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Porque Não Sou Cristão 3 / Bertrand Russel
Porque Não Sou Cristão 3 / Bertrand Russel

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

“Porque Não Sou Cristão”

 

SOBREVIVEMOS À MORTE?

Este trabalho foi originalmente publicado em 1936, num livro intitulado The misteries of life and death. O artigo do Bispo Barnes, a que Bertrand Russell se refere, apareceu na mesma obra.

Antes que possamos vantajosamente discutir se continuaremos a existir depois da morte, é bom sejamos claros quanto ao sentido em que um homem é a mesma pessoa que era ontem. Os filósofos costumavam pensar que existiam substâncias definidas, a alma e o corpo, as quais duravam de dia para dia; que uma alma, uma vez criada, continuava a existir por todo o tempo futuro, enquanto que o corpo cessava temporariamente, desde a morte até à ressurreição da carne.

A parte dessa doutrina que se refere à vida presente é, com bastante certeza, falsa. A matéria que constitui o corpo se acha em contínua transformação, mediante o processo de nutrição e eliminação. Mesmo que assim não fosse, ninguém mais supõe, em física, que os átomos têm existência contínua. Não faz mais sentido dizer-se: este é o mesmo átomo que existia há alguns minutos. A continuidade de um corpo humano é uma questão de aparência e conduta, e não de substâncias.

O mesmo se aplica ao espírito. Pensamos, sentimos e agimos, mas não há, além dos pensamentos, sentimentos e atos, uma entidade única, a mente ou a alma, que realize ou sofra tais ocorrências. A continuidade mental de uma pessoa é uma continuidade de hábito e memória: houve ontem uma pessoa cujos sentimentos posso recordar, e essa pessoa eu a encaro como sendo o eu mesmo de ontem; mas, na verdade, o eu mesmo de ontem era constituído apenas de certas ocorrências mentais que são agora recordadas, sendo encaradas como parte de uma pessoa que agora as recorda. Tudo o que constitui uma pessoa não passa de uma série de experiências ligadas pela memória e por certas semelhanças da espécie que chamamos hábito.

Se, por conseguinte, devemos acreditar que uma pessoa sobrevive à morte, temos de acreditar que as lembranças e os hábitos que constituem a pessoa continuarão a ser exibidos num novo conjunto de ocorrências.

Ninguém pode provar que isso não acontecerá. Mas é fácil de ver-se que é bastante improvável. Nossas lembranças e hábitos estão ligados à estrutura do cérebro, do mesmo modo que um rio está ligado ao seu leito. A água do rio está sempre mudando, mas ele segue o mesmo curso porque as chuvas anteriores formaram um canal. Do mesmo modo, acontecimentos anteriores formaram um canal no cérebro, e nossos pensamentos fluem por esse canal. Eis aí a causa da memória e dos hábitos mentais. Mas o cérebro, como estrutura, decompõe-se com a morte, e é de esperar-se, por conseguinte, que a memória também se dissolva. Não há razão para se pensar de outro modo, assim como não há razão para que se espere que um rio continue em seu antigo curso depois que um terremoto ergueu uma montanha no lugar em que antes costumava haver um vale.

Toda memória e, por conseguinte (poder-se-ia dizer), todas as mentes, dependem de uma propriedade bastante perceptível em certas espécies de estruturas materiais, mas que quase não existe, se é que existe, em outras espécies. Refiro-me à propriedade de formação de hábito em conseqüência de ocorrências semelhantes freqüentes. Uma luz forte, por exemplo, faz com que as pupilas se contraiam; se, repetidamente, lançarmos uma luz nos olhos de um homem fazendo soar, ao mesmo tempo, um gongo, bastará o gongo, no fim, para fazer com que as pupilas se contraiam. Este é um fato acerca do cérebro e do sistema nervoso, isto é, acerca de uma determinada estrutura material. Verificar-se-á que fatos exatamente semelhantes explicam nossa resposta à linguagem e ao uso da mesma, nossas recordações e as emoções que despertam, nossos hábitos morais ou imorais de conduta e, com efeito, tudo o que constitui a nossa personalidade moral, salvo a parte determinada pela hereditariedade. A parte determinada pela hereditariedade nós a transmitimos aos nossos descendentes, mas não pode, no indivíduo, sobreviver à desintegração do corpo. Assim, tanto a hereditariedade como a parte adquirida de uma personalidade estão, até o ponto a que chega a nossa experiência, ligadas às características de determinadas estruturas corporais. Todos nós sabemos que a memória pode ser extinta por um ferimento no cérebro, que uma pessoa virtuosa pode tornar-se depravada devido à encefalite letárgica e que uma criança inteligente pode transformar-se em idiota devido à falta de iodo. Diante de fatos assim familiares, parece pouquíssimo provável que o espírito sobreviva à destruição total da estrutura do cérebro, que ocorre com a morte.

Não são argumentos racionais, mas emoções, que fazem com que se creia numa vida futura. A mais importante dessas emoções é o medo da morte, que é instintiva e biologicamente útil.

Se acreditássemos deveras, do fundo de nosso coração, na vida futura, deixaríamos completamente de temer a morte. As conseqüências seriam curiosas e, provavelmente, de modo que as deplorássemos. Mas os nossos ancestrais humanos e subhumanos lutaram e exterminaram nossos inimigos durante muitas idades geológicas, tendo a coragem lhes valido muito; constitui, pois, uma vantagem aos vencedores, na luta pela vida, poderem, em certas ocasiões, vencer o medo natural da morte. Entre os animais e os selvagens, o espírito combativo instintivo basta para, tal fim; mas, em certa fase de desenvolvimento, como os maometanos primeiro o provaram, a crença no Paraíso tem considerável valor militar, no sentido de reforçar a combatividade natural. Deveríamos, por conseguinte, admitir que os militaristas são bem avisados ao encorajar a crença na imortalidade, supondo-se sempre que tal crença não se torne tão profunda a ponto de produzir indiferença quanto aos assuntos do mundo.

Outra emoção que estimula a crença na sobrevivência é a admiração pela excelência do homem. Diz o Bispo de Birmingham: “Sua mente é algo mais perfeito do que qualquer outra coisa que haja surgido antes: sabe o que é direito e o que é errado. Pode construir a Abadia de Westminster. Pode fazer um aeroplano. Sabe calcular a distância do sol... Acaso aquele instrumento incomparável, o seu espírito, desaparece quando a vida cessa?”

E continua o bispo a argumentar que “o universo foi modelado e é governado por um propósito inteligente”, e que tal propósito não teria sido inteligente se, tendo criado o homem, o deixasse perecer.

Há muitas respostas para esse argumento. Em primeiro lugar, verificou-se, mediante a investigação científica da natureza, que a intromissão dos valores morais ou estéticos sempre constituiu um obstáculo à descoberta dos fatos. Costumava-se pensar que os corpos celestes deviam mover-se em círculos, pois que o círculo é a curva mais perfeita, que as espécies deviam ser imutáveis, pois que Deus criaria somente o que fosse perfeito e, por conseguinte, não teria necessidade de aperfeiçoamento, que era inútil combater-se as epidemias, exceto mediante o arrependimento, pois que elas eram enviadas como um castigo do pecado, e assim por diante. Constatou-se, porém, que, tanto quanto nos é possível descobrir, a Natureza é indiferente aos nossos valores, e que somente pode ser compreendida ignorando-se as nossas noções acerca do bem e do mal. É possível que o universo tenha um propósito, mas nada do que sabemos sugere que, se assim for, esse propósito tenha qualquer semelhança com os nossos.

E não há nisto nada de surpreendente. Diz-nos o Dr. Barnes que o homem “sabe o que é direito e o que é errado”. Mas, na verdade, como a antropologia o demonstra, a opinião dos homens, acerca do bem e do mal, modificou-se de tal forma que nenhum de seus itens se tornou permanente. Não podemos dizer, por conseguinte, que o homem saiba o que é certo e o que é errado, mas sim, apenas, que certos homens o sabem. Que homens? Nietzsche defendeu uma ética profundamente diferente da de Cristo, e alguns governos poderosos aceitaram os seus ensinamentos. Se o conhecimento do bem e do mal constituir um argumento a favor da imortalidade, devemos primeiro decidir se acreditamos em Cristo ou em Nietzsche e, depois, demonstrar que os cristãos são imortais, mas que Hitler e Mussolini não o são, e vice-versa. A decisão, evidentemente, terá lugar no campo de batalha, e não nos gabinetes de estudo. Aqueles que tiverem o melhor gás venenoso possuirão a ética do futuro e serão, por conseguinte, os imortais.

Nossos sentimentos e crenças acerca do bem e do mal são, como tudo o mais que nos cerca, fatos naturais, nascidos da luta pela existência, e nada têm de divinos ou sobrenaturais. Numa das fábulas de Esopo, são mostrados a um leão quadros de caçadores caçando leões, e o leão observa que, se ele os houvesse pintado, as telas mostrariam leões a caçar caçadores. O homem, diz o Dr. Barnes, é um belo sujeito porque pode construir aeroplanos. Ainda recentemente, havia uma canção popular acerca da habilidade das moscas, que podiam andar no teto de cabeça para baixo, a qual tinha o seguinte coro: “poderia Lloyd George fazê-lo? Poderia Mr. Baldwin fazê-lo? Poderia Ramsay Mac fazê-lo? Oh, claro que NÃO!” Nessa base, um argumento muito eficaz poderia ser arquitetado por uma mosca de espírito teológico – argumento que as outras moscas achariam, sem dúvida, sumamente convincente.

Ademais, só quando pensamos de maneira abstrata é que temos tão alta opinião a respeito do Homem. Quanto aos homens, concretamente, quase todos nós os achamos, em sua imensa maioria, péssimos. Os paises civilizados gastam quase a metade de suas rendas tendo em vista matar, reciprocamente, os seus cidadãos. Consideremos a longa história das atividades inspiradas pelo fervor moral: sacrifícios humanos, perseguição de hereges, caça a feiticeiras, pogroms, culminando, tudo isso, no extermínio em grande escala por meio de gases, coisas com as quais pelo menos um dos colegas episcopais do Dr. Barnes deve concordar e apoiar, como podemos supor, já que ele afirma ser anticristão o pacifismo. Todas essas abominações, bem como as doutrinas éticas que as incitam, evidenciam acaso a existência de um Criador inteligente? E podemos, acaso, desejar deveras que os homens que as praticam devam viver eternamente? O mundo em que vivemos pode ser

compreendido como resultado de uma trapalhada e de um acidente; mas, se resultou de um propósito deliberado, tal propósito deve ter partido de um demônio. De minha parte, acho o acidente uma hipótese menos penosa e mais plausível.

 

PARECE, MADAME? NÃO, É.

Este ensaio, escrito em 1899, não foi publicado anteriormente. É aqui reproduzido principalmente devido ao seu interesse histórico, uma vez que representa a primeira revolta de Bertrand Russell contra a filosofia hegeliana, da qual foi adepto durante os seus primeiros tempos de Cambridge. Embora sua oposição à religião não fosse, naquela época, tão pronunciada como se tornou depois da Primeira Guerra Mundial, algumas de suas criticas se baseavam nas mesmas premissas.

A filosofia, na época em que era ainda gorda e próspera, afirmara prestar, aos seus devotos, muito e importantes serviços. Oferecia-lhes consolo na adversidade, explicação nas dificuldades intelectuais e orientação nas perplexidades morais. Não é de estranhar-se, pois, que o “nocivo”, ao inteirar-se de todos os seus usos, exclamasse, com o entusiasmo da juventude:

Quão encantadora é a divina Filosofia!

Nada tem de áspero ou confuso, como supõem os tolos Mas é musical como alaúde de Apolo.

