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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Jardim das Sombras / V.C. Andrews
Jardim das Sombras / V.C. Andrews

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A SAGA DOS FOXWORTH

Jardim das Sombras

 

PARTE 1

O PRIMEIRO BOTÃO DA PRIMAVERA      

       QUANDO EU ERA GAROTINHA, meu pai presenteou-me com uma rica casinha de bonecas. Era um mundo mágico em miniatura, com pequeninas bonecas de porcelana, móveis, quadros e até candelabros e cortinas, tudo era pequenino e feito à mão. Porém, a casa era fechada dentro de uma cúpula de vidro e eu nunca pude tocar a família que vivia lá dentro; e não era só isso, eu não tinha permissão de tocar sequer no vidro, pois temiam que meus dedos deixassem manchas. Coisas delicadas sempre estiveram em perigo em minhas mãos grandes; por essa razão, a casa de bonecas estava ali somente para que eu a admirasse. Tocá-la, jamais.

       Guardava-a no meu quarto, sobre uma mesa de madeira que ficava debaixo de uma janela de vidros coloridos. O sol que se filtrava por esses vidros produziam um delicado arco-íris no céu do pequenino universo e iluminava de felicidade as faces das bonecas que compunham a família em miniatura. Todos tinham um ar de alegria, os empregados da cozinha, o mordomo vestido de branco que ficava perto da porta de entrada e até mesmo a cabritinha no cercado.

       Aquela casinha era a perfeição, era o mundo que, fervorosamente, sonhava para mim. Não havia nela sombras; mesmos nos dias nublados, quando as nuvens espalhavam trevas, os vidros coloridos da janela transformavam luzes cinzentas em arco-íris como mágica.

       O mundo real, o meu mundo, parecia estar sempre cinzento, não havia arco-íris. Cinza para meus olhos, que sempre foram vistos como sombrios, cinza para minhas esperanças, cinza para uma moça envelhecida com a qual ninguém se importava. Aos vinte e quatro anos eu era uma jovem velha, uma solteirona. Dir-se-ia que, com minha inteligência e altura, eu intimidava futuros pretendentes. Parecia que o colorido mundo do amor, casamento e crianças estaria sempre tão fechado para mim quanto aquela casinha de bonecas que tanto admirava. Por isso, apenas no mundo do faz-de-conta as minhas esperanças tinham asas.

       E em minhas fantasias eu era bonita, serena, alegre, charmosa como as outras jovens que conhecia, mas que jamais fui amiga. Eu vivia solitária, alimentada apenas por livros e sonhos. E, embora não falasse sobre isso, apegava-me a pequena esperança que minha mãe me deixara antes de morrer.

       "A vida se parece com um jardim, Olívia. As pessoas são como pequenas sementes nutridas de amor, amizade e carinho, se receberem cuidado e amor suficientes, crescerão e se transformarão em belas flores. Algumas vezes, mesmo a velha e desprezada planta esquecida no canteiro, de repente floresce. É o florescer mais precioso de todos. Você será este tipo de flor, Olívia. Levara algum tempo, mas o seu desabrochar chegará".

       Como sinto falta do otimismo da minha mãe. Eu tinha dezesseis anos quando morreu. Era justamente quando mais precisava dela e daquelas conversas de mulher para mulher que teriam me ensinado a conquistar o coração de um homem; que me teria ensinado a ser como ela: respeitada, competente e, acima de tudo - mulher. Estava sempre envolvida com uma missão ou outra e sempre ocupada. Atravessava as crises ao seu jeito, e quando uma terminava havia sempre outra para resolver. Meu pai parecia satisfeito em vê-la ocupada, não importava com o que. Dizia freqüentemente que o fato de as mulheres não se envolverem com problemas sérios não significa que deveriam ser ociosas. Elas tinham as "coisas de mulher" para fazer.

       Mesmo assim, quando chegou o tempo, ele me encorajou a fazer um curso de Administração de Empresas. Parecia lógico e evidente que seria sua contadora particular.

Esperava que ele me desse um lugar em seu gabinete, que era uma sala máscula, com uma parede cheia de revólveres e outras fotos de suas caçadas e pesarias, uma sala que sempre recendia a cigarro e uísque, e que tinha tapetes mais escuros e mais velhos da casa. Deu-me um espaço em sua mesa de carvalho para que contabilizasse meticulosamente suas contas e despesas, pagamento de empregados e até gastos da casa. Trabalhando com ele, sentia-me mais como um filho que sempre desejara e que nunca teve do que como uma filha que de fato era. Eu não era o tipo de pessoa que ficava o tempo todo querendo agradar, sempre me pareceu que nunca seria o que as pessoas desejavam que eu fosse.

       Meu pai costumava dizer que eu seria de grande utilidade para qualquer marido, e eu acreditava que justamente por isso havia determinado com tanta convicção que eu iria receber uma educação no campo das ciências contábeis, como a Administração de Empresas, e adquirir uma experiência prática no assunto. Sabia que, no fundo apesar do meu pai não falar sobre o assunto, ele achava que uma mulher de um metro e oitenta precisava de algo mais pra fisgar o amor de um homem.

       Sim, tenho um metro e oitenta de altura. Quando era apenas uma adolescente, disparei a crescer e, para meu desalento, cresci em proporções exageradas. Eu era o pé de feijão no jardim do Joãozinho; o gigante. Não havia nada de frágil ou delicado em mim. Tinha os belos cabelos avermelhados de minha mãe, mas meus ombros eram largos e meu peito enorme. Costumava olhar-me no espelho desejando que meus braços fossem mais curtos. Meus olhos cinzentos eram muito grandes e pareciam olhos de gato, e o nariz era estreito demais. Os lábios eram finos, e minha pele, pálida e acinzentada. Cinza, cinza, cinza. Como desejei ser bela e brilhante! Mas quando

me sentava em frente à penteadeira de mármore caramelo e tentava piscar os olhos como se estivesse flertando com alguém, tudo que conseguia era parecer com uma boba.

Não queria ser vista como imbecil, e não podia fazer nada exceto sentar em frente à casa de bonecas e observar a delicada beleza da face da pequena esposa de porcelana.

Como desejei ter aquele rosto; talvez assim o meu mundo também fosse daquele jeito.

       Mas não era. Então, deixei minhas esperanças trancadas com as bonecas de porcelana e segui meu caminho.        Se meu pai realmente esperou transformar-me numa mulher mais atraente, me proporcionou uma educação prática no mundo dos negócios, deve ter ficado muito desgostoso com os resultados. Os rapazes vinham e iam através de manipulações - o que descobri mais tarde - e eu continuava ali, esperando ser amada e cortejada. Sempre tive medo de que meu dinheiro, o dinheiro de meu pai que eu herdaria, trouxesse a minha porta um homem que me fingisse amar. Acho que meu pai também temia a mesma coisa, pois me disse um dia:

       - Dispus no meu testamento que qualquer dinheiro que você receba será exclusivamente seu, para fazer com ele o que bem entender. Nenhum marido jamais terá o controle sobre a sua fortuna simplesmente porque casou com você.

       Disse isso e saiu sem que eu pudesse sequer comentar. Começou então a selecionar os pretendentes cuidadosamente, apresentando-me tão-só aqueles da alta classe, que possuíam suas próprias fortuna. Devia ainda ser alguém pelo menos da minha altura e que não levantasse as sobrancelhas, um obvio sinal de mau humor em relação

às coisas que eu dissesse. Parecia-me que iria morrer solteirona. Contudo, meu pai não pensava assim.

       - Um jovem virá jantar conosco está noite - começou ele naquela manhã de sexta-feira, no final do mês de abril. - E devo dizer que, dos rapazes que conheci, este foi o que mais me impressionou. Quero que ponha aquele vestido azul que usou na ultima páscoa.

       - Mas papai... - Tinha a resposta na ponta da língua, mas ele antecipou minha reação.

       - Chateada por quê? E, pelo amor de Deus, não comece com aquela conversa sobre movimento das mulheres pelo voto feminino quando estivermos a mesa. Meus olhos flamejaram. Meu pai sabia que eu odiava ser amordaçada como um de seus cavalos.

       - Um homem não mostrara interesse por você tão cedo, se não parar de reivindicar o mais privilégio masculino. Pode acreditar. O vestido azul - repetiu, deu meia volta e saiu sem me dar tempo para uma resposta.

       Cumprir os rituais em minha penteadeira parecia inútil. Ensaboei os cabelos e sentei-me para escová-los cem vezes, amaciando-os e caprichosamente prendendo-os atrás com o pente de marfim que meu pai me dera no ultimo Natal. Meu pai não sabia, não tinha a menor idéia de que eu havia encomendado o "vestido azul" porque queria um modelo que se parecesse com aqueles que as mulheres usavam nas fotos das revistas de moda. O corpete era raso o suficiente para expor um pouco da exuberância do meu busto, e a cintura era justa, lembrando uma ampulheta. Era feito de uma seda excepcionalmente macia, que lhe conferia um brilho completamente distinto de tudo o mais que eu possuía. As mangas, terminando acima do cotovelo, faziam com que meus braços parecessem menores. Coloquei o pendente de safira azul de minha mãe; pois achava que ele tornava meu pescoço mais esbelto. Havia um avermelhado nas maças de meu rosto, e eu não sabia se era devido a minha saúde ou ao meu nervosismo.

Sim, eu estava nervosa. Já havia passado por muitas daquelas noites e, de fato, elas não me agradavam. Os rapazes sempre abaixavam a cabeça, envergonhados, depois de me cumprimentarem e constatarem que eu era bem mais alta que eles. E agora estava simplesmente ensaiando outra tragédia.

       Quando desci ao primeiro andar, o convidado já havia chegado. Estavam no gabinete. Escutei a gargalhada alta de meu pai e depois a voz do cavalheiro, baixa mas profunda e ressonante, a voz de um homem com certa segurança. Corri as mãos contra os quadris, para enxugar a umidade, e avancei em direção a porta do gabinete.

No momento que apareci, Malcolm Neal Foxworth levantou-se. Meu coração disparou. Ele tinha quase dois metros de altura e era o rapaz mais bonito que havia vindo a nossa casa.

       - Malcolm - disse meu pai - tenho o orgulho de lhe apresentar minha adorável filha.

       Ele segurou minha mão.

       - Encantado, Srta Winfield.

       Eu olhava diretamente dentro dos seus olhos azuis, e ele também olhava fixamente dentro dos meus. Jamais havia acreditado nessas coisas românticas de garotas de escola, tais como o amor a primeira vista, porém senti seu olhar firme deslizando sobre meu coração e se alojando na boca de meu estomago.        Ele tinha cabelos louros, um pouco mais compridos, atrás, do que a maioria dos homens usava. As pontas eram bem penteadas e tinham um ar de leveza. Seu nariz era do tipo romano, bem definido, e os lábios finos e retos. Os ombros largos e os quadris estreitos lhe conferiam um ar atlético. Podia dizer, pela maneira que olhava em meus olhos e pelo ligeiro sorriso que seus lábios insinuavam, que devia estar acostumado com o fato de fazer as mulheres tremerem. Bem, pensei, não havia nada em Olívia Winfield que pudesse interessá-lo. É claro, um homem como aquele dificilmente me daria uma hora de seu tempo, e eu continuaria tendo de aturar outra noite daquelas, pois era a sina casamenteira que me impunha meu pai. Apertei a mão do rapaz com firmeza, sorri, depois desviei os olhos para o outro lado, rapidamente.

       Após ter-nos apresentado, meu pai explicou que Malcolm viera para New London depois de ter assistido a uma reunião em Yale. Ele estava interessado na indústria de construção naval, pois acreditava que, com o final da Grande Guerra, o mercado de exportação iria se desenvolver muito. Do que ouvi sobre ele naquela noite, compreendi que era dono de algumas fábricas de roupas, tinha participação e influência em alguns bancos e possuía fazendas de criação de ovelhas na Virgínia. Malcolm trabalhava com seu pai, que apesar e ter apenas cinqüenta e cinco anos, estava perturbado. Só mais tarde compreendi o que significava esta perturbação.

       Durante o jantar tentei ser a educada e quieta observadora que meu pai queria que eu fosse, exatamente como minha mãe costumava ser. Nossos criados, Margaret e Philip, serviram um elegante jantar cujo prato principal, escolhido por meu pai, era carne a Wellington. Ele só escolhia esse menu para ocasiões especiais. Achei que estava sendo demasiado obvio quando disse:

       - Olívia é formada, você sabe. Ela tem um diploma em Administração e faz a maior parte da minha contabilidade.

       - Verdade?

       Malcolm parecia ingenuamente impressionado. Seus olhos azuis celeste brilhavam com interesse e intensidade. Senti que estava me olhando pela segunda vez, agora com mais seriedade.

       - Gosta desse trabalho, Srta Winfield?

       Dei uma olhada para meu pai, que estava sentado numa cadeira com encosto alto observando-me com a cabeça meio curva, como se estivesse instigando minhas respostas.

Eu estava querendo muito que aquele rapaz gostasse de mim, mas também estava determinada a ser o que era.

       - Acho bom preencher o tempo com algo produtivo, mesmo sendo uma mulher - respondi.

       O sorriso de meu pai murchou, enquanto o de Malcolm se abriu.

       - Concordo plenamente - disse ele, sem olhar para meu pai. - Acho a maioria das mulheres conhecidas pela beleza, enfadonhas e até tolas. É como se a beleza fosse suficiente para encher suas vidas. Prefiro mulheres inteligentes que saibam pensar por si mesmas e que sejam verdadeiros trunfos aos maridos.

       Meu pai pigarreou.

       - Sim, sim e disse, e se pôs a discorrer sobre a industria naval.

       Ele obtivera informações através de boas fontes, de que a frota da marinha mercante, construída para a guerra, seria brevemente oferecida a particulares.

O assunto deteve a atenção de Malcolm por quase todo o jantar; contudo, às vezes sentia seus olhos sobre mim, e, quando eu o olhava também, ele sorria.        Jamais me sentira tão maravilhada com um convidado de meu pai. Jamais me sentira tão bem-vinda a mesa. Malcolm mostrava-se educado com meu pai, mas era claro que preferia estar conversando comigo.

       Comigo! O homem mais bonito que viera a nossa casa estava interessado em mim? Mas ele poderia ter centenas de garotas para adorá-lo para sempre. Por que estaria interessado numa garota comum como eu? Oh! Como queria acreditar que não era imaginação minha todos aqueles olhares, às vezes em que me pedia para lhe passar alguma

coisa que poderia facilmente pegar sozinho, a maneira de tentar puxar conversa comigo. Ah, talvez por apenas umas poucas horas, pude deixar que meu pequeno botão de esperança desabrochasse. Somente por essa noite! Amanhã deixaria que voltasse a ser cinza.

       Após o jantar, Malcolm e meu pai retiraram-se para o gabinete onde foram fumar seus charutos e discutir mais sobre o investimento que Malcolm iria fazer.

Com a saída deles, minha esperança recém florida rapidamente murchou. Malcolm não estava interessado em mim, mas sim em negociar com meu pai. Ficariam ali pelo resto da noite. Eu também deveria ir para meu quarto e ler aquele novo romance de Edith Wharton do qual tanto se falava - A idade da Inocência. Porém, ao invés disso, decidi trazer o livro para baixo e ler sob a luz de um delicado abajur. Estava feliz por poder ver Malcolm de novo, mesmo que fosse só para lhe dizer até logo.

       Naquela hora da noite a nossa rua ficava muito calma. Havia um casal de braços dados caminhando por ela; fiquei a observá-lo. Moviam-se do jeito que o casal da casa de bonecas o faria se pudesse escapar dali. Fiquei olhando para eles até desaparecerem na esquina. Como gostaria de poder caminhar com um homem daquele modo um dia; um homem igual a Malcolm. Mas isso não me aprecia possível. Deus não ouvia minhas preces. Suspirei. Voltando ao livro, compreendi que tudo que podia vir a saber sobre o amor e a vida viria dos livros.

       Foi então que deparei com Malcolm no vão da porta. Por que estaria me observando? Estava muito reto e imóvel, com a cabeça erguida e os ombros para trás.

Havia um ar de cálculo em seu olhar, como se estivesse, inconscientemente, me avaliando.

       - Oh! - minha surpresa foi tanta que as maçãs de meu rosto ficaram vermelhas e meu coração disparou a bater tão alto que pensei que ele pudesse ouvir as batidas do outro lado da sala.

       - Está uma noite muito agradável - disse ele. - Posso acompanhá-la numa volta por aí?

       Brilhei por um momento. Ele queria me levar para uma caminhada!

       - Sim - respondi. - Irei correndo pegar meu casaco.

       Percebi que havia respondido rápido demais. Tentei não piscar ou agir de maneira imprópria, pois não queria que interpretasse mal a minha precipitação. Queria sair sim, queria muito caminhar com ele. Além disso, estava contente por ter uma razão para sair de casa e retomar o fôlego. Se tivesse esperança de que o que parecia ser interesse por mim viesse um dia a florescer, agiria exatamente como estava agindo.

       Quando retornei, Malcolm esperava por mim na porta da frente. Philip entregara-lhe o sobretudo e se mantinha ao seu lado, esperando para abrir a porta. Fiquei imaginando onde estaria meu pai e se tudo aquilo fora tramado por ele. Entretanto, apesar de mal ter conhecido Malcolm, sabia que era o tipo de homem que só faria o que queria fazer.

       Quando Philip lhe abriu a porta, notei um brilho de satisfação em seus olhos; tinha aprovado aquele cavalheiro. Malcolm segurou minha mão e ajudou-me a descer os seis degraus da entrada. Ambos permanecemos calados enquanto nos dirigíamos ao portão. Ao chegar, Malcolm o abriu e deixou que eu passasse primeiro. Era uma noite de abril e havia apenas uma insinuação de primavera no ar. As árvores, perto do portão, quase alcançavam o céu com seus galhos, que ainda estavam cinzentos, embora cobertos de pequenos brotos à espera da primavera para nascer. A friagem do inverno ainda pairava no ar, ainda dentro de mim. Por um momento, desejei me atirar nos braços de Malcolm, algo que com certeza não faria com outro homem, nem mesmo com meu pai. Caminhei em linha reta, seguindo em direção ao rio, com determinação.

       - Se formos até o fim desta rua e virarmos a esquerda, teremos uma bela vista do rio Thames - disse eu.

       - Ótimo - ele respondeu.

       Sempre foi uma fantasia caminhar ao longo do rio com um homem que estivesse apaixonado por mim. Estava tomada pela emoção. Pelo meu corpo moviam-se esperanças e temores, confusão e sentimentos contraditórios. Sentia-me confusa e atordoada. Contudo, não podendo permitir que Malcolm percebesse minha agitação enquanto caminhávamos, tratei de manter a postura, a cabeça erguida. Numa noite tão escura quanto aquela, o reflexo das luzes distantes na água parecia vaga-lumes presos numa teia de aranha.

       - Linda vista - disse ele.

       - É verdade.

       - Como seu pai ainda não a casou? - perguntou ele. - Não insultaria sua inteligência dizendo que é bonita, mas você é muitíssimo atraente e tem uma mente notável. Como é que nenhum homem ainda a capturou?

       - Como é que você ainda não tem esposa? - respondi.

       Ele sorriu

       - Respondendo uma pergunta com outra não é? Bem Srta Winfield - disse ele - se quer saber, acho que a maioria das mulheres de hoje, com seus esforços para se mostrarem divertidas e interessantes, são entediantes. Acredito que um homem que encare a vida com seriedade, que queira construir algo de sólido para si e sua família, deve evitar este tipo de mulher.

       - E você conhece esse tipo de mulher? Não tem procurado encontrar outros tipos? - perguntei. Não pude ver com precisão, mas acho que ele ficou vermelho.

       - Não, tenho estado muito ocupado com meus negócios.

       Paramos, e ele olhou para os barcos.

       - Sem querer ser rude - disse - sinto que temos algumas coisas em comum. A partir do que seu pai me disse e do que observei, você é uma pessoa séria, pragmática e ativa. Você aprecia o mundo dos negócios e como conseqüência, está bem acima da maioria das mulheres deste país.

       - As mulheres ficam assim por causa do modo pelo qual os homens as tratam - assegurei rapidamente.

       Quase mordi o lábio. Não queria expressar minhas opiniões controvertidas, mas as palavras pareciam formar-se por si próprias em minha boca.

       - Não sei. Talvez - assentiu ele - o problema seja este. É verdade. Você sabe - continuou, pegando-me delicadamente pelo cotovelo para continuarmos andando - temos outros coisas em comum. Ambos perdemos nossas mães muito cedo. Seu pai contou-me em que circunstâncias sua mãe morreu - acrescentou - Logo, espero que não me considere intrometido.

       - De modo algum. Você perdeu sua mãe ainda muito jovem?

       - Tinha cinco anos - informou num tom sombrio e triste.

       - Deve ter sido duro.

       - Algumas vezes as coisas ruins que nos acontecem tornam-se boas de certa forma; quero dizer, elas nos fortalecem.

       Na verdade, ele não me pareceu forte ao dizer isso. Foi tão frio que temi fazer outras perguntas.

       Caminhamos bastante aquela noite. Ele falou sobre seus inúmeros empreendimentos e conversamos também sobre as próximas eleições presidenciais. Malcolm ficou surpreso ao ver o quanto eu estava bem informada sobre os candidatos que concorriam pelos republicanos e democratas. Lamentei termos chegado em casa tão cedo. Em todo caso, pensei, pelo menos tive meu passeio com um rapaz bonito. Presumi que aquilo seria o fim. Porém, quando chegamos em frente a porta de casa, ele perguntou

se podia me procurar de novo.

       - Sinto se falei muito durante a noite, gostaria de ouvir você da próxima vez - disse ele.

       Será que estava ouvindo bem? Um homem queria me ouvir, queria conhecer minhas idéias?

       - Ligue amanhã - eu disse. Acho que pareci tão ansiosa quanto uma adolescente e ele se manteve sério, não sorriu.

       - Ótimo. Há um restaurante de frutos do mar perto de onde estou hospedado. Talvez possamos jantar lá.

       Jantar - o tipo de encontro firme. Claro que concordei. Gostaria de tê-lo visto entrar no carro e partir, mas não podia fazer algo tão obvio. Ao entrar em casa, deparei com meu pai a porta do gabinete.

       - Jovem muito interessante, não? - disse ele - Me parece uma espécie de gênio dos negócios. Além disso, é bastante vistoso, não é?

       - Sim papai - respondi.

       Ele deu um risinho.

       - Malcolm me ligara amanhã, iremos jantar juntos - continuei.

       Seu sorriso se desfez. Ficou sério, e em seus olhos apareceu aquele brilho de esperança que eu já conhecia.

       - É verdade? Bem, o que mais tem a me dizer?

       - Não sei o que lhe dizer mais, papai.

       Sem conseguir me acalmar, pedi licença e subi para o quarto. Por um instante simplesmente sentei e comecei a me olhar no espelho. O que havia de diferente?

Meus cabelos eram os mesmos. Puxei os ombros para trás, pois tinha a propensão a curvá-los para frente porque os achava muito grandes. Sabia que tinha uma péssima postura e que Malcolm era bem elegante; a postura era impecável e transmitia segurança.  Ele pareceu não reparar nos meus defeitos, e foi ótimo falar com alguém sem ter que olhar para baixo.

       Além de tudo, ele havia dito que eu era muito atraente, sugerindo, com isso, que eu era uma mulher desejável. Talvez eu tenha me subestimado durante todos aqueles anos, aceitando um destino cruel, sem a menor necessidade. Claro que eu estava tentando me punir, me censurar. Um homem jantou comigo e me convidou para sair; isso não significa que tivesse intenções românticas. Talvez estivesse apenas se sentindo só. Não, pensei, iremos jantar, conversar mais um pouco, e depois ele irá embora. Talvez, algum dia, numa ocasião especial, como o Natal, por exemplo, eu receba um cartão dizendo "Agradeço, com certo atraso, sua gentil companhia.

Feliz Natal, Malcolm".

       Meu coração estremeceu. Fui até a casa de bonecas e procurei minha esperança, que estava trancada lá dentro. Dormi sonhando com as bonecas de porcelana. Eu era uma delas, a esposa feliz, e Malcolm, era o belo marido.

       Nosso jantar foi elegante. Tentei não parecer exagerada nas minhas roupas, mas tudo o que tirava do armário para vestir parecia modesto demais. Era culpa minha não dar atenção ao meu guarda-roupa. Finalmente optei por um vestido que havia usado num casamento no ano anterior. Pensei que pudesse me trazer boa sorte.       

Malcolm disse que eu estava muito bem. A conversa durante o jantar foi bem impessoal, ele queria saber nos mínimos detalhes sobre o trabalho junto ao meu pai, queria que eu explicasse tudo. Tive medo que a conversa se tornasse chata, mas ele se mostrava cada vez mais impressionado com o que eu sabia sobre os negócios do meu pai.

       - Diga-me - perguntou, quando voltamos para casa - o que faz para se divertir?

       Finalmente um assunto pessoal. Finalmente algum interesse por mim.

       - Leio muito, escuto música, caminho. E gosto de montar a cavalo.

       - É mesmo? Possuo vários cavalos, estão em Foxworth Hall, minha residência. É um lugar que fascinaria qualquer amante da natureza.

       - Parece maravilhoso - disse eu.

       Ele me observou em frente a porta e, mais uma vez, pensei que tudo terminaria ali. Mas ele me surpreendeu.

       - Suponho que sabe que irei à missa de amanhã junto com você e seu pai.

       - Não, não sabia.

       - Bem, como estou ansioso por isso - disse ele - e devo agradecer-lhe pela noite mais agradável que já tive.

       - Também gostei - assenti e me calei.

       Seria aquele o momento ideal em que um homem beija uma mulher? Como senti não ter uma amiga íntima em que pudesse confiar, com que pudesse conversar sobre as coisas entre um homem e uma mulher; mas todas as garotas que conhecia na escola já haviam casado e ido embora. Devia fazer algo que o encorajasse? Inclinar-me em sua direção? Parar numa posse dramática? Sorrir de um jeito especial? Em pé na frente da porta, me senti perdida.

       - Então, até amanhã de manhã - disse ele, fazendo um cumprimento com o chapéu e descendo os degraus em direção ao carro.

       Abri a porta e entrei. Encontrei meu pai sentado na sala de estar, fingindo ler um jornal; eu sabia que estava ali me esperando para saber do encontro. Não queria contar tudo a ele. Sua atitude fazia com que sentisse minha privacidade invadida, e não me agradava toda aquela expectativa. Além do mais, o que poderia contar a ele? Malcolm levou-me para jantar. Conversamos muito. A maior parte do tempo eu falei e ele ouviu. Talvez me achasse uma tagarela, embora tenha se interessado pelas coisas que eu disse. Tenho certeza que falei muito por estar nervosa. De certa forma, sentia-me aliviada por todas as suas perguntas serem sobre negócios, pois era um assunto no qual podia me expandir. Poderia ter falado sobre livros ou casas, mas até agora eu não sabia se ele tinha outros interesses além de ganhar dinheiro.

       O que poderia contar ao meu pai? O jantar foi maravilhoso, procurei não comer muito, acho que poderia ter comido um pouco mais. Tentei parecer delicada e feminina, cheguei a recusar a sobremesa que ele insistiu em me oferecer. Vendo que iria direto para o quarto, meu pai me perguntou rapidamente:

       - Foi uma noite agradável?

       - Sim, mas por que você não me avisou que havia convidado Malcolm para ir a igreja conosco?

       - Não lhe disse?

       - Pai, você pode ser muito esperto nos negócios, mas não sabe mentir - disse eu, com um breve sorriso.

       Por que deveria estar zangada? Pensei. Sabia o que ele estava fazendo e queria que o fizesse.

       - Bem, agora vou dormir - acrescentei, pensando em acordar bem cedo no dia seguinte, pois pretendia me arrumar muito bem para ir a igreja.

       Naquela noite, antes de adormecer, revi todos os momentos do meu encontro com Malcolm, condenando-me por algumas coisas, parabenizando-me por outras. Quando me lembrei do ultimo momento, na porta de casa, fantasiei que ele havia me beijado.

       Nunca fiquei tão nervosa para ir a uma missa como naquele dia. Não consegui comer nada no café da manhã. Andava de um lado para o outro. Não estava segura sobre o vestido. Não sabia se meu cabelo estava bem. Finalmente, Malcolm chegou e já era hora de partir. Meu coração batia tanto, que achei que ia desmaiar ou ter um colapso nervoso na escada.

       - Bom dia Olívia - disse ele, parecendo aprovar minha aparência.

       Somente quando estávamos todos no carro percebi que havia me chamado de "Olívia" e não de "Srta Winfield".

       Era um lindo dia de primavera, o primeiro domingo do ano que não fazia frio. Todas as moças usavam vestidos novos, chapéus e sombrinhas próprias para a estação.

As famílias tinham um ar rejuvenescido, e as crianças brincavam ao sol, esperando a hora de entrar na igreja. Quando descemos do carro, todas as pessoas se viraram para me ver. Eu, Olívia Winfield, chegando a igreja acompanha de seu pai e de um notável e belo jovem. Sim, queria gritar, queria que todos me vissem! Mas era claro que nunca faria isso. Permaneci ereta, a mais alta de todas, e mantive a cabeça erguida desde o momento em que saímos do carro até entrarmos na escuridão da igreja.

Como a maioria das pessoas estavam do lado de fora, aproveitando o sol, pudemos escolher onde sentar. Malcolm preferiu os primeiros assentos, bem na frente do altar.

Ficamos em silêncio enquanto esperávamos o inicio do sermão. Jamais havia sentido tanta dificuldade em acompanhar uma pregação. Jamais senti tanta vergonha do som da minha voz quanto naquela manhã, na hora que levantamos para entoar os hinos. Malcolm cantou alto e claro, e no final declarou o padre nosso com uma voz profunda e sentida. A seguir voltou-se para mim, deu-me o abraço e me acompanhou até a saída. Eu me senti orgulhosa em passar por entre as fileiras de bancos com ele.

       É claro que reparei no modo como algumas pessoas nos observavam. Deviam estar tentando imaginar quem era aquele belo rapaz que estava acompanhando os Winfields, especialmente Olívia Winfield. Deixamos o falatório para trás. Senti que a aparência de Malcolm seria assunto do dia. Naquela tarde fomos passear a cavalo. Era a única vez que cavalgava sozinha com um homem, e estava achando a companhia dele revigorante. Malcolm cavalgava como um experiente caçador inglês e parecia estar gostando da maneira pela qual eu o acompanhava.

       Veio jantar conosco naquele domingo, e mais uma vez caminhamos ao longo do rio. Nos primeiros momentos do passeio eu o senti quieto demais, antecipei que iria me dizer que estava de partida. Talvez prometesse me escrever. Na verdade, eu estava esperando por esta promessa. Pelo menos, seria algo para preencher minha vida. Adoraria cada uma de suas cartas, caso houvesse mais de uma.

       - Ouça bem, Srta Winfield - disse ele, de repente. Não gostei que voltasse a me chamar de Srta Winfield. Pensei que fosse me dizer algo desagradável, mas estava errado. - Não sei por que - continuou ele - duas pessoas com tantas coisas em comum têm que prolongar um relacionamento depois de saberem exatamente o ponto onde querem chegar.

       - Ponto?

       - Falo de casamento - disse ele - um dos mais sagrados sacramentos, algo que deve sempre ser levado a sério. Um casamento é mais do que o resultado lógico de um romance. É uma união contratual, um trabalho de equipe. Um homem tem que saber que sua esposa trabalha junto com ele, que é com quem pode contar. Ao contrário

do que muitos pensam, inclusive meu pai, acho que o homem deve ter uma mulher forte ao seu lado. Estou muito impressionado com você, Srta Winfield. Gostaria de sua permissão para pedi-la em casamento a seu pai.

       Por um momento, não pude falar. Malcolm Neal Foxworth, com seus dois metros de altura e toda aquela beleza, inteligência e saúde, queria casar comigo? Estávamos a margem do rio, e as estrelas sobre nossas cabeças brilhavam mais do que nunca. Estaria eu apenas sonhando um dos meus sonhos?

       - Bem... - eu disse. Coloquei a mão no pescoço e olhei para ele. Não tinha palavras. Não sabia o que responder.

       - Sei que isso pode lhe parecer repentino demais, mas acontece que sou um homem que tem o dom de discernir, quase imediatamente, o que é valioso e o que não é. Se é que acredita nisso...

       - Sim, Malcolm, acredito - eu disse apressada. Apressada até demais.

       - Ótimo, obrigado - disse ele.

       Fiquei esperando. Aquele era o momento certo para nos beijarmos. Para consumar nosso compromisso sob as estrelas. Porém, acho que estava sendo muito romântica.

Malcolm era o tipo de homem que tornava tudo muito cerimonioso, e eu devia ter percebido isso.

       - Bem, se é de seu agrado, vamos voltar para casa e falarei com seu pai.

       Pegou-me pelo braço e atraiu-me para junto a ele. Enquanto caminhávamos de volta, fiquei pensando naquele casal que havia visto na noite que Malcolm jantara conosco. Meu sonho havia se tornado realidade. Pela primeira vez na vida eu me senti feliz de verdade.

       Meu pai nos esperava em seu gabinete, como se estivesse antecipando as boas novas. As coisas estavam acontecendo muito depressa. Sentei-me na sala de estar, e Malcolm entrou no gabinete para falar com papai. Não era a primeira vez que eu ficava junto a porta dupla que separava o gabinete da sala para ouvir os assuntos

de papai. Senti ter sido excluída da conversa daquela noite. Talvez tivessem que falar sobre coisas de família e negócios, detalhes que poderiam me impressionar.

Contudo, nada me impressionaria mais no que o final daquele diálogo. Fiquei quietinha, do lado da porta, ansiosa para ouvir Malcolm declarar seu amor por mim.

       - Como lhe havia dito na noite passada, Sr Winfield, estou realmente interessado na sua filha. É muito raro encontrar uma moça que aprecie a busca do sucesso econômico e que cresça com essa idéia.

       - Tenho orgulho do progresso de Olívia - disse meu pai - Ela é tão brilhante como administradora e contadora quanto qualquer homem, sei disso.

       Esses elogios sempre fizeram que me sentisse menos desejável.

       - Sim, é uma mulher com um temperamento forte e equilibrado. Sempre quis uma esposa que me permitisse conduzir a vida do meu jeito, sem se agarrar como uma trepadeira, sufocando-me. Quero ter certeza de que quando chegar em casa não a encontrarei nervosa nem deprimida, ou até com aquele ar vingativo que muitas mulheres frívolas costumam adotar. Gosto do fato de sua filha não se prender a superficialidades, não ser louca por cabeleireiros, não ser coquete, não rir à toa. Enfim, gosto de sua maturidade. Devo cumprimentá-lo por ter criado uma mulher educada e respeitável.

       - Bem, eu...

       - Eu não consigo encontrar melhor maneira de expressar-lhe meus cumprimentos do que pedindo a mão dela em casamento.

       - Olívia sabe?

       - Se ela sabe que vim pedir sua mão? Ela me deu sua permissão. Sabendo que era uma mulher inteligente, achei melhor consultá-la primeiro. Espero que compreenda.

       - Sim, claro - disse meu pai depois de pigarrear. - Ora, Sr Foxworth - continuou, e durante toda a conversa chamou Malcolm de Sr Foxworth - Tenho certeza que sabe que minha filha herdará uma enorme fortuna; pois bem, devo avisá-lo que o dinheiro será somente dela. Está bem claro em meu testamento que ninguém, exceto ela, terá acesso a esses fundos.

       Houve um grande silêncio, tal qual eu esperava.

       - O senhor fez o que devia ser feito - disse Malcolm, finalmente. - Não sei que planos o senhor tem para o casamento, mas gostaria que fosse uma cerimônia simples e o mais breve possível. Tenho que regressar logo a Virgínia.

       - Se Olívia concordar - disse meu pai, sabendo que eu concordaria.

       - Ótimo, então tenho sua permissão senhor?

       - Você compreendeu o que eu disse sobre o dinheiro?

       - Sim, compreendi.

       - Tem minha permissão, e vamos comemorá-la - terminou meu pai.

       Subi as escadas correndo e sentei em frente a casa de bonecas. Eu viveria numa casa grande, com empregados e pessoas indo e vindo. Ocuparíamos nosso tempo com jantares e festas, e eu seria útil ao meu marido, que, como dissera meu pai, era um verdadeiro gênio nos negócios. Com o tempo seríamos invejados por todos.

       - Assim como invejei vocês - confidenciei para a família de porcelana.

       Pensei em mim mesma. Adeus às noites solitárias. Adeus mundo de fantasias e sonhos. Adeus para a cara de piedade de meu pai. Adeus para o meu rosto infeliz refletido no espelho. Havia um novo rosto a ser descoberto e tanto a aprender sobre Malcolm, e eu tinha o resto da vida para isso. Iria ser Olívia Foxworth, Sra Malcolm Neal Foxworth. Tudo que minha mãe havia previsto se tornava realidade. Eu estava florindo. Sentia-me abrindo em direção a Malcolm como um botão se transformando em flor. E quando seus olhos, infinitivamente azuis, se fixarem dentro dos meus olhos gris, eu sabia que o sol havia nascido, derretendo as névoas. Minha vida não mais seria cinzenta. Não, de agora em diante seria azul - azul como um dia ensolarado, azul como os olhos de Malcolm. Embalada pelo amor, como qualquer garota apaixonada,

esqueci de observar o que existia sob as aparências. Esqueci que Malcolm não havia, sequer por uma vez, pronunciado a palavra "amor". Como uma adolescente, acreditei que iria permanecer sob o céu azul dos olhos de Malcolm e que meu pequenino botão ia desabrochar e se transformar numa bela flor. Como qualquer mulher apaixonada, confiando no amor, não percebi que o céu que via não era aquele bonito e claro céu de primavera, mas o frio, indiferente e solitário céu inverno.

 

MEU CASAMENTO

       HAVIA MUITOS PLANOS A FAZER, mas o tempo era pouco. Decidimos casar-nos dali há duas semanas.

       - Já estou afastado há muito tempo - explicava Malcolm - e tenho vários negócios a resolver. Você não se importa, não é Olívia? Afinal, teremos o resto de nossas vidas para estarmos juntos, gozaremos nossa lua de mel mais tarde, depois que você estiver bem adaptada em Foxworth Hall. Concorda?

       Como poderia discordar? O fato de Malcolm querer uma cerimônia simples e curta e a rapidez com que as coisas aconteciam não diminuía minha excitação. Continuava afirmando a mim mesma que era uma mulher de sorte. Além disso, nunca me senti bem, exposta ao público. Também não tinha amigos com quem pudesse comemorar. Papai havia convidado a irmã mais nova de minha mãe e seu filho, John Amos, pois eram os únicos parentes que moravam perto de nós. "Primos pobres", era assim que papai costumava chamá-los. O pai de John morrera há muito tempo. Sua mãe, uma mulher triste e infeliz, depois de tantos anos ainda ostentava o luto. E John Amos, com apenas dezoito anos de idade, já parecia um velho. Devotava-se a religião e estava sempre citando a Bíblia. Contudo, concordei em convidá-los. Malcolm não chamou ninguém.

Seu pai acabara de sair numa viagem; pretendia passar alguns anos visitando vários países. Malcolm não tinha irmãos ou irmãs, nem amigos íntimos a quem quisesse chamar, ou, como havia dito, quem viria de repente, de um dia para o outro? Eu sabia que as pessoas estavam pensando: ele não convida sua família porque não quer que veja com quem esta casando até que o casamento se realize e seja tarde demais para impedi-lo.

       Malcolm prometeu-me uma recepção em Foxworth Hall assim que chegássemos.

       - Você conhecerá todos nesta recepção - afirmou.

       As duas semanas que seguiram foram preenchidas com preparativos para o casamento e receios. Decidi usar o vestido de noiva de minha mãe, não havia razão para gastar uma fortuna num vestido que iria usar uma vez. Entretanto, era muito pequeno para mim e foi preciso chamar a Srta Fairchild, que era costureira, para alargá-lo.

Era um vestido simples, em seda perolada, sem enfeite, bordados ou rendas, mas nobre, belo e elegante; o tipo de vestido que Malcolm vai apreciar, pensei.  A costureira franziu as sobrancelhas quando subi no banquinho; o vestido batia na altura da minha canela.

       - Minha querida Srta Olívia - disse ela, olhando para mim do chão - terei que ser um gênio para baixar tanto esta bainha. Tem certeza que não quer comprar um vestido novo?

       Sabia o que ela estava pensando quando falou isso. Com quem será que esta desengonçada vai se casar e por que insiste em entrar no delicado vestido de sua mãe como se fosse uma das irmãs de Cinderela tentando calçar o sapatinho de cristal? Talvez fosse mesmo uma das irmãs da Cinderela, mas necessitava estar perto de minha mãe no dia do meu casamento, o mais perto possível. Sentia-me protegida dentro daquele vestido, protegida por gerações de mulheres que se casaram e tiveram seus filhos antes de mim. Mulheres que sabiam coisas que eu desconhecia completamente. Além disso, queria sentir-me bela no meu casamento. A pena e a zombaria no olhar da costureira não me importava muito.

       - Srta Fairchild, quero usar o vestido de minha mãe por razões sentimentais, sei que não é necessário explicar-lhe. Agora, será que pode encompridá-lo ou terei de chamar outra pessoa?

       Disse isso com frieza, mantendo uma certa distância social, e ela rapidamente se colocou em seu lugar, trabalhando em silêncio enquanto eu me apreciava no espelho. Quem era aquela mulher olhando para mim? Uma noiva em seu vestido branco. Uma noiva que ia se casar e realizar seus sonhos. E qual seria a sensação de entrar na igreja? Oh! Eu sabia que meu coração ia disparar como um cavalo selvagem. Tentaria sorrir, tentaria fazer minha face expressar doçura, como a da noiva que se põe no topo dos bolos de casamento, como as das jovens esposas que pareciam nas colunas sociais. Como podiam parecer tão doces e inocentes? Com certeza não passavam

a vida toda assim; seria algo que lhes vinha naturalmente ou teriam aprendido a parecer doces? Se era algo passível de se aprender talvez houvesse uma chance para mim. Talvez também pudesse aprender.

       Contudo, eu tendia a ficar envergonhada sabendo que as pessoas iam pensar de mim: como é grande, seus braços são tão compridos, a bela cabeleira fica perdida sobre esse rosto sem graça. Mesmo se eu sorrisse e elas sorrissem de volta, certamente logo em seguida se virariam umas para as outras, zombando de mim. "Parece um boneco dentro desse vestido tão gracioso, com esses ombros, esses pés enormes... Reparem, ela é mais alta que todo mundo, só não é mais alta que Malcolm. E Malcolm, tão bonito e elegante, ao lado de uma noiva tão desengonçada".  Sim, as pessoas iam se divertir muito fazendo piadinhas sobre a águia e o pombo; uma bela ave, magnífica, altiva; a outra sem graça, feia, desajeitada.       Fiquei de frente para o espelho quando s Srta Fairchild trabalhava com suas agulhas e alfinetes no vestido. Estava feliz em saber que apenas tia Margaret, John Amos, meu pai, Malcolm e eu iríamos estar no casamento. Ninguém mais para fazer com que meus medos se tornassem realidade. Tinha esperança que meu tempo houvesse chegado, que meu sonho colorido estivesse se transformando em realidade.

       No dia do casamento choveu. Tive de correr para dentro da igreja envolta numa cinzenta capa de chuva. Por pior que estivesse, não deixaria que o mau tempo estragasse meu entusiasmo. Foi uma cerimônia simples na igreja da congregação. Quando me vi sobre a passarela do templo, escondi minhas lágrimas e meu nervosismo atrás de uma máscara solene; assim podia olhar para Malcolm enquanto caminhava em sua direção. Ele estava no altar; sua postura parecia tensa e seu rosto era mais solene que o meu, o que me desapontou um pouco. Esperei que Malcolm brilhasse de alegria ao me ver naquele vestido e que algo de mágico acontecesse entre nós, antecipando

nosso amor. Tentei encontrar seus olhos. Será que estava, assim como eu, escondendo seus verdadeiros sentimentos sob uma máscara? Quando me fitou, parecia estar olhando através de mim. Talvez achasse pecaminoso demonstrar desejo e afeição dentro de uma igreja. Malcolm pronunciou os votos matrimoniais com mais ênfase do que o próprio ministro. Eu não conseguia sossegar meu coração dentro do meu peito; temia que minha voz falhasse no momento de pronunciar os votos, porém ela não me decepcionou

quando jurei amar, honrar e obedecer a Malcolm Foxworth até que a morte nos separasse. Pronunciei essas palavras com todo meu coração, toda a alma. Em nome de Deus eu as disse e em nome de Deus eu não as quebraria durante a minha vida. O que quer que tenha feito por Malcolm eu fiz em nome de Deus.

       Concluímos nossos votos, depois de trocarmos alianças, voltei-me para Malcolm esperando que me beijasse. Era esse o meu momento. Gentilmente, ele levantou o véu que cobria a minha face. Minha respiração parou. A igreja estava mergulhada no mais profundo silêncio, parecia que o mundo tinha parado de respirar quando seus lábios de aproximaram dos meus. Entretanto, o beijo de casamento de Malcolm foi descuidado e superficial. Esperava muito mais, pois era nosso primeiro beijo, era algo que lembraria para o resto da vida. Porém, apenas senti o toque de seus lábios. Parecia mais um simples carimbar de documento do que um beijo de verdade.

Malcolm cumprimentou meu pai e o ministro. Eu devia ter beijado papai, mas limitei-me a abraçá-lo, pois estava muito intimidada com o jeito como John Amos nos olhava; podia ler em sua face que estava tão desapontado quanto eu.

       Meu pai parecia feliz, embora estivesse muito pensativo quando saímos da igreja. Quando olhava para Malcolm, o que fazia de vez em quando, eu percebia um jeito diferente em seu olhar, algo que jamais havia visto. Era como se ele acabasse de descobrir qualquer coisa. Por um momento, apenas por um momento, aquilo me assustou. Mas seu ar brincalhão e sua felicidade varreram escuridão dos seus olhos e papai sorriu gostoso, como costumava sorrir para minha mãe quando ela fazia algo para lhe agradar ou quando estava especialmente bela.

       Estaria eu finalmente bonita, mesmo que só por um dia? Será que meus olhos cintilavam com a previsão de uma nova vida? Esperava que isso fosse verdade e Malcolm estivesse sentindo a mesma coisa. Meu pai sugeriu que fôssemos para casa, pois havia preparado uma recepção. Era claro que não seria uma grande recepção, com apenas a presença do noivo e da noiva, um pai, uma tia viúva e um garoto de dezoito anos. Papai trouxe uma garrafa de champanhe.

       - Olívia, minha querida filha única, e Malcolm, meu distinto genro. Brindemos a uma vida perpétua de harmonia e satisfação!

       Por que uma lágrima deslizou de seu olho enquanto erguia a taça? E por que Malcolm olhava mais para meu pai do que para mim? De repente senti-me só, sem saber o que fazer. Levantei minha taça e, na transparência do cristal, avistei meu primo, John Amos, do outro lado, olhando severamente para Malcolm. Em seguida venho em minha direção.

       - Está linda prima Olívia. Gostaria que lembrasse que é minha única família; se um dia precisar de mim, estarei ao seu lado. Deus criou as famílias para que todos ficassem unidos, para se ajudarem uns aos outros, para manter sempre a sagrada verdade do amor.

       Não soube como responder-lhe, pois pouco o conhecia. Ademais isso era coisa para se dizer no dia do meu casamento? Pelo amor de Deus! O que poderia ele, o primo pobre, fazer por mim, que estava a caminho de uma vida cheia de riqueza e ambição? O que saberia ele, então, que demorei tanto para descobrir?

       Malcolm havia comprado nossas passagens para o trem que partiria às três horas daquele dia. Iríamos direto para Foxworth Hall. Ele disse, que além de não ver senso pratico nas luas de mel, não tinha tempo para isso. É claro que fiquei triste, mas ao mesmo tempo senti certo alívio. Eu ouvia histórias sobre a atuação dos homens nas noites de núpcias e sobre as obrigações de uma mulher para com o esposo, que, embora assustada, não desejava prolongar por mais tempo a expectativa de cumprir aquela árdua tarefa. Mesmo assim, estava assustada com a idéia de ter relações conjugais. De alguma forma, o fato de passarmos a primeira noite dentro de um vagão, com varias pessoas ao redor, tranqüilizou-me.

       - Acredite-me, Olívia, ir para Foxworth Hall é, por si só, uma aventura romântica - disse isso como se estivesse lendo meus pensamentos.

       Não reclamei. A descrição que havia feito de Foxworth Hall lembrou-me em castelo de conto de fadas, tão grande e fascinante que meu sonho de casa de bonecas ficou reduzido a pó.

       Às duas e cinqüenta, precisamente, Malcolm disse que era hora de irmos. O carro já nos esperava e minha bagagem já estava dentro dele.

       - Sabe - disse meu pai para Malcolm quando já íamos saindo de casa - terei de penar muito para encontrar um contador melhor que Olívia.

       - Perda sua, ganho meu - respondeu Malcolm. - Asseguro-lhe que os talentos dela não serão desperdiçados em Foxworth Hall.

       Parecia falar sobre um escravo que estivessem negociando.

       - Talvez meu salário melhore - atalhei eu. Não estava dizendo uma piada, quis apenas incluir algo jocoso àquela situação, porém Malcolm não sorriu.

       - É claro - disse ele.

       Meu pai me beijou e pareceu triste quando olhava para mim.

       - Cuide bem de Malcolm, Olívia, e não lhe cause problemas. Agora a palavra de Malcolm é lei.

       Não sei por que, mas aquilo me assustou, especialmente quando a seguir John Amos apertou minha mão e disse:

       - Que Deus a proteja.

       Não soube como responder. Limitei-me a agradecer e retirar a minha mão das suas e entrar no carro. Enquanto nos afastávamos, olhei para trás observando a casa vitória que, por tanto tempo, fora mais do que um lar para mim. Havia sido o lar dos meus sonhos e fantasias. Era dali que via o mundo, pensando no que ele reservava para mim. Sentia-me protegida naquela casa, sentia segurança nos seus aposentos e corredores. Estava deixando minha casa de bonecas dentro da cúpula de vidro, com suas janelas coloridas e seu arco-íris mágico, porém agora não precisaria mais dela para sonhar. Não, agora eu ia viver um mundo real, um mundo que jamais havia imaginado existir no precioso mundo daquela casa de bonecas de onde extraia minhas esperanças e sonhos.

       Passei meu braço pelo de Malcolm e me aconcheguei a ele. Olhou para mim e sorriu. Naturalmente, agora que estávamos sozinhos, ele expandiria mais seu amor e sua afeição, pensei.

       - Fale-me de novo sobre Foxworth Hall - disse eu, como se estivesse pedindo para me contar uma história como aquelas que os avós contam as crianças na hora de dormir. No instante em que mencionei o nome de sua casa, ele endireitou-se no assento.

       - Foxworth tem mais de cento e cinqüenta anos - começou. Há história em qualquer parte da propriedade. Algumas vezes sinto-me como se estivesse num museu; como se estivesse em uma igreja. É a residência mais rica e suntuosa daquela região da Virgínia. E quero que seja a mais rica do país, talvez até do mundo. Quero que seja conhecida como o castelo de Foxworth.

       Seus olhos ficaram frios e determinados. Continuou a falar, descrevendo os quartos e jardins, os negócios da família e suas expectativas sobre eles. Enquanto falava, senti que ia mergulhando em suas ambições, o que me assustou. Ainda não havia percebido o quão motivado ele podia ser. Seu corpo e sua alma mantinham-se fixados em seus ideais e objetivos. Senti então que nada era mais importante para ele que suas metas, nem mesmo nosso casamento. Li, em algum dos meus livros, que uma mulher gosta de sentir que não há nada mais importante para o marido do que ela, que tudo quanto ele faz, faz pensando nela. "Este é o verdadeiro amor: ser um em dois". Assim era a citação, nunca me esqueci. As pessoas casadas deviam sentir-se parte uma da outra, deviam estar sempre atentas às necessidades e sentimentos de cada uma.

       Quando o carro saiu da nossa rua, eu tinha observado o Thames repleto de barcos que se moviam de modo aleatório, para baixo e para cima, lentamente, mas cada qual com o seu destino. Perguntei-me se algum dia eu e Malcolm partilharíamos desse tipo de fantasia. E, então, percebi que aquele não era o tipo de pensamento que uma mulher deveria ter no dia do seu casamento.

       Jantamos no trem. Eu estivera tão nervosa durante todo o dia, que não havia comido absolutamente nada, e de repente me senti faminta.

       - Estou com muita fome - disse a ele.

       - Temos que prestar atenção ao pedir nosso jantar, os preços são absurdos.

       - Mas é claro que devemos fazer uma exceção esta noite - disse eu. - Pessoas como nós podem...

       - É exatamente por isso que devemos ser econômicos. Bom senso para os negócios exige prática e treino. É isso que me atrai em seu pai, ele sempre age com bom senso. Só os novos-ricos são perdulários. Pode-se vê-los em qualquer lugar, chegam a ser obscenos.

       Ao reparar o quão intensa era a sua convicção no que dizia, não discuti mais o assunto. Deixei que escolhesse o jantar por ambos, mas não fiquei satisfeita com a escolha, e quando sai da mesa ainda estava com fome. Malcolm começou a conversar com o cavalheiro que estava sentado perto de nós. Havia um debate sobre o que chamavam de "Ameaça Vermelha", algo engendrado pelo Secretario de Justiça dos Estados Unidos, A. Malcolm Palmer. Cinco membros do poder Legislativo do estado de Nova Iorque haviam sido expulsos por fazer parte do Partido Socialista.

       Estava na ponta da minha língua o quanto achava aquilo injusto e terrível, porém, Malcolm havia expressado claramente sua aprovação, recolhi meus pensamentos, o que me desagradava muito, mas era o que teria de fazer sempre a partir de então. Fechei bem a minha boca, temendo que as palavras escapassem como pássaros ao encontrar a portinhola da gaiola aberta.

       Ocasionalmente o trem passava por cidades adormecidas. As luzes das casas eram muito fraquinhas, as ruas estavam vazias. Foi então que, bem distante, vi as montanhas Blue Ridge, belas como gigantes adormecidos. Estava quase adormecendo de novo quando fui despertada pela voz de Malcolm.

       - Vamos descer nesta estação - disse ele.

       Olhei pela janela e vi apenas árvores e campos; contudo, o trem ia diminuindo a marcha. Malcolm acompanhou-me até a porta do vagão e descemos os degraus.

De pé na plataforma, olhei a estação. Apenas um telhado sustentado por quatro colunas de madeira. O ar frio cheirava a sereno. O céu, claro e pontilhado de pequenas estrelas, era tão vasto e profundo que me senti pequena e insignificante. Achei-o alto e imenso, e ali parecia estar bem perto... Sua beleza causou-me um estranho pressagio. Preferia, ao invés de chegarmos a noite, que tivéssemos chegado pela manhã, quando a luz do sol nos saudaria. Não gostei do vazio e do silêncio a nossa volta. Pelo que Malcolm me havia contado sobre Foxworth Hall e seus arredores, esperava um lugar com mais luzes e animação. Apenas o chofer de Malcolm, Lucas, estava a nossa espera. Era um homem com quase sessenta anos de idade. Tinha os cabelos grisalhos e o rosto fino, uma constituição elegante e magra, e era apenas alguns centímetros mais baixo do que eu. Pelo modo como caminhava, percebi que acabava de acordar; provavelmente, dormira enquanto aguardava por nós.

       - Como isso aqui é deserto! - observei para Malcolm - Estamos muito longe da cidade?

       - Não estamos longe de outras propriedades. Charlottesville fica a uma hora daqui e existe uma pequena cidade por perto.

       - Estou tão cansada - disse eu, querendo descansar minha cabeça no seu ombro. Entretanto, ele parecia tão tenso que hesitei e resolvi me afastar.

       - Agora não estamos muito longe.

       - Bem-vinda a Foxworth Hall, madame - disse Lucas quando finalmente se sentou a direção do carro.

       - Obrigado Lucas.

       - Não há de que, madame.

       - Vamos embora - ordenou Malcolm.

       A estrada era íngreme. Ao nos aproximarmos dos montes, reparei que as árvores eram plantadas numa simetria particular que as separava em diferentes seções.

       - Elas agem como quebra-vento, escorando os pesados montes de neve - explicou Malcolm.

       Um pouco mais tarde vi um aglomerado de casas, todas bem juntas, no alto de um monte. E foi então que Foxworth Hall apareceu, perfurando o céu noturno, preenchendo-o.

Não pude acreditar no tamanho da casa. Era como um rei no alto do monte, a cuidar das outras casas como se fossem lacaios. Aquela ia ser minha pousada - o castelo onde seria a rainha. Agora poda compreender melhor a ambição de Malcolm. Uma pessoa criada em uma casa tão rica e real não podia pensar pequeno nem se satisfazer com pequenos feitos. Além disso, quem fosse tímido e modesto sentir-se-ia ameaçado, solitário e medroso dentro de uma casa como aquela. Arrepiei-me só de pensar nisso.

       - Você e seu pai moram aqui sozinhos? - perguntei ao nos aproximarmos da casa - você devia estar se sentindo muito só desde que seu pai viajou.

       Malcolm não respondeu, limitou-se a olhar dentro de meus olhos como se estivesse tentando ver sua mansão através deles.

       - Quantos cômodos tem a casa?

       - Trinta ou quarenta. Talvez um dia você conte e encontre a resposta exata - ele riu da própria piada, mas eu não consegui deixar de sentir um certo temor

em relação aquele castelo.

       - E empregados, quantos são?

       - Meu pai tinha muitos, mas desde que viajou mandei alguns embora. Temos uma cozinheira; um jardineiro que vive dizendo que precisa de um assistente; uma criada; e Lucas, que trabalha como mordomo e motorista.

       - E isso é suficiente?

       - Bem, como eu disse, agora temos você também querida.

       - Mas não estou vindo para ser aqui uma empregada, Malcolm.

       Agora estávamos bem perto da casa. Malcolm ficou calado por alguns instantes, após a minha observação. Depois disse:

       - É obvio que não usamos todos os cômodos. Há tempos tivemos dúzias de parentes morando conosco. Os sanguessugas foram-se daqui, felizmente. Com o tempo você ira avaliar as necessidades quanto a casa e os empregados e fará o que tiver que ser feito, levando sempre em consideração a eficiência e a economia. Tenho certeza que agirá com bom senso. Esta casa esta sob a sua responsabilidade. Não disponho de tempo para ela e preciso de uma mulher como você para administrá-la devidamente.

       Ele disse isso como se tivesse acabado de comprar uma esposa e agora exigisse eficiência.        Eu estava tão ansiosa para entrar e ver a casa, que me calei.

Aquela mansão seria minha. E agora ela me impressionava tanto quanto amedrontava. Era pena termos chegado a noite, porque sob o ar noturno ela exibia um aspecto sombrio. Era quase como se possuísse vida própria, como se pudesse fazer julgamentos próprios sobre seus habitantes adormecidos, pelos quais não queria sofrer.

       Aprendi com meu pai que as casas sempre refletem a personalidade de seus donos. Ele mesmo era um bom exemplo do que dizia, pois a nossa era bem simples, sem deixar de ser elegante e acolhedora. O que poderia aquela casa revelar sobre o homem com quem eu havia casado? Dominaria ele as pessoas da mesma forma que a casa dominava os arredores? Iria eu perder-me dentro daquela construção, entre aqueles quartos e corredores, tornando-me cada vez mais solitária?

       Lucas apressou-se em abrir os imensos portais da frente e Malcolm me fez um sinal para entrar. Embora considerasse isso uma tolice, esperei que ele me carregasse em seus braços, quando eu entrava em uma nova casa, em uma nova vida. Esperei ser tratada como uma daquelas mulheres delicadas e charmosas que os homens adoram, nem que fosse apenas durante aquele único dia. Mas as coisas não deviam ser assim. Ele simplesmente me pegou pelo braço e me conduziu através do gigante hall de entrada. Da escuridão de dentro da casa, como um vulto, emergiu uma pequena criatura, e minha fantasia, dissolveu-se.

       - Bem-vinda a Foxworth Hall, Sra Foxworth - disse uma voz que, por um momento me soou estranha. Pela primeira vez me haviam chamado de Sr Foxworth. Malcolm apresou-se em me apresentar a Sra Steiner. Ela era a criada; uma mulher nanica, muito branca, devia medir um metro e cinqüenta, não mais. Súbito, por ser mais alta do que ela e abrangê-la de cima, envergonhei-me do meu pensamento de ser carregada no colo. Aquela mulher, com seu um metro e meio, seria uma candidata mais adequada para tais tolices. Entretanto, ela pareceu gentil ao sorrir. Olhei para Malcolm nesse instante, mas ele estava muito ocupado dando ordens a Lucas para descarregar minha bagagem.

       - Sua cama esta pronta, madame, e acendi a lareira do seu quarto. É uma noite bem fria - disse ela.

       - Obrigado - por um momento, a palavra cama chamou minha atenção. Já era quase manhã! Iria a minha noite de núpcias acontecer agora? Ainda não me sentia preparada, não sei por que. Contudo, tratei de esconder meu constrangimento e acrescentei?

       - Suponho que terei de me habituar ao clima de montanha da Virgínia.

       - Isso deve levar algum tempo - ponderou ela - Os dias do final da primavera e do verão podem ser quentes, mas as noites sempre são frias - concluiu, fazendo um sinal para que a acompanha-se.

       Ainda não havia passado do hall de entrada. Chegara a hora de penetrar no interior de Foxworth Hall e conhecê-la. Quase não havia luz, as velas queimavam os últimos vestígios dos pavios. Caminhei lentamente, como um sonâmbulo em pleno sonho, através do hall, observando o teto alto. As paredes cobertas por retratos

a óleo. Presumi que as pessoas retratadas fossem os antepassados de Malcolm, gente que me precedera em Foxworth Hall. Enquanto caminhava, olhei um por um desses retratos. Os homens tinham um aspecto austero, frio, arrogante e também as mulheres. As faces eram tensas, e os olhos pareciam atormentados por algum problema. Procurei em casa retrato um traço de Malcolm, qualquer semelhança. Alguns homens tinham os mesmos cabelos claros e o mesmo nariz, e várias mulheres, especialmente as mais velhas, carregavam aquela expressão intensa.

       No final da primeira sala, que era ampla o suficiente para ser utilizada como um salão de baile, havia uma escadaria dupla que se enroscava para cima como plissados no vestido de uma rainha. As escadas em curva terminavam em um balcão no segundo andar, e a partir dali começava uma escada única que compunha o último lance em ascensão. Três imensos lustres de cristal pendiam de um teto cinzelado em outro que ficava a mais ou menos quinze metros do chão. O assoalho era todo trabalhado

com intricados mosaicos de ladrilho. O esplendor daquele ambiente tirou minha respiração. Senti-me pequena e tonta em meio a elegância daquele lugar.

       Enquanto a Sra Steiner ia me conduzindo em direção ao quarto, eu admirava os bustos de mármore, as luminárias de cristal, as tapeçarias antigas que somente uma fortuna imensa poderia comprar. Lucas passou por nós carregando um de meus baús. Parei ao pé da escadaria, minha mente parecia em transe. Eu ia ser a senhora de toda aquela imponente mansão! Foi quando Malcolm venho para meu lado e colocou a mão no meu ombros.

       - Então, você aprova? - perguntou.

       - É como um palácio - disse eu.

       - É verdade. A sede do meu império. Espero que saiba administrá-la bem.

       Tirou as luvas e, olhando em volta, continuou:

       - Esta é a biblioteca - disse, apontando um cômodo a minha direita.

       Dei uma olhada através da porta, que estava entreaberta, e vi as paredes cobertas de estantes de mogno onde se encontravam inúmeros livros, todos encadernados em couro.

       - Nos fundos tenho um pequeno escritório onde poderá trabalhar em nossas contas. O corredor principal, lá em cima - acrescentou, chamando minha atenção de novo para a escadaria - liga-se a rotunda. Nossos quartos ficam na ala sul, onde a temperatura é mais agradável. Na ala norte existem mais quatorze aposentos de várias dimensões. Estamos repletos de quartos de hóspedes.

       - Parece que sim.

       - Porém aprovo o que disse Benjamin Franklin: "Peixes e hóspedes começam a cheirar mal depois de três dias". Por favor, lembre-se disso - comecei a rir, mas percebi que ele tinha falado sério.

       - Você pensa realmente assim?

       - Claro que não. Mas houve uma época em que cheguei a pensar assim. Meu pai nunca se importou com esse tipo de problema. Sra Steiner - alertou ele, indicando que ela deveria continuar subindo a escada comigo.

       - Por aqui, Sra Foxworth - chamou ela e começou a subir pelo lado direito.

       Passei a mão no balaústre de madeira avermelhada e comecei a subir logo atrás dela. Malcolm vinha uns dois ou três degraus atrás de mim. Lucas desceu rapidamente pela escada da esquerda para buscar o resto de minha bagagem. Ao chegarmos no segundo andar, deparei-me com uma armadura. Foi aí que me senti, verdadeiramente, em um castelo. A parte que constituía o lado sul da mansão tinha uma luminosidade vaga. As sombras ornavam o corredor como fios de uma teia de aranha gigante. A primeira porta a esquerda estava fechada, mas pelo tamanho imaginei que fosse o maior quarto da casa. Percebendo meu interesse, Malcolm disse:

       - O quarto das relíquias. O meu quarto - acrescentou com ênfase definitiva no "meu". - É onde guardo as lembranças que coleciono durante minhas viagens e caçadas.

       Fiquei imediatamente curiosa sobre aquele quarto. As coisas que estavam ali guardadas certamente teriam muito a me informar sobre o homem com quem havia me casado. Passamos por várias portas até chegarmos a uma de painel duplo, a única pintada de branco. Achando-a diferente, parei diante dela.

       - Ninguém entra neste quarto. Foi o quarto de minha mãe - disse Malcolm.

       O tom de sua voz soou frio e duro, e seus olhos ficaram distantes. O que haveria sobre sua mãe que o perturbava tanto? Pensei. Ele pronunciara a palavra "mãe" quase como se dissesse "veneno". Que tipo de homem poderia odiar a própria mãe? É claro que aquilo me deixou muito curiosa, gostaria de saber mais a respeito, mas Malcolm me pegou pelo braço e, rapidamente, levou-me dali. A Sra Steiner parou diante de uma porta e me fez um sinal para entrar.

       O quarto era grande. A cama colocada bem no centro, tinha um dossel branco sustentado por quatro colunas de madeira esculpida a mão e estava coberta de uma bela colcha de cetim. Sobre a colcha havia dois travesseiros imensos, cuja fronha exibiam suaves bordados. A cama ficava entre duas grandes janelas de vidro que davam para a ala sul da mansão. As cortinas que ornavam cada uma dessas janelas eram de seda azul clara. O assoalho era de tabuas longas, bem curtidas e envernizadas, e do lado da cama havia um espesso tapete de lã cinza.

       Olhei para a esquerda e vi uma penteadeira com um enorme espelho oval. Ao lado, uma cômoda e um armário. Em frente a cama, a lareira, que estava acesa, e uma poltrona forrada de veludo azul. Embora as cortinas, a cama e o tapete tivessem algo de aconchegante e feminino, o quarto exibia um aspecto frio. No momento

em que entrei, tive a impressão de que aquele aposento fora montado as pressas. Numa casa tão gloriosa, por que Malcolm manteria um quarto como aquele? Minha pergunta foi respondida imediatamente. Aquele não era o nosso quarto. Era o meu quarto.

       - Sei que irá dormir agora - disse Malcolm - Foi um dia muito cansativo. Durma até a hora que quiser, não se preocupe.

       Aproximou-se de mim, beijou-me o rosto, e se foi sem que eu pudesse dizer nada.        Ocorreu-me que talvez ele fosse acanhado e houvesse dito aquilo por causa da Sra Steiner. Provavelmente pretendia vir ao meu quarto antes de amanhecer ou logo de manhã. A Sra Steiner permaneceu comigo. Mostrou-me o banheiro, explicou-me

como funcionava a casa, como costumava dobrar as roupas de cama quandolimpava os quartos, de que modo devia pedir as refeições.

       - Bem, agora é muito tarde para que possa pensar nisso tudo com clareza - disse eu. Quero que depois você explique tudo de novo, e então decidirei o que vai continuar como está e o que deve mudar.

       Acho que minha firmeza a assustou.

       - Toda a quinta feira os empregados vão a cidade. Para fazer nossas próprias compras, coisas assim - disse ela, parecendo temer que eu pudesse acabar com aquele costume.

       - Onde dormem os empregados?

       - Os quartos ficam em cima da garagem, nos fundos. Amanhã conhecerá Olsen, o jardineiro. Sei que ele vai querer lhe mostra os jardins, pois tem muito orgulho deles. A Sra Wilson é nossa cozinheira, está em Foxworth Hall há quase trinta anos. Ela insiste em dizer que tem sessenta e dois, mas sei que está perto dos setenta.

       A Sra Steiner continuou falando com seu gutural acento germânico enquanto arrumava minhas roupas no armário. Finalmente suas palavras começaram a confundir-se num ritmo monótono e lento, de modo que não pude mais segui-las. Notando que estava falando sozinha, ela se desculpou.

       - Espero que goste de sua primeira noite em Foxworth Hall - desejou ela.

       Porém a noite já estava se despedindo, e breve o sol ia nascer. Apanhei a camisola azul que mandara fazer com tanto esmero para a noite de núpcias. Tinha um profundo decote em V e era realmente a coisa mais bonita que já vestira. Lembrei-me de que, da primeira vez que esse tipo de decote foi lançado, a igreja o condenara alegando que era indecente. Os médicos diziam ser um perigo para a saúde usar essa camisola com uma abertura triangular no peito, e ela acabou com o apelido de "camisola da pneumonia". Entretanto, as mulheres continuaram a usá-la, e o decote tornou-se popular. Até então eu evitara usar qualquer roupa que revelasse a exuberância de meus seios e mesmo naquele momento eu não sabia se devia ou não fazê-lo. Pensando na possibilidade de Malcolm vir ao meu quarto pela manhã, decidi vesti-la. Soltei

meus cabelos, deixei que tombassem pelos meus ombros, e dentro do azul da camisola, contemplei-me no espelho. O brilho do fogo, na lareira, refletia-se em minha face e era como se as chamas estivessem ardendo dentro de mim. Olhando-me no espelho daquele jeito, pensei numa vela apagada, pois era isso que uma mulher antes de conhecer o amor. Mesmo sendo muito linda, se não houvesse um homem para amá-la, nunca brilharia acesa. Chegara a oportunidade de acender a minha vela, e agora meu maior desejo era ver a sua chama.

       O desejo iluminou meus olhos. Toquei meus cabelos e ombros com a ponta de meus dedos, lembrei-me de cenas de amor que lera nos livros. Deixei-me ficar em pé, pensando no momento em que Malcolm atravessaria aquela porta e me tomaria nos braços. Pousaria seus lábios nos meus ombros e os deslizaria pelo meu pescoço, depois tomaria minhas mãos entre as suas e as apertaria gentilmente. Seu amor seria sussurrado nos meus ouvidos e ele me abraçaria com a força de seu desejo. Minha altura, que sempre fora meu fardo, devia excitá-lo. E nos seus braços eu teria o tamanho ideal, e seria graciosa e terna quanto qualquer mulher pode ser quando está nos braços do homem amado. Esse era afinal, o poder do amor - transformar o mais feio dos patinhos no mais belo dos cisnes.

       Dentro daquela camisola eu me sentia como um cisne. Finalmente havia me transformado em uma mulher desejável. Malcolm veria isso no momento que surgisse a porta, e se houvesse alguma dúvida sobre mim em sua mente, desapareceria como folha levada pelo vento. Desejei agoniada, que ele entrasse por aquela porta. Eu estava, finalmente, pronta. Apaguei as luzes e escorreguei para debaixo das cobertas. As sombras produzidas pelo fogo dançavam no teto. Pareciam formas emergidas das paredes - espíritos dos ancestrais de Malcolm que com a minha chegada, haviam despertado de seu sono centenário. Excitados com a possibilidade de assombrar com o passado de uma nova senhora, pareciam executar um ritual de ressurreição. Ao invés de amedrontar-me, a idéia me fascinou, e não pude tirar os olhos das formas dançantes avivadas pelo brilho do fogo.

       Ouvi uma porta bater em algum lugar no corredor longo e vazio. O eco reverberava, saltando de uma parede para outra, percorria toda a escuridão e soava na porta do quarto. Depois um frio e profundo silêncio perfurou meu coração ansioso por carinho e amor. Aproximei as coberta do rosto e respirei o cheiro dos lençóis recém lavados. Fiquei quieta antecipando os passos de Malcolm, mas não ouvi. O fogo extinguiu-se, as sombras encolheram e voltaram a ser invisíveis nas paredes.

Minhas pálpebras começaram a pesar até que não pude mais mantê-las abertas. Antes, porém, assegurara a mim mesma que ao despertar, Malcolm estaria ao meu lado e que minha nova vida iria começar.

 

O PATINHO FEIO E O CISNE

       ALGO BRILHANTE TOCOU MEUS OLHOS e eu acordei. Ainda meio dormindo e meio desperta, pensei que fosse o brilho do amor fluindo dos olhos de Malcolm, porém logo percebi que era apenas e luz do sol. O lugar ao meu lado, onde Malcolm deveria dormir, encontrava-se vazio e frio. Lágrimas correram em minha face como um reflexo de meus sentimentos. Quando iria a luz do amor entrar na minha vida? Afinal, eu era uma mulher casada! Todos os meus sonhos dourados haviam definhado como flores

ao vento frio do inverno. Quem era meu marido? Quem eu era agora? Caminhei até a janela, abri as cortinas, e os raios de sol invadiram o quarto. Nesse instante ouvi alguém batendo a minha porta.

       - Quem é? - perguntei, tentando parecer feliz e amável, mas em vão, minha voz pareceu tremula e insegura.

       - Bom dia Sra Foxworth. Espero que tenha dormido bem.

       Era a Sra Steiner. Antes que eu pudesse dizer alguma coisa, ela fechou a porta atrás de si e ficou me observando. Pude notar um pequeno sorriso de desaprovação em seus lábios.

       - O Sr Foxworth já acordou? - perguntei rapidamente.

       - Sim madame, há algum tempo. Aliás, já saiu.

       Fiquei olhando para ela, assombrada. Saiu? Tive que conter o pranto. Não pretendia, portanto, passar meu primeiro dia em Foxworth Hall comigo? Teria vindo ao meu quarto e, ao ver que eu estava dormindo fora embora? Sem me acordar?  Ou nem mesmo viera ao meu encontro? Sentia-me uma convidada, uma hóspede, não como um esposa recém-casada. Teria o olhar de desaprovação da Sra Steiner algo a ver com isso?

