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Zadig / Voltaire
Zadig / Voltaire

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Zadig

I O CAOLHO

 

No tempo do rei Moabdar havia em Babilônia um jovem chamado Zadig e cuja boa índole se aprimorara pela educação. Embora moço e rico, sabia moderar as paixões, não afetava nada; não pretendia ter sempre razão, e costumava respeitar a fraqueza dos homens. Era de espantar que, com tanto espírito, jamais procurasse meter a ridículo esses diálogos tão vagos, tão incoerentes, tão irrequietos, essas temerárias maledicências, esses juízos ignaros, essas grosseiras chocarrices, esse vão palavrório, a que se chamava conversação em Babilônia. Aprendera, no primeiro livro de Zoroastro, que o amor-próprio é um balão cheio de vento, de onde brotam tempestades quando se lhes dá uma alfinetada. Não se vangloriava, principalmente, de desprezar as mulheres e subjugá-las. Era generoso; não se arreceava de prestar serviços a ingratos, conforme este grande preceito de Zoroastro: “Quando comeres, dá de comer aos cães, ainda que te mordam”. Era o mais sábio possível, pois procurava viver com os sábios. Instruído na ciência dos antigos caldeus, não ignorava os princípios físicos da natureza, tais como se conheciam então e, quanto à metafísica, sabia dessa matéria o que sempre se soube em todas as épocas, isto é, pouquíssima coisa. Estava firmemente convicto de que o ano se compunha de trezentos e sessenta e cinco dias e um quarto, mau grado a nova filosofia do seu tempo, e de que o sol ficava no centro do mundo; e quando os principais magos, com insultuosa arrogância, lhe diziam que demonstrava, assim, maus sentimentos e que só um inimigo do Estado poderia acreditar que o sol girasse sobre si mesmo e o ano tivesse doze meses — Zadig calava sem cólera e sem desprezo.

 

Com grandes riquezas, e por conseguinte com amigos, de boa saúde, agradável aparência, espírito justo e moderado, e um coração sincero e nobre, julgou que podia ser feliz. Ia desposar Semira, cujo nascimento e fortuna a tornavam o primeiro partido de Babilônia. Dedicava-lhe um firme e virtuoso afeto e Semira o amava com paixão. Não tardava o feliz momento que os ia unir, quando, passeando os dois pelas proximidades de uma das portas de Babilônia, viram encaminhar-se a seu encontro alguns homens armados de sabres e frechas. Eram os satélites do jovem Orcan, sobrinho de um ministro, e a quem os cortesãos do tio haviam feito acreditar que tudo lhe era permitido. Não tinha nenhuma das graças ou virtudes de Zadig; mas, julgando valer muito mais, exasperava-se por não ser o predileto. Tal ciúme, que só a vaidade inspirava, o convencera de que amava loucamente a Semira. E queria raptá-la. Os asseclas lançaram-se a ela e, na sua brutalidade, chegaram a feri-la, derramando o sangue daquela criatura cuja vista seria capaz de enternecer os tigres do monte Imaús. Ela feria os céus com seus lamentos.

 

“Ó meu caro esposo! — bradava. — Arrancam-me àquele a quem adoro!” Não se preocupava com o próprio perigo; pensava apenas no seu Zadig, o qual, ao mesmo tempo, a defendia com todas as forças que empresta a coragem e o amor. Somente com o auxílio de dois escravos, pôs os homens em fuga, carregando-a, desfalecida e ensangüentada, para a casa de seus pais. Logo que Semira voltou a si, deu com os olhos no seu salvador, e disse-lhe: “Ó Zadig! antes eu te amava como a meu esposo; mas agora amo-te como àquele a quem devo a honra e a vida”. Nunca houve coração mais comovido que o de Semira. Nunca uns lábios encantadores exprimiram mais tocantes sentimentos, com essas ardentes palavras inspiradas na maior gratidão e nos transportes do justificado amor. Seus ferimentos eram leves; ficou logo boa. Zadig fora atingido mais gravemente; uma frechada perto de um olho produzira-lhe profundo ferimento. Semira só pedia aos deuses a cura de seu amado. Seus olhos, noite e dia, estavam banhados de lágrimas: esperava o momento em que os de Zadig pudessem gozar de seus olhares; mas um abscesso, que se formou na vista afetada, deu causa às maiores apreensões. Mandaram chamar em Mênfis o grande médico Hermes, que chegou com numeroso séquito, visitou o enfermo, e declarou que este perderia a vista; predisse até o dia e hora em que deveria suceder o nefasto acidente. “Se fosse o olho direito — disse ele — eu poderia curá-lo; mas as feridas na vista esquerda, são incuráveis”. Toda Babilônia, lamentando o destino de — Zadig, admirou a profundeza da ciência de Hermes. Dois dias depois, o abscesso resolveu-se por si mesmo; Zadig ficou completamente são. Hermes escreveu então um livro, em que lhe provou que não deveria ter sarado. Zadig não o leu; mas, logo que pôde sair, aprestou-se para visitar aquela em que fazia consistir toda a sua felicidade e só pela qual desejava conservar os dois olhos. Fazia três dias que Semira se achava no campo. Soube, em caminho, que essa bela dama, depois de declarar, abertamente a sua invencível aversão aos caolhos, desposara Orcan naquela mesma noite. A essa nova, Zadig perdeu os sentidos; a dor o levou à beira do túmulo; por muito tempo esteve doente; mas enfim a razão venceu o sofrimento, e a própria atrocidade do que experimentava serviu para o consolar.

 

Já que sofri — disse ele — tão cruel capricho de uma moça da Côrte, devo agora procurar uma burguesa.

 

Escolheu Azora, a mais recatada donzela e a de família da cidade; desposou-a, e viveu com ela um mês os encantos da mais doce união. Apenas lhe notava certa leviandade e demasiado pendor para achar que eram exatamente os jovens mais bonitos que tinham mais espírito e virtudes.

 

II O NARIZ

 

Um dia Azora voltou de um passeio muito encolerizada e com grandes exclamações.

 

— Que tens, minha querida esposa? Quem te pôs nesse estado?

 

— Ah! ficarias como eu, se visses o que acabo de presenciar. Fui confortar a viúva Cosru, que há dois dias edificou um túmulo para seu jovem esposo, junto ao arroio que banha as redondezas. Na sua aflição, prometera aos deuses que ficaria junto do túmulo enquanto lhe corressem ao lado as águas do arroio.

 

— Pois então! Eis aí uma estimável mulher, que amava; verdadeiramente a seu marido!

 

— Ah! se soubesses em que se ocupava ela quando a fui visitar!

 

Em que, minha bela Azora?

 

— Ela estava mandando desviar o arroio.

 

E Azora alongou-se em tais invectivas, explodiu criminações tão violentas, que não agradou em nada a Zadig tamanha ostentação de virtude.

 

Tinha este um amigo chamado Cador que era um daqueles jovens a quem sua mulher atribuía mais probidade e mérito que aos outros: confiou-lhe os seus pensamentos e assegurou-se, como podia, da sua fidelidade, dando-lhe um valioso presente. Azora, que passara dois dias no campo em casa de uma amiga, regressou no terceiro dia. Criados em pranto anunciaram-lhe que o marido morrera subitamente naquela noite e que, não ousando levar-lhe essa infausta notícia, acabavam de sepultá-lo no túmulo de seus pais, ao fundo do jardim. Ela chorou, arrancou os cabelos, e jurou morrer. À noite, Cador pediu-lhe licença para lhe falar, e choraram ambos. No dia seguinte, choraram menos, e jantaram juntos. Cador confessou que o amigo lhe deixara a maior parte de sua fortuna, e deu a entender que a maior ventura, para ele, seria compartilhá-la com Azora. A dama chorou, irritou-se, voltou às boas; a ceia foi mais longa que o jantar; falaram-se com mais confiança: Azora fez o elogio do defunto; mas confessou que Zadig tivera em vida alguns defeitos de que Cador era isento.

 

Durante a ceia, Cador queixou-se de uma violenta pontada no baço; a dama, inquieta e solícita, mandou trazer todas as essências com que se perfumava, a fim de ver se alguma não seria boa para aquilo; lamentou muito que o grande Hermes já não estivesse em Babilônia; dignou-se até a tocar no ponto onde Cador sentia dores tão agudas.

 

— E tens muito seguido esses cruéis ataques? — perguntou-lhe, cheia de compaixão.

 

— Levam-me às vezes à beira do túmulo, e só há um remédio que me dá alívio: é aplicar no local o nariz de um homem falecido na véspera.

 

— Estranho remédio! — espantou-se Azora.

 

— Não mais estranho — respondeu Cador — que os saquinhos do senhor Arnoult contra apoplexia.

 

— A esta razão, juntamente com os extraordinários méritos do jovem, rendeu-se afinal a dama. “Em todo caso — disse ela consigo, — quando meu marido, na ponte de Tchinavar, passar do mundo de ontem para o mundo de amanhã, será que o anjo Asrael deixará de lhe dar passagem, só porque ele vai ter o nariz um pouco mais curto na segunda vida do que na primeira?” Tomou, pois, uma navalha; foi ao túmulo do esposo regou-o de lágrimas, e aproximou-se para cortar o nariz a Zadig, que encontrou estendido na tumba. Zadig ergueu-se, defendendo o nariz com uma das mãos e detendo a navalha com a outra.

 

— Senhora, disse ele, não clame tanto assim contra a viúva Cosru: o projeto de me cortar o nariz vale bem o de desviar um arroio.

 

III O CÃO E O CAVALO

 

Zadig reconheceu que o primeiro mês do casamento é mesmo, como está escrito no Zenda, a lua de mel, e que o segundo é a lua de fel. Viu-se dentro em pouco obrigado a repudiar Azora, que se tornara dificílima de trato, e buscou refúgio no estudo da natureza. “Ninguém pode ser mais feliz — dizia ele — do que um filósofo que lê nesse grande livro colocado por Deus ante nossos olhos. É dono das verdades que descobre; alimenta e eleva a alma; vive tranqüilo; nada teme dos homens, e a sua extremosa mulher não lhe vem cortar o nariz”.

 

Penetrado dessas idéias, retirou-se para uma casa, de campo à margem do Eufrates. Ali, não se preocupava ele era calcular quantas polegadas de água corriam por segundo sob os arcos de uma ponte, ou se caía mais uma linha cúbica de chuva no mês do rato do que no mês do carneiro. Não planejava fabricar seda com teias de aranha, nem porcelana com cacos de garrafa; ma dedicou-se principalmente ao estudo dos animais e das plantas, adquirindo em breve uma agudeza que lhe desvendava mil diferenças onde os outros não viam que uniformidade.

 

Ora, estando um dia a passear pelas proximidades de um bosque, acorreu-lhe ao encontro um eunuco da rainha, seguido de vários oficiais que demonstravam a maior inquietação e vagavam de um lado para outro, como pessoas desorientadas que houvessem perdido a maior preciosidade deste mundo.

 

— Jovem — disse-lhe o primeiro eunuco, — não viste o cão da rainha?

 

— É uma cadela, e não um cão respondeu Zadig discretamente.

 

— Tens razão — tornou o primeiro eunuco.

 

— É caçadeira, e por sinal que muito pequena — acrescentou Zadig. — Deu cria há pouco; manqueja da pata dianteira esquerda e tem orelhas muito compridas.

 

— Viste-a, então? — perguntou o primeiro eunuco, esbaforido

 

— Não — respondeu Zadig, — nunca a vi na minha vida nem nunca soube se a rainha tinha ou não uma cadela. Ao mesmo tempo, por um ordinário capricho da sorte, sucedeu escapar-se das mãos de um palafreneiro o mais belo exemplar das cavalariças do rei, extraviando-se nos campos de Babilônia. O monteiro-mor e todos os outros oficiais corriam à sua procura com mais inquietação do que o primeiro eunuco em busca da cadela. O monteiro-mor dirigiu-se a Zadig e perguntou-lhe se não vira acaso o cavalo do rei.

 

— É — respondeu Zadig — o cavalo de melhor galope; tem cinco pés de altura e os cascos pequenos; a cauda mede três pés e meio de comprimento; o freio é de ouro de vinte e três quilates; e as ferraduras de prata de onze denários.

 

— Que direção tomou ele? onde está? — perguntou o monteiro-mor.

 

— Não o vi — respondeu Zadig, — nem nunca ouvi falar nele.

 

O monteiro-mor e o primeiro eunuco não tiveram mais dúvidas de que Zadig houvesse roubado o cavalo do rei e a cadela da rainha; levaram-no perante a assembléia do grande desterham, que o condenou ao knut e a passar o resto da vida na Sibéria. Mal se encerrara o julgamento, foram encontrados o cavalo e a cadela. Viram-se os juízes na dolorosa obrigação de reformar sua sentença; mas condenaram Zadig a desembolsar quatrocentas onças de ouro, por haver dito que não vira o que tinha visto. Primeiro foi preciso pagar a multa; depois concederam-lhe licença para se defender perante o conselho do grande desterham. Zadig falou nos seguintes termos:

 

“Estrelas de justiça, abismos de ciência, espelhos da verdade, vós que tendes o peso do chumbo, a dureza do ferro o fulgor do diamante e tanta afinidade com o ouro! Já que me é dado falar perante essa augusta assembléia, juro-vos por Orosmade que jamais vi a respeitável cadela da rainha, nem o sagrado cavalo do rei dos reis. Eis o que me aconteceu. Passeava eu pelas cercanias do bosque onde vim a encontrar o venerável eunuco e o ilustríssimo monteiro-mor, quando vi na areia as pegadas de um animal. Descobri facilmente que eram as de um pequeno cão. Sulcos leves e longos, impressos nos montículos de areia, por entre os traços das patas, revelaram-me que se tratava de uma cadela cujas tetas estavam pendentes, e que portanto não fazia muito que dera cria. Outras marcas em sentido diferente, que sempre se mostravam no solo ao lado das patas dianteiras, denotavam que o animal tinha orelhas muito compridas; e, como notei que o chão era sempre menos amolgado por uma das patas do que pelas três outras, compreendi que a cadela de nossa augusta rainha manquejava um pouco, se assim me ouso exprimir. Quanto ao cavalo do rei dos reis, seja-vos cientificado que, passeando eu pelos caminhos do referido bosque, divisei marcas de ferraduras que se achavam todas a igual distância.

 

“Eis aqui — considerei — um cavalo que tem um galope perfeito”. A poeira dos troncos, num estreito caminho de sete pés de largura, fora levemente removida à esquerda e à direita, a três pés e meio do centro da estrada. “Esse cavalo — disse eu comigo — tem uma cauda de três pés e meio, a qual, movendo-se para um lado e outro, varreu assim a poeira dos troncos”. Vi debaixo das árvores, que formavam um dossel de cinco pés de altura, algumas folhas recém-tombadas e concluí que o cavalo lhes tocara com a cabeça e que tinha, portanto, cinco pés de altura. Quanto ao freio, deve ser de ouro de vinte e três quilates: pois ele lhe esfregou a parte externa contra certa pedra que eu identifiquei como uma pedra de toque. E, enfim, pelas marcas que as ferraduras deixaram em pedras de outra espécie, descobri eu que era prata de onze denários”.

 

Todos os juízes pasmaram do profundo e sutil discernimento de Zadig, o que logo chegou aos ouvidos do rei e da rainha. Só se falava em Zadig nas antecâmaras, na câmara e no gabinete; e, embora vários magos opinassem que o deviam queimar como feiticeiro, ordenou o rei que lhe restituissem as quatrocentas onças de ouro a que fora multado. O escrivão, os meirinhos, os procuradores, compareceram em grande pompa à presença de Zadig, para lhe entregar as suas quatrocentas onças; apenas retiveram trezentas e noventa e oito para as custas do processo, e os seus ajudantes reclamaram gratificação.

 

Zadig compreendeu como era às vezes perigoso ser demasiado sábio, e jurou consigo que, na próxima ocasião, nada diria do que acaso houvesse testemunhado.

 

Essa oportunidade não se fez esperar. Um prisioneiro de Estado, que fugira, passou pelas janelas de sua casa. Zadig, interrogado, nada respondeu; mas provaram-lhe que ele olhara pela janela. Foi multado, por esse crime, em quinhentas onças de ouro, e ele agradeceu a indulgência dos juízes, segundo o costume de Babilônia. “Como é lamentável, meu Deus, — dizia ele consigo, — ir a gente passear num bosque por onde passaram a cadela da rainha e o cavalo do rei! Que perigoso chegar à janela! E que difícil ser feliz nesta vida!”

 

IV O INVEJOSO

 

Zadig procurou consolo, na filosofia e na amizade, dos males que lhe causara a sorte. Possuía, num arrabalde de Babilônia, uma casa arranjada com excelente gosto, onde acolhia todas as artes e divertimentos dignos de um homem de bem. De manhã, franqueava a biblioteca a todos os sábios; e a mesa, de noite, à gente de boa companhia. Mas logo viu como são perigosos os primeiros. Explodiu entre eles uma grande querela acerca da lei de Zoroastro que proibia comer grifo.

 

— Como proibir carne de grifo — diziam uns, — se esse animal não existe?

 

— Tem de existir — diziam outros, — visto que Zoroastro não quer que o comam.

 

Zadig procurou harmonizá-los, dizendo:

 

— Se houver grifos, não os devemos comer; se não os houver, muito menos os comeremos; e assim, de qualquer modo, obedecemos todos a Zoroastro.

 

Um sábio, que compusera treze volumes sobre os grifos e que, além disso, era grande teurgista, apressou-se em ir acusar Zadig perante um arquimago chamado Yebor, o mais tolo dos caldeus e, portanto, o mais fanático. Esse homem seria capaz de mandar empalar Zadig para maior glória do sol, recitando depois o breviário de Zoroastro no tom mais satisfeito do mundo. O amigo Cador (um amigo vale mais que cem sacerdotes) foi procurar o velho Yebor e disse-lhe:

 

— Viva o sol e os grifos! guardai-vos de punir Zadig: é um santo; ele tem grifos no terreiro e não os come; e o seu acusador é um herege que ousa sustentar que os coelhos têm a pata fendida e não são imundos.

