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Romance de uma Velha
VIOLANTE - PORFÍRIO - CLEMÊNCIA - AUGUSTO - IRENE - LEOPOLDO ACROBATA - POLIDORO - BRAZ - LAURIANO - CASIMIRO - TIMÓTEO - MÁRIO - Criado - Multidão - concurso de senhoras e cavalheiros.
A ação da comédia se passa na cidade do Rio de Janeiro, no ano de 1869.
ATO I
Chácara em um dos arrabaldes da cidade do Rio de Janeiro: Jardim espaçoso, que parece estender-se para o lado direito, onde fica em meio elegante casa, de que aparece a varanda de colunas e com escada para o jardim; ao lado esquerdo, gradil e portão de ferro, que abre para a rua; bancos de relva; perto do portão, cadeiras rústicas.
CENA I
VIOLANTE, em luto aliviado trajando decentemente, mas fora da moda, e trazendo touca a antiga e óculos fixos; BRAZ, vestido com igual decência, mas sem pretensões a elegância. Vem ambos conversando para o lado do portão; logo depois CASIMIRO, no maior apuro da moda, de luvas e bengalinha, desce da varanda.
VIOLANTE – No outro tempo não era assim! por fim de contas tudo está mudado.
BRAZ – Tudo, madrinha; e para no-lo provar basta um espelho et coetera.
(Sentam-se) Como Casimiro vem chic!
VIOLANTE (A Casimiro e depois de benzer-se) Estás de ponto em branco, e trazes uma gravatinha que te assenta, como a minha touca assentaria na cabeça de tua filha.
CASIMIRO – Vou dar um curto passeio e volto já para tomar café.
VIOLANTE – Vais ver a nossa vizinha? para velho tens bom gosto; mas Deus te perdoe a intenção.
BRAZ – Não apoquente o rapaz, madrinha! anda, Casimiro, aproveita a mocidade.
CASIMIRO – Também tu?...
BRAZ – Defendo a nossa causa; nascemos no mesmo ano, quando o Brasil subiu a reino, descemos ou nos fizeram descer para este vale de lágrimas: 1815! meio século e mais quatro anos só! é a estação das flores! Vai ver a bela vizinha, rapaz.
VIOLANTE – Por fim de contas das três uma: ou namoras por vaidade, ou queres casar, ou pretendes seduzir.
CASIMIRO – Escolha à sua vontade qualquer das hipóteses.
BRAZ – Que suave condescendência! ouviu, madrinha? ele está por tudo; aceita a linda vizinha em todas as hipóteses.
VIOLANTE – Se namoras por vaidade, cais em cheio no grotesco: um velho namorando uma menina, o inverno rendendo finezas à primavera, é como...
BRAZ – É como um general brincando com bonecas, e um frade barbadinho dançando a polca... entretenimentos inocentes...
CASIMIRO – Então casa-me?
VIOLANTE – Viúvo, com dois filhos, e tendo cinqüenta e quatro anos, se casasses com uma menina de dezoito, merecerias que a própria noiva no fim de poucos meses te desse de palmatória.
BRAZ – Et coetera, madrinha, et coetera.
CASIMIRO – Resta a sedução: arvore-me em Fanblau ou em Casanova.
VIOLANTE – É nos casasvelhas que a sedução se mostra mais perversa e imperdoável. Por fim de contas, Casimiro, toma cuidado: quem tem telhado de vidro, não atira pedradas.
CASIMIRO – Não a entendo.
BRAZ – Nem pode entender: pois se a madrinha está falando em português!
VIOLANTE – Lembra-te de Clemência, que também é donzela e pobre.
CASIMIRO – Mas, graças a meus desvelos, perfeitamente educada. É capaz de pô-lo em dúvida?
VIOLANTE – Sou.
BRAZ – Magnífico!
CASIMIRO – E esta? Violante, você é a mais impertinente das velhas.
VIOLANTE – Clemência é boa menina por dotes que deve à natureza; tu, porém, deste-lhe uma educação que faz pena; preparaste nela uma boneca e não uma senhora, um atavio de sociedades e não um tesouro do lar doméstico; não a ornaste, afeitaste-a; e por fim de contas tomaste-a jóia falsa, resplendendo por fora, como diamante, e valor intrínseco nulo. Nem ao menos a ensinaste a amar a Deus; mas, em compensação, ela parece amar o próximo desesperadamente.
CASIMIRO – Que quer dizer, Violante?
VIOLANTE – Clemência aceita a corte de quantos lha querem fazer, e sorri a todos os mancebos; é verdade que por fim de contas ela tem bonitos dentes.
CASIMIRO – Minha filha sabe ser agradável sem comprometer-se.
VIOLANTE – Cumpria que fosse mais recatada. As donzelas devem ser como as flores cultivadas em estufas.
CASIMIRO – Para irmãs de caridade? nós cultivamos essas flores ao ar livre da boa sociedade. Você é um anacronismo vivo: quer que tudo se passe como no tempo do rei.
VIOLANTE – Se dirigiu mal a filha, ao filho muito pior.
CASIMIRO – Vamos lá: que acha em Mário?
VIOLANTE – É um vadio: está abandonado à mãe dos vícios, à ociosidade; aos vinte e três anos de idade Mário só se ocupa de andar trocando as pernas.
CASIMIRO – Há um ano que me empenho por obter para ele um emprego no tesouro ou na alfândega; isso, porém, hoje é tão difícil!
VIOLANTE – O irmão da vizinha não é empregado público e sustenta a mãe e a irmã com o seu trabalho.
BRAZ - Mas não tem a honra de sentar-se à mesa do orçamento; é um original que com a vacina do trabalho independente preservou-se da emprego mania. Casimiro é sábio. Mário deve andar trocando as pernas até que o governo lhe dê, à custa do Estado, um par de muletas.
CASIMIRO – Não os posso sofrer mais: vocês entendem-se admiravelmente: nasceram um para o outro: foi pena não se terem casado... Vejam se ainda é tempo.
VIOLANTE – Antes uma boa morte.
BRAZ – De acordo, madrinha. (Casimiro sai pelo portão).
CENA II
VIOLANTE e BRAZ
VIOLANTE – Por fim de contas no meu tempo não era assim.
BRAZ – A madrinha dá forte e rijo, mas há de cansar. Casimiro é incorrigível, e nesta casa toda a família padece, porque a cabeça desatina: eu já cansei de ralhar; a madrinha também há de cansar.
VIOLANTE – Não hei de; sou teimosa, cumpro meu dever, e agora tenho privilégio.
BRAZ – Privilégio? para ralhar?
VIOLANTE – Sim; enquanto fui pobre, se tivesse vindo morar com eles, creio que seria bem tratada; mas a campainha das minhas censuras acabaria por aborrecê-los, e eu me curvaria à imposição de silêncio; prudente, deixei-me sempre na companhia do meu bom tio e padrinho, e hoje, e desde quatro meses rica herdeira de quinhentos contos de réis por morte desse meu segundo pai, são eles, meu irmão e sobrinhos, que moram comigo, e a velha celibatária elevou-se a irmã e tia veneranda com direito de dizer tudo quanto lhe vier à cabeça.
BRAZ – Anda por aí boa dose de injustiça: Casimiro e seus filhos nunca a esqueceram nem a desamaram.
VIOLANTE – Agora, porém, adoram-me... por fim de contas...
BRAZ – Alto lá, madrinha! fui triste enjeitado que seus pais adotaram e educaram, e a lembrança do benefício não me permite ouvir levantar aleives ao filho e aos netos de meus pais de adoção: são uns cabeças de vento, mas corações de ouro sem liga.
VIOLANTE – Sabes que os amo; não confio porém no juízo deles, e a prova é que não foi a Casimiro, e sim a ti que entreguei a administração dos meus bens e a guarda da minha riqueza.
BRAZ – Deus sabe se teve razão: só o futuro lhe poderá dizer que imenso miolo de hipocrisia e de egoísmo se esconde por baixo desta bonita casca fisionômica.
VIOLANTE – Por fim de contas farei a experiência.
BRAZ – Pois que me preferiu a seu irmão legítimo, que é um velho gaiteiro, mas homem honrado, merecia que, em minha qualidade de procurador de causas, eu aproveitasse na administração da sua fortuna a lição do epigrama de Bocage. Ah! mal pensa no que fez e ao que se expôs! a madrinha não sabe o que vai pelo mundo; a falta de dinheiro tem desenfreado a sagrada fome, sacra fames auri, que é coisa nunca vista; olhe há uma epidemia de pouca vergonha, um frenesi de viver à custa alheia, uma choleramorbus de velhacaria et coetera, et coetera, que a cidade do Rio de Janeiro está cheia de... et coetera, madrinha, et coetera.
VIOLANTE – Pões-me tonta.
BRAZ – E é para tontear! quero dizer que em caso de epidemia ninguém é 4 atacado por sua vontade: as gentes não são de ferro, e a madrinha, confiando-me a gerência da sua riqueza, expôs-me cruelmente ao contágio epidêmico.
VIOLANTE – Tens língua de serpente, Braz; mas fala-me sério: o mundo chegou deveras a tanta baixeza?
BRAZ – Sim, madrinha; o mundo subiu a essas alturas.
VIOLANTE – Santo Breve! no meu tempo não era assim.
BRAZ – Era; cada época tem suas moléstias sociais; no nosso tempo de outrora havia deformidades que horrorizavam; o meu tempo de hoje é outra coisa: é uma estragação que faz gosto! à parte a epidemia reinante, de que há pouco falei, brilham os costumes com todo o esplendor da lua da civilização em quarto minguante e com todo o impulso do progresso em andar de caranguejo.
VIOLANTE – Por fim de contas...
BRAZ – As idades se confundem: salvas as exceções importunas, os meninos vão para a escola pendurados em grandes charutos, e marcam as lições com as cartinhas das namoradas; os jovens fumam ao lasquenet, instruem-se no alcazar, e ceiam em colégios noturnos; os velhos agarram-se à mocidade postiça e no furor de remoçar tropeçam no ridículo e jogam as cambalhotas, como na infância; é o mundo às avessas: não acha que tem sua graça?
VIOLANTE – E as senhoras?
BRAZ – São invioláveis e sagradas; para mim elas fulguram pela irresponsabilidade. Não tenho notícia de costumes censuráveis, de educação falsa, e de erros de senhoras, que não provenham da influência masculina; na vida social os homens fazem-se, as senhoras são feitas; por conseqüência, pecado de senhora, penitência ao homem. Mas... não atassalhemos a sociedade: eu gosto de dar à língua; porém, a justiça deve começar por casa: a madrinha quer cortar na pele dos seus parentes?
VIOLANTE – É o teu ofício: mãos a obra!
BRAZ – Que tem que dizer de Casimiro? estaria rico, se não fosse esbanjador; mas que quer? há duas paixões em moda: é pecar no sexto e ainda em outro dos mandamentos da lei de Deus, e é regra de bom gosto que, quanto mais velho, mais pecador. Como Casimiro há tantos!...
VIOLANTE – É desmoralização! aqueles que deviam ensinar com o seu exemplo...
BRAZ – E ensinam, a pecar pelo menos. Mário não cuida em outra coisa: namora, joga, extravagância, e disse: não; faz mais: passeia em cavalo de raça que é a ocupação das suas horas vagas.
VIOLANTE – E Clemência?
BRAZ – Inviolável e sagrada; para que lhe deram o nome de Clemência? não tem culpa de ser muito clemente; asseguram-lhe todos que é formosa; ora, o trabalho e a fadiga são nocivos à formosura, e, portanto, ela passa os dias a limpar e a delgaçar as unhas que usa crescidas, como a imperatriz da China; o pai se ufana de vê-la realçar-se nas sociedades; é lógico pois que ela despenda com vestidos e enfeites muito mais do que o vaidoso está no caso de gastar com a filha. Eu não vejo que censurar em Clemência.
VIOLANTE – Hás de repetir tudo isso diante deles.
BRAZ – Seria a milésima edição de uma obra, de que não se tivesse vendido um só exemplar das novecentas e noventa e nove; mas vire agora a folha e leia no verso: Casimiro é um negociante modesto, porém honradíssimo; Mário é generoso e sensível; Clemência é honesta, paciente e de ótimo caráter na vida doméstica; são três anjos pelos corações que parecem três diabos pela falta de juízo.
VIOLANTE – Por isso ralharei até rebentar ou corrigi-los.
BRAZ – Tratarei de preparar o meu luto; porque a madrinha rebenta.
VIOLANTE – Braz, é deles que hoje me preocupo; há na vida três idades: a idade em que se vive pelos outros, a idade em que se vive com os outros, a idade em que se vive para os outros; estou nesta última: aos sessenta e dois anos chegaram-me as nozes, quando já não tenho dentes; a minha riqueza é apenas um depósito, pertencerá a vocês mais tarde.
BRAZ – Que tentação! madrinha, não repita isso, que faz calafrios... as cócegas da herança são capazes de fazer-me ir conversar com algum químico sem consciência.
VIOLANTE – Ainda não fiz testamento.
BRAZ – É o que lhe vale: declaro-me inofensivo provisoriamente.
VIOLANTE – O gracejo é de mau gosto.
BRAZ – Gracejo! o caso é muito sério e os dois animais mais sérios deste mundo são o burro e o dinheiro; creio que foi por isso que se chamou burra a arca pecuniária.
VIOLANTE (Vendo Clemência.) – Até que enfim.
CENA III
VIOLANTE, BRAZ e CLEMÊNCIA, vestida com exageração da moda
BRAZ – Amanheceu.
CLEMÊNCIA – Engana-se; a hora é quase do crepúsculo da tarde. (Chega ao portão.)
BRAZ – Segue-se que me enganei na hora; mas não me enganei com o Sol: sinto que o crepúsculo preceda apenas ao ocaso.
CLEMÊNCIA – Não se aflija; há sóis que brilham também de noite. (Senta-se.)
VIOLANTE – Modéstia até aí! Clemência, o Braz está se divertindo contigo: tu mesma, se te julgasses formosa, como o Sol, não levarias tanto tempo a enfeitar-te diante do espelho.
CLEMÊNCIA – Que erro! só as feias fogem do espelho. O toucador tem encantos!... é claro que não falo de mim; quando, porém, uma moça bela e gentil, em pé, defronte do espelho, se embevece, contemplando a sua imagem, ao mesmo tempo que com suave e preguiçoso pente alisa as ondas de seus formosos cabelos, e admira o contraste da negrura deles com o marfim de seus ombros magníficos, e sorri de indizível satisfação que ainda se exalta com o reflexo da graça do seu riso, do mimo da sua boca, da brancura e pureza de seus dentes, da flama celeste, irresistível do seu olhar... é claro que não falo de mim... criatura feliz, privilegiada, rainha de corações... oh! o tempo corre e ela o não sente... as horas passam no gozo do êxtase... da bem aventurança da consciência...oh! o espelho é tão doce!... tão embriagador!... tão feiticeiro!... titia, às vezes eu fico aí presa manhãs... tardes inteiras...
BRAZ – É claro que ela não fala de si.
CLEMÊNCIA – Só conheço um enlevo igual a esse.
VIOLANTE – Juro que não será ocupação séria.
CLEMÊNCIA – É o baile, titia.
BRAZ – Ao menos é expansiva e franca: então o baile...
