampa natural,     suave como os planos inclinados que ainda substituem as escadas nas velhas     casas. Isso até meio-dia e dezessete, instante preciso em que nos reunimos     a Hans, que acabara de parar.

- Ah! - exclamou meu tio. - Chegamos à extremidade da chaminé.

Olhei ao meu redor. Estávamos no centro de uma encruzilhada, onde     terminavam dois caminhos, ambos escuros e estreitos.

Por qual deveríamos seguir? Era difícil resolver.

Meu tio, entretanto, não quis parecer hesitante diante de mim ou     do guia; designou o túnel do leste, e logo estávamos os três     dentro dele.

Além disso, qualquer hesitação diante dos dois caminhos     teria se prolongado indefinidamente, pois nenhum indício poderia determinar     a opção por um ou por outro. Tínhamos de colocar-nos     nas mãos do acaso.

A inclinação da nova galeria era pouco sensível, e     seu perfil bastante desigual. Por vezes, uma sucessão de arcos de abóbada     desenvolvia-se diante de nós como nas naves de uma catedral gótica.     Os artistas da Idade Média teriam podido estudar ali todas as formas     daquela arquitetura religiosa cujo gerador é a ogiva.

Um pouco além, tivemos de nos inclinar para atravessar os arcos rebaixados     de estilo romano, e grandes pilares encastrados no maciço dobravam-se     sobre o assento das abóbadas. Em certos trechos, essa disposição     era substituída por substrucções baixas, que pareciam     obras de castores, e rastejávamos por passagens estreitas. O calor     era suportável. Involuntariamente pensava em sua intensidade quando     as lavas vomitadas pelo Sneffels precipitavam-se por aquele caminho hoje tão     tranqüilo. Imaginava as torrentes de fogo quebradas pelos ângulos     da galeria e o acúmulo de vapores superaquecidos naquele ambiente tão     estreito! "Contanto que o velho vulcão não resolva se recuperar",     pensava.

Não comuniquei minhas reflexões ao tio Lidenbrock, que não     as compreenderia. Seu único pensamento era seguir em frente.

Caminhava, escorregava e até descambava, com a convicção     de que, afinal de contas, era melhor admirar.

Às seis da tarde, após um passeio um tanto extenuante, havíamos     percorrido mais duas milhas para o sul, mas só descêramos um     quarto de légua em profundidade.

Meu tio deu o sinal de descanso, comemos sem conversar muito, e dormimos     sem pensar demais.

Nossas disposições para a noite eram bem simples; um cobertor     de viagem, no qual nos enrolávamos, era toda a nossa roupa de cama.     Não tínhamos por que temer o frio ou visitas inoportunas. Os     viajantes que se embrenham pelos desertos da África, ou pelas florestas     do Novo Mundo, são obrigados a montar guarda durante as horas de sono.     Aqui, solidão absoluta e segurança completa. Não precisávamos     ter medo de nenhuma raça malfeitora, selvagem ou de animais ferozes.

No dia seguinte, acordamos restabelecidos e dispostos. Continuamos a andar.     Seguíamos por um caminho de lava como na véspera. Impossível     reconhecer a natureza dos terrenos que atravessava. Em vez de penetrar nas     entranhas do globo, o túnel tendia a ficar completamente horizontal.     Achei que estávamos voltando para a superfície da terra. Essa     disposição tornou-se tão manifesta por volta das dez     da manhã, e, conseqüentemente tão cansativa, que fui obrigado     a moderar nossa marcha.

- O que houve, Axel? - perguntou o professor, impaciente.

- Acontece que não agüento mais - respondi.

- O quê! Depois de três horas de passeio num caminho tão     fácil! - Não estou dizendo que não é fácil,     mas é extenuante.

- Como! Estamos descendo! - Se o senhor me permite, estamos subindo! - Subindo!     - resmungou meu tio dando de ombros.

- É claro! Faz uma meia hora que as inclinações se     modificaram, e se continuarem assim, com certeza voltaremos à terra     da Islândia.

O professor abanou a cabeça como alguém que não quer     ser convencido. Tentei reencetar a conversa. Ele não me respondeu e     deu o sinal de partida. Reparei que seu silêncio não passava     de mau humor concentrado.

Peguei meu fardo com coragem e segui com rapidez atrás de Hans, que     precedia meu tio. Fazia questão de não me afastar.

Minha grande preocupação era não perder meus companheiros     de vista. Tremia ao pensamento de extraviar-me nas profundezas daquele labirinto.

Além disso, embora o caminho ascendente se tornasse mais penoso,     consolava-me pensar que me aproximava da superfície da terra. Era uma     esperança. Cada passada confirmava-o, e gozava antecipadamente a idéia     de rever minha pequena Grauben.

Ao meio-dia, as paredes da galeria mudaram de aspecto, o que percebi pelo     enfraquecimento da luz elétrica refletida nas muralhas. A rocha viva     substituía o revestimento de lava. O maciço era composto de     camadas inclinadas, geralmente dispostas na vertical. Estávamos em     plena época de transição, em pleno período siluriano.

- É evidente - exclamei - que os sedimentos das águas formaram,     na segunda era da Terra, esses xistos, esses calcários e esses grés!     Estamos deixando o maciço granítico! Parecemos com as pessoas     de Hamburgo que pegam a estrada de Hanôver para ir a Liebeck! Devia     ter guardado essas observações para mim. Mas meu temperamento     de geólogo foi maior que a prudência, e o tio Lidenbrock ouviu     minhas exclamações.

- O que há com você? - perguntou.

- Veja! - respondi, mostrando-lhe a sucessão variada de grés,     calcários e os primeiros vestígios dos terrenos cobertos de     ardósia.

- E daí? - Acabamos de chegar ao período em que apareceram     as primeiras plantas e os primeiros animais! - Ah, você acha? - Mas     olhe, examine, observe! Obriguei o professor a passear sua lanterna pelas     paredes da galeria. Esperava que exclamasse algo. Mas ele nada disse e continuou     a andar.

Será que me entendera? Será que não queria concordar     por amor-próprio de tio e cientista que errara ao optar pelo túnel     do leste, ou insistia em reconhecer aquela passagem até o fim? Era     evidente que abandonáramos a rota das lavas e que aquele caminho não     nos levaria ao centro do Sneffels.

No entanto, perguntava-me se não estava dando importância demais     à modificação dos terrenos. Não estava enganando     a mim mesmo? Será que estávamos realmente atravessando as camadas     de rocha sobrepostas ao maciço granítico? "Se eu tiver     razão", pensava, "tenho de encontrar algum vestígio     de planta primitiva; e então ele terá de dar o braço     a torcer.

Vou procurar".

Não andara nem cem passos quando encontrei provas incontestáveis.     Era isso mesmo, pois, na época siluriana, os mares abrigavam mais de     mil e quinhentas espécies vegetais ou animais.

Acostumados com o solo duro das lavas, meus pés pisaram de repente     numa poeira composta de restos de plantas e conchas.

Nas paredes, distinguiam-se claramente marcas de algas e licopódios.     Não enganariam o professor Lidenbrock. Mas acho que ele não     queria ver e prosseguia num passo invariável.

Era teimosia demais. Não consegui mais me conter. Peguei uma concha     em perfeito estado, que provavelmente pertencera a um animal semelhante ao     bicho-de-conta atual, fui até meu tio e disse: - Veja! - O que é     que tem? - respondeu tranqüilamente. - É a concha de um crustáceo     da ordem desaparecida dos trilobites.

Nada além disso.

- Mas o senhor não conclui que...

- O mesmo que você? Claro. Sem dúvida. Abandonamos a camada     de granito e o caminho das lavas. É possível que eu tenha me     enganado. Mas só terei certeza do meu erro quando chegarmos ao final     desta galeria.

- O senhor tem razão em agir dessa forma, meu tio, e eu não     hesitaria em aprová-lo se não tivéssemos de temer um     perigo cada vez mais ameaçador.

- Qual? - A falta de água.

- Muito bem. Racionaremos, Axel.

XX

De fato, foi preciso racionar. Na hora do jantar, percebi que nossas provisões     não durariam mais de três dias. E, terrível expectativa,     tínhamos pouca esperança de encontrar qualquer nascente naqueles     terrenos da época de transição.

Durante todo o dia seguinte, a galeria exibiu seus intermináveis     arcos. Caminhávamos sem dizer quase nada. Estávamos sendo possuídos     pelo mutismo de Hans.

A estrada não subia, pelo menos de forma sensível. Por vezes,     até parecia inclinar-se. Mas essa tendência, muito pouco marcada,     não poderia tranqüilizar o professor, pois a natureza das camadas     não estava se modificando, o que reafirmava o período de transição.

A luz elétrica fazia os xistos, o calcário e os velhos grés     vermelhos das paredes faiscarem com esplendor. Parecíamos estar num     fosso aberto em Devonshire, que deu seu nome a esse tipo de terreno. As muralhas     eram revestidas por magníficos gêneros de mármore, alguns     de um cinza-ágata com veios brancos caprichosamente nítidos,     outros encarnados ou de um amarelo manchado de vermelho; mais além,     amostras de mármore raiado de vermelho-escuro, no qual o calcário     se destacava em cores vivas.

A maioria desses mármores apresentava pegadas de animais primitivos.     A criação progredira de forma evidente desde a véspera.     Em vez de trilobites rudimentares, eu via vestígios de uma ordem mais     perfeita; entre outras coisas, peixes ganóides e Sauropteris, nos quais     a observação do paleontólogo soube descobrir as primeiras     formas dos répteis. Os mares devonianos eram habitados por um grande     número de animais daquela espécie, que foram depositados aos     milhares nas rochas de nova formação.

Tornava-se evidente que estávamos subindo a escala da vida animal,     cujo topo é ocupado pelo homem. Mas o professor Lidenbrock parecia     não tomar conhecimento do fato.

Esperava duas coisas: que um poço vertical se abrisse a seus pés     para permitir-lhe continuar descendo ou que um obstáculo o impedisse     de continuar por aquele caminho. Porém, a noite chegou sem que nenhum     desses desejos se tornasse realidade.

Na sexta-feira, após uma noite em que comecei a sentir os tormentos     da sede, nossa pequena tropa embrenhou-se de novo pelos labirintos da galeria.     Após dez horas de caminhada, percebi que a reverberação     das lâmpadas nas paredes diminuía singularmente. O mármore,     o xisto, o calcário e o grés das muralhas cediam lugar a um     revestimento escuro e sem brilho. Num momento em que o túnel se tornara     muito estreito, encostei-me na parede da esquerda.

Quando retirei a mão, ela estava completamente negra. Olhei com mais     atenção. Estávamos em plena hulheira.

- Uma mina de carvão! - gritei.

- Uma mina sem mineiros - respondeu meu tio.

- Como pode saber? - Eu sei - replicou o professor num tom breve -, e estou     certo de que essa galeria perfurada através das camadas de hulha não     foi feita por homens. Mas pouco importa se foi construída ou não     pela natureza. Está na hora de jantar. Vamos comer.

Hans preparou a refeição. Mal comi e bebi as gotas de água     que compunham minha ração. O cantil do guia pela metade era     tudo o que restava para matar a sede de três homens.

Após terem comido, meus dois companheiros estenderam-se sobre seus     cobertores e encontraram no sono o remédio para seu cansaço.     Quanto a mim não consegui dormir e contei as horas até de manhã.

No sábado, às seis horas, começamos a caminhar. Vinte     minutos depois chegamos a uma ampla escavação. Reconheci então     que nenhuma mão humana poderia ter escavado aquela hulheira; teria     escorado as abóbadas, que só se sustentavam por um milagre de     equilíbrio.

Essa espécie de caverna tinha cem pés de largura por cento     e cinqüenta de altura. O terreno havia sido violentamente afastado por     uma comoção subterrânea. Cedendo a algum impulso poderoso,     o maciço terrestre deslocara-se, deixando aquele vasto vazio onde os     habitantes da terra penetravam pela primeira vez.

Toda a história do período hulheiro estava inscrita naquelas     paredes escuras, e um geólogo poderia acompanhar com facilidade as     diversas fases. Os leitos de carvão eram separados por extratos de     grés ou de argila compactos e como que esmagados pelas camadas superiores.

Nessa era do mundo que precedeu a era secundária, a Terra foi recoberta     por uma vegetação compacta em virtude do calor tropical e da     umidade persistente. Uma atmosfera de vapores envolvia todo o globo, escondendo     ainda os raios do sol.

Daí a conclusão de que as altas temperaturas não provinham     desse novo centro. Talvez até mesmo o astro dos dias não estivesse     pronto para desempenhar seu brilhante papel. Os "climas" ainda não     existiam, e um calor tórrido espalhava-se por toda a superfície     do globo, igual no equador e nos pólos. De onde vinha? Do interior     do globo.

A despeito das teorias do professor Lidenbrock, um fogo violento espalhava-se     pelas entranhas do esferóide; sua ação era sensível     até nas últimas camadas da crosta terrestre; privadas da ação     benéfica dos eflúvios do sol, as plantas não davam flores     nem perfumes, mas suas raízes extraíam muita vida dos terrenos     ardentes dos primeiros dias.

Havia poucas árvores, apenas plantas herbáceas, imensos gramados,     fetos, licopódios, sigilariáceas, asterofilitas, famílias     raras cujos espécimes contavam-se então aos milhares.

Ora, deve-se a origem do carvão a essa vegetação exuberante.

A crosta ainda elástica do globo obedecia aos movimentos da massa     líquida que recobria. Daí fissuras e desmoronamentos. Arrastadas     para baixo das águas, pouco a pouco formaram amontoamentos consideráveis.

Então interveio a ação da química natural; no     fundo do mar, as massas vegetais a princípio viraram turfa. Depois,     graças à influência dos gases e sob o fogo da fermentação,     sofreram uma mineralização completa.

Uma mina de carvão! -gritei.

Assim formaram-se as imensas camadas de carvão, que o consumo excessivo     deve, no entanto, esgotar em menos de três séculos se os povos     industriais não tomarem cuidado.

Refletia tudo isso enquanto considerava as riquezas em carvão acumuladas     naquela parte do maciço terrestre. Essas, com certeza, nunca seriam     exploradas, pois o aproveitamento daquelas minas afastadas exigiria sacrifícios     demais. Além disso, para quê, se a hulha ainda pode ser encontrada     na superfície da terra em um grande número de regiões?     Aquelas camadas intactas que eu via, assim permaneceriam até a última     hora do mundo.

Enquanto isso, caminhávamos, e, sozinho, esquecia-me do longo percurso     para perder-me em considerações geológicas.

A temperatura permanecia mais ou menos a mesma que a da nossa passagem entre     as lavas e xistos. Apenas meu olfato sentia um cheiro muito forte de protocarboneto     de hidrogênio.

Reconheci imediatamente naquela galeria a presença de uma notável     quantidade daquele fluido perigoso, chamado de grisu pelos mineiros, e cuja     explosão provocou tantas vezes terríveis catástrofes.

Felizmente nosso caminho era iluminado pelos engenhosos aparelhos de Ruhmkorff.     Se, por azar, tivéssemos descido àquelas galerias com tochas,     uma terrível explosão acabaria a viagem, suprimindo os viajantes.

A excursão na hulheira durou até à noite. Meu tio mal     continha a impaciência, provocada pela horizontalidade da estrada. As     trevas sempre profundas a vinte passos, impediam-nos de estimar o comprimento     da galeria, e eu começava a acreditar que não terminaria nunca     quando, de repente, às seis horas, deparamos com um muro. Nenhuma passagem     pela direita, pela esquerda, por cima ou por baixo. Chegáramos a um     beco sem saída.

- Melhor assim - exclamou meu tio -, agora sei em que me basear. Não     estamos no caminho de Saknussemm, e a única alternativa é voltar     atrás. Descansemos por uma noite, e em três dias estaremos de     volta ao ponto em que as duas galerias se bifurcam.

- Sem dúvida, se nos restarem forças! - E por que não?      - Por que amanhã já não haverá mais água.

- E nem coragem? - disse o professor, olhando para mim com severidade.

Não ousei responder-lhe.

XXI

No dia seguinte, partimos cedinho. Tínhamos de andar depressa, pois     estávamos a cinco dias de marcha da encruzilhada.

Não detalharei os sofrimentos de nossa volta. Meu tio os suportou     com a raiva de um homem que não se sente o mais forte. Hans, com a     resignação de sua natureza pacífica, e eu, confesso,     lamentando-me e desesperando-me; não conseguia ter coragem em meio     a tanto azar.

Como eu previra, a água acabou no final do primeiro dia de caminhada.     Nossa provisão líquida reduziu-se então à genebra,     mas o licor infernal queimava a garganta, e eu nem agüentava mais vê-lo.     Achava sua temperatura sufocante. O cansaço paralisava-me. Por mais     de uma vez quase caí, inerte. Então parávamos; meu tio     ou o islandês reconfortavam-me como podiam. Mas já constatava     que o primeiro reagia penosamente contra a fadiga extrema e as torturas da     privação da água.

Finalmente, na terça-feira, 7 de julho, arrastando-nos de joelhos,     de quatro, chegamos semimortos ao ponto de encontro das duas galerias. Lá     permaneci como uma massa inerte, estendido no chão de lava. Eram dez     horas da manhã.

Encostados na parede, Hans e meu tio tentaram mastigar alguns pedaços     de biscoito. Seus lábios intumescidos soltavam longos gemidos. Caí     desmaiado.

Depois de algum tempo, meu tio aproximou-se de mim e ergueu-me em seus braços:      - Pobre criança - murmurou, num tom de piedade.

Não estava habituado à ternura do selvagem professor; senti-me     tocado por suas palavras. Tomei suas mãos trêmulas entre as minhas.     Ele as abandonou, olhando-me. Seus olhos estavam úmidos. Então     vi que pegava o cantil pendurado em seu ombro.

Para meu grande estupor, aproximou-o de meus lábios.

- Beba - disse.

Será que eu tinha ouvido bem? Meu tio estava louco? Olhei-o com um     ar embrutecido. Não queria compreendê-lo.

- Beba - repetiu.

E, erguendo o cantil, esvaziou-o inteiro entre meus lábios Oh, gozo     infinito! Um gole de água umedeceu minha boca em fogo, só um,     mas foi suficiente para trazer-me de volta à vida que se esvaía.

Agradeci a meu tio unindo as mãos.

- Sim - disse ele -, um gole de água, o último! Você     está ouvindo? O último! Guardei-o com todo o cuidado no fundo     de meu cantil. Por vinte, cem vezes tive de resistir ao terrível desejo     de bebê-lo! Mas não, Axel, estava reservado para você!      - Tio! - murmurei, enquanto meus olhos se enchiam de lágrimas.

- Sim, pobre criança, sabia que, ao chegar nessa encruzilhada, você     cairia, semimorto, e guardei minhas últimas gotas de água para     reanimá-lo.

- Obrigado, obrigado! - exclamei.

Embora ainda estivesse com sede, recuperei-me um pouco. Os músculos     de minha garganta, contraídos até então, relaxaram, e     a inflamação de meus lábios passou a doer menos. Já     conseguia falar.

- Bem - disse -, só nos resta um caminho. Estamos sem água.     Temos de voltar atrás.

Enquanto eu falava, meu tio evitava me olhar; baixava a cabeça; seus     olhos fugiam dos meus.

- Temos de voltar - gritei -, voltar ao topo do Sneffels.

Que Deus nos dê forças para conseguir subir até o alto     da cratera! - Voltar! - murmurou meu tio, como se respondesse mais a si mesmo     do que a mim.

- Sim, voltar e sem perder nem um instante.

Seguiu-se um momento de silêncio bastante longo.

- Então, Axel - volveu o professor num tom estranho, essas poucas     gotas de água não lhe devolveram a coragem e a energia? - Coragem!      - Vejo que está abatido como antes e que ainda fala com desespero!     Com que tipo de homem eu estava lidando e quais os projetos de seu espírito     audacioso? - O quê? O senhor quer continuar? - Desistir desta expedição     quando tudo indica que ela pode dar certo? Nunca! - Então devo resignar-me     a perecer? - Não, Axel, não! Não quero que você     morra! Hans vai acompanhá-lo. Deixe-me sozinho! - Abandoná-lo!      - Deixe-me, eu estou dizendo! Comecei esta viagem e irei até o fim,     mesmo que não volte nunca mais. Vá, Axel, vá embora!     Meu tio parecia extremamente excitado. Sua voz, por um momento suave, voltava     a ser dura, ameaçadora. Lutava contra o impossível com uma energia     tenebrosa! Não queria abandoná-lo no fundo daquele abismo, mas,     por outro lado, o instinto de conservação dizia-me para fugir.

O guia acompanhava a cena com sua indiferença costumeira, mesmo entendendo     o que acontecia entre seus dois companheiros.

Nossos gestos eram mais do que suficientes para indicar que queriamos arrastar     um ao outro para caminhos opostos; Hans, porém, parecia pouco interessado     naquele problema que colocava sua vida em risco, pronto para partir se déssemos     o sinal de partida, pronto para ficar se seu patrão quisesse.

O que eu não daria naquele momento para que ele me compreendesse!     Minhas palavras, meus gemidos, meu tom teriam convencido aquela natureza fria.     Eu teria feito com que entendesse e sentisse os perigos de que mal suspeitava.     Talvez nós dois conseguíssemos convencer o teimoso professor.     Se houvesse necessidade, obrigá-lo-íamos a voltar ao topo do     Sneffels! Aproximei-me de Hans. Pousei minha mão sobre a sua. Ele não     se mexeu. Mostrei-lhe o caminho da cratera. Continuou imóvel. Meu rosto     ofegante falava de todos os meus sofrimentos. O islandês abanou a cabeça     com suavidade, designando meu tio com tranqüilidade.

- Master - murmurou - Patrão! - gritei. - Louco! Não, ele     não é o senhor de sua vida! É preciso fugir! É     preciso arrastá-lo! Você está me ouvindo? Dá para     você me entender? Peguei Hans pelo braço. Queria obrigá-lo     a levantar-se. Lutei com ele. Meu tio interveio.

- Calma, Axel - disse. - Você nada conseguirá desse servidor     impassível. Escute a minha proposta.

Cruzei os braços e encarei meu tio.

- A falta de água - disse - é o único obstáculo     à realização de meus projetos. Na galeria leste, feita     de lavas, xistos e hulha, não encontramos uma molécula líquida.     Talvez tenhamos mais sorte no túnel oeste.

Abanei a cabeça com ar de profunda incredulidade.

- Escute-me até o fim - continuou o professor, forçando a     voz. - Enquanto você jazia aqui sem movimento, fui examinar a conformação     da segunda galeria. Ela penetra nas entranhas do globo e, em poucas horas,     será capaz de levar-nos ao maciço granítico, onde deveremos     encontrar muitas nascentes. Esse fato é determinado pela natureza da     rocha, e o instinto está de acordo com a lógica para sustentar     minha convicção. Eis o que quero propor-lhe. Quando Colombo     pediu três dias à sua tripulação para encontrar     novas terras, sua tripulação doente, apavorada aquiesceu a seu     pedido, e ele descobriu o novo mundo. Eu, o Colombo destas regiões     subterrâneas, só lhe peço mais um dia. Se, passado esse     prazo ainda não tiver encontrado água, juro-lhe, voltaremos     à superfície da terra.

A despeito de minha irritação, fiquei comovido com essas palavras     e com a violência de meu tio contra si mesmo para falar daquela forma.

- Muito bem - exclamei -, que seja feita a sua vontade e que Deus recompense     sua energia sobre-humana! O senhor só tem mais algumas horas para tentar     a sorte. Em frente!

XXII

Desta vez, recomeçamos a descer pela outra galeria. Hans ia na frente,     como sempre. Havíamos andado menos de cem passos, quando o professor,     passeando sua lâmpada pelas muralhas, exclamou: - Aqui estão     os terrenos primitivos! Estamos no caminho certo! Vamos, vamos! Quando a Terra     resfriou gradualmente nos primeiros dias do mundo, a diminuição     de seu volume produziu na crosta deslocamentos, rupturas, contrações     e fendas. O corredor em que estávamos era uma fissura desse tipo, pela     qual se espalhava outrora o granito eruptivo. Seus mil desvios formavam um     labirinto inextrincável através do solo primordial.

À medida que descíamos, a sucessão de camadas que compunham     o terreno primário aparecia com maior nitidez. A ciência geológica     considera esse terreno primitivo como a base da crosta mineral, e reconheceu     que é composta de três camadas diferentes, os xistos, os gnaisses,     os micaxistos, que repousam sobre a rocha inabalável que chamamos de     granito.

Ora, nunca um mineralogista encontrou-se em circunstâncias tão     fantásticas para estudar a natureza in loco. Iríamos estudar     com nossos olhos, tocar com nossas mãos aquilo que a sonda, máquina     inteligente e brutal, não podia transportar de sua textura interna     para a superfície do globo.

Pela espécie dos xistos, coloridos de belos matizes verdes, serpenteavam     veios metálicos de cobre, de manganês com alguns vestígios     de ouro e platina. Pensava naquelas riquezas escondidas nas entranhas do globo,     de que a humanidade ávida jamais gozaria! As perturbações     dos primeiros dias enterraram aqueles tesouros tão profundamente que     nunca as pás ou as picaretas conseguirão arrancá-los     de seus túmulos.

Os xistos foram substituídos por gnaisses de estrutura estratiforme,     admiráveis pela regularidade e pelo paralelismo de suas folhas, depois     por micaxistos dispostos em grandes lamelas realçadas pelas cintilações     da mica branca.

A luz dos aparelhos, refletida pelas pequenas facetas da massa rochosa,     cruzava seus jatos de fogo sob todos os ângulos, e eu sentia estar viajando     por um diamante oco, no qual os raios se quebravam em mil cintilações.

Por volta das seis horas, essa festa de luz diminuiu sensivelmente, quase     cessou; as paredes assumiram um matiz cristalizado mas escuro; a mica misturou-se     mais intimamente com o feldspato e o quartzo para formar a rocha por excelência,     a pedra mais dura de todas, a que suporta, sem ser esmagada, os quatro andares     de terrenos do globo. Estávamos murados na imensa prisão de     granito.

Eram oito da noite. Ainda não havíamos encontrado água.

Eu sofria terrivelmente. Meu tio ia na frente. Não queria parar.

Aguçava os ouvidos para surpreender os murmúrios de alguma     fonte. Mas nada! Minhas pernas recusavam-se a carregar-me. Resistia às     minhas torturas para não obrigar meu tio a parar. Teria sido desesperador     para ele, pois o último dia que lhe pertencia estava acabando.

Finalmente, as forças abandonaram-me. Dei um grito e caí.

- Socorro! Estou morrendo! Meu tio voltou. Considerou-me cruzando os braços.     Depois, saíram essas palavras surdas de seus lábios: - Está     tudo acabado! Vi um último e terrível gesto de raiva, e fechei     os olhos.

Quando voltei a abri-los, vi meus dois companheiros imóveis e enrolados     em seus cobertores. Será que estavam dormindo? Quanto a mim, não     consegui adormecer. Sofria demais, principalmente ao pensar que o meu mal     não tinha remédio. As últimas palavras de meu tio ressoavam     em meus ouvidos. "Está tudo acabado!", pois em tal estado     de fraqueza, nem dava para pensar em voltar à superfície do     globo.

Havia uma légua e meia de crosta terrestre! Parecia que essa massa     pesava, com todo o seu peso, sobre meus ombros. Sentia-me esmagado, e extenuava-me     em esforços violentos para virar-me em meu leito de granito.

Passaram-se algumas horas. Reinava um silêncio profundo ao nosso redor,     um silêncio sepulcral. Nada se ouvia através daquelas muralhas,     a mais fina com cinco milhas de espessura.

No entanto, em meio ao meu torpor, acreditei ter ouvido um ruído.     Estava muito escuro no túnel. Olhei com mais atenção     e achei ter visto o islandês desaparecer, lanterna na mão.

Por que estaria indo embora? Estaria nos abandonando? Meu tio dormia. Quis     gritar. A voz não conseguiu sair pelos meus lábios ressecados.     A escuridão tornara-se profunda, e os últimos ruídos     acabaram de se apagar.

- Hans está nos abandonando! - gritei - Hans! Hans! Gritava essas     palavras dentro de mim. Elas não conseguiam alcançar uma distância     maior. No entanto, após o primeiro instante de terror, tive vergonha     de minha suposição em relação a um homem que até     então não revelara qualquer comportamento suspeito. Sua partida     não podia ser uma fuga. Em vez de subir a galeria, descia. As más     intenções teriam-no conduzido para cima e não para baixo.     Esse raciocínio acalmou-me um pouco e passei para outra ordem de idéias.     Somente um motivo grave teria arrancado Hans, aquele homem tranqüilo,     de seu repouso. Estava partindo para uma descoberta. Teria ouvido na noite     silenciosa algum murmúrio que eu não percebera?

XXIII

Durante uma hora, fiquei imaginando em meu cérebro em delírio     todos os motivos possíveis para o ato do tranqüilo caçador.

As idéias mais absurdas confundiam-se em minha cabeça. Achei     que ia ficar louco! Mas finalmente ouvi um ruído no fundo do abismo.     Hans estava voltando. Uma luz incerta começara a insinuar-se pelas     paredes, desembocando depois pelo orifício do corredor. Hans apareceu.

Aproximou-se de meu tio, tocou seu ombro com a mão e acordou-o com     suavidade. Meu tio levantou-se.

- O que aconteceu? - murmurou.

- Vatten - respondeu o caçador.

Deve-se acreditar que, inspirado por sofrimentos violentos, todos se tornam     poliglotas. Não conhecia uma única palavra de dinamarquês,     mas instintivamente compreendi o que nosso guia estava dizendo.

- Água, água! - gritei, batendo as mãos, gesticulando     como um louco.

- Água! - repetiu meu tio. - Hvar? - perguntou ao islandês.

- Nedat - respondeu Hans.

Onde? Lá embaixo. Eu compreendia tudo. Pegara as mãos do caçador     e apertava-as, enquanto ele me olhava com calma.

Os preparativos para a partida não demoraram, e logo caminhávamos     por um corredor cuja inclinação chegava a dois pés por     toesa.

Uma hora depois, andáramos mil toesas e descêramos dois mil     pés.

Naquele momento, ouvi distintamente um som inabitual correr pelos flancos     da muralha granítica, uma espécie de mugido surdo, como o de     uma tempestade distante. Como durante a primeira meia hora de caminhada não     encontráramos a fonte anunciada, comecei a sentir-me novamente angustiado,     mas meu tio indicou-me a origem dos ruídos.

- Hans não se enganou - disse. - Isso que você está     ouvindo é o mugido de uma torrente.

- Uma torrente? - exclamei.

- Não há mais dúvidas. Um rio subterrâneo circula     ao nosso redor.

Apressamos o passo, excitados pela esperança. Já não     sentia mais o cansaço. Aquele ruído de água murmurante     já me refrescava. Aumentava sensivelmente. Após ter-se sustentado     por um período acima de nossas cabeças, agora a torrente corria     pela parede da esquerda, mugindo e saltando. Eu ficava passando a mão     na rocha, esperando encontrar vestígios de ressudação     ou umidade, mas em vão. Mais meia hora se passou. Transpusemos mais     meia légua.

Tornou-se então evidente que, em sua ausência, o caçador     não pudera prolongar suas pesquisas para além daquele ponto.

Guiado por um instinto próprio aos montanheses e hidróscopos,     "sentira" a torrente através da rocha, mas com certeza não     vira o precioso líquido; não desalterara.

Também logo constatamos que, se continuássemos a andar, iríamos     afastar-nos da corrente, cujo murmúrio tendia a diminuir.

Recuamos. Hans parou no ponto preciso em que a corrente parecia mais próxima.

Sentei-me perto da muralha, enquanto as águas corriam a dois pés     de mim com extrema violência. Mas ainda estávamos separados delas     por uma parede de granito.

Sem refletir ou perguntar-me se não existiria algum meio de obter     aquela água, deixei-me levar por um primeiro momento de desespero.     Hans olhou para mim, e acreditei ter visto um sorriso em seus lábios.

Ele levantou-se e pegou a lâmpada. Acompanhei-o. Dirigiu-se para a     muralha. Fiquei olhando para ele. Ele colou sua orelha na pedra e passeou-a,     ouvindo com muito cuidado. Compreendi que estava procurando o ponto em que     a torrente fazia mais barulho. Encontrou-o na parede lateral da esquerda,     três pés acima do chão.