 

— Pois bem — disse Yebor, balançando a calva, — cumpre empalar Zadig por ter pensado mal dos grifos, e o outro por ter falado mal dos coelhos.

 

Cador contornou a questão por intermédio de uma dama de honor a quem fizera um filho e que gozava de muito crédito junto ao colégio dos magos. Ninguém foi empalado, motivo pelo qual muitos doutores começaram a murmurar, vaticinando a decadência da Babilônia. “Do que depende a felicidade! — exclamou Zadig. — Tudo me persegue neste mundo até os seres que não existem”. Amaldiçoou os sábios, e dali por diante só procurou viver em boa companhia.

 

Reunia em casa os homens mais distintos da Babilônia e as damas mais amáveis; oferecia delicadas ceias, muita vez precedidas de concertos animadas por encantadoras conversações de que soubera banir o empenho de mostrar espírito, que é a mais certa maneira de não o ter e de estragar a sociedade mais brilhante. Nem a escolha dos amigos, nem a dos pratos, era ditada pela vaidade: pois em tudo preferia o ser ao parecer; e com isso atraíra a verdadeira consideração, à qual não aspirava.

 

Defronte à sua casa morava Arimaze, personagem cuja mesquinha alma se lhe via pintada na grosseira fisionomia. Vivia corroído de fel e inchado de orgulho; e, para cúmulo, era um aborrecido “espirituoso”. Não tendo jamais alcançado sucesso na sociedade, vingava-se falando mal dela. Opulento como era, tinha dificuldade em reunir alguns aduladores nos seus salões. Importunava-o o rumor dos carros que paravam à noite diante da casa de Zadig, e ainda mais o irritava o rumor de seus louvores. Ia algumas vezes visitar Zadig e sentava-se à mesa sem ser convidado: corrompia então toda a alegria da sociedade, como dizem que as harpias envenenam a carne em que tocam. Aconteceu-lhe uma vez oferecer uma festa a certa dama que, em vez de aceitá-la, foi cear em casa de Zadig. Doutra feita, estando ambos em palácio, abordaram um ministro, que convidou Zadig para cear, sem estender o convite a Arimaze. Os mais implacáveis ódios não têm comumente raízes mais importantes. Esse homem, a quem chamavam o Invejoso, planejou perder Zadig, porque a este chamavam o Feliz. A oportunidade de fazer mal depara-se cem vezes por dia, e a de fazer bem uma vez por ano, diz Zoroastro.

 

O Invejoso foi ter com Zadig, que passeava no jardim em companhia de dois amigos e uma dama, a quem muita vez dizia coisas galantes, sem maior intenção que lhes dizer. Conversavam sobre a guerra que o rei acabava de ganhar ao príncipe de Hircânia, seu vassalo. Zadig, que se assinalara, pela coragem, nessa curta guerra, louvava muito o rei e ainda mais a dama. Tomou as suas tabuinhas, e escreveu quatro versos de improviso, dando-os a ler à sua bela companheira. Os amigos pediram que lhos lesse; mas a modéstia o impediu, ou antes, um bem compreendido amor-próprio. Sabia que versos improvisados só prestam para aquela em cuja honra são compostos: quebrou em duas a tabuinha onde acabava de escrever e lançou as duas metades numa moita de rosas onde em vão os outros as procuraram Como principiasse a garoar entraram em casa. O invejoso, tendo ficado no jardim tanto procurou que encontrou uma das metades. Fora rompida de tal modo que cada metade de linha formava sentido e até mesmo um verso de menor medida; mas, por um acaso ainda mais estranho, o conjunto desses quatro pequenos versos também completava um sentido que continha as mais terríveis injúrias contra o rei. Lia-se, pois:

 

Pelo crime brutal Venceu o soberano, Na paz universal É o único tirano.

 

O invejoso sentiu-se feliz pela primeira vez na vida. Tinha entre as mãos com que perder a um homem virtuoso a digno. Cheio de cruel alegria, fez chegar ao rei aquela sátira escrita por mão de Zadig; puseram-no em prisão, a ele, aos seus dois amigos e à dama. Em breve foi concluído o processo sem que se dignassem inquiri-lo. Quando foi ouvir a sentença, encontrou de passagem o invejoso, o qual lhe disse que os seus versos não valiam nada. Zadig não tinha pretensões a bom poeta; mas exasperava-se de ser condenado por crime de lesa-majestade e ver que retinham em prisão uma bela dama e dois amigos, por causa de um atentado que ele não cometera. Não lhe permitiram que falasse, porque as suas tábuas falavam o bastante. Tal era a lei de Babilônia. Mandaram-no, pois, ao suplício, através de uma multidão de curiosos, nenhum dos quais ousava lamentá-lo, e que se precipitavam para examinar-lhe o rosto e ver se ele morria de boa cara. Apenas seus parentes estavam aflitos, pois não herdavam nada. Três quartos de seus bens eram confiscados em proveito do rei, e o último quarto em proveito do invejoso.

 

Enquanto ele se preparava para a morte, o papagaio do rei voou do seu balcão e foi pousar no jardim de Zadig, sobre uma moita de rosas. De uma árvore vizinha, tombara ali um pêssego, sacudido pelo vento, indo aplastar-se contra um pedaço de tábua de escrever, a que ficara colado. O pássaro carregou o pêssego e a tabuinha, depondo-os sobre os joelho do monarca. O príncipe, curioso, leu no fragmento umas palavras que não formavam sentido e que pareciam finais de versos. Ele amava a poesia, e sempre há algum recurso com príncipes que gostam de versos: a aventura do papagaio deu-lhe que pensar. A rainha, que se lembrava do que vinha escrito na tábua de Zadig, mandou buscá-la. Confrontaram os dois pedaços, que se ajustavam perfeitamente surgiram tão os versos tais quais Zadig os escrevera:

 

Pelo crime brutal era assolada a terra. Venceu o soberano, e libertos nos vimos. Na paz universal somente o amor faz guerra: É o único tirano a quem não resistimos.

 

O rei ordenou em seguida que trouxessem Zadig à sua presença e retirassem da prisão seus dois amigos e a bela dama. Zadig lançou-se de rosto contra o solo aos pés do rei e da rainha: pediu-lhes humildemente perdão de haver feito maus versos; falou com tanta graça, espírito e razão que o rei e a rainha manifestaram desejo de tornar a vê-lo. Voltou, e agradou ainda mais. Deram-lhe todos os bens do invejoso que o acusara injustamente, mas Zadig lhos restituiu, e o invejoso só se comoveu com o prazer de não perder seus haveres. Dia a dia aumentava a estima do rei. Convidava Zadig para todas as suas festas e consultava-o em todos os seus negócios. A rainha começou então a olhá-lo com uma complacência que podia tornar-se perigosa para si mesma, para o rei seu augusto esposo, para Zadig e para o reino. Zadig principiava a crer que não é nada difícil ser feliz.

 

V OS GENEROSOS

 

Chegou a época de uma grande festa que se celebrava de cinco em cinco anos. Era costume em Babilônia proclamar solenemente, ao cabo de cinco anos, qual o cidadão que havia praticado a ação mais generosa. Os grandes e os magos serviam de juízes. O primeiro sátrapa, que regia a cidade, expunha as mais belas ações que haviam ocorrido sob o seu govêrno. Procedia-se à votação; o rei pronunciava a sentença.

 

Dos quatro cantos da terra, vinha gente assistir a essa solenidade. O vencedor recebia das mãos do monarca uma taça de ouro guarnecida de pedrarias, e o rei lhe dizia estas palavras: “Recebei este prêmio da generosidade, e queiram os deuses conceder-me muitos súbditos que se assemelhem a vós!”

 

Chegado o memorável dia, sentou o rei no seu trono, cercado dos grandes, dos magos e dos deputados de todas as nações que compareciam a essa justa, onde a glória não era conquistada com a rapidez dos cavalos, nem com a força física, mas tão somente com a virtude. O primeiro sátrapa relatou em voz alta as ações que podiam fazer jus à inestimável recompensa. Não falou da magnanimidade com que Zadig devolvera a fortuna ao invejoso: não era ação que merecesse concorrer ao prêmio.

 

Apresentou primeiro um juiz que, tendo feito um cidadão perder considerável processo devido a um equívoco de que não lhe cabia responsabilidade alguma, lhe dera no entanto todos os seus bens, que eram do valor do que o outro havia perdido.

 

Depois um jovem que, loucamente enamorado da moça com quem ia casar, não hesitara em cedê-la a um amigo prestes a expirar de amor por ela; e ainda concorrera com o dote.

 

E finalmente um soldado que, na guerra de Hircânia, dera ainda maior exemplo de generosidade. Soldados inimigos procuravam raptar-lhe a sua querida, que ele defendia valentemente, quando lhe vieram dizer que outros hircanianos, a alguns passos dali, se apoderavam de sua mãe: deixou, em lágrimas, a bem-amada e correu a livrar a mãe; voltou em seguida para aquela a quem amava, e encontrou-a moribunda. Quis matar-se; a mãe lhe fez ver que ele era o seu único arrimo, e o soldado teve a coragem de suportar a vida.

 

As simpatias dos juízes inclinavam-se para esse soldado, quando o rei tomou a palavra e disse:

 

— Sua ação e a dos outros são belas; mas não me espantam; todavia o que ontem fez Zadig me deixou verdadeiramente admirado. Há poucos dias, privara eu de minha graça a meu ministro e favorito Coreb. Queixava-me dele com violência, e todos os cortesãos me asseguravam que fora demasiado brando; cada qual se empenhava em dizer o pior possível de Coreb. Perguntei a Zadig o que pensava, e ele ousou falar bem do desvalido. Confesso que vi, nas nossas histórias, exemplos de quem indenizasse um erro com a própria fortuna, quem cedesse a noiva, ou preferisse a mãe ao objeto de seu amor; mas nunca li que um cortesão haja falado vantajosamente de um ministro em desgraça, contra o qual ainda estivesse encolerizado o soberano. Concedo vinte mil moedas de ouro a cada um cujas generosas ações acabam de ser relatadas; mas entrego a taça a Zadig.

 

— Sire — disse este, — é Vossa Majestade quem merece a taça, pois foi quem praticou a ação mais inaudita: sendo rei, não vos indignastes por haver vosso escravo contrariado as vossas paixões.

 

Admiraram ao rei e a Zadig. O que cedera seus bens, o que casara a noiva com o amigo, o que preferira a salvação da mãe à da mulher a quem amava, receberam os presentes do monarca; tiveram seu nome escrito no livro dos generosos. Zadig ganhou a taça. O rei adquiriu a reputação de bom príncipe, que não conservou por muito tempo. Tal dia foi comemorado com festas mais longas do que o previa a lei, e ainda é lembrado em toda a Ásia. Zadig dizia: “Eis-me enfim feliz!” Mas enganava-se.

 

VI O MINISTRO

 

Perdera o rei seu primeiro ministro. Escolheu Zadig para substituí-lo. Todas as belas damas de Babilônia aplaudiram a escolha, pois desde a fundação do império não houvera um ministro tão jovem. Todos os cortesãos ficaram descontentes; o invejoso chegou a escarrar sangue, e seu nariz aumentou prodigiosamente. Depois de agradecer ao rei e à rainha, Zadig foi também agradecer ao papagaio:

 

— Belo pássaro, foste tu quem me salvou a vida e quem me fez primeiro ministro: a cadela e o cavalo de suas Majestades me haviam feito bastante mal, mas tu me fizeste bem. Eis do que depende o destino dos homens! Mas — acrescentou ele, — tão estranha felicidade talvez se acabe dentro em breve.

 

— Sim — respondeu o papagaio. O que não deixou de impressionar a Zadig. No entanto, como era bom físico e não acreditasse que os papagaios tivessem o dom da profecia, logo se tranqüilizou e pôs-se a exercer o ministério da melhor forma possível.

 

Fez pesar sobre todos o sagrado poder das leis, e a ninguém fez sentir o peso de sua própria dignidade. Não interferiu nos votos do divã, e cada vizir podia ter sua opinião sem lhe cair no desagrado. Quando julgava uma causa, não era ele quem julgava, era a lei, mas, quando esta era demasiado severa, sabia-a temperar, e, se não havia leis sobre a matéria, a sua eqüidade as criava tais que poderiam ser tomadas pelas do próprio Zoroastro.

 

Foi dele que herdaram as nações este grande princípio: antes arriscar-se a salvar um culpado que condenar um inocente. Acreditava que as leis eram feitas para socorrer os cidadãos, tanto quanto para os intimidar. Seu principal talento consistia em deslindar a verdade, que todos os homens procuram obscurecer.

 

Logo nos primeiros dias de sua administração, pôs à prova esse inestimável dom. Morrera na Índia um famoso negociante de Babilônia; constituíra herdeiros seus dois filhos varões, em partes iguais, depois que houvessem casado a irmã, e deixava ainda trinta mil moedas de ouro àquele dentre dois filhos que ficasse provado ter-lhe mais amor. O velho erigiu-lhe um túmulo, o segundo aumentou com uma parte da própria herança o dote da irmã. “É o mais velho diziam todos — o que mais ama a seu pai; o mais moço mais amor à irmã; é ao mais velho que pertencem as trinta mil moedas”.

 

Zadig mandou chamar a ambos separadamente. Disse ao mais velho:

 

— Teu pai não morreu; curou-se de sua doença e está de regresso a Babilônia.

 

— Louvado seja Deus — respondeu o jovem. — Mas eis aí um túmulo que me custou bastante caro!

 

Zadig disse em seguida a mesma coisa ao mais moço.

 

— Louvado seja Deus — respondeu este. — Vou devolver a meu pai tudo o que tenho; mas desejaria que ele deixasse com minha irmã o que lhe dei por dote.

 

— Não devolverás nada — disse Zadig e terás as trinta mil moedas: és tu que tens mais amor a teu pai.

 

Uma jovem muito rica prometera casamento a dois magos e, depois de haver recebido, por alguns meses, doutrinação de um e outro, viu-se em estado de gravidez. Ambos queriam desposá-la.

 

Tomarei para marido — declarou ela — aquele que me pôs em condições de dar um cidadão ao Império.

 

— Fui eu que fiz essa boa obra — disse um.

 

— Fui eu que tive essa vantagem — afiançou o outro.

 

— Pois bem — concluiu ela, — reconhecerei como pai da criança aquele que lhe puder dar melhor educação.

 

Nasceu-lhe um menino. Cada um dos magos quer encarregar-se da sua educação. A causa é levada perante Zadig, que manda chamar os dois litigantes.

 

— Que ensinarás a teu pupilo? — pergunta ele ao primeiro.

 

— Ensinar-lhe-ei — diz o doutor — as oito partes da oração, e dialética, astrologia, demonomania, e o que vêm a ser a substância e o acidente, o abstrato e o concreto, as mônadas e a harmonia preestabelecida.

 

— Eu — diz o segundo — procurarei torná-lo justo e digno de ter amigos.

 

Zadig pronunciou-se:

 

— Sejas ou não pai da criança, desposarás a sua mãe

 

VII DEMANDAS E AUDIÊNCIAS

 

Assim mostrava ele todos os dias a sutileza de seu gênio e a bondade de sua alma; admiravam-no e, no entanto, o amavam. Passava pelo mais afortunado dos homens; todo o Império estava cheio de seu nome; todas as mulheres o traziam de olho; todos os cidadãos lhe celebravam a justiça; tinham-no os sábios como um oráculo; os próprios sacerdotes confessavam que ele sabia mais que o velho arquimago Yebor. Longe se estava agora de o processar por causa de grifos; só se acreditava no que lhe parecia crível.

 

Havia em Babilônia uma grande querela que, tendo começado há coisa de mil e quinhentos anos, ainda dividia o Império em duas seitas irreconciliáveis: pretendia uma que jamais se deveria entrar no templo de Mitra a não ser com o pé esquerdo; abominava a outra tal costume, e só entrava com o pé direito. Estava o universo com os olhos pregados nos dois pés, e toda a cidade agitada e suspensa. Zadig entrou no templo saltando de pés juntos, e em seguida provou, numa eloqüente oração, que ao Deus do céu e da terra, que não faz exceção de pessoa, tanto lhe importa a perna esquerda como a perna direita.

 

O invejoso e a mulher acharam que no seu discurso não havia figuras suficientes, nem que fizera devidamente dançar os montes e as colinas. “É seco e sem inspiração — diziam. Não se lhe vê nem o mar fugir, nem tombarem as estrelas, nem o sol fundir-se como cera; falta-lhe o bom estilo oriental”. Zadig contentava-se em ter o estilo da razão. Todo o mundo concordou com ele, não porque estivesse no bom caminho, não porque fosse razoável, ou amável, mas porque era o primeiro vizir.

 

Com igual felicidade se resolveu o grande processo entre os magos brancos e os magos negros. Sustentavam os brancos que era uma impiedade voltar-se, quando se orava a Deus, para o Levante; asseguravam os negros que Deus tinha horror às preces dos homens que se voltavam para o Poente. Zadig ordenou que cada qual se voltasse para onde bem lhe parecesse.

 

Achou meio de expedir, pela manhã, os negócios particulares e os gerais; destinava o resto do dia ao embelezamento de Babilônia; mandava representar tragédias que faziam chorar e comédias que faziam rir, o que de há muito passara de moda, mas a que o seu discernimento dera novo crédito. Não pretendia saber mais que os artistas; recompensava-os com benefícios e distinções, e não se enciumava em segredo com o seu talento. À noite, divertia muito ao rei, e principalmente à rainha. Dizia o rei: “o grande ministro!”, e a rainha: “o amável ministro!” e ambos acrescentavam: “Que pena se o tivessem enforcado!”

