Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
Esaú e Jacó
Sem querer nem saber, diria isto mesmo com os olhos ao velho diplomata. Retirava-os, mas eles iam de si mesmos repetir o monólogo, e acaso perguntar alguma cousa que Aires não percebia e devia ser interessante. Pode ser que refletissem a angústia ou o que quer que era que lhe doía dentro. Pode ser; a verdade é que Aires começou a ficar curioso, e tão depressa Pedro deixou o lugar para acudir ao chamado da mãe, deixou ele Natividade para ir falar à moça.
Flora, já de pé, mal teve tempo de trocar duas palavras, dessas que se não podem interromper sem dor ou prurido, ao menos. Aires perguntava-lhe se nunca lhe dissera que sabia adivinhar.
—Não, senhor.
—Pois sei; adivinhei agora mesmo que me quer dizer um segredo.
Flora ficou espantada. Não querendo negar nem confessar, respondeu-lhe que só adivinhara metade.
—A outra é? —A outra é pedir-lhe um obséquio de amizade.
—Peça.
—Não, agora não, já nos vamos embora; mamãe e papai estão fazendo as despedidas. Só se for na rua. Quer vir conosco a S. Clemente? —Com o maior prazer.
Entenda-se que não. Não era com prazer maior nem menor. Era imposição de sociedade, desde que Flora o pedira, não sei se discretamente. Que a isto ligasse tal ou qual desejo de saber algum segredo, não serei eu que o negue, nem tu, nem ele mesmo. Ao cabo de alguns instantes, Aires ia sentindo como esta pequena lhe acordava umas vozes mortas, falhadas ou não nascidas, vozes de pai. Os gêmeos não lhe deram um dia a mesma sensação, senão porque eram filhos de Natividade. Aqui não era a mãe, era a mesma Flora, o seu gesto, a sua fala, e porventura a sua fatalidade.
"Mas quer-me parecer que desta vez ela está presa; escolheu enfim", pensou Aires.
Flora falou-lhe da presidência, mas não lhe pediu segredo, como as outras pessoas; confessou-lhe que não queria ir daqui, fosse para onde fosse, e acabou dizendo que tudo estava nas mãos deles. Só ele podia despersuadir o pai de aceitar a presidência. Aires achou tão absurdo este pedido que esteve quase a rir, mas susteve-se bem. A palavra de Flora era grave e triste. Aires respondeu, com brandura, que não podia nada.
—Pode muito, todos atendem ao seus conselhos.
—Mas eu não dou conselhos a ninguém, acudiu Aires. conselheiro é um título que o imperador me conferiu, por achar que o merecia, mas não obriga a dar conselhos; a ele mesmo só lhos darei, se nos pedir. Imagine agora se eu vou à casa de um homem ou mando chamá-lo à minha para lhe dizer que não seja presidente de província. Que razão lhe daria? Não tinha razões a moça; tinha necessidade. Apelou para os talentos do ex-ministro, que acharia uma razão boa. Nem se precisavam razões, bastava o falar dele, a arte que Deus lhe dera de agradar a toda a gente, de a arrastar, de influir, de obter o que quisesse. Aires viu que ela exagerava para o atrair, e não lhe pareceu mal. Não obstante, contestou tais méritos e virtudes. Deus não lhe dera arte nenhuma, disse ele, mas a moça ia sempre afirmando, em tal maneira que Aires suspender a contestação, e fez uma promessa.
—Vou pensar; amanhã ou depois, se achar algum recurso, tentarei o negócio.
Era um paliativo. Era também um modo de fazer cessar a conversação, estando a casa próxima. Não contava com o pai de Flora, que à fina força lhe quis mostrar, àquela hora, uma novidade, aliás uma velharia, um documento de valor diplomático. "Venha, suba, cinco minutos apenas, conselheiro." Aires suspirou em segredo, e curvou a cabeça ao Destino. Não se luta contra ele, dirás tu; o melhor é deixar que pegue pelos cabelos e nos arraste até onde queira alçar-nos ou despenhar-nos. Batista nem lhe deu tempo de refletir; era todo desculpas.
—Cinco minutos e está livre de mim, mas verá que lhe pago o sacrifício.
O gabinete era pequeno; poucos livros e bons, os móveis graves, um retrato de Batista com a farda de presidente, um almanaque sobre a mesa, um mapa na parede, algumas lembranças do governo da província. Enquanto Aires circulava os olhos, Batista foi buscar o documento. Abriu uma gaveta, tirou uma pasta, abriu a pasta, tirou o documento, que não estava só, mas com outros. Conhecia-se logo por ser um papel velho, amarelo, em partes roído. Era uma carta do Conde de Oeiras, escrita ao ministro de Portugal na Holanda.
—E o dia das antigüidades, pensou Aires; a tabuleta, o tinteiro, este autógrafo...
—A carta é importante, mas longa, disse Batista, não podemos lê-la agora. Quer levá-la? Não lhe deu tempo de responder; pegou de uma sobrecarta grande e meteu dentro o manuscrito, com esta nota por fora: "Ao meu excelentíssimo amigo Conselheiro Aires". Enquanto ele fazia isto, Aires passava os olhos pela lombada de alguns livros. Entre eles havia dous Relatórios da presidência de Batista, ricamente encadernados.
—Não me atribua esse luxo, acudiu o ex-presidente — foi um mimo da secretaria do governo que nunca fez isto a ninguém. Era um pessoal muito distinto.
E foi à estante e tirou um dos relatórios para ser melhor visto. Aberto, mostrou a impressão e as vinhetas — lido, podia mostrar o estilo por um lado, e, por outro, a prosperidade das finanças. Batista limitou-se aos algarismos totais: despesa, mil duzentos e noventa e quatro contos, setecentos e noventa mil-réis; receita, mil quinhentos e quarenta e quatro contos, duzentos e nove mil-réis; saldo, duzentos e quarenta e nove contos, quatrocentos e dezenove mil-réis. Verbalmente, explicou o saldo, que alcançou pela modificação de alguns serviços, e por um pequeno aumento de impostos. Reduziu a dívida provincial, que achou em trezentos e oitenta e quatro contos, e deixou em trezentos e cinqüenta contos. Fez obras novas e consertos importantes; iniciou uma ponte...
—A encadernação corresponde à matéria, disse Aires para concluir a visita.
Batista fechou o livro, e redargüiu que já agora não iria sem lhe resolver uma consulta.
—Tudo às avessas, concluiu; eu de manhã resolvo consultas, agora à noite sou eu que as faço.
Tal foi o intróito, mas do intróito ao Credo há sempre um passo estirado, e o principal da missa para ele estava no Credo. Não achando o texto do missal, explicou-lhe um sinete, um a pena de ouro, um exemplar do Código Criminal. O código, posto que velho, valia por trinta novos, não que tivesse melhor rosto, senão que trazia anotações manuscritas de um grande jurista, Fulano. Tendo passado longa parte da vida no exterior, o conselheiro mal conhecera o autor das notas, mas desde que ouviu chamar-lhe grande assumiu a expressão adequada. Pegou do código com cuidado, leu algumas das notas com veneração.
Durante esse tempo, Batista ia criando fôlego. Compôs uma frase para iniciar a consulta, e só esperava que Aires fechasse o livro para soltá-la; mas o outro ia demorando o exame do código. Podia ser uma pontinha de malignidade, mas não era. Os olhos de Aires tinham uma faculdade particular, menos particular do que parece, porque outros a possuirão calados. Vinha a ser que eles não saíam da página, mas em verdade já lhe prestava menos atenção, o tempo, a gente, a vida, cousas passadas, surdiam a espiá-lo por detrás do livro com que tinham vivido, e Aires ia tornando a ver um Rio de Janeiro que não era este, ou apenas o fazia lembrado. Sem cuides que eram só réus e juízes, era o passeio, a rua, a festa, velhos patuscos e mortos, rapazes frescos e agora enferrujados como ele. Batista tossiu. Aires voltou a si e leu alguma das notas que o outro devia trazer de cor, mas eram tão profundas! Enfim, mirou a encadernação, achou o livro bem conservado, fechou-o e restituiu-o à biblioteca.
Batista não perdeu um instante, correu imediato ao assunto, com medo de o ver pegar em outro livro.
—Confesso-lhe que tenho o temperamento conservador.
—Também eu guardo presentes antigos.
—Não é isso; refiro-me ao temperamento político. Verdadeiramente há opiniões e temperamentos. Um homem pode muito bem ter o temperamento oposto às suas idéias. As minhas idéias, se as cotejarmos com os programas políticos do mundo, são antes liberais e algumas libérrimas. O sufrágio universal, por exemplo, é para mim a pedra angular de um bom regímen representativo. Ao contrário, os liberais pediram e fizeram o voto censitário. Hoje estou mais adiantado que eles; aceito o que está, por ora, mas antes do fim do século é preciso rever alguns artigos da Constituição, dous ou três.
Aires escondia o espanto... Convidado assim àquela hora... Uma profissão de fé política... Batista insistia na distinção do temperamento e das idéias. Alguns amigos velhos, que conheciam esta dualidade moral e mental, é que teimavam em querer que ele aceitasse uma presidência; ele não queria. Francamente, que lhe parecia ao conselheiro? —Francamente, acho que não tem razão.
—Que não tenho razão em quê? —Em recusar.
—Propriamente, não recusei nada; há um grande trabalho neste sentido, e o meu desejo, — acrescentou com mais clareza, — é que os bons amigos sagazes me digam se tal cousa é acertada; não me parece que seja...
—Eu penso que é.
—De maneira que, se o caso fosse com o senhor...
—Comigo não podia ser. Sabe que eu já não sou deste mundo e politicamente nunca figurei em nada. A diplomacia tem este efeito que separa o funcionário dos partidos e o deixa tão alheio a eles, que fica impossível de opinar com verdade, ou, quando menos, com certeza.
—Mas não me disse que acha...
—Acho.
—Que posso aceitar uma presidência, se me oferecerem? —Pode; uma presidência aceita-se.
—Pois então saiba tudo; é a única pessoa de sociedade com quem me abro assim francamente. A presidência foi-me oferecida.
—Aceite, aceite.
—Está aceita.
—Já? —O decreto assina-se sábado.
—Então aceite também os meus parabéns.
—Propriamente, a lembrança não foi do ministério; ao contrário, o ministério não se resolveu antes de saber se efetivamente fiz uma eleição contra os liberais, há anos; mas logo que soube que por não os perseguir é que fui demitido, aceitou a indicação de chefes políticos, e recebi pouco depois este bilhete.
O bilhete estava no bolso, dentro da carteira. Qualquer outro, alvoroçado com a nomeação próxima, levaria tempo a achar o bilhete no meio dos papéis; mas Batista possuía o tacto dos textos. Tirou a carteira, abriu-a descansado e com os dedos sacou o bilhete do ministro convidando-o a uma conversação. Na conversação ficou tudo assentado.
Enfim, só! Quando Aires se achou na rua, só, livre, solto, entregue a si mesmo, sem grilhões nem considerações, respirou largo. Fez um monólogo, que daí a pouco interrompeu por se lembrar de Flora. Tudo o que ela não quisera ia acontecer; lá ia o pai a uma presidência, e ela com ele, e a recente inclinação ao jovem Pedro vinha parar a meio caminho. Entretanto, não se arrependia do que dissera e ainda menos do que não dissera. Os dados estavam lançados. Agora era cuidar de outra cousa.
Ao desperdir-se, fez Aires uma reflexão, que ponho aqui, para o caso de que algum leitor a tenho feito também. A reflexão foi obra de espanto, e o espanto nasceu de ver como um homem tão difícil em ceder às instigações da esposa (Vai-te, Satanás, etc.; capítulo XLVII) deitou tão facilmente o hábito às urtigas. Não achou explicação nem a acharia, se não soubesse o que lhe disseram mais tarde, que os primeiros passos da conversão do homem foram dados pela mulher. "A mulher é a desolação do homem", dizia não sei que filósofo socialista, creio que Proudhon. Foi ela, a viúva da presidência, que por meios vários e secretos, tramou passar a segundas núpcias. Quando ele soube do namoro, já os banhos estavam corridos; não havia mais que consentir e casar também.
Ainda assim, custou-lhe muito. O clamor dos seus aturdia-lhe de antemão os ouvidos, a alma ia cega, tonta, mas a esposa servia-lhe de guia e amparo, e, com poucas horas, Batista viu claro e ficou firme.
—Estamos à porta do terceiro reinado, ponderou D. Cláudia, e certamente o Partido Liberal não deixa tão cedo o poder. Os seus homens são válidos, a inclinação dos tempos é para o liberalismo, e você mesmo...
—Sim, eu... suspirou Batista.
D. Cláudia não suspirou, cantou vitória; a retivência do marido era a primeira figura de aquiescência. Não lhe disse isto assim, nu e cru; também não revelou alegria descomposta; falou sempre a linguagem da razão fria e da vontade certa. Batista, sentindo-se apoiado. caminhou para o abismo e deu o salto nas trevas. Não o fez sem graça, nem com ela. Posto que a vontade que trazia fosse de empréstimo, não lhe faltava desejo a que a vontade da esposa deu vida e alma. Daí a autoria de que se investiu e acabou confessando.