Esses tempos felizes, porém, já passaram. A filosofia, devido às lentas vitórias de sua própria progênie, viu-se obrigada a abandonar, uma por uma, as suas altas pretensões. As dificuldades intelectuais em sua maior parte, ficaram a cargo da ciência; as ansiosas reivindicações da filosofia, quanto a umas poucas questões excepcionais que ainda se esforçam por responder, são encaradas, por quase toda a gente, como remanescentes da era do obscurantismo e estão sendo transferidas, com toda a rapidez, para a rígida ciência de Mr. F.W.H. Myers. As perplexidades morais – que, até recentemente, os filósofos não hesitavam em incluir no seu domínio – foram abandonadas, por McTaggart e por Mr. Bradley, aos caprichos da estatística e do senso comum. Mas o poder de proporcionar conforto e consolação – o derradeiro poder dos impotentes – é coisa que ainda McTaggart supõe pertencer à filosofia. É deste último patrimônio que desejo privar, esta noite, os decrépitos progenitores de nossos deuses modernos.

Poderia parecer, a princípio, que a questão era passível de ser solucionada de maneira bastante breve. “Sei que a filosofia pode ser confortadora – poderia dizer McTaggart porque, não há dúvida, me conforta”. Procurarei provar, porém, que essas conclusões que lhe dão conforto são conclusões que não decorrem de sua posição geral – as quais, com efeito, como foi admitido, não decorrem, sendo mantidas, ao que parece, apenas porque o confortam.

Como não desejo discutir a verdade da filosofia, mas apenas o seu valor emocional, adotarei uma metafísica que se baseia na distinção entre Aparência e Realidade, e que considera esta última como sendo perfeita e eterna. O princípio de uma tal metafísica pode ser resumido em poucas palavras. “Deus está no Céu, e tudo aqui no mundo está errado” – eis aí sua última palavra. Mas parece que se supõe que, uma vez que Ele está em Seu céu, onde sempre esteve, podemos esperar que Ele um dia desça à terra... se não para julgar os sagazes e os mortos, ao menos para recompensar a fé dos filósofos. A Sua longa resignação, porém, a uma existência puramente celestial, parece sugerir, com respeito aos assuntos terrenos, um estoicismo no qual seria temerário colocar as nossas esperanças.

Mas falemos seriamente. O valor emocional de uma doutrina, como um consolo na adversidade, parece depender de sua predição do futuro. O futuro, do ponto de vista emocional, é mais importante do que o passado, ou mesmo do que o presente. “Tudo o que acaba bem, está bem”, diz o ditado do senso comum unânime. “Muitas manhãs carregadas se transformam em belos dias” é brocado que revela otimismo, enquanto que o pessimismo diz:

Muitas manhãs maravilhosas tenho visto

Animar o topo das montanhas com visões soberanas,

Beijando com dourada face os verdes bosques,

Dourando com celeste alquimia pálidos riachos,

Permitindo, logo depois, que as nuvens mais baixas cavalguem.

Em feias massas, pela sua face celestial.

E do mundo desolado o rosto ocultam

Movendo-se furtivamente para o ocidente com essa desgraça.

E assim, emocionalmente, a nossa visão do universo, como bom ou mau, depende do futuro, daquilo que será; estamos sempre preocupados com as aparências no tempo e, a menos que nos assegurem que o futuro será melhor do que o presente, é difícil ver-se onde é que iremos encontrar consolação.

Com efeito, o futuro está de tal forma ligado ao otimismo, que o próprio McTaggart, embora todo o seu otimismo dependa da negação do tempo, é obrigado a representar o Absoluto como um futuro estado de coisas, como “uma harmonia que, algum dia, deve tornar-se explícita”. Seria indelicado, de minha parte, insistir nessa sua contradição, mas, de um modo geral, foi o próprio McTaggart quem fez com que eu a percebesse. Mas aquilo em que quero insistir é que, qualquer conforto que se possa tirar da doutrina de que a Realidade é não só eterna como eternamente boa, provém única e exclusivamente dessa contradição. Uma Realidade eterna não pode ter uma ligação mais íntima com o futuro do que com o passado: se sua perfeição até agora não apareceu, não há razão para se supor que algum dia o faça. É bastante provável, com efeito, que Deus permaneça em Seu céu. Poderíamos, com igual propriedade, falar de uma harmonia que deve ter sido alguma vez explícita; talvez seja que “minha dor jaz à frente e minha alegria fica para trás”... Mas é óbvio quão pouco consolo isso nos proporcionaria.

Toda a nossa experiência está ligada ao tempo; nem é possível imaginar-se uma experiência eterna. Mas, mesmo que ela fosse possível, não poderíamos, sem contradição, supor que iremos ter tal experiência. Toda experiência, por conseguinte, tanto quanto a filosofia pode mostrar, se assemelhará, provavelmente, à experiência que temos: se isto nos parece mau, nenhuma doutrina de uma Realidade que se distinga das Aparências poderá dar-nos a esperança de algo melhor. Caímos, com efeito, num dualismo irremediável: de um lado, temos o mundo que conhecemos, com seus acontecimentos, agradáveis e desagradáveis, suas mortes, malogros e desastres; de outro lado, um mundo imaginário, a que damos o nome de mundo da Realidade, procurando reparar, desse modo, devido à vastidão da Realidade, a ausência de qualquer outro sinal de que existe realmente tal mundo. Ora, o nosso único fundamento para esse mundo a que chamamos Realidade é que isso é o que a Realidade teria de ser se pudéssemos compreendê-la. Mas, se o resultado de nossa construção puramente ideal sair muito diferente do mundo que conhecemos – do mundo real, na verdade – e se, ademais, resultar dessa sua própria construção, que jamais experimentaremos o chamado mundo da Realidade, exceto no sentido em que já não experimentamos qualquer outra coisa, então não consigo ver, quanto ao que se refere a consolo diante dos males presentes, o que é que ganhamos com toda a nossa metafísica. Tomemos, por exemplo, uma questão como a da imortalidade. Os homens têm desejado a imortalidade quer como uma compensação pelas injustiças deste mundo, quer – o que constitui motivo mais respeitável – como algo que lhes permita a possibilidade de tornar a encontrar, depois da morte, as pessoas que amaram. Este último é um desejo que todos nós sentimos e por cuja satisfação, se a filosofia pudesse satisfazê-lo, deveríamos sentir-nos imensamente gratos. Mas a filosofia, na melhor das hipóteses, pode apenas assegurar- nos que a alma é uma realidade eterna. Em que ponto do tempo, se é que em algum tempo, poderá acontecer que ela apareça, é, assim, para ela, questão inteiramente irrelevante, e não há nenhuma inferência legítima, partindo de tal doutrina, quanto à existência depois da morte. Keats pode ainda lamentar

Que jamais tornarei a fitar-te,

Jamais sentirei deleite no maravilhoso poder Do amor irefletido!

e não poderá servir-lhe de muito consolo que lhe digam que “a loira criatura de uma hora” não é uma frase metafisicamente precisa. É ainda verdade que “O tempo virá e levará embora o meu amor”, e que “Este pensamento é como uma morte que não tem outra alternativa senão soluçar por aquilo que teme perder”. E o mesmo se dá com todas as partes das doutrinas da Realidade perfeita e eterna. O que quer que agora nos pareça um mal – e uma das lamentáveis prerrogativas do mal é que o parecer um mal já é sê-lo – o que quer que agora nos pareça um mal, poderá continuar, tanto quanto sabemos, até o fim dos tempos, a atormentar os nossos últimos descendentes. E em tal doutrina não existe, a meu ver, o menor vestígio de conforto ou consolação.

É verdade que o Cristianismo, bem como todos os otimismos anteriores, representaram o mundo como sendo eternamente governado por uma Providência generosa e, pois, metafisicamente bondosa. Isso, no fundo, não passou de um expediente destinado a provar a futura excelência do mundo – a provar, por exemplo, que os homens bons seriam felizes depois da morte. Foi sempre essa dedução – feita ilegitimamente, por certo – que consolou os homens. “Ele é um bom sujeito; por conseguinte, tudo estará bem”.

Poder-se-ia dizer, com efeito, que há consolo na mera doutrina abstrata de que a Realidade é boa. Quanto a mim, não aceito a prova de tal doutrina, mas, mesmo que fosse verdadeira, não me é possível ver por que deveria ela ser confortadora. A essência da minha contestação é que a Realidade, tal como é construída pela metafísica, não tem relação alguma com o mundo da experiência. É uma abstração vazia, partindo-se da qual não se pode fazer, validamente, qualquer inferência quanto ao mundo da aparência, mundo em que, não obstante, residem todos os nossos interesses. Mesmo o puro interesse intelectual, do qual nasce a metafísica, é um interesse que procura explicar o mundo das aparências. Mas, ao invés de explicar realmente esse mundo palpável, real e sensível, a metafísica constrói outro mundo fundamentalmente diferente, tão diverso, tão sem relação com a experiência verdadeira, que o mundo cotidiano permanece inteiramente insensível a ela, e continua o seu caminho como se não existisse qualquer mundo da Realidade. Se se pudesse, ao menos, encarar o mundo da Realidade como sendo um “outro mundo”, como uma cidade celestial que existisse alhures nos céus, talvez houvesse, sem dúvida, conforto na idéia de que outras pessoas têm uma experiência perfeita que nos falta. Mas que nos digam que a nossa experiência, tal como a conhecemos, é uma experiência perfeita, é coisa que tem de deixar- nos indiferentes, já que isso não pode provar que nossa experiência seja melhor do que é. Por outro lado, dizer-se que a nossa experiência atual não é a experiência perfeita construída pela filosofia, é privar-nos da única espécie de experiência que a realidade filosófica pode ter – já que Deus, em Seu céu, não pode ser considerado como uma pessoa isolada. Nesse caso, ou a nossa experiência existente é perfeita – o que é uma frase vazia, pois que não a deixa melhor do que antes – ou não há experiência perfeita, e o nosso mundo da Realidade, não sendo experimentado por ninguém, existe apenas nos livros de metafísica. De qualquer modo, parece-me, não podemos encontrar na filosofia a consolação da religião.

Há, certamente, muitos casos em que seria absurdo negar que a filosofia não nos possa proporcionar conforto. É possível que o filosofar nos pareça uma maneira agradável de passar as manhãs; nesse sentido, o consolo encontrado nisso pode ser mesmo comparado, em casos extremos, ao de beber, como uma maneira de passar as nossas noites. Podemos ainda, encarar esteticamente a filosofia, como muitos dentre nós, provavelmente, encaram Spinoza. Podemos usar da metafísica, como a poesia e a música, como um meio de nos produzir um estado de espírito, de nos proporcionar uma certa visão do universo, uma certa atitude diante da vida – julgando-se o estado de espírito disso resultante segundo o grau e a proporção da emoção poética despertada, e não em proporção à verdade das crenças por nós alimentadas. Nossa satisfação, com efeito, parece ser, em tais estados de espírito, exatamente o oposto daquilo que afirmam os metafísicos. E a satisfação de esquecer o mundo real e os seus males, e de nos persuadirmos a nós próprios, durante uns momentos, da realidade de um mundo que nós próprios criamos. Parece ser esse um dos pontos em que Bradley justifica a metafísica. “Quando a poesia, a arte e a religião – diz ele – deixam inteiramente de nos interessar, ou quando já não mostram qualquer tendência de lutar com os problemas últimos, chegando a um entendimento com os mesmos; quando a sensação de mistério e de encantamento já não nos leva a mente a vagar a esmo e já não se sabe mais o que nelas amar; quando, em suma, o crepúsculo já não tem encantos... então a metafísica se toma inútil”. O que a metafísica faz por nós nesse sentido é essencialmente o que, digamos, A Tempestade, de Shakespeare, faz por nós – mas o seu valor, nesse sentido, independe inteiramente de sua verdade. Não é por que a magia de Próspero nos põe em contacto com o mundo dos espíritos que damos valor a A Tempestade; não é porque, esteticamente, somos informados acerca do mundo do espírito que damos valor à metafísica. Tudo isso ressalta a diferença essencial entre a satisfação estética, que concedo à filosofia, e o conforto religioso, que lhe nego. Para a satisfação estética, é necessário convicção intelectual, e podemos, por conseguinte, escolher, quando a buscamos, a metafísica que nos dê, nesse sentido, o máximo. Para o conforto religioso, por outro lado, a crença é essencial, e estou afirmando que não obtemos conforto religioso da metafísica em que acreditamos.