 

Jamais um homem na sua posição foi obrigado a conceder tantas audiências às damas. A maioria vinha falar-lhe de complicações que não tinham, para arranjarem alguma com ele. A mulher do invejoso foi das primeiras que se apresentaram; jurou-lhe por Mitra, pelo Zend-Avesta, e pelo fogo sagrado, que fora contra o procedimento do marido; confiou-lhe depois que este era um ciumento, um brutal; deu-lhe a entender que os deuses o puniam recusando-lhe os preciosos efeitos desse fogo sagrado só pelo qual é o homem semelhante aos imortais; acabou por deixar cair a liga; Zadig apanhou-a com a ordinária polidez, mas não a prendeu ao joelho da dama; e essa pequena falta, se o era, foi causa dos mais tremendos infortúnios. Zadig não pensou mais no caso, e a mulher do invejoso pensou muito.

 

Outras damas se apresentavam todos os dias. Rezam os anais secretos de Babilônia que ele sucumbiu uma vez, mas muito se espantou de o fazer sem volúpia e enlaçar a amante distraidamente. Aquela a quem dera, quase sem o notar, testemunhos da sua proteção, era uma camareira da rainha Astartéia. Essa terna babilônia dizia consigo mesma, para se consolar: “Que de negócios não terá esse homem na cabeça, para que sempre ande pensando neles, até quando pratica o amor!” No instante em que muitas pessoas não dizem patavina e outras só pronunciam palavras sagradas, Zadig exclamara de súbito: “A rainha!” Julgou a babilônia que ele afinal voltara a si num bom momento e que lhe dizia: “Minha rainha!” Mas Zadig, sempre absorto, pronunciou o nome de Astartéia. A dama que, naquelas felizes circunstâncias, interpretava tudo em proveito seu, imaginou que aquilo queria dizer: “Tu és mais linda que a rainha Astartéia!” Saiu do serralho de Zadig cheia de belos presentes. Foi contar a aventura à invejosa, que era sua íntima amiga; esta se sentiu cruelmente ofendida com a preferência. Ele nem se dignou — disse ela — prender-me esta liga, que eu aliás — não quis mais usar. — Oh! Imagina! — disse a feliz à invejosa. — Essas tuas ligas são idênticas às da rainha! São feitas pela mesma costureira?“ A invejosa ficou absorta em cismas, nada respondeu e foi consultar seu marido, o invejoso.

 

No entanto, Zadig se dava conta de suas contínuas distrações durante as audiências e julgamentos; não sabia a que atribuí-las: era esse o seu único cuidado.

 

Teve um sonho: parecia-lhe estar deitado a princípio sobre ervas secas, entre as quais algumas espinhosas, que o incomodavam, e que depois repousava brandamente num leito de rosas, de onde saia uma serpente que o feria no coração com sua língua aguda e peçonhenta. “Ai! — dizia ele, — bem sei que estive por muito tempo deitado naquelas ervas secas e espinhentas e agora me acho num leito de rosas; mas que significará a serpente?”

 

VIII O CIÚME

 

A desgraça de Zadig originou-se da própria ventura, e principalmente de seu mérito. Avistava-se todos os dias com o rei e Astartéia, sua augusta esposa. O encanto da conversação do primeiro ministro era redobrado por esse desejo de agradar que está para o espírito como o ornamento para a beleza; sua juventude e graça causaram insensivelmente em Astartéia uma impressão de que esta a princípio não se apercebeu. Sua paixão crescia no seio da inocência. Astartéia entregava-se sem escrúpulo e sem temor ao prazer de ver e escutar a um homem tão caro a seu esposo e ao Estado; não cessava de o elogiar perante o rei; falava dele às damas de companhia, que ainda acrescentavam os louvores; tudo concorria para lhe aprofundar no coração a frecha que ela não sentia. Fazia presentes a Zadig, nos quais entrava mais galanteria do que supunha; julgava não lhe falar senão como rainha satisfeita de seus serviços, e suas expressões eram, algumas vezes, as de uma mulher sensível.

 

Astartéia era muito mais bonita do que aquela Semira que tanto odiava aos caolhos, e do que aquela outra mulher que quisera cortar o nariz ao esposo. A familiaridade de Astartéia, suas ternas frases, de que começava a corar, seus olhares, queria desviar, e que se fixavam nos dele, acenderam no coração de Zadig uma flama que o espantou. Lutou; pediu socorro à filosofia, que sempre lhe valera; mas só lhe obteve luzes, não recebendo em troca nenhum alívio. O dever, a gratidão, a soberana majestade violada, apresentavam-se-lhe aos olhos como deuses vindicativos; lutava e triunfava; mas essa vitória que era preciso renovar a todo momento, custava-lhe gemidos e lágrimas. Não mais ousava falar à rainha com aquela doce liberdade que tais encantos tivera para ambos; seus olhos cobriam-se de uma nuvem; suas palavras eram constrangidas e incoerentes; baixava as pálpebras; e quando, sem querer, o seu olhar se voltava para Astartéia, encontrava o da rainha turbado de lágrimas, de onde partiam raios; pareciam dizer um ao outro: “Nós nos adoramos, e temos medo do amor; ardemos os dois num fogo que condenamos.”

 

Zadig retirava-se desvairado da sua presença, com um peso no coração, que não mais podia suportar; na violência da sua agitação, não pôde evitar que o amigo Cador lhe descobrisse o segredo, como um homem que, tendo agüentado por muito tempo uma dor profunda, deixa enfim revelar-se o seu mal, por um grito que lhe arranca um acesso mais agudo e pelo suor que poreja a fronte.

 

— Já desvendei — lhe disse Cador — os sentimentos que a ti mesmo procuravas ocultar; as paixões têm sinais que não enganam. Por aí verás, meu caro Zadig, já que eu li no teu coração, se o próprio rei não irá descobrir um sentimento que o ofende. Não tem ele outro defeito senão o de ser o mais ciumento dos homens. Resistes à tua paixão com mais força do que a rainha combate a sua, porque és filósofo e porque és Zadig. Astartéia é mulher; deixa falar seus olhares com tanto maior imprudência por ainda não se julgar culpada. Infelizmente tranqüilizada pela sua inocência, negligencia as aparências necessárias. Tremerei por ela enquanto não tiver nada que se censurar. Se estivessem ambos em cumplicidade, saberiam enganar todos os olhos: uma paixão nascente e combatida logo se revela; um amor satisfeito sabe ocultar-se.

 

Zadig fremiu à idéia de trair o rei seu benfeitor; e nunca foi tão fiel ao príncipe como quando se viu culpado para com ele de um crime involuntário. Contudo, tantas vezes pronunciava a rainha o nome de Zadig, tal rubor lhe cobria a fronte ao dizê-lo; ora se mostrava tão animada, ora tão interdita, quando lhe falava em presença do rei; caía em tão profundas cismas depois que Zadig se retirava, que o rei se sentiu inquieto. Acreditou tudo o que via, e imaginou tudo o não via. Observou principalmente que as babuchas de sua mulher eram azuis, e que as babuchas de Zadig eram azuis, que as fitas da touca de sua mulher eram amarelas, e que o barrete de Zadig era amarelo: indícios terríveis para um príncipe suscetível. No seu espírito envenenado, transformaram-se as suspeitas em certezas.

 

Os escravos dos reis e das rainhas são outros tantos espias de seus corações. Descobriram logo que Astartéia amava e que Moabdar sentia ciúmes. O invejoso fez a invejosa enviar ao rei a sua liga, que se assemelhava à da rainha. Por cúmulo da desgraça, essa liga era azul, O monarca não pensou senão na maneira de vingar-se. Resolveu uma noite mandar envenenar a rainha, e enforcar Zadig ao raiar do dia. A ordem foi transmitida a um impiedoso eunuco, executor das suas vinganças. Achava-se então na câmara do rei um anãozinho que era mudo, mas não surdo. Toleravam-no sempre em toda parte: era testemunha de tudo o que se passava de mais secreto, como um animal doméstico. Esse pequeno mudo era muito devotado à rainha e a Zadig. Ouviu, com tanta surpresa quanto horror, a sentença de morte. Mas como prevenir essa terrível ordem, que dentro em poucas horas seria executada? Escrever, não sabia; mas aprendera a desenhar e fazia retratos com muita parecença. Passou uma parte da noite a rabiscar o que desejaria dizer à rainha. O desenho representava o rei furioso, a um canto do quadro; um cordão azul e um vaso sobre uma mesa, com ligas azuis e fitas amarelas; a rainha, no meio do quadro, expirante entre os braços de suas mulheres, e Zadig estrangulado a seus pés. O horizonte representava um sol nascente, para indicar que a horrível execução se efetuaria aos primeiros raios da aurora. Logo que terminou o trabalho, correu a uma camareira de Astartéia, despertou-a, e deu-lhe a entender que era preciso levar imediatamente o quadro à rainha.

 

Em meio à noite, batem à porta de Zadig; acordam-no; entregam-lhe um bilhete da rainha; pensa que está sonhando; abre o papel com mão tremente. Qual não foi a sua surpresa, e quem lhe poderia exprimir a consternação e desespero, ao ler as seguintes palavras: “Foge imediatamente, senão te arrancam a vida. Foge, Zadig, ordeno-te em nome do nosso amor e das minhas fitas amarelas. Eu não era culpada; mas sinto que vou morrer criminosa.”

 

Zadig mal teve forças de falar. Mandou chamar Cador e, sem nada lhe dizer, mostrou-lhe o bilhete. Cador forçou-o a obedecer e a tomar logo o caminho de Mênfis. “Se te atreves a ir falar com a rainha, apressas a sua morte; se falares ao rei, da mesma forma prejudicarás a rainha. Encarrego-me do seu destino; segue o teu. Espalharei o boato de que partiste para a Índia Em breve me encontrarei contigo e te comunicarei o que houver sucedido em Babilônia”.

 

Cador, no mesmo instante, mandou trazer dois dromedários dos mais rápidos a uma porta secreta do palácio; fez com que Zadig montasse tendo até de ampará-lo, pois parecia prestes a entregar a alma. Um só criado o acompanhou; em breve Cador, transido de espanto e angústia, perdeu de vista o amigo.

 

O ilustre fugitivo, chegando ao alto de uma colina de onde se avistava Babilônia, volveu o olhar para o palácio da rainha, e desfaleceu; só recuperou os sentidos para derramar lágrimas e desejar a morte. Enfim, depois, de se haver ocupado do deplorável destino da mais amável entre as mulheres e a primeira rainha do mundo, voltou o pensamento para si mesmo e exclamou: “Que coisa é então a vida humana? De que me serviste, ó virtude? Duas mulheres me enganaram indignamente; a terceira, que não é culpada, e mais bela que as outras, vai perder a vida. Todo o bem que pratiquei foi sempre para mim uma fonte de maldições, e só fui elevado ao cúmulo da grandeza para tombar no mais horrível precipício do infortúnio. Se eu tivesse sido mau como tantos outros, seria hoje feliz como eles”. Acabrunhado por essas funestas reflexões, cobertos os olhos pelo véu da dor, a palidez da morte nas faces, e a alma abismada no mais sombrio desespero, se guia ele a caminho do Egito.

 

IX A MULHER BATIDA

 

Zadig orientava-se pelas estrelas. A constelação de Orion e o brilhante astro de Sírio guiavam-no para o pólo de Canope. Admirava esses vastos globos de luz que não parecem a nossos olhos mais que fracas centelhas, ao passo que a terra, que em verdade é apenas um imperceptível ponto na natureza, afigura-se à nossa cupidez uma coisa tão grande e tão nobre. Via então os homens tais como são na realidade: insetos a se entredevorarem num pequeno átomo de lama. Essa imagem verdadeira parecia aniquilar suas desventuras, retraçando-lhe o nada da sua existência e a de Babilônia. Sua alma arrebatava-se até o infinito e contemplava, liberta dos sentidos, a imutável ordem do universo. Mas quando, em seguida, de volta a si mesmo e penetrando de novo em seu coração, pensava em Astartéia sacrificada por sua causa, o universo desaparecia a seus olhos, e ele apenas via, em toda a natureza, Astartéia moribunda e Zadig desgraçado.

 

Enquanto se entregava a esse fluxo e refluxo de sublime filosofia e dor acabrunhante, ia avançando pelas fronteiras do Egito; e já seu fiel criado se achava na primeira localidade,em busca de alojamento. Enquanto isso, Zadig passeava pelos jardins dos arredores. Senão quando avistou, não longe estrada real, uma mulher que gritava por socorro e um homem furioso que a perseguia. Já o homem a alcançava e ela, caída, enlaçava-lhe os joelhos. O homem enchia-a de pancadas e censuras. Pela violência do egípcio e pelos reiterados perdões que lhe pedia a dama, viu Zadig que ele era ciumento e ela infiel. Mas, depois de atentar naquela mulher, que era de impressionante beleza e até se assemelhava um pouco à infeliz Astartéia, sentiu-se tomado de compaixão por ela e aversão ao egípcio. “Acode-me! — bradou ela a Zadig, entre soluços. — Arranca-me das mãos do mais bárbaro dos homens, salva-me a vida!”

 

A esses clamores, Zadig lançou-se entre ela e aquele bárbaro. Tinha algum conhecimento da língua egípcia, e assim lhe falou:

 

— Se tens alguma humanidade, conjuro-te a respeitar a beleza e a fraqueza. Podes assim ultrajar uma obra-prima da Criação, que jaz a teus pés e só tem por defesa as lágrimas?

 

— Ah! Ah! — exclamou o possesso. Com que então também a amas? É de ti que tenho de vingar-me.

 

Dizendo tais palavras, deixa a dama, que segurava pelos cabelos, e, empunhando a lança, tenta matar o estrangeiro. Este, que não perdera o sangue frio, evitou facilmente o golpe de um furioso. Segurou a lança perto da ponta. Quer um retirá-la, o outro arrancá-la. A lança parte-se. O egípcio puxa da espada; Zadig também. Atacam-se. Lança este cem golpes precipitados, apara-os aquele com destreza. A dama, sentada na relva, reajusta os cabelos e olha-os. O egípcio era o mais robusto, Zadig o mais ágil. Batia-se o último como um homem cuja cabeça conduzia o braço, e o primeiro como um arrebatado, cuja cólera cega lhe guiava ao acaso os movimentos. Zadig desarma-o. E como o egípcio, mais furioso, procura arremeter contra ele, Zadig segura-o, domina-o, fá-lo cair e, apontando-lhe a espada contra o peito, oferece poupar-lhe a vida. O egípcio, fora de si, arranca o punhal e fere Zadig no mesmo instante em que o vencedor lhe perdoava. Zadig, indignado, lhe mergulha a espada no peito; O egípcio lança um grito horrível e morre, debatendo-se.

 

Zadig avança então para a dama e lhe diz respeitosamente:

 

— Foi ele que me obrigou a matá-lo; estais vingada, e livre do homem mais violento que já vi na minha vida. Que quereis agora de mim, senhora?

 

— Que morras, celerado, que morras; mataste o meu amor; eu quisera estraçalhar-te o coração.

 

— Na verdade, senhora que tínheis um esquisito amor; ele vos batia com toda a força e queria tirar-me a vida, por me haverdes pedido socorro.

 

— Quisera que ele me batesse ainda — tornou a dama, aos gritos. — Eu bem que o merecia, pois lhe dei motivos para ciúmes. Quem dera que ele me batesse e que tu estivesses no seu lugar!

 

Zadig, mais surpreso e encolerizado do que nunca estivera em sua vida, retrucou:

 

— Senhora, com toda a vossa beleza, merecíeis que eu vos batesse por minha vez, tão incoerente sois; mas não me darei a esse trabalho.

 

Dito isto, montou no camelo e dirigiu-se para a cidade. Mal dera alguns passos, volta-se ao estrépito que faziam quatro correios de Babilônia. Vinham a toda brida. Um deles, ao ver a mulher, exclamou: “É ela mesma; assemelha-se à descrição que nos fizeram”. Sem dar atenção ao morto, apoderaram-se logo da dama, a qual não cessava de gritar para Zadig: “Socorrei-me outra vez, generoso estrangeiro! Perdoai-me por me haver queixado de vós. Socorrei-me, que serei vossa até o túmulo”. A Zadig, passara-lhe todo e qualquer desejo de se bater por ela. “Arranja-te com outros — respondeu-lhe, a mim é que não me pegas mais!”

 

Aliás, estava ferido, perdia sangue e necessitava socorro; e a vista dos quatro babilônios, provavelmente enviados pelo rei Moabdar, enchia-o de inquietação. Avança às pressas para a aldeia, sem atinar por que motivo vinham quatro correios de Babilônia apoderar-se daquela egípcia, mas ainda muito mais espantado com o caráter da referida dama.

 

X A ESCRAVIDÃO

 

Ao entrar na cidade egípcia, viu-se cercado pelo povo.

 

— Eis o que raptou a bela Missuf bradavam — e o que acaba de assassinar Cletófis!

 

— Senhores disse ele, — Deus me livre de raptar algum dia a vossa bela Missuf! É demasiado caprichosa. E, quanto a Cletófis, não o matei: apenas me defendi contra ele. Queria matar-me, porque lhe pedi com toda a humildade que poupasse a bela Missuf, a quem batia impiedosamente. Sou um estrangeiro que vem procurar asilo no Egito; e não teria cabimento que, vindo solicitar vossa proteção, começasse por me apoderar de uma mulher e por assassinar um homem.

 

Os egípcios eram então justos e humanos. O povo conduziu Zadig à prefeitura. Começaram por lhe tratar do ferimento, e em seguida o interrogaram, a ele e ao criado separadamente, a fim de saber a verdade. Reconheceu-se que Zadig não era um assassino; mas sendo culpado de ter vertido sangue humano, a lei o condenava à escravidão. Os seus dois camelos foram vendidos em proveito da comuna, repartido entre os habitantes todo o ouro que trouxera, e sua pessoa exposta em hasta pública, bem como o seu companheiro de viagem. Um mercador árabe, chamado Setoc, arrematou-o; mas o criado, mais resistente à fadiga, foi vendido muito mais caro que o patrão. Nem faziam comparação entre os dois. Zadig ficou, como escravo, subordinado a seu serviçal; ligaram um ao outro por uma cadeia presa aos tornozelos e, nesse estado, acompanharam ambos o seu senhor. Zadig, pelo caminho, consolava o criado e exortava-o à paciência; mas, segundo o seu costume, fazia reflexões sobre a vida humana: “Vejo — dizia-lhe — que os males do meu destino se expandem sobre o teu. Até agora, tudo me saiu muito estranho, na verdade. Multaram-me por causa de um grifo; mandaram-me a suplício por ter feito versos em louvor do rei; estive prestes a ser estrangulado porque a rainha tinha fitas amarelas; e eis-me agora escravizado contigo porque um brutamontes deu uma sova na amante. Mas não percamos a coragem; tudo isso, decerto, acabará; afinal de contas, os mercadores árabes têm de possuir escravos; e por que não seria eu um escravo como qualquer outro, visto que sou um homem como qualquer outro? Esse mercador não pode ser impiedoso, pois terá de tratar bem a seus escravos, se quiser aproveitá-los”. Assim falava ele, mas, no fundo do coração, estava preocupado com a sorte da rainha de Babilônia.