Como eu estava emocionado! Nem ousava adivinhar o que o caçador queria     fazer! Mas tive de compreendê-lo e aplaudi-lo, enchê-lo de carinho,     quando vi que pegava sua picareta para quebrar a própria rocha.

- Estamos salvos! - gritei.

- Sim - repetia meu tio em frenesi. - Hans tem razão! Ah, belo caçador.     Não teríamos encontrado isso! Com toda a certeza, por mais simples     que fosse esse meio, jamais teríamos tido essa idéia. Nada mais     perigoso do que uma picaretada naquela estrutura do globo. Quem poderia garantir     que não seríamos esmagados por algum desmoronamento? E se a     torrente que surgisse pela rocha provocasse uma inundação? Não     eram perigos imaginários. Contudo, naquele momento, o temor de desmoronamento     ou inundação não poderia nos deter, e nossa sede era     tão intensa que, para matá-la, teríamos escavado o próprio     leito do oceano.

Hans começou a executar o trabalho que nem eu nem meu tio teríamos     coragem de fazer. Levados pela impaciência, a rocha teria estourado     sob nossos golpes precipitados. Ao contrário, calmo e moderado, o guia     desgastou pouco a pouco o rochedo com uma série de picaretadas, cavando     uma abertura de seis polegadas.

Eu ouvia o barulho da torrente aumentar e já sentia a água     benéfica em meus lábios.

Logo a picareta penetrou dois pés na muralha de granito. O trabalho     durava mais de uma hora. Torcia-me de impaciência.

Meu tio quis empregar meios mais violentos. Foi difícil detê-lo,     e já pegara sua picareta quando ouvimos um assobio. Um jato de água     jorrou da muralha e foi quebrar-se na parede oposta.

Um tanto alterado pelo choque, Hans não conseguiu conter um grito     de dor. Consegui compreendê-lo quando mergulhei minhas mãos no     jato líquido. Também soltei uma exclamação violenta.     A água da fonte estava fervendo! - Agua a cem graus! - exclamei.

- Esfriará - respondeu meu tio.

O corredor enchia-se de vapores, enquanto se formava um riacho que ia perder-se     nas sinuosidades subterrâneas; logo tomávamos o primeiro gole.

Ah! Que prazer! Que voluptuosidade incomparável! O que era aquela     água? De onde vinha? Não tinha nenhuma importância.

Era água e, embora ainda quente, trazia de volta ao coração     a vida que lhe fugia. Bebi sem parar, sem nem mesmo degustar.

Somente depois de um minuto de deleite exclamei: - Mas é água     ferruginosa! - É excelente para o estômago - replicou meu tio      -, pois contém um alto grau de mineralização! Essa viagem     acabou valendo por uma estação de águas em Spa ou Toeplitz!      - Ah, como é bom! - Com toda a certeza, uma fonte a duas léguas     sob a terra! Tem um gosto de tinta nada desagradável. Que bela nascente     Hans descobriu para nós! Proponho seu nome para esse saudável     riacho.

- Concordo! - exclamei.

E adotamos imediatamente o nome de "Hans Bach".

Hans não demonstrou maior orgulho. Após ter saciado a sede     com moderação, encostou-se num canto com sua calma habitual.

- Agora - disse -, não devemos deixar que essa água se perca.

- Para quê? - respondeu meu tio. - Acho que a nascente é inesgotável.

- De qualquer modo, vamos encher nossos cantis e depois tentaremos tampar     a abertura.

Meus companheiros acataram meu conselho. Em meio aos estouros de granito     e estopa, Hans tentou obstruir o entalhe na parede, o que não foi fácil.     Queimávamos a mão sem conseguir nada; a pressão era forte     demais, e nossos esforços foram em vão.

- É evidente que os lençóis superiores desse curso     de água localizam-se a uma grande altitude; como o seu jato é     forte! - comentei.

Com toda a certeza - replicou meu tio. - Se a coluna de água tiver     trinta e dois mil pés de altura, estamos diante de mil atmosferas de     pressão. Mas acabo de ter uma idéia.

- Qual? - Por que essa teima em tamparmos a abertura? - Porque...

Não consegui encontrar uma boa razão.

- Temos certeza de que encontraremos água quando nossos cantis estiverem     vazios? - É claro que não.

- Então deixemos essa água correr! Ela descerá naturalmente     e guiará aqueles que refrescará no caminho! - Que boa idéia!      - exclamei - e, com esse riacho por companheiro, não há mais     nenhum motivo para que nossos planos não dêem certo.

- Ah, você acaba de compreender tudo, meu caro - riu o professor.

- Não só compreendi, como também estou acompanhando     tudo.

- Um momento, antes de mais nada, descansemos por algumas horas.

Esquecera-me completamente de que era noite. O cronômetro encarregou-se     de informar-me. Logo todos nós, suficientemente refeitos e refrescados,     caímos num sono profundo.

XXIV

No dia seguinte, já havíamos esquecido nossos sofrimentos.

Surpreendia-me, antes de mais nada, não sentir mais sede e perguntava-me     por quê. O riacho que corria a meus pés em murmúrios encarregou-se     de responder-me.

Depois do desjejum, bebemos aquela excelente água ferruginosa.

Sentia-me reanimado e decidido a ir longe. Por que um homem convicto como     meu tio não obteria êxito com um guia esperto como Hans e um     sobrinho "determinado" como eu? Que idéias e tanto percorriam     minha mente! Se me propusessem voltar ao cimo do Sneffels, negar-me-ia a fazê-lo     com indignação.

Felizmente, era só uma questão de descer.

- Vamos! - gritei, acordando os velhos ecos do globo com minha voz entusiasmada.

Recomeçamos a andar na quinta-feira, às oito horas da manhã.

O corredor de granito, cheio de desvios sinuosos, apresentava cotovelos     inesperados e parecia um labirinto; mas, em suma, sua direção     principal era sempre sudeste. Meu tio não parava de consultar a bússola     com o maior cuidado para saber exatamente para onde estávamos indo.

A galeria embrenhava-se quase horizontalmente, com duas polegadas de inclinação     por toesa no máximo. O riacho corria sem precipitação,     murmurando a nossos pés. Comparava-o a um espírito familiar     que nos guiava pela terra e acariciava com a mão a tépida náiade     cujos cantos acompanhavam nossos passos.

Meu bom humor assumia cada vez mais feições mitológicas.

Meu tio já praguejava contra a horizontalidade da estrada, ele, "homem     das verticais". Seu caminho prolongava-se indefinidamente e, em vez de     escorregar ao longo do raio terrestre, seguia, de acordo com o que dizia,     pela hipotenusa. Mas não tínhamos escolha e por menos que avançássemos     em direção ao centro, não tínhamos do que nos     queixar.

Além disso, de vez em quando as inclinações tornavam-se     mais íngremes; a náiade começava a descambar mugindo,     e nós afundávamos com ela.

Em suma, naquele dia e no dia seguinte, percorremos uma boa distância     horizontal e relativamente pouco caminho vertical.

De acordo com as estimativas, na sexta-feira à noite, 10 de julho,     devíamos estar trinta léguas a sudoeste de Reykjavik e a uma     profundidade de duas léguas e meia.

Abriu-se, então, sob nossos pés, um poço bastante assustador.

Meu tio não conseguiu evitar aplaudir depois de calcular o declive     de suas vertentes.

- Isso pode nos levar longe e com muita facilidade - gritou -, pois as saliências     da rocha formam uma verdadeira escada! Hans dispôs as cordas de forma     a prevenir qualquer acidente.

Começamos a descer. Não ouso chamar a descida de perigosa,     pois já estava familiarizado com aquele tipo de exercício.

O poço era uma fenda estreita no maciço do tipo a que chamamos     de "falha". Com certeza fora produzida pela contração     da estrutura terrestre na época de seu resfriamento. Se outrora servira     de passagem ao material eruptivo vomitado pelo Sneffels, não conseguia     encontrar qualquer explicação para o fato de não ter     deixado qualquer vestígio. Descíamos por uma espécie     de escada em caracol, que parecia ter sido feita pelo homem.

De quinze em quinze minutos, tínhamos de parar para descansar um     pouco para que as barrigas de nossas pernas voltassem à sua elasticidade     normal. Então sentávamos em qualquer saliência, as pernas     penduradas, conversávamos comendo e matávamos a sede no riacho.

Nem é preciso dizer que naquela falha o Hans Bach transformara-se     numa cascata em detrimento de seu volume; mas era mais do que suficiente para     matar nossa sede; além disso, nos declives menos íngremes, não     deixava de voltar ao seu curso tranqüilo. Naquele momento, lembrava-me     meu digno tio, com seus acessos de impaciência e de raiva, enquanto,     nas inclinações mais suaves, mantinha a calma do caçador     islandês.

Nos dias 11 e 12 de julho, seguimos as espirais da falha, penetrando mais     duas léguas na crosta terrestre, o que perfazia quase cinco léguas     abaixo do nível do mar. Mas no dia 13, por volta do meio-dia, a falha     assumiu na direção sudeste uma inclinação bem     mais suave, de cerca de quarenta e cinco graus. O caminho tornou-se então     fácil e muito monótono. Difícil ser de outra forma. A     viagem não podia ser variada pelos incidentes da paisagem.

Finalmente, na quarta-feira, 15 de julho, estávamos sete léguas     sob a terra e a mais ou menos cinqüenta léguas do Sneffels.

Embora um pouco cansados, o nosso estado de saúde era tranqüilizador;     ainda não tocáramos na nossa farmácia de viagem.

Meu tio anotava hora a hora as indicações da bússola,     do cronômetro, do manômetro e do termômetro, as que publicou     no relato científico de sua viagem. Era portanto fácil saber     exatamente nossa situação. Quando me disse que estávamos     a uma distância horizontal de cinqüenta léguas, não     pude conter uma exclamação.

- O que você tem? - perguntou.

- Nada, só estou pensando uma coisa.

- No quê, meu rapaz? - É que, se seus cálculos estão     corretos, não estamos mais sob a Islândia.

- Você acha? - É fácil verificar.

Com o compasso medi as distâncias no mapa.

- Não estava enganado - disse. - Ultrapassamos o cabo Portland, e     essas cinqüenta léguas a sudeste colocam-nos em pleno mar.

- Em pleno mar! - replicou meu tio, esfregando as mãos.

- Desta forma - exclamei -, o oceano se estende sobre nossas cabeças!      - Ora, Axel, nada mais natural! Não existem minas de carvão     em Newcastle que se estendem por muitas milhas sob as ondas? Para o professor,     essa situação podia parecer muito simples, mas a idéia     de passear sob a massa aquática não deixou de preocupar-me.     E no entanto, fazia ter suspensas sobre nossas cabeças as montanhas     da Islândia ou as vagas do Atlântico, desde que a estrutura granítica     fosse sólida. Além disso, acostumei-me rapidamente com a idéia,     pois o corredor, ora reto, ora sinuoso, caprichoso em suas inclinações     e seus desvios, mas sempre correndo para sudeste e sempre continuando a penetrar     na terra, conduziu-nos com rapidez a grandes profundidades.

Quatro dias depois, no sábado, 18 de julho, à noite, chegamos     a uma espécie de gruta muito ampla. Meu tio pagou a Hans seus três     risdales semanais, e decidimos descansar durante todo o dia seguinte.

XXV

Acordei, portanto, no domingo de manhã, sem aquela preocupação     costumeira de partir imediatamente. E embora isso acontecesse no mais profundo     dos abismos, não deixava de ser agradável. Além disso,     já nos habituáramos àquela vida de trogloditas.

Já não pensava mais no sol, nas estrelas, na lua, nas árvores,     nas casas, nas cidades, enfim, em todas aquelas superficialidades terrestres     transformadas em necessidade pelo ser sublunar. Em nossa qualidade de fósseis,     desdenhávamos aquelas maravilhas inúteis.

A gruta formava uma vasta sala. Sobre seu solo granítico, corria     suavemente o riacho fiel. A tal distância de sua nascente, sua água     tinha a temperatura ambiente e não era mais difícil de beber.

Depois do almoço, o professor quis dedicar algumas horas para colocar     em ordem suas anotações diárias.

- Primeiro - disse -, vou fazer alguns cálculos para levantar exatamente     nossa posição; na volta, quero poder traçar um mapa de     nossa viagem, uma espécie de secção vertical do globo     que mostrará o perfil de nossa expedição.

- Será muito curioso, meu tio; mas suas observações     serão precisas o suficiente? - Sim. Anotei com cuidado os ângulos     e as inclinações.

Estou certo de que não me enganei. Antes de mais nada, vejamos onde     estamos. Pegue a bússola e observe a direção que ela     indica.

Olhei o instrumento e, após um exame cuidadoso, respondi: - Leste-quarto-sul-leste.

- Bem - murmurou o professor, anotando a observação e fazendo     alguns cálculos rápidos. - Concluo que, desde nossa partida,     percorremos oitenta e cinco léguas.

- Estamos viajando sob o Atlântico? - Exatamente.

- E talvez nesse momento esteja caindo uma tempestade, e as ondas e o furacão     estejam sacudindo navios sobre nossas cabeças? - É possível.

- E as baleias estejam tocando com suas caudas as muralhas de nossa prisão?      - Fique tranqüilo, Axel, não conseguirão abalá-la.     Mas voltemos a nossos cálculos. Estamos a sudeste, a oitenta e cinco     léguas da base do Sneffels e, de acordo com as minhas anotações     anteriores, avalio nossa profundidade em dezesseis léguas.

- Dezesseis léguas! - exclamei.

- Com certeza.

- Mas é o limite extremo delimitado pela ciência à espessura     da crosta terrestre! - Não nego.

- E aqui, de acordo com a lei do aumento da temperatura, deveria estar um     calor de mil e quinhentos graus.

- Deveria, meu rapaz.

- E todo esse granito não se manteria em estado sólido e estaria     em plena fusão.

- Como você vê, não é bem assim e, como de hábito,     os fatos desmentem as teorias.

- Sou obrigado a concordar, mas isso me surpreende.

- O termômetro está marcando...

- Vinte e sete graus e seis décimos.

- Os cientistas se enganaram em mil quatrocentos e setenta e quatro graus     e quatro décimos. O aumento proporcional da temperatura é, portanto,     um erro. Humphry Davy não estava enganado. Nem eu errei em ouvi-lo.     O que você diz disso? - Nada.

Na verdade eu tinha muito a dizer. Não admitia a teoria de Davy,     continuava apostando no calor central, embora absolutamente não sentisse     seus efeitos. Na verdade, preferia admitir que aquela chaminé de um     vulcão extinto, recoberta pelas lavas de uma camada refratária,     não permitia que a temperatura se propagasse pelas suas paredes.

Mas, sem tentar encontrar novos argumentos, limitava-me a aceitar a situação     tal como era.

- Meu tio - continuei -, considero todos os seus cálculos exatos,     mas permita-me chegar, a partir deles, a conseqüências rigorosas.

- À vontade, meu rapaz.

- No ponto em que estamos, sob a latitude da Islândia, o raio terrestre     é de mais ou menos mil quinhentas e oitenta e três léguas?      - Mil quinhentas e oitenta e três léguas e um terço.

- Arredondemos isso para mil e seiscentas léguas. De uma viagem de     mil e seiscentas léguas, já percorremos doze? - Exatamente.

- Isso equivale a oitenta e cinco léguas de diagonal? - Isso mesmo.

- Em cerca de vinte dias? - Em vinte dias.

- Ora, dezesseis léguas correspondem a um centésimo do raio     terrestre. Sendo assim, levaremos dois mil dias ou quase cinco anos e meio     descendo! O professor não respondeu.

- Sem contar que, se uma vertical de dezesseis léguas termina por     uma horizontal de oitenta, isso dá oito mil milhas na direção     sudeste, e muito tempo antes de alcançar o centro já teremos     saído por um ponto da circunferência! - Ao diabo com seus cálculos!      - replicou meu tio com um gesto de raiva. - Ao diabo com suas hipóteses!     Em que se baseiam? Quem lhe garante que esse corredor não dará     diretamente em nosso objetivo? Aliás, tenho um precedente a meu favor.     Outro já fez o que estou fazendo, outro já foi bem-sucedido     e eu também terei êxito.

- Espero que sim, mas, enfim, posso permitir-me...

- Você pode permitir-se calar, Axel, já que está dizendo     coisas tão irracionais.

Observei que o terrível professor ameaçava reaparecer na pele     do tio e resolvi evitar tal desenlace.

- Agora, consulte o manômetro - retomou. - O que indica? - Uma pressão     considerável.

- Bem, você percebe que descendo suavemente, acostumando-nos pouco     a pouco com a densidade da atmosfera, quase não a sentimos? - Quase     nada, só um pouco de dor de ouvido.

- Isso não é nada, e esse mal-estar desaparecerá se     colocar o ar exterior rapidamente em contato com o ar encerrado em seus pulmões.

- Com certeza - respondi, resolvido a não mais contrariar meu tio.      - Dá até prazer sentir-se mergulhado numa atmosfera mais densa.     O senhor observou com que intensidade o som se propaga? - Sem dúvida.     Um surdo acabaria ouvindo às mil maravilhas.

- Mas essa densidade aumentará com toda a certeza? - Sim, de acordo     com uma lei muito pouco determinada.

É verdade que a intensidade da gravidade diminuirá à     medida que descermos. Você bem sabe que ela é sentida com maior     nitidez na própria superfície da terra, e que no centro do globo     os objetos deixam de pesar.

- Sei, mas diga-me, o ar não acabará por adquirir a densidade     da água? - Claro, sob uma pressão de setecentas e dez atmosferas.

- E mais embaixo? - Mais embaixo, a densidade aumentará mais ainda.

- Então como desceremos? - Colocaremos pedregulhos nos bolsos.

- Que incrível, meu tio, o senhor tem resposta para tudo.

Não ousei ir além do campo das hipóteses, pois teria     chegado a qualquer outra impossibilidade que faria o professor ter uma síncope.

No entanto, era evidente que o ar, sob uma pressão que poderia alcançar     milhares de atmosferas acabaria por chegar ao estado sólido e então,     mesmo admitindo-se que nossos corpos resistissem, seria preciso parar a despeito     de todos os raciocínios do mundo.

Mas não insisti nesse argumento. A resposta de meu tio seria, mais     uma vez seu eterno Saknussemm, precedente sem qualquer valor, pois, mesmo     que considerássemos a viagem do cientista islandês como comprovada,     a resposta seria bem simples: No século XVI, nem o manômetro     nem o termômetro haviam sido inventados; então como Saknussemm     poderia afirmar ter chegado ao centro do globo? Guardei, porém, essa     objeção para mim mesmo e aguardei os acontecimentos.

Passamos o resto do dia em cálculos e conversas. Concordei todo o     tempo com o professor Lidenbrock, invejando a indiferença completa     de Hans, que, sem procurar tantas causas e efeitos, deixava-se conduzir cegamente     pelo destino.

XXVI

Devo confessar que as coisas estavam indo bem até então e que     não tinha por que reclamar. Se a "média" das dificuldades     não aumentasse, não deixaríamos de alcançar nosso     objetivo. E então, que glória! Cheguei a ter esses pensamentos     à la Lidenbrock. Sério. Seria devido ao meio estranho em que     vivia? Talvez.

Durante alguns dias, fomos levados para o fundo do maciço interno     por inclinações mais rápidas, algumas de surpreendente     verticalidade. Em certos dias, avançávamos de uma légua     e meia a duas para o centro.

Descidas perigosas, para as quais a habilidade de Hans e seu maravilhoso     sangue-frio nos foram muito úteis. O impassível islandês     sacrificava-se com uma incompreensível desenvoltura, e graças     a ele superamos mais de um obstáculo, que só eu e meu tio não     teríamos conseguido ultrapassar.

Por exemplo, seu mutismo aumentava a cada dia que passava.

Acho até que nos impregnava. Os objetos externos exercem uma ação     real sobre o cérebro. Os que estão presos entre quatro paredes     acabam por perder a faculdade de associar as idéias e as palavras.

Quantos prisioneiros se tornaram imbecis e até loucos por não     exercitar o raciocínio! Nas duas semanas seguintes à nossa última     conversa, não aconteceu qualquer incidente digno de nota. Só     tenho gravado na memória, e com razão, um único acontecimento     de extrema gravidade.

Eu teria dificuldade em esquecer seus mínimos detalhes.

A 7 de agosto, nossas sucessivas descidas haviam nos conduzido a uma profundidade     de trinta léguas, ou seja, havia trinta léguas de rochas, oceano,     continentes e cidades sobre nossa cabeça. Devíamos estar a duzentas     léguas da Islândia.

Naquele dia, o túnel seguia um plano pouco inclinado.

Eu caminhava à frente. Meu tio carregava um dos aparelhos Ruhmkorff     e eu, o outro. Examinava as camadas de granito.

De repente, quando me virei, percebi que estava sozinho.

"Bem", pensei, "ou estava andando depressa demais, ou meu     tio e Hans pararam no caminho. Vou voltar até eles. Felizmente a subida     não é das piores".

Voltei atrás. Caminhei por uns quinze minutos. Olhei. Ninguém.     Chamei. Nenhuma resposta. Minha voz perdeu-se em ecos cavernosos despertados     de repente.

Comecei a ficar nervoso. Meu corpo foi percorrido por um arrepio.

- Calma - eu disse em voz alta. - Tenho certeza de que encontrarei meus     companheiros. Não há dois caminhos! Ora, eu estava na frente,     basta voltar.

Subi por mais uma meia hora. Prestava atenção para tentar     ouvir algum chamado que, naquela atmosfera tão densa, podia chegar     a mim de longe. Reinava um silêncio extraordinário na imensa     galeria.

Parei. Não conseguia acreditar em meu isolamento. Adoraria ter-me     enganado e não perdido. É mais fácil encontrar o caminho     quando só nos enganamos.

"Vejamos", repetia, "como só há um caminho,     e eles o seguem, devo reencontrá-los. Basta subir mais um pouco. A     menos que, como não me vissem, e tenham se esquecido que eu estava     na frente, tenham tido a idéia de voltar. Muito bem, mesmo nesse caso,     se eu me apressar, não deixarei de encontrá-los. É óbvio".

Repeti as últimas palavras nada convencido.

Além disso, para associar essas idéias tão simples     e reuni-las em forma de raciocínio, demorei muito tempo.

Uma dúvida assaltou-me. Será que eu estava mesmo na frente?     É claro, Hans estava atrás de mim, na frente de meu tio. Até     parara por alguns momentos para amarrar melhor a bagagem em seu ombro. Esse     detalhe voltava-me à cabeça. Foi justamente naquele momento     que devo ter continuado.

"Além disso", eu pensava, "há um meio seguro     de não me perder, um fio que não quebra para guiar-me nesse     labirinto, o meu fiel riacho. Basta eu subir seu curso e forçosamente     encontrarei a pista de meus companheiros.

Esse raciocínio reanimou-me e resolvi recomeçar a andar sem     perda de tempo.

Como bendisse então a precaução de meu tio, que impediu     o caçador de fechar o entalhe feito na parede de granito! Dessa forma,     além de saciar nossa sede, a fonte benéfica iria guiar-me pelas     sinuosidades da crosta terrestre.

Antes de começar a subir, achei que uma ablução me     faria bem.

Abaixei-me para mergulhar o rosto na água do Hans Bach! Imaginem     o meu estupor! Estava pisando num granito seco e áspero! o riacho não     estava mais correndo a meus pés!

XXVII

Não conseguiria descrever meu desespero. Nenhuma palavra conseguiria     transmitir o que eu estava sentindo. Estava enterrado vivo, tendo como perspectiva     morrer em meio às torturas da fome e da sede.

Passava maquinalmente minhas mãos ardentes pelo chão.

Como aquela rocha me parecia ressecada! Como teria abandonado o curso do     riacho? Afinal, ele não estava mais ali! Então compreendi o     motivo daquele silêncio estranho quando, pela última vez, prestei     atenção para tentar ouvir algum chamado de meus companheiros.     Quando meu primeiro passo conduziu-me àquele caminho imprudente, não     reparei na ausência do riacho. É evidente que, naquele momento,     uma bifurcação da galeria abrira-se diante de mim, enquanto     o Hans Bach, obedecendo aos caprichos de uma outra inclinação,     ia junto a meus companheiros em direção às profundezas     desconhecidas! Como voltar? Não havia qualquer pista! Meu pé     não deixara qualquer marca no granito. Quebrava a cabeça procurando     uma solução para aquele problema insolúvel. Minha situação     resumia-se a uma só palavra: perdido! Sim! Perdido a uma profundidade     que me parecia incomensurável! O peso das trinta léguas de crosta     terrestre nos ombros era terrível. Sentia-me esmagado.

Tentei voltar meus pensamentos às coisas cotidianas, o que consegui     com enorme dificuldade. Hamburgo, a casa da Königstrasse, minha pobre     Grauben, todo aquele mundo sob o qual eu estava perdido passou rapidamente     pela minha memória sobressaltada. Numa vívida alucinação,     revi os incidentes da viagem, a travessia, a Islândia, o senhor Fridriksson,     o Sneffels. Disse a mim mesmo que, se conservasse na minha situação     qualquer sombra de esperança, seria sinal de loucura, e que era melhor     ficar desesperado! De fato, que poder humano poderia levar-me de volta à     superfície do globo e desconjuntar as enormes abóbadas que se     escoravam sobre minha cabeça? Quem conseguiria recolocar-me no caminho     certo e fazer com que eu voltasse para junto de meus companheiros? - Ah, meu     tio! - gritei com desespero.

Foi a única palavra de censura que me veio aos lábios, pois     compreendi quanto aquele homem também infeliz deveria estar sofrendo     à minha procura.

Quando me vi assim desprovido de qualquer possibilidade de auxílio     humano, incapaz de tentar algo para me salvar, pensei no auxílio do     céu. As lembranças de minha infância, de minha mãe,     que só conhecera quando era muito pequeno, voltaram-me à mente.     Recorri à oração, embora tivesse pouco direito de ser     ouvido por Deus, ao qual me dirigia tão tarde, e implorei com fervor.

O recurso à providência acalmou-me um pouco, e consegui concentrar     todas as forças da inteligência em minha situação.

Tinha víveres para três dias, e meu cantil estava cheio. No     entanto, não podia ficar sozinho por mais tempo do que isso.

Deveria subir ou descer? É claro que subir! Sempre! Deveria chegar     ao ponto em que abandonara a nascente, à bifurcação funesta.     Ali, com o riacho a meus pés, sempre poderia subir ao topo do Sneffels.

Como não pensara nisso antes! Era minha chance de salvação!     O mais importante era, portanto, reencontrar o curso do Hans Bach.

Levantei-me e, sustentando-me no bastão de ferro, subi pela galeria.     Era uma vertente bastante íngreme. Caminhava cheio de esperança     e sem maiores problemas, como um homem que não tem de optar por um     caminho.

Por cerca de meia hora, não fui detido por qualquer obstáculo.

Tentava reconhecer o caminho pela forma do túnel, pelas saliências     de certas rochas, pela disposição das cavidades. Mas nenhum     sinal particular chamou minha atenção, e logo tornou-se evidente     que aquela galeria não me conduziria à bifurcação.     Não tinha saída. Dei com uma parede impenetrável e caí     na pedra.

É impossível descrever o meu pavor, o meu desespero. Estava     aniquilado. Minha última esperança acabara de romper-se naquela     muralha de granito.

Não tinha como tentar uma fuga impossível naquele labirinto     cujas sinuosidades se cruzavam em todos os sentidos! Deveria enfrentar a pior     de todas as mortes! E, coisa estranha, pensei que, se um dia meu corpo fossilizado     fosse encontrado a trinta léguas nas entranhas da terra, o fato levantaria     seríssimas questões científicas.

Quis falar em voz alta, mas apenas tons roucos atravessaram meus lábios     ressecados. Eu ofegava.

Além de todas essas angústias, fui possuído por um     outro terror. Minha lanterna estragara-se ao cair. Não havia qualquer     meio de consertá-la. Sua luz estava se apagando e iria me faltar! Via     a corrente luminosa diminuindo na serpentina do aparelho. Uma procissão     de sombras moventes desenrolou-se nas paredes obscurecidas. Nem ousava mais     abaixar as pálpebras de medo de perder o menor átomo daquela     claridade fugidia! A todo instante achava que iria apagar-se e que o "negro"     me invadiria.

Finalmente, um último clarão tremulou na lanterna. Acompanhei-o,     aspirei-o com o olhar. Concentrei nele todo o poder de meus olhos, como na     última sensação de luz que lhes fosse concedido sentir,     e submergi em trevas profundas. Como gritei! Na terra, nas noites mais escuras,     nunca a luz desaparece completamente! É difusa, é sutil, mas     por menos luz que reste, a retina do olho acaba conseguindo vê-la! Aqui,     nada! A total escuridão transformava-me num cego em todos os sentidos     do termo. Então perdi a cabeça. Ergui-me, os braços à     minha frente, tentando apalpadelas das mais dolorosas. Comecei a fugir, precipitando-me     pelo inextrincável labirinto, sempre descendo, correndo pela crosta     terrestre como um habitante das falhas subterrâneas, chamando, gritando,     urrando, logo machucado pelas saliências das rochas, caindo e erguendo-me     ensangüentado, tentando beber o sangue que inundava meu rosto e sempre     esperando que aparecesse uma muralha para arrebentar minha cabeça.

Para onde me conduziu aquela corrida insana? Continuava a ignorá-lo.     Depois de várias horas, sem dúvida quase sem forças,     caí como uma massa inerte ao longo da parede e perdi qualquer sentimento     de vida!

XXVIII

Quando voltei a mim, meu rosto estava molhado, mas molhado de lágrimas.     Não sei dizer por quanto tempo fiquei desmaiado. Não tinha mais     qualquer meio de ter noção do tempo.

Nunca houve solidão tão grande quanto a minha, nunca um abandono     tão completo! Perdera muito sangue com a minha queda. Sentia-me encharcado!     Ah, como lamentava não estar morto e ainda ter tempo pela frente! Não     queria mais pensar. Afugentava qualquer idéia e, vencido pela dor,     rolei para a parede oposta.

Já sentia-me desmaiar novamente, ou talvez até morrer, quando     um barulho violento chamou-me a atenção. Parecia o estrondo     prolongado de um trovão, e ouvi as ondas sonoras perdendo-se pouco     a pouco nas longínquas profundezas do abismo.

De onde vinha o barulho? Sem dúvida de algum fenômeno no centro     do maciço terrestre! A explosão de um gás ou de alguma     poderosa base do globo.

Continuei prestando atenção. Queria saber se o ruído     se repetiria. Passaram-se quinze minutos. O silêncio reinava na galeria.

Nem ouvia mais as batidas de meu coração.

De repente, meu ouvido, colado à muralha por acaso, acreditou ter     surpreendido palavras vagas. Inatingíveis, distantes. Estremeci.

"É uma alucinação", pensei.

Mas não. Prestando mais atenção, ouvi realmente um     murmúrio de vozes. Minha fraqueza, porém, não permitiu     que eu entendesse o que diziam. Contudo, havia gente falando, tinha certeza     disso.

Por um momento, temi que aquelas palavras não passassem das minhas,     transmitidas por um eco. Talvez eu tivesse gritado inconscientemente. Comprimi     os lábios e colei novamente o ouvido à parede.

"Há realmente gente falando!" Arrastando-me alguns pés     ao longo da muralha, ouvi claramente. Consegui até captar algumas palavras     incertas, estranhas, incompreensíveis. Chegavam a mim como se estivessem     sendo pronunciadas em voz baixa, de certa forma, murmuradas. O termo forlorcid     foi repetido várias vezes num tom de dor.

O que significava? Quem o pronunciava? É claro que meu tio ou Hans.     Ora, se eu os ouvia, eles conseguiriam ouvir-me! - Socorro! - gritei com toda     a força. - Socorro! Prestei toda a atenção, espreitei     uma resposta, um grito, um suspiro na escuridão. Nada. Passaram-se     alguns minutos. Minha cabeça fervilhava de idéias. Achei que     a minha voz esmaecida não conseguia alcançar meus companheiros.

"Só podem ser eles! ", repetia. "Não deve haver     outros homens trinta léguas abaixo da superfície da terra".

Voltei a prestar atenção. Escorregando meu ouvido pela parede,     encontrei um ponto matemático onde as vozes pareciam atingir o máximo     de intensidade. Mais uma vez, ouvi o termo forlorcid; depois aquele ribombar     que me arrancara do torpor.

- Não - disse. - Não estou ouvindo essas vozes pelo maciço.