É possível, contudo, introduzir-se uma certa sutileza neste argumento, adotando-se uma teoria, mais ou menos mística acerca da emoção estética. Poder-se-á afirmar que, embora não possamos jamais experimentar inteiramente a Realidade como ela realmente é, certas experiências, contudo, se aproximam mais dela do que outras, e tais experiências, poderá dizer-se, são proporcionadas pela arte e pela filosofia. E, sob a influência das experiências que a arte e a filosofia às vezes nos proporcionam, parece fácil adotar esta opinião. Para os que possuem a paixão metafísica, não existe, provavelmente, emoção tão rica, tão bela e tão inteiramente desejável como aquele sentimento místico, que a filosofia às vezes proporciona, de um mundo transmudado pela visão beatífica. Como Bradley diz, ainda: “Uns de uma maneira, outros de outra, parecemos tocar e estabelecer comunhão com o que está além do mundo visível. De várias maneiras, encontramos algo mais alto, que tanto nos serve de apoio como nos toma humildes, que tanto nos castiga como nos apóia. E, em certas pessoas, o esforço intelectual para compreender o Universo constitui o meio principal de sentir a Deidade... E isso parece constituir – continua ele – uma outra razão para que certas pessoas prossigam no estudo da verdade suprema”.

Mas não constituirá isso, igualmente, uma razão para se esperar que tais pessoas não encontrem a verdade suprema? Se é, com efeito, que a verdade suprema tem qualquer semelhança com as doutrinas expostas em Aparência e Realidade. Não nego o valor da emoção, mas nego que, estritamente falando, seja ela, em qualquer sentido peculiar, uma visão beatífica, ou uma experiência acerca da Deidade. Em certo sentido, naturalmente, toda experiência é uma experiência relacionada com a Deidade, mas, em outro, já que todas as experiências se encontram igualmente no tempo, e a Deidade é sempiterna, nenhuma experiência é uma experiência da Deidade... “como tal”, como o pedantismo me pediria que acrescentasse. O abismo existente entre a Aparência e a Realidade é tão profundo, que não dispomos de fundamentos, tanto quanto me é dado ver, para que consideremos certas experiências como mais próximas do que outras, quanto ao que concerne à experiência perfeita da Realidade. O valor das experiências em questão deve, por conseguinte, basear-se inteiramente em sua qualidade emocional, e não, como Bradley parece sugerir, em qualquer grau superior de verdade que possamos atribuir a tais experiências. Mas, se assim é, constituem elas, na melhor das hipóteses, consolações quanto ao que se refere ao filosofar e não à filosofia. Constituem uma razão para a busca da verdade última, já que são flores que podem ser colhidas à margem do caminho; mas não constituem uma recompensa pela sua obtenção, pois que, como tudo parece indicar, as flores crescem somente no começo da estrada, desaparecendo muito antes que atinjamos o fim da jornada.

O ponto de vista por mim defendido não é, bem o sei, inspirador, nem um ponto de vista que, se geralmente aceito, pudesse talvez contribuir para incentivar o estudo da filosofia. Poderia justificar esta minha dissertação, se quisesse fazê-lo, citando o dito popular: “Quando tudo está deteriorado, cabe ao homem chorar por peixe podre”. Mas prefiro sugerir que a metafísica, quando procura ocupar o lugar da religião, está realmente desvirtuando a sua função. Que pode ocupar tal lugar, eu o admito; mas ocupa-o, afirmo-o, à custa de tornar-se má metafísica. Por que não se admitir que a metafísica, como a ciência, é justificada pela curiosidade intelectual, e que só deveria ser guiada pela curiosidade intelectual? O desejo de se encontrar consolo na metafísica tem produzido, devemos todos admitir, muitos argumentos falazes e muita desonestidade intelectual. Disso, pelo menos, o abandono da religião nos livraria. E já que a curiosidade intelectual existe em certas pessoas, é provável que elas se vissem livres de certos erros até hoje persistentes. “O homem – para citarmos novamente Bradley – cuja natureza seja tal que só seguindo um único caminho poderá, alcançar o seu desejo, procurará encontrá-lo nesse caminho, qualquer que este possa ser e o que quer que os outros possam pensar do mesmo – e, se não o fizer, será uma criatura desprezível”.

 

DOS CÉTICOS CATÓLICOS E PROTESTANTES

Escrito em 1928

Qualquer pessoa que tenha tido muito contacto com livres-pensadores de países diferentes e antecedentes diversos, deve ter ficado surpresa com a notável diferença existente entre indivíduos de origem católica e protestante, por mais que tais indivíduos possam imaginar que se libertaram da teologia que lhes foi ensinada na juventude. A diferença existente entre protestantes e católicos é tão acentuada entre os livres-pensadores como entre os crentes; com efeito, as diferenças essenciais são, talvez, mais fáceis de se descobrir, já que não se ocultam atrás das divergências ostensivas do dogma. Há certamente, uma dificuldade, e isso porque a maioria dos protestantes ateus é constituída de ingleses e alemães, enquanto que a maioria dos católicos ateus é composta de franceses. E os ingleses que, como Gibbon, tiveram íntimo contacto com o pensamento francês, adquirem as características dos livres-pensadores católicos, apesar de sua origem protestante. Não obstante, permanece a ampla diferença existente, e talvez seja divertido procurar-se descobrir em que ela consiste.

Pode-se tomar, como livre-pensador protestante perfeitamente típico, a James Mill, tal como ele aparece na autobiografia de seu filho. “Meu pai – diz John Stuart Mill – educado no credo do presbiterianismo escocês, cedo foi levado a rejeitar, por seus estudos e reflexões, não só a crença na Revelação, como os fundamentos daquilo a que se chama comumente Religião Natural. A rejeição, por parte de meu pai, de tudo o que se chama crença religiosa, não foi causada originariamente, como muitos poderiam supor, por uma questão de lógica e evidência: suas razões foram mais de ordem moral que intelectual. Parecia-lhe impossível acreditar que um mundo tão cheio de males fosse obra de um Autor que alias se o poder infinito à bondade e à justiça perfeitas... Sua aversão pela religião, no sentido usualmente atribuído ao termo, era da mesma espécie que a de Lucrécio: encarava-a com os sentimentos devidos não apenas a uma mera ilusão mental, mas a um grande mal moral. Teria sido inteiramente incompatível com as idéias de dever alimentadas por meu pai, permitir que eu adquirisse impressões contrárias às suas convicções e sentimentos com respeito à religião – e ele, desde o princípio, fez-me ver que a maneira pela qual o mundo surgiu era assunto sobre que nada se sabia”. Contudo, não há dúvida de que James Mill permaneceu protestante. “Ensinou-me a ter o mais vivo interesse pela Reforma, como a grande e decisiva luta contra a tirania sacerdotal, em favor da liberdade do pensamento”.

Em tudo isso, James Mill estava apenas levando avante o espírito de John Knox. Ele era um não-conformista, embora de uma seita extremada, e mantinha a seriedade moral e o interesse pela teologia que distinguiam os seus predecessores. Os protestantes, a princípio, distinguiam-se de seus oponentes por aquilo em que não criam; rejeitar mais um dogma é, por conseguinte, simplesmente levar o movimento à frente. O fervor moral constitui a essência da questão.

Esta é apenas uma das diferenças distintivas entre a moralidade católica e a protestante. Para o protestante, o homem excepcionalmente bom é aquele que se opõe às autoridades e às doutrinas recebidas, como Lutero na Dieta de Worms. A concepção protestante acerca da bondade tem em si algo de individual e isolado. Eu próprio fui educado como protestante, e um dos textos que mais se gravaram em meu espírito juvenil foi: “Tu não seguirás a multidão na pratica do mal”. Tenho a consciência de que até hoje esse texto exerce influência sobre mim, em minhas ações mais sérias. O católico tem uma concepção de virtude inteiramente diversa: para ele, há em toda virtude um elemento de submissão, não apenas a voz de Deus, tal como se revela na consciência, mas também na autoridade da Igreja, como repositório da Revelação. Isso dá ao católico uma concepção de virtude muito mais social do que a protestante, e torna a separação muito maior quando rompe a sua ligação com a Igreja. O protestante que abandona a seita particular em que foi criado está apenas fazendo o que os fundadores de sua seita fizeram há não muito tempo, e sua mentalidade está adaptada aos fundamentos de uma nova seita. O católico, por outro lado, sente-se perdido sem o apoio da Igreja. Pode, certamente, ligar-se a alguma outra instituição, como a dos maçons-livres, mas permanece consciente, não obstante, de uma revolta desesperada. E, em geral, continua convicto, pelo menos subconscientemente, de que a vida moral se limita aos membros da Igreja, de modo que, para o livre-pensador, as mais elevadas espécies de virtude se tornaram impossíveis. Essa convicção o conduz por caminhos diferentes, segundo o seu temperamento; se for uma criatura de natureza simples e jovial, desfrutará daquilo a que William James chama de feriado moral. O exemplo mais perfeito disso é Montaigne, que se permitiu também um feriado intelectual na forma de hostilidade a sistemas e deduções. O homem moderno nem sempre percebe até que ponto a Renascença foi um movimento antiintelectual. Na Idade Média, era costume provar as coisas; a Renascença inventou o hábito de observá-las. Os únicos silogismos ante os quais Montaigne se mostra cordial, são aqueles que provam uma negativa particular, como quando, por exemplo, lança mão de toda a sua erudição a fim de demonstrar que nem todos aqueles que morreram como Ario morreu eram hereges. Após enumerar vários homens maus que morreram desta ou daquela maneira, prossegue: “Ora essa! Vemos que esse mesmo foi o destino de Irineu, pois que a intenção de Deus é ensinar-nos que os bons têm algo mais que esperar, e os maus algo mais que temer, do que a boa ou a má fortuna deste mundo”. Alguma coisa dessa aversão pelos sistemas permaneceu como característica do católico, ao contrário do livre-pensador protestante; e a razão disso é ainda a de que o sistema da teologia católica é tão imponente que não permite ao indivíduo (a menos que possua uma energia heróica) estabelecer um outro sistema que compita com o mesmo.

O livre-pensador católico, por conseguinte, tende a. evitar a solenidade, tanto moral como intelectual, enquanto que o livre-pensador protestante se inclina muito para isso. James Mill ensinou ao filho “que a pergunta: Quem me fez? Não podia ser respondida, pois que não temos experiência nem informação autêntica que nos permitam respondê-la; e que qualquer resposta apenas lança a dificuldade um passo para trás, uma vez que se apresenta imediatamente a pergunta: Quem fez Deus?” Compare-se isso com o que Voltaire tem a dizer acerca de Deus no Dictionnaire Philosophique. O artigo “Dieu”, naquela obra, começa assim: “Durante o reinado de Arcádio, Logomacos, conferencista de teologia em Constantinopla, dirigiu-se a Cítia e deteve-se ao pé do Caúcaso, nas férteis planícies de Zeferino, junto à fronteira da Cólquida. O velho e digno Dondindac estava em seu grande salão, situado entre seu imenso aprisco e seu enorme celeiro; estava ajoelhado juntamente com a esposa, seus cinco filhos e cinco filhas, seus pais e seus servos e, após ligeira refeição, cantavam todos em louvor de Deus”.