 

Setoc, o mercador, partiu, dois dias depois, para a Arábia deserta, com os escravos e camelos. Sua tribo habitava para as bandas do deserto de Horeb, e a viagem foi longa e penosa.

 

Setoc, no caminho, fazia mais caso do criado que do patrão, pois o primeiro sabia lidar melhor com os camelos, e todas as pequenas regalias foram para ele.

 

Um camelo morreu a dois dias de Horeb; dividiram-lhe a carga pelos escravos; Zadig ganhou o seu quinhão. Setoc pôs-se a rir ao ver todos os escravos marcharem curvados. Zadig tomou a liberdade de explicar-lhe a razão, e fez-lhe conhecer as leis do equilíbrio. O mercador, espantado, começou a olhá-lo de outra maneira. Zadig, vendo que lhe excitava a curiosidade, redobrou-a ensinando-lhe muitas coisas que não eram estranhas a seu comércio: o peso específico dos metais e dos gêneros em volume igual; as propriedades de vários animais úteis; os meios de tornar úteis os que não o eram; em suma, afigurou-se-lhe um verdadeiro sábio. Setoc o preferiu a seu camarada, a quem tanto estimara. Tratou-o bem, e não teve de que se arrepender.

 

Chegado à sua tribo, Setoc reclamou duzentas onças de prata a um hebreu a quem as emprestara em presença de duas testemunhas; mas estas haviam morrido, e o hebreu disso se aproveitara para ficar com o dinheiro do mercador, dando graças a Deus por lhe haver proporcionado ensejo de enganar a um árabe. Setoc confiou a dificuldade a Zadig, que se tornara seu conselheiro.

 

— Em que local emprestou suas quinhentas onças a esse infiel? — perguntou-lhe Zadig.

 

— Sobre uma larga pedra que se acha ao pé do monte Horeb.

 

— Qual é o caráter de seu devedor?

 

— O de um legítimo velhaco.

 

— Mas o que lhe pergunto é se é um homem vivo ou fleugmático, atilado ou imprudente.

 

— De todos os maus pagadores, é o mais vivo que eu conheço.

 

— Pois bem! — insistiu Zadig. — Permita que pleiteie sua causa perante o juiz.

 

Com efeito, citou o hebreu ao tribunal, e assim falou ao juiz:

 

— Almofada do trono da eqüidade, venho reclamar a esse homem em nome de meu senhor, quinhentas onças de prata, que ele não quer devolver.

 

— Há testemunhas?

 

— Não, morreram; mas existe uma larga pedra sobre a qual foi contado o dinheiro; e, se aprouver a Vossa Grandeza mandar trazê-la, espero que ela preste testemunho; aqui ficaremos, o israelita e eu, à espera de que chegue essa pedra; mandarei buscá-la por conta de Setoc, meu senhor.

 

— Muito bem — concordou o juiz. E pôs-se a despachar outros assuntos.

 

— E então? — disse ele a Zadig no fim da audiência. — Ainda não chegou a sua pedra?

 

O hebreu retrucou a rir:

 

— Poderia Vossa Grandeza ficar aqui até amanhã, que a pedra ainda não chegaria; está a mais de seis milhas de distância e seria preciso uns quinze homens para transportá-la.

 

— Estais vendo?! — exclamou Zadig. — Bem disse eu que a pedra prestaria testemunho; já que esse homem sabe onde está a pedra, confessa, pois, que foi sobre ela que se contou o dinheiro.

 

O hebreu, interdito, viu-se logo obrigado a confessar tudo. O juiz ordenou que fosse ele atado à pedra, sem beber nem comer, até devolver as quinhentas onças, que foram pagas sem demora.

 

O escravo Zadig e a pedra alcançaram grande fama em toda a Arábia.

 

XI A PIRA

 

Setoc, encantado, fez do escravo seu amigo íntimo. Tal como o rei de Babilônia, não podia passar sem ele, e Zadig felicitava-se de que Setoc não tivesse mulher. Reconhecia no seu amo um natural pendor para o bem, muita retidão e bom senso. Doeu-lhe comprovar que este adorava o exército celeste, isto é, o sol, a lua e as estrelas, conforme o antigo costume árabe. E a isso se referia às vezes muito discretamente. Afinal lhe disse que eram corpos como os outros e que não mereciam as suas homenagens, mais que uma árvore ou um rochedo quaisquer.

 

— Mas — retrucava Setoc, — trata-se de seres eternos de que auferimos todos os benefícios; animam a natureza; regulam as estações; e estão aliás tão longe de nós que é impossível deixar de venerá-los.

 

— Mais benefícios respondeu Zadig — recebe o senhor das águas do Mar Vermelho, que lhe transportam as mercadorias para a Índia. Por que não há de ser ele tão antigo como as estrelas? E se o caso é adorar o que se acha afastado, devia então o amo adorar a terra dos gangáridas, que fica nos limites do mundo.

 

— Não — dizia Setoc, — as estrelas são muito brilhantes para que eu não as adore.

 

Quando anoiteceu, Zadig acendeu inúmeras velas na tenda onde devia cear com Setoc, e logo que este apareceu, lançou-se ao pé daquelas ceras alumiadas, e exclamou: “Eternas e brilhantes luzes, sêde-me propícias para sempre.” Dito isto, sentou-se à mesa sem olhar para Setoc.

 

— Que fazes? — perguntou Setoc, espantado.

 

— Faço como o meu amo; adoro essas luzes e negligencio aquele que é senhor delas, e meu senhor também.

 

Setoc compreendeu o profundo sentido desse apólogo. Penetrou-lhe na alma a sabedoria de seu escravo; não mais prodigalizou incenso às criaturas, e adorou o Ser eterno que as fez.

 

Havia então na Arábia um terrível costume, originário da Cítia e que, estabelecido na Índia pelos brâmanes, ameaçava invadir todo o Oriente. Quando morria um homem casado e a sua amada esposa desejava ser santa, fazia-se ela queimar em público, sobre o corpo do marido. Era uma festa solene a que se chamava a pira da viuvez. A tribo em que houvesse mais mulheres queimadas era a mais considerada de todas. Ora, tendo morrido um homem da tribo de Setoc, sua viúva, chamada Almona, que era muito devota, fez saber o dia e hora em que se lançaria às chamas, ao som de tambores e trombetas. Zadig observou a Setoc o quanto era contrário ao bem do gênero humano esse horrível costume de deixar que se queimassem, todos os dias, viúvas moças que poderiam dar filhos ao Estado, ou pelo menos criar os seus; e fez-lhe ver que deveria, se possível, abolir tão bárbaro costume

 

— Há mais de mil anos ponderou Setor que as mulheres têm o direito de queimar-se. Qual de nós ousaria mudar uma lei que o tempo consagrou? Haverá coisa mais respeitável do que um antigo abuso?

 

— A razão é mais antiga — retrucou Zadig. — Dirija-se aos chefes das tribos, e eu vou ter com a viúva.

 

Fez-se apresentar a ela; e, depois de se lhe haver insinuado no espírito com louvores à sua beleza, e ter-lhe dito como era lastimável entregar ao fogo tamanhos encantos, ainda lhe encareceu a constância e a coragem.

 

— Decerto amava prodigiosamente a seu marido, não?

 

— Eu? Qual nada! — respondeu a dama. — Era um bruto, um ciumento, um homem insuportável; mas estou firmemente resolvida a lançar-me às chamas.

 

— Mas com certeza deve ser delicioso ser queimada viva...

 

— Oh! até arrepia a natureza — disse a dama. Mas tem-se de passar por isso. Eu sou devota; e perderia a reputação, e todo o mundo riria de mim se eu não me queimasse.

 

Zadig, tendo-lhe demonstrado que ela se queimava por causa dos outros e por vaidade, falou-lhe longamente, de modo a fazer-lhe amar um pouco a vida e chegando até a lhe inspirar alguma benevolência por aquele que assim lhe falava.

 

— Que faria, enfim, a senhora, se lhe passasse essa vaidade de ser queimada?

 

— Ah! — retrucou a dama — Acho que lhe pediria que se casasse comigo.

 

Muito preocupado ainda estava Zadig com Astartéia para que se deixasse impressionar com essa declaração; mas foi logo ao encontro dos chefes de tribo, contou-lhes o que se passava e lhes aconselhou que baixassem uma lei que só permitiria a uma viúva ir para a fogueira depois de haver falado durante uma hora, a sós, com um homem jovem. E desde esse tempo, nenhuma viúva árabe se lançou às chamas. Assim se deveu a Zadig o ser abolido, em um dia, tão cruel costume, que vinha durando há séculos. Era, pois, o benfeitor da Arábia.

 

XII A CEIA

 

Setoc, que não podia separar-se daquele homem em quem habitava a sabedoria, levou-o à grande feira de Bassorá, a que deviam comparecer os maiores negociantes do mundo habitável. Foi para Zadig um conforto espiritual ver congregados no mesmo local tantos homens das mais diversas regiões. Parecia-lhe que o universo era uma grande família que se reunia em Bassorá. Encontrou-se à mesa, logo ao segundo dia, com um egípcio, um gangárida, um habitante de Catai, um grego, um celta, e vários outros estrangeiros que, nas suas freqüentes viagens ao golfo arábico, haviam aprendido o suficiente de árabe para se fazerem compreender. O egípcio parecia bastante encolerizado.

 

— Que abominável terra! — exclamou ele. — Recusam-me aqui mil onças de ouro sobre o melhor artigo do mundo.

 

— Como! Que artigo é esse? — indagou Setoc.

 

— O corpo de minha tia — respondeu o egípcio. — Era a mais brava mulher de todo o Egito. Acompanhava-me sempre; morreu em viagem; mandei fazer dela uma das mais belas múmias que já tivemos; na minha terra eu conseguiria empenhá-la por quanto quisesse. É estranho que aqui não me queiram emprestar ao menos mil onças de ouro sobre um artigo tão sólido.

 

Enquanto assim se exasperava, dispunha-se a servir-se de uma excelente galinha cozida, quando o indiano, segurando-lhe a mão, exclamou, alarmado:

 

— Oh! que vai fazer?

 

— Comer essa galinha — disse o homem da múmia.

 

— Oh! não faça isto! Suponha-se que a alma de sua tia se haja encarnado nessa galinha, e o senhor certamente não vai expor-se a devorar a senhora sua tia! Ah, cozinhar galinhas é um ultraje à natureza.

 

— Ora, não me venha com essa história de naturezas e galinhas! retrucou o irascível egípcio. — Nós adoramos a um boi, e nem por isso deixamos de os comer.

 

— Adoram a um boi? Será possível?! — estranhou o homem do Ganges.

 

— Nada mais possível; há cento e trinta e cinco mil anos que assim fazemos; e ninguém entre nós achou nada que objetar.

 

— Ah! cento e trinta e cinco mil anos é exagero! — protestou o hindu. — Há apenas oitenta mil anos que a Índia é povoada e sem dúvida alguma somos o povo mais antigo do mundo; e Brama nos proibiu de comer bois muito antes que os senhores se lembrassem de os pôr nos altares e no espeto.

 

— Belo animal esse Brama para se comparar a Ápis! Que diabo fez ele que se aproveitasse?

 

— Foi ele quem ensinou os homens a ler e escrever, e a ele é que deve o mundo a invenção do xadrez — respondeu o brâmane.

 

— Pois estão muito enganados — aparteou um caldeu vizinho. — É ao peixe Oanes que devemos tamanhos benefícios, e só a ele é justo rendermos homenagem. Todo o mundo lhes dirá que era um ser divino, que tinha uma cauda dourada, uma bela cabeça de homem, e que todos os dias saía das águas para vir pregar em terra — durante três horas. Teve vários filhos, que foram reis, como todos sabem. Tenho em casa a sua imagem, que venero, como é devido. Pode-se comer quanto boi se queira; mas é sem dúvida uma grande impiedade cozinhar peixe; aliás, os senhores todos são de origem muito pouco nobre e muito recente. A nação egípcia conta apenas cento e trinta e cinco mil anos, e os hindus só se vangloriam de oitenta mil, ao passo que nós temos almanaques de quatro mil séculos. Renunciem a tais loucuras, e eu darei a cada um dos senhores uma bela imagem de Oanes.

 

O homem de Cambalu tomou então a palavra:

 

— Respeito muito os egípcios, os caldeus, os gregos, os celtas, Brama, o boi Ápis, o belo peixe Oanes; mas talvez o Li, ou o Tien , como queiram chamar-lhe, valha tanto como os bois e peixes. Nada direi de meu país; é tão grande como o Egito, a Caldéia e a Índia reunidos. De antigüidade não discuto, pois basta ser feliz, e é bem pouca coisa ser antigo; mas, se fossemos falar de almanaques, diria que toda a Ásia copia os nossos, e os tínhamos excelentes antes que soubessem aritmética na Caldéia.

 

— Uns grandes ignorantes é o que os senhores são — exclamou o grego. — Será que não sabem que o caos é o pai de tudo, e que a forma e a matéria puseram o mundo no estado em que se acha?

 

Esse grego falou por muito tempo; mas foi interrompido afinal pelo celta, que, tendo bebido à larga enquanto discutiam, julgou-se então mais sábio que todos os outros e disse, praguejando, que, além de Teutath e do agárico de carvalho, nada mais havia digno de menção neste mundo; que ele tinha sempre um agárico no bolso; que os citas, seus antepassados, foram os únicos homens de bem que jamais existiram sobre a face da terra, que algumas vezes, na verdade, tinham comido homens, mas isso não impedia que se tributasse o máximo respeito à sua nação; e que, enfim, se alguém falasse mal de Teutath, teria de haver-se com ele. A discussão acalorou-se e Setoc viu o momento em que o sangue correria pela mesa. Zadig, que se mantivera em silêncio durante toda a disputa, afinal se ergueu: dirigiu-se primeiro ao celta, que era o mais furioso; disse-lhe que ele tinha razão, e pediu-lhe o agárico; gabou ao grego a sua eloqüência e acalmou os ânimos exaltados. Poucas palavras disse ao homem de Catai, pois fora este o mais sensato de todos. Em seguida lhes disse:

 

— Iam os meus caros amigos brigar por coisa nenhuma, pois afinal são todos da mesma opinião.

 

A estas palavras, levantou-se um protesto geral — Não é verdade — disse ele ao celta — que o senhor não adora a esse agárico, mas àquele que fez o agárico e o carvalho?

 

— Sem dúvida respondeu o celta.

 

— E o senhor — disse ao egípcio — não venera, sob a aparência de certo boi, àquele que nos deu os bois?

 

— Sim — concordou o egípcio.

 

— O peixe Oanes — continuou ele — deve ceder ante àquele que fez o mar e os peixes.

 

— De acordo — disse o caldeu.

 

— O natural da Índia acrescentou — e o de Catai, reconhecem, como os senhores, um primeiro principio; não compreendo lá muito bem as coisas admiráveis que disse o grego, mas estou certo de que ele também admite um Ser superior, de que dependem a forma e a matéria.

 

O grego, a quem admiravam, disse que Zadig lhe apreendera muito bem o pensamento.

 

— Todos são, pois, da mesma opinião — concluiu Zadig — e não há motivos para disputas. E todos o abraçaram.

 

Setoc, depois de haver vendido bastante caro as mercadorias, reconduziu o amigo Zadig à sua tribo. Ao chegar, soube este que o haviam processado durante a sua ausência e que seria queimado a fogo lento.

 

XIII AS ENTREVISTAS

 

Enquanto se achava em Bassorá, os sacerdotes das estrelas tinham resolvido puni-lo. A estes pertenciam de direito as pedrarias e adereços das viúvas a quem condenavam à fogueira; não era demais que mandassem queimar Zadig pela peça que lhes pregara. Acusaram-no, pois, de alimentar sentimentos errôneos para com o exército celeste; depuseram contra ele e juraram que o tinham ouvido dizer que as estrelas não se punham no mar. Essa horrenda blasfêmia fez estremecer os juízes; estiveram a ponto de rasgar as vestes, ao ouvir essas ímpias palavras, e sem dúvida o teriam feito se Zadig tivesse com que lhas pagar. Mas, no auge da dor, contentaram-se em condená-lo a ser queimado a fogo lento. Setoc, desesperado, empregou em vão toda a sua influência para salvar oamigo; foi logo obrigado a calar-se. A jovem viúva Almona, que tomara bastante gosto à vida e que devia isso a Zadig, resolveu livrá-lo da fogueira, cujo absurdo ele a fizera reconhecer. Remoeu consigo esse projeto, sem o comunicar a ninguém. Zadig devia ser executado no dia seguinte; ela dispunha apenas da noite para o salvar. Eis o que fez, como mulher caridosa e prudente.

 

Perfumou-se, realçou sua beleza com os mais ricos e galantes atavios, e foi solicitar uma audiência secreta ao chefe dos sacerdotes das estrelas. Quando se viu em presença do venerável ancião, falou-lhe nos seguintes termos:

 

— Filho primogênito da grande ursa, irmão do touro, primo do grande cão (eram os títulos do pontífice), aqui venho confiar-vos meus escrúpulos. Estou com muito medo de haver cometido um enorme pecado, não me queimando na pira de meu querido esposo. Com efeito, que tinha eu a conservar? Uma carne perecível, e que já se vai fanando...

