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ANTI-DÜHRING 2 / Friedrich Engels
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ANTI-DÜHRING

 

PARTE II

Economia Política

 

Capítulo I - OBJETO E MÉTODO

     A Economia Política, no sentido mais amplo da palavra, é a ciência das leis que regem a produção e o intercâmbio dos meios materiais da vida na sociedade humana. Produção e troca são duas funções distintas. A produção pode desenvolver-se sem a troca, mas esta pressupõe, sempre, necessariamente, a produção, pelo próprio fato de que o que se trocam são os produtos. Cada uma destas funções sociais sofre a influência de um grande número de fenômenos exteriores, sendo que essa influência é subordinada, em grande parte, a leis próprias e especificas. Mas, ao mesmo tempo, a produção e a troca se condicionam, a cada passo, reciprocamente e influem de tal modo uma sobre a outra, que se pode dizer que são a abcissa e a ordenada da curva econômica.      As condições sob as quais os homens produzem e trocam o que foi produzido variam muito para cada país e, dentro de cada país, de geração para geração. Por isso, a Economia Política não pode ser a mesma para todos os países nem para todas as épocas históricas. Desde o arco e flecha, passando pelo machado de pedra do selvagem, com os seus atos de troca, raríssima e excepcional, até a máquina a vapor de mil cavalos de força, os teares mecânicos, as estradas de ferro e o Banco de Inglaterra, existe um verdadeiro abismo. Os habitantes da Terra do Fogo não conhecem a produção em grande escala, assim como não conhecem o comércio mundial, nem tampouco as letras de câmbio que circulam a descoberto e os inesperados craques de Bolsa. Quem quer que se empenhasse em reduzir a Economia Política da Terra do Fogo às mesmas leis por que se rege hoje a Economia da Inglaterra, não poderia, evidentemente tirar alguma conclusão, a não ser uns quantos lugares comuns da mais vulgar trivialidade. A Economia Política é, portanto, uma ciência essencialmente histórica. A matéria sobre que versa é uma matéria histórica, isto é, sujeita a mudança constante. Somente depois de investigar as leis especificas de cada etapa concreta de produção e de troca, como conclusão, nos será permitido formular, a titulo de resumo. as poucas leis verdadeiramente gerais, aplicáveis à produção e à troca, quaisquer que sejam os sistemas. Com isto, quer se dizer que as leis, que se aplicam a um determinado sistema de produção ou a uma forma concreta de troca, são válidas também a todos aqueles períodos históricos em que esse sistema de produção ou essa forma de troca se apresentam. Assim, por exemplo, no período em que se implantou na Economia o sistema de dinheiro metálico, entra em ação toda uma série de leis que passam a reger e que se mantêm vigentes em todos os países e em todas as épocas da história em que a troca se realiza tendo como mediador o dinheiro metálico.      O regime de produção e de troca de uma sociedade histórica determinada e, com ele, as condições históricas prévias que presidem a vida desta sociedade determinam, por sua vez, o regime de distribuição do que foi produzido. Na comunidade tribal ou na comuna camponesa, organizadas à base da propriedade coletiva do solo, regime pelo qual passaram - como se pode observar em seus nítidos vestígios - todos os povos civilizados da história, é perfeitamente compreensível que imperasse um sistema de distribuição quase igualitário dos produtos. Ali onde aparece, na distribuição, uma desigualdade mais ou menos assinalada, esta desigualdade é mais um sintoma de que a comunidade começa a se desagregar. A grande e a pequena agricultura correspondem a formas muito distintas de distribuição, conforme as condições históricas prévias de que tenham nascido. Mas é evidente que a agricultura em grande escala condiciona sempre um regime de distribuição completamente diferente do da pequena agricultura; é evidente que, enquanto a primeira pressupõe ou engendra necessariamente um antagonismo de classes - divisão em amos e escravos -, a segunda forma, pelo contrário, modela uma diferença de classes que não está condicionada, de modo algum, pelos indivíduos que trabalham na produção agrícola, mas que já revela a decadência que se inicia no regime de exploração parcelada do solo. A implantação e a difusão do dinheiro metálico nos países em que a Economia tomava desenvolvimento, exclusiva ou predominantemente, pelas vias naturais, trouxe consigo uma perturbação, mais ou menos intensa, mais ou menos rápida, do sistema tradicional de distribuição, uma modificação que torna ainda mais agudas as desigualdades da distribuição entre os indivíduos, acelerando assim a divisão entre ricos e pobres. A indústria artesanal da Idade Média, do tipo local e gremial, impossibilitava a existência de grandes capitalistas e de operários, assalariados por toda a vida, com a mesma força de necessidade com que a grande indústria moderna, a atual estrutura do crédito e a forma da troca adequada ao desenvolvimento desses dois fatores, que é a livre concorrência, faz com que existam esses mesmos grandes capitalistas e operários assalariados.      E com as diferenças no regime de distribuição surgem as diferenças de classe. A sociedade se divide em classes privilegiadas e desprotegidas, exploradoras e exploradas, dominantes e dominadas. E o Estado, que nasceu do desenvolvimento dos grupos naturais e primitivos em que se começaram a organizar as comunidades descendentes do mesmo tronco, para a direção de seus interesses comuns (irrigação da terra, nos países do Oriente, etc.), e para se defender contra os perigos de fora, formou para si, a partir de então, uma nova finalidade: a defesa, pelo uso da força, das condições de vida e de governo da classe dominante frente à classe dominada.      A distribuição não é, pois, um mero produto passivo da produção e da troca, mas, pelo contrário, repercute também e com força não inferior. sobre elas próprias. Todo novo regime de produção, toda nova forma de troca, tropeça, logo ao nascer, não só com a resistência passiva que lhe opõem as formas tradicionais e as instituições políticas ajustadas a elas, mas também com as barreiras do velho regime de distribuição. Por isso, devem esse regime e essa forma lutar duramente e durante largo espaço de tempo até conquistar um sistema de distribuição adequado à nova modalidade de produção ou de troca. Mas, quanto mais dinâmico e mais capaz de aperfeiçoamento e desenvolvimento for um determinado regime de produção e de troca, mais depressa deverá alcançar também o regime de distribuição um grande desenvolvimento que deixe para trás o regime seu progenitor, um grande progresso que se torne incompatível com o regime antigo de troca e de produção. As velhas comunidades naturais, a que nos referimos atrás, puderam viver milhares de anos, como aliás ainda perduram em nossos dias entre os índios e muitos eslavos, antes que o comércio com o mundo exterior engendrasse em seu seio as diferenças de patrimônio que deveriam acarretar a sua disposição. Ao contrário, a moderna produção capitalista, que não conta mais de trezentos anos de existência e que não se impôs mesmo depois da implantação da grande indústria, isto, é, até há uns cem anos, provocou, no entanto, durante este curto período, muitos antagonismos no regime de distribuição - de um lado a concentração de capitais em poucas mãos e, de outro, a concentração das massas não possuidoras nas cidades mais populosas, - de tal modo que estes antagonismos necessariamente a farão perecer.      A relação entre o regime de distribuição e as condições materiais de existência de uma determinada sociedade está tão arraigada na natureza das coisas, que chega a se refletir, comumente, no instinto do povo. Enquanto um regime de produção está-se desenvolvendo em sentido ascensional, pode contar até mesmo com a adesão e a admiração entusiasta dos que menos beneficiados sairão com o regime de distribuição ajustado a ele. Basta que se recorde o entusiasmo dos operários inglêses ao aparecer a grande indústria. E mesmo depois que este regime de produção já consolidado, constitui, na sociedade de que se trata, um regime normal, continua-se mantendo, em geral, algum contentamento com a forma de distribuição e, se se ergue alguma voz de protesto, é das fileiras da classe dominante que ela sai (Saint-Simon, Fourier, Owen), sem encontrar nem mesmo algum eco no seio da massa explorada. Há de passar algum tempo - e encaminhar-se o regime de produção, já francamente pela vertente da decadência, deve este regime já ter sido superado em parte. devem ter desaparecido, em grande proporção, as condições que justificam a sua existência, estando mesmo tomando tal vulto o seu sucessor -, para que a distribuição, cada vez mais desigual, seja considerada injusta, para que a voz da massa clame contra os fatos do passado junto ao tribunal da chamada justiça eterna. Claro está que este apelo à moral e ao direito não nos faz avançar cientificamente nem uma polegada; a ciência econômica não pode encontrar, na indignação moral, por mais justificada que ela seja, nem razões nem argumentos, mas simplesmente sintomas. A sua missão consiste exclusivamente em demonstrar que os novos abusos e males, que tomam corpo na sociedade, não são mais que outras tantas conseqüências obrigatórias do regime de produção em vigor, ao mesmo tempo em que são indícios da proximidade de seu fim, tornando conhecidos os elementos para a organização futura da produção e da troca, que já estão contidos no seio do regime econômico que caminha a passo largos para a sua dissolução, e na qual esses males e abusos terão que desaparecer. A cólera provocada no poeta tem a sua razão de ser quando se trata de descrever esses males e abusos, ou de atacar os "harmonizadores" que pretendem negá-los ou atenuá-los em benefício da classe dominante mas, para compreender como a cólera prova pouco em cada caso, basta que se considere que, até hoje, em todas as épocas da História, houve matéria de sobra para alimentar os seus impulsos.      Mas a Economia Política, concebida como a ciência das condições e das formas sob as quais as diversas sociedades humanas produzem e trocam os seus produtos, e sob as quais se distribuem os produtos, esta Economia Política, nestes termos concedida, com tal amplitude, está ainda por se criar. Tudo o que até hoje possuímos de ciência econômica se reduz quase exclusivamente à gênese e ao desenvolvimento do regime capitalista de produção. Ela parte da crítica dos restos das formas feudais de produção e de troca, põe em relevo a necessidade de fazer desaparecer estes restos, substituindo-os por formas capitalistas, desenvolve as leis do regime capitalista de produção, com as suas formas correspondentes de troca no seu aspecto positivo, isto é, do ponto de vista em que contribuem para fomentar os fins gerais da sociedade e conclui com a crítica socialista do regime de produção do capitalismo, o que quer dizer com a exposição das leis que presidem o seu aspecto negativo, com a demonstração de que este regime de produção por força de seu próprio desenvolvimento, se aproxima de um ponto em que a sua existência se torna impossível. Esta crítica torna patente que as formas capitalistas de produção e de troca vão convertendo-se em entraves cada vez mais insuportáveis para a própria produção; que o regime de distribuição, necessariamente condicionado por essas formas, engendrou, por sua vez, uma situação de classe cada dia mais insuportável e mais aguda, um antagonismo sempre mais profundo entre alguns capitalistas, cada vez em menor número, porém cada vez mais ricos e uma massa de operários assalariados, cada vez mais numerosa e em geral, também mais desfavorecida e mal retribuída; e finalmente', demonstra que a massa das forças produtivas que engendra o regime capitalista de produção e que este regime não consegue mais governar, está esperando tome posse das próprias forças produtivas uma sociedade organizada sob um regime de cooperação, baseada num plano harmônico destinado a garantir a todos os indivíduos da sociedade, em proporção cada vez maior, os meios necessários de vida e os recursos para o livre desenvolvimento de sua capacidade.      Para compreender em todo o seu alcance esta crítica da Economia burguesa, não era suficiente conhecer a forma capitalista de produção, de troca e de distribuição. Era preciso investigar e trazer à comparação embora apenas em seus traços mais gerais, as formas que a precederam e que, em países menos avançados, coexistem ainda com aquela. Até hoje, esta investigação e este estudo comparativo foram realizados somente por Marx, e devemos, portanto, a seus trabalhos, quase que exclusivamente, o que até agora se pode esclarecer com relação à teoria econômica pré-burguesa.      Embora tivesse nascido, nos fins do século XVIII, em algumas cabeças geniais, a Economia Política, no sentido restrito, tal como a apresentam os fisiocratas e Adam Smith, é essencialmente um fruto do século XVIII, figurando entre as conquistas dos grandes racionalistas franceses dessa época, participando, portanto, de todas as vantagens e todos os inconvenientes do tempo. O que dissemos dos racionalistas podemos aplicar também aos economistas desse século. A nova ciência não era, 130 para eles. uma expressão das circunstâncias e das necessidades da época em que viviam, mas, sim, um reflexo da razão eterna: as leis da produção e da troca, descobertas por eles, não possuem uma forma condicionada historicamente, com a qual se deviam revestir essas atividades, mas outras tantas leis naturais eternas, derivadas da natureza humana. Mas o homem que eles tinham em conta era, na realidade, simplesmente o homem da classe média daqueles tempos, do qual depressa deveria brotar o homem burguês moderno, reduzindo-se a sua natureza apenas a fabricar e a comerciar, sob as condições historicamente condicionadas de então.      Tendo já ocasião de conhecer, de sobra, ao nosso "fundamentador crítico", Sr. Dühring, bem como a seu método, por tê-lo visto operar no campo da filosofia, não nos é difícil predizer como ele apresentará as suas concepções na Economia Política. No terreno da filosofia, quando não dizia simples disparates (como o vimos fazer na Filosofia da Natureza), as suas idéias eram apenas uma caricatura das do século XVIII. Para ele não existiam leis de desenvolvimento histórico, mas apenas leis naturais, verdades eternas. As instituições sociais, como a moral e o direito, não eram determinadas pela localização dentro das condições históricas reais de cada época, mas pela ajuda prestada por aqueles dois homens famosos, dos quais um oprimia fatalmente o outro, embora até hoje esta suposição não se tenha dado nunca, infelizmente, na realidade. Não estaremos errados, pois, se, dessas idéias, deduzirmos que a Economia se baseia também, no modo de ver do Sr. Dühring, em verdades definitivas e inapeláveis, em leis naturais e eternas, em axiomas tautológicos da mais desolada inutilidade, sem, entretanto, deixar de logo nos ofertar, pelas portas do fundo, todo o conteúdo positivo da Economia, na medida em que dele tem conhecimento; nem tampouco nos enganaremos ao supormos que, para o Sr. Dühring, a distribuição, concebida como fenômeno social, não é derivada da produção e da troca, mas se constrói e fica definitivamente resolvida por meio dos dois célebres homens. E, como se trata de artifícios que já conhecemos bastante, não será preciso que nos estendamos em seu exame.      Com efeito, já na página 2 O Sr. Dühring declara que a sua Economia mantém estreita relação com o estabelecido em sua filosofia e se "baseia, em alguns pontos essenciais, nas verdades superiores, já assentadas num campo mais alto de investigação". Sempre o mesmo empenho em nos convencer de sua grandeza. Sempre as mesmas ponderações sobre o "assentado" e "estabelecido", pelo mesmo Sr. Dühring. Já tivemos ocasiões de sobra para ver como é que "assenta" e "estabelece" as suas verdades o Sr. Dühring.      A seguir deparamos com "as leis naturais mais gerais de toda a Economia". Nossas previsões não tinham sido pois desmentidas. Mas estas leis naturais só nos permitem compreender exatamente a história passada, sempre e quando as "investiguemos sob essa determinação precisa que as formas políticas de submissão e agrupação imprimiram então a seus resultados. Instituições como a escravidão e a exploração do trabalho assalariado, às quais se vem unir, com sua irmã gêmea, a propriedade baseada na força, devem ser investigados como formas constitutivas econômico-sociais, de autêntico caráter político, formando as mesmas, no mundo atual, o quadro fora do qual não se poderiam revelar os efeitos das leis naturais da Economia".      Toda esta tirada complicada é apenas a fanfarra que anuncia, como tema wagneriano a entrada em cena dos dois famosos homens, Porém, é, além disso, o tema fundamental do todo o livro do Sr. Dühring. Ao tratar do Direito, não pode o Sr. Dühring oferecer-nos nada mais que uma péssima tradução da teoria rousseauniana da igualdade para a linguagem socialista; em qualquer taberna de operários de Paris poder-se-ia encontrar uma adaptação muito melhor. Neste novo capítulo, ele nos oferece uma tradução socialista, igualmente má, das lamentações dos economistas a respeito do fracasso das leis naturais e eternas da Economia e dos efeitos causados pela intromissão do Estado e da força. Neste terreno, o Sr. Dühring está como socialista, por inteiro, completamente, merecidamente. Qualquer operário socialista de qualquer país sabe perfeitamente que a força ampara a exploração, mas que não lhe dá origem, que a sua exploração tem a raiz nas relações entre o capital e o trabalho assalariado e que estas relações tiveram a sua origem num terreno puramente econômico, e não na simples violência.      Prosseguindo a leitura, verificamos que, em todos os problemas econômicos, "podemos distinguir duas trajetórias, a da produção e a da distribuição". E que o conhecido e superficial economista Jean Baptiste Say acrescenta a estas duas uma terceira trajetória, a do consumo, mas sem chegar a dizer nada de inteligente a respeito dela, nem mais nem menos que o seu sucessor. E, finalmente, verificamos que a troca ou circulação não é mais que um capítulo da produção, devendo entrar nesse capítulo tudo o que se deve fazer para que os produtos cheguem às mãos do último e verdadeiro consumidor. O Sr. Dühring, ao identificar dois processos tão substancialmente diferentes, embora mutuamente condicionados, como são, de fato, a produção e a circulação, afirmando, sem sombra de dúvida, que, se não se aceitar essa mistura dos dois capítulos; está-se criando uma "fonte de confusão", não faz mais que demonstrar que ignora por completo, ou não compreende, o gigantesco desenvolvimento a que atingiu, nos últimos anos, a circulação, ignorância e incompreensão que vemos confirmadas por toda a sua obra. Mas, não contente com isto, não contente por deixar, sob a mesma rubrica de produção, à produção e à circulação, apresenta a distribuição ao lado da produção, como um segundo processo perfeitamente independente, que nada tem a ver com aquele. Como já vimos, a distribuição é sempre, em suas formas mais importantes, um fruto necessário do regime de produção e de troca, vigente numa determinada sociedade, de acordo com a condição histórica prévia desta mesma sociedade, de tal modo que, conhecendo esta condição podemos concluir com toda a exatidão qual o regime de distribuição que impera nessa sociedade. Mas reconheçamos desde logo que o Sr. Dühring por não querer trair os princípios "assentados" em sua concepção da Moral, do Direito e da História, não tinha outro remédio, senão negar este fato econômico elementar, preparando assim também o terreno para fazer-nos escorregar, na Economia, para o campo de seus dois insubstituíveis homens. Assim, desligada já, felizmente, a distribuição de todo o contato com a produção e a troca, pode, então, realizar-se, por fim o grande acontecimento.      Recordemos, antes, porém, como se desenvolveu a coisa no terreno da Moral e do Direito. Começava aí o Sr. Dühring por manobrar com um só homem, dizendo: "Um homem, na qualidade de indivíduo, ou seja, desligado de toda a conexão com quaisquer outros homens, não pode ter deveres. Não há, para ele, outros imperativos que o de sua vontade." Quem há de ser este homem, desligado de seus deveres e concebido como indivíduo isolado a não ser o fatal "protojudeu Adão" ainda no paraíso, despido de todo o pecado, pela simples razão de não ter com quem cometê-lo? Mas também a este Adão, da Economia da realidade, está reservado o seu pecado original. Ao lado dele surge, não uma Eva de longos cabelos encaracolados, mas um segundo Adão. E imediatamente Adão adquire deveres e logo os desrespeita. Em vez de estreitar contra o peito o seu irmão, como um seu igual, submete-o logo ao seu domínio, escraviza-o. É este primeiro pecado, este pecado original da escravidão, é o pecado cujas conseqüências ainda vêm sendo sentidas por toda a história do mundo, e tal é a causa por que esta história não valha, segundo o Sr. Dühring, nem uma cadelinha qualquer.      Recordemos, incidentalmente, que o Sr. Dühring dava de ombros. pejorativamente, à "negação da negação", na qual ele via um eco grotesco do velho mito do pecado original e da redenção. Que havemos de pensar agora desta sua novíssima edição do mesmo mito? (pois, como veremos dentro em pouco, até o mito da redenção foi por ele utilizado). Em todo o caso, preferimos desde já a versão semítica, na qual, pelo menos, os dois personagens, o homem e a mulher, saíam lucrando alguma coisa por ter deixado de lado a inocência primitiva, embora tenhamos de reconhecer que ninguém disputará ao Sr. Dühring a glória de ter construído o pecado original da maneira mais original do mundo: com dois homens.      Detenhamo-nos um momento, porém, para escutar a tradução do pecado original para a linguagem econômica: "Para a idéia da produção, basta, desde o início, que se represente um Robinson que, enfrentando isoladamente a natureza, só por meio de suas forças, nada tem a partilhar com ninguém; isto não basta como esquema especulativo... Existe a mesma conveniência em se representar o que há de mais substancial na idéia da distribuição pelo esquema especulativo de duas pessoas, cujas forças econômicas se combinam, vendo-se naturalmente forçadas a se substituir reciprocamente, sob uma forma ou outra, em relação às suas participações. É, de fato, suficiente, este simples dualismo para se poder expor, com todo o rigor, algumas das relações mais importantes de distribuição e para se poder estudar, embrionariamente, as suas leis, em sua necessidade lógica... Pode-se, igualmente, conceber aqui a cooperação num pé de igualdade, com a qual, a combinação das forças, mediante a total opressão de uma das partes, vendo-se esta, neste caso, dominada como escrava ou como mero instrumento de serviço econômico, somente sustentada na qualidade de instrumento... Entre o estado da igualdade e o da anulação de uma das partes, ao lado da onipotência e da participação ativa da outra, medeia toda uma série de graus que os fenômenos da história universal se encarregaram de preencher com uma pitoresca variedade. Uma vista de olhos universal sobre as diferentes instituições do direito e da injustiça históricos, torna-se aqui uma condição prévia essencial..." Assim, pois, todo o problema da distribuição converte-se, finalmente, num "direito econômico de distribuição".      Pisa finalmente o Sr. Dühring em terreno firme. de mãos dadas com os seus dois insubstituíveis homens, pode ele levar de vencida a todo o seu século. Por detrás do triunvirato que se forma, ergue-se um anônimo.      "Não foi o capital que inventou a mais-valia. Onde quer que uma parte da sociedade possua o monopólio dos meios de produção, o operário, livre ou escravo, não tem outro remédio senão acrescentar ao tempo, de trabalho para o seu sustento uma quantidade de trabalho excedente, destinaria a produzir os meios de vida para o proprietário dos meios de produção, quer se trate de um caloscágatos ateniense, um teocrata etrusco, um civis romanus (cidadão romano) quer de um barão da Normandia, um escravagista americano, um Senhor feudal da Waláquia, um proprietário de terras moderno ou do um moderno capitalista." (Marx, O Capital, t. I, segunda edição, pág. 227).      Depois de verificar por este caminho qual era a forma fundamental de exploração, comum a todas as formas de produção até a nossa época - desde que baseadas em antagonismos de classes, - não precisava o Sr. Dühring senão pôr em ação os seus dois homenzinhos e com apenas isso ficavam armados os alicerces "radicais" de sua Economia da realidade. E não vacilou ele nem um momento na execução desta idéia criadora de sistema". Eis o ponto central: trabalho sem remuneração após ter sido gasto o tempo de trabalho necessário para a conservação do operário. O nosso Adão, agora convertido em Robinson, põe a trabalhar o segundo Adão, ou seja, o "Sexta-feira". Porém, como "Sexta-feira" há de se prestar a trabalhar mais do que o necessário para o seu sustento? Esta pergunta parece que foi também respondida, em parte pelo menos, por Marx. Entretanto, a resposta de Marx é demasiada prolixa para os nossos dois homens. Resolve-se o assunto com mais facilidade. Robinson "oprime" o "Sexta-feira", espolia-o "como um escravo ou instrumento, posto ao serviço econômico", e somente o sustenta "na qualidade de instrumento". Com esta novíssima "manobra criadora", mata o Sr. Dühring dois coelhos com uma só cajadada. Em primeiro lugar, poupa-se ao trabalho do explicar-nos as diversas formas de distribuição que se sucedem na história, com suas diferenças e suas respectivas causas. Basta que se saiba que todas estas formas são reprováveis, pois todas elas descansam na opressão, na violência, sobre isso teremos oportunidade de falar mais adiante. Em segundo lugar, desloca toda a teoria da distribuição, do terreno econômico para o da Moral e do Direito, ou seja, do terreno dos fatos materiais concretos e decisivos para o das opiniões e sentimentos mais ou menos flutuantes. Nesta situação, já não se precisa molestar em investigações e demonstrações bastando-lhe recitar vastas tiradas declamatórias e exigir que a distribuição dos produtos do trabalho se ajuste, não às causas reais. mas ao que ele Dühring, considera justo e moral. Mas o que o Sr. Dühring considera justo não é, de modo algum, algo de imutável, distando muito de ser uma autêntica verdade, pois estas, segundo a sua opinião, "não são nunca imutáveis". Em 1868, o Sr. Dühring afirmava ("O destino de minha memória social", etc.) que "na tendência de qualquer civilização superior, está o modelamento da propriedade em traços cada vez mais definidos", e que "nisto e não numa confusão de direitos e de esferas de influência" se baseava "o caráter e o futuro da evolução moderna". E afirmava, também, que não podia simplesmente compreender como a transformação do trabalho assalariado num regime diferente de subsistência, poderia chegar a ser, de qualquer modo, compatível com as leis da natureza humana e da estrutura natural e necessária do organismo social. Como vemos, em 1868. a propriedade privada e o trabalho assalariado eram instituições naturais e necessárias e, portanto, justas. Em 1876, eram ambas, pelo contrário, resultado da violência e do roubo, e portanto,injustas. Não é nada fácil saber o que será considerado moral e justo, dentro de alguns anos, por um gênio tão vertiginoso como esse. Se quisermos, assim, estudar a distribuição das riquezas, será melhor que nos restrinjamos às leis reais e objetivas da Economia, e não às idéias momentâneas, mutáveis e subjetivas do Sr. Dühring, no que diz respeito ao Direito e à injustiça.      No que diz respeito à revolução, que se aproxima e que transformará o atual regime de distribuição dos produtos do trabalho, com todos os seus clamorosos contrastes de miséria e abundância, fome e dissipação, se contássemos apenas com a consciência de que esse regime de distribuição é injusto e de que, cedo ou tarde, o direito e a injustiça acabariam por triunfar poderíamos, então, esperar tranqüilamente sentados. Os místicos da Idade Média, aqueles que sonhavam com a proximidade do reino milenar, já tinham consciência dessa injustiça, a consciência da injustiça dos antagonismos de classe. Nos primórdios da história moderna, há uns trezentos e cinqüenta anos, ergueu-se a voz de Thomas Munzer, clamando contra esta injustiça. O mesmo grito novamente ressoa e perde-se na Revolução Inglesa e na Revolução burguesa da França. O grito, que até 1830 não tinha comovido ainda as massas trabalhadoras e oprimidas, encontra hoje eco em milhões de homens, abalando um por um, todos os países, na mesma ordem e com a mesma intensidade com que, nesses países, se vai desenvolvendo a grande indústria, e chega a atingir, no decurso de uma geração, uma força tal, que pode desafiar todos os poderes coligados contra ele, estando mesmo seguro da vitória definitiva num futuro próximo. Cabe-nos perguntar agora: A que se deve isso? Simplesmente ao fato de que a grande indústria moderna engendrou, por um lado, o proletariado, classe que se pôde levantar, pela primeira vez na história, para exigir a abolição, não de uma ou de outra organização concreta de classe, não de tal ou qual privilégio concreto de classe, mas de todas as classes em geral; essa classe, pelas próprias circunstâncias, é obrigada a impor essa abolição, sob pena de ficar reduzida à situação em que se encontram os coolies na China. Por outro lado, a grande indústria cria a burguesia; classe que ostenta o monopólio de todos os instrumentos de produção e meios de vida, ficando demonstrado, em cada período de saturação e nas crises que lhes são subseqüentes, que é já incapaz de continuar a governar as forças produtivas, que fogem ao seu controle; essa classe, sob cujo controle a sociedade corre, vertiginosamente, para a ruína, como se fosse uma locomotiva, na qual o maquinista não tem mais força suficiente para abrir nenhuma válvula de segurança. Ora, por outras palavras: a onda de rebeldia é devida a que as forças produtivas engendradas, tanto pelo moderno regime capitalista de produção, como também pelo sistema de distribuição de riquezas, por ele criado, estão em flagrante contradição com esse regime de produção, numa contradição tão irredutível que, necessariamente, deverá se produzir uma transformação radical no regime de produção e de distribuição, arrastando para o abismo todas as diferenças de classe, se é que a sociedade moderna não quer perecer. Neste fato material e tangível, que se impõe, dentro de limites mais ou menos claros, através de uma irresistível necessidade, nos cérebros dos proletários vítimas da exploração, nesse fato e não nas idéias e maquinações de um erudito especulador sobre o Direito e a Justiça, é que se evidencia a certeza de que o socialismo moderno terá de triunfar.