O artigo prossegue nessa mesma veia e termina com a seguinte conclusão: “Desde então, resolvi jamais discutir”. Não nos é possível imaginar qualquer ocasião em que James Mill resolvesse não mais discutir, nem qualquer assunto, mesmo que fosse menos sublime, que ele houvesse ilustrado com uma fábula. Tampouco teria podido praticar a arte da irreverência habilidosa, como o faz Voltaire ao referir-se a Leibniz: “Ele declarou, no norte da Alemanha, que Deus poderia apenas fazer um único mundo”. Ou, então, compare-se o fervor moral com que James Mill se referiu à existência do mal com a seguinte passagem, na qual Voltaire diz a mesma coisa: “Negar-se que o mal existe é coisa que só poderia ser dita, em tom de gracejo, por um Lúculo que gozasse de excelente saúde e que estivesse comendo uma boa ceia, em companhia de seus amigos e de sua amante, no salão de Apolo; mas que chegasse à janela, e veria infelizes criaturas humanas; que tivesse febre, e ele próprio seria infeliz”.

Montaigne e Voltaire constituem os exemplos supremos de céticos joviais. Muitos livres- pensadores católicos, porém, nada tinham de joviais, sentindo sempre a necessidade de uma fé rígida e de uma Igreja que os dirigisse. Tais homens, às vezes, se tomam comunistas; Lenine é o maior exemplo disso. Lenine recebeu a sua fé de um livre-pensador protestante (pois os judeus e os protestantes são mentalmente indistinguíveis), mas seus antecedentes bizantinos o obrigaram a criar uma Igreja como corporificação visível da fé. Um exemplo menos bem sucedido dessa mesma tentativa é Augusto Comte. Homens desse temperamento, a menos que possuam força invulgar, caem, cedo ou tarde, no seio da Igreja. No reino da filosofia, um exemplo muito interessante disso é Mr. Santayana, que sempre amou a ortodoxia por si mesma, mas que ansiou sempre por uma forma intelectualmente menos incompatível do que aquela proporcionada pela Igreja Católica. Apreciou sempre, no catolicismo, a instituição da Igreja e a sua influência política; apreciava, de um modo geral, aquilo que a Igreja recebera da Grécia e de Roma, mas não apreciava o que a Igreja recebera dos judeus, inclusive, naturalmente, o que ela devia ao seu Fundador. Teria desejado que Lucrécio houvesse conseguido fundar uma Igreja baseada nas doutrinas de Demócrito, pois que o materialismo sempre exerceu atração sobre o seu intelecto e, ao menos em suas primeiras obras, aproximou-se mais da adoração da matéria do que de algo que conferisse tal distinção a qualquer outra coisa. Mas, no fim de contas, parece que chegou à conclusão de que a Igreja que realmente existia devia ser preferida a uma Igreja que se limitasse ao reino da essência. Mr. Santayana, porém, constitui um fenômeno excepcional, e dificilmente se enquadra em qualquer das categorias modernas. É, realmente, um indivíduo da pré-Renascença e, se é que pertence a algo, o seu lugar é entre os gibelinos que Dante encontrou sofrendo no inferno por terem aderido às doutrinas de Epicuro. Essa sua visão é, sem dúvida, reforçada pela nostalgia de um passado que um relutante e prolongado contacto com a América devia produzir num temperamento espanhol.

Todos sabem como George Eliot ensinou a F.W.H. Myers que não existe Deus, mas que, não obstante, devemos ser bons. George Eliot é, nisso, um exemplo típico do livre-pensador protestante. Poder-se-ia dizer, falando-se de modo bastante geral, que os protestantes gostam de ser bons e inventaram a teologia para que se conservassem assim, enquanto que os católicos gostam de ser maus e inventaram a teologia a fim de fazer com que seus vizinhos se conservem bons. Daí o caráter social do catolicismo e o caráter individual do protestantismo. Jeremy Bentham, livre- pensador protestante típico, achava que o maior de todos os prazeres era o prazer da auto- aprovação. Por conseguinte, não se sentia tentado a comer ou beber em excesso, a viver uma vida dissoluta ou a furtar a bolsa de seu próximo, pois que nenhuma dessas coisas lhe teria proporcionado aquela requintada emoção que ele compartilhava com Jack Horner, mas não de maneira tão fácil, já que tivera de renunciar ao bolo de Natal a fim de conseguir comê-lo. Na França, por outro lado, foi a moralidade ascética a que primeiro desmoronou; a dúvida teológica veio mais tarde, como conseqüência. Essa distinção é, provavelmente, de caráter mais nacional do que de crenças.

A relação existente entre a religião e a moral é algo que merece um estudo geográfico imparcial. Lembro-me de que deparei, no Japão, com uma seita budista em que o sacerdócio era hereditário. Indaguei como é que podia ser aquilo, já que, em geral, os sacerdotes budistas são celibatários. Ninguém pôde informar-me, mas, no fim, verifiquei os fatos num livro. Ao que parecia, a seita partira da doutrina da justificação pela fé, tendo deduzido que, contanto que a fé permanecesse pura, o pecado não tinha importância; por conseguinte, todos os sacerdotes resolveram pecar, mas o único pecado que os tentava era o casamento. A partir de então, até hoje, os sacerdotes dessa seita têm casado, vivendo, por outro lado, vidas inatacáveis. Se se pudesse fazer com que os americanos acreditassem que o casamento era um pecado, talvez não mais sentissem a necessidade do divórcio. Talvez constitua a essência de um sábio sistema social qualificar-se de “pecado” diversos atos inofensivos, mas tolerar-se aqueles que os praticam. Desse modo, o prazer do pecado pode ser conseguido sem que se prejudique ninguém. Isso me ocorreu ao espírito ao lidar com crianças. Toda criança deseja, às vezes, ser má, e, se foi educada racionalmente, só poderá satisfazer esse seu impulso para a maldade mediante alguma ação realmente nociva, ao passo que, se lhe houvessem ensinado que, é pecado jogar baralho aos domingos ou, então, que é pecado comer carne às sextas-feiras, poderia satisfazer esse seu impulso para o pecado sem prejudicar ninguém. Não digo que eu aja, na prática, de acordo com este princípio; contudo, o caso da seita budista a que acabo de referir-me sugere que poderia ser sensato fazê-lo.

De nada valeria insistir demasiado na distinção que venho procurando fazer entre livres- pensadores protestantes e católicos; os encyclopédistes e philosophes de fins do século XVIII, por exemplo, eram do tipo protestante, ao passo que eu consideraria Samuel Butler, embora com certa hesitação, como um tipo católico. A principal distinção que se nota é que, no tipo protestante, o afastamento da tradição é, antes de tudo, intelectual, enquanto que, no tipo católico, é principalmente prático. O livre-pensador protestante típico não tem o menor desejo de fazer coisa alguma que os seus vizinhos desaprovem, à parte o fato de defenderem opiniões heréticas. Home Life with Herbert Spencer, por Dois Autores (um dos livros mais encantadores que existem), refere- se à opinião comum acerca daquele filósofo, isto é: “Nada há a dizer-se a seu favor, exceto que, do ponto de vista moral, tinha bom caráter”. Jamais teria ocorrido a Herbert Spencer, a Bentham, a Mills, ou a qualquer dos livres-pensadores britânicos que afirmavam em suas obras que o prazer constitui a finalidade da vida – jamais teria ocorrido, digo, a qualquer um desses homens, procurar eles próprios o prazer, ao passo que um católico que chegasse às mesmas conclusões teria procurado viver de acordo com elas. Deve-se dizer que, nesse sentido, o mundo está mudando. O livre-pensador protestante de nossos dias tende a tomar liberdades tanto em suas ações como em suas idéias, mas isto constitui apenas um sintoma da decadência geral do protestantismo. Nos bons tempos de antanho, um livre-pensador protestante podia bem decidir-se, abstratamente, a favor do amor livre e, não obstante, viver toda a sua vida no mais estrito celibato. Julgo tal mudança lamentável. Grandes épocas e grandes personalidades surgiram do desmoronamento de sistemas rígidos: os sistemas rígidos proporcionavam a disciplina e a coerência necessárias, enquanto que o seu esboroamento libertava a necessária energia. É um erro supor-se que os resultados admiráveis conseguidos no primeiro momento do colapso podem continuar indefinidamente. Não há dúvida de que o ideal constitui uma certa rigidez de ação, além de uma certa plasticidade de pensamento, mas isso é difícil de conseguir-se na prática, salvo durante breves períodos de transição. E parece provável que, se se verificar a decadência das velhas ortodoxias, surjam novas crenças rígidas, devido às necessidades do conflito. Haverá, então, na Rússia, bolchevistas ateus, que lançarão dúvida quanto à divindade de Lenine, inferindo daí que não constitui mal algum a gente amar os próprios filhos. Haverá, na China, Kuomitangs ateus, que farão restrições quanto a Sun Yat-Sen e dificilmente manterão o respeito que têm por Confúcio. Receio que a decadência do liberalismo torne cada vez mais difícil aos homens deixar de aderir a alguma crença aguerrida. É provável que as várias espécies de ateus tenham de reunir-se numa sociedade secreta e voltar aos métodos inventados por Bayle em seu dicionário. Há, ao menos, este consolo: a perseguição, quanto o que concerne à opinião, tem admirável efeito sobre o estilo literário.

 

A VIDA NA IDADE MÉDIA

Escrito em 1925

Talvez mais do que a de quaisquer outros períodos da história, a imagem que fazemos da Idade Média foi falsificada para adaptar-se aos nossos preconceitos. O quadro tem-nos sido apresentado, às vezes, ora demasiado negro, ora demasiado cor-de-rosa. O século XVIII, que não tinha dúvidas quanto a si mesmo, encarava os tempos medievais como sendo simplesmente bárbaros. Para Gibbon, os homens daquela época foram os nossos “rudes antepassados”. A reação contra a Revolução Francesa produziu a admiração romântica do absurdo, baseada na experiência de que a razão conduzia à guilhotina. Isso engendrou uma glorificação da “idade da cavalaria”, popularizada, entre os povos de língua inglêsa, por Sir Walter Scott. Os rapazes e as mocinhas, de um modo geral, talvez sejam ainda dominados por uma visão romântica da Idade Média: imaginam uma época em que os cavaleiros usavam couraças, carregavam lanças, diziam “quotha” (deveras!) e “by my halidom” (por minha fé!) e eram, invariavelmente corteses ou vingativos; uma época em que todas as damas eram formosas e se achavam em perigo, mas que, com toda a certeza, seriam salvas no fim da história. Há, ainda, uma terceira maneira de se encarar tal época – uma maneira inteiramente diversa, mas que, como a segunda, admira a Idade Média. Trata-se da maneira eclesiástica, engendrada pela aversão à Reforma. A ênfase, aqui, recai sobre a piedade, a ortodoxia, a filosofia escolástica e a unificação da cristandade pela Igreja. Como a visão romântica, é uma reação contra a razão, mas uma reação menos ingênua, disfarçada nas vestes da razão, apelando a um grande sistema de pensamento que já dominou o mundo e que poderá ainda vir a dominá-la.