Tal foi a conclusão de Aires, segundo se lê no Memorial. Tal será a do leitor, se gosta de concluir. Note que aqui lhe poupei o trabalho de Aires; não o obriguei a achar por si o que, de outras vezes, é obrigado a fazer. O leitor atento, verdadeiramente ruminante, tem quatro estômagos no cérebro, e por eles faz passar e repassar os atos e os fatos, até que deduz a verdade, que estava, ou parecia estar escondida.
O dia seguinte trouxe à menina Flora a grande novidade. Sábado seria assinado o decreto, a presidência era no Norte. D. Cláudia não lhe viu a palidez, nem sentiu as mãos frias, continuou a falar do caso e do futuro, até que Flora, querendo sentar-se, quase caiu. A mãe acudiu-lhe: —Que é? Que tens? Nada mamãe, não é nada.
A mãe fe-la sentar-se.
—Foi uma tonteira, passou.
D. Cláudia deu-lhe a cheirar um pouco de vinagre, esfregou-lhe os pulsos; Flora sorriu.
—Este sábado? perguntou.
—O decreto? Sim, este sábado. Mas não digas por ora a ninguém; são segredos de gabinete. É cousa certa; enfim, alguém nos fez justiça; provavelmente o imperador. Amanhã irás comigo a algumas encomendas. Fazer uma lista do que precisas.
Flora precisava não ir e só pensava nisso. Uma vez que o decreto estava prestes a ser assinado, não havia já desaconselhar a nomeação; restava-lhe a ela ficar. Mas como? Todos os sonhos são próprios ao sono de uma criança. Não era fácil, mas não seria impossível. Flora cria tudo; não tirava o pensamento de Aires, e já agora de Natividade também. Os dous podiam fazê-lo, ou antes os três, se contardes também o barão, e se vier a cunhada deste, quatro. Juntai aos quatro as cinco estrelas do Cruzeiro, as nove musas, anjos e arcanjos, virgens e mártires... Juntai-os todos, e todos poderiam fazer esta simples ação de impedir que Flora fosse para a província. Tais eram as esperanças vagas, rápidas, que corriam a substituir as tristezas do rosto da moça, enquanto a mãe, atribuindo o efeito ao vinagre, ajustava a rolha de vidro ao frasco, e restituía o frasco ao toucador.
—Fazer uma lista do que precisas, repetiu à filha.
—Não, mamãe, eu não preciso nada.
—Precisas, sim, eu sei o que precisas.
Não escreveria este capítulo, se ele fosse propriamente das encomendas, mas não é. Tudo são instrumentos nas mãos da Vida. As duas saíram de casa, uma lépida, a outra melancólica, e lá foram a escolher uma quantidade de objetos de viagem e de uso pessoal. D. Cláudia pensava nos vestidos da primeira recepção e de visitas; também ideou o do desembarque. Tinha ordem do marido para comprar algumas gravatas. Os chapéus, entretanto, foram o principal artigo da lista. Ao parecer de D. Cláudia, o chapéu da mulher é que dava a nota verdadeira do gosto, das maneiras e da cultura de uma sociedade. Não valia a pena aceitar uma presidência para levar chapéus sem graça, dizia ela sem convicção, porque intimamente pensava que a presidência dá graça a tudo.
Estavam justamente na loja de chapéus, Rua do Ouvidor, sentadas, os olhos fora e longe, quando a verdadeira matéria deste capítulo apareceu. Era o gêmeo Paulo, que chegara pelo trem noturno, e sabendo que elas andavam a compras, viera procurá-las.
—O senhor! exclamaram.
—Cheguei esta manhã.
Flora tinha-se levantado, com o alvoroço que lhe deu a vista inesperada de Paulo. Ele correu a elas, apertou-lhes as mãos, indagou da saúde e reconheceu que pareciam vender saúde e alegria. A impressão era exata; Flora tinha agora uma agitação, que contrastava com o abatimento daquela triste manhã, e um riso que a fazia alegre.
—Tive sempre notícias das senhoras, que mamãe me dava, e Pedro também, às vezes. Da senhora, continuou ele falando a D. Cláudia, recebi duas cartas. Como vai o doutor? —Bem.
—Ora, enfim, cá estou! E Paulo dividia os olhos com as duas, mas a melhor parte ia naturalmente para a filha. Pouco depois era todo e pouco para esta. D. Cláudia voltara à escolha dos chapéus, e Flora, que até então opinava de cabeça, perdeu este último gesto. Paulo sentou-se na cadeira que um empregado lhe trouxe, e ficou a olhar para a moça falavam de cousas mínimas, alheias ou próprias, tudo o que bastasse para os reter disfarçadamente na contemplação um do outro. Paulo viera o mesmo que fora, o mesmo que Pedro, sempre com alguma nota particular, que ela não podia achar claramente, menos ainda definir. Era um mistério, Pedro teria o seu.
D. Cláudia interrompia-os, de vez em quando, a propósito da escolha; mas, tudo acaba, até a escolha de chapéus. Foram dali aos vestidos. Paulo, não sabendo da presidência, estimou esta casualidade para as acompanhar de loja em loja. Contava anedotas de S. Paulo, sem grande interesse para Flora; as notícias que ela lhe dava acerca das amigas, eram mais ou menos dispensáveis. Tudo valia pelos dous interlocutores. A rua ajudava aquela absorção recíproca; as pessoas que iam ou vinham, damas ou cavalheiros, parassem ou não, serviam de ponto de partida a alguma digressão. As digressões entraram a dar as mãos ao silêncio, e os dous seguiam com os olhos espraiados e a cabeça alta, ele mais que ela, porque uma pontinha de melancolia começava a espancar do rosto da moça a alegria da hora recente.
Na Rua Gonçalves Dias, indo para o Largo da Carioca, Paulo viu dous ou três políticos de S. Paulo, republicanos, parece que fazendeiros. Havendo-os deixado lá, admirou-se de os ver aqui, sem advertir que a última vez que os vira ia já a alguma distancia.
—Conhecem? perguntou às duas.
Não, não os conheciam. Paulo disse-lhes os nomes. A mãe talvez fizesse alguma pergunta política, mas deu por falta de um objeto, advertiu que o não comprara, e propôs voltarem atrás. Tudo era aceito por ambos, com docilidade, apesar do véu de tristeza, que se ia cerrando mais no rosto da moça. Aquelas encomendas tinham já um ar de bilhetes de passagem, não tardava o paquete, iam correr às malas, aos arranjos, às despedidas, ao camarote de bordo, ao enjôo de mar, e àquele outro de mar e terra, que a mataria, com certeza, cuidava Flora. Daí o silêncio crescente, que Paulo mal podia vencer, de quando em quando; e contudo ela estava bem com ele, gostava de lhe ouvir dizer cousas soltas, algumas novas, outras velhas, recordações anteriores à partida daqui para S. Paulo.
Assim se deixaram ir, guiados por D. Cláudia, quase esquecida deles. No meio daquela conversação truncada, mais entretida por ele que por ela. Paulo sentia ímpetos de lhe perguntar, ao ouvido, na rua, se pensara nele, ou, ao menos, sonhara com ele algumas noites. Ouvindo que não, daria expansão à cólera, dizendo-lhe os últimos impropérios; se ela corresse, correria também, até pegá-la pelas fitas do chapéu ou pela manga do vestido, e, em vez de a esganar, dançaria com ela uma valsa de Strauss ou uma polca de ***. Logo depois, ria destes delírios, porque, a despeito da melancolia da moça, os olhos que ela erguia para ele eram de quem sonhou e pensou muito na pessoa, e agora cuida de descobrir se é a mesma do sonho e do pensamento. Assim lhe parecia ao estudante de Direito; pelo que, quando ele desviava o rosto, era para repetir a experiência e tornar a ver-lhe os olhos aguçados do mesmo espírito crítico e de livre exame. Quanto ao tempo que os três gastaram nessa agitação de compras e escolhas, visões e comparações, não há memória, dele nem necessidade. Tempo é propriamente ofício de relógio, e nenhum deles consultou o relógio que trazia.
Ora bem, acabas de ver como Flora recebeu o irmão de Pedro, tal qual recebia o irmão de Paulo. Ambos eram apóstolos. Paulo achava-a agora mais bonita que alguns meses antes, e disse-lho nessa mesma tarde em S. Clemente, com esta palavra familiar e cordial: —A senhora enfeitou muito.
Flora julgava a mesma cousa, relativamente ao estudante de Direito; calou a impressão. Ou a tristeza que trazia, ou qualquer outro sensação particular, fê-la acanhada, a princípio. Não tardou, porém. que achasse outra vez o gêmeo no gêmeo, e que ele e ela matassem saudades.
Como é que se matam saudades não é cousa que se explique de um modo claro. Ele não há ferro nem fogo, corda nem veneno, e todavia as saudades expiram, para a ressurreição, alguma vez antes do terceiro dia. Há quem creia que, ainda mortas, são doces, mais que doces. Esse ponto, no nosso caso, não pode ser ventilado, nem eu quero desenvolvê-lo, como aliás cumpria.
As saudades morreram, não todas, nem logo, logo, mas em parte e tão vagarosamente que Paulo aceitou o convite de lá jantar. Era o dia da chegada; Natividade quisera tê-lo consigo à mesa, ao pé de Pedro, para cimentar a pacificação começada pela distancia. Paulo nem se deu ao trabalho de lá mandar; deixou-se estar com a bela criatura, entre o pai e a mãe que pensava em outra cousa, próxima no tempo e remota no espaço. Sabendo o que era, Flora passava do prazer ao tédio, e Paulo não entendia essa alternação de sentimentos. De quando em quando, vendo a mãe agitada e preocupada, mas com outra expressão, Paulo interrogava a filha. Em vez de dar uma explicação qualquer, Flora passou uma vez a mão pelos olhos e ficou alguns instantes sem os descobrir. A ação do estudante de Direito, devia ser arredar-lhe a mão, encará-la de perto, mais perto, totalmente perto, e repetir a pergunta por um modo em que a eloqüência do gesto dispensasse a fala. Se tal idéia teve, não saiu cá fora. Nem ela lhe consentiu mais tempo que o da pergunta: —Que é que tem? —Nada, respondeu Flora.
—Tem alguma cousa, insistiu ele querendo pegar-lhe na mão.
Não acabou o gesto. não o começou sequer; abriu e fechou os dedos apenas, enquanto ela sorria para sacudir tristezas, e deixou-se estar a matar saudades.
Tudo se explicou à noite, em casa da família Santos. O ex-presidente de província confessou as esperanças de uma investidura nova; a esposa afirmou a eminência do ato. Daí a publicidade da notícia, que pouco antes D. Cláudia só dizia em segredo. Já não havia segredos que calar.
Paulo soube então tudo, e Pedro, que conhecia alguns preliminares, acabou sabendo o resto. Ambos naturalmente sentiram a separação próxima. A dor os fez amigos por instantes; é uma das vantagens dessa grande e nobre sensação. Já me não lembra quem afirmava, ao contrário, que um ódio comum é o que mais liga duas pessoas. Creio que sim, mas não descreio do meu postulado, por esta razão que uma cousa não tolhe a outra, e ambas podem ser verdadeiras.
Demais, a dor não era ainda o desespero. Havia até uma consolação para os dous gêmeos; é que a moça ficaria longe de ambos. Nenhum deles teria o gozo exclusivo ao pé da porta. Não há mal que não traga um pouco de bem, e por isso é que o mal é útil, muita vez indispensável, alguma vez delicioso. Os dous quiseram falar à amiguinha, em particular, para sondá-la acerca daquela separação, já agora certa, mas nenhum conseguiu este desejo. Vigiavam-se, isso sim. Quando lhe falavam, era sempre juntos, e de cousas familiares e ordinárias. O gesto de Flora não traduzi a o estado da alma; este podia ser lépido, melancólico, ou indiferente, não vinha cá fora. Em verdade, ela falava pouco. Os olhos também não diziam muito. Mais de uma vez, Pedro deu com ela fitando Paulo, e gemeu com a preferência, mas também ele era preferido depois, e achava compensação; Paulo então é que rangia os dentes, figuradamente. Natividade, toda entregue à sua recepção, que era a última do ano, não acompanhou de perto as agitações morais daquele trio. Quando deu por elas, chegou a senti-las também.
Pouco a pouco, a gente se foi dispersando. Não era muita, e dominava a nota íntima. Quando a maioria saiu, ficou só a porção mais íntima, três ou quatro homens a um canto da sala, falando e rindo de ditos e anedotas. Não conversavam de política, e aliás não faltaria matéria. As moças, pela segunda ou terceira vez, trocavam as impressões do grande baile recente. Também falavam de músicas e teatros, das festas próximas de Petrópolis, da gente que ia naquele ano, e da que só iria em janeiro. Natividade dividia-se com todos, até que, podendo ficar alguns instantes com Aires, confiara-lhe o seu receio acerca do amor dos filhos, e ao mesmo tempo o prazer que lhe trazia a esperança de uma longa separação de Flora. O conselheiro não desdizia do receio, nem da esperança.
