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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O Mundo Como Está / Voltaire
O Mundo Como Está / Voltaire

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O Mundo Como Está

 

 Visão de Babuc escrita por ele próprio

Entre os gênios que presidem os Impérios do mundo, ocupa Ituriel um dos primeiros lugares, e tem a seu cargo o departamento da Alta Ásia. Desceu certa manhã à morada do cita Babuc, à margem do Oxus, e disse-lhe:

— Babuc, as loucuras e excessos dos persas atraíram nossa cólera; reuniu-se ontem uma assembléia dos gênios da Alta Ásia para decidir se se devia castigar Persépolis ou destruí-la. Vai a esta cidade, examina tudo; conta-me fielmente o que vires; e eu resolverei, conforme o teu relato, corrigir a cidade ou exterminá-la.

— Mas, Senhor – observou humildemente Babuc, – eu nunca estive na Pérsia; não conheço ninguém por lá.

— Tanto melhor – retrucou o anjo, – assim não serás parcial; recebeste do céu o discernimento, e eu acrescento-lhe o dom de inspirar confiança; anda, olha, escuta, observa, e nada temas: serás bem recebido em toda parte.

Babuc montou no camelo e partiu com os seus criados. Ao cabo de alguns dias, encontrou nas planícies de Senaar o exército persa, que ia combater o exército indiano. Dirigiu-se primeiro a um soldado que encontrou sozinho. Falou-lhe, e indagou qual o motivo da guerra.

— Por todos os deuses – replicou o soldado, – nada. sei. Isso não é da minha conta; o meu ofício é matar e ser morto para ganhar a vida; não importa a quem sirva. Poderia até passar amanhã mesmo para o acampamento dos hindus, pois dizem que pagam a seus soldados, por dia, cerca de meia dracma de cobre a mais do que recebemos neste maldito serviço da Pérsia. Se quer saber por que nos batemos, fale com o meu capitão.

Depois de dar um pequeno presente ao soldado, Babuc entrou no acampamento. Em breve travou conhecimento com o capitão e perguntou-lhe o motivo da. guerra.

— Como quer que eu saiba? – respondeu o capitão. – E que me importa esse belo motivo? Moro a duzentas léguas de Persépolis; ouço dizer que foi declarada guerra; abandono em seguida a família, e vou procurar, segundo nosso costume, a fortuna ou a morte, visto que nada tenho que fazer.

— Mas os seus camaradas – diz Babuc – não estarão um pouco mais informados do que o senhor?

— Não – responde o oficial, – só os nossos principais sátrapas é que sabem precisamente por que nos matamos.

Babuc, espantado, introduziu-se entre os generais, conquistando-lhes a intimidade.

— A causa desta guerra que há vinte anos assola a Ásia – disse-lhe afinal um deles – provém de uma querela entre o eunuco de uma mulher do grande rei da Pérsia e um funcionário do grande rei das Índias. Tratava-se de uma taxa que montava pouco mais ou menos à trigésima parte de um dárico. O primeiro ministro das Índias e o nosso sustentaram dignamente os direitos de seus senhores. De ambas as partes, armou-se um exército de um milhão de soldados. É preciso recrutar anualmente, para esse exército, cerca de quatrocentos mil homens. Multiplicam-se os assassínios, e os incêndios, as ruínas, as devastações; o universo sofre, e o encarniçamento continua. Nosso primeiro ministro e o das Índias protestam seguidamente que só se trata da felicidade do gênero humano; e, a cada protesto, há sempre algumas cidades destruídas e algumas províncias devastadas.

No dia seguinte, devido a um boato, que se espalhara, de que ia ser concluída a paz, o general persa e o general hindu apressaram-se em travar batalha; esta foi sangrenta. Babuc assistiu-lhe a todos os erros e abominações; testemunhou as manobras dos principais sátrapas, que fizeram o possível para que o seu chefe fosse batido. Viu oficiais mortos pelas próprias tropas; viu soldados que acabavam de matar os camaradas agonizantes, para lhes arrancar alguns despojos ensangüentados, rotos e cobertos de lama. Entrou nos hospitais para onde conduziam os feridos, cuja maioria expirava, pela desumana negligência daqueles mesmos que o rei da Pérsia pagava regiamente para os socorrerem. “Serão homens – exclamou Babuc – ou animais ferozes? Ah! bem vejo que Persépolis vai ser destruída”.