Em todas essas perspectivas existem elementos de verdade: os homens da Idade Média eram rudes, cavalheirescos, piedosos. Mas, se quisermos ver verdadeiramente uma época, não devemos vê-la em contraste com a nossa, que esse contraste seja favorável ou desfavorável: devemos procurar vê-la como era para aqueles que nela viviam. Antes de mais nada, devemos lembrar-nos de que, em todas as épocas, a maioria das pessoas é constituída de indivíduos comuns, preocupados mais com o seu pão de cada dia do que com os grandes temas de que tratam os historiadores. Tais criaturas comuns são retratadas por Miss Eileen Power num livro encantador, Medieval People, que abrange desde o tempo de Carlos Magno até o de Marco Pólo; as outras cinco são criaturas mais ou menos obscuras, cujas vidas são reconstruídas mediante documentos que chegaram, por acaso, até nós. A cavalaria, que constituía um caso aristocrático, não aparece nesses anais democráticos; a piedade surge em camponeses e mercadores britânicos, mas é muito menos evidente em círculos eclesiásticos – e toda a gente é muito menos bárbara do que o século XVIII teria esperado. Há, no entanto, a favor do ponto de vista “bárbaro”, um contraste bastante evidente trazido à tona no referido livro: o contraste entre a arte veneziana pouco antes da Renascença e a arte chinesa durante o século XIV. São reproduzidas duas pinturas: uma, uma ilustração veneziana do embarque de Marco Pólo; a outra, uma paisagem chinesa do século XIV, pintada por Chao Meng-fu. Diz Miss Power: “Uma (a de Chao Meng-fu) é, de maneira sumamente evidente, obra de uma civilização altamente desenvolvida; a outra, de uma civilização quase ingênua e infantil”. Ninguém, que as compare, poderá deixar de concordar com essa opinião.

Outro livro recente, The Waning of the Middle Ages, de autoria do Professor Huizinga, de Leiden, oferece-nos um quadro extraordinariamente interessante dos séculos XIV e XV na França e em Flandres. Nesse livro, a cavalaria é tratada com bastante atenção, não do ponto de vista romântico, mas como um jogo complicado inventado pelas classes superiores para enganar o intolerável tédio de suas vidas. Parte essencial da cavalaria era a curiosa concepção cortesã do amor, como algo que era agradável deixar-se insatisfeito. “Quando, no século XII, o desejo insatisfeito era colocado, pelos trovadores da Provença, no centro da concepção poética do amor, verificou-se importante reviravolta na história da civilização. A poesia palaciana faz do próprio desejo o seu motivo essencial, criando, assim, uma concepção de amor com uma negativa nota terrena”. E ainda:

“A existência de uma classe superior, cujas idéias morais e intelectuais se acham encerradas numa ars amandi permanece como um fato bastante excepcional na história. Em nenhuma outra época o ideal da civilização se fundiu em tal grau com o ideal do amor. Assim como o escolasticismo representa o grande esforço do espírito medieval no sentido de unir todo o pensamento filosófico num único centro, assim a teoria do amor palaciano, numa esfera menos elevada, tende a encerrar tudo o que pertence à vida nobre”.

Muito do que diz respeito à Idade Média pode ser interpretado como um conflito entre as tradições romana e germânica: de um lado, a Igreja; do outro, o Estado; de um lado, a teologia e a filosofia; do outro, o prazer, a paixão, e todos os impulsos anárquicos de cada um dos homens voluntariosos. A tradição romana não era a dos grandes dias de Roma: era a de Constantino e a de Justiniano; mas, mesmo assim, continha algo de que necessitavam as nações turbulentas, sem as quais a civilização não poderia ter ressurgido da idade do obscurantismo. Como os homens eram impetuosos, só poderiam ser refreados mediante tremenda severidade: o terror foi empregado até deixar de surtir efeito, por ter-se tornado familiar. Após descrever a Dança da Morte, tema predileto dos últimos tempos da arte medieval, na qual esqueletos dançam com criaturas vivas, o Dr. Huizinga passa a falar do Pátio dos Inocentes, em Paris, onde os contemporâneos de François Villon passeavam em busca de prazer:

“Caveiras e ossos eram empilhados em capelas mortuárias ao longo dos claustros que fechavam o pátio por três lados, e jaziam expostos a milhares de olhos, pregando a todos a lição da igualdade... Sob os claustros, a dança da morte exibia suas imagens e estrofes. Lugar algum era mais adequado à figura simiesca e sorridente da morte, arrastando consigo papas e imperadores, monges e idiotas. O Duque de Berry, que desejava ser lá sepultado, fez com que gravassem no portal da igreja a história dos três mortos e dos três vivos. Um século mais tarde, essa exibição de símbolos fúnebres era completada por uma grande estátua da Morte, agora no Louvre, única coisa que resta de tudo isso. Eis aí o lugar em que os parisienses do século XV freqüentavam como uma lúgubre contraparte do Palais Royal de 1789. Dia após dia, multidões de pessoas percorriam os subterrâneos situados embaixo dos claustros, olhando as figuras e lendo os versos simples que lembravam o fim que os aguardava. Apesar dos sepultamentos incessantes e das exumações que lá se realizavam, o local era uma espécie de salão público e lugar de encontro. Foram abertas lojas diante das capelas mortuárias e prostitutas perambulavam por baixo dos claustros. Uma reclusa se achava enclausurada num dos lados da igreja. Frades iam ali pregar, e procissões percorriam os subterrâneos... Até mesmo festas eram lá realizadas, tão familiar o horrível havia se tomado”.

Como se poderia esperar de todo esse amor pelo macabro, a crueldade era um dos prazeres que a população mais prezava. A cidade de Mons comprou um salteador de estrada unicamente para fazer com que fosse torturado, “ante o que as pessoas se rejubilavam mais do que se um novo santo houvesse ressuscitado”. Em 1488, alguns magistrados de Bruges, suspeitos de traição, foram repetidamente torturados no mercado público, para deleite da população. Rogaram que os matassem, mas tal graça lhes foi recusada, diz o Dr. Huizinga, “afim de que o povo pudesse tornar a divertir-se com os seus tormentos”.

Afinal de contas, talvez haja algo a dizer-se a favor das opiniões do século XVIII.

O Dr. Huizinga tem alguns capítulos muito interessantes sobre a arte no fim da Idade Média. O requinte que se manifestava na pintura não era igualado nem na arquitetura, nem na escultura, as quais se tornaram aparatosas, devido ao amor da suntuosidade aliado à pompa feudal. Quando o Duque de Borgonha, por exemplo, encarregou Sluter de fazer, em Champol, com todo o cuidado, um Calvário, as armas da Borgonha e de Flandres apareceram nos braços da Cruz. Mais surpreendente ainda, é que a figura de Jeremias, que fazia parte do grupo, tinha um par de óculos sobre o nariz! O autor traça a figura patética de um grande artista dominado por um patrono filisteu, mas, depois, trata de demoli-la, insinuando que talvez “o próprio Sluter considerasse os óculos de Jeremias como constituindo um achado muito feliz”. Miss Power refere-se, ainda, a um fato surpreendente: no século XIII, um italiano chamado Bowdler, sobrepujando Tennyson em refinamento vitoriano, publicou uma versão das lendas do Rei Artur que omitia todas as referências aos amores de Lancelot e Guinevere. A História está cheia de coisas esquisitas, como, por exemplo, o caso de um jesuíta japonês que, no século XVI, foi martirizado em Moscou. Gostaria que algum historiador erudito escrevesse um livro intitulado “fatos que me espantaram”. Num tal livro, os óculos de Jeremias e o italiano chamado Bowdler encontrariam, certamente, lugar.

 

O DESTINO DE THOMAS PAINE

Escrito em 1934

Thomas Paine, embora, preeminente em duas revoluções e tendo quase sido enforcado por tentar fazer uma terceira, está se tornando, em nossos dias, uma figura um tanto apagada para os nossos bisavós, ele era uma espécie de Satanás terreno, um infiel subversivo, rebelde tanto contra o seu Deus como contra o seu rei. Incorreu na profunda hostilidade de três homens que, em geral, não se achavam unidos: Pitt, Robespierre e Washington. Destes, os dois primeiros procuraram levá- lo à morte, enquanto que o terceiro teve o cuidado de abster-se de adotar medidas destinadas a salvar-lhe a vida. Pitt e Washington odiavam-no porque ele era democrata; Robespierre, porque ele se opôs à execução do rei e ao Reinado do Terror. Seu destino foi ser honrado pela oposição e odiado pelos governos. Washington, quando estava ainda lutando contra os ingleses, referiu-se a Paine em termos sumamente elogiosos; a nação francesa cumulou-o de honrarias, até que os jacobinos conquistaram o poder; mesmo na Inglaterra, os mais preeminentes estadistas Wighs o prestigiaram, encarregando-o de redigir manifestos. Ele tinha falhas, como os demais homens – mas foi pelas suas virtudes que o odiavam e que conseguiram triunfar em suas calúnias.

A importância de Paine na história consiste no fato de que ele tornou democrática a prédica da democracia. Houve, no século XVIII, democratas entre os aristocratas franceses e ingleses, bem como entre philosophes e ministros não-conformistas. Mas todos eles apresentavam suas especulações políticas de uma maneira destinada apenas às pessoas educadas.

Paine, conquanto sua doutrina nada contivesse de novo, foi um inovador quanto à sua maneira de escrever, que era simples, direta, chã, podendo ser apreciada por qualquer trabalhador inteligente. Isso o tornou perigoso – e, quando aos seus outros crimes acrescentou a ausência de ortodoxia religiosa, os defensores dos privilégios aproveitaram a oportunidade para difamá-lo.

Os primeiros trinta e seis anos de sua vida não revelaram sinal algum do talento que demonstrou, mais tarde, em suas atividades. Nascido em Thetfor, no ano de 1739, de pais quakers pobres, cursou, até aos treze anos, a escola secundária local, passando depois a trabalhar como fabricante de espartilhos. A vida tranqüila, todavia, não fôra feita para ele e, aos dezessete anos, procurou entrar como marinheiro de um navio corsário chamado The Terrible, cujo capitão atendia pelo nome de Death. Seus pais trouxeram-no de volta para casa, salvando-lhe assim, provavelmente, a vida, pois que, dos 200 homens da tripulação, 175 foram, logo depois, mortos em ação. Pouco tempo decorrido, porém, ao deflagar a Guerra dos Sete Anos, conseguiu alistar-se num outro navio corsário, mas nada se sabe de suas breves aventuras marítimas. Em 1758, achava-se empregado como fazedor de espartilhos em Londres. No ano seguinte, contraiu matrimônio, mas sua mulher morreu poucos meses depois. Em 1763, tornou-se fiscal do imposto de consumo, mas foi demitido dois anos após, por haver declarado que estava fazendo suas inspeções, quando, na verdade, se achava em casa estudando. Em situação de grande pobreza, tornou-se mestre-escola, percebendo dez xelins por semana; nessa ocasião, tentou tomar ordens como ministro anglicano.

Foi salvo desses expedientes desesperados mediante sua reintegração como fiscal de impôsto em Lewes, onde casou com uma jovem quaker, de quem se separou, por razões desconhecidas, em 1774. Neste ano, tornou a perder o emprego, por haver, ao que parece, organizado uma petição em que reclamara melhor salário para os fiscais de imposto do consumo. Vendendo tudo o que possuía, pôde pagar suas dívidas e deixar alguma coisa para a esposa, mas, ele próprio, achava-se reduzido à miséria.

Em Londres, onde procurava apresentar ao Parlamento sua petição a favor dos fiscais, conheceu Benjamin Franklin, a quem causou boa impressão. O resultado desse conhecimento foi que, em. 1774, partiu para a América, armado de uma carta de recomendação de Franklin, que o descrevia como “jovem habilidoso e digno”. Logo que chegou a Filadélfia, começou a revelar sua habilidade como escritor, tomando-se quase que imediatamente redator de um jornal.

