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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


LIVRO DAS DONAS E DONZELAS /Júlia Lopes de Almeida
LIVRO DAS DONAS E DONZELAS /Júlia Lopes de Almeida

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

LIVRO DAS DONAS E DONZELAS

Crônicas

 

 

MINHAS AMIGAS

Mês das cigarras e das flores de flamboyant, como diria Fradique Mendes se tivesse de datar em Dezembro uma carta no Rio de Janeiro. Prescindo, como ele, da enumeração do dia. Datas são algarismos sem forças para fazer sentir o violento azul do nosso céu, nem os ramalhões purpurinos das nossas árvores, nem este chiar incessante das cigarras entontecidas de luz, anunciando o calor.

Este lindo mês, em que o ano morre engalanado de cores e de sons, obriga-nos a volver o olhar para o passado, numa inquirição pensativa e saudosa... e logo a querer sondar o futuro impenetrável com a frouxa luz de uma esperança. Nada se descortina bem, visto de longe; e é melhor assim...

O que torna a vida encantadora é o imprevisto; e a prova é que ninguém desejaria recomeçá-la da mesma forma porque a já viveu; nem creio mesmo que, se tal milagre se pudesse cumprir, houvesse alguém, por mais venturosa que lhe houvesse corrido a curta vida, que tivesse coragem de a recomeçar!

Cerre alguém os olhos, pense, siga o curso da sua existência, e ficará convencido de que só alguns dias lhe mereceram o desejo de serem revividos. Dias? Nada mais que momentos, de inolvidável doçura...

Para a gente moça o maior encanto da vida está no que há de vir, no que se ignora; para que transpõe o cabo dos quarenta, está no presente, que passa ligeiro, ligeiro, como a corrente de um rio caudaloso...

Minhas boas amigas, donas e donzelas, velhas e meninas, perdi o endereço de algumas de vós; outras... rezemos-lhes por alma, estão mortas; de sorte que esta carta, de incerta direção, pretende ir até as portas do céu, na ondulação do acaso e da saudade.

Nós, as mulheres, não temos sempre facilidade de bem exprimir os sentimentos por palavras; eles parecem-nos por demais sutis e complexos; elas insuficientes e fraquíssimas. Dizem que há para todas as coisas expressões precisas, de inquestionável exatidão; a língua modula no som, e inalterada, a essência da mais rara alegria ou do mais terrível desespero. Mas essa é a interpretação dos fortes; a nossa dilui-se, numa gota incolor e inodora, que é como um chuvisqueiro em uma rosa, se nasce da alegria; ou, se vem da dor, como um floco de neve em uma brasa, que apaga a luz e deixa a nu o carvão.

Lembranças de amizade não são como lembranças de amor, que pungem e deliciam; têm outra suavidade, um perfume indistinto, e por isso são mais difíceis de descriminar nas meias tintas do passado; todavia, quanta comoção elas nos trazem na sua nevoenta aparição!

Minhas amigas de outros tempos, supondo que eu enfeixo as graças e virtudes de vós todas em uma só figura, que podereis chamar de Mocidade, ou de Primavera, como vos aprouver.

Para ser suprema a sua formosura ela terá os teus doces olhos azuis, tão cedo fechados, Elvira; e o teu riso alegre, Maria Laura; e a tua voz, Janan; e a tua bondade adorável, Marie; e as linhas do teu corpo, Alice; e a doçura da tua tez, Carlota! Terá da negra Josefa, tão triste por não ser branca, a branca inocência; e de vós todas, com que topei na minha infância, a garrula alegria e a trêfega imaginação.

Não sacudo a uma esfinge o meu lenço saudoso, mas a uma figura tangível, feita de perfeições e que permanece, imutável e risonha, no horizonte que me foge.

De algumas de vós não sei, amigas da meninice; outras vieram depois, na idade das confidências, e ainda hoje eu sinto o calor de simpatias moças que vem vindo como aves anunciadoras do bom tempo, para me dizerem que floresce ainda na Terra a sagrada planta da amizade.

Entre todas, não sois vós, amigas desconhecidas e minhas leitoras, cujo influxo tantas vezes me alento, a quem menos se lança o meu pensamento de mulher, num desejo de felicidade perfeita...

Nesta noite, uma das últimas do fim do ano, que de lembranças suaves me esvoaçam pelo espírito!

Crede, esta carta é um desabafo. Não só vós, minhas queridas, voltejais na minha memória, como nas rondas do colégio; há outros amigos adorados, invisíveis, de poderosa influência, a que me lanço com significativa gratidão: - os autores. O primeiro livro lido; as páginas mais vezes relidas; as músicas que melhor interpretei; os versos que me fizeram estremecer ou sonhar; singulares sensibilidades, acordadas por estranhos que amei como amo o sol que me aquece, ou a flor que me inebria, - tudo renasce e passa pelo meu pensamento, numa irradiação puríssima, de devaneio...

Nestas horas vertiginosas e perturbadoras reconheço todos os meus sonhos e desejos antigos, roçando por mim as suas asas, com tanto arrojo abertas e tão cedo enfraquecidas...

Mas isso que vos importa?

Valerá pena pensar no tempo que passou, bem ou mal?

O ano em que parte da nossa vida discorreu, acaba? Deixa-a acabar! O outro que vier terá as mesmas quatro estações; o sol inflamará a terra no verão, o vento fará cair as folhas no outono, as neves caracterizarão o inverno, e as boninas esmaltarão os campos na primavera...

Assim como o tempo, fosco ou luminoso, os homens serão maus ou serão bons e a vida fará o seu giro imperturbável, desfazendo e criando entre declínios e triunfos.

Para o mundo será assim, mas para nós, queridas?

 

NATAL BRASILEIRO

Neste esfacelar de usos e tradições, poucas pessoas encontram ainda encanto em seguir costumes de avós que se foram há muito tempo, e de quem as caveiras, lá no fundo das covas, já não guardam nem resquícios de pele!

A nossa vida agitada precisa de um esforço para relembrar os divertimentos antigos, e não é senão por condescendência que muita gente faz horas para ir à missa do galo ou que deixa o espetáculo pela ceia caseira, obrigada a certos pratos que o desuso tornou para muitos paladares simplesmente abomináveis.

Noites quentes, maravilhosas noites de verão, banhadas de luar, impregnadas do aroma da magnólia e do jasmim-manga, convidando por certo muito mais aos passeios pelos arredores da cidade, ouvindo cigarras e violas de serenatas, do que a fecharmo-nos em uma sala, em frente a um prato de canja fumegante, entre os globos de gás a toda a luz e uma toalha branca onde a louçaria brilhe com o seu luzimento de esmalte.

Estas festas são doces às mamães, porque chamam para o seu redil as ovelhas soltas por diversos pontos da cidade. Nestes dias, como que se ouvem badaladas de sinos de ouro que, a cada repique, dizem assim:

 

- Vinde para casa! Vinde para casa! É aqui que vos amam!

 

E as ovelhas param, escutam, torcem caminho e voltam para o aprisco de onde tinham partido.

A amante que espere, pensam os rapazes; que se estorça de raiva vendo-se preferida. É preciso também contentar a mamãe, que sorri acudindo a tudo e a todos com a mesma paciência de há trinta anos, quando os filhos eram pequenos e não sabiam de nada na vida que igualasse à sua companhia!

"Boa mamãe! dizem-lhe eles agora, perdoai os nossos desvarios de rapazes! Nós cá estamos no teu regaço, olhando para o teu rosto, beijando as nossas irmãs."

E a mamãe vai e vem, com os lábios risonhos e os olhos brilhantes. E o sino de ouro da casa, cujas badaladas se ouvem ao longe, mal ela o sabe! é o seu coração angustiado, pisado de sofrimentos, de dúvidas, de saudades, mas que todo se enflora ainda de esperanças, porque é de mãe!

Festas familiares, sois peregrinamente bondosas e dementes para os velhos!

Sim, é por condescendência que muita gente deixa a noitada ao relento pela ceia caseira, em que se comem coisas suculentas, se ouvem valsas marteladas ao piano, ou se conversam assuntos repisados.

Na roça é que estas festas do Natal e do Ano-Bom têm uma cor mais brasileira. Aqui na cidade fazemo-las seguindo os costumes portugueses. O frio do Natal europeu impele as famílias para o interior das suas casas, para o calor dos fogões e das ceias fumegantes. O nosso Natal é tão diverso! Em vez da neve temos o sol; em vez da ventania áspera, que obriga as pobres criaturas a irem para à igreja envoltas em capotes, salpicadas de lama e de chuva, temos noites estreladas, cheirosas, em que moças e rapazes vão à meia-noite ouvir a missa do galo, com trajes alegres, sem recear bronquites, podendo folgar pelos caminhos à luz das estrelas palpitantes e coloridas. Na roça é assim. A criançada come ao ar livre pinhões cozidos e faz a algazarra que apraz. As moças dançam no terreiro com os namorados, e os velhos, sentados sob o alpendre, contam anedotas, rememoram visitas a presépios antigos, até que o sino os chame e eles partam todos, aos magotes, para a capela tão sua conhecida, tão sua amada!

Se fosse possível deveríamos inventar festas adequadas ao nosso clima, estabelecê-las, fixá-las, torná-las nossas.

Os costumes europeus não podem, em absoluto, ser reproduzidos aqui. Há no Brasil climas mais frios do que em alguns países da Europa; no alto Paraná o gelo quebra os galhos das árvores e o aldeão tirita lavrando terra. Mas de que vale isso, se as estações são trocadas e o nosso Natal desabrocha em pleno verão! O nosso Natal! Bem que ele precisa de outro emblema. O velho de longas barbas brancas, nariz cor de morango maduro, capote espesso lanzudo e gorro de peles, é filho das terras nevadas, cortadas pelos uivos do vento, tão cruel para os pobres. O nosso Natal é moço, é risonho, é caritativo; abriga os sem vintém, e as criancinhas nuas não o temem, porque ele afaga-as o seu bafo cheiroso e veste-as com a sua luz quente e doirada!

 

CONVENTOS

A tarde agonizava em reflexos brancos de prata polida, que davam à superfície do mar um tom de aço, espelhento. Num banco do convés da barca, uma senhora afogada em lãs pretas, de luto, sussurrava queixas das filhas que a queriam trocar por um convento. Era um desabafo, entre as amigas, que todas se debruçavam para aquela angústia...

Pelos farrapos dos comentários percebi que as donzelas não levariam ao claustro contingente que o exalçasse... Uma delas faria versos místicos, a outra rezaria ladainhas, sem que das suas genuflexões ou dos seus arroubos viesse benefício ao mundo.

A mãe não sabia explicar aquele fervor súbito. Supunha que a mais velha, poetisa, procurasse na religião os ideais que não via realizados na terra; mas a outra? Debatia-se ante o enigma da outra.

Optaram as amigas por uma paixão. Algum amor mal correspondido...

Pobre criança, pensava eu de mim para mim, o véu de freira não tem por certo a magia que ela espera... Se o mal de que ela sofre é esse que dizem, levá-lo-á consigo, que para a fatalidade do amor não há amuletos nem cilícios que valham. O convento excitará no principio a sua fantasia, vinculará a sua saudade, sem lhe trazer a pacificação, a vida saborosa, que é o preparo do Paraíso.

Houve tempo em que o convento tinha, com todos os rigores, certos atrativos, como tudo que é forte e que domina. Tempos houve também em que ele era menos um lugar de reclusão que de galanteio; então bilhetes amorosos e versos dos torneios perpassavam por entre aquelas paredes severas, como revoadas do mariposas tontas; e havia freiras, como a freira Serafina, que, escrevendo a respeito da abadessa de Santo André, deixava transparecer a convicção de que não é o amor divino, mas o humano, a melhor e a maior preocupação de toda a gente, tanto de lá de dentro como de cá de fora. Dizem mesmo crônicas velhas e cronistas modernos que nem sempre os conventos foram santuários de castidade. Fossem lá o que fossem, a verdade é que tinham vida própria e o enorme prestígio que facilita e sugere os grandes devotamentos. Depois, a mulher não tinha outros destinos; ou ele ou o casamento. Hoje não é assim; o pulso paterno já não tem o poder de aferrolhar filhas insubmissas, e a poesia, que naqueles tempos o hábito pudesse ter, foi substituída no nosso tempo - por uma fúnebre idéia de mortalha. Hoje os conventos parecem túmulos.

Imagino a melancolia desses casarões enormes. Que silêncio de corredores, onde as sandálias já não batem de minuto a minuto; que ar de mofo nas celas sem dono, fechadas há anos e em que as aranhas tecem irreverentes a rede da sua prole; que abandono nos palcos, onde as fontes choram, sem o consolo de ver as suas lágrimas suspensas pelas mãos macias de umas freiras bonitas; que aspecto frio o do refeitório, onde na imensa mesa conventual meia dúzia de freiras sorumbáticas trocam receitas de pasteis e benzem distraidamente o pão, e o comem depois sem alegria, a bela alegria, que a tão citada Santa Tereza de Jesus aconselhava às freiras da sua comunidade, a par de trabalho ativo, vassouradas, costuras, roupas limpas e polimento de metais! Essa feição salutar da santa modificou a imundice do convento, mas não lhe tirou a grandeza austera e a soturnidade doentia.

Dirão: os nossos conventos têm uma feição mais modesta e mais acanhada; estão pintadinhos de fresco e assoalhados de novo.

Tanto pior. Não haverá ao menos espaço para uma evocação. Do lagedo largo e quebrado de um claustro, de onde surja um tufo de verdura; de um nicho abandonado, ou de um pergaminho sujo pelo manusear de mil dedos desconhecidos, pode nascer uma reflexão, uma curiosidade, um estudo ou um devaneio. Mas uma parede caiada e um pátio semeado de fresco, para as necessidades práticas da vida, que podem sugerir à freira moça?

Talvez saudades da graça, do riso travesso e das confidências das amigas abandonadas; seu quarto, em que a sua imagem se reproduzia faceira e linda; das fitas, do vestido profano; de uma volta de valsa; de um aperto de mão fugitivo; de um olhar, de um pensamento de amor com ou sem pecado, em todo o caso sem medo de excomunhão; de coisas pueris e de coisas divinas, que enfeitam a vida a intervalos, como as papoulas nos campos de trigo.

A verdade, sempre repetida, é que quem tem fé melhor serve a Deus nos lugares onde por ele se vive ou por ele se morre, que atrás dos grossos ferrolhos de uma portaria. Esses lugares, a que a mulher com proveito levara a doçura da sua crença e o ardor do seu sacrifício, são as cidades empestadas, as ruas cheias de mendigos e de crianças; as prisões, as ambulâncias, todo o sítio onde há dor, fome ou rancores; são a escola onde ensina; a própria família, que a sua influência alegra e pacifica; hospital, onde consola; o pedaço de terra, onde planta a árvore, que dará sombra a quem vier mais tarde e ramos para as ninhadas entoarem hinos ao Criador.

Podemos ser úteis e ser religiosas sem fugir da sociedade; podemos amar o Senhor, sem desprezar os irmãos, que mais ou menos carecem do nosso amparo, ou da nossa presença.

Este egoísmo de esconder as feridas da paixão em lugar imperscrutável ao olhar humano não é digno deste tempo, em que as almas se desnudam para o combate, porque hoje não há santos, há heróis; não há milagres, há virtudes.

Os eleitos de Deus são os eleitos da humanidade, somos nós, as mães, que criamos os filhos para a glorificação do mundo; são os homens, que cultivam a terra em paz abençoada, ou morrem por uma idéia generosa.

A religião tem com certeza melhores serviços nos hospitais, nos púlpitos, nas missões, em todas as suas formas de expansão, que nos conventos mudos, abafados pelo rumor que os cerca...

A irmã de caridade tem ao menos a sublimidade, a abnegação de viver para os outros. Essa é a sua doutrina. A freira para quem vive?

A barca atracou à ponte, e a senhora de luto, puxando para o queixo o véu do toucado, saiu, levando consigo o mistério daquele romance apenas entrevisto...

 

O VESTUÁRIO FEMININO

É uma esquisitice muito comum entre senhoras intelectuais, envergarem paletó, colete e colarinho de homem, ao apresentarem-se em público, procurando confundir-se, no aspecto físico, com os homens, como se lhes não bastassem as aproximações igualitárias do espírito.

Esse desdém da mulher pela mulher faz pensar que: ou as doutoras julgam, como os homens, que a mentalidade da mulher é inferior, e que, sendo elas exceção da grande regra, pertencem mais ao sexo forte, do que do nosso, fragílimo; ou que isso revela apenas pretensão de despretensão.

Seja o que for, nem a moral nem a estética ganham nada com isso. Ao contrário; se uma mulher triunfa da má vontade dos homens e das leis, dos preconceitos do meio e da raça, todas as vezes que for chamada ao seu posto de trabalho, com tanta dor, tanta esperança, e tanto susto adquirido, deve ufanar-se em apresentar-se como mulher. Seria isso um desafio?

Não; naturalíssimo pareceria a toda a gente que uma mulher se apresentasse em público como todas as outras.

Basta ver um jornal feminista para toparmos logo com muitos retratos de mulheres célebres, cujos paletós, coletes e colarinhos de homem, parece quererem mostrar ao mundo que esta ali dentro um caráter viril e um espírito de atrevidos impulsos. Cabelos sacrificados à tesoura, lapelas (sem flor!) de casacos escuros, saias esguias e murchas, afeiam corpos que a natureza talhou para os altos destinos da graça e da beleza.

Os colarinhos engomados, as camisas de peito chato, dão às mulheres uma linha pouco sinuosa, e contrafeita, porque é disfarçada.

Médicas, engenheiras, advogadas, farmacêuticas, escritoras, pintoras, etc. por amarem e se devotarem às ciências e às artes, porque hão de desdenhar em absoluto a elegância feminina e procurar nos figurinos dos homens a expressão da sua individualidade?

Há certas mulheres, precisamos convir, que têm desculpa na adoção dos murchos trajes masculinos, porque para elas isso não representa uma questão de estética, mas de incontestável necessidade - as exploradoras, por exemplo.

A essas, as saias impediriam as passadas e os saltos, no labirinto enredado dos cipoais, entre todos os obstáculos das florestas eriçadas de espinhos e cortadas de valos a transpor.

As calças grossas e as altas polainas são para elas, portanto, não objeto de fantasia, mas de comodidade e salvamento. O pano flutuante do vestido prendê-las-ia de instante a instante aos troncos e às arestas do caminho, e, quando molhado, pesar-lhes-ia no corpo como chumbo.

Por exigências de comodidade no trabalho, também escultoras e pintoras se sujeitam muitas vezes a vestirem-se assim e só quando executam obras de grandes dimensões. As calças facilitam então as subidas e as descidas de andaimes e de escadas.

Rosa Bonheur, conta-nos um seu biógrafo, surpreendida no atelier pela notícia de que a imperatriz Eugênia entrava em sua casa para oferecer-lhe a Legião de Honra, - viu-se atrapalhada para enfiar às pressas os trajes do seu sexo e poder receber respeitosamente a soberana.

Só de portas a dentro ela abusava dessas entradas por seara alheia, para usar com liberdade de todos os seus movimentos; mas desde que a artista era procurada por estranhos, ela aparecia como mulher.

Nas cidades, sobre o asfalto das ruas ou o saibro das alamedas, não sabe a gente verdadeiramente para que razão apelar, quando vê, cingidas a corpos femininos, essas toilettes híbridas, compostas de saias de mulher, coletes e paletós de homem... Nem tampouco é fácil de perceber o motivo por que, em vez da fita macia, preferem essas senhoras especar o pescoço num colarinho lustrado a ferro, e duro como um papelão!

 

A ARTE DE ENVELHECER

Não somos só nós, minhas amigas, que vemos com terror brilhar por entre as nossas madeixas castanhas, louras ou pretas, o primeiro fio de cabelo branco. As dolorosas apreensões desse momento eram-nos só atribuídas a nós, como se não nascêramos senão para a mocidade e o amor.

O homem envergonhado, e com receio de se confessar vaidoso, sem perceber talvez que a primeira denúncia da velhice tem para nós amarguras mais sutis que a do simples medo de ficarmos mais feias, teve sempre para a nossa decepção um sorriso de inclemente ironia...

Poetas e contistas, valham-nos eles, e que Deus lhes prolongue a raça! engrinaldaram de rimas e períodos suaves a dor desse momento sagrado, em que as nossas esperanças fecham as asas, repentinamente murchas, e a luz dos nossos sonhos esmorece...

Mas se eles adivinharam a delicadeza do nosso sentimento, não nos contaram a espécie do seu, ao ver a luz pálida e fina de um fio prateado coleando por entre as ondas negras da cabeleira, ou as pontas castanhas do bigode.

Pensávamos que os primeiros sinais outoniços, que são para as mulheres os mais terríveis, não os alarmassem a eles, sempre embebidos em tão grandes ideais, que nem tivessem vagar para perceber a ruína do próprio corpo. Enganamo-nos; o homem é também sensível como nós às apreensões que a vista primeiro cabelo branco sugere.

Um fio de cabelo, nada há mais frágil, nem mais quebradiço nem mais leve, e entretanto vê-se que mundo de sensações ele prende e arrasta! Até aqui, eram só as nossas, supúnhamos, mas agora sabemos que são as de toda a gente!

Tenho diante dos olhos uma página de homem - A arte de envelhecer - que se me afigura ter sido escrita diante de um espelho pérfido. Essa página suave e bem feita analisa essa hora delicada e de difícil interpretação, em que há em todos o mesmo estremecimento de susto, e o mesmo estender de mãos para agarrar o que passou e que não voltará jamais - a mocidade.

A mocidade! aos quarenta anos ainda a sentimos perto, aspiramo-lhes o aroma, como que lhe sentimos o hálito quente; já ela nos deixou, já ela se foi embora, e todavia recrudesce em nós, mulheres, toda a alacridade vivaz da sua exuberância; há mais calor no nosso peito, mais ardor na nossa paixão, mais firmeza na nossa vontade. É nesse instante de supremo gáudio que um insignificante fio de cabelo branco nos vem lembrar que o bem que gozamos, tão conscientemente como o gozáramos até então com indiferença... há de acabar!

Supus, não sei porque, à força de ouvir dizer, talvez, que essa hora para os homens chegasse mais tarde. Vejo que não. Sempre é consolador ter bons companheiros na desgraça...

No arte de envelhecer, tema delicioso e que o autor poderia desenvolver em um volume grosso, há uma pincelada jeitosa e leve na referência à maneira por que sabemos disfarçar os estragos impiedosos do tempo... O que as palavras não dizem, mas a insinuação aponta, é que esse meio é o maquilage, o artifício, o auxílio das cores sabiamente combinadas, a discrição dos véus e o efeito artístico do penteado...

