Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CHAVE DE REBECA / Ken Follett
A CHAVE DE REBECA / Ken Follett

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A CHAVE DE REBECA

 

Pino do Verão. Sopra do deserto um vento quente, carregado de poeira. E o major William Vandam está tão longe de apanhar o espião alemão como quando começou a procurá-lo.

As pistas de que dispõe são reduzidíssimas: um cadáver ensanguentado, um nome, uma descrição vaga--nada mais.

Entretanto, os exércitos de Rommel aproximam-se progressivamente do Cairo e parecem esgotadas as possibilidades de os deter.

Porque Rommel sabe antecipadamente todas as acções planeadas pelos Ingleses.

Porque o major Vandam não conseguiu decifrar o código alemão.

E porque, neste fatal jogo de escondidas, o espião consegue sempre escapar-se por entre os dedos de Vandam ...

 

"A acção é rápida, violenta, o enredo inteligente e tortuoso, a excitação aumenta e até as personagens menores adquirem vida."

Publishers Weeklv o nosso espião no Cairo é o maior herói de todos."

Marechal de campo Erwin Rommel, Setembro de 1942

 

Capítulo 1

O último camelo caiu ao meio-dia.

Era o macho branco de cinco anos que ele comprara em Jalo, o mais jovem e resistente dos três animais e o menos recalcitrante. Gostava dele tanto quanto um homem pode gostar de um camelo, o que significa que só o detestava um pouco.

Subiram a encosta sotavento de uma colina, homem e camelo apoiando desajeitadamente os enormes pés na areia instável, e detiveram-se no cimo. olharam em frente e viram apenas outracolina que teriam de escalar, e depois dessa mais outras mil, e foi como se o camelo desesperasse ante tal perspectiva.

Dobrou as patas dianteiras, depois a garupa abateu-se-lhe e o animal deitou-se no cimo da colina como um monumento, contemplando o deserto vazio com a indiferença dos moribundos.

O homem puxou-lhe a corda presa ao focinho, mas em vão.

Depois, contornou o corpo caído e desferiu-lhe pontapés nos quartos traseiros. Por fim, empunhou uma faca beduína de lamina curva e aguçada, afiada como uma navalha, e espetou-a na garupa do camelo. o sangue jorrou, mas o animal nem sequer o olhou.

O homem compreendeu o que sucedera. o corpo do animal faminto

deixara pura e simplesmente d- funcionar, como uma máquina cujo combustível se esgota. Já vira camelos cair assim à entrada de oásis, rodeados de folhagem revivificante que ignoravam, pois faltava-lhes a energia para a comerem.

De qualquer modo, eram horas de parar. o Sol estava alto e queimava. Iniciava-se o longo Verão sariano, e a temperatura do meio-dia atingiria os sessenta graus à sombra. Sem descarregar o camelo, o homem abriu um dos alforges, do qual retirou a tenda, que montou ao lado do animal moribundo, no alto da colina.

Sentou-se de pernas cruzadas do lado aberto da tenda, comeu umas tâmaras e viu o camelo morrer enquanto esperava que o Sol passasse por cima deles. Devia a sua tranquilidade à experiência. Percorrera mais de mil e quinhentos quilómetros daquele deserto. Partira havia dois meses de El Agheila, na costa mediterrânica da Líbia, e viajara oitocentos quilómetros para sul, via Jalo e Kufra, até ao coração deserto do Sara. Aí virara para leste e atravessara a fronteira para o Egipto, sem ser visto por homem ou animal. Próximo de Kharga virara paran norte, e agora já não se encontrava longe do seu destino.

Conhecia o deserto e temia-o, como todos os homens inteligentes, mas nunca permitiria que esse temor se transformasse em pânico. Havia sempre catástrofes: erros de orientação devido aos quais se perdia um poço por dois ou três quilómetros, odres de água que se rompiam ou rebentavam e camelos aparentemente saudáveis que adoeciam. A única solução era dizer: "Inshallah" --é a vontade de Deus.

Por fim, o Sol começou a descer para ocidente. o homem olhou para a carga do camelo, calculando que parte dela poderia transportar. Havia três pequenas malas europeias, de couro, duas pesadas e uma leve, todas importantes. Havia uma maleta de roupa, um sextante, mapas, víveres e um odre de pele de cabra. Era demais: teria de abandonar a tenda, o cobertor e a caçarola de cozinhar.

Reuniu as três malas e prendeu-lhes no cimo a roupa, os víveres e o sextante. Depois amarrou o conjunto com uma tira de pano. Podia enfiar os braços pelas pegas que formara com a tira e transportar a carga às costas, como uma mochila.

Suspendeu o odre da água do pescoço. Era uma carga pesada.

Três meses antes teria sido capaz de transportar aquela carga o dia inteiro e jogar a seguir ténis, mas o deserto enfraquecera-o. os seus intestinos pareciam de água, a sua pele apresentava-se coberta de feridas e cicatrizes e perdera quase dez quilos. Sem o camelo não poderia ir longe.

Começou a andar. Seguia as indicações da bússola e resistia à tentação de atalhar caminho contornando as colinas, pois tinha de percorrer os últimos quilómetros segundo cálculos exactos, e um erro fraccional poderia desviá-lo do percurso uns centos de metros

que Lhe seriam fatais.

Com o cair da tarde, a temperatura desceu. A medida que consumia a água, o odre que levava suspenso do pescoço tornava-se-Lhe mais leve. Sabia que a água não chegaria para outro dia. Atrás dele o Sol pôs-se e transformou-se num enorme balão amarelo. Pouco depois, uma lua branca surgiu no céu cor de púrpura. Pensou em parar. Não seria possível caminhar toda a noite. Mas não tinha tenda nem cobertor e estava certo de que se encontrava perto do poço. Pelos  

Continuou a andar. A calma começava a abandoná-lo. Jogara a sua força e a sua experiência contra o deserto implacável, e começava a parecer-lhe que o deserto ia ganhar. Já nãoconseguia reprimir o medo. Quando a morte se tornasse inevitável, correria ao seu encontro. Não se resignaria a horas de agonia e loucura crescentes. Tinha a sua faca.

Pareceu-lhe ver a mãe à distância e ouvir um comboio a acompanhar o ritmo lento do seu coração. Atravessavam-se-lhe no caminho pequenas pedras, como ratos a fugir. Cheirou-lhe a cordeiro assado. Subiu uma encosta e viu a fogueira onde o cordeiro fora assado e ao lado um rapazinho a chupar os ossos.

Viu tendas em torno da fogueira, os camelos a manquejar e o poço em frente. Penetrou na alucinação. As personagens do sonho olharam-no assombradas. Um homem alto levantou-se e falou. O viajante puxou o howli e desenrolou-o parcialmente,

revelando o rosto. o homem alto aproximou-se, agitado, e exclamou:

--Meu primo!

o viajante compreendeu que afinal não se tratava de uma ilusão. Teve um sorriso e caiu.

 

Quando acordou, ao alvorecer, pensou por momentos que era outra vez um rapaz e que a sua vida adulta fora um sonho.

Alguém Lhe tocava no ombro e Lhe dizia na linguagem do deserto:

--Acorda, Achmed.

Havia anos que ninguém Lhe chamava Achmed. Apercebeu-se de que estava embrulhado num cobertor áspero e deitado na areia fria, com a cabeça envolta num howli. Abriu os olhos e viu o esplendoroso nascer do Sol, como um arco-íris recto reflectido no horizonte plano e negro. Sentiu no rosto o gélido vento matinal. Nesse instante experimentou de novo toda a confusão e ansiedade dos seus quinze anos.

A primeira vez que acordara no deserto sentira-se completamente perdido. "o meu pai morreu", pensara. E depois:

"Tenho um novo pai." Haviam-lhe ocorrido ao pensamento trechos do Corão, de mistura com passagens do credo cristão que a mãe ainda Lhe ensinava em segredo e em alemão, que fora também a língua do seu falecido pai. Evocou a longa viagem de comboio durante a qual se interrogara sobre os seus primos do deserto e perguntara a si próprio se desprezariam o seu corpo pálido e os seus hábitos citadinos. Saíra da estação do caminho de ferro e vira os dois árabes sentados ao lado dos camelos na poeira do pátio, envoltos em mantos da cabeça aos pés, à excepção da abertura no howli, através da qual se Lhes viam os olhos escuros e indecifráveis. Tinham-no levado para o poço.

Fora assustador; ninguém Lhe falara a não ser por gestos. No entanto, apesar de duros, aqueles homens eram bondosos.

Tinham-se convencido de que ele não sabia falar a sua língua, razão por que haviam tentado estabelecer comunicação por meio de sinais.

Todos esses pensamentos Lhe haviam atravessado a mente ao admirar o seu primeiro nascer do Sol no deserto. E agora voltavam, decorridos vinte anos, com as palavras "Acorda, Achmed", pronunciadas pelo seu companheiro de mocidade.

Sentou-se bruscamente, a cabeça a desanuviar-se. Atravessara o deserto no cumprimento de uma missão de uma importância vital.

Encontrara o poço, não fora uma alucinação: os primos estavam ali, como sempre naquela altura do ano. Invadiu-o um pânico súbito e angustiante ao lembrar-se da sua preciosa bagagem--ainda a traria quando chegara?--, mas depois viu-a ordenadamente empilhada a seus pés.

--Grandes preocupações, primo--observou Ishmael, acocorando-se

a seu lado.

--Há guerra--confirmou Achmed com um aceno da cabeça.

Ishmael afastou-se. Subserviente, uma das mulheres serviu chá a Achmed, que o aceitou sem agradecer e o bebeu rapidamente.

Depois, comeu um pouco de arroz cozido e frio, enquanto o trabalho moroso do acampamento decorria em seu redor. Segundo parecia, aquele ramo nómada da família continuava próspero: havia diversos criados, muitas crianças, numerosos carneiros e

mais de vinte camelos.

Achmed acabou de tomar o pequeno-almoço e examinou a bagagem.

Abriu uma das malas pesadas, e quando os seus olhos pousaram nos interruptores e mostradores do compacto aparelho de rádio, assaltou-o uma recordação clara e rápida, como as imagens de um filme: a movimentada cidade de Berlim; uma rua ladeada de árvores chamada Tirpitzufer; um edifício de arenito de quatro andares; um labirinto de corredores; um gabinete e um almirante prematuramente encanecido a dizer: "Rommel quer que eu coloque um agente no Cairo."

A mala continha também um livro, um romance em inglês.

Distraidamente, Achmed leu a primeira frase: "A noite passada sonhei que regressava a Manderley." De entre as páginas do livro caiu uma folha de papel dobrada. Achmed apanhou-a cuidadosamente e repô-la entre as páginas do romance. Depois, fechou-o e guardou-o de novo na mala, que também fechou.

Ishmael estava de pé a seu lado.

--Foi uma viagem longa?--perguntou.

--Vim da Líbia--respondeu Achmed, acenando afirmativamente.

--Do mar.

--Do mar!--exclamou Ishmael, estupefacto, pois nunca vira o mar. --Mas porquê?

--Tem a ver com esta guerra.

--Dois bandos de europeus a lutarem entre si pela posse do Cairo ... Que interessa essa luta aos filhos do deserto?

-O povo da minha mãe participa na guerra--respondeu Achmed.

--Um homem deve seguir o seu pai.

--E se tem dois pais?

Ishmael encolheu os ombros. Sabia o que eram dilemas.

Achmed pegou na mala e pediu-lhe:

--Guardas-me isto?

--Guardo--respondeu o primo, retirando-lha das mãos. –Quem está a ganhar a guerra?

-O povo da minha mãe. São como os nómadas: orgulhosos, cruéis e fortes. Vão dominar o Mundo.

Os dois primos entreolharam-se. Tinham passado cinco anos sem se verem. o Mundo mudara. Achmed pensou em tudo quanto poderia contar: o encontro crucial de Beirute, em 1938, a sua viagem a Berlim, o seu grande golpe em Istambul ... Nenhum destes incidentes significaria fosse o que fosse para o primo—e Ishmael pensava provavelmente o mesmo a respeito de acontecimentos dos seus últimos cinco anos. Em rapazes tinham-se estimado ferozmente, mas nunca tinham tido nada para dizer um ao outro.

Após um momento, Ishmael levou a mala para a sua tenda. Achmed foi buscar um pouco de água numa tigela. Abriu a mala da roupa, da qual retirou um pouco de sabão, um pincel, um espelho e uma navalha. Enterrou o espelho na areia, fixou-o e começou a desenrolar o howli que Lhe envolvia a cabeça. o rosto que viu reflectido no espelho assustou-o.

A sua testa forte e normalmente lisa estava coberta de crostas, a barba escura crescia-lhe, emaranhada e revolta, nas faces de malares salientes e a pele do nariz, grande e adunco, apresentava-se vermelha e gretada. Entreabriu os lábios empolados e notou que os seus dentes, pequenos e regulares, estavam imundos.

Espalhou sabão na barba com o pincel e começou a barbear-se.

Pouco a pouco, o rosto antigo reapareceu. Era mais forte do que belo e normalmente apresentava uma expressão que, nos seus momentos de maior relaxamento, ele reconhecia como levemente dissoluta. Mas naquele momento apresentava-se simplesmente devastado.

Levou a mala para a tenda de Ishmael. Despiu a roupa do deserto e envergou uma camisa inglesa branca, uma gravata às riscas, peúgas cinzentas e fato castanho aos quadrados. Quando tentou calçar os sapatos, verificou que tinha os pés inchados.

Foi um tormento tentar enfiá-los no cabedal novo e duro. Por fim, cortou-os com a faca de lamina curva e calçou-os sem apertar os atacadores.

Necessitava de mais coisas: um banho quente, um corte de cabelo, creme fresco e balsâmico para as feridas, uma camisa de seda, uma pulseira de ouro, uma garrafa de champanhe gelado e o corpo tépido e macio de uma mulher. Mas isso teria de esperar.

Quando saiu da tenda, os nómadas olharam-no como se fosse um desconhecido. Ishmael aproximou-se e os primos abraçaram-se.

Achmed retirou uma carteira do bolso do casaco para verificar os seus documentos. Ao olhar para o bilhete de identidade, consciencializou que era de novo Alexander Wolff, de trinta e quatro anos, morador na Villa les oliviers, Garden City, Cairo. Homem de negócios de ascendência europeia.

Colocou o chapéu, pegou nas duas malas restantes--uma pesada e outra leve--e preparou-se para percorrer os últimos quilómetros de deserto até à cidade.

 

A antiga estrada das caravanas, que Wolff seguira de oásis em oásis através do deserto imenso e vazio, atravessava um desfiladeiro da montanha e acabava por se fundir com uma estrada moderna, ladeada de uma parte por colinas amarelas, poeirentas e áridas e da outra por viçosos campos de algodão sulcados por valas de irrigação, onde os camponeses se curvavam sobre as suas colheitas. Enquanto palmilhava a estrada para norte, aspirava a brisa fresca e húmida que soprava do Nilo próximo e observava os sinais crescentes de civilização urbana, Wolff começou a sentir-se novamente humano. Por fim, ouviu o motor de um automóvel e compreendeu que conseguira.

O veículo que se aproximava vindo da direcção da cidade de Asyut era um jipe militar. Quando ficou perto, Wolff viu os uniformes do Exército Britânico dos homens que viajavam nele e compreendeu que deixara para trás um perigo apenas para enfrentar outro.

Fez um esforço deliberado para se manter calmo. "Tenho todo o direito de estar aqui", pensou. "Nasci em Alexandria. A minha nacionalidade é egípcia. Possuo uma casa no Cairo. os meus documentos são autênticos. Sou um homem rico, um europeu e um espião alemão atrás das linhas inimigas."

O jipe parou com um chiar de pneus e uma nuvem de poeira. Um dos homens saltou para a estrada. ostentava três tiras de tecido em cada ombro da camisa: era capitão. Coxeava um pouco.

--De onde diabo surgiu você?--perguntou.

Wolff pousou as malas e apontou com um polegar para trás, por cima do ombro.

--O meu carro avariou-se na estrada do deserto.

--Mostre-me os seus documentos, por favor.

Wolff entregou-lhos. o capitão examinou-os e depois ergueu os olhos.

--Parece estafado, Mr. Wolff. Quanto tempo veio a pé?

--Desde ontem à tarde--respondeu Wolff, com uma fadiga que não era inteiramente simulada. --Andei perdido.

--O quê?! Passou toda a noite no deserto? Meu Deus, é melhor aceitar uma boleia nossa! --O capitão voltou-se para o jipe e ordenou: --Cabo, pegue nas malas deste senhor.

Wolff abriu a boca para protestar, mas imediatamente a voltou a fechar. Um homem que tivesse caminhado toda a noite aceitaria de bom grado que Lhe carregassem a bagagem. Enquanto o cabo colocava as malas na retaguarda do jipe, Wolff lembrou-se, apavorado, de que nem sequer se dera ao trabalho de as fechar à chave. "Como pude ser tão estúpido?", pensou.

Mas sabia a resposta: ainda estava sintonizade, com o deserto, onde a última coisa que alguém pensaria em roubar seria um transmissor de rádio que tinha de ser ligado a uma tomada de corrente. Mas agora precisava de pensar em polícias e documentos, fechaduras e mentiras.

Decidiu ter mais cuidado e subiu para o jipe. o capitão instalou-se a seu lado e disse ao motorista:

--Voltamos para a cidade. --Depois apresentou-se a Wolff, estendendo-lhe a mão:--Capitão Newman.

Wolff apertou-lha e observou-o com atenção. o seu companheiro era novo--pelo aspecto teria vinte e poucos anos--, caía-lhe sobre a testa uma madeixa de cabelo agarotada e tinha um sorriso fácil; mas percebia-se na sua atitude o cansaço da maturidade que os homens que combatem adquirem precocemente.

--Já esteve em combate?--perguntou-lhe Wolff.

--Um pouco. --o capitão Newman tocou na pera coxa e explicou:--Arranjei isto no deserto líbio, na Cirenaica. Foi por isso que me mandaram para esta vilória.--Sorriu.--De onde é o seu sotaque?

A pergunta inesperada apanhou Wolff de surpresa. Aliás, pareceu-lhe intencional: o capitão Newman era esperto.

Afortunadamente, Wolff tinha uma resposta preparada: --os meus pais eram bóeres que vieram da åfrica do Sul para o Egipto. Cresci a falar africânder e árabe.--Hesitou, enervado por parecer demasiado ansioso por fornecer explicações:--A origem do apelido Wolff é holandesa.

Newman pareceu cortesmente interessado.

--Que o trouxe cá?

--Tenho interesses comerciais em várias cidades a montante dó rio.--Wolff sorriu e acrescentou:--Gosto de fazer visitas surpresa aos meus representantes.

Estavam a entrar em Asyut. Pelos padrões egípcios, era uma grande cidade, com fábricas, hospitais, uma universidade muçulmana e uns sessenta mil habitantes. Wolff estava quase a pedir que o deixassem na estação do caminho de ferro, mas Newman evitou-lhe esse erro:

--Vamos levá-lo à garagem do Nasif--disse o capitão.--Ele tem um reboque.

--Obrigado seco.

Continuava a não raciocinar com a rapidez necessária. "E o deserto", pensou. "Tomou-me lento." Consultou o relógio. Tinha tempo para uma farsa na garagem, sem no entanto perder o comboio diário que o levaria cerca de quinhentos quilómetros para norte, até ao Cairo. Teria de entrar na garagem e demorar-se até os soldados partirem. Pediria informações acerca de peças para automóveis ou qualquer outro acessório, após o que seguiria para a estação. Se tivesse sorte, talvez o garagista e o capitão Newman nunca chegassem a trocar informações a respeito de Alex Wolff.

O jipe percorria as ruas estreitas e movimentadas. Wolff apreciava os aspectos familiares de uma cidade egípcia: as mulheres com carregos à cabeça, os espertalhões de óculos de sol, as pequenas lojas disseminadas nas ruas esburacadas, os automóveis amachucados e os burros sobrecarregados. Pararam defronte de uma série de construções baixas de tijolo. A estrada estava semibloqueada por uma velha camioneta e pelos restos de um Fiat desfeito.

--Tenho de o deixar aqui--disse Newman.--Questões de serviço.

--Foi muito amável--redarguiu Wolff, apertando-lhe a mão.

--Custa-me abandoná-lo assim ...--prossegui Newman.-lá sei!

Deixo-lhe o cabo Cox para olhar por si.

--É muito amável, mas, francamente ...

O capitão não Lhe deu ouvidos e ordenou:

--Pegue nas malas deste senhor, Cox. Quero que cuide dele compreende?

--Sim, meu capitão!--respondeu Cox.

Wolff praguejou intimamente. A amabilidade do capitão Newman estava a transformar-se num incómodo. Seria acaso intencional?

Wolff apercebeu-se de que o seu plano de entrar no Egipto despercebidamente podia muito bem fracassar. Ele e Cox apearam-se e o Jipe arrancou.

Wolff entrou na garagem de Nasif e Cox seguiu-o com as malas.

Nasif, um jovem sorridente, estava a reparar um automóvel à luz de um candeeiro a petróleo. Wolff dirigiu-se-lhe rapidamente num árabe egípcio:

--O meu carro avariou-se. Disseram-me que tinha um reboque.

--Tenho. Podemos partir imediatamente. onde está o carro?

--Na estrada do deserto, a setenta ou oitenta quilómetros daqui. E um Ford. Mas nós não vamos consigo.--Retirou a carteira do bolso e deu a Nasif uma nota de libra inglesa.--Encontra-me no Grande Hotel, junto da estação de caminho de ferro.

Nasif aceitou o dinheiro com alacridade.

--Muito bem!--exclamou.

Wolff acenou secamente com a cabeça e girou nos calcanhares.

Ao sair da garagem seguido por Cox, consultou de novo o relógio. Ainda tinha tempo para apanhar o comboio.

Livrar-se-ia do cabo no átrio do hotel e depois comeria qualquer coisa enquanto esperasse.

Cox era um homem baixo e moreno, com um sotaque regional britânico que Wolff não sabia identificar. Parecia aproximadamente da idade de Wolff e o facto de ainda ser cabo talvez significasse que não era muito inteligente.

Entraram no hotel e Wolff virou-se para Cox:

--Muito obrigado, cabo. Agora já pode voltar para o seu trabalho.

--Não tenho pressa, Mr. Wolff--redarguiu Cox alegremente.

--Levo-lhe as malas para cima.

--Tenho a certeza de que têm mandaretes e ...

--No seu lugar não confiava neles, Mr. Wolff.

A situação assemelhava-se cada vez mais a um pesadelo ou uma farsa em que pessoas bem-intencionadas o forçavam a um comportamento cada vez mais insensato em consequência de uma pequena mentira. ocorreu-lhe a ideia tremendamente absurda de que talvez soubessem tudo e estivessem a brincar com ele.

Afastou semelhante ideia e disse a Cox:

--Obrigado.

Foi à recepção e pediu um quarto. Viu as horas: faltavam quinze minutos para o comboio partir. Um mandarete núbio levou-os ao quarto e Wolff gratificou-o à porta. Cox colocou as malas sobre a cama.

--Bem, cabo, foi muito útil ...

--Deixe-me desfazer-lhe as malas, Mr. Wolff--interrompeu-o Cox.

--Não, obrigado--respondeu Wolff em tom firme.—Quero deitar-me.

--Deite-se à vontade--insistiu Cox generosamente. --Não levo mais de ...

--Não abra isso!

Cox erguia a tampa da mala mais leve. Wolff levou a mão ao interior do casaco, pensando: "Diabo do homem, lá se foi o segredo!" E: "Conseguirei fazer isto sem barulho?" o cabo contemplava os montes ordenadamente acondicionados de libras inglesas novas que enchiam a mala. Comentou:

--Meu Deus, está bem aviado!--Cox começou a virar-se para ele, enquanto dizia: --o que quer com toda esta ...?

Wolff sacou da mortífera faca beduína de lamina curva, que Lhe cintilou na mão quando os seus olhos encontraram os de Cox e este se encolheu e abriu a boca para gritar. A lamina afiada como uma navalha cortou-lhe a garganta, o grito de medo transformou-se num gorgolejar de sangue e ele morreu. Wolff sentiu apenas desapontamento.

 

Capítulo 2

CORRIA o mês de Maio e soprava o khamsin, um vento quente e carregado de poeira procedente do sul. De pé sob o chuveiro, William Vandam teve o pensamento deprimente de que aquele momento seria o único em que se sentiria fresco durante todo o dia. Fechou a torneira e enxugou-se rapidamente. Tinha o corpo dorido. Na véspera jogara críquete pela primeira vez em anos.

O Estado-Maior dos Serviços de Informação formara uma equipa para jogar com os médicos do hospital de campanha—espiões contra curandeiros, como Lhe tinham chamado--, e Vandam ficara muito maltratado numa jogada mais violenta. Era forçado a admitir que não se encontrava em boa forma. Os cigarros haviam-lhe encurtado o fôlego e as muitas preocupações tinham-no impedido de se concentrar no Jogo.

Acendeu um cigarro, tossiu e começou a barbear-se. Fumava sempre enquanto se barbeava--era a única maneira que conhecia de tornar menos enfadonha aquela inevitável tarefa diária.

Quinze anos antes jurara a si próprio que deixaria crescer a barba assim que saísse da tropa, mas estava-se em 1942 e continuava no Exército.

Vestiu o uniforme de todos os dias: sandálias grossas, peúgas, camisa de mato e calções de caqui. Depois desceu. Gaafar estava na cozinha a fazer chá. o criado de Vandarn era um copta idoso, de cabeça calva e andar arrastado, com pretensões a mordomo inglês. Claro que nunca o seria, mas tinha uma certa dignidade e era honesto.

--Billy já se levantou?--perguntou-lhe Vandam.

--Já sim, Sr. Major. Desce já.

Vandam dirigiu-lhe com a cabeça um sinal de assentimento.

Sobre o fogão a água borbulhava numa pequena caçarola. Vandam introduziu-lhe um ovo dentro e regulou o relógio. Fez torradas, barrou-as com manteiga, retirou o ovo da água e cortou-lhe uma das extremidades.

Billy entrou na cozinha:

--Bons dias, pai!

Vandam sorriu ao filho, de dez anos, e anunciou:

--O pequeno-almoço está pronto.

O rapaz sentou-se e começou a comer. Vandam sentou-se à sua frente com uma chávena de chá, observando-o. Era afirmação corrente que Billy se parecia com ele, mas Vandam não conseguia descobrir a semelhança. Detectava, no entanto, na criança traços da mãe: os olhos cinzentos, a pele delicada e a expressão levemente arrogante que arvorava quando alguém o irritava.

Vandam preparava sempre o pequeno-almoço do filho. A maior parte do tempo era o criado quem olhava pelo rapaz, mas Vandam gostava de reservar para si aquele pequeno ritual.

Frequentemente, era o único momento do dia que passava com o filho.

Depois de tomar o pequeno-almoço, Billy foi lavar os dentes, enquanto Gaafar trazia para a porta a motocicleta de Vandam, uma veloz BSA 350, muito prática para atravessar os engarrafamentos de transito do Cairo. Billy regressou com o boné da escola e Vandam colocou também o seu. Como todos os dias, fizeram a continência um ao outro e Billy disse:--Muito bem. Vamos lá ganhar a guerra.

Depois saíram.

 

O gabinete do major Vandam situava-se num grupo de edifícios cercados de arame farpado que constituíam o Quartel-General do Médio oriente. Quando chegou, o oficial encontrou sobre a secretária o relatório de um incidente. Sentou-se, acendeu um cigarro e começou a ler.

O relatório procedia de Asyut e inicialmente Vandam não compreendeu por que motivo fora enviado para o Serviço de Informações. Uma patrulha dera boleia a um europeu que, posteriormente, assassinara um cabo com uma faca. o corpo fora encontrado na noite anterior, várias horas após a morte. Um homem cuja descrição correspondia à do referido europeu comprara um bilhete para o Cairo na estação de caminho de ferro local. Não havia qualquer indicação quanto ao móbil do crime.

Nesse momento a Polícia Egípcia e a Polícia Militar Britânica deviam já estar a proceder a investigações em Asyut e no Cairo. Qual a razão para intrometer no caso o Serviço de Informações?

 

Vandam franziu a testa, pensativo. Depois compreendeu. Ligou para Asyut e mandou chamar o capitão Newman.

--Esse assassínio à facada parece dever-se a um disfarce que foi ao ar--observou Vandam.

--Foi o que me pareceu, meu major--respondeu Newman, que pela voz parecia ser jovem.--Por isso mandei o relatório para o Serviço de Informações.

--Bom raciocínio. Que impressão Lhe deixou o homem? Tenho aqui a descrição dele--um metro e oitenta, setenta e sete quilos e cabelo e olhos escuros--, mas isso não me diz como ele era.

--Bem, para ser franco, inicialmente não desconfiei dele-confessou Newman. --Pareceu-me um cidadão honesto: decentemente vestido, bem falante, com um sotaque que disse ser holandês, ou melhor, africânder, e documentos autênticos.

--Mas?...

--Disse-me que andava em viagem de negócios a visitar representantes de interesses comerciais que tinha no Alto Egipto, mas não me pareceu homem para passar a vida a investir numas lojazitas e numas herdades de algodão. Era muito mais o tipo cosmopolita senhor de si. Se tivesse dinheiro para investir, provavelmente trataria com um corretor londrino ou um banco suíço. Depois, lembrei-me de que aparecera de repente no deserto sem que eu soubesse de facto de onde poderia ter vindo, e por isso disse ao pobre do Cox que ficasse com ele, a pretexto de o ajudar, até termos possibilidade de confirmar a sua história. Devia tê-lo prendido, claro, mas tinha apenas uma suspeita muito vaga ...

--Não creio que alguém o censure, capitão—interrompeu Vandam.--Já foi bom ter fixado o nome e o endereço mencionados nos documentos. Alexander Wolff, Villa les oliviers, Garden City, não é?

--Exactamente, meu major.

--Muito bem. Mantenha-me ao corrente se houver alguma novidade do seu lado.

Vandam desligou. As suspeitas de Newman corroboravam o que o seu próprio instinto Lhe dizia a respeito do crime. Resolveu falar com o seu superior e saiu do gabinete, levando o relatório do incidente.

O superior de Vandam, o tenente-coronel Bogge, era um director-adjunto do Serviço de Informações. Bogge era responsável pela segurança do pessoal e dedicava a maior parte do seu tempo ao funcionamento do aparelho de censura. A cargo de Vandam estavam as fugas de segurança por outros meios que não cartas.

Ele e os seus homens tinham várias centenas de agentes no Cairo e em Alexandria; Vandam tinha informadores na maioria dos clubes e dos bares e entre o pessoal doméstico dos mais importantes políticos árabes. O criado de quarto do rei Faruk trabalhava para Vandam, bem como, ocasionalmente, Abdullah, o mais rico ladrão do Cairo, cujos serviços estavam à venda a favor de qualquer dos lados. Vandam estava interessado em saber quem falava demais e quem ouvia, e entre estes últimosos nacionalistas árabes constituíam o seu alvo principal. No entanto, o misterioso homem de Asyut parecia representar um tipo de ameaça diferente.

Até àquele momento, a carreira militar de Vandam em tempo de guerra fora distinguida por um êxito espectacular e um grande fracasso. Este verificara-se na Turquia, onde Rashid Ali, primeiro-ministro nacionalista do Iraque, conseguira exilar-se. os Alemães tinham querido levá-lo do país e utilizá-lo para fins de propaganda. A missão de Vandam consistira em certificar-se de que Ali permaneceria em Istambul, mas este trocara de roupa com um agente alemão e saíra do país mesmo nas barbas de Vandam. Poucos dias depois, Ali proferia discursos de propaganda para o Médio oriente através da rádio nazi. Vandam redimira-se no Cairo, onde descobrira uma importante fuga de segurança: um diplomata americano comunicava com Washington através de um código que não oferecia confiança. O código fora alterado, a fuga de segurança colmatada e Vandam promovido a major.

Se fosse um soldado em tempo de paz, ter-se-ia sentido orgulhoso do seu triunfo e resignado com a sua derrota: "Umas vezes ganha-se, outras perde-se." Mas em guerra os erros de um oficial causavam mortes. Em consequência do caso Rashid Ali, uma agente -- uma mulher ainda jovem-- fora assassinada, e Vandam não conseguira perdoar-se a si mesmo.

Bateu à porta do tenente-coronel Bogge e entrou. Reggie Bogge era um cinquentenário de baixa estatura e entroncado, cabelo preto untado de brilhantina, que envergava um uniforme imaculado. Tinha uma tosse nervosa, a que recorria quando não sabia que dizer, o que se verificava frequentemente. Sentado a uma enorme secretária curva, despachava o trabalho amontoado no seu tabuleiro. Quando Vandam se sentou, Bogge disse:

--Mais umas malditas notícias desagradáveis. Esperávamos que Rommel atacasse a linha de Gazala a direito, mas devíamos ter pensado melhor. Ele contornou o nosso flanco sul e tomou o Quartel-General do 7.o de Blindados.

--Quando é que vamos detê-lo?-- perguntou Vandam, preocupado.

--Não avançará muito mais--respondeu Bogge, que não queria criticar os generais. --Que traz aí?

Vandam entregou-lhe o relatório do incidente e observou:

--Parece tratar-se de um disfarce que foi ao ar.

Bogge leu o relatório.

--Quer dizer que ele era um espião?--indagou, e riu desdenhosamente. --Como Lhe parece que chegou a Asyut? De pára-quedas? ou veio a pé?

O mal de Bogge era aquele, pensou Vandam. Tinha de ridicularizar a ideia por não ter sido ele a tê-la.

--Não é impossível um pequeno avião conseguir passar. E também não é impossível atravessar o deserto.

Bogge atirou o relatório pelo ar, através da secretária, e declarou:

--Acho muito improvável. Não perca tempo com isso.

--Muito bem, meu coronel.--Vandam apanhou o relatório do chão contendo a cólera habitual.--No entanto, vou pedir à Polícia que nos mantenha informados, por uma questão de rotina.

Ao regressar ao seu gabinete, uma mulher de bata hospitalar branca fez-lhe a continência, que ele retribuiu distraidamente. A mulher interpelou-o:

--É o major Vandam, não é?

O oficial deteve-se e olhou-a. Ela assistira ao jogo de criquete, e agora Vandam lembrava-se do seu nome:

--Bons dias, Dr.a Abuthnot--saudou.

Era uma mulher alta e morena, aproximadamente da sua idade, e Vandam recordou-se também de que era cirurgia e tinha a patente de capitão.

--Ontem esforçou-se muito no jogo, major.

--Mas gostei--afirmou Vandam, sorrindo.

--Também eu.--Tinha uma voz baixa e clara e via-se que possuía uma grande dose de confiança.--Vemo-lo na sexta-feira?

--Onde?

--Na recepção do Union.

--Ah!--o Anglo-Egyptian Union, clube para europeus enfastiados, oferecia ocasionalmente uma recepção a convidados e egípcios para tentar justificar o seu nome.--Vou com certeza.—Vandam estava profissionalmente interessado em comparecer: tratava-se de uma ocasião em que alguns egípcios poderiam ouvir algumas coscuvilhices de serviço, as quais continham por vezes informações úteis para o inimigo. --Com todo o gosto. --óptimo. Vemo-nos lá. --E a médica afastou-se.

Vandam acompanhou-a com o olhar, enquanto ela atravessava o hall. Era esbelta, elegante e senhora de si. Recordava-lhe Angela, a sua mulher.

Entrou no seu gabinete de novo a pensar no relatório do capitão Newman. Não tencionava esquecer o assassínio de Asyut.

Bogge que fosse para o inferno. Ele ia trabalhar no assunto.

Começou por telefonar à Polícia Egípcia, e foi-lhe confirmado que naquele dia seriam visitados os hotéis e as pensões baratas do Cairo. Contactou também a segurança de campo britânica e pediu que acelerassem o controle de documentos de identificação. Transmitiu instruções ao oficial tesoureiro para que fosse prestada especial atenção à eventual existência de notas falsas. Recomendou aos serviços de escuta de TSF que estivessem atentos a qualquer transmissão de um novo emissor local, e destacou um sargento para visitar todos os estabelecimentos de rádio da área e pedir-lhes que comunicassem qualquer venda de peças e equipamento que pudessem ser utilizados para reparar ou fabricar um emissor.

Depois, dirigiu-se ao endereço indicado nos documentos de Alex Wolff.

A Villa les oliviers devia o nome a um pequeno jardim público existente do outro lado da rua e no qual um reduzido olival se encontrava naquele momento em flor, disseminando sobre a erva seca e castanha pétalas brancas semelhantes a poeira.

A casa tinha um muro alto, interrompido por um pesado portão de madeira trabalhada. Servindo-se dos ornamentos como de apoios para os pés, Vandam escalou o portão, saltou e encontrou-se num vasto pátio. As paredes caiadas de branco estavam sujas e a tinta das portadas fechadas apresentava-se estalada. Havia pelo menos um ano que ninguém ali vivia.

Vandam abriu uma portada, partiu uma vidraça, enfiou a mão pela abertura para abrir a janela e saltou pelo parapeito para dentro de casa.

Não parecia a casa de um europeu, pensou ao percorrer as salas escuras e frescas. Não havia gravuras de caça suspensas nas paredes. nem fiadas de romances de sobrecapas coloridas, nem mobiliário importado dos Harrods, de Londres. Em seu lugar viam-se grandes almofadas, mesas baixas, tapetes tecidos à mão e tapeçarias.

No primeiro andar, por detrás de uma porta fechada à chave que abriu a pontapé, encontrou um escritório limpo e arrumado, com alguns móveis bastante luxuosos: um diva largo e baixo forrado de veludo, uma mesa de apoio entalhada à mão, uma secretária com belos embutidos e uma cadeira de couro. Na gaveta da secretária descobriu relatórios de empresas da Suíça, da Alemanha e dos Estados Unidos. A acumular pó numa prateleira atrás da secretária havia livros em várias línguas: romances franceses do século XIX, o Shorter oxford English Dictionary, um volume de poesia árabe com ilustrações eróticas e a Bíblia em alemão. Não havia documentos pessoais, nem cartas, nem uma única fotografia.

Vandam sentou-se à secretária na macia cadeira de couro e olhou em redor. Era uma sala masculina, o lugar privado de um intelectual cosmopolita, de um homem simultaneamente cuidadoso, meticuloso e arrumado e sensitivo e sensual.

Vandam sentia-se intrigado. Um nome europeu e uma casa totalmente árabe. Uma abundância de informações a respeito do carácter do proprietário, mas nem uma pista que ajudasse a encontrar o homem. Deveria haver extractos de contas bancárias, contas uma certidão de nascimento, um testamento, fotografias de pais ou filhos. o homem, porém, não deixara nenhum vestígio da sua identidade, como se soubesse que um dia alguém os iria procurar.

--Alex Wolff, quem és tu?--perguntou Vandam em voz alta.

Levantou-se da cadeira e saiu da casa. Escalou de novo o Portão e saltou para a rua. Do outro lado da estrada, um árabe envergando uma galabia branca--nome por que é designado o vestuário solto dos nativos--, sentado no chão, de pernas cruzadas, à sombra das oliveiras, observava Vandam negligentemente. o major pensou noutras fontes onde poderia procurar informações sobre o dono da casa: arquivos municipais, comerciantes locais e vizinhos. Encarregaria dessa tarefa dois dos seus homens e inventaria uma história qualquer para contar a Bogge como justificação. Montou na motocicleta e embraiou. O motor roncou e Vandam afastou-se.

 

SENTADO defronte da sua casa, dominado pela cólera e pelo desespero Wolff viu o oficial britânico partir. O oficial era arrogante e intrometido invadira e violara o domínio de Wolff. Este lamentou não Lhe ter visto o rosto, pois gostaria um dia de o matar.

Pensara naquela casa durante toda a viagem. Em Berlim e Tripoli, na travessia do deserto e na fuga apressada de Asyut, a vivenda representara sempre um porto de abrigo, um lugar onde poderia repousar, purificar-se, recuperar-se a si mesmo.

Mas agora tinha de se afastar e de se manter afastado.

Permanecera ali toda a manha, com a galabia que comprara no mercado nativo, não fosse o capitão Newman ter fixado a morada e mandado alguém revistar a casa. Fora um erro mostrar os documentos de identificação autênticos. Compreendia-o agora, retrospectivamente. o problema é que não confiava nas falsificações feitas pelos Serviços. Secretos Alemães. Em conversas com outros espiões ouvira histórias pavorosas sobre erros primários que os documentos deles registavam: impressão empastada, erros ortográficos em palavras inglesas correntes, etc. Wolff avaliara as alternativas e optara pela que Lhe parecera menos arriscada. Enganara-se e agora não tinha para onde ir.

Levantou-se, pegou nas duas malas e começou a andar.

Pensou na sua família. A mãe e o padrasto egípcio tinham morrido, mas tinha três meios-irmãos e uma meia-irma no Cairo.

Seria, porém, difícil esconderem-no. Seriam interrogados quando os Ingleses descobrissem o seu relacionamento com eles.

Talvez mentissem, mas os seus criados falariam com certeza.

Deixou Garden City e dirigiu-se para o centro. As ruas estavam ainda mais movimentadas do que quando deixara o Cairo. Havia inúmeros uniformes--não só britânicos, mas também australianos, neozelandeses, polacos, jugoslavos, palestinianos, indianos e gregos. os mendigos e os vendedores tinham saído para as ruas em força, a fim de tirarem partido do afluxo de estrangeiros ingénuos.

O transito também piorara. os lentos e miseráveis troleicarros andavam mais cheios do que nunca, com passageiros empoleirados nos estribos e sentados, de pernas cruzadas, nos tejadilhos.

No tocante a autocarros e táxis, a situação não era melhor: parecia haver falta de peças, pois muitos dos automóveis tinham janelas partidas, pneus carecas e motores avariados. Os únicos veículos decentes eram as monstruosas limusinas americanas dos paxás ricos. De mistura com os veículos motorizados viam-se gharries puxadas a cavalos e carroças de camponeses puxadas por parelhas de muares e gado: camelos, carneiros e cabras.

E o barulho ... Wolff esquecera-se do barulho. Tilintavam campainhas de troleicarros, buzinavam automóveis e condutores de carroças e camelos gritavam a plenos pulmões. Rádios baratos de lojas e cafés, com o volume no máximo, transmitiam música árabe que ecoava pelas ruas. Vendedores apregoavam e cães ladravam. De vez em quando, todos esses ruídos eram abafados pelo roncar de um avião.

"Esta é a minha cidade", pensou Wolff. "Aqui não me podem apanhar. "

Lembrou-se de uma pensão barata, gerida por freiras, em Bulaq, o bairro do porto. Acolhia principalmente marinheiros que desciam o Nilo em rebocadores a vapor e faluchos carregados de algodão, carvão, papel e pedra. Ninguém se lembraria de o procurar aí.

O albergue estava instalado num grande edifício em ruínas, que fora em tempos vivenda de algum paxá. Através da arcada da frente, Wolff viu o átrio fresco e sossegado. Nesse dia carregara as malas durante quilómetros, e estava ansioso por descansar.

