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Helena 4 / Machado de Assis
Helena 4 / Machado de Assis

 

 

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Helena

 

CAPITULO XIX

NO MOMENTO em que Estácio proferia estas palavras, transpunha Mendonça a porta do jardim do capelão. Preocupado com a frieza de Estácio, lembrara-lhe falar a Melchior e pedir-lhe conselho. Melchior ia responder ao sobrinho de D. Úrsula, quando ouviu rumor de passos na areia do jardim.

— Aí vem o noivo, disse ele.

Estácio deu dous passos para pegar no chapéu; reconsiderou e foi sentar-se ao pé da mesa redonda. Havia ali um exemplar

das Escrituras. Abriu-as ao acaso; a página acertou ser um capítulo dos Provérbios, leu este versículo: "Quem quer abrir mão de seu amigo, busca-lhe as ocasiões; ele será coberto de opróbrio." Envergonhado, voltou a folha. Mendonça entrara na sala.

Não contava com Estácio, mas estimou vê-lo ali.

— Venha, disse Melchior, tratávamos justamente do seu casamento.

Estácio lançou ao padre um olhar de exprobração. O padre não o viu, olhava para Mendonça, que imediatamente lhe respondeu:

— Não venho cá para outra cousa. Uma vez que a fortuna o fez confidente, desejo constituí-lo meu conselheiro e diretor.

— Antes de tudo, sou advogado de sua causa, disse Melchior; estava expondo agora as vantagens dela.

Mendonça olhou fixamente para o amigo, e, depois de curta pausa:

— Rejeitas ou aceitas o noivo? perguntou ele.

Posto entre a espada e a parede, Estácio não soube logo que respondesse; ficou a olhar para a lauda aberta, receoso de encontrar a vista dos dous. O silêncio era pior que a resposta; e nem o caso nem as pessoas permitiam tão grande pausa.

Estácio fechou de golpe o livro e ergueu-se.

— Discutia somente as vantagens do casamento, disse ele.

— E qual é a tua opinião?

Minha opinião é que Helena está ainda muito menina. Mas não é só essa, nem é a principal; o voto, em todo caso, é a favor do casamento. A principal razão é o teu próprio crédito.

— Meu crédito?

Helena pode vir a amar-te como lhe mereces; a verdade é que não sente ainda hoje igual paixão à tua; foi o padre-mestre que mo disse. Estima-te, é certo; mas a estima é flor da razão, e eu creio que a flor do sentimento é muito mais própria no canteiro do matrimônio ...

Há muita flor nesse ramalhete de retórica, interrompeu benevolamente o padre. Falemos linguagem singela e nua. Não creia literalmente o que lhe diz este filósofo, prosseguiu ele, voltando-se para Mendonça; ele gosta de ambos e quer vê-los felizes; é o próprio zelo que lhe faz falar assim. Numa palavra, deseja que o senhor a conquiste, depois de campanha formal...

Mendonça respondeu ao capelão com um sorriso pálido, que lhe arrebitou um pouco as pontas do bigode, recolhendo-se logo medroso e frio. O rosto ficara carregado e pensativo; a língua de Estácio tocara-lhe o coração. Disposto a aceitar a estima e a simpatia de Helena com a esperança de converter esse pequeno dote em avultado capital, não lhe ocorrera que, a olhos estranhosa podia parecer que: o fim exclusivo era a riqueza da moça. Estácio rompera o véu a essa probabilidade. Uma só palavra desfizera a ilusão de poucos dias.

— Vamos lá, disse o padre, abracem-se como irmãos.

Nenhum deles se mexeu. Melchior sentiu toda a gravidade da situação; viu perdidos os esforços, desfeita a união assentada, um abismo cavado entre os dous amigos, incerto o destino de Helena. Interveio outra vez com palavras de brandura, que os dous ouviram sem interromper. Quando acabou:

— O Estácio tem razão, disse Mendonça; meu crédito padecera, desde que alguém se lembre de dizer que o casamento foi

arranjado sem nenhuma preocupação das preferências de D. Helena. Ela me desobrigará, em troca da palavra que lhe restituo.

A frase brotou-lhe dolorida, mas sem hesitação nem fraqueza. Estácio olhava para ele e sentia alguma cousa semelhante a um remorso. Uma voz interior parecia dizer-lhe: — "Sonâmbulo, abre os olhos, tem consciência de tuas ações; teu abraço enforca; teus escrúpulos fazem-te odioso; tua solicitude é pior do que a cólera." Viu o mancebo cortejar o padre; deteve-o pelo braço.

— Onde vais? disse ele.

— Vou aonde me leva o pundonor, disse singelamente Mendonça.

— Pobres rapazes! exclamou o padre. São dous estouvados, nada mais; um quer catar argumentos onde sua irmã só achou nobre e franca resolução; o outro rompe de coração leve uma promessa feita em presença de um sacerdote. Estouvados, disse eu? São mais do que isso: são dous dementes. Ora, como só eu tenho juízo e conseqüente autoridade, digo que nem um há de sair assim desenganado, nem o outro há de recusar a aquiescência que lhe peço em nome seu finado pai.

Estácio estremeceu, Mendonça conservou-se frio. A arma era rija, mas o golpe excedia a necessidade. Mendonça não quereria dever a esposa à evocação do nome do conselheiro: eqüivalia a um rapto. Percebeu-o Melchior, quando viu Estácio estender a mão ao amigo, mão que este recebeu com dignidade e frieza. Contaria Estácio com essa mesma repulsa do pretendente? O certo é que lhe disse, sem a menor sombra de hesitação:

— Meu zelo foi talvez excessivo; a intenção é boa e pura. Que posso eu desejar senão ver felizes os meus? Amem-se; será o remate das minhas aspirações. Prometes fazê-la feliz?

— Não prometo nada, disse Mendonça, o casamento é já impossível. Tu abriste-me os olhos; não te quero mal por isso.

Perco muito, é certo, mas não me exponho à língua dos maus.

Mendonça foi buscar o chapéu e dispôs-se a sair, não obstante a intervenção de Melchior, que procurou trazê-lo a sentimentos de reconciliação. Não insistiu o padre; viu no rosto do mancebo uma resolução digna e firme, que era impossível dobrar naquele momento. Quando Mendonça lhe estendeu a mão em despedida, ele apertou-lha com ternura e esperança.

Estácio tentou ainda retê-lo; foi inútil; Mendonça saiu dali sem rancor, mas sem pesar. O coração sangrava-lhe, a consciência ia contente.

Melchior foi até à porta, a despedir-se de Mendonça. Quando este saiu, ele voltou o rosto para dentro, cruzou os braços e fitou o sobrinho de D. Úrsula. O moço desviou os olhos.

— Viu? perguntou o padre. Não sei qual seja a sua resolução; mas prometo que serei como Maomé — Deus me perdoe! — ainda que seja o sol à minha direita e a que à minha esquerda, não deixarei de executar o meu desígnio. Vá ter com sua família; deixe-me alguns instantes com o meu breviário.

Estácio não pode resistir à intimação do sacerdote; não achou uma palavra para lhe dizer. Saiu aturdido, desconsolado, colérico. Na rua e na chácara, ia pensando na cena daquela última hora, e parecia apenas reconstruir um sonho.

Desconhecia-se, apalpava a inteligência, chamava em seu auxílio todas as forças da realidade; olhava para o chão, suspeitoso de que ia calcando as nuvens. Quando a razão tomou pé no meio de lembranças tão desconcertadas, ele viu claramente o resultado de suas ações: perdia um amigo de longos anos e abdicava a direção da família, pelo menos em relação ao casamento da irmã. Se esta lhe agradecesse a resistência, Estácio dar-se-ia por bem pago de tudo Não era em seu favor que ele conspirara? Este pensamento levantou-lhe o ânimo; tivesse a aprovação de Helena pouco lhe importaria o resto.

Helena ouviu-lhe a narração fiel do que se passara em casa de Melchior. Ouviu-a comovida; no fim reprovou tudo o que ele

fizera.

— Mendonça é já o fruto proibido, concluiu a moça; começo a amá-lo. Se ainda assim me obrigar a desistir do casamento, adorá-lo-ei..

— Chegamos ao capricho! exclamou ele; é o fundo do coração de todas as mulheres.

Helena sorriu e voltou-lhe as costas. Subiu ao quarto, travou de uma pena e escreveu um bilhetinho. A tinta secou primeiro que duas grossas lágrimas caídas no papel; mas as lágrimas secaram também. Antes de fechar o bilhete, desceu Helena a mostrá-lo ao irmão.

Quando a moça entrou no gabinete, Estácio ia ter com ela. Tinha resolução assentada. Uma vez que a irmã aceitava de boa feição o casamento, não havia mais que o aprovar e celebrar. Encontraram-se na porta; Estácio recuou para dentro.

— Helena, disse ele, faça-se a tua vontade.

— Consente?

Estácio fez um gesto afirmativo.

— Não basta isso, tornou a moça; Mendonça não voltará cá depois do que se passou. Peço-lhe a remessa deste bilhete.

Estácio abriu o bilhete; continha estas poucas palavras:

"Venha hoje a Andaraí; é o meu coração que o pede e a nossa felicidade que o exige."

Cinco minutos gastou o moço a ler as duas linhas; leu o que estava escrito e o que não estava. Helena desarmava os escrúpulos de Mendonça, tirando à futura união qualquer suspeita de interesse. Leu e fechou lentamente o papel.

— Aprova? perguntou a moça.

— Assim, pois, disse o moço tristemente, a tua felicidade exige que esse homem venha cá, que te cases com ele, que nos fujas? Não te basta a família, a afeição de nossa tia, a minha própria afeição? Estes meses de doce intimidade vão ser esquecidos em um só instante, sacrificados aos pés do primeiro homem que te apraz escolher e seguir? No dia em que penetraste nesta casa, entrou contigo um raio de luz nova, alguma cousa que nos faltava e que tu trouxeste contigo; nossa família completou-se: nossos corações receberam um sentimento último. Pensávamos que isto seria duradouro, e era sim simplesmente fugaz. Oh! Helena, melhor fora não ter vindo!

Helena quis responder, a voz travou-se-lhe na garganta, e a palavra retrocedeu ao coração. Apontou para o papel como pedindo-lhe, ainda uma vez, que o enviasse e saiu.

De tarde apareceu Melchior; ia tranqüilo e resoluto a dar um golpe decisivo. Estácio rendeu-se, antes que ele falasse.

— Padre-mestre, disse o moço logo que o viu, a reflexão venceu-me; faça-se a vontade de todos.

— Fala de coração?

— De coração.

Pois bem, seja completo, tornou o padre. Sou ministro de uma religião que condena o orgulho. Não há desar em curar as feridas de um amigo: vá ter com o seu amigo; traga-o a esta casa, como irmão.

— Irei amanhã.

— Não; vá hoje mesmo.

A noite caiu logo; Estácio foi dali vestir-se. Não tendo enviado o bilhete de Helena, meteu-o na algibeira para entregá-lo ele depois tirou-o e releu-o; tendo-o relido, fez um gesto para rasgá-lo, conteve-se e perpassou-o ainda uma vez pelos olhos. A mão, à semelhança de mariposa indiscreta, parecia atraída pela luz; resistiu, resistiu algum tempo; enfim chegou o bilhete à vela e queimou-o.

CAPÍTULO XX

A VISITA de Estácio não causou nenhum espanto a Mendonça; ele a esperava com a confiança das índoles ingênuas e avessas ao ódio. Não era crível que um amigo de longos anos dormisse sobre a injustiça de um minuto; contudo dormiu. Foi na seguinte manhã que Estácio procurou o pretendente de Helena.

Entrou naturalmente em casa de Mendonça sem expressão nem secura. A entrevista foi breve e cordial; houveram-se os dous com afetuosa dignidade. Estácio explicou os escrúpulos, declarou-se contente com a aliança. O contentamento podia existir; todavia, a manifestação foi parca e seca. Houve mais calor e expansão quando ele lhe pediu que desse vida feliz à irmã.

— Será para mim um eterno remorso, se Helena vier a ser desgraçada, disse ele. Não tivemos o mesmo berço, vivemos nossa infância debaixo de tecto diferente, não aprendemos a falar pelos lábios da mesma mãe. Importa pouco; nem por isso lhe quero menos. Meu pai recomendou-a à nossa família, e ela correspondeu ao sentimento que ditou essa última vontade.

Mendonça não respondeu nada; refletira, durante a noite, nas palavras que ouvira a Estácio no dia anterior; - palavras que bem podiam ser ditas ou pensadas por outros, talvez por todos, logo que soubessem do casamento. Helena viria a amá-lo, talvez; mas, desde logo lhe levava para casa a chave da independência. Mendonça recuou. Quando o Padre Melchior o soube, não pode conter um gesto de admiração; mas, se louvou o escrúpulo não aprovou a resolução, que vinha derrubar tudo.

— Não tapará nunca a boca aos maus, disse o padre; eles acharão meio de envenenar-lhe a generosidade.

— Paciência! tornou o moço, é menor esse perigo. Se casar, dirão que faço uma operação vantajosa; talvez a família o suponha; talvez ela própria o pense.

Helena teve notícia dos receios do pretendente, e da resolução a que parecia inclinar o coração. Perguntou-lhe se era verdade. Mendonça afirmou que sim. Ela contemplou-o longamente, sem dizer palavra; travou-lhe das mãos, apertou-as com efusão; ele persistiu.

No desinteresse de Mendonça havia porventura um pouco de faceirice. A moça o percebeu, nem por isso deixou de crer na

sinceridade do rapaz. Tentou dissuadi-lo; e, posto nada alcançasse nos primeiros minutos, estava certa de que venceria o derradeiro obstáculo. Teria os olhos mais hábeis e felizes que os lábios do padre. Foi o que ela disse ao capelão.

— Tomo à minha conta efetuar este casamento, continuou Helena.

— Resolvida a tudo?

— A tudo.

— Mas, se ele insistir...

— Se ele insistir, vencê-lo-ei, ou por um modo ou por outro. Uma moça que quer ser noiva vale por um exército; eu sou um

exército.

— Muito bem! Contudo, sua dignidade...

— Oh! em último caso abro mão da herança.

— Era capaz disso? perguntou Melchior.

— Se era capaz? Desejo-o até, disse a moça com veemência.

E acrescentou em tom mais brando:

— Sobre o homem de minha escolha desejo que não paire a miníma desconfiança.

Tal era a situação dous dias depois da volta de Estácio. O casamento podia contar-se feito. Mendonça não resistiu ao desinteresse de Helena. D. Úrsula aprovou tudo com efusão e amor nada sabendo das incertezas e contradições dos últimos dias.

Na noite desse dia. Estácio escreveu para Cantagalo dando notícias suas. Do casamento de Helena falou pouco, quase nada. Tudo o descontentava; tanto o que ele fizera e dissera, sem proveito, como o desenlace da situação. Não soubera opor-se com eficácia, nem aplaudir oportunamente.

Posto fosse tarde, o sono teimava em fugir-lhe, e ele velou até muito além da meia-noite. Ocupado sem dúvida, em adormecer organizações menos sensíveis e existências menos complicadas, o sono fez-lhe apenas uma curta visita. Pelas cinco horas da manhã, Estácio acordou e ergueu-se. A manhã estava fresca; quase toda a família dormia. Estácio desceu; o único escravo que achou levantado preparou-lhe parou-lhe uma xícara de café. Não tendo ainda chegado os jornais. bebeu-a sem a leitura do costume.

Quem sabe por que fios tênues se prendem muitas vezes os acontecimentos humanos? Estácio ouviu o som longínquo de um tiro; era algum caçador, talvez; a suposição deu-lhe a idéia de ir caçar foi bus buscar a espingarda, proveu-se de pólvora e chumbo e saiu.

Se a habilidade não era muita, parecia ter ainda diminuído naquela manhã, ou porque a mão estivesse menos firme, ou porque a vista andasse menos segura. Estácio caminhara longo tempo sem pensar no fim que o levava; ia absorto, alheio ao lugar e às cousas. Fez algumas tentativas de caça. Quando cansou de errar, consultou o relógio e viu que não era cedo. Tinha o braço cansado de suster a espingarda; só então reparou que não trouxera um pajem consigo, Dispôs-se a voltar. Vendo uma parasita, colheu-a com a intenção de a dar a Helena, como seu primeiro presente de núpcias. Depois desceu, em caminho para casa.