Capítulo II - TEORIA DA VIOLÊNCIA

     "A relação entre a política geral e as formações do direito econômico é determinada, em meu sistema, de uma forma tão decisiva e tão original que não será demais ressaltá-la aqui, para facilitar a sua compreensão. A configuração das relações políticas é historicamente fundamental, e as dependências econômicas nada mais são que um efeito ou caso especial, sendo, portanto, sempre, fatos de segunda ordem. Muitos dos sistemas socialistas modernos têm, como principio diretivo, a aparência de uma relação totalmente inversa, que salta aos nossos olhos, fazendo com que os estados econômicos surjam, digamos, das subordinações políticas. Esses efeitos de segunda classe existem, sem dúvida, como tais, e são especialmente sensíveis nos tempos atuais; mas o elemento primário deve ser encontrado no poder político imediato e não no poder econômico indireto". E a mesma doutrina se reflete noutro trecho em que o Sr. Dühring "extrai da tese de que os estados políticos são a causa decisiva da situação econômica e de que a relação inversa representa somente uma repercussão de segunda ordem .. Enquanto não se considerem os agrupamentos políticos, por si mesmos,, como pontos de partida, considerando-os pelo contrário, exclusivamente, como meios para fins ligados à subsistência, por mais radical, mais socialista e mais revolucionário que se queria aparecer, continuar-se-á a esconder uma boa dose camuflada de reação."      Tal é a teoria do Sr. Dühring. Teoria que, neste como em muitos outros trechos, ele se limita a formular e, quase poderíamos dizer, a decretar. Em nenhum dos três tomos de sua obra, apesar de tão volumosos, pode ser encontrada a mais leve intenção de demonstrá-la ou de refutar a opinião contrária à sua. Ainda que os argumentos fossem baratos como amoras, o Sr. Dühring não nos forneceria nenhum em apoio à sua tese. Para que fornecê-los se tudo está tão suficientemente demonstrado pelo famoso pecado original, em que víamos Robinson escravizar "Sexta-feira"? Esta escravização era um ato de violência e, portanto, um ato político. E, como esse ato de dominação é o ponto de partida e o fato fundamental de toda a história até os nossos dias, introduzindo nela o pecado original da injustiça, embora um pouco atenuado ao se converter mais tarde "nas formas bem mais indiretas da dependência econômica", e, como desse avassalamento primitivo brota toda a "propriedade baseada na força", que vem até hoje imperando, é evidente que os fenômenos econômicos têm a sua raiz em causas políticas e, mais concretamente, na violência. E quem não se conformar com essas deduções é um reacionário camuflado.      Observemos, antes de mais nada, que é necessário estar muito cheio de si, como o Sr. Dühring, para afirmar que esta teoria é "original", quando ela não o é de modo algum. A crença de que os atos políticos dos chefes e do Estado são um fator decisivo da História é uma crença tão antiga como a própria historiografia e a ela se deve particularmente o fato de que saibamos tampouco a respeito da silenciosa evolução que impulsiona realmente os povos e que se oculta no fundo de todas as cenas ruidosas. Esta crença presidiu toda a História antiga até que, na época da Restauração, os historiadores burgueses lhe assestaram o primeiro golpe. O que é original é que o Sr. Dühring ignore tudo isso, como de fato o ignora.      Além disso, mesmo admitindo, por um momento, que o Sr. Dühring tenha razão ao afirmar que toda a História, até aos nossos dias, tem as suas raízes na escravização do homem pelo homem, não chegaríamos, desse modo, nem aproximadamente, ao ponto nevrálgico da questão. Surgiria imediatamente a pergunta: que levou Robinson a escravizar "Sexta-feira"? Fez Isso apenas por diversão? Sabemos que não. O que se nos afirma, pelo contrário, é que "Sexta-feira" era "espoliado como escravo, ou como simples instrumento para serviço econômico, e mantido somente na categoria de instrumento". Robinson, portanto, escraviza "Sexta-feira" para que este trabalhe em seu beneficio. E como pôde Robinson se aproveitar do trabalho de "Sexta-feira"? Somente conseguindo que "Sexta-feira" crie, por seu próprio trabalho, mais meios de vida do que os que Robinson possui para lhe fornecer, a fim de que se mantenha em condições para trabalhar. Isto é, Robinson, contra as prescrições expressas e imperativas do Sr. Dühring "não toma como ponto de partida um agrupamento político" criado por meio da escravização de "Sexta-feira", "por si mesmo considerando-o, pelo contrário, exclusivamente, como meios para fins ligados à subsistência", e agora, ele que procure entender-se com o seu dono e Senhor.      Vemos, pois, que o exemplo pueril, expressamente inventado pelo Sr. Dühring para nos provar que a violência é um fator "historicamente fundamental", na realidade nos demonstra que este fator nada mais é que o meio, enquanto que o fim está precisamente no proveito econômico. E, finalmente, tudo o que tem de "fundamental" em relação aos meios empregados para alcançá-lo, também tem de fundamental, na História, o aspecto econômico da relação entre os dois homens, comparado com o aspecto político. O exemplo citado demonstra, pois, justamente, o contrário do que o seu autor pretendia demonstrar, A mesma coisa que, como vemos, acontece com Robinson e "Sexta-feira", pode ser observada com todos os casos de poder e avassalamento de que nos fala a História. A escravização tem sido sempre, para empregar a elegante expressão do Sr. Dühring, um "meio para fins ligados à subsistência" (concebida a subsistência em seu sentido mais amplo), sem ter sido em parte alguma um "agrupamento político", implantado graças a si mesmo. É preciso que se seja um Sr. Dühring para se poder imaginar que os impostos cobrados pelos Estados não são mais que "efeitos de segunda ordem" e que o "agrupamento político" de nossos dias, que coloca, de um lado, a burguesia poderosa e, de outro lado, o proletariado oprimido, chegou a existir graças a si mesmo, e não como conseqüência dos "fins de subsistência" dos burgueses dominantes, ou seja, pela produção de lucro e acumulação do capital.      Voltemos. porém. aos nossos dois homens. Robinson, "com a espada na mão", escraviza "Sexta-feira". Mas, para que seja um fato a escravização, Robinson necessita de alguma coisa a mais que a simples espada. Nem a todos os tipos de senhores lhes são úteis seus escravos. Para que possam servir-se deles torna-se necessário duas coisas: em primeiro lugar, os instrumentos e objetos necessários para o seu trabalho, e, em segundo lugar, os meios indispensáveis para o seu sustento. Assim pois, antes de se instituir a escravidão,. para que esta seja mesmo possível, é mister que a produção tenha alcançado já um certo grau de progresso e que, na distribuição, tenha sido atingido um certo grau de desigualdade. E, para que o trabalho dos escravos possa converter-se em regime de produção predominante em toda a sociedade, é preciso que, nesta, a produção, o comércio e a acumulação de riquezas se tenham desenvolvido num grau já muito superior. Nas primitivas comunidades naturais, organizadas sobre o regime da propriedade coletiva do solo, ou não pôde a escravidão existir, sob nenhuma forma ou, então, desempenhou esta instituição papel muito secundário. Acontecia o mesmo na antiga Roma, quando esta era uma cidade de camponeses. Mais tarde, ao converter-se numa "cidade universal", e ao concentrar a propriedade do solo da península itálica, cada vez mais intensamente, nas mãos de uma classe pouco numerosa de proprietários de terra riquíssimos, a primitiva população de camponeses cedeu lugar a uma população de escravos. Sabemos que, nos tempos da guerra dos Persas, o número de escravos se elevava, em Corinto, a 460.000 e em Egina, a 470.000, chegando a haver 10 escravos para cada cidadão livre. É evidente que para chegar a este estado de coisas, não bastava usar a "violência", mas, pelo contrário, devia fazer falta uma indústria artística e artesanal muito desenvolvida, ao lado de uma extensa rede comercial. Nos Estados Unidos da América a escravidão não descansava nem no uso da violência, nem na existência da indústria inglesa do algodão. Nas regiões não algodoeiras e que não se dedicavam, como os Estados litorâneos, à manutenção de escravos, destinados aos Estados algodoeiros, foi-se extinguindo a escravidão por si mesma, sem apelar para a violência, pela simples razão de que não era rendosa.      Quando, portanto, o Sr. Dühring diz que a instituição moderna da propriedade está baseada na violência e a define como "aquela forma de poder que não exclui o semelhante do uso dos meios naturais da vida, mas também, o que é muito importante esta instituição está baseada no avassalamento do homem como servo", está o Sr. Dürhing virando as coisas pelo avesso. O avassalamento do homem como servo, qualquer que seja a forma que apresente, pressupõe, em quem o avassala, o poder de dispor sobre os meios de trabalho, sem os quais o servo não lhe serviria para nada, e pressupõe, na instituição da escravidão, além disso, o poder de dispor dos meios de vida indispensáveis para o sustento do escravo. Pressupõe, assim. de qualquer maneira, um certo nível patrimonial superior ao grau médio de fortuna. Perguntamos, agora, de onde .é que saiu esta diferença? É fora de dúvida que pôde ter saído do roubo, isto é, da violência, mas esta não é a única explicação possível Pode também ser o fruto do trabalho, do furto, ou de uma transação comercial ou de uma fraude. Ainda mais: para que alguma coisa possa ser roubada é mister tenha alguém criado, com o seu trabalho, aquilo que se lhe rouba.      A propriedade privada não surge na História nem como fruto do roubo e da violência nem como coisa parecida. Muito ao contrário, a propriedade privada, embora limitada a certos objetos, já existe nas comunas naturais primitivas, na origem de todos os povos civilizados. Começa por se desenvolver, ainda no seio destas comunidades, pela troca efetuada com os membros de outras comunas, sob a forma de mercadoria. E quanto mais se acentua a forma de mercadoria nos produtos da comuna, ou, o que vem a ser o mesmo, quanto maior for a proporção em que estes artigos sejam produzidos para a troca, e não para serem consumidos pelo próprio produtor, quanto mais esta troca fez substituindo ainda no seio da própria comuna, o regime primitivo e natural da divisão do trabalho, se vai cada vez mais acentuando, também, a desigualdade na situação de riqueza dos diferentes membros da comunidade, tanto mais se vai minando e solapando o velho regime de propriedade coletiva do solo e, mais rapidamente, encaminha-se a comunidade para a sua dissolução, para se converter finalmente numa aldeia que é constituída por lavradores, proprietários de suas réstias de terra. O despotismo oriental e a constante mudança de poderes, de uns para outros povos nômades conquistadores, não puderam violar durante milênios, este regime primitivo de comunidade. Em compensação, a destruição gradual de sua indústria doméstica natural, pela concorrência com os produtos da grande indústria, vai conduzindo este regime, cada vez mais aceleradamente, para a sua dissolução. Não é necessário falarmos aqui da violência, nem mesmo quando tratamos da repartição, que se está ainda realizando em nossos dias, da propriedade agrária comunal, das "fazendas" do Mosela e dos altos bosques; o que acontece simplesmente é que os lavradores acham mais proveitoso, para os seus interesses, a propriedade privada da terra em lugar da propriedade comunal. Nem mesmo a formação de uma aristocracia natural, como a que se instituiu entre os Celtas e os Germanos e na região hindu dos Cinco Rios, baseada no regime da propriedade coletiva do solo, surge, de forma alguma, baseada na violência, mas sim de modo espontâneo e por força do costume. Onde quer que apareça a propriedade privada, nasce ela com efeito das mudanças verificadas nas condições de produção e de troca, no interesse do desenvolvimento da produção e da intensificação do comércio, respondendo, portanto, a causas econômicas. Neste processo, a violência não desempenha nenhum papel. Para que o ladrão possa se apropriar de bens alheios, é evidente que a instituição da propriedade privada já deve estar consagrada e em vigor em toda a sociedade; ou seja, a violência poderá, sem dúvida alguma, transformar o estado possessório, mas, entretanto, não engendrará nunca a instituição da propriedade.      E, para explicar o "avassalamento do homem como servo", na mais moderna de suas formas o trabalho assalariado, não podemos nem tampouco precisamos recorrer à violência ou à propriedade cimentada nela. Já observamos o relevante papel que desempenha na dissolução das velhas comunidades, e, portanto, na difusão, direta ou indireta, da propriedade privada, a transformação dos produtos do trabalho em mercadorias, a sua produção não para o consumo próprio mas para o mercado. Pois bem, em O Capital, Marx, demonstrou, com clareza meridiana, - e o Sr. Dühring se reserva o máximo possível de fazer alusão a isso - que, ao alcançar um certo grau de desenvolvimento, a produção de mercadorias se converte em produção capitalista, e que, chegado a este momento, a lei da apropriação, ou lei da propriedade privada, baseada na produção e na circulação de mercadorias, se converte, em virtude de sua própria dialética, interna e inevitável, no seu contrário. A troca de equivalentes, que era a operação primitiva, vai transformando-se até se converter numa troca apenas aparente, devido a duas razões: em primeiro lugar, porque a parte do capital que se troca pela força de trabalho não é, por si mesma, senão uma parte do produto do trabalho alheio apropriado, sem ter sido dado nada em troca; em segundo lugar, porque o produtor, o operário, não somente a repõe, mas se vê obrigado a repô-la acrescentando-lhe um novo excedente... A primeira vista, a propriedade aparecia como baseada no trabalho individual... Agora (ao finalizar o estudo de Marx), a propriedade se nos apresenta, no que se refere ao capitalista, como um direito de se apropriar do trabalho alheio não retribuído, e, no que diz respeito ao operário, como a impossibilidade de apropriar-se do produto de seu trabalho. Donde se conclui que o divórcio entre a propriedade e o trabalho se converteu numa conseqüência necessária de uma lei que parecia de "sua própria identidade".      Por outras palavras, ainda que se suponha que fossem totalmente impossíveis o roubo, a violência e a fraude, se admitirmos que toda a propriedade privada repousa inicialmente, no trabalho pessoal do proprietário e que, no decorrer do processo histórico posterior, apenas se trocam valores iguais por valores iguais, chegamos forçosamente, ao se desenvolver a produção e a troca, ao atual regime capitalista de produção, ao monopólio dos meios de produção e de vida nas mãos de uma classe pouco numerosa, até a degradação da outra classe, constituída pela imensa maioria da população, num conjunto de proletários despojados. e, ainda até a situação em que imperam, alternativamente, os máximos de produção e as crises comerciais; numa palavra, ao estado de anarquia que hoje reina na produção. E todo esse processo se explica por causas puramente econômicas, sem necessidade de se recorrer ao argumento do roubo, nem ao da violência, nem ao Estado, nem mesmo a qualquer outra intromissão de caráter político. Donde se conclui que a famosa "propriedade baseada na força" nada mais é que uma frase declamatória. entre tantas, destinada a disfarçar a incompreensão do processo real das coisas.      Este processo, estudado historicamente, não é mais que a história do desenvolvimento da burguesia. E se "os estados políticos são a causa decisiva da situação econômica", a burguesia moderna não pode se ter desenvolvido em luta contra o feudalismo, mas terá que ser um filho nascido espontaneamente de suas entranhas. Mas todo o mundo sabe que não foi assim, que a verdade é justamente o contrário. Camada oprimida desde as suas origens, tributária da nobreza feudal dominante recrutada entre servos e vassalos de toda a espécie, a burguesia, lutando constantemente contra a nobreza, conquistou posições, uma após outra até assenhorear-se, nos países mais avançados, do poder, para ocupá-lo em lugar da própria nobreza Na França derrubando diretamente a nobreza, na Inglaterra, aburguesando-a e convertendo-a numa cúpula ornamental de sua própria classe, E como conseguiu tudo isso? Conseguiu-o simplesmente pela mudança da "situação econômica", a que imediatamente se seguiu. cedo ou tarde, espontaneamente ou por meio de lutas. a mudança das instituições políticas. A luta da burguesia contra a nobreza feudal é a luta da cidade contra o campo. da indústria contra o proprietário de terras, da economia baseada no dinheiro contra a economia natural, e as armas decisivas que, nestas lutas, empregou o burguês foram simplesmente os seus recursos de poder econômico, constantemente reforçados por meio do desenvolvimento da industria, a princípio artesanal e mais tarde manufatureira, e pela difusão do comércio, durante toda esta luta, o poder político formou ao lado da nobreza, com a única exceção de um período em que o poder real julgou conveniente utilizar a burguesia contra a nobreza, para contrabalançar uma camada com a outra. Mas, a partir do momento em que a burguesia, embora impotente políticamente começou a ser perigosa, graças ao seu poderio econômico cada vez maior, a monarquia voltou a aliar-se com a nobreza. provocando, assim, primeiro na Inglaterra e logo depois na França, a revolução da burguesia. Na França, os "estados políticos" permaneciam invariáveis, mas a "situação econômica" ultrapassava os seus limites. Politicamente, a nobreza era tudo e a burguesia era nada. Socialmente, a burguesia era já a classe mais importante dentro do Estado, ao passo que a nobreza tinha perdido já todas as suas funções sociais, embora continuasse cobrando as rendas com que ainda eram remuneradas essas funções desaparecidas. E não apenas isso, mas se achava a burguesia coibida também, em toda a sua atividade de produção, pelas formas políticas feudais da Idade Média, sob as quais já há muito esta produção - não somente a manufatura, mas também o próprio artesanato - não podia mais progredir, cerceada por um excesso de privilégios gremiais e de tarifas provinciais e locais que não eram mais que outros tantos incômodos e entraves para a produção. A revolução burguesa pôs fim a tudo isso. Mas não de acordo com o princípio do Sr. Dühring, adaptando a situação econômica aos estados políticos - que era precisamente o que a monarquia e a nobreza procuravam fazer em vão, desde muitos anos -, mas pelo contrário, varrendo todas aquelas normas políticas velhas e apodrecidas, e criando "estados políticos" mais de acordo com a nova "situação econômica", onde esta pudesse viver e se desenvolver folgadamente. Na verdade, a nova "situação econômica" desenvolveu-se maravilhosamente, nessa atmosfera política e jurídica adequada às suas necessidades, tão maravilhosamente, que hoje a burguesia já não está muito longe da posição que a nobreza ocupava em 1789, pois que, de fator de progresso foi-se convertendo, pouco a pouco, num fator, não apenas socialmente inútil, mas até nocivo ao desenvolvimento da sociedade; a burguesia vai-se colocando, cada vez mais, à margem da atividade produtiva, convertendo-se, como no seu tempo a nobreza, numa classe que não faz mais do que viver de suas rendas. Todo esse processo de decadência. ao lado da criação de uma nova classe, o proletariado, se desenvolveu sem a menor intervenção da violência, por meios puramente econômicos. E ainda mais. Este resultado da atuação e da conduta da burguesia não corresponde, de modo algum. à sua vontade; muito pelo contrário, foi cedendo ante o impulso de uma força irresistível, contra a sua vontade e contra as suas intenções, simplesmente porque as suas próprias forças produtivas ultrapassaram os quadros de sua direção e empurraram a sociedade burguesa inteira, por força das leis naturais, à revolução ou à ruína. E quando os burgueses apelam para a violência com o fim de conter, à borda do abismo, a "situação econômica" que marcha para ele, isso demonstra apenas uma coisa: quem incorre no mesmo absurdo do Sr. Dühring. no absurdo de supor que os "estados políticos" são "a causa decisiva da situação econômica", aqueles que pensam, exatamente como o Sr. Dühring, que o "poderio político primitivo", o "poderio diretamente político", lhes permitirá modificar esses "fatos de segunda ordem", que constituem a "situação econômica", de modo a resistir ao irresistível desenvolvimento, como se os efeitos econômicos da máquina a vapor e de todo o maquinário moderno por ela movimentado - a rede do mercado mundial, dos bancos e do crédito, nos tempos atuais - pudessem ser varridos do mundo por meio dos canhões Krupp e dos fuzis Mauser.

Capítulo III - TEORIA DA VIOLÊNCIA

(Continuação)

      Vamos analisar, entretanto um pouco mais de perto, essa onipotente "violência" do Sr. Dühring. Robinson escraviza "Sexta-feira", "com a espada na mão". Sim, mas onde arranjou essa espada? Que se saiba, até hoje, as espadas não brotam, como árvores, de nenhum lugar da terra, nem mesmo nas ilhas imaginárias onde vivem os Robinson. O Sr. Dühring não acha oportuno responder a esta pergunta - ora, se Robinson pode armar-se de uma espada sem nos dizer de onde a tirou, nada nos impede de supor que, uma bela manhã, o nosso "Sexta-feira" aparecerá empunhando um revólver carregado e então toda a relação da "violência" estará virada pelo avesso. "Sexta-feira" se imporá e Robinson terá de trabalhar para ele. Pedimos ao leitor que nos perdoe por insistirmos tanto na história de Robinson e "Sexta-feira", mais apropriada para a recreação de crianças do que para elucubrações cientificas, mas, que havemos de fazer? Não temos outro remédio senão aplicar conscienciosamente os métodos axiomáticos do Sr. Dühring, e não temos culpa de que se limite este pesquisador a um terreno de mera puerilidade. O revólver triunfará da espada e até a criatura mais cheia de axiomas terá de reconhecer que, neste caso, a violência não é um mero ato de vontade, pressupondo, pelo contrário, condições prévias bastante reais para o seu exercício, a saber: instrumentos, entre os quais, o mais perfeito esmaga o mais imperfeito. Estes instrumentos, que não brotam do solo por si sós, tiveram de ser produzidos, o que eqüivale a dizer que o produtor dos mais perfeitos instrumentos de violência, que são as armas, triunfa sobre o produtor dos mais imperfeitos. Daí temos de reconhecer, em resumo, que a vitória da violência se reduz à produção de armas e que esta, por sua vez, se reduz à produção em geral, e, portanto, ao "poderio econômico", à "situação econômica", aos meios materiais colocados à disposição da vontade de violência.      Que vem a ser, atualmente, a violência? São os exércitos e os navios de guerra, e ambos custam, como já tivemos ocasião de aprender, por dolorosa experiência, "um montão de dinheiro". Mas, que saibamos, a violência não é capaz de criar dinheiro. A única coisa que ela sabe é arrebatar o que já foi criado, o que também de pouco nos servirá, como já o sabemos pela pungente experiência dos famosos cinco mil milhões da França. Em última análise, é sempre a produção econômica que subministra a quantidade necessária de dinheiro. Voltamos a nos encontrar, aqui, com a idéia de que a violência está condicionada pela situação econômica, da qual ela deve receber os meios necessários para se equipar com instrumentos, bem como para conservá-los. E não termina aqui a nossa história. Nada pode depender tanto dos fatores econômicos como o exército e a marinha, O armamento, a composição, a tática e a estratégia, dependem, antes de tudo, do grau de produção imperante e do sistema de comunicações. Não foram as "criações livres da inteligência" de chefes geniais que revolucionaram a estratégia militar, mas a invenção de armas mais perfeitas e as mudanças sofridas pelo material humano. O máximo que um estrategista genial pode fazer é adaptar os métodos de luta às novas armas e aos novos lutadores.      No começos do século XIV, a invenção da pólvora passou dos árabes para os europeus ocidentais, revolucionando, desse modo, como sabe aliás qualquer menino de escola, todos os métodos de guerra. E a introdução da pólvora e das armas de fogo não foi precisamente um ato do violência, mas um progresso industrial e, portanto, um progresso econômico. A indústria não perde o seu caráter de indústria por se destinarem os seus produtos a destruir e não a criar os objetos. E a adoção das armas de fogo não somente revolucionou os métodos de guerra, como também as instituições políticas de poderio e de dominação. Para conseguir pólvora e armas de fogo, faziam falta indústria e dinheiro, e ambos estes elementos estavam em mãos da burguesia das cidades. As armas de fogo foram, por isso, desde o primeiro momento, manejadas pelas cidades e pela monarquia em ascensão, que nelas se apoiava para lutar contra a nobreza feudal. As muralhas de pedra das fortalezas feudais, até então inexpugnáveis, renderam-se frente aos canhões dos burgueses e as balas dos mosquetes da burguesia trespassaram as armaduras dos cavaleiros. Ao se desbaratar a cavalaria da nobreza, com suas armaduras, se desmancha também a hegemonia da classe nobre. O desenvolvimento da burguesia fez com que passassem para o primeiro plano, como armas decisivas da guerra, a infantaria e a artilharia, tendo esta forçado a criação do uma nova seção, dentro da indústria de guerra, até então desconhecida: a da engenharia militar.      As armas de fogo desenvolveram-se com grande lentidão. Os canhões continuavam pesados. os mosquetes não perdiam sua forma tosca, apesar de muitos inventos que o modificaram em detalhes. Foi preciso que se passassem trezentos anos até que fosse inventado um fuzil que pudesse ser utilizado por toda a infantaria. Até os começos do século XVIII, o fuzil de espoleta. armado de baioneta, não eliminou definitivamente a lança, como arma de infantaria. As antigas tropas pedestres eram formadas pelos elementos mais vis da sociedade, que eram sujeitos a uma rigorosa instrução, mas não representavam nenhuma segurança e só conseguiam manter-se disciplinados à custa de pancada. Eram soldados mercenários, recrutados pelos príncipes, não poucas vezes à força, entre os prisioneiros de guerra inimigos, e a única forma de luta na qual podiam estes soldados utilizar o novo fuzil era a tática de linha, que alcançou a sua máxima perfeição sob o comando de Frederico II. Esta tática consistia em formar toda a infantaria do exército num grande quadrado de três filas, capaz de se mover somente em bloco na ordem de batalha; o que no máximo se permitia era que uma das duas alas avançasse ou recuasse um pouco. Toda essa massa disforme e lerda não só podia movimentar ordenadamente a não ser num terreno completamente plano e, mesmo assim, com grande lentidão de movimentos (à razão de setenta e cinco passos por minuto). Não se podia pensar em mudar a ordem de batalha durante o combate, e uma vez que entrava em fogo a infantaria, a vitória ou a derrota podiam ser decididas de golpe, rapidamente.      Contra estas linhas desmanteladas e tontas, se levantaram, na guerra da independência norte-americana, as guerrilhas dos rebeldes que, embora sem estar instruídos, disparavam com muito mais pontaria com as suas carabinas e, além disso, como lutavam por seus próprios interesses, não se precisava temer que desertassem, como costuma acontecer com as tropas mercenárias. E estas guerrilhas não davam aos ingleses a satisfação de enfrentá-los com este, em linha regular de combate, nem a campo aberto, operando, pelo contrário, em grupos soltos, manobrando com muita rapidez e sob a proteção dos bosques. A linha, tornada impotente teve de sucumbir frente a um inimigo invisível e inatacável e surgiu a tática dos atiradores: uma tática nova, fruto de um novo material humano.      A obra iniciada pela Revolução Americana foi levada a termo, ainda no terreno militar, pela Revolução Francesa. Frente aos treinados exércitos mercenários da coalizão, a França podia apenas levantar as suas massas, trazidas de toda a nação, numerosas mas pouco bem instruídas. Com estas massas tratava-se de proteger Paris, isto é, de defender uma determinada zona e, nestas condições, não podiam os combates abertos de massa garantir sozinhos o triunfo. Para tal resultado, não bastava também a tática de guerrilhas. Era preciso inventar uma forma nova para empregar as massas, e esta forma foi a coluna, A marcha em coluna e a sua disposição de combate permitiam ainda a tropas pouco treinadas que se deslocassem bastante ordenadamente e com certa rapidez de movimentos (à razão de cem passos e até mais, por minuto), permitiam que se rompessem as rígidas formas das velhas linhas, lutando-se em qualquer terreno, mesmo quando desfavorável para as linhas, que se agrupassem as tropas do modo mais conveniente para cada caso, podendo-se barrar, cortar o caminho e fatigar as linhas inimigas, combinando a ação regular com a ação das guerrilhas dispersas, e distraindo o inimigo até que chegasse o momento de se lançar sobre ele e de se romper a sua frente com as massas de reserva. Este novo método de luta, baseado na ação combinada de guerrilhas de colunas e no agrupamento do exército em divisões e corpos de exército independentes, integrados por todas as armas, método de luta que Napoleão utilizou e desenvolveu perfeitamente em seu aspecto estratégico e tático, surgiu, como vimos, imposto pela necessidade, precisamente na ocasião em que se transformava o material humano militar com a Revolução Francesa. Mas também pressupunha duas condições técnicas muito importantes. A primeira era a invenção, por Gribeauval, de carretas mais leves para os canhões de campanha, de modo a permitir a estes deslocar-se rapidamente. A segunda o arqueamento das escopetas de caça, que até então vinha sendo aplicado apenas no sentido de alargar o diâmetro dos canhões, quando aplicado à culatra dos fuzis, e permitir que se apontasse a um homem isolado, sem se disparar ao acaso. Este invento foi implantado na França em 1767, e podemos dizer que, sem ele, não teria sido possível equiparar eficientemente os atiradores.      O sistema revolucionário, que consistia em armar o povo, foi logo substituído pelo recrutamento obrigatório (trocado pelo resgate em dinheiro, no caso das ricos) e adotado pela maioria dos grandes Estados do continente. A Prússia foi o único país que pretendeu estender aos quadros da reserva, em grandes proporções, a força militar do povo. E foi, além disso, o primeiro Estado a adotar em toda a sua infantaria a novíssima arma, o fuzil carregado pela culatra, depois de ter usado, por pouco tempo, o fuzil de carga dianteira, aperfeiçoado e adaptado para a guerra, entre 1830 e 1860. Tais foram as duas inovações a que se deveram os triunfos prussianos de 1866.      Na guerra franco-prussiana, enfrentaram-se, pela primeira vez, dois exércitos equipados com fuzis carregados pela culatra, ambos instruídos, em essência, nas formações táticas que já eram utilizadas no tempo do velho fuzil de espoleta. Nada mais os diferenciava, a não ser que os prussianos, adotando a coluna de companhia, se esforçavam por criar uma forma de luta mais adequada ao novo armamento. Quando, porém. em 18 de agosto, perto de St. Privat, a Guarda Prussiana quis tomar a sério a ordem de batalha de sua coluna de companhia, os cinco regimentos mais empenhados na ação perderam, em duas horas, mais da terça parte de seus efetivos (178 oficiais e 5.114 homens). A partir deste momento, a coluna de companhia foi condenada a desaparecer como forma de luta, da mesma maneira que a coluna de batalhão e a linha. Abandonou-se toda e qualquer intenção de continuar expondo, ao fogo dos fuzis inimigos, formações cerradas e, a partir dessa época, os alemães passaram a guerrear somente em densas guerrilhas, naqueles mesmos enxames de tropas em que a coluna se abria, dispersando-se por si mesma, geralmente sob a chuva das balas inimigas, tática que o comando combatia como sendo contrária aos regulamentas. Uma outra inovação foi a adoção do passo rápido de marcha sob o alcance do fogo inimigo, como sendo a única forma de movimento. Novamente o soldado voltava a se mostrar mais inteligente que o oficial, descobrindo instintivamente a única forma de luta que, desde então, pôde vingar, sob o fogo do fuzil carregado pela culatra, e impondo-a, triunfalmente, apesar de todas as resistências do comando.      A guerra franco-prussiana representa, na história militar, um ponto de transição que ultrapassa em importância a todos os precedentes. Em primeiro lugar, as armas adquirem um tal grau de aperfeiçoamento que nenhum progresso é já possível capaz de revolucionar este setor. Quando já se dispõe de canhões capazes de alvejar um batalhão tão logo seja divisado a olho nu à distância, e fuzis que permitem fazer o mesmo tendo como objetivo um homem isolado e nos quais se demora menos tempo em carregar que em fazer a pontaria, todos os progressos que possam ainda ser feitos nas artes da guerra são de menor importância. Neste aspecto, podemos dizer que a era do progresso está mais ou menos terminada, pelo menos em sua parte essencial. Em segundo lugar, a guerra obrigou a todos os grandes Estados do continente a implantar o sistema rigoroso da reserva do tipo prussiano, com isso trazendo para os seus ombros uma carga militar que os levará à ruína dentro de poucos anos. Os exércitos se converteram na principal finalidade dos Estados, como um fim em si mesmos. Os povos existem hoje só para fornecer soldados e para sustentá-los. O militarismo domina e devora a Europa. Mas este militarismo traz já em seu seio o germe de sua própria ruina. A concorrência desenfreada entre os Estados os obriga a inverter cada vez mais dinheiro em tropas, em navios de guerra, em canhões, etc., acelerando, desse modo, e cada vez mais, a bancarrota financeira. Por outro lado, o serviço militar vai generalizando-se cada vez mais e com isso não faz mais que familiarizar com o emprego das armas todo o povo, ou seja, tornando-o capaz, mesmo contra a sua vontade, de impor, num determinado momento, a sua vontade à camarilha militar governante. E chegará tanto mais depressa este momento quanto mais depressa a massa do povo - os operários urbanos e rurais e os camponeses - tenham uma vontade. Chegado este momento, os exércitos dos príncipes se converterão em exércitos do povo, a máquina se negará a continuar funcionando e o militarismo perecerá, engolido pela dialética de seu próprio desenvolvimento. E o que não pôde conseguir a democracia burguesa de 1848, precisamente porque era burguesa, e não proletária, - infundir às massas trabalhadoras uma vontade ajustada à sua situação de classe - conseguirá o socialismo, infalivelmente. E pelo fato de consegui-lo, matará em suas raízes o militarismo e os exércitos permanentes.      Eis algumas lições que se podem extrair de nossa história da moderna infantaria. Uma outra lição, que nos faz voltar ao Sr. Dühring, é que toda a organização e todos os métodos de luta dos exércitos e, portanto, os triunfos e as derrotas, dependem das condições materiais, ou, mais concretamente, das condições econômicas: do material humano e do material armamento, ou melhor, da qualidade e da quantidade da população e da técnica. Somente um povo de caçadores como o americano poderia de novo pôr em prática a tática dos atiradores. E os americanos não eram caçadores por capricho, mas por causas puramente econômicas, exatamente da mesma forma por que hoje, por causas também puramente econômicas, esses mesmos yankees - pelo menos aqueles que vivem nos Estados mais antigos - se converteram em lavradores, industriais, navegantes e comerciantes, que já não se dedicam à caça no desbravamento das selvas virgens, mas que, em troca, sabem como ninguém se mover com desenvoltura no campo da especulação, no qual aplicaram também a sua tática de massas. Só uma revolução como a francesa, que emancipou economicamente o burguês e sobretudo o lavrador, poderia ter descoberto os exércitos de massa e, com eles, as formas maleáveis de deslocamento no terreno, contra as quais se esboroavam as antigas "linhas" que, por sua rigidez, eram a imagem militar do absolutismo na defesa do qual estavam sempre a batalhar. Já verificamos. seguindo passo a passo a evolução, como os progressos da técnica, enquanto se faziam aplicáveis ou se aplicavam à prática militar, provocavam e impunham quase que pela violência, imediatamente, uma série de modificações às vezes radicais, nos métodos de luta, modificações que, com freqüência, se realizavam contra as determinações do comando. Até que ponto a tática da guerra depende atualmente do estado da produção e dos meios de comunicação do país, que o exército tem em sua retaguarda, é coisa que qualquer suboficial, por pouco instruído, poderá explicar ao Sr. Dühring. Em resumo, em todas as partes e em todos os tempos, são uma série de condições econômicas e de recursos materiais que fazem com que a força triunfe, pois, sem essas condições. ela deixaria de ser força, e quem pretendesse reformar a arte da guerra do ponto de vista contrário, baseando-se nos princípios do Sr. Dühring, não ganharia mais que umas surras como recompensa.(6)      Passando dos exércitos de terra à marinha, veremos que somente os últimos vinte anos constituem uma verdadeira revolução neste aspecto da guerra. A unidade de combate da guerra da Criméia era ainda o barco de madeira com as suas duas ou três cobertas e seus 60 a 100 canhões, movido quase sempre a velas, embora auxiliado por uma pequena máquina a vapor. Seus canhões, quase todos, pesavam 50 quintais, as balas 32 libras, e um ou outro, 95 quintais e 68 libras, respectivamente. Até o fim da citada guerra surgiram as baterias flutuantes, blindadas de ferro, monstros pesados e quase imóveis, inexpugnáveis para a artilharia daquela época. A couraça de ferro não tardou a aplicar-se também aos navios de guerra. A principio era uma camada muito delgada; quatro polegadas de espessura já se considerava uma blindagem pesadíssima. Mas os progressos da artilharia alcançaram e ultrapassaram esta defesa. Para cada nova espessura da blindagem era inventado um novo canhão sempre mais pesado que a perfurava com maior facilidade. Chegamos assim às espessuras de couraças de dez, catorze, e vinte e quatro polegadas (a Itália se dispõe a construir um barco encouraçado com chapas de três pés de espessura), de um lado, e, de outro, aos canhões de 25, 35, 80 e até 100 toneladas (20 quintais de peso), capazes de lançar a distâncias antes inconcebíveis cargas de 300, 400. 1.700 e até 2.000 libras. O barco de guerra de hoje é um vapor gigantesco com chapa torneada, de oito ou nove mil toneladas de calado e 6 a 8 mil cavalos de força, com torres giratórias, e quatro ou, no máximo, seis canhões pesados, e uma proa terminada em aríete por debaixo da linha de flutuação para pôr a pique os barcos inimigos; é todo ele uma máquina gigantesca, na qual a força de vapor não somente permite um deslocamento muito mais rápido, como também toda uma série de movimentos antes desconhecidos, tais como a direção do navio da ponte do comando, o manejo do leme, a rotação das torres, a direção e o carregamento dos canhões, a sucção da água, o arriar e içar dos botes - operação que se realiza, também às vezes, a vapor, - etc. É o duelo entre a blindagem dos navios e o alcance dos canhões está muito longe de terminar, a ponto de que, geralmente, quando sai um navio dos estaleiros, já é antiquado e não mais corresponde às exigências que presidiram a sua construção. Os modernos navios de guerra não só são um produto como são também uma amostra da moderna grande indústria. São todos eles fábricas flutuantes, embora destinadas em geral a criar, em primeiro lugar, os meios de dissipar dinheiro. O país onde está mais desenvolvida a grande indústria tem quase o monopólio de construção de navios de guerra. Todos os barcos encouraçados turcos, quase todos os russos e a maioria dos alemães, foram construídos na Inglaterra. As chapas blindadas de alguma eficácia quase que só são fabricadas em Sheffield. Das três fábricas de fundição da Europa, montadas em condições de fornecer canhões mais pesados, duas correspondem à Inglaterra (Woolwich e Elswick) e a terceira à Alemanha (Krupp). Nada melhor que isto para demonstrar como a "força política imediata" que, de acordo com o Sr. Dühring, é a "causa decisiva da situação econômica", se encontra, muito pelo contrário, subordinada completamente a esta. Não é preciso mais que observar que, não só a criação como também o manejo do instrumento de força no mar, o navio de guerra, se converteu em um ramo da grande indústria moderna, Ninguém ficará tão desesperado com esta nova situação como a própria violência, isto é, o Estado, que chega à conclusão de que um navio lhe custa hoje tanto como antes uma pequena esquadra, tendo por fim que se resignar com o fato de que estes navios caríssimos sejam logo considerados obsoletos, perdendo, portanto, o seu valor antes de fazer-se ao mar. O Estado, certamente, lamenta, tão amargamente como o Sr. Dühring, que, a bordo dos navios de guerra de hoje, desempenhe papel muito mais importante o representante da "situação econômica", o engenheiro, do que o desempenhado pelo representante da "violência imediata", ou seja, o capitão. De nosso lado, não temos por que nos indignar pelo fato de que, no duelo que se está desenrolando entre as placas blindadas e os canhões, o navio vai aperfeiçoando-se, até que termine por atingir uma perfeição tal que se torne definitivamente inexeqüível e inútil para a guerra.(7) Longe de tal coisa, devemos é nos alegrar ao comprovar que este duelo também se ajusta, no caso da guerra marítima, às leis dialéticas interiores da dinâmica, por força das quais. o militarismo, como qualquer outra manifestação histórica, perecerá, devido às conseqüências de seu próprio desenvolvimento.      Fica novamente patenteado, com clareza meridiana, que não é absolutamente "na força imediata nem no poder econômico indireto" que se deve procurar o primordial". Onde é que reside precisamente o "primordial" da própria força? Como já tivemos oportunidade de ver, reside no poder econômico, na possibilidade de dispor dos recursos da grande indústria. A força política no mar, que tem a sua base e seus alicerces nos modernos navios de guerra, longe de ser uma força "imediata", é uma força resultante, pura e exclusivamente, da "mediação" do poder econômico, graças ao desenvolvimento da metalurgia e à existência de técnicos hábeis e de abundantes minas de carvão.      Mas para que perder tempo com todas estas demonstrações? Que na próxima guerra marítima se entregue o Alto Comando ao Sr. Dühring e veremos como ele destruirá todas as frotas de encouraçados, escravizados pela "situação econômica", sem utilizar torpedos ou outras armas do mesmo gênero, mas simplesmente apelando para a sua "força imediata".

