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A aventura da tumba egípcia / Agatha Christie
A aventura da tumba egípcia / Agatha Christie

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A aventura da tumba egípcia

 

Sempre considerei que uma das mais emocionantes e dramáticas das muitas aventuras que tenho partilhado com Poirot foi à investigação da estranha sucessão de mortes que se seguiram à descoberta e à abertura da tumba do faraó egípcio Men-her-Ra.

 

Logo depois de descoberta da tumba de Tutankamon por Lorde Carnavon, Sir John Willard e o Sr. Bleibner, de Nova York, realizando escavações não muito longe do Cairo, nas proximidades das pirâmides de Gisé, depararam inesperadamente com uma série de câmaras mortuárias. A descoberta despertou o maior interesse. A tumba parecia ser de Men-her-Ra, um daqueles faraós pouco conhecidos da oitava dinastia, quando o Antigo Império entrava em decadência. Pouco se sabe a respeito desse período, e a descoberta das câmaras mortuárias foi amplamente noticiada pelos jornais.

 

Não demorou muito para que ocorresse algo que impressionou a opinião pública. Sir John Willard morreu subitamente, de um ataque cardíaco. Os jornais mais sensacionalistas aproveitaram imediatamente a oportunidade para ressuscitar todas as antigas histórias supersticiosas relativas ao azar atribuído a determinados tesouros egípcios. A história da múmia fatídica foi prontamente contestada pelo Museu Britânico, mas mesmo assim esteve em voga por algum tempo. Quinze dias depois, o sr. Bleibner também morreu, de envenenamento de sangue. Alguns dias depois, um sobrinho dele foi mortalmente baleado em Nova York. A “multidão de Men-her-Ra” tornou-se o assunto do dia, e o poder mágico do antigo Egito passou a ser exaltado a um ponto quase fetichista.

 

Foi nessa ocasião que Poirot recebeu um bilhete de Lady Willard, viúva do arqueólogo falecido, pedindo-lhe que fosse visitá-la em sua casa, na Kensington Square. Acompanhei-o. Lady Willard era uma mulher alta e magra, e estava de luto fechado. O rosto encovado era um testemunho eloqüente de sua dor recente.

 

 - É muita bondade da sua parte ter atendido tão prontamente ao meu pedido, M. Poirot.

 - Estou ao seu inteiro dispor, Lady Willard. Desejava consultar-me a respeito de algum problema?

 - Sei perfeitamente que é um detetive. Mas não é apenas como detetive que desejo consultá-lo. Sei também que é um homem de opiniões originais, dotado de imaginação, com experiência do mundo ... Diga-me uma coisa, M. Poirot: quais são suas opiniões a respeito do sobrenatural?

 

Poirot hesitou um momento antes de responder. Parecia estar considerando a resposta. Mas finalmente disse:

 - Não vamos deixar que fique qualquer mal-entendido, Lady Willard. Não está me fazendo uma pergunta de caráter geral. Tem uma aplicação pessoal, não é mesmo? Está se referindo indiretamente à morte de seu marido?

 - Exatamente.

 - Deseja que eu investigue as circunstâncias da morte dele?

 - Quero que verifique o que não passa de conversa dos jornais e o que exatamente está baseado nos fatos. Foram três mortes, M. Poirot. Cada uma delas é perfeitamente explicável por si mesma. Mas, juntas, constituem uma coincidência quase inacreditável. E todas ocorreram no prazo de um mês depois da abertura da tumba! Pode ser mera superstição, e pode ser alguma poderosa maldição do passado, que opera através de meios nem sequer sonhados pela ciência moderna. Seja como for, permanece o fato de que ocorreram três mortes. E estou com medo, M. Poirot, com um medo terrível! Talvez ainda não tenha terminado.

 - Por quem está temendo?

 - Por meu filho. Eu estava doente quando recebi a notícia da morte de meu marido. Meu filho, que tinha acabado de sair de Oxford, foi até lá. Trouxe... o corpo de volta. Mas agora partiu novamente, apesar de minhas preces e súplicas. Está tão fascinado pelo trabalho de arqueologia que pretende tomar o lugar do pai e prosseguir nas escavações. Pode me julgar uma mulher tola e crédula, M. Poirot, mas a verdade é que estou com muito medo. E se o espírito do faraó morto ainda não estiver apaziguado? Talvez lhe pareça que estou dizendo bobagens...