Saber compor a fisionomia, dar-lhe aparência agradável, torná-la bonita quanto possível, é a mais comum das preocupações femininas, para que não a confessemos.

Todavia, há uma revelação a fazer: é que raramente se põe aqui ao serviço desse cuidado o uso das tintas, das pomadas e dos vernizes.

A não ser a inglesa, protegida por um clima que lhe aveluda a tez, não conheço mulher que menos recorra aos embustes do toucador que a brasileira.

O pó de arroz, contra o qual antigamente alguns pais de família se insurgiam, é o único auxílio de que lançamos mão, mais ainda como um complemento de toilette, que o uso torna indispensável, que mesmo como um elemento de garridice.

O pó de arroz não só atenua o luzidio da pele, afogueada por uma temperatura quase sempre alta, como também suaviza, refresca e aromatiza.

Positivamente, ele foi adotado por isto: não só embeleza como sabe bem.

De tal maneira isto é certo, que ninguém o oculta, como a um fator misterioso de formosura, que se quisesse guardar incógnito; ao contrário, damo-lhes caixas vistosas de cristal lapidado onde a luz incide em refrações irisadas.

A velhice material, grosseira, ainda não mereceu da maior e melhor parte das mulheres brasileiras o sacrifício inútil da máscara confeccionada em sessões longas, com pincelinhos, camurças, óleos, tintas e esmaltes.

Mas A arte de envelhecer não teve por objetivo a arte de não parecer velho; mas sim de padecer com resignada calma as gradações da mudança. Isso depende, além da vontade, das circunstâncias de cada um...

A felicidade está em envelhecer sem arte, com outras preocupações mais elevadas e menos egoístas...

Desde os primeiros anos de escola que os mestres se esforçam por fazer compreender às crianças que a beleza, sendo transitória, menos vale do que a bondade, e que

 

On ne saít plus que devenir

 Lorsque l'on n'a su qu'être belle

 

O esforço para a perfeição material é sempre improfícuo, e o para o aperfeiçoamento moral sempre bem coroado.

A arte de envelhecer é a de exercitar a alma nas doces práticas do benefício e saber derramar em torno a si até à última hora de consciência, a sombra que alivia ou o calor que reanima...

 

A MULHER BRASILEIRA

O europeu tem a respeito da mulher brasileira uma noção falsíssima. Para ele nós só nascemos para o amor e a idolatria dos homens, sendo para tudo mais o protótipo da nulidade.

Dir-se-ia que a existência para nós desliza como um rio de rosas sem espinhos e que recebemos do céu o dom escultural da formosura, que impõe a adoração... Nem uma nem outra coisa. Nem a mulher brasileira é bonita, se não nos curtos anos da primeira mocidade, nem tão pouco a sociedade lhe alcatifa a vida de facilidades. Ela é exatamente digna de observação elogiosa pelo seu caráter independente, pela presteza com que se submete aos sacrifícios, a bem dos seus, e pela sua virtude. A brasileira não se contenta com o ser amada: ama; não se resigna a ser inútil: age, vibrando à felicidade ou à dor, sem ofender os tristes com a sua alegria e sabendo subjugar o sofrimento. Parecerá por isso indiferente ou sossegada, a quem não a conhecer senão pelas exterioridades. Mas não tivesse ela capacidade para a luta e ainda as portas das academias não se lhe teriam aberto, nem teria conseguido lecionar em colégios superiores. A esses lugares de responsabilidade ninguém vai por fantasia nem chega sem sacrifícios e coragem. Apesar da antipatia do homem pela mulher intelectual, que ele agride e ridiculariza, a brasileira de hoje procura enriquecer a sua inteligência freqüentando cursos que lhe ilustrem o espírito e lhe proporcionem um escudo para a vida, tão sujeita a mutabilidades....

Se o seu temperamento é cálido e voluptuoso, a sua índole é honesta e ativa e o seu pensamento despido de preconceitos.

Se uma mulher brasileira, (se há excepções? há-as de certo!) cai de uma posição ornamental em outra humilde, é de rosto descoberto que dia procura trabalho então vai ser costureira, mestra, tipógrafa, telegrafista, aia, qualquer coisa, conforme a educação recebida, ou o ambiente em que vive...

Nessas ações, não há simplicidade, - há estoicismo e uma compreensão perfeita da vida moderna: que é a guerra das competências. A brasileira vive ociosa; é uma frase injusta e que anda a correr mundo, infelizmente sem protesto. Porque?

Toda a gente sabe que no Brasil só não amamenta os filhos a mulher doente, aquela que não tem leite ou que o sabe prejudicial em vez de benéfico!

Ricas ou pobres, as mães só tem uma aspiração: - aleitar, criar os seus filhos! Este exemplo devia ser citado, porque, à proporção que esta virtude se acentua entre nós, parece que nos países mais civilizados vai se tornando escassa!

A mulher brasileira ama com mais intensidade, talvez; dedica-se toda, sem medo de estragar a sua beleza, às comoções da vida. Aí vemos as pobres mulheres dos soldados, seguindo-os à guerra, acompanhando-os nas batalhas, matando quem os fere, ferindo quem os ameaça, erguendo-lhes das mãos moribundas a espingarda com que os vingam!

Estas energias não são filhas do acaso, vêm-nos da mistura de sangues com que fomos geradas, vêm-nos desta natureza portentosa e que por toda a parte nos ensina que a vida é uma grande fonte que não deve secar inutilmente!

Nos países tropicais a precocidade é tamanha que a existência da menina passa como um sopro e começam bem cedo as responsabilidades da mulher. Por vezes o assalto é tão repentino que não há tempo de preparar na criança o espírito da donzela. Namorada de si mesma, no deslumbramento da mocidade, ela afigurasse-nos então frívola e perigosa. Receia a gente pelo futuro da pobre criança, estonteada pela vida como uma mariposa pela luz. Quanto mais melindrosa é essa quadra, quanto mais vagares tem a imaginação, alvoroçada pelos sentidos, de arquitetar castelos mentirosos! Felizes as donzelas pobres, obrigadas pelas circunstâncias apertadas da vida a empregar a sua inteligência e a sua atividade no trabalho e no estudo! São as mocinhas que, para irem às aulas que freqüentam, engomam as suas saias ou cosem as suas blusas, as mais habilitadas para a resistência das paixões ruins. Decididamente, o trabalho é o melhor saneador de almas! E nós precisamos da nossa muito sã, porque só a virtude da mulher pode salvar os homens, seus filhos e seus irmãos, no descalabro das sociedades arruinadas ou em deliqüescência... A nossa força está na nossa bondade e no nosso critério, coisas que, quando não são naturais, fazem-se pela vontade.

Nós, as brasileiras, perdemo-nos pelo excesso de sentimento. Ainda não aprendemos a dominar o nosso coração, que se dá em demasia, sem colher por isso grandes resultados...

O europeu, tratado com rigor pela mãe, não tem por ela menos respeito (talvez tenha mais!) nem menos carinhos que os nossos filhos têm por nós... que nos desfazemos por eles em sacrifícios e ternuras! Parece que a blandície perene enfraquece a alma do indivíduo, tornando-o um pouco indiferente...

Há muito quem afirme que no Brasil a mulher domina como soberana; e já um escritor português disse dela, relatando as suas observações em um livro de viagem:

"... A mulher deve ser, entre esta raça, superior a todas as coisas. Vê-la passar na rua e compreender a comoção que ela causa é ter reconhecido todo o alcance do seu prestígio. Inspira devoção, tem um culto. Não é mulher companheira do homem, sua irmã de trabalhos e de penas; é a mulher ídolo, a mulher sacrário. Mãe, filha, esposa ou cortesã, ela será neste país e para este povo a suprema instigadora, e a sua vontade, como o seu capricho, terão o cunho autêntico de leis, assim no lar como nas alcovas. Será ela quem predomine e da sua boa ou má influência dependerá, talvez, o destino histórico desta nacionalidade."

É possível que assim seja de futuro, visto que a brasileira de hoje tem mais ampla noção da vida; a lição passado, porém, desgraçadamente, é outra.

A verdade, que deve aparecer aqui, é que nos acontecimentos culminantes da nossa história, aqueles que nos fatos da nacionalidade brasileira iniciam períodos de renovação e de progresso - a independência, a abolição, a república - a intervenção da mulher, direta ou indiretamente considerada, quando não foi nula foi hostil.

Entretanto, estes fatos, para só falar dos príncipes, tiveram todos longa, persistente, tenacíssima propaganda, e realizaram-se sem a mulher ou... apesar da mulher!

A sinceridade deste livro, exige este desabafo doloroso.

 

CARTA

"Minha querida.

Escrevo-te à noite, com a minha vaidade de dona de casa completamente satisfeita. Vou dizer-te por quê.

Há tempos, entre as minhas fantasias de menagère figurou a de mandar fazer um chemin de table de arame, que eu cobriria de flores naturais para a minha mesa de jantar. Ideada a história, fez-se o desenho, e no dia seguinte atirei-me para a Casa Flora, a indagar se aquilo seria coisa de fácil execução.

Não era; o dono da loja mesmo louvou a idéia, mas duvidou do êxito. Lá deixei o meu desenho e voltei desconsolada. Passadas algumas semanas, quando eu já nem me lembrava de ter pensado um dia num chemin de table de arame, eis que ele me entrou pela porta a dentro. Era tal e qual um esqueleto, bem descarnado e extravagante. Franziu-me a boca o clássico muxoxo da decepção. Senhor! como é fácil à gente imaginar coisas bonitas, mas como é difícil executá-las! Não valerá muito mais deixá-las para sempre em sonho? Sim, mais valeria; mas, já agora, seria preciso cobrir aquela nudez fria, cinzenta e desenxabida do arame, todo contorcido em voltas e reviravoltas, e disfarçá-la sob um delicado manto de avencas e de jasmins.

Pois nem jasmins nem avencas. Sé encontrei nessa tarde hastes de hera e de silvina, cujo verde sombrio alegrei a espaços com rosas e margaridas. O efeito não era positivamente encantador; registrei mais uma desilusão na vida, e no dia seguinte mandei atirar com a causa dela para o fundo do quarto das malas e badulaques.

Pendurado rente à parede, mais o desgraçado me fazia lembrar, de novo despido da folhagem, a ossada de um peixe enorme e esquisitíssimo.

C'est de l'art nouveau! Tinha-me dito o dono da Casa Flora, ao observar o desenho que eu lhe levara, com um ar de lisonjeiro agrado. Pois sim! estava fresco o novo estilo! Naquele eriçamento das duras folhas de hera ficara tão bem disfarçado que ninguém o percebera, e um amigo mesmo zombara, com a sua fina graça, do meu amor às novidades e do meu gosto pelas invenções...

Pois, minha adorada, fiquei com pena de que oito dias depois esse senhor não tivesse voltado a jantar comigo, não já só pelo prazer que a sua companhia me proporcionaria, como porque, dessa vez, o meu invento não fez triste figura, antes pelo contrário...

E por ter dado à minha mesa modesta um encanto singular, determinei revelar-te a maneira porque, querendo, te poderás servir com segurança dessa espécie de adorno.

Por ser teimosa, e não desistir, logo à primeira dificuldade, das intenções que tenho, mandei arriar da parede o tal aparelho de arame (que deve ser feito segundo o gosto da dona da casa e o tamanho da mesa) e com paciência (que é de todas as obrigações que me imponho a mais terrível de cumprir) comecei a cobrir o arame do chemin de table com uma flor delicada, cujas pétalas de seda e de arminho parece terem-se reunido por um sopro de brisa. Esta florinha tem o nome harmonioso de - Rodanthe.

Umas são brancas, de uma brancura pálida de edelweiss, e outras de um róseo desmaiado e doce.

Vitória! vestido por elas, o desengraçadíssimo chemin de table, desenhou sobre a toalha, em finas hastes ondeadas, uma renda de flores delicadíssima.

Para dar-lhe mais vida e quebrar-lhe a uniformidade, coloquei, em uma volta da moldura, à cabeceira, um ramo leve de orquídeas sulferinas e de, à falta de crisântemos, margaridas cor de ouro. Flores sem aroma, como convém para a mesa. O efeito dessa ornamentação pareceu-me lindo e é por isso que t'o comunico; encantador, e foi por isso que o aproveitei para assunto desta página.... doméstica. O egoísmo tem a sua razão de ser em outra ordem de sentimentos; nestas pequeninas vaidades de menagère parece-me, além de mau, soberanamente tolo.

O meu interesse, por exemplo, não é tornar a minha pobre casa melhor que a do meu vizinho, que é rico e que tem bom gosto; mas sim torná-la tão boa quanto está nas minhas posses fazê-lo. Assim, quando nesse esforço consigo alguma coisa que corresponda ou ultrapasse a minha expectativa, apresso-me em comunicá-la às amigas, para seu regalo e seu uso.

"Não é o temor do inferno o que me há de levar ao céu" - disse o padre Antônio Vieira em uma das suas cartas, não me lembra agora a quem.

Eu afirmo o mesmo, deixando à tua perspicácia adivinhar em que se funda a minha esperança de gozo eterno.

Outra que bem merecem a bem-aventurança, és tu, pelas receitinhas de bolos que me mandaste...

Um observador maligno disse-me um dia que quem prestar o ouvido ao cochichar de duas brasileiras ouvirá falar de amor ou de receitas culinárias.

O dito não me incomodou, e fiz-lhe mesmo notar que, ainda é por amor que tamanha atenção prestamos à mesa.

Não me lembro quem disse que um homem tudo perdoa, menos um mau jantar!

E repara que os homens são muito mais exigentes do que nós. Fico tonta...

Variar! variar é bom de dizer. Há cerca de uns três dias apeteceu-me comer perdiz. A minha cozinheira sacudiu a sua moleza por essas ruas e voltou para casa como saíra: com as mãos a abanar. Nenhuma perdizinha para a minha salvação. Disse-lhe eu então que me enganasse com uma galinhola, o que ela fez assaz regularmente, mas que eu mastiguei com tão pouca convicção, que me não soube ao que pretendia!

Por estar enfronhada nestes embaraços domésticos é que me rejubilo sempre que topo com uma novidade útil, e logo me expando em descrevê-la às outras. Há ainda um motivo para esta tagarelice: é ter um pretexto de te falar em flores.

Estas tais rodanthes, pequeninas e sedosas, são tão leves e de tão bom auxílio para qualquer espécie de ornamento, que devemos saudar o seu aparecimento no Rio com algumas palavras de simpatia. Não saudamos também a crysanthème e o muguet? Esta agora, pela sonoridade do nome, parece ressuscitada dos famosos tempos da cavalaria. Deveria ser de rodanthes o ramo oferecido por D. Quixote à sua Dulcinéa.

Exatamente no momento em que escrevo, sorri na minha mesa de trabalho um galho vermelho de umas flores do mato, cujo nome ainda ignoro. É tal qual uma haste de coral, onde uma legião de avezinhas minúsculas, de um vermelho ainda mais intenso, tivessem pousado com as azinhas de veludo suspensas para o vôo.

Que divinas surpresas nos reservam as nossas florestas, tão pouco exploradas na curiosidade da flor. Entretanto, nossas ou estrangeiras (filha, flor não tem pátria!) aclimemo-las aqui com o maior carinho. Olha, um dia destes, um amigo do Pará afirmou-nos ter obtido no seu jardim, em Belém, camélias perfeitas, de uma alvura azulada. Não será mais milagrosa essa maravilha, uma flor do frio desabrochando, impassível, numa atmosfera de fogo?

Adeus, querida!

Tua, JULIETTA.

 

A ÁGUA

Sem pêlo, sem escamas e sem penas, somos os animais mais bem fadados para a volúpia da água. Ela, que no batismo nos lava do pecado original, é a primeira condição da vida. Fria ou quente, enrijando-nos a carne ou quebrantando-nos os nervos, é sempre a ela que devemos o melhor dos regalos - a limpeza.

Diz-nos a história que os povos da idade média fugiam da água como o diabo da cruz, e que, entretanto, outros mais recuados tinham banheiras de porphyro e termas deslumbrantes, onde iam deleitar o corpo cansado do pó e do ar.

As belas rumas de Pompéia assim o atestam.

Já tive a ventura de errar os meus leves passos de mulher distraída pelos templos de Ísis, de Júpiter e de Vênus, de calcar as grandes pedras desiguais das estreitíssimas ruas da cidade morta, desolada, triste, eloqüente na sua mudez de túmulo! E a cada caminhada por entre casas de oradores, poetas e filósofos, cujos nomes retinem ainda hoje como campânulas de ouro nos carunchosos e carcomidos monumentos da história; cada passada sobre os mosaicos ou por entre as colunas de mármore do Forum, da Basílica, do teatro e dos templos, que de misteriosos segredos de extintas grandezas e sereníssima fé meus olhos descortinavam! Dentro daquele cemitério, que mais parece uma legenda viva, ao dobrar uma esquina ou ao penetrar no atrium de uma casa luxuosa, eu esperava, de instante a instante, ver estendida para mim, cavalheirosamente, a mão patrícia de um pompeiano ilustre: riso nos lábios, túnica roçagante, falas amáveis com ritmos de versos, em que oferecesse ao meu corpo, cansado de percorrer toda cidade, desde a sua Porta Marina e Fonte da Abundância até aos seus últimos limites, o doce repouso num triclínio dourado, o sabor das suas frutas mais finas e dos seus mais esquisitos licores! Mas... ai de mim! No meio daquelas estreitíssimas ruas e daquelas paredes derrocadas nem viva alma, a não ser, de longe em longe, quebrando o poético respeito do local, a de algum guarda de boné e galões nas manga do casaco...

No meio das coisas máximas, comovem muitas vezes as mínimas. Eu sabia que Pompéia tinha a sua pintura característica, e alegrei os olhos vendo sobre o estuque vermelho-escuro, ou mesmo preto, as suas grinaldinhas de flores, os finos arabescos serpeando ao redor de taças mimosas e de figuras gentis, essa pintura de estilo tão original e delicado, que seduziu o próprio Rafael - o mais delicado artista de todos os tempos - que a imitou - na forma e na cor, em uma das galerias do Vaticano em Roma; ouvira falar e lera notícias, mosaicos esplendidos de Pompéia e das suas incomparáveis termas, mas não imaginei nunca que o amor à água tivesse sido tamanho; e essa particularidade tão simples, tão da obrigação de toda a gente, tornou logo simpático aos meus olhos esse grande povo, extinto tantos anos antes de ter nascido Cristo! Foi, portanto, um pedaço de chumbo torcido, miserável resto de um cano velho, uma das coisas que mais assombro me fizeram! Pompéia gastava água em abundância: a canalização estendia-se por todas as ruas e todas as casas, com torneiras iguais às de hoje, e havia termas luxuosas, com largos tanques, piscinas claras, salas bem decoradas. Não lhes bastando isso, todas as habitações tinham o seu atrium, sala sem teto, aberta sol e às águas puras do céu, que encontravam no solo um reservatório de mármore - o impluvium.

Roma, na sua parte antiga, mostra-nos também termas e mais termas; desde as mais soturnas, como as de Tito, que se não vêem sem auxílio de luzes, até às Caracala, onde no seu tempo de brilhantismo viviam estátuas célebres, Hércules Farnese, Vênus Calipígia, Flora e outras! Mas... ruínas, como as termas, só vistas por artistas ou por filósofos, historiadores ou poetas, para que o saber ou a imaginação reconstrua o que o tempo e os homens perversamente destruíram.

Dizia eu que os povos da idade média não imitaram seus antepassados, e fugiam da água como o diabo cruz !... Felizmente, porém, houve grandes coquettes todos os tempos e essas tiveram sempre a fantasia extravagante... do banho!

Por desgraça, não lhes bastava a água nem o sabonete aromático e espumoso. Umas lavavam-se em leite de jumenta, como a mulher de Nero; outras em sumo de morangos esmagados, que amacia a pele e que alegra a vista; outras em água (finalmente!) da chuva, como Diana de Poitiers; outras com água distilada de mel de rosas, ou com pasta de amêndoas bem dissolvida, ou com o sumo leitoso de plantas verdes, ou em vinho de Málaga, como a amante de Alexandre I, da Rússia; ou em infusões de junquilhos, nardos e jacintos, as flores de aroma capitoso e embriagador! Maria Antonieta, que fez inventar uma banheira para o seu banho da noite, mergulhava-se todas as manhãs num cozimento de folhagem de timo e de serpol.

Neste nosso Brasil, quente e ubérrimo, sobejam plantas, cuja decocção daria banhos cheirosos. Mas para que, se os perfumistas ingleses e franceses nos mandam já prontas, transparentes e deliciantes, as mais finas essências, que, derramadas n'água ou pulverizadas depois na pele, nos dão o mesmo gozo com muito menor trabalho? Além de que, os cozimentos, desde que não sejam prescritos pelo médico, podem ser perigosos!

Para fazer a toilette à pele, isto é, vesti-la de uma cor suave e brandamente veludosa, julgo bastante... a água pura e um sabonete delicado. Enfim, para não ser avara, concedo que se deite no banho um pouco de água de Colônia.

Eu aconselharia a todas as moças ricas luxo de mármores e de metais nos seus quartos de banho. Uma mulher moça e formosa (qual é delas que não se julga assim?) ao escorregar na água quente, que todo o corpo enlaça, lambe e amolenta, que doces sonhos teceria, vendo por entre as pestanas cerradas as cores eternamente fugitivas dos mármores e os reflexos dos vidros e dos metais! Para a burguesa apressada ou fraca o caso é outro - o quarto de banho deverá ser simples, amplo e risonho. Um oleado rodeará aí a banheira, para que a água não apodreça o assoalho, se não houver ladrilho; bastará mais um tapete para os pés, uma larga cadeira de encosto, cabides, um porta-toalhas, e, fixadas na parede, perto da banheira, e ao alcance da mão, a cesta da esponja e a concha do sabonete. Além disso, uma sólida cantoneira de mármore, as escovas e o pulverizador, o porta-grampos, etc.

A água é um elemento essencial da vida e o principal fator da saúde humana. Uma casa em que a talha filtro seja bem tratada, e o quarto de banho diariamente freqüentado, atravessará largos períodos de serenidade e de alegria!

