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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Aventuras de João-Pequenino / IRMÃOS GRIMM
Aventuras de João-Pequenino / IRMÃOS GRIMM

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Aventuras de João-Pequenino

 

 

No tempo em que Deus andava pelo mundo, estava um pobre lavrador aquecendo-se á lareira emquanto se lastimava á mulher, que perto d'elle fiava, desgostoso por não ser contemplado com filhos.

 

—Que socego—accrescentou—vae n'esta casa emquanto que em outras então tanto barulho ha causado pela alegria e pelos risos da pequenada!

 

—Tens razão—appoiou a mulher, suspirando.—Oxalá tivéssemos um só, embora tão pequenino que quasi se não visse. Isso me bastaria para nos alegrar e querer-lhe iamos de todo o coração.

 

A boa mulher, alguns dias passados, principiou a andar doente, e ao cabo de sete mezes foi mãe d'um menino tão bem formado que se disséra de todo o tempo, mas muito pequenino. Ao vêl-o, a mãe não se conteve que não dissesse:

 

—É exactamente como nós o haviamos desejado; não deixa, apezar de mais pequeno do que um dedal, de ser o nosso filhinho.

 

Por via d'isso toda a parentella lhe ficou chamando João-Pequenino. Crearam-n'o tão bem quanto puderam; não cresceu mais, ficando sempre do mesmo tamanho em que nascêra. Era muito vivo, muito esperto; e tinha uns olhitos muito brilhantes; e bem cedo mostrou o tino e actividade sufficientes para levar a bom-effeito qualquer empreza a que se abalançasse.

O camponez, certo dia, apromptava-se para ir cortar madeira á matta visinha e disse para comsigo:

 

—Bem precisava eu de quem me conduzisse a carroça.

 

—Pae—gritou João-Pequenino—eu guio a carroça, se quer; não se assuste que chegará a tempo.

 

O homem desatou a rir:

 

—Isso é impossivel! Se és tão pequenino, como has de segurar a redea ao cavallo?

 

—Isso não faz ao caso, pae! Se a mãe vae atrellar o cavallo, eu metto-me na orelha do cavallo e ensino-lhe o caminho a seguir.

 

—Pois então, experimentemos.

 

A boa da mãe metteu o cavallo á carroça, e introduziu João-Pequenino na orelha do animal; e o João-ninguem gritava todo o caminho: Vá, cavallo! mas tão distinctamente que o animal andava como se na realidade o guiasse algum carroceiro; d'esta maneira chegou a carroça á matta, indo pelos melhores caminhos.

No momento em que a carroça torneava uma sebe, e se ouvia a voz do rapazinho: vá, cavallo! passaram dois individuos desconhecidos que exclamaram estupefactos:

 

—É celebre! Uma carroça que anda á voz de um carroceiro que não se vê!

 

—Alguma cousa ha de extraordinario; sigamos o vehiculo para vêr onde pára!

 

Continuou a carroça no caminho que levava até parar no sitio onde havia arvores caídas. Assim que João-Pequenino avistou o pae, gritou:

 

—Então, pae, guiei ou não guiei a carroça? Agora põe-me no chão.

 

O lenhador, segurando com uma das mãos a redea, serviu-se da outra para tirar de dentro da orelha do cavallo o rapazito a quem pôz no chão; o rapazinho sentou-se n'um feto.

Os dois desconhecidos, ao vêrem João-Pequenino, não sabiam que imaginar, de tal maneira ficaram extacticos com o rarissimo phenomeno. Falaram em segredo e resolveram:

 

—Este exemplar póde trazer-nos uma fortuna, se quizermos expôl-o a troco de alguns cobres em qualquer povoação; não será mau comprál-o.

 

Em seguida encaminharam-se para o camponez, e propuzeram-lhe:

 

—Quer vender-nos esse anãosinho sob a condição que cuidaremos muito d'elle?

 

—Não,—respondeu o interrogado—é meu filho e por dinheiro algum eu me desfaria d'elle.

 

João-Pequenino, porêm, que percebêra e ouvira bem toda a conversa, trepou pelas pernas do pae á altura do hombro e segredou-lhe:

 

—Pae, acceite a proposta, que eu em breve estarei de volta.

 

Ante esse conselho de João-Pequenino, o pae cedeu-o aos homens por uma valiosa moeda de ouro.

 

—Onde queres tu collocál-o?—perguntaram entre si.

 

—Ora, ponham-me na aba do chapéu; assim posso vêr tudo quanto se passa em volta de mim e não ha meio de me perderem—alvitrou João-Pequenino, accrescentando:—Mas, cuidado, não me deixem cair.

 

Os homens assim fizeram; João-Pequenino despediu-se do pae, e foram-se embora com o rapazinho. Fartáram-se de caminhar até ao cair da tarde; n'essa occasião o boccadinho de gente gritou-lhes:

 

—Parem, que preciso de descer!