A parede é de granito e nem a maior detonação conseguiria     atravessá-la. O barulho vem pela própria galeria! Deve haver     algum efeito acústico bastante singular! Tentei escutar novamente e     dessa vez, sim, ouvi claramente meu nome percorrer o espaço.

Era meu tio quem o pronunciava! Conversava com o guia, e a palavra forlorcid     era uma palavra dinamarquesa! Então, entendi tudo. Para que me escutassem,     eu deveria falar ao longo daquela muralha, que serviria para conduzir minha     voz como o fio conduz a eletricidade.

Não podia perder tempo. Bastava que meus companheiros se afastassem     um pouco para que o fenômeno de acústica fosse destruído.     Então aproximei-me da muralha e pronunciei da forma mais clara possível     o seguinte: - Meu tio Lidenbrock! Esperei na maior ansiedade. O som não     era extremamente rápido ali. A densidade das camadas de ar não     aumentava sua velocidade, só aumentava sua intensidade. Alguns segundos,     séculos, passaram-se antes que estas palavras chegassem a mim: - Axel!     Axel! É você? - Sim, sim! - respondi.

- Meu filho, onde está você? - Perdido na maior escuridão.

- Mas, e a sua lanterna? - Apagou.

- E o riacho? - Desapareceu.

- Coragem, meu pobre Axel, coragem! - Espere um pouco, estou exausto! Não     tenho mais forças para responder! Mas fale comigo! - Coragem! - tornou     meu tio. - Não fale, escute-me.

Procuramos por você subindo e descendo a galeria. Impossível     encontrá-lo. Ah! Chorei muito por você, meu filho! Finalmente,     achando que estava no curso do Hans Bach tornamos a descer dando tiros. Agora,     apesar de nossas vozes poderem encontrar-se, não podemos tocar-nos.     Mas não se desespere, Axel! Já é alguma coisa podermos     ouvir-nos! Enquanto isso, eu refletira. Voltava a sentir uma certa esperança,     ainda vaga. Em primeiro lugar, fazia questão de saber uma coisa. Aproximei     meus lábios da muralha e disse: - Tio? - Sim, filho - responderam-me     pouco depois.

- Antes de mais nada, temos de saber a distância que nos separa.

- Isso é fácil.

- O senhor está com o cronômetro? - Sim.

- Muito bem. Pronuncie meu nome e marque com precisão o momento em     que o disse. Vou repeti-lo assim que me alcançar, e o senhor também     deverá observar o momento em que minha resposta chegar.

- Bem, e a metade do tempo entre minha pergunta e sua resposta indicará     o tempo que a minha voz leva para chegar a você.

- Exatamente, meu tio. - Está pronto? - Sim.

- Muito bem, preste atenção, vou pronunciar seu nome.

Colei meu ouvido à parede e, assim que a palavra "Axel"     chegou a mim, respondi imediatamente "Axel" e aguardei.

- Quarenta segundos - disse então meu tio. - Quarenta segundos entre     as duas palavras; portanto, o som leva vinte segundos para subir. Ora, a mil     e vinte pés por segundo, dá vinte mil e quatrocentos pés,     ou uma légua e meia e um oitavo.

- Uma légua e meia! - murmurei.

- Ora, é fácil transpô-la! - Mas devo subir ou descer?      - Descer, e pelo seguinte motivo. Chegamos a um espaço amplo, onde     desembocam muitas galerias. Aquela em que você entrou não pode     deixar de dar aqui, pois parece que todas essas fendas, essas fraturas do     globo dispersam-se da imensa caverna em que estamos. Levante-se e comece a     andar! Caminhe, arraste-se, se preciso, escorregue pelas vertentes e com certeza     encontrará nossos braços abertos para recebê-lo ao final     do caminho.

Em frente, meu filho, em frente! Essas palavras animaram-me.

- Adeus, meu tio - exclamei. - Estou indo. Assim que eu deixar este lugar,     nossas vozes não poderão entrar mais em contato! Adeus, então!      - Até logo, Axel, até logo! Foram as últimas palavras     que ouvi. A surpreendente conversa através da massa terrestre, a mais     de uma légua de distância, terminou com essas palavras de esperança.     Rezei para agradecer a Deus por ter me conduzido talvez ao único ponto     onde a voz de meus companheiros podia me alcançar naquelas imensidões     escuras.

O fabuloso efeito acústico era facilmente explicável pelas     leis da física. Provinha da forma do corredor e da condutibilidade     da rocha. Há muitos exemplos dessa propagação de sons     não perceptíveis nos espaços intermediários. Lembro-me     de que o fenômeno foi observado em vários lugares, entre outros,     na galeria interna da cúpula de Saint Paul's em Londres, e principalmente     naquelas curiosas cavernas da Sicília, aquelas latomias localizadas     perto de Siracusa, a mais maravilhosa do gênero, conhecida pelo nome     de Orelha de Dionísio.

Lembrei-me de tudo isso e percebi com clareza que, se a voz do meu tio chegava     até mim, é porque não havia qualquer obstáculo     entre nós. Seguindo o caminho do som, chegaria necessariamente como     ele, se as forças não me abandonassem.

Levantei-me. Mais me arrastava do que caminhava. A inclinação     era bastante íngreme. Deixei-me escorregar.

Logo a velocidade de minha descida aumentou numa proporção     assustadora e ameaçou transformar-se numa queda. Não tinha mais     forças para refreá-la.

De repente, o solo fugiu sob meus pés.

Senti que rolava e batia nas asperezas da galeria vertical, um verdadeiro     poço. Minha cabeça deu com uma pedra pontiaguda, e perdi os     sentidos.

XXIX

Quando voltei a mim, estava deitado em espessos cobertores na penumbra. Meu     tio velava, espreitando um resto de vida em meu rosto. Ao primeiro suspiro,     pegou minha mão; quando abri os olhos, deu um grito de alegria.

- Está vivo! Está vivo! - gritou.

- Sim - respondi com voz fraca.

- Meu filho - disse meu tio, apertando-me contra o peito - você está     salvo! Fiquei muito tocado pelo tom daquelas palavras e mais ainda com os     cuidados com que me prodigou. Para o professor, tal efusão só     poderia ser provocada por grande provação.

Naquele momento, chegou Hans. Viu minha mão na de meu tio; ouso afirmar     que seus olhos exprimiram uma viva alegria.

- God dag - disse.

- Bom dia, Hans, bom dia - murmurei. - E agora, tio, diga-me onde estamos     neste momento.

- Amanhã, Axel, amanhã. Hoje você ainda está     muito fraco; não é bom se mexer por causa das compressas que     coloquei em sua cabeça; durma, meu filho, e amanhã prometo contar-lhe     tudo.

- Mas ao menos - insisti -, diga-me o dia e a hora.

- São onze horas da noite de domingo, 9 de agosto, e eu o proíbo     de fazer perguntas até o dia dez do presente mês.

Eu estava realmente muito fraco, e meus olhos fecharam-se involuntariamente.     Precisava de uma noite de descanso. Deixeime levar pelo torpor pensando que     o meu isolamento durara quatro longos dias.

Quando acordei no dia seguinte, olhei ao meu redor. Meu leito, feito com     todos os cobertores da viagem, fora instalado numa gruta encantadora, enfeitada     de magníficas estalagmites, o solo recoberto de areia fina. Nela reinava     a penumbra. Não havia qualquer tocha ou lanterna acesa, mas alguns     clarões inexplicáveis iluminavam-na de fora por uma abertura     estreita. Ouvi também um murmúrio vago e indefinido, semelhante     ao gemido das ondas que se quebram na praia, e às vezes o assobio da     brisa.

Perguntava-me se estava bem acordado, se ainda estava sonhando, se meu cérebro,     rachado na queda, não estaria ouvindo sons imaginários.

Mas nem meus olhos nem meus ouvidos poderiam enganar-se a esse ponto.

"É um clarão do dia", pensei, "esgueirando-se     pela fenda das rochas! São murmúrios de ondas! A brisa está     soprando! Será que me engano ou voltamos à superfície     da terra? Será que meu tio renunciou à expedição     ou a concluiu com sucesso? Fazia todas essas perguntas irrespondíveis     para mim mesmo quando o professor entrou.

- Bom dia, Axel! - saudou alegremente. - Aposto que você está     se sentindo bem.

- Estou muito bem - disse, erguendo-me nas cobertas.

- Tinha certeza de que sim, pois você dormiu com muita tranqüilidade.     Eu e Hans nos revezávamos para velá-lo e notamos que você     estava curando-se gradualmente.

- De fato, sinto-me recuperado e, para provar, honrarei o desjejum que vocês     não deixarão de me oferecer! - Você vai comer, filho!     Você não tem mais febre. Hans esfregou seus ferimentos com um     ungüento secreto islandês, que não sei do que é feito,     e eles cicatrizaram maravilhosamente.

Nosso caçador é um homem e tanto! Enquanto falava, meu tio     preparava alguns alimentos, que eu devorava apesar de suas recomendações.     E, comendo, atordoava-o com perguntas que ele se apressou em responder.

Soube então que minha queda providencial levara-me precisamente à     extremidade de uma galeria quase perpendicular; como chegara junto com uma     torrente de pedras, entre as quais a menor bastava para esmagar-me, a conclusão     era de que uma parte do maciço escorregara comigo. Aquele aterrorizante     veículo transportara-me assim até os braços de meu tio,     onde caí, ensangüentado, desmaiado.

- Realmente - disse-me - é surpreendente que você não     tenha morrido mil vezes. Mas por Deus, não nos separemos mais, pois     nos arriscamos a nunca mais rever-nos.

"Não nos separemos mais!" Então a viagem não     terminara? Arregalei os olhos, surpreso, o que provocou imediatamente a pergunta:      - O que há com você, Axel? - Tenho de fazer-lhe uma pergunta.     O senhor está dizendo que eu estou são e salvo? - Com certeza.

- Todos os meus membros intactos? - Exatamente.

- E minha cabeça? - Exceto por algumas contusões, ela continua     exatamente emseu lugar, sobre os ombros.

- Bem, temo que a minha razão não esteja em forma.

- Fora de forma? - Sim, não voltamos à superfície do     globo? - Claro que não! - Então, devo estar mesmo louco, pois     estou vendo a luz do dia e ouvindo o ruído do vento que sopra e do     mar que se quebra.

- Ah, é isso? - Daria para o senhor me explicar do que se trata?     - Não dá para lhe explicar, pois é inexplicável.     Mas você verá e compreenderá que a ciência geológica     ainda não deu sua última palavra.

- Vamos sair, então - exclamei, levantando-me bruscamente.

- Não, Axel, não, o ar livre pode lhe fazer mal.

- O ar livre? - O vento está muito forte. Não quero que se     exponha dessa forma.

- Mas garanto que estou ótimo.

- Um pouco de paciência, meu filho. Uma recaída pode causar     transtornos para nós, e não devemos perder tempo, pois a travessia     pode ser longa.

- Travessia? - Sim, descanse hoje ainda, embarcaremos amanhã.

- Embarcar? Essa palavra provocou-me um sobressalto.

O quê? Embarcar? Então tínhamos um rio, um lago, um     mar à nossa disposição? Havia uma embarcação     em algum porto interior? Minha curiosidade chegou ao auge. Meu tio tentou     inutilmente conter-me. Quando viu que minha impaciência me faria mais     mal do que a satisfação dos meus desejos, cedeu.

Vesti-me prontamente. Para o cúmulo da precaução, enroleime     num dos cobertores e saí da gruta.

XXX

Acordei, portanto, no domingo de manhã, sem aquela preocupação     costumeira de partir imediatamente. E embora isso acontecesse no mais profundo     dos abismos, não deixava de ser agradável. Além disso,     já nos habituáramos àquela vida de trogloditas.

Já não pensava mais no sol, nas estrelas, na lua, nas árvores,     nas casas, nas cidades, enfim, em todas aquelas superficialidades terrestres     transformadas em necessidade pelo ser sublunar. Em nossa qualidade de fósseis,     desdenhávamos aquelas maravilhas inúteis.

A gruta formava uma vasta sala. Sobre seu solo granítico, corria     suavemente o riacho fiel. A tal distância de sua nascente, sua água     tinha a temperatura ambiente e não era mais difícil de beber.

Depois do almoço, o professor quis dedicar algumas horas para colocar     em ordem suas anotações diárias.

- Primeiro - disse -, vou fazer alguns cálculos para levantar exatamente     nossa posição; na volta, quero poder traçar um mapa de     nossa viagem, uma espécie de secção vertical do globo     que mostrará o perfil de nossa expedição.

- Será muito curioso, meu tio; mas suas observações     serão precisas o suficiente? - Sim. Anotei com cuidado os ângulos     e as inclinações.

Estou certo de que não me enganei. Antes de mais nada, vejamos onde     estamos. Pegue a bússola e observe a direção que ela     indica.

Olhei o instrumento e, após um exame cuidadoso, respondi: - Leste-quarto-sul-leste.

- Bem - murmurou o professor, anotando a observação e fazendo     alguns cálculos rápidos. - Concluo que, desde nossa partida,     percorremos oitenta e cinco léguas.

- Estamos viajando sob o Atlântico? - Exatamente.

- E talvez nesse momento esteja caindo uma tempestade, e as ondas e o furacão     estejam sacudindo navios sobre nossas cabeças? - É possível.

- E as baleias estejam tocando com suas caudas as muralhas de nossa prisão?      - Fique tranqüilo, Axel, não conseguirão abalá-la.     Mas voltemos a nossos cálculos. Estamos a sudeste, a oitenta e cinco     léguas da base do Sneffels e, de acordo com as minhas anotações     anteriores, avalio nossa profundidade em dezesseis léguas.

- Dezesseis léguas! - exclamei.

- Com certeza.

- Mas é o limite extremo delimitado pela ciência à espessura     da crosta terrestre! - Não nego.

- E aqui, de acordo com a lei do aumento da temperatura, deveria estar um     calor de mil e quinhentos graus.

- Deveria, meu rapaz.

- E todo esse granito não se manteria em estado sólido e estaria     em plena fusão.

- Como você vê, não é bem assim e, como de hábito,     os fatos desmentem as teorias.

- Sou obrigado a concordar, mas isso me surpreende.

- O termômetro está marcando...

- Vinte e sete graus e seis décimos.

- Os cientistas se enganaram em mil quatrocentos e setenta e quatro graus     e quatro décimos. O aumento proporcional da temperatura é, portanto,     um erro. Humphry Davy não estava enganado. Nem eu errei em ouvi-lo.     O que você diz disso? - Nada.

Na verdade eu tinha muito a dizer. Não admitia a teoria de Davy,     continuava apostando no calor central, embora absolutamente não sentisse     seus efeitos. Na verdade, preferia admitir que aquela chaminé de um     vulcão extinto, recoberta pelas lavas de uma camada refratária,     não permitia que a temperatura se propagasse pelas suas paredes.

Mas, sem tentar encontrar novos argumentos, limitava-me a aceitar a situação     tal como era.

- Meu tio - continuei -, considero todos os seus cálculos exatos,     mas permita-me chegar, a partir deles, a conseqüências rigorosas.

- À vontade, meu rapaz.

- No ponto em que estamos, sob a latitude da Islândia, o raio terrestre     é de mais ou menos mil quinhentas e oitenta e três léguas?      - Mil quinhentas e oitenta e três léguas e um terço.

- Arredondemos isso para mil e seiscentas léguas. De uma viagem de     mil e seiscentas léguas, já percorremos doze? - Exatamente.

- Isso equivale a oitenta e cinco léguas de diagonal? - Isso mesmo.

- Em cerca de vinte dias? - Em vinte dias.

- Ora, dezesseis léguas correspondem a um centésimo do raio     terrestre. Sendo assim, levaremos dois mil dias ou quase cinco anos e meio     descendo! O professor não respondeu.

- Sem contar que, se uma vertical de dezesseis léguas termina por     uma horizontal de oitenta, isso dá oito mil milhas na direção     sudeste, e muito tempo antes de alcançar o centro já teremos     saído por um ponto da circunferência! - Ao diabo com seus cálculos!      - replicou meu tio com um gesto de raiva. - Ao diabo com suas hipóteses!     Em que se baseiam? Quem lhe garante que esse corredor não dará     diretamente em nosso objetivo? Aliás, tenho um precedente a meu favor.     Outro já fez o que estou fazendo, outro já foi bem-sucedido     e eu também terei êxito.

- Espero que sim, mas, enfim, posso permitir-me...

- Você pode permitir-se calar, Axel, já que está dizendo     coisas tão irracionais.

Observei que o terrível professor ameaçava reaparecer na pele     do tio e resolvi evitar tal desenlace.

- Agora, consulte o manômetro - retomou. - O que indica? - Uma pressão     considerável.

- Bem, você percebe que descendo suavemente, acostumando-nos pouco     a pouco com a densidade da atmosfera, quase não a sentimos? - Quase     nada, só um pouco de dor de ouvido.

- Isso não é nada, e esse mal-estar desaparecerá se     colocar o ar exterior rapidamente em contato com o ar encerrado em seus pulmões.

- Com certeza - respondi, resolvido a não mais contrariar meu tio.      - Dá até prazer sentir-se mergulhado numa atmosfera mais densa.     O senhor observou com que intensidade o som se propaga? - Sem dúvida.     Um surdo acabaria ouvindo às mil maravilhas.

- Mas essa densidade aumentará com toda a certeza? - Sim, de acordo     com uma lei muito pouco determinada.

É verdade que a intensidade da gravidade diminuirá à     medida que descermos. Você bem sabe que ela é sentida com maior     nitidez na própria superfície da terra, e que no centro do globo     os objetos deixam de pesar.

- Sei, mas diga-me, o ar não acabará por adquirir a densidade     da água? - Claro, sob uma pressão de setecentas e dez atmosferas.

- E mais embaixo? - Mais embaixo, a densidade aumentará mais ainda.

- Então como desceremos? - Colocaremos pedregulhos nos bolsos.

- Que incrível, meu tio, o senhor tem resposta para tudo.

Não ousei ir além do campo das hipóteses, pois teria     chegado a qualquer outra impossibilidade que faria o professor ter uma síncope.

No entanto, era evidente que o ar, sob uma pressão que poderia alcançar     milhares de atmosferas acabaria por chegar ao estado sólido e então,     mesmo admitindo-se que nossos corpos resistissem, seria preciso parar a despeito     de todos os raciocínios do mundo.

Mas não insisti nesse argumento. A resposta de meu tio seria, mais     uma vez seu eterno Saknussemm, precedente sem qualquer valor, pois, mesmo     que considerássemos a viagem do cientista islandês como comprovada,     a resposta seria bem simples: No século XVI, nem o manômetro     nem o termômetro haviam sido inventados; então como Saknussemm     poderia afirmar ter chegado ao centro do globo? Guardei, porém, essa     objeção para mim mesmo e aguardei os acontecimentos.

Passamos o resto do dia em cálculos e conversas. Concordei todo o     tempo com o professor Lidenbrock, invejando a indiferença completa     de Hans, que, sem procurar tantas causas e efeitos, deixava-se conduzir cegamente     pelo destino.

XXXI

Devo confessar que as coisas estavam indo bem até então e que     não tinha por que reclamar. Se a "média" das dificuldades     não aumentasse, não deixaríamos de alcançar nosso     objetivo. E então, que glória! Cheguei a ter esses pensamentos     à la Lidenbrock. Sério. Seria devido ao meio estranho em que     vivia? Talvez.

Durante alguns dias, fomos levados para o fundo do maciço interno     por inclinações mais rápidas, algumas de surpreendente     verticalidade. Em certos dias, avançávamos de uma légua     e meia a duas para o centro.

Descidas perigosas, para as quais a habilidade de Hans e seu maravilhoso     sangue-frio nos foram muito úteis. O impassível islandês     sacrificava-se com uma incompreensível desenvoltura, e graças     a ele superamos mais de um obstáculo, que só eu e meu tio não     teríamos conseguido ultrapassar.

Por exemplo, seu mutismo aumentava a cada dia que passava.

Acho até que nos impregnava. Os objetos externos exercem uma ação     real sobre o cérebro. Os que estão presos entre quatro paredes     acabam por perder a faculdade de associar as idéias e as palavras.

Quantos prisioneiros se tornaram imbecis e até loucos por não     exercitar o raciocínio! Nas duas semanas seguintes à nossa última     conversa, não aconteceu qualquer incidente digno de nota. Só     tenho gravado na memória, e com razão, um único acontecimento     de extrema gravidade.

Eu teria dificuldade em esquecer seus mínimos detalhes.

A 7 de agosto, nossas sucessivas descidas haviam nos conduzido a uma profundidade     de trinta léguas, ou seja, havia trinta léguas de rochas, oceano,     continentes e cidades sobre nossa cabeça. Devíamos estar a duzentas     léguas da Islândia.

Naquele dia, o túnel seguia um plano pouco inclinado.

Eu caminhava à frente. Meu tio carregava um dos aparelhos Ruhmkorff     e eu, o outro. Examinava as camadas de granito.

De repente, quando me virei, percebi que estava sozinho.

"Bem", pensei, "ou estava andando depressa demais, ou meu     tio e Hans pararam no caminho. Vou voltar até eles. Felizmente a subida     não é das piores".

Voltei atrás. Caminhei por uns quinze minutos. Olhei. Ninguém.     Chamei. Nenhuma resposta. Minha voz perdeu-se em ecos cavernosos despertados     de repente.

Comecei a ficar nervoso. Meu corpo foi percorrido por um arrepio.

- Calma - eu disse em voz alta. - Tenho certeza de que encontrarei meus     companheiros. Não há dois caminhos! Ora, eu estava na frente,     basta voltar.

Subi por mais uma meia hora. Prestava atenção para tentar     ouvir algum chamado que, naquela atmosfera tão densa, podia chegar     a mim de longe. Reinava um silêncio extraordinário na imensa     galeria.

Parei. Não conseguia acreditar em meu isolamento. Adoraria ter-me     enganado e não perdido. É mais fácil encontrar o caminho     quando só nos enganamos.

"Vejamos", repetia, "como só há um caminho,     e eles o seguem, devo reencontrá-los. Basta subir mais um pouco. A     menos que, como não me vissem, e tenham se esquecido que eu estava     na frente, tenham tido a idéia de voltar. Muito bem, mesmo nesse caso,     se eu me apressar, não deixarei de encontrá-los. É óbvio".

Repeti as últimas palavras nada convencido.

Além disso, para associar essas idéias tão simples     e reuni-las em forma de raciocínio, demorei muito tempo.

Uma dúvida assaltou-me. Será que eu estava mesmo na frente?     É claro, Hans estava atrás de mim, na frente de meu tio. Até     parara por alguns momentos para amarrar melhor a bagagem em seu ombro. Esse     detalhe voltava-me à cabeça. Foi justamente naquele momento     que devo ter continuado.

"Além disso", eu pensava, "há um meio seguro     de não me perder, um fio que não quebra para guiar-me nesse     labirinto, o meu fiel riacho. Basta eu subir seu curso e forçosamente     encontrarei a pista de meus companheiros.

Esse raciocínio reanimou-me e resolvi recomeçar a andar sem     perda de tempo.

Como bendisse então a precaução de meu tio, que impediu     o caçador de fechar o entalhe feito na parede de granito! Dessa forma,     além de saciar nossa sede, a fonte benéfica iria guiar-me pelas     sinuosidades da crosta terrestre.

Antes de começar a subir, achei que uma ablução me     faria bem.

Abaixei-me para mergulhar o rosto na água do Hans Bach! Imaginem     o meu estupor! Estava pisando num granito seco e áspero! o riacho não     estava mais correndo a meus pés!

XXXII

Não conseguiria descrever meu desespero. Nenhuma palavra conseguiria     transmitir o que eu estava sentindo. Estava enterrado vivo, tendo como perspectiva     morrer em meio às torturas da fome e da sede.

Passava maquinalmente minhas mãos ardentes pelo chão.

Como aquela rocha me parecia ressecada! Como teria abandonado o curso do     riacho? Afinal, ele não estava mais ali! Então compreendi o     motivo daquele silêncio estranho quando, pela última vez, prestei     atenção para tentar ouvir algum chamado de meus companheiros.     Quando meu primeiro passo conduziu-me àquele caminho imprudente, não     reparei na ausência do riacho. É evidente que, naquele momento,     uma bifurcação da galeria abrira-se diante de mim, enquanto     o Hans Bach, obedecendo aos caprichos de uma outra inclinação,     ia junto a meus companheiros em direção às profundezas     desconhecidas! Como voltar? Não havia qualquer pista! Meu pé     não deixara qualquer marca no granito. Quebrava a cabeça procurando     uma solução para aquele problema insolúvel. Minha situação     resumia-se a uma só palavra: perdido! Sim! Perdido a uma profundidade     que me parecia incomensurável! O peso das trinta léguas de crosta     terrestre nos ombros era terrível. Sentia-me esmagado.

Tentei voltar meus pensamentos às coisas cotidianas, o que consegui     com enorme dificuldade. Hamburgo, a casa da Königstrasse, minha pobre     Grauben, todo aquele mundo sob o qual eu estava perdido passou rapidamente     pela minha memória sobressaltada. Numa vívida alucinação,     revi os incidentes da viagem, a travessia, a Islândia, o senhor Fridriksson,     o Sneffels. Disse a mim mesmo que, se conservasse na minha situação     qualquer sombra de esperança, seria sinal de loucura, e que era melhor     ficar desesperado! De fato, que poder humano poderia levar-me de volta à     superfície do globo e desconjuntar as enormes abóbadas que se     escoravam sobre minha cabeça? Quem conseguiria recolocar-me no caminho     certo e fazer com que eu voltasse para junto de meus companheiros? - Ah, meu     tio! - gritei com desespero.

Foi a única palavra de censura que me veio aos lábios, pois     compreendi quanto aquele homem também infeliz deveria estar sofrendo     à minha procura.

Quando me vi assim desprovido de qualquer possibilidade de auxílio     humano, incapaz de tentar algo para me salvar, pensei no auxílio do     céu. As lembranças de minha infância, de minha mãe,     que só conhecera quando era muito pequeno, voltaram-me à mente.     Recorri à oração, embora tivesse pouco direito de ser     ouvido por Deus, ao qual me dirigia tão tarde, e implorei com fervor.

O recurso à providência acalmou-me um pouco, e consegui concentrar     todas as forças da inteligência em minha situação.

Tinha víveres para três dias, e meu cantil estava cheio. No     entanto, não podia ficar sozinho por mais tempo do que isso.

Deveria subir ou descer? É claro que subir! Sempre! Deveria chegar     ao ponto em que abandonara a nascente, à bifurcação funesta.     Ali, com o riacho a meus pés, sempre poderia subir ao topo do Sneffels.

Como não pensara nisso antes! Era minha chance de salvação!     O mais importante era, portanto, reencontrar o curso do Hans Bach.

Levantei-me e, sustentando-me no bastão de ferro, subi pela galeria.     Era uma vertente bastante íngreme. Caminhava cheio de esperança     e sem maiores problemas, como um homem que não tem de optar por um     caminho.

Por cerca de meia hora, não fui detido por qualquer obstáculo.

Tentava reconhecer o caminho pela forma do túnel, pelas saliências     de certas rochas, pela disposição das cavidades. Mas nenhum     sinal particular chamou minha atenção, e logo tornou-se evidente     que aquela galeria não me conduziria à bifurcação.     Não tinha saída. Dei com uma parede impenetrável e caí     na pedra.

É impossível descrever o meu pavor, o meu desespero. Estava     aniquilado. Minha última esperança acabara de romper-se naquela     muralha de granito.

Não tinha como tentar uma fuga impossível naquele labirinto     cujas sinuosidades se cruzavam em todos os sentidos! Deveria enfrentar a pior     de todas as mortes! E, coisa estranha, pensei que, se um dia meu corpo fossilizado     fosse encontrado a trinta léguas nas entranhas da terra, o fato levantaria     seríssimas questões científicas.

Quis falar em voz alta, mas apenas tons roucos atravessaram meus lábios     ressecados. Eu ofegava.

Além de todas essas angústias, fui possuído por um     outro terror. Minha lanterna estragara-se ao cair. Não havia qualquer     meio de consertá-la. Sua luz estava se apagando e iria me faltar! Via     a corrente luminosa diminuindo na serpentina do aparelho. Uma procissão     de sombras moventes desenrolou-se nas paredes obscurecidas. Nem ousava mais     abaixar as pálpebras de medo de perder o menor átomo daquela     claridade fugidia! A todo instante achava que iria apagar-se e que o "negro"     me invadiria.

Finalmente, um último clarão tremulou na lanterna. Acompanhei-o,     aspirei-o com o olhar. Concentrei nele todo o poder de meus olhos, como na     última sensação de luz que lhes fosse concedido sentir,     e submergi em trevas profundas. Como gritei! Na terra, nas noites mais escuras,     nunca a luz desaparece completamente! É difusa, é sutil, mas     por menos luz que reste, a retina do olho acaba conseguindo vê-la! Aqui,     nada! A total escuridão transformava-me num cego em todos os sentidos     do termo. Então perdi a cabeça. Ergui-me, os braços à     minha frente, tentando apalpadelas das mais dolorosas. Comecei a fugir, precipitando-me     pelo inextrincável labirinto, sempre descendo, correndo pela crosta     terrestre como um habitante das falhas subterrâneas, chamando, gritando,     urrando, logo machucado pelas saliências das rochas, caindo e erguendo-me     ensangüentado, tentando beber o sangue que inundava meu rosto e sempre     esperando que aparecesse uma muralha para arrebentar minha cabeça.

Para onde me conduziu aquela corrida insana? Continuava a ignorá-lo.     Depois de várias horas, sem dúvida quase sem forças,     caí como uma massa inerte ao longo da parede e perdi qualquer sentimento     de vida!

XXXIII

Quando voltei a mim, meu rosto estava molhado, mas molhado de lágrimas.     Não sei dizer por quanto tempo fiquei desmaiado. Não tinha mais     qualquer meio de ter noção do tempo.

Nunca houve solidão tão grande quanto a minha, nunca um abandono     tão completo! Perdera muito sangue com a minha queda. Sentia-me encharcado!     Ah, como lamentava não estar morto e ainda ter tempo pela frente! Não     queria mais pensar. Afugentava qualquer idéia e, vencido pela dor,     rolei para a parede oposta.

Já sentia-me desmaiar novamente, ou talvez até morrer, quando     um barulho violento chamou-me a atenção. Parecia o estrondo     prolongado de um trovão, e ouvi as ondas sonoras perdendo-se pouco     a pouco nas longínquas profundezas do abismo.

De onde vinha o barulho? Sem dúvida de algum fenômeno no centro     do maciço terrestre! A explosão de um gás ou de alguma     poderosa base do globo.

Continuei prestando atenção. Queria saber se o ruído     se repetiria. Passaram-se quinze minutos. O silêncio reinava na galeria.

Nem ouvia mais as batidas de meu coração.

De repente, meu ouvido, colado à muralha por acaso, acreditou ter     surpreendido palavras vagas. Inatingíveis, distantes. Estremeci.

"É uma alucinação", pensei.

Mas não. Prestando mais atenção, ouvi realmente um     murmúrio de vozes. Minha fraqueza, porém, não permitiu     que eu entendesse o que diziam. Contudo, havia gente falando, tinha certeza     disso.

Por um momento, temi que aquelas palavras não passassem das minhas,     transmitidas por um eco. Talvez eu tivesse gritado inconscientemente. Comprimi     os lábios e colei novamente o ouvido à parede.

"Há realmente gente falando!" Arrastando-me alguns pés     ao longo da muralha, ouvi claramente. Consegui até captar algumas palavras     incertas, estranhas, incompreensíveis. Chegavam a mim como se estivessem     sendo pronunciadas em voz baixa, de certa forma, murmuradas. O termo forlorcid     foi repetido várias vezes num tom de dor.

O que significava? Quem o pronunciava? É claro que meu tio ou Hans.     Ora, se eu os ouvia, eles conseguiriam ouvir-me! - Socorro! - gritei com toda     a força. - Socorro! Prestei toda a atenção, espreitei     uma resposta, um grito, um suspiro na escuridão. Nada. Passaram-se     alguns minutos. Minha cabeça fervilhava de idéias. Achei que     a minha voz esmaecida não conseguia alcançar meus companheiros.

"Só podem ser eles! ", repetia. "Não deve haver     outros homens trinta léguas abaixo da superfície da terra".

Voltei a prestar atenção. Escorregando meu ouvido pela parede,     encontrei um ponto matemático onde as vozes pareciam atingir o máximo     de intensidade. Mais uma vez, ouvi o termo forlorcid; depois aquele ribombar     que me arrancara do torpor.

