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O Cabeleira / Franklin Távora
O Cabeleira / Franklin Távora

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O Cabeleira

 

A história de Pernambuco oferece-nos exemplos de heroísmo e     grandeza moral que podem figurar nos fastos dos maiores povos da antigüidade     sem desdourá-los. Não são estes os únicos exemplos     que despertam nossa atenção sempre que estudamos o passado desta     ilustre província, berço tradicional da liberdade brasileira.     Merecem-nos particular meditação, ao lado dos que aí     se mostram dignos da gratidão da pátria pelos nobres feitos     com que a magnificaram, alguns vultos infelizes, em quem hoje veneraríamos     talvez modelos de altas e varonis virtudes, se certas circunstâncias     de tempo e lugar, que decidem dos destinos das nações e até     da humanidade, não pudessem desnaturar os homens, tornando-os açoites     das gerações coevas e algozes de si mesmos. Entra neste número     o protagonista da presente narrativa, o qual se celebrizou na carreira do     crime, menos por maldade natural, do que pela crassa ignorância que     em seu tempo agrilhoava os bons instintos e deixava soltas as paixões     canibais. Autorizavam-nos a formar este juízo do Cabeleira a tradição     oral, os versos dos trovadores e algumas linhas da história que trouxeram     seu nome aos nossos dias envolto em uma grande lição.

 

A sua audácia e atrocidades deve seu renome este herói legendário     para o qual não achamos par nas crônicas provinciais. Durante     muitos anos, ouvindo suas mães ou suas aias cantarem as trovas comemorativas     da vida e morte desse como Cid, ou Robin Hood pernambucano, os meninos, tomados     de pavor, adormeceram mais depressa do que se lhes contassem as proezas do     lobisomem ou a história do negro do surrão muito em voga entre     o povo naqueles tempos.

 

Com a simplicidade irrepreensível que é o primeiro ornamento     das concepções do espírito popular, habilitam-nos esses     trovadores a ajuizarmos do famoso valentão pela seguinte letra:

 

Fecha a porta, gente, Cabeleira aí vem, Matando mulheres, Meninos     também.

 

O Cabeleira chamava-se José Gomes, e era filho de um mameluco por     nome Joaquim Gomes, sujeito de más entranhas, dado à prática     dos mais hediondos crimes.

 

De parceria com um pardo de nome Teodósio, que primou na astúcia     e nos inventos para se apossar do que lhe não pertencia, percorriam     José e Joaquim o vasto perímetro da província em todas     as direções, deixando a sua passagem assinalada pelo roubo,     pelo incêndio, pela carnificina.

 

Um dia assentaram dar um assalto à própria vila do Recife.

 

As populações do interior, em sua maioria destituídas     de bens da fortuna, e então muito mais espalhadas do que atualmente,     pouco tinham já com que cevar a voracidade dos três aventureiros     a quem desde muito pagavam um triplo imposto consistente em víveres,     dinheiro e sangue. O assalto foi resolvido em secreto conciliábulo     dentro das matas de Pau d'Alho onde mais uma vez se haviam reunido para concertos     idênticos.

 

Na mesma hora aperceberam-se para a temerária tentativa, e, com o     arrojo que lhes era natural, puseram-se a caminho contando de antemão     com o feliz sucesso em que tinham posto a mira.

 

A notícia da sua aproximação a maior parte dos moradores,     deixando os povoados, então muito fracos por não terem ainda     a densidão que só um século depois tornou alguns deles     respeitáveis, emigrou para os matos, único abrigo com que lhos     era permitido contar, embora se achassem a poucas léguas do Recife;     tais houve que, não tendo tempo ou recursos para fugir aos cruéis     visitantes, lhes deram hospedagem como meio de não incorrerem no seu     desagrado.

 

Ao declinar do dia seguinte eram eles na Estância. Sentaram-se no adro     da capela de taipa que fora aí levantada por Henrique Dias, para recordar     aos vindouros que nesse lugar tivera ele o seu posto militar pelas guerras     da restauração. Esse posto era dentre todos o que ficava mais     vizinho ao inimigo. Eloqüente testemunho de bravura do troço da     gente preta a quem a pátria reservou distinta menção     nas maiores páginas da história colonial. É muito cedo     para entrarmos na vila disse o Cabeleira. E não será até     melhor que o Teodósio vá primeiro que nós para assentar     ainda com dia no meio mais certo de realizar a empresa?

 

Tens razão, José Gomes, acrescentou Joaquim; o Teodósio,     que é macaco velho, deve ir adiante a sondar as coisas. Para bater     o pé ao inimigo e fazer frente a qualquer dunga, vocês sabem     muito bem que eu sou cabra decidido; agora, para espertezas não contem     comigo; isso é lá com o Teodósio que é mestre     em saberetes; e ninguém lhe vai ao bojo.

 

Os três malfeitores traziam consigo bacamartes, parnaíbas, facas     e pistolas.

 

Cabeleira podia ter vinte e dois anos. A natureza o havia dotado com vigorosas     formas. Sua fronte era estreita, os olhos pretos e lânguidos, o nariz     pouco desenvolvido, os lábios delgados como os de um menino. É     de notar que a fisionomia deste mancebo, velho na prática do crime,     tinha uma expressão de insinuante e jovial candidez.

 

Joaquim, que contava o duplo da idade de seu filho, era baixo, corpulento     e menos feito que o Teodósio, o qual, posto que mais entrado em anos,     sabia dar, quando queria, à cara romba e de cor fula, uma aparência     de bestial simplicidade em que só uma vista perspicaz, e acostumada     a ler no rosto as idéias e os sentimentos íntimos, poderia descobrir     a mais refinada hipocrisia.

 

Entendo que é bem lembrado o que dizes, Cabeleira acrescentou o cabra     levantando-se; corro sem demora armar o laço para apanhar o passarinho;     ainda que, a bem dizer, já cá tenho o meu plano que há     de cair tão certinho como São João a vinte e quatro.

 

E onde depois nos encontraremos? perguntou Joaquim, vendo que o Teodósio     se achava já de marcha para a vila.

 

Não será o mais custoso. Esperarei por vocês debaixo     da ingazeira da ponte.

 

Teodósio, não estando mais para conversa, conchegou o chapéu     de palha à cabeça para que o vento não lho arrebatasse,     e desapareceu em rápido marche-marche, por detrás dos matos     que naquele tempo enchiam ainda em sua maior parte a zona onde hoje se ostenta     com suas graciosas habitações entre risonhos verdores a Passagem     da Madalena.

 

Antes que o sol descesse ao horizonte e as trevas envolvessem de todo a natureza,     meteram-se o pai e o filho pelo caminho onde um quarto de hora atrás     havia desaparecido o outro companheiro, alma do negócio e principal     responsável pelos perigos a que todos eles iam expor talvez a própria     vida.

 

A solidão estava sombria e triste.

 

Contavam-se então as casas por aquelas paragens. Em torno delas o     deserto começava a aumentar antes de pôs-se o sol. Uma lei cruel,     a lei da necessidade, obrigava os moradores a trancar-se cedo por bem da própria     conservação.

 

Os roubos e assassinatos reproduziam-se com incrível freqüência     nos caminhos e até nas beiradas dos sítios.

 

Sólidas habitações não tinham em muitos casos     assegurado às famílias inelutável obstáculo ao     assalto dos malfeitores. Triste época em que o despotismo tudo podia     contra os cidadãos pacíficos e bons, nada contra a parte cancerosa     da sociedade!

 

A vila estava em festa. Foi no primeiro domingo de dezembro de 1773. Era     governador Manuel da Cunha de Meneses, depois conde de Lumiar, jovem fidalgo     a quem a igreja pernambucana deve distintos benefícios.

 

Com a data do 1.° daquele mês tinha ele feito publicar um bando     pelo qual ordenara aos moradores que pusessem luminárias em demonstração     da alegria que causara à nação portuguesa a abolição     dos jesuítas em todo o orbe cristão, pelo santo padre Clemente     XIV.

 

No lugar onde hoje existe a formosa ponte Sete de Setembro que liga o bairro     do Recife ao de Santo Antônio, via-se nessa época uma ponte de     madeira, a qual fora mandada construir em 1737 sobre os sólidos pilares     de pedra e cal da primitiva ponte, obra de Maurício de Nassau, por     Henrique Luís Vieira Freire de Andrade, um dos governadores que mais     honrada e benemérita memória deixaram de si em Pernambuco.

 

Era uma rica construção, nada menos do que uma rua suspensa     sobre as águas do rio Capibaribe, que passa aí reunido ao Beberibe,     depois de um curso de oitenta léguas por entre matas, por sobre pedras     e ao pé de pitorescas vilas, povoações e arrabaldes.     De um e outro lado, exceto na parte central, que fora guarnecida de bancos     para recreio do público, viam-se pequenos armazéns de taipa     de sebe em que se vendiam miudezas e ferragens, que logo depois de prontos     acharam alugadores, começaram a render a quantia de oitocentos mil-réis     anuais, a qual no começo do século corrente se havia elevado     à de quatro contos de réis. Com a fundação das     casinhas sobreditas teve por fim o governador de criar uma fonte de rendas     destinada à conservação das pontes da província,     quase todas nesse tempo em deplorável ruína. Destas obras com     que dotou Pernambuco o gênio desse ilustre governador, não resta     hoje o menor vestígio. Tudo desapareceu, tudo, até as arcadas     holandesas que ainda alcancei. O monumento das idades é mais depressa     destruído pelos homens do que pelo tempo, esse consumidor que, como     ser voraz, não deixa de respeitar a obra da virtude.

 

A boca da noite os dois aventureiros chegaram à parte do bairro da     Boa Vista que é de nós conhecida por Ponte Velha. Raras casas     mostravam-se então aí.

 

A pouca distancia para o sul do lugar onde existira a antiga ponte, nesse     tempo já substituída pela da Boa Vista mandada construir por     Henrique Luís a quem já nos referimos, levantava-se na margem     uma ingazeira idosa e ramalhuda. Abrindo sobre o rio a copa à semelhança     de chapéu-de-sol, formava esta árvore uma vasta camarinha que     servia de porto de abrigo aos canoeiros quando o vento era teso, e as marés     puxavam com velocidade. Debaixo desse teto protetor as águas corriam     sempre mansas e bonançosas, e, sem primeiro descer ao pé do     gigantesco vegetal, era difícil descobrir, pela densidão da     sua folhagem, qualquer objeto ou ente que à sombra desta se acolhesse,     ainda que estivesse o sol dardejando os seus luminosos raios. Fora este o     ponto de reunião indicado por Teodósio aos companheiros.

 

Dar com as primeiras casas iluminadas foi para os dois valentões motivo     de justo espanto e receio. Não sabendo do regozijo oficial, e tendo     bem presentes na consciência os crimes que haviam cometido, logo lhes     pareceu que seriam descobertos ao clarão das luzes, não se demorando     o clamor público, se assim acontecesse, a denunciá-los às     justiças de el-rei.

 

Pelo voto de Cabeleira tinha-se verificado no mesmo instante a volta ao deserto.     Mas Joaquim, cuja temeridade não conhecia limites, desprezando os conselhos     do filho sobre o qual exercitava a tirania do déspota primeiro que     a autoridade do pai, foi fazer alto ao pé da ingazeira sobredita, tendo     atravessado para chegar a este ponto as ruas mais públicas do nascente     bairro da Boa Vista.

 

Profundo silencio reinava no vasto areal que guarnecia o rio por aquele lado.     As águas mal se moviam. Desceram os dois à margem a ajuntar-se     ao Teodósio conforme o convencionado, mas a sua expectativa foi iludida;     não havia aí viva alma; unicamente se mostrou aos seus olhos     um corpo negro, oscilando debaixo da folhagem, ao brando ondear das águas:     era uma canoa que estava presa por uma corda ao tronco da ingazeira.

 

Depois de alguns momentos de espera não sem inquietação     para os recém-chegados, um ruído que veio interromper o silencio     reinante na margem obrigou-os a pôr-se em armas por precaução.     A corda rapidamente encurtando atraiu sem auxílio visível a     canoa à margem, e um corpulento canoeiro, nu da cintura para cima,     arrastando uma vara pela mão, saltou à frente dos malfeitores.

 

Sou eu, Cabeleira, sou eu.

 

Teodósio ! Meteste-te em boas.

 

Eu estava escondido dentro da canoa para fazer um susto a vocês.

 

A bom diabo te encomendaste hoje que o meu bacamarte mentiu fogo duas vezes     disse Cabeleira.

 

Não falemos mais nisso acudiu Teodósio; celebraremos depois     o caso. Para agora vamos ao que importa.

 

Que é que há ?

 

Não me estão vendo em figura de canoeiro ? Vamos a ela enquanto     é tempo.

 

Teodósio inclinou-se para passar aos dois um segredo que em pouco     tempo foi por ambos compreendido, e que entrou no mesmo instante a ser posto     em execução pelos três. O pai e o filho foram guardar     as suas armas de fogo na canoa, e o cabra saltou novamente dentro dela e fez-se     ao largo. Quem visse um instante depois o lenho resvalando na vasta superfície     do rio à claridade dos astros da noite, juraria que nessa sombra fugitiva,     nesse ponto que se perdeu por fim nos seios da escuridão, não     ia mais que um canoeiro, sabedor das manhas das águas e senhor dos     meios de as vencer. Ia entretanto aí uma maldade muito mais considerável     e perigosa, porque era hipócrita e estava disfarçada, do que     a malvadez de Joaquim sempre alerta, e a impavidez de José sempre franco     até na estratégia e na emboscada.

 

Estes dois últimos, tanto que o cabra se afastou da margem, atravessaram     a ponte da Boa Vista e, ladeando o canal que cercava Santo Antônio pelo     lado ocidental e ia encher ao sul as valas da fortaleza das Cinco Pontas,     e ao norte as do forte Ernesto, hoje inteiramente desaparecido, passaram em     frente do palácio do governador e por este forte, o qual ficava pouco     adiante do convento de S. Francisco, e entraram na ponte do Recife que apresentava     uma vista majestosa e deslumbrante. Colunas e arcos triunfais profusamente     iluminados tinham sido ali erguidos a iguais distâncias. Ao som das     músicas marciais, o povo percorria o aéreo passeio entre risos     e folgares.

 

Ainda bem não se haviam os malfeitores confundido com os passeantes,     quando se ouviu um grito arrancado pelo pânico terror de um matuto que     os conhecera.

 

O Cabeleira ! O Cabeleira ! Grandes desgraças vamos ter, minha gente     ! clamou o mal avisado roceiro.

 

Estas palavras caíram como raios mortíferos no meio da multidão     que se entregava, incuidosa e confiante, ao regozijo oficial.

 

A confusão foi indescritível. As expansões da pública     alegria sucederam as demonstrações do geral terror. Homens,     mulheres, crianças atropelaram-se, correndo, fugindo, gritando, caindo     como impelidos por infernal ciclone. A fama do Cabeleira tinha, não     sem razão, criado na imaginação do povo um fantasma sanguinário     que naquele momento se animou no espírito de todos e a todos ameaçou     com inevitável extermínio.

 

Ouvindo aquelas palavras e sendo assim surpreendidos por uma ocorrência     com que não contavam, os dois malfeitores instintivamente bateram mãos     das parnaíbas primeiro para se defenderem, por lhes parecer que corria     a sua liberdade iminente perigo, que para investirem com massa ingente, a     qual aliás fugia como rebanho apavorado pela presença das onças.     Os seus gestos concorreram para aumentar o terror da multidão, a qual,     mal interpretando-os, imaginou que ia ter começo a carnificina.

 

Sim, é o Cabeleira, gente fraca. Ele não vem só, vem     seu pai também gritou José Gomes, cujo rosto começou     a anuviar-se.

 

Joaquim; feroz por natureza, sanguinário por longo hábito,     descarregou a parnaíba sobre a cabeça do primeiro que acertou     de passar por junto dele. A cutilada foi certeira, e o sangue da vítima,     espadanando contra a face do matador, deixou aí estampada uma máscara     vermelha através da qual só se viam brilhar os olhos felinos     daquele animal humano.

 

José Gomes, por irresistível força do instinto que muitas     vezes o traiu aos olhos do carniceiro pai, voltou-se de chofre e lhe disse:

 

Para que matar se eles fogem de nós

 

Corram, minha gente Cabeleira aí vem; Ele não vem só,     Vem seu pai também.

 

Matar sempre, Zé Gomes retorquiu o mameluco com as narinas dilatadas     pelo odor do sangue fresco e quente que do rosto lhe descia aos lábios     e destes penetrava na-boca cerval.Não temos aqui um só amigo.     Todos nos querem mal. É preciso fazer a obra bem feita.

 

Este homem era o gênio da destruição e do crime. Por     sua boca falavam as baixas paixões que à sombra da ignorância,     da impunidade e das florestas haviam crescido sem freio e lhe tinham apagado     os lampejos da consciência racional que todo homem traz do berço,     ainda aqueles que vêm a ser depois truculentos e consumados sicários.

 

Seu coração estava empedernido, seu senso moral obcecado.

 

Nenhum sentimento brando e terno, nenhum pensamento elevado exercitava a     sua salutar influência nas ações deste ente degenerado     e infeliz.

 

Estás com medo, Zé Gomes, deste poviléu ? Parece-me     ver-te fraquejar. Por minha bênção e maldição     te ordeno que me ajudes a fazer o bonito enquanto é tempo. Não     sejas mole, Zé Gomes; sê valentão como é teu pai     .

 

Tendo ouvido estas palavras, o Cabeleira, em cuja vontade exercitava Joaquim     irresistível poder, fez-se fúria descomunal e, atirando-se no     meio do concurso de gente, foi acutilando a quem encontrou com diabólico     desabrimento. Como dois raios exterminadores, descreviam pai e filho no seio     da massa revolta desordenadas e vertiginosas elipses.

 

A geral consternação teria cessado em poucos instantes se o     povo pudesse escapar pelas duas entradas da ponte. Achavam-se porém     estas já tomadas por piquetes de infantaria às pressas organizados     para embargarem a fuga aos matadores e reduzi-los à prisão.

 

A medida que estes piquetes se foram movendo das extremidades para o centro,     à população, obrigada a aproximar-se dos assassinos,     preferiu a este perigo atirar-se ao rio, e a baldeação não     se fez esperar.

 

Em poucos momentos os perturbadores da ordem acharam-se debaixo das vistas     da força pública. O lugar da cena estava quase inteiramente     desocupado. As colunas militares operaram um movimento único, indescritível.     Carregaram sem demora sobre os delinqüentes que, à vista da estreiteza     do passo e do cerco, só nas águas puderam, como as suas vítimas,     achar salvação.

 

Um soldado, impelido talvez primeiro pelo ímpeto da paixão     que pela consciência do dever, o qual em ocasiões iguais àquela     raramente fala mais alto que os instintos animais, atirou-se de arma em punho     após os assassinos com o fim de apreender um dos dois, ainda que custasse     a própria vida. Não logrou o seu intento este valente defensor     da sociedade e da lei. Quando sua mão tocava em um dos delinqüentes     de cima de uma canoa que nesse momento desatracara da ponte, desfecharam-lhe     com a vara tão forte golpe sobre a cabeça, que o, infeliz, perdendo     os sentidos, foi arrebatado pela corrente. Igual cena se presenciou em 1821,     figurando como vítima João Souto Maior que procurara salvar-se     no rio depois de haver ferido com um tiro de bacamarte na ponte da Boa Vista     o governador Luís do Rego Barreto.

 

Assim se passou na vila do Recife a noite do primeiro domingo de dezembro     de 1773, noite memorável, que principiou pela alegria e terminou pelo     terror público.

 

 

 

Por entre as vítimas do terror que lutavam com as águas do     Capibaribe nas sombras da noite deslizou indiferente a canoa onde ia o Teodósio,     assassino do soldado que se atirara ao rio em busca dos delinqüente.

 

Teodósio, como os leitores hão de lembrar-se, viera só     mas não voltava agora desacompanhado. José, taciturno e quieto,     e Joaquim, rosnando como besta fera que indiscreto caçador irrita em     escuso bosque, testemunhavam ao pé do cabra, sentados na popa do fugitivo     lenho, com os bacamartes nas mãos, o espetáculo de aflição     e desespero; e, como se o fizessem de caso pensado para denotarem a pouca     conta em que tinham uma sociedade que eles dois unicamente acabavam de entregar     em alguns minutos à perturbação e à dor, pareciam     afrontar com olhares insultuosos não somente os homens mas também     aquele que ao fulgor das estrelas vê melhor do que os mortais à     luz do dia, e que das alturas, onde paira, distribui por todos a sua indefectível     justiça, tanto para premiar como para punir. Foi Deus o único     que conheceu os três aventureiros, rompendo as águas, o único     que em suas frontes manchadas do sangue e do opróbrio recente leu o     passado que os condenava e o futuro que por eles esperava para justiçá-los     com a excessiva severidade que havemos de ver.

 

Os náufragos só trataram de salvar-se e fugir; qual se agarrasse     aos mangues, então muito bastos e numerosos, que bordam o rio como     ilhas de verdura, qual demandasse, a fim de escapar da inclemência da     corrente, os bancos de areia formados pelo fluxo e refluxo das marés.     Ninguém cuidou mais do Cabeleira senão para se distanciar com     horror crescente da sua sombra cruel, do seu vulto fatal e ominoso.

 

Achavam-se na ponte o pai e o filho, não para serem socorridos, como     foram, pelo companheiro, mas para protegerem a sua fuga, caso fosse ele descoberto     antes de haver concluído o roubo que assentaram de praticar em um dos     armazéns. A denúncia do matuto transtornara esta combinação     pela forma que o leitor conhece, não impedindo porém que no     essencial viesse ela a verificar-se, porque, ouvindo o trovão do alarido     e fazendo conta que o conflito fora provocado pelos amigos como meio de concentrar     em um só ponto as gerais atenções a fim de deixá-lo     ao abrigo de qualquer surpresa, tratara Teodósio de aproveitar o tempo     com a prontidão e perícia que lhe eram habituais em semelhante     gênero de ocupação.

 

Na extremidade de uma vara fora acinte atado um ferro adunco para facilitar     o escalamento. Prendê-lo na varanda do armazém, subir pela longa     haste até a estiva, passar desta à janela, e saltar dentro fora     obra de um instante para o Teodósio. Em poucos minutos quinquilharias     preciosas, armas de fogo, perfumarias, miudezas de toda sorte desceram por     cordas em suas caixas ou pacotes para a canoa. As gavetas, primeiro que as     vidraças, foram violadas e revistadas, e o dinheiro que continham passara     a povoar o bolso do atrevido roubador.

 

São tradicionais os roubos que deste modo se praticaram na ponte do     Recife por aqueles tempos e durante muitos anos depois. Segundo contam os     antigos, eles reproduziram-se no começo deste século com tanta     freqüência, que os armazéns ao princípio com razão     cobiçados pelos comerciantes perderam de valor, e ficariam de todo     depreciados se a polícia, por uma rigorosa vigilância que lhe     faz honra, não houvesse impedido a continuação destes     atentados.

 

Quando não houve mais objeto de preço que baldear; Teodósio     desceu. Era tempo. Ainda bem não tinha terminado o seu aéreo     trajeto, quando dois corpos surgiram dentre ruidoso espumeiro produzido por     violenta queda e passaram-se à embarcação. Eram Joaquim     e José Gomes que se haviam atirado ao rio para escaparem à prisão,     como vimos.

 

A escuridão que reinava no Capibaribe, as auras da noite e uns restos     de enchente favoreciam a evasão dos navegantes. Mantendo-se a igual     distancia das duas margens, o improvisado canoeiro, ao passo que se subtraía     a qualquer inspeção do lado da terra, era arrebatado com os     hóspedes pelas águas do canal que são profundas e correm     ali com impetuosidade.

 

Em pouco tempo, contornando o palácio do governador, e deixando à     direita o forte Waerdenburch, construído em 16381 nas Salinas, hoje     Santo Amaro, pelos holandeses que lhe deram esta denominação     para honrarem o seu general Diederik can Waerdenburch, seguiu rumo ao sul,     rompendo, por entre ilhas de mangues, a escuridão e as águas.

 

Entre as casas de que por esse tempo se compunha a povoação     dos Afogados contava-se a de um colono por nome Timóteo, sujeito pontista,     como tal conhecido das vizinhanças, e por isso mesmo buscado sempre     que se tratava de realizar qualquer transação ilícita     ou simplesmente equívoca.

 

Era uma casa de taipa como quase todas as outras do lugar, e achando-se a     pouca distancia do forte tomado pelos holandeses sob o comando do coronel     Lourenço van Rembach aos portugueses em 1633 e denominado por estes     Forte da Piranga e por aqueles Príncipe Guilherme em honra do príncipe     de Orange. Ficava à direita da entrada da povoação, por     detrás das primeiras casas. Foi demolido em 181S, pelo intendente da     marinha Siqueira, que com o respectivo material aterrou a camboa que contornava     pelo lado do rio a primeira casa, na qual morava.

 

Timóteo estabelecera ali uma vendola ou bodega aonde ia ter o açúcar,     a galinha, a colher de prata, a peça de roupa ou qualquer objeto que     era furtado pelos negros dos engenhos da redondeza. No exercício desta     criminosa indústria comprava-lhes muitas vezes por dez réis     de mel coado objetos de valor que revendia depois pela hora da morte aos boiadeiros     e almocreves que acertavam de entrar na venda.

 

Timóteo tivera por companheira uma mameluca de nome Chica, mulher     bem apessoada, ainda moça, metida a valentona, finalmente uma dessas     mulheres que tomam satisfações a Deus e ao mundo por dá     cá aquela palha. Diziam as más línguas que nos primeiros     tempos de sua vida com o colono ela lhe fora por diferentes vezes ao pelo;     e que, compreendendo ele que não podia fazer cinco montes, e renunciando     à pretensão, que a princípio nutrira, trazer sopeada     a caseira, deixara esta também, por justa compensação     de repetir o caridoso ensino com que o edificara logo depois de sua lua-mel.

 

Uma manhã um rapazito descorado parou à porta da bodega, saltou     do cavalo abaixo e mandou medir contrametade de aguardente.

 

Olá, menino José. Muito cedo navega você hoje disse     Timóteo ao recém chegado.

 

Parti de Santo Antão na madrugada velha tornou-lhe o hóspede.

 

Enquanto o taverneiro aviava o matinal freguês, o cavalo que jejuava     desde a véspera pôs-se a devorar a grama do pátio, e,     sem consciência dos riscos em que se ia meter, foi cair muito naturalmente     dentro da pequena roça da mameluca e começou a destruí-la     mostrando tenção de dar conta dela.

 

Mas ainda bem o primeiro jerimum não se havia derretido entre os poderosos     molares do faminto animal, quando a dona da plantação desfechou     neste tamanho golpe com uma das estacas da cerca, que o pobrezito, dando às     popas pelo meio do pátio, foi atirando os sacos aqui, os caçuás     acolá, a cangalha além, e desembestou por fim, pela margem afora,     em violenta fuga.

 

Não satisfeita com semelhante desforra, Chica em um pulo ganhou a     venda, e investiu com o inofensivo matutinho.

 

Amarelo de Goiana! gritou-lhe ela ao pé do ouvido. Não sei     onde estou que não te ponho mole com este pau para te ensinar a amarrares     melhor a tua besta esganada de fome.

 

O rapaz, volvendo a vista ao volume humano que lhe acabava de falar e cujos     olhos pareciam querer saltar das órbitas, respondeu-lhe sem se alterar     nem mover:

 

Besta ! Besta é ela.

 

E, senhor de si qual se estivesse gracejando com um amigo, levou o copo aos     lábios com o maior sangue-frio que ainda se pôde mostrar na taverna,     onde as paixões se acendem com a prontidão do raio.

 

Irritada por esta represália que a seus olhos pareceu condensar todo     o desprezo do mundo, a mameluca não teve dúvida, não,     e levantou a acha para o rapazito.

 

Tinha este deposto o copo sobre o imundo balcão quando pressentiu     a arremetida; pôde por isso fugir em tempo com o corpo à violenta     pancada. A estaca bateu a meio no balcão' e metade dela voou pelos     ares em estilhaços que foram quebrar as panelas de barro e as poentas     botijas com que se achavam adornadas as sujas prateleiras da pocilga.

 

Ouviu-se então um estalo, e logo o baque de um pesado corpo. José     havia desandado com tanta força uma bofetada na mameluca, que a fizera     cair redondamente no chão.

 

Quis Timóteo acudir à companheira na apertada conjuntura que     se lhe desenhou aos olhos com as negras cores de um desastre, ou vergonha     para o lar e bodega onde nunca sofrera afronta igual ou que com esta se parecesse.     Mas quando apercebia o animo para dar o arriscado passo, descobriu na mão     de José uma faca de Pasmado que o reteve a respeitosa distância.

 

Julgando-se Jos , à vista do agravo que recebera, com direito a público     e estrondoso despique, arrastou por uma perna a mameluca, ainda tonta, para     o terreiro, e aí, com uma raiz de gameleira com que os meninos tinham     brincado na véspera, começou a pôr em prática a     mais edificativa sova de que nos dão notícia as tradições     matutas.

 

A mameluca tentou por diferentes vezes livrar se das mãos do rapazito,     espernegando como possessa. As mãos de José porém pareciam,     pela dureza e pelo peso, manoplas fundidas de propósito para esmagar     um gigante. Demais, José havia posto um pé no pescoço     da Chica, e com ele comprimia lhe o gasnete, tirava lhe a respiração,     afogava a sem piedade.

 

A estrada estava deserta. Os moradores da povoação, de ordinário     madrugadores, por infelicidade da caseira de Timóteo dormiram demais     nesse dia do que tinham por costume. Além disso, as casas mais próximas     da venda ficavam ainda a distancia, sendo todas, como então eram, muito     espalhadas. Esta circunstância, tirando toda esperança de pronto     socorro, animou José a prolongar o exercício para o qual podia     dizer se estava preparado por diuturno hábito. Depois de alguns minutos,     sentiu Timóteo subirem lhe enfim às faces os restos do equívoco     brio e gritou, sempre de longe:

 

Você quer matar me a Chica, José ?

 

Deixe ensinar esta cabra, seu Timóteo. Ela nunca viu homem, e por     isso anda aqui feita galinho de terreiro, ou peru de roda, metendo medo a     todos estes papa siris dos Afogados.

 

Assim dizendo, José montava se literalmente na mameluca, e dava lhe     com os restos da raiz da gameleira já sem serventia. A faca, que minutos     antes reluzira em uma das mãos estava agora atravessada na boca do     matuto, em quem o ignóbil vendeiro parecia ver, não uma figura     humana, mas uma visão infernal que o ameaçava, a ele também,     não com igual pisa, mas com a morte, que para ele era mil vezes pior.

 

De repente José colheu o ímpeto, pôs se de pé,     e inquiriu de si para si:

 

E o meu cavalo ?

 

Correu incontinenti à margem e soltou um longo assobio que atroou     o solidão mal desperta; a margem estava erma, e só o silêncio     respondeu ao seu chamamento. Tornou ao pátio onde alguns vizinhos,     finalmente atraídos pelos gritos, ao princípio furiosos, depois     rouquenhos, e por último cansados e quase imperceptíveis da     moribunda mulher banhada em sangue, tratavam de restituí la à     casa.

 

E o que te vale, cabra do diabo! disse José, olhando para o volume     inanimado que mãos tardiamente piedosas arrastavam ao casebre. O que     te vale é ter eu que ir em busca do meu cavalo. Se não fosse     ele, nunca mais comias farinha.

 

Dias depois voltou José, montado no seu cavalo, trazendo uma espingarda     nova na mão, uma faca de arrasto pendente da cintura, os caçuás     cheios de peças de pano e outros objetos que se vendiam nas lojas da     vila.

 

Boa tarde, seu Timóteo disse ele, pondo se em terra de um pulo e     entrando sem cerimônia na tasca. Dá me not cias de Chica ?

 

Você ainda vem falar nisso ? redargüiu o vendeiro com semblante     hipócrita, mas na realidade sobressaltado.

 

Por que não? Queria acabar de dar lhe a lição que principiei     na quarta feira. Mas desta feita a coisa havia de ser de outra moda. Queria     ver se lhe entrava nas banhas da barriga este facão, como entra nesta     melancia.

 

Pois não sabe que a Chica morreu da sua tirania ?

 

Ah! fez esta bestidade? Pois então, para .celebrarmos o caso, bote     aguardente e bebamos.

 

Timóteo encheu sem demora o copo que apresentou a José.

 

Beba primeiro disse este.

 

Não, eu não bebo respondeu o taverneiro.

 

Não bebe ? Há de beber. E não se demore que tenho pressa.     Atrás de mim vem alguém em minha procura, e eu não estou     disposto a fazer mais carniça por hoje.

 

Que imprudência a sua, menino! Não bebo, não quero beber,     está acabado. Veja se me obriga.

 

A este rasgo de cobarde arrogância que seria digna do riso se não     despertasse compaixão, José retrucou, fitando os olhos do colono:

 

Seu Timóteo, você vai errado. Olhe que eu não posso     demorar me nem sou de graças. Beba a aguardente por quem é.

 

O taverneiro, sem replicar, pôs o copo na boca, e, depois de haver     sorvido alguns goles que lhe souberam a quássia ou jurubeba, restituiu     o ao rapazito, que o esvaziou quase de um trago.

 

Então, sem cuidar de pagar a despesa, José saltou sobre a cangalha,     pôs o cavalo a todo o galope e desapareceu no caminho como desaparece     um raio na atmosfera.

 

Com pouco uma escolta subiu a ponte e foi fazer alto na vendola de Timóteo.     Vinha na batida de José, que havia cometido um roubo considerável     na praça, tendo, para escapar se, assassinado um caixeiro e deixado     às portas da morte com um sem número de golpes, dois soldados     que diligenciaram prendê lo.

 

Pertencem estas ao número das primeiras proezas do Cabeleira. Não     contava ele então dezesseis anos completos. Perpetrava entretanto,     destes crimes, e com esta firmeza que daria renome aos mais hábeis     e audaciosos assassinos.

 

Não obstante o modo por que o tratara desta o vez o jovem Cabeleira,     nunca Timóteo ficara mal ou se arrufara sequer com ele. Quem não     descobre a razão de tal segredo ? O colono respeitava e temia o matuto.     Por detrás, dizia, àqueles de cuja fraqueza estava certo, que     o José era uma oncinha que se estava criando e que era preciso, enquanto     não passava de tempo, tirar do pasto; na presença do rapaz,     que já lhe tinha mostrado por duas vezes de quanto era capaz, só     tinha ele atenções e baixezas que bem denotavam os quilates     do seu espírito.

 

José cresceu, reformou, pôs se de todo homem. Perdeu a cor terrena     e pálida com o que vimos da primeira vez na taverna, e tornou se robusto     de corpo e bonito de feições. Cabelos compridos e anelados,     que lhe caíam nos ombros, substituíram a penugem que mal lhe     abrigava a cabeça nos primeiros anos.

 

Timóteo fora testemunha de todas estas transformações.     O rapaz tinha escolhido para seu ponto de operações contra a     vila a taverna dos Afogados. Esta taverna passara a ser um como entreposto     onde ele depositava o que roubava com o pai e, mais tarde, com o Teodósio     que viera associar lhes nos perigos e nos proveitos. O taverneiro achara se     assim em condições de acompanhar dia por dia as diferentes fases,     os variadíssimos sucessos de uma das existências mais admiráveis     que se conhecem na carreira do crime.

 

Por sua vez José vira o florescer e o declinar do taverneiro. Quando     o livrara da companhia da Chica achava se Tim teo nos seus quarenta e oito     anos. Agora orçava pelos cinqüenta e cinco. Tornara lhe o cabelo     branco; distendera lhe o abdome, caíram lhe um pouco as faces, sumiram     lhe os olhos debaixo das espessas sobrancelhas, que pareciam espinhos de cardeiro.     Sem que um entrasse nos segredos do outro, os dois diziam se amigos, e até     certo ponto apoiavam se reciprocamente, havendo muitos respeitos entre ambos,     perfeito acordo de intenções e inteira comunidade de interesses.

 

As barras vinham quebrando quando a canoa dirigida por Teodósio encostou     na beira do Capibaribe, junto à ponte dos Afogados. Dentro em pouco     a pingue messe da noite. colhida às custas de sustos, sangue e morte,     passou para os esconderijos da taverna. Beberam em comum os quatro; celebraram     todos a magistral façanha. Timóteo aplaudiu a coragem do pai     e do filho, e a finura e as mágicas do Teodósio.

 

De repente este levou a mão à testa e correu como desesperado     à margem. Os companheiros meteram mãos às armas e prepararam     se para o que desse e viesse.

 

Timóteo, chegando à porta e estendendo os olhos pelo aterro     dos Afogados afora, nada descobriu na extensa solidão que pudesse justificar     a inquietação do seu digno conviva.

 

Só o Teodósio, de pé sobre uma das mais altas ribanceiras,     olhava para um e outro lado do rio, e dava mostras de querer arrancar os cabelos     no auge do desespero. José dispôs se a arrostar com o que pudesse     acontecer e foi ter com o consternado amigo.

 

Que diabo tens tu, Teodósio?

 

O dinheiro, Cabeleira, o dinheiro!

 

E o pardo, com o semblante desfigurado por uma dor profunda, apontou o rio     que suavemente discorria por entre o deserto, mobilizando as águas     azuladas em que se refletia o belo céu pernambucano que disputa a primazia     ao céu de Itália.

 

O dinheiro que tirei das gavetas do armazém lá se foi no camarote     da canoa!disse o Teodósio, fulo de pesar que se não descreve.

 

E que fim levou ela? interrogou José.

 

Fugiu, desapareceu ! Lá se foi tudo pela água abaixo.

 

Não acabava quando, ei la que aponta movida por dois meninos que,     tendo ido encher os potes no rio, se haviam apoderado dela para brincarem     como costumavam sempre que davam com alguma canoa sem dono. Pobres crianças     !

 

Tanto que os viu, Teodósio empalideceu. Cabeleira porém correu     a encontrá los aceso em ira, gritando e ralhando como louco. Amedrontados     saltaram na margem os pobrezinhos e fugiram, ao passo que a canoa, ficando     solta, desaparecia novamente impelida pela enchente da maré.

 

Fazendo conta José que os meninos se haviam assenhoreado do dinheiro,     continuou a correr no encalço deles sem ter outra idéia que     apanhá los para arrancar lhes das mãos o que considerava propriedade     sua. Mas como sua cólera aumentou com a fugitiva resistência     dos pequenos, atirou ele sobre o primeiro que lhe ficou ao alcance o facão     com tanta certeza, que o pobrezinho, cravado pelas costas, caiu banhado em     seu próprio sangue. Não parou aí então a fereza     inaudita. José, achando limpas as mãos da vítima, lançou     se com encarniçada fúria atrás do camarada, o qual, tendo     já ganho grande distancia, e sentindo que era perseguido tenazmente,     se lembrou de trepar no primeiro coqueiro que descobriu com os olhos pávidos,     crendo escapar por este modo ao terrível assassino. Reconheceu, porém,     que se havia enganado, quando deu com as vistas em José que do chão     diligenciava feri lo com o facão.

 

Acuda, mamãe, que o homem me quer matar gritou o menino das alturas     aonde havia subido.

 

Ah, tu pões a boca no mundo, caiporinha ? observou José. Pois     vou tirar te a fala em um instante.

 

Um tiro cobarde, cruel, assassino, atroou os ares. Sangue copioso e quente     gotejou como granizo sobre a areia e no mesmo instante o corpo do inocentinho,     crivado de bala e chumbo, caindo aos pés de Cabeleira, veio dar lhe     novo testemunho de sua perícia na arte de atirar contra seu semelhante.

 

Quem estivesse com os olhos em Teodósio no momento em que Cabeleira     correra atrás dos meninos, tê ia visto atirar dentro em uma moita     de muçambés e manjeriobas, que ficava perto da ribanceira, um     pesado pacote que tirara do bolso. Neste pacote achava se o dinheiro roubado     ao lojista pelo astucioso ladrão que agora o furtava novamente aos     próprios companheiros de rapinas, depois de haver concorrido, por sua     trapaça, para a morte das inocentes criaturas.

 

Quando se soube que Cabeleira estava na terra e tinha sido o autor do latrocínio,     a povoação horrorizada tratou unicamente de escapar a sua ferocidade.