CLEMÊNCIA – É a festa do amor e o triunfo da beleza; o baile é a liça ruidosa e fulgurante das senhoras que se disputam a primazia, combatendo-se com os olhos, com os sorrisos, com as graças do semblante, com a gentileza do corpo, o espírito e as prendas, com os brilhantes que ofuscam, com o bouquet, com o leque delicado que perguntam e respondem, e então... a mais bela... não falo de mim, repito; a mais bela 6 suspira surpreendida pelo fim da noite que voara, e em que ela esquecera o passado, e não pensara no futuro excitada pela música, arrebatada pela valsa, embriagada de incensos, aturdida de elogios, soberana de escravos, ídolo de admirações, ensurdecida pelos hinos, e feliz, imensamente feliz, porque a luz da sua beleza resplandeceu como a flama do incêndio, deixando o fogo em vinte ou mais corações...
VIOLANTE – Misericórdia! por fim de contas no meu tempo não era assim.
CLEMÊNCIA – Era, titia; ou no seu tempo não havia moças.
BRAZ – Mas em último caso o que dá de si o baile?
CLEMÊNCIA – Dá antes de tudo o gozo do que chamam vaidade, que é a poesia da vida da moça bela e gentil. A vaidade! falem de nós os senhores que morrem por comendas, títulos, grandezas, e que põem em guerra a humanidade para serem ministros de estado só pelo gosto de trazerem ordenanças atrás dos carros: a vaidade! que seja vaidade; a nossa é menos nociva.
BRAZ – Concordo, menina, concordo, palavra de honra; mas além da satisfação da vaidade...
CLEMÊNCIA – No baile a mulher procura, e acha, ou pode achar a realização da sua única esperança de futuro, o amor, e pelo amor um marido apaixonado...
BRAZ – Bravo! um amor violento, porque desenfreia na valsa, suave, porque engoma contradanças, e cheio de fogo, porque recorre aos sorvetes, que nunca faltam no baile!
VIOLANTE – Amor e marido apaixonado a compasso de música! hão de ser bons: prefiro o meu tempo, em que as donzelas se casavam pelo juízo dos pais; hoje em dia as moças casam-se pelo cálculo dos noivos, quando são ricas, ou por vento de felicidade rara, quando Deus permite.
CLEMÊNCIA – Que blasfêmia! é duvidar do poder da beleza, e descrer a influência dos anjos humanos.
BRAZ – Pois eu digo que a madrinha tem razão; a civilização e o progresso material mataram o amor, pelo menos na cidade do Rio de Janeiro; perdão... eu vou demonstrá-lo. O amor é uma espécie de sistema representativo, porque sem oposição degenera em água morna; o amor vive de desejos contrariados, de esperanças duvidosas, de saudades agridoces; tem o seu encanto no mistério, a sua força nos obstáculos, o seu brilho na adversidade; adora o segredo das negociações pendentes, como um ministro dos negócios estrangeiros; maldiz da luz e da publicidade, como um chefe de polícia, e salta por cima do direito e das leis, quando isso lhe faz conta, como o poder executivo.
CLEMÊNCIA – E depois disso...
BRAZ – A civilização e o progresso acabaram com todos esses elementos da vida do amor; para a saudade não há mais distâncias separadoras, por causa das estradas de ferro; o doce mistério de uma cartinha amorosa não se observa mais: os namorados vão ao Jornal do Commercio e escrevem para todos lerem: “C... Adoro-te sempre; hoje à tarde espera-me à janela, e me verás passar no meu cavalo baio; guarda-me a primeira valsa no baile do barão; não quero que dances com o moço de bigodes: teu louco apaixonado... E.” Já vê? o amor caiu na publicidade dos anúncios a seis vinténs por linha, e manifesta-se a pataca e meia.
CLEMÊNCIA – Está gracejando...
BRAZ – Dantes os lampiões a azeite deixavam à noite recantos escuros, onde o amante esperava ansioso o recado ou a resposta da amada; hoje veio a iluminação a gás e dissipou as sombras amigas; dantes os pais escondiam as filhas, e alguns minutos de confidência secreta eram raros favores devidos à astúcia ou ao acaso; hoje um moço e uma moça tratam do que chamam de amor, em casa, no baile, no teatro, no passeio, sem cuidados, nem cerimônias, e exatamente como dois agiotas que na praça do comércio 7 ajustam ações de uma empresa, de que eles próprios desconfiam; por conseqüência...
CLEMÊNCIA – Há de ser curiosa a conclusão!
BRAZ – Por conseqüência o amor, o verdadeiro amor, privado dos seus elementos de vida e de estímulo, desertou, fugiu para longe da cidade do Rio de Janeiro, onde tomou-lhe o lugar o cálculo enfeitado pela cortesia; não há mais amantes, há calculistas; não há mais amadas, há calculadas.
CLEMÊNCIA – Então... atualmente o amor...
BRAZ – É uma operação de aritmética.
CLEMÊNCIA – A beleza, as graças, o merecimento de uma senhora....
BRAZ – São agradáveis orações incidentes no período gramatical do casamento.
CLEMÊNCIA – E a oração principal?
BRAZ – O dinheiro: prova irrecusável; o Sol tem já vinte anos de idade, e ainda não conseguiu casar.
CLEMÊNCIA – Porque ainda não quis escolher.
BRAZ – Pois escolha, e se alguma lua minguante com um dote avultado lhe disputar o escolhido, verá que, apesar da luz do Sol, fica solteira.
CLEMÊNCIA – O senhor calunia a sociedade e ofende a formosura; titia, freqüente comigo os bailes e o teatro, e verá o desmentido eloqüente. .
VIOLANTE – Não... não... perguntariam e saberiam quem sou... e chegariam ao conhecimento da minha herança de quinhentos contos de réis...
CLEMÊNCIA – Que importa isso?
VIOLANTE – Não quero expor-me a roubar-te os namorados.
CLEMÊNCIA (Desatando a rir) – Ah! ah! ah!
BRAZ – Não ria; juro que a madrinha seria sua rival preferida por muitos.
CLEMÊNCIA (Rindo-se mais.) – Ah! ah! ah!...
BRAZ – Preferida, mostrando-se mesmo de touca e óculos, como está.
CLEMÊNCIA (Rindo cada vez mais.) – Ah! ah! ah!
VIOLANTE – Estás me provocando!
CLEMÊNCIA – Que extravagante idéia!
BRAZ – Caso de aposta...
VIOLANTE – Braz...se não fosse o ridículo!
BRAZ – Vale a pena pela lição.
VIOLANTE – Aposto.
BRAZ – Designe o seu mais ardente apaixonado! (A Clemência.)
CLEMÊNCIA – Um é pouco: designarei... (Pensando.) três, não bastam?
VIOLANTE – Que batalhão tem ela!
CLEMÊNCIA – E quem perder a aposta?
VIOLANTE – Recolher-se-á ao convento d’Ajuda por dois anos; eu farei todas as despesas perca quem perder.
CLEMÊNCIA – Aceito, reservando-me o direito de perdoar.
BRAZ (Pondo a mão no ombro de Clemência.) – Coitada da recolhida!
CENA IV
VIOLANTE, BRAZ, CLEMÊNCIA e MÁRIO
MÁRIO – Titia! (Beija a mão a Violante.) – Senhor Braz! (Aperta a mão de Braz.)
CLEMÊNCIA – Vens de má cara. (Aperta-lhe a mão.)
MÁRIO – Fui a um almoço dado à Ristori; antes lá não fosse, éramos trinta os festejadores do gênio... e dos trinta vinte e nove titulares, comendadores, ou filhos de 8 barões e viscondes, de homens altamente condecorados... a única exceção fui eu...
BRAZ – Desataste a chorar.
MÁRIO – Eu tenho idéias... declarei-me republicano; era um recurso...
BRAZ – E chamam tolo ao Mário!
MÁRIO – Tolo?... mas isto não deve continuar assim; é indispensável que nos enobreçamos, para que eu não torne a ser exceção, e para que Clemência case com algum titular, ou pelo menos capitalista rico.
CLEMÊNCIA – Obrigada; não preciso...
VIOLANTE – Como porém se há de improvisar a tua nobreza, cabeça de vento? nossa família foi sempre honrada, mas nem de longe tem cheiro de fidalguia; meu avô foi alfaiate, e com fama de boa tesoura...
MÁRIO – Ninguém mais se lembra dele, e a titia, em vez de recordar essa desconsolação, bem podia resolver o problema.
VIOLANTE – Como?
MÁRIO – Que falta lhe fazem dez ou doze contos de réis? com eles dados ao tesouro meu pai ficava em quinze dias barão da guerra, ou barão do hospício...
BRAZ – Mas o teu republicanismo?
MÁRIO – Deixei-o no almoço; a titia há de pensar na hipótese; agora tenho outros cuidados. Clemência, é imprescindível que eu depene o jardim... preciso de um cesto de flores... consentes?
CLEMÊNCIA – Que há?
MÁRIO – Uma atrocidade. Certa súcia, indigna quadrilha de perversos, pretende esta noite patear a mais bonita dançarina do alcaçar; é verdade que ela dança horrivelmente; mas é o mesmo: os habitués de bom gosto vão defendê-la, e haverá chuva de flores, e tempestade de murraças; não posso faltar.
CLEMÊNCIA – É parvoíce e escândalo brigar por semelhante gente.
MÁRIO – Não é da tua conta; quero um cesto de flores.
VIOLANTE – Não hás de ir.
MÁRIO – Hei de, titia; é ponto de honra. Clemência, manda depenar o jardim... dois cestos não serão demais... até já... vou ver Hipogrifo...
CENA V
VIOLANTE, BRAZ, CLEMÊNCIA, MÁRIO (que ia sair e volta), CASIMIRO, IRENE e LAURIANO; logo depois criado que traz o café, de que todos se servem
BRAZ (A Mário) – Não vais ver o Hipogrifo?
MÁRIO (A Braz) – Esta moça é até capaz de fazer-me esquecer o meu cavalo.
CASIMIRO – Trago para o jardim a rainha das flores. (Cumprimentos de todos.)
MÁRIO (A Lauriano) – Disseram-me que o folhetim da Reforma sobre as últimas corridas do Prado saiu da sua pena?
LAURIANO (A Mário) – Um rude ensaio... não entendo da matéria... desculpe o folhetim.
MÁRIO (A Lauriano) – Ao contrário, admirável! obrigadíssimo por Hipogrifo!
CLEMÊNCIA (A Lauriano) – Li o seu folhetim, e gostei muito; obrigada por Mário.
CASIMIRO (A Irene) – Espanta-me que eles possam pensar em outra coisa que não seja a sua formosura!
IRENE (A Casimiro) – O senhor teima em zombar de mim. (Trocando um olhar com Mário.)
VIOLANTE (A Braz) – Braz, no meu tempo não era assim; por fim de contas 9 olha a cara desfrutável de Casimiro.
BRAZ (A Violante) – No seu tempo não era assim; mas era de outro modo, que vinha a dar na mesma coisa.
CLEMÊNCIA (Levando Irene pelo braço) – Dª. Irene, você passa a noite conosco?
IRENE (A Clemência) – Não posso; Lauriano tem trabalho urgente, e minha mãe não permite que eu fique sem ele.
CLEMÊNCIA (A Irene) – Além da felicidade da sua companhia, só você, ficando conosco, poderia conseguir obstar uma grande imprudência...
IRENE (A Clemência) – Qual?
CASIMIRO (Indo a Irene) – Protesto contra o monopólio; Clemência não tem o direito de usurpar-nos dª. Irene. (Traz Irene a sentar-se e conversa com ela.)
MÁRIO (A Braz) – Não acha que meu pai está caindo no ridículo? (A Lauriano) Magnífico folhetim! venha amanhã à tarde visitar Hipogrifo.
CLEMÊNCIA (A Lauriano) – Dá-nos a sua companhia esta noite? esperamos algumas famílias amigas: o seu sacrifício será mais suave.
LAURIANO (A Clemência) – As famílias que espera serão por certo muito amáveis; mas só por quem tão cativadora me fala o sacrifício é não poder ficar.
CLEMÊNCIA (A Lauriano) – Sei que trabalha assíduo, e que hoje tem apressada tarefa, mas eu sou egoísta, e apraz-me experimentar o que mereço; demore-se aqui até a meia-noite, ainda que depois trabalhe até o romper da aurora.
LAURIANO (A Clemência) – Se eu chegasse a acreditar que o deseja!
CLEMÊNCIA (A Lauriano) – Gosto de ser déspota: ordeno.
LAURIANO (A Clemência) – E o escravo obedecerá feliz.
VIOLANTE (A Braz) – O que observo me põe a cabeça à roda. (A todos.) É quase noite... porque não entramos?... (Levantam-se todos.)
CLEMÊNCIA (A Irene) – Seu irmão fica; é necessário que Mário não nos deixe, esta noite haverá desordem no alcaçar, e ele quer ir...
IRENE (A Clemência) – Desordem... no alcaçar?... pois não há sempre?... (A Mário) Quando há novas corridas, sr. Mário?
MÁRIO – Daqui a dois meses... V. Ex. irá ao Prado?
IRENE – Desejo muito; Lauriano prometeu levar-me.
MÁRIO – Sublimizarei Hipogrifo...
IRENE (Mais baixo) – Sinto-me ditosa, porque vou passar a noite em sua casa...
MÁRIO (A Irene) – Logo esta noite... quando um ponto de honra me aparta...
IRENE (A Mário) – Ah!... perdão... não ouso pedir-lhe a preferência de algumas horas que me aditariam... sei bem que pouco valho...
CASIMIRO (A Braz) – Mário tem tomado uns modos tão inconvenientes que começa a desagradar-me... não reparas!
BRAZ (A Casimiro) – Estou vendo... é claro que ele gosta da vizinha; pendor da família!
IRENE (A Mário) – Se eu tivesse poder sobre o senhor, exigiria que ficasse...
MÁRIO (A Irene) – Exige de um soldado a deserção na hora da batalha! esperam-me, dª. Irene; palavra de honra que contam comigo...
CASIMIRO – Não vais hoje ao alcaçar, Mário?
MÁRIO (A Braz) – Já viu esta?... (Alto.) Não, senhor; hoje passo a noite em casa: meu pai quer o meu bilhete?...
CASIMIRO – Esqueces que hoje a noite é de recepção, adoidado?
MÁRIO – Ah! é verdade! mais uma razão para que eu não saia de casa.
VIOLANTE (A Braz) – Braz! Braz! por fim de contas no meu tempo não era assim.
(Vão-se todos para a casa; Braz conduz Violante, Lauriano acompanha Clemência. Mário apodera-se de Irene, Casimiro de mau modo segue perto destes dois.)
FIM DO PRIMEIRO ATO
ATO II
Passeio Público do Rio de Janeiro: ao fundo, o Outeiro dos Jacarés, tendo aos lados as escadas que dão subida para a varanda; nos planos até a frente, quanto se puder aproveitar, copiando o sítio.
CENA I
VIOLANTE e BRAZ, CLEMÊNCIA e AUGUSTO, CASIMIRO e PORFÍRIO; até o fim do ato, concurso de passeadores de ambos os sexos
VIOLANTE – Quero descansar aqui por alguns minutos.
CASIMIRO – Liberdade plena; subo com Porfírio ao terraço... gosto muito da vista da barra. (Segue com Porfírio.)
CLEMÊNCIA – Eu vou com o sr. doutor até a ponte rústica. (Segue com Augusto.)
BRAZ – Cuidado não caia, dª. Clemência: o corrimão da ponte está meio estragado.
AUGUSTO (A Clemência) – Aquilo é comigo.
CENA II
VIOLANTE sentada, BRAZ em pé
BRAZ – Aquele sujeito que acompanha Clemência é um dos três namorados da aposta.
VIOLANTE – Teimas em querer envolver-me em semelhante embrulhada?
BRAZ – A madrinha teve sempre queda para pregar peças; ensaie esta comédia; basta que se finja disposta a casar-se, que se mostre um pouco sensível, que... et coetera... et coetera.