Sua primeira publicação, em março de 1775, foi um enérgico artigo contra a escravidão e o comércio de escravos, dos quais, digam o que quiser os seus amigos americanos, ele permaneceu sempre um inimigo intransigente. Parece ter sido em grande parte devido à sua influência que Jefferson inseriu no rascunho da Declaração da Independência o trecho que se refere ao assunto, o qual foi, posteriormente, eliminado. Em 1775, existia ainda escravidão na Pennsylvania; foi a mesma abolida, naquele Estado, por uma lei de 1780, cujo preâmbulo, como geralmente se acredita, foi redigido por Paine.

Paine foi um dos primeiros, se não o primeiro, a advogar completa liberdade para os Estados Unidos. Em outubro de 1775, quando mesmo aqueles que, depois, assinaram a Declaração da Independência aguardavam ainda uma acomodação com o governo britânico, escreveu ele:

“Não hesito um instante sequer em acreditar que o Todo-poderoso acabará, finalmente, por separar a América da Grã-Bretanha. Chame-se a isso independência ou o que se quiser; se se tratar da causa de Deus e da humanidade ela prosseguirá. E quando o Todo-poderoso nos houver abençoado, fazendo de nós um povo que dependa apenas d’Ele, então a nossa gratidão deverá ser revelada, antes de mais nada, por um ato de legislação continental que acabe com a importação de negros para venda, alivie o duro destino daqueles que já aqui se encontram, e faça com que procuremos, com o tempo, dar-lhes liberdade”.

Foi por amor a liberdade – da liberdade contra a monarquia, a aristocracia, a escravidão e toda a espécie de tirania – que Paine aderiu à causa da América.

Durante os anos mais difíceis da Guerra da Independência, passava os seus dias realizando campanhas e as suas noites compondo vibrantes manifestos, publicados sob o título de “Common Sense”. Estes, tiveram enorme sucesso e ajudaram materialmente a ganhar a guerra. Depois que os ingleses queimaram as cidades de Falmouth, no Maine, e de Norfolk, na Virgínia, Washington escreveu a um amigo (31 de janeiro de 1776):

“Mais alguns desses argumentos ardentes, tais como os que foram apresentados em Falmouth e Norfolk, acrescentados à sólida e irresponsável argumentação contida no panfleto intitulado Common Sense, e muita gente não terá mais dúvida de decidir-se quanto à conveniência da separação”.

A obra era local, e hoje só tem interesse histórico, mas havia nela frases que ainda são convincentes. Depois de acentuar que a disputa não era apenas com o rei, mas também com o Parlamento, diz: “Não há homens mais ciumentos de seus privilégios do que os membros da Câmara dos Comuns – porque eles os vendem”. Naquela data, era impossível negar-se a justiça de tal insulto.

Há uma argumentação vigorosa a favor de uma República, bem como uma refutação triunfante da teoria de que a monarquia evita a guerra civil. “Monarquia e sucessão – diz ele, após sumariar a história da Inglaterra – mergulharam o mundo em sangue e cinzas. É essa uma forma de governo contra a qual se ergue o testemunho de Deus, e o sangue a aguardará”. Em dezembro de 1776, num momento em que a sorte da guerra lhes era adversa, Paine publicou um panfleto intitulado A Crise, o qual começa assim:

“São ocasiões como estas que põem à prova a alma dos homens. O soldado do tempo de verão e os patriotas de dias ensolarados procurarão, nesta crise, recuar diante do serviço ao seu país; mas aquele que agora se mantém firme, merece o amor e a gratidão de homens e mulheres”.

Este ensaio foi lido às tropas, e Washington manifestou a Paine a sua “viva percepção da importância de seu trabalho”. Nenhum outro escritor foi mais amplamente lido na América, e Paine poderia ter ganho muito dinheiro com a sua pena, mas recusou-se sempre a aceitar qualquer quantia pelo que escrevia. No fim da Guerra da Independência, era respeitado por todos nos Estados Unidos, mas continuava ainda pobre; contudo, a legislatura de um dos Estados votou uma verba em seu favor e, outra, deu-lhe uma propriedade rural, de modo que ele dispunha de todas as perspectivas de conforto quanto ao resto de sua vida. Poder-se-ia esperar que vivesse uma existência assentada, gozando da respeitabilidade característica desfrutada por revolucionários bem sucedidos. Ele, porém, voltou sua atenção da política para a engenharia e demonstrou a possibilidade da construção de pontes de ferro com vãos mais longos do que aqueles que tinham sido antes considerados possíveis. As pontes de ferro conduziram-no à Inglaterra, onde foi recebido, de maneira cordial, por Burke, o Duque de Portland e outros Whigs insignes. Fez com que erguessem em Paddington um grande modelo de sua ponte de ferro, tendo sido elogiado por engenheiros ilustres, tudo levando a crer que passasse o resto de seus dias como inventor.

Tanto a França como a Inglaterra, porém, estavam interessadas pelas pontes de ferro. Em 1788, Paine fez uma visita a Paris, a fim de discutir o assunto com Lafayette e submeter seus planos à Academia das Ciências, a qual, depois da devida demora, se manifestou favoravelmente a respeito de suas pontes de ferro. Ao cair a Bastilha, Lafayette decidiu presentear a Washington a chave da prisão, confiando a Paine a tarefa de transporta-la através do At1ântico. Paine, porém, por motivos relacionados com o seu invento, viu-se obrigado a permanecer na Europa. Escreveu uma longa carta a George Washington, informando-o de que arranjaria alguém que, em seu lugar levasse à sua casa aquele “primeiro troféu dos despojos do despotismo, e um dos primeiros frutos maduros dos princípios americanos transplantados para a Europa”. E prossegue: “Não tenho a menor dúvida quanto ao sucesso final e completo da Revolução Francesa”. Informa, ainda: “Construí uma ponte (um simples arco) com cento e dez pés de olhal e cinco pés de altura, desde a corda do arco”.

Durante algum tempo, o seu interesse permaneceu, assim, dividido entre a ponte e a Revolução, mas, aos poucos, a Revolução venceu. Na esperança de despertar um movimento simpático na Inglaterra, escreveu o seu ensaio Os Direitos do Homem, em que se baseia, principalmente, a sua fama de democrata.

Esse trabalho, considerado terrivelmente subversivo durante a reação antijacobina, surpreenderá o leitor moderno pela sua brandura e pelo seu senso comum. E, primordialmente, uma resposta a Burke e trata, de modo bastante extenso, de acontecimentos da época na França. A primeira parte foi publicada em 1791; a segunda, em 1792. Não havia, ainda, por conseguinte, necessidade de que se desculpasse pela Revolução. Há muito pouca declamação acerca de Direitos Naturais, mas uma grande dose de sólido bom senso quanto ao que se refere ao Governo britânico. Burke afirmara que a revolução de 1688 obrigara os britânicos a submeter-se para sempre aos soberanos apontados pelo “Act of Settlement”. Paine afirma que é impossível obrigar a posteridade a qualquer compromisso, e que as constituições devem ser, de tempos em tempos, passíveis de revisão.

Os governos – diz ele – “podem todos ser compreendidos sob três tópicos. Primeiro, Superstição. Segundo, Poder. Terceiro, os interesses comuns da sociedade e os direitos comuns do homem. O primeiro era um governo de política clerical; o segundo, de conquistadores e, o terceiro, da razão”. Os dois primeiros se fundiam: “a chave de São Pedro e a chave do Tesouro ficavam guardadas uma sobre a outra, e a multidão, atônita e ludibriada, adorou tal invenção”. Essas observações de ordem geral, todavia, são raras. O grosso da obra consiste; primeiro, de história da França, de 1789 até fins de 1791 e, em segundo lugar, de uma comparação entre a Constituição inglesa e a que foi promulgada na França em 1791, com vantagem, certamente, para esta última. Devemos lembrar-nos de que, em 1791, a França era ainda uma monarquia. Paine era republicano e não o ocultava, mas pouco fez, em Os Direitos do Homem, para ressaltar essa forma de governo.

O apelo de Paine, salvo em alguns breves trechos, dirigia-se ao senso comum. Argumentava contra as finanças de Pitt, como Cobbett o fez mais tarde, baseado em razões que devem ter agradado a todos os chanceleres do Exchequer; descreveu a consecução de pequenos e evanescentes fundos monetários, por meio de vastos empréstimos, como sendo o mesmo que se colocar um homem de perna de pau à caça de uma lebre: quanto mais correm, tanto mais a lebre se distancia. Fala da “plantação de papel-moeda de Potter” frase inteiramente no estilo das de Cobbett. Foram, com efeito, os seus escritos sobre finanças que transformaram em admiração a antiga inimizade de Cobbett. Sua objeção ao princípio da hereditariedade, que causava horror a Burke e a Pitt, é hoje coisa comum entre todos os políticos, inclusive até mesmo Mussolini e Hitler. Tampouco o seu estilo é, de qualquer forma, escandaloso: é um estilo claro, vigoroso, direto, mas muito menos ofensivo que o de seus adversários.

Não obstante, Pitt resolveu iniciar o seu reinado de terror instaurando um processo contra Paine e suprimindo Os Direitos do Homem. Segundo sua sobrinha, Lady Hester Stanhope, ele “costumava dizer que Tom Paine tinha toda razão”, e acrescentava: “Mas que é que posso fazer? Na situação atual, teríamos, se fôssemos encorajar as opiniões de Paine, uma revolução sangrenta”. Paine respondeu ao processo com atitudes de desafio e discursos inflamados. Mas os massacres de setembro estavam ocorrendo, e os Tories ingleses reagiam com ferocidade cada vez maior. O poeta Blake – que conhecia melhor o mundo do que Paine – convenceu-o de que, se permanecesse na Inglaterra, seria enforcado. Paine fugiu para a França, escapando, por uma diferença de apenas algumas horas em Londres e de somente vinte minutos em Dover, aos esbirros que tinham ordem de prendê-lo. Em Dover, as autoridades deram-lhe livre trânsito devido ao fato de ele possuir, por acaso, consigo, uma carta recente e cordial de George Washington.

Conquanto a Inglaterra e a França não estivessem ainda em guerra, Dover e Calais pertenciam a mundos diferentes. Paine, que fôra eleito cidadão francês honorário, fizera parte da Convenção em três constituintes diferentes, das quais Calais, que agora o recebia calorosamente, era uma. “Quando o barco se aproxima, a bateria dispara uma salva; vivas ecoam pelo cais. Ao pisar em solo francês o representante de Calais, os soldados formam alas, os oficiais abraçam-no, colocam-lhe a roseta com as cores nacionais”... e assim por diante, entre as habituais e formosas damas francesas, prefeitos, etc.

Uma vez chegado a Paris, procedeu mais com espírito público do que com prudência. Esperava – apesar dos massacres – uma revolução mais moderada e ordeira, tal como a que ajudara fazer na América. Fez amizade com os girondinos, recusou-se a julgar mal a Lafayette (agora em desgraça), e continuou, como americano, a expressar sua gratidão a Luís XVI, pela sua contribuição à independência dos Estados Unidos. Por se opor, até o fim, à execução do rei, incorreu na hostilidade dos jacobinos. Foi primeiro expulso da Convenção e, depois, encarcerado como estrangeiro; permaneceu na prisão durante todo o tempo em que Robespierre esteve no poder – e, ainda, alguns meses mais. A responsabilidade disso cabia só em parte aos franceses; o Ministro americano, Governador Morris, também teve a sua parte de culpa. Era federalista e colocou-se ao lado da Inglaterra, contra a França; tinha, ademais, velho ressentimento pessoal contra Paine, por haver este denunciado os negócios de um seu amigo corrupto, durante a Guerra da Independência. Alegou que Paine não era americano e que, assim, nada podia fazer por ele. Washington, que estava secretamente negociando o tratado de Jay com a Inglaterra, não lamentou que Paine se encontrasse numa situação em que não era possível esclarecer o governo francês quanto à sua opinião reacionária na América. Paine escapou da guilhotina por acaso, mas quase morreu de enfermidade. Por fim, Morris foi substituído por Monroe (o da “Doutrina”), que providenciou imediatamente a sua soltura, levou-o para a sua própria casa e, durante dezoito meses de cuidados e carinho, restaurou- lhe a saúde.