Dois polícias egípcios saíram do albergue.

Wolff sentiu-se sucumbir. Virou-se e continuou a andar. Era pior do que imaginara. A Polícia devia estar a investigar em toda a parte. Começava a experimentar a sensação que tivera no deserto, de que caminhava sem descanso sem chegar a lado nenhum.

Viu um táxi, um grande Ford velho de sob cujo capot o vapor irrompia, sibilante. Meteu-se nele e mandou seguir para o Cairo Copta, o antigo bairro cristão. Pagou ao motorista e desceu os degraus que Lhe davam acesso.

O bairro era uma ilha de escuridão e silêncio no mar tempestuoso do Cairo. Wolff percorreu os becos estreitos e penetrou na mais pequena das cinco antigas igrejas. O serviço religioso estava prestes a iniciar-se. Colocou as preciosas malas ao lado de um banco e sentou-se.

O coro começou a entoar uma passagem das Escrituras. Wolff instalou-se no banco. Ali estaria em segurança até escurecer.

Depois despiria a alabia e tentaria a última cartada.

 

O Cha-Cha era um grande clube nocturno situado num jardim junto ao rio. Estava cheio, como de costume, mas Wolff conseguiu arranjar uma mesa e pediu uma garrafa de champanhe.

A noite estava quente e as luzes do palco tornavam-na ainda mais quente. A assistência turbulenta começou a gritar pela estrela do espectáculo. Sonja el-Aram. Por fim, ouviu-se um rufar de tambores, as luzes a a aram-se e fez-se silêncio.

 

Quando o projector se acendeu, Sonja permaneceu imóvel no meio do palco, de braços erguidos para o céu. Vestia umas calças diáfanas e um corpete coberto de lantejoulas. A música soou--tambores e uma flauta--e ela começou a mover-se. Wolff observava-a, sorrindo, sorvendo o champanhe. Ela continuava a ser a melhor.

Meneava as ancas com lentidão, apoiando firmemente no chão ora um pé, ora outro. os braços começaram-lhe a tremer, depois moveu os ombros e sacudiu os seios. E por fim o seu ventre famoso agitou-se hipnoticamente. o ritmo acelerou-se. Sonja fechou os olhos. Cada parcela do seu corpo parecia mover-se independentemente do restante. A assistência mantinha-se silenciosa, fascinada. Ela prosseguiu com rapidez crescente, como que em transe. A música atingiu o auge, clangorosamente.

No instante de silêncio que se seguiu, Sonja soltou um grito agudo e breve; depois caiu para trás, as pernas dobradas sob o corpo, até tocar com a cabeça nas tábuas do palco. Sustentou a posição um momento, até o projector se apagar. A assistência levantou-se numa tempestade de aplausos, as luzes acenderam-se... e ela desaparecera.

Sonja nunca bisava.

Wolff ofereceu uma libra ao criado--três meses de salário para a maioria dos Egípcios--e pediu-lhe que o conduzisse aos bastidores. O homem mostrou-lhe a porta do camarim de Sonja e afastou-se. Wolff entrou.

Ela estava sentada num banco, de robe de seda, removendo a caracterização. Quando o viu no espelho, rodou sobre si.

--Olá, Sonja--saudou-a Wolff.

Os olhos dela coruscaram de cólera.

--Que fazes aqui?

Não mudara. Era uma mulher bonita. Tinha cabelo comprido e lustroso; grandes olhos castanhos com fartas pestanas; malares salientes e nariz curvo e graciosamente arrogante; duas fiadas de dentes brancos e regulares. Não obstante as curvas sinuosas do seu corpo, não parecia roliça, pois era mais alta do que a média.

Wolff pousou as malas e sentou-se no diva. Ela ergueu-se e postou-se à sua frente, mãos nas ancas, queixo lançado para a frente, a seda verde do robe a delinear-lhe os seios.

--Es bela--disse-lhe ele.

--Vai-te embora.

Wolff observou-a cuidadosamente. Parecia zangada e desdenhosa, mas está-lo-ia?

--Preciso de auxílio--confessou francamente.--os Ingleses andam atrás de mim, estão a vigiar a minha casa. Quero ir viver contigo.

--Vai para o inferno.

--Espera um minuto, deixa-me contar-te por que motivo te abandonei.

--Ao fim de dois anos, não há desculpa que sirva. –Sonja lançou-lhe um olhar furioso e depois abriu a porta.

Wolff julgou que fosse pô-lo fora, mas em vez disso estendeu a cabeça para o exterior e gritou:

--Tragam-me uma bebida!--Wolff descontraiu-se um pouco e Sonja fechou a porta.--Tens um minuto--declarou. Sentou-se de novo no banco e continuou a desmaquilhar-se.

Wolff hesitou. Como poderia explicar-lhe o motivo por que a deixara sem se despedir e nunca mais voltara a comunicar com ela? Não obstante a relutância que sentia em compartilhar o seu segredo, compreendeu que tinha de Lhe dizer a verdade, pois estava desesperado e ela era a sua única esperança.

--Deves lembrar-te de que fui a Beirute em 1938. Fui encontrar-me com um oficial do Exército Alemão que me convidou a trabalhar para a Alemanha na guerra que se avizinhava.

Aceitei.

Ela desviou o rosto do espelho e fitou-o de frente. Wolff viu-lhe nos olhos um clarão que poderia ser de esperança.

--Disseram-me que regressasse ao Cairo e aguardasse. Há dois anos mandaram-me ir a Berlim, e eu fui. Frequentei um curso de treino e depois trabalhei no Levante. Voltei a Berlim em Fevereiro a fim de receber instruções para uma nova missão.

Mandaram-me para cá . . .

--És espião?--perguntou, incrédula. --Não acredito.

--Olha. -- Pegou numa das malas e abriu-a. --Isto é um emissor de rádio para enviar mensagens a Rommel. --Fechou a mala, abriu a outra e acrescentou:--Isto é o meu financiamento.

Sonja fitou, assombrada, os maços de notas ordenadamente dispostas.

--É uma fortuna!--exclamou.

Bateram à porta e Wolff fechou a mala. Entrou um criado com uma garrafa de champanhe num balde de gelo. Ao ver Wolff, perguntou:

--Trago outra taca?

--Não--respondeu a bailarina, impaciente.--Vá-se embora!

 

O criado saiu. Wolff abriu a garrafa, encheu a taça, deu-a a Sonja e sorveu um grande gole pelo gargalo.

--Escuta--pediu.--o nosso exército precisa de saber qual é a força dos Ingleses: número de soldados, que divisões estão em campo, nomes dos comandantes, tipo de armas e equipamento e planos de combate. Nós podemos descobrir essas coisas. Depois, quando os Alemães tomarem o Cairo, seremos heróis.

--Nós?

--Podes ajudar, começando por me dares um lugar para viver.

Odeias os Ingleses, não odeias? Não queres vê-los corridos de cá?

--Faria o que pedes por qualquer pessoa, menos por ti.

--Sonja! Se eu te tivesse mandado nem que fosse um postal de Berlim, os Ingleses ter-te-iam metido na prisão. Não tens que estar zangada.--Baixou a voz e continuou:--Podemos reviver os velhos tempos. Teremos boa cozinha, champanhe do melhor e roupas novas. Iremos para Berlim, onde sempre desejaste dançar. Serás uma estrela. Nós ...--Fez uma pausa, pois nada do que dizia produzira efeito nela. Chegara a altura de jogar a sua última carta:--Como está a tua amiga Fawzi?

Sonja baixou os olhos.

--Foi-se embora.

Wolff colocou ambas as mãos no pescoço de Sonja e, exercendo pressão com os polegares sob o queixo dela, obrigou-a a levantar-se.

--Arranjo-te outra Fawzi--prometeu suavemente, e viu-lhe os olhos humedecerem-se-lhe de súbito.--Sou o único que compreende aquilo de que precisas.--Baixou a boca ao encontro da dela.

Sonja fechou os olhos e gemeu:

--Odeio te.

 

NA frescura do entardecer, Wolff caminhava ao longo do cais, junto ao Nilo, em direcção ao barco habitação de Sonja, o Jlhan. As feridas do seu rosto estavam curadas, vestia um fato branco novo e transportava dois sacos cheios dos seus géneros de mercearia preferidos.

O subúrbio insular de Zamalek era sossegado. Só vagamente se ouvia, através de uma ampla extensão de água, o ruído insuportável do centro do Cairo. o rio, calmo e lodoso, batia levemente nos barcos habitações atracados ao longo da margem.

O de Sonja era mais pequeno e mais luxuosamente mobilado do que a maioria. Um portaló unia o caminho ao convés superior.

Wolff entrou no barco e desceu a escada para o interior, atravancado de cadeiras, divas, mesas e armários cheios de bugigangas.

Havia uma cozinha minúscula à proa. Reposteiros de veludo dividiam o resto do interior em duas divisões, isolando o quarto. A seguir ao quarto, à popa, havia uma casa de banho.

Sonja estava sentada numa almofada a pintar as unhas dos pés antes de seguir para o Cha Cha Club. Wolff colocou o saco das compras sobre uma mesa e começou a despejá-lo:

--Champanhe francês ... marmelade inglesa mães ... salmão escocês.

Sonja ergueu os olhos, estupfacta.

--Ninguém tem coisas dessas

Wolff sorriu.

--Há um pequeno merceeiro gu wal  e sua loja e o único lugar do Norte de åfrica onde se consegue arranjar caviar.

Sonja introduziu a mão num dos sacos.

--Caviar!--Abriu o boião e começou a comer com os dedos.

Wolff pôs uma garrafa de champanhe no frigorífico, retirou um jornal de um dos sacos e começou a folheá-lo.

--Ainda não vem nada a meu respeito.--Contara a Sonja o que se passara em Asyut.

--Dão sempre as notícias atrasadas--observou ela com a boca cheia de caviar.

--Não é isso. os Ingleses não querem que se desconfie que os Alemães têm espiões no Egipto. Dava mau aspecto.

Sonja retirou se para o quarto, a fim de mudar de roupa. Do outro lado do reposteiro, perguntou:

--Isso significa que deixaram de te procurar?

--Não. Vi o Abdullah no mercado e ele disse-me que um tal major Vandam continua a exercer pressão.

--Como é que o Abdullah sabe?--perguntou Sonja.

--É ladrão, ouve coisas.

Wolff foi buscar o champanhe ao frigorífico. Não estava suficientemente gelado, mas ele encheu duas taças. Sonja saiu do quarto, ligeiramente maquilhada, com um finíssimo vestido cor de cereja e sapatos a condizer. Dois minutos depois, chegou o táxi para a levar.

Wolff foi ao armário onde arrumara o rádio, do qual retirou o romance inglês e a folha de papel com a chave do código, que estudou. Estava se a 28 de Maio e ele tinha de acrescentar 42--o ano--a 28 para obter o número da página do romance que deveria utilizar para cifrar a sua mensagem. Como Maio era o quinto mês, todas as quintas letras da página seriam descontadas.

Decidiu enviar a seguinte mensagem: "Cheguei. Acusem recepção. Começando pelo cimo da página 70 do livro, procurou a letra c ao longo da linha. Era a décima, descontando todas as quintas letras. No seu código seria, portanto, representada pela décima letra do alfabeto, j. A seguir precisava de um h.

No livro, a quarta letra depois do c era um h.

Consequentemente. o h de  cheguei" seria representado pela quarta letra do alfabeto, d. Havia normas especiais para representar as letras menos vulgares, como o x. Para descodificar a mensagem, quem a ouvisse precisaria de ter o livro e a chave, o que tornava o código indecifrável a estranhos, na teoria e na prática.

Depois de cifrar a mensagem, consultou o relógio. Tinha de transmitir às vinte e quatro horas--meia-noite. Ainda tinha tempo. Encheu outra taça de champanhe e resolveu acabar com o caviar. Foi buscar uma colher e pegou no boião. Estava vazio, Sonja comera-o todo.

 

A pista de aterragem era uma faixa de deserto que fora apressadamente desbravada de cactos e pedras grandes. Ervin Rommel fitou o solo que parecia subir ao seu encontro. O Storch, um avião ligeiro que utilizava para pequenas viagens pelo campo de batalha, aterrou como uma mosca e parou. Rommel saltou para o chão.

Sentiu primeiro o impacto do calor e depois o da poeira. No ar estivera relativamente fresco; agora sentia-se como se tivesse entrado num forno. Começou imediatamente a transpirar, e uma fina camada de pó cobriu-lhe os lábios.

Friedrich von Mellenthin, o seu oficial do Serviço de Informações, atravessou a areia, correndo na sua direcção, e anunciou:

--Kesselring está cá.

--Auch das noch--explodiu Rommel.--Só me faltava isto.

Albert Kesselring, o sorridente marechal de campo, representava tudo quanto era antipático a Rommel nas forças armadas alemãs. Era oficial do Estado-Maior, e Rommel detestava o Estado-Maior; era um dos fundadores da Luftwaffe, que tantas vezes já colocara mal Rommel na guerra do deserto, e era um pedante.

Rommel avançou pesadamente pela areia na direcção do carro de comando seguido por Von Mellenthin. Entraram pela retaguarda do enorme camião. Kesselring, que estava inclinado sobre um mapa, ergueu os olhos.

--Meu caro Rommel, graças a Deus que voltou!--exclamou em voz sedosa.

Rommel tirou o boné e redarguiu-lhe:

--Estive a travar um combate.

--Já sabia. Que aconteceu?

Rommel apontou para o mapa e respondeu-lhe:

--Isto é a linha de Gazala. --Tratava-se de uma série de "boxes" fortificadas, interligadas por campos de minas que se prolongavam da costa, em El Gazala, para sul, até ao deserto líbio, numa extensão de cerca de oitenta quilómetros.--Contornámos a extremidade sul descrevendo uma curva pronunciada e atacámo-los pela retaguarda. Depois esgotaram-se nos a gasolina e as munições. --Sentou se pesadamente, tomado de uma súbita fadiga.--outra vez -acrescentou significativamente. Kesselring, como comandante chefe (Sul), era responsável pelo aprovisionamento de Rommel.

--Mas estou a ganhar--continuou Rommel. -- Se tivesse disposto dos aprovisionamentos necessários, a esta hora estaria no Cairo.

--Não vai para o Cairo--redarguiu Lhe Kesselring vivamente.

--Vai para Tobruk e fica lá até eu ter tomado Malta. São essas as ordens do Führer.

--Claro.--Rommel não ia reabrir essa discussão, pelo menos de momento. O objectivo imediato era Tobruk, o porto britânico fortificado próximo da fronteira egípcia. Uma vez tomado, os comboios de navios procedentes da Europa poderiam seguir directamente para a linha da frente, evitando assim a longa viagem através do deserto.--Mas para chegarmos a Tobruk temos de penetrar na linha de Gazala.

--Que tenciona fazer a seguir?

--Recuar e reagrupar--respondeu Rommel.

--Os Ingleses vão perseguir nos, mas não imediatamente-interveio Von Mellenthin.--São sempre lentos a tirar partido de uma vantagem. Mas mais cedo ou mais tarde vão tentar uma avançada.

--A questão é quando e como--observou Rommel.

--Sem dúvida--concordou Mellenthin.--Há um apontamento nos relatórios de hoje que Lhe vai interessar: o espião deu notícias.

--O espião? -- perguntou Rommel. Depois lembrou se. Deslocara se de avião até ao oásis Jalo, bem no interior do deserto líbio, a fim de transmitir instruções ao indivíduo, antes de ele iniciar uma longa maratona a pé para leste. O espião chamava-se Wolff e Rommel ficara impressionado com a sua coragem.--De onde falou ele?

--Do Cairo.

--Então sempre chegou lá! Se foi capaz disso, é capaz de tudo.

Talvez ele possa prever a avançada.

Kesselring interveio:

--Meu Deus, não está agora a depender de espiões, pois não? As informações obtidas através de espiões são da pior espécie.

--De acordo--anuiu Rommel calmamente. --Mas tenho o pressentimento de que este pode ser diferente.

 

Capítulo 3

ELENE Fontana viu o seu rosto reflectido no espelho e pensou:

"Tenho vinte e três anos. Devo estar a perder a beleza."

Aproximou-se mais do espelho e observou-se cuidadosamente, à procura de sinais de deterioração. A sua tez era perfeita. Os seus olhos, castanhos, redondos, continuavam límpidos como lagos de montanha. Não tinha rugas. o seu rosto era quase infantil, delicadamente modelado e com uma expressão de desamparada inocência. Sorriu. Tinha um sorriso leve, íntimo, com um laivo de malícia-um sorriso que, sabia o, era capaz de causar suores frios a qualquer homem.

Pegou no bilhete e releu-o.

 

Minha querida Elene

Lamento, mas acabou tudo. A minha mulher descobriu. Claro que podes continuar no andar, mas não posso continuar a pagar-te a renda.

Lamento o que aconteceu, mas creio que ambos sabíamos que não podia durar sempre. Felicidades. Teu

Claud

 

"Assim sem mais nem menos", pensou, enquanto rasgava o bilhete. Claud, um negociante gordo, semifrancês e semigrego, era instruído e generoso, mas não queria saber de Elene. Era o terceiro em seis anos. Era tanto por culpa dela como dos homens que os affairs terminavam. A verdadeira causa era sempre a mesma: Elene sentia se infeliz.

Pensou na perspectiva de outra conquista. Talvez um italiano de olhos rutilantes e cabelo lustroso. Poderia conhecê-lo no bar do Metropolitan Hotel, que os repórteres costumavam frequentar. Ele abordá-la-ia e depois oferecer-lhe-ia uma bebida. Ela sorrir-lhe-ia e ele ficaria rendido. Marcariam um encontro, a que se seguiria outro. Ele passaria cada vez mais tempo em casa dela e começaria a pagar a renda e as contas.

Elene teria então tudo quanto queria: um lar, dinheiro e afecto. Começaria a pensar porque se sentiria tão infeliz.

Haveria discussões. Ela amuaria se ele chegasse meia hora atrasado. Por fim, a crise eclodiria: a mulher dele desconfiaria, ou um filho adoeceria, ou surgir Lhe iam dificuldades económicas. E Elene encontrar-se-ia de novo no ponto em que se encontrava: à deriva sozinha, mal afamada—e um ano mais velha.

Contemplou de novo o rosto reflectido no espelho. A sua cara era a causadora de tudo. Se fosse feia, teria sempre desejado aquela vida e nunca teria descoberto o seu vazio. "Tu desencaminhaste-me", pensou. "Fingiste que eu era outra pessoa. Não és a minha cara: és uma máscara. Não sou uma beleza da sociedade cairota, sou uma rapariga dos bairros da lata de Alexandria. Não sou egípcia, sou judia. O meu nome não é Elene Fontana, é Abigail Asnani. E quero ir para a minha terra."

 

O jovem sentado à secretária da Agência ludaica no Cairo usava solidéu. A parte uma pequena barbicha, tinha as faces lisas.

Parecia bastante confuso, condição a que Elene já estava habituada; em geral, os homens ficavam levemente atrapalhados quando Lhes sorria.

--Mas porque quer ir para a Palestina?--perguntou o homem.

--Sou judia--respondeu bruscamente. Não podia explicar. a sua vida àquele rapaz. --Toda a minha família morreu. estou a desperdiçar a minha vida.--A primeira parte não era verdade; a segunda era.

--Que trabalho faria na Palestina? É essêncialmente agricola.

--Optimo.

O funcionário sorriu amavelmente. Começava a recuperar a compostura.

--Não quero ofender, mas não parece uma trabalhadora agrícola. Que faz agora?

--Canto, e quando não arranjo trabalho para cantar, danço, e quando não arranjo trabalho para dançar, sirvo à mesa.--Executara todas essas tarefas numa ou noutra ocasião.--Porquê todas essas perguntas? Neste momento a Palestina só aceita universitários?

--É muito-difícil entrar lá. os Ingleses impuseram uma quota, e todos os lugares estão ocupados por fugitivos dos nazis.

--Porque não me disse logo isso?--perguntou, irritada.

--Por duas razões. Primeira, porque conseguimos meter lá gente ilegalmente; segunda ... Importa se de esperar um momento?

Preciso de telefonar a uma pessoa.

Dirigiu se ao telefone, situado numa sala das traseiras, e Elene esperou impacientemente. Sentia se um pouco idiota.

Devia ter calculado que Lhe fariam perguntas e podia ter preparado as respostas. Também podia ter vestido qualquer traje menos vistoso.

O homem regressou.

--Está tanto calor!--observou.--Vamos beber um refresco do outro lado da rua?

Era então esse o jogo!

--Não--respondeu. --Você é demasiado novo para mim.

--Oh, por favor, não me interprete mal!--explicou extremamente embaraçado. -- Quero apenas apresentá la a uma pessoa, mais nada.

Elene considerou que não tinha nada a perder.

--Está bem--concordou.

Ele segurou a porta, dando Lhe passagem, atravessaram a rua e entraram num café. O jovem pediu uma limonada. Elene, gin com água tónica.

--Disse que conseguiam que entrasse gente ilegalmente ...

--As vezes--admitiu o rapaz, e bebeu metade da limonada de um trago.--Fazemo lo, por exemplo, a quem tenha feito muito pela causa.

--Quer dizer que tenho de merecer o direito de ir para a Palestina?

--Talvez um dia todos os Judeus tenham o direito de ir para lá. Mas enquanto houver quotas terá de haver critérios.

--Que tenho de fazer?--perguntou Elene.

--Nós não gostamos muito dos Ingleses, mas qualquer inimigo dos nazis é um amigo nosso. Por issa, neste momento estamos a trabalhar com o Serviço de Informações Britanico. Pensei que você pudesse ajudá-los.

--Mas como, meu Deus?!

Uma sombra projectou-se na mesa e o jovem ergueu os olhos.

--Ah--exclamou, e fitou de novo Elene.--Apresento Lhe o meu amigo, marjor William Vandam.

Era um homem alto, de ombros largos. Elene calculou que deveria orçar os quarenta anos e começava a perder dinamismo.

Tinha um rosto redondo e franco e cabelo castanho encrespado.

O recém chegado apertou Lhe a mão, sentou-se, acendeu um cigarro e pediu gin. Tinha uma expressão severa, como se considerasse a vida um assunto muito sério.

O homem da agência perguntou-lhe:

--Que notícias tem?

--A linha de Gazala está a aguentar, mas combate-se lá violentamente.

A voz de Vandam foi uma surpresa. Falava em tom preciso mas suave, e carregava levemente no r.

--De onde é o senhor, major?--perguntou-lhe Elene.

--Do Dorset, no Sudoeste da Inglaterra. Porque pergunta?

--Por causa do sotaque.

--É observadora. Eu julgava que não tinha sotaque.

--E muito ligeiro.

O jovem da agência ergueu-se para se ir embora e disse a Elene:

--O major Vandam explica Lhe tudo. Espero que trabalhe com ele. É muito importante.

Vandam apertou Lhe a mão e agradeceu-lhe, e o jovem saiu.

--Fale-me de si--pediu o major a Elene.

--Não. Fale me você de si.

Ele arqueou uma sobrancelha, levemente surpreendido e um pouco divertido.

--Está bem--acedeu.--o Cairo está cheio de homens que conhecem segredos: as nossas forças, as nossas fraquezas e os nossos planos. Os Alemães têm gente no Cairo encarregada de tentar obter esses segredos. A minha missão é impedi-lo.

--Simples, hem?

--É simples, mas não é fácil-- admitiu o major após uns momentos de reflexão.

Tomava tudo quanto Elene dizia a sério, o que Lhe agrada va.

Geralmente, os homens consideravam a sua conversa irrelevante.

--E a sua vez--disse Vandam decorridos alguns momentos.

Resolveu dizer lhe a verdade:

--Sou uma má cantora e uma bailarina medíocre, mas às vezes arranio um homem rico Para me pagar as contas.

Vandam não pronunciou uma palavra, mas pareceu perplexo.

Apoderou-se de Elene o desejo de ser maliciosa:

--Não é isso o que a maioria das mulheres faz quando casa?

Arranjar um homem para pagar as contas? Eu limito-me a mudar de homem um pouco mais depressa do que a média das mulheres.

Vandam rompeu a rir. De súbito, pareceu um homem diferente.

Lançou a cabeça para trás e a tensão abandonou-lhe o corpo.

Quando a gargalhada terminou, sorriram-se. Depois, ele recuperou a expressão sena.

--O meu problema é a informação. Ninguém diz nada a um inglês. É por isso que preciso de si. Como é egípcia, ouve o tipo de conversas que não chegam aos meus ouvidos. Por outro lado, como é judia, repetir-mas-á. Espero.

--Que género de conversas?

--Estou interessado em qualquer pessoa que revele curiosidade pelo Exército Britanico e procuro em especial um homem chamado Alex Wolff. Viveu em tempos no Cairo, aonde regressou recentemente, via Asyut. Anda com certeza a colher informações sobre as forças britanicas.

Elene encolheu os ombros.

--Depois de todos os seus preliminares, esperava que me pedisse que fizesse qualquer coisa muito mais complexa ... como valsar com Rommel e revistar-lhe as algibeiras, por exemplo.

Vandam riu-se de novo e Elene pensou: "Podia ser conquistada por este riso."

--Bem, apesar de não ser complexo, está disposta a fazê-lo?

Preciso de pessoas como você, Miss Fontana. É observadora, tem um disfarce perfeito e é obviamente inteligente. Desculpe ser tão franco . . .

--Não tem que pedir desculpa, gosto assim. Continue a falar.

--Na sua maior parte, as pessoas que trabalham para mim não são de muita confiança. Trabalham por dinheiro, enquanto você tem um motivo mais forte para ...

--Um momento!--interrompeu-o.--Eu também quero dinheiro.

Quanto é que pagam?

--Quanto quer?

--O suficiente para pagar a renda do meu apartamento. Setenta e cinco por mês.

--Teria de ser muitíssimo útil para justificar setenta e cinco por mês. Mas está bem, vamos experimentar um mês.

 

Elene esforçou-se por disfarçar uma expressão de triunfo.

--Como contacto consigo?

--Mande-me uma mensagem.--Vandam pegou num lápis e numa folha de papel.--Vou deixar-lhe a direcção e o número do telefone tanto do quartel-general como de minha casa. Assim que tiver notícias suas, vou a sua casa.

Elene escreveu também a sua morada.

--Se me perguntarem quem você é, digo que é meu amante.

--Muito bem--concordou o major, mas desviou o olhar.

--Mas acho que seria melhor representar o papel para não levantar suspeitas--continuou Elene sem que a expressão se Lhe alterasse. -- Devia levar-me braçadas de flores e caixas de chocolates.

--Não sei ...

--Os Ingleses não oferecem flores e chocolates às amantes?

--Nunca tive nenhuma amante--respondeu, fitando-a sem pestane)ar.

"Toma que é para saberes", pensou Elene, mas disse em voz alta:

--Então tem muito que aprender.

Levantaram-se.

--Fico à espera de notícias suas--disse o major.

Ela apertou-lhe a mão e afastou-se. Sem saber porquê, teve a impressão de que o olhar dele não a seguiu.

 

VANDAM vestiu-Se à civil para a recepção do Anglo-Egyptian Union. Não iria ao Union se a mulher fosse viva. Ela considerava o clube "plebeu". E quando ele Lhe observava que não fosse snobe, ela replicava-lhe que era snobe.

Vandam amara-a então e continuava a amá-la agora.

O pai dela era um diplomata bastante abastado a quem não agradara a perspectiva de a filha casar com o filho de um carteiro. Não o apaziguara muito saber que Vandam era considerado um dos jovens oficiais do Exército mais prometedores, mas acabara por aceitar desportivamente o casamento.

Nada disto importara a Vandam; também não Lhe importara o facto de a mulher ser irascível e ter modos imperiosos. Angela era graciosa e digna, o epítome da feminilidade. O contraste entre ela e Elene Fontana não poderia ser mais flagrante.

O dia arrefecia quando Vandam estacionou a sua motocicleta no ion e se dirigiu para o relvado. Aceitou um copo de sherry cipriota e juntou-se à multidão, trocando amabilidades com pessoas conhecidas. ouviu chamar o seu nome e voltou-se.

--Dr.a Abuthnot.

--Aqui podemos ser infommais--disse a médica.--Chamo-me Joan.

--E eu William. o seu marido está cá?

--Não sou casada.

--Desculpe.

Começou a vê-la sob uma luz nova. Ela era solteira e ele viúvo, e tinham sido vistos a falar um com o outro três vezes numa semana. Tanto bastava para que a colónia britanica no Cairo já os considerasse praticamente noivos.

--É cirurgia?--perguntou.

--Hoje em dia limito-me a coser e a remendar pessoas-respondeu a médica sorrindo.--Mas antes da guerra era cirurgia.

--Como conseguiu isso? Não é fácil para uma mulher.

--Lutei com unhas e dentes. --Continuava a sorrir, mas Vandam detectou um certo ressentimento subjacente e não esquecido. -Você também é um pouco inconvencional, segundo me constou, pois cria pessoalmente o seu filho.

--Não tenho alternativa. Se tivesse querido mandá-lo para Inglaterra, não teria conseguido: só há passagens para inválidos e generais.

--Mas não quis.

--É meu filho. Não quero que mais ninguém o crie, e ele tão-pouco.

--Compreendo. Desculpe ter-me intrometido. Toma outra bebida?

Vandam olhou para o copo de sherry e respondeu:

--Creio que tenho de ir lá dentro procurar uma bebida a sério.

--Desejo-lhe sorte.--E a Dr.a Abuthnot sorriu e afastou-se.

Vandam atravessou o relvado na direcção do clube. A médica era uma mulher atraente, corajosa e inteligente, e dera claramente a entender que desejava conhecê-lo melhor. "Porque diabo me sinto tão indiferente para com ela?", pensou Vandam.

 

DE galabia e fez, Alex Wolff postara-se a trinta metros do portão do Quartel-General Britanico a vender leques de papel.

A perseguição abrandara. Há uma semana que não via os Ingleses a verificar documentos na via pública. Apenas se sentira razoavelmente seguro, dirigira-se ao quartel-general. Embora a sua chegada ao Cairo tivesse constituído um triunfo, tudo seria inútil se não obtivesse, e rapidamente, as informações que Rommel pretendia.

Algures no interior do QG havia papéis com a indicação do número de soldados, dos nomes das divisões e dos números de tanques em campo e na reserva, da quantidade de municões, víveres e gasolina, bem como das intenções estratégicas e tácticas do Alto Comando Britanico. Eram esses papéis que Wolff queria.

Os Ingleses tinham requisitado para o seu QG uma quantidade de casas grandes--na sua maioria pertencentes a paxás--da Garden City. As casas requisitadas estavam cercadas por uma vedação de arame farpado. As pessoas fardadas transpunham rapidamente o portão, mas os civis eram detidos e interrogados demoradamente, enquanto as sentinelas faziam telefonemas para se assegurarem da autenticidade das credênciais.

Wolff passara muito tempo, na escola de espionagem da Abwehr, a aprender a identificar uniformes, sinais de identificação regimentais e os rostos de, literalmente, centenas de oficiais superiores britanicos. Ali, durante várias manhas consecutivas, espreitara através das janelas dos automóveis do Estado-Maior que chegavam e vira coronéis, generais, almirantes, comandantes de esquadrilha e o próprio comandante-chefe do Médio oriente, Sir Claude Auchinleck.

O Estado-Maior-General viajava de automóvel, mas os seus ajudantes andavam a pé. Todas as manhas os capitães e os majores chegavam a pé, transportando pastas. Cerca do meio-dia saíam alguns, novamente com as pastas, e todos os dias Wolff seguia um deles.

Na sua maioria, os ajudantes trabalhavam no QG, onde os seus documentos secretos deviarn estar fechados à chave. Porém, um reduzido número de outros trabalhava noutros pontos da cidade e tinha de transportar consigo, do quartel-general para esses locais de trabalho, os papéis com instruções. Um deles ia para o Semiramis Hotel, onde estava instalado um departamento qualquer chamado Tropas Britanicas no Egipto. Dois iam para as casernas de Kasr-el-Nil e um quarto para um edificio sem qualquer identificação, na Shari Suleiman Pasha. Wolff ânsiava por examinar essas pastas. Naquele dia ia tentar uma experiência.

Quando os ajudantes saíram, Wolff seguiu os dois que se dirigiam para as casernas. Um minuto depois, Abdullah saiu de um café e calocou-se a seu lado, acertando o passo com o seu.

 

--Aqueles dois?--perguntou.

--Sim, aqueles dois.

Abdullah era um homem gordo com um dente de aço. Embora fosse um dos homens mais ricos do Cairo, ao contrário da maioria dos árabes abastados, não imitava os Europeus. Usava sandálias, uma vestimenta suja e um fez. O cabelo gorduroso encaracolava-se-Lhe em torno das orelhas e tinha as unhas pretas. A sua fortuna advinha-lhe do crime: Abdullah era ladrão.

Wolff gostava dele. Era manhoso, velhaco, cruel, generoso e estava sempre a rir. Personificava, para Wolff, os vícios e as virtudes seculares do Médio oriente. Havia trinta anos que o seu exército de filhos, netos, sobrinhos e sobrinhas roubava casas e limpava algibeiras no Cairo. Tinha tentáculos em toda a parte.

Seguiram os dois oficiais até ao centro moderno da cidade.

--Queres uma pasta ou as duas?--perguntou Abdullah.

Wolff meditou um instante. Uma, seria um roubo casual; duas, pareceria um roubo organizado.

--Uma--respondeu, -- Não importa qual.

Wolff encarara a ideia de pedir auxílio a Abdullah depois de descobrir que a Villa les oliviers deixara de ser segura. Mas resolvera não o fazer. Abdullah poderia, com certeza, escondê-lo em qualquer lado, mas apenas o ocultasse iniciaria negociações para o vender aos Ingleses. Abdullah dividia o mundo em dois: a sua confiava inteiramente. A parte isso, intrujava toda a gente e esperava que toda a gente tentasse intrujá-lo.

Chegaram a uma esquina movimentada. os dois oficiais atravessaram a rua, esquivando-se ao transito. Wolff preparava-se para os seguir, mas Abdullah colocou-lhe a mão no braço.

--Vai ser aqui--disse o ladrão.

Wolff olhou em redor, observando os prédios, o cruzamento de estradas e os vendedores ambulantes.

--O lugar é perfeito--declarou sorrindo.

 

FIZERAM-No no dia seguinte. Abdullah escolhera de facto um lugar perfeito para o roubo, na junção de uma movimentada rua transversal cam uma artéria principal. A esquina havia um café com mesas no passeio, cuja largura ficava assim reduzida a metade. Defronte do café, na artéria principal, havia uma paragem de autocarros e os passageiros que esperavam transporte contribuíam para congestionar maus am a o passelo. A rua transversal era um pouco mais desimpedida, mas Abdullah remediara essa desvantagem mandando dois acrobatas exibir-se nela.

Apreensivamente sentado à mesa do canto, Wolff receava pelo sucesso da operação. Aterrorizava-o a ideia de ser preso.

Podia dispensar a boa mesa, o vinho e as mulheres desde que tivesse a vastidão agreste e erma do deserto para o consolar.

E também conseguia prescindir da liberdade do deserto para viver numa cidade populosa desde que dispusesse dos luxos urbanos servindo-lhe de compensação. Mas não podia perder ambas as coisas. A ideia de viver numa cela exígua e incolor, entre a escória da terra, comendo mal e privado de ver o céu azul ou as extensas planícies ... o panico apoderou-se dele e teve de o expulsar da mente.

As onze e quarenta e cinco, viu o vulto avantajado e sujo de Abdullah passar pelo café. o rosto do ladrão era inexpressivo, mas os seus pequenos olhos pretos olhavam atentamente em redor verificando se as disposições que tomara tinham sido efectivadas. Abdullah atravessou a estrada principal e desapareceu.

As doze e cinco, Wolff divisou à distância dois bonés militares entre a massa de cabeças. Sentou-se na beira da cadeira. os oficiais aproximavam-se ... Traziam as respectivas pastas.

Do outro lado da rua foi ligado o motor de um automóvel estacionado. Um autocarro chegou à paragem, e Wolff pensou:

"Aquilo não pode ter sido arranjado por Abdullah; é uma sorte,

um bonus. " os oficiais encontravam-se a cinco metros de Wolff.

O automóvel do outro lado da rua, um grande Packard preto, arrancou repentinamente, atravessou a estrada como um elefante lançado numa carga, com o motor a roncar em primeira, e dirigiu-se para a rua transversal, fazendo soar a buzina. A esquina a curta distância de Wolff, embateu na frente de um velho táxi Fiat.

Os dois oficiais detiveram-se ao lado da mesa de Wolff a observar o acidente. o motorista do táxi, um jovem árabe de camisa à ocidental e fez, saltou do carro. Do Packard saiu um jovem grego de fato de mohair. O árabe esbofeteou o grego e o grego esmurrou o árabe. os passageiros à espera do autocarro e os que dele haviam saido aproximaram-se mais.

Do outro lado da esquina, o acrobata que se encontrava de pé sobre a cabeça do colega virou-se para observar a contenda, pareceu a   desequilibrar-se e caiu em cima da assistência. Um rapazinho passou a correr pela mesa de Wolff, que se ergueu, apontou para ele e gritou a plenos pulmões: "Agarra que é ladrão!" o rapaz esgueirou-se por entre os dois oficiais sem deixar de correr. Wolff precipitou-se no seu encalço e quatro clientes sentados perto de Wolff ergueram-se e tentaram agarrar o rapaz. Chocaram todos com os oficiais e lançaram ambos ao chão. Diversas pessoas começaram a gritar: "Agarra que é ladrão!" Alguns recém-chegados concluíram que o ladrão era um dos motoristas engalfinhados. A multidão da paragem do autocarro, os espectadores dos acrobatas e a maioria dos frequentadores do café avançaram e começaram a atacar um ou outro dos motoristas. Alguém brandiu uma cadeira do café e atirou-a contra o pára-brisas do Packard. os criados, o pessoal da cozinha e o proprietário do café surgiram precipitadamente e começaram a agredir quem quer que se encostasse à sua mobília ou tropeçasse ou se sentasse nela.

Todos gritavam entre si em cinco línguas. Alguns condutores que passavam detinham os automóveis para ver a balbúrdia, o transito congestionava-se em três direcções e não havia buzina de veículo parado que não tocasse. Um cão soltou-se da trela e comecou a morder as pernas dos circunstantes num frenesi de excitação. Todos os passageiros desceram do autocarro.

Motoristas que se haviam detido para apreciarem o espectáculo não tardaram a arrepender-se quando a refrega se alastrou aos seus próprios automóveis. Homens, mulheres e crianças saltavam para os tejadilhos, lutavam sobre os capots e caíam nos estribos.

Uma cabra assustada entrou na loja de recordações contígua ao café e começou a derrubar todas as mesas carregadas de porcelanas, ceramica e vidros. Um babuíno surgiu não se sabe de onde--provavelmente viera a cavalo na cabra, o que constituía uma forma de divertimento corrente nas ruas—e correu por sobre as cabeças da multidão. De uma janela sobranceira ao café uma mulher despejou um balde de água suja para cima da turba. Ninguém se apercebeu do facto.

Finalmente, a Polícia chegou.

Quando se ouviram os apitos, a multidão dispersou-se em todas as direcções, antes que comec,assem as detenções. Wolff, que caira no início da contenda, levantou-se e atravessou a estrada para assistir ao desenlace. Na altura em que se encontravam seis pessoas algemadas já ninguém lutava, à excepção de uma velha vestida de preto e de um mendigo a quem faltava uma perna, que se empurravam frouxamente um ao outro na valeta. O proprietário do café e o dono da loja de recordações insultavam veementemente a Polícia por não ter chegado mais cedo.

Quando a Polícia tentou retirar os dois veículos que haviam chocado, verificou que, durante a refrega, garotos da rua tinham levantado a retaguarda de ambos os automóveis e roubado os pneus. Tinham igualmente desaparecido todas as lampadas do autocarro.

Bem como uma pasta do Exército Britanico.

Pouco tempo depois, Wolff encontrava-se sentado na sala de Abdullah. Como o seu dono, era suja, confortável e rica. Três crianças e um cachorro perseguiam-se à volta dos sofás caros e das mesas com embutidos. Sentado numa almofada bordada, de pemas cruzadas e com um bebé ao colo, Abdullah sorria a Wolff.

--Que êxito, meu amigo!

--Foi maravilhoso--concordou Wolff, sentado defronte dele.

--Que zaragata! E o autocarro a chegar no momento exacto!

Wolff observou mais atentamente o que Abdullah estava a fazer.

No chão a seu lado encontrava-se um monte de carteiras, malas de mão e relógios. Enquanto falavam, Abdullah começou a examinar uma carteira.

--Velho tratante! --exclamou Wolff. --Mandaste os teus rapazes para a maralha limpar algibeiras. o sorriso de Abdullah revelou-lhe o dente de aço.

--Todo aquele trabalho para roubar só uma pasta ...

--Mas apanhaste a pasta, não apanhaste?

--Evidentemente.--No entanto, Abdullah não fez menção de a apresentar. --Ficaste de me pagar cinquenta libras pela entrega.

Wolff contou as notas e estendeu-lhas. Abdullah introduziu a mão sob a almofada em que se sentava e retirou a pasta.

Wolff recebeu-a e forçou a fechadura. No interior da pasta encontravam-se dez folhas de papel compactamente dactilografadas em inglês. Leu a primeira e, com crescente incredulidade, folheou as restantes.

--Meu Deus! --exclamou baixinho, e rompeu a rir.

Roubara um conjunto completo de ementas da cantina do quartel para o mês de Junho.

 

VANDAM disse ao coronel Bogge:

--Redigi uma nota a recordar aos oficiais que não devem andar com os documentos do Estado-Maior pelas ruas da cidade. Uma das minhas informadoras, a nova rapariga de que Lhe falei, ouviu um boato segundo o qual aquela zaragata foi organizada por Abdullah. E ste e uma espécie de Faginl egípcio ... e por coincidência também é informador.

--Com que fim foi a zaragata organizada?

--Roubo. Roubaram muitas coisas, mas temos de considerar a possibilidade de o principal objectivo ser a pasta. Abdullah pode ter sido encarregado da operação por Alex Wolff, o faquista de Asyut.

--Francamente, julguei que tínhamos esquecido toda essa historia.

--O assassino de Asyut continua à solta--insistiu Vandam.-Pode ser significativo o facto de, pouco depois da sua chegada ao Cairo, terem roubado a pasta a um oficial do Estado-Maior.

Falei com Abdullah, que nega qualquer conhecimento de Alex Wolff, mas penso que mente. Podíamos encarregar a segurança de campo de o deter e fazê-lo suar um bocado.

Bogge sorriu.

--Se eu fosse contar à segurança de campo esta história de ementas de cantina roubadas, corriam comigo deste lugar à gargalhada. Já discutimos o assunto o suficiente, major. Não acredito que o tumulto tenha sido organizado, não acredito que Abdullah tencionasse roubar a pasta e não acredito que Wolff seja um espião nazi. Entendido?