 

Grande parte dos moradores fugiu para os matos e praias circunvizinhas. Outros,     dos mais corajosos, fortificaram se nas próprias habitações,     contando que seriam assaltados pelos matadores.

 

Felizmente estes demoraram se no lugar unicamente o tempo que lhes foi preciso     para porém em boa espécie os objetos roubados segundo usavam     depois de suas depredações.

 

 

 

Como nunca um mal vem desacompanhado, segundo mui bem diziam nossos maiores     com aquela autoridade que, entre outros graves ofícios, não     se lhes pode recusar na ciência da vida, ao grande contágio das     bexigas, que todo o ano de 1775 e uma parte do seguinte levou assolando a     província de Pernambuco, sucedeu uma seca abrasadora, mal não     menos penoso senão mais funesto que o primeiro em seus resultados.

 

Se por ocasião do referido contágio subiu o número das     vítimas a tanto, que os cemitérios e as igrejas já não     tinham espaço para lhes oferecer sepulturas, que diremos nós     para darmos a conhecer, não unicamente os efeitos da peste, comum a     todos os climas e a todas as regiões, mas juntamente com estes efeitos     os da seca, flagelo especial de algumas de nossas províncias do Norte     ?

 

Excetuada a febre amarela por ocasião de sua primeira invasão,     a qual se verificou em Pernambuco em 168G, não consta que alguma outra     calamidade de poste haja sido mais fatal àqueles povos do que a sobredita     calamidade. Do mesmo modo a seca, chamada em Ceará "seca grande",     que arrasou Pernambuco desde 1791 até 1793, com ser mais intensa e     duradoura do que a de 1776, ficou?lhe aquém nos estragos produzidos     nesta última província onde esta seca foi precedida do terrível     contágio que levou milhares de almas como já dissemos. Dois     flagelos, um imediatamente depois do outro, para não dizermos dois     flagelos reunidos, dos quais o primeiro disputava ao segundo a primazia no     abater e o destruir, traziam pois a província em contínuo pranto     e luto, pranto nunca chorado e luto nunca visto em tamanho extensão,     ao tempo em que se passaram os acontecimentos que diremos neste capítulo.

 

Governava então Pernambuco José César de Meneses que     não se demorou a expedir para diferentes pontos recursos médicos     e alimentícios, a fim de combater a epidemia, e acudir à pobreza     no seio da qual, ao mesmo tempo que a fome, conseqüência natural     da seca, ia ela buscar, como sempre sucede, o maior número de suas     vítimas.

 

Não se fez esperar com seu quinhão de auxílio o poder     espiritual, então amigo desinteressado e leal do poder civil, não     só em Pernambuco, mas também em todas as capitanias do Brasil.     E por que não havia de suceder assim, se sob as abóbadas do     Vaticano ainda volteava, representado na pureza e sabedoria de sua doutrina,     o grandioso espírito de Ganganelli; se aos jesuítas, expatriados,     repelidos do seio de todos os Estados civilizados, faltava a organização     que havia antes imposto ao mundo esta companhia como a mais poderosa das até     a esse tempo conhecidas, e que veio depois restituir?lhes, não a totalidade,     mas uma grande parte do perdido predomínio; se no palácio da     Soledade se sentava d. Tomás da Encarnação Costa e Lima     que tornou distinto o decênio de seu ministério por sua circunspeção,     por sua brandura, por suas virtudes, as quais nos corações dos     diocesanos lhe erigiram altares mais naturais e mais sólidos que os     dos próprios templos ?

 

Um bispo, que compreende sua missão, é uma das maiores fortunas     dos povos que pastoreio; porque um tal bispo, para proceder assim, tem necessidade     de saber e de exercitar a caridade; porque um tal bispo não admite     em seu coração a mais mínima sombra de ódio, e     só possibilita a entrada nele à humildade, à modéstia,     aos mais delicados afetos paternais; porque de todos estes predicados só     se podem originar grandes e edificantes benefícios para os crentes,     e particularmente para os pobres.

 

D. Tomás dirigiu?se a este ideal, único em que devem ter os     olhos aqueles que se acobertam com as vestiduras episcopais antes para representarem,     como lhes cumpre, o ofício da piedade e do amor celestial, que a magistratura     das mundanas ambições. Ah, esta magistratura é muito     mais difícil de contrastar e muito mais cruel quando mói em     nome de Deus as consciências, do que quando, galoada ao sabor de ficções     caducas, encorrenta a liberdade em nome da ordem e da razão pública,     as quais são um dia as primeiras que proclamam estarem inocentes. Deus     porém, com ser tão poderoso e grande, não pode falar,     e é por isso que muitas e reprovadas paixões se dizem ecos de     sua voz.

 

Acredito que d. Tomás foi bom, piedoso e justo por efeito de sua própria     natureza; há porém quem diga que deve ele seu adiantamento no     caminho da perfeição católica, de que nos deixou formosíssima     estampa, ao estudo dos exemplos que lhe legaram seus predecessores e ao empenho     com que buscou imitá?los.

 

O que fica fora de toda dúvida é que d. Tomás achou     a cadeira episcopal de Olinda verdadeiramente ilustrada por conspícuas     e beneméritas virtudes que não foram até hoje igualadas.     Assim, d. Francisco de Lima morreu tão pobre que unicamente se lhe     encontraram de seu quarenta réis em dinheiro. Ele havia despendido     todas as rendas da mitra na sustentação das trinta missões     de índios que reunira e visitara no seio de inóspitos sertões,     sendo?lhe preciso, para cumprimento deste apostólico dever, transpor     mais de duzentas léguas na avançada idade de setenta anos. D.     José Fialho não deixou nunca de exercitar as funções     pastorais com honra sua e proveito público. Por ocasião de uma     epidemia que grassou na província, este respeitável antístite     freqüentou o púlpito, visitou os enfermos, acudiu aos necessitados,     e deu ordem nas boticas para que, por conta dele, se aviassem remédios     para os doentes que os médicos e cirurgiões declarassem serem     pobres. Exercitou a caridade com tanto fervor que sua família veio     a experimentar em casa falta do necessário. D. Luís de Santa     Teresa deu começo ao palácio da Soledade, e concorreu para a     fundação dos recolhimentos de Olinda, Iguaraçu, Afogados     e Paraíba, gastando nas respectivas obras o produto de suas rendas:     missionou desde Porto Calvo até ao Rio Grande do Norte. Finalmente     d. Francisco Xavier Aranha concluiu o sobredito palácio, realizou diferentes     melhoramentos na igreja da Sé e em várias outras igrejas, visitou     grande parte da diocese, e foi muito zeloso nos deveres de seu sagrado ministério.     Depois de d. Tomás dignificaram ainda aquela cadeira d. Diogo de Jesus     Jardim, o esmoler, d. Azevedo Coutinho, o sábio, d. Marques Perdigão,     o piedoso, o pacificador dos cabanos.

 

Estamos pois em 1776. E no momento em que o fogo da peste mais abrasara a     província.

 

D. Tomás mandou distribuir esmolas pelos pobres de Olinda e do Recife     e despachou, como havia feito o governador, socorros em dinheiro e víveres     às povoações mais afligidas do mal. Para completo desempenho     de seu dever pastoral, ordenou que se fizessem preces em todas as matrizes     e em todos os conventos, e convidou o povo a procissões de penitência.     As procissões eram então atos majestosos e dignos. Uma delas     produziu tão viva e salutar impressão no espírito do     povo daquele tempo, que o historiador se julgou na obrigação     de transmitir sua memória à posteridade.

 

Eram sete horas da noite quando esta procissão, que saiu da igreja     de S. Pedro, se encaminhou à da Madre de Deus, designada para um rigoroso     miserere. O bispo acompanhou?a em pessoa, descalço, e confundido com     o povo. Todos, vestidos de branco, disciplinavam?se com sincera contrição.

 

Tendo chegado à igreja, d. Tomás subiu ao púlpito, donde     sua palavra começou a cair com a singela eloqüência que     a verdadeira piedade suscita e a que o amor paternal autoriza. O devoto bispo     havia?se inspirado naquela passagem que um dos primeiros luminares das letras     portuguesas, frei Luís de Sousa, nos deixou em sua imortal História     de S. Domingos, e que se refere ao sermão pregado com idêntico     fim pelo visitador frei João Furtado, em Évora.

 

Antes que o povo começasse a dispersar?se, três penitentes,     envoltos nos competentes lençóis e armados com as respectivas     disciplinas, tomram pela rua Direita abaixo trocando à puridade entre     si palavras que davam a entender acharem?se eles penetrados antes de contentamento     que de contrição, sentimento que a ocasião autorizava     com mais justiça a supor em sujeitos tais. Eram Joaquim, José     e Teodósio como o leitor já deve ter compreendido.

 

Quando d. Tomás se recolheu a seu palácio achou?se roubado.     José, Joaquim e Teodósio, que no momento em que ele saíra     a cumprir o piedoso mister, se haviam introduzido à sorrelfa, com a     facilidade que proporciona o disfarce, em uma das muitas salas ou em um dos     muitos corredores desse edifício, tinham tirado, na ausência     do venerando proprietário, não os castiçais de prata     como fizera João Valjean em casa do bispo Miriel, mas diferentes quantias     que d. Tomás destinara para novos auxílios à pobreza     do alto sertão mais afligida da fome do que nenhuma outra da diocese.     Estas quantias achavam?se repartidas e já devidamente acondicionadas     em pacotes distintos, que só esperavam oportunidade para seguirem seu     destino.

 

O digno prelado leu a triste verdade na confusão em que, ao entrar     em seu gabinete, achou os ofícios e instruções que, com     as esmolas da sua profunda piedade agora desaparecidas, dirigia aos párocos     dessas longínquas e desvalidas freguesias.

 

No dia seguinte, muito cedinho, um cavaleiro esbarrou na vendola de Timóteo     e, saltando em terra e batendo com alguma precipitação na porta,     perguntou para dentro:

 

Ainda está dormindo, seu Timóteo ?

 

Quem é você? interrogou o vendeiro em resposta à pergunta     que deixamos repetida.

 

Abra a porta sem demora, que tenho que lhe dizer.

 

O recém?chegado era um crioulo alto, magro, de boa cara e de jeitos     e meneios que revelavam extrema benevolência.

 

Olhe, seu Timóteo; ouça?me cá. Eu sei que em sua casa     está o Cabeleira com o pai e o Teodósio; e por isso corri a     avisá?los. Uma tropa vem já do Recife para prendê?los.     Diga a eles que se metam na capoeira enquanto é tempo.

 

E como soube você disso ?

 

Sabendo. No começo do Aterro passei eu por ela. O governador ficou     muito escandalizado com o que eles fizeram ontem à noite no palácio     do bispo, e diz que há de pô?los na corda mais dias menos dias.     Tudo isso me contaram na venda de seu José do pátio da Ribeira.

 

Homem, não posso deixar de lhe agradecer seu aviso.

 

Não tem que me agradecer. Eu quis fazer este serviço ao próprio     Zé Gomes; com o pai pouco me importa, que, aqui entre nós, é     muito descortês e desaforado. Mas, tendo meu irmão Liberato visto     Zé Gomes; menino, e querendo?lhe por isso algum bem, achei que era     minha obrigação fazer o que em meu caso faria meu irmão     para livrar do risco o antigo conhecido. Diga?lhe isto mesmo. E até     a primeira vista, que tenho que ir encher ainda de aguardente estas ancoretas     no engenho da Madalena; além disso a soldadesca já deve vir     bem perto no faro das cascavéis que estão no ninho.

 

Quando Timóteo volveu a dar parte do que lhe dissera o negro, não     encontrou os três malfeitores (os quais na realidade tinham passado     a noite na taverna), senão o Teodósio que, sabendo de tudo melhor     do que os outros dois, os quais haviam unicamente ouvido através das     portas algumas das palavras do negro, correu sem demora a meter?se em uma     espécie de esconderijo que arranjara em Tigipió e cuja existência     era só dele conhecida.

 

Na época em que se passou esta história, fazia o Capibaribe,     adiante do Forte da Piranga, um cotovelo, que foi depois aterrado, e é     hoje quintal de uma casa. O ângulo internava?se na direção     do sul por entre uns lajedos alcantilados que se sumiam dentro de um capão     de mato.

 

Era uma situação selvagem e encantadora, pela fartura da amenidade     e das sombras com que a dotara a natureza, a qual desde os Afogados até     o Peres apresenta uma face monótona e tristeuma imensa planície,     coberta de capim?luca.

 

Por entre as lajes via?se uma vereda de gado que ia ter no engenho da Madalena     ou do Mendonça, segundo o chamaram antes. Esse atalho encurtada quase     um quarto de légua do caminho para quem tinha de ir da margem direita     ao dito engenho.

 

O crioulo, por nome Gabriel, foi marginando o rio até ao ponto em     que este fazia sua internação no continente. Nesse ponto o terreno     acidentava?se um pouco, e elevava?se até as lajes negras pelo meio     das quais o gado tinha aberto sua passagem, melhor e mais naturalmente do     que o faria o homem.

 

No momento em que o negro ia entrar na capoeira que cobria o sítio,     alguns ramos se afastaram violentamente de um dos lados, e dois sujeitos literalmente     armados surgiram diante de seu olhos.

 

Vendo?se assim assaltado por Joaquim e pelo filho deste o crioulo pôde     unicamente dizer estas palavras:

 

Acabo de Ihes fazer um bem, e é deste modo que vosmecês me     dão o pago ?

 

Desce do cavalo, negro. Este cavalo foi teu até este momento; dagora     em diante ele nos pertence, e é preciso que no?lo entregues quanto     antes.

 

Meu cavalo ! exclamou o crioulo com entranhada dor. Meu cavalo é     meu único haver, meus senhores. Se vosmecês mo tomarem, com que     darei eu de comer a minha mulher e a meus filhos, que não têm     outro arrimo senão eu ?

 

Que morram de fome como estão morrendo da seca os outros por aí     além. Demais, não te custará ganhar com que comprares     outro cavalo para continuares em teu ofício. Deste é que deves     perder o feitio. Precisamos dele já para fugirmos com tempo à     tropa que aí vem.

 

Perdão, meus brancos disse Gabriel com a voz mais doce e terna que     pôde. Eu peço a vosmecês que me deixem ir embora. Em que     os ofendi ? Não os tenho respeitado sempre ? Vosmecês não     me conhecem ? Sou um pobre preto que nunca fez mal a ninguém, e que     segue seu caminho caladinho sem se importar com a vida dos outros filhos de     Deus.

 

Os dois matadores não estavam, ao menos naquele momento, para estas     banalidades, e, cônscios de que urgia remover o óbice, saltaram     sobre o crioulo e, apeando?o com violência, tomaram?lhe o animal, o     qual se deixou passivamente conduzir pelo cabresto a um fechado da capoeira     onde Joaquim julgou prudente recolhê?lo sem demora.

 

Gabriel, que de pé e imóvel viu, com lágrimas nos olhos,     desaparecer o seu único bem, reflexionou com pesar:

 

Então, vosmecês vão montados para sua casa, e eu é     que hei de ir para a minha de pé, sem o meu cavalo, hein ?

 

Ainda estás aí falando, negro ? Quererás tomar?nos     satisfações ? replicou o Cabeleira voltando?se de chofre e fixando     sobre o Gabriel a vista que chamejava como a de um chacal.

 

Sim, eu sou negro, é verdade; mas os brancos tomam?me o que é     meu, e deixam?me sem caminho nem carreira, com uma mão adiante e outra     atrás.

 

A estas vozes o Cabeleira não pôde mais conter?se, e de um só     pulo fez?se sobre o seu interlocutor. Este, porém, já não     se achava no mesmo lugar, mas sobre uma das lajes que davam para o rio, tendo     em uma das mãos uma faca nua, que refulgia aos raios do sol.

 

Se quer brincar na ponta da faca, meu branco, a coisa é outra, e     vosmecê encontra homem disse de cima.

 

Ainda bem não tinha preferido estas expressões, quando a seus     olhos brilhava também a faca de seu feroz contendor.

 

Travou?se então entre eles um combate de gigantes que durou alguns     minutos. A esse combate surdo, medonho, dava lúgubre realce o deserto     com sua profunda solidão.

 

Os dois contendores eram habilíssimos em jogar a faca. Nunca se encontraram     competidores mais dignos um do outro.

 

As lâminas inimigas cruzavam?se a modo de impelidas por eletricidades     iguais. O jogo da faca era já nesse tempo uma especialidade característica     dos matutos do Norte, máxime dos matutos de Pernambuco.

 

Na violenta porfia tinham os jogadores percorrido toda a face da laje que,     começando no estreito angulo, ia morrer no Capibaribe por um declive     quase abrupto. Haviam?se avizinhado tanto do rio, que o ruído das águas     já não deixava ouvir o incessante bater dos ferros assassinos.     Estes ferros eram como duas serpentes que mutuamente se mordem sem se poderem     devorar.

 

De repente surgiu Joaquim em cima da pedra a um lado de Gabriel, o qual ficou     assim entre dois inimigos capitais.

 

Ainda está vivo este negro, Zé Gomes ? perguntou o mameluco     ao filho.

 

É agora a sua derradeira respondeu este.

 

Com dois é impossível a um só se divertir tornou o     negro, em cuja testa .à alvura do suor contrastava com o negror da     pele luzidia.

 

José Gomes estava excitado ao último ponto e rolavam?lhe também     pelo rosto bagas de suor alvinitente. Querendo por isso e por outras razões     abreviar o duelo, cuja duração realmente excedia a sua previsão,     apertou com o crioulo com toda a violência de que era capaz e que, como     sempre, levou de vencida todas as resistências adversas. Gabriel, ou     porque conhecesse que na realidade estava exposto a eminente perigo, ou por     que julgasse ser chegado o momento de pôr por obra a sua traça,     deixou?se escorregar quando menos esperava o inimigo, pela face oposta da     laje, e foi cair dentro das águas que passavam ali rápidas e     espumosas.

 

Cabeleira correu, fora de si, após o fugitivo a fim de ver se o apanhava     para mitigar no sangue dele a sede que o combate lhe acendera; mas antes que     houvesse transposto o espaço que os separava, a detonação     de um tiro lhe anunciou que o temerário que lhe resistia acabava de     pagar com a vida esta ousadia.

 

Um momento depois o cadáver de Gabriel, entalado entre duas pedras     que sobressaíam às águas no meio do canal, tingia?se     com o seu sangue, e Joaquim o mostrava com o cano do bacamarte, ainda fumegante,     ao filho, que nunca pode, como seu pai, matar curimãs a tiro nas águas     turvas das enchentes.

 

 

 

Segundo as tradições mais correntes e autorizadas o Cabeleira     trouxe do seio materno um natural brando e um coração benévolo.     A depravação, que tão funesta lhe foi depois, operou?se     dia por dia, durante os primeiros anos, sob a ação ora lenta     ora violenta do poder paterno, o qual em lugar de desenvolver e fortalecer     os seus belos pendores, desencaminhou o menino como veremos, e o reduziu a     uma máquina de cometer crimes.

 

Como é possível porém que se houvesse abastardado por     tal forma a obra que saiu sem defeito das mãos da natureza ? Como se     compreende que uma organização sã se tivesse corrompido     ao ponto de exceder, no desprezo da espécie humana, a fera cerval que     se alimenta de sangue e carnes fumegantes, não por uma aberração,     mas por uma lei da sua mesma animalidade ?

 

É que a mais forte das constituições, ou índoles,     está sujeita a alterar?se sempre que as forças estranhas, que     atuam sobre a existência, vêm a achar?se em luta com suas inclinações.     Por mais enérgicas que tais inclinações sejam, não     poderão resistir a estas três ordens de móveis das ações     humanas o temor, o conselho e o exemplo , que formam a base da educação,     segunda natureza, porventura mais poderosa do que a primeira.

 

No caminho da vida veio encontrar o Cabeleira a seu lado Joana, exemplo vivo     e edificante pela ternura, pela bondade, pelo espírito de religião     que a caracterizava. Em contraposição porém a este salutar     elemento de edificação, do outro lado da criança achava?se     Joaquim, não só naturalmente mau, mas também obcecado     desde a mais tenra idade na prática das torpezas e dos crimes.

 

Boa mãe era Joana, mas era fraca. Que podia a sua doçura contrastado     pela ameaça, pelo rigor, pela brutal crueldade daquele que estava destinado     a ser o primeiro algoz do próprio ente a quem dera a existência     ?

 

A mulher é tanto mais forte, e a sua influência direta e decisiva     na formação dos costumes, quanto mais puro é somente     uma providência sobretudo, ambiente do meio social onde ela respira,     e esclarecidos são os entes com quem coexiste. Colocada em um tal centro,     a mulher não é somente uma providencia sobretudo, uma divindade.     As suas forças elevam?se à altura das potências de primeira     ordem, e ordinariamente são potências triunfantes, onde quer     que seja o mundo moral, não um caos, mas uma criação     grandiosa e harmônica, em conformidade às leis da estética     cristã e às altas conquistas da civilização que     possuímos. As suas qualidades delicadas, fontes de grandezas ímpares,     tornam?se porém nulas ou são vencidas sempre que entram em luta     com a ignorância, com o vício, com o crime.

 

Infelizmente para o Cabeleira, grande animo que poderia ter vindo a ser uma     das glórias da pátria se a sua bravura e a sua firmeza houvessem     servido antes a causas nobres que a reprovados interesses e cruéis     necessidades, sua mãe dócil, posto que ignorante, de bonitas     ações, posto que nascida de gente humilde, não só     não pode exercitar no infeliz lar a ação benéfica     que à esposa e mãe reservou a natureza, mas até foi,     como seu filho, uma vítima, não menos do que ele digna de compaixão,     um joguete dos caprichos e instintos brutais daquele a quem ela havia ligado     o seu destino, não para que fosse o seu tirano mas para que a ajudasse     a carregar a cruz da pobreza.

 

Pela sua organização, pelos seus predicados naturais, o Cabeleira     não estava destinado a ser o que foi, nós o repetimos. Os maus     conselhos e os péssimos exemplos que lhe foram dados pelo desnaturado     pai converteram seu coração, acessível em começo     ao bem e ao amor, em um músculo bastardo que só pulsava por     fim a paixões condenadas. Desgraçadamente estas paixões     que nele escandalizaram a sociedade coeva não desceram com seu corpo     à sepultura. Elas estão aí exercitando em nossos dias     o seu terrível império à sombra da ignorância que     ainda nos assoberba, e que em todas as terras e em todas as idades tem sido     considerada com razão a origem das principais desgraças que     afligem e destroem as famílias e os Estados.

 

Joana, a mãe boa e fraca, viveu em luta incessante com Joaquim, o     pai sem alma nem coração. José foi sempre o motivo, a     causa desse combate sem tréguas, José, o filho sem sorte que     estava fadado a legar à posteridade um eloqüente exemplo para     provar que sem educação e sem moralidade é impossível     a família; e que a sociedade tem o dever, primeiro que o direito, de     obrigar o pai a proporcionar à prole, ou de proporcioná?lo ela     quando ele o não possa, o ensino que forma os costumes domésticos     nos quais os costumes públicos se firmam e pelos quais se modelam.

 

Aos sete anos de idade o pequeno já sabia matar passarinhos com seu     bodoque, presente que lhe fizera o pai com expressa recomendação     de amestrar?se em seu uso para que viesse a ser mais tarde um escopeteiro     consumado.

 

Ó José, ouve bem o que te vou dizer. Quando o sanhaçu     ou bem?te?vi não cair morto da bala do bodoque, mas só com uma     perna ou uma asa quebrada, não lhe apertes o pescoço para que     não esteja penando. Faze um espetinho de cabuatã, e crava?o     na titela do passarinho. Tu não sabes que os passarinhos são     diabinhos que nos perseguem, furando as laranjas e destruindo as bananas do     quintal ?

 

Tenho pena, papai, e não farei isso aos pobrezinhos respondeu o menino.

 

Tens pena, tu, José ? Pois sabe que é preciso que percas esta     pena e que te vás acostumando a ser homem. Se hoje cravas o espeto     na titela do bem?te?vi, amanhã terás necessidade de cravar a     faca no peito de um homem; e se no momento da execução tiveres     a mesma pena, ai de ti ! que a mão te fraqueará, e o homem te     matará.

 

Uma manhã José entrou saltando de contente, e trazendo um preá     que o fojo tinha apanhado.

 

Ó papai, como é que hei de matar este preá ?

 

Joana chamou o menino para junto de si, tomou?lhe a presa que ele trazia,     e pôs?se a mirá?la com ternura.

 

Olha, meu filho, olha bem para ele. Não achas vivos e bonitos os     olhos do preazinho ? Que lindo pescoço ! Que mãos bem?feitas     ! Que dizes, José ?

 

É, mamãe. Acho tudo bonitinho.

 

E se o achas bonitinho, para que o queres matar, meu filho ?

 

Para aprender a matar gente quando eu for grande.

 

Matar gente! José, José ! Quem te ensinou esta barbaridade     ? Virgem da Conceição !

 

Foi papai, mamãe.

 

Não, eu não consentirei, nem o céu permitirá     que levantes em tempo algum a tua mão para ofender a alguém.     Que desgraça, Mãe Santíssima! Como é que Joaquim     ensina semelhantes coisas ao filho ?

 

De?me o meu preá, mamãe. Quero espetá?lo vivo como     fiz ontem com o papa?capim.

 

Ainda me vens falar nisso ? exclamou Joana consternada.

 

E levada de uma inspiração ou de um repente irresistível,     chegou à porta que dava para o pequeno cercado onde o capinzal crescia,     e aí soltou o inocente prisioneiro.

 

José chorou, gritou, esperneou, rolou pelo chão com raiva.     Irritada por este procedimento, para o qual ela foi buscar explicação     antes na inconveniente direção que a José ia dando Joaquim     que no impulso de reprovadas paixões de que julgava isento o filho     naturalmente dócil e terno, puxou?lhe de leve pelas orelhas, dizendo?lhe     que se outra vez judiasse com os passarinhos lhe daria uma surra que ele havia     de agradecer.

 

Quando Joaquim voltou à casa, o menino correu a relatar?lhe o que     tinha acontecido. O mau marido, o péssimo pai ralhou com Joana em quem     por um triz não bateu; e para completar a lição e o exemplo     pernicioso, prometeu a José que o primeiro preá que c fojo pegasse     havia de ser sujeito a um gênero de morte que ele ainda não conhecia.

 

O menino mal pode dormir aquela noite. Nunca desejou tanto que a armadilha     lhe desse caça. A curiosidade de conhecer a nova forma de matar os     animais, prometida ao primeiro que tivesse a sorte de se deixar apanhar, o     teve por muito tempo na maior excitação e vigília.

 

Pela manhã correu José ao fojo, onde encontrou, em lugar de     preá, um coelho.

 

Era uma lindeza o animal. Gordo, coberto de macio pelo em que se divisavam     ligeiras malhas tão alvas como o algodão que pendia dos capulhos     estalados acima de sua masmorra, o filho do campo despertava, pela beleza     das formas, e pela harmonia dos contornos, todos os sentimentos benévolos     de que é capaz o humano coração. Os olhos reluziam como     dois coquinhos polidos. O coração batia?lhe precípite     qual se quisesse sair?lhe pela boca. E essa criatura tão cândida     e inofensiva ia morrer! Oh, meu Deus, por que extravagante e bárbara     interpretação das leis naturais há de o homem julgar?se     com direito à vida de semelhantes entes que mais merecem a sua proteção     do que desafiam a sua cobardia ?

 

Quando José, irresistivelmente cativo da formosura da inocente criaturinha,     estava ainda admirando os seus encantos, um movimento violento arrancou?lhe     das mãos.

 

Meu coelho ! gritou o menino sentido de lhe terem arrebatado a graciosa     presa.

 

Ah, supunhas que havias de por?me terra nos olhos, José ? Não,     este lindo animal não morrerá.

 

Sim, sim, mamãe; eu não o levarei a papai para o matar como     ele disse; não quero que o meu coelho morra. Ele é tão     bonitinho, que faz gosto. Quero criá?lo para mim, para mim só,     já ouviu, mamãe ? Meu coelhinho tão bonitinho!

 

José estava fortemente comovido, e Joana, fixando nele olhos perscrutadores,     leu em seu rosto a pureza e a sinceridade da sua comoção, indício     irrecusável, senão prova convincente, da excelência das     inclinações do filho. Todas as hesitações que     traziam seu espírito em contínua inquietação dissiparam?se     diante do enternecimento do menino de cuja brandura e natural bondade já     não lhe foi lícito duvidar.

 

Dê-me o meu bichinho, mamãe Ó pediu José quase     chorando.

 

Ele é teu, José, e ninguém, ainda que seja teu pai,     te privará dele. Mas, antes que o tenhas contigo, quero saber por curiosidade     o que vais fazer do coelhinho.

 

Ora ! Vou levá?lo para casa. Levo logo daqui capim bem verde para     ele comer, e faço lá uma caminha no canto do meu quarto para     ele dormir junto de mim.

 

E se teu pai o quiser matar ?

 

Pedirei a papai que o não mate, não. Olhe, mamãe: o     melhor é eu ir esconder o coelhinho no mato sempre que meu pai estiver     para chegar. Deus me livre de ver meu coelho morrer.

 

Deus te livre, atrevido ! Ó gritou ao pé da mulher e do filho     o mau marido, o pai desnaturado, carrasco da família antes de sê?lo     da sociedade e de si próprio.

 

E arrebatando com rudeza bruta das mãos de Joana o pobre animal, fez     gesto de lhe quebrar a cabeça contra uma pedra que lhe ficava fronteira.

 

Que queres fazer, Joaquim ? Ó interrogou Joana, não obstante     achar?se aterrada pela presença do marido.

 

Ainda mo perguntas, mãe cobarde que só sabes dar a teu filho     lições de mofineza ? Eu não quero meu filho para chorão.

 

Mas eu também não o quero para assassino.

 

Hei de ensiná?lo a ser valente. Há de aprender comigo jogar     a faca, a não desmaiar diante de sangue como desmaias tu, mulher sem     espírito que não tens animo para matar um bacorinho. Não     sabes que o assassino é respeitado e temido ? Queres que não     haja quem faça caso de teu filho ?

 

Mas eu não quero que meu coelhinho morra, papai.

 

Que estás tu a dizer, mal?ensinado ?

 

O menino quis chorar, com o que se mostrou escandalizado por extremo o tirano     da família, que, para o fazer chorar com gosto, segundo disse, lhe     deu três ou quatro cipoadas fortes, depois das quais José mal     se pôde ter em pé. Joana, não podendo ver o filho apanhar     sem razão, partiu para Joaquim, a fim de lhe tirar das mãos     o pequeno, mas Joaquim repeliu?a com tanta força, que a fez cair por     terra; e voltando?se imediatamente para José, perguntou?lhe com gesto     e voz de aterrar:

 

Então, mata?se ou não se mata o coelho, José ?

 

Mata?se, papai respondeu o pequeno com as faces banhadas de lágrimas     ainda.

 

Não quero que chores. Quem é homem não chora; quem     é homem faz chorar.

 

E dando o andar para a casa, com o filho pela mão:

 

Vais ver agora de que modo morre o coelho disse com expressão que     se não pode descrever.

 

Meus Deus, meu Deus ! Que desgraça esta, que desgraça a minha!     exclamou Joana quando os viu desaparecer na volta do caminho.

 

Os corações maternais tem inspirações angélicas     e grandes. Joana, que não se havia levantado ainda, pôs?se de     joelhos no meio da natureza verde e esplêndida que a tinha recebido     em sua queda, e, elevando os olhos úmidos e tristes ao céu profundo     e belo que se estendia a perder de vista acima de sua cabeça, enviou     a Deus esta súplica cheia de amor e filosofia:

 

Senhor, Senhor, protegei meu filho. Inspirai?lhe sentimentos brandos por     quem sois, meu Deus. Que ele seja bom, e que vos conheça e tema.

 

Não pode ir adiante a desventurada mãe cuja voz fora embargada     por lágrimas violentas que lhe saltaram dos olhos contra o seu querer.     Mas de repente, como se tornasse em si de um sonho penoso e achasse de novo     todas as suas idéias um instante obliteradas pela intensa dor, Joana     fez em pedaços a tábua, e entupiu com pedras e maravalhas o     buraco que com aquela armava ciladas aos inofensivos filhos do deserto. Tendo     destruído a armadilha, tomou o caminho de casa na qual se lhe deparou     um espetáculo em que ela nunca imaginara e que por um triz não     abateu de todo o seu cansado espírito. Uma forca havia sido levantada     com ramos verdes no terreiro em sua ausência, e dela pendia por uma     embira o coelho, minutos atrás cheio de vida, agora morto, o pescoço     distendido, os belos olhos empanados. José não só não     chorava mas até se mostrava indiferente ao espetáculo repugnante,     como se já não fosse o mesmo que poucos instantes antes havia     manifestado os mais generosos sentimentos a favor da vítima. O reverso     deste recente passado representava?se agora aos olhos de Joana: o pequeno     prorrompia em aplausos a cada balanço que dava o corpo inanimado do     animal que Joaquim, por entre chutas grosseiras e de mau gosto, impelia de     quando em quando com a mão ensangüentada e torpe.

 

Joana não pôde conter, diante da cena final daquela tragédia     infame, a sua justa e bela indignação.

 

Homem cruel, onde aprendestes esta lição indigna que acabas     de ensinar a teu filho ?

 

A esta angélica exprobração Joaquim respondeu com uma     gargalhada de desprezo que retumbou por toda a vizinhança.

 

Quem matou o coelho, José ? perguntou Joana ao menino, para o qual     tinha a autoridade que não podia exercitar sobre o principal responsável     do estranho delito.

 

Fui eu, mamãe. Papai mandou que eu matasse, e por isso matei o coelho.

 

Joana volveu novamente os olhos entristecidos a Joaquim, o qual não     se demorou a retorquir com a imprudência que o caracterizava:

 

Fui eu mesmo que o mandei. Que tens com isso ? Quererás tomar?me     contas, Joana ?

 

Eu não, Deus sim; Deus há de tomar?tas um dia, homem sem coração.

 

Deus ! Quem é Deus, toleirona ? Quem já o viu? Quem já     ouviu a sua voz ? Estás caducando, mulher.

 

Sem ter para o seu tirano outra resposta que o silencio, Joana resignou?se     a dar?lha, e foi cair sobre um tamborete, com o rosto inundado novamente de     lágrimas.

 

Tempos depois entrou José em casa gritando e chorando. Foi o caso,     que, tendo ele querido tomar de um menino do vizinho uma xícara de     arroz doce, o menino, que tinha mais idade, mais corpo e mais forca do que     ele, não só não se deixou esbulhar de sua propriedade,     mas até bateu em José com vontade, sem contudo se sair ileso,     porque José lhe pôs a cara em sangue com as unhas, e lhe arrancou     da coxa um pedaço de carne com os dentes.

 

Sabendo do acontecido, Joaquim fez de uma folha de facão velho um     punhalzinho e, chamando o filho, entregou?lhe a nova arma, mediante este discurso:

 

Sabes para que fim te dou este ferro José ? É para não     sofreres desaforo de ninguém, seja menino ou menina, homem ou mulher,     velho ou moço, branco ou preto o que te ofender. Se alguma vez entrares     em casa, como entraste hoje, apanhado, chorando, ouve bem o que te estou dizendo,     dou?te uma surra de tirar pele e cabelo, e corto?te uma orelha para ficares     assinalado. Toma o ferro.

 

José tinha então seus nove para dez anos, e ouviu a advertência     do pai com toda atenção, prometendo cumprir fielmente as suas     órdens.

 

Joana, que tudo presenciara, e de certo tempo atrás adotara o alvitre     de não contrariar abertamente o marido para o não incitar a     maiores excessos, aguardou a sua ausência, e quando foi tempo pregou     a José as lições de moral que seguem:

 

Meu filho, Deus, nosso pai, que está no céu, não pode     receber bem os feios atos a que teu pai, que está na terra, te aconselhou     há pouco. Para os mais velhos não tenhas nunca expressões     descorteses e muito menos ações ofensivas; ainda que seja um     negro, deves ter, embora não sejas de sua qualidade, respeito pela     idade dele. Seja a tua única vingança, quando alguém     te ofender, pacifica retirada; não há vingança maior,     nem mais digna: procedendo deste modo, terás, meu filho, agradado a     Deus e dado aos homens mais bonito exemplo do que se houveres preferido, em     resposta, palavras injuriosas ou insultosas contra o teu ofensor. As armas     só servem para excitar à prática de crimes; os homens     bons não trazem consigo armas. Dá?me o punhal, de que teu pai     te fez presente e recebe em troca este rosário que te dou para tua     consolação nas tribulações. Reza por estas contas,     e encomenda?te todas as manhãs e todas as noites a Deus. Assim praticando,     virá a ser estimado de todos e darás prazer a tua mãe     que morreria de dor e vergonha se te visse apartado do caminho do bem.

 

De que serviram porém estes bons conselhos, se Joaquim, vendo mais     tarde o rosário no pescoço do filho, fez em pedaços a     enfiadura, espalhou as contas pelo chão, e chamou a mulher feiticeira     ?

 

Não ficou aí a manifestação do seu desagrado.     Voltando?se para Joana:

 

Se continuares a fazer asneiras como esta disse ele , acabas queimada, bruxa;     e eu não respondo pelo que venha a praticar para impedir que continues     a contrariar as minhas determinações. Quem avisa amigo é.

 

O pároco, a cujo conhecimento chegou, por portas travessas, o escândalo,     mandou chamar Joaquim à sua presença, e lhe disse que se ele     repetisse a cena do rosário, ou obrasse ato idêntico, seria ele     Joaquim quem deveria de morrer queimado por crime de heresia.

 

Joaquim tornou à casa tão furioso, que puxou pela faca para     matar Joana, a quem atribuiu o mexerico; esta, porém. não correu     nem pediu que a socorressem; limitou?se a chorar em silêncio a sua desgraça     e a apelar para Deus a quem não cessava de encomendar o filho em suas     orações.

 

Depois de haver esgotado o vocabulário dos epítetos infamantes     contra sua mulher, e dos convícios imundos contra o vigário,     determinou Joaquim de deixar a casa para se ir meter com José no oco     do mundo, palavras suas.

 

Que noite passou Joana !

 

Não houve rogativa, não houve lágrimas que abrandassem     o coração do mameluco. Desgraçada mãe, que pediste     e choraste em vão, em vão como sempre !

 

Vai só, Joaquim, já que me queres deixar; deixa porém     comigo meu filho; peço?te esta graça por tudo quanto há     sagrado na terra e no céu disse ao marido a infeliz mulher com angelical     doçura, momentos antes da partida fatal.

 

Nessa não cai ! eu replicou Joaquim. Se José ficasse em tua     companhia, quando eu voltasse um dia por aqui, achava?o servindo ao vigário,     ou, pelo menos, feito sacristão.

 

José entretanto, como querendo escusar?se às saudades da despedida,     encaminhou?se para o quintal donde se pôs a olhar para os araçazeiros     e goiabeiras em que ele foi encontrar novo motivo de pesar com que não     contava. Eis que uma menina de longos cabelos castanhos, que estava brincando     em um dos quintais contíguos, foi tirá?lo da sua contemplação.

 

Que está você fazendo, José ?

 

Ora ! Não sabes que vou sair de casa, Luisinha ?

 

Não sabia, não.

 

Pois vou, e não sei quando voltarei. Estou triste. Tenho pena de     deixar mamãe.

 

E de mim não tem também pena ? perguntou ela com suave ingenuidade.

 

Tenho também, sim; eu estava lembrando?me de você agora mesmo.     Olhe, Luisinha: se eu algum dia voltar você me quer para seu marido     ?

 

Eu lhe quero muito bem, José. Mas não gosto quando você     judia com os passarinhos e dá pancadas nos meninos.

 

Pois eu lhe digo uma coisa: se algum dia eu chegar aqui de volta, tenha     logo por certo que não faço mais mal a ninguém. Se pareço     mau, Luisinha, não é por mim.

 

Deste inocente colóquio os veio tirar a voz de Joaquim que chamava     por José para partirem. Pouco depois o pai e o filho deram as costas     à povoação. Joana ficou de cama.