Capítulo IV - TEORIA DA VIOLÊNCIA

(Conclusão)

     "Uma circunstância muito importante é a de que, efetivamente, a dominação da natureza se desenvolveu, em geral (!), precedida pela do homem (que linguagem! A dominação da natureza se "desenvolveu"!). A exploração da propriedade do solo, em grandes zonas, não se levou a efeito, nunca, em parte alguma, sem que fosse precedida pelo avassalamento do homem, sob uma forma qualquer de escravidão ou de servilismo. Para instaurar uma hegemonia econômica sobre as coisas, foi preciso que esta, necessariamente, se precedesse pela hegemonia política, social, econômica do homem sobre o homem. Como seria possível conceber-se um grande senhor territorial sem o seu correspondente domínio sobre escravos, servos ou homens privados indiretamente de liberdade? Que poderiam significar ou que teriam significado, as forças do indivíduo amparadas apenas pelas da operação familiar para um extensivo cultivo do campo? A exploração da terra ou a extensão do poder econômico sobre a mesma, em proporções tais que anulam as forças naturais do indivíduo, só foi possível até hoje, em toda a história, devido a que, antes de instaurar o poder sobre a terra, ou ao mesmo tempo em que isso se dava, se implantava também o necessário avassalamento do homem. Em épocas posteriores esse avassalamento se atenuou... nos tempos atuais, nos países mais civilizados, ele apresenta a forma de um regime de trabalho assalariado, mais ou menos controlado pelo poder policial. É neste regime que hoje se baseia a possibilidade prática do tipo da riqueza atual que se corporifica no vasto domínio da terra e (!) nas grandes propriedades do solo. É claro que também os demais tipos de riqueza distributiva podem ser explicados historicamente de um modo análogo, da mesma forma que a indireta dominação do homem pelo homem, que constitui, atualmente, o traço fundamental dos estados menos progressivos, não pode ser explicada nem ser compreendida por si mesma, mas como uma herança um pouco modificada de um primitivo regime direto de submissão e expropriação." Até aqui, falou o Sr. Dühring.      Tese: o domínio da natureza (pelo homem) pressupõe o domínio do homem (pelo homem).      Prova: a manutenção da propriedade do solo, em grandes zonas, não se realizou nunca, nem em parte alguma, que não fosse por meio de servos.      Prova da prova: Não podem existir grandes proprietários de terra sem servos, pois que, sem eles, reduzido exclusivamente à sua família, o grande proprietário só poderia cultivar uma parte muito pequena de sua propriedade.      Assim, para provar que o homem, antes de submeter ao seu domínio a natureza, teve de escravizar seu semelhante, o Sr. Dühring converte a "natureza", precipitadamente, sem qualquer preparação, numa espécie de "propriedade do solo, em grandes zonas" e esta propriedade do solo - que não nos diz a quem pertence - se converte, por seu lado, não menos subitamente, na propriedade de um grande proprietário de terras, que, por sua vez, como é lógico, não pode cultivá-la sem servos.      Em primeiro lugar, podemos observar que o "domínio da natureza" e a "exploração da propriedade do solo" não são, de modo algum, conceitos idênticos. O domínio da natureza adquire, na indústria, proporções muito mais gigantescas do que na agricultura, devido à razão de estar dominada esta pelo fator clima, por não ter conseguido ainda submetê-lo ao seu controle.      Em segundo lugar, para nos limitarmos ao cultivo ou exploração da propriedade do solo em grandes zonas, devemos saber antes de mais nada a quem pertence esta propriedade. E então chegamos à conclusão de que, nos primórdios da história de todos os povos civilizados, o que nós vemos não é esse "grande proprietário de terras" que o Sr. Dühring, com a sua habitual mania de prestidigitador - mania que ele denomina de "dialética natural" -, quer nos impingir de contrabando, mas, pelo contrário, o que vemos é a comuna rural e a tribo, com o seu regime de propriedade coletiva do solo. Desde a Índia até a Irlanda, o cultivo da propriedade do solo, em grandes zonas, pôde desenvolver-se, nas suas origens, graças precisamente a este regime coletivo das comunas rurais e das tribos, ora cultivando a terra em comum, por conta da coletividade, ora mediante a distribuição temporária de parcelas de terra a determinadas famílias, mantendo-se comunitária a utilização dos bosques e pastos. O Sr. Dühring volta a apresentar aqui os seus "minuciosos estudos profissionais, no terreno político e jurídico", demonstrando ignorar de modo absoluto todas estas coisas e dando provas em todas as suas obras de desconhecer, completamente, os estudos fundamentais e decisivos de Maurer, a respeito do "Marco" alemão, base de todo o direito alemão, e desse manancial de literatura que continua a crescer incessantemente, e que, como o próprio Maurer sugere, serve para demonstrar o fundamento do primitivo regime de comunidade do solo em todos os povos civilizados da Europa e da Ásia e que expõe as suas diferentes modalidades e as vicissitudes que o levaram à ruína. Passa-se com o Sr. Dühring. com relação ao direito alemão, a mesma coisa que se passava com o direito francês e com o inglês: "adquiriu por si mesmo toda a sua ignorância", apesar de ser esta muito grande. Esse homem, que tão raivosamente se põe a falar da limitação dos horizontes dos professores universitários, continua movimentando-se, no que se refere ao direito alemão, e talvez estejamos enganados, no mesmo terreno que se moviam os professores de há vinte anos.      É pura "criação e imaginação livre" do Sr. Dühring a afirmação de que para o cultivo ou exploração do solo em grandes zonas seja indispensável a existência de grandes proprietários e de servos: Em todo o Oriente, onde a propriedade da terra está nas mãos do município ou do Estado, o idioma desconhece mesmo a expressão "proprietário territorial". O Sr. Dühring pode informar-se disso junto aos juristas ingleses, que tanto se dedicaram na Índia, e sempre em vão, procurando averiguar quem é que ali era proprietário de terra de modo um pouco semelhante à pergunta: Quem é cínico?, feita em seu tempo, pelo príncipe Henrique LXXII de Reuss-Greiz-Schleitz-Lobenstein-Eberswalde. Foram os turcos que introduziram no Oriente, nos países por eles conquistados, uma espécie de feudalismo territorial. A Grécia penetrou na história, no período heróico, com uma organização social por camadas, que é já, por sua vez, o fruto natural de uma ampla e ignorada pré-história, também ela nos mostrando que a terra é cultivada em sua maior parte por campônios independentes, e que as grandes extensões de terra dos nobres e dos príncipes de linhagem constituem uma exceção, tendendo além disso a desaparecer rapidamente. O solo da Itália foi desbravado, em sua maior parte, por camponeses: quando, nos últimos tempos da República Romana, os proprietários dos grandes blocos de terra, os latifundiários, expulsaram os camponeses de seus lotes, substituindo-os por escravos, foi ao mesmo tempo substituída a agricultura pela criação de gado, semeando, como já predizia Plínio, a ruína da Itália (latifúndia Italian perdidere). Na Idade Média, domina em toda a Europa - sobretudo no desbravamento de terras incultas - o regime camponês, sendo indiferente a questão de se saber se esse camponês tinha ou não que pagar tributos a qualquer senhor feudal. Os colonos da Frisia, da Baixa Saxônia, de Flandres, e do Baixo-Reno. os que cultivavam. à leste do Elba. a terra arrebatada aos eslavos, trabalhavam como lavradores livres, sob um estatuto muito favorável e sem estarem sujeitos a "nenhum tipo de vassalagem". Na Norte-América, a grande maioria das terras foram abertas ao cultivo pelo trabalho de agricultores livres, enquanto que os grandes proprietários do Sul, com seus escravos e seus métodos de exploração. esgotaram o solo até o ponto de não dar mais nada, exceto pinho, razão pela qual o cultivo do algodão foi se deslocando cada vez mais em direção do Ocidente. Na Austrália e na Nova-Zelândia, fracassaram até agora todas as tentativas do governo inglês, para a instauração artificial de uma aristocracia de fazendeiros. Assim, pois, se prescindirmos das colônias do trópico, e das que ficam abaixo dele. nas quais o clima veda ao europeu o cultivo da terra, esse grande proprietário de terras, que começa por desbravar o solo e por submeter a natureza ao seu domínio, por meio de seus escravos ou de seus vassalos, não é mais que uma pura criação da fantasia do Sr. Dühring. Longe disso, ali onde aparece esse grande proprietário de terras, como aconteceu na Itália, não é precisamente para desbravar e iniciar o cultivo das terras incultas, mas, muito ao contrário, para converter em pastos as terras cultivadas pelos camponeses, despovoando e arruinando regiões imensas. E, quando chegamos aos tempos modernos, quando a grande densidade de população faz com que se eleve o valor da terra, e quando os progressos da economia permitem cultivar até mesmo as terras piores; então é que encontramos os grandes latifúndios, com o cultivo em grande escala de terras incultas e de terrenos de pasto, realizando-se essa evolução principalmente, tanto na Inglaterra como na Alemanha pela expropriação das terras comunais dos camponeses. Não se julgue que esta tendência se imponha tampouco como um caráter geral. Para cada acre de terras comunais que os grandes proprietários cultivaram na Inglaterra, converterem, na Escócia, pelos menos três acres de terra cultivadas em pasto de ovelhas e, não contentes com isso, converteram, nestes últimos tempos em simples extensões de terra destinadas à caça, povoadas de animais silvestres.      Temos que examinar aqui a tese do Sr. Dühring de que o desbravamento de grandes extensões de terra e portanto da totalidade ou quase totalidade das zonas de cultivo não se pode realizar, "nunca nem em parte alguma" a não ser pelos grandes proprietários e seus servos, tese essa que "pressupõe", como já vimos, um desconhecimento da história, verdadeiramente Inaudito. Não nos interessa, pois, por enquanto, saber até que ponto, nas diferentes épocas históricas, se tenham cultivado essas zonas, já desbravadas em sua totalidade ou em sua maior parte, por meio de escravos (como na época do apogeu da Grécia) ou por meio de servos (como no regime de vassalagem da Idade Média). Nem nos interessa tampouco verificar qual foi a função social dos grandes proprietários de terras em cada uma das diferentes épocas.      Depois de abrir ante nossos olhos este maravilhoso quadro de fantasia, no qual não se sabe o que mais admirar, se a arte de escamotear a dedução ou a de falsear a história, exclama triunfalmente o Sr. Dühring: "É evidente que as demais espécies de riqueza distributiva podem ser explicadas historicamente, de maneira análoga". O que evita para ele, naturalmente, o trabalho de explicar-nos por exemplo as origens do capital e até de fazer a menor alusão a este assunto.      Se o Sr. Dühring, ao afirmar que o domínio do homem sobre o homem é, em termos gerais, a condição prévia do domínio da natureza pelo homem, e com isto quer dizer apenas que todo o nosso atual estado econômico, o grau de desenvolvimento a que chegaram a agricultura e a indústria, são apenas o resultado de uma história social que se veio desenvolvendo por antagonismos de classe, por relações entre o poder e a vassalagem, nesse caso está afirmando alguma coisa que é já, desde a publicação do Manifesto comunista, um velho lugar comum. Trata-se precisamente de explicar as origens dessas classes e as relações do poder, e o Sr. Dühring não sabe nos oferecer mais que a repisada explicação da "violência", mas essa palavra não nos faz dar nem um passo para a frente. O simples fato de que os dominados e explorados tenham sido, em todos os tempos, uma legião muito mais numerosa do que a de seus dominadores e exploradores, tendo portanto, em suas mãos a força real basta para pôr a nu toda a inutilidade da teoria da violência. O problema está, exclusivamente, repetimos, em explicar o por que dessas relações entre o poder e vassalagem.      A sua origem é dupla.      Ao se desligarem, originariamente, do reino animal - em sentido restrito - os homens entram na história ainda meio animalizados e brutos, impotentes ainda, com relação às forças da natureza, ignorantes mesmo de suas próprias forças frágeis, pois, como as próprias bestas e apenas mais produtivos do que elas. Reina entre os homens uma certa igualdade de níveis de vida e também, entre os chefes de família, uma espécie de igualdade no que concerne à posição social; não existem ainda, pelo menos, essas classes em que se há de dividir mais tarde a sociedade, e que ainda não estamparam a sua marca nas coletividades naturais e agrárias dos povos civilizados posteriores. No seio de cada uma destas coletividades existem, desde o primeiro momento, determinados interesses comuns, cuja defesa se entrega a determinados indivíduos, embora sob o controle da coletividade, como seja: administração da justiça, repressão de atos ilegítimos, inspeção do regime de águas, principalmente nos países tropicais e, finalmente, toda uma série de funções religiosas, derivadas do primitivismo selvagem destas sociedades. Tais fenômenos de distribuição de competências se encontram, nas coletividades naturais de todas as épocas, como já ocorria na sociedade antiquíssima dos marks alemães e como ainda hoje se observa na Índia. Trazem consigo, como é lógico. uma certa amplitude de poderes e representam as origens do Estado. Pouco a pouco, as forças produtivas se vão intensificando, a densidade cada vez maior de população cria interesses. ora comuns ora formados entre as distintas coletividades, de modo que, agrupando-se num todo superior, fazem nascer uma nova divisão do trabalho, criando os órgãos necessários para cuidar dos interesses harmônicos e para defender-se contra os interesses hostis. Tais órgãos, que ocupam já, como representantes dos interesses comuns de todo o grupo, uma posição especial frente a cada coletividade particular, até mesmo inclusive inimiga, vão adquirindo dia a dia maior independência, devido, em parte, ao caráter hereditário de suas funções, caráter quase evidente num mundo em que tudo se desenvolve de um modo elementar e em parte, à proporção em que se vão tornando indispensáveis pela multiplicação dos conflitos com outros grupos. Não é necessário que examinemos aqui o modo como esta independência da função social frente à sociedade foi convertendo-se, com o correr dos tempos, numa verdadeira hegemonia sobre a própria sociedade, o modo como os primitivos servidores da sociedade, nos lugares onde as circunstâncias lhes foram propícias, foram-se erigindo paulatinamente em senhores dela própria e, finalmente, o modo como, de acordo com o ambiente, esses mesmos senhores se instauraram, no Oriente, como déspotas ou sátrapas, na Grécia, como príncipes de linhagem, entre os celtas, como chefes de clã, e assim por diante. Deixaremos de tratar, além disso, até que ponto, para se entronizar desse modo, tiveram eles que se servir exclusivamente da violência, ao mesmo tempo em que, finalmente, os diversos indivíduos entronizados foram-se agrupando para formar uma classe dominante. A única coisa que nos interessa é patentear que a hegemonia política teve por base, em todas as partes, o exercício de uma função social, podendo garantir-se tão somente enquanto preenchesse a função social em que se fundamentava. Muitos foram os déspotas que passaram pelo poder, na Pérsia e na Índia, mas todos eles sabiam perfeitamente que a sua missão coletiva era, antes de tudo, a de regar os vales, pois que sem irrigação não se podia fazer ali agricultura. Foi preciso que chegassem os ingleses civilizados para que esse dever primordial do despotismo, no Oriente, fosse esquecido. Os ingleses deixaram que se estragassem os canais e as represas, e, atualmente, depois de muitos anos, as épocas periódicas de fome vêm a lhes apontar que menosprezaram a única atividade que poderia tornar a sua hegemonia sobre a Índia pelo menos tão legítima quanto a de seus antecessores.      Paralelamente a este processo de formação de classes, ainda um outro se desenvolvia. O regime elementar de divisão do trabalho, implantado no seio da família lavradora, permitiu, ao ser atingido, um certo grau de bem-estar, a incorporação à família de uma ou várias forças de trabalho alheias à ela. Isso se deu, sobretudo, naqueles países em que o regime primitivo de propriedade do solo já se tinha desagregado, ou, pelo menos, tinha cedido lugar o sistema de exploração em comum ao cultivo individual das lotes de terra, pelas famílias isoladamente. A produção tinha-se desenvolvido em tais proporções que, então, a força humana de trabalho já era capaz de criar mais do que o necessário para o seu mero sustento. Contava-se com os meios indispensáveis para a manutenção de novas forças de trabalho, assim como com os meios necessários para dar-lhes ocupação. A força de trabalho adquiriu um valor. Mas nem a coletividade, por si mesma, nem o agrupamento de coletividades de que ela fazia parte podiam fornecer forças de trabalho disponíveis, excedentes. Fornecia-as a guerra, que já se efetuava a partir, pelo menos, dos tempos em que começaram a coexistir, lado a lado, distintos grupos sociais. Até essa época, não se tinha sabido, ainda, como empregar os prisioneiros de guerra, razão pela qual eram eles liquidados em vez de se os alimentar, como era costume em épocas anteriores. Ao chegar, porém, a esta etapa da evolução econômica, os prisioneiros de guerra começaram a representar um valor. Por isso, deixaram-nos viver, a fim de aproveitarem-se de seu trabalho. Como vemos, a violência, longe de se impor sobre a situação econômica, foi posta a serviço desta. Haviam sido lançadas as bases da instituição da escravidão. Não tardou esta em converter-se na forma predominante da produção em todos os povos que já haviam ultrapassado as limitações das comunidades primitivas, para terminar por ser uma das causas principais de sua ruína. Foi a escravidão que tornou possível a divisão do trabalho, em larga escala, entre a agricultura e a indústria, e foi graças a ela que pôde florescer o mundo antigo, o helenismo. Sem escravidão, não seria possível conceber-se o Estado grego, nem a arte e a ciência da Grécia. Sem escravidão não teria existido o Império Romano. E sem as bases do helenismo e do Império Romano não se teria chegado a formar a moderna Europa, Não nos deveríamos esquecer nunca que todo o nosso desenvolvimento econômico, político e intelectual, nasceu de um estado de coisas em que a escravidão era uma instituição não somente necessária. mas também sancionada e reconhecida de um modo geral, Podemos, neste sentido, afirmar, legitimamente, que, sem a escravidão antiga, não existiria o socialismo moderno.      Não há nada mais para fazer-se que lançar umas quantas frases melodramáticas contra a escravidão e contra tudo o que se lhe assemelha, derramando uma torrente de indignação moral contra semelhante ignominia. Desgraçadamente, nada se consegue com isso, a não ser proclamar o que já todo o mundo sabe: que essas instituições dos tempos antigos já não se ajustam' à nossa época, nem aos sentimentos que essa época forma em cada um de nós. Por tal caminho, não conseguiríamos provar nem uma palavra sobre o modo por que nasceram essas instituições, nem como elas se mantiveram e o papel que desempenharam na História. Neste terreno, por mais paradoxal e mais herético que possa parecer, não temos outro remédio senão dizer que a implantação da escravidão representou, nas circunstâncias em que ocorreu, um grande progresso. É indiscutível que a humanidade saiu de um estado de animalidade e que necessitou utilizar, portanto, de meios bárbaros e quase bestiais para erguer-se desse estado de barbárie. As antigas comunidades, onde subsistem essas instituições, formam, desde milhares de anos, da Índia à Rússia, a base da mais tosca forma de Estado: o despotismo oriental. Somente onde essas comunidades primitivas se dissolveram, conseguiram os povos continuar progredindo por impulso próprio, e seu progresso econômico imediato consistiu precisamente em intensificar e desenvolver a produção por meio do trabalho dos escravos. Enquanto o trabalho humano era muito pouco produtivo, é claro que apenas fornecia um pequeno excedente, depois de satisfeitas as necessidades mais prementes da vida, não se podendo tratar da intensificação das forças produtivas, da ampliação do mercado, do aperfeiçoamento do Estado e do Direito, da fundação de nenhuma arte e de nenhuma ciência, a não ser pela mais reforçada divisão do trabalho, em cuja base estava, forçosamente, a grande divisão do trabalho entre as massas dedicadas ao simples trabalho manual e uns poucos privilegiados, ao cargo dos quais estava a direção dos trabalhos, o comércio, o trato dos negócios públicos e, mais tarde, o cultivo das artes e ciências. Pois bem; a forma mais simples e mais elementar de instituir essa divisão do trabalho foi a escravidão. Dentro das condições históricas do mundo antigo e, em especial, do mundo grego, o progresso que existia na instauração de uma sociedade baseada em antagonismos de classe, somente podia levar-se a cabo sob a escravidão. E representava esta instituição um progresso até para os próprios escravos: permitia, pelo menos, aos prisioneiros de guerra, entre os quais eram recrutados em seu maior número os escravos, que conservassem as vidas já que, até então, eram todos exterminados, no começo, por meio da fogueira, e, depois, por meio do cutelo.      Já que a ocasião é propícia, queremos acrescentar que, até hoje. todas as diferenças históricas entre classes exploradoras e exploradas, dominantes e dominadas, tiveram a sua raiz nessa tão imperfeita produtividade relativa do trabalho humano. Enquanto a população realmente trabalhadora, absorvida por seu trabalho necessário, não teve nem um momento livre para se dedicar à direção dos interesses comuns da sociedade - direção dos trabalhos, dos negócios públicos, solucionamento dos litígios, arte, ciência, etc., tinha que haver necessariamente uma classe especial que, livre do trabalho efetivo, tratasse desses assuntos. Esta classe acabava sempre, infalivelmente por impor novas e novas sobrecargas de trabalho sobre os ombros das massas produtoras, além de explorá-las em seu proveito próprio. A gigantesca intensificação das forças produtivas, conseguida graças ao advento da grande indústria, é que tornou possível que o trabalho se possa distribuir, sem exceção, entre todos os membros da sociedade, reduzindo dessa forma a jornada de trabalho do indivíduo a tais limites, que deixem a todos um tempo livre suficiente para que cada um intervenha - teórica e praticamente - nos negócios coletivos da sociedade. Hoje somente é que se pode asseverar que toda classe dominante e exploradora é inútil e, mais ainda, prejudicial e entravadora do processo social. Até hoje, no entanto, não tinha chegado o momento em que essas classes deveriam ser suprimidas, como o serão, inelutavelmente, por mais que se defendam por detrás das trincheiras da "força imediata".      O Sr. Dühring, que cerra as sobrancelhas ao falar dos gregos, por que o seu regime de vida estava baseado na escravidão, poderia também fechar-lhes a cara por não conhecerem a máquina a vapor e o telégrafo sem fios. E, quando afirma que a nossa moderna vassalagem assalariada não é mais que uma herança um pouco modificada da escravidão, sendo uma instituição que não se pode explicar por si mesma (isto é. pelas leis econômicas da moderna sociedade). as suas palavras significam que, ou o trabalho assalariado e a escravidão são duas formas de dominação e império de uma classe sobre outra, coisa que qualquer criança já sabe, ou, no caso de não significarem tal coisa, elas são falsas, pois, com a mesma razão, poderíamos dizer que o trabalho assalariado somente pode ser explicado como uma forma mitigada da antropofagia, que era, primitivamente, o fim que se dava aos inimigos vencidos.      Compreende-se com toda a clareza, do que ficou dito acima, qual o papel desempenhado pela violência, na História, com relação ao desenvolvimento econômico. Em primeiro lugar, a força política se baseia, sempre, desde as suas origens, numa função econômica, social, e ela se intensifica na medida em que, com a dissolução da primitiva comunidade, os indivíduos se convertem em produtores privados, aprofundando-se mais ainda a sua separação dos que dirigem as funções sociais coletivas. Em segundo lugar, assim que a força política adquire existência própria em relação à sociedade, convertendo-se os seus detentores de servidores em seus donos, pôde essa força passar a atuar em, dois sentidos diferentes. As vezes atua no sentido e com a orientação das leis que regem o desenvolvimento econômico. Neste caso, não há nenhuma discrepância entre os dois fatores, e a violência não faz mais que acelerar o processo econômico. Outras vezes, entretanto, a força política atua em sentido contrário e, nestes casos, acaba sempre por sucumbir, com raras exceções, frente ao vigor da evolução econômica. Essas raras exceções se referem a casos isolados de conquista. em que o invasor, menos civilizado, extermina ou persegue a população de um país, devastando ou deixando inutilizarem-se as forças produtivas do país invadido, com as quais nada sabe realizar. Foi o que os cristãos, na conquista da Espanha mourisca, fizeram com a maior parte das obras de irrigação, nas quais se baseava o progressista sistema de agricultura e de horticultura dos árabes. Toda a conquista de um país por parte de um povo inferior entorpece-lhe, indubitavelmente, o desenvolvimento econômico e anula numerosas forças produtivas. Na imensa maioria dos casos, porém, casos em que a conquista é duradoura, o conquistador, se for um povo inferior ao conquistado, não tem outro remédio senão submeter-se à "situação econômica" deste, que é superior, terminando a conquista com a assimilação do conquistador pelo conquistado, que lhe impõe, inclusive, na maior parte das vezes, o seu próprio idioma.      Nas situações em que a força, além dos casos de conquista, é representada pelo poder interior do Estado, e chega a se opor ao desenvolvimento econômico do país. como vemos acontecer sempre com o poder político, num determinado grau de evolução, nestes casos, a luta termina sempre com a derrocada do poder político. A evolução econômica vence todas as barreiras, sempre, inexoravelmente, sem exceção. Tivemos já oportunidade de citar o último exemplo histórico irrefutável desta lei: a Grande Revolução Francesa. Se a situação econômica, e com ela o regime econômico de cada país, estivesse na dependência simples da força encarnada no Poder político, como quer a teoria do Sr. Dühring, não se compreenderia por que, depois de 1848, Frederico Guilherme IV da Prússia, não houvesse podido, apesar de seu "maravilhoso exército", mandar fundir nas corporações medievais e noutras, quaisquer quimeras românticas as estradas de ferro, as máquinas a vapor, e toda a grande indústria que começava por aquela época a se desenvolver em seu país. Nem se compreende por que o imperador da Rússia, muito mais poderoso que o rei da Prússia, não seja capaz de pagar as suas dívidas, nem sequer consiga manter a sua "violência", sem se comprometer, correndo constantemente em busca de créditos, junto à "situação econômica" da Europa ocidental.      Para o Sr. Dühring, a violência é a maldade absoluta. O primeiro ato de força é, em sua Bíblia, o pecado original, reduzindo-se todo o seu arrazoado a um sermão jeremíaco sobre o contágio do pecado original em todos os fatos históricos, e sobre a infame deturpação de todas as leis naturais e sociais por esse poder satânico, que é a força. Sabemos nós que a violência desempenha também, na história, um papel muito diferente, um papel revolucionário; sabemos que ela é, também, para usar uma expressão de Marx, a parteira de toda a sociedade antiga, que traz em suas entranhas uma outra nova: que é ela um instrumento por meio do qual se faz efetiva a dinâmica social, fazendo saltar aos pedaços as formas políticas fossilizadas e mortas. Mas, a respeito de tal aspecto. nada nos diz o Sr. Dühring. Reconhece unicamente, entre suspiros e gemidos, que, para derrubar o regime de exploração, não há outro remédio senão usar a violência: desgraçadamente, acrescenta, pois o emprego da violência desmoraliza sempre a quem a utiliza. E diz-nos essas palavras, esquecendo-se do elevado impulso moral e espiritual que emana de toda revolução triunfante! E diz-nos tal coisa aqui, na Alemanha. onde um choque violento - que se pode impor em caso necessário, ao povo (quem o duvida?) - teria ao menos a vantagem de varrer da consciência nacional essa espécie de submissão servil que dela se apoderou desde a humilhação da guerra dos Trinta Anos! E será esse pregador desconexo, sem seiva e sem força, quem pretenderá impor sua doutrinas ao partido mais revolucionário que a história conhece?