Vinha descendo com a espingarda debaixo do braço, os olhos no chão, a passo lento, apesar de ser tarde. De uma vez que ergueu os olhos, viu um caso estranho, que lhe fez deter o passo. Um pouco abaixo, saía, de trás de uma casa velha, o pai em de Helena a, conduzindo a mula e a égua. Estácio não soube que pensar daquilo; cedendo ao impulso, que não pôde dominar, deu um salto por cima da cerca de espinhos, agachou-se e esperou o resto.

O resto não se demorou muito. Assomou à porta da frente a figura de Helena. Depois de olhar cautelosamente para um e outro lado, saiu e montou a égua a trote; o pajem cavalgou a mula e os dous desceram a trote.

Estácio sentiu uma nuvem cobrir-lhe os olhos; ao mesmo tempo, apertava o primeiro objeto que achou debaixo das mãos: era a cerca de espinhos. A dor fê-lo voltar a si; tinha a mão ensangüentada. Ao longe, cavalgavam Helena e o pajem. Logo que os viu desaparecer, Estácio saltou de novo à estrada. Sem resolução nem plano, caminhou em direção à casa donde vira sair a irmã. Era a mesma da banheirinha azul que Helena cumprimentara de longe, alguns meses antes, e não esquecera de reproduzir na paisagem que dera ao irmão, no dia dos anos dele. Estas circunstâncias, antes indiferentes, apareciam-lhe agora como outros tantos artigos de um libelo.

O prédio parecia ainda mais velho do que a primeira vez que o vira; a caliça das paredes e das colunas ia caindo; e o esqueleto de tijolo estava a nu, em mais de um lugar. Alguma erva mofina brotava a custo junto às paredes, cobrindo com folhas descoloridas o chão desigual e úmido. Por baixo de uma das janelas havia um banco de pau, gretado pelo tempo, com as bordas roliças de longo uso. Tudo ali respirava penúria e senilidade.

"Não, dizia Estácio consigo, não é este o asilo de um Romeu de contrabando. Mora aqui alguma família pobre, que a caridade engenhosa de Helena vem afagar de longe em longe".

A solução do enigma pareceu-lhe tão natural que o moço resolveu parar a meio da aventura, e chegou a dar alguns passos para trás. Mas a suspeita é a tênia do espiríto; não perece enquanto lhe resta a cabeça. Estácio sentiu o desejo imperioso de indagar o que aquilo era, e voltou sobre os seus passos. Para entrar ali era necessário um motivo ou pretexto. Procurou algum; a aventura dera-lhe o melhor de todos. Olhou para a mão ferida e ensangüentada, e foi bater à porta.

CAPÍTULO XXI

POUCOS INSTANTES esperou Estácio. Veio um homem abrir-lhe a porta; era o mesmo que ele vira ali uma vez. Entre ambos houve meio minuto de silencio, durante o qual nem Estácio se lembrou de dizer o que queria, nem o desconhecido de lhe perguntar quem era. Olhavam um para o outro.

— Que desejava? disse enfim o dono da casa.

— Um favor, respondeu Estácio, mostrando-lhe a mão ferida. Ia a cair ha pouso; procurando amparar-me, numa cerca de espinhos, feri-me, como vê. Podia dar-me um pouco d'água para lavar este sangue e...

— Pois não interrompeu o outro. Queira sentar-se aí no banco, ou se prefere, entrar... E melhor entrar, concluiu, abrindo-lhe caminho.

Em qualquer outra ocasião, Estácio teria recusado o convite, porque o espetáculo da pobreza lhe repugnava aos olhos saturados de abastança. Agora, ardia por haver a chave do enigma. Entrou. O desconhecido abriu uma das janelas para dar mais algum luz, ofereceu ao hóspede a melhor cadeira e foi por um instante ao interior.

Estácio pôde então examinar, à pressa, a sala em que se achava. Era pequena e escura. A parede, pintada a cola já de longa data tinha em si todos os sinais do tempo; primitivamente de uma só cor, a pintura apresentava agora uma variedade triste e desagradável. Aqui o bolor, ali uma greta, acolá o rasgão produzido por um móvel; cada acidente do tempo ou do uso dava àquelas quatro paredes o aspecto de um asilo da desgraça. A mobília era pouca, velha, mesquinha e desigual. Cinco ou seis cadeiras, nem todas sãs, uma mesa; redonda, uma cômoda e uma marquesa, um aparador com duas mangas de vidro cobrindo castiçais de latão, sobre a mesa um vaso de louça com flores, e na parede dous pequenos quadros cobertos t; escumilha encardida tais eram as alfaias da sala. Só as flores davam ali um ar de vida. Eram frescas, colhidas de pouco.

Atentando nelas, Estácio estremeceu, pareceu-lhe reconhecer uma acácia plantada em sua chácara. Quando a suspeita germina na alma, o menor incidente assume um aspecto decisivo. Estácio sentiu um calafrio.

Voltou o dono da casa, trazendo nas mãos uma bacia, e nos braços uma toalha, cuja alvura contrastava singularmente com a cor da rede e o aspecto senil da casa. Estácio ergueu-se.

— Deixe-se estar, disse o desconhecido. Estou perfeitamente bem.

— Nesse caso, faça o favor de chegar à janela.

A bacia foi posta na janela; o desconhecido quis lavar ele próprio a mão do hóspede; o moço não lho consentiu.

— Ao menos, disse o dono da casa, há de consentir que a enxugue. Eu entendo um pouco disto; infelizmente, não tenho aqui; nenhum medicamento caseiro para aplicar.

Estácio aceitou o oferecimento. O dono da casa abriu a toalha e começou cuidadosamente a operação. O sobrinho de D.

Úrsula pôde ; então examiná-lo à vontade.

Era um homem de trinta e seis a trinta e oito anos, forte de membros, alto e bem proporcionado. Uma cabeleira espessa e comprida de um castanho escuro, descia-lhe da cabeça até quase tocar nos ombros. Os olhos eram grandes, e geralmente quietos, mas riam, quando sorriam os lábios, animando-se então de um brilho intenso ainda que passageiro. Havia naquela cabeça, — salvo as suiças, — certo ar de tenor italiano. O pescoço e cheio e forte, surgia entre dous ombros largos e, pela abertura da camisa, que um lenço atava frouxamente na raiz do colo, podia Estácio ver-lhe a alva cor e a sua musculatura.

Vestia pobre, mas limpamente, um rodaque branco calça de ganga e colete de brim pardo. O vestuário, disparatado e mesquinho, não diminuía a beleza máscula da pessoa; acusava semente a penúria de meios.

Quando acabou de lavar os arranhões de Estácio, - eram pouco mais do que isso, — propôs-se a ir buscar um pedaço de pano. Estácio, com a outra mão e os dentes, rasgou o lenço que trazia, e o dono da casa completou o sumário curativo.

— Pronto! disse ele. Se tiver em casa algum medicamento apropriado, será conveniente aplicá-lo. Toda a cautela é pouca; convém exitar alma inflamação.

— Obrigado, respondeu Estácio. Realmente, vim dar-lhe uma maçada, sem grande necessidade, talvez...

— Por quê?

— Podia fazer isto mesmo quando chegasse à casa.

— Mora perto?

— Um pedaço abaixo.

— Foi conveniente curar já; nenhuma precaução é inútil em cousa nenhuma da vida.

— Máxima de prudência, observou Estácio, procurando sorrir.

— Que só aprende tarde quem a não traz na massa do sangue. replicou o outro, suspirando.

A não ser indiscreto -ou falador, era difícil levar a conversa por diante. O favor estava feito, o assunto esgotado. Restava agradecer, despedir-se e sair. Estácio, entretanto, tinha necessidade de mais tempo; queria arrancar àquele homem uma palavra menos indiferente a situação, ou conhecer-lhe, se fosse possível, o caráter e os costumes. Para isso havia, talvez, um meio; contrafazer-se, empregar maneiras estranhas às suas, apegar-se à ocasião por todas as bordas. Estácio determinou-se a isso, confiando o resto ao acaso. Voltou à cadeira e sentou-se.

— Consente que descanse um pouco? Estou fatigadíssimo.

— Não pelo que caçou, disse o desconhecido, rindo.

— Volto com as mãos abanando. Nunca fui bom caçador, e tenho não obstante, a mania de atirar aos pássaros.

— Não é esse o defeito de muita outra gente, em mais elevada ordem de cousas? Eu fui vítima desse defeito moral.

— Ah! exclamou Estácio com certa entonação interrogativa.

O dono da casa sorriu levemente, mas não pareceu molestá-lo a idade do hóspede; talvez mesmo não desejasse outra cousa.

— É verdade, disse ele; devo a minha atual penúria ao erro de teimar em cousas estranhas à minha índole e aptidão, estranhas e totalmente opostas...

— Há de perdoar-me, interrompeu Estácio, com um ar de familiaridade indiscreta, que lhe não era habitual; eu creio que um homem forte, moço e inteligente não tem o direito de cair na penúria.

— Sua observação, disse o dono da casa sorrindo, traz o sabor do chocolate que o senhor bebeu naturalmente esta manhã antes de sair para a caça. Presumo que é rico. Na abastança é impossível compreender as lutas da miséria, e a máxima de que todo o homem pode, com esforço, chegar ao mesmo brilhante resultado, há de sempre era uma grande verdade a pessoa que estiver trinchando um peru... Pois não é assim; há exceções. Nas cousas deste mundo não é tão livre o homem, como supõe, e uma cousas a que uns chamam mau fado, outros concurso de circunstâncias, e que nós batizamos com o genuíno nome brasileiro de caiporismo, impede a alguns ver o fruto de seus mais hercúleos esforços. César e sua fortuna! toda a sabedoria humana está contida nestas quatro palavras.

O desconhecido proferiu isto com o tom mais simples e natural - de mundo, e uma facilidade de elocução que Estácio mal lhe podia supor. Era aquilo uma comédia ou a expressão da verdade? Estácio olhou fixamente para ele, como a querer penetrá-lo. Ao mesma tempo, ouviu-se um rumor na parte da casa que ficava além da sala Estácio voltou a cabeça com um gesto de desconfiança. A porta abriu-se e apareceu uma preta velha trazendo nas mãos uma bandeja A criada estacou a meio caminho.

— Põe em cima da mesa, disse o dono da casa. t o meu almoço continuou ele, voltando-se para Estácio; almoço parco e higiênico Ousarei oferecer-lho?

Estácio fez um gesto negativo, e dispôs-se a sair.

— Já! Não é meu intento despedi-lo; almoçarei conversando. Vivo tão solitário que a presença de alguma pessoa é para mim um encanto .

Estácio aceitou sem dificuldade o convite; sentou-se defronte do homem, ao pé da mesa, e assistiu ao almoço que não podia ser mais escasso um pão, duas hóstias de queijo duro e uma chávena de café. O que mais valia era o contentamento do dono da casa e a franqueza com que ostentava aos olhos de um estranho a simplicidade de seus hábitos.

— Não é refeição de príncipe, dizia ele, mas satisfaz todas a ambições de um estômago sem esperança. Aqui é a sala de visitas e a sala de jantar; a cozinha é contígua; além, ficam duas braças de quintal; para lá do quintal... o infinito da indiferença humana.

E depois de um silêncio:

— Não digo bem, emendou ele; nem sempre acho indiferença. Meu trabalho não me dá mais do que escasso pão de cada dia; mas tenho algumas alegrias, no meio de minha perpétua quaresrna; e essas recebo-as de mãos caridosas e puras.

Dizendo isto, o desconhecido esgotou a chávena, e reclinou-se sobre a cadeira, fitando em cheio a cara do hóspede.

Estácio refletiu nas últimas palavras, e um raio de esperança veio rasgar-lhe a nusem que lhe entenebrecia a fronte. Os dous homens pareciam interrogar-se. O filho do conselheiro sacou do bolso um charuto e ofereceu ao dono da casa.

— Obrigado, disse este.

— Não fuma?

— Já fumei; hoje economizo esse vício. Nem por isso faço mais lentamente a digestão.

— Mora só?

— Só.

— Não tem família?

— Nenhuma.

— Há de achar-me singularmente indiscreto...

— Não; suponho que a sua curiosidade tem uma causa honrosa e legítima.

— Acertou o senhor inspira-me simpatia. E se eu conhecesse algumas dessas mãos puras, que lhe emendam as lacunas da sorte...

— Dar-me-ia, por intermédio delas, o seu óbulo?

— Se o não ofendesse. . .

— Não ofendia, mas eu recusava, se soubesse; peço-lhe desde já que o não faça às escondidas...

Estácio fez um gesto de assentimento.

— Não é orgulho, continuou o dono da casa; é um resto de pudor que a pobreza me não tirou ainda. Fiz-lhe agora um obséquio, um simples dever de vizinho... Pareceria que o senhor mo pagava com m benefício. O benefício seria menos espontâneo de sua parte e menos agradável para mim. Agradável não exprime, talvez, toda a minha idéia; mas o senhor facilmente compreenderá o que quero dizer.

— Entendeu-me mal; o meu óbulo não seria na espécie a que o senhor alude. Tenho amigos e alguma influência; poderia arranjar-lhe melhor posição...

O desconhecido refletiu um instante.

— Aceitaria? perguntou Estácio.

— Estou pensando na maneira de recusar. Ouro é o que ouro vale. Eu vexar-me-ia eternamente de dever qualquer melhora da sorte ao cumprimento de um dever de caridade.

— Já me não admira a vida pobre que tem tido.

— Excessivo escrúpulo, talvez?..

— Escrúpulo desarrazoado.

— Antes de mais que de menos.

—Nem de menos nem demais; mas, só a porção justa.

— A porção varia, conforme as necessidades morais de cada um. Mas eu mesmo, que lhe estou a falar, nem sempre tive esta virtude intratável; e porventura alguma vez fraqueei...

A fronte do desconhecido tornou-se sombria; a voz morreu-lhe nos lábios, e os olhos caíram naquela atonia que exprime uma grande concentração de espírito. Era ocasião de interrogá-lo diretamente ou sair. Estácio preferiu o último alvitre.

— Não o quero demorar mais, disse o dono da casa, quando o mancebo proferiu as palavras de despedida. Já é tarde e sua mãe talvez esteja ansiosa...

Estácio limitou-se a olhar para ele em cheio, dizendo:

— Se alguma vez resolver dar de mão a seus escrúpulos, mande procurar-me. Minha casa é conhecida em todo Andaraí pela casa do Conselheiro Vale...

O desconhecido, em cujo rosto Estácio esperou ver um sinal qualquer de abalo ou surpresa, conservou-se impassível e risonho. Curvou-se em sinal de agradecimento; e como Estácio hesitasse em estender-lhe a mão, ele meteu as suas nas algibeiras.

— Talvez nos vejamos ainda, disse Estácio já fora da porta

— Sim?

— Passeio algumas vezes por estes lados.

— Nem sempre estou em casa mas, ainda estando, conservo fechadas as portas. Quando quiser descansar, bata; a casa é pobre, mas será amiga.

Estácio afastou-se rapidamente. Eram dez horas, e o sol aquecia; ele não deu pelo sol nem pelo tempo. Semelhante ao transviado florentino, achava-se no meio de uma selva escura, a igual distância da estrada reta,— diritta via — e da fatal porta, onde temia ser despojado de todas as esperanças. Nada sabia, nada conjeturava; eram tudo novas dúvidas e oscilações. O homem com quem acabava de conversar, parecia-lhe sincero; a pobreza era autentica, sensível a nota de melancolia que, por vezes, lhe afrouxava a palavra. Alas onde cessava ali a realidade e começava a aparência? Vinha de tratar com um infeliz ou um hipócrita? Estácio rememorou todos os incidentes dentes da manha, e todas as palavras do desconhecido; eram outros tantos pontos de interrogação suspeitos e irrespondíveis. Repelia com horror a idéia do mal: custava-lhe a aceitar a idéia do bem; e a pior das angústias — a dúvidas continha — o todo e agitava-o em suas mãos felinas.

O sol e a agitação alastravam-lhe a testa de pérolas de suor; ao ofego ela marcha apressada juntava-se o da violenta comoção. Estácio não via os objetos que ia costeando, nem as pessoas que lhe passavam ao lado; ia cego e surdo, até que o choque da realidade o despertasse.