 

Data desse dia a vida que levaram até o momento de caírem no     poder da justiça. Não foi ela nada menos do que uma longa série     de atentados que dificilmente se acreditam. O número destes atentados     e as circunstâncias que os revestiram, não há quem os     saiba com individuação e clareza. Muitos deles foram de todo     esquecidos, na longa travessa de mais de um século que se conta de     sua perpetração; e dos que assim se não perderam chegou     aos nossos dias uma notícia vaga, incompleta e por vezes tão     escura, ou tão confusa, que temos lutado com grandes dificuldades para,     por ela, recompor esta história.

 

É que as tradições do crime são menos duradouras     que as da virtude.

 

Há nisto uma lei salutar da Providência.

 

 

 

Luisinha era uma menina branca, órfã, de índole benigna     e de muito bonitos modos. Compadecida da pouca sorte da pequena, uma viúva     recolheu?a em sua casa à conta de filha, e começou logo a ter     para ela maternal solicitude. Luisinha era digna deste amparo, não     só pelos predicados sobreditos, senão também pelos seus     encantos naturais que a todos cativavam com justa razão.

 

Florinda, a viúva, deu à menina a educação que     então se usava e que, com poucas modificações, e alguns     acrescentamentos, ainda hoje se usa no campo. Assim, não se demorou     muito que Luisinha soube fiar, coser costurar chãs, fazer bicos e rendas,     respeitar os mais velhos e encomendar?se a Deus. Como era dotada de excelente     coração, dentro em pouco era estimada por todos do lugar, e     até pelos comboieiros e boiadeiros que se arranchavam no povoado para     deixar passar a força do sol do meio?dia, ou aí pernoitarem     quando não podiam, ainda com ar de dia, romper a mata onde se açoitavam     negros fugidos e malfeitores.

 

A mata tinha mais de légua de comprido, e ninguém lhe sabia     os esconderijos.

 

Quando se divulgou que Joaquim havia deixado a mulher, todos, a uma voz,     logo prognosticaram que ele ia estabelecer dentro da mata virgem o seu novo     domicilio. A vista da sua má índole de todos conhecida, houve     quem assegurasse que ele estava de mãos dadas com os facinorosos de     Pernambuco, da Paraíba e do Rio Grande do Norte, que ali se homiziavam.     Muitos destes eram conhecidos por seus nomes e pessoas, e uma vez por outra     faziam sortidas sobre os povoados, saqueavam as vendas, perpetravam mil desatinos,     e escapavam sempre à ação da justiça, ineficaz     naquele tempo, como ainda o é hoje a nossa polícia nos povoados     longínquos, para não dizermos nas próprias capitais segundo     sabemos.

 

A voz do povo não era senão o eco da verdade.

 

Não se meteu muito tempo que crimes de nova espécie, revestidos     de circunstâncias que revelaram a maior perversidade de parte dos delinqüente,     vieram a atestar que os negros arraiais estabelecidos no centro da espessura     haviam feito novas aquisições que primavam, nas ciladas, no     manejo das armas, na firmeza das execuções.

 

A princípio não se soube a quem atribuir o sangue novo levado     às veias dos grupos dos criminosos aí asilados, os quais bem     que numerosos, nunca manifestaram a audácia, a ferocidade inaudita     que surpreendiam e aterravam agora as populações. Para maior     confusão destas, tinha sido visto mais de uma vez o Joaquim, ora de     companhia com o filho, ora cada um sozinho, montado no seu cavalo, vendendo     legumes, macaxeras, farinha, açúcar pelas povoações,     e fazendo compras no Recife; o que deixava, pelo menos, supor que eles se     davam ao trabalho da lavoura, e passavam a vida honestamente à custa     do suor de seu rosto. Mas em menos de dois anos não se pôde mais     pôr em dúvida que fossem consenhores dos vastos e virgens domínios,     onde figuravam talvez como os primeiros e mais respeitados de todos os outros     conquistadores, seus iguais.

 

Algumas vítimas que tinham conseguido, por felicidade ou acaso, escapar     com vida das garras dos feros algozes, deixando?lhes unicamente dinheiro,     fazendas ou gêneros, declaravam que o mais audaz e o mais terrível     dentre eles era um jovem de cabelos tão crescidos que lhe batiam nos     ombros, assemelhando?se aos de uma dama. Outros diziam que tinham visto por     muitas vezes o Joaquim na mata dos salteadores, e que na pessoa do jovem dos     cabelos compridos ou do Cabeleira, segundo começaram logo de chamá?lo,     haviam reconhecido seu filho José Gomes.

 

Notou?se também uma espécie de moderação, ou     de suspensão de hostilidades, ou ao menos de cessação     de crueldade nestas, de parte dos salteadores em certas quadras do ano, durante     as quais não figuravam nos acometimentos nem o Cabeleira nem seu pai.     Daí se inferiu, com todo o fundamento, que os dois matadores não     limitavam as suas correrias àquelas redondezas, mas, que pelo contrário,     deixando os seus esconderijos, visitavam novos termos, percorriam outros lugares,     como os selvagens mudam de região quando, na que preferiram para a     sua transitória residência, não encontram mais com que     alimentar a sua indolência e bárbara voracidade.

 

Esta conjuntura foi dentro de pouco tempo confirmada pelos clamores que se     levantaram nas freguesias e termos vizinhos, e nos lugares remotos aonde o     Cabeleira e seu pai foram levar o assombro e o terror de que já tinham     enchido a província natal. As pacíficas ribeiras do rio Paraíba     e do rio Grande do Norte, os engenhos, povoações e vilas das     duas províncias, que trazem os nomes destes dois grandes rios, começaram     a pagar, como as ribeiras do Capibaribe, e as propriedades rurais e os pontos     populosos de Pernambuco, o terrível imposto a que por mais de uma vez     nos temos referido no correr desta narrativa. Os bandos dos salteadores escolheram     para centros das suas operações as matas próximas dos     rios, as catingas pegadas aos caminhos donde podiam facilmente espreitar e     acometer a seu salvo os inofensivos viajantes que, com o fruto do trabalho     honesto e da indústria esforçada, deixaram muitas vezes nessas     medonhas solidões o seu sangue, a sua própria vida.

 

Cresceram a par a idade de Luisinha e o nome odioso do Cabeleira, nome que,     principiando como um boato ou uma dúvida, se foi de dia em dia condensando     e se constituiu afinal uma fama que ecoou, com os uivos das feras carniceiras     do sul ao norte, do sertão ao litoral, engrossando sempre com as novas     façanhas, como um fraco regato acrescenta o volume das águas     e se faz rio caudal com os subsídios que cada dia recebe em sua longa     e demorada passagem pelo deserto.

 

Do fundo da obscuridade, que envolvia a sua existência, a menina acompanhou     com os olhos inundados de lágrimas as fases sucessivas que atravessou     esse nome destinado a ter uma página enlutada na história da     pátria. E que bem dentro no seu coração estava a imagem     do companheiro de infância a quem ela nunca pôde esquecer, ainda     quando esta imagem lhe aparecia, como tantas vezes aconteceu, envolta em uma     nuvem de sangue, e acompanhada de uníssonas maldições.

 

A notícia de um novo atentado cometido pelo moço que por uma     lei natural da imaginação sempre se lhe representava com as     feições do menino de outrora, Luisinha sentia no coração     uma dor semelhante à que produz a dentada de uma serpente.

 

No terço, que se rezava de noite em casa de Florinda; na missão     que o coadjutor celebrava de madrugada: em qualquer ocasião própria     para elevar o pensamento às regiões onde flui a eterna fonte     das consolações em cujas águas se retemperam das dores     da vida os espíritos resignados e crentes, a pobre moça tinha     sempre uma oração para que Deus abrandasse a natureza de José     e o tornasse, pela contrição e pela emenda, digno do perdão     da sociedade. Ela não podia crer que, tendo sido esta tantas vezes     indulgente para outros criminosos, fosse inexorável para o mancebo     que por algum tempo andara apartado do caminho do dever. Pobre, ingênua     e crédula criança !

 

Mal sabia que, para grande lição da sociedade do futuro, estava     escrito que o cometa que assim abrasava a terra percorreria a vastíssima     órbita que a Providência lhe traçara, e se afundaria nos     espaços, não entre refulgentes auroras, mas dentro de profundas     e medonhas escuridões.

 

Uma tarde Luisinha foi buscar água no rio Tapacurá, que banha     a cidade da Vitória, então povoação de Santo Antão,     à qual pertencia Glória de Goitá donde era natural o     Cabeleira. Santo Antão distingue?se na história pernambucana     pela circunstância de lhe estar próximo o Monte das Tabocas no     qual se verificou em 3 de agosto de 1645 a batalha que iniciou a insurreição     portuguesa contra o domínio holandês, e exercitou direta e decisiva     influência no futuro político, comercial, industrial e religioso     do Brasil. Esta memorável batalha, depois de seis longas horas de fogo,     declarou?se em favor dos nossos primeiros dominadores. Em comemoração     deste acontecimento, uma lei provincial de B de maio de 1843 erigiu a antiga     povoação em cidade a que chamou da Vitoria como acima se vê.

 

O Tapacurá, que de inverno tem enchentes formidáveis, estava     então cortado pelo rigor da seca de que tratamos no capítulo     anterior. No seu largo leito viam?se unicamente, a espaços como de     ordinário, pequenos poços onde os habitantes mal achavam água     para o consumo diário.

 

Luisinha, não querendo levar para a casa água chafurdada, passou     pelos primeiros poços, já muito remexidos, e foi encher a sua     vasilha em um que distava pouco menos de quarto de légua da povoação.

 

O poço ficava à beira de um capão de mato. De um lado     o terreno elevava?se gradualmente, e acidentava?se mais adiante, formando     ziguezagues quase inacessíveis e esconderijos escuros, a que a espessura     das árvores dava um aspecto medonho. Do lado oposto a margem plana,     igual e descampada, formava com a banda fronteira um admirável contraste.

 

Quando Luisinha, da areia do rio onde se sentara a descansar, se dispunha     a levantar?se para tornar à casa, deu com os olhos em um homem que     da borda do mato a observava em silêncio com tal interesse que parecia     querer atraí?la a si com a vista.

 

Sem demora correu ela ao pote, mas já foi tarde. Formando um pulo     do outro lado do rio onde estava, o desconhecido veio cair no mesmo instante     entre ela e a vasilha, sem perder, no rápido vôo, uma só     das armas com que se achava apercebido.

 

Em vão, meu bem, pretendes fugir?me. Antes que o diabo esfregasse     um olho, eis?me aqui ao pé de ti, disposto a não te deixar ir     embora senão por minha livre vontade.

 

O sítio era inteiramente deserto, e as trevas da noite não     tardavam a envolver de todo a natureza.

 

Luisinha, lançando os olhos pela margem afora, não viu viva     alma. Teve então tamanho medo, que involuntariamente caiu sentada aos     pés do terrível desconhecido. Lembrou?se de gritar por socorro,     mas logo viu que seria inútil esta tentativa, visto que as suas vozes     se perderiam no vasto ermo onde unicamente ecoava o coaxar dos sapos e das     rãs, o silvo das cobras, o canto agoureiro dos bacuraus.

 

Meu Deus ! exclamou ela. Não haverá um cristão que     me valha nesta aflição ?

 

Ninguém, ninguém te valerá, bonita rapariga respondeu     o desconhecido, levantando?a por um braço e como querendo arrastá?la     na direção da língua de terreno por onde se podia ir,     a pé enxuto, à margem fronteira.

 

Mas, meu senhor tornou Luisinha achando em si mesma coragem de que nunca     se julgara capaz , por tudo quanto é sagrado lhe peço que me     deixe ir embora. É quase de noite, e, se me demorar mais tempo aqui,     arrisco?me a encontrar algum malfeitor que me ofenda no caminho.

 

Queres maior malfeitor do que eu ?

 

Vosmecê não é um malfeitor. Vosmecê veio caçar     por estas bandas, e, como me encontrou neste ermo, está?me metendo     medo para divertir?se à minha custa. E creio até que havia de     defender?me se alguém quisesse fazer?me mal.

 

Certamente. Nenhum gavião seria capaz de tirar?me das unhas a minha     formosa juruti. Ora, vem comigo; não tenhas medo. Atravessamos por     este limpo, ganhamos a capoeira, subimos pela aba da serra e...

 

Deus me livre ! exclamou Luisinha assaltada por novos terrores.

 

Olhe: se você não quiser vir por bem, vem por mal disse o desconhecido.

 

Por mal ? E onde está Deus ? interrogou Luisinha, elevando todo o     seu espírito aos pés daquele que está em toda parte para     acudir aos atribulados que o invocam com sincera confiança. Nem por     mal nem por bem. Eu não vou com vosmecê ainda que me custe a     própria vida. Eu sei que Deus me está ouvindo de dentro deste     mato, de cima deste céu. Ele há de lembrar?se de mim.

 

Diante da firmeza na realidade admirável, com que a frágil     moça respondeu à sua ameaça, o malfeitor sobresteve involuntariamente.     Tornando logo em si, porém, continuou com certo disfarce de mau anúncio:

 

Ora, menina, deixe?se de asneiras e vamos para diante enquanto o caso não     fica mais sério. Se você é bonita, eu também não     sou feio; assim, podemos ter filhos galantes como os têm os passarinhos     no seio da solidão.

 

Meu Deus, meu Deus, compadecei?vos de mim enquanto é tempo ! exclamou     ela quase vencida de terror.

 

Então, à luz crepuscular que enchia a planície como     uma neblina, lobrigou Luisinha um vulto que se dirigia para o lugar onde ela     se achava com o malfeitor. Não foi preciso mais para que recrudescesse     o seu valor que a ia desamparando.

 

Cuidas que não vejo quem ali vem ? perguntou o desconhecido, apontando     o volto que, como vinha pelo rasto da moça, com pouco mais estaria     com eles. Eu podia agora mesmo meter?me contigo pelo mato adentro. Se tentasses     gritar, tapava?te a boca, e ninguém saberia o teu fim. Mas quero ficar,     para em vez de uma, levar em minha companhia duas mulheres para o mato, onde     há grande necessidade desta fazenda.

 

Estou aqui, minha mãe, estou aqui gritou Luísa quase ébria     de prazer pela sua salvação, que teve por indubitável     desde que na mulher recém?aparecida reconheceu Florinda.

 

O malfeitor, porém, seguro de seu poder, nem se moveu, nem se alterou     sequer; e para dar testemunho irrecusável de que não fazia caso     do inesperado adjutório, chasqueou de Florinda, por se apresentar armada     com um cacete e um facão.

 

Querendo Luisinha correr ao encontro da viúva que, tendo ouvido as     palavras da rapariga, fora em seu socorro com gestos e meneios de louca, o     desconhecido, cujos olhos cobriram de repente com uma expressão indescritível     a pobre vítima, não lhe consentiu arredar o pé de junto     de si.

 

Não irás disse rudemente, assentando a mão sobre o     braço da moça com tanta força e violência, que     a ela se afigurou que ele lhe tinha dado um golpe com o coice da arma.

 

Florinda passava por ser a mulher mais forte de toda aquela ribeira.

 

Ela derrubava grossas árvores a machado, abria roçados por     empreitada, cortava na mata virgem lenha que vendia na povoação,     e até tarrafeava nas lagoas como um hábil pescador. Não     se distinguia só nos serviços do campo, mas também em     fazer excelentes tapiocas e ótimo arroz?doce, que eram as delícias     dos matutos e sertanejos nas feiras.

 

Era curiboca, reforçada, não feia e de boa estatura. Acreditava     na existência do diabo, no inferno e nas penas eternas como ainda hoje     acredita a gente do campo e uma grande parte dos habitantes das cidades; mas     em compensação tinha uma fé viva e fervorosa em Deus,     e era de costumes irrepreensíveis, fé e costumes que desgraçadamente     faltam a muitos dos que têm hoje aquela primeira crença.

 

Tendo ficado viúva, sem filhos, na flor dos anos, não se quis     casar segunda vez, e nunca ninguém achou motivo de por em dúvida     a sua honestidade. A Luisinha, a quem pouco depois de ter casado, tomou sob     sua proteção, como já referimos, consagrava ela todos     os seus afetos, e nela fazia consistir o seu orgulho, o seu prazer e a sua     felicidade.

 

Não sendo de meias medidas quando se julgava ofendida, Florinda botou?se     com todo o ímpeto, que trazia, ao desconhecido, o qual, sem soltar     Luisinha, que se torcia ao aperto da mão de ferro que a segurava, rebateu     o golpe do facão de Florinda com o cano do bacamarte. Com o choque     o facão partiu?se, e a folha inteira foi cair dentro do poço,     ficando na mão da curiboca o cabo imprestável da infame arma.

 

Florinda era prudente. Tanto que se viu desarmada, sobresteve, dominou a     sua justa indignação, e, com voz masculina que lhe dera a natureza,     assim falou ao malfeitor:

 

Que quer vosmecê fazer com minha filha ?

 

Quero levá?la comigo para meu divertimento. Se tens força     para impedires o meu intento, é agora a ocasião.

 

Ouvindo estas acerbas expressões, Florinda, que com a vista medira     de cima a baixo o seu adversário, meteu?lhe o cacete com todo o animo     que lhe dava sua vida sem mancha, e a justa defesa da filha, seu único     tesouro, de todos acatado e querido. No mesmo instante o ar sibilou, e ouviu?se     o som de uma pancada contra um corpo sonoro. Um grito, antes urro medonho,     ecoou pela vasta solidão, e uma massa, que se parecia, na forma e no     peso, com um tronco de angico anoso, tombou sobre a areia. O desconhecido     acabava de obrar uma ação vil. Com a coronha do bacamarte tirara     os sentidos àquela digna mulher, que o encarara sem medo.

 

Vendo sua mãe cair desfalecida, Luisinha quis correr em seu amparo,     mas não lho permitiu a mão do malfeitor que a puxou para trás     com força hercúlea.

 

Ah ! não conheceste o Cabeleira, cascavel ? acrescentou ele com os     olhos fitos em Florinda. Vêm meter?se na boca da onça, e depois     dizem que a onça é cruel.

 

Aos ouvidos de Luisinha aquele nome passou como uma chama elétrica,     que lhe deu forças para volver à vida.

 

Cabeleira ! repetiu ela.

 

Só então viu os longos cabelos que caíam em ondas por     debaixo das abas do chapéu de palha sobre os ombros do assassino.

 

De que te admiras ? Não sabes que o Cabeleira está em toda     parte onde não o esperam ? Vem comigo.

 

E sem mais contemplação, o matador arrastou a menina contra     a vontade, a resistência, os sobre?humanos esforços que esta     lhe opunha, por junto do corpo de Florinda, e seguiu em busca da margem fronteira,     onde a noite era já fechada, e o aspecto do sítio pavoroso.

 

Agora te conheço, José malvado disse a moça. Mata?me     também, já me mataste minha mãe que nunca te ofendeu.

 

Ah, conheceste afinal o Cabeleira ?

 

Tanto me conheceste tu, desgraçado!

 

Que queres dizer com estas palavras ? perguntou o bandido.

 

Olha?me bem. Até de Luísa te esqueceste ! Assassino, eu te     perdôo a morte: mata?me.

 

Tinham chegado à beira do capão de mato. O Cabeleira estacou.     O que acabava de ouvir tê?lo?ia prostrado mais depressa do que um golpe     igual ao que descarregara, havia pouco, sobre uma das fontes de Florinda,     se no mesmo instante não lhe houvesse chegado aos ouvidos um assobio     agudo, sinal de extrema aflição no couto próximo.

 

Ah ! era você ? Perdoe?me, Luisinha. Eu não a esqueci. Perdoe?me.     Eu não sabia que era você disse então, com brandura, soltando     a moça sem mais demora.

 

Só Deus te poderá perdoar, assassino de minha mãe,     respondeu, abafada em lágrimas e soluços, aquela que se considerava     órfã e desvalida pela segunda vez.

 

Perdoe?me, Luisinha. Nem eu a posso levar comigo, nem posso demorar?me por     mais tempo. O meu rancho está em perigo, e os camaradas chamam?me em     socorro deles. Mas espere por mim um pouco debaixo deste juazeiro, que eu     quero que você me ouça. Eu volto já.

 

E, sem perder mais um momento, desapareceu dos olhos de Luísa como     uma vã sombra.

 

 

 

Não se pode escrever o abalo que experimentou Cabeleira ao reconhecer     Luísa, menina até aquele momento em sua imaginação,     moça de então por diante aos seus olhos deslumbrados do esplendor     daquela beleza correta, natural, irritada e crente.

 

Pela primeira vez depois de tantos anos, o músculo endurecido que     ele trazia no peito dobrou se a uma impressão profunda, a uma força     irresistível e fatal, como a cera se dobra ao calor do lume.

 

A medida que se internava na espessura ia caindo em si, e mais difícil     de transpor se lhe ia tornando a via dolorosa por onde nesse momento arrastava     os pôs menos pesados que sua cabeça cheia de encontrados pensamentos.

 

Pouco a pouco o passado se lhe foi desenhando na tela, ao princípio     escura, depois diáfana e resplandecente da imaginação     vivamente excitada pela violenta comoção. Por último     todas as cenas infantis, tão afastadas, que poderiam considerar se     sen o de todo desvanecidas, ao menos vagas, confusas e de impossível     resurreição, reapareceram aos seus olhos com o vigor de outrora     senão mais vivas e animadas que dantes.

 

Luísa, representou lhe sorrindo e brincando nas campinas, por junto     dos açudes, à sombra dos juazeiros. Era a mesma menina meiga     e amável, com quem ele folgara à beira dos poços e valados,     e para quem tantas vezes apanhara camarões nas enxurradas.

 

O bandido lembrou se de que uma quadra tinha havido em sua vida, na qual     ele só cuidava em armar arapucas por entre os beirões do roçado     para pegar juritis, em abrir fojos debaixo das moitas, ou armar quixós     e mundéus na capoeira com o fim de apanhar preás para a menina.

 

A conhecida cena do coelho pendurado da forca de ramos, obra de Joaquim,     se lhe estampou novamente, por natural associação de idéias,     na tela do pensamento, e veio acrescentar lhe o vexame que lhe oprimia o coração.

 

Viu depois Luísa encostada na cerca do quintal, ao pé de uma     goiabeira, os cabelos soltos, os pezinhos descalços.

 

Esta última visão recordava lhe a cena da despedida que o leitor     conhece. José estava tão vivamente excitado, que lhe pareceu     ouvir as vozes, as queixas, as rogativas, os prantos de Joana, e as recusas,     os remoques, as asperezas, o desprezo que para ela tivera Joaquim na manhã     fatal, em que o pequeno fora arrancado dos braços de sua mãe     quase alucinada pela dor da separação. Pareceu lhe ouvir as     palavras de Luísa: "Quero lhe muito bem, mas não gosto     quando você judia com os passarinhos, e tenho medo de sua faca".     Pareceu lhe escutar distintamente o som das suas próprias expressões:     "Quando eu chegar de volta, não maltratarei mais os animais".

 

E a menina a quem tanto amara, a quem nunca esquecera, e cuja imagem indecisa     e vaporosa os olhos do seu pensamento tinham por mais de uma vez surpreendido     junto de si testemunhando a perpetração de algum crime, essa     menina crescera, pusera se moça, chegara à idade em que todos     tem no critério natural um corpo de leis e na consciência um     juiz para julgar as suas e as alheias ações.

 

Que juízo ficaria fazendo de mim Luisinha ? perguntou de si para     si o Cabeleira, insensivelmente arrastado por esta ordem de idéias.     Ah ! que pode ela pensar de mim senão que sou um assassino ?

 

Luísa tinha o, de feito, nomeado por esta palavra, havia poucos instantes,     entre as lágrimas que lhe arrancara o desespero. Era pois certo, e     o bandido bem o compreendia, que o abismo que já na meninice de ambos     os separava, longe de se ter arrasado, se tornara mais fundo com o correr     dos anos. Agora ele não judiava só com os animais como em outro     tempo; ele saqueava povoações e matava gente; e desta verdade     era irrecusável prova o que acabara de praticar com Florinda.

 

Se até aquele momento Luisinha lhe votara afeição ou     se condoera de sua pouca sorte, era natural supor que estes sentimentos se     tivessem modificado, se não de todo extinguido, depois do último     acontecimento. A afeição deveria ter sucedido o desprezo, à     pena o ódio.

 

Não eram outras as idéias que tumultuavam na cabeça     de Cabeleira. Estas idéias produziram no seu animo tão profunda     impressão que ele sentiu lágrimas nos olhos, ele, o grande assassino     que sempre se mostrara insensível ao longo pranto que por toda parte     fazia correr.

 

Sem se poder governar, achou se de repente voltado para o rio. Seus pés,     primeiro que sua vontade, o queriam guiar de novo ao lugar onde tinha achado     os motivos para tamanha transformação. Eis que novo assobio,     precedido da detonação de alguns tiros, rompeu os ares e veio     diverti lo destas preocupações. O esconderijo, não havia     de duvidar, precisava de seu socorro. Então uma nuvem de sangue envolveu     a vista do infeliz mancebo. O passado caiu lhe novamente em pedaços     aos pés. O espírito de vingança fustigou o com veemência     no coração, teatro de encontradas e profundas paixões.     Cabeleira volveu a ser outra vez fera, e rápido deslizou se como uma     cobra por entre as árvores e por debaixo da folhagem.

 

Com a mata que dava asilo aos malfeitores confinavam as terras onde Liberato,     irmão de Gabriel, tinha uma engenhoca.

 

A princípio Liberato viveu muito satisfeito em suas terras. Tendo     se, porém, anos depois formado o couto ali junto, foi se ele desgostando     a ponto que só por não ter outro remédio continuou a     morar nelas.

 

As terras eram muito férteis, e a sua situação não     podia ser melhor do que era; mas, pela péssima vizinhança, estavam,     como nenhumas, expostas em todos os sentidos a serem usufruídas, como     eram constantemente, pelos malfeitores, o que as havia inteiramente depreciado.

 

Na realidade quem menos se gozava das suas plantações era Liberato,     dono delas. A macaxera mais enxuta, a melancia mais madura, o melhor milho     verde, o feijão de melhor qualidade eram para a boca ou antes, ao dizer     popular, para o papo dos pesados vizinhos. A galinha gorda anoitecia no poleiro     mas não amanhecia no terreiro, não porque a raposa a tivesse     pegado, mas porque os raposos a tinham tirado para a sua panela, que estava     quase sempre fervendo dentro da mata virgem.

 

A vaca leiteira, o quartau carnudo desaparecia do pasto quando menos pensava     o crioulo, que os ia recomprar em segunda mão, se, como quase sempre     acontecia, os animais furtados eram da sua particular estimação;     não escapavam da rapacidade dos malfeitores as próprias bestas     do serviço da engenhoca. Dentro dos canaviais apareciam vastas camarinhas,     obra de ladrões; as canas passavam para a mata aos feixes. Enfim era     uma calamidade aquela gente, era uma desgraça para o Liberato, mais     do que para nenhum outro, aquela vizinhança.

 

Liberato propôs a venda das terras a mais de um morador do lugar, mas     todos se escusaram a comprá las. De que valiam elas em realidade, com     serem tão boas, estando sujeitas, como estavam, àquela onímoda     servidão ? Não tendo para onde ir, nem outro algum recurso,     resignou se Liberato à sua sorte, e botou para Deus, juiz supremo,     que dá provimento a todos os recursos interpostos com justo fundamento.     Era de índole pacífica, tinha mulher e filhos, não queria     rixas com ninguém, e muito menos as queria com matadores de profissão.

 

Quando lhe aconselhavam em família, a mulher, ou os filhos, para que     reagisse contra os ladrões, ele respondia sempre com estas palavras,     ou com outras equivalentes:

 

Deus me livre. Se os brancos e o rei não podem com eles, eu, que     sou negro, é que hei de poder ? Vamos passando assim mesmo conforme     Deus nos ajudar. Pode se dizer que vivo trabalhando para eles. Paciência!     Um dia isto há de ter fim, ou com a vida, ou com a morte. Será     quando Deus quiser.

 

Liberato não procedia deste modo por fraqueza, mas por boníssimo     discernimento. Ele era até valente por origem. Vinha a ser neto ou     bisneto de Henrique Dias, com cuja fama se gloriava. Do ilustre guerreiro     lhe vinham por sucessão as terras que possuía nas proximidades     do Monte das Tabocas, onde o negro herói conquistara brilho inescurecível     para seu nome que ficou sendo uma das primeiras glórias da pátria.     Mas bem estava vendo que não podia avantajar se a quadrilhas de ladrões     e assassinos afeitos à prática de toda sorte de depredações.

 

Havia já muitos anos que ele vivia sem ter neste assunto outras idéias.     Pouco a pouco se habituara a repartir o seu pelos ladrões. Esta partilha     ele a considerava tão forçada, tão fatal, que, sempre     que abria um novo roçado, ou encoivarava terras para algum novo partido     de canas, dizia, entre gracejo e resignação:

 

E preciso fazer mais acrescentando para que os meus vizinhos levem tudo,     e eu não venha a ficar sem ter com que remir as minhas necessidades.

 

Estava Liberato um dia consertando uns covos para os meter em um poço     onde os camarões saltavam em cardumes, quando, banhada em pranto, carpindo     a sua desgraça lhe entrou pela porta a mulher de Gabriel.

 

Mataram meu marido, Liberato. Estou viúva, e você já     não tem seu irmão.

 

Quem lhe contou isso, Aninha ? perguntou o negro quase esmagado da dor que     lhe trouxe a repentina e fúnebre nova. Não é possível.     Há de ser mentira. Quem havia de matar Gabriel, que nunca se importou     com os outros ?

 

Desgraçadamente não é mentira, não. Eu soube     de tudo. Foi o Cabeleira quem o matou. E o malvado aí vem com o pai,     roubando e esfaqueando a quem encontram. Previna se, Liberato, que eles já     devem estar na mata. Ai de mim ! Que desgraça, meu Deus ! Que será     de mim sem Gabriel que era tão bom marido ?!

 

E onde estou eu, Aninha ? Não chore. Eu ainda não creio neste     conto. Mas se suceder a desgraça que você diz, nem por isso deverá     desesperar, que os homens ainda não se acabaram na terra.

 

Seguiu se um longo pranto na casa do crioulo. Ao carpir de Aninha vieram     juntar se as lamentações de Rosalina, mulher de Liberato e irmão     da viúva.

 

Liberato passou três noites sem pregar os olhos, pensando consigo só.     A dor acerba a que ele, sem dar amostras, talvez por prudência, mal     tinha podido resistir com sobre humano esforço, veio despertar os longos     ressentimentos e antigos desgostos que jaziam como arrefecidos no fundo do     seu coração. Aqueles que cotidianamente o despojavam dos produtos     do seu trabalho e da economia tinham lhe roubado uma vida preciosa. Quem lhe     podia assegurar que eles não viessem mais tarde a tomar lhe a mulher,     a tirar lhe a filha, a arrancar lhe a própria vida se ele se opusesse     à sua vontade criminosa ?

 

Liberato refletiu maduramente sobre este grande assunto, e a cabo de três     dias tomou a resolução que lhe pareceu melhor. Não se     contava na distancia de três, ou quatro, ou dez, vinte léguas     da povoação um só proprietário, lavrador, foreiro,     almocreve ou morador que não tivesse queixas dos malfeitores, especialmente     do Cabeleira que a todos excedia na petulância e fereza. Aqueles a quem     faltavam motivos de ofensa pessoal tinham razão de sobra para quererem     a dissolução do couto nas ofensas feitas pelos facinorosos aos     parentes e amigos. Só uma população cansada de lutas     sanguinolentas, e um governo que cuidava menos de proteger eficazmente a propriedade     e a vida na colônia do que de adquirir grossas rendas para a metrópole,     e riquezas para si próprio, poderiam sofrer bandos de sicários     que, assim fortificados ao pé das famílias, roubavam impunemente     bens, honra e vida.

 

Liberato entendeu se com três ou quatro dos vizinhos mais próximos,     e depois de lhes haver dado parte do golpe de que fora vítima na pessoa     de seu irmão, propôs lhe coligarem todas suas forças para     tentarem a expulsão dos malfeitores. Não obstante haver por     essa ocasião recordado os danos irreparáveis que a cada um desses     vizinhos tinham eles ocasionado, não houve um só que estivesse     pela proposta do negro, tal era o terror de que todos se achavam penetrados.

 

Nenhum queria arriscar se a pagar com a vida semelhante ousadia aconselhada     aliás pelo instinto da própria conservação.

 

Liberato voltou a casa triste e desanimado, mas não dissuadido de     tentar o assalto, único meio que se lhe oferecia de vingar se dos assassinos     de Gabriel, e libertar se do violento imposto que sobre sua fraca fortuna,     já muito depauperada, os malvados faziam pesar sem tréguas nem     piedade.

 

Concertou seu plano consigo mesmo debaixo de rigoroso sigilo. Na tarde seguinte,     com o pretexto de tirar uma abelha e encovar tatus, encaminhou se para a mata,     acompanhado de seus dois filhos Ricardo e Sebastião, e de seu genro     Vicente, todos apercebidos com espingardas, facões e chuços.

 

Conhecia algumas das veredas que levavam ao covil. Acostumados a verem nele     uma vítima paciente de que mais tinham que tirar do que temer, não     cuidaram os malfeitores em ocultar lhe essas veredas. Liberato e os seus embocaram     por uma delas sem hesitações nem temores, perfeitamente senhores     de si e conhecedores do terreno onde pisavam.

 

Antes de chegarem ao rancho foram pressentidos. A vereda, antes picada aberta     a machado, era estreita, e passava por um embastido de árvores colossais,     que formavam natural estacada, impossível de romper.

 

Liberato sabia o perigo a que se expunha com este passo. Estava, porém,     disposto a dar aos malvados uma lição de mestre, ainda que lhe     custasse a própria vida, desmoralizando, quando outro sucesso não     pudesse obter, o fatal valhacouto.

 

Ainda bem não tinham chegado ao ponto em que a picada se bifurcava,     quando ouviram um assobio que repercutiu com estranho som na profunda selva.

 

Ah ! disse Liberato aos seus perdemos a diligência. Estão prevenidos     e esperam por nós.

 

Ele não se enganava. Um dos moradores a quem convidara para o assalto,     pondo se em secreta inteligência com um dos criminosos, delatara por     medo a intenção de Liberato. Dupla cobardia, tanto mais digna     de ser execrada quanto foi parte para que viessem a dar se lamentáveis     cenas!

 

Posto que logo conhecesse que não havia salvação possível     para nenhum deles, Liberato, não querendo dar o braço a torcer,     prosseguiu com firmeza em sua marcha como se nada houvesse.

 

Pouco adiante, a vereda estava completamente tomada por grossos troncos ligados     às árvores paralelas por fortíssimos cipós.

 

Estamos encurralados disse ele com serenidade. Melhor um pouco; havemos     de bater nos a faca e a chuço.

 

Voltemos, já que não podemos aqui avançar. Cada qual     trate de matar para não morrer.

 

Não podemos abrir caminho através destes paus ? perguntou     Sebastião.

 

De que modo ? E impossível respondeu Liberato.

 

Só se nós trepássemos, e fôssemos saltando de     galho em galho até deixarmos atrás de nós a estacada     lembrou Ricardo.

 

Eles nos deixariam fazer isto ? observou Vicente.

 

Mal tinham acabado estas palavras quando uma descarga da trincheira, deitando     por terra o genro de Liberato, veio anunciar lhes que para eles tudo estava     acabado.

 

Afastarem se da trincheira para ficarem ao abrigo de seus traiçoeiros     tiros foi a primeira coisa em que todos entenderam.

 

Cobardes ! exclamou Liberato com raiva concentrada. Têm gente como     farinha, e encurralam quatro homens que eles não se animam a bater     em campo aberto. Onde está a valentia destes ladrões que são     satisfeitos com o que me furtam, mataram meu irmão para lhe roubarem     seu único bem ?

 

Depois de se haverem alongado alguns passos mais da trincheira onde reinou     logo profundo silêncio, perceberam que os inimigos vinham a seu encontro     para lhes embargar a saída. Achavam se deste modo os assaltantes entre     a espada e a parede.

 

Era medonha a escuridão dentro da mata.

 

Facas em punho, e avancemos gritou, não obstante, Liberato aos filhos,     certíssimo de que poucos instantes de vida restavam a todos eles.

 

Para dar o exemplo precipitou se, como um raio, contra a mó de malfeitores     que dificilmente lobrigou a pouca distancia diante de si. Sebastião     e Ricardo praticaram o mesmo, e dentro em pouco as armas inimigas cruzaram     se com fúria tal de parte a parte, que delas saltavam chispas, e o     som dos seus embates ia perder se ao longe no seio da vasta selva.

 

Depois de alguns minutos que decorreram em incessante lutar, terceiro assobio     sibilou por entre a folhagem. A este sinal caiu de cima de uma das árvores     mais próximas a luz sinistra de dois fachos cujo clarão encheu     o estreito passo.

 

Metia horror o teatro da luta. Dos assaltantes só restava o Liberato     que se batia, como um bravo que era, com o próprio Cabeleira; dos salteadores     muitos faziam companhia com seus cadáveres aos de Ricardo, de Sebastião     e de Vicente.

 

Eu logo vi que tinha pela frente o ingrato Cabeleira disse Liberato, que     só a seu grande animo devia estar ainda de pé. Já que     mataste meu irmão, miserável, podes também tirar me a     vida agora; mas fica sabendo que não lograrias o teu intento se não     fosse o adjutório de teus cobardes companheiros.

 

A palavra ingrato José sentiu surgir lhe espontâneo remorso     na consciência, e instintivamente recolheu o ímpeto com que ia     dar em Liberato o golpe de honra.

 

Não fui eu que matei Gabriel disse sem se sentir, sem o querer o     malfeitor.

 

Fui eu, fui eu trovejou Joaquim com fúria aterradora. E que tem isso     ? Pois ainda estás dando satisfações a este negro, Zé     Gomes ?

 

Ouviu se ent o o estalo de galhos e cipós que se romperam com violência     inesperada para deixarem passar um corpo ágil, que foi cair de um salto     à frente de Liberato. Esse corpo, ou antes essa onça petulante,     irritada e cruel, não era senão o pai de Cabeleira.

 

Rende te, negro gritou Joaquim ao infeliz, descarregando lhe sobre a cabeça,     já em diferentes partes mutilada o facão que trazia na mão     esquerda, enquanto com a faca presa na direita, aparava o golpe que vibrava     como último arranco a sua vítima.

 

Liberato, de feito, não pôde mais resistir. Tinha o corpo crivado     de facadas. Cambaleou e caiu.

 

Joaquim, atirando se ao desgraçado, embebeu lhe no peito, sem hesitar,     antes com a firmeza de cínico sicário, a folha de sua faca,     que lhe atravessou o coração.

 

Por este guarida fico eu disse. Não há de vir mais perturbar     o nosso sossego.

 

Os cadáveres dos assaltantes foram examinados entre risos, insultos     e galhofas ímpias, à luz dos fachos sinistros. Completou se     por este modo a tragédia.

 

 

 

A vitória, não obstante o lugar e o número que deram     superioridade aos fortificados, custou lhes consideráveis danos. Com     outra investida da mesma força que a primeira, ou ainda menor, o couto     arriscava se a ser dissolvido. Os malfeitores não eram muito numerosos     e qualquer perda, por pequena que fosse, os expunha a desastres certos e quiçá     fatais. Além disso, achavam se divididos por diferentes pontos donde     protegiam as correrias empreendidas pelos mais destemidos. A organização     protetiva era tal, que o mameluco e o filho, dentre todos os mais temerários     e valorosos, percorriam, não já somente a província donde     eram naturais, mas Paraíba e Rio Grande do Norte em todas as direções     sem maior perigo, porque quando as justiças os perseguiam, eles achavam     sempre perto de si um refúgio amigo onde se acolhiam, e se aí     eram buscados, como muitas vezes aconteceu, resistiam, ajudados por seus iguais,     com tanta energia e denodo que sempre a vitória ficava de seu lado.

 

Desta vez porém não lhes fora muito favorável o lance.

 

O Cabeleira, cuja bravura estava acima de todo o encarecimento, e seu pai,     que a nenhum cedia o lugar na crueldade, tinham ficado cobertos de golpes,     alguns deles mortais. Maracajá, cabra de más entranhas e por     isso de créditos colossais entre eles, ficara com uma mão horrivelmente     destruída, e o ombro esquerdo mutilado. Ventania, outro matador de     fama, apresentava no rosto e peito feridas extensas e profundas. Jurema, Jacarandá,     Gavião e dois negros fugidos tinham morrido nas pontas das facas dos     assaltantes.