Capítulo V - TEORIA DO VALOR

     Há cerca de cem anos, apareceu, em Leipzig, um livro, que alcançou trinta e uma edições, até o começo do atual século, tendo sido distribuído e difundido nas cidades e aldeias, pelas próprias autoridades, por pregadores e por filantropos de toda a espécie, além de ser colocado em todas as escolas públicas do país, como texto de leitura. O título deste Livro era: O Amigo da Criança, e tinha por autor um tal Rochow. A sua finalidade era doutrinar, aos jovens filhos dos camponeses e dos artesãos, a respeito de sua missão na vida e de seus deveres para com os seus superiores hierárquicos, na sociedade e no Estado, infundindo-lhes contentamento com a sorte benfazeja que o céu lhes tinha reservado na terra, e, ao mesmo tempo, com o pão negro e as batatas, as tributações feudais e os magros salários, as surras recebidas de seu pai, e outras coisas não menos agradáveis, tudo divulgado por meio de raciocínios que eram muito comuns naquela época. Fazia-se ver aos meninos da cidade e da aldeia quanto era sábia a organização da natureza, que fazia com que o homem tivesse de correr ao trabalho para adquirir os meios de sustento e para assim poder desfrutar da vida, e quanto se deviam sentir ditosos o camponês e o artesão, pois que o céu lhes permitia temperar a sua comida com o duro trabalho, em lugar de estar padecendo do estômago, do fígado ou de indigestões, como o rico glutão, que sente repugnância até ao engolir os bocados mais apetitosos. Os mesmos lugares comuns que o velho Rochow julgava excelentes, em seu tempo, para os pequenos camponeses da Saxônia, são os que o Sr. Dühring nos oferece nas páginas 14 e seguintes de seu "Curso", como sendo o "absolutamente fundamental na Novíssima Economia Política".      "As necessidades humanas, como tais, se governam por leis naturais e, no que se refere ao seu aumento, elas se fecham dentro de certos limites que podem ser apenas contrariados durante algum tempo pela desobediência à natureza, mas que, finalmente, trazem asco, cansaço da vida, abatimento, atrofia social, e, por fim. uma salvadora destruição... Um jogo feito de puros prazeres, sem finalidade útil nenhuma, conduziria depressa ao embotamento, ou melhor, ao desgaste de toda a sensibilidade. O trabalho real, sob qualquer forma é, pois, a lei social da natureza dos homens sadios... Se não existisse um .contrapeso para os instintos e as necessidades, eles nos dariam apenas uma existência infantil, mas nunca, de modo algum, um desenvolvimento historicamente progressivo. Satisfeitos sem nenhum esforço, eles se esgotariam depressa, deixando somente como resto uma existência desolada, que se representaria por uma série de interregnos enfermiços, que fluiriam depois e cada repetição dos prazeres... O fato da satisfação dos instintos e das paixões depender da superação de um obstáculo econômico constitui, pois, uma lei saudável, sob todos os aspectos, e que é fundamental para a natureza exterior, para o seu modo de se organizar, e para a estrutura interior do homem", etc., etc. Como se está vendo, as mais banais vulgaridades do livro de Rochow podem celebrar no Sr. Dühring o jubileu de seu centenário, porque se renovaram, convertidas, além disso, na "mais profunda fundamentação" do único "sistema socialitário" verdadeiramente crítico e científico que jamais existiu.      Após ter assentado os alicerces conforme ficou exposto acima, pôde o Sr. Dühring prosseguir na sua construção. De acordo com o método matemático, ligando-se ao precedente do velho Euclides, começa ele por nos oferecer uma série de definições. É um processo muito cômodo, tanto mais que são as definições construídas de tal modo, que nelas entra pelo menos uma parte daquilo que se trata de provar e definir. Por esse processo, seremos informados, logo no início do estudo, de que o conceito que preside toda a vida econômica até os nossos dias se denomina riqueza. E que a riqueza, tal como vem sendo entendida efetivamente até os nossas dias, na História Universal. e tal como se desenvolveu o seu império, pode ser definida como "o poder econômico sobre homens e coisas". É essa uma afirmação duplamente falsa. Em primeiro lugar. a riqueza das antigas tribos e comunas rurais não era, nem longinquamente, um poder sobre homens, e em segundo lugar, tampouco a riqueza se refere, predominantemente, nas sociedades que se desenvolvem sobre os antagonismos de classe, sobre o avassalamento de homens, mas, pelo contrário, este domínio sobre homens, quando existe. existe e se desenvolve por maio de relações de poder sobre coisas. A partir do instante remoto em que o aprisionamento e a exploração de escravos se converteram em dois negócios distintos, os exploradores do trabalho dos escravos souberam comprar escravos, adquirindo, disse modo, o poder sobre o homem por meio do poder sobre as coisas, isto é, sobre o preço do escravo e sobre os seus meios de vida e instrumentos de trabalho. Durante toda a Idade Média, a grande propriedade da terra é a condição prévia. graças à qual a nobreza feudal arregimenta colonos e vassalos, sujeitos todos à tributação, E, atualmente, até uma criança de seis anos pode saber que a riqueza, afirmando o seu poderio sobre os homens. consegue esse objetivo, pura e exclusivamente. por meio das coisas de que dispõe.      Que obriga o Sr. Dühring à construção dessa falsa definição de riqueza. deixando de lado a relação efetiva que se vem impondo, até hoje, em todas as sociedades de classe? Fez isto simplesmente com a intenção de arrastar a riqueza do terreno econômico para o terreno moral. O poder do homem sobre as coisas é uma instituição muito boa, mas o seu domínio sobre os outros homens é abominável, e, como o Sr. Dühring foi absolutamente incapaz, por si mesmo, de explicar a dominação dos homens como derivada da dominação das coisas, resolveu explicar esse fenômeno por um novo e audacioso salto, pura e simplesmente como sendo um fruto de sua amada violência. E assim chegamos à conclusão de que a riqueza, como poder subjugador de homens, passa a ser a "rapina" e nos encontramos, desse modo. com uma nova edição, nada melhorada, da antiquíssima fórmula proudhoniana: "A propriedade é um roubo".      Felizmente, acabamos de passar em revista a riqueza dos dois pontos de vista essenciais da produção e da distribuição. Em primeiro lugar, a riqueza concebida como um poder sobre as coisas, a chamada riqueza de produção, lado bom; e em segundo, a riqueza concebida como um poder sobre os homens, ou seja, a que tem sido chamada de riqueza de distribuição, lado mau, expulsemo-la! Esta classificação, aplicada às atuais condições, pode ser explicada do seguinte modo: o regime capitalista de produção é excelente e pode continuar existindo, mas o regime capitalista de distribuição não serve e deve ser abolido. Veja-se a que absurdo chegam os que se põem a escrever sobre economia sem ter a menor idéia da relação entre produção e distribuição.      Depois de se definir a riqueza, tem-se a definição do valor: "Valor é a cotização que as coisas e os serviços econômicos alcançam no comércio". Essa cotização corresponde "ao preço ou a um qualquer nome de equivalente, como, por exemplo, ao salário", ou, o que vem a ser a mesma coisa: o valor é o preço. Mas não queremos ser injustos com o Sr. Dühring e por isso vamos reproduzir o absurdo de sua definição, transcrevendo-a com a maior fidelidade pelas suas próprias palavras: o valor são os preços. Pois é o que ele diz na página 19: "O valor e os preços que o exprimem em dinheiro", reconhecendo com isso, sem que ninguém o exija, que um mesmo valor pode corresponder a diferentes preços, e, portanto, segundo o que dissemos atrás, a diferentes valores. Se Hegel não estivesse morto e bem morto, ao ler uma tal coisa ele se enforcaria. Não seria capaz de compreender, apesar de todas as suas teologias, essa espécie de valor que tem tantos valores diferentes como preços. É preciso ter-se, com efeito, a agudeza do Sr. Dühring para expor uma nova e mais profunda fundamentação da economia, pela declaração de que entre o preço e o valor não existe maior diferença que a do fato de que o primeiro se exprime em dinheiro, enquanto que o segundo não.      Continuamos, porém, sem saber o que é valor e a nossa ignorância é ainda maior a respeito dos fatores que o determinam. O Sr. Dühring vê-se obrigado pois a desenvolver novas explicações. "Em termos muito gerais, a lei fundamental da comparação e da avaliação, na qual se baseiam o valor e os preços que o exprimem em dinheiro, reside primeiramente na esfera da pura produção, deixando de lado a distribuição, que se limita a introduzir no conceito de valor um segundo elemento. Os obstáculos mais ou menos grandes, que a diversidade de relações naturais opõe às aspirações tendentes à aquisição dos objetos, obrigando-as a um desgaste maior ou menor de força econômica, determinam também... "o valor, maior ou menor", e este se calcula tendo-se em vista a "resistência à aquisição que opõem à natureza e às circunstâncias. À proporção em que depositamos neles. (nos objetos) a nossa própria força é a causa decisiva e imediata da existência do valor em geral, e, em particular, a causa de sua grandeza."      Se estas palavras têm algum sentido, só pode ser o de que o valor de um produto do trabalho se determina pela quantidade do trabalho necessário para a sua elaboração, coisa que já sabíamos há muito tempo, sem necessidade de que o Sr. Dühring no-la viesse dizer. O que acontece é que O Sr. Dühring, incapaz de expor os fatos pura e simplesmente, se vê forçado a revesti-los com a sua roupagem oracular, É totalmente falso que a proporção em que o homem deposita a sua força em um bjeto (conservamos a grandiloqüente expressão) seja "a causa decisiva imediata" do valor e de sua grandeza. Em primeiro lugar é preciso saber em que objetos se concentra a força e, em segundo lugar, como é que esta se concentra. Se um homem cria um objeto que não tem valor de uso para os outros homens, por muita força que concentre nele, não produzirá nem sequer um átomo de valor. E, por mais que se esforce em produzir manualmente um objeto que uma máquina produz vinte vezes mais barato, dezenove vigésimos da força por ele gasta não terá nenhum valor e, portanto, nenhuma quantidade especial de valor. Ademais, procurar converter o trabalho produtivo, criador de produtos positivos, numa simples superação negativa de resistências, é querer inverter completamente os conceitos. De acordo com essa idéia, para chegar a produzir uma camisa teríamos que fazer o seguinte: em primeiro lugar, vencer a resistência da semente da planta do algodão, que se opõe a ser semeada e a crescer; em seguida, a resistência do algodão maduro contra a colheita, contra o enfardamento e a expedição; depois a resistência que apresenta o produto enfardado a ser desamarrado, beneficiado e fiado; mais tarde, a resistência do fio a ser tecido, a do tecido a ser clareado e costurado e, finalmente, a resistência da camisa já confeccionada a ser vestida.      Para que todas essas invenções e complicações pueris? Simplesmente para chegar, por meio da "resistência", do "valor de produção", do verdadeiro valor, que até agora não tem sido senão um valor puramente ideal, mas que é o único que regula os fatos na História, ao valor da distribuição, falseado pela violência: "Além da resistência que a natureza já opõe... há um outro obstáculo, puramente social... Entre o homem e a natureza se levanta um poder entorpecedor que é, novamente, o homem. O homem, concebido individual e isoladamente, é livre frente à natureza... Mas a situação se modifica desde que pensemos num segundo homem que, com a espada na mão; barra o acesso à natureza e aos seus tesouros, exigindo um preço, sob uma ou outra forma, para deixar livre o caminho. É como se esse segundo homem... impusesse um tributo ao primeiro, sendo esta a razão por que o valor dos objetos que se deseja seja superior ao que teria sido se este obstáculo político e social não se levantasse coibindo a aquisição ou a produção... As modalidades especiais desta cotização artificialmente aumentada dos objetos, que levam naturalmente consigo uma baixa proporcional no que se refere à cotização do trabalho, são variadíssimas... Assim, portanto, é uma ilusão querer ver no valor, desde o primeiro instante, um equivalente, no sentido restrito da palavra, isto é, uma igualdade de valor, ou uma relação de troca ajustada ao principio da igualdade da prestação e da contraprestação de serviços... Pelo contrário, a nota característica de uma teoria exata do valor é que a causa mais geral de avaliação que se concebe não coincide com a modalidade de cotização que tem a sua base na coação distributiva. Esta cotização varia quando varia a organização social, enquanto que o verdadeiro valor econômico somente pode ser um valor de produção mensurado em relação à natureza, e, portanto, pode variar só com os simples obstáculos da produção, sejam de caráter natural ou técnico,."      Isto quer dizer que, no modo de ver do Sr. Dühring, o valor de uma coisa que vigora na prática consta de duas partes: a primeira é o trabalho que esta coisa encerra e a segunda é a sobrecarga tributária ue lhe é imposta pela força do homem da "espada na mão". Ou, por outras palavras o valor que está em vigor na atualidade é um preço de monopólio. Pois bem, se, de acordo com essa teoria, todas as mercadorias circulam sob um preço de monopólio, teremos apenas duas hipóteses. Uma é a de que todo o comprador voltaria a perder, como comprador, tudo o que ganhasse como vendedor, e, neste caso, os preços se teriam modificado apenas nominalmente, pois na realidade se manteriam invariáveis - na mútua proporção - e tudo continuaria a ser como anteriormente, desaparecendo como uma mera aparência o valor de distribuição. A outra hipótese é a de que a pretendida sobrecarga tributária representa em realidade uma soma de valor, a saber: a soma de valor que a classe trabalhadora, criadora de valores, produz e da qual a classe monopolizadora se apropria, caso em que esta soma de valor é formada, simplesmente, pelo trabalho não retribuído; mas por este caminho, chegaremos, necessariamente, apesar do homem de espada na mão, apesar de todos os encargos tributários e do tão falado valor de distribuição, ao ponto a que Marx já havia chegado: à teoria da mais-valia.      Entretanto, paremos um pouco para examinar alguns exemplos do famosíssimo "valor de distribuição". Nas páginas 125 e seguintes, afirma: "A modelação do preço pela concorrência individual deve ser considerada também como uma forma de distribuição econômica e de mútua imposição de tributos... Se partirmos da suposição de que as existências de uma qualquer mercadoria necessária diminuem subitamente de modo considerável, o vendedor ficará, de repente, com um poder de exploração desproporcional... e essas situações anormais, nas quais se impede, por muito tempo, a afluência de artigos necessários, patenteiam com evidência as gigantescas proporções que este poder pôde atingir etc. Além disso, afirma-nos o Sr. Dühring que, no curso normal das coisas, existem também monopólios efetivos que permitem fazer subir arbitrariamente os preços, como acontece, por exemplo, com as estradas de ferro, com as companhias urbanas de distribuição de água, gás de iluminação, etc. Não é coisa nova a existência de casos de exploração monopolista. O que é de fato novo é a afirmação de que os preços engendrados pelo monopólio não constituem exceções de casos específicos, mas que são, pelo contrário, um exemplo clássico do atual regime de fixação de valores. Como se determinam os preços dos gêneros alimentícios? O Sr. Dühring nos responde: Ide a uma cidade sitiada onde estejam secas as fontes do mercado e ficareis sabendo! Como atua a concorrência sobre a fixação dos preços no mercado? Resposta: Perguntai aos monopólios e tereis a explicação!      Por muito que olhemos, não conseguimos descobrir, nesses monopólios, onde está o famoso homem que mantém a vigilância junto a eles, com a espada na mão. Longe disso, nas cidades sitiadas o homem com a espada na mão, comandante da praça, se está cumprindo com o seu dever, o que faz é dar um fim ao monopólio ao mesmo tempo em que requisita os estoques acumulados para distribuir eqüitativamente os gêneros. Sempre que os homens da espada pretenderam fabricar um "valor de distribuição" não conseguiram senão desastres e perdas de dinheiro. Pelo seu monopólio do comércio das Índias Orientais, não conseguiram os holandeses outra coisa mais que a ruina de seu monopólio e de seu comércio. Os dois governos mais fortes que já existiram no mundo, o governo revolucionário norte-americano e a Convenção Nacional, tiveram pretensão de fixar os preços máximos e fracassaram lamentavelmente. Há muitos anos, o governo russo vem trabalhando por fazer elevar, em Londres, à força de comprar naquele mercado letras de câmbio sobre a Rússia, a cotação do papel-moeda russo que, em seu próprio país, está baixando, ininterruptamente, deprimida pelas continuas emissões de bilhetes de banco de curso forçado. Em poucos anos, essa farsa custou ao Erário russo cerca de 60 milhões de rublos e, atualmente, o rublo, que devia valer normalmente mais de 3 marcos, está valendo menos de dois. Se a espada tem esse poder mágico que lhe atribui o Sr. Dühring, por que então, até hoje, nenhum governo foi capaz de infundir, em larga escala, ao dinheiro mau, o "valor de distribuição" do dinheiro bom, ou ao papel-moeda o valor do ouro? E, além disso, onde é que está a espada que governa o mercado mundial?      Existe, entretanto, outra forma de capital na qual o valor de distribuição torna possível a apropriação de prestações de serviços de outrem, sem contraprestações: "a renda possessória", ou seja, a renda da terra mais o lucro do capital. Limitar-nos-emos, por enquanto, a consignar essas definições, para poder acrescentar, a seguir, que elas são tudo o que nos dizem sobre o famoso "valor de distribuição". Tudo? Não, tudo não. Ouçamos o seguinte: "A despeito do segundo ponto de vista que se manifesta no reconhecimento da existência de um valor de produção e de um valor de distribuição, ficará sempre de pé alguma coisa de comum, aquele objeto básico do qual se formam todos os valores e pelo qual, portanto, podem todos ser medidos. A medida imediata e natural para todos é o desgaste de forças, e a unidade de medida mais simples é a força humana, no sentido mais cru da palavra. Esta medida se reduz, em última instância, ao tempo da existência humana, cuja própria conservação implica por sua vez na superação de uma determinada soma de dificuldades de alimentação e de vida. O valor de distribuição ou de apropriação existe somente, pura e exclusivamente, ali onde pode dispor sobre coisas não produzidas, ou, usando a linguagem vulgar, ali onde estas mesmas coisas se trocam por objetos ou serviços que representam verdadeiro valor de produção. O traço comum entre todas as expressões do valor e que, portanto, se evidencia e aparece representado nas partes integrantes do valor, apropriadas pela contraprestação, consiste no desgaste de força humana que aparece... encarnado em toda a mercadoria."      Que devemos dizer a respeito disto? Se todos os valores das mercadorias são medidos pelo desgaste de força humana que as mercadorias representam, que foi feito do famoso valor de distribuição, da elevação dos preços, da imposição dos tributos? É verdade que o Sr. Dühring nos afirma que também as coisas não produzidas, incapazes portanto de conter um verdadeiro valor, adquirem um valor de distribuição podendo pois ser trocadas por objetos produzidos nos quais existe um valor. Mas, ao mesmo tempo, afirma que todos os valores inclusive os valores pura e simplesmente de distribuição, consistem num desgaste de força que eles representam. Francamente não compreendemos, por infelicidade, que desgaste de força pode representar uma coisa não produzida. De toda essa confusão de valores, o que nos parece claro é que esse pretendido valor de distribuição, essa elevação de preços, imposta sobre as mercadorias por meio da posição social, essa tributação imposta pela espada, tudo isso não tem existência alguma. Que representam os valores das mercadorias, determinados exclusivamente pelo desgaste da força humana, chamada popularmente traba1ho? O Sr. Dühring. deixando de lado a renda da terra além de uns tantos preços isolados de monopólio, diz-nos, então, embora muito mais desconexa e confusamente, a mesma coisa que já afirmara. há muito tempo. com muito maior precisão e clareza, a detestada teoria de Ricardo e de Marx.      Sim ele afirma isso e, ao mesmo tempo e de um só fôlego, afirma o contrário. Marx. partindo das investigações de Ricardo, diz o seguinte: O valor das mercadorias é determinado pelo trabalho geral, humano, socialmente necessário, nelas materializado, o qual, por sua vez, é medido pela sua duração. O trabalho é a medida de todos os valores, mas não possui valor algum. O Sr. Dühring. depois de ter exposto à sua moda, extravagantemente, que o trabalho é a medida do valor, acrescenta: O trabalho "se resume no tempo de existência e a sua própria conservação representa, por seu lado, a superação de uma determinada soma de dificuldades de alimentação e de. vida". Passemos por alto sobre esta confusão - nascida do puro anseio de originalidade - que o Sr. Dühring cria entre o que é tempo de trabalho - a única coisa que nos interessa neste momento - e o que é tempo de existência, que não sabemos o que tenha sido, alguma vez até o dia de hoje, fonte ou medida de valores. Deixemos de lado, também, essa falsa aparência "socialitária" com que pretende nos envolver, ao falar da "própria conservação" desse tempo de existência: enquanto o mundo for mundo, toda pessoa que quiser se sustentar a si mesmo terá que fazê-lo consumindo, também por si mesma, os seus meios de vida. Demos por suposto que o Sr. Dühring se havia expressado em termos econômicos e precisos e que a sua afirmação acima transcrita se resume no seguinte: O valor de uma mercadoria é determinado pelo tempo de trabalho que representa e o valor desse tempo de trabalho é representado pelos meios de vida necessários para sustentar, durante esse período. o operário, o que. aplicado à sociedade atual, quer dizer que o valor de uma mercadoria se determina pelo salário que nela está encerrado.      Terminamos desse modo, por descobrir o que, real e verdadeiramente, quer o Sr. Dühring dizer. O valor de uma mercadoria se determina, para dizer em termos de economia vulgar, pelo custo da produção. Carey, opondo-se a esta explicação. "fazia ressaltar a verdade, quando afirmava que não era o custo de produção. mas o custo de reprodução, que determinava o valor" ("História Crítica". pág. 401). Veremos mais adiante se este custo de produção ou reprodução tem alguma razão de ser; por enquanto, basta que saibamos que ele se encontra formado, como é claro, por duas parcelas: o salário e o lucro do capital. O salário representa o "desgaste de força" materializado na mercadoria, ou seja, o valor de produção. O lucro representa o tributo ou o aumento de preço imposto à mercadoria pelo capitalista, amparado pelo seu monopólio, pela espada que tem na mão, ou seja, o valor de distribuição. E todo o emaranhado da teoria dühringuiana do valor, prenhe de contradições, acaba por se resolver, finalmente, na mais bela e harmoniosa limpidez.      A determinação do valor das mercadorias pelo salário, que ainda freqüentemente se confunde, em Adam Smith, com a determinação do valor pelo tempo de trabalho, já foi abolida, a partir de Ricardo, do terreno da economia científica, encontrando atualmente divulgação apenas na economia vulgar. Com efeito, só os mais vulgares demagogos da ordem social vigente, do capitalismo, é que pregam a determinação do valor pelo salário, ao mesmo tempo em que pretendem apresentar o lucro do capitalista como uma forma superior de salário, como uma espécie de salário de abstinência (que o capitalista reserva para si, por não ter desperdiçado o seu capital em prazeres), como um prêmio dos riscos que o capital sempre corre, como uma remuneração de seus serviços à frente do negócio, etc. O Sr. Dühring distingue-se apenas desses cavalheiros pelo fato de declarar que o lucro é um ato de rapina. Por outros termos, constrói o Sr. Dühring, diretamente, o seu socialismo com base nos ensinamentos da mais desacreditada economia vulgar. Formam um todo os dois sistemas, a economia vulgar e o socialismo do Sr. Dühring. Ao desaparecer um, desaparece o outro, necessariamente.      É evidente que o que produz um operário e o que ele custa são duas coisas tão diferentes como o são o que produz e o que custa uma máquina. O valor que cria um operário, numa jornada de trabalho de doze horas, não tem nada de comum com o valor dos gêneros que ele consome durante essa jornada de trabalho e nos intervalos e horas de descanso de cada dia. Nestes meios de vida que consome poderá estar encerrado um tempo de trabalho equivalente a três, a quatro ou a sete horas, segundo o grau de desenvolvimento a que tenha chegado o rendimento do trabalho. Suponhamos que para a produção desses gêneros tenham sido necessárias sete horas de trabalho: a teoria do valor, formulada pela economia vulgar e aceita pelo Sr. Dühring, terá que concordar que o produto de doze horas de trabalho tem o valor do produto de sete horas de trabalho, ou seja, que doze horas de trabalho são a mesma coisa que sete horas de trabalho, ou ainda, que 12 = 7. Para que a coisa seja ainda mais clara: Um operário agrícola, quaisquer que sejam as condições sociais em que trabalhe, produz, digamos, uma quantidade de trigo de vinte hectolitros por ano. Durante este tempo, consome uma quantidade de valores que se exprime numa quantidade de trigo de quinze hectolitros. De acordo com essa teoria, os vinte hectolitros terão o mesmo valor que os quinze, e isto num mesmo mercado, e sob condições que não variaram em nada. Isto eqüivale a dizer, noutros termos, que 20 eqüivalem a 15! E chamam a uma tal coisa Economia Política!      Todos os progressos da sociedade humana, a partir do momento em que se ergue do estágio da barbárie animal primitiva, tem o seu começo no dia em que o trabalho da família criou mais produtos que os necessários para o seu sustento, portanto, quando uma parte do trabalho pode ser invertida, não apenas na produção de simples meios de vida, mas em criar meios de produção. A formação de um excedente do produto do trabalho, depois de ter sido coberto o gasto de subsistência do próprio trabalho, ao mesmo tempo em que a formação e o desenvolvimento por meio deste excedente de um fundo social de produção e de reserva era, desde o princípio e continua senda hoje, a base de todo o progresso social, político e intelectual. Esse fundo vem sendo, historicamente, o patrimônio de uma classe privilegiada que pela sua posse, tem também nas mãos a hegemonia política e a direção espiritual. A revolução social que se aproxima converterá, pela primeira, vez, este fundo coletivo de produção e de reserva, isto é, a massa global de matérias-primas, instrumentos de produção e meios de vida, num verdadeiro fundo social, arrancando-o das mãos dessa classe privilegiada, que atualmente dele dispõe, e colocando-o como patrimônio coletivo a serviço de toda a sociedade.      Só pode ser aceita uma de duas soluções. Ou o valor das mercadorias se determina pelo custo de manutenção do trabalho necessário para produzir estas mercadorias, o que eqüivale a dizer, na atual sociedade, que se determina pelo salário. Neste caso, cada operário recebe, com o seu salário o valor do produto de seu trabalho, e não haverá nenhuma possibilidade de que a classe dos operários assalariados seja explorada pela classe dos capitalistas. Suponhamos que o custo de manutenção de um operário seja expresso numa sociedade determinada, pela soma de três marcos. De acordo com este custo, e baseando-nos na teoria dos economistas vulgares que acabamos de expor, o produto diário do operário terá o valor de três marcos. Admitamos, agora, que o capitalista para o qual trabalha esse operário acrescente a esse produto um lucro, um tributo de um marco, vendendo-o por quatro marcos. A mesma coisa farão todos os capitalistas. Mas, então, o operário não poderá continuar a se manter com três marcos, mas precisará de quatro. E como se supõe que as demais circunstâncias que influem no fenômeno permanecem invariáveis, continuará sendo o mesmo o salário expresso em meios de vida, mas o salário expresso em dinheiro terá, necessariamente, que aumentar, e aumentará concretamente de três para quatro marcos diários, pois que os capitalistas se verão obrigados a devolver à classe trabalhadora sob a forma de salários, aquilo que lhe arrancaram sob a forma de lucro. Continuamos exatamente no mesmo ponto em que estávamos: se o salário determina o valor, é impossível conceber que o operário seja explorado pelo capitalista. Não será também possível formar-se um excedente de produtos, pois os operários, de acordo com o que pressupomos inicialmente, consumirão exatamente a mesma quantidade de valor que eles mesmos produziram. E como os capitalistas não produzem valor algum não se pode calcular nem mesmo do que poderão eles viver. Se existe, apesar de tudo, um excedente da produção sobre o consumo, se existe um excedente de produção e de reserva, e, de fato, existe nas mãos dos capitalistas, não nos resta mais que uma explicação: os operários se limitam a consumir para a sua própria manutenção, o valor das mercadorias, deixando aos capitalistas a tarefa de explorar essas mercadorias.      Mas ainda existe outra solução: Se este fundo de produção e de reserva efetivamente existe nas mãos da classe capitalista e se ele formou, como se observa na realidade mediante a acumulação de lucros (deixando por um momento a renda do solo), estará forçosamente integrado pelo excedente do produto do trabalho da classe operária, acumulada por esta e entregue à classe capitalista, pelo excedente que resta depois de ter sido coberta a soma paga como salário pela classe capitalista à classe trabalhadora. Mas então o valor não será determinado precisamente pelo salário, mas pela quantidade de trabalho; assim a classe operária entregará à classe capitalista, como produto de seu trabalho, uma quantidade maior de valor do que o parte que recebe dela sob a forma de salário, e o lucro do capital, da mesma forma que as demais formas de apropriação do produto da trabalho alheio não retribuído, terá sua explicação, como parte integrante dessa mais-valia, nada mais é que uma descoberta de Marx.      Diremos de passagem que, em todo o Curso da Economia, não existe nenhuma referência à grande descoberta com que Ricardo, marcando época, dá início à sua obra capital, que é a seguinte: "O valor de uma mercadoria depende da quantidade de. trabalho necessária para a sua produção, e não da remuneração mais elevada ou mais baixa que é estabelecida para esse trabalho". Na História Crítica abre-se-lhe uma pequena cova, enterrando-o com essas palavras sacramentais: "Não se vê, (isto é, Ricardo) que a menor ou maior proporção em que o salário pode ser (!) um indício das necessidades da vida, tem que se relacionar necessariamente... com uma modalidade diferente no que se refere às relações de valor." Esta frase tem a vantagem de fazer com que o leitor possa pensar o que lhe aprouver ou, então, o que é mais seguro, não pensar nada.      Pelo que dissemos, o leitor pode agora escolher, entre as cinco classes de valor que nos são servidas pelo Sr. Dühring numa bandeja, a que mais lhe agradar: o valor de produção que tem a sua fonte na natureza, ou o valor de distribuição, criado pela maldade dos homens e que se caracteriza pela particularidade de ser medida pelo desgaste de força que ele não representa; ou então, o valor que se mede pelo tempo de trabalho; o valor que se mede pelo custo da reprodução; e, por fim, o valor que se mede pelo salário. Como se vê, há o que escolher; a coleção não pode ser mais completa, assim como o é a confusão, e, como sobremesa, podemos exclamar como o faz o próprio Sr. Dühring: "A teoria do valor é a pedra de toque pela qual se aprecia a solidez dos sistemas econômicos".