Chegou enfim à casa. Ao portão estava um escravo, a quem deu a espingarda. A demora causara alguma inquietação à família; logo que as duas senhoras souberam de seu regressos correram a recebe-lo ficando D. Úrsula a uma janela, e descendo Helena até meio caminho. A aparição súbita da moça, a alegria e o amor, que pareciam impeli-la, a perfeita ingenuidade do gesto, tudo produziu nele a necessária reação, — reação de um instante,— mas salutar, porque a crise era demasiado violenta. Estácio apertou as mãos da moça com energia. Um fluido sutil percorreu as fibras de Helena, e aquele rápido instante teve toda a doçura de uma reconciliação.

— Estácio contava recolher-se ao quarto para pôr em ordem as idéias, compará-las extrair uma conjetura, pelo menos, e verificá-la ou desmenti-las. Mas, nem a tia nem a irmã haviam almoçado, à espera dele, e forçoso lhe foi acompanhá-las na satisfação de uma necessidade que não sentia Durante o almoço, Estácio procurou observar Helena — trabalho ocioso, porque o rosto da moça, se alguma cousa traía nessa ocasião, eram as alegrias inefáveis da família. Ela própria servia por suas maos a Estácio e D. Úrsula; inexcedível na atenção com que sabia repartir-se entre os convivas, não o era menos no carinho, e na graça. Nos olhos parecia estampada a ignorância de mal, e o sorriso era o das almas cândidas. Poder-se-ia atribuir àquela criatura de dezessete anos corrupção e hipocrisia? Estácio envergonhou-se de tal idéia; sentiu as vertigens do remorso.

Mas o almoço acabou, dispersou-se a companhia, o mancebo recolheu-se ao gabinete, e, desfeita a visão, voltou a suspeita. Estácio buscou dominar a situação. Ele não ia ao ponto de supor em Helena a completa perversão dos sentimentos; o limite do mal, que se lhe podia atribuir, era o de uma culposa leviandade. Se, em vez de um ato leviano, fosse aquilo um simples estratagema de caridade, Helena não mereceria menos uma advertência; mas a pureza da intenção salvava tudo, e a paz da família, não menos que o seu decoro, se restabeleceria inteira. Estácio examinou um por um todos os indícios de culpabilidade e de inocência; buscou sinceramente os elementos de prova; não esqueceu um só argumento de indução. Nesse trabalho despendeu longo tempo, sem resultado apreciável, pela razão de que, se a sentença era difícil de formular, o juiz era incompetente para decidir; entre a dignidade e a afeição balouçava incerto.

Quase à hora do jantar, Estácio, que não saíra uma só vez do gabinete, chegou a uma das janelas, e viu atravessar a chácara a mais humilde figura daquele enigma, humilde e importante ao mesmo tempo: o pajem. O pajem apareceu-lhe como uma idéia nova; até aquele instante não cogitara nele uma só vez. Era o confidente e o cúmplice. Ao vê-lo, recordou-se de que Helena lhe pedira uma vez a liberdade daquele escravo. A ameaça rugiu-lhe no coração e mas a cólera cedeu à angústia e ele sentiu na face alguma cousa semelhante a uma lágrima.

Nesse momento duas mãos lhe taparam os olhos.

CAPÍTULO XXII

NÃO ERA PRECISO grande esforço para adivinhar a dona das mãos. Estácio com as suas, afastou as mãos de Helena, segurando-lhe os pulsos de modo que lhe arrancou um leve gemido. Voltando-se, deu com os olhos na irmã, que lhe disse em tom de gracioso reproche:

— Você é muito mau! Pagou-me a carícia com um apertão. Deixe estar que nunca mais cairei em outra. Vim vê-lo, porque você hoje não se lembrou ainda de dar à gente um ar de sua graça... Doeu-me! continuou ela olhando para os pulsos. Mas... tenho os dedos molhados; seria... você estaria... que é? que foi?

Estácio, que ouviu o discurso da irmã, com o rosto desfeito e o olhar ansioso, não lhe respondeu às últimas interrogações, e continuou a olhar para ela, como a querer ler a fisionomia da moça a explicação do enigma que o atordoava. Helena ainda insistiu, aterrada e aflita. Indo pegar-lhe nas mãos, Estácio desviouo corpo, dirigiu-se à parede, despendurou o desenho que Helena lhe dera no dia de seus anos, e aproximou-se da moça.

— Que é? repetiu esta admirada.

A única resposta de Estácio foi estender o dedo sobre a misteriosa casa reproduzida na paisagem. Helena olhou alternadamente para o desenho e para o irmão. A expressão interrogativa e imperiosa deste fê-la atenta no ponto indicado. Súbito empalideceu; os lábios tremeram-lhe como a murmurar alguma cousa, mas a alma falou tão baixo que a palavra não chegou à boca. Durou aquilo poucos instantes. A angústia lia-se no rosto dos dous; a moça, para ocultar a sua, cobriu os olhos com as mãos. O gesto era eloqüente; Estácio lançou para longe de si o quadro, com um movimento de cólera. Helena atirou-se para o corredor.

D. Úrsula aguardava os sobrinhos para jantar. Demorando-se estes, dirigiu-se ela própria ao gabinete de Estácio. A porta estava aberta; D. Úrsula entrou e deu com ele, sentado numa poltrona, com o lenço na cara como a soluçar. A tia correu com a velocidade que lhe permitiam os anos. Estácio não a ouviu entrar; só deu por ela quando as mãos da boa senhora lhe arrancaram as suas dos olhos. O assombro de D. Úrsula foi indescritível, sobretudo quando Estácio, erguendo-se, atirou-se-lhe aos braços, exclamando:

— Que fatalidade!

— Mas... que é?... explica-te.

Estácio enxugou as faces molhadas do longo e silencioso pranto,com o gesto decidido de um homem que se envergonha de debilidade. A explosão desabafara-lhe o espírito; podia enfim ser homem, e era preciso que o fosse. D.

Úrsula pediu e ordenou que lhe confiasse a causa da inexplicável aflição em que viera achá-lo. Estácio recusou dizê-la.

— Saberá tudo amanhã ou logo. Agora só poderia dar-lhe um enigma, e eu sei o que ele me há custado. Algumas horas mais, e precisarei de seu conselho e apoio.

D. Úrsula resignou-se à demora. Quando chegou à sala de jantar achou um recado de Helena; mandava-lhe dizer que se sentira repentinamente incomodada e que a dispensasse naquela tarde e noite. Dona Úrsula suspeitou logo que o recado de Helena tivesse relação com a aflição de Estácio, e correu ao quarto da sobrinha. Achou-a meio inclinada sobre a cama, com o rosto na almofada, e o corpo tranqüilo e como morto. Ao sentir os passos de D. Úrsula, ergueu a cabeça. A palidez era grande e profundo o abatimento; mas não houvera lágrimas. A dor, se a houve, e houve, parecia ter-se petrificada.O que restava ainda vivo na figura da moça, eram os olhos que não perderam o fulgor natural. Ela ergueu-os a medo, e abraçou a tia com um olhar de súplica e de amor. D. Úrsula travou-lhe das mãos, encarou-a silenciosamente, e murmurou:

— Conte-me tudo.

— Saberá depois! suspirou a moça.

— Não tens confiança em tua tia?

Helena ergueu-se e lançou-se-lhe nos braços; duas lágrimas rebentaram-lhe dos olhos, e foram as primeiras que eles verteram naquela meia hora. Depois beijou-lhe as mãos com ternura:

— Pode receber estes beijos, disse ela, os anjos não os têm mais puros.

Foram as últimas palavras que D. Úrsula pode arrancar-lhe; a moça recolheu-se ao silencio em que ela a encontrou. D. Úrsula e Saiu; e foi dali ter com Estácio.O sobrinho encaminhava-se para a sala de jantar.

— Vamos para a mesa, disse ele, não convém que os escravos saibam de tais crises...

D. Úrsula referiu o estado em que achara Helena e as palavras que trocara com ela. Estácio ouviu-a sem nenhuma expressãode sim simpatia. O jantar foi um simulacro; era um meio de iludir a perspicácia dos escravos que aliás não caíam naquele embuste. Eles conheceram perfeitamente que algum acontecimento oculto trazia suspensos e concentrados os espíritos. As iguarias voltavam quase intactas; as palavras eram trocadas com esforço entre a sinhá velha e o senhor moço. A causa daquilo era, com certeza, nhanhã Helena.

Estácio deu ordem para que a todas as pessoas estranhas se declarasse estar ausente a família. A única exceção era o Padre Melchior. A esse escreveu pedindo-lhe que os fosse ver.

— Não posso esperar até amanhã, disse D. Úrsula; se tens de revelar alguma cousa a um estranho, por que o não fazer a mim primeiro? Diz-me o que há. Não posso ver padecer Helena; quero consolá-la e animá-la.

— O que tenho para dizer é longo e triste, retorquiu Estácio; mas, se deseja sabê-lo desde já, peço-lhe ao menos que espere a presença do Padre Melchior. Eu não poderia dizer duas vezes as mesmas cousas, seria revolver o punhal na ferida.

A curiosidade de D. Úrsula cresceu com estas meias palavras dosobrinho; mas era forçoso esperar, e esperou. Foi dali ao quarto de Helena. Como a porta estivesse fechada, espreitou pela fechadura. Helena escrevia. Esta nova circunstância veio complicar as impressõesde D. Úrsula.

— Helena está encerrada no quarto, e escreve, disse ela ao sobrinho.

— Naturalmente, respondeu este, com sequidão.

O Padre Melchior não se demorou em acudir ao chamado de Estácio. O bilhete era instante e a letra febril. Algum acontecimento grave devia ter-se dado. A reflexão do padre era justa, como sabemos; ele o reconheceu desde logo, não só no aspecto lúgubre da família, como na ânsia com que era esperado. Os três recolheram-se a uma das salas interiores.

— Helena? perguntou Melchior.

— Vamos tratar dela, respondeu Estácio.

Referir o que se passara naquela fatal manhã era mais fácil de planear que de executar. No momento de expor a situação e as circunstâncias dela, Estácio sentiu que a língua rebelde não obedecia à intenção. Achava-se num tribunal doméstico, e o que até então fora conflito interiorentre a afeição e a dignidade, cumpria agora reduzi-lo às proporções de um libelo claro, seco e decidido. Inocente ou culpada, Helena aparecia-lhe naquele momento como uma recordação das horas felizes, — doce recordação que os sucessos presentes ou futuros podiam somente tornar mais saudosa, mas não destruiriam nunca, porque é esse o misterioso privilégio do passado. Reagiu, entretanto, sobre si mesmo; e, ainda que a custo, referiu minuciosa e sinceramente o que se passara desde aquela manhã.

Não fora talhado para tão melindrosas revelações o coração de D. Úrsula. Desde o princípio da conversação sentiu o atordoamento que dão os grandes golpes. Esperava, decerto, um grande infortúnio de Helena, um episódio da família anterior, alguma cousa que desafiasse e a compaixão, sem diminuir o sentimento da estima. Acontecia justamente o contrário; a estima era impossível e a compaixão tornava-se apenas provável.

— Mas não! é impossível! exclamou ela daí a pouco, logo que a razão, obscurecida pelo abalo, pôde readquirir alguma luz... não! eu a vi há pouco; senti-lhe as lágrimas na minha face, ouvi-lhe palavras que só a inocência pode proferir. E, além disso, seu procedimento irrepreensível, um ano quase de convivência sem mácula, a elevação de seus sentimentos... não posso crer que tudo isso... Não! Pobre Helena! Vamos chamá-la, ela explicará tudo.

Interrogu o Vicente.

Um gesto dos dous homens mostrou que nenhum deles julgava digno este último recurso para conhecer a verdade.

D. Úrsula caíra em prostração, recordava suas apreensões do primeiro dia, e recuava com horror à idéia de ter acertado. Defronte dela, Estácio ocupava uma poltrona rasa, em cujos braços fincava os cotovelos, apoiando nas mãos a cabeça ardente e abatida. A alma ruminava a dor.

Um só dos três vingava a dignidade da situação. O Padre Melchior não sentira menor assombro que os dous parentes de Helena, nem padeceu menos profundo golpe; mas reergueu-se de um e outro; pôde vencer-se e conservar a razão clara, fria e penetrante. Entre os dous corações ulcerados e sem força, compreendeu Melchior que lhe cabia a principal ação, e não recuou ante a responsabilidade que daí poderia deduzir. Viu de um lancea extensão possível do mal, a desunião da família, os desesperos da ocasião, os ódios do dia seguinte, as amarguras indeléveis, e, talvez, as indeléveis saudades; mas nem este quadro o aterrou, nem ele o aceitou sem exame. Melchior não condenava nem absolvia; esperava. Ele pertencia ao número dessas virtudes singelas para as quais o vício é uma rara exceção; natureza sincera e franca era, lhe difícil crer na hipocrisia. Enquanto Estácio prosseguia calado e pensativo, e D.

Úrsula, ora sentada, ora de pé, intercalava o silêncio com exclamações de dor, Melchior observava-os e refletia também consigo. Enfim, proferiu estas palavras de animação:

— Sossegue, D. Úrsula; a verdade há de aparecer, e não estamos certos de que seja o que nos parece. Em todo o caso, não antecipemos a aflição. Seria padecer duas vezes. Há tempo de chorar à larga.

Melchior levantou-se:

— Convém sacudir o abatimento, continuou, dirigindo-se a Estácio cio; é a hora da ação e do vigor. Sobretudo, é necessário não boquejar de semelhante assunto por agora; daria azo às vozes estranhas e seus naturais comentários.

Eu tomarei nesta colisão o lugar que me compete, se mo não contestam...

— Oh! exclamou Estácio.

— ...Mas, desejo que desde já se conapenetrem bem de que, se a dignidade pede uma cousa, a caridade pede outra, e que o dever estrito é conciliá-las. Nada de ódios; perdão ou esquecimento.

— Mas, padre-mestre, que lhe parece? perguntou D. Úrsula com ansiedade.

— D. Úrsula, disse o padre, é preciso agora que a razão fale e trabalhe; o sentimento deve retrair-se e esperar.

Examinarei o caso e aconselharei o necessário remédio. Talvez estejamos a debater-nos no vácuos; quem sabe? trata-se de um equívoco, de uma aparência...

— Oh! ela confessou tudo! interrompeu Estácio. Vi-lhe a expressão de culpa nos olhos. Mas, enfim, estou pronto para tudo, continuou ele erguendo-se. Não foi o senhor um dos melhores amigos de meu pai? Não o é ainda nosso? Ajude-nos, aconselhe-nos; faremos o que lhe parecer melhor. Na situação em que nos achamos, nenhum de nós tem o espírito bastante senhor de si para colher os elementos da verdade, apurá-la e resolver. Esse papel é seu.

Vieram trazer a Estácio uma carta. Era do Dr. Camargo, anunciando-lhe que a madrinha de Eugênia falecera, e que ele no prazo de alguns dias estaria na Corte. Era o pior momento para semelhante vinda; Estácio não pôde reprimir um gesto de desgosto. O padre, dizendo-lhe o mancebo de que tratava a carta, observou que nenhum inconveniente podia haver no regresso de Camargo, uma vez que, sem demora, ficasse liquidado o assunto que os afligia.

— D. Úrsula, continuou ele, deixe-nos agora sós alguns instantes: vá tranqüila, confie em Deus, e não faça suspeitar a ninguém o que se passa nesta casa.

D. Úrsula obedeceu. Logo que ela saiu, Melchior fechou a porta. Estácio sentou-se de novo, disposto a ouvir o capelão. Este deu alguns passos entre a porta e uma das janelas. Ia anoitecendo; Estácio acendeu um candelabro.

Melchior sentou-se ao pé dele, sem lhe falar nem lhe voltar sequer os olhos. Meditava ou lutava consigo o mesmo; a fronte pesada e merencória traduzia a agitação interior. Já não era a inalterável placidez, reflexo de uma consciência religiosa e pura. Se a consciência era a mesma, não o era o coração, a braços com uma crise nova Após dez minutos de profundo silêncio entre ambos, o padre falou.

CAPÍTULO XXIII

— ÉS FORTE? perguntou o padre.

— Sou.

— Crês em Deus?