Paine não soube quão grande foi o papel desempenhado por Morris em seus infortúnios, mas jamais perdoou a Washington. Depois da morte deste último, sabendo que ia ser feita uma estátua do grande homem, enviou ao seu escultor os seguintes versos:

Tome da pedreira mais fria, mais dura,

E ela não precisará ser trabalhada: é Washington. Mas se a cinzelar, que o golpe seja rude,

E, em seu coração, grave: Ingratidão.

Isso não foi publicado, mas, em 1796, uma longa e áspera carta veio à luz, terminando com estas palavras:

“E quanto a vós, Sir, traidor na amizade privada (pois que assim o fostes comigo, e isso numa ocasião de perigo) e hipócrita na vida pública, o mundo ficará perplexo, ao decidir se sois um apóstata ou um impostor; se abandonastes os bons princípios ou se jamais os tivestes”.

Para aqueles que conhecem apenas o Washington escultural da legenda, essas talvez possam parecer palavras por demais violentas. Mas 1796 foi o ano da primeira disputa da Presidência entre Jefferson e Adams, na qual todo o prestígio de Washington foi lançado na balança a favor deste último, apesar de sua crença na monarquia e na aristocracia; ademais, Washington estava tomando posição ao lado da Inglaterra contra a França, e fazendo tudo que estava ao seu alcance para impedir a divulgação dos princípios republicanos e democráticos aos quais devia a sua própria elevação. Essas razões públicas, aliadas a um ressentimento pessoal muito sério, mostram que as palavras de Paine não deixavam de ter justificação.

Talvez pudesse ter sido mais difícil a Washington deixar Paine definhando na prisão, se aquela criatura temerária não houvesse passado os seus últimos dias de liberdade a dar expressão literária às opiniões teológicas que ele e Jefferson compartilhavam com Washington e Adams, os quais, todavia, tinham todo o cuidado em evitar quaisquer confissões públicas pouco ortodoxas. Prevendo sua prisão, Paine entregou-se à tarefa de escrever A Idade da Razão, da qual terminou a Primeira Parte seis horas antes de haver sido detido. Esse livro escandalizou os seus contemporâneos, mesmo muitos dos que concordavam com a sua política. Hoje em dia, à parte alguns poucos trechos de mau gosto, há muito pouca coisa com a qual a maioria do clero não concordaria. No primeiro capítulo, diz ele:

“Acredito num único Deus, e nada mais; e espero que haja felicidade além desta vida”.

“Acredito na igualdade entre os homens, e creio que os deveres religiosos consistem em fazer-se justiça, em afetuosa bondade e em procurar tornar felizes os nossos semelhantes”.

Estas não eram palavras vazias. Desde o momento de sua primeira participação na vida pública – o seu protesto contra a escravidão em 1775 – até o dia de sua morte, ele se opôs, coerentemente, a todas as formas de crueldade, quer praticada pelos seus correligionários, quer pelos seus adversários. O Governo da Inglaterra, naquela época, era uma impiedosa oligarquia, usando do Parlamento como um meio de rebaixar o padrão de vida das classes mais pobres; Paine advogou uma reforma política como constituindo o único remédio para tal abominação – e teve de fugir para salvar a vida. Na França, por se opor ao desnecessário derramamento de sangue, foi lançado à prisão, escapando por pouco à morte. Na América, por se opor à escravidão e defender os princípios da Declaração da Independência, foi abandonado pelo governo num momento em que mais precisava de seu apoio. Se, como ele afirmava e como muitos dentre nós acreditam, a verdadeira religião consiste em “fazer-se justiça, em afetuosa bondade e em procurar tornar felizes os nossos semelhantes”, não havia um, sequer um, entre os seus adversários, que tivesse o direito de ser considerado como homem religioso.

A maior parte de A Idade da Razão consiste em crítica ao Antigo Testamento, de um ponto de vista moral. Pouquíssimas pessoas encarariam hoje os massacres de homens mulheres e crianças registrados no Pentateuco e no Livro de Josué como modelos de virtude, mas, na época de Paine, considerava-se ímpio criticar os israelitas, quando o Antigo Testamento os aceitava. Muitos religiosos piedosos responderam às acusações de Paine. Destes, o mais liberal era o Bispo de Llandaff, que chegou a ponto de admitir que algumas partes do Pentateuco não haviam sido escritas por Moisés, e que alguns dos Salmos não tinham sido compostos por David. Devido a tais concessões, incorreu na hostilidade de George III e perdeu toda a oportunidade de ser transferido para um bispado mais rico. Algumas das respostas dos bispos a Paine são curiosas. Na A Idade da Razão, por exemplo, Paine ousa duvidar de que Deus haja realmente ordenado que todos os homens e todas as mulheres casadas existentes entre os midianitas devessem ser mortos, poupando-se apenas as donzelas. O bispo redargüiu que as donzelas não foram poupadas para fins imorais, como Paine havia insinuado, mas sim como escravas, coisa que não poderia suscitar nenhuma objeção de ordem moral. O ortodoxo de nossos dias esqueceu como era a ortodoxia há cento e quarenta anos. Esqueceu, ainda mais completamente, de que foram homens como Paine que, diante da perseguição, fizeram com que fossem abrandados os dogmas, com o que a nossa época se beneficia. Mesmo os quakers rejeitaram o pedido de Paine para que o sepultassem em seu cemitério, embora um agricultor quaker fosse uma das poucas pessoas que lhe acompanharam o corpo até o túmulo.

Depois da A Idade da Razão, a obra de Paine deixou de ser importante. Durante longo tempo, esteve muito doente; ao restabelecer-se, não viu finalidade alguma em permanecer na França do Diretório e do Primeiro Cônsul. Napoleão não o tratou mal, mas, naturalmente, não tinha trabalho algum para ele, salvo como um possível agente de uma rebelião democrática na Inglaterra. Começou a sentir-se saudoso da América, lembrando-se de seu sucesso e da sua popularidade naquele país, e desejando ajudar os jeffersonianos contra os federalistas. Mas o receio de que os ingleses o capturassem, os quais, certamente, o enforcariam, fez com que permanecesse na França até o Tratado de Amiens. Por fim, em outubro de 1802, desembarcou em Baltimore e escreveu imediatamente a Jefferson (então presidente):

Cheguei aqui sábado, procedente do Havre, após uma viagem de sessenta dias. Tenho vários caixotes contendo modelos rodas, etc.. e, logo que consiga retirá-los de bordo e despachá-los para Georgetown, irei prestar-lhe os meus respeitos. De V. Ex.ª, cidadão grato.

Thomas Paine.

Ele não tinha dúvida de que todos os seus velhos amigos, salvo os que eram federalistas, o receberiam cordialmente. Mas havia uma dificuldade: Jefferson tivera uma luta árdua para chegar à Presidência e, durante sua campanha política, a arma mais efetiva usada contra ele – e usada, inescrupulosamente, por ministros de todas as denominações religiosas – fôra a acusação de infidelidade. Seus adversários exageravam a intimidade existente entre ele e Paine, referindo-se a ambos como “os dois Toms”. Vinte anos depois, Jefferson estava ainda tão impressionado com o fanatismo de seus compatriotas, que respondeu a um ministro unitário que desejava publicar uma de suas cartas: “Não, meu caro senhor, de modo algum!... Preferiria antes empreender a tarefa de procurar fazer com que as cabeças malucas dos internados num manicômio parecessem sensatas a tentar insuflar a sensatez na cabeça de um adepto de Atanásio... Poupe-me, pois, da fogueira de Calvino e de sua vítima Servetus”. Não é de estranhar-se que, ao verem-se ameaçados do destino de Servetus, Jefferson e seus correligionários se tenham mostrado cautelosos quanto a uma associação demasiado íntima com Paine. Este, foi tratado cortesmente e não tinha razão de queixa, mas as velhas e cordiais amizades estavam extintas.

Em outros círculos, saiu-se ainda pior. O Dr. Rush, de Filadélfia, um de seus primeiros amigos americanos, nada queria com ele: “Seus princípios – escreveu o Dr. Rush – defendidos em a sua A Idade da Razão, eram-me tão ofensivos que não quis renovar minhas relações com ele”. Em sua própria vizinhança, foi inteiramente excluído, recusando-se-lhe lugar na diligência que a servia; três anos antes de sua morte, não lhe permitiram votar, sob alegação de que era estrangeiro. Foi acusado, falsamente, de imoralidade e intemperança, passando os seus últimos anos na solidão e na pobreza. Morreu em 1809. Quando se achava agonizante, dois clérigos invadiram-lhe o quarto e procuraram convertê-lo, mas ele disse, simplesmente: “Deixem-me em paz. Bom dia!” Os ortodoxos, todavia, inventaram um mito quanto à sua retratação na hora da morte, na qual se acreditou amplamente.

Sua fama póstuma foi maior na Inglaterra do que na América. A publicação de seus trabalhos era, naturalmente, ilegal, mas foi feita repetidamente, embora muita gente fosse parar na prisão devido a tal crime. O último processo, nesse sentido, foi o de Richard Carlile e sua mulher, em 1819: ele foi condenado a três anos de prisão e à multa de mil e quinhentas libras; ela, a um ano de prisão e à multa dê quinhentas libras. Foi nesse ano que Cobbett levou os despojos de Paine para a Inglaterra e lá estabeleceu a sua fama como um dos heróis na luta pela democracia na Inglaterra. Cobbett, todavia, não deu aos despojos um lugar de repouso permanente. “O monumento que Cobbett tinha em vista – diz Moncure Conway1, – jamais foi erigido”. Houve muita agitação parlamentar e municipal. Um pregoeiro público de Bolton foi preso, durante nove semanas, por proclamar a chegada dos restos mortais de Paine. Em 1836, os ossos passaram de Cobbett para as mãos de um destinatário (West). Tendo o Lorde Chanceler se recusado a considerá-los como bens públicos, foram os mesmos guardados por um velho trabalhador braçal, até que, em 1844, foram parar nas mãos de B. Tilley, movelheiro, residente em 13 Bedford Square, Londres... Em 1854, o Reverendo R. Ainslie (unitário) disse a E. Truelove que estavam em seu poder “o crânio e a mão direita de Thomas Paine”, mas esquivou-se das pesquisas subseqüentes. Hoje, não existem quaisquer vestígios de seus despojos, nem mesmo do crânio e da mão direita.

A influência de Paine no mundo foi dupla. Durante a Revolução Americana, inspirou entusiasmo e confiança, contribuindo muito, assim, para facilitar a vitória.

Na França, sua popularidade foi passageira e superficial, mas, na Inglaterra, iniciou a tenaz resistência de radicais plebeus ante a longa tirania de Pitt e Liverpool. Suas opiniões sobre a Bíblia, conquanto escandalizassem mais os seus contemporâneos do que o seu unitarismo, eram tais que poderiam ser hoje manifestadas por um arcebispo, mas os seus verdadeiros adeptos foram os homens que trabalharam no movimento que partiu dele – aqueles a quem Pitt encarcerou, aqueles que sofreram devido à vigência dos “Six Acts”, os partidários de Owen, os cartistas, os sindicalistas e os socialistas. A todos esses campeões dos oprimidos, deixou ele um exemplo de coragem, clemência e sinceridade. Quando se achavam em jogo questões de interesse público, esquecia-se da prudência pessoal. O mundo decidiu, como ocorre, em geral, em tais casos, castigá-lo pela sua falta de egoísmo; até hoje, sua fama é menor do que teria sido se seu caráter fosse menos generoso. Uma certa sabedoria mundana é necessária até mesmo para obter-se elogios pela sua ausência.