 - Absolutamente, Lady Willard - disse Poirot rapidamente. - Também acredito na força da superstição, uma das maiores forças que o mundo já conheceu.

 

Fitei-o, espantado. Nunca antes imaginara que Poirot fosse supersticioso. Mas era evidente que meu pequeno amigo não estava brincando.

 - O que está realmente querendo é que eu proteja seu filho, não é mesmo? Pois farei tudo o que estiver ao meu alcance para impedir que algo de mau lhe aconteça.

 - Pelos meios comuns, é possível. Mas o que poderá fazer contra as influências ocultas?

 - Em livros da Idade Média, Lady Willard, encontram-se muitas maneiras de neutralizar a magia negra. Talvez eles soubessem mais do que nós, homens modernos, com toda a nossa ciência, de que tanto nos gabamos. Agora, vamos aos fatos, a fim de que eu possa ter algo para me orientar. Seu marido sempre foi um egiptólogo devotado?

 - Sempre, desde a juventude. Era uma das maiores autoridades vivas no assunto.

 - Mas o Sr. Bleibner, pelo que sei, não era mais ou menos um amador?

 - Isso mesmo. Era um homem muito rico, que volta e meia se dedicava com afinco a qualquer coisa que lhe atraísse a fantasia. Meu marido conseguiu interessá-lo em egiptologia. E o dinheiro dele foi extremamente útil no financiamento da expedição.

 - E o que me diz do sobrinho? Conhece por acaso os interesses dele? O rapaz também participou da expedição?

 - Creio que não. Para dizer a verdade, eu não sabia de sua existência até o momento em que li a notícia de sua morte nos jornais. Também não creio que fosse muito chegado ao Sr. Bleibner, que nunca nos falou sobre nenhum parente.

 - Quem eram os outros membros da expedição?

 - Há o Dr. Tosswill, funcionário subalterno do Museu Britânico; o Sr. Schneider, do Museu Metropolitano de Nova York; um jovem secretário americano; o Dr. Ames, que acompanhou a expedição, em caráter profissional; e Hassan, o devotado criado nativo de meu marido.

 - Lembra-se do nome do secretário americano?

 - Harper, se não me engano. Mas não tenho certeza. Sei que ele não estava há muito tempo com o Sr. Bleibner. Pareceu-me um rapaz extremamente simpático.

 - Obrigado, Lady Willard.

 - Se houver mais alguma coisa... ?

 - No momento, não há mais nada. Deixe tudo em minhas mãos, e pode estar certa de que farei o que for humanamente possível para proteger seu filho.

 

Não eram palavras das mais tranqüilizadoras, e observei que Lady Willard estremeceu ao ouvi-Ias. Contudo, o fato de Poirot não ter escarnecido de seus temores pareceu representar um alívio imenso para ela.

 

De minha parte, devo dizer que nunca antes suspeitara de que Poirot possuísse um veio supersticioso tão profundo em sua natureza. Abordei o assunto quando voltamos para casa. A atitude dele foi extremamente grave e compenetrada.

 

- Claro que acredito nessas coisas, Hastings. Não deve subestimar a força da superstição.

- O que vamos fazer?

- Toujours pratique[1], o bom Hastings! Eh bien, para começar, vamos passar um cabograma para Nova York, pedindo mais detalhes a respeito da morte do jovem Bleibner.

 

Poirot passou o cabograma. A resposta foi completa e detalhada. O jovem Rupert Bleibner estava em péssima situação havia vários anos. Vagabundeara pelas ilhas dos mares do sul durante muito tempo. Voltara

para Nova York dois anos antes e rapidamente afundara ainda mais. O fato mais significativo, em minha opinião, é o dinheiro que conseguira emprestado, necessário para ir ao Egito. “Tenho um bom amigo lá no Egito que me poderá arrumar muito dinheiro”, alegara ele.

 

Nisso, porém, seus planos tinham saído errado. Ele voltara para Nova York amaldiçoando o tio avarento, que se importava mais com os ossos de reis há muito mortos e enterrados do que com sua própria carne e seu

próprio sangue. Fora durante sua estada no Egito que ocorrera a morte de Sir John Willard. Rupert mergulhara novamente numa vida desregrada em Nova York. E inesperadamente se suicidara, deixando uma

carta que continha algumas frases estranhas. Parecia ter sido escrita num súbito acesso de remorso. Referia-se a si mesmo como um leproso e um pária, encerrando a carta com a declaração de que pessoas como ele estavam melhor quando mortas.