 

Ao dizer tais palavras, retirou das longas mangas de seda os seus braços nus, admiráveis de contorno e deslumbrantes de brancura.

 

— Vêde — disse ela — o pouco que isto vale.

 

O pontífice achou, no íntimo do coração, que aquilo valia muito. Disseram-no os seus olhos, e sua boca o confirmou: jurou que nunca, em sua vida, vira uns braços mais lindos.

 

— Ai! — suspirou a viúva os braços pode ser que estejam menos mal que o resto; mas haveis de confessar que o colo não era digno de meu apreço.

 

Deixou ver então o seio mais encantador que já formara a natureza. Um botão de rosa sobre um pomo de marfim nada seria, em comparação, e os cordeiros recém-saídos do lavadoiro pareceriam de um amarelo sujo. Aqueles seios, seus grandes olhos negros que enlanguesciam, brilhando suavemente num carinhoso ardor, suas faces animadas da mais bela púrpura misturada ao branco do mais puro leite, o seu nariz, que não era como a torre do monte Líbano, os seus lábios, que eram como escrínios de coral, encerrando as mais belas pérolas do mar da Arábia, tudo isso convenceu ao velho de que tinha vinte anos. Fez-lhe, gaguejando, uma declaração amorosa. Almona, vendo-o inflamado, pediu-lhe o perdão de Zadig.

 

— Ah! minha bela dama — disse ele, — ainda que eu lhe concedesse o perdão, minha indulgência de nada serviria; é preciso que seja assinado por três outros confrades meus.

 

— Assinai, assim mesmo — insistiu Almona.

 

— Com muito gosto — disse o sacerdote, — sob a condição de que seus favores sejam o prêmio de minha facilidade.

 

— Muita honra me concedeis — disse Almona. — Dignai-vos vir a meu quarto depois que o sol se puser, e logo que a brilhante estrela Sheat erguer-se no horizonte. E então me encontrareis num sofá cor-de-rosa, e podereis dispor de vossa serva como bem quiserdes.

 

Ela então retirou-se, levando consigo a assinatura, e deixando o velho cheio de amor e desconfiança de suas próprias forças. Empregou ele o resto do dia em banhar-se; bebeu um licor composto de canela de Ceilão e preciosas especiarias de Tidor e Ternate, e esperou com impaciência que aparecesse a estrela Sheat.

 

Enquanto isto, a bela Almona foi procurar o segundo pontífice. Este lhe assegurou que o sol, a lua, e todos os luzeiros do firmamento não passavam de fogos fátuos em comparação com os seus encantos. Almona lhe pediu a mesma graça, e propuseram-lhe o mesmo preço. Ela deixou-se vencer, e marcou encontro com o segundo pontífice ao erguer da estrela Algenib.

 

Dali, dirigiu-se à casa do terceiro e do quarto sacerdote, sempre recebendo uma assinatura e marcando encontro de estrela em estrela. Mandou então pedir aos juízes que comparecessem à sua residência, para um assunto importante. Ali chegados, mostrou-lhes os quatro nomes e disse-lhes por que preço haviam os sacerdotes vendido o perdão de Zadig. Cada um destes chegou à hora aprazada, e cada qual se espantou de ali encontrar os seus confrades, e mais os juízes, perante os quais ficou patenteada a sua vergonha. Zadig foi salvo. Quanto a Setoc, ficou tão encantado com a habilidade de Almona que casou com ela. Zadig partiu, após se haver lançado aos pés da sua bela salvadora. Setoc e ele separaram-se em pranto, jurando eterna amizade e prometendo-se que o primeiro dos dois que conseguisse uma grande fortuna o participaria ao outro.

 

Zadig se dirigiu para as bandas da Síria, sempre com o pensamento na infeliz Astartéia, e refletindo na sorte que se obstinava em o escarnecer e perseguir. “Meu Deus! — dizia ele consigo. — Quatrocentas onças de ouro por causa da passagem de uma cadela! condenado à decapitação por quatro maus versos em louvor do rei! quase estrangulado porque a rainha tinha babuchas da cor do meu barrete! reduzido à escravidão por haver socorrido uma mulher a quem espancavam! e prestes a ser queimada por ter salvo a vida de todas as viúvas árabes!”

 

XIV O SALTEADOR

 

Chegado às fronteiras que separam a Arábia Pétrea da Síria e quando passava por um castelo bastante fortificado, sairam deste uns árabes de arma em punho, que o cercavam, gritando “Tudo o que você tem nos pertence; e sua pessoa pertence a nosso chefe”. Zadig, como resposta, puxou da espada; seu criado, que tinha coragem, fez o mesmo. Estenderam mortos os primeiros árabes que se atreveram a lhes pôr a mão; o número redobrou; eles não se assustaram com isso resolveram morrer lutando. Viam-se dois homens a defender-se contra uma multidão; tal combate não poderia durar muito tempo. O senhor do castelo, por nome Arbogad, que assistia de uma janela aos prodígios de coragem que praticava encheu-se de estima por ele. Desceu às pressas e veio em pessoa afastar seu pessoal e livrar os dois viajantes.

 

“Tudo o que passa pelas minhas terras é meu — dizia ele — mas você me parece tão bom sujeito, que o dispenso da lei comum”. Fê-lo entrar no castelo, dando ordens para que o tratassem bem, e, à noite, fez questão de cear em companhia do seu hóspede.

 

O senhor do castelo era um desses árabes a que chamam ladrões; mas às vezes, em meio a uma multidão de más ações, sucedia-lhe praticar algumas boas; roubava com furiosa rapacidade, e sabia dar liberalmente. Intrépido na ação, bastante tratável em sociedade, intemperante na mesa, alegre na pândega, e sobretudo cheio de franqueza, muito se agradou de Zadig. A conversação, que se animou, prolongou o repasto. Disse ele enfim a seu hóspede:

 

— Aconselho-o a alistar-se com minha gente; é o que pode fazer de melhor; este ofício, afinal de contas, não é mau; e poderá um dia chegar ao que eu sou.

 

— Permite-me perguntar-lhe — disse Zadig — desde quando exerce essa nobre profissão?

 

— Desde rapazinho replicou o senhor. — Servia eu de criado a um árabe muito esperto; e essa situação me era insuportável. Desesperava-me ver que em toda a terra que pertence igualmente aos homens, não me houvesse o destino reservado a parte a que tinha direito. Confiei minhas penas a um velho árabe, que me disse: “Não desesperes, meu filho: era uma vez um grão de areia que se lamentava de ser um átomo ignorado no deserto; ao cabo de alguns anos tornou-se diamante, e é agora o mais belo ornamento da coroa do rei das Índias”. Tais palavras me causaram profunda impressão: eu era o grão de areia, resolvi tornar-me diamante. Comecei roubando dois cavalos; depois associei a mim alguns camaradas; fiquei em condições de roubar pequenas caravanas; e assim fiz cessar pouco a pouco a desproporção que a princípio havia entre mim e os outros homens. Tive a minha parte nos bens deste mundo; e fui até sobejamente indenizado: alcancei grande consideração; tornei-me senhor bandoleiro, adquiri este castelo por direito de conquista. O sátrapa da Síria quis desapossar-me; mas eu já era bastante rico para não temer o que quer que fosse: dei dinheiro ao sátrapa, conservando assim este castelo, e aumentei os meus domínios; ele nomeou-me tesoureiro dos impostos que a Arábia Pétrea pagava ao rei dos reis. Desempenhei o meu cargo de recebedor desdenhando o de pagador.

 

O grande desterham de Babilônia mandou para aqui, em nome do rei Moabdar, um pequeno sátrapa, para que me fizesse estrangular. Esse homem chegou com a sua ordem: eu estava inteirado de tudo; mandei estrangular na sua presença os quatro personagens que trouxera consigo para apertarem o laço; feito o que, perguntei-lhe o quanto lhe poderia render a incumbência de estrangular-me. Respondeu-me que seus honorários poderiam montar a trezentas moedas de ouro. Dei-lhe claramente a entender que comigo poderia ganhar muito mais. Fi-lo subsalteador; é hoje um de meus melhores oficiais e dos mais ricos. Palavra que o amigo há de vencer como ele. Para roubar, acredite, nunca esteve melhor a temporada, depois que Moabdar foi morto e tudo é confusão em Babilônia.

 

Morto, Moabdar?! exclamou Zadig. — E que é feito da rainha Astartéia?

 

— Não sei — respondeu Arbogad. — Só o que sei é que Moabdar enlouqueceu, que o mataram, que Babilônia é um pandemônio que todo o império está assolado, que ainda há belos golpes a dar e que eu, da minha parte, os dei admiráveis.

 

— Mas e a rainha? — insistiu Zadig. — Por favor, não sabe mesmo nada da sorte da rainha?

 

— Falaram-me de um príncipe da Hircânia; ela está provavelmente entre as suas concubinas, se é que não foi morta no tumulto; mas estou mais interessado pelos saques que por novidades. Apoderei-me de várias mulheres em minhas excursões; não conservo nenhuma; vendo-as caro quando são belas, sem me importar o que sejam. Ninguém compra posições: uma rainha feia não seria arrematada. Talvez eu tenha vendido a rainha Astartéia, talvez ela esteja morta; mas pouco se me dá, e acho que isso não o deve preocupar mais do que a mim.

 

Assim falando, bebia tão valentemente e confundia de tal modo todas as idéias, que Zadig não pôde obter nenhum esclarecimento.

 

Permanecia interdito, aniquilado, imóvel. Arbogad não parava de beber, inventava histórias, repetia incessantemente que era o mais feliz de todos os homens, exortando Zadig a se tornar tão feliz quanto ele. Afinal, levemente amodorrado pelos vapores do vinho, foi dormir um sossegado sono. Zadig passou a noite na mais violenta agitação. “Como! — exclamava ele. — O rei enlouqueceu! Foi assassinado! Não posso deixar de o lamentar. O império está devastado, e esse ladrão é feliz. Ó fortuna! Ó destino! Um ladrão é feliz, e o que de mais amável fez a natureza pereceu talvez de um modo horrível, ou vive num estado pior que a morte, Ó Astartéia! que é feito de ti?”

 

Logo ao raiar do dia, interrogou todos aqueles que encontrava pelo castelo; mas todos estavam ocupados, ninguém lhe respondia; tinham feito novas conquistas durante a noite e repartiam os despojos. Só o que pôde obter, naquela tumultuosa confusão, foi permissão de partir. Aproveitou-a sem demora, mais absorto do que nunca em seus dolorosos pensamentos.

 

Zadig marchava inquieto, agitado, a pensar na infeliz Astartéia, no rei da Babilônia, no seu fiel Cador, no feliz ladrão Arbogad, naquela mulher tão caprichosa que os babilônios haviam detido nos confins do Egito; enfim, em todos os contratempos e infortúnios que experimentara.

 

XV O PESCADOR

 

A algumas léguas do castelo de Arbogad, achou-se à margem de um ribeiro, sempre a deplorar seu destino e considerando-se o modelo da desgraça. Viu um pescador reclinado à margem, segurando frouxamente a rede, que parecia abandonar, e erguendo os olhos para o céu. Sou sem dúvida o mais infeliz de todos os homens — clamava o pescador. — Fui, por consenso geral, o mais famoso mercador de queijo em toda Babilônia, e fiquei arruinado. Tinha a mais linda mulher que um homem jamais possuiu, e ela traiu-me. Restava-me uma modesta casa, que foi pilhada e destruída. Refugiei-me numa choça, tendo a pesca como único recurso, e não apanho nenhum peixe. Ó minha rede, não mais te lançarei, eu é que devo lançar-me à água.

 

Dizendo tais palavras, ergue-se e avança, na atitude de um homem que se fosse arremessar e dar cabo da vida.

 

— Como! — dizia consigo Zadig. — Há então outros — mais infelizes do que eu?! — O ardor de salvar a vida ao homem foi tão rápido quanto esta reflexão. Acorre, detém-no, interroga-o com um ar comovido e animador. A gente acha que é menos infeliz quando não o é sòzinho. Mas isso, segundo Zoroastro, não significa maldade; é uma necessidade, apenas. Sentimo-nos atraídos então para um infeliz, como para um semelhante nosso. A alegria de um homem venturoso nos seria um insulto; mas dois desgraçados são como dois frágeis arbustos que, apoiando-se um no outro, se fortalecem contra a tempestade.

 

— Por que sucumbes às tuas desditas? — perguntou Zadig ao pescador. — É que não lhes vejo remédio — retrucou o outro.

 

Fui o homem mais considerado da aldeia de Derlback, e fabricava, com o auxílio de minha esposa, os melhores queijos de todo o império. A rainha Astartéia e o famoso ministro Zadig os apreciavam loucamente. Tinha-lhes fornecido seiscentos queijos. Fui um dia a Babilônia receber o pagamento; soube, de chegada, que a rainha e Zadig haviam desaparecido. Corri à casa do senhor Zadig, a quem jamais vira; ali encontrei os arqueiros do grande desterham, que, munidos de um édito real, saqueavam-na legalmente e com toda a ordem. Voei às cozinhas da rainha; alguns dos despenseiros me disseram que ela morrera; outros que estava presa; outros que fugira; mas todos me asseguravam que não me seriam pagos os meus queijos. Em companhia de minha mulher, fui falar com o senhor Orcan, que era um de meus fregueses, e lhe pedimos proteção em nossa desgraça; ele a concedeu à minha mulher, e recusou-a a mim. Era ela mais branca que os seus queijos, que começaram minha desgraça; e o esplendor da púrpura de Tiro não era mais brilhante que o carmim que animava aquela brancura. Foi o que fez com que Orcan a detivesse e me escorraçasse da sua casa. Escrevi à minha querida esposa uma carta desesperada. — Ah! sim — disse ela ao portador, — sei quem é esse homem que me escreve, já ouvi falar nele: dizem que fabrica excelentes queijos; tragam-me alguns e não se esqueçam de lhos pagar.

 

Na minha desgraça, decidi recorrer à justiça. Restavam-me seis onças de ouro: tive de dar duas ao legista que consultei, duas ao advogado que se encarregou do meu caso, duas ao secretário do primeiro juiz. Depois de tudo isso, meu processo ainda não fora encetado, e eu já tinha dispendido mais dinheiro do que valiam os meus queijos e a minha mulher. Voltei à minha aldeia, na intenção de vender a casa para conseguir minha mulher.

 

Minha casa valia umas sessenta onças de ouro; mas sabiam-me pobre e necessitado de dinheiro. O primeiro a quem me dirigi ofereceu-me trinta onças, o segundo vinte, e o terceiro dez. Estava prestes a liquidar tudo, tão cego me achava, quando um príncipe da Hircânia veio a Babilônia e assolou tudo na sua passagem. Minha casa foi primeiro saqueada e depois reduzida a cinzas.

 

Tendo assim perdido o meu dinheiro, a minha mulher e a minha casa, retirei-me para esta região onde o senhor me vê. Procurei viver do ofício de pescador: os peixes zombam de mim, como os homens. Não apanho nenhum, morro de fome; e, se não fosse a sua intervenção, augusto consolador, iria afogar-me no rio.

 

A narrativa acima, o pescador não a fez sem interrupção, pois a todo momento Zadig, comovido e arrebatado, dizia-lhe:

 

— Como! Não sabes nada do destino da rainha?

 

— Não, meu senhor, mas sei que a rainha e Zadig não me pagaram os meus queijos, que me roubaram a minha mulher, e que estou desesperado.

 

— Creio — disse Zadig que não perderás todo o teu dinheiro. Ouvi falar desse Zadig; é um sujeito honesto e, se voltar a Babilônia, como pretende, há de pagar-te mais do que te deve; mas quanto à tua mulher, que não é honesta, aconselho-te que não procures recuperá-la. Vai a Babilônia; lá estarei antes de ti, porque ando a cavalo e tu a pé. Dirige-te ao ilustre Cador; dize-lhe que encontraste o seu amigo; espera-me na casa dele. Anda, vai; talvez não sejas sempre desditado. Ó possante Orosmade — continuou ele — tu que te serves de mim para consolar esse homem, de quem te servirás para consolar-me?

 

Assim falando entregava ao pescador metade de todo o dinheiro que trouxera da Arábia, e o pescador, confuso e maravilhado, lhe beijava os pés e dizia-lhe: — És o meu anjo salvador.

 

Enquanto isto, Zadig continuava a pedir informações e desfazia-se em lágrimas.

 

— Como! — exclamou o pescador. — Tu que praticas o bem, serás assim tão desgraçado?

 

— Cem vezes mais desgraçado do que tu — respondia Zadig.

 

— Mas como pode ser — estranhava o homem — que aquele que dá seja mais digno de lástima do que aquele que recebe?

 

— É que a tua maior desgraça — tornou Zadig — era a necessidade; e, quanto a mim, sou desgraçado pelo coração.

 

— Será que Orcan te roubou a mulher? — indagou o pescador.

 

Esta frase lembrou a Zadig todas as suas aventuras: rememorava a lista de seus infortúnios, desde a cadela da rainha até a chegada ao castelo do ladrão Arbogad.

 

— Ah! — disse ele. — Orcan merece punição. Mas em geral é essa gente que o destino favorece. Em todo caso, vai ter com Cador, e espera-me.

 

Separaram-se; pôs-se o pescador a andar abençoando o seu destino e Zadig a correr, amaldiçoando o seu.

 

XVI O BASILISCO

 

Chegando a uma bela campina, viu inúmeras mulheres que procuravam afanosamente qualquer coisa. Tomou a liberdade de aproximar-se de uma delas e perguntar-lhe se não poderia ter a honra de auxiliá-las.

 

— Não faça isto — respondeu-lhe a síria. O que nós procuramos só pode ser tocado por mulheres.

 

— Eis uma coisa bastante estranha — retrucou Zadig.

 

— Não seria indiscrição perguntar-lhe que coisa é essa em que só as mulheres podem tocar?

 

— É um basilisco — disse ela.

 

— Um basilisco senhora? Mas por que motivo procuram um basilisco?