—É uma esperança que o Batista seja nomeado e leve a filha daqui, disse ela.
—Certamente, mas...
—Mas quê? —Certamente a levará, mas a senhora pode não conhecer bem aquela menina.
—Penso que é boa.
—Também eu penso assim. A bondade, porém, não tem nada com o resto da pessoa. Flora é, como já lhe disse há tempos, uma inexplicável. Agora é tarde para lhe expor os fundamentos da minha impressão — depois lhe direi. Note que gosto muito dela; acho-lhe um sabor particular naquele contraste de uma pessoa assim, tão humana e tão fora do mundo, tão etérea e tão ambiciosa, ao mesmo tempo, de uma ambição recôndita... Vá perdoando estas palavras mal embrulhadas, e até amanhã, concluiu ele, estendendo-lhe a mão. Amanhã virei explicá-las.
—Explique-as agora, enquanto os outros parecem rir de algum dito engraçado.
Efetivamente, os homens riam de algum dito ou trocadilho; Aires quis falar, mas reteve a língua, e desculpou-se. A explicação era longa e difícil, e não era urgente, disse ele.
—Eu mesmo não sei se me entendo, baronesa, nem se penso a verdade; pode ser. Em todo caso, minha boa amiga, até amanhã ou até Petrópolis. Quando espera subir? —Lá para o fim do ano.
—Então ainda nos veremos algumas vezes.
—Sim, e se me não vir a mim, quero que veja os meus rapazes, que os receba e estime. Eles o tem em grande conta; não lhe fazem senão justiça. Pedro acha que o senhor é o espírito mais fino, e Paulo o mais rijo da nossa terra...
—Veja como a senhora os educa, ensinando-lhes a pensar errado, disse Aires sorrindo e fazendo um gesto de agradecimento. Eu rijo? —O mais rijo e o mais fino.
Os últimos habituados da casa vieram dar boa noite à dona. Dez minutos depois, Aires despedia-se do casal Santos.
A noite era clara e tranqüila. Aires recompôs uma parte do serão para escrevê-la no Memorial. Poucas linhas, mas interessantes, nas quais Flora era a principal figura: Que o Diabo a entenda, se puder, eu, que sou menos que ele, não acerto de a entender nunca. Ontem parecia querer a um, hoje quis ao outro; pouco antes das despedidas, queria a ambos. Encontrei outrora desses sentimentos alternos e simultâneos — eu mesmo fui uma e outra cousa, e sempre me entendi a mim. Mas aquela menina e moça... A condição dos gêmeos explicará esta inclinação dupla; pode ser também que alguma qualidade falte a um que sopre a outro, e vice-versa, e ela, pelo gosto de ambas, não acha de escolher de vez. É fantástico, sei, menos fantástico é se eles, destinados à inimizade, acharem nesta mesma criatura um campo estreito de ódio, mas isto os explicaria a ele, não a ela... seja o que for a nossa organização política é útil; a presidência de província, arredando Flora daqui, por algum tempo, tira esta moça da situação em que se acha como a asna de Buridan. Quando voltar, a água estará bebida e a cevada comida, um decreto ajudará a natureza.
Isto feito, Aires meteu-se na cama, rezou uma ode do seu Horácio e fechou os olhos. Nem por isso dormiu. Tentou então uma página do seu Cervantes, outra do seu Erasmo, fechou novamente os olhos, até que dormiu. Pouco foi; às cinco horas e quarenta minutos estava de pé. Em novembro, sabes que é dia.
Quando lhe acontecia o que ficou contado, era costume de Aires sair cedo, a espairecer. Nem sempre acertava. Desta vez foi ao Passeio Público. Chegou às sete horas e meia, entrou, subiu ao terraço e olhou para o mar. O mar estava crespo. Aires começou a passear ao longo do terraço, ouvindo as ondas, e chegando-se à borda, de quando em quando, para vê-las bater e recuar. Gostava delas assim; achava-lhes uma espécie de alma forte, que as movia para meter medo à terra. A água, enroscando-se em si mesma, dava-lhe uma sensação, mais que de vida, de pessoa também, a que não faltavam nervos nem músculos, nem a voz que bradava as suas cóleras.
Enfim, cansou e desceu, foi-se ao lago, ao arvoredo, e passeou à toa, revivendo homens e cousas, até que se sentou em um banco. Notou que a pouca gente que havia ali não estava sentada, como de costume, olhando à toa, lendo gazetas ou cochilando a vigília de uma noite sem cama. Estava de pé, falando entre si, e a outra que entrava ia pegando na conversação sem conhecer os interlocutores; assim lhe pareceu, ao menos. Ouviu umas palavras soltas, Deodoro, batalhões, campo, ministério, etc. Algumas, ditas em tom alto, vinham acaso para ele a ver se lhe espertavam a curiosidade, e se obtinham mais uma orelha às notícias. Não juro que assim fosse, porque o dia vai longe, e as pessoas não eram conhecidas. O próprio Aires, se tal cousa suspeitou, não a disse a ninguém; também não afiou o ouvido para alcançar o resto. Ao contrário, lembrando-lhe algo particular, escreveu a lápis uma nota na carteira. Tanto bastou para que os curiosos se dispersassem, não sem algum epíteto de louvor, uns ao governo, outros ao exército: podia ser amigo de um ou de outro.
Quando Aires saiu do Passeio Público, suspeitava alguma cousa, e seguiu até o Largo da Carioca. Poucas palavras e sumidas, gente parada, caras espantadas, vultos que arrepiavam caminho, mas nenhuma notícia clara nem completa. Na Rua do Ouvidor, soube que os militares tinham feito uma revolução, ouviu descrições da marcha e das pessoas, e notícias desencontradas. Voltou ao largo, onde três tílburis o disputaram; ele entrou no que lhe ficou mais à mão, e mandou tocar para o Catete. Não perguntou nada ao cocheiro; este é que lhe disse tudo e o resto. Falou de uma revolução, de dous ministros mortos, um fugido, os demais presos. O imperador, capturado em Petrópolis, vinha descendo a serra.
Aires olhava para o cocheiro, cuja palavra saía deliciosa de novidade. Não lhe era desconhecida esta criatura. Já a vira, sem o tílburi, na rua ou na sala, à missa ou a bordo, nem sempre homem, alguma vez mulher, vestida de seda ou de chita. Quis saber mais, mostrou-se interessado e curioso, e acabou perguntando se realmente houvera o que dizia. O cocheiro contou que ouvira tudo a um homem que trouxera da Rua dos Inválidos e levara ao Largo da Glória, por sinal que estava assombrado, não podia falar, pedia-lhe que corresse, que lhe pagaria o dobro; e pagou.
—Talvez fosse algum implicado no barulho, sugeriu Aires.
—Também pode ser, porque ele levava o chapéu derrubado, e a princípio pensei que tinha sangue nos dedos, mas reparei e vi que era barro; com certeza, vinha de descer algum muro. Mas, pensando bem, creio que era sangue; barro não tem aquela cor. A verdade é que ele pagou o dobro da viagem, e com razão, porque a cidade não está segura, e a gente corre grande risco levando pessoas de um lado para outro...
Chegavam justamente à porta de Aires; este mandou parar o veículo, pagou pela tabela e desceu. Subindo a escada, ia naturalmente pensando nos acontecimentos possíveis. No alto achou o criado que sabia tudo, e lhe perguntou se era certo...
—O que é que não é certo, José? É mais que certo.
—Que mataram três ministros? —Não; há só um ferido.
—Eu ouvi que mais gente também, falaram em dez mortos...
—A morte é um fenômeno igual à vida; talvez os mortos vivam. Em todo caso, não lhes rezes por almas, porque não és bom católico, José.
Como é que, tendo ouvido falar da morte de dous e três ministros, Aires confirmou apenas o ferimento de um, ao retificar a notícia do criado? Só se pode explicar de dous modos, — ou por um nobre sentimento de piedade, ou pela opinião de que toda a notícia pública cresce de dous terços, ao menos. Qualquer que fosse a causa, a versão do ferimento era a única verdadeira. Pouso depois passava pela Rua do Catete a padiola que levava um ministro, ferido. Sabendo que os outros estavam vivos e sãos e o imperador era esperado de Petrópolis, não acreditou na mudança de regímen que ouvira ao cocheiro de tílburi e ao criado José. Reduziu tudo a um momento que ia acabar com a simples mudança de pessoal.
"Temos gabinete novo", pensou consigo.
Almoçou tranqüilo, lendo Xenofonte: "Considerava eu um dia quantas repúblicas têm sido derribadas por cidadãos que desejam outra espécie de governo, e quantas monarquias e oligarquias são destruídas pela sublevação dos povos; e de quantos sobem ao poder uns são depressa derribados, outros, se duram, são admirados por hábeis e felizes..." Sabes a conclusão do autor, em prol da tese de que o homem é difícil de governar; mas logo depois a pessoa de Ciro destrói aquela conclusão, mostrando um só homem que regeu milhões de outros, os quais não só o temiam, mas ainda lutavam por lhe fazer as vontades. Tudo isto em grego, e com tal pausa que ele chegou ao fim do almoço, sem chegar ao fim do primeiro capítulo.
—Mas, S. Ex.a está almoçando, dizia o criado no patamar da escada a alguém que pedia para falar ao conselheiro.
Era falso, Aires acabava justamente de almoçar; mas o criado sabia que o amo gostava de saborear o charuto depois do almoço, sem interrupção. Agora estava no canapé e ouviu o diálogo do patamar. A pessoa insistia em dizer uma palavrinha.
—Não pode ser.
—Bem, eu espero; logo que S. Ex.a acabe...
—O melhor é voltar depois; não mora ali defronte? Pois volte daqui a uma hora ou duas...
A pessoa era o Custódio e foi para casa, mas o velho diplomata, sabendo quem era, não esperou que acabasse o charuto; mandou-lhe dizer que viesse. Custódio saiu, correu; subiu e entrou assombrado.
—Que é isso, Sr. Custódio? disse-lhe Aires. O senhor anda a fazer revoluções? —Eu, senhor? Ah! senhor! Se V. Ex.a soubesse...
—Se soubesse o quê? Custódio explicou-se. Vá, resumamos a explicação.
Na véspera, tendo de ir abaixo, Custódio foi à Rua da Assembléia, onde se pintava a tabuleta. Era já tarde; o pintor suspendera o trabalho. Só algumas das letras ficaram pintadas, — a palavra Confeitaria e a letra d. A letra o e a palavra Império estavam só debuxadas a giz. Gostou da tinta e da cor, reconciliou-se com a forma, e apenas perdoou a despesa. Recomendou pressa. Queria inaugurar a tabuleta no domingo.
Ao acordar de manhã não soube logo do que houvera na cidade, mas pouco a pouco vieram vindo as notícias, viu passar um batalhão, e creu que lhe diziam a verdade os que afirmavam a revolução e vagamente a república. A princípio, no meio do espanto, esqueceu-lhe a tabuleta. Quando se lembrou dela, viu que era preciso sustar a pintura. Escreveu às pressas um bilhete e mandou um caixeiro ao pintor. O bilhete dizia só isto: "Pare no D." Com efeito, não era preciso pintar o resto, que seria perdido, nem perder ò princípio, que podia sair. Sempre haveria palavra que ocupasse o lugar das letras restantes. "Pade no D". Quando o portador voltou trouxe a notícia de que a tabuleta estava pronta.
—Você viu-a pronta? —Vi, patrão.
—Tinha escrito o nome antigo? —Tinha, sim, senhor: "Confeitaria do Império".
Custódio enfiou um casaco de alpaca e voou à Rua da Assembléia. Lá estava a tabuleta, por sinal que coberta com um pedaço de chita; alguns rapazes que a tinham visto, ao passar na rua, quiseram rasgá-la; o pintor, depois de a defender com boas palavras, achou mais eficaz cobri-la. Levantada a cortina, Custódio leu: "Confeitaria do Império". Era o nome antigo, o próprio, o célebre, mas era a destruição agora; não podia conservar um dia a tabuleta, ainda que fosse em beco escuro, quanto mais na Rua do Catete...
—O senhor vai despintar tudo isto, disse ele.
—Não entendo. Quer dizer que o senhor paga primeiro a despesa. Depois, pinto outra cousa.
—Mas que perde o senhor em substituir a última palavra por outra? A primeira pode ficar, e mesmo o d... Não leu o meu bilhete? —Chegou tarde.
—E por que pintou, depois de tão graves acontecimentos? —O senhor tinha pressa, e eu acordei às cinco e meia para servi-lo. Quando me deram as notícias, a tabuleta estava pronta. Não me disse que queria pendurá-la domingo? Tive de pôr muito secante na tinta, e além da tinta, gastei tempo e trabalho.