 

EM GUARDA

Quando, ao cair da noite, a mãe senta nos joelhos o filho amado e o interroga sobre os feitos do seu dia, para censurá-lo ou aplaudi-lo, como é feliz quando tem, para fortalecer a sua consciência, a contar-lhe um fato heróico ou um sentimento sublime, documentados por uma simples notícia de jornal ou uma audição de acaso! A sua alma profética adivinha que coisa alguma comoverá mais profunda e utilmente o seu rapazinho do que o saber que no seu tempo, na sua cidade mesmo, à hora em que ele brincava com o seu pião, ou escrevia os seus temas, ou dormia regaladamente o seu sono, havia um homem da mesma raça, da mesma língua, seu semelhante em tudo, que arriscava a sua vida para salvar a vida de um estranho, escalando janelas incendiadas, atirando-se às ondas impetuosas, atrevendo-se, enfim, aos perigos de uma morte horrível e quase inevitável!

São as melhores páginas para a alma, estas páginas vivas, ainda quentes do calor do sangue, ou empapadas pela inundação das lágrimas. Percebendo isso, não há mãe que se não comova, quando, relatando-as ao filho, vê nas transparentes pupilas dele despontar e dilatar-se a flor dourada da generosidade e do entusiasmo precoce.

Sei que, ao contrário de tudo que é regido pelas leis naturais, os heróis do passado, vistos através a distância dos tempos, em vez de diminuírem crescem de estatura; mas a verdade também é que essa lente mágica, agiganta-os até ao ponto de os tornar como deuses, mais fáceis de admirar que de imitar.

O conhecimento dos grandes homens da antiguidade serve para a cultura do espírito, mas não sei se terá o mesmo proveito para a do sentimento.

Eles permanecem imóveis no seu tempo, em um meio que foge à nossa perspicácia e em que se destacam como entes sobre-humanos para o culto das gerações sucessivas. As crianças, lendo ou ouvindo as suas façanhas, têm uma certa desconfiança da sua autenticidade, ou o pressentimento de que nos tempos modernos elas seriam absolutamente impossíveis.

De resto, o que está nas crônicas e nos livros pode ser ficção. Quem viu? Quem relatou? homens que talvez tivessem mentido ou simplesmente exagerado, e que dormem há muito o frio sono em túmulos dispersos e ignorados.

Agora o que não é mentira, o que parece feito da carne quente e não das cinzas frias, é um caso de altruísmo que o nosso jornal nos contou esta manhã, com um comentário banal, na frivolidade apressada de quem vê tudo do alto e quer seguir para diante, em desempenho de outras atribuições. Este caso, passado entre nós, atestado por pessoas nossas conhecidas, ainda tem uma palpitação de vida e pode reproduzir-se nesta mesma hora, daqui a pouco, ou amanhã....

Que belo partido tiram as mães inteligentes dessas lições do acaso! As vezes o fato parece tão insignificante que se some em um canto do periódico, sem atrair a atenção de ninguém, tal qual como uma mulher desconhecida e feia se some numa esquina. Passou, viram-na, mas não houve quem lhe tirasse o chapéu ou sequer a acompanhasse com a vista.

Por mais que bramem contra o egoísmo e a maldade destes tempos, olhem que há por aí muitos exemplos de abnegação e de bondade dignos de toda a nossa reverência. Lendo-os, na maior parte das vezes, levantamos os ombros, não fazemos caso.

É que a notícia, feita sobre o joelho, vinha mal enroupada, com falta do estilo que seduz e obriga à comoção. Refletindo, porém, um bocadinho, a educadora perspicaz pesca, no lodo que as seções policiais revolvem, pérolas de inapreciável valor! O resto depende da habilidade dos seus dedos, quando as mostrem à clara luz para fazê-las admirar.

Há quem proíba a meninas e rapazinhos a leitura dos jornais. Por mim não me parece que haja nisso bom senso. O jornal é toda a alma da cidade, com os seus vícios, as suas misérias e as suas glórias, que fazem tremer de horror ou de entusiasmo, e que, melhor que todos os livros de filosofia, ensina a conhecer o coração de um povo.

Que descortinará o jornal mais indiscretamente do que descortina a rua, onde a mocinha, incitada à faceirice por elogios sem termos, entrevê os graves amigos do papai conversando com as cocottes, sentindo nas faces puras o bafejo de todas as tentações, desde as do luxo das vitrines até as do jogo, em bilhetes de loteria que flutuam diante dos seus olhos, sacudidos por mãos teimosas e impertinentes?

Ah, o jogo! Por toda a parte se alastra a mania das rifas e das loterias; algumas casas mesmo do comércio especulam com a sua sedução. Há já sapatarias, alfaiatarias, casas de papel ou de jóias, que oferecem coupons sujeitos a uma fortuna de acaso, que habilita uma pessoa a alcançar, de graça, um terno novo, um par de botinas, ou meia dúzia de lápis. Ora, estes coupons e bilhetinhos de azar entram pelas portas e pelas janelas, como que trazidos pelo vento, e são sempre as mãos curiosas dos rapazinhos que primeiro os agarram, os reviram e os estudam!

Parece nada? pois nessa insinuação manhosa de economia caseira está uma terrível ameaça de ruína.

Sei que há algumas mulheres que, sem cogitar em que o germe de uma grande chaga é quase sempre um átomo invisível, acoroçoam os filhos a espalhar entre os colegas de escola cartões em que flutuam promessas, que, quando se cumprem pervertem, e quando se não cumprem desesperam.

Uma vez, descia eu a praia de Botafogo, ao calor brando de um dia sem sol, quando ouvi, com o frou-frou de uma saia de seda, a voz de um menino dizer a uma moça que ia ao seu lado:

 

- Olhe, mamãe, já passei cinco coupons da chapelaria e ainda não tirei nenhum chapéu.

 

Aquele lamento, respondeu ela, com a sua linda voz bem timbrada:

 

- Continua, que há de chegar a tua vez

 

Passaram ligeiros, ela arrepanhando a sua linda saia de seda cor de gravanço, ele impertigado na sua farda de colegial. Ficou um rastro de aroma no ar...

Estremeci. Mãe e filho! ele queixava-se da má sorte do jogo, ela incitava-o a continuar.

Então, não é verdade que a rua tem revelações extraordinárias, confidências imprevistas e absurdas?

Em quatro palavras apanhadas no ar, vi toda nua a alma daquela mulher perfumada e ligeira, que já se sumia na primeira esquina, sob a umbela rendada e rósea do guarda-sol, que era como uma flor de que ela fosse a haste...

Ora, se aos filhos dos ricos, que têm meias finas e roupas caras, interessa o bafejo da sorte que lhes conceda um chapéu vulgaríssimo ou umas botinas ordinárias, imagine que anseios de coração terão os seus colegas pobres, para quem esse chapéu representaria um luxo a que estão pouco acostumados!

Com igual razão, se a mãe rica condescende com um: - continua -, a mãe pobre, sabendo que o filho tem no bolso papéis que o habilitem a ter, sem gastar um vintém, um terno novo, uma carteira ou um relógio de ouro, suplicar-lhe-á que se avie na aquisição ainda de outros bilhetes, tanto mais que a flanela do seu casaco já está puída, ameaçando fim próximo.

Oh! estes terríveis papeizinhos que o vento espalha pela cidade e faz entrar pelas janelas e portas das casas de família onde há rapazes, como se para mão ensinamento e perdição deles não fosse de sobra a rua, onde,

 

du soir au matin, roule le grand peut-étre,

 Le hasard, noir flambeau de ces siécles d'ennui.

 

como disse o adorável Musset!

 

Quantas e quantas vezes, o próprio chefe da família se gaba distraída e imprudentemente, diante dos seus filhos, de ter ganho nesta ou naquela espécie de jogo! No que ele não repara, arrastado pela sua influência, é como as crianças arregalam os olhos de espanto, seduzidas por aquele triunfo que ainda desconhecem, mas cuja meia percepção os enleia e os atrai.

O trabalho que as mães têm, para destruir pela raiz aquele desejo de imitação, que tão depressa nasce e se avigora, é tremendo! A luta é surda, feita minuto a minuto, com uma vigilância extenuadora, visto que o inimigo as cerca de todos os lados. Mas também, quando a noite o sono e o cansaço cerram as pálpebras dos filhos, e elas se acercam dos seus leitos, sentem que a sua mão que abençoa procura em um esforço, talvez vão mas sempre puro e bem intencionado, levar aquelas almas para um largo futuro de paz e de ventura.

 

POR QUÊ?

Matou-se, por quê? O amor, esse eterno revolucionário, encheu-lhe o coração com o seu amargo licor de dúvidas e de desenganos?

Não...

A miséria bateu-lhe à porta, mostrando-lhe os membros nus, o colo murcho e sugado, as roupas em farrapos imundos e o rosto desconsolado? Foi essa visão que a fez varar o corpo com uma bala de garrucha?

Não...

Teve ciúmes do esposo, medo de que a sua beleza fosse suplantada pela de outra mulher, e que o seu espírito e a sua bondade, mais o seu amor, não bastassem para prender toda a atenção daquele a quem se dedicava de corpo e alma?

Não.

Perderia algum ente amado, um filho, por exemplo, em quem depositasse todas as floridas esperanças de melhor futuro, e de quem as saudades fossem tamanhas que lhe tornassem insuportável a existência?

Não.

Teria sido atingida por uma dessas moléstias incuráveis e nauseantes, que todos os extremos justificam?

Não.

Adultério?

Não.

Loucura?

Não.

Que hipótese formular então que explique o motivo por quê uma senhora honesta, casada, em boa paz com o marido, mãe de uma única filha, pega em uma arma carregada e manda com uma bala a sua pobre alma ao inferno (que é o lugar em que se purgam tais pecados negros), para os martírios do fogo e as águas enlodadas e amargosas do Acheronte?

Por quê? Se não adivinhais é que não sois donas de casa, e se o não sabeis é porque não lestes, ou ouvistes ler, num grande jornal do Rio, uma notícia simples, sem comentários, do suicídio de uma senhora, a qual notícia dizia assim:

"No lugar denominado - Areal - do município de Itaguaí, suicidou-se D. Amanda Augusta Fernandes, esposa do cidadão Júlio Augusto Fernandes. A arma de que se serviu a inditosa senhora foi uma garrucha de dois canos e a bala atravessou o pulmão, saindo pelas costas.

"A autoridade policial tomou conhecimento do fato, encontrando próximo do cadáver um bilhete concebido nos seguintes termos:

"Morro porque não posso suportar empregados. O meu maior desgosto é morrer sem ver meu marido e minha filha. Só peço perdão para esta que não devia ter vindo ao mundo." Não estava assinada, mas foi reconhecida a letra como a do próprio punho da suicida.

Que o exemplo não tenha imitadoras. Este triste desfecho, ai de nós! faz rir. E o ridículo na morte é a coisa mais lúgubre e mais terrível que até aqui tenho visto.

Ah, no Brasil as criadas fariam tremer de raiva as próprias santas de cera, se com elas tivessem de lidar; mas nem assim se compreende o desatino dessa infeliz criatura, cuja paciência arrebentou, à forca de esticada. Mas arrebentou por mau lado, a sua cólera deveria explodir por outro modo menos ruinoso...

Não seria de mulheres este livro, donas e donzelas, se não houvesse nele um cantinho para falar das criadas... E a pobre suicida oferece-nos um ensejo magnífico para tal fim. Eu sou das que têm mais pena e mais simpatia pela gente de serviço, do que ressentimento ou queixa, na convicção de que nem sempre servir seja mais agradável do que ser servida... Todavia não posso deixar de sorrir, ouvindo uma amiga, que, lendo sobre o meu ombro as palavras que escrevo, exclama atrapalhando-me: "Pena? simpatia?! não és sincera! aqui ter uma criada é fazer jus a um cantinho do céu; ter duas, a um lugar nos degraus do trono em que fiquem, com o eterno sorriso, os eleitos entre os eleitos.

A dona de casa no Brasil é a mártir mais digna de comiseração entre todas as citadas pela história. Viver embaixo das mesmas telhas com uma inimiga que faz tudo o que pode para atormentar as nossas horas, pagar-lhe os serviços e ainda fazê-los de parceria, assumindo a responsabilidade dos maus jantares que ela faz e da maneira desleixada por que arrasta a vassoura pela casa; ordenar e ser desobedecida; pedir e obter más respostas; falar com doçura e ouvir resmungar com aspereza; advertir com justiça e ouvir responder com agressão e brutalidade; recomendar limpeza, economia, ordem e calma, e ver só desperdícios, porcaria, desordem e violência, confesso que é coisa de fazer abalar em vibrações dolorosas os nervos os mais modestos, mais tranqüilos e mais saudavelmente pacatos do mundo!

Na Europa não é preciso que uma família tenha fortuna para receber em sua casa meia dúzia de amigos sem receio de que os copos venham pouco cristalinos à sala ou que a sopa esteja desenxabida, caso dona do ménage não vá à copa ver os cristais ou à cozinha cheirar as panelas...

Aqui, a coisa chega a ser cômica, mas de um cômico que obriga à careta em que não entra a simpatia do riso. Dirás: mas hoje as nossas criadas vêm de lá! Parece-me que sim; mas julgo que só emigram das aldeias esfomeadas e de povoações do interior bandos de criaturas só habituadas ao plantio das vinhas ou à colheita do trigo.

As das cidades, já desbastadas da crosta nativa e mais ou menos educadas essas deixam se ficar gozando nos poucos intervalos da sua vida trabalhosa, os gozos das capitais. Porque lá da se esta anomalia: Quem trabalha não é a dona da casa, é a criada!

A praga chegou até ao lugar do Areal, e com tamanha fúria que a pobre da D. Amanda, a quem atiras o teu punhadinho de ironias, apesar de esposa afetuosa e mãe apaixonada, preferiu um tiro de garrucha a suportar por mais tempo os seus criados!

Não cuides tu que se rirão dessa morte desesperada e que não haja por aí muita gente boa que, revoltada pela estupidez, ignorância, preguiça ou má vontade dos fâmulos, não tenha muitas vezes desejo de fugir desta vida para a outra, onde não seja preciso comer feijão queimado, absolutamente cru, e onde o furto e a incúria não tenham o mesmo impudor nem os mesmos assomos.

A sombra de D. Amanda, que a estas horas se recosta, plácida e aliviada das penas da Terra, a uma borda da barca de Charonte, sairá contente, porque foi compreendida!

Como o morrer é fácil para algumas pessoas!

 

FORMALIDADES

As formalidades mundanas transformam-se com a moda, pouco mais ou menos como os vestidos.

Uma pessoa rigorista não pode estar tranqüila.

A maneira de calçar a luva, tirar o chapéu, dobrar uma carta, fazer um convite, receber uma visita, comer a uma mesa, ir a um enterro ou a uma festa, andar, sorrir, etc., varia como as estações!

Nestes cuidados, aparentemente fúteis, existe um trabalho complicadíssimo, porque enfim, mudar de hábitos de ano em ano sempre é mais difícil do que mudar de gravata todos os dias.

Que dolorosas raivinhas sentirá uma criatura, mesmo bondosa e plácida, mas com apuros de exterioridade, ao verificar que pôs um selo num sobrescrito no lugar designado pela moda antiga ou que dobrou a ponta do bilhete de visita à moda antiga, ou que distraidamente apertou a mão de alguém na rua à moda antiga!

É para enlouquecer... Não digo que se não acatem com afã certas modificações; apraz-me comer os espargos à moderna, com garfo e faca, o que desobriga de sujar os dedos e fazer uma ginástica de cabeça por vezes embaraçosa; mas aceitar todas as reformas de etiquetas e costumes, parece-me excesso de fantasia, que pode acarretar prejuízos...

Estas minúcias delicadas são as meias tintas, que fazem realçar a educação do indivíduo; para que elas sejam naturais devem ser cultivadas desde a infância, nesse uso que as faz parecer uma segunda natureza. O doce preceito antigo de que o que se aprende no berço dura até à morte, fica abalado com esse contínuo fazer e desmanchar de regras com que as civilizações se entretêm. O que era lindo e correto há alguns anos passou a ser caricato à vista da moda tirânica dos dias que vão passando.

Têm razão os velhos em sorrir, com benigno escárnio, das alucinações desta mocidade trêfega.

No seu tempo os costumes eram de uma cortesia mais repinicada, mas muito mais igual.

A arte de bem viver na sociedade aprendia-se de uma vez só e ficava para o uso da vida inteira. Aqueles hábitos amaneirados impregnavam-se nas pessoas como um perfume na pele e passavam por isso a ser - essência própria.

Hoje os hábitos são movediços como as turbas. Tão depressa é de praxe que seja o homem o primeiro a cumprimentar uma senhora, como é o uma senhora cumprimentar primeiramente um homem; ora estabelecem que devem ser as damas idosas que ofereçam a face para o beijo das novas, ora que sejam as novas que entreguem a face para o beijo das velhas, etc..

Para quem não estiver bem firme na maneira por que se deve conduzir, estes renovamentos só podem criar indecisões e aflição.

Este embaraço não é só nosso.

Na velha sociedade da França, civilizada e primorosa, ainda é preciso que de vez em quando surja um livro ensinando regras, o que e indispensável, visto as transformações, ou se espalhem artigos em revistas e jornais, cheios de preceitos de civilidade.

É sempre com uma solenidade dogmática que esses autores ensinam a comer ameixas em calda, disfarçando a queda dos caroços no prato: a chupar uvas sem engolir as grainhas; a pedir a mão de uma moça; a por o pé no estribo, a descer do carro, a pegar na aba do chapéu para um cumprimento e até a apertar a mão dos amigos!

Este ato tão simples de polidez e de simpatia é motivo grave de preocupações. O gesto expressivo de se estender a mão aos outros, com naturalidade, pode, na opinião dos formalistas, ser tão ridículo como uma cartola velha num sujeito elegante, ou uns óculos de tartaruga num rostinho de quinze anos... Assim, ora decretam que se levante o cotovelo até à altura da orelha, que o pulso penda com moleza e que seja nessa atitude de animal de feira, que as mãos amigas se encontrem, num simples roçar de dedos, ora que seja o aperto de mão à altura do queixo, acoimando de brutal o shake-hands, com que as mãos fortes esmagam as mãozinhas moles e débeis.

Usos, costumes e convenções surgem todos os dias no código mundano, como cogumelos na terra úmida. É prudente não aceitar todos sem exame. Há cogumelos que matam, há convenções risíveis. O ridículo destas, eqüivale ao veneno daqueles...

 

PARA A MORTE!

Dizem que não há na mesma árvore duas folhas iguais e que as próprias flores, bem comparadas, divergem entre si, ou na forma, ou no colorido, ou no aroma.

É uma diferença quase imperceptível e só apreendida pela vista e o olfato argutos de um botânico estudioso e observador.

Quer isto dizer que no fundo da sua natureza misteriosa, a própria planta tem também os seus desacordos impenetráveis...

Como as folhas da mesma árvore, irmãs! somos todas dissemelhantes, e como as folhas somos levadas ou pela aragem doce que nos atira para a veludosa alfombra aos pés da própria árvore; ou pela lufada do temporal, que nos impele para a terra em torvelinho ou para as águas torrenciais!

Que culpa temos nós de ficarmos aqui ou irmos para além, se somos levadas pelo vento?

Nos tempos antigos, a mulher era calma, submissa, pacífica e retraída; mas seria tudo isso por ter mais bom senso, mais felicidade e menos ambição? Não me parece. O motivo devia ser outro; o motivo devia de estar na atmosfera que a envolvia e em que não existia nenhum elemento agitador. Não somos nós que mudamos os dias, são os dias que nos mudam a nós.

Tudo se transforma, tudo acaba, tudo recomeça, criado pelo mesmo princípio, destinado para o mesmo fim. Nascemos, morremos e no intervalo de uma e outra ação, vivemos a vida que o nosso tempo nos impõe.

O que ele impõe hodiernamente à mulher é o desprendimento dos preconceitos, a meta, sempre dolorosa pela existência, o assalto às culminâncias em que os homens dominam e de onde a repelem.

Mas, seja qual for a guerra que lhe façam, o feminismo vencerá, por que não nasceu da vaidade, mas da necessidade que obriga a triunfar.

A vida é cada vez mais exigente, absorve todas as aptidões; quem a pode servir, serve-a, e com isso só se enobrece, porque o trabalho nunca aviltou ninguém. Desde as classes inferiores, em que as mulheres queimam as mãos nas barrelas e carregam fardos, ou passam noites dobradas sobre as costuras. estragando os olhos e os pulmões, até às professoras, as médicas, as negociantes, qual não terá a consciência de sacrificar ao dever a sua alegria, o seu corpo, a sua mocidade?

Eu só não posso reprimir um movimento de estupefação diante da mulher que liga o seu nome a uma propaganda de extermínio e de sangue. Quando há tempos li o de Emma Galdman, acusada de instigar a morte de Mac Kinley senti uma revolta n'alma e a suspeita de que cometiam uma injustiça. Se em vez desse, viesse no mesmo lugar um nome de homem eu não vibraria ao mesmo estremecimento.

Não leio todos os dias notícias de mortes, de assassinatos e de crimes com igual direito à minha compaixão? E tremo por isso? E atordôo com ela os ouvidos do meu vizinho?

Absolutamente!

A intenção de Emma, de bem fazer às classes oprimidas e de só abater os grandes para mais livremente fazer circular os pequenos; a sua fé divina em um futuro de pacificação e de harmonia, em que a fraternidade dos homens não seja uma palavra vã, toda a generosidade do sonho em que ela afoga a sua alma de alucinada, não lograram, ai de mim! convencer-me de que há desculpa para uma mulher que só por via do mal procure fazer o bem.

Nem creio que ela o propagasse assim. O papel mais difícil é e será sempre o da conciliação, e é esse que todas as mulheres, mesmo as mais extremadas nos seus ideais, deveriam desempenhar. O mundo está farto de sangue e de ódios, e à espera de um bem, que tarda, e que o pacifique sem que para isso se amontoem cadáveres nem se acrescente o número dos encarcerados.

Oh! se para o triunfo do sonho anarquista, os fanáticos não quisessem a destruição; se a sua obra libertadora não exigisse o dilúvio do sangue e a devastação das cidades, como ele seria sedutor e desejado!

Como todas as revolucionárias, Emma esgotava-se em escritos e em conferências, levando de terra em terra a chama da sua palavra incendiada; pregando as suas doutrinas pelas cidades e vilas da União, perturbando os cérebros espessos de operários, sujeitos, até ao dia nefasto de a ouvirem, com maior ou menor resignação, às privações da sua dura sorte. Entretanto, ela, querendo iluminá-los, plantava-lhes n'alma o descontentamento e a dor. A infelicidade que se ignora, não é infelicidade.

No dia em que foi executado o assassino de Mac Kinley alguma mulher o chorou como mulher; e Emma sem consolar essa desconhecida, mãe, amante ou irmã do homem que perdeu, sentiu naturalmente subir às suas pupilas ressequidas pela febre das vigílias e do trabalho, uma lágrima de inexprimível inquietação.