 

— É para o nosso senhor e amo Ogul, cujo castelo se avista à margem deste rio, ao fundo do prado. Somos as suas humildes escravas; o senhor Ogul está doente; o médico prescreveu-lhe um basilisco cozido em água de rosas, e como é um animal muito raro, que só se deixa apanhar por mulheres, o senhor Ogul prometeu escolher, para esposa bem amada, aquela dentre nós que lhe levasse um basilisco: deixe-me procurar, por favor, pois bem vê que me sairia muito caro se as minhas companheiras me precedessem.

 

Zadig deixou aquela e as outras sírias em busca do seu basilisco e continuava a passear pela campina. Chegando à margem de um arroio, ali encontrou outra dama sentada na relva e que não procurava nada. Seu talhe parecia majestoso, mas o rosto achava-se coberto por um véu. Estava inclinada para o arroio, e brotavam-lhe do peito profundos suspiros. Tinha na mão uma varinha, com que traçava caracteres na fina areia da margem. Zadig teve curiosidade de ver o que escrevia aquela mulher. Aproximou-se; viu a letra Z, depois um A; ficou espantado. Depois apareceu um D; ele estremeceu. Jamais houve surpresa igual à sua quando viu as duas últimas letras de seu nome. Permaneceu algum tempo imóvel; e afinal, rompendo o silêncio com voz entrecortada:

 

— O generosa dama! perdoai que um estrangeiro, um infeliz, ouse perguntar-vos por que espantosa aventura vejo aqui o nome de Zadig escrito por vossa mão divina. A essa voz, a essas palavras, a dama ergueu o véu com mão trêmula, fitou Zadig, lançou um grito de ternura, de surpresa e de alegria e, sucumbindo aos diversos sentimentos que lhe assaltavam ao mesmo tempo a alma, tombou desmaiada entre seus braços.

 

Era a própria Astartéia, era a rainha de Babilônia, era aquela a quem Zadig adorava, e a quem se inculpava de adorar; era aquela a quem tanto havia chorado e por cujo destino tanto receava. Viu-se, um momento, privado do uso dos sentidos; e quando fitou os olhos nos de Astartéia, que se abriam com um langor mesclado de confusão e ternura: — Ó potências divinas! exclamou, — que regeis o destino dos frágeis humanos, então me devolveis Astartéia? Em que tempo, em que lugar, em que estado a revejo!

 

Lançou-se de joelhos ante Astartéia, tocando com a fronte a poeira de seus pés. A rainha de Babilônia o ergue, e o faz sentar a seu lado, à margem daquele arroio; enxugava por várias vezes os olhos, cujas lágrimas continuavam sempre a rolar. Encetava, vinte vezes, frases que os gemidos interrompiam; interrogava-o sobre o acaso que os reunia e lhe sustava a resposta com outras perguntas. Iniciava a narrativa de seus males, e queria saber os de Zadig. Tendo ambos enfim apaziguado um pouco o tumulto interior, contou-lhe Zadig em poucas palavras por que aventuras se encontrava naquele prado.

 

— Mas como, ó infeliz e respeitável rainha, vos encontro eu neste remoto lugar, vestida de escrava, e acompanhada de outras mulheres escravas que procuram um basilisco, para o cozinhar em água de rosas, por prescrição médica?

 

— Enquanto elas procuram o basilisco — disse a bela Astartéia, — vou contar-te o que sofri e tudo o que perdôo ao Céu desde que tornei a ver-te. Sabes que o rei meu marido não levou a bem que fosses o mais amável dos homens; e, por esse motivo, decidiu, uma noite, mandar estrangular-te e, a mim, envenenar-me. Sabes como o Céu permitiu que o meu pequeno mudo me avisasse da ordem de Sua Sublime Majestade. O fiel Cador, logo que te obrigou a que me obedecesses e partisses, ousou penetrar alta noite em meus aposentos, por uma passagem secreta. Raptou-me e conduziu-me para o templo de Orosmade, onde o mago, seu irmão, me encerrou numa estátua colossal cuja base toca os alicerces do templo e cuja cabeça atinge a abóbada. Ali fiquei como sepultada, mas atendida pelo mago, e não me faltava nenhuma coisa necessária. Ao raiar do dia, o boticário de Sua Majestade entrou no meu quarto, com uma poção de jusquiana, ópio, cicuta, eléboro negro e acônito; e um outro oficial foi à tua casa com um laço de seda azul. Não encontraram ninguém. Cador, para me melhor enganar o rei, fingiu vir acusar-nos a ambos. Disse que havias tomado o caminho da Índia e eu o de Mënfis: enviaram satélites no encalço de nós dois.

 

Os correios que me procuravam não me conheciam, pois eu nunca havia mostrado o meu rosto senão a ti, em presença o por ordem de meu esposo. Correram em minha busca, fiados no retrato que lhes haviam traçado da minha pessoa. Encontraram na fronteira do Egito uma mulher do mesmo corpo que eu, e que talvez tivesse mais encanto. Estava desamparada, errante. Não duvidaram que fosse a rainha de Babilônia, e conduziram-na a Moabdar. Diante de tal engano, o rei entrou em violenta cólera; mas depois, considerando de mais perto a referida mulher, achou-a bastante linda, e consolou-se. Chamava-se Missuf. Disseram-no, depois, que esse nome significa, em língua egípcia, a bela caprichosa. Era-o, de fato; mas tinha tanta arte quanto capricho. Agradou a Moabdar. Subjugou-a a ponto de fazer com que fosse declarada sua esposa. Seu caráter, então, manifestou-se livremente; entregou-se, sem peias, a todas as loucuras da imaginação. Quis obrigar o chefe dos magos, que era velho e gotoso, a dançar diante dela; e, ante a recusa do mago, fez-lhe violenta perseguição. Mandou o grande escudeiro fazer-lhe uma torta de confeitos. Por mais que o homem alegasse que não era doceiro, foi obrigado a fabricar a torta; e, como a tivesse deixado queimar-se, despacharam-no sumariamente. Deu o cargo de grande escudeiro ao seu anão, e o de chanceler a um pajem. Foi assim que governou Babilônia. Todos lamentavam a minha falta. O rei, que fora bastante justo até o momento em que resolveu envenenar-me e estrangular-te, parecia ter afogado as suas virtudes no prodigioso amor que dedicava à bela caprichosa. Compareceu ao templo no grande dia do fogo sagrado. Vi-o implorar os deuses, por Missuf, ao pé da estátua onde me achava encerrada. Elevei a voz; gritei-lhe: Os deuses recusam os votos de um rei que se transformou em tirano e que quis matar uma mulher sensata para desposar uma louca. Tão confuso ficou Moabdar ao ouvir tais palavras, que sua mente se perturbou. O oráculo que eu proferira e a tirania de Missuf bastavam para lhe fazer perder o juízo. Enlouqueceu em poucos dias.

 

Sua loucura, que se afigurou um castigo do céu, foi o sinal da revolta. Ergueram-se em armas. Babilônia, por tanto tempo mergulhada em ociosa moleza, foi teatro de terrível guerra civil. Retiraram-me do interior de minha estátua e puseram-me à frente de um partido. Cador correu a Mênfis para te reconduzir a Babilônia. O príncipe de Hircânia, cientificado dessas funestas novas, voltou com o seu exército para formar um terceiro partido na Caldéia. Atacou o rei, que correu a seu encontro com a sua extravagante egípcia. Moabdar morreu varado de golpes.

 

Missuf tombou nas mãos do vencedor. Quis a desgraça que eu também fosse aprisionada pelas hostes hircanianas e que me conduzissem perante o príncipe ao mesmo tempo em que lhe levavam Missuf. Ficarás sem dúvida lisonjeado de saber que o príncipe me achou mais bela que a egípcia; mas hás de arreliar-te ao saber que ele me destinou ao seu serralho. Disse-me peremptoriamente que, mal terminasse uma expedição que ia executar, viria ter comigo. Imagina qual não foi a minha dor! Meus laços com Moabdar estavam rompidos, eu poderia pertencer a Zadig; e caía nas mãos daquele bárbaro. Respondi-lhe com toda a altivez que comportavam a minha posição e os meus sentimentos. Sempre ouvira dizer que o Céu concedia às pessoas de minha qualidade uma espécie de grandeza que, com uma palavra ou um olhar, compeliam ao mais profundo respeito os temerários que ousavam infringi-lo. Falei como rainha; mas fui tratada como aia. O hircaniano, sem ao menos se dignar dirigir-me a palavra, disse ao eunuco negro que eu era uma impertinente, mas que me achava linda. Ordenou-me que cuidasse de mim e me submetesse ao regime das favoritas, a fim de me suavizar a cútis e me tornar mais digna de seus favores, no dia era que lhe aprouvesse honrar-me com eles. Disse-lhe que me mataria; replicou a rir que ninguém se matava por isso, que estava acostumado a tais cenas, e deixou-me como um homem que acabasse de meter um papagaio no seu terreiro. Que situação para a primeira rainha do universo e, direi mais, para um coração que pertencia a Zadig!

 

A estas palavras, Zadig lançou-se aos joelhos de Astartéia e banhou-os de lágrimas. Astartéia ergueu-o carinhosamente, e assim continuou:

 

— Via-me em poder de um bárbaro, e como rival de uma louca, com quem me achava encerrada. Contou-me a sua aventura no Egito. Pelos traços com que te pintava, pelo tempo, pelo dromedário que montavas, por todas as circunstâncias, compreendi que fora Zadig quem combatera por ela. Não duvidei que estivesses em Mênfis, e resolvi partir para lá.

 

— Bela Missuf — disse-lhe então, — és muito mais sedutora do que eu, e saberás divertir o príncipe de Hircânia. Facilita a minha fuga, e reinarás sòzinha; e assim farás a minha felicidade, ao mesmo tempo que te desembaraças de uma rival.

 

Missuf combinou comigo os preparativos da fuga. Parti, pois, secretamente, com uma escrava egípcia.

 

Estava perto da Arábia, quando um famoso salteador, chamado Arbogad, me raptou, vendeu-me a mercadores que me trouxeram a este castelo, de propriedade do senhor Ogul. Este me adquiriu sem saber quem eu era. É um homem voluptuoso, que só procura passar bem e que acredita que Deus o pôs no mundo para banquetear-se. É de uma gordura excessiva, que sempre parece a ponto de sufocá-lo. Seu médico, que pouca fé lhe merece quando ele, Ogul, digere bem, governa-o despoticamente quando apanha uma indigestão. Persuadiu-o que o curaria com um basilisco cozido em água de rosas, O senhor Ogul prometeu a mão de esposo à escrava sua que lhe conseguisse um basilisco. Bem vês que eu as deixo se esforçarem à vontade por merecerem tal honra, e nunca tive menos desejo de encontrar esse basilisco do que depois que o Céu permitiu que eu tornasse a ver-te.

 

Astartéia e Zadig disseram-se, então, tudo o que sentimentos longamente retidos, tudo o que as suas desditas e amores podiam inspirar aos corações mais nobres e mais apaixonados; e os gênios que presidem o amor levaram suas palavras até a esfera de Vênus.

 

As mulheres se recolheram sem haver encontrado coisa alguma. Zadig fez-se apresentar a Ogul e falou-lhe nos seguintes termos:

 

— Que a saúde imortal baixe do Céu para tomar a seu cuidado todos os vossos dias! Sou médico; acorri ao saber de vossa doença, e vos trouxe um basilisco cozido em água de rosas. Não que eu pretenda desposar-vos. Só vos peço a liberdade de uma jovem escrava de Babilônia que tendes há alguns dias em vosso poder; e consinto em ficar como escravo no seu lugar, se não tiver a ventura de curar o magnífico senhor Ogul.

 

A proposta foi aceita. Astartéia partiu para Babilônia — com o criado de Zadig, prometendo enviar-lhe continuamente um correio, a fim de o trazer a par de tudo o que se passasse. A despedida foi tão terna como o reencontro. O momento em que nos tornamos a encontrar e o momento em que nos separamos são as duas maiores épocas da vida, como diz o grande livro do Zenda. Zadig amava a rainha tanto quanto lho jurava, e a rainha amava a Zadig mais do que lho dizia. Entrementes, assim falou Zadig a Ogul:

 

— Senhor, o meu basilisco não é de comer, toda a sua virtude deve penetrar em vós pelos poros. Coloquei-o num pequeno odre bem inflado e recoberto de fina pele: é preciso que arremesseis esse odre com toda a força e que eu vô-lo rebata inúmeras vezes; e, em poucos dias de regime vereis o que pode a minha arte.

 

Ogul, logo no primeiro dia, sentiu-se sem respiração e julgou morrer de fadiga. No segundo, cansou-se menos e dormiu melhor. Em oito dias, recuperou toda a força, saúde leveza e alegria de seus verdes anos.

 

— Jogastes bola e fostes sóbrio — disse-lhe Zadig. — Sabei, senhor, que não há basilisco na natureza, que sempre nos damos bem com sobriedade e exercício e que a arte de combinar a intemperança com a saúde é uma arte tão quimérica quanto a pedra filosofal, a astrologia judiciária e a teologia dos magos.

 

O primeiro médico de Ogul, reconhecendo o quanto aquele homem era perigoso para a medicina, uniu-se com o boticário do corpo para mandar Zadig procurar basiliscos no outro mundo. Assim, depois de ter sido sempre castigado por haver procedido direito, estava na iminência de perecer por haver curado um senhor glutão. Convidaram-no para uma excelente ceia. Deveria ser envenenado no segundo prato; mas recebeu um recado da bela Astartéia durante o primeiro. Retirou-se da mesa e partiu. “Quando somos amados por uma bela mulher — disse o grande Zoroastro, — sempre nos livramos de dificuldades neste mundo.”

 

XVII OS COMBATES

 

A rainha foi recebida em Babilônia com o entusiasmo que sempre inspira uma bela e infeliz princesa. Babilônia parecia agora mais tranqüila. O príncipe de Hircânia fora morto em combate. Os babilônios, vencedores, declaravam que Astartéia desposaria aquele a quem escolhessem para soberano. Não queriam que a mais alta posição do mundo, que seria a de marido de Astartéia e de rei da Babilônia, dependesse de intrigas e cabalas. Juravam reconhecer como rei ao mais valente e mais sábio. A algumas léguas da cidade, preparavam uma grande pista cercada de anfiteatros magnificamente ornamentados. Os combatentes deviam comparecer armados de ponto em branco. Cada qual devia ter, por detrás dos anfiteatros, um apartamento separado onde não deveriam ser vistos por ninguém. Haveria quatro jogos preliminares. Aqueles que tivessem a felicidade de vencer quatro cavaleiros deveriam combater em seguida uns contra os outros; de maneira que aquele que restasse por último senhor do campo seria proclamado campeão dos jogos. Devia voltar quatro dias depois, com as mesmas armas, e decifrar os enigmas propostos pelos magos. Se não os resolvesse, não seria rei, e recomeçariam as justas, até que se encontrasse um homem que fosse vencedor nas duas competições; pois queriam exclusivamente para rei o mais corajoso e o mais sábio. A rainha, durante todo esse tempo, deveria ser estritamente guardada: apenas lhe era permitido assistir aos espetáculos coberta com um véu; mas não lhe era concedido falar com nenhum dos pretendentes, a fim de que não houvesse favor nem injustiça.

 

Eis o que a rainha fazia saber a seu enamorado, esperando que este demonstrasse, por ela, mais valor e espírito do que ninguém. Zadig partiu, rogou a Vênus que lhe fortalecesse a coragem e esclarecesse o espírito. Chegou à margem do Eufrates na véspera do grande dia. Inscreveu sua divisa entre as dos competidores, ocultando o rosto e o nome, como o ordenava a lei, e foi repousar no apartamento que lhe coubera por sorte. Seu amigo Cador, que voltara a Babilônia depois de o haver procurado inùtilmente pelo Egito, mandou levar-lhe aos aposentos uma armadura completa que lhe enviava a rainha. Mandou-lhe também o mais belo cavalo da Pérsia. Zadig reconheceu o dedo de Astartéia em tais presentes, nos quais sua coragem e amor cobraram novas forças e esperanças.

 

No dia seguinte, alojada a rainha sob um dossel de pedrarias, e cheios os anfiteatros de todas as damas e todas as ordens de Babilônia, penetraram no circo os lidadores. Cada qual foi depor sua divisa aos pés do grande mago. Tiraram à sorte as divisas; a de Zadig foi a última. O primeiro que avançou era um senhor muito rico, chamado Itobad, vaidoso em demasia, pouco corajoso, muito inábil, e falto de espírito. Seus familiares haviam-no convencido de que um homem como ele devia ser rei, e Itobad lhes replicara: “Um homem como eu deve reinar”. De modo que o haviam armado a preceito. Trazia uma armadura de ouro com esmaltes verdes, um penacho verde, uma lança ornada de fitas verdes. Viu-se logo, pela maneira como Itobad governava o cavalo, que não éra a um homem como ele que o Céu reservara o cetro de Babilônia. O primeiro cavaleiro que o acometeu fez-lhe perder os estribos; o segundo derribou-o sobre a anca do cavalo, com as duas pernas para o ar e os braços estendidos. Itobad rergueu-se, mas tão desajeitadamente, que todo o anfiteatro se pôs a rir. Um terceiro não se dignou servir-se da lança; mas, hábil manobra, pegou-o pela perna direita, e fazendo-o dar meia volta, derribou-o na arena; os escudeiros dos jogos acorreram, a rir, e recolocaram-no sobre a sela. O quarto combatente toma-o da perna esquerda e o faz tombar pelo outro lado. Conduziram-no, abaixo de vaias, para o seu alojamento, onde devia passar a noite, segundo a lei; caminhando a custo, dizia “Que aventura para um homem como eu!”

 

Os outros cavaleiros tiveram melhor desempenho. Houve alguns que venceram dois cavaleiros sucessivamente; chegaram a três. Apenas o príncipe Otame venceu quatro. Afinal chegou a vez de Zadig; este desmontou a quatro cavaleiros, com a maior graça possível. Viu-se, pois que a competição se resumiria a Otame e Zadig. O primeiro usava armas azuis e ouro, com um penacho das mesmas côres; as Zadig eram brancas. Todos os votos se dividiam entre o cavaleiro azul e o cavaleiro branco. A rainha, com o com o coração a palpitar, rezava pela cor branca.