 

Uma teoria insinuou-se rapidamente em minha mente. Eu nunca tinha acreditado mesmo na possibilidade de vingança de um faraó egípcio morto há séculos. Para mim, tratava-se de um crime mais moderno. O rapaz decidira matar o tio, de preferência com veneno. Por engano, fora Sir John Willard quem ingerira a dose fatal. O rapaz voltara para Nova York, atormentado pelo crime. Recebera a notícia da morte do tio. Compreendera que seu crime fora desnecessário e, abalado pelo remorso, acabara se suicidando.

 

Expus minha teoria a Poirot, que se mostrou bastante interessado.

 

 - É uma teoria engenhosa... realmente engenhosa. Pode até mesmo ser verdade. Mas não está levando em consideração a influência fatal da tumba egípcia.

 

Dei de ombros.

 

 - Ainda acha que isso tem alguma coisa a ver com os acontecimentos?

 - Estou tão convencido disso, mon ami, que vamos partir para o Egito amanhã.

 - O quê? - gritei, atônito.

 - É isso mesmo. - Uma expressão de heroísmo consciente estampou-se no rosto de Poirot. Depois, ele resmungou e se lamentou: - Ah, o mar! O abominável mar!

 

Uma semana se havia passado. Sob os nossos pés, as areias douradas do deserto. O sol ardente despejavasse sobre nossas cabeças. Poirot era a própria imagem do sofrimento, todo encolhido e abatido. O homenzinho não era um bom viajante. A viagem de quatro dias, a partir de Marselha, fora uma terrível agonia para ele. Desembarcara em Alexandria como uma caricatura do que era normalmente, nem mesmo continuava a ser impecável. Chegáramos ao Cairo e seguíramos imediatamente para o Hotel Mena House, à sombra das pirâmides. O encanto do Egito prontamente me fascinara. Mas o mesmo não acontecera com Poirot. Vestido precisamente da mesma maneira que em Londres, sempre levava no bolso uma pequena escova de roupa, travando uma batalha incessante contra a poeira que se acumulava em sua roupa escura.

 

 - E minhas botas! - lamentava-se ele, a todo instante. - Olhe só para elas, Hastings! Minhas botas de couro preto envernizado, geralmente tão elegantes e reluzentes! Mas, agora, há areia por dentro, o que é doloroso, e também por fora, o que constitui um ultraje à vista. E há também este calor infernal, que faz com que meu bigode penda para baixo!

 - Contemple a Esfinge, Poirot. Até eu posso sentir o mistério e o encanto que ela irradia.

 

Poirot olhou, contrafeito.

 

 - A Esfinge não tem um ar feliz, meu amigo. E como poderia ter, semi-enterrada na areia de forma tão desleixada? Ah, esta maldita areia!

 - Ora, Poirot, há também muita areia na Bélgica falei, recordando alguns dias que passara em Knokke-mer, no meio das “dunes impeccables”, segundo o guia turístico.

 - Não em Bruxelas - declarou Poirot, olhando pensativo para as pirâmides e acrescentando: - É verdade que elas pelo menos possuem uma forma sólida e geométrica, mas a superfície é irregular, de maneira extremamente desagradável. E não gosto absolutamente das palmeiras. Eles nem mesmo as plantam em fileiras!

 

Interrompi as lamentações dele, sugerindo que partíssemos imediatamente para o acampamento. Fomos até lá em camelos. Os animais se ajoelharam pacientemente, esperando que montássemos, sob os cuidados de diversos meninos pitorescos, comandados por um loquaz intérprete. Não vou me deter no espetáculo de Poirot sobre um camelo. Ele começou com resmungos e lamentações e terminou com gritos, gesticulações e

invocações à Virgem Maria e a todos os santos do calendário. Ao final, acabou desmontando do camelo ignominiosamente e concluiu a viagem num minúsculo jumento. Tenho de reconhecer que montar um camelo não é brincadeira de amador. Passei vários dias com os músculos doloridos e com a maior dificuldade em me mexer. Finalmente, chegamos ao local das escavações. Um homem queimado de sol, de barba grisalha e roupas brancas, usando um capacete, veio ao nosso encontro.