Custódio quis repudiar a obra, mas o pintor ameaçou de pôr o número da confeitaria e o nome do dono na tabuleta, e expô-la assim, para que os revolucionários lhe fossem quebrar as vidraças do Catete. Não teve remédio senão capitular. Que esperasse: ia pensar na substituição; em todo caso, pedia algum abate no preço. Alcançou a promessa do abate e voltou a casa. Em caminho, pensou no que perdia mudando de título, — uma casa tão conhecida, desde anos e anos! Diabos levassem a revolução! Que nome lhe poria agora? Nisso lembrou-lhe o vizinho Aires e correu a ouvi-lo.
Referí-lo o que lá fica atrás, Custódio confessou tudo o que perdia no título e na despesa, o mal que lhe trazia a conservação do nome da casa, a impossibilidade de achar outro, um abismo, um suma. Não sabia que buscasse; faltava-lhe invenção e paz de espírito. Se pudesse, liquidava a confeitaria. E afinal que tinha ele com política? Era um simples fabricante e vendedor de doces, estimado, afreguesado, respeitado, e principalmente respeitador da ordem pública...
—Mas o que é que há? perguntou Aires.
—A república está proclamada.
—Já há governo? —Penso que já; mas diga-me V. Ex.a: ouviu alguém acusar-me jamais de atacar o governo? Ninguém. Entretanto... Uma fatalidade! Venha em meu socorro. Excelentíssimo. Ajude-me a sair deste embaraço. A tabuleta está pronta, o nome todo pintado. — "Confeitaria do Império", a tinta é viva e bonita. O pintor teima em que lhe pague o trabalho, para então fazer outro. Eu, se a obra não estivesse acabada, mudava de título, por mais que me custasse, mas hei de perder o dinheiro que gastei? V. Ex.a crê que, se ficar "Império", venham quebrar-me as vidraças? —Isso não sei.
—Realmente, não há motivo, é o nome da casa, nome de trinta anos, ninguém a conhece de outro modo.
—Mas pode pôr "Confeitaria da República"...
—Lembrou-me isso, em caminho, mas também me lembrou que, se daqui a um ou dous meses, houver nova reviravolta, fico no ponto em que estou hoje, e perco outra vez o dinheiro.
—Tem razão... Sente-se.
—Estou bem.
—Sente-se e fume um charuto.
Custódio recusou o charuto, não fumava. Aceitou a cadeira. Estava no gabinete de trabalho, em que algumas curiosidades lhe chamariam a atenção, se não fosse o atordoamento do espírito. Continuou a implorar o socorro do vizinho. S. Ex.a, com a grande inteligência que Deus lhe dera, podia salvá-lo. Aires propôs-lhe um meio-termo, um título que iria com ambas as hipóteses, — "Confeitaria do Governo".
—Tanto serve para um regímen como para outro.
—Não digo que não, e, a não ser a despesa perdida... Há porém, uma razão contra. V. Ex.a sabe que nenhum governo deixa de ter oposição. As oposições, quando descerem à rua, podem implicar comigo, imaginar que as desafio, e quebrarem-me a tabuleta; entretanto, o que eu procuro é o respeito de todos.
Aires compreendeu bem que o terror ia com a avareza. Certo, o vizinho não queria barulhos à porta, nem malquerenças gratuitas, nem ódios de quem quer que fosse; mas, não o afligia menos a despesa que teria de fazer de quando em quando, se não achasse um título definitivo, popular e imparcial. Perdendo o que tinha, já perdia a celebridade, além de perder a pintura e pagar mais dinheiro. Ninguém lhe compraria uma tabuleta condenada. Já era muito ter o nome e o título no Almanaque de Laemmert, onde podia lê-lo algum abelhudo e ir com outros, puni-lo do que estava impresso desde o princípio do ano...
—Isso não, interrompeu Aires; o senhor não há de recolher a edição de um almanaque.
E depois de alguns instantes: —Olhe, dou-lhe uma idéia. que pode ser aproveitada, e, se não a achar boa, tenho outra à mão. e será a última. Mas eu creio que qualquer delas serve. Deixe a tabuleta pintada como está, e à direita, na ponta, por baixo do título, mande escrever estas palavras que explicam o título: "Fundada em 1860". Não foi em 1860 que abriu a casa? —Foi, respondeu Custódio.
—Pois...
Custódio refletia. Não se lhe podia ler sim nem não; atônito, a boca entreaberta, não olhava para o diplomata, nem para o chão nem para as paredes ou móveis, mas para o ar. Como Aires insistisse, ele acordou a confessou que a idéia era boa. Realmente, mantinha o título e tirava-lhe o sedicioso, que crescia com o fresco da pintura. Entretanto, a outra idéia podia ser igual ou melhor, e quisera comparar as duas.
—A outra idéia não tem a vantagem de pôr a data à fundação da casa, tem só a de definir o título, que fica sendo o mesmo, de uma maneira alheia ao regímen. Deixe-lhe estar a palavra império e acrescente-lhe embaixo, ao centro, estas duas, que não precisam ser graúdas: das leis. Olhe, assim, concluiu Aires, sentando-se à secretária, e escrevendo em uma tira de papel o que dizia.
Custódio leu, releu e achou que a idéia era útil; sim, não lhe parecia má. Só lhe viu um defeito, sendo as letras de baixo menores. podiam não sólidas lidas tão depressa e claramente como as de cima, e estas é que se meteriam pelos olhos ao que passasse. Daí a que algum político ou sequer inimigo pessoal não entendesse logo, e... A primeira idéia, bem considerada, tinha o mesmo mal, e ainda este!outro: pareceria que o confeiteiro, marcando a data da fundação, fazia timbre em ser antigo. Quem sabe se não era pior que nada? —Tudo é pior que nada.
—Procuremos.
Aires achou outro título, o nome da rua, "Confeitaria do Catete". sem advertir que havendo outra confeitaria na mesma rua, era atribuir exclusivamente à do Custódio a designação local. Quando o vizinho lhe fez tal ponderação, Aires achou-a justa, e gostou de ver a delicadeza de sentimentos do homem: mas logo depois descobriu que o que fez falar o Custodio foi a idéia de que esse título ficava comum às duas casas. Muita gente não atinaria com o título escrito e compraria na primeira que lhe ficasse à mão, de maneira que só ele faria as despesas da pinturas e ainda por cima perdia a freguesia. Ao perceber isto, Aires não admirou menos a sagacidade de um homem que em meio de tantas tribulações. contava os maus frutos de um equívoco. Disse-lhe então que o melhor seria pagar a despesa feita e não pôr nada, a não ser que preferisse o seu próprio nome: "Confeitaria do Custódio". Muita gente certamente lhe não conhecia a casa por outra designação. Um nome. o Próprio nome do dono, não tinha significação política ou figuração história, ódio nem amor, nada que chamasse a atenção dos dous regimens, e conseguintemente que pusesse em perigo os seus pastéis de Santa Clara. menos ainda a vida do proprietário e dos empregados. Por que é que não adotava esse alvitre? Gastava alguma cousa com a troca de uma palavra por outra, Custódio em vez de Império, mas as revoluções trazem sempre despesas.
—Sim vou pensar, Excelentíssimo. Talvez convenha esperar um ou dous dias, a ver em que param as modas, disse Custódio agradecendo.
Curvou-se, recuou e saiu. Aires foi à janela para vê-lo atravessar a rua. Imaginou que ele levaria da casa do ministro aposentado um ilustre particular que faria esquecer por instantes a crise da tabuleta. Nem tudo são despesas na vida, e a glória das relações podia amaciar as agruras deste mundo. Não acertou desta vez. Custódio atravessou a rua, sem parar nem olhar para trás, e enfiou pela confeitaria dentro com todo o seu desespero.
Que, em meio de tão graves sucessos, Aires tivesse bastante pausa e claridade para imaginar tal descoberta no vizinho, só se pode explicar pela incredulidade com que recebera as notícias. A própria aflição de Custódio não lhe dera fé. Vira nascer e morrer muito boato falso. Uma de suas máximas é que o homem vive para espalhar a primeira invenção de rua, e que tudo se fará crer a cem pessoas juntas ou separadas. Só às duas horas da tarde, quando Santos lhe entrou em casa, acreditou na queda do império.
—É! verdade, conselheiro, vi descer as tropas pela Rua do Ouvidor, ouvi as aclamações à república. As lojas estão fechadas, os bancos também, e o pior é se não abrem mais, se vamos cair na desordem pública — é uma calamidade.
Aires quis aquietar-lhe o coração. Nada se mudaria; o regímen, sim, era possível, mas também se muda de roupa sem trocar de pele. Comércio é preciso. Os bancos são indispensáveis. No sábado, ou quando muito na segunda-feira, tudo voltaria ao que era na véspera, menos a constituição.
—Não sei, tenho medo, conselheiro.
—Não tenha medo. A baronesa já sabe o que há? —Quando eu saí de casa, não sabia, mas agora é provável.
—Pois vá tranqüilizá-la — naturalmente está aflita.
Santos receava os fuzilamentos; por exemplo, se fuzilassem o imperador, e com ele as pessoas de sociedade? Recordou que o Terror... Aires tirou-lhe o Terror da cabeça. As ocasiões fazem as revoluções, disse ele, sem intenção de rimar, mas gostou que rimasse, para dar forma fixa à idéia. Depois lembrou a índole branda do povo. O povo mudaria de governo, sem tocar nas pessoas. Haveria lances de generosidade. Para provar o que dizia referiu um caso que lhe contara um velho amigo, o Marechal Beaurepaire Rohan. Era no tempo da Regência. O imperador fora ao Teatro de S. Pedro de Alcântara. No fim do espetáculo, o amigo, então moço, ouviu grande rumor do lado da igreja de S. Francisco, e correu a saber o que era. Falou a um homem, que bradava indignado, e soube dele que o cocheiro do imperador não tirara o chapéu no momento em que este chegara à porta para entrar no coche; o homem acrescentou: "Eu sou ré..." Naquele tempo os republicanos por brevidade eram assim chamados. "Eu sou ré, mas não consinto que faltem ao respeito a este menino!" Nenhuma feição de Santos mostrou apreciar ou entender aquele rasgo anônimo. Ao contrário, todo ele parecia entregue ao presente, ao momento, ao comércio fechado, aos bancos sem operações, ao receio de uma suspensão total de negócios, durante prazo indeterminado. Cruzava e descruzava as pernas. Afinal ergueu-se e suspirou.
—Então, parece-lhe?...
—Que descanse.
Santos aceitou o conselho, mas vai muito do aceitar ao cumprir, e a aparência era mui diversa do coração. O coração batia-lhe. A cabeça via esboroar-se tudo. Quis despedir-se, mas fez duas ou três investidas antes de pousar o pé fora do gabinete e caminhar para a escada. Instava pela certeza. Conquanto tivesse visto e ouvido a república, podia ser... Em todo caso, a paz é que era necessária, e haveria paz? Aires inclinava-se a crer que sim, e novamente o convidou a descansar.
—Até logo, concluiu.
—Por que não vai lá jantar conosco? —Tenho de jantar com um amigo, no Hotel dos Estrangeiros. Depois, talvez, ou amanhã. Vá, vá tranqüilizar a baronesa, e os rapazes. Os rapazes estarão em paz? Esses brigam, com certeza; vá pô-los em ordem.
—O senhor podia ajudar-me nisso. Vá lá de noite.
—Pode ser; se puder, vou. Amanhã com certeza.
Santos saiu; tinha o carro à espera, entrou e seguiu para Botafogo. Não levava a paz consigo, não a poderia dar à mulher, nem à cunhada, nem aos filhos. Quisera chegar a casa, por medo da rua, mas quisera também ficar na rua, por não saber que palavras nem que conselhos daria aos seus. O espaço do carro era pequeno e bastante para um homem; mas, enfim, não viveria ali a tarde inteira. Ao demais, a rua estava quieta. Via gente à porta das lojas. No Largo do Machado viu outra que ria, alguma calada, havia espanto, mas não havia propriamente susto.
Quando Santos chegou a casa, Natividade estava inquieta, sem notícia exata e definitiva dos acontecimentos. Não sabia da república. Não sabia do marido nem dos filhos. Aquele saíra antes dos primeiros rumores, estes iam fazer a mesma cousa, logo que os boatos chegaram. O primeiro gesto da mãe foi para impedir que os filhos saíssem, mas não pôde, era tarde. Não os podendo reter, pegou-se com a Virgem Maria, a fim de que os poupasse, e esperou. A irmã fez o mesmo. Era perto de meio-dia; foi então que os minutos entraram a parecer séculos.
A ânsia da mãe era naturalmente maior que a da tia. Natividade via andar o tempo com ferros aos pés. Não havia alvoroço que atasse um par de asas àquelas horas longas do relógio da casa, nem aos do cinto, o dela e o da irmã; todos eles coxeavam de ambos os ponteiros. Enfim, ouviu na areia do jardim as rodas de um carro; era Santos.