Absorto nesses pensamentos, passou ao acampamento dos indianos. Foi ali tão bem acolhido como no dos persas, conforme lhe fora predito; mas viu os mesmos excessos que o haviam transido de horror. “Oh! oh! – exclamou consigo – se o anjo Ituriel quer exterminar os persas, também o anjo das Índias tem de exterminar os indianos”. Informando-se em seguida, mais detalhadamente, do que se passara em ambos os exércitos, soube de atos de desprendimento, de grandeza de alma, de humanidade, que o espantaram e comoveram. “Inexplicáveis humanos – exclamou, – como podeis reunir tanta baixeza e grandeza, tantas virtudes e crimes?”

A paz foi firmada. Os dois chefes contrários, nenhum dos quais alcançara vitória, mas que, em seu exclusivo interesse, haviam derramado o sangue de tantos homens seus semelhantes, acorreram às respectivas Cortes, para disputar recompensas. Celebrou-se a paz em éditos públicos que anunciavam nada menos que a volta da virtude e da felicidade à face da terra. “Louvado seja Deus! – disse Babuc. – Persépolis será a mansão da esclarecida inocência; não será destruída, como o queriam esses mesquinhos gênios: corramos sem tardança à capital da Ásia”.

Chegou a esta cidade imensa pela antiga entrada, que tinha um bárbaro aspecto e cuja desagradável rusticidade ofendia a vista. Toda essa parte da cidade ressentia-se do tempo em que fora construída; pois, apesar da teimosia dos homens em louvar o antigo à custa do moderno, cumpre confessar que, em tudo, os primeiros ensaios são sempre grosseiros.

Babuc misturou-se a uma multidão composta do que havia de mais sujo e feio em ambos os sexos. Essa multidão precipitava-se com ar estúpido em um vasto e sombrio recinto. Pelo continuo vozerio e movimento que ali notou, pelo dinheiro que algumas pessoas davam a outras para terem o direito de sentar-se, julgou achar-se num mercado onde vendiam cadeiras de palha; mas em breve, vendo que várias mulheres se punham de joelhos, fingindo olhar fixamente para a frente e olhando os homens de soslaio, compreendeu que estava num templo. Vozes agudas, roucas, selvagens, discordantes, faziam a abóbada reboar de sons mal articulados, que produziam o mesmo efeito da voz dos onagros quando respondem, nos campos dos pictávios, à trompa de corno que os chama. Babuc tapava os ouvidos; mas esteve quase a tapar também os olhos e o nariz, quando viu entrarem alguns operários com ferramentas. Ergueram uma grande laje, e lançaram à direita e à esquerda uma terra de onde se exalava um cheiro pestilento; depositaram em seguida um cadáver naquela abertura e colocaram-lhe a pedra em cima. “Como! – estranhava Babuc. – Então esses povos enterram os mortos no mesmo local onde adoram a Divindade?! Como! Então os seus templos são pavimentados de cadáveres?! Não mais me espanto dessas pestes que seguidamente assolam Persépolis. A corrupção dos mortos, e a de tantos vivos reunidos e apertados no mesmo local, é capaz de envenenar o globo terrestre. Porca cidade, esta Persépolis! Sem dúvida os anjos querem destruí-la para construir outra mais bela e povoá-la de habitantes menos sujos e que cantem melhor. A Providência pode ter lá as suas razões: deixemo-la agir”.