VIOLANTE – Por fim de contas tenho sessenta e dois anos: é inverossímil.
BRAZ – Inverossímil! com quinhentos contos e depois dos cinqüenta anos quanto mais velha mais noivos a escolher... pela regra das probabilidades...
VIOLANTE – Mas os três designados amam Clemência, apesar de pobre.
BRAZ – Não amam, namoram: a diferença é enorme.
VIOLANTE – Queres por força que eu me abaixe a parecer velha ridícula e néscia?
BRAZ – Por oito dias só: verá o ensino que daremos e a confusão que irá pela casa.
VIOLANTE – E no fim?
BRAZ – Haverá desengano de tolos e abatimento da vaidosa.
VIOLANTE – Braz, eu não gosto de brincar; quando, porém, me atiro à zombaria é como no tempo em que jogava o entrudo.
BRAZ – E assim é que deve ser; começaremos hoje, e aqui mesmo. (A um homem que passa.) Humilde servo de V. Ex. (Cumprimentam-se.)
VIOLANTE – Quem é?
BRAZ – Um candidato a concordata próxima, ou a falência que deixa inteiro o quebrado: a madrinha não compreende? pois eu lho explico de modo tão lúcido que no fim da explicação ainda menos entenderá.
VIOLANTE – Ora venha mais essa.
BRAZ – Há quebrar, e quebrar; quebrar direito que deixa um homem sem serventia: é o infortúnio de banqueiros e negociantes honrados, a quem prejuízos inevitáveis e os desconcertos de muitos arrastam fatalmente para ruína imerecida: esses são uns patetas, que a sociedade castiga com o menos-cabo, porque ficam pobres; quebrar torto é outra coisa: é uma sorte de equilíbrio, em que o bom ginástico se entorta, fingindo cair para levantar-se mais direito. Entendeu?
VIOLANTE – Vou percebendo, Braz.
BRAZ – Pois é a estes que me refiro; concordata quer dizer a discordância afinada entre o devedor e os credores; falência quer dizer grande sobra realizada pela mágica da rebentação; exemplo: este meu amigo deve à praça mais de quatro mil contos e calcula suavemente com o sacrifício de quinze por cento para consolação dos credores; mas pode crer que ele fica inteiro depois de quebrado, e que por isso a sociedade há de cumprimentá-lo com todo o respeito. (A um velho e uma jovem que passam.) Escravo submisso da excelentíssima!... senhor comendador, sempre a remoçar! (Cumprimentam-se.)
VIOLANTE – A filha deste velho é bem bonita!
BRAZ – Vinte e um anos e sua esposa há dois.
VIOLANTE – Que!
BRAZ – O meu amigo comendador é menos velho do que parece; não lhe pesam os setenta anos que completou há oito dias; o santo homem é um pouco muçulmano: passando às suas quintas núpcias ao desposar aquela moça, nem por isso emendou-se dos costumes antigos; mudou de odalisca ha três meses e entretém com prodigioso luxo uma menina de dezesseis anos, comprada à miséria de seus pais. Ah! esquecia-me de prevenir a madrinha que ele conta numerosos e jovens amigos.
VIOLANTE – E a pobre mulher?
BRAZ – Inviolável e sagrada: vive abençoando com ambas as mãos a odalisca, e tem um primo, doutor em medicina, que receita ao velho marido passeios freqüentes e distrações fora de casa.
VIOLANTE – Que língua envenenada!
CENA III
VIOLANTE, BRAZ, CLEMÊNCIA e AUGUSTO
CLEMÊNCIA – A titia já viu o peixe boi?
VIOLANTE – Ainda não: vens apresentar-mo?
CLEMÊNCIA – O sr. Braz pode encarregar-se disso: agora vou ao terraço ver o mar.
AUGUSTO – O mar?... é a imagem da inconstância: não se espelhe no mar. (Vãose.)
CENA IV
VIOLANTE e BRAZ
VIOLANTE – E por fim de contas Casimiro como abandona assim a filha?...
BRAZ – Casimiro não abandona, confia a filha; ele tem mais que fazer, e nós também; reparou que Clemência trazia na mão um ramalhetinho de violetas?
VIOLANTE – Reparei...
BRAZ – Pois agora é o dr. Augusto que o traz ao peito.
VIOLANTE – É escandaloso! de dia tão claro!... no meu tempo não era assim.
BRAZ – Já sei: no seu tempo era de noite que se davam os ramalhetes; mas daqui a pouco darei ao dr. Augusto informações da madrinha; creio que logo depois um passeio pelo braço desse cavalheiro lhe fará bem, e... se a madrinha não for peca, o ramalhetinho de violetas será seu.
VIOLANTE – Isso tenta... Braz, penso que começas a desmoralizar-me.
BRAZ – Será uma vitória digna dos seus óculos e da sua touca.
VIOLANTE – Do meu dinheiro, queres dizer.
BRAZ – A palavra tem o seu pudor, disse Lamartine; eu respeito as conveniências. (Vendo passar uma moça.) Olá! temos revolução no jardim! aí vai a Acrobata.
VIOLANTE – Que é a Acrobata?
BRAZ – Uma das vinte desmentidoras da moléstia da época; uma das vinte pestes que dão público testemunho da saúde perfeita da situação econômica. Brada-se por toda parte: “não há dinheiro!” oh! se há! e sobra tanto que as mãos cheias se atira no lenteiro.
VIOLANTE – Como é isso?
BRAZ – Como esta mais dezenove no galarim; carros com parelhas magníficas, cada dia novo e riquíssimo vestido, pérolas, brilhantes, cinqüenta contos por ano multiplicados por vinte mil contos dados ao culto do vício torpe, afora as ceias e orgias, afora a milenária escala da lubricidade, que vai descendo até a ralé da infâmia. E não há dinheiro! mentira; prova da mentira: a Acrobata pela vigésima parte.
VIOLANTE – Então... essa desgraçada criatura...
BRAZ – Delírio de solteiros e casados, de rapazes e de velhos; a Acrobata é o tipo da unidade, porque bebe, come, sonha, deseja e exige sempre uma coisa única – dinheiro; dá caridade, porque ama sem exceção e com perfeita indiferença a todos que lhe dão – dinheiro. A Acrobata é um prodígio; madrinha, subamos à varanda, acompanhemos a Acrobata.
CENA V
VIOLANTE, BRAZ, LEOPOLDO e TIMÓTEO
TIMÓTEO (A Leopoldo) – O peixe boi saiu do lago para conversar com o Braz de Souza.
LEOPOLDO (A Timóteo) – Com efeito, é a velha mais horrível que tenho visto; é uma coruja monumental promovida pelo demônio a velha criatura humana.
BRAZ – Preclaríssimos amigos! (Cumprimentam-se.)
TIMÓTEO – Sr. Braz! minha senhora!
LEOPOLDO – Minha senhora! (A Braz) Como passou de ontem? adivinha-se... perfeitamente ditoso.
BRAZ (Apresentando) – A sra. dª. Violante, irmã do nosso amigo Casimiro.
TIMÓTEO – Oh! minha senhora... tenho muita honra... (Fala a Violante.)
LEOPOLDO (A Braz) – Mas... é um dragão de feia!
BRAZ (A Leopoldo) – Não me desanimes... estou apaixonado-me; onde a vês, é solteira ainda, e herdou há quatro meses de um tio e padrinho a insignificância de quinhentos contos de réis.
LEOPOLDO (A Braz) – Um! meio milhão! (Olhando) reparando-se bem, não é tão feia, como à primeira vista me pareceu; os óculos e a touca dão-lhe até certa graça...
VIOLANTE – Vamos, Braz. (Cumprimenta aos dois.)
BRAZ (Aos dois) – Até logo. (Indo-se com Violante.) Já deixei um iscado.
VIOLANTE (A Braz) – Quem?
BRAZ (A Violante) – O de pince-nez: é dos três designados por Clemência. ( Vai-se com Violante.)
CENA VI
TIMÓTEO e LEOPOLDO
TIMÓTEO – Ainda não vi a tua bela Clemência; mas a horrorosa tia nos garante o feliz encontro; a tia é a noite que precede a aurora.
LEOPOLDO – A noite... eu gosto da frescura da noite... porém a aurora não tarda a aparecer, e é bela como os amores...
TIMÓTEO – E leviana, inconstante, como as borboletas; olha, há mais namorados de Clemência do que candidatos ao trono de Espanha. Eu não me casava com ela.
LEOPOLDO – Nem eu; quem pensa em casamento! com uns cinqüenta contos de réis de dote seria ouro sobre azul; mas pobre, como é, afigura-se-me um banco de emissão sem fundo de reserva metálico.
TIMÓTEO – E neste maldito tempo, em que andam todos à bolina, furtando o vento.
LEOPOLDO – É verdade, não há casa sólida; a minha começou, que era a quem mais caía com o mel! mas a estagnação do comércio! os sustos e as concentrações do Banco do Brasil, que dantes consolava a gente! a casa ainda vai bem, vai muito bem; mas se eu ajeitasse uma noiva que me enchesse os olhos com o dote, eim?
TIMÓTEO – Para que então perdes o teu tempo com Clemência?
LEOPOLDO – Ora! ela é que o perde comigo; eu divirto-me, namoro-a pela mesma razão porque vou ao teatro, ou ao circo da Guarda-Velha. Se ao menos a tia desse a quinta parte do que possui à sobrinha!
TIMÓTEO – Pois a tia é rica?
LEOPOLDO – Meio milhão!... quinhentos contos de réis de herança, diz o Braz.
TIMÓTEO – Meio milhão! é caso de bater bandeiras: quinhentos contos! que senhora de bem! vale quinhentas vezes mais do que a sobrinha!
LEOPOLDO – Se o Braz não mente, vale. Uma velha bem velha, se é rica, é preferível à moça mais formosa, precisamente porque é a precursora infalível da moça formosa.
TIMÓTEO – Não entendo: mas concordo pela regra da preferência.
LEOPOLDO – A moça tem longa vida diante de si e não morre nem a poder de ceias, de vigílias, de constipações, de indigestões, do diabo, e portanto significa um casamento sem probabilidade de viuvez; a uma noiva bem velha e bem rica enche-se de brilhantes, leva-se a todos os bailes e a todos os teatros, dá-se-lhe sorvetes quando o calor excita mais a transpiração, faz-se cear mayonaise, peru a Eglantine, fiambre e cabeça de porco, até que uma boa indigestão a livre dos trabalhos deste mundo, ficando o marido com o testamento que arranjou, e então ele se consola da morte da velha enfeitando-se com uma noiva moça e bonita... bem entendido, se a fortuna não lhe depara segunda velha ainda mais rica. Vamos procurar Clemência. (Vão-se)
CENA VII
MÁRIO, POLIDORO, logo a ACROBATA e imediatamente CASIMIRO e PORFÍRIO
POLIDORO – A Acrobata é bonita rapariga; mas eu prefiro o amor platônico e as emoções do lasquenet.
MÁRIO – Vai pois ver as damas dos teus baralhos, e deixa-me apanhar de surpresa a Acrobata, e na passagem tomar-lhe contas de certo logro. (Oculta-se)
POLIDORO (Afastando-se) – Aí vem ela. (Para e espera)
ACROBATA (A um mocinho que lhe sorri) – Cresça e apareça.
CASIMIRO (A Porfírio) – Violante e Clemência nos seguem? (Polidoro faz debalde sinais a Mário)
PORFÍRIO (Olhando para trás) – Não. (Continuam os sinais de Polidoro)
CASIMIRO (Quase junto da Acrobata) – Ficas esta noite em casa?
ACROBATA – Isso é conforme: em todo caso não dormirei na rua.
CASIMIRO – Vai passar pelo outeiro...
ACROBATA – Queres dar-me cerveja? (Mário e Casimiro esbarram-se um com o outro) Adeus, pequeno! (Rindo-se)
CASIMIRO (A Porfírio) – Evidentemente o Mário está muito desmoralizado!... começo a suspeitar que até me espia! (Desaparece a Acrobata)
MÁRIO (A Porfírio) – Meu pai está perdido: é de uma inconveniência que me vexa. (Indo-se)
POLIDORO – Já tinha idade para limitar-se ao lasquenet. (Vão-se os dois)
CENA VIII
CASIMIRO e PORFÍRIO
CASIMIRO – O tratante vai sem dúvida encontrar-se com a Acrobata; não posso, não devo seguí-la: seria indecoroso. Mas donde tira ele dinheiro, chave de ouro para abrir a porta do inferno daquele demônio?
PORFÍRIO – Ah! Casimiro! estas mulheres são perversas: na gíria dessas harpias os mocetões da nossa idade têm um nome horrível, um nome com cheiro de armazém de secos e molhados.
CASIMIRO – Que nome?
PORFÍRIO – Paios, a explicação tu sabes.
CASIMIRO – Mas a Acrobata é uma perdição... e demais está na moda... confesso-me doído por ela. Aquilo é uma centopéia de encantos!
PORFÍRIO – E a linda Irene?
CASIMIRO – Amor de outro gênero... loucura de outra espécie...
PORFÍRIO – E ela... vai-se abrandando... pendendo... caindo?
CASIMIRO – Exagera o recato: creio que é porque ainda não lhe falei em casamento.
PORFÍRIO – E que demora é essa tua?
CASIMIRO – Sabes que sou o modelo dos pais: hesito em dar madrasta a meus filhos.
PORFÍRIO – Quem diz que te cases? prometer não é cumprir. Irene, rapariga pobre, depois de seduzida julgar-se-ia feliz, tendo casa e tratamento sob a proteção e os cuidados do teu amor. Eu, apesar de casado, não tive dúvida em arranjar uma dessas distrações.
CASIMIRO – E a comadre?
PORFÍRIO – Consola-se com os filhos e nada lhe falta; aos cinqüenta e dois anos perdeu o direito de opor embargos: é guarda nacional da reserva.
CASIMIRO – Ah! Porfírio! se ela te ouvisse...
PORFÍRIO – Rufa em casa, como um tambor; por isso ando sempre por fora; tu estás em melhores condições, és viúvo; faze o que te disse, Irene é uma economia, porque te fará esquecer a Acrobata.
CASIMIRO (Suspirando) – Ah! seu eu fosse rico...
PORFÍRIO – Que farias?
CASIMIRO – Tomava ambas; eu adoro o belo sexo... é o meu fraco; todavia... pensarei no teu conselho... mas...
PORFÍRIO – Que é?
CASIMIRO – E o sr. Mário eclipsou-se!
PORFÍRIO – Naturalmente: ele o sol, a Acrobata a lua, tu ficas sendo terra; deuse o eclipse.
CASIMIRO – O que me espanta é a desmoralização da mocidade!
PORFÍRIO – Tens razão; porque os velhos, como nós, dão aos moços o exemplo da mais austera virtude; ora viva lá! sejamos francos: são os pais que deitam a perder os filhos, tem paciência, e vamos ver as moças. (Vão-se)
CENA IX
VIOLANTE, BRAZ, CLEMÊNCIA, AUGUSTO e LEOPOLDO
CLEMÊNCIA – Como são belos os cisnes! que colos majestosos!
LEOPOLDO – Há quem tenha mais admirável pescoço.
CLEMÊNCIA – Pode-se saber quem é?
LEOPOLDO – É segredo meu; mas todos os dias por mais de uma vez lho revelam.
CLEMÊNCIA – Já adivinhei; mas desconfio do revelador.
LEOPOLDO – Por que?
CLEMÊNCIA – O meu espelho deixou-se corromper pela lisonja. (Conversam)
BRAZ (A Violante) – O doutor já está harpoado: não perca tempo.
