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O Machado Denunciante / Erle Stanley Gardner
O Machado Denunciante / Erle Stanley Gardner

 

 

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O Machado Denunciante

 

Destruidora de Lares 

            Ao sair do elevador e meter pelo corredor abaixo, o velho ambiente familiar apoderou-se de mim e fez-me recuar ao primeiro dia em que fizera aquele percurso, à procura de emprego.

            Nesse tempo, o letreiro da porta dizia: B. Cool, Investigações Confidenciais. Agora, em 1944, dizia: Cool & Lam, com o nome de B. Cool a um canto e o de Donald Lam em baixo, no outro. Havia algo de tranquilizador em ver o meu nome na porta. Era como se tivesse realmente qualquer coisa a que regressar.

            Empurrei a porta. Elsie Brand martelava o teclado da máquina de escrever. Virou a cabeça, olhou por cima do ombro e, ato contínuo, estampou-se-lhe no rosto o sorriso de boas vindas com o qual tranqüilizamos os clientes nervosos que procuram um detetive particular.

            Mas, ato contínuo também, essa expressão desapareceu-lhe do rosto, como se a arrancasse, e os seus olhos dilataram-se.

            - Donald!

            - Olá, Elsie.

            - Donald! Meu Deus, como me alegra ver-te! Mas donde vieste?

            - Dos Mares do Sul e de vários outros lugares.           

            - Quanto tempo vais... Quando tens de regressar?

            - Não tenho de regressar.

            - Nunca mais?

            - Provavelmente, não. Marcaram-me um exame médico para daqui a seis meses.

            - Que aconteceu?

            - Vírus... vírus tropicais. Não haverá azar se levar as coisas com calma durante uns tempos, viver num clima frio e não me excitar demasiado. A Bertha está?

            Inclinei a cabeça na direção do gabinete em cuja porta se lia: B. Cool, Particular. Elsie acenou afirmativamente.

            - Como vai ela?

            - Como sempre.

            - Quanto a peso?

            - Mantém-se nos 75 kg e dura como arame farpado.

            - Tem ganhado dinheiro?

            - Ganhou, durante algum tempo, e depois parece que encalhou. As coisas não têm corrido muito bem, ultimamente. Mas creio que será melhor discutires esse assunto pessoalmente com ela.

            - Passaste todo o tempo da minha ausência aí sentada a martelar nas teclas?

            - Não, claro - respondeu, a rir.

            - Que queres dizer?

            - Quero dizer que passei apenas oito horas por dia.

            - Parece que também encalhaste, hem? Pensei que tivesses abandonado o emprego e entrado para uma fábrica de aviões.

            - Não recebeste as minhas cartas?

            - Não diziam nada acerca de permaneceres no emprego.

            - Pensei que não precisava dizer nada.

            - Por quê?

            - Não sei - respondeu, evitando o meu olhar. - Creio que é a minha contribuição para o esforço de guerra.

            - Lealdade ao emprego?

            - Não ao emprego na medida em que... Oh, não sei, Donald! Tu estavas longe, a combater e... enfim, desejei fazer o que pudesse para manter a firma de pé.

            O besouro do gabinete deu sinal de vida. Elsie levantou o auscultador do telefone, ligou para o gabinete de Bertha Cool e disse:

            - Pronto, Mrs. Cool.

            Bertha estava tão furiosa que a sua voz trasbordava do auscultador e eu ouvia as suas palavras ásperas e furiosas, no lugar onde me sentara:

            - Elsie, já lhe disse que só falasse com os clientes o tempo necessário para saber o que pretendem e depois me chamasse. Quem fala aqui sou eu!

            - Não se trata de um cliente, Mrs. Cool.

            - Quem é?

            - Um... um amigo.

            A voz de Bertha subiu uma oitava completa:

            - Meu Deus, pago-lhe para ter soirees sociais no escritório ou para fazer um pouco de trabalho de vez em quando? Com a breca, um amigo!... Um... Eu vou já

resolver isso!

            Bertha repôs o auscultador no descanso com tal força que receei arrancasse o telefone pelas raízes. Ouvimos dois passos rápidos e, a seguir, a porta abriu-se de repelão e Bertha parou no limiar, com os olhos pequenos a coruscar de ira e o queixo forte espetado para frente.

            Olhou rapidamente na minha direção e depois avançou para mim como um couraçado a tentar abalroar um submarino. A meio do caminho, porém, os seus olhos conseguiram transmitir o recado ao cérebro colérico.

            - Oh, seu diabinho! - exclamou e estacou, como que pregada ao chão.

            Por momentos viu-se que estava contente por me ver, mas depois tentou dominar-se. Não permitiria que ninguém percebesse isso! Virou-se bruscamente para Elsie e perguntou-lhe:

            - Por que raio não me disse?

            - Estava a tentar, quando a senhora desligou - respondeu Elsie, acanhada. - Ia dizer-lhe que...

            - Ora! - rosnou Bertha, remetendo-a ao silêncio, e voltou-se de novo para mim: - Espanta-me que não tivesse mandado um telegrama.

            Utilizei o único argumento que faria efeito na mente de Bertha:

            - Telegramas custam dinheiro.

            Mas nem isso fez qualquer mossa, no estado de irritação em que ela se encontrava:

            - Bem, podia ter mandado uma dessas mensagens turísticas, que são mais baratas. Entra por aqui dentro sem avisar e...

            Bertha calou-se, de olhos fixos no painel de vidro fosco da porta do corredor. A cabeça e os ombros de uma figura feminina recortavam-se, em silhueta, no vidro. Era uma mulher elegante e esbelta, visivelmente jovem, e fosse por se tratar de um maneirismo, fosse pelo modo como parara a cabeça ligeiramente inclinada para o lado dava-lhe uma aparência graciosa.

            - Raios partam! - resmungou Bertha. - Os clientes apanham-me sempre fora do gabinete. Tem pouca dignidade, dá a impressão de que não temos que fazer.

            Tirou uma rima de papéis da secretária de Elsie, assumiu uma «pose» desembaraçada e começou a passar revista à papelada. Mas a visitante não entrou. Decorreram longos segundos, que pareceram minutos, durante os quais a silhueta permaneceu recortada no vidro fosco. Depois, bruscamente, a sombra desapareceu pelo corredor fora.

            Bertha Cool atirou novamente com os papéis para cima da secretária.

            - Aí tem como as coisas têm corrido ultimamente! A fedunciazinha é muito capaz de ir até ao fundo do corredor e contar os seus problemas à Transcontinental Detetive Agency.

            - Anime-se, Bertha! Talvez ela esteja apenas nervosa e volte.

            - Bem, houve qualquer coisa que não lhe agradou - resmungou a minha sócia. - Parecia toda feita para entrar e depois não entrou. Não lhe pareceu um escritório onde se trabalha... Elsie, comece a martelar nessa máquina. Donald venha para o gabinete. Lembre-se, Elsie, de que se ela entrar estará nervosa e as fulanas daquele tipo não esperam. Sentar-se-á um momento, depois fingirá que se esqueceu de qualquer coisa, levantar-se-á e pôr-se-á na alheta, e nunca mais lhe poremos os olhos em cima. Usava um chapelinho posto ao lado, com uma...

            -Tive ocasião de reparar bem na sua sombra - disse Elsie.

            - Ótimo. Assim que ela entrar, avise-me. Não perca tempo, pegue logo no telefone. No fim de contas, não posso ir para o corredor e agarrá-las, como é costume fazer-se quando um cliente pára defronte de uma casa de prego. Indecisão... Aí está uma coisa que nunca consegui compreender. Se uma pessoa pensa fazer isto ou aquilo, porque não o faz? Por que diabo há-de avançar, e parar, e voltar para trás, e estar com hesitações? Donald, entre, deixe a Elsie voltar a martelar as teclas.

            Elsie Brand lançou-me um olhar serenamente divertido e depois começou a escrever à máquina. Bertha Cool enfiou a mão grande e forte no meu braço e acrescentou:

            - Venha, Donald, entre no gabinete e conte-me o que vem a ser isto tudo.

            Entramos no gabinete particular de Bertha Cool e ela contornou a secretária e deixou-se cair na cadeira giratória, que soltou o queixume habitual. Quanto a mim, sentei-me no braço de uma grande poltrona excessivamente estofada.

            Bertha mediu-me de alto a baixo e comentou:

            - Enrijou, Donald.

            - Enrijaram-me.

            - Quanto pesa agora?

            - Sessenta e dois.

            - Parece mais alto. ,

            - Mas não estou. É da maneira como me obrigaram a estar direito.

            Seguiu-se um momento de silêncio. Bertha estava de ouvido atento aos ruídos do escritório contíguo, mas a única coisa que se ouvia era o barulho ininterrupto da máquina de escrever de Elsie Brand.

            - O negócio não vai bem? - perguntei.

            - Vai péssimo! - resmungou Bertha.

            - Mas que se passa?

            - Diabos me levem se sei. Antes de você aparecer, ia ganhando a vida com ninharias, com uma quantidade de casos insignificantes do gênero de seguir pessoas, divórcios, etc. Em grande parte, governava-me com o trabalho de relações domésticas em que as outras agências não pegavam. A seguir veio você. Num abrir e fechar de olhos, lançou-me no trabalho em grande estilo: mais dinheiro, mais risco, mais excitação, mais clientes... Depois resolveu alistar-se na Marinha e, durante algum tempo, fui-me agüentando bem. Mas agora não sei o que aconteceu, não tenho um caso que valha a pena há um ano.

            - Mas por quê? As pessoas já não vêm cá?

            - Lá vir, vem, mas parece que não as convenço. Elas não procedem à minha maneira e eu não sou capaz de proceder à sua. Sou uma espécie de híbrido.

            - Não é capaz de proceder à minha maneira? Que significa isso?

            - Olhe para essa cadeira onde está sentado. É um bom exemplo.

            - Não percebo.

            - Quando se tornou sócio da firma, gastou cento e vinte e cinco dólares nessa cadeira. Segundo a sua teoria, não se pode conquistar a confiança de um cliente quando ele está constrangido nem levar uma pessoa a fazer confidências quando ela está desconfortável. Deixa-se o cliente afundar-se nas profundezas dessa cadeira e é como se ele estivesse no pico do mundo, numa cama de penas. Recosta-se, descontrai-se e começa a falar.

            - E não acontece assim?

            - Consigo, parece que sim, mas comigo não funciona.

            - Talvez você não faça as pessoas sentirem-se confortáveis.

            Os olhos de Bertha cintilaram, coléricos.

            - E por que raio havia de ser eu a fazer isso? Pagámos cento e vinte e cinco dólares pela cadeira, para que ela o fizesse. Se pensa que vou esbanjar cento e vinte e cinco dólares só para...

            Calou-se, no meio da frase.

            Apurei também o ouvido, mas ao princípio não ouvi nada. Depois apercebi-me de que Elsie Brand deixara de escrever à máquina.

            Passado um momento, o telefone de Bertha Cool tocou.

            Bertha arrancou o auscultador do descanso e disse, cautelosa:

            - Sim? - Baixou mais a voz e perguntou: - É a mulher que... Ah, é?!... Como se chama?... Está bem, mande-a entrar.

            Desligou e ordenou-me:

            - Levante-se dessa cadeira. Ela vem aí.

            - Quem?

            - Chama-se Miss Georgia Rushe. Vem entrar e...

            Elsie Brand abriu a porta e disse, como se fizesse uma grande concessão:

            - Mrs. Cool recebê-la-á imediatamente.

            Georgia Rushe devia pesar à volta de 51,5 kg e não era tão nova como me parecera quando avaliara a sua sombra no vidro da porta. Andaria pelos trinta e um ou trinta e dois anos e também não tinha a cabeça inclinada para o lado. Essa impressão que tivéramos, quando parara no corredor, devera-se talvez ao fato de estar a escutar. Bertha Cool sorriu-lhe e perguntou, num tom de voz que escorria melaço:

            - Não se quer sentar, Miss Rushe?

            Miss Rushe olhou para mim. Tinha olhos escuros, emotivos, lábios cheios, zigomas salientes, pele lisa e cor de azeitona e cabelo muito escuro. Pelo modo como olhou para mim dir-se-ia prestes a girar nos calcanhares e a fugir dali para fora.

            - Donald Lam, meu sócio - apressou-se Bertha a apresentar.

            - Oh! - exclamou Miss Rushe.

            - Entre, entre - convidou Bertha, insistente. - Sente-se nessa cadeira, Miss Rushe.

            Mas ela continuou a hesitar. Bocejei demoradamente, sem fazer qualquer esforço para disfarçar, tirei um livro de apontamentos da algibeira e disse, no tom mais natural desta vida:

            - Bem, vou tratar daquele caso de que estávamos a falar... ou - acrescentei, como se a idéia acabasse de me ocorrer, virando-me para Miss Rushe - deseja que assista a isto?

            Falei num tom tanto ou quanto enfastiado, como se mais outro trabalho constituísse apenas mais outra maçada. Ouvi Bertha soltar uma exclamação abafada, furiosa comigo, e preparar-se para dizer qualquer coisa, mas Georgia Rushe sorriu-me e antecipou-se:

            - Creio que gostaria que assistisse. - E foi instalar-se na grande poltrona.

            Bertha sorria, toda derretida.

            - Claro, claro, Miss Rushe. De que se trata?

            - Preciso de ajuda.

            - Bem, é para isso que cá estamos.

            A visitante brincou uns momentos com a malinha, cruzou as pernas e endireitou cuidadosamente a saia, enquanto os seus olhos evitavam os de Bertha. Tinha pernas bonitas.

            - Seja o que for que possamos fazer... - prosseguiu a minha sócia, no mais melífluo dos tons.

            Georgia Rushe continuou a desviar o olhar. Abri o livro de apontamentos e garatujei um bilhete para Bertha Cool: Não se mostre tão interessada. As pessoas querem resultados. Ninguém tem empenho especial em contratar uma detetive calmeirona, a escorrer mel por todos os poros.

            Arranquei a folha e estendi-a a Bertha, por cima da secretária. Georgia Rushe observou-a, enquanto ela pegava no bilhete e o lia.

            Bertha corou, amarrotou o papel, atirou-o para o cesto dos papéis e lançou-me um olhar furioso.

            - Muito bem, Miss Rushe, qual é o seu problema? - perguntei, no mesmo tom casual.

            Georgia Rushe respirou fundo, antes de responder:

            - Não quero ser censurada.

            - Ninguém a censurará.

            - Não quero ouvir lições de moral.

            - Não ouvirá.

            Olhou apreensivamente para Bertha e observou:

            - Uma mulher talvez seja menos tolerante.

            Bertha derreteu-se toda noutro sorriso e começou a dizer, timidamente:

            - Oh, minha querida... - Mas depois lembrou-se de meu bilhete, reassumiu o seu verdadeiro caráter de granadeiro e explodiu, brusca: -Ao diabo com toda essa conversa! Que se passa, afinal?

            - Para começar - respondeu Georgia Rushe, em tom firme, sou uma destruidora de lares.

            - E depois?

            - E depois, Mrs. Cool, não quero ouvir lições de moral quando disser o que fiz.

            - Tem dinheiro suficiente para nos pagar? - indagou Bertha.

            - Claro que tenho, pois de contrário não estaria aqui.

            - Nesse caso, continue a destruir os lares que lhe apetecer, jóia. Que quer que nós façamos? Que procuremos bons lares para você destruir? Podemos encarregar-nos disso.

            Miss Rushe riu-se nervosamente e observou:

            - Ainda bem que encara as coisas desse modo, Mrs. Cool.

            - Ninguém destrói lares, eles é que se destroem a si próprios.

            - Há quase quatro anos que estou com Mr. Crail.

            - Quem é Mr. Crail? - inquiriu Bertha.

            - Ellery Crail, o director da Crail Venetian Blind Company.

            - Já ouvi falar da firma. Há quanto tempo é ele casado?

            - Há oito meses.

            Recostei-me na cadeira e acendi um cigarro.

            - Comecei por trabalhar na secção de pessoal. Nesse tempo, Ellery era casado. A mulher morreu pouco depois de eu ser admitida na firma. A morte da mulher deixou-o muito abalado. Não sei se a amava muito ou pouco, mas sei que sentiu muito a sua falta. É um homem que gosta da sua casa, um calmeirão leal e corajoso, tão justo e franco que nem lhe passa pela cabeça que possam existir pessoas que não sejam como ele.

            Hesitou um momento, soltou um grande suspiro e prosseguiu:

            - Passado algum tempo, começou a refazer-se do primeiro abalo entorpecedor do desgosto e... enfim, começamos a ver-nos um pouco.

            - Quer dizer que saiu com ele? - perguntou Bertha.

            - Jantamos fora os dois uma ou duas vezes.

            - Teatro?

            - Sim.

            - Visita ao seu apartamento?

            - Não.

            - Visita sua ao dele?

            - Não. Não é desse gênero.

            - Quando o conheceu a sua atual mulher?

            - Eu andava estourada, devido a excesso de trabalho. Tivéramos de resolver uma quantidade de problemas. Mr. Crail achou que eu devia gozar umas férias prolongadas e aconselhou-me a ausentar-me um mês. Quando voltei, encontrei-o casado.

            - Meteu-lhe um rente, hem?

            Os olhos de Georgia Rushe coruscaram.

            - Foi vítima de uma pessoa astuta, intriguista, insidiosa, hipócrita, lamecha e dissimulada, se é possível lisonjear uma personalidade negativa de tal jaez chamando-lhe pessoa!

            - Ela obrigou-o a casar depressa, não? - inquiriu Bertha.

            - Sem dúvida nenhuma.

            - Como foi isso?

            - Começou tudo numa noite em que Mr. Crail regressava do trabalho, de automóvel. Ele não vê muito bem à noite e, ainda por cima, estivera a chover e as ruas estavam escorregadias. Mesmo assim, não acredito que a culpa tenha sido inteiramente sua, embora ele pretenda fazer crer que foi. Ia um coupé logo à sua frente, a luz mudou e o coupé parou bruscamente. A luz de travagem não funcionou. Claro que Irma jura que pôs a mão de fora, a indicar que ia parar, mas ela juraria fosse o que fosse que lhe aconchegasse o ninho.

            - Irma é a pequena?

            - É.

             -Que aconteceu?

            - Mr. Crail chocou com a retaguarda do carro dela. Não foi uma pancada muito violenta, do ponto de vista dos estragos causados ao veículo. Cinqüenta dólares chegariam para cobrir os estragos de ambos os automóveis.

            - Ferimentos pessoais? - perguntou Bertha.

            - Uma lesão espinal qualquer. Ellery saltou do automóvel e correu para o da frente, mas assim que viu que era uma mulher que conduzia desatou a pedir desculpa como se o culpado fosse só ele. Irma Begley viu o grande rosto forte de Ellery e os seus olhos compreensivos e decidiu que casaria com ele. Acreditem que não perdeu tempo nenhum!

            - O estratagema da compaixão? - perguntou Bertha.

            - Aparentemente, um bocadinho de tudo. A mulher de Ellery morrera e ele sentia-se só. Habituara-se a depender muito mais de mim do que imaginara, e eu também me ausentara... Mais tarde, encontrei no arquivo a cópia de um telegrama que ele me enviara, a perguntar-me se não poderia encurtar as férias e regressar. Por qualquer razão, o telegrama não me foi entregue. Se fosse, talvez tivesse modificado toda a minha vida. Assim, ele pensou que eu não me dignara, pura e simplesmente, responder.

            Olhei para o relógio e Miss Rushe apressou-se:

            - Bem, Irma Begley mostrou-se muito decente, mas achou que Mr. Crail preferia, com certeza, encarregar-se pessoalmente de mandar reparar o carro, para ter a certeza de que não era explorado, e Ellery achou a sugestão muito leal e atenciosa e, magnanimamente, mandou reparar o maldito carro de ponta a ponta: tudo quanto o mecânico achou deficiente foi arranjado. Depois mandou entregá-lo a Irma, que, entretanto, começara a ter dores de cabeça. Foi ao médico, este radiografou-a e parece que tinha sofrido uma lesão qualquer na espinha. Mas mostrou-se tão corajosa, tão compreensiva e tão modesta no meio de tudo aquilo! «Claro que não deixou de tornar evidente a Ellery que não estava em condições de se manter sem trabalhar e, por isso, ele insistiu em pagar as contas e... Enfim, ninguém sabe exatamente como as coisas se passaram, mas quando regressei do mês de férias encontrei o meu patrão em lua-de-mel!»

            - Há quanto tempo foi isso?

            - Há seis meses.

            -Que aconteceu?

            - Bem, ao princípio o patrão parecia atordoado com a rapidez com que tudo se passara. Sentia-se particularmente embaraçado quando estava comigo, achava que me devia uma explicação qualquer, quanto ao modo como as coisas se tinham passado, mas, sempre cavalheiro, não era capaz de dizer nem uma palavra.

            - Que fez você?

            - Eu estava tão furiosa e tão magoada que decidi não lhe facilitar as coisas, Mrs. Cool. Avisei-o de que me iria embora assim que ele arranjasse alguém para me substituir. Bem, ele não conseguiu arranjar ninguém e, por fim, pediu-me que fizesse o favor de continuar a trabalhar na firma e... enfim, eu continuei.

            - Quando resolveu tornar-se uma destruidora de lares?

            - Para lhe ser franca, Mrs. Cool, não sei. Ao princípio, sentia-me completamente esmagada, tive a impressão de que tudo perdera a razão de ser. Só compreendi até que ponto estava apaixonada por Ellery depois... bem, depois de estar tudo irremediavelmente perdido.

            - Até aí já tinha percebido - redargüiu Bertha. - Estou a tentar apurar os fatos.

            - Enfim, Mrs. Cool, não creio que o pormenor seja importante, pois só veio ao caso incidentalmente. Quis apenas começar por falar disso, pois não desejava que viessem a descobri-lo depois e me caíssem em cima.

            - Mas decidiu conquistar Mr. Crail?

            - Decidi não levantar qualquer obstáculo a que ele me conquistasse.

            - E ele dá alguns indícios de estar disposto a isso?

            - Está atordoado e magoado. É como se vagueasse, perdido, no meio do nevoeiro.

            - E começa a gravitar na sua direção, para que o oriente?

            Georgia Rushe sustentou o olhar de Bertha, ao responder:

            - Serei franca a esse respeito, Mrs. Cool. Creio que ele compreendeu que fez um erro terrível... creio até que o compreendeu muito pouco tempo depois de eu ter regressado.

            - Mas é tão leal que não faz nada para remediar a situação?

            - Exatamente.

            - Mas você pensa que talvez acabe por fazer alguma coisa?

            - Talvez.

            - E se ele fizer, você facilitar-lhe-á as coisas?

            - Aquela vadiazinha astuciosa roubou-mo - respondeu Georgia Rushe, em tom decidido. - Jogou deliberadamente de modo a tê-lo atado de pés e mãos antes de eu regressar. Agora estou disposta a roubar-lho por minha vez.

            - Muito bem, já estamos elucidados quanto aos antecedentes - declarou Bertha. - Conte-nos então o que a preocupa.

            - Sabe alguma coisa acerca do Edifício Stanberry?

            Bertha abanou a cabeça, mas depois disse:

            - Espere um momento... fica na 7.a Rua, não fica?

            - Exatamente. É um prédio de três andares: lojas no rés-do-chão, escritórios no primeiro andar, o Rimley Rendezvous no segundo andar e aposentos para Mr. Rimley e para algum do seu pessoal executivo no terceiro andar.

            - Que se passa com o Edifício Stanberry?

            - Ela quer que Ellery lho compre.

            - Por que o Edifício Stanberry? - perguntei.

            - Não sei, mas creio que tem algo a ver com o clube noturno.

            - Mas que tem o clube noturno susceptível de tornar o edifício um investimento tão maravilhoso?

            - Ignoro. Pittman Rimley tem quatro ou cinco estabelecimentos do gênero espalhados pela cidade. Creio que foi o único a explorar com êxito um serviço de restaurante que à tarde se transforma em ponto de encontros duvidosos e à noite funciona como clube noturno. Apresenta os seus espetáculos de variedades por um sistema de rotação e parece fazer muito bom negócio.

            - Que quer dizer com a expressão «ponto de encontros duvidosos»? - inquiriu Bertha.

            - À tarde as mulheres gravitam para esses tais rendezvous a fim de tomar um cocktail, há música de dança e fazem-se conquistas...

            - Crail tem dinheiro? - perguntei.

            - Suponho que o negócio das persianas tem sido muito lucrativo - respondeu, evasivamente.

            - Ele tem dinheiro?

            - Sim... bastante.

            - E que deseja, ao certo, que façamos?

            - Desejo que descubram o que existe por trás de todo o estratagema. Ela é podre até à medula e eu quero saber o que se passa.

            - Mas isso vai custar-lhe dinheiro - avisou Bertha Cool.

            - Quanto?

            - Duzentos dólares, para começar.

            Georgia Rushe mostrou-se friamente prática:

            - A que me dão esses duzentos dólares direito, ao certo, Mrs. Cool?

            Bertha hesitou.

            - Dão-lhe direito a dez dias de trabalho - especifiquei.

            - Tirando as despesas - apressou-se a minha sócia a corrigir.

            - Que conseguirão descobrir nesse espaço de tempo?

            - Somos detetives e não adivinhos – sentenciou Bertha, secamente. - Como diabo quer que saibamos?

            A resposta pareceu acertada, pois Georgia Rushe abriu a malinha.

            - Ninguém deverá saber que estou por trás disto recomendou.

            Bertha Cool acenou afirmativamente, com os olhinhos gulosos fixos na mala. Georgia Rushe tirou o livro de cheques e Bertha meteu-lhe praticamente a caneta de tinta permanente na mão.

 

Trabalho de Andarilho

            Bertha tirou um cigarro e disse-me:

            - Aí tem como as coisas correm.

            - Não há novidade.

            - Trata-se apenas de um caso insignificante, por conta de uma mulher cheia de dor de cotovelo e com uma idéia exagerada do que uma agência de detetives consegue fazer.

            - Não há novidade. Bertha.

            - Quando você partiu, tinha-nos lançado nos trabalhos importantes e rendosos. Palavra que ainda estou para saber como o conseguia! Pegava no mais insignificante dos casos e, antes de chegar ao fim, ele transformava-se em negócio sério e rendia dinheiro grosso. Mas depois de você partir eu aceitava um caso que parecia importantíssimo e, às duas por três, sem saber como, ficava reduzido a uma insignificância e rendia uma bagatela. Ainda me safei durante uns tempos; dois ou três casos correram como se você cá estivesse. De repente, porém, foi como se o fundo caísse e tem sido um cortejo de ninharias, como esta história de agora.

            - Não se preocupe. Eu encarrego-me deste assunto.

            - Que vai fazer?

            - Consultar o Gabinete de Estatísticas Vitais, apurar o que porventura exista a respeito da presente Mrs. Crail, averiguar onde morava antes de casar, investigar nesse lugar, descobrir onde morou antes e tentar descobrir a razão do seu súbito interesse pelo Edifício Stanberry.

            - Vai ter de dar muito à perna, Donald.

            - É para isso que servem os andarilhos – respondi, e saí.

            Elsie Brand levantou a cabeça da máquina de escrever.

            - Hoje já não volto - informei-a. - Vou investigar um caso. Telefonarei logo à tarde, para saber se há alguma novidade.

            Elsie hesitou um momento, como se desejasse dizer qualquer coisa, mas depois corou muito. Fosse o que fosse que tinha para dizer, não saiu. Girou rapidamente na cadeira e recomeçou a martelar no teclado, para ocultar o embaraço.

            Fui buscar o carro da agência ao parque de estacionamento onde sempre o deixávamos. Os últimos dezoito meses pareciam um sonho. Retomava os fios da vida onde os largara.

            A informação estatística revelou-me que Ellery Crail tinha 38 anos e Irma Begley 27; que Crail já fora casado anteriormente e enviuvara; que Irma Begley nunca fora casada, antes de conhecê-lo, e morara no Latonia Boulevard, 1891.

            Meti-me no carro e dirigi-me a essa morada. Era um modesto prédio de tijolo de três andares, com frontaria de estuque e portal ornamentado. Tinha uma tabuleta que dizia Maplegrove Apartments e um letreiro a avisar que a lotação estava esgotada. Toquei à campainha com a indicação de «gerente» e tive de esperar quase cinco minutos.

            Por fim apareceu-me uma mulher gorda de cerca de quarenta anos, olhinhos pretos astutos, lábios grossos e pele perfeita. Ao princípio, pareceu tão beligerante e assustadora como um grande tanque; mas depois eu sorri-lhe e, passado um momento, ela sorriu também e tornou-se mansa como uma gatinha.

            - Oh, tenho muita pena, mas não há uma única vaga no prédio e...

            - Desejava uma pequena informação acerca de uma mulher que morou aqui.

            - De quem se trata?

            - Miss... Miss... - Fingi que me esquecera do nome, tirei o livro de apontamentos da algibeira, passei o dedo ao longo da página e disse: - Miss Latham... Não, um momento, não é essa. - Percorri mais algumas linhas com o dedo. - Begley, Miss Irma Begley.

            - Morou aqui, de fato, mas casou-se.

            - Sabe com quem?

            - Não sei, embora creia que fez um bom casamento. Era muito pouco comunicativa.

            - A senhora era a gerente do prédio, nessa altura?

            - Era.

            - Sabe alguma coisa a respeito dela? Quem era a família, donde veio para cá, coisas desse gênero?

            - Não. Nem sequer deixou uma morada para lhe mandarmos qualquer correspondência que chegasse, depois de se ir embora. Mais tarde vim a saber que foi aos Correios e tratou pessoalmente disso tudo.

            - Não costuma ser assim, pois não?

            - Não. Geralmente deixam uma morada para enviarmos alguma coisa que venha cá ter.

            - Bem, mas quando alugou o apartamento deve ter dado referências?

            - Oh, sim!

            - Suponho que podemos dar-lhes uma vista de olhos?

            - Como é que se chama? - Sorri-lhe, antes de responder:

            - Não me acreditará.

            - Por quê?

            - O meu apelido é Smith.

            - Não acredito.

            - É raro acreditarem.

            - Não quer entrar, Mr. Smith? ,

            - Obrigado.

            O apartamento da gerente ficava no rés-do-chão, estava excessivamente mobiliado e cheirava a sândalo. Saíam volutas de fumo branco de um queimador de incenso chinês, que se encontrava em cima de uma mesa, no meio da sala. Havia demasiadas fotografias nas paredes, demasiadas cadeiras, demasiadas mesas e demasiadas bugigangas.

            - Não se quer sentar, Mr. Smith?

            - Obrigado.

            Estendi-lhe o maço dos cigarros, ela tirou um e eu acendi-lho.

            - Que deseja saber, ao certo?

            Olhei-a como se não a percebesse.

            - Quero dizer, qual é o objetivo de obter essa informação?

            - Ora essa, eu não sei! Nunca me dizem. Limitam-se a entregar-me uma lista de nomes e a dizer-me que descubra certas coisas. É possível que ela queira fazer um seguro, ou que se trate de alguma conta antiga, ou talvez que tenha herdado dinheiro e pretendam localizá-la para lho entregarem...

            - Era uma rapariga muito decente - afirmou a mulher.

            Soltei uma baforada de fumo e murmurei:

            - Claro, claro.

            - Muito sossegada e metida consigo. Não era nada de festas loucas.

            - Isso é agradável.

            - Não era do tipo de ter contas por pagar.

            - Nesse caso, não se deve tratar de nenhuma conta por pagar.

            - Mas você não sabe de que se trata?

            - Não. Alguém quer saber e a minha profissão é investigar, mais nada. Recebo um dólar por nome e pago as minhas próprias despesas.

            - Eu gostaria de saber umas coisas acerca de certas pessoas...

            - Indique-me os nomes. Claro que teria de comunicá-los ao escritório... Não sei bem como é que eles procedem, há uma importância qualquer a pagar. É necessário garantir determinada quantidade de trabalho no decorrer de um mês, ou de um ano, ou lá do que é, e, evidentemente, eles cobram mais do que um dólar. Essa é apenas a minha parte.

            - Bem; postas as coisas nesse pé, não me valeria de muito procurar essa gente, pois não se pode tirar sangue de um nabo... Deixe-me ver se tenho aqui alguma coisa...

            Abriu a gaveta de uma secretária, tirou um ficheiro e começou a procurar as letras Ba-Be.

            Passados momentos, encontrou a ficha que procurava e tirou-a.

            - Cá está, Irma Begley. Antes de vir para aqui morou na South Fremington Street, 392.

            - Indicou algumas referências?

            - Duas. Benjamin C. Cosgate e Frank L. Glimson.

            - Alguma morada?

            - É uma firma do centro da cidade... e não temos mais informações nenhumas a respeito dela, a não ser que pagava pontualmente a renda e era considerada uma boa inquilina.

            - Excelente, não preciso de mais nada. Muito obrigado.

            - Se conseguir localizar um número suficiente de pessoas por dia, ganha alguma coisa de jeito com esse trabalho.

            - É preciso andar a correr de um lado para o outro.

            - Sim, não tinha pensado nisso. E o fato de ter de pagar as despesas também faz a sua diferença. Que quantidade de informação precisa de obter?

            - A suficiente para eles ficarem a saber o que quer que lhes interessa. Umas vezes é fácil, outras é difícil. Na maior parte dos casos temos de contar com uma média de quarenta e cinco minutos por nome. Bem, ainda tenho mais uns dois nomes nas imediações. Tento agrupá-los todos...

            - Espero que encontre o que procura, Mr. Smith.

            - Muito obrigado.

            Num drugstore consultei a lista telefônica e fiquei a saber que Benjamin C. Cosgate era advogado, que Frank Glimson também e que havia uma firma com o nome de Cosgate & Glimson.

            Comecei a marcar o número, mas pensei melhor e resolvi adiar o telefonema para depois de uma nova saltada ao tribunal.

            - Desta vez procurei no Registro de Ações, Queixosos, e li tantos nomes que quase me ia escapando o que me interessava. Mas lá estava ele: Irma Begley versus Philip E. Cullingdon. Tomei nota do número do processo, disse ao funcionário que era advogado e andava a estudar alguns casos antigos e pedi-lhe a documentação do processo.

            Havia uma pequena queixa muito clara, uma objeção, uma queixa corrigida, uma objeção a uma queixa corrigida e uma nota de não aceitação. Os advogados da queixosa eram Cosgate & Glimson.

            Dei uma vista de olhos à queixa. Dizia que no quinto dia do mês de Abril de 1942, quando a queixosa conduzia um veículo motorizado de forma cuidadosa e conforme com a lei, o acusado, sem o devido ou qualquer respeito pela segurança de outros veículos ou dos seus ocupantes, conduzira tão descuidada, negligente e ilegalmente o seu automóvel numa e ao longo de certa via pública conhecida por Wilshire Boulevard que fora causador de o dito automóvel ter colidido com o veículo conduzido pela queixosa; que, em conseqüência da dita colisão, a queixosa sofrera uma lesão espinal permanente que obrigara ao pagamento de contas de médico no montante de duzentos e cinqüenta dólares, de contas de enfermagem e medicamentos no montante de oitenta e cinco dólares e vinte cêntimos, de contas de raios X no montante de setenta e cinco dólares e de honorários de um especialista no montante de quinhentos dólares; que a queixosa ficara permanentemente lesionada, e que a condução descuidada do automóvel do acusado, como atrás se dissera, era a única e próxima causa da dita lesão. Consequentemente, a queixosa reclamava uma indenização de cinqüenta mil dólares e o pagamento das custas e despesas por ela incorridas no julgamento da ação.

            O processo fora arquivado em 31 de Março de 1943. Tomei alguns apontamentos, entre eles os nomes e as moradas dos advogados do acusado, e procurei na lista telefônica o nome de Philip E. Cullingdon. Encontrei-o mencionado como empreiteiro e copiei o endereço.

            Depois dirigi-me a uma cabina pública, ao fundo do corredor, e liguei para o escritório. Bertha Cool saíra e eu disse a Elsie Brand que passaria pelo Rimley Rendezvous para tomar um cocktail; se surgisse alguma coisa importante, Bertha encontrar-me-ia lá. Elsie perguntou-me como ia a investigação e eu respondi-lhe que fizera um pequeno progresso - nada de sensacional, claro, mas encontrara algumas pistas orientadoras e desliguei.

  

 O “Romley Rendezvous”

            Em certa época, a idéia do «rendezvous» avassalara o país como a peste. Os clubes noturnos tinham passado a fazer bom negócio durante a tarde, servindo mulheres entre os trinta e os quarenta anos desejosas de romance. Algumas delas eram mulheres de maridos ausentes e andavam à caça. Outras, igualmente casadas, enganavam os maridos, e enganavam-se a si próprias, fingindo que tinham andado às compras e haviam «passado por lá» apenas para tomar uma bebida.

            Durante algum tempo, foi uma rica negociata para os clubes noturnos, que descobriram de súbito uma clientela muito lucrativa, de tarde. Mas foi sol de pouca dura. Os homens que por lá andavam não beneficiavam nada os estabelecimentos, a natureza geral do negócio começou a tornar-se conhecida e as duas por três surgiram aborrecimentos.

            A maioria dos clubes começou a adotar normas rígidas: não era permitida a entrada a mulheres sem acompanhante e era proibido saltar de mesa em mesa. Mas o Rimley Rendezvous continuou aberto e, tanto quanto me parecia, não havia quaisquer restrições, o que era interessante.

            Em virtude de o Edifício Stanberry ficar no limite de um bairro comercial congestionado, era difícil encontrar onde estacionar. Havia um parque de estacionamento no meio do quarteirão seguinte e eu dirigia-me para lá quando tive uma aberta. Um táxi saiu do lugar que ocupava defronte da entrada do edifício e descobri um espaço entre a faixa zebrada junto ao passeio, que assinalava a zona de carga e descarga e a praça de táxis, e um grande Cadillac, estacionado logo a seguir. O espaço era apertado, mas eu não tencionava demorar-me e presumi que o grande Cadillac devia pertencer a um dos figurões importantes. Com jeito, lá consegui encaixar o carro da agência, mesmo à justa. Quando me apeei, verifiquei que fora ainda mais à justa do que pensara, mas deixei-o ficar, mesmo assim. O elevador conduziu-me num instante ao Rimley Rendezvous. Uma tênue sugestão de perfume inebriante, carpetes fofas, luzes veladas, música sonhadora e criados rápidos e solícitos - em suma, uma atmosfera de classe clandestina, a que se juntavam segurança e estabilidade. Um ambiente formidável.

            Pedi um scotch com soda, que me serviram num copo ambarino, para que não pudesse notar a palidez da bebida. Pittman Rimley ganharia dinheiro mesmo que pagasse vinte dólares por garrafa de scotch, dado o preço que cobrava e a quantidade de uísque que servia. Na sala, que tinha uma orquestra maravilhosa, viam-se algumas mulheres e uns quantos homens, aqui e ali - o tipo de executivo de cara gorda que ficara depois do almoço de negócios e os indivíduos de rosto impassível e pastilhas compridas, que conservavam o ventre plano e duro e tentavam parecer atores de cinema. A casa nunca fora muito freqüentada pelo grupo etário mais jovem, que não tinha dinheiro para pagar os preços ali cobrados.

            Ouvi uma voz por cima do ombro, uma voz com o timbre da sedução rotineira:

            - Charutos, cigarros?

            Virei-me e deliciei os olhos. Tinha à volta de vinte e três anos e apresentava-se com uma saia que parava uns sete centímetros antes de chegar aos joelhos, um aventalinho branco vaporoso e uma blusa com uma grande gola e um não menor decote em V. No tabuleiro convencional suspenso dos ombros havia o sortido habitual de charutos, cigarros e bombons.

            Paguei um quarto de dólar do dinheiro para despesas de Georgia Rushe por um maço de cigarros, ostensivamente baseado na teoria de que, fazendo-o, poderia arranjar um contacto, mas na realidade porque estava a gostar do cenário.

            A vendedeira tinha irônicos olhos cinzento-claros, que sorriam, num «obrigada» sofisticado, e pareciam sentir uma consideração um tanto ou quanto desprendida, filosófica, pelos homens que gostavam de admirar pernas.

            Em vez de se afastar, ficou à espera, para riscar um fósforo e acender-me o cigarro.

            - Obrigado - agradeci-lhe.

            - Foi um prazer.

            Gostei da voz, mas ela ficou-se pelas três palavras. Sorriu-me de novo e afastou-se.

            Olhei em redor e perguntei a mim mesmo se Mrs. Ellery Crail não se encontraria, acaso, entre os presentes. Não vi, no entanto, nenhuma mulher que me parecesse corresponder à descrição e ao papel por ela representado. Mulheres anêmicas, achacadas, não tinham inclinação para procurar romance à tarde. Os lugares daquele gênero eram freqüentados por mulheres possuidoras de uma consciência sexual inquieta.

            Não havia necessidade de perder o sono por causa daquilo. Tinha de fazer um trabalho de detetive rotineiro, a dez dólares por dia, e não era preciso estar com muita subtileza. Fui à cabina telefônica e liguei para a agência. Bertha continuava ausente. Dei instruções cuidadosas a Elsie Brand:

            - Estou no Rimley Rendezvous, para ver se sei qualquer coisa acerca de uma mulher. Vê as horas, espera Exatamente sete minutos e depois liga para o Rendezvous e pergunta se Mrs. Ellery Crail está. Diz que precisas de lhe falar e que encarreguem um empregado de chamar o seu nome, se não a conhecerem. Este pormenor é importante. Quando a forem chamar, desliga.

            - Mais alguma coisa?

            - Não, mais nada.

            - Queres deixar algum recado para a Bertha?

            - Diz-lhe que estou aqui.

            - Está bem, Donald. Sabe bem ouvir a tua voz.

            - E a tua também. Adeus.

            Voltei para a minha mesa. O criado andava nas imediações, como se eu não estivesse a beber com a velocidade requerida. Acabei, por isso, o scotch e pedi outro. A bebida chegou quando os sete minutos estavam quase a expirar.