Entrementes, o sol aproximava-se do alto da sua carreira. Babuc devia ir jantar no outro extremo da cidade, em casa de uma dama a quem levava carta do marido, oficial do exército. Deu primeiro várias voltas por Persépolis; viu outros templos mais bem construídos e ornamentados, cheios de polida gente e ressoantes de belas harmonias; notou fontes públicas que, embora mal situadas, agradavam pela beleza; praças onde pareciam respirar em bronze os melhores reis que haviam governado a Pérsia; outras praças onde ouvia o povo exclamar: “Quando veremos aqui o senhor a quem queremos?” Admirou as pontes magníficas que atravessavam o rio, os cais soberbos, cômodos, os palácios erguidos de um lado e outro, um edifício imenso onde, cada dia, velhos soldados feridos e vencedores rendiam graças ao Deus dos exércitos. Chegou enfim à casa da dama, que o esperava para jantar, em companhia de distintas pessoas. A casa era limpa e ornada, a dama jovem, bonita, agradável, atenciosa, a companhia digna dela; e Babuc dizia consigo a cada instante: “O anjo Ituriel zomba do mundo em querer destruir uma cidade tão encantadora”.

Notou, entretanto, que a dama, que começara por lhe pedir ternamente notícias do marido, falava ainda mais ternamente, no fim da refeição, com um jovem mago. Viu um magistrado que, em presença da mulher, assediava vivamente a uma viúva; e essa viúva indulgente enlaçava com uma das mãos o pescoço do magistrado, enquanto estendia a outra a um jovem cidadão muito bonito e modesto. A mulher do magistrado foi quem primeiro se ergueu da mesa, para ir falar, num gabinete vizinho, com o seu diretor, que chegara atrasado e a quem haviam esperado para jantar; e o diretor, homem eloqüente, falou-lhe, naquele gabinete, com tanta veemência e unção, que a dama tinha, ao voltar, os olhos úmidos, as faces vermelhas, o passo inseguro, a voz trêmula.

Então Babuc começou a recear que o gênio de Ituriel tivesse razão. O seu dom de atrair confiança fe-lo conhecer no mesmo dia os segredos da dama; confessou-lhe esta a sua inclinação pelo jovem mago e assegurou-lhe que, em todas as casas de Persépolis, encontraria o equivalente do que vira na sua. Babuc concluiu que uma sociedade assim não poderia subsistir; que o ciúme, a discórdia, a vingança, deviam desolar todos os lares; que todos os dias deviam correr lágrimas e sangue; que sem dúvida os maridos matariam os galãs de suas mulheres, ou seriam mortos por estes; e que enfim Ituriel fazia muito bem em destruir de uma vez por todas uma cidade entregue a contínuos desmandos.

Achava-se mergulhado nessas funestas idéias quando se apresentou à porta um homem grave, de manto negro, que pediu humildemente para falar ao jovem magistrado. Este, sem se levantar, sem olhar para ele, deu-lhe altivamente, e com um ar distraído, alguns papéis, e despediu-o. Babuc indagou quem era aquele homem.

— É um dos melhores advogados da cidade – disse-lhe em voz baixa a dona da casa. – Faz cinqüenta anos que estuda as leis. O magistrado, que tem apenas vinte e cinco anos e que é sátrapa de lei apenas há dois dias, encarrega-o de fazer a súmula de um processo que deve julgar, e que ainda não leu.

— Esse jovem estouvado faz muito bem – disse Babuc – em pedir conselho a um velho; mas por que não é esse velho o juiz?

— O senhor está brincando – retrucou a dama. – Os que envelheceram em empregos laboriosos e subalternos jamais atingem às dignidades. Esse jovem exerce um alto cargo porque o seu pai é rico, e aqui o direito de distribuir justiça compra-se como um terreno.

— Ó costumes! ó desgraçada cidade! – exclamou Babuc. – Eis o cúmulo da desordem. Os que assim compraram o direito de julgar, com certeza vendem os seus julgamentos. Não vejo aqui senão abismos de iniquidade.

Como assim externasse a sua dor e surpresa, disse-lhe um jovem guerreiro, que chegara naquele mesmo dia do exército:

— Por que não quer o senhor que se comprem os cargos da justiça? Quanto a mim, comprei o direito de afrontar a morte à frente de dois mil homens que comando; desembolsei quarenta mil dáricos de ouro este ano, para dormir por terra trinta noites seguidas, e receber dois belos flechaços de que ainda me ressinto. – Se me arruino para servir ao imperador persa, a quem nunca vi, o senhor sátrapa de toga pode muito bem pagar qualquer coisa para ter o prazer de dar audiência a litigantes.