--Sim, meu coronel.

--óptimo. Pode ir.

 

Capítulo 4

ANWAR el-Sadat afagou o bigode, com o qual estava muito satisfeito. Tinha apenas vinte e três anos, e no seu uniforme de capitão egípcio assemelhava-se um pouco a um rapaz vestido de soldado. o bigode ajudava-o a parecer mais velho. Precisava de toda a autoridade possível, poiS a proposta que estava prestes a sugerir não deixava --como habitualmente--de parecer ridícula. Naquelas pequenas reuniões fazia um esforço violento para falar e agir como se o punhado de exaltados presentes fosse realmente um daqueles dias expulsar os Ingleses do Egipto.

 

Personagem do livro oliver Twist, de Charles Dickens, que ensinava crianc,as a serem carteiristas.

Engrossou deliberadamente a voz quando começou a falar:

--Esperámos todos que Rommel derrotasse os Ingleses no deserto e libertasse assim o nosso país. Agora temos uma notícia grave: Hitler concordou em dar o Egipto aos Italianos. Sadat exagerava: não se tratava de uma notícia, mas de um boato. A assistência, contudo, reagiu com murmúrios coléricos. Sadat continuou:

--Proponho que o Movimento de oficiais Livres negoceie com a Alemanha um tratado segundo o qual nós organizaríamos um levantamento contra os Ingleses no Cairo e os Alemães garantiriam a independência do Egipto subsequentemente à derrota dos Ingleses.

Enquanto falava, teve de novo consciência da ironia da situação: ali estava ele, um camponês acabado de chegar do campo, a falar a meia dúzia de subalternos egípcios descontentes sobre negociações com o Reich alemão. E, no entanto, quem mais poderia representar o povo egípcio? Os Ingleses eram conquistadores, o Parlamento era um títere e o rei Faruk era um turco gordo e licencioso que descendia de estrangeiros.

Mas obedecia ainda a outra razão para apresentar aquela proposta: Gamal Abdel Nasser fora colocado no Sudão, e a sua ausência dava a Sadat uma oportunidade de se tomar o líder do movimento rebelde. Afastou esse pensamento, que considerava ignóbil. Precisava de conseguir que os outros concordassem com a proposta e depois com os meios de a pôr em prática.

Foi Kemel quem primeiro falou:

--Mas tomar-nos-ao os Alemães a sério?

Os restantes começaram a discutir as probabilidades de êxito do eventual acordo com os Alemães. Sadat não participou na discussão. "Eles que falem", pensou; "é o que realmente gostam de fazer." De facto, ele e Kemel haviam combinado de antemão que este formularia aquela pergunta, que colocava a questão em bases falsas. o cerne do problema era saber se poderiam confiar nos Alemães, se estes cumpririam qualquer acordo que fizessem com um grupo de rebeldes. Sadat não queria que esse assunto fosse discutido na reunião. Se os Egípcios se sublevassem contra os Ingleses e depois fossem traídos pelos Alemães, constatariam que apenas Lhes restava conseguirem aindependência--e talvez procurassem a liderança do homem que organizara a sublevação. Duras realidades políticas de semelhante natureza não eram para reuniões como aquela. Kemel era a única pessoa com quem Sadat podia discutir questões de tácticas.

 

Kemel era polícia, detective superintendente da força do Cairo, um homem astuto e cuidadoso.

--Mas não temos meios de contactar com os Alemães-observou Imam, um dos pilotos. Sadat constatou com satisfação que já discutiam o modo de executarem a operação, e não se a executariam.

Kemel sabia a resposta:

--Podíamos enviar a mensagem de avião.

--Sim!--Imam era jovem e apaixonado.--Um de nós podia levantar voo em patrulha, desviar-se do rumo e aterrar atrás das linhas alemas.

Um dos outros pilotos contrapôs:

--No regresso teria de dar contas do desvio.

--Talvez nem regressasse--retorquiu Imam melancolicamente.

--Talvez regressasse com Rommel--observou Sadat calmamente.

Os olhos de Imam iluminaram-se, e Sadat compreendeu que o jovem piloto já se estava a ver a entrar no Cairo à frente de um exército de libertação. Sadat decidiu que Imam levaria a mensagem.

--Vamos discutir o texto da mensagem--propôs democraticamente.

-- Acho que devemos frisar quatro pontos. Um: somos egípcios honestos e estamos organizados dentro do Exército. Dois: como os Alemães, estamos a lutar contra os Ingleses. Três: temos possibilidades de recrutar um exército rebelde para combater do lado dos Alèmães. Quatro: organizaremos uma sublevação no Cairo se eles garantirem a independência do Egipto subsequentemente à derrota dos Ingleses. Só resta saber qual de nós pilotará o avião.

Sadat percorreu a sala com os olhos e por fim fixou Imam. Após um momento de hesitação, Imam ergueu-se e os olhos de Sadat refulgiram, triunfantes.

Dois dias depois, Kemel percorria a pé os cinco quilómetros que mediavam entre o centro do Cairo e o subúrbio onde Sadat morava. Embora como detective superintendente pudesse deslocar-se num automóvel oficial, raramente o utilizava quando se dirigia a reuniões de rebeldes, por razões de segurança.

Kemel era quinze anos mais velho do que Sadat, mas a sua atitude para com o jovem oficial era quase a de adoração perante um herói Kemel compartilhava o cinismo de Sadat, a sua compreensão realista das alavancas do poder político; mas Sadat tinha algo mais: um idealismo ardente que Lhe dava uma ener ia ilimitada.

Kemel não sabia como comunicar-lhe-a notícia.

A mensagem para Rommel fora dactilografada e assinada por Sadat e por todos os principais oficiais livres, à excepcão de Nasser, ausente. Imam partira no seu Gladia or precedendo um segundo avião pilotado por um compatriota, Baghdadi. Tinham aterrado no deserto, num lugar previamente combinado, a fim de recolherem Kemel, que entregou a mensagem a Imam e depois subiu para o avião de Baghdadi.

Era a primeira vez que Kemel voava. o deserto, tão incaracteristico ao nível do solo, revelara-se um mosaico de formas e padrões: as manchas do cascalho e as esculpidas colinas vulcanicas. Decorrido algum tempo, ambos os aviões haviam virado para leste, e Baghdadi comunicara à base, através da rádio, que Imam mudara de rumo e não respondia a chamamentos pela rádio. Como se esperava, da base haviam ordenado a Baghdadi que seguisse Imam. Esta pequena farsa era necessária para que Baghdadi, que deveria regressar, não se tornasse suspeito.

Haviam sobrevoado um acampamento do Exército Britanico. Ambos os aparelhos tinham aumentado a altitude. Exactamente à sua frente viam-se sinais de combate: grandes nuvens de poeira, explosões e fogo de artilharia. os dois aviões haviam descrito uma volta a fim de passarem a sul do campo de batalha. "A seguir devemos encontrar uma base alema", pensara Kemel. O avião de Imam perdera altitude. Em vez de o seguir, Baghdadi subira um pouco mais e afastara-se mais para sul. Depois, Kemel vira o que os pilotos tinham visto: um campo e uma pista de aterragem.

Ao aproximar-se agora da casa de Sadat, Kemel recordou como se sentira eufórico, no céu, quando compreendera que o tratado se encontrava quase nas mãos de Rommel.

Bateu à porta. Era uma vulgar casa de família, bastante mais pobre do que a do próprio Kemel. Decorridos instantes, Sadat, que envergava uma galabia e fumava cachimbo, abriu a porta.

Apenas viu o rosto de Kemel, declarou imediatamente:

--Correu mal.

--Correu.

Kemel entrou e dirigiram-se para a pequena sala que servia de escritório a Sadat e na qual havia uma secretária, uma prateleira de livros e algumas almofadas no chão nu.

Sentaram-se e Kemel informou:

--Encontrámos uma pista de aterra em alemanha. Imam desceu e os Alemães abriram fogo contra ele. o avião era inglês ... não tinhamos pensado nesse porrnenor. Ele abanou as asas e suponho que tentou comunicar pela rádio, mas eles continuaram a disparar. Acertaram na cauda do aparelho.

--Meu Deus!

--Ele mergulhou, mas conseguiu aterrar com as rodas. No entanto, saiu da pista, entrou na areia e o avião explodiu.

--E Imam?

--Com certeza que não sobreviveu ao fogo.

--Temos de arranjar outra maneira de levar a mensagem-disse Sadat.

Kemel fitou-o e compreendeu que o tom brusco era fingido.

Sadat tentou acender o cachimbo, mas a mão tremia-lhe demasiado e tinha lágrimas nos olhos.

--Pobre rapaz!--murmurou.

 

WoLFF regressara ao princípio: sabia onde se encontravam os segredos, mas não podia alcançá-los. Talvez conseguisse roubar outra pasta, mas tal roubo começaria a parecer aos Ingleses uma conspiração. Além disso, necessitava de um acesso regular e fácil a documentos secretos. Sonja teria de entrar no jogo.

Ela estava deitada na cama, a comer chocolates. Wolff saiu da casa de banho embrulhado numa grande toalha.

--Pensei noutra maneira de ter acesso às pastas--declarou.-Vou travar amizade com um oficial inglês e depois trago-o ao barco e revisto-lhe a pasta enquanto ele estiver aqui contigo.

--Oh, não!--protestou Sonja.

--Sim.

Ela amuou.

--Prometeste arranjar-me outra Fawzi.

--Pois prometi, e continuo à procura.

--Não prometeste procurar, prometeste arranjar.

Wolff dirigiu-se à outra sala e retirou uma garrafa de champanhe do frigorífico. Pegou em duas taças e levou tudo para o quarto. Encheu uma taça e estendeu-a a Sonja.

--Ao oficial inglês desconhecido a quem espera a mais agradável surpresa da sua vida.

--Não quero ter nada a ver com um inglês--declarou Sonja.

--Odeio-os.

--É por isso mesmo que vais fazer o que quero: porque os odeias. Imagina só: enquanto ele estiver aqui contigo a sentir-se no sétimo céu, eu estarei a ler os seus documentos secretos.

Wolff começou a vestir-se para a noite. Envergou uma camisa expressamente feita para ele numa minúscula alfaiataria da Cidade Velha--uma camisa militar inglesa com as insígnias de capitão nos ombros.

--Vais fingir que és inglês?--perguntou Sonja.

--Sul-africano, creio. Se encontrar um que sirva, levo-o ao Cha-Cha.--Retirou a faca do coldre axilar, que tinha sob a camisa aproximou-se dela e tocou-lhe com a ponta afiada no ombro nu.-Se me deixares ficar mal, uso isto.

Sonja não pronunciou uma palavra, mas os seus olhos reflectiram medo.

 

COMo sempre, o Shepheard's Hotel estava cheio: mercadores levantinos em ruidosas reuniões de negócios, raparigas egípcias de vestidos baratos e oficiais ingleses--o hotel estava vedado a patentes inferiores. Wolff abriu caminho, através da sala congestionada, até ao comprido balcão do fundo, onde a confusão era menor. Não era permitida a presença de mulheres no bar, e beber a sério era a ordem do dia. Seria para ali que se dirigiria um oficial solitario.

Wolff sentou-se ao balcão. Preparava-se para pedir champanhe mas recordando-se do seu disfarce pediu whisky com água.

Dedicara extrema atenção ao vestuário: os sapatos castanhos lustrosamente polidos, os calções castanhos e largos com um vinco perfeito, a fralda da camisa de fora e o boné achatado ligeiramente inclinado. Para completar o disfarce deixara crescer o bigode. Como procurava um oficial do QG, identificar-se-ia a si mesmo como pertencente às TBE—Tropas Britanicas no Egipto--, que funcionavam à parte.

Estavam uns quinze ou vinte oficiais no bar, mas não reconheceu nenhum. Procurava especificamente qualquer dos ajudantes que diariamente, ao meio-dia, saíam do QG com as suas pastas. Fixara-lhes os rostos e reconhecê-los-ia imediatamente. Desejou não ser obrigado a aguardar muito.

Esperou cinco minutos.

O major que entrou era baixo, magro e provavelmen e orçaria os quarenta e cinco anos. As suas faces apresentavam a rede de capilares arroxeados de um grande bebedor. Tinha olhos azuis bolbosos e cabelo ralo e amarelado. Todos os dias saía do QG ao meio-dia e dirigia-se a pé com a pasta para um edificio sem qualquer identificação da Shari Suleiman Pasha.

O ritmo cardíaco de Wolff alterou-se.

O major aproximou-se do balcão, tirou o boné e pediu:

--Sctch. Sem gelo e depressa. --Voltou-se para Wolff e observou: --Maldito tempo.

--Não está sempre assim, meu major?--redarguiu Wolff.

--Tem toda a razão. Sou Smith, QG.

--Como está, meu major?

Wolff sabia que, em virtude de sair todos os dias do QG e se dirigir para outro edifício, Smith não podia pertencer realmente ao QG. E durante uma fracção de segundo perguntou a si mesmo o que o levaria a mentir.

--Slavenburg, TBE--declarou por sua vez, apresentando-se.

--Muito gosto. Posso oferecer-lhe outro?

--É muito amável, meu major.

--Deixe lá o meu major, homem. Não há patentes no bar. Que é que toma?

--Whisky com água, por favor.

--No seu lugar não misturava água. Dizem que vem direitinha do Nilo.

--Estou habituado. Nasci em Africa e estou no Cairo há dez anos. -- Wolff começava a falar no estilo abreviado de Smith.

"Devia ter sido actor", pensou.

--Africa, hem? Pareceu-me notar-lhe um leve sotaque.

--Pai holandês, mae inglesa--explicou Wolff, e ergueu o copo. -- A sua.

Beberam.

--Você conhece esta terra--observou Smith.--Que pode um tipo fazer à noite, além de beber no bar do Shepheard?

Wolff simulou reflectir no assunto.

--Já viu dança do ventre?

Smith emitiu um som de desagrado.

--Uma vez. Uma mulher gorda a sacudir as ancas.

--Ah! Nesse caso devia ver um espectáculo a sério. Não há nada mais erótico do que a verdadeira dança do ventre.

Um clarão de volúpia reflectiu-se nos olhos de Smith.

--Ah, sim?

"Major Smith, és exactamente aquilo de que preciso", pensou Wolff, que respondeu:

--Sonja é a melhor bailarina. Por acaso estava a pensar na hipótese de ir vê-la esta noite dançar. Quer vir comigo?

--Vamos beber outro copo primeiro--propôs Smith.

Enquanto o via beber, Wolff reflectia que o major parecia enfastiado, sem força de vontade e alcoólico. Sonja conseguiria seduzi-lo facilmente.

Acabararn de beber e tomaram um táxi para o Cha-Cha Club. A casa estava de novo cheia e quente, e Wolff teve de subomar um criado para arranjar mesa. o número de Sonja começou momentos depois de se sentarem. Smith observava Sonja, enquanto Wolff observava Smith.

--Boa, não é?--perguntou Wolff.

--Fantástica!--respondeu Smith sem desviar o olhar.

--Por acaso conheço-a ligeiramente-- continuou Wolff.

-Convido-a para nos fazer companhia depois?

Desta vez Smith desviou o olhar do palco.

--Meu Deus! É capaz de a convidar?

Soou uma tempestade de aplausos e Sonja atravessou o palco às escuras em direcção aos bastidores. Dirigiu-se apressadamente para o seu camarim, despiu as calças transparentes e o corpete coberto de lantejoulas, vestiu um robe de seda e sentou-se defronte do espelho para tirar a caracterização. Bateram à porta e ela respondeu:

--Entre.

Um dos criados entregou-lhe um bilhete, onde leu:"Mesa 41. Alex. "

Sonja amarrotou o papel. Já encontrara um. Fora rápido. o seu instinto de reconhecimento da fraqueza estava de novo desperto.

Sonja compreendia-o porque era como ele. Também se servia das pessoas. Até dele se servia. Wolff tinha estilo, gosto, amigos altamente colocados e dinheiro, e um dia levá-la-ia para Berlim. Ser estrela no Egipto era totalmente diferente de ser estrela na Europa. Queria ser rainha de cabaré na cidade mais decadente do Mundo. Wolff seria o seu passaporte. Era com certeza invulgar, pensou, duas pessoas serem tão íntimas e simultaneamente amarem-se tão pouco. Sabia que ele usaria mesmo a faca caso ela não fizesse o que ele queria.

Estremeceu e deixou de pensar no assunto. Envergou um vestido branco decotado, calçou umas sandálias de salto alto, enfiou em cada pulso uma grossa pulseira de ouro e suspendeu ao pescoço um fio de ouro com um pendente em forma de lágrima.

Quando entrou na sala do clube, fez-se silêncio. No palco estava separada dos espectadores por uma parede invisível, mas ali podiam tocar-lhe, e todos o desejavam. O perigo emocionava-a. Chegou junto da mesa 41 e os dois homens ergueram-se.

--Sonja, minha querida, estás magnífica, como sempre-elogiou Wolff. --Deixa que te apresente o major Smith.

Sonja apertou a mão ao major. Este era um homem magro, sem queixo, bigode louro e mãos ossudas e feias. olhou-a como se ela fosse uma sobremesa extravagante.

--Encantado, absolutamente--declarou.

Sentaram-se e Wolff serviu champanhe.

--A sua dança foi esplêndida, mademoiselle. Muito ... artística --observou Smith.

--É muito amável, major.

Sonja percebia que Wolff estava nervoso. Não tinha a certeza de que ela faria o que ele pretendia. Na verdade, nem ela própria ainda decidira.

--Conheci o pai de Sonja pouco tempo antes de ele morrer-disse Wolff a Smith.

Era mentira. Sonja sabia por que motivo ele o afirmara: para Lhe recordar. o pai fora ladrão em part-time: quando tinha trabalho, trabalhava; quando não tinha, roubava. Um dia tentara roubar a carteira a uma europeia, a qual fora atirada ao chão durante a contenda que se seguira. Era uma mulher importante, e o pai de Sonja fora chicoteado pelo crime cometido. E morrera enquanto o chicoteavam.

A partir de então Sonja passara a nutrir um ódio mor al pelos Ingleses. Queria que Hitler os humilhasse. Faria tudo para ajudar. Até seduziria um inglês.

--Major Smith, o senhor é um homem muito atraente--disse, e Wolff descontraiu-se visivelmente.

Smith ficou atrapalhado:

--Valha-me Deus! Acha que sou?

--Acho sim, major.

--Trate-me por Sandy.

Wolff ergueu-se.

--Lamento, mas tenho de me ir embora. Sonja, posso acompanhar-te a casa?

--Deixe isso comigo--interveio Smith.--Isto é, se Sonja ...

Sonja pestanejou e respondeu:

--Com certeza, Sandy.

Wolff despediu-se. Um criado serviu o jantar, que Sonja foi mastigando enquanto Smith descrevia os êxitos que alcançara na equipa de críquete da escola. Era enfadonho. Sonja lembrou-se frequentemente do flagelamento do pai.

O major bebeu incessantemente durante o jantar. Quando saíram, cambaleava ligeiramente e ela deu-lhe o braço, mais para beneficio dele do que seu. Seguiram a pé até ao barco-habitação, sob o fresco ar nocturno.

--Quer ver o interior?--perguntou Sonja.

--Gostava imenso.

Ela conduziu-o pelo portaló e fê-lo descer a escada. o major percorreu o aposento com um olhar estupefacto.

--Devo dizer que é muito luxuoso.

Sonja serviu-lhe uma bebida e sentou-se a seu lado. Ele tocou-lhe no ombro, beijou-lhe a face e agarrou-a grosseiramente. Sonja estremeceu, repugnada, mas puxou-o para si.

--oh, Sandy, você é tão forte!

Olhou por sobre o ombro dele e viu Wolff observando-a e, rindo silenciosamente.

 

Capítulo 5

WILLIAM Vandam começava a desesperar de vir a encontrar Alex Wolff. o assassínio de Asyut verificara-se havia quase duas semanas, e Vandam não estava mais perto da sua presa. Sabia que começava a ficar obcecado pelo homem. Fascinava-o o estilo de Wolff: a maneira inesperada como entrara no Egipto, o rápido assassínio do cabo Cox e a facilidade com a qual se fundira com a cidade.

Vandam não conseguira nenhum progresso concreto, mas recolhera

algumas informações, as quais Lhe haviam alimentado a obsessão. A Villa les oliviers pertência a um indivíduo chamado Achmed Rahmha, que herdara a casa do padrasto, Gamal Rahmha, um rico advogado do Cairo. Gamal casara com uma tal Eva Wolff, viúva de Hans Wolff, ambos de nacionalidade alema.

Adoptara o filho de Hans e Eva, Alex, o que explicava o facto de Achmed Rahmha possuir documentos egípcios genuínos em nome de Alexander Wolff.

Entrevistas com todos os Rahmhas sobreviventes não tinham produzido qualquer resultado. Achmed, ou Alex, desaparecera havia dois anos e desde então ninguém recebera notícias dele.

Vandam estava convencido de que Wolff estivera na Alemanha.

Havia outro ramo da familia Rahmha, mas era nómada e ninguém sabia onde os seus membros se encontravam. Certamente, pensou Vandam, esse ramo da família ajudara de qualquer maneira Wolff a reentrar no Egipto.

Sentado no seu gabinete, fumando cigarro após cigarro, Vandam sentia-se preocupado com Wolff. o indivíduo não era um espião insignificante, interessado em ouvir conversas e boatos. O roubo da pasta provava que pretendia material de alto nível.

Mas também ele tinha os seus problemas. Precisava de justificar a sua presença a vizinhos curiosos, de ocultar o rádio em qualquer lado e de arranjar informadores. De uma maneira ou de outra, acabaria por deixar rastos.

Convencido de que Abdullah, o ladrão, estava ligado a Wolff, Vandam oferecera-lhe uma importante soma a troco de informações. Abdullah afirmara não saber nada a respeito de alguém chamado Wolff, mas a luz da ganância brilhara-lhe nos olhos.

Vandam percorria o gabinete a passos largos, meditando no estilo do assassino. Wolff quase podia ser um homem que Vandam conhecera havia muito tempo, mas de que já não conseguia lembrar-se. Estilo ...

o telefone tocou e ele atendeu:

--Major Vandam.

--Major Calder, do gabinete do tesoureiro. o senhor mandou-nos uma nota a recomendar que estivéssemos atentos ao aparecimento de libras esterlinas falsas. Encontrámos algumas.

Ali estava! Ali estava uma pista!

--Excelente!--exclamou.--Preciso de vê-las o mais depressa possível.

--Já vão a caminho, juntamente com uma lista das pessoas que pagaram com elas.

--óptimo! --Vandam desligou.

Libras falsas. Condizia. Embora a libra esterlina já não fosse a moeda corrente no Egipto, oficialmente um país soberano, quem mantinha negócios com estrangeiros aceitava geralmente libras esterlinas, que depois trocava por dinheiro egípcio no gabinete do tesoureiro- geral. Vandam abriu a Porta e entrou para o corredor:

--Jakes! Traga-me o dossier das notas de banco falsas.

--Sim,.meu major!--ouviu o grito em resposta.

O capitão Jakes, um jovem solícito e merecedor de confiança, era o membro de mais alta patente da equipa de Vandam. Não tardou a aparecer com o dossier pedido. Vandam acendeu a luz da secretária e disse:

--Muito bem, mostre-me lá uma fotografia de notas falsas tipo nazi.

Jakes folheou o dossier das falsificações, do qual reíirou diversas fotografias lustrosas. Cada fotografia mostrava o verso e o anverso de uma nota falsa--dinheiro apreendido a espiões alemães capturados em Inglaterra. Setas pretas indicavam os erros que permitiam identificar as falsificações.

--Seria de esperar que eles tivessem a sensatez de não dar dinheiro falso aos seus espiões--observou Jakes.

--A espionagem é um negócio dispendioso—redarguiu Vandam.--Porque haviam de comprar dinheiro inglês na Suíça se

podem fazê-lo eles próprios? Se um espião tem documentos falsos, também pode ter dinheiro falso.

O secretário de Vandam entrou no gabinete:

--Um sobrescrito do tesoureiro, meu major.

Vandam assinou o recibo e rasgou o sobrescrito, que continha diversas notas de cem libras. Colocou uma delas ao lado de uma das fotografias.

--Veja, Jakes.

A nota apresentava o mesmo erro da fotografia.

--Não há dúvida, meu major--confirmou Jakes.

--Dinneiro nazi, feito na Alemanha--comentou Vandam.

Agora temos a pista dele.

Pouco tempo depois, Vandam entrava no Cha-Cha Club. o gerente declarou que, em virtude de mais de metade dos seus clientes pagar as contas em libras esterlinas, não podia identificar quem Lhe dera esta ou aquela nota. O chefe dos caixas do Shepheard's Hotel disse-lhe mais ou menos o mesmo.

Vandam esperava receber praticamente a mesma resposta na casa seguinte da sua lista, uma pequena mercearia propriedade de um tal Mikis Aristopoulos. A loja cheirava a especiarias e café, mas as prateleiras não estavam muito bem fornecidas.

Aristopoulos era um grego de baixa estatura, de cerca de vinte e cinco anos, com um sorriso aberto que patenteava duas fiadas de dentes brancos.

--Bons dias--cumprimentou. --Em que posso servi-lo?

--Não parece ter muito que vender--observou Vandam.

O grego sorriu.

--Se procura alguma coisa especial, talvez a tenha em armazém.

Já se abasteceu aqui alguma vez?

Era então esse o sistema: iguarias raras na sala das traseiras, só para clientes habituais.

--Não vim para comprar--explicou Vandam.--Há dois dias o senhor trocou cento e quarenta e sete libras inglesas no gabinete do tesoureiro-geral inglês. A maior parte desse dinheiro era falso.

Aristopoulos abriu os braços e encolheu os ombros.

--Recebo o dinheiro de ingleses e devolvo-o a ingleses. Que posso eu fazer?

--Pode ir parar à cadeia por passar notas falsas.

O sorriso de Aristopoulos extinguiu-se.

--Por favor, como podia eu saber?

--Esse dinheiro foi-lhe todo pago pela mesma pessoa?

--Não sei ...

--Pense! Alguém Lhe pagou uma encomenda grande com libras inglesas?

--Ah, sim! Cento e vinte e seis libras e dez xelins!

--Nome?--perguntou Vandam, sustendo a respiração.

--Wolff. Estou admirado, há anos que é um bom cliente.

--Escute: foi você quem entregou os géneros?

--Ofereci-me para Lhos entregar, como de costume na sua casa Villa les oliviers, mas desta vez foi Mr. Wolff quem os levou.

--Não entregou nada nessa morada recentemente?

--Desde que Mr. Wolff regressou, não. Lamento muito este problema do dinheiro falso. Talvez possamos combinar alguma coisa...?

--Talvez--respondeu Vandam, pensativo.

Aristopoulos conduziu-o para a sala das traseiras, cujas prateleiras se apresentavam bem fornecidas. Vandam reparou que havia caviar russo, presunto americano enlatado e compota inglesa. Aristopoulos serviu café forte e espesso em chávenas minúsculas. Depois de beberem, o grego sugeriu:

--Talvez Lhe possa oferecer, como prova de boa vontade qualquer artigo do meu stock. Whisky escocês?

--Não estou interessado nesse tipo de acordo. Preciso de encontrar Wolff e você disse que ele era um cliente habitual.

Que costuma comprar?

--Muito champanhe. Caviar. Café. Bebidas estrangeiras.

"Estilo", pensou Vandam. Era uma questão de estilo.

--Quando ele voltar, tenho de descobrir onde mora. Vou arranjar-lhe um auxiliar.

--Eu quero ajudá-lo, sem dúvida, mas o meu negócio é privado .

--Não tem alternativa. ou me ajuda ou vai para a cadeia.-Vandam sorriu e acrescentou: -- Creio que conheço a pessoa ideal.

Nessa noite, depois do jantar, sobraçando um grande ramo de flores que o fazia sentir-se idiota, Vandam foi visitar Elene.

A jovem morava num espaçoso prédio antigo, perto do Largo da opera. O porteiro indicou-lhe o terceiro andar. Vandam subiu a escada de mármore e bateu à porta do apartamento 34.

A porta abriu-se. Elene envergava um vestido simples de algodão amarelo e saia de roda, cuja cor contrastava harmoniosamente com o bronzeado da sua pele. Olhou-o um momento inexpressivamente e depois dirigiu-lhe um sorriso irónico.

--Olá! --Aproximou-se e beijou-o na face. --Entre!

Vandam entrou e Elene fechou a porta.

--Não vinha à espera do beijo--confessou o major.

--Faz tudo parte da representação. Deixe-me libertá-lo do seu disfarce.

Ele entregou-lhe as flores com a sensação de que estava a ser gozado.

--Entre para ali, enquanto as ponho em água.

Vandam seguiu a direcção do dedo apontado e entrou na sala. O aposento era confortável, decorado a cor-de-rosa e dourado, com maples fundos e macios e uma mesa de carvalho clara. Era uma sala de gaveto, com janelas de dois lados, nesse momento banhada pela luz dos últimos raios de sol. Num diva estava um livro que, presumivelmente, ela estivera a ler quando ele batera à porta. Vandam agarrou-o e sentou-se. Chamava-se Comboio de Istambul e parecia do género de espionagem.

Elene trouxe as flores numa jarra, encheu a sala.

--Quer beber alguma coisa?

--Sabe fazer martinis?

--Sei. Pode fumar, se quiser.

--Obrigado.--Vandam pensou que ela sabia ser hospitaleira e supôs que naturalmente tinha de o saber, dada a maneira como ganhava a vida. --Gosta deste tipo de leitura?--perguntou-lhe, apontando o livro.

--Estive a tentar descobrir como uma espia se deve comportar.

Vandam viu-a sorrir e constatou que estava de novo a ser gozado.

--Nunca sei quando fala a sério.

--Muito raramente.--Estendeu-lhe um copo sentou-se no diva e olhou-o por sobre a borda do seu copo.--A espionagem.

Vandam beberricou o martini. A dosagem era perfeita. E ela também. o sol pálido iluminava-lhe o rosto. os seus braços e as suas pernas pareciam lisos e macios. "Bolas!", pensou, irritado. Já exercera aquele efeito sobre ele da última vez.

--Em que está a pensar?--perguntou ela.

--Em espionagem.

Elene riu-se.

--Deve adorá-la--comentou, sabendo que ele mentira.

"Como consegue ela fazer-me isto?", perguntou Vandam a si mesmo. Mantinha-o num desequilíbrio constante com os seus gracejos, o seu discernimento, o seu rosto inocente e os seus membros longos e bronzeados.

--Apanhar espiões pode ser um trabalho compensador, mas não o adoro--afirmou.

--Porquê? Porque são enforcados quando os apanha?

--Não, porque nem sempre os apanho.

--Orgulha-se de ser tão cruel?

--Não me considero cruel. Tentamos matar mais dos deles do que eles dos nossos.--"Porque me estou a defender?", pensou, e mudou rapidamente de assunto. --Os seus pais estão vivos?

Elene desviou os olhos e depois, como se obedecesse a um impulso, começou a falar-lhe dos seus antecedentes. Fora a mais velha de cinco filhos de um casal judeu desesperadamente pobre de Alexandria. os seus pais eram pessoas cultas e simpáticas. "o meu pai ensinou-me inglês, e a minha mae ensinou-me a usar roupas limpas", disse. Quando perfizera quinze anos, o pai, que era alfaiate, começara a cegar.

Deixara de poder trabalhar. Elene empregara-se como criada numa casa inglesa e enviava o ordenado para a família.

Apaixonara-se pelo filho dos patrões, que a seduzira. Tinham sido descobertos, o rapaz fora mandado para a universidade e Elene despedida. Aterrorizada ante a perspectiva de regressar a casa e contar ao pai, ultra-ortodoxo, por que motivo fora despedida, vivera da indemnização do despedimento até um comerciante a instalar por sua conta num apartamento. Pouco depois, tinham descrito ao pai o modo como ela vivia e ele obrigara a família a pôr shibah por ela.

--Que é shibah?--perguntou Vandam.

--Luto.

Desde então não voltara a ter notícias da família, à excepção de um recado de uma amiga comunicando-lhe que a mae morrera.

--Odeia o seu pai?--perguntou Vandam.

Elene encolheu os ombros e respondeu:

--Creio que não me saí muito mal-indicando o apartamento.

--Mas é feliz?

Ela olhou-o e por duas vezes pareceu prestes a falar. Depois, desviou de novo o olhar e foi a sua vez de mudar de assunto:

--Que o trouxe cá esta noite, major?

Vandam recuperou o seu profissionalismo.

--Continuo à procura de Alex Wolff. Ainda não o encontrei, mas encontrei o merceeiro dele. Quero colocar alguém na loja, caso ele volte.

--Eu.

--Foi o que pensei.

--Quando ele aparecer, bato-lhe na cabeça com uma saca de açúcar e fico de guarda ao corpo inconsciente até você chegar.

Vandam riu-se.

--Creio que seria muito capaz disso. -- Apercebendo-se da descontracção que começava a revelar, decidiu controlar-se antes que fizesse figura de idiota. --Falando a sério, terá que tentar descobrir onde ele mora. Pensei que talvez você pudesse travar amizade com ele.

--Que entende por "travar amizade"?

--Isso é consigo, desde que obtenha a morada dele.

--Compreendo.

A sua disposição mudou subitamente e a voz tornou-se-lhe amarga. A mudança surpreendeu Vandam. Certamente uma mulher como Elene não se ofenderia com a sua sugestão?!

--Porque não encarrega um dos seus soldados de o seguir até casa?--perguntou Elene.

--Ele podia perceber que estava a ser seguido e enganá-lo ... e depois nunca mais voltava à mercearia. Mas se você conseguir persuadi-lo, digamos, a convidá-la para jantar em casa dele, então poderiamos obter a informação que pretendemos sem nos arriscarmos.

--Suponho que não é pior do que o que tenho feito.

--Foi o que eu pensei--disse Vandam, aliviado.

Elene lançou-lhe um olhar carregado.

--Começa amanha.--o major deu-lhe a morada.--Comunico consigo com intervalos de poucos dias para ter a certeza de que corre tudo bem. A propósito, o merceeiro julga que andamos atrás de Wolff por falsificação. Não Lhe fale de espionagem.

 

A mudança de disposição tornara-se perrnanente. Já não sentiam prazer na companhla um do outro.

--Deixo-a com o seu livro--disse Vandam.

Ela ergueu-se.

--Eu acompanho-o à porta.

Dirigiram-se para a porta. Quando Vandam saiu, o inquilino do apartamento contíguo surgiu no corredor, e o major teve de fazer o que decidira não fazer: tomou Elene nos braços, inclinou a cabeça e beiJou-a na boca. Os lábios dela corresponderam-lhe um breve instante. O vizinho passou, entrou no apartamento e fechou a porta

Vandam largou-a e ela disse:

--E um bom actor.

--Pois sou. Adeus.

Virou-se e afastou-se, apressado, pelo corredor fora. Deveria sentir-se satisfeito com o resultado do trabalho dessa noite, mas em vez disso tinha a impressão de que cometera um acto vergonhoso. Ouviu a porta do apartamento dela bater atrás de si.

 

ELENE encostou-se à porta fechada e amaldiçoou William Vandam.

Entrara na sua vida cheio de cortesia britanica, convidara-a para realizar um trabalho diferente e ajudar a ganhar a guerra. Ela acreditara de facto que ele ia modificar a sua vida, oferecer-lhe um emprego digno, algo de importante.

Afinal constatava agora que se tratava ainda do mesmo velho jogo--que ela tanto desejava abandonar.

 

Sentira-se curiosamente feliz com ele em casa, sentado no seu diva a fumar e a beber. Vandam tratava-a como uma pessoa.

Elene sabia que ele nunca Lhe daria uma leve palmada na cabeça, dizendo:  Não preocupe a sua bela cabecinha.

No fim estragara tudo. Demonstrara-lhe que a considerava apenas uma mulher que se vendia.

"Mas porque me importo tanto?", pensou.

 

DE madrugada, Alex Wolff sentiu nos pés descalços o frio do pavimento de mosaicos da mesquita. Reinavam o silênclo e uma sensação de paz na vastidão da grande sala de colunas. Um raio de sol penetrou por uma das fendas altas e estreitas da parede e, no mesmo momento, o muezim começou a gritar: ,.Allahuakbar!"

Wolff virou-se para o lado de Meca.

Vestia uma galabia comprida, tinha um turbante na cabeca e segurava na mão umas sirnples sandálias árabes. Não sabia nunca ao certo por que razão o fazia. Era um verdadeiro crente somente em teoria. Fora circuncidado, de acordo com a doutrina islamica, e fizera a peregrinação a Meca, mas bebia álcool, comia carne de porco e não orava todos os dias, quanto mais cinco vezes por dia. No entanto, de tempos a tempos, sentia a necessidade de mergulhar, por alguns minutos apenas, nos rituais familiares.

Tocou nas orelhas com as mãos, que depois uniu à sua frente, segurando a esquerda com a direita. Inclinou-se e em seguida ajoelhou-se. Tocando com a fronte no chão nos momentos apropnados recitou o el-fatha: "Em nome de Deus o misericordioso e compassivo. Louvado seja Deus, o senhor dos mundos, o misericordioso e compassivo, o Príncipe do Dia de Juízo..." olhou por sobre o seu ombro direito e depois por sobre o esquerdo para saudar os dois anjos-da-guarda, que registavam as suas boas e más acções.

Quando olhava por sobre o ombro esquerdo, viu Abdullah. O ladrão dirigiu-lhe um sorriso aberto, que Lhe revelou o dente de aço. Wolff levantou-se e saiu. Deteve-se no exterior, a calcar as sandálias, e Abdullah seguiu-o negligentemente.

--És um homem devoto como eu--comentou Abdullah.-Sabia que virias, mais cedo ou mais tarde, à mesquita do teu pai.

Afastaram-se juntos da mesquita e Alex Wolff perguntou:

--Tens andado à minha procura?

--Há muita gente à tua procura. Sabendo que és um verdadeiro crente, não podia trair-te. Por isso, disse ao major Vandam que não conhecia ninguém chamado Alex Wolff, nem Achmed Rahmha.

Wolff parou abruptamente. Depois, conduziu Abdullah para um café árabe. Sentaram-se.

--Ele sabe o meu nome árabe!--exclamou Wolff

--Ele sabe tudo a teu respeito ... excepto onde encontrar-te paciente e determinado. No teu lugar teria medo dele.

De súbito, Wolff teve medo.

--Falou com os teus irmãos. Eles disseram-lhe que não sabiam

 

O proprietário do café serviu a cada um um prato de puré de fava um pão escuro. Abdullah continuou a falar, com a boca cheia.

--Vandam oferece cem libras pela tua morada. Como se traísse um dos nossos por dinheiro!

Wolff engoliu em seco e observou:

--Mesmo que soubessem a minha morada

--Era fácil descobri-la--redarguiu Abduilah.

--Bem sei. Por isso vou dizer-ta, como prova da minha confiança na tua amizade: trabalho nas cozinhas do Shepheard's

Hotel, a lavar louça. Durmo lá, no chão.

--Isso é que é esperteza! Escondes-te mesmo nas barbas deles!

--Sei que guardas segredo--declarou Wolff. --Mas como sinal da minha gratidão pela tua amizade, espero que aceites uma oferta minha de cem libras.

--Mas não é necessário ...

--Insisto. Mando o dinheiro a tua casa.

--Muito bem.--Abdullah limpou o prato vazio com o último bocado de pão.--Agora tenho de te deixar. Allah yisallimack (que Deus te proteja). --E saiu.

Wolff pediu café e pensou em Abdullah o ladrão atraiçoá-lo-ia por muito menos de cem libras, claro. A história de que vivia nas cozinhas do hotel não passava de uma táctica de dilação. E o suborno tambem. No entanto, quando Abdullah descobrisse, finalmente, que ele morava no barco-habitação de Sonja em Zamalek, provavelmente procurá-lo-ia a pedir mais dinheiro, em vez de ir ter com Vandam. A situação estava controlada. De momento.

Wolff saiu do café e dirigiu-se para o posto central dos Correios a fim de telefonar. Ligou para o QG e disse ao telefonista que queria falar com o major Sandy Smith.

--Neste momento não está. Quer deixar algum recado.

Wolff sabia de antemão que não encontraria o major, pois era ainda muito cedo.

--Diga-lhe: "Hoje ao meio-dia em Zamalek. Assina: S."—Em seguida, desligou e seguiu para o barco.

Desde que Sonja seduzira Smith, o mapr enviara-lhe uma dúzia pedindo outro encontro. Wolff proibira de responder.

 

Wolff abriu a porta do armario e saiu.

Sonja gritou, o que o fez soltar,uma garga E um bom esconderijo, não e?

Wolff sorriu, satisfeito.

--Lá vem ele!--anunciou, e meteu-se no armário, fechando a porta.

Ouviu os passos de Smith no ponaló e a seguir na cobena. Pela abertura, viu-o descer a escada e entrar no barco.

--Está alguém?--A voz de Smith denunciava o receio de uma decepção. -- Sonja?

Os reposteiros do quarto afastaram-se e Sonja apareceu mantendo-os abenos com os braços erguidos. Penteara o cabelo para cima, numa piramide complicada, como às vezes fazia para as suas exibições. Usava as calças largas e transparentes e um colar de pedras preciosas ao pescoço.

Smith largou a pasta e correu para ela. Rapidamente, ela desabotoou-lhe a camisa do uniforme, desceu-lha dos ombros e deixou-lha cair no chão. Quando ele a abracou, puxou-o para o quano e os reposteiros fecharam-se atrás deles.

Wolff abriu a porta do armário e saiu. Ajoelhou-se e experimentou os fechos da pasta, caída no chão perto do reposteiro. Estavam fechados à chave. Os seus olhos detiveram-se na camisa do major que se encontrava onde Sonja a largara.

Com um pouco de sorte, talvez a chave da pasta se encontrasse num dos bolsos ... Introduziu a mão no primeiro e tacteou à procura de uma chave. A algibeira estava vazia. Virou a camisa até encontrar outra algibeira, apalpou ... e encontrou um molho de chaves. Soltou um suspiro de alívio silencioso.

Experimentou a chave mais pequena. AJustava-se.

Abriu o fecho e levantou a tampa. No interior da pasta encontrava-se um dossier de capa dura. "Mais ementas não, por favor!" pensou. Abriu o dossier. No cimo da primeira folha leu:

 

OPERAÇAO ABERDEEN

 

1. Forças aliadas desencadearão um importante contra-ataque ao alvorecer de 5 de Junho.

2. o ataque será bifurcado ...

 

"Meu Deus! , murmurou Wolff. "Cá está!"