- Não - disse. - Não estou ouvindo essas vozes pelo maciço.

A parede é de granito e nem a maior detonação conseguiria     atravessá-la. O barulho vem pela própria galeria! Deve haver     algum efeito acústico bastante singular! Tentei escutar novamente e     dessa vez, sim, ouvi claramente meu nome percorrer o espaço.

Era meu tio quem o pronunciava! Conversava com o guia, e a palavra forlorcid     era uma palavra dinamarquesa! Então, entendi tudo. Para que me escutassem,     eu deveria falar ao longo daquela muralha, que serviria para conduzir minha     voz como o fio conduz a eletricidade.

Não podia perder tempo. Bastava que meus companheiros se afastassem     um pouco para que o fenômeno de acústica fosse destruído.     Então aproximei-me da muralha e pronunciei da forma mais clara possível     o seguinte: - Meu tio Lidenbrock! Esperei na maior ansiedade. O som não     era extremamente rápido ali. A densidade das camadas de ar não     aumentava sua velocidade, só aumentava sua intensidade. Alguns segundos,     séculos, passaram-se antes que estas palavras chegassem a mim: - Axel!     Axel! É você? - Sim, sim! - respondi.

- Meu filho, onde está você? - Perdido na maior escuridão.

- Mas, e a sua lanterna? - Apagou.

- E o riacho? - Desapareceu.

- Coragem, meu pobre Axel, coragem! - Espere um pouco, estou exausto! Não     tenho mais forças para responder! Mas fale comigo! - Coragem! - tornou     meu tio. - Não fale, escute-me.

Procuramos por você subindo e descendo a galeria. Impossível     encontrá-lo. Ah! Chorei muito por você, meu filho! Finalmente,     achando que estava no curso do Hans Bach tornamos a descer dando tiros. Agora,     apesar de nossas vozes poderem encontrar-se, não podemos tocar-nos.     Mas não se desespere, Axel! Já é alguma coisa podermos     ouvir-nos! Enquanto isso, eu refletira. Voltava a sentir uma certa esperança,     ainda vaga. Em primeiro lugar, fazia questão de saber uma coisa. Aproximei     meus lábios da muralha e disse: - Tio? - Sim, filho - responderam-me     pouco depois.

- Antes de mais nada, temos de saber a distância que nos separa.

- Isso é fácil.

- O senhor está com o cronômetro? - Sim.

- Muito bem. Pronuncie meu nome e marque com precisão o momento em     que o disse. Vou repeti-lo assim que me alcançar, e o senhor também     deverá observar o momento em que minha resposta chegar.

- Bem, e a metade do tempo entre minha pergunta e sua resposta indicará     o tempo que a minha voz leva para chegar a você.

- Exatamente, meu tio. - Está pronto? - Sim.

- Muito bem, preste atenção, vou pronunciar seu nome.

Colei meu ouvido à parede e, assim que a palavra "Axel"     chegou a mim, respondi imediatamente "Axel" e aguardei.

- Quarenta segundos - disse então meu tio. - Quarenta segundos entre     as duas palavras; portanto, o som leva vinte segundos para subir. Ora, a mil     e vinte pés por segundo, dá vinte mil e quatrocentos pés,     ou uma légua e meia e um oitavo.

- Uma légua e meia! - murmurei.

- Ora, é fácil transpô-la! - Mas devo subir ou descer?      - Descer, e pelo seguinte motivo. Chegamos a um espaço amplo, onde     desembocam muitas galerias. Aquela em que você entrou não pode     deixar de dar aqui, pois parece que todas essas fendas, essas fraturas do     globo dispersam-se da imensa caverna em que estamos. Levante-se e comece a     andar! Caminhe, arraste-se, se preciso, escorregue pelas vertentes e com certeza     encontrará nossos braços abertos para recebê-lo ao final     do caminho.

Em frente, meu filho, em frente! Essas palavras animaram-me.

- Adeus, meu tio - exclamei. - Estou indo. Assim que eu deixar este lugar,     nossas vozes não poderão entrar mais em contato! Adeus, então!      - Até logo, Axel, até logo! Foram as últimas palavras     que ouvi. A surpreendente conversa através da massa terrestre, a mais     de uma légua de distância, terminou com essas palavras de esperança.     Rezei para agradecer a Deus por ter me conduzido talvez ao único ponto     onde a voz de meus companheiros podia me alcançar naquelas imensidões     escuras.

O fabuloso efeito acústico era facilmente explicável pelas     leis da física. Provinha da forma do corredor e da condutibilidade     da rocha. Há muitos exemplos dessa propagação de sons     não perceptíveis nos espaços intermediários. Lembro-me     de que o fenômeno foi observado em vários lugares, entre outros,     na galeria interna da cúpula de Saint Paul's em Londres, e principalmente     naquelas curiosas cavernas da Sicília, aquelas latomias localizadas     perto de Siracusa, a mais maravilhosa do gênero, conhecida pelo nome     de Orelha de Dionísio.

Lembrei-me de tudo isso e percebi com clareza que, se a voz do meu tio chegava     até mim, é porque não havia qualquer obstáculo     entre nós. Seguindo o caminho do som, chegaria necessariamente como     ele, se as forças não me abandonassem.

Levantei-me. Mais me arrastava do que caminhava. A inclinação     era bastante íngreme. Deixei-me escorregar.

Logo a velocidade de minha descida aumentou numa proporção     assustadora e ameaçou transformar-se numa queda. Não tinha mais     forças para refreá-la.

De repente, o solo fugiu sob meus pés.

Senti que rolava e batia nas asperezas da galeria vertical, um verdadeiro     poço. Minha cabeça deu com uma pedra pontiaguda, e perdi os     sentidos.

XXXIX

Quando voltei a mim, estava deitado em espessos cobertores na penumbra. Meu     tio velava, espreitando um resto de vida em meu rosto. Ao primeiro suspiro,     pegou minha mão; quando abri os olhos, deu um grito de alegria.

- Está vivo! Está vivo! - gritou.

- Sim - respondi com voz fraca.

- Meu filho - disse meu tio, apertando-me contra o peito - você está     salvo! Fiquei muito tocado pelo tom daquelas palavras e mais ainda com os     cuidados com que me prodigou. Para o professor, tal efusão só     poderia ser provocada por grande provação.

Naquele momento, chegou Hans. Viu minha mão na de meu tio; ouso afirmar     que seus olhos exprimiram uma viva alegria.

- God dag - disse.

- Bom dia, Hans, bom dia - murmurei. - E agora, tio, diga-me onde estamos     neste momento.

- Amanhã, Axel, amanhã. Hoje você ainda está     muito fraco; não é bom se mexer por causa das compressas que     coloquei em sua cabeça; durma, meu filho, e amanhã prometo contar-lhe     tudo.

- Mas ao menos - insisti -, diga-me o dia e a hora.

- São onze horas da noite de domingo, 9 de agosto, e eu o proíbo     de fazer perguntas até o dia dez do presente mês.

Eu estava realmente muito fraco, e meus olhos fecharam-se involuntariamente.     Precisava de uma noite de descanso. Deixeime levar pelo torpor pensando que     o meu isolamento durara quatro longos dias.

Quando acordei no dia seguinte, olhei ao meu redor. Meu leito, feito com     todos os cobertores da viagem, fora instalado numa gruta encantadora, enfeitada     de magníficas estalagmites, o solo recoberto de areia fina. Nela reinava     a penumbra. Não havia qualquer tocha ou lanterna acesa, mas alguns     clarões inexplicáveis iluminavam-na de fora por uma abertura     estreita. Ouvi também um murmúrio vago e indefinido, semelhante     ao gemido das ondas que se quebram na praia, e às vezes o assobio da     brisa.

Perguntava-me se estava bem acordado, se ainda estava sonhando, se meu cérebro,     rachado na queda, não estaria ouvindo sons imaginários.

Mas nem meus olhos nem meus ouvidos poderiam enganar-se a esse ponto.

"É um clarão do dia", pensei, "esgueirando-se     pela fenda das rochas! São murmúrios de ondas! A brisa está     soprando! Será que me engano ou voltamos à superfície     da terra? Será que meu tio renunciou à expedição     ou a concluiu com sucesso? Fazia todas essas perguntas irrespondíveis     para mim mesmo quando o professor entrou.

- Bom dia, Axel! - saudou alegremente. - Aposto que você está     se sentindo bem.

- Estou muito bem - disse, erguendo-me nas cobertas.

- Tinha certeza de que sim, pois você dormiu com muita tranqüilidade.     Eu e Hans nos revezávamos para velá-lo e notamos que você     estava curando-se gradualmente.

- De fato, sinto-me recuperado e, para provar, honrarei o desjejum que vocês     não deixarão de me oferecer! - Você vai comer, filho!     Você não tem mais febre. Hans esfregou seus ferimentos com um     ungüento secreto islandês, que não sei do que é feito,     e eles cicatrizaram maravilhosamente.

Nosso caçador é um homem e tanto! Enquanto falava, meu tio     preparava alguns alimentos, que eu devorava apesar de suas recomendações.     E, comendo, atordoava-o com perguntas que ele se apressou em responder.

Soube então que minha queda providencial levara-me precisamente à     extremidade de uma galeria quase perpendicular; como chegara junto com uma     torrente de pedras, entre as quais a menor bastava para esmagar-me, a conclusão     era de que uma parte do maciço escorregara comigo. Aquele aterrorizante     veículo transportara-me assim até os braços de meu tio,     onde caí, ensangüentado, desmaiado.

- Realmente - disse-me - é surpreendente que você não     tenha morrido mil vezes. Mas por Deus, não nos separemos mais, pois     nos arriscamos a nunca mais rever-nos.

"Não nos separemos mais!" Então a viagem não     terminara? Arregalei os olhos, surpreso, o que provocou imediatamente a pergunta:      - O que há com você, Axel? - Tenho de fazer-lhe uma pergunta.     O senhor está dizendo que eu estou são e salvo? - Com certeza.

- Todos os meus membros intactos? - Exatamente.

- E minha cabeça? - Exceto por algumas contusões, ela continua     exatamente emseu lugar, sobre os ombros.

- Bem, temo que a minha razão não esteja em forma.

- Fora de forma? - Sim, não voltamos à superfície do     globo? - Claro que não! - Então, devo estar mesmo louco, pois     estou vendo a luz do dia e ouvindo o ruído do vento que sopra e do     mar que se quebra.

- Ah, é isso? - Daria para o senhor me explicar do que se trata?     - Não dá para lhe explicar, pois é inexplicável.     Mas você verá e compreenderá que a ciência geológica     ainda não deu sua última palavra.

- Vamos sair, então - exclamei, levantando-me bruscamente.

- Não, Axel, não, o ar livre pode lhe fazer mal.

- O ar livre? - O vento está muito forte. Não quero que se     exponha dessa forma.

- Mas garanto que estou ótimo.

- Um pouco de paciência, meu filho. Uma recaída pode causar     transtornos para nós, e não devemos perder tempo, pois a travessia     pode ser longa.

- Travessia? - Sim, descanse hoje ainda, embarcaremos amanhã.

- Embarcar? Essa palavra provocou-me um sobressalto.

O quê? Embarcar? Então tínhamos um rio, um lago, um     mar à nossa disposição? Havia uma embarcação     em algum porto interior? Minha curiosidade chegou ao auge. Meu tio tentou     inutilmente conter-me. Quando viu que minha impaciência me faria mais     mal do que a satisfação dos meus desejos, cedeu.

Vesti-me prontamente. Para o cúmulo da precaução, enroleime     num dos cobertores e saí da gruta.

XXXV

A princípio, nada vi. Meus olhos, desacostumados com a luz, fecharam-se     bruscamente. Quando consegui reabri-los, fiquei mais estupefato do que maravilhado.

- O mar! - gritei.

- Sim - respondeu meu tio -, o mar Lidenbrock, e agrada-me acreditar que     não disputarei com nenhum navegador a honra de tê-lo descoberto     e o direito de dar-lhe meu nome.

Um vasto lençol de água, o começo de um lago ou de     um oceano, estendia-se para além dos limites da visão. Amplamente     chanfradas, as margens ofereciam às últimas ondulações     das ondas, uma areia fina, dourada, semeada de conchinhas, em que viveram     os primeiros seres da Criação. As ondas quebravam-se com aquele     murmúrio sonoro típico dos meios fechados e imensos. Uma leve     espuma esvoaçava com o sopro de um vento moderado, e alguns respingos     alcançavam-me o rosto. Naquela praia levemente inclinada, a mais ou     menos cem toesas dos limites das ondas, vinham morrer os contrafortes de enormes     rochedos, que se erguiam abrindo-se a uma altura incomensurável. Alguns,     rasgando a margem com sua aresta aguda, formavam cabos e promontórios     roídos pela ressaca. Mais além, sua massa formava um perfil     claramente desenhado sobre o fundo nebuloso do horizonte.

Era um verdadeiro oceano, com o contorno caprichoso das costas terrestres,     mas deserto e de aspecto terrivelmente selvagem.

Se meus olhos podiam acompanhar aquele vasto mar até bem longe, era     porque uma luz "especial" iluminava seus menores detalhes. Não     a luz do sol com seus feixes resplandecentes e a esplêndida irradiação     de seus raios, nem o clarão pálido e vago do astro das noites,     que não passa de um reflexo sem calor. Não.

O poder de iluminação dessa luz, sua difusão bruxuleante,     sua brancura clara e seca, sua temperatura pouco elevada, seu brilho, na realidade     superior ao da lua, acusavam com clareza uma origem elétrica. Aquela     caverna capaz de conter um oceano era preenchida como por uma aurora boreal     ou um fenômeno cósmico contínuo.

A abóbada suspensa acima de minha cabeça, o céu, de     certa forma, parecia constituído de grandes nuvens, vapores móveis     e cambiantes, que, sob o efeito da condensação, deviam, em certos     dias, resolver-se em chuvas torrenciais. Eu tenderia a acreditar que sob tão     forte pressão da atmosfera a evaporação da água     era impraticável, e, no entanto, por um motivo físico que não     sabia explicar havia grandes aglomerações de nuvens no ar. Naquele     momento, "o tempo estava bom". As camadas elétricas produziam     surpreendentes jogos de luz em nuvens muito altas. Sombras vivas desenhavam-se     em suas volutas inferiores, e, com freqüência, um raio esgueirava-se     até nós com uma intensidade notável entre duas camadas     separadas. Porém, em suma, não era o sol, pois não havia     calor junto à luz. O efeito era triste, soberanamente melancólico.     Em vez de um firmamento resplandecente de estrelas, sentia sobre aquelas nuvens     uma abóbada de granito que me esmagava com todo o seu peso, e aquele     espaço não bastaria, por mais imenso que fosse, ao passeio do     satélite menos ambicioso.

Lembrei-me então da teoria de um capitão inglês que     assimilava a Terra a uma ampla esfera oca, no interior da qual o ar se mantinha     luminoso em decorrência de sua pressão, enquanto dois astros,     Plutão e Proserpina, nele traçavam suas órbitas misteriosas.     Teria razão? Estávamos realmente aprisionados numa enorme escavação.

Não era possível avaliar sua largura, já que as margens     abriam-se a perder de vista, nem seu comprimento, pois o olhar era logo detido     por uma linha de horizonte um tanto indecisa. Quanto à sua altura,     podia ultrapassar muitas léguas. Não dava para ver onde aquela     abóbada se apoiava nos contrafortes de granito; mas havia um grande     aglomerado de nuvens suspenso na atmosfera, cuja elevação podia     ser estimada em duas mil toesas, altitude superior à dos vapores terrestres,     sem dúvida devido à densidade considerável do ar.

É claro que o termo "caverna" não descreve exatamente     aquele ambiente imenso. Nenhuma palavra da língua humana é suficiente     para quem se aventura nos abismos do globo.

Além disso, não sabia por qual fato geológico explicar     a existência de tal escavação. Será que fora produzida     pelo resfriamento do globo? Conhecia bem algumas cavernas célebres     por relatos de viajantes, mas nenhuma apresentava tais dimensões.

Se a gruta de Guachara, na Colômbia, visitada por Humboldt, não     revelara o segredo de sua profundidade ao sábio, que a percorreu por     uma extensão de dois mil e quinhentos pés, é provável     que ela não se prolongasse muito mais que isso. A imensa caverna de     Mammouth, no Kentucky, tinha realmente proporções gigantescas,     pois sua abóbada erguia-se quinhentos pés acima de um lago insondável,     e muitos viajantes percorreram-na por mais de dez léguas sem chegar     a seus limites. Mas o que eram aquelas cavidades perto da que eu admirava     então, com seu céu de vapores, suas irradiações     elétricas e um vasto mar encerrado em seus flancos? Minha imaginação     sentia-se impotente diante daquela imensidão.

Contemplava em silêncio todas aquelas maravilhas. Faltavam-me palavras     para transmitir minhas sensações. Acreditava estar assistindo     em algum planeta longínquo, Urano ou Netuno, a fenômenos dos     quais minha natureza terrestre não tinha consciência. Seriam     necessárias palavras novas para novas sensações, mas     minha imaginação não era capaz de fornecê-las.     Olhava, pensava, admirava com um estupor misturado a uma certa dose de medo.

O imprevisto daquele espetáculo fizera com que as cores da saúde     voltassem a meu rosto; estava sendo submetido a um tratamento de surpresa     e curado por uma nova terapêutica. Além disso, a vivacidade de     um ar muito denso reanimava-me, fornecendo mais oxigênio a meus pulmões.

Não é difícil imaginar que, após um aprisionamento     de quarenta e sete dias numa galeria estreita, era um prazer imenso aspirar     aquela brisa carregada de úmidas emanações salinas.

Não tinha por que me arrepender de ter abandonado minha gruta obscura.     Meu tio, já acostumado àquelas maravilhas, não se surpreendia     mais.

- Você sente que tem forças para passear um pouco? - perguntou-me.

- Claro, nada mais agradável - respondi.

- Então pegue no meu braço e sigamos as sinuosidades da costa,     Axel.

Aceitei com presteza e começamos a caminhar pelas margens daquele     novo oceano. À esquerda, rochedos abruptos, uns sobre os outros, formavam     um amontoado titanesco de efeito prodigioso.

De seus flancos desciam inúmeras cascatas que formavam lençóis     límpidos e retumbantes.

Saltando de uma rocha para outra, alguns vapores leves assinalavam o local     de fontes quentes, e riachos corriam suavemente em direção à     bacia comum, procurando, nas vertentes, a ocasião de murmurar de forma     mais agradável.

Dentre os riachos, reconheci nosso fiel companheiro de viagem, Hans Bach,     que acabara de se perder tranqüilamente no mar, como se nunca tivesse     feito outra coisa desde o começo do mundo.

- Sentiremos saudades dele! - suspirei.

- Bah! - respondeu o professor. - Tanto faz ele como outro! Achei sua réplica     um tanto ingrata.

Naquele momento, contudo, um espetáculo inesperado chamou minha atenção.     A quinhentos passos, num meandro de um promontório elevado, apareceu     uma floresta alta, cerrada e densa.

Era formada por árvores de tamanho médio, semelhantes a guarda-sóis     regulares, contornos claros e geométricos; as correntes atmosféricas     pareciam não provocar qualquer efeito em sua folhagem, que, em meio     aos sopros, permanecia imóvel como um maciço de cedros petrificados.     Apressei o passo, não conseguia encontrar um nome para aquelas essências     singulares. Não se situavam entre as duzentas mil espécies vegetais     conhecidas até então. Seria preciso atribuir-lhes um lugar especial     na flora das vegetações lacustres? Não. Quando chegamos     à sua sombra, minha surpresa não foi maior do que minha admiração.

Estava diante de produtos da terra, mas de tamanho gigantesco. Meu tio logo     chamou-os pelo seu nome.

- Não passa de uma floresta de cogumelos - disse.

Estava certo. Imaginem o desenvolvimento dessas plantas típicas de     ambientes quentes e úmidos. Sabia que o Lycoperdon giganteum atinge,     segundo Bulliard, oitocentos a novecentos pés de circunferência;     aqui, porém, tratava-se de cogumelos brancos de trinta a quarenta pés     de altura, com uma cúpula de diâmetro igual. Havia milhares deles.

A luz não conseguia varar sua sombra espessa, e a mais completa escuridão     reinava sob aqueles domos justapostos como os tetos redondos de uma aldeia     africana.

Quis prosseguir. Um frio mortal descia daquelas abóbadas carnudas.     Erramos por cerca de meia hora entre aquelas trevas úmidas, e foi com     um verdadeiro sentimento de bem-estar que voltei à beira do mar.

A vegetação daquela região subterrânea não     se limitava àqueles cogumelos. Mais adiante, erguiam-se em grupos um     grande número de outras árvores de folhagem descolorida. Eram     fáceis de reconhecer: não passavam de humildes arbustos da terra     de dimensões fenomenais, licopódios de cem pés de altura,     sigilariáceas gigantes, fetos arborescentes, altos como os pinheiros     das grandes latitudes, lepidodendráceas com ramos cilíndricos     bifurcados, arrematadas por folhas longas e eriçadas, de pêlos     ásperos, como monstruosas plantas de folhas espessas e carnudas.

- Surpreendente, magnífico, esplêndido! - exclamou meu tio.      - Eis toda a flora do segundo período do mundo, a época da transição.     Eis as humildes plantas de nossos jardins, que eram árvores nos primeiros     séculos do mundo! Olhe, Axel, admire! Nunca um botânico esteve     diante de tamanha festa.

- O senhor tem razão, meu tio. A Providência parece ter tido     vontade de conservar nesta estufa imensa as plantas antediluvianas, reconstruídas     com tanta precisão pelos sábios.

- Você está certo, filho, é uma estufa; mas seria ainda     melhor se acrescentasse que talvez se trate de um museu de plantas raras.

- Plantas raras! - Com certeza. Veja essa poeira que pisamos, as ossadas     espalhadas pelo chão.

- Ossadas! - exclamei. - Claro, ossadas de animais antediluvianos! Precipitara-me     para aqueles restos seculares feitos de uma substância mineral indestrutível.     Denominei sem hesitar aqueles ossos gigantescos que pareciam troncos de árvore     ressecados.

- Olhe o maxilar inferior do mastodonte - eu disse. - Os molares do dinotério,     um fêmur que só pode ter pertencido ao maior de todos esses animais,     o megatério. Ora, é exatamente um museu de peças raras,     pois essas ossadas com certeza não foram transportadas até aqui     por um cataclismo. Os animais aos quais pertencem viveram às margens     deste mar subterrâneo, à sombra destas plantas arborescentes.     Veja só, há esqueletos completos. E, no entanto...

- No entanto? - disse meu tio.

- Não entendo a presença desses quadrúpedes nesta caverna     de granito. - Por quê? - Porque a vida animal só começou     a existir na Terra na era secundária, quando o terreno sedimentar foi     formado pelos aluviões e substituiu as rochas incandescentes da era     primária.

- É bem fácil esclarecer a sua dúvida, Axel, este terreno     aqui é sedimentar.

- Como! A essa profundidade da superfície da terra! - É possível     explicar o fato geologicamente. Num determinado período, a Terra era     formada apenas por uma crosta elástica, sujeita a movimentos alternados     de cima para baixo em virtude das leis de atração. Provavelmente     ocorreram desmoronamentos do solo, sendo que uma parte dos terrenos sedimentares     foi arrastada para o fundo dos abismos que se abriram de repente.

- Deve ser isso mesmo. Mas, se essas regiões subterrâneas foram     habitadas por animais antediluvianos, quem nos garante que um desses monstros     não está errando ainda por estas florestas escuras ou atrás     destas rochas escarpadas? Esquadrinhei, não sem temor, os vários     pontos do horizonte; mas não havia qualquer ser vivo naquelas costas     desertas.

Estava um pouco cansado. Fui sentar-me então na ponta de um promontório,     sob o qual as ondas se quebravam ruidosamente.

Dali, meus olhos abraçavam toda aquela baía formada por uma     chanfradura da costa. Ao fundo, um portinho abrigado por duas rochas piramidais.     Suas águas calmas dormiam, protegidas do vento. Receberiam com conforto     um brique ou duas ou três escunas. Quase esperava avistar algum navio     desfraldando suas velas e alcançando o largo sob a brisa do sul.

Mas aquela ilusão dissipou-se com rapidez. Éramos realmente     as únicas criaturas vivas naquele mundo subterrâneo. Às     vezes, quando o vento se acalmava, descia um silêncio mais profundo     que o silêncio do deserto sobre as rochas áridas que pesavam     na superfície do oceano. Tentava então varar as brumas distantes,     rasgar a cortina do fundo misterioso do horizonte. Quais as perguntas que     me subiam aos lábios? Onde terminava aquele mar? Para onde levava?     Será que um dia abordaríamos as margens opostas? Meu tio não     tinha a menor dúvida a esse respeito. Eu desejava e ao mesmo tempo     temia isso. Após uma hora de contemplação do maravilhoso     espetáculo, tornamos ao caminho da praia para voltar à gruta.     Adormeci profundamente sob o domínio dos pensamentos mais estranhos.

XXXVI

No dia seguinte, acordei completamente curado. Achei que seria saudável     tomar um banho de mar, e fui banhar-me nas águas daquele Mediterrâneo.     Não havia dúvidas de que merecia esse nome.

Voltei para o desjejum com muita fome. Hans cozinhava nosso pequeno cardápio;     como tinha água e fogo à sua disposição, pôde     variar um pouco o menu normal. Ao final da refeição, serviu-nos     café, e nunca tomei essa deliciosa bebida com tanto prazer.

- Agora, não devemos deixar de estudar o fenômeno da maré     - disse meu tio.

- Como, maré! - surpreendi-me.

- É claro! - A influência da Lua e do Sol são sentidas     até aqui? - Por que não? Os corpos não estão sujeitos     em seu conjunto à atração universal? Essa massa de água     não pode fugir à regra geral. Assim, apesar da pressão     atmosférica em sua superfície, você vai ver como ela se     ergue como o próprio Atlântico.

Naquele momento, vagávamos pela areia das margens, e as ondas avançavam     gradualmente pela praia.

- A maré está subindo - gritei.

- Sim, Axel, e após a etapa da espuma, você verá que     o mar vai se erguer cerca de dez pés.

- É fantástico! - Não, é natural.

- O senhor pode dizer o que quiser, meu tio, tudo isso parece-me extraordinário     e mal consigo acreditar no que estou vendo. Quem poderia imaginar que existisse     um verdadeiro oceano nessa crosta terrestre, com seus fluxos e refluxos, suas     brisas e tempestades? - Por que não? Existe alguma razão física     que o impeça? - Não consigo imaginar, já que tenho de     deixar de lado o sistema do calor central.

- Então, até agora a teoria de Davy está justificada?     - É claro, nada contradiz a existência de mares ou terras no     interior do globo.

- Sem dúvida, mas desabitados.

- Bem, por que essas águas não dariam abrigo a peixes de espécies     desconhecidas? - Não vimos nenhum até agora.

- Podemos fabricar linhas e ver se o anzol teria tanto sucesso aqui quanto     nos oceanos sublunares.

- Tentaremos, Axel, pois temos de penetrar em todos os segredos dessas novas     regiões.

- Mas onde estamos, tio? Ainda não fiz a pergunta que seus instrumentos     devem ter respondido.

- Horizontalmente, a trezentas e cinqüenta léguas da Islândia.

- Tudo isso? - Tenho certeza de que não me enganei em mais de quinhentas     toesas.

- E a bússola continua indicando o sudeste? - Sim, com uma declinação     ocidental de dezenove graus e quarenta e dois minutos, exatamente como na     terra. Por sua inclinação, acontece um fato curioso que observei     com o maior cuidado.

- Qual? - É que, em vez de inclinar-se para o pólo como no     hemisfério boreal, a agulha ergue-se.

- Devemos então concluir que o ponto de atração magnético     está situado entre a superfície do globo e o local onde chegamos?      - Exatamente, e é provável que, se chegarmos às regiões     polares, próximo do grau setenta, onde James Ross descobriu o pólo     magnético, vejamos a agulha erguer-se na vertical. Logo, esse misterioso     centro de atração não está situado a grande profundidade.

- De fato, e a ciência mal suspeita disso.

- A ciência, meu rapaz, é feita de erros, mas de erros que     é bom cometer, pois levam, pouco a pouco, à verdade.

- E a que profundidade estamos? - Trinta e cinco léguas.

- Assim - disse, considerando o mapa -, a parte montanhosa da Escócia     está acima de nós, e ali os montes Grampians mostram, a uma     altura prodigiosa, seus cimos cobertos de neve.

- Sim - respondeu o professor, rindo. - É um pouco pesado para carregar,     mas a abóbada é sólida. O grande arquiteto do universo     construiu-a com um bom material; o homem nunca seria capaz de executá-la!     O que são os arcos, as pontes e as abóbadas das catedrais perto     dessa nave de três léguas, sob a qual se desenvolvem à     vontade um oceano e suas tempestades? - Oh, não tenho medo de que o     céu nos caia sobre a cabeça.

Agora, meu tio, quais são seus planos? O senhor não está     pensando em voltar à superfície do globo? - Voltar? Ora essa!     Muito pelo contrário, pretendo continuar a viagem já que tudo     correu tão bem até aqui.

- É que não vejo como atravessaremos essa planície     líquida.

- Não pretendo mergulhar de cabeça. Mas como os oceanos não     passam realmente de lagos, já que são cercados de terra, tenho     mais certeza ainda de que esse mar interior encontra-se circunscrito pelo     maciço granítico.

- É verdade.

- Então estou certo de encontrar mais saídas nas margens opostas.

- Qual o comprimento que o senhor avalia para esse oceano? - Trinta ou quarenta     léguas.

- Ah! - disse, imaginando quanto essa estimativa poderia ser incorreta.

- Não temos, portanto, tempo a perder, e já amanhã     cedo começaremos a navegar.

Procurei involuntariamente com os olhos o navio que nos transportaria.

- Ah! - comentei -, embarcaremos. Muito bem. E em que embarcação?      - Não será uma embarcação, meu rapaz, mas uma     boa jangada sólida.

- Uma jangada! - exclamei. - É tão impossível construir     uma jangada quanto um navio, e não consigo imaginar...

- Você não consegue imaginar, Axel, mas se você escutasse     seria capaz de ouvir! - Ouvir? - Sim, certas marteladas que lhe mostrariam     que Hans já está trabalhando.

- Está construindo uma jangada? - Está.

- Como? Já derrubou árvores com seu machado? - Ah, as árvores     já estavam derrubadas! Vamos vê-lo trabalhar.

Após quinze minutos de caminhada, do outro lado do promontório     que formava o portinho natural, vi Hans trabalhando.

Mais alguns passos e estava a seu lado. Para minha grande surpresa, uma     jangada quase pronta repousava na areia. Era feita de vigas de uma madeira     especial, e o chão estava literalmente coberto por um grande número     de pranchões, amarras e espirais de todo tipo, que dariam para construir     todo um ancoradouro.

- Tio - exclamei -, que madeira é essa? - Vários tipos de     pinho, bétula, todas as espécies de coníferas do norte     mineralizadas pela ação das águas do mar.

- Será possível? - É o que chamamos de surtarbrandur,     ou de madeira fóssil.

- Mas então, como a linhita, deve ser dura como pedra.

Conseguirá flutuar? - Às vezes não flutua, principalmente     nos casos em que as madeiras se transformaram em verdadeiros antracitos; mas     em outros casos, como este, as madeiras só sofreram um início     de transformação fóssil. - Olhe - acrescentou meu tio,     lançando ao mar um daqueles restos preciosos.

Após ter desaparecido, o pedaço de madeira voltou à     superfície e oscilou à mercê das. ondulações.

- Está convencido? - disse meu tio.

- Estou principalmente convencido de que é incrível! Graças     à sua habilidade o guia terminou a jangada no dia seguinte à     noite; tinha dez pés de comprimento por cinco de largura; unidas entre     si por fortes cordas, as vigas de surtarbrandur ofereciam uma superfície     sólida, e, assim que jogada, a embarcação improvisada     flutuou tranqüilamente nas águas do mar Lidenbrock.

XXXVII

A 13 de agosto, acordamos cedo para inaugurar um novo meio de transporte     rápido e pouco cansativo.

Um mastro feito de dois bastões emparelhados, uma verga formada por     um terceiro, uma vela que não passava de um dos nossos cobertores,     constituíam a enxárcia da jangada. Não faltavam cordas.     O todo era sólido.