 

—Deixa-te estar no meu chapéu; não estejas com cerimonias, porque os passarinhos tambem me fazem isso muita vez!

 

—Não, não quero!—insistiu João-Pequenino—ponham-me depressa no chão.

 

O homem pegou no João-ninguem e pôl-o no chão n'um relvado á beira-estrada; João-Pequenino depressa alcançou umas moutas e de repente encafuou-se n'uma toca de rato que buscára de propósito.

 

—Boa viagem, meus senhores, continuem o caminho sem a minha companhia—lhes gritou, rindo. Quizeram agarrál-o, fazendo cócegas na toca de rato com palhinhas—como é de uso fazer-se aos grillos, mas perderam o tempo e o feitio, pois que João-Pequenino cada vez se mettia mais para dentro da toca, e a noite visinhava-se, de modo que foram obrigados a ir para casa, fulos e com as mãos a abanar.

 

Quando já iam longe, João-Pequenino saiu do improvisado esconderijo. Arreceou-se de seguir viagem á noite, por meio de campos, porque partir uma perna não é difficil. Felizmente avistou uma cavidade no topo de uma arvore, exclamando:

 

—Louvado Deus, já tenho casa para dormir.

 

Quando ia a pegar no somno, ouviu a voz de tres homens que abancaram por baixo da arvore, ceando e conversando:

 

—Como havemos de proceder para roubar a esse rico parocho toda a sua fortuna?

 

—Eu lhes digo!—dirigiu-se lhes a voz invisivel.

 

—Quem está ahi?!—gritou um dos ladrões verdadeiramente aterrorizado—Ouvi uma voz!

 

Calaram-se para escutar, quando João-Pequenino se tornou a ouvir:

 

—Tomem-me á sua conta, que eu os ajudarei n'essa piedosa tarefa.

 

—Onde é que estás?

 

—Procurem na arvore, no sitio d'onde parte a voz.

 

Os ladrões encontraram-n'o por fim e exclamaram:

 

—Pedaço de gente, como é que tu nos pódes ser util!

 

—Ora, de um modo bem facil: metto-me pelas grades da janella que ha no quarto do parocho e vou-lhes passando tudo o que quizerem.

 

—Pois bem, seja!—accederam os ladrões—Vamos á experiencia!

 

Assim que chegaram ao presbyterio, João-Pequenino introduziu-se no quarto, e em seguida começou a gritar com toda a força dos pulmões:

 

—Querem tudo o que está aqui?

 

Os ladrões amedrontados disseram-lhe:

 

—Fala mais baixo que acordas toda a gente!

 

João-Pequenino fazendo ouvidos de mercador, cada vez gritava mais:

 

—O que é que vocês querem? É tudo isto?

 

A creada, que dormia no quarto pegado áquelle em que o heroe da historieta se encontrava, ouviu este ruido, levantou-se da cama e pôz-se de ouvido á escuta; os malfeitores haviam desapparecido, mas cobrando animo e, suppondo que o rapazito só os queria amedrontar por mera brincadeira, voltaram á carga, e disseram-lhe devagarinho:

 

—Tem mais tento: passa-nos alguma cousa, anda! João-Pequenino, se gritava até então, agora quasi que berrava:

 

—Vou dar-lhes já tudo; aparem as mãos!

 

D'esta feita, a creada ouviu tudo perfeitamente; saltou da cama e correu para a porta. Os gatunos ao presentirem gente deram ás de villa Diogo, como se o Diabo lhes tivesse dado azas; a creada, não ouvindo mais cousa alguma, foi accender uma candeia. Quando appareceu, João-Pequenino, sem que ella o tivesse enxergado, foi esconder-se no palheiro. A creada, depois de ter pesquizado todos os cantos á casa sem que nada visse, tornou a deitar-se, suppondo que tudo o que ouvira fôra sonho.

João-Pequenino tinha-se aninhado no feno, onde arranjára uma boa caminha em que contava dormir até manhan, indo em seguida para casa dos paes que a essa hora deviam estar em sobresaltos. Não pararam porém, aqui as aventuras d'este ratão; havia de passar ainda por bem maus boccados. A creada ergueu-se ao luzir do buraco para dar ração ao gado. A primeira cousa que fez foi ir ao palheiro buscar forragem, d'onde tomou uma braçada de feno com o infeliz João-Pequenino lá mettido muito ferrado no somno. E tão bem dormia que não deu por cousa alguma e quando despertou viu-se na bocca de uma vacca, que o enguliu com um boccado de feno. A primeira impressão que sentiu foi a de se julgar caido num moinho de pisoeiro; mas depressa comprehendeu onde é que realmente estava. Evitando o metter-se por entre os dentes, deixou-se escorregar pela garganta até ao estomago. O compartimento em que se encontrou parecia-lhe estreito, sem janella, e onde não havia sol, nem luz, nem sequer candeia! A casa em que morava desagradava-lhe bastante, e o que mais complicava a sua critica situação, era a quantidade de feno que lá se armazenava, estreitando mais ainda o pouco espaço em que se continha. Por fim, não podendo mais suster-se do terror que d'elle se apossára, João-Pequenino gritou o mais que poude:

 

—Basta de feno, basta de feno que eu não posso mais... abafo!