            Comecei a olhar à minha volta. O chefe dos criados chamou um dos subalternos, disse-lhe qualquer coisa e o homem acenou afirmativamente e dirigiu-se com toda a serenidade para uma mesa ocupada por um homem e uma mulher. Foi a sua vez de dizer qualquer coisa à mulher, que se levantou e pediu licença para se afastar. Ao princípio, custou-me a acreditar. Depois compreendi, pela maneira como ela andava na direção do telefone, que devia ser a que me interessava. O seu andar tinha um ligeiro desvio lateral, uma coisa de nada. Não coxeava, não; tratava-se apenas de uma vaga rigidez, quando as costas ficavam em determinada posição. Mas não se parecia nada com a descrição que Georgia Rushe fizera, não era nenhuma sopinha de leite anêmica. Pelo contrário, era toda mulher e sabia-o. O fato de malha desenhava-lhe perfeitamente as ancas bem feitas, o queixo tinha uma inclinação impertinente e havia certo ar de independência atrevida no porte da cabeça. Quando ela andava, os homens viravam-se, para olhá-la, coisa que, naquele ambiente dizia muito. Enquanto esteve ao telefone, observei o homem que estava com ela. Era um grande copo de água com todo o robusto magnetismo sexual de uma pedra de mármore. Parecia um caixa bancário com uma paixão pelos números exatos - no papel. Era impossível imaginá-lo a entusiasmar-se por qualquer outra coisa. Olhando-o, tínhamos a certeza de que os seus dedos estavam perfeitamente familiarizados com o teclado de uma máquina de somar. Devia andar pelos cinqüenta anos e tinha a expressão que os atores amadores gostam de assumir quando representam o papel de um mordomo inglês.

            Decorridos uns dois minutos, Mrs. Crail regressou à mesa. O homem levantou-se e esperou que ela se sentasse, com um formalismo meticuloso e grave. Depois voltou a sentar-se e falaram em voz baixa. Pela expressão de ambos, poderiam estar a discutir a dívida nacional.

            Voltei a levantar-me, fui ao telefone e liguei de novo para a agência. Elsie Brand disse-me que Bertha já chegara e eu pedi-lhe que ligasse a chamada para ela.

            - Olá - cumprimentou a minha sócia. - Onde diabo está você, queridinho?

            - No Rimley Rendezvous.

            - Ainda?

            - Ainda.

            - Que raio de maneira de investigar, sentado a uma mesa a emborcar bebidas por conta do dinheiro das despesas e...

            - Cale-se e ouça-me bem - interrompi-a. - Mrs. Ellery Crail está aqui com um homem. Não creio que vão demorar-se e gostaria de saber quem é o homem. Que tal se você esperasse lá fora que saíssem e os seguisse?

            - Você tem o carro da agência.

            - Tem o seu automóvel particular, não tem?

            - Bem... tenho.

            - Mrs. Crail tem cerca de vinte e oito anos, deve pesar à volta de 51 kg, mede 1,62 m de altura, veste um elegante fato preto e usa um grande chapéu de palha preto com um enfeite encarnado, sapatos encarnados de pele de lagarto ou coisa parecida e mala encarnada. O homem que a acompanha deve andar pelos cinqüenta e dois anos, mede 1,75 m de altura e pesa entre 77 e 80 kg. Veste fato cinzento-azulado com riscas brancas fininhas e casaco assertoado e usa gravata azul-escura com um padrão a formar grandes curvas em S, orladas a branco. Têm nariz e queixo compridos, cara inexpressiva, tez amarelada e olhos cinzentos ou azul-claros. Desta distância não consigo distinguir bem. «Ser-lhe-á mais fácil reconhecer a mulher se reparar no seu andar. Movimenta as pernas a partir das ancas, mas quando avança a perna direita o lado esquerdo das suas costas parece deslocar-se ligeiramente. É preciso olhar com atenção para reparar, mas se olhar bem não lhe escapará. »

            - Se os localizou, está bem, o caso muda de figura - declarou Bertha, um nadinha menos irritada. - Agrada-me que tenha obtido resultados. Vou já para aí. Ouça, não seria melhor eu entrar no clube e esperar?

            - Não o aconselho. Acho melhor esperar no exterior. Poderia dar excessivamente nas vistas se subisse e depois descesse ao mesmo tempo em que eles. É possível que estejam um bocadinho desconfiados, por causa do telefonema que não se materializou.

            - Está bem, queridinho, deixe o caso comigo.

            Voltei para a minha mesa. Reparei que o criado me observava com demasiada atenção.

            - Charutos, cigarros?

            A voz e o sorriso estavam mesmo por cima do meu ombro. Virei-me e olhei para as pernas.

            - Olá! Comprei-lhe há bocadinho um maço de cigarros, não se lembra? Não os gasto com essa rapidez toda.

            Inclinou-se ligeiramente para frente e disse, em voz baixa:

            - Compre outro. Parece gostar do cenário e eu quero falar consigo.

            Ia a dizer um gracejo, mas reparei na expressão dos olhos dela e levei a mão à algibeira para tirar outro quarto de dólar.

            - É uma troca justa - observei.

            Ela pôs os cigarros em cima da mesa, inclinou-se para receber a moeda e disse:

            - Vá-se embora!

            Arqueei as sobrancelhas. Sorriu tolerantemente, como se lhe tivesse dito alguma palavrinha maliciosa, rasgou o canto do maço de cigarros, tirou um e estendeu-mo.

            - É Donald Lam, não é? - perguntou, enquanto riscava o fósforo.

            Desta vez não precisei arquear as sobrancelhas. Elas arquearam-se sozinhas.

            - Como é que você sabe?

            - Não seja pateta. Sirva-se da cabeça, já que a tem.

            Inclinou-se para frente e chegou à chama ao cigarro.

            - Sai?

            - Não.

            - Então, pelo amor de Deus, circule! Escolha uma dessas mulheres que o estão a olhar, aprovadoras e ronronantes como gatas. Se continuar como até aqui, dará tanto nas vistas como um dedo entrapado. Era uma idéia. Compreendi, de súbito, que, na verdade, os homens livres não deviam passar pelo Rendezvous só para tomar uma bebida. No entanto, continuava preocupado por não saber como a rapariga dos cigarros descobrira o meu nome. Estivera uns dezoito meses no Sudoeste do Pacífico e antes disso não me parecia que tivesse sido uma figura muito conhecida na cidade. A orquestra de dança começou a fazer barulho.

            Escolhi uma jovem moreninha de ar vivo, a duas mesas de distância da minha. Assumi uma expressão um bocadinho recatada de mais, quando me aproximei.

            - Dança? - perguntei-lhe.

            Olhou-me com um ar bem simulado de arrogante surpresa.

            - Não estará a ser um nadinha brusco?

            Sustentei-lhe o olhar e respondi:

            - Estou.

            A resposta fê-la rir.

            - Gosto de homens bruscos - declarou, enquanto se levantava e estendia os braços.

            Demos meia volta à pista sem dizer nada. Depois ela observou:

            - Não sei por que, mas não é do tipo que imaginava.

            - Que quer dizer?

            - Sentado à mesa, a olhar para o copo de testa franzida, parecia melancólico e beligerante.

            - Talvez a beligerância existisse da sua parte.

            - Não. Estava com curiosidade a seu respeito. Oh, agora denunciei-me, ficou a saber que estive a observá-lo!

            - Há algum mal em observar-me?

            - Não há, mas não é costume admitir essas coisas.

            Não disse nada e dançamos mais um pouco. Depois ela riu-se e afirmou:

            - Não me enganei! É beligerante e melancólico.

            - Falemos antes de si, para variar. Quem são as duas mulheres que a acompanham?

            - Amigas.

            - Surpreende-me.

            - Andamos muito juntas, as três. Temos algo em comum.

            -Casadas?

            - Não... não se trata disso.

            - Divorciadas?

            - Sim.

            Continuamos a dançar.

            - Não costuma vir aqui com muita freqüência, pois não? - perguntou-me a rapariga.

            - Não.

            - Nunca o tinha visto. Senti curiosidade. Há qualquer coisa em si... Não se parece com os homens que costumam cá vir. É duro e... enfim, não há nada de vago nem de afetado em si.

            - Que têm de especial os homens que costumam cá vir?

            - Na sua maioria, não são boas peças. De vez em quando, lá aparece algum que é... interessante. Mas isso é de longe em longe. Lá estou eu a denunciar-me, outra vez!

            - Gosta de dançar e, de vez em quando, encontra aqui um parceiro, não é?

            - Mais ou menos.

            A música terminou e eu reconduzia-a à mesa.

            - Se soubesse como se chama, apresentá-lo-ia às minhas amigas - disse, timidamente.

            - Nunca digo como me chamo.

            - Por quê?

            - Não sou do tipo que gostasse de apresentar às suas amigas.

            - Por quê?

            - Sou casado, tenho três filhos que passam fome e não posso manter a minha mulher porque desperdiço as tardes em lugares como este. Não têm conta as vezes que decidi acabar com semelhante comportamento, mas não sou capaz. Vou pela rua, vejo uma cara e uma figura bonitas como as suas a caminho de uma casa destas e, pronto, lá entro eu atrás e gasto até ao último céntimo, só pelo prazer de tê-la nos braços enquanto danço numa pista congestionada.

            Tínhamos chegado à mesa e ela riu-se.

            - Pequenas, creio que ele se chama John Smith. Tem a mais deliciosa das abordagens!

            Dois novos rostos femininos ergueram-se para o meu com um interesse divertido.

            O chefe dos criados parou junto de mim e murmurou:

            - Perdão, senhor...

            - Que regulamento violei!

            - Nenhum, senhor. Mas o gerente mandou-me apresentar-lhe os seus cumprimentos e pedir-lhe que lhe fizesse companhia durante uns momentos. É muito importante.

            - Oh, gosto disso! - exclamou a rapariga com quem estivera a dançar.

            O homem deixou-se ficar, silenciosamente insistente, a meu lado.

            Sorri às três jovens e disse-lhes:

            - No fim de contas, posso voltar depois.

            Segui o meu guia através da porta principal, transpus outra porta protegida por um reposteiro, entrei numa antecâmara e por fim transpus mais uma porta onde se lia: Particular, e que o indivíduo abriu sem bater.

            - Mr. Lam - anunciou e retirou-se, tendo o cuidado de fechar a porta maciça.

            O homem que estava sentado à grande secretária de nogueira polida levantou a cabeça de uns papéis que estava a ler e os seus olhos chocaram com os meus: olhos duros, escuros, inquietos, que emanavam o fogo magnífico de uma personalidade dinâmica. Um sorriso adoçava a boca grossa. O homem empurrou a cadeira giratória para trás, levantou-se e contornou a secretária.

            Não era particularmente alto nem gordo, mas era todo ele maciço e forte: peito largo, pescoço largo e um corpo direito de alto a baixo, com muito poucas curvas. O alfaiate fizera maravilhas e o seu cabelo tinha o ar de bem tratado, sinal de que um barbeiro lhe dedicara muito tempo e meticuloso trabalho: cada cabelo estava no seu lugar, numa perfeição absoluta.

            - Como está, Mr. Lam? Chamo-me Rimley e sou o dono disto.

            Trocamos um aperto de mão e ele observou-me, pensativamente.

            - Sente-se. Fuma um charuto?

            - Não, obrigado. Fumo cigarros.

            Abriu uma caixa de cigarros, que tinha na secretária.

            - Creio que encontrará aqui a sua marca preferida.

            Eu...

            - Não, obrigado. Tenho um maço na algibeira e quero fumá-lo.

            Levei a mão à algibeira, a pensar que, naquele momento, talvez fosse má idéia dar-lhe a conhecer a existência do segundo maço.

            - Bem, então sente-se e esteja à vontade. Uma bebida?

            - Já bebi dois dos seus scotches com soda.

            - Referia-me a uma bebida a sério! - exclamou, a rir.

            - Scotch com soda, então.

            Levantou o auscultador do telefone e pediu:

            - Dois scotches com soda, da minha marca particular.

            Desligou e perguntou-me:

            - Acaba de regressar do Pacífico Sul, não é verdade?

            - Posso perguntar-lhe como sabe?

            Arqueou as sobrancelhas, admirado.

            - Porque não?

            Sem saber que responder, optei pelos princípios básicos:

            - Estive ausente durante algum tempo. Embora o senhor já estivesse aqui estabelecido quando parti, creio que nunca cá vim. Calhou, apenas, nunca ter entrado...

            - É por isso que a sua presente visita me interessa.

            - Mas como é que soube quem eu era?

            - Então, então, Mr. Lam! Somos realistas, ambos.

            - Admitamos que somos. E depois?

            - Ponha-se no meu lugar. Para dirigir uma casa como esta, é preciso estar do lado da Razão, é preciso ganhar dinheiro.

            - Naturalmente.

            - Para ganhar dinheiro, temos de nos colocar no lugar dos nossos clientes. Para que vêm eles cá? Que querem? Que procuram? Que obtém? Que pagam? Obviamente, Mr. Lam, se se colocasse no meu lugar e se lembrasse de que eu tento pensar em termos das necessidades dos clientes, compreenderia facilmente que a visita não anunciada de um detetive particular é... enfim, é uma coisa que tem de me ser comunicada.

            - Até aí compreendo. Mas conhece todos os detetives particulares?

            - Claro que não. Mas conheço os que são suficientemente inteligentes para serem perigosos.

            - Como é que os segrega?

            - Não sou eu que os segrego e, sim, eles que se segregam.

            - Lamento, mas não o estou a entender.

            - Ser detetive particular é como exercer qualquer outra profissão. Os incompetentes têm tendência para se auto-eliminarem. Os que apenas conseguem aguentar-se, permanecem desconhecidos, só com um ofício nominal. Os que possuem aquilo que conta começam a atrair as atenções, a ter cada vez mais trabalho, e as pessoas começam a falar deles. Conheço estes últimos todos.

            - Lisonjeia-me.

            - Não seja tão modesto, com a breca! Antes de se alistar na Marinha já tinha feito nome, já era conhecido como um homenzinho com coragem (e miolos), um profissional ousado, que jogava sem limite e conduzia sempre os seus clientes a porto seguro. Segui a sua carreira com grande interesse, pois pensava que talvez viesse a precisar de si; pessoalmente. Além disso, há a sua sócia, Bertha Cool. Uma figura que dá muito nas vistas.

            - Conhece-a a muito tempo?

            - Para lhe ser franco, nunca tinha prestado atenção a Bertha Cool antes de você formar equipa com ela e constituírem a sociedade. Claro que Bertha estava na minha lista, pois a sua agência era uma das poucas que aceitavam casos de relações domésticas, mas não ocupava a minha atenção pessoal. Ela encarregava-se de trabalho de rotina de um modo rotineiro. Depois apareceu você e começou a encarregar-se de trabalho de rotina de um modo pouco convencional. Os casos que investigava deixavam logo de ser rotineiros.

            - Sabe muito a meu respeito.

            Acenou com a cabeça, calma e naturalmente, como se admitisse um fato evidente.

            - Sei muitíssimo a seu respeito - afirmou.

            - E porque fui honrado com a sua atenção, esta tarde?

            Bateram à porta.

            - Entre - ordenou Rimley.

            Notei um ligeiro movimento do lado direito do seu corpo e ouvi um estalido abafado. A porta abriu-se e entrou um criado com uma bandeja contendo copos, uma garrafa de Johnny Walker Black Label, um balde de cubos de gelo e um sifão.

            O criado pôs a bandeja na ponta da secretária e saiu sem dizer uma palavra. Rimley deitou dois grandes golos de uísque nos copos, juntou-lhe gelo e um esguicho de soda e estendeu-me um dos copos.

            - Saudações - disse.

            - Saudações - repeti.

            Bebemos um golo. Rimley virou-se na cadeira, sorriu e declarou:

            - Espero não precisar pôr os pontos nos «ii».

            - Pretende dizer que não me quer cá?

            - Definitivamente.

            - E pode fazer alguma coisa a esse respeito?

            Os seus olhos tinham-se tornado duros, mas os seus lábios continuavam a sorrir.

            - Posso fazer muito.

            - Estou interessado. Excluindo os pequenos subterfúgios de me dizer que as mesas estão todas reservadas, ou de dar ordem aos criados para não me servirem, não vejo que possa fazer algo de muito sutil ou eficaz.

            - Já reparou, Lam, que as pessoas que dizem o que vão fazer raramente fazem o que dizem? - perguntou, a sorrir.

            Acenei afirmativamente.

            - Eu nunca falo do que vou fazer. Faço-o. E, sobretudo, não seria idiota ao ponto de lhe dizer, a si, o que tenciono fazer para impedi-lo de ser um freqüentador regular da minha casa. Está a trabalhar nalgum caso especial?

            - Passei por cá apenas porque me apeteceu um pouco de vida social - respondi, a sorrir.

            - É claro que avalia quais as reações dos meus clientes se alguém apontasse para você e dissesse: não é Donald Lam, da agência de detetives particulares Cool & Lam. Trata-se de uma das agências que se encarrega de casos de divórcio.não - observou, também a sorrir.

            - Estou convencido de que uma quantidade de clientes se lembraria, de súbito, de que tinha um compromisso em qualquer outro lado.

            - Não pensara exatamente nesse aspecto especial da questão.

            - Então pense, hem?

            - Já estou a pensar.

            Perguntei a mim mesmo se Mrs. Crail e o seu acompanhante já teriam saído e se Bertha Cool estaria no seu posto. Perguntei-me também se a aversão de Pittman Rimley a detetives particulares não se deveria, pelo menos em parte, ao fato de ter ouvido uns zunzuns de que o edifício em que o seu clube se encontrava instalado estava a ser objeto de negociação, para venda... e se no seu arrendamento haveria alguma cláusula que modificasse os termos do contrato, no caso de o prédio ser vendido.

            - Bem, Lam, não é caso para ficar desanimado. E se refrescássemos a sua bebida, hem?

            Pegou no meu copo com a mão esquerda, na garrafa de scotch com a direita, deitou um golo de líquido ambarino e por fim um esguicho de soda.

            Não sei o que atraiu os meus olhos, casualmente, para o seu caríssimo cronômetro de pulso, com um ponteiro de segundos a percorrer o mostrador. Era um relógio grande e só ficava bem num homem forte e importante, além de ser daqueles com uma exatidão de fração de segundo. Reparei que marcava quatro e meia. Fiz contas de cabeça. Não podia ser tão tarde. Tive vontade de consultar o meu próprio relógio, mas, não sei por que, não me pareceu que o gesto fosse oportuno.

            Rimley refrescou também a sua bebida e sorriu-me por cima do copo.

            - No fim de contas, o que importa é que nos compreendamos um ao outro - observou.

            - Sem dúvida. Só isso é que é necessário.

            Olhei em redor do gabinete, com um ar muito casual. Havia um relógio em cima de um ficheiro, um daqueles objetos de tipo náutico montado no centro dos raios de uma roda de bronze.

            Esperei que Rimley estivesse a olhar para o lado e voltei a olhar rapidamente para o mostrador do relógio. Quatro horas e trinta e dois minutos.

            - Deve ter os seus problemas, para conseguir dirigir uma casa destas...

            - Não são tudo rosas - admitiu.

            - Creio que acaba por conhecer muito bem os seus clientes?

            - Os assíduos, sim.

            - Tem dificuldade em obter bebidas?

            - Alguma.

            -Tenho um cliente que deseja processar umas pessoas por causa de um acidente de automóvel. Conhece alguns advogados bons?

            - É nisso que está a trabalhar agora?

            Limitei-me a sorrir.

            - Desculpe.

            - Conhece alguns advogados bons em acidentes de automóvel? - especifiquei.

            - Não.

            - Creio que deve haver alguns muito bons...

            - Também acho.

            - Bem, o uísque é bom e gostei da visita. Prefere, suponho, que não volte à minha mesa?

            - Vá, se quiser, Lam. Esteja à vontade. Divirta-se, descontraia-se, passe um bom bocado. E quando sair, não sepreocupe com a conta. Levante-se e saia, mais nada; não haverá conta nenhuma, Mas não volte!

            Estivera a reter-me com álcool e conversa, mas de repente dir-se-ia que o álcool e a conversa tinham secado. Era como se, agora, eu pudesse voltar à vontade para o Rendezvous. Porque tivera tanta preocupação em me tirar de lá alguns minutos atrás e parecia agora não se importar nada, antes pelo contrário, que voltasse? Seria porque Mrs. Crail e o seu acompanhante já tivessem saído? Bebi o que restava no copo, levantei-me e estendi a mão.

            - Tive prazer em conhecê-lo.

            - Obrigado. Esteja à vontade, Lam, divirta-se. Desejo-lhe todo o êxito possível no caso que estiver a investigar, seja ele qual for. Só lhe peço que o investigue noutro lado qualquer e não aqui.

            Acompanhou-me à porta e inclinou-se, quando saí. Voltei para a sala principal. Sabia que não precisava olhar, mas olhei para confirmar. A mesa onde Mrs. Ellery Crail estivera sentada com o indivíduo sisudo, de fato cinzento com o casaco assertoado, estava vaga.

            Vi as horas no meu relógio. Três e quarenta e cinco. Como não vi a minha vendedeira de cigarros, perguntei a um criado, com toda a naturalidade:

            - Não há pequena dos cigarros?

            - Há, sim, senhor. Um momento.

            Uma rapariga avançou na minha direção. Pernas, tabuleiro, aventalinho... mas não era a mesma. Comprei um maço de cigarros e perguntei:

            - Onde está à outra?

            - A Billy? Hoje saiu uma hora mais cedo. Fiquei a substituí-la.

            As minhas amigas da outra mesa não deixavam de olhar para mim e eu fui ter com elas. Mas não dancei; limitei-me a tagarelar um pouco. Ia ser preso, afirmei, por não sustentar a minha mulher e os meus sete filhos. Tinha de arranjar uma fiança. Não podiam fazer nada para evitar que fosse preso?

            Percebi que estavam intrigadas e interessadas, O criado voltou: Mr. Rimley mandava os seus cumprimentos e perguntava se as minhas amigas desejavam fazer-me companhia numa bebida por conta da casa. Champanhe, talvez, ou um pouco daquele Black Label Johnny Walker?

            As jovens arregalaram os olhos, pasmadas, como se estivessem a ver e a ouvir coisas estranhas.

            - Meu Deus, ele deve ser o duque de Windsor! Exclamou uma delas.

            Riram-se todas. Sorri ao criado e disse-lhe:

            - Transmita os meus agradecimentos a Mr. Rimley. Diga-lhe que apreciei a sua hospitalidade, mas nunca bebo mais do que consigo agüentar sem qualquer transtorno. No entanto, creio que as minhas amigas aceitarão uma bebida por conta da casa. Eu tenho de me ir embora.

            - Sim, senhor. Não há conta nenhuma. Mr. Rimley encarregou-se disso.

            - Assim parece. Suponho, no entanto que uma gratificação estaria indicada?

            O homem pareceu positivamente embaraçado.

            - Se o senhor não se importa, preferia que não houvesse gratificação.

            Acenei com a cabeça, virei-me e inclinei-me perante as três mulheres mais pasmadas da cidade.

            - Tenho um encontro de negócios - afirmei-lhes gravemente e saí da sala.

            Fui buscar o chapéu ao bengaleiro e a rapariga que me entregou aceitou com a melhor boa vontade o quarto de dólar que lhe dei. Desci no elevador e tentei apresentar um ar despreocupado, ao dirigir-me para o carro da agência. Avaliara mal o dono do grande Cadillac. O tipo não só se fora embora antes de mim, como também engatara o carro em primeira e, calmamente, empurrara o da agência para frente, deixando-o defronte da entrada do próprio. Um táxi ocupara a vaga deixada pelo Cadillac e o motorista veio direito a mim. Tinha nariz de pugilista e uma orelha que parecia uma couve-flor.

            - Esse carro é seu?

            - É.

            - Tire-o daí para fora.

            - Não o deixei aqui; alguém o empurrou.

            Cuspiu, insultuosamente, e replicou:

            - Já ouvi essa desculpa tantas vezes que fiquei com esta orelha assim. Um passageiro teve de sair do meu carro afastado do passeio e isso custou-me um dólar de gorjeta.

            Estendeu a mão aberta. Olhei-a gravemente e perguntei ao tipo:

            - Quer dizer que perdeu um dólar?

            - Exatamente.

            Agarrei no fecho do carro da agência e respondi:

            - Lamento, amigo. Compensá-lo-ei.

            - É essa a idéia.

            - Sou da seção de impostos de rendimento. Abata o dólar na sua declaração e diga que fui eu que mandei.

            Liguei o motor. O tipo avançou, fitou-me nos olhos e hesitou. Bati com a porta e arranquei. Eram quatro horas e vinte e três minutos quando cheguei ao escritório.

 

 Engarrafamento de Trânsito

            Bertha chegou pouco antes das cinco horas. Tinha as faces coradas e os olhos a cintilar. Abriu a porta de repelão, entrou de rompante, olhou para mim e perguntou, sem tomar fôlego:

            - Porque não vai para o gabinete particular e não lê o jornal, Donald?

            - Já li o jornal.

            - Pois então sente-se lá sem fazer nada, mas não se sente aqui. A sua presença distrai o pensamento da Elsie do trabalho.

            - Ela não parou de escrever à máquina. De qualquer modo, são horas de sair.

            - Diga você o que disser, distrai-lhe o pensamento do trabalho - afirmou Bertha. - Aposto que ela se tem estado a enganar.

            Aproximou-se da máquina de escrever, olhou para as duas últimas páginas que Elsie datilografara e apontou um dedo acusador:

            - Aqui tem! Uma apagadela, outra apagadela... e aqui está uma terceira!

            - Que tem isso? As empresas fabricantes de borracha pagam dividendos por venderem borrachas de máquinas. Sabem que as datilógrafas se enganam, de vez em quando. Três erros em quatro páginas não é muito.

            - Isso é o que você pensa! Olhe para estas. Mostrou-me diversas páginas nas quais não se via sequer um indício de apagadela.

            Olhei para Elsie, que estava encarnada como um tomate.

            - Rico detetive que você me saiu! - resmungou Bertha. - Venha.

            Fiz menção de dizer qualquer coisa, mas os olhos de Elsie suplicaram-me que me calasse e, por isso, segui Bertha e entrei no gabinete particular.

            -Foi um raio de complicação! - disse a minha sócia, furiosa, enquanto abria com um gesto brusco uma caixa de cigarros e tirava um.

            - Que se passou? Não os reconheceu?

            - Reconheci, claro. Ela é Mrs. Ellery Crail e conduz um Buick Roadmaster que está matriculado em seu nome. O homem que a acompanhava é Rufus Stanberry, dono do prédio. Mora na Fulrose Avenue, 3271, nos Apartamentos Fulrose, um edifício elegante, com montes de criados de libré e uma grande abundância de ornamentos e dourados no átrio de entrada. Conduz um grande Cadillac.

            - Parece que fez excelente trabalho, Bertha. Qual é a encrenca!

            - Encrenca! - repetiu a minha sócia, quase a gritar. - Nunca vi um raio de uma complicação mais tramada!

            - Desabafe, ande.

            Bertha dominou-se com dificuldade e disse, irritada:

            - Sabe Deus o que é, mas creio que se trata de qualquer dom especial que você possui, assim a modos que um mau-olhado... Sempre que começa a investigar um caso, as coisas nunca seguem sem obstáculos, azedam-se sempre.

            Tirei da algibeira um dos maços de cigarros que comprara à rapariga do Rendezvous e escolhi um cigarro. A mão de Bertha apontou para a caixa da secretária:

            - Fume destes, durante as horas de trabalho no escritório. Ponho-os na conta de despesas da agência.

            Levei o meu cigarro aos lábios, guardei o maço na algibeira, risquei um fósforo e respondi:

            - Este também vai para a conta de despesas.

            - Como?

            - Comprei-o à rapariga do Rendezvous.

            Bertha abriu a boca para dizer qualquer coisa, mas conteve-se.

            Tirei os três maços da algibeira e pus-los em cima da secretária.

            - Mas que diabo vem a ser isso? - perguntou Bertha, de olhos arregalados.

            - Não é nada - respondi, indiferente. - São da marca que fumo e ela tinha pernas bonitas.

            A minha sócia quase sufocou.

            - Continue - pedi-lhe.

            - Raios o partam, não sei se faz idéia do muito que me irrita!

            Sustentei o seu olhar furibundo e perguntei-lhe:

            - Quer dissolver a sociedade?

            - Não! - berrou-me.

            - Então cale-se.

            Fitamo-nos durante um bom minuto e depois proporcionei-lhe uma oportunidade de mudar de assunto:

            - Que aconteceu quando seguiu Mrs. Crail?

            Bertha puxou uma grande fumaça, exalou e respondeu-me:

            - Esperei defronte do Rendezvous. Passados uns cinco minutos, a porta abriu-se e saíram duas pessoas. Você descreveu-as minuciosamente. Foi tão fácil identificá-las como pescar num barril. Ficaram um momento parados defronte do edifício e depois separaram-se. O homem consultou o relógio de pulso e entrou num grande Cadillac: A mulher meteu pela rua abaixo. Tive de tomar uma decisão e escolhi o homem.

            Acenei com a cabeça, afirmativamente.

            - Era o homem que me interessava.

            Os olhos de Bertha fitaram-me, coruscantes.

            - Você deixara o carro da agência mesmo encostado ao grande Cadillac e o fulano não esteve com demasias, engatou e empurrou-o para frente, sem tentar sequer sair com cuidado. Fiquei tão danada que estive mesmo, mesmo, a dizer-lhe o que pensava. Não tugi, nem mugi.

            - Não devia ter deixado o carro da agência ali, quase em cima do grande Cadillac.

            Continuei calado e aspirei uma fumaça.

            - Bem, segui o Cadillac - prosseguiu Bertha. - O tipo dirigiu-se a grande velocidade para o Garden Vista Boulevard, depois desceu essa artéria... e macacos me mordam se não apareceu outro carro na procissão, atrás de mim! Dei uma olhadela e verifiquei que era Mrs. Crail, a seguir o Cadillac.

            Arqueei as sobrancelhas.

            - Bem, cheguei-me para a direita, para ver se ela estava a tentar seguir-me, a mim, e a fulana afrouxou logo, à espera que lhe passasse outro carro à frente. Não queria aproximar-se de mais do Cadillac, com receio de que o motorista a visse.

            - E que fez você?

            - Enfim, compreendi que a coisa estava complicada e, por isso, passei por completo para a faixa de rodagem da direita, para que o condutor do Cadillac não me visse, e segui ao lado do Buick de Mrs. Crail.

            - Bom trabalho... a não ser que eles tenham virado para a esquerda

            - Bem, ele virou para a esquerda - resmungou Bertha.

            - E você perdeu-o?

            - Cale-se! Não sou assim tão parva! Fumou, irritada, alguns momentos, antes de continuar:

            - Quando vi que ele ia virar para a esquerda, abrandei, para que o carro que vinha diretamente atrás de mim passasse, com a intenção de, a seguir, atravessar para a faixa de rodagem do lado esquerdo Conduzia o carro que vinha atrás de mim uma fedúncia com dentes de cavalo, que não gostou do modo como eu guiava. Abrandou quando eu abrandei e, de repente, colocou-se

a meu lado e gritou-me qualquer coisa, perguntou-me porque não lhe dissera que tencionava passar ali as minhas duas semanas de férias, acelerou e lá vai ela, ultrapassou-me a toda a ganga.

            - E depois?

            - E depois olhou para ver por onde ia, mas um nadinha atrasada. Outro carro que vinha em sentido contrário estava a virar à esquerda. Estou convencida de que a lambisgóia só o viu meio segundo antes da colisão. Mesmo assim, poderia ter travado e talvez se safasse, mas ia excessivamente depressa e tentou contornar a curva para a direita pelo lado de dentro do outro. Não conseguiu.

            - Ficou alguém ferido?

            - O homem não ficou ferido, mas a mulher que o acompanhava desmaiou. Bloquearam-me absoluta e completamente. Havia trânsito atrás e aquele monte de lata mesmo à minha frente.

            - E foi então que o Stanberry virou à esquerda?

            - Não seja parvo. O trânsito, naquele cruzamento, estava todo engarrafado. Um polícia precisou de cinco minutos para o pôr em movimento. E a lambisgóia de dentes de cavalo fez sinal a um táxi que ia a virar para a esquerda, para uma praça, e pôs-se na alheta com toda a calma, deixando o seu maldito carro no meu caminho!

            - Sem anotar o nome das testemunhas ou ver quem...?

            - Deu o seu nome e a sua morada ao condutor do outro carro, foi ao de Stanberry saber o nome e a morada do ocupante e depois fez o mesmo com os outros carros. Até com o meu. Isso tudo passou-se enquanto o trânsito estava engarrafado e não podíamos andar. Foi graças a ela que fiquei a saber o nome e a morada do Stanberry.

            - Como?

            - Como disse, o engarrafamento era colossal. O trânsito que vinha pelo bulevar, na direção da cidade, continuou a passar lentamente e tão cerrado que nem com um escopro uma pessoa conseguiria abrir espaço para se introduzir no meio dele. Stanberry portou-se com muita decência. Claro que os carros que estavam atrás faziam um chinfrim dos demônios. O condutor do outro carro não saiu do seu lugar, mas foi tomando nota das matrículas. A dentes de cavalo, armada em importante, ia anotando nomes e moradas. Como vi que anotara os do Stanberry, quando ela veio ter comigo sorri-lhe docemente, em vez de mandá-la para o inferno, e disse-lhe que teria muito prazer em lhe dar as informações que pretendia, mas que seria melhor escrever eu própria o meu nome, pois ela teria dificuldade com a ortografia.

            - Que fez ela?

            - Fez Exatamente aquilo que eu esperava que fizesse. Estendeu-me o livrinho de apontamentos e disse-me que estava bem, que escrevesse eu. O último nome da lista, isto é, o que se encontrava diretamente acima do meu, era o de Rufus Stanberry, Fulrose Avenue, 3271. Demorei-me um bocado com o lápis dela na mão, a olhar bem para os nomes e moradas, a fim de fixá-los, e depois escrevi um nome.

            - O seu?

            Pareceu querer matar-me com o olhar.

            - Não seja parvo! Pensei num apelido russo de ortografia o mais complicado possível e a seguir escrevi a primeira morada que me veio à cabeça, em Glendale, sorri dulçorosamente à fedúncia de olhos arregalados e devolvi-lhe o livrinho. Depois comecei a fazer sinais aos veículos que estavam atrás de mim, para se afastarem do meu caminho, e tentei recuar.

            - E depois?

            - E depois tive de discutir com um passarão qualquer que estava atrás de mim e não podia recuar porque atrás dele estava alguém que não recuava. As buzinas desataram a fazer um chinfrim dos diabos e eu perdi a tramontana. Tentei recuar, apesar de tudo, e enganchei o meu pára-choques no pára-choques de um idiota qualquer que se aproximara de mim... O polícia de trânsito acorreu e deu um banho de ácido a toda a gente... e o raio da dentes de cavalo que fora a causadora de toda aquela complicação envolveu o chui num sorriso açucarado, meteu-se num táxi que estava a virar à esquerda, para a praça de táxis de um hotel de Mantica, e pirou-se, deixando a campana ali mesmo, no meio da rua.

            - Que fez você?

            - Acabei por me sentar no meu maldito pára-choque, enquanto o outro tipo levantava o dele e soltava os carros. Entretanto...

            - A mulher tomou nota do nome de Mrs. Grail?

            - Claro que tomou. Vi-o uns dois nomes acima do de Stanberry. Limitei-me a ver se lá estava; não me preocupei com a morada, pois essa já a temos. Estava interessada em saber quem era o homem.

            - Stanberry viu o nome de Mrs. Crail?

            - Não. Fui eu a única a pegar no livrinho e a escrever o nome; ela escreveu os outros, assim como os respectivos números de matrícula. Claro que eu não escrevi o meu número de matrícula!

            - E que fez quando se libertou do outro carro? Veio diretamente para aqui?

            - Não. Calculei que ela acompanharia o Stanberry a casa e, por isso, pus-me a caminho de Fulrose Avenue, 3271. Observei o prédio e vi que tinha posto telefônico particular. Deixei-me ficar um bocado à espera, mas como eles não aparecessem mandei tudo para o diabo e regressei ao escritório. E você, que fez?

            - Fui corrido do Rimley Rendezvous.

            - Por namoricar as mulheres?

            - Não. O gerente convidou-me a ir ao seu gabinete, ofereceu-me uma bebida e mandou-me sair e não voltar.

            - É preciso descaramento!

            - Bem, ele tem razão. Dirige um estabelecimento freqüentado, de tarde, por mulheres casadas que andam no engate e por alguns homens de negócios cansados, que se deixam ficar depois do almoço para dançar um bocado. Um detetive particular é tão desejado numa casa deste gênero como um tipo com varíola num transatlântico.

            - Como sabia ele que você era detetive particular?

            - Isso é que me intriga. Mas o certo é que sabia. Sabia o meu nome e sabia tudo a meu respeito, e a seu também.

            - Sabia que caso você estava a investigar?

            - Pergunto a mim mesmo se terá somado dois e dois... O telefonema para Mrs. Crail, sem que ninguém falasse quando ela atendeu; o fato de Mrs. Crail e Stanberry terem saído quando eu estava a ser recebido no gabinete e, de repente, o desejo demonstrado por Rimley de pôr fim à entrevista... É possível que tenha sentido esse desejo depois de ter recebido qualquer sinal indicativo de que Mrs. Crail se safara. Creio que não passou pela cabeça de ninguém que você poderia estar no exterior, para segui-los, e...

            O telefone tocou.

            Bertha Cool levantou o auscultador. Ouvi a voz de Elsie Brand e depois um estalido e outra voz. Bertha fez-se toda sorrisos:

            - Sim, Miss Rushe, estamos a fazer progressos. Esta tarde, Mrs. Crail esteve no Rimley Rendezvous com Mr. Stanberry.

            Seguiu-se um momento de silêncio e depois Bertha disse:

            - Vou passá-la ao Donald, que está aqui.

            Estendeu-me o auscultador e explicou:

            - Miss Rushe deseja um relatório.

            Levei o auscultador ao ouvido e Georgia Rushe perguntou-me:

            - Tem alguma coisa a acrescentar à informação de Mrs. Cool, Mr. Lam?

            - Creio que tenho.

            - O quê?

            - Disse que a presente Mrs. Crail era anteriormente Irma Begley e que se relacionou com Ellery Crail por causa de um acidente de viação, não é verdade?

            - Exatamente.

            - Crail chocou com o carro dela?

 -Chocou.

            - Ela sofreu lesões físicas?

            - Sim, sofreu uma lesão espinal.

            - Acha que sofreu mesmo?

            - Parece que foi definitivamente confirmado por radiografias.

            - Bem, é provável que tenha sofrido essa lesão cerca de um ano antes, noutro acidente de viação. Se o conseguíssemos provar, isso significaria alguma coisa para si?

            - Se significaria! -exclamou, encantada.

            - Bem, não se entusiasme demasiado e não arme em detetive amadora. Deixe-nos tratar do assunto.

            - Tem certeza, a respeito desse outro acidente de automóvel?

            - Claro que não. Trata-se apenas de uma pista.

            - De quanto tempo precisará para descobrir?

            - Depende do tempo que levar a localizar o outro participante no acidente, um homem chamado Philip E. Cullingdon, e do que ele disser.

            - Quanto tempo levará isso?

            - Não sei. Vou começar a investigar imediatamente.

            - Fico à espera de notícias suas, Mr. Lam. Vocês têm aí o número do meu telefone. Informe-me imediatamente no caso de descobrir alguma coisa. Imediatamente, Peço-lhe.

            - Está bem, informá-la-ei - prometi, e desliguei.

            De repente, Bertha começou às gargalhadinhas.

            - Porque está tão divertida?

            - Estou a lembrar-me do modo como aquela coirazinha gritou comigo, quando me ultrapassou, e do sorriso enjoativo em que me envolveu, quando quis que fosse sua testemunha. E também estou a pensar no que se vai divertir quando for à morada que lhe dei, em Glendale, tentar encontrar uma mulher com o apelido de Boskovitche.

 

 Não Tenho Gravuras Bonitas

            Philip E. Cullingdon era um indivíduo de meia-idade, com olhos cinzentos, fatigados, dos quais partia uma rede de rugas finas. Também tinha rugas à volta da boca e certa firmeza no queixo. Dava a impressão de ser um homem bondoso e um pouco trocista, difícil de irritar, mas nada bom de assoar quando a mostarda lhe chegava mesmo ao nariz.Achei melhor falar-lhe sem rodeios:

            - O senhor é Philip E. Cullingdon, empreiteiro, acusado na ação de Begley versus Cullingdon?

            Os olhos cinzentos fatigados mediram-me de alto a baixo.

            - Que tem a ver com isso?

            - Estou a investigar o caso.

            - A investigar o quê? Foi resolvido por acordo.

            - Claro que foi. O senhor estava seguro, não estava?

            - Estava.

            - Sabe qual foi à importância do pagamento acordado?

            - Lá saber, sei, mas continuo a não saber com quem estou a falar nem por que motivo quer saber essas coisas.

            Estendi-lhe um cartão:

            - Donald Lam, da firma Cool & Lam, investigadores particulares. Estamos a investigar esse caso.

            - Para quem?

            - Para um cliente.

            - Por quê?

            - Ando a tentar averiguar algo acerca de Irma Begley, a queixosa.

            - Que pretende averiguar?

            - A natureza e a extensão da lesão que sofreu.

            - Creio que ficou realmente lesionada. Pelo menos é o que dizem os médicos... de ambos os lados, note. Nunca senti a consciência tranqüila acerca dessa história.

            - Por quê?

            Coçou a cabeça, sem responder, e eu ajudei um pouco:

            - Verifiquei pelo processo que a queixa foi apresentada cerca de onze meses após a data do acidente. Não lhe foram feitas quaisquer exigências prévias?