 

A vista de tudo isso, tanto que considerou restabelecida a ordem na lôbrega     estância, Joaquim reuniu o restante das suas forças, e lhes falou     nestes termos:

 

A luta foi feia, camaradas, e devemos dar um exemplo de estrondo para que     ela não venha a repetir se tão cedo. É: certo que dos     cabras que se atreveram a vir bater nos, n o voltou um só que fosse     contar a sua derrota, mas o abalo que padecemos foi grande, e, se a justiça     vier por aí nestes dias, correremos grande perigo, só não     se nos ausentarmos. Entendo que devemos obrar um feito que a todos dê     que falar, que aterre a população e o capitão mor, que     faça crer que nunca estivemos tão fortes nem mais dispostos     a sustentar o nosso posto.

 

Estou pronto para ir pôr fogo agora mesmo na povoação     disse Manuel Corisco, calceta evadido da cadeia do Recife por ocasião     do segundo arrombamento praticado nos últimos tempos da administração     do governador Henrique Luís.

 

Este sentenciado tinha tomado parte, aos dezesseis anos, no levante dos soldados     que se verificou quando governava Pernambuco d. Manuel Rolim de Moura. Do     dito levante existe ainda a viva lembrança na província, pelo     grande saque a que procederam, não só na vila do Recife, mas     também na rica e populosa cidade de Olinda, a pérola de Coelho.     Os sessenta e seis anos, que contava, ainda lhe permitiam forças e     animo para atentar contra os bens e a vida com tanto maior firmeza quanto     era fragueiro no crime por uma prática de longos anos.

 

Em vez do incêndio, o saque acudiu Miguel Mulatinho.

 

Para tanto não temos forças, mas se o querem, encontram me     pronto, como sempreobservou Manuel Corisco. A minha opinião é     que apanhemos os cavalos e gados que ainda existem por estas beiradas. Eles     devem render na feira dinheiro fresco para irmos resistindo à seca.     Feito isto, levantemos o acampamento por algum tempo tornou Miguel.

 

Que é que resta por aqui ? perguntou Corisco. Na fazenda de Liberato     poucas reses se contam. Antes de morrer, o ladrão do negro já     estava limpo; só tinha em casa os cachorros, os gatos, a mulher e a     filha.

 

Boa idéia, boa idéia gritou o Joaquim, cujos olhos nadavam     em ferocidade. Terão vocês coragem para darem conta da empresa     ?

 

Diga lá, Joaquim. Você não está com patativas     choronas, você está com carcarás que têm boa vista,     boas asas e melhores unhas acudiu Miguel Mulatinho, librando se nos pés     para imitar o pássaro que quer voar.

 

Vamos lá ver o que propõe você acrescentou Manuel Corisco.

 

Proponho o roubo das melhores raparigas da povoação. Isto,     sim, há de dar a todos a medida da nossa audácia, e por todos     será considerado uma prova de que estamos fortes como nunca estivemos.

 

Sim senhor, muito bem lembrado disse o Mulatinho , melhor não podia     ser, mas a coisa é séria, Joaquim.

 

Ora ! Tens medo ?

 

Medo ! O medo comi eu com as papas que minha mãe me deu quando era     pequenino retrucou o malfeitor como por demais.

 

Dito e feito, Joaquim. Quando será isso ? Hoje ? Amanhã ?     perguntou José Trovão, negro hediondo, cuja cara apresentava     profundas cicatrizes e cujos olhos, vermelhos como tomates, padeciam de estrabismo     divergente.

 

Hoje não. Amanhã, ou depois, conforme entender melhor Zé     Gomes respondeu Joaquim.

 

E logo acrescentou:

 

Mas onde se meteu Zé Gomes que não o vejo aqui ?

 

O lugar onde se achavam reunidos os bandidos era um dos pontos mais centrais     da mata.

 

Tinham eles assentado o seu arraial ao pé de um olho d'água     que não secava, ainda no rigor do verão. Este arraial compunha     se de meia dúzia de ranchos abertos por todos os lados e unicamente     cobertos de palhas de pindoba. Dos caibros pendiam surrões, véstias     e chapéus de couro. Algumas redes estavam armadas dentro das palhoças.     A noite alumiavam se ordinariamente com fogueiras; tinham porém sempre     em quantidade fachos de que se serviam nas suas idas e voltas por dentro da     mata, quando fazia escuro. Tudo anunciava que o ponto era sempre provisório,     e podia ser deixado de um momento para outro sem prejuízo nem saudades.

 

O Cabeleira estava longe deles naquele instante.

 

Apenas viu passada a borrasca, reapareceu lhe a imagem de Luísa em     quem ele via dois tipos cada qual mais sedutor em um a menina de oito anos     com o rosto banhado da expressão de meninice, que é agradável     até aos olhos dos que têm o coração mais endurecido     do mundo; no outro a moça ingênua, corajosa, banhada em pranto,     de rojo a seus pés, pedindo lhe misericórdia, insultando o,     amaldiçoando o, bela, tanto mais bela quanto mais aumentavam sua dor     e sua indignação, ambas tão profundas como era o afeto     que ela votava ao bandido.

 

Este não tinha tido até aquele momento predileção     amorosa para alguma outra mulher.

 

Sua vida nômada, arriscada, cheia de sobressaltos, ensopada de sangue     só lhe tinha permitido querer bem à imagem da menina que ainda     na véspera se debuxava em seu espírito com um vago e pálido     reflexo do passado. Inesperadamente, porém, este reflexo se ilumina     com todos os brilhos do mais primoroso íris. A reminiscência     desmaiada, quase desaparecida, tomou corpo, forma, cor, contornos suaves,     olhos matadores, cabelos escuros, voz harmoniosa, enérgico sentimento,     e com soluços o comove, e com exprobrações o faz conhecer     e sentir a dor, nunca talvez experimentada, de um remorso cruel. Seu coração,     que se havia convertido em foco de paixões sanguinárias, era     agora ninho de doce e indefinível sentimento.

 

O bandido estava experimentando, não a lascívia bruta que proporciona     rápidos prazeres, dele conhecidos como a aguardente que bebia nos dias     quentes e nas noites frias, mas uma fatalidade benévola, branda e terna     que o impelia para a moça, primeiro pelo espírito, e só     depois pela beleza da forma que o atraía; e essa fatalidade era tão     poderosa que ele não achava forças em si para lhe resistir apesar     do seu querer.

 

Chegando à beira do rio para onde se dirigira correndo em busca da     visão que aí deixara, achou em seu lugar a solidão infinita,     a solidão só.

 

Era em maio. Frouxo estava o luar. Elevava se das margens, com os ruídos     do deserto, fresca e grata emanação que teve para o seu peito     abrasado o efeito do bálsamo fragrante.

 

Pareceu lhe que debaixo da folhagem do juazeiro onde, segundo o seu pedido,     esperava encontrar a moça, um corpo indeciso e vago se agitava brandamente.

 

Luisinha ? Luisinha? chamou ele.

 

Ilusão ! Estava ali o vácuo mais cruel do que um raio que o     houvesse fulminado. A sombra da árvore movida pela brisa noturna representava     a forma graciosa que o bandido acreditou ser Luísa

 

Foi se embora ! disse o Cabeleira esmagado.

 

Então com olhar de gavião abrangeu a vasta planície     que se estendia diante de si. Ninguém ! Nem sequer um vulto que por     um instante ao menos lhe desse o prazer de uma nova esperança, falaz     embora como a que se despedaçara a seus pés naquele momento.     Só o deserto lhe apareceu, menos vago, mais real com taciturna imensidade,     só o deserto lhe respondeu com a mudez do descampado, das selvas profundas,     e das águas mortas.

 

Assim desmascarada em plena natureza, a realidade o fez voltar a si. Sentiu     as dores dos golpes recebidos, pouco havia, dentro da mata. Lembrou se de     banhar as feridas como costumava depois de idênticos desastres. Mas     a água fresca que tantas vezes lhe havia servido de bálsamo     refrigerante, produziu lhe agora diferente efeito. A vista do bandido foi     pouco a pouco escurecendo, a cabeça pesou lhe mais do que o corpo,     e ele caiu sem sentidos à beira do poço.

 

Deste modo passou horas. Quando tornou em si de seu delíquio, a aurora     vinha rompendo as nuvens do horizonte, com sua luz extensa e vasta que se     confunde no infinito. A viração matutina transmítiu lhe     aos ouvidos uns sons cadenciados que vinham de longe. Era o eco das loas cantadas     pelas meninas e raparigas da povoação que vinham encher os potes     nos poços como de costume.

 

Levantou se ainda aturdido. Seus olhares foram logo cair sobre o lugar onde     na tarde anterior ele havia deitado Florinda em terra com o coice do bacamarte.     Não se achava, porém, ali o cadáver da curiboca. O bandido     deu então o andar para a estância, com o pensamento concentrado     em Luísa que, tendo se visto livre de suas mãos, correra em     socorro de Florinda.

 

Minha mãe ? minha mãe ? chamara ela, abraçando o corpo     da vítima, e chorando como criança.

 

No seu prantear e no seu carpir, Luísa tivera todavia espírito     para lembrar se das últimas palavras do Cabeleira. "Com pouco     ele estará aqui outra vez", pensou ela. "Deus me livre de     que ele venha ainda encontrar me neste ermo. Que seria de mim se tal acontecesse     ? Mas posso eu deixar aqui o corpo de minha mãe só e desamparado     ?! Não, não; não o deixarei ainda que me matem. Ficarei     até que amanheça. Há de aparecer alguém que me     ajude a levá lo para casa".

 

E aflita, consternada, Luísa olhara ao longo da margem a ver se descobria     quem a socorresse. Por mais de uma vez uns vultos escuros moveram se sobre     a areia, à beira dos poços. Ele sentira então voltar     lhe o animo, falara, perguntara quem estava ali, pedira que a fossem amparar     em tamanha aflição, mas ninguém a ouvira, ninguém     acudira ao seu chamamento. Tudo fora ilusão. Esses vultos foram as     sombras das árvores movidas pelo vento, as quais enganaram depois o     bandido como vimos.

 

A noite, porém, corria com rapidez. A lua que descia a ocultar se     por detrás da floresta, dentro em breve deixaria em trevas toda a natureza.     O silêncio tornava se mais profundo, tornava se absoluto. O sítio,     de si ermo, estava agora lúgubre por se haver convertido em mansão     de morte e luto.

 

Luísa lembrara se de ir chamar alguém, visto que ninguém     lhe aparecia para a tirar daquele aflitivo transe. Mas a casa que ficava mais     próxima era de Liberato, a qual distava, entretanto, pouco menos de     meio quarto de légua do lugar. Além disso, ela não queria     deixar o corpo de Florinda desacompanhado ainda que fosse por momentos quanto     mais por horas.

 

De uma vez correra ao longo da margem a ver se o céu lhe tinha enviado     algum protetor. Mas logo voltara, lembrando se de que o cadáver podia,     de um instante para o outro ser ofendido por algum animal.

 

Não, não, minha mãe ! exclamou ela. Não te deixarei,     haja o que houver.

 

Então ela vira que o cadáver erguera os braços para     conchegá la, ao que parecia, ao seu seio. A moça fizera conta     que estava sonhando e delirando, e que o movimento de Florinda fora como uma     ilusão dos olhos dela.

 

Abraça me, minha mãe, abraça me. Leva me contigo que     eu, sem ti, sou o ente mais desgraçado do mundo.

 

Mas, sentindo a pressão física e irrecusável dos braços     que tinha por mortos, recuou para a pálida claridade do escasso luar,     certificar se da verdade.

 

Não fujas, Luísa. Vem. Não estou morta. Ajuda me, que     me levantarei.

 

Não podia ser mentira dos seus ouvidos. Era a voz de Florinda, aquela     voz branda e benévola que ela estava acostumada a escutar desde a infância     como o eco de materna] providência.

 

Minha mãe ! Vive ainda, minha querida mãezinha? perguntara     Luísa, chorando e sorrindo alternativamente, beijando, como louca,     sem ordem nem moderação, aquele cadáver que se tornara     vivente, aquela vida que ressuscitara no seio da natureza onde lhe parecera     que se havia afundado para nunca mais voltar como se afundam as borboletas     que as tempestades arrojam aos charcos e marnéis.

 

Vê se podes levantar me, Luisinha.

 

Sim, saiamos já daqui antes que tornem os malfeitores. Eles não     tardam por aí, creio eu. Vamos já, minha mãe. Está     me parecendo que dali, daquele mato traiçoeiro, um homem nos acomete,     ou um tiro nos vem ferir.

 

Cambaleante e trôpega, Florinda dera o andar arrimando se no ombro     da filha.

 

Que tens, Luizinha, que olhas horrorizada para aquela banda ? Fez te algum     dano o assassino ?

 

Não, nada me fez. Mas eu tenho medo destes lugares. Nunca mais virei     buscar água aqui.

 

Conta me tudo, Luisinha. Como te livraste do malfeitor? Quem era ele? Não     o conheceste? Seria o Cabeleira ?

 

Não sei, minha mãe. Estava já tão escuro quando     ele apareceu… Sei porém, que ele se compadeceu de mim.

 

Estás dizendo a verdade, Luisinha ?

 

Sim, minha mãe, ele não me ofendeu. Dando mostras de estar     arrependido, fugiu logo depois, e não voltou mais.

 

Malvado ! ? disse Florinda. Que pancada me deu ele! Pôe a mão     em minha fonte. Vê como fiquei. Virgem Santíssima ! Não     sei como não me saltaram os miolos. Mas… ampara me bem, que     uma nova perturbação me vem tirar os sentidos. Ampara me, senão     caio. Não posso andar mais.

 

Temos de feito andado muito, minha mãe, e deve estar cansada.

 

Luísa, novamente aflita, volvendo os olhos em torno de si, viu, a     poucas braças, uma sombra imóvel que brilhou aos seus olhos     como um astro de proteção e conforto.

 

Estavam salvas. Era a casa de Liberato.

 

 

 

A casa de Liberato estava situada dentro do cercado que, beirando o rio em     linha reta, de norte a sul, ia morrer na mata virgem, limite natural das terras     pertencentes à engenhoca. Era fraca de construção, mas     podia considerar se uma verdadeira casa de campo por sua bonita aparência,     pela vista que tinha para todos os lados, pelo alpendre circular e pelo meio     peitoril de madeira que não contribuía pouco para a sua rústica     elegância.

 

A pequena distancia tinham sido edificadas três casas menores e menos     vistosas do que a primeira. Em uma destas morava o genro, nas outras duas     os filhos do crioulo. Nos fundos do cercado via se outra casinha que na forma     arremedava a casa grande. Pertencia a Gabriel que, à sombra do irmão,     aí vivia com sua mulher e filhos, na paz do Senhor.

 

Sem ter escravos nem dispor de grandes meios pecuniários, com o auxílio     de Gabriel, Sebastião, Ricardo e Vicente, plantava canas, fazia roçados     e vazantes, e, no tempo próprio, fabricava açúcar e rapaduras,     desfilava aguardente, e desmanchava mandioca que lhe dava farinha para todo     o ano.

 

Viviam em perfeito acordo aquele pai, aquele irmão, aqueles filhos,     aquele genro, cada um com sua mulher e seus filhos, e todos dando os mais     bonitos exemplos, que se conhecem, de união, auxílio mútuo,     recíproco respeito e comum felicidade.

 

Na engenhoca ficaram todos ignorando o verdadeiro motivo da jornada à     mata. Liberato, para maior segurança dos seus desígnios, havia     recomendado aos companheiros o mais rigoroso segredo. E como tinham eles por     costume caçar pacas e tatus uma vez por outra,.quando fazia luar e     o tempo estava enxuto, não houve quem duvidasse da palavra dos caçadores.     Quando, porém, se soube do acontecido por boca de Luísa, e pelo     vestígio da atrocidade que Florinda trazia na face, a qual bem estava     dizendo donde havia procedido, a inquietação e o susto vieram     tomar o lugar ao sono e ao repouso a que se achavam entregues os habitantes     da engenhoca.

 

Raiou finalmente o dia longamente suspirado pelos que da meia noite até     o amanhecer não haviam tido olhos para dormir, mas para chorar.

 

O sol espargiu a luz suave sobre o sertão, e com ela despertou a natureza.     Inspirando as aves, colorindo os campos, e permitindo ver no espelho sereno     das águas do Tapacurá o belo céu que nele se refletia     com os seus esplêndidos matizes, essa luz vivificadora restituiu ao     deserto o movimento e a vida que as trevas tinham ocultado debaixo de seu     espesso véu.

 

Com a tornada do dia, ressurgiu em todos a confiança, só não     em Luísa, que via próximo o termo da vida de sua mãe     privada novamente do uso da fala por lhe haver voltado a congestão.

 

Chegou a hora do almoço, a do jantar, e finalmente escureceu de novo     sem que os caçadores houvesse volvido a seus lares. Então a     consternação tornou se geral e verdadeiramente cruel.

 

As famílias reuniram se todas na casa grande para se protegerem em     caso de perigo que logo tiveram por iminente.

 

Três dias se passaram nessa aflição que se não     pode descrever mas que facilmente se imagina.

 

Rosalina pensou de uma vez em ir pedir socorro no povoado, mas a quem ? O     capitão mor achava se no Recife, e o povoado, que um século     antes constava de uma capela dedicada a Santo Antão, e de meia dúzia     de casas, pouco mais era do que isto na época em que se passou esta     história; precisava também de proteção.

 

De sua agonia a veio tirar um caboclo velho, que morava no caminho do povoado,     em terras da engenhoca, e que era o estafeta do lugar. Vivia só em     uma palhoça à beira da estrada. Chamava se Matias mas era mais     conhecido pela alcunha de Veado, a qual se originara de ser ele muito ágil     e andador.

 

Matias, achando se sem fumo para o cachimbo, dirigiu se à casa grande     no pressuposto de encontrar aí o Liberato que uma vez por outra lhe     dava do melhor que tinha alguns pedaços para seu gasto. Só então     soube do que havia, e logo se ofereceu para ir dar com o crioulo a quem devia     muitas obrigações e respeito. Havendo Rosalinda aceitado o oferecimento,     Matias voltou à choupana a buscar uma espingarda velha, e um minuto     depois estava no rasto dos caçadores.

 

Antes de transpor os limites da fazenda, viu ele para as bandas do Monte     das Tabocas um bando de urubus esvoaçando como costumam quando sentem     carniça. Seria alguma rês morta o objeto da inspeção     dessas aves? Talvez fosse. A seca estava fazendo no gado vítimas aos     centos.

 

O Veado porém, naturalmente suspeitoso, acreditou logo que estava     ali o cadáver de Liberato ou de alguns dos seus.

 

Para ir ter à grota sobre a qual se libravam os urubus, não     era preciso entrar a mata, mas unicamente contorná la pelo lado oposto     ao rio. O terreno apresentava desse lado um vasto tabuleiro, e depois ia gradualmente     alteando até à grota, que se interpunha entre o tabuleiro e     a mata, formando um fosso natural que protegia o couto. Só quem tivesse     grande coragem, e fosse perfeito conhecedor dos acidentes do solo, se animaria     a arriscar o pé no profundo despenhadeiro.

 

Matias em pouco tempo atravessou toda a planície e chegou à     borda do abismo. Cheiro de carnes putrefatas feriu lhe logo o olfato agudíssimo     que sentia, à distancia, o quati, o veado, a anta, e até a cobra.

 

De cima nada pôde ver, porque do fundo do vale e das encostas da montanha     se levantava uma vegetação secular cuja folhagem basta e enredada     parecia destinada a conservar perpetuamente oculta às vistas do homem     a escusa região. O cheiro da carne corruta porém foi um indício,     um raio de luz para o índio que, havendo tomado a peito descobrir a     verdade, estava no propósito de não hesitar, para o conseguir,     diante da perda da própria vida.

 

A seus pés mostrava se um sulco deixado no terreno pelas águas     que, descendo ao longo do estreito espinhaço, aqui se escoavam para     o tabuleiro, ali para,dentro do precipício. Por ele se encaminhou Matias,     arrimando se na espingarda, e com ela rompendo a custo os cipós que     formavam diante de sua passagem uma rede quase inexplicável.

 

Passou se uma hora. O sol chegou ao poente. Veio o lusco fusco, e com ele     aumentaram as tristezas, os medos e as agonias das mulheres recolhidas na     casa grande.

 

Rosalina, tendo posto todos os cães da banda de fora, e fechado todas     as portas da casa, abriu o seu tosco oratório, e convidou as outras     ao terço tradicional, agora mais do que nunca necessário para     fortalecer os espíritos abatidos.

 

Florinda estava expirando. Ao lado dela achava se Luísa, desfeita     em lágrimas, e Aninha que ajudava a enferma a morrer. A porta do aposento     inteiramente aberta deixava ver as outras mulheres de joelhos na sala, aos     pés do oratório, cantando as rezas que constituem o terço,     essa parte do culto externo que, depois de longamente usada em quase todo     o Norte, desapareceu das capitais, e já não tem no próprio     interior das províncias a prática geral a que em grande parte     se deve referir o adoçamento dos costumes dessas povoações     antes de haverem sido dotadas com as escolas e com os institutos de educação     que atualmente as disputam à ignorância com mais vigor e proveito.

 

De súbito o ladrar dos cães veio interromper o concerto das     vozes femininas que enchiam o âmbito da sala, e iam repercurtir no vasto     pátio. O ladrar aumentou, e com ele tornou se mais distinto, mais próximo,     ao princípio um estrupido de passos, depois um ruído de vozes     surdas do lado de fora da habitação.

 

Nesta a alegria e a aflição, a primeira quando se lhes afigurou     que os caçadores chegavam, a segunda quando, em lugar destes, pensavam     serem os malfeitores que as vinham assaltar, disputaram um instante em violenta     porfia os espíritos das pobres mulheres naturalmente expostas, pelas     suas circunstâncias especiais, a estas cruéis alternativas.

 

Depressa porém se dissiparam todas as dúvidas. Com fúria     indômita, os cães deram mostras de querer despedaçar os     visitantes. Semelhante indício foi uma prova evidente de que, não     de casa, mas estranhos eram estes.

 

De repente ouviu se uma voz que, ecoando no terreiro, veio ressoar dentro     de casa:

 

Aqui estou. Sou eu.

 

Era a voz de Matias.

 

Rosalina, ébria de violenta alegria, correu à porta para a     abrir, mas logo sobresteve a este novo falar do caboclo:

 

Não digo, não digo isto, ainda que me matem.

 

Dize que abre a porta, senão te varo com esta faca, Veado do demo     disse Joaquim a meia voz.

 

Não digo repetiu o caboclo.

 

E alteando a voz, trêmula e como abafada, gritou com toda a força     que pôde:

 

Não abram, não abram. Eu trouxe os malvados enganados até     aqui para poder avisá la, sinhá Rosalina. Liberato, Ricardo,     Sebastião e Vicente são com Deus. Fujam, se podem, que eu sei     que morro.

 

Ah ! miserável, que nos iludiste vociferou Joaquim.

 

E com a faca atravessou incontinenti o coração de Matias que,     sem soltar um ai, caiu envolto em um turbilhão de sangue.

 

Não é sem grande constrangimento, leitor, que a minha pena,     molhada em tinta, graças a Deus, e não em sangue, descreve cenas     de estranho canibalismo como as que nesta história se lêem. Aperta     me naturalmente o coração sempre que me vejo obrigado a relatá     las. Entre os motivos da minha repugnância e da minha tristeza sobressai     o seguinte: Eu vejo nestes horrores e desgraças a prova, infelizmente     irrecusável, de que o ente por excelência, a criatura fadada,     como nenhuma outra, para altíssimos fins, pode cair na abjeção     mais profunda, se o afastam dos seus sumos destinos circunstâncias de     tempo e lugar que, nada, ou muito pouco valendo por si mesmas, são     de grande peso para a perturbação do equilíbrio moral     do rei da criação, tal é a fragilidade da realeza, ou     antes das realezas humanas. Mas desgraçadamente estas cenas não     são geradas pela minha fantasia. São fatos acontecidos há     pouco mais de um século. Se só alguns deles foram recolhidos     pela história, quase todos pertencem à tradição     que nô los legou, antes como límpido espelho, que como tenebrosa     notícia do passado. Não estou imaginando, estou, sim, recordando;     e recordar é instruir, e quase sempre moralizar. Com estas razões     considero me justificado aos teus olhos, leitor benévolo.

 

Gritos, queixumes, imprecações e prantos que nenhuma pena humana     pode descrever seguiram se, de dentro da casa, às últimas palavras     do Veado.

 

Teresa, mulher de Vicente, abraçou se com Rosalina, menos madrasta     do que mãe, e começou a carpir com ela a desgraça comum,     dando mostras de ter enlouquecido. Não se demoraram a imitá     las nas demonstrações de dor e desespero Josefa, mulher de Ricardo,     e Candida, mulher de Sebastião.

 

Da sua angústia, para a qual será difícil encontrar     paralelo na história das desgraças humanas, vieram tirá     las uma fortíssima pancada contra a porta, e estas formais palavras     de Joaquim:

 

Se não abrem por bem, hão de abrir por mal.

 

Quando for tempo de tocar fogo na capuaba, é só dizer, Joaquim     acrescentou Manuel Corisco.

 

Querem queimar a casa, Rosalinda disse Candida Estamos perdidas, minha gente.     Meu Deus, meu Deus, socorrei nos.

 

Rosalina poderia ter vinte anos. Suas formas eram arredondadas, os cabelos     crespos e negros, os olhos admiravelmente fendidos, a boca impossível     de descrever se, porque exprimia graça, volúpia soberba e desdém     ao mesmo tempo. Era o tipo da mulata ardente, caprichosa, cheia de vivacidade     e energia, tipo que está destinado a desaparecer dentre nós     com o correr dos anos, mas que há de ser sempre objeto de tradições     muito especiais no seio da sociedade brasileira, pelo muito que tem figurado     no campo, na cidade e no lar.

 

Sim, querem tocar fogo na casa para nos obrigarem a sair. Mas não     sairemos disse Rosalina com firmeza.

 

E acrescentou sem demora:

 

Sair para onde ? Os nossos maridos desapareceram para sempre dentre os nossos     braços. Não temos mais quem olhe por nós neste mundo     de amarguras e misérias. Somos cinco desgraçadas a quem a vida     já não pode oferecer prazer nem sossego, mas só desgostos     e lágrimas. Não, Candida, não sairemos daqui.

 

Mas que faremos, Rosalina ?

 

Que faremos ! Pois você ainda pergunta ?

 

Sim, porque os malvados estão aí, e é tempo de tomarmos     a nossa resolução. Está tomada respondeu Rosalina. Morreremos,     e não nos entregaremos aos malvados.

 

Meu Deus ! meu Deus ! exclamou Teresa.

 

Não, não, Rosalina acrescentou Josefa. Vamos ver se nos salvamos.

 

Se nos salvamos !... disse a mulata com ironia e desdém. Não     ouves os malfeitores bateram na porta ?

 

Mas então... balbuciou Teresa.

 

Morreremos todas, Teresa, morreremos todas, mas com honra, ao pé     deste oratório gritou Rosalina com tal energia e decisão que     nenhuma das outras se animou a proferir uma palavra sequer contra a sua sentença     de morte.

 

Para dar o exemplo, a mulata caiu de joelhos diante do santuário,     tendo no rosto a serenidade que faz belos o venerandos os mártires,     os verdadeiros mártires.

 

Teresa foi a primeira que imitou sua madrasta, e as outras não se     demoraram a acompanhar Teresa. Quem poderia resistir à heróica     decisão de Rosalina inspirada no sentimento da honra, e na oração     ?

 

Abrem, ou não abrem ? perguntou nesse ínterim de fora Joaquim     impaciente.

 

A resposta que a esta pergunta deram as mulheres foi o continuarem o terço     alguns minutos antes interrompido, resposta que há de perdurar nas     tradições populares, como um traço característico     da firmeza e do valor das gentes do Norte naqueles tempos de grandeza de animo     que raro aparece hoje.

 

Ah ! estão rezando. Fogo, Manuel Corisco. fogo, Mulatinho, fogo,     Trovão !

 

De repente um clarão afogueado inundou o terreiro, e indicou que a     ordem do capitão do bando ia ser prontamente executada.

 

Depressa, depressa gritou Joaquim.

 

Enquanto o diabo esfrega um olho, o mocambo fica torrado, e as caiporinhas     são nossas respondeu José Trovão, chegando a chama do     seu facho a um montão de cangalhas, tripeças, gamelas e outros     objetos encontrados no alpendre, e que ele havia apinhado de propósito,     para servirem de combustíveis, ao pé das quatro janelas da casa.

 

Esta operação reproduziu se na porta fronteira, nas portas     e janelas laterais, no peitoril de madeira e nas toscas colunas que sustentavam     de espaço a espaço o telheiro do alpendre.

 

Quando o espírito racional ultrapassa os limites que o separam dos     instintos da fera; quando o homem deixa atrás de si, na sua marcha     descendente, o animal cerval que bebe o sangue por natural fatalidade a que     não pode resistir, não raro figura de protagonista de dramas     que, como este, enlutam a história e envergonham a humanidade.

 

A porta principal tinha sido respeitada. Diante dela estendeu se E,elo chão,     formando se em semicírculo, o bando dos salteadores, os quais ao espetáculo     das chamas que do peitoril passando às paredes e destas à coberta,     envolveram em poucos momentos a casa e formaram uma só chama, uma fogueira,     única, gigantesca e medonha, só tinham infames graçolas     e indecentes insultos para as vítimas. Sujos, maltrapilhos, nas mãos     as facas nuas e os bacamartes sinistros, semelhavam, ao clarão da fogueira     imensa, uma legião de demônios que só as crepitantes labaredas     separavam dos anjos.

 

Quando se resolverem a não morrer assadas na coivara, como lagartixas,     abram a porta e saiam sem susto que não havemos de brigar disse Joaquim.

 

O estalido da madeira, do barro, das telhas abafou em poucos momentos as     vozes das mulheres.

 

Que fazem, que não saem logo ? perguntou o Mulatinho depois de alguns     minutos de espera infrutífera.

 

Venham para fora, raparigas acrescentou o Trovão.

 

Ainda bem não tinha preferido estas palavras, quando a frente da casa     vinha abaixo, atirando torrões abrasados contra as feras que, afrontando     o pudor com expressões obscenas, assistiam, ébrios de ferocidade,     à medonha representação.

 

Parece me que as caiporinhas se escaparam disse Joaquim.

 

A esta voz todos os malfeitores correram à porta principal sobre cujos     portais descansavam uns restos de caibros incendiados.

 

Descarregando então os coices dos bacamartes sobre a porta, fizeram     na em pedaços, e invadiram o estreito espaço aonde as chamas     ainda não haviam chegado.

 

Ao mesmo tempo um grito, a que melhor se chamara o eco de uma angústia     longamente recalcada e de súbito desprendida, dominando o estrondear     do incêndio, veio ressoar no pátio.

 

Minha mãe, minha mãe não morrerá no fogo !

 

Então viu se uma cena horrivelmente bela. Luísa, saltando por     cima da caliça e dos enxaiméis abrasados, ganhava o pátio     com Florinda nas costas, semelhando uma visão ígnea, fantástica     e sobrenatural.

 

Os malvados, sem se podarem governar, voltaram um passo atrás, não     tanto pela estranha e fugitiva aparição, como principalmente     por verem no lugar ocupado, havia pouco, por aquelas contra cujo pudor a sua     brutal concupiscência se aguçava, pequenos troncos carbonizados     em torno da mesa sobre a qual ardia nesse momento última imagem.

 

Diabo ! bradaram com raiva concentrada os algozes, mais dignos de compaixão     do que as vítimas.

 

Todas mortas ! acrescentou o Mulatinho com uns longes de pesar que acusava     a malograda e lasciva esperança.

 

Só nos resta uma disse o Trovão, correndo em busca de Luísa,     que havia caído quase sem sentidos no terreiro junto ao cadáver     de Matias.

 

Cá está ela. São duas, são duas.

 

Esta é minha exclamou o Trovão, acercando se de Florinda para     assenhorear se dela.

 

Trovão do diabo ! exclamou o Mulatinho com indescritível expressão.     Não vês que é uma defunta.

 

Florinda estava na realidade morta.

 

Resta me a outra.

 

A outra ? Não vês que o Joaquim já a tem em seus braços     ?

 

Há de ser minha, custe o que custar redarguiu o negro.

 

A outra é minha disse um terceiro a cuja voz estremeceram irresistivelmente     os dois bandidos.

 

Era o Cabeleira.

 

A casa de Liberato estava situada dentro do cercado que, beirando o rio em     linha reta, de norte a sul, ia morrer na mata virgem, limite natural das terras     pertencentes à engenhoca. Era fraca de construção, mas     podia considerar se uma verdadeira casa de campo por sua bonita aparência,     pela vista que tinha para todos os lados, pelo alpendre circular e pelo meio     peitoril de madeira que não contribuía pouco para a sua rústica     elegância.

 

A pequena distancia tinham sido edificadas três casas menores e menos     vistosas do que a primeira. Em uma destas morava o genro, nas outras duas     os filhos do crioulo. Nos fundos do cercado via se outra casinha que na forma     arremedava a casa grande. Pertencia a Gabriel que, à sombra do irmão,     aí vivia com sua mulher e filhos, na paz do Senhor.

 

Sem ter escravos nem dispor de grandes meios pecuniários, com o auxílio     de Gabriel, Sebastião, Ricardo e Vicente, plantava canas, fazia roçados     e vazantes, e, no tempo próprio, fabricava açúcar e rapaduras,     desfilava aguardente, e desmanchava mandioca que lhe dava farinha para todo     o ano.

 

Viviam em perfeito acordo aquele pai, aquele irmão, aqueles filhos,     aquele genro, cada um com sua mulher e seus filhos, e todos dando os mais     bonitos exemplos, que se conhecem, de união, auxílio mútuo,     recíproco respeito e comum felicidade.

 

Na engenhoca ficaram todos ignorando o verdadeiro motivo da jornada à     mata. Liberato, para maior segurança dos seus desígnios, havia     recomendado aos companheiros o mais rigoroso segredo. E como tinham eles por     costume caçar pacas e tatus uma vez por outra,.quando fazia luar e     o tempo estava enxuto, não houve quem duvidasse da palavra dos caçadores.     Quando, porém, se soube do acontecido por boca de Luísa, e pelo     vestígio da atrocidade que Florinda trazia na face, a qual bem estava     dizendo donde havia procedido, a inquietação e o susto vieram     tomar o lugar ao sono e ao repouso a que se achavam entregues os habitantes     da engenhoca.

 

Raiou finalmente o dia longamente suspirado pelos que da meia noite até     o amanhecer não haviam tido olhos para dormir, mas para chorar.

 

O sol espargiu a luz suave sobre o sertão, e com ela despertou a natureza.     Inspirando as aves, colorindo os campos, e permitindo ver no espelho sereno     das águas do Tapacurá o belo céu que nele se refletia     com os seus esplêndidos matizes, essa luz vivificadora restituiu ao     deserto o movimento e a vida que as trevas tinham ocultado debaixo de seu     espesso véu.

 

Com a tornada do dia, ressurgiu em todos a confiança, só não     em Luísa, que via próximo o termo da vida de sua mãe     privada novamente do uso da fala por lhe haver voltado a congestão.

 

Chegou a hora do almoço, a do jantar, e finalmente escureceu de novo     sem que os caçadores houvesse volvido a seus lares. Então a     consternação tornou se geral e verdadeiramente cruel.

 

As famílias reuniram se todas na casa grande para se protegerem em     caso de perigo que logo tiveram por iminente.

 

Três dias se passaram nessa aflição que se não     pode descrever mas que facilmente se imagina.

 

Rosalina pensou de uma vez em ir pedir socorro no povoado, mas a quem ? O     capitão mor achava se no Recife, e o povoado, que um século     antes constava de uma capela dedicada a Santo Antão, e de meia dúzia     de casas, pouco mais era do que isto na época em que se passou esta     história; preciepresentação.

 

Parece me que as caiporinhas se escaparam disse Joaquim.

 

A esta voz todos os malfeitores correram à porta principal sobre cujos     portais descansavam uns restos de caibros incendiados.

 

Descarregando então os coices dos bacamartes sobre a porta, fizeram     na em pedaços, e invadiram o estreito espaço aonde as chamas     ainda não haviam chegado.

 

Ao mesmo tempo um grito, a que melhor se chamara o eco de uma angústia     longamente recalcada e de súbito desprendida, dominando o estrondear     do incêndio, veio ressoar no pátio.

 

Minha mãe, minha mãe não morrerá no fogo !

 

Então viu se uma cena horrivelmente bela. Luísa, saltando por     cima da caliça e dos enxaiméis abrasados, ganhava o pátio     com Florinda nas costas, semelhando uma visão ígnea, fantástica     e sobrenatural.

 

Os malvados, sem se podarem governar, voltaram um passo atrás, não     tanto pela estranha e fugitiva aparição, como principalmente     por verem no lugar ocupado, havia pouco, por aquelas contra cujo pudor a sua     brutal concupiscência se aguçava, pequenos troncos carbonizados     em torno da mesa sobre a qual ardia nesse momento última imagem.

 

Diabo ! bradaram com raiva concentrada os algozes, mais dignos de compaixão     do que as vítimas.

 

Todas mortas ! acrescentou o Mulatinho com uns longes de pesar que acusava     a malograda e lasciva esperança.

 

Só nos resta uma disse o Trovão, correndo em busca de Luísa,     que havia caído quase sem sentidos no terreiro junto ao cadáver     de Matias.

 

Cá está ela. São duas, são duas.

 

Esta é minha exclamou o Trovão, acercando se de Florinda para     assenhorear se dela.

 

Trovão do diabo ! exclamou o Mulatinho com indescritível expressão.     Não vês que é uma defunta.

 

Florinda estava na realidade morta.

 

Resta me a outra.

 

A outra ? Não vês que o Joaquim já a tem em seus braços     ?

 

Há de ser minha, custe o que custar redarguiu o negro.

 

A outra é minha disse um terceiro a cuja voz estremeceram irresistivelmente     os dois bandidos.

 

Era o Cabeleira.

 

 

 

Profunda revolução se havia operado durante uma noite no íntimo     do bandido.

 

Quando ele chegou ao couto, estava já resolvido o assalto à     família de Liberato, a qual por se achar mais próxima do que     qualquer outra, estava no caso de merecer as honras da prioridade na provação.

 

Cabeleira não deu mostras de que aprovava, ou reprovava semelhante     resolução.

 

Seu animo, ordinariamente prestes para toda sorte de temeridades e investidas,     mostrava se agora frio diante do assentado acometimento. Viração     suavíssima passara por cima do férvido charco das suas paixões,     e deixara, se não purificadas, decerto quietas as águas que     aí se enovelavam turvas e lodosas. Essas águas nunca jamais     viriam a ter a limpidez do regato que se desliza em manhã de verão,     por cima de prateadas areias; podiam, porém, perder o lodo e os vermes     que se geram e alimentam em pútridos pântanos; podiam tornar     se mansas, como as dos lagos, azuis como as dos golfos.

 

A princípio os companheiros do bandido atribuíram o seu silêncio,     a sua tristeza e a sua abstração aos ferimentos recebidos na     luta.

 

Mas mudaram de opinião tanto que o viram pegar da viola, seu instrumento     querido que, não só a ele, mas também a todos os do couto     proporcionava, nas mãos do inspirado tocador' momentos de prazer e     consolação.

 

Era de tarde. Os bandidos tomaram por uma vereda que ia ter à borda     da grota aonde chegava levemente a aragem do tabuleiro, donde se descortinava     o vasto sertão opresso e abrasado.

 

Aos sons da viola puseram se uns a cantar, outros a dançar, como brincam     saltando as crianças nas campinas.

 

De repente Manuel Corisco fez sinal para que se calassem.

 

Estou vendo ali embaixo um homem que vem na direção da grata     disse ele aos camaradas.

 

Você não se engana, Manuel. Ele vem tomando chegada tão     gacheiro e amedrontado, que não pode ser amigo nosso.