Às seis horas o professor deu o sinal de embarque. Os víveres,     as bagagens, os instrumentos, as armas e uma notável quantidade de     água doce recolhida nos rochedos já estavam na embarcação.

Hans instalara um leme que lhe permitia dirigir seu aparelho flutuante.     Assumiu o comando. Desprendi as amarras que nos retinham à margem.     A vela foi orientada e largamos com rapidez.

No momento em que deixamos o portinho, meu tio, que insistia em sua nomenclatura     geográfica, quis dar-lhe um nome, o meu.

- Ah, não - disse -, tenho outro a propor.

- Qual? - O nome de Grauben. Porto Grauben: ficará muito bem no mapa.

- Muito bem. Porto Grauben.

Eis como a lembrança de minha querida Virlandesa foi vinculada à     nossa ousada expedição.

A brisa soprava de nordeste. Navegávamos de vento em popa com uma     extrema rapidez. As camadas muito densas da atmosfera tinham um impulso considerável     e agiam sobre a vela como um potente ventilador.

Ao final de uma hora, meu tio pôde estimar nossa velocidade com bastante     precisão.

- Se continuarmos a navegar nessa velocidade - disse ele -, percorreremos     pelo menos trinta léguas em vinte e quatro horas e não tardaremos     a alcançar as margens opostas.

Não respondi e fui sentar-me à proa da jangada. A costa setentrional     baixava no horizonte. Os dois braços do litoral abriam-se como para     facilitar nossa partida. Um mar imenso estendia-se diante de meus olhos. Imensas     nuvens corriam, céleres, pela sua superFície com sua sombra     acinzentada, que parecia pesar sobre aquela água morna. Os raios prateados     da luz elétrica, refletidos aqui e ali por alguma gotinha, faziam eclodir     pontos luminosos na esteira da embarcação. Logo perdemos a terra     de vista, todos os pontos de referência desapareceram, e, não     fosse o sulco espumante da jangada, eu acharia que estávamos completamente     imóveis.

Por volta do meio-dia, algas imensas vieram ondular à superfície     da água. Conhecia o poder vegetativo daquelas plantas, que se alastram     a uma profundidade de mais de doze mil pés no fundo dos mares, reproduzem-se     sobre pressões de quatrocentas atmosferas e formam, muitas vezes, bancos     grandes o suficiente para entravar a marcha dos navios; mas acho que nunca     houve algas tão gigantescas quanto as do mar Lidenbrock.

Nossa jangada passou ao lado de sargaços de três a quatro mil     pés de comprimento, serpentes imensas que cresciam a perder de vista;     divertia-me em acompanhar suas fitas infinitas, achando sempre ter alcançado     a extremidade; minha paciência e até minha surpresa foram enganadas     por horas inteiras.

Que força natural aquelas plantas podiam produzir e que aspecto deveria     ter a Terra nos primeiros séculos de sua formação, quando,     sob a ação do calor e da umidade, apenas o reino vegetal se     desenvolvia em sua superfície! Caiu a noite e, como observara na véspera,     o estado luminoso do ar não sofreu qualquer diminuição.     Era um fenômeno constante, com cuja permanência podíamos     contar.

Após o jantar, deitei-me ao pé do mastro, e não tardei     a adormecer em meio a devaneios indolentes.

Imóvel ao leme, Hans deixava a jangada correr; empurrada pelo vento     em popa, nem precisava ser dirigida. Assim que partimos de porto Grauben,     o professor Lidenbrock encarregara-me de escrever um "diário de     bordo", de anotar as menores observações, os fenômenos     interessantes, a direção do vento, a velocidade, a rota percorrida,     em suma, todos os incidentes da estranha navegação.

Vou limitar-me, portanto, a reproduzir aqui essas anotações     cotidianas, ditadas, por assim dizer, pelos acontecimentos, para fazer um     relato mais preciso de nossa travessia.

Sexta feira, 14 de agosto. - Brisa contínua de noroeste. A jangada     navega rapidamente em linha reta. A costa fica trinta léguas na direção     oposta ao vento. Nada no horizonte. A intensidade da luz não varia.     Tempo bom, ou seja, as nuvens estão bastante altas, são pouco     densas e banhadas por uma atmosfera branca, como a prata em fusão.     Termômetro: + 32 graus.

Ao meio-dia, Hans prepara um anzol na ponta de uma corda.

Sua isca é um pedacinho de carne, que joga no mar. Durante duas horas,     não pega nada. As águas são desabitadas? Não,     uma sacudidela. Hans puxa a linha e traz um peixe que se debate com vigor.

- Um peixe! - exclama meu tio.

- É um esturjão! - grito por minha vez. - Um esturjão     pequeno! O professor observa o animal com atenção e não     compartilha minha opinião. O peixe tem a cabeça chata, arredondada,     e a parte anterior do corpo coberta de placas ossudas; não tem dentes;     as nadadeiras peitorais, bastante desenvolvidas, estão ajustadas em     seu corpo desprovido de cauda. O animal pertence realmente à ordem     em que os naturalistas classificaram o esturjão, mas este dele difere     por características muito essenciais.

Meu tio não estava enganado, pois, após um rápido exame,     diz: - O peixe pertence a uma família extinta há séculos,     cujos traços fósseis são encontrados apenas em terreno     devoniano.

- Como então conseguimos pegar vivo um dos habitantes dos mares da     era primária? - eu disse.

- Pegamos - responde o professor, continuando suas observações.      - Veja que os peixes fósseis não têm qualquer semelhança     com as espécies atuais. Ora, agarrar um desses seres vivo é     uma verdadeira felicidade para o naturalista.

- Mas a que família pertence? - À ordem dos ganóides,     família dos cefalópodes, gênero...

- Qual? - Juraria que ao gênero dos pterígios! Mas este tem     uma particularidade que, diz-se, é encontrada nos peixes de águas     subterrâneas.

- qual? - É cego! - Cego! - Não somente cego, como absolutamente     não tem o órgão da visão.

Olho. Nada mais verdadeiro. Mas talvez se trate de um caso especial. Colocamos     nova isca e jogamos a linha. Com certeza este oceano é muito piscoso,     pois, em duas horas, pegamos uma grande quantidade de pterígios, assim     como peixes pertencentes a uma família também extinta, os dipterígios,     cujo gênero meu tio, porém, não consegue reconhecer.

Nenhum deles tem o órgão da visão. Aquela pescaria     inesperada é ótima para completarmos nossas provisões.

Desta forma, parece certo: aquele mar só encerra espécies     fósseis, onde os peixes e os répteis são ainda mais perfeitos     por ser sua criação mais antiga.

Talvez ainda cheguemos a encontrar alguns daqueles sáurios que a     ciência soube reconstituir com um pouco de ossos e cartilagens? Tomo     a luneta e perscruto o mar. Deserto. Talvez ainda estejamos próximos     demais das costas.

Olho para cima. Por que alguns daqueles pássaros reconstruídos     pelo imortal Cuvier não estariam batendo asas nas pesadas camadas atmosféricas?     Os peixes constituiriam uma alimentação mais que suficiente     para eles. Observo o espaço, mas os ares estão tão vazios     quanto as margens.

Minha imaginação, contudo, transporta-me para as maravilhosas     hipóteses da paleontologia. Sonho acordado. Acredito ver na superfície     das águas enormes quersitas, tartarugas antediluvianas parecidas com     ilhotas flutuantes. Nas praias sombrias passam os grandes mamíferos     dos primeiros dias, o Leptotherium, encontrado nas cavernas do Brasil, o Mericotherium,     procedente das regiões glaciais da Sibéria. Mais além,     o paquiderme Lofiodon, tapir gigantesco, esconde-se atrás das rochas,     pronto para disputar sua presa como o Anoplotherium, animal estranho que tem     algo do rinoceronte, do cavalo, do hipopótamo e do camelo, como se     o Criador, apressado demais às primeiras horas do mundo, houvesse reunido     vários animais num só. O mastodonte gigante faz sua tromba girar     e tritura sob suas presas os rochedos das margens, enquanto o Megatherium,     escorado por suas patas enormes, escava a terra provocando com seus rugidos     o eco dos granitos sonoros. Mais acima, o protopiteco, primeiro macaco surgido     na superfície do globo, escala os picos íngremes. Ainda mais     acima, o pterodáctilo, mão alada, escorrega como um grande morcego     no ar comprimido. Finalmente, nas últimas camadas, imensos pássaros,     mais fortes que a ema, maiores que o avestruz, desfraldam suas asas enormes     e alcançam com a cabeça a parede da abóbada granítica.

Todo esse mundo fóssil renasce na minha imaginação.     Remonto às eras bíblicas da Criação, muito antes     do nascimento do homem, quando a Terra incompleta não lhe bastaria.     Meu sonho precede, então, o surgimento dos seres animados. Os mamíferos     desaparecem, depois os pássaros, depois os répteis da era secundária     e, finalmente, os peixes, os crustáceos, os moluscos e os articulados.     Os zoófitos do período de transição retornam,     por sua vez, ao nada. Toda a vida da Terra resume-se em mim, e meu coração     é o único a bater no mundo desabitado.

Não há mais estações, não há mais     climas; o calor próprio do globo aumenta incessantemente e neutraliza     o do astro radioso.

A vegetação excede-se. Passo como uma sombra entre fetos arborescentes,     pisando com passadas incertas as margas irisadas e os grés sarapintados     do solo.

Apóio-me no tronco de imensas coníferas; deito-me à     sombra de esfenófilos, asterófilos e licopódios de cem     pés de altura.

Os séculos passam-se como dias! Remonto à seqüência     de transformações terrestres. As plantas desaparecem, as rochas     graníticas perdem sua pureza, o estado líquido começa     a substituir o estado sólido sob a ação de um calor mais     intenso; as águas correm na superfície do globo; fervem, volatizam-se;     os vapores envolvem a Terra, que pouco a pouco forma apenas uma massa gasosa,     vermelho-esbranquiçada, do tamanho do Sol e tão brilhante como     ele! No centro dessa nebulosa, mil e quatrocentas vezes mais considerável     que o globo que formará um dia, sou levado pelos espaços planetários!     Meu corpo sutiliza-se, sublima-se e mistura-se como um átomo imponderável     aos vapores imensos que traçam sua órbita inflamada no infinito!     Que sonho! Para onde me leva? Minha mão febril lança no papel     seus detalhes mais estranhos! Esqueci tudo, o professor, o guia, a jangada!     Minha mente foi possuída por uma alucinação...

- O que há com você? - pergunta meu tio.

Meus olhos abertos encaram-no sem enxergá-lo.

- Cuidado, Axel, você vai cair no mar.

Ao mesmo tempo, sinto que a mão de Hans me agarra com vigor. Não     fosse ele, dominado pelo meu sonho, teria me precipitado nas ondas.

- Será que está ficando louco? - grita o professor.

- O que houve? - eu digo finalmente, voltando a mim.

- Você está doente? - Não, tive uma alucinação,     mas passou. Está tudo bem? - Sim, boa brisa, ótimo mar! Navegamos     rapidamente e, se não me engano, não tardaremos a atracar.

A essas palavras, ergo-me, consulto o horizonte; mas a linha d'água     continua confundindo-se com a linha das nuvens.

XXXVIII

Sábado, 15 de agosto. - O mar conserva sua uniformidade monótona.     Nenhuma terra à vista. O horizonte parece excessivamente longe.

Minha cabeça ainda está pesada pela violência de meu     sonho.

Meu tio não sonhou, mas está de mau humor. Perscruta todos     os pontos do espaço com sua luneta e cruza os braços com um     ar enfadado.

Noto que o professor Lidenbrock tende a voltar a ser o homem impaciente     do passado, e anoto o fato em meu diário. Foi preciso o perigo dos     meus sofrimentos para arrancar-lhe uma faísca de humanidade; mas, desde     minha cura, a natureza voltou a dominar.

E, no entanto, por que se exaltar? A viagem não está acontecendo     nas circunstâncias mais favoráveis? A jangada não navega     com uma rapidez maravilhosa? - O senhor está preocupado, meu tio? -     digo, vendo-o levar muitas vezes a luneta ao olho.

- Preocupado, não.

- Então, impaciente? - Qualquer um ficaria impaciente por bem menos!      - Mas estamos navegando com muita rapidez...

- E daí? Não é a velocidade que é pouca, é     o mar que é grande demais! Lembro-me então de que, antes de     partirmos, o professor avaliara o comprimento daquele oceano subterrâneo     em trinta léguas. Já percorrêramos três vezes essa     distância, e as margens do sul ainda não apareciam.

- Não estamos descendo! - torna o professor. - Tudo isso é     tempo perdido, pois, em suma, não vim até tão longe para     passear de barco num lago! Ele chama a travessia de passeio de barco, e o     mar de lago! - Mas - digo - seguimos o caminho indicado por Saknussemm...

- É este o problema. Seguimos o caminho? Será que Saknussemm     encontrou esta extensão de água? Será que a atravessou?     O riacho que nos serviu de guia não fez com que nos perdêssemos     completamente? - Em todo caso, não devemos lamentar ter vindo até     aqui.

O espetáculo é magnífico e...

- Não é o problema de ver. Propus que alcançássemos     um objetivo, e quero alcançá-lo! Não fique só     falando em admirar! Calo-me e deixo o professor roer seus lábios de     impaciência.

Às seis da tarde, Hans reclama seu pagamento, e o professor passa-lhe     os três risdales.

Domingo, 16 de agosto. - Nada de novo. Mesmo tempo.

Mesmo vento. O vento tende a aumentar. Meu primeiro cuidado ao acordar é     constatar a intensidade da luz. Continuo temendo que o fenômeno elétrico     escureça e depois se apague. Nada disso acontece. A sombra da jangada     desenha-se claramente na superfície das ondas.

Realmente o mar é infinito! Deve ter a largura do Mediterrâneo,     ou mesmo do Atlântico. Por que não? Meu tio faz várias     sondagens. Amarra uma das picaretas mais pesadas à ponta de uma corda,     que deixa submergir duzentas braças'. Não há fundo. Temos     muita dificuldade em içar nossa sonda.

Quando a picareta volta enfim a bordo, Hans mostra-nos marcas bem nítidas     em sua superfície. Seria o caso de dizer que o pedaço de ferro     esteve imprensado entre dois corpos duros.

Olho para o caçador.

- Tcinder - diz ele.

Não entendo. Volto-me para meu tio, inteiramente absorto em suas     reflexões. Não acho que vale a pena perturbá-lo. Retorno     ao islandês, que, abrindo e fechando a boca várias vezes, consegue     fazer com que eu compreenda o que quis dizer.

- Dentes! - digo, estupefato, considerando a barra de ferro com mais atenção.

Sim! A marca incrustada no metal é realmente de dentes! Os maxilares     a que pertencem devem ter uma força prodigiosa! Estaria um monstro     das espécies perdidas agitando-se sob a camada profunda das águas,     mais voraz que um tubarão, mais temível que a baleia? Não     consigo desviar os olhos daquela barra meio roída! Meu sonho da noite     passada vai tornar-se realidade.

Esses pensamentos agitam-me durante todo o dia, e minha imaginação     só se acalma num sono de poucas horas.

Segunda feira, 17 de agosto. - Tento lembrar-me dos instintos próprios     dos animais antediluvianos da era secundária, que, sucedendo os moluscos,     os crustáceos e os peixes, precederam o surgimento dos mamíferos     no globo. O mundo então pertencia aos répteis, que reinavam,     senhores nos mares jurássicos'. A natureza atribuíra-lhes uma     organização das mais completas. Que estrutura gigantesca! Que     força prodigiosa! Os atuais sáurios, os jacarés e os     crocodilos, mesmo os maiores e mais temíveis, não passam de     reduções enfraquecidas de seus ancestrais das primeiras eras!     A evocação de tais monstros provoca-me arrepios. Nenhum ser     humano jamais os viu vivos. Apareceram na Terra mil séculos antes do     homem, mas suas ossadas fósseis, descobertas naquele calcário     argiloso, denominado lias pelos ingleses, permitiram que se os reconstruísse     anatomicamente e se conhecesse sua colossal conformação.

Vi no Museu de Hamburgo o esqueleto de um desses sáurios, que media     trinta pés de comprimento. Seria o meu destino, eu, um habitante da     Terra, encontrar-me cara a cara com os representantes de uma família     antediluviana? Não, impossível. No entanto, a marca dos dentes     fortes está gravada na barra de ferro, e, através dela reconheço     que os dentes são cônicos como os de um crocodilo.

Meus olhos fixam o mar com terror. Temo ver um dos habitantes das cavernas     submarinas saltar.

Suponho que o professor Lidenbrock compartilha minhas idéias e até     meu temor, pois, após ter examinado a picareta, examina o oceano.

"Aos diabos", digo a mim mesmo, "essa sua idéia de     sondar! " Deve ter perturbado o descanso de algum animal e ainda poderemos     ser atacados no meio do caminho!...

Dou uma olhada nas armas, para assegurar-me de que estão em bom estado.     Meu tio percebe e aprova-me com um gesto.

Grandes agitações na superfície das ondas indicam o     distúrbio de camadas distantes. O perigo aproxima-se. Todo cuidado     é pouco.

Terçafeira, 18 de agosto. - Chega a noite, ou melhor, o momento em     que o sono pesa sobre as pálpebras, pois não há noite     nesse oceano, e a luz implacável cansa obstinadamente nossos olhos,     como se navegássemos sob o sol dos mares árticos.

Hans está ao leme. Adormeço durante sua guarda.

Duas horas depois, sou despertado por um terrível abalo. A jangada     foi erguida para além das ondas com uma força indescritível     e jogada a vinte toesas.

- O que aconteceu? - grita meu tio. - Abordamos? Hans aponta uma massa escura     que se ergue e abaixa a uma distância de cem toesas. Olho e exclamo:      - É um marsuíno colossal! - Sim - replica meu tio -, e eis agora     um lagarto do mar de tamanho incomum.

- E mais além um crocodilo monstruoso! Olhe que maxilar imenso e     que fileiras de dentes. Ah! Desapareceu! - Uma baleia! Uma baleia! - grita     então o professor. - Estou vendo suas enormes nadadeiras! Veja o ar     e a água que agita com seus respiradouros! A jangada foi erguida para     além das ondas.

De fato, duas colunas líquidas erguem-se a uma altura imensa acima     do nível do mar. Ficamos surpresos, apavorados, estupefatos diante     do rebanho de monstros marinhos. Têm dimensões sobrenaturais,     e o menor deles seria capaz de partir a jangada com uma dentada. Hans quer     mudar de direção para fugir a essa proximidade perigosa; mas     do outro lado também vê inimigos não menos perigosos:     uma tartaruga de quarenta pés de largura e uma serpente de trinta metros     de comprimento, que espicha sua cabeça enorme acima das ondas.

Impossível fugir. Os répteis aproximam-se; dão voltas     em torno da jangada numa velocidade que jamais seria igualada por comboios     a toda a velocidade; desenham círculos concêntricos ao seu redor.     Peguei minha carabina. Mas que efeito podem ter as balas no corpo daqueles     animais cobertos de escamas? Estamos mudos de medo. Estão aproximando-se!     De um lado, o crocodilo, do outro, a serpente. O resto do rebanho marinho     desapareceu. Estou prestes a atirar. Hans me detém com um sinal. Os     dois monstros passam a cinqüenta toesas da embarcação e     precipitam-se um sobre o outro; sua fúria impediu que nos vissem.

O combate acontece a cem toesas da jangada. Vemos claramente os dois monstros     atracando-se.

Mas então parece-me que os outros animais estão chegando para     participar da luta, o marsuíno, a baleia, o lagarto, a tartaruga.

Entrevejo-os todo o tempo. Mostro-os ao islandês, que balança     a cabeça numa negação.

- Tva - diz.

- O quê? Apenas dois! Ele pretende que apenas dois animais...

- Ele tem razão - confirma meu tio, que não tira a luneta     do olho.

- Essa não! - Sim, um dos monstros tem focinho de marsuíno,     cabeça de lagarto e dentes de crocodilo; foi isso o que nos enganou.     É o réptil antediluviano mais temível, o ictiossauro!      - E o outro? - O outro é uma serpente escondida na carapaça     de uma tartaruga, terrível inimigo do primeiro, o plesiossauro! Hans     tinha razão. Apenas dois monstros tumultuam a superfície do     mar, e tenho diante dos olhos dois répteis dos oceanos primitivos.     Vejo o olho sanguinolento do ictiossauro, do tamanho da cabeça de um     homem. A natureza dotou-o de um aparelho de óptica de grande poder,     capaz de resistir à pressão das camadas de água nas profundezas     que habita. Foi denominado com propriedade de baleia dos sáurios, pois     tem sua velocidade e tamanho. Não mede menos de cem pés, e consigo     avaliar seu tamanho quando as nadadeiras verticais de sua cauda aparecem sobre     as ondas. Sua mandíbula é enorme e, de acordo com os naturalistas,     tem pelo menos cento e oitenta e dois dentes.

O plesiossauro, serpente de tronco cilíndrico, cauda curta, tem as     patas dispostas em forma de galhos. Seu corpo é inteiramente coberto     por uma carapaça, e seu pescoço, flexível como o de um     cisne, ergue-se trinta pés acima das águas.

Os animais atacam-se com uma fúria indescritível. Erguem montanhas     líquidas que refluem até a jangada. Parece que vamos naufragar     a qualquer momento. Ouvimos assobios de prodigiosa intensidade. Os dois animais     estreitam-se. Não consigo mais distinguir um do outro. Temos tudo a     temer da ira do vencedor.

Passam-se uma, duas horas. A luta continua encarniçada. Os combatentes     ora aproximam-se, ora afastam-se da jangada. Permanecemos imóveis,     prontos para atirar.

De repente, o ictiossauro e o plesiossauro desaparecem, sulcando um verdadeiro     maelström nas ondas. Passam-se vários minutos. Será que     foram terminar o combate nas profundezas do mar? De repente, aparece uma cabeça     enorme, a do plesiossauro.

O monstro está mortalmente ferido. Já não vejo sua     imensa carapaça. Apenas seu longo pescoço ergue-se, cai e volta     a erguer-se, inclina-se, fustiga as ondas como um chicote gigantesco e torce-se     como um verme cortado. A água espirra a uma distância considerável.     Cega-nos. Mas logo termina a agonia do réptil, seus movimentos reduzem-se,     suas contorções acalmam-se e aquele longo pedaço de serpente     estende-se como uma massa inerte nas ondas já tranqüilas.

Quanto ao ictiossauro, voltou à sua caverna submarina ou vai reaparecer     na superfície do mar?

XXXIX

Quarta feira, 19 de agosto. - Felizmente o vento, que sopra com força,     permite-nos fugir rapidamente do palco da luta. Hans continua ao leme. Meu     tio, arrancado de suas idéias absorventes pelos incidentes do combate,     volta à sua impaciente contemplação do mar.

A viagem retoma sua uniformidade monótona, que não faço     a menor questão de interromper devido aos perigos de ontem.

Quinta feira, 20 de agosto. - Brisa norte-nordeste pouco uniforme. Temperatura     alta. Navegamos a uma velocidade de três léguas e meia por hora.

Ao meio-dia, ouvimos um ruído à distância. Atenho-me     a anotar o fato sem conseguir explicá-lo. É um mugido contínuo.

- Há, ao longe - diz o professor -, algum rochedo ou alguma ilhota     contra a qual o mar se quebra.

Hans sobe à ponta do mastro, mas não enxerga qualquer escolho.

O mar é uniforme até a linha do horizonte.

Passam-se três horas. Os mugidos parecem proceder de uma queda-d'água     distante.

Observo isso a meu tio, que abana a cabeça. No entanto, estou convencido     de que não me engano. Estaríamos correndo em direção     a uma catarata que nos precipitaria num abismo? É possível que     essa forma de descida agrade ao professor, já que se aproxima da vertical,     mas quanto a mim...

Em todo caso, deve haver a algumas léguas na direção     do vento algum fenômeno ruidoso, pois agora ouvimos mugidos de grande     violência. Vêm do céu ou do oceano? Levanto a vista para     os vapores suspensos na atmosfera e tento sondar sua profundidade. O céu     está tranqüilo. As nuvens, bem altas na abóbada, parecem     imóveis e perdem-se na intensa irradiação de luz. A razão     do fenômeno deve ser outra.

Perscruto então o horizonte claro, sem qualquer bruma. Seu aspecto     não mudou. Contudo, se o ruído provém de uma queda, de     uma catarata, se todo aquele oceano se precipita numa bacia inferior, se aqueles     mugidos são produzidos por uma massa de água que cai, a corrente     deve ativar-se e sua velocidade crescente pode fornecer-me a medida do perigo     que nos ameaça. Consulto a corrente. Nada. A garrafa vazia que jogo     no mar flutua na direção do vento.

Por volta das quatro horas, Hans levanta-se, escala o mastro e sobe à     sua ponta. Dali seu olhar percorre o círculo descrito pelo oceano diante     da jangada e detém-se num ponto. Seu rosto não exprime qualquer     surpresa, mas seu olhar fixa-se.

- Ele viu algo - comenta meu tio.

- Acho que sim.

Hans desce e, estendendo o braço para o sul, diz: - Der nere.

- Ali? - pergunta meu tio.

E pegando sua luneta, examina atentamente por um minuto que me parece um     século.

- Sim, sim! - exclama.

- O que o senhor está vendo? - Um feixe imenso acima das ondas.

- Mais um animal marinho.

- Talvez.

- Então rumemos para oeste, pois não dá para prever     o que pode nos acontecer se depararmos com um monstro antediluviano.

- Deixemos como está - responde meu tio.

Volto-me para Hans, que segura seu leme com um rigor inflexível.

No entanto, se da distância que nos separa desse animal, distância     que devemos estimar em pelo menos doze léguas, dá para ver a     coluna de água que suas nadadeiras levantam, deve ser de um tamanho     sobrenatural. Fugir seria submeter-se às leis da mais vulgar prudência.     Mas não viemos até aqui para ser prudentes.

Prosseguimos. Quanto mais nos aproximamos, mais cresce o feixe. Que monstro     pode se encher de tamanha quantidade de água e expulsá-la assim,     ininterruptamente? Às oito da noite, estamos a menos de duas léguas     dele. Seu corpo escuro, enorme, acidentado, estende-se pelo mar como uma ilhota.     Seria ilusão, pavor? Seu comprimento parece ultrapassar mil toesas!     Que cetáceo seria esse que nem os Cuvier, nem os Blumembach previram?     Está imóvel e como que adormecido; o mar não parece conseguir     erguê-lo; são as vagas que ondulam em seus flancos. A coluna     d'água, projetada a uma altura de quinhentos pés, volta a cair     em forma de chuva com um barulho ensurdecedor. Corremos, insensatos, em direção     àquela massa poderosa, que corresponde a mais de cem baleias.

O terror toma conta de mim. Não quero prosseguir! Cortarei, se necessário,     a adriça da vela! Revolto-me contra o professor, que não me     responde.

De repente, Hans levanta-se, e apontando o local ameaçador: - Holme!      - diz.

- Uma ilha! - exclama meu tio.

- Uma ilha! - digo, por minha vez, dando de ombros.

- É claro! - responde o professor numa grande gargalhada.

- E essa coluna d'água? - Geyser - diz Hans.

- Claro, gêiser! - é a resposta de meu tio. - Um gêiser     semelhante ao da Islândia.

A princípio, não admito ter me enganado tão grosseiramente.

Confundir uma ilhota com um monstro marinho! Mas constato as evidências     e devo, finalmente, admitir meu erro. Não passa de um fenômeno     natural.

À medida que nos aproximamos, as dimensões do feixe líquido     tornam-se grandiosas. A ilhota é extremamente parecida com um imenso     cetáceo, cuja cabeça domina as ondas a uma altura de dez toesas.     O gêiser, termo que os islandeses pronunciam "geisir" e que     significa "furor", ergue-se majestosamente em sua extremidade. Por     vezes estouram detonações surdas, e o jato enorme, enraivecido,     sacode seu penacho de vapores, saltando até a primeira camada de nuvens.     Só. Não é rodeado por fontes quentes ou fumaça,     e todo o poder vulcânico resume-se nele. Os raios da luz elétrica     misturam-se a esse feixe ofuscante, em que cada gota contém todos os     matizes do prisma.

- Abordemos - comanda o professor.

É preciso, porém, evitar com cuidado aquela tromba d'água,     que afundaria a jangada num instante. Manobrando com habilidade, Hans nos     conduz à extremidade da ilhota.

Salto para a rocha. Meu tio acompanha-me a passos rápidos, enquanto     o caçador permanece em seu posto, como um homem acima desses assombros.

Caminhamos num granito misturado a tufo silicioso; o solo estremece a nossos     pés como os flancos de uma caldeira onde se torcem vapores superaquecidos;     queima. Chegamos a uma pequena bacia central de onde se ergue o gêiser.     Mergulho o termômetro na água que corre fervente, e ele marca     um calor de cento e sessenta e três graus.

Assim, essa água sai de um centro ardente, o que contradiz singularmente     as teorias do professor Lidenbrock. Não consigo evitar um comentário.

- O que isso prova contra a minha doutrina? - replica ele.

- Nada - digo num tom seco, percebendo que estou diante de uma teimosia     a toda prova.

No entanto, sou obrigado a confessar que estamos sendo singularmente favorecidos     até aqui e que, por uma razão qualquer, a viagem está     acontecendo em condições especiais de temperatura; mas parece-me     evidente que, mais dia menos dia, chegaremos àquelas regiões     onde o calor central atinge os seus limites máximos e ultrapassa todas     as graduações dos termômetros.

É isso o que veremos. É a palavra final do professor, que,     após ter batizado aquela ilhota vulcânica com o nome do sobrinho,     dá o sinal de embarque.

Ainda fico contemplando o gêiser por alguns minutos. Constato que     em seus acessos os jatos são irregulares, que por vezes diminuem de     intensidade, depois recomeçam com novo vigor, o que atribuo às     variações de pressão dos vapores acumulados em seu reservatório.

Finalmente partimos, contornando as rochas muito escarpadas do sul. Hans     aproveitou a parada para consertar alguns problemas da jangada.

Antes de largar, procedo a algumas observações para calcular     a distância percorrida e anoto-as em meu diário. Transpusemos     duzentas e setenta léguas de mar desde porto Grauben e estamos a seiscentas     e vinte léguas da Islândia, sob a Inglaterra.

XL

Sexta feira, 21 de agosto. - No dia seguinte, o magnífico gêiser     desaparece. O vento, que aumentara, afastou-nos rapidamente da ilhota Axel.     Os mugidos apagaram-se aos poucos.

O tempo, por assim dizer, vai mudar em breve. A atmosfera está carregando-se     de vapores que contêm a eletricidade formada pela evaporação     das águas salinas; as nuvens baixam sensivelmente e assumem um matiz     uniformemente esverdeado; os raios elétricos mal conseguem atravessar     a cortina opaca que desceu sobre o palco onde vai acontecer o drama das tempestades.

Sinto-me particularmente impressionado, como toda criatura diante da aproximação     de um cataclismo. Os cúmulos' amontoados ao sul apresentam um aspecto     sinistro; têm aquela aparência "impiedosa" que sempre     observei no início das tempestades. O ar está pesado, o mar,     calmo. Ao longe, as nuvens parecem grandes bolas de algodão amontoadas     em desordem pitoresca; enchem-se aos poucos, perdendo em número o que     ganham em tamanho; são tão pesadas que não conseguem     se destacar do horizonte; ao sopro das correntes elevadas, gradualmente fundem-se,     escurecem e logo apresentam uma única camada de aspecto temível;     por vezes um novelo de vapores ainda iluminado salta sobre esse tapete acinzentado     e logo vai perder-se na massa opaca.

É evidente que a atmosfera está saturada de fluido, do qual     estou impregnado. Meus cabelos eriçam-se como nas proximidades de uma     máquina elétrica. Tenho a impressão de que, se meus companheiros     me tocassem nesse momento levariam um choque violento.

Às dez horas da manhã, os sintomas da tempestade são     mais nítidos; seria possível dizer que o vento está enfraquecendo     para tomar fôlego; o céu parece um odre imenso no qual os furacões     se acumulam.

Não quero acreditar nas ameaças do céu, e no entanto     não posso evitar dizer: - Vamos ter tempo ruim.

O professor não responde. Está com um humor horroroso por     ver o oceano prolongar-se indefinidamente diante de seus olhos.

- Vamos ter tempestade - digo, estendendo a mão para o horizonte.      - As nuvens estão baixando sobre o mar como que para esmagá-lo.