            - Não. E não foram porque, ao princípio, a mulher não pensou que estivesse lesionada ou que fosse algo de grave. Suponho que sentia um ligeiro mal-estar, que se foi agravando. Consultou um médico, que lhe fez uns tratamentos de rotina e não ligou grande importância ao caso. Por fim, como não melhorasse, foi a um especialista que a informou que estava a sofrer de uma complicação resultante de uma lesão... de uma lesão na espinha.

            - E isso remontava ao acidente de viação?

            O meu interlocutor acenou afirmativamente.

            - Então ela arranjou uns advogados e processou-o?

            Acenou de novo afirmativamente.

            - E a sua companhia de seguros estabeleceu um acordo e pagou?

            - Exatamente.

            - Por sugestão sua?

            - Para lhe ser franco, fiquei muito aborrecido com isso - respondeu-lhe Cullingdon. - Não queria que a companhia de seguros resolvesse o assunto por acordo... pelo menos pagando uma quantia elevada.

            - Por quê?

            - Bem, achava que a culpa não fora minha.

            - Por quê?

            - Sabe, foi uma daquelas coisas... Parece-me que ela tivera muito mais culpa do que eu. Admito que tentei passar antes de um sinal mudar e que talvez tenha acelerado um bocadinho de mais, mas apesar disso ela foi pelo menos tão culpada como eu. Claro que, à primeira vista, os estragos não foram muitos e pareceu que não valia a pena estarmos com questões. Partimos um par de faróis, amolgamos um ou dois pára-choques e abrimos um buraco no meu radiador. Ela saltou do carro toda desembaraçada e fresca e eu pensei que ia ouvir uma sarabanda, mas limitou-se a rir e a dizer: «Seu mauzão, não devia tentar passar o sinal!»

            - E o senhor, que lhe disse?

            - Disse-lhe: «Sua mazona, não devia passar num cruzamento a 65 km por hora!»

            - E depois?

            - Depois tomamos nota da matrícula um do outro e trocamos cartões, apareceram algumas pessoas e, por fim, houve quem começasse a gritar para desimpedirmos o cruzamento. Foi praticamente tudo.

            - Pagou-lhe alguma coisa?

            - Ela nunca apresentou fatura nenhuma.

            - E o senhor, apresentou-lhe alguma, a ela?

            - Não. Fiquei à espera, convencido de que havia de aparecer alguma coisa. Mas como não apareceu... olhe, para lhe dizer a verdade, já quase esquecera o assunto quando a ação foi intentada.

            - Quanto pagou a companhia de seguros?

            - Não sei se a companhia de seguros gostaria que eu revelasse isso.

            - Por quê?

            - Bem, é... enfim, foi uma continha muito calada. Aparentemente, ela sofreu, de fato, uma lesão espinal.

            - Gostaria de conhecer a importância...

            - Sabe o que vou fazer? Amanhã telefono à minha companhia de seguros e pergunto se levantam alguma objeção a que lho diga. Se não levantarem, ligarei para o seu escritório e informá-lo-ei de quanto foi.

            - Diz-me qual foi a companhia de seguros?

            Sorriu e abanou a cabeça.

            - Creio que já lhe disse tudo quanto estou disposto a dizer-lhe... demais a mais assim, às cegas.

            - É um caso interessante...

            - A mim o que me interessava era saber o que você anda a investigar. Parece-lhe que tenha havido algum jogo sujo?

            - Não pense numa coisa dessas. Posso estar apenas a tentar avaliar a responsabilidade financeira geral da pessoa em questão.

            - Ah, compreendo! Posso-lhe dizer, Mr. Lam, que se ela não gastou estupidamente o dinheiro que recebeu, é um bom risco de crédito... dentro de limites razoáveis, claro. Recebeu uma boa maquiazinha da companhia de seguros.

            - Obrigado. Fica combinado que, amanhã, telefona à companhia de seguros e depois liga para o nosso escritório e nos diz quanto foi, se não houver nenhuma objeção, não é verdade?

            - Fica combinado.

            Trocamos um aperto de mão e saí. Meti-me no carro da agência e ia a ligar a ignição quando vi outro carro chegar-se para o passeio, atrás de mim, e parar.

            A mulher jovem que se apeou era uma criatura com classe, de cintura esbelta, ancas perfeitas e movimentos desenvoltos. Olhei-a duas vezes e, por fim, reconheci-a. Era a rapariga que vendia cigarros e charutos do Rimley Rendezvous.

            Desliguei a ignição, acendi um cigarro e esperei. Foi uma espera de cerca de cinco minutos. A rapariga voltou, a andar muito depressa, abriu a porta do seu carro e saltou praticamente para trás do volante.

            Saí do meu e tirei o chapéu, com o esboço de um floreado.

            Ela esperou enquanto eu avançava e parava ao lado da porta do seu automóvel.

            - Sabe? Para fazer isso é preciso ter licença observei.

            - Para fazer o quê?

            - Para atuar como detetive particular.

            - Você mete piolho por costura, não mete? -perguntou-me, corada.

            - Assim, assim. Não tanto como deveria.

            - Que quer dizer?

            - Quero dizer que, como detetive particular, sou um idiota.

            - Do meu ponto de vista, não me parece nada idiota.

            - Mas sou.

            -Por quê?

            - O gabinete do oficial de justiça da comarca está fechado, a esta hora.

            - E que tem isso?

            - Pensei que era esperto. Consultei o Registro de Ações, encontrei um processo em que Irma Begley era a queixosa de uma ação em que pretendia ser indenizada por uma lesão resultante de um acidente de automóvel, e julguei que fizera uma coisa muito inteligente.

            - E não fizera?

            - Não.

            - Por quê?

            - Porque desisti.

            - Não estou a percebê-lo.

            - Assim que descobri que ela intentara uma ação, tomei nota do nome do acusado e dos seus advogados e saí.

            - Que devia ter feito, em vez disso?

            - Devia ter continuado a procurar.

            - Quer dizer...

            - Claro que quero dizer! - interrompia-a, a sorrir.

            - Espero que você não tenha sido tão pateta.

            - Por quê?

            - Porque poderemos juntar as nossas informações e, assim, não terei de voltar ao gabinete do oficial de justiça e pouparei tempo.

            - Agora está a ser esperto, não está?

            - Acabei de lhe dizer que sou parvo!

            - Há quatro ações, que eu saiba.

            - Todas no seu nome verdadeiro?

            - Claro. Ela não é doida ao ponto de correr o risco de dar um nome falso.

            - Como arranjou, de fato, a lesão espinal?

            - Ignoro.

            - Há quanto tempo anda a investigar o caso?

            - Eu... Há pouco tempo.

            - Por quê?

            - Não acha que faz demasiadas perguntas?

            - Vai comigo no meu carro? Ou terei de ir eu consigo no seu? Ou, ainda, terei de segui-la para ver aonde vai e o que faz a seguir?

            Pensou alguns momentos, antes de responder:

            - Se tenciona ir a algum lado comigo, terá de ser no meu carro.

            Tive o cuidado de passar pela frente do automóvel, pois assim ela não poderia arrancar sem me atropelar, abri a porta do lado direito, sentei-me atrás dela, fechei a porta e disse-lhe:

            - Pronto, pode seguir. Mas conduza com cuidado, pois sinto-me sempre nervoso com uma pessoa desconhecida a conduzir.

            Hesitou uns segundos, mas acabou por aceitar a situação.

            - Obtém sempre o que pretende? - perguntou, agastada.

            - Sentir-se-á melhor se lhe responder que sim, não sentirá? - redargüi, a sorrir.

            - Estou-me nas tintas para o que você diz - afirmou, furiosa.

            - Isso simplifica as coisas - comentei, e calei a boca.

            Passados momentos, perguntou-me:

            - Mas afinal o que quer e para onde vamos?

            - Quem está a conduzir o carro é você. Quanto ao resto, quero saber todas as respostas.

            - Como, por exemplo?

            - Qual é o seu horário no Rendezvous?

            Olhou bruscamente para trás, surpreendida, e o carro dançou na estrada. Voltou a prestar atenção ao caminho e resmungou:

            - Mas que diabo de pergunta!

            - Não tugi nem mugi.

            - Entro ao meio-dia e um quarto e devo estar vestida (ou despida, como lhe quiser chamar) e na sala ao meio-dia e meia hora. Trabalho até às quatro horas e depois volto às oito e meia e saio à meia-noite.

            - Conhece Mrs. Ellery Crail?

            - Com certeza!

            - «Com certeza» por quê?

            - Porque ela passa lá muito tempo.

            - Conhece o homem que estava com ela esta tarde?

            - Conheço.

            - Estamos a chegar às perguntas importantes. Porque resolveu investigar o passado de Mrs. Crail?

            - Apenas por uma questão de curiosidade.

            - Curiosidade sua ou de outra pessoa?

            - Minha.

            - É assim tão curiosa acerca de toda a gente?

            - Não.

            - Então por que essa curiosidade especial por Mrs. Crail?

            - Senti-me intrigada a seu respeito... como começara...

            - Não estaremos, por acaso, a andar em círculos?

            - Que quer dizer?

            - Perguntei-lhe porque a investigava e respondeu-me que era por curiosidade. Perguntei-lhe a razão da curiosidade e respondeu-me que se sentiu intrigada com a maneira como ela começara. Todas essas palavras significam mais ou menos a mesma coisa. Experimentemos novos significados, para variar, valeu?

            - Estou a dizer-lhe a verdade.

            - Claro que está. O que me interessa é a razão subjacente à curiosidade.

            Durante um bocado conduziu em silêncio, aparentemente a tentar decidir até que ponto poderia ser franca comigo, e de repente perguntou-me:

            - Que soube através do Cullingdon?

            - Não estava desconfiado quando o visitei. Mostrou-se interessado e disse que telefonaria à companhia de seguros para saber se me poderia dizer o montante da importância paga como indenização. Suponho que, depois de você falar também com ele acerca do mesmo assunto, achou que as coisas estavam a andar muito depressa.

            - Pois achou.

            - Que lhe disse ele?

            - Perguntou-me onde morava, como me chamava e porque queria saber.

            - E você mentiu-lhe?

            - Oh, claro! Disse-lhe que era jornalista e andava a arranjar material para uma história característica relacionada com certos tipos de acidentes de viação.

            - E ele perguntou-lhe qual era o seu jornal?

            - Perguntou - respondeu, corada.

            - E depois telefonou para a sucursal na cidade?

            - Como você é esperto!

            - Telefonou ou não telefonou?

            - Telefonou.

            - E foi nessa altura que você saiu?

            Acenou afirmativamente

            - Bem, agora os dados estão lançados. Se você não o tivesse procurado, eram de dez contra um as probabilidades de ele me telefonar a dizer o montante da...

             - Que pretendia você saber?

            - O montante da importância paga por acordo.

            - O montante da importância paga por acordo respondeu-me, com um pequeno gesto desdenhoso – foi de dezessete mil oitocentos e setenta e cinco dólares.

            Foi a minha vez de ficar surpreendido.

            - E você, que pretendia?

            - Cópias das radiografias das lesões, evidentemente.

            Pensei um bocado e depois murmurei:

            - Peço-lhe perdão.

            - Que quer dizer com isso?

            - Quero dizer que lamento. Não devia ter sido tão estúpido. Acabara de saber dos outros casos e não me apercebi logo das implicações, em toda a sua extensão. Creio que o meu cérebro está um pouco lento, um pouco destreinado.

            - Que fará a companhia de seguros?

            - Talvez inicie uma investigação independente, por sua conta.

            Brilhou-lhe no rosto uma expressão de triunfo selvagem.

            - Isso não seria nada mau - declarou, se não perdessem tempo.

            - Ainda não explicou a sua curiosidade.

            Ficou furiosa:

            - Muito bem, no caso de ser tão estúpido como parece, o que não acredito, Mrs. Crail preparava-se para comprar o Edifício Stanberry, para comprar ao velho Rufus Stanberry!

            Acenei afirmativamente.

            - Sirva-se da cabeça, homem!

            - Quer dizer que no contrato de aluguer do Rimley há qualquer cláusula relacionada com a venda do edifício?

            - Creio que sim.

            - No caso de uma venda bona fide o aluguer termina?

            - No prazo de noventa dias.

            - E você está a trabalhar para o Rimley... a tentar descobrir qualquer coisa que deixe Mrs. Grail de mãos amarradas?

            - Em certo sentido, é isso.

            - Quais são as suas relações com o Rimley?

            - Está a querer mostrar-se engraçadinho?

            - Se quiser tomar as coisas nesse sentido, estou.

            - No caso de ser da sua conta, e não é, fique sabendo que Pittman Rimley não significa nada para mim, a não ser no aspecto comercial. No entanto, tenho a concessão do bengaleiro, assim como as dos charutos, dos cigarros e dos doces.

            - E tem de trabalhar pessoalmente nessas coisas?

            - Por razões financeiras, não tenho, se é isso que quer saber, mas quando temos um negócio é muito melhor dedicarmos-lhe a nossa atenção pessoal.

            - E não se importa com as... condições de trabalho?

            - Refere-se ao vestuário? Não seja pateta. Tenho pernas bonitas e se há quem goste de vê-las não me importo. Não deixo por isso de ser senhora dos meus afetos.

            - Segundo depreendo, depois de ela comprar o prédio o Rimley teria de negociar outro contrato de aluguel e isso permitir-lhe-ia retirar-lhe as concessões ou aumentar a parada?

            - Qualquer coisa desse gênero.

            - Portanto, Rimley tinha conhecimento do passado de Irma Crail, pô-la ao corrente dele e disse-lhe que investigasse. Foi isso?

            Hesitou um momento, antes de responder:

            - Não falemos de Rimley.

            Acedi.           

            - Disse que Irma Crail já tinha recorrido antes ao mesmo estratagema, não disse?

            - Várias vezes.

            - Onde?

            - Uma vez aqui, outra em S. Francisco, outra no Nevada e outra no Nebrasca.

            - Usando sempre o seu próprio nome? Tem a certeza disso?

            - Tenho.

            - E como obteve você essas informações?

             Abanou a cabeça.

            - Pois sim, é razoável deduzir que foi Rimley quem lhas forneceu. Prossigamos a partir dessa presunção. Como se chamava o indivíduo que acaba de visitar?

            - Covington - respondeu, de sobrancelhas franzidas.

            - Cullingdon - corrigi, a abanar a cabeça.

            - Sim, é isso.

            - Não se lembrava muito bem, pois não?

            - Não tenho muito boa memória para nomes.

            - Por outras palavras, não estava familiarizada com o nome há muito tempo.

            - Porque diz isso?

            - Porque, se estivesse, ter-se-ia lembrado.

            - Já lhe disse que não tenho muito boa memória para nomes.

            - Por falar de nomes... - murmurei, e fiquei à espera.

            - Quer o meu nome profissional ou o meu nome verdadeiro?

            - O seu nome verdadeiro.

            - Já calculava.

            - Vou sabê-lo?

            - Não.

            - Qual é o seu nome profissional?

            - Billy Prue - respondeu, enquanto ligava os faróis.

            - Bonito nome. Não significa nada.

            -Os nomes têm de significar alguma coisa?

            -Deviam pelo menos parecer convincentes.

            - E que parece o meu?

            - Um nome profissional... um nome de guerra.

            - Bem, é o que é. Portanto, devia ser convincente.

            - Creio que podíamos continuar a argumentar a esse respeito até você ter tempo suficiente para decidir o que deseja dizer acerca de outra coisa qualquer.

            - Não é capaz de se calar? Quero pensar.

            - Bem me parecia que era isso que queria.

            -E é, quero pensar numa coisa.

            - Cigarro?

             - Não. - E passados momentos acrescentou: - Não fumo enquanto guio.

            Recostei-me confortável mente no lugar, apoiei um cotovelo no descanso do banco e acendi um cigarro. Percorremos oito ou dez quarteirões quase a passo de caracol e, de súbito, ela acelerou.

            - Bem, já é alguma coisa - comentei.

            -Já é alguma coisa o quê?

            - Que tenha decidido para onde vamos.

            - Soube desde o princípio para onde íamos... para onde eu vou.

            - Para onde é?

            - Para o meu apartamento, mudar de roupa.

            - Presumo, pela ênfase dada ao pronome pessoal da primeira pessoa do singular, que a minha boleia termina quando chegarmos ao seu apartamento, não é verdade?

            - Que queria que eu fizesse? Que o adotasse?

            Sorri.

            - Não tenho gravuras bonitas para lhe mostrar. Se pensava isso, desengane-se.

            Continuei calado.

            Virou-se para mim, pareceu que ia dizer alguma coisa, mas mudou de idéias e calou-se também.

            Passados quatro ou cinco minutos encostou o carro ao passeio e declarou:

            - Tive muito prazer em conhecê-lo.

            - Não se incomode, eu espero.

            - Terá de esperar muito tempo.

            - Não faz mal.

            - Mas porque quer esperar?

            - Para ouvir explicar a razão da sua grande curiosidade por Mrs. Crail.

            - Nesse caso, fique para aí a secar! - explodiu, irritada.

            Saiu do carro, contornou-o pela retaguarda, tirou chaves da malinha, abriu a porta da rua de um prédio e entrou.

            Tive o cuidado de não virar a cabeça, mas espreitei pelo rabo do olho e vi que, depois de ter dado alguns passos, parava no vestíbulo mal iluminado. Demorou-se assim um minuto ou dois e a seguir confundiu-se com as sombras e desapareceu.

            Passados três minutos a porta da rua abriu-se. Uma figura que apertava muito contra o corpo um casaco de peles desceu os degraus e correu na direção do carro.

            Saí e comecei a contornar o automóvel, para abrir delicadamente a porta do outro lado.

            Dedos frios apertaram-me os pulsos e ela pediu, num murmúrio rouco:

            - Venha... Por favor, venha depressa! Oh, meu Deus!

            Abri a boca para fazer uma pergunta, mas voltei a olhar-lhe para a cara, mudei de idéias e segui-a, sem uma palavra.

            A porta fechara-se automaticamente, mas ela tinha a chave na mão direita. Com a esquerda apertava o casaco ao corpo.

            Abriu a porta e percorreu um vestíbulo que era pouco mais do que uma extensão de corredor largo, subiu três degraus, meteu por um corredor alcatifado e entrou num elevador automático que subiu, a resfolegar, ao terceiro andar.

            Seguiu à minha frente pelo corredor fora e parou diante de uma porta do lado esquerdo. Mais uma vez a chave fez girar a lingueta de um trinco e ela empurrou a porta para trás. Todas as luzes estavam acesas.

            Encontrei-me num apartamento de três divisões, se se contar uma minúscula cozinha como divisão. Ficava do lado da rua e não devia ser barato.

            A mala, as luvas e o casaco que ela usara, à chegada, estavam em cima da mesa da sala de entrada. Na mesma mesa estava um cinzeiro com um único cigarro fumado mais ou menos até meio. Através de uma porta aberta vi um quarto e, em cima da cama, a saia e a blusa que ela usara.

            Seguiu a direção dos meus olhos e explicou, no mesmo murmúrio rouco:

            - Estava a mudar de roupa... a preparar-me para tomar banho. Agarrei na primeira coisa que encontrei para me cobrir.

            Olhei de novo para o casaco de peles. A mão esquerda, que o aconchegava, arrepanhava-o um pouco e deixava ver através da abertura o tom rosado da pele acetinada.

            - Que mais há? - perguntei.

            Sem dizer uma palavra, dirigiu-se para a porta da casa de banho, mas depois parou.

            - Abra você, por favor.

            Abri a porta e olhei para o interior. A luz da casa de banho também estava acesa. O corpo do homem que acompanhara Mrs, Ellery Crail ao Rimley Rendezvous, naquela tarde, encontrava-se na banheira, com os joelhos erguidos contra o peito, a cabeça encostada à cabeceira em declive da banheira, os olhos abertos apenas um terço e o queixo pendente, a entreabrir-lhe a boca.

            Dizer à rapariga que se deixasse ficar onde estava e estender a mão para o pulso inerte foi uma mera formalidade. O coração de Rufus Stanberry estava silencioso como um cemitério numa manhã de geada. Até na morte, porém, o seu rosto conservava a expressão astutamente calculista que lhe notara. O indivíduo

 devia estar a fazer uma avaliação da Eternidade.

            - Está... morto? - perguntou a rapariga, da entrada.

            - Está morto - respondi-lhe.

 

 Respostas Erradas

            Voltamos ao quarto. Ela tremia, de nervosismo.

            - Sente-se - disse-lhe. - Precisamos ter uma pequena conversa.

            - Não sei absolutamente nada. Você sabe tão bem como eu que não me demorei cá em cima tempo suficiente para...

            - Deixemos isso e comecemos pelos fatos. Que aconteceu?

            - Já lhe disse. Entrei em casa e comecei a despir-me.  Dirigi-me para a casa de banho, acendi a luz e... e...

            - Acendeu a luz da casa de banho?

            - Acendi.

            - Tem a certeza de que não estava já acesa?

            - Tenho. Acendi-a e depois vi-o e... bem, voltei para trás a correr, agarrei a primeira coisa que encontrei para me cobrir e desci para o chamar.

            - Em grande pânico?

            - Não compreendo...

            - Estava assustada?

            - Claro.

            -Não sabia que ele estava cá?

            -Não. Eu...

             -Vá ver outra vez.

            -Eu...

            - Vá ver.

            Conduzi-a à minha frente à casa de banho. Agarrou-se ao lado da porta e o casaco abriu-se. Por baixo trazia apenas soutien e cuequinhas e meias escuras, brilhantes.Soltou uma exclamação breve e aguda e continuou a agarrar-se à ombreira da porta, sem se preocupar com o casaco.

            - Olhe bem - recomendei-lhe.

            - Que quer que eu olhe? Trata-se apenas de um morto numa banheira.

            Libertou-se das minhas mãos e correu de novo para o quarto.

            Fechei cuidadosamente a porta da casa de banho e perguntei:

            - Onde está o telefone?

            - Ali.

            Sentei-me, tirei da algibeira um dos maços de cigarros que ela me vendera naquela tarde e estendi-lho, com um cigarro parcialmente saído.

            - Fuma?

            - Não, eu...

            Acabei de tirar o cigarro do maço, bati-o na unha do polegar, pus-lo na boca, acendi-o e recostei-me na cadeira.

            - O telefone está aí - insistiu.

            Acenei afirmativamente.

            - Não telefona à Polícia?

            -Ainda não.

            - Por quê?

            - Estou à espera.

            - De quê?

            - De si.

             - De mim?

            - Estou à espera que invente uma história melhor.

            - Que quer dizer?

            - A Polícia não acreditará na sua história, e isso será mau... para si.

            - Que quer dizer? - repetiu, com um rubor de cólera a tingir-lhe o rosto.

            Aspirei o fumo do cigarro e exalei-o lentamente.

            - Se não chama a Polícia, chamo-a eu - ameaçou.

            Peguei numa das revistas que estavam em cima da mesa, instalei-me mais confortavelmente na cadeira e comecei a virar as páginas, a ver os bonecos.

            - Pois chame.

            O silêncio durou dez ou quinze segundos. Depois ela dirigiu-se para o telefone.

            - Não estou a brincar. Se não telefona à Polícia, telefono eu.

            Continuei a folhear a revista. Ela levantou o auscultador, começou a marcar o número, olhou para mim e repôs o auscultador no descanso, com força.

            - Que está errado na minha história?

            - Duas ou três coisas.

            - Ora!

            - Numa delas a Polícia não deixará de reparar; em duas outras não reparará.

            - Em qual reparará a Polícia?

            - Na que prova que está a mentir.

            - Não gosto da maneira como diz isso.

            - Eu também não gosto da maneira como tenho de o dizer.

            - Muito bem, se é assim tão esperto, diga-me o que está errado na minha história.

            Apontei para a malinha, em cima da mesa.

            - Que se passa?

            - As suas chaves estavam naquela mala?

            - Naturalmente.

            - Quantas chaves tem?

            Mostrou-me o porta-chaves de couro, com o fecho de correr aberto. No interior estavam quatro chaves.

            - Muito bem. Você tirou as chaves da mala, lá em baixo. Abriu o fecho de correr e pegou na chave do seu apartamento. Suponho que essa chave também abre o trinco da porta da rua?

            Acenou afirmativamente.

            - Continuou com a chave na mão, porque queria entrar no apartamento. Subiu e entrou. Que fez depois?

            - Já lhe disse que me comecei a despir e...

            - O mais natural seria correr o fecho do porta-chaves e metê-lo de novo na mala.

            - Bem, eu... Bem, com certeza. Foi isso que fiz. Meu Deus, não tenho de lhe dizer, uma por uma, todas as pequenas coisas que fiz, pois não? Meti as chaves na mala e pus a mala em cima da mesa. Fui para o quarto, cuja luz acendi. Já me estava a despir antes de dar dois passos no interior do quarto. Despi a saia pelas pernas e atirei com ela. Fui para a casa de banho. Abri a porta da casa de banho...

            - Continue a partir daí.

            - Acendi a luz, vi o homem e nem sequer me detive a olhá-lo bem. Desci a correr...

            - Sabia que ele estava morto?

            - Claro que não. Fiquei na dúvida se estaria à minha espera...

            - Para lhe fazer mal?

            - Bem, sim... ou talvez...

            -Eles têm atrevimentos com raparigas na sua situação?

            - Não seja idiota, eles têm atrevimentos com mulheres atraentes seja qual for a sua situação.

            - A maioria dos homens pensa que vocês são presa fácil porque andam por aí a mostrar as pernas?

            - É uma suposição natural, não acha? Não se pode censurá-los muito.

            - Costumam segui-la ao seu apartamento?

            - Já têm seguido.

            - Tentam marcar encontros consigo, ocasionalmente?

            - Claro.

            - Como soube que não se tratava apenas de um fulano que viera fazer valer os seus direitos?

            - Não soube.

            - Nesse caso, pensou que, quando eu abrisse a porta, podia ter de haver-me com uma luta?

            - Não pensei nada.

            - Também não disse nada.

            - Queria que você visse... o que eu vira.

            Abanei a cabeça e afirmei:

            - Você sabia que ele estava morto.

            - É esse o ponto da minha história em que, segundo você, a Polícia não acreditará?

            - Não.

            - Qual é, então?

            - A sua chave e a sua malinha. .

            - Por quê?

            - De acordo com a sua história, você estava em pânico. Vestia apenas soutien e calcinhas, agarrou num casaco de peles, envolveu-se nele e correu lá para baixo, a fim de me chamar. Isso não se conjuga com os fatos. Se tivesse reposto as chaves na mala e esta em cima da mesa e estivesse realmente tomada de pânico, com certeza não perderia tempo a abrir a mala, tirar as chaves, pôr outra vez a mala em cima da mesa e depois ir a correr lá abaixo chamar-me. Teria agarrado na malinha e tirado as chaves depois de chegar lá abaixo.

            - É então isso? - perguntou, com certo desdém.

            - É, é isso. O fato de ter a chave do apartamento na mão quando chegou lá abaixo demonstra que sabia que ia ter de utilizá-la.

            - Sem dúvida. Eu sabia que teria de utilizá-la para entrar de novo no prédio e no meu apartamento. Ambas as portas têm fechaduras de mola e fechos automáticos.

            - E você sabia que teria de utilizar a chave. Foi por isso que ficou com ela na mão quando entrou e atirou a malinha para cima da mesa. Depois foi ao quarto, atirou as chaves para cima da cama, despiu a saia, a blusa e o casaco, envolveu-se no casaco de peles, deu uma espreitadela na casa de banho para se certificar de que o corpo ainda lá estava, pegou nas chaves e correu pela escada abaixo.

            - Ora, tretas! - exclamou, desdenhosa, e levantou de novo o auscultador do telefone. - Agora vou ligar para a Polícia.

            - Naquela almofada, que é muito macia, ainda se vê o lugar onde as chaves caíram, quando as atirou para cima da cama.

            - Mas eu... - Largou o auscultador do telefone, levantou-se, foi a correr à porta do quarto, olhou para o interior e voltou. - Saiu-me um detetive muito esperto! - comentou, no mesmo tom desdenhoso. - A cama tem uma colcha que tapa por completo as almofadas. Mesmo que eu tivesse atirado as chaves para as almofadas, não ficaria na colcha grossa marca suficiente para lhe permitir deduzir o que acontecera.

            - Pois não.

            - Então que idéia foi essa de dizer que estava lá a marca?

            - Se você tivesse dito, realmente, a verdade e as chaves tivessem estado na mala, não teria corrido para a porta do quarto, toda em pânico, para ver se havia realmente, uma marca na almofada.

            Meditou um momento nas minhas palavras e depois sentou-se.

            - Isso era o que a Polícia notaria, como lhe disse. Mas do meu ponto de vista há outras coisas que não batem certo. Você estava ansiosa para que eu visse que debaixo do casaco de peles só vestia soutien e calcinhas, a fim de dar autenticidade à sua história. Além disso, teve de súbito uma grande pressa de saber qualquer coisa acerca de Irma Crail, qualquer coisa que pudesse utilizar como prova autêntica, se precisasse, e tremia toda quando saiu do apartamento de Cullingdon. Estava tão nervosa que até teve dificuldade em engatar o carro. Segundo a minha dedução, veio a casa esta tarde, despiu-se, foi à casa de banho, viu o corpo de Rufus Stanberry na banheira, certificou-se de que estava morto, sentou-se a pensar, fumou aquele cigarro até meio (a única ponta de cigarro comprida, e com baton, do cinzeiro), voltou a vestir-se e saiu, tendo o máximo cuidado em não deixar absolutamente nada que indicasse que já estivera no apartamento e descobrira o corpo. Esqueceu-se do cigarro. «Depois foi com muita pressa visitar Cullingdon. Descobriu que eu já lá estivera e isso transtornou os seus planos. Eu vi-a sair de casa dele e isso ainda a aborreceu mais. Tentou ganhar tempo, enquanto pensava. Precisava de uma testemunha de que entrara no apartamento inocentemente e encontrara o morto na banheira. No fim de contas, talvez eu fosse melhor testemunha do que qualquer outra pessoa que escolhesse para apoiar a sua jogada. Eu seria sincero e desinteressado, contaria uma história em que a Polícia acreditaria. Por isso escolheu-me para anjinho. Conduziu o carro até aqui. Saiu com as chaves na mão. Subiu. Pôs as chaves em

cima da cama e deixou a malinha aberta em cima da mesa da sala. Despiu a saia e a blusa, vestiu o casaco de peles, deu uma vista de olhos rápida para ver se na

casa de banho estava tudo como deixara e depois desceu e impingiu-me a história. Pensava que eu acreditaria, telefonaria à Polícia e confirmaria que você viera ao apartamento, não se demorara mais de dois ou três minutos e...»

            - Está bem, que quer? - interrompeu-me, fatigada. - Dê-me um cigarro.

            Dei-lhe o cigarro e respondi:

            - Quero a verdade.

            - Pois sim, passou-se tudo mais ou menos como você pensa. Não imaginei que as chaves me atraiçoassem.

            - Encontrou-o aqui pouco antes de sair para ir visitar Cullingdon?

            - Encontrei.

            - Soube quem era?

            - Claro.

            - Certificou-se de que estava morto?

            - Certifiquei.

            - E que fez?

            - Naturalmente, pensei que Mrs. Crail queria transformar-me em bode expiatório. Ele estivera com ela e agora estava no meu apartamento... morto. Não me agradou. Ninguém poderia provar que eu estivera em casa e, por isso, resolvi sair, averiguar o que pudesse acerca de Mrs. Crail e depois ir visitá-la e exigir cartas na mesa... ou então arranjar uma testemunha qualquer que viesse ao apartamento comigo e... enfim, me desse a modos que um álibi. Você apareceu e, embora isso ao princípio me aborrecesse, acabei por me convencer de que seria uma boa testemunha.

            - Não vai gostar da minha pergunta seguinte.

            - Qual é?

            Inclinei a cabeça na direção da casa de banho e perguntei:

            - Ele já aqui estivera antes?

            - Já - respondeu, sustentando o meu olhar.

            - Visita social ou sexual?

            - Nem uma coisa, nem outra.

            - Nada de atrevimentos?

            - Não foi para isso que veio cá.

            - Mas teve atrevimentos?

            - Tentou uma abordagem desastrosa, tosca, só para ver se ganharia alguma coisa com isso. Quase pareceu aliviado quando verificou que não ganharia.

            - Que queria ele?

            -Averiguar se Rimley estava a fazer um negócio suficientemente bom para agüentar um aumento de renda.

            - E ficou a saber alguma coisa?

            - Absolutamente nada.

            - Vamos dar outra vista de olhos ao corpo.

            - Não lhe devemos tocar, pois não, até...?

            - Não.

            Atravessamos o quarto e entramos na casa de banho. Ela mostrava-se agora calmamente prática, sem qualquer vestígio de pânico na sua atitude. Examinei o corpo o melhor que pude, sem lhe mudar a posição. Era evidente que o matara uma única pancada violenta na têmpora esquerda, dada com um objeto que deixara uma fratura de crânio oblonga e deprimida. Procurei na algibeira interior direita do casaco. Encontrei uma carteira cheia de notas dobradas, de muitas notas dobradas. Repus a carteira no seu lugar. Na algibeira interior do lado esquerdo havia uma agenda. Na primeira página estava escrito, a tinta: Rufus Stanberry, Fulrose Avenue, 3271. Em caso de acidente, avisar Archie Stanberry, Avenue Matolo, 963. O meu tipo sanguíneo é o 4. Fechei a agenda e repus-la na algibeira.

            Vi que tinha no pulso esquerdo um relógio caro, que marcava cinco horas e trinta e sete minutos. Consultei o meu relógio. Eram Exatamente seis horas e trinta e sete minutos. Não precisei de mais nada. Afastei-me do corpo, a recuar, como se ele tivesse lepra.

            - Que se passa? - perguntou a rapariga, a observar-me. - Que há de mal no relógio?

            - Nada - respondi, e levei-a para a sala. - Não há novidade. Agora podemos chamar a Polícia.

 

Bertha Fareja Dinheiro

            Os dois agentes do carro-patrulha que vieram primeiro, para tomarem conta da ocorrência até a Brigada de Homicídios chegar, fizeram poucas perguntas e não aprofundaram muito. Depois chegou a Brigada de Homicídios e cada um de nós contou a sua história Não aconteceu mais nada durante cerca de uma hora e, por fim, apareceu o sargento Frank Sellers, com o chapéu inclinado para a nuca e um charuto espapaçado e mastigado ao canto da boca.

            - Olá, Donald! Alegra-me que tenha voltado.

            Trocamos um aperto de mão e eu apresentei-o à rapariga. Os agentes tinham registrado as nossas histórias em estenografia, mas certamente Sellers lera uma transcrição e familiarizara-se com o caso antes de chegar.

            - É lamentável que, logo à chegada, tivesse de meter o nariz num assassínio, Lam. Segundo deduzi, anda a investigar um caso.

            Inclinou a cabeça na direção de Billy Prue e perguntou-me:

            - Negócios ou social?

            - Confidencialmente, é um pouco de ambas as coisas. Mas isso não é para a imprensa... e muito menos para a Bertha.

            Mediu Billy Prue de alto a baixo, antes de dizer:

            - Segundo me informaram, ela estacionou o carro lá em baixo, defronte do prédio, e subiu para mudar de roupa.

            - Exatamente - corroborou a rapariga, em voz baixa.

            - Iam jantar juntos?

            Acenei afirmativamente.

            - Ela não o conhecia o suficiente para convidá-lo para entrar - prosseguiu Sellers - e não queria fazê-lo esperar muito tempo, por isso estava com pressa, não é verdade?

            Billy Prue deu uma gargalhadinha nervosa e respondeu:

            - Ainda mal entrara e já me começara a despir. Dirigi-me para a casa de banho... e encontrei aquilo.

            - Que fez às chaves, quando entrou? - perguntou-lhe Sellers, em tom casual.

            - Meti-as na mala e pus a mala em cima da mesa.

            - E que fez quando saiu a correr? Tirou as chaves da mala?

            A rapariga sustentou-lhe o olhar com firmeza.

            - Evidentemente que não. Agarrei na mala, meti-a debaixo do braço e saí a correr. Depois de pedir ao Donald que viesse comigo, abri a mala, tirei as chaves e abri a porta.

            O sargento Sellers soltou um suspiro, fatigado.

            - Bem, minha gente, creio que por agora é tudo.

            É possível que precisemos de lhes fazer mais algumas perguntas, mais tarde. Podem sair, para jantar.

            - Obrigado - agradeci-lhe.

            - Como vai a Bertha?

            - Parece-me que como sempre.

            - Não a vejo há uns tempos... mas agora que você voltou, é possível que passe a vê-la com mais freqüência.

            O seu sorriso era maliciosamente significativo.

            - A... a Polícia já acabou o que tinha de fazer aqui? - perguntou Billy Prue.

            - Ainda não - respondeu-lhe Sellers. - Mas não se preocupe, pois ficará tudo como deve ser. Tem as suas chaves, não tem?

            - Tenho.

            - Pronto, então vão jantar e divirtam-se.

            O sargento Sellers ficou à porta do apartamento, a ver-nos seguir pelo corredor fora a caminho do elevador automático.

            - Pronto, acabou-se! - exclamou Billy Prue, a suspirar, quando entramos no elevador.

            - Não fale - avisei-a, enquanto carregava no botão do rés-do-chão.

            O elevador parou, ruidosamente. Um agente à paisana, que estava de guarda no corredor, deixou-nos passar com um aceno de cabeça. À porta, estava de serviço um agente fardado. O automóvel de Billy Prue encontrava-se estacionado onde o deixáramos e tinha pó branco no volante e nos fechos das portas, onde a Polícia procurara impressões digitais. Tirando isso, estava Exatamente como o tínhamos deixado.

            Abri a porta, em silêncio. Ela entrou com uma graciosidade desembaraçada e, com uma contorção do corpo esbelto, instalou-se ao volante. Sentei-me a seu lado e fechei a porta.

            Desviamo-nos do passeio.

            - Pronto, anjinho - comentou.

            Permaneci calado.

             -Arriscou o pescoço hem? Agora está metido no caso como eu e não tem mais nada contra mim. Não pode dizer uma palavra sem se prejudicar.

            - E depois?

            - E depois, faço-lhe a extrema cortesia de levá-lo ao lugar onde deixou o automóvel... isto é, se se portar bem. Caso contrário, largo-o no meio da rua.

            - Uma atitude um bocado dura, atendendo a que, como disse, arrisquei o pescoço para ajudá-la, não acha?

            - Isso é o que se ganha em ser anjinho.

            Recostei-me no lugar, tirei um maço de cigarros da algibeira e escolhi um.

            - Fuma? - ofereci.

            - Enquanto guio, não.

            Acendi o cigarro e comecei a fumar e a observá-la de perfil. Pestanejou uma ou duas vezes, muito depressa, e depois vi-lhe uma lágrima saltar do olho e escorrer pela face.

            -Que aconteceu?

            Continuou a conduzir com certo descuido brutal e a velocidade crescente.

            - Nada.

            Continuei a fumar.

            Descreveu uma curva e verifiquei que seguíamos para o Edifício Stanberry e, aparentemente, para o Rimley Rendezvous.

            - Desistiu da idéia de me levar onde ficou o meu carro?

            - Desisti.

            -Porque está a chorar?

            Encostou ao passeio, parou com brusquidão, tirou um lenço de papel da malinha e limpou os olhos.

            - Você irrita-me tanto!

            - Por quê?

            - Queria ver o que faria. Fiz aquela observação de ter sido um anjinho só para ver o que acontecia.

            -E então?

            - Não aconteceu nada, raios o partam! Admitiu com toda a naturalidade que eu tinha razão. Imaginou que eu era do tipo capaz de pregar uma partida dessas, não imaginou?

            - Foi o que você disse.

            - Devia ter compreendido que estava a tentar provocá-lo.

            Observei-a, enquanto ela limpava os vestígios das lágrimas.

            - Preferia matar-me a fazer uma coisa dessas a um homem que foi meu amigo. Muito poucos se deram jamais a esse trabalho, a não ser que quisessem alguma coisa, muito óbvia e imediatamente.

            Fiquei calado. Lançou-me um olhar ainda coruscante de mágoa e cólera. Depois fechou a malinha com um movimento brusco, instalou-se melhor no lugar, com gestos irritados, e recomeçou a guiar.

            Paramos defronte do Edifício Stanberry.

            - Pittman Rimley não gostou de mim - avisei.

            - Não precisa entrar. Eu tenho de me apresentar, mas você pode esperar aqui.

            - E depois?

            - Depois levá-lo-ei aonde deixou o seu automóvel.

            Pensei no assunto e perguntei:

            - Vai dizer ao Rimley que me encontrava consigo quando informou a Polícia?

             -Vou. Tenho de lho dizer.

            - Vá, então. Esperarei, se não se demorar muito; se demorar, meto-me num táxi. Pelo sim, pelo não, é melhor deixar a ignição desligada.

            Olhou-me vivamente e depois desligou a ignição.

            - Um dia, hei-de arrancá-lo dessa «pose» desprendida, de quem se está nas tintas - avisou-me.

            Esperei que ela entrasse no edifício e depois saí para arranjar um táxi. Se estivesse próximo de uma praça, teria aparecido um em menos de dez segundos, mas assim esperei dez minutos e por fim comecei a descer a avenida. Só arranjei táxi depois de percorrer cinco quarteirões. Entrei e indiquei a morada de Cullingdon, perto da qual deixara o carro da agência. Quando chegamos paguei ao motorista, entrei no carro e segui para o escritório. A toda.

            Encontrei tudo às escuras. Liguei para o apartamento de Bertha, mas não obtive resposta. Sentei-me mesmo às escuras, para pensar um pouco.

            Decorridos cerca de dez minutos ouvi passos pesados no corredor. Uma chave apunhalou a fechadura, a lingueta estalou e Bertha Cool empurrou a porta.

            - Onde diabo esteve? - perguntou-me.

            - Em diversos lados.

            Fulminou-me com o olhar.

            - Já jantou, Bertha?

            - Já.

            - Eu não.

            A minha sócia instalou-se numa cadeira.