NOTA

1.Sua biografia de Paine, bem como a edição de suas obras, constituem um monumento de paciente dedicação e meticulosas pesquisas.

 

AS PESSOAS DISTINTAS

Publicado, pela primeira vez, em 1931

Pretendo escrever um artigo em louvor das pessoas distintas. Mas o leitor poderá desejar saber, primeiro, quais são as pessoas que considero distintas. Chegar-se à sua qualidade essencial talvez possa ser um tanto difícil, de modo que começarei por enumerar certos tipos que se enquadram na classificação acima. As tias solteironas são invariavelmente distintas, de maneira especial, claro, quando são ricas; as ministras religiosas são distintas, exceto aqueles raros casos em que fogem para a África do Sul com uma jovem pertencente ao coro, depois de fingir tentar suicidar-se. As jovens, lamento dizê-lo, raramente são distintas, hoje em dia. Quando eu era jovem, a maioria delas o era bastante – o que vale dizer que compartilhavam das opiniões de suas mães, não apenas quanta ao que se referia aos assuntas correntes, mas, o que é mais notável, quanta ao que dizia respeita às pessoas, mesmo aos rapazes. Diziam “Sim, mamãe”, “Não, mamãe”, nos momentos apropriados; amavam o pai porque era seu dever fazê-lo, e a mãe porque esta as mantinha afastadas dos mais leves sinais de pecado. Ao ficar noivas, apaixonavam-se com decorosa moderação; casadas, reconheciam como seu dever amar os seus maridos, mas davam a entender às outras mulheres que esse era um dever que cumpriam com grande dificuldade. Tratavam com delicadeza o sagro e a sagra, embora tornassem claro que uma pessoa menos cônscia de seus deveres não o teria feito; não falavam desdenhosamente das outras mulheres, mas contraíam os lábios de maneira que dessem a entender o que poderiam ter dito delas, não fosse a sua caridade angelical. Este tipo é o que se chama uma mulher pura e nobre. Mas – ai de nós! – tal tipo só existe hoje entre as senhoras idosas.

Por misericórdia, as que ainda hoje existem têm grande poder: controlam a educação, ande conseguem, não sem êxito, preservar um padrão vitoriano de hipocrisia; dominam a legislação quanto ao que concerne às chamadas “questões morais”, criando e patrocinando, assim, a grande profissão do contrabando; providenciam para que os jovens que escrevem para os jornais manifestem antes as opiniões das simpáticas senhoras idosas do que as suas próprias, alargando, assim, o escopo do estilo dos jovens e a variedade de sua imaginação. Mantêm vivos muitos prazeres que, de outra modo, acabariam rapidamente devido ao tédio: o prazer, por exemplo, de ouvirem-se palavras inconvenientes no palco, ou de ver-se que há uma quantidade ligeiramente maior de peles nuas do que habitualmente. Acima de tudo, conservam vivos os prazeres da caça. Em meio de uma população campestre homogênea, tal como a de um condado inglês, os indivíduos são condenados a caçar raposas; isto é dispendioso e, às vezes, até mesmo perigoso. Ademais, a raposa não pode explicar muito claramente o quanto lhe desagrada ser caçada. Sob todos esses aspectos, a caça às criaturas humanas constitui melhor esporte, mas, se não fosse pelas pessoas distintas, seria difícil caçá-las tendo-se a consciência tranqüila. Aqueles a quem as pessoas distintas condenam são caça permitida; ao seu brada de “Tally-ho!”, caçadores reúnem-se, e a vítima é perseguida, senda levada à prisão ou à morte. É esporte particularmente bom quando a vítima é mulher, já que isso satisfaz a inveja das mulheres e a sadismo dos homens. Conheço, neste momento, uma mulher estrangeira que vive, na Inglaterra, numa união feliz, embora extralegal, com um homem a quem ama e que também a ama; infelizmente, suas opiniões políticas não são tão conservadoras quando se poderia desejar, embora sejam meras opiniões, a respeito dos quais ela nada faz. As pessoas distintas, porém, valeram-se dessa desculpa para açular contra ela a Scotland Yard, e deverá ser mandada de volta ao seu país, ande passará fome. Tanto na Inglaterra como nos Estados Unidos, o estrangeiro constitui uma influência moral degradante, e todos nós temos uma dívida de gratidão para com a polícia, pelo cuidada que tem em procurar fazer com que somente estrangeiras excepcionalmente virtuosas tenham permissão para residir entre nós.

Não se deve supor que todas as criaturas distintas sejam mulheres, embora, naturalmente, seja mais comum à mulher que ao homem o ser distinto. À parte os ministros religiosos, existem muitos outros homens distintos. Aqueles, por exemplo, que fizeram grandes fortunas e se afastaram dos negócios a fim de gastar suas fortunas em obras de caridade. Os magistrados também são, quase que invariavelmente, criaturas distintas. Quando eu era jovem, lembro-me de ter ouvido uma mulher distinta dizer, como argumento contra o castigo capital, que um carrasco dificilmente poderia ser um homem educado. Jamais conheci qualquer carrasco pessoalmente, de modo que não me foi possível verificar esse argumento empiricamente. Conheci uma senhora, porém, que conheceu num trem um carrasco sem saber de quem se tratava e que, ao oferecer-lhe uma manta de viagem, pois que fazia frio, ouviu dele o seguinte comentário: “Oh, minha senhora! Não faria isso, se soubesse quem sou”, o que parece mostrar que ele era uma criatura distinta, afinal de contas. Este, porém, deve ter sido um caso excepcional. O carrasco de Barnaby Rudge, de Dickens, que, positivamente, não é distinto, talvez seja mais típico.

Não penso, todavia, que devamos concordar com a mulher distinta a que me referi há pouco, e que condenava o castigo capital simplesmente porque era possível que o carrasco não fosse um homem educado. Para se ser uma pessoa fina é necessário que estejamos protegidos do rude contato com a realidade, e não se pode esperar que aqueles que se encarregam de tal proteção possam compartilhar da finura daqueles a quem protegem. Imagine-se, por exemplo, o naufrágio de um transatlântico que transportasse grande número de trabalhadores de cor; as passageiras da primeira classe, todas elas, presumivelmente, senhoras distintas, serão salvas em primeiro lugar, mas, para que tal possa acontecer, deve haver homens que impeçam que os trabalhadores de cor invadam todos os escaleres, e é pouco provável que esses homens sejam bem sucedidos apelando a métodos delicados. As mulheres que foram salvas, logo que estejam em segurança, começaram a sentir pena dos pobres trabalhadores que morreram afogados, mas os ternos sentimentos de seus corações só se tornaram possíveis devido aos homens rudes que as defenderam.

Em geral, as pessoas requintadas deixam o policiamento do mundo entregue a mercenários, pois acham que esse não é trabalho que uma criatura verdadeiramente fina desejasse empreender. Há, no entanto, um campo em que tais pessoas não delegam poderes, isto é, o campo da calúnia e do escândalo. Há pessoas que podem ser colocadas na hierarquia da finura devido ao poder de suas línguas. Se A fala contra B, e B fala contra A, concordar-se-á, em geral, na sociedade em que vivem, que uma delas está exercendo um dever público, enquanto que a outra está agindo apenas por despeito. A que está exercendo o dever público é aquela que é a mais distinta das duas. Assim, por exemplo, a diretora de uma escola é mais distinta do que uma sua assistente, mas uma dama que faz parte do conselho diretor da escola é mais distinta do que qualquer uma das duas. Mexericos bem dirigidos podem facilmente fazer com que a vítima perca o seu ganha-pão, mas mesmo que não se verifique esse resultado extremo, pode transformar num paria um indivíduo. É, por conseguinte, uma grande força para o bem, e devemos ser gratos de que sejam as pessoas distintas que a manejam.

A característica principal das pessoas finas é a prática louvável de aperfeiçoar a realidade. Deus fez o mundo, mas as pessoas requintadas acham que elas poderiam ter feito melhor tal trabalho. Existem muitas coisas, na obra Divina, que seria blasfêmia desejar-se fossem feitas de outro modo, mas às quais a gente pode muito bem referir-se. Religiosos têm afirmado que se os nossos primeiros pais não houvessem comido a maçã, a raça humana teria sido provida de alguma vegetação inocente, como Gibbon a chama. O desígnio Divino, a este respeito, é, certamente, misterioso. Está muito bem que o encaremos, como os religiosos acima mencionados o fazem, como um castigo pelo pecado, mas a dificuldade, quanto a essa opinião, é que, embora isso possa ser um castigo para as pessoas distintas, não o é – ai de nós! – para as outras, que o acham bastante agradável. Dir-se-ia, assim, que haviam feito com que o castigo caísse em lugar errado. Um dos objetivos principais das pessoas distintas é, sem dúvida, reparar essa injustiça não premeditada. Procuram fazer com que o modo de vegetação biologicamente ordenado seja praticado quer furtiva, quer friamente, e que aqueles que o praticam furtivamente se encontrem, quando descobertos, entre pessoas refinadas, devido ao dano que o escândalo poderá causar-lhes. Procuram fazer também com que se saiba, de um modo decente, o mínimo possível sobre o assunto; procuram fazer com que o censor proíba livros e peças que se refiram ao assunto, salvo quando dão motivo a risadinhas esprimidas e maldosas. Nisso, são bem sucedidos onde quer que consigam controlar as leis e a polícia. Não se sabe porque razão Deus fez o corpo humano assim como é, já que se deve supor que a onipotência poderia tê-la feito de tal modo que não chocasse as pessoas requintadas. Contudo, talvez haja uma boa razão para isso. Desde o advento da indústria têxtil, sempre houve na Inglaterra uma estreita aliança entre os missionários e o comércio algodoeiro, pois que os missionários ensinam os selvagens a cobrir o corpo humano, aumentando, assim, as encomendas de tecidos de algodão. Se nada houvesse de vergonhoso quanto ao que concerne ao corpo humano, o comércio de tecidos teria perdido essa fonte de lucros. Este exemplo mostra que não devemos jamais recear que a disseminação da virtude diminua os nossos lucros.

Quem quer que haja inventado a expressão “a verdade nua”, percebeu uma importante conexão lógica. A nudez é chocante para todas as pessoas honestas – como o é, também, a verdade. Pouco importa qual seja o nosso setor de atividade: descobriremos logo que a verdade é algo que as pessoas finas se recusam a aceitar em sua consciência. Sempre que tive a infelicidade de estar num tribunal, durante o julgamento de algum caso a respeito do qual eu tivesse algum conhecimento particular, surpreendia-me o fato de que nenhuma verdade, por mais crua que fosse, tinha permissão de atravessar aqueles augustos portais. A verdade que penetra no recinto de um tribunal não é a verdade nua, mas a verdade em vestes palacianas, a ocultar todas as suas partes menos decentes. Não digo que isto se aplique ao julgamento de crimes sem rebuços, tais como o assassínio ou o roubo, mas aplica-se a todos aqueles em que entra algum elemento de preconceito, como nos julgamentos políticos, ou nos julgamentos por conduta obscena. Creio que, a este respeito, a Inglaterra é pior do que a América, pois que a Inglaterra levou à perfeição, por meio de sentimentos de decência, o controle invisível e meio inconsciente de tudo o que é desagradável. Se alguém quiser se referir, num tribunal, a um fato pouco comum, verificará que isso é contrário às leis processuais.

 

                                                                                            Bertrand Russel

 

 

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Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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