 

 - M. Poirot e capitão Hastings? Recebemos o cabograma que mandaram. Lamento que não houvesse ninguém para recebê-los no Cairo, mas é que ocorreu um acontecimento imprevisto, que alterou inteiramente nossos planos.

 

Poirot empalideceu. Sua mão, que estava se encaminhando para a escova de roupa, parou no meio do caminho.

 

E ele balbuciou:

 - Houve outra morte?

 - Exatamente.

 - Sir Guy Willard? - gritei.

 - Não, capitão Hastings. Foi meu colega americano, o sr. Schneider.

 - E qual foi a causa? - indagou Poirot.

 - Tétano.

 

Desta vez, fui eu que empalideci. Tudo ao meu redor parecia exalar uma atmosfera maléfica, sutil e ameaçadora. Um pensamento horrível me ocorreu. E se eu fosse o próximo?

 

 - Mon Dieu, não consigo compreender isso! – disse Poirot, em voz muito baixa. - É horrível! Diga-me, monsieur, não resta a menor dúvida de que foi mesmo tétano?

 - Creio que não. Mas o dr. Ames poderá dizer-lhe mais do que eu.

 - Ah, sim, não é médico...

 - Não. Meu nome é Tosswill.

 

Era o perito que Lady Willard descrevera como um funcionário subalterno do Museu Britânico. Havia algo ao mesmo tempo grave e resoluto no homem que imediatamente me atraiu a atenção. O dr. Tosswill acrescentou:

 

 - Se quiserem me acompanhar, eu os levarei a Sir Guy Willard. Ele pediu para ser informado assim que chegassem.

 

Atravessamos o acampamento até uma tenda quente. O dr. Tosswill puxou a abertura da tenda e entramos. Três homens estavam sentados lá dentro.

 

 - M. Poirot e o capitão Hastings chegaram, Sir Guy - anunciou Tosswill.

 

O mais jovem dos três homens levantou-se imediatamente e adiantou-se para nos cumprimentar. Havia uma certa impulsividade em suas maneiras que me lembrava a mãe. Não estava tão queimado de sol quanto os outros. Isso e mais os olhos fundos faziam com que parecesse ter mais que seus vinte e dois anos. Era evidente que estava se esforçando ao máximo para se manter firme, sob uma tremenda tensão mental. Apresentou-nos a seus dois companheiros, o dr. Ames, um homem que aparentava competência, de trinta e poucos anos e com têmporas grisalhas, e o sr. Harper, o secretário, um jovem magro e simpático, que usava óculos de aros de tartaruga. Depois de alguns minutos de conversa superficial, o secretário saiu, e o dr. Tosswill logo o seguiu. Ficamos a sós com Sir Guy e o dr. Ames.

 

- Por favor, pode fazer quaisquer perguntas que desejar, M. Poirot - disse Willard. - Estamos terrivelmente estarrecidos com essa estranha sucessão de desastres, mas tenho certeza de que não ... não pode ser algo mais do que uma horrível coincidência. Havia um certo nervosismo na atitude dele que parecia contradizer

inteiramente suas palavras. Percebi que Poirot o estava examinando atentamente.

 - Seu coração está realmente empenhado neste trabalho, Sir Guy?

 - Claro que está! Não importa o que possa acontecer ou quais as conseqüências, o trabalho vai continuar. Não tenha a menor dúvida quanto a isso.

 

Poirot virou-se para o outro homem.

 - E o que me diz quanto a isso, monsieur le docteur?

 - Eu também não vou largar o trabalho.

 

Poirot exibiu uma daquelas suas carrancas expressivas, antes de dizer:

 - Neste caso, évidemment, temos que descobrir exatamente qual é a situação. Quando ocorreu a morte do sr. Schneider?

 - Há três dias.

 - Tem certeza de que foi mesmo tétano?

 - Absoluta.

 - Não poderia ser, por exemplo, um caso de envenenamento por estricnina?

 - Não, M. Poirot. Percebo onde está querendo chegar. Mas foi um caso claro de tétano.

 - Não injetou o soro antitetânico?

 - Claro que injetei - respondeu o médico, secamente. – Foi tentado tudo o que era possível.

 - Tinha o soro antitetânico aqui?

 - Não. Mandamos buscá-lo no Cairo.