            - Quando são horas de comer, como. Tenho um grande dínamo a trabalhar cá dentro, um dínamo que precisa de combustível para não parar.

            Tirei o último cigarro do maço, que amarrotei e pus no cinzeiro.

            - Bem, fomos cair direitinhos num assassínio.

            - Um assassínio!

            Acenei afirmativamente.

            - Quem foi liquidado?

            - Rufus Stanberry.

            - Onde? Como? Por quê?

            - Quanto ao «onde», foi no apartamento da rapariga que vende cigarros no Rimley Rendezvous e cujo nome de guerra é Billy Prue. Quanto ao «como», o processo foi muito primitivo e muito simples, pois consistiu numa pancada muito violenta na têmpora do indivíduo. Quanto ao «porquê»... enfim, o «porquê» é que complica tudo.

            - Qual é a sua opinião.

            - Ou o homem sabia de mais, ou...

            - Ou o quê? - perguntou Bertha, irritada, quando me calei. - Prossiga.

            - Ou sabia de menos.

            Se os olhos da minha sócia fossem balas, ter-me-iam mandado desta para melhor.

            - Parece um desses novos comentadores dos noticiários! Diz uma coisa absolutamente óbvia de uma maneira que até dá a impressão de ser profunda como um raio!

            Dediquei a minha atenção a fumar o cigarro. Passados momentos, Bertha queixou-se:

            - Mete a agência nas coisas mais estuporadas!

            - Não meti a agência, em nada.

            - Talvez pense que não meteu, mas meteu, o que vem a dar no mesmo. Se eu me tivesse encarregado desse caso, ele não seria mais do que o trabalho rotineiro de investigar os antecedentes de uma mulher, não descobriria nada que fosse de qualquer utilidade para a nossa cliente e...

            - Assim que começasse a investigar, descobriria uma coisa que seria do máximo interesse para a nossa cliente, uma coisa acerca de Mrs. Crail.

            - O quê?

            - É uma profissional na arte de se fingir lesionada.

            - Que descobriu você, ao certo?

            - Parte do que fiquei a saber foi indiretamente. Há uma ação de Begley versus Cullingdon. Constou-me que, recuando um pouco no tempo, antes dessa ação houve outros casos em S. Francisco e no Nevada.

            - Embuste ou lesões? - inquiriu Bertha.

            - Bem, essa história do embuste é demasiado arriscada. Ela sofreu de fato uma lesão, provavelmente no primeiro acidente, descobriu como era fácil receber uma continha calada e achou isso mais cômodo do que trabalhar para viver. Aguardava a oportunidade de ter o tipo de acidente que lhe convinha, isto é, um acidente em que não houvesse grande risco de ficar muito maltratada. Depois dizia corajosamente ao representante da companhia de seguros que sofrera apenas um ligeiro safanão, que não queria um cêntime. Não, pelo amor de Deus! A culpa não era sua, evidentemente, mas as conseqüências tinham sido insignificantes e não valia a pena preocupar-se. Decorridos alguns meses, ia a um

médico e queixava-se de determinados sintomas. De repente, lembrava-se de que fora vítima de um acidente de viação, embora já quase tivesse esquecido o assunto. O médico mandava-a a um advogado e havia rebuliço. Afinal, sofrera uma lesão espinal, apesar de, na ocasião, ter julgado que deslocara apenas uma costela e que se curaria sem novidade.

            - Mas eles não a podiam apanhar na aldrabice?

            - Não era fácil. Ela esperava até um pouco antes da data em que, segundo o estatuto de limitações, o prazo para se queixar expirava, e só então levava o caso a tribunal. Apresentava radiografias comprovativas de que tinha uma lesão. É uma mulher atraente, capaz de influenciar facilmente os jurados. As companhias de seguros preferiam resolver o assunto por acordo, pagando uma indenização. O último processo esteve a cargo de Cosgate & Glimson.

            - Porque desistiu ela?

            - Porque se estava a tornar demasiado arriscado. Já fizera a coisa diversas vezes e as companhias de seguros têm o hábito de comparar notas, em casos desse gênero. Segundo todas as probabilidades, não tencionava servir-se do mesmo estratagema para arranjar marido, pois é evidente que não poderia dizer, pela maneira de guiar de um homem, se ele seria ou não uma boa presa matrimonial. Mas quando teve o acidente com o carro do Crail... enfim, o acaso quis que Crail fosse uma boa presa matrimonial e ela fez o seu papel.

            - Bem, já fizemos trabalho no valor de duzentos dólares para a nossa cliente. Empate uns dias, a colher pormenores do registro desses outros casos, e depois depositaremos a informação nas mãos de Miss Geórgia Rushe e ela que trate com Mrs. Crail como muito bem lhe apetecer. Abandonaremos o assunto e evitaremos meter-nos nesse tal assassínio de que falou. Não está metido nele, pois não, queridinho?

            - Não.

            - Começo a pensar que está...

            - Por quê?

            - Pelo modo como disse que não está. Há uma rapariga no caso?

            - Haver, não há... mas ele foi encontrado no apartamento da tal pequena.

            - A dos cigarros?

            - Sim.

            - A que lhe vendeu três maços de cigarros?

            - Sim.

            - Bolas! - resmungou Bertha e, de súbito, virou a cabeça e os seus olhinhos enfiaram-se, verrumantes, pelos meus:  - Pernas?

            - Naturalmente.

            - Bonitas, quero eu dizer?

            - Muito.

            - Bolas! - repetiu e, passados momentos, acrescentou: - Ouça-me bem, Donald Lam, mantenha-se afastado disso e...

            Bateram à porta do escritório.

            - Diga através da porta que estamos fechados - aconselhei a Bertha.

            - Não seja idiota! Pode tratar-se de um cliente com dinheiro.

            - Vejo-lhe os contornos através do vidro fosco. É uma mulher.

            - Muito bem, nesse caso talvez seja uma mulher com dinheiro.

            Bertha foi direita à porta e abriu-a. No limiar estava uma mulher nova, que lhe sorriu. À primeira vista, valia um milhão de dólares, com um casaco de peles de grande gola alta a emoldurar-lhe o rosto. Era como se trouxesse uma etiqueta de Dun & Bradstreet nas costas, pertencia ao tipo de cliente capaz de financiar, de fato, uma investigação.

            A atitude de Bertha Cool amoleceu como um chocolate na mão de um garoto.

            - Entre, entre! Estamos fechados, mas como se deu ao trabalho de vir cá acima, recebê-la-emos.

            - Importa-se de me dizer o seu nome, por favor? - perguntou a visitante à minha sócia.

            Vi Bertha olhá-la de testa ligeiramente franzida, como se lhe parecesse que já a vira em qualquer outro lado ou estivesse a tentar identificá-la.

            - Sou Bertha Cool, sócia desta agência, e este é Donald Lam, o outro sócio. E a senhora é Miss... Miss...

            - Witson-respondeu a outra, sorridente. – Miss Esther Witson.

            - Ah, sim!

            - Desejo falar consigo, Mrs. Cool, acerca...

            - Pois fale, fale mesmo aqui. Mr. Lam e eu estamos às suas ordens. Tudo quanto pudermos fazer...

            Miss Witson assestou em mim os grandes olhos azuis. Arreganhou os lábios, ao longo dos dentes grandes, para manifestar o seu contentamento.

            Foi então que Bertha a reconheceu...

            - Macacos me mordam! É a mulher que conduzia o automóvel!

            - Pois sou, Mrs. Cool. Pensei que soubesse... Precisei de algum tempo para a encontrar, pois como se deve recordar indicou o apelido de Boskovitche...

            Miss Witson inclinou a cabeça para trás e a luz incidiu-lhe na fieira dupla e completa de dentes de cavalo. Bertha olhou para mim com uma expressão de animal encurralado, desesperado e impotente.

            - Há uma certa controvérsia acerca de quem teve a responsabilidade do acidente, não é verdade, Miss Witson? - perguntei.

            - Essa é uma maneira suave de expressar a realidade.

            - Não houve danos graves, pois não? – perguntou também Bertha.

            - Essa é igualmente uma maneira suave de descrever as coisas.

            - Que quer dizer, ao certo? - inquiriu a minha sócia.

            - Conduzia o outro automóvel um tal Mr. Holland B. Lidfield, que ia acompanhado pela mulher.

            - Mas os carros não ficaram muito danificados, pois não?

            - Não se trata dos carros - explicou Miss Witson.

            - Trata-se de Mrs. Lidfield. Alega que sofreu um forte abalo nervoso e colocou-se nas mãos do seu médico, deixando ao marido o encargo de falar por ela... ao marido e aos seus advogados.

            - Advogados! - repetiu Bertha. - Tão depressa!

            - Consta-me que se trata de uma firma de advogados especializados neste gênero de acidentes, a Cosgate & Glimson. Foi o médico que os indicou.

            Olhei para Bertha, para ver se o nome lhe dizia alguma coisa. Não dizia.

            - Cosgate &... Qual é o outro nome? - perguntei.

            - Cosgate & Glimson.

            Olhei de novo para Bertha e, devagarinho, pisquei o olho esquerdo.

            - Hum... - resmungou a minha sócia.

            - Queria que me ajudasse, Mrs. Cool.

            - Em que sentido?

            - Dizendo o que se passou.

            - Foi apenas mais um choque de automóveis como tantos outros... - disse Bertha, a olhar, intranqüila, para mim.

            - Mas a senhora sabe que eu ia a conduzir muito devagar; que fui atrás de si dois ou três quarteirões; que a senhora abrandou, quase a uma velocidade de caracol, e eu a contornei...

            - Não sei tal coisa!

            - E a senhora - prosseguiu Miss Witson, triunfante - tentou sacudir a água do capote indicando um nome falso, quando quisemos registrá-la como testemunha. Isso não lhe servirá de nada, Mrs. Cool, porque eu anotei a matrícula do seu carro. Acho até que o fiz apenas porque vi Mr. Lidfield tomar nota da matrícula de todos os carros que estavam próximos. Por isso, de qualquer maneira, eles convocá-la-ão como testemunha, o que, no fim de contas, significará que terá de optar por um lado ou pelo outro, Mrs. Cool. Terá de decidir qual dos carros errou.

            - Não tenho nada que decidir - afirmou Bertha. - Não tenho de tomar partido por ninguém.

            - Houve outras testemunhas? - perguntei a Miss Witson.

            - Oh, houve!

            - Quem?

            - Muitas. Um tal Mr. Stanberry, uma tal Mrs. Crail e mais duas ou três pessoas.

            - Seria muito, muito interessante... - disse a Bertha. - Sim, seria muito interessante ouvir o que Mrs. Crail teria a dizer no banco das testemunhas...

            Bertha esticou o queixo para a frente e declarou:

            - Bem, posso-lhe dizer uma coisa. O carro que virou para a esquerda vinha a uma velocidade danada. Viu que o carro de Stanberry ia virar à esquerda e pensou que lhe seria possível virar violentamente o seu próprio carro para a esquerda e passar através de todo o restante trânsito.

            Miss Witson acenou afirmativamente com a cabeça e disse:

            - Eu tinha prioridade sobre ele. Fui a primeira a chegar ao cruzamento. Estava à sua direita e ele vinha da minha esquerda, por isso eu tinha o direito de continuar a avançar... tinha prioridade, bem sabe.

            Foi a vez de Bertha acenar com a cabeça.

            - E não fui eu que lhe toquei - prosseguiu Miss Witson, triunfante. - Ele é que chocou comigo. Pode ver-se pelas marcas deixadas no carro que embateu diretamente comigo.

            Bertha tornou-se, de súbito, muito cordial.

            - Está bem, minha querida, eu no seu lugar não me preocuparia. O homem ia a passar num cruzamento a grande velocidade e Mrs. Lidfield parece-me uma chupista.

            Esther Witson estendeu impulsivamente a mão a Bertha.

            - Sinto-me tão grata por ser essa a sua opinião, Mrs. Cool! Não terá de se preocupar com o tempo que perder como testemunha. Claro que não posso fazer nenhuma promessa, pois isso daria a impressão de que queria suborná-la... Mas compreendo que é uma mulher que trabalha, uma profissional, e se vai perder algum tempo, enfim... - Sorriu docemente. - Sabe, tento sempre ser muito justa no que faço.

            - Não tem seguro? - perguntei-lhe, de súbito.

            Miss Witson riu-se.

            - Pensava que tinha, mas parece que não tenho. Creio que fui um bocadinho descuidada a esse respeito. Bem, muito obrigada, Mrs. Cool, e pode ficar descansada que... Enfim, sabe que não posso dizer nada, mas...

            Sorriu significativamente e desejou-nos as boas-noites. Bertha aspirou o ar.

            - Aquele perfume custa uns cinqüenta dólares cada onça... E reparou no casaco de marta? Aqui tem o que é preciso fazer neste negócio de detetive, meu querido Donald. É necessário estabelecer contatos, especialmente com os ricos.

            - Julgava que me tinha dito que ela era uma fedúncia com dentes de cavalo e olhos arregalados que...

            - Agora pareceu-me muito diferente – cortou Bertha, cheia de dignidade.

 

 Cem por Cento Ratazana

            A casa que procurava era um prédio de tijolo de dois andares, com fachada de estuque. Não tinha posto telefônico próprio, a porta de entrada tinha uma fechadura de mola e havia uma série de botões de campainha com megafones e cartões.

            Procurei o nome de Stanberry, A. L. e premi o botão respectivo. Passados segundos, um dos megafones emitiu um assobio agudo e, logo a seguir, uma voz perguntou:

            - Que deseja?

            Cheguei a boca ao megafone e respondi:

            - Archie Stanberry.

            - Quem deseja falar com ele!

            - Chamo-me Lam.

            - De que lhe quer falar?

            - Adivinhe.

            - Jornalista?

            - Que lhe parece?

            O besouro do trinco automático soou e eu empurrei a porta e entrei. O apartamento de Archie Stanberry era o 533. Um elevador automático, que funcionava bem, levou-me num instante ao andar respectivo. Procurei o apartamento 533 e bati à porta.

            Archie Stanberry devia ter vinte cinco ou vinte seis anos. A cor da sua pele lembrava uma tarte que devia ter ficado no forno mais um quarto de hora e os seus olhos estavam inchados e vermelhos de chorar, embora ele tentasse mostrar-se corajoso. O apartamento era luxuoso e dava a impressão de que Archie ali morava havia algum tempo.

            - Foi um choque terrível para mim - afirmou-me.

            - Naturalmente.

            Entrei com toda a calma, sem esperar que me convidasse, escolhi uma cadeira confortável, sentei-me, puxei de um dos maços de cigarros que Billy Prue me vendera, tirei um cigarro e acendi-o.

            - Qual era o vosso parentesco?

            - Ele era meu tio.

            - Via-o com freqüência?

            - Éramos inseparáveis.

             Tirei um livro de apontamentos da algibeira.

            - Quando viu o seu tio pela última vez?

            - Ontem à noite.

             -Alguma vez o ouviu falar de Billy Prue, uma jovem que reside no apartamento onde o corpo foi encontrado?

             -Não, nunca.

            - Não sabia que ele a conhecia?

            - Não.

            - Sabe o que lá foi fazer?

            - Não sei, mas posso garantir-lhe que, fosse o que fosse, só poderia ser assunto sério. O meu tio era um modelo de virtudes.

            Pronunciou as palavras como se estivesse a fazer um discurso de tomada de posse.

            - Mora aqui há muito tempo?

            - Há cinco anos.

            - De quem é o prédio?

            - Do tio Rufus.

            - Ele deixou bens importantes?

            - Não sei - respondeu, talvez com excessiva rapidez. - Sei muito pouco acerca dos seus assuntos financeiros. Supus sempre que ele era abastado.

            - Trabalha?

            - Presentemente não trabalho, no sentido de ter um emprego. Dedico-me à investigação, para escrever um romance histórico.

            - Já publicou alguma coisa?

            Corou, ao responder-me:

            - Não creio que isso tenha a ver com o assunto.

            - Pensei apenas que talvez lhe agradasse a publicidade, mais nada.

            - Trata-se de uma idéia para um romance histórico que atraía o tio Rufus.

            - Ele estava a financiá-lo?

            Por momentos, os seus olhos evitaram os meus. Mas depois voltaram a procurar-me, raiados de sangue e inquietos, como se estivessem com medo de alguma coisa.

            - Financiava... e agora creio que tenho de desistir do projeto.

            - De que trata, de modo geral?

            - Da Guarda Costeira.

            - E é histórico?

            - Remonta ao tempo da verdadeira Marinha Mercante - informou, com uma nota de entusiasmo na voz. - Ao tempo em que S. Francisco era um verdadeiro porto, uma verdadeira cidade com barcos de todos os cantos do mundo a transpor o Golden Gate. Tempo que passou, mas que voltará quando, mais uma vez, as mercadorias  americanas viajarem em navios americanos; quando pudermos subir a um cabo, em qualquer ponto da costa, olharmos e virmos um penacho de fumo no horizonte; quando...

            - Bom material - interrompi-o. - O seu tio era casado?

            - Não.

            - Tinha quaisquer outros parentes?

            - Que eu saiba, não.

            - Deixou testamento?

            - Francamente, Mr...

            - Lam.

            - Francamente, Mr. Lam, não vejo pertinência nessa pergunta. Permite que lhe pergunte a que jornal pertence?

            - A nenhum.

            - O quê?!

            - A nenhum.

            - Mas julguei que estava a coligir material para a imprensa...

            - Sou detetive.

            - Oh! - a exclamação foi breve e violenta.

            - Quando teve conhecimento do sucedido?

            - Da morte do meu tio?

            - Sim.

            - Muito pouco tempo depois de o carro aparecer notificaram-me e pediram-me que comparecesse no apartamento onde... onde o corpo foi encontrado.

            - Tem aqui uma bonita casa.

            - Gosto dela. Disse diversas vezes ao meu tio que estaria bem num apartamento mais pequeno, mas ele insistiu sempre em que ficasse neste. É um bocado grande... dois apartamentos reunidos num só.

            Assoou-se e, de súbito, disse-me:

            - Tenho qualquer coisa no olho direito. Dá-me licença, um momento?

            - Com certeza.

            - É um grãozinho de poeira, ou coisa parecida.

            Torceu a ponta de um lenço, humedeceu-a, aproximou-se de um espelho e puxou para baixo apálpebra inferior do olho direito.

            - Talvez eu o possa ajudar.

            - Talvez.

            Revirou o olho direito. Tinha, de fato, lá no fundo um grãozinho acastanhado. Tirei-o com a ponta do lenço e ele agradeceu-me:

            - Obrigado.

            Voltamos para as nossas cadeiras e sentamo-nos.

            - Tem alguma pista quanto... quanto ao que aconteceu? - perguntou-me.

            - Não sou da Polícia. Sou particular.

            - Detetive particular?

            - Exatamente.

            - Posso perguntar-lhe quem o contratou, qual é o seu interesse, por que motivo... -calou-se, a olhar para mim.

            - Estou interessado num aspecto muito acidental da questão. Creio que o seu tio se preparava para vender o Edifício Stanberry.

            - Penso que sim.

            - Ele disse-lhe alguma coisa a esse respeito?

            - Apenas de modo geral. Eu sabia que a venda estava iminente.

            - Sabe qual era o preço?

            - Não sei, mas mesmo que soubesse não creio que existisse motivo para lhe dar essa informação. No fim de contas, Mr. Lam, parece-me que está a ser muito impertinente nas suas perguntas.

            - Que idade tinha o seu tio?

            - Cinqüenta e três anos.

            - Alguma vez foi casado?

            - Foi.

            - Era viúvo?

            - Não. Houve um divórcio.

            - Há quanto tempo?

            - Há cerca de dois anos, suponho.

            - Conhecia a mulher dele?

            - Claro que conhecia.

            - Onde se encontra ela agora?

            - Não sei.

            - Foi ela que pediu o divórcio ou ele?

            - Ela.

            - Houve um contrato de subsistência?

            - Acho que sim. Francamente, Mr. Lam, está a desviar-se muito do assunto, não lhe parece?

            - Disse à Polícia alguma coisa que não me tenha dito a mim?

            - Creio que não disse à Polícia tanto quanto lhe disse a si. As suas perguntas são muito... muito pessoais?

            - Peço desculpa. Compreende, eu... - sufoquei no meio da frase, tossi e engasguei-me. - Casa de banho, depressa!

            O indivíduo correu para uma porta, abriu-a e eu transpu-la, apressado. Ele atravessou o quarto e abriu a porta da casa de banho. Entrei, esperei cinco segundos e abri a porta. Ouvi-lhe a voz na sala. Estava a telefonar.

            Passei uma vista de olhos rápida pelo quarto limpo e bem arrumado. O guarda-fato estava cheio de roupa e numa prateleira alinhavam-se quase duas dúzias de pares de sapatos, todos cuidadosamente metidos em formas.

            Do lado de dentro da porta do guarda-fato havia dois porta-gravatas que deviam conter mais de cem gravatas. No toucador estavam, bem arrumados, o pente e as escovas, muito limpos. Na cômoda ou suspensas das paredes havia pelo menos uma dúzia de fotografias emolduradas.

            Mesmo defronte da cama via-se um espaço oval, com cerca de 30 cm de altura e 20 cm de largura, de cor um nadinha diferente da do resto da parede. Em cima da cômoda estava um cigarro partido ao meio, que era o único lixo do quarto.

            A porta abriu-se, de repente, e Archie Stanberry parou no limiar, a olhar-me com ar de censura.

            - Julguei que precisava de ir à casa de banho.

            - E precisava. Tem aqui um bonito quarto.

            - Mr. Lam, tenho de lhe pedir que saia. Não gosto dos seus métodos.

            - Como queira - redargüi, e dirigi-me para a sala.

            Stanberry atravessou o aposento e abriu a porta, com certa cerimônia, e depois parou, com uma dignidade de estátua. Mas eu não saí. Voltei a sentar-me na cadeira.

            Stanberry manteve a «pose», durante alguns momentos, e depois disse:

            - Peço-lhe que saia. Se não sair, serei obrigado a fazer qualquer coisa...

            - Pois faça.

            Esperou de novo e por fim fechou a porta, devagar. Ficamos a olhar um para o outro, até Stanberry quebrar o silêncio:

            - Tive para consigo a extrema delicadeza de consentir que se intrometesse no meu desgosto, por pensar que era um cavalheiro da imprensa.

            Falava em tom de censura, mas de censura de pessoa educada.

            - Eu disse-lhe que sou detetive.

            - Se mo tivesse dito mais cedo, não o teria recebido... sobretudo se soubesse que era um detetive particular.

            - Um detetive tem de se mexer, de investigar.

            - Não sei qual é o seu jogo, Mr. Lam, nem o que pretende fazer, mas se não sair imediatamente chamarei as autoridades.

            - Acho que faz muito bem. Olhe, quando as chamar, peça que liguem para Frank Sellers. Está ligado à Brigada de Homicídios e anda a investigar a morte do seu tio.

            Deixei-me ficar sentado onde estava, e Archie Stanberry  deixou-se ficar de pé onde estava. Passados momentos, Stanberry encaminhou-se, hesitante, para o telefone, mas mudou de idéias e sentou-se.

            - Não compreendo a razão da sua grosseria declarou.

            - Para começar, embora você seja homenzinho meticuloso e com hábitos asseados, não é assim tão limpo como parece... - Apontei com o polegar na direção do quarto. - É o sobrinho favorito de um tio rico que é o dono do prédio e, portanto, tem serviço de criada, e que serviço! Aquele quarto está um brinquinho.

            - Que tem isso a ver com o assunto?

            - É esse o ponto fraco da sua couraça - respondi-lhe, a sorrir.

            - Que quer dizer?

            Respondi-lhe imprimindo à voz toda a segurança possível:

            - A criada saberá dizer que retrato foi tirado da parede... Foi esse o seu erro. Não devia ter tirado tudo. Devia ter retirado a parte de trás da moldura, substituído o retrato por outro e pendurado de novo a moldura no seu lugar. Assim como está, vê-se uma diferençazinha de cor, no sítio onde esteve a moldura. E, claro, há também o buraquinho deixado na parede pelo preguinho de aço que a segurava.

            Olhou para mim como se o tivesse esmurrado no estômago.

            - Portanto, siga para em frente e chame a Polícia. Quando Frank Sellers chegar, chamaremos a criada, mostrar-lhe-emos a fotografia de Billy Prue e perguntar-lhe-emos se é a mesma que foi tirada da parede, mesmo defronte da sua cama.

            Os ombros penderam-lhe, como se ambos os seus pulmões tivessem deixado escapar todo o ar.

            - Que... que quer?

            - A verdade, naturalmente.

            - Lam, vou dizer-lhe uma coisa que nunca disse a ninguém... uma coisa que nunca esperei ter de confessar a uma única alma.

            Não disse nada; limitei-me a esperar.

            - Costumava passar pelo Rendezvous de vez em quando. Aliás, era natural.

            - Ia procurar material para o seu romance?

            - Não seja idiota. Ia procurar distração e dar uma vista de olhos. Quando um homem se dedica a um grande trabalho intelectual, precisa de se divertir um pouco.

            - E, por isso, você divertia-se com Billy Prue?

            - Quer fazer o favor de me deixar acabar?

            - Sou todo ouvidos.

            - Billy Prue vendeu-me cigarros. Olhei-a bem e achei-a uma das mulheres mais bonitas que jamais vira.

            - E, por isso, tentou a sorte?

            - Naturalmente. E não obtive absolutamente nada.

            - E então?

            - Então interessei-me mais a sério e infelizmente...bem, infelizmente o meu tio não aprovou a maneira como eu... como eu perdera a cabeça, segundo as suas palavras.

            - Que fez ele?

            - Não sei, Mr. Lam. Dou-lhe a minha palavra de honra de que não sei.

            - Mas que lhe parece que terá feito?

            - Nem sequer faço uma idéia.

            - Talvez eu o possa ajudar...

            Fitou em mim os olhos inchados e raiados de sangue, olhou-me como uma corça ferida a perguntar-me porque lhe dera um tiro.

            - O seu tio pensou que ela era uma interesseira?

            - Creio que essa dedução é óbvia, dado o que eu lhe disse.

            - Por isso, ele foi visitá-la e disse-lhe que, se ela lhe pregasse um susto que o curasse... por exemplo, se fugisse com outro qualquer, ou se permitisse que você encontrasse outro qualquer no apartamento dela, ou se fizesse fosse o que fosse que o desiludisse completamente, ele, o seu tio, lhe daria mais dinheiro do que ela conseguiria apanhar através do enlace matrimonial legítimo, seguido de uma tentativa para obter pensão alimentar através do divórcio.

            Archie tirou um lenço amarrotado da algibeira de trás das calças e começou a torcê-lo, entre os dedos.

            - Não sei - murmurou , não sei... Não penso que o tio Rufus fizesse uma coisa dessas... nem que a Billy o tivesse ouvido, se ele a fizesse. Acho que ela... que ela se ofenderia.

            - E pegaria num machado?

            - Meu Deus, dá comigo em louco com essas desagradáveis e cínicas observações. Claro que não! Billy não faria mal a uma mosca. Temos de afastá-la disto! É absolutamente necessário!

            - E a respeito do retrato?

            - Tirei-o da parede assim que soube que... enfim, quando soube o que acontecera.

            - Foi ela que lhe deu o retrato?

            - Não. Descobri em que fotógrafo tirava as suas fotografias publicitárias e subornei-o, para me dar uma bonita fotografia de pin-up. Ela não sabia que eu tinha uma cópia.

            - Até aqui tem sido cem por cento.

            - Cem por cento quê?

            - Ratazana - respondi-lhe e saí, deixando-o a olhar-me com ar de censura e a levar ao nariz um lenço empapado em lágrimas.

 

 Um Raio De Uma Encrenca

            O prédio onde conseguira arranjar um apartamento de pessoa só, graças a alguma simpatia e a muita sorte, ficava a cerca de três quarteirões da casa onde Bertha Cool morava, o que era, de todos os pontos de vista, demasiado perto. Tratava-se de um prédio chique, com posto telefônico particular, garagem e vestíbulo luxuoso, cuja renda devia ter sido fixada quando a fiscalização predial estava de costas.

            Arrumei o carro da agência, dirigi-me à recepção e disse:

            - Trezentos e quarenta e um.

            O homem sentado à secretária olhou-me vivamente e perguntou:

            - É novo por cá?

            Acenei afirmativamente.

            - Entrei hoje.

            - Ah, sim! Mr. Lam, não é verdade?

            - Exatamente.

            - Está aqui um recado para si.

             Estendeu-me a chave e uma folha de papel dobrada, que dizia: Telefonar imediatamente a Bertha Cool.

            - Além disso - prosseguiu o indivíduo, uma senhora nova tem estado a telefonar com intervalos de dez ou quinze minutos, mas não tem querido deixar o nome ou o número do telefone. Diz que volta a ligar.

            - Uma senhora nova?

            O gerente sorriu, condescendente, e explicou:

            - Tem uma voz jovem e atraente.

            Meti o recado de Bertha na algibeira e subi para o meu apartamento. O telefone tocava quando entrei. Fechei a porta, fui à casa de banho, lavei as mãos e a cara e esperei que a campainha deixasse de retinir. Depois levantei o auscultador e disse à telefonista:

            - Não volte a ligar para cá esta noite.

            - Peço desculpa, mas informei a pessoa que telefonou que o senhor não atendia. Pareceu-me muito preocupada e disse que era um assunto da maior importância.

            - Mulher?

            A rapariga confirmou e eu mudei de idéias:

            - Está bem, se ela voltar a telefonar ligue. Atenderei.

            Não tivera tempo de desfazer as malas, quando chegara. Por isso, pus uma delas em cima da cama e comecei a despejá-la. Uma das coisas que se deve dizer da Marinha é que ensina um homem a reduzir os seus pertences ao mínimo. Bocejei, abri a cama e peguei no pijama.

            O telefone tocou. Atendi e ouvi a voz de Bertha Cool:

            - Até que enfim, com a breca! Que diabo se passa consigo? Está a tornar-se tão importante que não se digna telefonar à sua patroa, para falar de negócios?

            - À minha sócia - corrigi.

            - Está bem, à sua sócia. Por que diabo não me telefonou quando chegou?

            - Tive que fazer.

            - Pois fique sabendo que ainda vai ter mais! Está metido num raio de uma encrenca! Venha cá.

            - Aonde?

            - Ao meu apartamento.

            - Ver-nos-emos de manhã.

            - Ver-me-á agora, se não quiser arrepender-se, e muito. Frank Sellers está aqui e você não está já no xadrez porque ele é meu amigo. Grandíssimo idiota, a tentar cortar as voltas aos chuis! Francamente, não sei por que raio me preocupo consigo! Devia deixá-lo ir para a cadeia, talvez lhe fizesse bem.

            - Chame o Sellers ao telefone.

            - É melhor vir cá.

            - Chame-o ao telefone.

            Ouvi Bertha dizer:

            - Ele quer falar consigo.

            Um momento depois, a voz do sargento soou-me, forte, ao ouvido.

            - Escute, Frank, estou completamente estourado e não me apetece perder tempo às voltas com a Bertha, por causa de qualquer minúcia técnica banal. E se você me dissesse de que se trata?

            - Sabe muito bem de que se trata. Não me venha com essas histórias de inocência, ou faço-o engolir os dentes! Estou a arriscar-me muito mais do que devia para proteger a Bertha e posso ficar tramado com isso.

            - Mas de que diabo está a falar?

            - Sabe muito bem de que estou a falar. Mas que lugar mais estúpido, mais idiota, para guardar a arma do crime! É disso que estou a falar.

            - Qual arma do crime?

            - O machado, anjinho.

            - E onde, segundo você, a guardei?

            - Não me faça rir!

            - Eu também estou a rebolar-me de riso na praça pública!

            - Não seja parvo! - irritou-se Sellers. - Você está tão atascado que a única maneira de se safar é demonstrar que está absolutamente limpo. Se não o conseguir, dará um passeiozinho comigo e tanto você como a Bertha perderão a licença. E, agora, de quanto tempo precisa para cá chegar?

            - Cinco minutos certos - respondi, e desliguei.

            O apartamento de Bertha ficava no quarto andar. Senti os joelhos fracos, quando saí do elevador, e apercebi-me de súbito de que estava cansado. A distância até à porta de Bertha pareceu-me mais de um quilometro. Toquei à campainha e a minha sócia abriu a porta.

            O aroma agradável de bom uísque escocês invadiu-me as narinas. Olhei por cima de Bertha e vi Frank Sellers sentado em mangas de camisa, com os pés em cima de um tamborete e um copo na mão. Olhava para o copo de testa franzida e parecia tão preocupado quanto era possível a um chui calmeirão.

            - Entre - ordenou-me Bertha, rispidamente. – Não fique aí parado a olhar para mim.

            Entrei. Bertha vestia uma bata solta, de trazer por casa.

            - Tem feito algumas coisas perigosas na sua vida, mas esta foi a primeira vez que me deixou parva com tanta estupidez! Não percebo como pôde fazer semelhante asneira. Devem ter sido as pernas...

            - Que pernas? - perguntou o sargento.

            - Quando este tipo encontra uma rapariga atraente e com pernas bonitas, perde toda a noção da perspectiva - respondeu-lhe Bertha.

            - Então isso explica tudo - observou Sellers tristemente.

            - Isso não explica coisíssima nenhuma! - repliquei.

            - Já tinha obrigação de saber que, se lhe dá ouvidos, acaba a ver navios.

Sellers tentou sorrir, mas só conseguiu fazer uma careta.

            - Não tente enganar-me e pôr-me de parte, pois não lho permitirei - ameaçou Bertha.

            - Custa-me muito proceder assim, Donald, mas foi um grande trouxa e não está a pedir outra coisa. Vai ser atirado às lonas e provavelmente perderá a licença. Talvez eu possa manter a Bertha de fora, mas você está atolado e as perspectivas não são nada boas.

            - Ouça primeiro o que ele tem a dizer – ordenou Bertha, ríspida, ao sargento. - Não comece a valer-se da sua autoridade para intimidar o Donald.

            - Não me estou a valer de autoridade nenhuma redargüiu Sellers, com certa irritação. - Estou apenas a dizer ao rapaz o que se passa.

            - Mas não precisa de lho dizer, a ele - insistiu a minha sócia, a respirar agressividade por todos os poros.

            - Nem que você vivesse mil anos teria tantos miolos como o Donald.

            Sellers ia a dizer qualquer coisa, mas mudou de idéias e bebeu um golo de uísque.

            Os olhos de Bertha tornaram-se, de súbito, compadecidos, enquanto ela dizia, solícita:

            - Está branco como a cal, queridinho. Que aconteceu?  Não está a permitir que esta história o deite abaixo, pois não?

            Abanei a cabeça.

            - Os médicos recomendaram-lhe que não se esforçasse muito, foi você mesmo quem mo disse. Ouça, já jantou?

            A pergunta apanhou-me de surpresa. Tentei recordar em que empregara o meu tempo e por fim respondi:

            - Não. Agora que perguntou, lembro-me de que não jantei.

            - Isso é mesmo seu! Regressa da guerra meio doente, com o corpo atafulhado de vírus tropicais e a resistência minada, com ordens para evitar a excitação e não se esforçar muito, e que faz? Mete-se num caso de assassínio e ainda por cima não janta!

            Bertha envolveu-nos a ambos num olhar furibundo e acrescentou:

            - E agora acho que tenho de cozinhar qualquer coisa para lhe meter no bucho, diabos o levem!

            - Há uma casa ao fundo da rua que ainda está aberta. Ouvirei o que a autoridade tem para me dizer e depois vou até lá.

            - Aquela espelunca! - rosnou Bertha a caminho da cozinha, movimentando o corpo alentado com uma graça suave, debaixo da bata solta de trazer por casa.

            - Onde arranjou o machado, Donald? - perguntou-me Sellers.

            - Calado! - ordenou Bertha, enquanto lhe lançava um olhar fulminante, por cima do ombro. - Não consinto que atormente o rapaz enquanto ele tiver o estômago vazio. Beba um scotch, queridinho, e venha para a cozinha.

            Tomei a bebida e fui para a cozinha. Sellers seguiu-me. Bertha partiu ovos para uma tigela, deitou fatias fininhas de bacon numa frigideira e pôs uma cafeteira ao lume, tudo com uma eficiência calma e pesada, mas enganosa, pois ela não dava a impressão de se mexer depressa.

            Frank Sellers sentou-se no acanhado nicho do pequeno-almoço e pôs o copo à sua frente, em cima da mesa. Tirou um novo charuto da algibeira e repetiu a pergunta:

            -Onde arranjou o machado?

            - Que machado?

            - Encontraram um machado no carro da agência, queridinho - explicou Bertha. - Serraram-lhe o cabo, de modo que ficou apenas com 21,5 de comprimento, e quem utilizou a serra não fez bom trabalho. Serrou parte do cabo, de um lado, e depois virou o machado e serrou mais um bocado, do outro.

            Sellers olhou-me e eu fitei-o e abanei a cabeça:

            - Isso é novidade para mim, Frank.

            - Explique-lhe como o encontrou, Frank – pediu Bertha. - Acredito que o pulhazinho está a falar verdade.

            - A Polícia não é tão estúpida como parece, bem sabe.

            - Pois sei, sargento.

            - Bem, fomos falar com o Archie Stanberry. Encontramo-lo todo abalado pelo desgosto, mas ele soubera do crime antes de nós chegarmos e...

            - Como soube isso? - interrompi-o.

            - Pelo modo como ele procedeu. O tipo estava a representar uma cena que tinha ensaiado. Desfez-se todo em sorrisos suaves, quando nos recebeu, e desejou saber em que nos podia ser útil. Fizemos-lhe algumas perguntas e ele comportou-se com excessiva suavidade e inocência. Depois contamos-lhe o sucedido e o tipo ficou K. O. de todo, mas era tudo fita, via-se perfeitamente que era tudo fita. Cometeu o erro comum à maioria das pessoas: exagerou um bocadinho. Claro que não se trata de nada que se possa provar em tribunal, mas apesar disso sente-se, adivinha-se.

            Acenei afirmativamente, a concordar.

            - Bem, fingimos que tomávamos o gajo a sério, dissemos-lhe mais umas coisas e depois saímos, pusemos-lhe o telefone sob escuta e encarregamos dois tipos de ficarem alerta, para sabermos quem o visitava.

            Acenei de novo afirmativamente.

            - Você apareceu, no carro da agência. Entrou e os rapazes pensaram que talvez fosse boa idéia dar uma vista de olhos ao seu automóvel, só para examinarem o certificado de matrícula e coisas desse gênero. Não o reconheceram, nem a si nem ao automóvel. Não se esqueça de que esteve uns tempos fora da circulação.

            Novo aceno de cabeça da minha parte.

            - Bem, os rapazes revistaram as traseiras do carro e encontraram um lindo machadinho de cabo curto. Observaram-no com atenção e verificaram que estava manchado de sangue. Claro que lhe mexeram demasiado, diabos os levem, mas não os podemos censurar por isso. No fim de contas, eram apenas dois homens que trabalham na rua, com uma missão de rotina.

            O aroma do bacon misturou-se com o do café. Cuidadosamente, Bertha escorreu a gordura do bacon, virou-o na frigideira, ligou a torradeira elétrica e pôs duas fatias de pão a torrar.

            - Como foi a arma do crime parar ao seu carro, Donald?

            - Era a arma do crime? - perguntei a Sellers.

            O sargento acenou afirmativamente.

            - Diabos me levem se sei - murmurei.

            - Essa resposta não chega, tem de arranjar melhor.

            - O pulhazinho está a dizer a verdade, Frank - afirmou Bertha.

            - Como sabe?

            - Sei por que, se estivesse a mentir, diria uma mentira que soaria mais convincente do que a verdade, e já a traria toda engatilhada! - respondeu-lhe Bertha, abespinhada, Essa história do «não sei» só pode significar que ele é estúpido ou está inocente, e ser estúpido é coisa de que ninguém o pode acusar.

            Sellers suspirou e voltou a olhar para mim.

            - Comecemos pelo princípio - propus, fatigado, - Fui buscar o carro da agência e segui para o gabinete do oficial de justiça da comarca, a fim de consultar uns registros. Demorei-me um bocado no Gabinete de Estatísticas Vitais, saí e fui ao Rimley Rendezvous. Puseram-me na rua e voltei ao escritório. Depois saí para falar com uma testemunha e deixei o carro estacionado...

            - Isso só não chega - interrompeu Sellers. - Refiro-me à testemunha.

            - É uma testemunha que não tem nada a ver com o assassínio.

            - Está metido numa encrenca, Donald.

            - Está bem, a testemunha mora na Graylord Avenue.

            - Em que número?

            - Quanto a isso não leva nada. Faria demasiadas ondas.

            Sellers abanou a cabeça e insistiu:

            - Trata-se do machado com o qual o mataram, Donald. Neste momento, encontro-me entre você e o gabinete do promotor de justiça.

            - Pois sim - resignei-me. - Philip E. Cullingdon, South Graylord Avenue, 906.

            - Que tem ele a ver com o assunto?

            - Trata-se de outro caso.

            - A que horas lá chegou? 

            - Não sei.

            -Quanto tempo se demorou?

            Esfreguei o queixo e respondi:

            - Não faço idéia, Frank. Suponho que o tempo suficiente para me porem o machado no carro.

            - Foi Cullingdon que disse?

            Acenei afirmativamente.

            Sellers levantou-se do banco com tanta brusquidão que inclinou a mesa e quase entornou as bebidas. Bertha levantou a cabeça do que estava a fazer no fogão e ameaçou:

            - Raios o partam, Frank Sellers! Se entorna esse uísque, racho-o! É uísque dos clientes.

            O sargento dirigiu-se para o telefone sem a olhar, sequer. Ouvi-o folhear a lista telefônica e, passados momentos, o girar do disco de marcação, seguido por uma conversa em voz baixa.

            - Está em maus lençóis - disse Bertha.