Prestou atenção aos ruídos procedentes do quarto, naquele momento claramente audíveis. Já não devia dispor de muito tempo. o relatório era pormenorizado. Wolff não sabia exactamente como a cadeia de comando britanica funcionava, mas presumivelmente as batalhas eram planeadas no QG do deserto e o planejamento era depois enviado para o QG do Cairo para aprovacão. Os planos de batalhas importantes deviam ser discutidos nas conferências matinais, a que Smith obviamente assistia. Wolff perguntou de novo a si mesmo que serviços estariam instalados no edifício indentificado da Shari Suleiman Pasha, aonde Smith se dirigia todas as tardes.

Encontrou um bloco-notas e um lápis encarnado numa gaveta e comec,ou a tirar apontamentos. As principais forças aliadas estavam cercadas numa área a que chamavam Cauldron, e o contra-ataque de 5 de Junho pretendia abrir uma brecha no cerco. Teria início às duas e cinquenta com o bombardeamento, realizado por quatro regimentos de artilharia, da cordilheira Aslagh, no flanco oriental de Rommel. Seguir-se-ia o ataque em ponta de lança da infantaria da lO.a Brigada Indiana. Quando os Indianos tivessem rompido a linha, os tanques da 22.a Brigada Blindada precipitar-se-iam através da brecha.

Entretanto, a 32.a Brigada Blindada, com o apoio da infantaria, atacaria o flanco setentrional de Rommel na cordilheira Sidra.

Quando chegou ao fim do relatório, Wolff constatou que estivera tão absorvido na leitura que nem notara que os ruídos no quarto haviam cessado. A cama gemeu e um par de pés pousou no chão. Wolff ficou tenso. Depois ouviu Sonja dizer:

--Amor, bebe uma taça de champanhe comigo antes de te ires embora.

--Os teus desejos são ordens para mim.

Wolff descontraiu-se. "Ela pode queixar-se " pensou, "mas faz o que eu quero! Relanceou rapidamente o resto dos papéis e tomou mais algumas notas. Estava decidido a não se deixar apanhar. Smith era um achado maravilhoso, e seria uma tragédia matar a galinha quando esta acabava de pôr o primeiro ovo de ouro, a que muito provavelmente se seguiriam outros.

Uma rolha saltou ruidosamente enquanto ele escrevia. Perguntou a si mesmo quanto tempo levaria Smith a beber uma ta,ca de champanhe e resolveu não se arriscar. Guardou os papéis no dossier e colocou este na pasta, que fechou à chave. Repôs as chaves no bolso da camisa, introduziu-se no armário e fechou a porta. Estava exultante. Encontrara uma mina de ouro.

Só decorrida meia hora viu, através do orifício, Smith entrar na sala e estender a mão para a camisa. Wolff sentia-se apenado e entorpecido.

--Tens de ir já?--perguntou Sonja.

--Infelizmente, tenho--respondeu o major.--Para falar com toda a franqueza, não devo andar aí pelas ruas com esta pasta. Foi uma complicação dos diabos para chegar aqui ao meio-dia. Tenho de ir directamente do QG para o meu gabinete, o que hoje não fiz. Informei o meu escntório de que almoçava no QG e disse aos rapazes do QG que almoçava no meu serviço. Mas da próxima vez tenho de ir ao meu serviço largar a pasta e só depois venho para cá

"Pelo amor de Deus, Sonja, diz qualquer coisa!", pensou Wolff

E ela disse:

--Mas, Sandy, a minha empregada vem todas as tardes fazer limpeza ... não estaríamos sós.

Smith franziu a testa.

--Nesse caso, temos de nos encontrar à noite.

--Tenho o meu trabalho ... e depois do meu número tenho de ficar no clube e conversar com os clientes.--Tomou as mãos de Smith e colocou-as nas suas ancas.--oh, Sandy, diz que vens ao meio-dia !

Foi superior às forças de Smith, que respondeu:

--Claro que venho.

Beijaram-se e Smith pegou na pasta e saiu. Wolff ouviu os passos atravessarem a cobena e o ponaló e só depois saiu do armário. Sonja observou-o com maliciosa satisfação, enquanto ele distendia os membros doridos.

--Conseguiste o que querias?

--Melhor do que poderia ter sonhado.

Wolff comeu pão e chouriço para o almoço, enquanto Sonja tomava banho. Depois do almoço, foi buscar o romance inglês e a chave do código e preparou a sua comunicação para Rommel.

Nessa noite, depois de SonJa ter saído para o Cha-Cha Club,

montou o radio. As vinte e quatro horas em ponto emitiu o seu indicativo de chamada. Esfinge. Segundos depois, o posto de escuta de Rommel, no deserto ou a Companhia Horch respondeu-lhe. Wolff

emitiu uma série de w para permitir ao posto receptor fazer uma sintonização perfeita Depois, começou a transmitir em código: “operacão Aberdeen “.

 

No princípio da manha de 4 de Junho, a emissão do espião representava apenas um de vinte ou-trinta relatórios que se encontravam na secretária de Von Mellenthin, oficial de informações de Rommel. Von Mellenthin desprezava os relatórios de espiões. Baseados em conversas escutadas e puras conjecturas, erravam tantas vezes quantas acertavam. Mas aquele parecia diferente.

O espião cujo indicativo de chamada era Esfinge começava assim a sua mensagem: "operação Aberdeen." Depois, indicava a data do ataque, as brigadas implicadas e as suas missões específicas, os objectivos que atacariam e o conceito de manobra dos planeadores.

Embora não se sentisse convencido, Von Mellenthin mostrou-se interessado. Quando o termómetro da sua tenda assinalou uma temperatura superior aos cinquenta e cinco graus, iniciou a ronda rotineira de discussões matinais. Em pessoa e pelo telefone de campanha falou com os oficiais de informações das diferentes divisões e com o oficial de ligação da Luftwaffe para reconhecimento aéreo. Recomendou-lhes que estivessem atentos às brigadas mencionadas no relatório do espião e que observassem se havia sinais de preparativos para combate nas áreas de onde o contra-ataque seria supostamente desferido. Em seguida, dirigiu-se para o veículo do comando.

A conversa aí foi breve, pois Rommel já tomara as decisões principais e transmitira as suas ordens para aquele dia na noite anterior. Além disso, Rommel não tinha disposição para pensar de manha; queria acção. No seu automóvel do Estado-Maior ou no seu avião Storch, percorria o deserto, de uma posição da linha da frente para outra, transmitindo novas ordens, gracejando com os homens ou comandando escaramuças.

Nessa manha, Von Mellenthin acompanhou-o, a fim de avaliar pessoalmente os relatórios dos serviços de informações.

Ao anoitecer, a divisão italiana postada na cordilheira Aslagh comunicou que se haviam intensificado os indícios de reconhecimento aéreo por parte do inimigo. A Luft vaffe detectou actividades na terra-de-ninguém que poderiam ser de um grupo avançado a assinalar um ponto de encontro. Foi interceptada uma radiocomunicação confusa em que uma brigada indiana pedia um esclarecimento urgente das ordens da manha com referência às horas do bombardeamento de artilharia. As provas acumulavam-se.

Consultando o seu ficheiro relativo à 32.a Brigada Blindada, Von Mellenthin verificou que a mesma fora recentemente referênciada na cordilheira Rigel--posição lógica para um ataque à cordilheira Sidra. Decidiu apostar no espião Esfinge.

As dezoito e trinta, levou o seu relatório ao veículo do comando, onde se encontrava Rommel o seu chefe de estado-maior. Coronel Rommel aproveitara implacavelmente a sua vantagem. A 14 de Junho, a linha de Gazala fora rompida e naquele dia, 20 de Junho preparavam-se para cercar a guarnição costeira vital dos Ingleses em Tobruk, com os seus depósitos de combustível, explosivos e veiculos.

O ataque teve início às cinco e vinte.

Um som semelhante ao de um trovão longínquo aumentou até se tornar ensurdecedor, à medida que os S ukas se aproximavam. A primeira formação passou, picou na direcção das posições britanicas e largou as suas bombas. A grande nuvem de poeira e fumo que se ergueu foi o sinal para todas as forças de artilharia de Rommel abrirem fogo com um estrépito enlouquecedor.

 

As dez e trinta dessa manha, o tenente-coronel Bogge assomou a cabeça à porta do gabinete de Vandam e anunciou:

--Tobruk está cercada.

E o trabalho pareceu inútil. Vandam continuou maquinalmente tentando descobrir uma nova abordagem para o caso Alex Wolff mas tudo Lhe parecia irremediavelmente banal. As notícias tornavam-se mais deprimentes à medida que o dia avançava. Os Alemães haviam aberto uma brecha no perímetro de cinquenta e seis quilómetros de arame farpado em torno de Tobruk; haviam transposto o fosso antitanques; tinham atravessado o campo de minas interior. tinham chegado ao cruzamento de estradas estratégico conhecido por King's Cross. Ao anoitecer, o 21.o de Panzers entrara em Tobruk e disparara do cais contra diversos navios britanicos que tentavam tardiamente escapar para o mar alto. Vários navios tinham sido rapidamente afundados.

Vandam passou a noite na messe dos oficiais, à espera de notícias. o Sol nasceu. Um cozinheiro serviu café. Quando Vandam bebia o seu, um capitão chegou com um comunicado: "o general Klopper entregou a guarnição de Tobruk a Rommel, ao alvorecer de hoje."

Vencido pelo desespero, Vandam saiu da messe e dirigiu-se a pé para casa. Sentia-se impotente e inútil, permanecendo no Cairo a perseguir espiões enquanto o seu país perdia a guerra no deserto. ocorreu-lhe ao espírito a possibilidade de Alex Wolff estar relacionado com as recentes vitórias de Rommel. Mas considerou a ideia absurda e afastou-a do pensamento.

Sentia-se tão deprimido que perguntou a si mesmo se seria possível a situação agravar-se--e compreendeu que era, evidentemente, possível.

 

Capítulo 6

Ao fim de duas semanas na mercearia, Elene sentia-se capaz de esganar Mikis Aristopoulos. Não tinha nada contra a loja em si. Gostava do cheiro a especiarias e das fileiras de latas e caixas alegremer.te coloridas das prateleiras na sala das traseiras. o trabalho era fácil e o tempo passava rapidamente.

Mas o patrão era um tormento, sempre com atrevimentos. Não deixava escapar a mínima oportunidade de Lhe tocar num braço ou num ombro, e todas as vezes que passava por ela roçava-se pelo seu corpo.

Elene experimentava já emoções tão confusas que não necessitava daquela insistência desagradável para andar irritada. Simpatizava e antipatizava simultaneamente com William Vandam, que Lhe falara de igual para igual e depois a tratara como uma mulher por conta; estava incumbida de cativar Alex Wolff, que nunca vira, e estava a ser perseguida por Mikis Aristopoulos. "Todos me usam", pensava. "É a história da minha vida."

Sentia curiosidade em saber como seria Wolff. Era fácil a Vandam dizer-lhe que travasse amizade com ele, mas dependia muito do espião. Alguns homens gostavam dela imediatamente.

Com outros deparava-se-lhe uma impossibilidade. Metade do seu ser desejava que se Lhe deparasse essa impossibilidade com Wolff. A outra metade lembrava-se de que ele era um espião alemão, que de dia para dia Rommel se aproximava mais e que se os nazis chegassem ao Cairo ...

Aristopoulos trouxe uma caixa de massa do armazém e, à passagem, afagou-lhe a anca. Elene desviou-se e ouviu alguém entrar na loja. "Vou dar uma lição ao grego", pensou. E quando ele entrou no armazém, gritou-lhe em árabe:

--Se volta a tocar-me, corto-lhe a mão!

O cliente que entrara soltou uma gargalhada. Elene virou-se e olhou-o. Era europeu, mas compreendia o árabe, pois gritou em direcção à sala das traseiras:

--Que tem andado a fazer, Aristopoulos, seu malandro?

Aristopoulos espreitou pela abertura da porta e cumprimentou:

--Bons dias. Esta é a minha sobrinha Elene.--o seu rosto denunciou embaraço e algo mais que Elene não conseguiu identificar, pois a cabeça voltou a desaparecer no armazém.

--Sobrinha!--exclamou o cliente olhando para Elene.--Mas que

história!

Era um homem forte na casa dos trinta anos, de cabelo, pele e olhos escuros e com um grande nariz adunco. Quando sorria, revelava dentes pequenos e regulares, como os de um gato.

Elene conhecia os sinais de riqueza e identificou-os: camisa de seda, relógio de pulso de ouro, calças de algodão confeccionadas por um alfaiate, cinto de crocodilo e sapatos manufacturados.

--Em que posso servi-lo?--perguntou-lhe.

Ele olhou-a, como se estudasse diversas respostas possíveis, e

por flm respondeu:

--Comecemos por marmalade inglesa.

Ela foi ao armazém buscar um boião

--É ele!--segredou Aristopoulos.--o homem do dinheiro falso, Wolff.

--oh, meu Deus!--o cérebro de Elene ficou vazio.--Que Lhe hei-de dizer?

--Não sei ... dê-lhe a marmalade ... não sei ...

--Ah, sim, marmalade!--Pegou num boião, regressou à loja e fez um esforço para sorrir a Wolff. --Que mais?

--Um quilo de café bem moído.

Observou-a enquanto ela pesava o café e o introduzia no moinho. De súbito, Elene teve medo dele. Parecia calmo e confiante, seria difícil enganá-lo.

--Mais alguma coisa?--perguntou.

--Uma lata de presunto.

Ela movia-se pela loja, procurando os géneros que ele pedia e colocando-os no balcão. "Tenho de falar, de conversar com ele", pensou. "Não posso limitar-me a repetir: Que mais?

Estou aqui para travar amizade com ele.

--Que mais?--perguntou.

--Meia caixa de champanhe. Creio que é tudo.

A caixa de champanhe com seis garrafas era pesada, e ela trouxe-a a arrastar do armazém.

--Calculo que quer que entreguemos esta encomenda--observou, esforçando-se por falar em tom casual.

Os olhos escuros dele pareciam trespassá-la.

--Não é preciso--respondeu em tom firme.

--Como queira--declarou, acenando numa anuência. Não esperara de facto que resultasse, mas, não obstante, sentiu-se decepcionada.

Começou a passar a conta. Wolff observou:

- O Aristopoulos deve estar a ganhar bem para empregar uma ajudante.

--Não diria isso se soubesse quanto ele me paga.

--Não gosta do emprego?

Ela olhou-o, respondendo:

--Faria tudo para sair daqui.

--Que tem em mente?--perguntou rapidamente.

Elene encolheu os ombros e recomecou a somar. Por fim disse:

--Treze libras, dez xelins e catorze dinheiros.

--Como sabia que eu ia pagar em libras?

Tinha, realmente, um raciocínio muito ágil. Elene receou ter-se denunciado. Mas teve uma inspiração:

--Não é um oficial inglês?

A pergunta fê-lo soltar uma gargalhada ruidosa. Depois, retirou do bolso um rolo de notas de libra e deu-lhe catorze.

Elene entregou-Lhe o troco em moedas egípcias, enquanto pensava: "Que mais posso eu fazer? Que mais posso eu dizer?"

Começou a acondicionar as compras num cartucho de papel pardo.

--Vai dar uma festa?--perguntou. --Adoro festas.

--Porque pergunta?

--Por causa do champanhe.

--Ah! Bem, a vida é uma longa festa.

"Falhei", pensou Elene. "Agora vai-se embora e talvez não volte durante semanas. ou até nunca mais ..."

Wolff colocou a caixa de champanhe sobre o ombro esquerdo e pegou no embrulho com a mão direita.

--Adeus--despediu-se, mas à porta voltou-se para trás:-Encontre-se comigo no oasis Restaurant na quarta-feira, às sete e meia da noite. Chamo-me Alex Wolff.

--Está bem!--concordou, exultante, e ele desapareceu.

 

Foi uma longa viagem de automóvel para o interior do deserto.

Jakes seguia ao lado do motorista e Vandam e Bogge sentavam-se atrás. o major estava exultante. Uma companhia australiana apreendera um posto receptor de TSF alemão. Era a primeira boa notícia que Vandam recebia em meses.

Chegaram ao meio-dia. Homens do Serviço de Informações já trabalhavam no local. Numa pequena tenda eram interrogados prisioneiros, enquanto especialistas de material inimigo examinavam armas e veículos. Competia à brigada de Bogge examinar o material dos carros de rádio apreendidos, a fim de determinar o que os Alemães tinham sabido antecipadamente a respeito dos movimentos dos Aliados.

Encarregou-se cada um do seu carro. O de Vandam estava numa lástima. os Alemães tinham começado a destruir os seus papéis ao aperceberem-se de que a batalha estava perdida. Tinham despejado caixas e ateado uma pequena fogueira, que não obstante fora rapidamente extinta. Um dossier apresentava manchas de sangue: alguém morrera a defender os seus segredos.

Vandam pôs mãos à obra. Como eles tentariam destruir em primeiro lugar os papéis importantes, começou pela rima semiconsumida pelo fogo. Havia muitas comunicações-rádio aliadas interceptadas e em alguns casos decifradas. A medida que trabalhava, o major constatava que a radiointercepção dos Serviços de Informações Alemães estava a recolher uma enorme quantidade de material útil.

No fundo da pilha semiqueimada viu um romance em inglês.

Vandam leu a primeira linha: "A noite passada sonhei que regressava a Manderley." o título era-lhe familiar: Rebecca, por Daphne du Maurier. Vandam pensou que a mulher o devia ter lido. Parecia ser a respeito de uma jovem que vivia numa casa de campo inglesa.

Leitura peculiar para o Afrika Korps. E porquê em ingles?

Podia ter sido tirado a um soldado britanico aprisionado, mas Vandam duvidava. Sabia por experiência que os soldados liam romances policiais violentos e a Bíblia. Só Lhe ocorria uma possibilidade: o livro era a base de um código.

Um livro-código era uma variante do antigo bloco com letras e números impressos ao acaso em grupos de cinco caracteres.

Faziam-se apenas dois exemplares de cada bloco: um para o emissor e outro para o receptor. Cada folha era utilizada para uma única mensagem e destruída. Dado que cada folha era utilizada apenas uma vez, o código não podia ser decifrado. Um livro-código funcionava do mesmo modo, com a diferença de que as suas páginas não eram forçosamente destruídas depois de usadas.

Um livro tinha uma grande vantagem sobre um bloco. Este revelava-se inequivocamente destinado a decifrar mensagens, enquanto um livro parecia ingeuo, pormenor importante para um agente a trabalhar atrás das linhas inimigas. Esta talvez a razão que explicava o facto de o livro ser em inglês. Um espião em território britanico precisaria de ter um livro em inglês.

Vandam examinou o livro atentamente. O preco fora escrito a lápis na folha em branco do final do volume e depois apagado.

O major tentou ler a impressão deixada pelo lápis e distinguiu o número SO, seguido por três letras: esc.--cinquenta escudos.

Provavelmente, o livro fora comprado no Portugal neutro, uma colmeia de espionagem de baixo nível.

Apenas chegasse ao Cairo, enviaria uma mensagem à secção do Serviço de Informações de Lisboa pedindo que investigassem nas livrarias portuguesas que vendiam livros em inglês. Não eram provavelmente muitas. Deviam ter sido vendidos pelo menos dois exemplares, e talvez o livreiro se lembrasse da venda. Vandam estava convencido de que o outro exemplar se encontrava no Cairo e jülgava saber quem o utilizava.

Pegou no livro e saiu do carro. Bogge, lívido e dominado por uma cólera que tocava as raias da histeria, avançava pesadamente pela areia. Entregou a Vandam uma folha de papel.

Era uma comunicação-rádio decifrada, datada da meia-noite de 3 de Junho e com o indicativo de chamada Esfinge. A mensagem tinha como título operação Aberdeen.

Vandam ficou paralisado. A operação Aberdeen efectuara-se no dia 5 de junho, e os Alemães tinham recebido uma radiomensagem a esse respeito vinte e quatro horas antes.

--Meu Deus, isto é uma tragédia!

--Claro que é uma tragédia!--gritou Bogge.--Significa que Rommel está a receber pormenores completos dos nossos ataques antes de os desencadearmos!

Jakes aproximou-se:

--Com licença ...

--Agora não, Jakes--disse Vandam bruscamente.

--Deixe-se ficar, Jakes--ordenou Bogge.--Isto também Lhe diz respeito.--Depois, furioso, voltou-se de novo para Vandam:-Eles devem estar a receber este material de um oficial ingles. O seu trabalho refere-se às fugas de segurança ... isto é do raio da sua responsabilidade! --E afastou-se, dominado por uma cólera violenta.

Vandam sentou-se no estribo do carro e acendeu um cigarro com mão trémula "Quem será o tal Wolff?", pensou. Não só conseguira penetrar no Cairo e escapar à rede de Vandam, como também obtivera acesso a segredos de alto nível. Claro que era possível que Wolff nada tivesse a ver com a comunicacão-rádio mas custava a crer que pudessem existir dois como ele no Cairo.

De pé ao lado de Vandam, Jakes olhava incrédulo a mensagem decifrada.

--Esta informação está não só a ser passada como também utilizada por Rommel--observou Vandam. --Se se lembra do combate de 5 de Junho ...

--Foi uma chacina--disse Jakes.

"E a culpa foi minha , pensou Vandarn. Bogge tivera razão a esse respeito. Um homem só não podia ganhar a guerra, mas podia perdê-la. Vandam não queria ser esse homem. Jakes fez estalar os dedos:

--Até me esqueci do que vinha dizer-lhe! Chamam-no ao telefone de campanha do QG. Está uma mulher egípcia no seu escritório que diz que quer falar consigo e se recusa a sair. Afirma ter um recado urgente.

"Elene!", pensou Vandam. "Deve ter estabelecido contacto com Wolff." Correu para o telefone.

--Está?

--William?

--Elene!--Desejou dizer-lhe como era bom ouvir-lhe a voz, mas limitou-se a perguntar-lhe: --Que aconteceu?

--Ele foi à loja. Temos um encontro.

--Bom trabalho! onde e quando?

--Amanha à tarde, às sete e meia, no oasis Restaurant.

--Estarei lá, Elene. Não sei dizer-lhe como Lhe estou grato-disse Vandam, e desligou.

Bogge, de pé atrás dele, perguntou:

--Mas que diabo de história é essa de utilizar o telefone de campanha para marcar encontros com as suas namoradas?

O major dirigiu-lhe um sorriso radioso:

--Não era uma namorada, era uma informadora. Estabeleceu contacto com o espião e eu espero prendê-lo amanha à noite.

 

WoLFF observava Sonja a comer. o fígado estava mal passado, rosado e macio, como ela gostava, e Sonja comia com deleite, como habitualmente. Sabiam ambos que Wolff corria um risco, pequeno mas desnecessário, levando-a a um restaurante, mas eram ambos de opinião que valia a pena corrê-lo. O mais importante na vida para os dois era a satisfação dos seus apetites e a vida quase não valeria a pena ser vivida sem boa cozinha.

Sonja acabou o fígado e o criado serviu um sorvete. Quando, finalmente, deixasse de dançar, engordaria. Wolff imaginou-a dali a vinte anos: teria três queixos e um seio imenso.

--De que estás a sorrir?--perguntou-lhe ela.

--De ti, quando fores velha, com um vestido preto informe e um véu.

--Não vou ficar assim. Hei-de viver num palácio, rodeada por jovens de ambos os sexos, atraentes e ansiosos por satisfazer o meu mais pequeno capricho. E tu?

Wolff riu. Chamou o criado e pediu café, brandy e a conta.

--Tenho notícias para ti--disse a Sonja.--Foste tão eficaz com o major Smith que mereces uma recompensa. Creio que te descobri outra Fawzi.

Sonja ficou subitamente imóvel.

--Quem é ela?

--A sobrinha do merceeiro. Uma beleza. E está morta por se livrar do Aristopoulos. Convidei-a para jantar amanha à noite.

--E leva-la ao barco?

--Talvez. Não quero estragar tudo apressando-a.

Wolff beberricou o brandy. Sentia-se bem: comera opiparamente, bebera um vinho capitoso, conseguira resultados frutuosos na sua missão e tinha a perspectiva de uma nova aventura. Quando Lhe apresentaram a conta, pagou com notas de libra inglesas.

Quando estavam prestes a sair do restaurante, Ibrahim, o proprietário, aproximou-se com a garrafa do brandy.

--Monsieur, madame, espero que aceitem um cálice de brandy com os cumprimentos da casa.

--E muito amável--respondeu Wolff.

Ibrahim serviu-lhes o brandy, inclinou-se numa vénia e afastou-se. Aquela oferta demorá-los-ià um pouco mais, pensou.

Dois dias antes, um amigo que era caixa do Metropolitan Hotel informara-o de que o tesoureiro-geral inglês se recusara a trocar algumas notas de -libra inglesas qué tinham sido passadas no seu bar. As notas eram falsas. E a maior injustiça residia no facto de os Ingleses terem confiscado o dinheiro.

Tal não aconteceria a Ibrahim. o seu amigo do Metropolitan ensinara-lhe a identificar as falsificações, e desde então verificava todas as notas de libra recebidas antes de as guardar. Quando recebeu as notas falsas pagas pelo europeu alto que pedira os pratos mais caros para a famosa dançarina do ventre, resolvera chamar a Polícia Militar Britanica. A Polícia evitaria que o cliente fugisse e talvez ajudasse a persuadi-lo a pagar por cheque ou mediante uma nota de dívida. Ibrahim saiu pela porta das traseiras, a fim de utilizar o telefone de um vizinho.

Regressou decorridos minutos, e Wolff viu-o falar em segredo com um criado. Calculou que o tema da conversa fosse a famosa Sonja.

Ela bocejou. Eram horas de a meter na cama. Wolff dirigiu um aceno ao criado e pediu-lhe:

--Traga-me, por favor, o abafo da senhora.

O homem afastou-se, de passagem segredou umas palavras ao proprietário e continuou a dirigir-se para o vestiário. Soou um alarme no cérebro de Wolff.

Brincou com uma colher enquanto esperava pelo agasalho de Sonja. O proprietário saiu pela porta principal e entrou de novo. Dirigiu-se à mesa deles e perguntou:

--Desejam que chame um táxi?

--Apetece-me tomar um pouco de ar--respondeu Wolff.-Vamos

andar um bocado. O criado trouxe o agasalho de Sonja. o proprietário não desviava os olhos da porta. Wolff ouviu outro alarme, desta vez mais forte, e perguntou ao proprietário:

--Aconteceu alguma coisa?

O homem pareceu preocupado.

--Tenho de abordar consigo um problema delicado ... -ouviu-se um veículo parar ruidosamente à porta.--o dinheiro com que me pagou ... é falso.

A porta do restaurante foi violentamente aberta e entraram três polícias militares. Wolff fitou-os, boquiaberto. Os acontecimentos sucediam-se com uma rapidez espantosa! Polícia Militar. Dinheiro falso. De súbito, teve medo. Podia ser preso. Aqueles imbecis de Berlim deviam ter-lhe dado notas falsas.

Os PMs, dois ingleses e um australiano, dirigiram-se para a mesa. Cada um deles trazia uma arma pequena no coldre do cinto. O inglês de patente mais elevada perguntou:

--É este o homem?

--Um momento--pediu Wolff, e ficou estupefacto com a calma que transparecia na sua voz.--O proprietário acaba de me dizer que o meu dinheiro é falso. Não acredito, mas estou disposto a satisfazê-lo. Tenho a certeza de que podemos chegar a um acordo. Francamente, não era necessário chamar a Polícia.

O PM de patente mais elevada redarguiu:

--É crime passar dinheiro falso.

--Desde que se saiba que o dinheiro é falso.--Ao ouvir a sua própria voz, serena e persuasiva, Wolff sentiu a sua confiança aumentar.--Bom, passo um cheque para pagamento da minha conta e pago a gorjeta em dinheiro egípcio. Amanha levo as supostas notas falsas ao tesoureiro-geral inglês para as examinar, e se forem realmente falsas, entrego-lhas. Creio que esta solução satisfaz todos.

--Mesmo assim, tem de vir comigo--redarguiu o PM. –Precisamos de Lhe fazer algumas perguntas. São as ordens que tenho.

--Muito bem--concordou Wolff. Sentia o medo a incutir-lhe nos braços uma força desesperada.

Quando se ergueu, levantou a mesa e lançou-a ao PM. A aresta atingiu a cana do nariz do oficial, que caiu para trás. A mesa tombou sobre ele.

Wolff agarrou no proprietário e atirou-o ao segundo PM inglês.

Depois lançou-se ao terceiro PM, o australiano, e desferiu-lhe um soco na cara. o australiano, porém, não caiu. o PM inglês afastou o proprietário do caminho e atirou Wolff ao chão com um pontapé.

Wolff caiu pesadamente e bateu com as costas no pavimento de mosaico. O inglês saltou-lhe para o peito, agredindo-o na cabeça. O australiano sentou-se sobre os pés de Wolff. Então o espião viu sobre ele o rosto de Sonja, distorcido pela cólera. Num relampago percebeu que ela recordava outro espancamento administrado por soldados ingleses. A dançarina ergueu no ar uma pesada cadeira e abateu-a com toda a sua forca sobre os polícias. Um canto atingiu a boca do PM inglês, que soltou um grito de dor.

O australiano levantou-se e agarrou Sonja por detrás. Wolff empurrou o inglês ferido e ergueu-se de um salto.

Levou a mão ao interior da camisa e retirou a faca.

O australiano empurrou Sonja para o lado, deu um passo em frente, viu a faca e deteve-se. Wolff viu os olhos do homem passarem de um lado para o outro, onde os seus companheiros jaziam no chão. Depois, levou a mão ao coldre.

Quando Sonja se atirou ao PM, Wolff virou-se e correu para a porta, que abriu ruidosamente. Ao mesmo tempo soou um tiro.

 

VANDAM conduzia a motocicleta através das ruas a uma velocidade perigosa. Arrancara do farol a cobertura do blackout e guiava com o dedo polegar na buzina. Serpenteando por entre o transito, indiferente às buzinadelas indignadas dos automobilistas e aos seus punhos fechados e ameaçadores.

O subchefe da Polícia Militar telefonara-lhe para casa:

--Vandam, acabámos de receber um telefonema de um restaurante onde um europeu está a tentar passar dinheiro falso.

- Onde? - o subchefe informou-o e Vandam saiu de casa no mesmo momento, desesperadamente ansioso por apanhar Alex Wolff.

Guinou para evitar um buraco, depois acelerou e desceu velozmente uma rua tranquila. A direccão era próximo da Cidade Velha. Contornou mais duas esquinas e chegou. Encontrava-se a meio da rua, estreita e escura, quando ouviu um tiro de arma ligeira e o som de um vidro estilhaçado. Um homem alto saiu a correr de uma porta. Tinha de ser Wolff.

Vandam sentiu um ímpeto de selvajaria e lancou-se em perseguição do homem, que mantinha iluminado pelo feixe luminoso do farol. O fugitivo corria velozmente, movimentando agilmente as pernas possantes. Quando a luz o atingiu, olhou para trás, por sobre o ombro. Vandam vislumbrou um nariz de falcão, um bigode e uma boca aberta e ofegante. Se os oficiais do QG andassem armados, tê-lo-ia alvejado a tiro.

A motocicleta ganhava rapidamente terreno. Quando se encontrava quase a par do espião, Wolff dobrou subitamente uma esquina. Vandam travou, a roda de trás derrapou e imobilizou-se e a motocicleta arrancou de novo, veloz.

Viu Wolff desaparecer num beco estreito. Sem afrouxar, Vandam

descreveu a curva e entrou também no beco. A motocicleta mergulhou no vácuo e o estômago de Vandam revolveu-se. O cone de luz branca do farol não iluminou nada. o major supôs que caía num buraco. A roda traseira bateu em qualquer coisa, a dianteira desceu e bateu também. o farol iluminou um lanco de degraus. A motocicleta saltou pousou de novo e foi descendo os degraus numa série de solavancos. A cada solavanco, Vandam convência-se de que ia perder o controle do veículo e despenhar-se pela escada abaixo. Mas chegou ao fundo. Viu Wolff contornar outra esquina e seguiu-o. Estavam num labirinto de becos. Wolff subiu a correr um curto lanço de degraus.

Vandam acelerou. IJm momento antes de chegar ao fundo da escada, torceu o guiador e a roda da frente levantou-se. A motocicleta subiu os degraus, de novo aos solavancos, e Vandam chegou ao cimo.

Encontrou-se num corredor comprido, entre paredes altas e nuas. Wolff precedia-o ainda, sem deixar de correr. Vandam acelerou, alcançou-o, abrandou para o ultrapassar e depois travou bruscamente. A roda de trás derrapou e a da frente chocou com uma parede. o major saltou quando a motocicleta caiu e aterrou

de pé, voltado para Wolff. o farol partido projectava um feixe de luz na escuridão do corredor. Sem afrouxar a corrida, Wolff saltou sobre a motocicleta e chocou com Vandam. Este, ainda desequilibrado, cambaleou para trás e caiu. Tacteou às cegas, no escuro, encontrou o tornozelo de Wolff, agarrou-o e puxou-o. Wolff estatelou-se também no chão.

o motor da motocicleta desligara-se e, no silencio, Vandam ouvia a respiração do seu adversário, entrecortada e rouca. E sentia também o seu cheiro: uma mistura de álcool, suor e medo. Mas não Lhe via o rosto. Durante uma fraccão de segundo os dois homens permaneceram no chão, um exausto e o outro momentaneamente atordoado. Depois, levantaram-se ambos e Vandam atirou-se a Wolff. Tentou imobilizar-lhe os braços, mas não conseguiu agarrá-lo. De súbito, mudou de táctica e desferiu-lhe um soco. Acertou em qualquer coisa mole e Wolff deixou escapar um som cavo. Vandam vibrou novo golpe, visando a cara, mas Wolff esquivou-se. A luz mortiça do beco, Vandam viu algo brilhar-lhe na mão. "Uma faca!", pensou.

A lamina faiscou, direita à sua garganta, e ele lançou a cabeca para trás, num reflexo instantaneo. Sentiu uma dor no rosto semelhante a uma queimadura e levou a mão à face, onde o sangue quente jorrava abundantemente. Em seguida, percebeu que caía, ouviu Wolff afastar-se a correr e mer ulhou na escuridão.

 

No hospital, uma enfermeira anestesiou metade da cara de Vandam, após o que a Dr.a Abuthnot Lhe suturou o golpe.

Aplicou um penso e segurou-o com uma ligadura, que Lhe amarrou em torno da cabeca.

--Devo parecer a caricatura de alguém com dores de dentes comentou o major.

Ela mantinha uma expressão grave. Não tinha o menor sentido de humor.

--Não vai sentir-se tão espirituoso quando o efeito do anestésico passar--preveniu.--A cara vai doer-lhe. Vou dar-lhe um analgésico.

--Não quero, obrigado-- respondeu Vandam.

--Não arme em duro, major, que se arrepende.

Ao observar a médica na sua bata branca hospitalar e calcando sapatos de salto baixo, Vandam perguntou a si próprio como pudera ter-se sentido atraído por ela. Era atraente, mas simultaneamente fria, superior e anti-séptica. Nada como Elene.

--Um analgésico poe-me a dormir e eu tenho um trabalho importante e urgente para fazer--esclareceu.

--Você não pode trabalhar. A perda de sangue enfraqueceu-o, e dentro de poucas horas vai sentir-se tonto e exausto.

--Vou sentir-me pior se os Alemães ocuparem o Cairo.

Levantou-se, apertou-lhe a mão e saiu.

Jakes esperava-o à porta com um carro.

--Já sabia que não conseguiam conservá-lo lá dentro muito tempo, meu major. Levo-o a casa?

--Não--respondeu Vandam, cujo relógio parara.--Que horas são?

--Duas e cinco.

--Presumo que Wolff não estava a jantar sozinho?

--Não, meu major. A sua companheira está no QG, sob prisão.

Uma autêntica brasa chamada Sonja.

--A dançarina?

--Nem mais.

--Leve-me lá. --o automóvel arrancou.

Wolff era ousado, pensou Vandam, para sair assim com a mais famosa dançarina de ventre do Egipto nos intervalos entre os roubos de segredos militares britanicos. Bem, naquele momento já não devia sentir a mesma ousadia, o que, de certo modo, era lamentável: advertido pelo incidente de que os Ingleses Lhe andavam no encalço, passaria a ter mais cuidado.

Chegaram ao QG e apearam-se.

--Que Lhe fizeram desde que ela chegou?--perguntou Vandam a Jakes.

--Nada. Está numa sala vazia sem comida, nem água, nem perguntas.

--óptimo.--Era, no entanto, de lamentar que a jovem tivesse disposto de tempo para ordenar os pensamentos.

Jakes conduziu-o à sala onde Sonja se encontrava. Vandam espreitou pelo ralo. Era uma sala quadrada e sem janelas, mas bem iluminada electricamente, onde havia uma mesa e duas cadeiras. Jakes tinha razão: Sonja era uma brasa. Contudo, não era de modo algum bonita. Tinha um não-sei-quê de amazona, com o seu corpo maduro e voluptuoso e as suas feições de traços vincados. Envergava um vestido comprido amarelo-vivo e percorria o aposento a passos largos.

Vandam abriu a porta e entrou. Sentou-se à mesa sem pronunciar uma palavra, deixando a dançarina em pé, o que constituía uma desvantagem psicológica para uma mulher. "o primeiro ponto é meu", pensou. Ouviu lakes entrar atrás dele, olhou para Sonja e disse-lhe:

--Sente-se.

Ela continuou em pé, fitando-o, e um sorriso alastrou-lhe pelo rosto. Apontou para a ligadura e perguntou:

--Foi ele que Lhe fez isso?

"O segundo ponto é dela."

--Sente-se -- repetiu Vandam, e ela sentou-se. "ele " ?

--Alex Wolff, o homem que vocês tentaram espancar esta a noite.

--E quem é Alex Wolff?

--Um frequentador rico do Cha-Cha Club.

--Há quanto tempo o conhece?

Ela consultou o relógio antes de responder:

--Há cinco horas.

--Quais são as suas relações com ele?

--Saímos juntos--respondeu com um encolher de ombros.

--Como se conheceram?

--Do modo habitual. Mr. Wolff convidou-me para uma mesa, ofereceu-me uma taça de champanhe e perguntou-me se queria jantar com ele. Aceitei.

--Porquê?

--Mr. Wolff pareceu-me um homem invulgar. --olhou de novo para o rosto de Vandam e sorriu.--É de facto um homem invulgar.

--Qual é a sua morada?

--Jlhan, Zamalek. É um barco-habitação.

--Idade?

--Que indelicadeza! Recuso-me a responder.

--Está a pisar terreno perigoso ...

--Não, quem está a pisar terreno perigoso é você!--A sua fúria súbita assustou Vandam.--Pelo menos dez pessoas viram os seus fanfarrões fardados prender-me. Por volta do meio-dia, metade do Cairo saberá que os Ingleses prenderam Sonja. Se eu não aparecer no Cha-Cha, haverá uma amotinação. Não, senhor, não sou eu que estou a pisar terreno perigoso.

O rosto de Vandam permaneceu inexpressivo. O oficial teve de ignorar o que ela dizia, porque era verdade.

--Recapitulemos--disse brandamente.--Disse que conheceu Wolff no Cha-Cha ...

--Não, eu não recapitulo nada--interrompeu-o.--Respondo a perguntas, mas não serei interrogada.--Ergueu-se, virou a cadeira e sentou-se de costas para Vandam.

O major fitou-lhe a nuca com um misto de cólera consigo mesmo por Lhe permitir manobrá-lo daquela maneira e uns laivos de admiração pela forma como ela agia. Ergueu-se bnuscamente e saiu seguido por lakes. No corredor disse ao seu subordinado:

--Temos de a deixar ir embora.

Jakes afastou-se, a fim de transmitir as instrucoes necessárias. Enquanto esperava, Vandam pensou em Sonja e perguntou a si mesmo a que reservas teria ela ido buscar a força para o desafiar. Era verdade que a fama de que gozava Lhe conferia uma certa protecao,ao mas utilizá-la para o ameaçar reflectia uma atitude de jactância e de um certo desespero.

Evocou mentalmente a conversa. Ela mostrara-se calma e inexpressiva, excepto quando se rira do seu ferimento. No fim, quando se insurgira contra ele, que Lhe lera no rosto? Não fora apenas ira. Nem medo. Finalmente, compreendeu: ódio. Ela odiava-o. Mas ele não Lhe era nada, era um mero oficial inglês. O que significava que ela odiava os Ingleses. E fora o ódio que Lhe incutira força.

Vandam sentiu-se subitamente cansado. Sentou-se pesadamente num banco do corredor. onde iria ele buscar força? Imaginou os nazis a entrarem no Cairo. Para pessoas como Sonja, o domínio britanico no Egipto não se diferênciava do nazi. E, encarando os Ingleses pelos olhos dela, essa concepção justificava-se até certo ponto: os nazis consideravam os judeus sub-humanos, e os Ingleses consideravam os negros crianças; não havia liberdade de imprensa na Alemanha, tal como não havia no Egipto, e os Ingleses, como os Alemães, tinham os seus presos políticos.

O efeito da anestesia no rosto começava a desaparecer. Sentia na face uma linha de dor aguda. Pensou em Billy. Não queria que o rapaz desse pela sua falta ao pequeno-almoço. "Talvez fique acordado, o leve à escola e depois volte para casa e durma."

Como seria a vida de Billy sob o domínio nazi? Ensiná-lo-iam a desprezar os Arabes. os seus professores actuais não eram grandes admiradores da cultura africana, mas ele, pelo menos, podia esforçar-se por que o filho compreendesse que rac,as diferentes não eram forçosamente inferiores.

Pensou em Elene num campo de concentração e estremeceu.

 Não somos muito admiráveis, especialmente nas nossas colónias , pensou, mas os nazis são piores. Basta pensares nas pessoas que amas para a situação se tornar mais clara.

Procura força nisso."

Jakes regressou e Vandam disse Lhe:

--Ela é uma anglófoba, odeia os Ingleses. Não acredito que Wolf tenha sido uma conquista casual. Agora leve me para a csquadra central da Polícia.

Quando Jakes estacionou à porta da esquadra, Vandam disse:

--Quero falar com o chefe dos detectives.

--Não me parece que ele esteja cá a estas horas ...

--Pois não. Vá saber a morada dele e vamos acordá lo.

Jakes entrou no edifício e Vandam contemplou o exterior através do para brisas. A madrugada rompia. As estrelas tinham se apagado e o negro do céu transformava se em cinzento.

Jakes regressou e informou: "Gezira." Atravessaram a ponte que ligava à ilha e Jakes parou defronte de uma casa pequena, agradável, de um só andar e com jardim. Vandam concluiu que o chefe dos detectives estava a auferir lucros razoáveis, embora não exorbitantes, com os subornos. Devia ser um homem cauteloso, o que era bom sinal.

Subiram o caminho e bateram à porta. Jakes usou a sua voz de sargento instrutor:

--Serviço de Informações Militar. Abra!

Decorrido um minuto, um árabe de baixa estatura, mas de configuração elegante, abriu a porta, ainda a afivelar o cinto das calças, e perguntou em inglês:

--Que se passa?

Vandam respondeu Lhe:

- --Uma emergência. Deixa nos entrar?