Estácio estremeceu e olhou para o ancião, sem responder. Melchior insistiu:

— Crês?

— Essa pergunta...

— É menos ociosa do que parece. Não basta supor que se crê; nem basta crer à ligeira, como na existência de uma região obscura da Ásia, onde nunca se pretende por os pés. O Deus de que te falo não é só essa sublime necessidade do espírito, que apenas contenta alguns filósofos; falo-te doDeus criador e remunerador, do Deus que lê no fundo de nossa as consciências, que nos deu a vida, que nos há de dar a morte, e, além da morte, o prêmio ou o castigo.

— Creio.

— Pois bem, tu transgrediste a lei divina, como a lei humana, sem o saber. Teu coração é um grande inconsciente; agita-se, murmura, rebela-se, vaga à feição de um instinto mal expresso e mau compreendido. O mal persegue-te, tenta-te, envolve-te em seus liames dourados e ocultos; tu não o sentes, não o vês; terás horror de ti mesmo, quando deres com ele de rosto. Deus que te lê, sabe perfeitamente que entre teu coração e tua consciência há como um véu espesso que os separa, que impede esse acordo gerador dodelito.

— Mas que é, padre-mestre?

Melchior inclinou-se e encarou o moço. Os olhos, fitos nele, eram como um espelho polido e frio, destinado a reproduzir a impressãoi do que lhe ia dizer.

— Estácio, disse Melchior pausadamente, tu amas tua irmã.

O gesto mesclado de horror, assombro e remorso com que Estácio ouvira aquela palavra, mostrou ao padre, não só que ele estava de posse da verdade, mas também que acabava de a revelar ao mancebo. O que a consciência deste ignorava, sabia-o o coração, e só lho disse naquela hora solene. A consciência, depois de tatear nas trevas. recuou apavorada, como afastando de si o clarão súbito que acendera nela a palavra do sacerdote. Estácio não respondeu nada; não podia responder nada. Com que vocábulo e em que língua humana exprimiria ele a comoção nova e terrível que lhe abalara a alma toda? que fio pudera atar-lhe as idéias rotas e dispersas? Nem falou, nem se atreveu a erguer os olhos; ficou como estúpido e morto. Melchior contemplou-o alguns minutos, silencioso e compassivo. Os olhos, que eram de águia para os mistérios da vida, eram de pomba para os grandes infortúnios. Abaixo da cabeça máscula, havia um coração feminino.

A mudez de Estácio cessou enfim; o corpo agitou-se; o lábio articulou algumas frases desconcertadas. Vago era o sentido delas; podia concluir-se que ele não cria na revelação de Melchior, que o suposto sentimento era tão absurdo e desnatural que só a maus instintos devia ser atribuído. Melchior ouviu-o, sorriu com satisfação. Não era aquilo mesmo um protesto de consciência honrada?

— Maus instintos, não, respondeu Melchior um desvio da lei- 8social e religiosa, mas desvio inconsciente. Entra em teu coração, Está cio; revolve-lhe os mais íntimos recantos, e lá acharás esse gérmen: funesto; lança-o fora de ti,que é o preceito do Eterno Mestre. Não o sentiste nunca,a tentação usa essa tática serpentina e dolorosa;é insinuante com a calúnia, e pertinaz como a suspeita. Maseu sou a verdade que afirma, e a caridade que consola.

Digo-te, nãoque pecaste, mas que ficaste à beira do pecado, e estendo-te a mãopara que recues do abismo.

— Padre-mestre! murmurou Estácio, cujo coração recebia a influência da palavra de Melchior, a um tempo severa e meiga.

— Não fales, continuou o padre; negá-lo é mentir, confessá-lo é ocioso. Como nasceu em teu coração semelhante sentimento? Quis a fortuna que entre vocês dous não houvesse a imagem da infância e a comunhão dos primeiros anos; que, em plena mocidade, passassem, do total desconhecimento um do outro, para a intimidade de todos os dias. Esta foi a raiz do mal. Helena apareceu-te mulher, com todas as seduções próprias da mulher, e mais ainda com as de seu próprio espírito, porque a natureza e a educação acordaram em a fazer original e superior. Não sentiste a transformação lenta que se operou em ti, nem podias compreende-la. São Pauloo disse: para os um corações limpos, todas as cousas são limpas. Vias a afeição legítima naquilo que era já feição espúria; dal vieram os zelos, a suspicácia, um egoísmo exigente, cujo resultado seria subtrair a alma de Helena a todas as alegrias da Terra, unicamente para o fim de a contemplares sozinho, como um avaro.

Ouvindo a palavra do padre, Estácio soletrava o próprio coração e lia claramente o que até então era para ele como um livro fechado. A situação tornava-se, entretanto, por demais aflitiva, profunda vergonha, intenso o remorso.

Estácio ergueu-se: erguendo-se, deu com os olhos no retrato do conselheiro que, na penumbra em que ficava, parecia olhar para o filho e interrogá-lo. Esta circunstância desorientou o moço.

— Não, padre-mestre! exclamou ele deixando-se cair na cadeira. É impossível! isto que me está dizendo é um sonho mau, é um funesto equívoco; é impossível; juro-lhe que é impossível. É certo que a amo... que a amava, com sentimentos de irmão; mas esquecer-me, aninhar em minha alma tão odioso afeto... oh! era impossível!

Melchior erguera-se. Após meia dúzia de passos, aproximou-se de Estácio, sobre cuja cabeça estendeu a mão direita, enquanto com a outra lhe erguia a barba, obrigando-o a olhar para ele.

— Digo-te que tens uma raiz de má erva no coração; esta é a cruel verdade. Há no homem uma ligação de sentimentos, às vezes inexplicável. Produtos de climas opostos aí se alternam ou se confundem... Mas queres saber o resto?

— O resto?

— Ouve, continuou o padre, sentando-se. A planta ruim bracejou um ramo para o coração virgem e casto de Helena, e o mesmo sentimento os ligou em seus fios invisíveis. Nem tu o vias, nem ela; mas eu vi, eu fui o triste espectador dessa violenta e miserável situação. São irmãos e amam-se. A poesia trágica pode fazer do assunto uma ação teatral; mas o que a moral e a religião reprovam, não deve achar guarida na alma de um homem honesto e cristão.

— Impossível! Impossível! exclamou Estácio. Mas, dado que assim fosse, por que acumular à dificuldade presente o horror de semelhante revelação?

— Porque a revelação explica a dificuldade. Helena não saberá que ama, mas ama. Ora, um amor clandestino, de parceria com esse outro amor incestuoso, embora inconsciente, provaria da parte de Helena uma perversão que ela não pode ter, e que, em tal idade, faria dela um monstro. Será Helena esse monstro? Se o fosse, eu desesperaria da natureza humana. Não! essa casa, onde a viste entrar, é com certeza asilo de miséria: o que ela aí vai levar é a esmola e a compaixão.

Um raio de esperança alumiou a fronte de Estácio. O raciocínio do padre era exato, e por mais perigosa que fosse a situação revelada por ele, já agora não se podia desejar outra cousa; a dignidade da família ficava intacta. Estácio refletiu largo tempo no que acabava de ouvir. Mas a esperança foi curta, embora a necessidade dela fosse grande.

— Helena continua recolhida? perguntou o padre.

Estácio fez um leve sinal afirmativo.

— Falar-lhe-ei amanhã; por hoje convém não dizer palavra nem deixar transpirar cousa nenhuma.

Dizendo isto, Melchior recolheu-se ao silêncio, como se refletisse ainda alguma cousa. Estácio erguera-se e entrara a passear lentamente. De quando em quando, apertava a cabeça entre as maos; tantas comoções bastavam para atordoar mais forte espírito.O mistério o cercava de todos os lados. Ele ia até àjanela, daí até à porta, intercalando as reflexões interiores com sacudimentos nervosos do braço ou da cabeça. A intervalos, olhava a furto e de través para o capelão, como o criminoso olha para a consciência; não podia evitar o sentimento de terror, e ao mesmo tempo de respeito, que lhe infundia aquele investigador exato e profundo de seus sentimentos mas recônditos e acessíveis.

Ruminava o que o padre lhe dissera; cada minuto lhe ia tornando mais clara a verdade revelada, e o que era obscuro fizera-se-lhe enfim transparente. É assim que a luz de um astro, acesa desde séculos, chega finalmente a ferir a retina de nossos olhos mortais.

Uma vez, interrompendo os passos, ergueu os olhos para o retrato do conselheiro. Não os retirou aterrado; cravou-os com ar de reproche de amargura, em que o padre reparou, e que o fez sorrir tristemente. Oolhar do filho pedia contas ao pai.

— Paz aos mortos! observou Melchior. Os atos de seu pai já não pertencem à jurisdição deste mundo.

Melchior proferiu estas palavras já de pé.

— O Dr. Camargo, disse ele mudando de tom, deve chegar um dia deste, segundo anuncia. Há alguma razão para demorar o casamento?

— Nenhuma.

— Contém realizá-lo imediatamente?

— Imediatamente.

Melchior caminhou para a porta. Ia dar volta à chave e deteve-se.

— Antes de nos separarmos, disse ele, desejo a promessa de que não falarás a Helena antes de amanhã.

— Prometo.

O padre refletiu um instante; Estácio pareceu adivinhá-lo.

— Quer ainda outra promessa? perguntou ele. Quer que a evite de todos os modos?

— Sim; que a considere com pessoa totalmente estranha.

— Poderia ser de outra maneira? observou melancolicamente Estácio. Os sucessos destes dias são, por enquanto ao menos, uma barreira entre ela e sua família. Demais, eu seria destituído de todo o senso moral...

Juras?

— Juro.

Melchior desabrochou a camisa, e aventou um crucifixo de marfim, que lhe pendia de uma fita preta, ao pescoço.

— Este, disse ele com voz singela, é a efígie do teu Deus. Tão puro exemplo de castidade não viram os séculos nem antes nem depois que ele desceu à Terra. Jura o que me prometes.

— Padre-mestre, retorquiu Estácio; minha palavra era bastante. Mas, se e preciso afirmação mais solene, eu a darei tal qual me pede.

Estácio inclinou a cabeça sobre o crucifixo e beijou-o respeitosamente; depois beijou a mão ao padre. Melchior abençoou-o e saiu.

Saindo do gabinete de Estácio, dirigiu-se para a sala de costura, onda achou D. Úrsula um pouco menos agitada.

— Falou a Helena? perguntou ela, dirigindo-se ao padre.

— Ainda não; sei que não quer sair do quarto; deixemos passar a primeira comoção. Amanhã virei saber tudo.Por hoje é preciso que a senhora sossegue.

— Oh! estou sossegada! Não perdi a confiança.

D. Úrsula proferiu estas palavras com tamanha serenidade e tanta convicção que fortaleceu o espírito do próprio Melchior, aliás, não inclinado a crer no mal. O ancião deteve-se alguns instantes a contemplar o rosto plácido de D.

Úrsula, a admirar a força secreta que a tornava surda ao clamor da realidade, — pelo menos, da realidade aparente.

Contemplou silencioso, e desceu à chácara.

CAPÍTULO XXIV

A NOITE era escura. Calcando a terra e a areia das largas calhes da chácara, Melchior, em sua imaginação, refloria o passado, nem sempre feliz, mas geralmente quieto. Mais de uma vez buscara dissipar a sombra pesarosa que alguns erros do conselheiro acumularam na frente da consorte. Haveria naquela casa uma geração de dores, destinadas a abater o orgulho da riqueza com o irremediável espetáculo da debilidade humana?

— Não, dizia ele consigo mesmo A verdade é que tudo se encadeia desenvolve logicamente. Jesus o disse: não se colhem figos dos abrolhos. A vida sensual do marido produziu o infortúnio calado e profundo daquela senhora, que se foi em pleno meio-dia; o fruto há de ser tão amargo como a árvore; tem o sabor travado de remorsos."

Neste ponto chegava ao portão. Aí deteve-se um instante. O passo cauteloso e tímido de alguém fê-lo voltar a cabeça. Um vulto, cujo resto não se via, tão escuro como a noite, ali estava e lhe tocava respeitosamente as abas da sobrecasaca. Era o pajem de Helena.

— Seu padre, disse este, diga-me por favor o que aconteceu em casa. Vejo todos tristes; nhanhã Helena não aparece; fechou-se no quarto... Me perdoe a confiança. O que foi que aconteceu?

— Nada, respondeu Melchior.

— Oh! é impossível! Alguma cousa há por força. Seu padre não tem confiança em seu escravo. Nhanhã Helena está doente?

— Sossega; não há nada.

— Hum! gemeu incredulamente o pajem. Há alguma cousa que o escravo não pode saber; mas também o escravo pode saber alguma cousa que os brancos tenham vontade de ouvir.

Melchior reprimiu uma exclamação. A noite não lhe permitia examinar o rosto do escravo, mas a voz era dolente e sincera. A idéia de interrogá-lo passou pela mente do padre, mas não fez maisdo que passar; ele a rejeitou logo, como a rejeitara algumas horas antes. Melchior preferia a linha reta; não quisera empregar um meio tortuoso. Iria pedir a Helena a solução das dificuldades. Entretanto,o pajem, como interpretasse de modo afirmativo o silêncio do sacerdotedote, continuou:

— Nhanhã Helena é uma santa. Se alguém a acusa, acusa o bom procedimento dela. Eu lh e direi tudo...

Melchior ia recusar, mas um incidente interrompeu a palavra do me pajem,contra a vontade deste, e talvez contra o desejo de Melchior. Ouviram-se passos; era um escravo que vinha fechar o portão.

— Vem gente, disse Vicente; amanhã...

O pajem tateou nas trevas em procura da mão do padre; achou-a, enfim, beijou-a e afastou-se. Melchior seguiu para casa, abalado com a meia revelação que acabava de ouvir. Outro qualquer podia duvidar um instante da sinceridade do escravo; podia supor que o ato dele era menos espontâneo do que parecia; enfim, que a própria Helena sugerira aquele meio de transviar a expectação e congraçar os sentimentos. A interpretação era verossímil; mas o padre não cogitou de tal cousa. A ele era principalmente aplicável a máxima apostólica: para os corações limpos, todas as cousas são limpas.

A seguinte aurora alumiou um céu puro de nuvens. Estácio acordou com ela, depois de uma noite mal-dormida.

Nunca a manhã lhe pareceu mais rumorosa e jovial; nunca o ar apresentara tão fina transparência nem a folhagem tão lustrosa cor. Da janela a que se encostara, via as flores de todos os matizes, quebrando a monotonia da verdura, e enviando-lhe, a ele, uma nuvem invisível de aromas: aspecto de festa e ironia da natureza. Estácio achava-se ali como um saimento em horas de carnaval.

Almoçou sozinho; D. Úrsula estava com Helena. Logo depois do almoço, recebeu uma carta de Mendonça, que, tendo ido na véspera a Andaraí recebera a resposta dada a todos, e mandava saber se havia moléstia em casa. Estácio respondeu afirmativamente, acrescentando que, posto não se tratasse de cousa grave, só o esperava dous dias depois.

A resposta podia ser mais circunspecta; no estado em que ele se achava, pareceu-lhe excelente.

Pela volta do meio-dia, chegou Melchior. Na sala de visitas achou D.Úrsula, que o espreitava de uma das janelas.

— Helena? perguntou ele ansioso.

— Já hoje desceu, respondeu D. Úrsula. Está mais tranqüila. Não lhe perguntei nada, mas dizendo-lhe que o senhor viria falar-lhe, mostrou-se ansiosa por vê-lo, e pediu-me até que o mandasse chamar.

Seguram os dous até à saleta que ficava ao pé dasla de jantar. Helena estava sentada, com a cabeça saída sobre as costas da cadeira, e os olhos metade cerrados. Logo que o padre entrou, Helena abriu os olhos e ergueu-se. Vivo e passageiro rubor coloriu-lhe as faces pálidas da vigília e da aflição. Ergueu-se e deu dous passos para o padre, que lhe apertou as mãos entre as suas.

— Imprudente! murmurou Melchior.

Helena sorriu, um sorriso pálido e tão passageiro como a cor que lhe tingira o rosto. D. Úrsula dispôs-se a ir chamar Estácio, que estava no andar de cima. Apenas a viu sair, Helena segurou em uma das mãos do padre.