            Não respondi. Não valia a pena. Bertha rasgou uma toalha de papel, dobrou-a, pô-la numa prateleira existente por cima do fogão, colocou o bacon a escorrer no papel, deitou um pouco de natas espessas nos ovos, bateu tudo muito bem, despejou na frigideira e começou a mexer.

            O uísque aquecia-me o estômago e eu já me sentia menos como se alguém me tivesse tirado a rolha e deixado fugir toda a minha vitalidade pelos dedos dos pés.

            - Coitado do meu pulhazinho! - exclamou Bertha, compadecida.

            - Estou bem.

            - Tome outra bebida.

            - Não quero mais, obrigado.

            - Do que precisa é de comer. De comer e descansar.

            Sellers desligou e depois marcou outro número e falou de novo. Desligou mais uma vez e voltou para a cozinha. Servira-se de mais uísque enquanto estivera na sala. Fitou-me, com ar intrigado, pareceu que ia dizer qualquer coisa, conteve-se e desequilibrou de novo a mesa, ao sentar-se.

            Bertha lançou-lhe um olhar furioso, ao vê-lo tão desastrado, mas não disse nada. Momentos depois, pôs-me à frente um prato com ovos mexidos, quentes, tosta bem barrada de manteiga, bacon dourado e frito mesmo na conta, e uma grande chávena de café com pequenos glóbulos de nata a flutuar.

            - Adoce a gosto - disse-me. - Não me esqueci que gosta de natas no café.

            Adocei e agradeci, com um aceno de cabeça. O café transformou o calor que se acendera no meu estômago num braseiro sólido, substancial. A comida sabia bem.

            Era a primeira vez, em meses, que tinha verdadeiro apetite. Bertha observava-me, enquanto eu comia, e Sellers olhava para o copo, de testa franzida.

            - Encontrou-o? - perguntou a minha sócia ao sargento.

            Acenou afirmativamente.

            - E então? - insistiu Bertha.

            Sellers abanou a cabeça.

            - Está bem, fique calado, se lhe apetece - resmungou Bertha.

            Depois sentou-se e Sellers estendeu a mão e colocou-a sobre a dela.

            - Você é uma boa mulher.

            Bertha lançou-lhe um dos seus olhares furibundos e barafustou:

            - Não lhe custava nada dizer em que está a pensar.

            - Cullingdon tem receio de falar. Houve gente a mais a tentar fazê-lo dar à dica, servindo-se de excessivos argumentos diferentes... além disso estava deitado e ficou aborrecido.

            - E então?

            Sellers limitou-se a abanar a cabeça. Bebi outro golo de café e disse a Bertha:

            - Não seja criança. Ele contatou com um carro-patrulha e vão agentes a caminho. Está à espera de um relatório.

            Bertha olhou para Sellers, que por sua vez olhou para mim e depois para a minha sócia.

            - Garoto esperto - murmurou.

            - Eu bem lhe disse que o pulhazinho tinha miolos.

            - Voltemos à sua história - disse-me Sellers. - Deixou o carro estacionado cá fora, enquanto visitou a testemunha, mas não me disse durante quanto tempo. Viu mais alguém, lá?

            - É possível que tenha visto... mas ninguém que tivesse qualquer oportunidade de «plantar» a arma do crime no meu carro.

            - A si compete-lhe dizer-me os fatos, os nomes e os lugares; a mim compete-me tirar as conclusões.

            - Não se trata de nomes.

            - Quantos?

            - Um.

            - Quero sabê-lo.

            - Não o saberá... por enquanto.

            - Está em maus lençóis.

             -Não tão maus como isso.

            - Acho que sim.

            Limitei-me a continuar a comer. Bertha olhou-me como se fosse capaz de me arrancar a cabeça à dentada.

            - Se você não lhe diz, digo-lhe eu - ameaçou-me.

            - Cale-se.

            Sellers olhou-a, na expectativa.

            - Vou-lhe dizer - insistiu Bertha.

            - Nem sequer sabe - lembrei-lhe.

            - Uma fava, é que não sei! Sempre que você gasta os fundos da sociedade para comprar três maços de cigarros e depois fica com essa expressão sonhadora

quando o sargento lhe faz uma pergunta simples, sei a resposta. E não julgue, nem por um momento, que é farronca, que não sei! No fim de contas, em certo sentido, não podemos censurá-lo. Esteve lá para os Mares do Sul tanto tempo que ficou com a cabeça cheia de idéias românticas acerca das mulheres. Agora voltou

e a tipa a que, há uns dois anos, teria chamado uma pega, parece-lhe uma visão de encantamento, ainda envolta numa aura celestial.

            O sargento Sellers olhou para Bertha cheio de admiração.

            - Apre, você é romântica! - exclamou, e estendeu de novo a mão para a dela.

            Bertha afastou-a, brusca, e ameaçou-o:

            - Um destes dias dou-lhe um murro nos queixos, se continuar a atirar-se a mim.

            Sellers sorriu.

            - É assim que gosto das mulheres: práticas e duras.

            Bertha limitou-se a olhá-lo como se quisesse fuzilá-lo.

            - As mulheres gostam de pensar que são ternas e femininas, Frank - observei, e o sargento fitou-me, surpreendido.

            - Cale mas é o raio da boca - recomendou-me Bertha. - Já tem chatices que chegam.

            Empurrei a chávena do café vazia para ela e disse-lhe:

            - Creio que tem de fazer as honras da casa.

            Bertha encheu-a de novo. O telefone tocou. Sellers nem sequer esperou que Bertha fizesse menção de ir atender. Ao levantar-se e correr para a sala entornou parte do meu café para o pires.

            - É como um touro numa loja de louça - gritou-lhe a minha sócia, um brutamontes de um chui de pés chatos a armar em civilizado! Espere um momento, queridinho, eu limpo isso.

            Foi ao lava-louça, despejou o pires, deitou mais café na chávena e trouxe-mo.

            - Acautele-se quando o orangotango voltar a sentar-se, pois desta vez é capaz de virar a mesa. Mas que se passa? A Bertha não cozinhou bem o bacon? Acenei afirmativamente.

            - O que comi soube-me bem, Bertha.

            - Então coma o resto, ande.

            Abanei a cabeça.

            - Por quê?

            - Não sei. Tenho andado assim, ultimamente. Tenho fome, mas como algumas garfadas e basta para que o estômago se me revolte. Não seria capaz de engolir nem mais um bocadinho, mesmo que disso dependesse a minha salvação. Aliás, havia muito tempo que não comia tanto. Esta noite estava mesmo esfomeado.

            - Pobre rapaz - murmurou Bertha, compadecida, e sentou-se no lugar do canto.

            Fui bebendo o café devagarinho, enquanto os olhinhos sôfregos da minha sócia me observavam com maternal solicitude. Passados momentos, o sargento voltou, desta vez a andar normalmente. Franzia a testa e tinha um ar tão ausente que até se esquecera de deitar mais uísque no copo.

            Bertha pegou na minha chávena e no meu pires e levantou-os, enquanto ele se sentava. Depois colocou-os de novo à minha frente e perguntou-lhe:

            - E então?

            - Está certo. Dois tipos foram lá, num carro-patrulha, e interrogaram o indivíduo. Ele diz que o Donald o visitou e lhe fez perguntas acerca de um acidente de automóvel. Palavra, desta vez enganou-me.

            - Enganei-o como?

            - Enganou-me quando disse que o assunto não tinha nada a ver com este caso. Teria sido capaz de apostar oito semanas de salário contra um cêntimo furado em como estava a intrujar-me. Mas o tipo afirma que lhe fez perguntas acerca de um acidente de automóvel ocorrido há bastante tempo... Disse também que depois apareceu uma rapariga, que se identificou como repórter de um jornal qualquer e começou a interrogá-lo acerca do mesmo acidente. Ele telefonou para o jornal que ela dizia representar, descobriu que era mentira e mandou-a embora.

            Bertha olhou-me, um nadinha apreensiva.

            - Bem, no meu modo de ver, o Donald foi um bocadinho descuidado, mas não é exatamente um idiota prosseguiu o sargento. - Localizou esse tal Cullingdon

e foi falar com ele. A tipa seguiu o Donald até lá, mas ele não se deixou levar, percebeu que ela o seguia. Esperou que a fulana entrasse e depois pregou-lhe uma partida.

             Cullingdon diz que foi à janela, para ver se conseguia tirar o número da matrícula do carro da rapariga. Viu-a entrar no automóvel e, depois, o Donald sair do seu, aproximar-se e tirar o chapéu, a cumprimentá-la. Aconselhou-a, sem dúvida, a não se meter onde não era chamada. Depois entrou no automóvel dela e partiram juntos. Cullingdon disse que o Donald tomou a precaução de contornar o carro pela frente, para entrar, sempre com a mão em cima dele, para que a rapariga não resolvesse pôr-se a andar sem ao menos lhe dar a oportunidade de saltar para o estribo. Ele acha que o Donald é muito esperto.

            - E é - afirmou Bertha.

            - Por isso, Cullingdon achou conveniente manter as coisas debaixo de olho, como se costuma dizer. Admite que saiu e foi examinar o carro do Donald, para ver a matrícula. Verificou que ele lhe dissera a verdade, que lhe indicara o nome verdadeiro e a qualidade em que o procurara. Isso é um ponto a favor do rapaz.

            Continuei a beber o café, sem dizer nada.

            - O automóvel esteve lá estacionado muito tempo, segundo o homem diz. Olhou pela janela, de vez em quando, e ele continuava lá. Por fim, quando voltou a olhar, já não estava. Mas não viu o Donald ir buscá-lo. Portanto, se o Donald nos puder dizer...

            Abri a carteira e tirei o talão do táxi, que guardara para comprovar a despesa. Estendi-o ao sargento e disse-lhe:

            - Foi este táxi que me levou lá.

            - Onde o apanhou?

            - Algum lugar na 7ª Rua. Não sei dizer exatamente onde.

            Sellers respirou fundo.

            - Bem, creio que isto servirá. Alguém colocou a arma do crime no carro, enquanto esteve estacionado defronte da casa de Cullingdon. Mas quem diabo o poderia ter feito?

            - Isso é trabalho para a Polícia - declarei. – Eu vou para casa, ver se durmo um bocado.

            - O seu amigo Cullingdon está-lhe grato por você lhe ter dito a verdade, Donald. A propósito, é excelente, do ponto de vista da Polícia, que a tenha dito. Cullingdon pediu-me que lhe dissesse que o montante da indenização paga por acordo foi de dezessete mil oitocentos e setenta e cinco dólares e que lhe parece que o caso foi tratado numa base contingencial e os advogados dela receberam ou um terço ou metade da importância acordada.

            - Foi muito amável da parte de Cullingdon comentei.

            - A verdade é que você estava, de fato, a investigar outro caso - resmungou Sellers, de testa franzida.

            - Por mais voltas que lhe dê, a realidade é essa.

            - Somos uma agência grande - sentenciou Bertha.

            - Tocamos muitos burrinhos.

            O sargento olhou-a, pensativo, mas não disse nada.

            - Bem, vou para casa dormir um bocado - anunciei.

            - Estou arrombado.

            - Pobre rapaz, tem todo o ar disso - compadeceu-se Bertha.

            Acompanharam-me os dois à porta e o sargento observou:

            - Bem vistas as coisas, Lam, eu devia ter calculado. Você não faria uma coisa tão estúpida como encontrar aquela arma e atirá-la para a retaguarda do carro.

            - Tinha algumas impressões digitais? – inquiriu Bertha, em tom quase excessivamente casual.

            - Só as dos dois tipos que encontraram o machado e o viraram e reviraram antes de perceberem de que se tratava - respondeu o sargento. - Um assassino com esperteza suficiente para atirar a arma do crime para a retaguarda do automóvel de outra pessoa também a tem, sem dúvida, para lhe limpar o cabo.

            - E a cabeça do machado? - insistiu Bertha.

            - Manchas de sangue e uns dois cabelos descobertos ao microscópio. Trata-se de fato da arma do crime.

            - Obrigado pelo jantar - agradeci.

            Bertha respondeu-me num tom maternalmente terno:

            - Não tem de quê, queridinho. Agora vá dormir, passe uma noite descansada e não se preocupe com coisa nenhuma. No fim de contas, não temos, nem havemos de ter, nada a ver com esse assassínio. E no outro caso fizemos trabalho que vale duzentos dólares.

            - Boas noites - despedi-me.

            Sellers e Bertha responderam, em coro:

            - Boas noites.

            Ambas as vozes tinham o timbre da amizade.

 

 Foi Por Um Triz

            Os três quarteirões de regresso ao meu apartamento pareceram-me três quilômetros. Desci à garagem e disse, a sorrir, ao encarregado:

            - Vou ter de tirar o meu carro outra vez.

            O homem olhou para o quarto de dólar que lhe dei como se fosse mais um insulto do que uma gorjeta e depois afastou dois automóveis do caminho e indicou

com o polegar o carro da agência:

            - Aí o tem.

            Sentei-me ao volante, liguei o motor e saí da garagem. Desci a rua numa distância de cerca de seis quarteirões e por fim encostei ao passeio e parei. Esperei cerca de cinco minutos, arranquei de novo, acelerei, virei a esquina com velocidade e descrevi uns dois oitos à volta dos quarteirões.

            Ninguém me seguia. O nevoeiro vindo do oceano começava a assentar. O ar arrefecera e a umidade gelada parecia chegar-me aos ossos. Estaria bem durante um bocado e depois a fraqueza apoderar-se-ia de mim e o meu sangue, diluído pelos trópicos e enfraquecido pelos vírus, arrefeceria e far-me-ia tremer, como acontecia sempre que os arrepios da malária se apoderavam de mim. Mas essa espécie de ataque só durava um ou dois minutos e a seguir voltava a sentir-me bem. Tratava-se apenas de fraqueza.

            Segui para o Palácio de Justiça, procurei um bom lugar e estacionei. A meia hora que esperei pareceu-me uma eternidade.  Por fim, Billy Prue transpôs, apressada, o portal iluminado, olhou para um lado e para o outro da rua, virou para a direita e começou a andar depressa, como se soubesse exatamente para onde ia.

            Dei-lhe quase um quarteirão de avanço antes de arrancar. Ao fim de dois quarteirões ela começou a olhar para um lado e para o outro, à procura de um táxi. Aproximei o carro do passeio, desci o vidro e perguntei-lhe:

            - Quer uma boleia?

            O olhar inicial de desconfiança transformou-se em reconhecimento e depois em irritação.

            - É melhor aceitar - insisti. - Não lhe custará mais nada.

            Aproximou-se, abriu a porta de repelão e protestou:

            - Com que então, espiou-me? Devia ter calculado.

            - Não seja idiota - redargüi, fatigado. - Estou a tentar dar-lhe uma aberta.

            - Como soube que eu estava aqui?

            - É uma história muito comprida.

            - É melhor contá-la.

            - Alguém meteu a arma do crime no meu carro, enquanto ele esteve estacionado defronte da casa do Cullingdon.

            A sua exclamação abafada, de surpresa, talvez fosse exagerada... ou talvez não.

            - Naturalmente, eles fizeram-me passar um mau bocado. Bertha Cool (a minha sócia) pensou que você me estendera uma armadilha.

            -E foi-se aos molhos com a Polícia, não?

            - Não seja pateta. Ela não é assim tão estúpida.

            - Bem, mas como foi que...?

            - Bertha Cool estava irritada. Atirou-me uma piadinha acerca de eu ter comprado três maços de cigarros, mas Frank Sellers, da Brigada de Homicídios, procedeu como se nem a tivesse ouvido. Foi assim que fiquei a saber onde você estava.

            - Não percebo.

            - O Sellers também não é parvo. Se não soubesse já tudo a seu respeito, teria agarrado a piada dos três maços de cigarros com unhas e dentes e tentaria arrancar a Bertha o máximo de informação possível, para saber com que linhas se cosia. Mas como ignorou a alfinetada, fingindo nem sequer a ter ouvido, percebi que ele já sabia tudo a seu respeito. E se ele sabia tudo a seu respeito antes de me ter ido procurar, era lógico supor que você se encontrava no gabinete do promotor de justiça. A única coisa que eu não sabia era se iam detê-la ou mandá-la embora. Não esperaria mais do que outra meia hora, mas...

            Comecei a tremer. Meti travões e reduzi a velocidade, mas agarrei o volante com força e disfarcei assim a tremura. Billy Prue não desviava os olhos de mim. Passado um minuto o ataque terminou e acelerei de novo.

            - Portanto, eu saí e você estava à espera – observou a minha companheira. - Para quê?

            - Para a ver.

            - Com que fim?

            - Com o fim de compararmos notas.

            - Acerca de quê?

            - Como foi a arma do crime parar ao meu automóvel enquanto ele esteve estacionado defronte da casa de Cullingdon?

            - Não sei.

            - Tente de novo.

            - Disse-lhe a verdade, Donald. Não sei. :

            - Não gosto que façam de mim bode expiatório.

            - Nunca pensei que gostasse.

            - E quando não gosto de uma coisa, não fico de braços cruzados.

            - Já lhe disse que não sei absolutamente nada acerca desse assunto.

            - Encaremos o caso do seguinte modo - disse, enquanto conduzia devagar. - Você vai a casa de Cullingdon. Está assustada. Precisa de uma testemunha. Dá-me uma boleia e inventa uma anedota acerca de ter encontrado o corpo de Stanberry. Depois vai ao Rimley e eu ponho-me ao fresco, como você devia ter calculado que sucederia. Percorro meia dúzia de quarteirões a pé até arranjar um táxi. O táxi leva-me a South Gray lord Avenue, 906, e eu meto-me no meu automóvel e regresso à agência, tenho uma conversa com a minha sócia e depois meto-me outra vez no automóvel e vou visitar Archie Stanberry.

            - E então? - perguntou, quando me calei.

            - Decorreu tempo suficiente para o Rimley mandar colocar a arma do crime no meu carro, antes de eu lá chegar.

            - Pensa que ele saiu a correr, largou a arma no carro e…

            - Não seja patetinha. Ele limitou-se a levantar o auscultador do telefone e a dizer a alguém: «O carro do Donald Lam está estacionado defronte do número 906 da South Graylord Avenue. Seria um lugar porreiro para a Polícia descobrir a arma do crime, pois a Billy Prue estava na sua companhia quando descobriram o corpo. A Polícia pensará que ele está implicado no caso e...»

            - Ora, tretas! - interrompeu-me.

            - Sei que é fácil fazer uma partida dessas.

            - Se utilizasse a cabeça nem que fosse um minuto, compreenderia que isso seria a última coisa que o Pittman Rimley faria. No momento em que você foi implicado, as atenções voltaram a concentrar-se em mim. Foi por esse motivo que me chamaram ao gabinete do promotor de justiça e me submeteram a um interrogatório tão apertado. Confesso que não percebi porque faziam semelhante coisa, a não ser que você me tivesse atraiçoado.

            Encostei o carro ao passeio e parei. Estávamos numa rua comercial sossegada, quase sem trânsito e com pouca luz. Os edifícios pequenos, de um andar, estavam todos encerrados.

            - É aqui que saio e vou a pé? - perguntou-me Billy, nervosamente.

            - Quero dizer-lhe uma coisa.

            - Então diga.

            - Fui ao Rimley Rendezvous. Você disse-me que saísse. Eu não saí. O chefe dos criados conduziu-me ao gabinete do Rimley. Este disse-me que saísse e não voltasse.

            - Bem, diga-me qualquer coisa que eu já não saiba.

            - O relógio de pulso do Rimley estava uma hora adiantado. O relógio que ele tem na chaminé estava uma hora adiantado.

            Ouvia-me numa imobilidade absoluta. Dir-se-ia que nem sequer respirava.

            - Isso é novidade? - indaguei.

            Continuou absolutamente imóvel e muda.

            - Encontramos o corpo de Rufus Stanberry na sua banheira. O relógio de pulso dele estava uma hora atrasado.

            - E que deduz disso, Mr. Cérebro? - perguntou, tentando ser engraçada e falhando redondamente.

            - Deduzo disso que Rimley esteve a preparar um álibi. Adiantou o relógio de pulso e o da prateleira uma hora. É provável que o Stanberry tenha estado no seu gabinete. É provável que, pouco antes, Stanberry tenha ido ao lavabo e tenha tirado o relógio para lavar as mãos. É provável que o encarregado do lavabo tivesse recebido ordens para lhe adiantar o relógio uma hora.

            - Adiantar uma hora? - repetiu, sem qualquer expressão especial.

            - Foi o que eu disse.

            - Mas há pouco disse que, quando o encontramos, o relógio de pulso dele estava uma hora atrasado.

            - Tenho de pôr os pontos em todos os «ii»?

            - Acho melhor. Já que começou a fazer «ii», é melhor terminá-los artisticamente.

            - Rimley queria preparar um álibi engenhoso. Stanberry foi vê-lo depois de lhe terem mexido no relógio de pulso. Rimley aproveitou uma oportunidade qualquer para chamar a atenção de Stanberry para as horas. Este admirou-se de ser tão tarde, mas cotejou o seu relógio com o que Rimley tinha na prateleira. E depois, para melhor confirmação, Rimley mostrou-lhe o próprio relógio de pulso. Daí em diante, tratou-se apenas de um caso de demasiados cozinheiros meterem a colherada e estragarem o caldo.

            - Que quer dizer?

            - Quando você encontrou o cadáver de Stanberry. Sabia que o relógio dele devia estar uma hora adiantado. Não sabia que horas eram, porque você não usa relógio. Partiu apenas do princípio de que o relógio de pulso de Stanberry estava adiantado uma hora e, por isso, atrasou-o uma hora. Mas qualquer outra pessoa, que também sabia que o relógio dele estava adiantado uma hora, já o atrasara outra.

            Ficou calada durante tanto tempo que olhei para ela, para ver se não teria desmaiado.

            - Então? - perguntei-lhe.

            -Não tenho nada a dizer... pelo menos a si.

            -Está bem - redargui, e liguei o motor.

            - Para onde vamos?

             -Para o apartamento de Bertha Cool.

            - Que há no apartamento dela?

            - Está lá o sargento Frank Sellers, da Brigada de Homicídios.

            - E que vamos nós lá fazer?

            - Dizer-lhe o que eu lhe disse, a si, e deixá-lo falar a ele, daí em diante. Estou farto de ser trouxa.

            Aguentou em silêncio durante uma dúzia de quarteirões e depois estendeu a mão e desligou a ignição.

            -Está bem, pare.

            - Vai falar?

            - Vou.

            Encostei ao passeio e recostei-me no banco.

            - Fale, então.

            - Matar-me-ão, se souberem que lhe disse o que vou dizer.

            - Será presa e acusada de assassínio premeditado, se não disser.

            - Sabe ser duro, quando quer.

            Lutei contra outro ataque de tremuras, à medida que o nevoeiro frio e úmido me penetrava na medula dos ossos, e consegui dizer, ameaçador:

            - Sou tão duro e frio como a parte de dentro da porta gradeada de uma cadeia.

            - Está bem, que quer saber? - perguntou, resignada.

            - Tudo.

            - Não lhe posso dizer tudo, Donald. Posso dizer-lhe as coisas que se relacionam comigo, o suficiente para compreender que ninguém está a armar a estrangeirinha para incriminá-lo... mas não lhe posso dizer as coisas que se relacionam com outros.

            - Ou me conta aqui e agora a história toda, sem esperar por reforços, ou o sargento Frank Sellers submete-a a um interrogatório de terceiro grau. Decida-se.

            - Isso não é justo.

            - É justo para mim.

            - Não é justo colocar-me nessa situação.

            - Decida-se. Já me arrisquei por si duas vezes e começo a ficar farto disso. Pode começar a pagar-me, imediatamente.

            - Podia sair deste carro e ir-me embora. Você não se atreveria a obrigar-me a voltar para trás.

            - Experimente e verá o que acontece.

            Estava a tremer de novo, mas ela encontrava-se tão absorta na encrenca em que estava metida que nem deu por nada.

            Ao fim de dez minutos de silêncio perguntou-me:

            - Como imagina que Rufus Stanberry ganhou o seu dinheiro?

            - Quem está a falar é você.

            - Chantagem.

            - Continue a falar.

            - Nós não soubemos, durante algum tempo.

            - Nós, quem?

            - Pittman Rimley.

            - Que aconteceu, quando ele descobriu?

            - Começou a mexer-se.

            - Fale-me da chantagem.

            - Não era nos moldes habituais. O indivíduo era astuto como o próprio Diabo. Embelezava muito as coisas, dava-lhe os retoquezinhos que lhe permitiam cobrar dinheiro grado.

            - Mrs. Crail, por exemplo?

            - Exatamente. Não se incomodou com ela enquanto não passou tudo de bagatelas; esperou que casasse e então cobrou à grande. E estava a proceder de maneira que não arriscava nada: ia vender-lhe o prédio pelo triplo do seu valor.

            - Bom negócio, para quem consegue fazê-lo.

            - Ele ia fazê-lo. Procedia sempre de maneira que praticamente não se arriscava. A maior parte das vezes as suas vítimas nem o conheciam pessoalmente. Talvez tenha exercido chantagem sobre pessoas que não conhecia de vista.

            - Como?

            - Tinha uma organização qualquer, evidentemente, uma espécie de pequeno serviço secreto que lhe fornecia o material. Mas a astúcia de Stanberry era tal que ele guardava as informações durante meses, e até anos, à espera do momento oportuno para uma boa sangria. Chegado esse momento, a vítima recebia um telefonema... apenas um.

            - A dizer o quê?

            - A fazer uma ameaçazinha e a dar ordens para o pagamento, em dinheiro, ao seu querido sobrinho, Archie. Depois podia haver uma ou duas cartas anônimas, mas geralmente o primeiro telefonema produzia um efeito tão devastador que o resto era apenas o arrebanhar, perfeitamente ao alcance das capacidades do Archie.

            - Os olhos do Archie estavam todos inchados e vermelhos de pranto... conseguido a custo de partir um cigarro ao meio e meter um grãozinho de tabaco em cada olho. Ajudei-o a tirar um, de um dos olhos, e vi o cigarro partido em cima da cômoda.

            Não fez comentários e eu acrescentei:

            - Ele tivera o seu retrato na parede.

            - Mas tirara-o, não tirara? - perguntou, muito depressa.

            -Tirara. Disse que se tratava de uma fotografia de pin-up, que obtivera por suborno do seu fotógrafo de publicidade...

            - Devia ter utilizado a palavra chantagem - declarou, amargamente. - O Archie é um pobre idiota. Mas o tio era inteligente... perigosamente inteligente.

            - E qual foi o papel do Rimley? Não me faça rir dizendo que o Stanberry estava a exercer chantagem sobre ele...

            - Estava, em certo sentido. Mas indiretamente, claro.

            - Como?

            - Fazendo chantagem sobre os clientes do Rimley, utilizando o Rendezvous para recolher o material destinado a uso posterior. Conseguiu fazer isso durante muito tempo, antes de percebermos o que se passava. O caso da Crail é que, na verdade, nos fez desconfiar. E, claro, o Rimley arriscava muito, pois o seu contrato de arrendamento caducava noventa dias após uma venda bona fide.

            - Portanto, Mrs. Crail não queria realmente comprar e o Rimley não queria realmente que o Stanberry vendesse. É isso?

            - Mais ou menos.

            - Que mais havia?

            - Ignoro. Sei apenas que o Stanberry tinha um cofre cheio de papéis e que nós nos apoderamos deles.

            - Quem se apoderou?

            - Eu - respondeu, simplesmente.

            A surpresa foi tanta que dei um pulo no lugar.

            - Você apoderou-se deles!

            - Sim.

            -Quando?

            - Esta tarde.

            - Como?

            - As coisas passaram-se mais ou menos como você imaginou. Conhece os lavabos do Rendezvous. Têm um empregado de cor que deita água no lavatório, mistura uns pinguinhos de água-de-colónia, oferece sabonete e uma toalha e espera solicitamente, de escova na mão, para dar uma escovadela no fato, quando a pessoa acaba de enxugar as mãos. Tudo isso lhe rende, evidentemente,

uma bela gorjeta. O Stanberry lavava sempre as mãos minuciosamente, como se quisesse ficar com elas lavadas até sábado à noite. Costumava tirar o relógio e entregá-lo ao empregado. O Rimley limitou-se a dizer a este que lho adiantasse uma hora.

            - E depois?

            - Depois, praticamente assim que o Stanberry voltou para a sala, o Rimley mandou-o chamar... e, claro, tinha adiantado o relógio de pulso e o relógio do escritório.

            - Muito bem, esse pormenor está explicado. Agora diga-me como foi ele parar ao seu apartamento?

            - Ainda não percebeu?

            - Não.

            - Andava a fazer chantagem sobre mim.

            - A que pretexto?

            - Porque eu andava a servir de isca - respondeu, a rir. - Quando o Rimley quis pôr cobro às suas atividades de chantagista, precisou de um chamariz. Eu fiz

esse papel.

            - E então?

            - Archie Stanberry andara a atirar-se a mim. Eu deixei-o apanhar a isca e levá-la ao tio, que a engoliu.

            - Que descobriu ele a seu respeito?

            - Que me procuravam por assassínio - respondeu, a sorrir.

            - Com algum fundamento?

            - Claro que não. Foi tudo forjado. Tinha na gaveta de uma mesa a que o Archie tinha acesso uns recortes velhos de jornais e duas cartas incriminadoras, que escrevera a mim própria, além de algumas outras coisitas. O rapazinho encontrou-as, leu-as e levou-as ao tio.

            - E que fez o tio?

            - Fez-me uma visita esta tarde, pateta. Ainda não percebeu?

            - E você bateu-lhe na cabeça com um machado?

            - Não seja idiota. Servi-lhe uma bebida que o devia deixar inconsciente durante cerca de uma hora e um quarto.

            - Começo a perceber. Marcou encontro com ele para determinada hora. Aludiu às horas, quando ele chegou, para que o tipo verificasse que chegava a tempo. Depois, quando ele perdeu a consciência, atrasou-lhe o relógio para as horas certas. Assim, quando ele acordasse, dir-lhe-ia que estivera inconsciente apenas dez ou quinze minutos, que devia ter sido qualquer coisa do coração, e as coisas ficariam por aí.

            - Exatamente.

            - Que fez, durante essa hora e quinze minutos?

            - Armei em arrombadora, durante cerca de quarenta e cinco minutos.

            - Deixou rastos?

            - Suponho que não.

            - Como arranjou as coisas?

            - Há cerca de um mês, aluguei um apartamento nos Apartamentos Fulrose. Tive sempre o cuidado de só lá ir quando sabia que o Stanberry estava ausente. E mesmo assim só lá ficava uma noite de vez em quando, para que as criadas vissem que dormira alguém na cama. Expliquei que era jornalista e andava a escrever uma história que me obrigava a viajar daqui para S. Francisco e vice-versa. Quando chegar a altura de deixar o apartamento, explicarei que, afinal, passo tanto tempo em S. Francisco que sairá mais barato ficar num hotel, quando precisar de cá vir.

            - Conte o resto.

            - Está quase tudo contado. O tipo tomou a bebida drogada, ficou tonto e dirigiu-se para a casa de banho. Depois veio o sono e caiu na banheira. Tirei-lhe as chaves da algibeira. Já sabíamos que tinha a combinação do cofre escrita na agenda, de modo a parecer um número de telefone. Rufus Stanberry nunca confiava inteiramente na memória. «Foi canja. Fui aos Apartamentos Fulrose, subi para o meu apartamento e depois desci o corredor até ao dele, abri a porta com a chave, acionei a fechadura do cofre, utilizando a combinação, e tirei tudo quanto me pareceu susceptível de incriminar fosse quem fosse. Com toda a limpeza e de uma só vez, afastamos Rufus Stanberry do negócio da chantagem.

            - E depois, que aconteceu?

            - Já sabe o que aconteceu. Voltei para casa e encontrei-o morto.

            - Que fez das chaves?

            - Voltei a pôr-lhas na algibeira.

            - E depois?

            - Telefonei ao Rimley. Ele disse-me que fosse imediatamente a casa de Philip Cullingdon e lhe perguntasse tudo quanto sabia acerca de uma tal Irma Begley, que o levara à certa num acidente de automóvel.

            - Perguntou-lhe por quê?

            - Perguntei.

            - Que lhe respondeu?

            - Que Irma Begley era Mrs. Crail.

            - Quem lhe falou do montante da indenização e dos outros processos?

            - O Rimley.

            - Pelo telefone?

            - Sim.

            - E que a mandou fazer, depois disso?

            - Mandou-me obter as informações acerca de Mrs. Crail e, depois, arranjar uma testemunha, de modo que parecesse o mais acidental possível, e levá-la ao meu apartamento, onde descobriríamos o cadáver.

            - E, por isso, escolheu-me como testemunha?

            - Depois de você se ter intrometido no meu jogo, pareceu-me que daria uma excelente testemunha. Infelizmente, foi excelente de mais... Deduziu muitas coisas, por causa da chave.

            - A que se deveu o súbito interesse por Mrs. Crail?

            - Mrs. Grail esteve com ele no Rendezvous e saiu quando ele saiu. Além disso, quando o Stanberry partiu de automóvel, Mrs. Crail seguiu-o.

            - Como sabe?

            - O Rimley disse-me.

            - Como soube ele?

            - Não faço idéia.

            - Acha que ele pensou que Mrs. Crail estava implicada no assassínio?

            - Acho que pensou que seria bom ter indícios incriminadores suficientes... Oh, Donald, eu não sei o que o Rimley pensou! Ele é um indivíduo muito profundo.

            - Está bem, voltemos ao assassínio. Drogou a bebida do Stanberry. Onde arranjou a droga?

            - Deu-ma o Rimley.

            - Já alguma vez tinha drogado uma bebida?

            - Não.

            - Diga-me o que fez, Exatamente, quando saiu e deixou o Stanberry em sua casa. Fechou a porta à chave, claro?

            - Não, não fechei.

            - Por quê?

            - Recebi instruções nesse sentido.

            - De quem?

            - Do Rimley.

            - Qual era a idéia dele?

            - Eu devia deixar um bilhete na mão do Stanberry, de modo que ele o visse ao acordar. O bilhete dizia: Teve um ataque de coração. Vou num instante à farmácia buscar um remédio qualquer. Assim, se ele recuperasse os sentidos antes de eu voltar, poderia justificar a minha ausência.

            - Tudo isso está muito bem, mas porque não fechou a porta do apartamento à chave?

            - Não a fechei à chave e até a deixei um bocadinho entreaberta, para que o Stanberry pensasse que eu saíra com muita pressa.

            - De quem foi a idéia?

            - Do Rimley.

            - Não me agrada.

            - Por quê?

            - Se a sua história é verdadeira, dá a impressão de que o Rimley fez tudo, de ponta a ponta, para transformá-la num bode expiatório. É tudo demasiado conveniente... um cenário de assassínio perfeito. O homem perde a consciência no seu apartamento. Você recebe instruções para deixar a porta aberta. É mandada fazer um recado que... Não, espere!

            - Que é, Donald?

            - O Rimley é demasiado esperto, não faria isso. Se quisesse incriminá-la, não bateria na cabeça do tipo com um machado. Tapar-lha-ia com uma almofada e, assim, daria a impressão de que a droga lhe afetara o coração e o matara. Não, essa idéia de lhe bater na cabeça com um machado é excessivamente grosseira. E não se enquadra no plano do Rimley. Agora compreendo o interesse dele por Mrs. Crail. O bilhete ainda estava na mão do Stanberry quando você voltou?

            - Estava.

            - Que lhe fez?

            - Destruí-o.

            - Bem, até agora, bate certo. Era um bom plano. O Stanberry teria o encontro consigo e, naturalmente, nunca lhe passaria pela cabeça que o seu relógio for a adiantado uma hora e depois atrasado outra. É possível que desconfiasse de que a bebida fora drogada, mas dificilmente imaginaria que você tivera tempo para lhe tirar as chaves e... A propósito, as chaves eram importantes?

            - Se eram importantes! Tinha na porta uma fechadura que nenhuma chave-mestra abriria. Havia também uma excelente fechadura na porta interior de aço do cofre e outra na porta de aço do compartimento onde estavam guardados os documentos incriminadores.

            - Podia ter sido exatamente assim... - murmurei.

            - Por outro lado, podia ser o cenário perfeito para o assassínio se...

            De repente, ela atirou-se a mim, passou-me os braços pelo pescoço e encostou o rosto ao meu. Assustado, tentei libertar-me. Apertou-me com força e segredou-me ao ouvido:

            - Mostre-se entusiasmado. Acaba de virar a esquina um carro-patrulha. Temos de fingir que estamos a namorar. Se nos apanham aqui parados, a você e a mim...

            Não precisou de dizer mais nada. Beijei-a.

            - Não seja tão exageradamente platônico, com a breca! - murmurou.

            Apertei-a um pouco mais. Os seus lábios vermelhos e cheios entreabriram-se, colados aos meus, e o seu corpo comprimiu-se contra o meu. Ouvi um carro parar.

            - Lembre-se de que não está na catequese! -cochichou-me Billy Prue.

            Aqueci, que remédio. A luz de uma lanterna elétrica bateu-me na cara e uma voz roufenha e autoritária perguntou:

            - Mas que raio se passa aqui?

            Larguei Billy Prue e pestanejei, a olhar para a luz.

            - Que diabo de idéia é essa? - insistiu o homem.

            - Estão numa rua comercial.

            Billy Prue olhou-me e depois cobriu a cara com as mãos e começou a soluçar. A luz da lanterna elétrica percorreu o automóvel.

            - Deixe-me vê-lo bem - disse o polícia.

            Virei o rosto para os raios agressivos da luz, para ele me ver bem a boca lambuzada de baton, o cabelo despenteado e a gravata à banda.

            - Está bem, pirem-se daqui para fora e, para a próxima vez, escolham um motel.

            Liguei o motor e arranquei, sem demora.

            - Apre, foi por um triz! - exclamou Billy Prue.

            - A idéia acudiu-lhe depressa ao espírito...

            - Que remédio, Donald! Meu Deus, você leva sempre tanto tempo a aquecer?

            Abri a boca para responder, mas o frio do nevoeiro e o choque emocional que sentira quando Billy Prue se atirara a mim atingiram-me com a força de uma marreta. Comecei a tremer todo. Tentei parar, mas não tive tempo e o carro começou a ziguezaguear na rua.

            - Mas que diabo tem você?

            - Os trópicos transformaram-me o sangue em água e agora... agora você pô-lo a ferver!

            Parei, finalmente. Billy Prue tirou-me de trás do volante e disse:

            - Tem de se meter na cama. Onde mora?

            - Não me pode levar para o meu apartamento.

            - Por quê?

            - Frank Sellers mandou-o vigiar, com certeza.

            Arrancou, sem dizer nada.

            - Para onde vamos? - perguntei-lhe.

            - Ouviu o que o polícia disse.

  

Febre Tropical      

            Tive a impressão confusa de ver luzes brancas por cima de um alpendre e uma enfiada de pequenos bangalôs. Ouvi Billy Prue dizer:

            -... o meu marido... doente... regressou dos trópicos... obrigada... mais cobertores... sim, um duplo.

            Ouvi vagamente água a correr e depois percebi que estava deitado numa cama e uma toalha fumegante me acalmava os nervos excitados, que me provocavam cãibras.

            Billy Prue inclinou-se para mim e disse:

            - Durma.

            - Preciso de me despir.

            - Não seja pateta. Já está despido.

            Fechei os olhos. Invadiu-me uma súbita onda de calor e de esquecimento.

Acordei com o sol a bater na cama e o aroma de café acabado de fazer nas narinas. Esfreguei os olhos, para expulsar os restos de sono.

            A porta abriu-se devagarinho e Billy Prue espreitou para dentro do quarto. O rosto descontraiu-se-lhe quando viu que estava acordado.

            - Olá! Como se sente?

            - Ótimo, creio. Meu Deus, como me fui abaixo a noite passada!

            - O seu único mal era fraqueza e cansaço.

            - Onde arranjou o café?

            - Fui às compras. Há um armazém ao fundo do quarteirão.

            - Que horas são?

            - Como diabo quer que eu saiba? Não uso relógio. Não se lembra de ter frisado esse pormenor ontem à noite, quando tentava atirar-me com um assassínio para as costas?

            Quase instantaneamente, as várias ramificações do assassínio de Stanberry invadiram-me o cérebro, de cambulhada.

            - Tenho de telefonar para o escritório.

            - Antes de mais nada, tem de comer. A casa de banho é toda sua. Mas não se demore muito, pois estou a fazer waffles (1).

            Voltou para a cozinha e eu fui para a casa de banho. Tomei um rico banho quente, vesti-me, penteei-me e fui ter com ela à cozinha. O pequeno-almoço estava feito e eu esfomeado.

            Observou-me, pensativa, e por fim murmurou:

            - Você é bom rapaz, Donald.

            - Que fiz eu agora?

            - Não é o que fez; a maneira como não faz as coisas que não faz é que o torna um cavalheiro.

            - Como estamos registrados?

            Limitou-se a sorrir-me, sem responder. Comi razoavelmente antes de o estômago dizer «basta!», mesmo no meio de uma dentada. Empurrei o prato para trás.

 

 (1) Espécie de bolo fino, que se faz mergulhando em massa um ferro duplo, articulado, bem quente. Há ferros com vários desenhos.  (N. da T.)

            - Vá lá para fora e sente-se ao sol – aconselhou Billy. - Se a mulher que

dirige isto aparecer e puxar conversa, não se atrapalhe. Não temos bagagem e ela

desconfia que vivemos em pecado, mas tem um rapaz na Marinha...Saí e sentei-me ao sol.

            O motel ficava fora da cidade, na orla de um vale que se estendia até ao ponto onde se viam recortadas no azul-vivo do céu diversas montanhas coroadas de neve. Recostei-me na cadeira e descontraí-me. A mulher que dirigia o motel aproximou-se e apresentou-se.