Capítulo VI - TRABALHO SIMPLES E TRABALHO COMPLEXO

     O Sr. Dühring descobriu em Marx uma falha econômica verdadeiramente imperdoável, que, além disso, é uma heresia socialista perigosíssima para a causa. A teoria marxista do valor, diz ele, "não é mais do que a teoria,., vulgar que vê no trabalho a causa de todos os valores e no tempo de trabalho a sua medida. A idéia que se pode ter do valor diferencial do chamado trabalho qualificado fica, nesta teoria, na mais completa obscuridade. É certo também que, de acordo com a nossa teoria, só o tempo de trabalho invertido é que pode medir o próprio custo natural e, portanto, o valor absoluto das coisas econômicas. Mas, para isso, se equipara, de antemão, de modo absoluto o tempo de trabalho de todos os indivíduos, devendo se ter em conta apenas que, quando se trata de trabalhos qualificados, vem incorporar-se ao tempo de trabalho individual de uma pessoa, o tempo de trabalho de outras pessoas, em cooperação com ela, por exemplo, no instrumento que se utiliza. Não se trata, pois, como o Sr. Marx, nebulosamente, imagina, de que o tempo de trabalho de uma pessoa valha, por si só, mais do que o de outra, como se nele se condenasse mais tempo de trabalho médio, e sim, do fato de que todo tempo de trabalho é perfeitamente equiparável, sem exceção, por princípio, sem que seja pois necessário que se tire uma média; ante a atividade despendida por uma pessoa, principalmente diante de um produto acabado qualquer, devemos ver apenas quanto tempo de trabalho de outras pessoas se oculta sob essa inversão de trabalho, aparentemente próprio e exclusivo. Para a rigorosa aplicação da teoria, não importa absolutamente que se trate de um instrumento de produção a ser utilizado pelas mãos ou que se trate das mãos e da própria cabeça, consideradas como instrumentos, as quais, sem o tempo de trabalho de outras pessoas, não teriam jamais adquirido a necessária capacitação para o trabalho. O Sr. Marx, em suas elucubrações sobre o valor, não consegue desfazer-se do fantasma do tempo de trabalho qualificado que se ergue ao fundo. O tradicional modo de pensar das classes cultas, às quais têm necessariamente que parecer monstruoso o fato de se equiparar, plenamente, no terreno econômico, o tempo de trabalho do carregador e o do arquiteto, como valores, foi que lhe impediu que acabasse com essa quimera."      O trecho de Marx, que teve a virtude de provocar esse acesso de cólera no Sr. Dühring, é muito resumido. Marx procura investigar o que é que determina o valor das mercadorias e chega à conclusão de que é o trabalho humano nelas contido. Esse trabalho, acrescenta, "é o desgaste da simples força de trabalho que todo homem normal, em média, sem um desenvolvimento específico, possui em seu organismo físico... O trabalho mais complexo não é mais que o trabalho simples potenciado, ou melhor, multiplicado de tal maneira que uma quantidade pequena de trabalho complexo eqüivale a uma quantidade maior de trabalho simples. A experiência nos ensina que a redução de trabalho complexo para trabalho simples está sendo realizada diariamente. Embora uma mercadoria seja um produto do trabalho mais complicado do mundo, o seu valor a coloca no mesmo plano que os produtos do trabalho simples, o que faz com que só represente uma determinada quantidade de trabalho comum. As diferentes proporções em que as diferentes espécies de trabalho são reduzidas ao trabalho simples, que é a sua unidade de medida, são fixadas por meio de um processo social, desenvolvido sem o conhecimento dos produtores, que supõem mesmo que ela provém da tradição."      Como se observa, Marx se limita, neste trecho, apenas, a investigar o critério de determinação do valor das mercadorias, ou seja, dos objetos que, dentro da sociedade composta de produtores privados, são criados por eles em seu interesse e por sua própria conta, e que são trocados pelos outros. Não se trata, pois, de modo algum, do "valor absoluto", nem mesmo da verificação do local onde esse existe. Mas, simplesmente, do valor que vigora e que é objeto de comparações numa determinada forma de sociedade. Concebido dessa forma, sob esse sentido histórico concreto, chega-se à conclusão de que o valor é criado e tem a sua medida no trabalho humano encerrado nas diferentes mercadorias. Esse trabalho humano, por sua vez, se define como o desgaste da simples força de trabalho. Ora, nem todo trabalho consiste na simples força humana de trabalho. Existem variadas espécies de trabalho, que envolvem o exercício de aptidões e conhecimentos, adquiridos com maior ou menor esforço, ao lado de um gasto maior ou menor de tempo e de dinheiro. Formam, essas categorias de trabalho complexo, no mesmo espaço de tempo, um valor mercantil idêntico ao do trabalho simples, que é o desgaste ou a aplicação da força simples de trabalho? Está claro que não. O produto de uma hora de trabalho complexo, comparado com o produto de uma hora de trabalho simples, representa uma mercadoria cujo valor é duas ou três vezes superior. O valor dos produtos do trabalho complexo é expresso, nesta comparação, por determinadas quantidades de trabalho simples, mas esta redução do trabalho complexo ao trabalho simples se realiza por meio de um processo social desconhecido dos próprios produtores, cuja trajetória não podemos aqui senão assinalar na exposição da teoria do valor, deixando a sua explicação detalhada para ocasião oportuna.      O simples fato a que acabamos de nos referir, todos os dias realizado na sociedade capitalista, foi o que Marx pretendeu estudar. Esse fato é tão indiscutível, que nem mesmo o Sr. Dühring se atreve a negá-lo, tanto no seu "Curso", como na sua História da Economia. E a exposição de Marx é tão simples e clara, que, indubitavelmente, quem "fica na mais completa obscuridade" é o Sr. Dühring. E só assim que se pode explicar que ele confunda o valor das mercadorias, única coisa que Marx pretende investigar nesse trecho, com aquilo que ele denomina "custo próprio e natural", conceito que apenas faz aumentar, como se já não fosse pouca a obscuridade do autor, confundindo também com o "valo, absoluto", conceito que até hoje não conseguiu se impor e, que nós saibamos, não tem vigorado na economia de nenhum país. Sem pretendermos, porém, investigar o que é que o Sr. Dühring entende por "custo próprio e natural", nem qual de suas cinco espécies de valor têm a elevada honra de representar aqui o papel de "valor absoluto", podemos afirmar, com absoluta segurança, que Marx não se refere, de modo algum, a estas coisas, mas, pura e simplesmente, ao valor das mercadorias e que, em toda a parte de O Capital consagrada ao estudo do valor, não existe nem a menor alusão que nos faça supor que Marx pretendesse aplicar a sua teoria do valor das mercadorias a outras formas de sociedade, nem mesmo que nos permita concluir sobre se Marx admite ao menos a possibilidade de que elas venham a ser aplicadas.      Não se trata pois - continua o Sr. Dühring - "como imagina nebulosamente o ar. Marx, de que o tempo de trabalho de uma pessoa, por si só, valha mais do que o de outra, de que todo tempo de trabalho é, perfeitamente equiparável, sem exceção, por princípio, sem que seja necessário que se tire uma média". Felizmente para o Sr. Dühring, o destino não o colocou à frente de uma fábrica, evitando, desse modo, que ele tivesse de fixar o valor de suas mercadorias de acordo com esse novo critério, pois, desse modo, ele chegaria à falência. Mas como? Será que ainda estamo-nos movendo no mundo dos fabricantes? Nada disso! Com o seu "custo próprio e natural" e o seu "valor absoluto", o Sr. Dühring nos fez dar um salto, um verdadeiro salto mortal, que nos transplanta do nosso malvado mundo de hoje, do mundo dos exploradores, para a sua Comuna Econômica do futuro, o risonho paraíso da igualdade e da justiça. Não temos outro remédio, embora nos antecipando um pouco, que nos deter para contemplar este mundo novo a que nos estão levando.      É verdade que, segundo a teoria do Sr. Dühring, nem mesmo na Comuna Econômica se poderá medir o valor das coisas econômicas, a não ser mediante o tempo de trabalho nelas invertido. A diferença é que, nessa Comuna, o tempo de trabalho de cada um será respeitado, desde o primeiro momento, como perfeitamente equiparado ao dos demais, pois "todo o tempo de trabalho é perfeitamente equiparável sem que seja necessário que se tire nenhuma média". Como é pobre, comparada com este formoso e radical socialismo igualitário, a nebulosa concepção de Marx, segundo a qual "o tempo de trabalho de nenhuma pessoa vale mais, por si mesmo, que o de outra", por nele estar contido mais tempo de trabalho médio condensado, concepção essa que o arrasta ao modo de pensar tradicional, para o qual é necessariamente monstruosa a equiparação plena do tempo de trabalho do carregador, no terreno econômico, com o do arquiteto, na qualidade de valores!      Infelizmente para o Sr. Dühring, Marx escreve, em seguida ao citado trecho de O Capital, a seguinte observação: "O leitor compreenderá que aqui não falamos do salário, valor que o operário percebe por uma jornada de trabalho, digamos, mas do valor das mercadorias, em que toma corpo uma jornada de trabalho." Ou seja, como Marx adivinhasse totalmente o que pretendia o Sr. Dühring, ele se previne, como medida higiênica, contra o perigo de que aquelas suas afirmações sejam aplicadas também para o salário que, na sociedade atual, é pago pelo trabalho complexo. E, no entanto, o Sr. Dühring, não contente com uma tal coisa, incorre naquilo contra o que Marx previne aos seus leitores, e tem, ademais, a ousadia de fazer passar aquelas mesmas afirmações como sendo os princípios que deveriam, segundo o, pensamento de Marx, presidir a distribuição dos meios de vida, na coletividade socialisticamente organizada. Como vemos, é um caso vergonhoso de mistificação, para o qual só se pode encontrar precedente na literatura de chantagem.      Vamo-nos deter ainda a examinar, um pouco mais de perto, a teoria da igualdade de valor do trabalho. Segundo o Sr. Dühring, todo o tempo de trabalho é perfeitamente equiparável, no que concerne ao valor, quer seja o de um carregador, quer seja o de um arquiteto. Assim. o tempo de trabalho, e, portanto. o próprio trabalho, tem um valor. Observe-se. no entanto, que o trabalho é o criador de todos os valores. É ele, e somente ele, que transmite um valor, no sentido econômico da palavra, aos produtos fornecidos pela natureza. Por si mesmo, o valor não é mais do que a expressão do trabalho humano socialmente necessário, representado por um objeto. O trabalho não pode, portanto, ter um valor. Ao falarmos do valor do trabalho, empenhando-nos em determiná-lo, incorremos no mesmo contra-senso em que incorreríamos se falássemos. procurando encontrá-lo, do valor ou do peso, não de um corpo pesado. mas da própria gravidade. O Sr. Dühring, que classifica a homens como Owen. Saint-Simon e Fourier. como sendo "alquimistas sociais", demonstra, ao monologar copiosamente sobre o valor do tempo de trabalho, ou. o que vem a ser o mesmo, sobre o trabalho, que está muito abaixo dos verdadeiros alquimistas. Julgue-se, agora, depois do que acabamos de verificar, quanta ousadia foi necessária para que o Sr. Dühring atribuísse a Marx a afirmação de que o tempo de trabalho de uma pessoa não vale, por si mesma, mais que o de outra qualquer pessoa, como se o tempo de trabalho e, portanto, o próprio trabalho tivesse um valor. Atribui esse absurdo logo a Marx, que foi o primeiro a demonstrar, até mesmo em suas causas, que o trabalho não pode ter um valor!      Para o socialismo. que aspira à emancipação da força humana de trabalho de sua condição de mercadoria, é da maior importância compreender que o trabalho não tem um valor. Demonstrado este fato, caem por terra todas as tentativas, próprias do socialismo operário primitivo e elementar, que tem no Sr. Dühring um continuador, e que são destinadas a regulamentar a distribuição futura dos meios de vida, por meio de uma espécie de salário superior. Além disso. depois de esclarecer esse assunto, chega-se à conclusão de que, embora governada por motivos de ordem puramente econômica, a distribuição será regulada pelo interesse da produção, e esta se verá incentivada principalmente por um regime de distribuição que permita a todos os indivíduos da sociedade desenvolver. manter e exercitar, nos mais amplos aspectos, as suas capacidades. É claro que o medo tradicional de pensar das classes cultas, herdado pelo Sr. Dühring. tem que considerar, necessariamente, como uma monstruosidade, que chegue o dia em que não existam mais carregadores e arquitetos de profissão, e no qual o homem, que passou uma meia hora dando instruções, como arquiteto, tem que servir durante" algum tempo como carregador, até que seus serviços de arquiteto voltem a ser necessários. Para se eternizar a categoria dos carregadores de profissão não era preciso o socialismo!      Se a equiparação de valor do tempo de trabalho significa que cada operário produz, no mesmo espaço de tempo, valores iguais, sem que seja necessário, portanto, estabelecer uma média, a tese é absolutamente falsa. Entre dois operários, até de um mesmo ramo industrial, o produto do valor criado em cada hora de trabalho se diferenciará sempre, quer devido à intensidade do trabalho, quer à habilidade do trabalhador. É este "mal", que existe somente para homens do gênero do Sr. Dühring, não pode ser remediado nem mesmo pela Comuna Econômica, ao menos em nosso planeta. Desse modo, e que é que resta dessa pretensa equiparação de valor de todos e de cada um dos trabalhos do homem? Resta apenas a frase declamatória, frase que não tem outra base na Economia a não ser a incapacidade do Sr. Dühring de distinguir entre a determinação do valor por meio de trabalho e a determinação por meio do salário. Não tem esta frase outro fundamento senão a proclamação pela qual o Sr. Dühring dita, à nova Comuna Econômica, a sua lei fundamental: o salário pago por um tempo de trabalho igual será sempre o mesmo! Os antigos comunistas operários franceses e o alemão Weitling, pelo menos, sabiam alegar melhores razões para servir de apoio à sua igualdade de salários.      Vejamos, agora, que solução daremos a este problema tão importante que é o da retribuição mais elevada do trabalho complexo? Na sociedade de produtores privados, os gastos para a formação de cada operário instruído correm por conta dos particulares ou de suas famílias, razão pela qual devem eles mesmos lucrar com a diferença de preço das forças de trabalho qualificadas. O escravo hábil é vendido por maior preço, o operário mais competente obtém um melhor salário. . Na sociedade socialista, os gastos com a instrução correrão por conta da coletividade, e a ela, portanto, é que deverão caber os seus frutos, isto é, o excedente de valor engendrado pelo trabalho complexo. Pessoalmente, não terá motivos o operário para reclamação. Donde se conclui, seja dito de passagem, como corolário prático, que o famoso direito do operário "ao produto integro de seu trabalho" se choca também, às vezes, com algumas dificuldades.

Capítulo VII - CAPITAL E MAIS-VALIA

     "Marx não fez do capital a idéia comumente admitida em economia política, segundo a qual o capital é um conjunto de meios de produção, sendo ele próprio um produto; Marx procura expressar uma idéia histórico-dialética, penetrando no jogo de metamorfoses dos conceitos e da história.      O capital, diz ele, nasce da moeda; constitui uma fase histórica que começou no século XVI, com os rudimentos de mercado mundial que a época admitia. Evidentemente, o rigor da análise econômica perde-se em face de tal conceito. Nesse gênero de concepções... julgadas meio-históricas e meio-lógicas, mas, no fundo, unicamente produtos bastardos da fantasia histórica e lógica, a faculdade de distinção e de compreensão põe abaixo toda probidade no uso dos conceitos" - e assim continua por toda uma página, numa verdadeira carga de cavalaria. "....A definição marxista do conceito do capital só pode introduzir a confusão na rigorosa teoria econômica... improvisações que pretendem impor-se como verdades lógicas profundas... fragilidade de fundamentos", etc.      Assim, segundo Marx, o capital teria nascido da moeda no começo do século XVI. É como se disséssemos que a moeda metálica nasceu há três mil anos, do gado, porque, como se sabe, este teve antigamente função de moeda. Só mesmo o Senhor Dühring seria capaz de exprimir-se com tanta grosseria e desacerto. Na análise que faz Marx das formas econômicas no seio das quais se opera o processo de circulação das mercadorias, a moeda aparece como a forma última e superior. "Este produto último da circulação das mercadorias é a primeira forma sob a qual se manifesta o capital. Do ponto de vista histórico, o capital ergue-se por toda parte contra a propriedade territorial, sob a forma de dinheiro, como numerário, como capital mercantil e capital usurário... O mesmo fenômeno desenvolve-se diariamente aos nossos olhos. Na sua primeira entrada em cena, isto é, na sua primeira aparição no mercado, quer se trate do mercado de mercadorias, do de trabalho ou de moeda, o capital reveste sempre a forma dinheiro, a forma de um dinheiro que, por processos determinados, deve transformar-se em capital". (O Capital, livro I, capítulo IV). É, portanto, um fato que Marx registra. Incapaz de contestá-lo, o Senhor Dühring deforma-o; o capital teria nascido da moeda.      Marx prossegue, então, no estudo dos processos pelos quais a moeda se transforma em capital; verifica, inicialmente, que a forma sob a qual a moeda circula como capital é a inversão exata da forma sob a qual ela circula como equivalente geral das mercadorias. O simples possuidor de mercadorias vende para comprar; vende aquilo de que não tem necessidade e, com o dinheiro obtido, compra aquilo de que tem necessidade. O capitalista incipiente começa por comprar aquilo de que ele próprio "não tem" necessidade; compra para vender, e para vender mais caro, para recuperar o valor dinheiro primitivamente aplicado na compra e, mais ainda, para recuperá-lo acrescido de um excedente em dinheiro, que Marx denomina de mais-valia.      Qual a origem dessa mais-valia? Ela não pode provir nem de ter o comprador comprado as mercadorias abaixo de seu valor, nem de tê-las vendido acima de seu valor. Com efeito, nesses dois casos, os ganhos e as perdas de cada um se compensam reciprocamente, porquanto cada um é sucessivamente comprador e vendedor. Ela não pode igualmente provir do dolo, porque este pode muito bem enriquecer um a expensas de outro, mas não aumentar a soma total possuída por um e por outro, nem, por conseguinte, a soma dos valores em circulação num país. É difícil que a totalidade da classe capitalista de um país se engane a si própria". (O Capital, pág. 165).      E, entretanto, verificamos que a classe dos capitalistas de cada país, tomada em seu conjunto, se enriquece constantemente aos nossos olhos, vendendo mais caro do que comprou, apropriando-se da mais-valia. Estamos, porém, tão adiantados como no começo; donde provém a mais-valia? É esta questão que se trata de resolver e de maneira "puramente econômica" abstração feita de qualquer dolo, de qualquer intervenção de poderes estranhos. O problema é este: como é possível vender constantemente mais caro do que se comprou, mesmo que se suponha que se trocam sempre valores iguais por valores iguais?      A solução dessa questão é, na obra de Marx, o seu grande mérito, um acontecimento que marca uma época. Ela veio iluminar domínios econômicos em que até aqui não só os socialistas como os economistas burgueses tateavam no meio das trevas mais espessas. Data dessa época, e em torno dela se agrupa, o socialismo científico.      A solução é a seguinte. O aumento do valor da moeda que se vai transformar em capital não poderia operar-se sobre essa "moeda", nem provir da "compra", porquanto essa moeda realiza aqui somente o preço da mercadoria, e esse preço - pressupondo-se, como se pressupõe, que os valores trocados são iguais - não é diferente do valor. Por essa razão, também o acréscimo do valor não pode provir de "venda" da mercadoria. É preciso, portanto, que essa alteração se verifique na mercadoria comprada e não em seu "valor", visto ser ela comprada e vendida por seu valor, mas por seu "valor de uso" como tal; dito de outro modo: a mudança de valor deve resultar do consumo da mercadoria. "Para inferior, porém, o valor do consumo de uma mercadoria, seria preciso que o nosso possuidor de dinheiro tivesse a sorte de descobrir na esfera da circulação, isto é, no mercado, uma mercadoria cujo valor de uso fosse dotado da singular propriedade de ser fonte de um novo valor ou cuja utilização real seria, pois, a materialização do trabalho e, por conseqüência, "criação de valor". Ora, o possuidor de dinheiro encontra no mercado essa mercadoria particular: é a capacidade de trabalho, ou "força de trabalho". (O Capital, página 190). Se, conforme vimos, o "trabalho" como tal não pode ter um valor, não é esse, de maneira alguma, o caso da "força de trabalho". Esta recebe um valor desde que se torna "mercadoria", como o é hoje, de fato; e esse valor é determinado, "como o de qualquer mercadoria, pelo tempo de trabalho necessário à produção, incluindo-se nela, por conseguinte, a reprodução desse trabalho específico"; isto é, pelo tempo de trabalho necessário para criar os meios de existência dos quais o trabalhador necessita para se manter apto para o trabalho e para continuar procriando trabalhadores. Admitamos que esses meios de existência representem, em média, um tempo de trabalho de seis horas por dia, nosso capitalista incipiente, que compra "força de trabalho" para impulsionar o seu negócio, isto é, que aluga um trabalhador, paga a esse trabalhador o valor diário completo de sua força de trabalho, pois que lhe dá uma soma em dinheiro que representa igualmente seis horas de trabalho. E, desde que o operário trabalhe seis horas ao serviço do capitalista incipiente terá reembolsado inteiramente este último da quantia que lhe foi paga, isto é, do valor diário de força de trabalho que o capitalista lhe pagou. Mas, dessa maneira o dinheiro não seria transformado em capital, não teria engendrado mais-valia. Também o comprador da força de trabalho tem, em conseqüência, uma maneira inteiramente diversa de encarar a natureza do contrato realizado com o operário. O fato de somente seis horas de trabalho serem necessárias para manter a vida do trabalhador durante vinte e quatro horas, não o impede de modo algum que seja obrigado a trabalhar doze horas em vinte e quatro. O valor da força de trabalho e a sua exploração no processo de trabalho são duas grandezas distintas. O possuidor de dinheiro pagou o valor da força de trabalho; ele é, portanto, proprietário dela durante todo o dia, fazendo trabalhar o dia inteiro o mesmo operário. Que valor criado pela utilização dessa força de trabalho, durante um dia, seja duas vezes tão grande quanto o valor diário dessa força, é uma grande sorte para o comprador; mas não é, de forma alguma, de acordo com as leis que regem a troca de mercadorias, uma injustiça em relação ao vendedor. Assim, o trabalho custa ao possuidor de dinheiro, segundo a nossa hipótese, diariamente, o produto em valor de seis horas de trabalho. Diferença em proveito do possuidor de dinheiro; seis horas de sobre-trabalho não pago, no qual se acha incorporado o trabalho de seis horas. Realizou-se o milagre, a mais-valia foi produzida, o dinheiro transformou-se em capital.      Demonstrando, assim, como nasce a mais-valia e a única maneira pela qual a mais-valia pode nascer, sob o império das leis que regem a troca das mercadorias, Marx pôs a nu o mecanismo do atual regime capitalista de produção e do regime de apropriação fundado sobre ele, desvendando o núcleo central em torno do qual gira toda a ordem social atual.      Essa gênese do capital tem, entretanto, uma condição prévia essencial: "A transformação do dinheiro em capital exige que o possuidor de dinheiro encontre no mercado o "trabalhador livre', e livre sob um duplo sentido. É preciso, primeiramente, que o trabalhador possa dispor, como pessoa livre, de sua força de trabalho, como de uma mercadoria qualquer; é preciso, em seguida, que não tenha outra mercadoria a vender e que esteja livre e desembaraçado de todas as coisas necessárias para realizar, por conta própria, a sua força de trabalho". (O Capital, página 192). Mas essa relação entre possuidores de dinheiro e de mercadorias, homens que nada possuem senão sua própria força de trabalho, por outro lado, não é uma relação dependente da natureza, nem muito menos um fato comum a todos os períodos da História: "é evidentemente o resultado de um desenvolvimento histórico anterior, o produto... do desaparecimento de toda uma série de formas antigas de produção social". Com efeito, esse trabalho livre aparece na história, pela primeira vez, em massa, no fim do século XV e começo do XVI, em seguida à decomposição do regime feudal de produção. Ora, por isso mesmo e pela criação, que data da mesma época, do comércio mundial e do mercado mundial, são lançadas as bases sobre as quais a massa da riqueza mobiliária existente vai-se convertendo progressivamente em capital e o modo capitalista de produção vai-se inclinando inteiramente para a criação de mais-valia, vai se transformando, por força das circunstâncias, no sistema predominante e exclusivo.      Até aqui, temos acompanhado as "concepções exóticas" de Marx, esses "produtos bastardos da fantasia histórica e lógica", em que "a faculdade de discernimento da inteligência com tudo o que significa probidade no uso dos conceitos". Oponhamos, agora, a essas "improvisações" as "profundas verdades lógicas" e o "caráter científico definitivo e rigoroso no sentido das disciplinas exatas", tais como nos oferece o Senhor Dühring.      Já vimos que Marx não tem do capital "a idéia comumente admitida em economia política, segundo a qual é um conjunto de meios de produção que são, ao mesmo tempo, produtos; em vez disso, ele diz que uma soma de valores não se transforma em capital senão quando se valoriza, isto é, quando cria mais-valia. E que diz o Sr. Dühring? "O capital é a base dos meios econômicos que permitem a continuidade da produção e a obtenção geral de lucros sobre os resultados da força de trabalho geral". Por mais oracular e ofuscante que seja o seu modo de expressar-se, é evidente que, segundo a própria declaração do Senhor Dühring, essa "base de meios econômicos", embora impulsione a produção até a eternidade, não se converterá em capital enquanto não proporcionar "lucros sobre o resultado da força geral de trabalho", isto é, mais-valia ou, pelo menos, sobre-produto. Assim, o pecado que o Senhor Dühring acusa em Marx, de não fazer do capital a idéia comumente admitida em economia política, não somente ele próprio o comete, como perpetra, em relação a Marx, um plágio torpe, "mal dissimulado" por meio de frases pretensiosas.      A página 262, essa idéia recebe um novo desenvolvimento: "O capital no sentido social (e o capital num sentido não social é outra coisa que o Senhor Dühring terá ainda que descobrir) é especificamente distinto dos simples meios de produção; porque, enquanto estes últimos não têm senão um caráter técnico e são indispensáveis em todas as circunstâncias, o capital se distingue pela sua força social de apropriação e de participação. O capital social é, na verdade, em grande parte, apenas o meio técnico de produção em sua função social, mas é precisamente essa função que... deve desaparecer". Se nos lembrarmos que foi Marx, precisamente, quem primeiro salientou a "função social" graças à qual só uma soma de valor se torna capital, fatalmente, "todo observador atento terá que compreender logo que a definição marxista de capital só pode estabelecer confusão - não como pensa o Senhor Dühring, na rigorosa teoria econômica, mas única e exclusivamente na cabeça do Sr. Dühring, que, na História crítica, Se esquece da atração que exercia sobre ele, em larga escala; no Curso, a referida idéia de capital.      Entretanto, o Senhor Dühring não se contenta de tomar emprestada a Marx. embora sob uma forma "apurada", sua definição do capital e é obrigado a continuar também no "jogo de metamorfoses dos conceitos e da história", e isso apesar dele mesmo compreender que daí não podem sair senão "imaginações exóticas", "improvisação", "fragilidade dos fundamentos" etc. Donde vem essa "função social" do capital que lhe permite apropriar-se dos frutos de trabalho alheio e que, por si só, o distingue do simples meio de produção? "Ela não assenta - diz o Sr. Dühring - na natureza dos meios de produção e em seu indispensável caráter técnico"; ela, portanto, nasceu da História; e o Sr. Dühring limita-se a repetir, à página 252, o que nós o ouvimos dizer dez vezes: explica a origem do capital pela famosa aventura dos dois homens, dos quais um, no começo da história, transforma os seus meios de produção em capital pelo simples fato de submeter o outro ao seu poder. Mas, não contente em assinalar uma origem histórica à função social em virtude da qual uma soma de valor se torna capital, o Senhor Dühring profetiza-lhe também um fim histórico: "É precisamente ela que deve desaparecer". Um fenômeno nascido historicamente, e que historicamente desaparece, chama-se, na linguagem comum, "uma fase histórica". O capital é, pois, uma fase histórica, não somente em Marx como também no Senhor Dühring. Somos, assim, forçados a concluir que estamos entre jesuítas: quando dois homens fazem a mesma coisa, não é a mesma coisa. Quando Marx diz que o capital é uma fase histórica, essa afirmação é resultado de "uma imaginação exótica, produto bastardo da fantasia histórica e lógica em que a faculdade de discernimento desaparece com tudo o que significa probidade no emprego dos conceitos". Quando o Sr. Dühring apresenta igualmente o capital como uma fase histórica, isso é uma prova de "penetração na análise econômica, do caráter científico mais definitivo e mais rigoroso, no sentido das disciplinas exatas".      Em que se distingue, portanto, a idéia que o Sr. Dühring faz do capital da idéia de Marx? "O capital - diz Marx - não inventou o sobre-trabalho. Onde quer que uma parte da sociedade possua o monopólio dos meios de produção, o operário, seja ele livre ou escravo, é obrigado a acrescentar ao tempo de trabalho necessário à sua própria conservação um tempo de trabalho suplementar para produzir os meios de subsistência de que tem necessidade o proprietário dos meios de produção". (O Capital, livro I, cap. VIII). "O sobre-trabalho, o trabalho excedente ao tempo necessário à manutenção do trabalhador", e a apropriação do produto desse sobre-trabalho por outrem, a exploração do trabalho, são, pois, comuns a todas as formas de sociedade até aqui existentes, enquanto nelas reinarem os antagonismos de classes. Mas é somente quando o produto desse sobre-trabalho se reveste da forma de mais-valia, quando o proprietário dos meios de produção encontra diante de si, como objeto de exploração, o trabalhador livre - livre de entraves sociais e livre de bens próprios - e o explora tendo em vista a produção de mercadorias, é somente, então, segundo Marx, que os meios de produção se revestem do caráter específico de capital. E isso só se produziu em grande escala depois do fim do século XV e começo do século XVI.      Para o Senhor Dühring, ao contrário, "toda soma de meios de produção é capital "que constitui um direito à participação nos frutos da força de trabalho" e que, por conseguinte, tem como resultante o sobre-trabalho qualquer que seja a sua forma.      Noutros termos, o Senhor Dühring apropria-se do conceito de sobre-trabalho descoberto por Marx para fulminar a mais-valia, igualmente descoberta por Marx, e que, por enquanto, não lhe convém. Segundo o Senhor Dühring, não só a riqueza mobiliária e imobiliária dos cidadãos atenienses e corintios, que utilizavam o trabalho escravo, mas também a dos grandes proprietários territoriais romanos da época imperial, e, do mesmo modo, dos barões feudais da Idade Média, por pouco que servissem, de qualquer maneira, à produção, constituem, todas, modalidades, sem exceção, de capital.      O próprio Senhor Dühring faz, portanto, do capital "não a idéia comumente admitida de que é um conjunto de meios de produção, que são, ao mesmo tempo, produtos, mas uma idéia inteiramente oposta, que abrange inclusive os meios de produção não produzidos: a terra e seus recursos naturais. Mas, de resto, essa idéia de que o capital é simplesmente "um conjunto de meios de produção, que são, ao mesmo tempo, produtos", não é "comumente admitida" senão na economia vulgar. Fora dessa economia vulgar tão cara ao Senhor Dühring, o meio de produção, produto ele próprio, ou, de maneira geral, uma soma qualquer de valores, só se torna capital quando produz um lucro ou juros, isto é, quando rende sobre-produto do trabalho não retribuído, sob a forma de mais-valia, apropriando-se, além disso, sob qualquer dessas duas formas ou variantes especificas, do mais-valor. Para nós, é-nos absolutamente indiferente que todos os economistas burgueses se deixem dominar pela idéia de que a virtude de produzir juros ou lucros é inerente a qualquer soma de valores invertidos, sob condições normais, na produção ou na troca de mercadorias. Capital e lucro ou capital e juros são, na economia clássica, inseparáveis, estão de tal maneira entrelaçados entre si como a causa e o efeito, o pai e o filho, o ontem e o hoje. Mas a palavra, capital, na sua significação econômica moderna, só aparece na época em que surge o próprio fenômeno que o caracteriza, em que a riqueza mobiliária se reveste cada vez mais da função de capital, isto é, explora o sobre-trabalho de operários livres, com o fim de produzir mercadorias; e esse fenômeno começa a tomar forma, pela primeira vez, na mais antiga nação capitalista que se apresenta na história: a Itália dos séculos XV e XVI. E quando em primeiro lugar Marx analisou, até às suas raízes, o regime de apropriação característico do capital moderno, quando Marx pôs o conceito de capital de acordo com os fatos históricos de que se havia afastado e aos quais devia a existência; quando Marx libertou, assim, esse conceito econômico das idéias obscuras e flutuantes que lhe eram inerentes, mesmo na economia burguesa clássica, e nos sistemas socialistas anteriores; foi precisamente Marx quem procedeu com aquele "caráter científico mais definitivo e mais rigoroso" que o Senhor Dühring tem sempre à boca e que tanto lamentamos não encontrar nele.      De fato, a coisa passa-se de modo inteiramente diverso com o Senhor Dühring. Não contente com o ter qualificado depreciativamente a concepção do capital, como fase histórica, considerando-o um "produto bastardo da fantasia histórica e lógica", e tê-lo apresentado, logo depois, como uma fase histórica, proclama como capital "todos" os meios de poder econômico, "todos" os meios de produção que "servem para se apropriar de uma parte dos frutos da força de trabalho geral", compreendendo-se nisso, por conseqüência, a propriedade territorial em todas as sociedades de classe; o que não o impede, de forma alguma, de fazer, em seguida, entre a propriedade territorial e a renda territorial a distinção tradicional entre capital e lucro, para qualificar de capital somente os meios de produção que produzem um lucro ou juros, como se pode ver nas páginas 118 e seguintes do seu Curso. O Senhor Dühring poderia também, sob a denominação de locomotivas, incluir cavalos, bois, asnos e cães, porque os mesmos podem pôr em movimento um veículo, censurando os engenheiros de hoje, que restringem o nome de locomotivas aos modernos transportes a vapor, fazendo disso tudo uma fase histórica e entregando-se a imaginações exóticas, produtos bastardos da fantasia histórica e lógica etc. E terminaria por declarar que cavalos, bois, asnos e cães são excluídos da denominação de locomotivas, que não se aplica senão aos veículos a vapor.      Tudo isso nos obriga a dizer novamente: são exatamente o conceito e a definição de capital, apresentados pelo Sr. Dühring, que carecem de toda "a nitidez de análise da Economia política" e que perderam a "capacidade de distinção e toda a probidade no uso dos conceitos"; as concepções áridas, os confusionismos, as superficialidades que pretendem impor-se como verdades lógicas e profundas, bem como a fragilidade dos fundamentos florescem esplendorosamente nas páginas do próprio Senhor Dühring.      Mas tudo isso não significa grande coisa. Ao Sr. Dühring caberá sempre a glória de haver descoberto o eixo em torno ao qual se moveram, até aqui, toda a economia, toda a política, todo o direito, numa palavra - toda a história. Eis aqui a pedra angular irremovível.      "A violência e o trabalho são os dois fatores capitais que entram em jogo na constituição das relações sociais".      Nessa única proposição está encerrada a constituição inteira do mundo econômico até aos nossos dias. Ela é extremamente breve e está assim concebida:      Artigo lo.: O trabalho produz.      Artigo 2o.: A violência distribui.      E é a isso que se reduz, "falando humanamente e em alemão", toda a ciência econômica do Senhor Dühring.