 - Houve outros casos de tétano no acampamento?

 - Nenhum.

 - Tem certeza de que a morte do sr. Bleibner não foi causada por tétano?

 - Certeza absoluta. Ele arranhou o polegar, o ferimento infeccionou e sobreveio a septicemia. Eu diria que pode parecer a mesma coisa para um leigo, mas são inteiramente diferentes.

 - Isso significa que temos quatro mortes, e todas totalmente diferentes: uma por ataque cardíaco, uma por envenenamento do sangue, uma por suicídio e uma por tétano.

 - Exatamente, M. Poirot.

 - Tem certeza de que não há nada que possa ligar as quatro mortes?

 - Não estou entendendo.

 - Vou ser mais claro. Houve algum ato cometido por esses quatro homens que pudesse ser considerado um desrespeito ao espírito de Men-her-Ra?

O médico ficou atônito.

 - Está dizendo um disparate, M. Poirot. Não me diga que também acredita em toda essa conversa tola!

 - Tudo isso não passa de um absurdo! – murmurou Willard, visivelmente furioso.

 

Poirot permaneceu placidamente impassível, piscando ligeiramente os olhos verdes de gato.

 - Quer dizer que não acredita, monsieur le docteur?

 - Não, não acredito - declarou o médico, taxativamente. - Sou um homem de ciência, e acredito apenas no que a ciência ensina.

 - E não havia ciência no antigo Egito? – indagou Poirot, suavemente. Ele não esperou a resposta, que certamente iria demorar, pois o dr. Ames parecia momentaneamente confuso. – Não precisa me responder, dr. Ames. Só gostaria que me dissesse uma coisa: o que pensam de tudo isso os trabalhadores nativos?

 - Creio que, quando os homens brancos perdem a cabeça, os nativos não ficam muito atrás. Reconheço que eles estão ficando o que se poderia classificar de apavorados... mas não há a menor causa para isso.

 - Tenho minhas dúvidas - murmurou Poirot; calmamente.

 

Sir Guy inclinou-se para frente, incrédulo:

 - Mas não pode acreditar nessas coisas! É absurdo demais! Se pensa assim, não conhece nada do antigo Egito!

 

Como resposta, Poirot tirou do bolso um livro pequeno, já antigo e meio esfrangalhado. Quando ele o mostrou, pude ler o título: A magia dos egípcios e caldeus. Depois, virando-se bruscamente, meu pequeno amigo saiu da tenda. O médico ficou olhando para mim, aturdido.

 - Que idéia luminosa terá tido ele?

A expressão, tão familiar nos lábios de Poirot, fez-me sorrir, ao ouvi-la de outro.

 - Não sei exatamente. Mas tenho a impressão de que ele tem um plano para exorcizar os espíritos do mal.

 

Saí à procura de Poirot e encontrei-o conversando com o jovem de rosto encovado que fora secretário do falecido sr. Bleibner.

 - Não. Estou com a expedição há apenas seis meses

 - estava dizendo o sr. Harper. - Eu realmente conhecia bastante bem todos os negócios do sr. Bleibner.

 - Poderia me contar tudo o que sabe a respeito do sobrinho dele?

 - O rapaz apareceu aqui um belo dia, inesperadamente. Até que era simpático. Eu nunca o tinha visto antes, mas alguns dos outros já o conheciam... creio que Ames e Schneider. O velho não ficou nada satisfeito com a presença do sobrinho. E não demoraram a ter uma discussão violenta. “Não lhe vou dar um só centavo!”, gritou o velho. “Nem agora nem depois que eu estiver morto! Tenciono deixar todo o meu dinheiro para financiar o trabalho da minha vida. Hoje mesmo conversei com o sr. Schneider a esse respeito.” E continuou a falar mais algum tempo, repisando as mesmas coisas. O jovem Bleibner voltou imediatamente para o Cairo.

 - Ele gozava de saúde perfeita na ocasião?

 - O velho?

 - Não, o rapaz.

 - Tenho a impressão de que ele mencionou haver alguma coisa errada consigo. Mas não devia ser nada sério, caso contrário eu me lembraria agora.

 - Só mais uma coisa: o sr. Bleibner deixou testamento?

 - Não, pelo que sabemos.

 - Vai ficar com a expedição, sr. Harper?