Natividade acudiu ao patamar da escada. Santos subiu, e as mãos de ambos estenderam-se e agarraram-se. Longa vida conjunta acaba por fazer da ternura uma cousa grave e espiritual. Entretanto, parece que o gesto do marido não foi original, mas secundário, filho ou imitativo do da mulher. Pode ser que a corda da sensibilidade fosse menos vibrante na lira dele que na dela, posto que muitos anos atrás, aquele outro gesto no coupé, quando voltavam da missa de S. Domingos, lembras-te... Sobre isto escrevi agora algumas linhas, que não ficariam mal, se as acabasse, mas recuo a tempo, e risco-as. Não vale a pena ir à cata das palavras riscadas. Menos vale supri-las.
Que nos bastam as quatro mãos apertadas. Natividade perguntou pelos filhos. Santos opinou que não tivesse medo. Não havia nada: tudo parecia estar como no dia anterior, as ruas sossegadas, as caras mudas. Não correria sangue, o comércio ia continuar. Toda a animação de Aires tinha agora brotado nele, com a mesma verdura e o mesmo estilo.
Os filhos chegaram tarde, cada um por sua vez, e Pedro mais cedo que Paulo. A melancolia de um ia com a alma da casa, a alegria de outro destoava desta, mas tais eram uma e outra que, apesar da expansão da segunda, não houve repressão nem briga. Ao jantar, falaram pouco. Paulo referia os sucessos amorosamente. Conversara com alguns correligionários e soube do que se passara à noite e de manhã, a marcha e a reunião dos batalhões no campo as palavras de Ouro Preto ao Marechal Floriano, a resposta deste, a aclamação da República. A família ouvia e perguntava, não discutia, e esta moderação contrastava com a glória de Paulo. O silêncio de Pedro principalmente era como um desafio. Não sabia Paulo que a própria mãe é que pedira ao irmão com muitos beijos, motivo que em tal momento, ia com o aperto do coração do rapaz.
O coração de Paulo, ao contrário, era livre, deixava circular o sangue, como a felicidade. Os sentimentos republicanos, em que os princípios se incrustavam, viviam ali tão fortes e quentes, que mal deixavam ver o abatimento de Pedro e o acanhamento da outra gente sua. Ao fim do jantar, bebeu à República, mas calado, sem ostentação, apenas olhando para o teto, e levantando o copo um tantinho mais que de costume. Ninguém replicou por outro gesto ou palavra.
Certamente, o moço Pedro quis dizer alguma frase de piedade relativamente ao regímen imperial e às pessoas de Bragança, mas a mãe quase que não tirava os olhos dele, como impondo ou pedindo silêncio. Demais, ele não cria nada mudado; a despeito de decretos e proclamações, Pedro imaginava que tudo podia ficar como dantes, alterado apenas o pessoal do governo. Custa pouco, dizia ele baixinho à mãe, ao deixarem a mesa; é só o imperador falar ao Deodoro.
Paulo saiu, logo depois do jantar, prometendo vir cedo. A mãe, receosa de o ver metido em barulhos, não queria que ele saísse; mas outro receio fê-la consentir, e este era que os dous irmãos brigassem finalmente. Assim um medo vence a outro, e a gente acaba por dar o que negou. Não é menos certo que ela raciocinou alguns minutos antes de resolver, do mesmo modo que eu escrevi uma página antes da que vou escrever agora; mas ambos nós, Natividade e eu, acabamos por deixar que os atos se praticassem, sem oposição dela, nem comentário meu.
Vieram amigos da casa, trazendo notícias e boatos. Variavam pouco e geralmente não havia opinião segura acerca do resultado. Ninguém sabia se a vitória do movimento era um bem, se um mal, apenas sabiam que era um fato. Daí a ingenuidade com que alguém propôs o voltarete do costume, e a boa vontade de outros em aceitá-lo. Santos, embora declarasse que não jogava, mandou pôr as cartas e os tentos, mas os outros opinaram que sempre faltava um parceiro, e sem ele, não havia graça. Quis resistir — não era bonito que no próprio dia em que o regímen caíra ou ia cair, entregasse o espírito a recreações de sociedade... Não pensou isto em voz alta nem baixa, mas consigo, e talvez o leu no rosto da mulher. Acharia um pretexto para resistir, se buscasse algum, mas amigos e cartas não deixavam buscar nada. Santos acabou aceitando. Provavelmente era essa mesma a inclinação íntima. Muitas há que precisam ser atraídas cá fora como um favor ou concessão da pessoa. Enfim, o basto e a espadilha fizeram naquela noite o seu ofício, como as mariposas e os ratos, os ventos e as ondas, o lume das estrelas e o sono dos cidadãos.
Saindo de casa, Paulo foi à de um amigo, e os dous entraram a buscar outros da mesma idade e igual intimidade. Foram aos jornais, ao quartel do campo, e passaram algum tempo diante da casa de Deodoro. Gostavam de ver os soldados, a pé ou a cavalo, pediam licença, falavam-lhes, ofereciam cigarros. Era a única concessão destes; nenhum lhes contou o que se passara, nem todos saberiam nada.
Não importa, iam cheios de si. Paulo era o mais entusiasta e convicto. Aos outros valia só a mocidade, que é um programa, mas o filho de Santos tinha frescas todas as idéias do novo regímen, e possuía ainda outras que não via aceitar; bater-se-ia por elas. Trazia até o desejo de achar alguém na rua, que soltasse um grito, já agora sedicioso, para lhe quebrar a cabeça com a bengala. Note-se que esquecera ou perdera a bengala. Não deu por falta dela; se desse, bastavam-lhe os braços e as mãos.
Propôs cantarem a Marselhesa; os outros não quiseram ir tão longe, não por medo, senão de cansados. Paulo, que resistia mais que eles à fadiga, lembrou-lhes esperar a aurora.
—Vamos esperá-la do alto de um morro, ou da Praia do Flamengo; teremos tempo de dormir amanhã.
—Eu não posso, disse um.
Os outros repetiram a recusa, e assentaram de ir para suas casas. Era perto de duas horas Paulo acompanhou-os a todos, e só depois de ver o último recolhido foi sozinho para Botafogo.
Quando entrou, deu com a mãe que esperava por ele, inquieta e arrependida de o haver deixado sair. Paulo não achou desculpa e censurou a mãe por não dormir, à espera dele. Natividade confessou que não teria sono, antes de o saber em casa são e salvo. Falavam baixo e pouco; tendo-se beijado antes, beijaram-se depois e despediram-se.
—Olha, disse Natividade, se achares Pedro acordado não lhe contes nem lhe perguntes nada; dorme, e amanhã saberemos tudo e o mais que se passar esta noite.
Paulo entrou no quarto pé ante pé. Era ainda aquele vasto quarto em que os dous gêmeos brigaram por causa de duas velhas gravuras. Robespierre e Luís XVI. Agora, havia mais que os retratos, uma revolução de poucas horas e um governo fresco. Obedecendo ao conselho da mãe, Paulo não quis saber se Pedro dormia, posto desconfiasse que não. Efetivamente, não. Pedro viu as cautelas de Paulo, e cumpriu também os conselhos da mãe; fingiu que não via nada. Até aí os conselhos; mas um pouco de glória fez com que Paulo cantarolasse entre os dentes, baixinho, para si, a primeira estrofe da Marselhesa que os amigos tinham recusado fora: Allons, enfants de la patrie, Le jour de gloire est arrzvé! Pedro percebeu antes pela toada que pela letra, e concluiu que a intenção do outro era afligi-lo. Não era, mas podia ser. Vacilou entre a réplica e o silêncio, até que uma idéia fantástica lhe atravessou o cérebro, cantarolar, também baixinho, a segunda parte da estrofe: "Entendez-vous dans vos campagnes...", que alude às tropas estrangeiras, mas desviada do natural sentido histórico, para restringila às tropas nacionais. Era um desforço vago, a idéia passou depressa. Pedro contentou-se de simular a indiferença suprema do sono. Paulo não acabou a estrofe; despiu-se agitado, sem tirar o pensamento da vitória dos seus sonhos políticos. Não se meteu logo na cama; foi primeiro à do irmão, a ver se dormia. Pedro respirava tão naturalmente, como se não perdera nada. Teve ímpeto de acordá-lo, bradar-lhe que perdera tudo, se alguma cousa era a instituição derribada. Recuou a tempo e foi meter-se entre os lençóis.
Nenhum dormia. Enquanto o sono não chegava, iam pensando nos acontecimentos do dia. ambos espantados de como foram fáceis e rápidos. Depois cogitavam no dia seguinte e nos efeitos últeriores. Não admira que não chegassem à mesma conclusão.
—Como diabo é que eles fizeram isto, sem que ninguém desse pela cousa? refletia Paulo. Podia ter sido mais turbulento. Conspiração houve, decerto, mas uma barricada não faria mal. Seja como for, venceu-se a campanha. O que é preciso é não deixar esfriar o ferro, batê-lo sempre, e renová-lo. Deodoro é uma bela figura. Dizem que a entrada do marechal no quartel, e a saída, puxando os batalhões, foram esplêndidas. Talvez fáceis demais; é que o regímen estava podre e caiu por si...
Enquanto a cabeça de Paulo ia formulando essas idéias, a de Pedro ia pensando o contrário; chamava o movimento um crime.
—Um crime e um disparate, além de ingratidão; o imperador devia ter pegado os principais cabeças e mandá-los executar. Infelizmente, as tropas iam com eles. Mas nem tudo acabou. Isto é fogo de palha; daqui a pouco está apagado, e o que antes era torna a ser. Eu acharei duzentos rapazes bons e prontos, e desfaremos esta caranguejola. A aparência é que dá um ar de solidez, mas isto é nada. Hão de ver que o imperador não sai daqui, e, ainda que não queira, há de governar; ou governará a filha, e, na falta dela, o neto. Também ele ficou menino e governou. Amanhã é tempo; por ora tudo são flores. Há ainda um punhado de homens...
A reticência final dos discursos de ambos quer dizer que as idéias se iam tornando esgarçadas, nevoentas e repetidas, até que se perderam e eles dormiram. Durante o sono cessou a revolução e a contra-revolução, não houve monarquia nem república, D. Pedro II nem Marechal Deodoro, nada que cheirasse a política. Um e outro sonharam com a bela enseada de Botafogo, um céu claro, uma tarde clara e uma só pessoa: Flora.
Floeta abriu os olhos de ambos, e esvaiu-se tão depressa que eles mal puderam ver a barra do vestido e ouvir uma palavrinha meiga e remota. Olharam um para o outro, sem rancor aparente. O receio de um e a esperança de outro deram tréguas. Correram aos jornais. Paulo, meio tonto, temia alguma traição sobre a madrugada. Pedro tinha uma idéia vaga de restauração, e contava ler nas folhas um decreto imperial de anistia. Nem traição nem decreto. A esperança e o receio fugiram deste mundo.
Enquanto eles sonhavam com Flora, esta não sonhou com a república. Teve uma daquelas noites em que a imaginação dorme também, sem olhos nem ouvidos, ou, quando muito, a retina não deixa ver claro, e as orelhas confundem o som de um rio com o latir de um cão remoto. Não posso dar melhor definição, nem ela é precisa; cada um de nós terá tido dessas noites mudas e apagadas.
Não sonhou sequer com música; e, aliás, tocara antes algumas das suas páginas queridas. Não as tocou somente por gostar delas, senão por fugir à consternação dos pais, que era grande. Nenhum destes podia crer que as instituições tivessem caído, outras nascido, tudo mudado. D. Cláudia ainda apelava para o dia seguinte e perguntava ao marido se vira bem, e o que é que vira; ele mordia os beiços, batia na perna, erguia-se, dava alguns passos, e tornava a narrar os acontecimentos, as notícias coladas às portas dos jornais, a prisão dos ministros, a situação, tudo extinto, extinto, extinto...
Flora não era avessa à piedade, nem à esperança, como sabeis; mas não ia com a agitação dos pais, e meteu-se com o seu piano e as suas músicas. Escolheu não sei que sonata. Tanto bastou para lhe tirar o presente. A música tinha para ela a vantagem de não ser presente, passado ou futuro; era uma cousa fora do tempo e do espaço, uma idealidade pura. Quando parava, sucedia-lhe ouvir alguma frase solta do pai ou da mãe: "...Mas como foi que...?" — "Tudo às escondidas..." — "Há sangue?" Às vezes um deles fazia algum gesto, e ela não via o gesto. O pai, com a alma trôpega, falava muito e incoerente. A mãe trazia outro vigor. Já lhe sucedia calar por instantes, como se pensasse, ao contrário do marido que, em se calando, coçava a cabeça, apertava as mãos ou suspirava, quando não ameaçava o tecto com o punho.
—Lá, lá, dó, ré, sol, ré, ré, lá, ia dizendo o piano da filha, por essas ou por outras notas, mas eram notas que vibravam para fugir aos homens e suas dissensões.