— Queria vê-lo! disse ela. Não tenho ânimo de falar a ninguém mais, de dizer tudo...

— É inútil; tudo sei, interrompeu Melchior sorrindo. O Vicente foi hoje de manhã à minha casa; foi de movimento próprio; relatou-me quanto sabia; disse-me que esse homem é seu irmão; que a senhora o ia ver, a ocultas, não podendo ou não querendo apresentá-lo em casa de seus parentes. O escrúpulo era excessivo, e o ato leviano. Por que motivo dar aparência incorreta a um sentimento natural? Teria poupado muita aflição e muita lágrima, a si e aos seus, se tomasse antes o caminho direito, que é sempre o melhor.

Helena ouviu estas palavras do padre com a alma debruçada dos olhos. Não parecia sequer respirar. Quando ele acabou, perguntou sôfrega:

— Com que intento lhe falou ele?

— Com o mais puro de todos; desconfiou que a senhora padecia e por isso veio contar-me tudo.

Helena cruzou os dedos e ergueu os olhos. Melchior não a quis interromper nessa ascensão mental ao Céu; limitou-se a contemplá-la. A beleza de Helena nunca lhe parecera mais tocante do que nessa atitude implorativa. A contemplação não durou muito, porque a oração foi breve.

— Orei a Deus, disse ela, descendo as mãos, porque infundiu aí no corpo vil do escravo tão nobre espírito de dedicação. Delatou-me para restituir-me a estima da família. Aquilo que ninguém lhe arrancaria do coração, tirou-o ele mesmo no dia em que viu em perigo o meu nome e a paz de meu espírito. Infelizmente, mentiu.

Melchior empalideceu.

— Mentiu sem o saber, continuou a moça. Disse o que supunha serverdade, o que eu lhe dei como tal. Não é meu irmão esse homem.

Melchior inclinou-se para a moça e pegando-lhe nos pulsos, disse imperiosamente:

— Então quem é? Seu silencio é uma delação; não tem já direito de hesitar.

Não hesito, replicou Helena; em tais situações, uma criatura, como eu, caminha direto a um rochedo ou a um abismo; despedaça-se ou some-se. Não há escolha. Este papel,— continuou, tirando da algibeira uma carta, — este papel lhe dirá tudo, leia e refira tudo a Estácio e a D. Úrsula. Não tenho ânimo de os encarar nesta ocasião.

Melchior, atordoado, fez um leve sinal de cabeça.

— Lido esse papel, estão rotos os vínculos que me prendem a esta casa. A culpa do que me acontece, não é minha, é de outros; aceitarei contudo as conseqüências. Poderei contar ao menos com a sua bênção?

A resposta do padre foi pousar-lhe um beijo na fronte, beijo de absolvição ou de clemência, que ela lhe pagou com muitos na destra enrugada e trêmula de comoção. Helena precipitou-se depois para ocorredor, deixando o padre só, com a carta nas mãos, sem ousar abri-la, receoso dos males que iam dali sair, sem certeza ao menos de que ficaria no fundo a esperança. Ia abri-la, e hesitou se o devia fazer na ausência de Estácio e D. Úrsula; venceu o escrúpulo e leu.

D. Úrsula, que entrou na ocasião em que ele fechava a carta, recuou aterrada. Melchior estava pálido como um defunto. Antes que nenhum deles falasse, entrou Estácio nasaleta. Melchior dirigiu-se a ele e entregou a carta. Leu-a Estácio e dizia assim:

Minha boa filha. Sei pelo Vicente que alguma cousa aí há que te aflige. Presumo adivinhar o que é. Estácio esteve comigo, logo depois que saíste a última vez. Entrou deconfiado, e deu como razão ou pretexto a necessidade de curar algumas feridas feitas na mão. Talvez ele próprio as fizesse para entrar aqui em casa. Interrogou-me; respondi conforme pedia o caso. Supondo que ele soubesse de tuas visitas, não lhe ocultei a minha pobreza; era o meio de atribuí-las a um sentimento de caridade. A virtude serviu assim de capa a impulsos da natureza. Não é isso em grande parte o teor da vida humana? Fiquei, entretanto, inquieto; talvez lhe não arrancasse o espinho do coração. Pelo que me disse o Vicente, receio que assim acontecesse. Conta-me o que há, pobre filha do coração; não me escondas nada. Em todo caso, procede com cautela. Não provoques nenhum rompimento. Se for preciso, deixa de vir aqui algumas semanas ou meses. Contar-me-á a idéia de saber que vives em paz e feliz. Abençôo-te, Helena, com quanta efusão pode haver no peito do meis venturoso dos pais, a quem a fortuna, tirando tudo, não tirou o gosto de se sentir amado por ti. Adeus. Escreve-me. — SALVADOR.

P. S. — Recebi o teu bilhete. Pelo amor de Deus, não faças nada; não saias daí; seria um escândalo.

Estácio não compreendeu desde logo o que acabava de ler. A verdade parecia inverossímil. O primeiro movimento foi sair dali e ir ter com Helena. Melchior deteve-o a tempo.

— Não precipitemos nada, disse ele. Sossegue primeiro.

Estácio deixou-se cair numa cadeira; Melchior comunicou o conteúdo da carta a D. Úrsula, cujo pasmo foi ainda mais profundo que o do sobrinho, porque ela não soltou uma palavra, não fez um gesto; ficou a olhar estupidamente para o papel. Houve então entre aqueles três personagens dez minutos de mortal silêncio. D. Úrsula não pensava; olhava para a carta, logo depois para o sobrinho e para o padre, como aesperar uma conclusão que seu próprio espírito não podia deduzir dos acontecimentos. Estácio ficara desorientado; em vão procurava um fio de dedução entre as idéias; a revelação nova era uma complicação mais. Se a carta era sincera, como explicar a declaração testamentária de seu pai? Se o não era, como explicar a audácia de semelhante invenção? Ele não podia discernir o que era favorável a Helena, nem ousava afirmar o que lhe era adverso.

No meio daquela família, arriscada a dispersar-se, Melchior considerava a superioridade da morte sobre alguns lances terríveis da vida. Se o óbito de Helena tomara o lugar da carta, a dor seria violenta. mas o irremediável desfecho e o consolo da religião teriam contribuído para sarar a alma dos que ficassem e converter o desespero de alguns dias na saudade da vida inteira. Em vez disso, estava ele, talvez, diante de um destino aniquilido; via um abismo possível entre os corações que a vontade de um morto vinculara. Qualquer que fosse a veracidade da carta, o resultado era talvez esse.

Melchior foi dali ter com Helena, para alcançar mais detida explicação do que acabava de ler. Ela ergueu-se quando o viu, e pareceu reviver ao contemplar o gesto benévolo com que ele lhe falou. Um longo suspiro de alívio rompeu-lhe do coração: os braços caíram sobre os ombros do padre, em cujo seio escondeu o rosto e repousou enfim, — um minuto — das dores que a afligiam.

— Perdoaram-me? disse ela.

— Hão de perdoar; conte-me tudo.

— Oh! não posso, não sei; sei que é meu pai.

O capelão não insistiu; voltou aos outros dous, a quem achou na posição em que os deixara. Interrogaram-no com os olhos.

— Nada, disse ele. O coração dela não possui nesta ocasião a necessária força para responder a quanto se lhe devia perguntar; demais não saberá tudo. Temos a primeira confissão da verdade...

— Da verdade? interrompeu melancolicamente Estácio. Quem sabe se é verdade o que lemos nesse papel?

— É, deve ser. Faltam-nos, é certo, os fundamentos da asseveração; mas eu incumbo-me de ir buscá-los.

— Iremos ambos.

D. Úrsula quis dissuadir o sobrinho de ir à casa do homem, causa dos desastres da família, não tanto porque lhe parecia que entre Estácio e ele nenhuma relação convinha estabelecer, mas sobretudo porque ela precisava de alguém que a acompanhasse em tão graves circunstâncias. Melchior inclinou-se ao alvitre de D. Úrsula.

— Irei eu só, disse ele; depois conduzi-lo-ei até cá, se for preciso.

— Não posso esperar, insistiu Estácio; preciso falar a esse homem, ouvi-lo, ler-lhe a verdade ou o embuste nas linhas do rosto. Talvez o decoro da família exigisse outra cousa; mas, padre-mestre, meu coração goteja sangue...

Era impossível dissuadi-lo: Melchior tratou somente de o moderar. De resto, a crise era violenta; cumpria resolvê-la sem demora nem hesitação O padre animou D. Úrsula, e saiu acompanhadode Estácio, cujo coração, convalescido do primeiro abalo, deixava as regiões da dúvida para entrar na atmosfera da verdade, — pelo menos da esperança. Quaisquer que fossem as conseqüências da nova revelação, vinha esta como um bálsamo, após tão dolorosas comoções; era um rasgão azul no céu tempestuoso daqueles dias. Ia ele pensando assim, — ou antes sentindo; — porque o pensamento não ousava regê-lo desde que a vida inteira do moço se lhe concentrara no coração.

Chegando à frente da casa Estácio desviou os olhos; custava-lhe encará-la mas venceu-se. Houve demora em abrir a porta; abriu-se esta enfim,e a figura do dono da casa apareceu aos dous. Vendo-os empalideceu um pouco, mas um sorriso procurou disfarçar a impressão. Estácio foi direito ao fim.

— Suponho que se lembra de mim? disse ele.

— Perfeitamente.

— Sabe que motivo nos traz à sua casa?

— Não, senhor.

— Confessa a autoria desta carta?

Salvador estremeceu; depois respondeu com um gesto afirmativo.

— Pretende que Helena é sua filha, disse o moço depois de um instante. Confirma verbalmente o que escreveu?

— Helena é minha filha.

Melchior interveio:

Há um ano, falecendo, o meu velho amigo Conselheiro Vale reconheceu Helena, por uma cláusula testamentára: recomendava à família que a tratasse com afeto e carinho e designava o colégio em que ela estava sendo educada. O fato do reconhecimento e as circunstâncias que apontou, dão toda a veracidade à palavra do morto. Que prova apresenta o senhor em contrário a ela?

— Nenhuma, disse Salvador; não tenho prova de nenhuma natureza.

— Na falta de provas, prosseguiu o capelão, poderia dizer-nos como supor da parte do conselheiro uma falsificação, tratando-se de disposição tão grave como essa de introduzir uma pessoa estranha na família?

Salvador sorriu amargamente.

— Suponha, disse ele, que eu havia iludido a confiança do conselheiro e que ele acreditava ser pai de Helena.

— Era isso?

— Não era. Na posição em que nos achamos, já não há lugar para meias palavras. Força é referir tudo. Dez minutos apenas.

Os três sentaram-se. Melchior olhava para o dono da casa com a persistência e a curiosidade naturais da ocasião.

Salvador esteve alguns instantes calado; enfim, voltou-se para o capelão.

— Estimo, disse ele, que o Sr. padre viesse; sua caridade temperará a legítima indignação deste moço; e eu farei as declarações indispensáveis na presença das duas pessoas a quem mais amo, abaixo de Helena.

— Queira falar, disse secamente Estácio.

CAPÍTULO XXV

— A MÃE DE HELENA, disse Salvador, cuja beleza foi a causa, a um tempo, da sua má e boa fortuna, era filha de um nobre lavrador doRio Grande do Sul, onde também nasci. Apaixonamo-nos um pelo outro. Meu pai opôs-se ao casamento; tinha alguns bens, mandara-me estudar, queria ver-me em posição brilhante. Ângela podia ser obstáculo à minha carreira, dizia ele. Opôs-se, e eu resisti; raptei-a; fomos viver na campanha oriental, donde passamos a Montevidéu, e mais tarde ao Rio de Janeiro. Tinha vinte anos quando deixei a casa paterna; possuía alguns estudos, poucos, meia dúzia de patacões, muito amor e muita esperança. Era de sobra para a minha idade, mas insuficiente para o meu futuro. A lua-de-mel foi desde logo uma noite de privações e trabalhos. Minha vida começou a ser um mosaico de profissões; aqui onde me vêem, fui mascate, agente do foro, guarda-livros, lavrador, operário, estalajadeiro, escrevente de cartório; algumas semanas vivi de tirar cópias de peças e papéis para teatro. Trabalhava com energia, mas a fortuna não correspondia à constância, e o melhor dos anos gastei-o em luta áspera e desigual.

Uma compensação havia, a mais doce de todas: era o amor e o contentamento de Ângela, a igualdade do ânimo com que ela encarava todas as vicissitudes. Pouco tempo depoisda nossa fuga, havia outra compensação mais: era Helena.

Essa menina nasceu em um dos momentos mais tristes da minha vida. Os primeiros caldos da mãe foram obtidos por favor de uma mulher da vizinhança. Mas nasceu em boa hora, e foi um laço mais que nos prendeu um ao outro.

A presença de um ente novo, sangue do meu sangue, fez-me redobrar de energia. Trabalhava com alma, lutava resoluto contra todas as forças adversas, certo de encontrar à noite a solicitude da mãe e as ingênuas carícias da filha.

Os senhores não são pais; não podem avaliar a força que possui o sorriso de uma filha para dissolver todas as tristezas acumuladas na fronte de um homem. Muita vez, quando o trabalho me tomava parte danoite, e eu, apesar de robusto, me sentia cansado, erguia-me, ia ao berço de Helena, contemplava-a um instante e parecia cobrar forças novas. Se o próprio berço era obra de minhas mãos! Fabriquei-o de alguns sarrafos de pinho velho; obra grosseira e sublime: servia a adormecer metade da minha felicidade na Terra.

Salvador interrompeu-se comovido.

— Perdoem-me, continuou ele, depois de alguns instantes, se estas memórias me abalam o coração. Eu era pobre, tão pobre como hoje. Desse tempo só resta um eco doloroso e consolador. Crescia Helena e cresciam suas graças. Era o encanto e a esperança do meu albergue. Quando pode aprender os rudimentos da leitura, dei-lhe as primeiras lições; assisti pasmado à aurora daquela inteligência que os senhores vêem hoje tão desenvolvida e lúcida. Aprendia com facilidade, porque estudava com amor. Ângela e eu construíamos os mais lindos castelos do mundo. Nós a víamos já mulher, formosa como viria a ser, porque já o era, inteligente e prendada, esposa de algum homem que a adorasse e elevasse.Vivíamos dessa antecipação, que era apenas um sonho, e não sentíamos os golpes da fortuna.

— Por que razão, perguntou Melchior, dado esse amor e nascida uma filha, não santificou o senhor a situação em que se achavam?

— A curiosidade é justa, replicou Salvador, mas a resposta é decisiva. Casar era a nossa justificação; era um argumento contra o ressentimento de meu pai. Nos primeiros dias da nossa fuga do Rio Grandes, a própria embriaguez da felicidade desviou qualquer idéia de santificar e legalizar uma união consentida pela natureza. Depois vieram os trabalhos e as necessidades. Como eu tinha certeza de não fugir ao dever que tomara em meus ombros, ia adiando o ato de mês para mês, de ano para ano. Afinal o projeto esvaiu-se de todo. Estávamos ligados pela miséria e pelo coração, não pretendíamos o respeito da sociedade; triste desculpa; e ainda mais triste recordação, porque o casamente teria talvez obstado os acontecimentos posteriores. Helena contava seis anos. Minha fortuna, adversa sempre, com intermitência favoráveis, parecia abrandar um pouco. Ia encetar um novo meio de vida, quando uma circunstância grave me chamou ao Rio Grande. Meu pai adoecera; mandava-me o seu perdão, ordenando-me que o fosse ver sem demora. Obedeci prontamente. Do que ele me remeteu para as despesas de viagem e outras, deixei alguma cousa a Ângela e Helena, e parti. Vinte e quatro horas depois de ver meu pai, tive a dor de o perder. A liquidação dos negócios foi curta; os bens todos ficaram pertencendo aos credores; restavam-me alguns patacões.

Recebi esse golpe novo com a filosofia da insensibilidade. Quem sabe se não era eu o culpado do acontecimento? Os negócios entretanto, apesarde curtos, demoraram-me mais do que eu pretendia e convinha. A ânsia devoltar cresceu, desde que não recebi a resposta das últimas cartas que escrevi a Ângela. Enfim, pude regressar ao Rio de Janeiro com um luto mais e uma esperança a menos. Neste ponto entra a pessoa de seu pai.