 

Os salteadores tinham razão, porque o desconhecido era Matias.

 

Um deles quis imediatamente estendê lo por terra com um tiro do seu     bacamarte. Assentaram porém ocultar se a fim de verem primeiramente     o que pretendia.

 

Quando Matias desapareceu por um lado, segundo já dissemos, os malfeitores     sumiram se pelo lado oposto, pé ante pé, na embocadura do profundo     abismo.

 

Tinha o Cabeleira avançado já alguns passos após os     companheiros, quando uma idéia súbita, atuando sobre sua vontade     por modo irresistível, o fez sobressaltar se. Ele se lembrara de que     se os companheiros conseguissem apoderar se do desconhecido, não o     deixariam com vida. Mas o bandido sentia se naquele momento tão pouco     disposto a contribuir para a morte de um homem que não pode acabar     consigo que voltasse à beira da grota

 

Se eu quisesse, esse desconhecido não morreria disse de si para si.     Mas não. Se não vou ajudar os outros a lhe tirarem a vida, também     não o irei salvar.

 

O lodo tinha já desaparecido da superfície do charco imundo     que ele trazia no coração; restava, porém, ainda no fundo,     como se vê a vasa corruta e pestilencial.

 

Para que Matias declarasse o fim que o levava àquele ponto, preciso     foi primeiro que o ligassem com cipós a um tronco, e batessem nele     sem piedade. Suplício atroz e cobarde que o índio sofreu com     estóica resignação característica de sua raça.

 

Então dizes, ou não dizes a que vieste, Veado do inferno ?     perguntara Joaquim.

 

Vim em procura daqueles que ali estão para os urubus comerem respondera     o velho.

 

Até que enfim deste com a língua nos dentes.

 

Quiseste primeiramente provar o cipó de rego.

 

Mas não nos dirás quem foi que te mandou a isso ?

 

Quem me mandou ! Tive pena dequelas mulheres que choravam por seus maridos,     e larguei me a ver se os encontrava.

 

Tiveste pena das mulheres, hein ? Maganão! Havemos de lá ir     hoje de noite para também termos pena como tu tiveste.

 

Elas não serão tolas que apareçam a qualquer que lá     chegue retorquiu Matias com segunda tenção.

 

Mas a ti abriram elas a porta, velho mandigueiro.

 

Para mim hão de ter sempre franca a sua casa, porque sabem que eu     sou incapaz de as ofender.

 

Então, se lá formos, não nos deixarão entrar     ? perguntou Joaquim.

 

Matias, depois de um momento de reflexão, respondeu:

 

Só se forem comigo.

 

Pois está dito. Iremos contigo disse o Mulatinho.

 

Mas tu irás amarrado, bem amarrado, jia de lagoa acrescentou José     Trovão.

 

Como quiserem, contanto que ão me matem no caminho.

 

Se nos facilitares a entrada, podes ter por certo que não haverá     quem se atreva a tocar te em um cabelo sequer. Bem sabes que não precisamos     do auxílio de pessoa alguma para tomarmos conta de uma casa onde só     há mulheres choronas observou Joaquim. Mas sempre é melhor entrar     sem fazer barulho para não dar que falar à vizinhança.

 

Era quase noite, e já a lua espargia a luz suave por sobre a solidão,     quando se acharam novamente na beira do despenhadeiro. Segundo um plano assentado     entre eles, quatro seguiram com Matias pelo lado por onde havia descido, enquanto     os outros, subindo pelo lado oposto, se dirigiram ao esconderijo a fim de     se proverem dos instrumentos necessários para o assalto. Os primeiros     esperariam pelos últimos na boca da mata para, reunidos, seguirem a     seu destino.

 

No momento em que os malfeitores tomaram a direção da engenhoca,     um cavaleiro, que entrara na mata por secretos atalhos, fora dar com o Cabeleira     em seu retiro. Era o Teodósio.

 

Arrumem as trouxas, e mudem de acampamento.

 

Foram estas as suas primeiras palavras.

 

Donde vens tu ? Que diabo tens, Teodósio ?

 

Vem aí soldados que nem terra.

 

Quem te contou semelhante coisa ?

 

Eu que sei. O governador está comendo fogo pelo que fizemos na noite     da procissão.

 

Ora !… Pois que venham. Hão de saber para quanto presto. Nunca     torci a cara a homem nenhum, e não morro de careta, como sagüi.

 

Eu também não tenho medo deles disse o cabra. Mas é     bom a gente estar prevenido para não cair no mundéu como bicho     do mato.

 

O Teodósio unicamente suspeitava o que dizia estar para acontecer.     Fino, matreiro, como era, facilmente previra que não ficaria sem punição     o crime que haviam eles cometido na vila.

 

Ora, Teodósio ! redargüiu José com mostras de fazer pouco     do que lhe dizia o camarada. Eu, por ser bicho do mato, é que não     hei de cair no mundéu. Olha tu: enquanto houver mata virgem por esse     mundão de meu Deus, podem eles mandar contra mim os soldados que quiserem,     que não me apanham, ainda que sejam tantos como formigas. Não     me hão de ver nem a fumaça.

 

Não digo menos disso respondeu Teodósio.

 

Eu sou cabra mesmo danado prosseguiu Cabeleira. Quem se engana comigo é     porque quer. Meto a unha no chão, e entro nooco do mundo para nunca     mais ninguém me por o olho em cima. As matas de Serinhaém, Água     Preta, Goitá, Goiana, Paraíba, Rio Grande aí estão     bem fresquinhas para esconderem em seu seio a onça pintada. É:     bom que não me assanhem. Se o governador duvidar do meu sério,     sou capaz de me largar daqui, pi,pi, até à vila, e lá     mesmo vou mostrar lhe com quantos paus se faz jangada.

 

Pois afia bem a tua faca, e escorva de novo o teu bacamarte, que o trovão     não tarda a roncar. Eu nunca deixei de trazer a faca e o bacamarte     prontinhos para o serviço. Quem quiser, venha ver.

 

Está bom. Até já disse o Teodósio, despedindo     se para sair.

 

Aonde vais ? perguntou lhe o Cabeleira.

 

Tenho cá uma idéia. Vou passar pela porta do capitão     mor.

 

O capitão mor está na vila ? disse José.

 

Não, senhor, está aí. Veio antes de mim, que não     me escapou. Vou passar me pela porta, e tirar conversa com algum soldado bisonho     que aí se ache de serviço a fim dever se pesco notícia     que nos oriente.

 

Não é mau o que queres fazer. Mas, olha bem, não caias     em alguma ratoeira.

 

Macaco velho não mete mão em cumbuca respondeu Teodósio,     preparando se para montar novamente.

 

Faço te companhia até o cercado da engenhoca do defunto Liberato     acudiu o Cabeleira.

 

E saltou sobre a garupa do cavalo que Teodósio pôs a passo pela     vereda secreta que ia dar na via pública.

 

Uê ! exclamou Teodósio, voltando se para o companheiro a fim     de melhor saber dele a verdade. Pois morreu o Liberato, tão amigo nosso,     que nunca nos faltou com jerimum, canas e criação ?

 

Ele era camarada, é verdade. Mas meteu lhe na cabeça que havia     de tirar nos o couro, e há três dias veio bulir conosco.

 

Que estás dizendo ?

 

Não só ele, mas também os filhos e o bom do genro.

 

Foi a sua derradeira deles, hein ?

 

É verdade. O Zé Rufino, que o negro fora convidar para o ajudar     na tragédia que tinha ideado contra nós, correu logo a dar nos     parte de tudo ainda em tempo. Quando os cabras apareceram, encontraram gente.     Fizemos o bonito em poucas horas. Estão todos dentro do grotão.

 

E que vais tu ver à engenhoca ?

 

Vou reunir me com os outros que lá estão fazendo uma das suas.     Mas onde arranjaste tu este quartau passeiro e passarinheiro que se vai derretendo     na estrada depois da grande caminhada que traz da vila ?

 

Falta aí engenho onde se vá buscar um animalzinho fora de     horas para a gente fazer sua viagem? Pois então vai logo pondo de olho     alguns outros para fazermos a nossa mudança se a tropa vier perseguiu     nos.

 

Amanhã pela manhã teremos um lote, e poderemos meter terra     em meio antes que o tropão bata por cá.

 

Tinham deixado a vereda e achando se já na estrada que, fazendo pouco     adiante um ângulo, seguia em linha mais ou menos reta até o povoado.

 

Ao passarem por baixo de uma pitombeira que no ângulo apontado agitava     no ar a sua copa gigantesca, súbito ruído espantou o cavalo     que por um triz não tirou o cabresto da mão do Teodósio.     Com o violento arranco, partiu se a cilha da cangalha, e os dois cavaleiros     vieram à terra.

 

Diabo ! exclamou o Teodósio contrariado e perturbado. Foi alguma     coruja que abalou da pitombeira.

 

Não se havia partido só a cilha, mas também a armação     da cangalha.

 

Sabes que mais, Teodósio ? Acho melhor que não vás     ao povoado.

 

Por que não ?

 

A cilha partida, a cangalha arrebentada, tudo me parece aviso para que não     faças a viagem disse o Cabeleira.

 

Estou já em outro acordo. Deixo te o cavalo e vou a pé. Este     cavalo é que me está encaiporando.

 

Enquanto o Teodósio seguia pela beira do rio, o Cabeleira, que havia     tomado a direção da engenhoca, dava a volta do caminho, e descobria     a casa envolta em chamas cujo clarão sinistro iluminava a estendida     solidão. Em breves instantes achava se entre os companheiros, e cortava,     como vimos" a porfia do Trovão e do Mulatinho sobre a posse de     Luísa.

 

Luisinha ! exclamou o bandido. Tu me pertences.

 

Que dizes, Zé Gomes ? interrogou Joaquim sem poder bem compreender     o que ouvirá ao filho, que lhe pareceu alucinado.

 

Digo o que é. Houve tempo em que juramos, eu e ela, pertencer nos     na mocidade. Chegou a ocasião.

 

Atreves te a falar me em juramento ! Não sabes o que estás     dizendo. Esta mulher é minha, e quem for homem que se meta a vir tomar     ma.

 

Ainda bem não havia proferido estas palavras quando o Cabeleira puxava     da faca dando mostras de querer ferir com ela o seu interlocutor.

 

Zé Gomes, olha bem o que dizes ! redargüiu Joaquim. Teu pai     ?

 

Não tenho pai; só tenho mãe que me ensinou o caminho     do bem; pai nunca tive nem tenho. Não é meu pai aquele que só     me ensinou a roubar e a matar.

 

Zé Gomes, olha bem o que dizes! redargüiu Joaquim, medindo o     filho com olhar ameaçador e terrível.

 

Já lhe disse retorquiu o mancebo sobreexcitado pela oposição     do velho, ao qual se atirou com fúria brutal para lhe arrancar das     mãos os pulsos de Luísa. afogada em prantos e soluços.

 

Joaquim resistiu. Outros malfeitores reuniram se em torno daquelas duas hienas     que ameaçavam despedaçar se mutuamente. Mas não houve     um só dentre tantos que tentasse compor os discordes.

 

Cabeleira brandiu enfim a faca contra o velho.

 

Neste momento voz chorosa e soluçada ressoou na solidão. Foi     a voz de Luísa.

 

Cabeleira disse ela , terás animo para ferir teu pai ?!

 

O braço do bandido descaiu incontinente como se aquela voz lhe tivesse     cortado os músculos atléticos.

 

Meu pai! exclamou o desgraçado. Um pai não toma a mulher de     seu filho. Mas já que o queres, fica te com ela acrescentou voltando     se para Joaquim. Cabeleira vai desaparecer para sempre, e sem o seu auxílio     hão de cair nas mãos da justiça todos os que me cercam.     A tropa aí vem.

 

A tropa ! gritaram os malfeitores sobressaltados, olhando uns para os outros,     e todos para a solidão que, ao declinar do incêndio, retomava     seu aspecto equívoco e medonho.

 

Tendo assim falado, Cabeleira deu o andar na direção da estrada.     Seu espírito estava abatido, seu coração despedaçado     pelo golpe cruel que lhe havia vibrado a desgraça.

 

Então Luísa, vendo assim perdido o último raio de esperança,     que ainda a guiava no meio das trevas do seu infortúnio, exclamou:

 

Meu Deus, meu Deus, que será de mim ?

 

Joaquim entretanto tinha se atravessado diante do Cabeleira. Todo assassino     é cobarde.

 

Por que nos queres deixar ? perguntou ele ao filho. No momento em que mais     precisamos de ti, é que tu nos desamparas ? Não sejas mau, Zé     Gomes. Eu te perdôo a desobediência, e te restituo a mulher. Fujamos     todos.

 

Cabeleira atirou se a Luísa, e tomou a nos braços com frenesi     de alucinado.

 

Volvendo um instante depois os olhos ao redor, não viu um só     sequer dos companheiros. Penetrados de pânico terror, todos tinham corrido,     sem exceção de Joaquim, a ocultar se na mata.

 

Vamos, Luisinha disse o bandido à moça, com ternura. Ninguém     a ofenderá, ninguém.

 

E minha mãe ?! soluçou Luísa caindo, que a eternidade     se ia meter entre ela e Florinda, e que sobre a terra estava tudo acabado     para ela.

 

O bandido conchegou a ao peito e abafou lhe as últimas palavras com     um beijo.

 

 

 

Que valeu a Luísa ter-se libertado das mãos de Joaquim, se     o Cabeleira a prendia em seus braços possantes e atléticos ?

 

Solte-me, solte-me disse a moça ao bandido.

 

Quer ficar aqui ? Não a deixarei só.

 

Não se importe comigo. Siga seu pai, que eu irei para minha casa.     Não preciso da companhia de ninguém.

 

Com esforços sobre humanos Luísa tentou libertar-se das suas     prisões. Foram inúteis esses esforços.

 

Se não me soltar, há de ver-me cair morta a seus pés.

 

Ela tinha podido apoderar-se do facão do malfeitor, e o voltava contra     si mesma.

 

O Cabeleira parou, e soltou-a.

 

Que pretende você fazer, Luisinha? Não tem pai, não     tem mãe, não tem quem por si olhe. Para onde quer ir ?

 

Quero matar-me aos pés de minha mãe.

 

Isso nunca.

 

Sem esforço nem luta ele a desarmou em um momento.

 

Depois perguntou, com a voz mais branda do mundo:

 

Matar-se por que, Luisinha ? Não se lembra que me prometeu ser minha     mulher quando um dia nos encontrássemos ?

 

Eu fiz esta promessa com uma condição, que você não     cumpriu.

 

Pois bem. Estou pronto a cumpri-la agora tornou ele com ternura.

 

Quer enganar-me, José ? Para que eu acreditasse em suas palavras     fora preciso não o ter visto levantar há pouco a faca para seu     pai.

 

É verdade; assim foi. Eu estava fora de mim respondeu com ar pesaroso     que indicava remorso, vergonha e arrependimento do feio ato que tinha praticado.     Mas que importa isso ? continuou ele. O tanto matar já me aborrece,     e eu quero mudar de vida.

 

Não creio, não posso crer no que você diz observou Luísa.

 

Nem se eu jurar ?

 

Eu sei !…

 

Que razão tem para duvidar tanto de mim, Luisinha ? Estou vendo que     você nunca me quis bem.

 

Eu é que posso dizer isso de você.

 

Se eu não lhe quisesse bem, não a tinha deixado livre como     está. Se eu só a quisesse lograr como fazem com as outras, quem     me poderia impedir de realizar a minha vontade ? Ninguém.

 

Podia, e pode ainda matar-me, mas fazer isso, nunca, nunca. Só depois     de me haver tirado a vida.

 

Como se engana ! Assim o quisesse eu; mas não quero. Eu sei que você     me quer bem, e por isso não me vexo nem apresso.

 

Com os braços trêmulos o Cabeleira apertou Luísa novamente     contra o peito onde lhe ardia o coração em chamas de entranhado     amor.

 

Deixe-me, José. Aquela que você ofendeu, aquela que você     arrancou dentre os meus braços, dali o está vendo e amaldiçoando.

 

Perdoe-me, não me odeie, Luisinha, por sua bondade, e pelo muito     que nos queremos nos primeiros anos. Se eu a privei de sua mãe, estou     pronto a protegê-la de agora por diante. Pelo corpo de sua mãe,     juro que farei isso, Luisinha.

 

Jurará também que não há de tirar mais a vida     de ninguém, ainda que seja de um passarinho ?

 

O bandido refletiu um momento.

 

E se me quiserem matar ? perguntou depois.

 

Fugirá respondeu Luísa.

 

E se não puder fugir?

 

Eu quero que você jure, Cabeleira, que em caso nenhum derramará     mais sangue sobre a terra, ouviu ? Se não for assim, tudo estará     acabado entre nós.

 

Pois bem, Luisinha. Eu juro. O malvado será de hoje em diante homem     de bem.

 

Luísa fitou-o como um anjo deve fitar um demônio que promete     ser anjo. O Cabeleira, porém, não lhe deu tempo para grande     contemplação, porque de chofre a tomou pela terceira vez nos     braços febris, e desapareceu com ela no meio da escuridão.

 

Saltar ao cavalo, vencer o vasto pátio, galgar a cerca, e, em vez     de ir em demanda da mata, voltar ao rio e descer pela margem esquerda na direção     do norte, foi obra de um instante para o destemido sicário. Luísa     deixou-se conduzir em silêncio ao meio do fatal desconhecido.

 

Ainda bem não tinham vencido uma milha na veloz corrida, quando o     Cabeleira descobria uma cinta escura que se desenhava e movia, como nuvem     de tormenta, no confuso horizonte. Seu primeiro cuidado, ao ver aquela visão     aterradora, foi afastar-se da margem, e meter-se em um alagadiço que     ficava a alguma distancia do rio. Com a grande seca o brejo estava em pó,     e a poderosa vegetação aquática reduzida a raras touças     que mal encobriam uma pessoa sentada.

 

Esperemos aqui, Luisinha, que passe a tropa que vai para o povoado.

 

Luísa conheceu que estavam em perigo, e não fez a menor oposição.     Atravessando o cavalo diante de si, acomodaram-se ambos de pé, do melhor     modo que puderam, Luísa a rezar como costumava nos momentos arriscados,     Cabeleira observando em profundo silêncio, através da escuridão     da noite, a mata que aparecia, como gigantesca e estendida mole, do lado oposto     da planície deserta e medonha.

 

O mancebo não se enganara. Era de feito uma tropa que vinha em busca     dos salteadores.

 

Os pelotões encaminharam-se para as embocaduras das veredas. Não     havia mais que duvidar. O segredo da encoberta estava no poder da justiça.

 

Estão perdidos disse o Cabeleira comovido. Se foram tomadas as saídas     que ficam do lado do poente, nenhum se salvará.

 

Como impelido por força irresistível, o Cabeleira deu o andar     para o mato.

 

Que vai você fazer? perguntou-lhe a moça com inquietação,     atravessando-se na frente dele.

 

Não se assuste, Luisinha. Vou defendê-los.

 

Diga antes que vai morrer.

 

Não, o que eu vou fazer é matar gente sem piedade acudiu o     bandido.

 

Matar gente ! repetiu Luísa. Que valeu então o juramento que     fez há pouco ?

 

Ah ! disse ele, caindo em si. É verdade, Luisinha. Mas que quer que     eu faça ? Pois não hei de ir ajudar os meus a saírem     da tribulação em que se acham ?

 

Eles são muitos e valentes respondeu Luísa; podem bem dispensar     o seu adjutório. Demais, você não pertence mais a eles,     mas a mim, a mim só; ouviu, José ?

 

Sim, eu sou seu, Luisinha; eu pertenço a você pelo coração,     pelo amor.

 

Ouvindo estas palavras, ela inclinou ao chão seus olhos mais belos     que as estrelas que brilhavam no céu.

 

Mas, você fez bem em lembrar o juramento que há pouco fiz prosseguiu     o Cabeleira. Eu não podia ver meus companheiros em perigo sem correr     para junto deles a defendê-los. Se não fosse você, Luisinha,     eu já não estava aqui. Mas agora me lembro: saiamos sem demora,     que talvez seja ainda tempo de os salvar por outro meio.

 

Em menos de um instante acharam-se montados no cavalo que o bandido pos a     galope em direitura ao rio.

 

Para onde vamos nós ? perguntou Luísa, agarrando-se, sobressaltada,     ao destemido matador.

 

Aonde me leva você, José ?

 

Não fale, Luisinha, não fale, que pelas suas palavras podem     vir sobre nós.

 

Nesse momento a detonação de alguns tiros e as vozes de um     clarim, pregoeiro de não sei que operação militar, indicaram     que a força tinha dado com os bandidos, e que qualquer aviso para que     fugissem seria inútil.

 

É tarde disse o Cabeleira. Já não é possível     a salvação. Mas hão de Ter-me ao pé de si na sua     derradeira exclamou, saltando do cavalo abaixo e dando mostras de querer correr     ao lugar do perigo.

 

Cabeleira ! exclamou Luísa penetrada de terror. Você terá     animo de desamparar-me neste deserto ? Não, não há de     fazer isso comigo. Veja que eu sou hoje só no mundo.

 

O bandido parou incontinenti. Estas palavras foram grilhões que o     prenderam aos pos da adolescente.

 

Tem razão, Luisinha.

 

Fujamos sem perda de tempo acrescentou ela.

 

Nesse momento uma das escoltas saía da mata.

 

Grande vitória tinha sido ganha pelas armas reais contra os destruidores     da propriedade, honra e vida de inofensivas povoações.

 

Inúmeras partidas militares já tinham sido expedidas contra     os malfeitores sem resultado.

 

Pouco depois do canibalismo perpetrado no primeiro domingo de dezembro de     1773 na ponte do Recife, o governador Manuel da Cunha de Meneses fizera seguir     contra eles uma força considerável.

 

Esta força chegou a Afogados alguns minutos depois da retirada dos     autores da desordem; e daí não passou, por não ter sido     possível, apesar das mais minuciosas indagações, saber     o rumo que haviam tomado os criminosos.

 

O Timóteo, cuja taverna foi varejada, declarou unicamente que eles     tinham de feito estanciado aí, mas que se haviam retirado sem lhe dizerem     para onde. Não houve promessas nem ameaças bastantes a obter     dele declaração mais formal e menos lacônica do que esta.

 

Tempos depois novas partidas foram mandadas a ver se se conseguia o fim desejado.

 

Tanto a que seguiu ao norte, como a que seguiu ao sul, bateram matos, atravessaram     rios cheios, empregaram enfim os maiores esforços inutilmente. Em mais     de um lugar, ou de um pouso encontraram vestígios da recente passagem     dos bandidos, ou da sua ação destruidora e fatal, mas nunca     lhes foi possível dar com os três personagem, tipos legendários     que todos conheciam pelos seus tristes feitos, que todos tinham visto, a quem     quase todos tinham pago pesado tributo, mas que iludiam a vigilância     e zombavam dos esforços de todos, sem exceção do poder     público. Nuvem miraculosa envolvia-os, ocultava-os, aos olhos da justiça     e da lei, que tem em toda parte vistas penetrantes e perscrutadoras a que     ninguém se encobre por muito tempo. Nos seus tenebrosos antros saboreavam     o corrosivo prazer que proporciona o roubo e a impunidade. Esta animava-os     à prática de novos crimes, e expunha ao público descrédito     à administração menos digna de temer-se, ao parecer deles,     do que o particular que muitas vezes resistia, defendendo a sua propriedade,     e na defesa e resistência os feria, embora tivesse de cair aos golpes     descarregados por eles com tal firmeza, que nunca deixou de ser fatal.

 

Cunha de Meneses, convicto da ineficácia dos seus esforços     contra os quais se levantava, além da audácia e cinismo dos     malfeitores, um tríplice embaraço que mais do que estes contrastava     aqueles esforços a falta de população, de tropas e de     estradas , embaraço que era favorecido indiretamente pela indiferença     dos mais fortes, e diretamente pelo temor da maior parte dos moradores, renunciou     ao empenho, que por muito tempo alimentou de reivindicar os foros da administração     assim afrontados diária e ostensivamente pelos sobreditos malfeitores.

 

Com esta mudança de resolução coincidiu a sua promoção     ao lugar de governador da Bahia. Em 31 de agosto de 1774 entregava ele a José     César de Meneses, a quem já nos referimos, as rédeas     do governo de Pemambuco, então, como ainda hoje, difíceis de     sopesar.

 

José César teve de voltar a sua atenção para     a guerra com a Espanha; e quatro meses depois de haver tomado conta do governo,     fez partir para a Colônia do Sacramento, então novamente no poder     dos espanhóis, bem como os fortes brasileiros de S. Miguel, Santa Teresa     e S. Pedro do Rio Grande do Sul, um regimento de infantaria.

 

Em 1776 tinham seguido do Recife para aquela colônia cerca de 1100     pernambucanos.

 

A guerra seguiu-se a peste, e à peste a fome como vimos.

 

Quando se achava assim a braços com este tríplice flagelo,     teve ciência de que diferentes ambulâncias que, em parte às     custas do régio erário, e em parte às custas dos negociantes     mais ricos da vila haviam sido expedidas por ordem sua para os pontos onde     o mal se manifestava com maior intensidade, tinham caído nas mãos     dos salteadores.

 

O governador mal pôde dominar a sua cólera, e na prática     íntima com os que tinham muito lugar diante dele, declarou que daquele     momento em diante o principal empenho do governo ficava sendo dar cabo dos     criminosos que devastavam a província.

 

Desgraçadamente faleciam-lhe gente e dinheiro para pôr por obra     este louvável empenho. A terrível epidemia tinha desolado povoações     inteiras.

 

A fome continuava a gerar os males que em toda parte são seus companheiros     naturais e inevitáveis.

 

A seca desvastava ainda o interior da província como chama que irrompe     do seio da terra, e tudo abrasa e destrói.

 

Mas José César era ativo, enérgico, esforçado     e de grandes espíritos. Confiava no poder da autoridade, e tinha por     certo que havia de restaurar a tranqüilidade e a segurança privadas,     e restabelecer o domínio das leis.

 

Enfim, depois de haver pensado com madureza sobre o grave assunto, deu ordem     a seu secretário para que impedisse em seu nome aos capitães     mores de Iguaraçu, Itamaracá, Várzea, S. Lourenço,     Santo Antão, Tracunhaém, Nossa Senhora da Luz, Jaboatão,     Muriboca, Cabo, Ipojuca e Serinhaém a circular seguinte:

 

"Ordena o Sr. Governador e capitão general que, para um negócio     que entende altamente com a paz pública, se ache vm. no dia oito do     corrente mês, pelas nove horas da manhã, neste palácio,     onde se há de celebrar junta a fim de tratar-se do mesmo negócio.

 

Vm. fará igual aviso aos coronéis das ordenanças que     houver em seu distrito".

 

No dia designado acharam-se presentes onze capitães mores e outros     tantos coronéis.

 

Depois do almoço, durante o qual lhes disse, explicou e particularizou     todo o seu pensamento, convidou-os o governador a chegarem até aos     paços do senado da câmara de Olinda.

 

Uma galeota, que estava às ordens em uma das rampas do palácio,     os recebeu e os conduziu à capital ilustre.

 

A sessão da junta foi secreta.

 

Todos presumiram que a fome e a peste eram os motivos principais da reunião,     mas dificilmente conciliaram esses motivos, que estavam no público     domínio, com o sigilo que se guardou durante a sessão, e continuou     a ser mantido depois do seu encerramento.

 

Seguiram-se, como é fácil imaginar, diferentes versões     e fizeram-se longos e variados comentários.

 

Falou-se de guerra no exterior, de geral recrutamento, e de novos impostos.

 

Veio logo a pelo lembrar igual ajuntamento que se verificou em 1727, sob     o governo de Duarte Sodré Pereira, e o imposto decretado nessa ocasião     pelo dito ajuntamento, imposto calculado em 1 milhão e 50 mil cruzados,     que se tornou efetivo em vinte anos, e foi destinado a ocorrer aos gastos     com o casamento dos príncipes de Portugal.

 

Cuidou-se em opor à forçada contribuição, caso     viesse a verificar-se, a resistência que naquele tempo apresentaram     os povos da ribeira de S. Francisco.Mas passaram-se dias e semanas sem que     ato algum público, oficial, ou simples revelação particular     viesse confirmar as suspeitas. A deliberação continuou trancada     debaixo dos selos do mais rigoroso segredo.

 

Uma manhã um batalhão de infantaria, devidamente municiado,     moveu-se, e pôs-se em ordem de marcha na direção do sul.

 

Este batalhão fez alto em Afogados.

 

Temos guerra gritaram os meticulosos pelos ângulos da vila.

 

Alguns parasitas, plantas conhecidas e existentes em todas as regiões,     mas muito mais abundantes nas regiões oficiais, ou governativas, correram     ao palácio a verem se podiam, pelos meios que sabe a astúcia     pérfida e servil, inferir das palavras de José César,     ditas na intimidade, o destino a que se dirigia a coluna militar, inesperadamente     posta em armas e a caminho. O semblante do governador, porém, semelhava     uma superfície plana; não apresentava uma só roga que     pudesse trair oculto desgosto, ou indicar grave apreensão. Se da fronte     passavam a estudar as palavras de José César, não descobriam     no sentido destas menos discrição e reserva do que tinham encontrado     na expressão daquela. Os lábios do governador guardavam com     a severidade da disciplina militar e das práticas do governo naqueles     tempos silêncio absoluto a respeito do acontecimento que preocupava     os grandes e o popular.

 

A curiosidade pública mostrou-se dentro em pouco ainda mais excitada     com certas notícias trazidas do interior pelos boiadeiros, almocreves     e estafetas. Em todos os distritos, por ordem dos respectivos capitães     mores, de acordo com os coronéis de ordenanças, se tinham levantado     milícias locais que evidentemente se aprestavam para um fim de grande     importancia, a julgar pelas aparências.

 

Das sedes de alguns desses distritos já os destacamentos haviam marchado     para certos e determinados pontos que os informantes não sabiam dizer.

 

Enfim, tendo reunido todos estes elementos de duvidar e de decidir, e os     tendo pesado na balança da crítica, arte ou ciência comum     a todas as sociedades ainda as que se acham no estado mais rudimentar, julgou-se     o publico autorizado a afirmar que se tratava de efetuar uma diligência     de alta monta, para a qual tinham de concorrer simultaneamente as diferentes     forças locais, de combinação com algum destacamento da     capital.

 

 

 

Antes de se haver movido da capital o destacamento que foi estacionar em     Afogados, grande confusão dominara nos espíritos dos habitantes     desta localidade.

 

Foi o caso que pelas oito horas da noite, pouco mais ou menos, dois vultos     se tinham ido colocar defronte da taberna do Timóteo.

 

A alguns fregueses e freqüentadores do taberneiro causou reparo o misterioso     par que ninguém se animou a ir reconhecer, não obstante a todos     parecer ele equívoco e digno de recear-se.

 

Não se podia confiar no tempo, principalmente nos lugares afastados     da vila.

 

Roubos e assassinatos repetiam-se a cada canto. Na própria capital     os habitantes não tinham por seguras nem sua propriedade nem sua vida.     Por isso, qualquer sujeito duvidoso suscitava, com razão, desconfianças     e medos nos homens pacíficos que por interesse próprio se apartavam     sem demora dos pontos onde tais sujeitos apareciam ou podiam aparecer.

 

Quem menos se inquietou com os desconhecidos foi o Timóteo que, acostumado     a tratar, de instante a instante por assim dizermos, com essa espécie     de gente, se considerava fora de todo risco ainda quando este se desenhasse,     como em certas ocasiões, com as mais vivas e medonhas cores. A seu     parecer, de indivíduos tais só tinha ele que esperar favor e     proteção, visto que, sendo sua taberna ponto obrigado das relações     da capital com o centro, quer fosse de dia quer de noite, assim de inverno     como de verão, tinham eles, como ele próprio, grande interesse,     se não maior do que ele tinha, em conservar, defender, amparar esse     poderoso ponto de apoio para os seus dolos, violências e infames ciladas     de que era vítima o matuto simplório, o sertanejo de boa fé,     o mascate, enfim quem quer que passava por aquela infernal estância.

 

Apontavam-se no lugar outras tabernas, das quais algumas tinham à     sua frente patrões mais hábeis do que o Timóteo; a do     velho, porém, mestre no mister como nenhum outro, tinha fama extensa,     quase geral na província. Era uma taberna tradicional por ter servido     muitas vezes de teatro a cenas de sangue e morte.

 

Pelas festas de arraial, o jogo, a crápula aí se praticavam     com prejuízo considerável da ordem pública, da fortuna     particular, do sossego e honra das famílias.

 

Estas circunstâncias, este passado davam-lhe certo prestígio     que atraía para o imundo balcão, ou para a lôbrega camarinha     da tasca o vicioso por hábito, o filho da viúva, a rapariga     infeliz, os quais iam encontrar debaixo das quatro telhas do casebre largo     campo onde dar expansão a suas paixões reprovadas.

 

Quando algum freqüentador, exaltado pela cachaça, ameaçava     esfaquear o vendeiro por alguma das suas, respondia ele, abrindo a camisa,     e mostrando o largo peito coberto de espessos e avermelhados pelos:

 

Pode fazer do peito do velho Timóteo bainha da sua faca. Já     bebeu a minha aguardente, não será para admirar que queira agora     dar meu sangue a seu cachorro magro. Mas de uma coisa tenha você certeza;     ainda que me mate, ainda que me esfole, não passa o gadanho no meu     zimbo. Poderá comer mais sardinhas, chupar do meu vinho, mas de dinheiro     nem ceitil há de cair na sua unha.

 

Timóteo dizia a verdade. Ele tinha todo o seu haver amoedado em lugar     só dele conhecido.

 

Ficara só no mundo depois da morte da Chica, e entesourava sem destino     o que ilicitamente adquiria. Seus únicos companheiros de casa eram     um cão e dois gatos. Estes últimos comiam com ele à mesa,     quase no mesmo prato, e, para bem dizermos, dormiam na mesma cama.

 

Por isso, quando viu os misteriosos vultos parados defronte da taberna; quando     os viu mais tarde dirigir-se para esta no momento em que ele ia fechar as     portas por se haver de uma vez retirado a freguesia do dia, disse Timóteo     com a maior fleuma:

 

Podem entrar sem susto, que o Timóteo é amigo.

 

Os desconhecidos ganharam de um pulo a tasca, e trataram de fechar as portas.

 

Fazem bem disse-lhes o vendeiro, sem se dar por achado. O tempo não     está para graças. Mas se vosmecês estão aqui de     emboscada a algum tonante, será bom deixarem aberta esta janelinha     da porta.

 

Não estamos de emboscada a ninguém, porque quem queríamos     já está seguro disse um deles, trancando com a taramela a janelinha     indicada.

 

Ah ! Já sei. Querem cear comigo. Não ponho dúvida.

 

Os desconhecidos entreolharam-se como se se consultassem.

 

Não façam cerimônia, camaradas. Naquela mesinha, que     ali vêem, muito fidalgo tem feito a sua refeição. Tirem     os capotes, se querem estar à vontade; e esperem um momento que não     há demora.

 

Sem esperar resposta, o velho tomou o interior do casebre, e voltou logo,     trazendo pães, postas de peixe frito, e uma cuia com farinha.

 

Então ? Que fazem ? Vão sentando-se, e toca a comer.

 

Não esperem por mim, que sou de casa e não tenho etiquetas.

 

E entrou novamente, manifestando, pela prontidão com que tratava de     pôr a ceia, a melhor vontade de ser agradável aos entranhos hóspedes.

 

Não eram estes no todo simpáticos, mas também não     eram mal encarados

 

O que representava ser mais moço era seco de corpo, tinha boa estatura,     cor fula, olhos cintilantes e redondos, cabelo chegado ao casco. O nariz um     pouco rombo estava em desarmonia com as outras partes da cara onde se lia     uma expressão de audácia, que respondia bem à agilidade     do corpo.

 

O outro era feio de feições, baixote e roliço. A cor,     o ângulo facial, o cabelo carapinha estavam claramente denunciando a     sua proveniência africana.

 

Por baixo dos capotes, já velhos, cingia-lhe os rins um cinto de couro     donde a cada um pendia uma espada de ponta direita. Eram as espadas as únicas     armas que traziam à vista. Sentaram-se à mesa sem tirar os chapéus     de palha com que estavam cobertos.

 

Vinho ou cachaça ? perguntou o velho, apontando, de volta, na porta,     com uma penca de bananas que lhe vinham caindo das mãos de maduras.

 

Vinho disse o mais moço.

 

Traga da cana para mim acrescentou o outro.

 

Muito bem respondeu Timóteo. Olhem: o pão é da padaria     do Zé Braga, o peixe é do viveiro do Muniz, a farinha é     de Muribeca, e as bananas são do meu quintal. A cachaça é     do engenho Mendonça, e o vinho é puro de Lisboa.

 

No fim da ceia, que as reiteradas libações prolongaram, e que     correu animada, por mais de um dito, um gracejo, uma sentença licenciosa,     o Timóteo dirigiu estas palavras aos hóspedes:

 

Não está má esta. Dei-lhes da minha ceia sem saber     quem são vosmecês. Agora, os seus semblantes, se não me     falta a memória, não me são de todo estranhos.

 

Assim deve ser disse o cabra. Mais de uma vez tenho comprado aqui o meu     vintém de aguardente.

 

Isto é outro cantar; já vejo que somos conhecidos velhos.

 

Tão conhecidos somos, seu Timóteo replicou o cabra , que tomo     a liberdade de o convidar para um passeio agora mesmo por esta estrada afora.

 

Nossa Senhora da Paz livre-me tal disse Timóteo empalidecendo. Sair     a esta hora, por este tempo, deixar a minha casa à revelia, Santo Deus!     Nem pensem nisto, meus bons amigos.

 

Não tem que recear, meu caro. Cada um de nós traz, como vê,     uma espada à cinta, e a sabe manejar.

 

Bem estou vendo disse Timóteo. Mas sempre lhes quero dizer: o crioulo     Gabriel sabia muito bem jogar a espada, e melhor a faca, mas o Cabeleira o     lambeu.

 

Ah ! o Cabeleira? disse o negro.

 

Sim, senhor; ele aparece por aqui às vezes; eu o tenho visto fazer     proezas de espantar.

 

Seu Timóteo disse o cabra, levantando-se , fez bem em falar no Cabeleira.     Eu quero perguntar ao senhor uma coisa…

 

Antes que terminasse a sua oração fez-lhe um sinal o negro,     e ele disfarçou por este modo:

 

Mas é já tarde, e nós não podemos demorar mais.     Vem ou não vem ?

 

Para onde, senhor ? perguntou o vendeiro, levantando-se aterrado por haver     finalmente compreendido que tinha diante dos olhos dois inimigos.

 

Saberá depois. O essencial é que nos acompanhe.

 

Não posso fazer tal coisa.

 

Timóteo recuou instintivamente quando ouviu as últimas palavras     do desconhecido. Este porém, em um instante o tinha segurado pelos     pulsos enquanto o negro lhe passava uma corda nos braços.

 

Como é que me fazem isto ? perguntou Timóteo Querem matar-me     ?

 

Não, senhor disse o cabra. Você há de chegar vivo, bem     vivo a seu destino, ainda que o Cabeleira se meta a tirá-lo das nossas     unhas, o que eu duvido.

 

E a minha venda ?

 

A sua venda fica aí; nós não a levamos.

 

Mas... roubam-me tudo, tudo.

 

Não tem você roubado a tanta gente ?

 

Ora ! Feche bem as portas, e avie-se que é tempo. Se não quer     ir pelos pés, irá amarrado como um porco.

 

Timóteo aceitou, contra vontade, já se vê, e por não     ter outro remédio a situação que lhe afigurou irrevogável.

 

Vista o seu gibão, que você vai ser apresentado a gente nobre.

 

Ah ! disse o vendeiro,respirando, mas não sem grande espanto, que     mal disfarçou.

 

Pouco depois os três convivas seguiam, a marcha batida, pela estrada     de Santo Antão. Tendo deixado a taberna, cujas chaves o Timóteo     levava consigo por permissão dos desconhecidos, haviam estes pouco     adiante entrado com ele no mato para tomarem dois cavalos que ali tinham deixado     ocultos. Em um deles montou o negro, e no outro montaram o cabra e o vendeiro,     este passado de medo, que o acaso não era para menos, aquele guardando-o     na garupa, e tendo uma faca nua na mão. Tomaram novamente a estrada,     e logo desapareceram como sombras fantásticas, no fundo da escuridão.