 

Os dois campeões fizeram passes e voltas com tanta agilidade, trocaram tão belos golpes de lança, tão firmes estavam nos estribos, que todos, menos a rainha, desejavam que houvesse dois reis em Babilônia. Enfim, cansados ambos cavalos e rôtas as duas lanças, Zadig usou de um expediente, Passa por trás do príncipe azul, salta-lhe à garupa, toma-o pela cintura, lança-o por terra, monta na sela em seu lugar e caracoleia em torno de Otame estendido na arena. Todo anfiteatro brada: “Vitória ao cavaleiro branco!” Otame indignado, ergue-se, puxa da espada; Zadig apeia, de sabre em punho. Ei-los ambos na arena, empenhados em novo combate, em que vencem alternadamente a agilidade e a força. As plumas dos capacetes, os pregos dos braçais, as malhas das armaduras saltam ao longe, sob mil golpes precipitados. Golpeiam de ponta e de fio, à direita, à esquerda, na cabeça, peito; recuam, avançam, medem-se, chocam-se, enlaçam enroscam-se como serpentes, atracam-se como leões; a todo instante saltam chispas dos golpes mùtuamente vibrados. Enfim Zadig, refazendo-se um momento, estaca, faz finta, derruba Otame, desarma-o. E Otame exclama: “Ó cavaleiro branco! és tu que deves reinar em Babilônia”. A rainha estava no auge da alegria. Conduziram o cavaleiro azul o cavaleiro branco a seus respectivos alojamentos, bem a todos os outros, conforme a lei. Mudos vieram servi-los e trazer-lhes alimento. Logo se vê que foi o pequeno mudo da rainha quem atendeu a Zadig. Em seguida, deixaram-nos dormir a sós até o dia seguinte de manhã, quando o vencedor devia levar sua divisa ao grande mago, para conferí-la dar-se a conhecer.

 

Zadig dormiu bem, apesar de enamorado, tão exausto se achava. Itobad que pousava no alojamento próximo, não pregou olho Ergueu-se durante a noite penetrou no quarto do vizinho, tomou as armas, brancas de Zadig, juntamente com a sua divisa, e pôs sua armadura verde no lugar da do outro. Ao amanhecer, compareceu orgulhosamente perante o grande mago, declarando que um homem como ele era o vencedor. Ninguém o esperava; mas foi proclamado como tal enquanto Zadig ainda dormia. Astartéia, surpresa, e com o dezespêro no coração, regressou a Babilônia. Já estava quase vazio o anfiteatro quando Zadig despertou. Procurou as suas armas, e só encontrou aquela armadura verde. Viu-se obrigado a usá-la, pois não tinha mais nada junto a si. Atônito e indignado, veste-a com furor e avança, em tal equipagem.

 

Todos os que ainda se achavam no teatro e no circo receberam-no com assuadas. Rodeavam-no; insultavam-no em cara. Jamais homem algum experimentou tão humilhantes mortificações. Perdeu então a paciência; dispersou a golpes de sabre o populacho que ousava ultrajá-lo; mas não sabia que partido tomar. Não podia avistar-se com a rainha; não podia reclamar a armadura branca que esta lhe enviara: seria comprometê-la. Assim, enquanto se achava ela abismada na dor, estava Zadig cheio de furor e inquietação. Passeava ele às margens do Eufrates, persuadido de que a sua estrela o destinava a ser irremissivelmente infeliz, e repassando no espírito todas as suas desgraças, desde a aventura da mulher que odiava os caolhos até a da sua armadura. “Eis em que deu — dizia ele consigo — ter-me acordado tarde; se houvesse dormido menos, seria rei de Babilônia e possuiria Astartéia. As ciências, o caráter, a coragem; só serviram, pois, para meu infortúnio.” Escapou-lhe enfim murmurar contra a Providência, e foi tentado a crer que tudo era governado por um destino cruel que oprimia os bons e fazia prosperarem os cavaleiros verdes. Um de seus pesares era carregar aquela armadura verde que lhe atraíra tamanho escárnio.

 

Vendeu-a barato a um comerciante que passava e comprou-lhe uma túnica e carapuça. Nessa indumentária, passeava à margem do Eufrates, cheio de desespero, e acusando em segredo a Providência, que não deixava de o perseguir.

 

XVIII O EREMITA

 

Assim caminhando, encontrou um eremita, cuja venerável barba branca lhe tombava até a cintura. Tinha na mão um livro que lia atentamente. Zadig parou e fez-lhe uma profunda reverência. O eremita saudou-o com um ar tão nobre e tão bondoso, que Zadig teve curiosidade de conversar com ele. Perguntou-lhe que livro lia.

 

— É o livro dos destinos — disse o eremita.- Quer ler um pouco?

 

Pôs o livro nas mãos de Zadig que, embora versado em várias línguas, não pôde decifrar-lhe uma única letra. Isso ainda mais lhe aumentou a curiosidade.

 

— Pareces bastante aborrecido — disse-lhe o ancião.

 

— Motivos não me faltam! — exclamou Zadig.

 

— Se me permites que te acompanhe — tornou o velho, — talvez eu te possa ser útil: tenho às vezes derramado sentimentos de consolação na alma dos infelizes.

 

Zadig sentiu-se tomado de respeito ante o ar, as barbas e o livro do eremita. Achou-lhe superiores luzes na conversação. Falava o eremita do destino, da justiça, da moral do soberano bem, da fraqueza humana, das virtudes e dos vícios, com tão viva e tocante eloqüência, que Zadig sentiu-se atraído para ele por invencível encanto. Pediu-lhe com insistência que não o deixasse até chegarem a Babilônia.

 

— O mesmo favor te peço — disse-lhe o velho. — Jura, por Orosmade, que não te separarás de mim, por mais estranhos que te pareçam os meus atos.

 

Zadig jurou, e partiram juntos.

 

Chegaram os dois viajantes a um soberbo castelo. O eremita pediu hospitalidade para si e para o jovem que o acompanhava. O porteiro, que se poderia tomar por um grão-senhor, os introduziu com uma espécie de desdenhosa complacência. Foram apresentados ao criado-mor, que lhes mostrou os magníficos apartamentos do amo. Permitiram-lhes que sentassem à extremidade da mesa deste, sem que o senhor do castelo se dignasse honrá-los com um olhar, durante a ceia; mas foram servidos, como os outros, com refinamento e profusão. Fizeram com que se lavassem em uma bacia de ouro, guarnecida de esmeraldas e rubis. Levaram-nos a deitar-se em um belo apartamento, e no dia seguinte um criado entregou a cada qual uma moeda de ouro; após o que, foram despedidos.

 

— O dono da casa — disse Zadig em caminho — parece-me um homem generoso, embora um pouco altivo; exerce nobremente a hospitalidade.

 

Dizendo tais palavras, percebeu que uma espécie de bôlsa muito grande que usava o eremita parecia distendida e inflada viu ali a bacia de ouro guarnecida de pedrarias, que este havia furtado. Não ousou dizer coisa alguma; mas sentia-se tomado da estranha surpresa.

 

Pelo meio-dia, o eremita apresentou-se à poria de uma casa muito pequena onde morava um rico avarento; pediu hospitalidade por algumas horas. Um velho criado mal vestido recebeu-o rudemente e fez entrar o eremita e Zadig na estrebaria, onde lhes serviram algumas azeitonas podres, pão duro e cerveja estragada. O eremita bebeu e comeu com um ar tão contente como na véspera. Depois, dirigindo-se ao velho criado, que os observava para ver se não roubavam nada e os instava a partirem, deu-lhe as duas moedas de ouro que recebera de manhã e agradeceu-lhe muito as suas atenções.

 

— Peço-lhe acrescentou — que me leve à presença de seu amo.

 

O criado, atônito, introduziu os dois viajantes.

 

— Magnífico senhor — disse o eremita, não posso deixar de agradecer-vos humildemente a nobre maneira como nos recebestes: dignai-vos aceitar esta bacia de ouro como modesto penhor de minha gratidão.

 

O avarento quase caiu para trás. Sem lhe dar tempo para que voltasse a si do assombro, o eremita partiu às pressas com o seu jovem companheiro.

 

— Senhor, que vejo eu? — diz-lhe Zadig. — Não vos pareceis em nada com os outros homens, roubais uma bacia de ouro guarnecida de pedrarias a um senhor que vos recebe magnificamente e a presenteais a um avarento que vos trata com indignidade.

 

— Meu filho — respondeu o velho, — esse homem magnífico, que só recebe os estranhos por vaidade e para fazê-los admirar suas riquezas, se tornará mais sensato; — o avarento aprenderá a praticar a hospitalidade: não te espantes de nada, e segue-me.

 

Zadig não sabia ainda se tratava com o mais louco ou o mais sábio dos homens; mas o eremita falava com tanta autoridade que Zadig, ligado aliás pelo juramento, não pôde deixar de segui-lo.

 

Chegaram de noite a uma casa de aspecto agradável mas simples, onde nada denunciava prodigalidade ou avareza. O dono era um filósofo retirado do mundo, que cultivava em paz a sabedoria e a virtude, e que no entanto não se aborrecia. Aprouvera-lhe construir aquele retiro, onde recebia os visitantes com uma nobreza que nada tinha de ostentação. Foi em pessoa ao encontro dos dois viajantes, a quem primeiro fez repousar num cômodo apartamento. Algum tempo depois veio convidá-los para uma refeição sadia e variada, durante a qual se referiu discretamente às últimas revoluções de Babilônia. Pareceu sinceramente devotado à rainha e mostrou-se desejoso de que Zadig tivesse comparecido ao torneio para disputar a coroa. “Mas os homens — acrescentou — não merecem um rei como Zadig”. Este enrubescia e sentia redobrarem seus sofrimentos. Convieram, na conversação, em que as coisas deste mundo não marchavam sempre ao agrado dos mais sensatos. O eremita sustentava que não se conheciam os caminhos da Providência, e que os homens faziam mal em julgar um todo de que só percebiam a mais ínfima parte. Falaram em seguida sobre as paixões.

 

— Ah! como são funestas! dizia Zadig.

 

— São como os ventos que enfunam as velas do barco — retrucou o eremita: — submergem-no às vezes; mas, sem o seu auxílio, o barco não poderia vogar. A bílis nos torna coléricos e doentes; mas, sem a bílis, não poderíamos viver. Tudo é perigoso neste mundo, e tudo é necessário.

 

Falou-se do prazer, e o eremita provou que é um presente da divindade: “Pois — disse ele o homem não pode dar a si próprio nem sensações nem idéias, recebe tudo; a dor e o prazer lhe vêm de fora, como a sua existência.”

 

Zadig admirava-se de como um homem que fizera coisas tão extravagantes podia raciocinar tão bem. Enfim, depois de uma palestra tão instrutiva quão agradável, o proprietário conduziu os hóspedes ao quarto, bendizendo o Céu por lhe haver enviado dois homens tão sábios e virtuosos. Ofereceu-lhes dinheiro de um modo natural e nobre que não podia melindrar. O eremita recusou-o e despediu-se, dizendo que partiria para Babilônia antes do raiar do dia. A separação foi comovente; Zadig, sobretudo, sentia-se cheio de estima e simpatia por aquele homem tão amável.

 

Quando o eremita e ele se viram a sós no apartamento, fizeram por muito tempo o elogio de seu hospedeiro. O velho, alta madrugada, despertou Zadig.

 

— Temos de partir — disse ele. — Mas, enquanto todos ainda estão dormindo, quero deixar a esse homem um testemunho de minha estima e afeição.

 

Dizendo tais palavras, tomou um archote e ateou fogo à casa. Zadig, horrorizado, pôs-se aos gritos, e quis impedi-lo de cometer tão revoltante ação. O eremita arrastava-o com uma força superior; a casa estava em chamas. Quando já se achava bastante longe com o companheiro, o velho pôs-se a contemplar tranqüilamente o incêndio. “Graças a Deus! — disse ele. — Eis a casa do nosso querido hospedeiro completamente destruída! Que homem feliz!” A estas palavras, Zadig viu-se tentado, a um tempo, a romper em gargalhadas, a encher de injúrias o venerável ancião a bater-lhe, e a fugir, mas não fez nada disso e, sempre dominado pela ascendência do eremita, seguiu-o, a contragosto, até a próxima pousada.

 

Era em casa de uma viúva caritativa e virtuosa que tinha um sobrinho de catorze anos, cheio de atrativos e que era a sua única esperança. Fez, o melhor possível, as honras da casa. Na manhã seguinte, ordenou ao sobrinho que acompanhasse os viajantes até uma ponte que, estando meio arruinada, se tornara de passagem perigosa. O jovem, solícito, marchava à frente deles. Ao chegarem à ponte, disse-lhe o eremita:

 

— Vem cá, devo dar uma amostra de gratidão à tua tia. Toma-o então pelos cabelos e arremessa-o ao rio. O menino tomba, reaparece um instante à tona dágua, e é engolido pela torrente.

 

— O monstro! ó celerado! — bradou Zadig.

 

— Tu me havias prometido mais paciência — disse-lhe o eremita, interrompendo-o. — Pois fica sabendo que, debaixo das ruínas dessa casa que a Providência incendiou, o proprietário encontrou um tesouro imenso; e é bom que saibas que esse jovem, a quem a Providência torceu o pescoço, teria assassinado a sua tia dentro em um ano, e a ti daqui a dois anos.

 

— Quem te disse tal coisa, bárbaro? gritou Zadig. — E, mesmo que houvesses lido esse acontecimento no teu livro dos destinos, acaso te será permitido afogar uma criança que não te fez mal nenhum?

 

Enquanto assim falava, Zadig percebeu que o velho já não tinha barba, que o seu rosto adquiria os traços da juventude. Desapareceu-lhe o hábito de eremita; quatro belas asas recobriam um corpo majestoso e resplandecente de luz.

 

— Ó enviado do Céu! Ó anjo divino! exclamou Zadig, prosternando-se. — Desceste então do empíreo para ensinar um frágil mortal a submeter-se às ordens eternas?

 

— Os homens — disse o anjo Jesrad — julgam tudo sem nada conhecer: eras tu, dentre todos os homens, quem mais merecia ser esclarecido.

 

Zadig pediu permissão para falar.

 

— Desconfio de mim próprio — disse ele, mas ousarei pedir-te que me esclareças uma dúvida: não seria melhor corrigir esse menino, e torná-lo virtuoso, em vez de afogá-lo

 

Se ele tivesse sido virtuoso, e vivido — tornou Jesrad, — a seu destino seria o de ser assassinado com a mulher que deveria desposar, e com o filho que deveriam ter

 

— Como! — exclamou Zadig. — É então necessário que haja crimes e males, e que os males tombem sobre as pessoas de bem?

 

— Os maus — respondeu Jesrad — são sempre infelizes: servem para experimentar um pequeno número de justos espalhados sobre a terra, e não há mal de que não provenha um bem.

 

— Mas — disse Zadig — e se só houvesse bem, e nenhum mal?

 

— Então — replicou Jesrad — este mundo seria outro; o encadeamento dos fatos obedeceria a uma outra ordem de sabedoria; e essa outra ordem, que seria perfeita, só pode existir na morada eterna do Ser Supremo, de quem o mal não pode aproximar-se. Criou Ele milhões de mundos, nenhum dos quais se pode assemelhar ao outro. Essa imensa variedade é um atributo de seu poder imenso. Não há nem duas folhas de árvore na terra, nem dois globos nos campos infinitos do céu, que sejam semelhantes; e tudo o que vês sobre o pequeno átomo em que nasceste devia estar no seu lugar e no seu tempo fixo, conforme as ordens imutáveis daquele que tudo abrange. Os homens pensam que esse menino que acaba de perecer caiu no rio por acaso: tudo é prova, ou punição, ou recompensa, ou providência. Lembra-te daquele pescador que se julgava o mais infeliz dos homens. Orosmade te enviou para lhe mudar o destino. Frágil mortal, cessa de arguir contra aquilo que cumpre adorar.

 

— Mas — disse Zadig... E, enquanto dizia mas, já o anjo alçava o vôo para a — décima esfera. Zadig, de joelhos, adorou a Providência, e submeteu-se. O anjo gritou-lhe das alturas:

 

— Segue para Babilônia.

 

XIX OS ENIGMAS

 

Zadig, fora de si, e como um homem a cujos pés houvesse tombado um raio, caminhava ao acaso. Entrou em Babilônia no dia em que aqueles com quem combatera se achavam já reunidos no vestíbulo do palácio, para decifrar os enigmas e responder às perguntas do grande mago. Todos cavaleiros tinham chegado, exceto o da armadura verde. Logo que Zadig apareceu na cidade, o povo se reuniu em torno dele; os olhos não se saciavam de o ver, as bocas de o abençoar, os corações de desejar-lhe o império. O invejoso o viu passar, estremeceu e desviou-se; o povo o levou até o local da assembléia. A rainha, a quem haviam comunicado a sua vinda, sentia-se agitada de temores e esperanças; a inquietação a devorava: não podia compreender nem como Zadig estava sem armas, nem como Itobad trazia a armadura branca. Á vista de Zadig, elevou-se um confuso murmúrio. Estavam surpresos e encantados de tornar a vê-lo; mas só aos cavaleiros que haviam combatido era permitido ingresso na assembléia.

 

— Combati como qualquer outro — declarou ele. — Mas alguém está usando aqui as minhas armas; e, enquanto aguardo a honra de o provar, peço licença para apresentar-me no concurso de enigmas.

 

Puseram a proposta em votação: tão arraigada estava nos espíritos a sua reputação de probidade, que ninguém hesitou em admiti-lo.

 

O grande mago propõe primeiro a seguinte questão:

 

— Qual é, de todas as coisas do mundo, a mais longa e a mais curta, a mais rápida e a mais lenta, a mais divisível e a mais extensa, a mais negligenciada e a mais irreparavelmente lamentada, que devora tudo o que é pequeno e que vivifica tudo o que é grande?