A sua alma de mulher pressentiu a outra mulher, aquela que não sabe ser no mundo outra coisa, e que da vida só tem uma noção - a do amor!

A escritora anarquista compreendeu que é bem espinhoso e duro o caminho por onde ela busca a felicidade; mas acharia tarde para voltar, sentindo medo do caminho percorrido. Assim, haja o que houver e sinta o que sentir, ela continuará...

Continuará, lavada em lágrimas, ao sopro erradio do seu destino, com a folha ao vento espalhando o seu aroma venenoso pelos caminhos das fábricas e os carreadouros dos campos de lavoura. Ela continuará pregando e profetizando um bem irrealizável.

Ela continuará, e outros correrão a ouvi-la, e morrerão por cumprirem os seus mandamentos, e serão chorados por mulheres que ainda não saibam ser outra coisa no mundo... e na face serena da terra a inundação do sangue e das lágrimas não mudará nunca a essência das coisas nem a dos seres!

Sim, a culpa é do tempo; é ele que obriga as mulheres a olharem para a vida com uma atenção tão rude e tão penosa. Sentem-se muito sós, precisam trabalhar, para elas e para as que nascem delas, porque a onda da miséria cresce, e mesmo as que não se afogam nela, sentem-lhe os respingos amargos e a sua sombra pavorosa.

Oh, certamente que não foi por mera e caprichosa fantasia que a mulher se despojou das suas atribuições de ornamento para endurecer a alma e calejar as mãos na lufa-lufa do trabalho angustioso e viril.

Elas protestam, porque vão para ele de rastos, obrigadas pela necessidade urgente ou atraídas pela corrente que puxa as demais para a mesma voragem dolorosa.

De resto, bem sabem que nessa lida perdem a formosura a que renunciam, não sem tristeza, porque o enleio da formosura é sedutor, mas com altiva resignação. Pois bem, que tudo se arruine e se perca no mundo, menos a bondade da mulher, o seu acoroçoamento para o bem e as suas expressões materiais e pacificadoras!

De que nos serve, febril Emma Galdman, aturdir-nos e criar-nos infinitas visões de futuros impossíveis, se no fim de qualquer caminho por onde o destino vário nos leve, vamos todos bater à mesma porta negra?

 

SEGUNDA PARTE

 

FOLHAS DE UMA VELHA CARTEIRA

Disse-me um dia um velho amigo:

- Há certos livros de educação e de higiene que acho indispensáveis numa biblioteca de senhoras. As mulheres salvarão pelo amor o que os homens estragam por desídia.

 

Ponho nelas toda a minha esperança. Aos espíritos banais essas leituras parecerão fastidiosas; mas de vemos crer que as mães, empenhadas pela saúde e bem estar dos filhos, achem grande interesse em folhear páginas sérias de educadores modernos. É um erro pensar que, hoje, o ensino deve ser ministrado como há cinqüenta anos e entregar os nossos rapazes aos nossos colégios atrofiadores. Há tempos enviei um livro a minha filha : L'Education nouvelle, de Edmond Demoulins. Pois os meus netos já lucraram alguma coisa com a leitura da mãe. O livro é uma exposição claríssima da Escola moderna, prática, que trata de aperfeiçoar ao mesmo tempo o corpo e o espírito dos rapazes. "L'École doit developper à la fois chez l'enfant la largeur de l'intelligence et la largeur de la poitrine."

Minha filha leu esse livro com muito carinho, e, na impossibilidade de executar em casa todo o programa do colégio, iniciou alguns dos seus exercícios com proveito, graças à instrução que recebeu... Os meus netos vivem no campo, onde têm bom teatro para os seus estudos de história natural. Um deles freqüenta uma oficina de carpintaria, o outro uma de ferreiro... A mãe preside às suas leituras, livros escolhidos, na boa língua portuguesa, e ensina-lhes desenho e música. O pai dá-lhes uma hora de matemáticas e geografia e contrataram um professor francês para a língua francesa e um inglês para a língua inglesa, obedecendo à ordem da Escola moderna de que nunca uma língua deve ser ensinada senão pelos da sua nacionalidade. Os pequenos nadam como peixes e correm como gamos. Não têm as mãos acetinadas, está claro... imagine um ferreiro! um marceneiro! Por enquanto não barafustaram pelos labirintos da gramática, mas escrevem cartas muito limpas e já movem a lima e o malho com algum desembaraço...

Intercalando os estudos clássicos com trabalhos materiais e ocupações artísticas, eles vão-se tornando homens completos, tanto à vontade num salão como em uma oficina... Em uma das suas cartas diz-me a mãe:

"João e Luiz têm o andar firme e olham para toda a gente de rosto, com a cabeça alta, já demonstrando consciência de homens!"

 

E em outra carta:

"João está hoje trabalhando no jardim e Luiz na horta, a meu mandado. As quintas e sábados vem um homem guiá-los nesse serviço, depois da hora das oficinas. Cada qual me faz mais lindas promessas; se dias se realizarem, ninguém terá nem tão lindas rosas nem tão magníficos repolhos."

 

Ainda noutra carta:

"João tocou hoje a sua primeira sonatina para alguns amigos ouvirem, e Luiz ofereceu ao mestre de inglês um desenho razoável. Embora eu disfarce o meu entusiasmo, eles percebem que estou contente."

 

Esta mãe que assim cultiva nos filhos todas as boas qualidades de corpo e de inteligência, a que deve essa satisfação? Ao seu amor? Não só ao seu amor, pelo qual os filhos nada lhe devem, porque todos os animais amam os filhos; mas a ter estudado como um homem ciências naturais e línguas vivas. Ela sabe logo dia pode transmitir, e os seus filhos são assim duplamente - suas criaturas.

Os russos, quando querem ser bons e simples, dizem coisas enternecedoras. Aqui estão palavras de um romance russo:

"Repara no cavalo, esse grande animal, e no boi, o robusto trabalhador que te alimenta: vê que fisionomias sonhadoras! que submissão, que fina timidez! que devotamento por quem tantas vezes os castiga sem dó! É enternecedor o pensarmos que tais entes são sem pecado, porque tudo é perfeito, tudo é sem pecado, menos o homem."

Menos o homem; e para que este seja também puro quantas lágrimas de arrependimento e de contrição terá que verter! Mas para se ser perfeito não basta amar a humanidade; é preciso que o nosso olhar abranja toda a natureza e confunda na sua harmonia, com igual carinho, todos os seres que sofrem e que se submetem.

No meu bairro, às vezes tenho de encostar-me a um paredão da estrada para deixar passar uma carroçada de pedras puxada por uma ou duas juntas de bois. Eles vão cobertos de suor sob o peso da canga num esforço valente e com ar humilde, e ainda o bruto do carroceiro os espicaça com o seu pampilho! Na cara do homem não se lê senão a fúria bestial da impaciência, enquanto que os robustos trabalhadores, vergados e submissos, olham para a estrada adiante, com uma expressão de bondade sonhadora...

Caminho então para casa, pensando que realmente nós tratamos muito mal os animais. Só os vemos embaixo do trabalho pesado.

Nessas lindas tardes de setembro, em que vagavam no ar pipilos de aves e penugens brancas de paineiras, porque não passaria pelas lindas estradas de Santa Tereza uma ou outra amazona em cavalo bem tratado?

Passado o instante do elétrico os folhudos galhos das árvores que se debruçam sobre as estradas nuas, só vem passar cavalos magros, lanhados de chicote, ou os fortes bois submissos e sonhadores...

Há na comédia Blanchette, de Brieux, uma frase que sintetiza, com delicadeza e exatidão, o amor ufano com que as mulheres servem a sua casa. São palavras simples, sem literatura, sempre as mais sinceras, que nascem da alma e definem com clareza uma idéia ou um sentimento.

Lembram-se? Blanchette, deslocada em casa pela educação recebida no colégio, abandonara o lar em uma rebentina, ouvindo as maldições do pai a apontar-lhe a porta da rua com a mão nodosa de vendeiro avaro. Blanchette, que se recusara a atar à cintura os atilhos do avental, para servir os fregueses do pai, volta pela segunda vez ao ninho paterno, mas agora como um cão batido, magra, morta de fome, coberta de humilhações.

Tivera de servir de criada para viver. O mundo ensinara-a.

Vendo-a, a mãe acolhe-a, aquecendo-a de encontro à sua carne martirizada e submissa... O pai, teimoso, lá chega ao seu momento de ceder e ela, enfim restituída à sua casa e à sua família, exclama radiante:

- "Como é bom pôr a gente um avental em sua casa!"

 

E com que alegria os seus dedos ágeis amarram então na cintura os atilhos do avental! É que os aventais que as patroas lá fora lhe haviam atirado à cara tinham bem diversa significação. A independência do nosso canto, a felicidade do sacrifício feito pelo nosso lar e por os que amamos, estão bem dentro dessas palavras que direis escritas por uma mulher, tão impregnadas estão de sentimento feminino!

E aí está como um pedaço de pano incolor pode ter tão alta significação moral...

O lenço desempenha na vida um papel bem variado!

Mesmo os lenços de luxo que com renda e tudo não medem mais que uns vinte e cinco centímetros, mera futilidade incapaz de descer às necessidades prosaicas, até esses têm o destino clemente de enxugar lágrimas e disfarçar ironias.

Quando pertença a uma senhora, - que o do homem é obrigado a um exercício ativo - o lenço branco, de meio metro quadrado, paternalmente carinhoso nos defluxos e nas bronquites, não sai do recato da gaveta, bem guardadinho para as urgências de ocasião, dobrado em quatro entre sachets ou raízes de capim cheiroso.

No fundo da sua consciência (suponhamos que os lenços também têm disso), eles sentirão a satisfação do dever cumprido, tão apregoado pelos que o não cumprem, e esperarão que os chamem ao serviço interino de um nariz precisado do seu socorro e da sua abnegação.

Mesmo os lenços de chita, tão caricatos e nojosos, salvam-se quando, bem lavadinhos, são postos em cruz sobre o peito farto de uma camponesa bonita. Então não cheiram a tabaco; cheiram a trevo e alecrim; não têm nódoas de rapé, têm a sombra da cruz redentora ou dos bentinhos que a dona traz pendurados no pescoço; não representam a torpeza de um vício que desmoraliza o nariz, mas sim o recato que poetisa o seio.

De mais, são alegres com as suas cores turbulentas e ramagens vistosas, que despertam a idéia de campos de papoulas, onde bata o sol.

Não sei precisar se são só de minha cabeça, ou sugestão de alguma leitura fugitiva, estes reparos que por escrúpulo vão entre aspas:

"É no lenço que nós impregnamos com mais intensidade o nosso perfume favorito, a essência que faz parte da nossa individualidade e nos denuncia ao olfato dos amigos. É o lenço que seca as nossas lágrimas, que se mistura aos nossos sorrisos, que ajuda a mímica, abafa os gemidos, dissimula a careta e guarda amarguras do coração: triste pranto secreto e que ninguém adivinha. Recurso de aflições, ele, impassível e mudo, deixa que o crispemos, que o mordamos, que o estraçalhemos, nos movimentos de ódio e de despeito, quando não possamos com a palavra repelir a má intenção de um olhar ou de um gesto que ofenda! Vítima das nossas agonias, ele é então o salvador da nossa dignidade.

É ainda o lenço que, comparticipando da expressão do nosso sentimento, se agita no ar numa saudação de aplauso ou na saudade de uma despedida.

Quem não viu, ao menos uma vez na vida, esse aceno branco, repetindo em silêncio a palavra que já não pode ser ouvida? Onde a voz já não chega, chega ainda o adeus do lenço, batendo-se no ar como uma asa na agonia.

Imagine se a amada do poeta teria lido nunca estes versos:

 

Este teu lenço que eu possuo e aperto

 De encontro ao peito quando durmo, creio

 Que hei de um dia mandar-to, pois roubei-o

 E foi meu crime em breve descoberto"

(Versos de um simples - Guimarães Passos)

 

se ela o não usasse e o não tivesse deixado roubar, já naturalmente com o propósito, muito humano, de o reaver, quando

"Pando, enfunado, côncavo de beijos!"

Esse trapinho, que se embebe de lágrimas que secam, de beijos que se não vêm, que fala nos apartamentos e nas aclamações, que designa para o amor de um rei a mulher preferida, que abafa os soluços, guia as pesquisas das cartomantes e das feiticeiras, dá sinais aos namorados, protege os espirros e recende aos aromas mais capitosos: que é muitas vezes cúmplice em intrigas, fingindo secar olhos enxutos e escondendo caretas que desejem parecer sorrisos, tem ainda uma missão misericordiosa: a de encobrir a face feia e fria dos cadáveres. E na hora extrema do cadafalso, vendam-se com o lenço os olhos dos supliciados, para não verem a morte!

 

Have you not sometimes seen a handkerchief

 Spoted with strawberries in your wife's hand?

Quantas vezes o notara Otelo; se era dádiva sua!

 

Pois foi com esse lencinho salpicado de morangos que o honesto Iago assanhou no seu senhor o monstro de olhos verdes, o negregado ciúme, que fez morrer a pálida Desdemona.

Na ação como na intriga os lenços representam muitas vezes no teatro extraordinárias ficções!

São almas que se dilaceram entre os dedos apaixonados de Margarida, ou os dentinhos terríveis de Frou-frou; são como pedacinhos de pele amada de encontro aos lábios de Romeu e quando não exaltem paixões nem enxuguem o suor da agonia, são ainda um magnifico pretexto para que a mão desocupada vá e venha, cortando a monotonia da inércia.

Quem inventou o lenço bordado e circundado de rendas foi a imperatriz Josefina, que por ter maus dentes escondia com ele continuamente a boca. Graças o essa cárie irreverente o lencinho fino tornou-se objeto de luxo e entrou na atividade dos passeios, das procissões, dos minuetos, onde ele era o sucedâneo do leque, dobrado em ponta entre os dedos carregadinhos de anéis, de benjoim e de verbena. Era talvez a parte mais expressiva da toilette, o seu complemento precioso, com o nome da dona sublinhado a rendas caras.

Rendas...

Há no Brasil, em terras do norte, umas rendeiras cujos dedos conhecem segredos de fadas. Rendas de lenços, fazem-nas tão bonitas e tão finas que se nos afigura impossível terem sido tecidas por gente inculta, sem noção de desenho.

Quando se lê o apreço que em certos países dão, e agora mais que nunca, às rendas feitas à mão, e como neles cultivam essa prenda delicada, agremiando camponesas, dando-lhes mestres, fomentando uma indústria que é ao mesmo tempo uma arte, receia a gente que as rendeiras do Norte, já velhinhas, deixem cair os bilros dos dedos engelhados, sem que outras mãos, mais lépidas, os apanhem para continuar a tarefa interrompida...

Íamos pela rua do Senador Furtado. O dia estava lindo, cheirava a murta. Subitamente começamos a ouvir gemidos, arrancados de uma grande aflição. Mais alguns metros, e vimos agachada numa soleira de portão, com o busto caído sobre os joelhos pontudos, uma negra cadavérica, que a tosse sacudia como o vento sacode um trapo. Sentindo gente, ela levantou a cabeça, revirando os olhos pálidos para o céu iluminado. A aragem brincava-lhe com um farrapo de xale, que dia franzia no peito com as mãos magríssimas e amareladas. Paramos, e a voz dela explicou entre uivos: - Foi o cock... foi carvão de cock que me matou!

As palavras, interrompidas pelas guinadas da tosse, repetiram a queixa no mesmo estribilho recriminativo: - Foi o carvão de cock que me matou!

Veio gente de dentro. Levaram-na em braços.

Ouviram bem? O cock é um assassino de mulheres. Mata pelo excesso de calor que desprende. Nunca me esquecerei daquela triste queixa irremediável...

Não é raro esbarrarmos na rua com uma menina, nessa idade indecisa, como diz o mestre:

 

Que não é dia claro e é já alvorecer

 Entre-aberto botão, entre-fechada rosa,

 Um pouco de menina e um pouco de mulher .

(Falenas - Machado de Assis)

 

E a impressão que se sente é sempre agradável, se essa criatura tem a condizer com o resto de meninice, que vai desaparecendo, e o começo da mocidade, que vem apontando, uma graça ingênua e um modo desartificioso de andar e de vestir-se.

Ah, mas quando, ela passa empapada de essências raras, de passo estudado e muito espartilhada, com meneios grosseiros e rosto empoado, vem a quem a olha um desejo absurdo de sacudir pelos ombros a mamãe inconsciente; e de lhe gritar aos ouvidos que a doce criatura que o céu lhe confiou, e cujos passos ela segue como má pastora, vai carregadinha de ridículo...

O artificio do pó de arroz é o véu benévolo para os postos de quarenta anos. A pele moça não precisa disso. A beleza das donzelas está na sua candura, na sua alegria natural, e sobretudo na sua simplicidade...

Vi em uma revista francesa o retrato de uma velhinha que aprendeu a ler depois dos setenta anos. Olhando-lhe para a cabecinha e para o rostinho todo sulcado de rugas, tive vontade de beijá-la.

A história dela: Todas as manhãs costurava a septuagenária junto à janela da sua choupana, à sombra de um castanheiro que lhe dava perfumes na primavera, sombras no verão, frutos no outono e ouriços para o foguinho do inverno.

Que mais seria preciso para a vida? O alfabeto não foi feito por Deus; e para amá-lo e servi-lo bastaria adorar a natureza. Entretanto eis que depois de longos anos lhe cortam a frente da casa por um caminho novo, atalho para a vila, por onde o rapazio de uma aldeia próxima passava para a escola.

A doce velhinha, ouvindo todos os dias a tagarelice das crianças levantou os olhos da costura e voltou-os para o horizonte infinito.

Saber ler seria tão útil, que os pobres pais, cavadores sem vintém, se abalançassem a mandar os filhos todos os dias à escola, com prejuízo do seu trabalho?

Alguns desses pequenos já sabiam lidar nos campos, e tinham força para mover a enxada ou guiar os bois... Com que duros sacrifícios a mãe lhes compraria os sapatos e as roupas de ir ao mestre!

Esse exemplo fê-la pensar que vivera toda a sua longa vida de setenta anos, como um animal inferior, em que o pensamento mal animava a matéria. A vida teria outros intuitos mais elevados que os de servir a carne com o alimento e o agasalho?

Dos seus dedos encarquilhados e trêmulos a costura caiu, e no dia seguinte ela se incorporou ao bando das crianças, a caminho da escola.

Foi uma alegria. Os pequenos não riram. Emprestou-lhe, um, uma cartilha; outro ofereceu-lhe uma tabuada; e todos se sentiram muito honrados com aquela condiscípula de rosto franzido e cabelo nevado.

No fim de três meses de uma aplicação teimosa, a velha aldeã, escrevia a sua primeira carta à neta mais velha, que vivia numa colônia francesa da África. Nas suas garatujas aconselhava ela a moça a ir à escola, para aprender a mandar-lhe notícias com a sua própria letra.

As cartas escritas pelos outros não são inteiramente nossas; nas letras como nas palavras vai alguma coisa do ente amado e ausente...

De vez em quando noticiam os jornais: "... Perdeu-se uma criança... Achou-se uma criança..."

E são sustos, lágrimas, aflições! Para prevenir essas confusões bastaria atar ao pescoço dos anjinhos na medalha com seus nomes e moradas. Tal e qual como aos cãezinhos. Sim, porque as pobres crianças com as suas línguas de trapos, tão musicais e incompreensíveis, esforça-se em vão, muitas vezes por explicar a um desconhecido, que as encontra chorosas na calçada, de onde vêm ou para onde vão. Há só uma palavra nítida no meio daquele embaralhado fuso de sílabas entrecortadas de soluços: - mamãe! Querem a mamãe, cuja mão deixaram sem saber como, nem onde, nem quando, olhando tontas para a direita ou para a esquerda, sem noção do sítio, aflitas, trêmulas, sondando com olhar ávido todas as portas, erguendo os queixinhos rosados para todas as janelas.

Estas cenas, aliás freqüentes, sempre enternecem, e a cada pergunta que um transeunte comovido faz, no sentido de auxiliar e bem conduzir a pobre criaturinha, ouve sempre a mesma resposta - mamãe!...

 

- Em que rua mora? - Mamãe!

 

- Para onde ia? - Mamãe!...

 

- Como se chama ela, a sua mãe? Mamãe, mamãe, mamãe!

 

Por seu lado, a mãe volve à loja de onde saiu, julgando encontrar o filhinho embasbacado diante da mesma boneca; já não o encontra, sai trêmula, - que o não pise um carro! - e, enquanto alucinada sobe para a direita, interrogando toda a gente, olhando como louca para todas as lojas e todas as esquinas, ele desce para a esquerda, engrolando termos, segurando-se a todas as saias, contemplando com avidez e susto todas as mulheres.

E nós, que nada vimos, comovemo-nos no dia seguinte ao ler nas gazetas: "... Perdeu-se uma criança..."

Um dia encontrei em uma esquina o velho Dr. Serra, que, apesar dos seus setenta anos, gosta de observar as moças que passam. Disse-me ele:

Estou convencido de que o simples movimento de levantar o vestido exige uma graça muito particular. Há senhoras que erguem a saia de um lado e vão com ela a rastos do outro, descrevendo uma linha diagonal, como se caminhassem de esguelha. Outras, não levantam coisa nenhuma, varrem as ruas com desassombro; outras, levantam demais o vestido, mostrando as saias de baixo, que só devem ter o mérito de se deixar adivinhar: outras, arrepanham as duas saias ao mesmo tempo, para mostrarem a toda gente os tacões das botinas; e é raro ver-se uma que, reunindo as pregas da saia à mesma distância da cintura, colha a fazenda sem distrações nem indiscrições, deixando apenas entrever o que se deve não mostrar. Eu já atinei com a arte. A mão que segura o vestido não deve estar nem muito alta, nem muito baixa, nem muito para diante, nem muito para trás; de maneira que o braço caia naturalmente e não desenhe esses feios ângulos agudos, que nos obrigam também a andar fazendo curvas. Realmente, as senhoras do meu tempo...

Pedi ao meu amigo que olhasse para outro lado e aproveitei a ocasião para fugir-lhe, não sem a preocupação de que ele se voltasse e me visse os tacões, ou a saia de esguelha...

Os homens são terríveis!

 

QUIROMANCIA

Uma bela tarde, a minha amiga Rafaela entrou arrebatadamente na minha saleta de trabalho e deixou-se cair num tamborete, a meus pés.

 

- Que tens? perguntei-lhe assustada, percebendo-lhe o terror no rosto, ordinariamente repousado.

 

Por única resposta ela estendeu-me a mão espaldada e nua, e arregalou para mim os seus olhos claros, cor de violeta.