 

Conforme a deliberação tomada no senado da câmara pelo     governador, capitães mores e coronéis de ordenanças,     a busca dos malfeitores tinha de ser dada ao mesmo tempo nas matas dos respectivos     distritos.

 

Estes bandidos dissera o governador fazem-nos maior dano do que a fome,     a peste e a guerra. Matam a sangue frio, para roubarem a fazenda àquele     que pacificamente a ganhou com o suor do seu rosto. Penetram nas casas, nas     lojas, nos engenhos, nos próprios templos, e, tirando daí o     fruto da economia e o trabalho honesto e esforçado da propriedade alheia,     vão consumi-lo nas suas orgias e delírio. A sua passagem o pobre     não fica privado somente das suas migalhas; fica também privado     da sua honra, da honra das suas filhas; se se não atrevem a fazer hoje     o mesmo aos ricos e nobres, amanhã o farão, animados por um     longo passado para o qual não posso volver os olhos senão com     tristeza, porque ele diz que aos meus predecessores faltou animo para esmagar     a hidra do crime, ou que foram eles indiferentes aos males privados e publicados     que resultaram da sua impunidade dela. Não quero que o meu nome passe     à história de envolta com essa impunidade; há de passar     com o lustre da autoridade que se faz respeitada por cumprir com zelo e coragem     os seus deveres, entre os quais se conta o de castigar os delinquentes. Fio     que os senhores capitães mores e coronéis hão de auxiliar     a administração, que, nestes intuitos, não atende senão     à glória de sua majestade, que Deus guarde, e a paz e felicidade     dos povos. A falta de tropas será suprida pela criação     de milícias provisórias, e locais para o fim único de     acabar com os coutos dos facinorosos; e a de dinheiro sê pelo erário     régio, que segundo me autorizou sua majestade por carta firmada por     sua real mão, adiantará por empréstimo a quantia necessária     para a mantença dessas tropas até que de todo se tenham aniquilado     os coutos. O erário será ressarcido das quantias que houver     adiantado, por meio de um imposto que se lançará para o dito     fim sobre os povos dos distritos rurais, ou dos que ficam distantes desta     vila duas léguas, atendendo-se a que a estes o benefício da     extinção dos coutos ocasiona particular proveito.

 

Nenhum dos convocados teve que opor ao pensamento e vontade do governador,     conhecido como uma autoridade arbitrária. Todos, ao contrário,     votaram por estas idéias, certos de que se atendia por tais meios a     uma necessidade pública da maior magnitude. "José César     governou arbitrariamente, é verdade, diz um historiador, mas as suas     arbitrariedades raras vezes deixaram de ter um fundo de justiça. Na     punição dos delinqüentes foi infastigável".

 

Chegado a seu distrito, cada capitão mor tratou de levantar a milícia     volante, a qual foi formada dos indivíduos solteiros, maiores de vinte     e menores de quarenta anos, com exclusão somente daqueles que por si     dessem outrem.

 

Não foram poucas as dificuldades que tiveram de vencer para que se     formassem os contingentes, destinados a pacificar o interior.

 

Não sabendo o verdadeiro fim que se propunha a autoridade com a fundação     desses contingentes, suspeitaram os povos uma grande leva para fora da terra     para combater o estrangeiro. Mas os capitães mores conseguiram desvanecer     as suspeitas por meio de afirmações sob palavra de honra. Naqueles     tempos a palavra do homem equivalia a jurídica obrigação     ou a solene tratado, e a honra era digna e eficazmente representada por um     cabelo da barba. Hoje, as próprias palavras dos reis tornam atrás,     as convenções diplomáticas não passam de ciladas     internacionais, a honra tem-se refugiado nos retiros com medo da publicidade,     que a expõe a geral pouco caso.

 

Temos subido muito nas ciências, indústrias e artes, sem exceção     da arte de governar; mas, em ponto de honra, em virtudes cívicas, em     moral doméstica, a nossa decadência, impossível de recusar,     atesta que temos levado a obra da reformação além dos     limites pertinentes, e prova a necessidade de transplantarmos das ruínas     do passado, onde vicejam esquecidas, algumas plantas modestas, cujas flores     purificam o ar com seus perfumes, e cujos frutos formam sangue novo e são.

 

O capitão mor de Santo Antão, querendo avantajar-se aos outros,     antecipou-se nos meios de por a mão nos malfeitores.

 

Sabia ele das assíduas relações do Cabeleira com o velho     taberneiro, a princípio por mera suspeita, e posteriormente por informações     que tomou de agregados e ordenanças seus, alguns dos quais, de passagem     para o Recife, entravam na taberna, bebiam nela o seu grogue, e algumas vezes     até ali pernoitaram. No dia fatal, em que o famigerado bandido tirava     a vida aos dois meninos, passara por Afogados o capitão mor momentos     depois do dobrado delito.

 

O comércio ilícito do taberneiro, a sua má fama, as     suas estreitas ligações com sujeitos mal vistos de todos, principalmente     com o Cabeleira, deram-lhe a convicção de que qualquer diligência,     que tivesse por fim a prisão dos delinqüentes não poderia     surtir efeito se não fosse precedida da prisão do taberneiro.     Duas praças de sua confiança foram por ele encarregadas de levarem     o velho a sua presença sem que se soubesse para onde nem como ele fora.     Alexandre, o negro, e Valentim, o cabra que vimos ceando com Timóteo     e que por sobremesa o prenderam foram as tais praças; e a vista do     modo como se houveram, cabalmente justificaram a confiança do capitão     mor.

 

Ia amanhecendo quando os três cavaleiros se apearam na porta deste.

 

As casas do povoado estavam ainda fechadas, e ninguém os viu entrar;     o capitão mor que levara a noite em claro, à espera dos seus     comissários, foi abrir-lhes a porta em pessoa.

 

Timóteo, posto em confissão, negou tudo ao princípio,     saindo-se, com várias evasivas, das redes que lhe lançava o     capitão-mor, perito em interrogar.

 

Quando porém a sua vida ameaçada; quando formalmente se lhe     declarou que a sua morte seria inevitável se não auxiliasse     com lealdade a ação da justiça na busca dos criminosos;     quando o Alexandre de espada desembainhada, e o Valentim de faca na mão,     receberam do capitão mor ordem para infligir-lhe a pena última     dentro da capoeira próxima; quando se viu arrastado por eles ao teatro     onde se lhe destinara o trágico fim que horroriza todo homem a morte     natural, o instinto da própria conservação retomou ao     cálculo e às manhas do vendeiro os seus direitos. Confuso e     abatido, Timóteo aceitou o odioso papel que lhe foi distribuído     naquela grave representação em que importantes interesses e     muitas vidas iam correr iminente risco.

 

Timóteo conhecia todos aqueles lugares onde tinha andado na sua mocidade     em dias de feira de gado.

 

A seca que estava desvastando a província tinha-lhe proporcionado     ocasiões de conhecê-los melhor. A escassa farinha, os poucos     legumes e outros comestíveis que apareciam nas feiras gerais eram logo     comprados por atravessadores que os iam revender com usura no Recife. Nos     primeiros tempos Timóteo resignou-se a ver passar os produtos no poder     dos atravessadores; mas faltando-lhe esses produtos, não só     para os expor na sua taverna, senão também para o próprio     uso, tomara o acordo de ir pessoalmente um sábado por outro a Santo     Antão prover-se do necessário para a semana. Quando o Cabeleira     estava na mata, Timóteo ia ter com ele e lhe comprava por quase nada     o que muitas vezes tinha custado a vida do pobre roceiro, que deixava mulher     viúva e uma infinidade de filhos na orfandade.

 

Destarte estava ele senhor dos caminhos e carreiras que iam ter à     encoberta onde entrava com familiaridade, e donde saía como amigo.

 

Ele sabia que o Cabeleira se achava na terra por haver estado de passagem     na sua taverna, conforme vimos. De tudo informado, o capitão-mor aguardou     ansioso a noite seguinte, para dar começo à batida da mata.     Com o fim de iludir porém a vigilância dos assassinos e escusar     as suas suspeitas, mandou notificar as praças do contingente para que     se achassem em um ponto das matas do seu engenho, ao qual cada um devia dirigir-se     desacompanhado a fim de não dar na vista de quem quer que fosse.

 

Tanto que anoiteceu, o capitão mor deu ordem para que Valentim, Alexandre     e dez matutos experimentados se trepassem em árvores próximas     das quais pudessem observar o rumo que os malfeitores tomassem depois do escurecer.     Estas sentinelas perdidas deviam dar aviso à tropa que estava no engenho,     para que ela, guiada por Timóteo, corresse a tomar as entradas, e pudesse     prender os malfeitores em sua volta ao couto. Foi o que sucedeu. Quando Valentim     viu os ladrões tomarem, à boca da noite, pelo caminho da engenhoca,     desceu-se da pitombeira onde se trepara, montou no cavalo que tinha preso     de prevenção dentro de uma moita, e correu ao engenho. A tropa     moveu-se incontinenti, sob o imediato comando do capitão mor.

 

Dividida a metade dela em tantos piquetes quantas eram as picadas secretas,     tomou todas estas, e achou-se em condições de interceptar a     passagem daqueles para o ponto central. A outra metade, colocada a um lado     da mata a distancia conveniente, pôde acudir aqueles pontos logo que     o Valentim que depois do aviso havia voltado ao seu posto, foi informá-los     da volta dos malfeitores. Assim, acharam-se estes, quando voltaram da engenhoca,     entre duas colunas inimigas, às quais forçado foi entregarem-se,     quase todos com a morte. Ao Joaquim se poupou a vida, a fim de se cumprir     a determinação do governador, não só a respeito     dele, mas também do Cabeleira e do Teodósio para fins de alta     justiça.

 

Quando o Cabeleira se afastou com Luísa da beira do rio para o alagadiço,     o Valentim estava dando o seu segundo aviso, e eles puderam, por isso, escapar     à sua inspeção.

 

Tinha ele, porém, ouvido antes, de cima da pitombeira, o diálogo     do Cabeleira com o Teodósio, e sido causa do ruído que espantara     o cavalo deste último. Tinha visto aquele encaminhar-se à engenhoca,     o que o fizera acreditar que entre os malfeitores, que tinham de tornar, e     efetivamente tornaram à mata, se achava o famigerado bandido, alma     do couto, terror dos povos. Não lhe parecendo, por isso, necessário     vigiar o terrível salteador, que ele considerava seguro com os outros     na armadilha que lhes havia armado, consagrou-se todo a evitar que lhe escapasse     o Teodósio. E como queria ter grande parte na glória que resultasse     da extinção dos célebres assassinos, voltou sobre seus     passos à estrada, e encaminhou-se ao povoado.

 

Valentim era bravo como uma onça, e tinha deste animal a agilidade     e a destreza no mais alto grau. Confiava, não só nestes dotes     naturais, mas também na sua espada de ponta direita que muitas vitórias     já lhe havia proporcionado. Ele jogava com insigne habilidade esta     arma.

 

Pouco adiante ouviu vozes. Apressou os passos, e encontrou-se face a face     com o Teodósio, que, nada sabendo do que havia, demandava o couto.

 

Com ímpeto de fera botou-se a ele, não para vencê-lo     mas para matá-lo.

 

O seu gracejo é pesado, camarada disse o Teodósio, recuando     ante a brutal investida.

 

Valentim não graceja. Rende-te, cabra Teodósio; ou então     reza o ato de contrição, que esta é a tua derradeira.

 

Se eu trouxesse a minha espada, não lhe enjeitada o bote. E se quer     saber para quanto presta o cabra Teodósio, embainhe o seu ferro, e     vamos decidir da sorte pela faca.

 

Não estou para tuas parolas, cabra safado. Se não te entregas     já nas mãos do Valentim, que nunca escolheu armas para provar     que é homem, tiro-te o couro antes do amanhecer.

 

Teodósio, vendo aquela decisão ante a qual poucos ânimos,     talvez unicamente o do Cabeleira, deixariam de curvar-se; e conquanto nos     recursos do seu gênio astucioso que nunca o havia desamparado ainda     nos maiores apertos, respondeu com voz melíflua:

 

Não me mate, meu amo; o Teodósio rende-se.

 

No momento em que assim falava, o Valentim descarregou-lhe tamanha pranchada     na cara, que ele caiu redondamente no chão.

 

Quando voltou a si, tinha nos pulsos enrodilhada uma corda de couro cru,     em cuja ponta segurava o cabra.

 

Levanta-te, que quero olhar para a tua cara disse-lhe Valentim fustigando     o prisioneiro com a ponta da espada. Onde está a tua fama, cabra Teodósio     ?

 

Este não respondeu.

 

Súbita tristeza invadira-lhe o espírito ordinariamente expansivo     como o de uma criança.

 

Tinha ouvido tiros na mata, e conhecido que a situação era     mortal.

 

 

Ao amanhecer a região litoral da província desde Alagoas até     Paraíba estava separada do sertão por cordão sanitário     formado pelas milícias volantes dos diferentes distritos rurais.

 

Todas as matas compreendidas na zona que fica entre a costa e o sertão     foram batidas ao mesmo tempo.

 

Os piquetes que penetram nas de Serinhaém, Água Preta, Muribeca,     Merueira, S. Lourenço, Catucá, Iguaraçu, Goiana, Pau     d'Alho, Limoeiro, recolheram?se mais tarde às respectivas sedes, depois     de terem realizado importantes capturas.

 

Assassinos de profissão e de fama, que, protegidos pelas trevas da     noite e pelas sombras das selvas virgens, tinham horrorizado durante muitos     anos as povoações pacíficas, apareceram à luz     do dia, trazendo nos pulsos cordas e algemas que bem denotavam que a justiça     dos homens, reflexo ainda que pálido da justiça de Deus, cedo     ou tarde restaura os seus foros e faz?se respeitar como uma fatalidade reparadora.

 

O capitão?mor de Santo Antão, justamente vangloriado por ver     no seio de sua força o Joaquim e o Teodósio, cuja fama ofuscava     a de todos os criminosos, com exceção somente do Cabeleira,     seguiu imediatamente, à frente dela, para o Recife a apresentar?se     ao governador.

 

No caminho de Afogados reuniu?se ela com a força que, tendo aguardado     nesse lugar aquele dia, designado para a geral batida das matas, se movera     pela manhã em direitura às que lhe ficavam nos limites ocidentais.     As duas forças chegaram ao Recife formando uma só expedição     que foi recebida pelos habitantes com inequívocas demonstrações     de consideração e reconhecimento pelo relevante serviço     que haviam feito.

 

Tantos eram os crimes cometidos pelo Cabeleira, e estes crimes haviam sido     revestidos, na sua maior parte, de circunstâncias tão odiosas,     que, quando se divulgou que o afamado bandido tinha escapado às malhas     da rede da justiça, mostras de justo pesar vieram substituir?se nos     semblantes de todos à expressão do regozijo recente que havia     manifestado a população.

 

Com raras exceções, não se contava família, desde     o Recife até o alto sertão, a quem a pela, a faca ou o bacamarte     do terrível matador não houvesse roubado uma existencia querida.

 

Por isso, era ele o alvo em que todos haviam posto a mira, e perdê?lo     montava perder a diligência, ao parecer da maioria.

 

Alguns, não sem razão, mostravam?se receosos de que, quando     menos se esperasse, ele viesse forçar a cadeia do Recife onde tinham     sido postos a ferro os novos presos, e restituindo?lhes a liberdade de que     tão mau uso haviam feito, se pusesse com eles novamente em campo para     matar com maior ferocidade que dantes, roubar sem tréguas, incendiar     povoações, reduzir tudo a sangue, ossos e cinzas.

 

O governador entretanto mal podia conter a. sua satisfação     diante do resultado das providências que ele próprio havia indicado     para a extinção dos bandos dos criminosos que infestavam a província.     Ele conhecia melhor do que o povo e os figurões da vila e da capital,     as dificuldades, algumas delas invencíveis, que se atravessam naturalmente     diante de expedições semelhantes. Ele sabia que perseguir através     do deserto, para reduzi?los à prisão, homens que vivem como     as feras, e com elas, no seio de escusas brenhas, de regiões inóspitas     e desconhecidas, é empresa para grandes ânimos, raros em todos     os tempos e em todas as terras, máxime naquelas terras em que, como     em todo o Brasil então, o importante serviço da polícia     está por ser organizado, à míngua de pessoal apto para     isso, de recursos pecuniários, de vias de comunicação     interior, de prisões e de outros muitos elementos indispensáveis     a este grande mister.

 

A cadeia, que por poucas alterações passou há poucos     anos a fim de servir, como serve, para casa do júri e do tribunal da     relação, tinha sido dada por pronta pelo coronel de engenheiros     Costa Monteiro, à câmara nos fins de 1732, e preenchia todas     as condições de segurança pela sua solidez. Não     obstante, ordenou o governador que a sua guarda fosse confiada a forças     duplas que tornassem impossível qualquer tentativa de invasão     ou de arrombamento. As vizinhanças ofereciam o aspecto de uma praça     de armas, principalmente dos lados do norte e leste onde a vigilância     nunca seria demasiada, por oferecer o rio destes lados fácil e natural     acesso ao edifício.

 

As pessoas de sua intimidade que lhe manifestavam descontentamento por não     ter sido preso o Cabeleira, respondia o governador:

 

Há de chegar a sua vez. Confio muito em Cristóvão de     Holanda Cavalcanti que ainda não deixou de corresponder aos intuitos     do governo sempre que se trata do proveito da colônia.

 

Cristóvão de Holanda Cavalcanti, que trazia, como se vê,     o nome que seu pai, sargento das ordenanças, ilustrara por ocasião     da memorável Guerra dos Mascates, era o capitão?mor de Itamaracá,     e achava?se a esse tempo em Goiana.

 

Goiana pertencia então à jurisdição de Itamaracá,     que deixara de ser em 1763 capitania independente, por havê?la comprado     d. João V a José de Góis, para incorporá?la na     capitania de Pernambuco, vendida à coroa em 1716 pelo conde de Vimioso,     d. Francisco de Portugal, único genro de Duarte de Albuquerque Coelho,     4.° donatário de Pernambuco.

 

Era uma modesta povoação em 1636, quando os esforços     de Antônio Filipe Camarão que a defendeu com o valor que o caracterizava,     não foram bastantes a tolher que ela caísse no poder dos holandeses,     povo cheio de grandeza, e digno da admiração e do reconhecimento     dos pernambucanos. Tendo?se mudado em 1685 para esta povoação     a câmara da capitania de Itamaracá, passou ela por este fato     à categoria de vila. Em 1742 deu?lhe d. João V um ouvidor que     foi substituído em 1808 por um juiz de fora. A sua crescente prosperidade     foi parte para que pela lei provincial de 5 de maio de 1840 fosse elevada     à cidade.

 

De presente é Goiana a cidade pernambucana de mais nota, depois do     Recife, a capital, e de Olinda que figurou, com brilho e bizarria inexcedíveis     nos tempos coloniais.

 

Está em condições, não só de competir     com as primeiras cidades interiores do norte e do sul do Império, e     de se avantajar às capitais de algumas províncias que, por motivos     de alta conveniência deixamos de apontar aqui, mas até de rivalizar     com algumas cidades européias de que não pouco se fala nas narrações     de viagens.

 

E se não, vejamos.

 

Tem um paço municipal muito decente na rua Direita, e uma matriz e     mais oito templos que podem pertencer sem desaire a uma capital. Tem uma praça     de comércio, a qual se estende desde a rua chamada Portas de Roma (denominação     do tempo dos jesuítas) até ao Beco do Pavão, para não     dizermos até à rua do Meio, ou à rua do Rio.

 

Tem um teatro onde já tive ocasião de ver representar?se o     "D. César de Bazar", os "Dois Renegados", a "Corda     Sensível" e o "Judas em Sábado de Aleluia".

 

Tem cafés e bilhares, brinca o Carnaval pelo inverno, toma sorvetes     pelo verão, dá alguns saraus pelo Natal; enfim, para estar inteiramente     na moda, trata de iluminar?se a gás, de fundar uma biblioteca popular,     e tem já fundada uma loja maçônica, denominada Fraternidade     e Progresso, a qual tem prosperado notavelmente depois das últimas     excomunhões que o público sabe.

 

É uma cidade onde se pode viver com poucos meios, porque os habitantes     são hospitaleiros, os senhores de engenho fazem pingues presentes,     os negociantes vendem fiado e não executam os devedores.

 

É plana, limpa, elegante e espalhada. Dela não poderia dizer     Ampère o que disse de Goteborg, cidade da Suécia que tanto o     encantou de tarde com suas casas altas e regulares, quando o desiludiu pela     manhã sendo vista da torre da catedral, por não ser mais do     que uma rua.

 

Goiana, não só tem muitas ruas, mas também muitos becos,     verdade seja que alguns deles sem saída. Merecem particular apontamento     as suas casas brancas que lhe dão certos ares de novidade, ou de noivado,     ares que infundem indefinível alegria no espírito do hóspede.     Se este é lido, entrando em Goiana, logo sabe que não entrou     por engano em Saint Jean de Luz, ilustre cidade onde se celebrou por procuração     o casamento de Luís XIV com Maria Teresa de Espanha, e que, ao dizer     de um escritor, apresenta uma fisionomia sanguinária e bárbara,     em conseqüência do extravagante uso de pintarem de vermelho antigo     os batentes, as portas, as gelosias das suas habitações.

 

Há um provérbio espanhol que diz:

 

Quien no ha visto Sevilla No ha visto maravilha.

 

Teófilo Gautier pensa que mais justo fora que este provérbio     se aplicasse a Toledo, ou a Granada, do que a Sevilha, onde nada encontrou     particularmente maravilhoso, exceto a catedral.

 

O poeta sergipano, doutor Pedro de Calasans, que cedo foi arrebatado pelo     infortúnio e pela fatalidade às musas do norte, dizia outrora,     parodiando o provérbio espanhol:

 

Quem não ama Olinda, Não a viu ainda.

 

Assim será, assim é. Olinda semelha náiade gentil que     adormeceu sobre arrelvado morro os pés banhados pelo Atlântico,     a cabeça à sombra das mangueiras odoríferas.

 

Goiana, porém, tem também provérbio seu, e o seu provérbio     é de tal significação, que, na singeleza em que se expressa,     e de que o povo tem o segredo, insinua irresistíveis feitiços     a favor dela.

 

Vê tu, meu amigo, como são expressivas estas reticências     duvidosas, ambíguas, deliciosamente traidoras: Goiana……………….      Que a todos engana.

 

Eu não conheço nenhum tão expressivo na ordem dos rifões     populares.

 

O vocábulo enganar não tem nos nossos dicionários o     sentido que a inteligência rica e lúcida do povo goianista lhe     refere; tem somente a acepção ingrata que todos lhe sabemos.

 

Mas logo ao primeiro exame se vê que semelhante acepção     está muito distante da que a imaginação deste grande     povo liga ao sobredito verbo, quando emprega para exaltar o seu torrão     natal.

 

A palavra enganar, que faz parte do rifão, significa seduzir, cativar,     prender, mas seduzir com mil agrados irre

 

sistíveis; cativar com benignidade tão doce e fagueira, que     é impossível deixar de ficar dela escravo; prender com tantas     demonstrações afetuosas, com tamanha benquerença, que     em vez de buscar fugir, cada vez se sente o prisioneiro mais dese joso de     estar nessa suavíssima prisão, de não se desligar jamais     dos seus deliciosos grilhões.

 

Cristóvão de Holanda dirigira em pessoa, como haviam feito     todos os outros capitães?mores, o seu contingente na batida das matas     do seu distrito.

 

Não tendo porém encontrado o Cabeleira, mas somente ladrões     de cavalos e negros fugidos, recolheu?se à vila em paz com' a sua consciência,     é verdade, mas descontente de não ver coroados dos brilhantes     sucessos, que esperava, os seus esforços.

 

Não lhe custou pouco renunciar ao empenho de pôr nas cordas,     como dizia ele, o maior facinoroso que pisava em Pernambuco.

 

Era presunção geral que a ele caberia, mais dia menos dia,     a glória de prender o Cabeleira que dava mostras de consagrar particular     estimação às matas de Goitá, lugar em que nascera     e que, posto pertencia neste tempo a Santo Antão, ficava mais próximo     do engenho Petribu que era propriedade daquele capitão?mor; e pertencia     então a Goiana.

 

Mas o boato falso que correu a respeito da prisão do bandido pelo     capitão?mor de Santo Antão, desvaneceu toda a esperança     que Cristóvão de Holanda alimentava a semelhante respeito.

 

E que era feito do Cabeleira ?

 

Por onde andava ele quando seu nome corria por milhares de bocas um milhão     de vezes no dia; quando sua imagem enchia o pensamento de um povo que o considerava     um flagelo não menos fatal do que a peste e a fome que o reduziam à     dor extrema?

 

Dizia?se que o Cabeleira, vendo?se perseguido tão estendidamente,     tinha rompido, sem deixar traços da sua passagem como costumava, o     cordão sanitário, e se havia internado nos sertões de     Cimbres, ou de Pajeú, donde era impossível desentranhá?lo     por serem então, como são ainda hoje, quase de todo desconhecidos     esses medonhos sertões.

 

Dizia?se que, tomando para o norte, atravessara o Capibaribe e ganhara a     ribeira do Pilar do Taipu, na Paraíba, a qual muitas vezes percorrera,     tendo?a deixado coberta de cadáveres e ruínas.

 

Correram estes boatos e outros mais que com estes se pareciam.

 

O certo porém é que ninguém sabia do Cabeleira, ente     incompreensível que surgia de súbito da terra sem ser esperado,     e pela mesma forma desaparecia, como se se metesse por ela adentro, por partes     do demo, segundo alguns acreditavam, ou por ter em toda a parte parciais,     ou protetores, segundo pensavam outros que se diziam melhor informados do     que os primeiros.

 

 

 

O Cabeleira entretanto atravessava matos, riachos e tabuleiros por novos     caminhos que, infatigável e ousado, ia abrindo, em direitura ao lugar     do seu nascimento.

 

Sentia-se atraído para esse lugar por uma saudade infinda, por uma     confiança enganosa e fatal.

 

Parecia-lhe que ninguém, nem a justiça dos homens nem a de     Deus, na qual desde os mais verdes anos o tinham ensinado a não acreditar,     teriam poder para arrancá-lo desses sombrios e protetores esconderijos,     dessas grutas insondáveis, perpetuamente abertas às onças     e a ele, perpetuamente fechadas ao restante dos animais e dos homens que não     se animavam a transpor-lhes o escuro limiar com receio de ficarem sepultados     para sempre em tão medonhos sarcófagos.

 

Tendo-se afastado do pé da mata onde haviam sido vencidos e capturados     em seus redutos os outros malfeitores, descreveu uma oblíqua de cerca     de uma légua no rumo do ocidente e desceu depois a uma distancia donde     pudesse ter debaixo das vistas o Tapacurá, que lhe servia de guia através     do sertão.

 

Estava em pleno deserto. Do lado direito protegiam-no estendidos tabocais     e profundas gargantas de serra inacessíveis, sem habitação,     sem viva alma; do outro lado do rio um espinhal basto, alguns serrotes escalvados,     catingas sem fim, brejos combustos do calor do sol completavam o largo amparo     que lhe abria em seu seio a natureza.

 

Com a seca abrasadora essa região, que nunca fora amena, ainda na     forca do verde, estava inóspita, árida, cruel.

 

Via-se a espaços um pé de xiquexique perdido nos alvos tabuleiros,     ou entre serros alcantilados, e junto do rio uma ingazeira com a folhagem     coberta de samambaia, um juazeiro solitário e sem fruto.

 

Seria meio dia.

 

Bem que o Cabeleira pelo longo hábito de jornadear por dentro dos     matos, e pelo cuidado que tinha de escusar importunos encontros, só     à sombra das árvores fazia a travessa do deserto; contudo entraram     ele e Luísa a experimentar o cansaço que o excessivo calor gera     máxime durante uma viagem de muitas horas.

 

Luísa mal se podia ter sobre o cavalo, que nem ao menos oferecia o     cômodo de uma regular montaria. A marcha do pobre animal tanto mais     penosa tornava para os fugitivos quanto as forças lhe iam faltando     em conseqüência do longo jejum, e da puxada viagem.

 

Desde muito tempo afeito a viver no deserto, tinha o Cabeleira adquirido     uma virtude sóbria, obra de longas privações, e fonte     de admirável heroísmo; não assim Luísa, pobre     menina, criada com grande afeto, e maternal solicitude.

 

Não tivera ela uma existência de gozos e grandezas, mas nunca     lhe faltaram os cômodos que assegura a vida regrada da família,     que, embora pobre, encontra no trabalho e na economia recursos folgados para     todas as necessidades até alguns confortos. A sombra de um jatobá     o Cabeleira parou, e, lançando o olhar por toda a natureza, que os     abraçava como a imensidade abraça um ponto:

 

Estamos fora de perigo disse para Luísa.

 

Esta chorava em silêncio. Em seu rosto abatido, mas sempre belo transparecia     a mágoa profunda que lhe minava o coração, onde se refletia     a viva lembrança das cenas da noite anterior.

 

De que chora, Luisinha ? perguntou-lhe o bandido com doçura.

 

Só com a mudez e as lágrimas lhe respondeu a moça, em     cujo espírito se haviam concentrado todas as sombras da tristeza, sombras     espessas em que o sol a pino não pode lançar um raio de luz     sequer.

 

Está cansada, não é, meu amor? perguntou o Cabeleira.     Estou para morrer. Sinto uma pena imensa no coração, e dores     insuportáveis na cabeça.

 

Não me queira mal, Luisinha, por eu ter sido a causa de todo este     destroço.

 

Não lhe quero mal; quero-lhe bem, muito bem, Cabeleira. Mas não     posso esquecer-me de minha mãe, nem poderei resistir à minha     desgraça, que eu considero muito maior do que a sua.

 

Descansemos um pouco à sombra deste jatobá. Terei tempo de     procurar algumas frutas para você comer.

 

Não tenho fome, só tenho sede.

 

Vamos então arranchar-nos debaixo daquela ingazeira, que fica a poucos     passos do rio.

 

Tendo-se apeado ao pé da árvore indicada, o Cabeleira peou     o cavalo em uma baixa que formava a margem, da qual não havia desaparecido     de todo a grama nascida com o último inverno; e sem demora desceu ao     poço contíguo para apanhar água em uma casca de sapucaia     que descobriu por acaso entre umas folhas secas.

 

Notou que quanto mais se estendia a depressão do terreno para o lado     do rio, mais aumentava a verdura que a revestia. Conheceu por fim que havia     dado em uma vazante.

 

Semelhante achado pareceu-lhe coisa extraordinária naquelas alturas     ínvias e desertas. Mas não se tinha enganado; a região     que se lhe oferecia à vista não era de todo desabitada; ali     brilhavam vestígios da mão do homem; ali havia o cunho de um     esforço de que ele nunca fora capaz, o cunho do trabalho.

 

Era pequena a plantação, mas tida, ao que parecia, em alta     conta por quem quer lhe consagrava os seus cuidados e vigilância.

 

Estava verde, limpa, matizada de frutos. Com os ramos do jerimunzeiro se     confundiam as folhas lanceoladas do batateiral. Ao lado da melancia lourejava     o melão, de que recendia suave cheiro; e dentre o entretecido de verdura     formado pelo conjunto dos ramos rasteiros em que se achavam presos estes deliciosos     presentes da terra, levantavam-se ao céu, de covas eqüidistantes,     os pés de milho com seus pendões inclinados e suas corpulentas     espigas, em torno das quais se esparziam os fulvos cabelos que costumavam     adornar estes abençoados frutos.

 

É indescritível o prazer que sentiu o bandido ao deparar com     aquele tesouro.

 

Tinha a seu alcance com que matar a fome, cujos efeitos começava a     sentir, tinha um presente que oferecer à sua companheira, extenuada     de fadiga.

 

Separar do pé com a faca, duas melancias, e quebrar algumas espigas     foram operações que o Cabeleira praticou em menos de um minuto.     O estalar do milho despertou um rapazito, que, achando-se ali para enxotar     as maracanãs que destroem os milharais, adormecera ao calor do meio     dia na extremidade da vazante debaixo de uma latada formada pelos ramos de     um pé de maracujá que, com a frescura do solo, se mostrava verdejante     e florido.

 

Ladrão ! Ladrão ! gritou o rapazito com valor e força     superiores aos que o seu corpo e estatura prometiam.

 

E armado com um pau, investiu contra o Cabeleira, que a inesperada aparição     deixara um instante perplexo com parte do furto em uma mão, e a faca     nua na outra.

 

O rapaz ganhou em poucos passos a distância que o separava do bandido,     e descarregou sobre a cabeça deste, sem dizer tir-te nem guar-te, o     pau que trazia alçado. O Cabeleira em represália atirou-lhe     um golpe com o intuito de cortá-lo de meio a meio, intuito que foi     burlado por Luísa que-lhe havia pegado do braço a tempo de evitar     a desgraça iminente.

 

Cabeleira ! Queria fazer uma morte ainda ? Meu Deus, abrandai-lhe o coração.

 

Luisinha, eu não sei bem o que queria fazer disse o moço caindo     em si. Mas este dorminhoco deu-me com o seu graveto como se eu fosse algum     pinto.

 

Quero-lhe muito bem, meu amor acrescentou a moça com a profunda ternura     que, quando verdadeiramente quer e sente o que quer, a mulher sabe ter no     olhar, no gesto, na voz. Mas quando o vejo como agora de arma em punho, ameaçando     com certeiros quais são os seus, a vida de alguém, sinto tão     grande dor, que você não pode compreender o meu padecimento.

 

Cabeleira inclinou os olhos ao chão, meteu a faca na bainha e deu     a andar com os frutos debaixo do braço.

 

Para que traz você estes frutos consigo ? perguntoulhe Luísa.     Eles não nos pertencem, e não podemos apossarnos, contra a vontade     de seu dono, daquilo que não é nosso.

 

Que vamos comer ? perguntou muito naturalmente o mancebo.

 

Comeremos o que nos der o mato. Deus está em toda parte, e não     se esquece dos que invocam a sua proteção.

 

Cabeleira submisso e humildemente depôs as frutas no chão sem     mais reparo. Quanto ao rapazito, guarda da vazante, havia desaparecido desde     que ouvira pronunciar o nome, que de sul a norte significava, para grandes     e pequenos, roubo e atrocidade.

 

Nova surpresa os esperava na margem, onde o bandido foi dar com dois indivíduos     que de pé o olhavam do alto de uma pedra, tendo um deles pelo cabresto     o árdego alazão, já livre da peia com que o atirara ao     campo o Cabeleira.

 

Defronte da árvore, a cuja sombra os fugitivos haviam descansado,     formava o terreno uma grande ribanceira.

 

Os desconhecidos estavam aí com a frente voltada para a vazante, o     lado direito para o continente, e o esquerdo para o rio, que nessa altura     era largo e profundo.

 

Parece que você veio enganado, camarada disse o Cabeleira, saltando     em um minuto aos pés daquele que tinha pela mão o cavalo. Este     animal não lhe pertence.

 

Este animal é meu no céu e na terra. Há dois dias o     furtaram do meu roçado no Angico Torto. Pus-me na batida do ladrão,     e finalmente vim dar com o meu cavalo. Ele é meu, tão certo     como estou aqui. Tem o meu ferro na anca direita, e você o pode ver,     se ainda não se quis dar a esse trabalho.

 

Pois o que eu lhe digo, camarada, é que fosse ele de quem fosse,     por mais homem que seja, ninguém será capaz de tirá-lo     do meu poder.

 

Isto agora é que havemos de ver disse o desconhecido, batendo mão     da faca que trazia no cós da ceroula e fazendo-se prestes para lutar     pela reivindicação da sua propriedade.

 

Monta no teu cavalo, Marcolino gritou o outro desconhecido ao companheiro;     monta no teu cavalo e vai-te embora, que eu só sou demais para lamber     este cabra.

 

Ainda bem não tinha acabado, quando cortava os ares um corpo semelhante     a tronco de árvore que o furacão arrebata às florestas     e arroja a distancias incomensuráveis. O fanfarrão fora jogado     com todos seus bélicos aprestos dentro do poço pelas mãos     possantes do famoso matador.

 

Cabeleira ! gritou Luísa, correndo ao lugar onde em menos de um instante     se passara a inesperada cena.

 

Marcolino, que a esse tempo se achava montado no alazão, tendo ouvido     este fatal apelido, deu de pernas ao cavalo e fugiu evidentemente aterrado     como se a seus pés houvesse visto cair um raio.

 

O Cabeleira, entretanto, tinha corrido ao pé da ingazeira onde havia     deixado o bacamarte quando se apeara. Mas não logrou levá-lo     ao rosto para dispará-lo como pretendia, contra o fugitivo, porque     Luísa, unindo-se com ele, e buscando arrancar-lhe a arma das mãos,     lhe disse com voz magoada, entre exprobração e pranto:

 

Por que não me tira a vida de uma só vez, Cabeleira ?

 

Diria que Luísa estava possuída de um espírito angélico.

 

De ontem para cá prosseguiu ela tem jurado milhares de vezes não     derramar mais sangue sobre a terra, e milhares de vezes tem quebrado seus     juramentos ! Sempre que falta à sua palavra, atravessa sem o suspeitar     o meu coração com sua faca. Não demore mais o meu penar,     mate-me de uma vez. Perdôo-lhe a morte, por Deus lhe juro, por Deus     que nos está ouvindo no meio desta solidão.

 

Luísa tinha-se insensivelmente ajoelhado aos pesdo bandido, e lhe     abraçava as pernas com mostras de irrepreensível afeto. Dos     olhos rolavam-lhe lágrimas como contas de rosário espedaçado.

 

Estático, e confuso, não achou José palavras para responder     à exprobração e rogativas que aquele coração     generoso ditava inspirado pela piedade de uma alma grande e terna.

 

Não me fale assim, Luisinha respondeu enfim o bandido, levantando-a     e abraçando-a.Quando eu a vejo chorar, sinto-me enfraquecer; quando     você me pede alguma coisa, sou incapaz de negar-lhe, ou de resistir     à sua vontade.

 

Mas de que serve o que me diz, se não se esquece da sua vida tão     triste e infeliz ? Cabeleira, por que não se há de tornar brando     e terno como Luísa ? Olhe. A morte está mais perto de mim do     que...

 

A morte ! exclamou o bandido.

 

Sim; dentro em pouco eu o deixarei, mas enquanto não nos separarmos,     poupe-me estas cenas que me transpassam o coração. Quando eu     desaparecer de seus olhos, não se considere só no mundo. No     lugar que meu corpo deixar vazio ao pé de si, há de ver sempre     a alma benévola da pobre Luísa; ela o acompanhará por     toda parte para inspirar-lhe os bons pensamentos e aconselhar-lhe a prática     das boas ações. Por que não me dá consolação     de reconhecer em você desde já um espírito arrependido     dos passados erros ?

 

Ah! Luisinha! Você me abranda com suas palavras, em sua presença     eu me considero uma criança.

 

É Deus que me ajuda a quebrar seus ímpetos, a moderar sua     cólera. Ele há de ouvir todos meus rogos, há de inspirar-lhe     horror ao sangue e aos instrumentos que o derramam.

 

Cabeleira, como se tivesse recebido nestas palavras aviso celeste, replicou:

 

Não levantarei mais minha mão contra ninguém, Luisinha.     Quer uma prova desta resolução ? Veja. É a maior que     lhe posso dar.

 

Tirou o fuzil e a pedra do bacamarte, os quais meteu na algibeira da véstia.

 

E por um desses sublimes impulsos que só visitam o ho mem uma vez     na vida, arremessou a arma dentro do rio. Este ato foi seguido de outro que     o completou e confirmou. Batendo com a faca sobre uma pedra que ficava na     ribanceira, fez saltar dentro da água metade da folha de aço     que tinha cortado o fio de muitas vidas preciosas, e feito correr muito sangue     inocente sobre a terra.

 

O bandido obrou estas duas ações com tanta fé e grandeza     d'alma, que Luísa correu a ele dominada de peregrina comoção,     e o apertou em seus braços.