--Claro.--o detective, que parecia assustado, conduziu os a uma pequena sala. --Que aconteceu?

--Não há motivo para panico--tranquilizou o Vandam. –Queremos um serviço de vigilância e precisamos de o montar imediatamente.

--Com certeza. Sentem se.--o detective procurou um livro de apontamentoS e um lápis. --Quem é pessoa?

--Sonja el-Aram, a dançarina. Quero a sua residência vigiada vinte e quatro horas por dia. Mora num barco-habitação chamado Jlhan, em Zamalek.

Enquanto o detective escrevia, Vandam pensava que gostaria de não ser obrigado a utilizar a Polícia Egípcia para aquele trabalho. Mas num país africano era impossível recorrer a brancos, que se tornavam notados, para missões de vigilância.

--E qual é a natureza do crime?--perguntou o detective.

"Não te vou dizer a ti", pensou Vandam, enquanto respondia:

--Supomos que é associada de alguém que anda a passar libras esterlinas falsas.

--Quer portanto saber quem entra e sai ...

--Exactamente. Há um homem em particular no qual estamos interessados: Alex Wolff, o suspeito do assassínio de Asyut.

Já tem a sua descrição. Se Wolff for visto, quero ser imediatamente informado. Pode comunicar com o capitão Jakes ou comigo para o QG durante o dia. Dê-lhe os nossos números de telefone, Jakes.

Vandam ergueu-se. De súbito, fugiu-lhe a vista e perdeu o equilíbrio. Iakes acorreu imediatamente e agarrou-lhe num braço.

--Sente-se bem, meu major?

Vandam recuperou lentamente a visão.

--Já estou bem.

--Recebeu um ferimento grave--observou o detective com simpatia. E quando chegaram à porta acrescentou:--Podem ter a certeza, meus senhores, de que me encarregarei pessoalmente da vigilância que me pedem. Conheço a área. o caminho do cais é um bom lugar para um mendigo se sentar. Um mendigo passa sempre despercebido. Não entrará um rato a bordo desse barco sem que os senhores saibam.

Vandam apertou-lhe a mão e apresentou-se:

--A propósito, sou o major Vandam.

O detective inclinou-se numa ligeira vénia:

--Superintendente Kemel, às suas ordens, meu major.

 

Capítulo 7

SONJA alimentava uma leve esperança de encontrar Wolff no barco-habitação quando regressou quase ao alvorecer, mas deparou-se-lhe o barco deserto. Inicialmente, quando fora presa, sentira apenas cólera contra Wolff, que a abandonara à mercê dos esbirros ingleses.

Como cúmplice de um espião, aterrara-a pensar no que Lhe poderiam fazer. Mas depois compreendera que Wolff fora inteligente. Ao abandoná-la, desviara dela as suspeitas.

Correra tudo pelo melhor. Sentada sozinha na pequena sala vazia do QG, Sonja dirigira a sua ira contra os Ingleses.

Desafiara-os e eles tinham recuado.

Na ocasião não tivera a certeza de que o homem que a interrogava era o major Vandam, mas quando fora solta o amanuense deixara escapar o nome. A confirmação encantara-a.

Sorriu de novo ao evocar a grotesca ligadura na cara do inglês. Wolff devia tê-lo cortado. Que noite espantosa! Mas onde estaria Wolff? Gostaria que estivesse ali para compartilhar o seu triunfo.

Vestiu a camisa de dormir e preparou um whisky. Quando o provou, ouviu passos no portaló e chamou: "Achmed?" Depois, compreendeu que os passos não eram os dele.

A escotilha foi erguida e um rosto árabe assomou através da abertura.

--Sonja?

--Sim . . .

--Creio que esperava outra pessoa. o homem desceu a escada e Sonja interrogou-se sobre o significado daquela visita. O desconhecido era um indivíduo de baixa estatura, configuração elegante e movimentos rápidos e precisos. Vestia à europeia: calças escuras, sapatos pretos e camisa branca de mangas curtas.

 Sou o superintendente detective Kemel e tenho muito prazer em conhecê-la--apresentou-se, de mão estendida.

Sonja virou-se e sentou-se no diva.

--Que é que quer?

--Estou interessado no seu amigo Alex Wolff.

--Não é meu amigo.

Kemel ignorou o desmentido e prosseguiu:--os Ingleses disseram-me duas coisas a respeito de Mr. Wolff: a primeira, que esfaqueou um soldado em Asyut; a segunda, que tentou passar notas inglesas falsas. Porque esteve ele em Asyut? onde arranjou o dinheiro falso?

--Não sei nada acerca desse homem--insistiu Sonja.

--Mas sei eu--af mou Kemel.--Sei quem é Alex Wolff. o seu padrasto foi advogado aqui no Cairo, e a sua mae era alema.

Também sei que Wolff é um nacionalista. Sei que foi seu amante e sei que você é uma nacionalista.

Sonja estava gelada. Permaneceu imóvel, sem tocar na bebida.

Kemel continuou:--onde arranjou ele o dinheiro falso? Não creio que haja no Egipto um impressor capaz de fazer um trabalho desses. Por

conseguinte, o dinheiro veio da Europa. Wolff, também conhecido por Achmed Rahmha, desapareceu discretamente há dois anos. onde esteve? Na Europa? Voltou--via Asyut. Porquê?

Queria entrar no país sem ser notado? Talvez se tenha aliado a uma quadrilha de falsários ... Mas não o creio, pois não se trata de um homem pobre. Portanto, há um mistério.

"Ele sabe", pensou Sonja. "Meu Deus, ele sabe."--os Ingleses pediram-me que mandasse vigiar este barco-habitação. Esperam que Wolff cá venha. E nessa altura prendem-no. E terão as respostas.

O barco vigiado! "Porque está Kemel a dizer-mo?"

--Penso que a chave do mistério reside na natureza de Wolff que é simultaneamente alemão e egípcio.--Kemel atravessou a sala e sentou-se ao lado de Sonja. --Creio que ele está a lutar pela Alemanha e pelo Egipto. . Acho que o dinheiro falso veio dos Alemães e que Wolff é espião. Se é, posso salvá-lo.

Sonja olhou-o e perguntou:

--Que quer dizer?

--Eu e o capitão Anwar el-Sadat, um dos líderes do Movimento dos oficiais Livres, queremos conhecê-lo em segredo. Você não é a unica pessoa a querer que o Egipto seja livre. Somos muitos a querê-lo. Queremos ver os Ingleses derrotados e não somos escrupulosos em relação a quem os derrote. Queremos falar com Rommel. Se Achmed é espião, deve ter uma maneira de fazer chegar mensagens aos Alemães.

No cérebro de Sonja as ideias entrechocavam-se confusamente.

De acusador Kemel passara a co-conspirador--a não ser que tudo aquilo se tratasse de uma armadilha.

Kemel insistiu calmamente:

--Pode conseguir-nos um encontro?

Não Lhe era possível decidir tão rapidamente. Respondeu:

--Não.

--Lembre-se da vigilância ao barco. os relatórios da vigilância passarão pelas minhas mãos antes de serem enviados

ao major Vandam. Se você conseguir arranjar um encontro, eu, por meu lado, posso garantir que os relatórios serão censurados de

modo que não contenham nada ... embaraçoso.

Sonja compreendeu que não tinha alternativa.

--Eu arranJo um encontro.

--óptimo.--o superintendente levantou-se.--Telefone para o Comando Central da Polícia e deixe um recado a dizer que Sirhan deseja ver-me. Quando receber esse recado, comunico consigo para combinarmos a data e as horas.

--Telefono assim que puder--garantiu Sonja.

--obrigado. -- Estendeu a mão, que desta vez ela apertou.

Kemel subiu a escada, saiu e fechou a escotilha.

Sonja sentia-se cansada. Acabou de beber o whisky que tinha no copo e dirigiu-se para o quarto. ouviu uma pancada e virou-se bruscamente para a vigia do costado voltado para o rio. Por detrás do vidro assomava uma cabeça. Sonja gritou e a cabeça desapareceu.

Compreendeu que fora Wolff e subiu a correr para a coberta.

Debruçou-se sobre a amurada e viu-o na água. Parecia estar nu.

Wolff subiu pelo costado do barco, utilizando as vigias como apoios, e Sonja estendeu- a mão, agarrou-lhe o braço e puxou-o

para bordo. Ele desceu a escada e ela seguiu-o.

Wolff parou sobre a- carpete, a pingar e a tremer.

--Que aconteceu?--. perguntou ela.

--Poe-me um banho a correr--pediu ele:

Sonja entrou.na casa de banho e abriu as torneiras. Wolff introduziu-se na banheira e deixou a água cobrir-lhe o corpo.

--Não me quis arriscar a vir pelo-caminho do cais, por isso despi-me na outra margem e vim a nado Espreitei e vi aquele homem contigo. outro polícia?

--Sim.

--Tive de esperar dentro de água que ele se fosse embora. Meu Deus, estou gelado! o raio da Abwehr deu-me dinheiro falso.

Fecha a água, sim?--pediu, enquanto começava a tirar o lodo do rio das pernas.

--Isso significa que vais ter de usar o teu próprio dinheiro-observou Sonja.

--Não posso ur buscá-lo. Podes ter a certeza de que o banco tem instruções para chamar a Polícia assim que eu aparecer.

"Nesse caso, vais ter de usar o meu dinheiro", pensou Sonja.

"Mas não vais pedir; vais limitar-te a utilizá-lo."

--o detective que cá esteve vai mandar vigiar o barco, segundo instruções de Vandam.

Wolff sorriu.

--Era então o Vandam!

--Esfaqueaste-o?

--Esfaqueei, mas estava escuro e não pude ver onde.

--Na cara. Traz uma grande ligadura.

Wolff riu-se.

--Gostava de o ver! Foi ele quem te interrogou?

--Foi. Disse-lhe que mal te conhecia.

--Linda menina!--olhou-a apreciativamente e ela compreendeu que estava satisfeito. --Ele acreditou-te?

--Presumivelmente não, uma vez que ordenou a vigilância ao barco. Mas não te preocupes. o detective é dos nossos.

--Nacionalista?

--Sim. Quer utilizar o teu rádio.

--Como sabe que eu tenho rádio?--perguntou Wolff.

--Não sabe. Deduziu que eras espião e presume que um espião deve ter meio de comunicação com os Alemães. os nacionalistas querem enviar uma mensagem a Rommel.

Wolff abanou a cabeça e respondeu:

--Prefiro não me envolver.

--Não tens outra solução--replicou ela secamente.

--Também acho--admitiu, fatigado.--Eles estão a apertar o cerco. Gostava de abandonar este barco, mas não sei para onde ir. Raios!

Sonja sentou-se na borda da banheira, fitando-o. Wolff parecia... não ... não, não era derrotado, mas pelo menos encurralado. Pela primeira vez dependia dela. Precisava do seu dinheiro e da sua casa. Poucas horas antes apenas dependera do seu silêncio durante o interrogatório, e agora acabava de ser salvo graças ao acordo feito por ela com o detective nacionalista. Sonja experimentou uma estranha e inebriante sensação de poder. Era como se fosse ela quem detivesse o controle da situação.

--Pergunto a mim mesmo se deva comparecer ao encontro com a tal rapariga, Elene, logo à noite. Talvez seja mais seguro não me arriscar.

--Não--contrapôs Sonja em tom firme. --Quero-a.

Ele olhou-a através dos olhos semicerrados, e Sonja perguntou a si mesma se ele teria reconhecido a força que ela acabara de adquirir.

Está bem -- acedeu Wolff. -- Só vou ter de tomar precauções.

Ele cedera. Sonja pusera à prova a sua força contra a dele e

vencera. Sentiu um frémito de excitação.

SENTADo no oasis Restaurant, ao lado de Jakes, a saborear um martini fresco, Vandam sentia-se na melhor das disposições.

Dormira todo o dia e acordara com a sensação de um vencido pronto a ripostar. Fora ao hospital, onde a Dr.a Abuthnot Lhe substituira o penso por outro menor que não precisava de ser seguro por uma ligadura. E agora, decorridos alguns minutos, apanharia Alex Wolff.

Vandam e Jakes estavam no fundo do restaurante, de onde podiam abarcar toda a sala. A mesa mais próxima da entrada estava ocupada por dois corpulentos sargentos que comiam frango frito. No exterior, num automóvel sem qualquer distintivo, encontravam-se dois PMs à paisana e com armas ligeiras no bolso do casaco. A armadilha estava montada: faltava apenas a isca. Elene deveria chegar de um momento para o outro.

De manha, ao pequeno-almoço, Billy ficara abalado ao ver a ligadura. Depois de pedir ao filho que jurasse guardar segredo, Vandam contara-lhe a verdade: "Lutei com um espião alemão que tinha uma faca. Ele safou-se, mas penso que vou apanhá-lo esta noite." Atentara contra a segurança ao contar-lhe a verdade, mas o rapaz precisava de saber por que motivo o pai estava ferido. Billy sentira-se emocionado.

Vandam consultou o relógio. Sete e meia. De um momento para o outro Alex entraria no restaurante. Vandam tinha a certeza de que o reconheceria: um europeu alto, forte e desempenado,de nariz adunco, cabelo e olhos castanhos. Mas não esboçaria qualquer movimento enquanto Elene não chegasse e se sentasse ao lado de Wolff. Nesse momento, Vandam e Jakes aproximar-se-iam. Se Wolff fugisse, os dois sargentos bloqueariam a porta e os PMs do exterior dariam apoio.

Sete e trinta e cinco. A porta do restaurante abriu-se e Elene entrou. Estava fascinante, de vestido de seda de cor creme, cujas linhas simples realçavam a sua figura esbelta e cuja cor e textura estabeleciam um contraste harmonioso com a sua pele bronzeàda.

Percorreu com os olhos o restaurante, à procura de Wolff, sem o encontrar o seu olhar cruzou-se com o de Vandam, mas desviou-se sem hesitar o chefe de mesa indicou-lhe uma mesa perto da porta.

onde estaria Wolff? Vandam acendeu um cigarro e começou a ficar preocupado. E se, após o susto da noite anterior, Wolff tivesse decidido manter-se inactivo por uns tempos? No entanto, e sem qualquer justificação concreta, o major sentia que permanecer inactivo não era o estilo de Wolff. Pelo menos esperava que não fosse.

Um criado serviu uma bebida a Elene. Eram sete e quarenta e cinco. A porta do restaurante abriu-se. Vandam ficou tenso, mas logo se descontraiu, decepcionado. Era apenas um rapaz que entregou um papel a um criado e voltou a sair.

Vandam viu o criado dirigir-se à mesa de Elene e entregar-lhe o papel. Franziu a testa. Que significava aquilo? Uma desculpa de Wolff, alegando uma impossibilidade de comparecer ao encontro? Elene olhou para Vandam e encolheu ligeiramente os ombros. Pegou na mala que colocara na cadeira ao lado e ergueu-se. Vandam pensou que ela ia ao lavabo das senhoras, mas em vez disso viu-a dirigir-se para a porta e abri-la.

Vandam e Jakes levantaram-se simultaneamente. Enquanto atravessavam rapidamente o restaurante em direcção à saída, Vandam ordenou aos sargentos: "Sigam-me."

Quando chegaram à rua, viram Elene meter-se num táxi, a poucos metros de distância. Vandam desatou a correr, mas a porta do táxi bateu e o carro arrancou.

Do lado oposto da rua o automóvel dos PMs arrancou também e colidiu com um autocarro. Vandam alcançou o táxi e saltou para o estribo. o automóvel guinou bruscamente, ele desequilibrou-se e caiu. Ergueu-se, sentindo uma dor lancinante no rosto: o ferimento sangrava de novo. Jakes e os dois sargentos rodearam-no. Do outro lado da rua os PMs discutiam com o motorista do autocarro.

o táxi desaparecera.

 

ELENE estava aterrorizada. Correra tudo mal. Wolff deveria ter sido preso, mas estava ali no táxi com ela, ostentando um sorriso ferino. A jovem permanecia imóvel, com o cérebro vazio.

--Quem era ele?--perguntou Wolff.--Aquele homem que correu atrás de nós. Não consegui vê-lo bem, mas pareceu-me europeu.

Elene dominou o medo e respondeu:

--Não sei.--De súbito, teve uma inspiração:--Tinha estado a incomodar-me. Por sua culpa, que veio atrasado.

--Peco desculpa-- murmurou apressadamente. --Mas tive uma ideia maravilhosa: vamos fazer um piquenique. Trago um cesto com comida no porta-bagagem.

Elene ficou sem saber se deveria ou não acreditá-lo. Porque Lhe teria ele enviado um rapaz com a mensagem "Saia. A. W.", senão porque desconfiava de uma armadilha? E que faria agora?

Levá-la-ia para o deserto e esfaqueá-la-ia? Sentiu o desejo súbito e imperioso de saltar do automóvel, mas obrigou-se a pensar calmamente. Se ele suspeitara de uma armadilha, porque comparecera? Não, a situação era com certeza mais complexa do que parecia.

--Aonde vamos?--perguntou.

--A um lugar junto ao rio, a poucos quilómetros da cidade, onde podemos ver o pôr do Sol.

--Não quero ir. Mal o conheço.

--Por favor--pediu, e tocou-lhe ligeiramente no braço. –Tenho no cesto salmão fumado, um frango frio e uma garrafa de champanhe. Aborreço-me tanto nos restaurantes!

Elene reflectiu. Podia deixá-lo naquele momento e ficaria em segurança. "Mas sou a única esperança de Vandam", pensou.

Tinha de ficar com Wolff e tentar descobrir onde ele morava.

Dirigiu-lhe um sorriso forçado e aquiesceu:

--Está bem.

Wolff desviou a sua atenção para o motorista. Encontravam-se já fora da cidade, e o espião começou a dar-lhe instruções.

Atravessaram uma série de aldeias, seguiram um atalho sinuoso que subia uma colina e emergiram num pequeno planalto, no cimo de uma escarpa. o rio corria imediatamente abaixo e, do lado oposto, Elene viu a manta de retalhos nitidamente delineada dos campos cultivados que

se estendiam até à orla do deserto.

--Não é um lugar maravilhoso?--perguntou Wolff.

Elene teve de concordar com ele. Um bando de andorinhões que levantou voo da margem oposta atraiu-lhe o olhar. Notou então que as nuvens vespertinas já se orlavam de cor-de-rosa. Um falucho solitário navegava rio acima, impelido por uma ligeira brisa.

o motorista saiu do automóvel e afastou-se uns cinquenta metros. Sentou-se de costas para eles e abriu um jornal. Wolff foi buscar o cesto do piquenique ao porta-bagagem e colocou-o entre ambos.

--Como descobriu este lugar?--perguntou-lhe Elene.

--A minha mae vinha para aqui comigo quando eu era pequeno.

--Estendeu lhe uma taça de champanhe.--Depois de o meu pai morrer a minha mae casou com um egípcio. De vez em quando, quando achava o ambiente muçulmano opressivo, vínhamos para aqui.

--Você gostava?

--Naquela idade preferia a minha família árabe. os meus meios-irmãos eram maus e ninguém tentava corrigi-los.

Costumávamos roubar laranjas e furar camaras-de-ar de bicicletas. Só a minha mae se preocupava e estava sempre a dizer: "Ainda um dia te apanham, Alex ! "

Mentalmente, Elene deu razão à mae.

--onde mora agora?--perguntou.

--A minha casa foi ... requisitada pelos Ingleses. Moro com amigos.

Estendeu-lhe uma fatia de salmão fumado num prato de porcelana e depois cortou um limão ao meio. Elene perguntou a si mesma que quereria ele dela para se esforçar tanto por Lhe agradar.

DoíAM a cara e o orgulho a Vandam. A grande prisão fora um fracasso. Falhara profissionalmente--Alex Wolff sobrepujara-o em esperteza, e por sua culpa Elene corria perigo.

Estava em casa, com a cara pensada de novo, a beber gin para aliviar a dor. Tinham o número de matrícula do táxi, e todos os polícias e PMs da cidade haviam recebido ordens para o deterem e prenderem os ocupantes. Haviam de encontrá-lo, mais cedo ou mais tarde, mas Vandam tinha a certeza de que seria demasiado tarde. No entanto, permanecia sentado junto do telefone.

Que faria Elene naquele momento? Talvez se encontrasse num restaurante iluminado a velas, bebendo vinho e rindo dos gracejos de Wolff. Que fariam depois? Se fossem para casa dele, Elene comunicaria com ele na manha seguinte e Vandam poderia prender Wolff com o seu rádio e o seu livro-código.

Profissionalmente, esta situação seria preferível, mas por outro lado significaria que Elene teria passado uma noite com Wolff, ideia que o enfurecia mais do que deveria. Se, como alternativa, se dirigissem para casa dela, onde Jakes aguardava com dez homens, Wolff seria apanhado antes de ter oportunidade de ...

Vandam levantou-se e começou a percorrer o aposento a passós largos. Já uma vez colocara outra jovem em perigo. Após o seu outro grande fracasso, quando Rashid Ali, o nacionalista iraquiano, fugira da Turquia nas suas próprias barbas, Vandam encarregara uma mulher de localizar o agente alemão que ajudara Ali a fu ir, na esperança de atenuar o fracasso apurando a verdade sobre o indivíduo. No dia seguinte, porém, a mulher fora encontrada morta numa cama de hotel. Era um paralelo arrepiante.

Seria inútil tentar dormir. Reunir-se-ia a Jakes em casa de Elene, não obstante as ordens da Dr.a Abuthnot. Vestiu um casaco e retirou a motocicleta da garagem.

 

ELENE e Wolff permaneciam de pé junto ao rebordo do alcantil, contemplando as luzes distantes do Cairo. Elene considerava chegado o momento de Wolff tentar a sorte. Tinham terminado a refeição, esvaziado a garrafa de champanhe e comido as uvas todas. Agora ele devia esperar a recompensa. Sem uma palavra, Elene virou costas à paisa em e regressou ao automóvel. Ele permaneceu mais um m( rnento junto da escarpa e depois reuniu-se a Elene, chamou o mo!orista e entrou no carro.

--Gostou do piquenique?--perguntou, quando se sentou ao lado

dela.

--Gostei, foi delicioso--respondeu, fazendo um esforço para se mostrar animada.

O automóvel arrancou. Quer a convidasse para ir a casa dele, qucr a levasse a casa dela e pedisse para subir, a fim de tomarem uma bebida, teria de encontrar maneira de recusar.

Chegaram aos subúrbios da cidade. Passava da meia-noite e as

ruas estavam silenciosas.

--Onde mora?--perguntou Wolff.

Ela disse-lhe. Seria então em sua casa.

A alguns quilómetros de sua casa, porém, Wolff mandou o motorista parar e virou-se para ela:

--Obrigado por esta noite encantadora. Volto a vê-la em breve.

E saiu do táxi.

Ela ficou estupefacta, enquanto ele se inclinava junto da janela do motorista, Lhe dava algum dinheiro e Lhe indicava a morada de Elene. O motorista acenou afirmativamente e arrancou. Elene olhou para trás e viu Wolff caminhar na direcção do rio.

"Que te parece isto? Nenhum atrevimento, nenhum convite para ir a casa dele, nem sequer um beijo de despedida ...", pensou.

Que jogo seria o dele? Fosse qual fosse, sentia-se grata por ele a ter deixado.

O táxi deteve-se defronte de casa dela. De súbito, ouviram.-se os motores de três automóveis e surgiram homens das sombras.

As quatro portas do táxi foram violentamente abertas e quatro armas apontadas para o interior. Elene gritou.

Depois, assomou uma cabeça, e ela reconheceu Vandam.

--Foi-se embora?--perguntou o major.--Há quanto tempo o deixou?

--Há cinco ou dez minutos. Posso sair do carro?

Vandam estendeu-lhe a mão e ela apeou-se do táxi.

--Desculpe termo-la assustado--disse ele. Tinha a expressão de um homem derrotado.

Elene sentiu um ímpeto de afecto por ele e tocou-lhe no braço.

--Porque não manda os seus homens embora e não sobe e conversamos em minha casa?

Após uma ligeira hesitação, Vandam voltou-se para um dos homens e disse-lhe:

--Jakes, veja o que pode arrancar ao motorista. Vemo-nos depois no QG.

Elene entrou em casa, precedendo-o. Experimentou uma sensação agradável por entrar na sua própria casa e deixar-se cair no sofá. A provação terminara. Wolff partira e Vandam estava ali com ela.

--Que é que correu mal?--perguntou ela.

Vandam sentou-se à sua frente e explicou:

--Esperávamos que não tomasse precauções e caísse na armadilha ... mas ele desconfiou, ou, pelo menos, foi cauteloso, e perdemo-lo. Que é que aconteceu?

Elene relatou-lhe o piquenique. Falava em frases curtas e secas: queria esquecer e não recordar. Quando acabou, disse:

--Prepare-me uma bebida e outra para si.

Vandam dirigiu-se ao bar e Elene sentiu a sua fúria. Reparou pela primeira vez no penso que ele tinha na face.

--Que aconteceu à sua cara?

--Quase apanhámos Wolff a noite passada.

--oh, não!

O que significava que falhara duas vezes em vinte e quatro horas. Não admirava que parecesse derrotado. Desejou consolá-lo, envolvê-lo nos braços, deitar a cabeça dele no seu colo e afagar-lhe o cabelo.

Vandam estendeu-lhe a bebida que preparara. Quando ele se inclinou, Elene estendeu a mão e, apoiando as pontas dos dedos No queixo dele, virou-lhe o rosto de frente de modo a ver-lhe a face ferida. Ele consentiu que ela Lhe examinasse o ferimento durante apenas um segundo, mas depois desviou a cabeça.

 

Elene nunca até então o vira tão tenso. Ele atravessou a sala e sentou-se de novo em frente dela, na borda da cadeira, numa postura erecta. Via-se que continha uma emoção, algo semelhante a raiva, mas quando Elene o fitou nos olhos viu dor, e não cólera.

--Que Lhe pareceu Wolff?--perguntou Vandam.

--Encantador. Inteligente. Perigoso. Que pretende você saber?

--Nada-- respondeu, sacudindo a cabeça com irritação. Tudo.

Mas que tinha ele? Havia um não-sei-quê de familiar na sua cólera. Não era apenas o sentir que falhara, era também a sua atitude para com ela.

--Wolff disse que voltava a vê-la?

--Disse "Temos de fazer isto outra vez", ou qualquer colsa desse genero.

--Em sua opinião que tinha ele ao certo em mente?

--Outro encontro--respondeu Elene, encolhendo os ombros.

Mas que tem você, William?

--Sinto-me curioso, mais nada--respondeu com um sorriso forçado.--Gostava de saber o que fizeram os dois além de comer e beber. Todo esse tempo juntos, às escuras, um homem e uma mulher . . .

--Cale-se--pediu Elene, e fechou os olhos. Agora compreendia.

--Vou-me deitar--disse, sem abrir os olhos.--Você não precisa que o acompanhe para sair.

Poucos segundos depois, a porta bateu.

Elene aproximou-se da janela e olhou para a rua. Viu-o sair do prédio, montar na motocicleta, ligar o motor e descer velozmente a estrada Não obstante o cansaço, Elene não se sentia infeliz, pois conhecia a causa da irritação de Vandam, e esse conhecimento infundia-lhe esperança. Esboçou um breve sorriso e murmurou: "William Vandam, creio que estás com ciúmes."

 

Capítulo 8

QUANDo o major Smith fez a sua terceira visita da hora do almoço ao barco-habitação Wolff e Sonja já tinham estabelecido uma rotina. Wolff ocultava-se no armário quando via o major aproximar-se e Sonja aguardava-o na sala com uma bebida. Fazia-o sentar-se para se assegurar de que ele pousava a pasta, e decorridos um ou dois minutos começava a beijá-lo e obrigava-o a despir a camisa. Pouco depois, levava-o para o quarto. Assim que ouvia a cama ranger, Wolff saía do armário, retirava a chave da algibeira da camisa do major e com o lápis e o livro de apontamentos preparados, abria a pasta.

A segunda visita de Smith fora decepcionante; mas desta vez Wolff acertou de novo em cheio. Descobriu que o general Sir Claude Auchinleck, comandante-chefe do Médio oriente, assumira o controle directo do 8.o Exército Britanico. Só esse facto, significativo do panico dos Aliados, constituiria uma boa notícia para Rommel. E também poderia vir a facilitar a missão de Wolff, pois implicava que os planos de combate passariam a ser gizados no Cairo, e não no deserto, pelo que era mais provável que Smith obtivesse cópias deles.

O papel mais importante da pasta de Smith era um resumo da nova linha defensiva dos Aliados em Mersa Matruh. A nova linha começava na aldeia costeira de Matruh e estendia-se para sul, penetrando no deserto até uma escarpa conhecida pelo nome de Sidi Hamza. O l0.o Destacamento encontrava-se em Matruh.

Seguia-se um campo de minas com vinte e quatro quilómetros de extensão, outro campo de minas mais esparsas prolongando-se por dezasseis quilómetros, a escarpa e, a sul desta, o 13.o Destacamento.

O quadro era relativamente claro: a linha aliada oferecia uma defesa forte nas duas extremidades e pouca resistência no meio. Munido dessa informação, Rommel poderia atacar o centro e lançar as suas forças pela brecha, como uma torrente a romper um dique. Wolff sorriu para consigo. Sentia que estava a representar um papel importante na luta pelo domínio alemão do Norte de Africa, e considerava tal situação extremamente gratificante.

Saltou uma rolha no quarto, sinal de que tudo terminara. Wolff repôs os papéis na pasta, fechou-a e introduziu de novo a chave no bolso da camisa. Seguidamente, já não se escondia no armário-bastara uma vez. Subia silenciosamente a escada em bicos de pés, atravessava a coberta, descia a escada do portaló e ia almoçar.

 

Ao fim da tarde do dia seguinte ao piquenique Elene foi fazer compras. o apartamento começara a parecer-lhe claustrofóbico.

Passara a maior parte do dia percorrendo-o a passos largos, incapaz de se concentrar no que quer que fosse, alternadamente triste e feliz. Consequentemente, envergou um alegre vestido às riscas e saiu.

Gostava do mercado das frutas e das hortaliças. Era um lugar cheio de vida, principalmente ao fim do dia, quando os vendedores tentavam livrar-se dos seus últimos produtos. Comprou tomates e ovos, pois decidira fazer uma omeleta para o jantar.

Infundia-lhe segurança transportar um cesto de alimentos—mais do que conseguiria consumir numa refeição. Lembrava-se das vezes em que não houvera jantar, de quando, aos dez anos, perguntava a si mesma, em segredo, quanto tempo seria necessário para se morrer de fome.

Saiu do mercado e foi ver montras e vestidos. Um dia, desejava ter a sua própria modista. Poderia William Vandam proporcionar esse luxo a uma mulher?

Quando pensava em Vandam, sentia-se feliz--até pensar em Wolff. Sabia que só poderia escapar se recusasse outro encontro com este. Não tinha qualquer obrigação de servir de isca de armadilha para apanhar um assassino esfaqueador. Essa ideia obcecava-a, irritante como um dente a abanar: "Não sou obrigada a fazer isso."

Subitamente, perdeu o interesse pelos vestidos e dirigiu-se para casa. Quando entrou no átrio do prédio, ouviu uma voz chamá-la: "Abigail. " Ficou petrificada de surpresa. Era a voz de um fantasma. Virou-se com esforço e viu um vulto emergir da sombras: um velho judeu andrajosamente vestido, de barbas emaranhadas e pés sulcados de veias calçando sandálias de tiras de pneus.

--Pai!

Ele parou defronte dela, olhando-a apenas, como se receoso de Lhe tocar.

--Continuas bonita, e não és pobre--disse.

Impulsivamente, Elene aproximou-se dele e beijou-o na face.

Depois, deu-lhe o braço e conduziu-o pela escada acima. Toda a situação Lhe parecia irreal, como um sonho.

Já no apartamento, disse:

--Precisa de comer.

Levou-o para a cozinha, pôs uma frigideira ao lume e começou a bater os ovos.

--Como me encontrou?--perguntou ao pai.

--Soube sempre onde estavas. A tua amiga Esme escreve pai, a quem vejo de vez em quando.

--Não queria que me pedisse para voltar.

--Que te poderia eu dizer? Volta para casa, é teu dever passar fome com a tua família? Não. Mas sabia onde estavas.

Elene partiu tomates às rodelas para a omeleta.

--O pai diria que era melhor passar fome do que viver imoralmente--observou.

--Sim, diria isso. E estaria enganado7

Elene virou-se e olhou-o. o glaucoma que Lhe roubara a vista do olho esquerdo havia anos estava a alastrar para o olho direito. Calculou que o pai deveria orçar os cinquenta e cinco anos. Mas aparentava setenta.

--Sim, estaria enganado. É sempre melhor viver.

--Talvez. Já não tenho as certezas que tinha sobre esse assunto.

Elene serviu a omeleta e colocou pão na mesa. o pai abençoou o pão: "Bendito sejais, Senhor nosso Deus ..." Surpreendida, Elene constatou que a prece não a irritava. Nos momentos mais negros da sua solidão amaldiçoara o pai e a sua religião por aquilo a que a haviam condenado.

O pai, esfomeado, devorou a refeição. Elene perguntava a si mesma por que razão teria ele vindo. Perguntou pelas irmas.

Depois da morte da mae, as quatro, cada uma à sua maneira, tinham rompido com o pai. Duas tinham ido para a América, uma casara com o filho do maior inimigo do pai e a mais nova morrera. Elene comecou a perceber que o pai estava destruído.

Ele perguntou-lhe o que fazia e ela resolveu dizer-lhe a verdade:

--os Ingleses estão a tentar apanhar um espião alemão e incumbiram-me de travar amizade com ele. Mas acho que não os posso ajudar mais.

--Tens medo?--perguntou o pai, parando de comer.

--Ele é muito perigoso--respondeu, acenando afirmativamente com a cabeça.

Terminaram a refeição e Elene levantou-se para Lhe fazer uma chávena de chá.

--Os Alemães vêm aí--disse o pai.--Vai ser terrível para os Judeus. Vou para Jerusalém.

--Como? os comboios estão cheios, há uma quota para a entrada de Judeus ...

Vou a pé.--Sorriu e acrescentou:--Já o fizeram antes.

Se bem me lembro, Moisés não conseguiu lá chegar retrucou Elene, irritada. --o.pai é doido!

--Não fui sempre um pouco doido?

--Foi!--respondeu, e de súbito a irritação dissipou-se.--Foi e eu devia saber que não ganho nada em tentar fazê-lo mudar de delas.

--Hei-de pedir a Deus que te poupe. Hás-de ter uma chance aqui. És nova e bonita, e talvez eles não saibam que és judia.

Mas eu, um velho inútil ... a mim enviavam-me para um campo para morrer. É sempre melhor viver. Tu própria o disseste.

Elene tentou em vão persuadi-lo a ficar com ela, ao menos uma noite. Por fim, deu-lhe uma camisola e um cachecol e todo o dinheiro que tinha em casa. Chorou, limpou os olhos e chorou de novo. Quando ele saiu, viu-o através da janela caminhar ao longo da rua: um velho que ia sair do Egipto e embrenhar-se no deserto, seguindo os passos dos filhos de Israel. Ao pensar na sua coragem, compreendeu que não podia abandonar Vandam.

 

--É uma rapariga intrigante--disse Wolff. --Não consigo percebê-la bem. --Estava sentado na cama, enquanto Sonja se vestia.--Acho-a um pouco nervosa. Quando Lhe disse que íamos fazer um piquenique, pareceu bastante assustada. No entanto, é capaz de ser muito franca e frontal.

--Trá-la cá e vais ver como a entendo logo.

--Preocupa-me--confessou Wolff de testa franzida, expressando em voz alta os seus pensamentos.--Alguém tentou saltar para o táxi connosco.

--Esta cidade está cheia de doidos, como sabes—observou Sonja, que escovava o cabelo.--Quando posso dizer ao Kemel que te encontras com ele? Já deve saber que estás a viver aqui.

Wolff suspirou. outra exigência, outro perigo.

--Telefona-lhe esta noite do clube. Não tenho pressa nenhuma de me encontrar com ele, mas precisamos de o manter dócil.

--Está bem.--Sonja estava pronta e o táxi esperava-a.--E marca um encontro com Elene--recomendou antes de sair.

Wolff compreendeu que Sonja já não estava em seu poder como noutros tempos. As paredes que uma pessoa constrói para se proteger também a emparedam. E Sonja era capaz de ser suficientemente louca para o atraiçoar, se se irritasse de facto. Ergueu-se da cama, foi buscar papel e caneta e sentou-se para escrever a Elene.

 

O recado chegou poucos dias depois de o pai de Elene ter partido para Jerusalém. Um rapazinho bateu à porta com um sobrescrito. Ela gratificou-o e abriu o envelope. Minha querida Elene, gostava que se encontrasse comigo no oasis Restaurant às oito horas de quinta-feira. Estou ansioso por vê-la. Afectuosamente, Alex Wolff." ouinta-feira ... dali a dois dias. Ficou sem saber se deveria sentir-se eufórica ou assustada. o seu primeiro pensamento foi telefonar a Vandam, mas depois hesitou.

Sentia uma curiosidade crescente a respeito de Vandam, sobre o qual sabia muito pouco. Que fazia ele quando não perseguia espiões? Como era a sua casa? Com quem vivia? Queria fazer as pazes com o major e agora tinha um pretexto para contactar com ele ... mas em vez de telefonar iria pessoalmente a sua casa.

Resolveu levar o vestido cor-de-rosa-pálido, com mangas tufadas, que apertava com botões à frente. Pôs um pouco de perfume e sentou-se ao espelho para pentear o cabelo curto. As belas madeixas escuras brilhavam. "Estou lindamente", pensou.

Saiu do apartamento e dirigiu-se para casa do major, em Garden City. Sentia-se alegre e ousada. Que feliz ideia a de ir a casa dele! Muito preferivel a ficar sozinha no apartamento.

Encontrou a casa sem dificuldade. Era uma pequena moradia estilo colonial francês, cheia de colunas e janelas altas, cujas pedras brancas reflectiam, com uma intensidade dolorosa, o sol da tarde. Subiu o pequeno carreiro e tocou à campainha.

Atendeu-a um egípcio idoso e calvo.

--Boas tardes, minha senhora--saudou-a como um mordomo inglês.

--Queria falar com o major Vandam. Chamo-me Elene Fontana.

--O Sr. Major ainda não regressou, minha senhora.

--Talvez eu possa esperar?...

--Com certeza, minha senhora--aquiesceu, e conduziu-a à sala.

--Chamo-me Gaafar. Queira chamar se precisar de alguma coisa.

Elene sentiu-se encantada por ficar sozinha e poder olhar à sua volta. A divisão, com um enorme fogão de sala com uma prateleira de mármore e mobiliário muito inglês, estava limpa e arrumada e parecia pouco vivida.

A porta abriu-se e entrou um rapaz. Era bonito, com cabelo castanho encaracolado e pele aveludada. Devia ter uns dez anos e o seu rosto pareceu-lhe familiar.

--Olá--cumprimentou-a. --Sou Billy Vandam.

Elene fitou-o horrorizada. Um filho, Vandam tinha um filho!

Compreendia agora por que motivo o rosto da crianc,a Lhe parecera familiar: era uma miniatura do do pai. Por que razão nunca Lhe teria ocorrido que Vandam podia ser casado? Era pouco provável um homem como ele--encantador, atraente, inteligente--chegar quase aos quarenta anos sem ser casado.

Apertou a mão de Billy:

--Olá! Sou Elene Fontana.

--Nunca sabemos a que horas o pai chega a casa—informou Billy.--Espero que não tenha de esperar muito tempo. Quer uma bebida?

Tal como o pai, era de uma extrema cortesia e de um formalismo até certo ponto cativante.

--Não, obrigada--respondeu Elene.

--Bem, tenho de ir jantar. Desculpe deixá-la sozinha.

O rapaz saiu e Elene sentou-se pesadamente. Sentia-se desorientada, como se tivesse encontrado na sua própria casa a porta de um quarto cuja existência ignorara. Reparou numa fotografia pousada sobre a prateleira de mármore do fogão de sala e levantou-se para a observar. Representava uma mulher bonita, de vinte e poucos anos, serena, de ar aristocrático e sorriso levemente arrogante. os olhos, claros, límpidos e inteligentes, eram iguais aos de Billy. Tratava-se, portanto, da mae de Billy, da mulher de Vandam: uma beldade clássica inglesa com ar superior.

Elene deu uma volta pela sala perguntando a si mesma se Lhe estariam reservadas mais surpresas. Junto de uma parede estava um pequeno piano vertical. Talvez Mrs. Vandam tocasse ao serão, enchendo o ar de Chopin, enquanto o marido se sentava na poltrona a observá-la ternamente. Elene pegou num romance que estava sobre o piano e leu a primeira frase: "A noite passada sonhei que regressava a Manderley." A frase intrigou-a. Continuou a ler, enquanto pergunta a a si mesma se o livro pertenceria à mulher de Vandam.

Pouco depois, Billy regressou. Elene colocou de novo o livro sobre o piano, com a sensação de ter sido intrometida.

--Esse não presta--disse Billy. --É a respeito de uma rapariga idiota que tem medo da governanta do marido. É muito parado.

Não tem acção.

Elene sentou-se e Billy também, ficando evidente que ia servir-lhe de anfitrião.

--Então já o leste?

--Rebeca? Já, mas não gostei. Gosto mais de romances policiais. Li os da Agatha Christie todos. Mas dos que gosto mais é dos americanos: S. S. Van Dine e Raymond Chandler.

--A sério? Eu passo a vida a ler romances policiais.

--Oh! Quem é o seu autor preferido?

Elene pensou antes de responder:

 

--Georges Simenon. Escreve em francês, mas alguns dos seus livros foram traduzidos para inglês.

--Empresta-me um? É tão difícil arranjar livros novos –todos os que há nesta casa e na biblioteca da escola.

--Está bem, eu empresto-te a ti e tu emprestas-me a mlm. tens para me emprestar?

--Empresto-lhe um de Chandler. os americanos são muito mais realistas. Já me fartei daquelas histórias de casas de campo inglesas e pessoas que provavelmente não seriam capazes de matar uma mosca.

Era estranho, pensou Elene, que um rapaz para quem a casa de campo inglesa devia fazer parte da vida quotidiana considerasse os romances policiais americanos mais realistas.

Hesitou, antes de perguntar:

--A tua mae lê romances policiais?

--A minha mae morreu o ano passado, em Creta--respondeu Billy em tom brusco.

--oh!--Elene levou a mão à boca. Afinal Vandam não era casado!--Que terrivel deve ter sido para ti, Billy! Tenho muita pena.

--Obrigado. É a guerra, sabe?

Parecia outra vez o pai. A máscara estava afivelada: a máscara da cortesia, do formalismo. "É a guerra, sabe?" ouvira a frase na boca de outra pessoa e adoptara-a em sua defesa própria.

Elene resolveu abordar outros assuntos.