VIOLANTE (A Braz) – Por fim de contas vou entrar no fogo. (Alto) Clemência fica discorrendo sobre os colos dos cisnes, enquanto continuo a apreciar as reformas do Fialho.
BRAZ – Eis o meu braço madrinha.
VIOLANTE – Você nada me explica; apenas sabe maldizer do próximo: se o sr. doutor quisesse sacrificar dez minutos à minha companhia...
AUGUSTO – Oh, minha senhora! vossa excelência me transporta com esta distinção.
CENA X
BRAZ, CLEMÊNCIA e LEOPOLDO
BRAZ – A madrinha cometeu dois estelionatos; um contra mim, roubando-me o seu braço, outro contra dª. Clemência, roubando-lhe o dr. Augusto.
CLEMÊNCIA – Está vendo que não posso queixar-me; minha tia somente me poupou a um embaraço de cortesia; o sr. Leopoldo vai ter a bondade de mostrar-me o viveiro de plantas de mr. Graziaux.
LEOPOLDO – Abençoada seja a minha fortuna! ( Vão-se os dois)
BRAZ – Também eu abençôo a minha fortuna, que me traz dali o meu amigo Polidoro.
CENA XI
BRAZ e POLIDORO
POLIDORO – “Ela vai-se! e com ela vai minha alma!” amigo... (Saúda) que contraste!
BRAZ – Entre ela que vai-se e eu que fiquei?
POLIDORO – Não; eu me explico: tenho na vida duas paixões, a do amor platônico e a do lasquenet; no lasquenet, quando paro mais forte, é sempre nas damas; no passeio, no baile, cortejo por devoção a todas as senhoras.
BRAZ – Mas dª. Clemência...
POLIDORO – A essa amo, adoro; porém não me interrompa; nunca pensei que houvesse dama que me fizesse recuar de medo, e hoje... aqui mesmo... ind’á pouco... misericórdia! sabe quem é a velha que vai pelo braço do sr. Augusto?.
BRAZ – É dama de ouros.
POLIDORO – Como dama de ouros?
BRAZ – Irmã de Casimiro, minha preclara madrinha, feliz celibatária, a quem um tio legou há quatro meses a insignificante fortuna de quinhentos contos de réis.
POLIDORO – Olá!... então dª. Clemência, como sobrinha, está em perspectiva de riqueza? bem o merece: é tão bela!
BRAZ – Qual! a velha é um verdadeiro tipo de avareza, complicada com a mania do casamento. Apesar de afilhado, acho-a medonha; mas meio milhão é dinheiro e já me apresentei candidato.
POLIDORO – E casa-se com ela?
BRAZ – Quem me dera! a velha imagina impedimentos por ser minha madrinha, e, tomando-me por agente e procurador de seus cabedais, rejeita-me como noivo. Há dois meses que me ferve o sangue por isso!
POLIDORO – É uma dama de página muito feia e verso muito bonito! quinhentos contos de réis... ah! eu já possuí cerca de cem, e em três anos perdi-os todos com as damas do baralho, e de fora do baralho; mas então eu não sabia os segredos do lasquenet! ah, meu Braz! com meio milhão e bons parceiros, em um ano pode-se ganhar nem sei quantos milhões! a sua madrinha, não digo que seja horrível... digo... na verdade, aqui para nós, não é bonita; é, porém, sublime.
BRAZ – E... “Ela vai-se: e com ela vai minha alma!”
POLIDORO – Mas o senhor, que é o procurador, o fac-totum da... velha, tem as mãos sobre os quinhentos contos de réis...
BRAZ – Martírio de Tântalo! se eu não fosse afilhado! oh! antes não me tivessem batizado.
POLIDORO – E todavia o senhor não joga; não compreende as emoções do lasquenet! BRAZ – E que vem isto ao caso?
POLIDORO – É o caso de cem sortes a dobrar! eu amo doidamente a encantadora dª. Clemência... mas...
BRAZ – É coisa sabida: conta-se com o casamento...
POLIDORO – Sr. Braz... a que horas pode ser procurado amanhã para negócio importante?... os amigos devem entender-se.
BRAZ – No meu escritório até às três horas da tarde.
POLIDORO – Quinhentos contos de réis... deveras?
BRAZ – Palavra de honra: quinhentos contos de réis e mais alguns quebrados que não chegam a um.
POLIDORO – Que idade tem a respeitável senhora?
BRAZ – Está quase a completar os sessenta e três.
POLIDORO – Não é absolutamente velha; pareceu-me que roçava pelos cinqüenta; sem a touca e sem os óculos há de ganhar muito...
BRAZ – A mim se me afigura um anjo ainda mesmo de touca e óculos.
POLIDORO – Anjo de salvação é... sr. Braz, amanhã ao meio-dia em ponto irei ao seu encontro.
BRAZ – Chiton.
CENA XII
BRAZ, POLIDORO, CASIMIRO e PORFÍRIO
CASIMIRO (A Porfírio) – Vês? também aqui não está; seguiu a Acrobata, positivamente é um rapaz de costumes pervertidos...
PORFÍRIO (A Casimiro) – Deixa-o aproveitar o seu tempo.
CASIMIRO (A Porfírio) – Mas por que diabo há de logo aproveitá-lo com a Acrobata?
BRAZ – Vejo que te aborrece o passeio: vens com fisionomia de logrado, a quem furtaram o relógio.
CASIMIRO – É isso pouco mais ou menos, mas onde estão as senhoras?... o tempo está se enfarruscando de repente.
BRAZ – Aí chega a primeira.
CENA XIII
BRAZ, POLIDORO, CASIMIRO, PORFÍRIO, CLEMÊNCIA e LEOPOLDO (Escurece rapidamente: começa a retirar-se a gente que concorrera ao Passeio)
CLEMÊNCIA – A titia? que é dela?...
BRAZ – Ainda não voltou; o dr. Augusto lhe está explicando as reformas do Fialho.
CASIMIRO – E o tempo vai a pior: temos aguaceiro certo.
CLEMÊNCIA – O povo começa a retirar-se: ainda bem que o nosso carro está à porta do jardim.
BRAZ – Eis a madrinha...e como vem alegre...
CENA XIV
BRAZ, POLIDORO, CASIMIRO, PORFÍRIO, CLEMÊNCIA, LEOPOLDO, VIOLANTE e AUGUSTO
VIOLANTE (Chegando-se a Clemência e cheirando o ramalhete de violetas) – Como é suave o perfume das violetas! gostas dele Clemência?
BRAZ (A Clemência) – Que ingratidão! derrota número primeira.
CLEMÊNCIA (A Braz contrariada) – Como? não ouvi: ah! sim... mas a chuva...(Rompe a chover; Leopoldo, Augusto e Polidoro abrem os guarda-chuvas e correm a Violante)
LEOPOLDO – Minha senhora!
AUGUSTO – Excelentíssima!
POLIDORO – Minha senhora!... (Braz desata a rir)
VIOLANTE – Basta-me um guarda-chuva!
PORFÍRIO – Até mais ver! (Vai-se correndo)
CASIMIRO – Mas Clemência está se inundando! um guarda-chuva para a menina, senhores!
BRAZ (Abrindo grande guarda-chuva inglês) – Eis aqui a barraca do Braz! (A Clemência) Está vendo? um velho amigo vale mais do que três namorados. (Multidão de ambos os sexos a fugir da chuva, uns com chapéus de chuva e outros sem eles; Violante segue enfim ao braço de Leopoldo. Polidoro também a serve, inclinando para a frente o guarda-chuva; Augusto fazia o mesmo, mas Casimiro agarra-se a ele e o conquista à força. Braz a rir leva Clemência desapontada. Corrida geral)
FIM DO SEGUNDO ATO
ATO III
Sarau em casa de Violante; a grande varanda sobre o jardim que fica ao fundo; portas aos lados comunicando com o interior da casa; ao lado direito parece ficar o salão da dança e da música.
CENA I
CASIMIRO e IRENE
IRENE – Basta, senhor! não posso ouvi-lo mais; até hoje tenho tolerado lisonjas que me pareciam gracejos de um homem idoso a uma menina; nem um só instante, porém, autorizei pretensões, que, ainda mesmo sendo honestas, me causariam repugnância. Agora o senhor acaba de levar as suas impertinências até um ponto, além do qual me aviltaria com a injúria...
CASIMIRO – Calunia as minhas intenções... atenda-me, bela Irene!
IRENE – Lembrou-me a tempo a pobreza, e a triste posição da minha família... eu não devia ter entrado nesta casa... não é aqui o meu lugar... deixe-me... quero ir ver meu irmão.
CASIMIRO – É uma injustiça... protesto... não há de retirar-se... não perturbará com um desgosto esta reunião...
IRENE – Deixe-me passar... senhor...
CENA II
CASIMIRO, IRENE e VIOLANTE
CASIMIRO – Mana, reclamo a sua intervenção contra a nossa bela vizinha, que pretende retirar-se, supondo-se com dores de cabeça... (A Irene) por quem é! (A Violante) eu as deixo... mas você, Violante... prenda dª. Irene aqui.
CENA III
IRENE e VIOLANTE
VIOLANTE – Que tem, menina?
IRENE – Tenho... seu irmão o disse, minha senhora... uma forte enxaqueca... eu não devia ter vindo... é castigo...
VIOLANTE – Enxaqueca! ah! eu sei o que isso é; e por fim de contas o egoísta queria obrigá-la a ficar! enxaqueca menina, vou chamar já seu irmão para conduzi-la. Coitadinha! (Indo-se)
CENA IV
IRENE, VIOLANTE e BRAZ
BRAZ – Não vá.
VIOLANTE – Por que?
BRAZ – A enxaqueca de dª. Irene é um pretexto generoso...
IRENE – Senhor!
BRAZ – Não há murmurador que não seja curioso; nas reuniões e em toda parte o meu ofício é espreitar: nobre menina, eu ouvi tudo.
IRENE – Ah!
BRAZ – Não curve a fronte, onde julgue o diadema da honestidade; mas não há razão nem para tanto vexame, nem para tão brava revolta.
IRENE – Não há razão?
BRAZ – Madrinha, parvoíces de Casimiro! no meio de um fogo volante de juramentos de amor, o velho namorado lembrou a esta menina a humilde posição social de sua família, e a insuficiência de seus recursos, e procurou deslumbrá-la com a riqueza que ele espera partilhar com a irmã, meio milhão; explicou-se porém de modo, que dª. Irene o entendeu mal.
IRENE – Do que ouvi a um insulto é pequena a distância...
BRAZ – Está confessando que não houve insulto...
VIOLANTE – Casimiro é tão capaz de todas as asneiras, como incapaz de uma ofensa.
IRENE – Ainda assim... devo, quero retirar-me.
BRAZ – Que teimosa! escute; a senhora não pode deixar-nos; a madrinha e eu formamos aqui uma espécie de maçonaria, em que ninguém mais devia entrar; a menina porém acaba de iniciar-se à força pela dignidade com que se houve repelindo Casimiro, e agora é fato consumado, está maçônica... eis o toque... (Beija-lhe a mão)
VIOLANTE – Entendo, Braz... ela há de ficar...
IRENE – É impossível... perdão, minha senhora... eu desprezo o dono desta casa.
BRAZ – Dª. Irene, o irmão da dona desta casa tem um filho...
IRENE – Sobrinho de uma senhora riquíssima, de quem será um dos herdeiros: eu o sei.
BRAZ – Meio ou muito estouvado; mas bom e elegante rapaz, a quem uma bela e ajuizada noiva pode bem fazer assentar a cabeça.
IRENE – Sim... confesso... eu o amava... amo-o talvez ainda; mas hei de vencer este amor: o pai de Mário abriu-me os olhos.
BRAZ – Já não é pequeno favor: e agora, com os olhos abertos, que vê?
IRENE – Vejo o meu horizonte, e não quero sair dele; há certas flores que se amesquinham, e, em vez de vicejar, desabrocham como que em constrangimento, quando a riqueza e o luxo as cultivam por meios artificiais fora dos seus climas; as moças pobres devem ser assim. Cada qual no seu horizonte; casamentos desiguais são erros perigosos; procurarei um marido entre os artistas ou os operários laboriosos.
VIOLANTE – Menina, meu sobrinho pertence absolutamente ao seu horizonte, menos pelo juízo e pelo labor; já vê que nem mesmo a iguala.
IRENE – Agradecida; este amor foi para mim até hoje doida fantasia poética; se, porém, amanhã o sr. Mário me pedisse em casamento, eu o rejeitaria; perdão... quero meu pobre irmão... quero ir-me embora...
BRAZ – Vamos procurá-lo; aceita o meu braço? pode aceitá-lo, não é de artífice, nem de artista, mas é de arteiro et coetera...
IRENE – Seja o que quiser; tenha a bondade de me levar a meu irmão.
BRAZ – Iremos pelo caminho mais longo para chegar mais depressa; até já, madrinha; verei se consigo serenar este anjinho encolerizado; menina, fui amigo de seu pai... no outro tempo... (Indo-se com Irene) antes não tivesse sido, e contasse trinta anos de menos... porque em tal caso, palavra de honra, tomava a enxó de carpinteiro, ou o buril de estatuário, para viver no seu horizonte. ( Vão-se os dois)
CENA V
VIOLANTE e AUGUSTO
AUGUSTO – Enfim, minha senhora, a fortuna, desde duas horas cruel, me depara o ensejo mais ardentemente almejado.
VIOLANTE – Para que, sr. doutor?
AUGUSTO – Para assegurar a v. ex. a profunda energia do terno sentimento que me inspirou e a pureza das minhas intenções...
VIOLANTE – Eu não compreendo... e a perturbação... o vexame... seria possível, sr. doutor?
AUGUSTO – A minha maior glória fora merecê-la em casamento...
VIOLANTE – A proposição me lisonjeia... mas quando penso que vou fazer sessenta e três anos daqui a dois meses.
AUGUSTO – Diana de Poitiers era bela nessa idade e Ninon de Lenclos inspirou ardente paixão aos oitenta anos.
VIOLANTE – Por fim de contas, não conheci essas senhoras...
AUGUSTO – É natural; elas floresceram em outros séculos.
VIOLANTE – Mas aposto que não usavam, como eu, de óculos e touca; ah, sr. doutor, quando o considero tão jovem, e tão bonito, com tanto direito a ser esposo de alguma linda moça...
AUGUSTO – Não me conhece ainda; jovem, tenho já austeros costumes; aborrecem-me essas meninas, para quem a vida consiste em vaidades e loucuras; o meu belo ideal é a majestade da senhora que passou além dos limites da idade dos desvarios; excelentíssima, nós nascemos um para o outro; v. ex. é para mim o páramo da vida tranqüila, a beatificação pela serenidade; eu sou o desinteresse que assegura a dedicação, o amor que garante a felicidade, e a ciência do direito que defenderá sem ambição a sua fortuna ameaçada pelos velhacos que enchem o mundo, e dos quais sou mortal inimigo.
VIOLANTE – Eu me sinto comovida... a ventura é tão grande... tão inesperada...
AUGUSTO – (Ajoelhando-se.) – Oh! serei pois tão ditoso!... (Beijando a mão de Violante.)
VIOLANTE (Suspendendo-o.) – Tenha dó da minha reputação... e dos tormentos do meu pudor; o seu pedido exige reflexão... deixe-me pensar... agora não estou em mim... mas... aqui mesmo... nesta varanda, receberá a minha resposta às duas horas da madrugada em ponto.
AUGUSTO – Que bárbaro adiamento da bem-aventurança que me sorria...
VIOLANTE – Também a mim me custa... creia; dou-lhe a mão a beijar para consolar-nos... mas depressa... que não chegue alguém...