Babuc, indignado, não pôde deixar de condenar, no intimo, um país onde se punham em leilão as dignidades da paz e da guerra; concluiu precipitadamente que ali deviam ignorar de todo a guerra e as leis e que, mesmo que Ituriel não os exterminasse, pereceriam por obra da sua detestável administração.

Sua má opinião agravou-se ante a chegada de um homem corpulento que, depois de saudar familiarmente a toda a companhia, se aproximou do jovem oficial e disse-lhe: “Só lhe posso emprestar cinqüenta mil dáricos de ouro, pois, na verdade as alfândegas do império apenas me renderam trezentos mil este ano”. Babuc informou-se sobre quem era aquele homem que se queixava de ganhar tão pouco; soube que havia em Persépolis quarenta reis plebeus que arrendavam o império da Pérsia, e que davam alguma coisa ao monarca.

Foi depois a um dos mais soberbos templos da cidade; sentou-se em meio a um grupo de mulheres e homens que ali tinham ido passar o tempo. Num elevado balcão apareceu um mago, que falou longamente do vício e da virtude. Esse mago dividiu em várias partes o que não tinha necessidade de ser dividido; provou metodicamente tudo o que era claro, ensinou tudo o que se sabia. Apaixonou-se a frio, e saiu suando e sem fôlego. Toda a assembléia então despertou e julgou ter assistido a uma instrução. “Eis um homem – disse Babuc – que fez o melhor que pôde para aborrecer a duzentos ou trezentos de seus concidadãos; mas a sua intenção era boa e por isso não há motivo de destruir Persépolis”. Ao sair dessa assembléia, levaram-no a ver uma festa pública que era celebrada todos os dias; era numa espécie de basílica, ao fundo da qual se via um palácio. As mais belas cidadãs de Persépolis, os mais consideráveis sátrapas, colocados em ordem, constituíam um espetáculo tão belo, que Babuc julgou a princípio que aquilo era toda a festa. Duas ou três pessoas, que pareciam reis e rainhas, apareceram logo no vestíbulo daquele palácio; sua linguagem, muito diferente da do povo, era medida, harmoniosa e sublime. Ninguém dormia, todos escutavam em profundo silêncio, apenas interrompido pelos testemunhos de sensibilidade e admiração. O dever dos reis, o amor da virtude, os perigos das paixões, eram expressos em tiradas tão vivas e comoventes, que Babuc rompeu em pranto. Não duvidou que aqueles heróis e heroínas, aqueles reis e rainhas que acabava de ouvir, fossem os predicadores do império; propôs-se, até, induzir Ituriel a que viesse ouvi-los, certo de que tal espetáculo o reconciliaria para sempre com a cidade.

Terminada a festa, quis ir visitar a principal rainha, que declamara naquele belo palácio uma moral tão nobre e tão pura; fez-se apresentar a Sua Majestade; levaram-no, por uma estreita escada, a um apartamento mal mobiliado do segundo andar, onde encontrou uma mulher mal vestida, que lhe disse com um ar nobre e patético: “Este ofício não dá para viver; um dos príncipes que o senhor viu me fez um filho; em breve vou dar à luz; não tenho dinheiro, e sem dinheiro não se pode ter filhos”. Babuc deu-lhe cem dáricos de ouro, dizendo consigo: “Se não houvesse senão esse mal na cidade, Ituriel não teria razão de incomodar-se tanto”.

Dali, foi passar a noite no estabelecimento de uns vendedores de magníficas bagatelas, aonde o levou um homem inteligente com quem travara relações. Escolheu o que lhe agradou, e que lhe venderam polidamente por muito mais do que valia. Seu amigo, na volta, fez-lhe compreender como o haviam enganado. Babuc inscreveu nas suas tabuinhas o nome do negociante, para indicá-lo a Ituriel no dia da punição da cidade. Enquanto escrevia, bateram-lhe à. porta: era o próprio negociante que vinha trazer-lhe a bolsa que ele havia esquecido sobre o balcão.