             Tinha um filho num torpedeiro, no Pacífico Sul. Disse-lhe que também estivera num torpedeiro e que era possível que tivesse visto o filho dela, que era até possível que tivesse falado com ele sem saber o seu nome. Sentou-se a meu lado, a aspirar o ar recendente a flores de laranjeira, e ficamos ambos calados, respeitando cada um os pensamentos do outro. Passados momentos Billy Prue sentou-se também conosco. Depois disse que tínhamos de ir andando e a gerente do motel inventou uma desculpa qualquer para se afastar, a fim de que não nos sentíssemos embaraçados pelo fato de ela saber que não tínhamos bagagem.

            Billy instalou-se ao volante do carro da agência e pôs-se a caminho da cidade.

            - Um cigarro?

            - Quando guio não fumo, Donald.

            - Ah, sim, já me esquecera!

            Estávamos quase a chegar ao Rendezvous quando ela perguntou, de súbito:

            - Que vai dizer ao seu amigo sargento Sellers do que eu lhe contei?

            - Nada.

            Chegou o carro para o passeio e parou. Dedos macios e meigos, mas fortes, apertaram os meus.

            - É bom tipo, Donald - murmurou. - É bom tipo. Apesar de...

            - Apesar de quê?

            Abriu a porta do carro e respondeu:

            - Apesar de falar enquanto dorme. Adeus, Donald.

 

 Acidente Bicudo

            Arrumei o carro no parque de estacionamento existente defronte do escritório e subi. Era meio-dia e meia e Elsie Brand saíra para almoçar. Ouvi uma cadeira gemer, no gabinete de Bertha, depois seguiram-se passos pesados e a porta abriu-se de repelão.

            Bertha Cool parou no limiar, a olhar-me com um ar de gelado exaspero.

            - Você! - exclamou.

            - Pois sou, sou eu.

            - Raios o partam! Quem diabo julga que é e que idéia foi essa de desaparecer? Eu por aqui preocupada a pensar que estava todo arrombado, a achar que parecia um fantasma, a esfalfar-me como uma escrava para lhe cozinhar bacon com ovos, e você vai para a galderice...

            - Quer discutir aqui, no escritório de entrada, onde possíveis clientes nos poderão ouvir? - perguntei-lhe, ao mesmo tempo que me deixava cair numa cadeira e pegava no jornal da manhã.

            - Seu irritante e cruel ingrato, seu insignificante descarado! A Bertha gastou uma garrafa de uísque de oito dólares para apaziguar aquele polícia de pés chatos

e você vai...

            Inclinei a cabeça na direção da bandeira da porta e lembrei-lhe:

            - As pessoas que passarem pelo corredor podem ouvi-la, Bertha. Talvez esteja parado lá fora algum possível cliente...

            - Estou-me borrifando para os clientes que possam estar à espera lá fora! - respondeu Bertha, levantando a voz. - Vou-lhe dizer o que tenho a dizer e você vai ouvir. Se pensa que pode voltar e...

            Recortou-se no vidro da porta uma sombra preta, para a qual apontei. Bertha dominou-se com dificuldade. Alguém experimentou a maçaneta da porta. A minha sócia respirou fundo e ordenou-me:

            - Veja quem é, queridinho.

            Larguei o jornal, atravessei a sala e abri a porta. Um homem de meia-idade, proeminente nariz ossudo, testa alta, cara larga e olhos cinzentos, com um brilho astuto, olhou para o interior do escritório, por cima dos óculos de meias lentes, e perguntou:

            - Mrs. Bertha Cool?

            A atitude da minha sócia suavizou-se.

            - Sou, sim. Em que lhe posso ser útil?

            O homem levou a mão à algibeira e respondeu:

            - Primeiro, permita que me apresente: sou Frank L. Glimson, sócio principal da firma de advogados Cosgate & Glimson. E agora, Mrs. Cool, desejava que me fizesse um favor.

            Estendeu um papel a Bertha. Ela pegou-lhe maquinalmente e declarou:

            - Trabalhamos muito para advogados, Mr. Glimson. Pode-se até dizer que somos especializados nesse campo. Donald, largue o jornal. Este é o meu sócio, Mr. Glimson: Donald Lam. Esteve na Marinha, acaba de voltar e já está a trabalhar duramente. Mas que deseja? Que papéis são estes?

            Bertha desdobrou os papéis e...

            - Mas... mas... Macacos me mordam! Seu grandíssimo...

            Glimson levantou a mão, apaziguador.

            - Um momento, Mrs. Cool, só um momento! Deixe-me explicar, por favor.

            - Um raio, é que você explica! - gritou-lhe Bertha.

            - Isto é uma convocação para depor na ação de Mrs. Roland B. Lidfield versus Esther Witson e Bertha Cool. Que diabo pretende?

            - Um momento, Mrs. Cool, só um momento. Por favor, deixe-me explicar.

            Bertha folheou o documento dobrado.

            - Cinqüenta mil dólares - gritou. - Cinqüenta... mil... dólares!

            - Exatamente - confirmou Glimson, em tom ácido. - E se teimar em mostrar-se hostil em relação a mim, Mrs. Cool, custar-lhe-á cinqüenta mil dólares!

            Bertha ficou momentaneamente muda. Glimson prosseguiu, mais brando:

            - Mrs. Cool, estou disposto a apresentar-lhe uma proposta, e foi por isso que lhe trouxe os papéis pessoalmente. Glimson olhou para mim e incluiu-me na conversa, com um sorriso afável.

            - Ora, Mrs. Cool - continuou, cada vez mais suave - não acreditamos realmente que a senhora tenha sido de modo algum negligente. Pensamos que a única culpada do acidente foi Esther Witson.

            Sorriu a Bertha Cool, cujo queixo estava espetado para a frente como a proa de um couraçado.

            - Qual é a sua proposta? - perguntou, ominosamente.

            - Está zangada comigo, Mrs. Cool...

            - Acertou, estou zangada consigo! - gritou-lhe Bertha.

            - Mrs. Cool, não me vou aproveitar de qualquer vantagem desleal sobre si. Sou advogado e a senhora não. Vou-lhe dizer exatamente qual é a lei. Costumava

considerar-se que a ilibação de um prevaricador ilibava o outro. Mas essa norma foi modificada, ou melhor, foi clarificada pelos nossos tribunais. A ação de Ramsey

versus Powers, 74 Cali. Ap. 621, estipula que quando foi cometida uma ofensa e o queixoso alega que duas ou mais partes a cometeram conjuntamente...

            - Mas que raio tenho eu a ver com prevaricadores? - interrompeu-o Bertha.

            - Não compreende, Mrs. Cool? Tudo quanto terá de fazer será ajudar-nos a demonstrar que foi realmente Miss Witson a culpada. Trata-se apenas disso. Mas a lei tem uma peculiaridade, que é a seguinte: a fim de recolher um depoimento rápido como matéria de direito, a pessoa cujo depoimento deve ser recolhido tem de ser parte da ação. Não quero dizer que a tenha feito parte da ação meramente para recolher o seu depoimento, Mrs. Cool, mas informo-a de que quero recolher esse depoimento aqui, no seu escritório, às três horas desta tarde. E se o seu depoimento demonstrar que o acidente foi da responsabilidade exclusiva de Esther Witson, pediremos ao tribunal que anule a acusação contra si, em virtude de não existir nenhuma responsabilidade da sua parte.

            E Glimson sorriu-lhe, encantado.

            - Suponhamos que essa sua cliente... Como se chama ela?

            - Mrs. Roland B. Lidfield.

            - Muito bem, suponhamos que a culpada era Mrs. Roland B. Lidfield.

            Glimson juntou as pontas dos dedos compridos e ossudos e respondeu:

            - Creio, Mrs. Cool, que não apreendeu o significado do que acabei de lhe dizer. Se o acidente foi ocasionado por negligência de Miss Witson, então solicitaremos ao tribunal que anule a ação...

            - Mas que diabo vem a ser isto? Suborno ou chantagem?

            - Minha querida Mrs. Cool! Minha querida Mrs. Cool!

            - Não me trate por querida. Que raio de idéia é esta, no fim de contas?

            - Queremos o seu depoimento, Mrs. Cool. Achamos que temos o direito de registrar as suas declarações para, quando a ação for a julgamento, sabermos exatamente com que temos de nos avir. Em muitos destes casos, Mrs. Cool, as testemunhas têm tendência para saltitar. Uma pessoa pensa que tem tudo bem encaminhado, com razão do seu lado, e depois, quando chega a tribunal...Mas, no fim de contas, a senhora é uma mulher experiente e compreende estas coisas.

            - Não compreendo absolutamente nada... a não ser que não vou deixar-me arrastar para essa história! Se conseguir demonstrar que existiu qualquer negligência da minha parte, como-a!

            Glimson inclinou a cabeça para trás e riu-se.

            - Exprime-se de modo tão singular! Mas deixe-me dizer-lhe que se sentirá muito embaraçada quando tiver de explicar no tribunal por que motivo indicou o apelido de Boskovltche!

            O telefone tocou e eu fui atender à secretária da Elsie. A voz que me soou aos ouvidos vibrava de excitação:

            - Está lá? Está lá? Quem fala?

            - Donald Lam.

            - Oh, Mr. Lam! Fala Esther Witson. O senhor sabe. a Miss Witson do acidente e que esteve aí...

            - Bem sei.

            - Desejo falar com Mrs. Cool.

            - Ela está ocupada, neste momento. Será melhor falar-lhe um pouco mais tarde.

            - Mas não pode vir ao telefone apenas o tempo suficiente para...

            - Neste momento está ocupada - repeti. – Será melhor ela telefonar-lhe um pouco mais tarde.

            Esther Witson pensou, uns instantes e depois percebeu:

            - Quer dizer que ela está ocupada relativamente a... isto é, com qualquer coisa relacionada com o caso?

            - Sim.

            - Poderá responder às minhas perguntas, Mr. Lam?

            - Tentarei.

            - Está aí um advogado de feições vincadas, chamado Glimson?

            - Está.

            - A falar com ela neste momento?

            - Sim.

            - Oh, Mr. Lam, agradecia-lhe que transmitisse o seguinte recado a Mrs. Cool: «O meu advogado disse que Glimson está a tentar apresentar Mrs. Cool como parte da ação, a fim de poder recolher o seu depoimento, e que se Mrs. Cool aceder a fazer o que quer que Glimson pretende sem se comprometer quanto ao que dirá no seu depoimento, essa será a melhor maneira de apanhar Glimson naquilo a que o meu advogado chama prática desonesta.»

            - Verei o que posso fazer.

            - Passarei por aí um pouco mais tarde e explicarei tudo em pormenor.

            - Vou chamar a Bertha - disse, e fiz sinal à minha sócia.

            - Atendo mais tarde, Donald.

            - É melhor ouvir isto. Bertha. Pode tomar uma decisão mais tarde, mas deve ouvir agora.

            Bertha pegou no auscultador e disse: «Pronto.» Depois escutou e passados momentos falou de novo:

            - Está bem. Adeus. - E desligou.

            Virou-se para Glimson e perguntou-lhe:

            - Onde quer recolher esse depoimento?

            O advogado sorriu-lhe.

            - Podemos recolhê-lo aqui mesmo, Mrs. Cool. Trarei um notário que também é estenógrafo do tribunal. Não lhe causaremos nenhum inconveniente, serão apenas alguns minutos... umas perguntas simples...

            - A que horas?

            - Tinha sugerido às três horas - acedeu asperamente Bertha. - E agora desampare-me a loja para eu poder trabalhar.

            Glimson estendeu a mão. Apertou a minha, apertou a de Bertha, inclinou a cabeça e saiu do escritório às arrecuas, sempre a inclinar a cabeça.

            -O nojento chicaneiro! - resmungou Bertha, quando a porta se fechou.

            - Não diga nada antes das três horas desta tarde. E também a aconselho a começar a pensar no que vai dizer nessa altura. Ele é capaz de ser um advogado especializado em acidentes de automóvel.

            Bertha fulminou-me com o olhar.

            - Aquele pulha com cara de caveira está muito enganado se julga que me vai atrapalhar. Advogado especializado em acidentes de automóvel uma ova! Eu mostrar-lhe-ei uma coisa ou duas...

            - Por mim, acho bem - redargüi, e peguei de novo no jornal.

            Bertha lançou-me de novo um dos seus olhares homicidas e abriu a boca para dizer qualquer coisa, precisamente quando Elsie Brand meteu a chave na fechadura, empurrou a porta e pareceu surpreendida por nos ver, aos dois.

            - Olá! Não venho interromper nada, pois não?

            - Com mil raios, teremos sempre de discutir os nossos assuntos aqui, no escritório de entrada? – perguntou Bertha, furiosa. - Para que diabo temos um gabinete particular?

            Elsie Brand murmurou: «Desculpem», num tom impessoal, e foi sentar-se à máquina de escrever. Bertha virou-se para mim, com uma súbita expressão de cólera no olhar.

            - Interromperam a nossa conversa. Onde diabo dormiu a noite passada? O Frank Sellers disse que você...

            Calou-se, ao ver a porta abrir-se. O homem que entrou era um indivíduo de ombros largos e ar competente, mas que naquele momento parecia tão constrangido como se estivesse a vender fitas num armazém.

            - Mrs. Cool? - perguntou.

            Bertha acenou afirmativamente.

            - Mr. Lam?

            Levantei-me.

            - Chamo-me Ellery Crail.

            Bertha lançou-me um olhar entendido e apressou-se a dizer:

            - Entre, íamos sair... foi por isso que nos apanhou aqui no escritório de entrada. Mas podemos adiar.

            - Peço desculpa do incomodo, mas tenho muitíssimo que fazer e...

            - Entre, entre - insistiu Bertha.

            Fomos os três para o gabinete. Bertha instalou-se à secretária, indicou-me uma cadeira à sua direita e ofereceu a Crail a grande cadeira confortável dos clientes.

            Crail pigarreou.

            - De certo modo, não venho consultá-los na vossa capacidade profissional...

            - Não? - perguntou Bertha, cuja personalidade se ocultou, ato contínuo, atrás de uma dura carapaça de hostilidade incipiente. - Então que deseja?

            - Foi, creio, testemunha de um acidente de viação ocorrido ontem...

            - Ah, é isso!

            - Por razões pessoais, gostaria muito que esse caso fosse resolvido fora do tribunal. Desejaria que se chegasse a um acordo e se retirasse a ação.

            Bertha arrebitou as orelhas e os seus olhinhos cintilaram, com um brilho astuto e calculista.

            - E como tenciona fazer isso? - perguntou.

            - Não desejo abordar os advogados de qualquer dos lados, mas lembrei-me de que a senhora, dado que é uma profissional, talvez pudesse arranjar um acordo mediante um pagamento em dinheiro, de modo que o caso fosse inteiramente abandonado.

            - Posso perguntar-lhe qual é o seu interesse no assunto? - indaguei.

            - Preferia não responder a essa pergunta.

            - Uma das partes do acidente tomou nota da matrícula dos carros que se encontravam perto.

            Crail mudou de posição na cadeira e redargüiu:

            - Nesse caso, já sabe a resposta.

            - Que lucraria eu... que lucraríamos nós! – quis saber Bertha.

            - Poderia dar-lhes quinhentos dólares se conseguissem resolver o assunto por dois mil e quinhentos dólares. O gasto total da minha parte seria de três mil dólares.

            - Por outras palavras - disse Bertha, avidamente, pagará três mil dólares para resolver o assunto e tudo quanto conseguirmos entre o montante do acordo e os três mil dólares será...

            - Eu não disse isso - interrompeu-a Crail, com dignidade. - Disse que estaria disposto a pagar-lhe quinhentos dólares se conseguissem um acordo até à importância de dois mil e quinhentos dólares.

            - Mas suponha que conseguíamos um acordo por dois mil dólares?

            - Os seus honorários serão quinhentos dólares.

            - O mesmo que receberíamos se fizéssemos o acordo por dois mil e quinhentos dólares?

            - Sim.

            - Isso não nos dá grande incentivo para conseguirmos um acordo por montante inferior.

            - Exatamente - concordou Crail. - Faço a minha proposta desta maneira por uma razão muito definida: não quero que tentem aumentar a vossa compensação demorando o acordo. Desejo este assunto resolvido imediatamente.

            - Vamos explicar-nos bem - disse Bertha. - A única coisa que o senhor quer é que resolvamos o assunto da ação por causa do acidente de automóvel? É só isso, absolutamente, e mais nada?

            - É só isso, sim. Que mais poderia ser?

            - Estou apenas a esclarecer as coisas, para não haver interferência com qualquer outro trabalho que possamos ter aqui no escritório.

            - Não vejo possibilidade nenhuma de interferência, Mrs. Cool. A minha proposta é muito simples.

            - Precisamos de um sinal, Mr. Crail. Pelo menos duzentos dólares, adiantadamente.

            Crail tirou o livro de cheques da algibeira e desatarraxou a caneta de tinta permanente, mas depois mudou de idéias, tapou a caneta, guardou-a, dobrou o livro de cheques, guardou-o, tirou a carteira e contou duzentos dólares em notas de dez e vinte dólares.

            Bertha passou um recibo, que Crail dobrou e guardou na carteira. Depois levantou-se, sorridente, apertou a mão aos dois e saiu. A minha sócia fitou-me, com os olhinhos a brilhar.

            - Bem, queridinho, isto vai de vento em popa. Duzentos  dólares aqui, duzentos dólares ali...

            - Porque lhe parece que ele quer o caso resolvido por acordo?

            - Pela simples razão de que não quer que ninguém saiba que a mulher ia a seguir o Stanberry! - respondeu-me, de sobrancelhas arqueadas de espanto.

            - Não sei porquê, acho que, se estivesse na situação de Mrs. Crail, dificilmente confiaria num marido.

            - Bem, o que você faria e o que ela fez são duas coisas diferentes.

            - Talvez... mas começo a perguntar a mim mesmo se este caso não terá outro aspecto que nos escapou.

            - O que você tem de chato é isso, Donald – resmungou Bertha, irritada. - Passa a vida a argumentar contra fatos estabelecidos. Agora vai sair com a Bertha

e comer um bom almoço, para não ficar todo estourado como estava ontem à noite.

            - Tomei o pequeno-almoço tarde.

            - Uma fava, é que tomou! Ouça lá, onde esteve ontem à noite? Eu...

            O telefone tocou. Bertha olhou-me, furiosa, durante cerca de um minuto e depois arrancou o auscultador do descanso, de repelão.

            Ouvi a voz de Elsie Brand dizer:

            - Esther Witson está aqui.

            - Oh, meu Deus! - exclamou Bertha. - Esquecera-me de que vinha. Mande-a entrar.

            Desligou, irritada, e disse-me:

            - Se lhe conseguíssemos apanhar também duzentos dólares seria o ideal.

 

 Trafulhice Jurídica

            Esther Witson entrou toda desembaraçada e sorridente, numa grande exibição de dentes. Dois passos atrás dela, um homenzinho gorducho e dois terços careca sorria também amigavelmente, atrás dos óculos de aros de massa. Tinha olhos verde-azulados, um ar de carnuda solidariedade e uma atitude conscienciosamente dinâmica. Dir-se-ia que acabara de ler livros acerca da maneira de impressionar favoravelmente as pessoas e aprendera bem a lição. Um bigodinho ruivo, desigual e espetado como uma escova de lavar garrafas, separava-lhe o nariz do grosso lábio superior. Os dedos gordos apertavam a asa de uma pasta.

            - O meu advogado, Mr. Mysgart, John Carver Mysgart. Há anos que se encarrega dos meus assuntos jurídicos - informou Esther Witson.

            Mysgart fez uma vénia tão profunda que a luz da janela de Bertha se refletiu na coroa reluzente da sua calva.

            - Esta é Mrs. Cool - prosseguiu Esther Witson e este Mr. Lam.

            Mysgart distribuiu apertos de mão. Sentia-se, afirmou, muito satisfeito por nos conhecer.

            - Não se querem sentar? - convidou Bertha.

            - Entregaram-me uma convocação - informou Miss Witson. - Trouxe o meu advogado para que ele explicasse os aspectos jurídicos do caso.

            Virou-se para Mysgart e sorriu-lhe. Mysgart pigarreou. A expressão amável apagou-se-lhe repentinamente do rosto, que assumiu um ar doutoral, e a sua voz adquiriu tons de profunda solenidade:

            - Isto é um escândalo jurídico, Mrs. Cool. É lamentável que a profissão de advogado seja maculada por uma firma como a de Cosgate & Glimson.

            - Chicaneiros? - perguntou Bertha.

            - Bem, não são exatamente o que se chama chicaneiros... São astutos, agressivos, competentes e escrupulosos na observação da letra exata da lei. Mas ficam por aí. Sim, Mrs. Cool, ficam por aí! Note, não desejaria que as minhas palavras fossem repetidas. Estou meramente a fazer uma declaração confidencial... devo mesmo dizer uma declaração privilegiada.

            - Já lidou com eles anteriormente – especificou Esther Witson.

            Mysgart levantou a pasta e abriu-a.

            - Veja, por exemplo, esta vil, esta indecente tentativa para influenciar o seu depoimento, Mrs. Cool. É legal, no sentido em que não existe nenhuma lei contra semelhante procedimento, mas trata-se de uma coisa que um advogado respeitador da ética profissional jamais perdoa. Está a ver o que fizeram, não está?

            - Processaram-me - respondeu Bertha.

            - Exatamente. Indicaram-na como acusada a fim de a preocuparem, a fim de a enervarem, a fim de a aborrecerem e a fim de a encher de tal modo de pânico que, ao fazer o seu depoimento, a senhora seja pressionada pelo desejo de os aplacar.

            - Não me conseguem assustar - afirmou Bertha.

            Esther Witson acenou com a cabeça, entusiasticamente.

            - Foi isso mesmo que eu disse a Mr. Mysgart!

            - Agrada-me ouvi-la falar assim, Mrs. Cool - declarou o advogado, todo sorridente. - A minha idéia é voltar contra eles o seu desprezível truque, virar o feitiço contra o feiticeiro. A senhora tem direito a cinco dias de aviso prévio, antes de fazer o seu depoimento, mas eles não lho disseram, naturalmente. Pretendiam forçá-la a depor a seu favor, intimidá-la, amedrontá-la. No entanto, nós estudamos uma defesa permita contra o baixo estratagema desses senhores. Além de não ter absolutamente culpa nenhuma do sucedido, a minha cliente é uma mulher generosa, terna e compreensiva, que avalia perfeitamente os incômodos a que a senhora foi sujeita. «Mrs. Cool, a minha cliente, Esther Witson, disse-me que custeará as despesas inerentes à sua comparecia em tribunal. Por outras palavras, deu-me ordens no sentido de responder à acusação em seu nome e agir como seu advogado até o assunto ficar resolvido, sem que isso lhe custe, a si, um cêntimo... nem um centime, Mrs. Cool. A minha cliente arcará com todas as despesas da ação.»

            Bertha desfazia-se em sorrisos.

            - Quer dizer que não terei de contratar nenhum advogado?

            - Não terá. Mr. Mysgart representá-la-á, encarregar-se-á de tudo - respondeu-lhe Esther Witson.

            - E não me custará um cêntimo?

            - Nem um cêntimo partido pelo meio! – confirmou Mysgart.

            Bertha soltou um grande suspiro de alívio e estendeu a mão para os cigarros. Houve um momento de silêncio, enquanto a minha sócia tirava um cigarro e o acendia. Percebi que ela lutava, à procura de uma abordagem diplomática. De repente, perguntou, sem rodeios:

            - E se resolvêssemos o caso por acordo?

            - Resolver o caso por acordo! - repetiu Mysgart, pronunciando as palavras como se fizesse um grande esforço para dizer uma coisa absolutamente repreensível.

            - Minha querida Mrs. Cool, não há acordo nenhum a fazer, absolutamente nenhum!

            Bertha tossiu duas vezes e olhou para mim a pedir socorro. Continuei mudo e quedo.

            - No fim de contas, como sabem, as ações judiciais são dispendiosas - prosseguiu a minha sócia. - Pensei que, a fim de evitar todas as maçadas inerentes aos litígios... bem, achei que podia oferecer uma determinada importância ao advogado da queixosa, para que ele anulasse tudo.

            - Oh, não faça isso! Pelo amor de Deus, não faça isso, Mrs. Cool! Seria uma admissão de culpabilidade da sua parte, poria em risco todo o êxito do processo, seria inconcebivelmente desastroso!

            - Bem, sou uma mulher muito ocupada. Não tenho tempo para...

            - Mas não lhe custará nada - interveio Esther Witson. - Mr. Mysgart representá-la-á em todas as fases do processo e não haverá nenhuma despesa da sua parte, absolutamente nenhuma.

            - Mas há o meu tempo - insistiu Bertha, atrapalhada. - Pensei que talvez... enfim, pensei oferecer-lhes mil ou dois mil dólares e ver como reagiam.

            Mysgart e a sua cliente trocaram olhares de incredulidade e espanto.

            - Quer dizer que oferecia esse dinheiro pessoalmente, do seu próprio bolso?

            - Porque não?

            - Mas para quê? - perguntou o advogado. – Não compreende, Mrs. Cool, que a única razão, absolutamente a única razão que os levou a nomeá-la co-ré foi o desejo de recolherem o seu depoimento e de, pela intimidação, a levarem a deturpar o que sucedeu, para que tudo se resolvesse como desejam? É um truque muito astucioso e desesperado, também. Colocaram-na na situação de acusada, sujeita a ser julgada co-responsável do acidente, e depois garantiram-lhe que, se o seu depoimento for o que calculam, retirarão a queixa contra si. É, claramente, uma tentativa para influenciar a testemunha.

            Bertha olhou para mim. Acendi um cigarro. Bertha olhou para Mysgart, procurou em vão as palavras adequadas e, por fim, virou-se, furiosa, para mim e ordenou:

            - Diga qualquer coisa, com os diabos!

            Mysgart arqueou as sobrancelhas e olhou curiosamente na minha direção.

            - Quer que lhe diga o que penso? - perguntei a Bertha.

            - Quero.

            - Então diga-lhes a verdade. Diga-lhes que Miss Witson conduzia o carro atrás de si; que você parou porque queria virar para a esquerda; que lhe fez sinal, para que a ultrapassasse, e ela parou para lhe dar uma rabecada, e que foi por isso que não viu avançar o carro de Lidfield.

            Seguiu-se um silêncio tão grande que se poderia meter numa trituradora, cortar aos bocadinhos e embrulhar em papel.

            De súbito, Esther Witson disse:

            - Bem, se essa é a posição que tenciona tomar, eu também terei alguma coisa a dizer.

            Mysgart interveio, apaziguador:

            - Então, então, minhas senhoras? Vamos...

            - Cale-se - ordenou-lhe Esther Witson. - Na realidade, esta gorda papa-açorda ia a conduzir pela estrada toda. Primeiro ia pela faixa da esquerda; depois desviou-se para a direita, mesmo à minha frente; depois, diabos me levem se não parou e não começou a fazer sinais de viragem à esquerda e, a seguir, a agitar os

braços e a fazer uma série de movimentos ginásticos...

            - Quem é a gorda papa-açorda? - berrou Bertha.

            - Você!

            - Minhas senhoras, minhas senhoras... – repetiu Mysgart.

            - Meu Deus, não permito que uma fedúncia com dentes de cavalo me chame gorda papa-açorda! Sou pesada... mas rija. Não há nada de papa-açorda em mim. Suma-se daqui para fora!

            Mas Esther Witson prosseguiu:

            - Como eu não sabia o que você ia fazer e tentava ultrapassá-la, fui atraída para o cruzamento e...

            - Minha querida senhora - disse Mysgart, agora de pé e entre a cliente e Bertha, não deve, não deve de maneira nenhuma, fazer tais afirmações!

            - Não me importo! - gritou Esther Witson. A culpa foi toda dela e. quanto a mim, é ela a culpada de tudo.

            - Você estava tão ansiosa por me descompor que quase torceu o pescoço - declarou Bertha Cool. – Não estava sequer a olhar para o caminho. Eu só vi esses

seus dentes de cavalo...

            -Não diga mal dos meus dentes, sua barriga de sebo!

            Mysgart abriu a porta do corredor e pediu:

            - Por favor, Miss Witson, por favor... suplico-lhe!

            Esther Witson gritou ainda, por cima do ombro, antes de sair:

            - De qualquer modo, não a queria para testemunha! Detesto a estupidez banhuda!

            - Conserve os lábios o mais que puder por cima dos dentes, queridinha - atirou-lhe Bertha. - Fica horrível quando abre a boca toda.

            A porta bateu. Bertha, quase escarlate, olhou para mim.

            - Raios o partam, a culpa foi sua! Às vezes apetecia-me esfrangalhá-lo todo, só para ver o que o faz vibrar. Mas você não vibra, você é todo suavidade! Não passa de um monte de rodas dentadas a trabalhar num banho de óleo. Meu Deus, como o detesto!

            - O seu cigarro está a queimar a secretária.

            Bertha apanhou a beata, esmagou-a no cinzeiro e olhou-me como se me quisesse engolir.

            - Isto tinha de acontecer mais cedo ou mais tarde - afirmei. - Foi melhor assim. Tente fazer malabarismos com a verdade e verá que se aleija. Eventualmente, resolveremos este assunto por acordo, como o Crail deseja, mas não permitindo que o Mysgart pense que vai ganhar a ação. Esther Witson tem dinheiro. Se você optar pelo acordo e tudo se resolver assim, ele não poderá apresentar à cliente uma conta de honorários chorudos. Se você estiver do seu lado, ele perderá uma quantidade de tempo em trafulhices jurídicas e quando ganhar a ação mandará à cliente uma continha calada, aí dos seus três mil dólares. Diga a verdade e, então, talvez o Mysgart se mostre disposto a encarar a solução por acordo. Bem, e agora tenho que fazer. Ver-nos-emos à hora do depoimento. Aconselho-a a pensar no que vai dizer.

            Saí do gabinete, deixando Bertha tão atarefada a pensar que nem me respondeu. Elsie Brand martelava o teclado da máquina de escrever. Sem parar nem se enganar, olhou para mim e piscou devagarinho o olho direito. Retribuí-lhe a piscadela de olho e saí.

 

 Bertha Sua Sangue

            Eram três horas e dezessete minutos quando regressei ao escritório. O depoimento já começara. Um estenógrafo do tribunal estava sentado à secretária de Elsie Brand e registrava em estenografia tudo quanto se dizia. Bertha Cool ocupava a cadeira das testemunhas, com ar triunfante.O homem dos seus cinqüenta anos, queixo fraco e olhos ávidos e ansiosos sentado ao lado de Frank Glimson devia ser Roland B. Lidfield, um dos queixosos. John Carver Mysgart lograra entrepor-se no meio de Esther Witson e Bertha Cool. Esther estava atrás dele e Mysgart garatujava a toda a velocidade num livrinho de apontamentos, sem dúvida a anotar qualquer coisa que desejava perguntar a Bertha quando chegasse a sua vez.

            Levantaram todos a cabeça, quando entrei. Depois Glimson continuou a interrogar. Tinha as mãos levantadas à frente do peito, com os dedos bem abertos e as pontas unidas. Inclinava ligeiramente a cabeça para o lado e o seu rosto ossudo parecia uma máscara.

            - Agora, Mrs. Cool, diga-nos Exatamente o que fez.

            - Afrouxei, no cruzamento, e depois ouvi uma buzina rouca a apitar atrás de mim.

            - Sim, sim, prossiga.

            - A seguir, o carro de Miss Witson contornou-me e passou para a faixa do meio.

            - E que fez ela, se fez alguma coisa?

            - Começou a descompor-me, por não lhe agradar o modo como eu conduzia.

            - Ela parou o carro para fazer isso? – perguntou Glimson.

             - Não. Berrava-me, sem tirar o pé pesado do pedal.

             - Claro que estava virada de frente para si – disse Glimson, mais como quem faz uma afirmação do que uma pergunta.

            - Direi que sim, que estava de frente para mim.

            - Viu-lhe os olhos?

            - Vi-lhe os olhos e os dentes.

            Esther Witson mexeu-se na cadeira, Mysgart estendeu a mão para trás e fez uns movimentozinhos suaves, para aplacar a cliente.

            Nos olhos de Glinson brilhou uma cintilação de triunfo.

            - Portanto, quando Miss Witson a ultrapassou, estava a olhar para si e a falar-lhe. Foi assim?

            - Foi assim mesmo.

            - Deixe-me ver se compreendi corretamente o seu depoimento, Mrs. Cool. Creio que disse que, quando chegou ao cruzamento, reduziu a velocidade e quase parou o carro?

            - Exatamente.

            - Vejamos se não nos interpretamos mal. Quando Witson passou por si, estava a olhar para si e a falar-lhe, e o seu carro, Mrs. Cool, estava no cruzamento, não é verdade?

            - É.

            - Nesse caso, a frente do carro dela já devia estar bem avançada no cruzamento?

            - Estava, sim.

            - Enquanto ela olhava para si e lhe falava?

            - Sim.

            - E durante todo esse tempo ela conduzia a velocidade elevada?

            - Carregava no pedal. Tinha o pé pesado no acelerador.

            - E quando foi que se virou, para ver por onde ia? Inquiriu Glimson.

            - Bem, de repente pareceu lembrar-se que não estava a olhar...

            - Protesto - interveio Mysgart. - A testemunha não pode depor quanto ao que lhe pareceu passar-se no cérebro da minha cliente. Ela só pode depor...

            - Sim, sim... - concordou Glimson. - Relate-nos apenas os fatos, Mrs. Cool, e não o que pensa.

            - Ou o que pensa que a minha cliente pensou observou Mysgart sarcástico.

            Glimson lançou-lhe um olhar severo e Mysgart franziu o lábio superior, de modo que o bigode lhe coçou o nariz.

            - Bem, ela virou de repente e o outro carro estava mesmo em cima dela - disse Bertha, secamente.

            - Refere-se ao carro conduzido por Mr. Roland B. Lidfield, o cavalheiro sentado à minha direita?

            - Refiro.

            - E esse carro, conduzido por Mr. Lidfield, ia virar para a esquerda, não ia, de modo que estava virado para Mantica Street, numa direção setentrional?

            - Exatamente.

            - E Miss Witson, com aquilo que a senhora descreveu como pé pesado no pedal, atirou o carro às cegas para o cruzamento de Garden Vista Boulevard e Mantica Street, mesmo defronte do carro conduzido por Mr. Lidfield. Está correcto?

            - Está.

            Glimson recostou-se na cadeira e baixou as mãos, até lhe descansarem no estômago.

            - Deseja contra-interrogar? - perguntou, com ar benigno, a Mysgart.

            Esther Witson mexeu-se, inquieta, na cadeira. Mysgart esboçou outro gestozinho tranqüilizador na sua direção e respondeu:

            - Com certeza.

            - Faça favor.

            - Obrigado - agradeceu o advogado, com pesado sarcasmo, e modificou um pouco a posição da cadeira.

            Bertha olhou para mim com ar triunfante, como se quisesse dizer que não era nenhum raio de nenhum advogado que a atrapalhava. Depois fitou os olhinhos ávidos em Mysgart. O advogado pigarreou.

            - Voltemos ao princípio, Mrs. Cool, e vejamos se nos entendemos. A senhora viajava para ocidente, pelo Garden Vista Boulevard?

            - Viajava.

            - E há quanto tempo viajava para ocidente, pelo Garden Vista Boulevard, quando chegou ao cruzamento com Mantica Street?

            - Há oito ou dez quarteirões, talvez.

            - Declarou que, no cruzamento com Mantica Street, o seu automóvel se encontrava na faixa de rodagem da extrema direita, isto é, na que fica junto do passeio.

            - Exatamente.

            - E há quanto tempo estava nessa faixa?

            - Não sei.

            - Diria que há oito ou dez quarteirões?

            - Não.

            - Durante algum tempo seguira pela faixa da extrema esquerda, a que fica mais próxima do centro da estrada, não é verdade, Mrs. Cool?

            - Suponho que sim.

            - E parte do tempo esteve na faixa central?

            - Não.

            Mysgart arqueou as sobrancelhas, surpreendido.

            - Tem a certeza disso, Mrs. Cool?

            - Tenho a certeza absoluta! - afirmou, secamente, Bertha.

            - Não manobrou, em momento nenhum, o seu carro na faixa do meio? É isso?

            - É.

            - Mas estivera na faixa da esquerda?

            - Estivera.

            - E na altura do acidente estava na faixa da direita?

            -Estava.

            - Quer então ter a bondade de nos dizer, Mrs. Cool, como poderá ter passado da faixa da esquerda para a da direita sem manobrar pela central? - perguntou Mysgart, cheio de sarcasmo.

            - Devo tê-la atravessado - respondeu-lhe Bertha.

            - Ah! - exclamou o advogado, com fingida surpresa.

             - Então manobrou o seu carro na faixa do meio?

            - Atravessei-a.

            - Atravessou-a a direito.

            - Sim.

            - Devo deduzir que virou bruscamente e atravessou a faixa central em ângulo reto?

            - Não seja pateta. Desviei-me para a faixa da direita.

            - Ah!, quer dizer que virou abruptamente, defronte do outro trânsito que ia na mesma direção?

            - Claro que não. Não me consegue atrapalhar. Fui-me desviando.

            - Levou talvez um quarteirão para completar a manobra, ou dois quarteirões, ou três quarteirões, ou quatro quarteirões?

            - Não sei.

            - Podem ter sido quatro quarteirões?

            - Não sei... talvez.

            - Nesse caso, Mrs. Cool, durante uma longa distância, talvez ao longo de quatro quarteirões, esteve a manobrar o seu carro na faixa de rodagem central?

            - Fui passando devagar através da faixa central.

            - Que pretendeu então significar quando nos disse que em momento algum manobrou o seu carro na faixa de rodagem central?

            - Bem, quis significar que não ia... bem, que não ia pela faixa central e com intenção de permanecer nela.

            - Mas manobrou o seu carro através da faixa central?

            - Através, sim.

            - Portanto, durante determinado espaço de tempo, o seu carro viajou pelo Garden Vista Boulevard com todas as quatro rodas no interior das linhas brancas da faixa central?

            - Suponho que sim.

            - «Suponho» não me chega - declarou Mysgart. - Quero fatos. Vamos, Mrs. Cool, se é uma condutora de automóvel tão perita como alega, com certeza pode dizer-nos francamente e sem equívocos se, nos oito ou dez quarteirões a que se referiu, manobrou durante algum espaço de tempo o seu automóvel de tal modo que as suas quatro rodas se encontravam no interior das linhas brancas da faixa central da estrada.

            - Sim! - gritou-lhe Bertha.

            Mysgart recostou-se na cadeira, com um ar tristemente resignado.

            - Então testemunhou incorretamente, Mrs. Cool, quando disse que em momento algum manobrou o seu carro na faixa central?

            Bertha começou a dizer qualquer coisa, mas as palavras atropelaram-se e transformaram-se em sons desarticulados e coléricos. O estenógrafo levantou a cabeça.

            - Vamos, vamos, tente responder à pergunta insistiu Mysgart.

            - Disse-lhe o que aconteceu.

            - Exatamente. Disse-me duas coisas diferentes, Mrs. Cool. Creia que estou a tentar descobrir qual é a certa.

            Apareceram na testa de Bertha gotinhas de transpiração.

            - Está bem, seja como quer - replicou.

            - Não, não, como eu quero, não - apressou-se a protestar o advogado. - Tem de ser como a senhora quer. E permita que lhe lembre que prestou juramento e, portanto, desta vez deve tentar dizer a verdade.

            - Muito bem! - gritou-lhe Bertha. - Eu ia na faixa da esquerda. Atravessei, pela faixa central, para a faixa da direita. Que há de errado nisso?

            - Pode ter havido muito de errado - redarguiu, condescendente, Mysgart. - Depende do modo como o fez. Diga-me, fez algum sinal antes de atravessar para a faixa da direita?

             - Não, não fiz.

            - Olhou para trás?

            - Claro que olhei para trás.

            - Virou a cabeça?

            - Não. Olhei pelo retrovisor.

            - E, em virtude do ângulo em que o seu carro estava a ser conduzido, não pôde ver a estrada, por essa faixa abaixo. Por outras palavras, como virara abruptamente o seu carro para a direita, o seu retrovisor só lhe mostrou os veículos que vinham diretamente atrás de si. Ao que quero chegar - prosseguiu, em tom apaziguador - é ao seguinte: a senhora não viu o carro conduzido por Esther Witson, que vinha atrás de si, pois não?

            - Não, não vi - admitiu Bertha.

            - Quando o viu pela primeira vez?

            - Quando cheguei junto ao passeio do lado direito e parei. Nessa altura olhei para o retrovisor e vi-a mesmo atrás de mim.

            - Ah, a senhora parou?

            - Parei, sim! - respondeu Bertha, furiosa. – Agora tente arrancar alguma coisa daí se for capaz!

            - Fez sinal de que ia parar, quando parou?

            - Fiz.

            - Como?

            - Pus o braço fora da janela, em ângulo.

            - O braço todo?

            - O braço todo.

            - E fez sinal de parar?

            - Fiz sinal de parar.

            - Porque parou, Mrs. Cool? Não tinha passageiros para sair, junto do passeio, pois não?

            - Não.

             -E sabia que ali não é lugar de estacionamento?

            - Claro que sabia.

            - Estava mesmo no cruzamento?

            - Estava mesmo no cruzamento.

             -E havia um sinal de trânsito na Mantíca Street?

            - Havia.

            - E esse sinal indicava que o trânsito estava aberto ao longo do Garden Vista Boulevard?

            - Indicava.

            - E mesmo assim parou?

            - Bem, quase parei.

            - Não quero saber se quase parou, Mrs. Cool, quero saber se parou.

            - Bem, eu... eu devia estar a andar muito devagar.

            - Mas há momentos disse que parara.

            - Está bem, pronto, parei! - gritou-lhe Bertha.

             -Imobilizou o carro?

            -Imobilizei o carro, se quer assim.

            - Não sou eu que quero assim, Mrs. Cool. O que quero é saber o que fez, realmente.

             -Está bem, parei o carro.

            - Completamente, imobilizou-o?

            - Não me apeei e estendi o dedo e olhei ao longo dele, para ver se o carro estava a andar – respondeu Bertha, sarcasticamente.