AUGUSTO (Beijando a mão.) – Delícia! delícia!
VIOLANTE – Aí vem minha sobrinha...
AUGUSTO – Até às duas horas. (Vai-se.)
CENA VI
VIOLANTE e CLEMÊNCIA
CLEMÊNCIA – Muito bem, titia!
VIOLANTE – Estavas me espiando?
CLEMÊNCIA – Para que? a sua aparente vitória é manifesta: há meia hora Leopoldo, que simula desdenhar-me, fez-lhe em um passeio proposição semelhante à do dr. Augusto e recebeu a mesma resposta.
VIOLANTE – Por fim de contas uma hora antes Polidoro foi o primeiro.
CLEMÊNCIA – Acredito; mas porque a titia marcou aos dois e talvez também a Polidoro o mesmo lugar e a mesma hora para a decisão?...
VIOLANTE – Para te chamar e te pedir que me aconselhasses na escolha do noivo.
CLEMÊNCIA – Estás pois resolvida a casar-se?
VIOLANTE – Que pergunta! fala a verdade: no meu caso que farias?...
CLEMÊNCIA – Não sei responder, porque ainda não tenho a sua idade.
VIOLANTE – Fica pois sabendo que para a mulher o casamento é aos dez anos um brinquedo, aos quinze sonho dourado, aos vinte empenho aflitivo, aos trinta sede devoradora, aos quarenta desesperado desejo, e aos sessenta e daí por diante mais do que paixão, desatinada fúria; faze idéia, como estou entusiasmada! Clemência, em sinal de regozijo, proponho-te a anulação da nossa aposta.
CLEMÊNCIA – Rejeito esse favor, e peço outro: rogo-lhe que me conceda uma dilação.
VIOLANTE – Dilação de que?
CLEMÊNCIA – Da escolha do seu noivo; se se julga invencível, dê-me oito dias e verá que reconquisto os meus três apaixonados.
VIOLANTE – Oito dias é impossível, morro por casar-me; tu não me concederias oito horas, eu cedo três dias à tua louca vaidade.
CLEMÊNCIA – Três dias?... aceito. Confio na sua palavra; mas trema, titia, porque perdeu as suas vantagens. Veja bem, que tenho três dias. (Vai-se.)
VIOLANTE – Eu te daria trezentos sem receio de ser vencida. ( Vai-se)
CENA VII
POLIDORO e LEOPOLDO
LEOPOLDO – O seu procedimento não é de amigo, parece antes verdadeira traição.
POLIDORO – Em primeiro lugar, amigos amigos, negócios à parte; em segundo, qual de nós pode mais queixar-se do outro?
LEOPOLDO – Eu, que me apaixonei por dª. Violante logo que lhe fui apresentado, logo que a vi, logo, logo...
POLIDORO – E se eu lhe dissesse que por ela me apaixonei antes de tê-la visto?
LEOPOLDO – É inverossímil: eis a prova da sua deslealdade comigo.
POLIDORO – Sr. Leopoldo, estamos sós; deixemo-nos de histórias; não há deslealdade, nem amor pela velha em nenhum de nós, o que ambos queremos é pescar o meio milhão.
LEOPOLDO (Batendo no ombro de Polidoro) – Maganão! como é despachado! pois sejamos amigos; embora eu não seja ambicioso, como o senhor, achando-me namorado de dª. Violante, mas respeitando os seus cálculos, proponho-lhe que abandone o seu projeto de casamento, e se eu me casar com a velha dar-lhe-ei cinco por cento do que ela teve em legado.
POLIDORO – Aceite a mesma proposição, tal e qual.
LEOPOLDO – Mas então o senhor é um homem intransigível!...
POLIDORO – Faço-lhe a mesma observação, tal e qual.
LEOPOLDO – Deste modo nunca nos entenderemos.
POLIDORO – Parece.
LEOPOLDO (Batendo-lhe no ombro.) – Maganão! sejamos amigos eim? transação aceitável; de nós dois o vencedor, o feliz, indenizará o outro com os tais cinco por cento, pagos oito dias depois do casamento com a velha; eim?
POLIDORO – Há perfeita igualdade nas condições; salvam-se as entradas, como se diz no empate do trinta e um. Convenho. Palavra de honra?
LEOPOLDO – Na praça só o escrito obriga; assinaremos um contrato bilateral feito em regra e capaz de aparecer... porque...
POLIDORO – Perfeita igualdade de condições: convenho.
LEOPOLDO – Estamos de acordo. Maganão! e como vai de esperanças? vejo bem que a velha está pendendo para o seu lado...
POLIDORO – Qual! arrepia-me quando lhe falo em amor; mas hei de teimar...
LEOPOLDO – Que diabo! então é uma fortaleza; comigo é dura e muda como um rochedo; o senhor já lhe propôs à casamento?
POLIDORO – Ora! que pergunta! e o senhor?
LEOPOLDO – Eu ainda não me animei.
POLIDORO – Tal e qual como eu!
LEOPOLDO – Maganão!... creio que é melhor irmos dançar... mas sempre amigos..
POLIDORO – Perfeita igualdade de condições: convenho. (Vão-se.)
CENA VIII
VIOLANTE e LAURIANO (Ouve-se o canto de uma senhora.)
VIOLANTE – Conhece aquela senhora que canta?...
LAURIANO – De nome e de pessoa; mas não tenho relações com a sua família.
VIOLANTE – Admira que a não felicite com a sua amizade; dizem-me que ela é disputada pelas mais escolhidas sociedades.
LAURIANO – Eu não freqüento as sociedades; por exceção vim aqui; sou muito pobre para subir até o mundo elegante, que custa muito caro.
VIOLANTE – Procure enriquecer depressa; o trabalho não basta para tanto; mas com o seu merecimento bem pode fazer casamento rico.
LAURIANO – As moças ricas não olham para mim... eu também não penso em amar inutilmente alguma delas...
VIOLANTE – Há casamentos de conveniência, em que uma senhora, ainda mesmo que não seja moça, pode enriquecer um mancebo, no seu caso.
LAURIANO – Na minha pobreza chegarei talvez a vender o meu relógio... que foi de meu pai; mas por certo que não venderei o meu coração.
VIOLANTE – Quem fala em venda de coração? não exagere o melindre. Por fim de contas figuro uma hipótese; sou velha e feia, não posso pretender nem pretendo ser amada; possuo porém avultada fortuna, e arreceio-me de parentes esbanjadores; se eu pois lhe dissesse: case comigo para aparar minha velhice com a sua amizade e com a sua paciência, como se fosse meu filho, e em troco da sua dedicação, do seu sacrifício, seja rico... brilhe... goze...
LAURIANO – Ainda bem que figurou uma hipótese, minha senhora, deixandome a liberdade de responder-não-sem a mágoa de ofender pessoalmente vossa excelência.
VIOLANTE – E se por fim de contas não fosse hipótese? se fosse deveras?...
LAURIANO – Ah! eu o sentiria profundamente...
VIOLANTE – Não se aflija por isso; o que o senhor... nobremente...repugna, há naquele salão mais de três que desejam e aspiram...
LAURIANO – Achará por certo mais de trinta, minha senhora; mas se eu fosse capaz de oferecer-lhe um conselho...
VIOLANTE – Aconselhar-me-ia...
LAURIANO – A desprezar miseráveis exploradores da fortuna alheia...
VIOLANTE – Que exaltação de conselheiro! por fim de contas explora-se de todos os modos, e eu lhe juro que por fim de contas a tia está resolvida a casar-se, e a sobrinha ficará sem a herança com que se calcula.
LAURIANO – Minha senhora.... julga-me com injustiça...
CENA IX
VIOLANTE, LAURIANO, CLEMÊNCIA, por um lado, BRAZ, por outro; BRAZ quer prevenir VIOLANTE, CLEMÊNCIA pede que não; mímica expressiva de ambos.
VIOLANTE – Sei aonde pega o carro... não é capaz de negá-lo! por fim de contas o senhor e Clemência namoram-se... Clemência deixa-se namorar por todos... e o senhor? namorava-a antes de conhecer-lhe a tia velha e rica? responda por fim de contas.
LAURIANO – Minha senhora; com efeito coube-me a honra de conhecer ao mesmo tempo a vossa excelência e a sua digna sobrinha, juntas nesta chácara; também é verdade que amo dª. Clemência, a ela não me atrevi ainda a dizê-lo; mas a vossa excelência, pois que o pergunta, declaro-o...
VIOLANTE – Por fim de contas...
LAURIANO – Mas nem jamais pensei na herança possível ou provável de dª. Clemência, nem ela até hoje me deixou exaltar com a glória do seu amor...
VIOLANTE – Pois a herança provável foi-se: eu caso-me; e o que possuo será do marido que me aturar...
LAURIANO – Tanto melhor para mim; darei expansão ao meu amor, e a Clemência, não rica, eu pobre ousarei confessar que a amo...
BRAZ – Madrinha! eu sou fiel... atenda que a escutam...
VIOLANTE (Voltando-se) – Oh!... escutavas?... pois ele não entrou na aposta.
CLEMÊNCIA (A Lauriano.) – Obrigada!... e pobre ou rica... (Sinal de contradança dentro.) é a nossa quadrilha... vamos! (Vão-se ambos.)
CENA X
VIOLANTE e BRAZ
BRAZ – Também este, madrinha?... olhe que caçava fora da coutada da aposta!
VIOLANTE – Foi muito incivil comigo; mas hei de ensiná-los.
BRAZ – É uma família de originais; não faz idéia quanto me custou reduzir dª. Irene a ficar; precisei recorrer à retórica sentimental; ela, porém, jura que não torna mais a esta casa.
VIOLANTE – Desconfio muito de tanto desinteresse e de tanta virtude; no meio da enchente da desmoralização, não é natural a erupção de dois milagres em uma só família.
BRAZ – Isso é que é natural; deviam sair iguais; porque a educação foi o molde.
VIOLANTE – Tu tens queda para estes dois...
BRAZ – Conheci-lhes o pai, que era original, como eles, e a mãe é uma santa mulher, que sabe só trabalhar e rezar. Como vão os negócios? o sarau que improvisamos dá de si?
VIOLANTE – Ferve-me na cabeça uma idéia, de que talvez te ocupe depois; hoje emprazei os três pretendentes à minha mão de esposa para receberem a minha decisão às duas horas da madrugada em ponto aqui mesmo; cedi porém a Clemência três dias de dilação...
BRAZ – Foi um erro; devia tê-los negado: Clemência tem em mente algum golpe de estado.
VIOLANTE – Foi um acerto... eu te hei de dizer porque... começa a ferver-me certa idéia na cabeça.. quanto ao meu triunfo, é coisa certíssima.
BRAZ – Madrinha, a mocidade é traquinas, e como que se entende com o diabo, uma moça esperta é uma espécie de estudante de saia...
VIOLANTE – Que pode Clemência? por fim de contas está vencida.
BRAZ – Isto é como em eleições de deputados; até o lavar dos cestos há vindima. Nas eleições de deputados às vezes saem eleitos os que não tiveram votos; eu adivinho que Clemência vai fazer alguma duplicata.
VIOLANTE – Nem que faça triplicata por fim de contas.
CENA XI
VIOLANTE, BRAZ, IRENE e MÁRIO que a segue.
IRENE – Oh! é perseguição que excede as conveniências... sr. Mário...
MÁRIO – Apelo para o juízo frio e insuspeito da titia e do senhor Braz que estão aqui... é um caso de consciência...
BRAZ – A madrinha é autoridade na matéria, e eu sirvo-lhe de acólito: pode falar.
MÁRIO – Confesso que estou um pouco fora de mim; mas isso mesmo é melhor para o caso, porque quando estou fora de mim, digo as coisas com franqueza...
BRAZ – A conclusão é que quando está dentro de si: etc...
MÁRIO – Titia, ao começar o sarau dª. Irene contradançou comigo, e mostrouse bela... bela é mal aplicado, bela sempre ela é, e agora mesmo apesar de enfadada... mostrou-se branda; suave... meiga... quero dizer, eu digo tudo... mostrou-se terna.
IRENE – Senhor!
MÁRIO – Que mal há nisso? eu estava terníssimo: adianta-se a noite... peço-lhe um passeio...
BRAZ – A quem? à noite? os namorados são inimigos da gramática.
MÁRIO – E dª. Irene diz-me que está fatigada: enfiei, mas dissimulei; quis conversar com ela; monossilabou-me dois minutos de má vontade e voltou-me logo o rosto; tive um ímpeto, mas contive-me; ainda há pouco enfim requeri-lhe uma valsa, note a titia, uma valsa, a pedra de toque, e sabe o que me respondeu? “não valso”; e isso com as pontinhas de uns lábios enregelados; recuei espavorido... veio-me a idéia que ela tivesse torcido algum de seus lindos pés...
BRAZ – E não torcera?
MÁRIO – Eis a gravidade do caso: não torcera; e logo depois a ingrata valsava, como um anjo, com um cavalheiro que me pareceu o diabo; apelo para a titia: que pensa do fato?
VIOLANTE – Que dª. Irene não quis valsar contigo, e quis valsar com outro.
MÁRIO – E daí?
VIOLANTE – Ela estava no seu direito.
MÁRIO – Não estava: eis a gravidade do caso; eu, quando estou fora de mim, digo tudo... ela não estava no seu direito; porque... ora... eu estou fora de mim e digo tudo de uma vez... porque eu a amo, ela ama-me; por conseqüência, nós nos amamos.
IRENE – Minha senhora, não consinta que o sr. Mário abuse da minha posição...
MÁRIO – Que mal há nisso? que vexame pode haver no amor mais puro? eu o digo em alta voz: amo-a! o que lhe tenho dito cem vezes ao ouvido, repito-o, para que todos ouçam: amo-a! a senhora também já me confessou que ama-me; porque então me desfeiteou e me maltrata?...
BRAZ – Eu não supunha que os estróinas chegassem a ter eloqüência; dª. Irene, Mário tem razão, vá dançar com ele...
IRENE – Não dançarei mais esta noite.
MÁRIO – Está ouvindo? mas que fiz eu para ser tratado assim?
VIOLANTE – Estás em maré de infelicidades, Mário; ainda não sabes de outra, cuja notícia já corre, e terá chegado ao conhecimento de dª. Irene; fala a verdade; esperavas um pouco que te coubesse algum dia uma parte da minha riqueza?...
MÁRIO – Sim... titia... para que mentir? tenho imaginado isso por vezes nas horas vagas.
BRAZ – Honra ao estróina!
VIOLANTE – Pois não tornes a imaginar: vou casar-me.
MÁRIO – Casar-se? na sua idade?... e a quem... perdão, eu ia dizendo uma asneira; mas a titia está doida?
VIOLANTE – Sinto que minha felicidade seja um infortúnio para meus parentes.
MÁRIO – Eu também sinto um pouco... é força dizê-lo; em todo caso rogo a Deus que seja feliz; mas... tornemos ao que mais importa...
BRAZ – Há então coisa que te importe mais agora?...
MÁRIO – Que pergunta! e o procedimento de dª. Irene?
IRENE (A Violante.) – Não sei porque supôs que a nova do seu casamento já me tivesse chegado; eu a ignorava; v. ex., porém, é incapaz de enganar-nos; com certeza vai casar-se?
VIOLANTE – Dentro de oito dias estarei casada.
IRENE – E a sua fortuna? e os seus parentes?...
VIOLANTE – A minha fortuna será para meu marido a compensação da minha velhice; os meus parentes... hão de ter paciência...
IRENE (A Mário) – Quer valsar comigo?
MÁRIO – Case-se, titia! case-se! juro que seu marido não será mais rico do que eu. (Vai-se com Irene.)