       - O Sr Foxworth deixou algum recado? - perguntei.

       Sentia-me mal por ter de perguntar a uma criada sobre meu marido. O mínimo que ele deveria ter feito era escrever um bilhete amoroso, deixando-o ao lado da cama, o que seria bem mais confortante. O fogo se apagara junto com as minhas fantasias e esperanças. No quarto havia apenas a friagem da manhã. Meu coração, ardente a apenas algumas horas, estava frio e cheio de cinzas. Contudo, apesar de todas a decepção, eu tentaria mostrar aos empregados minha força e competência.

       - Não, madame, ele não deixou nenhum recado - disse a criada após uma breve pausa. - Gostaria que trouxesse o café da manhã?

       - Não. Vou me vestir e descerei em um minuto.

       - Está bem - disse ela, procurando acender a lareira.

       - Não precisa fazer isso, Sra Steiner, não costumo acender a lareira de manhã. Não adoto estes caprichos.

       - Como desejar. Quer alguma coisa em especial para o desjejum, Sra Foxworth?

       - O que comeu meu esposo?

       - O Sr Foxworth sempre come coisas leves pela manhã, e muito pouco.

       - Eu também.

       A criada baixou a cabeça e retirou-se, apressada.

       Bem, o que eu dissera não era verdade. Às vezes acordava faminta e comia com muita fartura, mas não o faria naquela manhã, quando sentia uma espécie de devastação interior; na verdade, estava determinada a encontrar um jeito de melhorar as coisas. Algo parecia estar errado. Meu pai costumava dizer que, quando as coisas iam mal, havia sempre uma razão, e que esta razão estava sempre oculta. Se alguém quer saber a verdade, deve procurá-la. Costumava dizer: "Olívia, se você procura a verdade no lado triste das coisas, por entre as sombras, acabará encontrando somente coisas terríveis, coisas que podem magoá-la muito". Porém eu era forte. Fora criada para ser uma mulher de fibra. Malcolm Foxworth era meu marido e eu encontraria o porque do seu desinteresse por mim, em nossa noite de núpcias. Por muito tempo tinha esperado beijos de bom dia e palavras de amor e afeição. Não podia deixar que o desapontamento falasse mais alto do que a inteligência. Eu merecia ser amada e não iria desistir tão facilmente. Apesar de não haver mais ninguém no quarto, fiquei bastante embaraçada ao me ver naquela camisola feita para o prazer de Malcolm. Era como se estivesse vestida para uma peça que não fora encenada. Sentia-me como uma tola. Uma tola enfurecida. Tirei aquela fantasia rapidamente e me vesti.

       Jamais esquecerei da primeira vez que desci as escadas. Parei no alto delas e admirei a imensidão daquele interior habitado pelo vazio. Seria um desafio transformá-lo em um lar. Um desafio com o qual eu sabia que podia arcar. Ao descer as escadas, sentia-me como se fosse uma rainha. A Sra Steiner convocara a Sra Wilson, que era a cozinheira, Olsen, o jardineiro, e Lucas para que viessem me conhecer. Ansiosos e intrigados com a nova patroa, meus empregados esperavam embaixo. Tenho certeza que ficaram impressionados comigo aquela manhã. Sabia que Lucas e a Sra Steiner já teriam comentado sobre mim com os outros dois. Contudo, nenhum deles podia imaginar que Malcolm aparecesse com uma esposa - e tão alta. Ao me verem com meus ombros largos e fortes, realçados pelos cabelos presos, devem ter pensado em uma rainha de amazonas vinha descendo as escadas. Notei temor e curiosidade em seus olhos.

       - Bom dia - comecei. - Não esperem que eu acorde outra vez tão tarde. Como a Sra Steiner sabe, chegamos de madrugada. Por favor, faça as apresentações Sra Steiner - ordenei.

       Malcolm devia estar aqui para fazer isso, pensei. Tinha certeza de que os empregados notaram como eu sentia sua ausência.

       - Esta é a Sra Wilson, a cozinheira.

       Ao contrário da Sra Steiner, a Sra Wilson era uma mulher alta e forte. Tinha cabelos cinzas amarelados e seus olhos grandes e inquisitivos, eram castanhos como avelãs. Achei que estava sorrindo, havia um ar de compreensão no seu olhar, imaginei que eu devia ser exatamente como ela esperava. De acordo com o que me dissera a Sra Steiner, a Sra Wilson conhecia Malcolm desde menino; logo devia saber com que tipo de mulher se casaria.

       - Este é o Olsen, o jardineiro - disse a criada.

       Olsen estava um pouco afastado, segurando seu chapéu. Era um homem corpulento, macio, pesado como um touro. Tinha dedos curtos e grossos, e seus braços eram pequenos e fortes. Notei algo simples em seu rosto, algo quase infantil. Embora tivesse a aparência de um bruto, revelava doçura em seus olhos. Parecia um menino apavorado com a idéia de ser repreendido pela professora.

       - B-b-b-b-bom dia, Sra Foxworth - gaguejou ele, baixando rapidamente a cabeça.

       - Bom dia - Voltei-me para a Sra Steiner e disse:

       - Agora vou comer alguma coisa. Depois darei uma olhada na casa e nos arredores. Voltem ao seu trabalho, chamarei se precisar.

       Sentada ante aquela imensa mesa de madeira, grande o bastante para vinte pessoas, sentia-me como uma garota. A casa me fazia sentir indefesa. Quando falava um pouco mais alto, minha voz ecoava, enfatizando o vazio. Se pelo menos Malcolm estivesse comigo, sentir-me-ia uma esposa normal, nem um gigante, nem uma garotinha.

Após ter servido o café, a Sra Steiner subiu para os quartos. Não me incomodava ter que comer sozinha, havia sido sempre assim em minha casa, mas aquele era o dia seguinte ao meu casamento e, de acordo com Malcolm, o dia da minha lua-de-mel. Fiquei observando a sala de jantar. Apesar de bem iluminada, havia qualquer coisa de obscuro nela. Talvez fosse necessário trocar o papel de parede. As cortinas eram antigas, estavam desbotadas. Sabia que, com meu senso de elegância e meu dinamismo, associados a minha determinação, poderia transformar aquela casa num verdadeiro lar. Antes que eu saísse da mesa, a Sra Wilson apareceu e me perguntou se queria algo de especial para o jantar. Por um momento não soube o que dizer. Não conhecia ainda os gostos de Malcolm.

       - O que costuma servir as quartas-feiras?

       - Comemos cordeiro as quartas, mas o Sr Foxworth disse que eu devia planejar um novo programa junto a senhora.

       - Sim, mas por enquanto continue com o mesmo cardápio. Depois, com o tempo, faremos as mudanças apropriadas - disse eu.

       Ela baixou a cabeça. Notei em seus olhos o mesmo ar de compreensão. Será que previa que eu iria dizer? Relaxei, e voltando a ela acrescentei:

       - Falarei com a senhora mais tarde. Gostaria que me dissesse o que está habituada a servir, quais os pratos prediletos do Sr Foxworth e quando ele os gosta de saborear.

       Não estava tentando enganar ninguém. A Sra Wilson sabia mais sobre o meu marido do que eu.

       - Como quiser Sra Foxworth - disse ela, antes de se retirar.

       Comecei minha exploração de Foxworth Hall sentindo-me como se estivesse visitando um museu. A única diferença era que tudo naquela casa era relacionado ao homem com quem acabara de me casar; ela me falava sobre ele. Teria sido muito melhor se Malcolm estivesse comigo, mostrando-me as coisas das quais mais gostava, contando-me a história de certos móveis e quadros. Decidi começar pela biblioteca. Era uma sala imensa, comprida, escura e úmida. Três de suas quatro paredes eram cobertas por livros, talvez por isso fosse silenciosa como um túmulo. O teto devia ter uns seis metros de altura e as estantes quase o alcançava. Uma escadinha portátil, de ferro fundido, deslizava sobre um trilho e alcançava o segundo nível das estantes, onde havia um balcão. Desse balcão podia-se alcançar os livros que estavam

no topo. Nunca havia visto tantos livros juntos. Sendo uma leitora ávida, aquilo me agradou bastante; entretanto, considerando que minhas responsabilidades tinham aumentado, não teria muito tempo livre para me dedicar a leitura. Uma breve procura nas estantes revelou-me obras da história, biografias, clássicos. Evidente que Malcolm não tinha o hábito de ler livros de escritores populares.

       Do lado direito da porta havia uma longa mesa de madeira atrás da qual encontrava uma grande cadeira giratória forrada de couro. Jamais havia visto algo igual.

O que mais me surpreendeu foi o número de telefones pousados sobre a mesa: seis. Por que alguém precisaria de tantos telefones? Era claro que precisava manter contato com as suas empresas, suas indústrias de roupas, falar com advogados, agentes etc., mas seis telefones? Parecia demais. À esquerda da mesa existia uma seqüência

de janelas altas e estreitas que davam para um jardim colorido e tranqüilo. Através destas janelas avistei Olsen capinando. Ele deve ter percebido que eu o observava e baixou a cabeça, começando a trabalhar mais rápido.

       Voltando a observar a biblioteca, vi uma espécie de arquivo de magno escuro, que, certamente, fora feito para parecer um móvel elegante. Em frente as prateleiras, a cerca de um metro longe delas, estavam dois sofás cor de bronze, que pela disposição, deixavam espaço suficiente para se caminhar ao longo das estantes. Perto da lareira havia poltronas, e ao longo das estantes encontravam-se inúmeros objetos de arte. Apesar da altura das janelas, era pouca a luz que se filtrava através delas. Imaginei que, pudesse colocar alguns vasos de plantas nos peitoris, tornaria o ambiente mais acolhedor. Avistei uma porta nos fundos da biblioteca. Onde pretendia Malcolm que eu trabalhasse? Seria ali, atrás daquela porta? Naturalmente curiosa, eu a abri, e encontrei uma minúscula sala. Bem no centro havia uma cadeira e uma mesa e sobre esta uma pilha de papel, canetas, tinteiros e blocos. As paredes, cujo papel bege desbotara para cinza, eram nuas. "Teria escolhido Malcolm aquele lugar frio e distante para eu trabalhar?", pensei. Senti meu corpo estremecer. A sala parecia mais um depósito e talvez fosse utilizada como tal. O lugar podia até servir para uma secretária ou um escrivão, mas não para uma esposa encarregada dos negócios da família. Não faria sentido.

       Eu, claro, tinha que levar em consideração que Malcolm decidira casar-se com certa rapidez. Tudo acontecera depressa demais, e por certo não houvera tempo para arrumar e redecorar aquela casa - que parecia ter restado para mim. Bem, o jeito era mudar as cortinas feias e escuras, enchê-la de plantas e flores, enfeitá-la com quadros coloridos, acrescentar algumas prateleiras e um tapete bem clarinho. Havia muita coisa para fazer, e isso realmente me excitava. Depois de imaginar toda aquela mudança, pude me ver trabalhando ali enquanto Malcolm lidava com seus grandes empreendimentos dentro da biblioteca. Não estaríamos longe um do outro. Talvez justamente por isso tenha escolhido aquela sala. Agradou-me pensar assim, pois fazia com que me sentisse melhor.

       Saí dali e caminhei ao longo da biblioteca pensando em qual parte da casa eu devia visitar em seguida. Na noite anterior, quando paramos em frente ao quarto de portas brancas - o quarto que Malcolm disse ser de sua mãe - minha curiosidade despertara. Ansiosa para saber, o mais rápido possível, sobre e seu passado, fui direto a ala sul da casa, para o "quarto secreto". Malcolm dissera que ninguém devia entrar ali, mas com certeza me excluía dessa proibição, pois eu era sua esposa, pensei. Parei em frente a dupla porta branca, dois passos de distância. No momento em que me dispunha a entrar, ouvi o barulho de uma porta se abrindo no corredor; era a Sra Steiner. Ela me fitou com as sobrancelhas franzidas, e seu olhar parecia apavorado e preocupado. Não gostei daquele jeito de ela me encarar. Sentia-me flagrada, como se me tivessem surpreendido roubando biscoitos. Como podia uma criada atrever-se a me olhar daquela maneira?

       - Já terminou seu trabalho? - perguntei com rispidez.

       - Ainda não, Sra Foxworth.

       - Então prossiga com o que estava fazendo - ordenei.

       Continuei olhando para ela até que se voltou, partindo em direção ao quarto de Malcolm. No caminho fez uma pausa e olhou para trás; vendo que eu ainda a observava, apressou-se e entrou no quarto rapidamente. Girei a maçaneta e abri as portas brancas do quarto que pertencera a mãe de Malcolm, fiquei paralisada. Era completamente diferente de tudo aquilo que pudera imaginar. Será que ela realmente dormira ali? No centro havia um tablado e sobre ele uma cama... Não sei como descrevê-la. Tinha a forma de um cisne, cuja cabeça era de marfim polido. Sustentada por um longo pescoço e virada de perfil, a cabeça do cisne parecia estar prestes a mergulhar para debaixo de uma de suas asas erguidas em curva. Os olhos do cisne, dois rubis, estavam semi-abertos. Suas asas, amplamente arqueadas, compunham o corpo da cama e lhe conferiam uma forma oval, que obviamente requeria lençóis e cobertores especiais. O arquiteto que a planejara teve o cuidado de desenhar as penas das extremidades das asas em forma de pequenas garras quer serviam para segurar uma delicada cortina em tons rosa, violeta e lilás. Aos pés do enorme cisne havia uma pequena cama de criança, também em forma de cisne, colocada de traves. O chão era forrado com um felpudo carpete cor de malva. A cama era coberta por uma pele branca. Havia quatro luminárias de cristal biselado ornadas de ouro e prata. Duas delas tinham apliques pretos e, entre as outras duas, encontrava-se um lindo divã forrado de veludo cor-de-rosa.

       Tenho que admitir que fiquei chocada. As paredes eram cobertas com uma opulenta seda rosa-maravilha rica em cor e intensidade, contrastando com o pálido tom malva do carpete. Aproximei-me da cama e acariciei o macio cobertor de pele. Que tipo de mulher teria sido a mãe de Malcolm: uma estrela de cinema? Como me sentiria dormindo numa cama assim? Pensei. Não pude evitar, acabei deitando sobre aquela pele branca e sentindo sua sedutora sensualidade. Era isso que Malcolm queria? Será que fora concebido ali? Talvez estivesse enganada a respeito do meu belo marido; talvez o que estivesse oculto nas sombras do seu passado fosse algo que jamais sonhei ou imaginei - a sensualidade.

       - Quem lhe deu permissão para entrar aqui?

       Foi como se uma descarga elétrica tivesse percorrido meu corpo. Malcolm estava parado na porta do quarto. Por um momento pensei que estivesse vindo na minha direção com os olhos cheios de amor, mas estava enganada. Seus olhos brilhavam de um modo estranho, pareciam estar me queimando. Esta expressão distorcia seus traços, transformando seu rosto. Um gélido arrepio correu minha espinha. Prendi minha respiração e me levantei.

       - Malcolm, não ouvi você entrando.

       - O que faz aqui?

       - Estou... Estou fazendo o que você me disse para fazer. Estouconhecendo a casa.

       - Aqui não é nossa casa. Não tem relação nenhuma com nossa casa.

       O tom de voz estava frio que parecia fluir do Pólo Norte.

       - Estava apenas tentando lhe agradar, Malcolm. Queria conhecer mais sobre você. Pensei, que sabendo sobre como era sua mãe, poderia conhecê-lo melhor.

       Tudo aquilo era estranho e confuso. Sentia-me terrivelmente constrangida e ansiosa. Era como se tivesse invadido os sonhos de um passado, não o próprio passado.

       - Minha mãe? Então você acha que sabendo sobre como era minha mãe poderá saber como eu sou? Você está enganada, Olívia. Quer que fale sobre ela? Bem, farei o que você quer.

       Deixei-me cair de volta na cama. Malcolm estava de pé na minha frente.

       - Minha mãe - disse ele com amargura - era muito bonita. Amável, cheia de vida, encantadora. Ela era meu mundo e eu era ingênuo, inocente. Até então não sabia que, desde Eva, as mulheres traem os homens. Especialmente aquelas que possuem rostos belos e corpos sedutores. Ela era falsa, Olívia. Por trás de seus sorrisos e de seu amor batia um coração de uma meretriz.

       Avançou em direção ao armário e abriu a porta.

       - Olhe todas essas roupas - disse ele, pegando um vestido claro, vaporoso, e jogando-o no chão - Sim, minha mãe era uma mulher elegante dos românticos anos noventa do século passado.

       Continuou tirando coisas de dentro do armário e jogando no chão. Vestidos de noite bordados e rendados. Leques de plumas de avestruz. Lindas anáguas.

       - Sim, Olívia, ela era a mais linda em todos os bailes. Era neles que exibia todo seu charme. - Nesse momento Malcolm entrou num quarto de vestir que era ligado ao dormitório, uma alcova de paredes douradas, repletas de espelhos. Como num transe, segurou com delicadeza uma escova e um pente de prata, prosseguindo:

- Este quarto custou uma fortuna. Meu pai satisfazia todos os seus caprichos. Ela era uma pessoa de espírito indisciplinado, uma libertina! - Exclamou, fez uma pausa e, então, disse "Corrine", como se o mero pronunciar do nome libertasse seu espírito das paredes adormecidas. Seu olhar parecia estar vendo Corrine a deslizar suavemente pelo felpudo carpete cor de malva, a cauda do vestido se arrastando pelo chão... Sim, ela devia ter sido muito bonita.

       - Do que ela morreu? - perguntei.

       Ele nunca falava sobre sua mãe durante nossos diálogos, embora eu já lhe tivesse contato muito sobre a minha, inclusive a sua morte. Achei que a perda da mãe teria sido trágica e triste para ele, que não conseguia tocar no assunto.

       - Ela não morreu por lhe faltar alguma coisa aqui - disse ele, furioso - a não ser, talvez, pelo tédio de possuir tudo que queria, o tédio que decorre de se ter todos os sentimentos saciados.

       - Você quer dizer que ela não morreu aqui? - perguntei. Ele se afastou dos espelhos e caminhou em direção a porta - Malcolm, como saberei ser sua esposa se não conhecer seu passado, não conhecer coisas que outras pessoas, mesmos estranhas, talvez conheçam?

       - Ela partiu - disse ele, de costas voltadas para mim. Depois começou a andar de um lado para outro e continuou: - Partiu com outro homem quando eu tinha apenas cinco anos.

       - Foi-se embora? - a revelação deixou-me trêmula. Malcolm deu uma volta e sentou-se a meu lado.

       - Ela fez o que queria, na hora que queria, do jeito que queria. Nada importava quando o prazer estava em jogo. Por Deus, Olívia! Você conhece esse tipo de mulheres - gemeu ele, colocando as mãos sobre meus ombros - são exatamente o seu oposto: frívolas, narcisistas, levianas. Flertam com qualquer um. Não são leais.

Não se pode confiar nada a ela.

       Fiquei envergonhada com o que estava me contando. De repente, uma expressão nova tomou conta de seu rosto. Tinha o ar de quem tinha acabado de se convencer de alguma coisa. Quando me fitou pela segunda vez, havia uma expressão diferente em sua face. Tentei afastar-me, mas ele me segurou com ainda mais firmeza. Não podia livrar-me. Malcolm tinha o olhar de uma pessoa em transe hipnótico. Um momento depois sorriu, mas foi um sorriso insano. Senti seus dedos relaxarem, mas, em vez de os afastar de mim, fê-los deslizar sobre meus seios, depois os apertou com violência.

       - Sim, ela me deixou - queixou-se num murmúrio - deixou-me com as lembranças de seu toque, de seus beijos, da doce essência de seu corpo.

       Malcolm respirou fundo e fechou os olhos. Os dedos, como se dotados de vida própria, moviam-se furiosamente, manipulando os botões de minha blusa. Com os lábios em meu pescoço, murmurava: - deixou-me para sempre neste quarto, para vê-la, senti-la...

       E então arrancou minha blusa. Eu estava apavorada demais para falar. Mal conseguia respirar.

       - Seu nome ecoa por esta mansão: Corrine, Corrine - soluçou.

       As mãos deslizavam pelo meu corpo. Minhas roupas eram arrancadas uma a uma. Seus dedos eram como pequenas, loucas criaturas, metiam-se por dentro e sobre minha calcinha, que acabou arrancando também.

       - Corrine - continuava ele - eu a odiava, eu a amava. Você queria saber. Queria saber mais. Minha mãe.

       Ele se afastou um pouco e baixou suas calças. Aturdida, observei-o vindo para mim, não como um marido apaixonado, mas como um louco perdido em suas próprias emoções; levado não pela afeição e desejo, mas pelo ódio de uma paixão. Ergui meus braços numa defesa, mas ele os afastou, pressionando-os contra a cama.

       - Minha mãe. Você não é como ela, nunca será como ela. Você nunca abandonará a criança que faremos juntos, abandonará, Olívia? Abandonará?

       Balancei a cabeça e senti que ele fazia pressão afastando minhas pernas, dominando-me, invadindo-me. Queria amá-lo, torná-lo feliz, mas não daquele jeito...

Ao ver a sua face transtornada e seus olhos flamejando de raiva, tudo o que o que pude fazer foi fechar-me em mim mesma, procurando alhear-me.

       - Por favor, Malcolm, assim não - sussurrei - Não serei como ela. Por favor. Não como ela. Amarei você, amarei nossos filhos.

       Pouco adiantava falar, ele não ouvia. Estava perdido em sua fúria e obsessão. Caiu por cima de mim e veio avançando. Eu quis gritar, mas tive medo da sua reação, e não queria ser ouvida por um dos criados. Contive o pranto, mordendo os lábios. Finalmente, despejou sua cólera dentro de mim, tão quente que pensei que fosse me queimar. Agora, saciado, imobilizou-se, grunhiu e deixou sua cabeça cair no meu peito. Seu corpo ainda teve um tremor, em seguida relaxou. Houve um ultimo apelo: "Corrine". Depois ele se afastou, vestiu-se rapidamente e deixou o quarto. Agora eu sabia o que havia nas sombras da alma de Malcolm; o que o perseguia e assombrava. Agora sabia porque tinha me escolhido. Eu era o oposto de sua mãe. Ela era o cisne, eu o patinho feio. E era assim que Malcolm me queria. O amor que sonhara jamais faria parte da minha vida. O amor de Malcolm já fora destruído pela mulher que assombrava aquele quarto. Não havia mais nada para mim.

      

FANTASMAS DO PASSADO

       NAQUELA NOITE, SOZINHA NA CAMA, tive um acesso de choro; ainda que imaginasse saber o que atormentava Malcolm, as coisas ficavam cada vez mais confusas em minha mente. Sua mãe o deixara quando tinha apenas cinco anos. Ela não havia morrido, ao contrário, estava mais viva do que nunca dentro da cabeça de Malcolm. As sombras da noite zombavam de mim. Então, você queria saber, não é? - sussurravam elas - pois agora já sabe. Sim, só agora eu começava a conhecer Malcolm de verdade.

Ele me queria pela minha fibra, não por minha ternura. Desejava uma mulher sólida, íntegra, não uma que fosse encantadora e misteriosa. Aos seus olhos eu jamais seria uma eletrizante flor de primavera; seria apenas a flor de caule mais longo, a mais alta do jardim, um lírio vigoroso capaz de sobreviver ao frio e ao granizo, uma flor robusta capaz de desafiar até o mais gelado dos ventos de inverno. Era exatamente isso que Malcolm esperava de mim. Consolei-me e acabei mergulhando num sono pesado.

       Acordei cedo na manhã seguinte, vesti a minha roupa e fui a sala de jantar, onde tomaria o café da manhã. Enquanto descia as escadas, senti meu coração agitar-se dentro do peito; o pulsar era tão forte que, para continuar descendo, tive que para, apoiar-me no corrimão, fechar os olhos e respirar fundo. Como se nada houvesse acontecido entre nós, Malcolm estava sentado a cabeceira da mesa, a tomar tranqüilamente o café.

       - Bom dia, Olívia. Seu desjejum já esta preparado. Sente-se - disse ele friamente.

       Todos os meus temores estavam materializados. A outra cabeceira estava preparada a minha espera. Ao me sentar, tentei fixar-me nos olhos dele, tentei ler seus sentimentos, mas não penetrar sua máscara de frieza. A única explicação que podia encontrar para o que estava acontecendo era que ele tivesse perdido o controle sobre si mesmo no quarto de sua mãe e, assim como eu, estava tentando fazer com aqueles fatos fossem esquecidos, tornassem-se parte do passado. A esperança que me restava era que o nosso futuro pudesse ser construído daí para frente; um futuro onde não haveria lugar para as atitudes levianas que tanto feriram Malcolm e que haviam me surpreendido. Apertei os lábios e me acomodei na cadeira.

       - Olívia - começou ele em um tom delicado - creio que é hora de comemorarmos nosso casamento. Daremos uma festa amanhã a noite. A Sra Steiner providenciara tudo e eu convidarei as pessoas mais ilustres da sociedade. Quero vê-la orgulhosa, minha esposa. Espero que sua presença seja uma lisonja a minha imagem.

       Senti-me emocionada. Estava claro que ele também tinha decidido passar uma esponja no que acontecera na noite anterior e, com a festa, recomeçar nosso casamento.

       - Que bom, posso ajudar em alguma coisa, Malcolm?

       - Não será necessário, Olívia, a Sra Steiner cuidará de tudo. Minha família sempre foi conhecida por suas recepções aristocráticas e extravagantes. Como sabe, tenho grandes planos, e você, obviamente, é parte deles. Em breve serei o homem mais rico da região, no futuro o mais rico do estado e, quem sabe, um dia o mais rico dos Estados Unidos. Minhas festas devem refletir meu status na sociedade.

       Quase não pude comer. Queria causar aos amigos e conhecidos de Malcolm a melhor impressão possível. Que roupa deveria usar? Essa pergunta não saia da minha mente. Nenhum dos meus vestidos parecia bonito o suficiente para aquela noite. Enquanto a Sra Steiner servia o café, avaliava meu guarda-roupa - os vestidos cinzentos, os decotes até o pescoço, as blusas do dia a dia. No momento em que meu prato foi retirado, corri de volta para o quarto, direto para o armário, que fora arrumado pela criada. Acabei optando pelo vestido azul que tinha usado quando conheci Malcolm; se o havia impressionado pensei, impressionaria também seus amigos. O que me deixava satisfeita era saber que aquele vestido refletia exatamente o que Malcolm esperava de uma esposa - dignidade, altivez, educação e, acima de tudo, uma companheira

a sua altura.

       Naquela tarde a casa mostrava-se animada. Todos estavam ocupados com os preparativos. Uma vez que Malcolm deixara bem claro que a minha ajuda era desnecessária, senti que não devia me envolver com nada relacionado a recepção. Aliás, sendo a festa em minha homenagem, achei muito delicado da parte de Malcolm insistir que eu tirasse o dia para mim. Não sabia se devia ou não continuar explorando a casa, pois tinha medo do que ainda poderia encontrar entre as sombras daquela mansão. Contudo,

não queria saber apenas parte da verdade sobre o passado, queria conhecê-la inteira. Decidi continuar. Estava mais determinada do que nunca a saber tudo sobre as pessoas que ali tinham vivido.

       Contei quatorze quartos enquanto percorria o corredor da ala norte. Malcolm havia me dito que aqueles quartos haviam pertencido a seu pai. A ala norte, com seus corredores, aposentos e halls, era bem mais escura e fria que o resto da casa. Finalmente encontrei uma porta entreaberta e, verificando se realmente ninguém me espreitava, empurrei-a e abri. Era um quarto amplo, embora estivesse muito cheio de móveis. Distante da vida da mansão, parecia um refúgio, um lugar próprio para esconder pessoas. Tinha um banheiro anexo, o que o diferenciava dos demais aposentos, com exceção daquele que pertencia ao pai de Malcolm. Podia imaginar meu belo marido condenando um de seus primos indesejáveis a hospedar-se naquele dormitório. Havia ali duas camas de casal; uma cômoda grande; um amplo toucador; duas poltronas estofadas; uma mesa de mogno caju com quatro cadeiras; uma mesinha, sobre a qual havia um abajur; e uma penteadeira que ficava entre duas janelas cobertas por cortinas de tapeçaria. Para minha surpresa, sob todos aqueles móveis escuros e pesados, encontrava-se um vistoso tapete oriental de cores claras e franja dourada.

       "Seria este quarto realmente usado como uma espécie de esconderijo?", pensei. Talvez fosse o lugar onde Corrine se refugiava. De qualquer modo, parecia intrigante.

Continuando com a exploração, descobri nos fundos do banheiro, uma pequena porta; e ao abri-la provoquei a ruptura de inúmeras teias de aranha que deviam estar ali há muito tempo. Depois que a poeira assentou, pude ver que a porta dava para uma escadinha subindo em direção ao sótão. Hesitei. Sótãos como aquele não tinham apenas história, tinham mistérios. Não era como faces em um retrato fáceis de se decifrar; na verdade, ninguém se incomodava muito com aqueles rostos, e um dia Malcolm responderia as perguntas que eles me despertassem. Especialmente aquele, escondido atrás de uma porta nos fundos de um banheiro. Ali talvez existissem terríveis segredos de família. No fundo, estava em dúvida se queria ou não continuar avançando. Tentei, por alguns segundos, ouvir os ruídos da casa, mas dali era impossível ouvir qualquer coisa que estivesse acontecendo lá em baixo. No momento em que subi o primeiro degrau da escadinha, rompendo as muralhas de teias que uma aranha sentinela teria construído, senti que era tarde demais para voltar trás.

       Jamais havia visto ou imaginado um sótão tão vasto como aquele. Através de uma nuvem de poeira que dançava na luminosidade vinda de quatro pequeninas janelas que começavam no chão, vislumbrei imensas paredes embaçadas que, pareciam fora de foco. O ar era viscoso e sombrio; sentia-se o cheiro de bolor, de coisas que não haviam sido tocadas por anos a fio, coisas que já deviam estar em estado de decomposição. A cada passo as tábuas estalavam. Temendo que partissem sob a pressão do meu peso, eu os espaçava, dando um de cada vez. Ouvi alguma coisa se movendo a minha direita e, ao me voltar, avistei um pequeno camundongo. Aquele sótão devia ser o paraíso deles. Olhando a minha volta, constatei que haviam móveis suficientes para mobiliar várias casas. As mesas e cadeiras, descobertas, pareciam iradas e traídas.

Quase podia ouvi-las perguntar: "Por que nos abandonaram aqui? Certamente existe algum lugar para nós lá em baixo; e se não há lugar para nós nesta casa, com certeza em outra haverá!" Por que razão Malcolm e seu pai guardavam esses móveis? Teriam decidido algum destino para eles? Estariam esperando que se tornassem antiguidades?

       Os objetos mais valiosos estavam cobertos por lençóis amarelos e cinzentos devido ao tempo de poeira. As formas por baixo desses lençóis lembravam duendes adormecidos. Tive medo de tocá-las, poderiam despertar e voar para o teto. Cheguei a pensar que ouvia vozes de fantasmas atrás de mim, mas quando me virei para olhar em volta não havia nada - nenhum som, nenhum movimento. Bem que eu desejava ouvir alguma coisa, talvez a voz do passado de Malcolm me revelasse seus segredo. Aquele sótão era o santuário dos mistérios dos Foxworth. Foi minha certeza disso que me levou em frente, em direção de uma fileira de baús de couro com acabamento em bronze.

Estavam dispostos ao longo de uma parede, e alguns ainda exibiam selos e etiquetas de viagens a lugares distantes. Talvez um ou dois desses baús tivessem sido usados para transportar vestidos e os ternos dos pais de Malcolm quando saíram em lua de mel.

       Contra as paredes mais distantes viam-se armários gigantescos enfileirados em silêncio, como sentinelas. Dentro de uma de suas gavetas, encontrei dois uniformes, um dos confederados e outro dos unionistas. Devido a posição geográfica daquela parte da Virgínia, era compreensível que duas pessoas da mesma família tivessem seguido caminhos opostos e, inclusive, tivessem lutado por ideais contrários. Uma vez que se dividiam em sulistas enortista, podia imaginar os Foxworths, teimosos e determinados como Malcolm, blasfemando uns contra os outros. Naturalmente aqueles que compreendiam o valor da industrialização e do comércio acreditavam na causa do Norte; Malcolm teria sido um deles.

       Pondo os uniformes de lado, encontrei algumas roupas antigas parecidas com aquelas que minha mãe costumava usar. Havia um tecido cheio de babados; suas fantásticas anáguas, sobre uma armação de arame, eram enfeitadas com preguinhas, rendas, bordados e delicadas fitas de cetim e veludo. Como podia algo tão rico e bonito permanecer escondido? Repus as roupas onde as encontrara e fui examinar alguns livros que estavam empilhados no chão. As páginas eram amareladas, e algumas se desmanchavam ao simples toque de meus dedos. Ao lado desses livros havia mais roupas, de muitos modelos e tamanhos, também gaiolas de pássaros. Que maravilha! Pensei. Poderia levar estas gaiolas para baixo e encher Foxworth Hall com o canto dos pássaros, o que faria da mansão um lugar alegre. Tirei-as de onde estavam e limpei uma por uma. Quando as levava para a escada, fui surpreendida por um quadro que estava sobre um armário. Vi logo que se tratava de um retrato a óleo de uma linda mulher de dezoito ou dezenove anos. Um tímido e enigmático sorriso bailava em seus lábios. Era uma mulher maravilhosa. Um corpete de pregas lhe delineava o corpo, deixando seu colo nu. No decote, os seios se insinuavam, sugestivos. Fiquei hipnotizada com seu sorriso, um sorriso que parecia prometer mais e mais, ali, diante de meus olhos. Súbito, ocorreu-me saber quem era aquela mulher: a mãe de Malcolm. Aquela era Corrine Foxworth. Tinha os olhos e a boca bem semelhantes ao do filho. Teria Malcolm trazido o retrato para o sótão com o propósito de escondê-lo junto com o seu passado? O que mais chamava a atenção no retrato era sua singularidade: emanava dele um brilho que o diferenciava de tudo mais naquele lugar. Todos os objetos se encontrava ali, e que eu havia tocado, estavam cobertos por uma espessa camada de poeira e ficavam marcados ao meu toque. Aquele retrato não; era limpo, claro, recém espanado, reluzente como o quarto de Corrine. Tudo o que se referia a ela

estava sendo mantido limpo e cuidado com carinho e esmero. Quem estaria preservando a memória de Corrine com tanto amor? Não poderia ser o pai de Malcolm, pois estava na Europa. Talvez os empregados? Ou... Seria o próprio Malcolm?

       O que mais ali, havia pertencido a sua mãe? Pensei. Tais lembranças certamente o atormentavam. Era possível que as tivessem guardado no sótão para ficarem longe dele, afastando assim, suas memórias de infância. Distante, as lembranças não teriam sobre ele o mesmo efeito da cama de cisne - que o levava de volta ao passado.

Eu viera ali esperando encontrar respostas, mas encontrara apenas mais mistérios. Peguei o quadro com todo o cuidado, coloquei no chão e me afastei em direção a escada. De repente percebi que havia, naquele sótão, um segundo cômodo. Parecia uma sala de aula; havia cinco carteiras escolares enfileiradas frente a uma mesa grande, e sobre prateleiras cobertas de livros antigos e empoeirados quadros negros cobriam três das quatro paredes da sala. Fui até a mesa e observei alguns nomes e datas gravadas na madeira: Jonathan, quatorze anos, 1864, e Adelaide, nove anos, 1879. Nos cantos, dois aquecedores a lenha. Aquele lugar não era simplesmente uma sala de jogos, era uma verdadeira sala de aula e poderia, facilmente, ser reestruturada. Seria parte das tradições dos Foxworth educar suas crianças naquela sala? Ricas, especiais e dotadas de um tutor, as crianças Foxworth eram educadas no sótão de Foxworth Hall, longe o bastante dos adultos e das distrações que pudessem atrapalhar o aprendizado.

       Ao notar um cavalo de balanço, conclui que poderiam até brincar naquele local nos dias chuvosos. Quanto tempo da sua infância Malcolm teria passado naquela sala? Aproximei-me de uma das águas-furtadas para admirar a vista, mas tudo que podia ver dali era o telhado de ardósia escura que impedia observar o chão lá em baixo. Apenas as copa das árvores e as montanhas distantes e azuladas podiam ser vistas, o que, afinal, não devia despertar o interesse das crianças. Olhando de novo o imenso sótão, pensei comigo mesma que, de certa forma, as crianças ficavam presas. Arrepiei-me toda ao lembrar o dia que minha mãe me trancou no gabinete.

Fizera-o porque eu havia deixado pegadas de lama por todo o tapete do quarto. Embora mamãe não tivesse trancado a porta, proibira-me de abri-la; ameaçara que, se eu o fizesse, seria presa por mais tempo. Assim, por mais assustada que estivesse encerrada naquele lugar pequeno e escuro, mantive meus dedos longe da porta. A memória me fez reviver esses momentos com grande intensidade. Agora era como se em meus dedos houvesse algo viscoso como melado. Não podia me liberar daquela sensação enquanto estivesse ali. Ansiosa por me afastar, descobri que a sala tinha outra saída, além daquela escadinha que eu tinha subido. Avancei para a recém descoberta porta e reparando que estava bem mais limpa que a outra, deixei para trás aquela sala escura e empoeirada. Seus mistérios e segredos continuavam intactos. Não fizera mais que arranhar a superfície da verdadeira face dos Foxworth. E lá estava eu, agora um deles.

       Naquela noite, quando Malcolm me perguntou como havia passado o meu dia, não ousei contar a ele sobre o retrato de sua mãe, embora tenha dito que havia estado num aposento dos fundos da ala norte.

       - Alguns primos nossos - disse ele - verdadeiros tormentos para os Foxworth, eram enclausurados ali por um tempo.

       - É o tipo de lugar adequado para quem quer esconder-se do mundo - disse eu.

       Malcolm grunhiu, conclui que não estava disposto a falar mais sobre os primos ou por que razões eram trancados naquele quarto. Quando lhe disse ter perambulado pelo sótão e encontrado as gaiolas, as quais desejava trazer para dentro de casa, ele se mostrou claramente aborrecido.

       - Minha mãe distribuía essas gaiolas por toda a parte - revelou ele - Às vezes esta casa parecia um aviário. Deixe-as onde estão. Pense em coisas mais brilhantes quando redecorar a casa.

       Não desejando discutir qualquer assunto que dissesse respeito a mãe dele, concordei. Falamos um pouco sobre Charlottesville; ele descreveu seus escritórios e explicou por que andava tão ocupado. Atribuía a culpa da sua falta de tempo as práticas desmazeladas e decisões errôneas que seu pai tomara antes de partir em sua viagem de aposentadoria. A seguir, seu rosto iluminou-se.

       - Fiz um excelente lance na Bolsa. Comprei mil ações a vinte e quatro e hoje a tarde elas fecharam em cinqüenta. Você conhece alguma coisa sobre a Bolsa, Olívia?

       - Não - respondi - Naturalmente costumava acompanhar o curso dos investimentos de meu pai, mas não sabia aconselhá-lo sobre onde aplicar os fundos.

       - É exatamente por isso que acho que você deve reavaliar o que irá fazer com sua fortuna. Nas minhas mãos, ela poderá aumentar muito, pode crescer como as fortunas devem crescer.

       - Poderíamos discutir o assunto hoje à noite, Malcolm? São muitas as coisas com as quais preciso me habituar.

       Os olhos de Malcolm ficaram distantes. Ele encheu um copo de água e sorveu em um só gole.

       - Claro, querida. Aliás, agora preciso sair, alguns negócios estão esperando por mim. Não devo voltar muito tarde, mas supondo que, quando chegar, você já esteja dormindo - disse ele. E, para melhor esclarecer, acrescentou: - Não espere por mim, Olívia.

 

MINHA FESTA DE CASAMENTO

       OS CONVIDADOS DA RECEPÇÃO COMEÇARAM A CHEGAR pouco depois da uma da tarde, pois era elegante chegar atrasado nas festas. Sozinha, com apenas alguns segundos para contemplar-me, parei em frente ao espelho e estudei minha imagem. Meus cabelos estavam presos, como de costume. A saia do vestido era ampla, cheia, e o corpete

era apertado salientando bem os meus seios e marcava bem minha cintura. Os espelhos estavam pendurados num ângulo que, se eu quisesse ver todo o meu corpo, da cabeça aos pés, era preciso ficar a alguns passos deles. Por um momento, vendo o reflexo da minha imagem, senti que estava enorme naquele vestido. Haveria alguma coisa, algum artifício que me fizesse parecer delicada e singela? Poderia soltar os cabelos, mas era muito inibida para fazer isso, iria me sentir como se estivesse nua.

Imaginei o quanto seria desagradável se aquele vestido, que um dia atraíra Malcolm, não fosse chique o bastante para a ocasião. Os amigos e conhecidos dele iriam ficar bem impressionados comigo? Iriam gostar de mim? Fechei os olhos e me imaginei ao lado de Malcolm, o que certamente ele devia ter feito ao me escolher para esposa. Sem dúvida ficara satisfeito com a imagem que formou em sua mente, pois casou-se comigo e ia me apresentar a sociedade da qual era parte. Tentei me convencer de que devia ser mais segura, mas não consegui fazer com que o pequeno pássaro que habitava dentro de mim deixasse de bater suas assas ansiosas.

       Apertei minha mão contra o peito, respirei profundamente e comecei a descer a escadaria em direção ao hall. Fazia um belo dia ensolarado e tínhamos mais luminosidade que de costume; mesmo assim, Malcolm, que desejava ver Foxworth Hall mais alegre do que nunca, ordenou que fossem colocadas velas e lâmpadas nas cinco fileiras dos quatro candelabros de cristal decorados em ouro. A sala estava brilhante, porém, devido ao nervosismo, meu rosto queimava e me parecia estar entrando numa fogueira; minhas pernas tremiam e eu sentia meus pés colados aos degraus. Pensei que não conseguiria ir adiante, tive que parar e me apoiar no corrimão. Meus olhos tendiam a encher de lágrimas. As luzes que vinham das lâmpadas e das velas, assim como os reflexos e os pálidos raios ambarinos que emergiam do imenso candelabro de cristal.

Pareciam fios de uma gigantesca teia de aranha espalhada pelo salão.  O brilho das taças sobre as bandejas de prata refletia-se nos espelhos e nas polidas estruturas de madeira das poltronas ao longo das paredes. Consegui, finalmente, controlar-me e continuando a descer.

       - Hoje é uma ocasião festiva - ouvi Malcolm dizes aos empregados - Façam que os convidados se sintam confortáveis e relaxados. Encham e retirem os copos rapidamente.

Circulem com os salgadinhos e caviar sem parar. Quando os convidados sentirem o mais leve desejo de se servir, vocês já devem estar ao lado dele. E lembrem-se: ao

servir, sorriam, mostrem-se amáveis e estejam sempre prontos a ajudar. E não se esqueçam dos guardanapos, ouviram? Não quero ver ninguém procurando com o que secar

as mãos.

       Ao ver que eu vinha descendo, ele se aproximou de mim.

       - Olívia, aí esta você! - exclamou. Notei um leve ar de decepção no seu rosto - Venha comigo, vamos receber nossos convidados na entrada, à medida que Lucas os vá anunciando.

       Dei o braço a Malcolm. Estava nervosa e tensa, mas tentava disfarçar esses sentimentos com toda a minha força. Ele estava lindo, frio e calmo como sempre.

Tive esperança de que, a seu lado, pudesse mostrar-se tão bem quanto ele. O sino soou. Os primeiros convidados chegavam. "Sr e Sra Petterson", anunciou Lucas. O senhor Petterson era um homem baixo, de bochechas rosadas. Sua esposa ao contrário, era uma mulher elegante e erguia, usava um vestido que mal cobria seus joelhos; uma faixa larga bordada com jóias prendia-lhe os cabelos, que caiam em cachos sobre os ombros. Eu não sabia que pessoas usavam realmente poupas como aquela; até então, só as tinha visto e revistas de moda.

       Quebrando o clima de tensão, o Sr Petterson segurou minha mão e disse:

       - Bem-vinda a Virgínia, Olívia. Espero que Malcolm esteja lhe proporcionando todos os prazeres da hospitalidade Virginiana.

       Sua esposa finalmente tirou os olhos de cima de Malcolm, olhou rapidamente para mim e acrescentou:

       - De fato.

       Os convidados foram chegando uns após os outros. E em pouco tempo a casa estava cheia. Os homens vieram corretamente vestidos e mostravam-se agradáveis. As mulheres é que me chocavam. Todas usavam elegantes vestidos apertados na cintura ou nos quadris, depois alargavam como balões e finalmente se afunilavam na altura dos joelhos. Vestindo cores que variavam entre o branco e tons pastéis, lembravam meninas moças, não mulheres adultas. Seus inúmeros enfeites, que variavam de flores de seda ou veludo a pesados laços de contas de colar, apenas enfatizavam sua baixa estatura, assim contribuindo para a aparência infantil. Ao lado delas, eu era um verdadeiro gigante, como Guliver em Lilliput, a terra das pessoas pequenas. Os meus gestos e movimentos pareciam exagerados. Não havia uma única mulher da minha altura; para cumprimentá-las precisava me curvar. Mesmo os homens, em sua maioria eram mais baixos do que eu.  Pode-se dizer que a multidão de convidados estavam extraordinariamente satisfeita e alegre. As inibições desapareceram entre as taças de ponche e canapés variados. O som dos risos e das conversas crescia a cada instante, e quando Malcolm decidiu que era hora de circularmos entre os convidados o burburinho estava ensurdecedor. Jamais comparecera a uma festa que reunisse tantas pessoas joviais e divertidas.

       Minha primeira reação foi sentir-me alegre diante de tudo aquilo; parecia que a festa era o começo de uma vida maravilhosa; entretanto, quando eu me pus a circular entre as pessoas, meus exuberantes sentimentos desapareceram. Entre mim e os convidados gerou-se um clima de esnobismo e estranheza. Reunidas em pequenos grupos, as mulheres fumavam cigarros espetados em longas piteiras de marfim. Pareciam sofisticadas e experientes, porém, sempre que eu me juntava a um dos grupos, elas paravam de falar e me olhavam como se eu fosse uma intrusa. Faziam que eu me sentisse uma estranha em minha própria festa.

       Perguntavam-me se estava gostando de viver na Virgínia e, particularmente, em Foxworth Hall. Eu tentava responder de um modo inteligente, mas a maioria parecia ficar impaciente com as minhas respostas, agindo como se minha opinião pouco lhe importasse ou como se realmente não estivessem esperando respostas bem adequadas.

Assim que eu parava de falar, elas começavam imediatamente a conversar sobre os modismos da estação; coisas que eu jamais ouvira e das quais não tinha a mínima idéia.

       - Você pode se imaginar dentro de uma dessas blusas tipo marinheiro? - perguntou Tâmara Livingston, cujo marido era dono do maior deposito de madeiras de Charlottesville.

       - Eu receio nunca ter visto uma dessas blusas - respondi.

       As mulheres que estavam em volta olharam para mim com um ar de surpresa e desdém, e depois, como se eu não estivesse ali, continuaram conversando. Ao me afastar, pude ouvi-las rindo baixinho. Como são tolas, pensei. Só conseguem falar sobre moda ou decoração. Política, negócios e literatura eram temas excluídos de suas conversas.

Gargalhando, gesticulando com as mãos e ombros, e flertando com seus longos cílios, elas me pareciam, ao longo da recepção, cada vez mais patéticas. A falta de decoro aumentava com o passar do tempo. Esperei que Malcolm ficasse furioso com o que ia acontecendo, porém, para minha surpresa, toda a vez que procurei por ele, encontrei-o no meio de um desses grupos de mulheres. Estava sempre gargalhando, permitindo que elas o apalpassem, ou que, sugestivamente, roçassem seus corpos ao dele.

       Eu estava chocada. Aqueles eram os modelos de mulher que ele desprezava - tipos insípidos, sem um pingo de respeito por si mesmas. Mas lá estava ele, precipitando-se em trazer uma taça de ponche para uma ou outra, ou colocando salgadinhos na boca de alguma em especial. Uma delas chegou a lamber-lhe a ponta dos dedos. Em um determinado

momento, Amanda Biddens, esposa de um dos sócios de Malcolm, exclamou:

       - Eu gostaria de conhecer sua biblioteca Malcolm! Quero ver onde você senta e imagina aquelas estratégias que rendem bilhões.

       Imediatamente, Malcolm a pegou pelo braço e a conduziu através das grandes portas do hall. Fiquei estarrecida. Era como se tivesse sido esbofeteada em público.

Minha face começou a arder e meus olhos encheram-se de lágrimas. Usei de todas as forças que me restavam para não os seguir e, para manter o controle sobre mim mesma, ocupei-me com a festa; dei ordens aos garçons, comi e bebi um pouco. Alguns homens, nesse meio tempo, indagaram-me sobre os negócios de meu pai. Quando eu lhes respondia com detalhes, revelavam-se entediados com a conversa. Foi a partir de então que comentários ao meu respeito começaram a chegar, vagamente, aos meus ouvidos. Aqueles que teciam tais comentários não se davam conta que eu os estava ouvindo, ou então, simplesmente, não se importavam com isso.

       Uma mulher perguntou para outra porque Malcolm, um homem tão rico e bonito, se casou com uma mulher alta e sem graça, tão rude e ianque quanto eu.

       - Conhecendo Malcolm, tenho certeza que esse casamento tem algo relacionado com negócios - respondeu a outra.

       Pela maneira como as mulheres em geral olhavam para mim, pude perceber que, assim que a festa acabasse, eu seria o assunto mais discutido. Cheguei a ouvir uma das mulheres criticando o meu vestido.

       - Parece ter saído de um museu - dizia ela.

       - Talvez seja uma estátua viva - disse a outra.

       - Você chama isso de uma coisa "viva"?

       Gargalhadas até não poder mais. Procurei por Malcolm, queria muito encontrá-lo, mas não consegui. Nesse momento, de algum lugar, surgiu o Sr Petterson. Ele segurou minha mão e disse:

       - Vamos procurar seu marido e ver se ele pode me ajudar a colocar a Sra Petterson no carro. Acho que ela bebeu um pouco demais.

       Antes que eu pudesse detê-lo, o Sr Petterson abriu a porta da biblioteca. Não poderia descrever o que senti ao ver Malcolm sentado atrás de sua mesa e Amanda sentada sobre ela. Ele tinha um sorriso tolo nos lábios, os cabelos revoltos e a gravata fora do lugar.

       - Olívia - disse ele - venha conhecer Amanda.

       Apoiando a cabeça sobre um dos ombros, Amanda olhou para trás, na minha direção.

       - Não se lembra Malc? - disse ela - já fui apresentada a sua esposa!

       Meu corpo tremia de raiva e humilhação. Eu estava a ponto de perder a compostura, porém o Sr Petterson interveio.

       - Malcolm, meu velho, preciso de sua ajuda, é a patroa de novo.

       Malcolm levantou-se de bom grado e, após um breve olhar para mim, seguiu o Sr Petterson.

       Através de uma janela, pude vê-los colocando a Sra Petterson no carro. Suas pernas estavam nuas, as ligas expostas, os pés descalços. Malcolm encontrou os sapatos dela no banco da frente e os atirou sobre o acento traseiro. Amanda, flutuando a meu lado, disse num tom azedo:

       - Seu marido sempre está por perto quando uma dama se encontra em aflição. Fico feliz em ver que o casamento não mudou isso.

       Quando a recepção começou a diminuir o ritmo, fiquei feliz. Os convidados, fora de casa, solicitavam nossa atenção para nos desejar boa sorte e se despedirem.

Malcolm, mais sério e digno, teve de voltar para o meu lado. Algumas mulheres prometiam me telefonar, mas eu sabia que jamais o fariam - o que, de fato, não me importava.

Quando o ultimo casal se foi, eu estava exausta, triste, humilhada, mas grata por tudo ter finalmente acabado. Disse a Malcolm que estava cansada e iria para meu quarto.

       - Foi uma festa esplêndida, não? - perguntou.

       - Não gostei de nenhum dos seus convidados, especialmente as mulheres, embora tenha visto que você as apreciou.

       Ele me olhou quando eu subia os primeiros degraus da escada, seu rosto tinha um ar surpreso. Sentia-me tão frustrada que sua indiferença não me afetava mais.

Malcolm não devia ter levado aquela mulher vulgar a biblioteca; não devia ter me deixado sozinha naquele ninho de cobras. Se essa era a sociedade da Virgínia, estava feliz por não fazer parte dela, pensei. Eu não consegui aceitar o jeito de andar e de se agitar de algumas mulheres. Não conseguia entender a liberdade que pareciam

gozar, a segurança que exibiam e a maneira que os homens as olhavam. Ninguém jamais olhara assim pra mim - com os olhos de desejo e admiração.

       Minha exaustão não era física, mas mental e emotiva. Ao cobrir-me com o cobertor e acomodar a cabeça no travesseiro, tive vontade de chorar. A festa que tanto desejara - a festa onde ia alcançar o respeito que tanto queria - tinha se voltado contra mim. Depois do comportamento de Malcolm em sua própria comemoração de casamento, eu teria vergonha de mostrar meu rosto em público. Apertei meu travesseiro numa espécie de amplexo e mergulhei num sono tortuoso. Demônios alados assombravam meus sonhos. Dormi apenas alguns minutos. Lágrimas corriam por meus olhos. De repente me vi em prantos; explodi em soluços e chorei até adormecer.

       Um pouco antes do raiar do dia ouvi a porta ranger, e quando abri os olhos vi Malcolm Neal Foxworth despido sob a luz do luar. Sua masculinidade apontava para mim.

       - Quero um filho.

       Estremeci e olhei-o bem nos olhos, mas fui incapaz de dizer uma palavra.

       - Olívia, você deve concentrar-se no que vamos fazer - disse ele, inclinando-se na cama - Assim teremos mais chances de ser bem sucedidos.

       Puxou o cobertor e se postou em cima de mim. Sua intensidade e determinação me assustaram. Agia, mais uma vez, sem carinho nem afeição. Virei para ele a espera de um beijo e de palavras carinhosas, mas sua face de pedra se mantinha séria, seus olhos azuis estavam, curiosamente, sem vida; era como se os tivesse desligado e estivesse vendo apenas o que se passava atrás deles. Quem estaria vendo em meu lugar? Amanda Biddens? Sua mãe, talvez? Outra pessoa? Estaria fazendo amor com a mulher de seus sonhos? Estaria ouvindo, em sua mente, palavras de amor? Não em parecia justo. Deixe-me cair sobre o travesseiro e virei o rosto. Meu corpo tremia.

Quando senti o esperma se derramando dentro de mim, fitei os seus olhos de vidro e pude senti-lo orientando o sêmen em direção ao seu destino. Em seguida, largou o peso do corpo sobre mim como um maratonista exausto. De certa forma gostei do modo como seu corpo pressionava o meu, pelo menos havia um pouco de calor.

       - Bom, bom - murmurou ele. Virou-se, colocou o robe e contemplou-se no espelho como se a própria imagem o congratulasse. Viu alguma coisa muito agradável no seu sorriso de satisfação e sorriu para mim.

       - Olívia, espero que seja tão fértil quanto imagino.

       - Não pode comandar a natureza, Malcolm. Ela não é sua criada.

       - Quero um filho - repetiu - Casei-me com você não somente porque sei que é o tipo sério, capaz de administrar uma casa grande, mas também porque é dona de um corpo saudável capaz de gerar quantas crianças eu desejar.

       Apática, incapaz de responder, fiquei a observá-lo. Seus olhos estavam frios, era um estranho para mim. Sabia que tudo que ele dissera era verdade - uma mulher devia ser boa esposa, boa administradora da casa de seu marido, sensível, fiel, alguém que o marido pudesse apoiar, e certamente, alguém que pudesse gerar e educar crianças. Mas faltava uma coisa em tudo isso - amor. Viveria naquela mansão e teria tudo que uma mulher pode querer materialmente. As pessoas moravam nas pequenas casas lá embaixo, com seus míseros salários, me olhariam com inveja toda vez que eu descesse a colina. Mas de que valia isso tudo se não havia amor? Como poderia alguma coisa crescer forte e bonita em Foxworth Hall sem se nutrir de afeição e amor? Pensei em todas aquelas sombras, nos cantos tristes e sombrios, nos corredores parcamente iluminados, nos quartos fechados, naquele sótão poeirento e escondido onde habitava o corpo morto do passado. Estremeci.

       - Malcolm, quando você me viu pela primeira vez, quando me fez a corte, sentiu alguma coisa forte, algum sentimento...

       - Por favor - disse ele bruscamente - Não fale de sentimentos. Não quero saber de sinos repicando e o mundo ficando cor-de-rosa. As cartas de minha mãe estão cheias dessas referências tolas.

       - Cartas?

       - Ela as escreveu a meu pai quando eram namorados.

       - Onde estão estas cartas?

       - Queimei-as. Voltaram a ser fumaça. Amanhã terei um dia cheio, Olívia - ele disse, querendo mudar de assunto - Tenha uma boa noite de sono.

       Retirou-se do quarto, e no seu rastro deixou o silêncio profundo e mortal como o silêncio que antecede as grandes tempestades. Não era de se estranhar que, no dia da chegada a Foxworth Hall, ele tivesse me tratado com a mesma indiferença que tratava os criados. Na sua cabeça eu fora contratada para desempenhar um papel, preencher funções especificas, tal como uma empregada doméstica. Logo, eu não podia estranhar que, quando falasse sobre ter um filhos, isso soasse como uma ordem.

 

PAIS E FILHOS

       MALCOLM CONSEGUIU O QUE QUERIA. Nosso primeiro filho nasceu nove meses e duas semanas, depois do dia em que fui apresentada à fina sociedade da Virgínia.

Demos a ele o nome de Malcolm em homenagem ao pai, mas o chamaríamos de Mal para não nos confundirmos. Nesse tempo, eu já sabia que Malcolm era um homem forte e poderoso que conseguia tudo o que desejava. Era um vencedor, nunca entrava numa batalha sem ter certeza de que as vantagens estavam ao seu lado. Era assim que dirigia seus negócios e sua vida. Eu não tinha dívidas de que, antes de morrer, ele se tornaria o homem mais rico do mundo.

       Depois que Mal nasceu, minhas esperanças de ser amada reviveram, embora por pouco tempo. Havia pensado que, com o nascimento de Mal, Malcolm se aproximaria de mim. Desde que tinha vindo para cá, estava sendo tratada mais como criada do que como uma esposa. Malcolm trabalhava todos os dias e o dia inteiro, chegava tarde, e raramente jantava comigo. Nunca íamos a algum lugar, e a "sociedade", a qual eu fora apresentada esqueceu rapidamente da minha existência. Agora que o tão esperado filho de Malcolm nascera, pensei que Malcolm fosse levar uma vida mais familiar e talvez se tornasse um marido mais amoroso. Eu via o nascimento de Mal como algo maravilhoso para nosso casamento; o bebê poderia ser a ponte entre seu pai e mim, poderia unir-nos de uma maneira que ambos ainda desconhecíamos.

       Como qualquer mãe, eu vibrava a cada gesto, cada sorriso, cada nova descoberta de meu belo e adorado filho. Todos os dias, esperava Malcolm com as novidades e os progressos do nosso bebê.

       - Não há duvida, Malcolm, ele já te reconhece!

       - Hoje ele engatinhou pela primeira vez!

       - Hoje ele disse sua primeira palavra!

       - Mal deu seu primeiro passo!

       A cada acontecimento, eu supunha, deveríamos nos abraçar e nos beijar, felizes por termos um filho sadio. Mas a reação de Malcolm era de indiferença, como se sempre já estivesse esperando por aquilo. Não reconhecia as façanhas do pequeno Mal e nunca revelava um pai feliz e entusiasmado. De certa forma, ele nem mesmo parecia ter a menor paciência com os progressos do bebe. Não tolerava o leve som de suas pequenas botas andando de um lado para o outro. Desgostou-se quando levei.

Mal a mesa de jantar e deu a ordem do bebê ser alimentado sozinho, antes de nós.

       Mal ainda não tinha dois anos, e eu estava grávida de novo - conseqüência de mais um dos encontros sem gosto e sem amor. Malcolm estava determinado a ter uma família grande: agora queria uma filha. Essa segunda gravidez foi muito difícil para mim. No inicio, todas as manhãs eu me sentia mal; mais tarde o doutor informou

que não estava satisfeito com a evolução da gravidez e seus temores tinham fundamento - durante o sétimo mês sofri um principio de aborto, e assim que entrou o oitavo, Joel Joseph nasceu, prematuramente.

       Desde o começo foi uma criança frágil, pequena e doente. Tinha os cabelos ralos e muito claros, e os enormes olhos azuis dos Foxworth. Malcolm estava aborrecido porque eu não lhe dera a filha que queria e ficou furioso por Joel não ser uma criança saudável. Eu sabia que me culpava por isso, embora sabendo que eu nada havia feito que pusesse o bebê em perigo e que seguia todas as ordens do médico quanto à alimentação.

       - Os Foxworth são conhecidos por todos por serem saudáveis e fortes. Assuma o objetivo e responsabilidade de transformar esse seu bebê no que espero que todos os meus filhos sejam: fortes, agressivos, autoconfiantes, másculos em todos os sentidos - disse Malcolm certa vez.

       Um dia, quando o médico da família Foxworth, Dr Braxten, me viera ver, Malcolm subiu até o meu quarto. Após o exame o médico opinou que provavelmente eu não poderia mais ter filhos.

       - É impossível - exclamou Malcolm - Eu ainda não tenho uma filha!

       - Seja razoável Malcolm - disse o Dr Braxten tentando acalmá-lo.

       Malcolm parecia não se importar absolutamente com a minha saúde. Nem eu nem o médico pudemos prever aquela reação. Seu rosto ficou vermelho e ele mordia os lábios como se fizesse um esforço para manter-se calado. Depois, afastou-se um pouco e, olhando para mim e o médico disse:

       - O que é isso, algo que os dois tramaram contra mim?

       - Perdoe-me, senhor - murmurou o Dr Braxten, que era um homem de quase sessenta anos e um médico muito respeitado. Sua face empalideceu e seus olhos de peixe, ampliados sob as lentes dos óculos, se arregalaram.

       - O senhor está querendo dizer que jamais terei outro filho? Que jamais terei minha filha?

       - Bem, sim... eu...

       - Como ousa dizer isso? Como se atreve a supor tal absurdo?

       - Não é uma suposição, Malcolm, a última gravidez de sua esposa foi muito difícil e...

       - Não quero ouvir mais nada sobre isso - gritou ele, voltando-se para mim com a face ardendo de ódio. - Não quero ouvir mais nada sobre isso, entendeu?

       Malcolm deu algumas voltas em torno de si mesmo, como se fosse uma marionete presa aos seus fios, e visivelmente atormentado, deixou o quarto. O Dr Braxten mostrava-se embaraçado, por isso não prolonguei sua visita. Era claro que estava ressentida com a atitude de Malcolm; contudo, aquela altura eu já havia endurecido o bastante para não me deixar abater por suas tiradas.

       Ele não voltou jamais ao assunto, e eu também não falei mais naquilo. O fato de não poder mais gerar filhos não me aborreceu, pois Malcolm parecia indiferente aos que já tinha. Ignorava Mal, dir-se-ia que culpava Joel por não ter sido uma menina, a filha que tanto alardeava desejar. Sua intolerância ao choro de Joel era maior do que fora ao de Mal, e ele passava dias sem falar e mesmo sem ver os filhos. Se com Mal havia sido intolerante, com o caçula era um ogro. Ai de Joel se se enrolasse em suas fraldas ou cuspisse a comida na presença de Malcolm. Às vezes eu pensava que tinha vergonha da sua pequena família, como se o fato de ter apenas duas crianças fosse uma mancha a sua virilidade.

       Somente quando Mal já estava com quase três anos, saímos os quatro juntos. Fomos visitar as fábricas. Durante a visita Malcolm apontava para tudo e falava com o pequeno Mal como se fosse um adulto.

       - Tudo isso será seu um dia, Mal - disse ele, como se Joel sumisse tão logo Malcolm estivesse morto ou como se, de fato, o caçula não tivesse importância alguma. - Espero que você aumente ainda mais, expandindo o império Foxworth.

       Voltamos para Foxworth Hall num dia claro de primavera. As folhas começavam a despontar, saudando a luz do sol de abril. Meus meninos apontavam para os pássaros que bicavam minhocas na terra e saltavam, pulando de um lado para outro como se fossem festivos carneirinhos. Assim que entrei em Foxworth Hall, a Sra Steiner veio ao meu encontro.

       - Sra Foxworth, alegro-me por ter voltado. Hoje de manhã chegou um telegrama de Connecticut para a senhora. Tenho certeza de que deve ser algo importante.

       Meu coração disparou. Do que se trataria? Abri o envelope, a Sra Steiner encostada no meu ombro.

 

OLÍVIA FOXWORTH PONTO

COM SINCERO PESAR E RESPEITO LAMENTO INFORMAR QUE SEU PAI FOI LEVADO POR DEUS PONTO

O FUNERAL SERÁ EM SETE DE ABRIL PONTO

 

       Apertei o telegrama contra o peito, agora latejando de dor. Estávamos no dia 6! O pequeno Mal puxava a minha saia.

       - Mamãe, o que foi? Por que esta chorando?

       Malcolm tirou o telegrama amassado de minhas mãos e o leu.

       - Malcolm, devo partir imediatamente. Vou tomar o próximo trem!

       - O que? - fez ele, ríspido - E onde pretende por os garotos?

       - Ficarão com você. A Sra Steiner está aqui para ajudá-lo, e também a Sra Stuart.

       - De qualquer forma, a responsabilidade será minha. O dever de uma mulher, Olívia, é cuidar primeiro dos seus filhos.

       - Mas trata-se de meu pai Malcolm, de meu pai! Tenho que comparecer ao enterro.

       Discutimos a questão até se tornar tarde demais. Quando Malcolm finalmente concordou com a minha ida, o trem noturno já havia partido, e o da manhã, no qual pude embarcar, só chegou a New London, cinco horas depois do enterro. Segui para casa e encontrei John Amos e o advogado de papai sentados na sala. Meus olhos estavam vermelhos e inchados. Havia chorado durante toda a viagem. Chorando lágrimas de tristeza por meu pai e, eu bem sabia, por mim também. Agora estava mais sozinha do que nunca. Ambos levantaram-se ao me ver. John Amos veio na minha direção e pós minhas mãos entre as suas. Havia se transformado em um homem desde a ultima vez que o tinha visto. Um homem de vinte e três anos de idade, alto, sério e educado. Recomecei a chorar e ele me disse:

       - Fico feliz em revê-la. Estranhei sua ausência no enterro, tenho certeza que aprovaria. Tentei fazer com que seu pai fosse recebido no céu da melhor maneira possível. Agora, sente-se Olívia. Você certamente se lembra do Sr Teller, advogado de seu pai. Parece que seu pai acrescentou algumas clausulas ao seu testamento, e agora vamos conhecê-las.

       O Sr Telles apertou minha mão e me olhou com simpatia. Sentamo-nos para conversar na sala, que estava escura e sombria. À medida que os detalhes eram explicados, minha mente ia ficando entorpecida. Papai deixara tudo para mim, com a condição que somente eu lidasse com o dinheiro. Agora eu sabia porque fizera isso. Ele se garantiu que Malcolm Foxworth jamais poria as mãos na minha fortuna. Como é que papai descobrira a verdade muito antes de mim? E por que me permitira casar com aquele homem? As lágrimas voltaram a rolar pelo meu rosto.

       John Amos despediu o Sr Telles, afirmando que tomaríamos nossas decisões e informaríamos antes que eu voltasse a Virgínia. John Amos foi muito bom para mim!

Durante os dois dias em que estive em New London, abri meu coração para ele. Quando parti, ninguém no mundo sabia mais sobre mim do que John Amos. Com seu amor por Deus e pela família, John Amos era uma pessoa em que se podia confiar. Isso foi o que aprendi com o passar dos anos, e sempre que as coisas iam mal eu me voltava para ele, escrevendo-lhe longas cartas as quais ele respondia com palavras de conforto - dele e de Deus, pois havia começado seu curso de teologia no seminário de New England. Ele era minha única família e era também sensato e carinhoso - o que o tornava completamente diferente de Malcolm. Apesar de ter perdido meu pai, retornei

a Virgínia me sentindo forte, pois havia ganho um irmão e um conselheiro espiritual.

       - Agora Olívia - disse John Amos na hora de meu embarque - retorne a seu marido e seus filhos, e Deus esteja convosco. Estarei aqui sempre que precisar de mim.

       Malcolm não demonstrou tristeza com a morte de meu pai. No mesmo dia em que voltei, ele voltou a falar sobre a minha fortuna.

       - Bem, Olívia, agora que é uma mulher rica, como pretende administrar sua fortuna?

       Respondi que ainda não tinha planos, mal acabara de enterrar meu pai e por enquanto não estava interessada em tratar de dinheiro.

       Semanas se passaram e quase não falamos, exceto pelas freqüentes perguntas de Malcolm sobre meus planos quanto à aplicação do dinheiro herdado. Num daqueles dias Malcolm apareceu no quarto das crianças para me dar a noticia que mudaria completamente nossas vidas. Era tão raro vê-lo ali que o recebi com carinho; pensei que tivesse vindo por causa do sincero interesse que nutria por seus filhos. Eu estava ensinando o á-bê-cê a Mal, usando blocos. Joel, no seu cercado, sacudia seus brinquedos. O quarto estava desarrumado devido as brincadeiras das crianças; de fato, crianças daquela idade sempre espalham tudo pelo chão e anarquizam qualquer ambiente. No fim do dia eu costumava limpar e arrumar o quarto.

       - Isto é um quarto de crianças ou um chiqueiro? - debochou Malcolm.

       - Se viesse aqui mais vezes, compreenderia essa bagunça - respondi.

       Ele grunhiu, senti que não estava ali para falar sobre as crianças.

       - Tenho algo para lhe contar - disse ele - se é que você pode afastar-se desses blocos por um momento.

       Levantei-me, alisei o vestido e me aproximei de Malcolm.

       - O que há?

       - Meu pai... Garland está voltando. Chegará dentro de uma semana.

       - Oh!

       Realmente, eu não sabia o que dizer. Só conhecia Garland pelo retrato e por pequenas coisas que Malcolm me contava de vez em quando. Sabia que tinha cinqüenta e cinco anos quando partira em sua viagem e, por suas últimas fotos, parecia um homem bonito e conservado para a idade. O pouco de grisalho nos seus cabelos dificilmente se distinguia do restante do dourado. Era quase tão alto quanto Malcolm e na mocidade talvez tenha sido um atleta, um esportista - ou, a despeito das críticas de Malcolm as suas últimas decisões, um bom homem de negócios.

       - Contudo, não voltará ao seu antigo quarto na ala norte. Vai ocupar um dos quartos ao lado do seu, na ala sul. Quero que veja se a suíte está em condições e faça o possível para torná-la bem confortável, pois meu pai sempre repara em detalhes.

       - Compreendo.

       - Não, você não compreende. A razão pelo qual ele quer um quarto mais aquecido e com banheiro anexo é que traz com ele uma nova mulher, sua esposa.

       - Esposa? Então seu pai voltou a se casar após todos esses anos?

       - Sim, traz a esposa - reafirmou Malcolm, voltou-se por um momento e depois olhou de novo para mim - Eu nunca lhe disse, mas ele se casou antes de ir para a Europa.

       - Hem? E por que não me disse?

       - Ora, você verá, Olívia. Em breve vai entender - disse ele num tom mais alto. Joel começou a chorar.

       Nossos filhos haviam tornado-se sensíveis aos ímpetos e explosões de Malcolm. Joel, especialmente, tinha um medo espontâneo do próprio pai, e Mal também já começara a senti-lo.

       - Você está assustando as crianças - soprei eu.

       - Farei pior se ele não calar a boca quando eu estiver falando. Quieto! - comandou.

       O rostinho de Mal empalideceu e ele reprimiu um ensaio de choro. Joel virou-se dentro do cercado e soluçou.

       - Prepare-se - disse ele entre os dentes, com ódio; depois saiu do quarto como um raio.

       Preparar-me? Perguntei a mim mesma - para quê? O que quisera dizer com isso? Odiaria seu pai tanto assim, a ponto de não querer dividir Foxworth Hall com ele? Eu não me importaria se tivesse que ser a única governanta dessa casa. Agora outra mulher viveria aqui, e certamente seria uma aliada. Talvez pudesse ser para mim a mãe que perdera tão cedo. Talvez pudesse me aconselhar sobre Malcolm. Era mais velha, teria mais experiência e sabedoria sobre relações entre um homem e uma mulher. Eu me sentia feliz com a volta de Garland e sua esposa.

       - Malcolm - perguntei mais tarde durante o jantar - você pretende deixar Foxworth Hall? Quer morar numa casa que seja só sua?

       - Mudar?

       - Sim, pensei que...

       - Você perdeu o juízo? Para onde iríamos? Comprar ou construir uma nova casa e deixar tudo isso? Cuidarei de meu pai. Quanto à esposa, ficara sob sua responsabilidade, o problema é seu. Mantenha o controle sobre a casa, faça com que tudo funcione em seu devido lugar, e não em venha dizer que tem medo dela - ironizou com ar de desprezo.

       - É obvio que não. Simplesmente pensei que sendo seu pai o mais velho...

       - Meu pai é mais velho, mas não mais sábio - disse ele - enquanto esteve fora, divertiu-se pela Europa com a nova mulherzinha, eu ampliava os negócios e assumia todos os controles. Nosso quadro de diretores praticamente se esqueceu da cara de meu pai. Além disso, desde que ele partiu, eu injetei sangue novo na diretoria.

O velho levaria um ano para entender as mudanças que fiz. Não - acrescentou mais calmo - você não precisa se sentir subordinada a esposa dele. Lembre-se do tipo de mulher que atrai meu pai.

       Tomou um ar de tristeza e afastou-se. Pude notar em seu rosto a sombra da memória da mãe. Procurei não tocar mais no assunto. Dei ordens às criadas para limparem e arrumarem o quarto, e tentei não pensar no retorno de meu sogro e sua esposa. Nada que eu e Malcolm pudéssemos ter feito poderia nos preparar para o primeiro choque que tivemos quando eles chegaram.

 

PARTE 2

A MADRASTA DE MALCOLM

       MALCOLM SENTOU-SE COM O JORNAL NAS MÃOS como se fosse lê-lo, mas eu sabia que não o leria. Sentia meu estômago como se houvesse dentro dele uma dúzia de borboletas.

Estávamos esperando a chegada de Garland e Alícia. Malcolm tinha saído mais cedo do escritório para estar presente quando chegassem. Ele sacudiu o jornal, como costumava fazer quando estava ansioso, e deu uma olhada no relógio. Estavam atrasados mais de meia hora.