Capítulo VIII - CAPITAL E MAIS-VALIA

(Conclusão)

     "Segundo o ponto de vista do Senhor Marx, o salário representa apenas a remuneração do tempo de trabalho que o operário emprega realmente para tornar possível a sua existência. Basta, para isso, um pequeno número de horas: todo o resto da jornada de trabalho, quase sempre muito prolongada, fornece um excedente em que está contido o que o nosso autor chama "mais-valia" ou, para falar em linguagem comum, o lucro do capital. Abstração feita do tempo de trabalho que, numa fase qualquer de produção, já está contido nos instrumentos de trabalho e nas matérias-primas, este excedente da jornada de trabalho é a parte do empreiteiro capitalista. A prolongação da jornada de trabalho é, em conseqüência, pura exploração em proveito do capitalista... "      Assim, segundo o Senhor Dühring, a mais-valia não passa do que comumente se chama rendimento ou lucro do capital. Vejamos o que diz Marx. À página 195 de O Capital, mais-valia é explicado pelas palavras postas entre parênteses em seguida a estas: "juros, lucro, renda". À página 210, Marx dá um exemplo em que aparece uma soma de mais-valia de 71 shillings sob as diversas formas em que ela é repartida: dízimo, taxas locais e impostos, 21 shillings; renda territorial, 28 shillings; lucros e juros do fazendeiro, 22 shillings; mais-valia total: 71 shillings. À página 52, Marx declara que uma das maiores lacunas que se notam em Ricardo é "nunca ter estudado a mais-valia como tal, isto é, independentemente de suas formas particulares, tais como o lucro, a renda territorial etc."; é de ter, por essa razão, confundido as leis da taxa de lucro. "Demonstrarei mais adiante, - diz Marx - no livro II da presente obra, que, segundo as circunstâncias, a mesma taxa de mais-valia pode exprimir-se nas mais diversas taxas de lucro e que taxas diferentes de mais-valia podem, inversamente, exprimir-se na mesma taxa de lucro". À página 587, lê-se ainda: "O capitalista que produz a mais-valia, isto é, que subtrai diretamente aos operários uma certa quantidade de trabalho não pago, que ele realiza em mercadorias, é o primeiro a apropriar-se dessa mais-valia, mas não é o seu último proprietário.      "Ele é obrigado a reparti-la, em seguida, com capitalistas que exercem outras funções no conjunto da produção social, tais como o proprietário territorial etc. A mais-valia divide-se, portanto, em várias partes, que se destinam a diversas categorias de pessoas e se revestem, cada uma, de uma forma especial, independentes umas das outras, tais como lucro, juros, ganho comercial, renda territorial etc. No livro III, trataremos dessas formas modificadas da mais-valia". E assim em muitas outras passagens.      Ninguém se exprimiria com maior clareza. Em todas as ocasiões, Marx aproveita todas as oportunidades para insistir que não se deve absolutamente confundir sua mais-valia com o lucro ou o ganho do capital; que este último, pelo contrário, é uma forma secundária e quase sempre uma simples fração da mais-valia. Quando o Sr. Dühring pretende, portanto, que a mais-valia de Marx é, para falar a linguagem comum, o lucro do capital", que se pode concluir, em face disso, uma vez que todo o livro de Marx gira em torno da mais-valia? Só há duas hipóteses: ou ele não sabe o que diz e, nesse caso, é de uma impudência sem igual pretendendo fulminar uma obra cujo conteúdo essencial ignora; ou conhece esse conteúdo e comete voluntariamente uma falsificação.      Mais adiante, o Senhor Dühring escreve: "O ódio venenoso com que o Senhor Marx cultiva essa idéia de conceber a exploração é bastante compreensível. Mas, pode-se sentir uma cólera ainda mais violenta e reconhecer, mais plenamente ainda, o caráter de exploração essencial à forma econômica fundada sobre o trabalho assalariado, sem admitir a tendência teórica que se exprime na doutrina marxista da mais-valia".      Segundo o Senhor Dühring, o sentido bem intencionado, mas teoricamente errado de Marx, desperta nele um ódio venenoso contra a exploração; sua paixão, moral em si, reveste, como conseqüência de sua falsa, "tendência teórica", uma expressão imoral, manifestando-se em ódio ignóbil e torpemente venenoso, ao passo que a "ciência definitiva e rigorosa" do Senhor Dühring se exprime por uma paixão moral maravilhosamente nobre, por uma cólera moralmente superior em sua forma e, além disso, quantitativamente superior àquele ódio venenoso, por ser uma "cólera mais poderosa". Mas deixemos o Senhor Dühring deleitar-se na sua própria contemplação e vejamos onde tem suas raízes verdadeiras essa cólera potente.      "Uma pergunta se nos depara - continua ele: - Como os patrões em concorrência conseguem valorizar constantemente o produto pleno do trabalho e, desse modo, o sobre-produto, elevando-o muito acima das despesas normais de fabricação, conforme indica a proporção a que já nos referimos entre o excesso de produção e as horas de trabalho? Não se achará resposta a essa pergunta na doutrina de Marx, pela simples razão de que nessa doutrina não há lugar para tal pergunta. O caráter de luxo que reveste a produção fundada sobre o trabalho assalariado não é sequer abordado seriamente e a organização social, com seu caráter vampiresco, não é, de maneira alguma, reconhecida como fundamento derradeiro da escravatura branca. Pelo contrário, é preciso, segundo Marx, que o elemento político e social seja sempre explicado pelo elemento econômico".      Vimos, porém, pelas passagens acima citadas, que Marx não pretende absolutamente que o sobre-produto seja, em todas as circunstâncias, vendido, na média dos casos, ao seu pleno e justo valor pelo capitalista industrial, que dele se apropria em primeiro lugar, como supõe o Senhor Dühring. Marx diz expressamente que o lucro comercial também constitui uma parte da mais-valia, e em tais circunstâncias isto só é possível se o fabricante vender seu produto ao negociante, abaixo de seu valor, cedendo-lhe, assim, uma parte de seu espólio. Feita como aí está, a pergunta na verdade, não pode nem mesmo ser encontrada em Marx. Feita em termos racionais, ei-la: Como a mais-valia se transforma em suas formas e modalidades: lucro. juros, ganho do comerciante, renda territorial etc.? E esta questão Marx promete, sem dúvida, resolvê-la no livro II de O Capital. Mas se o Senhor Dühring não podia esperar pacientemente pelo aparecimento do segundo volume de O Capital, poderia ter examinado, com mais cuidado, o primeiro volume. Neste, poderia ver, afora as passagens já citadas, à página 323, por exemplo, que, segundo Marx, as leis imanentes da produção capitalista agem no movimento exterior dos capitais como as leis imperativas da concorrência, que é a forma sob a qual se revelam à consciência do capitalista individual como os seus motivos propulsores; que, por conseguinte, uma análise científica da concorrência não é possível senão quando se discerne a natureza íntima do capital, do mesmo modo que o movimento aparente dos corpos celestes só é perceptível aos que conhecem o seu movimento real, imperceptível aos sentidos. Sobre isto, Marx mostra, por exemplo, como uma lei determinada e concreta, a lei do valor, se manifesta num caso determinado no campo da concorrência e ali exerce sua força propulsora. Bastava isto para fazer compreender ao Senhor Dühring que a concorrência representa papel capital na repartição da mais-valia e com um pouco de reflexões, estas indicações dadas no primeiro volume seriam, com efeito, suficientes para fazer reconhecer, pelo menos em suas linhas gerais, o caminho que segue a mais-valia para transformar-se em suas diferentes formas ou modalidades.      Mas, para o Senhor Dühring, é justamente a concorrência o empecilho absoluto que se ergue ante a compreensão do problema. Ele não chega a perceber como patrões concorrentes podem constantemente elevar tão acima do custo natural de produção o produto integral do trabalho, nele incluído, portanto, o sobre-produto. Mais uma vez "tornamos a encontrar aqui o seu conhecido "rigor" de investigação que, na realidade, é simples negligência.      Para Marx, o sobre-produto, como tal, não entra absolutamente nos gastos da fabricação: é a parte do produto que não custa nada ao capitalista, Se os patrões concorrentes quisessem vender o sobre-produto ao preço de suas despesas naturais de fabricação, nada mais teriam a fazer senão dá-lo de presente. Mas não nos retardemos nestes "detalhes micrológicos". Não estariam os patrões concorrentes valorizando diariamente o produto do trabalho acima do custo natural de produção? Segundo o Senhor Dühring, os gastos naturais de fabricação consistem "no dispêndio de trabalho ou de força e esta pode, em última análise, medir-se pelo dispêndio em alimentos", uma vez que na sociedade atual eles consistem no dispêndio real de matérias-primas, instrumentos de trabalho e em salários realmente invertidos, pondo-se à parte a "tributação", isto é. o lucro ou sobrecarga imposta ao produto tendo uma espada na mão. Ora, todos sabem que na sociedade em que vivemos os patrões concorrentes não vendem suas mercadorias de acordo com o valor das despesas naturais de fabricação: mas que, de fato, lhes acrescentam uma sobrecarga que é o lucro, e, com efeito, de ordinário o obtêm. A pergunta, com que o Sr. Dühring julgava de um sopro, jogar por terra todo o edifício da teoria de Marx, tal como fez Josué nos tempos bíblicos, com as muralhas de Jerico, essa pergunta pode ser feita também no que se refere à teoria econômica do Sr. Dühring. Vejamos a resposta que ele dá:      "A propriedade do capital - diz ele - nada significa praticamente e não pode ser realizada em valor se nela não estiver encerrada, ao mesmo tempo, o poder indireto sobre a matéria humana. O produto deste poder é o lucro do capital e a grandeza desse lucro dependerá, portanto, da extensão e da intensidade do exercício de poder... o lucro do capital é uma instituição política e social, cuja ação é mais poderosa que a da concorrência. Os patrões, nesse terreno, atuam como classe e cada um, em particular, mantém sua posição. A cada modalidade dominante de economia corresponde, necessariamente, uma taxa determinada de lucro do capital."      Infelizmente continuamos a não saber como os patrões concorrentes conseguem vender constantemente o produto do trabalho por quantia superior aos gastos naturais de fabricação! Não é possível que o Senhor Dühring faça tão pouco caso do seu público a ponto de querer enganá-lo com a frase: o lucro do capital está acima da concorrência como, em seu tempo, o rei da Prússia, estava acima da lei. A manobra graças à qual o rei da Prússia se havia entronizado sobre a lei é bastante conhecida; a manobra, por meio da qual o lucro do capital consegue entronizar-se por cima da concorrência e ser mais forte do que ela, é justamente o que o Sr. Dühring devia fazer-nos conhecer e o que ele se recusou obstinadamente a explicar-nos.      Não é bastante dizer-se que os patrões nesse terreno, agem com a classe e que cada um deles sustenta a sua posição. Ele não quererá, portanto, fazer-nos crer, sob sua palavra, que basta que uma coletividade aja como classe para que cada indivíduo mantenha sua posição. Os membros das corporações da Idade Média, os nobres franceses, em 1789, agiram, como se sabe, resolutamente, como classe, mas, longe de manter sua posição, foram levados à morte, sem possibilidade de resistir.      Também o exército prussiano, em Jena, atuando como um conjunto longe de garantir as suas posições, teve ,de abandonar o campo e, embora parcialmente, teve também de capitular. Não nos poderemos contentar, igualmente, com a certeza de que em cada regime dominante de economia o lucro do capital é, até certo ponto, uma necessidade; o que justamente se procura esclarecer é a razão pela qual se verifica esse fenômeno. Não avançamos ainda nenhum passo quando o Senhor Dühring nos faz esta comunicação: "O império do capital surgiu relacionado ao domínio sobre a terra. Uma parte dos trabalhadores agrícolas (servos), emigrando para as cidades, transformaram-se em operários industriais e acabaram por converter-se em material fabril. Após a renda territorial, o lucro do capital constituiu-se como uma segunda forma da renda possessória". Embora façamos abstração do que esta afirmação tem de historicamente inexato, ela não deixa de ser uma simples afirmação e contenta-se em assegurar, por várias vezes, o que justamente deve ser explicado e demonstrado. Não podemos, portanto, chegar senão a uma única conclusão: a de que o Senhor Dühring é incapaz de responder à sua própria pergunta: Como os comerciantes concorrentes conseguem vender constantemente o produto do trabalho por quantia superior às despesas naturais de fabricação? É incapaz, pois, de explicar a origem do lucro. Só lhe resta decretar, numa palavra, que o lucro do capital é o produto da "violência", o que, aliás, se ajusta perfeitamente ao artigo 2 da Constituição Social de Dühring: "a violência distribui". É muito bonito de dizer; mas então, "outra pergunta nos acode": a violência distribui... o quê? É preciso que haja alguma coisa a distribuir, sem o que, até a mais onipotente das violências, com a maior boa vontade do mundo, nada poderia distribuir.      O lucro que os patrões concorrentes embolsam é algo bastante sólido e palpável. A violência pode "arrebatá-lo", mas não "produzi-lo". E o Senhor Dühring, que se recusa obstinadamente a explicar-nos "como" a violência arrebata o lucro do capitalista, responde com um silêncio de túmulo quando se lhe pergunta: Donde ela o tira? A quem nada possui, o rei declara livre de tributos. Onde não há nada são inúteis todas as violências. Do nada nada vem e muito menos o lucro. Se a propriedade do capital não significa praticamente nada e não pode transformar-se em valor, caso não se verifique, ao mesmo tempo, um constrangimento exercido sobre a matéria humana, uma primeira pergunta nos acode: como a riqueza do capital conseguiu adquirir esse poder de constrangimento? (questão que não resolvem de modo algum as poucas afirmações históricas citadas linhas atrás); e logo uma segunda: Como se transformou esse poder em exploração do capital, isto é, em lucro? E uma terceira: de onde sai esse lucro?      Podemos examinar a doutrina econômica de Dühring sob o aspecto que quisermos e não avançaremos sequer um passo. Para o Sr. Dühring todos os fenômenos condenáveis, o lucro, a renda territorial, os salários de fome, a servidão dos trabalhadores, se reduzem a uma expressão apenas: a violência, sempre a violência. E a "poderosa cólera" do Sr. Dühring, como nada consegue explicar, volta-se contra a violência. Vimos, em primeiro lugar, que invocar a violência é uma escapatória torpe que nos faz passar do terreno econômico para o terreno político e é incapaz de explicar um único fato econômico; em segundo lugar, ela não explica a origem da própria violência e isto muito prudentemente, pois, do contrário, chegaria a concluir forçosamente que todos os privilégios sociais e toda violência política têm sua fonte nas condições econômicas, no regime de produção e de troca encontrado em cada sociedade.      Experimentemos, no entanto, arrancar ainda alguns esclarecimentos sobre o lucro, esse "profundo e inexorável fundamentador" da economia, Talvez o consigamos nas suas explicações sobre o salário, à página 158:      "O salário do trabalho é o preço da manutenção da força de trabalho e, primeiramente, aparece como base da renda territorial e do lucro do capital. Para compreendermos claramente as condições que imperam nesta matéria, examinemos historicamente a renda territorial e o lucro do capital sem salário, isto é, as condições de trabalho nos regimes de escravidão, ou de vassalagem... O fato de que o escravo, o servo ou o trabalhador assalariado tenham de ser alimentados, concorre apenas para que se estabeleça uma distinção quanto ao modo de determinar o custo de produção. De qualquer forma, porém, o produto líquido obtido pela exploração da força de trabalho constitui a renda do patrão... Vê-se, pois, que... a oposição essencial em virtude da qual se tem, de um lado, uma forma qualquer da "renda possessória", e de outro, o trabalho assalariado sem direito de posse, não pode ser focalizada exclusivamente num destes termos, mas nos dois ao mesmo tempo". Mas a renda possessória não é, como verificamos à página 188, senão uma expressão que designa, ao mesmo tempo, renda territorial e lucro do capital. Lê-se ainda à página 174: "O que caracteriza o lucro do capital é a apropriação duma - parte essencial do produto da força de trabalho. Sem a correlação do trabalho, sujeito, direta ou indiretamente, a uma ou outra forma, o lucro do capital é inconcebível". E à pág. 174: "O salário nunca é mais do que o pagamento que deve, de um modo geral, assegurar ao trabalhador a sua manutenção e a possibilidade de perpetuar a sua espécie". E, por fim, à página 195: "O que é destinado à renda possessória está necessariamente perdido para o salário e, inversamente, a parte do rendimento geral (!), que se destina ao trabalho, está fatalmente perdida para a renda possessória".      O Sr. Dühring é uma verdadeira caixa de surpresas. Na teoria do valor e nos capítulos que se seguem até, e inclusive, a teoria da concorrência, ou seja da página 1 à página 155, os preços das mercadorias ou valores se dividiam em: 1o., custo natural ou valor da produção (a saber, despesas com matérias-primas, instrumentos de trabalho e salário); 2o., sobrecarga ou valor de distribuição, tributo que a classe monopolista impõe de espada na mão. Essa sobrecarga, conforme já vimos, em nada pode alterar a distribuição da riqueza, porquanto dá com uma das mãos o que toma com a outra e que, além disso, pelo que o Sr. Dühring nos informa da sua origem e conteúdo, nasce do nada e, portanto, consiste também de nada.      Nos dois capítulos seguintes, que tratam das espécies de renda, ou seja da página 158 à página 217, não se cuida mais de tal sobrecarga. Em vez disso, o valor de todo produto do trabalho, de toda mercadoria, divide-se, agora, em dois elementos: 1o., os gatos de produção, nos quais também esta contido o salário pago; e 2o., o "produto líquido obtido pelo desgaste da força de trabalho", que constitui a renda do patrão. Esse produto líquido tem uma fisionomia bastante conhecida que nenhuma tatuagem nem nenhuma arte de disfarce podem esconder. "Para compreender com perfeita clareza as condições que reinam nessa matéria", compare o leitor os trechos do Senhor Dühring que acabamos de citar, com os trechos anteriormente citados de Marx a respeito do sobre-trabalho, do sobre-produto e da mais-valia, e logo descobrirá que, à sua maneira, o Senhor Dühring, copia diretamente, aqui, O Capital.      É o sobre-trabalho, sob uma forma qualquer, seja a da escravidão, da servidão ou do trabalho assalariado, que o Senhor Dühring reconhece ter sido a fonte das rendas de todas as classes dominantes até o dia de hoje: esse trecho é tomado à passagem de O Capital (pág. 277) por nós citada já várias vezes: "O capitalista não inventou a mais-valia" etc. O "produto líquido" que constitui a "renda do patrão", outra coisa não é senão o excedente do produto do trabalho sobre o salário que, apesar de seu disfarce em "pagamento", deve, de um modo geral, segundo ainda o Senhor Dühring, assegurar ao trabalhador o seu sustento e a possibilidade de perpetuar a espécie. Como poderia operar-se a "apropriação da parte essencial do produto da força de trabalho" a não ser porque, como em Marx, o capitalista subtrai ao trabalhador mais trabalho do que lhe é necessário para reproduzir os meios de existência consumidos por este último, isto é, porque o capitalista força o operário a trabalhar mais tempo do que lhe é necessário para substituir o valor do salário pago? Como seria possível a não ser por meio do prolongamento da jornada de trabalho além do tempo necessário para reproduzir os meios de subsistência do trabalhador? É a isso que Marx denomina de sobre-trabalho e é isso, igualmente, que se oculta no Senhor Dühring sob a expressão de "desgaste da força de trabalho". O "produto líquido", que retorna ao patrão, nada mais é do que o sobre-produto e a mais-valia de Marx. A não ser pela inexatidão de sua formulação em que a "renda possessória" de Dühring difere da mais-valia marxista? De resto, o Sr. Dühring tomou a expressão "renda possessória" (Besitzrent) a Rodbertus, que já reunia a renda territorial e a renda do capital ou lucro do capital sob a expressão comum de renda, de maneira que o Senhor Dühring não teve senão que acrescentar a palavra "possessória"(8). E, para que nenhuma duvida subsista sobre o plágio, o Sr. Dühring resume a seu modo as leis relativas às variações de grandeza do preço da força de trabalho e da mais-valia, expostas por Marx no capítulo XV de O Capital, dizendo que o que cabe à renda possessória está perdido para o salário e vice-versa, reduzindo, pois, as leis concretas e tão substanciais de Marx a uma tautologia vazia, porquanto não é preciso dizer que, de uma quantidade de água dividida em duas partes, uma não pode crescer sem que a outra diminua. O Senhor Dühring chegou, assim, a apropriar-se das idéias de Marx de tal maneira que faz desaparecer inteiramente o "caráter científico rigoroso, no sentido das disciplinas exatas", que se encontra, certamente, na exposição de Marx.      Não podemos, portanto, deixar de admitir que a extraordinária algazarra feita contra O Capital, na História Crítica, e a poeira que ela faz redemoinhar em torno da famosa questão surgida a propósito da mais-valia, e que teria sido melhor o Senhor Dühring não levantar, uma vez que ele próprio não a pode resolver; não podemos deixar de admitir - dizíamos - que tudo isso não passa de um estratagema de guerra, de uma hábil manobra para esconder o plágio grosseiro de Marx cometido pelo Senhor Dühring no Curso de Economia. O Senhor Dühring tinha, com efeito, todas as razões do mundo para prevenir os seus leitores contra o estudo dessa "barafunda que se chama O Capital, do Senhor Marx", contra os "produtos bastardos da fantasia histórica e lógica, as idéias confusas, as manias hegelianas etc.". A Vênus da qual esse fiel mentor procura desviar a juventude alemã, ele a tinha ido buscar nas terras de Marx e a tinha posto, em surdina, em lugar seguro, para seu próprio prazer. Cumprimentemo-lo por esse produto líquido obtido, utilizando a força de trabalho de Marx, e pela luz particular que a sua anexação da mais-valia marxista, sob o nome de renda possessória, lança sobre os motivos da sua falsa e obstinada afirmação, aliás repetida em duas edições, de que Marx entendia por mais-valia somente o lucro ou o ganho do capital.      E assim somos levados a elaborar o quadro dos resultados a que chega o Senhor Dühring, da maneira seguinte, com os termos do próprio Senhor Dühring, segundo o ponto de vista do Senhor Dühring: o salário representa apenas a remuneração do tempo de trabalho durante o qual o operário trabalha realmente para tornar possível a sua própria existência. Basta, para isso, um pequeno número de horas; todo o resto da jornada de trabalho, quase sempre muito prolongada, fornece um excedente em que está contida o que o nosso autor chama "renda possessória... " Abstração feita do tempo de trabalho já contido, numa fase qualquer da produção, nos instrumentos de trabalho e nas matérias primas relativas, este excedente da jornada de trabalho é, por conseguinte, um puro ganho do capitalista arrancado à exploração. O ódio venenoso com que o Senhor Dühring "cultiva esta idéia a respeito do fenômeno da exploração é bastante compreensível"... Mas o que não se compreende nitidamente são os meios pelos quais ele pretende alcançar a sua "cólera poderosa".

Capítulo IX - LEIS NATURAIS DA ECONOMIA. A RENDA TERRITORIAL

     Apesar de nossa boa vontade, até aqui não havíamos logrado descobrir como o Senhor Dühring consegue apresentar-se, no domínio da economia política, "gabando-se de um sistema novo que não só é suficiente para a época em que vivemos, como também é decisivo para esta época.      Mas o que não logramos ver, a propósito da teoria da violência, nem a propósito do valor e do capital, talvez se torne claro como o dia, aos nossos olhos, quando consideramos as "leis naturais da economia", expostas pelo Senhor Dühring. Com efeito, diz ele com sua originalidade e sua precisão habituais, "o êxito da verdadeira ciência consiste em ultrapassar as simples descrições e classificações da matéria, por assim dizer imóvel, para chegar às idéias vivas que explicam a gênese das coisas, O conhecimento das leis é, por essa razão, o mais perfeito de todos os conhecimentos, porque nos mostra como um fenômeno determina outro".      Para começar, a primeira das leis naturais de toda a economia foi especialmente descoberta pelo Senhor Dühring: "Coisa notável: Adam Smith não só não salientou o fator mais importante de toda a evolução econômica, como se esqueceu totalmente de formulá-la em particular e, dessa maneira, sem o querer, rebaixou a um papel secundário a força que imprimira o seu cunho à evolução da moderna Europa. Essa "lei fundamental, que é preciso formular com a máxima precisão, é a do aparecimento do equipamento técnico, espécie de armadura, de que se reveste a força econômica natural do homem". Estas "leis fundamentais", descobertas pelo Senhor Dühring, estão assim formuladas:      Lei no. 1: "A produtividade dos meios econômicos, das riquezas naturais e da força do homem, é intensificada pelas "invenções" e "descobrimentos".      Espantoso! O Senhor Dühring trata-nos, mais ou menos como, em Moliere, aquele pândego trata o fidalgo, ao dizer-lhe que ele fez prosa toda a vida sem o saber. Que as invenções e os descobrimentos aumentem em alguns casos a força, produtiva do trabalho (em alguns casos, mas de modo algum num grande número, como o provam os arquivos poeirentos das negociações das patentes de invenção do mundo inteiro), há muito tempo que o sabíamos. Mas, que essa velha banalidade seja a lei fundamental de toda a economia, eis uma revelação que ficamos devendo ao Senhor Dühring. Se a "vitória da verdadeira ciência", em economia política como em filosofia, consiste somente em dar ao primeiro lugar-comum que nos ocorre um nome retumbante, e proclamá-lo como uma lei natural, ou seja, como uma lei fundamental, então, realmente, "fundar a ciência sobre uma base aprofundada", revolucionar a ciência, torna-se possível a todo mundo, inclusive à redação da Volkszeitung, de Berlim. Seriamos, então, constrangidos a aplicar "com todo o rigor", ao próprio Senhor Dühring, o julgamento que ele fez de Platão. "Mas se isso é ciência econômica, o nosso autor partilha-a com alguém que jamais soube exprimir uma idéia", ou simplesmente dizer uma palavra, "sobre a própria evidência dos fatos", Quando dizemos, por exemplo, que os animais comem, com isso enunciamos tranqüilamente, com toda a inocência, uma grande coisa. Para revolucionarmos toda a zoologia, não teríamos senão que dizer: a lei fundamental de toda vida animal é comer.      Lei no. 2: "Divisão do trabalho. A separação dos ramos profissionais e a especialização das atividades aumentam a produtividade do trabalho". No que contém de exato, essa tese é um lugar-comum desde Adam Smith. Até que ponto é exata, ver-se-á na terceira parte desta obra".      Lei no. 3: "Distância e transporte são as causas principais que entravam ou favorecem a cooperação das forças produtivas".      Lei no. 4: "O Estado industrial tem uma capacidade de produção incomparavelmente maior que o Estado agrícola".      Lei no. 5: "Em economia política, nada acontece sem que corresponda a um interesse material."      Tais são as "leis naturais" sobre as quais o Senhor Dühring funda a sua economia. Ele continua fiel ao método que já expusemos a propósito de sua filosofia. Alguns truismos da mais desoladora banalidade constituem as proposições fundamentais e também as leis naturais da sua economia.      Sob o pretexto de desenvolver o conteúdo dessas leis, absolutamente sem conteúdo, a ocasião é aproveitada para uma longa digressão econômica sobre diferentes temas, cujos "nomes" se encontram nessas pretensas leis: sobre as invenções, a divisão do trabalho, os meios de transportes, a população, os interesses, a concorrência etc., digressão cuja vulgaridade não tem para salientá-la senão um grandiloqüente estilo oracular e, aqui e ali, uma deturpação proposital ou argúcia pretensiosa sobre todas as espécies de sutilezas casuísticas. Após o que, finalmente, chegamos à renda territorial, ao lucro do capital e ao salário e, como não tratamos precedentemente senão destas duas últimas formas de apropriação, terminaremos por um estudo rápido das idéias do Senhor Dühring sobre a renda territorial.      Passamos por alto todos os pontos em que o Sr. Dühring se limita a repetir Carey, seu predecessor; não trataremos aqui de refutar a Carey, nem de defendê-lo contra suas tergiversações e fatuidades acrescentadas à concepção ricardiana da renda do solo.      Interessa-nos apenas o caso do Sr. Dühring. E ele define a renda do solo como "a renda que o proprietário recebe do solo, em sua condição de proprietário".      A idéia econômica de renda territorial, que o Sr. Dühring deve explicar, é singelamente traduzida em linguagem jurídica, de maneira que não avançamos um palmo. Nosso construtor de alicerces profundos é, portanto, obrigado a entregar-se, por bem ou por mal, a excessos de explicações. Compara o arrendamento da terra ao empréstimo de um capital, mas logo descobre que essa comparação soa como todas as outras. Porque, diz ele, "se quiséssemos prosseguir na analogia, seria mister que o lucro, que fica para o arrendatário, após ter pago a renda territorial, correspondesse ao restante do lucro do capital que toca ao empreiteiro que explora o capital, dedução feita dos juros.      Mas não estamos acostumados a considerar os ganhos do fazendeiro como a renda principal e a renda territorial como um resto... A prova de que se faz a esse respeito uma idéia diferente é o "fato" de que, na teoria da renda territorial, não se distingue especialmente o caso em que um homem explora, ele próprio, a sua terra e não se dá muita importância à diferença quantitativa que existe entre uma renda percebida sob a forma de arrendamento e uma renda produzida por aquele mesmo que a aufere. "Pelo menos, não se é induzido" a conceber a renda de um proprietário que explora o seu pedaço de terra como dividida em dois elementos, representando um, por assim dizer, os direitos dos bens rurais e o outro o lucro suplementar do empreiteiro. Abstração feita do capital próprio que o colono emprega, o seu lucro parece, no maior número de casos, ser computado como uma espécie de salário. Entretanto, seria arriscado deixar de dizer alguma coisa sobre isso, uma vez que essa questão jamais foi encarada com tal precisão. Onde existam explorações consideráveis, ver-se-á facilmente que não se poderia considerar o ganho especifico do arrendatário como uma espécie de salário de seu trabalho: esse lucro, com efeito, surge em oposição à força de trabalho agrícola, cuja exploração torna, por si mesma, possível essa espécie de renda. É evidentemente "uma fração de renda" que fica nas mãos do arrendatário e torna menor a "renda integral" que o proprietário receberia caso explorasse por conta própria a terra.      A teoria da renda territorial é uma parte da economia política especificamente inglesa e devia sê-lo, pois é somente na Inglaterra que existe um modo de produção em que a renda se separa efetivamente do lucro e dos juros. Na Inglaterra, como se sabe, dominam o latifúndio e a grande agricultura. Os proprietários territoriais arrendam suas terras, sob a forma, quase sempre, de grandes domínios, a arrendatários providos de capital suficiente para explorá-las. Estes arrendatários não trabalham como os camponeses alemães, não passando de autênticos empreiteiros capitalistas, pois empregam o trabalho de assalariados. Temos aí, portanto, três classes da sociedade burguesa e a renda própria a cada uma delas; o latifundiário, que percebe a renda territorial; o capitalista, que embolsa o lucro; o trabalhador, que recebe o salário. Nunca um economista inglês se lembrou de fazer do ganho do arrendatário, como "parece" ao Senhor Dühring, uma espécie de salário. Esse economista não acharia "arriscado" afirmar que o lucro do arrendatário é, de modo incontestável, evidente e tangível, o lucro do capital. É verdadeiramente ridículo, com efeito, dizer que nunca se levantou com tanta precisão a questão de saber o que é, na verdade, o lucro do arrendatário. Na Inglaterra, não se tem mesmo necessidade de fazer semelhante pergunta, cuja resposta está dada há muito tempo pelos fatos e nenhuma dúvida houve, até hoje, nesse sentido, desde Adam Smith.      O caso em que o proprietário explora, ele mesmo, as suas terras, segundo considera o Sr. Dühring, ou melhor, como diríamos nós, a exploração por parte dos administradores por conta do proprietário territorial, como acontece, às vezes, na Alemanha, em nada altera a questão. Quando o latifundiário fornece o capital e faz explorar a terra por sua própria conta, ele embolsa, além da renda territorial, o lucro do capital, como é inevitável no atual regime de produção. E quando o Senhor Dühring pretende que não se julgou necessário, até agora, considerar dividida em seus elementos a renda (seria mister dizer: o rendimento) de um proprietário que explora as próprias terras, é decididamente uma inverdade, que, ainda uma vez, só lhe prova a ignorância. Tomemos um exemplo:      "O rendimento, que se tira do trabalho, chama-se salário; o que um homem tira do emprego de capital chama-se lucro...; o rendimento que provém exclusivamente do solo se chama renda e pertence ao proprietário territorial. Quando essas diversas espécies de rendimento tocam a pessoas diferentes, é fácil distingui-las; mas, quando cabem a uma só e mesma pessoa, elas quase sempre se confundem, pelo menos na linguagem corrente. Um latifundiário que "também explora" parte de suas próprias terras deveria receber, uma vez pagos os gastos de exploração, a renda do proprietário territorial e o lucro do arrendatário, Entretanto, ele chamará de boa vontade, pelo menos na linguagem corrente, todo o seu ganho, de lucro, confundindo assim renda com lucro. A maioria dos lavradores da América do Norte e das Índias Ocidentais está nesse caso: a maior parte cultiva suas propriedades e raramente ouvimos falar da renda de uma lavoura, e, sim, do lucro que ela dá... Um hortelão, que cultiva com suas mãos sua própria horta, é proprietário territorial, arrendatário e operário assalariado ao mesmo tempo: o produto deveria, portanto, pagar-lhe a renda do primeiro, o lucro do segundo e o salário do terceiro; entretanto, tudo passa ordinariamente como sendo produto de seu trabalho: desse modo, a renda e o lucro se confundem com o salário".      Esse trecho encontra-se no capítulo VI do primeiro livro de Adam Smith. O caso em que um proprietário explora, ele próprio, os seus bens, já foi, portanto, estudado há cem anos, e as dúvidas e incertezas que tanto amarguraram ao Senhor Dühring provêm exclusivamente de sua própria ignorância.      Por fim, ele procura livrar-se do embaraço com um golpe audacioso: o ganho do fazendeiro funda-se sobre a exploração "da força de trabalho agrícola": é, pois, evidentemente, "uma fração de renda" da qual "é diminuída a renda integral" que deveria propriamente ir ter ao bolso do proprietário territorial. Isso nos ensina duas coisas. A primeira é que o arrendatário "diminui" a renda do latifundiário, isto é, que, no Senhor Dühring, não é como se havia até agora figurado, o arrendatário que "paga" ao proprietário territorial, mas o "proprietário territorial" que paga "ao arrendatário uma renda" - e eis aí "um ponto de vista eminentemente original" Em segundo lugar, ficamos sabendo, finalmente, o que o Senhor Dühring entende como renda do solo: é todo o sobre-produto obtido, na agricultura, pela exploração do trabalho do camponês. Mas, como em toda a economia política até os nossos dias - alguns defensores da economia vulgar podem ser postos à parte - esse sobre-produto se divide em renda territorial e lucro do capital -, é mister constatar que o Senhor Dühring não aceita igualmente "a concepção ordinária" da renda territorial. Assim, segundo o Senhor Dühring, a única diferença entre a renda territorial e o lucro do capital é que a primeira se obtém na agricultura e a segunda na indústria e no comércio. Ele chega a esse ponto de vista confuso e destituído de qualquer fundamento crítico através de uma seqüência necessária. Vimo-lo partir dessa "concepção verdadeiramente histórica" de que a dominação do solo só se havia podido estabelecer após ser conseguida a dominação sobre os homens. Desse modo, que o solo é cultivado por meio de uma forma qualquer de trabalho servil, daí resulta um excedente para o proprietário territorial e esse excedente é precisamente a renda, como, na indústria, o excedente do produto do trabalho sobre o salário é o rendimento do capital: "Dessa maneira, é evidente que. em qualquer tempo e em toda parte, a renda territorial existe em proporção considerável quando a cultura do solo se faz por meio de uma das formas de sujeição do trabalho... " Mas, para desenvolver este conceito de renda, apresentando-a como a totalidade do sobre-produto obtido na agricultura, o Senhor Dühring choca-se, de um lado, com o "lucro do arrendatário inglês" e, de outro, que encontramos em toda a economia clássica, do sobre-produto em duas partes, a renda do solo e o lucro do arrendatário, isto é, a formulação precisa e pura da renda.      Que faz, porém, o Senhor Dühring? Finge desconhecer completamente a divisão do sobre-produto agrícola em lucro do arrendatário e renda territorial; isto é, finge ignorar em absoluto toda a teoria da renda estabelecida pela economia clássica, pretendendo fazer crer aos seus leitores que nenhum economista, até hoje estabeleceu "com tanta precisão", a questão de saber o que é, de fato, o lucro do arrendatário. Faz como se se tratasse de um assunto inteiramente novo, que jamais tivesse sido tratado e do qual nada se conhecia senão as aparências e as dificuldades. Foge dessa aborrecida Inglaterra, onde, absolutamente sem intervenção de qualquer escola teórica, o sobre-produto agrícola é tão impiedosamente dividido em seus elementos: renda territorial e lucro do capital; foge para as regiões de seus amores, onde reina o Landrecht prussiano e a exploração pelo proprietário está em plena florescência patriarcal, onde "o dono de uma gleba entende como renda os rendimentos que dela aufere", onde a opinião dos senhores fidalgos sobre a renda pretende ainda impor-se à ciência, onde o Senhor Dühring pode ainda esperar insinuar-se com suas idéias confusas sobre a renda e o lucro, e até mesmo conseguir fazer passar de contrabando a sua nova invenção: a renda territorial paga não pelo arrendatário ao proprietário territorial, mas por este àquele.