CENA XII
VIOLANTE, BRAZ e logo CLEMÊNCIA
BRAZ – Ah! quem me dera ser Mário et coetera!
VIOLANTE – Acho que é fora do natural e até uma espécie de desacato haver quem ostente não dar importância à minha riqueza!
BRAZ – Madrinha... receio que a sua cabeça hoje... esteja... et coetera...
CLEMÊNCIA – Duas horas menos cinco minutos: estou presente.
VIOLANTE – Vem muito cheia de si... por fim de contas.
BRAZ – Foi pena que não contemplasse na oposta o apaixonado que vale mais que os três multiplicados por trezentos mil.
CLEMÊNCIA – Estava injustamente condenado nas reflexões loucas do toucador.
BRAZ – Explique-se.
CLEMÊNCIA – Por meu castigo explico-me: eu tinha medo de amá-lo, porque para marido faltava-lhe com que comprar-me brilhantes.
BRAZ – E agora?
CLEMÊNCIA – Cada um tem os seus segredos, não é, titia?
CENA XIII
VIOLANTE, BRAZ, CLEMÊNCIA e AUGUSTO
AUGUSTO – Prazo dado de amor que é tarde sempre. (Vendo Clemência.) Ah!
CLEMÊNCIA – Não se incomode, sr. doutor.
AUGUSTO – No mais sério e estremecido empenho só me pode alvoroçar a dúvida do conseguimento da glória.
CLEMÊNCIA (A Braz.) – Este doutor é do direito ou do torto?...
BRAZ (A Clemência.) – Há casos em que o direito está na tortura: este é um deles.
CENA XIV
VIOLANTE, BRAZ, CLEMÊNCIA, AUGUSTO e POLIDORO
POLIDORO – Dois minutos antes da hora: o relógio do verdadeiro amor anda sempre adiantado. (A Braz.) Que faz aqui o dr. Augusto?
BRAZ (A Polidoro.) – Também estou desconfiado: temo que a madrinha o queira tomar por advogado et coetera...
VIOLANTE (A Clemência) – Este nem caso fez da tua presença: reparaste?
CLEMÊNCIA (A Violante) – Eu tenho a dilação, madrinha: lembra-se?
CENA XV
VIOLANTE, BRAZ, CLEMÊNCIA, AUGUSTO, POLIDORO e LEOPOLDO
LEOPOLDO – Duas horas: pontualidade inglesa; às ordens de vossa excelência!... (A Polidoro) Que significa a presença do dr. Augusto?
POLIDORO (A Leopoldo) – Baldo ao naipe! estou in albis.
VIOLANTE – Senhores, agradeço tanta bondade; infringindo as conveniências e os costumes da sociedade, eu os emprazei para a mesma hora e o mesmo lugar a todos três.
POLIDORO – Três!
LEOPOLDO (A Augusto) – O sr. doutor também?
AUGUSTO (A Leopoldo) – Admira-se?...
VIOLANTE – Eu procedi assim, não para ofendê-los, mas porque tive para mim que os senhores pensavam somente em zombar de uma velha...
AUGUSTO – Perdão... eu protesto...
LEOPOLDO – Minha senhora... reitero a minha proposição...
POLIDORO – E eu também com o coração nos lábios...
VIOLANTE – Era o que desejava muito ouvir diante do meu afilhado e de minta sobrinha: obrigada! agora, e isto é irrevogável, mais três dias para que os senhores reflitam, e para que eu também assente na minha escolha; daqui a três dias pois, no 27 domingo, os senhores terão a complacência de vir jantar conosco, e no fim do jantar dirigirei o último brinde ao preferido. (Confusão e desapontamento dos três.)
BRAZ – Talvez fosse melhor fazer o brinde da preferência antes do jantar.
CLEMÊNCIA – Não, titia: os dois infelizes perderiam o apetite.
VIOLANTE – Será como disse; e até domingo reservo-me o direito de absoluto recolhimento para mais tranqüila resolver sobre a escolha.
CLEMÊNCIA – Ao menos porém até o fim do sarau...
BRAZ – Ei-lo que termina a galope.
CENA XVI
VIOLANTE, BRAZ, CLEMÊNCIA, AUGUSTO, POLIDORO, LEOPOLDO, galopada geral; os pares invadem a varanda por todos os lados; LAURIANO arrebata Clemência; MÁRIO e IRENE galopam; CASIMIRO passa e volta galopando com uma jovem; ardor na dança. Augusto, Polidoro e Leopoldo cercam Violante.
BRAZ – Eu defendo a madrinha! não consinto que ela galope!...
FIM DO TERCEIRO ATO
ATO IV
Salão elegante, que abre ao fundo portas para a varanda, que se vê em parte; janelas ao lado esquerdo, abrindo para o jardim; portas ao lado direito.
CENA I
CASIMIRO e PORFÍRIO
PORFÍRIO – Isso não tem senso comum.
CASIMIRO – Digo-te que é um dever de honra, e um recurso para a felicidade da minha vida; seguindo teus conselhos, ofendi Irene, embora não ousasse deixar perceber a extrema e indigna proposição...
PORFÍRIO – Elas arrepiam-se muito no princípio, mas acabam por ceder; teima.
CASIMIRO – Não. Irene é um anjo de pureza, depois do que lhe disse, devo pedi-la em casamento; cumprirei o dever, e me farei ditoso.
PORFÍRIO – Irene tem dezoito anos; daqui a dezesseis anos terá trinta e quatro, e será ainda moça e bela; tu, então, contarás setenta, será inválido da pátria, posto fora do serviço ativo, e apesar teu contemplado na passiva.
CASIMIRO – Setenta anos!... não chego lá; quero passar em flores o resto da vida.
PORFÍRIO – Darás a Clemência madrasta dois anos mais moça.
CASIMIRO – Melhor; brincarão ambas como se fossem irmãs; elas são muito amigas; além disso... Clemência que trate de achar marido... já é tempo.
PORFÍRIO – E Mário?
CASIMIRO – Conheço-lhe o caráter; é de gênio revoltoso, mas por fim obedece-me sempre; hei de convencê-lo a entrar para o seminário de S. José, os padres lazaristas deve ganhar muito.
PORFÍRIO – Estás desarrazoando.
CASIMIRO – Nunca tive tanto juízo; olha, tudo me anda às avessas: a Acrobata adoeceu de bexigas e adeus amores! é pena: o ladrão da rapariga arrebatava! a mana Violante está doida, e quer casar; adeus herança! Eu ganho suficientemente no comércio para manter com decência e algum luxo a minha família; e até para capitalizar dois a três contos de réis por ano; mas a paixão pelo belo sexo traz-me sempre a bolsa rasa, e cria-me dificuldades. Irene é pois um sábio recurso; com os seus encantos me fará esquecer todas as Acrobatas, me consolará do casamento de Violante, e me tornará caseiro, circunspecto, grave, econômico e feliz; não achas?
PORFÍRIO – Acho que é uma grande asneira.
CENA II
CASIMIRO, PORFÍRIO, BRAZ que entra pelo fundo.
BRAZ – Qual é a asneira? são tantas! agora serão pelo menos duas.
PORFÍRIO – Que lhe importa? nós nunca podemos estar de acordo.
CASIMIRO – Ao contrário, estou certo que desta vez o Braz me apoiará.
PORFÍRIO – Entende-te pois com ele. (Indo-se)
CASIMIRO – Espera: não tarda o jantar...
PORFÍRIO – Com o Braz à mesa a indigestão é infalível. (Vai-se)
BRAZ – Efeito do molho, tens medo da mostarda et coetera.
CENA III
CASIMIRO e BRAZ
CASIMIRO – Quero os teus conselhos; prometes ouvir-me e falar-me seriamente?
BRAZ – Conforme: eu canto segundo o gênero e o caráter da música.
CASIMIRO – Estou cansado de fazer loucuras impróprias da minha idade; ontem fiz a última.
BRAZ – Veremos, qual foi a última?
CASIMIRO – Direi depois; faço-te uma confidência de irmão: eu amo Irene...
BRAZ – Ainda hoje?
CASIMIRO – Hoje mil vezes mais.
BRAZ – Ah! de que data é a tua última loucura?
CASIMIRO – De ontem; já to disse.
BRAZ – Ah! et coetera; continua.
CASIMIRO – Amo Irene, mas ontem... eis a loucura... falei-lhe de um modo de que ela justamente se ofendeu... fui insensato... grosseiro...
BRAZ – Até aí muito bem pela conclusão, e Irene?
CASIMIRO – Tratou-me com o desprezo mais esmagador.
BRAZ – E tu?
CASIMIRO – Choro o meu arrependimento, e adoro-a perdidamente; sem Irene continuarei a ser o que tenho sido; com Irene me corrigirei e serei feliz; e tendo-a... des.... des... desconsiderado um pouco... entendo que o dever por um lado e o amor pelo outro me ordenam...
BRAZ – A pedi-la em casamento et coetera.
CASIMIRO – Essas tuas et coetera me apoquentam...
BRAZ – Não faças caso; é costume: porém... essa idéia de casamento na tua idade, e no teu estado...
CASIMIRO – Esquece essas circunstâncias, e, abstração feita, aconselha-me.
BRAZ – Ah! abstração feita, aprovo unanimente.
CASIMIRO – Não zombas comigo?
BRAZ – De modo nenhum; postas de lado aquelas circunstâncias et coetera, aprova-se por força o teu projeto.
CASIMIRO – Falas sério, Braz?
BRAZ – Não vês? abstração feita...
CASIMIRO – Então... é o caso de me prestares o maior favor; Irene está arrufada... se te quisesse encarregar de falar-lhe... de convencê-la...
BRAZ – Encarrego-me, conta comigo; mas... atende, casamento de velho com menina é fazê-lo de improviso, ou falha.
CASIMIRO – Eu não me sinto velho; concordo, porém, e se fosse possível... amanhã mesmo...
BRAZ – Amanhã é impossível, Casimiro; há muita obra a fazer; primeiro alcançar a palavra de Irene, depois obter todas as dispensas na Conceição; tomo tudo a mim; se é que não estás abusando da minha simplicidade, basta que assines os papéis que logo te darei...
CASIMIRO – És meu irmão adotivo, não deves iludir-me, não podes gracejar em tão grave assunto...
BRAZ – Sou teu irmão adotivo, lembraste-o bem; farei por tua felicidade e por tua reputação mais do que esperavas em mim.
CASIMIRO – Braz! meu Braz!
BRAZ – Deixa para depois os agradecimentos; estou tomando gosto à negociação e ao serviço de que me encarregas pela mais interessante coincidência...
CASIMIRO – Que coincidência?
BRAZ – No domingo a madrinha proclama o seu casamento, e no mesmo dia poderás realizar o teu; mas... tu sabes, a alma do negócio é o segredo, e neste gênero de negócios...
CASIMIRO – Principalmente; ninguém me ouvirá palavra, confio em ti, farás tudo. Quanto à coincidência... se pudesses também convencer Violante de que não lhe está bem casar-se na sua idade... de que o ridículo, a murmuração de todos... o mal que faz a seus parentes...
BRAZ – No coração de uma velha o badalo do casamento soa mais forte que o bombo em música de timbaleiros; não há esperança: lasciate ogni speranza; a velha entra por força a porta do inferno.
CASIMIRO – Aí chega ela... eu vou passear pelo jardim... Violante me irrita com a sua mania: já brigamos hoje, é melhor sair...
CENA IV
BRAZ e VIOLANTE
VIOLANTE (A Casimiro) – Pode voltar-me as costas quantas vezes quiser! agradeço-lhe a sua ausência...
BRAZ – Madrinha!
VIOLANTE – Pois não! tenho passado o dia em uma roda-viva; que tem ele de opor-se ao meu casamento?
BRAZ – Mas... eu não a julgava com tanto talento para a zombaria! tem tocado o sublime...
VIOLANTE – Por fim de contas... não tornes a falar-me assim... tenho uma idéia a ferver-me na cabeça... mandei-te chamar por isso.
BRAZ – Desde ontem à noite que a madrinha me está logogrifando com a idéia que lhe ferve na cabeça; ainda bem que me mandou chamar: às ordens!
VIOLANTE – Como te direi, Braz? tu és quase meu filho, atende-me e aconselha-me; mas... não olhes para mim com esses olhos espantados... por fim de 30 contas meteste-me a brincar com fogo... por um lado só a idéia do meu casamento pôs em fúria Casimiro contra mim, e me deu a mostra do pano, e do que devo esperar destes meus parentes; por outro lado, três moços bonitos, amáveis e cada qual mais extremoso, se oferecem a proteger e aditar meus últimos anos.
BRAZ – Madrinha... o que está dizendo... por quem é... uma senhora de tanto juízo... (Mudando de tom) bravo, madrinha! admirável!... até a mim própria iludia! representa perfeitamente!
VIOLANTE – Mas não há ilusão... é a idéia que me está fervendo na cabeça...
BRAZ – Estupendo! é de arrebatar! bravo, madrinha!
VIOLANTE – Pior! queres fazer-me perder a paciência? principias a faltar-me ao respeito!..
BRAZ – Como?... pois não é graça, madrinha?
VIOLANTE – Meu Braz, se eu não me casar, que contarei deste mundo no outro? e por fim de contas quem pode assegurar que eu não seja amada por meu marido? e ainda não amada, ele pelo menos fingirá amar-me, e há de cercar-me de cuidados para que eu lhe deixe toda minha fortuna: esse fingimento me fará feliz...
BRAZ – Et coetera... et coetera...
VIOLANTE – Não entendo.
BRAZ – Naturalmente: et coetera é grego; mas tem sua eloqüência nestes casos.
VIOLANTE – Eu não pensava nestas coisas; tu me expusestes ao fogo... criaste a hipótese... fizeste-me desejar a realidade, oferencendo-ma ou mostrando-ma de perto!... Braz, a gente não é de ferro...
BRAZ – Ah, madrinha! a serpente não pensou que houvesse tentação para a Eva de sessenta e dois anos! sou o maior tolo do Brasil!
VIOLANTE – Reprovas também?...
BRAZ – Não digo isso... mas reflita por algumas semanas antes de se decidir... madrinha... a sua idade...
VIOLANTE – Não vem ao caso; com os anos que tenho, achei de uma vez três pretendentes à minha mão; parte deste princípio e raciocina.
BRAZ – Partindo desse princípio, não há que raciocinar: é casar et coetera.
VIOLANTE – Pretendes meter-me à bulha? BRAZ – Qual! tenho visto disparates maiores; exemplo: o do... o da... o de... não acho agora exemplo; mas sem dúvida haverá muitos; a madrinha quer casar? aprovo; conte comigo em tudo, por tudo e para tudo.
VIOLANTE – Eu contava tanto com os teus epigramas como com a tua dedicação. Agora quero de ti um favor: preciso que até amanhã à noite, me tragas informações miúdas e completas sobre os meus três pretendentes.
BRAZ – Honradíssimos e desinteressadíssimos jovens: iguaizinhos todos três.
VIOLANTE – A tua voz tem um tom de ironia...
BRAZ – Não, senhora; apenas falei em grifo, como diz certo amigo; vá descansar, madrinha; amanhã lhe trarei o relatório das virtudes e das hipotéticas fraquezas daqueles três primores... serei leal, como sempre; vá descansar.
VIOLANTE – Sim, e preciso bem; desde ontem que não durmo... sinto uns abalos no coração...
BRAZ – Vá dormir sossegada; o seu casamento se fará et coetera... et coetera.
VIOLANTE – Tu és trigo sem joio. (Vai-se)
CENA V
BRAZ e CLEMÊNCIA
BRAZ (Acena para dentro chamando) – Psiu! psiu!