       - Conheço meu pai - disse ele finalmente - É capaz de chegar às quatro da madrugada, não às quatro da tarde. Detalhes importantes como esses sempre escapam a sua atenção.

       - Ele deve conhecer a diferença entre o dia e a noite, Malcolm - tranqüilizei eu.

       - Será? Lembro de minha mãe sentada nesse mesmo lugar, esperando por ele. Combinava vir apanhá-la aqui, mas a anotação que fizera na agenda era imprecisa;

por isso, ele não vinha ao encontro dela.

       - Como consegue lembrar? Tinha apenas cinco anos na época em que partiu.

       - Lembro - insistiu Malcolm - Eu costumava sentar ao lado dela, ouvindo-a reclamar. Como pode ver, minha mãe respeitava minha inteligência, não costumava falar comigo do jeito que as mães falam com as crianças. Depois de certo tempo de espera, quando ela concluía que ele não viria mais, saia de casa sozinha. Era culpa dele, não era?

       - Provavelmente estava muito ocupado com os negócios - eu disse, de certa forma tentando chamar-lhe a atenção sobre si mesmo, mas ele ou não me ouviu ou não tomou em consideração o que eu dissera.

       - Sim, sim, mas ele também era descuidado com compromissos envolvendo negócios. Simplesmente não conseguia se concentrar, as coisas o aborreciam com facilidade.

Já não sei quantos negócios perdemos por conta disso e quantos eu consegui salvar.

       - E sua mãe também envolvia-se com os negócios?

       - O que? - Ele olhou para mim como se eu tivesse feito a mais ridícula das perguntas - Dificilmente. Acreditava que a Bolsa de Valores era uma loja onde se vendiam bolsas.

       - Ora essa! Agora você esta exagerando.

       - Exagerando? Ela não tinha a menor idéia de quanto valia um dólar. Quando ia as comprar, jamais perguntava o preço, isso pouco lhe importava. Ia comprando tudo que lhe agradava, sem saber o quanto estava gastando. Quanto a meu pai... ele jamais a puniu por isso, sequer a obrigou a cumprir um orçamento. Espero que com essa nova esposa as coisas sejam diferentes.

       - Onde foi que seu pai conheceu sua mãe? - perguntei.

       - Ele a viu atravessando a rua Charlottesville, fez parar o coche e começou a conversar com ela. Sem saber ao menos a que família pertencia! Naquela mesma noite ela o convidou para ir a sua casa. Tal atitude não lhe diz alguma coisa? Percebe como era impulsiva? Você faria algo assim? - perguntou, notando minha hesitação.

       Tentei imaginar o que ele havia me contato. Era romântico - um belo e jovem cavalheiro pára seu coche e se põe a conversar com uma moça até então estranha, e o dialogo é tão agradável que ela o convida para ir a sua casa.

       - Ela acaso o conhecia?

       - Não. Estava visitando uma tia em Charlottesville. Não era daqui e jamais ouvira falar dos Foxworth.

       - Seu pai devia ser um homem muito impressionante.

       - Você o teria convidado para ir a sua casa?

       - Não. Não tão de repente - eu afirmei, embora no íntimo quisesse dizer que sim, que faria a mesma coisa, que sempre desejara que algo assim acontecesse comigo.

Mas eu sabia onde Malcolm queria chegar e sabia o que era certo e adequado responder.

       - Compreende o que quero dizer? Ele devia ter percebido imediatamente o tipo de mulher que ela era.

       - Namorou por muito tempo?

       - Não o suficiente - respondeu.

       - Contudo, Malcolm, tenho certeza de que nós namoramos ainda menos do que eles.

       - Não confunda as coisas Olívia. Eu sabia o tipo de mulher você era; precisava de infindáveis exemplos para formar minha opinião sobre você. Quanto a meu pai, estava completamente cego e acabou sendo arrastado para um casamento. Certa vez ele me confessou que suspeitava que a tia a tivesse trazido para Charlottesville com o único propósito de a casar com um distinto cavalheiro. A velha malícia feminina! Não seria surpresa se um dia eu viesse a saber que ela havia planejado atravessar a rua naquele exato momento em que ele iria passar. Meu pai disse que ela lhe sorria de um jeito tão encantador que ele teve de parar o coche.

       - Não posso acreditar nisso.

       - Pois eu acredito. Mulheres assim são sempre sonsas. Parecem tão simples, tão meigas, tão despretensiosas e, no entanto, estão sempre tramando alguma coisa, acredite-me. E alguns homens, homens como meu pai, sempre caem por esse tipo de mulher.

       - Sua nova esposa também é assim? - perguntei, mas ele não respondeu. Insisti - A nova também é assim?

       - Não vejo porque não.

       Eu estava pronta para argumentar quando Lucas anunciou que eles haviam chegado.

       - Vá ajudá-los com as bagagens - disse eu enquanto me levantava. Malcolm continuou sentado.

       - Bem...

       Ele balançou a cabeça como se quisesse afastar algum pensamento, levantou-se e me seguiu em direção a porta onde Garland e uma jovem, com idade para ser sua filha, esperavam por nós. Pelo modo como a abraçava, imediatamente conclui que aquela garota era sua nova esposa! Cheguei a estremecer. Por que Malcolm não me havia falado sobre ela? Voltei-me para ele com um olhar acusador, mas a face que vi não era a sua. Tinha o rosto deformado pelo choque.

       - Meu Deus - ouvi-o murmurar - ela esta grávida!

       Eu sabia o que o atormentava - a gravidez anunciava outro herdeiro. O rosto estava vermelho e ele tentava cobri-lo com as mãos.

       - Ela esta grávida - repetiu, como se quisesse confirmar o fato para si mesmo. Sim, a gravidez era evidente. A jovem que devia ser delicada, esbelta e gozar do frescor da juventude, parecia estar nos últimos meses da gravidez. Garland nos avistou e acenou vigorosamente, depois pegou Alícia pelo braço e a trouxe para dentro de casa. Ele parecia não ter envelhecido muito desde que partira. Eu tinha fotos suas e podia comparar. Também, pudera, uma longa viagem e o casamento com uma jovem tão linda só podia rejuvenescer. Entre ele e o filho notava-se muita semelhança física, claro, mas havia leveza no andar de Garland, e seu sorriso tinha o calor humano que faltava em Malcolm. Garland era quase da mesma altura e tinha os mesmos ombros largos do filho. Sua aparência era vigorosa, enérgica, compacta.

O fato de uma garota como aquela ter se sentido atraída por ele não me surpreendia. Mesmo com uma jaqueta esporte e uma calça velha e usada, ele parecia muito elegante.

       Enquanto vinha em nossa direção para as apresentações, pude notar o quão radiante era Alícia. Ela se movia com leveza e havia graça em seu andar; seus olhos eram grandes e azuis, sua pele era cor de pêssego-e-creme, uma cor que só se encontrava em revistas de beleza. Invejei na mesma hora seus delicados traços femininos.

As mãos eram pequenas, o pescoço gracioso. Lembrava-me Corrine tal como era quando a encontrou atravessando a rua de Charlottesville. Virei-me para Malcolm, queria observar sua reação. Seus olhos se entrefecharam e ele a fitou intensamente. Embora quisesse mostrar-se frio e sério ante o pai e a madrasta, pude reparar que, no momento de olhar para ela, sua face perdeu as linhas duras e se suavizou. Que tipo de mulher estaria ele esperando? Pensei. Talvez exatamente como ela era, por isso estava tão atônito ante a sua presença?

       - Malcolm, você parece bem mais velho - disse o pai, sorrindo. - Alícia, eis o seu enteado. Malcolm, essa é sua madrasta.

       O filho olhou o pai com um sorriso sarcástico despontado em seus lábios.

       - Madrasta? Bem vinda madrasta - disse ele enquanto estendia a mão.

       Alicia apertou sua mão e voltou imediatamente para mim, tal como Garland.

       - Esta é - disse Malcolm pronunciando as palavras com frieza e lentidão - a Sra Malcolm Neal Foxworth. Olívia.

       - Muito bem. Como vai, Olívia? - cumprimentou Garland.

       Senti um aperto no meu peito. Pelo olhar de Garland, pude perceber que Malcolm nunca lhe escrevera contando que havia se casado. Portanto ele também não sabia que já tinha dois netos.

       - Por que não me contou Garland? - perguntou Alícia. Ela tinha uns modos simples e inocentes.

       Conhecendo o filho que tinha, Garland fez o possível para superar aquele momento embaraçoso. Provavelmente, conversaria mais tarde com o filho e lhe mostraria que não ficara satisfeito com o fato de não ser informado sobre o casamento.

       - Simplesmente porque não eu também não sabia, meu amor - respondeu, olhando para Malcolm.

       Havia uma expressão de prazer nos olhos de Malcolm - uma expressão que sempre aparecia quando ele levava vantagem sobre alguém

       - Há quanto tempo vocês estão casados?

       - Há mais de três anos - disse Malcolm.

       - Temos dois filhos, dois garotos - acrescentei, impaciente ante o modo como Malcolm os mantinha na entrada da casa e racionava as informações.

       - Dois garotos?! Genial! Veja Alícia, você já é avó antes mesmo de ser mãe. Garotos.

       Alícia lhe sorriu e ele a abraçou com tanta força que pensei que fosse machucá-la - ela parecia muito frágil.

       - Bem, vamos entrar, comemoraremos a volta ao lar - disse Garland, metendo-se para dentro de casa.

       Malcolm o acompanhou.

       - Vejo que fizeram algumas melhorias - comentou Garland. Referia-se as mudanças que eu fizera na sala para torná-la mais acolhedora; havia colocado alguns quadros novos nas paredes, paisagens e cenas rurais, e também substituído as cortinas antigas por outras, mais coloridas.

       - Tudo de muito bom gosto - ele aduziu, piscando os olhos para mim.

       Não pude deixar de me surpreender com sua figura tão brilhante e feliz. Em sua volta havia uma aura de energia positiva que era contagiante. Sentia que Alícia irradiava isso também.

       - É tudo exatamente como você me prometeu que seria, Garland - disse ela, enquanto lhe dava um beijo, um beijo, muito mais afetuoso que os de Malcolm e que

invejei imediatamente. Era um beijo quase apaixonado.

       - A suíte de vocês fica na ala sul, ao lado da de Olívia. - explicou Malcolm. Seu tom de voz parecia mais com a de uma gerente de hotel que com o de um filho recebendo o pai e sua nova esposa. - É a suíte que você pediu - ressalvou ele.

       - Ótimo. Agora vamos nos acomodar e em seguida quero conhecer meus netos. Você concorda Alícia?

       - Claro. Não vejo a hora!

       - E o jantar? Estamos famintos. A comida nos trens deixa muito a desejar. Você tem viajado, Olívia? - ele perguntou - Ou Malcolm a tem mantido prisioneira em Foxworth Hall?

       - Bem, na verdade não tenho viajado muito, mas logo que nos casamos viajamos de trem.

       - Ela é de New London, Connecticut - disse Malcolm. - Seu nome de solteira é Winfield. O pai era um empresário na industria naval. Infelizmente morreu há pouco tempo.

       - Oh! Uma ianque, não - Alícia é de Richmond, Virgínia. Espero que isso não vá gerar uma guerra entre os dois estados - acrescentou, rindo alto e com vontade.

       Malcolm, em pé atrás de mim, franziu as sobrancelhas, mas Alícia me olhou sorrindo.

       - Não há nada marcial na minha pessoa, não iremos brigar - garantiu ela apertando minha mão.

       Era tão desinibida quanto uma criança de quatro anos. Embora ficasse tentando achar que o jeito dela nascia de uma educação pouco formal, não pude deixar de me sentir fascinada com sus modo simples e franco. Alícia tinha apenas dezenove anos, mas como já havia viajado por toda a Europa, na companhia de um homem sofisticado,

com certeza deve ter amadurecido bastante, e não parecia absolutamente afetada pela viagem ou pela constatação que era agora uma mulher rica - e esposa de um homem ilustre.

       - Ah! A Sra Steiner e a Sra Wilson! - exclamou Garland ao vê-las. Mary Stuart estava atrás delas, timidamente escondida.

       - Bem vindo ao lar Sr Foxworth - repetiu a Sra Steiner.

       Ele segurou as mãos de ambas e beijou uma de cada vez. Foi uma saudação tão gentil que elas ficaram enrubescidas.

       - Viajando pela Europa, tornei-me um europeu - avisou ele - por isso é melhor que vocês duas tenham cuidado comigo.

       Ambas riram baixinho, como duas adolescentes. Achei essa forma de tratar os serviçais horrível, mas reparei que elas admiravam muito mais Garland que Malcolm.

       - Olá - saudou ele, olhando para Mary Stuart, que fora contratada durante sua ausência. - Estes são todos os empregados?

       - Olsen está no jardim, trabalhando - disse eu. E voltando-me para as criadas - Vocês agora devem terminar suas tarefas.

       Elas se retiraram da sala.

       - Estamos precisando economizar, Malcolm? - Garland perguntou.

       - Claro que não. Estamos simplesmente colocando em prática um comportamento mais econômico. Devemos agir em casa tal como agimos no mundo dos negócios.

       - Compreendo. Bem, agora com a chegada de outro bebe além dos de nós dois, vamos precisar de mais ajuda, não é Alícia?

       - Como quiser meu querido.

       O rosto de Malcolm se contraiu como se estivesse sentindo dor.

       - Para frente e para cima - preceituou Garland, e foi levando sua esposa escada acima enquanto lhe mostrava varias coisas.

       Alícia estava, de fato, encantada com tudo. Malcolm e eu continuamos embaixo, fitando-os. Era como se um turbilhão de ventos mornos houvessem entrado pelas portas da frente de Foxworth Hall acordando coisas adormecidas há séculos.

       - Agora você vê o quanto ele é ridículo - murmurou Malcolm. - Pode entender por que eu me sinto deste modo em relação a ele?

       - Por que nunca lhe escreveu contando de nosso casamento ou sobre o nascimento das crianças?

       - Não achei que fosse necessário - respondeu.

       - Não achou que era necessário?

       - Não, não achei. E lembre-se, em relação a ela... você chegou aqui primeiro, além de ser mais velha. Trate-a como se fosse uma criança e nunca deixe que os empregados obedeçam outras ordens que não as suas.

       - Em relação a Garland, como devo agir?

       Malcolm não deu a resposta. Resmungou algo incompreensível e voltou a sala, provavelmente para continuar a leitura do jornal antes do jantar. Eu subi para vestir os garotos; queria que estivessem bonitos para o primeiro encontro com o avô e a esposa.

       Garland não compreendeu por que Malcolm não permitia que os meninos sentassem a mesa conosco. A princípio Malcolm não quis discutir o assunto, mas a insistência de Garland acabou fazendo com que se explicasse.

       - Acho que o que as crianças fazem a mesa não é nada agradável para o apetite, pai.

       - Ridículo. Crianças são assim, você era assim também - disse Garland.

       O rosto de Malcolm ficou vermelho, e seus lábios branquearam a tal ponto que ficou difícil distingui-los dos dentes.

       - Malcolm era exatamente assim - disse Garland a Alicia - capaz de exaurir qualquer mulher. Estava sempre fazendo perguntas. A mãe não podia lhe dizer nada sem que ele a perseguisse depois com perguntas intermináveis. Às vezes eu chegava em casa e a encontrava num terrível estado de nervos por causa dele. Lembro-me de Malcolm a seguir pela casa, querendo saber tudo, perguntando sobre tudo. Certos dias ela tinha que fugir, pois ele a deixava exausta.

       - Então se livrava de mim, não é? - Malcolm perguntou entre os dentes - Tínhamos o dobro de empregados, inclusive uma babá em tempo integral.

       - Havia tantos empregados por sua causa - respondeu Garland recusando-se a se irritar com o argumento do filho.

       Alícia sorriu com doçura, e o rosto de Malcolm finalmente relaxou. Garland insistiu para que seu lugar e o de Alícia a mesa, fossem juntos e do lado esquerdo.

Malcolm pretendia oferecer-lhe as cabeceiras, mas ele nem ouviu.

       - Ainda estamos em lua de mel - disse - e, além disso, nunca conseguimos sentar tão longe um do outro como fazem vocês dois, não é, Alícia.

       - Oh, não. Na Europa onde quer que fossemos, Garland insistia para sentarmos um ao lado do outro. É muito cabeça-dura nesse ponto.

       - Imagino que seja mesmo - comentou Malcolm num tom de voz muito ameno.

       - Seu pai nunca para de me fazer rir, não só a mim como quem quer que esteja conosco. Costumávamos sempre estar em companhia de outros visitantes americanos

- explicou ela num tom de voz baixo e doce. - Ele estava sempre me deixando embaraçada - acrescentou, voltando-se para mim.

       Olhei para ela e sorri. Malcolm a observava como se fosse de uma nova raça, um ser diferente. Nesse instante lembrei-me que ela era parecida com algumas das jovens que tinham vindo a minha recepção.

       - Mas diga a verdade Alícia, você gostou, não foi? - disse Garland.

       - Claro que gostei. Eu estava com você - respondeu ela.

       Eles se beijaram nos lábios em plena mesa de jantar como se não estivéssemos ali e como se os empregados não estivessem passando de um lado para o outro.

Quando me voltei para Malcolm, na esperança de ver um olhar de desdém, o que percebi foi um olhar de inveja. Aliás, pude até reparar que seus olhos sorriam. Quando ele me surpreendeu a fitá-lo, baixou a cabeça.

       - Vamos contar tudo a vocês - disse Garland olhando mais para mim que para o filho - Vamos aborrecê-la com os detalhes intermináveis e fotos até não agüentar mais. Quem mandou se casar com o filho de Garland Foxworth? - ajuntou com uma grande gargalhada.

       - Você não será obrigada a ouvir se não quiser - interveio Alícia.

       - Mas nós queremos ouvir, sim, se for você quem vai contar - Malcolm atalhou - Isto é, se meu pai deixar que fale sem interromper a toda hora.

       - Eu não pretendo interromper, a não ser que seja absolutamente necessário - disse Garland e acrescentou, levantando a mão direita - É uma promessa.

       - Não acredite nele - brincou Alícia.

       Malcolm sorriu, ou melhor, quase gargalhou. No decorrer do jantar, Malcolm foi ficando cada vez mais acessível e aberto a conversas, e no final já mantinha um diálogo corrente e divertido com Alícia. Não me incluíram: era como se estivesse em outra mesa, jantando sozinha. A garota parecia discutir sobre viagens, e Malcolm, que também já havia viajado um pouco, estava absorto. Garland comia vorazmente.

       - Seus filhos são adoráveis - disse Alícia a Malcolm - Posso sentir neles o sangue dos Foxworth.

       - Mal é o que mostra mais esse sangue - disse Malcolm.

       - Você diz isso porque Joel ainda é muito novo. Não vejo a hora do nosso bebê nascer! - desejou ela, batendo palmas.

       Eu estava admirada com sua atitude a mesa. Ela falava enquanto comia, agitava-se o tempo todo e bebia vinho como se fosse água. Malcolm revelava-se muito tolerante aquela noite, talvez por ser a primeira vez que fazíamos uma refeição juntos.

       - Quantos meses tem a sua gravidez? Quis saber Malcolm.

       - Estou no começo do oitavo mês

       - Não havia muito mais tempo a perder. Especialmente quando se tem a minha idade - comentou Garland, sorrindo.

       - Você não perde tempo, não perde mesmo - gracejou Alícia. Olharam-se apaixonadamente, o que me deixou um pouco constrangida. Depois se beijaram de novo.

De fato, pontuavam cada coisa que diziam entre si com um beijo. Malcolm parecia oscilar entre ondas de aborrecimento e prazer. Quando Alícia lhe dava atenção, ele ficava maravilhado. Num dado momento ela se debruçou sobre a mesa e tocou seu pulso. Percebi que ele enrubescera, mas não afastou a mão, nem sequer se mexeu. Foi Garland quem sugeriu que tomássemos café na varanda.

       - Ar fresco - disse ele, com um gesto amplo. Ajeitou o guardanapo num braço, e como um garçom, estendeu o outro a Alícia.

       - Passamos momentos adoráveis na Itália - disse Alícia.

       Quando Malcolm se levantou, Alícia passou um dos braços pelo dele e outro pelo de Garland assim, juntos e abraçados. Ela entre os dois, seguiram para a varanda.

No momento em que também fui para onde estavam, encontrei-os rindo das palavras de Alícia, que descrevia um passeio de gôndola em Veneza. Ela estava imitando Garland.

       - "Sente-se senhor", pediu o gondoleiro - contava ela, aumentando dramaticamente o tom de voz - mas seu pai tinha bebido muito e pensava que podia se equilibrar em uma corda bamba. - "Não há problema" - disse ele - "serei o navegador". Os outros passageiros ficaram apavorados. O gondoleiro pediu-lhe de novo que se sentasse e a gôndola começou a oscilar muito. - Ela se balançava para frente e para trás, tentando encenar o que dizia - E então o que acha que aconteceu? - perguntou - Garland... - e começou a rir junto com o marido, que também relembrava a cena - Garland caiu fora da gôndola - gargalhou ela, projetando-se em direção a Malcolm, que a segurou rapidamente antes que caísse em seu colo. Garland levantou-se. Ao me ver em pé, na porta, Malcolm ficou vermelho, parecendo envergonhado.

       - O café será servido em um instante - anunciei.

       Ignorando minha presença, Alícia continuou:

       - Todo mundo ficou tentando tirar Garland de dentro do canal, mas ele recusava ajuda. Até conseguirem puxá-lo de volta a gôndola foi o maior tumulto. - concluiu, sentando no colo de Garland e passando os braços em volta de seu pescoço. Beijaram-se mais uma vez.

       - Ela conta esse caso com uma graça maravilhosa - salientou Garland - depois voltando-se para mim: - Um dia terá que me contar todos os detalhes do seu casamento; como meu filho conquistou seu coração, e as mentiras que deve ter inventado para isso...

       Não houve mais gargalhadas e Alícia começou a contar outra história sobre Garland na Europa. Antes do final da noite, eu já havia batizado aquelas histórias de "Contos de Garland na Europa, por Alícia Foxworth". Jamais tinha visto uma mulher tão dedicada a um homem como Alícia era dedicada a Garland. Ela tomava nota de cada detalhe das coisas feitas por ele. Praticamente parecia adorar e cultuar até o chão onde ele pisava.

       A noite terminou quando confessaram estar cansados daquelas viagens. Alícia apoiou a cabeça no ombro de Garland, que a abraçou pela cintura. Então os dois, mais parecendo dois adolescentes recém-casados do que com um homem de cinqüenta anos e uma jovem de dezenove anos grávida, ergueram-se e caminharam em direção as escadas. Malcolm e eu mal falamos um com o outro depois que eles se retiraram.  O brilho e a excitação deixaram a varanda junto com Alícia.

       - Ela é muito bonita - comentei.

       - É?

       - Lembra um passarinho voando em torno de seu pai, não acha?

       - Estou cansado - disse ele. - Essa tagarelice toda me deixou com dor de cabeça.

       Malcolm retirou-se para seu quarto. Antes de me recolher, passei pelo quarto das crianças, que dormiam profundamente. Haviam se divertido muito com o avô.

Creio que Mal se havia apaixonado pelo avô no primeiro olhar. Imaginei que Garland seria um melhor pai que Malcolm; pelo menos gostava de crianças. Ao passar pela suíte, escutei-os conversando. Conversavam e brincavam como dois adolescentes. Por um momento que estive ali, sentindo prazer em ouvir suas vozes felizes. Assim eu e Malcolm deveríamos ser, pensei. Pelo menos imaginei que assim seria. Atrás da porta, Garland abraçava Alícia. Apertava a bela e jovem esposa em seus braços,

fazendo com que ela se sentisse amada. Imaginei a mão de Garland sobre o ventre de Alícia, acariciando-o e sentindo a vida que ali se formava. Malcolm nunca mostrou o menor interesse em fazer isso. Nos últimos meses das minhas duas gravidez, quando eu estava pesada e desconfortável, ele me evitava. Por que os traços de Alícia, durante a gravidez, não se tinham alterado tanto quanto os meus? Olhando-a do busto para cima, ninguém diria que se tratava de uma grávida. Não me parecia justo que só as garotas magras e delicadas jamais perdessem o charme e a feminilidade.

       Continuei a caminhar em direção ao quarto. Minha inveja me deixou triste, mas não zangada. Mau quarto ficava ao lado do deles e a parede que nos separava era fina. Se eu encostasse a orelha na parede, poderia ouvi-los como se estivesse junto a eles.

       - Ela é exatamente o tipo de mulher que imaginei que Malcolm escolheria para casar - observou Garland.

       - É tão alta - desse Alícia - Sinto pena dela por ter aquela altura.

       - E eu sinto pena dela por ter se casado com Malcolm - disse ele.

       - Ora, Garland!

       - Ele nunca compreendeu as mulheres. Nem mesmo quis ter uma namorada.

       - Pobre alma.

       - Pobre? Esta aí o que ele não é; e nem você querida - comentou Garland.

       Ouve uma pausa na conversa; eu sabia que deveriam estar se beijando naquele momento.

       - Sou uma mulher rica desde o dia em que você entrou em nossa casa - ela disse. Depois ficaram calados.

       Deitei na minha cama solitária e me pus a pensar em como competir com uma criatura tão bela e inocente. Toda a vez que ela falasse, enfatizaria meu silêncio; toda vez que sorrisse, enfatizaria minha tristeza; sempre que Malcolm olhasse para ela, eu lembraria das vezes que evitou olhar para mim. A delicadeza do seu corpo tornaria o meu ainda maior. Eu a odiei - ou pelo menos quis odiar. Ademais, pensei, seria muito difícil endurecer meu coração contra ela; simplesmente ela tinha o que eu queria ter. Na manhã seguinte

       Alícia acordou com a mesma energia e o mesmo ar efervescente da noite anterior. Abria-se para o dia como uma flor se abre aos raios de sol. Nosso café da manhã nunca foi tão alegre. Garland assegurou que ambos dormiram como crianças.

       - O que prova como é importante um homem voltar para seu lar - disse ele, e acrescentou para Alicia. - Para o nosso lar.

       Os belos cabelos castanhos de Alícia estavam, como os meus, presos no alto da cabeça, mas os dela eram acetinados e enfeitavam suas pequenas orelhas e seu delicado pescoço. Percebi que Malcolm estava fascinado por ela. Imaginei que, assim como eu, ele esperava que os dois fossem ficar mais moderados e calmos pela manhã, pois não estavam mais excitados pela expectativa da volta e ainda não deviam estar inteiramente refeitos da viagem. No entanto, pareciam completamente revigorados.

Garland devia estar certo sobre a importância de voltar ao lar. Insistiu em acompanhar Malcolm aos escritórios e quis ser colocado a par de tudo o que estava acontecendo no mundo dos negócios.

       - Sei que tenho muito a aprender. Malcolm é o tipo de pessoa que não deixa nem grama crescer debaixo de seus pés - disse ele a Alícia. - Meu filho pode ter muitos defeitos, mas de uma coisa eu tenho certeza de que ninguém pode negar: Ele é um gênio para negócios!

       - Era isso o que ele dizia de você o tempo todo Malcolm - garantiu Alícia - quando eu lhe perguntava como podia se afastar dos negócios por tanto tempo, ele me dizia que confiava plenamente em suas habilidades.

       Esperei que Malcolm contestasse com uma de suas cáusticas respostas, porém ele ficou mudo e encolheu os ombros numa atitude de modéstia que não lhe era habitual.

       - Vamos embora pai - chamou.

       A despedida de Garland e Alícia foi tão longa e cheia de paixão que eu realmente me senti embaraçada por Alícia. Apesar de não parecer preocupada com isso, assim que eles saíram, ela olhou para mim e notando a expressão do meu rosto, tentou explicar dizendo que aquela era a primeira vez que se separavam desde que haviam embarcado para a Europa. Malcolm despediu-se de mim como de costume; com um beijo no rosto e algumas palavras sobre servir o jantar no horário de sempre.

       - Você tem que me contar sobre as dificuldades que encontrou para começar a administrar uma casa como esta - disse Alícia - não que eu queira fazer isso - acrescentou rapidamente - mas é que eu acho essa casa muito... muito esmagadora.

       Fiquei a observá-la por um momento. Parecia-me sincera, e não pude evitar pensar nas coisas que Malcolm havia dito, nas suas suspeitas. Quem podia imaginar o que ia acontecer nas próximas semanas ou nos próximos meses?

       - Eu mantenho tudo muito organizado - eu disse - os criados tem suas tarefas definidas e meu dia é todo planejado.

       - Estou certa que sim. Não quero que nada quebre a rotina daqui. Você tem que me explicar o que tenho que fazer.

       - Explicarei - prometi, tentando impor minha primazia e garantir meu lugar.

       Mas ela ou não ouviu ou não se importou com meu modo seco de falar.

       - Não quero atrapalhar a vida de ninguém - ajuntou Alícia - Tudo que quero na vida é fazer meu marido feliz. Garland é maravilhoso para minha família e para mim e nada do que eu possa fazer será o bastante para recompensá-lo.

       O que ele fez por sua família? - perguntei sem malícia.

       - Garland era um dos melhores e mais antigos amigos de papai. Realmente eram amigos desde o tempo de escola. Meu pai teve um acidente quando jovem, caiu de um cavalo e lesou a espinha. Isso o impossibilitou de arranjar emprego para prover o sustento da nossa família. Mas Garland estava por perto e ajudou a montar um escritório de contabilidade onde podia trabalhar sentado. Depois Garland começou a indicá-lo a pessoas que conhecia. Sem essa ajuda, não sei como teríamos sobrevivido.

       Eu possuía conceitos pessoais sobre a caridade e achava que ninguém a fazia sem visar um beneficio futuro. Imaginei se Garland já não teria posto os olhos nessa adorável garota.

       - Quantos anos tinha quando Garland começou a freqüentar sua casa?

       - Lembro-me dele desde quando eu tinha uns cinco ou seis anos. Quando completei doze, ele me deu este bracelete de ouro. Como pode ver, eu o uso até hoje.

- E mostrou o pulso. - Sim. Quando eu cheguei aos quatorze anos começamos a passear juntos. Eu ficava tagarelando de braço dado com ele. E ele me escutava com um lindo sorriso no rosto. Isso me fazia muito bem. O que mais queria no mundo era que ele se apaixonasse por mim. A primeira vez que me beijou eu estava nessa fase dos quatorze anos. - ela suspirou.

       - O que? Você tinha quatorze anos?

       - Sim, e não foi um beijo no rosto - sublinhou com os olhos brilhando. Ela percebeu meu ar patético e acrescentou, - sabíamos perfeitamente o que estávamos fazendo, entende?

       - Não. Não vejo como um homem daquela idade e uma garota de quatorze anos podem saber o que estão fazendo.

       - Era amor - disse ela, impassível. - Um amor implacável e verdadeiro. Ele começou a ir à minha casa com mais freqüência. Saíamos passeando de coche pelo parque e ficávamos horas a observar os pássaros. Conversávamos muito e não seria capaz de explicar sobre o que... nossos diálogos eram uma longa melodia. Os sons eram ainda estão na minha mente, mas as palavras não - adiantou ela, sorrindo para si mesma.

       Tentei compreender tal felicidade, mas não fazia a menor idéia do que ela queria dizer com "melodia dos diálogos".

       - Adorava os passeios de coche, mesmo quando o vento frio da Virgínia trazia montes e montes de neve - continuou ela - nos cobríamos com pesados cobertores e metíamos as mãos debaixo deles. Os cavalos trotavam contra o vento; as faces ficavam vermelhas por causa do frio, mas os corações eram aquecidos por nosso amor.

Você não pode imaginar como era maravilhoso.

       - Não - disse com tristeza - de fato não posso.

       - No verão tínhamos incríveis concertos no parque. Eu preparava uma cesta de piquenique e saíamos para ouvir música. Em seguida passeávamos de barco e eu cantava para ele. Garland adora que eu cante, embora não tenha uma voz de cantora.

       - Mas você nunca pensou na idade de Garland?

       - Não. Penso nele como um maravilhoso homem mais velho, o mais gentil entre os que conheço. Tinha sempre o espírito tão alegre e jovial, que sua idade nunca apareceu para mim.

       - Mas como teve coragem de chegar a se casar com ele? Não quero ser grosseira, mas Garland é capaz de morrer antes de você alcançar a meia idade. Seus pais não de opuseram?

       - Meu pai morreu um mês antes de Garland me pedir em casamento. A principio, minha mãe ficou chocada e se manifestou contra. Disse a mesma coisa que você disse agora. Mas eu não queria voltar atrás na minha decisão de casar, e ela, afinal, adorava Garland, entende? Ela compreendeu que eu o amava de verdade e que os anos de diferença não eram importantes.

       - Honestamente, minha querida, mesmo assim estou surpresa em ver que decidiu ter um filho de Garland, com a idade que ele tem.

       - Garland queria muito esse filho. Ele disse: "Alícia, quando estou com você, me sinto com apenas trinta anos". E ele de fato parece um homem na faixa de trinta anos, não parece? - perguntou ela.

       - Bem, ele não aparenta a idade real...

       - É isso que importa... o que pensamos - ciciou Alícia.

       A jovem estava mesmo maravilhada com o romance. A fria realidade dos fatos não era permitida em seu mundo cor-de-rosa e jamais o destruiria. Ela vivia naquele mundo fechado da minha casa de bonecas. De certa forma, sentia pena dela, pois os fatos eventualmente seriam mais fortes do que sua vontade; contudo, também não podia deixar de invejar a felicidade.

       - Leve-me com você. Adoraria ajudá-la a tomar conta dos meninos. Achei-os adoráveis e tenho certeza de que poderei aprender muito observando-a - pediu Alícia.

       - Não sou uma educadora excepcional - comecei me desculpando. Contudo, percebi o quanto iria desapontá-la se não a deixasse vir comigo.

       As crianças gostaram dela, sobretudo Joel. Ele sorria ao vê-la e se sentia feliz em seu colo, pois ela conseguia baixar ao nível dos garotos de um modo que eu nunca consegui. Enquanto ela e Mal brincavam, Joel parecia quietinho a observá-los.

       - Gosto de tomar conta deles, pode deixá-los comigo e passar a outros trabalhos - disse ela.

       - Nesse estágio da gravidez é preciso ter mais cuidado - recomendei, imaginando se Malcolm não ficaria feliz sabendo que ela tivera um aborto.

       Esse pensamento permaneceu em minha mente, agarrado como uma mancha. Não consegui livrar-me dele e quanto mais a imagem do aborto me parecia possível mais sossegada eu ficava. Afinal, não podia deixar de temer a criança que Alícia traria ao mundo, embora as minhas razões fossem diferentes da de Malcolm. Eu não era tão ligada ao dinheiro quanto ele, sabíamos que tínhamos e sempre teríamos mais do que o necessário. Meu receio era de que a criança de Alícia fosse mais graciosa do que as minhas. Garland era um homem tão bonito quanto Malcolm, ou até mais, e Alícia era muito mais bela do que eu. Por isso, eu a imaginava rolando pelas escadarias; o acidente provocaria um aborto. Ela era tão inocente e crédula que jamais chegaria a perceber que eu imaginava coisas assim, mesmo olhando em meus olhos.

       Durante todo o dia, onde quer que me encontrasse, ela fazia inúmeras perguntas - sobre Foxworth Hall, as crianças, os criados, Malcolm.

       - Como ele é de verdade - queria saber. - Garland sempre exagera nas coisas.

       - É melhor você saber por si mesma - respondi - nunca pergunte a uma esposa como é o marido, pois nunca obterá uma resposta honesta!

       - Bem, você esta certa - anuiu ela. Nada que eu fizesse parecia magoá-la - Você é muito esperta e experiente Olívia, tenho sorte por tela perto de mim.

       Fitei-a. Estava realmente sendo sincera a pobre garota. Não suspeitaria de nada? Será que gostava de ser tratada como uma criança? Eu acreditava que, com o passar do tempo, Garland e ela ficassem mais frios, perdessem o entusiasmo pela vida. Imaginei que a escuridão e tristeza de Foxworth Hall se abatessem sobre eles, que a aproximação do nono mês de gravidez fosse deixar Alícia irritada e deprimida, mas nada disso aconteceu. Nossas refeições continuaram tão tumultuadas quanto a primeira. Todas as noites Alícia fazia Garland contar detalhes sobre seu dia no escritório.

       - Nunca pense que isso pode me aborrecer - disse ela certa vez - pois é o seu trabalho, e tudo relacionado a você também é relacionado a mim.

       Que tolice, pensei. Ela jamais entenderia as sutilezas dos negócios.

       - Bem, hoje estive em dois hotéis de Chicago para tratar de alguns investimentos de Malcolm. Ele teve idéias de convocar vários empresários, oferecendo-lhes taxas de juros bem atraentes.

       - Você chama a isso como, Malcolm? - quis saber Alícia.

       Não entendi a pergunta.

       - Juros atraentes?

       - Juros de negocio - respondeu secamente.

       - Lógico! Que bobagem a minha fazer tal pergunta. É uma ideia encantadora. - aprovou ela.

       "Encantadora?", perguntei a mim mesma. Esperei que Malcolm explodisse, mas sua tolerância com Alícia era maior a cada dia. Inúmeras vezes me senti tentada a contar a Malcolm que imaginara Alícia sofrendo um aborto. Queria saber o quanto ele apreciaria essa possibilidade, mas o mais perto que cheguei desse assunto foi quando lhe disse que era Alícia ativa e descuidada demais para uma mulher grávida no nono mês.

       - Ela fica o tempo todo subindo e descendo escadas, comprimindo a barriga como se ali houvesse apenas um balão de gás. Vai ao jardim e conversa com Olsen sobre as flores e às vezes a observo caminhando ao lado dele. Ontem, vi-a levantar um enorme vaso de plantas. Quis avisá-la, mas desisti. Ela insiste em carregar Joel para o quarto e ignora qualquer juízo que eu faça; não se importa se as coisas que carrega são pesadas demais e exigem esforço físico, ela simplesmente não liga.

       - Não é problema seu - resmungou ele, e saiu andando sem me ouvir mais.

       Talvez não aceitasse a possibilidade de Alícia perder o bebê ou talvez, encantado com a inocente beleza dela, estivesse cego quanto aos seupróprios interesses.

       Um dia, na primeira quinzena daquele nono mês, Alícia me perguntou sobre o sótão.

       - É um lugar muito interessante - eu disse, e prossegui - Seria uma aventura interessante se pudesse vê-lo com seus próprios olhos. - Pensei nela subindo os degraus pequenos e estreitos vagando pela escuridão do sótão entre milhões de objetos espalhados pelo chão; imaginei-a tropeçando em qualquer coisa.

       - Estive tentada a abrir aquelas portas e subir as escadas - disse ela.

       - Não. Há outra maneira de chegar ao sótão. É uma entrada secreta.

       - É mesmo? - perguntou intrigada - Onde fica?

       - Entra-se por uma portinha nos fundos de um banheiro que existe no final da ala norte.

       Meu Deus! Uma portinha nos fundos de um banheiro? Pode vir comigo até lá?

       - Posso - disse - Vou lhe mostrar o caminho. Você vai se divertir com aquelas velharias.

       - Eu vou adorar.

       Levei-a até o extremo da ala norte e entramos no quarto. Ela parecia fascinada.

       - É como um esconderijo.

       - Sim - respondi.

       - Esta casa é tão fascinante, tão misteriosa. Tenho que perguntar a Garland sobre esse quarto.

       - Sim, faça isso - aprovei - e depois me diga o que ele lhe disser.

       Apontei a portinha.

       - Agora você precisa ter cuidado - adverti, quando ela se voltou para me olhar. - Puxe a cordinha acima do primeiro degrau e uma luz se acendera, para que possa ver os degraus.

       Ela o fez, mas a luz não se acendeu. Eu mesma havia desatarraxado a lâmpada do bocal.

       - Deve estar escuro lá em cima - adverti - é melhor desistir.

       - Está tudo bem, posso enxergar.

       - Lembre-se - insisti. - Eu lhe avisei para não ir.

       - Não seja quadrada Olívia, vai ser fácil para mim.

       - Então vá em frente. Estarei lendo lá em baixo na sala da frente.

       Ela iniciou a subida e eu fechei a porta. Ouvi-a tropeçar em alguma coisa e depois rir. Meu coração pulava dentro do peito. As trevas, a escuridão, os degraus rachados e as frágeis tabuas do chão - tudo significava perigo para uma mulher em via de parir um bebê. Que garota crédula e tola, pensei enquanto me afastava. Se alguma coisa lhe acontecer, eu devia estar muito longe para ouvir e socorrer. Eu a tinha avisado. Ninguém podia me culpar.

       Desci as escadas correndo. Fui para a sala da frente, como havia dito, e me pus a ler, mas não consegui me concentrar no livro. De vez em quando, eu olhava para o teto e a imaginava tropeçando e caindo; talvez batesse a cabeça em algum armário ou baú e ficasse desacordada, lutando inconsciente contra as dores de um aborto. Mais tarde, quando eu contasse a Malcolm como isso acontecera, ele me agradeceria. Talvez não o fizesse em palavras, mas eu saberia que estaria grato. Depois disso, ela talvez não flanasse mais pela casa despertando sorrisos nas faces das pessoas. Talvez a perda do bebê afetasse sua beleza e as trevas nublassem seus olhos.

O desespero varreria para sempre as cores radiantes do seu rosto. Sua voz se transformaria, perdendo o tom melodioso. Malcolm não se encantaria mais ante seu charme delicado e encantador. Quando estivéssemos todos em volta da mesa de jantar, e ela falasse, seria como se fossemos surdos para ela.

       Não percebi o passar das horas. Quando Malcolm e Garland chegaram, ela ainda não havia descido. Obviamente, Garland perguntou por ela.

       - Enquanto eu fiquei aqui concentrada na leitura deste livro, ela subiu ao sótão.

       - Ao sótão? Para quê?

       - Para conhecer. Ela estava aborrecida, não tinha o que fazer.

       - Ao sótão? - repetiu Garland. Seu rosto ficou sério. - Ela não deveria ir lá.

       - Bem que a avisei, mas ela insistiu. Riu de mim por desaconselhá-la a subir, e contra a minha vontade, subiu.

       Ele correu para a escadaria. Malcolm permaneceu em pé em frente a porta, observando-o, e depois que Garland desapareceu, olhou para mim. Jamais vira uma expressão gelada em seus olhos. Um olhar terrível, uma mistura de medo e raiva, pensei. Como se houvesse descoberto algo em mim que nunca havia imaginado.

       - Talvez seja melhor você acompanhar seu pai para ver se aconteceu alguma coisa - sugeri.

       De repente ele riu de uma maneira esquisita, virou-se e saiu da sala. Logo depois ouvi a voz de Garland e subi as escadas.

       - Está tudo bem? - perguntei. Ele estava indo a direção a ala sul.

       - Hem? Oh sim! Você pode imaginar uma coisa? Encontrei-a em frente de um espelho imundo experimentando um dos antigos vestidos de Corrine. Alias, devo admitir que ficou muito bem no vestido.

       Malcolm apareceu atrás de mim, como se não tivesse saído dali. Pude ver que tremia de raiva e percebi nele um olhar estranho. Se conhecia Malcolm, aquele olhar tinha a ver com amor.

       Duas semanas mais tarde, quase no dia previsto, Alícia deu a luz. O Dr Braxten veio cuidar o parto. Malcolm e eu ficamos esperando na sala. Num dado momento Garland apareceu, eufórico:

       - É um menino! Um menino! E Alícia está bem! Está pronta para até para dançar.

       - Isto é maravilhoso - exultei.

       Ele juntou as mãos e as ergueu enquanto caminhava de volta a suíte. Malcolm não disse uma palavra. Quando olhei para ele, percebi amargura em seu olhar.

       - Se essa criança tinha de nascer, estava rezando para que fosse uma menina - disse ele.

       - Que diferença faz isso agora? Vamos, vamos ver o bebê.

       Malcolm hesitou e resolvi ir sozinha. Quando vi aquele bebê pela primeira vez, nos braços da mãe, minha respiração parou. Tinha os mesmos cabelos louros dos meus filhos e os mesmos olhos azuis, mas notei uma aura de paz e serenidade que jamais havia visto em criança alguma. Olhava as pessoas com olhinhos claros e compreensivos - e eu sabia que recém-nascidos não faziam isso.

       - Não é lindo? - murmurou Alícia, aconchegando-o perto de si. - Vou chamá-lo de Christopher Garland, em homenagem ao pai.

       Garland ficou olhando para ela, tão orgulhoso quanto qualquer jovem pai. Nesse momento achei que ele parecia ter apenas vinte anos de idade. Seriam eles um casal mágico? Poderiam fazer o tempo voltar? Teriam encontrado a fonte da eterna juventude, ou tudo aquilo seria simplesmente o poder do verdadeiro amor? Jamais sentira tanta inveja e ciúme quanto senti de Alícia naquele momento. Ela tinha tudo - beleza, um marido adorável e carinhoso e, agora uma bela criança.

       - Parabéns pai - disse Malcolm, surgindo na porta.

       - Obrigado Malcolm. Venha e dê uma olhada no seu meio-irmão.

       Malcolm postou-se do meu lado e ficou admirando Alícia e o bebe.

       - Bonito. Um verdadeiro Foxworth - disse ele.

       Não é? Amanhã acenderemos uns charutos, hem, filho?

       - Claro que sim - respondeu Malcolm - Pelo filho que você fez, pai.

       - Ora... não acho que ele fez isso sozinho - disse Alícia, fazendo-me rir.

       Malcolm enrubesceu.

       - Bem, eu quis dizer que... eu... é claro, parabéns Alícia - disse ele, se abaixou para beijá-la. Pelo jeito que fechou os olhos, percebi que gostaria de

dar um beijo mais longo.

       Como pode ser tão hipócrita? Pensei. Eu sabia que ele odiava aquele bebê, e mesmo assim conseguia dizer as palavras certas e fazer exatamente o que devia.

Malcolm levantou-se rapidamente e se afastou da cama.

       - É melhor que a deixemos descansar - sugeriu.

       Saímos do quarto. Garland havia contratado uma enfermeira para as primeiras semanas, o que Malcolm jamais pensara em fazer por mim. Encontramos o Dr Braxten no hall, preparando-se para partir.

       - E então, Malcolm? Deve estar orgulhoso de seu pai, não? - perguntou ele.

       - Sem dúvida - respondeu.

       - Parece que me enganei - disse o médico.

       - Sobre o que? - disse Malcolm.

       - Bem, acabou de nascer outro Foxworth nessa casa, não é?

       Malcolm não respondeu. Seus lábios ficaram brancos e ele olhou para mim.

       - Sim, doutor - concordou. - Você estava errado.

       Malcolm desceu as escadas junto com o médico. Seus passos soaram como trovões - trovões que prenunciavam uma tempestade inevitável.

 

DIAS DE PAIXAO

       DEPOIS DO NASCIMENTO DE CHRISTOPHER, Garland passou a ser mais assíduo em casa. Malcolm dizia estar feliz por não ter o pai em tempo integral no escritório.

       - Ele não entende como são intricados os problemas financeiros e eu gasto muito tempo para explicar como as coisas funcionam... Papai perturba todo mundo com suas perguntas - asseverou Malcolm. - É melhor que, de agora em diante, ele aja como um aposentado. Aliás, gostaria que ele se aposentasse definitivamente.

       Garland nunca fez nada para me aborrecer, mas o fato de tê-lo por perto me aborrecia, pois me forçava a ser testemunha de seu romance com Alícia. Estava sempre perto dela, vendo-a amamentar o bebê, levando-os para caminhar ou fazer pequenos passeios de coche. Ocasionalmente, me chamavam para acompanhá-los, mas eu sempre recusava. As poucas vezes que pude ver a mim e Alícia juntas num espelho, achei que parecia mais a mãe dela do que a esposa do enteado. Era ridículo pensar nela como uma sogra, e eu sabia que seria muito desconfortável para mim sair com eles em tais passeios, a não ser que Malcolm estivesse conosco.

       Foi então que algo perturbador começou a acontecer. Um mês e pouco depois que Christopher nasceu, Garland e Alícia começaram a subir ao seu quarto em pleno curso da tarde, todos os dias. Não compreendi por que passaram a agir assim. Costumavam chegar dos passeios um pouco alvoroçados, sempre aos abraços e beijos, às vezes diante de mim, como se eu não existisse. Ela apoiava os braços sobre seus ombros e ele a abraçava pela cintura; nessa posição ambos subiam direto para a suíte e lá passavam quase toda a tarde. As criadas e Lucas sorriam maliciosamente quando os viam subir as escadas. Várias vezes ouvi os criados comentarem sobre Garland e a jovem esposa. Certo dia, eu estava indo para a cozinha e parei atrás da porta quando ouvia a Sra Steiner conversando com a Sra Wilson:

       - É impressionante como estão sempre no quarto. - disse a Sra Steiner - Não consigo entrar lá para fazer uma faxina.

       - No inicio também era sim com a primeira Sr Foxworth - lembrou a Sra Wilson.

       - A relação entre o Sr Foxworth pai e sua esposa contrasta com ocorre com o Sr Malcolm e Olívia - observou a Sr Steiner - Não me lembro de tê-los visto uma só vez demonstrando carinho um pelo o outro de modo tão evidente.

       - Carinho um pelo outro? Olívia é fria demais. Aqueles olhos cinzentos são como duas pedras de granito. Ainda bem que os garotos tem os olhos do pai.

       - É verdade. E toda a vez que Alícia aparece o ar se enche de luz e de alegria, mesmo que Olívia esteja no mesmo ambiente. O brilho de Alícia é muito mais forte que a expressão sombria de Olívia - disse a Sra Steiner. - Gostaria que ela fosse a verdadeira senhora de Foxworth Hall, como de fato deveria ser. Mas ela é doce demais para contestar a autoridade de Olívia.

       - São diferentes como água e vinho, não é mesmo? Uma tem um sorriso contagiante e a outra tem apenas aquela carranca. Não importa o quanto eu trabalhe, sua expressão não muda nunca. Ontem, depois que eu já havia tirado o pó do vestíbulo, ela ordenou que Mary o fizesse de novo.

       - Quando uma mulher não é feliz no amor, descarrega a raiva em quem quer que esteja ao seu lado - disse a Sra Wilson.

       - É por isso que gostaria que Alícia tomasse conta de Foxworth Hall.

       Afastei-me da porta com o coração aos pulos e os nervos a flor da pele. Tive medo do que iriam fazer se ouvisse mais alguma coisa. Estaria Alícia tentando, secretamente, conquistar meus empregados? Ela jamais os criticaria, pensei. Aquela paixão obscena entre ela e Garland era, então admirada pelos empregados? Onde ficava a decência? Onde ficava o respeito por si mesmo? Como conseguiam ser tão ardentes e apaixonados? Seria aquilo real ou apenas encenação?

       Um dia, intrigada pela paixão e calor de Alícia e Garland, eu os segui depois de subirem as escadas, e fui até meu quarto e encostei a orelha na parede da penteadeira. O que ouvi me deixou vermelha. Os beijos eram passáveis, mas os gemidos de Garland e os gritinhos de Alícia durante o clímax forma demais para mim.

Escutei os estalados da cama, a seguir Alícia chegou ao orgasmo, o que não ocorreu de uma vez só, pois ela gritava a cada chegada do gozo. Quanto a Garland, dizia coisas como: "Meu amor, meu amor, meu amor, você não achou bom? Estou longe de ser velho". Às vezes eles paravam e ficavam em silêncio, eu pensava que apenas estavam dormindo, mas logo eu a ouvia pedir mais e tudo recomeçava. Então, deitada em minha cama eu imaginava como seria se Malcolm fizesse amor comigo do jeito que seu pai fazia com Alícia. Eu nunca tinha sentido vontade de gritar da maneira que Alícia gritava e Malcolm nunca havia dito as coisas que Garland dizia quando Alícia estava em seus braços. Encontrava mais excitação em ouvi-los e imaginá-los na cama do que ler meus romances. E com o tempo comecei a desejar também aquela intimidade que compartilhavam e o modo que faziam amor.

       Certa vez os ouvi conversando na sala de jantar. Planejavam passear pela borda do lago, com o propósito explícito de fazer amor ali. Só de pensar em algo assim, meu coração disparou, minha face ardeu e tive que molhar o rosto com água fria. Através da janela, pude vê-los caminhando em direção ao lago. Garland levava o pequeno Christopher em seu carinho. Esperei que desaparecessem numa curva e os segui. Sentia-me culpada por fazer aquilo, mas não podia voltar atrás. Escutá-los através da parede era uma coisa, mas vê-los fazendo amor tornou-se uma tentação irresistível. Eles estavam muito longe para pressentir que eu os seguia e isso me encorajou. Havia uma clareira, perto do cais, onde tínhamos uma canoa. Euestava a uma distância perfeita para observá-los. Vi quando pararam, esticaram um cobertor no chão e se deitaram sobre ele; o bebê dormia. O corpo de Alícia havia voltado rapidamente ao normal depois que o bebê nascera. Olhando ela, era impossível concluir que já era mãe. Parecia mais jovem e mais brilhante do que nunca. Os seios continuavam firmes, a cintura era fina. Tinha a forma perfeita de ampulheta. Ela se sentou ainda com saia e blusa, e abraçando os joelhos, pôs-se a olhar o lago. Garland sentou-se ao seu lado e apoiando-se nas mão, deitou-se para trás. Ficaram assim por um longo instante e eu começava a me sentir terrivelmente culpada por estar espionando. A todo instante eu olhava para trás, com medo de que algum empregado pudesse perceber o que eu estava fazendo.

       Súbito, Garland aproximou-se de Alícia e beijou-lhe o pescoço. Ela dobrou a cabeça para trás e fechou os olhos como se aquele simples beijo fosse uma chave a lhe abrir as portas do prazer. Apertei meu pescoço e fiquei admirando Garland beijar o corpo de Alícia enquanto puxava a fita que mantinha a sua blusa fechada.

Ele a foi despindo com tanta delicadeza e graça que as roupas pareciam derreter-se em suas mãos. Completamente despidos e abraçados um ao outros, percebi que diziam coisas, mas pela distância era impossível entender. Tudo que chegava aos meus ouvidos era um cadência contínua de sons semelhantes a um canto religioso. Observei-os passarem da mais insaciável paixão as mais ternas carícias; das palavras ao riso.

       Quando achei que já tinha visto o suficiente e resolvi voltar para casa, estava sem fôlego e tão fraca que tive medo de dar um passo. Escutei ainda o choro do bebê e os risos de Garland e Alícia. Respirei fundo várias vezes, e finalmente adquiri condições para voltar a Foxworth Hall. Fui direto ao meu quarto e permaneci deitada por mais de uma hora, fitando o teto e lembrando a cena de amor que acabara de presenciar. Como me sentia lograda! Quantas doçuras estava deixando de viver e provavelmente nunca viveria! Era como se a sorte estivesse me empurrando para o fundo do poço, arrastando-me para o interior de um destino que eu já não podia aceitar. Talvez um dia o meu retrato fosse pintado em cores sombrias e pendurado nas paredes de Foxworth Hall. Com a face pálida e os lábios alvacentos colados uns aos outros, eu olharia meus descendentes. Meus bisnetos me fitariam, concluindo que eu fora uma mulher infeliz, uma mulher perseguida por outros rostos austeros de Foxworth Hall, uma mulher magoada por sua própria existência. Sim, eles saberiam quem eu fui.

       Estava ainda em meu quarto quando Garland e sua esposa chegaram do lago. Entrando rindo e suas vozes mostrando o quanto se sentiam felizes. Pareciam tão jovens, era como se eu fosse a madrasta e Malcolm fosse o pai de Garland. Naquela noite, após o jantar, Malcolm e Garland foram para o quarto de troféu conversar. Eu e Alícia ficamos sentadas na sala entretendo as três crianças que brincavam. Mal mostrava seus brinquedos a Joel e Christopher explicando como funcionava cada um deles. Parecia haver um forte laço de sangue entre eles, porque, mesmo sem compreender o que Mal dizia, os dois menores ficavam quietos e concentrados, escutando-o falar. Eu e Alícia fazíamos crochê. Ela era melhor nesse trabalho do que eu imaginara. Aparentemente, havia aprendido muitas coisas com a mãe antes de se casar com Garland. Alícia olhava para as crianças e para mim, sorria.

       - Será maravilhoso eles crescerem juntos - disse ela - casar-se-ão com mulheres brilhantes e belas e viverão em Foxworth Hall com suas famílias.

       - Talvez suas esposas não combinem - aventei. Eu não conseguia suportar fantasias tolas. Só porque a vida lhe era cor-de-rosa não significava que seria igual para todo mundo.

       - Acho que irão se dar bem. Não estou dizendo que não terão pequenas diferenças. Todo mundo tem, mas elas serão Foxworth e seus filhos darão continuidade às tradições.

       - Não temos títulos de nobreza - disse eu - Nem eu nem você somos rainhas.

       Ela me olhou por um instante e sorriu como se tivesse achado graça no que eu afirmara. Não podia acreditar na audácia de uma mente tão simples. Eu estava a ponto de lhe dizer como me sentia em relação ao seu sorriso quando Garland e Malcolm, terminada sua conversa particular, apareceram na sala. Pela expressão no rosto de Malcolm, pude perceber que o diálogo fora intenso e que ele tinha algo para me contar. Por isso recolhi Mal e Joel e, dizendo que era hora de pô-los na cama, levei-os para cima. Malcolm me seguiu até o quarto dos garotos, o que raramente fazia, e ficou me observando adormecer as crianças.

       - O que foi? - perguntei finalmente.

       - Discutimos sobre o testamento dele. Agora incluiu mais uma pessoa, é claro.

       - Bem, você não ignorava que ele o faria.

       - No caso de sua morte, ficarei com os negócios e a casa; contudo, Alícia e Christopher terão o direito de morar aqui por quanto tempo quiserem. Além disso, Alícia ficará com três milhões de dólares em ações em diversos de nossos investimentos, e Christopher com dois milhões mantidas em juízo. Serei o administrador do dinheiro deles, investindo-os onde achar melhor. Garland é mais de mim do que eu pensava.

       - Você deveria estar feliz com isso.

       - Meu pai reconhece minhas habilidades, algo que você também poderia reconhecer.

       Olhei bem dentro de seus olhos e disse:

       - Não estou indo mal na administração de meus bens.

       - Você está fazendo apenas uma fração do que poderia fazer - comentou.

       - Contudo, faço isso sem a ajuda de ninguém.

       - Teimosia. Obstinação. São esses os traços dos Winfields?

       - Pensei que fossem traços dos Foxworth. Você freqüentemente me diz o quanto seu pai é tolo e teimoso, mas quem se revela mais arraigado as suas idéias do que você?

       O rosto de Malcolm ficou vermelho, mas ele não deu meia volta e saiu do quarto como esperei que fizesse.

       - Quero que você conheça esses detalhes - frisou ele - porque preciso que me avise caso um dia sentir em meu pai tem intenções de mudá-los. Aparentemente Alícia lhe conta tudo. Tenho certeza de que lhe contaria também sobre isso. Suponho que ela não ficaria muito satisfeita com o testamento, usando o seu charme para que meu pai lhe deixe mais.

       - Você está pedindo para eu espionar seu pai e sua madrasta?

       - E você não irá fazê-lo, não? - ele perguntou com rispidez.

       Senti o sangue fugir de minha face. Ele esboçou um sorriso frio e estranho que cobriu meu coração com uma camada de gelo e não me permitiu responder.

       - Faça o que lhe peço, pensando em seus interesses e nos garotos - terminou, saindo do quarto após passar os olhos sobre as crianças.

       Nunca, desde que haviam nascido, os meninos ganharam um beijo de boa noite do pai. Olhei para eles, já estavam dormindo. Que bom serem pequenos demais para compreender o que o pai dizia. Mas o que haveria no futuro de cada um? O que Malcolm esperaria deles e como lidariam com isso? Sentada ali, fiquei desejando que fossem bebês para sempre.

       Alícia teve a idéia de se mudar para o quarto do Cisne, e Garland concordou. Era fascinada pelo quarto e pelos móveis, e estava sempre fazendo perguntas a respeito. Eu percebia o quanto Malcolm ficava nervoso cada vez que ela mencionava aquele lugar, mas nunca pude acreditar que ela se mudaria para o cômodo que tinha pertencido a primeira esposa de Garland. Uma mulher, quando é a segunda esposa, não devia reviver as memórias da primeira, mas Alícia não compreendia ou não queria dar valor a isso.

       Finalmente, uma noite Garland avisou que Alícia estava se mudando para o quarto do Cisne.

       - O berço é perfeito para Christopher - comentou ela.

       Malcolm parou de comer.

       - O quatro pertence a minha mãe - notou ele, como se ninguém soubesse.

       - E ainda pertence, só que agora a sua nova mãe - expôs Garland enquanto abraçava Alícia.

       - É difícil pensar em alguém muito mais jovem do que eu como minha mãe - disse Malcolm com aspereza. Mas Garland e Alícia nem o ouviram.

       - Não pretendo mudar nada - disse Alícia - tudo foi mantido tão limpo e cuidado que parece novo.

       - Ninguém dormiu naquele quarto desde... desde que minha mãe desertou! - exclamou Malcolm.

       - Bem, não podemos conservá-lo como um museu - observou Alícia rindo.

       Não quisera ser cruel, acredito, mas a observação foi como uma facada no coração de Malcolm, que chegou a se encolher de dor.

       - Um museu. Gostei da idéia. Um museu - ecoou Garland, rindo também.

       Mais tarde Malcolm enfureceu-se e começou a criticar a atitude de seu pai, satisfazendo todos os desejos de Alícia.

       - Ele a esta mimando exatamente como mimava minha mãe - foi sua expressão irada.

       - Como você pode saber, se era ainda tão criança naquela época?  - perguntei.

       - Eu era uma criança precoce; eu via, eu compreendia. Não havia um vestido que quisesse, que ele não comprasse. Suas jóias eram tantas que poderia abrir uma relojoaria. Ele achava que dando-lhe uma infinidade de coisas, poderia mantê-la feliz. Eu sempre compreendi tudo, muito mais do que qualquer criança da minha idade.

       - Acredito no que diz, Malcolm - afirmei. - Seu pai me contou que várias vezes o quanto era difícil para sua mãe tomar conta de você. Você era muito esperto.

De certa maneira, ela não conseguia discipliná-lo, pois você sempre encontrava um jeito de driblar as proibições e castigos que ela lhe impunha. Você sabia que ela

não tinha paciência e ânimo para discussões estéreis. Seu pai acha que ela foi embora por sua causa.

       - Ele diz isso? - perguntou Malcolm entre os dentes. - Pois ele que não conseguiu segurá-la. Você acha que ela partiria com outro homem se ele fosse um marido firme e forte como deveria ter sido? Ele até lhe permitia ter seu próprio dinheiro, assim ela ia para onde quisesse como quisesse. - De repente ele parou, como se tivesse falado demais, e saiu do quarto.

       Seria esse o motivo de Malcolm querer o controle sobre minha fortuna, como se lhe pertencesse? Pensei. Será que nutria esse mesmo medo em relação a mim, medo de que pudesse deixá-lo e ir para onde quisesse, quando quisesse... algo que além de embaraçoso seria uma repetição do que sua mãe fez com seu pai? O que Malcolm pensava sobre o meu dinheiro e sobre os desejos de Alícia pouco importava.

       No dia seguinte, Alícia levou suas coisas para o quarto do Cisne e nele se acomodou. Todas as vezes que eu e Malcolm passávamos por ali, ele apressava o passo como se temesse ser queimado pela luz que fluía daquelas portas. Ele sequer olhava para lá, agindo como se o quarto não existisse mais. Pelo menos era isso que eu pensava até o dia em que ele fez uma observação que me deixou intrigada:

       - É nojento o que se passa naquele quarto agora - disse ele.

       Suspeitei que devia estar espionando o que se passava ali, ou, talvez, escutando Garland e Alícia fazendo amor através da parede do quarto de troféus. Poderia ter feito isso? Teria feito?

       Um dia, estando Malcolm no trabalho e seu pai no quarto do Cisne com Alícia, minha curiosidade me levou até o quarto de troféus. Logo que nos casamos Malcolm deixou bem claro que aquele era seu quarto particular, seu santuário, um aposento de homem em todos os sentidos. Sempre que passava ali ou olhava para dentro, sentia um forte cheiro de charuto. O cheiro parecia impregnado as paredes, pensei. De certa forma, aquele cômodo me lembrava o gabinete de meu pai, porém haviam varias diferenças. Meu pai tinha uma cabeça de cervo empalhada, que ganhara de um clientes. O quarto de troféus de Malcolm e Garland era exatamente isso - um cômodo cheio

de animais empalhados como troféus.

       Havia uma cabeça de tigre e uma de elefante, ainda com as presas. O pai de Garland os tinha caçado durante um safári. Garland matara um urso, um antílope e um puma durante suas caçadas pelo oeste dos Estados Unidos. Malcolm apenas começava sua própria coleção. Tinha matado um urso pardo há dois anos atrás; agora falava em ir a África participar de um safári assim que os negócios lhe permitissem viajar. Garland vivia lhe aconselhando a ir, prometendo cuidar dos negócios enquanto estivesse fora, mas Malcolm nunca lhe deu ouvidos.

       Na parede dos fundos havia uma lareira de pedra de quase dois metros de largura. De cada lado da lareira havia uma janela coberta por pesadas cortinas de veludo negro. O arco que sustentava o solo da lareira era coberto de lembranças de várias caçadas que haviam feito. Encostado em uma das paredes, existia um sofá forrado de couro marrom escuro e um sofazinho combinando. Diante desses vários sofás viam-se duas cadeiras de balanço e uma poltrona de couro com uma mesinha ao lado. Avistavam-se cinzeiros por toda a parte.

       Fechei as portas com cuidado e caminhei até a parede da esquerda. Garland e Alícia deviam estar deitados na cama de Cisne. Porém, quando encostei a cabeça na parede, como costumava fazer com freqüência no meu quarto, mal pude ouvir suas vozes. A parede era muito espessa. Desapontada por não poder confirmar minhas suspeitas, resolvi ir embora. Foi então que reparei, emoldurada e pendurada na parede, uma foto de Garland mais jovem, metido no seu traje de safári e com um pé sobre a carcaça de um tigre. A foto estava um pouco torta e eu a afastei da parede com a intenção de endireitá-la. No momento que a afastei, descobri um furo na parede. Não era um furo muito grande e provavelmente fora feito com um objeto pontiagudo. Olhei através dele vi Garland e Alícia despidos na cama de cisne. Dei um pulo para trás

e olhei em volta, apavorada com a idéia de ser surpreendida.

       Há quanto tempo aquele furo estaria ali? Malcolm teria feito desde que Alicia se mudara para aquele quarto? Ou teria sempre estado ali, feito, talvez, por um garotinho de cinco anos de idade? Recoloquei a foto no lugar e saí correndo. Sentia-me como alguém que tivesse roubado um segredo terrível. Jamais revelaria a Malcolm o que havia descoberto, decidi. Por certo ele negaria o conhecimento daquele buraco, mas pior seria o meu próprio embaraço em deixá-lo perceber meu conhecimento de que ele estava mais interessado na relação de Garland e Alícia do que pretendia. Até que ponto estaria assim entusiasmado com a nova esposa do pai? Espioná-los o excitaria tanto quanto a mim? Minhas perguntas foram respondidas logo depois, em dia quente de verão.

       Eu e Alícia havíamos acabado de dar comida as crianças. Era um daqueles raros dias em que Garland resolvia ir ao escritório. Christopher estava com um ano e meio, Joel com dois e meio e Mal com cinco. Malcolm decidira contratar um tutor para dar aulas a Mal e Joel. A sala de aula do sótão, onde, assim como seus antepassados, Malcolm iniciara sua vida escolar, seria agora dos garotos. Como tutor foi contratado um professor de catecismo aposentado chamado Chillinworth. Mal lhe tinha ódio e eu o achava frio e duro demais para lidar com uma criança de cinco anos, mas Malcolm o considerava perfeito.

       - Nos primeiros anos eles precisam de disciplina. Pois nestes anos é que formarão suas personalidades e hábitos de estudo para o resto de suas vidas. Simom Chillingworth é perfeito para a tarefa, foi meu professor de catecismo.

       Toda a vez que o sr Chillingworth chegava, Mal resistia a ele, algumas vezes se agarrando a minhas saias, implorando para ficar comigo. Malcolm não queria discutir o assunto e se mantinha inflexível quanto a sua decisão. A única coisa que eu podia fazer para atenuar o medo de Mal era deixar que Joel subisse para a sala de aula com ele, embora Joel fosse ainda muito tenro para receber aulas. Malcolm permitia que Joel ficasse com Mal, porque supunha que ele aprenderia alguma coisa apenas estando presente.

       Naquele dia, o Sr Chillingworth chegou após o almoço para as habituais três horas e meia de aula, e subiu ao sótão com Mal e Joel. Era um dia de verão e fazia muito calor. Tive pena das crianças metidas naquele sótão e disse ao Sr Chiollingworth que usasse o salão da ala norte, que era o mais fresco da casa, mas ele não me ouvira.

       - Há brisa suficiente vindo das janelas - disse ele. - Além disso, preciso usar o quadro negro e as carteiras. As crianças devem aprender a lidar com o desconforto, é isso que nos torna os mais fortes cristãos.

       Vesti os garotos com roupas mais leves que encontrei, meneando a cabeça com pena. Alícia estava quase chorando por vê-los expostos a tal sofrimento; jurou que iria falar com Malcolm sobre o assunto, mas eu há convenci a não fazer isso.

       - Não preciso que fale por mim - eu disse a ela - Aliás, não estou totalmente em desacordo com Malcolm.

       Era mentira, mas a idéia de ver Alícia sendo atendida por Malcolm numa coisa que a mim ele negava me punha furiosa.

       - Tudo bem, mas eu tenho pena dos garotos - encerrou ela.

       Alícia levou Christopher para uma soneca e voltou em seguida, ainda reclamando do calor e do quanto a casa era abafada. Fui para um salão mais fresco com o propósito de ler e relaxar, o que Alícia não conseguia por estar muito agitada.

       - Olívia, você não tem vontade de tomar um banho no lago? - perguntou ela.

       - Banho no lago? Não. Nem mesmo tenho roupa de banho - respondi e voltei a ler.

       - Poderíamos ir e dar um mergulho, sem roupas. Seria refrescante.

       - Sem roupas? Acho difícil. Além disso, não tenho muita inclinação para esse tipo de travessura.

       - Que pena! Bem - suspirou ela - já que é assim, terei que ir sozinha.

       - Não quero mais ouvir sobre isso, Alícia - reclamei - Não fica bem para uma dama.

       - Bobagem! Eu e Garland tomamos banho no lago freqüentemente.

       Sei que naquele momento devo ter empalidecido, pois já os vira nadando no lago numa das vezes que os espionara. Entretanto, ela não percebeu minha reação, meu ar de culpa; apenas levantou-se, pegou algumas toalhas e rumou para o lago. Assim que ouvi a porta da frente bater, corri até a janela e observei Alícia se afastando.

Nesse instante reparei que Malcolm chegava no seu carro. Fiquei surpresa em vê-lo em casa tão cedo de volta do trabalho, mas percebi que sua intenção não era supervisionar as aulas de Mal. Percebi que estava observando Alícia se afastar em direção ao lago. Para minha surpresa, ao invés de vir direto para casa, ele se afastou na direção de Alícia. A quente brisa do verão agitava as cortinas de renda; os insetos, ofuscados pela luz direta do sol na vidraça, arremessavam seus pequenos corpos de encontro aos vidros, tentando escapar. Por um instante, não consegui me mexer. Quando recuperei as forças, saí correndo do salão, para fora da casa. Movia-me com rapidez

e precisão aquele caminho que sempre percorria para espionar Garland e Alícia. O que Malcolm estaria pensando em fazer? Por que a seguira?

       Antes e chegar ao lago, escutei a voz de Alícia e me escondi atrás de uma moita, onde pude vê-los. Ela estava imersa no lago, despida. Malcolm permanecia na margem sem paletó e camisa.

       - Não se aproxime mais - avisou ela com os braços cruzados sobre os seios e mantendo o corpo coberto pela água. - Volte para casa, Malcolm.

       Ele riu.

       - Talvez eu devesse levar suas roupas comigo - zombou, com o propósito de irritá-la e ameaçando segurar suas roupas.

       - Não se atreva a tocar nelas. Vá embora!

       - Deixe de besteira, Alícia, é claro que não pretende ficar ai sozinha.

       - Eu vim dar um mergulho e me refrescar. Garland chegará a qualquer momento.

       - Não, ele está tratando de negócios em Charlottesville. Para dizer a verdade, não chegara tão cedo.

       - Vá embora - repetiu Alícia, mas ele não se moveu.

       - Também gostaria de me refrescar e é sempre melhor fazer isso em companhia de alguém.

       - Então chame sua mulher e pare de me perseguir.

       - Ouça, acho impossível que aquele velho esteja lhe satisfazendo.

       - Garland não é velho - ela protestou. - Aliás, às vezes ele é vinte anos mais novo do que você. Ele sabe sorrir e se divertir e você só o que sabe fazer

é ganhar dinheiro. Você nem sabe tratar sua esposa direito.

       - Você não passa de uma criança - ele disse bem devagar, contendo a raiva - você se casou com meu pai porque ele é rico e você espera que ele morra e lhe deixe uma fortuna. Mas isso não vai acontecer. Eu lhe asseguro.

       - Vá embora daqui!

       - Acho que não é realmente o que você quer - ciciou ele num tom doce. A seguir baixou as calças. Ela se afastou ainda mais.

       - Suma daqui! - insistiu ela.

       - Eu lhe avisei: eu também sou um homem quente.

       Despiu a cueca e completamente nu, mergulhou no lago em direção a ela.

       - Sei que você não vai gritar - preveniu ele - não queremos os criados por aqui. Garland não entenderia.

       - Você é um demônio - ela gritou, saiu nadando em direção a margem direita.

       Ele partira atrás dela.

       - Você é linda Alícia - exclamou ele - Você deveria ser minha esposa e não dele.

       Ela continuou nadando em direção a margem e, quando chegou voltou-se para trás.

       - Deixe-me em paz! - gritou de novo. Sua voz raivosa o paralisou - Deixe-me em paz de uma vez por todas, Malcolm, ou contarei a Garland que você insiste em tentar me seduzir.

       - O que ela estava dizendo? Aquela não era, então, a primeira vez que ele tentava seduzi-la?

       - Se não contei nada a Garland é porque quero poupá-lo do sofrimento de saber o que seu próprio filho vem tentando fazer e, além disso, desejo paz na nossa família. Mas agora é demais! Você não chega sequer aos pés de seu pai, nem aos pés - ela gritou.