--Suponho que, em virtude de o teu pai trabalhar no QG, estás mais bem informado acerca da guerra que o resto das pessoas-observou, embaraçada.

--Creio que estou, mas geralmente não a compreendo bem. Quando ele chega a casa de mau humor, sei que perdemos outra batalha. --Começou a roer uma unha e em seguida introduziu as mãos nas algibeiras dos calções.--Quem me dera ser mais velho!

--Queres combater?

Olhou-a furiosamente, como se pensasse que ela estava a troçar

dele.

--Tenho é medo que os Alemães ganhem. Nesse caso teria sido tudo para nada.

Roeu de novo a unha, desta vez sem se interromper. Elene perguntou a si mesma o que teria sido para nada. A morte da mae?

A luta para ser corajoso?

Billy consultou o relógio da prateleira do fogão de sala.

--Deito-me às nove horas.--E ergueu-se. De súbito, era outra vez uma criança.

--Posso ir dar-te as boas-noites daqui a bocadinho?—perguntou Elene.

--Se quiser--respondeu, e saiu.

Que espécie de vida levavam naquela casa? perguntou Elene a si mesma. o homem, o rapaz e o criado velho a viverem ali juntos, cada um com as suas preocupações.

A sensatez de Billy--um misto de sensatez juvenil e amadurecida--era encantadora, mas a criança não parecia divertir-se muito Sentiu um impulso de compaixão por aquele garoto órfão de mae a viver num país estranho cercado por exércitos inimigos.

Saiu da sala e subiu a escada. A porta de um dos quartos estava aberta e ela entrou, à espera de encontrar modelos de aviões, equipamento desportivo e roupa no chão. Mas o aposento quase parecia o quarto de um adulto. As roupas estavam cuidadosamente dobradas numa cadeira, os livros escolares ordenadamente empilhados na secretária e o único brinquedo à vista era um modelo de tanque de cartão. Billy estava na cama, com o casaco do pijama às riscas abotoado até ao pescoço e um livro a seu lado, pousado no cobertor.

--Que estás a ler?--perguntou-lhe Elene.

--o Mistério do Ataúde Grego.

Ela sentou-se na beira da cama e recomendou:

--Não fiques acordado até muito tarde.

--Tenho de apagar a luz às nove e meia.

Elene inclinou-se impulsivamente e beijou-lhe a face.

Nesse momento a porta abriu-se e Vandam entrou.

A familiaridade da cena emocionou-o: o rapaz na cama com o livro e a mulher inclinada para ele, dando-lhe um beijo de boas-noites. Vandam permaneceu imóvel, contemplando a cena, como uma pessoa que sabe perfeitamente que está a sonhar, mas não capaz de acordar.

--Boa noite, Billy.

Elene ergueu-se.

--Olá, William.

--Olá, Elene.

A rapariga passou por Vandam e saiu do quarto. Vandam entrou e

sentou-se por sua vez na cama.

--Estiveste a fazer companhia à nossa visitante?

--Estive. Gosto dela. Lê romances policiais. Vamos emprestar livros um ao outro. É muito bonita, não é?

--É. Trabalha para mim. É segredo, por isso.

Billy baixou a voz e perguntou:

--E agente secreta?

Vandam levou um dedo aos lábios e respondeu:

--As paredes têm ouvidos.

O rapaz pareceu desconfiado e redarguiu:

--Está a gozar comigo.

Vandam abanou a cabeça silenciosamente.

--Ena! --exclamou Billy.

Vandam deu-lhe as boas-noites e saiu do quarto. Ao fechar a porta, pensou como o beijo de boas-noites de Elene provavelmente fora compensador para o filho.

Encontrou Elene na sala a preparar martinis. Pensou que deveria ressentir-se mais do que aparentava com o modo como ela parecia à vontade em sua casa, mas estava demasiado fatigado para assumir falsas atitudes. Sentou-se, grato, numa cadeira e aceitou um martini.

--Que a trouxe cá?--perguntou.

--Tenho um encontro marcado com Wolff.

--óptimo. Quando?

--Quinta-feira--respondeu, e estendeu-lhe a carta.

Ele leu-a com atenção.

--Como Lhe foi parar às mãos?

. --Um rapaz levou-ma a casa. Que fazemos?

--A mesma coisa da última vez, mas melhor.

Vandam tentava parecer mais confiante do que se sentia. Wolff era imprevisível e muito capaz de gizar outro estratagema.

Como se Lhe lesse o pensamento, Elene declarou:

--Não quero passar outra noite com ele. Assusta-me. Se tentar seduzir-me, receio que não aceite um não" em resposta.

Vandam sentiu-se culpado--"Lembra-te de Istambul"--, mas  reprimiu esse sentimento.

--Aprendemos a lição--declarou com falsa segurança. Desta vez

não haverá erros.

Intimamente, estava surpreendido com a determinação simples de Elene de não ir para a cama com Wolff. Presumira que atitudes dessas não eram significativas para ela. Afinal, julgara-a mal. Sem saber porquê, encará-la sob aquela nova perspectiva dava-lhe alegria.

Gaafar entrou na sala e anunciou:

--o jantar está servido, Sr. Major.

Vandam sorriu. o criado estava a representar mordomo inglês.

--Que é o jantar, Gaafar?

--Para o Sr. Major, caldo, ovos mexidos e iogurte. Mas tomei a liberdade de grelhar uma costeleta para Miss Fontana.

--Come sempre assim?--perguntou Elene a Vandam.

--Não, é por causa da ferida: não posso mastigar.

Entraram na sala de jantar e sentaram-se. Gaafar serviu o jantar.

--o seu filho parece mais velho do que é--observou a jovem.

--Passou por algumas coisas que deviam ser reservadas a adultos.

--Sim, compreendo.--Hesitou, antes de perguntar:--Quando morreu a sua mulher?

--Em 28 de Maio de 1941, à noite.

--Billy disse-me que foi em Creta.

--Foi. Ela trabalhava em criptoanálise para as forças aéreas.

ocupava um posto temporário em Creta quando os Alemães invadiram a ilha. os Ingleses perderam e decidiram partir.

Segundo parece, ela foi atingida por uma granada perdida e teve morte instantanea. Claro que, na altura, o que pretendíamos era evacuar os vivos, e não os cadáveres, por isso ... Não há sepultura, compreende? Não resta nada.

--Ainda a ama?--perguntou Elene serenamente.

--Creio que a amarei sempre. Acontece assim com as pessoas que realmente amamos. Se elas partem ou morrem, não faz diferença.

--Eram muito felizes?

--Nós ...--Hesitou, a recordar a filha do diplomata, a jovem graciosa e autoritária que casara com o ignorado oficial do Exército. --Não foi um casamento idílico. Era eu que estava apaixonado. Angela estimava-me.

--Acha que volta a casar?

Vandam encolheu os ombros. Não sabia a resposta. Elene pareceu compreender, pois calou-se e começou a comer a sobremesa.

Depois, Gaafar serviu-lhes café na sala. Vandam mandou o criado deitar-se e fumou um cigarro enquanto bebiam o café.

Apeteceu-lhe ouvir música. Houvera um tempo em que adorara música, embora posteriormente a tivesse banido da sua vida.

Naquele momento, aspirando o suave ar nocturno que penetrava pelas janelas abertas, apeteceu-lhe ouvir as notas claras e vibrantes de uma harmonia. Sentou-se ao piano e começou a tocar Für Elise, de Beethoven. Recuperou imediatamente a perícia, quase como se nunca tivesse deixado de praticar. As suas mãos sabiam como mover-se de um modo que sempre considerara miraculoso.

Quando terminou, aproximou-se de Elene, sentou-se a seu lado e beijou-a na face, que estava húmida de lágrimas.

--William, amo-o de todo o meu coração--disse ela.

 

Capítulo 9

ROMMEL aspirava o cheiro a maresia. Em Tobruk, o calor, a poeira e as moscas eram tão incomodativos como no deserto, mas bastava aquele ocasional sopro de humidade transportado pela brisa para a situação se tornar suportável. Von Mellenthin entrou no veículo do comando com o seu relatório do Serviço de Informações.

-- Boas tardes, meu Marechal de Campo.

Rommel sorriu. Fora promovido depois da Batalha de Tobruk e ainda não se habituara ao novo título.

--Alguma novidade?--perguntou.

--Uma emissão do agente do Cairo. Diz que a linha de Mersa Matruh é fraca no meio.

Rommel pegou no relatório e relanceou-o.

--Se esta informação é correcta, podemos romper a linha assim que lá chegarmos.

--Claro que vou fazer o possível por confirmar o relatório do espião--afirmou Von Mellenthin.--Mas da última vez ele tinha razão.

A porta do veículo abriu-se de rompante e Kesselring entrou.

--Marechal de campo!--exclamou Rommel.--Julgava que estava na Sicília.

--Estive -- respondeu Kesselring, batendo com os pés para sacudir a poeira das botas.--Vim de avião para Lhe falar. Com os diabos, Rommel, isto tem de acabar! As suas ordens eram para avançar até Tobruk e não mais.

Rommel recostou-se na sua cadeira de lona. Esperara manter Kesselring fora daquela questão.

--As circunstâncias alteraram-se--alegou.

--Mas as suas ordens primitivas foram confirmadas pelo Supremo Comando Italiano. o seu apoio aéreo e marítimo é necessáriopara o ataque a Malta. Depois de tomarmos Malta, terá comunicações asseguradas para avançar sobre o Egipto.

--Vocês não aprenderam nada!--exclamou Rommel.--Enquanto nós nos reforçamos, o inimigo também se reforça. Não cheguei até aqui mercê do velho jogo de avançar, consolidar, avançar de novo. Eles agora estão em fuga, é agora o momento de tomar o Egipto.

Kesselring virou-se para Von Mellenthin e perguntou-lhe:

--Quantos tanques e quantos homens temos?

Rommel conteve o desejo de ordenar a Von Mellenthin que não respondesse; sabia que se tratava de um ponto fraco.

-- Sessenta tanques. meu Marechal de Campo, e dois mil e quinhentos homens. os Italianos têm seis mil homens e catorze tanques.

Kesselring voltou-se para Rommel e inquiriu:

--E vai tomar o Egipto com um total de setenta e quatro tanques? Von Mellenthin, segundo os nossos cálculos, qual é a força do inimigo?

--As forças aliadas são três vezes superiores às nossas, mas nós estamos bem aprovisionados e o moral dos nossos homens é excelente.

--Von Mellenthin, vá ao carro das comunicações e veja o que chegou--ordenou Rommel.

Von Mellenthin saiu e Rommel disse a Kesselring:

--As forças aliadas estão a reagrupar-se em Mersa Matruh.

Esperam que avancemos e contornemos a extremidade sul da sua linha, mas em vez disso vamos atacar-lhes o meio, onde são mais fracas.

Como sabe tudo isso'!--indagou Kesselring, interrompendo-o.

--Avaliação do nosso Serviço de Informações, baseada no relatório de um espião ...

--Meu Deus! Não tem tanques, mas tem o seu espião!

--Ele acertou da última vez.

Von Mellenthin regressou.

--Além do mais, nada do que me diz importa—afirmou Kesselring.--Estou aqui para confirmar as ordens do Führer: não deve avançar mais.

--Mandei um enviado especial ao Führer--informou Rommel, sorrindo. --Creio que Von Mellenthin deve ter a resposta.

 

Von Mellenthin leu a mensagem que recebera:

--"A deusa da vitória só sorri uma vez na vida. Avante.

 

QuANDo chegou ao seu gabinete na quarta-feira de manha, Vandam foi informado de que na noite anterior Rommel avançara até noventa e cinco quilómetros de Alexandria. Parecia inviável deter o marechal alemão. A linha Mersa Matruh partira-se ao meio como um fósforo. os Aliados tinham recuado mais uma vez.

A nova linha de defesa estendia-se através de uma brecha de cinquenta quilómetros entre o mar e a intransponível depressão de Qattara, e se essa linha caísse não haveria mais defesas. O Egipto seria de Rommel.

A notícia não bastou, porém, para extinguir a euforia de Vandam. Desde o alvorecer, quando acordara no sofá da sua sala com Elene nos braços, sentia-se invadido por uma espécie de alegria adolescente.

No início da manha recebeu a visita de um tal capitão Brown, da unidade de ligação especial do Serviço de Informações Militar. Brown apoiou-se na borda da secretária e falou, de cachimbo na boca:

--Vai ser evacuado, meu major!

--o quê? Evacuado? Porquê?--perguntou Vandam.

--o nosso grupo parte para Jerusalém, assim como todos aqueles que sabem demais. Convém não deixar essas pessoas nas mãos dos Alemães. Tenho uma novidadezinha para si: Rommel tem um espião no Cairo.

--Como sabe?

--Notícias vindas de Londres, meu major. -- A unidade de ligação especial tinha uma fonte de informação ultra-secreta.--o tipo foi identificado como o "herói do caso Rashid Ali". Diz-lhe alguma coisa?

Vandam ficou petrificado.

--Diz!--respondeu.

--Bem, meu major, é tudo--disse Brown. --Felicidades. Talvez não o veja durante uns tempos.

--obrigado-- murmurou Vandam distraidamente, enquanto Brown

saía. o herói do caso Rashid Ali. Era incrível que Wolff fosse o homem que Lhe levara a melhor em Istambul. No entanto, tinha lógica Vandam recordou-se da estranha sensação que experimentara estilo de Wolff, que Lhe parecia familiar. A rapariga que Vandam encarregara de conquistar o homem misterioso morrera com a garganta cortada.

E agora ia mandar Elene contra o mesmo homem.

Um cabo entregou-lhe uma ordem. Vandam leu-a com crescente horror. Todos os departamentos deveriam retirar dos seus

arquivos os papéis susceptíveis de serem perigosos nas mãos do inimigo e queimá-los. Era evidente que as altas patentes encaravam a possibilidade de os Alemães tomarem em breve o Egipto. "Está tudo a desmoronar-se", pensou Vandam. "Está a ruir."

Chamou Jakes e observou-o enquanto ele lia a ordem. Jakes acenou com a cabeça, como se Ja a esperasse.

--Fazemos a fogueira no pátio das traseiras, meu major disse.

Depois de Jakes sair, Vandam abriu a gaveta do seu arquivo e começou a escolher os seus papéis: nomes e moradas, relatórios da segurança sobre indivíduos, pormenores de códigos e um pequeno dossier sobre Alex Wolff. Jakes trouxe-lhe uma grande caixa de cartão que Vandam começou a encher de papéis, enquanto pensava: "E assim se perde uma guerra."

A caixa estava semicheia quando o cabo de Vandam introduziu no gabinete um tal major Smith, um homem de baixa estatura, olhos azuis bolbosos e expressão de autoconfiança. Apertou a mão a Vandam e apresentou-se:

--Sandy Smith, SSI.

--Em que posso ser útil ao Serviço Secreto de Inforrnações?

--Sou o oficial de ligação entre o SSI e o Estado-Maior-General -- explicou Smith. -- A sua inquirição acerca de um romance chamado Rebeca foi encaminhada por nós.--E, com um floreado, Smith apresentou um papel.

Vandam leu o comunicado. o chefe do SSI em Portugal encarregara um dos seus homens de visitar todas as livrarias do país que vendiam livros em inglês. Na zona turística do Estoril encontrara um livreiro que se lembrava de ter vendido seis exemplares de Rebeca à mulher do adido militar alemão em Lisboa.

--Isto confirma uma desconfiança que eu tinha—observou Vandam.--obrigado pelo incómodo de me vir trazer o documento.

--Não foi incómodo nenhum--redarguiu Smith. -- Aliás venho aqui todas as manhas. Tive o maior prazer em ajudar--e salu.

 

Vandam reflectiu na notícia enquanto continuava com o seu trabalho. Havia apenas uma explicação plausível para o facto de o livro ter percorrido o caminho do Estoril até ao Sara.

Era, indubitavelmente, a base de um código. Lamentavelmente, a chave do código não fora encontrada juntamente com o livro!

Quando a caixa se encheu, Vandam colocou-a ao ombro e saiu.

Jakes mandara acender a fogueira num tanque de aço ferrugento, colocado sobre tijolos. Um cabo lançava papéis às chamas.

Fragmentos chamuscados flutuavam numa coluna de ar quente.

Vandam largou a caixa e foi-se embora.

Precisava de reflectir, de caminhar. Saiu do QG e dirigiu-se para o centro da cidade. A cara doía-lhe. Pensou que devia sentir-se satisfeito com a dor, considerada indício de que estava em curso o processo de cicatrização. Deixara crescer a barba para encobrir a cicatriz, o que Lhe minoraria o mau aspecto quando retirasse o penso.

Lembrou-se de Elene. Era, evidentemente, uma catástrofe terem-se apaixonado. os seus pais, os amigos e o Exército condenariam o seu casamento com uma egípcia e, para mais, judia. Mas Vandam resolveu não se preocupar com essa ideia.

Ele e Elene poderiam estar mortos dentro de poucos dias.

Aquecer-nos-emos ao sol enquanto ele durar", pensou.

Lembrava-se constantemente da rapariga que fora degolada, ao que parecia por Wolff, em Istambul. Aterrava-o a ideia de Elene se encontrar de novo sozinha com Wolff na noite seguinte.

olhou à sua volta e apercebeu-se da atmosfera festiva que o rodeava Passou por um cabeleireiro e reparou que estava cheio e que havia mulheres de pé à espera. As lojas de vestuário também pareciam estar a fazer bom negócio. Compreendeu que os Egípcios viviam já o momento da libertação.

Não conseguia evitar uma sensação de catástrofe iminente. Até o céu parecia escuro. Ergueu os olhos e verificou que estava de facto escuro. Parecia estender-se sobre a cidade uma neblina cinzenta e turbilhonante, salpicada de partículas escuras: fumo misturado com papel queimado. Em todo o Cairo os Ingleses queimavam os seus arquivos, e o fumo obscurecia o sol.

Subitamente, Vandam sentiu-se furioso consigo próprio e com os exércitos aliados por se prepararem tão fatalisticamente para a derrota. Que acontecera àquela famosa mistura de obstinação, engenho e coragem que supostamente caracterizava a nação britanica? "E tu", perguntou a si mesmo, "que planeias fazer nestas

circunstâncias?" Voltou-se e retrocedeu na direcção do QG.

Visualizou o mapa da linha de El Alamein, onde os Aliados ofereciam a sua última resistência. Tratava-se de uma linha que Rommel não poderia contornar, pois abaixo dela ficava a vasta e intransponível depressão de Qattara. Rommel teria de romper a linha. Mas onde? Imediatamente atrás dela ficava a cordilheira de Alam Halfa, solidamente fortificada. Claro que beneficiaria os Aliados a hipótese de Rommel consumir a sua força a atacar Alam Halfa. Além do mais, o acesso sul à cordilheira fazia-se através de traiçoeira areia movediça. Era improvável que Rommel soubesse da existência da areia movediça, pois nunca até então penetrara tanto para leste, e só os Aliados dispunham de bons mapas do deserto.

"Por conseguinte", pensou Vandam, "o meu dever é impedir Alex Wolff de dizer a Rommel que Alam Halfa está bem defendida e não pode ser atacada pelo sul." De repente, teve uma ideia:

"Suponhamos que apanho Wolff, Lhe apreendo o rádio e descubro a chave do código. Podia passar por ele e transmitir uma mensagem para Rommel dizendo-lhe que a linha de El Alamein era fraca na extremidade meridional e que as próprias defesas de Alam Halfa eram deficientes.

"A tentação seria demasiado grande para Rommel Lhe resistir.

Romperia a linha pela extremidade sul e viraria para norte, na direcção de Alam Halfa. Encontraria então a areia movediça.

Enquanto se debatesse para a atravessar, a nossa artilharia dizimaria as suas forças, e quando chegasse a Alam Halfa encontrá-la-ia fortemente defendida. Nessa altura, trariamos reforços da linha da frente e esmagaríamos o inimigo como num quebra-nozes.

"Se a emboscada resultasse, poderia não só salvar o Egipto como aniquilar o Afrika Korps."

Vandam começou a sentir-se eufórico. Sabia que tinha de apresentar esta ideia aos chefes. Escreveria um memorando para Bogge o quah evidentemente. o bloquearia. Mas enviaria uma cópia directamente para o director do Serviço de Informações Militar. Dispunha de tempo para Lha fazer chegar às mãos antes da conferência do Estado-Maior do dia seguinte. Estugou o passo, direito ao seu escritório. Subitamente, o futuro parecia-lhe diferente. Talvez as botas altas germanicas não ressoassem no pavimento de mosaicos das mesquitas. Talvez Billy não fosse obrigado a viver sob o domínio de Hitler.

Talvez Elene não fosse enviada para Dachau.

"Podemos salvar-nos todos", pensou. "Se eu apanhar Wolff."

 

NA quinta-feira, o major Smith chegou ao barco-habitação ao meio-dia, vindo directamente da conferência matinal efectuada no QG, onde Auchinleck e o seu estado-maior tinham discutido a estratégia aliada.

 Ele e Sonja entregaram-se à rotina já familiar, que se iniciava no sofá e terminava no quarto. Quando Wolff saiu do armário, encontrou no chão a pasta e a camisa de Smith, com o molho das chaves.

Wolff abriu a pasta e começou a ler.

Decorridos minutos, apercebeu-se de que tinha na mão um esquema completo da última defesa dos Aliados na linha de El Alamein: artilharia nas cordilheiras, tanques no terreno plano e campos de minas em toda a extensão. A cordilheira de Alam Halfa, oito quilómetros atrás do centro da linha, estava fortemente defendida. A extremidade meridional da linha oferecia menor resistência, tanto em contingentes como em minas.

A pasta de Smith continha também um papel delineando a posição inimiga. os Serviços de Informação Aliados analisavam a possibilidade de Rommel tentar abrir caminho através da extremidade sul. Em baixo, escrito a lápis, provavelmente por Smith, encontrava-se uma nota que Wolff considerou supremamente importante: "o major Vandam propoe um plano de dissimulação: encorajar Rommel a penetrar pela extremidade sul, atraí-lo a Alam Halfa, apanhá-lo em areia movediça e depois o quebra-nozes. Plano aceite por Auchinleck."

Que descoberta! Além de ter na mão os pormenores da linha de defesa aliada, Wolff estava também ao corrente do seu plano de dissimulação. Era o maior golpe de espionagem do século.

Dever-se-ia ao próprio Wolff a vitória de Rommel no Norte de Africa. "Deviam fazer-me rei do Egipto só por isto", pensou.

Ergueu os olhos e viu Smith a observá-lo, enquanto mantinha

com uma mão o reposteiro aberto.

--Quem diabo é você?--berrou Smith.

Furioso, Wolff apercebeu-se de que não prestara atenção aos ruídos do quarto. Algo correra mal; não houvera o aviso da rolha da garrafa de champanhe a saltar.

--Essa pasta é minha!

frente.

Wolff estendeu o braço, agarrou o pe de Smith e puxou-o para o lado. o major estatelou-se ruidosamente no chão. Ambos os homens se ergueram rapidamente.

Smith era baixo, dez anos mais velho do que Wolff e estava em má forma física. Recuou com uma expressão de medo no rosto.

Chocou com uma prateleira, olhou para o lado, viu uma fruteira de vidro, agarrou-a e lançou-a a Wolff. Errou o alvo e a fruteira estilhaçou-se ruidosamente na banca da cozinha. "o barulho", pensou Wolff, "se ele faz mais barulho, vem gente investigar." Avançou para Smith. Este, de costas para a parede, gritou:

--Socorro!

Wolff desferiu-lhe um murro no queixo e ele escorregou pela parede e ficou sentado, inconsciente, no chão.

Sonja saiu do quarto e fitou Smith.

--Que vamos fazer com ele?

--Não sei.

Matar Smith seria perigoso. A morte de um oficial--e o desaparecimento da sua pasta--causaria grande agitação na

cidade. Smith gemeu e abriu os olhos.

--Você ... você é Slavenburg.--olhou para Sonja e depois de novo para Wolff. --Foi você quem ma apresentou ... no Cha-Cha ... foi tudo planeado

--Caluda--ordenou-lhe Wolff em tom suave. o tmha uma opção: conservá-lo ali, amarrado e amordaçado, até Rommel chegar ao Cairo.

--Malditos espiões--increpou-os Smith, lívido.

--E você pensou que eu estava doida por si--observou Sonja cruelmente.

--Acaba com isso!--disse Wolff.--Tens alguma corda para o amarrar?

Sonja reflectiu um momento antes de responder:

--Lá em cima, na coberta. No armário.

Wolff retirou da gaveta da cozinha o pesado amolador de aço e entregou-o a Sonja.

--Se ele se mexer, bate-lhe com isto ...

Subiu a escada para a coberta e abriu o armário, do qual retirou um rolo de corda. Nesse momento ouviu um grito de Sonja e passos precipitados na escada. Rodou sobre si mesmo e viu Smith irromper pela escotilha. Sonja não devia ter-lhe acertado com o amolador de aço.

Wolff correu através da coberta em direcção ao portaló, a fim de impedir a passagem ao oficial. Smith virou-se, correu para o outro -extremo do barco e saltou para a água. Wolff olhou rapidamente à sua volta. Não se via ninguém nas cobertas dos outros barcos--era a hora da sesta. o caminho do cais também estava deserto, à excepção do "mendigo", que presumiu ter sido destacado por Kemel para aquele posto. Este teria de negociar consigo. No rio navegavam dois faluchos, a uma distância de pelo menos quatrocentos metros.

Wolff correu para a amurada. Smith emergiu, sem fôlego, e começou a nadar sem perícia, afastando-se do barco. Wolff recuou alguns passos, correu e atirou-se também ao rio. Caiu de pés sobre a cabeça de Smith.

Durante alguns segundos os dois corpos debateram-se em confusão. Wolff submergiu num emaranhado de pernas e braços e procurou empurrar Smith para o fundo. Quando já não conseguia reter a respiração, soltou-se de Smith e emergiu.

Aspirou e limpou os olhos. Smith emergiu também à sua frente, tossindo e ofegante. Wolff colocou-se por detrás dele, rodeou-lhe o pescoço com um braço e com o outro empurrou-lhe a cabeça para baixo. Smith continuava a debater-se debaixo de água, agitando os braços e esperneando.

Era demasiado arriscado, estava a prolongar-se por muito tempo. Wolff largou Smith e puxou da faca. Agarrou o major pelos cabelos e esfaqueou-o repetidamente. A sua volta a água do rio tingiu-se de um vermelho lamacento.

Wolff meteu a faca na bainha e arrastou o corpo para o barco.

Sonja, que vestira um robe, espreitou por sobre a amurada.

--Está morto?--perguntou.

--Está. Temos de afundar o corpo. Dá-me a corda!

Sonja desapareceu por um instante e regressou com a corda.

--Agora mete qualquer coisa pesada na pasta dele. olha, garrafas de champanhe cheias.

Ela desapareceu de novo. Através da vigia, Wolff viu-a descer a escada para a sala. Pegou na pasta, levou-a para a cozinha e abriu o frigorífico, do qual retirou quatro garrafas que introduziu na pasta, juntamente com o amolador de aço e um pesa-papéis de vidro. Depois, fechou a porta e regressou à coberta.

--E agora?--perguntou.

--Ata a ponta da corda à asa da pasta.--os dedos de Sonja moviam-se apressadamente. --Agora atira-me a corda.

Ela atirou-lhe a extremidade livre da corda. Batendo os pés para se manter à superfície, Wolff passou a corda por sob as axilas do morto, rodeou-lhe com ela duas vezes o torso e deu um nó.

--Atira a pasta à água--disse a Sonja.

Ela atirou pela borda fora a pasta, que caiu pesadamente a uns dois metros do barco e se afundou. A corda ficou tensa e o corpo submergiu também. Wolff agitou as pernas debaixo de água, no ponto onde o corpo desaparecera: não sentiu nada. O corpo mergulhara profundamente.

Wolff subiu para a coberta, olhou para trás e verificou que a  onalidade rosada da água desaparecera rapidamente.

Em baixo, Sonja deixou-se cair no sofá e fechou os olhos.

Wolff despiu a roupa molhada.

--Foi a pior coisa que me aconteceu--murmurou Sonja.

--Não te preocupes que sobrevives--redarguiu-lhe Wolff.

--Pelo menos era inglês.

Wolff dirigiu-se à casa de banho e abriu as torneiras da banheira. Quando regressou, Sonja perguntou-lhe:

--Valeu a pena?

--Valeu.--Wolff indicou com um gesto os documentos militares que continuavam no chão, onde os largara quando Smith o surpreendera.--Esse material é importantíssimo. Com ele, Rommel pode ganhar a guerra.

--Quando transmites?

--Hoje, à meia-noite.

--Esta noite trazes cá Elene.

Wolff hesitou.

--Teria de transmitir com ela cá ...

--Eu entretenho-a. Com os diabos, Alex, estás em dívida para

comigo!

--Está bem.--Wolff dirigiu-se para a casa de banho e meteu-se

na banheira de água quente, pensando como Sonja era incrivel.

--Mas agora Smith não te traz mais segredos--disse-lhe ela da sala.

--Não me parece que precisemos deles depois da próxima replicou Wolff. --Ele teve a sua utilidade.

 

Capítulo 10

VANDAM bateu à porta do apartamento de Elene uma hora antes do encontro da jovem com Alex Wolff. Ela abriu. Envergava um vestido de cocktail preto, sapatos pretos de saltos altos e meias de seda. Maqllilhara-se e tinha o cabélo brilhante. Estivera à espera de Vandam.

Ele sorriu-lhe, apreciando a sua beleza invulgar.

--olá!

--Entra--convidou, e conduziu-o para a sala. --Senta-te.

Vandam queria beijá-la, mas ela não Lhe deu oportunidade.

--Quero falar-te dos pormenores para esta noite Vandam, sentando-se no sofá.

--Está bem--redarguiu Elene, e sentou-se numa cadeira.—Se queres uma bebida, serve-te.

--Aconteceu alguma coisa?--perguntou o major, fitando-a.

--Não, nada. Prepara uma bebida e depois dá-me as tuas instrucões.

Vandam franziu a testa. Ergueu-se, atravessou a sala e ajoelhou-se defronte da cadeira dela.

--Que foi, Elene?

Ela fitou-o. Parecia prestes a romper em lágrimas.

--onde estiveste nos últimos dois dias? alta.

--A trabalhar.

--E onde pensas que eu estive?

--Aqui, suponho.

--Exactamente!

Vandam não compreendeu o que ela queria dizer.

--Eu estive a trabalhar, tu estiveste aqui e por isso estás zangada comigo?

--Estou! Podias ter-me mandado um bilhete ou um ramo de flores!

--Flores? Para que servem as flores? Já não precisamos de fazer esse jogo.

--Ah, não?! Fizemos amor na noite de anteontem, caso te tenhas

esquecido. Trouxeste-me a casa e deste-me um beijo de boas-noites. Depois ... nada.

Ele sentou-se no chão e desviou o olhar.

--Caso tenhas esquecido, um certo Ervin Rommel está a bater-nos à porta com um magote de nazis a reboque, e eu sou uma das pessoas que estão a tentar impedir-lhe a entrada.

--Podias ter arranjado cinco minutos para me mandar um bilhete.

Continuava a não fazer sentido, mas desta vez ele ouviu o tom magoado da sua voz. Virou-se para a olhar.

--És a coisa mais maravilhosa que me aconteceu nestes anos todos, talvez em toda a minha vida. Perdoa-me, por favor. Fui idiota. --Pegou-lhe nas mãos.

Elene mordeu o lábio, tentando conter as lágrimas.

--Foste, sim--murmurou, ao mesmo tempo que o olhava e Lhe tocava no cabelo. -- Um grandessíssimo idiota-- segredou, afagando-lhe a cabeça.

--Tenho tanto que aprender a teu respeito!

--E eu a teu.

Vandam tentou ser sincero:

--Escuta, eu não tenho jeito para gestos simbólicos. ou nos amamos ou não nos amamos, e nem odas as flores do Mundo farão qualquer diferença. No entanto, o meu trabalho pode ter influência no facto de vivermos ou morrermos. Pensei em ti, pensei em ti o tempo todo. Mas não me preocupo contigo quando sei que estás bem. Achas que poderás habituar-te a essa minha maneira de ser?

--Vou tentar--respondeu-lhe com um sorriso lacrimoso.

--o que gostava de te dizer, depois de tudo isto, era:

"Esquece o combinado para esta noite, não vás. , Mas não posso. Precisamos de ti e é tremendamente importante.

--Está bem, eu compreendo.

--Mas, antes de mais nada, posso dar-te o beijo que devia ter-te dado à entrada?

Ajoelhou-se ao lado do brac o da cadeira dela, segurou-lhe o rosto com a sua enorme mão e beijou-a. A boca de Elene era macia e dócil. e ele sentiu que seria capaz de continuar a beijá-la eternamente.

Por fim, ela recuou, respirou fundo e disse:

---Meu Deus, creio que foste sincero.

--Podes ter a certeza de que fui.

Elene riu-se.

--Quando disseste isso, foste por momentos o velho major Vandam. Instrua-me, meu major.

--Para isso tenho de me colocar a uma distância que não me permita beijar-te.

Vandam atravessou a sala e dirigiu-se ao bar, do qual retirou uma garrafa de gin.

Hoje desapareceu um major do Serviço de Informações juntamente com uma pasta cheia de segredos. Veio a saber-se que ele tem andado a desaparecer à hora do almoço umas duas vezes por semana sem que ninguém saiba para onde vai. Tenho o pressentimento de que talvez se tenha andado a encontrar com Wolff.

--Que continha a pasta?

--Uma discriminação tão completa das nossas defesas que estamos convencidos de que poderá modificar o resultado da próxima batalha. Por isso temos de apanhar Wolff esta noite.

--Mas talvez já seja demasiado tarde!

--Não é. Há tempos encontrámos a descodificação de uma das emissões de Wolff. Tinha sido transmitida à meia-noite.

Geralmente, os espiões comunicam todos os dias à mesma hora, pois a outra hora aqueles para quem trabalham não estão à escuta. Penso que Wolff vai transmitir as informações a que me referi hoje à meia-noite, a não ser que eu o apanhe primeiro.--Hesitou, mas depois concluiu que ela tinha o direito de conhecer a importância de que se revestia a missão de que estava encarregada. --Há mais uma coisa: ele serve-se de um código baseado num romance chamado Rebeca. Tenho um exemplar desse livro. Se pudesse obter a chave do código . . .

--Que é isso?

--Uma folha de papel com as instruções que permitem codificar as transmissões. Se eu conseguir arranjar a chave do código do livro, posso passar por Wolff na radiotransmissão e enviar informações falsas a Rommel. Isso poderia salvar o Egipto. Mas só se tiver a chave.

--Muito bem. Qual é o plano para esta noite?

--o mesmo da outra noite, mas mais completo. Eu estou no restaurante com Jakes, ambos armados com pistolas. os olhos dela dilataram-se.

--Tens uma pistola?

--Agora não, mas vou ter. Estarão outros dois homens no restaurante, mais seis cá fora e carros civis preparados para bloquear todas as saídas da rua ao som de um apito. Fac,a Wolff o que fizer, esta noite, se quiser ver-te, é apanhado.

ouviu-se uma pancada à porta do apartamento.

--Quem será?--perguntou Vandam. --Esperas alguém?

--Não, claro. São quase horas de me ir embora. o major franziu a testa.

--Não me agrada isto. Não vás lá.

 

--Tenho de ir. Pode ser o meu pai. ou notícias dele.

Elene saiu da sala e Vandam permaneceu sentado à escuta, enquanto ela abria a porta. ouviu-a exclamar:

--Alex!

E ouviu a voz de Wolff:

--Já está pronta. Está uma maravilha!--Era uma voz profunda e confiante, com um sotaque muito leve.

--Mas ficámos de nos encontrar no restaurante ...—observou Elene.

--Eu sei. Posso entrar?

Vandam saltou por sobre o sofá e estendeu-se no chão atrás dele.

A voz de Wolff soou mais próxima:

--Por aqui?

---Hum ... sim ...

Vandam ouviu os dois entrarem na sala e Wolff dizer:

--É um óptimo apartamento! Mikis Aristopoulos deve pagar-lhe bem.

--oh, não trabalho lá regularmente! É da família; dou uma ajuda.

--olhe, são para si.

--oh, flores! obrigada.

"Diabos te levem!", pensou Vandam.

--Posso sentar-me?--perguntou Wolff.

Vandam sentiu o sofá gemer quando o espião se sentou. Pensou:

"Podia saltar-lhe em cima agora." Deviam pesar aproximadamente

O mesmo e estavam equilibrados um para o outro--à excepção da

faca. Em caso de luta e se tivesse a faca, Wolff venceria. Já acontecera uma vez, no beco. "Porque não trouxe eu a pistola?", pensou Vandam.

Se lutassem e Wolff vencesse, que aconteceria? Wolff ficaria a saber que Elene andara a tentar apanhá-lo. Em Istambul, numa situação semelhante, ele cortara o pescoço a uma rapariga.

--Vejo que estava a tomar uma bebida antes de eu

chegar-observou Wolff. --Posso fazer-lhe companhia?

--Claro--aquiesceu Elene. --Que toma?

--Que é isso?--Wolff cheirou a bebida, tentando identificá-la. Um pouco de gin também.

"Era a minha bebida", pensou Vandam. "Graças a Deus, Elene não tinha também uma! Dois copos teriam denunciado a situação." . ouviu o tilintar de gelo.

--A sua!

--A sua.

Na opinião de Vandam, Elene estava a desempenhar bem o seu papel. "Que pensará ela que estou a planear? Já deve ter adivinhado onde me escondi. Pobre Elene!" Encontrava-se mais uma vez numa situação mais complexa do que supusera. Vandam esperava que fosse passiva e confiasse nele.

--Parece nervosa, Elene--observou Wolff.--Espero que a minha vinda aqui não a tenha perturbado. Para ser franco, estou farto de restaurantes. Combino jantar com pessoas, mas quando chega a altura de sair nunca me apetece e começo a pensar noutro programa.

Não iam, portanto, ao oasis, pensou Vandam. "Raios! Isso significa que não vou ter a ajuda do Jakes nem dos outros."

--Então que é que quer fazer?

--Posso fazer-lhe outra vez uma surpresa?

"obriga-o a dizer!", pediu mentalmente Vandam.

Mas Elene respondeu:

--Está bem.

o major praguejou intimamente: se Wolff revelasse aonde iriam, poderia contactar com Jakes e deslocar a emboscada para outro local.

--Vamos?--convidou Wolff, e o sofá gemeu de novo quando ele se levantou.

"Podia atirar-me a ele agora", pensou de novo Vandam. Mas era demasiado arriscado.

ouviu-os sair da sala, a porta abrir-se e bater.

Vandam levantou-se. Teria de os seguir e aproveitar a primeira oportunidade para contactar com Jakes. Dirigiu-se para a porta e escutou. Não ouviu nada. Abriu uma frincha. Tinham saído.

Atravessou rapidamente o corredor e desceu a escada.

Quando chegou à porta do prédio, viu-os do outro lado da rua.

Wolff abria a porta de um automóvel para Elene entrar. Não era um táxi. o espião devia ter alugado, pedido emprestado ou roubado um carro para aquela noite. Wolff fechou a porta do lado de Elene, contornou o veículo e sentou-se ao volante.

Vandam montou a sua motocicleta.

o carro arrancou e Vandam seguiu-o. Conseguiu manter-se cinco ou seis carros atrás sem perder de vista a sua presa. Se ao menos Wolff parasse em algum lado onde houvesse um telefone...

Saíram da cidade, na direcção de Gizé. Escurecia e Wolff acendeu os faróis. Vandam não o imitou, para que o adversário não notasse que estava a ser seguido. Várias vezes esteve prestes a cair da motocicleta, devido aos numerosos buracos que acidentavam a estrada do deserto.

A sua frente erguiam-se as piramides. Wolff afrouxou e por fim parou. Iam fazer um piquenique junto das piramides. Vandam desligou o motor e conduziu a máquina à mão sobre a areia.

ocultou-a atrás de um montículo rochoso e deitou-se a seu lado.

o automóvel permanecia imóvel, com o motor desligado e o interior às escuras. Que estariam a fazer? o ciúme apoderou-se dele. Disse a si mesmo que não fosse estúpido: estavam a comer, mais nada. Decidiu arriscar-se a fumar um cigarro.

Cinco cigarros depois, o silêncio do deserto foi quebrado pelo roncar do motor do automóvel de Wolff. Vandam viu-o virar e tomar a estrada que conduzia ao Cairo. Ergueu-se de um salto, conduziu a motocicleta para a estrada e seguiu-os. Aonde iria agora Wolff?

Começou a suspeitar da resposta quando, nos arredores da cidade, atravessaram a ponte para Zamalek, onde a dançarina Sonja tinha o seu barco-habitação. Seria possível que Wolff lá estivesse a viver? o barco estava vigiado havia dias e Kemel não comunicara nada de anormal.

Wolff arrumou o automóvel e apeou-se. Vandam encostou a motocicleta a uma parede e seguiu o espião e Elene, que percorriam o caminho do cais. Por detrás de um arbusto viu-os entrar num dos barcos. Wolff ajudou Elene a transpor a escada do portaló, subiu atrás dela para a coberta e ambos dèsapareceram no interior da embarcação.

Chegara a sua oportunidade de pedir auxílio. Devia haver um polícia nas proximidades.

--Eh! --chamou baixinho.

 

Está aí alguém? Polícia?

Um vulto escuro surgiu de trás de uma árvore e uma voz com sotaque árabe respondeu:

--Sim.

--Sou o major Vandam. Você é o agente da Polícia encarregado de vigiar o barco?

--Sou sim, meu major.

--o homem que procuramos encontra-se neste momento a bordo.

Tem uma arma?

--Não, meu major.

--Diabo!--Vandam considerou a hipótese de atacar o barco com o árabe, mas rejeitou-a imediatamente como inviável: naquele confinado, a faca de Wolff era uma ameaça temível.—Vá ao telefone mais próximo, ligue para o QG e transmita um recado ao capitão Jakes ou ao coronel Bogge: ataquem imediatamente o barco-habitação. Compreendeu?

--Capitão Jakes ou coronel Bogge, QG. Compreendi sim, meu major.

o árabe afastou-se com passos rápidos. Recebera instruções para comunicar com o seu oficial superior e com mais ninguém relativamente àquele caso, pelo que iria à esquadra e ligaria para casa do superintendente Kemel. Este saberia o que fazer.

Vandam encontrou uma posição que Lhe permitia simultaneamente permanecer oculto e vigiar o barco e o caminho do cais.

Decorrido um bocado, viu uma mulher dirigir-se para a embarcação. Pareceu-lhe familiar. Entrou no barco e Vandam compreendeu que era Sonja.

Sentiu-se aliviado. Pelo menos Wolff não molestaria Elene com outra mulher a bordo. Preparou-se para esperar.