— Como se explica – estranhou Babuc – que o senhor se mostre tão fiel e generoso, quando não teve vergonha de vender-me bugigangas quatro vezes acima do seu valor?

— Não há nesta cidade nenhum negociante mais ou menos conhecido – respondeu-lhe o outro – que não viesse devolver-lhe a bolsa; mas muito o enganaram, dizendo-lhe que eu lhe vendera artigos quatro vezes mais caro do que valiam: vendi-os por dez vezes mais. E tanto isto é verdade que, se daqui a um mês o senhor quiser revendê-los, não obterá nem essa décima parte. Mas nada mais justo: é a fantasia dos homens que dá preço a essas coisas frívolas; é essa fantasia que faz viver cem operários que eu emprego, é ela que me dá uma bela casa, um carro cômodo, cavalos, é ela que anima a indústria, que mantém o gosto, a circulação e a abundância. Às nações vizinhas vendo eu essas bagatelas muito mais caro que ao senhor, e assim sou útil ao império.

Babuc, depois de haver cismado um pouco, riscou-o das suas tabuinhas.

Babuc, muito incerto do que deveria pensar de Persépolis, resolveu avistar-se com os magos e os letrados: pois uns estudam a sabedoria, e os outros a religião; e esperava que esses pudessem salvar o resto do povo. Na manhã seguinte transportou-se para um colégio de magos. O arquimandrita confessou-lhe que tinha cem mil escudos de renda por haver feito voto de pobreza, e que exercia um império bastante extenso em vista do seu voto de humildade; depois do que, deixou Babuc aos cuidados de um irmão menor, que lhe fez as honras da casa.

Ora, enquanto esse irmão lhe mostrava as magnificências daquela casa de penitência, espalhou-se o rumor de que Babuc ali fora para reformar todos aqueles estabelecimentos.

Começaram logo a chegar-lhe memoriais de cada uma das referidas casas; esses memoriais diziam todos, em substância: Conservai-nos, e destruí todas as outras. A julgar por suas apologias, essas sociedades eram todas necessárias. Mas, a julgar por suas acusações recíprocas, mereciam ser todas aniquiladas. Admirava-se de como não havia nenhuma delas que, para edificar o universo, não lhe quisesse conseguir o império. Apresentou-se então um homenzinho que era um semimago e que lhe disse:

— Vejo que os tempos vão cumprir-se, pois Zerdust voltou à terra; as meninas profetizam, recebendo pinçaços pela frente e chicotaços por trás. Pedimos, pois, vossa proteção contra o Grão-Lama.

— Como! – exclamou Babuc. – Contra esse pontífice-rei que reside no Tibé?

— Ele mesmo.

— Então lhe declarastes guerra, e ergueis exércitos contra ele?

— Não, mas o Grão-Lama diz que o homem é livre, coisa que nós não acreditamos; escrevemos panfletos, atacando-o, e que ele não lê; quando muito, ouviu apenas falar de nós; e limitou-se a nos condenar, como um proprietário ordena que destruam as lagartas de sua horta.

Babuc estremeceu ante a loucura daqueles homens que faziam profissão de sabedoria, as intrigas daqueles que haviam renunciado ao mundo, a orgulhosa ambição e cobiça daqueles que pregavam a humildade e o desinteresse; e concluiu que Ituriel tinha boas razões para destruir toda aquela espécie.