Também se pode achar na sonata de Flora uma espécie de acordo com a hora presente. Não havia governo definitivo. A alma da moca ia com esse primeiro albor do dia. ou com esse derradeiro crepúsculo da tarde, — como queiras, — em que nada é tão claro ou tão escuro que convide a deixar a cama ou acender velas. Quando muito, ia haver um governo provisório. Flora não entendia de formas nem de nomes A sonata trazia a sensação da falta absoluta de governo, a anarquia da inocência primitiva naquele recanto do Paraíso que o homem perdeu por desobediente, e um dia ganhará, quando a perfeição trouxer a ordem eterna e única. Não haverá então progresso nem regresso, mas estabilidade. O seio de Abraão agasalhará todas as cousas e pessoas, e a vida será um céu aberto. Era o que as teclas lhe diziam sem palavras, ré, ré, lá, sol, lá lá, dó...
Os sucessos vieram vindo, à medida que as flores iam nascendo. Destas houve que serviram ao último baile do ano. Outras morreram na véspera. Poetas de um e outro regímen tiraram imagem do fato para cantarem a alegria e a melancolia do mundo. A diferença é que a segunda abafava os seus suspiros, enquanto a primeira levava longe os seus tripúdios. O metal das trompas dava outro som que o das harpas. As flores é que continuavam a nascer e morrer, igual e regularmente.
D. Cláudia colheu as rosas do último baile do ano, primeiro da República, e adornou a filha com elas. Flora obedeceu e aceitou-as. Pai de família antes de tudo, Batista acompanhou a esposa e a filha ao baile. Também lá foi Paulo, pela moça e pelo regímen. Se, em conversa com o ex-presidente de província, disse todo o bem que pensava do Governo Provisório, não lhe ouviu palavras de acordo nem de contestação. Não entrou mais fundo na confissão do homem, porque a moca o atraía, e ele gostava mais dela que do pai.
Flora viu uma semelhança entre o baile da ilha Fiscal e este, apesar de particular e modesto. Este era dado por pessoa que vinha dos tempos da propaganda e um dos ministros lá esteve, ainda que só meia hora. Daí a ausência de Pedro, apesar de convidado. Flora sentiu a falta de Pedro, como sentira a de Paulo na ilha; tal era a semelhança das duas festas. Ambas traziam a ausência de um gêmeo.
—Por que é que seu irmão não veio? perguntou ela.
Paulo enfiou; depois de alguns instantes: —Pedro é teimoso, disse. Teimou em recusar o convite. Crê naturalmente que a monarquia levou a arte de dançar. Não faça caso; é um lunático.
—Não diga isso.
—Acha também que a dança se foi com o império? —Não, a prova é que estamos dançando. Não; digo que lhe não chame nomes feios.
—Parece-lhe então que Pedro é um rapaz de juízo? —Certamente, como o senhor.
—Mas...
Paulo ia a perguntar-lhe qual deles, tendo ela de jurar por um ou por outro, lhe mereceria o juramento; mas recuou a tempo. Então ela falou do calor, e ele achou que sim, que estava quente. Acharia que estava frio, se ela se queixasse de frio. Flora, se só cedesse à vista, era também capaz de aceitar todas as opiniões de Paulo, para ir com ele. Em verdade, Paulo tinha agora um ar brilhante e petulante, olhava por cima, firme em que os seus escritos de um ano é que haviam feito a República, posto que incompleta, sem certas idéias que expusera e defendera, e teriam de vir um dia, breve. Tal ia dizendo à moça, e ela escutava com prazer, sem opinião; era o gosto de o escutar. Quando a lembrança de Pedro surgia na cabeça da moça, a tristeza empanava a alegria, mas a alegria vencia de pressa a outra, e assim, acabou o baile. Então as duas, tristeza e alegria, agasalharam-se no coração de Flora, como as suas gêmeas que eram.
O baile acabou. O capítulo é que não acaba sem que deixe um pouco de espaço a quem quiser pensar naquela criatura. Pai nem mãe podiam entendê-la, os rapazes também não, e provavelmente Santos e Natividade menos que ninguém. Tu, mestra de amores ou aluna deles, tu, que escutas a diversos, concluis que ela era Custa pôr o nome do ofício. Se não fosse a obrigação de contar a história com as próprias palavras, preferia calá-lo, mas tu sabes qual é ele, e aqui fica. Concluis que Flora era namoradeira, e conclui mal.
Leitora, é melhor negar já isto que esperar pelo tempo. Flora não conhecia as doçuras do namoro, e menos ainda se podia dizer namoradeira de ofício. A namoradeira de ofício é a planta das esperanças e alguma vez das realidades, se a vocação o impõe e a ocasião o permite. Também é preciso ter em lembrança aquilo de um publicista, filho de Minas e do outro século, que acabou senador, e escrevia contra os ministros adversários: "Pitangueira não dá manga".
Não, Flora não dava para namorados.
A prova disto é que no Estado em que viveu alguns meses de 1891, com o pai e a mãe, para o fim que direi adiante, ninguém alcançou o menor dos seus olhares amigos ou sequer complacentes. Mais de um rapaz consumiu o tempo em se fazer visto e atraído dela. Mais de uma gravata, mais de uma bengala, mais de uma luneta levaram lhe as cores, os gestos e os vidros, sem obter outra cousa que a atenção cortês e acaso uma palavra sem valor.
Flora só se lembrava dos gêmeos. Se nenhum deles a esqueceu, ela não os perdeu de memória. Ao contrário, escrevia por todos os cor reios a Natividade para se fazer lembrada de ambos. As cartas falavam pouco da terra ou da gente, e não diziam mal nem bem. Usavam muito a palavra saudades, que cada um dos dous gêmeos lia para si.
Também eles a escreviam nas cartas que mandavam a D. Cláudia e a Batista, com a mesma intenção duplicada e misteriosa, que ela entendia muito bem.
Tais eram de longe, ela e eles. A rixa velha, que os desunia na vida, continuava a desuni-los no amor. Podiam amar cada um a sua moça, casar com ela e ter os seus filhos, mas preferiam amar a mesma, e não ver o mundo por outros olhos, nem ouvir melhor verbo, nem diversa música, antes, durante e depois da comissão do Batista.
Lá me escapou a palavra. Sim, foi uma comissão dada ao pai, e da qual não sei nada, nem ela. Negócio reservado. Flora chamava-lhe comissão do inferno. O pai, sem ir tão fundo, concordava mentalmente com ela — verbalmente, desmentia a definição.
—Não digas isso, Flora; é comissão de confiança para fins nobremente políticos.
Creio que sim, mas daí a saber o objeto especial e real, ia largo espaço. Também não se sabe como foi parar à mãos de Batista aquele recado do governo. Sabe-se que ele não desprezou a escolha, quando um amigo íntimo correu a chamá-lo ao palácio do generalíssimo. Viu que era reconhecer nele muita finura e capacidade de trabalho. Não é menos certo, porém, que a comissão entrava a aborrecê-lo, posto que na correspondência oficial dissesse exatamente o contrário. Se tais papéis mostrassem sempre o coração da gente, Batista, cujas instruções eram, aliás, de concórdia, parecia querer levar a concórdia a ferro e fogo; mas o estilo não é o homem. O coração de Batista fechava-se, quando ele escrevia, e deixava ir a mão adiante, com a chave do coração apertada... "Já é tempo, suspirava o músculo, já é tempo de um lugar de governador." Quanto a D. Cláudia, não queria ver acabada a comissão, que restituía ao esposo a ação política; faltava-lhe somente uma cousa, oposição. Nenhum jornal dizia mal dele. Aquele prazer de ler todas as manhãs as descomposturas dos adversários, lê-las e relê-las com os seus nomes feios, como látegos de muitas pontas, que lhe rasgavam as carnes e a excitavam ao mesmo tempo, esse prazer não lhe dava a comissão reservada. Ao contrário, havia uma espécie de aposta em achar o comissário justo, eqüitativo e conciliador, digno de admiração, tipo cívico, caráter sem mácula. Tudo isto ela conheceu outrora, mas para lhe achar sabor foi sempre preciso que viesse entremeado de ralhos e calúnias. Sem eles, era água insossa. Também não tinha aquela parte de cerimônias a que obrigava o sumo cargo, mas não lhe faltavam atenções, e era alguma cousa.
Quando o Marechal Deodoro dissolveu o congresso nacional, em 3 de novembro, Batista recordou o tempo dos manifestos liberais, e quis fazer um. Chegou a principiá-lo, em segredo, empregando as belas frases que trazia de cor, citações latinas, duas ou três apóstrofes. D. Cláudia reteve-o à beira do abismo, com razões claras e robustas. Antes de tudo, o golpe de Estado podia ser um benefício. Serve-se muita vez a liberdade parecendo sufocá-la. Depois, era o mesmo homem que a havia proclamado que convidava agora a nação a dizer o que queria, e a emendar a constituição, salvo nas partes essenciais. A palavra do generalíssimo, como a sua espada, bastava a defender e consumar a obra principiada. D. Cláudia não tinha estilo próprio, mas sabia comunicar o calor do discurso ao coração de um homem de boa vontade. Batista, depois de a escutar e pensar, bateu-lhe no ombro imperativamente: —Tens razão, filha.
Não rasgou o papel escrito; queria guardá-lo como simples lembrança, e a prova é que ia escrever uma carta ao Presidente. D. Cláudia também lhe tirou esta idéia da cabeça. Não havia necessidade de lhe mandar o seu sufrágio; bastava conservar-se na comissão.
—O governo não está satisfeito com você? —Está.
—Vendo que você se conserva, conclui que aprova tudo, e basta.
—Sim, Cláudia, concordou ele após alguns instantes. Ao contrário, qualquer cousa que escrevesse contra a assembléia sediciosa que o Presidente acaba de dissolver, pareceria falta de piedade. Paz aos mortos! Tens razão, filha.
Conservou-se calado, operando, fiel às instruções recebidas. Vinte dias depois, o Marechal Deodoro passava o governo às mãos do Marechal Floriano, o congresso era restabelecido e todos os decretos do dia 3 anulados.
Ao saber de tais fatos, Batista pensou morrer. Ficou sem fala por alguns instantes, e D. Cláudia não achou a menor parcela de animo que lhe desse. Nenhum contara com a marcha rápida dos acontecimentos, uns sobre outros, com tal atropelo que parecia um bando de gente que fugia. Vinte dias apenas; vinte dias de força e sossego, esperanças e grande futuro. Um dia mais e tudo ruiu como casa velha.
Agora é que Batista compreendeu o erro de haver dado ouvidos à esposa. Se tem acabado e publicado o manifesto no dia 4 ou 5, estaria com um documento de resistência na mão para reivindicar um posto de honra qualquer, — ou só estima que fosse. Releu o manifesto; chegou a pensar em imprimi-lo, embora incompleto. Tinha conceitos bons, como este: "O dia da opressão é a véspera da liberdade". Citava a bela Roland caminhando para a guilhotina: "Ó liberdade, quantos crimes em teu nome!" D. Cláudia fez-lhe ver que era tarde, e ele concordou.
—Sim, é tarde. Naquele dia é que não era tarde, vinha à hora própria, para o efeito certo.
Batista amarrotou o papel distraidamente; depois alisou-o e guardou-o. Em seguida, fez um exame de consciência, profundo e sincero. Não devia ter cedido — resistência era o melhor; se tem resistido às palavras da mulher, a situação seria outra. Apalpou-se, achou que sim, que podia muito bem haver-lhe trancado os ouvidos e passado adiante. Insistiu muito neste ponto. Se pudesse, faria voltar atrás o tempo, e mostraria como é que a alma escolhe de si mesma o melhor dos partidos. Não era preciso saber nada do que anteriormente sucedeu; a consciência dizia-lhe que, em situação idêntica à do dia 3, faria outra cousa... Oh! com certeza! faria cousa muito diversa, e mudaria o seu destino.
Um ofício ou telegrama veio arrancar Batista à comissão política e reservada. A volta para o Rio de Janeiro foi breve e triste, sem os epítetos que o haviam regalado por alguns meses, nem acompanhamento de amigos. Só uma pessoa vinha alegre, a filha, que rezara todas as noites pela terminação daquele exílio.
—Parece que estás contente com o desastre de teu pai, disse-lhe a mãe já a bordo.
—Não, mamãe; alegro-me de ver que acabou esta canseira. Papai pode muito bem fazer política no Rio de Janeiro, onde é muito apreciado. A senhora verá. Eu, se fosse papai, apenas desembarcasse, ia logo ao marechal explicar tudo, mostrar as instruções e dizer o que tinha feito — dizia mais que a dispensa veio muito a propósito, a fim de não parecer que ficara amofinado. Depois pedia-lhe para trabalhar lá mesmo...
D. Cláudia, a despeito do amargor dos tempos, gostou de ver que a filha pensava e dava conselhos em política. Não advertiu, como fez o leitor, que a alma do discurso da moça era não sair da capital, fazer aqui mesmo o seu congresso, que em breve seria uma só assembléia legislativa, como no Rio Grande do Sul; mas a qual das camaras, Pedro ou Paulo, caberia esse único poder político? Eis o que ela mesma não sabia.