 

ELENE desceu a escada e percorreu nervosamente com os olhos o interior do barco. Esperara encontrar uma decoração reduzida e com motivos náuticos, mas deparava-se-lhe um ambiente luxuoso, embora um pouco decadente. Havia carpetes espessas, divas baixos mesas e ricos reposteiros de veludo do chão ao tecto, que separavam aquela área do que calculou ser o quarto.

--E seu?--perguntou a Wolff.

--É de uma amiga--respondeu ele. --Sente-se.

Elene sentia-se encurralada. onde estava William Vandam?

Tivera várias vezes a impressão de que uma motocicleta os seguira, mas não pudera certificar-se do facto, receosa de alertar Wolff. Este retirou do frigorifico uma garrafa de champanhe, fez saltar a rolha procurou duas taças e encheu-as.

Elene sentia-se aterrorizada. Que tipo de jogo seria o dele?

Percorreu-a um calafrio.

--Está com frio?--perguntou Wolff, estendendo-lhe uma taça de champanhe.

--Não, não é frio.

Wolff ergueu a sua taça e brindou:

--A sua saúde.

Elene tinha a boca seca. Sorveu um golo e depois um grande trago da bebida gelada. Sentiu-se um pouco melhor.

Ele sentou-se a seu lado no diva e disse:

 

--Aprecio imenso a sua companhia. Você é uma feiticeira.—E colocou a mão sobre o joelho dela.

Elene ficou petrificada. "Pronto, é agora", pensou.

--Você é enigmática--continuou ele. --Atraente, bastante reservada, extremamente bonita, por vezes ingénua e por vezes sabida. --Enquanto falava, percorria-lhe com a ponta do dedo os contornos do rosto, testa, nariz, lábios, queixo. –Porque sai comigo?

Que quereria ele dizer? Seria possível que suspeitasse do papel que ela desempenhava? ou tratar-se-ia apenas da fase seguinte do jogo?

olhou-o e respondeu:

--Você é um homem muito atraente.

--Agrada-me que tenha essa opinião. --Inclinou-se para a beijar e ela ofereceu-lhe a face. os lábios de Wolff roçaram-lhe pela pele e depois ele perguntou num murmúrio:--Porque tem medo de mim?

ouviu-se um ruído na coberta--passos rápidos e leves--e a escotilha abriu-se. Elene pensou: "William!"

Vislumbrou no degrau um sapato de salto alto e um pé de mulher. Esta desceu e Elene reconheceu Sonja, a dançarina do ventre.

"Que diabo é isto?", pensou.

 

--ESTA bem, sargento--disse Kemel pelo telefone da mesa-de-cabeceira.--Procedeu exactamente como devia ao contactar comigo. Eu trato de tudo pessoalmente. Pode até abandonar o serviço a partir deste momento.

--Muito obrigado, Sr. Superintendente--agradeceu o sargento. Boas noites.

Kemel desligou. Era uma catástrofe. os Ingleses tinham seguido Alex Wolff até ao barco-habitação e Vandam estava a tentar organizar um ataque. As consequências seriam duplas. Primeiro, a possibilidade de os oficiais Livres utilizarem o rádio de Wolff para estabelecerem contacto com Romel desapareceria.

Segundo, quando os Ingleses descobrissem que o barco-habitação era um ninho de espiões, compreenderiam que ele, Kemel, os protegera. Que podia fazer? Vestiu-se apressadamente.

--Que é?--perguntou-lhe a mulher, da cama.

--Serviço--sussurrou ele.

--oh, não! --E virou-se para o outro lado.

Kemel retirou uma pistola da gaveta fechada à chave da secretána e introduziu-a no bolso do casaco. Depois, beijou a mulher e saiu silenciosamente de casa. Meteu-se no carro e ligou o motor. Tinha de consultar Sadat a respeito do sucedido, mas entretanto a impaciência podia levar Vandam a cometer qualquer acto precipitado. Tinha de resolver primeiro o problema de Vandam.

Kemel seguiu para Zamalek e estacionou perto do caminho do cais. Retirou do porta-bagagem um pedaço de corda e avançou com a pistola na mão direita segura pelo cano, à guisa de matraca.

Chegou à margem do rio. olhou para o Nilo prateado e para as formas pretas dos barcos-habitações. Vandam devia estar oculto algures entre os arbustos. Kemel avançou sub-repticiamente.

A sua frente, uma voz perguntou num murmúrio:

--Quem vem aí? Jakes?

Kemel ergueu o braço e abateu-o violentamente. A pancada atingiu em cheio a cabeça de Vandam e deixou-o inconsciente.

Kemel ajoelhou-se ao lado do corpo caído de costas e, rapidamente, descalçou-lhe as sandálias e tirou-lhe as peúgas, que Lhe introduziu na boca, para evitar que o oficial gritasse a pedir socorro. Em seguida, virou-o de bruços, cruzou-lhe os pulsos atrás das costas e amarrou-os com a corda. Depois, amarrou-lhe também os tornozelos e, por fim, atou a corda a uma árvore.

Vandam recuperaria os sentidos dentro de minutos, mas ser-lhe-ia impossível mover-se ou gritar. Kemel resolveu dar uma vista de o!hos rápida ao barco-habitação. Seguiu o caminho do cais em dlrecção ao Jlhan. Havia luzes no interior, mas as cortinas das vigias estavam corridas. Sentiu-se tentado a subir a bordo, mas considerou preferivel consultar primeiro Sadat, pois não estava certo do que convinha fazer. Virou-se e dirigiu-se para o automóvel.

 

SoNJA sorriu:

--Alex disse-me tudo a seu respeito, Elene.

Elene retribuiu o sorriso. Seria aquela a amiga de Wolff a quem o barco pertência? Não a teria ele esperado tão cedo? Por que razão nenhum deles parecia irado ou embaraçado?

Wolff serviu uma taça de champanhe a Sonja

--Trabalha então na loja do Mikis?--perguntou a dançarina .

 

--Não, não trabalho. Ajudei-o durante uns dias, mais nada.

Somos aparentados.

--Então é grega?

--Exactamente.

Aquela conversa incutiu confiança em Elene, que sentiu o medo diminuir. Acontecesse o que acontecesse, Wolff não iria com certeza violentá-la, de faca na mão, diante de uma das mulheres mais famosas do Egipto. Sonja proporcionava-lhe, pelo menos, alguns momentos para respirar. William estava decidido a apanhar Wolff antes da meia-noite ... Meia-noite!

Quase se esquecera. A meia-noite, Wolff contactaria com o inimigo pela TSF e comunicar-lhe-ia os pormenores da linha de defesa. Mas onde estava o rádio? Estaria no barco? Ele transmitiria a mensagem na presença delas?

Wolff sentou-se ao lado de Elene, que se sentiu vagamente ameaçada com um de cada lado.

--Sou um homem feliz!--exclamou ele.--Aqui sentado com duas mulheres tão belas!

Elene olhava em frente, sem saber que dizer.

--Ela é bonita, não é, Sonja?

--É!--Sonja tocou no rosto de Elene e depois pegou-lhe no queixo e virou-lhe a cabeça. --Acha-me bonita, Elene?

--Com certeza. --Elene franziu a testa: a situação estava a tornar-se esquisita.

--Ainda bem!--afirmou Sonja, e colocou a mão sobre o joelho da outra.

Então, Elene compreendeu.

As peças do puzzle ocuparam os seus devidos lugares: a falsa cortesia de Wolff, o barco-habitação e o aparecimento inesperado de Sonja. Elene apercebeu-se de que não estava de todo em segurança.

Aqueles dois queriam usá-la de qualquer maneira. o medo que sentia por Wolff ressurgiu e recrudesceu.

"Pára com isso! Não vou ter medo. Posso bem ser molestada por dois idiotas depravados. Está em jogo um assunto mais importante. Esquece-te de ti, pensa no rádio e na maneira de impedires Wolff de contactar com Rommel." Consultou furtivamente o relógio: faltava um quarto para a meia-noite.

ERA quase alvorada. No quarto do barco, Wolff e Sonja dormiam profundamente o jogo em que tinham obrigado Elene a participar fora para benefício de Sonja: era evidente que se tratava da sua fantasia, da sua mania. Quanto mais Wolff dedicava a sua atenção a Elene, tanto mais Sonja tentava intrometer-se entre ambos, até que no desenlace, Wolff rejeitara Elene e fizera amor com Sonja. Fora tão idiota, tão ridículo, que Elene quase considerara a cena cómica. Porém, não of erecendo resistência, conseguira que Wolff esquecesse a sua emissão da meia-noite para Rommel.

Naquele momento, ao acordar no diva da sala, perguntou a si mesma o que teria acontecido a Vandam. Teria perdido a pista do automóvel de Wolff na confusão do transito ou sofrido algum acidente? Fosse por que motivo fosse, o certo é que Vandam já não estava a velar por ela. Encontrava-se entregue a si mesma.

Que impediria Wolff de enviar a sua mensagem noutra noite?

Seria importante saber se o rádio se encontrava no barco.

Recordou as palavras de Vandam: "Se conseguir arranjar a chave do código do livro, posso passar por Wolff na radiotransmissão ... Isso poderia salvar o Egipto."

"Talvez eu consiga encontrar a chave", pensou Elene. Vandam explicara-lhe que se tratava de uma folha de papel com as instruções que permitiam utilizar o livro para codificar mensagens. Resolveu passar revista ao barco, começando pela popa e acabando na proa.

Entrou no quarto em bicos de pés. Wolff respirava serena e regularmente. Sonja não se movia. Elene penetrou na exígua casa de banho. Havia uma bacia, uma pequena banheira e um armário que continha uma máquina de barbear e comprimidos. O rádio não estava na casa de banho.

Atravessou de novo o quarto e regressou à sala. O diva estava aparafusado ao chão. o rádio não podia estar ali. Passou à cozinha. Havia um armário alto, que abriu silenciosamente.

Continha uma vassoura e algum material de limpeza. Nenhum rádio. Abriu seis pequenos armários. Continham louça, conservas, tachos e copos. Havia diversas gavetas. Abriu uma e o chocalhar dos talheres esfrangalhou-lhe os nervos. Outra continha frascos de especiarias e temperos. outra ainda, facas de cozinha.

Perto da cozinha havia uma pequena secretária com tampo de correr e ao lado outro armário. Elene abriu-o e viu uma mala.

O seu ritmo cardíaco acelerou-se. Retirou a mala para o chão.

Era pesada. o rádio ajustava-se perfeitamente na mala, como se esta tivesse sido fabricada com o propósito expresso de o conter.

Sobre o rádio viu um livro, cujo título leu: Rebeca. Havia qualquer coisa entre as páginas. Abriu o livro, de entre cujas folhas caiu um pedaço de papel. Elene apanhou-o e verificou que era uma lista com datas, com algumas palavras em alemão. Tratava-se com certeza da chave do código.

Tinha na mão aquilo de que Vandam necessitava para modificar o rumo da guerra. Agora só precisava de fugir com o livro e a chave.

A cama rangeu. Por detrás dos reposteiros ouviu o ruído inequívoco de alguém a levantar-se. Elene dirigiu-se para a escada e subiu a correr os estreitos degraus. olhou para baixo e viu Wolff aparecer entre as cortinas e olhá-la, estupefacto. os seus olhos desviaram-se dela para a mala aberta no chão.

Elene voltou-se para a escotilha, fechada do lado de dentro por meio de dois trincos. Correu-os e, pelo canto do olho, viu Wolff precipitar-se para a escada. Abriu a escotilha e saiu para a coberta. Wolff subia apressadamente a escada. Quando ele agarrou a borda da abertura, Elene baixou-lhe a escotilha sobre a mão com toda a força. Soou um berro de dor. Elene atravessou a coberta a correr e desceu o portaló. Na margem do rio baixou-se, levantou a extremidade do portaló e deixou-o cair no rio.

Wolff saiu pela escotilha, o rosto transformado numa máscara de dor e fúria. Ao vê-lo atravessar a coberta a correr, Elene entrou em panico. "Está nu", pensou, "não me pode perseguir!"

Mas ele saltou por sobre a amurada do barco e aterrou na orla da margem, agitando os braços para se equilibrar. Com um súbito ímpeto de coragem, Elene correu para ele e empurrou-o para trás, para a água. Depois, voltou-se e fugiu ao longo do caminho do cais.

Quando chegou ao troço inferior do caminho que conduzia à rua, deteve-se e olhou para trás, com o coração a bater descompassadamente. Experimentou uma sensação de euforia quando viu Wolff, nu e a pingar, emergir da água e subir a margem lodosa. Começava a clarear e ele não a podia perseguir naquele estado. Virou-se na direcção da rua, desatou a correr e chocou com alguém.

Braços fortes imobilizaram-na. Ela debateu-se desesperadamente. o homem que a segurava passou-lhe um braço pelo pescoço, impedindo-a de gritar.

Wolff aproximou-se e perguntou:

--Quem é você?

--Sou Kemel. Você deve ser Wolff.

--Graças a Deus que você está aqui! É melhor vir a bordo.-Wolff precedeu-os, recuperou a prancha flutuante do portaló e repô-la no lugar, entre o barco e a margem. – Por aqui convidou.

Kemel conduziu Elene através da coberta e pela escada abaixo, empurrou-a para o diva e obrigou-a a sentar-se.

Wolff passou por entre os reposteiros e regressou decorridos momentos com uma grande toalha enrolada à cintura. Sentou-se e e aminou a mão.

---Quase me partiu os dedos--observou, fitando Elene com um misto de cólera e surpresa.

--onde está Sonja?--perguntou Kemel.

--Na cama--respondeu Wolff, indicando com a cabeça a direcc,ao

do quarto por detrás do reposteiro.--Nem um tremor de terra consegue acordar.

--Você está em apuros--observou Kemel.

--Bem sei. Suponho que esta mulher trabalha para Vandam.

--Lá isso não sei. Recebi um telefonema do homem que pus no caminho do cais. Vandam veio até aqui e mandou-o pedir auxilio.

Wolff ficou assustado.

--Foi por pouco!--exclamou com ar preocupado.--onde está Vandam agora?

--Ainda está ali. Dei-lhe uma pancada na cabeça e amarrei-o.

Elene sentiu o coração desfalecer-lhe. Vandam estava imobilizado ... e mais ninguém sabia onde ela se encontrava.

Fora tudo inútil.

Wolff acenou com a cabeça e observou:

--Vandam deve tê-la seguido. Com ele são duas pessoas que sabem que vivo aqui. Se quiser cá ficar, tenho de os matar a ambos.

--Não basta--declarou Kemel.--Se você matar Vandam, o assassínio acaba por me ser atribuído.--Fez uma pausa, observando Wolff através de olhos semicerrados, e acrescentou:

--E se me matasse a mim, ficava ainda o homem que me telefonou a noite passada.

--Portanto ...--Wolff franziu o cenho--... tenho de me ir embora. Raios partam!

Kemel acenou afirmativamente e disse:

--Se você desaparecer, creio que posso compor as coisas. Mas preciso de uma coisa de si. Lembre-se do motivo por que o temos aiudado Queremos falar com Rommel.

--Esta noite transmito. Diga-me o que quer transmitir e eu

--Não. Queremos ser nós a fazê-lo. Queremos o seu rádio.

As instruções de Sadat haviam sido claras no que respeitava a

essa questão.

Wolff franziu de novo a testa. Elene compreendeu que Kemel era um rebelde nacionalista que tentava cooperar com os Alemães

--Podíamos transmitir a sua mensagem--acrescentou Kemel

--Não é necessário--respondeu Wolff, que parecia ter tomado uma decisão. --Tenho outro rádio.

--Então está combinado.

o rádio está ali.--Wolff apontou para a mala, ainda aberta no chão.--Já está sintonizado no comprimento de onda corrente. Só têm de transmitir às vinte e quatro horas de qualquer noite.

Kemel aproximou-se do aparelho e examinou-o. Elene perguntou a si mesma por que motivo não teria Wolff mencionado o código Rebeca. Percebeu que o espião estava a jogar pelo seguro: dar o codigo a Kemel seria arnscar-se a que este o desse a qualquer outra pessoa.

--onde mora Vandam?--perguntou Wolff.

Kemel, que procedera a algumas investigações nesse campo deu-lhe o endereço do major.

"Que pretenderá agora?", pensou Elene.

--Ele é casado, suponho?

--Viúvo. A mulher foi morta em Creta o ano passado.

--Tem filhos?

--Tem um rapaz chamado Billy. Porquê?

Wolff encolheu os ombros.

--Estou um pouco obcecado com o homem que esteve prestes a apanhar-me--respondeu, mas Elene teve a certeza de que mentia.

Kemel fechou a mala, aparentemente satisfeito, e Wolff pediu-Lhe:

--Tome conta dela um minuto, sim?

--Claro.

Wolff reparara que Elene segurava ainda o livro na mão.

Tirou-Lho e depois desapareceu por detrás do reposteiro.

Decorridos poucos minutos, regressou já vestido e sem o livro.

--Tem um indicativo de chamada?--perguntou-lhe Kemel.

--Esfinge--respondeu Wolff secamente.

--Código?

--Nenhum.

--Que estava naquele livro?

--Um código--respondeu Wolff em tom irritado.--Mas não Lho dou. Vão ter de se arriscar a transmitir às claras.—De súbito, Wolff sacou da faca.--Não discuta. Sei que tem uma arma, mas se

disparar vai ter de justificar a bala aos Ingleses. É melhor ir-se embora.

Sem uma palavra, Kemel pegou na mala e saiu pela escotilha.

Wolff guardou a faca na bainha, sob a camisa. Foi buscar o livro ao quarto, retirou o papel da chave, amarrotou-o, colocou-o num cinzeiro de vidro e pegou-lhe fogo com um fósforo.

Deve ter outra chave com o outro emissor, pensou Elene.

Após se certificar de que o papel ardera completamente, Wolff abriu uma vigia e atirou o livro à água.

Retirou uma pequena maleta de um armário e comec,ou a emalar alguns objectos.

--Aonde vai?--perguntou-lhe Elene.

--Já vai saber; também vai.

--oh, não!--Que Lhe faria? Surpreendera-a a enganá-lo ...

Teria imaginado algum castigo apropriado? o medo apossou-se dela. Nada do que fizera resultara.

Wolff continuou a fazer a mala. Quando acabou, lançou um último olhar à sua volta.

--Não tenho coragem para perturbar o sono de Sonja--declarou, sorrindo. --Vamos.

Caminharam ao longo do caminho do cais, Wolff segurando a mala com uma das mãos e o braço de Elene com a outra. Porque abandonaria Sonja? Elene considerou-o desprovido de escrúpulos, e a ideia fê-la estremecer.

Viraram para a rua e dirigiram-se para o automóvel de Wolff.

Este obrigou-a a entrar pelo lado do motorista e a passar por sobre a alavanca de mudanças, para se sentar no banco do passageiro à frente. Depois, instalou-se ao lado dela e partiram.

"Para onde iremos?", perguntou-se Elene. Para onde quer que fossem, o outro emissor encontrava-se lá, juntamente com outro exemplar de Rebeca e outra chave do código. "Quando chegarmos, vou ter de tentar de novo." Agora que Wolff abandonara o barco-habitação, Vandam nada podia fazer, mesmo depois de ser libertado. Elene teria de tentar, sozinha, impedir Wolff de contactar com Rommel e, se possível, roubar a chave do código. A ideia era ridícula. o que realmente desejava era libertar-se daquele homem diabólico e perigoso, ir para casa

e sentir-se de novo em segurança. Mas pensou no pai, viajando a pé para Jerusalém, e compreendeu que tinha de tentar.

Wolff parou o automóvel e Elene exclamou:

-- Esta é a casa de Vandam!--olhou-o sem compreender. Mas ele não está em casa.

--Pois não--concordou Wolff com um sorriso cínico.--Mas está Billy.

 

Capítulo 11

ANWAR el-Sadat ficou encantado com o rádio. Ligou-o para o experimentar e declarou a Kemel que era muito potente.

Esconderam-no no forno da cozinha de Sadat. Depois, Kemel regressou de carro a Zamalek, ensaiando pelo caminho a história que preparara para encobrir o papel que desempenharanos acontecimentos noturnos.

Estacionou o automóvel, desceu cautelosamente o caminho do cais e embrenhou-se nos arbustos a trinta ou quarenta metros do local onde deixara Vandam. Rolou pelo chão para sujar a roupa, esfregou um pouco de terra arenosa na cara, passou os dedos pelo cabelo e esfregou os pulsos, que ficaram congestionados e aparentemente doridos. Depois foi procurar Vandam.

Encontrou-o exactamente onde o deixara. os nós estavarn ainda apertados e a mordaça no seu lugar. Vandam fitou-o de olhos fixos e dilatados, e Kemel exclamou:

--Meu Deus, também o apanharam!

Inclinou-se, retirou a mordaça a Vandam e desamarrou-o.

--o sargento contactou-me--explicou. --Vim aqui à sua procura e só me lembro de ter acordado amarrado e amordaçado e com uma enorme dor de cabeça. Libertei-me há instantes. –o superintendente atirou a corda para o lado e Vandam levantou-se, entorpecido. --Como se sente?--perguntou Kemel.

--Sinto-me bem.

--Vamos subir a bordo e ver se descobrimos alguma coisa.

Apenas Kemel se virou, Vandam avançou e agrediu-o na nuca com

a região lateral da mão, tão violentamente quanto pôde. Podia tê-lo morto, mas era-lhe indiferente. Sabia que Kemel o traíra. Estivera amarrado e amordaçado, mas pudera ouvir: "Sou Kemel. Você deve ser Wolff." A partir desse momento a fúria de Vandam acumulara-se, e o oficial pusera no golpe toda a sua ira contida.

Kemel ficou caído no chão, inconsciente. Vandam virou-o ao contrário, revistou-o e encontrou a pistola. Serviu-se da corda que amarrara as suas próprias mãos para atar as de Kemel atrás das costas. Depois, esbofeteou-o até ele recuperar os sentidos.

--Levante-se--ordenou.

Kemel, cujos olhos reflectiam medo, ergueu-se com dificuldade.

Vandam agarrou-o pelo colarinho com a mão esquerda e empunhou a arma com a direita.

--Vamos!

Dirigiram-se para o barco-habitação. Empurrando Kemel à sua frente, Vandam subiu o porlaló e atravessou a coberta.

Desajeitadamente, devido às mãos atadas, Kemel desceu a escada. Vandam inclinou-se para olhar o interior. Estava deserto. Desceu rapidamente as escadas, empurrou Kemel para o lado e correu o reposteiro. Viu Sonja a dormir, deitada na cama.

--Entre para ali--ordenou.

Kemel entrou e deteve-se ao lado da cabeceira da cama.

--Acorde-a.

Kemel acordou-a aos gritos. Sonja abriu os olhos e sentou-se na cama. Reconheceu Kemel e depois viu Vandam com a arma. Ela e o major perguntaram simultaneamente:

--onde está Wolff?

Vandam teve a certeza de que ela não representava. Percebia agora claramente que Kemel avisara Wolff e que este fugira sem acordar Sonja. Presumivelmente, levara Elene consigo por qualquer razão.

--Wolff transmitiu alguma radiomensagem ontem à noite? perguntou.

Não, não transmitiu.

--Que aconteceu aqui?--perguntou Vandam, temendo a resposta.

--Fomos para a cama.

--Quem?

--Wolff e eu.

E teria sido tudo? Estaria Sonja a dizer a verdade? Wolff não teria de facto contactado com Rommel pela rádio na noite anterior? Desejava apenas que fosse verdade.

--Vista-se--ordenou a Sonja.

Ela saiu da cama e enfiou apressadamente um vestido. Depois,  Vandam ordenou a Kemel e a Sonja que entrassem na exígua casa de banho, fechou a porta à chave e começou a revistar o barco.

Encontrou um cinzeiro de vidro cheio de papel queimado e completamente reduzido a cinzas. Ao fim de meia hora adquirira a certeza deque não existia a bordo nenhum rádio e nenhuma chave de código.

Encontrou um pedaço de corda, fez sair os dois prisioneiros da casa de banho, amarrou as mãos de Sonja e em seguida amarrou o homem e a mulher um ao outro. Saiu do barco com eles e conduziu-os para a rua, onde mandou parar um táxi. Instalou Sonja e Kemel no banco da retaguarda e, de arma apontada para eles, sentou-se no da frente.

--Quartel-general--disse ao assustado motorista árabe.

os dois prisioneiros seriam interrogados, mas havia apenas duas perguntas que interessavam: onde estava Wolff? Onde estava Elene?

 

SENTADo no automóvel, Wolff agarrou no pulso de Elene e sacou da faca, cujo gume afiado passou levemente pelas costas da mão da jovem. Horrorizada, Elene olhou para a mão. Inicialmente, viu apenas uma linha, semelhante ao risco de um lápis; depois, o sangue jorrou e ela sentiu uma dor lancinante. A respiração tornou-se-lhe opressa.

--Vai ficar perto de mim e não dizer nada--recomendou Wolff.

--Caso contrário, esfaqueia-me?--perguntou, desdenhosa.

--Não. Caso contrário esfaqueio Billy.

Wolff saiu do carro e Elene permaneceu imóvel, experimentando uma sensação de impotência. Que podia fazer contra aquele homem implacável? Retirou um lenço da mala e atou-o em torno da mão que sangrava. Wolff contornou o veículo, abriu a porta do lado da jovem, agarrou-lhe no braço e obrigou-a a sair.

Subiram o caminho até à casa de Vandam e Wolff tocou à campainha. Gaafar abriu a porta, lançou um olhar rápido à mão de Elene e cumprimentou-a:

--Bons dias, Miss Fontana.

Wolff disse:

--Bons dias. Sou o capitão Alexander. o major pediu-me que viesse cá. Deixa-nos entrar?

--Com certeza, Sr. Capitão. --Gaafar desviou-se e Wolff entrou no átrio de mosaicos, sem largar o braço de Elene.--Espero que o Sr. Major esteja bem--disse o criado.

--Está óptimo. Mas não pode vir a casa esta manha, e como estou de folga pediu-me para levar Billy no carro para a escola.

Elene estava apavorada. Wolff ia raptar Billy. Não podia permiti-lo. Apeteceu-lhe gritar: "Não, Gaafar, ele está a mentir, leve o Billy e fuja, fuja!" Mas Wolff tinha a faca e Gaafar era velho. Wolff apanharia Billy de qualquer maneira.

 

Gaafar pareceu hesitar e Wolff ordenou-lhe:

--Vamos, Gaafar, despache-se! Não dispomos do dia todo.

--Sim, Sr. Capitão. Billy está a acabar de tomar o pequeno-almoço. Querem fazer o favor de esperar aqui um momento?--E abriu a porta da sala.

Wolff empurrou Elene para a sala e largou-lhe finalmente o brac,o. Sentou-se à secretária, procurou papel e lápis e começou a escrever.

--Porque me trouxe aqui?--gritou Elene.

Wolff ergueu a cabeça do papel e respondeu:

--Para manter o rapaz sossegado. Temos um longo caminho a percorrer.

--Deixe ficar o Billy--rogou a rapariga.--É uma criança.

--É o filho de Vandam--replicou Wolff com um sorriso.—E possível que Vandam calcule onde vou, e quero ter a certeza de que não vai atrás de mim. --E continuou a escrever.

Elene fez um esforço para se concentrar. Iam fazer uma longa viagem. No fim, com certeza, encontrava-se o outro rádio, bem como outro exemplar de Rebeca e uma cópia da chave do código.

Fosse como fosse, tinha de ajudar Vandam a segui-los. Onde teria Wolff deixado o outro rádio? Podia tê-lo escondido algures no deserto ou entre o Cairo e Asyut. Talvez Billy entrou na sala.

--olá! --disse a Elene. --Trouxe-me o lal llvro!

--o livro?--Fitou-o, enquanto pensava que era ainda uma criança, não obstante as suas atitudes de adulto. Vestia calções de flanela cinzenta e camisa branca, usava a gravata da escola e segurava a pasta com os livros.

--Disse que me emprestava um livro policial do Simenon.

--Esqueci-me. Desculpa.

Wolff, que estivera a olhar para Billy como um avarento para o seu tesouro, levantou se.

--olá, Billy -- cumprimentou com um sorriso. Capitão Alexander.

Billy apertou-lhe a mão e cumprimentou:

--Como está, Sr. Capitão?

--o teu pai pediu-me para te dizer que está muito ocupado a fazer frente ao velho Rommel. Eu levo-te à escola.

--Ele teve outra luta?

Wolff hesitou, antes de responder:

--Por sinal teve, mas está bem. Ficou com um galo na cabeça.

Billy pareceu mais orgulhoso do que preocupado.

Wolff dirigiu-se rapidamente a Elene em árabe:

--Entretenha o rapaz um bocado.--E regressou à secretária.

Elene olhou para a pasta de Billy e teve uma ideia:

--Mostra-me os teus livros--disse. Através da pasta aberta via um atlas, que retirou. --Que estás a dar em geografia?

--os fiordes da Noruega.

Elene viu Wolff acabar de escrever e introduzir a folha de papel num sobrescrito, que fechou e guardou no bolso.

--Vamos lá ver onde está a Noruega--disse Elene, folheando o atlas.

Wolff pegou no telefone e discou um número. olhou para Elene e depois para o exterior, através da janela. Elene encontrou o mapa do Egipto e Billy observou:

--Mas isso é ...

Rapidamente, Elene tocou-lhe nos lábios com um dedo. Crianca calou-se e olhou-a, franzindo as sobrancelhas.

--Claro, isto é a Escandinávia--disse Elene--, mas Noruega fica na Escandinávia. olha.

Desatou o lenço da mão e com uma unha abriu o golpe para o fazer sangrar de novo. Billy empalideceu.

Entretanto, Elene adquirira praticamente a certeza de que Wolff tencionava dirigir-se a Asyut. o espião declarara recear que Vandam adivinhasse qual o seu destino, e era provável que o major associasse essa cidade com Wolff. Nesse momento, ouviu Wolff pedir pelo telefone:

--Está? Diga-me o horário do comboio para Asyut.

"Eu tinha razão!", pensou a rapariga. Humedeceu o dedo com sangue da mão e com três riscos desenhou uma seta indicando a cidade de Asyut, quinhentos quilómetros a sul do Cairo. Fechou o atlas e com o lenço manchou-lhe a capa de sangue. Depois, ocultou o livro atrás de si. Billy, os olhos fixos na mão de Elene, permanecia mudo de assombro.

Wolff pousou o telefone e disse:

--Vamos. Não queres com certeza chegar atrasado à escola.

Dirigiu-se para a porta e abriu-a.

De testa franzida, Billy pegou na pasta e saiu, seguido por Elene. Wolff, antes de sair, colocou a carta que escrevera sobre uma pilha de correspondência que viu numa mesa no átrio.

--Sabe guiar?--perguntou a Elene.

--Sei -- afirmou a jovem, compreendendo de imediato que devia ter respondido negativamente.

--Vocês dois vão à frente--ordenou Wolff, e sentou-se no banco da retaguarda.

Quando ela arrancou, Wolff inclinou-se para a frente, mostrou a faca a Billy e perguntou-lhe:

--Estás a ver isto?

--Estou--respondeu o garoto em voz pouco firme.

--Se não te portares bem, uso-a em ti--ameaçou Wolff.

A crianca comecou a chorar.

 

A sala do interrogatório tinha apenas uma mesa e uma cadeira.

Vandam entrou, precedido por Jakes e Kemel, e sentou-se.

--onde está Alex Wolff?--perguntou o major.

--Não sei--respondeu o superintendente.

--ouça, Kemel, nas circunstâncias actuais será fuzilado por espionagem. Se nos disser tudo quanto sabe, talvez se safe com uma condenação a prisão perpétua. Seja sensato. Foi você quem me agrediu no caminho que conduz ao cais, não foi?

--Não, senhor.

Vandarn suspirou. Kemel tinha a sua história e agarrava-se a ela. Perguntou:

--De que maneira está a sua mulher envolvida em tudo isto?

Kemel não respondeu, mas pareceu assustado.

--Se não responde às minhas perguntas, vou ter de Lhe perguntar ela.

Kemel mantinha os lábios apertados numa linha dura.

Vandam ergueu-se e ordenou ao capitão:

--Jakes, prenda a mulher dele por suspeita de espionagem.

--- Justiça britanica típica--comentou Kemel.

Vandam olhou-o e insistiu:

--onde está Wolff?

--Não sei.

Vandam saiu, seguido por Jakes.

--o tipo é polícia, conhece as técnicas--observou o major.-Há-de vergar, mas não hoje.--E ele t nha de encontrar Wolff e Elene naquele dia.

Dirigiram-se para outra sala e entraram. Sonja estava sentada numa cadeira, com um vestido prisional cinzento. A seu lado postava-se uma oficial do Exército que teria assustado Vandam caso este fosse seu prisioneiro: era baixa e corpulenta, com uma expressão dura e cabelo grisalho curto.

Vandam e Jakes sentaram-se. Vandam já interrogara Sonja naquela sala, e ela sobrepujara-o em astúcia. Desta vez, porém, a segurança de Elene estava em jogo e poucos escrúpulos restavam a Vandam.

--onde está Alex Wolff?

--Não sei.

--Wolff é um espião alemão e você tem-no ajudado.

--Ridículo.

Vandam observou-lhe o rosto. Era uma mulher orgulhosa, confiante em si mesma, desprovida de medo.

--Wolff atraiçoou-a--prosseguiu o major.--Kemel, o polícia, avisou Wolff do perigo, mas ele deixou-a a dormir e fugiu com outra mulher. Vai continuar a protegê-lo depois disso?

SonJa não respondeu.

--Wolff tinha o rádio no seu barco e enviava mensagens a Rommel. Você sabia-o, e por isso é cúmplice dele. Será fuzilada por espionagem.

--o Cairo todo sublevar-se-ia! Não se atreveriam'

--Acha que não? Que nos importa que o Cairo se subleve agora?

os Alemães estão às portas da cidade ... eles que contenham a rebelião.

--Não me pode tocar.

--Acho melhor provar-lhe que posso--respondeu Vandam, e dirigiu um aceno de cabeça à oficial.

Esta segurou Sonja, enquanto Jakes a amarrava à cadeira. A bailarina debateu-se um momento, mas em vão. Pela primeira vez

perpassou-lhe nos olhos um vislumbre de medo. A oficial retirou uma grande tesoura da mala, ergueu uma madeixa do longo e espesso cabelo de Sonja e cortou-a.

--Não pode fazer isso!--gritou histericamente a dançarina.

A oficial continuou a cortar. A medida que cortava as pesadas madeixas, deixava-as cair no colo de Sonja, cujos gritos se transformaram em lágrimas.

--Como vê--disse Vandam--, já não nos importamos muito com a opinião pública egípcia. Estamos encostados à parede.

A mulher retirou da mala sabão e um pincel da barba, ensaboou a cabeça de Sonja e começou a rapar-lha. Por fim, retirou um espelho da mala e colocou-lho à frente. Sonja ficou de respiração suspensa ao ver a sua cabeça totalmente rapada.

--Não--murmurou--, não sou eu!--E rompeu num choro convulsivo.

o ódio desaparecera; estava completamente desmoralizada.

--onde obtinha Wolff as suas informações? – perguntou.

--Do major Smith--respondeu Sonja. --Sandy Smith.

Vandam dirigiu um olhar rápido a Jakes. Era o nome do major do SSI que desaparecera--passara-se o que haviam receado.

--Como obtinha ele a informação?

--Sandy ia ao barco visitar-me na sua hora de almoço. Enquanto estávamos juntos, Alex revistava-lhe a pasta.

"Tão simples como isso", pensou Vandam. "Meu Deus, sinto-me cansado!" Smith era oficial de ligação entre o SSI e o QG.

Tivera acesso a todo o plano secreto de estratégia. E seguia directamente das conferências matinais no QG para o barco-habitação, com uma pasta cheia de segredos.

--onde está agora Smith?--perguntou Vandam.

--Surpreendeu Alex a mexer-lhe na pasta. Alex matou-o. Está no rio, junto do barco.

Vandam dirigiu um aceno de cabeça a Jakes, que saiu.

--Fale-me de Kemel--pediu a Sonja.

Com a resistência completamente esmagada, ela estava desejosa

de falar, de dizer tudo quanto sabia:

--Abordou-me e disse-me que o senhor Lhe tinha pedido que vigiasse o barco. Prometeu censurar os relatórios de vigilância se eu Lhe arranjasse um encontro entre Alex e Anwar el-Sadat, um capitão do Exército.

--Porque queria Sadat encontrar-se com Wolff?

--Para o Movimento dos oficiais Livres poder enviar uma mensagem a Rommel.

Vandam ordenou à oficial:

--Procure-me a morada do capitão Anwar el-Sadat.

--Sim, meu major. --E a mulher saiu.

--Sabe para onde Wolff poderá ter ido?--perguntou Vandam a Sonja.

--Procurar o ladrão Abdullah. Talvez tenha ido procurá-lo.

--Boa ideia. Mais algumas sugestões?

--os seus primos do deserto.

--onde poderiam ser encontrados?

--Ninguém sabe. São nómadas.

--Wolff poderia estar ao corrente dos seus movimentos?

--Suponho que sim.

--Voltaremos a ver-nos--prometeu Vandam, e saiu.

A mulher oficial entregou-lhe um papel com a morada de Sadat.

Jakes esperava-o na sala de reuniões.

--A Marinha vai emprestar-nos dois mergulhadores mou. --Já vêm

a caminho.

--Muito bem. Vou prender Sadat. Já foram transmitidas instruções a toda a gente?

o capitão acenou afirmativamente e respondeu:

--Sabem que procuramos um emissor de TSF` um exemplar do livro

Rebeca e um conjunto de instruções de código.

--Quero que faça uma rusga à casa de Abdullah. Depois, vá ter comigo ao barco-habitação.

Sadat vivia num subúrbio a cinco quilómetros do Cairo, na direcção de Heliópolis. Quatro jipes aproximaram-se ruidosamente da casa e os soldados cercaram-na imediatamente, começando a revistar o jardim. Vandam bateu à porta principal, que estava aberta, e chamou:

--Capitão Anwar el-Sadat?

--Sou eu.

Sadat era um jovem magro, com uma expressão séria, de altura mediana e cabelo ondulado castanho, que começava já a rarear.

Vestia uniforme e fez, como se estivesse prestes a sair.

--Está sob prisão--declarou Vandam, e entrou em casa. onde é o seu quarto, capitão?

Sadat indicou-lho. Sob a sua aparência, calma e digna, a tensão estava latente. "Está com medo", pensou Vandam, mas não de ir para a prisão; é de qualquer outra coisa."

Entraram juntos no quarto. Era um quarto simples, com um colchão no chão e uma galabia suspensa num prego. Dois soldados começaram a revistar o aposento.

--Conhece Alex Wolff--disse Vandam a Sadat.--Também se chama Achmed Rahmha, mas é europeu.

--Nunca ouvi falar dele.

obviamente, Sadat possuía uma personalidade relativamente forte não era homem susceptível de quebrar e confessar tudo só porque um punhado de soldados brutamontes começava a revolver-lhe a casa.

 

--Major Vandam!--gritaram de outra zona da casa.

Vandam seguiu a direcção de onde viera o grito e entrou na cozinha. Um sargento da PM abria uma mala que descobrira oculta no forno. No interior da mala encontrava-se um radioemissor. Vandam olhou para Sadat, que o seguira. A amargura e a decepção alteravam o rosto do árabe. os rebeldes tinham então avisado Wolff e, em troca, recebido o rádio do espião. Significaria tal facto que ele possuía outro?

--Bom trabalho, sargento. Acabem de revistar a casa e depois levem o capitão Sadat para o QG.

--Protesto--declarou Sadat.--A lei estipula que os oficiais do Exército Egípcio só podem ser detidos na messe de oficiais e devem ser guardados por um companheiro de armas.

--A lei também estipula que os espiões devem ser fuzilados-replicou Vandam, que se voltou de novo para o sargento:--o capitão é acusado de espionagem.

Fitou de novo Sadat. A expressão de amargura e desapontamento desaparecera-lhe do rosto e fora substituída por um olhar calculista. "o tipo vai tirar o máximo partido disto", pensou Vandam. "Está a preparar-se para armar em mártir. É muito adaptável. Devia ser político. "

Regressou ao jipe e ordenou ao motorista:

--Para Zamalek.

Quando chegou ao barco-habitação, os mergulhadores já tinham feito o seu trabalho: dois soldados içavam o cadáver do Nilo.

Jakes aproximou-se e disse-lhe:

--olhe, meu major. -- E estendeu-lhe o livro encharcado: Rebeca.

o rádio fora para Sadat; o livro-código para o rio. Vandam lembrou-se do cinzeiro cheio de papel queimado. Teria Wolff queimado a chave do código? Mas porquê, se tinha uma mensagem

vital para transmitir a Rommel? A conclusão era óbvia. Wolff tinha outro rádio, outro livro e outra chave ocultos em qualquer lado.

os soldados içaram o corpo para a margem do rio. Vandam inclinou-se sobre o cadáver e comentou para Jakes;

--Horrendo, não acha? Esfaqueado e depois atirado ao rio.

Wolff é rápido como o diabo a manejar o raio da faca.

Vandam levou a mão à face: o penso fora retirado e a barba- de alguns dias ocultava-lhe o ferimento. Elene não, com a faca não, por favor!

--Presumo que não encontrou Wolff, capitão?

--Não havia sinais dele em casa de Abdullah.

--Nem em casa do capitão Sadat. -- De súbito, Vandam sentiu-se completamente esgotado; Wolff parecia levar-lhe sempre a melhor. Esfregou a cara. Há vinte e quatro horas que não dormia.-Acho que vou para casa descansar um bocado. Talvez me ajude a pensar com mais clareza. Esta tarde voltamos a interrogar todos os presos.

A caminho de cása, lembrou-se de que Sonja mencionara outra possibilidade: os primos nómadas de Wolff. Mas quem poderia dizer onde se encontravam, a não ser o próprio Wolff? o jipe parou defronte da casa de Vandam, que se apeou e mandou o motorista embora.

Havia correio na mesa do átrio. o sobrescrito de cima, endereçado a Vandam numa caligrafia vagamente familiar, não tinha selo e ostentava a palavra "urgente . Vandam pegou nele e dirigiu-se à sala a procura de um abre-cartas. Fosse como fosse, a busca de Wolff tinha de ser circunscrita. Lembrou-se onde tudo começara. Asyut. Aparentemente, fora aí que Wolff surgira do deserto. Consequentemente, talvez regressasse para lá pelo mesmo caminho. Talvez os seus primos se encontrassem nessas imediações.

Podia ainda fazer qualquer coisa, pensou Vandam. Era provável que naquele momento Wolff seguisse em direcção ao sul.

Impunha-se a instalação de bloqueios na estrada. E era necessário colocar alguém em todas as estações de caminhos de ferro encarregado de o procurar. Vandam sentia dificuldade em concentrar-se.

onde estava o maldito abre-cartas? Foi à porta e gritou:

--Gaafar!

Regressou à sala e viu o atlas escolar de Billy numa cadeira.