CLEMÊNCIA (Dando-lhe a mão) – Como passou?
BRAZ – Melhor do que merecia; falemos com algum cuidado... (Observando)
CLEMÊNCIA – Que há?
BRAZ – Virei de bordo e venho bater bandeiras; abandonei o partido da madrinha e passo-me para o seu; não se admire, porque isto é trivial.
CLEMÊNCIA – Na minha questão com a titia dispenso absolutamente o seu apoio.
BRAZ – Dê forte, que bem o mereço; mas o caso tornou-se grave; na sua família manifestou-se a loucura contagiosa; é para fazer medo! não me espantaria se hoje ou amanhã a senhora se dirigisse à minha casa para pedir-me em casamento.
CLEMÊNCIA – Tranqüilize-se.
BRAZ – Não posso, porque esse é o caráter da epidemia; escute, guarde segredo e auxilie-me em seu próprio interesse; seu pai incumbiu-me de pedir para ele a menina Irene em casamento.
CLEMÊNCIA – É possível?!!! vou contar a Mário.
BRAZ – Deitaria tudo a perder.
CLEMÊNCIA – Meu pai então está doido?
BRAZ – Se a moléstia é reinante!
CLEMÊNCIA – Tem razão... gosto de Irene; mas se meu pai ma desse por madrasta... sim... era caso de correr a sua casa a pedi-lo em casamento... é demais!
BRAZ - Não se encolerize; ouça o que mais me ataranta: a madrinha, que instigada por mim fizera a famosa aposta com o único fim de castigar um pouco a sua vaidade, e de ensiná-la a conhecer a torpeza de certos homens, tomou gosto ao brinquedo e quer deveras casar-se.
CLEMÊNCIA – O senhor está gracejando.
BRAZ – O que eu estou é em brasas.
CLEMÊNCIA – Não... a titia diverte-se com os três ambiciosos, e dá-me boa lição...
BRAZ – Falo-lhe como amigo, e membro adotivo da sua família...
CLEMÊNCIA – Mas a titia quer fazer mal a todos nós, expondo-se a muito maior mal?... isso me aflige realmente.
BRAZ – Eis aí pois dois casos de loucura; sou, por felicidade, o confidente da madrinha, e o corretor da negociação casamenteira de Casimiro, mas preciso de auxiliares.
CLEMÊNCIA – Que posso eu fazer?
BRAZ – Muito, conforme as circunstâncias; na questão paterna há de facilitarme hoje mesmo uma conferência com Irene; mas nem de leve indiciará que a não quer por madrasta.
CLEMÊNCIA – Convém prevenir...
BRAZ – Deseja mais um doido na história? a senhora é homeopata, espera curar pelos semelhantes.
CLEMÊNCIA – Farei o que me ordenar.
BRAZ – Quanto à madrinha, estou ainda a ver navios; velha com esperança de casamento é mais teimosa que um galo da Índia a brigar; não sei que faça; a senhora, porém, descobriu um recurso, que me pode servir.
CLEMÊNCIA – Qual! estou aniquilada...
BRAZ – Deixe-se de fingimentos; pediu uma dilatação de três dias; para que? preciso saber tudo.
CLEMÊNCIA – Apelação de condenada; mme. Dubarry com o pescoço na guilhotina dizia ainda ao algoz: “un petit moment, monsieur le baourreau!”
BRAZ – Desconfia de mim, não é?
CLEMÊNCIA – Desconfio: só tenho um recurso, espere por ele, e vá laborando, como puder, contra a loucura da titia, se é que não veio armar-me uma cilada.
BRAZ – Não tenho direito de protestar... ao menos porém trabalhemos de acordo; eu creio... mas o meu ouvido é ótimo (Baixo) são pisadas de velha; ela pode dispor de si! se fosse pobre, vocês haviam de empurrá-la! (Baixo) não faça caso: (Alto) esta oposição é pelo receio de perder a herança, com que calculavam! (Baixo) ataqueme de rijo: (Alto) a madrinha não precisa de tutores! (Baixo) proteste.
CLEMÊNCIA – Pois que se case... sentirá as conseqüências...
BRAZ – Et coetera.
CENA VI
BRAZ, CLEMÊNCIA e VIOLANTE, que viera chegando
VIOLANTE – A senhora também pretende por-me impedimentos?
CLEMÊNCIA – Não, senhora; case-se, e há de ver o que a espera; por mim já tive o que desejava, a dilação de três dias.
VIOLANTE – Que me importa a dilação? agora o caso é sério e nele só o Braz goza a minha plena confiança.
CLEMÊNCIA – Mas eu não prescindo da aposta.
VIOLANTE – Já ganhei-a, e vou deixar-te para tua consolação dois infelizes, como desprezados despojos do meu triunfo.
BRAZ (A Clemência) – Caráter da loucura epidêmica; não apuro as coisas.(Alto) É o que eu dizia: a madrinha vencerá, casará, e, celebrado o casamento, haverá festa, banquete, glória, et coetera, et coetera.
VIOLANTE – Ah, meu Braz!
CENA VII
BRAZ, CLEMÊNCIA, VIOLANTE e MÁRIO
MÁRIO – Revolução a consumar-se!
CLEMÊNCIA – Que temos?
MÁRIO – Sou outro, porque vou ser outro; decididamente quebrei com o meu passado: quebrei e era de razão; não era? tenho vergonha do que fui...
CLEMÊNCIA – Mário, tu nos assustas, que é que foste?
MÁRIO – Um vadio, o escândalo da sociedade, um traste sem préstimo; tenho vergonha... não é de razão? o que me abriu os olhos foi o sopro de um anjo.
BRAZ – Explica-te, relâmpago!
MÁRIO – Há uma hora que Irene me disse: “Juras amar-me e que me queres por esposa: em que te ocupas? qual o trabalho de que tirarás o pão para me sustentar?...” Olhei ao redor de mim e dentro de mim, por fora e por dentro achei-me no vácuo! Palavra de honra, tenho sido um vadio descomunal! não tenho? se são capazes digam em que me ocupo... digam... digam!...
BRAZ – Em trocar as pernas: é ocupação de muitos outros, como tu.
MÁRIO – Não as trocarei mais: Irene fez-me ver a verdade com a luz do amor.
BRAZ – Pois é raro que essa luz mostre assim as coisas.
MÁRIO – Virtude da fonte lucífera; as Irene também são raras o caso é que consumou-se a revolução; sou outro, porque vou ser outro, e não vendo hoje mesmo Hipogrifo, porque Irene mo proibiu.
BRAZ – Nisso ela errou: conservando Hipogrifo, ainda podes desencabrestar.
MÁRIO – Não tenha medo: quero estabelecer-me, trabalhar e enriquecer.
VIOLANTE – A resolução é ótima: que calculas ser?...
MÁRIO – Se eu pudesse, seria banqueiro; mas falta-me a matéria prima; não tenho riqueza... não tenho fundos...
BRAZ – Que asneira, Mário! para ser banqueiro basta o dinheiro dos outros.
MÁRIO – Quero um mister decente: arranjam-mo? vejam se mo arranjam, e cuidado comigo, que adoro os extremos; olhem, que sou capaz de ir quebrar pedras, ou de mostrar-me puxando uma carroça d’água.
BRAZ – E não te vexarias?
MÁRIO – Eu, vexar-me? chapéu desabado à cabeça, blusa a operário francês, calças grossas a ilhéu, sapatões ferrados a italiano, puxando o burro preso à carroça, erguerei orgulhoso a fronte ao passar diante das janelas de Irene, porque, vendo-me assim, Irene dirá: “É por mim!”
VIOLANTE – E nós? e o nosso vexame?
MÁRIO – Pois arranjem-me um mister mais decente: eu declaro que estou decidido, sou outro, porque vou ser outro, consumou-se a revolução.
BRAZ – Mas onde tens o capital para comprar dois burros pelo menos, a carroça e os barris?...
VIOLANTE – Para isso não te empresto dinheiro, não contes comigo por fim de contas.
MÁRIO – Nem eu preciso, vendo Hipogrifo: dois contos de reis... é querer.
CLEMÊNCIA – Nunca serás aguadeiro... seria um opróbrio...
MÁRIO – Opróbrio é ser vadio; arranjem-me ocupação mais decente e mais rendosa... concedo oito dias às vaidades de família...
CLEMÊNCIA – Papai trata de obter para ti um emprego público.
MÁRIO – Rejeito in limine, por duas razões: primeira, quero estar em oposição muito independente a todos os ministérios; segunda, um aguadeiro ganha mais do que os empregados públicos de escala superior.
BRAZ – Abaixo o aguadeiro! ofereço-te a administração duma pequena fazenda de café com cinqüenta escravos sob a condição de metade nos lucros.
CLEMÊNCIA – Excelente!
VIOLANTE – Que fazenda é essa, Braz? suponho que não será a minha.
MÁRIO – Também não aceito.
BRAZ – Então és incontestável.
MÁRIO – Não caio nessa; fora da cidade só casado com Irene.
VOZES (Dentro) – Mário!... Mário! Mário!...
CENA VIII
BRAZ, CLEMÊNCIA, VIOLANTE, MÁRIO e CASIMIRO
CASIMIRO – Mário, aí estão à porta dez ou doze cavaleiros teus amigos... bradam por ti... não ouves?
VOZES (Dentro) – Mário! Mário!
MÁRIO – Passeio oficial de sportemen... parece extraordinário e singular em S. Cristóvão... (Luta interior) tentação diabólica... eu tinha dado a minha palavra!
VOZES (Dentro) – Mário! Mário!
MÁRIO – Hipogrifo a brilhar... vou... não vou... (Vai e volta)
CASIMIRO – Há de ir... deves cumprir a tua palavra...
MÁRIO – Sou outro, porque vou ser outro... consumou-se a revolução... não vou!
VOZES (Dentro: batem com os açoites nas janelas) – Mário! mandrião! vem!
MÁRIO (Correndo à janela) – Relache par indisposition: Hipogrifo constipou-se.
FIM DO QUARTO ATO
ATO V
A mesma sala do ato quarto
CENA I
CLEMÊNCIA e BRAZ, que chega
BRAZ (Grande cumprimento) – É de mestra!... agora, aconteça o que acontecer, não vá pedir-me em casamento; porque se arrisca à negativa certa.
CLEMÊNCIA – Tão feia ou má sou eu? BRAZ – Nem feia, nem má; é porém um demoninho de arteira.
CLEMÊNCIA – Veremos nos resultados do artifício. Aqui todos guardam segredo: lembre-se que anteontem se declarou do meu partido...
BRAZ – Bati bandeiras aos seus pés, estou rendido, hoje mil vezes mais.
CLEMÊNCIA – Eu o esperava ansiosa para assegurar-me da sua discrição...
BRAZ – Beijo-lhe as mãozinhas pela dúvida.
CLEMÊNCIA – Agora... desculpe-me... devo completar o meu toilette...
BRAZ – Bata as asas e voa já ao paraíso do espelho. (Vai-se Clemência)
CENA II
BRAZ e CASIMIRO
CASIMIRO – Braz... Braz... então?... falaste-lhe de novo?...
BRAZ – Tranqüiliza-te, Casimiro! estás que pareces desvairado! para mim são favas contadas; anteontem falei-lhe pela primeira vez e sabes já que houve trovoada e chuva; isto é, rugidos de cólera e lágrimas de dor...
CASIMIRO – Coitadinha!
BRAZ – Ontem de novo ataquei a fortaleza, e, como te disse, Irene defendeu-se com reticências... monossílabos... e enfim com um “saberá mais tarde” assobiado a tremer, que me fez ficar sabendo mais cedo...
CASIMIRO – Confia talvez demais na minha felicidade...
BRAZ – Tão seguro estou de conseguir o meu fim, que, obtida a permissão da mãe e do irmão de Irene, já alcancei todas as dispensas admissíveis para o casamento... em poucos dias teremos a boda.
CASIMIRO – Excelente amigo!... mas hoje?... tornaste a falar-lhe?...
BRAZ – Não há duas horas; Irene é como todas as moças; está morrendo por casar; mas faz-se de boa para ser muito rogada; insisti na história, e ela sorriu-se vaidosa... corou... vês?... foi como se começasse dizendo; “eu...” e pontinhos: depois suspirou... vês?... foi como se acabasse dizendo: “quero” com ponto final et coetera.
CASIMIRO – Mas... como, suspirou... isso já e muito, e todavia... pode não ser coisa alguma.
BRAZ – Enganas-te: isso é sempre alguma coisa. Irene caiu no laço; juro-te que desde dois dias o seu olhar, a sua fisionomia, os seus enleios, a sua respiração muitas vezes comprimida, estão denunciando noiva.
CASIMIRO – É verdade que ela ontem falou-me com uma perturbação...
BRAZ – Queres mais claro?
CASIMIRO – Eu queria... o sim decisivo...
BRAZ – Também eu quis, pedi-o, e exigi-o ainda há pouco.
CASIMIRO – E ela?...
BRAZ – Quis falar... hesitou... apertou-me a mão, feliz Casimiro! e enfim, depois de muita confusão... rosas de pejo nas faces... agitação palpitante do seio, et coetera, afortunado Casimiro! ela murmurou a custo: “Poupe-me ainda... farei por chegar um pouco cedo para o banquete de dª. Violante... e lá... se nos acharmos sós... o senhor me ouvirá... e ficará contente de mim.”
CASIMIRO – Oh! ela disse isso? que tu ficarias contente dela?... então é certa a minha dita, Braz! é a conseqüência...
BRAZ – Lógica, está claríssimo: o contrário fora absurdo et coetera; e por essa razão corri a esperá-la aqui; entendi-me com o irmão, que as acompanhará até a escada da varanda, e voltará depois.
CASIMIRO – Ah, meu Braz!
BRAZ – Traduzo ou interpreto: desejas ouvir a minha conferência com Irene.
CASIMIRO – Se fosse possível...
BRAZ – Vaidoso! vaidoso! é uma traição que a tua noiva me agradecerá; quando ela chegar, entra no teu gabinete, e da porta entreaberta ouvirás tudo. Feliz Casimiro! eu ponho-me de sentinela. (Na janela)
CASIMIRO – Muito padece quem ama!
BRAZ (A janela) – Com efeito um amor assim fora de tempo deve andar aos tombos pelas rugas do coração; mas a madrinha, que é oito anos mais velha do que nós, mostrou-te o caminho do casamento...
CASIMIRO – Que doida! que velha ridícula!
BRAZ – Desta vez é a madrinha que traz nos olhos a trave; mas o argueiro que está nos teus é de um tamanho colossal...
CASIMIRO – Eu sinto verdadeiro amor...
BRAZ – Também a madrinha diz que o sente; é questão de mais ou menos cabelos brancos nos dois amores... mas... Irene chega... como vem formosa! afortunado Casimiro! ao gabinete, perverso.
CASIMIRO (Entrando) – Conversa de modo que eu ouça distintamente.
BRAZ – Podes contar com isso: conversarei fortíssimo.
CENA III
BRAZ, IRENE e CASIMIRO no gabinete
BRAZ – Minha senhora, dou parabéns à minha fortuna, pois que a madrinha e dª. Clemência ainda estão aprimorando os seus toilettes, e Casimiro e Mário provavelmente mostrando os seus.
IRENE – A fortuna de que fala é determinada pelo cruel dever de dar-lhe contas de mim ... compreendo que me cumpre falar, explicar-me, responder-lhe... mas custame... o vexame atormenta-me...