Ambos se lhe apresentaram a bordo, logo que o paquete entrou no porto do Rio de Janeiro. Não foram em duas lanchas, foram na mesma, e saltaram com tal presteza para a escada, que escaparam de cair ao mar. Talvez fosse o melhor desfecho do livro. Ainda assim não acaba mal o capítulo, porque a razão da presteza com que eles saltaram para a escada foi a ambição de ser o primeiro que cumprimentasse a moça; aposta de amor, que ainda uma vez os igualou na alma dela. Enfim chegaram, e não consta qual efetivamente a cumprimentou primeiro; pode ser que ambos.
No cais Pharoux esperavam por eles três carruagens, — dous coupés e um landau, com três belas parelhas de cavalos. A gente Batista ficou lisonjeada com a fineza da gente Santos, e entrou no landau. Os gêmeos foram cada um no seu coupé. A primeira carruagem tinha o seu cocheiro e o seu lacaio, fardados de castanho, botões de metal branco, em que se podiam ver as armas da casa. Cada uma das outras tinha apenas o cocheiro, com igual libré. E todas três se puseram a andar, estas atrás daquela, os animais batendo rijo e compassado, a golpes certos, como se houvessem ensaiado, por longos dias, aquela recepção. De quando em quando, encontravam outros trens, outras librés, outras parelhas, a mesma beleza e o mesmo luxo, A capital oferecia ainda aos recém-chegados um espetáculo magnífico. Vivia-se dos restos daquele deslumbramento e agitação, epopéia de ouro da cidade e do mundo, porque a impressão total é que o mundo inteiro era assim mesmo. Certo, não lhe esqueceste o nome, encilhamento, a grande quadra das empresas e companhias de toda espécie. Quem não viu aquilo não viu nada. Cascatas de idéias, de invenções, de concessões rolavam todos os dias, sonoras e vistosas para se fazerem contos de réis, centenas de contos, milhares, milhares de milhares, milhares de milhares de milhares de contos de réis. Todos os papéis, aliás ações, saíam frescos e eternos do prelo. Eram estradas de ferro, bancos, fábricas, minas, estaleiros, navegação, edificação, exportação, importação, ensaques, empréstimos, todas as uniões, todas as regiões, tudo o que esses nomes comportam e mais o que esqueceram. Tudo andava nas ruas e praças, com estatutos, organizadores e listas. Letras grandes enchiam as folhas públicas, os títulos sucediam-se, sem que se repetissem, raro morria, e só morria o que era frouxo, mas a princípio nada era frouxo. Cada ação trazia a vida intensa e liberal, alguma vez imortal, que se multiplicava daquela outra vida com que a alma acolhe as religiões novas. Nasciam as ações a preço alto, mais numerosas que as antigas crias da escravidão, e com dividendos infinitos.
Pessoas do tempo, querendo exagerar a riqueza, dizem que o dinheiro brotava do chão, mas não é verdade. Quando muito, caía do céu. Cândido e Cacambo... Ai, pobre Cacambo nosso! Sabes que é o nome daquele índio que Basílio da Gama cantou no Uruguai. Voltaire pegou dele para o meter no seu livro, e a ironia do filósofo venceu a doçura do poeta. Pobre José Basílio! tinhas contra ti o assunto estreito e a língua escusa. O grande homem não te arrebatou Lindóia, felizmente, mas Cacambo é dele, mais dele que teu, patrício da minha alma.
Candido e Cacambo, ia eu dizendo, ao entrarem no Eldorado, conta Voltaire que viram crianças brincando na rua com rodelas de ouro, esmeralda e rubi; apanharam algumas, e na primeira hospedaria em que comeram quiseram pagar o jantar com duas delas. Sabes que o dono da casa riu às bandeiras despregadas, já por quererem pagar-lhe com pedras do calçamento, já porque ali ninguém pagava o que comia, era o governo que pagava tudo. Foi essa hilaridade do hospedeiro, com a liberalidade atribuída ao Estado, que fez crer iguais fenômenos entre nós, mas é tudo mentira.
O que parece ser verdade é que as nossas carruagens brotavam do chão. As tardes, quando uma centena delas se ia enfileirar no Largo de S. Francisco de Paula, à espera das pessoas, era um gosto subir a Rua do Ouvidor, parar e contemplá-las. As parelhas arrancavam os olhos à gente; todas pareciam descer das rapsódias de Homero, posto fossem corcéis de paz. As carruagens também. Juno certamente as aparelhara com suas correias de ouro, freios de ouro, rédeas de ouro, tudo de ouro incorruptível. Mas nem ela nem Minerva entravam nos veículos de ouro para os fins da guerra contra Ílion. Tudo ali respirava a paz. Cocheiros e lacaios, barbeados e graves, esperando tesos e compostos, davam uma bela idéia do ofício. Nenhum aguardava o patrão, deitado no interior dos carros, com as pernas de fora. A impressão que davam era de uma disciplina rígida e elegante, aprendida em alta escola e conservada pela dignidade do indivíduo.
"Casos há, — escrevia o nosso Aires — em que a impassibilidade do cocheiro na boléia contrasta com a agitação do dono no interior carruagem, fazendo crer que é o patrão que, por desfastio, trepou à boléia e leva o cocheiro a passear."
Antes de continuar, é preciso dizer que o nosso Aires não se referia vagamente ou de modo genérico a algumas pessoas, mas a uma só pessoa particular. Chamava-se então Nóbrega; outrora não se chamava nada, era aquele simples andador das almas que encontrou Natividade e Perpétua na Rua de S. José, esquina da Misericórdia. Não esqueceste que a recente mãe deitou uma nota de dous mil-réis à bacia do andador. A nota era nova e bela; passou da bacia à algibeira, no fundo de um corredor, não sem algum combate.
Poucos meses depois, Nóbrega abandonou as almas a si mesmas, e foi a outros purgatórios, para os quais achou outras opas, outras bacias e finalmente outras notas, esmolas de piedade feliz. Quero dizer que foi a outras carreiras. Com pouco deixou a cidade, e não se sabe se também o pais. Quando tornou, trazia alguns pares de contos de réis, que a fortuna dobrou, redobrou e desdobrou. Enfim, alvoreceu a famosa quadra do "encilhamento". Esta foi a grande opa, a grande bacia, a grande esmola, o grande purgatório. Quem já sabia do andador das almas? A antiga roda perdera-se na obscuridade e na morte. Ele era outro; as feições não eram as mesmas, senão as que o tempo lhe veio compondo e melhorando.
Se a grande bacia, ou qualquer das outras recebeu notas que tivessem o destino da primeira, é o que se não sabe, mas é possível. Foi por esse tempo que Aires o viu de carro, quase a sair pela portinhola fora, cumprimentando muito, espiando tudo. Como o cocheiro e o lacaio (creio que eram escoceses) salvassem a dignidade pessoal da casa, Aires fez a observação do fim do outro capítulo, sem nenhuma intenção geral. Posto não achasse já nenhum conhecido antigo, Nóbrega tinha medo de tornar ao bairro, onde andara a pedir para as primeiras almas. Um dia. porém tais foram as saudades dele que pensou em afrontar o perigo e lá foi. Tinha cócegas de mirar as ruas e as pessoas, recordava as casas e as lojas, um barbeiro, os sobrados de grade de pau, onde mereciam tais e tais moças... Quando ia a ceder. teve outra vez medo e enfiou por outra parte. Só passava de carro; depois quis ver tudo a pé, devagar, parando, se fosse possível, e revivendo o extinto.
Lá se foi a pé: desceu pela Rua de S. José, dobrou a da Misericórdia, foi parar à Praia de Santa Luzia, tornou pela Rua de D. Manuel, enfiou de beco em beco. A princípio olhava de esguelha, rápido. O s olhos no chão. Aqui via a loja de barbeiro, e o barbeiro era outro. Dos sobrados de grade de pau debruçaram-se ainda moças, velhas e meninas e nenhuma era a mesma. Nóbrega foi-se animando e encarando. Talvez esta velha fosse moça, há vinte anos. a moça talvez mamasse, e dá agora de mamar a outra criança. Nóbrega acabou parando e andando devagar.
Voltou mais vezes. Só as casas, que eram as mesmas, pareciam reconhecê-lo, e algumas quase que lhe falavam. Não é poesia. O ex-andador sentia necessidade de ser conhecido das pedras, ouvir-se admirar delas, contar-lhes a vida, obrigá-las a comparar o modesto de outrora com o garrido de hoje, e escutar-lhes as palavras mudas: "Vejam, manas, é ele mesmo". Passava por elas, fitava-as, interrogava-as, quase ria, quase as tocava para sacudi-las com força: "Falem, diabos, falem!" Não confiaria de homem aquele passado, mas às paredes mudas, às grades velhas, às portas gretadas, aos lampiões antigos, se os havia ainda, tudo o que fosse discreto, a tudo quisera dar olhos, ouvidos e boca, um boca que só ele escutasse, e que proclamasse a prosperidade daquele velho andador.
Uma vez, viu a matriz de S. José aberta e entrou. A igreja era a mesma, aqui estão os altares, aqui está a solidão, aqui está o silêncio. Persignou-se, mas não orou — olhava só a um lado e outro, andando na direção do altar-mor. Tinha receio de ver aparecer o sacristão, podia ser o mesmo, e conhecê-lo. Ouviu passos, recuou depressa e saiu.
Ao subir pela Rua de S. José, encostou-se à parede, para deixar passar uma carroça. A carroça subiu a calçada, ele refugiou-se num corredor. O corredor podia ser qualquer; aquele era o próprio em que ele fez a operação da nota de dous mil-réis de Natividade. Olhou bem, era o mesmo. Ao fundo estavam os três ou quatro degraus da primeira escada que dobrava à esquerda e pegava com a grande Sorriu do acaso reviu por um instante aquela manhã, viu no ar a nota de dous mil-réis. Outras lhe teriam vindo às mãos por maneiras assim fáceis, mas nunca lhe esqueceu aquela graciosa folha gravada com tantos símbolos, números, datas e promessas, entregue por uma senhora desconhecida, sabe Deus se a própria Santa Rita de Cássia. Era a sua particular devoção. Sem dúvida, trocou a nota e gastou-a, mas as partes dispersas não foram senão levar a outras notas um convite para a algibeira do dono, e todas acudiram a mancheias, obedientes e caladas, para que não as ouvissem crescer.
Por mais que ele olhasse pela vida dentro, não achava igual obséquio do Céu, ou sequer do inferno. Mais tarde, se alguma jóia lhe levou os olhos, não lhe levou as mãos. Tinha aprendido a respeitar o alheio, ou ganhara com que o comprar. A nota de dous milréis... Um dia. ousando mais, chamou-lhe presente de Nosso Senhor.
Não, leitor, não me apanhas em contradição. Eu bem sei que a princípio o andador das almas atribuiu a nota ao prazer que a dama traria de alguma aventura. Ainda me lembram as palavras dele: "Aquelas duas viram passarinho verde!" Mas se agora atribuía a nota à proteção da santa, não mentia então nem agora. Era difícil atinar com a verdade. A única verdade certa eram os dous mil-réis. Nem se pode dizer que era a mesma em ambos os tempos. Então, a nota de dous mil-réis eqüivalia, pelo menos, a vinte (lembra-te dos sapatos velhos do homem); agora não subia de uma gorjeta de cocheiro, Também não há contradição em pôr a santa agora e a namorada outrora. Era mais natural o contrário, quando era maior a intimidade dele com igreja. Mas, leitor dos meus pecados, amava-se muito em 1871, como já se amava em 1861, 1851 e 1841, não menos que em 1881, 1891 e 1901. O século dirá o resto. E depois, é preciso não esquecer que a opinião do andador das almas acerca de Natividade foi anterior ao gesto do corredor, quando ele agasalhou a nota na algibeira. t duvidoso que, depois do gesto, a opinião fosse a mesma.
Pessoa a quem li confidencialmente o capítulo passado, escreve-me dizendo que a causa de tudo foi a cabocla do Castelo. Sem as suas predições grandiosas, a esmola de Natividade seria mínima ou nenhuma, e o gesto do corredor não se daria por falta de nota. "A ocasião faz o ladrão", conclui o meu correspondente.
Não conclui mal. Há todavia alguma injustiça ou esquecimento, porque as razões do gesto do corredor foram todas pias. Além disso, o provérbio pode estar errado. Numa das afirmações de Aires, que também gostava de estudar adágios, é que esse não estava certo.
—Não é a ocasião que faz o ladrão, dizia ele a alguém — o provérbio está errado. A forma exata deve ser esta: "A ocasião faz o furto; o ladrão nasce feito".
Nóbrega saiu enfim do corredor, mas foi obrigado a deter-se, porque uma mulher lhe estendia a mão: —Meu senhor, uma esmolinha por amor de Deus! Nóbrega meteu a mão no bolso do colete e pegou um níquel, entre dous que lá havia, um de tostão, outro de dous. Pegou o primeiro, mas indo a dar-lho, mudou de idéia; não deu o níquel; disse à velha que esperasse, e entrou mais fundo no corredor. De costas para a rua, introduziu a mão na algibeira das calças e sacou um maço de dinheiro — procurou e achou uma nota de dous mil-réis, não nova, antes velha, tão velha como a mendiga que a recebeu espantada, mas tu sabes que o dinheiro não perde com a velhice.