De regresso a casa, mandou procurar livros novos para suavizar suas penas e convidou alguns letrados para jantar, a fim de distrair-se. Veio o dobro do que convidara, como vespas que o mel atrai. Esses parasitas não faziam mais que comer e falar; louvavam duas espécies de pessoas, aos mortos e a si próprios, e nunca a seus contemporâneos, exceto o dono da casa. Se algum deles dizia uma boa frase, os outros baixavam os olhos e mordiam os lábios de dor por não lhes haver ocorrido isso. Eram menos dissimulados que os magos, pois não tinham tão grandes ambições. Cada qual disputava um lugar de lacaio e uma reputação de grande homem; diziam-se em cara coisas insultantes, que julgavam frases de espírito. Tinham algum conhecimento da missão de Babuc. Um deles pediu-lhe em segredo que exterminasse um autor que não o louvara suficientemente cinco anos atrás. Outro solicitou a perda de um cidadão que nunca rira nas suas comédias. Um terceiro pediu a extinção da Academia, porque jamais conseguira entrar para ela. Findo o almoço, cada qual se retirou sozinho, pois não havia em todo o grupo dois homens que se pudessem suportar, nem falar-se a não ser em casa dos ricos que o convidavam para a sua mesa. Babuc julgou que não se perderia nada se toda aquela cambada perecesse na destruição geral.

Logo que se desfez deles, põe-se a ler alguns dos novos livros, nos quais reconheceu a mentalidade de seus convivas. Viu sobretudo com indignação essas gazetas de maledicência, esses arquivos do mau gosto, que a inveja, a baixeza e a fome ditaram; essas covardes sátiras onde se poupa o abutre e se estraçalha a pomba; esses romances destituídos de imaginação, onde se vêem tantos retratos de mulheres que o autor não conhece.

Lançou ao fogo todos aqueles detestáveis escritos e saiu a passear. Apresentaram-lhe um velho letrado, que não for a aumentar o número daqueles parasitas. Esse letrado fugia sempre à multidão, conhecia os homens, o que muito lhe aproveitava, e falava com discrição. Babuc falou-lhe amargamente do que lera e do que tinha ouvido.

— O senhor leu coisas bastante desprezíveis – disse-lhe o sábio letrado. – Mas em todas as épocas, e em todos os países, e em todos os gêneros, sempre formiga o mau e escasseia o bom. E se o senhor recebeu em casa o rebotalho do pedantismo é porque, em todas as profissões, o que há de mais indigno de aparecer é sempre o que se apresenta com maior imprudência. Os verdadeiros sábios vivem entre si, retirados e tranqüilos; há ainda, em nosso meio, homens e livros dignos de lhe ocupar a atenção.

Enquanto aquele assim falava, veio juntar-se-lhes outro letrado; e o que disseram ambos foi tão agradável e instrutivo, tão acima dos preconceitos, e tão conforme virtude, que Babuc confessou jamais ter ouvido nada semelhante. “Eis aí uns homens – murmurava ele – em quem o anjo Ituriel não ousará tocar, a menos que seja muito impiedoso”.

Acomodado com as letras, continuava todavia em cólera contra o resto da nação. “O senhor é estrangeiro – dizia-lhe o avisado homem que lhe falava, – de modo que os abusos se lhe apresentam em multidão, e passa-lhe despercebido o bem, que está oculto e às vezes resulta desses mesmos abusos”. Soube então que, entre os letrados, alguns havia que não eram invejosos e que, até entre as magos, havia-os cheios de virtude. Compreendeu então que aquelas grandes sociedades que pareciam, em seus entrechoques, preparar a ruína comum, eram no fundo instituições salutares; que cada agrupamento de magos era um freio a seus rivais; que, se diferiam em algumas opiniões, esses êmulos pregavam todos a mesma moral, que instruíam o povo e viviam submissos às leis, semelhantes aos preceptores que vigiam os filhos da casa, enquanto os donos os vigiam a eles. Conversou com vários desses magos e descobriu almas celestiais. Reconheceu até que, entre os loucos que pretendiam guerrear o Grão-Lama, havia homens eminentes. Suspeitou enfim que, com os costumes de Persépolis, poderia acontecer a mesma coisa que com os edifícios: uns lhe pareciam dignos de lástima, outros o enchiam de admiração.

Disse ao seu letrado:

— Reconheço que esses magos, a quem julgara tão perigosos, são, com efeito, muito úteis, sobretudo quando um sábio governo os impede de se tornarem demasiado necessários; mas ao menos confesse que os seus jovens magistrados, que compram um cargo de juiz logo que aprendem a montar a cavalo, devem revelar nos tribunais tudo o que a impertinência tem de mais ridículo e a iniqüidade de mais perverso; melhor seria ceder gratuitamente esses lugares aos velhos jurisconsultos que passaram toda a vida a pesar o pró e o contra.