       Alícia saiu de dentro da água, agarrou suas roupas, enrolou-se rapidamente numa toalha e foi para trás de uma moita, felizmente afastada daquela onde eu estava.

Fiquei observando Malcolm. Ele admirou Alícia por um momento e depois desviou os olhos.

       - Minha mãe não pensava assim - ele murmurou, alto o bastante para que eu pudesse ouvi-lo - Ela partiu com um homem que não valia um centavo e não encontrou nenhuma dificuldade em fazer isso.

       Em vez de continuar a persegui-la, Malcolm preferiu se vestir, enquanto ela, já quase totalmente vestida, tomou o caminho de volta. Eu estava me sentindo cada vez mais só, cada vez mais traída e abandonada. Comecei a chorar baixinho. Onde estava a segurança, a verdade, a honestidade? Malcolm havia me usado. Casara-se comigo para me usar na realização de seus ideais e também por causa de meu dinheiro; dinheiro que insistia em ter sob seu controle. Entre nós não havia uma só gota de amor.

       Depois de vestido, ele começou também a caminhar de volta para casa, tomando cuidado de não deixar que os espinhos de certos arbustos lhe estragassem as roupas caras. No momento em que passou por mim, falava consigo mesmo:

       - Ela vai me pagar por isso. Essa putinha não pode estar amando um velho como meu pai. Ela está armando este jogo. De agora em diante vou armar o meu, só que com mais sutileza.

       A partir desse dia, sempre que Garland não estava por perto, Malcolm tratava Alícia com desprezo e um desdém tão intenso que beirava a crueldade. Às vezes eu tinha vontade de defendê-la, jogando na cara dele a cena que presenciara no lago, mas nunca o fiz. Apesar da maneira como Alícia rejeitara Malcolm, eu tinha raiva dela por ser tão bonita e estimulante. Deixei que o fogo queimasse entre eles - o fogo da paixão e da ira de Malcolm, um fogo que acabaria queimando Alícia.

       Ou Garland estava cego de amor ou era cético demais para dar crédito as coisas que Alícia devia estar lhe contando sobre Malcolm, pois, pelo que sei, ele jamais enfrentou o filho. Contudo, com o passar do tempo, percebi que alguma coisa estava acontecendo. Ele e Alícia continuavam apaixonados um pelo outro, mas o processo de envelhecimento de Garland parecia estar se acelerando. Tinha longas sonecas sozinho e seu voraz apetite havia diminuído. Durante o segundo inverno que passaram em Foxworth Hall, ele apanhou uma gripe que quase se transformara em pneumonia. Por todo esse tempo, Alícia continuava me procurando para que a orientasse.

Sabia que ela estava tentando se aproximar mais e obter de mim alguma ajuda, especialmente sobre seu relacionamento com Malcolm, mas eu permaneci distante, fria e desinteressada.

       O que eu queria que acontecesse, estava começando a acontecer. Ela já não era tão animada e cheia de energia como antes. Deixara de sair com suas amiguinhas.

Ficava a maior parte do tempo sozinha esperando Garland chegar do trabalho ou acordar de seus sonos e evitar Malcolm da maneira que podia. Mantinha-se ocupada com Christopher que estava com quase dois anos e meio. De fato, passava quase todo o tempo com as crianças. Foi ela quem iniciou Mal no piano, o que, de certa forma, fazia para irritar Malcolm. Tanto Mal quanto Joel mostravam em talento natural para a música, mas Malcolm achava que músicos eram sempre fracos, afeminados e pobres.

       Comecei a pensar que ensinar música às crianças era o meio que Alícia havia encontrado para revidar a grosseria de Malcolm. Deixei que situação evoluísse, não só porque os garotos a adoravam, mas também porque, se Alícia queria atingir Malcolm, estava conseguindo. Sentia-me como alguém na platéia observando a infelicidade dos protagonistas e encontrando prazer nisso, mesmo que este prazer fosse pouco para aliviar a minha dor. Não compreendia que meu prazer egoísta podia fazer que a infelicidade crescesse tanto. Sem perceber, eu havia aberto as portas de Foxworth Hall aos demônios da terra e da mente. Eles entraram e tomaram seus lugares à sombra; e agora aguardavam o momento de entrar em cena. O que eu não esperava era que, quando esse momento chegasse, os demônios pudessem trazer para aqueles aposentos ocos e frios de Foxworth Hall tanta miséria e dor.

 

DIAS NEGROS

       OS MESES SE PASSARAM, cada dia tão tenso quanto o anterior, devido a atitude de Malcolm em relação a Alícia. Ele a tratava com indiferença e hostilidade, e freqüentemente fazia comentários maliciosos. Malcolm estava irritado com tudo, especialmente com o gosto que Mal estava demonstrando pela música. Uma tarde, chegou mais cedo em casa e encontrou Mal sentado ao piano ao lado de Alícia, que lhe ensinava as escalas. Eu tricotava um suéter para Joel e assistia, encantada, ao jeito quase intuitivo que Mal acertava as notas das escalas. Não havia dúvida de que ele era talentoso e de que, com a devida instrução, se tornaria um verdadeiro artista.

       Malcolm ouvira a música e veio direto ao salão; sua expressão mostrava o quanto se sentia irritado. Quando cruzou a porta, tirei meus olhos do tricô e o observei.

Ele bateu violentamente a tampo do teclado, que, ao fechar, quase atingiu as mãos de Mal; ambos, atônitos, olharam para Malcolm.

       - Não se lembra do que disse sobre a idéia idiota de tocar piano?

       - Ora Malcolm, o garoto tem talento. É um verdadeiro pródigo. Veja o que ele faz com tão pouca idade. Deixe-nos mostrar - pediu Alícia.

       - Não me importo com o que ele pode fazer ao piano. Isso fará dele um homem competente nos negócios? Isso o deixara apto para me suceder? Você o está transformando em um homem fraco e afeminado. Tire-o desta banqueta - ele exigiu, mas Alícia continuou abraçada a Mal. Finalmente Malcolm ordenou - Levante-se Mal!

       Com os lábios trêmulos, Mal levantou-se e se afastou de Alícia. Senti que estava com medo de chorar, pois deixaria Malcolm mais furioso ainda. Quando Mal passava por situações assim, costuma encolher os ombros e soluçar baixinho. Joel, que estava no chão brincando com Christopher, olhou para o pai com os mesmos olhos de medo do irmão, um medo que ambos compartilhavam. Toda a vez que um era maltratado, o outro reagia como se fosse com ele. Christopher, por sua vez, simplesmente olhava, estranhando a súbita mudança de clima no ambiente. Alícia voltou-se para mim esperando que eu intercedesse a seu favor.

       - O que você pretende?- perguntei a Malcolm.

       - O garoto tem que aprender a não me desobedecer. Eu havia dito a ele para passar o tempo livre estudando e não tocando piano.

       - Mas ele não está desobedecendo se a mãe e a avó permitiram que ele tocasse - disse eu.

       - Bem, ele está desobedecendo a mim - insistiu ele - Mal sabe muito bem o que recomendei a ele.

       Malcolm agarrou o filho pela nuca, quase o suspendendo no ar, e o foi levando para a biblioteca, onde naturalmente iria surrá-lo. Joel começou a chorar na

mesma hora. Christopher parecia confuso com aquela situação.

       - Malcolm não faça isso - gritou Alicia.

       - Cuide de seu filho e deixe os meus aos meus cuidados - ele respondeu com brutalidade.

       Alícia levou as mãos ao rosto e olhou para mim entre os dedos. Joel se aproximou de mim e se agarrou a minhas pernas.

       - Como você permite que ele tome uma atitude dessas? - perguntou Alícia.

       - Não posso impedi-lo de expressar suas opiniões sobre os filhos, especialmente em sua própria casa.

       - Mas você é a mãe. Deveria fazer alguma coisa, não?

       - Você está tentando fazer com que eu e meu marido briguemos? -perguntei.

       Eu sabia que não, mas queria que ela acreditasse que minha idéia era essa.

       - Claro que não, Olívia. Oh querida, sinto-me responsável pelo que está acontecendo. Venho provocando Malcolm e você tem permitido isso - ela disse isso como se acabasse de perceber o fato. - Se soubesse que isso traria tantos contratempos, você não me deixaria agir assim. Contudo, Malcolm é cruel. Você não tem medo do que possa acontecer com o pequeno Mal?

       - Ele vai estar bem. Quando insiste em querer alguma coisa, nem o pai consegue fazê-lo desistir. Nesse ponto ele é muito parecido comigo. Tente ignorar Malcolm.

Mantenha-se afastada dele - aconselhei, dando um duplo sentido a frase. Em seguida acrescentei: - A casa é grande o bastante.

       - Estou com muita pena de Mal - lamentou Alícia em prantos, antes de se levantar e sair do salão.

       Não a chamei de volta para consolá-la; estava feliz por saber que havia tantas diferenças entre ela e Malcolm. Enquanto houvesse tais diferenças, Alícia não cederia aos apelos dele. Mas as coisas mudaram novamente.

       No terceiro aniversario de Christopher, Garland e Alícia deram uma festa e convidaram os casais da vizinhança que tinham filhos com a idade dos nossos garotos.

O salão principal de Foxworth Hall parecia um pátio de escola; viam-se crianças por toda a parte. Alícia planejou jogos e pendurou papéis coloridos e bolas de gás nas paredes. A Sra Wilson fez um imenso bolo de aniversário, decorado com toda a espécie de bichinho. Meu marido foi trabalhar pela manhã, mas Garland ficou em casa

para ajudar nos preparativos da festa, o que Malcolm considerava ridículo.

       - Ele se torna absolutamente grotesco quando se trata de Christopher - disse-me naquela manhã após o café, depois que Garland e Alícia deixaram a mesa para cuidar da festa. - Age como um velho caduco. Até parece que Christopher é seu primeiro filho.

       - Talvez se sinta feliz não só por ter sido capaz de gerar um filho na idade dele, mas também por seu filho ser tão bonito e brilhante. - opinei

       O olhar de Malcolm sombreou, e pela primeira vez percebi que estava com ciúme da atenção que o pai dedicava ao menino.

       - Seu pai lhe dedicava o mesmo carinho que dedica a Christopher?

       - Não. Comigo era completamente diferente. Era preciso que eu implorasse para ele me levar em uma de suas viagens de negócios. Depois que minha mãe partiu,

ele ficou muito abatido, chegando até a dizer que ela se fora por minha causa. Nunca o perdoei por isso. Minha mãe me amava acima de tudo, e só os erros de Garland a forçaram a nos abandonar. E agora, toda vez que ele se fixa nos meus olhos azuis, o que vê é Corrine. Meu pai sabe que ela nunca o amaria tanto quanto me amou.

Sem, bem, acho que ela o odiava... do contrário não me teria deixado. Nunca o perdoei por fazer-me perdê-la.

       Pela primeira vez em tantos anos senti simpatia por meu marido e toquei suas mãos tremulas.

       - Afinal, depois que você cresceu ele começou a dedicar mais tempo a você, não é certo? - perguntei, tentando acalmá-lo.

       - Não até me ver grande o suficiente para livrá-lo de certas responsabilidades nos negócios. Mandou-me para uma escola particular, depois a uma universidade.

Sempre tentou em manter longe. Durante o tempo que estive afastado, ele nunca me escreveu uma carta, sequer respondia as minhas. Certa vez, no Natal, voltei do internato e encontrei a casa cheia de criados. Meu pai se encontrava fora, num dos seus safáris.  Nunca lhe ocorreu levar-me com ele. Eu nunca tinha amigos com quem pudesse conviver, e então passei o feriado perambulando pro Foxworth Hall e ouvindo o eco de meus próprios passos.

       - Malcolm - disse eu, vendo que estava triste ao relembrar seu passado, o que raramente fazia - há uma pergunta que eu sempre lhe quis fazer. Depois que sua mãe partiu ela lhe escreveu alguma carta? Você sabe alguma coisa sobre o paradeiro dela?

       - Nenhuma palavra, nenhum cartão, nada. Quando eu era jovem, suspeitei que meu pai escondia as cartas que ela me enviava, e então passava horas no meu quarto, escrevendo cartas imensas que jamais pude enviar. Eu lhe implorava para voltar. Eu tinha apenas cinco anos! Precisava dela! Não podia compreender o que a levara a abandonar o filho único. Se pudesse falar com ela agora, era só isso o que eu gostaria de saber.

       - Que bem isso iria lhe fazer nessa altura?

       - Você não compreenderia - ele suspirou e saiu sem que pudéssemos terminar a conversa.

       No dia da festa de Christopher, fiquei surpresa ao ver Malcolm chegando em casa a tempo de participar da comemoração. Sei que ele poderia ter ignorado o aniversário, mesmo que isso fosse magoar Garland. O que me surpreendeu foi o modo que olhou para Alícia quando a viu no salão entretendo as crianças.

       Ela usava um colar com duas voltas de pérolas e um desses vestidos que fazem as mulheres parecerem com garotinhas. Contudo, sob o fino tecido os seios estavam suavemente marcados, realçando sua feminilidade. Na festa, com tantas pessoas em volta, ela estava radiante como no dia em que chegara a Foxworth Hall. Garland também aprecia mais jovem; a expressão pesada e gasta do seu rosto havia desaparecido. O riso de Alícia ecoava pelo salão. As crianças ficavam fascinadas com seu jeito carinhoso e alegre. Faziam fila atrás de Alícia e a seguiam por toda a parte, disputando sua atenção. Joel e Mal iam na frente dessas filas, entoando o nome dela.

Malcolm sentou-se em uma poltrona e ficou imóvel, admirando-a.

       Esperava encontrar em sua face aquele sorriso sarcástico, aquele olhar de ódio, mas o que vi foi um rosto calmo de lábios relaxados. Olhando-o daquela maneira, enamorado, ele parecia uma criança. Um sentimento assustador, selvagem, brotou em meu coração naquele instante. Ele a fitava de um jeito que somente um homem apaixonado tem. O que me parecia estar morto estivera apenas hibernando, adormecido como um urso gigante a espera da primavera. A beleza de Alícia era essa primavera, e o tentava,

despertando em Malcolm os mais fortes sentimentos, fazendo com que, mais uma vez, ele saísse a caça. Percebi tudo isso pelo modo como se dirigia a ela quando se falavam. Estava em seus olhos, olhos que não se afastavam de cima de Alícia até ela sumir pelo salão conduzindo a festa. Durante toda a tarde Malcolm ficou sentado, saboreando seu chá e observando a madrasta com ar de satisfação.

       Mesmo depois que a festa acabou, depois que os convidados se retiraram, ele continuou no mesmo lugar observando Alícia orientar a limpeza. Garland, cansado, fora dormir no seu quarto. Eu já havia acompanhado o banho dos garotos, preparando-os para a cama. Alícia finalmente anunciou que iria se retirar e ler um bom livro até que o sono viesse.

       - Não foi uma festinha encantadora? - perguntou-me ela.

       - As crianças adoraram - concordei. - Mas será que uma criança de três anos realmente pode apreciar uma festa assim?

       - Olívia, às vezes você fala como Malcolm - comentou ela.

       Lamentei que ele já não estivesse por perto para ouvi-la dizer isso. Observei-a subir as escadas, peguei minhas agulhas de tricô e me dispus a subir para o quarto. Antes que o fizesse, os empregados me detiveram para algumas perguntas sobre cristais e os copos, e a Sra Wilson quis discutir o menu da próxima semana.

O que aconteceu a seguir me foi revelado por Alícia mais tarde, pois na hora em que os fatos se sucederam ela estava tão nervosa que não consegui compreender nada do que dizia.

       Eu já estava no meio das escadas, quando a ouvi gritar. Ao grito seguiu-se um som oco, como se algo houvesse caído no chão do quarto do cisne. Subi correndo os degraus que faltavam e avancei pelo corredor até a porta do cômodo, onde me deparei com Garland estirado no chão, as mãos comprimidas no peito. Ele estava de pijamas; aparentemente, acordara e correra até o quarto do cisne. Alícia estava esparramada sobre a cama, tinha a camisola rasgada desde o ombro direito até a cintura e seus seios estavam expostos. Com as mãos cerradas como se fosse golpear o ar, Malcolm estava sobre o corpo inanimado do pai; no lado direito de seu rosto via-se

um longo arranhão, e suas maçãs estavam intensamente vermelhas.

       - O que houve? - gritei.

       - Rápido, chame um médico - ordenou Malcolm que ao me ver, tentou se controlar.

       Alícia agora chorava histericamente, tentando se cobrir com a camisola dilacerada. Garland estava absolutamente imóvel. Corri para o telefone mais próximo, o do quarto dos troféus, e liguei para o Dr Braxten. Quando o médico chegou Malcolm já havia removido o corpo do pai para o quarto deles, colocando-o na cama. Alícia, usando um robe sobre a camisola, segurava a mão flácida de Garland e chorava.

       - O que aconteceu - perguntou o médico aproximando-se da cama.

       Primeiro, Malcolm olhou para mim, depois voltando-se para Alícia, informou:

       - Ele teve uma espécie de crise e se pôs a gritar. Quando cheguei aqui, já o encontrei assim.

       O médico pós um estetoscópio no peito de Garland, na tentativa de escutar os batimentos do coração. Depois checou os olhos e o pulso.

       - Deve ter sofrido um ataque cardíaco - disse, num tom suave - lamento muito, não há nada que eu possa fazer.

       Alícia gemeu e se atirou sobre o corpo de Garland.

       - Não! Não! Não! É impossível! Pois acabamos de celebrar o aniversário de nosso filho. Por favor, não. Por favor... Garland, acorde! Mostre a ele que você não está morto! Garland! Garland! - Seus soluços eram intensos e faziam tremer a cama.

       Malcolm saiu do quarto sem olhar para mim.

       - Ligarei para o serviço funerário - avisou o Dr Braxten. Depois olhando Alícia, acrescentou: - É melhor que venha o mais rápido possível.

       - Concordo - disse eu.

       - Garland veio me ver há algumas semanas e eu lhe disse que não estava nada satisfeito com seu coração - contou. - Ele me fez jurar que não contaria nada a ninguém, sobretudo a Alícia. Ele era um homem especial.

       - Sim - eu disse. Ele jamais quis admitir a idade. E fizera o possível para tornar a vida de Alícia cor-de-rosa.

       - Será que ela vai ficar bem? Posso lhe dar um remédio para dormir - sugeriu o médico.

       Aproximei-me dela, hesitando em tocá-la. Finalmente, consegui por a mão sobre seu ombro.

       - Alícia, o doutor perguntou se você quer um remédio para dormir.

       Ela balançou a cabeça, e muito devagar, afastou-se do corpo do marido. Seu olhar, perdido, vagava pelo quarto como se estivesse em um sonho. O doutor se aproximou dela.

       - É melhor você ir para sua cama - aconselhou. - Dormir é o único alívio para alguém que sofreu uma perda tão lamentável.

       Alícia concordou e permitiu que ele a ajudasse a caminhar. No momento que cruzaram a porta, ela se voltou e olhou para o corpo de Garland e recomeçou a chorar.

Aproximei-me deles e, afastando-os dali, fechei a porta atrás de mim. Não vi Malcolm por perto. Devia estar trancado em algum quarto da casa, mas eu não fiquei preocupada em localizá-lo. Ajudei o doutor a levar Alícia até o quarto do cisne, onde ele a colocou na cama se fosse uma criança.

       - Convém você ficar com ela por enquanto - ele me segredou.

       - É claro que ficarei.

       Estava me sentindo meio perdida ante tudo o que havia acontecido, mas não era o tipo de pessoa que perde o controle e o bom senso em situações como aquela.

Agradava-me perceber que o doutor sentira a minha habilidade em lidar com problemas no meio da crise. Alícia era, acima de tudo, uma criança.

       - Vou chamar o serviço funerário - ele sussurrou. Comunique-se comigo se precisar.

       - Obrigada, doutor.

       - Estou muito triste - disse ele - Garland era um homem gentil... Lamento muito.

       Olhei para Alícia. Seu rosto estava enfiado no travesseiro e ela soluçava baixinho.  Fui até a porta, tranquei-a e voltei para a cama de cisne sentando ao

lado dela.

       - Alícia, preciso saber o que aconteceu antes de eu chegar e encontrar aquela cena terrível. O que Malcolm fazia aqui?

       Nesse momento seus soluços se intensificaram.

       - Alícia, você deve me contar. Você não tem mais ninguém agora - acrescentei, pensando que aquele era um trunfo excelente para mim. Meu jogo deu certo; ela tentou conter os soluços e olhou para mim. Levou as mãos ao rosto, apertou-as contra os olhos numa tentativa de deter as lágrimas, depois puxou o cobertor e se escondeu.

       - Foi horrível, horrível - disse ela.

       - O que aconteceu?

       - Eu estava deitada aqui, lendo e me sentindo feliz pela festa, lembrando-me do quanto as pessoas pareciam contentes. Garland... - ao pronunciar o nome dele, voltou a chorar e depois continuou: - Ele estava feliz, tão orgulhoso.

       - Mas o que houve aqui? - perguntei de novo.

       - Não tranquei a porta. Às vezes... às vezes Garland vinha aqui no meio da noite. Quando ouvi um barulho, pensei que fosse ele, mas era Malcolm - disse olhando para a porta. Em seguida agitou a cabeça rapidamente, como se acabasse de rever o que havia se passado.

       - O que ele queria?

       - Ele queria - Fez uma pausa; parecia estar me contando algo muito indecente. - Ele queria... A mim - soluçou. A raiva avultava em seus olhos. - Veio se chegando para minha cama. Eu lhe disse que saísse dali, mas ele riu de mim e respondeu que eu não devia me preocupar, pois Garland estava dormindo. Disse-me coisas terríveis.

Que Garland era velho demais para me satisfazer e que agora eu ia precisar dele mais do que nunca, mas estava tudo bem, uma vez que ele era filho de Garland.

       - O que você fez?

       - Avisei-lhe que, se não se retirasse, eu ia chamar Garland, mas nem assim ele saiu. Então eu me sentei, preparada para gritar caso se aproximasse mais. Pressentindo

que eu ia gritar mesmo, ele avançou em minha direção e tapou-me a boca com uma das mãos, apertando-me contra o travesseiro. Em seguida começou a acariciar meu corpo

com violência. Tentei livrar-me dele, e ele acabou rasgando minha camisola. Durante a breve luta que tivemos, bati a cabeça no abajur e consegui gritar. Garland ouviu e veio em meu auxílio. Quando abri a porta, percebeu que Malcolm tentava me violentar.

       - Foi o que pensei - disse eu.

       - Garland avançou até a cama, agarrou Malcolm e o afastou de cima de mim. Começaram a brigar, Garland se pôs a xingar Malcolm, que tentava atingir o pai, enquanto dizia coisas obscenas contra ele, este quarto, sua primeira esposa e sua masculinidade. Os dois caíram no chão e continuaram a lutar, embora não estivessem se esmurrando. Finalmente Malcolm livrou-se de Garland e se arrastou para a porta, mas Garland estava furioso demais para deixar que ele escapasse. Pegou-o de novo e ambos voltaram a se atracar. De repente, Garland deu um grito, soltou Malcolm e caiu no chão, onde... Oh, Deus. Será tudo isso verdade? Garland está morto?

       - Infelizmente é verdade.

       - Garland, Garland, meu Garland...

       Alícia afundou o rosto no travesseiro, voltando a chorar. Eu sabia que ela ia chorar até a exaustão e depois cairia no sono. Não havia mais nada que pudesse fazer por ela. Deixei-a e fui procurar Malcolm.

       Encontrei-o no quarto de troféus e imaginei, que provavelmente, enquanto estive no quarto de Alícia, ele nos observava pelo buraco na parede. Estava sentado na poltrona de couro, olhando para a porta. Tinha a face extremamente pálida e os olhos arregalados e vazios como alguém que acabara de ver a própria morte. Suas mãos apertavam os braços da poltrona com tanta força que suas veias intumesciam sob a pele. Parecia estar segurando-se para não desabar.

       - O que foi que você fez? - perguntei.

       - Vá-se embora.

       - Sabe o que vai acontecer quando as pessoas souberem do que houve?

       - Ninguém vai saber. Não foi culpa minha, ele era um homem doente... o doutor atestará isso. Agora vá embora, deixe-me em paz - comandou, rilhando os dentes.

       - Você é uma criatura odiosa Malcolm. Você jamais será um homem feliz depois do que aconteceu.

       - A culpa foi dela, não minha?

       - Culpa de Alícia! - Eu quase ri.

       - Vá embora! - ele repetiu.

       - Tenho pena de você, Malcolm - afirmei, balançando a cabeça.

       Naquela hora, realmente tive pena de Malcolm. Não importava a máscara que estava usando para esconder os sentimentos, eu sabia que a culpa o perseguiria pelo resto da vida. Mais tarde essa culpa, de alguma forma se transformaria, mas agora ele era como uma faca cravada no coração. Bem, ele estava tentando aliviar a própria dor jogando a culpa sobre Alícia. Em sua mente perturbada ela fora responsável, porque lhe resistira e chamara Garland. Para Malcolm, mulheres sempre eram culpadas, nunca os homens. Alguns dias depois ele me diria que Alícia tinha a culpa, porque tentara seduzi-lo. Por isso recebera o castigo merecido. Censurava as atitudes de Alícia, dizendo que ela era um tipo acabado de mulher vulgar. Ele a amava e a odiava, como amava e odiava a mãe. Naquela noite, deixei-o sozinho sentado entre as sombras daquele quarto escuro.

       Foi um enterro imponente, apesar da oposição de Malcolm. Vieram pessoas de todas as partes; algumas, especialmente empresários amigos de Garland, percorreram longas distâncias para prestar sua última homenagem; vieram velhos amigos, parentes e muitos curiosos, pois era o enterro de um dos homens mais ricos da região. Malcolm queria que o corpo fosse cremado, e que depois houvesse uma cerimônia breve e simples. Garland, entretanto, havia previsto a indiferença do filho. Por isso deixara com o ministro da igreja um documento que determinava exatamente o que devia ser feito na ocasião de sua morte. Quando o reverendo Materson leu esse documento Malcolm não pode mais realizar seus planos. O funeral decorreu do modo que Garland programara, o dinheiro teve que ser gasto.

       Para Malcolm, a única coisa que lhe agradou foi o estado de Alícia antes, durante e depois do enterro. Ela estava sob o efeito de tranqüilizantes e movia-se com dificuldade, como uma sonâmbula em pleno pesadelo. Seus olhos eram vazios e ela não ouvia nada, não via ninguém, não dizia uma palavra. Sua mãe estava muito doente e não pode vir em auxílio da filha. Como havia dito na noite que Garland morrera, ela não tinha ninguém a não ser a mim.

       Eu a vesti de acordo com a ocasião, alimentei-a e verifiquei se Christopher estava sendo bem cuidado. Guiei-a através da cerimônia permanecendo ao seu lado e, algumas vezes, sustentando-a em pé. Pude perceber que as pessoas olhavam para nós duas e como estavam impressionadas com atenção e carinho que eu dedicava a ela.

A Sra Whipple, uma mulher de meia idade que fora a secretária particular de Garland durante anos, aproximou-se de mim:

       - Garland apreciaria muito o modo como você esta tratando e apoiando Alícia. Ele tinha muito orgulho dela. Muito orgulho.

       - Estou fazendo o que deve ser feito. Ninguém precisa me agradecer por isso - respondi.

       - Claro - concordou ela.

       A morte de Garland havia transformado todas as pessoas em estranhos, e Alícia olhava seus rostos como se não os visse. Consolá-la era uma tarefa difícil, uma vez que todos aqueles que ela havia conhecido através de Garland tinham morrido junto com ele. Para ela começara a transição para um outro mundo, um mundo sem Garland, sem seu sorriso e seu amor, um mundo formado por ecos e lembranças. O fato de conhecer esse mundo no qual ela estava prestes a entrar talvez tenha feito

com que eu me aproximasse tanto dela. De certa forma, era como se eu tivesse lhe dado as boas vindas, pois, naquele momento em diante, estaríamos juntas na mesma vida e sofreríamos a mesma solidão.

       Durante o mês que se seguiu, Alícia permaneceu praticamente enferma. Continuava sob medicamentos e ainda estava estressada. Freqüentemente, tínhamos de lembrá-la de fazer as coisas mais normais, como descer para o desjejum e o jantar. Usava vestidos simples e escuros. Sua face estava mais pálida do que nunca. O coração dolorido tornou seus olhos inexpressivos e distantes como os olhos dos animais empalhados do quarto de troféus. A única coisa que a iluminava um pouco era Christopher. Não fosse o filho provavelmente ela nunca sairia do quarto.

       Nos dias que sucederam a morte de Garland, Malcolm se comportava como se Alícia já não estivesse ali. Quando a via ignorava-a. Nunca lhe falava, tampouco perguntava sobre ela, que, por sua vez, também não lhe dirigia a palavra. Eu sabia que essa tinha sido a maneira encontrada por Malcolm para se eximir da culpa.

Talvez desejasse vê-la definhar e morrer, assim sua responsabilidade no que ocorrera jamais seria revelada. De certa forma, era claro, ela mesma havia aberto um espaço para que Malcolm agisse daquele jeito. Alícia andava pela casa como um fantasma e só vestia roupas de cores preta, azul marinho ou cinza escuro; os olhos de Malcolm.

       Os poucos jantares em que nos fizera companhia pareciam velórios. Ela comia devagar e mecanicamente. Malcolm sentava-se e olhava para frente; às vezes, perguntava-me

alguma coisa ou fazia algum comentário. Não havia diálogos, apenas perguntas e respostas. Mesmo quando comia, os dedos de Alícia tremiam. Cortava a carne devagar, laboriosamente, como se a faca estivesse cega, e nem sequer reparava no fim do jantar. Malcolm levantava-se de repente e deixava a mesa, e ela o olhava com ar surpreso.

Era como se tivesse acabado de se dar conta que estava sentada ali. Adquirira o hábito de ficar olhando com uma expressão patética para o lugar onde Garland se sentava.

A ausência devia feri-la profundamente a cada vez que se sentava à mesa. Sem dúvida era por isso que ela se desligava do fato de estarmos jantando.

       Quando seus olhos viam Malcolm, eu percebia que ela ficava confusa. Sabia que estava tentando colocar os eventos em determinada ordem, organizando-os de uma maneira que pudesse lidar com eles. Malcolm parecia tão calmo e senhor de si como sempre. Alícia não percebia qualquer diferença nele. Em sua mente, tudo devia parecer-lhe apenas um sonho. Talvez Garland chegasse para jantar a qualquer momento. Certa vez cheguei a pensar que, sentada no seu lugar, esperava que ele chegasse. Nessa noite tive que insistir que começasse a comer. Malcolm não permitia que a dolorosa presença de Alícia em nossos jantares o incomodassem. Seu apetite era bom, nada o perturbava.

Se o perseguia algum fantasma, eu nunca soube. Parecia satisfeito com o rumo que as coisas haviam tomado, especialmente quanto a sua relação com Alícia.

       Entretanto, além de me incomodar, a atitude de Alícia estava assustando as crianças. Um dia, finalmente, resolvi ter uma conversa séria, pois já era hora

de ela fazer um esforço para voltar ao normal. Eu esperava que uma vez recuperada da morte de Garland, ela pensaria em se mudar. Imaginei que gostaria de viver de novo em outro lugar, já que sua situação financeira seria excelente e lhe permitiria viver sem maiores problemas. Era jovem bastante para encontrar outro marido, o que lhe seria fácil com a fortuna que possuía. Que homem não gostaria de casar com uma mulher bonita, rica e mãe de uma bela e saudável criança?

       - Nenhum de nós esta feliz com o que aconteceu - eu disse - mas lembre-se de que você continua a ter responsabilidades. Você ainda é a Sra Garland Christopher Foxworth e, viúva de um excelente homem você tem que superar a dor e voltar a cuidar de seu filho.

       Ela ensaiou um choro. Contudo, mesmo sentindo pena ao vê-la sentada naquela cama, parecendo frágil como uma criança, eu não permiti que chorasse.

       - Que tipo de exemplo você dará para Christopher, Joel e Mal? Eles percebem o que se passa com você e o modo como vem agindo. Você está transformando esta casa em um permanente velório.

       - Ai, Olívia, eu não consigo aceitar que Garland está morto - gemeu ela, apertando uma mão contra a outra e fazendo-as girar como se estivesse torcendo um pano molhado.

       - Ele se foi, esse é o fato. Há algum tempo tivemos uma conversa sobre seu casamento e eu lhe alertei que ele morreria antes, mas na ocasião você pareceu não se importar.

       - Claro que eu me importava. Apenas não acreditava que isso poderia mesmo acontecer.

       - Tentei lhe avisar que não era saudável viver num mundo de sonhos. Agora você vive na realidade, na mesma realidade que comecei a viver desde o dia em que cheguei a esta casa.

       Ela olhou para mim fixamente. Havia compreendido o que eu queria dizer.

       - Você é muito mais forte do que eu, Olívia. Você não tem medo de nada; não teme ficar só.

       - A vida a fortalecerá. Ou, se não permitir que fortaleça, isso será a sua morte. É o que você quer? Quer deixar o seu filho?

       - Não

       - Estão desista dessa penitência e seja uma mãe de verdade.

       Alícia balançou a cabeça devagar concordando.

       - Eu sei que você está certa. Estou em falta com você sob muitos aspectos. Desde o primeiro dia que te vi, percebi que era uma mulher inteligente e hábil.

Malcolm jamais a intimida, não importa o que ele faça.

       - Vista-se e desça para o jantar. Acabe de uma vez por todas com esse luto

       Talvez eu devesse ter permitido que ela continuasse naquela melancolia mórbida. Talvez fosse melhor se a tivesse encorajado a permanecer encolhida em si mesma.

O fato, porém, é que minhas poucas palavras surtiram efeito. A partir daquela noite, ao descer para o jantar, ela iniciara um rápido processo de recuperação. Era como se tivesse acordado de um longo período de sono. Pintara os lábios e o rosto, escondendo a palidez; usava um belo vestido azul e colar de diamantes que Garland lhe dera. Eu chegara a me esquecer do quão bela e charmosa ela era. Não devia ter me esquecido. Quando ela apareceu na sala de jantar, percebi que não havia ressuscitado apenas sua beleza. Ao vê-la, Malcolm arregalou os olhos e a dura expressão de sua face sumiu. Ele não só a olhou com atenção, como também se dirigiu diretamente a ela depois do jantar. Reassumiu sua velha pose arrogante quando ia lhe explicar algum detalhe sobre o testamento de Garland e como pretendia investir seu dinheiro.

       - Levará algum tempo até que possa organizar tudo - prometeu. - Mas breve eu lhe explicarei qual a sua situação financeira.

       - Obrigada - respondeu ela.

       - Por que vai demorar tanto? - perguntei. - Quando meu pai morreu, não foi preciso tanto tempo para resolver os problemas do testamento.

       - Nosso caso é bem complexo. Meu pai insistiu em incluir algumas cláusulas muito complicadas no testamento. Nosso dinheiro está investido em várias áreas.

Seu pai era um homem de negócios, não um investidor. Nesta altura sua fortuna já deve ter dobrado - aduziu, olhando para mim.

       - Vai acabar tudo bem Olívia. Creio que não levara muito tempo - assegurou Alícia.

       Essa asserção deixou Malcolm satisfeito. Era como se o tivesse defendido. Se ela quer ser boba, melhor deixá-la, pensei. Sua reação continuou. Voltou a dedicar toda atenção a Christopher e como antes, passava a maior parte do tempo com as crianças. Comprou algumas roupas para ela e o filho e começou a reaparecer, a brilhar,

a ficar ainda mais bela do que antes. Eu via o modo como Malcolm admirava sua recuperação. Embora só se falassem quando era extremamente necessário, o ar polido com que Alícia se dirigia a ele me surpreendeu. Eu achava que ela certamente o culpava pelo que havia acontecido. Como conseguia olhar para ele depois de tudo o que houvera? Não sentiria mais ódio nem raiva? Seria tão inocente e pura que sentimentos de vingança não encontravam mais espaço em sua alma? Aquela tolerância,

aquele jeito amável, o retorno da felicidade me deixavam furiosa. Cheguei a desejar que ela estivesse conspirando contra Malcolm; gostaria até que me incluísse em algum plano de forçar Malcolm a dar mais dinheiro do que Garland lhe havia deixado. Esse era o único modo de o ferir - ter que dar a ela mais do que fora estabelecido.

       Porém, ela parecia confiar nele e não demonstrar pressa. Acaso não percebia o quanto era perigoso ser gentil com um homem como Malcolm? Não pude mais agüentar aquela situação, expus a ela o que pensava. Sua reação me surpreendeu.

       - Malcolm também deve estar sofrendo - ela disse. - Garland era seu pai. Ele tem que enfrentar isso.

       - Repare que ele tem convivido muito bem com a morte do pai - salientei - Você já o viu deprimido alguma vez? Está firme nos negócios tanto quanto antes.

Aliás, parece até contente por não ter mais Garland para controlar o que ele faz!

       - Talvez esteja só fingindo.

       - Fingindo? Você sabe que ele não queria gastar o que custou o enterro de Garland? Você sabe que até hoje ele reclama porque foi obrigado a essa despesa?

       Ela sorriu como uma freira recusando-se a aceitar que havia violência e crueldade no mundo que Deus criou. Tudo tinha uma razão de ser, um propósito, uma resposta que seria revelada mais tarde. Alícia era incapaz de admitir o mal que existia no coração dos homens.

       - Eu compreendo seus motivos. Ele não podia encarar tanta gente e suportar um velório e um enterro ostensivos: queria uma cerimônia simples, porque lhe seria mais fácil enfrentar.

       - Como você é tola - comentei. - A ele só importaram os custos, não o significado. Por que você não o pressiona para resolver logo a questão do testamento?

Quem pode afirmar que ele não vai fazer trapaça?

       - Eu nem sei como tocar nesse assunto, Olívia. Nunca tive uma cabeça muito boa para negócios. Ele cumprirá os desejos de Garland, tenho certeza.

       - Você quer definhar aqui para sempre? Você é jovem e ainda muito bonita. Acaso não sonha com uma nova vida?

       - Não sei - disse olhando ao redor. - Ainda não consigo me ver deixando esse lugar. O espírito de Garland continua aqui. Seu filho não deveria crescer nesta casa?

       Frustrada com tamanha inocência e simplismo, tive que me sentar.

       - E sobre um novo marido? Você não acha que, no caso de se casar outra vez, você poderá trazer seu marido para morar aqui? Você acredita que Malcolm iria tolerar isso?

       - Não quero nem pensar em um novo marido - disse sorrindo, como se a idéia fosse engraçada.

       - Você está enganada. Você devia estar planejando seu futuro e futuro de seu filho. Ninguém fará isso por você, muito menos Malcolm. Logo; esqueça o passado.

       - Há tempo para isso. Acho que ninguém está com tanta pressa.

       - Eu estaria.

       - Não creio.

       - Asseguro-lhe que sim - eu disse, com raiva. - Eu estaria. E ouça: algum dia você vai lembrar desta conversa e vai lastimar por não ter me ouvido.

       E esse dia chegou muito mais cedo do que eu esperava.

 

MALCOLM CONSEGUE O QUE QUER

       ALÍCIA JAMAIS SE ESQUECERIA DE MINHAS PALAVRAS, mesmo que tivesse fingido não as ouvir. Ela havia voltado a ser uma criança grande pelos corredores da casa; sua inocência e seu brilho iluminavam Foxworth Hall. Sempre que Malcolm se dirigia a ela, ou sempre que ela precisava falar com Malcolm, agia como uma garotinha que tinha que encarar o terrível dentista. Ela ouvia o que tinha que ouvir, falava o que tinha que falar e se retirava; em seguida, sua voz macia e seu sorriso voltavam como se, depois da tormenta, chegasse a calmaria.

       No entanto, as noites já não eram como antes. Depois do jantar, alimentar Christopher e colocá-lo na cama, ela evitava qualquer contato com Malcolm e, após algum tempo, me evitava também. Quando não saía de casa por uma razão ou outra, recolhia-se ao quarto, provavelmente para ler e relaxar. Muitas vezes, com ouvido colado a parede do quarto, eu a ouvia soluçar e conversar com Garland como se ele estivesse deitado na cama, ao seu lado. Eu quase acreditava que um amor tão forte como o deles poderia transpor os abismos entre a vida e a morte e se materializar por preciosos momentos a cada noite.

       - Oh Garland, como eu sinto a sua falta - ela dizia, chorando. - Como isso é difícil sem você. E o pequeno Christopher sente a sua ausência, Garland, meu

amor.

       Só então compreendi porque ela relutava tanto em deixar Foxworth Hall e porque não pressionava Malcolm a lhe dar seu dinheiro; enquanto ele não o fizesse, sua estadia ali era segura. Ela me fazia muita pena. Enquanto aqui permanecesse, enquanto dormisse no quarto do cisne, Garland estaria vivo em sua mente. Quando deixasse a casa, também estaria enterrando Garland em seu tumulo.

       Uma noite, em pleno inverno, acordei com o choro de Alícia. Não aprecia um choro dolorido, mas um choro de medo entremeado por gritos. Confusa, levantei-me e encostei a orelha na parede. Nesse momento o choro diminuiu, tornou-se quase inaudível. Vesti o robe, fui até a porta de seu quarto e chamei:

       - Alícia, Alícia, você está bem?

       Como não houve resposta, tentei abri a porta, mas estava trancada. Bati novamente e esperei. Mas uma vez, a única resposta foi o silêncio. Talvez tenha sofrido um pesadelo, pensei, voltando ao meu quarto. Pela manhã, Alícia parecia muito diferente. Voltara a se comportar como na época em que Garland morreu. Só desceu para o café da manhã depois que Malcolm partiu e comeu muito pouco.

       - Você está doente? - perguntei.

       - Não - respondeu, sem mais explicações. Levou a comida até a boca, mas desistiu, deixando o garfo cair sobre o prato.

       - Mas você parece doente, e além disso não está comendo nada.

       - Não estou doente - repetiu, olhando para mim com os olhos cheios de lágrimas.

       Eu fiquei em suspense, esperando que ela fosse me contar algum grande segredo, mas ela se limitou a morder os lábios e se retirou.

       - Alícia - chamei, mas ela não olhou para trás: retirou-se para o quarto e permaneceu lá quase todo o dia.

       Nas semanas seguintes, seu comportamento foi instável, às vezes falava seguidamente se mostrava cheia de energia, o que o me fazia supor que voltara ao normal, porém outras vezes ficava calada e deprimida. O porque dessa instabilidade emocional ela não pode me explicar - nem poderia.

       Certa noite fui novamente acordada pelo som do seu choro, e desta vez os gritos que entremeavam eram mais breves, cessando antes que eu decidisse ir ao seu quarto. Na manhã seguinte, movendo-se como uma pessoa insana, Alícia parecia cansada e sombria. Como eu e Malcolm já havíamos acabado de tomar o café da manhã, ela se alimentou sozinha, depois subiu e passou o dia inteiro no quarto do cisne. Finalmente, levada sobre tudo pela curiosidade, fui vê-la. Encontrei-a na cama, completamente vestida, contemplando o teto. Estava tão desligada que sequer me ouviu quando bati a porta e a abri. Nem quando me aproximei dela, percebeu minha presença.

       - Alícia - perguntei - você está doente? É algum mal-estar que vem e vai embora?

       Ela me olhou como se estivesse acostumada a se deparar com presenças súbitas no seu quarto. Não havia o menor ar de surpresa no seu rosto.

       - Doente?

       - Você novamente não comeu nada, e não passou sequer um segundo com seu filho. Você se recolheu há horas; e agora a encontro nesta cama, toda vestida.

       - Sim, estou doente - confessou e virou-se para o lado, fazendo sinal para que a deixasse.

       Contudo, eu estava determinada a saber o que estava acontecendo.

       - O que há de errado com você? Sente dores? Vem sentindo dores toda a noite?

       - Sim, venho sentindo dores.

       - Onde são as dores?

       - No meu coração.

       - Ora... - Balancei a cabeça e olhei para ela. - Creio que passará por isso até que vá embora daqui - eu disse.

       Seus lábios se contraíram e a vi levar as mãos ao rosto.

       - Chorar não irá ajudar em nada; a única coisa que pode ajudá-la é fazer o que eu disse. Se você quiser partir, posso pressionar Malcolm a concluir finalmente o processo do inventário e lhe entregar seu dinheiro. Sinceramente, acho que será melhor para todos. Você não se dá conta de como está deprimida e...

       - Oh, Olívia - ela me interrompeu. E repentinamente, tirando as mãos do rosto, voltou-se para mim. Jamais havia visto aquele olhar de loucura em seu rosto.

- Olívia, você é tão inteligente, tão forte. Tem certeza que não sabe o que está acontecendo?

       Olhei fixamente para ela, e por um momento não pude falar. Ela mordeu o lábio inferior e balançou a cabeça como se estivesse resolvendo não falar mais nada.

       - O que é? Conte-me.

       - Você sabe. Sempre soube. Você esperava por isso. Eu percebia no seu rosto, mas tinha medo de lhe dizer qualquer coisa.

       - Malcolm! - exclamei e, passando os olhos pelo quarto, compreendi que aquele lugar, aquela cama magnífica e a sensualidade daquele ambiente também eram responsáveis.

Por que teria ela continuado naquele quarto após a morte de Garland? - Diga-me exatamente o que aconteceu Alícia.

       Ela respirou fundo, enxugou as lágrimas e quase murmurando, confessou:

       - Ele tem vindo aqui de noite, e me força a ter relações com ele.

       Pressionei os dedos contra as palmas de minha mão com tanta força que as unhas me cortaram a pele. Certamente eu já sabia o que ela ia me contar. Eu fora ao seu quarto e a forçara a dizer não só para me punir, mas também para puni-la. O que quase fora ensaiado no lago o que Garland evitara com sua morte havia finalmente acontecido. Desde o dia que Alícia chegara e Malcolm a vira saindo do carro com Garland, eu sabia que o evento seria inevitável. Percebi isso no modo que Malcolm olhava para ela naquele dia e no modo como continuou olhando toda a vez que a via pela casa, os cabelos castanhos caindo sobre os ombros e os olhos brilhando cheios

de vida.

       - Por que não trancou a porta?

       - Tranquei, mas ele tem uma chave. Não precisou usá-la até a morte de Garland. Nunca lhe contei isso, mesmo antes de Garland morrer, ele entrava aqui; sabia que não costumava trancar a porta por causa de Garland. Pois bem, uma vez ele entrou, mas não esperava que fosse ele. A princípio, achei que fosse Garland, mas quando abri os olhos vi que era Malcolm e rapidamente fingi que estava dormindo. Ele se aproximou da cama e ficou me olhando por um longo tempo. Pensei que se eu fizesse um movimento, por menor que fosse, ele me... ele me atacaria. Então permaneci imóvel. Ele acariciou meus cabelos e eu senti que estava me olhando fixamente.

       - E você nunca contou isso a Garland?

       - Não. Tinha medo da reação dele e, como você viu, com toda a razão, pois o caso se transformou em uma tragédia. Oh, Olívia, Olívia.

       - Então, você tranca a porta e mesmo assim ele entra. Por que lhe permitiu entrar agora, se Garland já esta morto?

       - Ele me ameaçou, disse que, se eu não permitisse, ele machucaria Christopher. Daria um jeito de fazê-lo, não lhe seria difícil. Ele afirmou que ninguém mais poderia impedi-lo de fazer o que quisesse. E algumas vezes ele é violento.

       Sentei-me ao lado de Alícia com o coração batendo acelerado. Lembrei-me da primeira vez que eu e Malcolm tivemos relações e de como ele fora grosseiro. Ela tinha razão em temer que Malcolm machucasse Christopher. Ele era bem capaz de qualquer violência para obter o que desejava.

       - Há quanto tempo isso... isso tem acontecido?

       - Há mais de um mês. Às vezes ele vem, outras não.

       - Um mês?

       Eu não imaginava que o caso tivesse tanto tempo. Como pode ela guardar um segredo como aquele durante todos aqueles dias? Alícia sentou-se na cama.

       - A primeira vez que veio, pensei que fosse um sonho, um pesadelo. Era de madrugada. Entrou no meu quarto tão silencioso que só percebi quando estava deitado ao meu lado. Voltei-me e lá estava ele, completamente nu. Abraçou-me e pressionou sua boca contra a minha antes que eu pudesse dizer alguma coisa ou soltar um grito.

Tapou minha boca por tanto tempo que achei que ia morrer sufocada.

       - E depois?

       - Fiquei apavorada. Tive medo dele, não por temer que me machucasse, mas pelo modo como estava agindo, pelas coisas que me dizia.

       - Que coisas?

       - Enquanto agarrava meu corpo e beijava meus seios não me chamava de Alícia.

       Por um momento fiquei sem ar. Apertei meu peito com as mãos e tentei engolir a saliva. Eu sabia, do funda da minha alma, o que ela iria me dizer e estava aterrorizada por ter que ouvir.

       - Me chamava de Corrine. Pensei que ele estava tendo um sonho, uma crise de sonambulismo, então tentei conversar com ele, tentei convencê-lo a voltar ao seu quarto, mas ele não me ouviu. Ele me apertava, não muito agressivo, mas de modo tão intenso, persistente. Tentei empurrá-lo para fora da cama, mas não consegui,

ele é muito forte. Finalmente procurei resistir, mas ele segurou meus braços e quando eu quis gritar, ele pressionou a sua boca contra a minha com tanta força e violência que temi pela vida. Tive que reprimir os gritos e deixá-lo fazer o que queria. Foi horrível, horrível, - repetiu ela, escondendo o rosto com as mãos.

       - E depois, ele continuou chamando você de Corrine?

       Ela olhou para mim e balançou a cabeça.

       - Quando tudo terminou e ele estava saciado, sabia exatamente quem era e onde estava. Foi quando me disse para não contar a ninguém o que ocorrera, ou ele machucaria meu filho. Pensei que seria aquela a primeira e última vez, até rezei para que fosse; porém ele veio de novo, de novo e de novo. Ele esteve aqui na noite passada.

       - Uma vez escutei seu choro e seus gritos e vim até a sua porta, você não me escutou quando bati e a chamei?

       - Sim, mas ele estava com as mãos em volta do meu pescoço e me apertava tanto que eu não podia respirar. Quando ele a ouviu, aproximou seu rosto do meu e me proibiu de soltar um som, qualquer que fosse eu sabia que me mataria se eu lhe respondesse.

       - Por que você não me procurou antes disso acontecer?

       - Eu já lhe disse. Por causa de Christopher. Parece que Malcolm sempre consegue o que quer. Se você conseguir detê-lo, ele se vingará mais tarde, não percebe?

Desculpe-me Olívia. Sei que devia ter lhe contado antes, mas tive medo. Por favor, perdoe-me.

       Eu não podia culpá-la por ter medo. Muitas vezes eu mesma tive medo de Malcolm. Deixei-me ficar sentada em silêncio por alguns segundos, pensando naquele quarto e no que Malcolm tinha feito. Era como se o espírito de sua mãe ainda morasse ali, ainda o atormentasse. Sim, Malcolm era um homem perturbado, pois mesmo após a terrível e fatal cena da morte de seu pai, ele voltara aquele quarto para procurar Alícia, que ali se imaginava segura; ela achava que, depois de ter causado a morte do próprio pai, Malcolm não a procuraria de novo - não naquele quarto.

       - Ele sempre começa lhe chamando de Corrine?

       - Sim.

       - E sempre termina sabendo que você é Alícia?

       - Nem sempre. Às vezes ele se vai sem me chamar de Alícia. Simplesmente se levanta e sai como se fosse um sonâmbulo. De certa feita, a terceira vez que veio, obrigou-me a fazer uma coisa horrível. Ele é louco.

       - Obrigou a fazer o que?

       - Antes de ele se deitar ao meu lado, foi até o quarto de vestir, tirou de lá uma camisola e fez que eu a pusesse na sua frente. Tive que andar pelo quarto

e me sentar a penteadeira. Ele fez com que eu pegasse a escova de cabelos de Corrine e me penteasse, enquanto ele observava da cama. Mandou que eu fosse ao banheiro e saísse de lá como se estivesse preparada para ir para a cama. Eu me senti muito mal fazendo essas coisas, mas não podia dizer não. A cada vez que eu hesitava, ele ficava furioso.

       Horrível, pensei. Dei uma volta pelo quarto e olhei a parede que separava o quarto do cisne daquele dos troféus. Então a raiva cresceu dentro de mim e eu voltei-me para Alícia.

       - Quando se mudou para esse quarto, você deveria ter levado todas essas roupas para o sótão - eu disse.

       - Mas como eu podia ter antecipado o que iria acontecer?

       Não podia, porém, deixar de considerá-la responsável; ninguém tem o direito de ser tão inocente e crédula. Praticamente lhe tinha implorado que ouvisse meus conselhos. Ela fora tola e teimosa insistindo em manter um caso amoroso com quem já estava morto. E ela poderia estar mentindo; talvez tivesse gostado do que Malcolm lhe fizera e continuava fazendo, só que agora se sentindo culpada por isso. Alícia era o tipo de mulher que usa o sexo como uma roupa íntima estimulante e sedutora.

       - Você fez alguma coisa que pudesse tentá-lo? Alguma vez você o convidou a vir até seu quarto?

       - Não. Oh, não! Você não pode acreditar nisso Olívia. Eu não fiz nada, nada - protestou ela. - Uma vez ele me seguiu até o lago, onde eu fora dar um mergulho e tentou me seduzir. Afastei-me dele o máximo que pude e ameacei-o de contar tudo a Garland se não parasse de me perseguir.

       - Por que você nunca contou isso a Garland?

       - Eu não queria que acabasse acontecendo o que acabou acontecendo. Você acha que eu sou a responsável pela morte de Garland, que se eu tivesse contado a ele sobre Malcolm mais cedo teria evitado sua morte? Você acha Olívia?

       - Não sei. Talvez sim, talvez não. Talvez ele até tivesse morrido mais cedo - eu disse. E olhando para ela com desconfiança perguntei: - Afinal, por que você está me contando isso? Tem medo do que Malcolm possa fazer a Christopher?

       - Achei que agora eu precisava contar.

       - Por quê? Que diferença existe agora?

       - Oh Olívia. Estou vivendo um problema terrível - queixou-se voltando a chorar.

       - Não posso ajudá-la se não me contar tudo. Vamos, conte-me o que é.

       - O problema é que...

       Nesse momento senti todas as sombras de Foxworth Hall pairando em volta de mim e esperando a ocasião de me tragar para dentro de suas trevas.

       - O problema é que... estou grávida de um filho de Malcolm.

       Levante-me e fui até a janela. Avistei Olsen lá embaixo podando as plantas e pensei: Aqui tenho tudo isto - toda esta terra, esta casa maravilhosa, dois filhos lindos e saudáveis; porém sou a mulher mais infeliz do mundo. Não me parecia justo; era apenas uma piada de mau gosto. Desejei que tudo fosse apenas um sonho - meu casamento com Malcolm, a morte de meu pai e de Garland, o filho que Malcolm fizera em Alícia - um sonho do qual eu pudesse acordar. Pensei no quanto gostaria de ainda estar na casa de meu pai, mesmo com todas as perspectivas de ser uma solteirona pelo resto da minha vida.

       - Por favor, não me odeie - ela implorou.

       Contudo, eu a odiei; não podia evitar esse sentimento. Eu a odiaria para sempre, assim como odiaria todas as mulheres iguais a ela. Fechei os olhos, endireitei o corpo e me controlei. Jurei a mim mesma que nada que Malcolm Neal Foxworth houvesse feito ou viesse a fazer me reduziria ao estado em que Alícia se encontrava.

Voltei-me para ela, lentamente. Ela percebeu em meu rosto que eu tinha uma solução para seu problema e sentou-se na cama.

       - Malcolm sabe da sua gravidez?

       - Sim, contei-lhe esta manhã.

       - Esta manhã? Quando? Tomamos café da manhã juntos e ele saiu antes de você descer...

       - Passei a noite em claro. Na noite passada eu quis lhe contar, mas ele saiu do quarto como um sonâmbulo e eu sabia que não ia me ouvir. Por isso hoje de manhã, antes de ele acordar, eu fui ao seu quarto - confessou ela, com os olhos baixos.

       - Você foi ao quarto de Malcolm quando ele ainda dormia?

       Depois do que havia acontecido, nada devia ter me chocado, porém durante todos esses anos de casada eu jamais entrara no quarto de malcolm enquanto ele se encontrava lá.

       - Sim, entrei e me pus ao lado da cama até que ele percebesse que eu estava lá. Quando abriu os olhos, olhou-me como se eu fosse um fantasma. Levou algum

tempo para me identificar. A princípio ficou furioso, mas eu tinha que contar a ele, entende? E antes que falasse qualquer coisa, despejei sobre ele tudo o que tinha

que dizer.

       - E ele? - perguntei, lembrando-me de como ele se havia comportado durante o café; de como se mostrava trivial e calmo. Depois lembrei-me de que aquele comportamento, aquela "máscara impenetrável", aquele jeito frio e controlado era o seu maior trunfo no mundo dos negócios, era o que lhe possibilitava passar a perna em seus concorrentes.

       - Primeiro ele riu - disse Alícia - mas foi de um jeito frio, o que me assustou. Em seguida disse um monte de coisas horríveis, fazendo recair sobre mim a culpa de tudo. Eu quis gritar, chorar, mas tive medo de acordar a casa. Ele me deu um ultimato. E agora não sei o que fazer. Tenho certeza de que se não concordar, ele vai cumprir sua ameaça. Tenho medo, por mim e por Christopher.

       Agora eu compreendia que Alícia estava se preparando para pedir minha ajuda. Ela estivera deitada ali o dia todo, tentando descobrir um jeito de me contar o que estava acontecendo. De certa forma, eu lhe havia facilitado as coisas indo até seu quarto.

       - Que ultimato foi esse?

       - Ele quer que eu fique aqui e tenha a criança em segredo. Depois eu e Christopher teremos de partir. Ele nos dará o dinheiro de Garland deixou. Explicou-me que aplicou esse dinheiro na bolsa de valores, mas vai nos dar o suficiente para que eu possa recomeçar minha vida em outro lugar e que, então, eu terei o controle

sobre esse dinheiro.       - Mas por que razão ele quer que você tenha o bebê em segredo? Que diferença faz se você partir e tiver o bebê em outro lugar, onde ninguém a conheça?

       Ela olhou para o chão. Senti que ainda tinha uma coisa terrível para me dizer.

       - Ele quer o bebê - sussurrou Alícia.

       - O que?

       - Quer o filho. O bebê será dele, será de vocês - explicou ela - disse que, se eu não concordar, vai me acusar de ter dado o golpe do baú. Como engravidei depois da morte de Garland, ele pode me processar; seus advogados podem me levar a julgamento e provar que sou uma mulher a toa que se casou com um homem idoso apenas para me enriquecer após a sua morte; e que depois do marido morto me entreguei a Malcolm para extorquir mais dinheiro. Ele disse não se importar sobre o que possam dizer sobre os Foxworth, que a publicidade não o iria afetar; só afetaria a mim. Disse mais: que me poria daqui para fora sem um tostão e que faria do caso um escândalo.

Minha reputação ficaria manchada para sempre, ninguém desejaria ser visto ao meu lado. As manchetes e a publicidade matariam minha mãe, que está muito doente. Eu nem saberia enfrentá-lo. Não tenho advogado nem qualquer contato com gente desse tipo. Garland sempre cuidou de tudo e depois de sua morte é Malcolm quem lida com todos os papéis. Ficarei sem o menor apoio, serei apenas uma viúva com um filho de três anos a mercê do mundo impiedoso.

       - Ele quer a criança?

       - Sim. Ele disse que será uma menina. Ele quer que eu fique escondida na ala norte da casa até o bebê nascer. Então estarei livre para partir com Christopher e a minha parte da herança. - Ela apertou as mãos e me olhou com seus olhos tristes. - Oh Olívia, o que devo fazer? Você tem que me ajudar a decidir.

       Fitei-a e, por um momento, senti-me completamente impotente. Malcolm Neal Foxworth sempre obtinha o que queria, não importava como. Queria uma filha e agora ia tê-la. Eu estava certa de que o bebê de Alícia seria uma menina. Tudo isso vinha acontecendo bem debaixo do meu nariz; eu suspeitava, eu sentia, mas me recusava

a acreditar e agora eu sentia o gosto amargo da verdade. Eu não podia simplesmente fechar os olhos e dar as costas a tudo, pois era tão responsável quanto Alícia, uma vez que nada havia feito para impedir o pior. Eu estava na posição da mãe que tem que assumir a responsabilidade dos atos de sua filha indefesa e inocente. Malcolm havia usado Alícia da pior maneira que um homem pode usar uma mulher, e ela estivera só e indefesa para proteger-se dele.

       O pior de tudo era que ela estava grávida de uma criança que deveria ser minha. Se estava escrito que uma menina nasceria em Foxworth Hall, essa menina tinha que ser minha e não de Alícia. Eu a invejei, mas não pude respeitá-la. Contudo, naquele momento sentia até uma certa simpatia por seu erro e seu castigo.

       - Olívia - repetiu ela. - O que devo fazer?

       - Fazer? - repeti. - Creio que você já vez o bastante.

       Olhei para ela e seus olhos fugiram dos meus, sentindo-se culpados. Ela sabia que não devia ter deixado as coisas chegarem a esse ponto; ela agora sabia disso, mas estava esperando de mim uma solução que a salvasse. Vi meu reflexo no espelho da penteadeira e percebi que meu rosto já tinha a dureza que o caracterizaria pelo resto da vida. Eu estava me olhando e vendo meus olhos de granito, meus lábios finos e tensos pressionados um contra o outro e curvados para baixo, meus seios grandes como duas montanhas de concreto.

       - Olívia... - sua voz estava cheia de lamúria.

       - Só lhe resta fazer o que ele quer - sentenciei. - Comece a juntar suas coisas. Teremos de fazer planos e nos preparar. Comece a dizer às pessoas que você vai deixar Foxworth Hall; assim, quando você se esconder, ninguém vai sentir sua falta.

       - E Christopher? Será muito difícil escondê-lo.

       - Ele não ficará com você - eu disse, juntando as idéias a medida que falava.

       - Como está dizendo?

       - Vai se espalhar por aí que partirá numa longa viagem, durante a qual Christopher ficará comigo. Quando você voltar, deixará a casa. Esta viagem será feita para preparar sua nova vida. Ninguém precisa saber de detalhes, especialmente os empregados. Nós os deixaremos pensar que você parte a procura de um novo marido - acrescentei, satisfeita com esta última invenção. O rosto de Alícia era uma mistura de assombro e desgosto.

       - Ficar longe de meu filho todos esses meses? Mas ele é apenas um garotinho de três anos, além disso, acabou de perder o pai. Ele precisa de mim. Sei que é muito apegado a Mal e Joel, mas...

       - Eles serão proibidos de entrar na ala norte da casa - continuei, ignorando as objeções. - Você ficará com o quarto final, que tem um banheiro anexo - ajuntei - aquele que achou tão excitante por causa da escadinha que levava ao sótão.

       - Mas este quarto está sujo e empoeirado, está uma bagunça. Não poderei viver ali.

       - Você terá que tornar isso possível - insisti. Era preciso fazê-la entender que tinha parte da culpa e que era também responsável pelo que estava acontecendo a ela e o filho.

       - E as aulas de Mal e Joel, como eles irão até a sala de aula?

       - Devemos suspender essas aulas agora não é? - disse eu, feliz por ter um bom motivo para agir assim. - Malcolm terá que concordar. Os garotos serão matriculados em uma escola. É preferível eles ficarem longe de casa o maior tempo possível, assim as chances de descobrirem o que está ocorrendo serão menores.

       - E as criadas, os serventes?

       Alícia estava se agarrando a qualquer coisa que pudesse conjurar seu destino. Eu achava graça nas suas perguntas desvairadas, na sua esperança de encontrar uma razão provando que o plano de Malcolm não era viável.

       - Os que temos agora serão demitidos. Partirão cientes de que você também vai partir e sabendo que eu estou grávida. - acrescentei.

       O fato dos empregados virem a acreditar que eu estava grávida me agradou. Era quase como se estivesse realmente esperando um bebê.

       - Mesmo a Sra Wilson?

       - Todos eles. Olsen, talvez não. Ele não anda muito pela casa e é meio obtuso. Acho que a demissão dele não será necessária, além disso, gosto do modo que cuida dos jardins.

       - E a criada que irá cuidar de mim? Ela acabará sabendo.

       - Você não terá criada. Quem vai cuidar de você sou eu.

       - Você?

       - Vou trazer-lhe tudo o que precisar - prometi. Ela ia depender de mim para tudo. Para trazer comida, lavar as roupas e até escovar os dentes.

       - O médico - exclamou finalmente, como se estivesse encontrado o jeito de escapar do plano.

       - Não vamos precisar de médico. Mais tarde entraremos em contato com uma parteira. Você é jovem e saudável. Não haverá problemas.

       - Estou com medo - disse ela.

       - Que alternativa você tem? - a cada frase eu sentia meu poder crescendo; minha mente trabalhava depressa, resolvendo cada imprevisto, estabelecendo cada detalhe. Pela primeira vez, desde que chegara a Foxworth Hall, eu me sentia no comando, no controle. Sim, agora era a verdadeira senhora de Foxworth Hall. - Você está certa ao pensar que Malcolm cumprirá suas ameaças. Como se sente com um filho dele na barriga, depois de tudo o que ele fez? Você acabará descarregando toda a sua frustração e dor sobre esse filho que vai nascer.

       - Jamais...

       - Uma mulher sem um centavo e com duas crianças para criar... Melhor apenas uma criança, não acha?

       - Não sei se conseguirei fazer o que ele quer - lamentou-se. Depois olhou suas mãos que estavam sobre o ventre, e levantou os olhos na minha direção. Sua expressão era resignada. - Só se você estiver comigo e me ajudar.

       - Eu já lhe disse o que vou fazer, mas não passarei o meu tempo na ala norte lhe paparicando. Não se iluda quanto a isso também.

       Resignada com o destino, ela concordou. Dizer-lhe essas coisas me fez sentir mais poderosa. Eu não podia ser tão esbelta e bonita quanto era ela, mas finalmente podia provar-lhe que a beleza era seu maior defeito, pois estava levando Alícia a trilhar os caminhos mais dolorosos, caminhos que eu jamais escolheria para mim.

Era estranho, mas eu pensava em Alícia do mesmo jeito que pensava nos pequenos habitantes da minha casa de bonecas. Eu costumava me sentir frustrada por não poder movê-las. A única coisa que podia fazer era imaginar o movimento delas. Com Alícia era diferente, eu podia movimentá-la. Podia fazê-la sorrir ou chorar. Ela estava em minhas mãos, tão indefesa quanto uma bonequinha.

       - Terei que conversar com Malcolm - disse eu - devo pedir a ele que me explique os detalhes que se referirem a dinheiro.

       Ela me olhou cheia de esperança. Estava acontecendo, eu já conseguia movê-la. Seu coração pulsava de expectativa. Eu havia feito com que o sangue fluísse em suas veias com uma simples frase.

       - Talvez você consiga fazer com que ele mude de idéia. Talvez você consiga fazê-lo ver que a melhor decisão é me deixar partir.

       - Talvez. Mas não acredito nisso. Malcolm nunca volta atrás.

       - Mas ele lhe escutará.

       - Quando quer: somente quando lhe interessa e quando minha opinião se encaixa em seus propósitos.

       - Esse plano não dará certo sem a sua cooperação. Você pode se recusar a participar de tudo.

       - Eu poderia fazer o que está sugerindo, mas não será a melhor alternativa para você, não é? - Se havia uma coisa que eu não toleraria naquele momento, era deixar que ela tomasse as decisões por mim. - Ele simplesmente iria cumprir suas ameaças. Você tem que ver as coisas sob outro ângulo. Sem a minha cooperação, você iria deixar essa casa sem um centavo.

       O sorriso de esperança se evaporou. Sentia-me como se estivesse manuseando um fantoche. Puxava um simples cordão e ela ficava deprimida. Daquele dia em diante, ela só cantaria e flanaria pela casa se eu quisesse; seu brilho e sua alegria de viver não existiriam mais, a não ser que eu concordasse. Ela se atirou sobre a cama e começou a chorar.

       - Eu também não agiria assim, Alícia. Você deve se manter forte e saudável. Se cair nessas crises e alguma coisa acontecer ao bebê...

       - Sim?... - ela estava aterrorizada. Seus olhos ficaram arregalados e sua boca entreaberta.

       - Não sei o que Malcolm faria; provavelmente acreditaria que você fez o bebê de propósito.

       - Jamais. Eu jamais faria uma coisa assim.

       - Lógico que não, mas Malcolm não acreditaria. Não vê? Você terá que se alimentar bem e manter o seu bom humor.

       - Mas Olívia, eu me sentirei... presa.

       - Sim - disse eu - eu sei. Mas todos nós, de uma forma ou outra, estaremos presos. Ironicamente sua beleza a aprisionou.

       - Algum dia ela me libertara - disse Alícia com ar de desafio.

       Olhei bem nos seus olhos, sorrindo.

       - Espero que sim minha querida. Mas agora considere-a seu carrasco. Quem sabe o que Malcolm poderá fazer na próxima vez que olhar para você? Sabemos que ele vê e não queremos que ele volte a importuná-la. Naquele quarto da ala norte você estará ainda mais desprotegida do que aqui. - Eu estava pensando alto. A ameaça que minhas palavras sugeriam fez com que a expressão de terror nos eu rosto se acentuasse.

       - O que devo fazer? Não posso deformar meu rosto. Não posso ficar feia da noite para o dia.

       - Não, você não pode. Entretanto, se eu fosse você, cortaria os cabelos o mais rápido possível.

       - Meus cabelos! - exclamou ela, papando-os com as mãos como se eles já estivessem curtos - Não posso cortá-los. Garland adorava meus cabelos. Ele ficava horas mergulhando neles os seus dedos, acariciando-os, cheirando-os.

       - Garland esta morto Alícia. Além disso, depois você pode deixá-los crescer. Certo? - ela não respondeu - Certo? - insisti. Daí para frente eu sempre insistiria em obter uma resposta.

       - Sim - ela disse baixinho.

       - Antes de espalharmos que você vai partir e antes que você se retire para a ala norte, eu mesma os cortarei.

       Ela meneou a cabeça devagar, concordando. Mas não havia sido o suficiente para mim.

       - Eu disse que os cortaria para você.

       - Obrigada Olívia.

       Sorri.

       - Farei o que estiver ao meu alcance - prometi. - Mas você tem que se lembrar que eu também estou em uma posição peculiar e desconfortável.

       - Eu sei. Lamento muito, acredite.

       - Acredito em você.

       Ela se deitou e eu saí do quarto do cisne fechando a porta atrás de mim, suavemente. Segui até o alto da escadaria e olhei em torno. Avistei o imenso vestíbulo da casa. Lembrei-me da primeira manhã, quando havia parado naquele mesmo lugar, olhando para baixo; como sentira a minha altura aumentar a cada passo que eu dava.

Iria ser a senhora dessa mansão. Muitas coisas tinham acontecido, ameaçando a minha autoridade e minha posição, porém agora, ironicamente, descendo aquelas escadas, me senti bem mais alta, bem mais forte e bem mais experiente.

       A Srta Steiner, que vinha do quarto de Malcolm, onde acabara de fazer a faxina habitual, surpreendeu-me. Ela caminhava com tanta leveza, que cheguei a suspeitar que tivesse ouvido tudo que Alícia dissera, bisbilhotando através da porta do quarto.

       - A Sra Foxworth esta se sentindo mal? - perguntou. Era sempre muito difícil para os empregados se referindo a Alícia como Srta Foxworth quando se referiam a mim. Eu sabia que ele gostariam de dizer "a jovem Sra Foxworth" ou então chamá-la pelo prenome. Encarei com serenidade e ela baixou a cabeça. - Bem, eu gostaria de saber quando poderei limpar o quarto dela.

       - Você não precisa fazer isso hoje.

       - Está bem, madame.

       - Ela está com dor de cabeça - acrescentei - mas não é nada sério.

       A Sra Steiner balançou a cabeça concordando. Observei-a descendo as escadas com presa, ansiosa para estar, o mais rápido possível, fora de meu alcance. Mesmo estando aqui a tanto tempo e sendo tão bem paga, ela certamente não se importaria de ser despedida, pensei. Malcolm providenciara para que ela e os outros sejam bem indenizados. Com o tempo, direi a ele quantos serviçais eu quero que sejam contratados. Esses novos serviçais receberão ordens rigorosas para não pôr os pés na ala norte. Agora haveria muitas coisas para Malcolm fazer. Ele teria que acatar minhas ordens por muitas razões. Assim que chegasse em casa, eu o confrontaria com a confissão de Alícia; já podia imaginar a explicação que ele me daria. Eu tinha certeza que estava escolhendo uma hora e local apropriado para me contar o que acontecera e o que aconteceria. Mas eu iria fazer com que sua estratégia fracassasse, e daria o melhor de mim para acabar numa posição melhor que a dele.

       Tudo naquela casa ia depender de mim e estaria sobre meu controle, até mesmo Malcolm; ele dependeria de mim de um modo que ainda não entendia nem podia prever.

Porém, aquela compreensão não era grande o suficiente para reparar o muito que me havia faltado, coisas que eu sempre sonhara em possuir. Eu não menti quando disse a Alícia que todos nós somos prisioneiros. O que havia decidido, depois do que Alícia me contara sobre ela e Malcolm, era que eu concordaria em estar presa aquele mundo. Aceitando isso, eu me tornaria senhora de minha própria prisão.

 

O JEITO DE MALCOLM, O MEU JEITO

       ARROGANTE COMO SEMPRE, Malcolm não mostrava nenhum remorso, nenhuma culpa, nenhuma vergonha. Quando chegou em casa naquela noite, eu o segui até seu gabinete particular, onde ele ia todas as noites antes do jantar. O gabinete era um lugar proibido para as pessoas da casa, exceto ele e a criada que, uma vez por semana, o limpava. Quando abri as portas duplas de madeira, sem bater, ele me olhou furioso.

       - O que veio fazer aqui, Olívia - perguntou irado.

       Endureci meu rosto, tornando-o de pedra, e inclui um tom arrogante em minha voz.

       - Vim aqui conversar sobre seu novo filhinho - comecei, e a seguir confrontei-o com o que Alícia havia me contado.

       Atirei na sua cara detalhe por detalhe e desabafei minha raiva da sua lascívia e audácia. O céu estava escuro. Caía uma furiosa tempestade de primavera. Atrás da mesa de Malcolm, no alto da janela, nuvens negras varriam o céu, prontas para nos consumir. Entretanto, não podia estar mais negras e raivosas do que eu, e se alguém ia consumir alguma coisa naquele dia, esse alguém seria eu.