            - Ah, compreendo! - exclamou Mysgart, como se aquilo explicasse tudo. - Creio que me interpretou mal, Mrs. Cool, ou que eu a interpretei mal a si. Segundo

depreendo agora do seu depoimento, não tem a certeza absoluta se o seu carro estava completamente parado ou se andava, não é verdade?

            - É.

            -Mas fez sinal, com o braço todo, de que ia parar?

            - Pois fiz.

            - Fez sinal de parar?

            - Foi isso que eu disse.

            - E era isso que queria dizer?

            - Claro que era isso que queria dizer.

            - Permita que lhe pergunte de novo porque parou, Mrs. Cool. Não tencionava estacionar ali.

            - Tencionava virar à esquerda assim que o outro carro me ultrapassasse.

            - Ah, tencionava virar à esquerda! Deu a conhecer a sua intenção por meio de algum sinal?

            - Certamente.

            - Quer dizer que fez sinal de virar à esquerda?

            - Claro.

            - E como fez isso, Mrs. Cool?

            - Como é que qualquer pessoa faz isso?

            - Não, não, Mrs. Cool. Quero saber como a senhora fez.

            - Pus o braço esquerdo de fora, direito.

            - Fez o sinal com o braço todo?

            - Com o braço todo.

            - E depois viu o tal carro atrás de si?

            -Vi.

            -Pela primeira vez?

            - Sim.

            - E quis que o carro a ultrapassasse?

            - Sim.

            - Deu a conhecer a sua intenção à condutora desse carro por meio de algum sinal?

            - Certamente.

            - Que fez?

            - Fiz-lhe sinal para passar.

            - Como?

            - Agitando o braço.

            - Que quer dizer ao certo com a expressão «agitando o braço», Mrs. Cool?

            Bertha estendeu o braço e fez uma série de movimentos circulares.

            - Que fique registrado - disse Mysgart - que, nesta altura, Mrs. Cool estende o braço esquerdo e faz uma série de movimentos circulares - movimentos que se

elevam acima da sua cabeça, quando o braço sobe, e quase tocam no chão, quando o braço desce. Está certo, Mrs. Cool?

            - Está certo - respondeu, e acrescentou de novo sarcástica: -Agrada-me que tenha achado alguma coisa certa.

            - Assim que viu esse sinal, Miss Witson ultrapassou-a, não é verdade?

            - Ultrapassou-me e descompôs-me – respondeu Bertha.

            - A sua janela estava descida do lado esquerdo, não estava?

            - Estava.

            - E a janela do carro de Miss Witson? Cuidado, Mrs. Cool; não quero atrapalhá-la. Desejo simplesmente pôr à prova a sua capacidade de observação e ver o que recorda. A janela do lado direito do carro de Miss Witson estava aberta ou fechada?

            Bertha pensou um momento, antes de responder:

            - Estava fechada.

            - Tem a certeza?

            - Tenho.

            - Todas as janelas do lado direito do carro de Miss Witson estavam fechadas?

            - Estavam.

            - Completamente fechadas?

            - Foi isso que eu disse.

            - E que lhe disse Exatamente Miss Witson! Que palavras empregou?

            Os olhos de Bertha brilharam de triunfo.

            - Não me atrapalha assim - declarou.

             Mysgart arqueou as sobrancelhas e perguntou:

            - Que quer dizer?

            - Quero dizer que, se as janelas do lado direito do carro dela estavam fechadas, eu não podia ouvir o que ela dizia, e o senhor sabe isso tão bem como eu. Mas pude vê-la falar.

            - Mas não ouviu as palavras?

            - Naturalmente que não, visto as janelas estarem fechadas.

            - Não ouviu palavra nenhuma?

            - Não. Bem, ouvi... Não, não juro que ouvi.

            - Então como sabe que Miss Witson a descompôs, como disse?

            - Percebi-o pela expressão do seu rosto.

            - Não ouviu uma palavra do que ela disse?

            - Não.

            - Então quando diz que ela a descompôs está a basear-se em telepatia mental?

            - Vi a expressão do seu rosto.

            - Sabe o que as pessoas estão a pensar pela expressão do seu rosto?

            - Sei. Quando mexem os lábios.

            Ato contínuo, Mysgart moveu os lábios silenciosamente, durante segundos, e depois perguntou:

            - Que disse eu então, Mrs. Cool?

            - Então não disse nada.

            - Mas mexi os lábios. Estive realmente a dizer alguma coisa, Mrs. Cool, a fazer uma declaração muito precisa. Mexi os lábios e a senhora viu a expressão do meu rosto, não viu?

            Bertha não respondeu.

            - Não sabe, então, o que eu disse?

            Bertha refugiou-se num silêncio amuado, de pessoa que se sentia acossada. Mysgart aguardou alguns segundos e depois disse:

            - Que fique registrado que a testemunha não pode ou não quer responder à pergunta.

            Bertha começara a suar.

            - Portanto, Mrs. Cool - prosseguiu o advogado, depois de passar subitamente da faixa de rodagem da esquerda para a da direita, mesmo pela frente do carro conduzido pela minha cliente, Miss Witson, depois disso a senhora fez, de repente, sinal de parar, abrandou a velocidade (não sabe quanto porque desconhece se o seu carro parou mesmo ou continuou a andar), fez, também de repente, sinal de virar à esquerda e, igualmente de repente, descreveu essa série louca de sinais com o braço, posto o que bloqueou completamente o trânsito, no respeitante à faixa da direita. É capaz de dar uma explicação lógica para o seu procedimento?

            - Já lhe disse que queria virar à esquerda e queria que esse outro carro me ultrapassasse.

            - Sabia que não tinha direito nenhum de parar no cruzamento quando o sinal estava aberto ao trânsito pelo Garden Vista Boulevard?

            - Bem, se quer ver as coisas do ponto de vista técnico, sabia.

            - Portanto, parou ilegalmente?

            - Pois sim.

            - Sabia que não tinha direito nenhum de virar à esquerda na faixa de rodagem da direita?

            - Claro. Foi por isso que quis que o outro carro me ultrapassasse.

            - Portanto, fez dois sinais de duas manobras proibidas, um atrás do outro?

            - Se quer pôr as coisas nesse pé, fiz.

            - Quando viu pela primeira vez o carro conduzido por Mr. Lidfield?

            - Imediatamente antes da colisão.

            - Exatamente quanto tempo antes da colisão?

            - Não lhe sei dizer. Acho que um segundo.

            - E onde o viu pela primeira vez?

            - Começava a guinar para virar à esquerda.

            - E sabe onde ocorreu a colisão?

            - Sei.

            - Onde foi?

            - Mesmo defronte do meu carro. Bloqueou-me de tal maneira que não podia andar para trás nem para frente.

            - Exatamente. Não quero atrapalhá-la, Mrs. Cool. Posso-lhe dizer que um exame feito demonstra que a distância do ponto onde os carros foram encontrados ao centro do cruzamento era de 9,30 m, exatos. Essa distância parece-lhe mais ou menos correta?

            - Mais ou menos.

            - É a distância exata, Mrs. Cool. Creio que o advogado da parte contrária concorda comigo.

            Mysgart olhou para Glimson, que não disse nada.

            - Ora bem, Mrs. Cool, quando viu pela primeira vez o carro de Mr. Lidfield, ele encontrava-se a certa distância do cruzamento, na direção oposta à sua?

            - Ainda não tinha chegado ao centro do cruzamento.

            - Exatamente. Portanto, o carro teve de chegar ao centro do cruzamento, virar no lado oposto ao centro do cruzamento e depois percorrer 9,30 m antes de chocar com o carro de Miss Witson.

            - Suponho que sim.

            - Ao todo, uma distância de 15 m, talvez?

            - Sim, mais ou menos isso.

            - Diria, portanto, que o carro de Lidfield teve de percorrer pelo menos 15 m a partir do momento em que o viu pela primeira vez até ao momento da colisão?

            - Acho que sim.

            - E a senhora declarou, positivamente, que viu o carro um segundo apenas antes da colisão?

            - Declarei.

            - Já pensou, Mrs. Cool, que um carro que percorre 15 m num segundo está a deslocar-se à velocidade média de 900 m por minuto? E que 900 m por minuto equivalem a 54 km por hora?

            Bertha pestanejou.

            - Portanto - prosseguiu Mysgart , baseando-me nos seus cálculos... não quero atrapalhá-la, Mrs. Cool, mas, pelos seus cálculos, o carro de Lidfield surdiu naquele cruzamento a uma velocidade superior a 50 km por hora, mais Exatamente, a 54 km por hora. Acha mais ou menos certo?

            - Não creio que viesse tão depressa.

            - Então o seu depoimento deve estar errado. Acha que ele se encontrava a mais de 15 m do cruzamento?

            - Bem, mais, não.

            - Mas pelo menos a 15 m do local do acidente?

            - Sim.

            - Nesse caso, é o seu depoimento do tempo que deve estar errado. Acha que terá sido mais de um segundo?

            - Talvez.

            - Mas já disse, positivamente, que foi apenas um segundo, Mrs. Cool. Deseja modificar esse depoimento?

            A testa de Bertha estava alagada em suor.

            - Não sei a que velocidade o carro vinha. Levantei, apenas, a cabeça e vi-o, e depois deu-se o choque.

            - Ah, levantou a cabeça e viu-o!

            - Sim.

            - Então devia estar a olhar para baixo, antes do choque.

            - Não sei para onde estava a olhar.

            - Compreendo. Não sabe se o seu carro estava a andar ou parado. Não sabe se estava a olhar para um lado ou para outro...

            - Estava a olhar para baixo.

            - Então não estava a olhar para o lado?

            - Não.

            - Portanto, não podia estar a olhar para Esther Witson.

            - Estava a olhar para ela.

            - Decida-se.

            Bertha permaneceu obstinadamente calada. Mysgart sorriu, triunfante, e declarou:

            - Creio que é tudo.

            O estenógrafo fechou o livro de apontamentos. Esther Witson sorriu desdenhosamente a Bertha e saiu. Mysgart coçou o nariz com o bigode. As pessoas saíram todas, rapidamente, até Bertha e eu ficarmos de novo sozinhos no escritório, que parecia um ringue depois de os pugilistas terem partido.

 

Donald Remedeia Tudo

            Bertha Cool fechou cuidadosamente a porta e atirou-se a mim... verbalmente:

            - Raios o partam! Foi você que me meteu naquilo. Porque não me disse o que me esperava?

            . -Eu tentei, mas você afirmou que nenhum raio de nenhum advogado conseguiria atrapalhá-la.

            Bertha limitou-se a deitar-me um dos seus olhares homicidas e a pegar num cigarro. Tirei também um da algibeira e sentei-me na cadeira dos clientes.

            - Como demônio pode alguém lembrar-se de todas aquelas ninharias? Uma pessoa não se pode lembrar do que estava a fazer e, ao mesmo tempo, de quantos segundos passaram e todo esse gênero de coisas.

            Bateram timidamente à porta.

            - Se for o Mysgart, não perca a tramontana recomendei.

            Bertha olhou-me, atrapalhada, e pediu:

            - Se for esse maldito advogado, fale... fale você, queridinho.

            - Estou interessado em Esther Witson, ela foi atrás de sinuma distância de oito a dez quarteirões. Lembre-se deque...

            Bateram de novo e fui abrir.

            - Posso entrar? - perguntou Mysgart.

            - Entre - respondi, e apontei a cadeira dos clientes.

            - Espero que não tenha ficado com ressentimentos, Mrs. Cool - disse o advogado, a sorrir a Bertha.

            Respondi por ela:

            - Não há ressentimentos. Foi tudo uma questão de trabalho.

            - Obrigado, Mr. Lam. Ainda bem que compreende a minha situação. A minha cliente é um pouco impulsiva... como acontece a tantas mulheres.

            Bertha olhou-o, furiosa, mas limitou-se a expelir o fumo pelas narinas.

            - Um cigarro? - ofereci a Mysgart.

            - Obrigado.

            Estendi-lhe a caixa dos cigarros, ele tirou um e acendeu-o.

            - Mrs. Lidfield ficou gravemente ferida? - indaguei.

            - Sabe como estas coisas são - respondeu, fazendo uma leve careta. - Se receber uma indenização, começará logo a girar por aí, fresca como uma alface. Se não receber, ficará um ano na cama. O Glimson é manhoso, especializou-se neste gênero de coisas.

            - Você também não é nada Peco - observei.

            Mysgart sorriu.

            - O grandíssimo... - começou Bertha, mas eu cortei-lhe a palavra:

            - Desculpe, se é você que vai tratar disto, eu saio.

            E dirigi-me para a porta.

            - Não saia, Donald.

            Hesitei um momento e depois olhei-a significativamente.

            - Ficarei calada.

            Tirei a mão do fecho da porta. Mysgart apressou-se a intervir:

            - Mrs. Cool tinha dito qualquer coisa a respeito de estar disposta a chegar a um acordo e pagar uma indenização, para não ter de comparecer como testemunha.

            - Agora já testemunhou - lembrei-lhe.

            Mysgart abriu a pasta, procurou qualquer coisa, tirou uns papéis e começou a olhar para eles muito atentamente.

            - Creio que seria possível resolver o caso por acordo - declarou. - Creio até que foi por isso que o Glimson quis apressar os depoimentos. Sim, acho que ele queria arrumar o assunto mediante qualquer espécie de acordo.

            - Bem, se o senhor quiser fazê-lo...

            Olhou-me, surpreendido.

            - Quer dizer que vocês não querem estabelecer nenhum acordo, agora?

            - Não temos nenhum interesse especial nisso.

            - Mr. Lam! Longe de mim querer provocar discussão, tanto mais que estou convencido de que poderemos arrumar este assunto com espírito prático e de modo amigável, mas os depoimentos provaram que Mrs. Cool foi muito negligente, o que, aliás, se depreende das suas próprias declarações. Parou num lugar proibido, numa altura proibida e de maneira ilegal, e fez dois sinais confusos, de aviso de duas manobras proibidas, além do tal sinal a agitar o braço.

            - E a sua própria cliente? Se o Lidfield vinha a conduzir com velocidade, isso significa que já devia estar no cruzamento antes de Esther Witson lá chegar. Portanto, era a ela que competia estar atenta aos movimentos dele.

            - Admito que o caso tem alguns aspectos intrigantes...

            - Que não intrigam nada o Glimson.

            Mysgart suspirou.

            - Esperava que encontrássemos uma maneira qualquer de arrumar o assunto definitivamente.

            - Quanto quer o Glimson?

            - Oh, não faço a mínima idéia!

            Continuei a fumar, em silêncio.

            - Se vocês estivessem dispostos a fazer qualquer contribuição, a minha cliente talvez se dispusesse também a contribuir e, entre as duas partes, poderíamos resolver esta trapalhada.

            - Porque não se deixa de rodeios?

            Mysgart coçou o nariz com o bigode ruivo.

            -A situação tem alguns aspectos desagradáveis...

            - Está bem, Mr. Mysgart, quebrarei o gelo. Dar-lhe-emos quinhentos dólares.

            Olhou-me, com uma expressão de censura.

            - Quinhentos dólares! Isso é uma brincadeira... ou um insulto?

            - Entenda-o como quiser. Se não lhe interessa, retiro a oferta.

            - Não, não... Não seja precipitado, Mr. Lam. No fim de contas, o senhor e eu somos homens práticos e não perdemos a cabeça. Não é verdade?

            - Não sei.

            Mysgart levantou-se, muito depressa, e meteu a papelada na pasta.

            - Conserve-se calmo, Mr. Lam, mantenha-se sereno. No fim de contas, somos homens práticos. Veremos o que podemos fazer. O Glimson e a cliente estão à espera junto do elevador. Falarei com ele.

            Mysgart saiu e Bertha perguntou-me:

            - Porque não lhe ofereceu mil e quinhentos dólares? Ele teria aceitado logo.

            - Espere e verá.

            - Todo o raio dessa história me parece esquisita. Raios partam os advogados! Detesto os pulhas. As perguntas que aquele homem me fez! -Com a breca, se um indivíduo se atirasse a si daquele modo, você nem seria capaz de lhe dizer o que comera ao pequeno-almoço.

            Sorri-lhe.

            - Isso, continue a sorrir como um gato de porcelana! Só gostaria de o ver ali, no lugar das testemunhas, com aqueles passarões a fazerem-lhe perguntas.

            O telefone tocou. Bertha levantou o auscultador, apressada, e logo a seguir a sua voz soou, toda mel e açúcar:

            - Oh, sim, Miss Rushe! Não, de modo nenhum, não nos esquecemos de si. Um momento, para falar com o Donald. Ele deve estar por aí, no escritório. Não desligue, por favor, talvez precise de um minutinho para encontrá-lo.

            Bertha tapou o bocal com a palma da mão.

            - É Georgia Rushe... Macacos me mordam se não me esquecera dela por completo! Que estamos a fazer em seu nome... Ah, sim, aquela investigação acerca de Mrs. Crail! Você é que tem de falar com a pequena, queridinho. Tem habilidade para inventar coisas de improviso, consoante as necessidades. Graças a Deus tive a sensatez suficiente para ganhar tempo, dizendo-lhe que tinha de procurá-lo. Comece a pensar, eu digo-lhe que você está a ditar e que espere mais um pouco.

            - Eu falo com ela.

            - Invente qualquer coisa convincente.

            Bertha levantou a mão do bocal e disse:

            - Ele está a ditar, Miss Rushe, mas não demora nada. Ele... olhe, já cá está... O quê? O que disse?

            Bertha fez uma grande careta, a olhar para o telefone, e pediu:

            - Repita isso... Fale devagar.

            Escutou uns trinta segundos e depois perguntou:

            - Tem a certeza de que é isso que deseja?... Bem, se pensa assim... Pobre criança, está a chorar! Escute, é melhor falar com o Donald. Ele está aqui e quer falar consigo.

            Bertha tapou de novo o bocal do telefone.

            - Atenda, Donald. Ela também é chalada!

            - Fala Lam, Miss Rushe.

            Georgia Rushe começou a falar tão depressa que tive dificuldade em compreendê-la. As suas palavras pareciam apenas um jorro impetuoso de som histérico.

            - Quero desistir de tudo, Mr. Lam. Quero que pare. Não faça mais nada. Deixe as coisas como estão. Estou arrependida de ter começado... não imaginava ao que levaria, pois de contrário não me teria metido em tal coisa. E não se preocupe com os duzentos dólares. Fique com eles e esqueça tudo. Só lhe peço que nunca diga a ninguém, seja em que circunstâncias for, que o contratei para investigar... E, por favor, pare tudo imediatamente, suplico-lhe. Não faça mais nada. Pare o que estiver a fazer, não toque mais no assunto.

            - Permite que lhe pergunte por que tomou essa decisão, Miss Rushe?

            - Não lhe posso dizer. Não lhe posso dizer absolutamente nada a tal respeito. E não tenho tempo para discutir o assunto... nem quero. Limite-se a interromper todas as investigações com ele relacionadas, por favor.

            - Talvez fosse melhor vir ao escritório, confirmar pessoalmente essas instruções.

            - Não precisa de confirmação nenhuma. Faça apenas o que lhe peço. Com certeza que não precisa de um documento assinado perante um notário, para abandonar uma investigação. Que se passa com vocês? Que pretendem fazer? Pare, mais nada, já lhe disse que quero que pare. Não faça mais nada, esqueça tudo. Guarde o dinheiro e acabou-se.

            Estava a enervar-se com as próprias palavras e não tardaria a perder por completo o domínio dos nervos.

            - Mas, Miss Rushe, começávamos precisamente a obter algumas informações de fato valiosas, estamos a...

            - Era isso que eu receava e é por isso que quero que pare. Pare imediatamente, não quero mais nada. Vou... vou-me ausentar. Sairei daqui. Não me voltará a ver... nunca mais.

            Ouvi um soluço abafado e, de repente, a ligação terminou. Repus o auscultador no descanso.

            - Com que idéia ficou, hem? - perguntou-me Bertha.

            Olhei-a com um ar muito grave e respondi-lhe:

            - Tanto quanto me é possível fazer uma idéia, ela quer que deixemos de trabalhar no caso.

            Bertha corou, indignada.

            - Diabos o levem, julga que não compreendo inglês? Sei muito bem o que ela disse. O que lhe perguntei foi o que lhe pareceu. Às vezes é o pulhazinho mais irritante...

            Bateram timidamente à porta.

            - Mysgart - avisei.

            Bertha lançou-me um derradeiro olhar assassino e depois afivelou a sua melhor máscara-sorridente-de-receber-clientes.

            - No fim de contas, o filho da mãe está a ganhar dinheiro para nós. Entre!

            Mysgart abriu a porta, quase como quem se desculpa. O modo como entrou denunciou a tática furtiva, de pezinhos de lã, que adotara. Os pés do indivíduo adaptavam-se inconscientemente aos seus processos mentais. Foi praticamente em bicos de pés que se dirigiu para a cadeira dos clientes.

            - Mr. Lam, creio que se pudesse subir de quinhentos para mil dólares conseguiríamos um acordo.

            Olhei para o relógio e respondi, a sorrir:

            - Chega dois minutos atrasado.

            - Que quer dizer?

            - Quero dizer que Mrs. Cool e eu acabamos de receber uma notícia muito desagradável. Um caso importante que estávamos a investigar foi cancelado.

            - Coisa grande?

            - Pequena, como é costume ao começar... mas estava a conduzir a algo grande, muito grande.

            Mysgart coçou o nariz com o bigode.

            - Nessas circunstâncias, não vejo como poderemos contribuir com quinhentos dólares, sequer, para o acordo - acrescentei. - Lamento, mas creio que teremos de deixar as coisas seguirem o seu curso.

            - Oh, não podem fazer isso! Não podem fazer isso! Já estabeleci o acordo!

            - Na base de mil dólares?

            - Um momento - pediu, e voltou a levantar-se de supetão da cadeira dos clientes, só um momento. Não saiam daqui. É só um momento!

            Saiu pela porta fora como uma sombra esvoaçante. Bertha olhou-me e lembrou:

            - O que Georgia Rushe disse pelo telefone não afeta o trabalho que estamos a fazer para Mr. Crail.

            - Bem, não sejamos pessoas de idéias limitadas... principalmente estando a trabalhar com um advogado especializado em acidentes de automóvel - respondi, alegremente.

            Bertha pestanejou e, de súbito, exclamou:

            - Adoro-o, seu pulhazinho! Sinto a maior admiração pela máquina de pensar que existe atrás desses olhos... e você irrita-me tanto que seria capaz de o matar uma dúzia de vezes por dia!

            Mysgart bateu timidamente à porta e desta vez não esperou que o mandássemos entrar: bateu por formalidade, girou a maçaneta, abriu a porta apenas o suficiente para o seu corpo gorducho caber, entrou e fechou silenciosamente a porta. Acenava com a cabeça e os seus lábios sorriam, mas os olhos pareceram-me duvidosamente apreensivos.

            - Pronto, consegui compor tudo. Está tudo arrumado. As minhas felicitações a ambos. Conseguiram obter um acordo muito favorável, livraram-se de uma situação deveras precária. Está tudo bem. Bastam os quinhentos dólares. Expliquei às partes que a quantia será imediatamente entregue.

            - Mrs. Cool desejará quitações assinadas por Mr. Lidfield, Mrs. Lidfield e Esther Witson.

            - Tê-las-á. Tomei a liberdade de pedir à sua secretária que passasse à máquina uma quitação de Esther Witson, Mrs. Cool; e Mr. Glimson já tem as quitações assinadas de Mr. e Mrs. Lidfield.

            - Onde arranjou ele a assinatura de Mrs. Lidfield? - perguntou Bertha, desconfiada.

            - Glimson tinha uma quitação assinada por ela, com a importância em branco, evidentemente.

            Bertha empurrou a cadeira para trás uns três ou quatro centímetros.

            - Quer dizer que o filho da mãe veio aqui e armou aquela fita com o único objetivo de me levar, pela chantagem, a fazer um acordo? Quer dizer que ele teve sempre a quitação assinada na algibeira enquanto...

            Mysgart ergueu a mão gorducha, apaziguador:

            - Um momento, Mrs. Cool, um momento. Acalme-se, por favor. Suplico-lhe que não se excite desse modo. Não se trata, de modo nenhum, de uma situação invulgar. É costume um advogado obter uma procuração escrita de um cliente, para efetuar um acordo, e depois pedir-lhe que assine uma quitação, dando-lhe uma certa margem de manobra, uma certa liberdade de ação. Procede-se assim para que, quando todas as partes estão reunidas e com disposição para chegar a um acordo, este se possa efetuar prontamente, sem necessidade de demoras que, por vezes, conduzem a complicações. Posso-lhe garantir que não é uma maneira de proceder absolutamente nada invulgar. Até eu próprio a tenho adotado!

            Virei-me para Bertha Cool e disse-lhe:

            - Passe um cheque de quinhentos dólares pagável a John Carver Mysgart, advogado de Esther Witson, e a Cosgate & Glimson, advogados de Mr. e Mrs. Roland Lidfield.

            - De que diabo está a falar? - protestou Bertha. Passo um cheque em nome dos Lidfields e de Esther Witson e entrego-o quando receber a quitação, e não antes.

            Mysgart tossiu.

             -Nada feito, Bertha - declarei. - Não se esqueça de que está a lidar com uma parelha de advogados especializados em acidentes de automóveis.

            - Que diabo significa isso?

            - É uma questão de cortesia profissional passar o cheque pagável ao advogado em vez de ao cliente.

            - Então o que me protege, a mim?

            - A quitação do cliente - explicou Mysgart, e sorriu-me, agradecido. - Terá a quitação assinada da cliente, uma quitação que será ampla na sua forma, Mrs. Cool, libertando-a de todas as exigências de qualquer espécie ou natureza, desde o princípio do mundo até esta data.

            - Desde o princípio do mundo? - repetiu Bertha.

            A calva de Mysgart refletiu a luz, quando ele acenou veementemente com a cabeça.

            - É uma fórmula jurídica, Mrs. Cool, uma salvaguarda.

            - É tão bom para mim! - exclamou Bertha, sarcástica, e acrescentou: -Cinqüenta mil anos chegaria.

            - O princípio do mundo é uma salvaguarda jurídica, uma fórmula, Mrs. Cool. Aparentemente, Mr. Lam está de certo modo familiarizado com o procedimento, em tais circunstâncias, e creio que ele lhe pode garantir que se trata de um modo de proceder costumado, de cuja proteção a senhora faria bem se aproveitasse.

            - Conversa, conversa! - resmungou Bertha, irritada.

            - Tenho de escrever toda essa prosa num cheque?

            - A Elsie pode escrever tudo à máquina - respondi-lhe. - Dê-me um cheque e eu vou pedir-lhe que o preencha.

            - Não largue o cheque enquanto não tiver as quitações - recomendou-me a minha sócia.

            Mysgart tossiu de novo.

            - O banco fica cá em baixo - informei-o. – Já fechou, mas podemos entrar pela porta lateral e eles pagarão, visto tratar-se de um acordo deste gênero. O senhor e Glimson podem acompanhar-me e quando o caixa passar o dinheiro pelo guiché, vocês dois entregam-me as quitações assinadas e...

            Mysgart acenava entusiasticamente com a cabeça.

            - O senhor e eu somos homens de negócios, Mr. Lam! Acho a idéia excelente.

            Bertha abriu com um movimento brusco a gaveta da secretária, tirou um livro de cheques, arrancou um cheque em branco e meteu-mo praticamente na mão.

            -Donald, se gosta de mim leve esses malditos advogados do meu escritório!

             Mysgart virou-se e começou a falar em tom conciliador, mas eu dei-lhe o braço e levei-o calmamente do gabinete. Elsie Brand teve de unir muito as linhas, para que coubesse tudo no cheque, mas conseguiu-o.

            - Espere aqui - pedi a Mysgart. - Vou levar isto a Bertha, para assinar, e depois desceremos juntos. No entanto, há ainda umas coisitas que desejamos, relativamente ao acordo.

            - De que se trata?

            - Esther Witson foi uma mulherzinha muito afadigada a registrar nomes e matrículas dos carros das testemunhas, a quando do acidente, e eu creio que Mr. Lidfield também se entregou a uma caçazinha pessoal. A minha sócia é um pouco desconfiada e exigirá todos os dados em poder de ambas as partes, no capítulo de nomes das testemunhas e matrículas dos carros.

            - Oh, claro! - Mysgart acenou de novo com a cabeça, entusiasticamente. - Compreendo a sua atitude. Ela confunde a minha atitude profissional com as minhas relações pessoais, mas pode estar descansado, Mr. Lam, que terá todos os dados. Não guardaremos nada, absolutamente nada.

            Sorriu-me, encantado, e eu fui levar o cheque a Bertha. Olhou-me, desconfiada, e declarou:

            - Quando esses malditos advogados começam a andar pelo escritório com pezinhos de lã e a arreganhar o pinhão uns aos outros, raios me partam se você não se junta à confraria, se não anda com pezinhos de lã e não arreganha o pinhão como eles! Não sei a que isso se deve. Provavelmente aos seus estudos jurídicos.

            Pegou na caneta e quase furou o papel, ao assinar o cheque. Saí e fechei a porta devagarzinho. O pequeno grupo estava reunido junto do elevador. Lidfield dirigiu-se-me e estendeu timidamente a mão.

            - Ainda não tinha tido oportunidade de o conhecer, Mr. Lam. Sinto-me satisfeito por arrumarmos assim este desagradável caso.

            - Só espero que a sua esposa melhore - respondi-lhe.

            - Também eu - murmurou, com uma expressão de inefável tristeza. - Pobre rapariga!

            Fomos todos ao banco.

            - Um momento, antes de o dinheiro mudar de mãos - pedi. - Recordo-lhes que têm de me entregar uma lista completa das testemunhas.

            Mysgart sorriu a Esther Witson e disse-lhe:

            - Foi o combinado, Miss Witson. Creio que tem aí um livro de apontamentos...

            Esther Witson tirou um livro de apontamentos da algibeira.

            - Pode copiar os nomes ou...

            - Basta tirar as páginas originais do livro - interrompi-a. - É um livro de folhas soltas e...

            Esther Witson arrancou as páginas e estendeu-mas.

            - Está aqui tudo? - indaguei.

            - Tudo.

            - Agora - disse Glimson - há uma indenização a pagar pessoalmente por Miss Witson e...

            - Podemos resolver isso entre nós – interveio apressadamente Mysgart. - O banco de Miss Witson fica a quatro ou cinco quarteirões daqui e, se nos despacharmos, também poderemos entrar pela porta lateral. Conhecem muito bem Miss Witson e...

            - Dê-me uma lista das suas testemunhas – pediu Glimson a Lidfield.

            - Limitei-me a apontar a matrícula de todos os carros que estavam nas proximidades e que consegui ver... - disse o indivíduo, como quem se desculpa.

            - Claro que, depois de o seu cliente lhe comunicar as matrículas desses automóveis, mandou investigá-las e ficou com o nome dos proprietários? - perguntei a Glimson.

            O advogado suspirou, relutante, abriu a pasta e tirou uma folha de papel datilografada, que me estendeu sem dizer palavra. O caixa olhou-me, interrogadoramente, e eu acenei com a cabeça.

            Agarraram no dinheiro e correram para a porta, ansiosos por chegarem ao banco de Esther Witson a tempo de cobrarem o resto.

 

 Há Sempre Uma Que Sofre

            Fui a uma cabina telefônica e liguei para o escritório. Foi Elsie Brand que atendeu.

            - Olá, Elsie. Como vai a tensão arterial?

            - Muito alta.

            - Preciso de pensar um pouco. Se houver uma subida da tensão no escritório, estarei no automóvel, a tentar deslindar a meada.

            - Pessoalmente, recomendo o automóvel. O ar livre é repousante e por aqui ainda se debate a questão de onde estiveste a noite passada.

            - Está bem, obrigado. Porta-te como uma menina bonita.

            - Parece que não tenho outro remédio - respondeu, e desligou sem me dar tempo a perguntar o que queria dizer com aquilo.

            Atravessei para o parque de estacionamento, sentei-me no carro da agência e tirei da algibeira as folhas soltas que recebera de Esther Witson e se relacionavam com o acordo. Não encontrei o nome de Mrs. Crail. Nem o de Rufus

Stanberry. Nem o de Boskovitche. Toda essa página do livro de apontamentos desaparecera. Havia meia dúzia de outros nomes e números de matrícula. Pus-los de parte, provisoriamente, e consultei a lista que recebera de Lidfield.

            Constava apenas de números de matrícula, mas na folha datilografada que Glimson me dera ao lado dos números de matrícula liam-se os nomes dos proprietários. Lá estava a matrícula do carro de Bertha Cool, assim como o seu nome e morada. Lá estava a matrícula de um carro mencionado como pertencendo a Mrs. Ellery Crail, Scarabia Boulevard, 1013. Lá estava a matrícula de um sedan Cadillac, registado em nome de Rufus Stanberry, Fulrose Avenue, 3271. Encontrei também três ou quatro matrículas que coincidiam com as da lista de Esther Witson e mais duas que Esther Witson não anotara. E, por fim, à frente de uma matrícula, o seguinte nome e morada: Miss Georgia Rushe, West Orleans Avenue, 207.

            Dobrei a lista, guardei-a na carteira, saí do carro e fui telefonar à Crail Venetian Blind Company:

            - Posso falar com Miss Georgia Rushe? - perguntei à telefonista.

            - Quem fala? Tem de indicar o nome.

            - Diga-lhe que o Donald deseja falar-lhe.

            - Um momento.

            Ouvi meter e tirar cavilhas, os ecos distantes de uma voz abafada e depois, de novo, a voz profissionalmente cordial característica de uma telefonista competente:

            - Ela hoje saiu cedo.

            Olhei para o relógio. Eram quatro horas e trinta e cinco minutos.

            - Obrigado - agradeci, e desliguei.

            Tentei ligar para o número que Georgia Rushe me dera, quando nos contratara. Ninguém atendeu. Voltei para o carro da agência e deixei o motor aquecer enquanto passava mentalmente em revista tempos e lugares, para obter uma seqüência mental lógica dos acontecimentos.

            Depois pus-me a caminho da Crail Venetian Blind Company. Era uma grande estrutura de tijolo de três andares, no limite da zona comercial. A tabuleta, por cima da porta, era velha e estava suja. Letras douradas, desenhadas havia muito tempo, diziam: Crail Venetian Blind Company.

            Arrumei o carro perto da entrada. Já passava da hora de encerramento e uma fila irregular de trabalhadores estava a sair - homens idosos com lancheiras e raparigas esbeltas e atraentes, trasbordantes da saudável vitalidade da juventude e tagarelando alegremente enquanto desciam a escada.

            Aproximei-me e experimentei a porta interior. Tinha uma fechadura de mola. Deixei-a ficar, até que uma rapariga a escancarou e correu, apressada, para alcançar um grupo que já descia a rua. Mal reparou em mim quando segurei a porta e evitei que se fechasse.

            Um letreiro informava: Escritórios no Andar de Cima.            Subi a escada e fui ter a uma pequena sala de espera com um balcão, algumas cadeiras e uma pequena abertura em arco, numa divisória que dizia: Informações. Por baixo havia uma porta de vidro que se abria e fechava, de modo que uma pessoa que se encontrasse do outro lado do balcão não ouviria as conversas travadas no interior,

 pelo telefone.

            Como me pareceu que não estava ninguém do outro lado da divisória, dirigi-me para uma espécie de cancela, encontrei um daqueles fechos especiais que se abrem do interior por meio de um eletroímã ou por uma pressão dos dedos no sítio certo. Levantei o fecho, empurrei a cancela e entrei.

            Encontrei um corredor comprido, com divisórias parcialmente envidraçadas onde se lia, em letras douradas: Diretor de Vendas, Diretor de Crédito, Escritório de Contabilidade e, ao fim, numa porta, Presidente. Os únicos sons que se ouviam ali eram os ruídos de atividade ocasional no andar de baixo: passos, o bater de uma porta ou o som de uma voz. O andar propriamente dito estava tão silencioso como uma sala de tribunal deserta, depois de o réu ter sido condenado à morte e de o juiz ter reunido a papelada e saído para jogar golfe.

            Empurrei a porta que dizia: Presidente. Ellery Crail estava sentado à secretária, com o queixo encostado ao peito e as mãos peludas, grandes e competentes tão apertadas uma na outra que a luz do fim da tarde, que entrava pela grande janela, parecia arrancar reflexos à pele esticada dos nós dos dedos. Não ouviu a porta abrir-se e não levantou a cabeça. Tinha os olhos fixos, numa grande concentração, e via-se pela expressão do rosto que se encontrava absorto em pensamentos angustiosos. Dir-se-ia hipnotizado, ali sentado na rígida imobilidade de um transe.

            Atravessei a carpete de pêlo alto e ele só me viu quando me sentei na cadeira defronte da secretária. Levantou a cabeça, com uma ruga de desagrado na testa, e ao reconhecer-me exclamou, com súbita irritação:

            - Você!

            Acenei afirmativamente.

            - Como entrou?

            - Pela porta.

            - A porta costuma estar fechada.

            - Comuniquemos com Georgia Rushe.

            - Não está. Saiu cedo, foi para casa.

            - Foi um ar que lhe deu, hem?

            As minhas palavras não produziram logo efeito, mas passados momentos pareceu assustado.

            - Um ar que lhe deu? Meu Deus, Lam, isso não!

            - Homem, empreguei uma frase de calão! Queria dizer que se pirou, que desapareceu.

            - Jesus, pensei que queria dizer...

            - O quê?

            - Não sei, não sei...

            - Receou que se tivesse matado, envenenado, talvez?

            - Sei lá, talvez...

            - Vamos falar com ela. Se não sabe a morada, eu sei: West Orleans Avenue, 207. Tenho o meu carro lá em baixo.

            Olhou-me fixamente durante um segundo ou dois, com extrema atenção, e depois perguntou-me:

            - Que sabe você, ao certo?

            - Tanto que não precisa de me dizer nada que não queira.

            Empurrou a cadeira para trás e decidiu-se:

            - Está bem, vamos.

            Descemos a escada larga e saímos pela porta por onde eu entrara. Entretanto, pegara ao serviço um porteiro, que disse, maquinalmente:

            - Boas noites, Mr. Grail.

            - Boas noites, Tom.

            A porta fechou-se e eu ouvi o estalido do trinco a entrar na ranhura. Apontei o carro da agência, com o polegar:

            - É aquele.

            Sentei-me ao volante e Crail instalou-se a meu lado. Havia bastante trânsito, àquela hora, mas eu resolvi arriscar-me a uma multa e consegui chegar ao número 207 da West Orleans Avenue em menos de dez minutos.

            Era um prédio antigo, que não tentava sequer disfarçar a sujidade e as mazelas da velhice com a habitual fachada de estuque branco. Subiam pela frente do prédio algumas trepadeiras verdes e dispersas. As janelas estreitas contavam a sua história de luz e ventilação insuficientes. Bastava um olhar para aspirarmos o fedor psíquico de espíritos deprimidos, os odores físicos de cozinhados pobres e os gases irritantes de aquecedores a gás avariados.

            Deixei-me ficar um pouco para trás e Crail avançou à minha frente. Premiu o botão de uma campainha ao lado da qual se via o recorte de um cartão-de-visita com as palavras Georgia Rushe em cursivo inglês.

            Não houve resposta. A fechadura da porta exterior era um bocadinho melhor do que a maioria do seu gênero. Tinha comigo uma chave-mestra que talvez servisse, mas não quis mostrar o meu jogo tão depressa. Carreguei em dois ou três botões ao acaso e, passados momentos, ouvimos o besouro indicativo de que alguém carregava, no interior, no botão que destravava o trinco automático.

            Empurrei a porta e entramos. O número da caixa de correio de Georgia Rushe indicava que o seu apartamento era o 243. Talvez houvesse um elevador ao fundo do corredor, mas não perdi tempo a procurá-lo. Comecei a subir a escada e Crail seguiu-me, com o esforço de um homem fortemente musculado.

             Galguei os degraus a dois e dois. Ninguém respondeu quando bati à porta do apartamento 243. Olhei para Crail, cujo rosto estava desfigurado e ansioso. Apesar da luz fraca do patamar abafado e malcheiroso vi-lhe a lividez da pele e os sulcos profundos que lhe partiam das narinas para os cantos da boca. Não vi razão para estar com delicadezas. Tirei da algibeira um chaveiro de cabedal, abri-o e examinei a minha coleção de chaves falsas.

            A primeira fez o trabalhinho. A lingueta girou e entramos. O apartamento ficava perto das traseiras do edifício, do lado norte. Era um apartamento pequeno, de pessoa só, com duas janelas estreitas que pouca ventilação proporcionavam. Ajudava um pouco uma bandeira ajustável, por cima da parte de entrada. Estava uma luz acesa e a lâmpada era suficientemente forte para dar a impressão de que a sala era clara. Como de costume naquele gênero de apartamentos, a cama desaparecia na parede, atrás de uma porta cinzenta com um puxador de vidro. A cadeira estofada vira melhores dias e estava dura e aos altos e baixos, de tanto uso. O sofá já devia ter sido estofado de novo umas duas vezes e estava precisado de terceiro tratamento. A carpete desbotada quase deixava ver o chão, junto da mesa, e dois círculos profundos indicavam o lugar dos pés da cama, quando saía da parede. Uma mesinha, que à noite devia ficar junto da cama, tinha uma gaveta aberta. No centro da sala havia outra mesa maior, de pinho, mas com um acabamento cor de mogno escuro. Sobre ela viam-se algumas revistas.

            Numa cadeira estavam um chapéu e um casaco de mulher. A porta aberta do que, em tempos, fora um armário, deixava ver um pequeno lava-louça e um fogão de gás de dois bicos, um minúsculo frigorífico elétrico e uma prateleira com alguns pratos e copos. Atrás de uma outra porta, com um espelho a toda a altura, ficava com certeza a casa de banho.

            Em cima de uma cadeira de espaldar direito estava uma mala de viagem, cuja tampa aberta permitia ver que se encontrava meia de vestuário feminino. Crail soltou um grande suspiro de alívio e disse:

            - Ainda não partiu.