 

A moça do parocho, que n'esse momento estava precisamente a mungir a vacca, ao ouvir a voz sem que visse quem falava, mas que reconhecia pela que a tinha acordado durante a noite, assustou-se tanto que saltou do banco em que estava sentada, entornando o leite. Foi de caminho, a toda a pressa chamar o parocho para lhe dizer:

 

—Senhor cura, a vacca fala!

 

—Tu ensandeceste, rapariga?—tornou o padre, emquanto que despreoccupadamente se dirigia para o estabulo, para se certificar do que ouvira.

 

Não tinha ainda o parocho franqueado o portal quando João-Pequenino gritou de novo:

 

—Basta de feno... que eu atabafo!

 

O terror apoderou-se então do padre, que suppondo a vacca enfeitiçada, ou que tinha o diabo mettido no corpo, disse que era preciso dar cabo d'ella. Abateram-n'a, e o estomago, onde o pobre João-Pequenino se via prisioneiro, foi lançado para o estrume.

O rapazito viu-se em pancas para se desenvencilhar do mal-cheiroso sitio em que se conservava, e apenas conseguiu ter a cabeça desembaraçada, uma nova desgraça o veiu ferir, uma aventura inesperada. Um lobo esfaimado atirou-se ao estomago da vacca, e, chamando-lhe um figo, enguliu-o d'uma assentada. João-Pequenino não descoroçoou.

 

—Talvez—pensou com os seus botões—este lobo seja sociavel.

 

E de dentro da barriga, em que estava novamente preso, gritou-lhe:

 

—Bom lobo, vou ensinar-te o sitio onde ha uma excellente prêsa.

 

—E onde fica isso?—perguntou o lobo.

 

—N'esta e n'aquella casa; pouco trabalho tens: basta-te deslizar pelo exgotto da cosinha; ahi encontrarás bons boccados, como toucinho, chouriço á discreção; que mais queres? E olha que te não levo nada pelo conselho!

 

E assim o experto João-Pequenino lhe deu os signaes certos da casa do pae.

O lobo não quiz ouvir mais, nem se fez rogado, nem se quer foi preciso dar-lhe o recado mais d'uma vez; metteu-se pela cosinha e comeu á tripa-fôrra. Quando, porêm, quiz sair, foi-lhe impossivel. Tirou o ventre de miserias, de tal maneira que não houve meio de passar pelo cano. João-Pequenino—que tudo previra começou a fazer um grande barulho no corpo do lobo, aos pulos e em altos gritos; o lobo pedia-lhe:

 

—Vê lá se estás quieto! Tu assim acordas meio mundo!

 

—Deixa-me cá... Tu comeste até que te regalaste; agora sou eu que me divirto a meu modo!—e continuou a gritar tanto quanto podia.

 

Acabou por accordar a familia, que veiu pressurosa olhar para a cosinha pelo buraco da fechadura. O pae e a mãe ao verem que estava alli um lobo, armaram-se: o pae com um machado e a mulher com uma fouce.

 

—Fica para traz—aconselhou o marido á mulher quando entraram na cosinha, eu vou matal-o com o machado, mas se o não matar d'um só golpe, tu abres-lhe a barriga!

 

João-Pequenino—ao conhecer a voz do pae—pôz-se a gritar:

 

—Sou eu, meu pae, sou eu que estou na barriga do lobo!

 

—Graças!—exclamou o pae louco de contente.—Ora até que emfim que o nosso filho foi encontrado!...

 

E disse logo á mulher que puzesse de parte a fouce não fosse ferir o João-Pequenino. Em seguida com faca e tesoura abriu a barriga do lobo d'onde saltou lesto o nosso sympathico João-Pequenino.

 

—Não pódes calcular, filho,—exclamou o pae—os sustos que temos tido com a tua sorte!

 

—Acredito, pae... mas olhe, eu fartei-me de correr mundo; felizmente que já vejo a luz do dia!

 

—Onde tens tu estado?

 

—Ora, onde tenho estado! Estive n'uma toca de rato, na cavidade de uma arvore, no feno, na barriga de uma vacca, no estrume e por fim na barriga de um lobo! Agora estou com os meus queridos paes!

 

—E nós não te tornariamos a vender por dinheiro algum d'este mundo!—disseram os paes abraçando-o e apertando-o contra o coração.

 

Deram-lhe de comer e vestiram-lhe outro fato, pois o primitivo vinha em estado lastimoso, o que é natural, attendendo aos sitios pouco limpos por onde viajára o nosso João-Pequenino.

 

                                                                                            IRMÃOS GRIMM

 

 

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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