       - Você está se excedendo Olívia. - reclamou ele ajeitando as canetas na mesa.

       A luminária em cima da mesa lançava um raio de luz na face de Malcolm, sombreando-lhe os olhos. Ouviu-se o espocar de um trovão e as luzes se apagaram. Encerrados naquele gabinete, com as janelas fechadas para impedir a entrada da chuva que agora desabava furiosamente batendo contra os vidros e açoitando as janelas, parecíamos dois presos na mesma armadilha. Malcolm se pós a olhar alguns papéis em sua mesa. Mesmo naquela situação ele parecia estar calmo e controlado. Seu rosto estava seco, sua expressão relaxada. Olhava os papéis como se aquela conjuntura não tivesse a menor importância. Esperei pacientemente, vendo-o separar seus papéis em duas pilhas.

Sabia que ele estava me ignorando. Tratava-se de uma guerra entre nossas vontades. Eu não pretendia chorar, não gritar nem exibir um papel de esposa traída; era isso, exatamente o que ele esperava que eu fizesse. A histeria só iria me enfraquecer, e eu acabaria perdendo o controle e a dignidade. Finalmente, ele me fitou nos olhos.

       - Olívia, eu queria uma menina, e agora eu a terei - disse muito calmo.

       - Que direito tem você de supor que eu aceite o filho de um pecado abominável cometido em minha própria casa? Você resolveu levar adiante sem a minha cooperação? - perguntei.

       Minha voz continuava baixa, eu mantinha os braços curvados diante do corpo e as mãos levemente cruzadas. Não permiti que a minha postura expressasse a tensão que crescia dentro de mim. Havia aprendido com Malcolm a colocar uma couraça sobre mim mesma nesses momentos.

       - Achei que você estaria de acordo - ele disse com ar maroto, e sentou-se confortavelmente em sua poltrona. - Lembre-se Olívia, quando falamos da primeira vez sobre nosso casamento, combinamos que você me daria uma grande família. Fui claro em dizer que era minha maior exigência. Eu tinha e continuo tendo idéias definitivas de como uma mulher Foxworth deve ser. Você conhecia o meu desejo, e falhou em relação a isso.

       - Não é um julgamento justo. Não foi assim. Eu não deliberei que não teria mais filhos - frisei, movendo-me para frente com um dedo sobre os lábios.

       - Em todo o caso, minha querida Olívia, o fato é que você não teve mais filhos. Só isso é que conta realmente - disse ele.

       - E por essa razão que você resolveu violentar a esposa de seu pai? - perguntei com um sorriso sarcástico.

       Ele sorriu também, para me mostrar que não se intimidaria. Que ódio tive daquele sorriso frio e calculado.

       - Se você quiser pode acreditar que as coisas aconteceram desse jeito.

       - O que significa esse "se eu quiser"? Foi o que ouvi da boca de Alícia.

       - O que você esperava que ela dissesse? Às vezes você é tão cega, Olívia. O que você pensa que vinha acontecendo aqui, mesmo antes de meu pai morrer? Você acha que um homem da idade dele podia satisfazer o apetite de uma garota como Alícia? Ela vinha flertando comigo o tempo todo: procurava maneiras de me encontrar sozinho pelos cantos vazios da casa, tentava me seduzir empinando os seios, piscando os olhos, encostando-se em mim. Quantas vezes ela achou uma desculpa para ir a biblioteca ou mesmo... ao meu quarto? - relatou ele, agitando as sobrancelhas.

       - Você está dizendo que tudo isso justifica o que você fez.

       - Estou mesmo?

       - Sim. Eu sei é que ela tentou manter você afastado, sei também que você a perseguia quando Garland estava vivo - acusei. Ele sorriu. Eu ainda tiraria aquele esgar da sua face. Meus olhos fixaram-se nos dele. - Eu testemunhei o que estou dizendo!

       - É? O que foi, exatamente, que você testemunhou?

       Notei que seus olhos mostraram alguma aflição, os supercílios se tencionaram e a testa se franziu.

       - Uma tarde no lago. Você a seguiu e tentou seduzi-la, mas ela o rechaçou. Eu estava lá, escondida entre as moitas: vi e ouvi tudo - desabafei, arremessando cada palavra como se fosse uma pedra lançada contra sua aparente tranqüilidade.

       - Você está louca! - exclamou ele. A raiva apareceu em seus olhos, transformando-o num rosto de granito. - Você pensou que, espionando-me, descobriria a verdade.

Pois bem, você só viu a metade. Você acha que voltei para casa mais cedo porque naquele dia e fui diretamente para o lago? Ela havia insinuado de mil maneiras que iria nadar no lago naquela tarde e nua. Ela queria me provocar, isso era parte de seu prazer. Aliás, não achei que ela me rechaçou com muita determinação.

       - O que você diz é ridículo. Porque naquele dia, antes de ir para o lago, Alicia me convidou a nadar junto com ela - asseverei, olhando fixamente para ele; eu sabia que o tinha pego em uma mentira.

       - Ela a convidou sabendo que você não iria, a para se assegurar que não estaria lá quando você chegasse. O que ela não pode antecipar foi a sua bisbilhotice - disse lê, pensativo.

       - Você é um mentiroso! - Exclamei, batendo furiosamente como punho sobre a mesa. Malcolm recuou, mas não perdeu a pose.

       - Sou mesmo? Por que a morte de Garland pesa tanto na consciência de Alícia? Ela é muito mais responsável do que você pode supor. Naquela noite, ela me queria no seu quarto.

       - Queria você? Então não via a camisola rasgada? Você a estava forçando!

       Ele mantinha aquele sorriso fio e seguro.

       - Esse era o jeito dela. Ela gostava de violência. A luta era um modo de aliviar a consciência. Em seguida ela se entregava com entusiasmo.

       - Você é maluco!

       - Não, Olívia, não sou maluco, você é que é; você entende muito pouco das coisas que ocorrem entre um homem e uma mulher. Entende muito pouco porque é uma mulher pequena, exceto na altura é claro.

       Oh! Ele sabia magoar; como fazer com que eu me sentisse culpada por sua infidelidade. Contudo, se o pecado da luxúria for parte do verdadeiro conhecimento, eu preferia me manter ignorante.

       - Não acredito em uma palavra que esta dizendo! - gritei.

       - Faça o que quiser. Você não acredita porque não consegue encarar o fato de que, como esposa, você é frustrante. Além de não poder me dar mais filhos, você também não pode me dar um amor quente e afetuoso. Não está na sua natureza, nunca esteve. Aceito isso na medida em que você como pessoa que pode me suprir outras necessidades. Você cuida bem da casa e tem uma boa imagem na comunidade. Contudo, não me lembro de uma única vez que tenha passado em frente ao seu quarto e sentido vontade de entrar.

       - Sim, minha natureza é essa, mas quando você entrou no meu quarto não encontrou uma mulher que lembrasse a sua mãe.

       - Você é desprezível - desabafou ele.

       - Sou o que sou, assim como você é o que é - ponderei, tentando reassumir o comando da situação. - Ameaças não me assuntam. A sorte está lançada. Lá em cima está uma mulher grávida de um filho seu, uma criança que será nossa perante o mundo. É assim que vai ser: o controle de tudo estará em minhas mãos; eu resolverei como cada detalhe desta grande farsa será levado adiante. - Meu poder avultava sobre Malcolm.

       - O que significa isso?

       - O que significa? Seguiremos o seu mesquinho plano, mas sou eu quem vai levá-lo adiante. Alícia ficara escondida na ala norte até o bebê nascer. Diremos a todo mundo que ela partiu em uma viagem para tratar de assuntos de família. Christopher ficará comigo e você o tratará como se fosse um de meus filhos. No dia que encenarmos a partida de Alícia, quero que você esteja presente, Malcolm. Logo depois despedirei todos os criados, menos Olsen. Você dará a cada um deles uma quantia referente a um ano de trabalho, como indenização. - Eu sabia que meus olhos cinzentos estavam frios e cortantes e que o fuzilavam como dardos.

       - Um ano de salário!

       - Não, dois anos de salário! Quero que eles deixem esta casa muito satisfeitos. Depois que Alícia se esconder na ala norte, vamos contratar outros criados para as tarefas domésticas. E caberá a você assegurar que nenhum dos novos empregados jamais ponha os pés na ala norte - observei-o estremecer de raiva. - Além disso, não quero sua presença na ala norte enquanto Alícia estiver ali, do contrário darei fim a farsa, farei que todos saibam quem você é, disposta a enfrentar toda a indignidade que resultar disso. Farei exatamente o que estou dizendo Malcolm, acredite. Tudo ficou bem claro, e você esta de acordo? - arrematei encarando-o com firmeza. Ele sabia que não devia mentir, se o fizesse eu leria a falsidade em seus olhos.

       - Meu único interesse é que ela de a luz a uma criança sadia.

       - Então, você concorda?

       - Sim, sim.

       Pela primeira vez percebi uma fraqueza em Malcolm. Tinha os ombros curvados, o rosto estava abatido. Eu regozijava com meu súbito poder, saboreando cada momento.

       - Bem - acrescentei finalmente. - Caberá a mim cuidar de Alícia. Você não terá de fazer nada por ela. Quando precisarmos dos serviços de uma parteira, eu lhe informarei e você irá buscar uma.

       - Eu ia sugerir isso - gaguejou ele.

       - Mas não o fez, Malcolm. Já planejei tudo - eu disse, deliciada comigo mesma e ansiosa para continuar a revelar o meu plano. - Depois que o bebê nascer ela poderá partir com a importância exata que Garland lhe deixou - adiantei, fazendo com que as palavras soassem tão frias como eu achava deviam soar.

       Malcolm sorriu maliciosamente.

       - Colocar uma fortuna dessas nas mãos de uma criança...

       - Uma criança que vai ter um filho seu - respondi. O sorriso desapareceu - Se ela foi capaz e madura o bastante para ter um filho seu, ela será capaz também de gerir uma parte da sua fortuna.

       - Francamente, Olívia, estou indignado com o seu sentimento maternal em relação a ela - acusou Malcolm, tentando tomar o controle da situação e se escondendo atrás de uma máscara de sarcasmo. Ele esperava me abrandar, colocando-me contra Alícia. Mas agora o meu olhar era indiferente e dominador.

       - É um problema meu avaliar o que é aquilo em que você a transformou - disse eu, tentando ser o mais realista possível.

       - Afinal, o que ela é?

       - Uma mulher, um ser que você não considera muito.

       - Suas idéias são totalmente insanas - disse balançando a cabeça, embora soubesse que eu estava certa.

       Malcolm estava afundado na poltrona e eu permanecia em pé ao seu lado, arrogante e segura de mim mesma. A tempestade lá fora começava a enfraquecer. Pude ver os pequenos raios de luz filtrando-se através das nuvens sombrias, tão cinzentas quanto o rosto de Malcolm.

       - Aproveitando a ocasião - eu prossegui - devo lhe dizer que as aulas dos garotos lá em cima terão de terminar.

       - Por quê? Eles vão ficar longe o bastante e só estarão lá por uma parte do dia - argumentou meu marido.

       - Não podemos deixar que o Sr Chillingworth desconfie de qualquer coisa, e os garotos não devem saber, de modo algum, que ela está lá. Pode imaginar o que aconteceria se Christopher descobrisse que a mãe esta trancada naquele aposento? Faremos com que Mal e Joel acreditem que a criança que vai nascer é sua irmã. Definitivamente, não podem saber que Alícia está grávida.

       - Será uma menina - disse ele - e será mesmo a irmã deles.

       - Meia irmã - corrigi - mas eles não saberão disso. Não lhes posso revelar que o pai deles teve uma filha com sua madrasta. Existe pecados e pecados. Nem as suas generosas contribuições a igreja podem aliviar o mal que você fez - pontifiquei, com o dedo apontando sua cara como um severo professor de catecismo.

       Ele sacudiu a cabeça. Eu o estava arrasando e isso fazia com que me sentisse forte.

       - E quanto a educação deles?

       - Irão para a escola, como as outras crianças. Demita o Sr Chillingworth amanhã e trate de encontrar uma boa escola para eles - comandei, dando ênfase a palavra "boa". Ele hesitou e dirigiu para mim um olhar de ódio, porém, quanto mais ódio havia em seus olhos, mais prazer eu sentia.

       - Mais alguma coisa? - perguntou.

       - Você dará um milhão de dólares a cada um de nossos filhos. Esse dinheiro será transferido para uma conta que eles não poderão movimentar até que atinjam a maior idade.

       Ele pulou da poltrona.

       - O que? Você esta louca? Por que eu faria isso?

       - Porque assim eles terão algum controle sobre suas vidas, e não precisarão estar sempre sob seu domínio.

       - Nunca farei isso! Seria jogar dinheiro fora sem necessidade. Um absurdo. O que é que garotos da idade deles sabem sobre dinheiro?

       - Você fará isso e fará imediatamente. Coloque seus advogados trabalhando para que a papelada esteja pronta até o fim de semana. E, por segurança, os documentos referentes a estas contas ficarão comigo - exigi, adotando uma expressão que ele costumava assumir para indicar que não queria mais discussão sobre o assunto.

       - Um milhão de dólares para cada um? - Ele percebia que teria mesmo de dar aos garotos aquele dinheiro; era inevitável, nada podia fazer para livrar-se disso.

       - Considere esta quantia... adequada - disse eu. Seu olhar não era de ódio, mas de um homem que se conscientizara, talvez pela primeira vez, que tinha um adversário formidável. Acho que, naquele momento, a seu jeito, ele me respeitou, mesmo odiando tudo o que estava ouvindo de mim.

       - Isso é tudo? - perguntou com uma voz cansada e rouca.

       - Por enquanto, sim. Temos muito que fazer. Sugiro começarmos a agir.

       Jamais me esquecerei de quando dei meia volta e parti em direção a saída da biblioteca. Era como se o estivesse deixando imerso num pesadelo, dentro das sombras que tinham se lançado sobre ele. Pela primeira vez na vida, minha altura não me incomodou, pois eu a havia assumido. Acabara de me resgatar de uma situação que poderia ter sido muito mais trágica e triste para mim. Além de me resgatar, eu estava me beneficiando dessa situação. Malcolm, que sempre teve o que quis e sempre impôs as suas vontades, precisou desistir, admitir a derrota e se submeter a mim. Ele estava perdendo muito mais do que eu.

       Parei no meio do vestíbulo e olhei em direção a escadaria. Lá em cima, no quarto do cisne, Alícia esperava que alguém fosse proferir seu sentença e determinar seu destino. Não foi Malcolm que subiu; fui eu. Era eu que ficaria no topo da escada, quem daria as ordens e traria as novidades. Era eu que faria as coisas acontecerem, quem movimentaria as pessoas e as mudaria. Eu controlaria as sombras e as luzes de Foxworth Hall. Abriria e fecharia as janelas, acenderia e apagaria as lareiras, decidiria quando a luz do sol deveria entrar quando as sombras deveriam estar presentes. Tal como uma criada serve a sopa, eu serviria a felicidade e prazer, dor e tristeza.

       Abri a porta do quarto do cisne sem bater, pois agora em diante era eu quem determinava essas formalidades de acordo com meus desejos. Alícia, que acabara de tomar banho e lavar os seus lindos cabelos, enrolou-se rapidamente numa toalha e correu para pegar um robe.

       - Sente-se - ordenei.

       Tão obediente quanto uma criança, ela foi até a cama e sentou. Quando olhou para mim, com os olhos arregalados numa expressão de medo e pressentimento, hesitei.

Aproximei-me da janela e olhei o céu agora branco e luminoso. A chuva havia cessado e as nuvens moviam-se com rapidez em direção ao oeste. A rápida mudança do céu injetou-me ainda mais energia. De alguma forma, sentia que a natureza me havia tocado com seu poder. Assim como ela, eu poderia mudar de um extremo ao outro quase instantaneamente. Fui até a penteadeira e admirei os talcos e perfumes de Alícia. As fragrâncias eram essencialmente femininas e enchiam o ar com promessas de amor e carinho. Aquela penteadeira parecia mágica. Qualquer patinho feito poderia sentar-se ali e,momentos mais tarde, transformar-se numa mulher atraente e desejada;

uma mulher capaz de partir o coração dos homens com a sua simples indiferença ou mesmo com um único sorriso. Era claro que, ao sentir esses perfumes, a mente de Malcolm vagava entre pensamentos e sonhos amorosos. As fragrâncias pairavam no ar sempre que Alícia passava, ao sair de um quarto ou descer as escadas. Malcolm a seguia como um cão fascinado por um cheiro promissor. Tudo isso que acabara de uma forma súbita. Voltei-me e encarei Alícia.

       - Quando você se mudar para a ala norte, não poderá levar nenhuma dessas coisas.

       Essa foi a maneira que encontrei para lhe dizer que as coisas seriam como Malcolm havia decidido.

       - Então terei de ficar escondida até o bebê nascer? Você não conseguiu fazer com que ele mudasse de idéia? - perguntou. Sua voz falhava, soando com um tom de resignação e derrota.

       - Não, essa é a única maneira de você e Christopher saírem daqui com dinheiro e dignidade. Você terá de fazer isso, e fazê-lo como eu mandar.

       Ela levou as mãos ao rosto, mas não chorou.

       - Continue secando seus cabelos antes que pegue um resfriado - disse eu. - A pior coisa que poderia lhe acontecer agora é ficar doente, mesmo que fosse apenas uma gripe.

       Como se estivesse em transe, ela balançou a cabeça concordando. Tinha os olhos vazios e os ombros curvados. Ela olhou para suas pequenas mãos que estavam juntas na posição típica de quem ora. A mortalha do destino fora colocada sobre sua cabeça, porém não achei necessário oferecer-lhe palavras de conforto e esperança.

Saí do quarto.

       - Olívia! - ela gritou, depois levantou-se e ajuntou. - Estou com medo.

       - Essa sensação logo vai passar. Acredite-me, sei o que estou dizendo - assegurei.

       Deixei-a. Ela parecia pequena e solitária. Tinha o rosto pálido e sua beleza infantil estava enrugada de tanta preocupação.

       Esperei pacientemente o dia de pôr os meus planos em execução. Havia decidido que o confinamento de Alícia só teria início quando a gravidez começasse a ficar evidente - por volta do terceiro mês. Era tempo bastante para eu e Alícia prepararmos os garotos.

       Certa manhã de maio, depois de ter instruído Alícia sobre o que deveria dizer, fomos até o quarto das crianças. O aposento estava quente e iluminado; era o mais claro e agradável da casa. Mal estava no chão, entretido com seus livros infantis. Joel, ajoelhado, brincava com seus carrinhos e caminhões. Christopher, sentado, chupava o dedo e observava os outros dois.

       - Temos algo para informar a vocês - comecei. Alicia, atrás de mim, torcia as mãos e tremia como um passarinho.

       - O que é mamãe, o que é? - perguntou Mal.

       - Talvez seja um pouco triste - avisei.

       Eles foram se chegando um para perto do outro até ficarem os três juntinhos, olhando com olhos arregalados para Alícia, que estava a ponto de desabar.

       - Eu vou lhes dizer, Olívia - ela sussurrou.

       - Não - atalhei - sou eu que esta no comando agora.

       Alícia sentou-se na cadeira de balanço e os três garotos correram para seu colo. Ela passou os braços em volta deles e os apertou contra o peito; Christopher a beijava e meus dois filhos pareciam estar se sentindo muito confortáveis.

       - Alícia vai nos deixar.

       Eles simplesmente ficaram estarrecidos, sem dizer uma palavra. Apreciam não ter compreendido bem o que dissera.

       - Alícia terá que nos deixar.

       - Não acredito - exclamou Joel.

       - Eu também não - disse Christopher voltando seus olhos arregalados para a mãe chorosa.

       - Por quê? - perguntou Mal. Sua voz estava cheia de dor. Ele vinha se transformando num homenzinho sensível e inteligente. Em leitura e escrita, Mal estava anos a frente dos outros garotos de sua idade, e em relação a altura, também estava bem além dos outros. Seria tão alto quanto o pai.

       - Por quê? - insistiu ele. - Está zangada conosco?

       Christopher afundou a cabeça no peito de Alícia, que se abria em soluços. Joel passou as mãos nas orelhas e disse:

       - Alícia não pode ir embora, ela tem que tocar piano comigo hoje.

       Joel continuava sendo uma criança miúda, frágil e vítima de uma terrível alergia. Um simples grão de poeira o fazia tossir e espirrar durante horas, algo

que Malcolm não podia presenciar.

       - Por quê? - ele inquiriu.

       - Vocês garotos são muito jovens para compreender - comecei, pondo calma e compaixão no meu tom de voz. - Quando crescerem, estas coisas farão sentido. Por mim, Alícia podia ficar aqui para sempre, mas é o pai de vocês que não quer que ela fique.

       De repente, o rosto de Mal se contorceu e lágrimas começaram a rolar por suas faces.

       - Eu o odeio! - exclamou Mal - Eu o odeio! Odeio! Ele nunca nos deixa ter aquilo que queremos!

       Logo, Joel também estava histérico. Pôs-se a tossir de uma maneira incontrolável. Alícia batia em suas costas, tentando acalmá-lo. Enquanto isso, Christopher permanecia agarrado em seu peito. Engasgado e meio sufocado, Joel dizia:

       - Por favor, por favor, não podemos ir com ela?

       - Não - respondi incisivamente. - Sua mãe sou eu e você vai ficar aqui comigo.

       - E Christopher? - perguntou Mal.

       - Ele ficara conosco até que Alícia encontre uma nova casa e se mude - expliquei.

       Ao ouvir seu nome, Christopher olhou imediatamente para mim e depois para sua mãe.

       - Mamãe - ele gritou - então não irei com você?

       - Não meu querido - contestou ela em prantos. - Mas eu voltarei logo para você. E então ficaremos juntos para sempre. Não será por muito tempo, meu querido e terá Olívia para cuidar de você; e Mal e Joel para brincar. - Ao dizer isso, voltou-se para meus garotos. - Por favor, lembrem-se que eu amo vocês e os amarei para sempre. Lembrem-se de que em meu coração estarei sempre com vocês, observando-os quando tocarem piano, vendo-os quando forem para a cama à noite, estarei beijando vocês em seus sonhos.

       No dia seguinte informei meus criados sobre a futura partida de Alícia. Pude perceber a tristeza em seus rostos quando a noticia. Ao descer a escada, naquele mesmo dia, escutei a Sra Steiner e Mary Stuart conversando na sala de jantar enquanto preparavam a mesa. Ocultei-me por trás da porta, para que não me vissem e fiquei escutando a conversa.

       - A luz está deixando esta casa, pode crer - disse a sra Steiner.

       - Estou triste em vê-la partir - disse Mary - ao contrário da altona, ela sempre tinha um sorriso para nós.

       Então era assim que elas me distingui de Alícia, pensei "A Altona".

       - Quer saber de uma coisa? A altona conseguiu realizar seu intento. Desde o princípio ela não quis a jovem Sra Foxworth nesta casa. E provavelmente desde que Garland Foxworth morreu, ela vem tentando fazer com que a outra vá embora. Mas não podemos culpá-la. Eu também não iria querer uma mulher tão bela como a jovem Sra Foxworth sendo vista todo dia pelo meu marido. Sobretudo se eu tivesse a aparência de Olívia - comentou a Sra Steiner, elevando a voz para dar mais ênfase ao que dizia.

       - Concordo com senhora - disse Mary. Eu sabia que ela estava sorrindo ao dizer isso: pude perceber aquele sorriso pelo tom de sua voz.

       Bons ventos as levem, pensei, e decidi que breve lhes diria que seus serviços não eram mais necessários. Uma tarde chamei-as ao vestíbulo, assim como outros serviçais. Vieram todos, menos Olsen - Mary Stuart, a Sra Steiner, a Sra Wilson e Lucas. Sentei-me em uma poltrona de encosto alto, acomodei meus braços sobre os braços dela e encostei a cabeça no espaldar. Meu cabelo estava firmemente preso em um coque no alto da cabeça, como se fosse uma coroa. Eles ficaram bem juntos, olhando para mim. Seus olhos tinham um misto de temor e curiosidade. Eu me sentia como uma rainha falando a seus súditos.

       - Como vocês sabem - comecei - a Sra Garland Foxworth vai partir na semana que vem. Ela ficará fora por algum tempo, e quando retornar permanecerá aqui o prazo suficiente para pegar seu filho e partir de novo. Definitivamente. Avaliei a situação e conclui que não iremos precisar mais dos serviços de vocês.

       A Sra Wilson ficou pálida. A Sra Steiner baixou a cabeça, concordando, seus pequenos olhos mostrando que ela esperava algo parecido. Lucas e Mary pareciam assustados.

       - Nossos serviços? Quer dizer que está nos demitindo? - Perguntou Mary com ar incrédulo.

       - Sim, contudo, decidi indenizar todos vocês com o pagamento equivalente a dois anos de trabalho - acrescentei, tentando fazê-los perceber que a minha generosidade deviam os benefícios de tal indenização.

       - Quando teremos de partir? - perguntou a Sra Steiner, fazendo questão de ser fria em suas palavras.

       - A partida de vocês está prevista para o mesmo dia da partida da Sra Garland Foxworth.

       A última coisa que faltava a fazer para darmos início ao plano de Malcolm era tirar as coisas de Alícia do quarto do cisne e guardar as quinquilharias e roupas que ela não ia precisar em seu confinamento. Supervisionei o encaixotar daqueles objetos, dando meu parecer sobre o que ela deveria ou não levar consigo para a ala norte.

       - Não há necessidade de levar seus vestidos de sair - eu disse quando a vi ao espelho com um vestido azul de babados diante do corpo - você não está indo

a nenhuma festa, nem poderá manter suas roupas lindas e passadas com a regularidade atual. Todas as coisas que você não puder lavar na pia ou na banheira eu terei que lavar por você; logo, não leve nada além do necessário.

       Ela olhou o vestido com tristeza. Eu não podia acreditar na quantidade de roupas que Alícia possuía. Com frivolidades ela gastava o dinheiro de Garland. Pensaria ela que era uma loja de modas ambulante e que precisava trocar o guarda roupas a cada estação? Tais despesas extravagantes e aquela vaidade abusiva eram responsáveis pelo que havia acontecido a Alícia.

       - Sinto-me bem em estar bonita - disse Alícia.

       - De qualquer maneira, daqui a pouco você não entra nestas roupas - observei.

       - Bem, eu não tenho mais nenhuma roupa para gravidez. Depois que Christopher nasceu, eu as doei todas para instituições de caridade. O que é que irei usar?

       - Eu lhe darei algumas das minhas roupas.

       - Mas você é tão... tão grande, Olívia.

       - Que diferença vai fazer naquele quarto? Você não precisará se preocupar com a aparência, somente eu a verei. Você não se vestirá mais para chamar a atenção dos homens, querida. Tudo o que importa é que esteja aquecida e confortável.

       A imagem de Alícia perdida dentro de um dos meus vestidos de gravidez me fez rir. Agora ela sentiria o que é não ver a beleza sorrir do outro lado do espelho.

Agora também seria desajeitada e desprovida do charme. O que poderia ser melhor para lhe causar essa sensação do que meus imensos vestidos de gravidez? Pensei comigo mesma. Além de tudo, ela está gerando uma criança que será minha.

       - É claro que eu também terei que usar esses vestidos - acrescentei.

       Ela olhou para mim como se estivesse chocada. Tal cena não lhe teria ocorrido? Como poderia eu andar por aí sem a menor alteração no corpo e de repente aparecer com um novo filho? Como podia ser tão ingênua e simples? Não havia cumplicidade nem malvadez em sua alma, mesmo quando eram necessários para a sobrevivência.

       - Oh! - exclamou ela, como se acabasse de entender o que eu dissera e olhou para seus belos vestidos, saias e blusas. Finalmente, eu havia reduzido o que ela levaria a ala norte a um baú e duas malas.

       No dia da fictícia partida de Alícia, a tristeza reinou em Foxworth Hall. Era um dia cinza e chuvoso, o céu chorava junto com as crianças. Embora fosse o

primeiro dia do verão, um frio vento de inverno penetrou na casa. Tivemos de acender as luzes e fechar bem as janelas. Quando Alícia desceu as escadas carregando suas malas, comigo atrás dela, os serviçais, que haviam estado ocupados arrumando suas coisas juntaram-se embaixo para observá-la. Eu nunca a tinha visto tão triste e acabrunhada, parecia um ratinho infeliz. Eu havia insistido para que as crianças permanecessem no quarto; eu não estava disposta a presenciar uma despedida dramática e demasiadamente emocional. Christopher ficou bastante desconsolado durante os dias que antecederam a partida de Alícia, meus dois garoto também apreciam muito tristes.

A única presença que realmente me importava na pequena e dolorosa farsa da despedida era a presença de Malcolm. Assim que descemos as escadas, passei uma das malas para Malcolm; ele segurou meio sem jeito e um pouco irritado, porém com medo de me contrariar naquele momento crítico. Os olhos de Alícia estavam cheios de lágrimas quando ela se despediu de nós e dos empregados, pois realmente dava adeus a todos. Ela olhou para o grande vestíbulo sabendo que tão cedo não voltaria a ver aquele

lugar. Sua encenação foi deveras convincente, pois não se tratava de fato de uma encenação. Ela só iria rever o vestíbulo quando voltasse para casa, mais tarde, mas apenas de relance, antes de se encerrar na ala norte.

       Alícia quis abraçar a Sra Steiner ao se despedir, mas eu a segurei e a levei para o carro que nos esperava.

       - Não há tempo para sentimentalismos - frisei.

       Súbito ela deixou os ombros desabarem para frente, como se tivesse perdido a energia.

       - Por favor, deixe que eu diga até logo para Christopher mais uma vez - implorou.

       Malcolm sussurrou ao meu ouvido:

       - Tenho mesmo que ficar aqui e presenciar toda esta histeria?

       - Ponha-a no carro, Malcolm - ordenei.

       Alícia quase teve de ser carregada para dentro do carro. Logo depois as bagagens foram colocadas no porta malas, fechei a janela e mandei o chofer partir.

As rodas se movimentaram no chão úmido e o carro acelerou. Ouvi a porta abrir-se atrás de mim e os meninos gritarem "espere, espere", enquanto desciam os degraus e tentavam se desvencilhar do empregados. Mal os liderava, puxando Joel por uma mão e Christopher pela outra. Eles correram atrás do carro por algum tempo, gritando e chorando.

       - Pegue os seus filhos, Malcolm - determinei - todos eles.

 

A CARCEREIRA E A ENCARCERADA

       NAQUELA MESMA NOITE, depois que todos os empregados partiram, Alícia voltou. O táxi a trouxera através da escuridão. Ainda haviam nuvens no céu, impedindo

a visão da lua e das estrelas. Era como se não restasse mais luz alguma no mundo. Malcolm e eu estávamos esperando na sala da frente, exatamente como esperávamos a chegada de Garland no dia em que trouxera Alícia. Os garotos choraram até pegar no sono. Aconchegaram-se um ao outro para, juntos lutarem contra a solidão que a partida de Alícia deixara em seus corações. Eu queria realmente poder confortá-los, queria ser uma mãe para o pequeno Chris e um consolo para meus filhos. Gostaria que eles me amassem como amavam Alícia, porém sabia que jamais seria alegre e leve como ela; eu não sabia como brincar, saltar ou competir no jogo das rimas. Entretanto, os amava muito e iria educá-los para serem fortes e dignos. Quando estivessem mais velhos, apreciariam os valores que eu lhes havia ensinado.

       - Que horas são? - perguntou Malcolm.

       Atravessei a sala sem dizer uma palavra. A casa estava quieta o único ruído era do vento noturno através das cortinas. Malcolm folheava o jornal, procurando sobre noticias da bolsa de valores.

       Mergulhados em nosso silêncio, ficamos sentados por duas horas. Se algum de nos respirava mais profundamente, o outro olhava surpreso. De fato, o único comentário que Malcolm fizera, na última meia hora, fora sobre as ações de uma de suas empresas que haviam subido dez pontos. Imaginei que fizera esse comentário para enfatizar que ele estaria investindo o meu dinheiro com mais eficácia do que eu. De repente, vi as luzes do táxi se aproximarem e o veículo parar em frente da casa. Malcolm não se moveu.

       - Alícia está de volta - disse eu. Malcolm grunhiu - Você levará o baú dela para cima.

       Malcolm olhou para mim como se estranhasse a ordem.

       - Bem, quem você acha que fará isso? - perguntei - Lucas foi embora. Você já se esqueceu que despedimos todos os empregados e que, pelo menos até amanhã não haverá um motorista?

       Levantei-me e fui até a porta da frente. Alícia saiu do carro lentamente, com relutância, como se estivesse prevendo o que esperava por ela em Foxworth Hall.

Pude perceber que estava exausta por causa da viagem e da tensão pela qual estava passando. O chofer retirou a bagagem da mala.

       - Deixe-as aí - eu disse. A bagagem não poderia ficar fora da casa por muito tempo. - Meu marido as levará para dentro.

       Malcolm apareceu atrás de mim, nos degraus da escada. Agarrei a maleta menor de Alícia.

       - Como está meu Christopher? - perguntou ela assim que desceu do carro. Está sentindo a minha falta?

       - Christopher agora é responsabilidade minha - lembrei secamente. - Está na cama, onde deveria estar. - Peguei-a pela mão e a ajudei a subir as escadas da frente. - Vá direto para a ala norte - determinei - e mexa-se o mais levemente possível. Você não pode acordar os garotos.

       Ela não respondeu; saiu caminhando, como um condenado, e deu uma parada quando passou por Malcolm, que estava levando o baú e a mala grande. Com passos leves, flutuamos como dois fantasmas através do silencioso vestíbulo mergulhado a meia luz. O barulho mais alto que se ouvia era o que o vestido de Alícia fazia enquanto subíamos as escadas, dobrávamos no corredor em direção a ala norte e passamos através dos vazios e solitários quartos de Foxworth Hall. Quando chegamos em frente a porta do quarto no final do corredor, Alícia parou. Atrás dela fiquei impaciente. Será que ela achava que era a única pessoa tensa e aborrecida?

       - Se não entrar nesse quarto o mais rápido possível, vai ficar cada vez mais difícil para você - eu disse.

       Pela primeira vez ela me lançou um olhar de ódio, e senti que não seria o último.

       - Durante o caminho para a estação, no trem e na volta, estive pensando - disse ela. - Você deve estar gostando de tudo isso.

       Seus olhos se apertaram.

       - Gostando disso? - perguntei. Estava de pé na sua frente e lá mergulhara na minha sombra.

       Alícia recuou a ouvir minhas palavras como se estivesse sentindo um peso sobre ela.

       - Gostando de fingir que o bebê é meu? Gostando de saber que meu marido foi infiel não apenas uma vez, mas muitas? Gostando de ter que demitir empregados leais e de confiança que treinei durante anos? Gostando de mentir para meus filhos e ao seu filho, que vi derreter-se em lágrimas de infelicidade até a exaustão e ser colocado na cama? - Minha voz soava estridente, quase histérica.

       Seus olhos se arregalaram, sua face tremeu e sua boca arqueou-se para baixo.

       - Perdoe-me - disse ela - é que eu...

       - Não podemos ficar aqui falando. Além disso, eu ainda estou carregando sua mala e esta pesada. Malcolm já vem subindo com o baú.

       - Sim, perdoe-me - ela repetiu, abrindo a porta do quarto.

       Eu tinha deixado aceso o abajur, entre as duas camas; ele emanava uma luminosidade amarela sobre a mobília pesada e escura. Minha única contribuição para aquecer e embelezar o ambiente fora o tapete oriental vermelho com franjas douradas e dois quadros que eu encontrara no sótão e que me haviam parecido próprios pra a situação; pendurei-os nas paredes, que eram cobertas com um papel creme repleto de flocos brancos. Esses pequenos adornos ajudavam a aliviar a aridez do quarto.

Um dos quadros mostrava a figura de demônios perseguindo pessoas nuas através de cavernas subterrâneas, e o outro tinha monstros sobrenaturais devorando almas condenadas no inferno. Ambos os quadros abundavam em brilhantes tons de vermelho. Alícia foi direto para a cama direita e começou a despir o casaco. Quando Malcolm entrou no quarto e pôs o baú no chão, ambas nos viramos para ele. Malcolm olhou para Alícia e depois me fitou. Meu olhar foi o suficiente para apressá-lo.

       - Vou buscar a outra mala - disse ele.

       Embora fosse um homem forte, carregar a bagagem de Alícia pela escada e corredores, além de ser humilhante para Malcolm, o deixou cansado e ele levou bastante tempo fazendo isso. Ao terminar estava quase sem fôlego e muito suado.

       - Depressa - exigi, o que aumentou sua raiva e humilhação. Ele resmungou e saiu.

       - Como poderei comer aqui em cima? - Alícia perguntou.

       - Todos os dias, depois que eu e Malcolm tivermos acabado de comer, trarei suas refeições. Assim, os empregados não desconfiaram de nada.

       - Mas a cozinheira...

       - Não haverá cozinheira até que você se vá. Eu sei cozinhar.

       Ela meneou a cabeça e olhou para mim, surpresa.

       - Não se admire - expliquei - costumava cozinhar para meu pai.

       - Não achei que não saberia cozinhar. O que me surpreende é o fato de você se prestar a isso.

       Ocorreu-me que, desde que Alícia viera para cá, jamais a tinha visto mencionar habilidades na cozinha. Sua mãe deve tê-la mimado muito e não lhe dera a oportunidade

de entrar na cozinha para aprender este tipo de trabalho, pensei. Depois apareceu Garland e continuou a mimá-la. Alícia jamais teve que mover uma palha par afazer qualquer coisa.

       - Não existe muita escolha, Alícia - ela desviou o olhar e acrescente. - Não é? Não, acho que não.

       - É claro que não pretendo fazer pratos especiais. Esta casa não é como um dos elegantes restaurantes onde você e Garland costumavam ir.

       Fui até uma das janelas da frente e fechei as cortinas.

       - Não estou esperando pratos especiais respondeu com secura.

       Era o começo. Alícia estava perdendo a doçura, o ar gentil, o ar inocente.

       - As refeições serão basicamente nutritivas, considerando seu estado. Isto é o mais importante, não é?

       Ela balançou a cabeça, concordando rapidamente.

       - Olívia, o que irei fazer aqui? - perguntou olhando ao redor. - Acabarei morta de tédio.

       - Eu trarei suas revistas, os empregados não saberão se são para mim ou para outra pessoa, e virei aqui sempre que puder.

       - Gostaria de ter um rádio ou toca discos.

       - Nem pensar. O barulho, mesmo feito aqui em cima, seria ouvido - lembrei, abrindo bem os olhos para dar ênfase as palavras. Sentia-me como se estivesse falando com uma criança.

       - E se eu ouvir as musicas no sótão? - Alícia perguntou.

       - Bem, acho que não haveria problemas. Trarei um rádio e um toca discos. Seus discos ainda estão lá em baixo. Ninguém vai precisar deles.

       Nem eu nem Malcolm gostávamos do moderno jazz que Alícia adorava ouvir, e ocorreu-me que deveríamos ter empacotado os discos junto com as coisas. Felizmente, nenhum dos empregados notara que os discos ainda se encontravam lá embaixo.

       - Obrigado Olívia. - disse Alícia. Ela começava a perceber que eu poderia tanto garantir seus pequenos prazeres como poderia suprimi-los.

       Começamos a tirar o conteúdo das malas e pendurar as roupas no armário. Malcolm chegou com a mala maior e a colocou no chão. Depois parou na porta e ficoua nos observar.

       - Isso é tudo Malcolm - eu disse, fazendo sinal para despedi-lo, como se fosse um criado. Sua face ficou lívida e ele mordeu os lábios. Vi a raiva em seus olhos e percebi o quanto estava se sentindo frustrado. - Antes de sair não quer dizer alguma coisa? Assim como uma desculpa?

       - Não. Parece que você já disse tudo o que precisa ser dito - respondeu, dando meia volta e saindo do quarto.

       Pude ouvir os passos de Malcolm pelo corredor. Quando olhei de novo para Alícia, ela estava me encarando.

       - Ele já foi informado que deve se manter longe de você durante a sua... a sua estada aqui - informei.

       - Bom - ela comentou, com um ar de sinceridade no rosto.

       - Contudo, não seja ingênua o bastante para acreditar no que ele me prometeu. Reparei no modo como olhou para você.

       Alícia olhou para a porta como se Malcolm ainda estivesse ali.

       - Acredito que ele...

       - Você tem que entender minha querida, que ficará muito vulnerável sozinha neste quarto, longe de todos e tudo. Até os sons são abafados, devido a grossura das paredes. Você não poderá gritar por socorro. E não deve se expor de maneira alguma. Para onde iria fugir? - perguntei, estendendo as mãos para lhe mostrar o espaço limitado. - Você só tem saída para o sótão, e lá seria pior.

       - Mas você saberá se alguma coisa...

       - Durante a noite, depois que eu adormecer, Malcolm pode vagar pela casa na ponta dos pés; será difícil escutar. E se ele vier até aqui, como você não poderá gritar nem fazer barulho... Imagine se Christopher descobre que você esta escondida aqui?

       - Manterei a porta trancada.

       - Você já fez isso uma vez, querida. Trancar portas em Foxworth Hall não mantém Malcolm Neal Foxworth longe.

       - O que posso fazer? - perguntou, desesperada.

       - Como eu já havia lhe dito antes, você precisa alterar sua aparência. Torne-se uma mulher sem atrativos para ele, não o faça relembrar ninguém - aconselhei com um sorriso sarcástico. Alícia me olhava fixamente. Peguei um punhado dos seus cabelos e o levantei. - Desculpe-me, mas não há outra maneira de resolvermos esse problema.

       - Tem certeza Olívia? Tem certeza?

       - Sim, tenho certeza.

       Ela começou a chorar baixinho.

       - Sente-se a mesa ordenei.

       Ela caminhou até a cadeira como se estivesse indo para o patíbulo. Sentou-se com as mãos no colo, os olhos cheios de lágrimas. Tirei do meu saco de costura a maior tesoura que possuía e me postei atrás de Alícia. Primeiro desmanchei seu penteado, depois soltei os cabelos, escovando-os até lhe caírem macios sobre os ombros. Seus cabelos eram sedosos e agradáveis ao tato. Pude imaginar Malcolm escovando-os durante horas enquanto sonhava ao lado de Alícia. Meu cabelo, por mais que eu fizesse para deixá-los bonitos, nunca possuíam essa maciez, nenhuma vez, durante nossos encontras sexuais - dificilmente poderia chamá-los de encontros amorosos

- Malcolm chegou a tocá-los.

       Agarrei um bocado dos seus cabelos com mão esquerda e o levantei bem alto, ela estremeceu devido a força com que os puxei. Comecei a cortar as madeixas, depois fui cortando o que sobrara de seu cabelo o mais perto possível de seu couro cabeludo e de uma forma deliberadamente irregular, assim eles cresceriam sem corte e sem jeito. Enquanto eu cortava, lágrimas rolavam pelas maçãs de Alícia, mas ela não proferiu uma palavra. Pus o cabelo cortado dentro de um lenço de seda que amarrei com um nó. Depois que terminei, ela colocou as palmas das mãos sobre a cabeça e caiu num choro dolorido e sincero.

       - Você sabe que ele crescerá - eu disse, tentando ser simpática. Ela se virou e me fitou mais uma vez com aquele olhar de ódio, mas eu sorri para ela. O cabelo

curto transformara radicalmente sua aparência. Ela agora parecia mais um garoto do que uma mulher. A coroa de sua beleza lhe fora retirada da cabeça. Era como se

eu tivesse apagado o fogo que ardia atrás de seus olhos.

       - Agora, se Malcolm olhar para você, não verá as mesmas coisas que via antes, não é?

       Ela não respondeu, simplesmente se olhou no espelho. Um momento depois, ela começou a falar, mas principalmente consigo mesma.

       - Isso é como um sonho ruim - disse ela. - Acordarei pela manhã e Garland estará ao meu lado. Tudo isso é um sonho - repetiu, olhando em volta. No seu rosto havia um sorriso esquisito. - Não é, Olívia? Isso não é um sonho?

       - Temo que não, minha querida. É melhor você não ficar se iludindo. Amanhã vai acordar neste quarto e terá que encarar a realidade dos fatos que estão acontecendo e a realidade que ainda vai acontecer. A maioria das pessoas tem que fazer isso a cada dia de suas vidas. Quanto mais forte for, menos dependente da fantasia você será.

       Ela concordou embora um pouco relutante. No seu rosto havia uma expressão de derrota total. Eu quase podia ler seus pensamentos.

       - Garland não gostaria de saber que isso tudo está acontecendo, eu sei. Eu e Christopher éramos a luz de sua vida. E pensar que meu filho dorme na mesma casa que eu e não pode saber que estou tão perto dele. É cruel demais - lastimou. Suas lágrimas começaram a rolar novamente.

       - Entretanto, é assim que tem que ser. Devo ir agora - despedi-me. - Amanhã virei bem cedo. Os novos empregados só chegarão no final da manhã e terei que começar meu dia mais cedo do que de costume.

       Peguei o lenço com os cabelos de Alícia e caminhei até a porta.

       - Olívia.

       - Sim, querida - respondi.

       - Por favor, posso guardar um cacho do meu cabelo, um simples cacho?

       Com benevolência, dei-lhe um cacho macio e sedoso.

       - Você não me odeia, não é, Olívia - ela perguntou.

       - É claro que não a odeio. Odeio somente aquilo que você se transformou, e creio que você também deve se odiar.

       Sai do quarto. Enfiei a chave na fechadura e tranquei a porta. O som do choro de Alícia morreu na escuridão do corredor no momento em que apaguei as luzes.

As sombras formaram uma parede de trevas entre Alícia e seu filho adormecido, que teria esperado por ela vivendo num mundo sem vida e sem luz. Andei com leveza pelo corredor até a rotunda. Pelos ruídos que vinham do primeiro andar, conclui que Malcolm ainda estava acordado, provavelmente diante da sua mesa na biblioteca. Imaginei-o sentado, olhando com ódio para a porta, talvez esperando por mim. Mas eu não tinha mais nada para conversar com ele naquela noite. Tudo que devia ser feito fora

feito. Eu me sentia cansada. Estava a caminho de meu quarto quando passei pelo quarto de troféus e me deu vontade de entrar. Alguma coisa ocorria comigo naquele momento, algo delicioso, talvez o gosto da vingança. Abri a porta, acendi as luzes e fui até a mesa atrás da qual Malcolm freqüentemente se sentava quando queria ficar sozinho. Peguei o lenço com os cabelos de Alícia, desfiz o nó e o abri bem no meio da mesa. A pilha de cachos sedosos e brilhantes ficou ali exposta a espera de Malcolm.

       Fui até a porta e, antes de sair, olhei de novo para os cabelos de Alícia sobre a mesa. Sorri por dentro e apaguei as luzes. Por alguns segundos fiquei parada, ouvindo os sons da casa. Naquela noite, os pequenos ruídos pareciam amplificar-se. O vento soprava e rodopiava em torno da imensa mansão envolvendo-a com o frio e umidade. Serão precisos vários dias de verão para derreter a camada de gelo que se abateu sobre a casa, pensei. E durante todo o verão Alícia ia estar sentada naquele quarto escuro, debaixo do imenso sótão, esperando o nascimento de uma criança que não desejava e qual não seria a mãe. Ali estava uma autêntica prisão e eu era uma autêntica carcereira. O papel não me agradava, mas Malcolm fazia com que eu o desempenhasse. Eu sabia que, pára derrotá-lo era preciso assumir este papel de uma forma que ele jamais suspeitara que eu pudesse. Ele viveria para arrepender-se da noite que me traiu, pensei, viveria para arrepender-se do que havia me feito

e do que me fizera fazer com Alícia.

       Entrei no meu quarto e cai logo no sono. Ironicamente, tanto para mim quanto para Alícia, dormir era o único jeito de escapar a loucura de Foxworth Hall.

       As semanas correram para Alícia como eu havia previsto - vagarosa e dolorosamente. Todos os dias, quando eu entrava no quarto, ela me implorava que lhe trouxesse

Christopher.

       - Se não pode trazê-lo aqui, pelo menos deixe-o brincar debaixo da minha janela, para que eu possa vê-lo. Não consigo agüentar mais.

       - Christopher finalmente se conformou com sua partida. Por que magoá-lo agora? Se você o ama de verdade, Alícia, deixe as coisas como estão.

       - Deixar as coisas como estão? Mas eu sou mãe, Olívia. Meu coração está em pedaços. Os dias parecem cada vez mais longos. Uma semana neste quarto equivale a um ano!

       Pela manhã ela se sentia enjoada. À tarde ela se lamentava e chorava por causa de Christopher. Sentia um cansaço permanente e quase sempre se encontrava estendida na cama, olhando o teto. Seu rosto, antes rosado, empalidecera. Por mais que eu insistisse para comer tudo que eu levava, ela não o fazia; seu rosto afinou e sua expressão se tornou desolada. Depois de dois meses havia um círculo escuro ao redor de seus olhos. Costumava usar uma touca na cabeça; depois de vê-la com essa touca inúmeras vezes, perguntei-lhe por que a usava.

       - Não posso suportar minha imagem no espelho com o cabelo do jeito que está - justificou.

       - Por que não cobre o espelho? - sugeri.

       Eu sabia que toda a mulher tem um pouco de vaidade, mas Alícia a tinha demais. Embora não houvesse ali nenhum cosmético, e seu cabelo estivesse completamente tosado, podia encontrá-la sentada diante do espelho imaginando que estava de volta em seu belo quarto preparando-se para sair com Garland, ou planejando o que fazer quando seu cabelo crescesse e ela estivesse livre daquele lugar.

       Ela estava sentada na cama, de onde olhou para mim. Seus olhos brilhavam com lágrimas de tédio e raiva. Já não estava usando a touca, pois, com o espelho coberto, seu uso era desnecessário.

       - Pensei que tivesse esquecido do meu jantar - ela reclamou. Havia um tom diferente em sua voz, um tom mais seco. A raiva a fazia pronunciar as consoantes com exagero e sua voz tinha um timbre quase masculino.

       - Jantar? Mas esse é o seu almoço, Alícia - eu disse. A constatação do engano surpreendeu-a.

       - Almoço? - Ela olhou para o pequeno relógio moldado dentro de uma igrejinha de marfim, ao lado da cama e repetiu: - Almoço?

       Sentou devagar e olhou-me com seus olhos azuis e receosos.  Eu sabia que ela via em mim alguém que a dominava. Todas as vezes que queria fazer alguma coisa diferente, ela precisava de minha permissão. Sua vida não lhe pertencia mais.

       - Como está Christopher? Sente muito a minha falta? Pergunta por mim todos os dias? - ela inquiria, ansiosa para ouvir as respostas.

       - Algumas vezes - eu disse. - Os garotos o distraem muito.

       Sacudiu a cabeça concordando e tentando pateticamente afastar a imagem do filho de sua mente.

       Pensei em Christopher e nos seus lindos cabelos dourados; pensei em seu rosto readquirindo a alegria e o brilho depois de superados os primeiros meses longe da mãe. Seus olhos voltaram a brilhar quando eu lia para ele suas histórias prediletas, todas as noites, antes de dormir. Na verdade, eu já estava começando a pensar nele como se fosse também meu filho. Ele e os meus garotos se davam muito bem; Mal e Joel o adoravam. Ele exibia aquela luz e alegria que Alícia tinha ao chegar.

Sua alegria, porém não era sedutora e lasciva como a da mãe; a alegria e luz de Christopher eram singelas, piedosas, inocentes. Ele era mais afetuosos do que meus filhos, e às vezes eu achava que essa diferença ocorria porque meus filhos tinham o sangue de Malcolm. Todas as manhãs ele vinha correndo na minha direção e gritava

"Quero milhões de beijos! Milhões de abraços, ai-ai-ai". Uma vez eu o estava pondo na cama, seus olhos azuis me fitavam e ele perguntou: "Posso chamar você de mamãe alguma vezes?" É claro, contanto que não contasse nada disso a Alícia.

       Tentei manter a conversa inteiramente voltada para ela mesma.

       - Você está com uma aparência suja, Alícia. Deve se cuidar melhor - eu a repreendi.

       Ela me olhou de repente, e entre os dentes, respondeu:

       - Estou assim porque passo meus dias neste... neste cubículo.

       - Este quarto não é um cubículo.

       - A única luz do sol que posso ver é a que vem destas janelas e daquelas lá em cima. Ontem sentei-me para pegar sol, o que foi possível por alguns minutos, porque o sol se moveu e logo eu estava na sombra. Sinto-me como uma flor que precisa de sol para viver, uma flor murchando neste cubículo. Em breve estarei morta e seca e você poderá me colocar entre as paginas de um livro - disse com a voz cheia de raiva e autopiedade.

       - Você não ficará aqui eternamente - consolei. - Ficar remoendo sua frustração todos os dias não a levará a lugar algum - acrescentei num tom doutoral que a enfureceu ainda mais.

       - Talvez fosse bom eu sair escondida para dar uma volta. Você poderia levar os garotos para longe de casa e...

       - Mas existem os empregados. O que lhes direi se a virem? Que direi a eles que você é? E se os garotos ouvirem algum comentário depois? Percebe quantos problemas isso envolve? O que você está pedindo é impossível, simplesmente impossível.

       Resignada, ela concordou.

       - Sinto muito por você, Alícia. Sinto muito. Espero que acredite nisso. Acredita? - perguntei.

       Ela me olhou, examinando-me cuidadosamente e depois balançou a cabeça concordando.

       - Ninguém gosta do que está acontecendo, muito menos eu. Pense no futuro e conseguirá superar o presente. - aconselhei.

       De repente ela teve outra idéia.

       - Dê um jeito para que todos os empregados saírem de casa - ela pediu. Seu rosto vibrava com a nova e, dizia ela, grande idéia. - Dê-lhes uma folga por apenas um fim de semana. Isso é tudo o que preciso, dois ou três dias de ar fresco. Por favor.

       - Essa idéia é ridícula. É melhor você se controlar. - eu disse a ela, impondo minha decisão - Você vai acabar ficando doente e perdendo o bebê. Agora, alimente-se,

assim poderá alimentar a criança que está dentro de você. - acrescentei e saí do quarto sem lhe dar tempo para dizer mais alguma coisa sobre o assunto.

       Quando retornei com seu jantar a encontrei diferente. Tomara um banho e estava usando um belo vestido azul. Contudo, havia algo de errado em seu comportamento.

Sentara-se na cama como se estivesse no banco de um carro em movimento.

       - Olá - exclamou ela, quando eu entrei. - Aqui estamos, chegando ao restaurante. O que iremos jantar? - perguntou, fingindo que estava dentro de um carro e falando com Christopher.

       Achei tudo muito estranho, mas não disse nada. Ela me olhou um certa expectativa, como se esperando que eu tomasse parte de sua fantasia. Coloquei a bandeja sobre a mesa e fiquei observando Alícia criar uma situação imaginária para si mesma. Levantou-se e se aproximou da mesa como se fosse a mesa de um restaurante. Revelava-se brilhante e feliz. Dirigiu-se a mim como se eu fosse uma garçonete. Súbito me conscientizei que havia algo realmente muito estranho naquela atitude. Ela não fingia aquela situação apenas para se divertir, ela estava vivenciando aquilo. Comportava-se como se eu não estivesse ali ou fosse uma estranha. Não gostei do que estava acontecendo, mas não soube o que fazer a respeito. Num determinado momento, ela me dispensou apontando para os pratos sujos e dizendo:

       - Pode levá-los agora.

       Começou a dar comida a seu Christopher imaginário, prometendo-lhe que após o jantar iriam passear pelo parque onde veriam os animais e andariam no carrossel.

Compreendi, então que o sótão, na sua mente, ocupava o lugar do parque. Ela estava usando o vestido mais bonito que a permiti ter ali. Sua barriga não estava muito crescida e ela ainda podia usar. Tinha cortado um pedaço de um lençol bege e o colocara sobre a cabeça, transformando-o numa espécie de turbante.

       - Você está bem, Alícia? - perguntei. Ela hesitou por um segundo.

       - Com licença Christopher - disse para a cadeira vazia a seu lado. - A garçonete quer saber alguma coisa. Não é, garçonete?

       Mordi meus lábios e corrigi minha postura. Estaria ela pretendendo que eu participasse dessa charada? Não repeti a pergunta; preferi retirar a bandeja com os pratos e saí em direção a porta.

       - Ela disse que não servem sorvete aqui. - Alícia segredou ao filho imaginário. - Mas não se preocupe, talvez encontremos uma barraquinha de sorvetes no parque, e nunca mais voltaremos a este restaurante, não é?

       Quando saí do quarto e fechei a porta atrás de mim, escutei-a gargalhar. Loucura, pensei. Pela primeira vez desde que ela voltara a Foxworth hall desejei sinceramente que ela partisse de novo.

       A farsa continuou. O quarto do final da ala norte tornou-se o mundo de ilusões de Alícia. Às vezes, quando eu entrava, ela e o filho imaginário estavam num carro, outras vezes estavam numa balsa. Encontrei-a no sótão poucas vezes. Ligava o toca discos e imaginava que seu filho estavam assistindo a um show de marionetes.

Alícia enfiava uma meia em cada mão e transformava as mãos em bonecos e como palco usava um armário baixo.

       Cada vez que eu entrava no quarto ela me chamava por um nome diferente. Ora eu era a garçonete, ora a bilheteira do show de marionetes, ora o barqueiro da balsa... e assim por diante. Jamais era simplesmente Olívia. Agora não percebia mais medo em seu olhar. Quando entrava no quarto, já a encontrava sorrindo e esperando para ver minha reação diante de suas novas invenções.

       Certo dia, ao abrir a porta, notei que ela tinha retirado o lençol de cima do espelho. Olhar-se no espelho não mais a incomodava, pois ela não via a imagem ali refletida. Alícia só via aquilo que queria ver, aquilo que imaginava. Com uma escova nas mãos, Alícia estava parada em frente ao espelho, escovando o ar como se ainda tivesse as longas madeixas acetinadas que lhe caiam sobre os ombros. A ironia que havia nisso era que sua pele voltara a ter a mesma cor de pêssego de antes.

Eu sabia que algumas mulheres ficavam muito bonitas durante a gravidez. Não fui uma delas, é claro, mas Alícia resplandecia beleza durante a gestação de Christopher, e agora, com a ajuda das ilusões, parecia estar acontecendo a mesma coisa.

       - O que você está fazendo? - perguntei. Ela ainda não havia percebido minha entrada no quarto, e escutando minha voz, retirou os olhos do espelho e olhou surpresa para mim.

       - Ola Olívia. Garland disse que nem mesmo Vênus tem os cabelos tão bonitos quanto os meus. Quem é que pode discutir com os homens? São tão extravagantes em seus elogios. Eles desconhecem o efeito que causam nas mulheres. Deixei que continuasse a elogiá-los. Por que não? A quem pode ofender? A Vênus, certamente não. - ela disse depois de rir do mesmo jeito alegre e sincero de quando Garland era vivo.

       Está ficando louca, pensei. Estar aqui trancada, grávida, vai enlouquecê-la. Contudo, não era culpa minha, concluí. Era mais um pecado que Malcolm teria que carregar consigo. Talvez ele soubesse que isso ia acontecer; talvez estivesse esperando exatamente por isso. A criança de Alícia ficaria para ele. Além disso, ela estaria tão instável e perturbada que não lhe poderia entregar a fortuna deixada por Garland. Malcolm ficaria com tudo - com a criança e com o dinheiro e, além disso se livraria de Alícia. Nesse caso, adotaríamos Christopher. Tal pensamento me deixou furiosa. Mas uma vez malcolm ia alcançar seus objetivos. Ele derrotaria a todos, menos a mim - eu não permitiria isso.

       - Alícia, Garland está morto. Ele não pode ter-lhe dito isso. Você tem que parar com essas fantasias. Pare com essa farsa ridícula antes que a leve a loucura.

Você me ouviu? Entende o que estou dizendo?

       Ela permaneceu imóvel, mantendo o sorriso inalterado. Ouvia apenas o que queria ouvir.

       - Não há nada que não compre para mim; não há nada que não faça por mim - afirmou. - É terrível, eu sei, mas toda vez que menciono algo que vi ou, por acaso, que queira, no dia seguinte, no dia seguinte mesmo, ele aparece com o presente. Ele me ama demais, mas nada posso fazer. Afinal, Garland diz que gosta de me mimar.

Ele diz que lhe dá prazer e que nada no mundo pode tirar-lhe este direito. Não é maravilhoso?

       - Eu lhe trouxe as roupas de gestante, Alícia - eu disse, pensando que a realidade das roupas poderia trazê-la de volta ao mundo real. Atirei a pilha de roupas sobre a cama - experimente-as. Em breve os vestidos que vem usando não lhe servirão mais.

       Ela não se voltou. Continuou imóvel em frente ao espelho.

       - Alícia!

       - Na noite passada Garland disse, ele disse: Alícia, não me peça a Lua, porque vou ficar louco tentando encontrar um jeito de dá-la a você. Devo pedir-lhe a lua, Olívia? - perguntou ela sorrindo.

       - As roupas de gestante Alícia. - repeti.

       Ela continuou a me ignorar. Por fim, acabei saindo do quarto e deixando as roupas sobre a cama. Talvez se desse conta de que estava ali e percebesse, por si mesma, o que tinha que ser feito. Nessa noite, quando me deitei, fiquei pensando na sua loucura. Por certo ela estava tentando superar o presente através de uma grande ilusão; contudo, havia algo estranho no modo como ela se referia a Garland, algo que escapava dos limites da loucura; um toque sobrenatural, era como se ele de fato a visitasse todas as noites.

       Súbito um pensamento medonho passou pela minha mente. E se Malcolm estivesse desobedecendo minhas ordens e visitando Alícia? E se ela o estivesse confundindo

com Garland? E se ele se aproveitasse daquela insanidade freqüentando o quarto de Alícia todas as noites depois que eu ia dormir? Ela estava perturbada, provavelmente não percebia que um homem que estava abraçando era Malcolm, não Garland. A possibilidade de isso estar acontecendo me tirou o sono. Algumas vezes durante essa noite pensei ouvir sons de passos no corredor.  No momento em que abri a porta para averiguar, pensei que Malcolm podia muito bem ter se arrastado silenciosamente pelo hall, enveredando pelo corredor da ala norte. Voltei para o quarto, pus o robe e os chinelos e saí. Minha idéia era ir até o quarto de Alícia e abrir a porta bem devagar, porém no caminho uma idéia bem melhor me ocorreu. Se ele estivesse lá, eu não lhe daria a oportunidade de fugir no momento que percebesse meus passos pelo

corredor ou no momento que eu colocasse a chave na fechadura.

       Então, pondo em prática minha nova idéia, fui direto a entrada principal do sótão. Acendi a luz fraca que iluminava a entrada, fechei a porta atrás de mim

com bastante cuidado, assegurando-me de que nem Malcolm nem os criados me escutariam, e subi a escada que levava ao sótão. Minha intenção era ir, através do sótão, até a escadinha que desembocava no banheiro do quarto de Alícia. Iria observá-los na cama por um tempo, depois os surpreenderia.

       Entretanto, quando eu estava no sótão, parcamente iluminado pela fraca lâmpada da entrada, a luz falhou e fiquei imersa na escuridão. Por um momento avaliei se deveria ou não prosseguir, mas, ajudada pelo meu senso de direção, continuei andando devagar e com cuidado. Pensei que me lembraria do caminho o suficiente para encontrar a saída para voltar ao quarto. Ouvi o ruído de alguma coisa se movendo. O pânico subiu ao meu rosto e minhas faces queimaram. Sabia que eram ratos; imaginei-os subindo minhas pernas, derrubando-me ao chão e passeando pelo meu corpo. De repente tive a impressão de que ia desmaiar. O barulho dos ratos cresceu na minha cabeça

e tudo começou a rodar. Eu tinha que sair dali!

       Agora eu havia me transformado em uma pessoa perdida no meio das sombras! Identifiquei a forma de um vestido naquela escuridão e quase gritei. Dei um pulo

para trás. Foi um passo em falso que me fez tropeçar em um baú e cair sobre um monte de roupas velhas. Tentando ficar em pé novamente, levei as mãos ao chão e toquei alguma coisa peluda. Um rato! Tomada pelo pânico, corri de joelhos e fui bater em uma pilha de livros. Eu estava tão assustada que quase não conseguia respirar.

Consegui me por em pé, mas agora havia perdido o senso de direção. Para qualquer lugar que me virasse, tinha a mesma impressão de estar perdida no centro de um grande nada. A escuridão se fechou sobre mim e suas garras estavam tão presas a minha pele que já não era mais capaz de me mover. O terror me paralisou. Sentia os pés pesados como chumbo e as pernas trêmulas. Usei todas as minhas forças para me mover, mas não consegui dar um passo. Comecei a chorar baixinho.

       Os ratos ficaram assustados e começaram a correr sobre os móveis e os baús. O sótão inteiro parecia vivo e cheio de bichos horrendos. Imaginei as formas sombrias dos antepassados de Malcolm, acordados pela minha agitação, saindo das paredes. Aquela casa não tolerava fraqueza ou medo; quando sentia num ser o odor da fraqueza,

destruía-o. Avancei até a parede mais próxima e tateando, tentei achar o caminho da saída numa direção que eu esperava me levar até a porta principal. Colidi freqüentemente contra móveis e gaiolas, tropecei em vários baús. Minhas mãos encontravam coisas que se tornavam pulsantes, cálidas, como se fossem criaturas vivas, e mesmo sabendo intimamente que estava tocando apenas roupas velhas e braços de poltronas a impressão de que tudo estava vivo não me abandonava. Meu cabelo se prendeu na grade de

uma gaiola, fazendo-a cair em cima de mim. Quando tive nas mãos a fina coluna de metal que sustentava a gaiola, eu a senti como se fosse uma serpente comprida e negra. Todas as coisas ali tornaram-se vivas e sinistras.

       Não sei quanto tempo demorei para encontrar a saída. Vali-me de todas as forças para me tranqüilizar. Finalmente encontrei o alto da escada e desci. Quando

abri a porta e sai no corredor, sentia-me tão feliz que tive vontade de chorar. Corri para a ala sul da casa e entrei no meu quarto. Ao olhar-me no espelho, percebi que assumira a aparência de uma louca; tinha os cabelos despenteados e meu robe estava rasgado. Havia arranhões pelo meu rosto e as mãos estavam pretas de pó e sujeira.

Daí em diante eu visitaria sempre aquele lugar em meus pesadelos. Mas o simples pensamento de abrir novamente aquela porta e subir as escadas me deixava em pânico.

Após ter-me lavado, retornei a cama. Por algum tempo permaneci deitada, pensando o quanto era bom estar no aconchego e conforto do meu quarto. Eu me lembrei de Malcolm e Alícia. Um pouco mais tarde tive a certeza de ouvir passos pelo corredor. Correndo, abri a porta. Tive a clara impressão de que Malcolm acabara de entrar no seu quarto. Tentei ouvir a porta fechando, mas não ouvi nada. Não havia flagrado Malcolm com tencionara fazer. A única pessoa a quem eu tinha flagrado fora a mim mesma, aterrorizada naquele sótão sombrio e recendendo ao turbulento passado dos Foxworth. Esse sótão iria zombar de mim para sempre, pensei.

       Esta casa protege a si mesma. Ela ocultava Malcolm em seu silêncio quando ele se arrastava pelos corredores. Eu tinha certeza disso. As paredes conheciam a verdade, só que elas não falariam comigo. Por um momento hesitei, depois fechei a porta e voltei para a cama. Não consegui adormecer até o dia raiar, e então fui definitivamente acordada pelo som dos passos de Malcolm que estava indo tomar seu café. Quando me encontrei com ele, olhei-o fixamente para ver se havia algum sinal em seu rosto que indicasse que estivera com Alícia durante a noite. Por todo o tempo que Alícia esteve trancada na ala norte, ele jamais mencionou seu nome; para Malcolm, era como se ela não estivesse mais ali. Estava sentado na cabeceira da mesa lendo o jornal e, como de costume, ignorou minha presença quando eu cheguei.

Depois que a criada serviu o café, falei com ele.

       - Você ouviu alguma coisa estranha esta noite? - perguntei.

       Ele baixou o jornal, revelando uma expressão irônica no rosto.

       - Estranha? O que quer dizer com "estranha"? - Falava como se nem conhecesse a expressão.

       - Como o som de alguém caminhando pela ala norte? - eu disse.

       Ele me olhou por um momento e a seguir, com seus olhos gelados abaixo-se um pouco sobre a mesa e disse num tom alto:

       - A porta está trancada, não esta? Ela não pode sair e andar por aí, pode?

       - Claro que não. Mas isso não significa que outra pessoa não possa entrar no quarto dela, não é? - respondi em um tom tão alto quanto o dele, porém mais desafiador.

       - O que você quer dizer com isso? - ele perguntou, endireitando-se na cadeira.

       - Você violou nosso acordo? - perguntei.

       - Garanto-lhe que não tenho a menor necessidade de me movimentar furtivamente por esta casa. E espero que também você tenha mais o que fazer do que ficar se escondendo por aí tentando encontrar... uma violação, como você mesma disse.

       - Não tenho motivo para ficar me escondendo. Só existe um lugar nesta casa que me preocupa - sublinhei, sentindo minha face arder. Ele desviou o olhar do meu e meneou a cabeça.

       - Alícia lhe disse alguma coisa? Já criou uma nova fantasia? Uma mulher como ela, presa naquele quarto, deve estar fantasiando coisas o dia inteiro - ponderou ele, sorrindo de um modo ridículo. Seus lábios finos se curvaram de um modo estranho; mais parecia um gato.

       - Como é que você sabe se ela está ou não fantasiando coisas?

       - Por favor, Olívia, seus esforços para dar uma de detetive são mais absurdos e ridículos do que pode imaginar. Você não encontrará minhas impressões digitais no quarto.

       Levantou o jornal e voltou a lê-lo, mas antes de se esconder atrás das folhas fez questão de me mostrar seu sorriso escarninho.

       - Espero que você esteja certo - eu disse com dureza.

       Se ele estava preocupado, não demonstrou. Leu o jornal, terminou seu café com a pressa de sempre e saiu para trabalhar, deixando-me sozinha para cuidar da loucura que a sua própria loucura havia criado.

 

PRESENTE DE NATAL

       QUANDO AS FOLHAS VERDES DO VERÃO tornaram-se amarelas e caíram, e as árvores, cada dia mais secas, voltaram seus galhos nus para o céu, minha gravidez falsa começou a crescer. Eu havia vagado pela casa durante o verão todo tentando encontrar travesseiros e almofadas de diferentes tamanhos e formas para forjar uma barriga de grávida. Encontrei um almofada na sala de estar e pensei: Sim, esta tem o tamanho ideal do terceiro mês. Depois descobri mais algumas nos quartos da ala norte.

Contudo, Foxworth Hall era uma mansão tão austera e sem enfeites que, por volta do sétimo mês, quando a barriga começa realmente aparecer, foi preciso ir até o quarto do cisne e pegar uma almofada grande e fofa o suficiente para ser meu bebê. Sim, eu havia concordado em levar a farsa adiante, e em dezembro daria a luz ao meu terceiro filho. A ironia disso tudo era que o nascimento da criança estava sendo aguardado para a época do Natal.        Tão logo a minha "condição" se tornou aparente, soube que era a hora de contar às crianças que eu estava esperando um bebê. Mal e Joel, como determinara, haviam sido enviados para uma escola-internato em Charleston.

Christopher ficara comigo. Desde que os garotos se foram, eu sentia muita falta deles, e Christopher sentia muito a ausência da mãe; assim, eu e Christopher nos tornamos grandes amigos. Era como se fosse sua mãe de verdade e ele meu filho. Eu me dedicava a ele dia e noite. Durante esses estranhos e difíceis meses, Chris era a única alegria na minha vida. Costumávamos brincar de bruxas, mas ele insistia em dizer que eu era uma bruxa boa.

       Conforme o bebê ia crescendo, eu compreendia que, assim como Christopher, essa criança seria uma dádiva de Deus. Decidi que o momento mais adequado para notificar às crianças que iriam ganhar um irmão ou irmã seria no jantar do Dia de Ação de Graças, pois nesse dia Malcolm estaria presente e poderia partilhar da alegria dos garotos. Teríamos muito que agradecer ao senhor naquele dia. Como só tínhamos dois empregados, eu mesma tive que passar toda a tarde preparando o jantar de Ação

de Graças. Por volta de sete da noite, quando era hora de sentarmos para comer, eu estava exausta e sentia em minhas pernas todo o "peso da gravidez". No momento em que Malcolm começou a cortar o peru, que estava perfeitamente dourado e apetitoso, levantei minha taça de cristal e bati nela com uma colherzinha.

       - Meninos, meninos, tenho algo muito especial para lhes dizer neste dia feliz. Vocês já devem ter percebido que meu corpo vem mudando nos últimos meses. Bem, vou lhes contar o porque. Em breve, teremos uma nova criança em nosso lar, uma criança muito especial que chegará na época do Natal. Este ano, Deus dará a todos nós um presente de Natal maravilhoso.

       Malcolm abaixou a faca e seu rosto ficou vermelho e ele olhou para mim com raiva.

       - Olívia, eu queria dar a noticia! Como é que você ousa fazer isso em meu lugar?

       Dirigi meus olhos para os seus e, num tom tão frio como o vento de novembro que varria as folhas secas, eu disse:

       - Como já foi resolvido, Malcolm, tudo que diz respeito ao nascimento do nosso filho está sob o meu comando. Lembra-se?

       - Mãe, será um menino ou uma menina? - perguntou Joel, interrompendo-me.

       - Não seja estúpido! Exclamou Mal. - Ninguém sabe até a hora de nascer.

       Mal estava cada vez mais parecido com o pai. Adorava ser o mais esperto, o mais inteligente e comumente usava seu poder sobre Joel. Christopher simplesmente começou a chorar.

       - Por favor, não deixe que ninguém venha para cá, Olívia. Não quero perder outra mamãe - soluçou.

       - Quem quer que seja, menino ou menina, ninguém nunca vai tomar o seu lugar no meu coração Christopher.

       Malcolm que cortava o peru com uma concentração quase viciosa, terminou seu trabalho e afirmou, olhando para mim:

       - Será uma menina.

       O mau humor de Malcolm cobriu nosso jantar com um manto de silêncio. Os garotos pareciam estar encolhidos. Christopher continuou me olhando durante todo o almoço como se estivesse a me implorar silenciosamente, uma reafirmação. Malcolm ficou o tempo todo chamado a atenção de Mal e Joel devido a maneira como seguravam os garfos e facas. Será que nunca iria deixá-los em paz? Ele acusou Joel de cortar a carne como um maricas e Mal reagiu a seu comentário dizendo:

       - Pensei que você queria uma menina!