 

- Não percebo o teu gesto... roubaram-te o anel que ele te deu?... Não abranges a oitava no piano e desistes de o estudar? Terás reumatismo nos dedos ? Bem; se não queres responder, vai-te embora, mas arranja primeiro o chapéu, que está torto, e modifica esse ar de quem foge de alguém que o persegue na rua...

 

- Ninguém me seguiu na rua... o anel que ele me deu está na outra mão...

 

E, como orvalho em violetas, borbulharam lágrimas nos olhos da pobre Rafaela.

 

- Se pudesses explicar-te...

 

- Escuta venho da casa da Noêmia Saldanha; havia lá gente de fora, uns homens de quem já não me lembro do nome e um certo rapaz que lia nas mãos das senhoras a buena dicha, ou que melhor nome tenha. Quando eu entrei, a Saldanha disse alto, com o seus guinchinhos de macaca: "Olhem quem vem aí!" e puxou-me com violência para a roda, que se abriu muito amável para me receber. O tal rapaz continuou nos seus prognósticos, que faziam rir a todos. Lia na mão da Sinhá Mendes coisas muito bonitas: que ela se haveria de casar com um moço que a adora... que há de ir à Europa, que há de ter três filhos gordos. mansos, fortes e bonitos; que herdará uma grande fortuna de um parente afastado de quem não terá saudades; que terá lindos vestidos, bons carros, assinaturas no lírico e que morrerá de velha, sem sentir, de uma síncope...

 

Todos riam; a Sinhá estava radiante! Com aquele exemplo, eu fui insensivelmente desabotoando a luva e estendendo também a minha mão.

O rapaz tornou-se sombrio, à proporção que a observava. Como eu instasse para que dissesse a verdade, fosse ela qual fosse, ele, muito constrangido, declarou tudo.

Disse que não me casarei, que terei bexigas, apesar vacinada duas vezes, e que ficarei marcada como um crivo; disse que a minha família me abandonará e que morrerei ainda moça, de um ataque, na rua! Vida tão feia não merece melhor desfecho!

 

- Um ataque na rua! Que ignominia! Vê tu!

 

- E depois?

 

- Depois... que sou muito nervosa - e isto é verdade! - que tenho uma grande paixão... também é certo... que tenho excelentes qualidades de coração, o que não me impedirá de morrer como um cão sem dono, na calçada...

 

- Que mais?

 

- Ainda querias mais?!

 

- Que respondeste?

 

- Fingi heroicidade, que é sempre o nosso costume mas sabe Deus o que se passava cá dentro! Quando pude fugir, fugi. Os guinchos da Noêmia perseguiam-me; a alegria da Sinhá irritava-me. A felicidade dos outros agrava o nosso infortúnio. Só hoje compreendi isto. Por mais que eu olhe para a mão, para estes caminhos que parecem traçados na palma pela ponta finíssima de um alfinete e por onde marcham os nossos instintos, os nossos segredos e até o nosso futuro se esclarece, por mais que eu observe toda esta rede complicadíssima, não consigo descobrir nada! Se ele se tivesse enganado?! Mas não; vi que falou com toda a convicção, disse a verdade. Eu agora já sei; abandono-me, aceito o meu destino, o meu feio destino de ser medonha, não ser amada e morrer numa calçada, à vista de quem passar na ocasião!

 

- Não vês, minha tontinha, que te meteram num enredo? Vou apostar eu como o tal rapaz entende tanto de quiromancia como eu.

 

- Ah, a quiromancia é uma arte!

 

- E nas salas uma armadilha maliciosa à ingenuidade de certas moças... Quando tiveres algum segredo que não queiras ver profanado, nem pela mais leve suspeita, abotoa bem as tuas luvas ao entrar em certas salas. Entretanto, fica certa de que não será nas linhas da mão que ele se mostre todo, mas no rubor das tuas faces ou no pestanejar dos teus olhos, que serão consultados à proporção que se faça a leitura fatídica. Quanto ao resto, o rapaz, se não foi absolutamente delicado, não deixou de ter uma pontinha de espírito. Sinhá é feia, tu és bonita; ela roça pelos trinta anos, tu ainda não tens vinte, ele quis igualar-vos momentaneamente, vestindo-te de desapontamento e iluminando a outra de alegria. Na tua idade os segredos são leves e fáceis de adivinhar; em todo caso guarda-os contigo, ou só para a confidencia amiga. O recato do sentimento, fortifica-o e enobrece-o. E o coração de uma donzela não se deve devassar a todas as curiosidades... Ele é, como disse o poeta Vigny: un vase sacré tout rempli de secrets.

 

ARTE CULINÁRIA

Para saber comer, é preciso não ter fome. Quem tem fome não saboreia, engole. Ora, desde que o enfarruscador ofício de temperar panelas se enfeitou com o nome de arte culinária, temos uma certa obrigação de cortesia para com ele. E concordemos que é uma arte pródiga e fértil. Cada dia surge um pratinho novo com mil composições extravagantes, que espantam as menagères pobres e deleitam os cozinheiros da raça! Dão-se nomes literários, designações delicadas, procuradas com esforço, para condizer com a raridade do acepipe. Os temperos banais, das velhas cozinhas burguesas, vão-se perdendo na sombra dos tempos. Falar em alhos, salsa, vinagre, cebola verde, hortelã ou coentro, arrepia a cabeluda epiderme dos mestres dos fogões atuais. Agora em todas as despensas devem brilhar rótulos estrangeiros de conservas assassinas, e alcaparras, trutas, manteiga dinamarquesa (o toucinho passou a ser ignominioso), vinho Madeira para adubo do filet, enfim tudo o que houver de mais apurado, cheiroso e... caro!

As exigências crescem, ameaçam-nos e, sem paradoxo, somos comidos pelo que comemos. Isto vem à propósito de uma exposição de arte culinária que se fez, há pouco tempo, em Paris. Imaginem como aquilo deve ser encantador e apetitoso!

Quem já viu as vitrines das charcuteries, das crémeries, das confeitarias, etc., e que sabe com quanto mimo e elegância são expostos os queijos, os paios e os pastéis, entre bouquets de lilases e fofos caixões de papéis de seda bem combinados, crespos e leves como plumas, imagina que de novidades graciosas se juntarão no Palácio da Indústria.

Naturalmente, cada expositor é um arquiteto e um artista na combinação das cores. Fazem-se castelos de biscoitos, torres engenhosas de chocolate, de creme, de morangos, onde tremulem, em cristalizações policromas, as gelatinas de frutas ou de aves, refletindo luzes entre lacinhos de fita e flores frescas, porque o francês tem a preocupação gentilíssima de deleitar sempre os olhos alheios.

Abençoada mania!

O que eu invejo não são as trutas, nem os champignons, nem o seu foie-gras, porque tudo isso temos nós aqui e mais muitas coisas que eles lá desconhecem. O que eu invejo é aquela facilidade, aquela graça das exposições que se sucedem e se multiplicam e que não podem deixar de ser úteis, porque abrem a curiosidade e ensinam muito.

A cozinha francesa tem-se intrometido em toda a parte.

A Inglaterra opõe-lhe forte resistência com as suas batatas cozidas e presunto cru; mas a nossa, por exemplo, está muito modificada por ela. Entretanto, temos pratos característicos, só nossos e que eu teimo em achar gostosos. Infelizmente falta-lhes o chic, o lado onde se possa atar a tal fitinha ou colocar o bouquet de violetas do inverno ou do muquet da primavera. O feijão preto com o respectivo e lutuoso acompanhamento não se presta por certo para a coquetterie de um adorno mimoso, mas nem por isso deixa de ser da primeira linha. Depois temos os pratos baianos, o afamado vatapá e outros, quentes e lúbricos, e o churrasco do Rio Grande, e o cuscuz de S. Paulo, e tantos que eu ignoro e que descobrem, demonstram, por assim dizer, as tendências, o temperamento do povo.

Um país como o Brasil tão vasto e variado não teria proporções mais curiosas para realizar uma exposição neste gênero?

Só de frutas, que, tratando-se da mesa, tem todo o lugar, e de doces... imaginem: faríamos um figurão! geralmente caluniam-se as frutas brasileiras e parece-me tempo de lhes irmos dando a merecida importância. Não há nenhum brasileiro que conheça todas as frutas do seu país. O europeu desdenha-nos nesse sentido; esquece-se de que em muitos lugares do Paraná, Minas e Rio Grande, desenvolvem-se pêras magníficas, damascos, cerejas, nozes, etc. E as frutas e as hortaliças indígenas? Inumeráveis! O que falta à nossa gourmandise é poder agrupá-las, poder escolher, na mesma terra, estas ou aquelas, e isso só se poderá fazer se houver aqui, algum dia, como agora em Paris, quem dê importância à mesa, e procure, por meio de exposições, facilitar esse ramo de comércio, educar o povo, e dar-lhe um elemento novo de prazer e de saúde.

A exposição parisiense tem ainda um fito, e é a sua principal recomendação e a mais elevada, - é o de ensinar, por meio do exemplo, a cozinhar bem. Um dos seus cantos é ocupado por M. Charles Driessens, que segundo leio, luta há dez anos com desesperada energia para fazer entrar o ensino da cozinha no programa do Estado. Este tal M. Driessens tem várias escolas de cozinha, e ali trabalham umas cinqüenta discípulas, mostrando a toda a gente como se deve fazer um creme, estender uma massa, temperar uma salada, grelhar um bife ou enfeitar uns pezinhos de carneiro com papelotes e rosetas.

As senhoras não nasceram para falar em camarões, carne ou palmito, em público; mas, senhores românticos, lembrai-vos de que nem sempre nos bastam o brilho das estrelas nem o murmulho das ondas para conversar com as amigas!

 

AMULETOS

Foi numa das sextas-feiras da Matilde Abranches, que o seu médico, rapaz aliás simpático, afirmou que os homens são maus por culpa das mulheres...

Os dedos de Cecília desfolhavam as notas levíssimas de Ma barque légère e a meu lado Lídia sorvia o aroma de um botão de rosa. Bem comparado, fez-me lembrar um quadro ideal de Diana Cid; Lídia também estava de azul, como a formosa do "Perfume".

 

- Por culpa das mulheres?! perguntou a voz empapada de uma mãe de família, que tem por hábito tomar a sério todas as conversas.

 

- Como desde o princípio do mundo. Agora então a influência da mulher é nefasta. A nossa sociedade cai rapidamente da sua modesta franqueza, que a fazia encantadora, para um snobismo que a torna ridícula. A preocupação do chic estraga tudo. As portas já se não abrem como antigamente, e procuramos termos para as conversas mais simples!

 

Não há naturalidade nem há simplicidade. A virtude das mulheres, que era para as nossas culpas, como um tronco profundamente enraizado é para as lianas frágeis - um sustentáculo que as eleva e ampara, sente-se abalada e já não nos inspira a confiança de outrora.

Como para Bruto, para mim a Virtude não é mais que uma palavra. Bebemos todos do veneno. Agora só o dilúvio.

 

- Que mal lhe teriam feito as mulheres, sempre gostaria de saber...

 

- Estragam tudo com a sua imprudência, a sua coquetterie e o seu fanatismo. Basta olhar para uma mulherzinha moderna para a gente perceber que se preocupa com feitiços e é supersticiosa. A quantidade de figas e de amuletos que traz ao pescoço, bem o prova. Em vez de nos ensinarem a sermos simples e cordatos, tornam a vida cada vez mais complexa e difícil.

 

- Exemplo?

 

- Nas mínimas coisas ele aparece. Vá o exemplo: convidam-nos para um jantar familiar e dão-nos um banquete em que vagueiam perfumes de flores caras e cheiros de molhos complicados. Aquilo não é o trivial: logo, aquele não é o jantar familiar. Quem ordenou e determinou o menu, não foi certamente o dono, mas a dona da casa. Portanto a atmosfera de falsidade que se respira naquela casa amiga, foi criada pela mulher.

 

- Ora aí está ! São os nossos maridos que trazem dos hotéis e das festas a que assistem a exigência desses molhos complicados, dessas floreiras odoríferas. do champagne ruinoso e dos cristais variegados das mesas ricas. São eles que nos sugerem novidades de serviço; e vêm os senhores depois pôr a ridículo a nossa pretensão! Geralmente não somos nós que compramos a prataria e as porcelanas. Que sabemos nós, as mulheres?

 

- O que adivinham. Oh! e o que as mulheres adivinham! Conheço uma que, sem ter ouvido uma única confidência, sabe que uma certa pessoa evita encontrá-la, porque é vê-la e logo nessa noite perder ao jogo!

 

- Esse alguém é o senhor. Vê? são os homens que jogam, que ficam amáveis se ganham ou mal humorados se perdem, que tem estragado a nossa alegria. Mas sempre quero agora que me explique: o senhor, que se ri das quatro folhas de trevo e dos corcundinhas de coral que trazemos ao peito, porque foge de cumprimentar uma senhora amiga só pelo receio de que esse encontro fortuito e rápido lhe traga o azar da fortuna?

 

- Males de raça, minha senhora, coisas que ficam da infância. De algum modo precisamos mostrar que já fomos crianças. Creia que eu até adoro essa senhora!

 

- Adora-a e evita-a!

 

- Mas se ela tem jetattura!

 

- Use então de um expediente:

 

Quando a vir, pegue em qualquer objeto de ferro. Uma chave, por exemplo. Não traz uma chave consigo?

 

- É bom?

 

- É magnífico!

 

- Não sabia!

 

A conversa embarafustava por um terreno amável.

D. Matilde confessou que deixara de se vestir de azul, porque essa cor lhe trazia infelicidade.

D. Joana citou uma amiga que usava uma liga de cada cor, como porte-bonheur.

Quase todos os presentes tinham a sua mania... voltou-se então alguém para o velho e sério dr. Braga e perguntou com um rizinho de dúvida:

 

- O senhor também usa dessas coisas?

 

Ele tirou do bolso um caquinho de vidro azulado e disse com seriedade:

 

- Isto. Podem examinar.

 

O pedacinho de vidro andou de mão em mão; olharam todos por ele para a luz e concordaram em que não seria fácil encontrar outro tão ordinário!

Dr. Braga explicou:

 

- Pois, minhas senhoras e senhores, isto não é um simples amuleto, mas um talismã.

 

- Ainda há disso?!

 

- Há. Este chama-se o olho da tolerância. Infelizmente, para se ver bem por ele é preciso ter-se passado dos quarenta anos, ter-se gasto o bestunto em muitas observações e curvado a cabeça a duras exigências da sorte... O olho da tolerância, antes de censurar ou de punir a culpa, penetra-lhe a causa, mais disposto a absolvê-la que a castigá-la... Tem a consciência da fragilidade da alma. Antigamente eu sentia como um romancista filósofo que disse: "plus j'aime l'humanité, plus je déteste l'individu." Hoje não; o indivíduo delinqüente é para mim um irmão fraco que devo amar de preferência, porque todas as suas impurezas são conseqüentes de males, de cuja origem não é só ele o responsável. O olho da tolerância acalma o sistema nervoso e exercita o coração na prática do bem. Quando me sinto arrastar pela indignação ou a cólera contra alguém, respiro com força, saco deste caquinho, domino-me, e, para abater o ímpeto, olho através do vidro, reflito, e uma grande piedade vem substituir o meu primeiro movimento de fúria. Ah! minhas senhoras, é que não há nada como a tolerância para dar repouso à inquietação das almas!

 

OS BEIJOS

Falam os senhores médicos contra os beijos condenando-os como transmissores de micróbios assassinos. Misérias do sangue ou feias doenças incubadas passam invisível e perfidamente de uma para outra criatura, no mais rápido ou sutil dos ósculos.

 

- Não se beijem! é uma das fórmulas modernas dos higienistas; resta-nos duvidar que eles, para exemplo, se submetam a essas leis de esquivança que apregoam... Porque, em verdade, quem haverá por todo este mundo vasto, por mais emurchecidos que tenha os lábios ou por mais seca que tenha a alma, que não sinta florir no peito, com maior ou menor viço, o desejo imperioso de unir a sua boca a outra boca amada ou de refrescá-la nas faces acetinadas de uma criança?

 

Fagulhas das labaredas em que nos consumimos, os beijos crepitarão por toda a larga face da terra, embora a ciência contra eles asseste a ducha gelada dos seus decretos proibitivos.

Não há em língua humana palavra que, como o beijo, exprima, por mais silencioso que ele seja, a ternura e o amor.

A boca de um mudo diz tudo quanto há de mais elevado e de mais veemente, quando beija; no beijo está o único triunfo da sua alma encarcerada!

Bem prega Frei Thomaz... Não se beijem! dentro do beijo, como dentro do cálice de uma flor de aroma capitoso, está muitas vezes escondido o veneno que nos leva ao último sono. Cuidado... Quando tais palavras escrevem, esses senhores que só olham para a vida através das lentes dos microscópios, deverão sentir em si próprios o rugido da natureza ofendida a clamar contra essa impiedosa verdade da ciência.

A vida sem beijos! a vida sem beijos é como um jardim sem flores, um pomar sem frutos, ou (que escorregue ainda mais esta velha comparação) um deserto sem oásis. Não valeria a pena prolongar a existência à custa de tamanho sacrifício. Por assim entender é que a humanidade faz e fará sempre ouvidos surdos à teoria da supressão do beijo. Para ela, ele não é tal o veículo da peçonha, a ameaça constante dos fantasmas terríficos de doenças asquerosas e tristes, coisa desvirtuada e maléfica, mas sim, e por todos os séculos dos séculos, o que dele disse um poeta meu amigo:

 

"... o selo da amizade

 E do amor! Ele só nos dá felicidade.

 Dois corações que o tédio ou o cansaço importune,

 Só um beijo de amor os levanta e reúne.

 O beijo é vida, o beijo é luz, o beijo é glória!

 Observai bem: vereis que o beijo é toda a história

 Da humanidade. Foi o beijo primitivo

 Que na terra o primeiro homem tornou cativo

 Da primeira mulher; depois, ardente ou brando,

 Veio o beijo de amor as raças perpetuando,

 Unindo gerações a gerações, e unindo

 O passado ao futuro insondável e infindo.

 O beijo é a transfusão das almas; ele encerra

 Tudo que possa haver de divino na terra."

 

Não é só o beijo perpetuador das raças que derrama na alma o clarão mirífico da felicidade. Quando uma mãe beija um filho, como que sente o seu coração maior que o mundo e mais vitorioso que todos os hinos do universo! Saberá alguém de coisa mais doce nem mais pura, que o beijo da amizade?

Infelizmente, nem todos os beijos são:

 

"Tudo que possa haver de divino na terra!"

Como diz o poeta.

É que Filinto de Almeida desconhece o horror dos beijos convencionais, que só os lábios femininos trocam entre si.

 

Para esses o rigor das leis científicas deveria ser bem aceito... Que se beijem duas amigas que se estimam, sim! Que por um enlevo de simpatia, uma mulher beije a outra em um primeiro dia de encontro, como um pacto de futura amizade, sim! Mas, que, sem espontaneidade de afeto ou sem velha estima, só por cortesia e obediência ao hábito, duas criaturas indiferentes, e que às vezes até se desestimam, troquem beijinhos cada vez que se encontram... por Deus, nem é decente nem agradável!

Por mais que a gente queira esquivar-se, não pode, sem incorrer em falta grave, furtar-se ao impulso com que certas damas atraem as outras para o cumprimento da praxe. Que desastres, às vezes, nesse movimento! abas de chapéus que se chocam, véus que se arrepanham, corpos que se contrafazem, e no fim: um chapéu torto, uma face babada, e no íntimo uns ressaibos de mel avinagrado.

A graça esquisita dessa insistência está muitas vezes em que a senhora que imprime à outra o puxão para o beijo, dá-lhe logo a face a beijar, face em que não raro desabotoam espinhas e quase sempre o cold cream se alastra.

E não há resistência capaz de livrar uma criatura de tais assaltos; quer queira quer não queira, ela há de beijar e há de ser beijada em plena rua, em plena luz, por pessoas a quem não a prende nenhum laço de afeto, ou mesmo de simpatia muito forte.

Sei que me atiro para dentro de uma casa de maribondos falando assim; pouco importa.

De resto, esta impressão não é só minha. Nenhuma mulher deixará de sentir revolver-se no seu coração um sentimento de desagrado, ao unir a sua boca a outra boca de que tenham saído por ventura epigramas que a firam ou indiretas que a molestem.

O beijo é uma coisa muito nobre para ser esbanjada assim, sem significação, em encontros de acaso, em qualquer canto de rua...

Para que ele seja suave e doce, deve ser dado com a consciência da amizade; do contrário, quando não é perverso, é ridículo.

Não se diga que foi a nossa índole meiga e expansiva que inventou tal costume; ele foi importado, mas creio que já caiu em desuso nas terras de que proveio. Pelo menos, as estrangeiras não se beijam entre si com tamanha efusão. Elas desconfiam, talvez, de que perdem o valor os beijos de uma criatura que os dispensa a toda a gente, e por isso só os gastam em família e pouco mais... Aqui, ao contrário, o furor do beijo a esmo tem aumentado; toda a gente se julga com direito a ele e o reclama num gesto imperioso que não admite recusa...

Em resumo, a minha opinião neste assunto melindroso e terrível é esta: não compreendo a vida sem o beijo, como não compreendo o beijo sem o afeto.

Como, enquanto houver mundo, há de haver o amor, o beijo triunfará de todas as perseguições que lhe fizerem os senhores bacteriologistas.

Eles mesmos, depois de horas e horas passadas no interior dos seus gabinetes e dos seus laboratórios, ao levantarem os olhos, cansados das páginas dos livros ou das lentes dos microscópios, sentirão, para refrigério das suas almas entontecidas pela vertigem de tantas misérias humanas, o desejo de as suavizarem num beijo, em que os seus lábios impuros de homens encontrem a fresca inocência da face de uma criança... E estou certa de que apressarão os passos, para irem beijar em casa os filhos pequeninos...

 

TERCEIRA PARTE

 

AS ÁRVORES

Quando, na margem lodosa do Tibre, os primeiros romanos plantaram a figueira, árvore da flor saborosa e em cujas veias o leite escorre compacto e doce, prestavam culto à lenda da sua origem, fazendo da planta como que o símbolo da pátria. Naquela terra da febre, sem águas puras, a árvore sorveu do solo a ardência doentia que transmitiu depois, já purificada, à polpa sangüínea da sua flor.

As abelhas que procuram de preferencia o mel do figo ao de outro qualquer fruto ou flor, enxamearam depressa por entre as largas folhas escuras da árvore, em que legiões de insetos invisíveis punham um tom luminoso de vida e deram aos romanos, trabalhadores e simples, favos deliciosos.