Estácio desviou os olhos.

— Logo que cheguei, continuou Salvador, corri à casa; achei-a fechada. Um vizinho, testemunha da minha aflição, deu-me notícia de que Ângela semudara para S. Cristóvão. Não sabia nem o número nem a rua; mas deu-me algumas indicações que me guiaram. Ainda hoje tenho ante os olhos o sorriso com que aquele homem me respondia. Era um sorrir de compaixão que humilhava. Sem nunca haver recebido de mim a menor ofensa, vejo que ele tinha um prazer secreto com o meu infortúnio. Por quê? Deixo aos filósofos liquidarem esse enigma da natureza humana. Voei a S.

Cristóvão; gastei tempo em procurar a casa, mas dei com ela. Quando a vi, duvidei de meus olhos ou das indicações. Era uma casa elegante, escondida entre o arvoredo, no meio de um pequeno jardim. Podia ser aquela a residência da companheira de minha miséria? Receoso de ir bater ali, vi assomar ao portão um homem, que me pareceu ser o jardineiro. Perguntei pela dona da casa, a quem dei o seu próprio nome, dizendo que lhe desejava falar.

"A senhora saiu", respondeu ele distraidamente. Dispus-me a esperar, mas o jardineiro observou-me que ia sair e fechar o portão, e quea senhora só voltaria à noite. "Esperarei até à noite", redargüi. O jardineiro mediu-me de alto a baixo, circulou um olhar cauteloso pela rua e disse-me baixinho: "Aconselho ao senhorque não volte; o patrão não há de gostar". Não escrevo um romance, dispenso-me de lhes pintar o efeito que produziram essas palavras. O que senti excede a toda a descrição. Há catástrofes mais solenes, há situações mais patéticas; mas naquela ocasião parecia-me que todas as dores do mundo se tinham convergido para meu coração.O jardineiro era verdadeiramente compassivo; lendo em meu rosto o efeito de suas palavras, disse-me alguma cousa de que absolutamente me não lembro.

Convidou-me com brandura a sair; obedeci maquinalmente. Podendo informar-me acerca de Ângela, não o fiz. A febre reteve-me três dias de cama, numa pobre cama alugada em péssima estalagem da Cidade Nova. No terceiro dia recebi uma carta de Ângela. Pedia-me que lhe perdoasse o passo que dera; que uma paixão nova e delirante a havia guiado, e que, se viesse a arrepender-se, seria essa a minha vingança. Quando li a carta, tive ímpeto de ir ter com ela e esganá-la; mas o ímpeto passou, e a dor desfez-se em reflexões. Poucos dias antes, a bordo, um engenheiro inglês que vinha do Rio Grande para esta Corte, emprestarame um volume truncado de Shakespeare. Pouco me restava do pouco inglês que aprendi; fui soletrando como pude, e uma frase que ali achei fez-me estremecer, na ocasião, como uma profecia; recordei-a depois, quando Ângela me escreveu. "Ela enganou seu pai, diz Brabantio a Otelo, há de enganar-te a ti também." Era justo; pelo menos, era explicável. Dous dias depois da carta de Ângela, escrevi-lhe pedindo meia hora de conversação; nada mais. Ângela concedeu-me a entrevista. Meu plano era arrebatar-lhe Helena; ela pareceu que o previu, recebendo-me sozinha, no jardim, às nove horas da noite.

— Por que razão recorda todas essas minúcias? interrompeu? Melchior com brandura; nós desejamos somente saber o essencial.

— Tudo é essencial na minha narração, disse Salvador. Aquela entrevista mostrou-me a toda a luz o caráter de Ângela. Que outra mulher se arriscaria, em tais circunstâncias, a afrontar a cólera do homem desprezado? Ângela era um complexo de qualidades singulares. Capaz de suportar as maiores angústias, forte e risonha no meio das máximas privações, esqueceu num instante as virtudes que tinha para correr atrás de uma fantasia de amor.Não foi a riqueza que a seduziu; ela iria, ainda que tivesse de trocar a riqueza pela miséria. Ângela nasceu metade freira e metade bailarina; capaz das austeridade de um claustro, não o era menos das pompas da cena. E dai... não fui eu mesmo que a desviei da estrada real para metê-la por um atalho obscuro? Disse-lho naquela noite em que procurei ser tranqüilo e superior aos acontecimentos. "Meu fim, declarei eu, é só um: levar Helena; Helena é minha filha, não quero deixá-la entregue a seus maus exemplos." As lágrimas com que me banhou as mãos, as rogativas que me fez, ajoelhada a meus pés, para que lhe deixasse Helena, não há negar que foi tudo sincero.Cedi aparentemente. Minha resolução estava assentada; sem Helena, a vida parecia-me impossível. Que outro vínculo me prendia ao mundo? A morte e a miséria tinham feito em redor de mim completa solidão. A única felicidade sobrevivente era ela.

— Segundo rapto, observou o padre. O senhor condenava-se a só adquirir um vislumbre de felicidade por meios violentos.

— Tem razão, respondeu Salvador com tristeza; um abismo chamava outro abismo. Felizes os que sabem o caminho reto da vida e nunca se arredaram dele! Quis arrebatar Helena; espreitei-a noite e dia. Não a via nunca; a própria casa rara vez tinha uma porta ou janela aberta. Havia ali o recato e o mistério. Um dia resolvi ir ter com o protetor de Ângela. A notícia que me deram do Conselheiro Vale era a mais honrosa do mundo. Assentei que me ouviria e cederia a meus justos rogos. O demônio do orgulho impediu a execução do plano. Quase a entrar em casa do conselheiro, recuei. Decorreram assim cerca de dous meses. Emagreci; as longas vigílias fizeram-me pálido; o trabalho não me atraía; cheguei a padecer fome. O poeta que disse que a saudade é um pungir delicioso, não consultou meu coração. Acerbo o achei eu; é certo que a ela misturava-se a cólea, a cólera da impotência e o desgosto mortal do abandono. Um dia, dirigi-me para S. Cristóvão, disposto a empregar a violência, contanto que trouxesse Helena ou fosse dali para o Aljube. Era à tardinha. Aproximei-me do jardim de Ângela, ouvi a voz de minha filha.

Era a primeira vez depois de longos meses! Parou-me o sangue todo.

Passado o primeiro abalo, caminhei cauteloso, encostado à cerca; Helena falava a alguém. Por uma abertura da cerca, pude espreitá-la; estava ao colo de um homem. Esse homem era o conselheiro. Olhei para um e outro; ora para o meu rival, ora para a minha Helena.

Helena acariciava as barbas dele; este sorria para ela com um ar de ternura, que o absolvia quase da ofensa a mim feita. O coração, porém, apertou-se-me, ao ver dar a outros afagos a que só eu tinha direito. Era um roubo feito à natureza; mas, se meu próprio sangue me repudiava, que podia eu exigir de alheios corações? Daí a algum me traiu, tempo, — nãosei se foi curto ou longo, porque eu ficara a olhar para ambos pasmado de amor e de cólera, ouvi que falavam de mim. "Mas, olhe, dizia Helena, papai quando vem?" O conselheiro deu um beijo na menina, e falou de uma borboleta que nesse momento pairava sobre a cabeça dela. As crianças, porém, são implacáveis. Aquela repetiu a pergunta. "Papai não volta", respondeu o conselheiro. Helena ficou séria. "Não volta? por que?" "Tua mamãe disse ontem que papai está no Céu". Helena levou as mãos aos olhos, donde lhe rebentaram lágrimas copiosas. Uma nuvem passou-me pelos olhos... tentei dar alguns passos, entrar no jardim, dizer quem era e exigir minha filha. Os músculos não corresponderam à intenção; senti fraqueza nas pernas; achei-me de bruços. Quando dei acordo de mim, volvi de novo os olhos para o lugar onde os vira. Ainda ali estavam, mas a atitude era diferente. O conselheiro erguera-se, tendo nos braços Helena, que já não chorava. Ele beijava-lhe as mãozinhas e dizia-lhe: "Se papai foi para o Céu, fiquei eu no lugar dele, para dar-te muito beijo, muito doce e muita boneca. Queres ser minha filha?" A resposta de Helena foi a do náufrago; estendeu-lhe os braços em volta do pescoço, como se dissesse: "Se não tenho ninguém mais no mundo!" O gesto foi tão eloqüente que eu vi borbulhar uma lágrima nos olhos do conselheiro.

Essa lágrima decidiu do meudestino; vi que ele a amava, e de todos os sacrifícios que ocoração humano pode fazer, aceitei o maior e mais doloroso: eliminei a minha paternidade, desisti da única herança que tinha na Terra, força da minha juventude, consolo de minha miséria, coroa de minha velhice, e voltei à solidão mais abatido que nunca!

Salvador interrompeu a narração; levou a mão direita aos olhos; por entre seus dedos escorreram algumas lágrimas, que ele, de envergonhado, enxugou rapidamente.

— Essas recordações são penosas, disse o padre; não convém despertá-las de uma vez; feridas que o tempo cicatrizou.

Sabemos o essencial...

— Não, resta ainda alguma cousa, disse Salvador.

Estácio erguera-se. Visivelmente comovido, procurava lutar contra o sentimento que o dominava, a fim de conservar a necessária independência de espírito para julgar da narrativa e do alcance que ela podia ter. Tinha involuntariamente apertado a mão de Salvador, ao escutar-lhe as últimas palavras; e arrependera-se desse primeiro movimento, que podia parecer uma absolvição sumária. A verdade é que ele não refletia nem sentia claramente: a mente e ocoração eram um campo de idéias e comoções contrárias.

— Vou acabar, disse Salvador, depois de alguns minutos. Resta explicar o procedimento de Helena.

CAPITULO XXVI

— SEU PAI, continuou Salvador dirigindo-se a Estácio, que, para acabar de compor o rosto, tinha ido até à janela e voltara a sentar-se, — seu pai era honrado e cavalheiro. Arrebatando-me Ângela, não me traiu, porque não me vira nunca; não contribuiu diretamente para a traição dela, porque supunha cortadas nossas relações. Soube depois que Ângela, quando eles se apaixonaram um pelo outro, lhe ocultara completamente o motivo da minha viagem; dera-se como separada de mim. Mentiu, como mentiu mais tarde, dizendo que eu havia morrido. O conselheiro não sabia sequer o meu nome. A mentira no primeiro caso não teve fim nenhum; não houve cálculo; foi uma sugestão de amor os um esquecimento; foi, talvez, um modo de respeitar-me; no segundo caso, houve cálculo: era o de redobrar o afeto que o conselheiro tinha a Helena. Assim aconteceu, porque o conselheiro sentiu-se pai de Helena, e assumiu esse caráter desde aquela tarde. Do contrato, feito ali entre o homem e a criança, cumpriu ele todas as cláusulas com generosa pontualidade. Pode crerque lhe fiquei profundamente grato.Uma vez, passando por uma litografia, vi um retrato dele; comprei-o e conservo-o ali ao lado do de Helena.

Melchior e Estácio olharam para a parede, onde pendiam dois quadrinhos, ainda cobertos, conforme Estácio os vira, no primeiro dia em que ali foi.

— Os meses e os anos passaram, continuou Salvador, Helena deu entrada em um colégio de Botafogo, onde recebeu apurada educação. O conselheiro a levou ali, dando-a como órfã de um amigo de Minas; Ângela, que se dera por sua tia, ia buscá-la aos sábados. O mito mil circunstâncias intermediárias, e as vezes, poucas, em que pude ver minha filha, de passagem e a ocultas. Se o tempo houvesse produzido em mim os seus naturais efeitos, se a natureza não se ajustasse em fazer contraste com a fortuna, conservando-me o vigor e oviço da mocidade, é possível que eu achasse meio de empregar-me no colégio ou nas imediações, a fim de ver mais freqüentemente Helena. Mas eu era o mesmo; passado o primeiro abalo, voltaram-me as carnes, voltou-me a cor, e eu era o mesmo que antesde partir para o Rio Grande. Helena podia reconhecer-me; e eu faltava à convenção tácita que fizera com o conselheiro. Um sábado, porém, tinha Helena doze anos, vindo ambas do colégio, parou o carro defronte do Passeio Público. Vi-as descer e entrar. Levado por um impulso irresistível, entrei também. Queria contemplá-las de longe, sem lhes falar; mas a resoluçãoestava acima das minhas forças. Que pai não faria outro tanto? No lugar mais solitário do Passeio, corri para Helena. Vendo-me, a menina pareceu não reconhecer-me logo; mas atentou um pouco, recuou espavorida e agarrou-se à mãe, abraçando-a pela cintura. Conheci que não estava ali um pai, mas um espectro que regressava do outro mundo. Ia afastar-me, quando ouvi a voz de Helena perguntar à mãe: "Papai?" Voltei-me. Ângela envolvera o rosto da criança entre os vestidos. O gesto equivalia a uma confissão; mas esta foi ainda mais clara quando a mãe, cedendo à boa parte da sua natureza, ergueu resoluta os ombros, descobriu rosto da filha, pousou-lhe um beijo na testa, fitou-a e fez com a cabeça um gesto afirmativo. A menina não exigiu mais; correu para mim e atirou-se-me nos braços.

Ângela não se atreveu a impedir o movimento da filha; o passado e o sacrifício falavam em meu favor. Abracei Helena e beijei-a como doudo. Ângela interveio: "Basta!" disse ela. Pegou na mão da filha e estendeu-me a sua.

Apertei-a maquinalmente; meus olhos estavam pregados nacriança. Era tão gentil, com o vestido rico que trazia, os cabelos enlaçados com fitas azuis, um chapelinho de palha e os pezinhos calçados com botinas de seda! "Fez bem, disse eu a Ângela, depois de alguns instantes; deu-lhe um pai melhor do que eu." Reparei então que ela própria se transformara; trajava com elegância e estava superiormente bela. A abastança aperfeiçoara a natureza.Olhei-a sem inveja nem cólera, — mas com saudade, — nessa vez deliciosa, porque rememorei os bons tempos da nossa ebriedade e loucura. O passado é um pecúlio para os que já não esperam nada do presente ou do futuro: ha ali sensações vivas que preenchem as lacunas de todo o tempo. "Fez mal", disse-me ela baixinho. E suspirou."Sei que morri, disse eu, e não pretendo ressuscitar." Depois voltei-me para Helena: — "Minha filha, faze de conta que me não viste; morri para ti e para o mundo. Teu pai é outro. Prometes que não dirás nada?" Helena fez um leve sinal de cabeça e beijou-me a mão a furto, como se não quisesse ser vista de Ângela. Nesse simples gesto reconheci que ela ia obedecer-me; mas a tristeza que lhe ficou, foi o castigo de sua mãe. Pedíamos à natureza mais do que ela podia dar.

Salvador fez uma pausa, ergueu-se, foi à cômoda, e de uma das gavetas tirou uma caixinha, que colocou sobre a mesa. Melchior e Estácio trocaram um olhar de curiosidade.. Salvador sentara-se denovo.

— Ângela morreu, prosseguiu ele, daí a um ano. Seu pai e alguns amigos, poucos, foram levá-la à sepultura.

Também eu lá me achei. A diferença é que ele enterrava uma aventura, e eu via enterrar o meu passado. Vi-o triste e taciturno, como sinceramente pesaroso da criatura que perdera. Helena, entretanto, não podendo estar só na mesma casa, foi removida para o colégio, onde ficou residindo definitivamente. O conselheiro ia visitá-la todas as semanas.