       Malcolm simplesmente deixou transparecer um olhar de desgosto e voltou a comer suas batatas. Ajudei a empregada a lavar a louça. Pude perceber os olhares que ela me lançava tentando saber por que a notícia que eu dera não fora comemorada de uma forma mais festiva. Tudo o que fiz em relação a isso foi preencher de frieza o meu olhar; minha tristeza não era para ser vista por empregados. Assim que os garotos foram se preparar para dormir, e Malcolm, como de costume, saiu para resolver "alguns negócios na cidade" preparei uma cesta de piquenique com a comida do jantar de Ação de Graças e levei-a para Alícia. Normalmente, eu costumava levar seu jantar antes de comermos; portanto, sabia que, aquela hora, ela deveria estar faminta.

       Enquanto eu subia a escada, o que me parecia estar fazendo pela milionésima vez, acomodei a cesta de comida sobre a minha barriga de almofadas. A primeira vez que Alícia me vira com aquela barriga, ela riu. Mas, se havia alguém engraçado, esse alguém era ela mesma, vestindo minhas roupas de gestante. Alicia tentou encurtar a saia de alguns vestidos, mas isso era impossível e a maioria deles arrastava no chão. Os corpetes pareciam engolir os pequenos seios, e seus braços pareciam perdidos dentro das mangas. Assim como na sua primeira gravidez, Alícia não ficou inchada. Ela me parecia uma menina usando as roupas de uma mulher crescida. Seu

cabelo crescera um pouco, mas eu o aparava mantendo-o sempre na base da nuca. Abri a porta e sorri.

       - Jantar de Ação de Graças, Alícia!

       Ela avançou em direção a cesta e a tirou de minhas mãos sem agradecer. Pegou uma coxa de peru e se pós a mordê-la, depois suspirou. Então, delicadamente, avançou para a comida com os dedos e começou a devorar cada migalha do alimento restante.

       - Você não sente que seu apetite fica cada dia maior? - ela perguntou. Parecia excitada como uma estudante comparando notas.

       - Hem? - eu realmente não havia entendido a pergunta. Ela continuava a sorrir entra uma mordida e outra. Jamais a havia visto de um modo tão deselegante.

       - Seu apetite - ela repetiu - não esta cada dia maior? Às vezes acho que podia passar o dia inteiro comendo e fico tentada a lhe gritar da janela que me traga mais comida. Certos dias eu comeria qualquer coisa, qualquer combinação, qualquer quantidade, mesmo comidas cruas. Na noite passada sonhei com bifes, sorvetes e biscoitos. Você não tem esses desejos? - perguntou, balançando a cabeça e espetando o indicador da mão direita contra a bochecha.

       Nos últimos tempos ela vinha agindo com mais normalidade, mas agora eu me questionava se a sua insanidade não estaria voltando.

       - Dificilmente, por que deveria sentir? - perguntei, sem saber se devia sorrir ou ficar furiosa.

       Ela não respondeu, limitou-se a rir e voltou a comer. Estaria me provocando? Seria esse o jeito de se vingar de mim?

       - Não tenho comido nem mais nem menos do que sempre - eu disse, em seguida saí do quarto.

       Quando fechei a porta, ainda pude ouvi-la rir. Entretanto, desse dia em diante, toda a vez que eu entrava no quarto, ela não deixava de fazer algum comentário sobre a minha gravidez, e também sobre a dela. Alícia ignorava tudo o que eu dizia, agindo como se eu é que estivesse ficando louca. Por fim, acabei achando que era necessário mostrar-lhe a realidade mais uma vez.

       - Você sabe porque eu estou fazendo isso, não sabe? - eu lhe disse um dia.

       Ela estava sentada do lado da janela tricotando mantinhas, toucas, sapatinhos. Já tinha feito peças suficientes para agasalhar seis crianças, mas não parava de tricotar. O que havia de mais peculiar nisso tudo era que ela também parecia estar certa que a criança era uma menina; era como se, juntamente com o seu esperma, Malcolm houvesse introduzido em Alícia sua obsessão. O frio sol do inverno tornava o quarto iluminado, mas não aquecido; entretanto, o monte de almofadas que eu sempre trazia junto ao ventre me mantinha aquecida. Ao dizer "fazendo isso" apalpei minha barriga falsa para mostrar exatamente o que eu queria dizer. Ela levantou os olhos na minha direção e pude notar que estavam cheios de um estranho júbilo.

       - Você está fazendo isso porque Malcolm Neal Foxworth quer uma família grande, e principalmente porque quer uma filha - ela afirmou.

       - Mas é você que vai ter a criança, Alícia. Todos os sintomas da gravidez estão ocorrendo com você, não comigo.

       O sorriso desapareceu de seu rosto.

       - Você não tem vontade de estar grávida de verdade? - perguntou, num tom de desafio.

       - Essa não é a questão agora, é? - eu disse, tentando intimidá-la.

       Havia uma razão para não tolerar suas perguntas maliciosas, porque sempre me colocava na defensiva. Eu era a pura; era ela que havia pecado. Eu somente resgataria aquela criança do pecado e faria dela uma criança pura e saudável. Sua expressão não se alterou. Alícia tornava-se cada vez mais agressiva.

       - Sim Olívia. Esta é a questão. Você terá essa criança, logo você deve senti-la. Ponha a mão na barriga e tente sentir a criança se movendo. Sinta-a se formando com todas as suas forças. Coma para ela, durma para ela, ore por ela como você faria para qualquer criança que estivesse no seu útero.

       E durante todo o tempo que ficara trancada naquele quarto, Alícia nunca me havia dito nada com tanta determinação e tanta energia como a que pusera naquelas palavras. Tinha os olhos quase cerrados e sua boca estava firme. Eu recuei. Começava a sentir certa dificuldade para respirar.

       - Por que você não abre a janela? - perguntei.

       Ela se levantou e caminhou na minha direção.

       - É vida. Sinta-a - disse, pegando minha mão e colocando sobre o ventre.

       Ficamos ali, olhos nos olhos por algum tempo. Ela mantinha seus olhos fixos no meu e então... senti um movimento dentro de sua barriga; foi como se estivesse sentindo aquele movimento no meu corpo. Tentei retirar a mão, mas Alícia a prendeu dizendo:

       - Não, não retire a mão. Sinta a criança, conheça-a, visto que é sua - ela disse - Sua.

       - Você está louca - gritei, finalmente conseguindo retirar minha mão do seu corpo. - Só faço isso para livrar você e Malcolm da mancha de pecado, tentando convencer as pessoas que esta criança será minha; e ela será minha - acrescentei enquanto recuava.

       Abri a porta e saí correndo pelo corredor. Seu olhar de loucura não saía da minha mente. Nessa noite, quando me retirei para o meu quarto e fechei a porta, deitei-me na cama sem retirar as almofadas de baixo das minhas roupas. Com as mãos sobre o corpo, fiquei pensando na maneira que as havia colocado sobre o seu ventre.

Havia ali uma eletricidade que ainda sentia nas palmas de minhas mãos e nas pontas de meus dedos. Ainda podia perceber a sensação que sentira ao tocar seu corpo, só que agora eu podia senti-la na minha falsa barriga. Estaria a alma daquela criança dentro de mim, permitindo-me tocá-la? Poderia Deus realmente ter me escolhido

para desempenhar aquele papel, colocando, por isso, aquela alma dentro de mim? De repente, estar sentindo aquelas coisas me amedrontou e eu pulei da cama, retirando imediatamente as almofadas.

       Depois que peguei no sono, nessa mesma noite, acordei com a estranha sensação de que algo estava se movendo dentro de mim novamente. Foi um sonho, disse a mim mesma, apenas um sonho. Porém, demorou muito até que eu voltasse a dormir. Chequei a pensar que estava ouvindo o choro de um bebê.

       Mal e Joel ficaram até o fim da semana do feriado de Ação de Graças. Na segunda-feira de manhã, mandei-os de volta a escola. No mês que se seguiu, enquanto aguardava a aproximação do nascimento do meu bebê, que me deixava cada vez mais ansiosa e feliz, Christopher, preocupado com o fato, mostrou-se muito abatido, chegando

a ficar triste e mal-humorado. "Agora você é a bruxa má, Olívia. Eu vou devorar o seu bebê", dizia ele.

       Alícia entrou em trabalho de parto no dia em que trouxemos a árvore de Natal para casa. Os garotos ainda não haviam chegado para passar as férias, eu e Christopher estávamos decorando a árvore. No momento que eu pendurava uma bola de Natal em um dos galhos, ouvi um grito distante. Larguei o que estava fazendo, deixei Christopher aos cuidados de uma criada e corria ala norte.

       - Alícia! - exclamei no instante mesmo de entrar em seu quarto. - O que pensa que está fazendo? Ouvi seus gritos da sala!

       - Olívia - ela murmurou - por favor, ajude-me, o bebê esta vindo.

       De repente Malcolm apareceu atrás de mim.

       - Olívia, agora quem entra em cena sou eu. Vá para seu quarto imediatamente, finja que está em trabalho de parto - ordenou. Ele havia sido claro e determinado e, pela primeira vez em meses, eu lhe obedeci prontamente.

       Durante doze horas, fiquei deitada no meu quarto gritando como se estivesse realmente sentindo as dores do parto. Agia assim por causa dos dois empregados que tínhamos e por causa de Christopher. Enquanto isso, Alícia controlada por Malcolm e pela parteira que ele havia chamado, passava em silêncio por suas dores.

No dia seguinte, Malcolm entrou em meu quarto carregando o pequeno bebê envolvido em uma pequena manta cor-de-rosa e colocou do meu lado na cama.

       - É uma menina - disse num tom orgulhoso e arrogante.

       Abri a mantinha que a envolvia e deparei com a recém-nascida mais bonita que já vira até então. Sua pele não tinha aquela vermelhidão característica. Era

como se, imaculadamente, ela tivesse nascido sem a angústia e o sofrimento do nascimento humano. Esse doce bebê seria adorado, e meu coração se abriria para ele.

Sem, eu a aceitaria como se fosse minha própria filha. Ela me amaria.

       - É o bebê mais bonito do mundo, não é? Mãos e pés delicados, cabelos dourados, olhos azuis mais azuis que o céu... Minha mãe deve ter sido assim ao nascer - disse, com uma gentileza que eu nunca percebera em sua voz - Corrine, minha querida filha Corrine.

       - Corrine? - exclamei chocada - É claro que você não... Como é que você pode colocar neste inocente bebê o mesmo nome de sua mãe, a quem tanto diz odiar?

       - Você não entende - disse ele sacudindo a cabeça e agitando as mãos na frente do rosto como se estivesse afastando teias de aranha. - Este é meu modo de me manter constantemente alerta contra as mentiras e falsidades das mulheres bonitas. Assim não corro o perigo de acabar acreditando e confiando demais nela. Como eu já a amo tanto, toda a vez que meus lábios pronunciarem Corrine eu me lembrarei de minha mãe traidora e da promessa que ela fizera de ficar ao meu lado e me amar

até que eu fosse um homem. Nunca mais serei tão magoado como daquela vez - concluiu, balançando a cabeça com o mesmo tipo de certeza que tinha quando falava sobre o mundo dos negócios.

       O jeito com que Malcolm via as coisas causou-me um frio na espinha. Como podia atribuir àquela criança tão pequena e angelical um caráter como o da mãe? O que havia de errado com ele? Será que nunca mudaria? Eu o odiei naquele momento com todas as forças de meu ser, e prometi a mim mesma que faria tudo para proteger aquela criança da perversão de Malcolm. Eu a adoraria e tomaria conta dela como se fosse minha de verdade. Ela tinha o sangue de Malcolm nas veias e embora não tivesse uma só gota do meu sangue para livrá-la da loucura dos Foxworth eu lhe daria meu caráter e não deixaria que ela se tornasse uma mulher como Alícia ou como a primeira Corrine.

       - Saia de meu quarto Malcolm - ordenei com frieza. - Você é doente e eu não quero ouvir de novo você falando tais coisas sobre nossa filha.

       Malcolm se retirou e eu fiquei contente em ficar a sós com minha nova filha, em poder explorar seu corpinho perfeito, apresentar-me a ela e assegurar-lhe o meu amor e cuidado. Contei dez pequenos dedinhos nos pés e mais dez dedinhos mais longos nas pequeninas mãos. Sim, ela seria tudo que eu jamais pude ser, teria o melhor que havia em mim. Através dessa criança especial eu seria capaz de viver uma vida que jamais pude viver, pois ela seria amada por todos aqueles que a conheciam.

Eu a minei em meus braços, cantando: "Querida, pequenina, não diga nada, papai vai lhe comprar um passarinho". Depois eu a acomodei na cama e me deitei ao seu lado.

Aquele foi um dia longo e difícil.

       Na manhã seguinte, quando abri as cortinas do meu quarto, o sol de inverno estava no apogeu. A pequena Corrine, anjo que era, dormira seis horas seguidas

durante a noite, o que eu nunca havia visto um recém-nascido fazer. A enfermeira entrou no quarto com a mamadeira da manhã, mas eu dispensei a ajuda e fiz questão de dar a mamadeira a Corrine; não tinha a menor intenção de manter uma enfermeira por perto durante muito tempo, eu mesma queria criar aquela criança. Foi então que me lembrei de Christopher, eu tinha que ir vê-lo e apresentar Corrine a ele. O pequeno Chris deve ter-se sentido muito só e desnorteado nas últimas horas, pois eu o havia abandonado quando decorava a árvore de Natal sem lhe dar qualquer explicação! Tive que entregar Corrine a enfermeira e fui correndo procurá-lo. Ele não estava no seu quarto nem no quarto de brinquedos. Com o medo crescendo dentro de mim, corri até a ala norte e fui direto ao quarto de Alícia. Quando abri a porta, o quarto estava vazio e perfeitamente limpo. Alícia tinha partido e não havia mais nem um traço da sua presença naquele cômodo.

       - Christopher! - gritei enquanto descia as escadas. - Christopher! Onde você esta? Por favor, Christopher, venha para a sua Olívia!

       Minha voz ecoava no silêncio. Sentei-me no sofá e chorei como jamais havia chorado na minha vida. Christopher se fora sem me dizer adeus. Alícia reclamara seu filho e Malcolm os havia levado sem ao menos deixar o pequeno Christopher se despedir de mim. Jurei então, que jamais deixaria acontecer a mesma coisa com Corrine.

       Mal e Joel vieram passar em casa um Natal completamente diferente de todos os Natais que já havíamos vivido ou imaginado. Malcolm planejara a maior, a mais grandiosa festa natalina que já fora dada em Foxworth Hall. Ele chegou a superar Garland, a quem sempre acusara de ser extravagante. Rapidamente compreendi que, quando se tratava de Corrine, Malcolm esquecia da sua moderação e do seu senso de economia. Aliás, para ele, eficiência e economia não tinham importância alguma quando estavam em questão as necessidades de Corrine. A lista de convidados era consideravelmente maior que a das festas natalinas anteriores. Foram convidadas quase quinhentas pessoas e muitas delas mal conheciam Malcolm. Quase todas as pessoas que moravam dentro de um raio de cem quilômetros da nossa casa e que possuíam propriedades, tinham negócios ou eram profissionais havia sido convidados. Para mostrar a importância de Corrine, Malcolm mandara fazer convites com os seguintes dizeres escritos em letras douradas: "Corrine Foxworth cordialmente os convida para a sua primeira festa de Natal em Foxworth Hall".

       Ele fez com que montassem um bar no meio do salão e comprou várias caixas de um requintado champanhe. O líquido borbulhante foi depositado dentro de quatro enormes fontes de cristal, de onde jorrava para dentro de conchas de prata. Seis garçons enchiam as taças e as ofereciam continuamente aos convidados. Para onde quer que as pessoas olhassem, deparavam com garçons e garçonetes metidos em uniformes alvinegros, entrando e saindo da varanda e do salão com bandejas de canapés

de caviar, róseas fatias de salmão com biscoitinhos, enormes camarões espetados em palitos dourados. Nossa árvore de Natal fora substituída por uma outra de sete metros de altura ornada com enfeites brilhantes e luzes. A estrela no topo era de prata, e na base da árvore Malcolm amontoara dúzias e dúzias de presentes para Corrine. Tive de lembrá-lo para incluir presentes para Mal e Joel.

       Malcolm havia triplicado o número de empregados extras para a ocasião. A cada metro e meio alguém segurava uma bandeja ou recolhia copos e pratos usados.

Uma mesa de aproximadamente doze metros fora colocada contra a parede da direita; sobre ela havia perus assados decorados com frutas, pernis, rosbifes, frangos, postas de salmão, tigelas e tigelas de caviar, bandejas de camarões e fileiras de lagostas. Tudo estava enfeitado ostentosamente e era servido em bandejas e tigelas de prata de lei. Havia flores em todas as mesas e em algumas belos arranjos de uma flor chamada poinsétia.

       Malcolm não havia medido despesas. Ele contratou uma pequena orquestra de dez pessoas e mandou construir, temporariamente um pequeno palco em um dos cantos do salão. Havia até uma cantora que interpretava todas as músicas da moda que raramente Malcolm apreciava. Ele tinha planejado essa festa como se fosse um de seus

grandes negócios, sem sequer me contar qualquer detalhe. Foi como se tivéssemos o poder de controlar o tempo, pois no dia da festa, os flocos de neve caiam gentilmente, dando ao ar um clima festivo. Um dos nossos vizinhos, que morava no sopé da colina, trouxe um trenó cheio de sininhos puxado por um cavalo, para conduzir alguns convidados até a casa. Chegavam envoltos em cascos de pele e cantando canções natalinas. Os criados ajudavam-nos a retirar os casacos e chapéus assim que entravam na casa, depois os conduziam direto as fontes de champanhe onde eles e Malcolm brindavam pelo nascimento de Corrine. Malcolm não parou de beber durante toda a festa.

       Ele também havia comprado centenas de velas vermelhas que brilhavam alegremente nos castiçais de prata. As cinco fileiras do imenso candelabro de cristal e ouro também estavam acesas. O brilho das luzes, refletindo nos espelhos, nos cristais e nas jóias das mulheres, criavam um emaranhado radioso cuja beleza era deslumbrante.

A festa parecia a cena de um filme sobre reis e rainhas da Europa. A opulência criava uma atmosfera mágica. Podia-se quase esperar a chegada do Príncipe, tendo Cinderela a seu lado. Os convidados estavam usando suas roupas mais ricas, as jóias mais valiosas e as peles mais caras. O jeito alegre das pessoas, assim como suas gargalhadas e vibrações, tornavam o ar elétrico.

       Com o propósito de celebrar o nascimento de Corrine, Malcolm havia contratado um fotografo profissional para tirar fotos dela em seu berço e nos braços do pai. O fotógrafo ampliou essas fotos em tamanhos gigantes e as enquadrou em molduras douradas; meia dúzia delas foram colocadas em tripés na entrada da casa, de modo que, ao chegarem, a primeira coisa que os convidados viam era a bela filha de Malcolm Foxworth. O fotógrafo conseguira captar o azul de seus olhos e a riqueza dos cabelos dourados. Ninguém passava diante das fotos sem reparar na brancura da sua pele e na delicadeza dos seus traços. De fato, a beleza de Corrine tornou-se o assunto da festa. Algumas pessoas, como Benetha Thomas e Collen Demerest, foram relativamente óbvias em seus pensamentos, ou melhor, em suas invejas. Quando me detive para conversar com elas e suas amigas, descobri que haviam analisado detalhadamente o retrato de Corrine.

       - Vejo muito de Malcolm nela, mas nada de você - disse Benetha.

       Percebi o modo que as mulheres riram entre si e me lembrei da minha primeira festa na sociedade da Virgínia e de como elas haviam feito com que eu me sentisse tola e embaraçada. Agora, porém, eu estava determinada a proteger Corrine e nunca deixar que acontecesse com ela o que acontecera comigo.

       - Tenho certeza que ela será bela e alta - disse Colleen, enfatizando a palavra alta.

       Algumas das mulheres procuraram esconder suas chacotas, mas eu mantive uma postura firme, altiva e desinibida. Elas não tinham filhas tão belas quanto Corrine, e com o tempo mostrariam isso a todas elas. Ironicamente, eu lhes disse:

       - Sim, até posso dizer que terá a minha disposição. Ela não chora nem fica gemendo como os outros bebês. Logo, tenho certeza que não será tão fraca e dependente como a maioria das mulheres de hoje.  Espero que ela tenha a minha capacidade de concentração e curiosidade intelectual, de forma que, quando chegar a nossa idade, possa falar sobre coisas sérias em vez de futilidades.

       Acabando de falar, ali as deixei, em pé e estarrecidas. Outras pessoas também comentaram os traços de Corrine. Ouvi, por acaso, inúmeros comentários sobre seus olhos azuis, seus cabelos dourados e sobre o quanto ela parecia um Foxworth. Estava passando atrás de Dorothea Campden, cujo marido era o presidente de uma grande industria têxtil que Malcolm pretendia comprar, e a ouvi dizer que Corrine era a prova de que as crianças se parecem mais com os avós que com os pais.

       - E no caso dessa criança, é uma benção, pelo menos no que se refere a mãe - completou.

       Todos no grupo ficaram sem jeito quando eu me virei para ela assim que acabara de fazer o comentário.

       - Benção em que sentido Dorothea? - perguntei. Ela era uma pequena mulher de meia idade que travava uma luta constante contra o tempo; pintava os cabelos, usava roupas inadequadas para a sua idade e vivia procurando cremes milagrosos para combater as rugas. Eu me pus a seu lado e a olhei das minhas alturas. Ela recuou e levou a mão ao pescoço como se eu estivesse a sufocá-la.

       - Bem... eu... eu quis dizer que ela se parece com a mãe de Malcolm.

       - Não sabia que você era tão velha, Dorothea. Quer dizer que você ainda se lembra da mãe de Malcolm?

       - Bem... sim, eu me lembro - confessou, olhando desesperadamente para as outras mulheres como se estivesse esperando que alguém a salvasse daquela situação.

Como me diverti fazendo com que elas ficassem constrangidas.

       - É claro que os bebês mudam muito quando crescem, não é? Vocês se reconheceriam através de suas fotos quando eram bebes? - perguntei. A seguir cobri minha boca com a mão como se tivesse dito algo inconveniente e completei: - Desculpe-me Dorothea. Já existiam câmeras fotográficas quando você era criança?

       - O que? Mas... é claro, eu...

       - Com licença - eu disse. - Os Murphys acabaram de chegar. - Dei meia volta e a deixei falando sozinha.

       - Que criatura rude! - exclamou uma das mulheres do grupo, e elas se amontoaram em volta de Dorothea como galinhas em volta de uma espiga de milho.

       Circulei pela festa, algumas vezes interrompendo conversas similares e outras apenas sentindo que havia chegado no momento em qual falavam mal de mim. De certa forma, eu apreciava ter a oportunidade de provocar essas mulheres. Momentos depois olhei para a varanda, todas elas pareciam me olhar com ódio. Entretanto, aqueles olhares já não me incomodavam. Agora eu tinha Corrine e seria conhecida como a mãe da criança mais bonita do estado.

       Não sei como, mas Malcolm percebeu o que eu estava fazendo e pegando-me pelo braço, levou-me até a biblioteca. Aquilo me fez lembrar da nossa primeira festa e de quando ele entrara na biblioteca de braços dados com uma moça petulante e vulgar. Tal lembrança reavivou minha raiva e minha dor, só que agora eu não estava com a menor disposição para aturar as crises de Malcolm.

       - O que tem você para me dizer que não pode esperar pelo final da festa? - perguntei.

       - É essa sua atitude. - ele desabafou. Tinha os olhos vermelhos e arregalados, o champanhe já lhe havia subido a cabeça.

       - Minha atitude? - eu sabia que ele estava se referindo, mas fingi que não.

       - Sim. Você esta insultando aquelas mulheres, deixando que saibam exatamente como você se sente sobre elas. Chega até a ofender as esposas de alguns homens muito importantes para os meus negócios - ele reclamou, como se eu tivesse blasfemando na presença de padres.

       - Na minha opinião essas mulheres da alta sociedade são...

       - Sua opinião pouco me importa - ele interrompeu. - Esta festa não é sua, logo, não tem o direito de arruiná-la, esta é a festa de Corrine. Estaremos fazendo isso por ela. Queremos desejar boas entradas a ela, não a você.

       - Corrine? Você está ficando maluco? Ela é minha filha também e não passa de um bebê. Não quero que ela cresça para ser mimada e frívola como essas mulheres que estão aqui. E todas essas despesas para um bebê... não importa o quão preciosa e maravilhosa ela é... é um pecado!

       - Não, não é pecado. - Malcolm respondeu socando a mão direita sobre a palma da outra mão. Jamais o havia visto tão animado na defesa de um argumento. - Isto é o que ela merece - acrescentou.

       - Merece? - eu disse rindo.

       - Você está com inveja - acusou ele, apontando para mim. - Você está com inveja de um bebê, com inveja de Alícia por ela ter tido um bebê tão bonito; inveja de seus olhos azuis, de seus cabelos dourados, de sua pele maravilhosa. E lhe digo uma coisa: eu nunca sentiria isso, nunca.

       Agora seus dois punhos estavam fechados. Sabia que ele estava bêbedo e enfurecido o suficiente ara me bater, mas eu não podia deixar me intimidar.

       Não, Malcolm, você está errado. É você que esta com inveja, inveja de mim e de minha filha...

       - O que? - a idéia pareceu confundi-lo. Ele recuou com se eu lhe tivesse dado um tapa. - Ela é minha filha, não sua. Não há nenhuma gota do seu sangue nessa criança; ela não possui nada que lembre você e fico feliz por isso.

       Seu olhar era de ódio, mas eu não deixaria que ele me magoasse.

       - Não Malcolm, não. Você está errado. Você quis que eu fosse a mãe dessa criança e eu serei. E ela tem muito de mim desde o momento em que concordei em participar da sua pequena trama. Mas agora, Malcolm, não são simplesmente a sua trama e seu plano que estão em jogo, é a sua vida e a minha, é a vida de nossos filhos e da nossa filha. Esta é agora a nossa família; agora eu sou tão Foxworth quanto você - completei e passando diante dele, abri a porta da biblioteca.

       - Estou voltando a festa - acrescentei. - Por mim, você pode ficar aí e discutir esse problema com você mesmo.

       Ele se ergueu e me acompanhou. Durante a festa ficou a me lançar olhares fulminantes, mas eu o ignorava. Quando soou meia-noite, a enfermeira desceu com Corrine.

Mantive os garotos acordados, mesmo sabendo-os exaustos e nós cinco ficamos ao lado da árvore e passamos para uma foto. Malcolm segurou Corrine em seu colo, os garotos estavam junto de mim segurando minhas mãos. A luz do flash faiscou e os convidados aplaudiram. Malcolm irradiava orgulho olhando para a filha em seus braços. Ela estava acordada, muito quietinha.

       - Corrine sabe que a festa é dela! - disse ele aos convidados e me fuzilou com o olhar. A multidão riu.

       - Um brinde! Exclamou Matthew Allen, um dos associados de Malcolm. Ele me parecia mais um lacaio de Malcolm do que um de seus sócios. - Aos Foxworth - entoou, erguendo a taça de champanhe - e especialmente a sua linda filha Corrine. Feliz Natal e Próspero Ano Novo!

       - Bravo! Bravo! - a multidão aplaudiu, esvaziando as taças.

       A banda atacou com uma musica natalina muito em voga naqueles dias e Malcolm começou a circular entre os convidados exibindo sua nova filha. Eu fiquei com os meus garotos.

       - Papai gosta mais de Corrine do que de nós - queixou-se Mal. Ele era muito arguto, o que me deixava esperançosa.

       - Você tem que aprender a conviver com isso, Mal; aliás, vocês dois tem que aprender - eu disse. Apertei os dois contra meu peito, num abraço. Eu os amava profundamente, e meu amor e proteção eram grandes o suficiente para três crianças. Nenhuma delas jamais seria excluída de minha afeição e carinho. Beijei os meninos e voltei a abraçá-los. Ali ficamos os três, parados, apreciando Malcolm andar pelo salão erguendo sua dourada filha no ar. Em suas mãos Corrine parecia um anjo saído da árvore de Natal. Ele a mantinha suspensa, sorrindo entusiasmado.

 

CORRINE

       A PARTIR DA NOITE DA FESTA DE NATAL, Malcolm nunca hesitava em mostrar que seu amor por Corrine não tinha limites. Os garotos percebiam isso e ficaram realmente

magoados. Tentei compensar a falta do pai dizendo a eles, várias vezes, que todos os filhos eram preciosos para seus pais e que seriam sempre adorados por mim quanto por Malcolm, mesmo que não fosse fácil para ele demonstrar sua afeição pelos filhos. Os garotos estavam se sentindo tão esquisitos com o estardalhaço que o pai fazia em volta de Corrine que provavelmente ficaram felizes quando tiveram que retornar a escola após a passagem de ano. Malcolm estava constantemente as voltas com a filha, cantando para ela e a mimando, enquanto que, em relação aos filhos, só sabia fazer críticas e a insistir em discipliná-los. Meu coração doía por eles. Eram bons meninos, doces e adoráveis, e eu sei que ambos sentiam perdidos em meio a atenção que o pai dedicava a Corrine. Depois que partiram, senti-me mais livre para

dar também atenção a Corrine.

       Entretanto, Malcolm insistiu para que a enfermeira contratada continuasse conosco. Todas as vezes que eu ia dar comida a Corrine, ou apenas pegá-la no colo, aquela mulher estava por perto, supervisionando-me, tentando controlar a situação e lançando olhares de desaprovação ao modo que eu carregava minha própria filha.

Aquilo realmente me deixava furiosa. Uma manhã, enquanto a Sra Stratton dava mamadeira a Corrine, explodi:

       - Já lhe disse inúmeras vezes que só eu devo dar mamadeira a menina. Como ousa desobedecer minhas ordens?

       - Madame, nunca me disseram para acatar as suas ordens; ao contrario, o Sr Foxworth me instruiu detalhadamente sobre a rotina do bebê - respondeu ela de um modo grosseiro.

       - O que? - eu estava assombrada. - Quero você fora daqui esta tarde. Dispenso seus serviços a partir de agora.

       - Acho que está havendo um mal entendido, Sra Foxworth. Quando o Sr Foxworth me contratou, acertamos que a criança ficaria aos meus cuidados por um prazo indefinido.

       Eu estava furiosa, mas não queria que a raiva contaminasse minha doce e inocente criança; por isso, dei meia volta e saí do quarto. Muito tensa e agitada,

fiquei andando pelos corredores de Foxworth Hall durante toda a manhã e acabei concluindo que era preciso assumir o controle da situação de uma vez por todas. Malcolm não podia continuar agindo daquela forma.

       Nesse mesmo dia, a tarde, tive uma segunda surpresa - a chegada dos decoradores. Era mais uma medida que Malcolm havia tomado sem meu conhecimento. Eles se dirigiram ao aposento ao lado do de Malcolm e começaram a planejar a construção de um quarto de brinquedos só para Corrine. Malcolm tinha decidido que ela não compartilharia o mesmo quarto de brinquedos que os garotos. Foram encomendadas novas mobílias e pela maneira intensa como os decoradores estavam trabalhando, concluí que Malcolm exigira que tudo estivesse pronto o mais rápido possível. Sem dúvida, ficara provado que Malcolm não media despesas quando se tratava da filha, e eu não tinha o direito de dar minha opinião sobre a cor dos papéis de parede, os tapetes ou estilo dos móveis; aliás, os decoradores pareciam até desconhecer minha presença.

       Passei o dia inteiro com os nervos a flor da pele. Telefonei para o escritório de Malcolm, mas raramente ele atendia a meus telefonemas. Nas primeiras semanas de vida de Corrine, ligava a cada meia hora para saber se ela estava bem, mas em geral falava com a Sra Stratton. Sempre que eu tentava telefonar, a secretária me dizia que ele estava em uma reunião ou que não estava na sala. Quando eu deixava um recado ou pedia para ele ligar mais tarde, ele me ignorava. Todas as vezes que lhe falei sobre isso, ele justificava dizendo que estava muito ocupado para me ligar de volta; assim parei de telefonar.

       Esperei-o na porta da biblioteca quando o vi chegar em casa. Chegara mais cedo naquela noite, e provavelmente teria chegado ainda mais cedo se não tivesse passado numa loja especializada em enxovais de bebês, comprando cinco camisolinhas novas para Corrine. Entrou em casa com os pacotes nas mãos e um ar de alegria no rosto; pude perceber que sua intenção era ir direto para o quarto da filha.

       Era engraçado o jeito como Malcolm tagarelava com Corrine. Dirigia-se a filha como se a criança estivesse compreendendo tudo. Falava dos planos, da educação que daria a ela e lhe fazia promessas. Às vezes quando o ouvia falando com Corrine, um estranho assombro brotava dentro de mim. Ele parecia pensar que Corrine era sua mãe; dir-se-ia que a primeira Corrine tivesse bebido da mítica Fonte da Eterna Juventude e tivesse voltado como bebê. Na mente de Malcolm, era ela um bebê, mas tinha o entendimento de uma mulher adulta, especialmente em relação as coisas que ele dizia.

       - Malcolm - eu o chamei quando passou por mim em direção a escada.

       Ele geralmente subia as escadas pelo corredor da ala sul direto para o quarto da filha. Suas atitudes eram movidas por um amor magnético e uma grande adoração por aquela criança.

       - O que você quer? - perguntou, impaciente com a minha presença.

       Durante aqueles últimos meses vinha me ignorando. Quando estava em casa, ficava com Corrine, se ela adormecia, ele voltava ao trabalho. Às vezes ele me olhava e seus olhos não me viam, era como se estivesse olhando através de mim, como se eu não existisse.

       - Quero lhe falar imediatamente - eu disse. - O que tenho a lhe dizer não pode esperar.

       - O que é que não pode esperar? - perguntou ele de cara feia, equilibrando os embrulhos nos braços.

       Sua roupa ainda estava cheia de neve. Alvos flocos derretiam-se nos seus cabelos dourados fazendo com que cintilassem na luz, mas ele não aprecia perceber isso.

       - Por favor, venha até aqui - eu disse, entrando na biblioteca. Escutei-o resmungar. Ele entrou também, colocou os embrulhos de presente sobre a mesa, balançou a cabeça e sacudiu os flocos de neve sobre os ombros.

       - Quero que despeça a Sra Stratton. E agora mesmo Malcolm.

       - A sra Stratton é uma profissional especializada em cuidar de crianças. Quero o melhor para Corrine.

       - Mas eu não sou o melhor para ela? Sou a mãe, como a mãe de nossos garotos.

       - Com os garotos é diferente - ele apontou olhando-me como se eu fosse um idiota ou como se não tivesse entendendo.

       - Diferente como? E por quê?

       - É simplesmente diferente! - ele repetiu alto. Malcolm odiava ser contrariado, e era só aqui, em seu próprio lar, que isso acontecia, pois nenhum de seus sócios ou auxiliares ousava fazê-lo. Deve ter sido uma amarga ironia para Malcolm saber que sua esposa era quem mais o desafiava, porém, suas atitudes em relação as mulheres não deixava muito espaço para um tratamento de respeito e igualdade.

       - Mantê-la aqui é um gasto desnecessário - eu disse - se essa mulher é realmente uma profissional, como você diz, ela vai se aborrecer. Por que pretendo...

       - Você não pretende nada - Malcolm retrucou, interrompendo-me. - Deixei Corrine aos cuidados dela. Para isso estou pagando uma enfermeira. Já dei as minhas instruções, deixe que ela as siga.

       - Diga-me: que erros cometi na educação de nosso filhos? Que erros Malcolm?

       - Erros - ele repetiu sarcasticamente. - Dê uma olhada nos garotos.

       - O que há de errado com eles?

       - A pergunta correta seria: o que não há de errado com eles? São fracos, preguiçosos, não se interessam pelo mundo dos negócios um mundo que lhes deu tudo - ele disse, fazendo um gesto amplo com as mãos. - Você os envenenou contra mim, e por isso não suportam minha presença.

       - A culpa é totalmente sua. Você os aterrorizou.

       - Apenas porque sou exigente. Quero que sejam homens, não filhinhos da mamãe. Mal continua as voltas do piano quando não estou em casa. Não negue, que eu sei. E Joel... Joel é tão frágil e delicado quanto uma menina.

       - Mas isso não tem nada a ver com...

       - Basta - ele interrompeu batendo na mesa. - Pra mim chega! Sra Stratton continuará aqui até que eu resolva demiti-la. É isso o que eu quero; é meu o dinheiro que estou gastando. Não se meta.

       - Corrine também é minha filha.

       - É mesmo Olívia? Você já se esqueceu? Ela é minha filha. É uma foxworth em tudo - ele disse como se expulsando Alícia também anulasse em Corrine tudo que ela teria herdado da mãe. Em sua mente perturbada, Corrine era uma criação apenas dele. - Ela merece o melhor e vai ter o melhor. Você não compreende isso. Se seu pai a criou mais como um garoto do que como uma menina, de qualquer forma isso não vem ao caso. Trate de fazer as suas coisas e deixe a mulher trabalhar em paz.

Tome conta dos garotos. Eles bastarão, sem dúvida.

       Malcolm atravessava a porta da biblioteca quando eu o chamei.

       - Espere. Quero lhe falar ainda sobre o novo quarto que você esta fazendo para Corrine.

       - O que tem ele?

       - Insisto que você me informe sobre as suas decisões antes de tomá-las. Para não ficar tão embaraçada da próxima vez.

       Ele me olhou, contraiu o canto direito da boca, balançou a cabeça para um lado e outro e me contemplou como se eu fosse um inseto desagradável que não o deixava em paz.

       - Quando concordei em levar adiante seus planos sobre essa criança, ficou claro que eu só concordava com a condição que, daí para frente, eu teria o controle da casa e ela seria gerida do modo que eu determinasse. Também concordei que a criança passaria por minha, e realmente a considero minha. Só deus poderá tirá-la de mim - disse eu, e depois de uma pausa para retomar o fôlego e fulminar Malcolm com os olhos prossegui. - Deixarei você construir um novo quarto para Corrine com uma condição: que você construa outros dois quartos, um para Mal e outro para Joel. Assim eles terão um lugar exclusivo quando vierem de férias. E cada um desses quartos deverá ter um grande piano.

       - Está certo - concordou Malcolm com um olhar de desgosto. - Não me importo mais com a sua maneira de criar os filhos. Acho que eles já estão arruinados.

- Acrescentou, deixando a biblioteca e se dirigindo diretamente para o quarto da filha.

       Eu também estava ansiosa para ir ao quarto de Corrine. Ela ficava mais bonita a cada dia e meu coração se enchia cada vez mais de amor por ela. A primeira vez seus lábios esboçaram um sorriso, ela olhava para mim e eu sabia que estava sentindo que eu a amava. Quando seus cabelos sedosos e dourados começaram a crescer, eu os prendia com fitinhas cor-de-rosa. Ela parecia uma princesinha de contos de fadas. Agora eu entendia o amor que as pessoas pareciam sentir pelas meninas delicadas e lindas. A beleza delas faz vibrar uma corda no coração de todos, tirando uma suave melodia, uma melodia adorável que soa como as harpas dos anjos.

       Num dado verão, quando Corrine estava com três anos de idade, Malcolm agiu mais uma vez sem me consultar: demitiu a Sra Stratton e a substituiu por uma pessoa que mandara vir da Inglaterra. Chamava-se Sra Worthington e era uma solteirona de cinqüenta e quatro anos. Segundo Malcolm, ela fora a preceptora das crianças do duque e duquesa de Devon. Não gostei dela desde o primeiro instante que a vi e ela também não gostou de mim. Obviamente Malcolm já havia dito que as minhas palavras e decisões não tinham importância alguma nos assuntos referentes a Corrine. Ela não me dava a menor atenção e tentava tomar o controle sobe a vida de Corrine como bem entendia. Havia programado uma rotina e a seguia religiosamente. Desde a primeira semana que a Sra Worthington passou a morar conosco, Corrine rebelou-se contra ela e começou a implorar para mandá-la embora.

       - Quero ficar com você mamãe - dizia ela chorando - não gosto dessa outra senhora.

       - Corrine, você sabe que eu preferiria que ficássemos só nos duas. Mas seu pai não pensa assim, ele acha que é importante você ter uma preceptora e mesmo

que eu não concorde, ele não mudará de idéia. É preferível que você a obedeça.

       Apesar da minha antipatia pela Sra Worthington, rapidamente comecei a admirar seus talentos. Eu queria muito que Corrine adquirisse toda a graça que não tive.

Em seu programa para Corrine, a Sra Worthington tinha incluído aulas de etiqueta, locução e dança. Ironicamente, até aulas de dança faziam parte do programa. Era uma mulher firme e meio arrogante. Tinha pouco mais de um metro e sessenta e embora se vestisse de uma forma conservadora, possuía vestidos muito elegantes, blusas e saias confeccionadas com um tipo de algodão muito fino, sedas e tafetás. Jamais a vi sem estar com o cabelo bem arrumado e preso no alto da cabeça. Levantava-se cedo e se preparava como se fosse ter uma audiência com uma rainha. Ela não usava maquiagem e passava todo o seu tempo livre lendo no seu quarto ou passeando sozinha

pelos jardins de Foxworth Hall. Costumava caminhar todos os dias para se exercitar, só não o fazia quando o mau tempo não deixava. Era muito cuidadosa quanto a alimentação, sempre muito atenta ao que comia. De fato, para uma mulher de sua idade, tinha um ótimo aspecto.

       Com o passar do tempo comecei a aprender várias coisas com ela. Ela conseguia transformar tudo o que fazia em lições para Corrine; estava sempre lhe mostrando a maneira certa de segurar os talheres, pegar a comida, andar, cumprimentar as pessoas - em qualquer situação ela encontrava a oportunidade para educar Corrine e o fazia até estar certa que a menina havia compreendido a apreciado seus atos.

       Malcolm decidiu que Corrine, ao contrário de seus irmãos que foram proibidos de sentar a mesa até completarem cinco anos, devia começar a fazer as refeições conosco para aprender a se comportar a mesa. Esse foi um dos motivos da muitas brigas que eu e Malcolm tivemos sobre a educação de Corrine. A primeira vez que Corrine se sentou a mesa, junto com a Sra Worthington, ela tinha apenas três anos. Eu e os garotos ficamos surpresos quando vimos a Sra Worthington trazendo-a pela mão.

Malcolm sorriu com alegria e puxou uma cadeira para seu lado. Corrine começou a correr para ele, mas a Sra Worthington a deteve imediatamente.

       - Corrine - disse ela, e a menina parou, hesitante. Tal obediência me deixou espantada.

       A Sra Worthington estava conosco há apenas uma semana e, apesar dos sentimentos de Malcolm em relação a Corrine, eu percebi nela uma certa voluntariedade.

Era como um pequeno pássaro azul voando de um lugar para o outro sem muita concentração. Em seus brilhantes olhos azuis morava um ar de travessura. Havia alguma coisa maliciosa na sua beleza e no seu jeito precoce de driblar o pai.  Ele não resistia a nenhum de seus pedidos. Tudo o que ela precisava fazer era olhar alguma coisa, e o pai ia correndo buscá-la. Sempre que a levava para passear, ela voltava cheia de brinquedos e bonecas. Às vezes vinha com um vestido e um par de sapatos novos. Entrava em casa correndo e o som delicado da seu riso enchia o ar, ecoando pela sala. Malcolm fazia questão de que seus cabelos dourados, que vinham até a altura dos ombros, fossem escovados cem vezes por dia. Os cabelos eram tão lindos e louros que davam a Corrine um ar angelical. Sua pele continuava tão bela e saudável quanto no dia em que nascera, e Corrine ficava cada vez mais bonita e adorável. Eu me sentia simplesmente fascinada por todos os movimentos de Corrine. Gostava de vê-la correndo pela casa como um passarinho, ou me observando com seus minúsculos pezinhos, que mal tocavam o carpete, andando de um lado para o outro. Gostava do jeito como ela levava a comida até os lábios, movendo-se com muita delicadeza. Ela agia como se soubesse que era uma princesinha. Eu a achei brilhante quando compreendeu

que Malcolm queria vê-la obedecer a Sra Worthington e quanto mais a obediente fosse, maior seria seu controle sobre o pai. Ele adorava tudo em Corrine e quando ela fazia alguma coisa que a Sra Worthington lhe ensinara, Malcolm ficava deslumbrado. Desde o inicio Corrine agia como uma pupila exemplar.

       Ela estacou, olhando a Sra Worthington, que, com as mãos cruzadas na frente do corpo, permaneceu ereta e firme onde estava, esperando que Corrine retornasse a porta da sala de jantar, o que fez imediatamente.

       - Caminharemos até a mesa como uma dama deve caminhar - disse ela - e lembre-se como deve sentar-se - acrescentou.

       Corrine consertou a postura de seu pequeno corpo, erguendo a cabeça com arrogância características dos Foxworth. Eu e os garotos a observávamos fascinados.

Malcolm levantou-se e puxou a cadeira para a filha, o que jamais havia feito para mim, mesmo na nossa primeira semana de casados. Corrine levantou rapidamente os olhos para a Sra Worthington como se estivesse procurando um sinal de aprovação em seu rosto, e depois virou-se para o pai.

       - Obrigada, papai.

       Foi como se o céu tivesse aberto e as luzes da glória tivessem entrado dentro de casa. Malcolm estava radiante. Ele olhou a Sra Worthington com uma expressão de gratidão e respeito. Corrine sentou-se a mesa e a sua verdadeira educação começou.

       Logo depois, quando as crianças estavam na cama e a Sra Worthington se havia retirado, fui até a biblioteca para falar com Malcolm. Caia uma terrível tempestade de verão. As gotas de chuva disparavam contra a janela e os trovões sacudiam os vidros. As luzes piscavam e o vento, filtrando-se pelas frestas das janelas, criava uma caótica sinfonia. Atrás de Malcolm eu podia ver o céu escuro onde, às vezes, piscavam algumas luzes. Como sempre, ele permanecia indiferente a tudo quanto acontecia em torno quando estava trabalhando. Minha presença na biblioteca o incomodou mais do que o fragor da tempestade.

       - O que você quer agora? - perguntou, impaciente. Sua testa estava enrugada e seu rosto tinha uma expressão de intolerância.

       Impávida, continuei a caminhar em direção a mesa.

       - Compreendo o que a Sra Worthington pretende ao levar Corrine para fazer as refeições conosco, mas como pode permitir isso depois que proibiu os garotos de se sentarem a mesa até os cinco anos? Não pense que eles não entendem este... este favoritismo anormal.

       - Anormal? Do que você esta falando? Será que considera uma obrigação opor-se a tudo o que faço? - reclamou ele, depois sentou-se novamente na sua poltrona.

Para me mostrar que eu estava errada, encarou-me com um olhar que parecia repleto de razão e bom senso. - Quantas vezes devo repetir? Meninas recebem uma educação diferente. O mundo espera que elas sejam sociáveis. Se você não teve essas oportunidades, não significa que Corrine também não deva tê-las.  Não contratei também um professor particular para os meninos? - perguntou, e sem me dar tempo para responder, acrescentou: - Mas você torceu as coisa de tal maneira que tive que o demitir.

       - Eu torci as coisas? - Mal podia pronunciar as palavras, tão furiosa eu estava, - Foram os seus próprios atos que arruinaram as aulas dos garotos, Malcolm.

Mas não nego que nunca aprovei os métodos daquele homem.

       - Este é o ponto - denunciou, levantando-se. - Você conspirou contra ele até encontrar a oportunidade para o por para fora. Você negou aos garotos a melhor oportunidade que tiveram, não eu. Já lhe disse uma vez e digo novamente: quando se trata de Corrine, seja em relação a educação, roupas... o que quer que seja, eu tomo as decisões. Agora pare de interferir.

       Tivemos discussões similares quando a Sra Worthington começou a ensinar música a menina, porém, por mais que eu apontasse a disparidade entre o tratamento que ele dispensava a Corrine e o que ele que dispensava aos garotos, ele se recusava a aceitar e sempre punha fim as brigas me acusando de invejosa. Em parte, ele estava certo. À medida que Corrine crescia e se transformava em uma bela garotinha, com a ajuda da enorme fortuna de Malcolm, eu não podia deixar de me comparar a ela quando tinha a mesma idade. Também apareceu muito de Alicia em Corrine conforme o tempo passava. Imaginei que Malcolm também devia perceber a semelhança, e todas as vezes que olhava para a filha não podia deixar de pensar na adoração que tinha pela viúva de seu pai.

       Quando Corrine completou dez anos, Malcolm teve que mandá-la para uma escola particular, o que para ele foi muito doloroso, pois não a veria quando chegasse do trabalho. Também para mim sua partida era muito triste. Estando Corrine distante, parecia-me que o sol havia se escondido atrás das nuvens de Foxworth Hall. Fiquei mais solitária do que nunca. Exceto na época das férias escolares, raramente Malcolm ficava em casa; preferia passar a maioria de suas noites fora, "tratando de negócios". Eu sabia exatamente o tipo de negócios ele tratava nessas noites, pois ouvia o que diziam as línguas da cidade. Embora não tivesse amigos (como poderia, se todos sabiam o que meu marido pensava de mim e como me tratava), eu tinha vergonha do que Malcolm fazia, por isso determinei que cabia a mim proteger minhas crianças

do mal que havia em Malcolm.

       Talvez tenha sido por isso que encontrei tanto consolo em Deus, na Bíblia, e mais tarde, na igreja. Esse foi meu consolo, minha companhia, minha verdadeira salvação. Foi meu primo John Amos quem me reaproximou da religião. Sua mãe havia morrido e ele, assim como eu, tornou-se a única pessoa que restava da família. John Amos veio me visitar e me convidou para orar com ele; meditávamos em silêncio na sala de visitas, e como ele havia prometido, eu me sentia realmente confortada por uma grande paz interior. Ele insistiu que fosse a igreja com mais freqüência e antes de voltar para o Norte, deixou-me um atarefado programa de leituras da Bíblia.

Eu, que por tanto tempo recusara submeter minhas vontades a de Malcolm, com alívio e gratidão as submeti a Deus.

       Minha devoção enfurecia Malcolm. Ele sentia tanta falta de Corrine quanto eu, mas o único conforto que encontrava era ir visitá-la na escola de vez em quando.

Quanto aos garotos, ele nunca os visitou no internato onde estavam. Eu ia vê-los sempre que podia e eles me escreviam cartas enormes, relatando suas atividades;

Malcolm não sabia, é claro, que Mal freqüentava um curso especial de instrumentação musical e Joel pertencia a orquestra.  Os meninos também adoravam Corrine.

Eram tão fascinados por sua beleza e seu charme quanto Malcolm, mas não podiam deixar de sentir certo ciúme do relacionamento dela com o pai. Nessa época Corrine era extremamente mimada por Malcolm, ao passo que os garotos, embora vivessem com alguma riqueza, cresceram sem maiores luxos. Malcolm nunca dera a eles coisas com a mesma alegria e despretensão com que dava a Corrine. Quando se tornaram adolescentes, ele insistia em pôr os garotos para trabalhar durante os verões em um de seus bancos, onde desempenhavam a função de boys.

       Mesmo tendo motivos suficientes para isso, os garotos nunca ficavam ressentidos com Corrine. Também a mimavam e viviam loucos para comprar-lhe presentes e satisfazer seus desejos. Costumavam levá-la para velejar e andar a cavalo. Quando Mal começou a dirigir, passou a levá-la de carro para onde ela quisesse a qualquer hora. Joel, especialmente, ficava a disposição dela todas as vezes que os três se encontravam em casa; não havia nada que não fizesse por ela. Corrine, sabendo disso, tirava proveito do irmão.

       Num feriado de Ação de Graças, quando todos vieram da escola para passar alguns dias em casa, chamei os rapazes a sala de estar para lhes falar sobre Corrine.

Malcolm a havia levado a Charlottesville para fazer compras; ela se queixava ao pai que suas roupas estavam fora de moda, e que, embora só tivesse onze anos, sua aparência era importante. Sentei Mal e Joel num sofá e me coloquei a frente deles como se lhes fosse passar um sermão.

       Estava nevando um pouco, pois era início do inverno; contudo, a neve que caía era úmida e o céu continuava claro, pelo que todos desfrutavam do feriado com entusiasmo e antecipavam a alegria da época de Natal, que já vinha se aproximando. Os garotos e Corrine até tinham começado a decorar nossa imensa árvore. A menina ficava sentada numa cadeira francesa de encosto alto, explicando aos garotos onde queria que os enfeites fossem pendurados. Joel, como um escravo, corria de um lado para o outro, se esticando e se torcendo para pendurar um enfeite aqui, outro ali.

       - Mal, - comecei - você vai completar dezoito anos e como eu já lhes disse no ano passado, cada um de vocês terá acesso a uma conta aberta por seu pai há muito tempo. Isso lhes proporcionará uma grande independência, porém, independência requer uma noção de responsabilidade bem desenvolvida. - Fiz uma pausa para ver como estavam reagindo às minhas palavras.

       - Eu sei mamãe - disse Mal. - Papai vem falando comigo sobre isso há algum tempo; aliás, abordamos esse assunto ontem, logo depois que cheguei. - Mal herdara o tom de voz forte e profundo do pai.

       - Ontem? E o que ele vem lhe dizendo?

       - Ele me pede para transferir o dinheiro para a conta dele, assim poderá continuar a investi-lo com sucesso.

       - Você respondeu o que? - perguntei rapidamente. Joel olhou para mim com uma expressão preocupada. Os garotos sempre foram muito sensíveis a meus sentimentos.

       - Disse-lhe que iria falar com você sobre isso - respondeu Mal, sorrindo. Mal se parecia com Malcolm fisicamente, mas se parecia muito comigo em se tratando de caráter. Sorri de volta e Joel também sorriu, com ar cúmplice.

       - Bom, garotos, vocês nunca devem passar esse dinheiro para a conta de seu pai. Ele acabará gastando esse dinheiro todo com Corrine - afirmei. Joel começou

a rir, mas meu olhar o fez parar imediatamente. - Não devem pensar que estou brincando. Eu os chamei aqui para dizer que vocês tem que parar de mimar sua irmã. Ela os está usando, está se aproveitando e me parece que Corrine não dá o menor valor ao que se faz por ela. Também seu pai a mimou demais. Eu os estou alertando tanto pelo bem de Corrine como pelo bem de vocês. Malcolm não age com razão quando se trata de Corrine; é cego no que diz respeito a ela, mas vocês dois podem ajudá-la muito se pararem de fazer tudo o que ela quer.

       Comecei um vai e vem na frente deles.

       - Ainda não é tarde para ajudá-la. Vocês já imaginaram que tipo de mulher ela será se tudo continuar como agora? Ela não tem a mínima noção de dinheiro, e pior ainda, acha que todo mundo nasceu para servi-la, especialmente vocês dois, e eu não gosto nada do jeito que ela se aproveita de vocês.

       Parei, e sobre o ombro, olhei para trás a fim de ver como os garotos reagiam ao meu pequeno discurso. Ambos estavam sérios e concentrados; Joel, contudo, tinha um ar muito infeliz.

       - Não me entendam mal. Eu amo Corrine. Agora, sobre o patrimônio de vocês, estou falando serio. Malcolm é capaz de deixar tudo para ela, e não pensem por um só momento que ela não será conivente. Sei que atrás da aparência inocente e infantil, dos olhos meigos, Corrine pensa como um Foxworth - prossegui.

       Depois parei e fitei ambos. Mal acenou com a cabeça, concordando e Joel sentou-se com os braços cruzados sobre o peito magro; ele ainda tinha dificuldade de ganhar peso e sua aparência era frágil.

       - O que devemos fazer? - Joel perguntou. Sua voz suave e doce lembrava a voz de uma menina. Eu costumava pensar que Joel poderia ter sido uma linda garotinha, embora por certo não tão bela quanto Corrine.

       - Ponderem seus pedidos antes de satisfazê-los. Ensinem a ela um pouco de abstinência e de paciência. Ajudem-na a ser uma pessoa melhor - aconselhei. Mal aprovou, e logo depois, Joel também. - Quanto a seu pai e o caso do dinheiro, digam-lhe que vocês ainda estão debatendo o assunto comigo e deixem que ele venha me procurar - finalizei.

       - Por que ele nos deu esse dinheiro e agora quer tomá-lo? - Mal perguntou.

       - Decidimos que essas contas seriam abertas há muito tempo atrás e não existem decisões que não possam ser revogadas. Os motivos agora, não importam mais.

Só quero que compreendam que, pelo menos agora, enquanto eu estiver em Foxworth Hall, vocês não estarão indefesos.

       Mal, meio pensativo, concordou, mas Joel continuava com um ar muito preocupado. Eu me sentia triste por assim dividir a família em dois lados opostos - de um lado Mal, Joel e eu; do outro Corrine e Malcolm. Sabia que isso era desagradável para todos e por isso não insisti mais.

       - Com o tempo, tudo vai melhorar - conclui sorrindo, embora não acreditasse realmente nisso.

       Os feriados continuaram a ser ocasiões festivas. Eles traziam as crianças de volta e para Malcolm significava a vinda de sua princesa. Apesar do que sentia sobre o pródigo relacionamento de Malcolm com a filha e seu difícil relacionamento com os filhos, eu também ansiava por vê-la chegar, pois com Corrine o sol e a luz voltavam para Foxworth Hall. Quando ela estava com treze anos, já uma linda mocinha, ela era muito popular entre os rapazes da sua idade. Posso afirmar que todas as amiguinhas lhe disputavam a atenção e os favores. Não havia nada que elas valorizassem mais do que serem convidadas para passar a noite ou para uma festinha em Foxworth Hall.

       Nossas festas de Natal continuavam a ser uma cerimônia muito alegre e agora, Corrine já mocinha, Malcolm condizia os preparativos como se fosse um baile de debutante. Nesse natal, Corrine foi apresentada a alta sociedade. Os pais de todos os seus amigos foram convidados. Para essas ocasiões, Malcolm sempre lhe comprava um vestido novo - e caro. Suas amiguinhas sabiam o que delas se esperava. Todos vieram elegantemente vestidos - os pais de smoking e as mães de longo. Brilho e glamour não faltavam. Tanto mulheres adultas quanto as mais jovens, amigas de Corrine, usavam belas jóias.

       As pessoas chegavam em caros luxuosos e por toda a parte havia arranjos de flores raras cultivadas em estufas. A festa desse ano fora tão rica e variada quanto a festa de Natal em que Malcolm apresentara o bebê Corrine. Malcolm selecionava cuidadosamente os amigos de Corrine, convidando somente aqueles que acreditava serem "suficientemente bons" para a filha. Nossa lista de convidados aumentava a cada Natal, até Corrine completar dezoito anos, pois nessa ocasião muitas coisas mudaram.

Até então a adoração de Malcolm por sua linda filha crescia a cada dia. Ele não só tirava fotos dela constantemente, como também mandou que lhe pintassem um retrato a óleo, algo que não fizera por mim. Esse retrato foi pendurado no quarto de troféus para deleite exclusivo de Malcolm. Aos seus olhos, ela era perfeita.

       Certa noite, Malcolm e Corrine estavam sentados a mesa de jantar. Os garotos ainda não haviam voltado da escola e Corrine só chegara em casa porque Malcolm tinha viajado para buscá-la. Ela se havia sentado como uma pequena dama diplomada em educação pela Sra Worthington e relatava ao pai casos ocorridos em sua escola.

Malcolm parecia em êxtase; o rosto apoiado na mão e um eterno sorriso nos lábios, ele escutava a filha, maravilhado por seus brilhantes olhos azuis e pelo cristalino som de seu riso. Pela fresta da porta, eu os observei. Pareciam tão remotos, mais distantes de mim do que eu acreditava. Era como se estivessem trancados em um mundo particular. Eu os invejei; invejei a maneira como Corrine conseguia atrair a atenção de Malcolm. Quando ela terminou de contar sua história, inclinou-se para frente e, instintivamente, beijou a testa do pai. Seu gesto foi tão rápido e tão inconsciente que poderia chamá-lo de um gesto divino, magnífico. Malcolm segurou as mãos dela e as colocou entre as suas.

       - Você gosta de seu pai?  - perguntou sério, como se realmente não tivesse certeza.

       - Oh! Claro papai - ela respondeu afastando-se um pouco e a sorrir.

       - Então me prometa que ficará comigo para sempre e lhe prometo que tudo isso será seu um dia - Malcolm disse fazendo um amplo gesto com as mãos. Corrine olhou para o teto e riu. - Estou falando sério - ele continuou - tudo que possuo será da minha princesa. Você ficara comigo para sempre?

       - Certamente papai - assegurou, beijando-o no rosto. - Mas você pode me fazer um favor?

       - Qualquer coisa princesa, qualquer coisa que seu pequeno coração deseje.

       - Sabe aquele quarto lá em cima? Aquele que está sempre trancado? Quero que seja meu. Ele pode ser meu? Oh, por favor, diga que sim agora e levarei para lá tudo o que é meu - Corrine bateu palmas. Seu rosto estava rubro de excitação.

       - Que quarto? - perguntou Malcolm e olhou para cima, em sua face havia um ensaio de sorriso e ele certamente não estava prevendo o que ela iria responder.

       - O quarto com a cama de cisne. Oh, como é bonito.

       Malcolm enrubesceu e seus lábios ficaram brancos.

       - Não, não - ele balbuciou através dos dentes cerrados. - Você não deve entrar ali. Esse quarto não deve mais ser usado.

       - Por quê? Corrine perguntou.

       Seu rosto esboçou uma expressão de desapontamento, o que não era comum de acontecer. Ela fechou as mãos e as bateu contra as pernas. As mãos de Corrine sempre denunciavam suas emoções, às vezes pareciam não fazer parte do seu corpo e agiam como se tivessem vontade própria.

       - É um quarto ruim, um quarto infectado. - Malcolm disse sem perceber que, pronunciando essas palavras, o quarto lhe parecia ainda mais sedutor.

       - Por quê? - Corrine perguntou de novo.

       - Porque o fantasma da segunda mulher de meu pai vive ali - disse ele, esperando que isso a assustasse. Os olhos de Corrine se arregalaram e ela juntou as mãos como se fosse orar.

       - E a segunda esposa de seu pai não era uma boa mulher? - perguntou baixinho.

       - Isso não é importante. Certas coisas você ainda é muito jovem para compreender.

       - Veja, papai, eu agora estou crescidinha. Sabemos que coisas como fantasmas não existem. Não acredito que o quarto seja assombrado por um fantasma. Deixe-me levar minhas coisas para lá, e se você estiver preocupado com o fantasma, paizinho, eu o enxotarei para longe daqui.

       - Não quero mais falar nesse assunto, Corrine. Considere este caso encerrado - gritou.

       - Mas eu quero esse quarto - Corrine insistiu. - É o mais bonito da casa; quero que seja meu!

       Levantou-se e, com lágrimas escorrendo pelo rosto, saiu da sala de jantar.

       Desse dia em diante, toda a vez que Malcolm estava fora, eu deixava Corrine ir até o quarto do cisne. Achava fascinante seu interesse pelo aposento. Ela se sentava a penteadeira e fingia ser uma mulher adulta, a dona de Foxworth Hall preparando-se para um baile extravagante. Eu sabia o que ela fazia lá dentro porque eu a observava através do buraco na parede do quarto de troféus. Era claro que Corrine não desconfiava que eu estava espionando. Ela ficava sentada diante da penteadeira e escovava os cabelos com a mesma escova que fora de Alícia. Certa vez depois de trancar aporta, Corrine despiu-se e vestiu uma das camisolas da avó. Para prendê-la, fez um laço com as fitas em torno da cintura. Percebi o quanto lhe agradava o leve toque do tecido; percebi o prazer com que passava as mãos pelo peito e ventre.

Ela fechou os olhos e seu rosto assumiu uma expressão de êxtase que me pareceu estranho a uma pessoa de sua idade. Depois desfilou pelo quarto com aquele andar de princesa, pois numa princesa Malcolm a transformara. A seguir foi até a cama de cisne e se deitou. Finalmente adormeceu ali, usando a camisola de seda prateada.

Fiquei observando o peito que se inflava com a respiração e lembrei de Alicia fazendo amor com Garland naquela cama. Talvez Malcolm estivesse certo; talvez houvesse mesmo um fantasma no quarto; talvez houvesse alguma coisa maligna sugando a pequena Corrine.

       Não a impedi de continuar indo aquele quarto, não a impedi de usar algumas coisas de Alícia e de sua própria avó, a primeira Corrine. Eu temia muito que não fossem de Alícia ou de Corrine os fantasmas que habitavam aquele quarto - mas o próprio demônio, capaz de corromper uma jovem e inocente que ali vivesse.

 

O DIA MAIS NEGRO

       - MAMÃE, TORNEI-ME MULHER!

       Eu estava nos jardins, colhendo os últimos crisântemos do verão. Nesse ano, meu jardim florescera de uma forma magnífica. Talvez por que as crianças passaram todo o verão comigo e sempre trabalhávamos juntos; nos o regávamos, semeávamos com novas sementes e o adubávamos. Meus crisântemos nasceram fortes e ficaram enormes - alguns, em gloriosos tons de lilás, vermelho-sangue e amarelo-ouro, chegaram a alcançar mais de um metro e meio de altura. Malcolm brincava comigo dizendo que eu devia concorrer na exposição de flores do condado. "Você será a rainha dos crisântemos" dizia ele. Corrine também insistia que eu mostrasse minhas flores, mas não era isso que eu queria. Minhas flores estavam ali somente para nós, para nosso lar, para refletir a alegria que minhas crianças traziam a escuridão de Foxworth

Hall. Em breve seria setembro, e daí há uma semana as crianças iriam embora novamente; Joel e Corrine teriam de retornar as suas respectivas escolas e Mal voltaria para Yale, onde começava a realizar os ambiciosos planos de Malcolm lhe traçara desde que nascera.

       Eu havia acabado de colher um glorioso crisântemo vermelho quando avistei Corrine correndo em minha direção, os cabelos dourados esvoaçando atrás dela como um manto de raios de sol.

       - Mamãe, tornei-me mulher!

       - O que está dizendo, minha querida?

       - Estou me sentindo mulher!

       Meu coração parou e olhei em volta, chocada e trêmula.

       - Mamãe, eu fiquei...

       Seu rosto ficara vermelho, os enormes olhos azuis estavam cheios de surpresa e excitação e ela sorria com um ar tímido.

       - Mamãe, fiquei menstruada. Agora sou uma mulher de verdade.

       Baixei os olhos e segurei suas mãos. Eu estava pasma. Corrine tinha apenas quatorze anos; ela mal conhecia a diferença entre ser mulher e sentir-se mulher.

Entretanto, ela estava muito feliz porque era mulher. Também me senti feliz por ela. Como as coisas haviam sido diferentes comigo. Eu só tinha menstruado depois dos dezesseis anos e quando isso acontecera minha mãe estava morta e não havia ninguém com quem eu pudesse compartilhar o segredo da minha mudança.

       - Mamãe, faça uma guirlanda de flores para enfeitar meus cabelos. Antigamente não se usava fazer isso para celebrar os grandes acontecimentos?

       Corrine começou a juntar as flores, que eu havia colhido, formando com elas um rico buquê colorido. Observei-a com um sentimento misto de amor e inveja. Pois quando eu era garota, a única coroa que minha feminilidade me trouxe foi uma estéril coroa de espinhos. Realmente, eu tinha vergonha de ficar menstruada e queria esconder do meu pai e dos empregados o que se passava comigo. Tinha muita vergonha que alguém soubesse, e que quando me deitava, todas as noites, rezava para que Deus me fizesse continuar sendo uma garotinha. Eu não queria me transformar em mulher, e tinha boas razões para pensar assim, pois até hoje isso não me trouxe nada em termos de amor, exceto filhos que estavam começando a embarcar em suas próprias vidas adultas. E lá estava Corrine, o tipo de mulher que eu nunca fui e nunca seria. Corrine sentou-se numa pedra decorativa no centro do jardim.

       - Você não vai me contar tudo sobre o amor agora, mamãe? Não estou pronta? Oh, existe tanta ansiedade dentro de mim, às vezes acho que vou estourar.

       - Amor, Corrine? Você ainda é uma criança.

       - Veja, mãe, estou cheia de dúvidas. Estou tão... - Jogou a cabeça para trás, balançando os cabelos, e ajeito os brilhantes miosótis entre os cachos dourados.

- Estou curiosa para saber tudo - disse finalmente.

       - Corrine...

       - Quando um homem beija uma mulher, mamãe, é verdade que ela se sente morrendo por dentro?

       - Querida...

       - Quando ele a envolve em seus braços... - Ficou embaraçada e começou a rodopiar e pular entre as flores como se estivesse dançando. - Você se sente como se a terra estivesse dançando com você? Mamãe, eu tenho que saber. Morrerei se tiver que passar o resto de meus dias em Foxworth Hall. Quero me casar. Quero amor.

Quero dançar todas as noites. Quero ser levada em cruzeiros por terras longínquas e exóticas onde as mulheres não usam blusas e os homens tocam tambores. Sei que papai jamais aprovaria isso, ele quer que eu seja a garotinha dele para sempre, mas você sabe que isso não pode ser. Você também deve ter sonhado com essas coisas um dia, não é mamãe? Você deve ter ansiado por um homem capaz de fazê-la flutuar; um homem que prometesse amá-la para sempre; um homem que fizesse o mundo inteiro tremer só com o toque de suas mãos. Papai a fez sentir-se assim?

       - Seu pai...

       - Ele é tão bonito. Aposto que... - Corrine passou as mãos envolta de minha cintura e começou a dançar comigo em torno do jardim. - Aposto que você é louca por ele.

       Parei de dançar e me sentei na pedra do jardim para retomar o fôlego. Poderia Corrine perceber a dor que havia em meus olhos? Louca por ele? Sim, eu era louca por Malcolm, e no meu coração havia uma esperança terrível de um dia ser amada. No entanto, como aconteceu na vida real? A consumação de nosso casamento, que eu supunha que seria um ninho de amor e carinho, foi um fracasso total. Ele me atacou e nos seus lábios estava o nome de sua mãe. Foi essa a minha iniciação no amor.

Jamais tive o carinho de Malcolm. Corrine me observava com uma expressão estranha. Seus olhos azuis, cheios de expectativas, estavam temerosos.

       - Prometa, mãe - ela disse. - Prometa que alguém vai me amar; que um jovem maravilhoso conquistará meu coração. Prometa.

       De repente, uma nuvem escura passou pelos seus olhos. Ela se curvou de dor; estava sentindo cólicas.

       - Junto com as coisas boas, ser mulher também traz sofrimento e todos os meses se lembrará disso. Sabe, Corrine, as relações entre um homem e uma mulher são mais complicadas do que você imagina. Não será apenas flores e coloridos, como desejamos que sejamos de todo o coração que fosse. Como nos dizem os poetas, o amor se parece muito com as rosas, elas possuem dolorosos espinhos por baixo de seus belos botões. Para alguns, os espinhos são poucos e passam despercebidos, tão doce é o perfume da rosa, para outros a rosa é pequena, murcha logo depois de desabrochar e tudo o que resta são os longos espinhos, que como agulhas, perfuram nossos corações.

       - Mamãe, a dor já sumiu. Creio que você sabe tudo sobre a vida, mãe, e sei que está tentando me proteger. Porém, dentro do meu coração, sei que o que existe é real. Serei uma dessas garotas de sorte, umas dessas mulheres de sorte que possuem um amor muito especial, puro, encantador, eterno. Quando esse amor vier, estarei pronta para ele e farei qualquer coisa para não perdê-lo. Oh, mamãe, sei que nem sempre as relações foram boas entre você e papai, mas isso não significa que comigo também terá que ser assim, não é?

       Eu sabia que as coisas seriam diferentes - assim como foram para Alícia e para a primeira Corrine. Como a invejei por isso! Como sonhei por ela!

       - Não é, mãe? As coisas não serão diferentes para mim?

       Olhei para ela, para sua boca cor de rosa ligeiramente aberta.

       - Claro Corrine, claro que serão diferentes para você. Pois você possui tudo aquilo que as mulheres desejam: beleza, doçura, inocência e um coração adorável.

       Puxei-a para mim e a abracei escondendo as lágrimas que brotavam de meus olhos. Oh, como desejei que ela fosse realmente minha. Mas ela era minha. Meu amor

fez com que isso acontecesse. Finalmente, meu amor tinha criado algo belo, e fora recompensado com a mais encantadora flor da Virgínia.

       - Vamos, querida. Vamos entrar. Você já tomou os cuidados necessários na sua nova situação?

       - Oh, sim. É claro. A Sra Tethering deu-me tudo o que preciso, e como você sabe, mamãe, as garotas da escola não têm outro assunto. Estou feliz por isso ter acontecido antes da minha volta a escola. Saí de lá menina e retornarei mulher.

       Corrine praticamente saltitou durante todo o caminho de volta e quando subimos os degraus da porta, Mal apareceu em frente a casa montado numa motocicleta.

Eu e Corrine paramos, completamente assombradas, olhamos para ele. Malcolm o havia proibido inúmeras vezes de ter uma motocicleta, o assunto fora motivo de muitas brigas entre eles. Malcolm tentara forçar Mal a se dedicar exclusivamente ao mundo dos negócios, e Mal insistia em dar suas próprias "cabeçadas". Tentei ficar fora dessa discussão porque, na verdade, tinha medo de motocicletas, achava essas máquinas extremamente perigosas. O problema era que Mal queria uma de qualquer maneira e, além de tudo, ele já estava tendo acesso a conta bancaria que eu tinha feito Malcolm abrir para cada um dos garotos quando Corrine nasceu. E eis que, finalmente, Mal comprara sua motocicleta. Sorri por dentro porque, de certa maneira, estava satisfeita em saber que Malcolm não tinha conseguido dobrar o espírito de Mal como havia dobrado o meu. Sim, eu estava orgulhosa de meu filho bonito e brilhante; havia sabedoria e amor por trás de seus olhos. Eu me sentia contente em ver que ele

tinha satisfeito seus desejos. Ele estava lindo e orgulhoso. E Corrine pulava de alegria ao ver o irmão mais velho montado em sua própria moto.

       - Quer dar uma volta, Corrine? - ele perguntou, acelerando o motor. Seu corpo jovem e másculo era parte integrante da enorme moto. Ele estava usando botas de couro com pontas de metal e uma echarpe de seda branca, como um piloto da Grande Guerra.

       - Oh, mamãe, posso?

       - Corrine, você é uma mocinha. Este veículo é muito perigoso. Eu lhe proíbo...

       - Mãe! - exclamou Mal - Vou só levá-la para dar uma volta pela estradinha da casa. Não seja tão quadrada!

       - Posso mamãe? Por favor?

       - Você acha mesmo que é assim que uma dama se comporta?

       - O irmão de Lucy McCarthy tem uma moto, e ele às vezes a leva para a escola, e os McCarthys são realmente muito ricos e bem sucedidos, o papai sempre diz que...