—Tome lá, murmurou ele.
Quando a mendiga voltou do espanto, Nóbrega acabava de restituir o maço à algibeira e ia a querer sair. O que a mendiga então disse veio entremeado de lágrimas: —Meu senhor! Obrigada, meu senhor! Deus lhe pague! A Virgem Santíssima...
E beijava a nota, e queria beijar a mão que lhe dera a esmola, mas ele a escondeu, como no Evangelho, murmurando que não, que se fosse embora. Em verdade, a palavra da mendiga tinha um som quase místico, uma espécie de melodia do Céu, um coro de anjos e fazia bem fitar-lhe os olhos encarquilhados, a mão trêmula, segurando a nota. Nóbrega não esperou que ela se fosse, saiu, desceu a rua, com as bênçãos da mulher atrás de si; dobrou a esquina, a passo rápido, e aí foi pensando não se sabe em quê.
Atravessou a praça, passou a catedral e a igreja do Carmo, e chegou ao Carceler, onde entregou as botas a um italiano para que lhe engraxasse. Mentalmente, olhava para cima ou para baixo, para a direita ou para esquerda, — em todo caso para longe, — e acabou murmurando esta frase, que tanto podia referir-se à nota como à mendiga, mas provavelmente era à nota: —Talvez fosse a mesma.
Nenhum obséquio, por ínfimo que seja, esquece ao beneficiado. Há exceções. Também há casos em que a memória dos obséquios aflige, persegue e morde, como os mosquitos; mas não é regra. A regra é guardá-los na memória, como as jóias nos seus escrínios; comparação justa, porque o obséquio é muita vez alguma jóia, que o obsequiado esqueceu de restituir.
A família Batista foi aposentada em casa de Santos. Natividade não pôde ir a bordo, e o marido estava ocupado em "lançar uma companhia"; mandaram recado pelos filhos que a casa de Botafogo tinha já os quartos preparados. Desde que o carro se pôs a andar, Batista confessou que ia ficar constrangido por alguns dias.
—Numa casa de pensão era melhor, até que nos despejassem a de S. Clemente.
—Que queria você? Não havia remédio senão aceitar, ponderou a mulher.
Flora não disse nada, mas sentia o contrário do pai e da mãe. Pensar, não pensou — ia tão atordoada com a vista dos rapazes que as idéias não se enfileiraram naquela forma lógica do pensamento. A própria sensação não era nítida. Era uma mistura de opressivo e delicioso, de turvo e claro, uma felicidade truncada, uma aflição consoladora, e o mais que puderes achar no capítulo das contradições. Eu nada mais lhe ponho. Nem ela saberia dizer o que sentia. Teve alucinações extraordinárias.
Agora o que é mister dizer é que a idéia da hospedagem cabe toda aos dous jovens doutores. Que eles eram já doutores, posto não houvessem ainda encetado a carreira de advogado nem de médico. Viviam do amor da mãe e da bolsa do pai, inesgotáveis ambos. O pai abanou as orelhas à lembrança, mas os gêmeos insistiram pelo obséquio, a tal ponto que a mãe, contente de os ver de acordo, saiu do silêncio e concordou com eles. A idéia de ter a pequena ao pé de si, por alguns dias, e discernir qual era o melhor aceito, e o que deveras a amava, pode ser que também influísse na adoção do voto, mas não afirmo nada a tal respeito. Também não asseguro que tivesse grande gosto em agasalhar a mãe e o pai de Flora. Não obstante, o encontro foi cordial de parte a parte. Foi um abraçar, um beijar, um perguntar, um trocar de mimos que não acabava mais. Todos estavam mais gordos, outra cor, outro ar. Flora era um encanto para Natividade e Perpétua — nenhuma destas sabia aonde iria parar aquela moça tão senhoril, tão esbelta, tão...
—Não digam o resto, interrompeu a moça sorrindo; eu tenho a mesma opinião.
Santos recebeu-os, à tarde, com a mesma cordialidade, — talvez menos aparente, mas tudo se desculpa a quem anda com grandes negócios .
—Uma idéia sublime, disse ele ao pai de Flora; a que lancei hoje foi das melhores, e as ações valem já ouro. Trata-se de lã de carneiro, e começa pela criação deste mamífero nos campos do Paraná. Em cinco anos poderemos vestir a América e a Europa. Viu o programa nos jornais? —Não, não leio jornais daqui desde que embarquei.
—Pois verá! No dia seguinte, antes de almoçar, mostrou ao hóspede o programa e os estatutos. As ações eram maços e maços, e Santos ia dizendo o valor de cada um. Batista somava mal, em regra; daquela vez, pior. Mas os algarismos cresciam à vista, trepavam uns nos outros, enchiam o espaço, desde o chão até às janelas, e precipitavam-se por elas abaixo, com um rumor de ouro que ensurdecia. Batista saiu dali fascinado, e foi repetir tudo à mulher.
D. Cláudia, quando ele acabou, perguntou-lhe com simplicidade: —Você vai hoje ao marechal? Batista, caindo em si: —Naturalmente.
Tinham ajustado que ele iria ter com o presidente da República explicar-lhe a comissão que exercera, toda reservada, e, sem embargo, imparcial. Diria o espírito de concórdia com que andou e a estima que adquiriu. Em seguida, falaria da conveniência de um governo que, pela fortaleza e pela liberdade, excedesse o do generalíssimo; e uma frase final bem estudada.
—Isso na ocasião, disse Batista.
—Não, é melhor levá-la feita. Eu lembrei-me desta: "Creia V. Exa. que Deus está com os fortes e os bons".
—Sim, não é má. Você pode acrescentar um gesto que indique o Céu.
—Isso é que não. Você sabe que eu não dou para gestos, não sou ator. Eu, sem mexer um pé; inspiro respeito.
D. Cláudia dispensou o gesto; não era essencial. Quis que ele escrevesse a frase, mas lá estava de cor. Batista tinha boa memória.
Naquele mesmo dia. Batista foi ao Marechal Floriano. Não disse nada às pessoas da casa; contaria tudo na volta. D. Cláudia também calou, era por pouco tempo; ficou esperando ansiosa. Esperou duas mortais horas, chegou a imaginar que lhe tivessem encarcerado o esposo, por intrigas. Não era devota. mas o medo inspira devoção, e ela rezou consigo. Enfim, chegou Batista. E]a correu a recebê-lo, alvoroçada, pegou-lhe na mão e recolheram-se ao quarto. Perpétua (vede o que são testemunhos pessoais na história!) exclamou enternecida: — Parecem dous pombinhos! Batista contou que a recepção foi melhor do que esperava, conquanto o marechal não lhe dissesse nada, mas escutou-o com interesse. A frase? A frase saiu bem, apenas com uma emenda. Não estando certo se ele preferia bons a fortes, ou se fortes a bons...
—Deviam ser as duas palavras, interrompeu a mulher.
—Sim, mas lembrou-me empregar uma terceira: "Creia V. Ex.a que Deus está com os dignos!" Com efeito, a última palavra podia abranger as duas, e trazia esta vantagem de dar à frase um arranjo pessoal dele.
—Mas o marechal que disse? —Não disse nada, ouviu-me com atenção obsequiosa e chegou a sorrir, — um sorriso leve, um sorriso de acordo...
—Ou seria... Quem sabe... Você não andou bem, decerto. Comigo ele diria alguma cousa. Você expôs tudo, conforme tínhamos combinado? —Tudo.
—Expôs as razões da comissão, o desempenho, a nossa moderação?...
—Tudo, Cláudia.
—E o aperto de mão do marechal? —Não estendeu a mão, a princípio; fez um gesto de cabeça; eu é que estendi a minha, dizendo: Sempre às ordens de Vossa Ex.a.
—E ele? —Ele apertou-me a mão.
—Apertou bem? —Você sabe, não podia ser um apertão de amigo, mas deve ter sido cordial.
—E nenhuma palavra? Um passe bem, ao menos? —Não, nem era preciso. Cortejei-o e saí.
D. Cláudia deixou-se estar pensando. A recepção não lhe pareceu que fosse má, mas podia ser melhor. Com ela, seria muito melhor.
Atrás falei das alucinações de Flora. Realmente, eram extraordinárias.
Em caminho, depois do desembarque, não obstante virem os gêmeos separados e sós, cada um no seu coupé, cismou que os ouvia falar; primeira parte da alucinação. Segunda parte: as duas vozes confundiam-se, de tão iguais que eram, e acabaram sendo uma só. Afinal, a imaginação fez dos dous moços uma pessoa única.
Este fenômeno não creio que possa ser comum. Ao contrário, não faltará quem absolutamente me não creia, e suponha invenção pura o que é verdade puríssima. Ora, é de saber que, durante a comissão do pai, Flora ouviu mais de uma vez as duas vozes que se fundiam na mesma voz e mesma criatura. E agora, na casa de Botafogo, repetia-se o fenômeno. Quando ouvia os dous, sem os ver, a imaginação acabava a fusão do ouvido pela da vista, e um só homem lhe dizia palavras extraordinárias.
Tudo isto não é menos extraordinário, concordo. Se eu consultasse o meu gosto, nem os dous rapazes fariam um só mancebo, nem a moça seria uma só donzela. Corrigiria a natureza desdobrando Flora. Não podendo ser assim, consinto na unificação de Pedro e Paulo. Porquanto, esse efeito de visão repetia-se ao pé deles, tal qual na ausência, quando ela se deixava esquecer do lugar, e soltava a rédea a si mesma. Ao piano, à palestra, ao passeio na chácara, à mesa de jantar, tinha dessas visões repentinas e breves, e das quais ela mesma sorria, a princípio.
Se alguém quiser explicar este fenômeno pela lei da hereditariedade supondo que ele era a forma afetiva da variação política da mãe de Flora, não achará apoio em mim, e creio que em ninguém. São cousas diversas. Conheceis os motivos de D. Cláudia — a filha teria outros que ela própria não sabia. O único ponto de semelhança é que, tanto na mãe como na filha, o fenômeno era agora mais freqüente, mas em relação à primeira vinha do atropelo dos acontecimentos exteriores. Nenhuma revolução se faz como a simples passagem de uma sala a outra; as mesmas revoluções chamadas de palácio trazem alguma agitação que fica por certo prazo, até que a água volte ao nível. D. Cláudia cedia à inquietação dos tempos.
A filha obedeceria a outra causa qualquer, que se não podia descobrir logo, nem sequer entender. Era um espetáculo misterioso, vago, obscuro, em que as figuras visíveis se faziam impalpáveis , o dobrado ficava único, o único desdobrado, uma fusão, uma confusão, uma difusão...
Uma transfusão, tudo o que puder definir melhor, pela repetição e graduação das formas e dos estados, aquele particular fenômeno, podes empregá-lo no outro e neste capítulo.
Dito o fenômeno, é preciso dizer também que Flora, a princípio, achava-lhe graça. Minto; nos primeiros tempos, como estava longe, não lhe achou nada; depois, sentiu uma espécie de susto ou vertigem, mas logo que se acostumou a passar de dous a um e de um a dous, pareceu-lhe graciosa a alternação, e chegava a evocá-la com o propósito de divertir a vista. Afinal nem isto era preciso, a alternação fazia-se de si mesma. Umas vezes era mais lenta que outras, alguma instantânea. Não eram tão freqüentes que confinassem com o delírio. Enfim, ela se foi acostumando e deleitando.
Uma ou outra vez, na cama, antes de dormir, repetia-se o fenômeno, depois de muita resistência da parte dela, que não queria perder o sono. Mas o sono vinha, e o sonho completava a vigília. Flora passeava então pelo braço do mesmo garção amado, Paulo se não Pedro, e ambos iam admirar estrelas e montanhas, ou então o mar, que suspirava ou tempestuava, e as flores e as ruínas. Não era raro ficarem os dous a sós, diante de uma nesga de céu, claro de luar, ou todo repregado de estrelas como um pano azul escuro. Era à janela, supõe; vinha de fora a cantiga dos ventos mansos, um espelho grande, pendente da parede, reproduzia as figuras dela e dele, confirmando a imaginação dela. Como era sonho, a imaginação trazia espetáculos desconhecidos, tais e tantos que mal se podia crer bastasse o espaço de uma noite. E bastava. E sobrava. Sucedia que Flora acordava de repente, perdia o quadro e o vulto, e persuadia-se que era tudo ilusão, e raro então dormia. Se era cedo, erguia-se, andava, cansava-se, até adormecer novamente e sonhar outra cousa.
Outras vezes, a visão ficava sem o sonho, e diante dela uma só figura esbelta, com a mesma voz namorada, o mesmo gesto súplice. Uma noite, indo a deitar-lhe os braços sobre os ombros com o fim inconsciente de cruzar os dedos atrás do pescoço, a realidade, posto que ausente, clamou pelos seus foros, e o único moço se desdobrou nas duas pessoas semelhantes.
A diferença deu às duas visões de acordada um tal cunho de fantasmagoria que Flora teve medo e pensou no Diabo.
Carlos Cunha Arte & Produção Visual
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