 

Cabia a Itobad falar. Respondeu que um homem como ele nada entendia de enigmas e que lhe bastava ter batido os adversários a lançaços. Disseram uns que a chave do enigma era a fortuna, outros a terra, outros a luz. Zadig disse que era o tempo. “Nada é mais longo — acrescentou ele, — pois que é a medida da eternidade; nada é mais curto, pois que falta a todos os nossos projetos; nada mais lento para quem espera; nada mais rápido para quem desfruta a vida; estende-se, em grandeza, até o infinito; divide-se, até o infinito, em pequenez; todos os homens o negligenciam, todos lhe lamentam a perda; nada se faz sem ele, faz esquecer tudo o que é indígno da posteridade, e imortaliza as grandes coisas”. A assembléia deu razão a Zadig.

 

Perguntaram em seguida: “Qual é a coisa que se recebe sem agradecer, que se desfruta sem saber como, que damos aos outros quando não sabemos onde é que estamos, e que perdemos sem o perceber?”

 

Cada qual deu a sua explicação. Apenas Zadig adivinhou que se tratava da vida. Resolveu todos os outros enigmas com igual facilidade. Itobad dizia sempre que nada era mais fácil e que ele também o descobriria, se se tivesse dado ao trabalho. Propuseram questões sobre a justiça, o soberano bem, a arte de reinar. As respostas de Zadig foram julgadas as mais sólidas. “É pena — diziam — que tão bom espírito seja tão mau cavaleiro”.

 

— Ilustres senhores — declara Zadig, — tive a honra de vencer na liça. É a mim que pertence a armadura branca. O senhor Itobad apoderou-se dela durante o meu sono: com certeza julgou que lhe sentaria mais que a verde... Estou disposto a provar perante todos, com esta túnica e esta espada, contra toda essa armadura branca que ele me tomou, que fui eu que tive a honra de vencer o bravo Otame.

 

Itobad aceitou o desafio com a maior confiança. Não duvidava que, estando de capacete, couraça e braçais, facilmente venceria a um galã de camisola e barrete de dormir. Zadig puxou da espada, saudando a rainha, que o contemplava cheia de alegria e temor, Itobad puxou a sua, sem saudar ninguém. Avançou para Zadig como homem que nada tivesse a temer. Estava prestes a lhe fender a cabeça. Zadig soube aparar o golpe, opondo o que se chama o forte da espada ao fraco do adversário, de modo que a espada de Itobad se rompeu. Então Zadig enlaçando o inimigo, derrubou-o por terra; e, colocando a ponta da espada na frincha da couraça, disse-lhe: “Deixa-me desarmar-te, ou eu te mato”. Itobad, sempre surpreso das desgraças que aconteciam a um homem como ele, deixou que Zadig lhe tirasse tranqüilamente o magnífico capacete, a soberba couraça, os belos braçais, os brilhantes coxotes. Zadig os vestiu e, assim equipado, correu a lançar-se aos joelhos de Astartéia. Cador provou facilmente que a armadura pertencia :a Zadig. Foi proclamado rei por assentimento de todos, e sobretudo de Astartéia, que, após tantas adversidades, gozava da doçura de ver o seu enamorado digno, perante o universo, de ser seu esposo. Itobad foi fazer-se chamar de senhor em sua casa. Zadig foi rei, e rei feliz. Tinha presente ao espírito o que lhe dissera o anjo Jesrad. Lembrava-se até do grão de areia convertido em diamante. A rainha e ele adoraram a Providência Zadig deixou a bela caprichosa, Missuf, correr mundo. Mandou chamar o salteador Arbogad, a quem confiou um honroso pôsto no exército, com a promessa de elevá-lo às mais altas dignidades se se comportasse como legítimo guerreiro, e de o enforcar se se entregasse às atividades de salteador.

 

Setoc foi chamado dos confins da Arábia, com a bela Almona, para dirigir o comércio babilônio. Cador obteve a posição e estima que mereciam seus serviços; era o amigo do rei; e este foi o único monarca da terra que teve um amigo. O pequeno mudo não ficou no esquecimento. O pescador ganhou uma bela casa. Orcan foi condenado a pagar-lhe uma grande soma e a devolver-lhe a mulher; mas o pescador, que ganhara juízo só ficou com o dinheiro.

 

Nem a bela Semira se consolava de haver acreditado que Zadig era caolho, nem Azora cessava de chorar por lhe haver querido cortar o nariz. Zadig abrandou o pesar de ambas com uns bons presentes. O invejoso morreu de raiva e de vexame. O império gozou da paz, da glória e da abundância; foi o mais belo século da terra: era esta governada pela justiça e o amor. Bendiziam a Zadig, e Zadig bendizia ao Céu.

 

XX A DANÇA

 

Setoc devia ir para assuntos comerciais, à ilha de Serendib; mas o primeiro mês de seu casamento, que é, como se sabe, a lua de mel, não lhe permitia deixar a esposa, nem supor que jamais pudesse deixá-la: pediu a Zadig que fizesse a viagem em seu lugar. “Ai! — suspirava este. — Devo ainda colocar maior distância entre mim e a bela Astartéia?! Mas estou na obrigação de servir a meus benfeitores”. Assim disse, chorou e partiu.

 

Não demorou muito em Serendib sem que fosse considerado um homem extraordinário. Tornou-se árbitro. de todas as questões entre os negociantes, amigo dos sábios e conselheiro do pequeno número de pessoas que ouvem conselhos. O rei manifestou desejos de o ver e ouvir. Reconheceu logo o valor de Zadig; confiou na sua sabedoria e fez dele seu amigo. A familiaridade e estima do rei fizeram-no tremer. Dia e noite recordava os males que lhe haviam acarretado as boas graças de Moabdar. “Se agrado ao rei — pensava ele, não estarei perdido?” Não podia, contudo, furtar-se às gentilezas da Sua Majestade: pois cumpre confessar que Nabussan, rei de Serendib, filho de Nussanab, filho de Nabassun, filho de Sanbusná, era um dos melhores príncipes da Ásia e que, quando se lhe falava, tornava-se difícil deixar de amá-lo.

 

Esse bom príncipe era sempre louvado, enganado e roubado; esforçavam-se, à porfia, a ver quem mais lhe pilhava os tesouros. O recebedor geral da ilha de Serendib dava o exemplo, seguido fielmente pelos outros. O rei sabia-o: por várias vezes mudara de tesoureiro; mas não pudera mudar o costume estabelecido de dividir os proventos do rei em duas partes, a menor das quais cabia sempre à Sua Majestade, e a maior aos administradores.

 

O rei Nabussan confiou seus cuidados ao sábio Zadig.

 

— Tu que sabes tão belas coisas — disse-lhe ele, — não saberias encontrar-me um tesoureiro que não roube?

 

— Sem dúvida — respondeu Zadig. — Sei um meio infalível de conseguir-lhe um homem de mãos limpas.

 

O rei, encantado, perguntou-lhe, abraçando-o, como deveria proceder.

 

— É só fazer dançar todos aqueles que se candidatem à dignidade de tesoureiro, e aquele que dançar com mais leveza será infalivelmente o homem mais honrado.

 

— Estás zombando — disse o rei. — Eis um modo bastante esquisito de escolher um tesoureiro... Como? Julgas então que aquele que fizer melhor um entrechat será o financista mais probo e mais hábil?

 

— Não garanto que seja o mais hábil — retrucou Zadig, — mas asseguro que será indubitavelmente o mais honesto.

 

Falava Zadig com tamanha segurança que o rei o julgou possuidor de algum segredo sobrenatural para reconhecer os financistas.

 

— Não me agrada o sobrenatural — disse Zadig, — sempre detestei as pessoas e livros mágicos: se Vossa Majestade deixar-me fazer a prova que lhe proponho, há de convencer-se de que o meu segredo é a coisa mais simples e mais fácil deste mundo.

 

Nabussan, rei de Serendib, ficou muito mais espantado de ouvir que esse segredo era simples do que se lho houvessem apresentado como um milagre.

 

— Está bem — disse ele, — fase como bem entenderes.

 

— Deixe o caso comigo — tornou Zadig — e Vossa Majestade ganhará com essa experiência muito mais do que supõe.

 

No mesmo dia mandou afixar que todos os pretendentes ao cargo de recebedor-mor dos dinheiros de Sua Graciosa Majestade Nabussan, filho de Mussanab, deveriam apresentar-se, vestidos de seda leve, a 1a. da lua do crocodilo, na antecâmara do rei. Ali compareceram, em número de sessenta e quatro. Tinham reunido rabequistas num salão vizinho; tudo achava pronto para o bailado; mas a porta desse salão estava fechada, e, para ali entrar, era preciso passar por uma pequena galeria bastante escura. Um guarda vinha buscar e introduzir cada candidato, um após outro naquela passagem, onde o deixava sòzinho alguns minutos. O rei, que estava a par de tudo, expusera todos os seus tesouros na referida galeria. Depois que todos os pretendentes chegaram ao salão, Sua Majestade lhes ordenou que dançassem. Jamais se dançou tão pesadamente e com menos graça; tinham todos a cabeça baixa, o busto encolhido, as mãos coladas ao corpo. “Que velhacos!” — dizia Zadig em voz baixa. Um só dentre eles dançava com agilidade, de cabeça alta, olhar seguro, braços estendidos, corpo direito e jarretes firmes; “Ah! que homem honrado! que excelente homem!” — dizia Zadig. O rei abraçou aquele bom dançarino, proclamou-o tesoureiro, e todos os outros foram punidos e multados com a maior justiça do mundo: pois cada qual, durante o tempo em que estivera na galeria, atulhara os bolsos e mal podia andar. Muito vexado se sentiu o rei com a natureza humana pelo fato de haver, entre aqueles sessenta e quatro dançarimos, sessenta e três gatunos. A galeria escura foi chamada o corredor da tentação Se fosse na Pérsia, teriam empalado aqueles sessenta e três senhores; em outros países, formariam um tribunal de justiça que consumiria nas custas do processo o triplo do dinheiro roubado e que nada reporia nos cofres do rei; em outro reino, os sessenta e três se justificariam plenamente e fariam cair em descrédito aquele dançarino tão leviano: em Serendib, apenas foram condenados a aumentar o tesouro público, pois Nabussan era muito indulgente

 

Era também muito reconhecido: deu a Zadig uma quantia mais considerável do que qualquer tesoureiro jamais roubara a el-rei seu senhor. Zadig se utilizou da soma para enviar correios a Babilônia, que deviam informá-lo do destino de Astartéia. A voz tremeu-lhe ao dar essa ordem, o sangue lhe fluiu para o coração, seus olhos cobriram-se de trevas, a alma esteve a ponto de abandoná-lo. O mensageiro partiu, Zadig o viu embarcar; entrou no palácio, sem ver ninguém, como se estivesse em seu quarto, e pronunciando a palavra amor.

 

— Ah! o amor — disse o rei, — é precisamente do que trata; adivinhaste a minha pena. És um grande homem! Espero que me ensines a descobrir uma mulher acima de qualquer suspeita, como me fizeste encontrar um tesoureiro desinteressado.

 

Zadig, voltando a si, prometeu servi-lo no amor como em finanças, embora a coisa lhe parecesse ainda mais difícil.

 

XXI OS OLHOS AZUIS

 

— O corpo e o coração... — começou o rei. A estas palavras, o babilônio não pôde deixar de interrompê-lo:

 

— Como lhe sou grato por não haver Sua Majestade dito o espírito e o coração! pois só se ouvem estas palavras nas conversações de Babilônia; não se vê mais que livros a respeito do coração e do espírito, escritos por pessoas que não têm nem uma coisa nem outra; mas tenha a bondade de prosseguir, Sire.

 

— Nabussan assim continuou:

 

— O corpo e o coração estão, em mim, destinados a amar; a primeira dessas duas potências tem todos os motivos para se achar satisfeita. Tenho aqui cem mulheres a meu serviço, todas belas, complacentas, solícitas, voluptuosas até, ou que o fingem ser comigo. Quanto a meu coração, já não é tão feliz. Por demais tenho visto que agradam muito o rei de Serendib e pouco se importam com Nabussan. Não que eu julgue infiéis as minhas mulheres; mas desejaria encontrar uma alma que fosse minha; daria por esse tesouro as cem belezas cujos encantos possuo: vê se podes, dentre as cem sultanas, achar-me uma de quem eu possa ter certeza de ser amado.

 

Zadig respondeu como no caso dos financistas:

 

— Deixe tudo a meu cuidado, Sire; mas permita primeiro que eu disponha do que Vossa Majestade expôs na galeria da tentação; dar-lhe-ei conta de tudo e não perderá coisa alguma.

 

O rei deixou-o como senhor absoluto. Zadig escolheu em Serendib trinta e três pequenos corcundas dos mais feios que pôde achar, trinta e três pajens dos mais belos, e trinta e três bonzos dos mais eloqüentes e dos mais robustos. Concedeu a todos plena liberdade de entrarem nas celas das sultanas. Cada corcundinha ficou com quatro mil moedas de ouro a seu dispor, e logo no primeiro dia todos eles foram felizes. Os pajens, que nada tinham a dar senão a sua própria pessoa, só triunfaram ao fim de dois ou três dias. Os bonzos tiveram um pouco mais de trabalho; mas afinal trinta e três devotas se renderam a eles. O rei, por gelosias que davam para todas as celas, viu todas essas provas, e maravilhou-se. De suas cem mulheres, noventa e nove sucumbiram às suas próprias vistas.

 

Restava apenas uma jovem, bastante novinha, de quem Sua Majestade jamais se aproximara. Enviaram-lhe um, dois, três corcundas, que lhe ofereceram até vinte mil moedas; ela foi incorruptível, e não pôde deixar de rir de que aqueles corcundas julgassem que o dinheiro os tornaria mais bem feitos de corpo. Apresentaram-lhe os dois pajens mais belos; ela disse que achava o rei ainda mais belo. Largaram-lhe o mais eloqüente dos bonzos, e em seguida o mais intrépido; ela achou o primeiro um papagaio e não se dignou nem mesmo a suspeitar o mérito do segundo. “O coração é tudo — dizia ela. — Nunca cederei, nem ao ouro de um corcunda, nem às graças de um jovem, nem às seduções de um bonzo; amarei ùnicamente a Nabussan, filho de Nussanab, e esperarei que ele se digne amar-me”. O rei sentiu-se transportado de alegria, de espanto e de ternura. Recolheu todo o dinheiro que causara o sucesso dos corcundas e presenteou-o à bela Falide; era esse o nome da jovem criatura. Deu-lhe o seu coração: ela bem o merecia. Jamais foi tão viçosa a flor da juventude, jamais tiveram tal sedução os encantos da formosura. Que ela não sabia fazer direito a reverência, é coisa que a verdade histórica não permite calar; mas dançava como as fadas, falava como as sereias e cantava como as graças: era cheia de prendas e virtudes.

 

Nabussan, amado, adorou-a; mas Falide tinha olhos azuis, e foi isso a fonte das maiores desgraças. Havia uma antiga lei que proibia aos reis amarem uma dessas mulheres que os gregos depois chamaram de boópis. Fazia mais de cinco mil anos que o chefe dos bonzos tinha estabelecido essa lei; fora com o intuito de se apoderar da amante do primeiro rei da ilha de Serendib que esse primeiro bonzo introduzira o anátema dos olhos azuis na Constituição do Estado. Todas as ordens do império vieram apresentar advertências ao rei. Dizia-se pùblicamente que eram chegados os últimos dias do reino, que a abominação atingira o auge, que toda a natureza se achava ameaçada de uma catástrofe; que, numa palavra, Nabussan, filho de Nussanab, amava dois grandes olhos azuis. Os corcundas, os financistas, os bonzos e as morenas encheram o reino com suas queixas.

 

Os povos selvagens que habitam o norte de Serendib aproveitaram-se do descontentamento geral. Fizeram irrupção nos Estados do bom Nabussan. Este pediu auxílio financeiro aos súditos; os bonzos, que possuíam metade das rendas do Estado, contentaram-se em erguer as mãos ao céu e recusaram-se a metê-las no cofre para ajudar ao rei. Fizeram belas preces com música, e deixaram o Estado à mercê dos bárbaros.

 

— Ó meu caro Zadig, será que ainda me tirarás deste horrível embaraço? — exclamou dolorosamente Nabussan.

 

— De bom grado — respondeu Zadig. — Vossa Majestade terá dos bonzos todo o dinheiro que quiser. Deixe desguarnecidas as terras onde eles têm os seus castelos, e defenda ùnicamente os de Vossa Majestade.

 

Nabussan assim fez; os bonzos vieram lançar-se aos pés do rei e implorar-lhe assistência. O rei respondeu-lhes com uma bela canção, cuja letra era uma prece pela conservação de suas terras. Os bonzos afinal deram dinheiro e o rei acabou a guerra com felicidade. Deste modo Zadig, com os seus sábios e oportunos conselhos, e pelos grandes serviços que prestava, atraíra a irreconciliável inimizade dos homens mais poderosos do Estado. Os bonzos e as morenas juraram a sua perda; os financistas e os corcundas não mais o pouparam; tornaram-no suspeito ao bom Nabussan. Os serviços prestados ficam muita vez na antecâmara, e as suspeitas entram no gabinete, segundo a sentença de Zoroastro: eram todos os dias novas acusações; a primeira é repelida, a segunda roça a pele, a terceira fere, a quarta mata.

 

Zadig, intimidado, já que tratara dos negócios de seu amigo Setoc e lhe salvara o dinheiro, não pensou mais senão em partir da ilha, e resolveu ir em pessoa saber notícias de Astartéia. — “Pois — pensava ele — se fico em Serendib, os bonzos me farão empalar; mas aonde ir? Serei escravizado no Egito, queimado, segundo todas as aparências, na Arábia, estrangulado em Babilônia. Mas preciso saber o que é feito de Astartéia: partamos, e vejamos o que me reserva o meu triste destino.”

 

 

                                                                                            Voltaire

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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