       Mal acelerou novamente. O ensurdecedor barulho propagou-se pelo caminho da entrada. Eu não queria que Malcolm saísse para ver o que provocara aquele barulho.

       - Mamãe - insistiu Mal, chutando a poeira com sua bota de couro - é apenas uma volta pela estradinha. Deixarei Corrine no portão e ela voltará andando. Além disso, se você não a deixar ir comigo, eu levarei você.

       Eles começaram a gargalhar, e eu, embora assustada, disse:

       - Somente pela estradinha, está certo?

       - Obrigada, obrigada, mamãe - Corrine gritou, pulando na garupa da enorme moto e abraçando Mal pela cintura.

       Tive de admitir que eles estavam lindos: Corrine com seus cabelos dourados, os olhos azuis e os delicados braços em volta do corpo do irmão; Mal com suas botas de couro e sua echarpe de seda branca.

       - Dirija com cuidado - gritei, mas a barulhenta máquina já ia longe, jogando poeira e cascalho no chão.

       No momento em que os vi desaparecer atrás da curva do morro, senti uma presença fria atrás da minha nuca.

       - Que barulho foi esse? - perguntou a voz furiosa de Malcolm. Eu me virei para confrontá-lo. Embora estivesse se contendo, sua raiva já adquirira uma força descomunal e se revelava no rosto vermelho, nos olhos arregalados, nos dentes que rangiam. Ele parecia uma caldeira prestes a explodir.

       - Será que vi mesmo o que estou pensando? - ele perguntou.

       - Há muito tempo desisti de imaginar o que você pensa Malcolm - respondi, acomodando-me numa cadeira da varanda.

       Ele estava tão furioso que parecia uma caricatura dele mesmo. Não pude evitar achar graça no seu tormento.

       - O que acha que viu? - perguntei.

       - Eu vi - ele disse alto - uma estúpida mulher de meia idade deixar sua preciosa filhinha montar na garupa de uma motocicleta dirigida pelo seu estúpido filho mais velho. Uma motocicleta que eu havia proibido! Uma mulher estúpida que age sem pensar no bem estar e na educação de suas crianças. Eu os vi montados naquela máquina, saírem por aí como dois arruaceiros. Em seguida vi essa mesma estúpida mulher de meia idade sorrir.

       - Sim, eu estava sorrindo - repliquei, levantando-me da cadeira e colocando todo o orgulho que sentia por meus filhos na minha voz - sorri porque estava pensando em dar uma volta também.

       - Você é ainda mais doida que eu pensava, Olívia. Você foi doida o bastante para me obrigar a dar aos garotos uma fortuna que poderiam usar quando alcançassem a ridícula idade de dezoito anos. Agora, diga-me se eles possuem alguma noção de responsabilidade econômica e algum critério? É esse jovem que vai ficar na liderança de um império de bilhões de dólares? Eu lhe avisei; eu os avise: deixe-me tomar conta do dinheiro; deixe-me controlar as despesas; mas não, você teve que... que me chantagear para que eu lhes desse essa pequena fortuna que eles estão esbanjando. E isto é apenas o que ele começou a fazer... para esbanjar. Insisto, não, eu ordeno que você o faça vendar essa... essa coisa imediatamente, e que trate de restituir o que gastou.

       - Não vejo como fazer isso - respondi pausadamente. Sabia que quanto mais calma e suave fosse a minha voz, mais nervoso ele ficaria.

       - Hem? E por que não?

       - O dinheiro é dele, para usar como lhe convier. Ele não tem de me consultar a cada vez que resolve gastar seu próprio dinheiro. Isso afetará sua independência, e assumir a independência é algo muito importante nessa fase da sua vida - expliquei. - Você teve essa mesma oportunidade quando tinha a idade de Mal.

       - Na idade dele eu tinha noções das coisas - ele justificou, encarando-me. - Você está se divertindo, não é? Você acha que esse é o modo de se vingar de mim, não é?

       - É claro que não - respondi, embora soubesse que, de certa maneira, ele dissera a verdade.

       - Isso vai lhe pesar na consciência para sempre - resmungou apontando o dedo para mim. - No final, você vai se arrepender por não ter me ouvido - agregou, com aquela segurança que eu aprendera a odiar e que era característica dos Foxworth.

       Ele ficou em silêncio por algum tempo; depois tornou a me encarar. Percebi que já havia se acalmado para continuar a falar.

       - Agora você naturalmente espera que eu mande meu filho mais velho de volta a Yale nessa infernal motocicleta. Você está me arruinando aos pouquinhos Olívia.

Você sabe quais são os meus planos para Mal. Não posso admitir que ele ande por aí nessa máquina moderninha como um playboy qualquer. E quanto a Joel? Veja no que ele se transformou - um músico bicha! Bem que eu avisei! Ele vai acabar um imprestável! Que lástima!

       - Alícia sempre acreditou que Joel era um prodígio - afirmei. - Ela o considerava um gênio para a música, e não estava errada, Malcolm. Ah, se ao menos você fosse sensível o bastante para saber que a genialidade assume diversas formas e não apenas a forma de ganhar dinheiro.

       Seus lábios tremiam, os olhos tinham um rubro intenso das brasas e brilhavam como se houvesse fogo por trás deles. Conforme movia o maxilar, suas veias avultavam sob a pele das têmporas. Ele engoliu em seco e caminhou em minha direção com os ombros eretos e o peito estufado.

       - Você está usando meus filhos para me açoitar, para me castigar. Não negue isso. Você os manobra da mesma forma que manobraria um chicote contra as minhas costas nuas e tem um prazer enorme a cada chicotada. Mas tenha cuidado - avisou. - Sua vingança vai acabar se voltando contra você mesma.

       - Não jogue a culpa em mim - respondi rispidamente. Os dias em que eu me deixava intimidar já estavam muito longe no passado. - Jamais encorajei os meninos a lhe desobedecerem. Eles são como são por sua causa, porque você nunca gastou algum tempo com eles para lhe dar um exemplo. Quantas vezes eu lhe pedi, lhe implorei para dar mais atenção a eles, para ser o pai deles? Mas, não, você tinha seus próprios e inflexíveis pontos de vista entre pais e filhos; e por causa dessa situação caótica que teve com seu próprio pai, você puniu os garotos. Bem, agora está colhendo o que plantou. Foi você quem plantou essas sementes, não eu. Se os frutos não

lhe agradam, o problema é seu.

       - Perdi meus filhos - esbravejou com raiva - mas tenho uma filha. E esta é minha, Olívia, minha. Você está me ouvindo? E não permitirei que ela ande por aí montada nessa moto perigosa como se fosse uma piranha. Não permitirei que você a jogue contra mim. Não permitirei que exponha a vida de minha filha na garupa dessa coisa!

       - Aí vem ela Malcolm. Não lhe arruíne o dia com sua raiva idiota.

       Corrine vinha correndo pela estradinha, acenando para nós. Ainda estava muito distante e pensei que seus gestos fossem causados por sua excitação. Uma nuvem

negra passou pelo céu e pude ver suas mãozinhas brancas acenando para mim e seus olhos azuis como safiras brilhando no seu rosto pálido. Oh, se eu soubesse o que

aqueles lindos olhos azuis haviam acabado de ver!

       - Mamãe! Papai! Mamãe! Papai!

       - Corri para encontrá-la. Senti imediatamente que algo saíra terrivelmente errado.

       - Malcolm! - gritei. - Malcolm, venha logo.

       - Corrine! - gritou Malcolm - Corrine, minha querida, o que aconteceu de errado? Você está machucada? Oh, meu Deus!

       - Papai, papai, é o Mal. Ele... Oh, Deus... oh, Deus... - ela começou a chorar.

       - Você está bem, minha princesa? - Malcolm sussurrou pegando-a nos braços.

       - O que aconteceu a Mal? O que aconteceu a Mal? - gritei.

       - Ele... ele... oh, Deus, mamãe, ele me mandou descer, e então... e então... ele ia tão rápido... oh, a mamãe.

       - Onde está o meu filho?

       - A moto rodava na estrada, mamãe. Mal estava acelerando demais, e então...

       - E então? - eu mal reconhecia minha voz, mais parecia o rugir de um animal.

       - De repente a moto saiu da estrada como se estivesse voando; a última coisa que vi foi ela indo em direção do barranco e... oh, Deus, oh, Deus... Houve uma explosão terrível, uma enorme nuvem de fumaça subiu pelos ares e vim correndo chamar papai.

       Comecei a correr pela vereda interna da nossa propriedade e fui dar na estrada fora do terreno.

       - Mal, meu filho, meu Mal!

       Pude ver a fumaça se elevando numa nuvem negra na base do barranco. Quis avançar até lá e resgatar meu filho da nuvem, mas os braços fortes de Malcolm me impediram.

       - Espere, Olívia, você não pode ajudá-lo agora. - Sua voz era fria e cortante. Tentei livrar-me de seus braços num esforço desesperado. Tinha que salvar meu filho.

       - É meu filho! - gritei - Tenho que salvá-lo!

       Malcolm estava me sacudindo enquanto olhava os rolos de fumaça que subiam pelos ares. Em seguida fitou o céu, que súbito parecia frio e distante. Deixou-me cair no chão e correu em direção a Corrine. Ela chorava baixinho, observando a fumaça que tingia o céu de negro. Tingia o céu de negro. Tingia de negro o céu e o resto da minha vida. Mal. Meu primeiro filho. Meu primeiro amor. Mal. Desejei ver a terra se abrindo em abismos, os ventos devastando tudo até não restar mais nada.

Perplexos, Malcolm e Corrine olhavam para mim como se não pudessem suportar minha dor.

       - Devo ir até ele - eu disse, levantando-me, mas Corrine passou os braços em minha cintura e Malcolm mergulhou dentro dos meus olhos. Seus frios olhos azuis eram como gelo queimando dentro de minha alma.

       - É tarde demais, Olívia. Você deixou que seu filho se fosse. Mal está morto. "O senhor nos dá, o senhor nos tira".

       No dia que sepultamos Mal, o mundo inteiro parecia estar chorando conosco. O céu estava escuro e furioso, os trovões ecoavam ao longe, foi como se Deus estivesse pontuando sua sentença para nos lembrar que sua ira era poderosa e podia esmagar a nós, pobres formiguinhas mortais, com um simples sopro. Muitas pessoas acompanharam o velório e o enterro - os amigos de Mal, de Joel e de Corrine, e vários conhecidos de Malcolm, mas só uma pessoa estava ao meu lado - John Amos, meu último parente vivo. Tomara o trem em Connecticut assim que lera o telegrama. Durante muitos anos nos correspondemos e vi o jovem John Amos se transformar num maravilhoso homem de Deus, um pregador solitário, como costumávamos chamá-lo, um padre sem assembléia. Nesse dia, porém, teve quem o ouvisse, pois foi ele quem rezou a missa de meu filho amado. Entretanto, o grito reprimido que ecoava em minha mente não se desfez com as palavras de John Amos.

       "Nosso amado Mal foi para um lugar melhor. Seu Pai verdadeiro chamou-o para seu infinito amor na flor da juventude; e ao lado do Pai, sua alma inocente descansara em paz pela eternidade".

       Malcolm posou sobre mim seus frios olhos azuis, que tentavam atravessar o negro véu que cobria minha face. Permanecemos em pé ao lado do túmulo com Corrine e Joel ao nosso lado. Joel estava de mãos dadas comigo, Corrine estava mais perto do pai. Malcolm não me disse uma palavra, mas pude perceber pelo seu olhar que me culpava pela morte de Mal; seus olhos me diziam silenciosamente que se eu não houvesse desobedecido as suas ordens e não tivesse aprovado a motocicleta meu filho ainda estaria comigo. Oh, era injusto demais que Mal me tivesse deixado. Queria me castigar, cortar meus cabelos, minhas mãos, minhas pernas; implorei a Deus que me levasse e trouxesse Mal de volta. O mundo perdera o sentido e eu sentia que a culpa era minha. Seria Malcolm tão poderoso que podia contar com a ajuda de Deus

para punir aqueles que o desafiavam?

       Tranquei-me em meu quarto; Corrine e Joel tentavam me consolar, mas eles também estavam sofrendo muito. Como poderia consolá-los? Mal estava morto. O meu filho favorito, morto? Em minha mente, eu o via no quarto de brinquedos, o rosto sério, os olhos inquisitivos, a postura ereta.

       "Papai nos levará para passear de carro?" - perguntou - "Ele nos prometeu que iria".

       "Por que então ele não anota em um papel?" - Mal perguntou.

       Que mente lógica e brilhante ele tinha, desde pequenino. E agora, estava morto. As gotas de chuva começaram a cair, os trovões começaram a ribombar e meu

querido Mal foi baixado em sua sepultura. Um de cada vez, Malcolm e eu, Joel e Corrine, lançamos um punhado de terra sobre o caixão. O véu negro escondia minhas lágrimas, mas eu estava tão fraca que mal conseguia andar. Que bom se eu pudesse me jogar dentro daquela sepultura e ficar com ele, que bom se me cobrissem com terra e me afastassem definitivamente deste mundo. Mas eu precisava continuar e, como John Amos dissera, tinha que ser forte por causa de Corrine, que ficara abalada e confusa. Tanto ela quanto Joel deviam estar se perguntando se o amor do pai fora enterrado junto com Mal.

       Joel foi o mais desconsolado. Ele quase não falou, ficou o tempo todo ao meu lado observando cada palavra e cada gesto como se estivesse pensando que eu poderia de repente mudar o curso das coisas e trazer seu irmão de volta. Apesar da diferença de idade e de comportamento, tinham sido muito amigos. Eu sabia que Joel dependia de Mal e tinha muita admiração por ele. Era Mal quem amenizava os desencontros entre ele e o pai, um pai que ainda o amedrontava. Era fácil notar isso; Malcolm não lhe disse nada durante todo o velório e enterro, nenhuma palavra ou gesto de consolo. Corrine sofria muito, sabia que ela estava se culpando, que desejava voltar atrás no tempo e resgatar Mal do túmulo. Foi John Amos e não Malcolm, que tentou confortá-la, aplacar sua culpa, abrandar sua dor. De todos os Foxworth, apenas Malcolm

permanecia altivo, digno e fechado em sua própria dor.

       No dia seguinte, Malcolm voltou aos seus negócios. John Amos permaneceu conosco lendo trechos da Bíblia, segurando a mão de Corrine quando ela chorava, tentando acalmá-la, tratando-a como o querido pai Malcolm sempre a tratara. John Amos se transformara num homem alto e magro. Seus cabelos castanhos eram muito ralos, em breve estaria completamente careca. Eu via nele maturidade e dignidade. Tinha a aparência de um padre; sua face era pálida, seus olhos eram castanhos, e sua boca fina parecia desenhada por um artista. John Amos era muito experiente e cheio de sabedoria; estava com apenas trinta e um anos nessa época, mas aparentava ser bem mais velho. Pelas minhas cartas, ele sabia o quanto os garotos eram importantes para mim, tinha idéia de meu relacionamento com eles e do relacionamento de Corrine com o pai. Ele sabia exatamente como eu me sentia sobre Malcolm.

       - Olívia - disse em seu suave tom de voz - é Deus quem chama a todos nós. É ele que faz a própria justiça. Ele levou o filho que Malcolm não ia amar jamais, talvez sua mensagem tenha sido para Malcolm, talvez tenha ensinado a ele que o amor é mais importante que o domínio. Você é capaz de ver onde o domínio termina, Malcolm não. Não se culpe Olívia. Os desígnios de Deus são misteriosos, porém sempre justos.

       Malcolm não gostava de John Amos, mas isso não tinha a menor importância para mim. Na verdade, o fato de Malcolm não gostar de John confirmava seu valor e sua importância no meu conceito. Foi por isso que depois do enterro, em que John tomou conta de tudo - ajudou-me com os empregados, recebendo as pessoas amigas, levando suas palavras de conforto aos membros da família - decidi pedir-lhe para ficar conosco em Foxworth Hall. Breve Corrine voltaria à escola, já estava mesmo pronta para deixar aquela casa sombria e coberta de dor. Ela amava Mal como qualquer garota ama seu irmão mais velho, mas a sombra da morte não permanecia por muito tempo sobre alguém cheio de vida, amor e esperança como permanecia naqueles cujas esperanças e sonhos estavam destruídos.

       No dia que Corrine partiu, propus a John que ficasse em Foxworth Hall. Ele pareceu gostar da idéia, pois não estava muito satisfeito com o trabalho que estava fazendo.Chamei-o ao salão.

       - Gostaria que você continuasse em Foxworth Hall e se tornasse para mim uma espécie de assistente - propus. - Oficialmente, será nosso mordomo, mas ambos

sabemos que significa muito mais para mim.

       A dor, tão profundamente sentida, despertou novos sentimentos dentro de mim. Sentia-me como se estivesse vivendo algo completamente diferente do que vivera até então. Estava usando meu corpo como uma espécie de armadura que me protegia escondendo um coração repleto de desejos que tinham se tornado fracos e impotentes.

Na verdade, eu não poderia suportar dia após dia a convivência com Malcolm naquela casa. Não poderia suportar a convivência com ele e seus planos megalomaníacos.

Precisava de um aliado, alguém que me instilasse força, ajudando-me e permanecendo ao meu lado. John, um homem de Deus, piedoso e devotado, poderia desviar e frustrar as más intenções de Malcolm. Eu não deixaria que ele dominasse a vida de Corrine como planejava fazer.

       - Fique, John Amos, por favor. Sua presença é um conforto enorme. Sinto que você realmente é minha família, a única família que me restou. Preciso da sua mão forte e da sua religiosidade para me orientar.

       Ele balançou a cabeça.

       - Sempre a admirei Olívia. Admiro você por causa da sua força, de seus objetivos, sua determinação, mas acima de tudo por causa de sua fé em Deus e em seus caminhos. Agora mesmo, imersa na sua dor, você não culpou a Deus por ser injusto. Você é uma inspiração para mim. Mais mulheres deveriam ser como você - acrescentou, oscilando a cabeça como se finalmente tivesse chegado a uma significativa conclusão.

       Compreendi então por que Malcolm não gostava de John. Ele dizia as coisas do mesmo modo que Malcolm, com sua atitude de certeza e segurança. Só que, enquanto Malcolm chegava a suas conclusões a partir da fé de si mesmo, John as alcançava a partir de sua fé em Deus e sua vontade.

       - Muito obrigado, John. Contudo, ao contrário do que você disse, eu também tenho fraquezas. Preciso de alguém ao meu lado para me ajudar com as crianças e me ajudar a manter esta casa em pé.

       - Compreendo e não posso imaginar uma proposta melhor. Há algum tempo, compreendi que minha vocação repousava em sentidos opostos aqueles que me orientam; porém, talvez por temor ou desconhecimento, não consegui saber de onde me convocavam. O senhor tem um jeito próprio de requisitar seus soldados - aduziu, sorrindo.

       - Acho que hoje você viu um pouco daquilo que lhe descrevo nas minhas cartas - eu disse, olhando fixamente para seus olhos. - Agora você deve entender por que, às vezes, me sinto tão só dentro desta casa.

       - Sim; e você tem mais do que minha compreensão. Você tem minha simpatia e dedicação - seus olhos castanhos, embora não fossem calorosos nem brilhantes, se abriram e pousaram nos meus. Aproximou-se mais e disse: - Eu lhe prometo Olívia, que enquanto eu estiver aqui você nunca vai se sentir sozinha.

       Sorri e lhe estendi a mão, que ele segurou entre as suas. Nesse momento, senti como se tivesse feito um pacto com o Senhor Todo-Poderoso. Foi a coisa mais animadora que me aconteceu em muitos anos.

       Quando contei a Malcolm que John ia ficar conosco, ele reagiu como de costume. Ele estava recolhido na biblioteca. O manto de silêncio que caíra sobre Foxworth.

Hall arrastava-se penosamente pela casa como o ar úmido antecipava as chuvas de verão. As luzes estavam fracas, lá fora não havia estrelas, as nuvens cobriam o céu

de cinza, e os ventos inclementes zuniam nas janelas. Para mim, o ruído dos ventos lembrava o ranger dos dentes de uma besta vingativa e perversa. Malcolm estava de pé, de costas para a porta, as mãos cruzadas nas costas e olhando os livros de uma alta prateleira. Quando entrei, ele não olhou para trás, embora eu soubesse que ele tinha ouvido os meus passos. Fiquei calada um momento, esperando.

       - Tomei uma decisão - falei finalmente. - Decidi contratar meu primo John Amos para mordomo.

       Malcolm olhou em volta. A expressão de seu rosto era quase hedionda; uma mistura de dor e raiva distorcida em seus traços. Sua boca nunca me parecera tão maldosa, nem seus olhos tão frios.

       - Que mordomo? Temos criados para isso - ele disse, fazendo que essas palavras comuns parecessem profanas.

       - Um homem que também nos serviria de motorista. Dispensar um mordomo é uma economia injustificada e tola para quem tem uma família e uma casa tão importante como a nossa. Chega a ser desmoralizante - respondi.

       - Como consegue pensar em empregados em um momento como esse? - Ele se admirou. Parecia contrariado e atônito.

       - Você não foi hoje ao escritório, não atendeu a inúmeros telefonemas sobre negócios? Não deu ordens aos seus subordinados? Sua mente estava inteiramente fixada em Mal? - perguntei num tom acusativo.

       Ele sacudiu a cabeça, não para negar o que eu dissera, mas para dramatizar o seu desgosto.

       - Não gosto desse homem. Ele é muito... muito... magro para meu gosto.

       - Todavia, eu o contratei. A casa sempre foi e continuará a ser responsabilidade minha. Precisamos de um empregado exclusivo para desempenhar as tarefas e arcar com as responsabilidades de um mordomo, e John Amos tem tudo para assumir esse cargo. É um homem decente, um homem religioso, uma criatura que compreende as necessidades de gente da nossa classe. Ele concordou em ficar e começara a trabalhar imediatamente.

       - Então será seu mordomo, não meu.

       - Como quiser. Estou certa de que em breve você começara a apreciar este homem - acrescentei calmamente.

       Ele virou as costas para mim e voltou a olhar os livros na estante.

       - Joel partirá amanhã - eu disse. Ele continuou de costas.

       - Isto é bom. É melhor ele retornar a escola e se ocupar com seus estudos do que ficar aqui e se lamentar. Se ficar, acabará se acostumando com a depressão - observou Malcolm, e inclinou-se para o lado como se estivesse me dispensando.

       Endireitei minha postura.

       - Ele não esta voltando para a escola - esclareci. Minhas palavras fizeram Malcolm se voltar.

       - O que? Não esta voltando para a escola? O que quer você dizer com isso? Para onde ele vai?

       - Antes da morte de Mal ele prestou concurso para uma orquestra e os maestros ficaram muito impressionados com seu talento. Propuseram-lhe participar na orquestra durante uma excursão pela Europa. Ele vai direto para a Suíça.

       Malcolm ficou furioso.

       - Excursão! Orquestra! Suíça! - exclamou, fazendo amplos gestos com as mãos. - Um Foxworth músico, ganhando um salário de trabalhador braçal e viajando com um bando de molengas... certamente afeminados... artistas... Não quero ouvir mais uma palavra sobre isso! Não permitirei, está entendendo?

       - Mas é isso que ele quer - justifiquei, enfrentando sua fúria com calma mais uma vez. - Não forçarei outro filho meu que deseja provar que pode viver a sua própria vida, considerando-a melhor do que aquela que você lhe quer impor.

       Os olhos de Malcolm se estreitaram e ele ficou em silêncio por alguns momentos.

       - Quero que ele saiba - gritou Malcolm, dando a cada palavra um acento de ódio - que se deixar esta casa para ser músico, nunca mais será bem vindo aqui.

       - Eu esperava isso pai.

       Ambos nos viramos e vimos Joel parado a porta da biblioteca, com uma valise em cada mão. Eu não sabia que ele pretendia partir naquela noite.

       - Eu vim para lhe explicar a minha decisão pessoalmente - disse ele.

       - O que acabei de dizer, repito, Joel - ameaçou Malcolm apontando com o dedo para o filho. - Se você jogar no lixo toda a formação que lhe dei para ir tocar nessa maldita excursão pela Europa, riscarei seu nome do meu testamento.

       Malcolm e Joel se encararam por um longo tempo, como se estivessem vendo um ao outro pela primeira vez; como se pela primeira vez tivessem percebendo como o outro era. Se havia algum temor em Joel, seu rosto gentil e seus suaves olhos azuis não o demonstravam. De algum modo ele parecia um mártir perdoando o desapiedado tirano que o condenava a morte. Pude perceber um leve sorriso em torno de seus lábios.

       - Você nunca me entendeu pai; como também nunca entendeu Mal. Nenhum de nós foi dominado por sua perseguição aos poderosos dólares - explicou, num tom de voz onde não havia a menor raiva.

       - Diz isso porque vocês sempre tiveram muitos dólares - retrucou Malcolm. - Se fossem pobres, não teriam essa pose arrogante e desafiadora.

       - Talvez não. Mas continuo não sendo pobre. Sou o que sou - Joel olhou para mim. - Até breve, mamãe. Sentirei sua falta. Por favor, acompanhe-me até a porta, há um carro lá fora esperando por mim.

       - Você vai permitir isso? - Malcolm perguntou.

       Olhei para Joel e vi muito de mim em seu rosto. Era como se eu mesma tivesse partindo, como se estivesse escapando da dor e do tormento, escapando das sombras frias que pareciam residir permanentemente em Foxworth Hall.

       - É isso que ele quer - respondi com doçura fitando-o. - Joel é maduro o bastante para tomar suas próprias decisões. Ele tem o direito de decidir por si mesmo.

       - O que você está fazendo é loucura - berrou Malcolm com um dedo acusador para mim. - Isso vai aumentar ainda mais a sua culpa.

       - Hem? - dei alguns passos em direção a ele, minha face ardia de raiva. - Você está tentando jogar a culpa sobre mim? Você, que trouxe o pecado para dentro dessa casa, que o recebeu como se fosse um dos nossos convidados? Você tem se alimentado com o pecado, tem caminhado com ele, dormindo com ele. Você fez com que a ira divina descesse sobre essa casa, não eu. Se há alguém aqui com culpa, este alguém é você - vociferei, apontando para ele.

       Ele olhou para Joel e se voltou de costas. Abraçados, eu e Joel caminhamos até a porta da frente. John Amos, já assumindo algumas responsabilidades como mordomo, carregou os baús e valises de Joel e as colocou no carro. Depois eu e meu filho ficamos em pé debaixo da enorme porta da mansão, observando o carro na escuridão que agora também nos envolvia.

       - Desculpe-me por deixá-la justamente nestes dias de dor - pediu ele, - mas sinto que se não partir agora, não partirei nunca. Tenho certeza que Mal aprovaria minha partida. Quase posso vê-lo sentado ao piano e sorrindo para mim. - Joel acrescentou comovido com aquela recordação.

       - Sim, também acho que aprovaria - disse eu.

       A imagem de Mal veio a minha memória e encheu meu coração de dor. Nasceu no meu peito um pequeno e cinzento passarinho de ansiedade, pondo-se a bater suas asas na gaiola das minhas costelas.

       - Ah, quando vou sentir sua falta Joel - lamentei, segurando sua mão e levando-a aos lábios. - Você é meu filho único, amado Joel; agora só tenho você. Por favor, vá com Deus e seja feliz.

       - Muito obrigado, mamãe - ele disse, inclinando-se para me beijar. Ficamos abraçados algum tempo, depois ele se afastou e entrou no carro.

       John Amos e eu ficamos olhando o carro desaparecer dentro da fria noite de outono; suas luzes pareciam duas brilhantes estrelas vermelhas morrendo no infinito universo.

 

PARTE 3

LUZES E SOMBRAS

       EU SOFRI. SOFRI PELA PERDA DE MEU FILHO MAL; sofri a lembrança do alegre e luminoso verão que passara com os meus filhos, tão felizes e fortes - um tempo que não voltaria mais. A única alegria nesse inverno triste eram as ocasionais cartas de Corrine, que parecia já ter superado a perda do irmão, e algumas cartas de Joel, que fora um garoto fraco e amedrontado, enfrentou finalmente o próprio pai e estava na Europa, onde encontrara a si mesmo. Signore Joel Foxworth, estava escrito no jornal italiano que ele me enviou; os jornais franceses diziam "O brilhante jovem pianista Monsieur Foxworth, é um talento para ser ouvido no futuro".

Meu coração, mais uma vez, experimentou o sabor do orgulho - contra o qual John Amos me preveniu: "O orgulho sempre antecede a queda, Olívia, lembre-se das palavras do senhor, deixe que elas a guiem", ele dizia. Contudo, meu orgulho não era pessoal, não era por mim mesma, estava relacionado ao único filho que Deus me havia deixado.

       Eu adorava sacudir na cara de Malcolm as revistas e os jornais que falavam sobre o talento de Joel.

       - Você achava que seu filho era um fracasso, Malcolm - eu dizia. - Agora veja como o mundo inteiro o adora!

       Certo dia, o primeiro da primavera, no momento em que o mundo eu abrimos novamente os braços para a vida, recebi um telegrama terrível. Na minha vida, as boas noticias nunca chegavam em forma de telegrama, por isso, sentei e fiquei olhando para o envelope amarelo com medo de abri-lo. Joel, pensei comigo mesma, pois de algum modo, mesmo antes de abrir o envelope, eu sabia o que ele trazia.

 

       HERR MALCOLM FOXWORTH PONTO

       COM PROFUNDO PESAR INFORMO SEU FILHO JOEL PERDEU-SE EM UMA AVALANCHE PONTO NAO CONSEGUIMOS ENCONTRAR O CORPO NEM O DE SEUS CINCO COMPANHEIROS PONTO ACEITE

MEUS SENTIMENTOS E MINHA SIMPATIA PONTO

 

       Amassei o telegrama e espiei pela janela. Não chorei, nem lamentei, pois para este filho, o segundo, não me restava mais nenhuma lágrima. Gastara todas com Mal, e agora meu coração era como um osso seco e estéril. Sofri e chorei como um deserto; um deserto onde nada floresce, um deserto onde o único movimento são os sopros da areia, mortalha de tudo que vive. Mais uma vez o meu mundo se tornou total e irrevogavelmente cinza.

       Também Malcolm teve uma reação estranha. A princípio recusou-se a aceitar que o filho estivesse morto. Mostrei-lhe o telegrama amassado no momento em que chegava de uma viagem de negócios. Eu não disse nada, simplesmente lhe entreguei o telegrama assim que entrou em casa e ele o leu.

       - Mas o que é isso? - disse ele, indignado - Perdido em uma avalanche?

       Devolveu-me o telegrama como se fosse uma mensagem relacionada a negócios, uma mensagem que ele desaprovava, e foi até a biblioteca onde se ocupou com seus papéis. Entretanto, quando o documento oficial chegou, na forma de um relatório da polícia, nem ele nem eu pudemos mais negar a morte de Joel. Então encontrei um esconderijo seguro para minhas lágrimas debaixo de minha alma ressecada. As memórias me voltaram a mente; pude ver, nesta imensa casa, Mal e Joel andando juntos, brincado, comendo. Algumas vezes as sombras me invadiam de uma tal maneira que eu imaginava ver seus rostos na escuridão. Andei rondando o quarto de brinquedos e quase pude ver os três, Christopher, Mal e Joel; Mal fazia de conta que era professor, e Joel e Christopher olhavam para ele, prestando a maior atenção. Eu pegava os brinquedos e os abraçava com força, chorando dolorosamente.

       Malcolm trancou-se na biblioteca no dia da missa pela alma de Joel. Não tive condições de fazer nada; não fosse John Amos, meu amado segundo filho, meu sensível Joel, não teria tido uma missa para conduzir sua alma ao seio do senhor. John Amos era uma ajuda incomparável para mim. Ele viajou até a escola de Corrine para lhe dar a notícia e trazê-la de volta a Foxworth Hall. Na manhã do dia da missa, Corrine e eu vestimos os mesmos trajes negros usados no funeral de Mal e descemos as escadas como dois fantasmas. Um carro preto, guiado por John Amos, nos aguardava em frente a porta. John, postado ao lado do carro, nos esperava.

       - Lamento informar que Malcolm não ira a missa - informou. - Ele pediu que eu as acompanhasse.

       Ergui o véu que me cobria o rosto e olhei em volta. Nossos empregados, vestidos de preto, estavam prontos para ir a missa de Joel, o garotinho que eles haviam visto crescer e se transformar em um homem. Só o pai desse garotinho estava ausente. Entrei furiosa na biblioteca de Malcolm. Ele estava sentado a sua mesa, mas a cadeira estava voltada para a janela. O céu estava cinza pálido, e estava bem frio para um dia de março. Era um dia sem promessas de sol, um espelho da minha vida.

       - Como você pode deixar de ir a missa de seu próprio filho? - gritei. Ele não se moveu, era como se não percebesse minha presença. De repente, assustei-me por ele. Seria pena o que eu estava sentindo? Pena de Malcolm Neal Foxworth? Ele parecia pequeno e perdido em meio a todas as suas posses, seus troféus de caça, seus livros de negócios, seus objets d'art e os fantasmas de todas as mulheres que ele já havia seduzido naquele lugar. Aproximei-me, e gentilmente, toquei as suas costas.

       - Malcolm - falei baixinho - é uma missa pela alma de seu filho, do seu filho - insisti. Ele levantou a mão muito devagar e depois a deixou cair sobre o braço

da cadeira. - Como é que você pode estar ausente?

       - Está tudo errado - disse finalmente. Sua voz me pareceu estranha, como um eco distante. - Um enterro sem corpo. O que estamos enterrando? - balbuciou.

       - É apenas uma missa por sua memória, por sua alma, Malcolm. - Aproximei-me mais, porém ele continuou imóvel, sem se voltar para mim; limitou-se a balançar a cabeça.

       - E se o encontrarem vivo depois da missa? - Sua voz não tinha energia, sua face estava imóvel.

       - Você viu o relatório da polícia, leu os detalhes - insisti.

       Por que estaria agora se recusando a admitir a realidade? Por que, entre todas as pessoas, era justamente Malcolm que tentava ignorar os fatos? Penso que ele imaginava ser capaz de ignorar os fatos, e assim adiar a dor de sua culpa. Acho que, em sua mente, ele sabia que se fosse a missa de Joel não teria mais como negar a verdade.

       - Vá - ele disse. - Deixe-me sozinho.

       - Malcolm, se você...

       Ele se virou na cadeira. Seus olhos eram duas brasas vermelhas e seu rosto estava contraído de dor e raiva. Quase não o reconheci. Tive um recuo instintivo.

Era como se ele estivesse possuído por uma criatura monstruosa, talvez pelo próprio demônio.

       - Vá! Deixe-me só! - ordenou. Em seguida virou-se novamente para a janela.

       Fiquei algum tempo a observar, e então o deixei sozinho, imerso nas sombras e em seus próprios pensamentos.

       Quase todos aqueles que haviam ido ao enterro de Mal estavam na missa de Joel. Ninguém me perguntou abertamente a ausência de Malcolm, porém, ouvi os murmúrios e as pessoas fazendo perguntas a John Amos. Corrine ficou ao meu lado, mas ela estava perdida e desesperada sem Malcolm a seu lado.

       Malcolm ficou trancado na biblioteca durante vários dias e embora parecesse estranho, a única pessoa cuja entrada ele admitia era John Amos, que lhe levava comida e algo para beber. Todas as vezes que tentei falar com ele, encontrei-o sentado sob as sombras, olhando para as janelas. Mal respondia as minhas perguntas.

Só mais tarde John Amos me disse que Malcolm atravessava uma fase de transformação religiosa.

       Uma noite, perto do fim de semana, sentei-me a sós com John a mesa de jantar. Corrine estava sem apetite. Fora falar com o pai, na esperança de levar-lhe alguma alegria e livrá-lo das nuvens de tristeza que pairavam sobre Foxworth Hall. Ela também amava muito o irmão; mas era jovem e tinha um mundo inteiro pela frente.

E queria começar a viver de novo. De repente, ela saiu apressada da biblioteca.

       - Perco as esperanças - disse ela. - Papai não vai mais sair dessa tristeza! Ninguém vai! Eu também amava Joel e Mal, mas quero viver, quero poder sorrir de novo. Quero voltar a vida!

       John lia um dos Salmos. Costumávamos sentar juntos para ler a Bíblia. Falávamos sobre as escrituras e John sempre encontrava um jeito de as relacionar com nossas vidas.

       - Mamãe - suplicou Corrine. - Estou errada em querer viver e ser feliz de novo? É errado querer ir a festas, voltar a comprar vestidos bonitos e ver os amigos?

       John Amos tirou os olhos da Bíblia, mas logo voltou a lê-la. Corrine esperou, impaciente, que ele acabasse de ler aquela passagem e fizesse uma pausa.

       - Não consigo ter um diálogo com papai - queixou-se. - Ele não vem nem a porta.

       Olhou para mim e para John, que fechava a Bíblia e a colocava no colo. Às vezes, quando John olhava para ela, lembrava-me uma homem analisando uma bela jóia, rolando-a entre os dedos na tentativa de entender a luz que ali de refleti.

       - Seu pai está passando por um momento de meditação profunda neste momento - disse ele. - Você não deve perturbá-lo.

       - Quanto tempo vai durar esta meditação? Ele não come mais conosco; não dorme mais no quarto; e agora nem sequer fala comigo - ela protestou.

       - De todas as pessoas, você é quem mais deve tentar compreendê-lo - eu disse com certa frieza. - Você deve apreciar a transformação pela qual ele está passando.

       - Aprecio. Contudo, quero tirá-lo dali, mas ele não abre a porta quando eu bato. Não posso agüentar essa... essa tristeza horrível.

       - Nessa época particularmente triste não devemos pensar em nosso desconforto pessoal. Seria muito egoísmo da nossa parte. Você deve pensar em seu irmão morto.

- disse John Amos com firmeza, porém num tom suave.

       - Tenho pensado nele o tempo todo, mas ele esta morto e já se foi. Não a nada que eu possa fazer para trazê-lo de volta! - ela exclamou. Tinha os olhos arregalados e o rosto irradiava energia.

       - Você pode orar por ele. - Disse John com doçura. Percebi o quanto seu tom de voz respeitoso e calmo aumentava a decepção de Corrine.

       - Eu tenho orado. Afinal, até quando devo orar? - perguntou, olhando para mim.

       - Deve orar até que deixe de pensar primeiro em si mesma e só depois nele. Não me surpreende que esteja se sentindo assim. Seu pai a mimou demais e a tornou uma pessoa egocêntrica - expliquei. Ela fez uma cara de desagrado. Eu sabia o quanto estava frustrada. Corrine não aprendera a tolerar recusas, e agora recusas e rejeições estavam em todos os lugares a seu redor.

       - Ore conosco - convocou John, apontando para uma cadeira vazia.

       - Voltarei a porta da biblioteca e tentarei fazer com que papai fale comigo - disse ela, dando meia volta rapidamente.

       - Corrine! - exclamei.

       - Tudo bem. - disse John - deixe-a. Falarei com ela mais tarde.

       Sentei-me com John, orei, li a Bíblia e aguardei. As luzes estavam fracas e por toda a parte havia velas acesas em memória de Joel. Foxworth hall havia se transformado em um túmulo. Através do silêncio imposto por nossos pesares, os mais leves passos ecoavam. A melancolia não estava apenas cobrindo as paredes da casa, tornando tudo cinzento e apático, estava também nas árvores, envolvendo o mundo em teias de dor. Choveu seguidamente naqueles dias, e as gotas da chuva tamborilavam nas janelas e nos telhados cravando a miséria em nossas almas.

       John Amos foi um grande conforto. Vestido de preto, o rosto pálido e ascético, movia-se entre os cômodos com o decoro e a qualidade de um monge, comandando os outros empregados com gestos simples ou apenas um olhar. Ninguém ousava elevar a voz com medo de quebrar o ar solene que o acompanhava onde quer que estivesse.

Parecia deslizar pelo chão, atravessar paredes e evaporar-se pelos cantos. Às vezes aparecia dentro de um cômodo como se de repente se houvesse materializado ali.

Até as criadas que lavavam a louça se esforçavam para manter o silêncio e olhavam John com os cantos dos olhos a fim de se certificar de sua aprovação.

       Uma noite, após termos jantado, John trouxe meu café. Com a leveza habitual, pôs a xícara e o açucareiro na minha frente, e se afastou. Passei os olhos pela extensão da mesa enorme e pensei em Malcolm, que ainda se recusava a sair de seu escritório na biblioteca.

       - Quanto tempo mais ele vai continuar ali? - perguntei. Eu já estava começando a sentir a mesma impaciência que Corrine.

       - Ele está se transformando em Jó - respondeu John com uma voz forte.

       Comparei-o a um profeta do antigo testamento profetizando o destino de Malcolm. Enquanto falava, seu olhar não se dirigia a mim; era como se estivesse falando com um grupo de devotos, seus seguidores:

       - Somente agora, no momento em que ele está se perguntando por que Deus o abandonou, é que ele vai obter respostas para suas dúvidas. O Senhor lhe tomou os dois filhos, apartou-o da sua semente viril, da linhagem Foxworth que ele amava tanto quanto a própria vida.

       - Você falou com ele sobre isso? - perguntei. Sentia-me fascinada com a possibilidade de Malcolm estar se transformando. Sempre o considerei uma pessoa tão sólida e inflexível que a menor mudança poderia quebrá-lo.

       - Oramos juntos há uma hora atrás - informou John. - Recitei algumas preces. Avisei-o que Deus estava irado e o máximo que poderíamos esperar era que fosse

mais piedoso em sua vingança. Relembrando sua vida, contei a ele a história do rei Davi: a maneira como conseguira Betsabéia, como dera as costas ao Senhor e como o Senhor o castigou, exercendo a sua vingança, contra a casa de Davi. Malcolm compreendeu. Ele não a culpa mais, como não culpa os garotos pelo que lhes aconteceu.

Agora a culpa caiu em si mesmo e está tentando chegar a paz interior. Ele compreendeu que a única maneira de alcançar isso é entregando sua alma a Jesus Cristo, nosso Salvador - arrematou John, com os olhos voltados para o céu. - Oremos um pelo outro - disse a seguir.

       Eu estava sentada a mesa tendo-o ao meu lado, bem perto. Baixamos nossas cabeças numa oração.

       - Senhor, ajuda-nos a compreender e enxergar os teus caminhos. Ajuda-nos a ajudar uns aos outros. Perdoa nossas fraquezas permite que nos fortaleça através do nosso trabalho.

       - Amém - eu disse.

       A tristeza da casa não se alterou quando, finalmente, Malcolm emergiu de seu exílio voluntário. Ele estava mesmo diferente. Fisicamente mais fraco e envelhecido, sua aparência me lembrou a de Garland em seu ultimo ano de vida. Sua postura já não era tão ereta, seu andar habitual perdera a arrogância. Quando falava comigo ou com os empregados, sua voz era baixa e quase não nos fitava diretamente nos olhos; seu olhar era vago, como se dirigido a um ser invisível a quem prestava contas de sua culpa. Nunca mais recuperou seu ar saudável e viril; os olhos azuis tinham perdido o brilho e mais pareciam duas lâmpadas quase se extinguindo; como uma sombra, movia-se por Foxworth Hall envolto em uma atmosfera fúnebre, e passava a maior parte do tempo lendo a Bíblia e conversando com John Amos. Às vezes sentávamos os

três para ler o Livro dos Livros. John repetia em voz alta a maioria das passagens e nos dava explicações. Eu sentia que Deus nos tinha enviado John, que as suas cartas e a vinda para o enterro de Mal foram parte do grande plano de Deus para consolo de Malcolm e de mim. Corrine era o grande desafio para nós, achava John Amos.

Ela era rebelde.

       - Se Deus fosse de fato bom, não nos pediria para desistir de todos os prazeres que o mundo nos oferece - afirmou ela de uma feita.

       - Quem lhe disse que Deus é bom? - perguntou John Amos.

       Corrine limitou-se a rir a levantou os ombros.

       - Penso que Deus nos criou para descobrir-nos a felicidade na terra - ela sentou-se, sacudiu a cabeça.

       Às vezes ela dava palmadinhas no queixo de John e o animava com a frase "Deus disse: faça-se a luz"! Percebi que John Amos a fitava muito e a incitava a falar com ele e a ouvi-lo. John parecia tão fascinado por Corrine quanto Malcolm. Chegava a levar tudo o que ela precisava no quarto. Contudo, logo Corrine voltou a escola e novamente ficamos sozinhos.

       - É muito bom tê-lo conosco nesta contingência, quando mais precisamos de ajuda - eu disse a John. - Até Malcolm já pensa assim. Sinto-me profundamente agradecida a você.

       - Estou feliz por estar aqui, Olívia.

       Naquele verão, Corrine desabrochou numa jovem realmente linda. Cada vez mais se parecia com Alícia. O que herdara dos Foxworth servia apenas para complementar os traços delicados que tinha herdado da mãe. Seus cabelos ficaram ainda mais dourados com o curso do verão, os olhos refletiam o tom azul do céu num dia claro e sua tez era tão macia com uma nuvem estival. Era como se um artista divino a houvesse criado. Ela tinha consciência de quanto era bela. Eu podia perceber sua segurança e seu ego crescerem com a beleza. Ela revelava isso em seu andar, na maneira com que mantinha os ombros eretos e erguia a cabeça. Corrine também sentia o poder de sua beleza. Eu via o modo como ela olhava para os homens, flertando através do sorriso nos olhos, chegando a explorar seu charme para atrair John Amos. Considerava muito importante que, entrando em qualquer lugar, que todos se voltassem para ela.

       Ante aquela beleza arrebatadora circulando pela casa, senti um pouco de otimismo e esperança. Lastreados por nossa nova fé em Deus, Malcolm e eu estávamos tendo um relacionamento mais cordial. A fé e a entrega a Deus era o que tínhamos em comum, eram o nosso mundo.

       Quando a carta de Alícia chegou, senti que era parte dos novos desígnios de Deus para nós. Reconheci a caligrafia imediatamente. Vinha endereçada a Malcolm e quando vi quem era o remetente me senti extremamente excitada. À medida que Corrine ia crescendo e se transformando em mulher, a lembrança de Alícia se destacava em nossa memória. Tornando-se Corrine cada vez mais parecida com a mãe, a lembrança de Alícia era despertada a cada momento. Pude ver que ela se casara novamente, pois estava usando um nome diferente. Mantive a carta nas mãos por algum tempo, enquanto pensava em qual seria a reação de Malcolm se eu a abrisse. Bem, depois de tudo que havíamos passado, e depois de tudo que havíamos feito, qualquer coisa relacionada a Alícia era problema também meu, mesmo tratando da relação dela com Malcolm.

Ele não tinha mais direito a privacidade no que se tratava a Alícia. Abri o envelope e desdobrei o róseo papel de carta perfumado.

       Prezado Malcolm,

       Quando você receber esta carta, estarei próxima do fim de uma existência muito triste e desolada. Entretanto, saiba que não estou tentando despertar sua simpatia com isso. Estou muito além dessa idéia, agora que tive de compreender e aceitar a inevitabilidade da morte que se aproxima. Sabendo que você gosta de detalhes, vou contar o meu problema. Sofro de um câncer no seio, um mal que se alastrou com enorme rapidez e tornou-se impossível qualquer ajuda da medicina. Nenhum médico jovem, belo e brilhante entrará pela porta do meu quarto no hospital para fazer uma mágica. As garras da morte já estão cravadas em mim. O ceifeiro implacável, como Garland costumava dizer, mantêm a mão firme em volta de meu pescoço.

       Porém, mudemos de assunto. Casei-me de novo depois de abandonar Foxworth Hall e chegar a Richmond. Casei-me com um médico, um clinico geral, espécie de mezinheiro que recebe seus honorários de forma de compotas de frutas ou picles. Apesar do meu dinheiro, levamos uma vida simples e morávamos em uma casa modesta, que já era

de meu marido antes de nos casarmos. Aliás, ele nunca deu importância aodinheiro que eu trazia. Manter a casa e a família sempre foi motivo de orgulho para ele.

Por isso, segui o seu conselho e investi o meu dinheiro na bolsa de valores. Porém, não tendo conhecimento algum sobre aplicações, não retirei meu dinheiro a tempo de evitar a famosa segunda-feira negra. Resumindo, perdi a minha fortuna na depressão. É claro, sendo meu marido uma pessoa simples e sem luxos, ele não lamentou muito essa perda.

       Logo depois ele foi levado por uma doença crônica que se agravou de repente. Sendo o homem que era, ele nada me contou da seriedade do mal, até que escondê-lo não foi mais possível. Tudo isso me trouxe um outro grande e trágico desapontamento - não pudemos mandar Christopher para a Faculdade de Medicina. Christopher se tornou um rapaz bom e gentil, tão bonito e atraente quanto o pai. Ele é extremante brilhante e alcançou as melhores notas na sua turma de formatura. Todos os professores o encorajam a prosseguir no seu sonho de ser médico.

       Agora minha vida se aproxima do trágico fim, minha fortuna perdida e sem meu marido, não tenho mais ninguém exceto você. Eu lhe imploro que considere o que eu estou pedindo, se não pelo próprio Christopher, então por Garland. Encontre um lugar em seu coração para ele. Receba-o e o envie a faculdade de medicina. Ele lhe será uma fonte inesgotável de orgulho. Christopher nada sabe sobre Corrine ou sobre os acontecimentos que me fizeram deixar Foxworth Hall, é claro. Sabe apenas que é filho de Garland Foxworth e que tem um meio irmão. Ele sabe muito pouco sobre a família. Deixarei ao seu critério contar a ele o que achar melhor.

       Sei que Olívia amará Christopher e que ele também a amará. Lembro-me de como ela o tratou bem enquanto eu estive na ala norte. Christopher é um rapaz polido e recatado e só lhes trará alegria e felicidade.

       Malcolm, em meu leito de morte peço-lhe que satisfaça este meu último desejo. Ponha de lado todos os maus sentimentos que você deve ter por mim e pela tristeexperiência que vivemos juntos, e pense apenas no filho de seu pai, um garoto que cresceu sonhando em ser médico. Ajude-o a alcançar seu ideal.

       Sei que Deus o abençoará por isso.

       Sinceramente,

       Alícia.

      

       Dobrei a carta e suspirei. A lembrança do tempo em que havia cuidado do pequeno Christopher veio a minha mente. O retorno dessa criança de cabelos dourados era a maneira que Deus encontrara para nos perdoar. Ele nos tomou Mal e Joel, e agora estava nos dando Christopher. Até mesmo o trágico fim de Alicia fazia parte dos planos de Deus. Pelos dizeres da carta, pude concluir que, como uma forma de vingança, Malcolm tinha investido seu dinheiro em ações não muito seguras. Agora ele deveria corrigir seu erro; eu o convenceria a aceitar Christopher. Antes de lhe falar, discuti o assunto com John Amos, que concordou plenamente comigo.

       Preparada para lhe mostrar a carta, esperei por Malcolm no salão dianteiro. Ele voltou mais cedo do trabalho nesse dia, parecendo muito cansado.

       - Malcolm, preciso falar com você.

       Sem responder, ele veio até o salão e sentou-se no sofá de veludo azul. Continuei em pé, coma carta de Alícia nas mãos.

       - Chegou hoje uma carta de Alícia - eu disse.

       Pela primeira vez em semanas seus olhos brilharam e seu rosto mostrou algum interesse.

       - De Alícia? O que ela quer?

       Por um momento, seu súbito interesse e sua óbvia excitação me deixou irritada. Fi-lo esperar. Caminhei até a poltrona que estava a sua frente e virei-me para ele, que se havia sentado bem na ponta do sofá. - Ela escreveu para você?

       - Não. A carta estava endereçada a você, mas quando vi de quem era tomei a liberdade de abri-la. Acho que é um direito meu. - Acrescentei rapidamente.

       - O que ela quer?

       - Alícia está morrendo, morrendo de câncer; e está na miséria. Leia a carta e saberá os detalhes. A questão mais importante se refere a Christopher.

       - Christopher? Por quê?

       - Ele está com dezessete anos, acabou de concluir os estudos secundários e quer ser médico. Aparentemente, a vocação dele é essa, mas Alícia não tem mais dinheiro. Ela quer que Christopher fique conosco e que façamos por ele o que não pode fazer: mandá-lo para a faculdade de medicina - informei, entregando-lhe a carta.

       Ele pegou a carta com certa avidez e retirou rapidamente as folhas dobradas. Conforme ia lendo, a expressão do seu rosto foi se transformando até readquirir aquele ar frio e duro que o caracterizava.

       - Sinto muito por ela, mas o garoto terá de seguir seus próprios caminhos no mundo - foi a sentença.

       - Não penso assim e John Amos também não. Achamos ambos que esta é a vontade de Deus - atalhei rapidamente.

       - A vontade de Deus? Quem disse que é a vontade de Deus? Agora temos obrigação de acolher crianças abandonadas? - Perguntou, apontando para a porta como se atrás dela houvesse centenas de órfãos esperando para entrar.

       - Não chego a pensar no filho de seu pai como um órfão abandonado, Malcolm, ele é seu meio irmão - sublinhei, apertando os lábios.

       - Ora, só pro que ela desperdiçou uma fortuna, uma fortuna...

       - Uma fortuna que você investiu sem nunca dizer a ela como administrá-la da maneira correta - eu disse, irritada. - Malcolm, quaisquer que sejam os seus motivos, eles agora são irrelevantes. Esta é uma oportunidade de remir os erros do passado. Iremos desperdiçar essa oportunidade se não fizermos o que é certo. Você tem que encontrar a paz de sua alma perturbada; aceitando acolher o outro filho de seu pai, cuidando dele, você pode recuperar sua paz de espírito. Alícia esta morrendo.

Não podemos agora voltar-lhe as costas - eu disse.

       Malcolm olhou para mim por alguns instantes e depois olhou de novo para a carta.

       - Que tipo de casamento ela arranjou ao sair daqui, com esse homem, um médico, nada deixou para Christopher? - perguntou, fitando a carta como se pudesse ver e questionar Alícia através do papel.

       - Isso não vem ao caso. De qualquer maneira, Christopher não é filho do segundo marido. Christopher tem o seu sangue, não o sangue do marido de Alícia. É mais uma razão para ajudá-lo, Malcolm - repeti. - É a vontade de Deus.

       - Muito bem - assentiu, pousando as costas no sofá. - Mande uma carta respondendo e veremos no que isso vai dar.

       Deixei-o no salão com a carta nas mãos e os olhos perdidos em alguma imagem do passado. Não quis perguntar o que estava vendo, preferi participar minha decisão a John Amos, que tratou logo de redigir uma resposta e começou a trabalhar nos preparativos para a chegada de Christopher.

       A única exigência de Malcolm era que eu explicasse a situação a Corrine. Senti que ele não confiava o bastante em si mesmo para fazer isso. Chamei-a em meu quarto, o que era bastante raro, e a fiz sentar-se em minha cama. Estava intrigada, expectante, seus olhos ardiam de interesse. Fiquei em pé diante dela, as mãos cruzadas nas costas e pensamento coordenando cuidadosamente minhas idéias antes de começar a falar.

       - Como você sabe, o pai do seu pai casou-se de novo quando já estava quase no final da vida, com uma mulher bem mais jovem do que ele.

       - Sim, Alícia - concordou rapidamente - e ela dormia no quarto do cisne.

       - Alícia e Garland, seu avô, tiveram um bebê, um filho chamado Christopher. Sei que Mal e Joel sempre lhe falavam dele - ela balançou a cabeça concordando.

- Seu pai nunca aceitou Alícia, como nunca se conformou com o casamento do pai dele. Quando seu avô morreu, Malcolm insistiu para que Alícia e seu filho deixassem Foxworth Hall. Ela se foi e retornou a sua casa em Richmond, onde acabou se casando novamente. O marido dela, um médico, sofria de uma doença muito séria e o levou algum tempo depois.

       - Que terrível! - comentou Corrine.

       - Sim. Além disso, nos anos da depressão ela perdeu o dinheiro que tinha na bolsa de valores, e com isso tornou-se muito pobre. Agora acabamos de saber que Alícia está morrendo de câncer. Seu filho está com dezessete anos e é um rapaz muito inteligente. Ela nos escreveu, apelando para cuidarmos de Christopher e pedindo que o enviarmos à universidade, onde ele realizará o sonho de ser médico. Seu pai e eu resolvemos satisfazer os desejos de Alícia, e Christopher deverá chegar em Foxworth Hall dentro de poucos dias. Ele irá para Yale, a universidade onde seu pai se formou, para fazer o curso de medicina e Foxworth Hall será seu lar até que ele se forme e comece a trabalhar.

       - É ótimo - ela disse - e generoso também.

       - Essa é a vontade de Deus - afirmei. Corrine concordou. - Espero que você se comporte bem quando ele chegar. Faça-o sentir-se em casa. Apesar de haver apenas três anos de diferenças entre vocês, ele é seu meio tio e você deve se lembrar disso.

       - Será bom ter alguém em casa para conversar - ela disse. - Quero dizer, ter alguém da minha idade.

       Entendi exatamente o significado de suas palavras - ela queria alguém com quem pudesse conversar sobre coisas diferentes de Deus e de tristeza.

       - Entretanto, ele já quase um adulto. Não o distraia de seus estudos. Christopher era um garoto maravilhoso. Tenho certeza de que se tornou agora um rapaz adorável. Vocês dois vão se dar muito bem - prognostiquei, dando um beijo na testa de Corrine.

       Não a culpava pela excitação. Desde que Mal e Joel morreram, Foxworth Hall se transformara numa casa imensa e vazia. A chegada de Christopher trazia a promessa de uma vida nova, não apenas para ela, mas para mim também. Eu não podia deixar de me lembrar do garoto doce e meigo que ele havia sido; era educado, afetivo e inteligente.

Assim como Corrine, minha alma estava cheia de alegria e expectativa.

       Christopher chegou num dia claro de verão, e o sol parecia ter entrado na casa junto com ele. Alícia tinha falecido um mês atrás. Enviamos John Amos para Richmond e ele cuidou do funeral; e depois de um período de luto trouxe Christopher consigo. Eu só me lembrava de Christopher como uma criança ao lado de Mal e Joel, mas no momento em que ele entrou em Foxworth Hall vi que tinha herdado a beleza de Garland e os delicados traços de Alícia, que se haviam aprimorado e se tornado ainda mais ofuscante. Também percebi nele algo de Mal e Joel, e por isso nos reaproximamos imediatamente.

       Christopher crescera e se transformara em um jovem alto e bonito. Quando o vi chegar, sob a luz do sol, parecia trazer uma auréola de luz sobre a cabeça.

Senti nele um temperamento gentil e delicado. Ele irradiava uma paz que me aqueceu o coração. Ele ficou parado sob a luz do sol, com os olhos bem abertos; obviamente,

não se lembrava muito de Foxworth Hall. Pelo que John me contou, Christopher viera de uma pequena casa de quatro cômodos e agora iria viver nessa enorme mansão que, de certa forma, o deslumbrava. O rapaz olhou para Malcolm e para mim com uma expressão de gratidão tão evidente que fiquei embaraçada. Ele não compreendia que na verdade, metade daquele patrimônio, metade dos negócios de Malcolm, por direito, pertenciam a ele. Senti pena dele quando o vi em pé, boquiaberto, carregando suas duas valises. Usava um par de sapatos bem velhos e uma roupa surrada.

       Ia pedir a John para levar a bagagem dele quando Corrine apareceu na escada. Ela descera correndo o primeiro lance da escada e então havia parado. Christopher olhou para ela. Corrine usava um bonito vestido de algodão azul; seus cabelos cor de ouro estavam escovados e lavados, o que o fazia brilhar de riqueza. Percebi os olhos de Christopher brilharem de surpresa e interesse. Meu coração bateu forte. Conheceria a verdadeira relação que havia entre eles? Haveria algo no sangue que pudesse manifestar na amizade que desenvolveriam? Ambos tinham os mesmos cabelos dourados, os mesmos olhos azuis e a mesma tez cor de pêssego. Olhei rapidamente para Malcolm a fim de ver sua reação. Ao perceber sua linhagem e a de Alícia nos traços e características de Christopher seu rosto se iluminou de prazer. Não hesitei

mais.

       - Bem vindo Christopher - eu disse caminhando em direção dele. - Sei que a tragédia e a tristeza o trouxeram para cá, mas em Foxworth Hall, conosco, você encontrara alegria e bem estar. - Gostaria de abraçá-lo, como fazia quando era pequeno, mas me contive. Transformara-se em um homem e praticamente em um estranho para mim.

       - Obrigado... - Pude perceber que ele tentava encontrar um jeito certo de se dirigir a mim. Em sua mente, afinal, eu era sua cunhada. - Olívia - completou

finalmente, e depois voltou os olhos para Corrine.

       - Esta é Corrine, nossa filha. Corrine, cumprimente seu tio - eu disse, enfatizando a palavra tio. Ela afastou dos olhos um de seus cachos dourados e com uma das mãos sobre o peito, desceu os degraus restantes com um lindo sorriso a iluminar-lhe o rosto.

       - Como vai você? - cumprimentou Christopher estendendo a mão, que Corrine apertou; a seguir ela olhou rapidamente para mim. Inclinei a cabeça e aprovei o gesto rápido com que Corrine cumprimentou Christopher. Então nós nos voltamos para Malcolm.

       - Christopher - disse ele - John Amos levará sua bagagem ao seu quarto e lhe mostrará a casa. Depois que você terminar de arrumar suas coisas, eu gostaria que viesse a biblioteca, onde conversaremos sobre a sua estada e seus estudos - finalizou suas palavras em um tom formal e frio.

       Contudo, isso não pareceu desencorajar Christopher. Com os lábios esboçando um sorriso gentil e sincero, agradeceu a Malcolm. Em seguida fez sinal para que John o guiasse em direção ao seu quarto na ala norte. No meio da escada ele parou, como se acabasse de se lembrar de uma coisa muito importante, e se virou para Corrine, que embaixo olhava para ele. Christopher sorriu para ela e continuou. Malcolm já se havia enfiado na biblioteca.

       Esperei um pouco e então, escondendo meu nervosismo atrás de uma máscara de frieza, eu disse a Corrine:

       - Lembre-se da nossa conversa. Ele é seu tio. Não se esqueça disso.

       Ela me olhou com um ar de superioridade.

       - É claro que não poderei esquecer. Veja só como somos parecidos! -exclamou em tom alegre, disparando pelas escadas atrás dele.

 

CHRISTOPHER GARLAND FOXWORTH

       CHRISTOPHER TROUXE UMA EXPLOSÃO DE LUZ para dentro de nossas vidas. Corrine, John Amo, Malcolm e eu, tal como mariposas ficamos completamente seduzidos e atraídos pela luz que emanava dele, pelo brilho de seus cabelos dourados, pelo esplêndido e radiante sorriso.

       - Bom dia Olívia. Você está adorável esta manhã - ele me dizia quando se juntava a mim para tomar café.

       - Não fique adulando e paparicando uma mulher da minha idade - eu respondia sempre.

       - Adulando e paparicando? - ele sorria. Seus olhos azuis, cor dos lagos no coração das montanhas, eram sempre cheios de brilho. - Eu disse isso do fundo do meu coração. - Depois com um sorriso maroto e um apetite saudável, ele passava manteiga em suas panquecas e acrescentava: - Eu era pequeno Olívia, mas me lembro até hoje que você era a melhor cozinheira do mundo. Você sempre fazia biscoitos cobertos de passas. E sempre foi muito carinhosa comigo.

       Meu coração rejubilava com uma alegria que eu já havia esquecido. Com Malcolm, Christopher podia discutir os mais complicados planos de negócios.

       - Não estou certo de que os investimentos em estradas públicas venham a ser o grande investimento do futuro - disse Christopher certa vez. - Penso que é chegada a hora de olharmos para o céu, senhor. Creio que a aviação será o transporte do futuro.

       - Você quer dizer que todo mundo poderá voar sobre a terra? Acho difícil acreditar nisso, meu jovem.

       - Já está acontecendo, senhor. Repare que as empresas aéreas começam a vender ações - disse Christopher abrindo o The Wall Street Journal; eu vi o alto de sua cabeça aparecendo atrás das folhas de jornal enquanto se inteirava das cotações.

       - Bem filho, você deve estar certo - concordou Malcolm finalmente. - Você tem uma ótima cabeça para os negócios. Tem certeza que quer desperdiçá-la com a medicina?

       - Quero ajudar as pessoas como meu padrasto fazia, senhor - respondeu o rapaz.

       Christopher também havia fascinado John Amos. John se maravilhava ante a enorme facilidade dele de compreender as escrituras. Ambos ficavam até tarde da noite lendo a Bíblia e discutindo várias interpretações. Para Christopher, Deus era o perdão e a bondade; para John Deus era a vingança. Contudo, a pessoa mais fascinada por ele era Corrine. Ela não perdia a oportunidade de estar ao seu lado. Somente quando eu entrava na sala e os via juntos no sofá, falando baixinho e rindo, Corrine se lembrava de que deveria se afastar de Christopher, largar sua mão e atender meu pedido de tratá-lo como um tio. Porém, ver juntas aquelas duas crianças maravilhosas, que haviam trazido luz às sombras de Foxworth Hall, me fazia bem. Preparava para eles um bule de chá e assava biscoitos, lembrando sempre de cobri-los com passas.

Parecia-me que Christopher tinha uma paciência inesgotável com Corrine e suas infindáveis perguntas sobre o passado dele. Essa paciência estava presente mesmo quando ela lhe perguntava coisas que lhe pudessem trazer lembranças tristes. Christopher era um jovem cheio de compreensão, ternura, afeto e simpatia.

       De uma feita, num jantar, Corrine questionou-o sobre Alícia. Malcolm estava sentado, como sempre, na cabeceira e eu no outro lado da mesa. Corrine sentava se defronte a Christopher, que ocupava o lugar que fora de Mal. Naquela noite, Corrine demorou tanto para decidir que vestido devia usar e como prender os cabelos que quase se atrasou para o jantar. Embora essa tenha sido a noite mais quente naquele verão, Malcolm e Christopher usavam paletó e gravata. Malcolm nunca admitira que os desconfortos físicos mudassem seus hábitos; assim, mantinha uma aparência formal e fria; seu corpo parecia obedecer a sua vontade. Christopher, por certo, estava desconfortável, mais não dizia uma palavra sobre isso. Não havia a menor brisa lá fora, pela janelas não entrava um único sopro de ar. A única aragem era a que vinha do ventilador de teto. Corrine começou importunando Malcolm por causa de sua gravata apertada.

       - Por que vocês dois não tiram as gravatas e os paletós? Acho que seria mais romântico - sugeriu ela revirando os olhos e suspirando. Eu já havia dito a Malcolm que Corrine andava lendo revistas de moda e acompanhando detalhadamente a vida das estrelas de cinema. Cada vez mais, ela agia como se Foxworth Hall fosse um estúdio de cinema de Hollywood.

       - Não estamos em um palco Corrine - disse Malcolm, lembrando-se de minhas queixas. Balancei a cabeça, concordando com ele. - Este é o nosso jantar. Sugiro que você se preocupe com outras coisas que não o modo como os homens dessa casa se vestem.

       - Papai, não sei como consegue viver tão abafado - disse ela, rindo para Christopher, que estava impávido. Sabendo como Malcolm reagiria, ele não sorriu de volta. Eu sabia que Corrine estava se mostrando para Christopher, que embora não conseguisse evitar um brilho de prazer nos olhos, se manteve calado. - Você também tinha que se sentir sufocado na hora do jantar quando estava na sua casa, Chris?

       Franzi as sobrancelhas. Chris? Ela percebeu meu olhar de repreensão. Eu já lhe havia dito que não devia abreviar o nome de ninguém a não ser o dela própria.

       - Meu pai sempre quis que a gente se vestisse adequadamente para o jantar - lembrou.

       - Não creio que ele gostasse de se sentir sufocado assim como não creio que seu pai goste, a questão é outra - respondeu Christopher com diplomacia. Malcolm não mostrou reação alguma, mas eu sabia que a resposta lhe havia agradado.

       - E sua mãe? Sei muito pouco sobre ela. Você e sua mãe partiram logo depois que eu nasci.

       Cada vez que o nome de Alícia era mencionado, tanto Malcolm quanto eu ficávamos tensos. Eu temia que, de algum jeito, a verdade viesse a tona fazendo com que eu perdesse o amor e afeição daqueles jovens, que nunca nos perdoariam pela mentira que forçamos Corrine a viver. Mas era tolice minha, eles nunca iriam saber.

       - Acho que não deveríamos lembrar a mãe de Christopher na hora do jantar - pedi. - O assunto deve magoá-lo muito, considerando o desenlace ainda tão recente.

       Corrine ficou corada

       - Oh, desculpe, foi sem querer.

       - Tudo bem. Mas Olívia esta certa - concordou Christopher.

       Em seguida começou a conversar com Malcolm sobre uma de suas usinas e o assunto foi encerado; contudo, a tensão ficou pairando no ar entre Corrine e mim estendendo-se até o final da refeição. Ela ficou furiosa por eu tê-la feito parecer cruel aos olhos de Christopher, mas esta foi a solução mais rápida que encontrei para por fim ao assunto. Nem eu nem Malcolm queríamos falar sobre Alícia na frente de Corrine. Mais tarde eu ouvi Christopher dizer-lhe que ela não o havia magoado. Eles iam andando por um corredor em direção ao pátio da ala leste. Corrine não percebeu que eu estava perto o bastante para ouvi-los.

       - Minha mãe às vezes é muito fria - Corrine disse. - E também anda muito irritada - acrescentou, pinçando os olhos. Christopher riu.

       - Você não deve julgar sua mãe com tanta severidade, Corrine. Ela só disse aquilo para me proteger. Ela se preocupa com meus sentimentos - dramatizou um tom de voz que lembrava o de um professor.

       Christopher me parecia estar indo bem nos esforços de manter Corrine em seu lugar, e eu tive orgulho por isso. Na manhã seguinte, encontramo-nos nesse mesmo pátio. Eu estava sentada aproveitando a brisa que soprava naquele dia nublado e úmido. No momento em que ele veio na minha direção, percebi um ar de seriedade em seu rosto, embora sorrisse, cumprimentando-me com afeição.

       - Bom dia Olívia, posso me sentar com você? - Coloquei meu crochê de lado e ele se sentou.

       Eu sabia que Chris tinha alguma coisa para dizer, e por um instante, temendo que me perguntasse sobre Alícia e por que ela deixara Foxworth Hall, congelei de medo. Eu odiava ter que lhe mentir, considerava isso injusto; e mais, o que pensaria de mim, de Malcolm e Corrine, mesmo de si próprio se soubesse da verdade?

       - Parece que algo o preocupa, Christopher - comentei cautelosamente. - O que é?

       - Olívia - começou ele, um olhar meigo se estampando em seu rosto - saiba que me sinto grato pelo que você e Malcolm estão fazendo por mim. Aqui é tudo maravilhoso.

É como se tivesse encontrado um segundo lar. Depois que perdi minha mãe, as coisas aconteceram com muita rapidez. Na noite passada, no jantar, senti que você compreende muito bem e quando, mais tarde, analisei isso, percebi por que. Você sofreu uma perda muito maior do que a minha. Sei que os filhos já tem consciência de que um dia perderão seus pais e nem posso imaginar o quanto deve ser horrível para os pais perderem seus filhos, e você perdeu os dois que tinha - lamentou, pegando minha mão. - Tenho evitado falar de Mal e Joel porque sei como seria doloroso parta você. Sinto, porém, que devemos dividir esta dor. Mal me vem a lembrança por seus modos

sérios, tão adultos. Recordo que vivia aqui com eles, recordo que me tratavam como um irmão. E realmente, quando minha mãe se ausentou por muitos meses, você foi como uma mãe para mim e eu a amava muito. Jamais me esquecerei disso. Agora veja; eu perdi minha mãe e você perdeu seus filhos; mas podemos ter um ao outro, não podemos? Quero dizer: não é como se eu tivesse encontrado uma mãe e você um filho? Podemos ser assim Olívia? Eu sempre quis ter irmãos e irmãs, reclamei com mamãe sobre isso, mas quando eu tocava no assunto ela se aborrecia e começava a torcer as mãos como se estivesse enxergando um tecido invisível. Não sei por que ficava assim, ela nunca me explicou. Pois agora eu sinto que encontrei uma segunda família. Eu adoro Corrine, ela será, com certeza, uma linda mulher! Você a criou tão bem; ela é doce, charmosa, realmente uma criatura agradável. Você sabe, não me importo com o fato dela estar sempre reclamando minha atenção. Nada me daria mais honra quanto ser um verdadeiro irmão para ela, se me permitir, ser um filho para você.

       - Obrigada Christopher - respondi, sentindo afeto e respeito em seus olhos.

       Bem, aquele jovem me tocou mais do que eu poderia exprimir em palavras. Entretanto, eu havia perdido meus dois garotos e em troca ficara com os de Alícia.

Jurei que cuidaria deles e os protegeria. Mesmo que já fossem quase adultas, aquelas crianças lindas e adoráveis, com o mundo a seus pés, podiam refazer um a família com a qual sempre sonhei. - Não há nada que eu gostaria mais, Christopher, do que saber que você se considera meu filho. É uma honra para mim, acredite.

       Christopher sorriu. Seu belo sorriso iluminou-se de amor e carinho.

       - Que bom se minha mãe nunca tivesse partido de Foxworth Hall. Gostaria muito de possuir mais lembranças de Mal e Joel; gostaria de crescer junto com eles, assim poderia tê-los conhecido melhor; contudo, sei que isso faz parte do passado e não há maneiras de trazê-los de volta. Minha mãe pouco me contou sobre a nossa vida aqui. Mas podemos construir novas memórias não é mesmo Olívia? - Ele fitou em mim aqueles profundos, ricos, carinhosos olhos Foxworth. - Você terá muito orgulho de mim Olívia - prometeu.

       Sua doçura e seu amor eram tão comoventes que lágrimas me vieram aos olhos. Eu havia conhecido bem pouco o amor na minha vida, contudo, sabia que realmente me amava, tanto como se eu fosse sua mãe. Senti um nó na garganta e estou certa de que Christopher sabia que havia me emocionado. Sorri e lhe dei uns tapinhas carinhosos nas mãos.

       - Christopher - comecei - se você realmente fizer o que promete, sentirei um orgulho e uma felicidade que apenas uma mãe pode sentir por um filho. Sinto-me honrada por você ter estes sentimentos. - Quando acabei de falar, rapidamente, desviei os olhos de Christopher.

       Meu coração estava comovido e minhas lágrimas estavam a ponto de transbordar. Não pude evitar as lembranças de Mal e Joel e das conversas de mãe para filho que costumávamos ter. Tudo isso eu considerava perdido - eis que de repente uma parte estava retornando. Como se quisesse me confrontar, a brisa morna acariciou meu rosto e as nuvens negras que cobriam o sol se afastaram; havia calor dentro de mim, porém mais importante era que havia calor dentro do meu coração.