Pela minha parte, certo da descrição de minha filha, encetei com ela uma correspondência que era toda a consolação que me podia caber. Uma escrava do colégio servia de intermediária entre nós. Então como hoje, achei uma alma compassiva que me ajudou a ser feliz com mistério; a diferença é que naquele tempo era precisa a intervenção pecuniária. Eu tinha pouco, mas dava o jantar de um dia para ler as cartas de Helena. Conservo-as todas, tanto as de outrora, como as destes últimos meses; estão fechadas aqui. Salvador mostrou a caixinha que colocara sobre a mesa — um dia, almoçando em um botequim, li a notícia da morte do conselheiro. O fato consternou-me; mas eu peço licença para lhes dizer tudo: de envolta com o sentimento de pesar, houve em mim alguma cousa semelhante a uma satisfação. Expirava enfim! O contrato expirava com ele; eu ia entrar na posse de minha filha. Não escrevi desde logo a Helena; fi-lo ao cabo de alguns dias. Tive duas respostas: a primeira era no sentido da minha carta; a segunda anunciava-me que o conselheiro a reconhecera por testamento. Podia procurar e ler-lhes a segunda carta: é um documento da elevação dos sentimentos daquela menina. Expremia-se com a maior gratidão e saudade a respeito do conselheiro; mas negava-se a aceitar o favor póstumo. Sabendo a verdade, não queria econdê-la ao mundo. Aceitando o reconhecimento, estendia que prejudicava direitos de terceiro, além de repudiar-me solenemente, o que não queria fazer desde que adquiria a liberdade de ação. Entre a herança e o dever, dizia ela, escolho o que é honesto, justo e natural. Esta carta tirou-me o sono uma noite inteira, perplexo como fiquei entre o ato do finado e a resolução da herdeira. Que a mão visível tocara no coração do conselheiro essa corda de sensibilidade? melhor fora que ele houvesse traduzido em uma simples lembrança a afeição que tinha a Helena. Longo tempo refleti nisso; o pai lutava com o pai. Tê-la comigo era a minha ventura, o meu sonho, a minha ambição; era a realidade que eu chegara a tocar com as mãos. Mas, podia atá-la ao carro decrépito da minha fortuna, dar-lhe o pão amargo de todos os dias? A família do conselheiro ia afiançar-lhe futuro, respeito, prestígio; a lei ia ampará-la. Perguntei a mim mesmo se, depois de haver morrido para o mundo, me era lícito ressuscitar para reclamar e reaver um título de que me havia despojado; finalmente, se possuía já o direito de fazer um escândalo. Estas reflexões, se viessem sós, teriam triunfado desde logo; mas, em oposição a elas, vieram as sugestões do coração. Adverti que, cedendo à vontade do morto, cavaria um abismo entre mim e Helena, e que não mais, ou só raramente e a ocultas, podia desfrutar a felicidade de lhe dizer que a amava, de ouvir a mesma palavra de seu coração. Nessa luta gastei três longosdias. Helena escreveu-me outra carta, insistindo na resoluçãoque dizia haver tomado. Urgindo responder-lhe, fi-lo sacrificando-me.

Não a convenci. Procurei ter uma entrevista com ela. Não era fácil; mas o interesse venceu tudo; a escrava intermediária aumentou o preço da complacência. O que se passou entre nós não o poderei repetir agora; curto era o prazo concedido, mas a luta foi renhida e longa. Busquei persuadi-la com reflexões e súplicas; ela resistiu com indignação e lágrimas. A nobre alma repudiava a cumplicidade e o lucro de uma usurpação. Eu não via usurpação, porque a meus olhos nem os interesses da família do conselheiro, nem as noções da simples moral prevaleciam; eu via minha filha e seu futuro: nada mais. Talvez os culpados desse meu proceder fossem somente Ângela e seu benfeitor. Eles me acostumaram a amá-la de longe, a não disputar a outrem o benefício que ela recebia. Enfim, meu coração, egoísta e ulcerado, entendia que o reconhecimento daquela pobre criança era o simples retorno das carícias de que eu havia sido defraudado; tais foram os motivos da minha consciência. Helena resistiu até à última; cedeu somente à necessidade da obediência, à imagem de sua mãe que eu invoquei, como um supremo esforço, à fiança que lhe dei de que a acompanharia sempre, de que iria viver perto dela, onde quer que o destino a levasse, cedeu exausta, sem convicção nem fervor. Se nesse ato decisivo de Helena há culpa é toda minha, porque eu fui o autor único; ela não passou de simples instrumento, instrumento rebelde e passivo. Seu erro foi não tera prudência necessária para não transpor o abismo que nos separava. Eu devia contar com as resoluções súbitas e prontas dessa menina; há ali uma costela de sua mãe. Mandando-lhe dizer, com. as indicações precisas, onde morava, estava longe de esperar que ela viesse ver-me. A princípio fiquei aterrado com as possíveis conseqüências; mas se o homem se habitua ao mal e à dor, por que se não há de acostumar ao prazer e ao bem? Helena veio mais vezes; o gosto de a ver fez olvidar operigo, e eu bebi, em horas escassas e furtivas, a única felicidade que me restava na Terra, a de ser pai e a de me sentir amado por minha filha.

CAPÍTULO XXVII

TINHA ACABADO; grossas lágrimas, retidas a custo enfim lhe rebentaram dos olhos e rolaram pelo rosto abaixo do narrador. A comoção não ficou só nele; os dous ouvintes a sentiram também. Acabara, e o pior que podia acontecer, era isso mesmo. Uma vez finda a narração, ficaram os dous calados e perplexos, sem que ousassem contradizê-lo.

Depois de curta pausa, Salvador rematou assim:

— De tudo o que lhes disse não tenho outras provas além destas cartas, que seriam bastantes, e de minhas lágrimas, que hão de ser eternas. Mas, ainda quando haja outras, creio que não serão precisas. Na situação em que estamos, só há duas soluções possíveis; ou nada se altera do que o conselheiro estatuiu, e somente eu carregarei as conseqüências da sorte, desaparecendo; ou a família rejeita Helena, e eu a levarei comigo. Dir-se-á que a lei a protege a todo transe? Pois ela assinará todas as desistências necessárias...

Estácio cortou-lhe a palavra, dizendo que oportunamente lhe dariam resposta. Saíram logo depois; não trocaram uma só palavra; cada um deles ia absorto. Contudo, o padre observava de quando em quando o sobrinho de D.

Úrsula, buscando adivinhar-lhe os pensamentos.

Chegando à porta da chácara, o padre perguntou ao moço:

— Que pretende fazer?

— Não sei ainda.

— Conservar esta situação?

— Decerto, Helena obedeceu à vontade de seus dous pais, aceitando o equívoco em que ambos a vieram colocar.

Obedeceu à força. Agora, está reconhecida; é um fato que não podemos discutir nem alterar.

Estácio esteve silencioso alguns instantes.

— Mas, posso eu, à vista do que acabamos de ouvir, conservar a Helena, um título que rigorosamente lhe não pertence? Helena não é minha irmã; é absolutamente estranha à nossa família; o título que nos ligava desaparece. Por que motivo continuaríamos nós uma falsificação...

— De seu pai? atalhou Melchior.

— Padre-mestre!

— Aquele homem falou verdade; mas nem a lei nem a Igreja se contentam com essa simples verdade. Em oposições a ela, há a declaração derradeira de um morto. A justiça civil exige mais do que palavras e lágrimas; a eclesiástica não estingue, com um traço de pena, a afirmação póstuma. Demais, não se espera que esse homem reproduza perante ninguém as declarações de há pouco; só o fará quando perder a última esperança. É evidente que ele nada quer alterar do que se pai estabeleceu, e antes se sacrificará do que envergonhará a filha. Sente-se disposto a fazer o que ele recusa?

Estácio não respondeu; tinham entrado na chácara, e caminhavam lentamente na direção da casa. Melchior deteve-o.

— Estácio! disse o padre, depois de olhar para ele um instante. Compreendo, quisera despojar Helena do título que seu pai lhe deixou, para lhe dar outro, e ligá-la à sua família por diferente vínculo.

Estácio fez um gesto como protestando.

— Esquece duas cousas graves: o escândalo e o casamento de ume outro; já se não pertence, nem ela se pertence a si.

Vamos lá; seja homem. Sepultemos quanto se passou no mais profundo silêncio, e a situação de ontem será a mesma de amanhã.

Quando Estácio e Melchior entraram em casa, já D. Úrsula sabia tudo; lograra desatar a língua de Helena. Abatida com a leitura da carta, não lhe levantara o ânimo a narração verbal da moça; preferia talvez que Helena fosse verdadeiramente filha do conselheiro. Alguns meses de espaço e a convivência afetuosa produziram a diferença do sentimento entre o primeiro e o último dia.

— Nada podemos fazer já agora, disse o padre; provocaríamos um escândalo sem esperança do resultado.

D. Úrsula fez um gesto de assentimento. Chamada a ouvi-los, Helena desceu daí a alguns minutos. A cor da vergonha tingiu-lhe a face, logo que ela deu com Estácio, que a esperava, ao lado de Melchior, ambos calados, mas sem nenhum vislumbre de irritação. Após um silêncio longo e abafado, Estácio comunicou a Helena a resolução da família e seus sentimentos de generosidade e confiança; concluiu dizendo que, sobre todas as cousas, prevalecia a vontade derradeira de seu pai. Helena empalideceu e cerrou os olhos; D.Úrsula correu a ampará-la. O organismo debilitado pelas vígilias e comoções das últimas horas não pudera resistir; mas o delíquio foi leve e curto. Voltando a si, Helena beijou ardentemente as mãos de D. Úrsula e as do padre, estendeu a sua a Estácio, que a apertou; depois, com voz trêmula, disse:

— Meu coração ficará eternamente grato ao resto de estima que não perdi; a situação mudou, e força é mudar com ela.

Não quero a proteção da lei, nem poderia receber a complacência de corações amigos. Cometi um erro, e devo expiá-lo. Enquanto a vergonha vivia só comigo, era possível continuar nesta casa; eu atordoava-me para esquecê-la; mas agora que é patente, vê-la-ei nos olhos de todos e no sorriso de cada um. Peço-lhes que me perdoem e me deixem ir! Não devera ter entrado, é certo. Expio a fraqueza de um coração que eu me habituara a amar de longe, com o prestígio do mistério e o encanto do fruto proibido. De hoje em diante, amá-los-ei de longe ou de perto, mas estranha... e perdoada!

Dizendo isto, Helena abraçou D. Úrsula, como a pedir o benefício da sua intervenção. D. Úrsula abraçou-a igualmente, mas fez com a cabeça um gesto negativo. Melchior observou que a repulsa era pelo menos um sintoma de desprendimento pouco explicáve lem relação à família que, sem embargo dos últimos sucessos, não lhe retirara a estima nem a proteção.

— Herdou o orgulho do pai! murmurou Estácio.

A frase foi dita em voz baixa, mas Helena ouviu-a, e seus olhos fulgiram de momentânea satisfação. Atribuir a orgulho o que era vergonha e remorso, dava-lhe certa superioridade que a moça julgava não ter naquele lance.

Protestou em favor de seus sentimentos de gratidão, com a palavra viva, animada, cordial que todos três lhe conheciam, interrompida a intervalos pela comoção interior,e pelas lágrimas que lhe escorriam dos olhos, quase exaustos dechorar. Estácio pôs termo a todas as hesitações.

— Pois bem, disse ele, será isso mais tarde; a lei é por nós; e nossa vontade é que nos obedeça.

Helena mordeu o lábio com desesperação, mas não respondeu. A cabeça descaiu-lhe lentamente como ao peso de uma idéia, a mais e mais opressora. Depois, ergueu-a; os olhos tristes, mais animados dos últimos raios de uma esperança, dirigiram-se para os de Estácio, que nessa ocasião pareciam falar as dores todas da paixão sufocada e rebelde. Ambos eles os baixaram à terra, medrosos de si mesmos.

— Não creio que ela aceite facilmente a sua decisão, disse Melchior a Estácio, logo que pôde achar-se só com ele.

Acautele-se; é capaz de fugir-nos.

— Crê?

— Não a conhece ainda? A posição em que estes acontecimentos a deixaram, repugna-lhe mais que tudo. Prefere a miséria à vergonha, e a idéia de que interiormente não a absolvemos, é o verme que lhe fica no coração.

De noite, recebeu Estácio uma carta de Salvador, acompanhadade um pacote.

Refleti muito durante estas duas horas, dizia ele, e cheguei a uma conclusão única. Elimino-me. É o meio de conservar a Helena a consideração e o futuro que lhe não posso dar. Quando esta carta lhe chegar às mãos, terei desaparecido para sempre. Não me procure, queé inútil. Irei abençoá-lo de longe. Recaia, entretanto, sobre mim todo o ressentimento; eu só o mereço, porque só eu o provoquei. Vão as cartas de Helena; guardo três apenas, como recordação da felicidade que perdi.

Estácio teve vontade de ler as cartas de Helena, mas a temporecuou; mandou-as dar à moça. Helena, que estava com D. Úrsula, entregou-as a esta.

— São a minha história, disse ela; peço-lhe que as leia e me julgue.

Havia em seus olhos uma expressão que não era usual. Recolheu-se imediatamente a seu quarto, onde jazeu longo tempo, calada, quieta, sinistra, o corpo atirado em um sofá, a alma sabe Deus em que regiões de infinito desespero.

CAPÍTULO XXVIII

NAQUELA NOITE, a segunda de tão extraordinários sucessos, foi que Estácio sentiu toda a violência do amor que lhe inspirara Helena. Enquanto os detinha um vínculo sagrado, amara sem consciência; e ainda depois de esclarecido pelo padre, o esforço empregado em vencer-se e a própria natureza da catástrofe não lhe permitiram ver a extensão do mal. Agora, sim; roto o vínculo, restituída a verdade, ele conhecia que a voz da natureza, mais sincera e forte que as combinações sociais, os chamava um para o outro, e que a mulher destinada a amá-lo e ser amada era justamente a única que as leis sociais lhe vedavam possuir.

Durante as primeiras horas o coração mordeu rebelde o freio da necessidade. A vigília foi longa e crua; e a reflexão veio enfim dominar a tempestade interior, ou antes alumiar seus destroços. Ele viu que o padre tinha razão; que era força desfolhar a esperança de um dia. Ao mesmo tempo, o exemplo de Helena deu-lhe ânimo. Senhora do segredo de seu nascimento, e consciente de amar sem crime, a moça apressara, não obstante, o casamento de Estácio e escolhera para si um noivo estimado apenas. Se uma vez a palavra delatora lhe rompeu dos lábios, ela a retraiu logo, fazendo o mais obscuro dos sacrifícios.

Não quis Estácio ser menos generoso. Logo de manhã escreveu a Mendonça, pedindo-lhe que não deixasse de os ir visitar nesse dia. Não o fez sem custo, mas fê-lo sem arrependimento. Tinha por fim apressar o casamento de Helena e o seu condenando-se a sofrer calado os golpes do avesso destino.

A manhã, entretanto, não trouxe a Helena o esquecimento e a paz. A noite não lhe serviu de remédio, antes legou à aurora toda a sua mortal angústia. Debilitada, nervosa, impaciente, não podia a moça vencer-se nem suportar-se.

Ora, repelia com sequidão as boas palavras de D. Úrsula; ora, pedia intercedesse com Estácio para a resolução que ela admitia como único meio de a poupar à vergonha. A excitação moral era grande; cumpria aquietá-la por meios persuasivos. Helena fugia a todos; não encarava Estácio e D. Úrsula, sem que o pejo lhe colorisse a face, mudança tanto mais visível quanto que a vigília e a dor a tinham empalidecido muito. Diziam-lhe que a vontade do conselheiro estatuíra uma lei na família, segundo qual ela continuava a ser parenta como dantes, e tão amada como era. A moça agradecia a generosidade, mas não podia fugir à idéia de haver contribuído para uma usurpação. Queria que a deixassem ir ter com o pai, ao pé de quem a natureza e a consciência lhe indicavam que poderia estar sem remorso. Estácio e D. Úrsula respondiam-lhe com afagos e protestos; mas quando viram que estes eram inúteis, não houve mais que revelar-lhe a carta de Salvador.

O Padre Melchior incumbiu-se de lhe fazer essa delicada comunicação.

— Seu pai, disse ele, praticou em seu favor um ato heróico; fugiu para lhe não fazer perder a consideração e o futuro.

Leia esta carta, e veja se ela lhe dá a força necessária para resistir.

Helena pegou na carta com sofreguidão, leu-a de um lance d'olhos. O gemido que lhe rompeu do coração mostrou bem a ferida que acabava de receber. O padre acolheu-a lacrimosa e esvaecida em seus braços; disse-lhe palavras de conforto e de esperança. Nos primeiros minutos, Helena nada pôde ouvir; o golpe ensurdecera a alma. Melchior fê-la sentar ao pé de si; ela obedeceu sem consciência. Após alguns minutos de silêncio e concentração, a moça dirigiu a palavra ao padre e agradeceu-lhe a caridade. Depois referiu-lhe os acontecimentos de sua infância, os mesmos que o capelão ouvira. A sagacidade natural do espírito cedo lhe fizera ver que a posição de sua mãe não era a mesma das outras mães; essa descoberta, porém, não teve outra virtude mais que comunicar ao amor de filha uma intensidade e energia capazes de afrontar os mais fortes obstáculos, como se ela quisesse reunir em si toda a soma de afetos e respeitos que a sociedade afiança às situações regulares. Melchior ouviu-a comovido; nutrido da medula do Evangelho, reconheceu um efeito da graça divina nesse amor imaculado, que valia por todas as absolvições da Terra.