— Antes de chegar a Persépolis – replicou o letrado, – viu o senhor o nosso exército; sabe que os nossos oficiais se batem muito bem, embora tenham comprado as divisas; igualmente há de ver que os nossos jovens magistrados não julgam mal, embora tenham pago para isso.

Levou-o no dia seguinte ao tribunal, onde devia ser proferida importante sentença. A causa era conhecida de todos. Os velhos advogados que a discutiam pareciam flutuar nas suas opiniões; alegavam cem leis, nenhuma das quais era aplicável ao fundo da questão; consideravam o assunto por cem pontos de vista, nenhum deles o adequado; os juizes decidiram mais depressa do que o tempo que gastaram os advogados em hesitar. O veredicto foi quase unânime; julgaram bem, porque seguiam as luzes da razão, e os outros haviam opinado mal, porque apenas tinham consultado os livros.

Babuc concluiu que muita vez havia excelentes coisas nos abusos. Viu no mesmo dia que as riquezas dos financistas, que tanto o haviam revoltado, podiam produzir um ótimo efeito; pois tendo o imperador necessidade de dinheiro, encontrou, em uma hora, por intermédio deles, o que não conseguiria em seis meses pelas vias ordinárias; viu que aquelas grossas nuvens, infladas do orvalho da terra, devolviam em chuva o que haviam recebido. Aliás, os filhos desses homens novos, não raro mais bem educados que os de famílias mais antigas, valiam às vezes muito mais; pois nada impede que se seja um bom juiz, um bravo guerreiro, um hábil homem de Estado, quando se tem um pai bom calculista.

Insensivelmente, perdoava Babuc a avidez do financista, que não é, no fundo, mais ávido que os outros homens, e que é necessário. Escusava a loucura dos que se arruinavam para julgar e bater-se, loucura que produz grandes magistrados e heróis. Passava por alto sobre a inveja dos letrados, entre os quais se encontravam homens que esclareciam o mundo; reconciliava-se com os magos ambiciosos e intrigantes, entre os quais havia ainda maiores virtudes que pequenos vícios. Mas ainda lhe restava muito que censurar; e principalmente as galanterias femininas, e suas possíveis conseqüências o enchiam de inquietação e temor.

Como quisesse estudar todas as condições humanas, fez-se conduzir a um ministro; mas, no caminho, continuava a recear que alguma mulher fosse assassinada na sua presença pelo marido. Chegado ao gabinete do ministro, esperou duas horas na antecâmara antes de ser anunciado, e mais duas horas depois de o ter sido. Propunha-se, nesse intervalo, recomendar ao anjo Ituriel esse ministro e seus insolentes oficiais. A sala de espera estava cheia de damas de todas as condições, de magos de todas as cores, de juizes, de homens de negócio, de militares, de pedantes; todos se queixavam do ministro. O avarento e o usurário diziam: “Com toda a certeza, esse homem pilha as províncias”; o caprichoso lhe estranhava a esquisitice; “Ele só pensa nos prazeres”, dizia o libertino; o intrigante suspirava vê-lo em breve perdido por uma cabala; as mulheres esperavam que lhe dessem em breve um ministro mais jovem.

Babuc, que os ouvia a todos, não pôde deixar de dizer consigo mesmo: “Eis ai um homem bastante feliz; tem todos os seus inimigos na antecâmara; aplastra com o seu poder aqueles que o invejam; vê a seus pés os que o detestam”. Afinal entrou: viu um velhinho curvado ao peso dos anos e dos trabalhos, mas ainda vivo e cheio de espírito.