       - Farei o possível - prometeu. Inclinou-se e me beijou no rosto; depois que ele se afastou o calor de seus lábios ainda permanecia em minha pele.

       Sofreei de vontade de gritar-lhe que voltasse. Observei-o entrar na casa e quando ergui os olhos avistei John Amos em pé com as mãos cruzadas nas costas seu corpo parecia submerso em uma sombra profunda. Comecei a reparar que John Amos vivia observando Christopher bem de perto. Ele aparecia de todos os lugares emergindo do nada, como se nascesse das sombras. Era como se procurasse alguma coisa em Christopher. Com seus olhos inquisitivos, como bisturis curiosos, ficava a espera de sinais, de gestos, de pistas. Sempre que Malcolm e Christopher conversavam, John rondava por perto como um espião cheio de suspeitas numa terra distante, escrutinava

Christopher minuciosamente. Por algum tempo ele nada disse sobre o rapaz. Até que um dia, uma semana após a conversa que tive com Christopher no pátio, ele apareceu na porta do salão dianteiro, onde eu estava lendo.

       - Preciso conversar com você sobre Christopher - foi dizendo. Inclinei a cabeça, num sinal de acordo, e o convidei a aproximar-se. Ele permaneceu em pé, o que me revelou que estava perturbado por seus pensamentos. - Há perigo no paraíso - ele disse.

       - O que o está perturbando John? - perguntei impaciente. Não gostaria que ele criticasse Christopher. - O que ele fez? - perguntei.

       - Não é ainda que ele tenha feito especialmente, mas sou uma pessoa cautelosa e acho que você também deve ser. Estou preocupado, creio que vocês se apegaram a Christopher depressa demais. Até Malcolm parece ter perdido aquele jeito desconfiado e frio de olhar e seus modos distantes. Só você mesma, Olívia, é capaz de entender o que estou dizendo. - Dito isso, cerrou fortemente os lábios, seus olhos se estreitaram. Ele balançou a cabeça para cima e para baixo, como se estivesse confirmando suas próprias palavras.

       Ponderei sobre aquelas perguntas.

       - Mas você não observou nada de...

       - Eu o tenho visto junto com Corrine. Eles passam a maior parte do tempo juntos, nadando, passeando pelos jardins, rindo, tagarelando - sussurrou ele, como se essas coisas fossem pecado.

       - Mas eles são inocentes. Ela o segue por aí como se fosse um cachorrinho. Você não observou nenhuma imprudência, não é? - perguntei rapidamente.

       - Não, mas mesmo assim... como já disse, eu me preocupo. Corrine está gastando muito mais tempo para se arrumar, está dando muito mais valor à aparência.

Antes de sair do quarto ela se senta em frente ao espelho da penteadeira e escova os cabelos cem vezes - relatou.

       Encostei-me no sofá.

       - Você fica observando Corrine escovar os cabelos? Não entendo - confessei. De repente, ele ficou ruborizado. Sua boca se abria e se fechava, mas não proferia uma palavra sequer. - Por que motivo você a observa tão de perto? - inquiri - Como faz para observar desse jeito?

       - Às vezes ela deixa a porta entreaberta e eu... eu faço o possível para... para detectar qualquer problema que possa estar surgindo, Olívia - desabafou afinal.

- Você sabe que essa é minha única intenção.

       Considerei o que ele dissera.

       - Você viu alguma coisa que eu deve saber? - especulei, percebendo que John andava espionando mais do que havia imaginado.

       - Sim. Devo confessar que ontem senti alguma coisa estranha e os segui.

       - O que? - perguntei, boquiaberta. Eu estava ficando cada vez mais furiosa com as suspeitas de que John levantava aqueles inocentes e belos jovens. Estaria ele tentando destruir a paz e a felicidade, que finalmente, havíamos conquistado? - Você sentiu o que John?

       - Eu os segui até o lago. Eles estavam brincando dentro da água. Fiquei observando e para minha surpresa, quando saíram do lago, notei que usavam apenas roupas íntimas! Olívia, isso é obsceno! Dava para perceber tudo! O que vi foi uma cena indecente!

       Devo confessar que as palavras dele me perturbaram. Eu havia criado Corrine para ser uma jovem recatada, e realmente não podia aprovar que ela se comportasse daquele modo. Entretanto, eu os perdoei, lembrando que ambos eram jovens e o dia estava de fato muito quente. Tinha certeza que aquela exuberância havia apenas começado a brotar.

       - John Amos - falei friamente - não gosto dessas suspeitas que você traz na sua mente. Acima de tudo, eles são membros da mesma família e em determinadas situações as pessoas podem ignorar certos pudores. Sei que nós éramos apenas crianças, mas lembro-me de ter ouvido que parentes próximos, como primos, sentem-se muito bem em ser abertos, e no bom sentido, despudorados uns com os outros. Não faça tempestade em um capo d'água.

       O primeiro verão de Christopher chegou ao fim. Ele foi para Yale. Corrine, agora no décimo ano, estava estudando na melhor escola para moças na Nova Inglaterra.

Eu quis que ela tivesse contato com as velhas tradições européias. Quis que aprendesse latim e grego antigo, para ser uma mulher mais interessante do que aquelas mulheres belas, mais vazias que habitavam os corredores da Virgínia. Por uma feliz coincidência, sua escola ficava em Massachutts, a apenas uma hora de New Haven.

Eu estava realmente feliz por saber que, pelo menos, Corrine estava por perto.

       Fiquei triste ao vê-los partir. Eles deixaram Foxworth Hall no mesmo dia e tomaram o mesmo trem. Christopher tinha se oferecido para levar Corrine até a sua nova escola antes de seguir para Yale. Era bonito ver como eles haviam se aproximado um do outro como verdadeiros irmãos - o que realmente eram, embora não soubessem disso. A grande mansão ficou vazia sem eles, e nossa estúpida rotina rapidamente voltou a se instalar: Malcolm sempre no trabalho, John Amos dando ordens aos empregados e lendo a Bíblia comigo. Contudo, eu me sentia aquecida pelo amor de meus filhos. De fato, pensava em Christopher e Corrine como se fossem meus filhos de verdade.

       Tal como me prometera, Christopher me escrevia toda semana. Mandava cartas longas e interessantes onde descrevia o que estava fazendo e quanto sentia falta de Foxworth Hall e dos dias felizes que passara no último verão. Corrine também escrevia lindas cartinhas, descrevendo a nova escola e as novas amigas. Reclamou da ausência de garotos por perto, o que me deixou um pouco preocupada, pois o que eu temia era que se tornasse uma garota namoradeira se metesse em encrencas; finalmente sosseguei, lembrando que havia criado Corrine sob o regime correto e firme, e parei de me preocupar. Eu acreditava que a educação recebida por Corrine era forte o suficiente para superar quaisquer tendências que tivesse herdado da mãe.

       Nós todos esperávamos pelos feriados, que era quando Christopher e Corrine voltavam para casa. O dia de Ação de Graças era um feriado muito curto e não compensava a viagem que precisavam fazer para chegar a Virgínia. Além disso, um professor de Christopher havia convidado ele e a Corrine para jantarem em sua casa. Embora não os fosse ver, consolei-me em saber que, pelo menos, estariam juntos. Esperávamos pelas festas de fim de ano com ansiedade.

       O tempo passou e assim que as aulas terminaram, Corrine e Christopher retornaram. Chegaram em casa juntos, felizes e excitados como duas criancinhas a espera de Papai Noel. Nossa festa de Natal este ano foi espetacular. Nossa árvore de natal tinha dez metros de altura e chegava até o alto da rotunda. Os dois gastaram quase dois dias para decorá-la, Christopher em pé no alto da escada e Corrine embaixo, passando os enfeites brilhantes e coloridos. Chegaram a fazer cordões de pipocas e flores secas - fileiras e fileiras de grinalda branca e vermelha - para enrolar em volta da árvore como bailarinas com fitas dançando ao redor do mastro. Na noite

da festa, Corrine estava exuberante, cheia de excitação. Malcolm havia comprado para ela um extravagante vestido de veludo vermelho; seus cabelos dourados estavam presos no alto da cabeça, de onde caiam alguns cachinhos em forma de anel. Consenti que usasse uma maquiagem leve: pó de arroz e batom. Ela estava realmente linda, tenho que admitir. Parecia uma estrela de cinema, uma princesa, uma rainha.

       Malcolm, Christopher e eu, assim como os empregados, nos voltamos para vê-la descer as escadas. Sentíamo-nos orgulhosos por ela ser tão linda; Malcolm quase

explodia de contentamento e eu vi Christopher suspirar quando ela se aproximou de nos dizendo: "Feliz Natal papai". Abraçou Malcolm e a seguir piscou os olhos para Christopher. Apenas John Amos a olhava com a fisionomia séria. De repente senti um estalo na cabeça e fiquei intrigada: John Amos tinha ciúmes de Christopher! Era esse o motivo principal de suas suspeitas. Eu o agarrei pelo braço e o levei até o grande salão de baile.

       - Venha John, vamos ver se os preparativos estão perfeitos. Nossos convidados vão chegar a qualquer momento.

       A festa foi um grande sucesso. Corrine, a jovem sofisticada e versátil em etiqueta, recebeu os convidados com muito mais classe do que eu o faria. Notei o quanto Malcolm se orgulhava dela; percebi como ele a acompanhava, observando-a se mover pelo enorme salão, cumprimentando as pessoas, sorrindo para um e outro, dizendo as banalidades que deveriam ser ditas e tratando os mais jovens e os mais velhos com a mesma graça. Eu vi o sorriso nos seus rostos e o encantamento nos seus olhos quando ela os cumprimentava. Não cheguei a me incomodar com o fato de eles jamais terem me respondido com aquele calor. Eu não sabia ser daquele jeito, Corrine sabia,

e a glória dela se refletia em mim; era muito mais doce do que não ter glória alguma.

       Corrine estava com os braços dados com Christopher, apresentando-o aos convidados como seu tio. Ela informava a todos que ele estava estudando e que em breve seria um médico famoso. Todos percebiam que Corrine se orgulhava dele. Circulando entre os convidados, ela estava radiante, era como se uma brilhante centelha levando alegria do Natal a todos aqueles que tocava.

       Christopher, elegante como sempre, saudava as mulheres fazendo com que se sentissem belas e atraentes. Tinha uma palavra gentil para cada uma e parecia sincero.

Pesquisava e encontrava as melhores qualidades de cada pessoa e então as cumprimentava por ela. Por toda a parte na festa, os convidados comentavam sobre ele e Corrine, externando o quando estavam impressionados com ambos.

       Ouvi a sra Bromley dizer a um grupo de mulheres que era difícil acreditar que alguém tão bela e cheia de vida e charme como Corrine pudesse ser minha filha.

Entretanto, dessa vez não senti necessidade de interrompê-las e responder, como havia feito em tantas festas anteriores. Eu sabia que ela era motivada pela inveja e me sentia orgulhosa. Na sociedade local não havia outro rapaz tão fino, bonito e educado quanto Christopher nem outra moça como Corrine. Finalmente, eu triunfava no meu papel de esposa de Malcolm. Havia sobrevivido as nossas tragédias e desastres, e assim como a casa imensa, agora estávamos no ápice daquela comunidade. Éramos as pessoas admiradas e invejadas.

       Logo que a banda começou os ritmos dançantes, Christopher e Corrine começaram a rodar no meio do salão. Era uma valsa, e todos ficaram encantados em velos juntos. Christopher conduzia Corrine através do salão como se ambos já tivessem nascido dançando. Os convidados se voltavam para apreciar, preferiram ficar olhando,

felizes em ver aquele casal maravilhoso deslizar pelo salão como dois flocos de neve evoluindo ao sabor do vento. Malcolm, alto e digno, caminhou até o meio do salão e substituiu Christopher. Corrine sorriu-lhe quando ele se juntou ao círculo de pessoas que aplaudiam. Contudo, de alguma maneira quebrara-se o encanto: pai e filha pareciam rígidos e um pouco desconfortáveis; era como se Malcolm quisesse competir com Christopher e provar que também era um bom dançarino - o que não era. Só então percebi realmente o quanto Malcolm envelhecera. Seu vigor juvenil não existia mais; dançando com Corrine, parecia um velho rolo.

       Christopher aproximou-se de mim sorrindo.

       - Será que devo interrompê-lo e dançar outra vez com Corrine? Creio que ele esta ficando cansado.

       - Vá em frente - eu o encorajei batendo de leve em sua mão.

       Christopher caminhou até o meio do salão e assim que bateu nas cosas de Malcolm e Corrine voltou aos seus braços, a multidão explodiu em novos aplausos. Foi então que reparei que John Amos olhava para mim. Fitava-me como se fosse uma divindade furiosa disposta a lançar sua maldição sobre a minha felicidade - uma felicidade que levara tanto tempo para encontrar. Ele desviou os olhos em direção de Corrine e Christopher e levantou a sobrancelha num gesto de suspeita.

       - O pior cego é o que não quer ver - murmurou.

       Por que ele fazia com que a beleza parecesse tão sórdida? Por que suspeitava tanto de Christopher? Pensaria que, sendo também um membro da família, deveria desfrutar das mesmas regalias que Christopher em vez de um simples mordomo? Tentei não pensar nisso. Aquela era a nossa melhor festa de Natal. E eu me deliciava com o brilho de meus filhos. Não deixaria que as suspeitas de John arruinassem a minha felicidade.

       Durante o segundo ano em Yale, Christopher fez mais do que simplesmente se revelar um ótimo estudante. Os professores consideravam seus trabalhos extraordinários.

Embora no segundo ano, ele já cursava matérias e fazia trabalhos do último ano; por isso, a escola abriu mão dos limites de crédito para ele. Malcolm e eu recebemos de Christopher uma carta animada onde Chris nos contava que ao invés de quatro anos previstos, ele se formaria em apenas três. A faculdade de medicina estava ficando cada vez mais perto. Eu adorava saber que chris e Corrine mantinham contato. Chris havia estado uma ou duas vezes na escola de Corrine para visitá-la. Ela deve ter ficado muito orgulhosa em exibir seu belo e elegante tio às amigas. Eu a imaginava sentada na cama do dormitório, as amigas reunidas em volta para ouvi-la descrever Christopher e as festas de Natal em Foxworth Hall. Tinha certeza de que ela fazia com que todas a invejassem. Podia vê-la prometendo apresentar Christopher a uma e outra amiguinha. Quando ele chegou, ela deve tê-lo exibido como uma jóia rara.

       John Amos contudo, nunca deixou de sustentar suas suspeitas em relação a Christopher.

       - Não é natural Olívia; nem mesmo primos são tão íntimos nessa idade.

       - É mesmo John? - ironizava Malcolm. - Será que você não pode deixar Corrine em paz? - Malcolm continuava fascinado pela filha.

       Aos dezessete anos Corrine já era uma linda mulher. Seus cabelos nunca pareceram tão dourados e nunca tão macios. Seus olhos eram ainda mais brilhantes e o azul, o mesmo azul anil dos olhos de Christopher, era ainda mais profundo. Tinha a mesma silhueta esbelta de Alícia; um pescoço gentil, ombros pequenos e redondos, seios firmes e cheios, cintura fina e quadris graciosos. Suas pernas eram longas e ela caminhava com tanta graça que até os anjos deveriam invejá-la.

       Agora com vinte três anos Christopher também havia se transformado. Os ombros se alargaram e ganharam mais músculos por suas atividades físicas em Yale. Era o campeão de remo do seu time. Crescera pelo menos três centímetros desde que chegara, e eu achava que a maturidade ainda o tornava mais atraente. Havia muito de

Garland no filho; podia ouvi-lo quando Christopher gargalhava e vê-lo no modo de andar de Christopher.

       Era maravilhosos e reconfortante vê-los correndo pela casa imensa, passando de uma atividade a outra. Uma tarde saiam a velejar no pequeno lago, outras iam colher flores silvestres ou procurar colméias de abelhas para Olsen colher mel. Nos jantares, falavam sobre suas vidas na escola.

       Malcolm olhava para ambos e se detinha em Corrine. Alguma coisa estava acontecendo ao granito do seu rosto; começava a desaparecer e parecia que Malcolm não carregava mais a pedra sobre os ombros. Ocasionalmente, quando Corrine lhe descrevia alguma bobagem que fizera ou dissera, ele chegava a gargalhar em plena mesa de jantar.

       Christopher também tinha várias histórias para contar sobre Corrine. Ele adorava repetir as coisas que ela dizia ou fazia quando ele a visitava. Estavam ficando tão apegados que realmente comecei a me preocupar. Uma tarde, quando ambos voltavam de um passeio de barco, compreendi o que vinha me incomodando naquela amizade.

O braço de Corrine estava entrelaçado no de Christopher e seus cabelos dançavam macios sobre os ombros. Eles passeavam pelo gramado, em direção ao pátio onde eu estava sentada olhando as montanhas. Agora pareciam tanto ser irmão e irmã, que eu quase podia afirmar que ambos sentiam isso. Por um momento, mergulhei na lembrança de meus dois filhos. Imaginei, que se Mal e Joel estivessem vivos e caminhassem ao lado de Corrine, os dois pareceriam tão maravilhosos quanto ela. O poder de sua

beleza era tão forte que qualquer homem ao seu lado seria iluminado por ela, assim como a mão de uma mulher é realçada por uma jóia e seu pescoço e braços por colares e braceletes.

       Primeiro, ouvi seus risos. As vozes, ainda distantes, eram indistintas. Quando chegavam perto o suficiente para notar a minha presença eles pararam e se entreolharam como se fossem surpreendidos fazendo algo ilícito. Fiquei tensa. Logo depois eles recomeçaram a caminhar em minha direção; moviam-se depressa e um pouco mais apartados do que antes, embora continuassem de braços dados.

       - Não é um lindo dia Olívia? - perguntou Chris. - Estava ventando na medida exata para um bom passeio de barco - acrescentou. - Gostaria que você me permitisse levá-la para um passeio de barco um dia desses.

       Corrine olhou para mim com uma expressão galhofeira; dir-se-ia que não conseguia me imaginar dentro de um barco.

       - Já estive em barcos a vela muitas vezes - eu disse. - Quando morava em New London, velejar era tão comum quanto andar.

       - É mesmo? - perguntou Chris. - Já estive em New London e a enseada é realmente bonita.

       - Sim - disse Corrine - é mesmo.

       - Você já esteve em New London Corrine? - perguntei rapidamente. Ela lançou um olhar furtivo para Chris e balançou a cabeça concordando.

       - Um sábado eu a apanhei e a levei para um passeio de barco em New London - ele confessou. - Sabíamos que era a sua cidade natal e queríamos conhecê-la.

       - É um lugar adorável - afirmou Corrine.

       Então eles olharam um para o outro de um jeito que excluía qualquer outra coisa no mundo. Senti uma pontada de terror no coração. Era como se estivesse vivendo debaixo de um véu que não me deixava ver nada nem ninguém penetrava no meu mundo secreto.

       O ano seguinte passou depressa e o verão chegou de novo. Dessa vez Malcolm e eu viajamos para New London, primeiro para assistir a formatura de Corrine, que terminara o segundo grau, e depois para a de Chris em Yale. Christopher foi o orador da turma. As pessoas quase choraram de emoção ao ouvir-lhe as palavras. Falou

de um modo tão eloqüente sobre as idéias de que, quando uma pessoa pensa que perde algo precioso - as esperanças, os sonhos, ou um ser muito amado - ela pode se prender aos seus sonhos e transformá-los novamente em realidade. Eu sabia que ele falava da nossa família, com suas amargas tragédias; da perda de Alícia e do seu encontro com um novo lar em Foxworth Hall. Quando desceu do palanque, até Malcolm estava comovido, e com os braços abertos, corremos ao encontro dele. Corrine foi a primeira a abraçá-lo; ficaram abraçados por um longo momento. Malcolm e eu, um pouco impacientes, esperamos a nossa vez de abraçá-lo. Na minha face rolavam lágrimas de alegria. Depois todos juntos, como uma verdadeira família, tocamos seu barrete e o lançamos para o alto. O céu ficou negro com a quantidade de barretes que giravam no espaço. A saudação de centenas de rapazes ecoou no ar.

       Voltamos para casa no carro que Malcolm dera a Corrine como presente de formatura. Era um cadillac conversível cor de creme. Dirigíamos por turnos; às vezes Malcolm dirigia e eu ficava ao lado no banco fronteiro, enquanto Corrine e Christopher viajavam no banco de trás. Depois era a vez de Christopher dirigir, então trocávamos de lugar; em seguida Corrine e assim por adiante. Para jovens que haviam acabado de se formar, Christopher e Corrine estavam estranhamente calados durante a viagem. A noite paramos em Atlantic City, New Jersey e Malcolm quis levar a todos nós por um passeio pela cidade.

       - Quero mostrar alguns lugares a vocês, crianças - disse ele. - Aqui existe um salão de baile cujo ladrilhos são pintados a ouro; isso coloca Foxworth Hall

no chinelo!

       - Ora, papai, é muita bondade sua, mas estou exausta. Toda essa excitação da minha formatura e da de Chris me deixou morta. Creio que eu poderia dormir por um ano inteiro.

       - Sei o que você quer dizer - concordou Christopher. - O meu discurso também me esgotou.

       - Bem, crianças, se vocês não querem comemorar, acho que teremos apenas uma noite tranqüila no hotel.

       - Oh, não, não, pai - insistiu Corrine. - Saia você com a mamãe. Porque não fingem que são formandos e nós fingimos ser seus pais, ficamos a espera para ver se chegam em uma hora decente? E ouça aqui, rapaz, você vai se encrencar se chegar tarde - acrescentou, em um tom de brincadeira.

       Admiti que estavam cansados e insisti para Malcolm me levar ao passeio. Afinal, eu não merecia comemorar o grande trabalho que tivera para criar aquela linda menina e o filho de seu pai? Deixamos Christopher e Corrine em seus respectivos quartos, e vestidos em nossas melhores roupas, fomos jantar num restaurante de frente para o mar. O restaurante estava cheio de pares recém-casados e jovenrecém-formados; cercados por tantos jovens, sentíamos um tanto deslocados. Mal tocamos o caro champanhe que Malcolm insistira em pedir.

       - Vamos brindar Olívia - disse Malcolm tentando quebrar o nosso silêncio. - Vamos brindar a nossa maravilhosa filha, que agora volta para casa, onde ficará conosco para sempre.

       Lancei-lhe um olhar frio. Pensaria realmente que Corrine jamais iria deixá-lo? Ele devia permitir-lhe ter sua própria vida, encontrar um jovem simpático,

casar e formar sua própria família. É o que toda garota deseja, e eu não queria que Malcolm continuasse a fazer Corrine se sentir culpada por ter desejos e sonhos, afinal tão normais.

       - Vamos brindar ao nosso desejo que Corrine encontre tudo o que quer na vida e no amor - eu disse, corrigindo-o.

       Bem tarde, na noite seguinte, chegamos em Foxworth Hall. Deixei as crianças dormindo pela manhã; com a chegada do outono, ambos teriam de começar a assumir, como adultos, diversas responsabilidades. Christopher continuava esperando saber em que faculdade de medicina seria aceito. Entrara na lista de espera de várias universidades e já tivera aprovação naquela que fora freqüentada por seu padrasto na Geórgia. Corrine queria ir para Bryn Mawr, mas eu insistia que enviasse o currículo para Vassar e para a faculdade feminina de Connecticut, em New London, minha cidade natal. Foi aceita pelas duas, porém ainda não se tinha decidido por uma ou outra.

       Pela manhã, após ter checado a situação com John Amos e dado instruções a cozinheira, retirei-me para o quarto e me sentei a mesa para abrir a correspondência.

Havia um grande envelope pardo endereçado a Christopher Foxworth Jr, e o remetente era a Escola de Medicina de Harvard! Fiquei tão excitada que, mesmo sabendo que não devia abrir, não resisti; eu precisava saber. Disse a mim mesma que estaria pronta para ajudar Christopher a enfrentar qualquer notícia que viesse no envelope, boa ou ruim, mas meu pressentimento era de que, dentro daquele envelope, havia uma boa notícia. Que universidade não aceitaria um aluno tão brilhante quanto Christopher?

Meus dedos tremiam enquanto rasgava o papel.

       Caro Sr Foxworth,

       Com prazer informo que seu currículo foi aceito na Escola de Medicina de Harvard. Como reitor, estou feliz...

       Não poderia ler mais. Lágrimas de alegria encheram meus olhos, e os dizeres, na minha frente, ficaram embaçados. Apertando o envelope contra o peito, subi as escadas correndo como uma garota e bati na porta do quarto de Christopher. Ele não estava lá. Então bati na porta do quarto de Corrine pensando que ela deveria saber onde ele se encontrava, mas também estava vazio. Súbito ouvi um murmúrio, como de vozes sufocadas, mas não pude imaginar de onde vinha. Procurei localizar a origem daquele som. Meu coração batia tão alto que eu não podia ouvir nada além do pulsar. O murmúrio cresceu; parecia o som de risos, mas risos estranhos, como que abafados por travesseiros. Havia uma luz acesa no fim do corredor e, bem devagar me dirigi para lá.

       - Corrine - ouvi uma voz murmurar. - O que faria eu se nunca a tivesse encontrado? Como poderia viver? Você é a única razão da minha vida. Você é...

       - Psiu, alguém pode ouvir - disse Corrine.

       - Não me importo. Amo você. Quero que o mundo saiba disso.

       A luz fluía por baixo da dupla porta do quarto do cisne. Apertando a carta para Christopher contra o peito, empurrei suavemente a porta e pela fresta que

se abriu, olhei para o interior do quarto. Espalhados na cama de cisne, seminus, os membros entrelaçados, afagando-se e se abraçando apaixonadamente, estavam Corrine e Christopher. Corrine tinha a cabeça atirada para trás, sua boca de lábios rubros estava ligeiramente aberta e Christopher beijava seus seios! Sem pensar, quase esmurrei a porta. Minha mente estava embaralhada de raiva e terror. Meu coração batia no peito como devia bater o coração de uma ave perante uma raposa. Christopher e Corrine! Eram amantes! Amantes! Meus Deus, e eram irmãos! Oh, senhor, o que fizera eu? O que fizéramos todos nós? Desabei no chão, minha cabeça latejava, toda

a vida que fluía em minhas veias se transformara em veneno. Minha mente tentava encontrar uma solução. Devia confrontá-los? Devia contar-lhes a verdade? Deus os mataria pelo pecado que tinham cometido?

       Foi então que vi um vulto espesso e sombrio caindo sobre mim. Olhei para cima e vi John Amos me fitando com uma expressão fria e assustada.

       - Olívia, o que está fazendo estendida no chão como um mendigo? O que esta acontecendo aqui? - perguntou, e seus olhos negros se dirigiram para a porta do quarto do cisne. Ainda se ouvia sussurros que vinham de lá. John Amos abriu rapidamente a porta e em cima da cama, flagrados na glória de seus corpos nus, Christopher e Corrine , ele deitado sobre ela. Estavam entrelaçados numa união que só era aprovada no casamento.

       John Amos parecia ter encarnado toda a ira de Deus, e enquanto eles o fitavam, seu corpo parecia crescer e sua aparência sombria ficava ainda mais negra.

Dir-se-ia um anjo vingador enviado dos céus.

       - Pecadores! Fornicadores! - ele berrou. - Como ousam desgraçar esta casa? A ira de Deus cairá sobre vocês! Isto é incesto, lascivo e profano incesto. Deus condenará suas almas a queimarem no inferno!

       Tentei me levantar, afastar John dali e fechar a porta para ocultar suas vergonhas, mas ele me empurrou.

       - Você é uma mulher estúpida Olívia - ele disse. - Eu lhe avisei, eu lhe disse o que estava se passando debaixo de seu nariz, mas você não quis me ouvir.

Você abrigou o demônio em sua própria casa, mulher. Está me ouvindo? Você o convidou, o alimentou e o acolheu, e agora ele veio reclamar a sua vida.

 

CONSEQÜÊNCIAS DO PECADO

       EU ESTAVA SENDO TRAGADA POR UMA MASSA DISFORME de  havia tanto de amor - ai,

um amor tão profano e doloroso! Quem causara tudo aquilo? Seria culpa minha ou seria a própria linhagem lasciva de Malcolm dando seus últimos frutos? Num momento, eu estava explodindo de raiva; no outro, morria de pena deles. Eu sabia que tinha de contar a Malcolm. Usei todas as minhas forças para me levantar e dizer a John Amos que se retirasse. A seguir, em pé, entrei no quarto e, com uma voz tão estranha que eu mesma não pude reconhecer, disse-lhes que estivessem no estúdio de Malcolm em quinze minutos. Corrine escondeu sua nudez atrás do corpo de Christopher, que se cobriu com o lençol. Os olhos de ambos estavam vermelhos e cobertos de lágrimas.

Ao sair, fechei a porta com cuidado, e sentindo uma ligeira vertigem, fui procurar Malcolm.

       - Prepare-se Malcolm - eu disse, abrindo a porta da biblioteca. - Algo... algo terrível aconteceu.

       - As crianças? Oh Deus, não de novo! - gemeu Malcolm pulando de sua cadeira.

       - O filho de seu pai seduziu nossa filha.

       As palavras não podem traduzir a expressão de tormento no seu rosto. Fiquei a observá-lo, sentindo que olhava para um espelho dos meus próprios sentimentos, e enquanto a raiva, amargura e o amor que ele sentia pela filha lutavam entre si, uma emoção foi se destacando, forte e bania as outras. Uma fúria que eu ainda desconhecia.

       - Malcolm - supliquei; sua perda de controle me ajudou a encontrar algum equilíbrio - convém manter a calma. Temos que encontrar a melhor solução, é preciso manter a cabeça fria. Você sabe, e eu também sei, que ainda há muita coisa em jogo. Eles virão para cá daqui a pouco. Por favor, Malcolm, por favor, encontre um pouco de força em sua alma, só assim poderá colocar um ponto final nesta horrenda situação.

       Ao ranger da porta vimos Christopher entrando na biblioteca com o braço sobre os ombros de Corrine, numa atitude de proteção. Haviam tido pouco tempo para se vestirem e alguns botões ainda estavam soltos. Christopher usava meias, mas não os sapatos. Atrás dele, vi John Amos que nos fitava com uma expressão terrível; a cada momento de silêncio, ele parecia aumentar de tamanho. Porque ele sabia, ele sempre soube; e eu havia me recusado a acreditar. Suas palavras proféticas ecoaram na minha mente.

       "Não há pior cego do que aquele que não quer ver".

       Nesse momento eu soube que a fúria de Deus caíra definitivamente sobre a casa dos Foxworth. Pelos cantos, murmuravam sombras e fantasmas. Mas nada restava além daquelas palavras. Malcolm adiantou-se e bateu a porta atrás de Christopher e Corrine.

       - Papai - começou Corrine, apertando com força a mão de Christopher enquanto ambos avançavam em direção de Malcolm. - Estamos apaixonados. Estamos apaixonados há muito tempo. Vamos nos casar - prosseguiu olhando para Christopher em busca de coragem. Ele sorriu aquele sorriso doce e sincero que tanto havia cativado as pessoas de Foxworth Hall nos últimos três anos. - Christopher e eu planejamos isso desde o primeiro dia em que nos vimos. Esperávamos apenas que eu completasse dezoito anos.

Planejamos fugir; não sabíamos se vocês aprovariam a nossa união. Contudo, queríamos casar na igreja, queríamos que a pureza de nosso amor fosse abençoada.

       Cada palavra de Corrine era um punhal no meu coração. Ela havia dito exatamente o que eu temia ouvir. Malcolm agia como se não ouvisse nada; limitou-se a encarar Corrine de um modo estranho, com o olhar perdido; era como se no lugar de Corrine, ele estivesse vendo Alícia, ou mesmo sua própria mãe. Tinha a face contorcida num esgar que eu nunca havia visto. A ira cresceu dentro dele, inflou seu rosto, inflamou suas bochechas e retesou seus ombros até que ele parecesse gigantesco.

       - Esperávamos que vocês se sentissem felizes por nós - suspirou Corrine, sua voz começava a falhar. - Esperávamos que nos dessem a sua benção. É claro que se vocês quiserem dar uma grande festa em Foxworth Hall e convidar pessoas amigas, ficaremos ainda mais felizes. Queremos que vocês se sintam tão felizes quanto nós - acrescentou.

       - Felizes? - gemeu Malcolm pronunciando cada sílaba como se nunca tivesse ouvido essa palavra - Felizes? - repetiu e depois soltou uma ruidosa gargalhada.

Súbito deu um passo a frente, e com o braço estendido e o indicador apontando para Corrine e Christopher continuou: - Felizes? Vocês cometeram o mais terrível dos pecados. Como querem que os outros se sintam felizes? Você sabe que ele é seu tio, ele sabe que você é sua sobrinha. Vocês cometeram o que se chama de incesto. Jamais darei a minha benção a vocês, e Deus também não. Vocês fazem idéia do casamento como uma grande farsa - berrou.

       Sua mão se agitava no ar como se ele estivesse amaldiçoando o amor de Corrine e Christopher para sempre.

       - Nosso amor não é incestuoso - disse Corrine suavemente. - Nosso amor é muito puro e bom para ser um pecado. As leis que você cita não são leis de Deus, mas as leis do homem. Em muitas sociedades, o casamento entre primos e parentes próximos é até planejado. Porque...

       - Incesto! - berrou Malcolm; seu braço continuava estendido. Seu corpo tremia com o esforço e o sangue lhe subia o rosto, avermelhando a pele. - Pecadores!

Pecadores! Profanos! - gritou de novo, balançando os braços a cada acusação. - Você me traiu, você me traiu!

       - Por favor, Malcolm, ouça-nos - suplicou Christopher. - Corrine e eu sentimos amor desde o dia em que cheguei a Foxworth Hall. Era inevitável.

       - Judas! - Malcolm respondeu, voltado-se para ele. - Eu lhe dei vida; eu lhe dei esperança e oportunidade. Gastei dinheiro com você, confiei em você, depositei minha fé em você. Eu lhe abri a minha casa e você seduziu a minha filha.

       - Ele não me seduziu - disse Corrine em defesa de Christopher. Depois o atraiu para si. - O que aconteceu entre nós é resultado da minha vontade mais do que a de Chris. Na realidade, eu o persegui desde que ele veio para cá, eu me insinuei, fiz tudo para despertar-lhe a atenção e vê-lo olhar para mim como mulher. Eu preenchi cada momento livre que ele tinha com a minha presença, minha tagarelice, meu riso e meu amor. Chris sempre foi um cavalheiro comigo, sempre me repetia que você e mamãe esperavam de mim. A princípio tive medo que você e mamãe não entendessem, depois resolvi esperar até os meus dezoito anos. Não o traí, papai. Continuo amando vocês e quero viver aqui com Christopher. Teremos filhos e...

       - Filhos? - repetiu Malcolm, como se o tivesse ofendido. Um arrepio me passou pela espinha.

       - Se ao menos você ouvisse... - disse Corrine.

       - Não há nada para ouvir - cortou Malcolm. - Você fala em ter filhos. Seus filhos nascerão com chifres, corcundas, rabos, patas, serão criaturas disformes.

       Os olhos de Malcolm refletiam o ódio e Christopher e Corrine foram recuando ante suas palavras. Corrine, apavorada, apertou o braço de Christopher com força.

       - Não - soluçou Corrine balançando a cabeça. - Isso não é verdade, isso não pode acontecer.

       - Traidora. Dalila, criatura lasciva e mentirosa, você é pecaminosamente bela, é um ser demoníaco! - A cada palavra de acusação ela recuava mais. - Quero vê-los fora da minha casa, fora da minha vida, fora da minha memória. Saiam desta casa e de hoje em diante nunca mais ponham os pés aqui. Vocês estão mortos para mim, tão mortos como... - ele se voltou para mim e meus olhos impediram que ele dissesse o que pretendia.

       - Você não fala sério papai - Corrine gritou. Lágrimas rolavam pela face, seu queixo tremia.

       Christopher me fitou suplicando ajuda, mas eu desviei os olhos. Estava me sentindo tão traída quanto Malcolm. Eu o havia amado como se fosse meu próprio filho,

e ele havia me traído. Todos aqueles felizes anos, enquanto eu acreditava na sua devoção e amor por mim, ele só estava visando Corrine. Era tão escravo da beleza quanto Malcolm. Sim, eu me convenci, os homens eram todos iguais.

       Respondi ao olhar súplice de Christopher com uma expressão fria, esperando que meus olhos congelassem seu coração. Eu queria destruí-los com a verdade, contudo, a frieza e a prática que adquirira na vida foram fortes o bastante para me lembrar que, com a verdade, eu iria destruir também a mim mesma.

       - Tudo isso foi sério - respondeu Malcolm friamente. Sua voz estava fria, seca e cortante e afiada como gelo. - Saiam desta casa e saibam que estão deserdados.

Nem você nem seu Judas receberão nada de mim. Eu os amaldiçôo; amaldiçôo vocês dois e os condeno a uma vida de pecado e horror.

       - Não seremos amaldiçoados - disse Christopher em um tom tão alto e desafiador quanto Malcolm. - Partiremos desta casa, mas não levaremos sua maldição conosco.

Nós a deixaremos em sua porta.

       À medida que falava, Christopher parecia mais com Malcolm que o próprio Malcolm.

       - Não é Malcolm que os amaldiçoa - eu disse finalmente. - É a maldição do próprio Deus que cairá sobre vocês pelo que fizeram. Cometeram incesto e terão uma vida dominada pelo horror.

       Christopher me fitou com os olhos cheios de dor. Agora era ele que se sentia traído por mim.

       - Iremos embora - anunciou Christopher.

       Segurou Corrine pela mão e dando-nos as costas, ambos caminharam até a grande porta da frente. Chris olhou para trás, com um ar de desafio em sua expressão.

Corrine continuava chorando, parecia perdida e assustada. Um momento depois haviam partido. A fúria de Malcolm explodiu. Ergueu os braços em direção ao teto e soltou um grito que emergia do fundo de sua alma. Era o grito da besta em sua agonia fatal, um grito que sacudiu Foxworth Hall e ecoou pelos corredores e pelas sombras, ganhando intensidade através de sua viagem pelo ar. Os fantasmas de todos os seus antepassados pareciam ter gritado junto com ele. Por um instante pensei ouvir todas aquelas vozes formando um coro de lamúria, dor e tormento. O grito emergido do silêncio e morreu rapidamente. Malcolm voltou-se para mim. Tinha os olhos esbugalhados e se debatia como se estivesse sem ar. Apertou o peito com as mãos e desabou no chão.

       - A ira de Deus caiu sobre essa casa - ouvi John Amos dizer atrás de mim.

       Malcolm estava caído de bruços com o braço direito apoiando a cabeça. John Amos o virou e vimos a distorção de sua boca. O lado direito de seu rosto estava completamente disforme. Os cantos de seus lábios estavam contraídos, deixando a mostra os dentes trincados. Tinha os olhos torcidos para cima, como se tivesse tentando ver algo dentro da sua cabeça. Malcolm esforçou-se para falar, mas não conseguia ouvir ou entender o que ele dizia.

       - Chame o médico! - gritei.

       O doutor insistiu levássemos Malcolm para o hospital. Eu percebia a resistência em seus olhos, balançava a cabeça me implorando para não tirá-lo de casa.

       - É claro doutor - eu disse. - Quero o melhor para meu marido. Por favor, chame a ambulância.

       Mais tarde fiquei sabendo que o médico dissera no hospital que eu era uma das mulheres mais fortes que ele já havia encontrado. Os enfermeiros da ambulância levaram Malcolm para o hospital onde ele permaneceu por quase um mês num quarto particular e aos cuidados de enfermeiras que se revezavam em turnos. Sempre que eu e John o visitávamos, ele nos implorava para levá-lo para casa. No início, usava somente os olhos para se comunicar conosco, pois sofrera um derrame e um ataque cardíaco, com a paralisia de todo o seu lado direito.

       Quando o trouxemos para casa, ele já havia recuperado o controle de alguns músculos e podia emitir sons distorcidos que se assemelhavam a palavras. Algumas vezes me pareceu chamar Corrine.

       Os dias se destacavam pela monotonia. Era como se o próprio tempo se enfraquecesse, mal se arrastando de hora em hora. Malcolm estava confinado numa cadeira de rodas e não podia mais trabalhar. Toda a sua tarefa caiu sobre mim e eu me sentia agradecida por ter algo para preencher o tempo. Eu não queria ficar vagando por Foxworth Hall, torturando-me e pensando que eu talvez pudesse ter feito as coisas tomarem outro rumo.

       A casa parecia um enorme túmulo. Nossos passos ecoavam no vazio. O ruído da lavagem da louça e utensílios podiam ser ouvido por toda a parte. Os criados ficavam fofocando com minúcia o que observavam ou ouviam. Nenhum deles ousou fazer perguntas sobre Corrine ou Christopher, mas eu sabia que John lhes dissera o suficiente para despertar a curiosidade. Nossos jantares pareciam espetáculos de mímica. A partir do momento em que Malcolm era levado até a mesa, não se ouvia uma única palavra.

Ele mastigava mecanicamente e ficava me fitando como se eu fosse transparente. Via cenas que existiam atrás de céus olhos. Vivia num sonho formado por teias de aranha que se fragmentavam a medida que ele se afundava em suas lembranças, buscando entender a traição de Corrine.

       Não mencionou a filha no curso dos dias e eu e John Amos não tocamos no nome dela na sua presença. Quando dizia alguma coisa, sempre começava por "Quando tudo isso passar..." Podia imaginar os terrores que escureciam sua vida. A lembrança da beleza do rosto de Corrine se apoderava dele e o estava tragando para o fundo de infinitos pesadelos repletos de derrota e sofrimento. Esses sonhos alcançaram a flor da sua pele e acabaram por transformá-lo num fantasma.

       John Amos e eu abríamos a Bíblia nas páginas que queríamos ler e a colocávamos diante de Malcolm para que ele também pudesse acompanhar a leitura. Tal como Malcolm, eu havia passado por uma grande transformação com a ajuda de John Amos. Agora eu sabia que podia confiar plenamente em sua ligação direta com Deus, pois mesmo sem saber quem Corrine realmente era, ele tinha sentido instintivamente a verdade, e tentara me alertar. Porém, eu estava cega demais para ver. Agora, tinha jurado a mim mesma, nunca mais seria tão cega.

       - Olívia - disse John Amos certo dia - os caminhos do Senhor são sempre misteriosos, porém sempre justos. Sei que ele lhe dará uma oportunidade de reparar o terrível pecado de Corrine e Christopher.

       Suas palavras gelaram meu coração.

       - Sempre achamos a verdade na paz do Senhor - prosseguiu ele. - Ajoelhe-se mulher, e salve sua alma.

       - Não posso fazer isso, pois não fui honesta com o Senhor, você não conhece toda a verdade.

       - Vamos, Olívia, confesse tudo.

       Ajoelhei-me ao lado dele.

       - Oh, John, a verdade é muito pior do que você pode imaginar - desabafei, sentindo o demônio, agarrando-se a minha garganta. - Christopher não é tio de Corrine, é seu meio irmão.

       - O quê? Meu Deus mulher, como pode isso acontecer?

       - Malcolm apaixonou-se por Alícia e a engravidou após a morte de Garland, em seguida a forçou a nos entregar Corrine. Ninguém sabe que não sou a verdadeira mãe de Corrine - confessei, depois abaixei os olhos para o chão. Estava muito envergonhada para enfrentar os olhos de John.

       - Levante-se mulher - ele ordenou. - Pois você conhece o peso do seu pecado, mas ele é muito mais leve do que tem sido vítima. Deus lançou sua ira sobre Malcolm.

Ele fará o mesmo com Corrine e Christopher, estou seguro. Ele os castigará. Agora temos que tratar de Malcolm, Olívia, temos de cuidar dos seus negócios e desta casa, transformando-a em um lugar melhor. Pai nosso que estais no céu...

       Minha confissão trouxe um pouco de luz para Foxworth Hall e a fala de Malcolm começou a melhorar. O doutor nos explicou que, embora ainda fosse melhorar mais, não voltaria a falar como antes. Seus músculos faciais tinham colapsado de tal maneira que, sempre que olhávamos para Malcolm, ele parecia estar sorrindo. De um modo estranho e sinistro, aquele sorriso permanente, criado pela distorção, sugeria o charme e a beleza que Malcolm tinha quando jovem. Dir-se-ia que sua antiga máscara estivesse fundida e colada a seu rosto para sempre.

       Quando sentia impulso de ser caridosa, eu levava Malcolm até sua mesa, onde ele ficava observando os papéis e os contratos de negócios, que agora eram administrados por mim. No início eu simplesmente segui a rotina de tudo, estudando o trabalho de Malcolm e tomando as decisões que ele tomaria. Porém, depois de um tempo, quando me senti segura o suficiente, comecei a tomar as decisões que achava melhor sem consultar ninguém. Eu movimentava o dinheiro na bolsa de valores, mudava alguns procedimentos

nas empresas, comprava e vendia.

       Primeiro ele ficou chocado com a minha independência e atividade. Pediu-me para voltarem a ser como antes, mas eu ignorei seu pedido. Também comecei a dar um excelente salário para John Amos, transferindo, regularmente fundos para a sua conta. Apesar da doença de Malcolm, ele não levou muito tempo para saber disso e parecia disposto a mandar uma carta ao banco me proibindo de movimentar a conta.

       - Malcolm, você precisa entender que as coisas não são mais como antes. Considerando o castigo que você trouxe sobre si mesmo, deve ser grato por tudo que ainda possui. Você deve agradecer por John e eu estarmos ao seu lado. Você imagina que uma mulher como Alícia, ou sua filha, iria agüentar tudo isso? Corrine seria

capaz de assumir a responsabilidade dos negócios? Acha que as coisas correriam com tanta facilidade? Poderia ela olhar por você nesse estado? - perguntei com sarcasmo.

- Ela fugiria com todo o seu dinheiro; é isso o que faria. - Acrescentei com raiva. Avancei sobre ele e arranquei a carta de suas mãos.

       Certo dia, quase dois anos após o ataque, Malcolm estava quieto em sua cadeira de rodas olhando o vazio enquanto eu trabalhava em sua mesa. De vez em quando, eu o levava a biblioteca e explicava a ele algumas das decisões que havia tomado e seus resultados. Sabia que ele não queria ficar ali, e especialmente não queria ouvir nada sobre as medidas que eu tomava; mas isso me dava algum prazer. Nesse dia, particularmente, um início de primavera que trouxe sol as janelas para aquecer minhas costas, percebi uma expressão diferente no rosto de Malcolm, bem mais doce que a habitual. Seus olhos brilhavam de gentileza, e o azul que os preenchia parecia irradiar calor. Eu imaginava que ele devia estar tendo lembranças agradáveis. Parei de trabalhar e o observei, ansiosa.

       - Olívia - ele disse, - Preciso de uma informação. Preciso saber uma coisa. Por favor - implorou. - Sei que seus sentimentos por mim são os piores, mas seja generosa e satisfaça este meu pedido.

       Lembrei-me do Malcolm que conhecera em New London, o homem que me encheu de esperanças e promessas, aquele que passear comigo pela margem do rio e que me havia feito pensar que poderia ser adorada e querida como qualquer outra mulher.

       - O que você precisa saber afinal? - perguntei, encostando-me na cadeira. Ele se inclinou para frente, esperançoso.

       - Contrate detetives para saber o que se passou com Corrine e Christopher. Para onde eles foram? O que estão fazendo? E... e...

       - E se eles tiveram filhos deformados? - perguntei com frieza. Ele balançou a cabeça concordando.

       - Por favor - implorou, inclinando-se para frente o máximo que a cadeira de rodas permitia.

       Quantas noites eu passava acordada pensando em Corrine e Christopher, tentando endurecer meus pensamentos contra eles; porém, num canto do meu coração, num lugar escondido que nem mesmo Deus conhecia, eu continuava amando ambos.

       - Você disse a Corrine que a considerava morta. Ressuscitá-la agora só lhe trará sofrimento e agonia.

       - Eu sei, mas não posso aceitar o fato de morrer sem saber o que aconteceu a eles, sem conhecer a extensão do que... do que... do que eu mesmo desencadeei.

Por favor, faça isso, eu suplico. Prometo não lhe perguntar mais nada, não lhe pedir mais nada e assinar tudo que você quiser, seja lá o que for. - suplicou. Lágrimas rolavam pelo seu rosto, revelando sua fraqueza.

       Ele chorava a menor provocação. O médico me informara que essa condição era normal e ele não podia mais controlar seu pranto. Eu o considerava digno de pena.

Súbito, fui invadida por um sentimento de derrota total ao observar aquele homem todo torto na cadeira de rodas. Pela primeira vez me dei conta de que alguma coisa fora destruída junto com ele. Afinal, eu tivera um marido forte e poderoso, um homem respeitado na comunidade e mundo dos negócios. Apesar do nosso precário relacionamento, eu era Olívia Foxworth, esposa de Malcolm Foxworth, o líder de muitos homens. Agora eu tinha apenas um patético inválido, uma mera sombra.

       Na realidade, Corrine e Christopher tinham sido responsáveis por aquela ruína. Onde viveriam? Como estariam passando? Teria Deus, o mesmo Deus que lançara sobre Foxworth Hall uma tal vingança e devastação, acompanhando suas vidas?

       - Muito bem - prometi. - Farei isso imediatamente.

       - Obrigado Olívia. Deus a abençoe.

       - Está na hora de você ir para seu quarto descansar Malcolm.

       - Sim, Olívia. Farei tudo o que quiser - ele disse. Depois fazendo um esforço enorme, tentou empurrar a cadeira para fora da biblioteca. Não conseguiu. Chamei a enfermeira e pedi a ela que o levasse para o quarto. Durante o percurso, ele foi murmurando. - Obrigado, Olívia, obrigado.

       - Chamei John Amos a seguir.

       - Quero que vá a Charlottesville - ordenei assim que ele entrou na biblioteca. - Contrate a melhor agência de detetives para encontrar o paradeiro de Corrine e Christopher. Preciso saber tudo sobre eles, todos os detalhes sobre suas vidas, tudo que possa ser descoberto.

       - Por que razão? - perguntou. Como resposta, viu a raiva em meu rosto - bem, irei fazer isso se é o que você quer - ajuntou logo.

       - Sim. É isso que quero - falei claramente.

       - Vou imediatamente.

       Pouco mais de um mês depois recebemos as primeiras informações. John Amos trouxe o detetive a biblioteca. Malcolm ainda estava no seu quarto. Pretendia não dizer nada a ele antes de tomar conhecimento de tudo. O detetive era um homem baixo e simpático, parecia mais ser um caixa de banco; compreendi mais tarde que isso lhe trazia vantagens. Chamava-se Cruthers e usava óculos de lentes grossas e armação ordinária que lhe deslizava continuamente pelo nariz enquanto falava. Eu estava impaciente, mas forcei-me a ouvi-lo com vagar.

       - Adotaram o nome Dollanganger - começou. Por isso demorei um pouco para encontrá-los.

       - Não estou interessada nos seus esforços. Limite-se a relatar o que descobriu.

       - Sim, Sra Foxworth. Christopher Dollanganger está trabalhando como relações públicas de uma grande firma de Cladstone, Pennsylvania. Pelo que pude saber, é muito estimado.

       - Relações públicas? - perguntei admirada.

       - É claro, depois de vocês lhe retirarem o apoio financeiro, ele não pode cursar a faculdade de medicina - falou John Amos com uma risadinha.

       - Continue seu relatório Sr Cruthers - ordenei.

       - A Sra Dollanganger é considerada ótima esposa e mãe.

       - Mãe?

       Eles tem um filho, um garoto de quase dois anos. Seu nome é Christopher.

       - O que soube sobre a criança? - perguntei gentilmente. Meu coração batia de ansiedade.

       - Uma bela criança. Cheguei a vê-la. Cabelos louros, olhos azuis. Parecia um garoto esperto.

       - Não pode ser. Não é a mesma Corrine e nem o mesmo Christopher. Você encontrou as pessoas erradas. É isso, você encontrou as pessoas erradas.

       - Perdoe-me Sra Foxworth, mas não é possível. Não tenho dúvidas que sejam eles. Eu tinha fotos. Eu os vi pessoalmente, não se esqueça. São realmente o seu Christopher e a sua Corrine.

       - O que mais você soube?

       - Bem, a Sra Dollanganger esta grávida de novo.

       - Grávida? Dessa vez a criança deve ser diferente.

       - O que quer dizer com isso? - perguntou.

       - Nada. Quero que continue a investigação e me mantenha informada sobre o nascimento dessa nova criança. Quero saber tudo sobre o bebê. Compreendeu?

       - Sim, farei o que me pede. Ela devera dar a luz em breve.

       - Receberá seu cheque amanhã - fiz um gesto para que John o acompanhasse até a porta.

       Por alguns momentos fiquei tentando digerir as informações. Em seguida me dirigi para o quarto de Malcolm. Antes de entrar, parei diante da porta. Não, pensei.

Ainda não. Não até que eu saiba tudo sobre a segunda criança.

 

O FIM DA LINHA

       OS DIAS, MESES E ANOS PASSARAM LENTAMENTE, escorregando como grãos de areia numa infinita ampulheta. Durante esse tempo encontrei alívio apenas nas orações e no trabalho. Cruthers viera a Foxworth Hall apenas mais duas vezes; a primeira para me informar sobre o nascimento de uma saudável menina chamada Cathy, a segunda oito anos depois, para me dar uma informação ainda mais espantosa - o nascimento de um casal de gêmeos, um menino e uma menina perfeitos. Tudo indicava que a família de Christopher e Corrine era saudável e encantadora; de fato o Sr Cruthers informara que eles eram conhecidos na cidade como os bonecos de Dresden, devido aos olhos azuis, cabelos loiros e peles claras.

       Nunca contei a Malcolm sobre as visitas dele. Sua condição fez com que envelhecesse rapidamente e ele chegou a uma fase além da qual não havia mais degeneração.

É claro, que seu temperamento havia mudado bastante. No inicio, logo após o derrame e a crise cardíaca, podia-se perceber que ainda existia algum conflito dentro dele; naquela época, Malcolm ainda não aceitava sua condição permanente. Agora, porém, quando ele se sentava na sua cadeira de rodas, não mostrava mais aquela impaciência nos olhos, perdera a tesa e arrogante postura que revelava a existência de suas batalhas interiores. O desprezo que havia no azul dos seus olhos desaparecera gradualmente;

como pálidas velas, suas chamas, antes brilhantes e intensas, tornavam-se cada dia mais fracas, e a energia que antes as mantinham ia se perdendo.

       As sombras haviam começado a devorá-lo. Eu o via constantemente sentado no canto mais escuro de seu quarto ou da sala, e ele parecia satisfeito. Esse homem, que um dia demonstrara tanta força e poder, que parecia produzir a própria luz, vivia agora submerso nas trevas. Lentamente, com uma determinação dolorosa, as sombras de Foxworth Hall reclamaram sua alma. Embora a capacidade de falar tenha melhorado a ponto de se poder compreender, ele caiu permanentemente no mutismo. Suas enfermeiras

aprendiam a ler seus gestos e compreender o que ele queria quando levantava a mão ou balançava a cabeça. Os únicos momentos em que sua voz era ouvida era quando ele se juntava a mim e John Amos em nossas orações diárias.

       Eu sabia que seus esforços para sobreviver e suportar a dor e a indignidade da velhice e da doença vinham do seu grande desejo de ver e acreditar na sua própria redenção. Pedíamos a Deus que olhasse por nós, implorávamos seu perdão. Eu tentava evitar partes da casa e me mantinha longe da ala norte. As portas do quarto do cisne e do quarto de troféus ficavam trancadas. Levei alguns móveis, roupas e quadros para o sótão. Fiz tudo o que pude para livrar-me do passado, trancá-lo atrás de uma parede de distância e de tempo; todavia, ele tinha um jeito especial de vazar através de todas as frestas.

       O tempo e as memórias me foram muito caros. Mais uma vez minha vida estava cinzenta. Era a única cor que eu vestia. Era a cor dos meus cabelos, olhos, minhas esperanças, era a cor da minha vida. As orações e o trabalho me endureceram até eu me transformar numa estátua de mim mesma. Eu fora diferente um dia, porém agora era isso - uma estátua. Entretanto, estava convencida de que era o que Deus queria; esses eram seus desígnios.

       Uma carta cor-de-rosa e perfumada veio mudar tudo. Certa tarde quando me sentei para abrir a correspondência, encontrei um envelope cor-de-rosa claro que se destacava entre os outros envelopes brancos e formais das cartas de negócios. Era endereçada ao Sr e Sra Malcolm Neal Foxworth. Reconheci a caligrafia imediatamente.

A letra, embora um pouco trêmula, ainda revelava voltinhas infantis. O que podia Corrine querer de nós? Já não nos teria feito bastante mal? Contudo, apesar de minha dor, meu coração bateu de alegria ao reconhecer aquela letrinha. Como eu sentia saudade da vida e do amor que ela trouxera a Foxworth Hall. A única alegria da minha vida havia desaparecido junto com Corrine e Christopher. Sentira a nossa falta tanto quanto sentíamos a dela? Com dedos trêmulos, abri o envelope.

       Queridos papai e mamãe.

       Sei o quanto é estranho receber uma carta minha depois de todos esses anos. Infelizmente, a primeira carta que lhes escrevo traz uma trágica notícia. Meu Christopher, nosso Christopher, lindo e gentil Christopher, a quem vocês amaram apesar de tudo, está morto. Sim, morto. Matou-o um motorista bêbado no dia em que completava trinta e cinco anos. Era seu aniversario.

       Porém, também tenho boas noticias. Fomos abençoados com quatro lindos filhos, todos de cabelos dourados e olhos azuis. São quatro crianças lindas e brilhantes, que vocês teriam orgulho em chamar de netos. Temos um filho, Christopher de quatorze anos, uma filha, Cathy de doze, e um casal de gêmeos, Cory e Carrie de quatro anos. Christopher os amava demais e eles também amavam o pai.

       Christopher estava indo muito bem. Ele não pode ir para a escola de medicina. Foi um sacrifício incrível, mas mesmo assim ele desistiu da idéia em nome do amor. Foi doloroso vê-lo pôr seus estudos de lado para ter outra profissão com a qual pudesse nos sustentar e criar nossa família com conforto e segurança.

       Não culpo ninguém pelo que aconteceu, nem Christopher culpava. Ele nunca deixou de amá-los e sempre falava sobre o que vocês tinham feito por ele. Vocês têm que acreditar no que lhes digo porque é verdade. Por favor, acreditem. Com certeza vocês ainda se lembram dele, de como ele era, e saibam que jamais mudou até o dia de sua morte.

       Agora lhes escrevo porque a morte de Christopher nos deixou na miséria. Estou vendendo tudo o que de valor possuímos apenas para nos manter vivos, alimentados e vestidos. Sei que é culpa minha não ter juízo suficiente para aprender um oficio que agora, pudesse por em prática. Sou a única responsável por isso. Mamãe me deu todo o exemplo, mas não consigo ter a sua força e a sua resistência perante as adversidades.

       Imploro a vocês que compreendam a nossa situação e nos olhem com olhos de perdão. Sei o quanto ainda tem que ser feito para ganharmos de volta o amor de vocês, mas estou disposta a fazer qualquer coisa, qualquer coisa para merecer esse amor. Por favor, pensem em nos receber de volta em Foxworth Hall, onde meus filhos possam crescer conhecendo as coisas boas e alegres da vida. Por favor, nos socorram. Prometo que seremos perfeitos; obedeceremos a todas as suas ordens. Meus filhos são bem educados e inteligentes, compreenderão qualquer coisa que exigir deles. Estamos pedindo apenas uma chance.

       Por favor, tenham piedade de nós e lembrem-se que meus filhos são Foxworths, mesmo que tenhamos achado melhor nos chamarmos de Dollanganger, nome de um antepassado Foxworth. Espero ansiosamente uma resposta. Sou uma mulher pobre e perdida morrendo de medo.

       Amor,

       Corrine

       Realmente, havia sinais de lágrimas derramadas no papel de carta, e agora eu não sabia se eram minhas ou de Corrine. Christopher morto! Não importava o quanto soubesse que estavam errados ou de que seu amor era pecaminoso, nunca desejei que isso lhes acontecesse. De fato, Deus foi vingativo. Tentei suportar, mas o quarto começou a rodar; os fantasmas e as sombras iam e vinham, rindo e debochando de mim. O que havia feito, o que havia feito? Teria Deus interpretado mal as minhas preces?

Não podia mais suportar esse pensamento. Devia existir outra explicação. Minha mente procurou a resposta até encontrar John Amos. Ele saberia. Ele saberia o que fazer.

       - Deus enviou uma mensagem - afirmou, segurando a carta cor-de-rosa com a mão forte.

       - Uma mensagem, John? Que tipo de Deus faria isso a Christopher?

       - O Deus que abomina o pecado. E foi você, Olívia, quem confessou quão terrível pecado foi que eles cometeram. Deus está restaurando a ordem em seu universo.

E agora ele lhe presenteou com uma oportunidade de ajudar. Essas crianças são filhos do demônio. Nasceram de uma união profana e abominável aos olhos do Senhor.

       - O que quer dizer com isso John? O que Deus espera que eu faça?

       Ele olhou fixamente para cima como se estivesse silenciosamente falando com Deus. Seus braços estavam estendidos e John parecia receber uma força invisível.

Então, juntando as mãos, ele se apoderou dessa força e bateu no peito.

       - Faça as crianças de Corrine virem - ele disse, mas esconda-as do mundo para sempre. Acabe com a linhagem do pecado. Não permita que continuem no mundo infectando os outros.

       Deixei John Amos e fui para o meu quarto, onde passei o resto do dia orando e pedindo ao Senhor que me guiasse. Embora tenha compreendido o que John Amos

dissera, não podia concordar com ele. Deus me perdoasse, eu amava Corrine; porém ela estava me forçando a prender seus filhos. Ela estava me forçando a ser um instrumento de vingança de Deus, forçando-me a ser uma mulher fria e má que eu tanto não queria ser. Eu queria, isto sim, ser avó, queria crianças para amar e cuidar, crianças que me fitassem com amor e carinho. Mas com o que pretendia ela me presentear? Com filhos do demônio; quando suas vozes me chamassem, ouviria a voz do demônio. Imaginei suas faces ternas, seus cabelos dourados e macios, seus olhos azuis. Oh, teria que me transformar em uma pedra para não os amar. Sim, o demônio sempre gratifica aqueles que faz trabalhar para ele. Confere-lhes falsos feitiços e encantos. Eu teria que me transformar numa fortaleza de pedra para não deixar que seus encantos

conquistassem meu coração para o trabalho do mal.

       Naquela noite, depois que as últimas gotas de amor foram drenadas do meu coração, tornei-me apenas um instrumento de Deus. Sonhei então com uma casa de bonecas cheia de pecados de onde emanavam chamas do inferno. A voz de Deus falou comigo: - Olívia, - a voz ecoou, - pus você na terra para apagar este fogo. Despejei água sobre a casa, mas o fogo continuou ardendo. Tentei apagar as chamas com meu sopro, mas não pude. Então construí uma redoma de vidro e a coloquei sobre a casa; aos poucos o fogo foi sumindo; finalmente sobraram apenas algumas brasas.

       Na manhã seguinte resolvi levar adiante o plano de John Amos. Sabia que, de qualquer modo, eu teria que contar a Malcolm o que se passava. Ele estava sentado em sua cadeira de rodas olhando pela janela as belas flores de verão que pareciam zombar do eterno inverno de Foxworth Hall.

       - Corrine está voltando para casa - disse a ele.

       - Corrine? - ele murmurou - Corrine?

       - Sim Malcolm. Ontem, recebi uma carta dela. Christopher morreu num acidente de carro e Corrine implora que a recebamos de volta. E nós a receberemos.

       Eu havia pensado durante muitas horas sobre o que dizer a Malcolm. Acabei decidindo que ele jamais deveria saber da existência dos filhos de Corrine. Malcolm amava muito Corrine, tal como havia amado sua mãe e Alícia. Se ele soubesse que existiam crianças, sobretudo meninas, seria facilmente capturado por elas. Não, desta vez eu devia cuidar de tudo sozinha. Seria fácil esconder as crianças de Malcolm. Eu as esconderia na ala norte, assim como havia escondido Alícia, a verdadeira avó daquelas crianças. Ele estava tão frágil e ficaria tão envolvido com a volta de Corrine, que nunca suspeitaria.

       - Escreverei uma carta a Corrine dizendo que ela é bem-vinda em Foxworth Hall.

       Malcolm continuou olhando pela janela. Aproximei-me dele, pousei a mão sobre o ombro magro e paralítico. Senti que ele tremia e que lágrimas rolavam por seu rosto.

       Querida Corrine,

       Você é bem-vinda a Foxworth Hall. Preferi não mostrar sua carta a seu pai. Se ele soubesse que você teve filhos com Christopher, nada o persuadiria a recebê-la.

Com a ajuda de John Amos, ele encontrou no Senhor um refúgio para suas dores, e jamais aceitaria crianças nascidas de uma união incestuosa e profana. Saiba que seu pai sofreu um derrame e um ataque cardíaco no dia em que você foi embora. Seus atos fizeram daquele homem forte e vibrante uma conchinha frágil e quebradiça. Entretanto, considerei seu piedoso pedido e orei a Deus que me orientasse. Está é a minha decisão: você pode trazer seus filhos para Foxworth Hall, mas seu pai não deverá saber da existência deles. O médico me disse que Malcolm não viverá por muito tempo. Até que Deus o chame, suas crianças ficarão na ala norte, longe do conhecimento e dos olhos de Malcolm. Eu mesma tomarei conta deles, dando-lhes de comer e vestir.

       Espero que você se redima e tente compensar a dor que causou a seu pai e a mim. Você deve entender que é sua responsabilidade preparar as crianças e assegurar que elas permaneçam escondidas e sob controle. Se desobedecerem minhas ordens ou se rebelarem contra mim, terá de deixar Foxworth Hall tal como chegou: na miséria.

       Escreva imediatamente dando uma resposta.

       Crendo em Deus,

       Sua Mãe.

 

OLHOS PARA VER

       NUMA NOITE MUITO APRECIDA COM AQUELA QUE CHEGUEI a Foxworth Hall há anos atrás, ele vieram. Eu havia instruído Corrine a pegar o último trem, assim sua vinda seria encoberta pela escuridão. Deviam ser três horas da madrugada quando o trem parou na estação vazia: uma plataforma solitária no negrume da noite. Eu sabia que suas quatro crianças sonolentas, circundadas pelos campos, prados e sombrias montanhas que se erguiam na linha do horizonte como sinistros gigantes noturnos, iriam sentir-se perdidas e a quilômetros da civilização.

       Mesmo sabendo que a caminhada da estação até Foxworth Hall era muito longa, eu não havia enviado um carro para apanhá-los, pois não podia correr o risco de deixar que empregados ou mesmo estranhos soubessem da existência dos filhos de Corrine. Eles teriam que caminhar no meio da escuridão. Cada árvore, cada sombra, cada ruído lhes causaria medo. Seus corações bateriam de pavor.

       De repente, Foxworth Hall se agigantaria ante seus olhos lembrando os castelos de bruxas de contos de fadas que certamente Corrine já deve ter lido para eles.

As janelas escuras pareceriam olhos mortos, e seu imenso telhado seria uma mancha de tinta contrastada com o céu. Não seria nada convidativa a sua aparência. Silenciosos com seus próprios temores, os pequenos corações batendo forte dentro do peito olhariam assustados para a casa.

       Resolvi estar sozinha para receber Corrine e as crianças. Queria que vissem somente a mim. Esse seria o meu momento, e apesar da obediência aos planos de John Amos e do seu protesto insisti que se recolhesse cedo e me só. Acomodei Malcolm na cama por volta das dez horas.

       - Por favor, Olívia - ele implorou. - Sei que Corrine chega esta noite, gostaria de permanecer acordado para recebê-la.

       O amor brilhava em seus olhos. Vi que em todos aqueles anos ele não deixara de adorá-la. Oh sim, eu estivera certa em não lhe contar sobe as crianças. Ele se deixaria envolver por elas; não resistiria ao apelo de sua beleza.

       - Malcolm, Corrine deve chegar exausta. E você também ficará exausto se permanecer acordado até de madrugada. Durma e amanhã pela manhã estará bem disposto para recebê-la com entusiasmo.

       Agora, só me restava esperar. Eu havia preparado o quarto da ala norte. Eu mesma havia limpado e arrumado as camas, pois não poderia permitir que uma criada pudesse surpreender qualquer sinal do meu plano. Quando movi as camas para limpar o chão, encontrei uma escova de cabelos de Alícia ainda com alguns fios de seus cabelos. Através dos anos, os fios finos e dourados haviam escurecido devido a poeira e pareciam uma teia sem vida. Sem limpar a escova, coloquei-a sobre a mesa.

Agora suas netas usariam aquela escova. Certamente eram daquele tipo de garotas que escovavam os cabelos cem vezes, quinhentas vezes por dia.

       Caminhando pelos longos corredores de Foxworth Hall, esperei por eles durante horas. De tempos em tempos ia até a janela ao lado da janela de serviços e olhava para dentro da noite. Uma neve miúda começou a cair. Enquanto andava de um lado para o outro, impaciente, ouvi o estalar de um galho de árvore e corri até a janela.

Lá estavam eles, como ladrões noturnos: quatro crianças muito agasalhadas e sua mãe. Abri a porta e os fiz entrar. Sem dizer uma palavra, eu os reuni e subi com eles pela estreita escada dos fundos. Corrine sabia que não devia falar. Sabia que um suspiro ou um movimento mais brusco ecoaria pelas longas e vazias paredes da casa de sua infância e acordaria os criados.

       Levei-os direto para o quarto mais remoto da ala norte. Abri a porta e os empurrei para dentro do quarto, como o mais gentil carcereiro faria com um condenado a morte na véspera da execução. Entrei também e fechei a porta silenciosamente. Então, acendi a luz. Na minha frente estavam quatro lindas crianças. O garoto, quase um homem, era uma réplica perfeita de Christopher: os mesmos cabelos dourados, os mesmos olhos azuis, a mesma doçura, a mesma fisionomia inteligente. Oh, como desejei abraçá-lo! Mas me contive, lembrando de tudo que eu sabia, do que aquelas crianças significavam. A garota era o retrato da sua mãe naquela idade, e um turbilhão de lembranças ameaçou me engolfar e destruir minha difícil resolução. Afastei rapidamente os olhos dela e observei os gêmeos. Dois anjinhos me fitavam com assustados

olhos azuis. Quando me abaixei para vê-los melhor, eles se juntaram mais, como se estivessem tentando fundir-se em um só ser.

       - Sim Corrine, você me disse a verdade, suas crianças são belas. Porém, tem certeza que não tem nenhum problema mental? Terão alguma doença que não é aparente em seus olhos?

       - Não - ela respondeu com firmeza. - Como você pode perfeitamente ver, meus filhos são fisicamente e mentalmente perfeitos.

       Encarou-me por um momento e se pôs a despir a garotinha dos gêmeos, que estava agarrada a sua perna. Cooperando, a menina mais velha começou a despir o gêmeo menino, enquanto Christopher descansava uma das malas sobre a cama. Abrindo-a, dela retirou dois minúsculos pijamas amarelos. Corrine acomodou os gêmeos lado a lado em uma das camas e os beijou no rosto. Suas mãos tremiam enquanto acariciava os cabelos das crianças e as cobria com a manta.

       - Boa noite meus queridos - ela sussurrou.

       Não pude acreditar que Corrine ia permitir que seus dois filhos maiores, de sexo oposto, dormissem na mesma cama. Oh! Senhor, tudo que John Amos havia previsto estava acontecendo! Lancei um olhar mal humorado a Corrine.

       - Seus filhos mais velhos não podem dormir na mesma cama!

       Ela me olhou surpresa.

       - São apenas crianças - respondeu. - Mamãe, você não mudou nada, mudou? Sua mente continua maldosa! Christopher e Cathy são inocentes!

       - Inocentes? - respondi bruscamente. - Exatamente isso eu e seu pai pensávamos sobre você e seu tio.

       Corrine empalideceu.

       - Se pensa assim, então ponha-os em quartos e camas separados! Deus sabe quantos quartos tem esta casa!

       - Isso é impossível - eu disse friamente. - Este é o único quarto que tem banheiro e o único que fica bem longe do quarto de meu marido. Este é o único lugar

da casa distante o bastante para Malcolm não ouvir o barulho da descarga e seus filhos andando em cima da sua cabeça. Se ficarem espalhados pelo segundo andar, ele ouvirá suas vozes e os empregados também. Pensei nisso por muito tempo. Este é o único quarto seguro. Ponha duas meninas em uma cama e os garotos na outra - ordenei.

       Corrine se recusou a olhar para mim. Agarrou o garotinho gêmeo e o levou até a cama vazia. Os dois mais velhos ficaram olhando para mim enquanto eu ditava as regras que teriam que seguir naquele quarto.

       Depois que terminei, Corrine puxou as outras duas crianças para junto de si. As mãos dela afagavam suas costas e seus cabelos.

       - Está tudo bem, acreditem em mim - ela sussurrou.

       A seguir me olhou por um instante. Sua face estava contorcida com a expressão mais feroz que eu já havia visto em seus olhos.

       Mãe, tenha um pouco de compaixão de meus filhos. Eles têm o seu sangue, não esqueça disso.

       Enquanto ela me expunha a relação de valores e virtudes de seus filhos, decidi cerrar os ouvidos as suas palavras. Aquelas crianças não tinham uma só gota do meu sangue, nem mesmo Corrine. Porém eu a havia amado como se fosse minha própria filha e agora, pelo amor de Deus, eu não iria permitir que meus sentimentos me impedissem de cumprir a minha missão. Eu estava sendo tentada por seus apelos e pela meiguice das crianças; mas fui forte e endureci meu coração. Quando Corrine percebeu que suas palavras não estavam surtindo efeito, virou-se para os filhos e lhes desejou boa noite.

       Esperei Corrine se despedir das crianças, depois puxei-a pelo braço e a tirei de dentro do quarto. Antes de fechar a porta, olhei para as crianças. Os gêmeos dormiam profundamente. Os outros dois estavam parados um ao lado do outro. O garoto segurava a mão da menina do mesmo jeito que Christopher costumava segurar a mão de Corrine. Eu o vi mergulhar nos olhos dela e percebi que havia um sorriso em seu olhar. Aquele sorriso provocou um arrepio gelado que me percorreu a espinha. Era um sorriso que eu já conhecia - o sorriso de Christopher para Corrine, o sorriso que a cegueira me impediu de ver. Mas agora meus olhos estavam bem abertos.

       Fechei a porta atrás de mim.

 

                                                                                            V.C. Andrews

 

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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