 

Só o deserto foi testemunha desta grande cena, porque eles estavam,     como havia poucos, sós.

 

O menino que guardava a vazante havia desaparecido logo que ouvira pronunciar     o nome do Cabeleira.

 

Os dois desconhecidos, um salvo das águas, outro salvo do tiro iminente,     tinham corrido a refugiar-se no seio da espessura.

 

E agora, Luisinha, terá ainda alguma coisa que dizer de mim ? perguntou     José com ingenuidade infantil.

 

Os meus rogos foram ouvidos por aquele que dali nos vê e ouve como     pai misericordioso. O medo que eu tenho agora é que as tropas o peguem     e o roubem de meus braços ! Oh ! fujamos já deste lugar. Quem     sabe se aqueles homens não correram a denunciá-lo ! Misericórdia,     meu Deus ! Que fazemos ainda aqui ?

 

Puseram-se no mesmo instante a caminho na direção do ocidente.

 

 

 

O sol chegou ao horizonte, e as sombras começaram a vasta solidão.

 

O Cabeleira parou ao pé de um serrote, e escutou.

 

Um ruído estranho vencia a distancia e vinha ecoar aos ouvidos dos     fugitivos.

 

Estamos perto disse ele. Não houves este barulho? São as águas     do Tapacurá que caem no Capibaribe. De madrugada atravessaremos este     rio, e se bem andarmos poderemos estar depois de amanhã a esta hora     em Goitá, terra do Cabeleira.

 

Ai ! disse a moça. Não posso mais.

 

Tinha as faces em brasa, e os olhos, injetados, acusavam a febre ardente     que a consumia desde a noite anterior.

 

Não esmoreças, meu bem disse o mancebo. Havemos de ser felizes.

 

Onde ? Neste mundo ? perguntou ela com incredulidade. Na terra não     há felicidade, Cabeleira; na terra só há dores e prantos,     saudades e remorsos.

 

Pois eu te mostrarei que se pode ser feliz no deserto, no fundo das brenhas.     Não matarei mais a ninguém, meu amor. Bem dentro da mata virgem,     em um lugar que só eu conheço, há um olho d'água,     que nunca deixou de correr. Junto deste olho d'água há uma chã,     no fim da chã um bosque, e por detrás do bosque uma montanha     imensa que rompe as nuvens. O olho d'água nos matará a sede     todo o ano, na chã levantarei uma casinha de palha para nós;     no meio do bosque abrirei um roçado que nos há de dar farinha,     macaxera, feijão e milho com abundância; e quando a seca for     muito forte, como esta, subiremos a serra, e aí passaremos dias melhores.

 

Se assim fosse… Se assim pudesse ser… balbuciou Luísa.

 

Por que não ?

 

Por que ? Porque a desgraça aí está para desmentir     o seu sonho, Cabeleira.

 

Olha, Luisinha. Os homens me deixarão logo que eu não os ofender     mais. Não sei ainda trabalhar, mais hei de saber. Tu me ensinarás,     e eu aprenderei.

 

O Cabeleira disse estas palavras com a ingenuidade e doçura de uma     criança. Luísa não se pôde conter; correu a ele,     e pela segunda vez o apertou em seus braços e cobriu com as suas lágrimas.     Ele abraçou-a e beijou-a com a efusão do primeiro amor, que,     depois de longamente adormecido, desperta de súbito com as energias     que cresceram durante o sono, e se fizeram forças invencíveis.

 

Ali adiante disse o Cabeleira apontando para um embastido de árvores     que aparecia ao pé de um serrote poderemos passar a noite, a nossa     primeira noite de noivado.

 

Luísa estremeceu, e supirou. Se não se tivesse arrimado ao     braço do bandido, teria caído.

 

Triste noivado, Cabeleira, triste noivado, que se cobre de prantos e luto.

 

Não te amofines assim. O Cabeleira não é mais o assassino,     Luisinha. O ladrão, o matador já não está aqui     ao pé de ti. Quem aqui está é um homem que quer ser um     homem de bem.

 

Deram o andar para o lugar indicado.

 

A este tempo o sol tinha desaparecido, e o horizonte estava já envolto     nas sombras precursoras da noite. Nem leve brisa movia as folhas dos matos     mudos e quedos.

 

Os perfis das árvores solitárias desenhavam-se, no fundo do     pavoroso ermo, como perfis de fantasmas.

 

Os fugitivos entraram no embastido, e depois de alguns passos deram em uma     clareira, espécie de asilo reservado pela natureza aos peregrinos que     vagam sem rumo e sem guia.

 

Uma fogueira foi logo improvisada para terem luz durante a noite e evitar     que se aproximassem as onças cujos uivos medonhos começaram     a repercutir nas quebradas e gargantas das serras.

 

Procurava o mancebo galhos secos para entreter o fogo quando, ao pé     de uma árvore que se levantava a um lado da clareira, deu com uma tosca     cruz de pau cravada na terra.

 

Era quase noite, e, no meio das sombras crepusculares, confundiu ele ao princípio     o emblema da redenção com um tronco de árvore cortada     por algum viajante transviado, ou despedaçada pela tormenta.

 

Quando reconheceu o sagrado emblema, o Cabeleira, suspenso pela surpresa,     sentiu-se abalado ao mesmo tempo por uma comoção desconhecida.     No lugar ocupado pela cruz tinha ele assassinado um ano antes um marchante     de gados para lhe roubar o dinheiro que trazia da feira em Santo Antão.

 

O bandido voltou o passo atrás horrorizado e correu em busca da moça,     gritando, como um menino:

 

Luisinha ! Luisinha !…

 

A moça aflita sem saber por que, lançou-se ao seu encontro     e o recebeu em seus braços.

 

Ninguém te há de tirar daqui disse ela, suspeitando que o     queriam prender. Não, não, tu me pertences. Deus ajudou-me a     parar-te no caminho do bem. Ninguém tem mais o direito de te perseguir.

 

Eu o vi lá outra vez, Luisinha. Ele olhou-me silencioso e triste.

 

Ele quem ? perguntou ela.

 

O marchante; o velho a quem assassinei para roubar. Lá está     ele com os cabelos brancos ensopados em sangue.

 

Meu Deus ! Meu Deus ! exclamou a moça. Cometeste ainda um assassinato,     Cabeleira ? Meu Deus, quanto sou infeliz !

 

Não, não foi agora; faz um ano; foi ali, junto do jatobá.     Olha; não vês aquela cruz de pau enterrada no chão ? Foi     aí que matei o sertanejo.

 

É impossível descrever a comoção de ambos. O     sítio, a hora, tudo concorria para dar à impressão uma     intensidade que ia ao fundo do coração, à medula dos     ossos.

 

Estou-me lembrando de tudo prosseguiu o bandido. Eu estava sentado, com     o clavinote atravessado nas pernas debaixo daquele pé de pau. Ouvi     as pisadas de um cavalo, e o estratar garranchos e cipós que se quebravam.     Meti-me um pouco mais para dentro, a fim de ver, sem ser visto, quem é     que vinha. Eu estava com fome, e não tinha dinheiro nenhum. "Se     fosse um homem que trouxesse dinheiro", pensei eu, "estava muito     bem !" Neste momento o cavaleiro passou por diante de mim. Trazia chapéu     novo, um gibão de pano fino azul, botas lustrosas e esporas de prata;     montava um cavalo ruço pombo, gordo e passeiro. Conheci logo que era     um marchante. Levei o bacamarte ao rosto, e quando o cavaleiro quebrou ali     à direita para tomar o vau do rio, fiz-lhe fogo na cabeça. Corri     com a minha faca na mão ao lugar onde ele havia caído. Estava     morto; a bala tinha-lhe entrado ao pé da orelha direita e saído     acima do olho esquerdo. Ambos os olhos estavam da banda de fora, o cabelo     e a barba nadavam em sangue. Tirei-lhe um maço de patacões que     trazia em um dos bolsos do gibão, o punhal aparelhado de prata, os     botões de ouro, o relógio e as esporas; e meti-me no mato virgem.

 

Luisinha mal pôde ouvir esta história que foi rapidamente contada,     com vivas e medonhas cores.

 

Misericórdia, Senhor ! exclamou ela.

 

Ele lá está, Luisinha, de pé, com o chicote na mão,     olhando para mim com os seus olhos mortos, à flor da cara.

 

A moça meditou um momento.

 

Vamos disse por fim, encaminhando-se para a sepultura; vem comigo.

 

Oh! não; aquela visão me aterra. Nunca tive tanto medo, eu     que vi imensos cadáveres banhados em sangue aos meus pés.

 

O medo passará em um instante, Cabeleira.

 

De que modo, Luisinha ?

 

Vamos. Vem rezar comigo em cima da cova ao pé da cruz.

 

A rezar ?

 

Assim que tiveres rezado um Padre Nosso e uma Ave-Maria em tenção     do morto, sua alma desaparecerá de tua vista. Vamos, Cabeleira.

 

O bandido deixou-se ir a modo de arrastado pela moça que parecia,     com seu vestido azul e seu lenço branco, passado em torno do pescoço,     o anjo da prece na solidão.

 

Ajoelharam-se ao pé da cruz, Cabeleira com a face quase oculta por     seus longos cabelos negros, Luísa com a cabeça erguida, e os     olhos postos na frouxa claridade do sol que se desvanecia na abóbada     celeste. Defronte deles a cruz ressequida, solitária e muda testemunhava     aquela cena com a solene indiferença dos símbolos sagrados que     é muito mais expressiva e eloqüente para os seus crentes do que     as vozes da mor parte dos sacerdotes da respectiva religião.

 

Reza, Cabeleira disse a moça ao matador assombrado.

 

Ai, Luisinha! Não sei rezar! disse ele com voz tão sentida     e magoada que indicou a pena profunda que lhe cortava o coração.

 

Ele estava na realidade comovido até as entranhas. Superexcitado pela     falta de alimentação, pelo cansaço da jornada, pelo calor     do dia, pelas recordações que o afligiam de envolta com o remorso     incipiente, via a cada canto a terrível visão reproduzida na     clareira, na selva, nos ares, finalmente em toda parte aonde volvesse os pávidos     olhos.

 

Eu te ensinarei redargüiu Luisinha. Dize comigo.

 

A moça principiou então em voz alta o Padre Nosso.

 

A voz do bandido, ao princípio titubeante e temerosa, foi-se pouco     e pouco animando, e elevando.

 

Quando houverem de passar à Ave Maria, o Cabeleira tinha já     os olhos pregados na cruz, e a fé, que começava a germinar em     seu espírito, elevava-o insensivelmente a regiões desconhecidas,     onde, sem que ele pudesse explicar como, lhe davam a respirar confortos que     só podiam ser celestiais.

 

Da Ave Maria passaram à Santa

 

Maria e desta à Salve Rainha.

 

Em cada uma das palavras destas orações achava o bandido uma     beleza nova e insinuante que lhe despertava delicioso sentir.

 

Seu espírito, que durante vinte anos só conhecera idéias     de sangue e morte; seus ouvidos, afeitos a escutarem palavras licenciosas,     insultos, arrogâncias, queixumes e maldições, recebiam     agora doces expressões que anunciavam uma consoladora existência     superior.

 

Do pavor, que trouxera aos pés da cruz, passara a uma fortaleza de     animo quase invencível.

 

Antes de se levantar volveu os olhos em torno de si e não viu mais     a visão que o amendrontara, havia pouco.

 

Oh! Luisinha, como é poderosa a oração ! disse ele.     Minha mãe, que tantas vezes pos as suas contas nas minhas mãos,     bem sabia que a oração tem mais força do que os homens     e vence todas as armas ! É por isso que me ensinava a rezar, a mim     que só aprendi a tirar a fazenda e a vida dos meus semelhantes.

 

Datou desse feliz momento o arrependimento do Cabeleira.

 

Depois de oferecidas estas orações, lavantaram-se os fugitivos,     e foram depor cada um seu beijo aos pés da cruz do ermo.

 

No bandido já não havia o assassino, havia um espírito     contrito, um coração cheio do temor de Deus. Uma mulher fraca,     tendo ao seu serviço unicamente a benevolência natural, a perseverança,     as lágrimas e um passado quase desvanecido, havia operado uma conversão     com a qual poderia legitimamente orgulhar-se um verdadeiro apóstolo     do cristianismo. Com sua luz suave enchia o deserto o astro das recordações     e da saudade. O céu estava azul e estrelado. As brisas da noite começavam     a mover as folhas do bosque, onde os silvos das cobras, os pios das aves erradias,     os uivos dos animais carniceiros formavam lúgubre e medonha orquestra.

 

Luisinha caiu em uma espécie de sonolência e pouco depois sentiu     perturbação mental, e veio-lhe delírio, durante o qual     deixou escapar palavras desconexas. A febre que a devorava tinha aumentado     com a excessiva fadiga, e com a intensidade das impressões do dia.     Cabeleira estendeu por cima dela a sua véstia de couro, e, profundamente     comovido, foi sentar-se ao pé da fogueira para não a deixar     extinguir-se, e para impedir que se aproximassem as onças que não     cessavam de ulular em derredor deles, ameaçando devorá-los.     A vida no deserto está exposta a perigos, que mal compreende o que     não nasceu no meio deles; só os compensa a liberdade que se     depara em qualquer dos gozos que aí se logram.

 

Pela madrugada adormeceu ao peso da fadiga e ao silêncio que foram     fazendo em torno de si as feras. Quando acordou era quase dia. Os passarinhos     cantavam com o entusiasmo que desperta em todos os corações     o raiar de um dia de verão no seio da natureza.

 

Seu primeiro cuidado foi saudar aquela a quem devia a ressurreição     de sua alma, outrora em trevas aflitivas, agora inundada do suave clarão     da piedade cristã.

 

Luisinha, acorda disse ele. A manhã está fresca. Os passarinhos     cantam. A viração tem os cheiros do deserto.

 

Aproximou-se de Luísa tomou-a nos braços, conchegou-a ao seio,     e depôs-lhe nos lábios um beijo de amor. Os lábios da     gentil menina estavam frios, seu corpo gelado. Luísa não pertencia     mais a esta vida.

 

Reconhecendo a cruel realidade, o bandido deu um grito de dor que atroou     a imensa solidão como urro de touro selvagem.

 

Morta ! Morta ! Luisinha !

 

O cadáver da moça escapou-lhe dos braços, mas logo o     bandido caiu de joelhos aos pés desse corpo inanimado, com o qual tinham     falecido todas as suas esperanças de felicidade.

 

Luisinha, responde me disse ele. De que morreste, meu amor ?

 

Levantou-se, deu alguns passos a esmo, e tornou ao leito de ramos que tinha     servido de leito de morte à virgem dos seus pensamentos.

 

Pegou-lhe das mãos, que beijou uma, duas, inúmeras vezes, examinou-as,     examinou o rosto da infeliz, e só encontrou aí os vestígios     do transito final. Tudo estava acabado para ela. Foi esta a verdade cruel     que ele viu traspassado de uma pena que se não descreve, e que só     ele sentiu nesta vida.

 

Sentou-se no chão, e suspendeu o cadáver para o atravessar     sobre os joelhos. Um galho da árvore, que com sua folhagem havia obrigado     a moça durante a noite, afastou-lhe o lencinho branco que lhe envolvia     o pescoço, e indiscretamente descobriu aos olhos do consternado amante     seus seios virgens.

 

Ao vê-los, soltou este nova exclamação de dor. A chama     que Luísa para salvar Florinda do incêndio, transpusera a noite     anterior, havia deixado uma só chaga no lugar onde a natureza tinha-a     dotado com um cofre de graças e perfeições peregrinas.

 

Queimada ! Oh ! Luisinha, que sofrimento não foi o teu ! Que dores     não suportaste em silêncio, desgraçada criança     ! E como fico eu sem ti, meu amor ? Ai de mim, Luisinha ! Ai de mim !

 

O ânimo varonil, que sempre se mostrara inteiro e imoto, agora agitado     por comoções tão violentas, dobrou-se enfim e deu larga     prova de fragilidade humana. Dos olhos do bandido irrompeu uma torrente de     lágrimas. Soluços, como animal bravio, escaparam de seu peito     e ecoaram pela imensidade ainda em grande parte adormecida. Havia quinze anos     que esses olhos não choravam diante dos mais tristes e lastimosos espetáculos.

 

Que noivado o meu ! É o noivado do assassino ! Oh ! meu Deus !

 

De repente do lado do rio soou um clarim.

 

A dor sucedeu o susto, e depois o terror no animo do desgraçado mancebo.     Só, sem armas, arrependido de toda sua vida de crimes, que restava     ao Cabeleira naquele doloroso transe ?

 

O clarim soou mais perto, e com as vozes deste instrumento chegou aos ouvidos     do mancebo um retintim de espadas e facões que indicava, junto com     as sobreditas vozes, a existência de um corpo militar por aquelas bandas.     Andava de feito por ali um dos piquetes do regimento de Cristóvão     de Holanda, o qual, depois de ter batido algumas matas suspeitas, se recolhia     à vila, donde havia partido na noite imediata.

 

Cabeleira depôs o cadáver de Luísa sobre os ramos, e     afastou-se para dentro do mato não sem novo sobressalto, à vista     do risco em que se achava.

 

Depois de ter desaparecido, voltou novamente e suspendeu em seus braços     o corpo com o intuito de conduzi-lo consigo para dentro da espessura. Mas     quando ia a entrar aí com o triste resto do seu tesouro, um homem apareceu     na extremidade da clareira. Era o Marcolino que, havendo-se encontrado com     o piquete ao cair da tarde anterior relatara o que havia acontecido junto     da vazante, e se oferecera para o guiar no rumo do fugitivo.

 

Este, vendo que a sua vida estava em perigo, e que a perda de um momento     podia ser-lhe fatal, resignou-se a deixar o precioso despojo, e internou-se     de uma vez no mato.

 

Com pouco uma companhia de soldados penetrou no pouso onde Marcolino já     havia dado com o corpo de Luísa

 

Cheguem, cheguem depressa. Dormiu aqui o assassino. Ali está a fogueira     ardendo ainda, e aqui a sua própria companheira, que ele deixou morta.     Ah ! malvado !

 

Os milicianos rodearam o cadáver de Luísa sobre cujo rosto     não seria difícil descobrir ainda vestígios das lágrimas     do desgraçado mancebo.

 

Perversol Perverso! exclamaram alguns deles indignados do que viam, mas     não sabiam.

 

Não satisfeito de ter matado mulheres e meninos no fogo, veio tirar     aqui a vida a sangue frio àquela que o quis acompanhar.

 

Não percamos tempo observou Marcolino. Ele deve estar perto daqui.     Vamos, minha gente, vamos descobrir o assassino enquanto ele não nos     escapa.

 

É verdade. Alto frente. Toca a corneta. Tiririca.

 

Não toques, que se o Cabeleira nos ouvisse, ninguém mais lhe     punha o olho em cima, quanto mais a mão.

 

Se não fosse esta corneta, já tínhamos pegado o cabra     observou Marcolino.

 

Qual cabra nem meio cabra. Aquele que tem de pegar o Cabeleira está     ainda por nascer.

 

E entraram na espessura.

 

 

 

O Cabeleira desapareceu no mato como desaparece o peixe no seio da corrente     caudal.

 

Os milicianos, bem que homens igualmente rústicos, e conhecedores     das florestas, não tinham todavia o longo uso da espessura, uso que,     ainda neste particular, tornava superior a eles o valoroso malfeitor.

 

Espalharam-se em diferentes direções, a esmo, sem plano, e     por isso sem probabilidade de bom resultado.

 

O piquete não era numeroso, e vinha quase debandado quando encontrou     o Marcolino que denunciou o ponto onde havia deixado o fugitivo.

 

Poucos deram crédito às palavras do matuto, e só por     desencargo da consciência alguns se prestaram a dar a busca que ele     propôs, e que, a seu parecer, não podia deixar de surtir o desejado     efeito.

 

Gastaram quase o dia inteiro na diligência.

 

Por fim, dissuadidos de descobrirem o assassino, cada um tomou o caminho     mais curto para sua casa, dando alguns ao diabo o Marcolino por tê-los     feito andar para dentro e para fora do mato inutilmente, e acreditar em esperanças     que não se realizam.

 

E veio você fazer-nos perder mais um dia, compadre Marcolino disse     um dos milicianos, aborrecido e fatigado do infrutífero lidar. Nem     você chegou a ver o Cabeleira. Viu algum rangedor de cachos compridos,     e já pensou que era o mameluco.

 

Eu não digo uma coisa por outra. Vi-o com estes olhos que a terra     fria há de comer. Falei com ele como estou falando com você agora.     Lá o ele ter voado como passarinho, ou Ter-se metido pela terra adentro     como tatu ou jararaca, é caso à parte.

 

Você viu periquito e cuidou que era arara ou canindé replicou     o miliciano.

 

Compadre, você está fazendo pouco em mim. Ora, deixe-se disso,     que eu não sou de lérias, como você bem sabe. É     tão certo que vi o Cabeleira, que até lhe tomei o cavalo que     ele me havia furtado, o meu alazão.

 

Pois, então, pode montar no seu alazão e voltar à casa.     De lembranças à comadre Maria e lance a bênção     a meu afilhado Gazuza. Se encontrar outra vez o Cabeleira, de-lhe um abraço     por mim, um beliscão e uma boquinha.

 

Eu, se tivesse ainda o meu alazão, juro-lhe que havia de desencavar     o Cabeleira, ou com a vida ou com a morte.

 

E que fim levou o seu quartau ?

 

Espaduou de muito andar. Parece que desde a hora em que o maldito demo o     tirou do meu quintal não soube mais o que era comer nem beber, e andou     num cortado.

 

Se você quer servir-se do meu cavalo castanho, ele nos está     ali ouvindo. Desta vez estou falando sério.

 

Onde está ele ?

 

No sítio do Felisberto, aonde o mandei com um costal de mandióca.

 

Pois aceito, meu compadre, a sua proposta. Hei de mostrar-lhe que o que     digo, digo. Se eu não descobrir neste matão, ou por estas beiradas     de rio o Cabeleira, hei de saber notícias dele seja onde for. Também     de uma coisa tenha você certeza: quando ouvir sua mulher dizer: "Aí     vem o compadre Marcolino no cavalo castanho", fique logo sabendo que,     se eu não deixei o Cabeleira na embira, o deixei no buraco.

 

Os dois matutos achavam-se na margem esquerda do Capibaribe.

 

Na margem oposta levantava-se, entre umas laranjeiras e uns oitizeiros, uma     casa de bom parecer. Era a casa de Felisberto.

 

Eles atravessaram a vau o rio, e foram ter à graciosa habitação,     que no meio daquele deserto atestava a existência de uma civilização     rudimentar no lugar onde havia caído, sem tentativa de proveito para     a sociedade que o sucedera, o gentilismo guarani digno de melhor sorte.

 

Do alto onde fora construída a habitação via-se o rio     que corria na distancia de umas dezenas de braças, e desaparecia por     entre umas lajes brancas no rumo de leste; do lado do ocidente mostravam-se     as lavouras de Felisberto desde as proximidades da casa até onde a     vista alcançava.

 

Felisberto aplicava-se quase exclusivamente à cultura da roça.     No perímetro de vinte léguas em derredor era o lavrador que     desmanchava mais mandioca no fabrico da farinha, que era de tão boa     qualidade que competia no mercado do Recife com a farinha de Moribeca, já     então afamada. Havia anos em que ele mandava para o Recife cerca de     duzentos alqueires.

 

Um negro, uma negra, duas negrotas e três molecotes filhos dos dois     primeiros faziam prodígios de valor na cultura das terras. Amanheciam     no cabo da enxada e só se recolhiam quando faltava uma braça     para o sol se esconder no horizonte. Estes escravos viviam porém felizes     tanto quanto é possível viver feliz na escravidão. Não     lhes faltava que comer e que vestir. Dormiam bem, e nos domingos trabalhavam     nos seus roçados. Em algum dia grande faziam seu batuque, ao qual concorriam     os negros das vizinhanças.

 

Quando o Felisberto se casou com a filha de Lourenço Ribeiro, mestre     de açúcar do engenho Curcuranas, teve a feliz idéia de     ir estabelecer-se naquele sítio que comprara com algumas economias     que lhe legara um tio que vivera de arrematar dízimos de gado. Essas     economias deram-lhe também para comprar duas moradinhas de casas e     o negro André. Com a negra Maria, que a mulher lhe trouxera em dote,     casou Felisberto o seu negro, na esperança de que em poucos anos a     família escrava estaria aumentada, e por conseguinte aumentada também     a fortuna do casal. Essa esperança foi brilhantemente confirmada.

 

Felisberto não estava em casa à chegada dos dois matutos. Havia     ido à vila a negócio e ninguém sabia quando ele estaria     de volta.

 

Eles tiraram para a casa de farinha, que ficava a um lado da casa de morada,     e apresentava nesse momento um aspecto que não era o usual.

 

Estava-se fazendo farinha para ser a toda pressa mandada ao Recife, onde     a grande falta que havia deste gênero assegurava pingue lucro ao vendedor.

 

Frutos do trabalho honesto e esforçado, o qual é sempre favorecido     pela Providencia, não tinham sido de todo destruídos pela grande     seca os roçados do Felisberto. Ele já enumerava muitos prejuízos,     mas olhando em torno de si via ainda muito com que contar na tremenda crise     que reduzira o geral da população da província a extrema     penúria.

 

Era quase noite, e ainda chegavam animais com caçuás cheios     de mandiocas que eram despejados nas tulhas já formadas destas raízes.

 

Mulheres sentadas pelo chão ou em cepos, ao pé dessas tulhas,     tiravam as mandiocas uma a uma, e as iam raspando a quicé, e, atirando     depois dentro de cestos que eram conduzidos para junto das rodas a fim de     serem elas passadas pelos ralos que circulam estas.

 

A casa de farinha não era mais do que um vasto alpendre aberto por     todos os lados e coberto de palhas de pindoba.

 

No centro via-se o forno onde tinha de ser cozida a massa já apertada     pela prensa e livre da manipueira. Parte dela porém, tanto que saía     do pé das rodas, era lavada em gamelas e alguidares onde deixava o     resíduo ou goma para os beijus e tapiocas.

 

A prensa estava armada a um dos lados do alpendre; no outro viam-se as duas     rodas que não cessavam de girar. Quando cansavam os matutos ou escravos     que as moviam eram logo substituídos por gente fresca.

 

Os dois matutos ali bem conhecidos, foram saudados pelas pessoas que estavam     trabalhando, e, como é costume em tais ocasiões ainda hoje,     trataram eles de concorrer gratuitamente com o auxílio dos seus braços     descansados, o que a muitos não deixou de ser agradável.

 

Venha para cá, seu Marcolino. Pegue no veio da roda, e desmanche-me     esta mandioca que está custosa de acabar disse um.

 

E eu ponho de boa vontade em sua mão, Marciano, este rodo. Não     precisa mexer muito a massa: o forno não está muito quente e     não há risco de queimar-se a farinha disse outro.

 

Prepara os beijus Mariquinhas disse o Marciano a uma rapariguinha morena     e cacheada que, com as mangas arregaçadas, lavava em um alguidar uma     porção de massa.

 

Mariquinhas sorriu e continuou no seu trabalho que lhe absorvia toda a atenção.

 

Pouco depois chegaram dois cunhados de Felisberto, que tinham feito parte     do regimento volante da freguesia.

 

Então que fizeram ? perguntaram muitos a uma voz logo que os viram     entrar.

 

Nada. Vocês pensam que pegar o Cabeleira é o mesmo que raspar     mandioca, ou comer farinha mole ?

 

Não o viram nem com os olhos, seu Quinquim ?

 

Qual, senhor ! Cabeleira de minha vida !

 

Encontramos muita onça, e muita cascavel, mas do Cabeleira nem novas     nem mandado. Há quem diga que ele a esta hora já está     nos sertões dos Cairiris.

 

Qual Cairiris, senhor ! Amanhã hei de dar com esse dunga disse o     Marcolino.

 

O compadre Marcolino jura que o viu hoje junto das cachoeiras do rio acrescentou     o Marciano.

 

Mas não nos mostrou o cabra durante todo o dia respondeu Agostinho.

 

Está bem, senhores, não falemos mais nisso. Os senhores estão     desfazendo agora no meu dizer, talvez amanhã a coisa já seja     outra. Eu sou um pé-rapado, é certo, mas muito verdadeiro.

 

Ninguém duvida de sua palavra, Marcolino.

 

Um negro que estava metendo lenha no forno virou-se então para o matuto,     e, de improviso, lhe dirigiu este verso:

 

Vosmecê, seu Marcolino, Vai atrás do Cabeleira ? Se quiser pegar     o cabra, Monte na basta louceira.

 

Ainda bem não tinha terminado o seu repente, quando um caboclo que,     a um canto do alpendre estava lavando em um cocho uma porção     de mandioca, se saiu com esta resposta:

 

Monte na besta fouveira, Ou no cavalo cardão, Não há     de pegar o cabra No meio desse mundão.

 

Reinou então silêncio no alpendre para só se ouvirem     os dois repentistas. Estava travado um desses desafios que são tão     comuns nos sertões do Norte, e, muitas vezes, pela facilidade das rimas     e originalidade dos conceitos, chegaram a oferecer versos que podem figurar     entre os mais primorosos monumentos da literatura natal. O negro replicou:

 

Se você gosta do bicho Porque rouba, e mata gente, Veja que alguém     não lhe tire As orelhas pra presente.

 

O caboclo respondeu:

 

Mete, negro, a tua lenha No teu forno, caladinho; Mas não te metas     com o homem; Podes ficar sem focinho. O negro:

 

Eu que sou negro nas cores Mas não negro nas ações,     Se fosse atrás do malvado, Cortava-lhe os esporões.

 

O caboclo:

 

Para o negro que se mete Onde não lhe dão entrada Não     tem faca o Cabeleira, Tem uma peia ensebada.

 

O negro:

 

Eu respeito a meus senhores E senhoras que aqui estão; Mas porém     não levo em conta Quem não teve criação.

 

O caboclo:

 

Caboclo do pé da serra, Criado à beira do rio, Eu sempre tratei     com gente, Porque sustento o meu brio.

 

O desafio, tão bem encaminhado, foi interrompido pela chegada de um     cavaleiro. Era o Felisberto que voltava da vila.

 

A lida na casa de farinha continuou não obstante até alta noite,     entre risos e cantigas.

 

O luar inundava o vasto pátio do sítio, e ia pratear as margens     e águas do Capibaribe.

 

Viração intermitente agitava as folhas das macaibeiras e dendezeiros     que se levantavam pela extrema das terras de Felisberto.

 

Cortava os ares o suave murmúrio das águas casado com o canto     monótono dos curiangos, que pulavam pelos caminhos.

 

Pela madrugada, o Marcolino montou no cavalo castanho, atravessou o rio,     e meteu se no vasto deserto, ainda adormecido. Como quase todos os homens     rústicos, era caprichoso, e entendia que se não cumprisse a     sua palavra solenemente empenhada, ficaria sendo o ludíbrio de todos     os que o conheciam. Preferia, a este extremo, morrer de fome e sede no mato,     ou comido das onças, coisa em que, para dizermos, pouco cuidava. Todas     suas idéias estavam voltadas para um centro único: descobrir     o Cabeleira. Era este o seu ponto de honra.

 

Sabendo que o Cabeleira ordinariamente, quando se ausentava das matas de     Santo Antão, aparecia nas de Pau d'Alho, tomou a direção     desta povoação.

 

Pau d'Alho fazia então parte da freguesia de Iguaraçu, da qual     foi desmembrada em 1799 para ser elevada a freguesia por proposta do visitador     Joaquim Saldanha Marinho, nome que traz hoje com invejável brilho um     dos maiores espíritos que conta o Brasil moderno. Passou a vila por     alvará de 27 de julho de 1811, e a comarca pela lei provincial de 5     de maio de 1840.

 

Marcolino subiu pela margem do Capibaribe, e antes do meio dia entrou na     povoação que fica em terreno plano à beira deste rio.     Nada lhe constou a respeito do Cabeleira.

 

Demorou-se o tempo estritamente necessário ao descanso do cavalo,     e quando o sol quebrou pos-se novamente a caminho para Goitá, que fica     quatro léguas distante de Pau d'Alho, e nesse tempo era um lugarejo     de nenhuma importância, pertencente a Santo Antão.

 

Há loucuras transitórias que por tal modo revolucionam o espírito     do homem, que o tornam capaz assim de grandes baixezas, como de virtudes ímpares.     Feliz aquele que, sob a influencia de loucuras semelhantes, põe os     seus esforços e sacrifícios ao serviço da humanidade     ou de uma causa nobre.

 

Marcolino estava possuído de uma dessas loucuras.

 

Sem o pensar nem querer, tinha fatalmente arriscado a sua palavra, o seu     brio, a sua honra. Estava apaixonado pelo lance, e era inevitavelmente arrastado     a seu destino.

 

Deixando mulher e filhos, em duelo com a necessidade, vinha, como um cruzado,     um peregrino, um apóstolo do bem, ou um visionário em busca     de um ente que fazia tremer povoações inteiras, que preocupava     o governo, que aparecia como fantasma, e desaparecia como uma sombra.

 

Este ente tinha à sua disposição o mato para o receber,     os ecos para o avisarem da aproximação dos que o buscavam, os     rios para encherem depois de sua passagem, as grutas para o esconderem, a     natureza enfim para o disputar tenazmente aos homens, ao poder público,     às leis, à justiça, ao próprio Deus segundo parecia.

 

A tardinha Marcolino estava no lugarejo. Debalde perguntou, debalde indagou.     Não houve quem lhe desse novas do famoso bandido.

 

Aí pernoitou, mas não dormiu.

 

Muito cedo meteu-se nas matas.

 

A cabo de dois dias, consumidos sem resultado, entrou a cair em si. A razão     tinha-se libertado da alucinação que a prendera em suas redes     de aço. A sua doce luz reapareceram os caminhos que as trevas da paixão     tinham encoberto ao olhos da vítima do sonho fatal.

 

Marcolino caíra em si no meio do deserto, ouvindo o rugir das feras,     lutando com a fome.

 

Desanimado, envergonhado da sua fraqueza, resolveu voltar ao seio da família.

 

Então a imagem dos filhos e da mulher lhe apareceu na mente. Ele teve     saudades da casa e quis partir à mesma hora; mas conhecendo os perigos     a que se expunha se o fizesse, aguardou sôfrego a madrugada. Quando     os horizontes começaram a desmaiar, e o brilho das estrelas a embranquecer,     Marcolino pos-se a caminho.

 

Estava inteiramente outro.

 

A vergonha cobria-lhe o rosto, o medo dominava-lhe o espírito, na     consciência doía-lhe o remorso de haver, sem o menor interesse     pessoal, desamparado mulher e filhos nas garras da miséria.

 

O dono da casa onde ele havia pernoitado dois dias antes, ao qual devia,     além desta, outras muitas obrigações, dera-lhe uma carta     para ser entregue por ele ao senhor do Engenho Novo que de presente faz parte     da freguesia de Pau d'Alho, e pertencia naquele tempo a Goiana.

 

Quando Marcolino chegou a Pau d'Alho, o cavalo estava cansado da viagem,     e do mau passar durante ela. Para levar a carta a seu destino, teve o matuto     de caminhar a pé. Ele viu nisso uma nova tribulação com     que a sorte o punia da sua loucura.

 

Ao anoitecer, de um alto por onde passava o caminho antes de sair da mata     que cercava o engenho pelo lado do sul, viu ele um homem correr gacheiro e     cauteloso pelo aceiro afora, e entrar adiante no canavial.

 

Marcolino por um triz não caiu fulminado de espanto, sobressalto e     satisfação ao mesmo tempo.

 

Tinha reconhecido nesse homem o Cabeleira.

 

 

 

A fome obrigara o bandido a deixar o mato, como obriga as aves a emigrarem,     e as feras cervais a deixarem seus covis.

 

Havia cinco dias que ele partira de Santo Antão, e três que     não comia senão os escassos frutos que lhe dava a macaibeira,     o ananaseiro bravio, o jatobá do deserto.

 

Uma tarde em que a fome e a fadiga o tinham prostrado, viu dentre umas touceiras     de taquara onde se recolhera para cobrar animo, um cavaleiro que, havendo     atravessado o rio, de força tinha de passar a poucos passos dele, em     um cotovelo formado pela picada.

 

O cavaleiro era um velho e parecia?se mais com uma múmia do que com     um ente vivo.

 

Tinha a pele grudada nos ossos, e seu corpo apresentava ângulos e retas     de dureza escultural.

 

O cavalo não tinha melhor parecer do que seu senhor. Era uma armação     óssea informe, pesada, cadavérica e triste.

 

Trazia o velho tão caída a cabeça para diante, que quase     chegava com o queixo recurvado ao cabeçote da cangalha. O cavalo, parecendo     ceder à mesma lei que o cavaleiro, por vezes varria com os beiços     coriáceos o pó do caminho. Essa lei era a lei da fome.

 

"Este velho", pensou o Cabeleira, "traz pelo menos farinha     nos caçuás. Vou tomar?lhe para mim, e se ele não quiser     entregar?me a sua carga, corto?lhe a garganta."

 

Empunhou o pedaço da faca, única arma que lhe restava do terrível     cangaço de outrora, e quando o velho confrontou com ele, saltou?lhe     ao cabresto do cavalo. Este parou de muito boa vontade, enquanto seu dono,     sem se mostrar aterrado nem sobressaltado, disse ao bandido:

 

Guarde?o Deus, meu senhor saudação que até bem pouco     tempo se ouvia no sertão.

 

Quando estava para fazer a terrível intimação, sentiu     o Cabeleira faltar?lhe força para suster o cabresto, tromeram?lhe as     pernas, vacilaram?lhe os pés. Seus olhos tinham dado com a imagem de     Luísa, de joelhos na beira do caminho com as mãos postas, os     olhos suplicantes, tristes e chorosos, voltados para ele. Pareceu?lhe até     ouvir as seguintes palavras:

 

Não o mates, Cabeleira.

 

Esta ilusão era efeito da sobreexcitação nervosa, produzida     em todo o seu organismo pela falta de alimentos, pela dor moral que lhe causara     o transito da moça, ou talvez pela profunda revolução     que antes de ter ela falecido havia obrado nos seus instintos, idéias,     e hábitos, o sentimento destinado a redimi?lo do erro, e do crime o     amor.

 

Foi tão profundo e violento o abalo que experimentou ao ver aquela     doce efígie (a qual ele julgava ter desaparecido para sempre de seus     olhos ), que irresistivelmente lhe escaparam dos lábios estas palavras:

 

Não o matarei, meu amor; não o matarei. Mas não foram     somente as palavras que lhe escaparam violentamente dos lábios; dos     olhos lhe saltaram também lágrimas espontâneas, que ele     não pôde reprimir.

 

E como para dar plena satisfação àquela doce imagem     que se atravessava diante dele no momento em que um crime estava a ser cometido     por sua mão, Cabeleira atirou dentro de uma grota que ficava do outro     lado da picada o resto da arma de que estivera pendente a vida do pobre velho.

 

Este, acordando novamente do profundo abatimento que pesava sobre todos os     seus membros, dirigiu outra vez a palavra ao bandido:

 

Camarada, estou pronto para servi?lo.

 

Há três dias que não boto na minha boca um punhado de     farinha disse José. Traz você aí alguma coisa que me queira     dar para comer ?

 

É seguramente meio?dia, meu senhor m disse o velho erguendo a custo     os olhos ao sol para se certificar da hora. Amanhã pela manhã     faz quatro dias que este corpo velho, que o senhor está vendo, não     sabe o que é comer. Dou a Deus por testemunha da minha verdade.

 

E que é que traz dentro destes caçuás ? perguntou?lhe     o Cabeleira.

 

Pode ver o que trago. Nada. Tinha uma filha solteira, outra viúva     e três netinhos. Veio a peste e levou?me as duas filhas em menos de     oito dias. Não tendo recurso nenhum para acudir às minhas necessidades,     saí a pedir. Fui à casa de meu compadre, que mora na Ladeira     Grande; o compadre tinha morrido das bexigas, e a mulher estava para entregar     a alma a Deus; o gadinho que possuía desaparecera com a seca; alguma     criação que ficara no terreiro tinha sido comida pelos magotes     de gente, que vêm aí em retirada, caindo aqui, morrendo acolá     de fome, só de fome. Achei no pátio da propriedade este cavalo     velho, que me vai arrastando até a casa. Sabe Deus se lá chegarei,     ou se não ficarei no caminho, sem ter visto meus pobres netos ainda     uma vez antes de morrer.