 - Não, senhor. Partirei para Nova York assim que deixar tudo aqui acertado. Pode rir, se quiser, mas não pretendo ser a próxima vítima desse maldito Men-her-Ra. Vai acabar me pegando, se eu continuar por aqui. O jovem secretário enxugou o suor da testa. Poirot virou-se e começou a se afastar. Parou por um momento, virou a cabeça para trás e comentou, com um sorriso estranho:

 - Não se esqueça de que ele foi pegar uma de suas vítimas em Nova York.

 - Oh, diabo! - exclamou o sr. Harper, angustiado.

Assim que nos afastamos, Poirot disse, pensativo:

 - O rapaz está nervoso ... muito nervoso ...

 

Olhei para Poirot, curioso, mas seu sorriso enigmático nada me disse. Em companhia de Sir Guy Willard e do dr. Tosswill, demos uma volta pelas escavações. Os principais achados tinham sido transferidos para o Cairo, mas alguns dos ornamentos da tumba que ainda restavam eram extremamente interessantes. O entusiasmo do jovem baronete era evidente, mas tive a impressão de perceber uma sombra de nervosismo em sua atitude, como se ele não conseguisse livrar-se inteiramente da sensação de ameaça que pairava no ar. Ao entrarmos na tenda que nos fora designada, para nos lavarmos antes da refeição vespertina, um homem alto e moreno, numa túnica branca, deu um passo para o lado, a fim de nos deixar passar, com um gesto gracioso e murmurando um cumprimento em árabe. Poirot parou.

 

 - Você é Hassan, o criado do falecido Sir John Willard?

 - Servi a Sir John e agora sirvo ao filho dele. Deu um passo em nossa direção e acrescentou, baixando a voz: - Dizem que é um homem sábio, que sabe lidar com os espíritos do mal. Faça com que o jovem amo vá embora daqui. O mal está no ar, ao nosso redor.

E com um gesto abrupto, sem esperar resposta, afastou-se.

 - O mal está no ar... - murmurou Poirot. - Isso mesmo, estou sentindo ...

 

A refeição não foi das mais animadas. O dr. Tosswill falou durante a maior parte do tempo, discorrendo sobre as antiguidades egípcias. No momento em que estávamos prestes a sair, para repousar um pouco, Sir Guy segurou Poirot pelo braço e apontou. Um vulto sorrateiro estava se deslocando entre as tendas. Não era humano. Reconheci nitidamente a cabeça de cachorro que já vira esculpida nas paredes da tumba. Senti o sangue literalmente congelar nas veias.

 - Mon Dieu! - exclamou Poirot, fazendo o sinal-da-cruz vigorosamente. - Anúbis, o cabeça de chacal, o deus das almas que partem!

 - Alguém está querendo nos enganar! - gritou o dr. Tosswill, indignado, levantando-se rapidamente.

 - Entrou em sua tenda, Harper - murmurou Sir Guy, com o rosto terrivelmente pálido.

 - Não - disse Poirot, sacudindo a cabeça -,entrou foi na tenda do dr. Ames.

O médico ficou olhando para ele por um momento, com uma expressão de incredulidade. E, depois, repetiu as palavras do dr. Tosswill:

 - Alguém está querendo nos enganar! Vamos até lá pegar o camarada!

 

Saiu correndo atrás da aparição furtiva, e eu o segui. Por mais que procurássemos, no entanto, não conseguimos encontrar o menor vestígio de qualquer coisa viva que tivesse passado por ali. Ao voltarmos, um tanto perturbados, descobrimos que Poirot estava tomando medidas drásticas, à sua maneira, para garantir a própria segurança pessoal. Estava ativamente cercando nossa tenda com diversos diagramas e inscrições, que desenhava na areia. Reconheci a estrela de cinco pontas, muitas vezes repetida. Como era seu hábito, estava ao mesmo tempo proferindo um discurso de improviso sobre feitiçaria e magia em geral, discorrendo sobre a magia branca em oposição à magia negra, entremeando esses assuntos com diversas referências ao Ka e ao Livro dos Mortos.

 

Isso despertou o mais profundo desprezo do dr. Tosswill, que me puxou para um lado, literalmente grunhindo de raiva. E exclamou, furioso:

 

 - Nunca vi tanto disparate em minha vida! O homem não passa de um impostor! Não tem a menor idéia da diferença entre as superstições da Idade Média e as crenças do antigo Egito! Nunca vi tamanha demonstração de ignorância e credulidade.