Silêncio geral. O vento cala-se. A natureza parece uma morta que não     respira mais. No mastro, onde já vejo aparecer um leve fogo de Santelmo,     a vela frouxa cai, formando pesadas dobras.

A jangada está imóvel no meio de um mar denso, sem ondulações.

Se não estamos andando, por que manter essa vela içada, que     pode ser nossa perdição ao primeiro choque da tempestade? -      É melhor recolhê-la e derrubarmos o mastro! É bem mais     prudente.

- De jeito nenhum! - exclama meu tio -, de jeito nenhum! Que o vento nos     pegue! Que a tempestade nos leve! Mas que finalmente eu veja os rochedos de     uma margem, mesmo que a jangada se despedace! Mal termina sua frase, e já     o horizonte sul muda subitamente de aspecto. Os vapores acumulados resolvem-se     em água, e o ar, chamado com urgência para preencher os vazios     produzidos pela condensação, transforma-se em um furacão,     que vem dos cantos mais longínquos da caverna. A escuridão aumenta.     Mal consigo fazer algumas anotações incompletas.

A jangada é erguida, salta. Meu tio cai. Arrasto-me até ele.

Está bem agarrado ao pé do mastro e parece considerar com     prazer o espetáculo dos elementos em fúria.

Hans não se mexe. Seus longos cabelos puxados pelo vendaval e voltando     a cair em seu rosto imóvel, atribuem-lhe uma fisionomia estranha, pois     todas as pontas estão cobertas de pequeninos penachos luminosos. Sua     máscara aterrorizadora é a de um homem antediluviano, contemporâneo     dos ictiossauros e megatérios.

O mastro resiste. A vela incha como uma bolha prestes a explodir. A jangada     corre, levada por um impulso que não consigo avaliar, mas ainda mais     devagar que aquelas gotas de água deslocadas sob ela, cuja rapidez     traça linhas retas e nítidas.

- A vela! A vela! - digo, fazendo sinal para que a recolham.

- Não! - responde meu tio.

- Nej - murmura Hans, abanando a cabeça com suavidade.

Enquanto isso a chuva forma uma catarata ruidosa diante do horizonte para     o qual corremos enlouquecidos. Mas antes que ela chegue até nós,     o véu de nuvens rasga-se, o mar entra em ebulição e a     eletricidade, produzida por uma ampla operação química     que acontece nas camadas superiores, entra em ação. Aos estouros     do trovão misturam-se os jatos faiscantes do raio; inúmeros     relâmpagos entrecruzam-se no meio das detonações; a massa     dos vapores torna-se incandescente; os granizos que batem no metal de nossas     ferramentas e armas parecem luminosos; as ondas revoltas lembram colinas ignívomas     sob as quais se alimenta um fogo interior, cada aresta encimada por uma chama.

Meus olhos estão ofuscados pela densidade da luz, meus tímpanos     estouram com o barulho do raio! Tenho de segurar-me ao mastro, como um caniço     sob a violência de um furacão!!! (Aqui, minhas anotações     de viagem tornam-se muito incompletas. Só encontrei algumas observações     fugidias, escritas, de certa forma, maquinalmente. Mas, em sua precariedade,     em sua própria falta de precisão, estão marcadas pela     emoção que me dominava, e melhor que minha memória, transmitem     o sentimento da situação.)

Domingo, 23 de agosto. - Onde estamos? Sendo levados numa velocidade incomensurável.

A noite foi terrível. A tempestade não se acalma. Vivemos     num ambiente de barulho, de detonações incessantes. nossos ouvidos     doem. Não é possível falarmos um com o outro.

Não pára de relampejar. Vejo os ziguezagues retrógrados,     que, após um jato rápido, voltam de baixo até em cima     para bater na abóbada de granito. Será que vai desmoronar? Outros     relâmpagos bifurcam-se ou assumem a forma de globos de fogo que estouram     como bombas. O ruído, em geral, não parece aumentar; ultrapassou     o limite de intensidade que o ouvido humano pode agüentar e, mesmo que     todos os depósitos de pólvora do mundo explodissem ao mesmo     tempo, "não ouviríamos mais do que isso".

Há uma emissão contínua de luz na superfície     das nuvens; a matéria elétrica desprende-se incessantemente     de suas moléculas; é evidente que os princípios gasosos     do ar estão alterados; inúmeras colunas d'água erguem-se     para a atmosfera e voltam a cair, espumantes.

Para onde estamos indo?... Meu tio está inteiramente deitado na ponta     da jangada.

O calor duplicou. Consulto o termômetro; indica... (O número     está apagado.)

Segunda feira, 24 de agosto. - Isso não vai acabar nunca! Por que     o estado dessa atmosfera, tão densa, uma vez modificado, não     se tornaria definitivo? Estamos alquebrados de cansaço. Hans, como     sempre. A jangada corre invariavelmente para sudeste. Já percorremos     mais de duzentas léguas desde a nossa saída da ilhota Axel.

Ao meio-dia, a violência da tempestade intensifica-se ainda mais.     Temos de amarrar solidamente todos os objetos que compõem nosso carregamento.     Também nós amarramo-nos. As ondas passam por cima de nossas     cabeças.

Há três dias não conseguimos trocar qualquer palavra.     Abrimos a boca, mexemos os lábios, mas não produzimos qualquer     som apreciável. Mesmo falando-nos ao ouvido, não conseguimos     escutar uns aos outros.

Meu tio aproximou-se de mim. Articulou algumas palavras.

Acho que me disse: "Estamos perdidos". Não estou tão     certo disso.

Decido escrever-lhe o seguinte: "Recolhamos a vela".

Dá-me o seu consentimento com um gesto.

Mal teve tempo de baixar e voltar a levantar a cabeça, quando um     disco de fogo apareceu à beira da jangada. O mastro e a vela voaram     ao mesmo tempo; vi que subiram a uma altura prodigiosa, como o pterodáctilo,     pássaro fantástico dos primeiros séculos.

Estamos gelados de medo. A bola, metade branca, metade azulada, do tamanho     de uma bomba de seis polegadas, passeia lentamente, girando numa velocidade     surpreendente sob a corrente do furacão. Ela passa por aqui, por ali,     sobe numa das estruturas do barco, pula o saco de provisões, volta     a descer um pouco, salta, roça a caixa de explosivos. Horror! Vamos     explodir! Não. O disco ofuscante afasta-se; aproxima-se de Hans, que     o encara; de meu tio, que sai correndo de joelhos para evitá-lo; de     mim, pálido e trêmulo sob o brilho de sua luz e calor; faz uma     pirueta perto de meu pé, que tento tirar e não consigo.

Um cheiro de gás nitroso enche a atmosfera; penetra na boca, nos     pulmões. Sufoco.

Por que não consigo retirar meu pé? Está preso na jangada!     Ah! A queda do globo elétrico imantou todo o ferro que havia a bordo.     Os instrumentos, as ferramentas, as armas agitam-se entrechocando-se com um     tinido agudo; os pregos de meu sapato aderem a uma placa de ferro engastada     na madeira. Não consigo tirar meu pé! Finalmente, arranco-o     com um esforço violento no momento em que a bola vai pegá-lo     em seu movimento giratório e arrastar-me, se...

Ah, que luz intensa! O globo está explodindo! Estamos cobertos por     jatos de chamas! Depois, tudo apaga-se. Tive tempo de ver meu tio estendido     na jangada, Hans ainda no leme "cuspindo fogo" sob a influência     da eletricidade que o impregna! Para onde estamos indo? Para onde?

Terça feira, 25 de agosto. - Volto a mim após um desmaio prolongado.     A tempestade continua; os relâmpagos parecem uma ninhada de serpentes     solta na atmosfera.

Continuamos no mar? Sim, numa velocidade incalculável.

Passamos sob a Inglaterra, sob a Mancha, sob a França, talvez sob     toda a Europa! Mais um barulho! Sem dúvida, o mar quebrando-se nos     rochedos! Mas então...

XLI

Aqui termina o que chamei de "diário de bordo", felizmente     salvo do naufrágio. Continuo minha narrativa como antes.

Não sei dizer o que aconteceu no choque da jangada com os escolhos     da costa. Senti que caía no mar e se escapei da morte, se meu corpo     não foi despedaçado pelas rochas pontiagudas, foi porque os     braços vigorosos de Hans retiraram-me do abismo.

O corajoso islandês transportou-me para fora do alcance das ondas,     para uma areia ardente onde me encontrei ao lado de meu tio.

Depois voltou aos rochedos, contra os quais batiam vagas furiosas, para     salvar alguns restos do naufrágio. Não conseguia falar; estava     alquebrado pelas emoções e pelo cansaço; precisei de     uma hora para recuperar-me.

Enquanto isso, o dilúvio continuava, mas com aquela força     que anuncia o fim das tempestades. Algumas rochas sobrepostas ofereceram-nos     abrigo das torrentes do céu. Hans preparou alimentos em que não     consegui tocar, e todos nós, esgotados por três noites de vigília,     caímos num sono doloroso.

No dia seguinte, o tempo estava magnífico. O céu e o mar haviam-se     acalmado de comum acordo. Todo vestígio de tempestade desaparecera.     Com palavras alegres, o professor saudou meu despertar. Estava numa alegria     terrível.

- Então, meu filho, dormiu bem? - exclamou.

Parecia que estávamos na casa da Königstrasse, que eu estava     descendo tranqüilamente para o desjejum, que eu iria me casar com Grauben     naquele mesmo dia.

Qual o quê! Por menos que a tempestade tivesse jogado a jangada para     leste, já tínhamos passado sob a Alemanha, sob minha querida     cidade de Hamburgo, sob aquela rua onde ficava tudo o que eu amava no mundo.     Então apenas quarenta léguas estavam separando-me dela! Mas     quarenta léguas verticais de um muro de granito, e na realidade mais     de mil léguas a transpor! Todas essas dolorosas reflexões atravessaram-me     rapidamente a mente antes de eu responder à pergunta de meu tio.

- E essa agora! - repetiu. - Você não quer dizer se dormiu     bem? - Muito bem - respondi. - Ainda estou quebrado, mas não é     nada.

- Claro que não é nada, só um pouco de cansaço.

- O senhor parece muito contente, meu tio.

- Estou encantado, meu rapaz, encantado! Chegamos! - Ao termo de nossa expedição?      - Não, ao final desse mar que não acabava nunca. Agora voltaremos     ao caminho de terra para penetrarmos realmente nas entranhas do globo.

- O senhor permite-me uma pergunta? - Permito, Axel.

- E a volta? - A volta! Você já pensa em voltar antes mesmo     de termos chegado? - Não, só quero saber como voltaremos.

- Da maneira mais simples do mundo. Assim que chegarmos ao centro do esferóide,     ou encontraremos um outro caminho para tornar a subir à superfície     ou voltaremos da forma mais burguesa possível: pelo caminho já     percorrido. Agrada-me pensar que não se fechará atrás     de nós.

- Então teremos de consertar a jangada.

- Com certeza.

- Ainda há provisões suficientes para continuarmos nossa grande     aventura? - Claro. Hans é um rapaz muito hábil, e tenho certeza     de que salvou a maior parte do carregamento.

Saímos daquela gruta fustigada pela brisa. Tinha uma esperança     que era, ao mesmo tempo, um temor; parecia-me impossível que a terrível     abordagem da jangada não tivesse destroçado tudo o que carregava.     Estava errado. Ao chegar à margem, vi Hans no meio de uma profusão     de objetos bem arrumados. Meu tio apertou-lhe a mão num gesto de agradecimento.     Aquele homem, de uma devoção sobre-humana, talvez único     no mundo, trabalhara enquanto dormíamos e salvara os objetos mais preciosos     correndo risco de vida.

Mesmo assim, perdemos objetos bastante importantes; nossas armas, por exemplo;     mas afinal não eram tão indispensáveis. A provisão     de pólvora estava intacta, depois de ter quase explodido durante a     tempestade.

- Bem, já que os fuzis se foram, não seremos obrigados a caçar      - exclamou o professor.

- E os instrumentos? - Aqui está o manômetro, o mais útil     de todos, que vale por todos os outros! Com ele poderei calcular a profundidade     e saber se alcançamos o centro. Sem ele, arriscaríamos ultrapassá-lo     e ir parar na terra dos antípodas! Estava numa alegria feroz.

- E a bússola? - perguntei.

- Está ali, no rochedo, em perfeito estado, assim como o cronômetro     e os termômetros. Esse caçador é mesmo precioso! Era preciso     reconhecer que os instrumentos estavam todos ali. Quanto às ferramentas     e outros equipamentos, vi, espalhados na areia, escadas, cordas, pás     e picaretas.

Faltava saber dos víveres.

- E as provisões? - perguntei.

- Vejamos as provisões - respondeu meu tio.

As caixas com os alimentos estavam alinhadas na praia em perfeito estado;     a maioria delas havia sido respeitada pelo mar, e podíamos contar com     víveres para mais quatro meses, juntando os biscoitos, a carne-seca,     a genebra e o peixe seco.

- Quatro meses! - gritou o professor. - Dá para ir e voltar, com     o restante pretendo oferecer um grande jantar a meus amigos do Johannaeum.

Já devia ter-me habituado há muito tempo com o temperamento     de meu tio, mas aquele homem sempre me surpreendia.

- Agora devemos nos reabastecer de água com a chuva que a tempestade     depositou em todas essas bacias de granito; assim nada de sede a temer. Quanto     à jangada, vou recomendar que Hans a conserte como puder, embora ache     que não será mais útil.

- Por quê? - eu quis saber.

- Intuição, meu filho. Acho que não sairemos por onde     entramos.

Olhei para o professor com uma certa desconfiança. Perguntava a mim     mesmo se não tinha ficado louco. E, no entanto, nunca falara com tanto     bom senso.

- Vamos comer - retomou.

Acompanhei-o até um cabo elevado depois que deu suas instruções     ao caçador. Ali, a carne-seca, os biscoitos e o chá formaram     uma refeição excelente, que, devo confessar, foi uma das melhores     de minha vida. A necessidade, o ar puro, a calma depois da agitação,     tudo isso contribuía para o meu apetite. Durante o almoço, conversei     com meu tio sobre o problema de sabermos onde estávamos naquele momento.

- Acho difícil calcular - eu disse.

- Calcular exatamente - respondeu - é impossível, pois nesses     três dias de tempestade não consegui anotar a velocidade e a     direção da jangada. Mas dá para avaliar mais ou menos...

- De fato, a última observação foi feita na ilhota     do gêiser...

- Na ilhota Axel, filho. Não decline a honra de ter batizado com     seu nome a primeira ilha descoberta no centro do maciço terrestre.

- Muito bem! Na ilhota Axel havíamos atravessado cerca de duzentas     e setenta léguas de mar, e estávamos a mais de seiscentas léguas     da Islândia.

- Certo, partamos desse ponto e contemos quatro dias de tempestade, durante     os quais nossa velocidade não deve ter sido inferior a oitenta léguas     por vinte e quatro horas.

- Acho que sim. Seriam mais trezentas léguas.

- Sim, e o mar Lidenbrock teria mais ou menos seiscentas léguas de     uma margem à outra! Sabe, Axel, que pode competir em grandeza com o     Mediterrâneo? - Sim, principalmente se atravessamos seu comprimento.

- O que é bem possível! - E, fato curioso - acrescentei -,      se nossos cálculos estiverem certos, o Mediterrâneo está     justamente sobre nós.

- É verdade! - É mesmo verdade, pois estamos a novecentas     léguas de Reykjavik.

- Percorremos uma bela distância, meu filho. Mas só podemos     afirmar que estamos sob o Mediterrâneo em vez de sob a Turquia ou o     Atlântico se não nos desviamos de nosso rumo.

- Não, o vento parecia constante; por isso acho que essa margem localiza-se     a sudeste de porto Grauben.

- Isso é fácil de averiguar consultando a bússola.     Consultemos a bússola! O professor dirigiu-se até o rochedo     sobre o qual Hans depusera os instrumentos. Estava feliz, alegre, esfregava     as mãos, fazia pose! Realmente um meninão! Acompanhei-o curioso     de saber se não me enganara em minhas estimativas.

Chegando ao rochedo, meu tio pegou a bússola, deitou-a e observou     a agulha, que, após oscilar, parou numa posição fixa     pela influência magnética.

Meu tio olhou, esfregou os olhos, olhou de novo. Finalmente, voltou-se para     mim estupefato.

- O que houve? - perguntei.

Fez um sinal para que eu examinasse o instrumento. Deixei escapar uma exclamação     de surpresa. A agulha marcava o norte no lugar onde supúnhamos ser     o sul! Voltava-se para a praia, em vez de mostrar o alto-mar! Mexi na bússola,     examinei-a; estava em perfeito estado. Por mais que forçássemos     outra posição para a agulha, esta retomava obstinadamente a     direção inesperada.

Assim, não havia mais dúvidas de que, durante a tempestade,     uma virada de vento que não percebêramos trouxera o barco de     volta às margens que meu tio acreditava ter deixado para trás.

XLII

Impossível descrever a sucessão de sentimentos que agitaram     o professor Lidenbrock, primeiro o estupor, depois a incredulidade e finalmente     a raiva. Nunca vi homem a princípio tão desconcertado e depois     tão irritado. Teríamos de começar tudo outra vez, o cansaço     da travessia, os perigos! Recuáramos em vez de ter seguido em frente!     Meu tio voltou rapidamente ao controle da situação.

- Ah! A fatalidade quer brincar comigo! - gritou. - Os elementos estão     conspirando contra mim! O ar, o fogo e a água uniram seus esforços     para impedir-me de passar! Muito bem, verão do que a minha vontade     é capaz. Não cederei, não recuarei nenhum milímetro     e veremos de quem será a vitória, do homem ou da natureza! De     pé no rochedo, irritado, ameaçador, Otto Lidenbrock, semelhante     ao poderoso Ajax, parecia desafiar os deuses. Achei que era o caso de intervir     e brecar aquele arrebatamento insensato.

- Escute - disse num tom firme. - Aqui embaixo há um limit para qualquer     ambição; não devemos lutar contra o impossível;     estamos mal equipados para uma viagem por mar; não é possível     percorrer quinhentas léguas numas vigas mal amarradas e com um cobertor     à guisa de vela, um bastão como mastro, contra ventos enfurecidos.     Não podemos dominar, não passamos de brinquedo das tempestades,     e tentar outra vez essa travessia impossível é loucura! Pude     desenvolver toda uma série de argumentos, todos irrefutáveis,     durante dez minutos sem ser interrompido, mas unicamente em virtude da falta     de atenção do professor, que não escutou uma só     de minhas palavras.

- À jangada! - gritou.

Essa foi sua resposta. Por mais que eu suplicasse, me exaltasse, esbarrava     numa vontade mais férrea que o granito.

Naquele momento, Hans acabava de consertar a jangada. Parecia que aquele     ser bizarro adivinhava os planos de meu tio.

Consolidara a embarcação com alguns pedaços de surtarbrandur.

Já içara a vela, em cujas dobras flutuantes o vento brincava.

O professor disse algumas palavras ao guia, que logo embarcou as bagagens     e arrumou tudo para a partida. A atmosfera estava bastante límpida     e soprava um vento noroeste constante.

O que eu podia fazer? Resistir sozinho contra os dois? Impossível.     Se Hans ficasse a meu favor! Mas não! Parecia que o islandês     deixara de lado qualquer vontade pessoal e fizera voto de abnegação.     Eu nada conseguiria de um criado tão submisso a seu patrão.     Tinha de ir com eles.

Estava indo para meu lugar habitual na jangada quando meu tio me deteve.

- Só partiremos amanhã - disse ele.

Minha resposta foi um gesto de resignação.

- Não devo negligenciar nada - tornou -, e como a fatalidade empurrou-me     para esta parte da costa, não a abandonarei antes de examiná-la.

Essa observação é compreensível na medida em     que voltáramos às margens do norte, mas não exatamente     ao local de nossa primeira partida. Porto Grauben não devia estar mais     a oeste. Nada mais razoável então do que examinar com cuidado     os arredores daquela nova abordagem.

- À descoberta! - chamei.

Deixando Hans ocupado com suas coisas, partimos. Era grande a distância     entre o mar e o pé dos contrafortes. Caminhamos por uma boa meia hora     antes de chegar à parede de rochedos.

Nossos pés esmagavam inúmeras conchas de todas as formas e     tamanhos, onde viveram os animais das primeiras eras. Também via enormes     carapaças, cujo diâmetro ultrapassava quinze pés.

Haviam pertencido aos gigantescos gliptodontes do período plioceno,     diante dos quais a tartaruga moderna não passava de uma pequenina redução.     Além disso o solo estava juncado de grande quantidade de cacos semelhantes     a pedras, espécies de calhaus arredondados pelas ondas e dispostos     em várias fileiras. Fui, portanto, levado a pensar que o mar ocupara     outrora aquele espaço.

As vagas haviam deixado vestígios evidentes de sua passagem nas rochas     dispersas e agora fora de seu alcance.

Isso podia explicar até um certo ponto a existência daquele     oceano quarenta léguas abaixo da superfície do globo. Mas a     minha opinião era que aquela massa líquida se perderia gradualmente     nas entranhas da Terra, e provinha, sem dúvida, das águas do     oceano, que abriram caminho por alguma fissura. No entanto, tinha de admitir     que essa fissura estava atualmente tampada, pois toda aquela caverna, ou melhor,     todo aquele imenso reservatório teria se enchido num prazo bem curto.     Talvez até, por ter tido de lutar contra os fogos subterrâneos,     a água tivesse, em parte, se evaporado. Daí a explicação     das nuvens que pairavam sobre nossas cabeças e a emanação     da eletricidade que criava tempestades dentro do maciço terrestre.

Essa teoria dos fenômenos que testemunháramos parecia-me satisfatória,     pois, por maiores que sejam as maravilhas da natureza, sempre podem ser explicadas     pela física.

Caminhávamos, portanto, por uma espécie de terreno sedimentar     formado pelas águas, como todos os terrenos desse período, tão     amplamente distribuídos pela superfície do globo. O professor     examinava com atenção cada interstício de rocha. Achava     importante sondar a profundidade de qualquer abertura.

Já andáramos uma milha ao longo das margens do mar Lidenbrock     quando o solo mudou subitamente de aspecto. Parecia revolvido, convulsionado     por uma elevação violenta das camadas inferiores. Em vários     sítios, os afundamentos e levantamentos atestavam um forte deslocamento     do maciço terrestre.

Avançávamos com dificuldade por aquelas fendas de granito,     misturadas com sílex, quartzo e depósitos de aluvião     quando apareceu um campo, mais do que um campo, uma planície de ossadas.

Parecia um imenso cemitério, em que gerações de vinte     séculos confundiam sua poeira eterna. Ao longe, altas colinas de detritos     estavam dispostas em andares. Ondulavam até os limites do horizonte,     onde se perdiam numa bruma fundente. Ali, talvez em três milhas quadradas,     acumulava-se toda a história da vida animal, pouco inscrita nos terrenos     demasiadamente recentes do mundo habitado.

Estávamos sendo arrastados por uma curiosidade impaciente.

Nossos pés esmagavam com um ruído seco os vestígios     daqueles animais ante-históricos e aqueles fósseis, cujos restos     raros e interessantes eram tão disputados pelos museus das cidades     grandes.

A vida de mil Cuviers não teria bastado para recompor os esqueletos     dos seres orgânicos que repousavam naquele magnífico ossário.

Eu estava estupefato. Meu tio erguera seus longos braços para a espessa     abóbada que nos servia de céu. A boca desmesuradamente aberta,     os olhos fulgurantes sob as lentes dos óculos, a cabeça, que     ele abanava de cima para baixo, da esquerda para a direita, enfim, toda a     sua postura demonstrava uma surpresa infinita. Encontrava-se diante de uma     coleção inigualável de leptotérios, mericotérios,     lofópodes, anoplotérios, megatérios, mastodontes, protopitecos,     pterodáctilos, todos monstros antediluvianos amontoados para sua satisfação     pessoal. Imaginem se um bibliomaníaco fanático fosse transportado     de repente para a famosa biblioteca de Alexandria, incendiada por Omar, por     um milagre renascida das cinzas! Meu tio, o professor Lidenbrock, sentia-se     diante de uma miragem.

Mas um sentimento bem diferente tomou conta dele quando, correndo pela poeira     orgânica, deu com um crânio desnudo; gritou, a voz trêmula:      - Axel, Axel, uma cabeça humana! - Uma cabeça humana! Tio! -      respondi, não menos estupefato.

- Sim, meu sobrinho! Ah, Milne-Edwards, de Quatrefages por que vocês     não estão aqui onde estou, eu, Otto Lidenbrock!

XLIII

Para compreender essa evocação de meu tio aos ilustres cientistas     franceses, é preciso saber que ocorreu um fato muito importante na     paleontologia pouco tempo antes de nossa partida.

A 28 de março de 1863, empreiteiros de aterros que escavavam nas     pedreiras de Moulin-Quignon perto de Abbeville, no Departamento de Somme,     sob a direção de Boucher de Perthes, descobriram uma mandíbula     humana catorze pés abaixo da superfície do solo. Era o primeiro     fóssil dessa espécie a ser descoberto. Perto dele, foram encontrados     machados de pedra e sílex talhados, coloridos e revestidos pelo tempo     de uma pátina uniforme.

Foi grande o impacto da descoberta, não somente na França     mas também na Inglaterra e na Alemanha. Vários cientistas do     Instituto Francês, entre outros Milne-Edwards e de Quatrefages, dedicaram-se     ao caso de corpo e alma, demonstraram a incontestável autenticidade     das ossadas em questão e transformaram-se nos mais ardentes defensores     desse "processo da mandíbula", como diziam os ingleses.

Uniram-se aos geólogos do Reino Unido, que consideravam o fato mais     do que certo, Falconer, Busk, Carpenter, etc., cientistas da Alemanha, entre     eles, nas primeiras fileiras, o mais fogoso, o mais entusiasta, meu tio Lidenbrock.

A autenticidade de um fóssil humano da era quaternária parecia;     portanto, incontestavelmente demonstrada e admitida.

É verdade que houve um adversário encarniçado do sistema,     Élie de Beaumont. Essa alta autoridade científica sustentava     que o terreno de Moulin-Quignon não pertencia ao diluvium, mas a uma     camada menos antiga, e, nesse ponto apoiado por Cuvier, não admitia     ser a espécie humana contemporânea dos animais da era quaternária.     Meu tio Lidenbrock, que concordava com a maioria dos geólogos, manteve     sua opinião, discutiu e brigou, e Élie de Beaumont ficou praticamente     sozinho na disputa.

Sabíamos de todos os detalhes do caso, mas ignorávamos que     depois de nossa partida tinham surgido novos dados. Nos terrenos movediços     e cinzentos da França, da Suíça e da Bélgica,     foram encontradas outras mandíbulas idênticas, apesar de pertencerem     a indivíduos de vários tipos e nações diferentes,     assim como armas, utensílios, ferramentas, ossadas de crianças,     adolescentes, homens e velhos. A cada dia que passava, confirmava-se mais     a existência do homem quaternário.

E ainda: outros restos exumados do terreno terciário plioceno permitiram     que os cientistas mais audaciosos atribuíssem uma maior antigüidade     à raça humana. É verdade que esses restos não     eram ossadas de homens, mas apenas objetos que ele fizera, tíbias e     fêmures de animais fósseis com estrias regulares, de certa forma     esculpidos, que traziam a marca do trabalho humano.

Assim, de repente, o homem revelava pertencer a tempos muito mais antigos;     precedia o mastodonte, era contemporâneo do elephasmericionalis, tinha     cem mil anos de existência, data determinada pelos geólogos mais     famosos à formação do terreno plioceno.

Tal era a situação da ciência paleontológica,     e o que dela sabíamos bastava para explicar nossa atitude em relação     àquele ossário do mar Lidenbrock. Todos poderão compreender,     portanto, o estupor e a alegria de meu tio, principalmente quando, vinte passos     à frente, encontrou-se diante de, pode-se dizer cara a cara, com um     dos espécimes do homem quaternário.

Era um corpo humano perfeitamente reconhecível. Um solo de natureza     particular, como o do cemitério Saint-Michel em Bordéus, seria     capaz de conservá-lo dessa forma por séculos? Não sei     dizer. Mas aquele cadáver, pele esticada e pergaminhosa, membros ainda     flexíveis - ao menos à visão -, os dentes intactos, basta     cabeleira, unhas do pé e das mãos horrivelmente compridas, revelava-se     tal como vivera.

Fiquei mudo diante daquela aparição de outra era. Meu tio,     tão loquaz, tão falador normalmente, calou-se também.     Havíamos erguido, colocado aquele corpo de pé. Olhava-nos através     de suas órbitas vazias. Apalpávamos seu torso sonoro.

Após alguns minutos de silêncio, o tio foi vencido pelo professor     Otto Lidenbrock, que, dominado por seu temperamento, esqueceu as circunstâncias     de nossa viagem, o ambiente em que estávamos, a imensa caverna. Com     certeza, achou que estava no Johannaeum, lecionando diante de seus alunos,     pois assumiu um tom pedante, e dirigindo-se a um auditório imaginário:      - Senhores - disse -, tenho a honra de apresentar-lhes um homem da era quaternária.     Grandes cientistas negaram sua existência, outros não menos célebres,     confirmaram-na. Se estivessem aqui, os são Tomé da paleontologia,     poderiam tocá-lo e reconhecer seu erro. Bem sei que a ciência     deve tomar cuidado com as descobertas desse gênero! Não ignoro     que charlatães como Barnum e outros da mesma espécie exploraram     os homens fósseis de forma desonesta. Conheço a história     da rótula de Ajax. Do pretenso corpo de Oreste encontrado pelos espartanos     e do corpo de Astérius com cinco côvados de comprimento, mencionado     por Pausanias. Li relatórios sobre o esqueleto de Trapani, descoberto     no século XIV, no qual se teria reconhecido Polifemo, e a história     do gigante desenterrado no século XVI nos arredores de Palermo.

Os senhores sabem tanto quanto eu sobre a análise, feita junto a     Lucerna em 1577, das grandes ossadas que o célebre médico Felix     Platter declarava pertencerem a um gigante de dezenove pés! Devorei     os tratados de Cassanion e todas as memórias, brochuras, discursos     e réplicas publicadas a propósito do esqueleto do rei dos címbrios,     Teutobochus, invasor da Gália, exumado de um areal do Delfinado em     1613! No século XVIII, teria combatido ao lado de Pierre Campet a existência     dos pré-adamitas de Scheuchzer! Tive nas mãos o escrito chamado     Gigans...

Aqui voltou a aparecer a enfermidade natural de meu tio, que não     conseguia pronunciar as palavras difíceis em público.

- O escrito chamado Gigans... - tentou de novo.

Não conseguia prosseguir.

- Giganteo...

Impossível! A palavra infeliz não queria sair! As risadas     teriam dominado o Johannaeum! - Gigantosteologia - arrematou o professor Lidenbrock     entre dois palavrões.

Depois, continuando em grande forma e animando-se: - Sim, senhores, conheço     todas essas coisas! Também sei que Cuvier e Blumembach reconheceram     nessas ossadas simples ossos de mamutes e outros animais da era quaternária.     Mas, nesse caso, qualquer dúvida seria uma injúria à     ciência! O cadáver está aqui! Vocês podem vê-lo,     tocá-lo! Não é um esqueleto, é um corpo intacto,     conservado apenas para o estudo antropológico.

Não quis, de forma alguma, contradizer essa asserção.

- Se eu pudesse lavá-lo com uma solução de ácido     sulfúrico - continuou meu tio -, eliminaria todas as partes terrosas     e as conchas resplandescentes nele incrustadas. Mas não disponho do     precioso solvente. No entanto, mesmo neste estado, o corpo poderá contar-nos     sua própria história.

Naquele momento, o professor pegou o fóssil do cadáver e manobrou-o     com a habilidade de mostrador de curiosidades.