Capítulo X - SOBRE A "HISTÓRIA CRÍTICA"

Lancemos ainda uma vista de olhos à História crítica da economia política, a do Senhor Dühring, que, como ele o disse, não tem, de modo algum, "precedentes". Talvez, por fim, encontremos aqui aquele caráter científico rigoroso que tanto nos prometeu.      O Senhor Dühring fez grande barulho com a sua descoberta de que a "ciência econômica" é "uma criação extraordinariamente moderna" (pg. 12).      Com efeito, Marx diz em O Capital: "A economia política... como ciência autônoma, só aparece no período da manufatura" e, em seu livro Contribuição à Crítica da Economia Política, à página 29, diz que "a economia política clássica... começa na Inglaterra com Petty, em França com Boisguillebert e encerra-se na Inglaterra com Ricardo e na França com Sismondi". O Senhor Dühring segue essa marcha, que lhe era prescrita: somente, a economia "superior" começa precisamente para ele com os lastimáveis abortos que a ciência burguesa deu à luz após a terminação de seu período clássico, Em compensação, ele triunfa com toda a legitimidade, no final de sua Introdução: "Mas, se já essa empresa carecia de predecessores, em suas particularidades exteriormente apreciáveis e no que tem de moderno a metade do seu conteúdo, pertence-me ainda mais por seus pontos de vista críticos internos e por sua tendência geral" (página 9).      Realmente, ele poderia, dos dois lados, tanto o exterior como o interior, anunciar a sua "empresa" (essa expressão industrial não foi mal escolhida) sob este título: O Único e a sua propriedade.(9),      Como a economia política, tal qual se manifestou na história, não é, de fato, senão o estudo científico do que é a economia do período de produção capitalista, não se podem encontrar proposições e teoremas que com ela se relacionem (por exemplo, entre os escritores da sociedade grega antiga) senão na medida em que certos fenômenos, tais como a produção mercantil, o comércio, a moeda, o capital que rende juros etc., são comuns às duas sociedades. Todas as vezes que os gregos incursionam ocasionalmente nesse domínio, demonstram o mesmo gênio e a mesma originalidade que nos outros. Seus pontos de vista são, pois, historicamente, os pontos de partida teóricos da ciência moderna. Vejamos agora como o Senhor Dühring escreve essa história.      "De acordo com isso, não teríamos, propriamente falando (!), nada de positivo a dizer sobre uma teoria científica da economia na Antigüidade. A Idade Média, completamente estranha à ciência, menos matéria ainda fornece a esse respeito. Mas, como a maneira de escrever que arvora vaidosamente a aparência da erudição... desfigurou o puro caráter da ciência moderna, é-nos necessário, ao menos para lembrança, fornecer alguns exemplos de uma crítica que, com efeito, se abstém da "aparência da erudição".      Disse Aristóteles (Política, 1, 3, II, pg. 1.257) que "todo bem pode servir a dois usos - um é próprio à coisa como tal, o outro não; assim, uma sandália pode servir para calçar, ou ser trocada; um e outro são modos de uso da sandália, pois aquele que troca a sandália pelo que lhe falta, dinheiro ou alimentos, utiliza a sandália como sandália, mas não na sua maneira natural de uso, porquanto a sandália não é feita para ser trocada". Essa proposição, segundo o Senhor Dühring, "não somente é expressa de maneira verdadeiramente trivial e escolástica, mas ainda aqueles que nela encontram uma "distinção entre o valor do uso e o valor de troca" se dão, além do mais, "ao ridículo" de esquecer que, "na época mais recente" e "no sistema mais avançado', que é, naturalmente, o do próprio Senhor Dühring, não há mais necessidade de valor de uso e de valor de troca.      "Pretendeu-se também encontrar nos escritos de Platão sobre a República... o capítulo moderno da divisão do trabalho econômico". Trata-se, sem dúvida, de uma alusão ao trecho de O Capital em que se mostra, pelo contrário, que os pontos de vista da Antigüidade clássica sobre a divisão do trabalho estão "em oposição rigorosa" aos pontos de vista modernos. Desdém e nada mais, é tudo o que Platão consegue do Senhor Dühring pela sua exposição - genial para seu tempo - da divisão do trabalho como base natural da cidade (sinônimo de Estado para os gregos), e isso porque ele não menciona (mas o grego Xenofonte o faz, Senhor Dühring!) o "limite que impõe toda extensão do mercado à divisão ulterior dos ramos profissionais e a separação técnica das operações especiais... A noção desse limite é a primeira verificação pela qual uma idéia que, antes ,se podia dificilmente classificar de científica, se torna uma verdade de importância econômica".      O "professor" Roscher, tão contrariado pelo Senhor Dühring, traçou efetivamente esse único "limite" que torna "científica" a idéia da divisão do trabalho e, em conseqüência, atribuiu a Adam Smith a descoberta da divisão do trabalho. Numa sociedade em que a produção de mercadorias é o modo dominante de produção, o mercado - para, uma vez, falarmos também à maneira do Senhor Dühring - é efetivamente um "limite" bastante conhecido pelos "homens de negócios'. Mas é mister outra coisa além do "saber e do instinto da rotina" para compreender que não foi o mercado que criou a divisão capitalista do trabalho, mas que, inversamente, foi o desdobramento de unidades sociais anteriores, e a divisão do trabalho dele resultante, que criaram o mercado. (Ver O Capital, livro I, capítulo XXIV, 5. "Estabelecimento do mercado interior para o capital industrial"). "O papel da moeda foi, em todos os tempos, a primeira incitação às idéias econômicas (!). Mas que sabia um Aristóteles desse papel? Evidentemente nada que ultrapassasse a noção de que a troca, por meio da moeda, sucedeu à troca primitiva em espécie".      Mas, quando "um" Aristóteles se permite descobrir as duas "formas de circulação" diferentes da moeda, uma em que ela aparece como simples instrumento de circulação, outra em que age como capital monetário, não faz com isso, segundo o Senhor Dühring, "senão exprimir uma antipatia moral".. Quando "um" Aristóteles leva a sua audácia ao ponto de querer analisar a moeda no seu papel de "medida do valor", quando coloca efetivamente em seus termos exatos esse problema tão decisivo para a teoria da moeda, "um" Dühring prefere nada dizer, por motivos dele conhecidos, sobre essa impertinente audácia.      Resultado final: no quadro, que o Senhor Dühring traça, a antigüidade grega não tem efetivamente senão "idéias inteiramente vulgares" (pág. 25) se é que uma tal "parvoíce" (página 29) tem qualquer coisa de comum com idéias vulgares ou não.      Faremos melhor lendo o capítulo do Senhor Dühring. sobre o mercantilismo, no "original", isto é, em F. List, Sistema Nacional, capítulo XXIX: O sistema industrial, falsamente chamado de sistema mercantil. Com esse cuidado, o Sr. Dühring sabe, ainda aqui, evitar toda "aparência de erudição", pode-se ver pelo seguinte:      List diz, capítulo XXVIII (Os Economistas Italianos): "A Itália precedeu todas as nações modernas, na teoria como na prática da economia política", e cita em seguida como "primeira obra escrita na Itália, especialmente sobre economia política, o livro de Antônio Serra, napolitano, sobre os meios de proporcionar aos reinos ouro e prata em abundância (16l3). O Senhor Dühring aceita isso sem hesitação e pode, em conseqüência, "considerar o Breve Trattato de Serra como "uma espécie de epígrafe à entrada da pré-história moderna, da economia". A essa "gentileza literária" limita-se, de fato, o seu estudo do Breve Trattato, mas, infelizmente, as coisas se passaram na realidade de outro modo, pois, em 1869, quatro anos por conseguinte antes do Breve Trattato, apareceu A Dicourse of Trade, etc., de Tomas Mann. Essa obra teve, desde a sua primeira edição, a significação particular de ser dirigida contra o antigo "sistema monetário", então ainda defendido como prática do Estado, na Inglaterra, e representa. portanto, a "emancipação" conscientemente praticada pelo sistema mercantil, de sistema que lhe tinha dado origem. Sob sua primeira forma, a obra teve já várias edições e exerceu influência direta na Legislação. Na edição de 1664, completamente refundida pelo autor e aparecida após a sua morte sob o título de England's Treasure etc... continuou sendo, por mais cem anos ainda, o evangelho mercantilista. Se. pois, o mercantilismo possui um livro que fez época, "uma espécie de epígrafe à entrada", é bem esse, que também não existe de maneira alguma para o Senhor Dühring e por sua "História, que observa com o maior cuidado as gradações hierárquicas da história".      Do fundador da economia política moderna, Petty, o Senhor Dühring nos diz que tinha uma quantidade "bem grande" de pensamentos superficiais, que "não tinha o senso das distinções interiores e sutis entre os conceitos"... "era um espírito versátil, que conhecia muitas coisas, mas passava de uma a outra superficialmente, sem se aprofundar numa idéia qualquer" ...; "seu método econômico é ainda muito grosseiro" e "chega a ingenuidades cujo disparate pôde, mesmo, na ocasião, divertir um pensador sério". Que extraordinária condescendência, esta do "pensador sério", Senhor Dühring, consentindo em levar em conta "um Petty"! E de que maneira o leva em conta!      As teses de Petty sobre "o trabalho e o tempo de trabalho considerado como medida do valor", que são "rudimentos imperfeitos" dessa teoria, também não são mencionados mais no decorrer da obra. No seu Treatise on Taxes and Contributions (1a. ed. em 1662), Petty faz uma análise perfeitamente clara e exata sobre a grandeza do valor das mercadorias. Esclarecendo primeiramente, à luz da igualdade de valor entre os metais preciosos e os cereais que custam um trabalho igual, ele foi o primeiro a dizer a última palavra "da teoria" sobre o valor dos metais preciosos, expondo com a mesma precisão o princípio geral de que os valores das mercadorias são medidos por um "trabalho igual" (equal labor).      Ele aplica sua descoberta à solução de diversos problemas, alguns bem complexos, e em alguns trechos, em diversas ocasiões e em diversas obras, sem que seja mesmo repetida a proposição principal, tira dela conseqüências importantes. Mas, desde o seu primeiro trabalho: "Afirmo que isto (a taxação à base da igualdade de trabalho) é a base da equivalência da comparação. dos valores; entretanto, na construção e na aplicação prática deste princípio existe, eu o confesso, muita diversidade e complicação". Petty confessa, pois, a importância de sua descoberta e, igualmente, a dificuldade em aplicá-la concretamente. Ele tenta também, para certos fins particulares, um outro caminho. Trata-se de achar uma relação de equivalência natural (a natural Par) entre o solo e o trabalho, de modo que se possa exprimir indiferentemente "em qualquer dos dois ou, melhor ainda, em ambos". O próprio erro é genial. O Senhor Dühring faz, a propósito da teoria do valor de Petty, esta observação penetrante: "Se ele próprio tivesse tido mais firmeza de pensamento, não se lhe poderia achar, noutras passagens, rudimentos de uma concepção oposta como já se disse mais acima". A verdade, porém, é que a elas não se aludiu senão para dizer que "tais rudimentos" eram imperfeitos". É bem característico do Senhor Dühring este hábito de fazer alusão, ligeiramente, sobre qualquer coisa numa frase vazia, para, logo, fazer crer ao leitor que, "mais acima" já se lhe fez conhecer o essencial. Na realidade, porém, o autor nada mais fez do que passar pelo assunto como por cima de brasas.      Em Adam Smith, encontram-se não somente "rudimentos" de "concepções opostas" sobre a noção do valor; e não somente duas, mas três e, até mesmo, quatro concepções fortemente contraditórias do valor, prosseguem naturalmente seu caminho, ao lado e misturadas umas às outras. Mas o que é natural para o fundador da Economia Política, que necessariamente tateia, experimenta, luta com um caos de idéias em vias de formação, pode parecer estranho num escritor que faz uma síntese crítica de mais de um século e meio de pesquisas, quando os próprios resultados em parte já passaram dos livros para a consciência comum. E. para resumirmos, vimos o próprio Senhor Dühring dar-nos a escolher entre cinco espécies diferentes de valor, a cada uma das quais corresponde uma concepção radicalmente diversa. Seguramente, "se ele próprio tivesse tido mais firmeza de pensamento", não se teria esfalfado tanto para lançar seus leitores, depois da concepção perfeitamente clara que Petty faz do valor, na mais extrema confusão.      Um trabalho de Petty, perfeitamente harmônico, é o seu Quantulumcumque Concerning Money, publicado em 1682, dez anos após seu Anatomy of Ireland (aparecido "pela primeira vez" em 1672 e não em 1691, como escreve o Senhor Dühring, conforme as "compilações dos manuais mais correntes). Os últimos traços de concepções mercantilistas, que se acham noutros escritos de Petty. desaparecem por completo nesta obra. É uma pequena obra-prima, no fundo e na forma, e é justamente por isso que não, figura na lista do Senhor Dühring. É perfeitamente compreensível que, em face do pesquisador mais genial ou do mais original dos sábios em economia uma mediocridade vaidosa de mestre escola apenas manifesta a seu descontentamento resmungão, tresandando despeitos ao ver as faíscas de luz teórica, em vez de desfilarem solenemente como axiomas bem acabados, jorrarem, pelo contrário, em desordem, numa longa sucessão de assuntos práticos e "grosseiros" como os impostos, por exemplo.      O Senhor Dühring trata Petty. fundador da Aritmética Política, vulgarmente chamada estatística, como já havia tratado Petty pelos trabalhos propriamente econômicos. Dá de ombros, com ar zangado, diante da singularidade dos métodos grotescos que o próprio Lavoisier aplicava ainda, nesse domínio, cem anos mais tarde: quando consideramos a distância que ainda separa a estatística atual do objetivo que Petty lhe traçara em linhas gerais, esse ar de superioridade suficiente, dois séculos post festum, parece como uma tolice desmedida.      As idéias mais importantes de Petty. das quais tão poucos traços há na "empresa" do Senhor Dühring, não são, segundo este último. senão puros caprichos, idéias lançadas ao acaso, pensamentos de ocasião, aos quais somente nos nossos dias se atribui, graças a citações destacadas do texto, uma importância que em si nunca teriam, não representando, por conseguinte, papel algum na "verdadeira" economia política, mas unicamente nos livros modernos inferiores ao nível da crítica radical e da "historiografia em grande estilo" do Sr. Dühring. Parece que ele, na sua "empresa", teve em vista um círculo de leitores possuídos da fé do carvoeiro, e que não se permitiam reclamar a prova de uma afirmação. Voltaremos logo a esse assunto a propósito de Locke e North. Por enquanto. temos necessidade de deter-nos, por um momento, em Boisguillebert e Law.      Quanto ,ao primeiro, assinalemos o único achado que propriamente pertence ao Senhor Dühring: ele descobriu. entre Boisguillebert e Law, uma relação até aqui ignorada. Boisguillebert declara que os metais preciosos poderiam ser substituídos, na função normal da moeda, que exercem no seio da produção mercantil, por uma moeda fiduciária (um "chiffon de papier"). Law imagina, pelo contrário, que um "acréscimo" qualquer do número desses "pedaços de papel" aumenta a riqueza de uma nação. Daí se conclui, para o Senhor Dühring, que "a concepção de Boisguillebert encerrava já em si uma concepção nova do mercantilismo". Era já. em outros termos, a teoria de Law. Eis como isso é cristalinamente demonstrado: "Bastaria atribuir a esses "simples pedaços de papel" a mesma função que "teriam" de representar os metais preciosos, e assim imediatamente se realizaria uma metamorfose do mercantilismo". Do mesmo modo eu poderia operar, imediatamente, a metamorfose do meu tio em minha tia, Na verdade, o Sr. Dühring acrescenta, num tom conciliatório: "Certo, Boisguillebert não tinha tal intenção". Mas, que diabo! como - uma vez que, segundo ele, os metais preciosos podem ser substituídos na sua função de moeda pelo papel - podia ele ter a intenção de substituir a sua própria concepção racionalista dessa função dos metais preciosos, pela concepção supersticiosa dos mercantilistas? "Entretanto" - continua o Senhor Dühring, com a sua gravidade cômica: - é preciso convir que nosso autor fez algumas observações realmente criteriosas". (Pág. 83).      Quanto a Law, o Senhor Dühring tem apenas esta "observação realmente criteriosa": "O próprio Law nunca pôde, compreende-se, "eliminar" completamente esse fundamento último (ou seja "a base dos metais preciosos"), mas ele levou a emissão de bilhetes até ao extremo, isto é, até ao desmoronamento do sistema" (pág, 94). Na realidade, porém, essas borboletas de papel, puros signos monetários, que adejavam pelo público, não se propunham "diminuir" a base de metais preciosos, mas apenas retirar esses metais dos bolsos do público fazendo-o entrar nas caixas do Estado que estavam à míngua.      Voltando a Petty e ao papel insignificante que o Senhor Dühring o faz representar na história da economia política, ouçamos, primeiro o que nos é dito sobre seus sucessores imediatos, Locke e North. As duas obras Considerations on Lowering of Interest and Raising of Money, de Locke, e os Discourses upon Trade, de North. apareceram no mesmo ano de 1691.      "O que Locke escreveu sobre os juros e a moeda não sai do quadro das reflexões que eram habituais, sob o reino do mercantilismo ligadas aos acontecimentos da vida política" (pág. 64,. O leitor poderá, agora, por intermédio desse verídico informe, compreender com absoluta clareza, porque o Lowering of Interests, de Locke, exerceu sobre a economia política francesa e italiana, da segunda metade do século XVIII, influência tão considerável, e efetivada em diversos sentidos.      "Sobre a liberdade da taxa de juros, muitos homens de negócios haviam pensado como Locke e a própria evolução da sociedade comportava a tendência de considerar como ineficazes os obstáculos legais aos juros. Num tempo em que um Dudley North podia escrever seus Discourses upon Trade, no sentido do livre-câmbio, era preciso que já houvesse, por assim dizer, no ar, uma forte tendência a não permitir que parecesse como coisa espantosa a oposição teórica às restrições aos juros".      Era mister, portanto, que Locke cogitasse das idéias de tal ou qual "homem de negócios", seu contemporâneo, ou que recolhesse muitas das coisas que, na sua época "flutuavam, por assim dizer, no ar, para fazer uma teoria acerca dos princípios da liberdade dos juros sem nada dizer de novo. Mas, de fato, desde 1622, no seu Treatise on Taxes and Contributions, Petty separava os juros como "renda do dinheiro", que chamamos usura" (rent of money which we call usury) da "renda da propriedade territorial e imobiliária" (rent of land and houses), e ensinava aos senhores da terra, que queriam aniquilar, por disposições legais, não a renda territorial, mas a renda dinheiro, que "é vão e estéril fazer leis civis positivas contra a lei da natureza" (the vanity and fruitlessness of making civil positive law against the law of nature). Também considera ele, no seu Quantulumcunque (1682), a regulamentação legal dos juros, tão idiota e inútil quanto a da exportação dos metais preciosos ou das cotações do câmbio. Na mesma obra, ele diz a palavra decisiva sobre o raising of money (isto é, a tentativa que consiste, por exemplo, em dar a meio-shilling o nome de shilling, cunhando numa onça de prata um número duplo de shillings).      A respeito deste último ponto, Locke e North não fazem senão copiá-lo. Mas, quanto aos juros, Locke fica no paralelo de Petty, entre os juros monetários e a renda territorial, ao passo que North, desenvolvendo a idéia, opõe o juro como renda do capital (rent of stock) à renda territorial, e os stocklords aos landlords. Por outro lado, enquanto que Locke só admite, com restrições, a liberdade dos juros reclamada por Petty, North a aceita integralmente.      O Senhor Dühring ultrapassa-se a si mesmo quando, mercantilista mais inflexível ainda, num sentido "mais sutil", fulmina os Discours upon Trade de Dutley North, observando que são escritos "no sentido do livre-câmbio". É como se disséssemos, de Harvey, que ele escreveu "no sentido da circulação do sangue. A obra de North - sem falar de outros méritos que tem - é uma análise clássica, escrita com uma lógica rigorosa, da doutrina livre-cambista, referente ao comércio tanto exterior como interior, análise que, na verdade, no ano de 1691, representava "algo inaudito".      De resto, o Senhor Dühring relata que North era um "traficante" e, ainda por cima, um mau sujeito, e que seu livro "não podia ter êxito". Ele teria feito melhor mostrando que tal obra teria "êxito", no momento em que triunfava definitivamente o sistema protecionista na Inglaterra, pelo menos junto à turba que representava o elemento característico. Entretanto, isso não impediu sua ação teórica imediata, que se pode mostrar em toda uma série de escritos econômicos aparecidos na Inglaterra, imediatamente depois dele, alguns ainda no século XVII.      Locke e North deram-nos a prova de que as primeiras brechas ousadas que Petty abrira em quase todos os domínios da economia política, foram ampliadas uma a uma por seus sucessores ingleses. Os traços dessa evolução, durante o período que vai de 1691 a 1752, impõem-se ao observador mais superficial pelo simples fato de que todos os trabalhos econômicos importantes dessa época a eles se referem, para dar razão ou refutar Petty. Esse período, em que abundam os espíritos originais, é consequentemente o mais importante para o estudo da gênese e do gradual desenvolvimento da economia política. O "historiador em grande estilo", censura a Marx, como uma falta imperdoável, o fato de, em O Capital, ter feito tanto barulho em torno de Petty e dos escritores desse período, simplesmente escamoteia a todos eles da história. De Locke, North, Boisguillebert e Law, ela salta imediatamente para os fisiocratas e, então, aparece nos umbrais do verdadeiro templo da economia política... David Hume. Com a permissão do Senhor Dühring, restabeleçamos a ordem cronológica e ponhamos Hume antes dos fisiocratas.      Os Ensaios econômicos de Hume apareceram em 1752. Nos três ensaios existentes - Of Money, Of the Balance of Trade, Of Commerce, Hume segue passo a passo, às vezes até em suas simples fantasias, um livro de Jacob Vanderlint: Money answers all things, Londres, 1734. Por mais desconhecido que esse Vanderlint tivesse permanecido para o Senhor Dühring é ainda tomado em consideração nos livros ingleses de economia política do fim do século XVIII, isto é, no período que se segue a Adam Smith.      Como Vanderlint, Hume trata da moeda como simples signo do valor; copia quase palavra por palavra (e isso é importante, porque ele poderia ter tomado de empréstimo a muitas outras obras essa teoria da moeda como signo do valor), de Vanderlint, as passagens explicando porque a balança do comércio não pode ser constantemente favorável ou desfavorável a um país; ensina, como Vanderlint, a teoria do equilíbrio das balanças estabelecendo-se natural e respectivamente, segundo as diversas situações econômicas dos diferentes países; prega, como Vanderlint, o livre-câmbio de maneira apenas menos audaciosa e menos conseqüente; insiste, como Vanderlint, porém com menos vigor, sobre as necessidades como motivo da produção: segue Vanderlint no que se refere à falsa influência atribuída à moeda bancária e a todos os valores públicos sobre os preços das mercadorias; como Vanderlint. repele a moeda fiduciária; como Vanderlint, faz depender os preços das mercadorias do preço do trabalho, portanto, do salário; segue-o mesmo nessa fantasia de que o entesouramento faz baixar o preço das mercadorias, etc. etc.      O Sr. Dühring vinha já, desde há muito, resmungando, em tom oracular, que outros não tinham feito caso da teoria da moeda de Hume e, sobretudo, aludira ameaçadoramente a Marx. que, em O Capital, além do mais, assinalara, de modo contrário á boa ordem as relações secretas de Rume com Vanderlint e um autor do qual trataremos adiante: J. Massie.      Quanto a essa falsa interpretação, eis o que se passa. No que diz respeito à verdadeira teoria da moeda de Hume, segundo a qual a moeda não é senão signo do valor (e. conseqüentemente. mantendo-se iguais as condições e circunstâncias, os preços das mercadorias baixam na proporção que aumenta a quantidade da moeda circulante e sobem na proporção em que ela diminui), o Sr. Dühring não pode senão repetir tom a melhor boa vontade deste mundo - apesar da maneira luminosa que lhe é própria - os erros de seus predecessores. Mas Hume, após ter proposto essa teoria, faz a si mesmo esta objeção (que já havia sido feita por Montesquieu, partindo das mesmas premissas): é. entretanto, "certo" que depois do descobrimento das minas da América "a indústria aumentou em todas as nações européias, inclusive naquelas que nada tinham a ver com a posse dessas minas" e isso "é devido, entre outras causas, ao acréscimo da quantidade de ouro e prata". Ele dá desse fenômeno a explicação seguinte: "se bem que o preço elevado das mercadorias seja uma conseqüência necessária do acréscimo do ouro e da prata, o mesmo não se verifica logo após a esse acréscimo: é preciso algum tempo para que o dinheiro circule em todo o Estado e faça sentir sua ação em todas as camadas da população." Nesse intervalo, atua beneficamente sobre a indústria e' o comércio. No final dessa análise, Hume diz-nos também porque isso se passa, embora de maneira menos compreensível do que diversos de seus precursores e contemporâneos: "É fácil seguir os progressos da moeda através de toda a sociedade. Verificamos que ela estimula necessariamente a atividade de cada um antes de "elevar o preço do trabalho".      Noutros termos, Hume descreve, aqui, os efeitos de uma revolução (mais concretamente, uma depreciação) no valor dos metais preciosos, ou, o que dá no mesmo, de uma revolução na "medida do valor" dos metais preciosos. Estabelece, muito acertadamente, que essa depreciação dada a lentidão com que se nivelam os preços das mercadorias, só muito depois eleva o "preço do trabalho" ou sejam, os salários; que assim ele aumenta, às expensas dos trabalhadores (o que ele acha, aliás, perfeitamente dentro da ordem), o lucro das comerciantes e dos industriais e "estimula a atividade". Mas o verdadeiro problema científico, que é saber se e como uma importação aumentada de metais preciosos, permanecendo idêntico o valor destes, age sabre o preço das mercadorias, mas supõe que todo "acréscimo dos metais preciosos" acarreta a depreciação destes últimos. Hume faz, pois, exatamente o que Marx (Zur Kritik, etc., pg. 141), nele denuncia. Voltaremos, ainda, de passagem, a este ponto. Vejamos, porém, primeiramente, o mulo de Hume sobre os "juros".      A argumentação que Hume dirige expressamente contra Locke; ou seja, que os juros não são regulados pela quantidade de moeda existente, mas pela taxa de lucro, e o resto de suas explicações sobre as causas que determinam uma taxa elevada ou baixa de juros - tudo isso se encontra, com muito maior exatidão e menos espírito, numa obra aparecida em 1750, dois anos antes do Ensaio, de Hume: An Essay on the Governing Causes of the Natural Rate of Interest, wherein the sentiments of sir W. Petty and Mr. Locke, on that head, are considered. O autor desse escrito é J. Massie, publicista cheio de atividade em diversos sentidos e muito versado nestes problemas como se pode avaliar pelos livros aparecidos por essa época na Inglaterra. Massie aproxima-se, mais que Hume, da explicação, dada por Adam Smith, da taxa de juros. Nem Hume, nem Massie sabem ou dizem coisa alguma sobre a natureza do "lucro", que representa, no entanto, um importante papel tanto num como noutro. "Aliás", professa o Sr. Dühring ex-catedra, "tem-se na maior parte do tempo procedido com muita prevenção na apreciação de Hume e se lhe têm atribuído idéias que ele absolutamente não teve". E desse "procedimento" o próprio Senhor Dühring nos dá mais de um exemplo surpreendente.      Assim, por exemplo, o Ensaio de Hume sobre os juros, começa por estas palavras: "Nada passa por ser um indício mais certo da prosperidade de uma nação, que o nível baixo da taxa de juros, e com razão; contudo, creio que a causa desse fato é um pouco diferente daquela que geralmente se admite". Como vêem, desde a primeira frase, Hume aceita a idéia de que o nível da taxa de juros é o indício mais seguro da prosperidade de uma nação, como um lugar-comum que já em seu tempo se tornara banal. Efetivamente, depois de Child, essa "idéia" teve, para se popularizar, uns bons cem anos de vulgarização. O Sr. Dühring diz o contrário (pág. 10): "Entre os pontos de vista de Hume sobre a taxa de juros, é preciso, principalmente, salientar essa idéia de que ela é o verdadeiro barômetro da situação (que situação?) e que seu baixo nível é um sinal quase infalível da prosperidade de uma nação".      Quem é, portanto, que "se perturba" e se atrapalha quando se expressa nesses termos? O próprio Senhor Dühring. Uma coisa, aliás, desperta uma admiração ingênua no nosso historiador crítico: é que Hume, a propósito de certa idéia feliz "não se apresenta como seu autor". Eis o que jamais poderia acontecer ao Senhor Dühring.      Vimos como Hume considera todo acréscimo de metal precioso como causa que acarreta a sua depreciação e que constitui uma revolução em seu próprio valor, portanto, na medida do valor das mercadorias. Essa confusão era inevitável em Hume, porque ele compreendera a função de "medida do valor" que exercem os metais preciosos. Não podia fazê-lo porquanto nada sabia, absolutamente nada, do próprio valor. A própria palavra "valor" não se encontra, talvez, em seus Ensaios senão uma única vez e num trecho em que ele leva mais longe o erro de Locke, segundo o qual os metais preciosos só teriam um "valor imaginário", e o agrava dizendo que eles têm principalmente um valor fictício".      Nesse ponto, Hume é bastante inferior, não somente a Petty, mas ainda a vários de seus contemporâneos ingleses. Ele mostra o mesmo espírito atrasado quando se obstina em exaltar o "comerciante", à moda antiga, como o primeiro motivo da produção, ponto de vista que Petty há muito tempo superara. Quando se vê o Senhor Dühring assegurar que Hume se ocupou em seus Ensaios das "principais instituições econômicas", não se tem senão que comparar a obra de Cantillon citada por Adam Smith, (aparecida, como os Ensaios de Hume, em 1752, mas muitos anos depois da morte do autor) para admirar-se do círculo estreito em que se restringem as pesquisas econômicas de Hume. Hume, já o dissemos, continua, apesar do diploma que lhe confere o Senhor Dühring, um autor respeitável no domínio da economia política, se bem que não seja um pesquisador original e muito menos um desses pensadores que marcam época. A ação de seus Ensaios econômicos sobre os meios cultos de seu tempo, resultava, não só sua maneira excelente de expor, mas principalmente por serem uma apoteose otimista e progressista da indústria, então florescente, e do comércio, ou, dito de outro modo, da sociedade capitalista, nesse momento em ascensão rápida na Inglaterra, e na qual essas doutrinas alcançavam necessariamente um grande "êxito". Basta uma indicação a este respeito: Todos sabem com que paixão a massa do povo inglês lutava, na própria época de Hume, contra o sistema dos impostos indiretos utilizados sistematicamente pelo famoso Roberto Walpole, com o objetivo de aliviar os proprietários fundiários e, de um modo geral, os ricos. No seu Ensaio sobre os impostos (of Taxes), Hume, sem o citar, ataca Vanderlint, o mais violento adversário dos impostos indiretos e o campeão mais declarado do imposto territorial; e diz: "É preciso, com efeito, que os impostos de consumo sejam bastante pesados e estabelecidos de maneira bastante irracional para que o trabalhador, fortalecendo sua dedicação e espírito de poupança, possa pagá-los sem necessidade de elevar-se o preço do seu trabalho". Crer-se-ia ouvir falar aqui Roberto Walpole em carne e osso, sobretudo se acrescentarmos esse trecho do Ensaio sobre o crédito público, em que se diz, a respeito da dificuldade de tributar os credores do Estado: "A diminuição de sua renda não seria "disfarçada" sob as aparências de ser um simples artigo do imposto de consumo ou direitos de alfândega".      