 

Tratei de acalmar o irado egiptólogo, e depois fui juntar-me a Poirot na tenda. Meu pequeno amigo estava radiante, e declarou jovialmente:

 - Agora podemos dormir em paz. E bem que estou precisando de algum sono! Minha cabeça está doendo terrivelmente. Ah, o quanto eu não daria agora por uma boa tisanel.

 

Como em resposta a sua prece, a abertura da tenda foi empurrada para o lado, e Hassan apareceu, trazendo uma xícara fumegante, que ofereceu a Poirot. Era chá de camomila, algo que Poirot apreciava particularmente. Depois que ele agradeceu a Hassan e eu recusei a oferta de uma xícara para mim, ficamos mais uma vez a sós. Logo que me despi, fiquei parado por algum tempo à entrada da tenda, contemplando o

deserto.

 - Um lugar e um trabalho maravilhosos! - comentei, em voz alta. - Posso sentir todo o fascínio. Ah, a vida no deserto, à procura dos vestígios de uma civilização desaparecida ... Não sente também esse fascínio, Poirot?

 

Não obtive resposta. Virei-me, um pouco aborrecido. E meu aborrecimento imediatamente se transformou em preocupação. Poirot estava deitado de costas no catre tosco, com o rosto horrivelmente convulsionado. A seu lado estava a xícara vazia. Corri para o lado dele, depois saí quase voando da tenda e atravessei o acampamento até a tenda do dr. Ames.

 - Dr. Ames! Venha imediatamente!

 - O que aconteceu? - perguntou o médico, aparecendo na entrada da tenda, de pijama.

 - Meu amigo caiu doente! Está morrendo! Foi o chá de camomila! Não deixem Hassan sair do acampamento!

 

Como um relâmpago, o médico correu para a nossa tenda. Poirot continuava deitado da maneira como eu o deixara.

 - Extraordinário! - gritou Ames. - Parece um acesso ... ou ... o que foi mesmo que ele bebeu?

 

Abaixando-se, o médico pegou a xícara vazia. E, nesse momento, uma voz plácida disse:

 - Só que eu não bebi.

 

Viramo-nos, espantados. Poirot estava sentado no catre, sorrindo. E acrescentou, suavemente:

 - Isso mesmo, não bebi o chá. Enquanto meu bom amigo Hastings estava contemplando a noite, aproveitei a oportunidade para despejar a beberagem, não por minha garganta, mas sim num pequeno vidro. E esse pequeno vidro será entregue para uma análise química.

 

O médico fez um movimento súbito, e Poirot disse:

- Não, meu caro, não faça isso. Como um homem sensato, deve compreender que a violência de nada adiantará. Durante a breve ausência de Hastings, para ir buscá-lo, tive tempo suficiente para guardar o vidro num lugar seguro. Ah, depressa, Hastings, agarre-o! Interpretei erroneamente a ansiedade de Poirot. Preocupado em salvar meu amigo, joguei-me na frente dele. Mas o movimento rápido do médico tinha outro objetivo. Ele levou a mão à boca, e um cheiro de amêndoas impregnou o ar. Um momento depois, o dr. Ames cambaleou para frente e caiu.

 

 - Outra vítima - disse Poirot, solenemente. - Mas é a última. Talvez seja melhor assim. Ele já tinha três mortes na consciência.

 - O dr. Ames? - gritei, atordoado. - Mas pensei que você acreditasse em influências ocultas!

 - Creio que me entendeu mal, Hastings. Declarei que acredito na força terrível da superstição. A partir do momento em que está solidamente determinado que uma série de mortes é sobrenatural, pode-se quase apunhalar um homem em plena luz do dia, e isso será atribuído a alguma maldição, tão forte é o instinto do sobrenatural na raça humana. Desconfiei desde o início que algum homem estivesse tirando proveito desse instinto. Creio que a idéia lhe ocorreu com a morte de Sir John Willard. Surgiu imediatamente uma onda de superstições. Pelo que pude verificar, ninguém tiraria qualquer proveito da morte de Sir John. O mesmo já não acontecia com a morte do sr. Bleibner, que era um homem muito rico. A informação que recebi de Nova York continha diversos pontos bastante sugestivos.