- Como vocês vêem, não tem seis pés de comprimento     e estamos longe dos pretensos gigantes. Quanto à raça a que'pertence,     é incontestavelmente caucasiana. É de raça branca, de     nossa raça! O crânio desse fóssil é regularmente     ovóide, sem desenvolvimento das maçãs do rosto nem projeção     do maxilar. Não apresenta qualquer característica do prognatismo     que modifica o ângulo facial. Meçam o ângulo, é     de quase noventa graus. Mas irei ainda mais longe nas deduções     e ousarei dizer que essa amostra humana pertence à família japética,     espalhada desde as Índias até os limites da Europa Ocidental.     Não sorriam, senhores! Ninguém estava sorrindo, mas o professor     estava tão acostumado a ver o sorriso desabrochar nos rostos durante     suas dissertações científicas! - Sim - continuou ainda     mais animado -, eis um homem fóssil, contemporâneo dos mastodontes,     cujas ossadas se amontoam neste anfiteatro. Não me permitiria dizer     por que caminhos chegou até aqui, como essas camadas que o esconderam     escorregaram até essa cavidade enorme do globo. Sem dúvida,     na era quaternária, perturbações consideráveis     ainda manifestavam-se na crosta terrestre; o resfriamento contínuo     do globo produzia rachaduras, fendas, falhas para onde provavelmente resvalava     parte do terreno superior. Não é nada decisivo, mas, em fim,     o homem está aqui, cercado de obras feitas por ele, machados de sílex     talhados, que constituíram a Idade da Pedra, e a menos que tenha vivido     como eu, como turista, como pioneiro da ciência, não posso colocar     em dúvida a autenticidade de sua origem antiga.

O professor calou-se e rebentei em aplausos unânimes. Além     disso, meu tio tinha toda a razão, e mesmo gente mais sábia     que seu sobrinho não poderia refutar seus argumentos.

Outro indício. Aquele corpo fossilizado não era o único     daquele imenso ossário. A cada passo naquela poeira encontrávamos     mais corpos, entre os quais meu tio poderia escolher os mais maravilhosos     para convencer os incrédulos.

Na verdade, as gerações de homens e animais misturados naquele     cemitério era um espetáculo surpreendente. Mas havia um problema     grave que não ousávamos resolver. Os seres animados haviam escorregado     devido a uma convulsão do solo para as margens do mar Lidenbrock quando     já reduzidos a pó? Ou teriam vivido aqui, neste mundo subterrâneo,     sob este céu artificial, tendo nascido e morrido como os habitantes     da Terra? Até então, os monstros marinhos, os próprios     peixes haviam aparecido vivos para nós! Será que algum homem     do abismo ainda estaria errando pelas praias desertas?

XLIV

Durante mais meia hora pisamos naquelas camadas de ossos.

íamos em frente, levados por uma curiosidade ardente. Que outras     maravilhas encerrava aquela caverna, que tesouros para a ciência? Meus     olhos aguardavam qualquer surpresa, minha imaginação, todos     os estupores.

As margens do mar haviam desaparecido há muito por trás das     colinas do ossário. O professor imprudente, que pouco se preocupava     em perder-se, estava levando-me para longe. Avançávamos em silêncio,     banhados pelas ondas elétricas. Por um fenômeno que não     saberia explicar, e graças à sua difusão, então     completa, a luz iluminava uniformemente as várias faces dos objetos.     Seu centro não mais se situava em um ponto determinado do espaço     e não produzia qualquer resquício de sombra. Parecíamos     estar em pleno verão nas regiões equatoriais, sob os raios verticais     do sol. Todo vapor desaparecera. Os rochedos, as montanhas longínquas,     algumas massas confusas de florestas distantes assumiam um aspecto estranho     sob a distribuição uniforme do fluido luminoso. Parecíamos     aquele personagem fantástico de Hoffmann que perdeu sua sombra.

Após uma milha apareceram as margens de uma floresta imensa, mas     não se tratava mais daqueles bosques de cogumelos das proximidades     de porto Grauben. Grandes palmeiras, de espécies hoje desaparecidas,     soberbas palmacitas, pinheiros, teixos, ciprestes, tuias, representavam a     família das coníferas e ligavam-se entre si por cipós     inextrincáveis. Musgos e hepáticas atapetavam o solo. Alguns     riachos murmuravam sob as sombras pouco dignas do nome, pois não produziam     sombra. Às suas bordas cresciam fetos arborescentes semelhantes aos     das serras quentes do globo habitado. No entanto, faltava cor àquelas     árvores, àqueles arbustos, àquelas plantas, privadas     do calor vivificante do sol. Que confundia-se num tom uniforme, amarronzado     e como que murcho. As folhas não tinham verdor, e as próprias     flores, tão numerosas na era terciária que as viu nascer, então     sem cores e sem perfume, pareciam feitas de um papel descolorido pela ação     da atmosfera.

Meu tio Lidenbrock aventurou-se naquela mata gigantesca.

Segui-o, não sem uma certa apreensão. Já que a natureza     concedera à floresta toda a riqueza de uma alimentação     vegetal, por que não abrigaria os temíveis mamíferos?     Via naquelas clareiras amplas deixadas por árvores derrubadas ou corroídas     pelo tempo, leguminosas, aceríneas, rubiáceas e mil arbustos     comestíveis, caros aos ruminantes de todos os tempos. Depois apareciam,     confundidas e misturadas, árvores de regiões bem diferentes     da superfície do globo, o carvalho cruzando com a palmeira, o eucalipto     australiano apoiando-se no pinheiro da Noruega, a bétula do Norte confundindo     seus ramos com os do kauris zelandês. Vegetação que confundiria     o raciocínio dos classificadores mais engenhosos da botânica     terrestre.

De repente parei e detive meu tio com a mão.

A luz difusa permitia que enxergássemos os menores objetos nas profundezas     do matagal. Acreditei ver... Não! Realmente via com meus próprios     olhos formas imensas agitando-se sob as árvores! De fato, eram animais     gigantescos, todo um rebanho de mastodontes, não mais fósseis     mas vivos, parecidos com aqueles cujos restos foram descobertos em ISOI nos     pântanos de Ohio! Via elefantes enormes cujas trombas se remexiam sob     as árvores como uma legião de serpentes. Ouvia o barulho de     suas grandes presas, cujo marfim perfurava os velhos troncos. Os ramos quebravam-se,     e as folhas arrancadas por massas consideráveis submergiam nas vastas     goelas dos monstros.

O sonho em que vira renascer todo o mundo dos tempos ante-históricos,     das eras terciária e quaternária, enfim realizava-se E nós     estávamos ali, sozinhos, nas entranhas do lobo, à mercê     de seus habitantes selvagens.

Meu tio olhava.

- Vamos - disse de repente, pegando meu braço -, ande, ande! - Não      - exclamei -, não! Não temos armas! O que faríamos no     meio desse rebanho de quadrúpedes gigantescos? Venha, meu tio, venha!     Nenhuma criatura humana pode enfrentar impunemente a cólera desses     monstros! - Nenhuma criatura humana! - respondeu meu tio, abaixando a voz.      - Você está enganado, Axel! Olhe, lá longe! Parece que     estou vendo um ser vivo! Um ser semelhante a nós! Um homem! Olhei,     dando de ombros e decidido a levar a incredulidade a seus últimos limites.     Mas por mais que não acreditasse, tive de curvar-me às evidências.

De fato, a menos de um quarto de milha, apoiado no tronco de um enorme kauri,     havia um ser humano, um proteu daquelas regiões subterrâneas,     um novo filho de Netuno, pastoreando o rebanho imenso de mastodontes! Immanis     pecoris custos, immanior ipse! Sim! Immanior ipse! Não era mais o ser     fóssil cujo cadáver descobríramos no ossário,     era um gigante capaz de comandar esses monstros! Tinha mais de doze pés     de altura. Sua cabeça, do tamanho da de um búfalo, desaparecia     nas brenhas de uma cabeleira descuidada. Uma verdadeira crina, semelhante     à do elefante das primeiras eras. Brandia com a mão um galho     enorme, cajado digno de um pastor antediluviano.

Ficamos imóveis, estupefatos. Mas podíamos ser vistos. Tínhamos     de fugir.

- Venha, venha - exclamava, arrastando meu tio que pela primeira vez, deixava-se     conduzir.

Quinze minutos depois, estávamos fora do alcance do temível     inimigo.

E agora que penso naquilo com toda a tranqüilidade, que minha mente     se acalmou, que se passaram meses desde aquele encontro sobrenatural e estranho,     o que devo pensar, no que devo acreditar? Não, é impossível!     Nossos sentidos enganaram-se, nossos olhos não viram o que viram! Não     existe qualquer criatura humana naquele mundo subterrestre! Nenhuma geração     de homens habita aquelas cavernas inferiores do globo sem preocupar-se com     os habitantes da superfície, sem comunicar-se com eles! É insensato,     completamente insensato! Prefiro admitir a existência de algum animal     com estrutura semelhante à do homem, algum macaco das primeiras eras     geológicas, algum protopiteco, algum mesopiteco parecido com aquele     descoberto por Lartet na jazida de ossos de Sansan! Mas o que vimos ultrapassa     em tamanho todas as medidas da paleontologia moderna! E daí? Um macaco,     sim, um macaco, por mais inverossímil que seja! Mas um homem, um homem     vivo e, com ele, toda uma geração escondida nas entranhas da     Terra, nunca! Entrementes, saíramos da floresta clara e luminosa, mudos     de surpresa, esmagados por um estupor que beirava o embrutecimento. Involuntariamente     corríamos. Era uma verdadeira fuga, semelhante às correrias     aterrorizantes de certos pesadelos. Voltávamos instintivamente para     o mar Lidenbrock, e não sei por que divagações minha     mente teria sido dominada, não fosse uma preocupação     que me trouxe de volta a observações mais práticas.

Embora tivesse certeza de estar pisando em solo totalmente desconhecido     para nós, via, por vezes, agrupamentos de rochedos cuja forma lembrava     os de porto Grauben, o que aliás confirmava a indicação     da bússola e nossa volta involuntária para o norte do mar Lidenbrock.     Dava, por vezes, para confundir-se. Riachos e cascatas caíam às     centenas pelas saliências das rochas. Acreditava estar revendo a camada     de surtarbrandur, nosso fiel Hans Bach e a gruta onde voltara à vida.     Depois, alguns passos além, a disposição dos contrafortes,     o aparecimento de um riacho, o perfil surpreendente de um rochedo faziam com     que eu voltasse às dúvidas.

Comuniquei minha indecisão a meu tio, que hesitou como eu. Não     conseguia localizar-se naquele panorama uniforme.

- É claro - disse-lhe - que não abordamos em nosso ponto de     partida, mas a tempestade levou-nos um pouco para cima, e seguindo a margem     voltaremos a encontrar porto Grauben.

- Nesse caso - respondeu meu tio -, não vale a pena continuar a exploração,     e o melhor que temos a fazer é voltar à jangada. Mas tem certeza     de que não está enganado, Axel? - É difícil afirmar,     meu tio, pois todos esses rochedos são parecidos. No entanto, acredito     estar reconhecendo o promontório ao pé do qual Hans construiu     a embarcação. Devemos estar próximos do portinho, se     é que não estamos exatamente nele - acrescentei, examinando     uma enseada que acreditei estar reconhecendo.

- Não, Axel, encontraríamos ao menos nossos próprios     rastros, e não estou vendo nada...

- Mas eu estou - exclamei, correndo para um objeto que brilhava na areia.

- O que é? - Isto - respondi.

E mostrei ao meu tio um punhal todo enferrujado que acabava de recolher.

- Que coisa! - disse ele - você trouxe essa arma? - Eu não!     Mas e o senhor? - Que eu saiba, não - respondeu o professor. - Nunca     tive um objeto assim.

- Que estranho! - Não, é muito simples, Axel. Os islandeses     carregam armas semelhantes a esta, deve pertencer a Hans, que a perdeu...

Abanei a cabeça, Hans não trouxera qualquer punhal.

- Seria então a arma de algum guerreiro antediluviano - exclamei      -, de um homem vivo, de um contemporâneo do gigantesco pastor? Não,     não é um instrumento da Idade da Pedra! Nem mesmo da Idade do     Bronze! A lâmina é de aço! Meu tio deteve-me naquela nova     divagação e disse-me num tom frio: - Acalme-se, Axel, e volte     ao bom senso. Este punhal é uma arma do século XVI, uma verdadeira     adaga, daquelas que os cavaleiros levavam à cintura para o golpe de     misericórdia. É de origem espanhola. Não pertence a você,     nem a mim, nem ao caçador, nem mesmo aos seres humanos que talvez vivam     nas entranhas do globo! - O senhor ousa afirmar...

- Veja, ela não está estragada de tanto penetrar na garganta     dos outros; sua lâmina está recoberta por uma camada de ferrugem     que não data de um dia, nem de um ano, nem de um século! Como     de hábito, o professor animava-se, deixando-se levar por sua imaginação.

- Axel - continuou -, estamos prestes a fazer uma grande descoberta! Este     punhal ficou abandonado na areia por cem, duzentos, trezentos anos e foi estragado     pelos rochedos do mar subterrâneo! - Mas não chegou aqui andando     com as próprias pernas! não se torceu sozinho! Alguém     nos precedeu!...

- Sim, um homem! - E quem é esse homem? - Esse homem gravou seu nome     com este punhal! Esse homem quis marcar mais uma vez, com suas próprias     mãos, o caminho para o centro. Vamos procurar, vamos! E prodigiosamente     interessados mais uma vez percorremos a alta muralha, interrogando as menores     fissuras, passíveis de transformar-se em galerias.

Chegamos assim a um local onde a margem se estreitava. O mar vinha quase     banhar o pé dos contrafortes, deixando uma passagem de, no máximo,     uma toesa de largura. Entre duas rochas que avançavam, via-se a entrada     de um túnel escuro.

Ali, numa placa de granito, apareciam duas letras misteriosas um tanto corroídas,     as duas iniciais do ousado e fantástico viajante: - A. S.! - exclamou     meu tio. - Arne Saknussemm! Sempre Arne Saknussemm!

XLV

Desde o início da viagem, já tivera muitas surpresas: acreditava     estar imune a elas e ter-me tornado indiferente a qualquer estupor. Ao ver,     contudo, aquelas duas letras gravadas ali a trezentos anos, fui possuído     por um assombro próximo da estupidez.

Não somente lia a assinatura do sábio alquimista na rocha,     mas ainda tinha em mãos o estilete que a traçara. A menos que     fosse uma insígnia de má-fé, já não podia     colocar em dúvida a existência do viajante e a realidade de sua     viagem.

Enquanto essas reflexões giravam em turbilhão na minha cabeça,     o professor Lidenbrock tinha um acesso um tanto ditirâmbico em relação     a Arne Saknussemm.

- Gênio maravilhoso! - exclamava. - Nada esqueceste do que deveria     abrir os caminhos da crosta terrestre a outros mortais, e teus semelhantes     podem seguir as pegadas deixadas por teus pés, há três     séculos, nas profundezas destes sombrios subterrâneos! Reservaste     a outros olhos além dos teus a contemplação destas maravilhas!     Gravado a cada etapa, teu nome conduz direto ao objetivo o viajante audacioso     o suficiente para te seguir, e no próprio centro de nosso planeta ainda     o encontraremos inscrito com tua própria mão! Muito bem, eu     também assinarei essa última página de granito com meu     nome. Mas que, a partir desse momento, este cabo, visto por ti, perto deste     mar descoberto por ti, seja chamado para todo o sempre de cabo Saknussemm!     Eis mais ou menos o que ouvi, e senti que o entusiasmo transmitido por aquelas     palavras começava a dominar-me. Um fogo interior ardia em meu peito!     Esquecia tudo, os perigos da viagem, os riscos do retorno. Queria fazer aquilo     que um outro tinha feito, e nada do que era humano me parecia impossível!      - Avante! Avante! - gritei.

Já precipitava-me em direção à escura galeria,     quando o professor deteve-me, e ele, homem de impulsos, aconselhou-me a paciência     e o sangue-frio.

- Antes de mais nada, voltemos até Hans - disse-me -, e transportemos     a jangada para cá.

Obedeci de má vontade e esgueirei-me rapidamente pelos rochedos das     margens.

- O senhor sabe, meu tio, que até agora as circunstâncias foram     extremamente favoráveis para nós? - Ah, você acha, Axel?     - Sem dúvida, até a tempestade nos colocou no caminho certo!     Bendita seja ela! Trouxe-nos para esta costa de onde seríamos afastados     pelo bom tempo! Suponha por um momento que tivéssemos aportado nossa     proa (a proa de uma jangada!) às margens meridionais do mar Lidenbrock,     o que seria de nós? O nome de Saknussemm não teria aparecido,     e agora estaríamos abandonados numa praia sem saída.

- Sim, Axel, embora estivéssemos vagando para o sul, a Providência     nos trouxe de volta precisamente para o norte, para o cabo Saknussemm. Tenho     de admitir que é mais do que surpreendente, e há aí um     fato que não consigo mesmo explicar.

- Para que explicar? Não temos de explicar fato nenhum e sim aproveitá-lo.

- Claro, meu filho, mas...

- Mas vamos voltar para o caminho do norte, passar sob as regiões     setentrionais da Europa, da Suécia, da Sibéria, sei lá,     em vez de embrenharmos sob os desertos da África ou sob as vagas do     oceano, e não quero saber de mais nada! - Sim, Axel, você tem     razão, e tudo está indo da melhor forma possível, pois     estamos abandonando este mar horizontal que não poderia levar-nos a     lugar algum. Vamos descer, descer mais, continuar descendo! Você sabe     que só faltam quinze léguas para chegarmos ao centro do globo?      - Bah! - exclamei. - Nem vale a pena falar sobre isso.

Em frente! Em frente! Continuávamos ainda aquela conversa insensata     quando alcançamos o caçador. Estava tudo preparado para uma     partida imediata. Todos os pacotes embarcados. Subimos na jangada, e, içada     a vela, Hans dirigiu-se para o cabo Saknussemm, acompanhando o litoral.

O vento não era favorável para um tipo de embarcação     que não conseguia manter-se muito próxima das margens. Em vários     lugares, tivemos de remar com os bastões de ferro. Muitas vezes, fomos     obrigados a fazer desvios muito longos devido aos rochedos à flor da     água. Finalmente, depois de três horas de navegação,     ou seja, por volta das seis da tarde, atingimos um local propício para     o desembarque.

Saltei para a terra, seguido pelo meu tio e pelo islandês. A travessia     não me acalmara, muito pelo contrário. Propus até acabarmos     com qualquer forma de recuar. Mas meu tio foi contra.

Achei-o singularmente frouxo.

- Pelo menos - disse - partamos sem perder um só instante.

- Sim, meu filho, mas antes examinemos essa nova galeria para sabermos se     temos de preparar as escadas.

Meu tio ligou o aparelho de Ruhmkorff; abandonamos a jangada, amarrada à     margem; a abertura da galeria era a vinte passos dali, e nossa pequena tropa,     comigo na frente, alcançou-a imediatamente.

O orifício, mais ou menos circular, tinha cerca de cinco pés     de diâmetro; o túnel estava escavado na rocha viva e fora cuidadosamente     alisado pelas matérias às quais outrora dava passagem; sua parte     inferior roçava o solo, de forma que nele pudemos penetrar sem qualquer     dificuldade.

Seguíamos por um plano praticamente horizontal quando, depois de     seis passos, nossa marcha foi interrompida por um bloco enorme.

- Maldita rocha! - exclamei com raiva, ao ver-me detido por um obstáculo     intransponível.

Por mais que procurássemos em cima ou embaixo, à direita ou     à esquerda, não havia qualquer passagem, qualquer bifurcação.

Fiquei extremamente desapontado, não queria admitir a realidade do     obstáculo. Abaixei-me. Olhei embaixo do bloco. Nenhum interstício.     Em cima, a mesma barreira de granito. Hans levou a luz da lâmpada a     todos os pontos da parede, mas esta não oferecia qualquer solução     de continuidade. Deveríamos renunciar a qualquer esperança de     passar.

Sentara-me no chão. Meu tio dava grandes passadas pelo corredor.

- E o Saknussemm? - exclamei.

- É mesmo - suspirou meu tio -, foi detido por esta porta de pedra?     - Não, não! - continuei com vivacidade. - Em virtude de um abalo     qualquer ou de um desses fenômenos magnéticos que agitam a crosta     terrestre, este pedaço de pedra fechou a passagem. Passaram-se muitos     anos entre o retorno de Saknussemm e a queda deste bloco. Não é     evidente que esta galeria foi outrora caminho das lavas e que então     as matérias eruptivas nela circulavam livremente? Veja, há fissuras     recentes sulcando o teto de granito; trata-se de pedaços trazidos,     de pedras enormes, como se a mão de algum gigante tivesse trabalhado     nessa substrução; mas, um dia, o impulso foi mais forte, e este     bloco, semelhante a uma chave de abóbada que está faltando,     escorregou para o chão, obstruindo a passagem. É um obstáculo     acidental com que Saknussemm não deparou e se não o transpusermos,     não seremos dignos de chegar ao centro do mundo! De que forma eu falava!     A alma do professor transferira-se para mim. Estava sob inspiração     do gênio das descobertas. Esquecia o passado, desdenhava o futuro. Nada     mais existia para mim na superfície desse esferóide dentro do     qual mergulhara, nem as cidades, nem os campos, nem Hamburgo, nem Königstrasse,     nem minha pobre Grauben, que devia supor estar seu amado perdido para sempre     nas entranhas da Terra! - Muito bem! - decidiu meu tio -, abriremos nosso     caminho, derrubaremos essa muralha a picaretadas e enxadadas! - É duro     demais para a picareta! - Então usemos o enxadão! - É     comprido demais para o enxadão! - Mas...

- Muito bem! A pólvora, as minas, tentemos explodir o obstáculo!      - A pólvora! - Sim! Não passa de um pedaço de rocha!      - Mãos à obra, Hans! - gritou meu tio.

O islandês foi até a jangada e logo voltou com um enxadão     com o qual cavou um buraco para a mina. Era um trabalho e tanto. Tratava-se     de fazer um buraco grande o suficiente para conter cinqüenta libras de     algodão-pólvora, cujo poder expansivo é quatro vezes     maior do que o da pólvora de canhão.

Minha excitação alcançara o paroxismo. Enquanto Hans     trabalhava, ajudava ativamente meu tio a preparar uma mecha longa feita com     pólvora molhada e encerrada numa mangueira de tecido.

- Passaremos! - eu dizia.

- Passaremos! - repetia meu tio.

Terminamos completamente nosso trabalho de mineiros à meia-noite.     A carga de algodão-pólvora estava no buraco e a mecha, que se     desenrolava pela galeria, alcançava a parte exterior da caverna.

Agora bastava uma faísca para ativar aquele engenho formidável.

- Amanhã - declarou o professor.

Tive de resignar-me a aguardar mais seis longas horas.

XLVI

O dia seguinte, 27 de agosto, foi uma data célebre em nossa viagem     subterrânea. Ainda hoje, quando dela me lembro, o coração     salta em meu peito. A partir daquele momento, nossa razão, nosso julgamento     e nossa engenhosidade perderam qualquer autoridade e transformamo-nos em joguetes     dos fenômenos da Terra.

Às seis horas, estávamos de pé. Aproximava-se o momento     de, com a pólvora, abrirmos caminho através da crosta de granito.

Solicitei a honra de atear fogo à mina. Feito isso, deveria unir-me     a meus companheiros na jangada, que não descarregáramos; singraríamos     para não sofrer os perigos da explosão, cujos efeitos poderiam     não se concentrar no interior do maciço.

De acordo com nossos cálculos, a mecha deveria arder por dez minutos     antes de incendiar a câmara de explosivo. Dispunha, portanto, do tempo     necessário para alcançar a jangada.

Preparava-me para fazer meu trabalho, não sem uma certa emoção.

Após uma rápida refeição, meu tio e o caçador     embarcaram, enquanto eu ficava na praia. Eu levava uma lanterna acesa, que     me serviria para atear fogo à mecha.

- Vá, meu filho - disse-me meu tio -, mas volte imediatamente.

- Pode ficar tranqüilo - respondi -, não me distrairei no caminho.

Dirigi-me para o orifício da galeria. Acendi minha lanterna e peguei     a extremidade da mecha.

O professor mantinha o cronômetro na mão.

- Você está pronto? - gritou-me.

Estou.

- Então, fogo, meu rapaz! Mergulhei rapidamente a mecha na chama,     que faiscou com o contato, e voltei correndo à beira do mar.

- Embarque - apressou-me meu tio - e larguemos.

Com um impulso vigoroso, Hans nos levou para o mar. A jangada afastou-se     umas vinte toesas.

Era um momento palpitante. O professor seguia com os olhos a agulha do cronômetro.

- Ainda cinco minutos - dizia. - Ainda quatro! Ainda três! Meu pulso     marcava os meios segundos.

- Ainda dois! Um!... Desabem, montanhas de granito! O que aconteceu então?     Acho que não ouvi o ruído da detonação. Mas vi     a forma dos rochedos modificar-se de repente; abriram-se como uma cortina.     Vi cavar-se em plena praia um abismo insondável. Sofrendo uma vertigem,     o mar não passou de uma vaga enorme, em cujo dorso a jangada ergueu-se     perpendicularmente.

Nós três fomos derrubados. Em menos de um segundo, a escuridão     tomou o lugar da luz. Senti a falta de um apoio sólido, não     para meus pés, mas para a jangada. Achei que estávamos naufragando.     Não era nada disso. Quis dirigir-me a meu tio, mas o mugido das águas     impediria que o professor me ouvisse.

Apesar das trevas, do barulho, da surpresa e da emoção, compreendi     o que acontecera.

Atrás da rocha que acabara de explodir existia um abismo.

A explosão provocara uma espécie de tremor de terra naquele     solo sulcado de fissuras, abrira-se um abismo, e o mar, transformado em torrente,     arrastava-nos com ele.

Senti que estava perdido.

Uma hora, duas horas, sei lá! passaram-se assim. Agarrávamo-nos     pelos cotovelos, pelas mãos, para não ser jogados para fora     da jangada. Quando a embarcação batia nas muralhas, aconteciam     choques de extrema violência. Os choques, porém, eram raros,     daí eu concluir que a galeria se alargava consideravelmente.

Tratava-se, com certeza, do caminho de Saknussemm; mas, em vez de descermos     só nós, por ele, tínhamos. com nossa imprudência,     arrastado todo o mar.

É possível compreender que essas idéias se apresentavam     de forma vaga e obscura. Associava-as com dificuldade durante aquela corrida     vertiginosa, que mais parecia uma queda. Pelo ar que me fustigava o rosto,     a velocidade devia ultrapassar a dos trens mais rápidos. Era, portanto,     impossível acender uma tocha naquelas condições, e nosso     último aparelho elétrico quebrara-se no momento da explosão.

Qual a minha surpresa então ao ver uma luz brilhar de repente perto     de mim. A figura calma de Hans iluminou-se. O hábil caçador     conseguira acender a lanterna, e embora a chama vacilasse a ponto de quase     apagar-se, lançou alguns clarões na aterrorizante escuridão.

A galeria era ampla. Estava certo em minha avaliação. A insuficiência     de luz não nos permitia ver suas duas muralhas ao mesmo tempo. A inclinação     das águas que nos levava ultrapassava a das correntezas mais intransponíveis     da América. Sua superFície parecia feita de um feixe de flechas     líquidas disparadas com muita força. Impossível transmitir     minha impressão por uma comparação mais correta. Passando     certos redemoinhos, por vezes a jangada corria girando. Quando se aproximava     das paredes da galeria, eu nelas projetava a luz da lanterna e conseguia avaliar     a velocidade da embarcação vendo as saliências das rochas     transformarem-se em traços contínuos, de forma que parecíamos     encerrados numa rede de linhas moventes. Estimava nossa velocidade em trinta     léguas por hora.

Eu e meu tio trocávamos olhares desvairados, agarrados ao resto do     mastro, que no momento da catástrofe quebrara-se. Dávamos as     costas para o mar, para não ser sufocados pela rapidez de um movimento     que nenhuma força humana poderia deter.

As horas passavam. A situação não mudava, mas um incidente     veio complicá-la.

Ao tentarmos colocar o carregamento em ordem, vi que a maioria dos objetos     embarcados desaparecera no momento da explosão, quando o mar nos assaltou     tão violentamente. Quis saber exatamente com que recursos contar, e,     lanterna na mão, comecei a examinar. De nossos instrumentos, só     restavam a bússola e o cronômetro. As escadas e as cordas reduziam-se     a um pedaço de cabo enrolado ao redor do mastro. Nenhuma pá,     nenhuma picareta, nenhum martelo e, desgraça irreparável, só     tínhamos víveres para mais um dia.

Perscrutei os interstícios da jangada, todos os cantinhos formados     pelas vigas e junção de pranchas. Nada! Nossas provisões     consistiam unicamente em um pedaço de carne-seca e uns biscoitos. ,     Olhava com um ar de estupidez! Não queria compreender E, no entanto,     com que perigo estava me preocupando? Mesmo que os víveres fossem suficientes     para meses, anos, como sair dos abismos para onde aquela torrente irresistível     nos arrastava? Para que temer as torturas da fome, quando a morte já     se oferecia sob tantas outras formas? Será que teríamos tempo     para morrer de inanição? Contudo, por uma inexplicável     estranheza da imaginação, esquecia-me do perigo imediato, e     as ameaças do futuro apareciam diante de mim com todo o seu horror.     Além disso, talvez pudéssemos escapar dos furores da torrente     e voltar à superfície do globo. Como? Não sei. Onde?     Que importância teria? Uma chance em mil é sempre uma chance,     enquanto a morte por fome não nos deixava qualquer tipo de esperança,     por menor que fosse.

Pensei em dizer tudo ao meu tio, em mostrar-lhe a que penúria estávamos     reduzidos e em fazer o cálculo exato do tempo de vida que nos restava.     Mas tive coragem para calar-me. Queria que ele mantivesse todo o seu sangue-frio.

Naquele momento, a luz da lanterna diminuiu gradualmente até apagar-se     por completo. A mecha ardera até o fim. A escuridão voltou a     ser absoluta. Não era o caso de pensar em dissipar as trevas impenetráveis.     Restava ainda uma tocha, mas não conseguiríamos mantê-la     acesa. Então, como uma criança, fechei os olhos para não     ver toda aquela escuridão.

Após um espaço de tempo bastante longo, a velocidade de nossa     corrida duplicou, fato que pude perceber pela reverberação do     ar em meu rosto. A inclinação das águas tornava-se excessiva.

Acho que não mais escorregávamos, caíamos. A impressão     era a de uma queda praticamente vertical. As mãos de Hans e de meu     tio, agarradas a meus braços, detinham-me com vigor.

De repente, após um tempo impossível de avaliar, senti como     que um choque; a jangada não batera num corpo duro, mas fora subitamente     detida em sua queda. Uma tromba d'água, uma imensa coluna líquida     desabou sobre sua superfície. Senti-me sufocado.

Estava me afogando...

No entanto, a inundação súbita não durou muito.     Em alguns segundos, senti que voltava ao ar livre, que inspirei a plenos pulmões.     Meu tio e Hans apertavam-me o braço a ponto de quase quebrá-lo     e ainda estávamos os três na jangada.

XLVII

Suponho que deviam ser dez horas da noite. Meu primeiro sentido que funcionou     após a última aventura foi a audição. Quase que     imediatamente ouvi - foi um ato de verdadeira audiçãoo silêncio     voltar à galeria e substituir os mugidos que há muitas horas     enchiam meus ouvidos. Finalmente as palavras de meu tio chegaram-me como um     murmúrio: - Estamos subindo! - O que o senhor está querendo     dizer? - exclamei.

- Estamos subindo, sim, estamos subindo! Estiquei o braço e toquei     a muralha; minha mão ficou ensangüentada. Subíamos com     extrema rapidez.

- A tocha! A tocha! - exclamou o professor.

Hans conseguiu acendê-la com bastante dificuldade, e a chama, mantendo-se     de baixo para cima, apesar do movimento ascencional, iluminou bastante todo     o cenário.

- É exatamente o que eu estava pensando - disse meu tio.

- Estamos num poço estreito, que não tem nem quatro toesas     de diâmetro. Tendo chegado ao fundo do abismo, a água está     subindo para voltar ao seu nível e faz com que subamos com ela.

- Para onde? - Não sei, e devemos estar preparados para qualquer     acontecimento. Subimos a uma velocidade que avalio ser de duas toesas por     segundo, ou seja, cento e vinte toesas por minuto e mais de três léguas     e meia por hora. A esse ritmo, estamos andando bastante.

- Sim, se nada nos detiver, se houver uma saída nesse poço!     Mas se estiver bloqueado, se o ar se comprimir gradualmente devido à     pressão da coluna de água, se formos esmagados! - Axel - respondeu     o professor na maior calma -, a situação é quase desesperadora,     mas há algumas chances de salvação e faço questão     de examiná-las. Se a cada minuto podemos perecer, a cada momento podemos     ser salvos. Estejamos prontos para aproveitar as menores circunstâncias.