BRAZ – Na minha qualidade de homem é evidente que tenho menos vergonha e rompo a discussão, começando pelo fim, o que é mais em regra. Casimiro a adora; a sua mão de esposa vai aditar-me... uma só palavra sua resumirá mil discursos; diga – sim – , e está acabada não, mas principiada a história, e que história? et coetera.
IRENE – Devo ser franca: o sr. Casimiro está adiantado em anos e eu sou quase menina; poderia sentir por ele somente amor filial; como lhe consagrarei amor de noiva? o nosso casamento seria muito desigual, e ainda isso é o menos.
BRAZ – Caio das alturas: pois há mais?... tenha a bondade de chegar-se para mim, que sou um pouco surdo (Perto do gabinete) pois há mais?
IRENE – Há: disse que ele é demasiado velho para uma noiva de dezoito anos... tem três idades minhas.
BRAZ – Como?... esta surdez martiriza-me...
IRENE (Mais alto) – O sr. Casimiro tem três idades minhas.
BRAZ – Ah! isso é o menos: o que é o mais?...
IRENE – Pois que é necessário dizê-lo... confesso-o... eu já sou amada... e... amo...
BRAZ – Como?...
IRENE (Mais alto) – Já sou ... e amo...
BRAZ – Ah! essa circunstância... bilateral é bilateralmente grave.
IRENE – E ainda mais...
BRAZ – Mais?... então é o infinito na desgraça de Casimiro... estou caído das alturas et coetera!
IRENE – Não é o infinito, mas é o impossível moral e absoluto...
BRAZ – Que ilusão a minha! e eu que contava... mas então...
IRENE – O homem por quem sou amada, aquele que amo... sr. Braz...
BRAZ – Querem ver que sou eu...
IRENE – É... Mário... o filho do sr. Casimiro...
CENA IV
BRAZ, IRENE, CASIMIRO no gabinete e MÁRIO, no fundo
BRAZ – Como? esta surdez é o diabo.
IRENE (Alto) – O homem por quem sou amada... aquele que amo... é Mário...
BRAZ – Mário? a atrapalhação é séria; porém...Mário é um estróina.
IRENE – Tem o mais nobre coração... é jovem e belo; eu o amo...o seu defeito era a ociosidade... ama-me porém ternamente... (Abre-se a porta do gabinete; Casimiro com os traços decompostos; Mário ao fundo entusiasmado) eu conseguirei corrigi-la... e pelo encanto... pela pureza e santidade do nosso amor levá-lo a trabalhar, a ser útil a si, à sociedade, e a esquecer entretenimentos vãos. (Casimiro sai arrebatado ao mesmo tempo que Mário avança)
MÁRIO – Prova! acabo de vender Hipogrifo. (Confusão de Casimiro)
IRENE – Ah! meu Deus!
BRAZ (A Casimiro) – Contém-te, Mário chegou apenas a poucos momentos, e nada ouviu sobre tuas loucas pretensões... é indispensável que ele as ignore sempre.
CASIMIRO (A Braz) – Mas como está desmoralizada a mocidade! (A Irene) Minha senhora.
IRENE – Sr... Casimiro...
CASIMIRO – Peço perdão...entrei precipitado...
MÁRIO – Foi a mais feliz surpresa, meu pai.
CASIMIRO – Impertinente! sempre desassisado...
MÁRIO – Porque vendi Hipogrifo? dois contos para raiz de fortuna abençoada pelo amor de um anjo.
BRAZ – Adorável estróina, Deus te abençoe.
IRENE – Eu me confundo... e preferiria ir ver as senhoras.
CASIMIRO (A Mário) – Não compreendes que és inconveniente?
MÁRIO – Pois há mal no que disse?... meu pai, amo dª. Irene, ela ama-me; logo nos amamos; eu era um vadio, agora vou trabalhar; prova de juízo, vendo Hipogrifo; o que falta só é que meu pai aprove o que falta.
CASIMIRO (A Braz) – Que lição cruel, malvado!
BRAZ (A Casimiro) – Deixa-te de tingir os cabelos; resigna-te à reforma de namorado et coetera, e sabe ser feliz pela felicidade de teus filhos.
CENA V
BRAZ, CASIMIRO, IRENE, MÁRIO, VIOLANTE e CLEMÊNCIA
VIOLANTE – Mil agradecimentos, dª. Irene, por ter vindo honrar o nosso jantar, que será o do meu noivado.
IRENE – Renovo-lhe os meus parabéns, minha senhora; e o seu noivado quando será, dª. Clemência?! espero ser convidada.
CLEMÊNCIA – Fiz dois votos: o primeiro para que nós duas tenhamos as nossas bodas no mesmo dia; o segundo, para que a titia assista a elas ainda solteira e sem noivo.
VIOLANTE – Esta pobre invejosa não passa de praguenta amalucada: a minha dita lhe tira o sono e faz delirar; em parte devo desculpá-la: o meu casamento, dª. Irene, foi resolvido pelas linhas tortas com que Deus costuma escrever direito; principiou por brinquedo de aposta, e vai acabar em coisa séria. Ah! se eu lhe contasse toda a história... mas... bem vê que por fim de contas há no nosso sexo certas revoltas do pudor...
IRENE – Oh!... sem dúvida...
BRAZ – E com todas essas revoltas a madrinha casa-se por fim de contas et coetera!
CLEMÊNCIA – Quem sabe? eu hei de ver para crer...
VIOLANTE – O que pretendes é perturbar-me o espírito com temores vãos... ficaste vencida!
CLEMÊNCIA – Confesso; mas espero ficar sem vencedora. (Impaciência de Violante) titia, a que horas devem chegar os seus três pretendentes?
VIOLANTE – Às quatro horas precisas (Consulta o relógio) são apenas três... ainda tenho de esperar um século!
CLEMÊNCIA – E em uma hora transforma-se o mundo. (A Braz) Estou com medo...
BRAZ (A Clemência) – E eu não; confio muito nas misérias humanas.
CENA VI
BRAZ, CASIMIRO, IRENE, MÁRIO, CLEMÊNCIA, VIOLANTE e um criado, que apresenta em uma salva de prata uma carta a Violante e retira-se
VIOLANTE (A Clemência.) – Vê de quem é essa carta e o que contém.
CLEMÊNCIA (Abre e lê.) – Oh!
CASIMIRO – Que é?
CLEMÊNCIA (Lendo.) – “Minha senhora: cedendo, a meu pesar, a circunstâncias imperiosas, sou obrigado a desistir das minhas pretensões à mão veneranda de v. exa.; se, porém, o destino não me permite ser esposo, serei ao menos sempre de v. exa. o mais humilde criado... dr. Augusto de Melo.”
CASIMIRO – E esta?
VIOLANTE – É falso! Como não sei ler, a maldita invejosa abusa da minha ignorância. (Toma a carta e dá-a a Braz.) Braz, lê tu esta carta por fim de contas.
BRAZ (Depois de ler para si.) – Tal e qual, madrinha! E a letra e a firma são do dr. Augusto. Custa a crer... mas este... foi-se! et coetera.
VIOLANTE (Dissimulando mal.) – Por fim de contas, era esse o que menos me agradava dos três.
CLEMÊNCIA – Ah, titia!...
VIOLANTE (Com força.) – Ainda tenho dois.
CENA VII
BRAZ, CASIMIRO, IRENE, MÁRIO, CLEMÊNCIA, VIOLANTE e o criado, que apresenta segunda carta a Violante e vai-se.
MÁRIO – Este criado tem cara de correio de más novas.
VIOLANTE (Confusa dá a carta a Braz.) – Lê tu, meu Braz; lê porém direito...
BRAZ (Abre a carta e lê.) – Et coetera!!! “Excelentíssima: tendo empregado três dias em refletir, como v. exa. me ordenou, cheguei à triste convicção de que me cumpre declarar com o mais profundo respeito e dor acerba que dou o dito por não dito, e sou de v. exa. o servo mais dedicado. – Leopoldo Pereira.” Li muito direito: a madrinha quer arquivar a carta? (Apresentando-a.)
VIOLANTE – Deita fora esse papel sujo!
CLEMÊNCIA – A titia deve ter paciência, como eu tive...
VIOLANTE – Não me fales!... ainda me ficou o melhor dos três... por fim de contas o mesmo que eu estava resolvida a preferir... (Senta-se agitada e abana-se forte.)
IRENE – Mas de que modo se explica semelhante procedimento?
VIOLANTE – Juro que são intrigas desta pombinha sem fel! (Mostra Clemência e abana-se muito.) Por fim de contas está fazendo muito calor!...
CENA VIII
BRAZ, CASIMIRO, IRENE, MÁRIO, CLEMÊNCIA, VIOLANTE e o criado, que apresenta terceira carta a Violante e vai-se.
CASIMIRO – Terceira carta! Será possível que...
VIOLANTE (Vai dar a carta a Braz, e arrepende-se; dá-a a Irene.) – Dª. Irene, a senhora é uma santa...
MÁRIO – Apoiado, titia!
VIOLANTE – Uma santa menina que não me enganará: leia, leia a senhora.
IRENE (Abre a carta e lê para si.) – Ah! É demais! Não ouso...
VIOLANTE – Leia, ainda que seja a minha sentença de morte.
IRENE (Lendo.) – “Excelentíssima senhora: tenho a honra de participar a v. exa. que ontem fiz-me examinar por dois médicos, os quais me declararam com hipertrofia do coração, e condenado ao celibato para viver mais alguns anos que consagrarei ao amor platônico do belo sexo; assim, pois, coagido por força maior e maldizendo da minha hipertrofia, peço mil perdões a v. exa....
VIOLANTE (Arrebata e rasga a carta.) – Basta! Muito obrigada pelo seu favor: por fim de contas... (A Clemência.) foste tu que os endemoninhaste... mas por fim de contas eles são três demônios.
BRAZ – Madrinha, tudo que Deus faz é por melhor; veja que de três harpias escapou; se se casasse com algum deles sabe o que teria de sofrer?...
VIOLANTE (Encolerizada,) – O que?... O que?... O que?...
BRAZ – Teria de sofrer... et coetera, et coetera, madrinha.
CASIMIRO – E ficamos sem noivo para o banquete do noivado!
BRAZ – Menos essa... já temos um... (Mostrando Mário.) e eis aí outro.
CENA IX
BRAZ, CASIMIRO, IRENE, MÁRIO, CLEMÊNCIA, VIOLANTE, LAURIANO e, logo depois, PORFÍRIO.
LAURIANO – Minhas senhoras! Meus senhores! (Cumprimento.)
IRENE – Vens radioso de alegria...
LAURIANO – Felicitem-me! Acabo de saber que com ótima aprovação nos exames de suficiência, que fiz, estou habilitado para ensinar diversas matérias de instrução secundária e tenho já prévios ajustes para lecionar em quatro colégios: oito horas de trabalho por dia; mas é quase riqueza, e seria riqueza completa (olhando Casimiro e Clemência.) se me fosse dado reparti-la com a escolhida do meu coração...
BRAZ – Et coetera, Casimiro, et coetera! Isso é claríssimo, e cai do céu; não cai do céu dª. Clemência?...
PORFÍRIO (Arrebatado.) – Que é dele?... Que é dele?... Quero abraçá-lo.
CASIMIRO – Quem?
PORFÍRIO – O capitão Jorge de Souza? Que é dele?...
BRAZ (A Clemência.) – Temo-la travada!
CLEMÊNCIA (A Braz.) – Agora pouco importa.
PORFÍRIO – Mas que é do capitão?
CASIMIRO – Estás doido?
VIOLANTE – Que capitão, senhor?... Não sabe que o meu infeliz primo Jorge morreu há dois anos em combate no Paraguai?
PORFÍRIO – Mas ressuscitou: no Paraguai muitas vezes se ressuscita; aqui está a gazetilha do Jornal do Commercio de hoje... (Mostra o jornal.)
VIOLANTE – Ressuscitou! Meu primo!...
PORFÍRIO – Estão cambando?... A gazetilha diz que a notícia é dada pela família; aqui está (Lendo.): “O capitão Jorge de Souza, que todos julgavam morto, escapando ao inimigo que o tinha prisioneiro, apresentou-se aos seus bravos companheiros no mesmo dia da vitória do Campo Largo e chegou ontem a esta corte no transporte de guerra”
VIOLANTE – Meu primo! Meu primo!
PORFÍRIO – Mas é de pasmar! Não os entendo... a gazetilha fala na senhora...
VIOLANTE – Em mim?... Essa é boa! Eu em letra redonda por fim de contas.
PORFÍRIO – Aqui está! Diz, que conforme condição expressa do testamento de seu tio e padrinho, a senhora, sua única e universal herdeira, estava obrigada a entregar toda a herança ao filho, o capitão Jorge de Souza, se em qualquer tempo ele aparecesse vivo...
VIOLANTE – Isso é uma grande mentira; não há tal condição no testamento!
PORFÍRIO – Vamos a melhor!... A gazetilha acrescenta que a senhora ontem mesmo apressou-se a fazer plena entrega da imensa fortuna que herdara, ficando em completa pobreza, mas abençoando generosa a chegada de seu primo. (Violante mede Clemência de alto abaixo.) Explique-me esta embrulhada...
CLEMÊNCIA (Abaixando os olhos.) – A titia perdoe... se a gazetilha não está bem redigida... para outra vez escreverei melhor.
PORFÍRIO – Eu fico às escuras!... Que quer dizer isto?
BRAZ – Foi uma aposta que acabou sem vencedora; pois o vencedor foi somente o dinheiro, que conquistou três miseráveis, logo depois fugidos em debandada ao anúncio da pobreza.
PORFÍRIO – Fiquei na mesma; o Braz quando não diz et coetera é ininteligível.
VIOLANTE (A Braz.) – Meu Braz, vexame até aqui! Por fim de contas não sei onde me esconda!
BRAZ (A Violante.) – Espere, que eu a salvo já. (Alto.) Basta de enganar estes pobres meninos: Clemência e Lauriano, Irene e Mário, tendes sido desde alguns dias objetos do nosso inocente divertimento; aqui não há velha noiva ridícula, nem velho com pretensões anacrônicas: ajoelhai-vos diante da tia benfeitora e do pai extremoso!
MÁRIO e CLEMÊNCIA – Como?... Então?...
BRAZ – Mário, eis as dispensas necessárias para que no fim de oito dias estejas casado com dª. Irene; a assinatura de Casimiro nestes papéis esclarece tudo.
MÁRIO – Meu bom pai!... (Recebe os papéis, e vai com Irene beijar a mão de Casimiro.)
CASIMIRO (A Braz.) – Obrigado, Braz, obrigado. (Aperta-lhe a mão.)
BRAZ – Dª. Clemência, a madrinha nunca pensou em casar-se, quer viver, e vive para seus parentes, e ontem ordenou-me que tivesse pronto para cada um de seus dois sobrinhos um dote de cinqüenta contos de réis.
CLEMÊNCIA – Titia... escuse-me as travessuras... sempre a amei... (Beija-lhe a mão.)
MÁRIO – Com o produto da venda de Hipogrifo, titia, são cinqüenta e dois contos de réis para a minha Irene; não quero porém desigualdades; cedo um conto de réis a Clemência, e beijo-lhe a mão... vem beijá-la também, Irene!...
VIOLANTE (À sobrinha e Irene, que lhe beijam a mão.) – Me deixem!
BRAZ (A Violante.) – Cem contos de réis pela lição, madrinha... e negócio da China; aceite e cale-se.
VIOLANTE (A Braz.) – O que eu merecia era ir para o hospício de Pedro II; aceito e calo-me. (Alto.) E por fim de contas...
BRAZ – Et coetera... et coetera...
Joaquim Manuel de Macedo
Carlos Cunha Arte & Produção Visual
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