A cheirosa figueira teve, com justiça, o seu lugar sagrado no Palatino.

Naqueles tempos rudes, e em outros ainda de mais velha antiguidade, o respeito intuitivo pelas árvores era tamanho, que os homens as criam representantes de divindades. O carvalho, o loureiro, a palmeira e o mirto, eram invólucros de deuses. Olhando para a coroa tufosa das tílias, sorvendo-lhe o aroma das pálidas umbelas esverdeadas, o grego ouvia suaves promessas de Venus, alma dessa planta, tapetando-lhe de veludo as estradas da vida.

Este preito à árvore, que a poesia nativa e a crença pagã investiam de solenidade, é para mim um dos encantos mais singulares da tradição.

Por fortuna de outros tempos, ele não ficou completamente extinto; não teve a França a sua árvore da Liberdade, fincada na terra da pátria pelos soldados da revolução, que a cobriam de flores e fitas tricolores?

Se hoje não há árvores simbólicas, há, entretanto, outras que o espírito do homem culto celebriza. Não é raro ver-se na Europa, mesmo em países de menor intelectualidade, uma árvore solitária, secular, rugosa, em cujas raízes ninguém pisa, e que vive cercada por um gradil, para que não lhe toquem mãos irreverentes. Essa é uma árvore célebre, é uma árvore amada, porque abrigou um dia um dos heróis da pátria. A municipalidade tem para ela cuidadíssimos desvelos, o povo sabe-lhe a história, e respeita-a só por ela ter dado frescura a alguém, que à sua sombra descansou de uma batalha cruenta ou escreveu versos imortais.

Creio ter já lido que D. João VI, a quem nossa história parece-me não ter feito ainda inteira justiça, tem a sua mais bela memória na primeira palmeira do Jardim Botânico, de cujas sementes nasceram os únicos adornos da Capital.

Dia formoso, aquele em que o rei desceu do seu trono para, no rude mister de jardineiro, tocar com a mão macia a terra áspera e fértil da pátria preferida. Suspeitaria ele que a alma da planta estrelada lhe perpetuaria a lembrança, melhor que as crônicas, tantas vezes confusas, tantas vezes mal interpretadas?

Talvez... Dizem que ouvindo ramalhar os mais velhos cedros do Líbano, que afirma a lenda serem contemporâneos de Salomão, alguns viandantes contemplativos crêem sentir nesse sussurro toda a doçura do Cântico dos Cânticos.

Conta um escritor português, descrevendo um campo estrangeiro, que nele havia a doce e pálida oliveira de ramagem miúda, que dá à paisagem um tom grego.

Uma simples árvore acorda a idéia de um país e desenrola aos olhos de um poeta a vastidão de um sonho.

O pinheiro resistente à neve e querido dos povos escandinavos, traz à idéia planícies brancas em que a sua silhueta negra se destaca apontando para o céu pálido. E dos seus braços híspidos que se fazem as árvores de Natal, consagradas à infância em nome de Jesus. Assim, o cipreste faz lembrar o cemitério, e o bambual o lago da fazenda, em que os marrecos deslizam e o gado bebe.

Dir-se-ia que só por si a árvore delineia e fixa a fisionomia dos lugares. Nenhum viajante esquece os castanheiros de Londres, que são vigorosos traços da sua austeridade e grandeza, nem as árvores tosquiadas de Paris, onde pardais chilreiam e a Primavera põe delicados rebentões cor de alface; nem as mimosas de Canes e de Nice, esgalhando-se em ramos delicados de folhas pequeninas e botões cor de palha, tão acordes com essas cidades elegantes e frívolas; nem tão pouco as luxuosas magnólias de Petrópolis, em que as flores se abrem como pequeninas urnas de ouro; capitosas.

Vendo os algodoeiros desgraciosos, inclinados e tortos como corpos doentes, e que por aí ficaram com desigualdade em algumas ruas, tenho muitas vezes pensado na árvore que deveríamos escolher de preferência para a nossa cidade. Deveria ser uma árvore pura, perfeita, indicada por eleição de artistas e conselho de sabedores.

O algodoeiro, com o seu aspecto desalinhado, sente-se contrafeito entre as duras pedras das calçadas e atira-se todo, numa atitude contorcida, para os lados ou para a frente, na ânsia histérica do sol.

A palmeira, de que todos levamos a imagem no coração quando saímos da pátria, e inimiga da habitação do homem; quer a seus pés colchões de areia, ou extensos gramados sobre que derrube sem fragor o casco das suas palmas secas.

Disse-me um dia um dos nossos melhores pintores, que, se tivesse poder para tanto, guarneceria toda a cidade de paineiras, a árvore das estações, que antes de desnudar-se se purpurisa em flores.

Eu gostaria de ver nas florestas que atapetam os morros e cingem a cidade, mais desses maravilhosos flamboyants de ramalhões escarlates, que são a gloria dos nossos verões ardentes. Que árvore há mais pomposa, quando se reveste de folhas e de pétalas?

Mais que aos coqueiros, de palmas flabeladas, mais que todos os espécimes da floresta e que todas as árvores de pomar, de flor cheirosa, eu adoro a mangueira, a mangueira selvagem, grande, tranqüila, onde a erva parasita se enleia e pende, onde o ninho se oculta e que parece guardar em si esse mistério doce que fez com que os homens da antiguidade julgassem algumas árvores invólucros de deuses.

Cada cidade deveria ter o seu conselho de sábios e de artistas que lhe estudassem o clima e, de acordo com a sua fisionomia, lhe escolhessem a arborização severa ou delicada.

Um viajante, num traço rápido e firme, pinta-nos o valor do povo do baixo Canadá. Como? Revelando-nos o seu amor por uma árvore, que ele planta como um emblema da sua beleza e da sua fortuna - o érable.

Planta-o, e não deixa arrancá-lo, nenhum machado cruel lhe amputa os braços vigorosos, nem lhe lanha o tronco, porque as iras do povo, que são como as iras de Deus, cairiam em coro sobre a mão que o brandisse.

Árvores bondosas da minha terra, sob a cúpula iluminada do céu, no supremo júbilo do sol, sacudi as vestes de esmeralda e deixai cair no chão da floresta a chuva benéfica da vossa sementeira. Nem sempre o homem será cego: dia virá em que a vossa beleza imperiosa e doce faça cair o braço que tente erguer contra vós o afiado gume de um ferro.

Entretanto, perdoai-nos o mal que vos fazemos e sabei que entre tantas vozes perversas ou indiferentes, sempre há algumas que, como a do poeta Alfredo de Musset, peçam a vossa sombra para sua sepultura.

 

FLORES

Escrevo estas linhas pensando em minhas filhas. Elas me compreenderão quando  forem mulheres e plantarem rosas para dar mel às abelhas  e perfume a sua casa.

 

Em maio de 1901 resolvi organizar para setembro desse mesmo ano uma exposição de flores no Rio de Janeiro, a primeira que se faria nesta cidade. Se faltava originalidade à lembrança, visto que exposições de flores fazem-se todos os anos em terras civilizadas, sobrava-lhe o interesse; a curiosidade amiga que sempre tive pelas flores e o desejo de as ver muito amadas na minha terra. Referir-me a essa exposição é para mim um sacrifício; mas não quero omitir tal capítulo neste livro de mulheres, presidido pelo olhar das minhas filhinhas, a quem pretendo insinuar o amor das plantas, como um dos mais suaves e melhores da vida.

Dizem que as palavras voam e que as obras ficam; mas há obras que o vento leva e que só na palavra fugitiva deixam a sua lembrança... Não falarei da exposição malograda, por ela nem por mim, mas pelos seus intuitos, que eram múltiplos e que continuo a achar excelentes. O que foi acabou. Deite-se-lhe em cima a terra do esquecimento; agora o que ela seria poderá ainda ser, e é nessa hipótese que tem cabimento esta insistência. O que eu esperava dessa exposição era isto só:

Que fosse o início de outras mais belas, que iriam aperfeiçoando as espécies estimadas dos nossos jardins e descobrindo os tesouros dos nossos campos e das nossas florestas. Quantas flores vicejam por esses sertões, dignas de figurarem nos salões mais exigentes! Eu mesma, que nada posso, guiada por uma rápida visão da meninice, não mandara vir do interior de S. Paulo uma flor que, se tivesse a desgraça de pensar, não imaginaria nunca ver o seu nome em um catálogo? Com o prestígio da exposição, quantas pessoas trariam a concurso lindas flores ignoradas, e ignoradas porque são brasileiras?

Não sou dos que pensam que não devemos aceitar nem pedir árvores estrangeiras, desde que temos flores e árvores com tamanha abundância em nosso país.

As coisas boas e belas nunca são de mais, e há ainda a acrescentar a essas duas qualidades a utilidade especial de cada planta.

Todavia, devemos indagar bem do que temos em casa, antes de pedir o que só julgamos haver na alheia.

Uma das principais preocupações da exposição seriam as orquídeas, de tão melindroso cultivo e demorada floração. O catálogo mencionaria com o maior cuidado todas as variedades apresentadas no certame, raras ou não. Ah, no artigo das orquídeas havia parágrafos que valiam capítulos pelas suas intenções.

Imagine que se aventava a idéia de fundarmos no Rio um pavilhão para exposições permanentes, em que a orquídea seria protegida e defendida como um tesouro.

Faz rir a idéia, não é verdade? Nesse pavilhão, organizado por competentes, todas as orquídeas vindas dos Estados próximos, para exportação, seriam sujeitas a um exame para o competente passaporte... Esta prática, que a maioria parecerá absurda, seria considerada naturalíssima, se o respeito pelas orquídeas, que são as jóias das nossas florestas, já tivesse sido implantado no povo. Há orquídeas e parasitas que tendem a desaparecer, pela devastação arrebatadora com que naturais inconscientes e estrangeiros especuladores as arrancam das árvores para as meterem nos caixotes em que as mandam para os portos europeus. Pode dizer-se que e nas estufas da Inglaterra, da França, da Holanda e da Alemanha e até da República Argentina, que se vêem as mais belas flores do Brasil! Não seria justo que, exportando as variedades mais raras das nossas orquídeas, guardássemos delas, na capital, exemplares que garantissem a sua reprodução no país e abrilhantassem a exposição permanente, visitada ao menos por todos os estrangeiros em trânsito?

Mas a nossa atenção não estava voltada só para as orquídeas.

Cada dia da exposição de flores seria dedicado a uma das espécies mais estimadas entre nós.

Teríamos um dia só para rosas. Em roseiras ou cortadas, nessas flores se concentraria a atenção do júri, constituído pelos nossos mestres de botânica e pelos donos dos principais estabelecimentos de floricultura do Rio de Janeiro. Nesse dia apurar-se-ia, aproximadamente, a quantidade de variedades que temos dessa flor, para estabelecer depois a comparação com as que se apresentassem em exposições consecutivas. Tudo isso ficaria consignado em um livro, documentado por nomes conhecidos e insuspeitos.

Assim como as rosas, os cravos não teriam razão de queixa.

Tem reparado como a cultura de cravos se tem desenvolvido e embelezado no Rio de Janeiro? Acreditava-se antigamente que essa flor, uma das mais originais, senão a mais original, só desabrochava bem em Petrópolis, em São Paulo e não sei em que outras terras. Pois estávamos enganados. Nem mesmo do alto da Tijuca são esses formosos cravos que aí estão de tantas cores variadas e tão opulentos de forma; são do vale do Andaraí; são do Engenho Velho; são dos subúrbios; são de Santa Teresa, etc. Quem tiver um canto de jardim, um peitoril largo para vasos de barro, um pouco de terra, pode com segurança semear os seus craveiros; as flores virão.

Como incentivo, a exposição distribuiria mudas de crisântemos a um certo numero de moças, emprazando-as a apresentarem na estação dessa flor a planta florida para uma exposição, em que seriam distribuídos os prêmios do primeiro certame.

Inoculando o gosto pela jardinagem, ela desenvolveria a cultura de uma flor brilhante e a que o nosso clima é favorável.

Nessa primeira exposição, teríamos, além de conferencias estimulando o amor das plantas, mostrando-as em todos os seus múltiplos aspectos sedutores, lições de jardinagem prática.

Essas lições, dadas com a maior simplicidade, sem termos enfáticos, por um homem ilustrado e amigo das flores, nos ensinariam como deve ser preparada a terra para o jardim, como se devem fazer as sementeiras e as podas e os enxertos e matar os pulgões, e criar rosas novas e transformar as variedades mais conhecidas, e pulverizar de água fresca os altos troncos das orquídeas, etc.

Com essas coisas pensava eu prestar simultaneamente dois serviços, à cidade, demonstrando a possibilidade de se fundar aqui uma escola para jardineiros, e às moças a quem o tempo sobre para essas brilhantes fantasias. A jardinagem fornece ensejo para distrações e estudos próprios para mulheres.

E, depois, que encanto o de ver-se o nome de uma senhora ligado ao de uma rosa!

Em todas as capitais do mundo civilizado há o culto da flor. Elas simbolizam as nossas grandes alegrias, como as nossas grandes tristezas, imagens materializadas das maiores comoções da vida. Nas alegres visitas de boas festas e de aniversários, ou nas romarias para os cemitérios, as flores exprimem o júbilo ou a saudade, tão bem como a lágrima ou como o sorriso.

Na Alemanha, disse-me uma amiga que por lá andou viajando, há nas portas dos hospitais, em dias de visita, floristas com ramos para todos os preços; abundam os baratinhos, de flores agrestes ou mais vulgares. Naturalmente, quem vai ver um doente de quarto particular, escolhe as camélias mais puras ou os narcisos mais raros; para os pobres e os indigentes das enfermarias publicas vão bouquets modestos e pequeninos, conquanto vistosos e alegres

Que é aquilo? Um pouco de poesia e de primavera, que vão errar com o seu aroma e as suas cores vistosas e alegres naquele ambiente triste e aborrecido. O olhar desconsolado do doente encontra naquilo um pouco de distração e de consolo.

E assim que nós precisamos gostar de flores. Gostar tanto, que elas sejam para nós uma necessidade; tanto, que até o povo das enfermarias gratuitas não ache mal empregado o tostãozinho com que as adquira! E aqui é tão fácil cultivá-las, Senhor!

A arte do ramilhete, tão adorada no Japão, segundo afirmam as cronistas de lá, e que é com certeza uma das mais delicadas que uma mulher pode exercer, era chamada a concurso em um dos dias da exposição. A moça que fizesse o ramo com mais harmônica combinação no colorido e de forma mais elegante, seria premiada.

Uma das mais curiosas veleidades dessa exposição era o interessar-se pelo tipo das floristas da rua, procurando induzir a transformação das do Rio de Janeiro, que não é positivamente encantador. Para isso obteria também um concurso, em que os nossos pintores e desenhistas apresentassem figurinos de acordo com o nosso clima para floristas ambulantes. Isso naturalmente constituiria uma galeria de problemático aproveitamento; em todo caso, muito interessante. Lembrava mesmo o alvitre de oferecer a exposição os primeiros trajes aos que se sujeitassem à experiência. A exposição seria gratuita para as crianças, tendo mesmo um dia destinado às escolas.

Nunca imaginei que fosse preciso ensinar a amar as flores, que as crianças saúdam desde o berço, articulando, ao vê-las, sílabas incompreensíveis, e agitando para elas com entusiasmo as mãozinhas! No entanto parece-me que o culto da planta deve entrar na educação do povo. As exposições de belas-artes ensinam a amar os quadros e as estátuas; é bem possível que o amor dos europeus pelas flores tenha sido despertado e aperfeiçoado pelas exposições de flores, que se fazem na Europa duas vezes no ano, uma no outono, outra na primavera.

Deixei de reproduzir muitos pontos do programa da primeira exposição, tais como a batalha de flores, com que ela se encerraria, a indicação das flores mais aproveitáveis para a destilaria, etc. Bastam estes que aí ficam para demonstrar que a beleza e a utilidade andam às vezes de mãos dadas!

Se eu fui infeliz, outras serão felizes na mesma batalha e pelo mesmo ideal. Das minhas esperanças decepadas brotem novas esperanças em almas mais novas e capazes de empreendimentos de mais forte envergadura. E para atiçar essa chama que escrevo estas linhas trêmulas, porque agindo adquiri a certeza de que nesta terra bastam para executar grandes obras só duas coisas: energia e vontade.

 

HARMONIAS

Tudo é música na natureza, até as ostras cantam!

Cada dia que passa nos traz uma surpresa magnifica. Esta, que talvez não tivesse comovido ninguém mais, fez-me cair das mãos estupefatas o Jornal do Comércio, em que ela veio fixada, como afirmação de um sábio professor, cuja palavra não pode ser posta em dúvida.

Mal haja quem fizer ouvidos surdos a uma tão bela revelação da poesia universal. Esse será de um materialismo indigno deste século, que há de ser todo cheio de sublimes divulgações. Digam embora que tudo é velho e revelho no mundo inteiro. Mentira; ali está a prova: as ostras têm voz, em que expandem as queixas da sua alma com "gritinhos agudos, seguidos de murmúrio suave mas expressivo".

É assim que diz a noticia. Ora, onde há expressão há sentimento, logo esses gelatinosos moluscos, feios e informes, tão repugnantes e tão saborosos, dão para a divina harmonia dos dias e das noites o seu contingente ignorado de soluço ou de riso!

Não bastava à ostra ser mãe da pérola. Tal glória não a elevou nunca no pasmado conceito das multidões. Essa preciosa concreção calcária que as mulheres adoram e os ourives exploram, é, bem como o aljôfar, o nácar e a madrepérola, de tamanha impassibilidade, que nunca suspeitamos, por via dela, que na concavidade das conchas em que a ostra se espapa, mole e gomosa, ressoasse a voz do gozo ou do sofrimento

Foi preciso que a orelha, naturalmente cabeluda, de um grave e sábio professor se inclinasse para as anfractuosidades de um rochedo, para que o divino mistério da alma ignorada do molusco se revelasse ao mundo.

Se as palavras que esse fato denunciaram, em vez de terem sido pronunciadas solenemente em um - congresso de pesca - por um homem cogitador e insuspeito, tivessem saltado da língua da Sirineta, que foi feita per contare solamente as belezas do mar, de que é o espírito, a gente levantaria os ombros com o sorriso com que acolhe as mais lindas fantasias e iria continuando a comer ao almoço, sem remorso e com apetite, as famosas ostras cruas.

Mas daqui em diante já virá uma pontinha de desgosto amargar esse prazer maldoso. A gota de limão que contrair o molusco ainda vivo, nos dará a sensação de que estamos a espremer torturas sobre um ser digno da nossa veneração, porque sabe conhecer o sacrifício!

Antes de a meter na boca é preciso aproximar do ouvido a ostra que temos de deglutir.

Foi esta a nova preocupação que inventou o tal senhor sábio, como se já não tivéssemos tantas! mas, não faz mal! ficamos assim sabendo que não há na criação nada que seja absolutamente mudo.

Quantas e quantas vezes a literatura alude ao decantado rumor do silêncio, que nos traz da solidão dos campos ou da vastidão das águas murmúrios frauduleiros de ignota magia? Foi talvez num desses instantes em que a orquestra universal toca em surdina, que o sábio investigador, deitando-se sobre a areia fofa de uma praia, junto a uma velha rocha ostreira, percebeu a tênue voz dos moluscos através as camadas das conchas sotopostas.

Vamos, que a surpresa não devia ter sido pequena, nem tampouco desagradável. Não tardará muito que alguém nos venha dizer o diapasão em que cantam essas pobres enclausuradas, cujo estilo trará à mente, já presumo! a forma de um hino sacro... O passo rude está dado; ciência e acaso, de mãos dadas, descobriram o segredo das ostras; elas cantam, e um homem, naturalmente barbado e muito sério, como convém a um sábio e grande professor, cuja palavra não pode ser posta em dúvida, teve a coragem de o declarar em uma sessão de congresso. O principal está feito; o resto virá depois.

Virá depois, mas levará seu tempo. A interpretação da música e a sua definição estou vendo que não é coisa fácil!

Ainda há pouco, uma pessoa que estimo e cuja opinião em música acato como a melhor, me disse que a opera Saldunes tem muita beleza e larga inspiração. Alegrei-me; mas a par desta, quantas me disseram que não a tinham entendido?

Não entender! Mas a música não é uma língua estranha, que se precise traduzir com dicionários! Ai dela, se assim fosse; deixaria então de ser arte divina para ser fria ciência; deixaria de ser a grande pacificadora, tão necessária ao atribulado coração humano, para ser uma coisa impenetrável e rígida, a que só com esforço as multidões chegariam.

A maioria do público que vai ao teatro ouvir uma opera, não trata, por incompetente, de averiguar se ela é feita desta ou daquela maneira, se a sua instrumentação obedece a todos os primores de uma orquestração opulenta, se a sua tessitura é perfeita, e as suas harmonias bem combinadas.

O que ele vai buscar lá é a emoção, o sentimento que transbordara e se evolará da música com a espontaneidade perturbadora com que o perfume sai de uma flor!

Parece-me que a arte, a não ser para os artistas, não é coisa que se entenda, mas que se sinta. Que importa à maioria que os processos por que tal partitura é feita, sejam complicados e ela dolorosamente trabalhada, se do seu conjunto espinhento e bravio não voou nem uma frase que lhe fizesse vibrar os nervos impassíveis?

Em verdade é muito freqüente ouvir-se dizer: eu não gostei desta ou daquela opera, porque não a entendi.

Essa modesta confissão de incompetência, que, aliás, só é feita em relação à música, visto que para as outras artes toda a gente se julga habilitada e com direito a uma crítica definitiva, deve, até certo ponto, consolar os maestros...

Ah, diante das harmonias da natureza é que não há tanto embaraço: elas entram-nos pela alma a dentro sem que para isso tenham de forçar o entendimento. Quem compreenderá jamais a contextura dessa grande opera em que tomam parte desde o asqueroso sapo dos brejos, até à sentimental patativa dos laranjais?

Ninguém; e todavia todos a sentem e a adoram. É por isso que, por sobre as areias movediças ou as asperezas agrestes dos rochedos mudos, roçam na avidez de uma curiosidade insaciável as cabeludas orelhas dos sábios naturalistas.

Certos de que neste velho mundo tudo é novo, os seus ouvidos esperam ainda, esperarão sempre, surpreender no próprio seio das coisas mudas, vozes ignoradas e perfeitas.

Esta, que o grave professor do Congresso de Pescaria descobriu nas ostras, é deveras extraordinária! Como os cisnes, o viscoso molusco desprende na hora extrema, após um grito agudo, um canto suavíssimo...

Haverá quem, depois disto saber, ingira sem comoção e sem remorsos as saborosas ostras cruas, cruas e vivas?! Não!