Ele a aplaudiu e confortou; falou-lhe do futuro, do carinho de sua família, — sua, a despeito de tudo; enfim da obrigação em que ela estava de corresponder a tanta confiança.

Talvez Helena, em sua razão, correspondesse aos conselhos de Melchior; mas a razão é o que menos a dirigia naquelas circunstâncias aflitivas. Ela deixou o padre para recolher-se aos aposentos. Quando D.Úrsula ali foi, meia hora depois, achou-a profundamente abatida; a violência da crise passara. A linguagem que lhe falou, foi maternal, ungida de amor e perdão; Helena ouviu-a agradecida, mas um sorriso descorado e sem convicção lhe entreabria os lábios. Supunha ler comiseração onde havia afeto e respeito, e o orgulho rebelava-se de inspirar o único sentimento que a consciência lhe dizia merecer.

As instâncias de D. Úrsula para que Helena se alimentasse foram inúteis; ela apenas recebia o que bastava para não sucumbir à fome. A companhia repugnava-lhe; assim, poucas vezes a viram desde os dias que se seguiram àquela funesta manhã. Mendonça não conseguiu mais do que os outros. A família teve o cuidado de anunciar que Helena se achava enferma. A aflição do noivo foi grande; mas todos buscaram tranqüilizá-lo. Nada havendo transpirado do acontecimento, fácil foi sustentar aquela explicação.

Melchior encomendara muito à família que vigiasse a moça, cujo espírito lhe parecia atrevido e tenaz; ele receava que Helena ou fugisse de casa, ou recorresse a algum ato de desespero. O mesmo padre desvelou-se em trazer a alma de Helena ao sentimento da resignação. A autoridade do caráter religioso, a influência que ele tinha no espírito de Helena, eram armas poderosas, temperadas com o amor verdadeiro e paternal que o ligava à donzela. Nada poupou; mas tais esforços não tiveram mais fruto que os da família. Helena mal podia tolerar a situação.

Uma vez, como ela descesse à chácara, saiu Estácio a procurá-la, não a encontrando senão ao cabo de alguns minutos. Achou-a ao pé do tanque, no lugar em que lhe falara poucos dias antes, sentada no mesmo banco de pau.

Vendo-o, estremeceu; ele aproximou-se, contente de a haver encontrado enfim. O dia estava feio; grossas nuvens negras pejavam o ar, túmidas de temporal próximo. Estácioconvidou-a a recolher-se.

— Deixe-me estar aqui um instante mais, respondeu ela.

— Dous minutos apenas.

Sentou-se ao pé dela e ficaram calados. Helena tinha uma taquara na mão; Estácio quis tomar-lha; ela arremessou-a para longe. Ergueu-se então o moço e foi buscá-la; só então viu que estava molhada até certa altura; calculou que seria o fundo do tanque. O tanque era raso; não poderia dar a morte; mas, a suspeita de que Helena não recuaria diante do suicídio, aterrou novamenteo espírito de Estácio. Parecendo-lhe que a causa não comportava o efeito, perguntou a si mesmo se os sucessos daqueles dias não teriam velado a razão da moça. Sentou-se de novo e falou-lhe com brandura.

Ao escutá-lo, sentiu Helena como uma ressurreição de outras horas, que ela julgava escoadas para sempre; um sorriso lhe animou os lábios sem cor, ao passo que os olhos doridos e murchos pareciam reviver de um resto de luz.

Estácio falou-lhe de si, da tia, do padre e de Mendonça, dos próximos casamentos, da felicidade futura. Depois insistiu com ela para que entrasse. Uma brisa mais forte começava a agitar as árvores, e a tempestade ameaçava cair de repente.

— Ainda não, disse a moça; alguns minutos mais.

— Mas pode adoecer...

— Talvez, se todos quiserem a minha saúde. Há criaturas tão malfadadas que aqueles mesmos que as desejam fazer venturosas, não alcançam mais do que preparar-lhe o infortúnio.Tal foi o meu destino. Seu pai e minha mãe não tiveram outro pensamento; meu próprio pai foi levado pelo mesmo impulso, quando me obrigou a ser cúmplice de uma generosa mentira. Agora mesmo que ele me foge, com o fim único de me não tolher afelicidade, arranca-me último recurso em que eu tinha posto a esperança...

— Helena! interrompeu Estácio.

— O último, repetiu a moça.

Esvaíra-se-lhe o sorriso, e o olhar tornara a ser opaco. Estácio teve medo daquela atonia e concentração; travou-lhe do braço; a moça estremeceu toda e olhou para ele.

A princípio foi esse olhar um simples encontro; mas, dentro dealguns instantes era alguma cousa mais. Era a primeira revelação tácita mas consciente, do sentimento que os ligava. Nenhum deles procurara esse contato de suas almas, mas nenhum fugiu. O que eles disseram um ao outro, com os simples olhos, não se escreve no papel, não se pode repetir ao ouvido; confissão misteriosa e secreta, feita de um a outro coração, que só ao Céu cabia ouvir, porque não eram vozes da Terra nem para a Terra as diziam eles. As maos, de impulso próprio, uniram-se como os olhares; nenhuma vergonha, nenhum receio, nenhuma consideração deteve essa fusão de duas criaturas nascidas para formar uma existência única.

O vento tornara-se mais rijo; uma lufada os despertou, em ma hora, porque há sonhos que deviam acabar na realidade do outro século. Estácio ergueu-se; sacudiu valorosamente o torpor da felicidade, e reassumiu o papel que o pai lhe assinara ao pé de Helena. Esta desviou os olhos e cravou-os na água, fascinada e absorta. A idéia do suicídio roçaria deveras sua asa invisível pela fronte da moça? Estácio foi a ela, pegou-lhe nas mãos e convidou-a a sair dali.

— Entremos, disse ele pela terceira vez, olhe que vai chover.

Helena deixou-se levantar; um calafrio percorreu-lhe o corpo todo, e as mãos, que o moço ainda tinha entre as suas, estavam muito mais quentes que o natural.

— Ande repousar, continuou Estácio; pode adoecer, e não tem direito para tanto; nossa afeição não o consentirá nunca. Vamos...

— Amar-me-ão sempre? perguntou Helena.

— Oh! sempre!

— Impossível! Há uma voz no mundo de seu coração, que lhe dirá, de quando em quando, esta triste palavra: aventureira!

— Helena!

— Não posso ser outra cousa a seus olhos, prosseguiu a moça tristemente. Quem o convencerá de que a declaração de seu pai não foi obtida por artifícios de minha mãe? Quem lhe dará a prova que, cedendo aos rogos de meu pai, não fiz mais do que executar um plano preparado já? São dúvidas que lhe hão de envenenar o sentimento e tornar-me suspeita a seus olhos. Resista quem puder; é-me impossível encarar semelhante futuro!

Helena caíra ofegante no banco. Estácio falou-lhe com abundância e ternura; jurou-lhe que sua família era incapaz da mínima suspeita; pediu-lhe por seu pai que não julgasse mal deles. Ela sorriu, mas foi um sorrir de incrédula.

Grossos pingos de chuva começavam a rufar nas árvores. Estácio pegou na mão de Helena para conduzi-la a casa.

A moça fugiu-lhe, indo colocar-se alguns passos adiante, onde a chuva lhe caía mais em cheio na cabeça nua e no corpo levemente coberto. Quando Estácio, desvairado de terror, correu para ela, Helena afastou-se dele; mas nem seus pés o poderiam vencer nunca, nem lho permitiam agora as forças quebradas por tantas e tão profundas comoções. Ele alcançou-a; estendeu o braço em volta da cintura da moça, dizendo:

— Que capricho é esse? Vamos embora; eu quero que venha comigo para dentro.

Ao sentir o braço de Estácio, Helena estremeceu e fez um movimento para arredá-lo de si; mas a fraqueza traiu-lhe o pudor.Ela fitou no moço uns olhos de corça moribunda; as pernas fraquearam, e o corpo esmorecido iria a terra, se lho não sustivessem as mãos de Estácio.

— Deixe-me morrer! murmurou ela.

— Não! bradou o mancebo.

Com um gesto rápido, tomou nos braços, estendido, o corpo exausto de Helena, e caminhou na direção da casa.

O vento flagelava-os; a chuva, que subitamente caía a jorros, alagava-os sem misericórdia; ele ia andando, o mais depressa que lhe permitia o peso de Helena, cuja cabeça pendia para a terra, e de cujos lábios brotavam trechos soltos de frases sem sentido.

D. Úrsula viu entrar aquele doloroso espetáculo; correu a receber Helena, que Estácio depositou em um sofá, donde foi transferida ao leito. A febre, já começada antes dela sair, tomara conta enfim da pobre moça. Um médico foi chamado à pressa; o Padre Melchior correu por baixo d'água até à casa de Estácio. As primeiras horas foram de ansiedade e susto; o estado da doente era grave; assim o disse o médico; assim o tinham já sentido os corações amigos.

D. Úrsula pagou naquela ocasião os serviços que, em caso análogo, lhe prestara Helena, malgrado o peso dos anos, que lhe não permitiam longas vigílias nem aturado trabalho.Velou a boa senhora à cabeceira da enferma durante essa primeira noite de incerteza e terror. Mendonça, que ali fora sem suspeitar nada, porque a doença que lhe disseram ter padecido Helena, supunha ele ser passageira, e em todo caso, estar quase extinta, Mendonça recebeu essa triste notícia com a morte no coração.

Durante sete dias o estado de Helena apresentou alternativas que lançavam na alma dos seus a confiança e a desesperação. Algumas horas houve de delírio, durante o qual dous nomes volviam freqüentemente aos lábios da enferma, — o de Estácio e o do pai. Nas horas da razão, falava pouco, não proferia nenhum nome, salvo o de Melchior que ela queria ver junto de si. O capelão obedecia docilmente. Ao pé dela, via-a com pena, mas sem desesperação; primeiramente, porque ele aceitava sem murmúrio os decretos da vontade divina; depois, porque não sabia ao certo se, em tal situação, era a vida melhor do que a morte. Em todo caso, consolava-a.

No quarto dia chegou a família de Camargo, e, sabendo da doença de Helena, apressou-se a ir a Andaraí. Ao ver Eugênia, a moça sorriu tristemente, lampejo de inveja que para logo se apagou e morreu no coração.

Estácio mal ousava entrar na alcova da doente e não podia viver fora dela. Sua aflição era patente. Ele prometia a si mesmo todos os sacrifícios em troca da vida de Helena, espreitava uma esperança no rosto do médico, e interrogava o coração da tia e do padre. Na noite do sétimo dia da cena do jardim, D.Úrsula, que ficara ao pé de Helena, mandou chamar à pressa o sobrinho e o Padre Melchior, que estavam na sala contígua. Acorreram os dous.

Helena tivera uma síncope, que D. Úrsula cuidara ser a morte. Voltando a si, leu a moça a sua sentença no rosto de todos três.

— Ainda não, murmurou ela; ainda não é a morte.

D. Úrsula chegou-se-lhe mais perto, beijou-a, disse-lhe algumas palavras de conforto.

— Deixe estar, respondeu ela, deixe que eu não morro; estou só muito doente.

Estácio buscou animá-la, mas a voz morreu-lhe às primeiras expressões, e ele saiu. Melchior acompanhou-o.

— Uma cousa poderia talvez salvá-la, disse aflito o moço; era a presença do pai. vou mandá-lo procurar por toda a parte. Havemos de achá-lo; e preciso que o achemos.

Melchior aprovou a idéia do mancebo; e não lhe disse que o remédio viria talvez tarde, se viesse. Estácio ordenou as cousas para a seguinte manhã. Voltaram à alcova da enferma. Esta fechara os olhos, como se dormisse. Houve então entre aquelas quatro paredes de meia hora de silêncio, interrompido apenas, de quando em quando, pelos movimentos que a doente fazia, como a querer mudar de posição. No fim desse tempo, abriu os olhos e murmurou algumas palavras. Chegou o médico, viu-a e desenganou a família.

Enquanto Melchior dava as ordens precisas para que Helena tivesse os socorros espirituais, Estácio saiu dali, para ir, longe, desabafar o desespero; desceu à chácara, vagou por ela delirante, a soluçar como uma criança, ora abraçado a uma árvore, ora ajoelhado e pedindo a Deus a vida de Helena. O coração do moço não conhecia o fervor religioso; mas a imagem da morte deu-lhe o que a vida lhe levara, e ele rezou, rezou sozinho, sem hipocrisia nem dúvida.

Mendonça veio achá-lo nessa luta derradeira entre a realidade e a esperança. Não o consolou; não tinha consolações que distribuiu, porque também a dor lhe devastara o coração. Nos braços um do outro, choraram o mesmo bem que se lhes ia embora.

Um escravo veio chamar Estácio à pressa; ele subiu trôpego as escadas, atravessou as salas, entrou desvairado no quarto, e foi cair de joelhos, quase de bruços, junto ao leito de Helena. Os olhos desta, já volvidos para a eternidade, deitaram um derradeiro olhar para a terra, e foi Estácio que os recebeu, — olhar de amor, de saudade e de promessa.

A mão pálida e transparente da moribunda procurou a cabeça do mancebo; ele inclinou-a sobre a beira do leito, escondendo as lágrimas e não se atrevendo a encarar o final instante. Adeus! — suspriou a alma de Helena volvendo o invólucro gentil. Era defunta

A noite foi cruel para todos. D. Úrsula, profundamente abatida pela dor e pelas vigílias, não consentiu, ainda assim, queoutras mãos amortalhassem Helena; ela mesma lhe prestou esse derradeiroe triste obséquio. A morte não diminuíra a beleza da donzela; pelo contrário, o reflexo da eternidade parecia dar-lhe um encanto misterioso e novo.

Estácio contemplou-a com os olhos exaustos, o padre com os seus úmidos. Melchior suportara a dor até ao momento da definitiva separação; agora, que a moça se ia de vez, deixou-se abater enfim, ao pé daqueles pálidos restos, despojo último de generosas ilusões.

No dia seguinte, prestes a sair o enterro, as senhoras deram à donzela morta as despedidas derradeiras. D. Úrsula foi a primeira que lhe prestou esse dever; seguiu-se Eugênia e seguiram as outras. Estácio viu-as subir, uma a uma, o estrado em que repousava a essa. Depois, quando ia fechar-se o féretro, caminhou lentamente para ele; trepou ao estrado, e pela última vez contemplou aquele rosto, — sede há pouco de tanta vida, — e a coroa de saudades que lhe cingia a cabeça, em vez de outra, que ele tinha direito de pousar nela. Enfim, inclinou-se também, e a fronte do cadáver recebeu o primeiro beijo de amor.

Fecharam o féretro; ao moço pareceu que o encerravam a ele próprio. Saindo o enterro, deixou-se Estácio cair numa cadeira, sem pensar nada, sem sentir nada. Pouco a pouco, despovoou-se a casa; os amigos saíram; um só de tantos ainda ali ficou, a lastimar consigo a noiva, tão cedo prometida e tão cedo roubada. Esse mesmo saiu, enfim, não ficando mais do que a família, cujo pai espiritual era Melchior.

Sozinho com Estácio, o capelão contemplou-o longo tempo; depois, alçou os olhos ao retrato do conselheiro, sorriu melancolicamente, voltou-se para o moço, ergueu-o e abraçou com ternura.

— Ânimo, meu filho! disse ele.

— Perdi tudo, padre-mestre! gemeu Estácio.

Ao mesmo tempo, na casa do Rio Comprido, a noiva de Estácio, consternada com a morte de Helena, e aturdida com a lúgubre cerimônia, recolhia-se tristemente ao quarto de dormir, e recebia à porta o terceiro beijo do pai.

 

                                                                  Machado de Assis

                                                                                            

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Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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