            Olhei em meu redor e comentei:

            - Sempre que a gerência de um prédio vai ao extremo de colocar lâmpadas fortes, pode-se ter a certeza de que a casa é escura como o Inferno durante o dia. Apaguei a luz e, instantaneamente, o aposento tornou-se escuro, tristonho e deprimente. A pouca claridade que se coava pelas janelas dispersava-se tão mal que dava à casa uma atmosfera de sinistra irrealidade.

            Notei que debaixo da porta da casa de banho saía uma réstia de luz.

            - Pelo amor de Deus acenda outra vez a luz – pediu Crail.

            Obedeci.

            - Bem, provavelmente ela saiu para ir buscar qualquer coisa - opinou o meu companheiro. - Está a fazer a mala. Creio que nós...

            - Que vamos fazer?

            - Esperar.

            - Está bem, sente-se.

            Crail escolheu a velha cadeira estofada e tentou instalar-se numa posição confortável. Aproximei-me da mesa pequena, que de noite devia servir de mesa-de-cabeceira, e olhei para a gaveta aberta. Lá dentro estava um frasquinho destapado e vazio cujo rótulo dizia: Luminal.

            Pensei um momento, vi as horas e perguntei a Crail:

            - A que horas saiu ela do escritório?

            - Deviam ser umas quatro e dez. Disse que não se sentia bem e queria vir para casa, e eu achei bem.

            - Notou alguma coisa de especial?

            - Em quê?

            - Na maneira como ela se despediu.

            Olhou-me, de novo angustiado, e depois acenou com a cabeça, devagar.

Não lhe perguntei nada, mas ele esclareceu-me, mesmo assim:

            -- Notei um certo sentimento no modo como falou, um certo ar de coisa definitiva... Creio que me leu o pensamento.

            Olhei de novo para o relógio. Eram cinco e um quarto. Sentei-me numa cadeira defronte de Crail e tirei um maço de cigarros da algibeira.

            - Quer um? - ofereci-lhe.

            Abanou a cabeça. Acendi o cigarro e Crail continuou sentado, a observar-me. A luz da lâmpada de cem velas do teto permitia-me ver-lhe na testa gotinhas de suor quase microscópicas.

            - Como é que você soube... quero dizer, como soube que ela ia partir, Lam?

            - E você, como soube que a sua mulher seguiu o carro de Rufus Stanberry?

            Desviou os olhos, por momentos, mas depois fitou-me de novo e respondeu:

            - Ela disse-me.

            Sorri-lhe, apenas.

            - Não acredita? - perguntou, corado.

            - Não.

            - Não estou habituado a que duvidem da minha palavra.

            - Bem sei - concordei, compreensivo. - É-lhe difícil mentir. Era Georgia que conduzia o carro dela ou você serviu-se dele emprestado?

            Não conseguiu disfarçar a consternação do olhar. Recostei-me na cadeira e continuei a fumar.

            - Como soube que o carro de Georgia esteve lá? - perguntou-me.

            - Um dos intervenientes do acidente de viação tomou nota da matrícula de uma quantidade de carros.

            - Devem ter-se enganado a copiar...

            Sorri, mas não disse nada.

            - Está bem, fui eu que me servi do carro dela! Confessou Crail. - Georgia não soube nada. Quero dizer... não soube para que o quis. Eu... raios me partam, Lam, fui um patife tão vil que segui a minha mulher. Queria saber... bem, pensei que ela tinha um encontro marcado com alguém e perguntei a mim mesmo... enfim, você sabe, aquela história do Edifício Stanberry.

            - Pois sei.

            Ficou calado.

            - Quando compreendeu que a sua mulher estava em apuros - observei, pensou que o motivo não importava para nada e que estaria do lado dela. E como sabia que Esther Witson tinha registrado o nome e a morada da sua mulher, assim como a matrícula do carro, por causa do acidente de automóvel, quis que o assunto fosse arrumado por acordo, sem ir mais longe.

            Continuou calado.

            - A vida é um fenômeno estranho... ou melhor, é toda uma série de fenômenos - observei. - É tantas vezes difícil fazer qualquer coisa sem magoar alguém!

            Percebi que estava a olhar para mim, perscrutadoramente, mas mantive-me de perfil e continuei a falar, como que distraidamente:

            - Muitas vezes, em questões do coração, temos de magoar uma pessoa ou outra, façamos o que fizermos... e às vezes até magoamos diversas pessoas. Mas

quando temos de escolher a pessoa que não queremos magoar, por vezes somos como que hipnotizados e escolhemos aquela que não quer ser magoada. Percebe

o que quero dizer?

            - Não percebo o que tem isso a ver com o caso.

            - Às vezes, uma mulher que realmente nos ama apaga-se, deixa-se ficar na sombra, de tal modo que não temos consciência do muito que a magoamos. Por outro lado, há muitas mulheres que não hesitam em colocar-nos as coisas em termos de «eu não quero ser magoada».

             -De que diabo está você a falar?

            - Da sua mulher.

            Seguiram-se longos segundos de silêncio.

            - Meu Deus! - exclamou Crail, por fim, em voz sufocada, e levantou-se.

            Continuei calado.

            - Devia bater-lhe, Lam.

            - Não faça isso. Vá antes espreitar na casa de banho.

            Lançou-me um olhar torturado, cheio de angústia, e depois dirigiu-se à casa de banho em três passadas e abriu a porta, com um puxão. Georgia Rushe estava deitada na banheira, completamente vestida. Tinha os olhos fechados, o rosto ligeiramente pálido e o queixo descaído.

            Fui ao telefone, liguei para a Polícia e pedi:

            - Ligue-me a Frank Sellers da Brigada de Homicídios, depressa!

            Sellers atendeu numa questão de segundos.

            - Frank, fala Donald Lam. Mande uma ambulância à West Orleans Avenue, 207. A pessoa que lhe interessa está no apartamento 243 e tentou suicidar-se com Luminal.

             Ainda não decorreram quarenta e cinco minutos e, por isso, uma lavagem ao estômago e um estimulante pô-la-ão boa.

            - Como se chama?

            - Georgia Rushe.

            - Porque me hei-de incomodar com ela?

            - Ellery Crail está aqui e terá uma história para lhe contar, se falar com ele.

            - Estou a topá-lo.

            - Encarregue também um dos seus homens de visitar Frank L. Glimson, de Cosgate & Glimson. São advogados.  Diga a Glimson que Irma Begley, autora de uma ação contra Philip E. Cullingdon, confessou ter cometido fraude e fez declarações que incriminam a firma Cosgate & Glimson. Pergunte-lhes se têm alguma coisa a dizer... e não os deixe utilizar o telefone.

            - Essa Georgia Rushe falará?

            - Não. A pessoa que lhe interessa, Frank, é Ellery Crail.

            Crail, que saía da casa de banho, perguntou:

            - Que é isso? Quem estava a mencionar o meu nome?

            - Tentei ver se nos mandavam café quente. Acho que seria melhor tirá-la da banheira e pôr-lhe toalhas de água fria.

            Desliguei. Crail e eu tiramos Georgia da banheira.

            - Está drogada, Lam! Temos de fazer qualquer coisa!

 

 Captura Dupla

            Pisei no acelerador do carro da agência, arriscando-me a ser multado por excesso de velocidade. Seria conveniente estacionar a um ou dois quarteirões do apartamento de Billy Prue, mas não tinha tempo para isso. Fui até ao prédio, estacionei defronte da porta, galguei os degraus e toquei à campainha de Billy. Era uma probabilidade em dez... uma probabilidade em cem. Se ela estivesse em casa, estaria a fazer as malas, mas... Toquei de novo. Não aconteceu nada.

            A fechadura da porta da rua estava tão gasta que qualquer chave que encaixasse nas ranhuras a abriria. Nem sequer tive de perder tempo com o meu conjunto de chaves falsas: a do meu apartamento fez o trabalho.

            Subi e bati duas vezes à porta do apartamento de Billy Prue. Não se ouvia nada no interior. Reinava um silêncio pesado. Tirei as chaves falsas e experimentei uma. Nada. Antes de conseguir tirá-la da fechadura, abriram bruscamente a porta, do interior.

            - Oh, faça de conta que está em casa! - exclamou, sarcástica, Billy Prue. - Entre sem cerimónia... Oh, é você!

            - Porque não responde quando lhe batem à porta?

            Levou a mão à garganta e declarou:

            - Pregou-me um susto de morte!

            - Não parece.

            - Não me atrevi a abrir. Porque não disse quem era?

            - Como?

            - Podia ter chamado através da porta.

            Fechei a porta com cuidado e certifiquei-me de que a fechadura de mola funcionava.

            - Teria sido bonito se parasse lá fora e gritasse:

            «Eh, Billy, é Donald Lam, o detetive particular! Quero falar-lhe de negócios. Abra!»

            - Trata-se de negócios, hem?

            Olhei à minha volta. A porta do quarto estava aberta e a cama praticamente coberta de roupa dobrada. No chão estavam duas grandes malas, além de uma mala de porão e duas caixas de chapéus.

            - Vai a algum lado?

            - Não esperava que ficasse aqui, pois não?

            - Não, se conseguisse arranjar outro lugar qualquer.

            - Foi isso mesmo que aconteceu, arranjei outro lugar.

            - Onde?

            - Com uma amiga.

            - Sente-se um momento. Temos de conversar.

            - Quero sair daqui, Donald. É tremendamente deprimente e... tenho medo!

            - Tem medo de quê?

            - De nada - respondeu, apressada, desviando os olhos.

            - Deliciosamente lógico.

            - Cale-se. Não somos obrigados a ser lógicos quando temos medo.

            - Talvez não.

            Recostei-me numa cadeira confortável e acendi um cigarro.

            - Vamos falar sensatamente.

            - Acerca de quê?

            - Acerca do assassínio.

            - Temos de falar disso?

            - Temos.

            - Mas a que respeito, Donald?

            - Tem a certeza absoluta de que o relógio dele estava uma hora adiantado, quando saiu?

            - Tenho.

            - E atrasou-o uma hora quando voltou?

            - Atrasei.

            - Tem a certeza de que não o atrasou uma hora antes?

            - Não, e devia ter atrasado. Isso tem-me incomodado, porque devia tê-lo feito.

            - Muito bem, sirvamo-nos da cabeça. Houve duas pessoas que mexeram no relógio. Você foi uma delas. Vejamos, então: quantas pessoas sabiam do plano para adiantar o relógio?

            - Só Pittman Rimley e eu.

            - E o rapaz do lavabo.

            - Sim, tinha-me esquecido dele.

            Levantei-me e andei de um lado para o outro durante um minuto ou dois. Ela ficou imóvel, a observar-me, sem dizer uma palavra. Fui até à janela e olhei para baixo, para a rua.

            - Para que está a olhar?

            - Para o carro da agência, estacionado lá em baixo, defronte do prédio.

            Colocou-se a meu lado e perguntou:

            - Mas que tem isso?

            - Ontem, alguém meteu a arma do crime dentro daquele carro. Não sei quando lá a puseram e, por isso tenho de começar por tentar perceber porque lá a puseram, pois isso talvez me dê uma pista acerca do quando.

            - Que quer dizer com o porque? Pensa que alguém tentou incriminá-lo?

            - Ou alguém quis incriminar-me, ou não quis.

            - Isso é elementar.

            - Temos de começar pelos fatos elementares. Há uma explicação tão simples, tão simples que me escapou.

            - Qual?

            - Quem pôs aquela arma no meu carro pode ter querido incriminar-me ou não. Naturalmente, parti da presunção que quem quer que lá a pôs queria incriminar-me. Agora começo a pensar na explicação simples.

            - Qual é?

            - Deixe-me exprimir de outro modo: quem quer que pôs a arma no carro sabia que ele era meu, ou não sabia.

            - Meu Deus, Donald, não imagina que existe a mínima probabilidade de alguém ter posto a arma no seu carro meramente por acaso, pois não?

            - Por acaso, não. Isso é querer levar a credulidade longe de mais.

            - Não o percebo. Parece estar a contradizer-se a si próprio.

            - Não estou. Há outra explicação.

            - Qual?

            - A arma foi posta no meu carro porque o meu carro calhou ser o lugar mais conveniente para escondê-la.

            - Oh! - exclamou, começando finalmente a perceber.

            - Por isso, estou a tentar lembrar-me dos lugares onde o meu carro esteve. Quero dizer, onde esteve estacionado pouco tempo depois do crime, de modo que

alguém o encontrasse no lugar mais conveniente para se livrar da arma.

            - Donald, talvez isso tenha alguma lógica.

            - Quanto a Pittman Rimley... pode confiar nele?

            - Até agora, tem sido sempre leal... comigo.

            - Havia duas pessoas que sabiam da manobra do relógio: Rimley e o homem do lavabo, Mas é possível que uma terceira pessoa também soubesse.

            - Quem?

            - Mrs. Crail. Stanberry pode-lhe ter feito qualquer observação acerca das horas. É lógico, não é?

            - Apresentado desse modo, é.

            - Pergunto a mim mesmo porque serraram o cabo do machado... Já se serviu de uma serra de carne?

            - Já, claro.

            - Tem alguma no apartamento?

            - Creio que sim.

            - Vamos dar-lhe uma vista de olhos.

            Fitou-me, pensativa, e depois foi à cozinha. Segui-a. A serra da carne estava debaixo do lava-louça e ela estendeu-ma. Havia um pouco de gordura na lâmina e, entre o cabo e a lâmina uns grãos de serradura.

            - Isto explica tudo.

            - Explica o quê?

            - Tudo.

            - Não percebo como.

            Olhei-a com atenção e perguntei-lhe:

            - Tinha em casa um machado pequeno, não tinha?

            Desviou o olhar.

            - Quem quer que fez o «trabalho», não esperava encontrar o Stanberry inconsciente - prossegui. Quando ela o encontrou inconsciente e descobriu um machado... enfim, estava o caso arrumado.

            - Ela?

            - Sim. Foi uma mulher.

            Continuei a olhá-la e expliquei:

            - Não quis deixar a arma do crime aqui e só tinha uma maneira de a levar: na malinha de mão. Por isso, teve de serrar um bocado do cabo, para lá caber.

            - Donald!

            Virei-me e olhei outra vez para a rua. Após alguns segundos de silêncio, disse:

            - Continuo a brincar com a possibilidade de a arma do crime ter sido largada no meu carro simplesmente porque ele calhou estar no lugar mais conveniente para a assassina se livrar dela. Portanto, se estudássemos essa hipótese, ver-nos-íamos de súbito perante...

            Calei-me, bruscamente.

            - Que aconteceu? - perguntou-me Billy Prue.

            - Vê aquele carro?

            Ela olhou para onde eu estava a apontar.

            - É um carro da Polícia - acrescentei. - Vê a luz vermelha?

            O sargento Frank Sellers apeou-se, contornou galantemente o veículo para o lado direito, abriu a porta e estendeu a mão. Bertha Cool agarrou a mão do sargento e apeou-se, quase tão graciosamente como um saco de açúcar a cair da última prateleira da despensa.

            - Depressa! - disse a Billy Prue. - Saia daqui e... Não, é tarde de mais.

            Bertha localizara o carro da agência. Vi-a bater no ombro de Sellers e apontar. O sargento aproximou-se e olhou para a matrícula. Falaram durante um minuto, muito sérios, e depois dirigiram-se para a porta do prédio.

            Passados momentos, a campainha da porta de Billy Prue tocou.

            - Que faço? - perguntou-me, a olhar-me com olhos que pareciam dois poços de angústia.

            - Sente-se naquela cadeira e não se mexa. Não faça o mínimo ruído, aconteça o que acontecer! Promete?

            - Se assim o quer...

            -Aconteça o que acontecer, compreendeu?

            - Compreendi. Farei tudo quanto disser, Donald.

            A campainha não voltou a tocar. Abri a porta que dava para o corredor e certifiquei-me de que o trinco funcionava.

            - Aconteça o que acontecer, não faça o mínimo ruído. Compreendeu?

            Billy acenou afirmativamente. Saí e fechei a porta, pus-me de gatas e encostei o ouvido à fresta, rente ao chão. Estava nessa posição quando ouvi passos leves, pelo corredor fora. Mexi-me um pouco e os passos pararam, de súbito.

            Ergui-me num joelho, levei a mão à algibeira, tirei o estojo das chaves falsas e experimentei uma na fechadura. Os passos soaram de novo. Virei-me bruscamente, com o sobressalto de alguém surpreendido em flagrante a cometer uma atividade proibida.

            O sargento Sellers estava mesmo em cima de mim.

            - Com que então, tem uma chave da casa?

            Tentei meter as chaves na algibeira, mas os dedos do sargento Sellers cerraram-se-me no pulso.

            - Muito bem, muito bem...-disse Sellers, enquanto com a outra mão me tirava o estojo das chaves.

            - Com que então, a sua agência brinca com chaves falsas, hem, Bertha?

            - Diabos o levem, Donald, há muito tempo que lhe disse que se livrasse d’isso! - protestou Bertha. Ainda arranja sarilhos por causa delas.

            Continuei calado.

            - Qual era a grande idéia? - perguntou-me Sellers.

            - Queria entrar para dar uma vista de olhos...

            - Foi isso que me pareceu. Há quanto tempo está aqui?

            - Não sei... quatro ou cinco minutos, talvez.

            - Tanto tempo?

            - Toquei à campainha três ou quatro vezes, para ter a certeza de que não respondiam, e depois... bem, entrei pela porta lá de baixo.

            - E depois?

            - Subi e bati à porta. Depois fiquei um bocado à escuta. Não queria correr o risco de entrar enquanto não tivesse a certeza de que a casa estava deserta.

            - E está deserta, Donald?

             -Está. Suponho que ela se foi embora.

            - Então porque queria entrar?

             - Queria verificar a posição da banheira.

            - Por quê?

            - Queria ver onde tinham de se colocar duas pessoas para meterem o corpo na banheira. Seriam precisos dois homens para...

            - Não se iluda - interrompeu-me Sellers. – Solucionei completamente o caso.

            - Sim?!

            - Sim. Quero essa tipa.

            - Por quê?

            - Identificamos o machado. Ela comprou-o numa loja de ferragens a três quarteirões daqui.

            Tentei dar um tom despreocupado à voz, ao dizer:

            - A esta hora, ela deve estar no Rendezvous. Não foi com a ambulância, para aquele caso...?

            - Pensei que podia tratar-se de uma manobra de diversão, Donald - respondeu, a sorrir. - Quem eu quero é a Prue.

            - Mas mandou alguém à Orleans Avenue?

            - Com certeza.

            - E não deixarão escapar o Crail?

            - Não, amorzinho. E você também não escapará. Venha, temos aonde ir.

            - Devolve-me as minhas chaves?

            - Mauzão, mauzão!

            - Atire as malditas chaves fora! - disse, furiosa, Bertha, - Não sei quantas vezes avisei o demônio do rapaz...

            - Vamos embora, deixe-se de ganhar tempo- ordenou Sellers.

            Segui-os até à rua.

            - Vou no carro da agência e...

            - É o vais! - cortou o sargento. - Vai ficar aqui, meu filho, até eu colocar as «pulseiras» nos pulsos daquela rapariguinha. Não me vai pregar a partida de lhe telefonar e avisá-la...

            - As «pulseiras» nos pulsos dela!

            - Claro. Que julgava você?

            - Não consinta que ele o faça perder tempo, Frank - recomendou Bertha. - Ele sabe. É um pulhazinho esperto, tencionava avisá-la. Meu Deus, como as mulheres o levam! O mal dele é esse.

            - Escute, Donald, foi ela que matou. Não se deixe enredar no caso.

            Olhei para ele e ri-me.

            - Qualquer pessoa se podia ter servido do machado.

            Sellers mordeu a isca:

            - Descobri a crônica toda daquela menina. Alugou um apartamento nos Apartamentos Fulrose, sob um nome suposto. Alugou-o há um mês e teve sempre o cuidado de só lá ir quando Rufus Stanberry não estava. Andou a revistar o apartamento dele. No dia do assassínio, logo após o Stanberry ter sido liquidado, foi lá e fez uma limpeza: dessa vez foi ao cofre.

            - Como sabe?

            - Archie Stanberry disse-me que faltam certas coisas no cofre.

            - Mas como sabe que foi ela?

            Respondeu-me, a rir:

            - Ela foi inteligente quando se tratou de revistar o apartamento do Stanberry. Não deixou impressões digitais nenhumas. Mas já não foi tão esperta enquanto esteve no apartamento que alugou sob nome suposto. Aliás, não lhe teria servido de nada. Seria impossível viver lá um mês sem deixar impressões digitais.

            - Quer dizer que encontrou impressões digitais dela nesse apartamento?

            - Claro. No apartamento que ela alugou sob nome suposto. Mais, o gerente e um dos escriturários identificaram a fotografia dela, sem margem para dúvidas.

            - Jesus!

            - Não fique transtornado, queridinho - disse-me Bertha, alegremente. - Ela nunca passou de uma interesseira com pernas bonitas.

            - Como é que desconfiou? - perguntei ao sargento.

            - Ora, não foi difícil! Você foi visitar o tal Cullingdon.

             Ela também foi visitar o Cullingdon. Os vossos carros estiveram estacionados lado a lado, ou atrás um do outro, como queira. Ela sabia onde o seu carro estava. Você permitiu que lhe desse uma boleia. Depois de a deixar, a rapariga teve tempo mais do que suficiente para voltar atrás e largar a arma do crime no seu automóvel. Pensou que estava a ser espertíssima! Foi uma daquelas coisas que, ao princípio, parecem excelentes, mas que acabou por lhe enfiar a cabeça no nó corredio...

            - Escute, Frank, não quero regressar consigo depois de você fazer a prisão e ter o Donald no carro com a lambisgóia - disse Bertha, de súbito. - E se ele e eu fossemos no carro da agência e o seguíssemos? Eu me encarregarei de não o deixar telefonar.

            Sellers pensou no assunto e acedeu:

            - Está bem.

            Acompanhou-me ao carro da agência. Levei a mão à algibeira, para tirar as chaves, e senti uma coisa muito esquisita na boca do estômago: deixara as chaves do carro e as luvas de conduzir em cima da mesa, no apartamento de Billy Prue.

            - Então? - perguntou Bertha.

            Naquela altura fiquei a saber o que os atores sentem quando são atacados pelo medo do palco. Provavelmente, não haveria nada que pudesse dizer capaz de evitar a catástrofe; mas, mesmo que houvesse, não teria podido dizê-la. Estava absolutamente mudo. Deixei-me ficar especado, a remexer nas algibeiras.

            - Onde estão? - insistiu Bertha.

            - Devem ter caído para a alcatifa, lá em cima, quando tirei as outras chaves da algibeira - tartamudeei.

            Bertha olhou para Frank Sellers, que disse baixinho, suavemente:

            - Ah, seu nojento traidor!

            No momento seguinte, senti a sua mão esquerda agarrar-me o pulso, vi uma cintilação de aço e ouvi o tilintar das algemas. O aço mordeu-me os pulsos.

            - Pronto, espertalhão - rosnou Sellers. - Dei-lhe uma oportunidade e não soube aproveitá-la sem chatices, teve de estragar tudo. Pois bem, doravante não haverá condescendências, vamos jogar duro. Venha daí, meu menino, voltemos lá acima.

            - Mas de que raio está você a falar? - protestei, indignado. - As chaves devem estar algures, na alcatifa, defronte da porta, e...

            - Acabo de reparar que não traz as suas luvas de conduzir - disse Sellers. - Sempre saiu um raio de um detetive!... Vamos, compincha, vamos lá acima.

            Fomos. Que remédio! Sellers ajoelhou-se defronte da porta do apartamento

de Billy Prue e apalpou ao longo da alcatifa. Mas fê-lo apenas por descargo de consciência. Depois pegou no estojo das minhas chaves falsas e introduziu uma na fechadura.

            Fiz uma última e desesperada tentativa:

            - Vai entrar aí sem mandado de busca?

            Mas Frank Sellers não é homem que se intruje tão facilmente.

            - Pode ter a certeza de que vou entrar sem mandado.

            Girou a chave e a porta abriu-se. Billy Prue estava sentada exatamente como eu a deixara, na cadeira. Dir-se-ia que o seu rosto fora moldado em massas de bolos e revestido de maquilhagem. Sellers avaliou a situação com um olhar prático, aproximou-se da mesa e perguntou:

            - Estas luvas são suas, Lam?

            - Não respondo a perguntas nenhumas.

            Sellers pegou também nas chaves do carro e continuou:

            - As luvas e as chaves constituirão provas. Vá buscar as suas coisas, Billy, pois vamos passear. Mostre-me a sua mão, só um momento.

            Pegou-lhe na mão... Não pude fazer nada, nem sequer teria valido de nada avisá-la. Meio segundo depois, ela esticou-se para trás e gritou, quando o aço frio lhe tocou no pulso. A mola fechou-se e Billy Prue e eu ficámos algemados um ao

outro.

            - Muito bem, Menina Assassinazinha e Sr. Encobridor, vamos ensinar-lhes umas coisinhas, lindos periquitos – disse o sargento, sinistramente.

            Bertha olhou de mim para ele.

            - Escute, Frank, e se...

            - Nada feito - interrompeu Sellers, grosseiramente.

            - Mas, Frank...

            - Calada. E desta vez vamos todos no meu carro.

 

 Meia Volta

            Sellers parou apenas o tempo suficiente para introduzir as minhas chaves no carro da agência e certificar-se de que eram dele. Depois meteu-nos no carro da Polícia e ligou o motor e a sereia.

            Era um lugar tramado para pensar, mas eu sabia que tinha de pensar, e pensar depressa. Quando chegássemos à esquadra já seria tarde e não valeria de nada.

            A sereia apitava, exigindo o direito de passagem prioritária, e a velocidade ia aumentando. Passamos, velozes, por um cruzamento e os meus olhos mal tiveram tempo para ver o nome da rua por onde seguíamos: Mantica Street.

            A frente e à esquerda erguia-se um elegante hotel de apartamentos defronte do qual estavam parados dois táxis. Um dos motoristas olhou curiosamente, ao ouvir a sereia, e eu vi de fugida um nariz deformado, achatado. Seguia-se o Garden Vista Boulevard e Frank estava a preparar o carro para agüentar uma viragem a toda a mecha.

            - Frank! - gritei-lhe.

            Os pneus chiaram, ao descreverem a curva.

            - Frank, pare, pelo amor de Deus!

            Algo na minha voz lhe chegou aos ouvidos e o levou a levantar o pé do pedal.

            - Que temos desta vez? Querer ganhar tempo?

            - A assassina de Rufus Stanberry - respondi-lhe.

            - Já a tenho, aqui dentro.

            - Não. não, Frank! Pelo amor de Deus, ao menos encoste ao passeio e deixe-me falar consigo antes de ele se escapar.

            O sargento hesitou.

            - Por favor, Frank - interveio Bertha.

            - Com mil raios, trata-se apenas de uma manobra para ganhar tempo, e você sabe isso tão bem como eu. Ele é suficientemente inteligente para ter inventado alguma mentira e...

            - Irra, encoste o carro ao passeio! - berrou-lhe Bertha.

            Sellers olhou-a, surpreendido. Bertha inclinou-se para a frente, girou a chave da ignição, tirou-a com força e pôs a mão fora da janela. O motor parou e o balanço que trazíamos levou-nos até ao passeio, quando Sellers torceu o volante.

O sargento ficou absolutamente imóvel, lívido de cólera. Passado meio segundo, disse, em voz sufocada:

            - Por mim, tanto me faz. Meto-os dentro aos três.

            Bertha olhou-me e comentou:

            - Não julgue que ele não é homem para isso. Se tem alguma coisa a dizer, diga-a... e oxalá tenha, de fato, que dizer.

            Inclinei-me para a frente e pus a mão esquerda no ombro de Frank Sellers; a direita estava algemada à de Billy Prue.

            - Escute, Frank, vou falar com toda a franqueza. Matei a cabeça a tentar descobrir como fora a arma do crime parar ao meu carro. Recordei todos os passos do caminho, um por um, e cheguei à conclusão de que não podia, pura e simplesmente, ter sido posta no meu carro por alguém que reconhecesse o veículo e quisesse atirar as culpas para cima de mim, a não ser que Billy Prue

me tivesse atraiçoado, e eu creio que não atraiçoou. Só há outra explicação para o fato de lá ter sido posta.

            Sellers estava a ouvir com atenção.

            - Escute, Frank - repeti , estou a fazer isto tanto por si como por todos os outros. Pelo amor de Deus, não nos meta na cadeia, levando os jornais a fazer grande alarido, para depois se ver obrigado a meter o rabo entre as pernas.

            - Não se preocupe com o meu rabo – declarou Sellers. - Fale-me da arma do crime.

            - Só pode ter sido posta no meu carro por alguém que ignorava de que automóvel se tratava, a quem pertencia.

            - Conversa! - resmungou Sellers.

            - E isso só podia acontecer de uma maneira, ou por uma razão, como queira: o fato de, por coincidência, o meu carro ter estado estacionado no lugar mais conveniente e acessível para quem matou Stanberry lá deixar a arma. E isso só pode ter acontecido quando o meu automóvel esteve estacionado defronte do Rimley Rendezvous depois de eu ter armado em detetive esperto e o encaixar à frente de outro que lá se encontrava, na esperança de que ele não partisse antes de mim. Mas o dono do carro que se encontrava atrás do meu não pertencia ao tipo que eu supusera e vai disto, engatou em primeira e empurrou o meu para a zona reservada aos táxis, a fim de poder sair. Um motorista de táxi quase me agrediu quando eu saí... e esse motorista estava agora sentado num táxi, defronte daquele hotel por onde passamos há dois quarteirões, na Mantica Street. Provavelmente é a sua praça habitual. Acrescento que o cabo do machado foi serrado para que ele coubesse numa malinha de mulher.

            - E que raio tem isso a ver com a prisão que acabo de fazer?

            - Não compreende? Lembra-se do acidente no cruzamento de Mantica Street e Garden Vista Boulevard? Pense no elemento tempo. Agora, se quer ser um detetive esperto, seja esperto, mas se quer ser estúpido, seja estúpido. Já disse tudo o que tinha a dizer. Ponha a chave na ignição, Bertha.

            - Não percebo, queridinho. Que diabo tem o táxi a ver com...

            - Ponha a chave na ignição. Agora o Sellers pode cobrir-se de glória ou transformar-se no grande idiota da corporação.

            - Não me transformarei no grande idiota de coisa nenhuma, com o material que tenho contra essa Billy Prue.

            - Não tem absolutamente nada contra ela, a não ser coincidência - afirmei. - A Billy e eu tínhamos um romance, antes de eu partir, e ela sabia que eu ia regressar. Não poderia estar com ela no apartamento onde vive sem me arriscar a que o Pittman Rimley me pusesse as tripas ao sol. Por isso, ela alugou o apartamento no Fulrose, para podermos estar juntos. Era um ninho de amor. Foi lá que estive a noite passada e foi por isso que a Bertha não me conseguiu encontrar.

             Grande filho da mãe! - praguejou Bertha, entre entes, e pôs a chave na ignição.

            rank Sellers esteve trinta segundos parado e sem dizer nada. Depois carregou no arranque, engatou e deu meia volta no meio do quarteirão. A sereia começou a apitar de novo e a luz vermelha a acender e apagar. Viramos do Garden Vista Boulevard para Mantica Street. O motorista de nariz achatado continuava sentado ao volante do seu táxi.

            Sellers travou e parou ao lado dele. Os olhinhos manhosos e furtivos do homem brilharam, um de cada lado do nariz partido.

            - Que bicho lhe mordeu? - perguntou ao sargento.

            - Ontem à tarde houve um choque no cruzamento de Mantica Street com o Garden Vista Boulevard. Sabe alguma coisa a esse respeito?

            - Ouvi dizer.

            - Recolheu um passageiro, logo a seguir?

            O Nariz Achatado franziu a testa, a pensar, antes de responder:

            - Recolhi. Que tem com isso?

            - Homem ou mulher?

            - Mulher.

            - Que queria ela?

            Os olhinhos brilhantes sustentaram os de Sellers durante um momento e depois esquivaram-se.

            De súbito, o sargento abriu a porta do automóvel, saiu e foi parar com os grandes ombros encostados ao táxi. Depois abriu também a porta do táxi e ordenou ao homem:

            - Saia daí para fora.

            O Nariz Achatado mediu-o e hesitou. A mão de Sellers avançou e agarrou bem a gravata e o colarinho do motorista, dando-lhes um puxão.

            - Eu disse-lhe que saísse!

            O homem saiu, subitamente respeitoso.

            - Que deseja saber?

            - Fale-me do cliente que recolheu. Quem era?

            - Uma mulher. Queria que eu seguisse dois automóveis que, segundo disse, surgiram da esquina.

            - Continue a falar.

            - Quando um carro surgiu da esquina de Mantica Street, seguimo-lo. Depois reparei que um segundo carro seguia o primeiro e disse-o à passageira. Respondeu-me que não me importasse com o segundo carro e continuasse a seguir o primeiro. O trajeto foi apenas de uns três quarteirões, pois eles pararam aqui, num prédio de apartamentos. Um homem entrou e a mulher do outro carro seguiu. A minha passageira disse-me que esperasse. Esperamos cerca de dez minutos.

            - Continue.

            - Depois saiu do prédio uma tipa, meteu-se num carro e partiu. A minha passageira ficou toda agitada, saiu, deu-me uma nota de cinco dólares e disse: «Isto é para garantir a despesa.» Entrou no prédio, onde se demorou uns dez minutos, ao todo. Voltou, entrou outra vez no táxi e disse-me: «Para o Rimley Rendezvous.» Seguimos para o Rimley. Um sacana qualquer estacionara um carro de modo que ocupava quase todo o espaço reservado aos táxis. Disse à passageira: «Espere só um minuto, vou tirar aquele carro dali!» Mas ela não esperou. Saiu e teve de contornar o tal automóvel. Contornou-o e entrou no Rimley. Um tipo saiu e entrou no carro mal estacionado. Tentei apanhar-lhe um dólar, mas o gajo não foi nisso. Como ganhara cinco dólares numa corrida de sessenta cêntimos, deixei-o impingir-me a velha treta de ter sido empurrado para frente, para o espaço dos táxis.

            - Notou alguma coisa de especial na mala de mão dessa mulher? - perguntou Sellers.

            O taxista olhou-o com um certo respeito no olhar.

            - Sim, ela tinha qualquer coisa muito pesada na mala. Via-se bem. Pensei que poderia ser...

            - Uma pistola? - perguntou Sellers, ao vê-lo hesitar.

            - Hum... mas não era uma pistola.

            - Talvez um martelo ou um pequeno machado?

            Os olhos pequeninos brilharam subitamente:

             - Com os diabos, era isso mesmo! - resmungou, irritado. - E eu a pensar se seria uma pistola!

            - Qual era o aspecto da mulher?

            - Não era desajeitada - respondeu o motorista, em tom apreciativo. - Pernas bonitas, ricas ancas, pele delicada... e dentes um nadinha grandes de mais. Quando sorria, tinha dentes de cavalo.

            - Macacos me mordam! - exclamou Bertha, baixinho.

 

Caso Encerrado

            Ellery Crail andava para trás e para diante defronte do nosso escritório, quando Bertha e eu saímos do elevador. Sorriu, aliviado, ao ver-nos, avançou para nós e agarrou na minha mão.

            - Vim com esperança de os encontrar cá. O empregado do elevador disse-me que frequentemente vinham cá à noite, embora não tivessem o escritório aberto depois das cinco horas.

            Bertha disse-lhe, agressiva:

             - Bem, conseguimos o acordo e...

            - Entremos, para podermos falar - disse Crail.

            A minha sócia abriu a porta e fomos para o gabinete particular.

            - Passou-se tudo como lhe disse pelo telefone prosseguiu Bertha. - Deve-nos mais trezentos dólares e...

            Crail olhou-a como se ela estivesse a falar uma língua estrangeira e depois olhou para mim. Abanei a cabeça e esclareci-o:

            - Ainda não lhe disse nada.

            - De que diabo estão os dois a falar? – indagou Bertha.

            Crail tirou da algibeira o livro de cheques e a caneta.

            -Trezentos dólares - especificou Bertha.

            Crail olhou para ela e disse:

            -Mrs. Cool, quero agradecer-lhes a coisa mais maravilhosa que aconteceu na minha vida. Creio que devo toda a minha felicidade a Donald Lam.

            Bertha abriu a boca e ficou de queixo descaído.

            - Suponho que sabe o que aconteceu... Pelo menos o Lam parece saber. Eu desconfiava da minha mulher e do Stanberry, não percebia por que motivo ela tinha tanto empenho em que eu comprasse o Edifício Stanberry por um preço que, segundo o meu banqueiro, era três vezes superior ao seu valor real. Foi uma decisão súbita. Não tinha o meu carro à mão, mas sabia que não haveria novidade se utilizasse o de Georgia Rushe, e utilizei-o. «Não lhes vou contar tudo o que se passou. De qualquer modo, o Lam sabe. Segui a minha mulher e assisti ao acidente. Vi o suficiente para compreender que ela seguia deliberadamente o Stanberry. Regressei ao escritório. Georgia nem sequer soube que me servira do seu carro. Depois li a notícia do assassínio de Stanberry e... bem, atribuí-o à minha mulher. «Admiti que Stanberry andara a exercer chantagem sobre ela, embora não me dissesse porquê. Bem, compreendem... quis ser um homem forte, silencioso, quis ser um marido compreensivo. Não fiz quaisquer perguntas e resolvi proteger a minha mulher o máximo que pudesse. Sabia que ela seria convocada como testemunha, por causa do acidente, e decidi arranjar maneira de o caso ser resolvido por acordo, para que nunca se soubesse que o carro dela andara a seguir o do Stanberry. Vim ter com vocês, para arranjarem o acordo. «Mas depois o Lam mostrou-me que a vida não podia ser vivida assim. Não nos podemos sacrificar para evitar que alguém seja magoado se, fazendo-o, estamos a magoar muito mais outra pessoa. E... bem, tive uma conversa com ela e desta vez não me limitei a ser um grande trouxa. Não me podia esquecer de que Georgia estava inconsciente num hospital e sabia que ela tentara matar-se por minha causa. Comecei a ver uma quantidade de coisas a uma luz ligeiramente diferente. Depois a Irma começou a falar de um acordo quanto à divisão dos bens

e mostrou-se tão prática e desembaraçada a esse respeito que vi ter sido atraído ao casamento simplesmente como um investimento financeiro. Nunca me senti tão

aliviado na minha vida! Estabeleci-lhe uma pensão que a deixou de olhos arregalados, disse-lhe que marcasse lugares para o Reno e vim aqui à procura de Donald Lam.»

            Crail respirou fundo e começou a preencher o cheque. Pegou no mata-borrão, enxugou a tinta, separou o cheque do talão e pô-lo em cima da secretária. Levantou-se e olhou para mim com lágrimas nos olhos. Apertamos a mão. Depois contornou a secretária, abraçou Bertha, inclinou-se para a frente e beijou-a nos lábios.

            - Sinto-me satisfeito por ter esclarecido tudo, Crail. A sua mulher não matou o Stanberry - afirmei. – Foi outra mulher sobre quem ele também andava a exercer

chantagem, pelo telefone. Se ela não tivesse reparado que o relógio de pulso de Stanberry estava adiantado uma hora e não o tivesse acertado, teria sido tudo muito mais simples... o que não significa que a sua mulher não o armou em trouxa, pois armou. «Esther Witson estava a pagar chantagem e sentia-se farta disso. Seguiu o Stanberry quando ele saiu do Rimley Rendezvous, decidida a pôr as cartas na mesa. É possível até que tivesse pensado em assassínio. Viu o Stanberry entrar num prédio onde sabia que Billy Prue morava. Somou dois e dois e esperou. Depois Billy Prue saiu, mas o Stanberry não. Miss Witson resolveu investigar o que se passava. Subiu ao apartamento de Billy Prue e encontrou a porta aberta. Entrou e deparou-se-lhe uma oportunidade maravilhosa de se livrar do Stanberry de uma vez por todas. O indivíduo tinha um bilhete na mão, em que Billy dizia que fora a uma farmácia, mas ela percebeu que se tratava de uma mentira, pois vira Billy partir no carro, sem prestar qualquer atenção à farmácia da esquina. Olhou em seu redor à procura de uma arma, encontrou um machado pequeno e bateu com ele na cabeça do Stanberry uma vez, com força. Depois assustou-se e, em pânico, quis esconder a arma do crime. Serrou-lhe parte do cabo, para que lhe coubesse na mala de mão, e atirou-o para dentro do primeiro automóvel que apanhou a jeito, quando saiu do táxi. A Polícia encontrou-lhe na mala o bocado de cabo que ela cortara.»

            Crail ouvira-me com toda a atenção.

            - Miss Witson, hem? Receei que arrastasse a minha mulher para isso. E receei também que alguém pudesse... oh, mas isso acabou! Tenho de voltar ao hospital. Adeus e Deus os abençoe a ambos. Tentei exprimir parte da minha gratidão nesse cheque. Nunca poderão avaliar quanto lhes estou profundamente agradecido, o muito que lhes devo.

            Bertha acompanhou-o à porta e depois deitou a mão ao cheque. Vi os seus olhinhos brilhantes arregalarem-se.

            - Macacos me mordam! - exclamou, mas desta vez em tom de profundo respeito. - Macacos me mordam! Eu já ia a meio do escritório de entrada quando

Bertha regressou à terra. Ouvi-a gritar:

            - Diabos o levem Donald Lam! Se vai para o Rimley Rendezvous lembre-se de que não pode lançar mais cigarros na conta de despesas! O caso está encerrado.

            Parei, com a mão na porta, e não resisti a uma alfinetada de despedida:

            - E se eu não estiver em casa esta noite, não se preocupe.

            Apressei-me a fechar a porta, antes que Bertha tivesse tempo de se lembrar de uma resposta adequada.

 

                                                                                            Erle Stanley Gardner

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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