 

UM TESTAMENTO

É o nome de Rotschild que aos olhos do mundo se incarna a idéia da riqueza. A lâmpada de Alam, de que cada um de nós tem na imaginação uma cópia, arranca-lhe de cada sílaba uma chispa de pedra preciosa. Ele é o dístico de um tesouro acumulado com avidez judaica através dos tempos e de que só desabam catadupas de ouro quando solicitadas pela volúpia do negócio. Ele é a glória da raça, a ventosa terrível sugando energias de hebreus e submissões de cristãos, e é o senhor do ouro que, como o mar, recebe de todas as nascentes, e de água turva com água límpida faz a mesma onda que estrondeia em espumaradas de prata.

Rotschild não é uma entidade, é um símbolo - o dinheiro. Ele faz tremer as nações, vê a seus pés os mais nobres governos e finca no mundo as suas garras formidáveis, enterrando-lhas até ao âmago, bem como o abutre enterra as suas na carne tenra de um cordeiro.

Como o frágil animal, o mundo sangra, - na agonia do proletário, do faminto, do sem vintém, para cujos olhos o capital é o roubo, e que aí estão rugindo mais alto que o balir trêmulo do cordeirinho na aflição da morte...

Rotschild! Pode ser amado este nome luminoso e que retine com uma tão ampla sonoridade de ouro? Diria não, se a leitura de um testamento me não viesse provar que ele não quer dizer unicamente: metal, negócio, lucro. É pois certo que Rotschild é nome de homem!

Tenho observado, talvez mal, que o egoísmo humano em nenhuma formula tão bem se evidencia, como na testamentária. Pessoas riquíssimas e cuja fortuna ao serviço de um coração generoso se podia expandir num largo círculo, fazem testamentos em que concentram todos os haveres nos seus herdeiros da lei ou em pouquíssimos mais. Assim, ninguém que as não tivesse conhecido em vida as diria capazes de matar com um bocado de pão duro, a fome de qualquer mendigo que lhes batesse à porta.

Toda aquela fortuna parece ter sido passada a outrem a contragosto, de olhos fechados, num mergulho inevitável.

É bem difícil fazer-se um testamento, visto que é tão raro aparecer algum em que a justiça, a ternura e a humanidade transpareçam.

Entretanto, nenhum ato pode ser mais consolador nem mais belo para um homem de grande fortuna e largo espírito, do que esse de espalhar, após o seu completo desaparecimento da Terra, o bem estar e a alegria por um punhado de gente que sofre e que trabalha.

É ainda a maneira que os ricos têm de se fazerem perdoados de bens, adquiridos muitas vezes pelo seu próprio esforço, mas que nem por isso deixam de ser mal vistos pelos que nada alcançam...

Rotschild! é de Adolfo Rotschild o testamento glorioso, que li em um jornal e onde há legados comovedores.

Se houve culpas nos seus antepassados, este homem de bem redime-as todas nestas páginas de clemência. Sem apagar um único beneficio que o coração decretara no primeiro impulso, ele quarenta e quatro vezes alterou o seu testamento, para desenvolver, acrescentar os socorros que a observação da vida lhe ia sugerindo.

Sem falar nos asilos, hospitais, escolas e museus, para os quais deixou montões e montões de dinheiro, milhares e milhares de contos; sem comentar a abundância das verbas destinadas à manutenção dos institutos, onde a raiva e o croup encontram lenitivo e remédio, destacarei os legados, que me pareceram mais reveladores de um coração raro. Este, por exemplo: determinou uma quantia para auxílio de moças pobres que vivam do seu trabalho. Isto não tem o valor banal da caridade, atirando dinheiro aos pobres como migalhas aos peixes; encerra uma idéia de acoroçoamento, de estímulo, de aplauso, é como um carinho fraternal, que não será recebido sem lágrimas.

O grande argentário pensou na operária sacrificada, na laboriosa filha do povo, para quem só têm olhos a concupiscência e a perdição, e atirou-lhe um adeus de amigo, que tão raramente o homem dá à mulher, e que seria sempre o mais suave esteio para as suas fraquezas...

Não é menos encantador, na sua simplicidade, o benefício aos animais em geral, cuja sorte triste procurou minorar. Assim, os cavalos que tenham trabalhado, chegado o instante inevitável da decadência ou da ruma, não serão aproveitados em misteres brutais, em que o seu pobre corpo esfalfado vergue ainda no interesse do dono egoísta.

Chegamos ao último legado, que eu não classificarei, porque toda a sua filosofia adorável fala por si. É simples:

Adolfo Rotschild, deixou a uns tantos sacerdotes velhos, de qualquer religião, soma que lhes permita exercerem tranqüilamente em França o seu ministério.

Esta lembrança abre-se aos meus olhos como uma flor até hoje desconhecida. Nem a cor, nem a forma, nem o aroma denunciam a semente que lhe deu origem; tão sabido é que a tolerância absoluta raro germina na Terra.

Cada um de nós pensa que da nossa religião é que há de vir a felicidade ao mundo, porque só ela é perfeita e é verdadeira. Bálsamos que outras derramem, que nos importam, se nem elas são justas, nem os seus filhos nossos irmãos?

Guerreêmo-nos, matemo-nos em nome da nossa Fé, que será um dia a de todos que nós tivermos vencido ou que vierem ao nosso chamamento. A esta idéia turbulenta, desorientadora e triste, responde a voz serena daquele parágrafo, em que um judeu oferece amparo a velhos sacerdotes pobres, católicos, israelitas ou protestantes, para a sua manutenção, aconselhando ao mesmo tempo aos seus descendentes, que lhe sigam o exemplo de tolerância e de liberdade religiosa.

Pouco importa o culto; é ao homem que ele estende o bordão para qualquer dos caminhos que vão ter à felicidade e de que tantas pessoas se extraviam..

Será curioso ver-se um dia, em uma aldeia de França, esta velha França tão irriçada e de tão má catadura para com os judeus, um sacerdote católico e velhinho, ensinando às suas ovelhas rudes a murmurarem com doçura o nome de Rotschild...

Quando os seus sapatões ferrados se imprimirem na neve dos caminhos em socorro de um agonizante; quando o sino do seu campanário repicar na madrugada clara; quando as crianças se ajuntarem à sua porta para o catecismo, com as mãozinhas carregadas de favos de mel ou de cerejas para o senhor padre-mestre; quando as suas mãos trêmulas de ancião ligarem para o futuro e para o amor as mãos de um casal moço e robusto; quando os seus lábios murchos consolarem com palavras de perdão e de esperança uma pecadora, ou quando a sua face enrugada e pálida sentir o afago agradecido do aleijadinho que ninguém ama, o bom pastor de almas terá a visão perfeita de que o velho judeu Rotschild lhe sorri do céu!

Assim seja.

 

ÓRFÃOS DE HERÓIS...

Ninguém ignora quanto é assombrosa a imaginação e como é inteligente a pertinácia dos ingleses e dos americanos na concepção e na expansão dos seus anúncios e reclamos. Não lhes bastando os avisos que inserem nos seus jornais de grande tiragem, avidamente lidos por populações que têm mais almas do que formigas têm os maiores formigueiros dos nossos jardins; não lhes bastando os cartazes com que enfeitam as suas cidades, aqueles formidáveis cartazes de fundo vermelho e luzidio, com figuras negras (negros ali só pintados...), em que num zig-zag de raio, rabeia de alto a baixo, em caracteres amarelos, o nome da droga exposta; não lhes bastando os milhares de bilhetes que espalham tumultuariamente pelos seus teatros, salões públicos, gares, vagões, avenidas, cervejarias, etc., eles remetem com a mesma fúria para os mais longínquos pontos do globo, cartões, livros, folhetos, mapas, cromos, pastas, com uma prodigalidade que chega a ser ofensiva.

É imperturbável a seriedade e a convicção com que esses senhores afirmam aos povos de todas as raças, a superioridade das suas indústrias. O que nós não seríamos capazes de fazer com uma fileira cerrada de pontos de exclamação e ainda outra de ahs e de ohs, acompanhados pela régia magnificência de muitos adjetivos pomposos, eles fazem com uma frase seca, onde engastam um superlativo esmagador e positivo.

A tática do anúncio não está, pois, na palavra, está no veículo em que ela vem assentada. Reproduzisse um comerciante, menos negocioso que idealista um verso de Shakspeare em um papel barato, feio, fácil de amarfanhar, e a frase maravilhosa, que lhe servisse de epígrafe ao anúncio, escorregaria pelos bueiros das ruas ou para a caixa do cisco dos quintais, sem ter logrado atrair a atenção de ninguém.

A habilidosa insinuação do anuncio está na boa qualidade do seu papel, na nitidez do seu tipo, na variedade das cores em que está impresso, no seu asseio enfim.

Compreende-se a manha.

Quem terá a coragem de atirar para a cesta dos papeis rasgados um livrinho, em que, sobre o marroquim bem imitado da capa, brilha um emblema dourado, e que, por pequeno e elegante, mais parece uma carteira de lembranças amáveis, do que um catálogo de chapas e de fogões!? Aberto o livro, o desencanto é completo; nas suas curtas páginas acetinadas não há segredos, mas uma imposição clara de fabricante, chamando sem cansaço a atenção da gente para os seus produtos, sempre com a mesma frase, cem vezes repetida, e em que ainda na última página se sente fôlego para outras tantas afirmações.

É de se ficar agoniado! mas os ingleses e os americanos não ficam, e continuam na sua ambiciosa propaganda, a exportar para as cinco partes do mundo em anúncios de toda a espécie, a doce e encantadora efígie das suas crianças louras, vestidinhas de azul, com margaridas, ou gatos brancos no regaço.

Que vão fazer nos arraiais africanos, nas povoações asiáticas, nos sertões americanos, ou mesmo nas modestas aldeias européias essas carinhas rosadas e gorduchas, feitas para o beijo e a carícia do olhar? Vão dizer em inglês que a manteiga mais pura e saborosa é de tal ou tal fabricante de Londres ou de New York.

E como a menina tem um bom ar de inocência, todos os que entendem o que ali está escrito, lhe prestam a maior fé, e os que o não entendem, guardam, por amor dos seus olhos cor do céu, o cartão em que ela vem estampada entre dizeres comerciais.

Parecia-me a mim, que nesta questão estava tudo feito e explorado, desde as paisagens sugestivas, rotulando latas de leite, onde a vaquinha gorda demonstra a fertilidade do pasto, até às folhinhas em que, a par das vantagens das pílulas que preconizam, se desvendam os mistérios dos astros e vem a profecia de invernos e verões. Enganei-me; a arte do reclamo não pára, vai alargando cada vez mais a sua fantasia.

Agora, com a mesma parcimônia de vocábulos, os senhores fabricantes de graxa, de vernizes, ou de qualquer outra coisa, encontram jeito de falar ao coração das turbas desprevenidas. Que traição! Já não basta o atrativo para a vista, começa também o assalto ao sentimento!

Senão, vejamos:

Há tempos achei sobre a minha mesa de trabalho um livrinho adornado na capa, brochura, com as armas de Inglaterra, Abri-o e folheei-o; só continha retratos de crianças, nada menos de cinqüenta e seis fototípias nítidas e bonitas. De quem eram? A pequena introdução do livro explicava tudo em poucas linhas: essas cinqüenta e seis crianças, cujos nomes, idade, filiação, morada, etc.., vem indicados sob cada retrato, são apresentadas ao mundo como órfãs dos heróis da guerra sul-africana, a quem o proprietário de uma farinha qualquer alimenta gratuitamente. E bem provam as gravuras a eficácia de tal fécula. São gordos, os bebês!

Tenho-os aqui, diante de mim. Que triste galeria esta! A cada página que viro, as minhas mãos tremem e alastra-se-me no coração, a par de uma grande indignação, uma piedade dolorida por não ter remédio.

Abre o livro por um pequenino de dez meses, repimpado na sua cadeira, muito pelado e sério, com vestido de rendas e sapatinhos brancos; depois vem todo o rancho de infortunados, uns ainda de touca, outros em fraldinhas, com as pernas grossas, as mãos papudas, o peitinho gordo; uns de boca aberta, mostrando no seu riso cor de rosa as gengivas sem dentes, outros de ar pensativo e todos muito galantes e muito simpáticos, como se para isso não bastasse o sereia crianças e o serem infelizes.

Olhando para o rostinho redondo da penúltima criança do livro, esta formosa Clara Alice Wilson, de dezenove meses, não haverá quem não imagine que deveria ter voado para ela o pensamento do pai ao expirar o seu último alento na guerra, a que talvez se opusessem as suas convicções de homem para só obedecer à sua disciplina de soldado...

Ora, a caridade desse fabricante inglês, que alimenta gratuitamente crianças para exibi-las ao mundo, em proveito seu, é de uma expressão muito singular e absolutamente nova nos anais da filantropia e do anúncio! A pátria que lhe agradeça o desvelo que ele demonstra pelos órfãos dos seus heróis! Se a exploração do sentimento continua desta maneira, não nos deixam nada para a literatura...

Mas não seria por amor disso que eu gritaria, mas por outra causa mais respeitável e delicada. Sempre gostaria de saber com que olhos os senhores do governo da velha Inglaterra olhariam para este álbum de reclamo, se ele algum dia lhes caísse sobre a sua mesa, como caiu sobre a minha, sem eu saber como!

Talvez que levantassem os ombros e nem lessem os nomes dos soldados e dos oficiais, cujas mortes vêm autenticadas sob o retrato de cada órfão; talvez que não ligassem à fileira de rostinhos infantis maior importância que a que ligam aos gordos frades emborcando cerveja nos cartazes dos schops, ou as dançarinas nos anúncios das tabacarias, tão acostumados estão as extravagantes explorações dos seus industriais; contudo, a minha ignorância de mulher sentimental parece que o olhar mudo e inocente destas criancinhas revolver-lhes-ia na consciência maiores reflexões do que todos os discursos das duas câmaras...

Realmente, a fúnebre lembrança desta propaganda é de fazer arrepios. Pobres órfãos inocentes! o que eu acredito que eles espalhem pelo mundo não é a fama da farinha que lhes engrossa o leite, e os prepara para futuras batalhas, mas sim a idéia da injustiça que as fere, o tremendo horror da guerra, que semeia com sangue as mais tristes saudades da terra!

 

CARTA

"Minha querida.

Venho do circo. Lá ao fundo, na noite escura, em uma baixada do morro, há ainda um clarão avermeIhado rompendo o toldo e as paredes de lona suja, onde a rapaziada do bairro assobia ao ritmo da charanga desafinada. As personagens da pantomima esbordoam-se na última cena, fazendo voar as cabeleiras e as longas abas das casacas imundas. O povo ri, mas começa a voltar costas ao espetáculo.

Vêem já umas lanternas de doceiras trôpegas pela encosta, como estrelinhas cansadas. No meio da treva, mal atenuada pelos espaçados lampiões de gás, diviso as linhas ondeantes do morro, de onde escorre o aroma agreste das plantas, que o relento refresca e ativa.

Sinto-me triste; e a placidez da noite silenciosa, acolhe a minh'alma como um seio materno. Nunca a escuridão me pareceu mais doce; posso mostrar ao céu a amargura da minha face, porque só Deus a vê, e deixar que o desalento do meu espírito se infiltre e transpareça no meu corpo.

Quem há que não tenha tido, ao menos, uma hora dessas, em que toda a força vital parece esgotada e não nos resta nem ao menos a vontade de reagir?

A meu lado uma voz fala, como um rumor continuado de água rolando em pedregulhos baixos. Mal me atrevo a esboçar um gesto com que lhe responda.

Decididamente a tristeza é o agente da preguiça!

A última bexiga da pantomima deve ter rebentado agora nas costas do estalajadeiro, que era velhaco e sonso. Calou-se a charanga, e o clarão rosado do circo sumiu-se de repente na treva. Aumenta a bulha de passos; ouço uma voz dizendo:

 

- O palhaço é muito engraçado!

 

Eu por mim achei-o estúpido, repetidor de trapaças antigas, de um rancismo bolorento. Engraxou-se mal, não tocou ao violão e pouco dançou da chula. Mas a razão não estaria do meu lado; a razão nunca está do lado da gente triste.

O palhaço devia ter cumprido a sua missão. Lembrei-me de ter visto torcer-se toda, em um acesso de hilaridade, uma espectadora velha, expondo no auge da expansão o seu único dente descarnado e longo. Outras caras da arquibancada foram surgindo na minha memória.

Olhar para os espectadores é, em certos espetáculos, o melhor espetáculo, e o único pitoresco num circo de roça.

O rosto dos velhos tem sobretudo uma cândida expressão de deleite, mais demonstrativa de enlevo que os das crianças mesmo. A alegria desabrocha-lhes por entre as gilhas da face e as pálpebras franzidas, com o frescor viçoso de flores em ruínas. Aquela alegria curiosa, que eu invejo causa-me entretanto uma certa piedade... É a profanação do uso, a abjeção do gosto. Parece-me que aquelas cozinheiras e operárias que pasmam radiantes para as misérias da arena só se deveriam sentir à vontade em um circo de sedas claras, com festões de lâmpadas elétricas e ramos de violetas em cada camarote...

Um equilibrista fecha a primeira parte, sustentando maravilhosamente uma pena na ponta do nariz.

A vaidade do homem devia ser grande naquele indivíduo! Cruzaram-se fardas de belbutina e casacas lutuosas dos ajudantes na arena.

Cerrei as pálpebras, aspirei o aroma de meu lenço e fiz de conta que estava vendo a pompa circensis com que se precediam os jogos no circo de Maxencio... e a ilusão talvez se prolongasse, se uma preta moça e tafula se não lembrasse de roçar pelos meus joelhos, exalando o cheiro de um raminho de arruda espetado na carapinha. Entonteci; e logo tudo me pareceu ignóbil: as desafinações da charanga, as pernas grossas das écuyères mal calçadas o ondear das fitas e das tarlatanas baratas, a repetição das sortes tantas vezes vistas, os assobios do povo, os estalos dos chicotes e das bofetadas, o ruído da mastigação de um vizinho, que enchia a boca de mendobi, o fumo dos cigarros, a deficiência das luzes, e os pregões de um espanhol maltrapilho anunciando biscoitos.

Restabelecido o equilíbrio, notei com surpresa que alguns daqueles saltimbancos tinham logrado prender-me a atenção em uma matinée do S. Pedro. Sim, era a mesma gente, era o mesmo trabalho. Somente a atmosfera através da qual eu os via era outra. Não se comia mendobi, mas pastilhas de chocolate; a sala era clara, limpa, e nos camarotes apinhavam-se crianças lavadas e cheirosas. Nesse dia os artistas tinham trabalhado bem, pareceram-me até pessoas de qualidade, que vinham por excepcional obséquio divertir a gente...

Para penitência relembro uma página de Tolstoi, sinto sobre o meu ombro fraco a sua mão pesada e como que o seu espírito sussurra ao meu:

 

- A alegria e a verdade estão neste barracão armado à pressa, como uma tenda de campanha, para a cambalhota e as miséria mal disfarçadas.

 

Sedas? flores? luzes elétricas! são fantasias para
gente de casaca, que não sabe rir. Só a gente rude conserva frescura e sensibilidade de alma. Os únicos velhos que têm riso gostoso são os ignorantes. Vai-te embora.

E eu vim-me embora, pensando nessas coisas quando, eis passa por mim um médico ilustrado a quem ouço dizer:

 

- Pois senhores, o palhaço tem graça!

 

A opinião dos homens confunde-me. O homem, pelo simples motivo de ser homem, está determinado que tenha de tudo uma visão mais positiva, mais clara e mais perfeita do que a minha. Relembro a cena principal do clown:

Um sujeito de casaca e de chicote dá-lhe a incumbência de levar um embrulho de doces a certa moça...

Procuro fixar o resto: não posso. foge-me a idéia para outro assunto.

O céu está estrelado, o ar doce, o aroma das magnólias sai dos jardins e envolve-me toda, como uma túnica invisível, que dá à minha alma uma pureza de Vestal.

Pirilampos salpicam o ar de fulgurantes esmeraldas viajoras. Chego ao alto e volto a vista para o local do circo: tudo em trevas; a noite como que suspira de alívio.

Passa-me ainda uma vez pelo espírito o romance explorado pelos velhos contistas: o riso agudo do palhaço que se rebola na arena e que se transmuda em soluços quando nos intervalos se atira sobre o corpo moribundo do filho; as sovas nas crianças roubadas, nos estudos da acrobacia, e o pudor das écuyères, virgens e recatadas.

Para mim, todo o palhaço tem sempre no bastidor um filho moribundo e todas as crianças sinais de pancada sob os maillots rosados.

E é talvez por isso que este circo de roça, grotesco, e em que as misérias se mostram tanto a nu, não consegue divertir-me nem dissipar-me a tristeza.

À hora em que vou chegando a casa, está o palhaço, e estão os seus companheiros refazendo as forças com o bife e o vinho da ceia, e rindo-se, ainda por cima, porque a féria foi boa.

Entretanto, (oh! prodígios da imaginação enfeitiçada pelos romancistas!) como que distingo no ar, lá muito perto do céu, o senhor clown enfarinhado e choroso sustentando nos braços um filhinho morto!

E como são horas de dormir, digo-te adeus!"

Tua

 FRANCISCA

 

BRUTOS!

Daqui a umas largas dezenas de anos, quem for amigo de ler crônicas deste século XX, que despontou com aspirações de paz universal e bondades aperfeiçoadoras do coração humano, poderá dizer que nestes dias houve um rei, que por amor da sua dama quebrou as mais rijas lanças. Para conquistá-la, expulsou ele o seu real pai e senhor, deportando-o para fora do reino, onde o mísero morreu sem amigos, no desamparo da ingratidão... Para colher dos lábios dela a cheirosa flor do beijo, houve o rei de arcar com a basta chusma dos preconceitos da época. A pobre não era de sangue real, e por isso, mal estimada pelos súditos da enfeitiçada majestade, todos se opunham a que o rei se unisse àquela mulher, que nem era moça como Julieta, nem era portadora de um título de princesa, como Cordélia.

Por sua parte a imprudente, fascinada pelo prestígio daquele homem, caminhava para ele como a fina agulha de aço para um grande pedaço de imã. As mulheres não se emendam, e tanto mais amam quanto menos devem amar. Com o perigo, aumentava o encanto da paixão. Não amar, quando se recebeu do céu uma alma feita para o amor, é privar-se, a si e a outrem, de uma grande felicidade. Seria como uma laranjeira que não florescesse com medo de pecar, - como dizia Stendhal, um escritor de então... É verdade que em páginas adiante ele acrescentava, em outras conclusões: a firmeza de que resiste ao seu amor, é a coisa mais admirável que pode existir na terra; todas as outras provas possíveis de coragem são bagatelas ao pé desta, tão forte e tão penosa.