- Mas o que podemos fazer? - Recuperar nossas forças comendo.

Olhei para meu tio com um ar desvairado. Devia finalmente dizer o que não     quisera confessar: - Comer? - repetia.

- Sim, imediatamente.

O professor acrescentou alguns termos em dinamarquês. Hans balançou     a cabeça.

- Como! - exclamou meu tio. - Perdemos nossas provisões? - Sim, só     nos resta um pedaço de carne-seca para três.

Meu tio encarava-me sem querer compreender o que eu dizia.

- Então o senhor continua achando que podemos nos salvar? Não     obtive resposta.

Passou-se uma hora. Começava a sentir uma fome violenta.

Meus companheiros também sofriam, mas nenhum de nós ousou     tocar naquele miserável resto de alimento.

Entrementes, continuávamos a subir com extrema rapidez.

Por vezes, o ar nos cortava a respiração, como acontece com     os aeronautas cuja ascensão é rápida demais. Mas se eles     sentem um frio cada vez maior à medida que se elevam nas camadas atmosféricas,     sofríamos um efeito absolutamente contrário. O calor aumentava     de forma preocupante e com certeza devia atingir quarenta graus naquele momento.

O que significava aquela mudança? Até então, os fatos     haviam dado razão às teorias de Davy e Lidenbrock; até     então as condições particulares das rochas refratárias,     de eletricidade e de magnetismo haviam modificado as leis gerais da natureza,     concedendo-nos uma temperatura moderada, pois, na minha opinião, a     teoria do fogo central continuava a ser a única verdadeira e explicável.     Estávamos voltando para um ambiente onde esses fenômenos aconteciam     com todo o rigor e no qual o calor reduzia as rochas a um estado de fusão     total? Era o que eu temia e o disse ao professor: - Se não naufragarmos     ou formos despedaçados, se não morrermos de fome, ainda poderemos     ser queimados vivos.

Ele contentou-se em dar de ombros e voltar a suas reflexões.

Mais uma hora se passou sem que qualquer incidente modificasse a situação,     a não ser um leve aumento da temperatura.

Finalmente, meu tio rompeu o silêncio: - Bem, temos de tomar alguma     atitude.

- Atitude? - repliquei.

- Sim. Temos de recuperar nossas forças. Se tentarmos prolongar nossas     vidas por algumas horas poupando esse resto de comida, ficaremos fracos até     o fim.

- Sim, até o fim, que não tardará.

- Muito bem. E se aparecer uma chance de salvar-nos, se for necessário     agir, onde encontraremos as forças necessárias, se nos deixarmos     enfraquecer pela inanição? - Ah, meu tio, se devorarmos esse     pedaço de carne, o que nos restará? - Nada, Axel, nada. Mas     você se sente mais bem nutrido devorando-a com os olhos? Isso é     raciocínio de um homem sem vontade, sem energia! - Então o senhor     está desesperado? - exclamei, irritado.

- Não! - replicou o professor com firmeza.

- O quê! O senhor ainda tem esperanças de salvar-se? - Claro     que sim! Enquanto o coração bater e a carne palpitar, não     admito que um ser dotado de vontade ceda lugar ao desespero! Que palavras!     E o homem que as pronunciava em tais circunstâncias tinha com certeza     um caráter pouco comum.

- Mas o que fazer? - perguntei.

- Comer até a última migalha o resto da comida para recuperar     as forças que perdemos. Mesmo que seja a nossa última refeição!     Mas ao menos, em vez de permanecer esgotados, voltaremos a ser homens! Meu     tio pegou o pedaço de carne e os poucos biscoitos que escaparam do     naufrágio; dividiu em três porções iguais e distribuiu-as.     Dava cerca de uma libra de alimento para cada um. Meu tio comeu com avidez,     com uma espécie de arrebatamento febril; eu, sem prazer apesar de minha     fome, quase com nojo; Hans, tranqüilamente, com moderação,     mastigando sem ruído os pedacinhos, saboreando-os com a calma de um     homem nada preocupado com os problemas futuros. Depois de muito procurar,     encontrara um cantil cheio, até a metade, de genebra; ofereceu-nos,     e aquele licor tão benéfico conseguiu reanimar-me um pouco.

- Förtraffkg! - disse Hans, bebendo.

- Excelente! - volveu meu tio.

Voltara a ter alguma esperança. Mas nossa última refeição     terminara. Eram cinco horas da manhã.

O homem é feito de tal forma que sua saúde é um efeito     puramente negativo. Satisfeita a necessidade de comer, dificilmente consegue     imaginar os horrores da fome; precisa senti-los para compreendê-los.     Ao final de um longo jejum, alguns bocados de biscoito e carne venceram nossos     sofrimentos passados.

Após a refeição, cada qual voltou a suas reflexões.     Em que pensava Hans, aquele homem do Extremo Ocidente dominado pela resignação     fatalista dos orientais? Quanto a mim, só pensava nas lembranças     que me faziam voltar à superfície daquele globo que jamais deveria     ter abandonado. A casa da Kõnigstrasse, minha pobre Grauben e a boa     Marthe passaram como visões diante de meus olhos, e acreditava surpreender     os ruídos das cidades da Terra nos grunhidos lúgubres que percorriam     o maciço.

Meu tio, sempre em seu posto, tocha na mão, examinava com atenção     a natureza dos terrenos. Tentava reconhecer nossa situação pela     observação das camadas sobrepostas. Esse cálculo, ou     melhor, essa estimativa, só podia ser muito aproximativa. Um cientista,     porém, é sempre um cientista quando consegue conservar seu sangue-frio,     e, sem dúvida, o professor Lidenbrock possuía essa qualidade     num grau pouco comum.

Ouvia-o murmurar palavras da ciência geológica; eu era capaz     de compreendê-las, e involuntariamente interessava-me por aquele derradeiro     estudo.

- Granito eruptivo - dizia. - Ainda estamos na era primária, mas     estamos subindo, subindo cada vez mais. Quem sabe o que encontraremos? Quem     sabe? Continuava a ter esperanças. Tocava a parede vertical e, poucos     instantes depois, tornava: - Gnaisses! Micaxistos! Bem, logo chegaremos a     terrenos da era de transição e então...

O que o professor queria dizer? Era capaz de medir a espessura da crosta     terrestre suspensa sobre nossas cabeças? Tinha um meio qualquer de     fazer esse cálculo? Não. Sem o manômetro, qualquer estimativa     tornava-se impossível.

A temperatura continuava aumentando, e sentia-me completamente molhado naquela     atmosfera ardente. Só conseguia compará-la ao calor dos fornos     de uma fundição na hora da moldagem. Gradualmente Hans, meu     tio e eu tiráramos nossos paletós e coletes; a menor peça     de roupa provocava muito mal-estar e até sofrimento.

- Estamos subindo em direção a um forno incandescente! - exclamei     ao sentir o calor aumentar.

- Não - respondeu meu tio. - É impossível! É     impossível! - No entanto - eu disse, apalpando a parede -, essa muralha     está fervendo! No momento em que pronunciei essas palavras, minha mão     aflorara a água, e tive de retirá-la o mais depressa possível.

- A água está fervendo! - exclamei.

Dessa vez, a única resposta do professor foi um gesto de cólera.

Então um terror invencível tomou conta de meu cérebro     e não o abandonou mais. Sentia a aproximação de uma catástrofe     de tamanhas proporções que nem a imaginação mais     audaciosa seria capaz de concebê-la. Uma idéia, a princípio     vaga, transformou-se em certeza para mim. Não ousava formulá-la.     Algumas observações involuntárias, contudo, confirmavam     minha convicção. À luz duvidosa da tocha, observei alguns     movimentos desordenados nas camadas graníticas. Era evidente que ocorreria     algum fenômeno ligado à eletricidade. Além disso, o calor     excessivo, a água fervente!... Quis consultar a bússola.

Ela enlouquecera!

XLVIII

Sim, enlouquecera! A agulha pulava bruscamente de um pólo para outro,     percorria todos os pontos do marcador e girava como se estivesse com vertigem.

Eu sabia muito bem que, de acordo com as teorias mais aceitas, a crosta     mineral do globo nunca está em estado de repouso absoluto; as modificações     provocadas pela decomposição das matérias inertes, a     agitação proveniente das grandes correntes líquidas,     a ação do magnetismo, tendem a abalá-la sem cessar, enquanto     os seres disseminados em sua superfície nem suspeitam de sua agitação.     Esse fenômeno não teria me assustado demais, nem me evocado qualquer     idéia terrível.

Outros fatos, porém, alguns detalhes sui generis, não conseguiram     me enganar por muito tempo. As detonações multiplicavam-se com     uma intensidade aterrorizante. Só podia compará-las ao estrondo     de um grande número de carroças arrastádas com rapidez     pela calçada. Um trovão contínuo.

Além disso, a bússola enlouquecida, abalada por fenômenos     elétricos, confirmava minha opinião. A crosta mineral ameaçava     romper-se, os maciços graníticos unir-se, a fissura preencher-se,     o vazio encher-se e nós, pobres átomos, seríamos esmagados     por aquele abraço formidável.

- Meu tio, meu tio! - exclamei. - Estamos perdidos! - Qual é o seu     medo desta vez? - respondeu-me com uma calma surpreendente. - Qual é     o problema? - Problema! Observe estas muralhas agitando-se, o maciço     deslocando-se, este calor tórrido, a água fervendo, os vapores     cada vez mais densos, a agulha enlouquecida, tudo indica um terremoto! Meu     tio abanou a cabeça com suavidade.

- Um terremoto? - disse.

- Claro! - Acho que você está enganado, meu filho! - Como,     você não conhece os sintomas? - De um terremoto? Não.     Estou esperando algo bem melhor.

- O que o senhor quer dizer? - Uma erupção, Axel.

- Uma erupção! - eu disse. -Estamos na cratera de um vulcão     em atividade! - Acho que sim - disse o professor sorrindo -, e é o     melhor que pode nos acontecer! O melhor! Meu tio ficara louco? O que significavam     aquelas palavras? Por que aquela calma e aquele sorriso? - Como! - exclamei.     - Estamos numa erupção! A fatalidade jogou-nos na trilha das     lavas incandescentes, das rochas ardentes, das águas ferventes, de     todas as matérias eruptivas! Vamos ser repelidos, expulsos, jorrados,     vomitados, expectorados pelos ares com pedaços de rocha, chuvas de     cinzas e escórias, num turbilhão de chamas, e é o que     pode nos acontecer de melhor! - Sim - respondeu o professor, encarando-me     por cima dos óculos -, pois é a única chance que temos     de voltar à superfície da terra! Repasso rapidamente as mil     idéias que se cruzaram em meu cérebro. Meu tio tinha razão,     toda a razão e jamais me pareceu tão audacioso e convicto quanto     naquele momento em que esperava e calculava com calma as chances de uma erupção.

Enquanto isso, continuávamos subindo. A noite passou naquele movimento     ascensional; o barulho ao redor aumentava; estava quase sufocado, achava ter     chegado a minha hora, e no entanto a imaginação é tão     estranha que me dedicava a uma pesquisa realmente infantil. Mas eu suportava     meus pensamentos, não conseguia dominá-los! Era óbvio     que estávamos sendo repelidos por um impulso eruptivo; sob a jangada,     águas ferventes, e sob essas águas, uma pasta de lava, um agregado     de rochas que, no topo da cratera, seriam dispersas em todos os sentidos.     Estávamos, portanto, na cratera de um vulcão. Não havia     dúvidas a esse respeito.

Mas desta vez, em vez do Sneffels, vulcão extinto, tratava-se de     um vulcão em plena atividade. Perguntava-me portanto que montanha seria     aquela e em que parte do mundo seríamos expulsos.

Nas regiões setentrionais, sem dúvida. Antes de enlouquecer,     a bússola nunca apontara outra direção. Desde o cabo     Saknussemm, havíamos sido conduzidos diretamente para o norte por centenas     de léguas. Será que voltáramos para baixo da Islândia?     Seríamos expulsos pela cratera do Hecla ou por um dos sete outros montes     ignívomos da ilha? Só me lembrava, naquele paralelo, num raio     de quinhentas léguas a oeste, dos vulcões pouco conhecidos da     costa noroeste da América. A leste só existia um no grau oitenta     de latitude, o Esk, na ilha de Jean-Mayen, nada longe do Spitzberg! Não     faltavam crateras, todas espaçosas o suficiente para vomitar todo um     exército. Contudo eu tentava adivinhar qual delas nos serviria de saída.

O movimento de ascensão acelerou-se pela manhã. O calor aumentara,     em vez de diminuir com a aproximação da superfície do     globo, simplesmente porque era bem local e provocado pela influência     vulcânica. Nosso meio de locomoção não deixava     qualquer dúvida. Uma força enorme, de várias centenas     de atmosferas, produzida pelos vapores acumulados no centro da Terra, impulsionava-nos     irresistivelmente. Mas a quantos perigos nos expunha! Logo reflexos fulvos     penetraram na galeria vertical que se alargava; eu via, à direita e     à esquerda, corredores profundos semelhantes a imensos túneis,     de onde saíam vapores espessos; línguas de chamas lambiam as     paredes, cintilando, - Veja, veja, meu tio! - exclamei.

- O que é que tem? São chamas sulfurosas. Nada mais natural     numa erupção.

- E se nos envolverem? - Não nos envolverão.

- E se formos sufocados? - Não seremos sufocados. A galeria está     alargando-se, e se for preciso abandonaremos a jangada para abrigar-nos em     alguma fenda.

- E a água? A água está subindo? - Não há     mais água, Axel, mas uma espécie de pasta de lava que nos ergue     com ela até o orifício da cratera.

Com efeito, a coluna líquida desaparecera para ceder lugar a matérias     eruptivas bastante densas, embora ferventes. A temperatura tornara-se insuportável,     e um termômetro naquela atmosfera marcaria mais de setenta graus! Eu     estava inundado de suor. Não fosse a rapidez da ascensão, teríamos     sufocado.

O professor esqueceu sua idéia de abandonar a jangada, no que fez     muito bem. Aquelas vigas mal unidas ofereciam uma superfície sólida,     um ponto de apoio que nos faltaria em qualquer outra parte.

Por volta das oito horas da manhã, aconteceu, pela primeira vez,     um novo incidente. O movimento ascensional parou de repente. A jangada permaneceu     completamente imóvel.

- O que é isso? - perguntei, abalado por aquela parada súbita,     como o teria sido por um choque.

- Uma parada - respondeu meu tio.

- A erupção acalmou-se? - Espero que não.

Levantei-me. Tentei olhar a meu redor. Talvez a jangada, detida por uma     saliência de rocha, opusesse uma resistência momentânea     à massa eruptiva. Se fosse esse o caso, deveríamos apressar-nos     em libertá-la o quanto antes.

Não era nada disso. A coluna de cinzas, escórias e detritos     pedregosos parara de subir por conta própria.

- Será que a erupção parou? - exclamei.

- Ah! - murmurou meu tio, cerrando os dentes. - Você está com     medo disso; mas fique tranqüilo, o momento de calma não se prolongará     muito; já dura cinco minutos, e logo voltaremos à nossa ascensão     ao orifício da cratera.

Enquanto falava, o professor não parava de consultar seu cronômetro,     e, mais uma vez, devia ter razão em seus prognósticos. Logo     a jangada voltou a ser abalada por um movimento rápido, que durou mais     ou menos dois minutos e tornou a parar.

- Bem - resmungou meu tio observando a hora -, daqui a dez minutos voltará     a andar.

- Dez minutos? - Sim. Trata-se de uma erupção intermitente.     O vulcão permite-nos respirar com ele..

Pura verdade. No minuto preciso, fomos jogados de novo com extrema rapidez.     Precisávamos agarrar-nos às vigas para não ser lançados     para fora da jangada. Mais uma vez, o impulso deteve-se.

Desde então, reflito sobre aquele fenômeno singular sem encontrar     qualquer explicação satisfatória. Parece-me, no entanto,     evidente que não estávamos na cratera principal do vulcão,     mas num conduto acessório, onde um efeito de repercussão se     fazia sentir.

Não sei dizer por quantas vezes essa manobra se repetiu. Só     sei dizer que toda vez que o movimento voltava éramos lançados     com uma força crescente, como se estivéssemos num projétil.

Nos instantes de parada, sufocávamos; nos momentos de projeção,     o ar ardente cortava-me a respiração. Pensei, por um momento,     na volúpia de encontrar-me de repente nas regiões glaciais,     num frio de trinta graus abaixo de zero. Minha imaginação excitada     passeava pelas planícies de neve das regiões árticas,     e eu aspirava ao momento de rolar pelos tapetes gelados do pólo! Além     disso, alquebrado pelos repetidos abalos, perdi a cabeça. Não     fossem os braços de Hans, teria arrebentado mais de uma vez o crânio     nas paredes de granito.

Não conservei, portanto, nenhuma lembrança precisa do que     aconteceu nas horas seguintes. Tenho o sentimento confuso de contínuas     detonações, da agitação do maciço, de um     movimento giratório que arrebatou a jangada. A embarcação     ondulou pelas correntes de lava em meio a uma chuva de cinzas. Foi envolvida     por chamas estrepitosas. Um furacão que parecia ser provocado por um     imenso ventilador agitava os fogos subterrâneos. Vi o rosto de Hans     pela última vez num reflexo do incêndio, e meu último     sentimento foi o terror sinistro dos condenados amarrados à boca de     um canhão no momento em que vai ser disparado, e então dispersar     seus membros pelos ares.

XLIX

Quando tornei a abrir os olhos, senti que a mão vigorosa do guia me     apertava a cintura. Com a outra mão, ele segurava meu tio. Não     estava gravemente ferido, mas alquebrado por um cansaço geral. Vi que     estava deitado na vertente de uma montanha, a dois passos de um abismo, no     qual poderia cair ao menor movimento. Hans salvara-me da morte, quando eu     rolava pelos flancos da cratera.

- Onde estamos? - perguntou meu tio, que me pareceu muito irritado por ter     voltado à superfície da terra.

O caçador ergueu os ombros, mostrando que ignorava.

- Na Islândia - eu disse.

- Nej - respondeu Hans.

- Como não? - gritou o professor.

- Hans está enganado - disse, erguendo-me.

Após as inúmeras surpresas da viagem, mais um estupor aguardava-nos.     Esperava ver um cone coberto de neves eternas, no meio dos áridos desertos     das regiões setentrionais, sob os raios pálidos de um céu     polar, além das latitudes mais altas; mas, ao contrário de todas     as previsões, meu tio, o islandês e eu estávamos estendidos     no flanco de uma montanha calcinada pelos ardores do sol, que nos devorava     com seu calor.

Não conseguia acreditar no que via; o fato de sentir meu corpo assado,     porém, não permitia qualquer dúvida. Saíramos     seminus da cratera, e o astro radioso, ao qual nada pedíamos há     dois meses, mostrava-se pródigo em luz e calor, banhando-nos numa esplêndida     irradiação.

Assim que meus olhos se habituaram ao brilho ao qual não estavam     mais acostumados, empreguei-os para retificar os erros de minha imaginação.     Queria, pelo menos, estar no Spitzberg, e não estava com humor para     ceder tão facilmente.

O professor foi o primeiro a falar e disse: - De fato, isto não parece     nada com a Islândia.

- Será a ilha de Jean-Mayen? - respondi.

- Também não, meu rapaz. Isto não é um vulcão     do norte com suas colinas de granito e sua calota de neve.

- Mas...

- Olhe, Axel, olhe! Acima de nossas cabeças, a quinhentos pés     no máximo, abria-se a cratera de um vulcão pela qual saía,     a cada quinze minutos, com uma detonação muito forte, uma alta     coluna de chamas, misturada a pedra-pomes, cinzas e lavas. Sentia as convulsões     da montanha, que respirava à maneira das baleias e lançava de     quando em quando fogo e ar pelos seus enormes respiradouros.

Abaixo, num declive bastante íngreme, os lençóis de     matérias eruptivas estendiam-se por uma profundidade de setecentos     a oitocentos pés, o que fazia com que a altitude total do vulcão     mal alcançasse trezentas toesas. Sua base desaparecia numa verdadeira     corbelha de árvores verdes, entre as quais eu distinguia oliveiras,     figueiras e vinhas carregadas de uvas vermelhas.

Era preciso convir que não parecia nada com as regiões árticas.

Quando o olhar transpunha aqueles limites verdejantes, chegava rapidamente     a perder-se nas águas de um mar admirável ou de um lago, que     transformava aquela terra encantada numa ilha com apenas algumas milhas de     largura. No levante, via-se um portinho, precedido por algumas casas, no qual     navios de formato singular balançavam às ondulações     das vagas azuladas.

Mais além, saíam da planície líquida grupos     de ilhotas tão numerosos que pareciam um vasto formigueiro. Em direção     ao poente, as costas afastadas arredondavam-se no horizonte; numas, perfilavam-se     as montanhas azuis de conformação harmoniosa, noutras, mais     distantes, agitava-se um penacho de fumaça. Ao norte, uma imensa extensão     de água resplandecia aos raios de sol, revelando aqui e ali a extremidade     de uma mastreação ou a convexidade de uma vela inchada pelo     vento.

O imprevisto de tal espetáculo centuplicava suas maravilhosas belezas.

- Onde estamos? Onde estamos? - eu repetia, baixinho.

Hans fechava os olhos com indiferença, e meu tio olhava sem entender.

- Qualquer que seja esta montanha - disse ele finalmente - faz bastante     calor; as explosões continuam, e realmente não vale a pena sair     de uma erupção para levar um pedaço de rocha na cabeça.     Desçamos, para conseguir orientar-nos. Além disso, estou morrendo     de fome e de sede.

Decididamente, o professor não tinha um temperamento contemplativo.     Quanto a mim, esquecera as necessidades e o cansaço e teria permanecido     naquele lugar por muito mais tempo, mas tive de acompanhar meus companheiros.

As encostas do vulcão eram muito íngremes. Escorregávamos     por verdadeiros atoleiros de cinzas, evitando os riachos de lava que se alongavam     como serpentes de fogo. Enquanto descia, conversava com loquacidade, pois     minha cabeça estava cheia demais para não se esvaziar em palavras.

- Estamos na Ásia - exclamei -, nas costas da Índia, nas ilhas     Malaias, em plena Oceânia! Atravessamos metade do globo para chegar     aos antípodas da Europa! - E a bússola? - respondia meu tio.

- Sim, a bússola - dizia eu um tanto embaraçado. - De acordo     com ela, caminhávamos sempre para o norte! - Então ela mentiu?      - Ora, mentiu! - A menos que estejamos no pólo norte! - O pólo     não, mas...

Era inexplicável. Não sabia o que pensar.

Entrementes, aproximávamo-nos daquela verdura que dava prazer de     olhar. A fome e a sede atormentavam-me. Felizmente, após duas horas     de caminhada, apareceu um lindo campo completamente coberto de oliveiras,     romãzeiras e vinhedos que pareciam pertencer a todos. Além disso,     em nossa penúria, não tínhamos condições     de examinar melhor o terreno. Que prazer espremer os frutos saborosos nos     lábios e morder com gosto as uvas dos vinhedos vermelhos! Perto, na     relva, à sombra deliciosa das árvores, descobri uma fonte de     água fresca, onde mergulhamos voluptuosamente pés e mãos.

Enquanto nos abandonávamos às doçuras do repouso, apareceu     um menino entre duas ramagens de oliveira.

- Ah! - exclamei. - Um habitante desta região afortunada! Era uma     espécie de pobrezinho, miseravelmente vestido, aspecto doentio, que     pareceu muito assustado com nossa aparência.

De fato, seminus, barbas por fazer, estávamos horríveis e,     a menos que se tratasse de uma região de ladrões, tínhamos     tudo para assustar seus habitantes.

No momento em que o garotinho ia fugir, Hans correu atrás dele e     trouxe-o, apesar de seus gritos e chutes.

Meu tio tentou tranqüilizá-lo, dizendo-lhe em bom alemão:      - Qual é o nome dessa montanha, amiguinho? O menino não respondeu.

Perguntou a mesma coisa em inglês.

O menino também não respondeu. Eu estava muito intrigado.

- Será que é mudo? - exclamou o professor, e então,     muito orgulhoso de ser poliglota, repetiu a pergunta em francês.

Mesmo silêncio do garoto.

- Tentemos o italiano - retomou meu tio, e disse nessa língua: -      Dove noi siamo? - Sim, onde estamos? - repeti com impaciência.

Nada de o garoto responder.

- Vamos, fale! - gritou meu tio, que começava a ficar nervoso e sacudia     o menino pelas orelhas. - Come si noma questa isola ? - Stromboli - respondeu     o pastorzinho, que escapou das mãos de Hans e correu para a planície     dos olivais.

Nem pensávamos mais nele! O Stromboli! Que impacto esse nome inesperado     provocava em minha imaginação! Estávamos em pleno Mediterrâneo,     no meio do arquipélago eólio, mitológico, na antiga Stronbole,     onde Eólio mantinha os ventos e as tempestades acorrentados. E aquelas     montanhas azuis, que se arredondavam no levante, eram as montanhas da Calábria!     E o vulcão que se erguia no horizonte sul era o Etna, o selvagem Etna.

- Stromboli! Stromboli! - eu repetia.

Meu tio acompanhava-me com gestos e palavras. Parecíamos estar cantando     em coro! Ah, que viagem, que viagem maravilhosa! Tendo entrado por um vulcão,     saímos por outro, e esse outro localizava-se a mais de mil e duzentas     léguas do Sneffels, daquela região árida da Islândia,     banida para o fim do mundo! O acaso de nossa expedição transportara-nos     para o centro de uma das regiões mais harmoniosas da terra. Abandonáramos     a região das neves eternas para chegar à da verdura infinita     e deixáramos as brumas acinzentadas das zonas glaciais para voltar     ao céu azul da Sicília! Após uma refeição     deliciosa de frutas e água fresca, voltamos a caminhar para alcançar     o porto Stromboli. Revelar como chegáramos à ilha não     nos pareceu prudente; o espírito supersticioso dos italianos não     deixaria de ver em nós demônios que o seio do inferno vomitara.     Devíamos resignar-nos a passar por humildes náufragos. Era menos     glorioso, mas mais seguro.

Enquanto caminhávamos, ouvia meu tio murmurar: - Mas a bússola!     A bússola apontava para o norte! Como explicar isso? - Ora - desdenhei      -, não explique, é mais fácil! - Essa não, seria     uma vergonha um professor do Johannaeum não encontrar o motivo de um     fenômeno cósmico.

Ao falar isso, meu tio, seminu, bolsa de couro pendurada na cintura e arrumando     seus óculos no nariz, voltou a ser o terrível professor de mineralogia.

Uma hora depois de termos deixado o bosque das oliveiras, chegamos ao porto     de San Vicenzo, onde Hans reclamou o salário da décima terceira     semana de serviço, que lhe foi entregue com apertos de mão calorosos.

Naquele momento, se não compartilhou nossa emoção bem     natural, pelo menos deixou-se levar por um movimento de expansão extraordinário.

Apertou levemente nossas duas mãos com a ponta de seus dedos e sorriu.

L

Eis a conclusão de uma narrativa na qual as pessoas mais habituadas     a não se surpreender com nada acreditarão. Mas armei-me antecipadamente     contra a incredulidade humana.

Fomos recebidos pelos pescadores de Stromboli com todas as atenções     devidas aos náufragos. Deram-nos roupas e víveres.

Após uma espera de quarenta e oito horas, a 31 de agosto, uma pequena     speronare conduziu-nos a Messina, onde nos recuperamos com alguns dias de     descanso.

Na sexta-feira, 4 de setembro, embarcávamos no Volturne, um dos navios-correio     das empresas de transportes imperiais da França, e, três dias     depois, estávamos em Marselha, com uma única preocupação:     a da maldita bússola. O fato inexplicável não parava     de atormentar-me. A 9 de setembro à noite, chegávamos a Hamburgo.

Renuncio a descrever o estupor de Marthe e a alegria de Grauben.

- Agora que você é um herói - disse-me minha querida     noiva -, não precisará mais abandonar-me, Axel! Olhei para ela.     Chorava sorrindo.

Deixo em aberto quanto a volta do professor Lidenbrock provocou sensação     em Hamburgo. Graças à indiscrição de Marthe, todo     mundo sabia de sua viagem para o centro da Terra. Ninguém acreditou,     nem quando retornou.

No entanto, a presença de Hans e as várias informações     procedentes da Islândia modificaram um pouco a opinião pública.

Então meu tio tornou-se um grande homem, e eu, o sobrinho de um grande     homem, o que já é alguma coisa. Hamburgo deu uma festa em nossa     homenagem. Numa sessão aberta ao público no Johannaeum, o professor     relatou sua expedição, só omitindo os fatos relativos     à bússola. Naquele mesmo dia, depôs nos arquivos da cidade     o documento de Saknussemm e lamentou não terem as circunstâncias     permitido que seguisse os rastros do viajante islandês até o     centro da Terra. Foi modesto em sua glória, e sua reputação     aumentou.

Tanta honra suscita inveja. Suscitou, e como suas teorias, baseadas em dados     seguros, contradiziam os sistemas da ciência sobre a questão     do fogo central, sustentou, pela pena e pela palavra, notáveis discussões     com oscientistas de todos os países.

Quanto a mim, não consigo admitir sua teoria do resfriamento: a despeito     do que vi, acredito e sempre acreditarei no calor central; mas confesso que     algumas circunstâncias ainda mal definidas podem modificar essa lei     sob a ação dos fenômenos naturais.

No momento em que essas questões estavam palpitantes, meu tio passou     por um verdadeiro desgosto. Apesar de sua insistência, Hans deixara     Hamburgo; o homem ao qual devíamos tudo não quis deixar que     pagássemos nossa dívida. Estava com saudades da Islândia.

- Farval - disse ele um dia, e com essa simples palavra de adeus partiu     para Reykjavik, onde chegou bem.

Havíamos nos afeiçoado muito ao nosso corajoso caçador     de êider. Jamais será esquecido por aqueles cujas vidas salvou,     e com certeza não morrerei sem ir vê-lo pela última vez.

Para concluir, devo acrescentar que essa Viagem ao centro da Terra provocou     sensação entre o público. Foi publicada e traduzida para     todas as línguas. Os jornais mais autorizados disputaram seus episódios     principais, que foram comentados, discutidos, atacados e apoiados com igual     convicção pelos crédulos e incrédulos. Coisa rara:     ainda em vida, meu tio gozava de toda a glória que conquistara, e até     Bamum propôs "exibi-lo" nos Estados Unidos por um preço     elevado.

Mas um problema, podemos dizer até um tormento, atrapalhava a glória.     Um fato continuava inexplicável, o da bússola; ora, para um     sábio, tal fenômeno inexplicável torna-se um suplício     para a inteligência. Bem, os Céus concederiam ao meu tio a felicidade     completa.

Um dia, enquanto eu arrumava uma coleção de minerais em seu     gabinete, vi a famosa bússola e comecei a observá-la.

Estava ali, em seu canto, há seis meses, sem desconfiar do escândalo     que provocava.

De repente, qual não foi o meu estupor! Gritei. O professor acorreu.

- O que foi? - perguntou.

- Essa bússola!...

- O que é que tem? - Sua agulha indica o sul e não o norte!      - O que você está dizendo? - Olhe! Seus pólos estão     trocados! - Trocados! Meu tio olhou, comparou, e fez a casa tremer com um     tremendo pulo.

Acendeu-se uma luz em nossas mentes.

- Então - exclamou, assim que conseguiu falar -, desde a nossa chegada     ao cabo Saknussemm, a agulha dessa maldita bússola apontava para o     sul, em vez de apontar para o norte? - É claro.

- Então nosso erro está explicado. Mas que fenômeno     provocou essa inversão de pólos? - Nada mais simples.

- Explique-se, meu filho.

- Durante a tempestade no mar Lidenbrock, aquela bola de ferro que estava     imantando o ferro da jangada simplesmente desorientou nossa bússola.

- Então foi uma simples questão de eletricidade? - O professor     caiu na gargalhada.

A partir daquele dia, meu tio tornou-se o mais feliz dos sábios,     e eu, o mais feliz dos homens, pois, abdicando de sua posição     de pupila, minha bela Virlandesa assumiu, na casa da Königstrasse, a     dupla função de sobrinha e esposa. É inútil acrescentar     que seu tio era o professor Otto Lidenbrock, membro correspondente de todas     as sociedades científicas, geográficas e mineralógicas     das cinco partes do mundo.

 

                                                                                                       Júlio Verne

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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