 

Está bom, meu velho; vá seguindo seu caminho. Você é     mais necessitado do que eu.

 

Não da graça de Deus, senhor disse o velho.

 

O Cabeleira entrou de novo no tabocal.

 

O abalo que a visão lhe causara, o espetáculo de miséria     que lhe descrevera o velho, miséria muito maior do que a sua, deram?lhe     forças para prosseguir na peregrinação.

 

No dia seguinte entrava ele nas matas de Goitá, seu mundo virgem,     em cujo seio, talvez pela razão de lhe consagrar entranhável     afeto, se considerava o mais seguro e feliz dos mortais.

 

Deitou-se e dormiu.

 

Quando acordou sentiu que consigo havia acordado, mais devoradora e cruel,     a fome que o tinha prostrado por terra na véspera.

 

Depois de ter levado quase todo o dia em vão à caça     de algum fruto silvestre, deu com a vista, no meio de uma aberta que fazia     a mata, sobre os estendidos canaviais do Engenho Novo. Da lomba, onde havia     parado, desceu rapidamente à orla da floresta.

 

Era quase noite.

 

Alongou os olhos pelas imensas quebradas onde a cana acamava, e só     viu um mundo de verdura que lhe acenava com doces presentes.

 

Ah! ele podia passar meses dentro desse mundo, sem que o vissem, e sem risco     de ser devorado por animais ferozes. Era uma região amiga a que se     lhe abria diante dos olhos.

 

A planta que estava destinada a ser mais tarde a base principal da fortuna     e riqueza de um vasto império; essa planta abençoada que dali     punha à sua disposição nutritivo e precioso suco oferecia?lhe     também proteção à sombra da sua basta folhagem.     Podia ele, pobre foragido, refazer as forças no seio dessa solidão     generosa que lhe daria a sorver licor suavíssimo, como o que mana de     um seio maternal.

 

Cabeleira, rápido como um jaguar, pos a cabeça de fora do mato,     olhou, observou, e, nada vendo, atravessou o aceiro e penetrou no canavial.

 

Achando?se já dentro, voltou?se e observou de novo. Não viu     viva alma. Do outro lado do aceiro estava a floresta virgem, donde ele havia     saído. As sombras do lusco?fusco cobriam as montanhas, as quebradas,     os vales, todo o retiro enfim. Em torno dele, e além das folhagens,     além das planuras até onde pode chegar com a vista e com as     ouças, só viu a solidão profunda, só ouviu o silêncio     absoluto da natureza.

 

Ia adiantada a noite quando ele terminou sua refeição.

 

A lua discorria suavemente, entre castelos de nuvens, na vasta campina celeste,     e a viração ciciava brandamente no canavial onde deixava as     fragrâncias que, como abelha da noite, trazia do pau?d'arco da mata     próxima em suas asas sutis.

 

Cabeleira pôs nos ombros as últimas das canas que quebrara e     tomou a aberta por onde havia entrado. Mas foi logo obrigado a voltar sobre     seus passos para não ser visto por dois negros do engenho que estavam     defronte da abertura da camarinha.

 

O canavial não tinha somente esta saída. Mas qualquer delas     para onde encaminhou seus passos se lhe mostrou tornada por escravos do engenho.

 

O Cabeleira achava?se tão longe de pensar que o guardavam, que acreditou,     para explicar o que seus olhos descobriram, que os negros faziam quinguingu     ao luar como de costume.

 

Deitou?se, e o sono que dormiu foi profundo e reparador. Se tivessem penetrado     no lugar onde ele adormecera tê?lo?iam prendido sem dificuldade, como     se fora uma criança.

 

Raiou enfim o dia com seu cortejo de luz e movimento.

 

O sol despertou o bandido com um raio que lhe enviou por entre a folhagem.     Não para sair, mas unicamente para observar, o Cabeleira aproximou?se,     sem fazer ruído, da primeira abertura que se lhe oferecera. O que então     viu deu?lhe idéia da triste realidade que ele estava longe de suspeitar,     mas que o abraçava como um círculo de ferro. Não estavam     guardadas as saídas por negros como durante a noite, mas por sentinelas     militares. Cedo seus olhos reconheceram que uma linha compacta de soldados     cercava todo o canavial, donde não poderia sair um rato contra a vontade     deles.

 

Oh ! como apareceu carregada aos olhos do infeliz mancebo aquela doce natureza,     onde acreditara que poderia estar ao abrigo da perseguição dos     homens, e da fatalidade da sorte !

 

"Estou perdido para sempre", pensou ele. "Cercado por todos     os lados, sem companheiros que me auxiliem na evasão, sem uma arma     com que possa abrir passagem entre os que me cercam, não poderei salvar?me."

 

Seu espírito caiu em profunda meditação.

 

O canavial estava literalmente sitiado. No mesmo instante em que soube, por     boca de Marcolino, que o Cabeleira tinha passado do mato ao canavial, o senhor     do Engenho Novo reunira a fábrica passante de trezentos negros e os     mandara pôr se de guarda ao bandido.

 

Sem perda de tempo expedira o próprio Marcolino com uma carta participando     o fato ao capitão?mor que se achava já então no seu engenho     Petribu, e pedindo?lhe prontas providências.

 

Uma companhia completa de milicianos achava?se ainda de ordens ao capitão?mor     que tinha em mente dar novo varejo nos matos, por ocasião de sua volta     a Goiana. Essa companhia partira incontinenti, tendo à sua frente Cristóvão     de Holanda, para o lugar onde se tinha de verificar a importante diligência.     Ordens terminantes foram expedidas durante a noite aos coronéis de     ordenanças que se achavam mais próximos, a fim de que antes     do amanhecer se achassem com fortes partidas no lugar indicado.

 

Um inimigo poderoso que houvesse batido às portas da freguesia não     teria motivado o movimento de tropas que se verificara nas doze horas daquela     noite com prontidão que faz honra à disciplina militar daqueles     tempos.

 

Pela manhã as paragens contíguas ao ponto assediado figuravam     um pequeno campo de batalha. Cerca de duzentas praças achavam?se ali     reunidas, por que o assédio fosse sustentado com todo o rigor militar.

 

Ao cair da tarde um oficial ofereceu?se para penetrar no canavial com doze     homens de sua escolha, assegurando que o bandido não viria a contar     vitória.

 

Cristóvão de Holanda, tendo ouvido os seus coronéis     sobre a proposta do destemido oficial, considerou?a inconveniente por dar     ocasião à luta pessoal, da qual poderia resultar a morte do     bandido.

 

Não havendo, para conseguir?se a rendição deste, outro     meio que o assédio, foi este resolvido por unanimidade.

 

O Cabeleira tentou mais de uma vez iludir a vigilância das guardas     durante a noite, mas em vão. Antes de escurecer essas guardas eram     reforçadas, e a vigilância dobrava na proporção     das facilidades que naturalmente a noite oferece para a evasão.

 

Passaram?se dois dias sem resultado. Ninguém, durante esse espaço     de tempo, havia visto o prisioneiro. Começou?se a desconfiar de sua     existência dentro do canavial.

 

Marcolino foi interrogado pela segunda vez, e declarou que tinha visto o     bandido entrar ali, só e sem armas.

 

Esta última declaração veio aumentar a desconfiança     geral. Não se pôde, com razão, explicar que o famoso assassino     se houvesse despojado, para penetrar ali, de suas armas no momento em que     mais se expunha à ação da justiça.

 

Marcolino, à vista destas considerações, às quais     nada teve que opor, começou a descrer de si mesmo e a acreditar que     seus olhos o tinham enganado. O desanimo, a tristeza, a vergonha, que já     o haviam deixado, volveram a abatê?lo novamente.

 

Cristóvão de Holanda excogitava já um meio de sair com     honra da situação em que se via, quando lhe lembrou mandar arrasar     o canavial.

 

Toda a fábrica foi chamada incontinenti ao lugar onde as foices afiadas     tinham de abater em poucas horas a ridente floresta que durante quase três     dias servira de pitoresca muralha ao Cabeleira.

 

Ele ouviu do centro da espessura onde estava, com o sangue?frio que é     natural aos homens afeitos aos perigos, o rumor, ao princípio afastado,     depois mais próximo, da queda dessas touceira abençoadas a que     devia o franco asilo que nunca encontrara entre os seus semelhantes.

 

O círculo foi?se estreitando gradualmente em torno do prisioneiro,     com a rapidez de um incêndio que ao mesmo tempo avança da circunferência     ao centro.

 

A proporção que as camadas iam caindo aos golpes dos possantes     segadores, eram logo retiradas a fim de que se tivesse sempre desobstruída     a passagem, e fácil fosse o acesso ao ponto objetivo.

 

As linhas militares, que mantinham o assédio, acompanhando o descrescimento     do espaço que desaparecia aos olhos dos circunstantes, tornavam?se     gradualmente compactas, fortes, impossíveis de romper.

 

A princípio acreditou?se, não obstante o que dissera o Marcolino,     que o Cabeleira não estava desacompanhado.

 

A cada momento esperava?se ouvir a detonação de uma descarga     de dentro contra a força que cercava o ponto. Quem não se considerou     exposto ao punhal, à bala, à morte julgando ter através     de frágeis plantas, um inimigo, se não uma companhia de inimigos     amestrados na prática de todos os crimes ?

 

Chegou enfim o momento dos negros descarregarem suas cortantes foices sobre     o último renque de touças aquele que separava do campo arrasado     a vasta camarinha em que se acoutara o bandido.

 

Desapareceu de todo o verde tufo aos olhos dos circunstantes; as duas superfícies     a exterior e a interior uniram?se como por encanto; o Cabeleira surgiu dentre     as folhas com que pouco antes brincava a brisa, agora confundidas com as palhas     secas, imagem, como aquelas, do seu perdido poder.

 

Serena e resignada tristeza cobria?lhe o rosto queimado pelo sol que naquele     momento lhe beijava a face onde haviam deixado indícios das suas garras     a dor moral e a fome. Caía?lhe sobre os ombros a basta onda de cabelos,     cacheados ao longe, e mais negros do que a barba escassa e nova que atestava     a sua pouca idade. Seu trajo era simples: véstia de couro surrado,     camisa e calça que deixavam ver, através dos rasgões,     o corpo de cor branca. O Cabeleira estava descalço, e tinha a cabeça     coberta por um chapéu de palha de pindoba.

 

Quando se achou de súbito em, presença da multidão,     levou instintamente a mão ao chapéu, e descobriu?se.

 

Os mais animosos que haviam corrido a pôr?lhe as mãos para segurá?lo,     tomando o gesto respeitoso que bem denotava o bom natural do bandido, por     uma ameaça, ou meneio de agressão, recuaram amedrontados.

 

Cristóvão de Holanda Cavalcanti, sustentando os foros de uma     estirpe que já se havia ilustrado em 1710, e que no Brasil independente     ?estava destinada a figurar com o brilho que sabemos, aproximou?se do bandido     e com o ar e jeito grave que lhe davam a nobreza e a autoridade que revestia:

 

É você o Cabeleira ? perguntou ele ao mancebo.

 

Saberá V. Sª que sou eu José Gomes respondeu ele sem     hesitar nem subterfugir.

 

Uma centena de vozes confirmou esta resposta franca, completa, e própria     do seu grande ânimo.

 

José Gomes disse?lhe Cristóvão pondo a mão direita     no ombro do mancebo , você pelos enormes crimes que tem cometido, está     preso em nome da lei, e vai responder perante a junta de justiça.

 

Então, em conformidade da ordem dada por ele, um toque de corneta,     que atroou a solidão, anunciou que o criminoso tinha caído nas     mãos dos agentes da força pública.

 

Gonçalo Pais disse Cristóvão voltando?se para o seu     ajudante , mande soltar o matuto, que denunciou o criminoso. Se este não     fosse encontrado dentro do cerco, o denunciante pagaria com três tratos     de polé a humilhação a que me houvesse exposto perante     o governador. Como se verificou a sua declaração, será     recompensado pelo régio erário, e recomendado à munificência     del?rei nosso senhor.

 

Meia hora depois, Marcolino, montado em fogoso cavalo baio, desapareceu com     ar e jeito de quem alcançou grande vitória, no caminho de Santo     Antão, a levar a notícia de uma prisão que salvara a     sua honra, e com que ele se considerava coberto de glória.

 

 

 

Grande concurso de povo tomava uma tarde uma das embocaduras da rua do Amparo     da ilustre vila de Goiana.

 

Depois de algum tempo chegaram de longe, do lado do Barro Vermelho, ao ponto     da reunião os sons de um clarim, que logo cessaram para deixarem ouvir     os rufos de um tambor.

 

A este sinal, sofregamente esperado, alvoroçou?se a multidão.     As mulheres compuseram seus lenços no pescoço, os lençóis     na cabeça, os cabeções de rendas, então muito     em uso. As mães conchegaram bem a si os filhos menores, que tinham     pela mão; os pais foram ocupar seu posto, que não mais desampararam,     ao pé das consortes e filhas, que se mostravam temerosas do que poderia     vir a acontecer, porque, em muitos dos circunstantes, à curiosidade     se substituiu logo o terror pânico, difícil de vencer, e sempre     contagioso e pegadiço.

 

A rua do Amparo contava então uma só casa de sobrado.

 

Via?se na varanda deste d. Leonor, mulher do capitão?mor. Seus belos     olhos estavam voltados para o extremo da rua onde era tudo confusão     e burburinho. Entre os anéis dos seus negros cabelos brilhavam ricas     flores de ouro e coral, semelhantes a malmequeres e pitangas. Um vestido de     seda azul, com ramos de rosas brancas que lhe subiam da fímbria à     cintura, deixava adivinhar as formas admiravelmente corretas da nobre senhora,     cuja gentileza impunha a todos preito com que se não daria mal uma     princesa. A seu lado, mostravam?se outras senhoras pertencentes às     primeiras famílias da vila.

 

De repente ouviu?se de novo o clarim, a quem coube a distinção     de anunciar a entrada da tropa com o grande prisioneiro.

 

A soldadesca rompeu por entre a multidão, e encaminhou?se à     casa do capitão?mor.

 

Este vinha à frente do batalhão, e montava sua cavalgadura     de estimação ricamente ajaezada. Ao lado do capitão?mor     mostravam?se alguns coronéis de ordenanças.

 

O prisioneiro aparecia no centro da tropa. Sua fisionomia estava triste;     mas não tinha a carregada expressão da perversidade, nem o vil     abatimento da covardia. Seu passo, posto que forcado, era firme, qual devera     ser o de um homem de poderosa organização, aos 24 para 25 anos     de idade.

 

Faltava porém a esse homem a prontidão nos movimentos físicos     a que por inúmeras vezes devera sua salvação. Uma corda     de couro cru prendia?lhe em diferentes anéis os braços, poucos     dias antes prestes a levar a destruição e a morte a afastadas     regiões.

 

Poucos foram os que não tiveram os olhos arrasados de lágrimas     quando viram escravo de uma cadeia ignóbil o infeliz moço, que,     ainda ontem, tinha a imensidão a seu dispor, e era livre como as feras     no deserto. A presença do infeliz despertara a piedade de quase todos     os espectadores.

 

Naquele tempo a cadeia de Goiana não tinha a solidez da que se vê     presentemente na rua Direita. Era uma casa de um só pavimento a que     faltavam quase todas as condições de segurança e higiene     que as penitenciárias modernas reúnem.

 

Viam?se em suas janelas não grades, mas varões de madeira.     Muitos criminosos conseguiram evadir?se quebrando alguns desses varões.     Nem é de admirar que tais fossem as condições da cadeia     pública daquela vila em 1776, se ainda hoje, com exceção     das capitais e de algumas cidades interiores de mais nota, se apontam localidades     importantes e até sedes de comarcas que não têm melhores     prisões que as do tempo colonial.

 

Não só pela manifesta incapacidade da prisão pública,     mas também por não confiar de ninguém a guarda de um     réu dos quilates do Cabeleira resolveu Cristóvão de Holanda     tê?lo em sua própria casa durante o tempo que fosse necessário     para os preparativos da jornada ao Recife.

 

As primeiras autoridades de Goiana reuniram?se à noite em casado capitão?mor,     que a tuba da fama começou a apregoar como o salvador da província.

 

Enquanto essas autoridades praticavam da questão do dia a prisão     do malfeitor, este, no pavimento inferior, de que uma parte lhe fora dada     por menagem, entregava?se a fundas cogitações.

 

Um soldado, que dele se compadecera, o tinha persuadido a ir passar alguns     momentos no quintal, a fim de se divertir de suas idéias tristes. O     Cabeleira sentara?se a um canto, à sombra de uma cajazeira.

 

Em qualquer parte para onde volveu os olhos só lhe apareceram guardas     que não perdiam um só dos seus movimentos. Ergueu os olhos acima     dos altos muros que o cercavam, e deu com a vista nas belas estrelas que tinham     sido suas companheiras no deserto. Aqueles astros saudosos, guias leais e     constantes do filho da liberdade, não alumiavam agora nesse filho senão     o escravo da justiça que qualquer criança poderia impunemente     insultar.

 

Lembrou?se de Luísa, cujo cadáver não lhe havia permitido     dar à sepultura o instinto da própria conservação;     o medo irresistível da morte o impelira para o seio da floresta antes     que ele houvesse cumprido este piedoso dever.

 

Ah ! Luisinha ! pensou ele. Se eu tinha de cair alguns dias depois no poder     da justiça, por que fugi então sem ter primeiro posto teu corpo     ao abrigo dos urubus, ou dos cães de caça ? Ah ! meu amor, perdoa     minha crueldade, perdoa minha ingratidão.

 

As lágrimas saltaram?lhe dos olhos em impetuosa torrente.

 

De que choras, Cabeleira ? perguntou?lhe o soldado que dele se mostrara     compassivo. Estás com medo da morte ?

 

Não, não tenho medo de morrer disse ele. Estou chorando de     me haver lembrado da única mulher, a quem, depois de minha mãe,     quis bem nesta vida.

 

Qual mulher? Será a que deixaste morta junto das cabeceiras do rio     ?

 

Essa mesma. Você a viu ?

 

Sim, eu a vi. Mas que bem poderias querer a ela, se foste tu próprio,     Cabeleira, que a mataste ?

 

Não, eu não a matei; ela morreu, ela mesma, quando se considerava     feliz comigo, e quando eu via nela meu maior prazer, minha maior dita. Ah,     Luisinha, tu bem sabes que eu te queria muito bem, muito ! Que pena tenho     eu quando considero que te perdi para sempre, que te deixei no deserto, que     os carcarás furaram teus olhos, que os urubus despedaçaram tuas     carnes, e que os anus, pretos como meu coração, esvoaçaram     por cima de teus ossos !

 

Os soluços embargaram a voz do desgraçado.

 

Se é por isso, não chores, Cabeleira. O corpo de Luisinha     não ficou às aves nem aos animais do mato.

 

Não ficou ?

 

Eu o enterrei com minhas próprias mãos.

 

Você ?

 

Eu e mais outro companheiro.

 

O bandido correu ao soldado para o apertar em seus braços em sinal     de reconhecimento. Mas a corda que o prendia pelos lagartos tolheu que ele     lhe desse esta demonstração.

 

Não tem que me agradecer disse o miliciano. Eu vi Luisinha menina.     Você não me conhece, mas eu também o vi pequeno; e se     sua prisão estivesse em minhas mãos, nunca ela se teria feito.

 

O soldado afastou?se do Cabeleira para que este não lhe visse as lágrimas     que de quatro em quatro estavam banhando suas faces.

 

Não se afaste, camarada disse o prisioneiro. Tenho certeza de que     você não me quer mal, e por isso quero pedir?lhe um favor. Não     sei como poderei passar esta noite com a tristeza que tenho. Poderá     você arranjar?me uma viola ?

 

Pouco depois ignotos sons, que estão acima do maior elogio, levaram     melancolia e saudade ao coração de todo aquele de quem se fizeram     ouvir.

 

Fora já servida a última refeição, e os hóspedes     se haviam retirado a suas casas. Era tudo mudez na rua e vizinhanças.     Os sons melífluos que já haviam imposto silencio aos soldados     chegaram ao terrado da casa de Cristóvão como uma torrente de     celestiais melodias, que lembraram a harpa de Davi, ou a lira de Anfião.     Estas melodias comoveram o capitão?mor e sua jovem senhora, que iam     ficar dentro em algumas horas separados de novo.

 

Como são tristes os sons desta viola ! disse ele. São as últimas     despedidas de quem está a entrar no reino da verdade.

 

Mais me entristecem estas palavras suas, Cristóvão disse dona     Leonor. Se nós o pudéssemos salvar...

 

Que diz, Leonor? Ele é um grande assassino. Sua mão tem derramado     rios de sangue inocente. Os monstros não tem entranhas mais cruas do     que as dele.

 

Pobre moço! Para atestar que seu coração não     é tão mau, nem sequer lhe vale a expressão de bondade     que tem no rosto ! Escute, Cristóvão. Conversávamos aqui     há pouco eu e dona Catarina; Gonçalo Pais estava ao nosso lado.     Senão quando vieram trazer?nos delícias e despertar em nós     saudades comoventes os sons que o prisioneiro extrai com rara delicadeza de     seu inspirado instrumento. Dona Catarina manifestou então grandes desejos     de o conhecer.

 

E que fizeram ?

 

Descemos ao quintal acompanhadas de Gonçalo. Assim que nos viu, ele     levantou?se, e nos saudou respeitosamente. "Continue a tocar, Cabeleira",     disse?lhe eu. "Ah, senhora, mal posso pegar na viola. Além disso     eu não sei tocar coisa capaz, senhora minha. Mas estes sons grosseiros     podem melhorar se vossa senhoria, por sua bondade, mandar que me afrouxem     um pouco estes laços. A corda penetrou?me na raiz das carnes, e tira?me     toda a ação." Fiz sinal a Gonçalo para que satisfizesse     o pedido do prisioneiro, mas Gonçalo hesitou.

 

Fez bem disse o capitão?mor.

 

"Pode fazer sem susto o que minha senhora manda, sr. tenente. Cabeleira     não fugirá porque está cansado de viver", disse     o prisioneiro. Faltam?me expressões para lhe dizer, Cristóvão,     o que ouvimos então. Notas de órgão inspirado não     dizem os mistérios, as melancolias que se debulharam da viola do desgraçado.     Vendo?o tão moço, tão artista e tão infeliz,todos     nos sentimos comovidos da sua sorte; e ele, o prisioneiro, chorava e soluçava     como uma criança.

 

Basta, Leonor disse Cristóvão abalado com a narração     que acabava de ouvir.

 

Dona Leonor, surpreendendo este sentimento do marido, propôs?se tirar     dele o maior proveito para o infeliz. Atirou?se a Cristóvão     de Holanda, e o cobriu de afagos e carinhos.

 

Fez mil rogativas para que se amerceasse da sorte do Cabeleira. A seu entender,     alguns anos de prisão bastariam para que ele se corrigisse e emendasse.

 

Mas quem diz que não será esta a pena que se lhe vai impor     ? perguntou o capitão?mor.

 

Não o disse já o senhor, Cristóvão? Sou eu que     lhe peço que de escapula ao infeliz.

 

Escapula, Leonor, escápula ! exclamou Cristavão. E minha honra,     e meu dever?

 

Eles não ficarão manchados com um ato de humanidade. Todos     dizem que a maus conselhos e funestas instigações deve o Cabeleira     o ter cometido tantos crimes. Pois bem; aquele que o aconselhou e instigou     à prática desses crimes, o verdadeiro criminoso, lá está     para responder pelo que fez, e mandou o filho fazer. Sua condenação     servirá de exemplo à sociedade e ao próprio filho dele;     mas a condenação deste será uma grande injustiça,     e o céu não permitirá jamais que para ela concorra Cristóvão     Cavalcanti que sempre trouxe limpo o brasão que lhe legaram seus avós.

 

O capitão?mor levantou?se com a palidez na face. A poderosa dialética     da consorte o havia feito sentir mais alterações na alma do     que seus próprios carinhos no coração. A verdade sobre     o Cabeleira era justamente aquela que sua mulher havia resumido em meia dúzia     de palavras vivas e violentas.

 

Depois de ter dado alguns passos pelo terrado Cristóvão caminhou     para dona Leonor, que o não tinha perdido de vista.

 

Tudo o que disse é verdade, Leonor; mas sou eu acaso juiz ? Não     sou mais do que o executor de uma ordem do governador. Acredito que prendi     um criminoso, para o qual, se a mim competisse julgá?lo, teria eu uma     condenação mais branda. Mas o direito de o mandar ir embora     não o tenho eu. Se usasse de semelhante faculdade, Cristóvão     de Holanda teria lançado sobre seu nome honrado uma mancha indelével.

 

Tendo dito estas palavras, Cristóvão de Holanda recolheu?se     imediatamente a seu gabinete em companhia de Gonçalo Pais.

 

tatuando a lua apareceu no céu triste e pálida como os anjos     dos sepulcros, a tropa recebeu ordem para partir no mesmo instante. O capitão?mor     precipitava a jornada que havia dilatado para o dia seguinte.

 

Pouco depois a tropa moveu?se. Dona Leonor, anjo de amor e de benevolência,     deixava cair nesse momento, em silencio, algumas lágrimas, límpidas     como sua alma.

 

A respeitável senhora tinha saudades do esposo que novamente se ausentava,     e pena do infeliz, que a morte atraía a si na forma de um patíbulo,     e em nome da lei.

 

 

 

Chegou enfim o momento da extrema provação.

 

Ainda não tinha decorrido um mês, quando se ouviram os duros     sons das crebras marteladas, que anunciavam à população     do Recife o próximo e fatal fim dos delinqüente. Levantava?se     a forca no largo das Cinco Pontas.

 

Pela segunda vez este instrumento de suplício sobressaltou os ânimos     e encheu de dor os corações na vila heróica.

 

Por grandes que sejam as ofensas que a sociedade tenha recebido de um dos     seus membros, a razão pública sente?se abatida diante da sua     punição por meio da morte natural.

 

A memória dos primeiros suplícios estava quase de todo apagado     do espírito do povo. Realizaram?se eles durante a administração     do governador Henrique Luís. Haviam decorrido da sua realização     38 anos, tempo mais que bastante para que se oblitere da tela do pensamento     a imagem de semelhantes representações.

 

Os pernambucanos lembravam?se porém ainda em 1776 do muito que custara     a esse governador sentenciar à morte alguns criminosos.

 

Uma provisão régia de data de 20 de outubro de 1735 tinha criado     em Pernambuco a junta de justiça criminal, a mesma que 1776 julgou     o Cabeleira, seu pai e os demais réus que sabemos.

 

Havia?se reunido em conformidade da citada provisão na casa da câmara     aquela junta, composta do governador, dos ouvidores de Pernambuco e Paraíba,     do juiz de fora de Olinda, e de um dos ouvidores que tinham servido na primeira     das sobreditas províncias. Apesar das razões mais de humanidade,     do que de Estado, expostas por Henrique Luís, a maioria condenara os     criminosos a serem justiçados no patíbulo. Henrique Luís,     o modelo dos governadores portugueses, passara pelo desgosto de lavrar a sentença     de morte que feriu primeiro a ele que aos condenados.

 

No julgamento do Cabeleira e dos demais presos a inviolabilidade da pessoa     humana fora melhor compreendida e respeitada pela junta, da qual só     um membro opinara pela pena capital.

 

Assim, no espaço de 38 anos o nível da consciência moral     subira em três dos membros dessa terrível comissão; mas     por desgraça baixara no mais importante deles. José César,     desprezando o voto dessa maioria, digna de figurar nos tribunais modernos,     sentenciara à pena última os infelizes com o apoio de um voto     contra três, excedendo assim as atribuições do governador     a quem a citada provisão conferia unicamente, no caso de empate entre     os quatro membros, o direito de desempatar. Por onde se vê que entre     estes dois governadores, ambos bem intencionados, embora as suas intenções     fossem contrárias entre si e em seus efeitos, não mediavam somente     58 anos, mas também a barreira que separa das trevas a luz, do poder     arbitrário, que destrói, o sentimento liberal, que edifica.

 

Henrique Luís, posto que mais afastado do que seu colega, representava     o direito novo de que o mesmo Portugal do século 18 trasladou em seu     código, que o honra, uma parcela no século 19 com aplauso de     todas as nações cultas. Esta parcela é a que afirma e     consagra a inviolabilidade da pessoa humana.

 

Se alguém houvesse dito então a José César que     sua pátria em menos de um século riscaria de sua legislação     a pena que ele impunha com tamanho arbítrio a três desgraçados     a quem faltava a instrução mais elementar, teria ouvido o poderoso     agente da realeza metropolitana classificar como uma utopia dos sonhadores     do século 18 esta brilhante conquista das nossas luzes. Os tempos vingam?se,     e se a humanidade algumas vezes, como as aves, rasteja e se enloda nos charcos     da terra, purifica?se como elas, nas chuvas celestes, e eleva?se a regiões     sereníssimas donde vê a grandeza do Onipotente nos milhões     de mundos que povoam a imensidade; a sua sabedoria na harmonia que os prende;     a sua bondade no sem?número de leis, assim físicas, como morais,     que protegem os corpos e dignificam os espíritos.

 

Na hora em que se construía o cadafalso, uma mulher que representava     cinqüenta, mas na realidade não tinha senão 36 anos de     idade, pedia por tudo quanto há sagrado, a uma das sentinelas do palácio     permissão para falar ao governador.

 

Joana havia chegado de Santo Antão no dia anterior, e de noite soubera     que o filho e o marido tinham sido condenados à morte. Não lhe     permitiram ver os entes que pertenciam mais a ela, representante do coração     por dobrado direito, do que à justiça que nesse momento exprimia     uma vontade poderosa e apaixonada.

 

Pela manhã Joana correra ao palácio para cair aos pés     de José César, e rogar?lhe que lhe deixasse ver o filho. A sentinela,     em resposta, perguntara?lhe simplesmente:

 

Quem é você para falar ao sr. governador ?

 

Sou a mãe do Cabeleira. Será possível que meu filho     morra sem que eu o tenha visto antes ?

 

Ponha?se no largo das Cinco Pontas, que o verá subir à forca     à volta de uma hora da tarde.

 

Meu filho ! gritara ela em soluço. Pois hei de ver meu filho morrer     na forca !

 

Joana caíra com a face sobre a laje do pavimento, carpindo?como louca     a sua desventura.

 

Tendo ouvido os ais, lamentos, exclamações e gritos daquela     consternada mãe, mandara José César inquirir a causa     do alarido. Quando lhe disseram a desoladora verdade, ordenara que incontinenti     a mãe infeliz fosse posta em custódia até que se cumprisse     a execução.

 

Joana mal pudera ouvir a intimação deste cruel mandado.

 

Não, não ! gritara, atirando?se para fora do palácio     em estado de puro desespero.

 

Alguns soldados correram a pegá?la, mas em vão, porque, empregando     esforços sobre a natureza, pudera Joana escapar, não sem deixar     primeiro despedaçados nas mãos de um o lençol em que     estava envolta, nas de outro parte dos seus cabelos que haviam de todo embranquecido.     Aquela pobre mulher fora condenada pela adversidade a padecer angustiados     momentos, para os quais não acharemos semelhantes no catálogo     das tragédias humanas.

 

Ela fora pôr?se junto da masmorra, donde Cabeleira, Joaquim e Teodósio,     que aí se achavam em grande recado, logo que houvessem recebido os     confortos da religião, tinham de partir para o lugar do suplício.

 

A esse tempo já as circunvizinhanças desse lugar se achavam     ocupadas por grandes massas de povo.

 

Quando no relógio da cadeia soou a hora fatal,; viu?se desfilar entre     fortes colunas militares e a multidão os condenados. O silêncio     e a tristeza que aumentam a solenidade destes espetáculos indescritíveis,     eram de momento a momento perturbados pelos lamentos de Joana.

 

Meu filho vai morrer enforcado ! Ah ! meu Deus, vós bem sabeis que     ele não teve culpa dizia ela com a voz entrecortada de soluços.

 

José César, cercado dos seus privados e lisonjeiros viu da     varanda do palácio, outrora povoado pelo vulto homérico de Maurício     de Nassau, tipo de mais fidalgo liberalismo que ainda transpôs aqueles     umbrais, com uma espécie de recolhimento qual se estivesse presenciado     uma procissão desfilar o fúnebre préstito, que em seu     trajeto percorreu as ruas do Crespo, Queimado, Livramento, Direita, Pátio     do Terço, e finalmente parou no largo das Cinco Pontas ao pé     do terrível artefato. Era uma hora da tarde.

 

O juiz nomeado pelo governador para assistir à execução     em conformidade do disposto na provisão régia, ordenou que o     escrivão repetisse a leitura da sentença. Os delinqüente.     ouviram pela vigésima vez, com sincera contrição, esse     padrão do absolutismo colonial.

 

Finda a leitura, viu?se o Cabeleira aparecer, quase de súbito, no     estrado da forca, ao lado do carrasco.

 

Ele não havia vacilado na rápida ascensão nem dava mostras     de abatido.

 

Seu rosto estava pálido, mas sereno. A cabeça tinha despojada     do belo distintivo a que o mancebo devia a alcunha com que seu nome chegou     à posteridade.

 

Com um olhar longo e rápido abrangeu a multidão que se apinhava     em derredor do patíbulo, e proferi, sem titubear, com voz ligeiramente     alterada, estas palavras que a tradição recebeu como herança,     para transmitir às gerações vindouras:

 

Morro arrependido dos meus erros. Quando caí no poder da justiça,     meu braço era já incapaz de matar, porque eu já tinha     entrado no caminho do bem...

 

Meu filho ! meu filho ! gritou nesse momento Joana do meio do povo por entre     o qual buscava embalde abrir caminho para chegar ao pé do cadafalso.

 

A esta exclamação, o Cabeleira voltou?se confuso e comovido.     Um longo suspiro escapou?lhe do peito opresso da súbita aflição.     Seus lábios trêmulos deixaram passar estas precisas e pontuais     palavras:

 

Adeus mamãezinha do meu coração !

 

No mesmo instante, aos olhos da multidão profundamente abalada, a     cena transformou?se como por oculto maquinismo. O infeliz mancebo, que, mal     acabara de falar tinha sido rudemente impelido do estrado para o vácuo,     pendia da corda assassina, tendo sobre os ombros o carrasco que apertava com     as mãos cobardes o laço sufocante. Cena bárbara que enche     de horror a humanidade, e cobre de vergonha e luto, como tantas outras, a     história do período colonial !

 

No meio da multidão esta cena de morte reproduziu?se no mesmo instante,     unicamente modificada na forma. Entre os braços de umas mulheres do     povo, pobres mães decerto, Joana acabara de exalar o último     suspiro. O coração tinha?se instantaneamente estalado de dor.

 

Poucos momentos depois ao cadáver do Cabeleira reuniram?se os de     Joaquim e Teodósio, seus companheiros na vida e na morte, na história     da província e nas reminiscências do povo, ?de presente quase     de todo apagadas pela mão do tempo.

 

A notícia de tão triste exemplo atravessou as remotas paragens     onde repercutia a fama do grande matador, e passou ainda além nas asas     ligeiras dos versos já citados, aos quais se devem reunir estes dois     últimos, trovistas pernambucanos:

 

Quem tiver seus filhos     Saiba?os ensinar;     Veja Cabeleira     Que vai a enforcar.

 

Adeus, ó cidade,     Adeus, Santo Antão,     Adeus, mamãezinha     Do meu coração.

 

A execução do Cabeleira e seus co?réus não atalhou     as desordens e delitos, a que se refere a provisão; não trouxe     terror nem emenda aos malfeitores.

 

Os crimes atrozes, então muito freqüentes, se têm diminuído,     ainda não cessaram de todo. As folhas públicas registram todos     os dias por infelicidade nossa muitos deles, perpetrados no Norte, no Sul     e na própria corte do Império.

 

De que serviu pois a provisão régia ? Em que consistiu o proveito     da execução dos três infelizes no regime colonial; e dos     que os precederam, ou se lhes seguiram neste e no regime do Império     ?

 

Ah ! meu amigo, a pena de morte, que as idades e as luzes têm demonstrado     não ser mais que um crime jurídico, de feito não corrige     nem moraliza. O que ela faz é enegrecer os códigos que em suas     páginas a estampam, por mais liberais e sábios que sejam como     é o nosso; é abater o poder que a aplica; é escandalizar,     consternar e envilecer as populações em cujo seio se efetua.

 

A justiça executou o Cabeleira por crimes que tiveram sua principal     origem na ignorância e na pobreza.

 

Mas o responsável de males semelhantes não será primeiro     que todos a sociedade que não cumpre o dever de difundir a instrução,     fonte da moral, e de organizar o trabalho, fonte da riqueza?

 

Se a sociedade não tem em caso nenhum o direito de aplicar a pena     de morte a ninguém, muito menos tem o de aplicá?la aos réus     ignorantes e pobres, isto é, aqueles que cometem o delito sem pleno     conhecimento do mal, e obrigados muitas vezes da necessidade. O Cabeleira     pode acaso comparar?se em culpabilidade a Lapomerais, médico ilustrado,     ou a esse negociante alemão ou americano, Tomás ou Thompson,     que, com intuito de enriquecer do dia para a noite, ocasionou com a perda     do paquete Moselle a morte de oitenta, e os ferimentos de cem passageiros     ?

 

Condena?se à forca o escravo que mata o senhor, sem se atender a que,     rebaixado pela condição servil, paciente do açoite diário,     coberto de andrajos, quase sempre faminto, sobrecarregado com trabalhos excessivos,     semelhante criatura é mais própria para o cego instrumento do     desespero, do que competente para o exercício da razão. Ainda     em 28 de abril do corrente ano, em uma cidade da província das Alagoas     um destes infelizes padeceu o suplício capital. Por honra da civilização,     um dos primeiros órgãos da imprensa do Norte, o Diário     de Pernambuco lavrou contra essa cobardia jurídica o seguinte protesto:      «Registramos este acontecimento com a mágoa que sói causar     àqueles que amam a pátria e a humanidade a continuação     entre nós da bárbara pena de morte, que, infamando, nem ao menos     corrige".

 

Arrastam os delinqüente. à barra dos tribunais ou ao pé     dos juízes para serem interrogados sobre as circunstâncias dos     crimes que cometeram. Não devia ser assim. O interrogatório     principal devia ter por objeto os precedentes do culpado, o grau da sua instrução     literária, a sua educação, os seus teres.

 

A pobreza, que é na realidade uma desgraça, deve a sociedade     atribuir o maior número dos crimes que pune e dos erros e faltas que     não se julga com o direito de punir. A pobreza nunca foi nem será     jamais um elemento de elevação; ela foi e será sempre     um elemento de degradação social.

 

A riqueza, meu amigo, é um dos primeiros bens da vida.

 

Quando ela resulta de um trabalho honesto, e servido por uma ambição     nobre e ponderada, não podem dela redundar males. Ao reverso, de uma     riqueza assim adquirida, provém quase sempre benefícios não     só para aquele que a possui, mas também para a sociedade.

 

Quanto mais medito sobre este assunto, mais me parece que o evangelho que     ensina a pobreza voluntária, considerada pela moderna ciência     um absurdo econômico, e um impossível social, é antes     um código de moral prática sujeito à revisão da     sabedoria dos tempos, do que o corpo de leis de uma religião imutável.     A prova de que não estou em erro, eu a vou achar no exemplo que nos     dão os atuais ministros do evangelho, os quais, muito diferentes dos     pescadores da Galiléia e da Samaria que, descalços e humildes,     o ensinaram gratuitamente a todas as gentes, empregam hoje todos os meios     de tornar?se ricos e poderosos, e não desestimam a opulência,     começando pelos que ocupam os primeiros lugares na hierarquia eclesiástica.

 

Não sirvam estas verdades de consternação aos pobres.

 

Sirvam?lhe de estímulo para que trabalhem, cultivem a terra, as indústrias,     as artes, e possam, por seu próprio esforço, vir a ser independentes     é felizes.

 

 

                                                                                                      Franklin Távora

 

Carlos Cunha     Arte & Produção Visual

 

 

Planeta Criança                                                             Literatura Licenciosa

 

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