Raciocinando a dama que esses heroísmos são bons para os livros, e que, sendo a missão da mulher obedecer à natureza, mais lhe quadrava a alegoria da laranjeira, assim fez, como devia, a vontade ao seu sentimento e ao seu rei: casou com ele.

Desditosa! o povo, que já não a via com bons olhos, entrou a aborrecê-la. Para que todas as antipatias chovessem sobre a sua cabeça fraca, o velho rei exilado, homem que fora sempre de amores efêmeros e costumes fáceis, morreu longe da pátria, e logo começaram a dizer que ele se finara de paixão, ressentido daquele filho ingrato, e que a culpada de tudo era a rainha, que por não ser de estirpe real não devia merecer o amor de um rei. Teceram logo uma trama de enredos e falsidades, dizendo que ela mentia à sua religião e à sua consciência. O beijo do amor não a fecundara, e na sua murcha esterilidade ela divulgava um sonho que embevecia a corte e o rei.

O sonho da maternidade.

Gente do palácio, muito embusteira, inventou logo que a rainha simularia um parto, vindo uma criança estranha ocupar no berço principesco o lugar que só deveria competir ao filho do soberano... Intriga foi esta que se espalhou por toda a nação e transbordou para países alheios e terras de além mar. E, como formiguinhas, iam as perfídias entrando pelos ouvidos do rei...

No seu grande palácio sumptuoso vivia a mísera rainha desconfiada, sem se poder lavar das máculas que lhe atribuíam. Assim, a flor da sua beleza outoniça enlanguescia, e o rei, aturdido, cheio das queixas dos vassalos, que lamentavam a morte de um rei que nunca tinham amado, só por acinte à rainha intrusa, caiu em acreditar que a esposa só o quisera por vaidade e ambição de reinar. Por isso, quanto mais ela se debulhava em pranto, mais ele se enfastiava dela, que sempre as lágrimas foram causa de aborrecimento aos olhos dos maridos. Todo o seu grande afeto se tornou depressa em ojeriza que também do pai naturalmente herdara uma certa inconstância no amor: e ver sempre os mesmos olhos, de mais a mais queixosos, não lhe sabia bem.

Correram meses nesse desagrado, até que um dia, em pleno palácio, a macia e régia mão de um rei da culta Europa caiu com bruteza sobre a pálida face de uma rainha.

No triunfo da alegria correram damas de honor e fiéis criados de el-rei a soprar aos quatro ventos aquela ignomínia, rindo da triste rainha ofendida.

Esta, humilhada, quis matar-se; mas não a deixaram acabar com a vida, guardando-a dia e noite de perto, com os olhos arregalados e as unhas afiadas.

Os vendavais desnudam as mais floridas laranjeiras; a alma da rainha já não tinha perfumes, só tinha espinhos; e o rei, por onde andasse, lá ouvia o eco das canções maliciosas das ruas e dos teatros, em que se dizia a aventura de uma mulher que só se unira a um rei pela vaidade e o desejo de reinar...

Entendiam no século XX que o Amor devia viver encarcerado, e ainda com muitos selos nas portas e nas janelas gradeadas, que lhe atestassem a legalidade.

De modo que, quando cansado da reclusão, ele quisesse fugir, teria de debater-se e deixar na cadeia o sangue de seu corpo e as penas de suas asas.

Ele arrependido, ela resignada, parecia até que tinham voltado a amar-se, foram uma alta noite surpreendidos no seu castelo por uma imensa horda de assassinos, que arrombando portas, derrubando sentinelas, alcançou-os a ambos e os matou sem dó...

Não fosse ele fraco; não fosse ela ambiciosa...

Dirá mais coisas a lenda do rei da Sérvia, tratando com injustiça a pobre Draga, sua mulher, só porque não tinha nas veias sangue real.

Outra lenda, sua contemporânea, provará daqui a uma centena de anos, que as mulheres, mesmo rainhas, não tinham no começo deste século XX as prerrogativas que hão de ter então. Esta será talvez em forma de balada. Uma soberana moça, de perfil doce, elevando ao seu trono um príncipe estrangeiro, recebeu dele a mesma injúria que a pobre Draga, do seu real senhor! Somente, à dor da linda Guilhermina acudiu chorando todo o seu povo. Enquanto que à outra...

O que pensarem deste nosso tempo os futuros comentadores da história, parecer-se-á de perto com o que pensamos das velhas idades, em que esposos ciumentos prendiam pelas tranças ao ferrolho dos seus castelos as esposas ultrajadas pelo seu ciúme.

E então, como hoje, a queixa ouvida e que perdure pela sua sinceridade, será a exalada pelos lábios femininos...

Michelet, que tão bem penetrou no coração da mulher, escreveu em L'Amour:

"Os insetos e os peixes são mudos; o pássaro canta, querendo articular; o homem tem a linguagem distinta, a palavra clara e luminosa, o verbo límpido. Mas a mulher, acima do verbo do homem e do canto do pássaro, tem uma linguagem mágica com que intercala esse verbo ou esse canto; o anhelo, o suspiro apaixonado."

Feita para o amor, ela é o ser mais sensível do universo. Toda ela vibra às blandícias ou às crueldades daquele que entre todos os homens escolheu e a quem não sabe fazer compreender a sua paixão, porque as suas expressões são apenas balbucios com que interrompe os gorgeios da sua alegria ou os temores do seu raciocínio. Ele, que passa, pune, mata ou esquece; que olha para ela como o jequetibá para a roseira, do alto da sua superioridade e da sua grandeza, não percebe que, na sua humildade doce, a voz da mulher, como o perfume das rosas, pode chegar muito mais alto, até ao céu, que só se abre para a sinceridade dos sentimentos grandes e verdadeiros!

E é por não a compreender que ainda um ou outro a brutaliza.

Ainda não há muitos anos uma pobre rainha asiática sentiu no rosto a pesada valentia da mão de seu marido. Como no palácio da Servia, o mesmo alvoroço no da China.

A pressa com que o telégrafo anuncia ao mundo estas misérias!

Mas o que não deixaram fazer a Draga, consentiram que fizesse a imperatriz chinesa. Matou-se.

Afigura-se-nos que uma imperatriz, mesmo da China, deve olhar para todo o seu povo, não com a doçura com que um pastor olha pai a o seu rebanho, mas com fria altivez e soberana indiferença. Ela está ali, no trono brilhante e forte, para que a vejam e para que a amem. Não querendo deixar penetrar os seus pensamentos, torna-se impassível e austera; sentindo em cada beijo a baba da adulação, começa a desgostar-se da humanidade e a ter repugnância dos cortesãos mentirosos. Os seus pensamentos devem ser estranhos, bem analisados, sentidos com inteligência. Nós não compreendemos as rainhas senão assim. Uma imperatriz que ame o marido, que discuta com vivacidade, que o censure com paixão, e que (santo e misericordioso Deus, como isto até custa a escrever!) leve dele pancada... uma rainha que, em vez do cinismo de salvaguardar aparências para que o seu povo a julgue invulnerável, encontra rancor no peito e sangue vivo nas veias, para acabar com a vida, vingando a ofensa recebida, é digna de figurar na galeria feminina dos últimos tempos, como um dos mais interessantes tipos de mulher.

A verdade é que não é suportável a idéia de que um homem, seja ele quem for, possa levantar a mão para uma mulher, seja ela quem for também.

Se ele se julga e se proclama o forte, o senhor dominador e poderoso, deve encontrar na palavra todo o fel da censura, sem se rebaixar num aviltamento que o amesquinha. É melhor matar do que bater. Uma mulher apunhalada poderá perdoar, mas uma mulher esbofeteada, nunca!

Lã ficará sempre o ressentimento, quando não fique imediatamente o nojo, ou não haja a coragem da vingança.

Dizem por aí que as mulheres que apanham pancada são as que mais amam... Não acrediteis! A mulher descida a essa ignominia é incapaz de tudo. É preciso que se compreenda bem, que afinal de contas os mesmos ramos de veias que fazem circular no corpo do homem o sangue que os altera, fazem nascer na mulher os mesmos desejos, as mesmas violências. Somos mais tenazes, talvez, mais frias no amor, mas mais excessivas no ódio.

O exemplo do imperador da China levou tempo a medrar, mas medrou e desponta na velha Europa civilizada, em velhos tronos de ouro e purpura, que dão norma ao povo, como uma lei de justiça e um direito da força indiscutível.

Dizem que a mulher do povo gosta do amor cruel, que a brutalize; se assim é, que bons maridos e que magníficos trabalhadores de enxada se perderam naqueles régios senhores coroados!

Baladas e lendas destas rainhas, nossas contemporâneas, atrairão a magoada simpatia de outras mulheres que, chegado o tempo do amor, do céu azul e do sol dourado, se vejam, como laranjeiras floridas, cobertas de ilusões!

 

O ÚLTIMO SONHO DA RAINHA

"There is no one near me to call me Victoria, now". Em toda a extensa biografia da rainha da Inglaterra, a bem amada, que os jornais do mundo inteiro publicaram na ocasião da sua morte, em lamentosa necrologia, nenhuma frase há talvez que mais justamente revele a mulher, do que esta, com que ela chorou a sua viuvez:

 

- "Agora já não tenho ninguém a meu lado para me chamar Victória."

 

O seu nome, isolado de toda a cerimônia, proferido de igual para igual, nunca mais soaria aos seus ouvidos, na intimidade franca do amor.

A morte igualitária e justa selava na boca do príncipe o nome da mulher, ficando só para a Vida o da majestade.

Rainha! não ser mais que rainha, é pouco. Mãe? Não basta. Filhos e súditos têm pela soberana prestigiosa o mesmo respeito incondicional, a mesma obediência passiva.

Ela sente, na sua viuvez, não só a falta do amigo, mas a da sua própria personalidade humana.

Havia uma voz só, entre tantíssimas vozes, que a tratava como a companheira de jornada; a confidente, a alma irmã, a criatura filha de Deus, sujeita ao erro, domável ao conselho, com as qualidades e os defeitos inerentes aos mais; havia só uma voz que lhe lembrava que ela era uma mulher como as outras mulheres, afetiva, nascida para o gozo e para o sofrimento, e que o seu papel na Vida, saía todo do coração.

Dizer somente: Victória, era o mesmo que significar, aos seus ouvidos aturdidos de honrarias e lisonjas confusas: "Para mim tu és mais do que a soberana, a poderosa Rainha da Inglaterra e Imperatriz de todas as Índias; tu és a Mulher, criada à minha semelhança, para companheira da minha existência, bonança dos meus dias, e benção da minha prole. Nasceste para mim; somos iguais, amemo-nos!"

Percebo a sensação de isolamento que a rainha havia de sentir, quando, olhando em torno, só visse cabeças curvadas diante dos seus olhos interrogativos, e joelhos vergados nos degraus do seu trono.

A única voz que a tratava por tu, extinguira-se; e só então ela percebeu como essa expressão de igualdade e de intimidade é doce...

Todas as suas confidencias se voltam para o seu diário.

É preciso abrir uma válvula ao sentimento, - e escreve. É também a única maneira que ela tem de se fazer lembrar a si mesma que ela é - Victória - a mulher de carne e osso, da mesma espécie, portanto, que as pobres camponesas que andam pelos campos ceifando, e vão à tarde para as pontes e as cercas tagarelar com os noivos. Este livro é como que uma janela aberta numa prisão.

Eu gostaria de lê-lo, certa de que ele será um excelente estudo de uma alma, revelação de uma tortura desconhecida e nobre, cuja interpretação é esta: a ânsia de uma rainha por ser antes, e mais que tudo - a Mulher.

Em toda a sua biografia só entrevi, talvez mal, um traço ligeiro de vaidade. Sua Majestade Britânica, oferecendo o seu jornal ao grande romancista Dickens escreveu:

 

"Como o dom de um dos mais humildes escritores, ao maior de todos."

 

Talvez que este livro expontâneo, espelho de uma alma em toda a sua intimidade, dê direito ao titulo que a rainha se arrogou.

Que observações finas e curiosas teriam essas páginas comentadoras de atos e de personagens da Corte, se a mão da soberana, trocando o cetro pela pena, a empunhasse, não como derivativo de saudade amarga, mas como um instrumento que tudo revolve em busca da Verdade!

O livro de uma rainha tem de ser nublado pelos preconceitos e as conveniências. Muitas linhas teriam sido riscadas, quando, deixando de ser álbum íntimo, esse confidente discreto passou a ser livro publicado.

Todavia, o que naturalmente o torna encantador, é a sua essência, a expansão ingênua da felicidade ao alcance de qualquer...

Talvez tivesse sido esse o segredo da popularidade da rainha. O povo ama os simples e reverencia, sobre todas, as qualidades do coração.

Não tardará que essas virtudes decantadas, atravessem contos ingleses e canções idílicas, como embrião de formosas e futuras lendas. O tocante episódio da oferta de um brinquedo a filha de um camponês, anos depois de feita a promessa, interrompida por viagens e altas preocupações de estado, servirá de assunto magnífico para histórias do Natal, em que as crianças que hão de vir, antes de conhecer a rainha da História, comecem a amar a mulher do conto...

Assim, a rainha bem amada, surgirá em várias páginas, conduzida pelas mãos daquele a quem ela se associou, chamando-se escritora.

Eu quisera, sempre a exigência da perfeição! que, para a apoteose de tão clara e amorosa existência, a velha Rainha da Inglaterra e Imperatriz das Índias, soerguendo-se no leito de morte, com o esforço supremo da sua vontade soberana, tivesse pedido aos seus ministros e ao novo rei, seu filho, a terminação da guerra sul-africana.

Dizem que do mal desta guerra se finou a velha senhora. Quero crê-lo; e só assim concebo a suavidade da sua morte.

A dor, que não pôde ser expressa, por conveniências e por orgulhos de Estado, e que ficou abafada no último suspiro, deve vibrar agora, como um remorso na consciência dos que a provocaram.

Triste, o brilhante destino dos reis, que nem os deixa morrer como os demais cristãos: perdoando!

A alma da rainha-imperatriz muito se mostrara ao seu povo para que ele não a conhecesse. Com a percepção aguda do instinto, ele lê nela como em um livro: por isso afirma que era infinito o desgosto da sua soberana ao fechar os olhos para o último sono.

Era infinito o seu desgosto; mas, se em vez de oitenta anos a Rainha Victoria tivesse quarenta, teria sabido morrer de outra maneira.

Então, o rumor surdo das armas em combate, descansando no solo ainda fumegante da batalha, soaria mais alto que todas as orações e que todos os sinos das abadias e das catedrais. Esse devia ter sido o último sonho da Rainha.

Advinhando-o, todo o seu povo se cobre de luto sincero, os jardins do Reino despojam-se das suas flores, e as viúvas e os órfãos não a amaldiçoam.

As virtudes altíssimas do seu espírito e do seu caráter são mencionadas em todas as línguas da Terra; o telégrafo espalha o seu nome pelo mundo inteiro, e há em todo este movimento um respeito singular e profundo pela mulher cujo conselho, cuja prudência e cujo acerto, desenvolveram, ampararam e enriqueceram a mais poderosa nação do Globo, e que afinal, morre calada e triste, por não poder realizar o seu último sonho!

 

PREDESTINAÇÃO!

Quantos e quantos dias se passaram depois daquele em que a mão divina de Shakespeare escreveu no seu imorredouro Hamlet:

 

"There are things in heaven and hearth, Horatio,

 Than are dreamt of in your philosophy."

 

E ainda hoje, como talvez daqui a um longuíssimo amanhã, se continua a sentir o mesmo que o príncipe da Dinamarca afirmava ao amigo que há coisas no céu e na terra que não são suspeitadas pela filosofia...

Por mais que as ciências vitoriosas dêem ao homem moderno uma idéia positiva da vida, ele sente-se acorrentado por um doce fantasma ao mundo invisível que abre a sua imaginação inquieta perspectivas infinitas. O mais independente e, quiçá mais feliz, que tudo nega, lá encontra um dia no seu caminho uma interrogação a que não sabe responder e que o obriga a levantar os olhos com espanto.

Uma crença que nasce, uma visão que passa, um pressentimento, um aceno do nada, um sopro, bastam para ligar muita vez, mesmo que momentaneamente, o espírito mais livre ao singular encanto do mistério. De resto, não há quem não conte, ainda que vagamente, com o auxílio da sorte, o que é ainda acreditar nas determinações do desconhecido, certos como estamos que nem tudo dependerá nunca de nós mesmos. O - "se Deus quiser", - que é para os deistas uma fórmula sem contestação, não deixa de ter na boca dos ateus uma significação, inexplicável, mas sincera.

Toda a gente conta com uma força superior que vai regendo os destinos humanos, impassivelmente, através dos séculos, e de que se emana todo o bem - e todo o mal da nossa alma.

Haverá quem viva na terra só pela terra, sem outra preocupação que a da hora porque está passando e o trabalho sobre que está curvado? Não conhecendo o embalamento da esperança amiga, a mais perceptível das criações sonhadas, como poderá esse ente arquitetar os castelos em que nos abrigamos nos momentos de susto ou de enfado? Sem o mundo irreal, já não me lembro quem perguntou, não seria insuportável o mundo visível? E para que nos cansarmos procurando em vão, sempre em vão, adivinhar o que nos parece apenas pressentir?

Para esta fome da alma, nunca satisfeita, nunca apaziguada, nasceram as religiões, que se transformam mas não acabam, e que ainda assim não bastam, visto que mesmo os homens mais religiosos não são alheios à superstição.

Fatalidade! eis a palavra que sem explicar nada tudo explica, e é como que um grande manto de demência atirado sobre todos os cumes e todas as obsessões.

Um dia entrou-me em casa um cavalheiro de cabelos brancos e mãos trêmulas, causadas do trabalho bendito de apontar às crianças as letras do A B C.

Deve ser conhecido aí pela cidade; tem setenta anos, ainda moureja, e passou toda sua vida clareando o espírito dos analfabetos. Aí está um trabalho!

Quando o vi entrar, por ele ser velhinho dei-lhe a melhor cadeira, e como sou da raça dos que amam ouvir histórias, prestei-me a ouvir a sua.

Têm reparado? Para os velhos não há prazer comparável ao de contar a sua vida. Relembrando as horas rapidíssimas do prazer, ou as lentas da agonia, luzem-lhes nas pupilas, através da névoa da velhice, que com mais acerto se deveria chamar - nevoeiro da saudade - uma claridade branda, de primavera.

É uma ternura, um rejuvenescimento da alma, que atestam, mais que tudo, como a vida é boa e amada. O carinho com que são lembrados os dias da mocidade, tão passageira, tão fugitiva!

"Sou um predestinado, dizia-me ele; não acredita na predestinação? Sete vezes o fogo reduziu a cinzas os meus haveres e me deixou nu, quase a pedir esmolas! Nasci para reagir..."

Na primeira vez, contou-me, ele ainda era moço quando um incêndio lhe devorou o negócio. Forte e sereno, levantou os ombros e disse - Paciência!

No dia imediato ao do desastre recomeçou a trabalhar para reconstruir o que as labaredas tinham desfeito. Pouco a pouco, com economia e ambição de fortuna, angariou alguns contos de réis. Casou então, teve um filho, e quando maior número de promessas lhe fazia o futuro, veio outro incêndio que lhe levou até o berço do filhinho.

Mas ele ainda era moço e tinha confiança em si - Paciência! - murmurou ainda, e recomeçou na canseira.

Não me lembram as minúcias do drama em que esse novo Job cavou e perdeu sucessivamente sete fortunazinhas, duramente adquiridas. O que me impressionou não foi isso; à força de ler e de ouvir misérias vai a gente ficando preparada para as mais dolorosas confidências. O que me deu uma sensação de novidade foi este desfecho, contado com simplicidade e tristeza:

"Depois do sétimo incêndio, fiquei sem ter que vestir. A mulher tinha morrido, o filho estava fora. Um vizinho, condoído, deu-me umas roupas e dinheiro para um par de botinas, visto que eu nunca me acostumara a andar descalço e as que trazia estavam em mísero estado.

Fui ao meu velho sapateiro, único homem que sabia ajeitar o couro nos meus pés doloridos; fiz-lhe a encomenda, paguei-lha e voltei resignado para o canto de empréstimo em que eu descansava os ossos magoadíssimos.

Estava cansado, mas não desanimado; mais uns dias de repouso, embora poucos, e eu voltaria para o cepo a recomeçar a vida pela oitava vez!

Uma manhã, apelando para toda a minha energia de homem, desci à cidade a trabalhar para o último filho que me restava. Havia ainda alguém que precisava da minha coragem e da minha força, e esse alguém seria servido.

Para apresentar-me no emprego era mister que eu fosse antes calçar as botinas novas; dirigi-me para a sapataria e encontrei-a transformada em um montão de cinzas: ardera toda na véspera; só havia de pé uns restos de paredes e umbrais carbonizados! Minha surpresa foi tamanha, que não cria nos meus olhos; e eu, que já sete vezes tinha visto destruída pelo fogo a minha propriedade, ganha com tanto esforço e tanto sacrifício; eu, que por causa de incêndios passara por humilhações e trabalhos sem conta, sempre com uma resignação que nem sei de onde me vinha, por amor daquele par de botinas sucumbi e, pela primeira vez, chorei como uma criança!

Percebi então claramente que em vão lutaria contra o meu destino. Agora, já serenado, espero o oitavo incêndio, que consumirá os meus ossos e purificará a minha carne."

Assim falou o velho de barbas brancas e mãos trêmulas, que tão vivamente me trazia à lembrança o experimentado varão da terra de Hus. Job, tosquiando a cabeça e rasgando os vestidos, sentou-se num monturo a raspar com um caco de telha a imundice do corpo, em servidão espontânea aos mandados de Deus. Este novo Job, conquanto certo de uma perseguição misteriosa que o há de vencer, luta, trabalha com pertinácia, e ainda se chega para onde ouve falar em criancinhas, com o sentido de ensiná-las a ler!

"Enquanto se vive trabalha-se" resumiu ele ao despedir-se de mim.

Sim; agora, como nos tempos antigos, há coisas no céu e na terra que não são nem sequer sonhadas pela filosofia; mas a verdade é que a maneira de gozar ou de sofrer a influência dessas coisas impenetráveis, é hoje, ainda bem para nós todos, muito diferente da dos dias de Job!

 

                                                                                                  Júlia Lopes de Almeida

 

 

Carlos Cunha      Arte & Produção Visual

 

 

Planeta Criança                                                             Literatura Licenciosa

 

 

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A Intrusa  -  A Falência  -  A Viúva Simões