Como era inevitável num escocês, a admiração de Hume pelo enriquecimento burguês está longe de ser puramente platônica. Nascido pobre, ele consegue obter um rendimento anual de milhares de libras, o que o Senhor Dühring, uma vez que não se trata mais de Petty, exprime engenhosamente da seguinte maneira: "Ele chegara, partindo de poucos recursos, graças a uma boa "economia doméstica", a não precisar escrever para agradar a quem quer que seja", Mais adiante, o Senhor Dühring diz: "Ele jamais fizera a menor concessão à influência dos partidos, dos príncipes e das universidades".      Sem dúvida, não nos consta que Hume se tenha associado com um Wagner, para negócios literários(10): mas sabe-se que Hume era um partidário infatigável da oligarquia whig, defensora da "Igreja e do Estado"; e que, como recompensa de seus serviços, obteve, primeiro, o posto de secretário da embaixada em Paris, e, mais tarde, o cargo incomparavelmente mais importante e lucrativo de sub-secretário de Estado. "Do ponto de vista político, Hume era e continuou sempre conservador e estritamente monarquista. Por esse motivo, não foi excomungado com tamanha violência, como Gibbon, pelos partidários da Igreja estabelecida", diz o velho Schlosser. "Hume, esse egoísta, esse historiador mentiroso" - diz esse "rude" plebeu Cobbet - que insulta os monges ingleses gordos, de celibatários, sem família. vivendo da mendicidade, nunca teve nem família nem mulher e era, ele próprio, um latagão gordo e grande, excelentemente engraxado pelo dinheiro do Estado, sem o ter nunca merecido, por serviço algum, verdadeiro, prestado ao povo". "Hume", diz o Sr. Dühring, "é. no estudo "prático" da vida muito superior. em pontos essenciais, a um Kant".      Mas, por que Hume tem na História crítica um lugar tão exagerado? Simplesmente porque esse "pensador sério e sutil tem a honra de representar o Dühring do século XVIII. Do mesmo modo que Hume serve para provar que "A criação de todo esse ramo novo da ciência (a economia política) é o efeito de uma filosofia mais esclarecida", o precursor Hume é a melhor garantia de que todo esse ramo da ciência encontrará, tanto quanto se possa prever desde já, o seu termo no homem fenomenal que fez de uma filosofia, apenas mais esclarecida", a luminosa filosofia da realidade, e no qual, como em Hume. fato até aqui sem exemplo na Alemanha... o estudo da filosofia no sentido estrito da palavra se acha ligado às pesquisas científicas em economia política. "Eis porque Hume, respeitável, aliás, como economista, é promovido a estrela econômica de primeira grandeza, cuja importância só tem sido até agora desconhecida pela mesma inveja que tão obstinadamente procura fulminar pelo silêncio os serviços, "magistrais para a época", do Senhor Dühring.      A Escola "fisiocrática" deixou-nos. como se sabe, no Quadro econômico, de Quesnay, um enigma, que, para os críticos e historiadores da economia política, tem sido de impossível decifração. Esse quadro, destinado a fazer compreender claramente a concepção que tinham os fisiocratas da maneira pela qual se produz e circula o conjunto da riqueza de um país, permaneceu bastante obscuro para os economistas ulteriores. O Senhor Dühring, ainda aqui, vai abrir definitivamente os nossos olhos. O que "deve significar no próprio Quesnay essa imagem econômica das relações de produção e distribuição", não poderá ser compreendido se, "primeiro, não se tiver estudado minuciosamente as noções diretoras que lhe são próprias", e isso tanto mais quanto essas noções só haviam sido, até então, expostas com mais imprecisão, tornando-se, no próprio Adam Smith, "difícil reconhecer-lhe os traços essenciais". O Senhor Dühring vai liquidar, de uma vez por todas. "essa exposição superficial" tradicional. Mete-se a zombar de seu leitor durante cinco longas páginas, cinco páginas de expressões pretensiosas, de repetições constantes uma desordem deliberada devem disfarçar o fato desagradável de não poder dar o Senhor Dühring, sobre as "noções diretoras" de Quesnay nem sequer o que nos fornecem as "compilações dos manuais mais correntes", contra os quais não se cansa de alertar o leitor, "Um dos aspectos mais lamentáveis dessa introdução é que, ainda aqui, encontrando pela primeira vez o Quadro econômico, até então conhecido somente de nome, ele o aponta de passagem, mas em seguida expande-se em toda sorte de "reflexões", como, por exemplo, a "distinção entre os esforços e o resultado": Se ela "não pode, na verdade, encontrar-se definida na idéia de Quesnay", o Senhor Dühring vai, pelo contrário, dar-nos um exemplo fulminante, quando passa de seus longos "esforços preliminares" ao seu "resultado" extraordinariamente conciso e breve, isto é, às suas explicações sobre o Quadro propriamente dito. Repetimos, portanto, palavra por palavra", tudo o que achou necessário dizer sobre o Quadro de Quesnay.      Na sua Introdução, diz o Senhor Dühring: "Pareceu-lhe evidente (a Quesnay) que era preciso conceber e tratar esse produto obtido (o Senhor Dühring havia se referido, pouco antes, a produto líquido) como um "valor em moeda"... E aplicou suas reflexões (!), em seguida, aos "valores em moeda", que supôs realizados, desde a primeira transferência, como resultado da venda de todos os produtos agrícolas. É dessa maneira (!) que ele opera nas colunas de seu Quadro com vários bilhões de "valores em moeda". Aprendemos, assim, por três vezes, que Quesnay opera no Quadro com "valores em moeda" dos "produtos agrícolas", inclusive o do "produto ou rendimento líquido". Mais adiante: "Se Quesnay tivesse enveredado pelo caminho de uma observação verdadeiramente natural das coisas e se se tivesse libertado, não só da preocupação dos metais preciosos e da quantidade de dinheiro, mas também da dos "valores em moeda... Ainda assim, ele não contaria senão em "soma de valores" e desde logo "imaginaria" (!) o produto líquido como um "valor em moeda". Assim, pela quarta e quinta vez, ficamos sabendo que, no Quadro, só há valores em moeda!      "Quesnay obtinha o produto líquido fazendo a subtração das despesas e pensando (!) principalmente" (informação que, embora pouco comum, não deixa de ser superficial, "no valor que retorna como renda ao proprietário territorial". Não demos ainda um passo, porém vamos tentá-lo: "Mas, de outro lado, o produto líquido passa, como objeto natural, à circulação e torna-se, assim, um elemento que serve. - para manter a classe qualificada de estéril.. - Pode-se ver, aqui, "imediatamente", (!) um caso, valor em moeda, e noutro, o próprio objeto é que determina a argumentação". Em geral, ao que parece, a circulação de mercadoria sofre totalmente dessa "confusão" de circularem simultaneamente como "objetos naturais" e como "valores em moeda". Continuamos sempre, porém, a rodar em torno dos "valores em moeda", porque "Quesnay quer evitar uma dupla fundamentação do produto na economia política".      Com a permissão do Senhor Dühring: Em baixo do Quadro, na "Análise" que aí dá Quesnay, as diversas espécies de produtos figuram como "objetos naturais", e em cima, no mesmo Quadro, figuram como "valores em moeda", Quesnay fez mesmo inscrever mais tarde, por seus famulus, o abade Baudeau, os objetos naturais no próprio Quadro, ao lado de seus valores em moeda.      Depois de tantos "esforços preliminares", eis, finalmente, o "resultado". Ouvi e admirai: "A inconseqüência (no que se refere ao papel atribuído por Quesnay aos proprietários territoriais) aparece "logo", ao perguntarmos o que se faz, no ciclo econômico do produto líquido apropriado sob a forma de renda. Só um misto de confusão e de arbítrio, levado até ao misticismo explica as idéias dos fisiocratas e o Quadro econômico".      Tudo acabou bem. Assim o Senhor Dühring não sabe o que se torna, no ciclo econômico, (representado pelo Quadro) "o produto líquido apropriado sob a forma de renda". O Quadro é, para ele, a "quadratura do círculo". Segundo ele próprio confessa, não compreende o ABC da fisiocracia. Após todas essas voltas em torno do pote, toda essa palha revolvida à toa, todos esses saltos em ziguezague, essas arlequinadas, episódios, diversões, repetições e confusões estupefacientes, que deviam preparar-nos para a grandiosa revelação do que "deve significar o Quadro de Quesnay"; após tudo isso, esta conclusão: O Senhor Dühring confessa, todo envergonhado, que nada sabe a respeito.      Uma vez feita essa confissão dolorosa, liberto do negro cuidado horaciano com que cavalgara através do país dos fisiocratas, o nosso "pensador profundo e sutil" empunha de novo, alegremente, a sua trombeta. "As linhas que Quesnay traça em todos os sentidos (há seis ao todo) através de seu Quadro, de resto bastante simples, linhas que se destinam a representar a circulação do produto líquido", levam-nos a perguntar se não há, na base dessas "estranhas combinações de colunas", um misticismo matemático fazendo-nos lembrar que Quesnay "se ocupou da quadratura do círculo", etc. Como essas linhas, segundo sua própria confissão, lhe ficaram incompreensíveis, apesar de sua simplicidade, o Senhor Dühring, à sua maneira favorita, delas se arreceia. E agora pode tranqüilamente dar o golpe de misericórdia nesse Quadro incômodo: "Depois de considerar o produto líquido nesse aspecto, o mais duvidoso de todos etc." Isto é, o Sr. Dühring se atreve a chamar de "aspecto mais duvidoso do produto líquido" a confissão forçada de que nada entendeu do Tableau Economique, nem do papel que nele desempenha o produto líquido! Que amargo humorismo!      Mas não queremos que o leitor fique, a respeito do Quadro de Quesnay, na mesma ignorância em que necessariamente se afundaram os que bebem a sua ciência econômica "de primeira mão" no Senhor Dühring. Vejamos, em poucas palavras, de que se trata.      Sabe-se que, para os fisiocratas, a sociedade se divide em três classes: 1a. a classe produtiva, isto é, a classe que realmente se ocupa da agricultura, os colonos e os trabalhadores rurais, cujo trabalho é produtivo porque fornece um excedente: a renda; 2a., a classe que se apropria desse excedente que compreende os proprietários territoriais, os príncipes e toda a clientela que deles depende, de modo geral, os funcionários pagos pelo Estado e, inclusive, a Igreja, na sua qualidade particular de recebedora de dízimo (para abreviar designaremos a primeira classe simplesmente pelo nome de "colonos" e a segunda pelo de "proprietários fundiários"): 3a. a classe industrial, ou estéril (improdutiva), porque, segundo os fisiocratas, se limita a incorporar às matérias-primas fornecidas pela classe produtiva o necessário valor para compensar os víveres que esta própria classe consome. O Quadro de Quesnay é feito para tornar sensível aos nossos olhos como o produto total de um país (na realidade, a França) circula entre essas três classes e serve para a reprodução anual.      Supõe-se, inicialmente, no Quadro, que o sistema de arrendamento, e com ele a grande agricultura, no sentido que essa palavra tinha no tempo de Quesnay, fora introduzido por toda parte, na Normandia, na Picardia, na Ilha-de-França, e em algumas outras províncias francesas. Também o arrendatário é para ele o verdadeiro condutor da agricultura; representa no Quadro toda a classe produtiva (agrícola), e paga ao proprietário territorial uma renda em dinheiro. Ao conjunto dos fazendeiros é atribuído um capital em bens de raiz, ou em materiais, de dez bilhões de libras, do qual um quinto (ou sejam dois bilhões) como capital de exploração a ser reposto, inversão essa calculada ainda de acordo com as fazendas mais bem cultivadas das mesmas províncias.      Supõe-se. além disso, para simplificar: 1o., que os preços são constantes e que a reprodução é simples; 2o., que toda a circulação que não se efetua no seio de uma única e mesma classe concreta fica excluída e se toma em consideração, exclusivamente a circulação de classe a classe; 3o., que todas as vendas, bem como todas as compras que se fazem de classe a classe, dentro de um ano industrial, estão reunidas numa soma total única. Finalmente, é mister lembrar que no tempo de Quesnay, na França e quase que em toda a Europa, a indústria doméstica, própria da família camponesa. assegurava a parte mais considerável de suas necessidades além da alimentação, razão pela qual o Quadro a considera como acessória da agricultura.      O ponto de partida do Quadro é a colheita total do país, a qual, por essa razão, figura no alto do Quadro como produto bruto anual do solo ou "reprodução total" do país, ou seja. da França. O valor desse produto bruto é calculado segundo os preços médios dos produtos do solo nas nações comerciais: atinge a cinco bilhões, soma que, de acordo com os dados estatísticos então possíveis. exprime aproximadamente o valor em moeda do produto agrícola bruto da França. É a única razão pela qual Quesnay "opera" no Quadro "com vários bilhões", concretamente com cinco, e não apenas com cinco livres tournois.      O produto total, no valor de cinco bilhões, acha-se, pois, nas mãos da classe produtora, isto é. primeiramente, nas dos fazendeiros que o produziram, despendendo anualmente um capital de exploração de dois bilhões, correspondente a um capital inicial de dez bilhões. Os produtos agrícolas, meios de existência, matérias-primas etc., necessários para substituir o capital de exploração, entre outras coisas, e, por conseguinte, necessários para sustentar todas as pessoas diretamente empenhadas nos trabalhos agrícolas, são retirados em espécie da renda total e novamente despendidos na produção agrícola.      Como dissemos, calcularam-se os preços constantes e a reprodução simples, segundo uma taxa fixada de uma vez por todas: O valor em moeda dessa parte descontada. de antemão, é igual a dois bilhões de libras. Esta parte não entra, pois, na circulação geral, porque, conforme já dissemos, a circulação que se efetua somente dentro de uma das classes, não é registrada no Quadro.      Depois que repôs o capital de exploração, tomando-o juntamente com uma parte do produto bruto, fica um excedente de três bilhões, dois em meios de subsistência e um em matérias-primas. Mas a renda que os arrendatários devem pagar aos proprietários territoriais não sobe senão a dois terços desse excedente: a dois bilhões. Por que esses dois bilhões figuram sob a rubrica "produto líquido" ou "rendimento líquido"? Logo se verá.      Mas, fora da "reprodução agrícola total", no valor de cinco bilhões, dos quais três passam à circulação geral, há, ainda, "antes" que comece o movimento figurado no Quadro todo o "pecúlio" da nação: dois bilhões em dinheiro efetivo, nas mãos dos colonos. Vejamos:      Sendo a renda total o ponto de partida do Quadro, constitui ao mesmo tempo o ponto terminal de um ano econômico, por exemplo, o ano de 1758, após o qual um novo ano econômico começa. Durante esse novo ano de 1759, a parte do produto bruto destinada à circulação divide-se entre as duas outras classes por meio de uma série de pagamentos individuais, vendas e compras. Mas esses movimentos sucessivos, e dispersos, que se estendem por todo um ano, são - como de qualquer maneira devia fazer-se no Quadro - reunidos num pequeno número de atos característicos. abrangendo cada um, de um só golpe, o ano inteiro. Assim, no fim do ano de 1758, a classe dos arrendatários viu refluir para ela o dinheiro que havia pago como renda aos proprietárias territoriais em 1757 (o próprio Quadro mostrará como isso se dá), ou seja a soma de dois bilhões de maneira que ela pôde lançar novamente essa soma na circulação de 1759. Mas, sendo essa soma, como observa Quesnay, muito maior do que se torna necessária para a circulação total do país, na realidade - na qual os pagamentos se repetem constantemente por frações - para a circulação total do país (ou seja, para a França). os dois bilhões de libras que se encontram nas mãos dos arrendatários ficam representando a soma total da moeda circulante da nação.      A classe dos proprietários territoriais que vivem de suas rendas. apresenta-se, então, como ainda hoje várias vezes acontece, no seu papel de credora. Segundo a suposição de Quesnay. os proprietários territoriais propriamente ditos não recebem senão quatro sétimos dessa renda de dois bilhões. pois dois sétimos vão para o governo e um sétimo para os cobradores de dízimos. No tempo de Quesnay, a Igreja era o maior proprietário territorial de França e recebia, ainda por cima, o dízimo da propriedade territorial restante.      O capital de exploração despendido pela classe "estéril" durante o ano inteiro em avances annuelles, consiste de matérias primas no valor de um bilhão: em matérias primas, somente porque os instrumentos, as máquinas etc. contam-se entre os produtos dessa mesma classe. Quanto aos múltiplos papéis que esses produtos desempenham na exploração das indústrias dessa classe, é coisa que não interessa ao quadro, assim como nele não interessa a circulação de mercadorias e de dinheiro, que se verifica dentro da sua própria órbita. O salário pago pelo trabalho, graças ao qual a classe estéril transforma as matérias-primas em produtos manufaturados é igual ao valor dos meios de existência que ela recebe, diretamente, da classe produtiva e, indiretamente, por intermédio dos proprietários territoriais. Se bem que a classe estéril se divida em capitalistas e trabalhadores assalariados, ela está, segundo a concepção fundamental de Quesnay, como classe em seu conjunto, a soldo da classe produtiva e dos proprietários territoriais. Do mesmo modo, a produção industrial total e, portanto, também a sua circulação social, distribuídas no ano seguinte à colheita, são igualmente reunidas num todo único. Supõe-se, portanto, que, no começo do movimento figurado pelo Quadro, a produção anual em mercadorias da classe estéril se encontra inteiramente em suas mãos, e, por conseguinte, todo o seu capital de exploração, ou seja, as matérias-primas no valor de um bilhão, é transformado em mercadorias, no valor de dois bilhões, cuja metade representa o preço dos meios de existência consumidos durante essa transformação. Poder-se-ia, aqui, fazer uma objeção: a classe estéril consome também produtos da indústria para suas próprias necessidades domésticas; onde, pois, figuram eles, se o produto total passou às outras classes pela circulação? A esta pergunta nos responderão: não só a classe estéril consome, ela própria, uma parte dos seus produtos, como ainda procura reter o máximo que pode; ela vende, pois, suas mercadorias postas em circulação, acima do seu valor real, e é forçada a fazê-lo uma vez que incluímos essas mercadorias no valor total de sua produção. Isso, entretanto, não altera os dados estabelecidos pelo Quadro, porque as duas outras classes só recebem, afinal de contas, as mercadorias manufaturadas pelo valor de sua produção total.      Conhecemos, agora, portanto, a posição econômica das três classes distintas no início do movimento figurado pelo Quadro.      A classe produtiva, após haver substituído, em espécie, o seu capital de produção, dispõe ainda de três bilhões de produto agrícola e de dois bilhões de moeda. A classe dos proprietários territoriais só é aí mencionada pelo seu crédito de dois bilhões de renda sobre a classe produtiva. A classe estéril dispõe de dois bilhões de mercadorias manufaturadas. Os fisiocratas chamam circulação imperfeita àquela que se efetua apenas entre duas dessas três classes: a circulação perfeita é a que se passa entre todas as três.      Passemos, pois, agora, ao Quadro econômico.      Primeira circulação (imperfeita). - Os arrendatários pagam aos proprietários territoriais, sem prestação recíproca, a renda que lhes corresponde, com dois bilhões em dinheiro. Com um desses bilhões os proprietários territoriais compram, dos arrendatários, meios de subsistência, e assim receberam metade do dinheiro desembolsado para pagar a renda.      Em sua Análise, do Quadro Econômico, Quesnay já não fala nem do Estado, que recebe dois sétimos, nem da Igreja, que recebe um sétimo da renda territorial, porque o papel social de um e de outra é universalmente conhecido. Mas. no que se refere à propriedade territorial, diz ele que os seus gastos, entre os quais também figuram todos os trabalhadores são, pelo menos em sua maior parte, gastos improdutivos, com exceção da pequena parte que é destinada a "manter e a melhorar os seus bens e incrementar o cultivo da terra". A sua função própria, segundo o "direito natural", consiste precisamente em zelar pela boa administração e as despesas de manutenção de seu patrimônio", ou, como acrescenta mais adiante, consiste nos avances foncières, isto é, nas despesas destinadas a preparar o solo e abastecer as fazendas de todos os seus acessórios, gastos estes que permitem ao fazendeiro consagrar todo o seu capital exclusivamente à cultura da terra propriamente dita.      Segunda circulação (perfeita). - Com o segundo bilhão em dinheiro, que se acha ainda em suas mãos, os proprietários territoriais compram produtos manufaturados à classe estéril; e, por outro lado, esta, com o dinheiro percebido, compra dos fazendeiros os meios de existência pela mesma soma.      Terceira circulação (imperfeita). - Os fazendeiros compram à classe estéril, com um bilhão em moeda, mercadorias manufaturadas correspondentes à mesma soma; grande parte dessas mercadorias consiste em instrumentos agrícolas e outros meios de produção necessários ao cultivo da terra. A classe estéril restitui aos fazendeiros o mesmo dinheiro, comprando um bilhão de matérias-primas destinadas a substituir seu próprio capital de exploração. Assim, os arrendatários recuperam os dois em dinheiro por eles desembolsado para pagamento da tenda. Desse modo, fica resolvido o grande enigma: "Que vem a ser, na circulação econômica, o produto líquido apropriado sob forma de renda?"      No começo do processo, encontramos entre as mãos da classe produtiva um excedente de três bilhões. Deles, somente dois foram pagos como produto líquido aos proprietários territoriais, sob forma de renda. O terceiro bilhão excedente constitui os juros do capital total invertido pelos arrendatários, isto é, para 10 bilhões, lO%, estes juros - frizemo-lo bem - eles não os adquirem em virtude da circulação: acham-se em espécie em suas mãos, e a circulação nada mais faz que realizá-los, transformando-os, por esse meio, em mercadorias manufaturadas de valor igual.      Sem estes juros, o arrendatário, que é o agente principal da agricultura, não fará a ela o adiantamento do capital de estabelecimento. Esta já é uma razão para os fisiocratas pensarem que a apropriação pelo arrendatário da parte do sobre-produto agrícola que representa os juros, é uma condição tão necessária como a própria existência de uma classe de arrendatários; e esse elemento não pode, em conseqüência, ser incluído na categoria de "produto líquido" ou "rendimento líquido" nacional, de poder ser consumido sem nenhuma consideração para com as necessidades imediatas da reprodução nacional. Mas este capital de um bilhão serve, segundo Quesnay, na maioria dos casos, para as reparações tornadas necessárias durante um ano, bem como para as renovações parciais do capital de estabelecimento; serve ainda de capital de reserva para os acidentes; e, enfim, quando é possível, serve para enriquecer o capital de estabelecimento e de exploração, para melhorar o solo e ampliar as culturas.      Todo este processo é, na verdade, "bem simples". São postos em circulação, pelos fazendeiros, dois bilhões, em dinheiro, para o pagamento da renda, e três bilhões de produtos (sendo dois terços em meios de subsistência e um terço em matérias-primas); pela classe estéril, dois bilhões de mercadorias manufaturadas, ou meios de existência, no total de dois bilhões, a metade é consumida pelos proprietários territoriais e seus dependentes, a outra metade pela classe estéril, em pagamento de seu trabalho. As matérias-primas (também dois bilhões) servem para substituir o capital de exploração desta mesma classe. Dos produtos manufaturados em cada circulação (montante: dois bilhões) uma metade se escoa para os proprietários territoriais, e a outra para os arrendatários, para os quais ela é apenas uma transformação que representa os juros de seu capital acumulado, juros primitivamente tirados da reprodução agrícola. Quanto ao dinheiro que o arrendatário pôs em circulação para o pagamento da renda, volta a seu bolso, pela venda de seus produtos: desse modo, o mesmo ciclo pode ser percorrido de novo no ano econômico que se segue.      Admirai, agora, a exposição "verdadeiramente crítica" do Sr. Dühring do Quadro de Quesnay, tão infinitamente superior às "exposições superficiais e costumeiras". Depois de nos ter, cinco vezes seguidas, apresentado em termos misteriosos o erro de Quesnay em operar no seu Quadro unicamente com valores em moeda (o que, aliás, é falso, como vimos), ele chega, finalmente, a este resultado: desde que se lhe pergunta "o que se torna na circulação econômica o produto líquido apropriado sob forma de renda, não se pode mais explicar o Quadro econômico senão por "um misto de confusão e de arbítrio levado até o misticismo". Vimos que o Quadro, reprodução tão simples quanto genial, para a época, do processo anual de reprodução, tal como ele se realiza por meio da circulação, explica exatamente o que vem a ser o produto líquido na circulação econômica, de maneira que o "misticismo", a "confusão" e o "arbítrio" continuam, uma vez por todas; por conta unicamente do Senhor Dühring, como "lado mais duvidoso" e único "produto líquido" de seus estudos fisiocráticos.      O Senhor Dühring está tão a par da teoria dos fisiocratas como da influência histórica dessa escola. "Com Turgot - informa-nos ele - a fisiocracia em França desaparece teórica e praticamente". Que Mirabeau, porém, fosse essencialmente fisiocrata em suas opiniões econômicas; que ele fosse tido, na Assembléia Constituinte de 1789, como uma autoridade em matéria de economia; que esta Assembléia tenha, em suas reformas econômicas, feito passar da teoria à prática uma boa parte das teses dos fisiocratas, e, sobretudo,, que tenha imposto uma forte contribuição ao produto líquido que a propriedade territorial absorve, "sem reciprocidade", isto é, a renda - nada disto existe para o Senhor Dühring.      Assim como esquecendo o longo período de 1891 a 1752 eliminou todos os predecessores de Hume, assim também um outro lapso suprimiu sir James Stewart, situado entre Hume e Adam Smith. Sobre a sua grande obra, que, sem falar da importância histórica, enriqueceu de maneira considerável o domínio da economia política, na "empresa" do Sr. Dühring não se encontra uma única sílaba. Como desforra, lança contra Stewart a maior injúria do seu vocabulário, ao dizer que este era "um professor" contemporâneo de Adam Smith. Infelizmente, esta insinuação é pura invenção. Stewart era, na realidade, um grande proprietário da Escócia, que, banido da Grã-Bretanha por uma pretensa participação na conjuração dos Stewarts, residiu e viajou, durante largo tempo, pelo continente, podendo familiarizar-se com a situação econômica de diversos países.      Resumamos: De acordo com a História crítica, todos os economistas só tem tido, até hoje, o valor de apresentar "rudimentos" para a doutrina "magistral" do Senhor Dühring ou para que, em face de suas lamentáveis doutrinas, ressaltem mais as excelências do autor. Há, portanto, mesmo em economia política, alguns heróis que fornecem, não somente "rudimentos" à "doutrina aprofundada", como também "teses" de onde aquela sai, segundo as prescrições da Filosofia da Natureza, não por "desenvolvimento", mas por "combinação". Esses heróis são: o "incomparável e eminente". List que, para honra e proveito dos fabricantes alemães, forjou, em poderosas frases, as "sutis" teorias mercantilistas de um Ferrier e outros; Carey, que reergue o bom senso na proposição seguinte: "O sistema de Ricardo é um sistema de discórdia... nada mais faz do que provocar o ódio entre as classes... seu livro é o manual do demagogo que se esforça por ir ao poder, através da divisão das terras, da guerra e do saque"; e, finalmente, Mac Leod, o grande confusionista da City londrina.      Assim, as pessoas que quiserem, hoje e no futuro, estudar de perto a história da economia política, seguirão caminho multo mais acertado, pondo-se ao corrente das "elucubrações insípidas", das "sensaborias", das "pobrezas prolixas", que oferecem as "mais vulgares compilações, do que se fiando no quadro histórico "de grande estilo" do Senhor Dühring.      Que resulta, afinal, de contas, de nossa análise do "sistema de economia política que é a obra" do Senhor Dühring? Exatamente às mesmas conclusões a que chegamos na análise de sua "Filosofia"; todas as suas frases pomposas e suas grandiloqüentes promessas se reduziram a fumaça. A "teoria do valor", "esta pedra de toque dos sistemas econômicos", acaba nisto: o Senhor Dühring entende pela palavra "valor" cinco coisas absolutamente diferentes e absolutamente contraditórias entre si; de forma que em resumo, ele próprio não sabe o que quer. As "leis naturais de toda economia", anunciadas com tanta pompa, revelaram-se apenas lugares-comuns conhecidos de todo o mundo e que, aliás, quase sempre não são interpretados corretamente. A única explicação dos fatos econômicos que este sistema dühringuiano nos oferece é que eles são o resultado da "violência", maneira esta de falar com a qual, há séculos, os filisteus de todas as nações se consolam de tudo que lhes acontece de desagradável, e que nada nos ensina.      Mas, em vez de procurar a origem e aprofundar os efeitos da violência, o Sr. Dühring convida-nos a nos darmos por satisfeitos com essa palavra, tomando-a como última causa, a explicação definitiva e inapelável dos fenômenos econômicos, pelo que muito lhe devemos agradecer. Obrigado a fornecer mais alguns esclarecimentos sobre a exploração capitalista do trabalho, ele a apresenta, primeiro, como baseada na tributação e na elevação dos preços, com isso não fazendo mais que se apropriar de um detalhe da doutrina proudhoniana (o prélèvement), para explicar, em seguida, detalhadamente, por meio de Marx, a teoria do sobre-trabalho, do sobre-produto e da mais-valia. Consegue, dessa maneira, conciliar com felicidade duas concepções absolutamente contraditórias, copiando-as e combinando-as de uma penada. E do mesmo modo que, na filosofia, não encontrava palavras bastante grosseiras para usar contra aquele mesmo Hegel a quem não faz mais que explorar, desfigurando-o, na História crítica, as calúnias gratuitas contra Marx servem para encobrir o fato de que tudo o que se encontra no Curso, de mais ou menos racional, sobre o capital e o trabalho, não passa de um nobre plágio, cuja vítima é Marx. A ignorância do homem que, no Curso, coloca no começo da história dos povos civilizados o "grande proprietário territorial", mostrando, assim, não ter a menor idéia da propriedade coletiva do solo, que vigorava entre as tribos e as comunidades rurais, ponto de partida, na realidade, de toda a História, e essa ignorância, mais ou menos inconcebível hoje, é quase ultrapassada ainda por aquela que, na História crítica, se apresenta sem modéstia como "alcance universal da visão histórica de conjunto", da qual apenas demos alguns exemplos desanimadores. Em poucas palavras: primeiramente, "esbanjamento" gigantesco de elogios a si próprio, charlatanesco alarico de trompa, de promessas que se derramam umas sobre as outras; e, por fim, o "resultado" - zero.

                                                                                            

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Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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