 

Para começar, o jovem Bleibner dissera que tinha um bom amigo no Egito, de quem poderia tomar dinheiro emprestado. Tacitamente, todos encararam tal declaração como uma referência ao tio. Mas pareceu-me que, se assim fosse, ele o teria dito expressamente. As palavras pareciam indicar algum amigo generoso que ele tinha aqui. Outra coisa: ele conseguiu arrumar dinheiro suficiente para viajar até o Egito; chegando aqui, o tio recusou dar-lhe um só centavo que fosse; mesmo assim, conseguiu pagar a passagem de volta para Nova York. Alguém devia ter emprestado o dinheiro necessário.

 - Mas tudo isso é muito superficial, Poirot!

 - Havia mais. Muitas vezes, Hastings, palavras pronunciadas metaforicamente são encaradas literalmente. O inverso também pode acontecer. Neste caso, as palavras que são ditas literalmente podem ser encaradas como uma metáfora. O jovem Bleibner escreveu claramente: “Sou um leproso”. Mas ninguém percebeu que ele se suicidou porque pensava ter realmente contraído essa terrível doença.

 - O quê?

 - Foi uma idéia astuciosa de uma mente diabólica.

 

O jovem Bleibner estava sofrendo de alguma doença de pele sem maior importância. Vivera nas ilhas dos mares do sul, onde tais doenças são bem freqüentes. Ames era um velho amigo dele e um médico famoso. O

jovem Bleibner jamais poderia duvidar das palavras dele. Quando cheguei aqui, minhas suspeitas se dividiam entre Harper e o dr. Ames. Mas não demorei a compreender que somente o médico poderia ter cometido e ocultado os crimes. E descobri também, por intermédio de Harper, que o dr. Ames já conhecia anteriormente o jovem Bleibner. Não resta a menor dúvida de que o jovem Bleibner deve ter feito um testamento ou um seguro de vida a favor do médico. E este viu sua grande oportunidade de ficar rico. Não teve a menor dificuldade em inocular os germes fatais no sr. Bleibner. Depois, o sobrinho, esmagado pelo desespero diante da terrível notícia que o amigo lhe dera, acabou se matando com um tiro. O sr. Bleibner, quaisquer que fossem suas intenções, não tinha feito testamento. Toda a sua fortuna passaria para o sobrinho, e dele para o sr. Ames.

 - E o que me diz do sr. Schneider?

 - Não podemos ter certeza sobre o papel que ele desempenhou na história. Mas não nos esqueçamos de que também já conhecia o jovem Bleibner. Talvez tenha desconfiado de alguma coisa. Mas é possível também que o dr.

 

Ames tenha chegado à conclusão de que mais uma morte, sem motivo e sem sentido, iria reforçar a aura de superstição. Além do mais, Hastings, há um fato psicológico dos mais interessantes. Um assassino é invariavelmente dominado pelo desejo intenso de repetir seu crime bem-sucedido.

 

Era esse o motivo de minhas apreensões pelo jovem Willard. O vulto de Anúbis que você viu esta noite era Hassan, assim vestido por ordens minhas. Eu queria ver se conseguia assustar o dr. Ames. Mas seria preciso muito mais do que o sobrenatural para assustá-lo. Percebi que ele não acreditava inteiramente em minha simulação de crença nos poderes ocultos. Desconfiei que ele tentaria fazer de mim a próxima vítima. Ah, mas apesar de la mer maudite, do calor abominável e dos incômodos da areia, as pequenas células cinzentas ainda funcionam! Todas as suposições de Poirot foram confirmadas. Alguns anos antes, num auge de embriaguez, o jovem Bleibner fizera de brincadeira um testamento, deixando “minha cigarreira que ele tanto admira e tudo o mais que eu possuir ao morrer, o que consiste principalmente em dívidas, para o meu bom amigo Robert Ames, que certa ocasião me salvou de um afogamento”.

 

O caso foi abafado ao máximo possível. Até hoje, as pessoas ainda comentam a estranha sucessão de mortes relacionadas com a tumba de Men-ber-Ra como uma prova incontestável da vingança de um faraó do passado contra os profanadores. Tal crença, segundo Poirot me ressaltou, é absolutamente contrária a todas as crenças e pensamentos dos antigos egípcios.



[1] “Sempre prático”. Em francês no original. (N. do E.)

 

                                                                                            Agatha Christie

 

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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