Babuc agradou-lhe, e pareceu a Babuc um homem estimável. A palestra tornou-se interessante. Confessou-lhe o ministro que era muito infeliz; que passava por homem rico, e era pobre; que o julgavam todo-poderoso, e era contrariado; que só prestara serviço a ingratos, e que, num trabalho contínuo de quarenta anos, mal tivera um momento de consolo. Babuc sentiu-se comovido e pensou que, se aquele homem cometera faltas e o anjo Ituriel o quisesse punir, não precisava exterminá-lo, mas apenas conservá-lo naquele posto.

Enquanto falava ao ministro, entra de súbito a bela dama em cuja casa havia jantado. Liam-se-lhe nos olhos e na fronte os sintomas da dor e da cólera. Explodiu em censuras ao homem de Estado; chorou; queixou-se amargamente de haverem recusado a seu marido um lugar a que o seu sangue permitia aspirar e que os seus serviços e ferimentos mereciam; exprimiu-se com tanta força, pôs tanta graça nas suas queixas, destruiu tão habilmente as objeções, fez valer com tamanha eloqüência as suas razões, que não saiu do gabinete sem ter feito a fortuna do marido.

Babuc estendeu-lhe a mão.

— Será possível, minha senhora – disse-lhe ele, – que se haja dado a todo esse trabalho por um homem a quem não ama e de quem tem tudo a temer?

— Um homem a quem não amo! – exclamou a dama. – Pois saiba que meu marido é o melhor amigo que tenho no mundo, que não há nada que eu não lhe sacrifique, exceto o meu amante, e que ele faria tudo por mim, menos abandonar a sua amante. Quero que a conheça; é uma mulher encantadora, cheia de espírito e tem o melhor caráter do mundo; ceamos juntas esta noite com o meu marido e o meu maguinho: venha compartilhar da nossa alegria.

A dama conduziu Babuc até a casa dela. O marido, que chegara imerso em dor, tornou a ver a esposa com transportes de alegria e gratidão; beijava sucessivamente a amante, a mulher, o mago e Babuc. A união, a alegria, o espírito e as graças foram a alma daquela ceia.

— Saiba – disse-lhe a bela dama – que aquelas a quem chamam às vezes de desonestas têm quase sempre os méritos que constituem um homem honrado; e, para convencer-se disso, vá amanhã jantar comigo em casa da bela Teone. Há algumas velhas vestais que a estraçalham; mas Teone faz maior bem que todas elas juntas. Seria incapaz de cometer uma pequena injustiça pelo maior dos interesses; não dá a seu amante senão conselhos generosos; este coraria diante dela se deixasse escapar alguma ocasião de fazer o bem; pois nada incita mais às ações virtuosas do que ter, como testemunha e juiz, uma amante cuja estima se busca merecer.

Babuc não faltou ao encontro. Viu uma casa onde reinavam todas as atrações; Teone reinava sobre elas; sabia falar a cada qual a sua própria linguagem. Seu gênio natural punha à vontade o dos outros; agradava quase sem querer; era tão amável quanto bondosa; e, o que aumentava o preço de todas as suas boas qualidades, era bela. Babuc, por mais cita e mensageiro celestial que fosse, sentiu que, se se demorasse mais em Persépolis, esqueceria Ituriel por Teone. Afeiçoava-se à cidade, cujo povo era polido, pacífico e benévolo, embora leviano, tagarela e cheio de vaidade. Temia que Persépolis fosse condenada; temia até o relatório que teria de fazer.

Eis como se houve para apresentar esse relatório. Mandou fazer no melhor fundidor da cidade uma estatueta composta de todos os metais, das terras e pedras mais preciosas e mais vis; e levou-a a Ituriel.

— Destruirias – disse ele – esta linda estátua, porque não é toda de ouro e diamantes?

Ituriel soube compreender; nem mesmo pensou em corrigir Persépolis, e resolveu deixar o mundo como estava. Pois, disse ele, se nem tudo está bem, tudo é passável. Deixou pois subsistir Persépolis; e longe estava Babuc de se queixar, como Jonas, que se agastou por não terem destruído Nínive. Mas depois que a gente passou três dias dentro de uma baleia, não se sente de tão bom humor como depois de haver estado na ópera, na comédia, e de ter jantado em boa companhia.

 

                                                                                            Voltaire

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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