Parecia sujo. o rapaz devia tê-lo deixado cair numa poça ou coisa parecida. Vandam pegou-lhe e sentiu-o pegajoso. Percebeu que estava sujo de sangue. Teve a sensação de estar a viver um pesadelo. Que se passava?

Gaafar entrou e Vandam perguntou-lhe:

--Que porcaria é esta?

--Não sei, Sr. Major--respondeu Gaafar depois de olhar para o atlas.--Eles estiveram a vê-lo enquanto o capitão Alexander aqui esteve . . .

--Eles quem? Quem é o capitão Alexander?

--o oficial que o senhor encarregou de levar Billy Para a escola.

 

Um terrível pavor desanuviou instantaneamente o cérebro de Vandam.

--Veio aqui esta manha um capitão do Exército Britanico e levou o Billy?

--Levou sim, Sr. Major, levou-o para a escola. Disse que o Sr. Major o tinha mandado ...

--Gaafar, eu não mandei ninguém.

o rosto moreno do criado adquiriu um tom terroso.

--Não pediu ao homem que se identificasse?

--Mas, Sr. Major, Miss Fontana vinha com ele! Por isso pareceu-me natural.

--oh, meu Deus!--Agora sabia por que motivo Lhe parecera familiar a caligrafia do sobrescrito: era a mesma do bilhete que Wolff mandara a Elene.

Rasgou o envelope, em cujo interior encontrou uma mensagem escrita na mesma caligrafia:

 

Caro major Vandam

o Billy está comigo. Elene cuida dele. Não Lhe acontecerá nada enquanto eu estiver em seguranca. Aconselho-o a deixar-se ficar onde está e não tomar quaisquer medidas. Não tenho qualquer desejo de molestar o rapaz. No entanto, a vida de uma crianca nada vale comparada com o futuro dos meus dois países, o Egipto e a Alemanha.

Por isso pode ter a certeza de que, se me convier, matarei Billy.

 

Era a carta de um louco: a saudação cortês, o inglês correcto, a tentativa de justificar o rapto de uma criança inocente. Wolff era louco. E tinha Billy em seu poder.

Vandam estendeu o bilhete a Gaafar, que pôs os óculos com mão trémula. Qual seria o objectivo do rapto? Para onde teriam ido? E porquê o sangue? Gaafar chorava copiosamente

--Quem estava ferido?--perguntou-lhe Vandam. --Quem sangrava?

--Não houve violência. Miss Fontana tinha um golpe na mão.

E espalhara sangue no atlas de Billy, que deixara sobre a cadeira. Era um sinal, uma mensagem. Vandam pegou no atlas e deixou-o abrir-se Viu imediatamente o mapa do Egipto e uma seta vermelha apontando para Asyut.

"Se eu comunico o facto para o QG", pensou, "Bogge transmite ordens para que prendam Wolff em Asyut. Trava-se uma luta e Wolff sabe que está perdido. Que fará então? Mata o meu filho."

Sentiu-se paralisado pelo medo. Claro que era esse o objectivo de Wolff ao levar Billy: paralisar Vandam. Só havia uma opção: tinha de os seguir sozinho. Wolff viera de Asyut de comboio; tinha pois de partir do princípio de que também regressaria de comboio.

Saiu da sala e deteve-se no átrio para pôr os óculos de motociclista e enrolar um cachecol em tomo da boca e do pescoço. Saiu de casa, montou na motocicleta e ligou o motor.

o depósito de combustível estava cheio. Gaafar seguira-o, ainda a chorar. Vandam tocou no ombro do velho e declarou-lhe.

--Hei-de trazê-los.

Arrancou, entrou na rua e virou para sul.

 

Capítulo 12

"BILLY está tão pálido!", pensava Elene. "Está a tentar ser corajoso." Viajavam com Wolff numa carruagem de primeira classe para Asyut. "Que hei-de fazer?", perguntava a jovem a si mesma. Sentia um calafrio de cada vez que olhava para Wolff. o modo como ele fitava Billy, o brilho dos seus olhos, a expressão de triunfo ... Talvez devesse distrair Billy com um jogo qualquer. Que ideia tão ridícula. ou não, talvez não fosse assim tão ridícula. Estava ali a pasta da escola, e na pasta o caderno de exercícios. o garoto observava-a, curioso.

Que jogo? o jogo do galo. Quatro linhas que se cruzavam duas horizontais e duas verticais. Uma cruz feita por ela no quadrado do centro. Billy pegou no lápis e escreveu um zero no canto. "Desconfio que ele aceitou esta ideia para me reconfortar!", pensou Elene. Wolff arrancou-lhe o caderno da mão, olhou, encolheu os ombros e devolveu-o. A cruz de Elene, o zero de Billy ... empataram.

"Tenho de afastar Billy daquela faca", pensou Elene. Billy tracou uma cruz no centro de um novo quadriculado. Ela desenhou um zero e depois escreveu apressadamente: "Temos de fugir ... Prepara-te!" Billy traçou nova cruz e escreveu:

"Está bem." Um zero dela. "Próxima estação." A terceira cruz de Billy completou uma linha. Ele sorriu-lhe, jubiloso.

Vencera. o comboio afrouxou. Tinha de dar a Billy uma oportunidade de fugir e depois tentar impedir Wolff de o perseguir.

 

Elene olhou à sua volta. "Pensa depressa!" Estavam numa carruagem com quinze ou vinte filas de lugares. Ela e Billy sentavam-se lado a lado, voltados para a frente. Wolff estava defronte deles, com a mala aos pés. A seu lado havia um lugar vago e atrás dele ficava a porta para a plataforma do comboio.

os outros passageiros eram uma mistura de europeus e egípcios ricos, todos vestidos à ocidental. o calor apertava e todos transpiravam. Alguns dormiam.

o comboio parou na estação.

"Ainda não", pensou Elene, "ainda não." o momento oportuno seria quando o comboio estivesse prestes a arrancar de novo, o que daria a Wolff menos tempo para os alcançar. Permaneceu sentada, numa imobilidade febril.

Um padre de vestes coptas entrou na carruagem e ocupou o lugar vago ao lado de Wolff. Elene murmurou a Billy:

--Quando o apito soar, corre para a porta e sai do comboio.

--Que conversa é essa?--perguntou Wolff.

o apito soou. Billy olhou para Elene, hesitante.

Wolff franziu a testa.

Elene atirou-se a Wolff, procurando atingi-lo na cara. Ele protegeu o rosto com os braços, mas não conseguiu evitar o impetuoso ataque. Elene arranhou-lhe a cara com as unhas e viu jorrar sangue. o padre soltou um grito de surpresa. Por sobre as costas do banco de Wolff, Elene viu Billy correr para a porta e tentar abri-la. Deixou-se cair sobre Wolff e tentou arranhar-lhe os olhos.

Por fim, ele recuperou a voz e soltou um berro de cólera.

Levantou-se do lugar e empurrou Elene, que Lhe agarrou a frente da camisa. Ele ergueu o punho e desferiu-lhe um murro. Elene caiu para trás, no banco. Quando recuperou a visão, viu Wolff precipitar-se na direcção do garoto. Levantou-se. Billy transpunha a porta, seguido de perto por Wolff. Elene seguiu-os.

Billy corria ao longo do cais da estação, perseguido por Wolff. os poucos egípcios que se encontravam nas imediações observavam a cena levemente surpreendidos, sem revelarem qualquer intenção de intervir. Elene precipitou-se atrás de Wolff. o comboio estremeceu, prestes a arrancar. Wolff aumentou a velocidade e Elene gritou: "Corre, Billy, corre!"

Billy alcançara praticamente a saída da estação. o comboio começara a avançar, muito lentarmente, e Wolff tinha de retroceder para o apanhar. "Conseguimos!", pensou Elene.

Nesse momento, Billy escorregou e caiu, batendo com força no chão. Wolff alcançou-o no mesmo instante e inclinou-se para o apanhar. Elene aproximou-se e lançou-se às costas de Wolff, que se desequilibrou e largou Billy. Elene mantinha-se agarrada a Wolff. o comboio continuava a avançar, lenta mas firmemente. Wolff soltou-se de Elene e atirou-a ao chão.

Depois, levantou Billy e atravessou-o ao ombro. o rapaz gritava e desferia-lhe socos nas costas. Wolff correu alguns passos paralelamente ao comboio e saltou.

Elene ergueu-se penosamente. Não podia abandonar Billy. Correu aos tropeções para o comboio. Alguém Lhe estendeu uma mão, ela agarrou-a e saltou. Estava de novo no comboio, no ponto em que tudo começara. Dominada pelo desanimo, seguiu Wolff para os lugares que ocupavam, sem encarar os passageiros por que passava. Viu Wolff aplicar uma forte palmada no traseiro de Billy e deixá-lo cair no seu lugar. o rapaz chorava em silêncio.

Wolff voltou-se para Elene e increpou-a em voz alta, para ser ouvido:

--És louca! --Agarrou-lhe num braço e esbofeteou-a.

o sacerdote ergueu-se, tocou no ombro de Wolff e murmurou algumas palavras. Wolff largou-a e sentaram-se. Elene olhou à sua volta e verificou que era o centro das atenções. Ninguém a ajudaria porque era uma egípcia, e no Egipto as mulheres, tal como os camelos, precisavam de ser espancadas de tempos a tempos. Dentro dela fervia uma raiva inútil e impotente. Quase tinham conseguido fugir. Passou o braço por sobre os ombros da criança, puxou-a para si e comec,ou a afagar-lhe o cabelo.

Pouco depois, Billy adormeceu.

 

VANDAM sabia que já se encontrava bastante à frente do comboio

Parara em quatro estações para perguntar se a composição já passara. Ainda não. Conduzia rapidamente, com os óculos e o cachecol enrolado ao pescoço e tapando-lhe a boca, a protegê-lo o mais possível da poeira. Sabia o que tinha a fazer, mas precisava de tempo. Pararia na estação seguinte e poria o seu plano em prática.

A determinada altura da viagem tomara uma decisão. Partira do Cairo com o objectivo de salvar Billy e Elene, mas entretanto Compreendera não ser esse o seu único dever. A guerra continuava.

Vandam tinha a certeza de que Wolff possuía outro emissor,outro exemplar de Rebeca e outra chave do código ocultos em Asyut. A fim de pôr em prática o plano destinado a iludir Rommel, Vandam precisava do rádio e da chave--o que significava que tinha de deixar Wolff chegar a Asyut e recuperar esses objectos. Só então poderia salvar Billy e Elene. Seria duro para eles, brutalmente duro mas viver sob o domínio nazi seria também brutalmente duro.

Tomada a decisão, o major precisava de ter a certeza de que Wolff viajava naquele comboio. Ao mesmo tempo talvez conseguisse amenizar a situação de Elene e Billy.

Quando chegou à cidade seguinte, parou à porta da esquadra da Polícia local, situada num largo central, do lado oposto ao da estacão de caminhos de ferro, e buzinou peremptoriamente diversas vezes Saíram do edifício dois polícias árabes: um homem grisalho de uniforme branco e um rapaz de dezoito ou vinte anos. Vandarn apeou-se da motocicleta e gritou:

"Sentido!" os dois homens perfilaram-se e fizeram a continência, que Vandam retribuiu.

--Ando atrás de um criminoso perigoso e preciso da vossa ajuda disse em tom premente--Vamos entrar.

Vandam precedeu-os e dirigiu-se ao homem mais velho:

--Ligue para o Quartel-General Britanico no Cairo.--Deu-lhe o número, e o polícia ergueu o auscultador de um telefone colocado sobre uma mesa. Vandam voltou-se para o polícia mais novo:--É capaz de guiar a minha motocicleta?

--Perfeitamente--respondeu o jovem, encantado com a ideia.

--Vá lá fora experimentar.

o mais velho, que estivera a gritar ao telefone, estendeu-o Vandam.

--Tem o QG ao telefone.

--Ligue-me ao capitão Jakes--pediu Vandam pelo telefone. Não tardou a ouvir a voz de lakes:--Está? Fala Vandam. Estou no Sul, a seguir um palpite. A fim de conseguir o apoio máximo da gendarmaria indigena--utilizava estes termos para que o polícia não compreendesse--, quero que represente o seu papel de duro.

Estendeu o telefone ao polícia grisalho, que, inconscientemente, se perfilou, enquanto Jakes o instruía, com uma clareza que não deixava lugar a qualquer dúvida, no sentido de fazer tudo quanto Vandam quisesse, e depressa.

--Sim, senhor!--repetia o polícia, que por fim acrescentou:-Pode ter a certeza, Excelência, de que faremos tudo quanto estiver ao nosso alcance.

Vandam aproximou-se da janela. o polícia mais novo descrevia voltas no largo com a motocicleta, buzinando e acelerando.

Reunira-se uma pequena multidão que observava a cena. o agente ostentava um sorriso rasgado. "Serve", pensou Vandam.

 

--Trate do necessário para eu entrar no comboio de Asyut quando ele passar por aqui--disse ao homem mais velho.—E mande o rapaz levar a motocicleta à estação seguinte e esperar lá por mim.

--Sim, senhor! --E o homem saiu a correr.

Vandam ainda não ouvia o comboio. Dispunha de tempo para fazer mais um telefonema. Levantou o auscultador e pediu ao telefonista que ligasse para o capitão Newman, da Base Militar de Asyut. Newman atendeu após uma longa espera.

--Fala Vandam. Creio que estou no rasto do seu faquista.

--Excelente, meu major! --exclamou Newman. --Posso ser-lhe útil em alguma coisa?

--Chego a Asyut daqui a algumas horas. Preciso de um táxi, de uma galabia grande e de um miúdo. Pode encontrar-se comigo?

--Espero por si à entrada da cidade. Acha bem?

--óptimo.--Vandam ouviu o ruído distante do comboio. Tenho de ir.

Desligou. Colocou uma nota de cinco libras na mesa ao lado ao telefone. Era sempre útil untar as mãos. Saiu para o largo. Na direcção norte viu o fumo do comboio que chegava. o polícia mais novo aproximou-se na motocicleta. Vandam disse-lhe:

--Vou de comboio, mas você segue na motocicleta até à próxima estação e espera-me lá. Está bem?

--Está bem--exclamou o outro, encantado.

Vandam retirou do bolso uma nota de libra, rasgou-a ao meio e deu metade ao rapaz:

--Recebe a outra metade quando se encontrar comigo.

o comboio estava quase na estação. Vandam atravessou o largo e correu ao longo do cais, a fim de poder entrar pela frente sem ser visto pelos passageiros. o comboio entrou na estação, a vomitar nuvens de fumo. Quando parou, Vandam subiu.

Encontrou-se numa carruagem de segunda. Wolff viajaria com certeza em primeira classe. Vandam comec,ou a atravessar as carruajens, abrindo caminho por entre os passageiros sentados no chão om as suas caixas, as suas grades e os seus animais.

Depois de percorrer três carruagens de segunda, encontrou-se à porta de uma carruagem de primeira classe. De súbito, teve dúvidas sobre se teria ;a coragem necessária para fazer o que decidira. Wolff nunca o vira bem--no beco tinham lutado às escuras--, e a barba cobria-lhe quase por completo o golpe da cara. o verdadeiro problema era Billy. Tinha de forjar maneira de avisar o filho para que este fingisse não o reconhecer. Respirou fundo e abriu a porta.

Quando a transpôs, olhou rápida e nervosamente para as

primeiras filas de lugares. Não viu Billy. Pediu aos passageiros que se encontravam mais perto:

--os vossos documentos, por favor.

--Que é que se passa, major? Exercito Egipcio.

--Uma inspecção de rotina, meu coronel--respondeu Vandam, e continuou a percorrer a coxia, inspeccionando documentos.

Quando se encontrava a meio da carruagem, adquirira já a certeza de que Wolff, Elene e Billy não se encontravam nela.

Começou a ventilar a hipótese de se ter enganado nas suas suposições.

Chegou ao fim da carruagem e transpôs a porta que dava acesso ao espaço entre as carruagens. A sua frente ficava a última carruagem. "Se eles vêm no comboio, vou sabê-lo agora", pensou.

Abriu a porta e viu imediatamente Billy. Sentiu uma punhalada de angústia, como uma ferida. o rapaz dormia no seu lugar, com os pés mal tocando o pavimento, o corpo descaído para o lado e o cabelo caindo para a testa. Elene, que o enlaçava, ergueu a cabeça e arregalou os olhos. Vandam levou rapidamente um dedo aos lábios e ela baixou os olhos. Porém, Wolff captara o seu olhar e virou a cabeça para descobrir o que ela vira. Vandam dirigiu-se-lhe:

--Documentos, por favor.

Era a primeira vez que via o seu inimigo cara a cara. Wolff era um indivíduo atraente, de traços fisionómicos vincados.

Apenas em torno dos olhos e aos cantos da boca se Lhe revelava a fraqueza, a depravação. E apresentava arranhões recentes nas faces. Talvez Elene Lhe tivesse oposto alguma resistência.

Wolff estendeu os documentos e depois olhou através da janela, enfadado. os documentos identificavam-no como Alexander Wolff, Villa les oliviers, Garden City.

--Aonde vai?--perguntou-lhe Vandam.

--A Asyut, visitar pessoas de família.

--Viajam juntos?

--É o meu filho e a ama--respondeu Wolff.

Vandam pegou nos documentos de Elene e relanceou-os.

Apetecia-lhe atirar-se ao pescoço de Wolff. o meu filho e a ama. Pulha!

Devolveu os documentos a Elene.

 

--Não é preciso acordar a criança--disse, e virou-se para o sacerdote sentado ao lado de Wolff, que Lhe estendia a carteira e dizia:

--Também vou para Asyut.

--obrigado--agradeceu Vandam, devolvendo os documentos.

Dirigiu-se à fila seguinte de lugares e continuou a examinar documentos. Quando olhou para trás, Wolff fixava de novo a paisagem através da janela.

Vandam chegara ao fim da carruagem e devolvia os últimos documentos quando ouviu um grito que Lhe trespassou o coração:

--Aquele é o meu pai!

Ergueu os olhos. Billy corria pela coxia na sua direcção, de braços estendidos, tropeçando e chocando com os lugares. oh  Deus! Atrás de Billy, viu Wolff e Elene levantados a observarem a cena-Wolff com um olhar penetrante, Elene com uma expressão de medo. Vandam abriu a porta atrás de si, simulando não reparar no rapaz, e saiu para a plataforma da carruagem.

Billy precipitou-se também através da porta. Vandam fechou-a e pegou no filho.

--Está tudo a correr bem--murmurou--, não te preocupes.

Wolff devia aparecer de um momento para o outro.

--Eles levaram-me!--contou Billy.--Faltei à escola e estava com muito, muito medo!

--Agora já passou tudo ...

Vandam sentia-se incapaz de abandonar Billy. Teria de matar Wolff, de desistir do plano concebido para enganar Rommel e da procura do emissor e do código ... Não, tinha de prosseguir o seu objectivo. Dominou os seus instintos e disse ao filho:

--Escuta, tenho de apanhar aquele homem e não quero que ele saiba quem sou. E o espião alemão que tenho andado a procurar, compreendes?

- --Sim, sim ...

--És capaz de fingir que não sou teu pai e voltar para ele?

Billy fitou-o, boquiaberto, com uma expressão mais elucidativa do que qualquer recusa.

--É uma história de detectives a sério, Billy, e nós dois participamoS nela, tu e eu. Tens de fingir que te enganaste.

Mas lembra-te de que estarei perto e de que, juntos, apanharemos o espião.

 

A porta abriu-se e Wolff apareceu.

--Que vem a ser isto?

Vandam arvorou uma expressão compreensiva.

--Parece que acordou de um sonho e me confundiu com o pai. Somos da mesma estatura. o senhor disse que era o pai, não disse?

--Que disparate, Billy!--exclamou Wolff.--Volta para o teu lugar.

Billy permaneceu imóvel.

--Vá, meu homenzinho--disse Vandam, pousando a mão no ombro do garoto. --Vamos lá ganhar a guerra.

A velha frase familiar produziu o efeito desejado, e Billy sorriu corajosamente.

--Desculpe--murmurou. --Devo ter estado a sonhar.

Vandam sentiu o coração estalar-lhe.

Billy virou-se e regressou à carruagem, seguido por Wolff e Vandam. Enquanto caminhavam ao longo da coxia, o comboio afrouxou. Aproximavam-se da estação seguinte, onde a motocicleta de Vandam o aguardava. Billy chegou ao lugar e sentou-se. Elene fitava Vandam com um olhar de incompreensão.

Billy tocou-lhe nurn braço e disse:

--Não há novidade; enganei-me.

Uma estranha luz brilhou nos olhos da rapariga, que pareceu prestes a irromper em lágrimas.

Vandam deteve-se à porta da carruagem e disse a Billy:

--Boa viagem.

--Muito obrigado.

o comboio entrou na estação e parou. Vandam apeou-se, avançou um pouco ao longo do cais e deteve-se à sombra de um toldo, à espera. Soou um apito e o comboio recomeçou a andar. Vandan tinha os olhos fixos na janela que sabia ficar próximo do lugar de Billy. Quando a janela passou, viu o rosto do filho, que ergueu a mão e Lhe dirigiu um breve aceno. Vandam retribuiu o gesto e a cara desapareceu.

o major constatou que estava a tremer.

o comboio já quase se desvanecera à distância quando saiu da estação. Encontrou o jovem polícia montado na motocicleta.

Vandam deu-lhe a outra metade da nota de libra, montou a motocicleta e seguiu pela estrada que se dirigia para sul.

Segundo os seus cálculos, chegaria a Asyut trinta ou quarenta minutos antes do comboio. o capitão Newman aguardá-lo-ia.

Avançou à frente do comboio que transportava Billy e Elene, as únicas pessoas no Mundo a quem amava. Disse mais uma vez a si mesmo que fizera o que seria melhor para todos, o que seria melhor para Billy. Mas no fundo do seu cérebro uma voz repetia: "Cruel, cruel, cruel

 

o comboio entrou na estação e parou. Elene viu um letreiro que ostentava, em árabe e inglês, a palavra ASYUT. Haviam chegado.

Que jogo seria o de Vandam? Compreendeu que ele devia ter em mente qualquer plano para a salvar e a Billy e simultaneamente encontrar a chave do código. Gostaria de saber qual.

Felizmente, Billy não parecia atormentado por tais pensamentos. Animara-se, passara a ter interesse pela paisagem que viam desfilar e até perguntara a Wolff onde comprara a sua faca.

Elene olhou para Wolff, que parecia dominado por um misto de excitação e nervosismo. operara-se nele uma modificação qualquer nas últimas vinte e quatro horas. Quando o conhecera, era um homem brando e senhor de si. Agora essas características haviam desaparecido. Agitava-se, olhava inquieto em seu redor e de segundo... a segundo um canto da sua boca estremecia quase imperceptivelnente. Curiosamente, Wolff, o implacável, estava a ficar desesperado, enquanto Vandam parecia tornar-se mais sereno.

Elene e Billy desceram do comboio para o cais congestionado,  atras de Wolff. De súbito, um rapaz sujo, de pijama verde às riscas, agarrou na mala de Wolff e gritou:

--Eu arranjo táxi !

Wolff encolheu os ombros, bem-humorado, e deixou o rapaz conduzi-los ao portão.

Sairam para o largo e Elene olhou à sua volta, à procura de qualquer sinal da presença de Vandam. Wolff disse ao rapaz árabe:

--Quero um táxi automóvel.

Estava um parado atrás dos carros puxados a cavalos, junto do qual o rapaz os conduziu.

--Sente-se à frente--ordenou Wolff a Elene.

Deu uma moeda ao rapaz e sentou-se atrás, junto de Billy. O motorista usava óculos escuros e um kaffiyeh--uma espécie de turbante árabe.

--Siga para sul--ordenou-lhe Wolff em árabe.

--Muito bem--respondeu o motorista.

Elene sentiu o coração desfalecer-lhe. Conhecia aquela voz.

olhou fixamente para o homem. Era Vandam.

VANDAM afastou-se da estação, pensando: "Por enquanto, tudo bem." Embora os seus conhecimentos de árabe fossem rudimentares, sabia dar--e consequentemente receber--instruções. Correria tudo bem enquanto Wolff não resolvesse discutir o tempo e as colheitas.

o capitão Newman arranjara-lhe tudo quanto Lhe pedira, além de um revólver Enfield 38 de seis balas. Como estudara o mapa de Newman da área de Asyut, Vandam sabia encontrar a estrada que saía da cidade e seguia para sul. Atravessou o mercado sempre a buzinar, à maneira árabe, conduzindo perigosamente perto das grandes rodas de madeira das carroças e afastando os carneiros do caminho com leves toques de guarda-lamas.

Simulando ajustar o retrovisor, lançou um olhar a Billy, perguntando a si próprio se ele o teria reconhecido. A criança tinha os olhos fitos na nuca de Vandam com uma expressão de deleite. "Não denuncies o jogo!", pediu Vandam mentalmente.

Deixaram a cidade para trás e seguiram para sul por uma estrada recta do deserto. A sua esquerda havia campos irrigados e bosquetes de árvores; à sua direita, uma muralha de penhascos de granito a que uma camada de areia pulverulenta emprestava uma tonalidade bege. Wolff disse: --Ruh yameen.

Vandam sabia que a expressão significava "para a direita". Em frente viu uma curva que parecia conduzir directamente ao penhasco. Descreveu-a e verificou que se dirigia para um desfiladeiro através dos montes. A estrada começava a subir e o velho automóvel roncava penosamente, acabando por chegar ao cimo em segunda. Vandam contemplou o aparentemente infinito Deserto ocidental.

A estrada transformou-se num caminho. Directamente à sua frente, o Sol afundava-se nos limites do horizonte. Wolff

endireitou-se no lugar. e começou a olhar à sua volta. Em breve a estrada atravessava um uadi, cuja margem Vandam desceu

cautelosamente. Wolff disse: --Ruh shemal.

Vandam virou à esquerda. o piso era firme. Estupefacto, viu grupos de pessoas, tendas e animais no uadi. Dir-se-ia uma comunidade secreta. Quilómetro e meio adiante, encontrou a explicação do fenómeno: um poço assinalado por uma parede baixa e circular de tijolos de lama. Para lá dele estendia-se um grande acampamento, onde Wolff mandou Vandam parar. Havia um aglomerado de tendas, camelos e fogueiras. Wolff estendeu o braço, desligou o motor e retirou a chave da ignicão. Saiu sem uma palavra.

 

ISHMAEL estava sentado junto da fogueira, a fazer chá. Ergueu a cabeça e disse tão casualmente como se Wolff tivesse saído da tenda vizinha:

--A p. seja contigo.

--E contigo sejam a saúde, a misericórdia e as bênçãos de Deus respondeu Wolff formalmente.

Ishmael estendeu-lhe uma chávena e Wolff bebeu. o chá era doce e muito forte.

--E os teus amigos?--perguntou Ishmael, olhando na direcção do táxi.

--Não são amigos--respondeu Wolff.

Ishmael assentiu com a cabeça. Não era curioso.

--Comes connosco?

--Infelizmente, não. o Sol já está baixo e eu tenho de estar de novo na cidade antes que escureça.

o primo abanou tristemente a cabeça e disse:

--Vieste buscar a tua mala.

--Vim. Vai buscá-la, por favor, meu primo.

Ishmael dirigiu algumas palavras a um homem que se encontrava de pé atrás dele e que foi buscar a mala. Wolff abriu-a e sentiu-se invadir por uma grande euforia ao olhar para o emissor, para o livro e para a chave do código. Sentia-se como que embriagado. com uma sensação de força e de vitória iminente. Ergueu-se.

--Agradeço-te, meu primo. Deus te proteja.

--Vai com Deus.

Wolff virou-se e dirigiu-se para o táxi.

 

ELENE viu Wolff afastar-se da fogueira com -disse:

--Vem aí. E agora?

--Vai querer regressar a Asyut--respondeu Vandam, sem olhar para ela nem para Billy.--Aqueles rádios não têm pilhas, precisam de ser ligados à corrente. Ele tem de ir a qualquer lado onde haja electricidade.

Wolff entrou no carro e ordenou:

--Asyut.

! Entregou a chave a Vandam, que ligou o motor e deu a volta.

eguiram ao longo do uadi e depois pela estrada. o Sol, baixo,  estava agora atrás deles. Nuvens nocturnas começavam a acumular se sobre as colinas em frente.

--Vá mais depressa--ordenou Wolff em árabe. --Está escurecer.

Vandam acelerou. o automóvel seguia aos solavancos e; guinadas na estrada de cascalho solto.

--Estou enjoado--disse Billy.

Elene virou-se para o olhar, e viu-o pálido, sentado numa postura rígida.

--Vá mais devagar--pediu em árabe.

Vandam afrouxou um momento, mas Wolff repetiu:

--Vá mais depressa.--E disse a Elene:--Não se preocupe com o miúdo.

Vandam acelerou.

Elene olhou de novo para Billy. Estava branco como a cal prestes a romper em lágrimas.

--Vá para o inferno!--disse a rapariga a Wolff.

--Pare o carro--pediu Billy.

Wolff ignorou-o e Vandam teve de fingir que não compreendia inglês.

o carro chocou com um montículo, ergueu-se no ar e pousou de novo com força. Billy gritou:

--Pai, pare o carro! Pai!

Vandam travou a fundo. A alavanca de mudanças dobrou-se na sua mão. Elene amparou-se ao tablier e olhou para Wolff. Durante uma fracção de segundo este pareceu atordoado pela surpresa.

os seus olhos iam de Vandam para Billy e de novo para Vandam.

Elene sabia que ele pensava no incidente do comboio, no rapaz árabe da estação de caminhos de ferro e no kaffiyeh que cobria a cara do motorista. Depois, percebeu que ele compreendia tudo.

o automóvel parara, com os pneus a chiar, e Wolff envolveu Billy com o braço, puxou-o para si e sacou da faca.

o carro parou. Elene viu a mão de Vandam aproximar-se da fenda lateral da galabia e deter-se, ao mesmo tempo que o major olhava para trás.

Wolff tinha a faca a pouco mais de dois centímetros da garganta de Billy, cujos olhos se apresentavam desorbitados de pavor. Vandam ficou paralisado. Aos cantos da boca de Wolff desenhava-se a sombra de um sorriso dementado.

--Quase me levou a melhor--admitiu, e depois acrescentou:

Tire esse trapo idiota da cabeça.

 

Vandam retirou o kaf iyeh e olharam todos silenciosamente para Wolff.

--Deixe-me ver se adivinho ...--disse Wolff.--É o major Vandam. -- Estava a gozar o momento. --Que excelente ideia ter-me apoderado do seu filho, como segurança!--Depois, disse a Elene:--Debaixo da galabia o major Vandam traz calças de caqui. Num dos bolsos, ou possivelmente no cinto, encontrará uma arma. Tire-a.

Elene encontrou

Wolff continuou:

--Dobre a parte de trás da arma, retire as balas e atire-as para fora do carro.--Ela obedeceu.--Ponha a arma no chão.--Mais uma vez Elene obedeceu, e mais uma vez Wolff passou a ser o único possuidor de uma arma: a sua faca.—Saia do carro--ordenou ele a Vandam.

Vandam permaneceu imóvel.

--Saia--repetiu Wolff, e com um movimento súbito e preciso picou o lóbulo da orelha de Billy com a ponta da faca.

Formou-se uma gota de sangue e Vandam saiu do carro.

Então Wolff ordenou a Elene:

--Passe para o lugar do motorista.

Elene passou por sobre a desengonçada ala o pé, ao lado do veículo, Vandam olhava para o seu interior.

--Arranque--ordenou Wolff.

Elene ligou o motor e arrancou. Através do espelho retrovisor

viu ele guardar a faca e largar Billy. Atrás do carro, já a cinquenta

metros de distância, Vandam continuava imóvel na estrada do deserto, com a silhueta recortada a negro contra o poente.

--Ele não tem água!--exclamou Elene.

--Pois não--confirmou Wolff.

Nesse momento, Billy perdeu a cabeça.

--Não pode deixá-lo ficar!--ouviu-o Elene gritar.

A jovem virou-se para trás, esquecida da condução. Billy atirara-se a Wolff como um gato selvagem, desferindo murros e pontapés e esgatanhando-o Wolff, que se descontraira julgando a crise terminada, ficou momentaneamente impossibilitado de resistir e ergueu os braços para se proteger.

Elene olhou de novo para a frente. o carro saira da estrada e a roda esquerda da frente rolava sobre alguns arbustos. Virou o volante e carregoU no travão. As traseiras do automóvel começaram a derrapar lateralmente. Tarde demais, Elene viu um sulco profundo que atravessava a estrada exactamente à sua frente. O veículo entrou no sulco com um impacte que pareceu desconjuntar-lhe os ossos e derrapou da berma da estrada para a areia solta. Depois, inclinou-se e começou a rolar. Elene debatia-se com o volante e a alavanca das velocidades. o carro acabou por se imobilizar caído sobre o lado esquerdo. A alavanca soltou-se e ficou na mão de Elene, que caiu contra a porta, na qual bateu com a cabeca.

A rapariga pôs-se de gatas, sem largar a alavanca partida, apoiando um joelho na porta e o outro na janela. olhou para o banco de trás. Wolff e Billy tinham caído um sobre o outro,

com Wolff por cima. Wolff levantou-se. Billy parecia inconsciente.

Pondo-se de pé sobre a porta esquerda da retaguarda, Wolff lançou-se com todo o seu peso sobre o chão do veículo, que estremeceu. Repetiu a manobra e o carro estremeceu mais uma vez. A terceira tentativa o automóvel inclinou-se e apoiou estrepitosamente as quatros rodas no solo. Wolff abriu a porta e saiu. Depois, acocorou-se e sacou da faca.

Elene viu Vandam aproximar-se. Acocorou-se como Wolff, pronto para saltar, erguendo as mãos para se proteger. Tinha o rosto afogueado e a respiração arfante, pois correra atrás do automóvel. os dois homens descreveram um circulo. Wolff coxeava ligeiramente. o Sol parecia uma laranja imensa atrás deles.

Vandam avançou e depois hesitou. Wolff brandiu a faca, mas como a hesitação de Vandam o surpreendeu, falhou o golpe. Com o punho cerrado Vandam agrediu Wolff, que foi bruscamente impelido para trás com o nariz a sangrar. os dois adversários enfrentaram-se de novo.

Vandam saltou para a frente, o espião esquivou-se e a sua faca atingiu o ombro de Vandam. Este desferiu um pontapé e Wolff brandiu de novo a faca, que rasgou a galabia de Vandam, em cuja perna das calças apareceu uma mancha escura. Vandam afastou-se lentamente e depois caiu, apoiado num joelho. O braço esquerdo pendia-lhe, inerte, do ombro coberto de sangue.

Levantou o braço direito, defensivamente, e Wolff aproximou-se.

Elene saltou do carro, ainda a segurar a alavanca partida. Viu Wolff erguer o braço, pronto para esfaquear de novo Vandam.

Precipitou-se, ergueu a alavanca bem alto e bateu com toda a força na nuca do espião. Wolff pareceu ficar um instante imobilizado e ela agrediu-o de novo. Wolff caiu e Elene largou a alavanca, ajoelhando-se ao lado de Vandam.

 

--Bom trabalho-- disse este em voz débil, enquanto Lhe colocava uma mão no ombro e se levantava penosamente. –As coisas não estão tão más como parecem. A ora ajuda-me.

Com o braço ileso agarrou uma perna de Wolff e puxou-o na direcção do automóvel. Elene agarrou um braço do espião inconsciente e puxou também, até Wolff ficar caído ao lado do veículo.

Vandam inclinou-se sobre o banco da retaguarda e pousou a mão no peito de Billy.

--Vivo, graças a Deus--murmurou. Billy abriu os olhos.-Acabou tudo--disse-lhe o pai, e a criança fechou de novo os olhos.

Vandam sentou-se no banco da frente do táxi.

--onde está a alavanca?--perguntou.

--Partiu-se. Foi com ela que Lhe bati.

Vandam ligou o motor, que pegou.

--optimo, ainda trabalha. Podemos sair daqui.

--Que fazemos a Wolff?

--Fechamo-lo no porta-bagagem.

Vandam olhou de novo para o filho. Já estava consciente e de olhos muito abertos.

--Como estás, filho?--perguntou.

--Desculpe, mas não pude evitar sentir-me enjoado--disse o rapaz.

Vandam olhou para Elene e disse-lhe, com lágrimas nos olhos:

--Vais ter de guiar.

 

Oviu-se o rugido súbito e aterrador da aviação. Rommel viu os bombardeiros britanicos surgirem por detrás dos montes e aproximarem-se.

--Protejam-se!--gritou, e saltou para uma trincheira.

O ruído era tão intenso que se assemelhava ao silêncio.

Deitado de olhos fechados, Rommel sentia uma dor no estômago.

Haviam-Lhe enviado um médico da Alemanha, mas o marechal sabia que o unico remédio de que precisava era a vitória.

Corria o dia l de Setembro e toda a operação fora um terrível fracasso. o que crera ser o ponto fraco da linha de defesa aliada parecia-lhe cada vez mais uma emboscada. os campos de minas eram numerosos onde deveriam ser raros, havia areia movediça ondese esperara solo duro e a cordilheira de Alam Halfa, que deveria ser tomada facilmente, estava a ser fortemente defendida. A estratégia de Rommel estava errada; os seus serviços de informação tinham-se enganado e o seu espião também.

Os bombardeiros passaram e Rommel saiu da trincheira. os seus ajudantes e oficiais emergiram dos abrigos e reuniram-se de novo à sua volta. Rommel ergueu o binóculo e olhou para o deserto. Restavam ainda dezenas de tanques na areia, muitos dos quais a arder furiosamente. os Aliados, bem entrincheirados, atingiam os Panzers como quem pesca numa barrica.

Era inútil. As suas unidades avançadas encontravam-se a vinte e cinco quilómetros de Alexandria, mas estavam impossibilitadas de se mover. "Mais vinte e cinco quilómetros", pensou, "e o Egipto teria sido meu. olhou para os oficiais que o cercavam e viu-lhes nas caras o que eles viam na sua: a derrota.

 

SABIA que era um pesadelo, mas não conseguia acordar.

A cela media um metro e oitenta de comprimento por um metro e vinte de largura e metade do espaço era ocupado por uma cama.

As paredes eram de pedra cinzenta e lisa. Uma lampada pendia do tecto, suspensa de um fio. Numa das extremidades da cela havia uma porta; na outra abria-se uma pequena janela quadrada, imediatamente acima do nível dos olhos. Através dela via o céu azul e luminoso.

No sonho, pensou: "Vou já acordar e encontrar uma mulher atraente a meu lado. Ela vai beijar-me e beberemos champanhe ... " Mas o sonho da cela prisional recomeçou e ele sentiu-se tão horrorizado que fez um esforço para abrir os olhos.

Olhou à sua volta. Estava acordado e o sonho terminara; mas continuava numa cela prisional que media um metro e oitenta por um metro e vinte e em que metade do espaço era ocupada por uma cama. Levantou-se e, silenciosa e calmamente, começou a bater com a cabec,a na parede.

 

JERUSALÉM 24 de Setembro de 1942.

Minha querida Elene

Hoje fui ao Muro das Lamentações. Detive-me diante dele com muitos outros judeus e rezei. Escrevi um kvilel e meti-o numa fenda do muro. oxalá Deus atenda o meu pedido.

Jerusalém é o lugar mais belo do Mundo. Atravessei o deserto Num camião militar britanico. Durmo num colchão no chão. Num quarto exíguo, com cinco outros homens. Sou muito pobre, como sempre, mas agora sou pobre em Jerusalém, que é melhor do que ser rico

no Egipto.

Devo dizer-te que estou a morrer. A minha doença é incurável e só

me restam algumas semanas de vida. Não fiques triste. Nunca fui mais feliz na minha vida.

Quero dizer-te o que escrevi no meu kvitel. Pedi a Deus que desse

felicidade à minha filha Elene. Creio que dará. Adeus. Teu pai

 

O presunto fumado estava cortado em fatias finas. Naquela manha, os paezinhos eram frescos. Havia salada de batata feita com maionese autêntica, uma garrafa de vinho, uma garrafa de gasosa e um cartucho de laranjas. Elene começou a acondicionar a refeição no cesto de piquenique. Acabava de o fechar quando ouviu bater à porta. Foi abrir. Vandam entrou, fechou a porta e estreitou-a com tanta força que a magoou. Abraçava-a sempre assim, mas ela nunca se queixava, pois quase se tinham perdido um ao outro, e agora, quando estavam juntos, sentiam uma enorme gratidão.

Dirigiram-se para a cozinha.

--Novidades?--perguntou Elene.

--As forças do Eixo em retirada total, cito.

Elene constatou quão descontraído o sentia ultimamente.

Começavam a aparecer-lhe alguns cabelos grisalhos, mas ria constantemente.

Saíram. o céu crepuscular apresentava-se estranhamente escuro, e Elene observou, surpreendida:

--Nunca o vi assim.

Montaram na motocicleta e dirigiram-se para escola de Billy. O céu escureceu mais ainda. As primeiras gotas caíram quando passavam pelo Shepheard's Hotel. Eram pingos enormes que Lhe trespassavam o vestido e a encharcavam. Vandam virou a motocicleta e estacionou defronte do hotel. Quando desmontaram, as nuvens rebentaram.

Permaneceram sob o toldo do hotel a ver a tempestade. A chuva era torrêncial. Em poucos minutos as sarjetas transbordaram e os passeios ficaram inundados. Defronte do hotel, os lojistas mergulhavam na enxurrada para correrem os taipais. Os automóveis tinham de parar onde se encontravam.

--E Billy?--perguntou Elene.

--Deixam as ctianças na escola até a chuva parar.

Por fim, a tempestade dissipou-se e o sol brilhou de novo.

Quando chegaram à escola, viram Billy à espera.

--Que tempestade! -- exclamou o rapaz, entusiasmado, e sentou-se na motocicleta entre ambos.

Seguiram para o deserto. Bem agarrada e de olhos semicerrados, Elene só viu o milagre quando Vandam parou os três desmontaram e contemplaram o espectáculo, mudos de assombro.

o deserto estava atapetado de flores.

--Foi a chuva, obviamente--disse Vandam. --Mas ...

Haviam também surgido, não se sabia de onde, milhões de insectos voadores, e borboletas e abelhas revoluteavam freneticamente de flor em flor, arrnazenando a inesperada colheita.

--As sementes deviam estar na areia à espera--observou Billy.

--Exactamente--confitmou o pai.--As sementes estiveram na areia durante anos à espera disto.

As flores, pequenas como miniaturas, apresentavam todas cores vivas. Billy saiu da estrada e inclinou-se para examinar uma.

Vandam abraçou Elene e beijou-a. o beijo na face transforrnou-se num longo beijo na boca. Por fim, ela soltou-se, rindo.

--Billy vai ficar embaraçado--declarou.

--Vai ter de se habituar--disse Vandam.

Elene deixou de rir e perguntou:

--Vai? Vai mesmo?

Vandam sorriu e beijou-a de novo.

 

                                                                                            Ken Follett

 

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

Planeta Criança                                                             Literatura Licenciosa